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IBN KHALDUN.

ENSINAMENTOS PARA UMA SOCIEDADE DE


(DES)INFORMAÇÃO

Juan Manuel Uruburu Colsa

Professor. Área de Estudos Árabes e Islámicos. Universidade de Sevilha.


uruburu@us.es

1. Introdução:

Hoje, mais de seiscentos anos após a sua morte, pode parecer ousado tentar dizer algo
de novo sobre a figura do tunisino Ibn Khaldun (1332-1406). No entanto, a magnitude e
profundidade do seu pensamento sempre supõe uma fonte generosa para reflectir sobre
a evolução histórica das sociedades humanas. Paradoxalmente, apesar de ser um dos
autores árabes mais estudados, podemos ver como o seu pensamento continua hoje em
dia a ser analisado de diferentes pontos de vista.

De certa forma, Ibn Khaldun é um autor difícil de classificar. Alguns o apresentam


como historiador, outros como filósofo, economista, até mesmo sociólogo, porque ele
foi realmente um expoente digno de qualquer um destes ramos da ciência. O seu
trabalho não é fruto de uma inspiração divina ou de uma mera habilidade em lidar com a
caneta, que ele tinha, mas sim de uma verdadeira aprendizagem vital e de uma
capacidade de análise do que vê e lê, fora do comum. O tunisino é um dos escolhidos
que consegue utilizar e combinar diferentes ramos da ciência, tais como geografia,
economia, sociologia ou religião, para interpretar a história da humanidade de uma
forma global.

Neste capítulo gostaríamos de sublinhar um aspecto que, em nossa opinião, é do maior


interesse, dentro da enorme gama de assuntos que este autor trata nas suas obras. Trata-
se da análise da transmissão de notícias, destinada à informação dentro das sociedades
humanas, no pensamento de Ibn Khaldun. Isto será contrastado com o contexto social
atual, ou seja, a chamada "sociedade da informação". Com este objetivo, destacaremos,
em primeiro lugar, os paralelismos existentes entre as reflexões deste autor sobre a
transmissão de informação e a realidade desenvolvida em torno dos meios de
comunicação atuais. Mais tarde, concentrar-nos-emos em três questões essenciais que
afetam o seu trabalho, tais como a relação entre informação e poder, as fontes de
informação e a qualidade do seu processamento.

1
2. Ibn Khaldun e a comunicação social

Apesar da distância no tempo e das enormes mudanças experimentadas nas sociedades


humanas, entendemos que muitas das reflexões de Ibn Khaldun, expressas no seu
grande trabalho, a Muqaddima1, continuam a ser de enorme relevância hoje em dia. É
verdade que as relações de poder nas sociedades humanas já não estão estabelecidas
numa luta entre tribos nómadas e sedentárias, como acontecia no século XIV. De facto,
atualmente, a maioria da população mundial aderiu ao sedentarismo como forma de
vida dentro dessa organização jurídica e política conhecida como o Estado. Contudo,
dentro dos Estados, a competição entre as elites pelo controlo das instituições políticas e
dos meios de produção de riqueza continua na ordem do dia, tanto nos países árabes
como nos países não árabes. É precisamente neste aspecto onde reside a perene
relevância do pensamento de Ibn Khaldun. As suas lições sobre solidariedade interna,
como meio de fortalecer as elites, parecem ser plenamente válidas face à força de alguns
grupos sociais. Grupos com laços políticos, religiosos, familiares ou orgânicos que hoje
concorrem, de forma evidente ou oculta, pelas altas esferas de poder nesta, ainda
recente, comunidade de estados em que o nosso planeta está organizado.

Apesar destas diferenças, este sabio tunisino consegue fazer com que as suas teorias
evoquem de imediato muitos processos e realidades que estamos a viver hoje. Um deles
é o fenómeno do desenvolvimento de uma sociedade estruturada em torno dos meios de
comunicação. A transmissão de informação sofreu uma profunda transformação nos
últimos dois séculos. Tradicionalmente, este trabalho era reservado, basicamente, a
historiadores, geógrafos e funcionários públicos que, através das suas notícias,
informavam o destinatário sobre acontecimentos distantes no tempo e no espaço. Mais
tarde, a partir do século XIX, o rápido desenvolvimento da indústria da comunicação,
ligada ao aparecimento de formatos como a imprensa escrita em papel, o rádio, o
audiovisual e, finalmente, o digital, deu novas dimensões ao processo de comunicação
social. Estas dimensões, global, no geográfico e imediata, no tempo, acrescentam novas
nuances à comunicação social, ao ponto de a tornar uma verdadeira ciência. Uma
ciência de comunicação em que se trata de analisar, sob critérios científicos, o
comportamento e impacto desta realidade, centrando-se na análise das características
tanto do emissor como do receptor e dos meios de transmissão na gestão e difusão em
massa da informação.

