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Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012
Revista
Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012
Coordenadores
Tercio Sampaio Ferraz Júnior
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão
www.ibf.net.br
Revista
Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012
Publicação oficial do
Instituto Brasileiro de Filosofia
Presidente
Celso Lafer
Coordenadores
Tercio Sampaio Ferraz Júnior
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão
Editores
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão
Marcelo Esteban Coniglio
Assistentes Editoriais
Bruna de Bem Esteves
Fernanda Schmidt
Revista
Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012
Publicação oficial do
Instituto Brasileiro de Filosofia
Av. 9 de Julho, 3.147, 2.º andar, conj. 21
CEP 01407-000 São Paulo SP
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[2013]
Impresso no Brasil
Apresentação
Ao Leitor
Uma revista de filosofia, para cumprir sua função, deve ser um legítimo
e livre fórum de trocas e contraposições de ideias, avaliação e comparação
de diferentes perspectivas. Esse diálogo constante é percebido ao longo das
diferentes edições seja por referência direta ou indireta, seja pela construção
dialética contínua e imperceptível de visões de mundo que prevalecem em
uma ou outra geração.
Mas o confronto direto e explícito de ideias é também fundamental
para marcar diferenças e aguçar convergências, a partir das quais o debate
filosófico progride, mesmo quando resgata concepções passadas. Para esti-
mular esses encontros, a RBF inaugura, neste volume, uma nova seção,
chamada “Diálogos”, na qual pretende captar discussões vivas, mesmo que
ainda não acabadas, em forma de artigo, ou apenas lançadas, ou mesmo
reflexões atuais sobre diálogos já travados e que mereçam reconsideração.
Serão publicadas quaisquer formas de registros dessas discussões que sejam
de relevo para os temas desenvolvidos na revista, tais como transcrições de
discussões em palestras, arguições, breves ensaios de crítica, entrevistas e
trocas de missivas.
Para inaugurar esta seção foi escolhida uma troca de correspondência na
qual Francisco Puy comenta e critica texto de Tercio Sampaio Ferraz Junior
sobre a tópica jurídica. Ela vem precedida por artigo selecionado de autoria
de Milagros Otero que analisa as semelhanças e diferenças nas concepções
da tópica jurídica presente na obra desses autores.
Dos Coordenadores
Sumário
Seção 1
Filosofia Jurídica e Social
«A força das coisas»: o argumento naturalístico na jurisprudência
constitucional, entre a impotência do legislador e a omnipotência
do juiz
Giovanni Damele............................................................. 11
Seção 2
Lógica e filosofia da ciência
Teoremas de ajuste de derivabilidade e normalização em
dedução natural
Marcelo Esteban Coniglio e María Inés Corbalán...... 171
Seção 3
Diálogos
La tópica jurídica: un diálogo entre dos maestros
Milagros Otero. ............................................................. 191
Topica jurídica
Tercio Sampaio Ferraz Junior e Francisco Puy............. 219
Seção 4
Traduções
O problema da autoridade: revisitando a concepção da autoridade
como serviço (The problem of authority: revisiting the service
conception)
Joseph Raz. ...................................................................... 229
Giovanni Damele
Investigador do Instituto de Filosofia da Linguagem da
Universidade Nova de Lisboa.
1*
A investigação que proporcionou este artigo foi elaborada no âmbito do projecto individual
«Legal argumentation an eclectic approach» (SFRH/BPD/68305/2010) e do projecto
institucional «Argumentation, Communication and Context» (PTDC/FIL-FIL/110117/2009),
financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Ministério da Educação e Ciência –
República Portuguesa).
12 revista brasileira de filosofia – RBF 239
2
Sobre as argumentações da sentença italiana, foi publicado por Ilenia Massa Pinto e Chiara
Tripodina um artigo preciso e detalhado na secção «Studi sulle tecniche interpretative» do
«Archivio di diritto e storia costituzionali» (Sul come per la Corte Costituzionale «le unioni
omosessuali non possono essere ritenute omogenee al casamento». Ovvero tecniche argomen-
tative impiegate per motivare la sentenza 138/2010). Para um ulterior aprofundamento da
sentença italiana remete-se para este estudo exaustivo (http://www.dircost.unito.it).
seção 1 – filosofia jurídica e social 13
3
«Si fonda su concezioni del diritto per le quali i rapporti sociali trovano in sé stessi, nella
loro natura, nella natura dell’uomo, nella natura delle cose, la loro disciplina [...]. La legge
che volesse “far forza” alla natureza non sarebbe “vera” legge o non sarebbe “efficace”»,
Tarello, 1980: 378. Para os propóstos desta análise, preferimos ter em consideração os
argumentos elencados por Giovanni Tarello e retomados por Perelman, 1976. Outras propostas
de catalogação de «argumentos interpretativos», que mais ou menos intercetam o elenco de
Tarello, poderão ser encontradas em, por exemplo, Aarnio, 1987: cap. III; Chiassoni, 1999:
cap. V; Diciotti, 1999: cap. IV e V; Guastini, 1996: parte III; Lombardi Vallauri, 1981:
53 e ss.; Ost; Van De Kerchove, 1989: 50 e ss.; Taruffo in MacCormick; Summers, 1991:
464-465. Veja-se igualmente Kalinowski, 1965; Klug, 1966; Tammelo, 1969.
4
Chiassoni (2004: 72) sublinha como o uso do termo «argumento» perpetua «aquele modo
de ver […] segundo o qual, na interpretação textual das disposições, a uma fase de euresis
do significado, que se dá ex ante», irrazoável e inalcançável, «se contraporia uma fase ex
post, de “racionalização” ou justificação daquele significado, na qual apenas as directivas
hermenêuticas jogariam, justamente, em forma de “argumentos” prestáveis». Pelo contrário,
queremos sugerir que, por lado, a escolha dos argumentos, seguindo técnicas interpre-
tativas específicas da argumentação jurídica, acontece já tendo em vista a sua capacidade
justificativa e que, consequentemente, esta última seja assim fundamentada nessas mesmas
técnicas interpretativas. Para retomar o excerto de Chiassoni, não se pretende aqui avalizar
qualquer clara «distinção dicotómica […] entre o “raciocínio decisório”, in mente iudicis,
e o “raciocínio justificatório”. É apenas a atenção maior em relação à força persuasiva da
argumentação, e portanto da sua dimensão justificativa, que nos leva a privilegiar o termo
“argumento”.»
14 revista brasileira de filosofia – RBF 239
5
«La proprietà distintiva delle direttive primarie consiste invece, come indicato sopra,
nell’immediata efficienza ermeneutica della risorsa di cui l’interprete deve tenere conto: e
precisamente, nel fatto che ciascuna direttiva fornisce all’interprete un criterio, sulla base
del quale è possível, in linea di principio, attribuire a una disposizione almeno un significato,
sia pure parziale e/o indeterminato. Detto in altri, forse più chiari, termini: le direttive
primarie sono quelle direttive che indicano agli interpreti delle risorse sulla base delle quali
una disposizione può essere senz’altro tradotta in una o più norme explicite.» (Chiassoni,
2004: 65)
6
«A una disposizione si deve attribuire il significato suggerito dalla “natura” delle “cose”
o del “rapporto” regolato» (Chiassoni, 2004: 69).
7
«A una disposizione si deve attribuire il significato suggerito dalla dottrina etico-nor-
mativa, ovvero dalla “morale critica”, evocata dai termini valutativi in essa contenuti»
(Chiassoni, 2004: 59-60).
8
Chiassoni, 2004: 67.
9
Chiassoni, 2004: 69.
10
Pino, 2009: 131-158. Remete-se aqui, para além do já citado passo de Tarello, para Bobbio,
Contributi ad un dizionario giuridico, cit., p. 277. Pino dá aqui, precisamente, um exemplo
de família «natural»: «Così, ad esempio, partendo dall’osservazione che l’istituto “famiglia”
ha certe caratteristiche costanti e legate ad una presunta “funzione antropologica”, tali da
essere considerate sostanzialmente “naturali” (ad es., una famiglia nascerebbe dall’unione
di due persone di sesso diverso a fini procreativi), si elevano tali caratteristiche allo status
di principio (implicito) fondamentale per quell’istituto, destinato ad influire sulle regole
esistenti, o anche su eventuali ipotesi di riforma di quelle esistenti (proseguendo nel nostro
esempio: restrizioni o divieti sul matrimonio tra persone dello stesso sesso, o sull’adozione o
sulla fecondazione assistita da parte di individui non coniugati, ecc.)» (p. 155).
seção 1 – filosofia jurídica e social 15
objecto que se pretende regulamentar e que, desta forma, não pode muito
simplesmente deixar de «refletir». Como já notara Tarello, este uso do argu-
mento naturalístico surge largamente desacreditado pela ideia, amplamente
difundida pela cultura moderna, de que a dedução de preceitos de simples
asserções e de «normas» de simples «descrições» não está logicamente
justificada.11
Por sua vez, como argumento interpretativo, o argumento naturalístico
consiste na atribuição de significados aos enunciados normativos alcan-
çando as modalidades de raciocínio e as noções específicas de uma ciência
descritiva (ciências naturais, ciências económicas e afins).12 Também aqui,
poderá dizer-se, existem dois sentidos em que o termo «natureza» pode ser
interpretado. Por um lado, efetivamente, este tipo de argumento remete para
um conhecimento e uma compreensão específicas, por exemplo, no plano
técnico-científico, das características da matéria que é objeto de regula-
mentação jurídica. A «natureza» do fenómeno é então aqui, parece sugerir
Pino, o fruto de uma descrição das suas próprias características: descrição
«extrajurídica» ou, melhor dizendo, na maior parte dos casos, «científica».
Deste ponto de vista, o uso do argumento parece ter uma justificação e uma
dimensão produtiva, podendo até servir para conter a arbitrariedade do juiz,
obrigando-o a verificar o estado atual da ciência no que diz respeito à matéria
em julgamento.
Por outro lado, nem todas as «matérias objeto de regulamentação
jurídica» parecem ser suscetíveis deste tipo de descrição. De acordo com
Pino, é este o caso dos «fenómenos ou instituições puramente sociais ou
culturais», em relação aos quais o uso jurídico do argumento naturalístico
«se revela de certa forma tosco do ponto de vista epistemológico, devido ao
modo desenvolto e apodítico em que são individuadas as supostas estruturas
essenciais e fundamentais de certas relações sociais ou de certas instituições,
de onde se extraem preceitos e princípios de conduta – que frequentemente
coincidem na totalidade com as preferências éticas de quem individua tais
estruturas fundamentais».13 Com efeito, nestes casos, o argumento naturalís-
tico funciona como uma espécie de «escudo» (constituído por uma «suposta
e não demonstrada realidade «natural», objetivamente válida e imutável»)
11
Tarello, 1980: 66. Sobre a chamada «lei de Hume», veja-se Celano, 1994: 39. Veja-se
também Tarello, 1980:379, de acordo com o qual o argumento naturalístico foi desacreditado
também «dalla larga accettazione nella cultura moderna dell’idea che non sia logicamente
giustificata la deduzione di precetti da sole asserzioni, di “norme” da sole “descrizioni”».
12
Pino, 2003.
13
Pino, 2009: 156. Remete-se também aqui para P. Chiassoni, 2007: Tecnica dell’ interpre-
tazione giuridica, Bologna: Il Mulino, p. 96.
16 revista brasileira de filosofia – RBF 239
14
Pino, 2009: 156.
15
Idem, ibidem.
16
Pino nota: «Ora, l’uso interpretativo dell’argumento naturalístico è di per sé legittimo, al
pari di altri argomenti retorico-persuasivi, tuttavia, esso di fatto sembra avere una funzione
meramente suggestiva, in quanto nella dottrina in materia di diritti della personalità tale
argumento non è mai associato (a quanto mi consta) ad alcuna seria indagine scientifica o
sociologica che possa suffragare l’asserito carattere unitario della personalità (tesi questa
che susciterebbe peraltro diverse perplessità, ad esempio, in sede di filosofia della mente)»
(Pino, 2003: 263-264).
seção 1 – filosofia jurídica e social 17
17
Sent. 138/2010, punto 8, Considerato in diritto.
18
Punto 9, Considerato in diritto.
19
É o argumento segundo o qual «a ciascun enunciato normativo deve essere attribuito
il significato che corrisponde alla volontà dell’emittente o autore dell’enunciato, cioè del
legislatore in concreto, del legislatore storico. Il fondamento di questo argomento risiede
nella dottrina imperativistica della legge, nella dottrina cioè per cui la legge è un comando,
rivolto dal superiore all’inferiore: il comando si manifesta in un documento, e attribuire
significato al documento vuol dire risalire alla volontà di cui il documento è espressione»
(Tarello, 1980: 364).
20
Punto 9, Considerato in diritto.
18 revista brasileira de filosofia – RBF 239
21
Punto 9, Considerato in diritto.
22
Punto 9, Considerato in diritto.
seção 1 – filosofia jurídica e social 19
não devia tampouco ignorar. O terceiro, por fim, abre caminho a um uso do
argumento histórico,23 já que «na ausência de várias referências, é inevitável
concluir que estes tivessem presente a noção de casamento definida pelo
Código Civil, a vigorar desde 1942, que, como foi já mencionado, estabe-
lecia (e estabelece até agora) que os cônjuges têm de ser pessoas de sexos
diferentes».24 Em todos estes três casos, deveria concluir-se que aquele que
foi definido como «núcleo» intocável pela norma seria a identificação da
família com uma união heterossexual. Com efeito, a reforçar esta mesma
qualificação acresce, por fim, o recurso ao argumento sistemático, na versão
da assim chamada sedes materiae:25
«Não será por acaso, de resto, que a Carta Constitucional, depois de ter
tratado a questão do casamento, tenha considerado necessário debruçar-se
sobre a questão da tutela dos filhos (art. 30), assegurando também a paridade
no tratamento dos filhos nascidos fora do casamento, mesmo que compativel-
mente com os membros da família legítima. A justa e devida tutela, garantida
aos filhos naturais, em nada diminui a relevância constitucional atribuída à
família legítima e à (potencial) finalidade de procriação do casamento, que
significa diferenciá-lo das uniões homossexuais».
A coerência sistemática representada pela proximidade entre o artigo
relativo à família e o artigo dedicado à tutela dos filhos indicia a «rele-
vância constitucional» atribuída à (potencial) «finalidade de procriação do
casamento», «que significa diferenciá-lo das uniões homossexuais».26 O
casamento a que o texto constitucional se refere é, portanto, afirma por fim
o Tribunal, o casamento com um entendimento no âmbito do seu «signi-
ficado tradicional», com o qual, como corolário da sua argumentação, se
volta a abordar superficialmente o argumento naturalístico que, tal como já
vimos, permanece subentendido ao longo de todo o discurso. O «significado
tradicional» é, «em última análise», aquele «significado do preceito cons-
titucional» que «não pode ser superado pela via hermenêutica, pois não se
trataria de uma simples releitura do sistema ou do abandono de uma mera
23
É o argumento de acordo com o qual, «essendo dato un enunciato normativo, in mancanza
di espresse indicazioni contrarie si deve ad esso attribuire lo stesso significato normativo
che tradizionalmente veniva attribuito al precedente e preesistente enunciato normativo
che disciplinava la stessa materia nella medesima organizzazione jurídica, ovvero lo stesso
significato normativo che tradizionalmente veniva attribuito all’enunciato normativo
contenuto in un documento capostipite di altra organizzazione» (Tarello, 1980: 367).
24
Punto 9, Considerato in diritto.
25
«In una prima accezione, per “sistema” si intende la disposizione degli enunciati normativi
che è stata prescelta dal legislatore: ad esempio la disposizione degli articoli, dei capi, dei
titoli di un codice. In questa accezione di “sistema”, l’argumento sistematico altro non è che
l’argumento secondo cui agli enunciati si deve dare quell’interpretação che è suggerita dalla
loro collocazione nel “sistema del codice”» (Tarello, 1980: 376).
26
Punto 9, Considerato in diritto.
20 revista brasileira de filosofia – RBF 239
2. O caso português
27
Punto 9, Considerato in diritto.
28
Artigo 3, Costituzione della Repubblica Italiana.
29
Idem.
30
Será útil recordar, a este propósito, que em Portugal as assim chamadas «uniões de facto»,
mesmo entre pessoas do mesmo sexo, tinham já obtido um reconhecimento e uma tutela
legal com a Lei 7 de 11 de maio de 2001 que, revogando a Lei 135 de 28 de agosto de 1999
(que, por sua vez, tutelava a união de facto, mas que a definia com uma referência explícita à
diferença de sexo, isto é, como «a situação jurídica das pessoas de sexo diferente que vivem
em união de facto há mais de dois anos»), equiparava as uniões de facto heterossexuais às
uniões homossexuais, conferindo uma tutela legal independentemente da identidade sexual
dos parceiros.
31
Art. 1.577 («Noção de casamento»): «Casamento é o contrato celebrado entre duas
pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão
de vida, nos termos das disposições deste Código» (o itálico é meu); art. 1.628 («Casamentos
inexistentes»), parágrafo e): «É juridicamente inexistente […] o casamento contraído por duas
pessoas do mesmo sexo».
seção 1 – filosofia jurídica e social 21
32
Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão 6284/2006-8, 15.02.2007.
33
«1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém
pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de
qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, situação económica, condição social ou orientação
sexual». Veja-se que a referência final à orientação sexual foi acrescentada em 2004 em sede
de revisão Constitucional (Lei Constitucional n. 1/2004), completando assim a formulação
inicial do princípio de igualdade. Este aspeto foi particularmente sublinhado pelas partes
que interpuseram recurso, segundo as quais este «reforço» da formulação originária tem
efectivamente apenas um significado: impedir constitucionalmente que alguns cidadãos
portugueses possam ser discriminados por causa da sua orientação sexual.
34
«1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de
plena igualdade.»
35
«1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da
sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal
dos seus membros.»
36
«1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo
dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as
claúsulas que lhes aprouver
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou
parcialmente regulados na lei.»
37
Juízo de razoabilidade formulável em termos de igualdade: para este e para outros
argumentos remete-se ainda para a secção «Tecniche interpretative della Corte Costitu-
zionale» in Archivio di diritto e storia costituzionali (http://www.dircost.unito.it).
38
«Assim, a caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio
da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente,
isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional», Tribunal Consti-
tucional, Acórdão n 309/85, cit. in Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão, punto 8 (22ª),
Relatório.
22 revista brasileira de filosofia – RBF 239
39
Argumento da coerência horizontal interlegislativo: «Del resto, nel disporre un siffatto
trattamento, il legislatore penale, lungi dall’ispirarsi a sue limitati particolai vedute, non ha
fatto che adeguarsi a una valutazione dell’ambiente sociale che, per la sua generalità, ha
influenzato anche altre parti dell’ordinamento giuridico; come può chiaramente desumersi,
tra l’altro, dall’art. 151 del Codice civile, il quale per l’adulterio della moglie consente
l’azione di separazione in ogni caso, mentre per l’adulterio del marito la subordina alla
condizione che il fatto costituisca una ingiuria grave a danno della moglie» (Tribunal
Constitucional, Sentença 64/1961, punto 3, Considerato in diritto). Através deste, vale a
pena assinalar, o Tribunal Constitucional fazia referência à coerência do artigo em questão do
Código Civil (o 559) com uma outra norma do mesmo Código Civil (também esta precedente
à entrada em vigor da Constituição republicana), cuja constitucionalidade, também neste caso,
à luz do mesmo art. 3 da Constituição, não era óbvia.
40
Punto 4, Considerato in diritto.
seção 1 – filosofia jurídica e social 23
41
Punto 4, Considerato in diritto.
42
«O casamento não é, pois, garantido como uma realidade abstracta, completamente
manipulável pelo legislador e susceptível de livre conformação pela lei. Pelo contrário, como
é próprio de uma garantia institucional, não faz sentido que a Constituição conceda o direito
a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permita à lei ordinária suprimir ou desfigurar o seu
núcleo essencial» (Miranda; Medeiros, 2007: 397).
43
«O artigo 36º da Constituição da República Portuguesa não contém normas fechadas,
remetendo para o legislador ordinário a regulamentação dos requisitos e efeitos do casamento
e até a sua forma de celebração». (Acórdão 6284/2006-8, IV).
44
«Ao autonomizar o casamento […] o legislador constitucional revelou implicitamente não
ignorar as coordenadas estruturais delimitadoras do casamento na ordem jurídica portuguesa.
24 revista brasileira de filosofia – RBF 239
E […] entre o núcleo essencial figura a celebração do contrato de casamento por pessoas de
sexo diferente» (Acórdão 6284/2006-8, V).
45
Tribunal Constitucional, Acórdão n. 359/2009.
46
«A recepção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre duas
pessoas de sexo diferente radicado intersubjectivamente na comunidade como instituição não
permite retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre
pessoas do mesmo sexo». (Canotilho; Moreira, 2007: 362), ponto 10, Fundamentos.
47
«Mas a circunstância de a Constituição, no já citado n. 1 do seu artigo 36.º, se referir
expressamente ao casamento sem o definir, revela que não pretende pôr em causa o conceito
comum, radicado na comunidade e recebido na lei civil, configurado como um “contrato
celebrado entre duas pessoas de sexo diferente”», punto 10, Fundamentos. Argumento
sistemático-concetualístico (dogmático): Tarello, 1980: 377.
48
«Na verdade, se o legislador constitucional pretendesse introduzir uma alteração da
configuração legal do casamento, impondo ao legislador ordinário a obrigação de legislar no
sentido de passar a ser permitido a sua celebração por pessoas do mesmo sexo, certamente
que o teria afirmado explicitamente, sem se limitar a legitimar o conceito configurado pela
lei civil; e não lhe faltaram ocasiões para esse efeito, ao longo das revisões constitucionais
subsequentes», ponto 10, Fundamentos.
seção 1 – filosofia jurídica e social 25
49
Ponto 10, Fundamentos.
50
Cf. Canotilho; Moreira, 2007: 362.
51
«Na verdade, a decisão que julgasse inconstitucional as normas impugnadas teria
claramente um carácter aditivo, de duvidosa legitimidade em face do princípio da separação
de poderes», ponto 14, Fundamentos.
52
De acordo com o artigo n. 136 da CRP, o Presidente da República pode opor o veto,
ou melhor, recusar-se a assinar uma proposta de lei. O veto pode basear-se numa decisão
26 revista brasileira de filosofia – RBF 239
facto de o desenho de lei, que modifica a redação dos artigos 1.577, 1.591,
1.690, n. 1, do Código Civil, substituindo em prática os passos relativos a
«duas pessoas de sexo diferente» pela nova expressão «duas pessoas», dever
considerar-se não conforme ao conceito constitucional de casamento e, de
reflexo, ao conceito constitucional de família, tal como era considerado pelo
n. 1 do artigo 36 da Constituição.53 É oportuno salientar, incidentemente,
que os espaços deste recurso pareciam existir, vista a preocupação, por parte
dos juízes constitucionais, na sentença precedente, em qualificar o conceito
de casamento como união heterossexual, mesmo à luz do próprio artigo
do texto constitucional. Mas, sobretudo, vale a pena ponderar sobre estas
considerações no contexto desta análise, precisamente no que diz respeito
às menções feitas pelos juízes ao núcleo «naturalístico» no casamento,
«radicado na comunidade». E, todavia, o Tribunal Constitucional decidiu
desta vez, com grande maioria (mas não por unanimidade) pronunciar-se em
favor da constitucionalidade do texto. Dessa forma, parece ter prevalecido o
peso, na sentença precedente, das argumentações baseadas essencialmente,
como de resto já aqui foi descrito, em considerações de caráter sistemático,
e sustentada pelo facto de a Constituição portuguesa não qualificar ulterior-
mente o conceito de família, mostrando assim (era a argumentação tanto dos
juízes constitucionais, como do Tribunal de Segunda Instância) uma adap-
tação ao conceito de família expresso no Código Civil. Cabia eventualmente
depois ao legislador decidir manter ou modificar este mesmo conceito. Uma
vez concretizada esta modificação, a decisão do Tribunal Constitucional
mantém o seu olhar na coerência do sistema: com efeito, permanece na base
3. Conclusões
54
Neste caso, tem-se falado alternativamente de uma posição «intencionalista», «originalista»
ou «historicista». Em particular, Paulson (1998) prefere o termo «intencionalista», em vez
do termo «originalismo» preferido, por exemplo, por Brest, 1980 e por Scalia, 1988-89.
Dworkin, que estudou longamente o tema, utiliza «historicismo» (veja-se mais em Dworkin,
1986) e «originalismo» (veja-se, por exemplo, Dworkin, 2006, em particular as p. 117-139).
55
Tarello, 1980: 367. Veja-se ainda, também a partir da perspectiva do catálogo de Tarello,
Mauro Barberis, Pluralismo argomentativo. Sull’argomentazione dell’interpretação, in
http://www2.units.it/etica/2006_1/barberis.pdf.
56
Tripodina, Chiara, «L’argumento originalista nella giurisprudenza Constitucional in
materia di diritti fondamentali», Archivio di Diritto e Storia Costituzionali – Tecniche
interpretative della Corte Constitucional (www.dircost.unito.it/SentNet1.01/studi/Tripodina
_Argumento_originalista.pdf), p. 3.
57
Para uma análise exaustiva veja-se Chiara Tripodina, «L’argumento originalista nella
giurisprudenza Constitucional in materia di diritti fondamentali», cit. Para uma análise da
posição de Dworkin, Paulson, 1998. Veja-se Dworkin, 2006.
58
Entende-se aqui «diretiva» no sentido que lhe dá Chiassoni, 2004, incluindo o «cânone»
ou «argumento» interpretativo «da coerência» da disciplina jurídica (ou argumentum a
coherentia) entre las «diretivas de compatibilidade sistémica negativa», cuja função, enquanto
«diretivas secundárias», é disciplinar «o uso dos códigos (e/ou diretivas) primárias», entre
os quais Chiassoni inclui o «código» naturalístico («a uma disposição deve atribuir-se o
28 revista brasileira de filosofia – RBF 239
significado sugerido pela «natureza» das «coisas» ou da «relação regulada» e as várias versões
de interpretação psicológica. Tal diretiva «impede que se retirem apenas das disposições,
como seus significados considerados corretos, normas explícitas que sejam logicamente
incompatíveis com outras normas – formalmente, ou então axiologicamente – superiores do
sistema» (veja-se, em particular, as p. 67, 69 e 76-78).
59
«Il problema della limitazione delle nascite ha assunto, nel momento storico attuale, una
importanza e un rilievo sociale tale, ed investe un raggio di interesse così ampio, da non
potersi ritenere che, secondo la coscienza comune e tenuto conto del progressivo allargarsi
dell’educazione sanitaria, sia oggi da ravvisare un’offesa al buon costume nella pubblica
trattazione dei vari aspetti di quel problema» (Corte Costituzionale della Repubblica Italiana,
Sentenza 49/1971, Punto 3, Considerato in diritto).
seção 1 – filosofia jurídica e social 29
60
Tribunale di Venezia, Sezione III civile, Ordinanza 3 aprile 2009 – Motivazione. É
este o passo de Aldo Moro referido pela sentença: «[la formula “la famiglia è una società
naturale”] non è affatto una definizione, anche se ne ha la forma esterna, in quanto si tratta in
questo caso di definire la sfera di competenza dello Stato nei confronti di una delle formazioni
sociali alle quali la persona umana dà liberamente vita». E ancora: «Non si vuole dire con
questa formula che la famiglia sia una società creata al di fuori di ogni vincolo razionale
ed etico. Non è un fatto, la famiglia, ma è appunto un ordinamento giuridico e quindi qui
“naturale” sta per “razionale”. D’altra parte non si vuole escludere che la famiglia abbia
un suo processo di formazione storica, né si vuole negare che vi sia sempre un più perfetto
adeguamento della famiglia a questa razionalità nel cono della storia; ma quando si dice
“società naturale” in questo momento storico si allude a quell’ordinamento che, perfezionata
attraverso il processo detta storia, costituisce la linea ideate della vita familiare. Quando sì
afferma che la famiglia è una “società naturale”, si intende qualche cosa di più dei diritti
della famiglia. Non si tratta soltanto di riconoscere i diritti naturali alla famiglia, ma di
riconoscere la famiglia come società naturale, la quale abbia le sue leggi ed i suoi diritti di
fronte ai quali lo Stato, nella sua attività legislativa, si deve inchinare».
seção 1 – filosofia jurídica e social 31
61
Veja-se, sobre o uso retórico dos argumentos jurídicos, Diciotti, 2007 e 1997.
32 revista brasileira de filosofia – RBF 239
62
Pino, 2009: 160.
seção 1 – filosofia jurídica e social 33
risco, enfim, será que, pelo menos deste ponto de vista, a impotência do
legislador acabe por esconder uma certa omnipotência do juiz.
Bibliografia
Raffaele De Giorgi
Professor Titular de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito.
Diretor do Departamento de Ciências Jurídicas da
Università del Salento, Lecce, Itália.
