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Revista

Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012
Revista
Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012

Coordenadores
Tercio Sampaio Ferraz Júnior
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão

CONSELHO EDITORIAL NACIONAL

Antonio Paim Marcelo Finger


Ari Marcelo Sólon Miguel Reale Júnior
Celso Lafer Milton Vargas
Cláudio Michelon Newton Carneiro Afonso da Costa
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Ítala D’Ottaviano Ruy Martins Altenfelder Silva
Jean-Yves Beziau Samuel Rodrigues Barbosa
José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro Walter Carnielli
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Instituto Brasileiro de Filosofia

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Revista Brasileira de Filosofia


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ISSN 0034-7205

Revista
Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012

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Instituto Brasileiro de Filosofia

Presidente
Celso Lafer

Coordenadores
Tercio Sampaio Ferraz Júnior
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão

Editores
Juliano Souza de Albuquerque Maranhão
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ISSN 0034-7205

Revista
Brasileira
de Filosofia
Ano 61 – vol. 239 – jul.-dez. 2012

Publicação oficial do
Instituto Brasileiro de Filosofia
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Preparação de originais: Ida Gouveia
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Impressão e acabamento:

[2013]
Impresso no Brasil
Apresentação

Ao Leitor

Uma revista de filosofia, para cumprir sua função, deve ser um legítimo
e livre fórum de trocas e contraposições de ideias, avaliação e comparação
de diferentes perspectivas. Esse diálogo constante é percebido ao longo das
diferentes edições seja por referência direta ou indireta, seja pela construção
dialética contínua e imperceptível de visões de mundo que prevalecem em
uma ou outra geração.
Mas o confronto direto e explícito de ideias é também fundamental
para marcar diferenças e aguçar convergências, a partir das quais o debate
filosófico progride, mesmo quando resgata concepções passadas. Para esti-
mular esses encontros, a RBF inaugura, neste volume, uma nova seção,
chamada “Diálogos”, na qual pretende captar discussões vivas, mesmo que
ainda não acabadas, em forma de artigo, ou apenas lançadas, ou mesmo
reflexões atuais sobre diálogos já travados e que mereçam reconsideração.
Serão publicadas quaisquer formas de registros dessas discussões que sejam
de relevo para os temas desenvolvidos na revista, tais como transcrições de
discussões em palestras, arguições, breves ensaios de crítica, entrevistas e
trocas de missivas.
Para inaugurar esta seção foi escolhida uma troca de correspondência na
qual Francisco Puy comenta e critica texto de Tercio Sampaio Ferraz Junior
sobre a tópica jurídica. Ela vem precedida por artigo selecionado de autoria
de Milagros Otero que analisa as semelhanças e diferenças nas concepções
da tópica jurídica presente na obra desses autores.

Dos Coordenadores
Sumário

Seção 1
Filosofia Jurídica e Social
«A força das coisas»: o argumento naturalístico na jurisprudência
constitucional, entre a impotência do legislador e a omnipotência
do juiz
Giovanni Damele............................................................. 11

Multiculturalismo, identidad y derecho


Raffaele De Giorgi......................................................... 35

A comunicação do poder em Niklas Luhmann


Rafael Simioni................................................................. 49

Filosofia e Constituição: da dimensão ética no direito do político


Paulo Ferreira da Cunha............................................... 68

Judaism – Jewish Law in Kelsen


Ari Marcelo Sólon......................................................... 97

Avaliando a lei pelo que ela expressa: o fundamento moral do


expressivismo jurídico
Leandro Martins Zanitelli............................................ 110

Razão prática, justificação da autoridade e o dever instrumental


de obedecer
Felipe Oliveira de Sousa................................................. 135
8 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Seção 2
Lógica e filosofia da ciência
Teoremas de ajuste de derivabilidade e normalização em
dedução natural
Marcelo Esteban Coniglio e María Inés Corbalán...... 171
Seção 3
Diálogos
La tópica jurídica: un diálogo entre dos maestros
Milagros Otero. ............................................................. 191

Topica jurídica
Tercio Sampaio Ferraz Junior e Francisco Puy............. 219
Seção 4
Traduções
O problema da autoridade: revisitando a concepção da autoridade
como serviço (The problem of authority: revisiting the service
conception)
Joseph Raz. ...................................................................... 229

Quase-verdade e mecânica quântica


Newton C.A. da Costa e Otávio Bueno......................... 271

Membros da Diretoria do IBF e da Fundação Nuce e M. Reale..... 287


Membros efetivos do Instituto Brasileiro de Filosofia.................. 288
Membros internacionais................................................................ 291
Normas de publicação para os autores.......................................... 293
Publication standards for authors.................................................. 296
ERRATA – No vol. 238, à p. 191, onde se lê: Dietmar von der
Pfordten. Professor Catedrático da Universidade de Göttingen.
Doutorando e Assistente no Departamento de Filosofia do Direito e
Filosofia Social da Universidade de Göttingen. Leia-se: Dietmar von
der Pfordten. Professor Catedrático da Universidade de Göttingen.
Seção 1

Filosofia jurídica e social


«A força das coisas»: o argumento
naturalístico na jurisprudência
constitucional, entre a impotência
do legislador e a
omnipotência do juiz1

Giovanni Damele
Investigador do Instituto de Filosofia da Linguagem da
Universidade Nova de Lisboa.

Resumo: O argumento naturalístico, ou argumento da «natureza das


coisas» (hipótese do «legislador impotente») ou do «senso comum», pode
ser considerado um dos «argumentos jurídicos» tradicionais, utilizados
pelos tribunais para justificar as decisões. Este tipo de argumento deixou
de se adaptar a sociedades «pós-tradicionais» ou «multiéticas», nas quais
é mais difícil individuar univocamente, por exemplo, a «natureza» de uma
instituição social. E, todavia, não faltam exemplos de recurso a este tipo
de argumento em sede de interpretação jurídica. Neste artigo, limitar-nos-
-emos apenas a fazer algumas considerações acerca do uso do argumento
naturalístico e analisaremos mais concretamente o exemplo de duas
recentes sentenças dos tribunais constitucionais italiano e português.

1*
A investigação que proporcionou este artigo foi elaborada no âmbito do projecto individual
«Legal argumentation an eclectic approach» (SFRH/BPD/68305/2010) e do projecto
institucional «Argumentation, Communication and Context» (PTDC/FIL-FIL/110117/2009),
financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (Ministério da Educação e Ciência –
República Portuguesa).
12 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Palavras-chave: Retórica judicial – Argumentação jurídica – Jurispru-


dência constitucional.

Abstract: The «naturalistic argument», that is the argument based on


the «nature of things» (hypothesis of the «powerless legislator») or on the
«common sense», can be considered one of the traditional «legal argu-
ments» used by courts when justifying their decisions. Yet, this argument
appears to be less effective in post-traditional and multi-ethic societies, in
which it is increasingly difficult to obtain consensus, for example, on the
«naturalness» of a social institution. However, this argument still occasion-
ally appears in legal justifications, raising again the issue of the reasonable-
ness of the «appeal to nature». In order to explain the characteristics of
this argument, it may be interesting to analyze the justificatory function
of argumentations contained in two decisions made by two constitutional
courts, in Italy and in Portugal, on similar issues.
Keywords: Judicial rhetoric – Legal argumentation – Constitutional
case-law.

1. O argumento naturalístico e a «impotência» do legislador

Que «a força da natureza» esteja na base de um argumento justificativo


dotado de uma particular capacidade de persuasão, surge-nos como uma
observação óbvia e amplamente confirmada pela experiência. Ou então,
assim o foi pelo menos no passado, até ao momento em que, aparentemente,
este tipo de argumento deixou de se adaptar a sociedades «pós-tradicionais»
ou «multiéticas», nas quais é mais difícil individuar univocamente um
conceito de «natureza» e de «natural» ou, em alternativa, identificar o «senso
comum», a «tradição», a «consciência nacional» etc. E, todavia, não faltam
exemplos recentes, até mesmo com uma certa relevância, de recurso a este
tipo de argumento, inclusivamente em sede de interpretação jurídica. Neste
artigo, limitar-nos-emos apenas a fazer algumas considerações acerca do uso
do argumento naturalístico e analisaremos mais concretamente o exemplo
de duas recentes sentenças dos tribunais constitucionais italiano e português,
relativas ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.2 A principal razão
para esta escolha prende-se não tanto com as características jurídicas, mas

2
Sobre as argumentações da sentença italiana, foi publicado por Ilenia Massa Pinto e Chiara
Tripodina um artigo preciso e detalhado na secção «Studi sulle tecniche interpretative» do
«Archivio di diritto e storia costituzionali» (Sul come per la Corte Costituzionale «le unioni
omosessuali non possono essere ritenute omogenee al casamento». Ovvero tecniche argomen-
tative impiegate per motivare la sentenza 138/2010). Para um ulterior aprofundamento da
sentença italiana remete-se para este estudo exaustivo (http://www.dircost.unito.it).
seção 1 – filosofia jurídica e social 13

sobretudo com a estratégia argumentativa ou, por outras palavras, retórica,


levada a cabo pelos juízes. Com efeito, é de nossa convicção que este caso
representa um exemplo bastante significativo do uso que podemos hoje
encontrar, precisamente em processos de interpretação jurídica, deste tipo
de argumento.
Prossigamos, então, gradualmente e passemos a identificar, em primeiro
lugar, o objecto desta análise, ou seja, o assim chamado «argumento natu-
ralístico». Um bom ponto de partida será a definição de Giovanni Tarello,
para quem este tipo de argumento se funda numa conceção do direito de
acordo com a qual a disciplina das relações sociais se encontra na sua natu-
reza, na natureza do homem ou na natureza das coisas.3 Assim, não seria
possível para o legislador, forçar esta mesma natureza, e é esta a razão pela
qual este argumento é também definido como sendo «do legislador impo-
tente», isto é, impotente para intervir na natureza de tais relações sociais,
para modificar uma tradição consolidada, para contrariar o «senso comun»
que supostamente identifica as características de tais relações. Trata-se aqui,
em outros termos, de um tipo de argumento interpretativo, que Pierluigi
Chiassoni incluiu entre as «diretivas primárias», ou seja, entre aquele tipo de
«diretivas interpretativas»4 que fornecem ao intérprete um critério através do
qual seja possível, substancialmente, atribuir a uma disposição pelo menos

3
«Si fonda su concezioni del diritto per le quali i rapporti sociali trovano in sé stessi, nella
loro natura, nella natura dell’uomo, nella natura delle cose, la loro disciplina [...]. La legge
che volesse “far forza” alla natureza non sarebbe “vera” legge o non sarebbe “efficace”»,
Tarello, 1980: 378. Para os propóstos desta análise, preferimos ter em consideração os
argumentos elencados por Giovanni Tarello e retomados por Perelman, 1976. Outras propostas
de catalogação de «argumentos interpretativos», que mais ou menos intercetam o elenco de
Tarello, poderão ser encontradas em, por exemplo, Aarnio, 1987: cap. III; Chiassoni, 1999:
cap. V; Diciotti, 1999: cap. IV e V; Guastini, 1996: parte III; Lombardi Vallauri, 1981:
53 e ss.; Ost; Van De Kerchove, 1989: 50 e ss.; Taruffo in MacCormick; Summers, 1991:
464-465. Veja-se igualmente Kalinowski, 1965; Klug, 1966; Tammelo, 1969.
4
Chiassoni (2004: 72) sublinha como o uso do termo «argumento» perpetua «aquele modo
de ver […] segundo o qual, na interpretação textual das disposições, a uma fase de euresis
do significado, que se dá ex ante», irrazoável e inalcançável, «se contraporia uma fase ex
post, de “racionalização” ou justificação daquele significado, na qual apenas as directivas
hermenêuticas jogariam, justamente, em forma de “argumentos” prestáveis». Pelo contrário,
queremos sugerir que, por lado, a escolha dos argumentos, seguindo técnicas interpre-
tativas específicas da argumentação jurídica, acontece já tendo em vista a sua capacidade
justificativa e que, consequentemente, esta última seja assim fundamentada nessas mesmas
técnicas interpretativas. Para retomar o excerto de Chiassoni, não se pretende aqui avalizar
qualquer clara «distinção dicotómica […] entre o “raciocínio decisório”, in mente iudicis,
e o “raciocínio justificatório”. É apenas a atenção maior em relação à força persuasiva da
argumentação, e portanto da sua dimensão justificativa, que nos leva a privilegiar o termo
“argumento”.»
14 revista brasileira de filosofia – RBF 239

um significado.5 Mais precisamente, o argumento naturalístico6 deverá ser


incluído, juntamente com o argumento «moral» ou «substancialístico»,7
nas «diretivas primárias de interpretação de acordo com parâmetros heteró-
nomos», a partir do momento em que redireciona o intérprete precisamente
para a natureza das coisas «enquanto dotada de um evidente valor moral»,
tal como o argumento «substancialístico» redireciona para os parâmetros
extrajurídicos de uma qualquer moral «ideal».8 Por outro lado, sublinha
ainda Chiassoni, quando se trata da natureza de instituições ou de relações
jurídicas, o argumento naturalístico «sofre uma atenuação na interpretação
autoritativa-dógmatica»:9 iremos ver como até o próprio caso da sentença do
Tribunal Constitucional se reveste destas mesmas diversas gradações, entre
a interpretação naturalística e a interpretação autoritativa.
Giorgio Pino pôs em evidência a forma como o recurso a este tipo de
argumento se traduz em uma «modalidade de criação de princípios implí-
citos», isto é, na derivação de princípios implícitos, a partir da «natureza das
coisas» – de uma suposta e necessária estrutura intrínseca a certas relações
ou instituições.10 Todavia, sublinha ainda Pino, há pelo menos duas formas
de utilização deste argumento: como argumento produtivo e como argu-
mento interpretativo. No primeiro caso, este pressupõe que uma determinada
regulamentação jurídica deva ser extraída das características «naturais» do

5
«La proprietà distintiva delle direttive primarie consiste invece, come indicato sopra,
nell’immediata efficienza ermeneutica della risorsa di cui l’interprete deve tenere conto: e
precisamente, nel fatto che ciascuna direttiva fornisce all’interprete un criterio, sulla base
del quale è possível, in linea di principio, attribuire a una disposizione almeno un significato,
sia pure parziale e/o indeterminato. Detto in altri, forse più chiari, termini: le direttive
primarie sono quelle direttive che indicano agli interpreti delle risorse sulla base delle quali
una disposizione può essere senz’altro tradotta in una o più norme explicite.» (Chiassoni,
2004: 65)
6
«A una disposizione si deve attribuire il significato suggerito dalla “natura” delle “cose”
o del “rapporto” regolato» (Chiassoni, 2004: 69).
7
«A una disposizione si deve attribuire il significato suggerito dalla dottrina etico-nor-
mativa, ovvero dalla “morale critica”, evocata dai termini valutativi in essa contenuti»
(Chiassoni, 2004: 59-60).
8
Chiassoni, 2004: 67.
9
Chiassoni, 2004: 69.
10
Pino, 2009: 131-158. Remete-se aqui, para além do já citado passo de Tarello, para Bobbio,
Contributi ad un dizionario giuridico, cit., p. 277. Pino dá aqui, precisamente, um exemplo
de família «natural»: «Così, ad esempio, partendo dall’osservazione che l’istituto “famiglia”
ha certe caratteristiche costanti e legate ad una presunta “funzione antropologica”, tali da
essere considerate sostanzialmente “naturali” (ad es., una famiglia nascerebbe dall’unione
di due persone di sesso diverso a fini procreativi), si elevano tali caratteristiche allo status
di principio (implicito) fondamentale per quell’istituto, destinato ad influire sulle regole
esistenti, o anche su eventuali ipotesi di riforma di quelle esistenti (proseguendo nel nostro
esempio: restrizioni o divieti sul matrimonio tra persone dello stesso sesso, o sull’adozione o
sulla fecondazione assistita da parte di individui non coniugati, ecc.)» (p. 155).
seção 1 – filosofia jurídica e social 15

objecto que se pretende regulamentar e que, desta forma, não pode muito
simplesmente deixar de «refletir». Como já notara Tarello, este uso do argu-
mento naturalístico surge largamente desacreditado pela ideia, amplamente
difundida pela cultura moderna, de que a dedução de preceitos de simples
asserções e de «normas» de simples «descrições» não está logicamente
justificada.11
Por sua vez, como argumento interpretativo, o argumento naturalístico
consiste na atribuição de significados aos enunciados normativos alcan-
çando as modalidades de raciocínio e as noções específicas de uma ciência
descritiva (ciências naturais, ciências económicas e afins).12 Também aqui,
poderá dizer-se, existem dois sentidos em que o termo «natureza» pode ser
interpretado. Por um lado, efetivamente, este tipo de argumento remete para
um conhecimento e uma compreensão específicas, por exemplo, no plano
técnico-científico, das características da matéria que é objeto de regula-
mentação jurídica. A «natureza» do fenómeno é então aqui, parece sugerir
Pino, o fruto de uma descrição das suas próprias características: descrição
«extrajurídica» ou, melhor dizendo, na maior parte dos casos, «científica».
Deste ponto de vista, o uso do argumento parece ter uma justificação e uma
dimensão produtiva, podendo até servir para conter a arbitrariedade do juiz,
obrigando-o a verificar o estado atual da ciência no que diz respeito à matéria
em julgamento.
Por outro lado, nem todas as «matérias objeto de regulamentação
jurídica» parecem ser suscetíveis deste tipo de descrição. De acordo com
Pino, é este o caso dos «fenómenos ou instituições puramente sociais ou
culturais», em relação aos quais o uso jurídico do argumento naturalístico
«se revela de certa forma tosco do ponto de vista epistemológico, devido ao
modo desenvolto e apodítico em que são individuadas as supostas estruturas
essenciais e fundamentais de certas relações sociais ou de certas instituições,
de onde se extraem preceitos e princípios de conduta – que frequentemente
coincidem na totalidade com as preferências éticas de quem individua tais
estruturas fundamentais».13 Com efeito, nestes casos, o argumento naturalís-
tico funciona como uma espécie de «escudo» (constituído por uma «suposta
e não demonstrada realidade «natural», objetivamente válida e imutável»)

11
Tarello, 1980: 66. Sobre a chamada «lei de Hume», veja-se Celano, 1994: 39. Veja-se
também Tarello, 1980:379, de acordo com o qual o argumento naturalístico foi desacreditado
também «dalla larga accettazione nella cultura moderna dell’idea che non sia logicamente
giustificata la deduzione di precetti da sole asserzioni, di “norme” da sole “descrizioni”».
12
Pino, 2003.
13
Pino, 2009: 156. Remete-se também aqui para P. Chiassoni, 2007: Tecnica dell’ interpre-
tazione giuridica, Bologna: Il Mulino, p. 96.
16 revista brasileira de filosofia – RBF 239

atrás do qual se oculta uma «argumentação ético-normativa».14 Melhor ainda


seria, segundo Pino, que esta substancial argumentação ética fosse explici-
tada. E, contudo, prossegue Pino, o recurso ao argumento naturalístico não
serve apenas para ocultar argumentações francamente éticas, serve também
pela força persuasiva que provoca todo e qualquer apelo ao respeito de uma
suposta necessidade «natural», da ordem natural das coisas, ou ao esconjuro
de um trilhar de percursos contra naturam».15 Enfim, trata-se de uma estra-
tégia argumentativa dotada de «notáveis potencialidades retóricas».16 Valerá
então a pena observar se (e de que forma) se desdobram estas «notáveis
potencialidades retóricas».

1.1 Um exemplo: a recente sentença do Tribunal Constitucional


italiano em matéria de casamento entre pessoas do mesmo sexo

No ano de 2009, o Tribunal de Veneza foi chamado a pronunciar-


-se sobre um processo instituído por duas pessoas do mesmo sexo contra
a conservatória do registo civil («ufficiale di stato civile») do Município
de Veneza, que recusou proceder à publicação de casamento requerida. O
próprio Tribunal decidiu então levantar a questão da legitimidade cons-
titucional, com referência aos artigos 2, 3, 29 e 117 (primeiro parágrafo)
da Constituição e aos artigos 93, 96, 98, 107, 108, 143, 143-bis, 156-bis
do Código Civil «na parte em que, numa interpretação sistemática, não
permitem que as pessoas de orientação homossexual possam contrair casa-
mento com pessoas do mesmo sexo». Ao mesmo tempo, o Tribunal da
Relação de Trento deu início a um iter jurídico análogo, no seguimento de
uma reclamação feita por dois casais homossexuais contra um decreto do
Tribunal de Trento «que recusara a oposição formulada pelos reclamantes
relativamente a uma disposição da conservatória do registo civil [ufficiale
di stato civile] do Município de Trento», onde o funcionário se «recusara
proceder à publicação de casamento requerida pelos oponentes», recusa essa
efetivamente considerada legítima por parte do Tribunal. O caso chegou,
então, às mãos do Tribunal Constitucional italiano e poderá ser aqui interes-

14
Pino, 2009: 156.
15
Idem, ibidem.
16
Pino nota: «Ora, l’uso interpretativo dell’argumento naturalístico è di per sé legittimo, al
pari di altri argomenti retorico-persuasivi, tuttavia, esso di fatto sembra avere una funzione
meramente suggestiva, in quanto nella dottrina in materia di diritti della personalità tale
argumento non è mai associato (a quanto mi consta) ad alcuna seria indagine scientifica o
sociologica che possa suffragare l’asserito carattere unitario della personalità (tesi questa
che susciterebbe peraltro diverse perplessità, ad esempio, in sede di filosofia della mente)»
(Pino, 2003: 263-264).
seção 1 – filosofia jurídica e social 17

sante examinar rapidamente os argumentos usados pelo juiz para justificar a


sua própria sentença de inadmissibilidade.
Antes de mais, será oportuno sublinhar de que forma, nas suas moti-
vações, o Tribunal Constitucional, convocando explicitamente o artigo 2 da
Constituição,17 reconheceu que as uniões entre homossexuais pertencem a
um tipo de «formação social», na qual se «desenvolve» a personalidade do
indivíduo e que, por isso, os direitos invioláveis do homem devem ser reco-
nhecidos e garantidos, até mesmo no seio desta «formação social» em parti-
cular. Todavia, esta formulação não pressupõe que tal reconhecimento possa
ser automaticamente concretizado, equiparando as uniões homossexuais ao
casamento, mas, mais concretamente, reenvia em qualquer dos casos para o
legislador a tarefa de estabelecer as modalidades deste reconhecimento.
As razões que motivam esta posição surgem imediatamente a seguir,
quando o Tribunal Constitucional começa, «por razões de ordem lógica»18
(que, na verdade, são razões meramente ditadas pelo conteúdo da disposição)
pelo art. 29, que estabelece, no primeiro parágrafo, que «a República reco-
nhece os direitos da família como sociedade natural fundada no casamento»
(o itálico é meu), acrescentando no segundo: «o casamento baseia-se na igual-
dade moral e jurídica dos cônjuges, dentro dos limites estabelecidos pela lei
como garante da unidade familiar». O ponto, naturalmente, é a tão debatida
qualificação de «sociedade natural» atribuída pela Constituição italiana à
família. Como meio de clarificar o seu sentido, o Tribunal parece privilegiar
na primeira versão o recurso ao argumento psicológico,19 afirmando que
«com tal expressão, como se infere dos trabalhos preparatórios da Assem-
bleia Constituinte, pretende destacar-se o facto de a família contemplada
pela norma ter direitos originários e preexistentes ao Estado e que, por isto
mesmo, estes têm de ser reconhecidos»20 (o itálico é meu). Como se poderá
ver, entrevê-se aqui o argumento naturalístico, precisamente na versão da
hipótese do «legislador impotente». E, todavia, deteta-se uma certa hesitação
por parte do Tribunal no recurso a um argumento que, como já aqui acenámos,
em sociedades pós-tradicionais e multiéticas se arrisca a ser pouco persua-
sivo. Justifica-se, assim, o recurso ao argumento psicológico, que desloca

17
Sent. 138/2010, punto 8, Considerato in diritto.
18
Punto 9, Considerato in diritto.
19
É o argumento segundo o qual «a ciascun enunciato normativo deve essere attribuito
il significato che corrisponde alla volontà dell’emittente o autore dell’enunciato, cioè del
legislatore in concreto, del legislatore storico. Il fondamento di questo argomento risiede
nella dottrina imperativistica della legge, nella dottrina cioè per cui la legge è un comando,
rivolto dal superiore all’inferiore: il comando si manifesta in un documento, e attribuire
significato al documento vuol dire risalire alla volontà di cui il documento è espressione»
(Tarello, 1980: 364).
20
Punto 9, Considerato in diritto.
18 revista brasileira de filosofia – RBF 239

para os legisladores constituintes o ónus da argumentação baseada sobre a


inevitável força da natureza das coisas. A estratégia torna-se mais clara, com
efeito, nas linhas que se seguem: depois da premissa «os conceitos de família
e de casamento não podem considerar-se “cristalizados”» (aparentemente
evitando assim o recurso ao argumento naturalístico), o Tribunal particula-
riza, contudo, que a interpretação «não pode ser estendida a ponto de incidir
sobre o núcleo da norma, modificando-a de forma a incluir nela fenómenos
e problemáticas que, de forma alguma, foram consideradas aquando da sua
emanação».21 Ora, deixando por agora de parte a questão implícita de o
reconhecimento de um conceito como não «cristalizado» significar de certa
forma subentender que este possa vir a ser modificado, «de forma a incluir
nela fenómenos e problemáticas» que entretanto surgissem, é evidente que
o centro do argumento é aqui a qualificação desse «núcleo da norma», cujas
características, é dito, não podem ser tocadas pela interpretação. Com este
propósito, o Tribunal volta a recorrer ao argumento psicológico, ampliando
o seu âmbito: «como se conclui dos já citados trabalhos preparatórios, a
questão das uniões homossexuais foi deixada totalmente de fora, no debate
decorrido em sede de Assembleia, apesar de a condição homossexual não ser
certamente desconhecida» e ainda «os constituintes, discorrendo sobre o art.
29 da Constituição, discutiram uma instituição que tinha uma conformação
precisa e uma disciplina articulada no ordenamento civil».22 Desta forma:
quando decidiram falar de família, os constituintes fizeram-no pensando
apenas na família heterossexual pois: a) através da expressão «natural»
referem-se, em prática, a um modelo de família bem preciso, considerado
pré-existente a qualquer disposição jurídica e que, portanto, poderia ser
simplesmente reconhecido por esta última; b) ninguém, durante os trabalhos
de redação do texto Constitucional, colocou o problema das uniões homos-
sexuais, apesar de a existência não ignota dos homossexuais aos olhos dos
legisladores constituintes (dir-se-ia que é este o entendimento do Tribunal no
que diz respeito à frase «apesar de a condição homossexual não ser decerto
desconhecida»); c) em qualquer dos casos, aquando da discussão sobre a
família, os legisladores constituintes fizeram-no tendo em mente o já reco-
nhecido modelo no ordenamento jurídico italiano, ou seja, no Código Civil.
Assim, a posição dos constituintes que define o «núcleo» intocável da
norma parece basear-se em três elementos: o primeiro é eminentemente de
tipo naturalístico, e não necessita, a este ponto, de ulteriores explicitações.
O segundo baseia-se essencialmente no silêncio do legislador e na sua
decisão (assumida de forma pensada e consciente) para não incluir, sob uma
determinada categoria (família), um fenómeno (uniões homossexuais) que

21
Punto 9, Considerato in diritto.
22
Punto 9, Considerato in diritto.
seção 1 – filosofia jurídica e social 19

não devia tampouco ignorar. O terceiro, por fim, abre caminho a um uso do
argumento histórico,23 já que «na ausência de várias referências, é inevitável
concluir que estes tivessem presente a noção de casamento definida pelo
Código Civil, a vigorar desde 1942, que, como foi já mencionado, estabe-
lecia (e estabelece até agora) que os cônjuges têm de ser pessoas de sexos
diferentes».24 Em todos estes três casos, deveria concluir-se que aquele que
foi definido como «núcleo» intocável pela norma seria a identificação da
família com uma união heterossexual. Com efeito, a reforçar esta mesma
qualificação acresce, por fim, o recurso ao argumento sistemático, na versão
da assim chamada sedes materiae:25
«Não será por acaso, de resto, que a Carta Constitucional, depois de ter
tratado a questão do casamento, tenha considerado necessário debruçar-se
sobre a questão da tutela dos filhos (art. 30), assegurando também a paridade
no tratamento dos filhos nascidos fora do casamento, mesmo que compativel-
mente com os membros da família legítima. A justa e devida tutela, garantida
aos filhos naturais, em nada diminui a relevância constitucional atribuída à
família legítima e à (potencial) finalidade de procriação do casamento, que
significa diferenciá-lo das uniões homossexuais».
A coerência sistemática representada pela proximidade entre o artigo
relativo à família e o artigo dedicado à tutela dos filhos indicia a «rele-
vância constitucional» atribuída à (potencial) «finalidade de procriação do
casamento», «que significa diferenciá-lo das uniões homossexuais».26 O
casamento a que o texto constitucional se refere é, portanto, afirma por fim
o Tribunal, o casamento com um entendimento no âmbito do seu «signi-
ficado tradicional», com o qual, como corolário da sua argumentação, se
volta a abordar superficialmente o argumento naturalístico que, tal como já
vimos, permanece subentendido ao longo de todo o discurso. O «significado
tradicional» é, «em última análise», aquele «significado do preceito cons-
titucional» que «não pode ser superado pela via hermenêutica, pois não se
trataria de uma simples releitura do sistema ou do abandono de uma mera

23
É o argumento de acordo com o qual, «essendo dato un enunciato normativo, in mancanza
di espresse indicazioni contrarie si deve ad esso attribuire lo stesso significato normativo
che tradizionalmente veniva attribuito al precedente e preesistente enunciato normativo
che disciplinava la stessa materia nella medesima organizzazione jurídica, ovvero lo stesso
significato normativo che tradizionalmente veniva attribuito all’enunciato normativo
contenuto in un documento capostipite di altra organizzazione» (Tarello, 1980: 367).
24
Punto 9, Considerato in diritto.
25
«In una prima accezione, per “sistema” si intende la disposizione degli enunciati normativi
che è stata prescelta dal legislatore: ad esempio la disposizione degli articoli, dei capi, dei
titoli di un codice. In questa accezione di “sistema”, l’argumento sistematico altro non è che
l’argumento secondo cui agli enunciati si deve dare quell’interpretação che è suggerita dalla
loro collocazione nel “sistema del codice”» (Tarello, 1980: 376).
26
Punto 9, Considerato in diritto.
20 revista brasileira de filosofia – RBF 239

praxis interpretativa, mas sim de um passo em direção a uma interpretação


criativa».27 Daqui resulta que, assim como «as uniões homossexuais não
podem ser consideradas homogéneas ao casamento», os artigos do Código
Civil em questão não são inconstitucionais, nem sequer em relação ao art.
3 Const. (princípio da igualdade28), já que, dada a recentemente concluída
reformulação do artigo 29, estes não dão lugar a uma «irracional discrimi-
nação» mas, pelo contrário, a uma discriminação fundada no próprio texto
constitucional.29

2. O caso português

Este recurso ao argumento naturalístico em sede de interpretação


constitucional apresenta outras manifestações, para além daquela que foi já
enunciada, tanto no direito do próprio Tribunal, como no direito de tribunais
constitucionais de outros países. Desta forma, seria por isso interessante
levar a cabo uma ampla e aprofundada investigação comparativa. Todavia,
fazendo-se aqui referência a alguns apontamentos sobre o uso do argumento,
teremos de nos limitar, de igual forma, a poucos exemplos. Em particular
modo, vale a pena considerar o caso de Portugal, país onde se delineou uma
situação em tudo análoga, mais ou menos no mesmo período.30 O Tribunal
Constitucional português foi, com efeito, confrontado com a questão do
casamento entre pessoas do mesmo sexo, no seguimento de um caso judicial
bastante semelhante ao caso italiano. Um casal homossexual, que viu recu-
sada a publicação do seu casamento na 7ª Conservatória do Registo Civil
de Lisboa, fez efectivamente recurso da decisão, que todavia fora confir-
mada tanto na primeira instância, como na relação, em conformidade com o
texto dos artigos 1.577 e 1.628 (parágrafo e) do Código Civil.31 Vale a pena
começar com uma consideração sobre as argumentações, em sede de recurso