No entanto, apesar do imediatismo e da globalidade que presidem à comunicação


contemporânea, podemos ver como, essencialmente, a transmissão de informação, seja
através da narrativa histórica ou jornalística, responde ao mesmo objetivo, que é revelar
a verdade sobre os acontecimentos, da forma mais objetiva possível. Tendo em conta o
poder social derivado da transmissão em massa de informação, o alvo da veracidade
pode ser comprometido por uma série de fatores que Ibn Khaldun analisa no seu

1
Neste artigo utilizaremos a seguinte edição: Ibn Jaldun, (2008): Introducción a la historia universal (al-
Muqaddimah). Almuzara, Córdoba.

2
trabalho, tais como os interesses do emissor da informação, a veracidade das fontes
utilizadas e a intenção subjectiva subjacente à construção da história informativa. Sobre
estas questões, o estudioso tunisino fez uma série de reflexões que poderiam muito bem
ter o carácter de ensinamentos face à dinâmica atual dos meios de comunicação social.

3. Informação e poder

Entre as muitas questões que são tratadas por Khaldun na Muqaddima, há um capítulo
interessante no qual, de forma literária, ele resume a relação entre "a espada e a
caneta", ao longo das diferentes fases das dinastias 2. É um pequeno texto onde que o
tunisino analisa, ao longo do desenvolvimento dos regimes políticos, a inter-relação
existente num triângulo formado pelo soberano, o exército e aquilo a que o autor chama
"a caneta".

O conceito da caneta, à primeira vista, poderia ser assimilado ao da "administração


civil", em oposição à administração militar. No entanto, podemos ver que a ideia da
"caneta" engloba um conceito progressivo, dependendo do grau de evolução do Estado.
Na primeira fase, quando a força militar é uma prioridade para a consolidação do poder
do Estado, esta caneta "não é mais do que um servo ou um mero transmissor das
decisões da autoridade". É numa fase posterior, quando não houver grandes ameaças do
exterior e o Estado tiver conseguido consolidar a força das suas instituições, que "os
senhores da caneta" ocuparão um lugar central no exercício do poder:

".... serão então os senhores da caneta que gozarão de uma patente mais elevada,
posições mais altas, maiores benefícios e riqueza, estarão mais próximos do Sultão e
terão relações mais frequentes com ele e maior intimidade nos seus contactos privados.
Porque nesta situação ele é o instrumento que utiliza para obter os frutos do seu poder
(...) e para fazer a dinastia mostrar-se em todas as suas manifestações”.

O génio de Ibn Khaldun manifesta-se claramente nestas linhas quando sublinha uma
realidade indispensável para a estabilidade do Estado, tal como a relação entre o poder
político e os seus propagandistas. É evidente que hoje, mais de seiscentos anos após o
tunisino ter escrito estes textos, o mundo é substancialmente diferente. Assim, essa
"caneta" já não é mais composta por funcionários públicos obscuros que, no meio de
enredos palacianos, competiam pelo favor do soberano. A emergência da indústria da
comunicação como atividade comercial traz nuances novas e interessantes a essa
relação entre o poder e os seus propagandistas.

Neste sentido, parece claro que, hoje em dia, numa sociedade onde a informação está
muito presente na vida quotidiana dos cidadãos, a nova elite que exerce o poder através
da escrita é constituída pelos proprietários dos grandes meios de comunicação social,
que, por sua vez, são frequentemente apoiados por importantes empresas fora daquele
mundo.

2
Ibn Khaldun, (2008): “Que trata de las diferencias, en las diversas dinastías, entre la espada y la pluma”,
p. 450.

3
Do mesmo modo, na maioria dos casos, o poder político já não reside num soberano que
depende de uma elite estruturada em torno de laços de sangue, como disse Ibn Kaldun.
Tanto os Estados totalitários como os formalmente democráticos, baseiam-se em
complexos equilíbrios de poder, económicos, políticos e sociais, que de alguma forma
esbatem a figura clássica do soberano com plena capacidade de decisão.