Abstract: Culture and culturalisms are links to the past. A society that
needs to seek links with the future, such as the present one, finds reassur-
ance in the semantic reactivation of the past. An artificiality that, together
Título original del texto en italiano Multiculturalismo, identità, diritto. Traducción por
1 *
with the identity technique, departs the other, is built. And the other may
certainly have the face of the future that is coming. As the law is a particular
system that builds links to the future, it distributes differences in the access
to social communication. It rebuilds otherness. Then, these conditions of
culture and identity delimit the evolutionary potential of society that, in
its temporal dimension, is conditioned by the presence of pasts and tech-
niques that, in keeping the segregation, use a particular way of distributing
differences. And the society needs to builds these links, because without
them it could not come in touch with itself.
Keywords: Culture – Identity – Law – Multiculturalism.
–I–
- II –
2
Existen nociones en las cuales una condición multicultural se ha estabilizado, ha sido
objeto de sedimentación constitucional, tiene su forma en la coexistencia política y jurídica
de referencias que se totalizan como originarias y por eso justificadas.
38 revista brasileira de filosofia – RBF 239
- III –
- IV –
nomos en cuanto como «destinatarios del derecho, también pueden ser consi-
derados como los autores del mismo». Estos autores son «libres en cuanto
toman parte en los procesos legislativos que son regulados de tal manera, y
se llevan a cabo en formas comunicativas tales, de hacer creer que a todos las
reglas establecidas son merecedoras de aprobación general y racionalmente
motivadas». Esto se conoce como concepción jurídica procedimientalista.
-V–
Rafael Simioni
Doutor em Direito. Professor do Programa de Mestrado em Direito da
FDSM. Pesquisador Líder do Grupo de Pesquisa Tertium Datur
(PPGD/FDSM). Bolsista Capes em estágio pós-doutoral na Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra.
1
Pesquisa realizada no âmbito do projeto Decisão Jurídica e Democracia, do Grupo de
Pesquisa Tertium Datur (PPGD/FDSM), com apoio do CNPq.
50 revista brasileira de filosofia – RBF 239
1. Introdução
O poder pode ser entendido sob diversas formas. Parsons via o poder
como um meio de intercâmbio simbólico entre o sistema das sociedades e
as ações sociais.2 Giddens também vê o poder como um meio, «um meio
de conseguir que as coisas sejam feitas».3 Também Habermas possui uma
importante concepção de poder, como um meio de integração sistêmica sob
tensão em relação à integração social,4 de modo a submeter as pretensões de
poder por pretensões de validade racionalmente justificáveis.5 Weber, Marx,
Freud, Castoriadis, Foucault, Bourdieu: todos desenvolveram perspectivas
teóricas importantes a respeito do conceito de poder.
Desde os gregos, em cada paradigma, em cada uso de uma diferença
diretriz, pode-se redescrever uma diversidade de conceitos de poder que
atualmente parecem irreconciliáveis. Mas de todas as perspectivas possíveis
2
Cf. Parsons, 1968: 306: «Power is here conceived as a circulating medium, analogous
to money, within what is called the political system, but notably over its boundaries into all
three of the other neighboring functional subsystems of a society (as I conceive them), the
economic, integrative, and pattern-maintenance systems.»
3
Cf. Giddens, 1991: 161.
4
Em uma perspectiva evolutiva, Habermas observa, por exemplo, a «origen de un orden
político que organiza una sociedad de manera tal que sus miembros pueden pertenecer a
diferentes linajes. La función de la integración social pasa del sistema de parentesco al
sistema político. La identidad colectiva ya no se incorpora en la figura de un antecesor
común, sino más bien en la figura de un gobernante común» (cf. Habermas, 1996: 106).
5
Cf. Habermas, 1988: 387; e Habermas, 1988: 168. Para Habermas, a ação comunicativa
não desempenha uma pretensão de poder, mas uma pretensão de validade. E isso significa que
a ação comunicativa pode dispensar a sanção como elemento motivador da sua aceitação.
seção 1 – filosofia jurídica e social 51
6
Luhmann, 1998, vol. 1: 158: «Und wenn die Gesellschaft aus der Gesamtheit aller
Kommunikationen besteht, ist die übrige Welt zur Sprachlosigkeit verurteilt.»
7
Bourdieu, 2006: 9.
8
Luhmann, 1993: 407.
52 revista brasileira de filosofia – RBF 239
9
Ver-se especialmente: Luhmann, 1982; Lumann, 1995; Luhmann, 1990; Luhmann, 1994; e
Luhmann, 1998.
10
Este problema vem da sociologia de Parsons, mas foi profundamente reconstruído por
Luhmann, inicialmente, em termos funcionais (Luhmann, 1993), e depois em termos autopoi-
éticos (Luhmann & De Giorgi, 2003: 61 e ss.).
seção 1 – filosofia jurídica e social 53
11
Cf. Luhmann, 1998: 116.
12
Cf. Luhmann, 1995: 4.
13
Cf. Berger & Luckmann, 1985: 47.
seção 1 – filosofia jurídica e social 55
Uma noção de poder tão ampla como essa permite a pergunta pela
possibilidade de existir realmente alguma relação que não seja de poder. E
a resposta é: só não existe poder quando alguém age desconsiderando as
alternativas entre cumprir ou descumprir a ordem. Só não há poder quando
ego não toma a ação de alter como premissa para decidir entre cumprir ou
descumprir. O poder dos pais sobre seus filhos não atinge os filhos do vizinho
enquanto eles não se conhecerem e vice versa. Como também o poder de uma
organização empresarial só não submete as demais organizações enquanto
estas puderem decidir sem levar as decisões daquela em consideração em
suas estratégias.
O não-poder só pode ser então entendido no campo da ignorância do
poder, quer dizer, só pode ser entendido como o fato de não se saber que uma
dada alternativa entre cumprir ou descumprir uma ordem devia ser levada
em consideração como premissa para uma ação. Diante do poder, portanto,
não há outra alternativa senão a alternativa entre cumprir ou descumprir a
exigência já dada pela própria comunicação do poder. Porque até mesmo
56 revista brasileira de filosofia – RBF 239
14
Tomamos uma sugestão de Derrida, 2002: 117-118: «O “impoder”, cujo tema aparece nas
cartas a J. Rivière, não é, sabemo-lo, a simples impotência, a esterilidade do “nada para dizer”
ou a falta de inspiração. Pelo contrário, é a própria inspiração: força de um vazio, turbilhão do
sopro de um soprador que aspira para ele e me furta aquilo mesmo que deixa vir para mim e
que eu julguei poder dizer em meu nome. (...) Essa fecundidade do outro sopro é o impoder:
não a ausência mas a irresponsabilidade radical da palavra, a irresponsabilidade como poder
e origem da palavra.»
15
Ver-se a propósito nossa tentativa de sistematização dessas críticas em: Simioni, 2007: 309
e ss.
seção 1 – filosofia jurídica e social 57
4. A medida do poder
Desde Hegel se dizia que a ação deve ser guiada pela vontade livre.16
Agora se diz que a ação livre deve ser racionalmente motivada. Mas uma
análise mais aproximada da comunicação do poder permite ver que a vontade
ou a motivação apenas é conferida depois que se exerce o poder. E é confe-
rida na própria comunicação, isto é, independe da vontade de quem praticou
a ação política.17 Os interesses, igualmente, não são determinantes das ações
de poder, mas sim justificativas a posteriori produzidas pela comunicação da
ação de poder. Afinal, somente depois de praticada uma ação política é que
alguém pode julgá-la, atribuindo certos interesses e não outros. Isso significa
que entre os interesses da situação e os da oposição, o que cai como um pano
de fundo do poder é a sua própria forma de comunicação: a comunicação
de uma única alternativa entre cumprir ou descumprir a pretensão de poder.
Nessa perspectiva, o campo de atuação do poder não se estabelece mais
através da medida da força física ou do nível de cumprimento ou de eficácia
das ordens, mas sim através do campo de abrangência da comunicação. Isso
significa que em uma sociedade mundial, na qual a comunicação atravessa os
limites comunitários tradicionais, as relações de poder já não podem mais ser
suficientemente entendidas como relações entre pessoas, entre organizações
16
Cf. Hegel, 1997: 46: «O domínio do direito é o espírito em geral, e sua base própria e
ponto de partida é a vontade livre, de sorte que a liberdade constitui sua substância e sua
determinação; o sistema do direito é o reino da liberdade realizada, o mundo do espírito que
se manifesta como uma segunda natureza a partir de si mesmo.»
17
Cf. Luhmann, 1995: 30.
58 revista brasileira de filosofia – RBF 239
18
Luhmann, 1995: 14.
19
Idem, ibidem, p. 18.
60 revista brasileira de filosofia – RBF 239
20
Luhmann, 1995: 32.
21
Cf. Luhmann, 1983: 124: «somente através da generalização enquanto símbolo para outras
possibilidades que a força física adquire uma relevância abrangente em sistemas sociais.»
22
Cf. Luhmann, 1995: 34.
seção 1 – filosofia jurídica e social 61
23
Cf. Luhmann, 1983: 125.
24
Com informações atualizadas, ver-se: Porto-Gonçalves, 2006: 294.
62 revista brasileira de filosofia – RBF 239
25
Cf. Luhmann, 1995: 31.
26
Idem, ibidem, p. 71.
27
As demonstrações bélicas no oriente médio, África e Ásia, colocam em dúvida se em
sociedades mais complexas a simbolização da credibilidade do poder através da ameaça de
força física não é mais suficiente. Nessas sociedades, torna-se necessária também a codificação
legal do poder. Mas isso, como se vê desde a década de 80, não permite concluir que existe
uma tendência à paz.
seção 1 – filosofia jurídica e social 63
que a liberdade de ação só será exercida nos limites por ele mesmo traçados,
com a exclusão de todas as demais possibilidades.
Desse modo, o meio de comunicação «poder» reduz complexidade,
estrutura a complexidade da sociedade sob a forma simples da diferença
entre cumprimento ou descumprimento de sua própria pretensão de poder.
Um país importador de energia pode exigir, por exemplo, segurança no apro-
visionamento energético realizado por outro exportador. Toda a complexi-
dade que resulta dessa relação então se reduz, na perspectiva do poder, para
apenas duas alternativas: ou há cumprimento (poder) ou há descumprimento
(não-poder). Se existe escassez econômica, falsidades científicas, falta de
fé religiosa ou desafeto interpessoal, são questões que já não se levam mais
em conta na observação conduzida pelo meio de comunicação do poder.
Porque na perspectiva do poder, só interessa a diferença entre cumprimento
e descumprimento da própria alternativa constituída pela seletividade da
comunicação do poder.
Tanto a política mundial do petróleo quanto a política brasileira da
energia elétrica possuem uma riqueza empírica significativa a respeito dessa
seletividade política do sentido da energia. O embargo no fornecimento de
petróleo em 1973 pela OPEP, como também o sucateamento do setor elétrico
brasileiro da década 50, só não geraram conflitos bélicos porque a justifica-
tiva oficial estava na escassez econômica. No caso do petróleo, precisamente
quando a justificativa da escassez econômica tornou-se insuficiente, então
a perspectiva econômica cedeu lugar para a perspectiva política, cuja resis-
tência da OPEP em baixar os preços do petróleo pôde ser vista como um
descumprimento injustificado das expectativas dos países importadores. E
por isso, a descoberta da falta de poder sobre a OPEP teve que ser compen-
sada com intervenções militares já na década de 80.
E no caso do setor elétrico brasileiro, a justificativa da escassez
econômica cedeu lugar para a perspectiva política, a partir da qual a falta
de dinheiro para investimentos no setor mostrou-se como resultado de uma
semântica política nacionalista de «energia barata». O resultado foi a recons-
trução do problema do sucateamento do setor elétrico, não mais como um
problema econômico de custos do setor, mas sim como um problema político
de descaso com os investimentos necessários à expansão do sistema elétrico
nacional.28 Para se ter uma ideia do nível em que acontecem essas distin-
28
O plano da CEEE era a construção de várias pequenas termelétricas em locais diferentes,
interligadas por um sistema Estadual integrado de distribuição, que depois seria conectado
a grandes hidrelétricas. O plano não deu certo e não chegou sequer à segunda fase da
interligação. Pois o alto custo individual de cada termelétrica inviabilizou os investimentos na
expansão do sistema para se abrir a fase da interligação (cf. Leite, 1997: 405). A CEMIG, de
Minas Gerais, adotou outra estratégia, empresarial, e deu certo.
64 revista brasileira de filosofia – RBF 239
7. Considerações finais
29
No âmbito do direito, toda a complexidade da questão se reduz à atribuição do fato na
alternativa entre o lícito ou o ilícito. Ver-se, a propósito, o parecer de Pontes de Miranda,
1961.
seção 1 – filosofia jurídica e social 65
Bibliografia
Berger, Peter L.; Luckmann, Thomas, 1985: A construção social da realidade:
tratado de sociologia do conhecimento. 13. ed. Trad. Floriano de Souza
Fernandes. Petrópolis: Vozes.
Bourdieu, Pierre, 2006: O poder simbólico. 9. ed. Trad. Fernando Tomaz. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil.
Derrida, Jacques, 2002: A escritura e a diferença. 3. ed. Trad. Maria Beatriz
Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva.
Ésquilo, 2007: Prometeu acorrentado. Trad. J. B. Mello e Souza. São Paulo: Martin
Claret.
Giddens, Anthony, 1991: As conseqüências da modernidade. Trad. Raul Fiker. São
Paulo: Unesp.
Habermas, Jürgen, 1996: Sobre Nietzsche y otros ensayos. México: Red Editorial
Iberoamericana.
____, 1988: Teoría de la acción comunicativa I: racionalidad de la acción y racio-
nalización social. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus Ediciones.
____, 1988: Teoría de la acción comunicativa II: crítica de la razón funcionalista.
Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Taurus Ediciones.
Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 1997: Princípios da filosofia do direito. Trad.
Norberto de Paula Lima. São Paulo: Ícone.
Hobbes, Thomas, 2004: Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiás-
tico e Civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São
Paulo: Nova Cultura.
Leite, Antonio Dias, 1997: A energia do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Luhmann, Niklas, 1993: A improbabilidade da comunicação. 3. ed. Trad. Anabela
Cavalho. Lisboa: Vega.
30
Desde Hobbes se sabe que «graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no
Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna
capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da
ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros» (cf. Hobbes, 2004: 144).
seção 1 – filosofia jurídica e social 67
1
O presente artigo procura ser uma síntese e uma relectio de vários trabalhos, publicados
em vários países e línguas, sobre este fecundo diálogo jurisfilosófico e constitucional. E
particularmente se inspira em aulas-conferências que proferimos na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, quando aí estivemos, na qualidade de Professor visitante, em
abril de 2011, a muito honroso convite da Coordenação da Pós-graduação e dos Departa-
mentos de Filosofia e Teoria Geral do Direito e de Direito do Estado. Cremos que, convidado
pelos Professores Doutor Celso Lafer e Doutor Tércio Sampaio Ferraz Junior a escrever de
novo nesta prestigiadíssima publicação, se justificaria dar às suas páginas um escrito ligado
à tradicional Faculdade do Largo de São Francisco, cujas arcadas guardam o saber de ambos
os Mestres, recentemente jubilados, e a quem, assim, modesta, mas sinceramente, desejamos
prestar homenagem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 69
2
Este jogo essencial do moderno e do clássico parece estar ínsito no ADN do Direito
Constitucional. A temática seria glosada com muito brilho numa conferência no «I Simpósio
Internacional de Análise Crítica do Direito», no Centro de Ciências Sociais Aplicadas – CCSA
– antiga Faculdade de Direito, em Jacarezinho, nos dias 26 de Setembro de 2011, proferida
por Walter Claudius Rothenburg, com o título (já de si esclarecedor), A antiga contempora-
neidade do Direito Constitucional, inspirado em alguns passos do segundo capítulo seu livro
Direito constitucional, São Paulo: Verbatim, 2010: 45 ss.
seção 1 – filosofia jurídica e social 71
exemplo, para dar uma ilustração a nós mais próxima, com o povo martiri-
zado e heróico de Timor Lorosae.
É espantoso ver como da aparentemente tortuosa sentença de Salomão
se fez Justiça: embora com risco, se a verdadeira mãe ficasse emudecida pelo
choque, como sublinha Scliar (1999). E como ver a realização da Justiça
é bom (da mesma forma que se diz, no Génesis, que Deus viu que tudo era
bom, a Sua era uma boa obra: Gén. I, 25), dá a sensação (essencial para o
Direito – sem a qual o Direito não tem sentido nem pode exercer uma das
suas funções essenciais, que é a de contribuir para dar sentido ao mundo) de
que o mundo tem ordem, tem sentido.
Mais ainda, quando, digamos, um juiz trata por igual a todos, mesmo
aos «grandes», aos «poderosos» etc. (sem acepção de pessoas – relembremos
Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa IIae, q. 63), e mais ainda, quando
ao pobre trata de forma a compensar a sua desigualdade. O mesmo se diga
quando aumenta o salário mínimo, se criam apoios sociais a quem necessita,
ou se taxam os lucros, juros, dividendos, ou rendas fabulosas... em sistemas
em que o fisco arrecada com equilíbrio, e o governo distribui com justiça.
Montesquieu dá-nos um testemunho dessa sensação de elevação,
falando de alegria secreta, a propósito da função legislativa, podendo
funcionar como exemplo de igualdade, mas decerto mais ainda de justiça:
«(...) j’ai toujours senti une joie secrète lorsqu’on a fait quelque règlement
qui allât au bien commun» (Montesquieu, Pensées, CCXIII).
A fraternidade é hoje mais rara: é um ideal ainda mais distante, e depende
muito da concretização da liberdade e da igualdade numa dialéctica fecunda
e equilibrada. Mas facilmente imaginamos momentos de fraternidade triun-
fando... Ao falar em fraternidade é natural que em Portugal relembremos a
canção Grândola, de José Afonso, que foi emblemática na revolução dos
cravos (25 de Abril de 1974): «Grândola, vila morena / Terra da fraterni-
dade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade».
É a nosso ver sintomático que se remeta nos demais textos da canção
para um ideal, uma «vontade», e que se comece por uma manifestação da
liberdade, a democracia (como «governo do povo»: «o povo é quem mais
ordena»). No seguimento da canção, liga-se a fraternidade à igualdade, sem
mais desenvolvimentos. É que o tempo da fraternidade está ainda apenas
em preparação, como apenas entrevisto. Mas vai dando os seus passos, ao
menos a um nível intelectual (onde, na verdade, as grandes transformações se
preparam, estando pronto o terreno das possibilidades históricas) designada-
mente com o Direito Fraterno e entidades afins, que avançam tempos novos
para a juridicidade, cuja designação, se a houver, ainda está nas brumas do
insondável porvir.
seção 1 – filosofia jurídica e social 73
comandos que não deixam de fora, se caso disso for, nenhum aspecto da
vida), que alguns com alguma infelicidade chamam «totalitarismo», o que
implicaria vocação totalitária, que é coisa bem diversa. Traço este contudo
ponderado com a importância das distinções de esferas de existência (plura-
lismos vários, fés dominicais vs. fés semanais – como diria Huxley –, dico-
tomia público / privado, intimidade(s), reserva(s) mental(is) legítima(s) etc.)
que podem ter também dimensão valorativa positiva – e estamos convicto de
que muitas vezes a terão.
São muitos «ses» estão assim envolvidos, muitos matizes nas teses
propostas, mas é essa a situação histórico-espiritual dos valores, hoje.
E se a questão das características dos valores será hoje polémica, não
menos o é o nosso acesso a eles. Ou seja, o problema da gnoseologia dos
valores. Ou, noutros termos (mas os termos nunca são inócuos) da genea-
logia dos valores. Como compreendemos os valores? E como aparecem, ou
nascem os valores?
E se há discussão sobre como nascem os valores e como podemos
conhecê-los, é evidente também que há quem pretenda negá-los. Negar
uns, outros, ou quiçá todos (o que é difícil, e pode mais afirmar-se geral,
abstracta e teoricamente, que no confronto concreto com um e outro e outro
dos valores que sejam propostos). Seja como for, há dificuldade no acesso
ao conhecimento dos valores, e há também casos de vera «cegueira aos
valores» (miopias, daltonismos e outras afecções na sua visão, ou teorização
– theoria).
O valor não é apenas qualidade de algo, como quer o radical natura-
lismo, nem Ideia, coisificada, como advoga um certo platonismo, nem pura
vivência, como o encara o psicologismo, nem simples constructo social,
como defende o sociologismo, nem apenas historicidade, como poderá
pensar um historicismo. Os valores são tudo isso (ou de tudo isso um tanto),
e tal não lhes retira nobreza, idealidade e espiritualidade, como temerão os
mais idealistas, nem os desentranha da vida real e concreta, como se recearão
os mais empíricos.
Mas, apesar de se poder fazer sem dificuldade uma sociologia dos
valores (e tal ter um valor heurístico muito interessante, mas obviamente
não decisivo no plano propriamente axiológico – a menos que do sein
algum sollen se pretenda retirar: e não é questão simples...), verdade é que a
compreensão dos valores (que é o vero conhecimento intelectual deles) passa
pela sua vivência. A qual pode ser uma simples aventura espiritual, sem
dimensão concreta imediata no mundo externo, mas que implica uma adesão
do ser pessoal de quem vivencia o valor à sua presença. A experiência dos
valores é, assim, algo de emocional e intuitivo que depois se pode raciona-
76 revista brasileira de filosofia – RBF 239
lizar. Como, aliás, sucede com várias escolhas vivenciais, em que o espírito
como que dá um salto por sobre a razão e as suas lentas rodas dentadas. E
depois de chegado à conclusão, vem atrás, e deixa que essa tola mas arru-
mada governanta da Casa do Espírito limpe o pó do estrondo da iluminação,
e encontre justificações lógicas e argumentos convincentes.
Nesta perspectiva contrariamos, como é óbvio, as concepções de inte-
lectualismo radical, como, por exemplo, as de Honeker, para quem, na sua
essência, o valorar é «um facto intelectual».
Mas esta posição sobre o carácter sobretudo emocional e intuitivo do
acesso aos valores não lhes retira, como é óbvio, nem uma dimensão contex-
tual (histórica e social), nem uma radicação ou pressuposto psicológico (e
biológico antes dele), nem, como aliás dissemos, uma ulterior racionalização
valorativa, pelo menos quando pedidas contas da opção tomada.
Messer observou com muito acerto uma característica do juízo de valor
que traz um argumento em favor do que acabamos de afirmar. Ninguém
será capaz de demonstrar racionalmente, e a tratos de polé de silogismos, a
bondade de um juízo de valor a outrem se esse outrem não tiver desde logo,
num ápice, compreendido a radical distinção entre dois exemplos abissal-
mente contrapostos de valor e desvalor. Como o de um ser dissoluto, de um
lado, e um exemplo moral, por outro. Quem tiver cegueira a esse contraponto
não será susceptível de conversão (ou cura) por via meramente lógica ou
discursiva.
Este carácter emocional-intuitivo dos valores opera ao nível individual,
e para a apreensão sobretudo dos mais altos valores. Ao nível colectivo, o
problema é diverso.
Se devemos recusar o mau uso da expressão e a consideração como
valores de bens ou mesmo outras entidades sem valiosidade apreciável no
plano espiritual ou cultural, o certo é que não será de excluir que uma sensação
íntima de prazer axiológico possa resultar de uma encenação meramente
contextual da peça da existência, num dado tempo e lugar. Quando se ouve a
um hippie que o culminar da sua vida foi fumar ou injectar a droga X ou Y,
ou a um iupi que a sua mais profunda experiência estética foi um certo ganho
colossal na bolsa, quiçá depois de uma jogada de alto risco, compreende-se
que a consciência pode estar embotada ou mesmo cauterizada, não reconhe-
cendo os verdadeiros valores. Dizíamos supra não haver apenas casos de
cegueira, mas também de miopia, daltonismo e outras doenças ópticas. E
também há a vista cansada, que é o correspondente oftalmológico daquilo
a que alguns moralistas chamam «consciência cauterizada». Com efeito,
pode haver que se tenha cansado, ante o desconserto moral envolvente. E
que insensivelmente tenha acabado por aderir ao que lhe repugnava, e talvez
seção 1 – filosofia jurídica e social 77
Mas a questão dos valores pode esbarrar com uma desconstrução filosó-
fica ou ideológica. Afinal, que valores? Os teus ou os meus? Os de gregos ou
os de troianos? E que partido tomará a Constituição formal e os constituintes
que a elaborarem? Ou os revisores que a reformarem?
António José de Brito critica duramente o pluralismo ético e a resig-
nação teórica com o mesmo nos nossos dias, abrindo um artigo recente desta
forma:
«O filósofo que aponta o que, incondicionalmente, deve ser ou o que tem
valor em si, está um pouco na posição do ditador que pretende impor a todos
as suas orientações axiológico-políticas. É óbvio que hoje em dia a atitude
do ditador recebe a maior das reprovações. Compreende-se, assim, que um
grande número de pensadores se recuse a colocar-se numa situação alvo de
uma generalizada repulsa, declarando que o género humano – ou uma parte
do género humano – está completamente errado e limite-se a apontar o que
certas pessoas ou grupos de pessoas – nações, raças, igrejas – tomam como
modelos de conduta e nada mais. As prescrições são, assim, abandonadas por
puras descrições.» (Brito, 2011: 252)
Distinguiríamos: uma coisa é querer impor ditatorialmente uma ética
a todos os demais (a nossa – e isso não pode ser coisa boa, nem ter bons
80 revista brasileira de filosofia – RBF 239
efeitos, por muito excelente que seja a nossa ética), outra coisa, diferente, é
aceitar de forma acrítica qualquer dislate moral, e mesmo acomodar-se ao
puro e simples atomismo e pluralismo ético naquilo que comodamente nos
exime de pensar e procurar ir mais além. Sabemos que a qualificação como
«dislate moral» também depende de quem qualifique, mas há, por assim
dizer, um conjunto de regras mínimas de convivência: e essa «mínimo ético»
hoc sensu é que, na verdade, dá a base ao Direito – pois non omne quod licet
honestum est... Digamos que o feroz ou loucamente anti-ético seria, em geral,
considerado crime... Embora sejam muito complexas as generalizações.
Por outro lado, não parece haver dúvidas de que a não aceitação, sobre-
tudo no plano jurídico, de algumas consequências do pluralismo de convic-
ções sobre o certo e o errado, pode levar a um totalitarismo. Do mesmo modo
que a aceitação acrítica do pluralismo, e a sua aplicação à outrance também
conduziriam ou ao anomismo mais dissolutor, ou a uma outra forma de tota-
litarismo (como o descrito por Steven Lukes, 1996): quando se pretendem
punir os que supostamente infringem os ditames da nova ortodoxia anti-
-dogmática, sobretudo os que pecam por distracção ou apenas pecam na
perspectiva persecutória de novos inquisidores da plena heterodoxia, ou que
na verdade a podem utilizar para vinganças pessoais ou meramente para
virem a ocupar os lugares dos outros... (Finkielkraut, 2011: 121ss.)
Em todo o caso, salvo desinências ainda não muito relevantes, parece
ser verdade que, sobre bases éticas judaico-cristãs, se criaram valores a que
chamamos burgueses. Descobrimos há não muito uma obra deliciosa sobre
o assunto, que dá que pensar: Les valeurs bourgeoises (Hourdin; Ganne,
1967).
Desde logo, se há valores burgueses é porque os valores não são, pelo
menos sempre, absolutos (Ferreira da Cunha, 2006: 703 ss.; Hessen, 2001:
95 ss.). E isso é uma conclusão perigosa, que muitos dos especialistas na
matéria não ousariam subscrever. Pior: que repudiariam com veemência.
Contudo, cremos que a conclusão pelo carácter não absoluto dos valores
se impõe. Caso contrário, uma classe, ou o pensamento associado a ela, não
poderia ter valores seus, privativos, antes os valores seriam de todos – e até
só o seriam mesmo se de todos comuns fossem. O mito de uma Constituição
pequena, enxuta, consensual afinal pode ancorar-se nessa ilusão de uma
«comunhão de santos» em valores unânimes.
Ora o facto de se reconhecer que há valores localizados, e, mais ainda,
valores «de classe» é uma revolução epistemológica e, mais ainda, ética. E
na verdade, apesar de os valores em geral serem muitas vezes desgarrados
de uma situação, de um contexto, como que imaterializados, pelo menos
a sua tonalidade e a sua interpretação não são absolutos, mas radicados.
seção 1 – filosofia jurídica e social 81
enorme consenso formal, sobre grandes ideias atractivas, mas depois uma
especificação ou concretização diversa, designadamente por via de ideolo-
gias diferentes e suas diversas práticas.
A ética do comerciante não é a do intelectual, ou a do militar. Podem
comungar todos de um fundo ético comum, e dissentir em questões parti-
culares, nomeadamente deontológicas. Mas há mais que isso. Na ética
castrense, por exemplo, a deontologia está muito para além das regras de um
ofício mecânico ou burocrático: prende-se com o viver e o morrer, o matar e
o não matar etc. Há uma diferença qualitativa, não uma mera desinência ou
uma especificidade folclórica.
Além dos aspectos de classe e actividade profissional, também os
civilizacionais (chamemos-lhes assim) constituiriam, para alguns, clivagens
insanáveis no plano valorativo.