27
Punto 9, Considerato in diritto.
28
Artigo 3, Costituzione della Repubblica Italiana.
29
Idem.
30
Será útil recordar, a este propósito, que em Portugal as assim chamadas «uniões de facto»,
mesmo entre pessoas do mesmo sexo, tinham já obtido um reconhecimento e uma tutela
legal com a Lei 7 de 11 de maio de 2001 que, revogando a Lei 135 de 28 de agosto de 1999
(que, por sua vez, tutelava a união de facto, mas que a definia com uma referência explícita à
diferença de sexo, isto é, como «a situação jurídica das pessoas de sexo diferente que vivem
em união de facto há mais de dois anos»), equiparava as uniões de facto heterossexuais às
uniões homossexuais, conferindo uma tutela legal independentemente da identidade sexual
dos parceiros.
31
Art. 1.577 («Noção de casamento»): «Casamento é o contrato celebrado entre duas
pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão
de vida, nos termos das disposições deste Código» (o itálico é meu); art. 1.628 («Casamentos
inexistentes»), parágrafo e): «É juridicamente inexistente […] o casamento contraído por duas
pessoas do mesmo sexo».
seção 1 – filosofia jurídica e social 21

de apelação, do Tribunal da Relação de Lisboa.32 Tanto neste caso, como no


caso italiano, tal como seria, de resto, previsível, as argumentações de quem
interpôs os recursos centravam-se principalmente na violação dos princípios
contidos nos artigos 13 (princípio da igualdade),33 36 (família, casamento e
filiação34) e 67 (família35) da Constituição da República Portuguesa (daqui
em diante designada CRP) e das disposições do artigo 405 do Código Civil
(princípio da liberdade contratual36). Mais concretamente, em relação ao
princípio de igualdade descrita no art. 13 CRP, foi citado explicitamente
um trecho de uma sentença precedente, na qual, fazendo-se referência ao
parâmetro da razoabilidade intersubjetiva37 e ao argumento sistemático, o
Tribunal Constitucional evidenciava o facto de a inconstitucionalidade de
uma norma, por violação do princípio de igualdade, depender da «irrazoabi-
lidade» das (eventuais) discriminações e da ausência de «consonância» com
o sistema constitucional.38 Tal como já surgira claramente na sentença do
Tribunal Constitucional, este argumento pode obviamente ser utilizado com
facilidade para sustentar também a posição oposta, ou seja, a constitucionali-
dade (por não violação do princípio de igualdade) dos dois citados artigos do

32
Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão 6284/2006-8, 15.02.2007.
33
«1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. 2. Ninguém
pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de
qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião,
convicções políticas ou ideológicas, situação económica, condição social ou orientação
sexual». Veja-se que a referência final à orientação sexual foi acrescentada em 2004 em sede
de revisão Constitucional (Lei Constitucional n. 1/2004), completando assim a formulação
inicial do princípio de igualdade. Este aspeto foi particularmente sublinhado pelas partes
que interpuseram recurso, segundo as quais este «reforço» da formulação originária tem
efectivamente apenas um significado: impedir constitucionalmente que alguns cidadãos
portugueses possam ser discriminados por causa da sua orientação sexual.
34
«1. Todos têm o direito de constituir família e de contrair casamento em condições de
plena igualdade.»
35
«1. A família, como elemento fundamental da sociedade, tem direito à protecção da
sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que permitam a realização pessoal
dos seus membros.»
36
«1. Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo
dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as
claúsulas que lhes aprouver
2. As partes podem ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios, total ou
parcialmente regulados na lei.»
37
Juízo de razoabilidade formulável em termos de igualdade: para este e para outros
argumentos remete-se ainda para a secção «Tecniche interpretative della Corte Costitu-
zionale» in Archivio di diritto e storia costituzionali (http://www.dircost.unito.it).
38
«Assim, a caracterização de uma norma como inconstitucional, por violação do princípio
da igualdade, depende, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente,
isto é, falta de razoabilidade e consonância com o sistema constitucional», Tribunal Consti-
tucional, Acórdão n 309/85, cit. in Tribunal da Relação de Lisboa, Acórdão, punto 8 (22ª),
Relatório.
22 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Código Civil português sobre o casamento: é efectivamente suficiente que a


discriminação seja neste caso justificada como «razoável», ou in se ou porque
em consonância com o «sistema constitucional» ou com toda a organização
jurídica portuguesa. Todas as argumentações deslocam-se assim, tanto neste
caso, como no caso italiano, para a qualificação da «razoabilidade» da discri-
minação em questão.
Trata-se de uma estratégia argumentativa evidentemente privilegiada
em casos semelhantes, quando o ponto é a violação ou a aceitação do prin-
cípio de igualdade, face ao surgimento de novas situações que modificam
o quadro das relações sociais precedentemente regulada pela organização
jurídica. Será oportuno determo-nos, neste caso, numa outra sentença do
Tribunal Constitucional italiano, datada de 23 de novembro de 1961 – e que
posteriormente se tornou relativamente célebre – sobre o adultério feminino,
outrora considerado pelo Código Civil um crime punível com um ano de
reclusão (diferentemente do que acontecia com o adultério masculino). Nas
motivações desta sentença, a não justificabilidade da discriminação foi rejei-
tada com um recurso ao argumento da coerência39 e, sobretudo, com um
ainda mais maciço recurso ao argumento naturalístico, na sua versão com
referência ao common sense.40 De acordo com o Tribunal Constitucional, o
legislador penal, no estabelecimento do tratamento desigual dado ao adul-
tério masculino e ao feminino, não se inspirara nas «suas limitadas pers-
pectivas particulares», mas antes adaptara-se «a uma avaliação do ambiente
social que, na sua generalidade, havia também influenciado outras partes
da organização jurídica». E, precisamente, no comentário ao artigo 29 da
Constituição, sublinhava-se de que forma a qualificação de «natural», atri-
buída à família no primeiro parágrafo, «se não possui um conteúdo jurídico
preciso, tem certamente implícita uma referência e o reconhecimento do
conceito de família tradicional, que até hoje vive na consciência do povo»
(o itálico é meu), sem, no entanto, obviamente, se demorar na justificação,
com dados, da verdadeira «sobrevivência» na «consciência do povo» desse

39
Argumento da coerência horizontal interlegislativo: «Del resto, nel disporre un siffatto
trattamento, il legislatore penale, lungi dall’ispirarsi a sue limitati particolai vedute, non ha
fatto che adeguarsi a una valutazione dell’ambiente sociale che, per la sua generalità, ha
influenzato anche altre parti dell’ordinamento giuridico; come può chiaramente desumersi,
tra l’altro, dall’art. 151 del Codice civile, il quale per l’adulterio della moglie consente
l’azione di separazione in ogni caso, mentre per l’adulterio del marito la subordina alla
condizione che il fatto costituisca una ingiuria grave a danno della moglie» (Tribunal
Constitucional, Sentença 64/1961, punto 3, Considerato in diritto). Através deste, vale a
pena assinalar, o Tribunal Constitucional fazia referência à coerência do artigo em questão do
Código Civil (o 559) com uma outra norma do mesmo Código Civil (também esta precedente
à entrada em vigor da Constituição republicana), cuja constitucionalidade, também neste caso,
à luz do mesmo art. 3 da Constituição, não era óbvia.
40
Punto 4, Considerato in diritto.
seção 1 – filosofia jurídica e social 23

«tradicional conceito de família».41 À luz de todas estas informações, esta


mesma discriminação deveria ter sido considerada como justificada e, por
isso, não inconstitucional ao abrigo do artigo 3 (princípio de igualdade).
Em todo o caso, uma estratégia análoga é reconhecível nas motivações
do Tribunal da Relação de Lisboa (e também, tal como se verá, nas motiva-
ções do Tribunal Constitucional): uma estratégia focada na apresentação de
uma discriminação em concreto como justificada (excluindo assim todas as
violações do princípio de igualdade). Neste caso, o recurso ao argumento
naturalístico assume contornos mais ancilares, mesmo em relação à sentença
do Tribunal Constitucional italiano sobre o casamento homossexual, e decerto
menos invasivos em relação à sentença do Tribunal Constitucional italiano
sobre o adultério feminino. Mais concretamente, este limita-se, grosso modo,
à citação de um trecho da autoria de Jorge Miranda e de Rui Medeiros, onde
se sublinha que o casamento não é garantido pela Constituição como uma
realidade abstrata, completamente manipulável e susceptível de uma confor-
mação flexível por parte da lei, deixando entrever assim que um semelhante
«núcleo essencial» deva ser isolado, ou através de uma interpretação de tipo
histórico-cultural (ligada à cultura jurídica do país), ou através da identi-
ficação de algumas características «naturais» próprias das instituições em
questão.42 Em todo o caso, ao recusar o recurso, o Tribunal da Relação de
Lisboa sustentava a sua própria argumentação, sobretudo em considerações
de ordem sistemática, revelando assim que, se por um lado, o artigo 36 CRP
não encerrava em si normas «fechadas», remetendo assim para o legislador
ordinário a tarefa de regulamentação tanto dos requisitos, como dos efeitos do
casamento,43 por outro era necessário evidenciar a forma como o legislador
constitucional, ao fazer a distinção entre «família» e «casamento» (o artigo
36 CRP menciona precisamente a «família, casamento e filiação»), tinha
«revelado implicitamente [sic] não desconhecer as coordenadas fundamen-
tais do casamento dentro do ordenamento jurídico português, entre as quais
deveria estar incluída, precisamente, a diferença de sexo entre os cônjuges,
descrita nos artigos 1577 e 1628 do Código Civil».44

41
Punto 4, Considerato in diritto.
42
«O casamento não é, pois, garantido como uma realidade abstracta, completamente
manipulável pelo legislador e susceptível de livre conformação pela lei. Pelo contrário, como
é próprio de uma garantia institucional, não faz sentido que a Constituição conceda o direito
a contrair casamento e, ao mesmo tempo, permita à lei ordinária suprimir ou desfigurar o seu
núcleo essencial» (Miranda; Medeiros, 2007: 397).
43
«O artigo 36º da Constituição da República Portuguesa não contém normas fechadas,
remetendo para o legislador ordinário a regulamentação dos requisitos e efeitos do casamento
e até a sua forma de celebração». (Acórdão 6284/2006-8, IV).
44
«Ao autonomizar o casamento […] o legislador constitucional revelou implicitamente não
ignorar as coordenadas estruturais delimitadoras do casamento na ordem jurídica portuguesa.
24 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Chegamos então ao recurso de apelação junto do Tribunal Constitu-


cional, que se concluiu com uma sentença de inadmissibilidade da questão
de legitimidade constitucional (9 de julho de 2009) e que, num certo
sentido, constitui uma analogia com a sentença italiana.45 É necessário
notar de imediato que a estratégia do juiz português não difere da estratégia
adotada pelos juízes encarregues do recurso de apelação, mas concretiza-
-a ulteriormente. Também neste caso, a tónica é colocada sobretudo na
coerência sistemática do texto da Constituição, juntamente com o conjunto
do ordenamento: uma estratégia que age sobre o facto de a CRP, no artigo
36, usar genericamente os termos «família» e «casamento» sem ulteriores
especificações. Os juízes constitucionais portugueses, tal como os italianos,
invertem, num certo sentido, a estratégia das partes recorrentes, preferindo,
se assim se pode dizer, interpretar a Constituição à luz do Código Civil, em
vez de o fazerem ao contrário (como fora requerido pelas partes recorrentes),
salvaguardando desta forma manifestamente a constitucionalidade dos
artigos do Código Civil em questão e a «sistematicidade» do ordenamento,
excluindo ao mesmo tempo a existência de um conflito entre normas. O tom
da argumentação é, portanto, veiculado por argumentos de tipo histórico,46 a
coherentia ou sistemático,47 ou, em geral, por uma abordagem interpretativa
«restritiva», semelhante à que é expressa pelo brocardo ubi lex voluit, dixit;
ubi noluit, tacuit.48 A motivação desta preferência não advém apenas de, nas
sociedades contemporâneas, o argumento naturalístico (a que anteriormente
fizemos menção) provavelmente beneficiar de um menor grau de persuasão,
mas do facto de, neste caso, a CRP não conter nada de semelhante à qualifi-
cação de «sociedade natural», atribuída pela Constituição italiana à família.
Todavia, também aqui, não está ausente o recurso ao argumento naturalístico,

E […] entre o núcleo essencial figura a celebração do contrato de casamento por pessoas de
sexo diferente» (Acórdão 6284/2006-8, V).
45
Tribunal Constitucional, Acórdão n. 359/2009.
46
«A recepção constitucional do conceito histórico de casamento como união entre duas
pessoas de sexo diferente radicado intersubjectivamente na comunidade como instituição não
permite retirar da Constituição um reconhecimento directo e obrigatório dos casamentos entre
pessoas do mesmo sexo». (Canotilho; Moreira, 2007: 362), ponto 10, Fundamentos.
47
«Mas a circunstância de a Constituição, no já citado n. 1 do seu artigo 36.º, se referir
expressamente ao casamento sem o definir, revela que não pretende pôr em causa o conceito
comum, radicado na comunidade e recebido na lei civil, configurado como um “contrato
celebrado entre duas pessoas de sexo diferente”», punto 10, Fundamentos. Argumento
sistemático-concetualístico (dogmático): Tarello, 1980: 377.
48
«Na verdade, se o legislador constitucional pretendesse introduzir uma alteração da
configuração legal do casamento, impondo ao legislador ordinário a obrigação de legislar no
sentido de passar a ser permitido a sua celebração por pessoas do mesmo sexo, certamente
que o teria afirmado explicitamente, sem se limitar a legitimar o conceito configurado pela
lei civil; e não lhe faltaram ocasiões para esse efeito, ao longo das revisões constitucionais
subsequentes», ponto 10, Fundamentos.
seção 1 – filosofia jurídica e social 25

sobretudo em relação à ligação entre casamento e procriação: argumento


reforçado pelo facto de a disciplina das uniões civis (tal como de resto a
atual lei sobre o casamento homossexual) excluir aos casais homossexuais
a possibilidade de adoção. De um modo geral, o Tribunal Constitucional
faz uso explícito do argumento naturalístico, na versão do common sense
no ponto em que põe em relevo «a circunstância de a Constituição, no já
citado n. 1 do seu artigo 36.º, se referir expressamente ao casamento sem o
definir, revela que não pretende pôr em causa o conceito comum, radicado
na comunidade e recebido na lei civil, configurado como um «contrato cele-
brado entre duas pessoas de sexo diferente»49 (o itálico é meu), reforçando
depois esta posição com uma longa citação de Gomes Canotilho e de Vital
Moreira,50 onde é possível ler como «a recepção constitucional do conceito
histórico de casamento como união entre duas pessoas de sexo diferente
radicado intersubjetivamente na comunidade como instituição não permite
retirar da Constituição um reconhecimento direto e obrigatório dos casa-
mentos entre pessoas do mesmo sexo». Como se pode ver, no primeiro caso,
o argumento naturalístico faz-se acompanhar de considerações de carácter
histórico-sistemático («recebido na lei civil») e autoritativo-dogmático (a
longa citação de Canotilho e de Moreira).
Colocadas estas premissas, e depois de traçado o quadro normativo,
surge-nos portanto consequente a explícita recusa, por parte do Tribunal
Constitucional, de toda a interpretação «criativa» ou de tudo quanto, sob esta
luz, assumisse uma decisão de carácter aditivo, definida «de dúbia legitimi-
dade face ao princípio de separação de poderes».51 Mas apresenta-se igual-
mente consequente a referência direta ao legislador, para quem o Tribunal
Constitucional remete todas as ulteriores decisões na matéria.
Referência que, no caso português, foi colhida pelo governo através
de um desenho de lei recentemente aprovado pelo Parlamento. E foi assim
que, ao fim de muito pouco tempo, o Tribunal Constitucional foi novamente
investido pela questão. Neste caso foi, efetivamente, o Presidente da Repú-
blica português, Aníbal Cavaco Silva, que enviou ao Tribunal Constitucional,
seguindo as próprias prorrogativas constitucionais, o desenho de lei, com o
propósito de obter uma avaliação preventiva da constitucionalidade do texto,
antes de o assinar (ou, eventualmente, de o vetar).52 O recurso baseava-se no

49
Ponto 10, Fundamentos.
50
Cf. Canotilho; Moreira, 2007: 362.
51
«Na verdade, a decisão que julgasse inconstitucional as normas impugnadas teria
claramente um carácter aditivo, de duvidosa legitimidade em face do princípio da separação
de poderes», ponto 14, Fundamentos.
52
De acordo com o artigo n. 136 da CRP, o Presidente da República pode opor o veto,
ou melhor, recusar-se a assinar uma proposta de lei. O veto pode basear-se numa decisão
26 revista brasileira de filosofia – RBF 239

facto de o desenho de lei, que modifica a redação dos artigos 1.577, 1.591,
1.690, n. 1, do Código Civil, substituindo em prática os passos relativos a
«duas pessoas de sexo diferente» pela nova expressão «duas pessoas», dever
considerar-se não conforme ao conceito constitucional de casamento e, de
reflexo, ao conceito constitucional de família, tal como era considerado pelo
n. 1 do artigo 36 da Constituição.53 É oportuno salientar, incidentemente,
que os espaços deste recurso pareciam existir, vista a preocupação, por parte
dos juízes constitucionais, na sentença precedente, em qualificar o conceito
de casamento como união heterossexual, mesmo à luz do próprio artigo
do texto constitucional. Mas, sobretudo, vale a pena ponderar sobre estas
considerações no contexto desta análise, precisamente no que diz respeito
às menções feitas pelos juízes ao núcleo «naturalístico» no casamento,
«radicado na comunidade». E, todavia, o Tribunal Constitucional decidiu
desta vez, com grande maioria (mas não por unanimidade) pronunciar-se em
favor da constitucionalidade do texto. Dessa forma, parece ter prevalecido o
peso, na sentença precedente, das argumentações baseadas essencialmente,
como de resto já aqui foi descrito, em considerações de caráter sistemático,
e sustentada pelo facto de a Constituição portuguesa não qualificar ulterior-
mente o conceito de família, mostrando assim (era a argumentação tanto dos
juízes constitucionais, como do Tribunal de Segunda Instância) uma adap-
tação ao conceito de família expresso no Código Civil. Cabia eventualmente
depois ao legislador decidir manter ou modificar este mesmo conceito. Uma
vez concretizada esta modificação, a decisão do Tribunal Constitucional
mantém o seu olhar na coerência do sistema: com efeito, permanece na base

preventiva do Tribunal Constitucional, que se pronuncie em favor da inconstitucionalidade


(total ou parcial) da proposta (veto pela inconstitucionalidade) ou sobre razões políticas (veto
político). A proposta regressa depois à Assembleia da República. Se esta última confirmar
a aprovação com voto da maioria, o Presidente será obrigado a promulgar o decreto. Neste
caso, tendo sido barrada a possibilidade de veto por inconstitucionalidade (dada a decisão
do Tribunal Constitucional sobre a constitucionalidade do texto) e face à vontade expressa
pela maioria da Assembleia da República em confirmar (sem modificar) a proposta de lei,
o Presidente da República renunciou por fim à possibilidade de veto político e assinou,
promulgando por fim a lei que legaliza em Portugal o casamento homossexual.
53
Art. 36 CRP (Família, casamento e filiação): «1. Todos têm o direito de constituir família
e de contrair casamento em condições de plena igualdade. 2. A lei regula os requisitos e os
efeitos do casamento e da sua dissolução, por morte ou divórcio, independentemente da forma
de celebração. 3. Os cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política
e à manutenção e educação dos filhos. 4. Os filhos nascidos fora do casamento não podem,
por esse motivo, ser objecto de qualquer discriminação e a lei ou as repartições oficiais não
podem usar designações discriminatórias relativas à filiação. 5. Os pais têm o direito e o dever
de educação e manutenção dos filhos. 6. Os filhos não podem ser separados dos pais, salvo
quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante
decisão judicial. 7. A adopção é regulada e protegida nos termos da lei, a qual deve estabelecer
formas céleres para a respectiva tramitação».
seção 1 – filosofia jurídica e social 27

da argumentação o argumento sistemático, mas entretanto as coordenadas do


próprio sistema foram explicitamente modificadas pelo legislador.

3. Conclusões

O arsenal argumentativo (razoavelmente semelhante) utilizado tanto


pelo Tribunal Constitucional italiano, quanto pelo Tribunal Constitucional
português não surpreende decerto, nem tampouco causa estranhamento, dada
a natureza da questão e da decisão, no sentido de uma interpretação em sentido
restrito em ambos os casos. O recurso a argumentos de teor «orignalista»54
ou «psicológico», como já sublinhava Tarello, favorece «a rigidez da apli-
cação normativa» e «requere a intervenção do órgão legislativo para todas as
modificações»,55 sendo ainda frequentemente privilegiado pelos intérpretes,
incluindo os juízes constitucionais, nos casos em que seja preferível evitar
uma interpretação mais marcadamente «criativa», por exemplo, à razão do
caráter controverso do assunto para o qual foram chamados a pronunciar-se.
Daqui advém claramente, como justamente se fez notar em relação ao caso
do Tribunal Constitucional, que «o uso do argumento originalista prevalece
nitidamente em sentenças que rejeitam a questão da legitimidade constitu-
cional, salvaguardando assim a lei ordinária».56 O recurso, em sede inter-
pretativa, ao argumento originalista suscitou já no passado e continua ainda
a suscitar muitas discussões, que, no entanto, não poderemos abordar aqui
exaustivamente.57 Todavia, o recurso principal ao argumento sistemático,
ao argumento histórico e, em geral, à diretiva da coerência58 (cronológica e
topográfica) do sistema é, neste caso, consequente.

54
Neste caso, tem-se falado alternativamente de uma posição «intencionalista», «originalista»
ou «historicista». Em particular, Paulson (1998) prefere o termo «intencionalista», em vez
do termo «originalismo» preferido, por exemplo, por Brest, 1980 e por Scalia, 1988-89.
Dworkin, que estudou longamente o tema, utiliza «historicismo» (veja-se mais em Dworkin,
1986) e «originalismo» (veja-se, por exemplo, Dworkin, 2006, em particular as p. 117-139).
55
Tarello, 1980: 367. Veja-se ainda, também a partir da perspectiva do catálogo de Tarello,
Mauro Barberis, Pluralismo argomentativo. Sull’argomentazione dell’interpretação, in
http://www2.units.it/etica/2006_1/barberis.pdf.
56
Tripodina, Chiara, «L’argumento originalista nella giurisprudenza Constitucional in
materia di diritti fondamentali», Archivio di Diritto e Storia Costituzionali – Tecniche
interpretative della Corte Constitucional (www.dircost.unito.it/SentNet1.01/studi/Tripodina
_Argumento_originalista.pdf), p. 3.
57
Para uma análise exaustiva veja-se Chiara Tripodina, «L’argumento originalista nella
giurisprudenza Constitucional in materia di diritti fondamentali», cit. Para uma análise da
posição de Dworkin, Paulson, 1998. Veja-se Dworkin, 2006.
58
Entende-se aqui «diretiva» no sentido que lhe dá Chiassoni, 2004, incluindo o «cânone»
ou «argumento» interpretativo «da coerência» da disciplina jurídica (ou argumentum a
coherentia) entre las «diretivas de compatibilidade sistémica negativa», cuja função, enquanto
«diretivas secundárias», é disciplinar «o uso dos códigos (e/ou diretivas) primárias», entre
os quais Chiassoni inclui o «código» naturalístico («a uma disposição deve atribuir-se o
28 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Por sua vez, no seio desta mesma argumentação, a utilização do argu-


mento naturalístico parece ser ainda mais problemático. Por muito que,
apesar do papel visivelmente ancilar já aqui referido, pareça estar igualmente
inserido na mesma estratégia, lato sensu, conservadora, é notória, à medida
que se vai desenvolvendo a própria argumentação, uma dificuldade cada
vez maior, por parte dos tribunais, em recorrer explicitamente, ou mesmo
exclusivamente, a este tipo de argumento. Em relação a este, já aqui foi
mencionada a sua fraca carga persuasiva. Resta salientar a forma como essa
relativa fraqueza se funda também na sua cada vez menor capacidade de
resistência no tempo, evitando a produção de sentenças contraditórias no
período de poucos anos. Voltemos novamente ao exemplo da sentença 64 do
Tribunal Constitucional italiano, do dia 23 de novembro de 1961, comple-
tamente modificada apenas sete anos volvidos sobre a sentença 126, de dia
16 de dezembro de 1968, que reconheceu legalmente a inconstitucionali-
dade do adultério feminino, à luz do artigo 3 da Constituição (princípio de
igualdade), com uma rápida e apressada motivação, como se se desejasse
vincar a obviedade de tal decisão. Um outro exemplo, também ele de alguma
forma fundamentado no common sense, é-nos dado pela sentença através
da qual, em 1965, também o Tribunal Constitucional italiano se absteve de
considerar o crime de «incitamento a práticas contra a procriação» (art. 553
cód. pen.), ponto de partida para a criminalização de todas as propagandas a
práticas contracetivas, como contrário à liberdade de expressão, justificando-
-o, precisamente, com o limite dos «bons costumes» (Sent. 9/1965). Ao fim
de apenas seis anos (Sent. 49/1971) o Tribunal considerou ilegítima a dispo-
sição, justamente por haver um contraste com o art. 21 Const., sustentando
que o problema do controlo da natalidade tinha então, naquele momento
histórico, uma importância social de certa ordem e que, «de acordo com a
consciência comum e tendo em conta o progressivo alargamento da educação
sanitária», não permitia que se considerasse a publicitação dos contracetivos
uma ofensa aos bons costumes.59 O Tribunal Constitucional contrariou desta
forma a sentença precedente, recorrendo igualmente ao mesmo argumento
naturalístico e subentendendo-se de alguma maneira uma radical mudança

significado sugerido pela «natureza» das «coisas» ou da «relação regulada» e as várias versões
de interpretação psicológica. Tal diretiva «impede que se retirem apenas das disposições,
como seus significados considerados corretos, normas explícitas que sejam logicamente
incompatíveis com outras normas – formalmente, ou então axiologicamente – superiores do
sistema» (veja-se, em particular, as p. 67, 69 e 76-78).
59
«Il problema della limitazione delle nascite ha assunto, nel momento storico attuale, una
importanza e un rilievo sociale tale, ed investe un raggio di interesse così ampio, da non
potersi ritenere che, secondo la coscienza comune e tenuto conto del progressivo allargarsi
dell’educazione sanitaria, sia oggi da ravvisare un’offesa al buon costume nella pubblica
trattazione dei vari aspetti di quel problema» (Corte Costituzionale della Repubblica Italiana,
Sentenza 49/1971, Punto 3, Considerato in diritto).
seção 1 – filosofia jurídica e social 29

(que não havia sido justificada ulteriormente) da «consciência comum», no


espaço de seis anos.
Deste ponto de vista, a estratégia argumentativa do tribunal português
pôde ser posta em prática com mais facilidade. Não faltam, também neste
caso, ambiguidades, assinaladas pela presença do argumento naturalístico,
que parece querer sugerir uma posição ainda mais rígida do que as posições
entrevistas pelas considerações de tipo histórico-sistemático, mesmo que
deixando a estas últimas, como já vimos, uma substancial proeminência.
Ainda mais ambígua parece ser a posição do Tribunal Constitucional italiano,
ligada por um lado à referência à «sociedade natural», contida no artigo 29 da
Constituição, interpretado restritivamente e, por outro, à vontade, em prol de
uma sensibilidade mais conforme à contemporaneidade, de uma não «crista-
lização» do conceito de família. E é precisamente em volta desta metáfora da
«cristalização» que se concentram as principais ambiguidades da sentença do
Tribunal italiano. O recurso, mesmo que en passant, ao argumento naturalís-
tico, ao tema da «tradição», da «natureza das coisas» e do «senso comum»,
revela-se neste sentido significativo. Com efeito, por razões estratégicas e
retóricas, o Tribunal Constitucional italiano evitou enfatizar excessivamente
o argumento naturalístico, afirmando explicitamente o seu desejo de não
querer cristalizar o conceito jurídico de família, fazendo-o efetivamente
depois, mas através da utilização do argumento histórico, originalista e ainda
sistemático. Mas, acima de tudo, também este aspeto foi desenvolvido de
uma forma que, apesar de ter servido para ocultar ligeiramente o recurso
ao argumento naturalístico, não foi capaz de esconder de todo a verdadeira
influência deste mesmo argumento, e das suas implicações político-ideoló-
gicas, sobre os fundamentos da decisão. Estas posições, diga-se com clareza,
podem também ser consideradas legítimas, mas precisamente por esta razão
deveriam ser explicitadas, de forma a poderem desempenhar francamente o
seu papel no debate público.
Para nos atermos ao mesmo caso, vale aqui a pena fazer algumas consi-
derações acerca das motivações do juiz a quo e das referências feitas à locução
«sociedade natural», contida no artigo 29 da Constituição italiana. No âmbito
das motivações sublinha-se citando, entre outras, uma intervenção de Aldo
Moro na Assembleia Constituinte e invertendo assim, num certo sentido, o
argumento originalista, o modo como o significado da expressão «sociedade
natural» não significa «reconhecer o fundamento da família, dentro de um
não tão bem definido “direito natural”, mas sim afirmar a preexistência e
a autonomia da família – como comunidade originária e prejurídica –, do
Estado, impondo assim alguns limites ao poder do legislador estatal». Mais
apropriadamente, continuando as motivações da decisão do Tribunal de
Veneza, «o facto de a tutela da tradição não fazer parte das finalidades do art.
30 revista brasileira de filosofia – RBF 239

29 Const. e de a família e o casamento se apresentarem como instituições de


caráter aberto às transformações que necessariamente se vêm verificando na
história, é indubitavelmente demonstrado pela evolução que a sua disciplina
sofreu desde 1948 aos dias de hoje», considerando que «o Código Civil de
1942 acolhia um modelo de família baseado no casamento indissolúvel e
numa estrutura hierárquica de subordinação feminina».60 Resumindo, há
aqui uma conceção mais «evolutiva» do direito, baseada, num modo que
pode parecer inesperado, também neste caso sobre o argumento originalista,
desvinculado de todas as referências a características «naturais» da família.
A palavra «natural», aqui, seria o próprio núcleo familiar, sem mais especi-
ficações, enquanto «comunidade originária e pré-jurídica».
Diante da vontade afirmada, por parte do Tribunal Constitucional
italiano, em evitar uma «interpretação criativa», impõe-se uma pergunta:
qual das interpretações será a mais criativa, a interpretação do Tribunal de
Veneza ou a dos juízes constitucionais? Voltemos ao exemplo da sentença
sobre o adultério feminino. Qual destas duas decisões é a mais criativa: a
primeira, que liga «a afirmação da exigência da unidade familiar», contida
no artigo 29, à definição do primeiro parágrafo do mesmo artigo, da família
como sociedade natural, atribuindo aos constituintes a intenção de usar esta
definição sem «um preciso conteúdo jurídico» para reafirmar o «tradicional
conceito da família, que vive até hoje na consciência do povo», ou a segunda,
de acordo com a qual o adultério demonstra simplesmente «a efetiva rutura
de tal unidade, já que não se vê qual seja a razão da discriminação»? De
forma mais geral, um texto como o do artigo 29 da Constituição italiana, não
poderá ser reconhecido como um dos casos de «solução de compromisso [...]
sobre o enunciado normativo» identificados por Tarello, que, precisamente
devido à sua «interpretabilidade em sentidos diversos e contraditórios» se