Contudo, apesar das distâncias, Ibn Khaldun foca numa questão que, em nossa opinião,
é essencial, universal e intemporal, tal como a inter-relação entre o poder político e os
meios de comunicação social. Por um lado, os grandes meios de comunicação social
globais, tendem hoje a funcionar como "pontas de lança" de grandes conglomerados
empresariais com atividades económicas muito diferentes 3. É frequente observar como
dentro dos acionistas destes grupos empresariais encontram-se as principais empresas de
cada país nos campos financeiro, energético, de investimento ou de telecomunicações,
que operam a nível global. Isto supõe que estamos perante entidades que dependem, em
grande medida, da legislação estatal para manter e aumentar os seus benefícios
económicos. Paradoxalmente, em muitas ocasiões, estes grandes meios de comunicação
social são economicamente deficitários. Os grandes investimentos necessários para a
difusão de conteúdos, num contexto cada vez mais tecnológico, colocam estes meios de
comunicação numa lógica mercantil, em princípio contrária à motivação de lucro
inerente aos seus objetivos.

Assim, os constantes investimentos de capital que os grandes meios de comunicação


privados recebem só podem ser compreendidos a partir da mesma lógica que Ibn
Khaldun enunciou, isto é a de permitir aos seus propietários, "maiores lucros e riqueza,
estarão mais próximos do Sultão e terão com ele negócios mais frequentes e maior
intimidade nos seus contactos privados".

Por outro lado, a necessidade do poder político do apoio dos meios de comunicação
social é clara. Como disse Ibn Khaldun, a caneta "é o instrumento que ele utiliza para
obter os frutos do seu poder (...) e para fazer brilhar a dinastia em todas as suas
manifestações".

Atualmente, a maioria dos Estados modernos aderiram, pelo menos formalmente, ao


princípio democrático como base para a sua organização política. Tendo em conta que
estes Estados incluem, na maioria dos casos, populações compostas por milhões de
pessoas, é evidente que este princípio democrático funciona mais como uma enteléquia
do que como uma verdadeira realidade, ou pelo menos como um objetivo tangível. As
condições materiais do mundo contemporâneo tornam impossível que todas as decisões
políticas, pelo menos as de maior alcance, obedeçam a um mandato direto da maioria da
população ao seu governo. No entanto, os sistemas eleitorais fazem com que, pelo
menos uma vez em cada certo período, os governos precisem do aval direto dos
3
Por exemplo, en 1983, o holding empresarial PRISA, propietario do jornal español El País alterou os
seus estatutos para se tornar numa entidade que não só é dedicada às noticias, mas que pode
potencialmente abrangir qualquer atividade económica. Em Albornoz, L. et al., (2020) Grupo Prisa:
Media Power in Contemporary Spain. Routledge, London, New York.

4
cidadãos. Este é o momento de recolher ou não, os frutos da imagem que os meios de
comunicação social apresentam sobre os governanates4.

Desta forma, tanto o poder político como a mídia convergem numa série de interesses
complementares magistralmente descritos por Ibn Khaldun. Tendo em conta que a
realidade social e política do seu tempo eram substancialmente diferentes, só podemos
interpretar as reflexões do tunisino sobre esta questão como mais um exemplo da
universalidade espacial e temporal dos seus ensinamentos.

4. As fontes de informação

Ibn Khaldun, ao realizar o seu ambicioso projecto de análise das sociedades humanas,
sabia que ele tinha um ponto fraco. O seu método de extração de leis históricas
universais teve de se basear irremediavelmente em dados históricos fornecidos por
outros historiadores. Portanto, uma das suas maiores preocupações era o grau de
fiabilidade das fontes utilizadas:

"Requer numerosas fontes e conhecimentos variados, bem como conhecimentos sobre a


verificação dos dados, ambos conduzem à verdade para aqueles que os exercem e os
mantêm afastados de erros”5.

Hoje em dia, poder-se-ia dizer que a maioria dos meios de comunicação social apresenta
um problema estrutural semelhante ao que afetou o autor tunisino. Nomeadamente, a
maioria deles não tem capacidade para gerar muitas das informações que são
publicadas. A vocação global dos meios de comunicação, sejam eles internacionais,
nacionais ou mesmo regionais, leva-os a procurar informações sobre as principais
questões mundiais. Tendo em conta que seria financeiramente insustentável para estes
meios manter uma rede mundial de repórteres, o seu recurso tradicional tem sido a
externalização da recolha de informação através de agências de notícias.
Historicamente, a utilização destas agências foi um dos elementos que mudou a
configuração da imprensa escrita no início do século XIX, passando de simples jornais
de debate e controvérsia sobre questões políticas a serem verdadeiros divulgadores de
informação mundial6.

