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1. Introdução:
Hoje, mais de seiscentos anos após a sua morte, pode parecer ousado tentar dizer algo
de novo sobre a figura do tunisino Ibn Khaldun (1332-1406). No entanto, a magnitude e
profundidade do seu pensamento sempre supõe uma fonte generosa para reflectir sobre
a evolução histórica das sociedades humanas. Paradoxalmente, apesar de ser um dos
autores árabes mais estudados, podemos ver como o seu pensamento continua hoje em
dia a ser analisado de diferentes pontos de vista.
1
2. Ibn Khaldun e a comunicação social
Apesar destas diferenças, este sabio tunisino consegue fazer com que as suas teorias
evoquem de imediato muitos processos e realidades que estamos a viver hoje. Um deles
é o fenómeno do desenvolvimento de uma sociedade estruturada em torno dos meios de
comunicação. A transmissão de informação sofreu uma profunda transformação nos
últimos dois séculos. Tradicionalmente, este trabalho era reservado, basicamente, a
historiadores, geógrafos e funcionários públicos que, através das suas notícias,
informavam o destinatário sobre acontecimentos distantes no tempo e no espaço. Mais
tarde, a partir do século XIX, o rápido desenvolvimento da indústria da comunicação,
ligada ao aparecimento de formatos como a imprensa escrita em papel, o rádio, o
audiovisual e, finalmente, o digital, deu novas dimensões ao processo de comunicação
social. Estas dimensões, global, no geográfico e imediata, no tempo, acrescentam novas
nuances à comunicação social, ao ponto de a tornar uma verdadeira ciência. Uma
ciência de comunicação em que se trata de analisar, sob critérios científicos, o
comportamento e impacto desta realidade, centrando-se na análise das características
tanto do emissor como do receptor e dos meios de transmissão na gestão e difusão em
massa da informação.
1
Neste artigo utilizaremos a seguinte edição: Ibn Jaldun, (2008): Introducción a la historia universal (al-
Muqaddimah). Almuzara, Córdoba.
2
trabalho, tais como os interesses do emissor da informação, a veracidade das fontes
utilizadas e a intenção subjectiva subjacente à construção da história informativa. Sobre
estas questões, o estudioso tunisino fez uma série de reflexões que poderiam muito bem
ter o carácter de ensinamentos face à dinâmica atual dos meios de comunicação social.
3. Informação e poder
Entre as muitas questões que são tratadas por Khaldun na Muqaddima, há um capítulo
interessante no qual, de forma literária, ele resume a relação entre "a espada e a
caneta", ao longo das diferentes fases das dinastias 2. É um pequeno texto onde que o
tunisino analisa, ao longo do desenvolvimento dos regimes políticos, a inter-relação
existente num triângulo formado pelo soberano, o exército e aquilo a que o autor chama
"a caneta".
".... serão então os senhores da caneta que gozarão de uma patente mais elevada,
posições mais altas, maiores benefícios e riqueza, estarão mais próximos do Sultão e
terão relações mais frequentes com ele e maior intimidade nos seus contactos privados.
Porque nesta situação ele é o instrumento que utiliza para obter os frutos do seu poder
(...) e para fazer a dinastia mostrar-se em todas as suas manifestações”.
O génio de Ibn Khaldun manifesta-se claramente nestas linhas quando sublinha uma
realidade indispensável para a estabilidade do Estado, tal como a relação entre o poder
político e os seus propagandistas. É evidente que hoje, mais de seiscentos anos após o
tunisino ter escrito estes textos, o mundo é substancialmente diferente. Assim, essa
"caneta" já não é mais composta por funcionários públicos obscuros que, no meio de
enredos palacianos, competiam pelo favor do soberano. A emergência da indústria da
comunicação como atividade comercial traz nuances novas e interessantes a essa
relação entre o poder e os seus propagandistas.
Neste sentido, parece claro que, hoje em dia, numa sociedade onde a informação está
muito presente na vida quotidiana dos cidadãos, a nova elite que exerce o poder através
da escrita é constituída pelos proprietários dos grandes meios de comunicação social,
que, por sua vez, são frequentemente apoiados por importantes empresas fora daquele
mundo.
2
Ibn Khaldun, (2008): “Que trata de las diferencias, en las diversas dinastías, entre la espada y la pluma”,
p. 450.
3
Do mesmo modo, na maioria dos casos, o poder político já não reside num soberano que
depende de uma elite estruturada em torno de laços de sangue, como disse Ibn Kaldun.
Tanto os Estados totalitários como os formalmente democráticos, baseiam-se em
complexos equilíbrios de poder, económicos, políticos e sociais, que de alguma forma
esbatem a figura clássica do soberano com plena capacidade de decisão.