Alguns autores têm sublinhado pretensos valores autoritários asiáticos,
contra pretensos valores democráticos ocidentais. A universalidade dos
direitos humanos, por exemplo, estaria assim em sério risco. Porém, uma
autoridade como Amartya Sen desvaloriza e desmistifica por completo
essa ideia. Pelo contrário, as ideias deste renomado autor contemporâneo
assentem precisamente
«na crença no potencial das diferentes pessoas de diferentes culturas
para compartilhar muitos valores e concordar em alguns comprometimentos
comuns. O valor soberano da liberdade (...) possui, com efeito, essa caracte-
rística de acentuada presunção universalista.» (Sen, 2010: 313).
Outro problema igualmente complexo é o da compatibilização entre
valores, e das suas possíveis antinomias e conflitos. Evidentemente que nesse
capítulo deve imperar a ideia (nascida no seio de querelas hermenêuticas do
Direito Constitucional) de concordância prática (Ferreira da Cunha, 2008:
63 ss.) entre valores em conflito, com a preservação do máximo de efectivi-
dade possível de cada valor em confronto, mas, no mínimo, de um círculo
radical de cada valor. É evidente que nem mesmo os valores são absolutos,
no sentido de, por mor de um valor, se ter de sacrificar totalmente um outro.
E por isso é que uma tabela de valores abstracta seria uma monstruosidade.
É apenas no concreto, e parcialmente, que um valor pode ceder a outro, ou
um valor pode sobrepor-se a outro. Tal em nada retira ao sistema axiológico
em causa. Pelo contrário. Dá-lhe a flexibilidade necessária à complexidade e
variedade das questões concretas da vida.
E uma das grandes vantagens de um não cognitivismo ou objectivismo
desta concreta ética de valores é o de não fundar uma moral positivada num
manual de escuteiro qualquer, permitindo outrossim a evolução dos sentidos
dos grandes valores, adaptando-se aos novos tempos. Alguns poderão criticar
seção 1 – filosofia jurídica e social 85
6. Comparando constitucionalismos
Sublinhou, já nos finais dos anos 80 do século XX, Peter Haeberle que
o Direito Comparado era o quinto método de interpretação, a acrescentar aos
que Savigny sintetizou, em 1840, e que continuam como um dos arsenais
jurídicos do passado mais repetidamente utilizados nos nossos dias. Será a
utilização desse vector hermenêutico que iremos usar agora.
Da lição da Constituinte e da Constituição espanholas muito há a reco-
lher. É até um legado mais estruturado que o provindo da Convenção e do
projecto de Constituição europeia.
Ao irem beber na Constituição Portuguesa de 1976, os constituintes
espanhóis de 1978 usufruíram dos data, do espírito de um moderno Estado
Democrático e Social de Direito, e puderam melhor organizá-los (Ferreira
da Cunha, 2003: 95 ss.). Coisa que a acidentada feitura da contudo excelente
Constituição portuguesa de 1976 não permitiria.
Porém, como ninguém foge à sua circunstância, também acabaria a
Constituinte espanhola por inflectir a pureza conceitual original em favor
de alguma cautela política, sacrificando ao ritual constitucional do «depois
de casa roubada, trancas à porta», pelo qual cada constituição procura evitar
o que considera serem erros, excessos, ou perversidades da realidade cons-
titucional anterior (e sobretudo da imediatamente anterior). Donde, saídos
do franquismo, os constituintes espanhóis elevaram o princípio do «plura-
lismo político» à categoria mais alta, mais fundante, no domínio juspolítico,
atribuindo-lhe a dignidade de valor superior. Não fosse o diabo tecê-las,
até porque os espanhóis, não acreditando em bruxas, sabem que las hay. E
dizem-no.
De qualquer modo, ficaram a coroar a Constituição espanhola três
belíssimos, fundantíssimos valores: Liberdade, Igualdade e Justiça. Para
além de se ter incluído mais um alegado (mas não real) «valor», o pluralismo
político. O qual, como se disse, sendo obviamente muito importante, seria
contudo subsumível na Liberdade.
São valores de que tem de reclamar-se qualquer estado constitucional
dos nossos dias, em qualquer parte do Mundo. Porque são valores globali-
zados, e não privativos de nenhuma cultura específica, ou de qualquer partido
86 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Não são só, infelizmente, lacunas. São antinomias que o Projecto abriga
no seu seio. Há, por exemplo, uma contradição classificatória patente: se a
democracia e o Estado de Direito se encontram no elenco muito vasto de
«valores» no art. I-2.º, já no Preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamentais
da União, da Parte II, integrado de pleno direito e com total valor jurídico
no projecto de Constituição (como vimos), com muito mais acerto se afirma
que a democracia e o Estado de Direito são antes princípios. Embora ainda
excessivamente generoso, o Preâmbulo é mais comedido que o referido
artigo I-2.º, considerando «valores indivisíveis e universais» apenas a digni-
dade do ser humano, a liberdade, a igualdade e a solidariedade.
No articulado acrescenta-se ainda a caracterização da sociedade resul-
tante da aplicação dos valores, comuns aos Estados-membros. É a descrição
abreviada da eutopia realizável pelo Projecto de Tratado Constitucional
europeu: uma sociedade «caracterizada pelo pluralismo, a não discrimi-
nação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre mulheres
e homens».
Todos estes são aspectos que desenvolvem, mas se poderiam reconduzir,
afinal de contas, à tríade valorativa liberdade, igualdade e justiça. Todos os
elementos invocados se subsumem nos três grandes valores. Talvez mais
nuns do que noutros, mas, em geral, em pelo menos um dos três.
Mais que a abertura do catálogo (que, para ser feita solidamente, talvez
tenha ainda que esperar a solidificação de ideias em suspensão nos ares dos
tempos), uma muito fecunda criatividade constitucional pode ver-se logo no
Preâmbulo da Constituição brasileira:
«Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segu-
rança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e comprometida, na ordem internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
Constituição da República Federativa do Brasil.»
Como sabemos, Liberdade, Igualdade e Justiça têm precisamente um
contexto cultural. Eis que os valores clássicos estão todos individualizados
no Preâmbulo da Constituição brasileira, mas como que mesclados criativa-
mente (e com sentido histórico-cultural) com outros valores, enquadradores,
que os sustentam e os modulam.
Assim, a Igualdade não é apenas interpretável como a velha «Igualdade
perante a lei». Pois se ancora nos direitos sociais, no bem estar e no desen-
volvimento, além de nos outros dois valores clássicos. Uma igualdade com
seção 1 – filosofia jurídica e social 89
vera filosofia prática. Mas isso sempre soubemos, desde os romanos, ser o
próprio Direito, tout court. Porque cultivamos, dizia Ulpiano, veram nisi
falor phisophiam, non simultanam affectantes.
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96 revista brasileira de filosofia – RBF 239
«Ich habe gehört, dass manche über den zehn Sephiroth eine Sephira
im Unendlichen zufugen, wonach also angenomen werden musste, dass es
am Anfang von Kether‚ Eljon ein im Undendlichen verborgenes Ding gibt,
welches die Ursache der Ursachen ist...» (Scholem, Gershom. Ursprung
und Anfänge der Kabbala, S. 392).1
«(...) Herzlichen Dank auchfür die Skizzeüber “Judaism – Jewish
Law in Kelsen”. Ichfinde den Gedanken, dass in der ReinenRechtslehre-
eine Art säkularisierter “jüdischerGesetzesglaube” zusehenist, sehrinte-
ressant und auchnaheliegend. Tatsächlichwurdensichviele “assimilierte”
Juden, konfessionslosodergetaufte Christen, geradedurch die Nazi-Ver-
folgungwiederihreralten Tradition und Religion bewusst. Was man im.
Jahrhunderteherablegenwollte, um nichtAußenseiterzusein, wurde nun
zuminneren Halt. Man kehrtezu den Väternzurück! So stelleichmir das
1
«Ichhabegehört» refers to a widely spread quotation from Rabbi Abraham from Köln,
the land of my ancestors, against Nachmanides, that figures as Kelsen spiritual ancestor, as
proven in this paper. My grandfather – also from Köln region – Rudi Strauss was named also
Abraham Ben Moshe: he was actually named after both first names of both quoted Rabbis.
Moshe was Moses Strauss, who fought against the occupation of the beautiful Rhein in the
Great War, river which was shown to me by Dr. Henning Kahmann during my stay at Max
Planck Institute, where I was researching as Stipendiat during the last August thanks to the
invitation of Professor Thomas Duve. I also want to enjoy this opportunity to thank my
colleague Monica Linhares from FMU for substituting me in my classes there (in São Paulo)
and Professor Hans-Peter Haferhamp for the vibrant reception in his cluster of excellence
Institute.»
98 revista brasileira de filosofia – RBF 239
2
«Stärker als all dies, stärker als der aller Vernunft und Sittlichkeit hohnsprechende
Verlauf der jüngsten Geschichte, deren Produkt das heutige Österreich ist, stärker als
Österreich selbst ist sein Wunsch: aufzugehen im deutschen Vaterland.» Kelsen, Hans, 1923:
ÖsterreichischesStaatsrecht.Tübingen: J.C.B. Mohr, 1923. S. 238.
seção 1 – filosofia jurídica e social 99
1. Introduction
3
And I thank professorIzhakEnglard, who sent me his paper «PetachDavar» and I specially
pay here a tribute to the efforts of Professor Levontin, who answered trough his wife hands
and the mediation of his son an mail regarding his Kelsenian memorandum.
4
Knight, 1973.
100 revista brasileira de filosofia – RBF 239
im 1940 im Genf statt, als ein Rabbiner ihn fragte, ob er sich als Katholiker
betrachte. Kelsen erklärte, er sei Jude und betrachte seither diese Erklärung
als seine unoffizielle Rückkehr zum Judentum.»
In a polemical way, full of prejudices in 1936 writes Schmitt against
Kelsen and his school by naming her as «die Wiener Schule des Juden
Kelsens». Schmitt charged Kelsen and his pupils of building an anti-scien-
tific and ideological Guild on the Legal Science, as long as the Jewish legal
thinkers had the strange academic habit of quoting exclusively one another:
«I merely draw attention to the insolent nonchalance with which the
members of the Vienna School of the Jew Kelsen exclusively quoted them-
selves mutually, and with what – for us Germans inconceivable – cruelty and
impudence different opinions were disregarded.»5
Sinzheimer’s Jüdische Klassiker der deutschen Rechstwissenschaft 6
published in 1938 tried rightly to protest against Schmitts verbal excesses.
One might observe that the twelve leading jurists7 discussed in that
book were indeed of Jewish origin but were not inspired by Jewish Law. Our
question here is not of Herkunft. We want to know if Kelsen’s contribution
had specifically to do with the impact of Jewish Law upon his own thoughts.
In a similar sense wrote Schmitt in a letter to his editor:
«Nocheins: Kelsens Normativismus und Identifizierung von Staat und
Gesetz ist doch nur möglich, wenn man eben nicht imStaat, sondern „im
Gesetz“ lebt. Gesetz, das kann oder konnte die Thora sein, aber wohl kaum
das BGB».8
5
Schmitt, 1936.
6
«Der Titel dieses Buches muss jedem auffalen, der bisher gewohnt war, wissenschaftliche
Denker nicht nach ihrer Herkunf, sondern nach dem Wert ihrer Leistungen zu beurteilen».
Sinzheimer, 1953.
7
Friedrich Julius Stahl, Levin Goldschmitt, Heinrich Dernburg, Josef Unger, Otto Lenel,
Wilhelm Eduard Wilda, Julius Glaser, Paul Laband, Georg Jellinek, Eugen Ehrlich, Philipp
Lotmar, Eduard von Simson. See in general the work Heinrichs, 1993.
8
Schmitt, 2007: 313.
seção 1 – filosofia jurídica e social 101
9
«Der radikalsten Einschnitt gegenüber dem alten Orient, wo das Königtum der Mittler
zwischen der irdischen und der himmlischen Welt ist, aber auch der tiefste Bruch gegenüber
dem Verständnis des Königtums, wie es im alten Testament etwa in der Königspsalmen
hervortritt, stellt das deuteronomische Königsgesetz vor. Hiernach geht die Einrichtungen
eines Königtums also allein auf den Wunsch des Volkes zurück. Gerechtigkeitgefühl, das auch
wie in Griechenland auch in Israel früh zu konstatieren ist.» Crüsemann, 1993. (Schriften des
HistorischenKollegs; Kolloquien 24).
10
Schmitt, 1974. In addition to Schmitt, see Cover, 1993 (Law, Meaning, and Violence
Series).
11
There is a legend of a jurist in the Talmud who was defeated as he requested heaven for one
miracle after the other to back him in a decision. Finally a heavenly voice pointed out to him
the law is «not in heaven».
12
Elon, 1973: 230-234.
13
This model fits to the Kelsen’s later irrational phase which is in my view more well
founded than the first phase as well as more applicable to Jewish Law and to the Roman Law
(die romanistischeJurisprudenzist fast immerschopferischgewesen according to Koschaker,
1938: 28) and also to the Common Law and the Islamic Law, that are both created without
direct legislative logical precedence.
102 revista brasileira de filosofia – RBF 239
man from the legislator, His act of will cannot be implicit in the act of will
of another man” (Essays 242); the legislator is not aware of Smith, or of the
fact that he has stolen, and cannot therefore will that he be imprisoned. But
the truth of the proposition does not entail the validity of any norm, since the
proposition may be true without any act of will (in relation to Smith) having
been made by a legal organ.»14
This legal realism as evident as in Kelsen’s later reconsideration of his
Grundnorm theory is reflected in the controversy between Shammaites and
Hillelites. The dispute was resolved by the intervention of a heavenly voice
(bat kol) which proclaimed: «both opinions are the words of the living God».
Divine law is thus conceived to be pluralistic, on the authority of a direct
revelation (here, not even through a prophet) from God himself. This goes
against the identification of Jewish Law with the earlier Kelsenian scheme of
the structure of the legal order, where the researcher was supposed to presup-
pose a basic norm, what in the field of Jewish Law would imply that there is
a original norm that stipulates that everything stated in the written Torah is
biding upon the system of Jewish Law.
A critical realist position doesn’t reduce Halacha to a positivist notion
of legal system. Interestingly, this view comes from the old irrational Kelsen,
who undermines his positivism and goes beyond, indicating how Halacha,
like Islamic Law,15 implodes the Hohfelian deontic categories.
«The halakhah, on the other hand, rejects the sufficiency of these three
deontic modalities. For the rabbinic structure implies that behaviour may be
recommended (or, conversely, discouraged), as well as required, permitted or
prohibited. Indeed, Islamic Law explicitly adopts such a fivefold classifica-
tion of modalities. Jewish Law does not systematise the matter in this way;
nevertheless, institutions such as Middathasidut clearly imply the existence
of such a wider range of modalities.»16
It is often said that Judaism rejects the separation between law and
morality. Though, a distinction is recognised between Halacha (binding
teaching) and Aggadah (instruction through narrative and other modes). The
moral values of Judaism are integrated within the Halacha.
14
Jackson, 1985.
15
«In the opinion of Muslim theologians, not everything that appears in the form of
prescriptions and prohibitions is commanded or forbidden, nor does it carry the same
imperative or prohibitive force». Goldziher, 2007: 63. Ignaz Goldziher was a hungarian
Rabbi who also studied the concept of Ijma, i.e., the concept of the consensus of the competent
scholars with regard to legal questions in the universe of the Islamic Law, a kind of consensus
that is also present in Jewish Law.
16
Jackson, Bernard. Constructing a theory of Halakhah. Disponível em: <http://www.
academia.edu/1445715/Constructing_a_Theory_of_Halakhah>.
104 revista brasileira de filosofia – RBF 239
17
Behrends doesn’t see any of this components. On the opposite, in his brilliant article
Behrends, 1989.
seção 1 – filosofia jurídica e social 105
18
Cohen, 2012.
19
Heck, 1936: S.151.
106 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Franks in Offenbach am Main) Offizier gewesen sein und nach dem Ende der
Bewegung die Dokumente und auch das Bild der „Königin“ in Verwahrung
gehabthaben.»20
As it’s now well know the Kelsens are descendent from Rabbi Yonatha-
nEibeschütz, the most important Rabbi from XVIII century (MargarethBon-
diKelsenwas a direct descendent from him).21 What did he learn from his
ancestors?
YonathanEibeschütz is till today to the orthodox camp with whom
I agreean acknowledged genius in at least three separate areas of Jewish
religious creativity: Talmud and Jewish Law (Halakhah); homiletics and
popular preaching; and Kabbalah.
To the liberal historians, on the contrary,
«Jonathan Eibeschütz stammte aus einer polnischen Kabbalisten Familie.
Mit einem außergewöhnlich scharfsinnigen, haarscharfen Verstand und einem
glänzenden Gedächtnisse begabt, fiel der junge Jonathan, früh verwaist, der
regellosen Erziehung oder vielmehr der Verwilderung der Zeit anheim, die
ihm nur zwei Stoffe für seine Gehirnarbeit zuführte, das weitausgedehnte
Gebiet des Talmuds mit seinen labyrinthischen Irrgängen und die berückende
Kabbala mit ihren klippenreichen Untiefen. Das eine bot seinem nüchternen
Verstande und das andere seiner ungeregelten Phantasie reiche Nahrung. Mit
seiner haarspaltenden Urteilskraft hätte er einen gewandten rabulistischen
Sachwalter abgeben können, der imstande gewesen wäre, die Rechtfertigung
der schlechtesten Sache glänzend und überwältigend durchzuführen; oder er
hätte auch, wenn ihm die höhere Mathematik Leibniz‘ und New-tons zugäng-
lich gewesen wäre, auf diesem Felde erfinderisch manches leisten können.
Eibeschütz hatte einige Neigung für Wissensfächer außerhalb des Talmuds
und auch eine gewisse Eitelkeit davon zu kosten.
Darum erscheint sein Leben und Treiben rätselhaft und mit Widersprü-
chen behaftet. Darum fand er an der Mystik, wie sie Sabbataïs Nachfolger
auslegten, viel Behagen; das Gesetz sei durch den Eintritt der messianischen
Zeit aufgehoben oder könne unter Umständen aufgehoben werden, oder der
in der Kabbala webende Geist brauche sich nicht Gewissensbisse zu machen,
dieses und jenes gering zu achten. Den lästerlichen Hauptgedanken dieser
und anderer Sabbatianer hat Eibeschütz in sich aufgenommen, daß der
höchste Gott, die erste Ursache, mit dem Weltall in keinerlei Verbindung
stehe, sondern eine zweite Person in der Gottheit, der Gott Israels genannt,
das Abbild derselben, die Welt erschaffen, das Gesetz gegeben, Israel
erwählt, kurz sich mit dem Endlichen befaßt habe. Er scheint aber auch den
20
Mauthner, 1918: 110-123.
21
In a letter Scholem confirms my construction with direct reference to the bond family:
«gibtesnochFamilien-Nachrichtenuber die FrankistischenBondis? Ichhabe von in Jerusalem
lebendenAngehorigen der familie, die um ihreFrankischenVerwandschaften gar nichtwussten,
mindestenseinhochstmerkwurdiges Detail aussehrguterTradtiongehort» (Briefe Beck p. 272).
seção 1 – filosofia jurídica e social 107
22
Graetz, 2002.
23
Scholem, 1971.
108 revista brasileira de filosofia – RBF 239
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24
Leser, 2011: 118. Paul Tillich was the best representative of the religious social
concept of justice.
seção 1 – filosofia jurídica e social 109
1. Introdução
1
A imposição do regime de separação de bens já era feita pelo Código Civil anterior, cujo
art. 258, parágrafo único, entretanto, estendia a vedação à escolha do regime de bens para
as mulheres com idade superior à cinquenta anos. A mensagem ofensiva descrita acima se
dirigia, portanto, de maneira especial às mulheres, cuja perda de atrativo para o sexo oposto
se presumia ocorrer mais cedo.
2
V. o acórdão da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paula na
Apelação Cível n. 007.512-4/2-00, de 18.08.1998. Além de sublinhar a irrazoabilidade da
separação obrigatória de bens (então imposta pelo art. 258, parágrafo único, do Código
Civil revogado), a decisão repudia o «paternalismo insultuoso» da proibição, bem como a
suposição, subjacente à lei, de que «pela força mecânica e necessária de certo número de anos
(...) assim o homem, como a mulher, (...) já não estariam aptos para, nas relações amorosas,
discernir seus interesses materiais e resistir à cupidez inevitável do consorte». No mesmo
sentido decidiu a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na Apelação
Cível 70002243046, em 11.04.2001.
3
A palavra «lei» é empregada no texto com sentido amplo. Assim, ela se refere a quaisquer
normas jurídicas, independentemente de seu status hierárquico ou do modo como foram
instituídas. Além disso, as conclusões do artigo não dizem respeito apenas às leis em si, mas
também às decisões dos órgãos encarregados de aplicá-las.
112 revista brasileira de filosofia – RBF 239
4
V. Kornhauser, Lewis A., «No Best Answer?», University of Pennsylvania Law Review,
vol. 146, p. 1.599, p. 1.624-1.625, 1998 (distinguindo as duas formas de expressivismo, a
primeira, consequencialista, atrelada a uma concepção instrumental do Direito, e a segunda,
para a qual o conteúdo expressivo do sistema jurídico tem valor intrínseco); Edwards,
Matthew A., Legal Expressivism: A Primer, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/
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atento a consequências, ou expressivismo instrumental, e o expressivismo, por ele chamado
de «revelador», para o qual o conteúdo expressivo de uma lei merece ser avaliado indepen-
dentemente de suas consequências).
seção 1 – filosofia jurídica e social 113
desvalor relativo da vida que essa lei porventura expresse influencia o modo
de agir dos cidadãos – acarretando, por exemplo, um aumento do número
de homicídios. O expressivismo deontológico, de outra parte, só encontra
fundamento em uma moral de mesma natureza.5
Além de encontrar amparo no consequencialismo moral, o expres-
sivismo consequencialista se relaciona, agora no âmbito jurídico, a uma
concepção instrumental do direito segundo a qual a qualidade moral de
um sistema jurídico depende da medida com que esse sistema é capaz de
realizar certos fins ou produzir certas consequências.6 Como é fácil perceber,
o instrumentalismo jurídico é um produto do consequencialismo moral.
Para os que tratam o direito de maneira instrumental, a importância do
expressivismo é a de sofisticar a análise das consequências de uma lei. Em
lugar apenas daquilo que a lei determina, o expressivismo consequencialista
chama a atenção dos encarregados das políticas públicas para a necessidade
de ter em conta as consequências do que a legislação expressa. Os efeitos do
conteúdo expressivo da lei podem colaborar para a consecução do objetivo
pretendido pelos legisladores, fugir a esse objetivo ou até mesmo contrariá-
-lo. Para um exemplo do primeiro caso, imagine-se uma medida antitabagista
que, além de proibir o fumo em certas circunstâncias, expresse reprovação
aos produtos do tabaco, logrando, graças a isso, alterar as preferências da
população e reduzir o consumo de cigarros. Considere-se, para exemplo da
segunda hipótese, uma emenda constitucional que aumente o número de
vereadores com o propósito de aperfeiçoar a representação municipal, mas
que seja entendida como sinal de desídia na gestão de recursos públicos e
faça assim aumentar a desconfiança dos eleitores. Finalmente, pense-se no
famigerado caso das cotas raciais em universidades, que podem expressar
a presunção de inferioridade daqueles aos quais as cotas são destinadas e
assim contribuir para aumentar, ao invés de reduzir, a discriminação prati-
cada contra essas pessoas.7
5
Como uma moral deontológica não tem que tratar toda e qualquer consequência como
moralmente relevante, mas apenas afirmar que alguns atos são dignos de apreço ou repúdio
independentemente das consequências que produzem, o expressivismo consequencialista é
compatível com o deontologismo moral.
6
Assim como pode ser conciliado a uma moral deontológica (ver a nota anterior), o expres-
sivismo consequencialista não precisa estar atrelado a uma visão puramente instrumental
do Direito, para a qual só importem as consequências desse último. Um instrumentalismo
moderado, que veja os resultados produzidos pelo sistema jurídico como apenas um entre
vários fatores a considerar, é suficiente para despertar interesse pelos efeitos do conteúdo
expressivo da legislação.
7
Em um artigo que versa sobre expressão, é particularmente conveniente salientar que
o exemplo não expressa concordância com esse argumento, frequentemente usado por
opositores das cotas.
seção 1 – filosofia jurídica e social 115
8
V., por exemplo, Eric Posner, «Law and Social Norms: The Case of Tax Compliance»,
Virginia Law Review, vol. 86, p. 1.781, 2000.
9
V. Cass Sunstein, «On the Expressive Function of Law», University of Pennsylvania Law
Review, vol. 144, p. 2.021, p. 2.024-2.025, 1996 (propondo-se a examinar como o Direito
modifica normas sociais não por meio da regulação de condutas, mas, simplesmente, ao fazer
certas afirmações).
10
V. Deborah Hellman, «The Expressive Dimension of Equal Protection», Minnesota Law
Review, vol. 85, p. 1, 2000 (afirmando que a conformidade de uma lei ao princípio consti-
tucional da igual proteção não depende da intenção com que a lei foi promulgada ou do
seu impacto, e sim daquilo que ela expressa); Elizabeth S. Anderson & Richard H. Pildes,
«Expressive Theories of Law: A General Restatement», University of Pennsylvania Law
Review, vol. 148, p. 1.503, p. 1.531-1.564, 2000 (sustentando que a jurisprudência constitu-
cional norte-americana é em considerável medida expressivista, ao declarar leis inconstitu-
cionais em razão daquilo que expressam e dispensar distinto tratamento a leis que, embora
com impacto similar, diferenciam-se por seu conteúdo expressivo).
11
Sobre o conceito de «dano expressivo», v. Pildes & Anderson, Expressive Theories of
Law, cit., p. 1.527-1.531; Richard H. Pildes, «Why Rights Are Not Trumps: Social Meanings,
Expressive Harms and Constitutionalism», Journal of Legal Studies, vol. 27: 725, 755,
1998: «Dano expressivo é o que resulta de ideias ou atitudes expressas por meio de uma
ação governamental e não das consequências mais materiais ou tangíveis produzidas por essa
ação.» («An expressive harm is one that results from the ideas or attitudes expressed through a
governmental action rather than from the more tangible or material consequences the action
brings about.»).
116 revista brasileira de filosofia – RBF 239
12
O estado mental que é expresso não é necessariamente a causa da expressão. Anderson e
Pildes salientam isso ao referir a possibilidade de alguém expressar, por inabilidade, um estado
mental diferente do de fato existente (como no caso de uma pessoa que sente compaixão
mas, por timidez ou desinformação, acaba expressando desrespeito) e a de a expressão ser
deliberadamente incongruente com o estado mental do agente (como no exemplo, usado pelos
próprios Anderson e Pildes, do músico que se esforça para expressar tristeza mesmo não
estando triste). Ver Anderson & Pildes, Expressive Theories of Law, cit., p. 1.507-1.508.
seção 1 – filosofia jurídica e social 117
13
V. Anderson & Pildes, Expressive Theories of Law, cit., p. 1.508.
14
Idem, p. 1.525: «O sentido expressivo de um determinado ato ou prática não precisa, pois,
estar na cabeça do agente ou do destinatário, e nem mesmo na cabeça do público em geral.»
(«The expressive meaning of a particular act or practice, then, need not be in the agent’s head,
the recipient’s head, or even in the heads of the general public.»).
15
Idem, p. 1.524-1.526.
16
V. Steven S. Smith, «Expressivist Jurisprudence and the Depletion of Meaning», Maryland
Law Review, vol. 60: 506, 554-556, 2001.
17
V. Heidi M. Hurd & Michael S. Moore, «Punishing Hatred and Prejudice», Stanford Law
Review, vol. 56: 1.081, p. 1.106, 2004.
118 revista brasileira de filosofia – RBF 239
18
V. Hellman, The Expressive Dimension of Equal Protection, cit., p. 2 (tratando o expres-
sivismo como alternativa à opinião de que a infringência ao princípio constitucional da
igual proteção deva depender das intenções do órgão legislativo) e 22 (o controle judicial
de constitucional tampouco deve se guiar pelo modo como a lei é percebida pela maioria da
população).
19
V. Anderson & Pildes, Expressive Theories of Law, cit., p. 1.525: «Sentidos expressivos
são socialmente construídos» («Expressive meanings are socially constructed»); p. 1.527: «O
sentido expressivo de ações coletivas é uma questão de sentidos públicos e compartilhados»
(«The expressive meaning of collective actions is a matter of public and shared meanings»).
seção 1 – filosofia jurídica e social 119
20
V. Hellman, The Expressive Dimension of Equal Protection, ob. cit., p. 23-24.
21
Idem, p. 23: «That we would arrive at if we were to discuss the interpretative question
together under fair conditions.»
22
Para uma crítica ao critério defendido por Hellman, v. Smith, Expressivist Jurisprudence
and the Depletion of Meaning, cit., p. 561 (ausentes as condições da situação ideal de fala
habermasiana, a discussão sobre o sentido da lei tornar-se-ia «inerentemente especulativa»,
com a tendência a que opositores da lei concluíssem ser o sentido odioso da última o sentido
válido segundo o critério de verdade discursivo).
120 revista brasileira de filosofia – RBF 239
23
Um argumento recente em favor de uma concepção assim encontra-se em Louis Kaplow
& Steven Shavell, Fairness Versus Welfare, Cambridge, Harvard University, 2002.