A necessidade de importantes recursos materiáis no terreno por parte destas agências


significou que, desde o início, o panorama da informação foi dominado por um pequeno
grupo de agências, ligadas a países com interesses coloniais, constituindo, na prática,
4
Esta inter-relação é defendida por autores que entienden que a consolidação do sistema democrático, a
partir do Século XIX, é uma consequência inevitável do desenvolvimento dos meios de comunicação de
massas. Neste sentido, Curran considera que: “The central thesis of liberal media history is that this
process of democratization was enormously strengthened by the development of modern mass media.
This thesis is organized around two key arguments, the first of which is that the media struggled
successfully to become free of government”. Em, Curran, J., (2003) Media and Power, Routledge,
Londres, Nova Iorque, p. 4.

5
Ibn Khaldun, (2008), p. 12.

6
Sobre o desenvolvimento histórico das agências de imprensa ver, UNESCO, (1953) News Agencies.
Their Structure and Operation. UNESCO. Paris.

5
um oligopólio de dimensão global7. Apesar da criação pelos países descolonizados
durante o século XX de agências nacionais, que poderiam servir de contrapeso a esta
situação, a verdade é que hoje em dia as fontes de informação dos principais meios de
comunicação social continuam a provir, em grande medida, daqueles gigantes da
informação.

Assim, apesar da enorme profusão de meios de comunicação social que hoje vivemos,
com o aparecimento das tecnologias digitais, a verdade é que a maior parte do volume
de informação, na esfera internacional, publicado por estes meios, provém de um
pequeno grupo de agências, lideradas pelos três gigantes do setor, tais como a
americana Associated Press, a britânica Reuters e a francesa France Presse. Isto é, como
se pode ver, o oposto da tese de Ibn Khaldun, quando defendeu a necessidade de
numerosas fontes e conhecimentos variados, bem como a perspicácia na verificação dos
dados, como um meio de alcançar a verdade.

Noutras ocasiões, e cada vez mais, os meios de comunicação utilizam fontes anónimas,
especialmente reservadas para casos de maior impacto e sem confirmação oficial. Ibn
Khaldun já advertiu sobre esta questão quando disse que: "as pessoas, em relação às
notícias (...) admitem rumores exagerados que procuram o surpreendente"8. Esta é
também uma prática intrínseca aos objetivos dos meios de comunicação social. Como
atividade industrial, a comunicação procura a máxima disseminação dos seus conteúdos.
Por esta razão, podemos observar, em numerosas ocasiões, a apresentação da
informação, sob o anonimato das fontes, utilizando fórmulas do tipo "fontes credíveis"
ou “fontes bem informadas", que quebram claramente a cadeia de transmissão da
informação entre o evento e o receptor9.

5. A qualidade da informaçao

O sabio tunisino salientou também outro aspecto fundamental da actividade da mídia,


nomeadamente, o processamento de informação:

"Porque a notícia, se for tomada simplesmente na forma em que é transmitida, sem a


examinar à luz dos princípios da razão empírica, dos fundamentos da política, da
natureza da civilização; e não se compara o que não pode ser contemplado com o que

7
Com este objectivo e a fim de optimizar os recursos, as grandes agências de imprensa distribuíram
historicamente as suas áreas de trabalho por todo o mundo em zonas que geralmente coincidem com as
áreas de influência geopolítica dos seus países. UNESCO, Op. cit.

8
Ibn Khaldun (2008), p. 315

9
Sobre esta questão, podemos ver como no Livro de Estilo do jornal espanhol El País, a utilização de tais
fórmulas é rejeitada, mas é mais para uma questão estilística do que para um fundo ético. Em vez disso,
propõe outras fórmulas equivalentes, que mantêm o anonimato, tais como "fontes parlamentares", "fontes
judiciais" ou "fontes diplomáticas". El País (2014). Libro de Estilo. Aguilar, Madrid, p. 29.

6
está à vista, e o que é actual com o que é passado, é muito possível que haja erros e que
haja tropeços e desvios no caminho da verdade"10.