60
Tribunale di Venezia, Sezione III civile, Ordinanza 3 aprile 2009 – Motivazione. É
este o passo de Aldo Moro referido pela sentença: «[la formula “la famiglia è una società
naturale”] non è affatto una definizione, anche se ne ha la forma esterna, in quanto si tratta in
questo caso di definire la sfera di competenza dello Stato nei confronti di una delle formazioni
sociali alle quali la persona umana dà liberamente vita». E ancora: «Non si vuole dire con
questa formula che la famiglia sia una società creata al di fuori di ogni vincolo razionale
ed etico. Non è un fatto, la famiglia, ma è appunto un ordinamento giuridico e quindi qui
“naturale” sta per “razionale”. D’altra parte non si vuole escludere che la famiglia abbia
un suo processo di formazione storica, né si vuole negare che vi sia sempre un più perfetto
adeguamento della famiglia a questa razionalità nel cono della storia; ma quando si dice
“società naturale” in questo momento storico si allude a quell’ordinamento che, perfezionata
attraverso il processo detta storia, costituisce la linea ideate della vita familiare. Quando sì
afferma che la famiglia è una “società naturale”, si intende qualche cosa di più dei diritti
della famiglia. Non si tratta soltanto di riconoscere i diritti naturali alla famiglia, ma di
riconoscere la famiglia come società naturale, la quale abbia le sue leggi ed i suoi diritti di
fronte ai quali lo Stato, nella sua attività legislativa, si deve inchinare».
seção 1 – filosofia jurídica e social 31

configuram, «na substância», como uma «delegação de poder normativo aos


operadores da interpretação, que poderão basear-se ou deixar-se convencer
pelos mais diversificados argumentos, à exceção do argumento relativo à
vontade psicológica do legislador histórico»? E, com efeito, poderia dizer-se
que os juízes constitucionais seriam passíveis de se convencer unicamente
com o argumento naturalístico. Mas, por que razão, tal não é afirmado clara-
mente? A argumentação teria sido certamente mais coerente, mas teria sido
igualmente mais persuasiva?
Chegados a este ponto, e sobretudo em casos como este, a questão
central parece ser o uso que os juízes constitucionais fazem dos argumentos.
Um uso que, vale a pena sublinhá-lo uma vez mais, parece ser eminente-
mente retórico.61 No sentido em que, especialmente na presença de questões
controversas, onde o caráter pouco claro ou determinado do texto a inter-
pretar (como no caso da definição de «sociedade natural», por exemplo, que
os próprios juízes constitucionais definiam na sentença de 1960 sobre o adul-
tério «sem um preciso conteúdo jurídico»), a finalidade persuasiva é frequen-
temente prevalente sobre qualquer outra consideração, onde está contida,
por exemplo, a coerência interna da argumentação. Usando duas metáforas
extraídas do léxico militar, poderá dizer-se que, por vezes, os juízes recorrem
a argumentos jurídicos como a artilharia recorre ao «tiro de granada»: não
apenas com um único golpe preciso sobre o objetivo, mas com um punhado
de projéteis destinados a atingir uma zona bastante mais ampla, na esperança
de que pelo menos um atinja o alvo. A quantidade de argumentos, já sem
metáfora, leva muitas vezes a melhor em relação à qualidade e, sobretudo,
em relação à íntima coerência entre ambas. Noutros casos, os argumentos
assumem, por sua vez, a função de «cortina de fumo», cuja finalidade é a
ocultação, por trás de argumentos de tom técnico-jurídico (coerência do
sistema, continuidade topográfica, referência aos trabalhos preparatórios...),
de decisões de caráter francamente político.
Mas, para além de tudo isto, o que nos sugerem realmente estes poucos
exemplos, acerca do uso que se faz em geral do argumento naturalístico, no
âmbito da argumentação jurídica? Tarello sublinhou, como já aqui foi notado,
o papel ancilar deste tipo de argumento e os exemplos que aqui trouxemos
demonstram bem o seu caráter gregário e, em particular, as suas cambiantes
na direção da interpretação dogmático-autoritativa evidenciada por Chias-
soni. Um argumento deste tipo, em síntese, necessita de ulteriores «diretivas
interpretativas», capazes de especificar o sentido de «natureza» por ele invo-
cado que, de outra forma, seria completamente genérico. O que dizer, então,
a propósito da sua «força persuasiva»? Esta é residual, sobretudo quando

61
Veja-se, sobre o uso retórico dos argumentos jurídicos, Diciotti, 2007 e 1997.
32 revista brasileira de filosofia – RBF 239

este tipo de argumento se aplica a relações ou instituições sociais, nas quais


é cada vez mais difícil individuar um núcleo «socialmente» partilhado (isto
se alguma vez foi fácil). Não se repete, nos dois exemplos que tomámos em
consideração, um recurso franco e óbvio ao argumento naturalístico, como
no caso da sentença de 1961 do Tribunal Constitucional italiano sobre o
adultério feminino. Pelo contrário, o que acontece é que os juízes consti-
tucionais italianos se sentem de alguma forma obrigados a sustentar a sua
própria posição com base em considerações de tipo naturalístico, dada a
peculiar formulação do artigo 29 da Constituição, pressentindo, ao mesmo
tempo, o risco de uma semelhante estratégia argumentativa, ocultando-as
assim numa estrutura argumentativa com uma aparência mais técnico-jurí-
dica, fundada em considerações de ordem sistemática, histórico-jurídica e
«originalista». Por outro lado, os juízes constitucionais portugueses, apesar
de poderem efectivamente prescindir de qualquer referência a questões de
ordem «naturalística», não evitam uma menção – mesmo que no contexto de
uma argumentação, também aqui principalmente inspirada por argumentos
históricos, sistemáticos e psicológicos – à «radicação» do conceito de família
(heterossexual) na comunidade. É como se sentissem que, tratando-se de
temas deste tipo, o argumento naturalístico – mesmo que acabando por
fazer um acréscimo do caráter ambíguo e contraditório da argumentação
(se o conceito está radicado na comunidade, então não são necessárias mais
justificações, nem históricas nem sistemáticas) – tem uma espécie de função
subsidiária: já não um provável papel persuasivo central, capaz de construir
toda a argumentação em seu redor, mas sim o papel de um argumento entre
os tantos possíveis para amparar eventuais contra-argumentações. Voltando
às nossas metáforas militares, poderá dizer-se, forçando um pouco, que o
Tribunal Constitucional italiano escolheu a técnica da cortina de fumo e que
o português escolheu a técnica do tiro a granada. Isto no que concerne a sua
força persuasiva.
Por fim, em relação ao caráter geral que este imprime à argumentação,
talvez valha a pena recordar, para encerrarmos, o que Giorgio Pino sugeriu.
Se, por trás do argumento naturalístico se esconde nada mais do que uma
«argumentação ético-normativa»,62 talvez seja melhor que esta argumen-
tação ética substancial viesse a ser explicitada. Diversamente, a impressão
que permanece é que se esconde por trás da suposta recusa de uma «inter-
pretação criativa», uma intervenção ainda mais criativa, por estar marcada
pela qualificação de «naturais» atribuída a determinadas características
próprias de relações ou instituições sociais: atribuição cuja validade, ainda
por demonstrar, permanece subentendida e não ulteriormente justificada. O

62
Pino, 2009: 160.
seção 1 – filosofia jurídica e social 33

risco, enfim, será que, pelo menos deste ponto de vista, a impotência do
legislador acabe por esconder uma certa omnipotência do juiz.

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34 revista brasileira de filosofia – RBF 239

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Multiculturalismo,
identidad y derecho1*

Raffaele De Giorgi
Professor Titular de Filosofia do Direito e Sociologia do Direito.
Diretor do Departamento de Ciências Jurídicas da
Università del Salento, Lecce, Itália.

Resumo: Cultura e culturalismos são vínculos com o passado. Uma


sociedade que tem necessidade de buscar vínculos com o futuro, como
a presente, encontra reafirmação na reativação semântica do passado.
Constrói-se uma artificialidade que, juntamente com a técnica de identi-
dade, afasta o outro. E o outro pode certamente ter a face do futuro que
se aproxima. Como o direito é um sistema particular que constrói vínculos
com o futuro, distribui diferenças no acesso à comunicação social. Isso
reconstrói a alteridade. Então, estas condições de cultura e identidade
delimitam a potencialidade evolutiva de uma estrutura da sociedade que,
em sua dimensão temporal, está condicionada pela presença de passados
e técnicas que, mantendo o afastamento, utilizam um modo particular de
distribuição de diferenças. E a sociedade precisa construir esses vínculos,
pois, sem eles, não poderia entrar em contato consigo mesma.
Palavras-chave: Cultura – Identidade – Direito – Multiculturalismo.

Abstract: Culture and culturalisms are links to the past. A society that
needs to seek links with the future, such as the present one, finds reassur-
ance in the semantic reactivation of the past. An artificiality that, together

Título original del texto en italiano Multiculturalismo, identità, diritto. Traducción por
1 *

Javier Espinoza de los Monteros (Investigador de la Suprema Corte de Justicia de la Nación


(México).
36 revista brasileira de filosofia – RBF 239

with the identity technique, departs the other, is built. And the other may
certainly have the face of the future that is coming. As the law is a particular
system that builds links to the future, it distributes differences in the access
to social communication. It rebuilds otherness. Then, these conditions of
culture and identity delimit the evolutionary potential of society that, in
its temporal dimension, is conditioned by the presence of pasts and tech-
niques that, in keeping the segregation, use a particular way of distributing
differences. And the society needs to builds these links, because without
them it could not come in touch with itself.
Keywords: Culture – Identity – Law – Multiculturalism.

–I–

La sociedad contemporánea, la sociedad del mundo, ha puesto de


manifiesto la relación precaria de la racionalidad occidental con el tiempo.
Y debido a que la dimensión temporal de la producción de sentido en esta
sociedad es la dimensión más relevante, la precariedad de esa relación actúa
de un modo particularmente amenazante sobre la estructura de esta sociedad.
Como no hay más tiempo para el telos (τελος) de aquella racionalidad, así
en su horizonte no se encuentran recursos que puedan ser utilizados como
semánticas capaces de proporcionar descripciones adecuadas de las trans-
formaciones que realizan las improbabilidades estructurales de la sociedad
contemporánea. Se han realizado desconciertos tan relevantes que las descrip-
ciones de las que disponemos en verdad parecen ser, como se les llamaba en
1800, herramientas de museo. El presente está inundado de variaciones así
de imprevistas, vastas y universales, que reducen más rápidamente de cuanto
no se puede observar su duración, sin que la desestabilización del viejo orden
pueda ser recogida y observada adecuadamente. Es así que la riqueza de
alternativas estructurales se convierte en una amenaza que incumbe sobre la
constitución del presente. El término más difundido es crisis. Pero crisis no
es un indicador para la investigación de soluciones; es sólo un nombre gené-
rico que reenvía a la incapacidad del observador de proveer una descripción
plausible de aquello que observa. Esto es, de indicar cuál es la distinción
que él usa para describir aquello que observa indicando el resultado de la
diferencia. En otras palabras, crisis no es un significado, pero sí el nombre de
un límite de la observación. Y entonces no se alcanza a comprender qué cosa
está en crisis cuando una sociedad está en crisis.
A estas condiciones de precariedad la racionalidad occidental reacciona
en modo particular: ella se pone a sí misma al reparo, busca protección en el
ámbito de sus viejas invarianzas, ya no más en sus antiguas ontologías, sino
en sus antiguas estabilidades, en aquellas que inauguraron el Iluminismo y
que la razón romántica estilizó con refinada y después con decadente exac-
titud: pensamos en el sujeto, en el individuo, en la identidad del sí mismo,
seção 1 – filosofia jurídica e social 37

y a su clausura, al pueblo, finalmente a la cultura. Pero también a la auten-


ticidad, a la reflexión. De frente a estas invarianzas, la contingencia viene
representada como incumbente amenaza de los salvajes, frente a los cuales,
los nuevos bárbaros de la vieja racionalidad, reaccionan con la oleográfica
promesa de un futuro que no puede comenzar jamás porque se ha consumado
desde siempre (Schiller, Sobre la educación estética de la Humanidad).
Los observadores del mundo de la sociedad del mundo continúan
hablando la lengua de Königsberg. La expresión de Nietzsche parece parti-
cularmente apropiada para introducir nuestras reflexiones sobre el tema que
ha sido propuesto y que trataremos de observar a la luz de esta precariedad
de que hemos hablado. La lengua de Könisberg, es la lengua de Kant y
kantiano es el orden del mundo del multiculturalismo, de las identidades y
del derecho. Parece la trama de un cuento que debe ser presentado a oyentes
poco convencidos del hecho que eso pueda suscitar interés. Y, en efecto, su
escepticismo es comprensible si ellos están interesados en la descripción de
la realidad del presente. Porque también este relato de la precariedad, como
todas las obras literarias, no describe realidad, mas habla sólo de sí. Una
historia es su misma realidad: exactamente por esto, ella puede ser contada
en diversos modos. Y es esto lo que queremos hacer, propiamente. Existe,
sin embargo, una consideración que creemos necesario recordar. Se trata de
esto: también cuando habla de sí, un relato produce sentido y la semántica
de la sociedad es una construcción de sentido que produce aquello que usa
como realidad: en este sentido, produce realidad. Y es esto aquello a lo cual
nos referimos cuando decimos: realidad del presente.

- II –

Cuando se dice multiculturalismo se entiende una realidad que existe


o que se intenta construir y que es caracterizada por la simultánea presencia
sobre un mismo territorio de culturas diferentes. Y porque no se considera a
esta condición como un hecho natural, sino como el resultado de una ocupa-
ción, como un contexto que resulta amenazante o como un contexto que se
intenta realizar en modo de controlar su potencial explosivo, entonces se
justifican las preocupaciones políticas y las construcciones sociológicas. Esto
está ligado al hecho de que cultura está ligada a pueblo, a gente, que estos
nombre colectivos son ligados a nación y nación a territorio.2 Hay naciones
en las cuales una condición multicultural existe, ha sido considerada en las
constituciones, ha tomado forma en la coexistencia política y jurídica de

2
Existen nociones en las cuales una condición multicultural se ha estabilizado, ha sido
objeto de sedimentación constitucional, tiene su forma en la coexistencia política y jurídica
de referencias que se totalizan como originarias y por eso justificadas.
38 revista brasileira de filosofia – RBF 239

diferencias que se consideraban originarias y por esto justificadas. Aunque


si siempre ha habido jerarquía, en algunos casos represiones más o menos
violentas, marginación y aislamiento petrificante, en el presente está garan-
tizado un tratamiento jurídico igualitario, y existen situaciones en las que a
través de tratamientos jurídicos de privilegio se intenta evitar la extinción de
las culturas, como se dice, o de algunos caracteres de su propia expresión.
Este universo que en el curso de los últimos dos siglos, sin encambio, se
ha estabilizado, en el cual, por el propio efecto de la estabilización se han
podido organizar reclamos de más alto grado de reconocimiento, es muy
distinto de aquellos contextos territoriales en los cuales las diferencias han
continuado y continúan siendo reprimidas y negadas con la violencia de las
armas y la barbarie del derecho.
Los Balcanes, la Chechenia, el Tíbet, algunas organizaciones tribal-
estatales del África, constituyen solamante manifestaciones recientes de la
tragedia que la eticidad del Estado continuamente representa en su encarna-
ción con el poder. Esta tragedia es, por así decir, normalizada, en el sentido
que nosotros la percibimos como a distancia, como algo que está lejano no
sólo en el espacio, sino también en el tiempo. Ella constituye ahora ya una
costumbre visual y lo que cae continuamente bajo los ojos no es digno de
relieve. Aquello que interesa es otra cosa. Y, en efecto, cuando se habla de
multiculturalismo o de sociedad multicultural, el objeto del discurso es otro.
Aquí en América Latina se refiere en prevalencia a los problemas ligados
a la cultura de los pueblos indígenas y a las modalidades de su tratamiento
jurídico, a los espacios de autonomía que les deben ser atribuidos y, como
consecuencia, a los límites de las formas de inclusión que aparecen como
necesarias y tolerables, dependen de quién sea el observador. El problema
no es nuevo, ciertamente. Digamos que la percepción de su relevancia ha
cambiado en los últimos decenios. Mientras que en el pasado han sido prac-
ticadas con suficiente desenvoltura y con suficientes diferencias entre país y
país, políticas de aculturación violenta, de inclusión marginalizante, de aisla-
miento, de periferización, de clausura museal, recientemente, en cambio, el
lenguaje de los movimientos de protesta ha hecho posible universalizar la
condición de los pueblos indígenas, como la condición de aquellos que son
otros y que requieren el reconocimiento. Su propia cultura, y la cultura de
la nación, una frente a la otra: una asimetría inmanente, tanto frente a la
pretensión como al hipotético reconocimiento.
Pero más allá de estas consecuencias históricas que el poder moderno
trae consigo y que permiten ver cuánta grosería, cuánta violencia y cuanta
barbarie no está condensada en la invención de la soberanía del pueblo y de
la Constitución, existe un fenómeno reciente que constituye el motivo real
por el cual el tema del que nos ocupamos ha devenido un tema universal.
seção 1 – filosofia jurídica e social 39

Esto es particularmente importante en Europa, pero también aquí y en


partes de Asia, aunque en menor medida. Masas inmensas de migrantes se
desplazan de un continente a otro, ocupan barrios abandonados, acampan
en las tierras de los latifundios, viven confundiéndose con la vegetación,
ocupan los puertos, los vertederos, las vitrinas y las aceras. Hay olas de
legalidad y vórtices de ilegalidad, existe uso de los cuerpos y consumo de
la capacidad cognitiva, son no-personas que circulan como mercancías de
recambio y no-personas constreñidas por el derecho a no existir. Europa es
ahora consciente del hecho de que sus Estados-nación son atravesados por
estos ríos de cuerpos, de personas, de no-personas, ve que estos flujos son
ahora parte de su territorio y reacciona con las técnicas inventadas por la
vieja racionalidad occidental. Al mismo tiempo, sin embargo, no puede pasar
por alto – así como otros continentes no han sido capaces de hacerlo en el
pasado e incluso ahora – el hecho de que sectores enteros de su economía
sobreviven por la presencia de estas multitudes y que junto a la economía
legal, estas multitudes sostienen la expansión de una economía ilegal en la
cual vegetan florecientes la delincuencia organizada e individual, la corrup-
ción, la extorsión y otros delitos, públicos y privados. Control de los flujos,
restricciones a la libertad de circulación, rechazos humanitarios, para usar
un piadoso eufemismo inventado por la xenofobia lamentable de la política
italiana, introducción del delito de inmigración ilegal, todo esto deviene
mostrado como una política de migración. Todo esto, sin embargo, cierta-
mente no impide ver que las plazas, calles, escuelas, áreas inhabitables, están
ocupadas por otros. El otro es visible, existe, está ahí, más precisamente en
su ser otro, en su presentarse, manifestarse como otro, como cuerpo, como
vida.

- III –

La primera reacción fue aquella de tratarlos como humanidad. Los


pueblos originarios, así como los cuerpos modernos exhibidos o las
no-personas son huellas de una humanidad casual, de una multiplicidad que
sale de las sombras y se deja ver. Hegel dijo que en la casualidad infinita
se debe mandar. La humanidad casual lleva impresa su provisoriedad, su
transitoriedad, su estar de paso por nuestros territorios. También pueblos
originarios están de paso por nuestras ciudades, en nuestras universidades,
tribunales, playas, supermercados. Y en cualquier caso tienen algo debe ser
salvado, atendido, curado. Su humanidad los hace como nosotros, aquella
humanidad es intangible, es sagrada; en su nombre puede cometer cual-
quier acto, cualquier brutalidad, a fin de salvar la esencia que está dentro
de nosotros. El Otro es Otro, su alteridad desfigura la esencia, la mete en
sombra y, en todo caso, aunque sea venta al por mayor de la naturaleza,
40 revista brasileira de filosofia – RBF 239

como dijo Schopenhauer, el hombre tiene su humanidad. A esta humanidad


se acerca el Occidente civilizado, piadoso, humano, precisamente. Y cuanto
más esta humanidad está alienada, como Marx pensaba, tanto más merece
ser preservada en su esencia. Una política compasiva incluye en sí misma
el tratamiento de las formas íntimas de la identidad del otro, lo que también
será otro, pero en su alteridad no deja de ser hombre. Y si la alteridad en su
diferencia se manifiesta como mala empiria, para usar otra vez las palabras
de Marx, como aquello que está lejano en su diferencia, la humanidad se
conserva para siempre. Y esta humanidad está incluida en la idea cristiana
de la fraternidad. Que aborda tanto la plenitudo entis, cuanto a su miseria,
sus defectos, sus privaciones, su corrupción. Como la nuda vita de la que
ha hablado Agamben, esta humanidad es potencia y debilidad. Es el dolor,
el sufrimiento, un estado de extrema necesidad. Pero en su esencia es la
dignidad y la libertad. Hace algún tiempo atrás los franceses han deportado
a los gitanos. Europa ha reaccionado y ha abierto contra Francia un proce-
dimiento de infracción. Se trata de observar si con su conducta ese país ha
violado las normas comunitarias sobre la libre circulación. En cualquier
caso, el principio de la libertad está a salvo. ¿Husserl no había dicho que los
gitanos deambulan como vagabundos por toda Europa? El problema surge,
precisamente, cuando se detienen.
La humanidad no es un espectro. Precisamente como humanidad casual,
los individuos son portadores del universal que es en sí y por tanto consti-
tuyen, no obstante su alteridad, la cual resta como alteridad, una manifiesta
referencia del nosotros que es tratado por los derechos humanos. Los cuales,
precisamente, son universales. Su universalidad, precisamente como la otra
universalidad de la cual es derivada, aquella del derecho natural, se afirma,
se reconoce, existe antes de observar las diferencias. Independientemente
de las diferencias. Estas últimas son tratadas por la política y, consecuen-
temente, por el derecho positivo. Los derechos humanos reproducen en sí
la humanidad en la universalidad que es en sí. El individuo, que por hablar
hegeliano, es humanidad por sí, es confiado al tratamiento que será consi-
derado en exterioridad, esto es, en su empírica alteridad. Las diferencias
se justifican por la universalidad de los derechos. Los cuales operan sobre
la base de la inclusión universal. Los cuerpos devienen individuos y los
individuos pueden ser objeto de imputación. La humanidad en sí civiliza la
humanidad para sí, las acciones pueden ser atribuidas a un titular que, así
civilizado, deviene sujeto, igualdad, libertad y Bentham, como se lee en una
famosa nota de un texto también famoso.
Sabemos que los sistemas sociales de la sociedad moderna encuen-
tran racional utilizar pequeñas desigualdades y amplificarlas a través de
su funcionamiento normal. Esto significa que cuanto más el presupuesto
seção 1 – filosofia jurídica e social 41

de la igualdad se convierte en un requisito del tratamiento de las desigual-


dades, tanto más éstas se expanden, y cuanto más esto sucede, tanto más
la normalidad del funcionamiento de los sistemas particulares las usa y las
incrementa. El gran problema de los principios son las diferencias. En un
pequeño opúsculo titulado “La humanidad multicultural”, encuentro citado
a Proudhon: quien habla de humanidad quiere engañarnos. Y encuentro que
también Carl Schmitt se había interesado en la fórmula. Personalmente, me
ocurre muy a menudo recordar una máxima de Novalis: la humanidad es un
rol humorístico. Durante veinte años he trabajado con mi maestro, Niklas
Luhmann, el cual no se cansaba de repetir que la teoría de sistemas es una
teoría radicalmente antihumanística.

- IV –

De acuerdo. Pero existe un lugar real de las diferencias, hay un espacio


en el que se determina el universalismo, se especifica, digamos, se mate-
rializa como diferencia, como “unidad colectiva” o “colectivo singular”.
Este espacio es el espacio de la cultura. Cultura es un concepto histórico,
como lo llama Luhmann, un concepto típicamente moderno que se afirma
en la segunda mitad del 1700, que tiene gran utilización en la reflexión
romántica y que en décadas más recientes ha tenido mucha fortuna. Cultura
viene entendida como fundamento simbólico del actuar, como universo de
significados que se manifiestan a través del comportamiento, pero también
como un complejo de significados que son atribuidos al comportamiento
de los observadores, los que se diferencian por su poder de atribución. Se
dice que en el conjunto de símbolos que permiten interpretar el actuar, el
individuo conquista y determina su identidad. Esto significa que en la cultura
el individuo puede identificarse a sí mismo y ser identificado. Leo en el opús-
culo citado: “Las culturas son lenguajes eficaces, son la forma expresiva y
organizativa, contingente, de identidades múltiples que no son totalmente y
solamente contenidas en la cultura, que la [i.e. aquella forma] exceden (...),
ellos mismos son poder. ... No [son] sólo un escudo defensivo con respecto
al poder “. (p. 73). Se trata de caracteres atribuidos y de funciones asignadas,
se trata, esto es, de construcciones del observador, que puede ser interno o
externo. En cada caso, la cultura se encuentra localizada, y territorializada y
encuentra su énfasis en la nación. En la sociedad del mundo estos complejos
simbólicos han roto las barreras de contención e irrumpen como presencias
amenazantes en la extensión estable de otras conexiones simbólicas que dan
fundamento a la acción. Países como Italia, que durante más de un siglo
vendieron sus campesinos y sus trabajadores, ven irrumpir mano de obra de
color, orientales dedicados a la ganadería, trabajadores africanos destinados a
trabajos degradantes y peligrosos, ucranianos, rumanos y búlgaros dedicados
42 revista brasileira de filosofia – RBF 239

a la asistencia, chinos dedicados al suministro de bienes intermedios a las


organizaciones criminales, trabajadoras sexuales provenientes del este y sur.
Un fenómeno que se puede observar en toda Europa con diferencias entre los
particulares países, que se puede observar de manera diferente en América
Latina y otras partes del continente. La cultura está en todas partes, todo el
mundo puede dejarse identificar e identificarse a través de su cultura. Estos
lugares de la identidad piden el reconocimiento. Es una necesidad, como dice
Taylor, que activa la política de multiculturalismo. De este modo se inicia
la carrera del concepto de multiculturalismo. Sus raíces se encuentran en el
hecho de que la identificación del otro, su ubicación no viene practicada en
base a la naturaleza o a la clase, como se decía antes, pero si en base a dife-
rencias observables. El idioma, la religión, las prácticas sociales, la densidad
de relación, el aislamiento. Europa, y consecuentemente el Occidente, descu-
bren que en todas partes del mundo hay culturas, complejos simbólicos que
hacen la diferencia. Descubren que es posible experimentar la trascendencia
en modos diferentes, pero que garantizan a la religión la cuestión de la tras-
cendencia, descubren que las mujeres pueden vestirse, tratarse, utilizarse de
forma diferentes pero que garantizan, sin embargo, a la mujer su función
de mujer, descubren que las relaciones familiares pueden ser reguladas de
diversas maneras, las cuales, sin embargo, garantizan al derecho su función.
Se abren así en los territorios impenetrables de las culturas enfatizadas
en el espacio de la nación, una extensión de senderos que se bifurcan: a lo
largo de cada sendero ser perfila y se justifica la distinción de la inclusión y la
exclusión. La cultura está siempre y en donde quiera. Cada cultura tiene por
objeto el reconocimiento. Todavía leo: “La dialéctica de la cultura significa
(...) que a través de la demanda de la identidad cultural se expresan exigencias
tanto subjetivas como objetivas; que en la afirmación identitaria se expresa la
voluntad de sentido de una colectividad en la búsqueda del propio ‘común’
pero también la voluntad de vida de los individuos singulares”. El conflicto,
la lucha por el reconocimiento deben ser canalizados a través del derecho,
esto es, deben obtener el reconocimiento ellos mismos. El derecho puede
canalizar a través del reconocimiento de la universalidad o mediante el reco-
nocimiento de la determinación. O reconociendo que los indios son hombres,
o también reconociendo a las prácticas mágicas naturaleza de religión y
atribuyéndoles un estatus especial que les garantiza la supervivencia. De
hecho, si miramos hacia el futuro, podemos esperar que otras comunidades
se europeicen, justamente en el interés de su propia autopreservación, mien-
tras que nosotros, como decía Husserl, si nos comprendemos bien a nosotros
mismos, de seguro no nos indianizaremos nunca. Existe la idea de la cultura,
entendida como el fundamento simbólico de la acción, como complejo de
significados intrínsecos al comportamiento, pero existe la cultura como
complejo de comportamientos cuyos significados son atribuidos por obser-
seção 1 – filosofia jurídica e social 43

vadores externos, los cuales se diferencian, precisamente, en virtud de su


poder de atribución. Existe la cultura como complejo de artefactos y existe
la cultura como complejo de apropiación de significados, de contenidos de
sentido, de habilidades cognitivas y prácticas.
Estos universos simbólicos y estos horizontes de comportamiento que
en los últimos dos siglos y medio fueron identificados, contextualizados y
delimitados dentro de espacios regionales, ahora han roto los bordes en los
que eran constreñidos e irrumpen en la sociedad contemporánea sin orien-
taciones, sin seguir las líneas a lo largo de las cuales se pueda pensar en
canalizarlos. Ellos penetran en los tejidos de las diferentes delimitaciones
regionales y se difunden como instalaciones amenazantes que pretenden
emerger como identidad. Percibidas como identidades que amenazan otras
identidades desencadenan una lucha por el reconocimiento. Pretenden
romper la dialéctica del amo y el esclavo y reclaman la misma dignidad.
Pero la igual dignidad se había atribuido a la persona, a las personas, como
se ha dicho, no a las culturas. ¿Cómo se puede reconocer igual dignidad a
las diferentes bases simbólicas de la acción?. Significaría volver a introducir
las viejas diferencias de estatus en la asignación de derechos y este retorno
al pasado ya no es posible. Y luego, cómo se puede reconocer dignidad a las
culturas que condensan significados del actuar como la de los vagabundos
gitanos recorriendo Europa, en palabras de Husserl, o que amenazan la iden-
tidad de la cultura francesa, como piensa el Presidente de la República de
aquel país, Francia, desde la cual los gitanos fueron deportados a sus lugares,
por así decirlo, ¿de origen? Pero como los gitanos son ahora europeos, a
diferencia de cómo fueron considerados durante el período nazi, no se trata
ya más de deportaciones, sino un caso de incumplimiento del principio o el
derecho de libre circulación de ciudadanos europeos dentro de Europa. Un
miserable eufemismo para reportar la identidad bajo la noble protección del
ordenamiento jurídico.
“La teoría de la justicia está atenta a las diferencias y sensible a las fron-
teras”, dijo un filósofo americano (Walzer). Que en otro trabajo suyo señaló:
“necesitamos tener un pasado y no sólo tener un futuro.” Y, en efecto, el gran
tema, multiculturalismo condensa en sí más que nada cuestiones relativas al
pasado que no problemas relativos al futuro”. Cuando menos indicaciones
útiles para que estos problemas puedan ser oportunamente formulados. La
etiqueta multiculturalismo esconde en su interior la cuestión: sociedad del
mundo; la cuestión: el otro, la cuestión: inclusión-exclusión. Ella trata todo
esto incluyendo la formulación del problema dentro de esquemas del siglo
XIX construidos sobre presupuestos kantianos de la autonomía moral de los
individuos, de su capacidad para identificarse dándose como una ley universal
la de la reciprocidad a través del reconocimiento de la propia dignidad.
44 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Ahora bien, estos esquemas ya se han realizado. Los principios sobre


los cuales fueron construidos han manifestado su formal vacío y permiten
ver que en ese vacío puede ser incluido cualquier contenido. Los princi-
pios del derecho esconden paradojas que no se pueden resolver, porque el
derecho se bloquearía a sí mismo. Así como el derecho no puede asegurar
identidad porque el derecho cancela las diferencias y allí donde no las
cancela, las construye en modo selectivo. Del mismo modo, no es posible
seguir pensando la construcción de la identidad como igualdad con ellos
mismos y con los demás como consecuencia de la reactivación del pasado.
Y, a continuación, este es el mayor problema. ¿Qué significa identidad de
las culturas diferentes? Lo que caracteriza a una cultura, dijo Derrida, es que
ella no es idéntica a sí misma. ¿Cómo pueden ser tratadas como idénticas las
culturas entre ellas si no son idénticas ellas mismas? E identidad qué quiere
decir: ¿tradición, presencia de lo que ha pasado, vínculo con el pasado? ¿Y
cómo todo esto puede ser estabilizado en una sociedad que busca vínculos
con el futuro? Cultura, como dice Luhmann es forma del sentido que se
produce en la recursividad de la comunicación social. Siempre puede ser
diferente de como es. A su vez, el derecho es una forma estable de trata-
miento de la contingencia. Su estabilidad, sea aquella de los principios, sea
aquella de sus especificaciones, tiene un carácter reflexivo, es decir, puede
ser transformada en base a derecho. Y entonces, ¿cómo es posible reconocer
identidad o construirla, a través de estas múltiples referencias a sí de carac-
teres contingentes? ¿Y cómo puede el multiculturalismo construir el espacio
político del reconocimiento de la identidad de múltiples contingencias?
Reformulamos el complejo de cuestiones que nos preocupan y que cons-
tituyen el marco conceptual que debe ser discutido. El multiculturalismo, así
parece, debería ser entendido como el carácter de una sociedad en la cual a
través del derecho se realizaría el espacio de garantía de las identidades a
través del reconocimiento de la igual dignidad de las culturas que aquellas
identidades rinden posible. Y esto significaría reconocimiento de estatus,
valores compartidos, diálogo, espacio comunitario, virtudes cívicas. Viene
en mente un jurista alemán del 800, el cual después de haber constatado que
la situación del presente era anárquica y bárbara, como en los tiempos de la
migración de los pueblos, se sintió capaz de pronosticar que, precisamente
como la cultura en sus progresos logró unificar en un único gran reino las
estirpes germánicas, así también la humanidad en su progreso habría logrado
asegurar a sus miembros, a los pueblos, una existencia segura y a recogerlos
en una gran comunidad del mundo. El derecho de los ciudadanos del mundo,
el jus cosmopiliticum de la «Paz perpetua» de Kant, es oportunamente refor-
mulado como jus hospitalitatis universalis. Con la excepción de los gitanos
en Francia e Italia. Los cuales, a pesar de haber sido deportados, deben seguir
siendo considerados ciudadanos autónomos y libres, según Habermas. Autó-
seção 1 – filosofia jurídica e social 45

nomos en cuanto como «destinatarios del derecho, también pueden ser consi-
derados como los autores del mismo». Estos autores son «libres en cuanto
toman parte en los procesos legislativos que son regulados de tal manera, y
se llevan a cabo en formas comunicativas tales, de hacer creer que a todos las
reglas establecidas son merecedoras de aprobación general y racionalmente
motivadas». Esto se conoce como concepción jurídica procedimientalista.