Contudo, apesar das distâncias, Ibn Khaldun foca numa questão que, em nossa opinião,
é essencial, universal e intemporal, tal como a inter-relação entre o poder político e os
meios de comunicação social. Por um lado, os grandes meios de comunicação social
globais, tendem hoje a funcionar como "pontas de lança" de grandes conglomerados
empresariais com atividades económicas muito diferentes 3. É frequente observar como
dentro dos acionistas destes grupos empresariais encontram-se as principais empresas de
cada país nos campos financeiro, energético, de investimento ou de telecomunicações,
que operam a nível global. Isto supõe que estamos perante entidades que dependem, em
grande medida, da legislação estatal para manter e aumentar os seus benefícios
económicos. Paradoxalmente, em muitas ocasiões, estes grandes meios de comunicação
social são economicamente deficitários. Os grandes investimentos necessários para a
difusão de conteúdos, num contexto cada vez mais tecnológico, colocam estes meios de
comunicação numa lógica mercantil, em princípio contrária à motivação de lucro
inerente aos seus objetivos.
Por outro lado, a necessidade do poder político do apoio dos meios de comunicação
social é clara. Como disse Ibn Khaldun, a caneta "é o instrumento que ele utiliza para
obter os frutos do seu poder (...) e para fazer brilhar a dinastia em todas as suas
manifestações".
4
cidadãos. Este é o momento de recolher ou não, os frutos da imagem que os meios de
comunicação social apresentam sobre os governanates4.
Desta forma, tanto o poder político como a mídia convergem numa série de interesses
complementares magistralmente descritos por Ibn Khaldun. Tendo em conta que a
realidade social e política do seu tempo eram substancialmente diferentes, só podemos
interpretar as reflexões do tunisino sobre esta questão como mais um exemplo da
universalidade espacial e temporal dos seus ensinamentos.
4. As fontes de informação
Ibn Khaldun, ao realizar o seu ambicioso projecto de análise das sociedades humanas,
sabia que ele tinha um ponto fraco. O seu método de extração de leis históricas
universais teve de se basear irremediavelmente em dados históricos fornecidos por
outros historiadores. Portanto, uma das suas maiores preocupações era o grau de
fiabilidade das fontes utilizadas:
Hoje em dia, poder-se-ia dizer que a maioria dos meios de comunicação social apresenta
um problema estrutural semelhante ao que afetou o autor tunisino. Nomeadamente, a
maioria deles não tem capacidade para gerar muitas das informações que são
publicadas. A vocação global dos meios de comunicação, sejam eles internacionais,
nacionais ou mesmo regionais, leva-os a procurar informações sobre as principais
questões mundiais. Tendo em conta que seria financeiramente insustentável para estes
meios manter uma rede mundial de repórteres, o seu recurso tradicional tem sido a
externalização da recolha de informação através de agências de notícias.
Historicamente, a utilização destas agências foi um dos elementos que mudou a
configuração da imprensa escrita no início do século XIX, passando de simples jornais
de debate e controvérsia sobre questões políticas a serem verdadeiros divulgadores de
informação mundial6.
5
Ibn Khaldun, (2008), p. 12.
6
Sobre o desenvolvimento histórico das agências de imprensa ver, UNESCO, (1953) News Agencies.
Their Structure and Operation. UNESCO. Paris.
5
um oligopólio de dimensão global7. Apesar da criação pelos países descolonizados
durante o século XX de agências nacionais, que poderiam servir de contrapeso a esta
situação, a verdade é que hoje em dia as fontes de informação dos principais meios de
comunicação social continuam a provir, em grande medida, daqueles gigantes da
informação.
Assim, apesar da enorme profusão de meios de comunicação social que hoje vivemos,
com o aparecimento das tecnologias digitais, a verdade é que a maior parte do volume
de informação, na esfera internacional, publicado por estes meios, provém de um
pequeno grupo de agências, lideradas pelos três gigantes do setor, tais como a
americana Associated Press, a britânica Reuters e a francesa France Presse. Isto é, como
se pode ver, o oposto da tese de Ibn Khaldun, quando defendeu a necessidade de
numerosas fontes e conhecimentos variados, bem como a perspicácia na verificação dos
dados, como um meio de alcançar a verdade.
Noutras ocasiões, e cada vez mais, os meios de comunicação utilizam fontes anónimas,
especialmente reservadas para casos de maior impacto e sem confirmação oficial. Ibn
Khaldun já advertiu sobre esta questão quando disse que: "as pessoas, em relação às
notícias (...) admitem rumores exagerados que procuram o surpreendente"8. Esta é
também uma prática intrínseca aos objetivos dos meios de comunicação social. Como
atividade industrial, a comunicação procura a máxima disseminação dos seus conteúdos.
Por esta razão, podemos observar, em numerosas ocasiões, a apresentação da
informação, sob o anonimato das fontes, utilizando fórmulas do tipo "fontes credíveis"
ou “fontes bem informadas", que quebram claramente a cadeia de transmissão da
informação entre o evento e o receptor9.
5. A qualidade da informaçao
7
Com este objectivo e a fim de optimizar os recursos, as grandes agências de imprensa distribuíram
historicamente as suas áreas de trabalho por todo o mundo em zonas que geralmente coincidem com as
áreas de influência geopolítica dos seus países. UNESCO, Op. cit.