Atualmente, o processamento de informação constitui um ponto central na relação que


se estabelece entre os meios de comunicação social, enquanto emissores de conteúdos e
a massa de receptores de tal informação. Este processamento responde basicamente a
uma série de postulados que têm sido delineados ao longo do século XX e que, de certa
forma, padronizaram o seu funcionamento. Entre os muitos modelos propostos pela
doutrina, o modelo funcionalista11 estabelecido por autores como Lasswell e a sua
famosa fórmula dos cinco "W" foi decisivo para a consolidação de um modelo padrão
de processamento de informação12. O esquema parece oferecer uma visão, tão completa
quanto possível, do evento num espaço reduzido. Contudo, as próprias exigências da
indústria da comunicação comprometem a função última da informação, que era seguir
o caminho da verdade, como já foi dito por Ibn Khaldun. De facto, a atividade dos
medios é dirigida por dois princípios, nomeadamente o da globalidade e do
imediatismo. A globalidade implica que, em poucas páginas ou minutos de transmissão
audiovisual, o receptor adquire noções parciais sobre complexos processos sociais,
económicos, políticos, etc., que decorrem simultaneamente em diferentes regiões do
mundo. O imediatismo, por outro lado, significa que esta informação perde o seu valor
em poucos dias, ou mesmo horas.

Neste sentido, o modelo atual de produção de notícias não fornece uma perspectiva
temporal clara, no sentido de explicar os antecedentes e a visão prospectiva dos
acontecimentos que estão a ser relatados. Assim, o que é um continuum é claramente
desfocado quando se torna num instantâneo. Os princípios de globalidade e imediatismo
acima mencionados obriga a concentrar a notícia no que está a acontecer num dado
momento, separando-a do “porquê” e do “para quê”. As consequências destes limites
intrínsecos do sistema de comunicação social podem ser devastadoras quando se tenta
gerar uma massa de cidadãos com uma visão interpretativa desenvolvida do mundo em
que vivem.

Um exemplo desta situação pode ser encontrado hoje no Mundo Árabe, onde Ibn
Khaldun nasceu, e foi utilizado como modelo para criar a sua visão de interpretação das
sociedades humanas. Esta é uma das regiões do planeta que gera a maior quantidade de
informação por várias razões, entre as quais os diferentes processos derivados da

10
Ibn Khaldun (2008), p. 12

11
Sobre o funcionalismo e a sua influência nas teorias da comunicação colectiva ver, Aguado, J.M.
(2004) Introducción a las teorías de la comunicación y de la información. Murcia. Universidad de
Murcia, p. 170 ss.

12
Neste modelo, publicado por Lasswell em 1948, determinou-se que a divulgação de uma notícia por um
meio de comunicação social tinha de responder a cinco questões decorrentes dos interrogativos Who
Says?, What?, In Which Channel?, To Whom?, With What Effect? Lasswell, H.D. (1948) ‘The structure
and function of communication in society’, em Bryson, L. (ed.) The Communication of Ideas, New York:
Harper and Brothers.

7
chamada Primavera Árabe, as diferentes guerras civís e internacionais alí vividas, ou
por incluir o muito mediático conflito israelo-palestiniano.

Contudo, apesar do enorme volume de notícias referentes a esses países, encontramo-


nos com o paradoxo de que para a maioria dos consumidores de informação em
Ocidente, o Mundo Árabe continua a ser um verdadeiro desconhecido. Poderiamos
dizer que trata-se de algo totalmente inexplicável e ininteligível. Como afirmou o
arabista Martínez Montávez, em termos que subscrevemos inteiramente, "O que
acontece nesses países, e entre essas sociedades, proporciona-nos apenas uma presença
e um valor, um significado e um sentido, estritamente em termos instantâneos e
momentâneos. Não os acolhemos nem os integramos num processo, numa dinâmica,
numa trajetória, que muda, mas que participa no seu peculiar argumento, na sua
coerência própria e específica".13

6. Conclussão

Há mais de seis séculos, Ibn Khaldun realizou um enorme e meticuloso trabalho de


interpretação das sociedades humanas com base nos dados históricos disponíveis. Na
verdade, foi um dos primeiros autores a enfatizar cientificamente o valor da
historiografia como meio de propaganda. É neste ponto que os ensinamentos do sabio
tunisino convergem com a dinâmica de um fenómeno social desenvolvido muito depois
do seu tempo, tal como a indústria da comunicação. Tanto o historiador, tal como foi
concebido por Ibn Khaldun, como o jornalista, desempenham o seu papel, num quadro
ideal, sob o mesmo objetivo, como é o de relatar a realidade de alguns acontecimentos,
com o intuito de induzir o leitor a formar os seus próprios critérios.