-V–

Hemos iniciado nuestras reflexiones con la referencia a la relación


precaria que la racionalidad occidental tiene con el tiempo. Una precariedad
que deriva del hecho que viejas estabilidades naturales no funcionan más,
que viejas construcciones del orden social ligadas al pasado no son más
plausibles, mientras nuevas perspectivas, sustitutos funcionales de aquellas
universalidades no parecen perfilarse en el horizonte de la temporalidad del
presente.
La sociedad moderna está abandonada a sí misma y se confronta conti-
nuamente con las improbabilidades estructurales que ella con la evolución
ha adquirido para sí misma. En este abandono la sociedad experimenta
con sí misma, ella aprende de sí misma, mientras las semánticas a través
de las cuales se describe siguen a distancia de tiempo las transformaciones
estructurales.
Mientras aprende de sí misma, la sociedad expone a la evolución su
evolución. Esto es, se expone al futuro. Y propiamente el futuro, esto es,
el tiempo en el cual la sociedad proyecta las experimentaciones que ella
hace consigo misma, la dimensión del sentido en el cual la sociedad busca
vínculos para poder orientar al presente. En esta dimensión la precariedad del
reporte de la razón con el tiempo, deviene manifiesta. Y es en esta dimensión
que «cultura» como concepto histórico hace manifiesto su límite y su insu-
ficiencia. Ella puede proveer sostén, pero los vínculos que hace disponibles
son vínculos del pasado, no del futuro.
En el repertorio de invarianzas que la semántica de la sociedad moderna
tiene todavía a disposición, cultura parece utilizable porque ella es una arti-
ficialidad que puede ser tratada como natural. Ella aparece entonces, natural
al mismo tiempo como contingente y como necesaria. Y además, habiendo
sido inventada como recurso semántico para ser utilizado para la compara-
ción con ella, incluso no siendo un concepto jerárquico, posee inmanente
la jerarquía: ella siempre deja emerger la diferencia de lo que se cree poder
tratar como idéntico: las culturas pueden ser tratadas como idénticas precisa-
mente porque son diferentes. No sólo: el tertium comparationis, la perspec-
tiva desde la cual se hace una comparación es, por supuesto, la cultura. La
46 revista brasileira de filosofia – RBF 239

comparación entre las culturas es motivada por intereses culturales. Cultura


permite duplicar la observación: cada observación de un fenómeno cultural
es cultura. Por debajo de las determinaciones identitarias, como se dice, está
el universalismo de un observador que no distribuye bienes, como también
se dice, pero si diferencias. De estas diferencias atribuidas se debe ocupar el
derecho.
Las determinaciones identitarias de las culturas no son solamente
resultado de la convergencia de observaciones externas del actuar: ellas son
también el resultado de la representación de la diferencia construida en el
interior. Incluso los individuos se identifican en virtud de su pertenencia a
una cultura. Se diría que la cultura como observador de segundo grado, opera
de cualquier modo y siempre.
Y esto no ciertamente porque ella representa un privilegio o una
realidad, digámoslo así, de nivel superior. Esto depende, en vez, sea del
hecho de que la cultura duplica todo, es esa misma duplicidad que lleva a
la sociedad a comunicar a los dos niveles del actuar y de la observación del
actuar. Pero también depende del hecho de que la representación de la perte-
nencia cultural indica al presente como representación del pasado, como
sedimento, como historia, como continuación. Un pasado que está destinado
al olvido, un pasado que no tiene origen, y, por tanto, que no tiene duración,
si es presentado como presente, entonces hace posible una conexión con el
futuro. Identidad es esta distinción, esta expansión, esta amplificación: como
dice Luhmann, identidad es una prestación particular, que tiene a distancia
lo otro, que conserva la diferencia, que evita confundirse con el ambiente.
Mantener a distancia, esto significa identidad.
Nuestro problema, entonces, se pone en estos términos: la cultura y los
culturalismos constituyen vínculos del pasado. Una sociedad que tiene nece-
sidad de buscar vínculos con el futuro, como ésta del presente, encuentra
reaseguros en la reactivación semántica de la presencia del pasado. Ella se
construye una artificialidad que, junto a la técnica de la identidad tiene a
distancia al otro. Y el otro puede tener, sin más, el rostro del futuro que le
incumbe. Mientras el derecho que es un sistema particular que construye
vínculos con el futuro distribuye diferencias en el acceso a la comunicación
social. Éste reconstruye alteridad. Y entonces: a estas condiciones cultura
e identidad delimitan la potencialidad evolutiva de una estructura de la
sociedad que en la dimensión temporal está condicionada por la presencia de
pasados y de técnicas del mantener a distancia que usan un modo particular
de la distribución de diferencias. En realidad, a través de estos dispositivos
la sociedad controla la consistencia de las operaciones de su estructura,
controla las improbabilidades evolutivas a las cuales se expone y se asegura
estabilidad. Ella, sin embargo, inhibe así funciones que le permitirían usar
seção 1 – filosofia jurídica e social 47

propiamente aquellas improbabilidades para inventar nuevos modos de cons-


trucción de vínculos con el futuro. Y la sociedad tiene necesidad de construir
estos vínculos, sin ellos no podría entrar en contacto consigo misma.
Ahora estas funciones son activadas en la estructura de la sociedad,
pero también en la estructura de cada sistema social, como funciones de
memoria. A través de su memoria el sistema de la sociedad desactiva el
pasado como presencia, porque si no hiciese esto, correría el riesgo de tener
el final de Funes el memorioso, como bien sabía Borges. A través de su
memoria, que es entonces la función de olvidar, el sistema de la sociedad se
construye temporalidad en cuanto ello interactúa con sus propios estados y
pone en correlación las relaciones que ello produce.
El sistema se especializa en la práctica de las distinciones y así puede
reconocerse a sí mismo, construir futuro, extender y controlar el tiempo. Si el
problema de la sociedad contemporánea es el futuro, entonces, a través de su
memoria ella se puede exponer a la evolución su evolución. Esta sociedad es
sociedad del mundo. Esa es la única sociedad que tenemos. Todo aquello que
existe en ella viene producido, adquiere la forma de producción de sentido.
Es sentido es determinación que reenvía a otras infinitas posibilidades.
Mundo es el horizonte de las posibilidades que están siempre abiertas y
pueden siempre ser utilizadas. La experiencia del mundo es experiencia de
la contingencia del mundo, esto es, de la posibilidad del otro: esto es, de otro
sentido, de otras referencias de sentido. Las improbabilidades evolutivas, son
nuevas, impensables horizontes que se abren en el horizonte. Aunque ellos
se expanden con la sociedad. Y entonces, si estos horizontes se constituyen a
través de la experiencia interior, ello significa que ella es experiencia interior
de las posibilidades de constitución del horizonte de otras experiencias inte-
riores. Aquello que llaman sujeto es solamente la representación consciente
del límite interno de la constitución del mundo. El otro es correlato de esta
constitución. La sociedad del mundo puede representarse los sujetos sólo
como otros sujetos. Ella es sociedad del otro, del ser otro, de la constitución
del sí a través del otro. En este sentido esta sociedad es abierta, no cier-
tamente en el sentido tradicional del término. Pero en este sentido ella es
sociedad del futuro: ella aprende de sí a través de la mirada, a través de la
presencia constitutiva del otro.
Si no alcanzamos a des-concretizar el mundo continuaremos viendo
gitanos e indios. La memoria de la sociedad, esta función de control de
la consistencia de las operaciones, a diferencia de su sustituto, la cultura,
desplaza la centralidad de las estructuras normativas hacia estructuras cogni-
tivas de la producción de sentido. Esto significa que siempre más futuro es
posible y que el vínculo de este futuro que la sociedad encuentra racional
48 revista brasileira de filosofia – RBF 239

utilizar es el riesgo. En este sentido la multiplicación de las alteridades incre-


menta las alternativas posibles, esto es, los posibles horizontes de elección.
Y entonces no tiene verdaderamente sentido musealizar al otro en el espacio
de la cultura. Las comparaciones entre culturas miran al pasado. El problema
no es el reconocimiento de las culturas, sino el reconocimiento interior del
otro. Y así también el derecho reconquista una función. Es la función de
distribuir el riesgo. Como sistema inmunitario de la sociedad, el derecho
impide que el acceso del otro a la comunicación social sea afianzado a las
memorias específicas de los sistemas sociales particulares y lo hace en modo
que ello sea atribuido de tal modo de controlar la exclusión que es inmanente
a cada inclusión. El derecho no distribuye recursos, como se dice, él controla
consecuencias de la exclusión de recursos que son el correlato de la inclusión.
Es así que éste puede controlar sus mismos defectos de construcción. En la
sociedad del mundo hay demasiado futuro como horizonte del presente para
que esta sociedad pierda tiempo con el pasado. Así como nosotros no somos
ciudadanos de un «mundo hospitalario», sino somos el otro de la experiencia
interior del otro. Todavía el mundo, todavía el buscar perplejo donde no hay
nada. Sólo ruinas circulares.
A comunicação do poder
em Niklas Luhmann1

Rafael Simioni
Doutor em Direito. Professor do Programa de Mestrado em Direito da
FDSM. Pesquisador Líder do Grupo de Pesquisa Tertium Datur
(PPGD/FDSM). Bolsista Capes em estágio pós-doutoral na Faculdade
de Direito da Universidade de Coimbra.

Resumo: O poder pode ser entendido sob várias perspectivas teóricas


diferentes. Na perspectiva da teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, o
poder é um tipo especial de comunicação que produz vinculação de ações
e decisões e que acontece em todos os âmbitos de comunicação da socie-
dade. Essa perspectiva se torna interessante para o direito, especialmente
porque ela vai muito além da ideia de poder como um recurso político dos
Estados nacionais. O poder acontece em todas as formas de comunicação
social que fazem referência ao seu código. Mas uma objeção pode ser feita
a essa perspectiva, quando trabalhada no contexto do código do sistema
político da sociedade: como pensar suficientemente a política mundial
sob o código da diferença entre situação e oposição se esse código
estrutura mais o âmbito interno das organizações internacionais do que a
comunicação internacional do poder? Por isso, a diferença entre decisores
e afetados pela decisão parece complementar a intelecção do poder no
campo das políticas mundiais.
Palavras-chave: Poder – Política – Meio de comunicação – Teoria dos
sistemas – Niklas Luhmann.

1
Pesquisa realizada no âmbito do projeto Decisão Jurídica e Democracia, do Grupo de
Pesquisa Tertium Datur (PPGD/FDSM), com apoio do CNPq.
50 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Abstract: The power can be understood on different theoretical perspec-


tives. From the perspective of Niklas Luhmann’s systems theory, the power
is a special type of communication that produces linkage of actions and
decisions and what happens in all areas of communication in society.
That prospect is important to the law, especially because it goes beyond
the idea of political power as a resource of national states. The power is in
all forms of social communication that make reference to your code. But
an objection can be made to this view, when worked in the code of the
political system of society: how the political world think enough under
the code of the difference between situation and opposition? Is under the
code structure more internal place of international organizations. So the
difference between decision makers and affected by the decision seems to
complement the intellection of power in the place of world politics.
Keywords: Power – Political system – Medium of communication –
Systems theory – Niklas Luhmann.

1. Introdução

O poder pode ser entendido sob diversas formas. Parsons via o poder
como um meio de intercâmbio simbólico entre o sistema das sociedades e
as ações sociais.2 Giddens também vê o poder como um meio, «um meio
de conseguir que as coisas sejam feitas».3 Também Habermas possui uma
importante concepção de poder, como um meio de integração sistêmica sob
tensão em relação à integração social,4 de modo a submeter as pretensões de
poder por pretensões de validade racionalmente justificáveis.5 Weber, Marx,
Freud, Castoriadis, Foucault, Bourdieu: todos desenvolveram perspectivas
teóricas importantes a respeito do conceito de poder.
Desde os gregos, em cada paradigma, em cada uso de uma diferença
diretriz, pode-se redescrever uma diversidade de conceitos de poder que
atualmente parecem irreconciliáveis. Mas de todas as perspectivas possíveis

2
Cf. Parsons, 1968: 306: «Power is here conceived as a circulating medium, analogous
to money, within what is called the political system, but notably over its boundaries into all
three of the other neighboring functional subsystems of a society (as I conceive them), the
economic, integrative, and pattern-maintenance systems.»
3
Cf. Giddens, 1991: 161.
4
Em uma perspectiva evolutiva, Habermas observa, por exemplo, a «origen de un orden
político que organiza una sociedad de manera tal que sus miembros pueden pertenecer a
diferentes linajes. La función de la integración social pasa del sistema de parentesco al
sistema político. La identidad colectiva ya no se incorpora en la figura de un antecesor
común, sino más bien en la figura de un gobernante común» (cf. Habermas, 1996: 106).
5
Cf. Habermas, 1988: 387; e Habermas, 1988: 168. Para Habermas, a ação comunicativa
não desempenha uma pretensão de poder, mas uma pretensão de validade. E isso significa que
a ação comunicativa pode dispensar a sanção como elemento motivador da sua aceitação.
seção 1 – filosofia jurídica e social 51

do entendimento do poder – e renunciando a uma tentativa de unificação


conceitual –, nesta pesquisa nós queremos estabelecer um tipo de observação
diferente. Ao invés de se perguntar pelo «o que é o poder», na perspectiva da
teoria dos sistemas de Niklas Luhmann nós podemos perguntar pelo como
ocorre uma operação de poder.
Trata-se, portanto, da pretensão teórica de observar como ocorrem as
comunicações de poder na sociedade moderna. Isso significa: renunciar a
pretensão de (poder) simbolizar uma unidade da multiplicidade de perspec-
tivas do poder e procurar observá-lo lá no lugar da sociedade onde ele acon-
tece: a comunicação.6 Pois pretender uma unificação conceitual do poder já é
uma pretensão de poder – exatamente aquilo que Pierre Bourdieu chama de
«poder simbólico».7 Sem fechar outras possíveis vias críticas a respeito do
poder, portanto, optamos pela perspectiva de Niklas Luhmann: o poder na
forma de comunicação.
Essa perspectiva abre uma via crítica importante para o direito, espe-
cialmente porque a concepção do poder como uma forma especial de comu-
nicação permite entende-lo de modo muito mais abrangente do que o caso
especial do poder político organizado na forma dos Estados.8 No âmbito da
teoria dos sistemas de Niklas Luhmann, o poder acontece em todas as relações
de comunicação da sociedade. Não se trata apenas de um recurso do poder
político. Tampouco está ligado a ações baseadas em coações irresistíveis. O
poder está exatamente na conexão entre ações, decisões ou comunicações
sociais. O exercício de atos de poder acontece na forma de um tipo especial
de comunicação que vincula as comunicações ulteriores de um modo muito
mais sutil – e muito mais ideológico – do que as teorias críticas da década de
70 puderam observar. A obediência ao poder, nessa perspectiva teórica, está
na própria seletividade de uma forma especial de comunicação que vincula.
No que segue, enfrentar-se-á a conceitualização do poder na pers-
pectiva teórica de Niklas Luhmann, contextualizando as esquematizações
teóricas com as políticas mundiais de energia, como forma de aproximação
dos conceitos à sua possibilidade de intelecção prática.
Importante salientar que o poder, na teoria dos sistemas de Niklas
Luhmann, não constitui um sistema da sociedade. O poder é um meio de
comunicação simbolicamente generalizado, que disponibiliza à sociedade
uma forma específica de comunicação para resolver o problema social de
coordenação de ações. Com base no desenvolvimento desse meio de comu-

6
Luhmann, 1998, vol. 1: 158: «Und wenn die Gesellschaft aus der Gesamtheit aller
Kommunikationen besteht, ist die übrige Welt zur Sprachlosigkeit verurteilt.»
7
Bourdieu, 2006: 9.
8
Luhmann, 1993: 407.
52 revista brasileira de filosofia – RBF 239

nicação simbolicamente generalizado, na modernidade estruturou-se um


sistema de comunicação operativamente fechado, dotado de autopoiese,
que é o sistema político da sociedade. Política e poder, portanto, são coisas
diferentes na modernidade. O poder é o meio de comunicação que estrutura
o sistema político da sociedade. Assim, a política opera de modo recursivo
com base no poder, ao mesmo tempo em que o poder disponibiliza as formas
de comunicação do sistema político.
Para os objetivos desse texto, trabalharemos apenas com os aportes
da teoria dos meios de comunicação simbolicamente generalizados. E esse
nível da teoria foi muito mais desenvolvido por Luhmann nas décadas de
70 e 80 do que nos seus últimos trabalhos da sua teoria da sociedade. De
qualquer modo é importante ter presente que o poder, enquanto meio de
comunicação do sistema político, não é um recurso social exclusivo do poder
político estatal.
Política, poder, força, Estado, são todos conceitos muitas vezes utili-
zados como sinônimos. Na perspectiva da teoria dos sistemas, tem-se que
distinguir rigorosamente esses conceitos. A força é um – e apenas um entre
vários outros – dos recursos do poder. O poder é o meio de comunicação da
política. É a unidade de uma diferença específica que constitui a referência
das operações políticas. O Estado é o sistema de organização do poder polí-
tico. O Estado é o símbolo que designa as organizações que atualizam o
primado funcional do sistema político da sociedade. E a política é o sistema
que produz e reproduz todas essas operações.9 O poder acontece em qualquer
forma de comunicação que faz referência ao seu código. Em outras palavras,
o poder está em todas as formas de comunicação que utilizam a sua seletivi-
dade como forma de constituição de sentido.

2. Poder, sanção e alternativas de ação

O poder, como os demais meios de comunicação simbolicamente gene-


ralizados, surge a partir do problema da improbabilidade da comunicação.10
É demasiadamente improvável que haja entendimento da informação e do
ato de emiti-la. Assim, para o problema da improbabilidade a respeito da
correspondência entre vivências objetivas, estrutura-se o meio de comuni-
cação da verdade, que estrutura o sistema científico da sociedade. Já para
o problema da improbabilidade sobre a aceitação da apropriação privada

9
Ver-se especialmente: Luhmann, 1982; Lumann, 1995; Luhmann, 1990; Luhmann, 1994; e
Luhmann, 1998.
10
Este problema vem da sociologia de Parsons, mas foi profundamente reconstruído por
Luhmann, inicialmente, em termos funcionais (Luhmann, 1993), e depois em termos autopoi-
éticos (Luhmann & De Giorgi, 2003: 61 e ss.).
seção 1 – filosofia jurídica e social 53

de recursos escassos indispensáveis à subsistência de todos, surge o meio


de comunicação da propriedade e do dinheiro, que estruturam o sistema
econômico. Por outro lado, para o problema do encaminhamento legítimo
das frustrações de expectativas sociais surgem as leis (direito) como o meio
de comunicação que estrutura o sistema jurídico da sociedade. O amor, a arte
e outros meios de comunicação também desempenham funções importantes
na sociedade. Ao lado desses meios de comunicação, sem estar hierarqui-
camente ou fundamentalmente mais importante do que os demais, o poder
desempenha a função de meio para a coordenação das ações, decisões, e
comunicações sociais.
Quando as ações se conectam a outras ações está-se diante da questão
do poder. Pode-se jantar apenas o que está sendo servido na mesa, como
também se pode apenas dirigir um veículo sob as condições do trânsito. O
problema do poder surge então quando uma ação de alter exige uma ação
respectiva de ego. Trata-se da situação na qual ego não pode ficar indiferente
à ação de alter, não pode simplesmente vivenciar a atuação de alter, tem que
acatar a decisão-ação de alter agindo em conformidade ou evitá-la igual-
mente com uma ação.
O poder tem essa característica. Ele exige uma ação tanto de quem
dispõe do poder quanto de quem está submetido a ele. Diante de uma ação
política, quem está submetido a ela não tem outra alternativa senão responder
com uma ação: ou age cumprindo a ação-decisão, ou age para evitar o seu
cumprimento. As duas alternativas então são: agir cumprindo a exigência
política ou agir evitando o cumprimento. Em ambos os casos se trata de uma
ação de alter levada como premissa para uma ação de ego. Não há outra
alternativa. E precisamente essa ausência de alternativas constitui o poder.
O poder surge quando uma ação de ego é realizada tendo uma ação de
alter como premissa. Por isso, para que a ação de alter não passe desperce-
bida pela percepção de ego, a ação de alter tem que ancorar vários recursos,
como por exemplo o recurso à ameaça de algum tipo de sanção valorada
negativamente. O poder precisa, portanto, recorrer à ameaça – e só à ameaça
– de sanções capazes de ser valoradas como inconvenientes e evitáveis. Por
exemplo, o uso da força física, agressões morais, demissão no trabalho,
ridicularização social etc. são sanções simbolicamente generalizadas como
inconveniências evitáveis. Em todos esses casos, pode-se supor que ninguém
gostaria de passar por alguma dessas situações e, ao mesmo tempo, pode-se
também supor que são situações evitáveis, quer dizer, situações que sempre
estão dadas ao lado de outras alternativas igualmente possíveis.
A submissão ao poder exige, portanto, que o submisso possa valorar
uma das alternativas de ação como um inconveniente evitável. E quando
54 revista brasileira de filosofia – RBF 239

a valoração negativa da alternativa evitável, pelo submisso, corresponde à


alternativa igualmente valorada pelo poderoso, então se está diante de uma
relação de poder. Em outros termos, o poder sempre se constrói na base de
uma alternativa entre cumprir ou evitar o cumprimento de uma ordem. Tanto
para alter – que profere a ordem – quanto para ego – que a ela está submetido
– as alternativas são valoradas negativamente. Alter e ego têm o mesmo inte-
resse em que não seja necessária a aplicação de sanções. Ambos pretendem
evitar a sanção. A diferença que constitui o poder então está na diferença da
situação de alter em relação a ego: ambos querem evitar a sanção, mas para
ego esse evitar é uma necessidade muito mais imperiosa do que para alter.11
A verdade da ciência e o dinheiro da economia apenas exigem uma
vivência de ego. O poder exige uma ação. A determinação social do que o
possuidor de uma verdade ou de um dinheiro fará com a verdade ou com
o dinheiro não pode ser determinada nem pela ciência, tampouco pela
economia. Só o poder pode determinar isso. Só o poder pode estabelecer o
que o receptor de uma comunicação deverá fazer com a verdade ou com o
dinheiro recebido.
Essa perspectiva sistêmica coloca o poder sob uma definição bastante
diferente da tradição reunida sob o nome de teoria política.12 E o motivo é
simples: se o poder é entendido como um jogo, quais seriam então os funda-
mentos desse jogo que não poderiam ser jogados? E se se entende o poder
como um processo causal, quais causas não seriam causadas pelo processo
mesmo? E ainda, se se considerar o poder como um intercâmbio (Parsons),
quais seriam os fundamentos políticos não intercambiáveis que o poder pode
intercambiar? Essas questões demonstram o paradoxo com o qual as teorias
políticas têm que lidar se pretendem entender as condições sob as quais
a sociedade produz e reproduz operações de poder. E tal como os demais
paradoxos fundamentais da sociedade, decorrentes da dupla contingência de
expectativas entre alter e ego, também o paradoxo do poder permite o seu
entendimento como um meio de comunicação simbolicamente generalizado,
isto é, como um código de simbolizações que guia, seletivamente, a obser-
vação e a comunicação da sociedade para um tipo especial de constituição
de sentido.
Em sociedades simples, a construção social da realidade pode ser
realizada através de vivências compartilhadas de modo não-problemático.13
Mas para sociedades complexas, como é o caso da sociedade contempo-
rânea, vivências compartilhadas se chocam constantemente com outras

11
Cf. Luhmann, 1998: 116.
12
Cf. Luhmann, 1995: 4.
13
Cf. Berger & Luckmann, 1985: 47.
seção 1 – filosofia jurídica e social 55

vivências muitas vezes incompatíveis com a manutenção de uma identidade


cultural (palavra-chave: multiculturalismo). Então exigem-se ações. E com
isso criam-se situações de conflito, isto é, situações onde as ações de alter
submetem ego à exigência de uma ação correspondente.
Estar submetido ao poder, portanto, significa não ter outra alternativa
senão cumprir ou descumprir uma ordem. Se ego cumpre a ordem de alter,
pode-se dizer que ocorreu uma relação de poder. E se ego descumpre a
ordem de alter, pode-se dizer que igualmente ocorreu uma relação de poder.
Porque para decidir entre cumprir ou descumprir a ordem de alter, ego tomou
como base de referência a ordem de alter e não outra. Em outros termos,
tanto para quem descumpre, quanto para quem cumpre uma ordem, o poder
está igualmente presente na relação. Pois tanto o cumprimento quanto o
descumprimento de uma ordem pressupõe uma orientação à ordem, isto é,
pressupõe uma correspondência entre a ação que ordena e a ação que cumpre
ou descumpre. O poder dos sacerdotes da Idade Média não estava apenas no
cumprimento de suas ordens, pelos súditos, para evitarem a indesejada alter-
nativa do inferno. O poder daqueles sacerdotes estava também no descum-
primento de suas ordens, para evitar a situação de submissão. O paradoxo
então está no fato de que para evitar o cumprimento da ordem, tem que se
descumpri-la, ou seja, tem que se adotar a alternativa já dada pela forma do
poder: cumprir ou descumprir a pretensão de poder.

3. Onipresença do poder e consenso

Uma noção de poder tão ampla como essa permite a pergunta pela
possibilidade de existir realmente alguma relação que não seja de poder. E
a resposta é: só não existe poder quando alguém age desconsiderando as
alternativas entre cumprir ou descumprir a ordem. Só não há poder quando
ego não toma a ação de alter como premissa para decidir entre cumprir ou
descumprir. O poder dos pais sobre seus filhos não atinge os filhos do vizinho
enquanto eles não se conhecerem e vice versa. Como também o poder de uma
organização empresarial só não submete as demais organizações enquanto
estas puderem decidir sem levar as decisões daquela em consideração em
suas estratégias.
O não-poder só pode ser então entendido no campo da ignorância do
poder, quer dizer, só pode ser entendido como o fato de não se saber que uma
dada alternativa entre cumprir ou descumprir uma ordem devia ser levada
em consideração como premissa para uma ação. Diante do poder, portanto,
não há outra alternativa senão a alternativa entre cumprir ou descumprir a
exigência já dada pela própria comunicação do poder. Porque até mesmo
56 revista brasileira de filosofia – RBF 239

o «impoder» é um poder algo,14 um poder paradoxalmente alimentado por


si mesmo, que cresce na medida da sua própria impossibilidade. Só não há
poder, portanto, enquanto ele é ignorado na comunicação da sociedade. E
isso significa que é um caso corriqueiro na sociedade o fato de uma mesma
situação poder ser vista, por observadores diferentes, sob perspectivas
diferentes.
Diante desse problema político da diversidade de perspectivas possí-
veis sobre uma mesma situação, a solução parte, tradicionalmente, de uma
reconstrução do problema em termos de conflito para, depois, recolocar a
solução na forma do estabelecimento de um procedimento de discussão
pública, com exigentes garantias de condições ideais de discussão, para um
consenso baseado em pretensões universais de validade. Em outras palavras,
a diversidade de perspectivas é vista como um problema de dissenso, cuja
solução então só pode ser o consenso.
O consenso, contudo, sufoca exatamente a questão mais importante do
poder, que é a sua comunicação como alternativa entre cumprir ou descum-
prir uma ordem. Independentemente de um consenso sob condições ideais de
discussão, o poder não se dissipa em uma discussão pública. Pelo contrário,
o poder se concentra em uma discussão pública. E precisamente por isso a
concentração do poder exige a formação de coalizações ao ponto de restarem
apenas dois partidos: o da situação e o da oposição.
Isso pode ser observado na praxis da sociedade quando, por exemplo,
na comunicação ecológica dos movimentos de protesto, são criadas as dife-
renças entre ecologistas e poluidores; ou na comunicação política a diferença
entre situação e oposição; ou ainda, na comunicação do risco, a diferença
entre decisores e afetados pela decisão. E os exemplos poderiam ser multi-
plicados. A comunicação do poder, com efeito, parece criar, ela mesma,
a diferença entre quem está conosco e quem está contra nós, quer dizer, a
diferença entre uma base aliada e uma base de oposição.
Por isso são importantes as críticas de Luhmann à concepção – não
menos importante – de ação comunicativa de Habermas.15 O consenso, para
Luhmann, é uma categoria que sufoca exatamente a liberdade pressuposta

14
Tomamos uma sugestão de Derrida, 2002: 117-118: «O “impoder”, cujo tema aparece nas
cartas a J. Rivière, não é, sabemo-lo, a simples impotência, a esterilidade do “nada para dizer”
ou a falta de inspiração. Pelo contrário, é a própria inspiração: força de um vazio, turbilhão do
sopro de um soprador que aspira para ele e me furta aquilo mesmo que deixa vir para mim e
que eu julguei poder dizer em meu nome. (...) Essa fecundidade do outro sopro é o impoder:
não a ausência mas a irresponsabilidade radical da palavra, a irresponsabilidade como poder
e origem da palavra.»
15
Ver-se a propósito nossa tentativa de sistematização dessas críticas em: Simioni, 2007: 309
e ss.
seção 1 – filosofia jurídica e social 57

procedimentalmente na ação comunicativa. Para ele, os próprios princípios


procedimentais da ética do discurso e da universalidade da teoria discursiva
de Habermas – que pretendem fundamentar em termos pós-metafísicos a
necessidade e a possibilidade de um consenso racional, baseado em preten-
sões de validade – podem gerar mais pretensões de poder, na medida em que
sempre alguém pode decidir saltar fora da discussão quando percebe para
onde as coisas estão indo. Quer dizer, a mesma liberdade argumentativa, a
mesma liberdade de convencimento racional intersubjetivo, gera pretensões
de poder que traçam a diferença entre situação e oposição, a partir da qual a
própria necessidade do consenso intersubjetivo pode se tornar uma autêntica
pretensão de poder.
A comunicação do poder, com efeito, encontra-se onipresente na
comunicação da sociedade. Ela está inclusive nas tentativas de diluição
democrático-discursiva do poder. Pois para Luhmann, a própria exigência
ou necessidade de consenso já é uma pretensão de poder.

4. A medida do poder

Desde Hegel se dizia que a ação deve ser guiada pela vontade livre.16
Agora se diz que a ação livre deve ser racionalmente motivada. Mas uma
análise mais aproximada da comunicação do poder permite ver que a vontade
ou a motivação apenas é conferida depois que se exerce o poder. E é confe-
rida na própria comunicação, isto é, independe da vontade de quem praticou
a ação política.17 Os interesses, igualmente, não são determinantes das ações
de poder, mas sim justificativas a posteriori produzidas pela comunicação da
ação de poder. Afinal, somente depois de praticada uma ação política é que
alguém pode julgá-la, atribuindo certos interesses e não outros. Isso significa
que entre os interesses da situação e os da oposição, o que cai como um pano
de fundo do poder é a sua própria forma de comunicação: a comunicação
de uma única alternativa entre cumprir ou descumprir a pretensão de poder.
Nessa perspectiva, o campo de atuação do poder não se estabelece mais
através da medida da força física ou do nível de cumprimento ou de eficácia
das ordens, mas sim através do campo de abrangência da comunicação. Isso
significa que em uma sociedade mundial, na qual a comunicação atravessa os
limites comunitários tradicionais, as relações de poder já não podem mais ser
suficientemente entendidas como relações entre pessoas, entre organizações

16
Cf. Hegel, 1997: 46: «O domínio do direito é o espírito em geral, e sua base própria e
ponto de partida é a vontade livre, de sorte que a liberdade constitui sua substância e sua
determinação; o sistema do direito é o reino da liberdade realizada, o mundo do espírito que
se manifesta como uma segunda natureza a partir de si mesmo.»
17
Cf. Luhmann, 1995: 30.
58 revista brasileira de filosofia – RBF 239

ou entre Estados. O poder atravessa comunicativamente os pontos tradicio-


nais de referência. Uma pessoa pode exercer poder tanto sobre organizações
como sobre Estados, como também uma organização pode submeter pessoas
e Estados e, igualmente, Estados podem submeter pessoas e organizações. E
isso só é possível se se entende o poder como um tipo especial de comuni-
cação da sociedade.
A medida do poder, portanto, preferimos entendê-la como uma medida
da comunicação. Até onde vai a comunicação, vai também a comunicação do
poder. O âmbito de influência do poder na sociedade mundial é um âmbito
mundial. Em outras palavras, a abrangência do poder de alguém corresponde
à abrangência da sua comunicação entendida por outrem.
Isso coloca um problema para o poder organizado do Estado, cuja
solução foi a conhecida regra de que ninguém pode escusar-se de cumprir
a lei alegando que não a conhece. Assim, todos ficam submetidos ao poder
do Estado e as ações que não levam esse poder em consideração podem ser
vistas como decisões pelo descumprimento. Todos os súditos sabem que não
podem desconhecer as ordens do Estado. Então todas as ações dos súditos
podem ser vistas sob a forma do cumprimento ou do descumprimento – e não
mais sob a forma da ignorância. A ignorância do poder do Estado passa a ser
proibida e, assim, apenas se toleram as situações de boa fé – uma tolerância,
contudo, igualmente expressa como uma alternativa no âmbito do poder
organizado pelo Estado.
Essa ilustração com o poder organizado do Estado, contudo, é apenas
um âmbito onde o poder se manifesta na forma da comunicação. Essa forma
de poder como submissão às alternativas entre cumprir ou descumprir uma
ordem é uma forma que pode constituir o sentido do poder em qualquer âmbito
da comunicação da sociedade, desde sistemas de interação até sistemas de
organização como a família, as organizações empresariais, as comunidades
locais, os Estados-nação ou ainda as comunidades de Estados-nação.
Submeter a ação de ego às alternativas previamente selecionadas pela
ação de alter. Essa é exatamente a função do poder. O poder funciona como
um meio de comunicação que permite a alter comunicar uma seleção a ego
de modo a submetê-lo a essa seleção, excluindo outras alternativas. Alguém
que se apresenta como «ecologista» já submete os demais à alternativa entre
assumir-se como ecologista ou como poluidor. Alguém pode simplesmente
perguntar se os demais são contra ou a favor do aborto. E essa alternativa já
submete os demais à seletividade da pergunta, que não pode mais ser respon-
dida sem se assumir uma das alternativas como premissa para a continuidade
da comunicação.
seção 1 – filosofia jurídica e social 59

O único modo de se furtar ao poder produzido na seletividade de uma


forma de comunicação é ignorá-la. Quer dizer, a comunicação do poder
produz uma correspondência entre a ação de alter e a ação de ego, através da
seleção de apenas uma alternativa entre cumprir ou descumprir uma ordem.
O poder está, portanto, exatamente na eliminação das demais alternativas
que, sem o poder, seriam igualmente possíveis.