24
V. Eyal Zamir & Barak Medina, «Law, Morality, and Economics: Integrating Moral
Constraints with Economic Analysis of Law», California Law Review, vol. 96: 323, 2008
(descrevendo como limites morais não consequencialistas podem ser incorporados a uma
análise econômica das normas jurídicas).
seção 1 – filosofia jurídica e social 121
25
Ainda que se admita distinguir moralmente ações e omissões e imputar responsabilidade
com mais frequência às primeiras, essa distinção dificilmente se poderia ter como crucial a
ponto de invariavelmente eximir o órgão legislativo da responsabilidade por manter certas leis
em vigor.
seção 1 – filosofia jurídica e social 123
26
Isso não significa que o propósito (ou a falta dele) de tornar patente a razão pela qual uma
lei é promulgada seja desprovido de importância. Um legislador racista pode ter sua respon-
sabilidade moral agravada pelo fato de alegar uma falsa razão para aprovar uma lei discri-
minatória, se considerarmos, por exemplo, que tal estratégia é em si mesma condenável por
aumentar a chance de a lei acabar aprovada. Sob outras circunstâncias, disfarçar a verdadeira
razão pela qual uma lei vem à luz pode ser louvável, como, por exemplo, no caso em que,
ao ser comunicada, tal razão possa causar pânico à população. O que se afirma acima não é,
assim, a irrelevância da intenção de comunicar (ou não) a razão na qual a lei se baseia, mas o
fato de que essa razão há de ser levada em conta moralmente mesmo que o legislador não a
tenha querido comunicar.
124 revista brasileira de filosofia – RBF 239
27
Para uma defesa consequencialista – ainda que com restrições – da responsabilidade
pelo que atos (falsamente) aparentam, v. Marcia Baron, «The Moral Significance of How
Things Seem», Maryland Law Review, vol. 60: 607, 623, 2001, (embora não seja de exigir,
como regra, que levemos em consideração todos os mal-entendidos que nossos atos estão
sujeitos a criar, as consequências de uma falsa interpretação podem às vezes ser graves a
ponto de nos levar a concluir que devemos, lamentavelmente, alterar a nossa conduta a fim de
evitá-las). V. também Julia Driver, «Caesar’s Wife: On the Moral Significance of Appearing
Good», Journal of Philosophy, vol. 89: 331, 1992 (embora não o seja intrinsecamente, um ato
«mimeticamente imoral» – isto é, que aparenta ser imoral – pode revelar-se imoral devido a
suas consequências).
28
Como bem salienta Deborah Hellman, «Judging by Appearances: Professional Ethics,
Expressive Government, and the Moral Significance of How Things Seem», Maryland Law
Review, vol. 60: 653, 657, 2001, uma razão para censurar o professor pela aparência do seu
gesto não tem de ser uma razão determinante, suficiente para que se conclua que o correto a
fazer é não ir à casa da estudante. Qualquer que seja, o inconveniente moral do que esse ato
aparenta pode ser contrabalançado por razões favoráveis à sua prática – como, por exemplo,
a de que a estudante precisa de ajuda.
29
V. Sarah Buss, «In Defense of Appearances: A Reply to Marcia Baron’s The Moral
Significance of How Things Seem», Maryland Law Review, vol. 60: 642, 2001.
30
Idem, ob. cit., p. 644.
seção 1 – filosofia jurídica e social 125
31
Idem, ob. cit., p. 644-645: «(...) indifference to appearances is disrespectful as well as
unkind. In a nutshell, such indifference is disrespectful because, at least in most circum-
stances, it is incompatible with appearing to take other points of view seriously, and because
appearing to dismiss the value of other points of view is one way of appearing to dismiss the
human beings who occupy these points of view.»
32
A questão referida no texto é levantada pela seguinte passagem do artigo de Buss, ob. cit.,
p. 644: «Mesmo que eu tenha extensa e cuidadosamente examinado as razões para julgar meu
comportamento moralmente errado, e mesmo que, como resultado, eu esteja segura sobre a
minha própria avaliação, o respeito que devo às outras pessoas exige que eu seja sensível aos
seus pontos de vista quando interajo com elas, e isso, por sua vez, exige que eu evite parecer
indiferente quanto à maneira como essas pessoas interpretam minhas ações» («Even when I
have thoroughly and carefully reviewed the reasons for judging my behavior to be morally
wrong, and even when, as a result, I have confidence in my own assessment, the respect I owe
to others requires that I be sensitive to their points of view when I interact with them; and
this requires that I beware of appearing not to care about how they perceive my actions»). A
relação entre a penúltima e a última sentença dessa passagem permanece por explicar. Afinal,
é bastante plausível que o respeito devido às outras pessoas exija sensibilidade aos pontos
de vista dessas últimas, mas é longe de ser claro por que a sensibilidade aos pontos de vista
alheios obriga-nos a não parecer (em lugar de simplesmente não ser) indiferentes a esses
pontos de vista.
126 revista brasileira de filosofia – RBF 239
33
Buss, ob. cit., p. 646. Segundo Buss, o dano que causamos a alguém para quem um de
nossos atos tem sentido ofensivo pode ser um dano «composto» (compounded). Causamos
dano pelo sentido ofensivo do ato em si mesmo, mas também se não levamos a sério a opinião
do outro sobre o sentido que esse ato tem, já que, nesse último caso, tratamos suas opiniões
como se não contassem. Embora Buss não seja clara quanto a isso, pode-se supor que a
prevenção desse dano «qualificado» seja a razão para que devamos aparentar (e não apenas
ter) consideração às opiniões alheias.
34
V. Hellman, Judging by Appearances, cit.
35
Idem, p. 658: «a duty that springs from the relationship itself».
36
Idem, p. 656-663.
seção 1 – filosofia jurídica e social 127
37
Hellman não está, naturalmente, de acordo com isso. Ao contrário, ela afirma que: «há algo
errado em dar a aparência de fazer algo errado que não parece atribuível às consequências
danosas que essa aparência pode causar» («there seems to be something wrong in appearing
to do wrong that is not attributable to the harmful consequences appearance may produce»).
Idem, p. 657.
128 revista brasileira de filosofia – RBF 239
38
Embora reconheça que a ideia da importância moral objetiva de certos acontecimentos
possa ser alvo de objeções, não pretendo defendê-la mais longamente aqui. Meu intuito pode
ser entendido como o de apenas insinuar que, caso o expressivismo deontológico deseje lidar
com sentidos que não necessariamente correspondam às razões ou estados mentais que o
legislador intentou comunicar, precisa reconhecer a esses sentidos a referida importância. A
sorte do expressivismo dependeria, pois, da validade que se venha a atribuir (ou negar) à ideia
apresentada acima.
130 revista brasileira de filosofia – RBF 239
39
Isso não significa que o status democrático da legislação não determine a responsabilidade
da população pelo conteúdo das suas leis, ou que o desprezo à vontade popular manifestado por
uma Constituição autoritária não constitua um equívoco à luz do expressivismo deontológico.
40
Não é relevante para a discussão do texto definir as condições gerais para que os legisladores,
ou mesmo a população em geral, sejam responsabilizados pelo conteúdo da legislação. O que
se afirma é tão-somente que, uma vez atendidas tais condições, a responsabilidade em questão
também pode decorrer – ainda que limitadamente, tal como se explicará em seguida – ao
sentido expressivo da lei.
seção 1 – filosofia jurídica e social 131
41
V. supra o texto acompanhando as notas 13 a 23.
42
Naturalmente, só se pode tratar algo como parte do conteúdo expressivo de uma lei se
esse algo for assim reconhecido por alguém – nem que seja apenas pelo próprio falante. Do
contrário, seria preciso admitir como válida a afirmação de que «a é parte daquilo que a lei
expressa, embora ninguém, nem mesmo eu, acredite nisso». Logo, o conteúdo expressivo da
lei não está limitado àquilo que atualmente se considere fazer parte desse conteúdo somente
por causa de eventuais sentidos que, embora reconhecíveis como tais, ainda não tenham sido
descobertos.
132 revista brasileira de filosofia – RBF 239
não significa, é claro, que a nossa responsabilidade moral pelo que uma lei
expresse estenda-se a tudo o que ela expressa, não importa para quem. Ao
contrário, essa responsabilidade (pondo-se de lado considerações consequen-
cialistas) diz respeito apenas ao que sinceramente acreditamos fazer parte do
conteúdo expressivo da lei. Afinal, agente algum pode (salvo, insista-se, por
razões consequencialistas) ser responsabilizado por aprovar ou manter em
vigor uma lei em virtude de algo que, para o agente mesmo, essa lei esteja
longe de expressar.43
5. Conclusão
43
Isso não significa limitar a responsabilidade às razões que o agente teve para aprovar a lei.
Os congressistas brasileiros podem admitir que o art. 1.641, II, do Código Civil expressa uma
presunção desrespeitosa às pessoas maiores de sessenta anos ainda que a razão pela qual eles
estabeleceram a regra da separação de bens obrigatória nada tenha a ver com essa presunção.
44
Distinguir o conteúdo expressivo da lei de suas consequências ou do modo como essa
lei foi instituída não significa, no entanto, que essas consequências e esse modo não possam
de alguma maneira determinar aquilo que a lei expressa. Por exemplo, se as consequências
de uma lei se revelam desastrosas para uma parcela da população, essa mesma lei pode,
mantendo-se em vigor por certo tempo, passar a conter uma mensagem de desrespeito às
pessoas em questão.
seção 1 – filosofia jurídica e social 133
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45
V. supra o texto acompanhando as notas 21 a 23.
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Razão prática, justificação da
autoridade e o dever
instrumental de obedecer1
1
Uma versão reduzida foi apresentada nas «Jornadas de Investigadores en Derecho y
Ciencias Sociales» promovida pelo Instituto Ambrosio de Gioja na Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires (UBA), 2010. Agradeço a Luis Fernando Barzotto, Wladimir
Barreto Lisboa e Nelson Boeira que, com suas críticas, me ajudaram a dar maior precisão ao
argumento aqui apresentado.
136 revista brasileira de filosofia – RBF 239
2
Cf. Green, 1988: 25-6.
3
Cf. Wolff, 1976: 13.
seção 1 – filosofia jurídica e social 137
sobre outras obrigações para agir. Como pode uma pessoa completamente
racional e autônoma submeter-se à autoridade de outra pessoa ou instituição
sem comprometer sua própria razão? Essa é a questão crucial.
O desafio, na discussão contemporânea, é colocado pelo anarquismo
filosófico. O anarquismo é radical: não há possibilidade moral para a exis-
tência de uma autoridade. A noção de autoridade legítima ou justificada
é, em si mesma, uma contradição em seus termos. O texto clássico é In
Defense of Anarchism (1976) de Robert Paul Wolff. Para Wolff, há uma
incompatibilidade lógica entre autonomia moral e autoridade legítima. Toda
e qualquer submissão a uma autoridade seria imoral ou irracional. O argu-
mento é formulado a partir da teoria moral de Kant. «A hipótese fundamental
da filosofia moral é que os homens são responsáveis por suas ações».4 As
pessoas, em algum sentido, teriam a capacidade de escolher sobre como
devem agir. Estar apto a escolher como agir torna um homem responsável.
Porém, o mero ato de escolha não é, em si mesmo, suficiente. Para Wolff,
uma pessoa autônoma não é apenas responsável por suas ações: é uma pessoa
que assume responsabilidade por elas. E ela se torna responsável na medida
em que tenta determinar o que deve fazer. Portanto, uma pessoa autônoma
é, sobretudo, uma pessoa que delibera. «Somente porque o homem tem a
capacidade de deliberar sobre suas escolhas é que se pode dizer que ele está
sob uma obrigação contínua de tornar-se responsável por elas».5 Quem age
sem avaliar os méritos de suas ações falha em tornar-se responsável por essas
ações e, nessa medida, viola seu dever de agir com autonomia. Korsgaard,
p.ex., formula um argumento similar:
«Nem sempre fazemos o que, com base na reflexão, faríamos ou mesmo
o que, com base na reflexão, já decidimos fazer. A reflexão não tem um poder
irresistível sobre nós. Mas quando refletimos, não podemos deixar de pensar
que devemos fazer o que, com base na reflexão, concluímos que temos razão
para fazer.»6 (Korsgaard, 1996: 104)
Para Wolff, a autonomia não é apenas uma condição necessária da
responsabilidade moral ou da capacidade de escolha: ela é um dever moral
primário e independente.7 «A condição moral demanda que reconheçamos
a responsabilidade e que busquemos a autonomia onde e quando quer que
seja possível».8 Isso requer não apenas que o indivíduo faça suas escolhas
de acordo com o que ele pensa ser a ponderação correta das razões. Requer
4
Wolff, 1976: 12.
5
Idem, ibidem.
6
Cf. Korsgaard, 1996: 104 (tradução livre).
7
«The primary obligation of man is autonomy, the refusal to be ruled» (Cf. Wolff, 1976:
18).
8
Wolff, 1976: 17.
138 revista brasileira de filosofia – RBF 239
também que ele use toda a informação disponível para decidir o que fazer.9
Cada indivíduo, para ser autônomo, deve formar seu próprio juízo em ques-
tões morais. Mas, como Wolff observa, reconhecer a autoridade de outrem é
render seu próprio juízo ao juízo do outro: «obediência não é um problema
de fazer aquilo que alguém lhe diz para fazer. É um problema de fazer aquilo
que esse alguém lhe diz porque ele diz a você que o faça».10 Isso leva dire-
tamente a um problema: o indivíduo autônomo, na medida em que é autô-
nomo, não pode render seu juízo ou estar sujeito à vontade de outrem. «Ele
pode fazer o que outrem lhe diz, mas não porque lhe disseram que se faça».11
A pessoa autônoma age somente quando está convencida de que a ação é
apropriada. Tornar-se responsável pelas próprias ações é tomar as decisões
finais sobre o que fazer. «Ser autônomo... envolve tomar a si mesmo como a
autoridade última em questões morais».12
Um indivíduo responsável, escreve Wolff, «não é caprichoso nem anár-
quico, pois ele reconhece que está vinculado a restrições morais. Mas ele
insiste que ele, sozinho, é o juiz dessas restrições».13 Um agente moral, ao
reconhecer sua capacidade de escolha, faz de si mesmo o autor de suas ações:
ele se torna responsável por elas. Esse agente poderia seguir o conselho ou
comando de outrem. Mas ele o segue porque, ao deliberar por si mesmo,
se convenceu de que esse é um bom conselho ou um bom comando. Wolff
argumenta que, para um indivíduo autônomo,
«... não há algo, estritamente falando, como um comando. Se alguém...
está formulando o que se pretende ser um comando, e se ele... espera que esse
comando seja obedecido, esse fato será tido em conta nas minhas delibera-
ções. Posso decidir que devo fazer o que essa pessoa requer, e pode até ser
que sua formulação do comando seja o fator... que torne desejável para mim
segui-lo... Mas na medida em que a decisão é tomada por mim, não estou
obedecendo seu comando; não estou reconhecendo que ele tem autoridade
sobre mim.»14 (Wolff, 1976: 15-16)
Diante disso, pode-se perguntar: como pode um agente moral submeter-
-se à autoridade de outra pessoa ou instituição sem perder sua autonomia?
9
«Taking responsibility involves attempting to determine what one ought to do, and that…
lays upon one the additional burdens of gaining knowledge, reflecting on motives, predicting
outcomes, criticizing principles an so forth» (Wolff, 1976).
10
Wolff, 1976: 9.
11
Idem, ibidem, p. 14.
12
«The autonomous person does not act simply because another has told him to do so –
he acts only when convinced that action is appropriate. To be autonomous, in other words,
involves taking oneself as the ultimate authority on moral questions» (Cf. Shapiro, 2002:
389).
13
Idem, ibidem, p. 13.
14
Idem, ibidem, p. 15-6 (trad. livre).
seção 1 – filosofia jurídica e social 139
15
Wolff, 1976: 40.
16
«A person who “obeys” a command because it coincides with his autonomous decision is
not obeying authority» (Cf. Reiman, 1972: 11).
17
Cf. Shapiro, 2002: 386.
18
Veja, p. ex.: Shapiro, 2002: 389-91; e Green, 1988: 25 e ss.
19
Cf. Wolff, 1976: 15.
20
Idem, ibidem, p. 14.
140 revista brasileira de filosofia – RBF 239
21
«To cede too much decision-making to others is both foolhardy and morally irresponsible…
To sacrifice them is, in some real sense, to forfeit one’s humanity» (Cf. Shapiro, 2002: 388).
22
Cf. Wolff, 1976: 17.
23
Cf. Shapiro, 2002: 391.
seção 1 – filosofia jurídica e social 141
que deve ser seguida somente na medida em que o agente a julga correta e,
ressalte-se, somente pela razão de que ele assim a julga».24
Essa tensão leva alguns autores a defender que a noção de autoridade,
em si mesma, tem de ser dissociada da ideia de razão: «um apelo à autori-
dade – a requerimentos impostos por uma autoridade – é uma alternativa
a um apelo a razões – a requerimentos baseados em razões para agir».25
Uma ideia similar, ainda que em outro contexto, está presente na definição
de autoridade elaborada por Hannah Arendt. A autoridade, em virtude de
sempre demandar obediência, é facilmente confundida ou com alguma forma
de poder ou violência ou com alguma forma de persuasão:
«A autoridade impede o uso de meios externos de coerção; onde a
força é usada, a autoridade mesma falhou. A autoridade, por outro lado, é
incompatível com a persuasão, que pressupõe igualdade e opera através de
um processo de argumentação. Onde argumentos são usados, a autoridade é
suspensa...» (Arendt, 1977: 92)
Diante disso, pode-se perguntar: haveria então algum modo de conci-
liar a autoridade com a razão? Como se viu, o problema contemporâneo
é colocado nos seguintes termos: para obedecer à autoridade, uma pessoa
autônoma e racional teria de acreditar que o fato de ela ser sido requerida
a agir de certo modo lhe dá uma razão para realizar essa ação. «É o fato
de que lhe foi comandado agir, mais do que a ação que lhe foi comandada,
que daria a ela uma razão conclusiva para realizá-la».26 Mas, de novo, como
isso é possível? Na discussão recente, Joseph Raz oferece uma das respostas
mais articuladas para esse problema. Raz, em termos gerais, admite que
aceitar uma autoridade envolve, necessariamente, deixar de agir com base no
próprio juízo sobre a ponderação das razões. «A autoridade legítima envolve
uma negação do direito de alguém de agir com base nos méritos do caso».27
Ele, contudo, também argumenta que «a razão nunca justifica abandonar
a própria autonomia, ou seja, o direito e o dever de agir com base no seu
próprio juízo sobre o que deve ser feito, levando tudo em consideração».28
O desafio estaria em mostrar que a razão, em si mesma, pode justificar
a suspensão do próprio juízo em algumas circunstâncias. Tem de ser possível
agir de modo racional mesmo que isso implique agir contra a ponderação das
razões. «Aceitar uma autoridade... não é agir irracionalmente ou arbitraria-
mente. A necessidade por uma autoridade pode ser bem fundamentada na
24
Cf. Green, 1988: 26.
25
Cf. Gauthier, 1963: 139.
26
Cf. Shapiro, 2002: 390.
27
Cf. Raz, 2009: 27.
28
Idem, ibidem.
142 revista brasileira de filosofia – RBF 239
razão».29 O problema é claro: como alguém pode ter um dever de seguir uma
diretiva que está, de fato, errada? Como uma diretiva pode ser obrigatória
mesmo que errada? Esse é o problema que Raz enfrenta. Sua solução, basica-
mente, está numa teoria instrumental. A autoridade é um meio para realizar
um fim: conformar-se melhor com a razão. Se, ao seguir a autoridade, você
se sai melhor do que seguindo seu próprio juízo, você deve obedecê-la.
Preenchida essa condição, a autoridade seria legítima e, portanto, obedecê-
-la seria uma necessidade moral. As pessoas teriam a obrigação moral de
obedecê-la, porque isso lhes habilita a agir de modo racional. Esse é o núcleo
de sua teoria. O objetivo do próximo item é discutir as credenciais dessa
solução. A estratégia reside em elaborar uma reconstrução crítica das três
teses que Raz sugeriu em seu The Morality of Freedom (1986) para articular
uma teoria geral da autoridade.
29
Cf. Raz, 1999: 64.
30
No original: «all authoritative directives should be based on reasons which already
independently apply to the subjects of the directives and are relevant to their action in the
circumstances covered by the directive».
31
Raz, 1999.
32
Idem, ibidem, p. 47.
33
Idem, ibidem, p. 53.
seção 1 – filosofia jurídica e social 143
34
«Reality has a way of falling short to the ideal…naturally authorities are judged and their
performance evaluated by comparing them to the ideal» (Raz, 1999).
35
Raz, 1999.
36
Idem, ibidem.
37
Cf. Durning, 2003: 603.
38
Cf. Raz, 1986: 48.
39
Cf. Raz, 1999: 193.
40
Raz, 1986 (trad. livre).
144 revista brasileira de filosofia – RBF 239
41
Raz, 1986: 46.
42
Idem, ibidem.
43
Idem, ibidem.
44
«Experts… are to give advice based on the very same reasons which should sway ordinary
people who wish to form their minds independently… The evidence on which he should base
seção 1 – filosofia jurídica e social 145
Agir por razões dependentes não significa que a autoridade deve agir
sempre com base nessas razões. A tese da dependência apenas requer que
«suas instruções reflitam razões que se aplicam a seus destinatários, i.e.
devem requerer uma ação que seja justificável pelas razões que se aplicam
aos destinatários».45 Uma autoridade, ao tomar decisões, pode perguntar-se
sobre quais razões ela deve refletir, e tentar segui-las. Essa, porém, não é a
única estratégia disponível. Em algumas situações, ela não é sequer a melhor
estratégia. Raz argumenta que, algumas vezes, a autoridade pode sair-se
melhor adotando uma estratégia indireta de «seguir regras e considerações
que não se aplicam, elas mesmas, aos destinatários».46 Ou seja: a autoridade,
em certas circunstâncias, deve agir com base em razões não-dependentes
para maximizar a conformidade com razões dependentes. Raz escreve:
«Uma autoridade pode basear-se em considerações que não se aplicam
a seus destinatários quando isso leva, de modo confiável, a decisões que se
aproximam melhor – do que qualquer outra decisão que teria sido tomada por
qualquer outro procedimento – àquelas decisões mais bem sustentadas por
razões que se aplicam aos destinatários.» (Raz, 1986: 52)47
Esse argumento pode gerar uma objeção. A autoridade, para saber com
base em que razões não-dependentes deveria agir, tem de saber quais razões
são dependentes. Se é assim, por que ela não deveria agir com base nas
razões dependentes, mas sim com base em outras razões, não-dependentes?
A objeção denuncia uma circularidade no argumento de Raz. Ela está equi-
vocada por duas razões. Primeiro, a autoridade não tem de saber quais razões
são dependentes. A exigência é que suas decisões reflitam essas razões: suas
decisões devem conformar-se com elas. Segundo, mesmo que a autoridade
saiba quais razões são dependentes, isso não implica que a melhor estratégia
para conformar-se com essas razões é agir com base nelas (ou seja: é tentar
segui-las diretamente). «A tese da dependência não exclui que a autoridade
aja por outras razões que se aplicam a ela apenas, e não a seus destinatários».48
Há, porém, outra objeção. Ela se baseia numa pergunta: quem decide
quais razões são dependentes? Quem decide quais razões se aplicam ou não
aos destinatários das diretivas? Para essa questão, há ao menos duas linhas
de resposta. Se quem decide é o destinatário, então a tese da dependência
his advice to me is the same evidence on which it would have been appropriate for me to form
my own judgment.» (Idem, p. 52-3).
45
Raz, 1986: 51.
46
Idem, ibidem.
47
«Reliance on such considerations is justified if and to the extent that they enable authorities
to reach decisions which, when taken as a whole, better reflect the reasons which apply to the
subjects» (Idem, p. 52) (tradução livre).
48
Idem, ibidem, p. 51.
146 revista brasileira de filosofia – RBF 239
49
Raz, 1986: 48.
50
Essa segunda possibilidade é adotada por Philip Soper: «a tese da dependência... parece
requerer somente que uma autoridade aja [com base em] razões que a autoridade crê que seus
destinatários devem reconhecer, [independentemente de] se eles de fato a reconhecem ou
não» (Cf. Soper, 1989: 223).
51
Idem, ibidem.
52
No original: «an authoritative directive… ought to reflect the balance of right reason with
respect to what subjects should or should not do». (Cf. Himma, 2007: 4).
53
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 147
54
Cf. Soper, 1989: 223.
55
Idem, ibidem, p. 224.
56
Veja, para uma posição similar: Marmor, 2005: 89.
57
Cf. Dworkin, 2011: 113.
58
Cf. Raz, 1986: 61.
148 revista brasileira de filosofia – RBF 239
59
No texto, por razão de brevidade, refiro-me à tese da justificação normal como TJN.
60
No original: «the normal and primary way to establish that a person has authority over
another person involves showing that the alleged subject is likely better to comply with
reasons which apply to him (other than the alleged authoritative directives) if he accepts the
directives of the alleged authority as authoritatively binding and tries to follow them, rather
than by trying to follow the reasons which apply to him directly» (Cf. Raz, 1994: 214).
61
No original: «the normal and primary argument for the justification of authority must show
that conforming to its directives is more likely to lead one to conform better with reason than
acting independently of it would» (Cf. Raz, Joseph, 1989: p. 1179) (grifo meu).
62
Cf. Raz, 1986: 57.
63
No original: «the fact that an authority requires performance of an action is a reason for
its performance which is not to be added to all other relevant reasons when assessing what to
do, but should exclude and take the place of some of them» (Cf. Raz, 1986: 46) (grifo meu).
seção 1 – filosofia jurídica e social 149
64
Cf. Shapiro, 2002: 409.
150 revista brasileira de filosofia – RBF 239
65
«It does not matter whether the ‘subject’ believes that obeying the ‘authority’ would have
better results or has good reasons to do so» (Cf. Durning, 2003: 602).
66
«The key to the justification of authority [is]: authority helps our rational capacity whose
function is to secure conformity with reason» (p. 139); «The point of being under an authority
is that it opens a way of improving one’s conformity with reason» (Cf. Raz, 2009a: 147).
67
«What it is independently best for an individual to do is what the individual ought to do
from an objective standpoint… Raz cannot claim that someone should do what a mistaken law
directs him to do rather than what he ought to do according to the independent reasons» (Cf.
Durning, 2003: 603).
68
Cf. Raz, 1986: 61.
69
Idem, ibidem.
70
Idem, ibidem.
71
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 151
se convence de que ela requer uma ação objetivamente correta.72 Raz, diante
dessa objeção, pode replicar. Há situações em que uma pessoa suspende seu
próprio juízo porque pensa que o juízo de outrem é melhor que o seu. Nesses
casos, a pessoa não decide seguir o juízo de outrem apenas quando está
totalmente segura de que esse juízo está correto. Para julgar a probabilidade,
o agente não precisa saber com segurança qual ação é correta. A objeção,
portanto, não é decisiva para a tese da justificação normal de Raz.73
Outra objeção pode ser formulada. Quando uma pessoa tem o dever de
realizar uma ação x, isso não significa apenas que seria bom realizá-la, ou
que x é melhor do que outras possíveis ações. Isso significa que se a pessoa
decide não realizar x, ela está tomando uma decisão moralmente errada.
«Uma pessoa apenas tem o dever de fazer algo se é errado para ela não
fazê-lo».74 A tese da justificação normal, porém, enuncia que, em algumas
circunstâncias, o destinatário tem o dever de obedecer à autoridade mesmo
que ele não cometa nenhum erro moral por não obedecê-la. Ou seja: uma
diretiva é obrigatória mesmo que o destinatário não erre ao decidir não segui-
-la. É isso possível? O destinatário teria realmente um dever de obedecer (a
duty to obey)? Raz responde que sim. Sua resposta, porém, é hesitante. A
autoridade «pode falhar em refletir corretamente as razões... que pretendia
refletir».75 Ela pode, p.ex., elaborar uma lei defeituosa ou errada. Uma pessoa
que decide não seguir essa lei está, em princípio, fazendo o que deve fazer a
partir do ponto de vista objetivo. «Alguém que erra ao tentar obedecer a uma
lei defeituosa pode fazer o que é correto, ainda que aja de modo ilegal».76
Raz argumenta que, nesse caso, a pessoa não faz o que é correto fazer (the
right thing). Ela comete um erro ao não seguir a lei defeituosa. Mas, ressalte-
-se, seu erro é «afortunado».77 Essa resposta é suficiente?
O problema de Raz está claro. Se a única razão que temos para obedecer
a uma autoridade é que isso nos ajuda a conformar-se com a razão, então
não há qualquer razão para obedecê-la quando isso não nos ajuda a fazer o
que devemos fazer (do ponto de vista objetivo). Diante desse problema, Raz
teria de sustentar uma justificação subjetiva da autoridade. Quer-se dizer:
Y tem um dever de obedecer às diretivas de X quando Y tem razões para
crer que, ao segui-las, é mais provável que ele faça o que deve fazer do
72
Veja, p. ex: Michelon, 2002: 59; e Soper, 1989: 226.
73
Raz enuncia que a TJN corresponde ao modo normal de justificar uma autoridade, e não
o único modo. Ela não pode ser, em si mesma, uma condição suficiente para a justificação da
autoridade.