No entanto, para o nosso autor, este quadro ideal foi comprometido por uma série de
fatores. O primeiro deles foi a independência do escritor perante o poder político.
Assim, ele entendeu, como um dos aspectos intrínsecos do desenvolvimento das
sociedades humanas, é o da relação de dependência mútua entre o soberano e os seus
propagandistas. Hoje, a experiência vivida em torno do desempenho dos grandes meios
de comunicação confirma a plena validade desta interdependência. Assim, a título de
exculpação prévia, podemos ver como a maioria dos grandes meios de comunicação
social apresenta a independência como uma marca de identidade. Mas, de facto, a
dimensão das grandes mídia torna a independência dos seus conteúdos, em relação aos
interesses externos, mais um objectivo ideal do que uma realidade. Portanto, hoje em
dia, é mais correcto falar de "graus de independência" como estados de aproximação ao
ideal informativo.

Ibn Khaldun também abordou uma questão básica que afectou o seu trabalho, como é a
fiabilidade das fontes utilizadas na construção de uma história. O tunisino, tal como os
atuais meios de comunicação social, dependia de dados fornecidos por fontes externas,

13
Martínez Montávez, P. (2003) “Y por qué Iraq?”, em Thomas, C. (ed.) Principales interrogantes sobre
la crisis de Iraq, Sevilla: Universidad de Sevilla, p. 26.

8
o que poderia comprometer o valor das suas análises. Por conseguinte, defendeu a
diversificação das fontes e a sua verificação prévia como meio de abordar a realidade
analisada. A dinâmica da comunicação social atual, imbuída de um espírito de
globalidade, mostra-nos como o recurso sistemático às fontes de informação
provenintes dum pequeno grupo de agências supõe que o caminho que Ibn Khaldun
recomendou para a verificação da informação publicada seja um objetivo mais utópico
do que possível para a maioria dos meios, que não têm observadores no terreno.

Da mesma forma, este autor sublinhou uma questão fundamental como é o


processamento de informação. Assim, salientou a necessidade da sua contextualização
como forma de proporcionar uma visão clara dos fatos que estão a serem relatados.
Poder-se-ia argumentar que, hoje em dia, a própria estrutura dos meios de comunicação
impede uma contextualização adequada dos acontecimentos relatados, devido à falta de
espaço físico ou temporal. Mas também se pode questionar se a apresentação acumulada
de "fotografias instantâneas" de processos sociais complexos permite realmente ao
destinatário da informação compreender adequadamente a realidade em que o evento se
inscreve.

É evidente que os meios de comunicação social desempenham um papel indispensável


nas sociedades contemporâneas. É uma realidade que permite ao cidadão médio ter,
pelo menos, um conhecimento básico do mundo que o rodeia, ao contrário da situação
vivida num passado não muito remoto. É também verdade que as atuais estruturas de
comunicação estão sujeitas a limites intrínsecos que, em geral, dificultam a sua
aproximação ao ideal informativo independente e objetivo. Por esta razão, o verdadeiro
valor dos ensinamentos de Ibn Khaldun reside na encarnação de certos princípios ideais
que devem inspirar a transmissão de informação. Esta expressão parece fundamental
para poder enfrentar com um espírito crítico o torrente de informação que o cidadão
médio recebe todos os dias. Só esta atitude crítica é capaz de gerar uma tensão evolutiva
que permita melhorar a situação atual da comunicação social.

Na verdade, e como disse o próprio Ibn Khaldun: "O narrador limita-se a transmitir os
factos sem mais, mas é a crítica que tem de separar o grão do joio, e a ciência que tem
de polir a verdade através da crítica".14

14
Ibn Khaldun (2008), p. 7

9
Biblografia:

Aguado, J.M. (2004) Introducción a las teorías de la comunicación y de la información.


Murcia. Universidad de Murcia.

Albornoz, L. et al., (2020) Grupo Prisa: Media Power in Contemporary Spain.


Routledge, London, New York.

Curran, J., (2003) Media and Power, Routledge, London, New York.

El País (2014). El País. Libro de Estilo. Aguilar, Madrid.

Ibn Jaldun, (2008): Introducción a la historia universal (al-Muqaddimah). Almuzara,


Córdoba.

Lasswell, H.D. (1948) “The structure and function of communication in society”, en


Bryson, L. (ed.) The Communication of Ideas, New York: Harper and Brothers.

Martínez Montávez, P. (2003) “Y por qué Iraq?”, en Thomas, C. (ed.) Principales


interrogantes sobre la crisis de Iraq, Sevilla: Universidad de Sevilla.

UNESCO, (1953) News Agencies. Their Structure and Operation. UNESCO. París.

10

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