5. Poder, sanção e eliminação de alternativas de ação

Essa seletividade produzida pela comunicação do poder torna-se


incompatível com a ideia de que só existe poder enquanto sinônimo de uma
ameaça de sanção. Isso significa que o poder, como um meio de comunicação
simbolicamente generalizado, tem que se diferenciar da ameaça de sanção.
A sanção não é condição de possibilidade do poder. Pelo contrário, o uso da
comunicação do poder dispensa o uso de coações.
A ameaça de sanções só tem que ser exercida quando falta poder.18 Pois
se há poder, não há necessidade de coerções. Os diversos ataques militares
dos EUA nos países do Golfo Pérsico desde a década de oitenta ilustram
exatamente isto: faltou poder político para garantir a continuidade do supri-
mento de petróleo nos níveis de preços esperados. O poder existe como dife-
rença, como forma de seleção que submete a si as seleções posteriores. Alter
tem poder enquanto as suas seleções delimitam as seleções possíveis de ego.
O poder é uma seleção comunicativa que limita as possibilidades de seleção
de quem entende a comunicação do poder.
Assim, o poder neutraliza a vontade de quem a ele está submetido.19 Pois
na medida em que o poder é uma seleção comunicada por Alter que delimita
o âmbito das seleções possíveis de Ego, a seleção de Ego independe da sua
vontade: ele simplesmente não tem outra alternativa senão aquela oferecida
na comunicação do poder. Depois que praticamente toda a tecnologia de
transporte foi desenvolvida baseada em derivados de petróleo, não há mais
alternativas para o transporte senão o consumo de derivados do petróleo. E
por esse motivo, a introdução de uma matriz energética alternativa para o
transporte em nível mundial, como é o caso da política de biocombustíveis
do Brasil, só terá o poder de vincular as decisões energéticas mundiais se
os biocombustíveis limitarem, econômica ou ecologicamente, a opção pelos
derivados do petróleo. E do mesmo modo, a criação de uma situação de
dependência energética por parte de países importadores de gás natural pres-

18
Luhmann, 1995: 14.
19
Idem, ibidem, p. 18.
60 revista brasileira de filosofia – RBF 239

supõe também uma dependência tecnológica que não encontra a alternativa


da substituição por outras tecnologias.
O poder, com efeito, catalisa as escolhas. Ele não extingue as opções.
Antes disso, ele limita as opções possíveis. Ele sempre mantém um nível
previamente determinado de liberdade a quem a ele se encontra submetido.
A comunicação do poder, portanto, dispensa coerções. Ela delimita as
alternativas de ação de ego em apenas uma única alternativa: ou cumpre
ou descumpre a pretensão de poder. Mas para que uma decisão de alter seja
obedecida por ego, então torna-se necessária a ameaça de sanções.
A ameaça de sanções funciona como um mecanismo de eliminação
da alternativa do descumprimento da pretensão de poder. Funciona como
símbolo da violência física ou de outras situações avaliadas de modo nega-
tivo por ego. A ameaça de sanções, portanto, é um recurso indispensável
ao funcionamento do poder.20 São exatamente as ameaças de sanções que
permitem simbolizar o estabelecimento de preferências,21 isto é, simbolizar a
unidade da diferença entre a alternativa do cumprimento (avaliada positiva-
mente) e a do descumprimento (avaliada negativamente) da decisão.
Como símbolo, a ameaça de sanção funciona como valor de orientação
segundo a distinção entre alternativas avaliadas positivamente e alternativas
avaliadas negativamente. Desse modo, as ameaças de sanção permitem a
construção da diferença entre alternativas mais desfavoráveis e alternativas
mais favoráveis. E nessas condições, a ameaça de sanção permite que ego
possa distinguir entre as consequências desfavoráveis do descumprimento da
ordem e as consequências favoráveis do seu cumprimento, mantendo assim
a liberdade entre a alternativa do cumprimento ou do descumprimento da
pretensão de poder.
Em outras palavras, a diferença entre alternativas favoráveis e desfavo-
ráveis só se estabelece em relação às expectativas.22 As expectativas então
encontram nas ameaças de sanção o sentido da diferença entre alternativas
favoráveis e desfavoráveis ao êxito das expectativas. E precisamente com
base nessa diferença, mediada pela ameaça de sanções, é que a comunicação
do poder torna-se capaz de produzir vinculação, isto é, torna-se capaz de
disponibilizar apenas uma alternativa – cumprimento ou descumprimento da
ordem –, ao mesmo tempo em que estabelece uma preferência pelo cumpri-
mento da ordem.

20
Luhmann, 1995: 32.
21
Cf. Luhmann, 1983: 124: «somente através da generalização enquanto símbolo para outras
possibilidades que a força física adquire uma relevância abrangente em sistemas sociais.»
22
Cf. Luhmann, 1995: 34.
seção 1 – filosofia jurídica e social 61

O poder da ameaça de sanção, portanto, não se baseia nos efeitos físicos,


psíquicos ou morais que alguém pode sofrer se não optar por uma determi-
nada alternativa, mas sim no símbolo que essa sanção desempenha de modo
generalizado na sociedade.23 A ameaça de sanção funciona enquanto símbolo
do «poder exigir algo». Os espetáculos militares e a demonstração pública
de força física e bélica produzem simbolizações da ameaça de sanção. A
presença militar norte-americana em bases estrategicamente localizadas no
entorno da Amazônia ilustra esse simbolismo.24 O qual não simboliza só o
poder de coerção norte-americano para motivar a aceitação de suas exigên-
cias, mas antes disso, simboliza a disposição universalmente generalizada de
manter recursos (militares) disponíveis para assegurar as suas expectativas
diante da possibilidade de frustrações.

6. Comunicação e exercício do poder

A comunicação do poder, portanto, já é um exercício de poder. Através


do poder alguém comunica uma seleção de alternativas, excluindo outras. O
poder comunica uma única alternativa: a distinção entre cumprir ou descum-
prir uma decisão. A partir da qual quem entende essa distinção já não tem
outra alternativa senão submeter-se a ela com uma ação correspondente: ou
age em conformidade, ou age em desconformidade. Em qualquer situação,
contudo, a ação correspondente levou a seleção operada pela comunicação
do poder como premissa. O poder, assim, reduz possibilidades, isola as possi-
bilidades de ação mantendo-as sob a forma de uma única alternativa entre
cumprir ou descumprir a pretensão de poder. E para facilitar a aceitação da
alternativa do cumprimento, o poder utiliza vários recursos, dentre os quais
se destaca o uso simbólico da ameaça de coação.
Assim, do ponto de vista de quem está submetido à comunicação do
poder, agir em conformidade com a pretensão do poder torna-se a alternativa
desejável, precisamente porque a outra alternativa – a do descumprimento da
pretensão do poder – apresenta-se como indesejável. O paradoxo está no fato
do poder não possuir um fundamento além de si mesmo: obedece-se a uma
ordem não pelo medo da ameaça de sanções, mas sim porque a obediência
aparece para o submisso como a única alternativa desejável.
Em outras palavras, a comunicação do poder constrói uma diferença
entre cumprimento e descumprimento da ordem, a partir da qual todas as
demais possibilidades de ação se tornam reduzidas a essa diferença mesma
entre cumprir ou descumprir. Então, entre o cumprimento e o descumpri-

23
Cf. Luhmann, 1983: 125.
24
Com informações atualizadas, ver-se: Porto-Gonçalves, 2006: 294.
62 revista brasileira de filosofia – RBF 239

mento da ordem, o símbolo da ameaça de sanção permite a indicação no lado


menos desfavorável dessa forma de diferença. E assim cumpre-se a ordem
não porque ela é legítima, boa, adequada, verdadeira etc., mas porque o seu
descumprimento é de algum modo desfavorável e, exatamente por isso, pode
ser evitado através do cumprimento. Essa é a armadilha do paradoxo do
poder: cumpre-se uma ordem porque é possível evitar os transtornos do seu
descumprimento.
O poder está, portanto, na eliminação de alternativas, na monopolização
das possibilidades de ação. E isso supõe que todas as pessoas envolvidas
em uma comunicação de poder possam ver as alternativas que desejam
evitar.25 Como acima observado, através do recurso simbólico a uma ameaça
de sanção, a comunicação do poder estabelece, tanto para alter quanto para
ego, uma distinção entre avaliação positiva e avaliação negativa das alter-
nativas. Precisamente essa distinção estabelece uma ordem de preferência
para ambos os participantes da interação. Por isso, tanto para quem exerce
o poder, quanto para quem a ele está submetido, o poder reconstrói essa
ordem de preferência de modo a tornar evitáveis as alternativas indesejáveis,
especialmente as alternativas ligadas a sanções.
Também alter, o detentor do poder, quer evitar a alternativa indesejável,
porque também para ele o recurso à imposição de sanções é uma alternativa
indesejável. Isso significa que uma parte da comunicação do poder está na
informação de que também alter, o possuidor do poder, preferiria não ter
que realizar a alternativa indesejável da sanção. Mas que está, contudo,
preparado para realizá-la se for necessário.26 A credibilidade do poder está
exatamente nisto: o portador de poder tem que comunicar uma seleção
de alternativas cuja escolha, a ser livremente indicada pelo desprovido de
poder, será realizada acreditando que a alternativa a ser evitada corresponde
à alternativa igualmente evitada pelo detentor do poder. A ameaça de sanção
simboliza essa credibilidade do poder, que às vezes necessita de demonstra-
ções públicas (palavras-chave: guerras, violência etc.).27
Assim a comunicação do poder conquista uma improvável combinação
de tolerância e previsibilidade: o poder tolera a livre escolha entre as alterna-
tivas de ação por ele já delimitadas e, exatamente por isso, torna previsível

25
Cf. Luhmann, 1995: 31.
26
Idem, ibidem, p. 71.
27
As demonstrações bélicas no oriente médio, África e Ásia, colocam em dúvida se em
sociedades mais complexas a simbolização da credibilidade do poder através da ameaça de
força física não é mais suficiente. Nessas sociedades, torna-se necessária também a codificação
legal do poder. Mas isso, como se vê desde a década de 80, não permite concluir que existe
uma tendência à paz.
seção 1 – filosofia jurídica e social 63

que a liberdade de ação só será exercida nos limites por ele mesmo traçados,
com a exclusão de todas as demais possibilidades.
Desse modo, o meio de comunicação «poder» reduz complexidade,
estrutura a complexidade da sociedade sob a forma simples da diferença
entre cumprimento ou descumprimento de sua própria pretensão de poder.
Um país importador de energia pode exigir, por exemplo, segurança no apro-
visionamento energético realizado por outro exportador. Toda a complexi-
dade que resulta dessa relação então se reduz, na perspectiva do poder, para
apenas duas alternativas: ou há cumprimento (poder) ou há descumprimento
(não-poder). Se existe escassez econômica, falsidades científicas, falta de
fé religiosa ou desafeto interpessoal, são questões que já não se levam mais
em conta na observação conduzida pelo meio de comunicação do poder.
Porque na perspectiva do poder, só interessa a diferença entre cumprimento
e descumprimento da própria alternativa constituída pela seletividade da
comunicação do poder.
Tanto a política mundial do petróleo quanto a política brasileira da
energia elétrica possuem uma riqueza empírica significativa a respeito dessa
seletividade política do sentido da energia. O embargo no fornecimento de
petróleo em 1973 pela OPEP, como também o sucateamento do setor elétrico
brasileiro da década 50, só não geraram conflitos bélicos porque a justifica-
tiva oficial estava na escassez econômica. No caso do petróleo, precisamente
quando a justificativa da escassez econômica tornou-se insuficiente, então
a perspectiva econômica cedeu lugar para a perspectiva política, cuja resis-
tência da OPEP em baixar os preços do petróleo pôde ser vista como um
descumprimento injustificado das expectativas dos países importadores. E
por isso, a descoberta da falta de poder sobre a OPEP teve que ser compen-
sada com intervenções militares já na década de 80.
E no caso do setor elétrico brasileiro, a justificativa da escassez
econômica cedeu lugar para a perspectiva política, a partir da qual a falta
de dinheiro para investimentos no setor mostrou-se como resultado de uma
semântica política nacionalista de «energia barata». O resultado foi a recons-
trução do problema do sucateamento do setor elétrico, não mais como um
problema econômico de custos do setor, mas sim como um problema político
de descaso com os investimentos necessários à expansão do sistema elétrico
nacional.28 Para se ter uma ideia do nível em que acontecem essas distin-

28
O plano da CEEE era a construção de várias pequenas termelétricas em locais diferentes,
interligadas por um sistema Estadual integrado de distribuição, que depois seria conectado
a grandes hidrelétricas. O plano não deu certo e não chegou sequer à segunda fase da
interligação. Pois o alto custo individual de cada termelétrica inviabilizou os investimentos na
expansão do sistema para se abrir a fase da interligação (cf. Leite, 1997: 405). A CEMIG, de
Minas Gerais, adotou outra estratégia, empresarial, e deu certo.
64 revista brasileira de filosofia – RBF 239

ções, a diferença entre o sucesso da Cemig de Minas Gerais e o fracasso da


CEEE do Rio Grande do Sul pode ser explicada somente do ponto de vista
econômico: a Cemig manteve tarifas nos níveis necessários para o investi-
mento na expansão do setor, enquanto a CEEE manteve tarifas em níveis
insuficientes para os investimentos necessários até mesmo à manutenção do
sistema elétrico.
Essa mesma diferença, contudo, pode ser reconstruída, do ponto de
vista político, como uma diferença entre o fracasso da Cemig em satisfazer
a semântica nacionalista da «energia barata» e um sucesso da CEEE em
produzir energia barata, subsidiada pelo orçamento público estadual – embora
isso tenha custado, retornando à perspectiva econômica, investimentos que
poderiam ser destinados a outras áreas igualmente relevantes para o desen-
volvimento do Estado. Quer dizer, o sucesso econômico da Cemig pode
continuar a ser visto como um fracasso político, como também o sucesso
político da desastrosa encampação da CEEE, no governo de Leonel Brisola,
pode ser visto como um fracasso econômico. Tudo depende do sistema de
referência que se utiliza como base para o estabelecimento de uma comuni-
cação. E esse mesmo fato pode ter seu sentido completamente reconstruído
quando, ao invés das perspectivas econômica ou política, escolhe-se o direito
como sistema de referência.29

7. Considerações finais

O poder, na perspectiva teórica de Niklas Luhmann, surge do problema


da correspondência a respeito da ação de ego em relação à ação de alter.
O poder surge quando a ação de alguém tem que se manter previsível para
outrem. A ação de alter tem que corresponder a uma ação previsível de
ego. E por isso, através da comunicação do poder, alter sempre poderá ter a
certeza de que ego, se tomou conhecimento da sua ordem, agirá cumprindo
ou descumprindo a ordem, com a exclusão de outras possibilidades.
Assim, o poder reduz complexidade: diante dele, o mundo pode ser
reconstruído na forma da diferença entre cumprimento e descumprimento de
ordens. Todas as incertezas e toda a complexidade que o mundo disponibi-
liza para as ações sociais podem ser, através do poder, reduzidas à simples
diferença entre cumprir ou descumprir uma pretensão de poder. O poder
mesmo tolera essa diferença – e só essa diferença –, compensando essa tole-
rância com a utilização de recursos para orientar as ações à preferência pelo
cumprimento, sem contudo eliminar a alternativa do descumprimento.

29
No âmbito do direito, toda a complexidade da questão se reduz à atribuição do fato na
alternativa entre o lícito ou o ilícito. Ver-se, a propósito, o parecer de Pontes de Miranda,
1961.
seção 1 – filosofia jurídica e social 65

Isso significa que o poder político acontece precisamente quando uma


ação de alguém, que sempre está submetida à possibilidade de negação por
outrem, desloca essa possibilidade de negação para uma referência comuni-
cativa tolerada pela própria ação política. O anfitrião que serve o jantar pode
até tolerar que algum convidado não goste do seu jantar ou que recuse uma
bebida oferecida, mas os convidados só jantarão o que por ele foi servido.
Nesse sentido, o poder se manifesta na forma de um monopólio das possi-
bilidades: o possuidor do poder confere a liberdade para o submetido ao seu
poder escolher entre as alternativas que o poder mesmo já delimitou. Dentre
essas alternativas, o risco de negação de uma delas não afeta a expectativa
gerada pelo poder, pois a negação de uma alternativa já selecionada pelo
poder implica exatamente na aceitação de outra.
Poder, portanto, não pode ser simplesmente entendido como algo
que se dispõe como propriedade ou como faculdade. Poder é comunicação
guiada por um código específico, que reforça a motivação para a aceitação da
pretensão de poder. Poder é uma forma de comunicação para a qual se está
submetido por falta de outras alternativas. Reduzir essa submissão, portanto,
pressupõe a criação de outras alternativas – as «energias alternativas» diante
do monopólio das opções (poder) energéticas, por exemplo. Isso significa
que somente com base na possibilidade de utilização tecnológica de energias
alternativas um país pode escapar da dependência do petróleo. E somente
com base no desenvolvimento de uma autonomia tecnológica um país pode
escapar da dependência energética.
Uma pequena objeção pode ser feita a essa perspectiva luhmanniana,
no que se refere ao poder político estatal: o código «governo/oposição» do
sistema político vale também no campo da política internacional? Enquanto
não houver um governo mundial para o qual haveria então uma oposição,
parece que esse código fica restrito ao âmbito das organizações políticas
nacionais. No campo da política internacional, o código «governo/oposição»
parece ficar restrito ao âmbito de cada um dos sistemas de organização. Cada
organização política internacional tem seu próprio governo e sua própria
oposição.
Entre as organizações políticas internacionais, a perspectiva da dife-
rença entre governo e oposição parece ceder lugar para a perspectiva da dife-
rença entre decisores e afetados pela decisão política. Em outras palavras, no
campo das relações políticas entre organizações diferentes, a diferença entre
quem decide e quem é possivelmente afetado pela decisão é uma diferença
constitutiva das relações políticas internacionais. No âmbito interno das
organizações estatais continua valendo o código «governo/oposição». Mas
no âmbito externo, o simples fato de ser um possível afetado por uma decisão
externa – quer dizer, uma decisão que não é atribuída nem ao governo,
66 revista brasileira de filosofia – RBF 239

tampouco à oposição – já é suficiente para constituir um motivo político


comum capaz de unir as perspectivas do governo com as da oposição.30 Os
problemas das políticas mundiais ilustram precisamente o fato da diferença
entre governo e da oposição perder-se diante de problemas imputados a
decisões políticas tomadas fora das fronteiras dos Estados-nação. Como
em qualquer sistema de organização, somente os problemas imputados ao
ambiente do sistema são capazes de apaziguar os conflitos e divergências
entre governo e oposição, unificando seus esforços sob objetivos comuns.

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Luhmann, Niklas, 1993: A improbabilidade da comunicação. 3. ed. Trad. Anabela
Cavalho. Lisboa: Vega.

30
Desde Hobbes se sabe que «graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no
Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna
capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio país, e da
ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros» (cf. Hobbes, 2004: 144).
seção 1 – filosofia jurídica e social 67

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Filosofia e Constituição:
da dimensão ética no direito
do político1

Paulo Ferreira da Cunha


Professor Catedrático e Diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

Resumo: Há muitas confluências entre a Filosofia do Direito e o Direito


Constitucional. Ambas as disciplinas já andavam de mãos dadas na cadeira
de Avelar Brotero no curso de Direito de São Paulo, no séc. XIX. Hoje, nessa
senda, são do maior interesse teórico e prático a ética constitucional, tanto
dos valores como das virtudes, e o neoconstitucionalismo. Este último,
numa das suas várias dimensões, já se propõe como uma alternativa às
funções éticas e regulativas quer dos jusnaturalistas quer dos juspositi-
vistas. Podendo embora não alcançar o seu fim, os neoconstitucionalistas
têm pelo menos o mérito de ter enfatizado a importância da contribuição
constitucional para as questões filosófico-jurídicas.

1
O presente artigo procura ser uma síntese e uma relectio de vários trabalhos, publicados
em vários países e línguas, sobre este fecundo diálogo jurisfilosófico e constitucional. E
particularmente se inspira em aulas-conferências que proferimos na Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo, quando aí estivemos, na qualidade de Professor visitante, em
abril de 2011, a muito honroso convite da Coordenação da Pós-graduação e dos Departa-
mentos de Filosofia e Teoria Geral do Direito e de Direito do Estado. Cremos que, convidado
pelos Professores Doutor Celso Lafer e Doutor Tércio Sampaio Ferraz Junior a escrever de
novo nesta prestigiadíssima publicação, se justificaria dar às suas páginas um escrito ligado
à tradicional Faculdade do Largo de São Francisco, cujas arcadas guardam o saber de ambos
os Mestres, recentemente jubilados, e a quem, assim, modesta, mas sinceramente, desejamos
prestar homenagem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 69

Palavras-chave: Ética constitucional – Valores jurídico-políticos –


Virtudes republicanas – Neoconstitucionalismo.

Abstract: There are many confluences between the Philosophy of Law


and Constitutional Law, who had walked hand in hand in Avelar Brotero’s
chair in the XIXth century at São Paulo Faculty of Law. Today, the focus goes
to constitutional ethics, with both the dimensions of values and virtues,
and «neoconstitutionalism». This last movement wants to represent an
alternative to the ethical and regulative functions of both natural lawyers
and juridical positivits. They may not succeed, but at least they emphasized
the constitutional contribution to juridical-philosophical matters.
Keywords: Constitutional ethics – Legal and political values – Republican
virtues – «neoconstitutionalism».

1. Simbolismo das Origens. A Lição de Brotero

Uma das primeiras démarches no «fazer a ponte» entre o constitucional


e o jurisfilosófico é obra em língua portuguesa, precisamente do primeiro
Lente do curso jurídico de São Paulo, cuja egrégia figura, ostentando o colar
da Ordem de Cristo, ainda hoje nos olha, tutelar, num corredor principal da
tradicional Faculdade do Largo de São Francisco.
Para que o conheçamos melhor, numa e noutra das margens do Atlân-
tico, lembremos a sapiente e pesada estátua do seu tio, o naturalista Felix
de Avellar Brotero, que nos saúda à entrada (a uma das entradas) do Jardim
Botânico pombalino da Alma Mater conimbricense. São parecidos, embora
os traços do jurista pareçam mais resolutos que os do seu parente cientista,
que recordamos das nossas deambulações pela Lusa Atenas só um pouco
menos reclinado que o Pensador de Rodin. Mas as memórias são imagina-
tivas, perdoar-nos-ão...
O Conselheiro e Professor José Maria de Avelar Brotero deveria obrigar
a reescrever as histórias do Direito Constitucional por esse mundo fora. Na
verdade, precedeu o italiano naturalizado francês Pellegrino Rossi, que posa
para a posteridade como pioneiro do ensino desta disciplina. Com efeito,
este só viria a dar aulas em Paris em 1834-1835 (curso conturbado, que aliás
acabaria por fechar ao cabo de escassos três meses), sendo que Brotero seria
nomeado a 12 de Outubro de 1827 por D. Pedro I, Imperador do Brasil,
precedendo mesmo a criação dos cursos jurídicos paulistas, criados a 11 de
Agosto de 1928.
70 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Mesmo pensando que Brotero só dará a sua primeira aula no início


de 1829, ficaria nos anais a prevalência dessa primeira lição constitucional,
dada em português, e na América. Não por acaso ao sol do Novo Mundo...
É que o Direito Constitucional – tal não foi visto durante demasiado
tempo – é realmente, quando bem entendido, um novo mundo no Direito,
não um novo continente (as metáforas da continentalidade jurídica tiveram
o seu tempo), mas inequivocamente o caminho para um novo paradigma. E
tal ocorre mesmo com o próprio Direito Constitucional em si, aparentemente
«clássico», o saído do constitucionalismo moderno. Não falamos agora do
Direito Constitucional natural, histórico, que também nos dá lições interes-
santíssimas, mas não propriamente deste âmbito.2
E é sintomático, é simbólico mesmo, que no Brasil, em que o chamado
neoconstitucionalismo tem pujantemente desabrochado (numa fecunda ambi-
valência), a cadeira que Avelar Brotero inauguraria era votada a um ensino já
pelo menos multidisciplinar, basicamente assente nos pilares jurisfilosófico,
constitucional e internacional. O seu nome era, esclarecedoramente: Direito
Natural, Público, Análise da Constituição do Império, Direito das Gentes e
Diplomacia.
Deste ensino ficou-nos pelo menos uma obra, sintética, como era timbre
dos trabalhos universitários da época, precisamente com título «misto»: A
Filosofia do Direito Constitucional (Brotero, 2007).
Vale a pena revisitar esta obra, e desde logo admirar o seu autor pelo
desassombro e coragem de muitas observações democráticas, que não seriam
politicamente corretas, pelo menos em muitos setores poderosos da época.
O simbolismo desta obra é mais notável ainda, e representativo de um
tempo de desenvolvimento do diálogo entre estas matérias. Desde logo,
começando o título da disciplina a que se destinava precisamente pela questão
jurisfilosófica, o Direito Natural, debalde procuraremos nela um apartado
sequer ex professo que a tal assunto se devote. Mais: o Direito Natural, que
era ainda, na época (mercê de um fenómeno de alguma cristalização acadé-
mica), uma referência obrigatória nas Universidades, é considerado, pelo
autor, como ciência subsidiária da política, enquanto ciência. Tudo nos dá
muito para pensar e para especular.

2
Este jogo essencial do moderno e do clássico parece estar ínsito no ADN do Direito
Constitucional. A temática seria glosada com muito brilho numa conferência no «I Simpósio
Internacional de Análise Crítica do Direito», no Centro de Ciências Sociais Aplicadas – CCSA
– antiga Faculdade de Direito, em Jacarezinho, nos dias 26 de Setembro de 2011, proferida
por Walter Claudius Rothenburg, com o título (já de si esclarecedor), A antiga contempora-
neidade do Direito Constitucional, inspirado em alguns passos do segundo capítulo seu livro
Direito constitucional, São Paulo: Verbatim, 2010: 45 ss.
seção 1 – filosofia jurídica e social 71

Não se faça, obviamente, passar Brotero por neoconstitucionalista,


avant-la-lettre. Mas não deixa de ser interessante que a interdisciplinari-
dade esteja nele presente, e que a parte filosófica esteja pedagogicamente
como que incrustada e efetivamente mais pressuposta que posta no Direito
Constitucional.
Nunca o Direito Constitucional, nem nos tempos mais positivistas,
deixaria de ter como base uma fundamentação filosófica. Mas vai ser preci-
samente a assunção de um Direito Constitucional não alheio ao enfrentar das
questões filosóficas que irreprimivelmente coloca o fator determinante de
uma nova feição neste Direito: não só ramo, mas ainda tronco, raiz e copa
da árvore jurídica.
Portanto, o empreendimento de Brotero pode ver-se com simbolismo,
em toda a sua ambiguidade: como que um perder-se da Filosofia no Direito
Constitucional. Mas um perder-se para se re-achar.
Como, aliás, ocorre um pouco hoje. Quando é cada vez mais complicado
invocar-se autonomamente um Direito Natural, por exemplo, sem o vincular
aos Direitos Humanos, aos Princípios Fundamentais e até aos Valores
políticos que Declarações de Direitos e Constituições já em si acolhem e
proclamam. Mas também vice-versa: quando Direitos Humanos, Princípios,
Valores e Constituições não podem de modo algum legitimar-se (para além
dos votos, legitimação politicamente imprescindível em democracia, mas
axiologicamente formal) se não se firmarem numa fundamentação filosófica.
Cuja linguagem hoje é outra, na maior parte das vezes, mas não vemos como
possa prescindir da mesma preocupação pela Justiça.

2. Dos valores. A caminho da ligação Ética e Constituição

Falar em Ética é, antes de mais, falar em valores. Também é falar em


virtudes, mas essa questão é mais controvertida ainda, e com um cunho
sempre mais subjectivo, mesmo que se fale de ética republicana: a ética das
virtudes pode e deve ser alargada interpessoalmente, mas de nada vale se não
for vivida e posta em prática por cada um (Ferreira da Cunha, 2010).
Comecemos pelos valores. A mais bela fonte que encontrámos para
captar o sentido de valor remete para Kant. É de Johannes Hessen, já um
clássico:
«Já Kant caracterizou a essência da emoção estética como uma “satisfação
desinteressada”. Dos valores éticos pode dizer-se uma coisa semelhante.»
Há algo de maravilhamento (en-canta-mento – por oposição ao des-
-en-canto e ao des-en-canta-mento) e de transcendência quando vemos um
povo ascender à independência e, assim, à Liberdade – como ocorreu, por
72 revista brasileira de filosofia – RBF 239

exemplo, para dar uma ilustração a nós mais próxima, com o povo martiri-
zado e heróico de Timor Lorosae.
É espantoso ver como da aparentemente tortuosa sentença de Salomão
se fez Justiça: embora com risco, se a verdadeira mãe ficasse emudecida pelo
choque, como sublinha Scliar (1999). E como ver a realização da Justiça
é bom (da mesma forma que se diz, no Génesis, que Deus viu que tudo era
bom, a Sua era uma boa obra: Gén. I, 25), dá a sensação (essencial para o
Direito – sem a qual o Direito não tem sentido nem pode exercer uma das
suas funções essenciais, que é a de contribuir para dar sentido ao mundo) de
que o mundo tem ordem, tem sentido.
Mais ainda, quando, digamos, um juiz trata por igual a todos, mesmo
aos «grandes», aos «poderosos» etc. (sem acepção de pessoas – relembremos
Tomás de Aquino, Summa Theologiae, IIa IIae, q. 63), e mais ainda, quando
ao pobre trata de forma a compensar a sua desigualdade. O mesmo se diga
quando aumenta o salário mínimo, se criam apoios sociais a quem necessita,
ou se taxam os lucros, juros, dividendos, ou rendas fabulosas... em sistemas
em que o fisco arrecada com equilíbrio, e o governo distribui com justiça.
Montesquieu dá-nos um testemunho dessa sensação de elevação,
falando de alegria secreta, a propósito da função legislativa, podendo
funcionar como exemplo de igualdade, mas decerto mais ainda de justiça:
«(...) j’ai toujours senti une joie secrète lorsqu’on a fait quelque règlement
qui allât au bien commun» (Montesquieu, Pensées, CCXIII).
A fraternidade é hoje mais rara: é um ideal ainda mais distante, e depende
muito da concretização da liberdade e da igualdade numa dialéctica fecunda
e equilibrada. Mas facilmente imaginamos momentos de fraternidade triun-
fando... Ao falar em fraternidade é natural que em Portugal relembremos a
canção Grândola, de José Afonso, que foi emblemática na revolução dos
cravos (25 de Abril de 1974): «Grândola, vila morena / Terra da fraterni-
dade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade».
É a nosso ver sintomático que se remeta nos demais textos da canção
para um ideal, uma «vontade», e que se comece por uma manifestação da
liberdade, a democracia (como «governo do povo»: «o povo é quem mais
ordena»). No seguimento da canção, liga-se a fraternidade à igualdade, sem
mais desenvolvimentos. É que o tempo da fraternidade está ainda apenas
em preparação, como apenas entrevisto. Mas vai dando os seus passos, ao
menos a um nível intelectual (onde, na verdade, as grandes transformações se
preparam, estando pronto o terreno das possibilidades históricas) designada-
mente com o Direito Fraterno e entidades afins, que avançam tempos novos
para a juridicidade, cuja designação, se a houver, ainda está nas brumas do
insondável porvir.
seção 1 – filosofia jurídica e social 73

Há precedentes, é certo, como a teorização de Karel Vasak, no nosso


universo cultural sobretudo desenvolvida por Paulo Bonavides.
Para Vasak, haveria cinco direitos principais da fraternidade (ainda
entendida naquilo a que se chamou a terceira geração – ou dimensão – de
direitos: e hoje vamos já na quinta, quiçá na sexta...): o direito ao desenvol-
vimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade
versando sobre o património da humanidade (património a todos comum), e
o direito de comunicação.
São, todos eles, grandes direitos, que dão já o timbre do que se pretende,
mas ainda talvez excessivamente colocados, como era natural, no plano mais
internacional. Ora os direitos da fraternidade implicam também fraternidade
do dia-a-dia, com uma particular atenção pelos marginalizados das nossas
sociedades que tanto descartam as pessoas. Embora a nossa sociedade
esteja cada vez mais egoísta, escasseando, por isso, os exemplos, ainda há
momentos de entreajuda entre vizinhos, e mesmo entre colegas de estudo e
de trabalho (amis, bien que collègues). Ainda há partilhas de pão e de infor-
túnios. E a partilha não é só material. Quantas vezes não é mais necessária
ainda a «caridade intelectual» advogada por António Rosmini, o conselho
avisado e nem sempre cómodo, ou, pura e simplesmente, a dádiva do tempo
e do escutar... Evidentemente que o meliorismo social e a solidariedade são
apenas caminhos para a futura fraternidade, na qual não se tratará de combater
uma patologia social mas de viver jubilosamente (mas naturalmente, como
quem respira) uma das mais altas aspirações da Humanidade.