74
Cf. Durning, 2003: 606.
75
Cf. Raz, 1989: 1159-62.
76
Cf. Durning, 2003: 603.
77
Cf. Raz, 1989: 1161.
152 revista brasileira de filosofia – RBF 239
que se tenta agir com base no próprio juízo sobre a ponderação de razões.
«Quando um agente aceita a legitimidade de uma autoridade e é ordenado a
agir de certo modo, o agente deve acreditar que ele prefere a conformidade
à não-conformidade».78
Raz parece admitir essa saída quando pergunta: «seguir as instruções
da autoridade melhora a conformidade com a razão?» E, logo em seguida,
responde: «para toda pessoa, essa questão tem de ser feita de modo reno-
vado, e para cada um tem de ser perguntada de uma maneira que admite
várias qualificações».79 Raz assume que um destinatário pode ter boas razões
para seguir uma diretiva e outro destinatário pode ter boas razões para não
segui-la: o que conta como «boa razão» varia de acordo com a posição ou
o nível de conhecimento de cada destinatário. Um farmacólogo especialista
«pode não estar sujeito à autoridade do governo em problemas sobre a segu-
rança dos remédios», ou «um habitante de uma pequena vila às margens de
um rio pode não estar sujeito à sua autoridade em problemas de navegação
e de conservação do rio».80 João pode estar justificado em tomar a decisão
de seguir uma diretiva e, ao mesmo tempo, Pedro pode estar justificado em
tomar a decisão contrária (i.e. de não segui-la). Ambos podem decidir do
modo mais racional possível dentro de suas condições. Note-se, porém, que
somente um deles estaria fazendo o que é correto fazer (ou a diretiva está
correta ou está errada). Isso permite sugerir uma reformulação para TJN:
«X tem autoridade sobre Y somente se Y tem razão para crer que é mais
provável conformar-se com as razões que se aplicam a ele seguindo as dire-
tivas de X do que tentando seguir essas razões diretamente, a partir de seu
próprio juízo.»
Nessa reformulação ainda se pode identificar outro problema. Para Raz,
o propósito de ter qualquer autoridade é melhorar a conformidade com a
razão. Uma pessoa deve fazer o que quer que lhe facilite conformar-se com a
razão. Se, p.ex., Y tem uma estratégia de decisão mais eficiente do que tentar
seguir as diretivas de X, então Y deveria adotar essa estratégia, e não deveria
seguir as diretivas de X. Nesse caso, não se poderia dizer que Y está errado
em agir com base nessa estratégia, e em rejeitar as diretivas de X como base
para sua própria ação. Na TJN, as diretivas de X somente seriam obrigatórias
para Y caso se pudesse provar que tentar segui-las é, de fato, a melhor estra-
tégia que Y poderia adotar para conformar-se com a razão. Tendo isso em
conta, a melhor leitura para a tese raziana da justificação normal é a seguinte:
78
Cf. Shapiro, 2002: 417.
79
Cf. Raz, 1986: 74.
80
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 153
«(TJN) X tem autoridade sobre Y somente se Y tem razão para crer que é
mais provável conformar-se com as razões seguindo as diretivas de X do que
tentando seguir essas razões diretamente ou tentando seguir qualquer outra
estratégia de decisão sobre como se conformar com essas razões.»81
É a partir dessa última reformulação que passo agora a tratar das obje-
ções que considero mais decisivas para a teoria de Raz.
Raz enuncia que a tese da justificação normal é uma «tese moral sobre
o tipo de argumento que poderia ser usado para estabelecer a legitimidade
de uma autoridade».82 O problema da autoridade legítima é um problema
de justificação normativa. Se as condições de TJN são preenchidas, o desti-
natário deve suspender o seu próprio juízo e seguir o juízo da autoridade.
Ele tem o dever moral de tentar seguir as diretivas, e não as razões que
elas pretendem refletir. A TJN, em outros termos, dá uma razão moral para
obedecer à autoridade. Ela, contudo, não oferece uma justificação completa.
A tese da justificação normal não é, em si mesma, condição suficiente para
a legitimidade da autoridade. «Uma justificação completa da autoridade tem
de fazer mais do que fornecer razões válidas para sua aceitação».83 Uma
justificação completa:
«(...) também tem de estabelecer que não há razões contrárias à sua acei-
tação que derrotam as razões em favor da autoridade. Na medida em que as
razões contra a aceitação da autoridade variam, não é possível descobrir com
antecipação quão fortes precisam ser as razões para a aceitação da autoridade
para serem suficientes.»84 (Raz, 1986: 56)
Diante disso, pode-se perguntar: esse argumento é compatível com a
tese da prevenção? Para Raz, a tese da justificação normal parece ser, ela
mesma, uma razão moral. Ela, contudo, não é a única razão disponível. Ela
também não é uma razão que supera, de modo necessário, todas as razões
contrárias à aceitação da autoridade. Nada garante, em princípio, que não há
nenhuma outra razão moral aplicável que possa derrotá-la. Para que a TJN
implique a tese da prevenção, tem de ser possível justificar uma prioridade
81
Essa reformulação não enuncia meramente que X só teria autoridade sobre Y quando, para
Y, fosse melhor seguir as diretivas de X do que seguir as diretivas de qualquer outra autoridade:
«quando várias autoridades se pronunciam sobre o mesmo problema e suas diretivas entram
em conflito, devemos decidir, no melhor de nossa habilidade, qual é a mais confiável como
guia» (Cf. Raz, 2009a: 143).
82
Cf. Raz, 1986: 53.
83
Idem, ibidem, p. 56.
84
Idem, ibidem (trad. livre).
154 revista brasileira de filosofia – RBF 239
85
Veja, p.ex: Michelon, 2002: 62. Raz escrever, em uma nota de rodapé, que «[a TJN] deve
ser suficiente para superar as razões [que contam em favor] do contrário [i.e. que contam em
favor de não reconhecer as diretivas da autoridade como autorizantes]» (Cf. Raz, 1994: 214,
nota no. 7).
86
Cf. Raz, 2009a: 385.
87
«Their role and primary normal function [of authorities] is to serve the governed... It is to
help them act on reasons which bind them» (Cf. Raz, 1986: 55-6).
88
Cf. Michelon, 2002: 63.
89
Um argumento similar está na conhecida refutação do ceticismo feita por Wittgenstein:
«Quem quisesse duvidar de tudo nem chegaria à dúvida. O próprio jogo do duvidar já
pressupõe a certeza» (Cf. Wittgenstein, 1972: 18).
90
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 155
casos em que pode haver boas razões de primeira ordem (objetivas) pesando
contra a diretiva. Nesses casos, não é mais provável que a autoridade leve o
destinatário a fazer o que é correto fazer (do ponto de vista objetivo). A tese
da justificação normal tem de enunciar: nesses casos, o destinatário não deve
seguir o juízo da autoridade. Por que então, como sugere Raz, o destinatário
teria um dever de segui-la mesmo nesses casos?
Raz, para responder essa objeção, teria de justificar porque, nesses
casos, o destinatário ainda assim teria um dever de seguir a diretiva da auto-
ridade. Um primeiro argumento que se pode identificar é o seguinte:
«(...) se alguém sabe que outra pessoa tem uma performance melhor que
si mesmo (no sentido de tomar a decisão correta mais frequentemente), e se
[esse] alguém não tem nenhuma informação adicional que sugeriria em que
sub-classe de casos o juízo da outra pessoa é melhor do que o seu próprio,
então esse alguém irá sair-se melhor ao seguir o conselho da outra pessoa do
que [ao seguir] qualquer estratégia que irá designar algum peso tanto ao seu
próprio juízo independente quanto ao conselho dessa pessoa.»91 (Raz, 1989:
1194)
De acordo com Raz, esse argumento implica que as diretivas da auto-
ridade são razões preventivas, e não razões prima facie que se deve sempre
ponderar com todas as demais razões disponíveis. Esse argumento é formu-
lado a partir de um exemplo:
«Um especialista financeiro alcança a decisão “correta”... em 20% mais
casos do que eu quando não sigo seu conselho... Em qualquer caso, a escolha
correta não exigiria que eu desse uma força prima facie a seu conselho, mais
do que preventiva? A resposta é que não exigiria. Nos casos em que apenas
sei que sua performance é melhor do que a minha, deixar seu conselho alterar
a ponderação em favor de sua solução irá, algumas vezes, dependendo da
minha taxa de erros (rate of mistakes),... melhorar a minha performance. Mas
irei continuar saindo-me pior do que ele a menos que deixe seu juízo prevenir
(pre-empt) o meu.»92 (Raz, 1986: 68)
Em resumo: se o destinatário, ao seguir as diretivas da autoridade,
diminui a quantidade de erros que teria se decidisse seguir seu juízo indepen-
dente, então ele deve, em todos os casos, obedecer à autoridade. Isso é assim
mesmo que o destinatário não tenha qualquer informação para identificar
em que classe de casos ele erraria menos ao seguir as diretivas. Note-se:
pode haver casos em que ele agiria melhor se decidisse agir com base no seu
juízo independente, e não com base no juízo da autoridade. Isso, contudo,
não é um problema: «sua taxa de erros permanece inalterada, i.e. maior do
91
Cf. Raz, 1989: 1194 (trad. livre)
92
Cf. Raz, 1986: 68 (trad. livre).
156 revista brasileira de filosofia – RBF 239
93
Raz, 1986.
94
Idem, ibidem.
95
«It may help me more indirectly by alerting me to the fact that I may be wrong, and forcing
me to reason again to double check my conclusion. But if neither is sufficient to bring my
performance up to the level of the other person then my optimific course is to give his decision
pre-emptive force» (Idem, ibidem, p. 69).
96
Idem, ibidem, p. 68.
seção 1 – filosofia jurídica e social 157
então, nesses casos, ele não tem o dever de obedecer à autoridade. Portanto,
a tese da justificação normal não se aplicaria. Raz escreve:
«quando alguém tem noção do que torna uma decisão correta, então ele
pode... ter a informação adicional requerida para indicar em qual sub-classe
de casos a outra pessoa é pior do que ele mesmo. Nesses casos, não se deve
seguir o conselho da pessoa no que concerne a essa sub-classe de casos em
nenhuma hipótese.»97 (Raz, 1989: 1195)
Essa «informação adicional» oferece um limite à teoria de Raz: o
destinatário pode estar seguro de que, em alguns casos, o juízo da autori-
dade não é melhor que o seu próprio juízo. Nesses casos, como se viu, ele
não deve seguir a autoridade. Isso, marque-se, não significa negar que, em
algumas situações, o destinatário pode decidir seguir o juízo da autoridade
mesmo pensando que a autoridade está errada. Há casos em que ele acredita
que a autoridade pode estar errada, mas não está muito seguro de que essa
crença seja verdadeira. O argumento de Raz pressupõe o problema: a tese
da justificação normal, em si mesma, não justifica a prevenção de razões.
O destinatário teria de deliberar por si mesmo e de decidir, em cada caso
particular, se deve ou não seguir a diretiva da autoridade. Ele, portanto, tem
de escolher obedecer. Um juízo de probabilidade pode ser superado por um
juízo de certeza. O destinatário pode ter informação suficiente para confiar
mais no seu próprio juízo do que no juízo da autoridade.
Para acomodar essa objeção, Raz realiza duas importantes conces-
sões em sua teoria: (a) a distinção entre tipos de erros; e (b) a condição de
autonomia.
Raz introduz essa distinção para refutar uma objeção: «as diretivas da
autoridade podem ser superadas ou desconsideradas se elas se desviam muito
das razões que pretendiam refletir».98 Para essa objeção, a tese da prevenção
não é plausível. Devemos agir com base nas diretivas apenas quando são
vinculantes. E elas são vinculantes somente quando não se desviam muito
da razão correta (right reason). Portanto, «temos de examinar as razões em
favor e contra a diretiva e julgar se ela está justificada».99 Toda pessoa, em
todo caso, teria de considerar os méritos da diretiva antes de decidir segui-la.
A objeção não ataca diretamente a tese da prevenção: ela não nega que uma
diretiva pode substituir as razões que pretende refletir. Seu efeito é negar que
uma diretiva pode exercer uma função mediadora «entre considerações de
97
Cf. Raz, 1989: 1195 (trad. livre) (grifo meu).
98
Cf. Raz, 1986: p. 61.
99
Idem, ibidem.
158 revista brasileira de filosofia – RBF 239
100
Raz, 1986: 58. Na p. 61: «That role [i.e. the mediating function] is to enable people to act
on non-ultimate reasons. It is to save them the need to refer to the very foundations of morality
and practical reasoning generally in every case».
101
Idem, ibidem, p. 62.
102
Idem, ibidem.
103
«Sometimes an action which does not seem remarkable prima facie turns out to be clearly
wrong after reflection» (Cf. Michelon, 2002: 65).
104
Cf. Raz, 1989: 1195.
seção 1 – filosofia jurídica e social 159
105
Raz, 1989.
160 revista brasileira de filosofia – RBF 239
106
Raz está ciente desse problema, mas hesita ao enuncia-lo: «mesmo que a autoridade
legítima estivesse limitada pela condição de que suas diretivas não são vinculantes se
claramente erradas, e eu não desejo expressar nenhuma opinião sobre se ela é assim limitada»
(Cf. RAZ, 1986: 62).
107
Cf. Mcmahon, 1987: 308.
108
Veja, p. ex: Waldron, 2004: 88 e ss.
109
Cf. Nagel, 1986: 118. O argumento deste parágrafo tem relação com a ideia de que, em
questões morais, a deliberação prática é uma forma de aproximar-se da verdade moral, i.e. de
chegar a uma decisão moralmente correta. Veja, p. ex: Nino, 1989: 131. Habermas defende
uma posição ainda mais enfática: o discurso racional seria o «único» meio de acessar as ideias
morais (Cf. Habermas, 2004: 292, nota 30).
110
Cf. Raz, 1999: 192.
seção 1 – filosofia jurídica e social 161
nais, são prevenidos pela diretiva».111 Se, porém, a autoridade comete erros
dentro dos limites de sua jurisdição, esses erros tornam suas decisões nulas:
os destinatários não teriam um dever de segui-las. Há dois problemas com
esse argumento.
Primeiro, o destinatário, para reconhecer um erro como jurisdicional,
teria de deliberar sobre os méritos da diretiva. Raz admite que a tese da
prevenção seria inútil «se a maior parte dos erros fossem jurisdicionais» ou
se, na maioria dos casos, «fosse particularmente controverso e difícil esta-
belecer quais [erros] são [jurisdicionais] e quais não são».112 Segundo, Raz
argumenta que a autoridade pode cometer erros sobre fatores que estão fora
dos limites de sua jurisdição. Esses erros, em princípio, não afetam a obriga-
toriedade das diretivas. O argumento é problemático. Em certas circunstân-
cias, pode-se admitir que a autoridade seja desculpada por cometer um erro
não-jurisdicional: a autoridade comete um erro que não tinha a obrigação de
não cometer (i.e. um erro que está fora dos limites de sua jurisdição). Isso,
porém, não implica que a obrigatoriedade da diretiva não pode ser afetada
por erros não-jurisdicionais. Nem implica que esses erros podem ser preve-
nidos pela diretiva. O próprio Raz afirma que, para decidir o que fazer, uma
pessoa «deve ponderar a diretiva... com quaisquer razões em favor e contra o
ato requerido que estão fora da jurisdição da autoridade».113
111
Cf. Raz, 1986: 62. «Minha tese da prevenção enuncia que as diretivas que caem dentro
dos limites da jurisdição de uma autoridade devem substituir mais do que serem adicionadas
à ponderação de razões sobre a qual a autoridade tinha poder para se pronunciar» (Cf. Raz,
1989: 1194).
112
Cf. Raz, 1986: 62.
113
Cf. Raz, 1999: 192.
114
A expressão «condition of autonomy» é sugerida por Leslie Green (Cf. Green, 1989: 810).
Em texto recente, Raz a denomina de «condição de independência» (independence condition).
Veja: Raz, 2009a: 137.
115
No original: «intrinsic desirability of people conducting their own life by their own lights»
(Cf. Raz, 1986: 57).
162 revista brasileira de filosofia – RBF 239
116
Cf. Raz, 1989: 1181.
117
«We are not fully ourselves if too many of our decisions are not taken by us, but by agents,
automata, or superiors» (Cf. Raz, 2009a: 138).
118
Idem, ibidem.
119
Idem, ibidem, p. 139.
seção 1 – filosofia jurídica e social 163
120
Raz, 1989: 140.
121
No original: «The point of this general capacity [of guiding our conduct and life by our
own judgment] is to enable us to conform to the reasons that confront us at any given time…
We value the ability to exercise one’s judgment and to rely on it in action, but it is a capacity
we value because of its purpose, which is, by its very nature, to secure conformity with reason»
(Idem, ibidem) (grifo meu).
122
Veja, p.ex.: Christodoulidis, 1999: 215-41; e Simmonds, 1993: 52 e ss.
123
Raz se refere a «sobrecargas de decisão e de reflexão» (burdens of decision and inquiry):
«Submitting to authority is one way of reducing the burdens. It can be justified only if it
is consistent with the independence condition of legitimacy (though when the psychological
vulnerability to the burden is extreme it may be justified to mitigate the condition to relieve the
burden)» (Cf. Raz, 2009a: 150).
164 revista brasileira de filosofia – RBF 239
3. Considerações finais
124
Cf. Raz, 1998: 26.
125
Cf. Raz, 2009a: 140 (grifo meu).
seção 1 – filosofia jurídica e social 165
126
Cf. Raz, 1994: 116 (trad. livre).
127
Cf. Raz, 2009a: 139.
128
Cf. Raz, 1986: 48.
129
Raz chama sua teoria de «concepção da autoridade como serviço» (service conception of
authority), e enuncia que, nessa concepção, «a função normal primária [das autoridades] é
servir aos destinatários... é ajuda-los a agir com base em razões que são obrigatórias para eles»
(Idem, ibidem, p. 56).
166 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Referências bibliográficas
Arendt, Hannah, 1977: Between Past and Future. New York: Penguin Classics.
Christodoulidis, Emilios, 1999: «The Irrationality of Merciful Legal Judgment:
Exclusionary Reasoning and the Question of the Particular». Em Law and
Philosophy 18, 1999: 215-241.
Dworkin, Ronald, 2011: Justice for Hedgehogs. Cambridge: Harvard University
Press.
Durning, Patrick, 2003: Joseph Raz and the instrumental justification of a duty to
obey the law. Em Law and Philosophy 22, 2003: 597-620.
Flathman, Richard, 1980: The Practice of Political Authority: authority and the
authoritative. Chicago: University of Chicago Press.
130
«The instrumental principle, because it tells us only to take the means to our ends, cannot
by itself give us a reason to do anything. It can operate only in conjunction with some view
about how our ends are determined, about what they are» (Korsgaard, 2008: 35). Na p. 45:
«A normative principle of instrumental action cannot exist unless there are also normative
principles directing the adoption of ends».
seção 1 – filosofia jurídica e social 167
1. Teorema de Normalização
1.1 Introdução
com i = 1 ou 2.
[α] [α]
Π1 Π2
I ¬ β ¬β E¬ ¬¬α
¬α α
[α]
αÚ¬α ¬(αÚ¬α)
¬α
[¬(αÚ¬α)]
αÚ¬α
¬¬(αÚ¬α)
2
A rigor, o sistema clássico LC’ contém, também, “ como signo primitivo a partir do qual $
é definido.
3
O grau d de uma fórmula α é a quantidade de ocorrências de constantes lógicas em α,
exceptuando ^ (cf. Prawitz, 1965: 15).
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 177
Caso 2: j = β→γ
[β] [β→γ]
γ [¬γ]
^
¬(β→γ)
S
^
γ
β→γ
P1
4
No entanto, a conclusão de uma aplicação desta regra poderia ser, tal como se afirma em
(Bastos Massi, 1990: 11), premissa menor da regra E→, cuja premissa maior é uma fórmula do
topo da árvore da forma α→^. Contudo, neste caso a aplicação de ^c pode ser removida.
178 revista brasileira de filosofia – RBF 239
A ideia geral que está por trás destas versões dos princípios da lógica
completa é a de que as LFUs, por sua capacidade de assumir explicitamente
a (in)determinação das fórmulas por meio da introdução do conceito de (in)
determinação na linguagem objeto, podem recuperar tanto versões fracas do
PTE ou do PI, quanto da totalidade das inferências da lógica completa. A
recuperação das inferências da lógica completa no âmbito da lógica para-
completa é expressa no Teorema de Ajuste de Derivabilidade (DAT), cuja
formulação geral expomos a seguir.
PTE: αÚ¬α
DN: ¬¬α→α
Teorema 10: (DAT1 LC-LI) Para todo conjunto Γ e toda fórmula α tal
que ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^ÙÚ→ ). Então:
Γ ⊢LC α sse ⊘α, Γ ⊢LI α.
Demonstração: Por indução no comprimento da dedução, em Dedução
Natural, de Γ⊢LC α.
Þ Assuma Γ ⊢LC α. Então existe uma dedução Π, no sistema clássico
de Dedução Natural, de α a partir de Γ. Caso base: comprimento da dedução
c(Π) = 1. Como o sistema de Dedução Natural na versão de Prawitz não
contém axiomas, apenas devemos demonstrar o caso em que αÎΓ. Se αÎΓ,
então pela propriedade de reflexividade de ⊢LI temos que Γ ⊢LI α. Logo, pela
propriedade de monotonicidade obtemos ⊘α, Γ ⊢LI α.
Se αÏΓ, então Π é uma dedução de α a partir de Γ que resulta da aplicação
de algumas das regras de inferência para LC: IÙ, EÙ, IÚ, EÚ, ^c, etc. Como
a diferença entre o cálculo de Dedução Natural de LC e de LI reside nas
regras do absurdo, apenas devemos analisar o caso em que α for resultado da
aplicação da regra do absurdo clássico. Seja, então, c(Π) = n o comprimento
da dedução de α a partir de Γ por meio da regra ^c. Então, existe uma dedução
Σ de ^ a partir de ¬α, Γ tal que c(Σ) = m, com m<n. Por hipótese de indução,
temos então que existe uma dedução intuicionista de ^ a partir de ⊘^, ¬α,
Γ, i.e., ^Ú¬^, ¬α, Γ ⊢LI ^. Como ¬^ =def ^→^ e temos que ⊢LI ^→^, então por
IÚ temos que ⊢LI ^Ú(^→^) que equivale, por definição de ¬, a ⊢LI ^Ú¬^.
Logo, usando o corte obtemos ¬α, Γ ⊢LI ^. Por I→, temos que Γ ⊢LI ¬α→^, que
equivale, pela definição de ¬, a Γ ⊢LI ¬¬α. Por outro lado, temos que ¬α,
¬¬α, Γ ⊢LI ^ a partir do qual obtemos, aplicando a regra ^i, ¬α, ¬¬α, Γ ⊢LI α.
Como temos Γ ⊢LI ¬¬α, então pela propriedade do corte temos que ¬α, Γ ⊢LI
α. Como temos também que α, Γ ⊢LI α, então aplicando a regra EÚ às duas
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 181
Teorema 12: (DAT2 LC-LI) Para todo conjunto Γ e toda fórmula α tal
que ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^ÙÚ→ ). Então:
Γ ⊢LC α sse ⊝α, Γ ⊢LI α.
Demonstração: Þ Como no caso anterior, apenas consideramos o caso
em que α é obtida a partir de Γ pela aplicação da regra ^c. Usando a hipótese
de indução obtemos ⊝⊥, ¬α, Γ ⊢LI ^. Pela definição de ⊝ obtemos ¬¬^→^,
¬α, Γ ⊢LI ^. Como ¬¬^→^ =def ((^→^)→^)→^ e, como ⊢LI ((^→^)→^)→^, pois ⊢LI
((α→α)→α)→α, então ¬α, ⊢LI ^. Logo, aplicando a regra I→, obtemos Γ ⊢LI ¬¬α.
Daqui, e pelo fato de ¬¬α→α,¬¬α ⊢LI α, então por corte obtemos ⊝α, Γ ⊢LI α.
Ü Como no Teorema 10, observando o fato de ⊝α =def ¬¬α→α e de ⊢LC
¬¬α→α. ■
ΓÈ{αÚ¬α} ΓÈ{¬¬α→α}
Π′ ou Π′
α α
Este novo DAT 16 pode ser considerado como uma versão simplifi-
cada do DAT 10, porquanto a recuperação em LI das inferências clássicas é
possível pelo acréscimo de premissas atômicas e, portanto, com estrutura de
menor complexidade que a premissa determinada do DAT 10. Com efeito, o
novo DAT 16 permite afirmar que toda dedução clássica Π de α a partir de
Γ, com ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^¬ÙÚ→ ),
Γ
Π
184 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Pelo fato da inferência clássica ¬¬p→p ⊩pÚ¬p não ser válida em LI, o
conectivo de determinação ⊝ não é propagado para o conectivo da disjunção
em LI. Embora não tenhamos a propagação do conectivo de determinação
⊝ na assinatura de LI, os seguintes exemplos sugerem que poderíamos obter
uma versão simplificada do Teorema 12, na qual apenas premissas atômicas
determinadas sejam acrescentadas para recuperarmos as inferências de LC
perdidas.
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 185
4. Considerações Finais
Agradecimentos
Bibliografia
Bastos Massi, C. D., 1990: Provas de normalização para a Lógica Clássica (Tese).
Campinas: IFCH-Universidade Estadual de Campinas.
Corbalan, M. I., 2012: Conectivos de restauração local. (Dissertação). Campinas:
IFCH-Universidade Estadual de Campinas.
Gentzen, G., 1934: «Untersuchungen über das logische Schließen I». Mathematische
Zeitschrift. 39: 176-210 (Tradução em inglês em Szasbo, M. E. (Editor). The
collected papers of Gerhard Gentzen. Amsterdam: North Holland Publishing
Company, 1969).
Marcos. J., 2005: «Modality and Paraconsistency». Em Bilkova, M. e L. Behounek.
(editores). The Logica Yearbook 2004. Proceedings of the XVIII International
Symposium. Hejnice: Institute of Philosophy of the Academy of Sciences of the
Czech Republic, p. 213-222.
Prawitz, D., 1965: Natural Deduction. A Proof–Theoretical Study. Stockholm:
Almquist & Wiksell.
Seção 3
Diálogos
La tópica jurídica:
un diálogo entre dos maestros
Milagros Otero
Professora Titular de Filosofia do Direito na Universidade
de Santiago de Compostela.
1. Introducción
Los seres humanos antes preocupados por instalarse en la certeza,1 tienen que
acostumbrarse ahora y con rapidez, a la realidad de la mudanza y del cambio
permanente. El mundo camina deprisa y parece querer arrollar a quienes no
sean capaces de seguir la carrera de velocidad que nos viene impuesta.
Frente a esta realidad quedan reductos, remansos de paz y de diálogo.
Siguen existiendo personas cuya vida se ha dedicado a aprender para
enseñar. Quedan maestros que quieren enseñar, aunque para encontrarlos
sea preciso buscarlos con lupa de muchos aumentos; quedan también discí-
pulos dispuestos a aprender, aunque para localizarlos haya que utilizar el
mismo instrumento de aumento; y desde luego, quedan muchos alumnos que
necesitan ser enseñados, y éstos sí que se ven a simple vista. La cadena de
conocimiento no corre peligro de ruptura, al menos mientras haya personas
dispuestas a enseñar y otras a aprender.2 Esa cadena es en realidad un
engranaje sin solución de continuidad porque todo el que enseña a su vez
aprende de otros e incluso del mismo al que enseña. Simplemente hay que
estar atento a esta realidad para saber aprovecharla. Para poder aprender es
preciso tener una disposición espiritual determinada que induzca a buscar
y aprovechar las enseñanzas de otros. Es preciso tener la mente abierta al
diálogo3 al intercambio de conocimientos. Sólo así avanza el complicado
proceso de enseñanza-aprendizaje.
En el ámbito intelectual, para que el diálogo sea productivo, quien habla
debe poder acreditar conocimientos suficientes sobre aquello en relación con
lo que se manifiesta. Debe tener cualificación suficiente para cumplir esta
función y además voluntad de desarrollarla. Porque se puede hablar por el
simple placer de comunicar o de reflexionar sobre cualquier tema, como
hablan los conocidos o los amigos en una charla coloquial. Pero para que
el diálogo se convierta en una relación enseñanza-aprendizaje es impres-
1
La certeza ha sido calificada por algunos autores como mito. Entre ellos se encuentra
Manuel Calvo García que en su obra (Calvo García, 1994: 12) explicaba que «el fundamento
del mito de la certeza en el derecho y el formalismo jurídico parece descansar más bien en
razones ideológicas que en las exigencias funcionales derivadas de los procesos reales de
aplicación del derecho».
2
No existen muchos trabajos sobre la forma de enseñar a trabajar en Derecho. Los profesores
suelen dar más importancia al trabajo teórico que al práctico lo cual constituye un error a mi
juicio. Los nuevos planes de estudio tratan de solucionar este problema aunque todavía no han
probado su éxito (Villoro Toranzo, s/a).