8
Ibn Khaldun (2008), p. 315
9
Sobre esta questão, podemos ver como no Livro de Estilo do jornal espanhol El País, a utilização de tais
fórmulas é rejeitada, mas é mais para uma questão estilística do que para um fundo ético. Em vez disso,
propõe outras fórmulas equivalentes, que mantêm o anonimato, tais como "fontes parlamentares", "fontes
judiciais" ou "fontes diplomáticas". El País (2014). Libro de Estilo. Aguilar, Madrid, p. 29.
6
está à vista, e o que é actual com o que é passado, é muito possível que haja erros e que
haja tropeços e desvios no caminho da verdade"10.
Neste sentido, o modelo atual de produção de notícias não fornece uma perspectiva
temporal clara, no sentido de explicar os antecedentes e a visão prospectiva dos
acontecimentos que estão a ser relatados. Assim, o que é um continuum é claramente
desfocado quando se torna num instantâneo. Os princípios de globalidade e imediatismo
acima mencionados obriga a concentrar a notícia no que está a acontecer num dado
momento, separando-a do “porquê” e do “para quê”. As consequências destes limites
intrínsecos do sistema de comunicação social podem ser devastadoras quando se tenta
gerar uma massa de cidadãos com uma visão interpretativa desenvolvida do mundo em
que vivem.
Um exemplo desta situação pode ser encontrado hoje no Mundo Árabe, onde Ibn
Khaldun nasceu, e foi utilizado como modelo para criar a sua visão de interpretação das
sociedades humanas. Esta é uma das regiões do planeta que gera a maior quantidade de
informação por várias razões, entre as quais os diferentes processos derivados da
10
Ibn Khaldun (2008), p. 12
11
Sobre o funcionalismo e a sua influência nas teorias da comunicação colectiva ver, Aguado, J.M.
(2004) Introducción a las teorías de la comunicación y de la información. Murcia. Universidad de
Murcia, p. 170 ss.
12
Neste modelo, publicado por Lasswell em 1948, determinou-se que a divulgação de uma notícia por um
meio de comunicação social tinha de responder a cinco questões decorrentes dos interrogativos Who
Says?, What?, In Which Channel?, To Whom?, With What Effect? Lasswell, H.D. (1948) ‘The structure
and function of communication in society’, em Bryson, L. (ed.) The Communication of Ideas, New York:
Harper and Brothers.
7
chamada Primavera Árabe, as diferentes guerras civís e internacionais alí vividas, ou
por incluir o muito mediático conflito israelo-palestiniano.
6. Conclussão
No entanto, para o nosso autor, este quadro ideal foi comprometido por uma série de
fatores. O primeiro deles foi a independência do escritor perante o poder político.
Assim, ele entendeu, como um dos aspectos intrínsecos do desenvolvimento das
sociedades humanas, é o da relação de dependência mútua entre o soberano e os seus
propagandistas. Hoje, a experiência vivida em torno do desempenho dos grandes meios
de comunicação confirma a plena validade desta interdependência. Assim, a título de
exculpação prévia, podemos ver como a maioria dos grandes meios de comunicação
social apresenta a independência como uma marca de identidade. Mas, de facto, a
dimensão das grandes mídia torna a independência dos seus conteúdos, em relação aos
interesses externos, mais um objectivo ideal do que uma realidade. Portanto, hoje em
dia, é mais correcto falar de "graus de independência" como estados de aproximação ao
ideal informativo.
Ibn Khaldun também abordou uma questão básica que afectou o seu trabalho, como é a
fiabilidade das fontes utilizadas na construção de uma história. O tunisino, tal como os
atuais meios de comunicação social, dependia de dados fornecidos por fontes externas,
13
Martínez Montávez, P. (2003) “Y por qué Iraq?”, em Thomas, C. (ed.) Principales interrogantes sobre
la crisis de Iraq, Sevilla: Universidad de Sevilla, p. 26.
8
o que poderia comprometer o valor das suas análises. Por conseguinte, defendeu a
diversificação das fontes e a sua verificação prévia como meio de abordar a realidade
analisada. A dinâmica da comunicação social atual, imbuída de um espírito de
globalidade, mostra-nos como o recurso sistemático às fontes de informação
provenintes dum pequeno grupo de agências supõe que o caminho que Ibn Khaldun
recomendou para a verificação da informação publicada seja um objetivo mais utópico
do que possível para a maioria dos meios, que não têm observadores no terreno.
Na verdade, e como disse o próprio Ibn Khaldun: "O narrador limita-se a transmitir os
factos sem mais, mas é a crítica que tem de separar o grão do joio, e a ciência que tem
de polir a verdade através da crítica".14
14
Ibn Khaldun (2008), p. 7
9
Biblografia:
Curran, J., (2003) Media and Power, Routledge, London, New York.
UNESCO, (1953) News Agencies. Their Structure and Operation. UNESCO. París.
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