3. Back to the basics

Mas recuemos um pouco, passando afinal de valores políticos com


acolhimento constitucional para questões prévias. Afinal, o que são os
valores de que falamos?
Devemos ter a abertura de espírito suficiente para reconhecer que há
duas grandes classes de valores: os materiais e os espirituais.
De entre os valores materiais, sensíveis, ou empíricos, poderemos
considerar os atinentes à própria existência biológica e vital (ânimo ou vigor,
força, saúde, dinamismo), a que poderemos chamar valores vitais; há ainda
os concernentes aos prazeres, que se designam normalmente por hedónicos;
e finalmente os valores de utilidade exterior mas com reflexo no sujeito, que
se referem à sua propriedade e afins, a que naturalmente devemos chamar
valores econômicos.
Já os valores espirituais têm toda uma outra dimensão. Referem-se
eles ao que vale para o espírito, ao que se dirige a uma satisfação ou a um
74 revista brasileira de filosofia – RBF 239

bem estar do corpo ou relativa à matéria (como os primeiros), mas, como


diz Hessen, «nos iluminam a alma, dando origem a um estado psíquico que
interiormente nos enriquece e nos torna felizes», ou seja, quando sentimos
essa tal «emoção desinteressada» que nos revela a contemplação do Belo, do
Verdadeiro e do Bom. Ou do Justo.
Assim sendo, fácil é vermos quais as principais categorias dos valores
espirituais: os que se referem à Verdade são os valores lógicos; aqueles que
tangem o Belo, são os estéticos; os que se reportam ao Bem ou ao que é Bom,
são os éticos. E os valores religiosos, como que podem fundir todas estas
dimensões.
Com os demais seres ideais (nem sensíveis nem supra-sensíveis) os
valores têm ser, mas a sua existência é especial, diversa da tangível — por
isso alguns lhes chamam irreais. A sua realidade não é palpável, mensurável,
materialmente apreensível em si. São eles ainda, sem dúvida, intemporais,
embora a sua vigência concreta esteja à prova da historicidade. Não esque-
çamos o que, a propósito da História, considerava Heidegger: ela não seria
nada mais que «realização de valores». E os valores são ainda objectivos
e absolutos, independentemente dos sujeitos, mas precisando dos sujeitos
para poderem ser vividos. São assim transindividuais, e universais. Embora
essa universalidade se encontre também à prova do desafio multicultural, nos
nossos dias.
As características canónicos dos valores éticos de algum modo terão
sido cunhadas teoricamente num tempo em que uma moral normativa, impe-
rativa e prescritiva dominante e largamente consensual imperava. Não é por
isso de estranhar que devamos hoje matiza-los, sem os negar. Porque recusar
o seu peso de absoluto seria negá-los também. Talvez devamos dizer que o
valor é absoluto, ainda que relativo. Como o amor, Que não seja imortal (ou
eterno), posto que é chama // Mas que seja infinito enquanto dure.
Podemos continuar a dizer que os valores éticos (nos quais latamente se
integram os valores jurídicos) têm uma dimensão de pessoalidade, mas não
de pura subjectividade. Outra característica é a sua idealidade (a que alguns
chamam «irrealidade», como aflorámos já), mas com adesão a suportes reais.
A sua imperatividade parece contracenar com a susceptibilidade de violação
concreta, como é evidente. Se só fossem valores os inviolados (e a fortiori os
realmente invioláveis), não haveria valores alguns. E a absoluteidade valo-
rativa conviverá com o risco de etnocentrismo e cronocentrismo e outros
trompe-l’oeil valorativos. Há ainda universalidade, mas confronto com as
diferenças culturais.
E pode também falar-se (embora com precaução, para não se produ-
zirem mal-entendidos ideológico-políticos) de vocação totalizante (com
seção 1 – filosofia jurídica e social 75

comandos que não deixam de fora, se caso disso for, nenhum aspecto da
vida), que alguns com alguma infelicidade chamam «totalitarismo», o que
implicaria vocação totalitária, que é coisa bem diversa. Traço este contudo
ponderado com a importância das distinções de esferas de existência (plura-
lismos vários, fés dominicais vs. fés semanais – como diria Huxley –, dico-
tomia público / privado, intimidade(s), reserva(s) mental(is) legítima(s) etc.)
que podem ter também dimensão valorativa positiva – e estamos convicto de
que muitas vezes a terão.
São muitos «ses» estão assim envolvidos, muitos matizes nas teses
propostas, mas é essa a situação histórico-espiritual dos valores, hoje.
E se a questão das características dos valores será hoje polémica, não
menos o é o nosso acesso a eles. Ou seja, o problema da gnoseologia dos
valores. Ou, noutros termos (mas os termos nunca são inócuos) da genea-
logia dos valores. Como compreendemos os valores? E como aparecem, ou
nascem os valores?
E se há discussão sobre como nascem os valores e como podemos
conhecê-los, é evidente também que há quem pretenda negá-los. Negar
uns, outros, ou quiçá todos (o que é difícil, e pode mais afirmar-se geral,
abstracta e teoricamente, que no confronto concreto com um e outro e outro
dos valores que sejam propostos). Seja como for, há dificuldade no acesso
ao conhecimento dos valores, e há também casos de vera «cegueira aos
valores» (miopias, daltonismos e outras afecções na sua visão, ou teorização
– theoria).
O valor não é apenas qualidade de algo, como quer o radical natura-
lismo, nem Ideia, coisificada, como advoga um certo platonismo, nem pura
vivência, como o encara o psicologismo, nem simples constructo social,
como defende o sociologismo, nem apenas historicidade, como poderá
pensar um historicismo. Os valores são tudo isso (ou de tudo isso um tanto),
e tal não lhes retira nobreza, idealidade e espiritualidade, como temerão os
mais idealistas, nem os desentranha da vida real e concreta, como se recearão
os mais empíricos.
Mas, apesar de se poder fazer sem dificuldade uma sociologia dos
valores (e tal ter um valor heurístico muito interessante, mas obviamente
não decisivo no plano propriamente axiológico – a menos que do sein
algum sollen se pretenda retirar: e não é questão simples...), verdade é que a
compreensão dos valores (que é o vero conhecimento intelectual deles) passa
pela sua vivência. A qual pode ser uma simples aventura espiritual, sem
dimensão concreta imediata no mundo externo, mas que implica uma adesão
do ser pessoal de quem vivencia o valor à sua presença. A experiência dos
valores é, assim, algo de emocional e intuitivo que depois se pode raciona-
76 revista brasileira de filosofia – RBF 239

lizar. Como, aliás, sucede com várias escolhas vivenciais, em que o espírito
como que dá um salto por sobre a razão e as suas lentas rodas dentadas. E
depois de chegado à conclusão, vem atrás, e deixa que essa tola mas arru-
mada governanta da Casa do Espírito limpe o pó do estrondo da iluminação,
e encontre justificações lógicas e argumentos convincentes.
Nesta perspectiva contrariamos, como é óbvio, as concepções de inte-
lectualismo radical, como, por exemplo, as de Honeker, para quem, na sua
essência, o valorar é «um facto intelectual».
Mas esta posição sobre o carácter sobretudo emocional e intuitivo do
acesso aos valores não lhes retira, como é óbvio, nem uma dimensão contex-
tual (histórica e social), nem uma radicação ou pressuposto psicológico (e
biológico antes dele), nem, como aliás dissemos, uma ulterior racionalização
valorativa, pelo menos quando pedidas contas da opção tomada.
Messer observou com muito acerto uma característica do juízo de valor
que traz um argumento em favor do que acabamos de afirmar. Ninguém
será capaz de demonstrar racionalmente, e a tratos de polé de silogismos, a
bondade de um juízo de valor a outrem se esse outrem não tiver desde logo,
num ápice, compreendido a radical distinção entre dois exemplos abissal-
mente contrapostos de valor e desvalor. Como o de um ser dissoluto, de um
lado, e um exemplo moral, por outro. Quem tiver cegueira a esse contraponto
não será susceptível de conversão (ou cura) por via meramente lógica ou
discursiva.
Este carácter emocional-intuitivo dos valores opera ao nível individual,
e para a apreensão sobretudo dos mais altos valores. Ao nível colectivo, o
problema é diverso.
Se devemos recusar o mau uso da expressão e a consideração como
valores de bens ou mesmo outras entidades sem valiosidade apreciável no
plano espiritual ou cultural, o certo é que não será de excluir que uma sensação
íntima de prazer axiológico possa resultar de uma encenação meramente
contextual da peça da existência, num dado tempo e lugar. Quando se ouve a
um hippie que o culminar da sua vida foi fumar ou injectar a droga X ou Y,
ou a um iupi que a sua mais profunda experiência estética foi um certo ganho
colossal na bolsa, quiçá depois de uma jogada de alto risco, compreende-se
que a consciência pode estar embotada ou mesmo cauterizada, não reconhe-
cendo os verdadeiros valores. Dizíamos supra não haver apenas casos de
cegueira, mas também de miopia, daltonismo e outras doenças ópticas. E
também há a vista cansada, que é o correspondente oftalmológico daquilo
a que alguns moralistas chamam «consciência cauterizada». Com efeito,
pode haver que se tenha cansado, ante o desconserto moral envolvente. E
que insensivelmente tenha acabado por aderir ao que lhe repugnava, e talvez
seção 1 – filosofia jurídica e social 77

ainda repugne, no mais íntimo. Nesse caso, os valores ficam adormecidos, a


um rés-da-vida muito rasteiro...
Quiçá poderemos mesmo adoptar os cinco critérios de «altura» dos
valores, de Max Scheler. Valerá mais o mais durável: contra a cultura da hora,
do momento, do efémero. Valerá o mais inteiriço, o menos divisível: contra
a fragmentaridade pós-moderna? Valerá o mais fundamental: mas onde
encontrar esse ponto de apoio de Arquimedes? E, naturalmente, voltando
ao próprio âmago do contacto com o valor, será mais valioso aquele que
mais profundamente nos der uma sensação de completude. Mas, e os exem-
plos do hippie e do iúpi? Não valem as sensações deles? Não sentem eles
essa plenitude em situações ou por feitos que fazem encolher os ombros ou
abanar a cabeça de comiseração a outros, que certamente se veem ao espelho
(se o tiverem) como mais sábios? Mas porque é mais sábio quem renuncia?
Finalmente, maior valor será o que for relativo a entidades maiores: como,
desde logo, o Homem e a sua Humanidade. Mas o que é esta, e o que é
aquele? E não haverá outras entidades maiores ainda: como a natureza, ou
a(s) divindade(s)?

4. Crítica aos valores constitucionais e sua defesa

Sabemos que há críticas à consideração dos valores, até no plano jurí-


dico – sobretudo por poderem eles não espelhar o que se crê serem os valores
dominantes:
«(...) não é tarefa da Constituição impor um catálogo de deveres éticos ou
uma ética socialmente aceite, ainda que seja normal que a reflicta. Como, pela
sua própria natureza, não se prestam a ser matéria de decisão em referendo
(...) é discutível que os valores duma constituição sejam realmente e por esse
mero facto a ética social da maioria. Não é impossível que sejam, ao invés, a
ética que o intérprete da Constituição, os partidos e os meios de comunicação
dominante impõem à maioria.» (Menaut, 2004: 200-201)
No fundo, a crítica aos valores constitucionais parece pressupor a
assunção de que os valores a consagrar constitucionalmente deveriam ser
outros... Só isso. É sobretudo uma crítica à recepção dos valores sociais (ou
pretensos valores sociais) pela Constituição e pelos constitucionalistas...
Mas se a concretização dos valores, que plenamente consideramos
válidos em Direito Constitucional, apesar das críticas, nos faz rejubilar com
um contentamento de transporte para regiões mais altas, não deveremos
esquecer que a garantia da efectivação desses valores são as virtudes. E a via
para a sua realização.
78 revista brasileira de filosofia – RBF 239

E não ignoramos também que há ainda muita relutância em falar em


virtudes, hoje. Como bem explicitou Romano Guardini, manifestando a sua
própria dificuldade em falar de «virtude»:
«Suponho que a palavra produz em quem a escuta a mesma sensação
que eu tenho ao pronunciá-la: algo como que uma incomodidade, como de
pretexto para reinação. É uma sensação compreensível. Nela se encerra o
protesto contra o orgulho moral e, em concreto, contra quem se considera
instalado no bem, eticamente superior; e também a desconfiança de que o
orgulho possa ser ainda hipocrisia, já que constantemente estamos faltando à
bondade, e neste caso as faltas ou se não admitem ou se ocultam. Porém neste
protesto há também algo de bonito: o pudor que se guarda na hora de ostentar
o ético. Isto é considerado contrário à ordem das coisas, já que o bem se não
deve apregoar nunca; tem que fazer-se notar, mas por dentro; tem que ser
sempre o mais importante, mas não colocar-se directamente como o primeiro
e exibindo-se.» (Guardini, 1999: 242)
Todavia, não nos convencem as razões dos críticos dos valores como
categoria útil e dinâmica no plano constitucional. Se a ordem constitucional
não ocupar, de forma aberta, democrática e pluralista, como é óbvio, o
terreno dos valores, ele será ocupado por valores sectários, particularistas,
fechados, totalitários, ou pelos anti-valores niilistas etc. Do mesmo modo, se
a ordem constitucional não louvar e praticar a virtude, tratando-a pelo nome,
dar-se-á pouco conta da sua acção ética, ou ela nem sequer existirá de forma
relevante, notória, consciente: porque verbalizar e conceituar é conceber, e
conceber é afinal criar. Começar a criar, pelo menos. A Guardini responde-
ríamos com Anatole France, que num livro emblemático mostrou que, em
matéria de virtude, nem tudo o que reluz é oiro, e ri melhor quem ri por
último. Aí, dispara uma personagem: «Tu te trompes, Dorion. La philoso-
phie de la vertu n’est pas morte dans ce monde» (France, p. 66). A verdade
é que no livro de Anatole France, que tinha que ser um romance, para mais
agil e dialecticamente se fazerem o contraste e os matizes da alma humana,
seus segredos e da sua evolução, só no fim se verá quem é quem... Numa
advertência séria contra as aparências e as virtudes de aparência.
Pese embora ao decorum de uns, e às críticas e receios de outros,
valores e virtudes são elementos da ética constitucional e, como tais, devem
estudar-se e afirmar-se.
Evidentemente que Guardini está coberto de razão ao verberar os fari-
seus de mau gosto, que batem com a mão no peito proclamando-se pessoal-
mente muito virtuosos (outros, sem bater com a mão no peito, mas igual-
mente fariseus, mostram igual despudor ao proclamarem-se o supra sumo
da ética – como se dizê-lo muito o convertesse em verdade). Em qualquer
dos casos é, normalmente, hipocrisia, e chega por vezes a nem o ser, porque
os auditórios nem sempre são ingénuos. Mas, do que se trata sempre é de
seção 1 – filosofia jurídica e social 79

uma enorme falta de bom gosto e de uma considerável dose de ausência de


bom senso, de razoabilidade. Quem é a pessoa decente que passa a vida a
dizer «Senhor, Senhor» (Mt. VII, 21) ou «Ética, ética» ? Aliás, felizmente,
estes tiques são fatais para as reputações em alguns círculos. E, em todo o
caso, Vinícius de Moraes liquidou culturalmente esses alegados e autopro-
clamados «puros», na sua Carta aos Puros:
«Ó vós, homens sem sol, que vos dizeis os Puros
E em cujos olhos queima um lento fogo frio
Vós de nervos de nylon e de músculos duros
Capazes de não rir durante anos a fio. (...)
Ó vós que vos comprais com a esmola feita aos pobres
Que vos dão Deus de graça em troca de alguns restos
E maiusculizais os sentimentos nobres
E gostais de dizer que sois homens honestos.

Ó vós, falsos Catões, chichibéus de mulheres


Que só articulais para emitir conceitos
E pensais que o credor tem todos os direitos
E o pobre devedor tem todos os deveres.» (Moraes, 1998)

5. Da universalidade e da particularidade dos valores

Mas a questão dos valores pode esbarrar com uma desconstrução filosó-
fica ou ideológica. Afinal, que valores? Os teus ou os meus? Os de gregos ou
os de troianos? E que partido tomará a Constituição formal e os constituintes
que a elaborarem? Ou os revisores que a reformarem?
António José de Brito critica duramente o pluralismo ético e a resig-
nação teórica com o mesmo nos nossos dias, abrindo um artigo recente desta
forma:
«O filósofo que aponta o que, incondicionalmente, deve ser ou o que tem
valor em si, está um pouco na posição do ditador que pretende impor a todos
as suas orientações axiológico-políticas. É óbvio que hoje em dia a atitude
do ditador recebe a maior das reprovações. Compreende-se, assim, que um
grande número de pensadores se recuse a colocar-se numa situação alvo de
uma generalizada repulsa, declarando que o género humano – ou uma parte
do género humano – está completamente errado e limite-se a apontar o que
certas pessoas ou grupos de pessoas – nações, raças, igrejas – tomam como
modelos de conduta e nada mais. As prescrições são, assim, abandonadas por
puras descrições.» (Brito, 2011: 252)
Distinguiríamos: uma coisa é querer impor ditatorialmente uma ética
a todos os demais (a nossa – e isso não pode ser coisa boa, nem ter bons
80 revista brasileira de filosofia – RBF 239

efeitos, por muito excelente que seja a nossa ética), outra coisa, diferente, é
aceitar de forma acrítica qualquer dislate moral, e mesmo acomodar-se ao
puro e simples atomismo e pluralismo ético naquilo que comodamente nos
exime de pensar e procurar ir mais além. Sabemos que a qualificação como
«dislate moral» também depende de quem qualifique, mas há, por assim
dizer, um conjunto de regras mínimas de convivência: e essa «mínimo ético»
hoc sensu é que, na verdade, dá a base ao Direito – pois non omne quod licet
honestum est... Digamos que o feroz ou loucamente anti-ético seria, em geral,
considerado crime... Embora sejam muito complexas as generalizações.
Por outro lado, não parece haver dúvidas de que a não aceitação, sobre-
tudo no plano jurídico, de algumas consequências do pluralismo de convic-
ções sobre o certo e o errado, pode levar a um totalitarismo. Do mesmo modo
que a aceitação acrítica do pluralismo, e a sua aplicação à outrance também
conduziriam ou ao anomismo mais dissolutor, ou a uma outra forma de tota-
litarismo (como o descrito por Steven Lukes, 1996): quando se pretendem
punir os que supostamente infringem os ditames da nova ortodoxia anti-
-dogmática, sobretudo os que pecam por distracção ou apenas pecam na
perspectiva persecutória de novos inquisidores da plena heterodoxia, ou que
na verdade a podem utilizar para vinganças pessoais ou meramente para
virem a ocupar os lugares dos outros... (Finkielkraut, 2011: 121ss.)
Em todo o caso, salvo desinências ainda não muito relevantes, parece
ser verdade que, sobre bases éticas judaico-cristãs, se criaram valores a que
chamamos burgueses. Descobrimos há não muito uma obra deliciosa sobre
o assunto, que dá que pensar: Les valeurs bourgeoises (Hourdin; Ganne,
1967).
Desde logo, se há valores burgueses é porque os valores não são, pelo
menos sempre, absolutos (Ferreira da Cunha, 2006: 703 ss.; Hessen, 2001:
95 ss.). E isso é uma conclusão perigosa, que muitos dos especialistas na
matéria não ousariam subscrever. Pior: que repudiariam com veemência.
Contudo, cremos que a conclusão pelo carácter não absoluto dos valores
se impõe. Caso contrário, uma classe, ou o pensamento associado a ela, não
poderia ter valores seus, privativos, antes os valores seriam de todos – e até
só o seriam mesmo se de todos comuns fossem. O mito de uma Constituição
pequena, enxuta, consensual afinal pode ancorar-se nessa ilusão de uma
«comunhão de santos» em valores unânimes.
Ora o facto de se reconhecer que há valores localizados, e, mais ainda,
valores «de classe» é uma revolução epistemológica e, mais ainda, ética. E
na verdade, apesar de os valores em geral serem muitas vezes desgarrados
de uma situação, de um contexto, como que imaterializados, pelo menos
a sua tonalidade e a sua interpretação não são absolutos, mas radicados.
seção 1 – filosofia jurídica e social 81

Evidentemente que os valores religiosos são radicados, e nada consensuais,


segundo os credos (apesar de poder haver profundas convergências entre
muitas convicções espirituais, para além das idiossincrasias – Eliade, 1992;
Schuon, 1991). E também os valores estéticos comportam imensa variação.
De modo semelhante, os valores políticos naturalmente decorrem de opções
ideológicas. Há quem diga, até, que certas ideologias não são senão a adesão
a certos valores... E mesmo os valores morais, que deveriam (em teoria)
congregar todas as pessoas de boa vontade, de educação mínima, de trato
cordato etc., mesmo esses, não são consensuais. Assim afirma Hessen:
«Há, com efeito, homens, dotados aliás dum alto intelecto, que são, por
assim dizer, cegos para certos e determinados valores. Não me refiro já a
certas pessoas, possuidoras de uma inteligência unilateral, que ignoram o
mundo do belo e da arte, mas sim a um certo tipo de espírito muito moderno e
generalizado que parece, muitas vezes, associado a um fino intelecto, rápido e
cheio de mobilidade, geralmente possuidor de uma alta cultura, e que todavia
não possui o sentido dos valores éticos (...).» (Hessen, 2001:116)
Hessen acrescentava à cegueira a valores éticos idêntica dificuldade
com os valores religiosos. Mas fiquemos pelos primeiros. Não é apenas o
problema, visto da perspectiva de quem acredita em certos valores morais, da
indiferença ou até reacção de outros a esses mesmos valores. É que se coloca
o problema, importantíssimo, de quem define os valores, para poder acusar
de cegueira os que deles não partilhem... A verdade é que, perante a justiça,
a liberdade, a igualdade, ou outros valores, há quem se não comova. Não
cremos que seja uma qualidade esse embotamento. Mas tem de reconhecer-
-se que é precisa alguma audácia para proclamar que a nossa verdade é a
verdade, mesmo nesta matéria (principalmente nesta matéria). Contudo, é
um risco que se terá que correr. Quando lembramos Rousseau e o que ele
diz sobre a liberdade, pensamos que há quem esteja agrilhoado na caverna e
perdemos os complexos relativistas: «(...) de vils esclaves sourient d’un air
moquer à ce mot liberté» (Du Contrat Social, III, 12). O mesmo diz William
Cowper: «Freedom has a thousand charms to show / That slaves howe’er
contented, never know» (apud Sen, 2010: 378).
Não podemos deixar que a liberdade (e outros grandes valores) sejam
relativizados por quem lhes não conhece as delícias... Por quem mesmo sofre
pesadamente a sua privação.
A não consensualidade é a situação (um pouco angustiante, até, para
quem não esteja habituado à grande variedade e relatividade das posições)
em que se encontram os valores burgueses, como, também, os valores
republicanos, por exemplo. Os primeiros, como valores de uma mundivi-
dência de classe. Os segundos, como valores de uma cosmovisão ideológica,
embora o republicanismo seja, em geral, uma ideologia «trans-ideológica»,
82 revista brasileira de filosofia – RBF 239

com alguma transversalidade... E o que se diz dos valores diga-se, em certa


medida, e mutatis mutandis, das virtudes (Foyer, 2009: 89 ss., 349 ss.).
Pois bem. A crítica aos valores burgueses é uma crítica, afinal, talvez
não a valores, mas a comportamentos que não poderíamos, por definição,
alçar a valores, como a mesquinhez, o terra-a-terra, o materialismo, a crença
na legitimidade da desigualdade etc. É, em suma, a crítica da adoração do
bezerro de oiro, manchado pelo «sangue dos pobres» (Hourdin; Ganne,
1967: 5-8).
Já, pelo contrário, a defesa dos valores burgueses no referido livro é
realmente um pouco surpreendente. Como é evidente, o defensor, Georges
Hourdin, não vai defender o que o atacante, Gilbert Ganne, critica e execra.
Não é isso que ele defende. Pelo contrário, são valores até certo ponto
consensualizáveis – e essa é, realmente, a grande arte da burguesia, tanto em
relação aos valores como às virtudes: o procurar transformar a sua ideologia,
a sua cosmovisão, em ideologia e cosmovisões naturais, de todos.
O autor começa por confessar que já execrou a burguesia, que a amaldi-
çoou e a culpou por todos os crimes. Reconhece mais fraternidade e solida-
riedade na classe operária e mais comunhão com a natureza nos camponeses.
Mas considera que os valores burgueses têm um «carácter universal», com
que a burguesia teria enriquecido «o património comum da humanidade».
De que forma?
Que valores são esses que se pretendem universais? Além de uma dada
pose, um certo estilo, que é revolucionário por um lado (veja-se o que da
burguesia dizem Marx e Engels no Manifesto Comunista) e depois se torna
acomodado (no «contra-senso permanente que é um burguês de direita»,
como afirma Hourdin), são apresentados, em tom enfático, alguns:
a) Progressismo. Desde logo, a defesa e a prática do progresso econó-
mico, mas também do progresso educativo, e do progresso que leva à Paz. O
qual é cultural e moral, antes de diplomático e político.
b) Pacifismo. Apesar da acusação recorrente de que o capital não tem
pátria, e de que visa apenas o lucro, ainda que fomentando guerras, preda-
ções, insensibilidade social e até à saúde e vida alheias, o autor considera que
o valor burguês, aqui, seria mesmo o da defesa e construção da paz.
c) Livre Pensamento. Implicando séria atenção quer à liberdade da sua
expressão, quer à liberdade da sua formação e crítica, nomeadamente por
uma grande atenção à Educação e à sua qualidade e difusão por todos os
estratos sociais.
d) Tolerância e Fraternidade. Ambas praticadas com «fé na prática da
liberdade e na procura da justiça». Exigindo respeito pelas próprias opiniões,
seção 1 – filosofia jurídica e social 83

e tributando o mesmo respeito pelas opiniões dos outros. Com confiança na


descoberta do que cada um tem de melhor – o que poderíamos dizer remete
para o direito «ao livre desenvolvimento da personalidade».
e) Humanismo. E desde logo a defesa dos Direitos Humanos (e impli-
citamente dos Direitos Fundamentais – que, por comodidade, se podem
considerar a versão doméstica, em cada país, daqueles direitos universais),
não só os políticos, mas também os sociais. E o autor curiosamente considera
que é aqui, na defesa dos direitos de liberdade, que se separam os valores
burgueses dos que chama socialistas (querendo referir-se apenas aos dos
países do antigo Leste europeu e afins), afirmando, profeticamente:
«O que hoje continua a separar o socialismo (China e Cuba à parte) das
nossas sociedades industriais burguesas, que já não são liberais senão de
nome, é a concepção das liberdades individuais (...) Mas ainda aí existem
indícios de que as necessárias aproximações se irão produzir.» (Hourdin;
Ganne, 1967: 37)
E chega ao ponto de afirmar a não contradição entre os valores burgueses
e os socialistas, formulando a dado passo esta imagem de certo modo cati-
vante, embora naturalmente discutível (como também muito discutível é se
a ex-URSS, e em especial a de uma dada época, se poderia tomar como
representante do socialismo, ou pelo menos de todo ele – mas esse já é outro
complexo problema):
«Se vejo aparecer, no écran da televisão, Kossyguine com ar cortês, de
homem de bem, inteligente e plácido, de grande caixeiro-viajante obrigado
a ocupar-se das coisas da vida internacional, eu reconheço-o como um dos
meus (...) Deixemo-nos de coisas! A burguesia não morreu, mesmo nos
países socialistas.» (Hourdin; Ganne, 1967: 35)
E o curioso é que é a própria ideologia marxista-leninista (que à partida
é de classe e de clivagem) que parece também aspirar a uma universalização.
Como afirma Álvaro Cunhal:
«O carácter humanista da moral proletária deriva fundamentalmente de
que os interesses e os objectivos do proletariado coincidem com os do futuro
da humanidade no seu conjunto, de que cabe ao proletariado a missão histó-
rica de pôr fim à milenária divisão da humanidade em classes antagónicas,
em exploradores e explorados, e de criar a sociedade sem classes. Com o
comunismo, a moral do proletariado, no seu desenvolvimento, conservando
embora as suas raízes de origem, deixará de ser uma moral de classe, para
se tornar a moral de todos os homens fraternalmente unidos por objectivos
comuns, a “moral verdadeiramente humana” de que falava Engels.» (Cunhal,
1974)
Assim, perguntamo-nos de novo pela consensualidade ou não dos
valores. E em grande medida avançamos a possibilidade de haver um
84 revista brasileira de filosofia – RBF 239

enorme consenso formal, sobre grandes ideias atractivas, mas depois uma
especificação ou concretização diversa, designadamente por via de ideolo-
gias diferentes e suas diversas práticas.
A ética do comerciante não é a do intelectual, ou a do militar. Podem
comungar todos de um fundo ético comum, e dissentir em questões parti-
culares, nomeadamente deontológicas. Mas há mais que isso. Na ética
castrense, por exemplo, a deontologia está muito para além das regras de um
ofício mecânico ou burocrático: prende-se com o viver e o morrer, o matar e
o não matar etc. Há uma diferença qualitativa, não uma mera desinência ou
uma especificidade folclórica.
Além dos aspectos de classe e actividade profissional, também os
civilizacionais (chamemos-lhes assim) constituiriam, para alguns, clivagens
insanáveis no plano valorativo.
Alguns autores têm sublinhado pretensos valores autoritários asiáticos,
contra pretensos valores democráticos ocidentais. A universalidade dos
direitos humanos, por exemplo, estaria assim em sério risco. Porém, uma
autoridade como Amartya Sen desvaloriza e desmistifica por completo
essa ideia. Pelo contrário, as ideias deste renomado autor contemporâneo
assentem precisamente
«na crença no potencial das diferentes pessoas de diferentes culturas
para compartilhar muitos valores e concordar em alguns comprometimentos
comuns. O valor soberano da liberdade (...) possui, com efeito, essa caracte-
rística de acentuada presunção universalista.» (Sen, 2010: 313).
Outro problema igualmente complexo é o da compatibilização entre
valores, e das suas possíveis antinomias e conflitos. Evidentemente que nesse
capítulo deve imperar a ideia (nascida no seio de querelas hermenêuticas do
Direito Constitucional) de concordância prática (Ferreira da Cunha, 2008:
63 ss.) entre valores em conflito, com a preservação do máximo de efectivi-
dade possível de cada valor em confronto, mas, no mínimo, de um círculo
radical de cada valor. É evidente que nem mesmo os valores são absolutos,
no sentido de, por mor de um valor, se ter de sacrificar totalmente um outro.
E por isso é que uma tabela de valores abstracta seria uma monstruosidade.
É apenas no concreto, e parcialmente, que um valor pode ceder a outro, ou
um valor pode sobrepor-se a outro. Tal em nada retira ao sistema axiológico
em causa. Pelo contrário. Dá-lhe a flexibilidade necessária à complexidade e
variedade das questões concretas da vida.
E uma das grandes vantagens de um não cognitivismo ou objectivismo
desta concreta ética de valores é o de não fundar uma moral positivada num
manual de escuteiro qualquer, permitindo outrossim a evolução dos sentidos
dos grandes valores, adaptando-se aos novos tempos. Alguns poderão criticar
seção 1 – filosofia jurídica e social 85

valores constitucionais que ainda não se concretizaram. Mas a verdade é que,


parafraseando Marx, mutatis mutandis, a Constituição não é uma utopia,
com «cardápios detalhados para os botecos do futuro». Tal como o tempo
presente, ela está entre o passado que já foi, e um porvir que ainda não se
concretizou. Sempre (Brunet, 2009: 130).