3
Como dice Villey, «nada había que fuera más apropiado a las necesidades de los juriscon-
sultos que el método del «diálogo» en el sentido de Aristóteles». «El derecho apareció primero
bajo las especies del litigio; sobre el estrado judicial en donde sucesivamente eran escuchadas
una y otra parte, en el tribunal del Areópoago. Audiatur el altera pars, fue la condición misma
de toda justicia. La cuna del derecho fue la Retórica. Pero deliberadamente hemos preferido
la palabra Dialéctica, que está mas cerca de las gestiones de los jurisconsultos». En Villey,
1981: 81.
seção 3 – diálogos 193
4
De esta dificultad habló Cicerón aportando algunos elementos a considerar para hacer
posible el diálogo entre los seres humanos. El gran orador era consciente de la dificultad de
saber hablar pero también, y aún quizá más de saber escuchar. De ahí su recomendación:
«pongamos buen cuidado en que nuestros interlocutores adviertan que los respetamos»
(Cícero, 1989: 70).
5
Hago esta apreciación porque en el ámbito filosófico por ejemplo la reflexión sobre
cualquier tema puede tener una finalidad puramente especulativa, que se traduce en el gusto
por elucubrar. En el ámbito jurídico por el contrario toda elucubración tiene una finalidad
práctica que se traduce en la solución normalmente conflictiva del reparto justo de las cosas y
de los bienes, de por sí escasos, entre quienes creen tener derecho a recibirlas.
6
Para adquirir esta capacidad vid. Calonje, 2007: 84 ss.
7
Como dice un célebre proverbio chino: El Gran Arquitecto del Universo hizo al hombre
con dos orejas y una boca; para que escuche el doble de lo que habla. Lástima que esta
enseñanza sea tan poco practicada.
8
Decía Confucio que: aprender sin pensar es inútil, pensar sin aprender, peligroso. No sólo
peligroso creo yo, sino además un desperdicio.
194 revista brasileira de filosofia – RBF 239
9
La argumentación es «un fenómeno social (que) tiene un objeto práctico, como es el de
buscar orientar una determinada conducta en el otro, o sea intentar generar una actividad, un
cierto obrar». El que argumenta «no pretende únicamente lograr la adhesión de otro individuo
a la tesis que es sostenida, sino que su instrumento es la apelación a la razón del otro. El que
argumenta lo hace a partir de la utilización de elementos racionales a los efectos de lograr
por ellos la adhesión; aquel que dice argumentar con otro elemento distinto de la razón, no
argumenta» (Andruet, 2003: 107).
10
Siguiendo la opinión de Ote, Alexy opina que por «Tópica pueden entenderse tres cosas
distintas: 1. Una técnica de búsqueda de premisas. 2. Una teoría sobre la naturaleza de las
premisas. 3. Una teoría del uso de estas premisas en la fundamentación jurídica» (Alexy,
2008: 42).
11
Una de las funciones de la Tópica es la de proveernos de medios (se refiere a los tópoi) para
la discusión. ¿De que se trata?, pregunta Villey. Y el mismo responde: Se trata de perseguir
la adecuación de las palabras a las cosas. De buscar un mutuo acuerdo. Y ése sólo se logra
conociendo la cosa «a través de la diversidad de formulas contradictorias» (Villey, 1981: 77).
12
Pese a lo dicho hay autores como Alexy, que advierten que «la teoría esbozada por la tópica
sobre el uso de premisas en la fundamentación de los juicios singulares resulta problemática».
seção 3 – diálogos 195
Y lo es porque «la regla aquí considerada (la tópica) de considerar todos los puntos de vista
no dice nada sobre qué punto de vista debe prevalecer y ni siquiera determina cuáles son los
puntos de vista a considerar». Por tanto, y siguiendo con la opinión de este autor, «habría
que exigir por lo menos, que en tales discusiones se respeten determinadas reglas que las
caractericen como racionales» (Alexy, 2008: 42).
13
Es inútil pensar en la enseñanza como una ocupación comercial, bancaria o de seguros;
no se puede estimular las mentes jóvenes y despiertas por haber sólo aprendido un conjunto
determinado de reglas y datos... Los profesores deben ver, pensar y comprender más que la
persona corriente de la sociedad en la que actúan (Highet, 1982: 37).
196 revista brasileira de filosofia – RBF 239
14
Sobre la estructura práctica del discurso vid. Puy Muñoz; Otero Parga, 2006: 19.
15
«La argumentación es un proceso en el cual se emplea el discurso razonado para defender
o justificar una toma de posición acerca de una cuestión opinable, y así lograr alguno de estos
tres objetivos: persuadir a otro de aquello que se afirma o se niega; reducirlo al silencio, u
obtener que el auditorio no lo tome en serio» (Bandieri, 2004: 19).
16
Me interesa la utilización de este método aplicándolo en el sentido que establece Tercio
Sampaio cuando habla de carácter de la dialéctica de «confrontar opiniones, de discutirlas,
instaurando un diálogo entre ellas» (Sampaio Ferraz, 2009: 178). Opinión que completa
refiriéndose a Aristóteles, pero con una afirmación que creo puede hacerse extensiva a
cualquier otro autor. «Na procura da verdade. O método dialéctico e fundamental» (Sampaio
Ferraz, 2009: 180).
17
Como recuerda (Perelman, 1988: 20), «los razonamientos dialécticos que Aristóteles
examinó en Los Tópicos, en la Retórica y en la Refutaciones de los Sofistas, no se dirigen a
establecer demostraciones científicas, sino a guiar deliberaciones y controversias. Tienen por
objeto los medios de persuadir y de convencer por medio del discurso, de criticar las tesis
de los adversarios y de defender y justificar las propias con ayuda de los argumentos más o
menos sólidos».
18
Como dice Villey, «al menos hasta la aparición del sistematismo moderno (que aplica
a la filosofía un método geométrico) el método tradicional de la filosofía era el diálogo, la
dialéctica, en el sentido clásico de la palabra: arte de la discusión bien organizada». «La
dialéctica fue al principio el método filosófico por excelencia, en las escuelas griegas y en las
escolásticas... sólidas razones hacen suponer que lo es todavía...» (Villey, 1979: 58).
19
En realidad dice Sampaio,»el nombre tópica viene de Aristóteles, pero el asunto ya
existía, y era un patrimonio de la cultura mediterránea antes de él, que apareció en diferentes
ejercicios de la retórica, con el nombre de euresis, inventio, ars inveniendi etc. Como tal la
tópica prevaleció durante la Edad Media por medio de las llamadas artes liberales, como parte
esencial de las tres primeras, que constituían el trivium (Gramática, Retórica y Dialéctica),
seção 3 – diálogos 197
24
Sampaio Ferraz, 2011: 404 y ss.
seção 3 – diálogos 199
25
Un estudio claro sobre este y otros tipos de argumentos en: Weston, 1994. Más
recientemente Martínez Zorrilla, 2010.
26
Un estudio amplio sobre los distintos tipos de argumentos puede consultarse en Sampaio
Ferraz, 2009: 313-320. Desde un punto de vista diferente (Malato; Ferreira da Cunha,
2007).
27
La justeza en palabras del Dr. Sampaio.
200 revista brasileira de filosofia – RBF 239
28
La justicia como «lo justo» en palabras del Dr. Sampaio.
29
Sampaio muestra la misma preocupación que (GarcÍa Amado, 1988: 369-370), cuando
afirma que «es limitada la capacidad de la Tópica Jurídica como método para proporcionar
respuesta al que hemos descrito como interrogante central de la metodología jurídica contem-
poránea, la cuestión de la racioanlidad de la decisión jurídica, que es tanto como decir de la
opciones valorativas que la originan». Porque «lo que la tópica jurídica no aporta es la pauta
para que sea racional, y no mero arbitrio discrecional, la opción que el llamado a decidir
lleva a cabo entre los tópicos igualmente legitimados que, como fundamentos o razones en
pro de decisiones distintas, se plantean a su consideración». Y por tanto opina este autor, «en
tanto ése que hemos venido considerando problema nuclear del método jurídico se mantiene
sin recibir respuesta clara de la Tópica Jurídica, ésta, en tanto que doctrina metodológica,
será incompleta». Idea similar es la que recoge Manuel Atienza en su obra Las razones del
Derecho. Teorías de la argumentación jurídica (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1991: 60-61), donde después de admitir que «la Tópica Jurídica permite explicar, o al menos
darse cuenta de ciertos aspectos del razonamiento jurídico que pasan inadvertidos si uno se
aproxima a este campo desde la vertiente exclusivamente lógica», afirma sin embargo que «la
Tópica por sí sola no puede dar una explicación satisfactoria de la argumentación jurídica».
Las razones que esgrime para esta afirmación son que «no permite ver el papel importante
que en el razonamiento jurídico cumplen la ley, la dogmática y el precedente... limitándose
a sugerir un catálogo de tópicos o de premisas utilizables en la argumentación, pero no da
criterios para establecer una jerarquía entre ellos».
seção 3 – diálogos 201
30
Sampaio Ferraz, 2011: 407.
31
En esta afirmación Sampaio se mueve en la órbita de Atienza cuando afirma que existen
tres concepciones sobre argumentación, la lógica formal, la material y la dialéctica. La más
propia de la tópica es la material, como señala (Cárdenas Gracia, 2005: 21).
32
La Tópica Jurídica dice es «el arte de encontrar dentro de varios discursos discrepantes
algunos lugares comunes en los que se pueda restablecer una armonía a partir de la cual se
podrá llegar al consenso especulativo y a una pacificación activa» (la traducción es mía) (Puy
Muñoz, 2003: 201).
33
Otros autores como Hartmann ya habían abierto brecha en este sentido al afirmar que «la
matemática no es la ciencia suprema y más sublime, sino la elemental e ínfima. Considerada
seção 3 – diálogos 203
en sí, es indudablemente la ciencia más perfecta que nosotros tenemos. Pero la perfección se
halla sólo en la exactitud y no es una medida entitativa de su objeto» (Hartmann, 1989: 45).
34
La inspiración de la tópica en la cultura romana es compartida por muchos estudiosos
de Tópica Jurídica. Entre ellos Viehweg, que en su Tópica y Jurisprudencia, que afirma que
«el jurista romano plantea un problema y trata de encontrar argumentos. Se ve, por ello,
precisado a desarrollar la técnica adecuada. Presupone irreflexivamente un nexo que no
intenta demostrar, pero dentro del cual se mueve. Es la postura fundamnetal de la Tópica»
(Viehweg, 1986: 78).
35
En este extremo Puy coincide con Villey cuando advierte que «los juristas deben guardarse
de estas dos doctrinas extremas, el normativismo y el sociologismo. Posiblemente el Derecho
no sabe adaptarse ni a un método tomado de la moral idealista ni tampoco a otro elaborado
con miras a las exigencias de las ciencias que operan sobre lo fáctico. Pero si queremos
definir un método realmente apropiado al derecho, el método tendrá que ser en función de él.
Y podremos una vez más dispensarnos de inventar ninguna teoría nueva; el trabajo ha sido
hecho ya... Nos bastará sacar del olvido la doctrina clásica de las fuentes y del razonamiento
jurídico (Villey, 1979: 224).
36
La tópica podiana ha sido objeto de estudio en una monografía escrita por Joaquín
Rodríguez-Lugo Baquero, titulada Las Tópica Jurídica del doctor Francisco Puy, publicada
por la editorial Porrúa en México en 2009.
204 revista brasileira de filosofia – RBF 239
37
En realidad él piensa que «la Tópica es un arte, pero no es solamente un arte, porque
es también simultáneamente una teoría, un método y un repertorio. Tal conjunto se puede
mantener autónomamente dentro de sus propios límites lógicos, construyendo teoría plena.
Pero nada le obliga a practicar el aislacionismo. Al contrario, todo le pide que se integre,
porque también puede integrarse perfectamente en la Ciencia, o en la Retórica o en la
Dialéctica» (Puy Muñoz, 2004: 293).
38
Por usar la metáfora tan querida para los compostelanos del Camino de Santiago.
39
Ulpiano, Digesto, 1.1.1.1.
seção 3 – diálogos 205
40
El razonamiento de Puy se establece sobre la base de estudio de elencos de tópicos,
entendidos como lugares comunes que facilitan el consenso entre las partes en conflicto y
que por lo mismo tienden a la solución del mismo con la fuerza de la persuasión (Puy Muñoz,
2006). Con ese mismo sistema de estudio de tópicos vid sus (Puy Moñoz, 1984). Esta obra no
lleva en su rótulo ninguna referencia a la Tópica Jurídica; sin embargo la considero un estudio
tópico porque en él el Dr. Puy analiza 90 derechos humanos entendidos como tópicos.
41
Puy Muñoz, 2000: 418.
42
Puy Muñoz; López Moreno, 2000: 417-535.
43
La tópica podiana no fue hecha de una vez sino que fue perfeccionándose con el tiempo.
En su libro Tópica Jurídica, editado por la Imprenta Paredes en Santiago de Compostela en
1984, advertía que no quería hacer un estudio teórico sobre los tópicos jurídicos sino que
quería directamente topiquear, es decir trabajar en la práctica con ellos para ver hasta donde
podían llegar. Y eso es lo que ha hecho desde ese momento. Por lo tanto su forma de entender
la tópica se ha ido desarrollando y sin cambiar sustancialmente, se ha enriquecido hasta la
actualidad, momento en que ha alcanzado su más terminada originalidad y utilidad práctica.
206 revista brasileira de filosofia – RBF 239
a los efectos para los que han sido expuestas en este trabajo. Las he recor-
dado porque me interesaba probar, acudiendo a la fuente del propio autor
estudiado, mi afirmación anterior de que para el maestro compostelano, la
Tópica Jurídica excede la simple consideración de ésta como método, si bien
ésta es una faceta importante que no debe ser obviada.
Y a ella nos dedicaremos a partir de este momento a fin de poner en
diálogo el pensamiento de Puy con el de Sampaio analizándolos desde
parámetros semejantes. Esto es desde la perspectiva de la Tópica Jurídica
considerada como un método de argumentación.44
Desde este punto de vista que, recuerdo, es el de considerar a la tópica
jurídica exclusivamente como un método argumentativo, Puy accede desde
una perspectiva particular que me parece importante resaltar. Se refiere al
hecho de que el método tópico resulta útil desde dos puntos de vista dife-
rentes. Esto es como método para construir el discurso propio y como método
para contestar el discurso ajeno. Resulta importante a mi juicio esta primera
puntualización toda vez que en general, la tópica jurídica como método se
esfuerza en analizar, y si es posible solucionar, los problemas que plantean
los problemas de la experiencia jurídica, tomando como base a los otros.
Esta forma de proceder es lógica porque los problemas jurídicos se plantean
siempre frente a los otros y no frente a uno mismo. Esos problemas, que sí
existen son generalmente de carácter moral pero no jurídico. De ahí y por
simplificación la mayoría de los autores que han tratado la Tópica Jurídica
se han preocupado por resolver problemas jurídicos, es decir problemas de
adscripción de derechos sin caer en la cuenta de que la Tópica también sirve
para la creación y comunicación del propio pensamiento.
Puy llegó a esta conclusión después de muchos años de trabajo y
reflexión sobre el asunto ofreciendo a la comunidad científica una construc-
ción propia sobre el método tópico de argumentación jurídica que intentaré
presentar a continuación de forma sucinta.
Puy sostiene que el método tópico constituye un intento por perfilar
la forma más segura de decir el propio derecho así como de entender lo
que otros dicen sobre el propio derecho. Este doble punto de vista permite
abordar los problemas de la experiencia jurídica desde el ámbito del que
tengo enfrente (puesto que la relación jurídica suele ser conflictiva) o desde
el mío propio (como defensor de mi propia posición). Así planteado, el
método tópico tiene dos partes perfectamente diferenciadas que denomina
método tópico de comprensión y método tópico de composición.
44
Dejaremos por tanto sin tratar en este momento las demás posibilidades de análisis de la
tópica jurídica
seção 3 – diálogos 207
y fuerza normativa del objeto analizado. Los destructivos que niegan esas
mismas dimensiones y los inoperantes que no afirman ni niegan algo que
tenga que ver con el asunto debatido.
La cuarta fase de la Tópica Jurídica entendida como método es el
análisis de teorías. Entendemos por teoría la unión de varios argumentos.
Este análisis comprende la interpretación de las principales teorías desen-
vueltas sobre el caso, derecho, sentencia, norma o doctrina a dictaminar. En
relación con ellas es conveniente distinguir las teorías explícitas que explican
el asunto confesando querer hacerlo. Las teorías implícitas que explican el
asunto, negando que lo estén haciendo. Y por último las teorías ocultas que
tratan el objeto sin nombrarlo.
Realizados los análisis precedentes llegamos al último paso que es el
análisis de los sistemas. Constituyen un sistema el conjunto de varias teorías.
Existen diversos tipos de sistemas. Los más usados en el ámbito jurídico
son cuatro: sistemas científicos, sistemas dialécticos, sistemas retóricos y
sistemas tópicos.
La Tópica Jurídica de análisis de sistemas científicos, contiene en sí
mismo la consideración de análisis crítico interpretativo de los discursos
científicos existentes sobre el objeto estudiado. A los efectos jurídicos
cabe distinguir los sistemas normativos (códigos), los sistemas estimativos
(plexos) y los sistemas sociológicos (redes). Este análisis es el más utilizado
en las corrientes iusfilosóficas positivistas. Los otros tres que veremos a
continuación casi no los consideran. Por el contrario, las corrientes iusfilosó-
ficas iusnaturalistas hacen al revés, prestan mucha mayor importancia a los
análisis tópicos, retóricos y dialécticos que a los puramente científicos aún
sin dejar de apreciar la importancia de estos últimos.
La Tópica Jurídica de análisis de sistemas dialécticos comprende el
análisis crítico interpretativo de los discursos dialécticos existentes sobre un
asunto dado. Dichos discursos se estructuran en afirmativos (tesis); negativos
(antítesis) y subsuntivos (síntesis).
La Tópica Jurídica de análisis de sistemas retóricos comprende el
análisis crítico interpretativo de los usos retóricos del objeto estudiado.
Distinguen entre discursos defensivos (defensas, apologías), discursos ofen-
sivos (contestaciones, detracciones) y conciliadores o de síntesis (media-
ciones y conciliaciones).
Por último la tópica jurídica de análisis de sistemas tópicos comprende
el análisis crítico interpretativo de los usos tópicos del objeto estudiado.
Los fundamentales son dos. Los Diccionarios Jurídicos y los Repertorios de
Jurisprudencia y Legislación, porque recogen el conjunto ordenado de topoi
seção 3 – diálogos 209
45
En este caso se encuentra Viehweg, para quien la tópica sólo sirve para entender los discursos
de otros, no para la elaboración de los propios. Por eso nos recuerda en su (Viehweg, 1986:
60-61), que «la tópica hoy casi desconocida, era justamente «el almacén de provisiones». Lo
almacenado en ese almacén es el conjunto de tópicos cuya función se concreta en «servir a
una discusión de problemas». Normalmente los problemas se tienen con los otros que es con
quien se discute y no con uno mismo. Lo que nos reafirma en la idea de que para el autor
alemán la funcionalidad de la tópica está en servir para comprender y contrarrestar el discurso
del otro, pero no para la elaboración del propio.
210 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Soy consciente de que decir esto parece un poco redundante por evidente. Sin
embargo no lo es tanto al menos si observamos la práctica. Es habitual que
operadores jurídicos, incluso supuestos especialistas en un tema, comiencen
a desarrollar un discurso sin saber exactamente qué es lo que quieren decir,
qué posición deben defender, qué están dispuestos a perder, o qué pueden
ganar... No es posible obtener buenos resultados obviando estas premisas.
Advertido este asunto conviene ahora llamar la atención sobre otro
error frecuente. Consiste en pensar que los operadores jurídicos presentan
discursos jurídicos tipo, semejantes entre sí. No es así, los discursos jurídicos
de los operadores jurídicos son variables; tan diferentes en realidad como las
profesiones jurídicas existentes y aún más, pues las personas que no juegan
un papel jurídico determinado concreto tiene también su forma peculiar de
manifestarse en derecho que debe ser metodológicamente considerada.
El Dr. Puy quiere llamar la atención con sus palabras sobre la impor-
tancia de conocer la variabilidad de posibilidades de manifestación de
los operadores jurídicos cuando realizan sus discursos con la finalidad de
convencer de que su propuesta es la más plausible y por lo mismo debe ser
aceptada, frente a otra que se erige normalmente como la contraria.
El Dr. Puy es un defensor de la pluralidad y de la necesidad de analizar
cada caso concreto teniendo en cuenta las especificidades del mismo pues
las fuentes del Derecho son siempre locales e igualmente son particulares y
específicas en la realidad cotidiana las formas de manifestación, discusión y
petición del Derecho. Porque no se expresa igual un abogado defensor que
uno que acusa, ni hace el mismo discurso un juez que un fiscal o un notario,
y un procurador, o un testigo y un particular, y así sucesivamente.46 Y todos
ellos hacen discursos de petición y defensa de sus derechos que deben ser
considerados en un estudio tópico metodológico.
Los roles y las profesiones jurídicas continúa diciendo el maestro
compostelano, son muchas y muy variadas y por lo mismo el conjunto de
tipos de discursos jurídicos constituye un numerus apertus. Circunstancia
ésta que no es óbice para que sea posible hacer un elenco de los modelos de
mayor uso. Para D. Francisco, estos modelos se pueden reducir a cuatro. A
saber: los académicos, los forenses, los legales y los naturales.
A su vez los discursos académicos tipo son fundamentalmente cinco:
discurso lección magistral del profesor y demás académicos; discurso
monografía, propio del investigador; discurso programa que corresponde al
maestro que quiere explicar y hacer comprender una materia a sus alumnos;
46
Vid. Puy Muñoz, F & Portela, J., 2005: La argumentación de los operadores jurídicos,
Buenos Aires: Editorial de la Universidad Católica Argentina.
seção 3 – diálogos 211
47
Afirma Puy que en su concepción «la Jurisprudencia no es tanto un saber teórico como un
saber práctico. No consiste tanto en saber pensar como en saber hacer. La jurisprudencia o el
Derecho es el arte de hacer las cosas que estorban la ocurrencia de conflictos, antes de que se
produzcan, y las cosas que los resuelven de la forma más económica cuando se produjeron
pese a todo» (Puy Muñoz, 2008: 1005).
seção 3 – diálogos 213
48
Puy es un jurista realista que como Villey opina que «los filósofos realistas no trabajan
sobre meras palabras; no se contentan con registrar, como nominalistas, unos «hechos
científicos» aislados, con estudiar algún sector abstracto y especializado de las cosas, como
las ciencias modernas, ni con razonar o con construir sobre sencillas ideas, al modo de los
idealistas». «Nuestras visiones de las cosas son parciales y cada cual no percibe de ellas mas
que un «perfil» dirá Husserl. La única manera de obtener un conocimiento menos incompleto
es mirarlas partiendo de una multitud de puntos de vista. Y estos puntos de vista son los
«lugares» (topoi) en los que uno ha de irse colocando sucesivamente para considerar desde
ellos el mismo objeto» (Villey, 1981: 71).
seção 3 – diálogos 215
49
Sampaio Ferraz, 2009b: 307.
seção 3 – diálogos 217
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50
Dice Sampaio: «la propia interpretación de los hechos exige el estilo tópico, pues los
hechos de los que se ocupa el aplicador del Derecho, sabidamente, dependen de las versiones
que les son atribuidas» (Sampaio Ferraz, 2009b: 308).
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Weston, A., 1994: Las claves de la argumentación, Barcelona: Ariel.
Topica jurídica151
1
51Texto em homenagem ao Prof. Francisco Puy, publicado em Tópica, Retórica y Dialéctica
em la Jurisprudencia: Estudios em Homenaje a Francisco Puy, edición a cargo de Milagros
Otero Parga, Universidad de Santiago de Compostela, 2011.
220 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Francisco Puy
Professor Catedrático de Filosofia do Direito da Universidade
de Santiago de Compostela.
Querido Tercio:
¿Me permites que agradezca el estupendo ensayo «Tópica jurídica» con
que te sumaste a mi homenaje participándote los pensamientos que me ha
suscitado su lectura? Lo intentaré sin hacer tediosa una carta que quiero sea
humilde y cordial acuse de recibo.
Percibo tu texto como una sucesión de proposiciones brillantes, escritas
con la concisión propia del maestro que conoce el tema, emplea un lenguaje
preciso, expone con un estilo personal, y desea economizar tiempo y papel.
La voluntad de concisión se evidencia hasta en una omisión que carece de
importancia, pero que delata, me parece, lo que digo: has dejado sobreenten-
dida la voluntad de obsequio. La explicito, sin embargo, para tomar pie para
agradecértela. Recibe pues mi acción de gracias, por haber escrito para mí un
resumen de tu visión de la Tópica jurídica, y lo que es más de agradecer, que
hayas convertido ese resumen en un discurso pro, en una defensa.
Cuando empecé a trabajar la Tópica jurídica hace treinta años me
planteé la opción tópica «en contradicción» con la opción dogmática. No
tardé mucho en comprender que ambas metodologías son en realidad distintas
224 revista brasileira de filosofia – RBF 239
fuente (la naturaleza de las cosas, la naturaleza de las personas, los dioses,
los contratantes, los escribanos, los funcionarios, los jueces, los legisladores
de cualquier nivel territorial)...
Segundo argumento. Lo resumo así. Argumentar jurídicamente signi-
fica tomar el Derecho como un orden de distribución conforme a principios
de justicia formales y materiales. Y por ser de justicia, ambos reclaman la
argumentación tópica y están sometidos a sus reglas naturales.
También se trata de un argumento razonable. Tú lo formulas restrin-
giendo su valor en el tiempo: solo «actualmente», dices; y en la perspectiva;
sólo mirado «desde el punto de vista retórico», dices. Se trata de cautelas
razonables, pero a mi entender superfluas, porque los requisitos de facticidad
en acto y de comunicación retórica pertenecen a la naturaleza del derecho: a
mi entender, lo subrayo.
Antes de pasar al siguiente argumento no puedo por menos que
manifestarte mi admiración por la admirable descripción que has hecho al
explicitar éste con una descripción de las dos ramas de la Tópica jurídica
correspondientes. a) La que llamas tópica formal o tópica de racionalidad
(esta denominación me gusta más), que razona según el topos de cantidad
considerando el ordenamiento legal como una relación que va de lo genérico
a lo particular, conforme a grados de generalidad. b) Y la que llamas tópica
material, o tópica de ponderación (esta denominación me gusta más), que
razona según el topos de calidad considerando el ordenamiento legal como
una relación uniforme que va de lo universal a lo específico, conforme a
grados de universalidad. Tengo que reflexionar más despacio sobre esta
divisoria.
Tercer argumento. En resumen creo que dice esto. La justicia es el tema
central del raciocinio tópico del Derecho. La Tópica jurídica trata y habilita
de forma especializada para razonar armonizando las contradicciones que
presentan la justicia y los demás valores jurídicos que la acompañan; y para
resolver los conflictos que nacen de las diversas relaciones de percepción,
de jerarquía y de polaridad que presenta. Por eso no es razonable prescindir
de la argumentación tópica como un complemento de la argumentación
dogmática.
Comparto el argumento, Tercio. Y vuelvo a felicitarte por el fino análisis
que lo acompaña de la dialéctica que desenvuelven las dos imágenes del
tópico justicia-principio que denominas: a) justicia-justeza, que se obtiene
por subsunción, y b) justicia-justo, que se obtiene por ponderación.
Cuarto argumento. Dice literalmente así: «La Tópica no es ni gentil ni
malvada, pues la voluntad de la ley o del legislador en términos de búsqueda
de la justicia no tiene estrictamente ningún carácter». «La rudeza de esta
226 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Traduções
O problema da autoridade:
revisitando a concepção da
autoridade como serviço
(The problem of authority:
revisiting the service conception)1
Joseph Raz
Professor de Filosofia do Direito na Universidade de Oxford e professor na
Escola de Direito da Universidade de Columbia.2
Doutorando em Filosofia do Direito na Universidade de Edimburgo
(Reino Unido). Mestre em Direito pela UFRGS e Bacharel em Direito
pela UFC. Pesquisador associado ao grupo «Direito e Filosofia» do CNPq.
Bolsista GDE/CNPq.
1
O texto original em inglês foi publicado sob o título «The Problem of Authority: Revisiting
the Service Conception» em Minnesota Law Review, vol. 90: 1003-1044, 2006. Disponível
em SSRN: http://ssrn.com/abstract=999849. Tradução: Felipe Oliveira de Sousa.
2
Ao escrever esse texto, beneficiei-me dos comentários orais e publicados sobre minhas
ideias de mais pessoas que posso recordar-me. Dentre esses, tenho uma dívida de gratidão
com Jules Coleman, Ronald Dworkin, Lesley Green, Herbert Hart, Scott Hershovitz, Heidi
Hurd, Michael Moore, Stephen Perry, Donald Regan, Philip Soper, Jeremy Waldron – a maior
parte deles irá pensar que minhas respostas a seus comentários são inadequadas.
230 revista brasileira de filosofia – RBF 239
nela subsumidos. Muitos pensaram que a teoria era implausível. Ela seria
muito superficial, fundando-se em algumas poucas ideias. Ela pode até
parecer muito superficial, e pode até distanciar-se muito de várias ideias
que ganharam aceitação na história da reflexão sobre autoridade.
