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▪ João Miguel Tavares

▪ Este texto foi publicado originalmente a 20 de Agosto de


2020

António Costa nomeou Vítor Escária como seu chefe de gabinete. A maior parte das notícias
sobre a nomeação recordou que Escária se demitiu do governo em 2017, na sequência do caso
Galpgate (ele e a mulher foram constituídos arguidos por causa das viagens oferecidas pela Galp
ao Euro 2016, mas entretanto pagaram uma multa e não tiveram de ir a julgamento).
Infelizmente, o Galpgate não é, nem de perto nem de longe, o mais grave problema desta
nomeação.

Em bom rigor, há dúvidas de que Escária algum dia tenha deixado o governo e a assessoria
informal de António Costa, mesmo após a sua demissão. Ele foi visto em 2018 a entrar no
gabinete do primeiro-ministro (na altura, Costa garantiu que se tinha tratado apenas de “uma
boleia”) e, já em Julho deste ano, posou numa foto de família ao lado de António Costa e do
primeiro-ministro húngaro, Viktor Órban, durante uma reunião preparatória do Conselho
Europeu que decidiu os valores da famosa bazuca. Onde há negócios, dinheiro e diplomacia
económica, aí está Vítor Escária. Sempre foi assim e, pelos vistos, continua a ser, e de um modo
que não poderia ser mais assumido – ao colocar Escária como seu chefe de gabinete, António
Costa está a pôr os negócios e o dinheiro (neste caso, a enxurrada de fundos europeus) no centro
do seu governo.

Num país desatento e sem memória, vale a pena recordar que Escária foi o mais destacado
assessor económico de José Sócrates e o homem forte para a Venezuela durante os seus seis
anos de governo. Após 2011, os contactos entre ambos continuaram, agora no sector privado,
até à detenção de Sócrates, em 2014. Há figuras fundamentais nos bastidores dos partidos e do
governo – como Escária ou Guilherme Dray –, cuja cara nós não conhecemos e que evitam
aparecer nos jornais, mas que são o óleo na engrenagem do bas-fond político-empresarial, os
facilitadores de negócios públicos e privados, sempre em nome, claro está, do “interesse
nacional”.

Vítor Escária é citado 83 vezes na acusação da Operação Marquês. Foi ele o principal
intermediário no negócio das casas do grupo Lena na Venezuela. Chegou a estar sob escuta,
houve buscas a sua casa e foi ouvido como testemunha no processo. Não foi acusado de
qualquer crime. Mas o que consta da acusação é suficientemente perturbante para qualquer
primeiro-ministro ter a obrigação política de se manter à distância.

Após 2011, Escária formou uma empresa de consultadoria com três assessores de Sócrates: o
ex-espião José Almeida Ribeiro, Óscar Gaspar e Luís Bernardo. Em 2013 e 2014, Escária declarou
ter recebido 21.250 euros da Proengel II, sociedade de Carlos Santos Silva e do Grupo Lena. Em
2014, foi sócio de Alexandre Cavalleri (detido por suspeita de fraude), dono da empresa
Iguarivarius, da qual Mário Lino foi chairman (ler o longo artigo do Observador “Como um ex-
ministro e um ex-assessor de Sócrates ajudaram o rei do pernil de porco a conquistar a
Venezuela”).

Isto anda tudo escandalosamente ligado. Vítor Escária é um lobista, um facilitador e angariador
de negócios que António Costa acaba de colocar no coração do seu gabinete. O facto de o
primeiro-ministro assumir de forma tão aberta essa relação de confiança pessoal é
demonstrativo de uma continuidade preocupante com os tenebrosos anos 2005-2011. O facto
de esta notícia passar com um encolher de ombros é demonstrativo de que não aprendemos
nada com a Operação Marquês, e que o regime continua podre, pervertido e perigoso.

O autor é colunista do PÚBLICO

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