6. Comparando constitucionalismos

Sublinhou, já nos finais dos anos 80 do século XX, Peter Haeberle que
o Direito Comparado era o quinto método de interpretação, a acrescentar aos
que Savigny sintetizou, em 1840, e que continuam como um dos arsenais
jurídicos do passado mais repetidamente utilizados nos nossos dias. Será a
utilização desse vector hermenêutico que iremos usar agora.
Da lição da Constituinte e da Constituição espanholas muito há a reco-
lher. É até um legado mais estruturado que o provindo da Convenção e do
projecto de Constituição europeia.
Ao irem beber na Constituição Portuguesa de 1976, os constituintes
espanhóis de 1978 usufruíram dos data, do espírito de um moderno Estado
Democrático e Social de Direito, e puderam melhor organizá-los (Ferreira
da Cunha, 2003: 95 ss.). Coisa que a acidentada feitura da contudo excelente
Constituição portuguesa de 1976 não permitiria.
Porém, como ninguém foge à sua circunstância, também acabaria a
Constituinte espanhola por inflectir a pureza conceitual original em favor
de alguma cautela política, sacrificando ao ritual constitucional do «depois
de casa roubada, trancas à porta», pelo qual cada constituição procura evitar
o que considera serem erros, excessos, ou perversidades da realidade cons-
titucional anterior (e sobretudo da imediatamente anterior). Donde, saídos
do franquismo, os constituintes espanhóis elevaram o princípio do «plura-
lismo político» à categoria mais alta, mais fundante, no domínio juspolítico,
atribuindo-lhe a dignidade de valor superior. Não fosse o diabo tecê-las,
até porque os espanhóis, não acreditando em bruxas, sabem que las hay. E
dizem-no.
De qualquer modo, ficaram a coroar a Constituição espanhola três
belíssimos, fundantíssimos valores: Liberdade, Igualdade e Justiça. Para
além de se ter incluído mais um alegado (mas não real) «valor», o pluralismo
político. O qual, como se disse, sendo obviamente muito importante, seria
contudo subsumível na Liberdade.
São valores de que tem de reclamar-se qualquer estado constitucional
dos nossos dias, em qualquer parte do Mundo. Porque são valores globali-
zados, e não privativos de nenhuma cultura específica, ou de qualquer partido
86 revista brasileira de filosofia – RBF 239

ou ideologia. Embora possa haver incompreensão, em alguns sectores, relati-


vamente a alguns deles, ou quiçá a todos...
Cremos que não pode haver uma visão canónica do que cada um
destes valores seja, precisamente para evitar que do canónico se passe ao
dogmático. E, para além de um círculo mínimo de cada um (tal como no
núcleo duro, irredutível e irrenunciável dos direitos fundamentais – «desco-
berta» e «conquista» que partiu da interpretação do art. 19/2 da Grundgesetz
– Haeberle, 1983; Drews, 2005), que se pode apurar quase com o senso
comum, estamos em crer que o ideal é a abertura de cada um dos conceitos:
de forma a permeabilizar a doutrina a novas ideias, novas vivificações dos
mesmos – que, caso contrário, enquistariam em fórmulas feitas, tendendo a
não ter sentido com a evolução das sociedades e das mentalidades.
Os valores podem não ser, em teoria, muito precisos. Mas é precisa-
mente daí que pode surgir a sua enorme riqueza prática, porque mais plásticos
assim a serem re-construídos e invocados como tópicos sempre renovados
(e tópicos de grande alcance persuasivo) a partir de pleitos constitucionais
concretos.
É necessária uma clara ideia sobre a posição relativa de valores e princí-
pios na hierarquia dos entes constitucionais. Como disse Cabral de Moncada:
«Se virmos bem, teremos de reconhecer que é e será sempre uma determi-
nada interpretação desses valores positivados, valores espirituais projectados
sobre a vida, na sua combinação com as exigências das mais fundamentais
condições de vida das sociedades, que constitui a base dos “princípios
gerais” do ordenamento jurídico dos Estados.» (Moncada, 1955: 307)
É necessário ainda que estejamos preparados para algumas antinomias
e dificuldades, como assinalou, por exemplo, Max Scheller.
Desde que não se contradigam a si mesmos, a ductilidade destes valores
é muito grande, e apta precisamente a desempenhar um papel no trabalho de
Sísifo da permanente re-construção teórica e simbólica dos fundamentos das
nossas sociedades pluralistas. Conquanto tal labor seja feito com seriedade e
animado precisamente pelo espírito fundamental desses valores: com ânimo
de Liberdade e para a Liberdade, com aspiração à Igualdade na diferença,
que parte já da essencial igualdade e irrepetibilidade de todos os Homens, e
com constante e perpétua vontade de Justiça.

7. Contributos do processo de constitucionalização europeia

Recordemos história recente. A Convenção Europeia, que decidiu fazer


um Projecto de tratado constitucional instituidor de uma Constituição para a
União Europeia, integrou no seu projecto, na íntegra, a Carta de Direitos já
seção 1 – filosofia jurídica e social 87

anteriormente aprovada, a qual tinha já um Preâmbulo alusivo a valores. Mas


não prescindiu de antepôr um Preâmbulo geral a todo o texto. Daí resultaria
que coexistam duas tábuas de valores não coincidentes, nesse texto constitu-
cional que acabou por ser a base do actual Tratado de Lisboa.
O art. I-2.º do referido Projecto pretende precisamente esclarecer a
relação da União Europeia com os valores juspolíticos.
Na verdade, são aí considerados valores fundantes da União Europeia
entidades do mundo mental / cultural / espiritual que podem ser catalogadas,
em boa verdade, quer como valores, uns, quer princípios, outros, quer ainda
como atitudes e cumprimento de deveres fundadas nuns e noutros.
Exemplo deste sincretismo classificatório é a consideração como valor
do respeito pelos direitos, incluindo os das pessoas pertencentes a minorias.
Sem dúvida que este último caso é deveras e crescentemente importante, e
até reconhecido já na Constituição da Hungria de 1989 como concorrendo
para a coesão constitucional. Com efeito, diz-se aí que as minorias são
factores de formação do Estado: uma visão realmente original e ao arrepio
dos preconceitos hiper-concentracionários e unitaristas. Apesar de toda esta
importância, a sua dimensão absoluta, valorativa, será a nosso ver ainda
insuficiente, por excessivamente particular.
Nesta linha, indiscriminadamente se consideram como sendo valores
a Liberdade e a Igualdade, que o são, mas também aspectos ou desenvolvi-
mentos de uma e de outra (e também da Justiça, outro valor, que não é consi-
derado expressamente como tal – ausência clamorosa, num texto jurídico – a
fazer lembrar o tímpano das virtudes de Rafael – Ferreira da Cunha, 2004):
como a democracia, e o Estado de Direito (além do referido respeito pelas
pessoas pertencentes a minorias).
A falta da Justiça como valor não tem explicação nem justificação.
O valor da Justiça é fundamentalíssimo em Direito em geral. Além de ter
nos nossos dias dimensões políticas importantes, como quando se fala em
«Justiça política» e em «Justiça social» (Azevedo, 2000; Boudin, 1992: 122
ss. ou 1998: 275 ss.).
Recordemos dois clássicos apenas para aquilatar da lacuna. Se Otto
von Gierke já nos recordava que «A ideia de Direito é, como as ideias da
Verdade, do Bem e do Belo, só comparável a si própria e tem em si mesma o
seu valor. Por isso, se o fim superior de todas as normas jurídicas particulares
é a realização da justiça, é o fim de si mesmo» (Von Gierke, 1895, I: 15),
Radbruch vai mais longe e é mais especifico ao identificar o valor jurídico
com a Ideia de Direito e a Justiça: «O Direito é a realidade que tem o sentido
de servir o valor jurídico, a ideia do Direito. A ideia do Direito não pode ser
outra senão a Justiça» (Rechtsphilosophie, 123).
88 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Não são só, infelizmente, lacunas. São antinomias que o Projecto abriga
no seu seio. Há, por exemplo, uma contradição classificatória patente: se a
democracia e o Estado de Direito se encontram no elenco muito vasto de
«valores» no art. I-2.º, já no Preâmbulo da Carta dos Direitos Fundamentais
da União, da Parte II, integrado de pleno direito e com total valor jurídico
no projecto de Constituição (como vimos), com muito mais acerto se afirma
que a democracia e o Estado de Direito são antes princípios. Embora ainda
excessivamente generoso, o Preâmbulo é mais comedido que o referido
artigo I-2.º, considerando «valores indivisíveis e universais» apenas a digni-
dade do ser humano, a liberdade, a igualdade e a solidariedade.
No articulado acrescenta-se ainda a caracterização da sociedade resul-
tante da aplicação dos valores, comuns aos Estados-membros. É a descrição
abreviada da eutopia realizável pelo Projecto de Tratado Constitucional
europeu: uma sociedade «caracterizada pelo pluralismo, a não discrimi-
nação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre mulheres
e homens».
Todos estes são aspectos que desenvolvem, mas se poderiam reconduzir,
afinal de contas, à tríade valorativa liberdade, igualdade e justiça. Todos os
elementos invocados se subsumem nos três grandes valores. Talvez mais
nuns do que noutros, mas, em geral, em pelo menos um dos três.
Mais que a abertura do catálogo (que, para ser feita solidamente, talvez
tenha ainda que esperar a solidificação de ideias em suspensão nos ares dos
tempos), uma muito fecunda criatividade constitucional pode ver-se logo no
Preâmbulo da Constituição brasileira:
«Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia
Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segu-
rança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores
supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada
na harmonia social e comprometida, na ordem internacional, com a solução
pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
Constituição da República Federativa do Brasil.»
Como sabemos, Liberdade, Igualdade e Justiça têm precisamente um
contexto cultural. Eis que os valores clássicos estão todos individualizados
no Preâmbulo da Constituição brasileira, mas como que mesclados criativa-
mente (e com sentido histórico-cultural) com outros valores, enquadradores,
que os sustentam e os modulam.
Assim, a Igualdade não é apenas interpretável como a velha «Igualdade
perante a lei». Pois se ancora nos direitos sociais, no bem estar e no desen-
volvimento, além de nos outros dois valores clássicos. Uma igualdade com
seção 1 – filosofia jurídica e social 89

direitos sociais, com bem-estar geral e com desenvolvimento é uma Igual-


dade de um certo tipo. Ganha em sentido, ganha em determinação. É, numa
palavra, mais cidadã e mais igual. Além de que a remissão para a utopia
social de uma «sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
harmonia social» igualmente robustece profundamente o valor da Igualdade.
De modo semelhante, a Liberdade é, neste mesmo contexto, totalmente
descartada de qualquer ideia de mero laissez faire, com esta modulação
paralela da Igualdade, e também a Justiça redobra em sentido quando assim
enquadrada. E não esqueçamos que se fala quer de direitos sociais, quer de
direitos individuais, acautelando as várias dimensões da Justiça.
Contudo, tal como depois sucederia no projecto de Constituição euro-
peia, ainda aqui persiste algum sincretismo. Não cremos que sejam ao mesmo
título, e em rigor, passíveis de consideração como «valores superiores», em
pé de igualdade, todos os que são enunciados neste Preâmbulo. Desde logo,
os direitos não podem ser considerados valores.
Em contrapartida, fica o desafio em pensar o desenvolvimento e o bem-
-estar como valores. Será que os poderemos integrar nos valores simples-
mente sensíveis, ou compreender que eles têm uma dimensão cultural, e, por
isso, poderiam ser incluídos nos espirituais? Grave desvio aos princípios?
A imaginação constitucional não pode petrificar-se perante desafios de
heterodoxia, como também não pode ultrapassar barreiras levianamente, só
pelo gosto de inovar, numa paixão da originalidade realmente sem sentido,
e reprovável. Mas a porta dos valores está aberta. E a criatividade valora-
tiva, como a manifesta na Constituição brasileira, é certamente um passo
decisivo para a imaginação axiológica. A qual, como tudo o que é huma-
namente construído, é, e deve continuar a ser, serviço do Homem, e nunca
o contrário. Apesar de o Homem ser protagonista de valores – fórmula que
funcionalizando-o de forma muito especial, o engrandece – o certo é que
não é títere de uma peça que não escreveu. Os valores do Homem são os
seus valores. E por isso ele os encarna e faz actuantes. E os pode renovar e
aprofundar, com imaginação ética. E as constituições, que não são templos
alegóricos habitados por sombras, mas instrumentos actuantes de cidadania
viva e sensitivas do pulsar e da cultura dos povos, obviamente interiorizam
e projectam esses valores, na sua dimensão dialéctica e dúplice, jurídica e
política.
Mister é – ovo de Colombo, mas cada vez mais vital – que essas cons-
tituições sejam na prática postas em acção por protagonistas políticos que,
sem apregoarem virtude, tenham a virtude como a virtualidade dos princí-
pios activos dos medicamentos: a capacidade de agir, e de sarar. A dimensão
ética da Constituição implica as duas dimensões: valores e virtudes. Numa
90 revista brasileira de filosofia – RBF 239

vera filosofia prática. Mas isso sempre soubemos, desde os romanos, ser o
próprio Direito, tout court. Porque cultivamos, dizia Ulpiano, veram nisi
falor phisophiam, non simultanam affectantes.

8. Neoconstitucionalistas e ética no Direito

Algumas aportações mais recentes não fazem a nosso ver senão


corroborar, noutras claves, noutros estilos, as grandes lições dos clássicos.
Infelizmente, muitos dos nossos contemporâneos animam-se com ideias
que já luziam nas alegadas trevas da Idade Média (ou até antes), desde que
bem embaladas em invólucros de pretensa novidade. Mas é óbvio que não
podemos estar desatentos ao que se vai fazendo no nosso tempo, por muito
que, por vezes, seja too much ado about nothing. A facilidade de publicação,
e a possibilidade de os editores apostarem em certos autores fiados na sua
audiência estudantil ou no seu crédito político levanta barreiras a muitas
publicações. Por outro lado, a má fama que se foi insensivelmente criando
para a obra clara e sintética, para mais na Filosofia, vai levando à prolife-
ração de trabalhos rebarbativos, redundantes, e imensos, que se resumiriam
em meia-dúzia de páginas, e que pouco de novo trarão.
Fiquemos, porém, com alguns tópicos, em diálogo com alguns dos
autores modernos que mais relevantes se têm mostrado nestas áreas para
uma tentativa de dilucidação do nosso problema.
Robert Alexy, contra a filosofia espontânea dos juristas que é o positi-
vismo legalista (como bem recordou um António Braz Teixeira), é um dos
que insistem em que o próprio discurso jurídico não pode ser separado dos
valores, e mais: que ele seria mesmo apenas uma modalidade, um caso espe-
cífico, do discurso prático ou moral. E a propósito de Alexy se diga, em clave
ao mesmo tempo constitucional e jurisfilosófica, ambas ligadas pela herme-
nêutica, que a vexata quaestio do despique (até ontológico) entre valores
e princípios, que alguns cuidam ingenuamente superar prescindindo por
completo dos primeiros, é afinal susceptível de uma tradução bem simples:
os próprios princípios são da família dos valores, e ambos é que têm conteúdo
axiológico, sendo as regras, que deles devem depender, mais o seu reflexo,
e o molde jurídico mais comum, ancilar, dependente, ao rés-do-chão (ou ao
primeiro andar, se neste colocarmos os actos jurídicos ou seus homólogos)
da pirâmide jurídica. Fundo axiológico, forma jurídica: eis, pois, uma formu-
lação que é afinal glosada, de mil e uma maneiras, pelos autores que nesta
sintonia andam. Contudo, Alexy não alinhará pelo pan-constitucionalismo,
sendo moderado na articulação lei / Constituição. Donde se deva certamente
perguntar se não será um tanto forçado considerá-lo (e na verdade a uns
tantos mais) como um puro (ou extremo) «neoconstitucionalista». Ou (talvez
seção 1 – filosofia jurídica e social 91

melhor ainda) se não será mais prudente entender o neoconstitucionalismo


não como o tal «tomar o freio nos dentes» por parte de uma Constituição
assumida como suprema e soberana (e nunca seria a Constituição em si que
o faria, antes os aurigas constitucionalistas e juristas em especial), antes
entendê-la como entidade reinante, sem dúvida, e obviamente cogente, inter-
ventiva até, não repugna nada que programática (sempre a Constituição é
programática, o problema é saber que tipo de programa tem), mas jamais
totalitária.
Uma Constituição não poderá ser um vasto eucaliptal secando em volta
todas as demais fontes. Pelo contrário, deve ser a seiva de que os vários
ramos do Direito se alimentem. Nisso, os mais denodados constituciona-
listas, ao pregarem a constitucionalização do Direito, têm razão. E ao cons-
titucionalizar-se o Direito todo, ele também se eticiza, ou melhor, se eticiza
com um timbre ético-político decididamente mais moderno.
Ninguém negará que o Direito Romano tem uma ética como fundo.
Mas será uma ética para o nosso tempo? Não cremos que o bonus pater-
familias possa ser, salvo nalguma lisura negocial e pouco mais, modelo de
virtudes e de valores para os nossos tempos muito mais pluralistas e muito
mais complexos. A ética do Direito hodierno poderá até trilhar novos cami-
nhos, e insuspeitados. Mas, pelo menos, deve ancorar-se sobre as principais
bases do Estado moderno.
Nem se fala de pós-modernidade, e é certo, como afirma Ferreira
Filho (2010), que não há Estado pós-moderno, isso não há, nem sabemos
muito bem como pudesse ser – a nossa pós-modernidade, a havê-la, seria
pós-estadual... Mas esse já é um outro problema.
Grossi (2011) insiste nessa categoria, por exemplo, mas mais no plano
da sociedade, da Constituição e do Direito que do próprio Estado. Aliás, o
Estado é, por natureza, por génese, um produto moderno, da Modernidade...
Talvez nessa vinculação à modernidade esteja a sua insusceptibilidade de
reforma ou sequer renovação pós-modernas...
A Modernidade evoluiu do Renascimento e do Humanismo para as
Luzes, Iluminismo e Esclarecimento, como agora se traduz, que sem dúvida
tiveram pontos obscuros, sombras, mas que em grande medida trouxeram
uma libertação tão radical e profunda que não estaríamos sequer em condi-
ções anímicas para dele prescindir. No Iluminismo e depois na Revolução
Francesa e Ocidental estão as bases do mundo liberal e depois democrá-
tico e social de hoje. Recuar a partir daí sempre foi uma irreparável perda,
como ocorreu com os totalitarismos de má memória, que todos recusaram os
fundamentos da nossa actual civilização, no que de melhor tem.
92 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Mas que fundamentos são esses? Sempre os valorativos, e constitucio-


nais. Que se podem sintetizar nos valores políticos atribuídos à Revolução
Francesa, que a Constituição espanhola de 1978 sintetizaria quase na perfei-
tação, mas que, por exemplo, os últimos textos constitucionais europeus
(que o são, ainda que alguns lhes recusem tal estatuto) desastradamente
têm confundido... Em suma, os valores (e alguns são homónimos de outras
realidades: principiais, por exemplo, mas também de virtudes) da liberdade,
da igualdade e da fraternidade (com variantes de justiça ou solidariedade,
ou humanidade... por exemplo). Debalde buscaríamos esses valores fora do
ambiente histórico-espiritual da Modernidade, e especificamente da posteri-
dade das Luzes, essa grande emancipação da Humanidade, porque caminho
para ela, que Kant assinalou no seu nunca por demais relembrado Was ist
Aufklaerung?
Luigi Ferrajoli, que sublinha o papel político (e ético) da decisão jurí-
dica (dos juristas – que não são meros subsuntores), avança, como é sabido,
quatro critérios da dimensão valorativa da pessoa, no fundo quatro grandes
itens, que são valores ou para-valores: igualdade, que, apesar de ser a ideia
ocidental mais tardia a entrar no «Synthopticon» dos Great Books da «Ency-
clopaedia Britannica», é, realmente, um valor; e ainda democracia, paz e
lei do mais fraco (esta última claramente expressa constitucionalmente no
preâmbulo, significativamente redigido por um poeta, da Constituição da
Confederação Helvética).
Talvez no rigor do eticismo mais estrito não se possam considerar como
valores estes três últimos; certamente tal não será mesmo possível, nem com
muito boa-vontade categorial, mas o certo é que reflectem eles, em clave
moderna, a luz própria das estrelas éticas que são os valores políticos funda-
mentais de que falávamos antes.
A paz é obra da justiça (Is., XXXII, 17), a democracia é o nome comum
da liberdade, que é valor também, e a lei do mais fraco uma dimensão (social,
sobretudo) da Justiça, outro dos grandes e primeiros valores políticos.
Um outro autor hodierno, e com igual fama de neoconstitucionalista, é
Carlos Nino, o qual nos reforça nesta perspectiva filosófica, e especificamente
ética, do novo (mas everything old is new again) do Direito Constitucional.
E fá-lo, nomeadamente ao criticar a cristalização epistémica da «castidade
metódica» (a expressão tomamo-la de empréstimo a Vieira de Andrade,
1973: 3-4) das práticas teóricas de quantos (de Hans Kelsen a Alf Ross,
passando por outros, de menor vulto) jurariam fidelidade eterna ao direito
posto, sem sequer aparente abertura para propostas de iure constituendo,
mas utilizando um argumento decisivo: pelo quanto tal denota de adesão
a uma Weltanschauung jurídica de fechamento a valores. Nino insiste na
seção 1 – filosofia jurídica e social 93

necessidade de diálogo e de fundamentação pelo moral, ao ponto de entender


os Direitos Humanos como direitos morais.
Em suma, o ponto de Arquimedes do Direito (como lhe chamamos desde
1978), e portanto o ponto de Arquimedes também do Direito Constitucional,
não poderia deixar de ser algo que é objecto da Filosofia do Direito também,
ou seja, os valores, uma das principais facetas da axiologia e da ética.
A principiologia de Ronald Dworkin encontra-se também porejada por
uma ideia de conteúdo, de substancialidade, e não de mero formalismo, o
que só pode ser entendido como uma remissão para a ética. Valem os prin-
cípios não porque como tais sejam «postos». Isso implicaria um positivismo
legalista já não de regras, mas de princípios, também criticado por um Zagre-
belsky no seu Direito dúctil. O que não custa conceber, porquanto há mesmo
um positivismo normativo não jurídico, por exemplo de uma normatividade
simplesmente moral, como assinalou Werner Schoellgen:
«O tipo moral de subsunção, que apenas trabalha logicamente (...) não se
distingue em absoluto do positivismo jurídico pelo espírito e pelo método,
mas apenas pela matéria. Trata-se de um positivismo de princípios, pois
manipula-se com estes da mesma forma que o positivista do direito com
artigos e parágrafos de um código (1961:18).» (tradução nossa)
Os princípios valem, isso sim, pelo seu conteúdo, que há-de ser moral.
Estas bases «ontológicas» levam à concepção de uma actividade judicial
em que o taking rights seriously remete para uma aplicação do Direito que
equivale a uma (pelo menos uma das possíveis) leitura ética da Constituição,
e de modo nenhum uma leitura simplesmente técnica, ou tecnocrática.

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Judaism – Jewish Law in Kelsen

Ari Marcelo Sólon


Professor Livre-docente da Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo (Fadusp). Professor da Fadisp e das Faculdades
Metropolitanas Unidas. Membro da Associação de Direito Judaico e do
Instituto Brasileiro de Filosofia. Advogado.

«Ich habe gehört, dass manche über den zehn Sephiroth eine Sephira
im Unendlichen zufugen, wonach also angenomen werden musste, dass es
am Anfang von Kether‚ Eljon ein im Undendlichen verborgenes Ding gibt,
welches die Ursache der Ursachen ist...» (Scholem, Gershom. Ursprung
und Anfänge der Kabbala, S. 392).1
«(...) Herzlichen Dank auchfür die Skizzeüber “Judaism – Jewish
Law in Kelsen”. Ichfinde den Gedanken, dass in der ReinenRechtslehre-
eine Art säkularisierter “jüdischerGesetzesglaube” zusehenist, sehrinte-
ressant und auchnaheliegend. Tatsächlichwurdensichviele “assimilierte”
Juden, konfessionslosodergetaufte Christen, geradedurch die Nazi-Ver-
folgungwiederihreralten Tradition und Religion bewusst. Was man im.
Jahrhunderteherablegenwollte, um nichtAußenseiterzusein, wurde nun
zuminneren Halt. Man kehrtezu den Väternzurück! So stelleichmir das

1
«Ichhabegehört» refers to a widely spread quotation from Rabbi Abraham from Köln,
the land of my ancestors, against Nachmanides, that figures as Kelsen spiritual ancestor, as
proven in this paper. My grandfather – also from Köln region – Rudi Strauss was named also
Abraham Ben Moshe: he was actually named after both first names of both quoted Rabbis.
Moshe was Moses Strauss, who fought against the occupation of the beautiful Rhein in the
Great War, river which was shown to me by Dr. Henning Kahmann during my stay at Max
Planck Institute, where I was researching as Stipendiat during the last August thanks to the
invitation of Professor Thomas Duve. I also want to enjoy this opportunity to thank my
colleague Monica Linhares from FMU for substituting me in my classes there (in São Paulo)
and Professor Hans-Peter Haferhamp for the vibrant reception in his cluster of excellence
Institute.»
98 revista brasileira de filosofia – RBF 239

auchbeiKelsenvor. Die vielenantisemitischenÄußerungen in Deutschland,


die sichgegenihnrichteten (Schmitt!), machtenein “Vergessen” seines
Judentums nun plötzlichunmöglich. (An e-mail from Michael Stolleis to
the author of this paper.)»

Resumo: Neste trabalho, tanto a influência direta quanto a indireta do


Judaísmo (Tora e Halachá, Lei Judaica) serão pesquisadas a partir da ótica
de Hans Kelsen (1881-1973). A influência direta é assumida por Kelsen a
si mesmo (e por Schmitt de forma polêmica). Por outro lado, a influência
indireta é postulada por nós no pressuposto de que existe uma analogia
estrutural entre a Lei judaica e Reine Rechtslehre na fase realista depois de
Kelsen. Nossa hipótese é que a mudança de metodologia de Kelsen não
se relaciona de fato com o novo ambiente americano da epistemologia
humeana renunciando a filosofia neokantiana, em vez de ser diretamente
ligada à sua consciência judaica, como ele mesmo em um ponto específico
de sua vida assume. Esta tese contradiz a afirmação do próprio Kelsen ao
longo de sua obra sobre um ateísmo militante e um ultra-racionalismo em
favor da secularização completa (ver religião secular) da ciência. No final,
nós vamos fornecer uma explicação para esta afirmação. Os outros aspectos
ideológicos de trabalho Kelsen, como o conceito Lassalian social da justiça
e da consciência alemã e austríaca, serão apenas tangencialmente tocados.
Palavras-chave: Kelsen – Direito Judaico.

Abstract: In this work, both direct and indirect influence of Judaism


(Tora and Halacha; Jewish Law) will be researched on Hans Kelsen (1881-
1973). Direct influence is assumed by Kelsen himself (and by Schmitt in
a polemical way). Otherwise, indirect influence is postulated by us in the
assumption that there is a structural analogy between Jewish Law and
ReineRechtslehre in the later realist phase of Kelsen. Our hard hypothesis is
that the change of Kelsen’s methodology has not indeed mainly to do with
American new environment of Humean epistemology disclaiming Neokan-
tian philosophy, rather being straight attached to his Jewish consciousness
as he himself at one specific point of his life assumes. This thesis contradicts
Kelsen’s own assertion throughout his opus about a militant atheism and
an ultra-rationalism in favor of complete secularization (see secular religion)
of science. At the end, we’ll provide an explanation to this assertion. The
other ideological aspects of Kelsen work, as the Lassalian social concept of
justice and the German and Austrian national consciousness,2 will be only
tangentially touched.
Keywords: Kelsen – Jewish Law.