Palavras-chave: Filosofia do direito – Autoridade – Democracia
consensual.
Abstract: The problem I have in mind is the problem of the possible justi-
fication of subjecting one’s will to that of another, and of the normative
standing of demands to do so. The account of authority that I offered, many
years ago, under the title of the service conception of authority, addressed
this issue, and assumed that all other problems regarding authority are
subsumed under it. Many found the account implausible. It is thin, relying
on very few ideas. It may well appear to be too thin, and to depart too far
from many of the ideas that have gained currency in the history of reflec-
tion on authority. The present article modifies some aspects the account,
and defends it against some criticism made against it.
Keywords: Jurisprudence – Authority – Consent Democracy.
3
Algumas dessas ideias básicas aparecem em: Raz, Joseph. The Authorityof Law (1979);
os principais elementos da concepção da autoridade como serviço são estabelecidos em: Raz,
Joseph. The Morality of Freedom (1986).
seção 4 – traduções 231
4
Vários sistemas jurídicos reconhecem essas razões ao terem doutrinas que conferem efeito
jurídico a autoridades de fato.
5
V. Rawls, John. A Theory of Justice, p. 293-94 (ed. rev. 1999).
6
Mesmo aqueles que não pretendem ter um direito de regular – sem considerar casos
excepcionais – pretendem que eles possam agir como eles agem, que suas ações são
defensáveis. Mas eles não pretendem que aqueles sobre os quais eles detêm poder lhes devam
obediência, i.e. tenham um dever de obedecer-lhes. Eles estão satisfeitos em poder fazer com
que lhes obedeçam, através de ameaças efetivas ou de algum outro modo.
7
Possivelmente, o governo no exílio tinha alguns poderes de fato (havia um exército
polonês – também exilado – que o reconhecia etc.), mas sua legitimidade não dependia de
sua posse desse poder. Sua legitimidade dependia, no entanto de um fato não normativo,
de ser reconhecida como legítima por boa parte da população polaca e por alguns outros
países. Em outras circunstâncias, a legitimidade pode depender da chance do governo em ter
controle efetivo. Isso torna possível manter a distinção entre autoridade sem o poder de usá-la
efetivamente, e alguém que está autorizado a ter autoridade (diga-se, quando foi devidamente
eleito) mas não a tem (porque, p.ex., não foi admitido ao cargo para o qual foi eleito). Compare
isso com o caso de um pai que tem autoridade sobre seu filho mesmo que ele não tenha poder
sobre ele.
seção 4 – traduções 233
possuem um uso secundário em que se indica uma pretensão por seus usuá-
rios, ou por alguns deles, de que eles se aplicam em seu sentido primário,
normativo, uma pretensão que pode estar equivocada. O conceito mais
importante desse tipo é o de uma razão (normativa).8 Uma razão para uma
ação é uma consideração que torna a escolha inteligível, e pesa em seu favor.
Mas quando digo «minha razão para ter ido embora é que estava com medo
de perder o último ônibus», indico qual razão eu acreditei que tivesse para ir
embora (o fato de que iria perder o último ônibus se não fosse embora), ainda
que não esteja comprometido com o fato de que houvesse de fato essa razão.
Se isso está correto, então o conceito de autoridade legítima tem uma
prioridade explicativa sobre o conceito de uma mera autoridade de fato. O
último pressupõe o primeiro, e não o contrário. A partir de agora, o termo
«autoridade» irá referir-se à autoridade legítima.
Terceiro, a aquisição do conceito e sua aplicação. Não é literalmente
verdadeiro que o conceito de «autoridade» se aplica apenas às pessoas que
pensam que a elas se aplica. Pode haver autoridades que não pretendem ter
autoridade. Contudo, como já explicado, as autoridades de fato pretendem
ter autoridade legítima, e como será visto adiante, as autoridades políticas
geralmente pretendem também. A questão surge sobre se é uma condição
de adequação da explicação do conceito de autoridade a de que aqueles que
têm autoridade ao menos implicitamente aceitem a explicação como correta.
(Alternativamente, pode alguém aceitar a explicação do conceito como
tendo validade limitada, aplicando-se apenas às pessoas – talvez na posição
de autoridade, ou talvez sujeitas à autoridade – que ao menos implicitamente
tomem essa explicação como verdadeira?)
Não. Se as pessoas disputam uma teoria da autoridade que de algum
modo é bem sustentada, elas cometem um erro. A concepção da autoridade
como serviço é uma teoria da autoridade, que inclui uma explicação sobre o
que é ter autoridade, o que é estar sujeito à autoridade, quando é que alguém
tem autoridade ou está sujeito a ela, e questões similares. A teoria não é
sobre o que as pessoas pensam que significa ter ou estar sujeito a uma auto-
ridade, mas sim sobre que é tê-la ou estar sujeito a ela. Ela é compatível com
argumentos de que as pessoas têm diferentes crenças sobre essas questões,
embora dela se siga que essas crenças estão erradas. Disso se segue que elas
incorrem numa confusão conceitual? Ou, de modo mais radical, disso se
segue que elas não podem conhecer sua própria linguagem? Claro que não. Se
elas têm crenças falsas sobre autoridade (e não meramente sobre os poderes
8
Qualifico-as como «normativas» para distinguir entre elas e razões explicativas
(explanatory reasons), que são simplesmente fatos ou eventos que explicam como ou porque
as coisas são como são.
234 revista brasileira de filosofia – RBF 239
das pessoas que têm realmente autoridade), então elas possuem o conceito
de autoridade, elas possuem alguma compreensão do que isso envolve. Mas
sua compreensão é parcial, e em parte incorreta. Nossa compreensão de
conceitos frequentemente é. Ela deixa muito espaço para erros e desacordos.9
Quarto, esperanças de neutralidade: alguns autores consideram que
sua tarefa é a de prover uma explicação de conceitos normativos, tal como o
de «autoridade», que seja normativamente neutra, que seja consistente com
qualquer visão normativa possível.10 Não está claro se há algum sentido em
que isso pode ser uma demanda razoável. Se ela é satisfeita apenas com a
explicação de conceitos normativos em termos não normativos (ou não valo-
rativos), isso corresponde a um requerimento de redução semântica de todos
os conceitos normativos para os quais ela se aplica, e, dessa forma, não há
razão para aceitá-la como um requerimento metodológico geral. Alternati-
vamente, pode-se pensar que, enquanto explicações de conceitos normativos
podem restar em outros conceitos normativos ou valorativos, esses devem
ser de um tipo que qualquer um, sejam quais forem suas crenças normativas
ou valorativas, esteja comprometido a aceitar como tendo possivelmente11
instanciações verdadeiras (ou válidas). Assim entendido, o requerimento
aponta em direção a uma redução semântica de densos termos valorativos ou
normativos em termos mais superficiais. Não está claro, contudo, se muitos
termos normativos preenchem esse requisito. É duvidoso se muitos conceitos
densos podem ser reduzidos a conceitos mais superficiais.
Talvez o requisito da neutralidade deva ser tomado como um problema
de grau: quanto mais próxima estiver a explicação de satisfazê-lo, melhor
ela é, se as circunstâncias permanecerem as mesmas. Depois de tudo, as
explicações que preenchem o requisito, ou melhor, os conceitos que elas
explicam com sucesso podem ser aceitos e usados pelas pessoas quaisquer
que sejam suas crenças normativas.
Algumas pessoas supõem que a explicação da autoridade deve ser
normativamente neutra num sentido diferente. Elas pensam que a explicação
da autoridade deve ser tal que seja possível para a forma proposicional «X
tem autoridade sobre Y» ter instâncias verdadeiras, i.e. que seja possível para
alguém ter autoridade legítima sobre os outros. Deixe-me chamar o primeiro
9
Veja: Raz, Joseph. Two Views of the Nature of the Theory of Law: A Partial Comparison,
em Hart’s Postcript (Jules Coleman ed., 2001).
10
Por exemplo, se uma explicação correta da desonra implica (a) que aqueles que agiram de
modo desonroso merecem ser mortos, e (b) que qualquer um que tenha traído uma relação de
confiança age de modo desonroso, então essa explicação é inconsistente com minhas visões
normativas.
11
No sentido não epistêmico de «possivelmente».
seção 4 – traduções 235
12
Para manter o cuidado, deixe-me ampliar aqui: não há implicação nas considerações acima
de que uma explicação de um conceito para ser correta deve ser uma que esteja geralmente
disponível para aqueles que tenham o conceito. Há muitos aspectos de um conceito que
seus usuários podem não estar cientes, e muitos erros sobre ele que eles podem cometer. O
argumento é meramente o de que seria necessário para uma boa explicação de como uma
crença errada na possibilidade de instanciações do conceito, em nosso caso uma crença na
possibilidade de autoridades legítimas, tornou-se tão difundido.
236 revista brasileira de filosofia – RBF 239
Isso ainda requer a explicação de por que as pessoas estão assim erradas,13
embora uma vez que o erro atribuído seja menor, o ônus da explicação
também seja muito menor.
Meus comentários prévios explicaram quais as vantagens que vejo tanto
na neutralidade explicativa quanto existencial. Elas não contribuem para
nenhum princípio metodológico. Suspeito que a demanda por neutralidade
explicativa seja impossível de preencher (i.e., explicações que a preenchem,
se houver alguma, são de alguma forma equivocadas). Não há muita plausi-
bilidade nela. Não esperamos que todos os conceitos científicos, v.g., sejam
neutros no sentido explicativo, i.e. que suas instanciações sejam consistentes
com todas as possíveis teorias científicas. Alguns conceitos científicos podem
transcender teorias (theory-transcendent), ou podem transcender mais ou
menos as teorias. Mas muitos não o fazem. Mutatis mutandis, o mesmo,
eu suspeito, é verdadeiro dos conceitos normativos. As mesmas considera-
ções afastariam o requerimento de neutralidade existencial. Casos especiais
à parte, esse não é um requerimento que normalmente impomos sobre a
explicação de outros conceitos, e parece não haver razão para impô-lo em
conceitos normativos genericamente ou na autoridade em particular.
A esperança por neutralidade pode expressar em si mesma um reque-
rimento de que a teoria da autoridade deve explicar o que se segue quando
alguém tem autoridade, mas não irá incluir nada sobre as condições sob as
quais alguém pode adquirir ou ter autoridade. Para que esse requerimento
faça sentido, deve ser o caso não apenas de que quem quer que ofereça a
teoria não escreva sobre as condições sob as quais alguém tem autoridade,
mas também que nada se siga da teoria no que concerne às condições que
tornam alguém uma autoridade. Isso parece ser um requerimento impossível
de preencher: como pode ser que o modo de justificar uma pretensão de
alguém que tenha autoridade não seja afetado pelas consequências de se ter
autoridade (de fato, não guiado por aquilo que deve ser justificado)?
Ainda, há uma diferença entre as duas partes da teoria da autoridade.
Alguém pode razoavelmente esperar que uma teoria da autoridade espe-
cifique, mesmo que abstratamente, todas ou ao menos as consequências
centrais de se ter autoridade. No entanto, para além de enunciar que as condi-
ções sob as quais alguém tem autoridade são aquelas que justificam atribuir
autoridade – nomeadamente, atribuir às ações de alguém as consequências
que se seguem de se ter autoridade – não está claro que alguém possa
razoavelmente esperar por uma completa especificação dessas condições.
Se alguém oferece algumas condições suficientes para se ter autoridade, a
questão surge: é possível determinar que nenhuma outra condição estabeleça
13
Essa é uma consideração que me foi feita privadamente por H. L. A. Hart.
seção 4 – traduções 237
um conceito como (ou similar ao) nosso conceito de ----». Por outro lado,
similaridade e parte da relação ancestral, pois de outro modo não teríamos
quaisquer critérios para distinguir entre a modificação de um conceito por
um que lhe sucede e um conceito rejeitado em favor de uma alternativa.
Não e necessário dizer, uma vez que o conceito amplo e identificado
por suas relações com nosso conceito e seus ancestrais, e uma vez que
«nosso» conceito pode mudar ao longo do tempo e adquirir mais ancestrais,
o conceito geral que temos agora é diferente do que tínhamos, ou do que
teremos, quando «nosso» conceito foi ou irá ser diferente.
Sexto, explicação e sustentação: Estou sempre me referindo ao «nosso»
conceito de autoridade. Mas há um conceito como esse? Não haveria vários
conceitos, todos eles derivados dos mesmos ancestrais? É bem possível que
sim. Cada pessoa quando usa o conceito de autoridade usa seu conceito,
e deveria permitir a possibilidade de que haja vários. Isso não leva a uma
explosão de conceitos. A razão e simples: no uso de conceitos, assumimos
que somos ignorantes sobre muitos aspectos deles, que podemos usá-los
incorretamente, e que seu caráter é determinado pelas regras que governam
seu uso na comunidade, regras cuja compreensão completa pode enganar
alguns ou até mesmo todos nós. Ao permitir a possibilidade da ignorância
ao menos parcial no que concerne a natureza de nossos conceitos, reconhe-
cemos que os conceitos são seres sociais, possuindo as características de uma
comunidade de falantes através de modos que podem enganar a qualquer
um deles, e de fato a todos eles. Isso significa que nossos conceitos não são
muito idiossincráticos, que há conceitos comuns, mesmo que não possamos
conhecer todas suas características.
É desnecessário dizer que se há um número de conceitos de autoridade
prevalecentes numa sociedade singular, eles provavelmente irão competir
entre si. Os limites entre eles são fluidos, e aqueles que usam pretendem
mérito por ele, e (quando conscientes, mesmo que vagamente, da existência
dos outros) encontram razão para preferi-lo aos outros. Isso significa que
cada explicação de um conceito pode também ser usada na batalha dos
conceitos, onde houver essa batalha; ou seja, pode ser usado para sustentar
os méritos de um conceito sobre seus concorrentes.
A indeterminação dos conceitos é outro fator que força todas as expli-
cações a entrarem, se bem-sucedidas, no contexto da competição. As expli-
cações podem replicar as indeterminações dos conceitos que elas explicam,
mas é quase impossível replicá-las perfeitamente, e o sucesso da explicação
irá inevitavelmente exercer alguma influência na modificação do conceito
para conformá-lo a sua explicação.
seção 4 – traduções 239
14
As autoridades fazem muito mais do que impor deveres. Mas o que quer que elas façam
– conferir poderes ou direitos, garantir permissões ou imunidades, mudar o status, criar ou
terminar pessoas jurídicas (corporações e seus similares), regular as relações entre órgãos
de pessoas jurídicas, e muito mais – elas o fazem através da imposição de deveres, reais ou
condicionais. Irei, portanto, continuar, como escritores sobre autoridade geralmente fazem, a
discutir o problema da autoridade em relação a seu direito de impor deveres.
15
Em ambos os casos, algumas vezes a pessoa que está sob a obrigação já tem uma obrigação
de realizar o mesmo ato. «Uma obrigação que ele não tinha antes» não significa uma obrigação
240 revista brasileira de filosofia – RBF 239
para fazer algo que até então ele não tinha nenhuma obrigação para fazer. A obrigação é nova,
mesmo se outra obrigação para realizar o mesmo ato já exista.
seção 4 – traduções 241
geral da autoridade pode, ainda que não estabeleça quem realmente tem
autoridade, dizer muito mais sobre as condições sob as quais as pessoas estão
sujeitas à autoridade. Em particular, esperamos que ela trate do problema
moral da autoridade, a saber, como pode ser consistente com o status de
alguém como pessoa a situação de estar sujeito à vontade de outrem, do
modo como alguém está sujeito à autoridade de outrem?
A sugestão da concepção da autoridade como serviço é que a questão
moral pode ser respondida quando duas condições são preenchidas, e com
relação aos problemas de que elas tratam: primeiro, que o sujeito deva
conformar-se melhor com as razões que se aplicam a ele de qualquer modo
(ou seja, com razões diferentes das diretivas da autoridade) quando ele
pretende16 ser guiado pelas diretivas da autoridade mais do que quando ele
não o faz (irei referir-me a isso como a tese ou condição da justificação
normal). Segundo, que os problemas aos quais a primeira condição se aplica
sejam tais que com respeito a eles seja melhor conformar-se com a razão do
que decidir por si mesmo, sem o auxílio da autoridade (irei referir-me a isso
como a condição de independência).
Exemplos simples de regulações relacionadas a atividades ou materiais
perigosos ilustram a situação. Posso mais bem evitar uma situação de perigo
a mim mesmo e a outros me conformando com a lei relacionada à dispensa
e ao uso de produtos farmacêuticos. Posso confiar nos especialistas cujas
opiniões refletem o conhecimento sobre o que é perigoso nesse contexto
melhor de que posso julgar por mim mesmo; um fato que é reforçado por
minha confiança na conformidade das outras pessoas a referida lei, o que me
habilita a agir com uma segurança que de outro modo não poderia fazê-lo.
Nada disso, é claro, é necessariamente assim. A lei pode refletir os interesses
das empresas farmacêuticas, e não dos consumidores. Se for assim, ela pode
não possuir autoridade sobre mim porque falha em preencher a condição da
justificação normal.17 Mas se ela de fato preencher a condição da justificação
normal, é provável que ela também preencha a condição de independência
também. As decisões sobre a segurança dos produtos farmacêuticos não são
como decisões pessoais com relação às quais devo decidir por mim mesmo
mais do que seguir a autoridade. Elas não exigem de mim o uso de quaisquer
16
Talvez devo dizer «tentar» em vez de «pretender» para cobrir casos em que embora
alguém pretenda ser guiado pela autoridade, ele irá falhar em virtude da debilidade de sua
vontade, e faria portanto melhor se ignorasse a autoridade e tentasse conformar-se com as
razões subjacentes. Há provavelmente refinamentos intermináveis desse tipo, que não tentarei
oferecer, e que são provavelmente impossíveis de enumerar.
17
Para o propósito do exemplo apenas. Desconsidero o fato complicador de que a autoridade
da lei é mais ampla do que com relação à posse e o uso de produtos farmacêuticos. Isso
levanta a questão da unidade de avaliação em determinações da legitimidade das autoridades,
que será discutida adiante.
242 revista brasileira de filosofia – RBF 239
remédios etc, e, nesse sentido, elas são diferentes de decisões sobre adotar
certo tipo de medicação ou tratamento em que podemos muito bem pensar
que devo decidir por mim mesmo, mais do que submeter-se às ordens da
autoridade.
Afirmei que as duas condições resolvem a questão moral sobre a auto-
ridade. Mas em que sentido elas o fazem? Várias objeções podem ser ante-
cipadas. A condição da independência, pode-se objetar, meramente repete o
problema e não ajuda em sua solução. O cerne do problema moral é que agir
por si mesmo é mais importante do que qualquer outra coisa. Que avanço é
realizado ao enunciar que a autoridade é legítima apenas quando agir por si
mesmo é menos importante do que conformar-se com a razão?
Outra objeção à condição de independência enuncia que ela sugere que
alguém compara a importância de conformar-se com a razão com a impor-
tância de decidir por si mesmo, independentemente da autoridade. Mas isso,
a objeção enuncia, não pode ser feito: as duas são preocupações muito dife-
rentes, incomensuráveis. Não há nunca uma resposta à questão de qual das
duas é a mais importante? Duvido que essa objeção seja válida. Ela parece
estar baseada no pensamento de que as preocupações que subjazem às razões
com que nos devemos conformar e aquelas que subjazem à razão para agir
de modo independente da autoridade não guardam relação entre si. Mas isso
não é assim.
Algumas das razões para confiar no próprio juízo derivam da neces-
sidade de cultivar a habilidade de ser autoconfiante, simplesmente porque
com frequência uma pessoa não tem mais ninguém em quem confiar. O caso
mais claro é o modo em que os pais devem permitir que seus filhos decidam
com liberdade numa quantidade gradualmente maior de problemas, mesmo
que eles saibam que fariam uma escolha melhor por seus filhos se eles deci-
dissem sobre esses problemas. Esse é o modo em que os filhos aprendem a
como decidir por si mesmos e tornam-se autoconfiantes. Há outras razões
para decidir por si mesmo. Alguns problemas devem, pelas formas sociais
de várias culturas, ser resolvidos pelo próprio agente. Por exemplo, enquanto
que em algumas formas de casamento os pais escolhem os cônjuges, em
outras se espera que nem os pais nem qualquer outra pessoa tenha qual-
quer poder sobre isso. Nesses casos, a pessoa não pode ter uma relação, ou
engajar-se no bem ou na atividade, a menos que ela o faça por si mesma, não
através de um agente, nem seguindo um superior.
O caso anterior da autoconfiança (o caso dos pais e do filho) é instru-
mental, no sentido de que o fim é assegurar o que a conformidade com a
razão irá, a longo prazo, assegurar; o último caso (o casamento) depende
do fato de que haja razões que possam apenas ser satisfeitas pela ação inde-
seção 4 – traduções 243
18
Referi-me a noção de razões de segunda ordem para expressar essas situações. Elas
envolvem razões para agir por certa razão, e a faculdade da razão cumpre sua função quando
nos conformamos com essa razão de segunda ordem.
19
À guisa de brevidade, usarei esse e outros enunciados similares menos precisos da primeira
condição.
244 revista brasileira de filosofia – RBF 239
20
Não pretendo realizar uma análise excessivamente detalhada, mas se deve notar que há
dois tipos de razões que a tese da substituição (preemption thesis) afeta: primeiro, ela substitui
razões contra a conduta requerida pela diretiva autorizante. Segundo, ela substitui razões que
não necessariamente se relacionam com os prós e contras de comportar-se como a diretiva
requer, mas de fato pesam contra a desejabilidade em formular a diretiva. Essas razões podem
ser que o conteúdo deva ser relegado à discricionariedade individual, ou que a diretiva terá
efeitos colaterais indesejáveis que a tornam indesejável, e assim por diante.
246 revista brasileira de filosofia – RBF 239
dos atos (promessas, diretivas) que substituem nossa liberdade de agir por
algumas dessas razões subjacentes. É verdadeiro que somente a autoridade
envolve a aceitação das diretivas de outrem. Mas se as duas condições estão
corretas, as diretivas autorizantes, assim como as promessas, são vinculantes
quando elas melhoram nossos poderes, habilitando-nos a conformar melhor
com a razão, mais do que poderíamos fazer sem elas.
Com frequência, temos mais do que uma razão suficiente para fazer
algo. Uma diretiva autorizante nos pode direcionar a fazer algo que faríamos
por razões independentes de toda forma. Por exemplo, posso ter prometido a
um amigo dirigir vagarosamente e uma lei também me instrui a dirigir assim.
Se dirijo vagarosamente, posso fazê-lo em virtude da promessa apenas, sem
estar ciente da lei ou sem me importar em obedecê-la, ou posso fazê-lo em
virtude da lei apenas, ou em virtude de ambas, ou ainda por alguma outra
consideração que parece ser uma razão cogente, mas que pode não o ser.
Essas situações não levantam problemas. Mas o Direito envolve um
diferente tipo de sub-determinação. Pelo Direito não devemos matar, mas
também temos uma razão independente para não matar, a saber, o respeito
pela vida humana. Esse caso é típico de muitos. Outro tipo de sub-determi-
nação é diferente. Temos uma razão independente do Direito para contribuir
com nossa parte nos custos para manter serviços comuns. O Direito impõe um
dever de pagar taxas como um modo de fazê-lo. De maneira independente do
Direito, não temos uma razão para pagar a soma precisa que devemos como
taxa. Mas, uma vez que o Direito existe, temos duas razões, poderíamos dizer,
para pagar a soma que devemos como taxa (podemos desconsiderar aqui
que o Direito tributário provavelmente serve a outros propósitos também).
Uma é a nossa obrigação de obedecer ao Direito, o outro é o nosso dever de
contribuir com os custos dos serviços da comunidade.
Idealmente, deixaríamos de matar exclusivamente por nosso respeito
pelas vidas das pessoas, e não por respeito ao Direito. Idealmente, devemos
pagar nossas taxas porque devemos contribuir com nossa parte para os custos
dos serviços da comunidade, assim como porque o Direito exige isso. É isso
consistente com a tese da substituição (preemption thesis)?
Uma compreensão adequada da substituição (preemption) remove
qualquer suspeita de problema. Uma diretiva autorizante vinculante não
é apenas uma razão para comportar-se como ela exige, mas também uma
razão excludente, ou seja, uma razão para não seguir (i.e. para não agir com
seção 4 – traduções 249
base nas) as razões que entram em conflito com a regra. É desse modo que
as diretivas autorizantes substituem as razões. Elas excluem a ação com
base nas razões conflitantes, não todas elas, mas aquelas que o legislador
deveria considerar antes de formular a diretiva. Essas razões excludentes não
excluem, é claro, a ação com base em razões para comportar-se do mesmo
modo que a diretiva requer. Pense sobre isso: a autoridade melhora nossa
conformidade com a razão ao evitar aquilo que faríamos sem ela, quando
isso significa não conformar-se com a razão. Então, assumindo que ela é
inteiramente bem-sucedida em sua tarefa, ela não precisa e não nos impede
de seguir as razões do lado vencedor de um argumento. Ela deve, no entanto,
se melhora nossa conformidade com a razão, impedir nossa inclinação de
seguir as razões do lado perdedor do argumento. A substituição (preemption)
exclui apenas razões que entram em conflito com a diretiva da autoridade.
Então, quando uma ação é corretamente requerida pela autoridade (i.e.
quando há razões conclusivas em seu favor, independentemente da inter-
venção da autoridade), podemos (em ambos os sentidos) fazer o que nos é
requerido tanto porque somos requeridos a fazê-lo, como pelas razões que
justificam o requerimento, ou por ambos. Algumas vezes, como no caso da
proibição de assassinato, fazer o que é requerido pela autoridade por razões
cogentes diferentes do fato de que a conduta é requerida é a melhor opção.
Há outros casos, por exemplo, casos em que a diretiva formulada pela autori-
dade está errada ou não justificada. Ela requer alguma ação, cuja realização,
enquanto sustentada por razões independentes de alguma autoridade, não
é sustentada de modo suficiente para requerer essa ação, nem mesmo se a
diretiva que a requer fosse ignorada. Isso pode ser consistente com o fato
de a diretiva ser vinculante para nós. Mesmo autoridades legítimas podem
cometer erros. Nesses casos, devemos conformar-nos com a diretiva, e o
caso ideal é aquele em que o fazemos porque somos requeridos pela autori-
dade e não por outras razões que sustentam a ação.
O exemplo da taxa é diferente porque não temos uma razão indepen-
dente do Direito para pagar exatamente o que é requerido pelo Direito e
pagá-lo a essa autoridade em particular, mesmo que, quando o Direito esteja
vigente, a razão que justifica pagá-la é uma razão para fazer aquilo que o
Direito requer, o que é distinto do dever geral que temos de obedecer a uma
autoridade legítima. Nesses casos, a melhor opção é agir por ambas as razões,
i.e. tanto pelo Direito como pela razão subjacente a ele.
Em que sentido são essas opções as melhores? Tudo que nos é requerido
é conformar-se com a razão, e não importa por qual razão, ou razão imagi-
nada, assim fazemos. No entanto, não apenas o que fazemos, mas também
porque fazemos diz algo sobre nós. É com relação a esses juízos, juízos sobre
250 revista brasileira de filosofia – RBF 239
o agente, sobre que tipo de pessoa ele é, como ele se comporta e assim por
diante, que as razões reais que o conduzem a ação importam.
C) RAZÕES CONFLITANTES
E) A CLASSE MENOR
ser que a melhor visão seja considerar que a identificação afeta as condições
de legitimidade, e não meramente as ocasiões em que seja justificado crer
que elas são preenchidas. Nesse modo, a teoria está mais próxima de atitudes
familiares (e racionais) que as pessoas têm com relação a uma autoridade.
A teoria parece ser muito restritiva. Pode parecer que ela exclui qual-
quer poder aos governos para melhorar as condições econômicas de seus
cidadãos. Por exemplo, a autoridade pode fazê-lo através da imposição de
taxas e usando o montante para subsidiar treinamento, que é útil para o pleno
emprego e para o desenvolvimento econômico. Nem eu nem outros habi-
tantes temos razão para impor taxas ou subsidiar treinamento no país. Mas
isso é uma percepção errada. Na medida em que os habitantes de um país têm
razão para melhorar sua situação econômica, eles terão razão para fazê-lo
através de uma autoridade comum sobre essas questões, pois essa autoridade
será capaz de alcançar esse objetivo melhor do que eles podem fazê-lo se
agissem de modo independente dela.
Isso significa que tenho razão para aumentar as taxas? Não necessaria-
mente, mas a questão surge da não observância do fato de que tipicamente
razões não se colocam singularmente, mas sim em rede. Tipicamente, temos
uma razão porque conformar-se com ela é um modo de realizar outra razão.
As razões mais gerais se aplicam como um padrão para nossas atividades,
e são menos afetadas pela mudança nas circunstâncias, enquanto que razões
mais específicas que se conectam com elas tendem a se aplicar durante
períodos mais curtos e dependem de condições que são com frequência
sujeitas a mudança. Minha razão para melhorar minha situação econômica é
um exemplo de uma razão relativamente geral, que não é provável de despa-
recer até a minha aposentadoria ou mesmo depois, embora sua urgência e
força possam mudar com o tempo. Uma razão para mudar de emprego pode
derivar disso. Posso ter razão para mudar de emprego de modo a melhorar
minha condição econômica. Mas é uma razão de curto prazo, que pode desa-
parecer se, por exemplo, meu atual empregador me oferece uma promoção,
ou através de outras circunstâncias.
As pessoas designadas para ajudar-nos o fazem conformando-se ou
realizando algumas razões que se aplicam a nós, razões que temos nós
mesmos. Essas razões têm outras conectadas com elas, que estabelecem
os modos de realizá-las. Mas essas razões conectadas (nested reasons) não
precisam ser razões para nós. Ou seja, aqueles que nos ajudam podem ter boas
bases para perseguir os objetivos estabelecidos pelas razões que se aplicam
a nós de modos que não nos estão disponíveis. De fato, como a concepção
seção 4 – traduções 257
I) COORDENAÇÃO E META-COORDENAÇÃO
21
É claro que não é nenhum acidente que minha teoria da autoridade não faça nenhuma
referência especial a autoridade democrática. Não creio que a democracia seja o único regime
que possa ser legítimo, nem que todos os governos democráticos sejam legítimos. Isso não
é o mesmo que dizer que governos democráticos não tenham, em muitos países, pretensões
únicas para ter alguma autoridade limitada ou qualificada, seja em sua habilidade para produzir
resultados benéficos ou por sua habilidade de dar expressão ao aspecto das pessoas enquanto
agentes livres, autônomos, ou quaisquer outros valores a que possam servir. Parece-me, no
entanto, de vital importância que não caiamos na retórica democrática atual, muito abusada,
e sustentar uma perspectiva crítica e clara sobre a natureza das instituições democráticas, e
que devemos preservar nossa habilidade de reconhecer as limitações de regimes democráticos
assim como reconhecer a possibilidade que aquilo que ocorre em regimes democráticos
poderia completamente não ter legitimidade.
258 revista brasileira de filosofia – RBF 239
nação. Alguns escritores, ao comentar sobre esse fato, foram além e argu-
mentaram: (1) que a única (ou a única importante) função das autoridades
políticas é coordenar a conduta daqueles que estão a elas sujeitos para o
alcance de alguns bens; (2) que a coordenação seja assegurada através de
uma convenção do tipo Lewis não requer uma autoridade com um direito de
regular (a right to rule): tudo que se requer é a habilidade de tornar saliente
certos resultados da coordenação; e (3) que se segue que as autoridades polí-
ticas, enquanto tais, não têm um direito de regular.
Essas visões deixam de atentar para vários fatos que são centrais para o
funcionamento de autoridades políticas legítimas. Primeiro, que elas podem
satisfazer a tese da justificação normal não apenas ao assegurar a coordenação,
mas também tendo um juízo mais confiável com relação às melhores opções,
dadas as circunstâncias, e que em suas atividades normais, a especialização
(expertise) e a coordenação estão inextricavelmente misturadas. Segundo,
que a coordenação que as autoridades políticas devem assegurar e que com
frequência asseguram é raramente o tipo de coordenação que constitui a
solução de um problema de coordenação do tipo Lewis. Coordenar as ações
de muitos agentes significa nada mais do que fazê-los ou habilitá-los a agir
de tal modo que todos eles desempenhem diversos papéis em algum possível
plano de ação que provavelmente pode levar a alguns resultados buscados
depois. Esse tipo de coordenação não pode geralmente ser alcançado via uma
convenção do tipo Lewis. Terceiro, uma razão para isso é que a necessidade
de coordenação e o meio para atingi-la não são necessariamente conhecidos
de modo geral e são com frequência um problema controverso. Quarto, uma
vez que os objetivos que as pessoas realmente têm não necessitam ser dese-
jáveis, a coordenação buscada para assegurar esses objetivos não necessita
ser desejável também. Os esquemas coordenados de ação que as autoridades
políticas devem perseguir são aqueles para os quais as pessoas devem estar
comprometidas, ou aqueles necessários para assegurar os objetivos que as
pessoas devem ter, que nem sempre são os objetivos que elas têm. Quinto,
tipicamente, quando a autoridade política é de alguma forma legítima e
razoavelmente bem-sucedida, ela será também corretamente tomada, ao
menos em algumas áreas, como sendo uma autoridade na questão de segunda
ordem sobre quando a coordenação deve ocorrer.
com sucesso suas tarefas, mas não pode ser o caso de que cada um que possa
cumprir bem uma tarefa tenha essa tarefa. Nem todos que podem ser um bom
primeiro ministro de um país são primeiros ministros desse país, nem todos
que podem ser um bom professor na escola primária de minha vizinhança
é um professor nessa escola. Ademais, ninguém é um primeiro ministro ou
um professor apenas em virtude do fato de que eles podem realizar bem a
tarefa. Algo mais precisa ocorrer para conferir-lhes a tarefa, para torná-la a
sua tarefa.
Para avaliar esse ponto, devemos contrastar a autoridade prática e
teórica. As autoridades teóricas são especialistas cujo conhecimento e
compreensão do problema em que são autoridades é tanto excepcionalmente
extensivo e notadamente sistemático e seguro, tornando-as guias confiáveis
nesses problemas. Sua palavra é uma razão para endossar certas crenças e
descartar outras. Nisso, ela é como um testemunho: os relatos de testemunhas
sobre os eventos que elas relatam. Mas o conselho do especialista é muito
diferente do relato das testemunhas. Primeiro, normalmente seu conselho não
relata suas crenças perceptuais ou o conteúdo de suas experiências. (As exce-
ções são casos em que o que vemos é difícil de entender, onde especialistas
podem ser úteis em nos dizer o que vemos e o que eles veem). Melhor, ele
relata crenças inferenciais, conclusões que eles extraem da evidência deri-
vada de sua própria experiência ou dos outros. Segundo, como um corolário,
seu conselho não depende de sua situação vantajosa relativa ao problema
em consideração: diferente do relato das testemunhas, eles não necessitam
estar no lugar correto no momento correto para ver ou de algum modo teste-
munhar os eventos que eles relatam. Eles derivam suas conclusões não da
observação, que requer uma posição de vantagem, mas por inferência da
evidência, incluindo testemunho, e isso não requer uma posição privilegiada
ou vantajosa relativa aos eventos sobre os quais eles aconselham. Como
resultado, enquanto o testemunho se relaciona apenas com eventos passados,
os especialistas podem também prever eventos futuros.
Essas diferenças dão conta das diferenças normativas entre testemu-
nhas e especialistas. Com testemunhas, tudo que temos de fazer é avaliar
a confiabilidade de seu relato: a qualidade de sua visão, as condições do
tempo, sua atenção no momento, sua distância dos eventos relatados etc.
Com especialistas, nenhuma dessas questões normalmente é levantada. O
que está em jogo é sua habilidade para extrair conclusões da evidência. Com
frequência, é o conhecimento da teoria, diga-se alguma teoria científica, e
em outros momentos a profundidade da experiência e da compreensão que
estabelece suas credenciais como especialistas, i.e. como pessoas que podem
com segurança inferir uma coisa de outra. Uma vez que sua autoridade como
especialistas seja estabelecida, segue-se que nossas avaliações não especia-
260 revista brasileira de filosofia – RBF 239
22
Note-se que não é meramente que as autoridades criem novas razões ao formular diretivas.
Isso é verdadeiro de autoridades teóricas também. Sua existência mesma abre oportunidades,
e, portanto, as sujeita a novas razões derivadas, razões para satisfazer previamente razões
existentes de novos modos.
seção 4 – traduções 261
século XVIII, mas elas não têm autoridade sobre qualquer um. Eu não sei
nada sobre métodos de lavoura do século XVIII e devo tomar o que eles
dizem como autorizante, mas eles não têm autoridade sobre mim. De modo
similar, a noção de autoridade legítima está restrita a autoridade prática. As
pessoas podem ou não ser especialistas em ou autoridades em métodos de
lavoura do século XVIII. Mas elas não podem ser autoridades de fato ou
autoridades legítimas sobre a questão. Finalmente, somente com relação a
problemas práticos podemos dizer que alguém tem autoridade, e que não
a tem. Em problemas teóricos, alguém ou é ou não é uma autoridade, mas
ninguém tem autoridade.
O que esses pontos têm a ver com a crítica da concepção da autoridade
como serviço, com o argumento de que ela se equivoca na análise de quando
uma autoridade é boa no que ela faz por uma análise do que é ser uma autori-
dade? À primeira vista, pode-se sugerir que a crítica está correta em relação
a autoridades práticas, mas errada em relação a autoridades teóricas.
Uma vez que autoridades teóricas não possuem legitimidade, e não
podem impor deveres (nem mesmo deveres para crer), elas não podem
requerer uma condição adicional além daquelas da concepção da autoridade
como serviço. Se elas são qualificadas como autoridades, elas são autori-
dades. De fato, mesmo a condição epistêmica que percebemos antes, a saber,
que sua posse de autoridade seja conhecível para aqueles sobre quem elas
têm autoridade, não se aplica a autoridades teóricas, que não tem autoridade
sobre ninguém. O maior especialista em métodos de lavoura do século XVIII
pode ser um acadêmico solitário desconhecido da comunidade acadêmica
e não reconhecido por ninguém. Ele ainda assim é uma autoridade, apenas
em virtude de seu conhecimento da área. Nada mais é necessário.23 Então, a
objeção falha com relação a autoridades teóricas.
As autoridades práticas, por outro lado, impõem deveres nas pessoas.
Elas têm autoridade sobre as pessoas. Elas têm poderes normativos sobre as
pessoas. Para serem autoridades, assim o argumento continua, elas precisam
mais do que a capacidade funcionar bem. Elas precisam ser tornadas auto-
ridades, não necessariamente através de sua nomeação para a função, mas
através de algo como uma designação deve ocorrer.
No entanto, a admissão de que a objeção falha com relação a autori-
dades teóricas parece estabelecer que ela falha em si mesma. É implausível
pensar que o que é uma análise bem sucedida do que é ser uma autoridade
em problemas teóricos não faz nenhuma contribuição a uma compreensão
23
É claro que normalmente não podemos saber se ele e uma autoridade a menos que alguém
ateste isso. Mas parece melhor aderir à implicação de que ninguém que é totalmente não
conhecido pode ser uma autoridade para a pragmática do discurso.
262 revista brasileira de filosofia – RBF 239
V. CONSENTIMENTO
isso nos faz conformar melhor com a razão. O argumento traçou analogias
entre autoridades, agentes, artifícios mecânicos, e assim por diante. E é aí
que ele falha. Ele não ressaltou que apesar de todos esses serem casos de não
decidir por si mesmo, há uma diferença entre esses casos e o da autoridade,
pois apenas a autoridade envolve sujeitar-se sua própria vontade a de outrem,
e isso não é meramente um problema de não decidir por si mesmo.
Deixe-nos conceder que o problema existe, que talvez a solução
oferecida o ignora. O fato permanece de que o consentimento não resolve o
problema. Ele pode resolver o problema apenas quando há uma razão para
que esse consentimento nos vincule, e não há nenhuma diferente da que
alguém pode liberá-la com o consentimento, mas não pode explicar por que
um ato singular de consentimento pode sujeitar-nos pela vida a vontade de
outrem, i.e. de que a autoridade nos irá fazer mais bem conformar-se com a
razão. Deve ser observado que, ao negar que o consentimento seja necessário
para a legitimidade, não nego que tenha alguma significância. Suspeito que o
modo em que ele é tratado no Direito de alguns países mostra que é tomado
como significante, mas não para a legitimidade de uma autoridade. Cidadãos
naturalizados e ocupantes de alguns cargos públicos com frequência são
requeridos a expressar consentimento formal, embora não necessariamente
para a legitimidade da autoridade. Uma vez que o Direito pretende autori-
dade sobre todos nós, mas requer consentimento apenas para alguns, ele não
toma o consentimento como necessário para sua autoridade. Mas se pode
considerar que o requerimento do consentimento expresse algumas atitudes
mais específicas que são requeridas em alguns contextos em particular. Para
além do Direito, podemos sentir que o consentimento faz uma diferença:
«agora (tendo consentido) você tem apenas a você mesmo para culpar»,
algumas vezes dizemos. Não posso questionar aqui essas possibilidades, mas
irei simplesmente reiterar que, pelas razões dadas, elas não estabelecem que
o consentimento é uma condição para a autoridade.
Talvez, no entanto, a popularidade de explicações baseadas no consen-
timento tenha algo a nos dizer. Talvez ainda que erradas, elas apontem na
direção correta. A questão é uma de apropriação. O aspecto do problema
moral que estamos confrontando não é o dos limites da liberdade de alguém
que o Direito ou outras diretivas autorizantes impõem. É o de que os limites
são impostos deliberadamente, e que eles são impostos por outrem. Eles
não são limites estabelecidos por mim. As explicações baseadas no consen-
timento são atraentes porque elas buscam tornar os limites em limites do
próprio agente. Elas são quiméricas porque falham em fazê-lo. Eles perma-
necem limites impostos, deliberadamente impostos por outrem. Meu consen-
timento histórico tem a significância que lhe é conferida; ele não pode tornar
os limites meus próprios.
seção 4 – traduções 267
desse argumento, que a resposta ao problema moral é que as ações das auto-
ridades sejam nossas ações.
Esse não é o lugar para investigar as condições de verdade de propo-
sições sobre ação coletiva. Mas um aspecto dessa investigação é impor-
tante para nosso propósito: é o caso de que uma universidade, um país, um
governo, ou qualquer outra coletividade, seja minha universidade, país ou
governo apenas se me identifico com ela?
A noção de identificação é tanto importante quanto obscura, mas penso
que não haja dúvida de que a resposta à questão seja negativa. A Universi-
dade de Oxford é minha universidade com independência de se me identifico
ou não com ela. Seu país é seu país com independência de se você gosta ou
não dele, de se você está ou não afastado dele, e esse governo é o governo
de todas as pessoas desse país com independência de quanto as pessoas o
odeiem. Houve momentos no passado em que muitos Anglo-Irlandeses não
se identificavam com Eire e seu governo. Eles não o consideravam como
seu Estado e seu governo. Mas Eire era seu Estado, e seu governo era seu
governo. Não com pouca frequência encontramos num país indivíduos ou
grupos que não se identificam e não podem identificar-se a si mesmos com
seu país ou considerar seu governo como seu. Eles não irão usar a linguagem
do «nós», assim como em «nós mudamos a lei para tornar mais difícil o
acesso a quem busca asilos para permanecer no país». Sua negação, com
frequência sua inabilidade para usar essas locuções, é altamente significa-
tiva, mas não muda o fato de que esse é seu país, sua lei, e seu governo.
que as ações de autoridades que elas identificam como suas ações – dissol-
vendo, assim, o problema moral. A questão é: isso significa que o poder
legítimo de autoridades é limitado a pessoas que assim se identificam com as
coletividades que as autoridades representam? Isso significa, por exemplo,
que os Anglo-Irlandeses que não se identificaram com Eire e seu governo
não estavam sujeitos a sua autoridade, de que eles não estavam sujeitos ao
Direito de Eire?
O problema dos limites da autoridade do Estado é ainda mais amplo.
Tendemos a crer que Estados têm alguma jurisdição extraterritorial, e que
em qualquer caso eles tem jurisdição territorial sobre todas as pessoas dentro
dos limites do Estado. Mas não esperamos que visitantes se identifiquem
com o Estado ou o regime. Pode ser algo bom se a população de um país se
identifica com ele, e com seu regime. Mas não há argumento razoável para
negar que quando o Estado tem qualquer autoridade legítima, sua autoridade
vai além de regular aqueles que se identificam com ela.
A identificação pode desempenhar uma função importante numa teoria
da legitimidade de outro modo. Pode-se dizer que ela é um requerimento para
a legitimidade do Estado, e de suas autoridades, que seria razoável aos cida-
dãos que se identificassem com ela. A identificação, esse é o pensamento, não
é um fato bruto, é uma atitude que, assim como crenças, emoções e desejos,
é afetada por razões. Há, ou pode haver, razões para identificar-se e razões
para não se identificar. Assim, em algumas vezes identificar-se é razoável e
em outras não o é.24 Pode-se argumentar que é uma condição da legitimidade
de uma autoridade a de que seja razoável para seus sujeitos sua identificação
com ela. Isso pode ser assim, ao menos no caso de algumas autoridades.
Mas, não de modo surpreendente, creio que a concepção da autoridade como
serviço oferece as condições para o preenchimento desse requisito (os outros
tendo a ver com as relações do indivíduo com a autoridade ou a instituição
em nome da qual ela age). Então, esse pensamento não oferece nem uma
crítica nem um suplemento à concepção da autoridade como serviço.
24
Algumas pessoas diriam que, em algumas vezes, alguém deve ou tem um dever de
identificar-se, embora eu duvide disso.
270 revista brasileira de filosofia – RBF 239
legítima apenas sobre pessoas que se identificam com elas, e com os regimes
para os quais elas agem. Está aberto para alguns sustentar que devemos
revisar nossas crenças sobre o escopo da autoridade. Minha impressão é que
isso seria um erro. O problema da apropriação, para o qual supostamente a
identificação é a resposta, é uma questão equivocada. Ela não é parte de nossa
compreensão normal da autoridade de que suas ações são as ações de seus
sujeitos. Pelo contrário, a compreensão normal é que a autoridade envolve
uma relação hierárquica, que ela envolve uma imposição aos sujeitos. A
concepção da autoridade como serviço explica como e quando esse poder
pode ser justificado, ao menos no sentido de ser direcionado para o que é
bom. A busca por uma solução ao problema da apropriação é talvez mais
bem vista como um ideal a que se aspira: seria bom, desejável que aqueles
sujeitos a uma autoridade política se identifiquem com o regime em favor do
qual ela age. Mas a identificação não deve ser vista como uma condição de
legitimidade.
Quase-verdade e
mecânica quântica1
Newton C. A. da Costa
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de Santa Catarina.
Otávio Bueno
Professor do Departamento de Filosofia – Universidade de Miami.
Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora
na Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), no Centro de Compe-
tência em Software Livre da USP (CCSL/Legal) e no Grupo de Estudos de
Lógica Aplicada ao Direito (GELAD). Advogada.
INTRODUÇÃO
1
Tradução: Bruna de Bem Esteves.
272 revista brasileira de filosofia – RBF 239
2
O que a interpretação de Copenhagen exatamente é e quem é responsável por sua
formulação consistem em questões complexas, que infelizmente não podemos discutir aqui
seção 4 – traduções 273
3
Isso em linhas gerais, já que, em princípio, os realistas podem adotar ambas as leituras,
ontológica e epistemológica, dos dois princípios. Em qualquer caso, os antirrealistas são mais
propensos a negar as versões ontológicas correspondentes.
4
A formulação de Everett da interpretação dos muitos mundos não está comprometida
com a divisão dos mundos. Grosso modo, todos os mundos existem independentemente de
medição e esclarecem os estados quânticos relevantes.
seção 4 – traduções 275
estado de spin para cima e outro com o estado de spin para baixo mensurado.
Dessa forma, obtém-se cada um dos componentes alternativos do sistema
quântico– embora em mundos diferentes.
Um dos benefícios dessa interpretação é que ela evita a introdução
do colapso da função da onda, ignorando, assim, completamente a necessi-
dade de introduzir um acontecimento genuinamente aleatório para explicar o
que acontece na medição. Em última análise, tudo o que há nessa interpretação
são os estados quânticos descritos especialmente pela equação de Schrö-
dinger. Acontece que há muitos mais mundos do que tínhamos inicialmente
antecipado. E, dado que todos esses mundos existem, a rigor, não existe o
colapso da função da onda: cada mundo apresenta um dos relevantes estados
quânticos definidos. No entanto, este benefício – de evitar a introdução do
colapso da função da onda – somente pode ser obtido se não acatarmos a
sugestão de que os mundos se dividem como resultado das medições. Caso
contrário, há, de fato, algo especial sobre a medição que precisa ser levado em
conta: a decomposição dos mundos em si mesmos (ver Barrett [1999]). Em
outras palavras, a formulação original de Everett da interpretação dos muitos
mundos – livre da suposição de suas próprias divisões – parece ser melhor do
que De Witt neste aspecto (ver também Vaidman [1998]).
Uma objeção que tem sido frequentemente levantada contra a interpre-
tação dos muitos mundos é que não fica claro como o conceito de probabi-
lidade pode fazer sentido nesta teoria (ver, por exemplo, Albert e Loewer
[1988], e Barrett [1999]). Afinal de contas, tendo em vista que cada compo-
nente da superposição é obtido, não há distinção entre o que é verdadeiro e
o que é possível e, portanto, não fica claro como seria possível traçar exata-
mente a divisão ente o que é real e o que é provável.5
Além disso, o mundo pode realmente se dividir da maneira defendida
pela versão de De Witt da interpretação dos muitos mundos sem que ninguém
perceba? A interpretação das muitas mentes com relação à MQ é tida como
uma formulação ontológica mais parcimoniosa do que a concepção dos
muitos mundos, uma vez que preserva a suposição de que há apenas um
mundo físico. Nossas mentes, por assim dizer, sofrem a decomposição (ver
Albert e Loewer [1988], e Barrett [1999]). Dado que não há multiplicidade
de mundos na interpretação das muitas mentes, mas apenas de mentes, a
dificuldade em prover sentido à probabilidade não aparece. Afinal de contas,
na interpretação das muitas mentes, não há dificuldade para distinguir o que
é real do que é possível.
5
Para uma resposta a essa objeção no âmbito dos muitos mundos, invocando o conceito de
«medida da existência de mundos», ver Vaidman [1998].
276 revista brasileira de filosofia – RBF 239
menos nas suposições ontológicas que fazem para descrever o mundo quân-
tico. E suas tentativas de explicar o que se passa para além dos fenômenos
introduzem, em alguns casos, considerações que não são plausíveis, como o
número de mentes necessário pela interpretação das muitas mentes. Então,
é necessário um quadro para avaliar essas (e outras) interpretações de forma
objetiva. Pensamos que um possível aparato é fornecido pela abordagem das
estruturas parciais (da Costa e French [2003]).
6
A parcialidade das relações e estruturas parciais se deve à incompletude do nosso
conhecimento sobre o domínio em investigação. Com informações adicionais, uma relação
parcial pode se transformar numa relação completa. Assim, a parcialidade aqui examinada
não é ontológica, mas epistêmica.
seção 4 – traduções 279
extensões possíveis das relações parciais que constituem A. Por isso, preci-
samos oferecer limites para restringir as extensões aceitáveis de A.
Para fazer isso, primeiro precisamos formular mais uma noção auxiliar
(ver Mikenberg, da Costa e Chuaqui [1986]). Uma estrutura pragmática
é uma estrutura parcial na qual um terceiro componente foi adicionado:
um conjunto de sentenças aceitas P, que representa as informações aceitas
com relação ao domínio da estrutura. (Dependendo da interpretação da
ciência adotada, diferentes tipos de sentenças podem ser introduzidas em P:
realistas geralmente incluem leis e teorias, enquanto empiristas acrescentam
principalmente certas regularidades e declarações observacionais sobre o
domínio em questão.) Uma estrutura pragmática é, em seguida, uma tripla
A = 〈D,Ri,P〉i∈I,, em que D é um conjunto não vazio, (Ri)i∈I é uma família de
relações parciais definidas sobre D, e P é um conjunto de sentenças aceitas.
A ideia é que P introduz limites sobre as maneiras que uma estrutura parcial
pode ser estendida (as sentenças de P se sustentam nas extensões A-normais
da estrutura parcial A).
Nosso problema é: dada uma estrutura pragmática A, quais são as
condições necessárias e suficientes para a existência de estruturas A-normais?
Aqui está uma dessas condições (Mikenberg et alii [1986]). Seja A = 〈D,Ri,P〉
i∈I
uma estrutura pragmática. Para cada relação parcial Ri , construímos um
conjunto Mi de sentenças atômicas e de negações de sentenças atômicas, tais
que o primeiro corresponde a n-tuplas que satisfazem Ri, e o último àquelas
n-tuplas que não satisfazem Ri. Seja M=∪i∈IMi. Portanto, uma estrutura prag-
mática A admite uma estrutura A-normal se e somente se i conjunto M∪P
for consistente.
Assumindo que tais condições sejam satisfeitas, podemos formular
agora o conceito de quase-verdade. Uma sentença α é quase-verdadeira em
uma estrutura pragmática A = 〈D,Ri,P〉i∈I se existir uma estrutura A-normal B
= 〈D′,R′i〉i∈I tal que α é verdadeira em B (no sentido Tarskiano). Se α não é
quase-verdade em A, dizemos que α é quase-falsa em A. Além disso, dizemos
que uma sentença α é quase-verdadeira se existe uma estrutura pragmática
A e uma correspondente estrutura A-normal B, tal que α é verdade em B (de
acordo com a teoria de Tarski). Caso contrário, α é quase-falsa.
A ideia, intuitivamente falando, é que uma sentença quase-verdadeira α
não descreve, de forma exaustiva, todo o domínio com que ela se preocupa,
mas apenas um aspecto dele: delimitado pela estrutura parcial relevante A.
Afinal, existem várias maneiras diferentes em que A pode ser estendida a
uma estrutura completa, e em algumas dessas extensões α pode não ser
verdade. Assim, o conceito de quase-verdade é estritamente mais fraco
do que a verdade: apesar de que cada sentença verdadeira é (trivialmente)
280 revista brasileira de filosofia – RBF 239
quase-verdadeira, uma quase-verdade pode não ser verdadeira (uma vez que
pode muito bem ser falsa em certas extensões de A).
Para ilustrar o uso da quase-verdade, vamos considerar um exemplo.
Como se sabe, a mecânica Newtoniana é adequada para explicar o compor-
tamento dos corpos sob certas condições (por exemplo, corpos que, grosso
modo, têm uma baixa velocidade em relação à velocidade da luz, que não
estão sujeitos a fortes campos gravitacionais etc.). Mas, com a formulação da
relatividade especial, sabemos que se essas condições não forem satisfeitas,
a mecânica Newtoniana é falsa. Nesse sentido, essas condições especificam
uma família de relações parciais, que delimitam o contexto no qual a teoria
Newtoniana se sustenta. Embora a mecânica Newtoniana não seja verda-
deira (e sabemos em que condições ela é falsa), é quase-verdadeira, isto é,
é verdadeira em um determinado contexto, determinado por uma estrutura
pragmática e uma A-normal correspondente (ver da Costa e French [2003]).
teoria científica. Em particular, a teoria deve ser sensível à maneira com que
as evidências se deslocam na adequação empírica da teoria em análise (ver
também Bueno [1997]).
A abordagem das estruturas parciais nos permite caracterizar um
conceito de adequação empírica que é sensível a mudanças nas evidências.
Considere uma estrutura parcial A que representa a informação gerada a
partir de vários tipos de experimentos envolvendo sistemas quânticos não-
-relativistas e os relatos das medições resultantes. Essa estrutura é clara-
mente parcial, uma vez que, por exemplo, não há informação disponível
relativamente aos resultados de experimentos futuros. Como mais e mais
informações se tornam disponíveis, mais as relações parciais na estrutura
parcial A modificarão seus R3–componentes para R1– ou R2–relações. Cada
uma das interpretações de MQ discutidas acima é quase-verdadeira na estru-
tura parcial A; isto é, as evidências atualmente disponíveis em A não excluem
a possibilidade de que essas interpretações possam vir a ser verdade. Desse
modo, as interpretações são (parcialmente) empiricamente adequadas – isto
é, quase-verdadeiras no que diz respeito à evidência disponível na estrutura
parcial A. É possível que, no entanto, a evidência que se torne disponível
no futuro descarte algumas interpretações em questão. Nesse caso, haverá
uma mudança na estrutura parcial A, que representa a evidência disponível.
E com respeito à nova evidência, algumas dessas interpretações deixarão
de ser (parcialmente) empiricamente adequadas – isto é, não serão mais
quase-verdadeiras.
Embora as interpretações de MQ discutidas acima sejam (parcialmente)
empiricamente adequadas dada a evidência atual, ainda é possível avaliá-las
em termos de três fatores pragmáticos:
(F1) potência explicativa: Quanto satisfatoriamente podem essas
interpretações explicar aspectos intrigantes da MQ não-relativista (como o
problema da medição)?
(F2) novas predições: As interpretações geram novas predições –
embora tais predições não possam ser atualmente testadas?
(F3) coerência: As interpretações oferecem uma visão coerente do que
está acontecendo além dos fenômenos observáveis?
Esses três fatores são pragmáticos no sentido de que, mesmo se respostas
positivas forem fornecidas para as perguntas acima, não podemos concluir
que as interpretações resultantes são, por causa disso, mais prováveis de
serem verdadeiras. Por quê?
Responder exigências explicativas, tais como a de (F1), é certamente
um aspecto útil de uma interpretação de MQ. Mas fica muito menos claro, e
282 revista brasileira de filosofia – RBF 239
7
Não fica claro se a sugestão de que mundos literalmente decompostos em medição é
coerente, já que parece entrar em conflito com vários pressupostos físicos (ver Albert e
Loewer [1988], e Barrett [1999]). Assim, o ponto de coerência não parece se aplicar à versão
da divisão dos mundos na interpretação dos muitos mundos.
284 revista brasileira de filosofia – RBF 239
CONCLUSÃO
BIBLIOGRAFIA
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(trad. R.T. Beyer, 1955). Princeton: Princeton University Press.
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