2
«Stärker als all dies, stärker als der aller Vernunft und Sittlichkeit hohnsprechende
Verlauf der jüngsten Geschichte, deren Produkt das heutige Österreich ist, stärker als
Österreich selbst ist sein Wunsch: aufzugehen im deutschen Vaterland.» Kelsen, Hans, 1923:
ÖsterreichischesStaatsrecht.Tübingen: J.C.B. Mohr, 1923. S. 238.
seção 1 – filosofia jurídica e social 99

1. Introduction

In a memorandum written in 1967 by professor Levontin, Kelsen


answers to some speculations about direct influences of Judaism3 on his
works and on his thoughts. Professor Levontin had the chance to pose Kelsen
three questions related to the influence of Judaism on the Pure Theory of Law.
The first question was addressed to clarify the existence (or not) of any kind
of Jewish influence (conscious or inconscious) on the essence of an aimed
abstract legal science. Wouldn’t that aspiration of a formal theory of law
(or – more specifically enunciated – legal science) be a product of a universal
and cosmopolitan genius instead of a pure and separated particular national
cultural genius? Kelsen didn’t disagree with the direction of the question,
but said that in his opinion the Austrian influence in his theory was more
dominant, because of the fact that Austria was a multinational country. The
second question tried to discover if was there any Jewish influence (conscient
or inconscient) in the search of a presumed or basic authority in every legal
situation, for instance, on the insistence that contractual laws of the private
law derive from a basic norm of public law? The reason of this question is
that in the tradition of Jewish Law (Moréshet Israel) it is also presupposed
that the words of the Tora (Devarimd’Oraita) have more strength than the
words of the Sages. To the words of Prof. Levontin it appeared that Kelsen
endorsed and at this time without stressing another dominant influence. The
third question dealt with the relation between Kelsens theory and Austin’s
theory and tries to discover if there would be a sense in that Kelsens theory
is monist and Austin’s theory is dualist. In a dualist perspective, one can
identify two sides: at one side, the ruler comes opposed to the people, at the
other side. The first commands the second and the second must obey the first.
On the opposite, Kelsen is a monist who sees only one and continuous legal
process (schematized in the Stufenbaulehre) instead of a duplicity between
the ruler and people. Wouldn’t here emerge an influence of the Jewish mono-
theism? Kelsen also at this point of the conversation seemed to agree with
Levontin’s considerations without indicating any other influence.
In an homage after Kelsen’s death in 1973 so writes professor Max
Knight:4
«Kelsen machte kaum Hehl daraus, dass er sich in frühen Jahren im anti-
semitschen Wien hatte taufen lassen, um in seiner Laufbahn nitch behindert
zu sein, bekannte sich aber seit Jahrzenten zum Judentum. Die Rückung fand

3
And I thank professorIzhakEnglard, who sent me his paper «PetachDavar» and I specially
pay here a tribute to the efforts of Professor Levontin, who answered trough his wife hands
and the mediation of his son an mail regarding his Kelsenian memorandum.
4
Knight, 1973.
100 revista brasileira de filosofia – RBF 239

im 1940 im Genf statt, als ein Rabbiner ihn fragte, ob er sich als Katholiker
betrachte. Kelsen erklärte, er sei Jude und betrachte seither diese Erklärung
als seine unoffizielle Rückkehr zum Judentum.»
In a polemical way, full of prejudices in 1936 writes Schmitt against
Kelsen and his school by naming her as «die Wiener Schule des Juden
Kelsens». Schmitt charged Kelsen and his pupils of building an anti-scien-
tific and ideological Guild on the Legal Science, as long as the Jewish legal
thinkers had the strange academic habit of quoting exclusively one another:
«I merely draw attention to the insolent nonchalance with which the
members of the Vienna School of the Jew Kelsen exclusively quoted them-
selves mutually, and with what – for us Germans inconceivable – cruelty and
impudence different opinions were disregarded.»5
Sinzheimer’s Jüdische Klassiker der deutschen Rechstwissenschaft 6
published in 1938 tried rightly to protest against Schmitts verbal excesses.
One might observe that the twelve leading jurists7 discussed in that
book were indeed of Jewish origin but were not inspired by Jewish Law. Our
question here is not of Herkunft. We want to know if Kelsen’s contribution
had specifically to do with the impact of Jewish Law upon his own thoughts.
In a similar sense wrote Schmitt in a letter to his editor:
«Nocheins: Kelsens Normativismus und Identifizierung von Staat und
Gesetz ist doch nur möglich, wenn man eben nicht imStaat, sondern „im
Gesetz“ lebt. Gesetz, das kann oder konnte die Thora sein, aber wohl kaum
das BGB».8

2. «Im Gesetz leben»: Nomos vs. Tora

So what’s the influence of Tora in Kelsen thought? We are going to try


to render a plausible answer to this question by interpreting it in the sense of
Professor Levontin Memorandum and not in the sense of Herkunft.
Tora is not Law. It means a sum of instruction related to justice against
oppression, exactly in the same way as was the original concept of Nomos
conceived in Greece and in Israel during the Axial Age of the V century b.C.
Also the earliest roman Code of Laws, the so called XII Tables, drawn up in

5
Schmitt, 1936.
6
«Der Titel dieses Buches muss jedem auffalen, der bisher gewohnt war, wissenschaftliche
Denker nicht nach ihrer Herkunf, sondern nach dem Wert ihrer Leistungen zu beurteilen».
Sinzheimer, 1953.
7
Friedrich Julius Stahl, Levin Goldschmitt, Heinrich Dernburg, Josef Unger, Otto Lenel,
Wilhelm Eduard Wilda, Julius Glaser, Paul Laband, Georg Jellinek, Eugen Ehrlich, Philipp
Lotmar, Eduard von Simson. See in general the work Heinrichs, 1993.
8
Schmitt, 2007: 313.
seção 1 – filosofia jurídica e social 101

the year 450.b.C., vehiculated an expression of Nomos as a sum of teachings


regarding to justice. So there is a synchronization between the Tora renewed
by the Jews under the leadership of Ezra and the adoption of the fundamental
democratic laws in Greece.9
The identification of Tora with Law steams from its translation in
the Greek Septuagint as Nomos.10 Schmitt wants to prove that Nomos is
translatable trough the word Law only in the imaginary of Jewish Law after
the fatal translation of Cicero, in which Nomos became Lex, what he sees
as a product of the Philonic influence. For him Nomos (from the source of
Nemm) has nothing to do with Law. Besides that Schmitts argues that the
idea of Nomos had already priorly appeared in Homer works, contrarily to
the understanding of Pascal and Philo, who considered the Tora to be prior.
He is right in the sense that the original sense of Nomos is not Law, but
division. It relates to the concrete action of the division of lands.
However, Schmitt’s thesis based on Bogner – Die verwirklichteDe-
mokratie – sees Nomos only in the Homeric Polis, but not in the post-Solonian
Polis, when it was transferred from the religious Areopagos to the public
Agora as written Law based on the ideals of Isonomy. As Deuteronomy,
from this same times said: the Lawit’s not in the heaven (Deut. 30.12).11
Amazingly, when Jewish Law is nowadays treated in academic
research, a positivist first phase of Kelsenian model is adopted as applicable
to it, as in Elon’s classical book MishpatIvry, which mentions the Kelsenian
Grundnorm.12 What is disregarded is that the nature of Jewish Law is more
easily understood trough a pluralistic and realistic model of legal science.13

9
«Der radikalsten Einschnitt gegenüber dem alten Orient, wo das Königtum der Mittler
zwischen der irdischen und der himmlischen Welt ist, aber auch der tiefste Bruch gegenüber
dem Verständnis des Königtums, wie es im alten Testament etwa in der Königspsalmen
hervortritt, stellt das deuteronomische Königsgesetz vor. Hiernach geht die Einrichtungen
eines Königtums also allein auf den Wunsch des Volkes zurück. Gerechtigkeitgefühl, das auch
wie in Griechenland auch in Israel früh zu konstatieren ist.» Crüsemann, 1993. (Schriften des
HistorischenKollegs; Kolloquien 24).
10
Schmitt, 1974. In addition to Schmitt, see Cover, 1993 (Law, Meaning, and Violence
Series).
11
There is a legend of a jurist in the Talmud who was defeated as he requested heaven for one
miracle after the other to back him in a decision. Finally a heavenly voice pointed out to him
the law is «not in heaven».
12
Elon, 1973: 230-234.
13
This model fits to the Kelsen’s later irrational phase which is in my view more well
founded than the first phase as well as more applicable to Jewish Law and to the Roman Law
(die romanistischeJurisprudenzist fast immerschopferischgewesen according to Koschaker,
1938: 28) and also to the Common Law and the Islamic Law, that are both created without
direct legislative logical precedence.
102 revista brasileira de filosofia – RBF 239

The positivistic and normativistic model of legal science doesn’t apply


to the Biblical Law. The Law as conceived in the Holy Scriptures doesn’t
consist of a system of rules logically applied by the courts and the justice is
not perceived as an external criterion. For instance, Proverbs 25-7:9 corrobo-
rate this view that adjudication by courts was not regarded as mandatory.
Also the Covenant Code consists of «self-executing rules», designed to
allow the parties to determine the outcome and execute the juridical remedy
without any need of third party adjudication.
The Mishpatim from the Covenant Code are examples of wisdom-laws,
enforcement being a matter of self-help. As in the theory of David Daube,
Biblical Law has an early stage of ancient customary institutions. Halacha is
not compatible with Jewish Law theories that rely on Kelsen’s Grundnorm
theory (first phase). For instance, Elon’s theory based on the fundamental
norm, in accordance with which everything that is set forth in the Torah, i.e.,
the Written Law, is binding on the Jewish Legal System.
Why Kelsen’s ideals from his first phase don’t fit Jewish Law?
That’s because Jewish Law (i) is not an unified system, and (ii) it is not
based on any unique, authoritative source of law. Following the paths of its
biblical origin, the Talmud shows also pluralistic ideas of law:
«R. Jonathan said: Jerusalem was destroyed only because they gave
judgements there in accordance with Torah law. When they then have judged
in accordance with untrained arbitrators? – But says thus: because they based
their judgments strictly upon Torah law, and did not go beyond the require-
ments of the law.» (Baba Mezia 30b)
The possibility of a rabbinic judge deciding a case not according to
the Halacha shows that old orthodox Kelsenian positivistic model doesn’t
apply to the practice of Jewish Law. Paradoxically, the second phase of
Kelsen Legal Realism is a better model if we accept the religious language
of Halacha.
The halachic process based on its theological explanation, proves what
Bernard Jackson concluded in an old but unbeatable article called «Kelsen
between Formalism and Realism».
«The difference between the basis of validity and the justification of
validity of a norm reflects Kelsen’s adoption of a radical differentiation
between norms (being the acts of will of legal organs) and legal proposi-
tions (the latter being linguistic propositions, between which alone inferential
relationships are possible). Thus, Kelsen denied the possibility of any syllo-
gistic relationship between norms themselves, since an act of will could be
performed only in relation to facts which the actor knew to exist: “…only the
court, which has established that Smith has stolen a horse from the farmer,
can will that he should be sent to prison as a thief. And the judge is a different
seção 1 – filosofia jurídica e social 103

man from the legislator, His act of will cannot be implicit in the act of will
of another man” (Essays 242); the legislator is not aware of Smith, or of the
fact that he has stolen, and cannot therefore will that he be imprisoned. But
the truth of the proposition does not entail the validity of any norm, since the
proposition may be true without any act of will (in relation to Smith) having
been made by a legal organ.»14
This legal realism as evident as in Kelsen’s later reconsideration of his
Grundnorm theory is reflected in the controversy between Shammaites and
Hillelites. The dispute was resolved by the intervention of a heavenly voice
(bat kol) which proclaimed: «both opinions are the words of the living God».
Divine law is thus conceived to be pluralistic, on the authority of a direct
revelation (here, not even through a prophet) from God himself. This goes
against the identification of Jewish Law with the earlier Kelsenian scheme of
the structure of the legal order, where the researcher was supposed to presup-
pose a basic norm, what in the field of Jewish Law would imply that there is
a original norm that stipulates that everything stated in the written Torah is
biding upon the system of Jewish Law.
A critical realist position doesn’t reduce Halacha to a positivist notion
of legal system. Interestingly, this view comes from the old irrational Kelsen,
who undermines his positivism and goes beyond, indicating how Halacha,
like Islamic Law,15 implodes the Hohfelian deontic categories.
«The halakhah, on the other hand, rejects the sufficiency of these three
deontic modalities. For the rabbinic structure implies that behaviour may be
recommended (or, conversely, discouraged), as well as required, permitted or
prohibited. Indeed, Islamic Law explicitly adopts such a fivefold classifica-
tion of modalities. Jewish Law does not systematise the matter in this way;
nevertheless, institutions such as Middathasidut clearly imply the existence
of such a wider range of modalities.»16
It is often said that Judaism rejects the separation between law and
morality. Though, a distinction is recognised between Halacha (binding
teaching) and Aggadah (instruction through narrative and other modes). The
moral values of Judaism are integrated within the Halacha.

14
Jackson, 1985.
15
«In the opinion of Muslim theologians, not everything that appears in the form of
prescriptions and prohibitions is commanded or forbidden, nor does it carry the same
imperative or prohibitive force». Goldziher, 2007: 63. Ignaz Goldziher was a hungarian
Rabbi who also studied the concept of Ijma, i.e., the concept of the consensus of the competent
scholars with regard to legal questions in the universe of the Islamic Law, a kind of consensus
that is also present in Jewish Law.
16
Jackson, Bernard. Constructing a theory of Halakhah. Disponível em: <http://www.
academia.edu/1445715/Constructing_a_Theory_of_Halakhah>.
104 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Halacha is not a system of norms but a nonsystematic delegation to


charismatic authorieties, who decide sometimes not in accordance of Tora.
So Halacha endorses not a positivistic model but a legal realistic one. The
Talmud includes many cases that are not decided according to the Law.
Indeed, Jewish Law frequently accepts a distinction between «Halakhah»
(the law in theory) and «Ma’aseh» (the law in practice).
These two manifestations of «legal realism» in the Halakhah focus on
different aspects of the judicial role, as conceived within Judaism. On the
one hand, it is a role which entitles the judge to deviate from the Law; on
the other, the judge bears a very personal religious responsibility to make
decisions which will not put the subject of Jewish Law at risk.
While the Institutes of Gaius commences with a list of the sources
of Roman Law, no such list is found in early rabbinic literature: the latter,
rather, lists the «Middot», the non- logical forms of argumentation to be
applied to the text of Scripture.

3. Free Legal Movement and Kelsen: the bindingness of the


Tora

The most important historian of the free legal movement, Lombardi,


in my view rightly includes Kelsen in this intellectual movement. Most of
the so called Freirechtler, coming from Neokantianism, tended to overcome
the Sein und Sollen dichotomy. The justice of the concrete case is for the
Free Legal Movement a voluntaristic act of concretization of the Law by the
judge, in a process that develops far away from the abstract Sollen.
What unified Kantorowicz, Ernst Fuchs and Kelsen?
«Judentum und Sozialismus seie in einem mehr oder weniger bewusst
prophetish-escatologische (daher auch der Gegenwart gegenuber kritische)
Einstellung gemeinsam.»17
Indeed, in Jewish Law the fact of summumIus summa Iniura (that
according to Del Vecchio comes from the Talmud, although stated by Cicero,
De officis, I, 10, 33) is bend to the principle of equity (lifnim mi shurat ha din
that is within the line of justice, as was explained to me by Professor Rabello)
and to the exhortation to execute Law with justice (Mishpat u- Tsedaka).
Many cases in Jewish Law can be described in a form that emphasizes the
individual – of his own accord – acting in harmony with this spirit of equity.

17
Behrends doesn’t see any of this components. On the opposite, in his brilliant article
Behrends, 1989.
seção 1 – filosofia jurídica e social 105

According to Daube, in his Collected Papers, comparing the creativity


in Roman and Jewish Law:
«It will not surprise that a very great deal of rabbinic exegesis was the
type exemplified at Rome by emancipation, the twisting of a penal provision
of the XII tables into an authorization of a new institution. That is to say it
was neither literal not liberal interpretation of the text, but misinterpretation.
Take fighting on a Sabath, proselyte baptism, the washing of hands before a
meal, the reformed modes of capital punishment and monetary damages in
the place of relation.»
According to Boaz Cohen in his analysis of justice being furthered by
the principle of judicial discretion as allowed in the Talmud, «durchInteres-
senjurisprudenzerfüllt die RechtswissenschaftihrepraktischeAufgabe, den
Inhalt des Rechtszufinden».18 This is also an apt description of the aim of
rabbinic jurisprudence.
Using unfortunately the Lingua TertiiImperii the great jurist Phillip
Heck tries to demonstrate the opposite, but in the end he proves how the
Freirechtsbewegung is related to Judaism:
«In der Juristischen Wochenschrift findet sich die Behauptung, dass die
Interessenjurisprudenz ein jüdische Richtung sei. Kantorowicz ist ein Haupt-
vertreter der Freirechtslehre und nicht der Interessenjurisprudenz. Der letzte
Gegner der teleologischen Methode, ist Kelsen (sic) nicht Arier und gleiches
gilt für verschieden Vertreter der freien Rechtslehre und der soziologischen
Schule, nicht nur für Kantorowicz, sonder auch für Ehrlich, Fuchs un Sinz-
heimer. Er scheint das der Radikalismus der Freirechtslehre auf Nichtarier
anziehender gewirkt hat, als unsere gemässigte und nüchterne Lehre.»19

4. Kelsen’s roots: things that are better concealed than


revealed (agnon)

Notwithstanding his professed atheism, there is a direct and indirect


influence of Judaism on Kelsens Philosophy of Law. Historically, one of the
teachers of Kelsens atheism was Mauthner, who thus comments on how he
formed his own World View in his memories:
«Der Vater meiner Mutter war der steinalte Mann, der wohl einer
Lebensbeschreibung wert wäre, war schon als Jüngling, gegen Ende des 18.
Jahrhunderts, der Sekte der Frankisten beigetreten, die ihre Anhänger aus
kabbalistischen oder abtrünnigen Juden rekrutierte und irgendeinen neuen
Messias erwartete oder glaubte, einen Vollender von Jesus Christus. Mein
Großvater soll in dieser militärisch organisierten Sekte (auf dem Schlosse

18
Cohen, 2012.
19
Heck, 1936: S.151.
106 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Franks in Offenbach am Main) Offizier gewesen sein und nach dem Ende der
Bewegung die Dokumente und auch das Bild der „Königin“ in Verwahrung
gehabthaben.»20
As it’s now well know the Kelsens are descendent from Rabbi Yonatha-
nEibeschütz, the most important Rabbi from XVIII century (MargarethBon-
diKelsenwas a direct descendent from him).21 What did he learn from his
ancestors?
YonathanEibeschütz is till today to the orthodox camp with whom
I agreean acknowledged genius in at least three separate areas of Jewish
religious creativity: Talmud and Jewish Law (Halakhah); homiletics and
popular preaching; and Kabbalah.
To the liberal historians, on the contrary,
«Jonathan Eibeschütz stammte aus einer polnischen Kabbalisten Familie.
Mit einem außergewöhnlich scharfsinnigen, haarscharfen Verstand und einem
glänzenden Gedächtnisse begabt, fiel der junge Jonathan, früh verwaist, der
regellosen Erziehung oder vielmehr der Verwilderung der Zeit anheim, die
ihm nur zwei Stoffe für seine Gehirnarbeit zuführte, das weitausgedehnte
Gebiet des Talmuds mit seinen labyrinthischen Irrgängen und die berückende
Kabbala mit ihren klippenreichen Untiefen. Das eine bot seinem nüchternen
Verstande und das andere seiner ungeregelten Phantasie reiche Nahrung. Mit
seiner haarspaltenden Urteilskraft hätte er einen gewandten rabulistischen
Sachwalter abgeben können, der imstande gewesen wäre, die Rechtfertigung
der schlechtesten Sache glänzend und überwältigend durchzuführen; oder er
hätte auch, wenn ihm die höhere Mathematik Leibniz‘ und New-tons zugäng-
lich gewesen wäre, auf diesem Felde erfinderisch manches leisten können.
Eibeschütz hatte einige Neigung für Wissensfächer außerhalb des Talmuds
und auch eine gewisse Eitelkeit davon zu kosten.
Darum erscheint sein Leben und Treiben rätselhaft und mit Widersprü-
chen behaftet. Darum fand er an der Mystik, wie sie Sabbataïs Nachfolger
auslegten, viel Behagen; das Gesetz sei durch den Eintritt der messianischen
Zeit aufgehoben oder könne unter Umständen aufgehoben werden, oder der
in der Kabbala webende Geist brauche sich nicht Gewissensbisse zu machen,
dieses und jenes gering zu achten. Den lästerlichen Hauptgedanken dieser
und anderer Sabbatianer hat Eibeschütz in sich aufgenommen, daß der
höchste Gott, die erste Ursache, mit dem Weltall in keinerlei Verbindung
stehe, sondern eine zweite Person in der Gottheit, der Gott Israels genannt,
das Abbild derselben, die Welt erschaffen, das Gesetz gegeben, Israel
erwählt, kurz sich mit dem Endlichen befaßt habe. Er scheint aber auch den

20
Mauthner, 1918: 110-123.
21
In a letter Scholem confirms my construction with direct reference to the bond family:
«gibtesnochFamilien-Nachrichtenuber die FrankistischenBondis? Ichhabe von in Jerusalem
lebendenAngehorigen der familie, die um ihreFrankischenVerwandschaften gar nichtwussten,
mindestenseinhochstmerkwurdiges Detail aussehrguterTradtiongehort» (Briefe Beck p. 272).
seção 1 – filosofia jurídica e social 107

Konsequenzen dieser ketzerischen Theorien gehuldigt zu haben, daß Sabbataï


Zewi der wahre Messias gewesen sei, die zweite Person der Gottheit in sich
verkörpert habe, und daß durch dessen Erscheinen die Bedeutung der Thora.»
Scholem seems to agree with this critical assessment of Graetz.22 In
his article «Redemption through Sin» he said he is convinced that Rabbi
Jonathan Eibeschütz was a Sabbatean.23
«I cannot conceal the fact, however, that after thoroughly examining both
Eibeschütz own Kabbalistic writings and all the polemical works that they
engendered I have been forced to conclude that he was indeed a Sabbatean,
as both Jacob Emden and, in a later age, Heinrich Graetz insisted.»
According to Scholem, there is a dialectic between normativism, anti-
nomianism and illuminism. He proves this by the example of some of the
leaders of the French revolution who were crypto sabbathists.
If Scholem is wrong and his assumption of a dialectic of normativism
and irrationalism could lead nowhere regarding to the quest of roots of
Kelsen, should we abandon it? Is there anything to suggest that Kelsen was
familiar with the philosophy of Jewish Law enabling us to sustain a further
assumption about the presence of elements of Jewish Law in his work?
In 1913 Kelsen visited Hermann Cohen, who, according to the remaining
neokantians have just then ceased to make any contribution to the epistemo-
logical tendency of the Marburg School (followed by the first Kelsen). Cohen
was only interested by then in jewish philosophy (and german patriotism).
What Kelsen may have learned from Cohen from that date on?
That Justice is not to be found as a value. In the Cohen’s Ethik des
reinenWillens justice appear as an universal virtue based on Kant and the
Bible. We cannot rationally be content until there is complete social justice
in our world. Therefore, striving for the ethical is an infinite process. In addi-
tion, every time we use our minds to learn something, we are rationally aware
of what we still do not know. The search for knowledge is equally infinite.
Is there any testimony that would allow us to asset that this strive for
social justice that is completely evident in any word of Kelsen’s ReineRecht-
slehre (only rightly seen by his antagonist Hayek) might be also his personal
own ideology?
Let’s see what Norbert Leser says in his autobiography:
«Kelsen bezeichnete sich mir gegenüber troz seiner Taufe als nicht
gläubig im Sinne der Christlichen Tradition, erklärte aber, immerhin als

22
Graetz, 2002.
23
Scholem, 1971.
108 revista brasileira de filosofia – RBF 239

in dem Sinne gläubig, dass es etwas gebe, was der deutsch-amerikanische


Teologe Paul Tillich als “ultimate concerne” bezeichnete, also als etwas, “das
uns unbedingt angeht”, aber nicht bloss aus uns stammt, sondern die Stimme
einer höheren Wirklichkeit ist.»24
That’s the face of Kelsen. So although an avowed rationalist, Kelsen
avails himself of the kabbalistic scheme in his device of the basic norm with
its Plotinian, Neoplatonic and Gnostic overtones. His Grundnorm is the
Sephira of Keter Elion from the Kabbala. His justice is the biblical justice,
on the name of what Kelsen criticizes in his whole opus the opressions of the
rulers against the people, sustained by the Greek philosophers Plato, Aris-
totle, Heraclitus and many others. Kelsen seems to rely on a hidden justice
concept, the same one that was developed in the Axial Age by the democrats
in Greece and the prophets in Jerusalem.

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24
Leser, 2011: 118. Paul Tillich was the best representative of the religious social
concept of justice.
seção 1 – filosofia jurídica e social 109

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Sinzheimer, Hugo, 1953: Jüdische Klassiker der deutschen Rechstwissenschaft
(1938). Amsterdam: Frankfurt am Main.
Avaliando a lei pelo que ela
expressa: o fundamento moral do
expressivismo jurídico

Leandro Martins Zanitelli


Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), com estágio de pós-doutorado na Universidade de Hamburgo,
Alemanha. Professor e Coordenador do Programa de Pós-Graduação
Stricto Sensu – Mestrado Acadêmico em Direito do Centro Universitário
Ritter dos Reis (UniRitter).

Resumo: O texto procura estabelecer uma justificação para o expressi-


vismo jurídico que não se relacione às consequências do que a legislação
expressa. Quer, em outras palavras, esclarecer por que a análise sobre
o status moral de uma lei deve levar em conta o que essa lei expressa, e
não apenas o eventual impacto da lei sobre a população a ela submetida.
Argumenta-se que o conteúdo expressivo da lei é intrinsecamente valioso
porque, a exemplo do que ocorre em outros casos, esse conteúdo é algo
a que se atribui uma importância moral objetiva, isto é, não atrelada ao
julgamento da conduta de um certo agente.
Palavras-chave: Expressivismo Jurídico – Expressivismo Deontológico –
Consequencialismo – Teoria Geral do Direito – Metodologia Jurídica.

Abstract: the paper tries to establish a justification for a kind of legal


expressivism which is not attached to the consequences of the expressive
content of the law. It aims, in other words, at explaining why the analysis of
the moral status of a legal rule should also take into account what this rule
expresses, and not only its impact. It is argued that the expressive content
of the law is intrinsically valuable because, as it happens in other cases, such
content is something to which objective moral relevance is recognized, a
seção 1 – filosofia jurídica e social 111

relevance that is not tied, thus, to a judgment regarding a particular agent’s


behavior.
Keywords: Legal Expressivism – Deontological Expressivism – Conse-
quentialism – Jurisprudence – Legal Methodology.

1. Introdução

O Código Civil brasileiro oferece pelo menos um exemplo de uma


norma legal que parece moralmente condenável em razão daquilo que
expressa, o do art. 1.641, II, que impõe o regime de separação de bens às
pessoas que se casem após completar sessenta anos. O rechaço a essa norma
está sem dúvida relacionado não apenas à arbitrária restrição à liberdade dos
nubentes, mas também à mensagem que ela veicula: a de que pessoas acima
de uma certa idade não podem ser amadas, ou estão ao menos mais sujeitas
à cobiça de falsos amantes (cuja insinceridade, como sugere a lei, essas
próprias pessoas não seriam capazes de perceber).1 Embora a injustificada
restrição à autonomia privada seja, segundo a doutrina constitucional atual,
razão suficiente para declarar uma lei inconstitucional, a ideia expressa pelo
art. 1.641, II, do Código Civil não é ignorada pela jurisprudência, sendo
plausível incluí-la entre os motivos que têm levado juízes a declarar a norma
inconstitucional.2
Questão que tem ocupado a doutrina jurídica norte-americana é a de
saber se importa, e por que importa, aquilo que a lei,3 para além de pres-
crever, facultar ou vedar, expressa. Essa questão tem provocado manifes-

1
A imposição do regime de separação de bens já era feita pelo Código Civil anterior, cujo
art. 258, parágrafo único, entretanto, estendia a vedação à escolha do regime de bens para
as mulheres com idade superior à cinquenta anos. A mensagem ofensiva descrita acima se
dirigia, portanto, de maneira especial às mulheres, cuja perda de atrativo para o sexo oposto
se presumia ocorrer mais cedo.
2
V. o acórdão da 2ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paula na
Apelação Cível n. 007.512-4/2-00, de 18.08.1998. Além de sublinhar a irrazoabilidade da
separação obrigatória de bens (então imposta pelo art. 258, parágrafo único, do Código
Civil revogado), a decisão repudia o «paternalismo insultuoso» da proibição, bem como a
suposição, subjacente à lei, de que «pela força mecânica e necessária de certo número de anos
(...) assim o homem, como a mulher, (...) já não estariam aptos para, nas relações amorosas,
discernir seus interesses materiais e resistir à cupidez inevitável do consorte». No mesmo
sentido decidiu a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul na Apelação
Cível 70002243046, em 11.04.2001.
3
A palavra «lei» é empregada no texto com sentido amplo. Assim, ela se refere a quaisquer
normas jurídicas, independentemente de seu status hierárquico ou do modo como foram
instituídas. Além disso, as conclusões do artigo não dizem respeito apenas às leis em si, mas
também às decisões dos órgãos encarregados de aplicá-las.
112 revista brasileira de filosofia – RBF 239

tações, favoráveis e contrárias, ao que se vem chamando de expressivismo


jurídico (legal expressivism).
A importância daquilo que a lei expressa (ou do «conteúdo expressivo»
da lei) pode ser afirmada de duas maneiras. Primeiro, pode-se dizer que o
conteúdo expressivo da lei é importante em razão das suas consequências.
Uma lei pode, por exemplo, expressar desapreço a um certo comportamento
e, ao fazê-lo, colaborar para que esse mesmo comportamento seja repudiado
socialmente. Ao longo do artigo, a forma de expressivismo cuja atenção é
dirigida às consequências do que é legalmente expresso será referida como
expressivismo consequencialista. Em segundo lugar, pode-se também
considerar o conteúdo expressivo da lei importante em si mesmo, isto é,
importante em si, e não em razão das consequências que desencadeia. Para
essa segunda forma de expressivismo, daqui para diante designada como
expressivismo deontológico, uma lei pode ser louvada (ou censurada) apenas
devido àquilo que expressa, e ainda, pois, que esse conteúdo expressivo não
tenha impacto algum sobre a sociedade.4
Em sua forma deontológica, o expressivismo levanta duas questões
básicas, consistindo a primeira delas em determinar qual é o ou quais são os
conteúdos expressivos de uma lei. Voltando ao exemplo inicial, o que permite
afirmar que o art. 1.641, II, do Código Civil brasileiro expressa a suposição
de que as pessoas com mais de sessenta anos estão menos propensas a ser
amadas? Admitindo-se que essa suposição faça parte do conteúdo expressivo
da lei (isto é, daquilo que a lei expressa), pode-se dizer que esse conteúdo
compreenda algo mais? Em outras palavras, pode-se emprestar a uma mesma
lei não só um mas vários sentidos expressivos, alguns inclusive conflitantes?
A segunda pergunta se refere ao fundamento moral do expressivismo.
Qual ou quais são as razões para tratar como moralmente relevante aquilo
que a lei expressa, independentemente de suas consequências? O insulto
praticado pelo art. 1.641, II, do Código Civil seria moralmente condenável
ainda que, por hipótese, não surtisse efeito algum sobre os sentimentos e
hábitos de pessoas idosas ou sobre as crenças e atitudes dos demais em
relação a essas pessoas? Se sim, por quê?

4
V. Kornhauser, Lewis A., «No Best Answer?», University of Pennsylvania Law Review,
vol. 146, p. 1.599, p. 1.624-1.625, 1998 (distinguindo as duas formas de expressivismo, a
primeira, consequencialista, atrelada a uma concepção instrumental do Direito, e a segunda,
para a qual o conteúdo expressivo do sistema jurídico tem valor intrínseco); Edwards,
Matthew A., Legal Expressivism: A Primer, disponível em http://papers.ssrn.com/sol3/
papers.cfm?abstract_id=1361101, acesso em 01.10.2009 (distinguindo o expressivismo
atento a consequências, ou expressivismo instrumental, e o expressivismo, por ele chamado
de «revelador», para o qual o conteúdo expressivo de uma lei merece ser avaliado indepen-
dentemente de suas consequências).
seção 1 – filosofia jurídica e social 113

O presente artigo procura responder às duas questões básicas recém


referidas. Mais precisamente, pretende demonstrar que, em sua versão deon-
tológica, o expressivismo jurídico é moralmente defensável, e que, portanto,
há, sim, razão para que uma lei seja considerada moralmente boa ou má
em virtude daquilo que expressa, independentemente de suas consequências.
Também se almeja explicar aqui como essa defesa do expressivismo no
campo normativo (isto é, a resposta à segunda das duas questões) contribui
para a solução do problema (suscitado pela primeira) de estabelecer o sentido
expressivo de uma lei ao qual é de atribuir valor intrínseco.
A análise a ser desenvolvida é importante devido à sua evidente impli-
cação para a crítica do direito. Se o expressivismo deontológico, como se
sustentará, é ao mesmo tempo compreensível e moralmente fundado, já que
o conteúdo expressivo de uma lei não só é capaz de ser estabelecido como
possui valor moral intrínseco, então a crítica ao direito ganha uma nova
dimensão, passando a cuidar, além daquilo que a lei determina, também do
que ela expressa.
O trabalho é organizado da seguinte maneira. A Parte II procura
descrever mais minuciosamente o objeto da análise. Trata, assim, de maneira
mais detida da distinção entre as duas formas de expressivismo, apresentando
também uma ideia geral do que se há de entender como conteúdo expressivo
da lei para o expressivismo deontológico. Na Parte III, enfrenta-se a questão
da plausibilidade moral desse último tipo de expressivismo: por que a quali-
dade moral de uma lei depende do que ela expressa, independentemente das
consequências? Após referir algumas objeções levantadas contra o expres-
sivismo deontológico, procura-se responder a essa questão. A Parte IV é
voltada ao problema da expressão em si: como estabelecer o que uma lei
expressa? Ou como estabelecer, entre as ideias que uma lei expressa, aquela
ou aquelas a serem levadas em conta em um juízo sobre o valor moral da lei?
A Parte V conclui o trabalho.

2. Expressivismo e Conteúdo Expressivo da Lei

Ligadas às duas formas de expressivismo mencionadas na introdução


estão duas formas de moralidade distintas: uma, consequencialista, para a
qual o valor moral de um ato é determinado exclusivamente por suas conse-
quências, e outra, deontológica, para a qual atos podem ser moralmente
bons ou maus independentemente de suas consequências. A uma moral
consequencialista só pode interessar um expressivismo também consequen-
cialista, preocupado com os efeitos do conteúdo expressivo da lei sobre as
convicções, preferências e conduta dos cidadãos. Uma lei pró-aborto, por
exemplo, pode interessar ao consequencialismo moral se e à medida que o
114 revista brasileira de filosofia – RBF 239

desvalor relativo da vida que essa lei porventura expresse influencia o modo
de agir dos cidadãos – acarretando, por exemplo, um aumento do número
de homicídios. O expressivismo deontológico, de outra parte, só encontra
fundamento em uma moral de mesma natureza.5
Além de encontrar amparo no consequencialismo moral, o expres-
sivismo consequencialista se relaciona, agora no âmbito jurídico, a uma
concepção instrumental do direito segundo a qual a qualidade moral de
um sistema jurídico depende da medida com que esse sistema é capaz de
realizar certos fins ou produzir certas consequências.6 Como é fácil perceber,
o instrumentalismo jurídico é um produto do consequencialismo moral.
Para os que tratam o direito de maneira instrumental, a importância do
expressivismo é a de sofisticar a análise das consequências de uma lei. Em
lugar apenas daquilo que a lei determina, o expressivismo consequencialista
chama a atenção dos encarregados das políticas públicas para a necessidade
de ter em conta as consequências do que a legislação expressa. Os efeitos do
conteúdo expressivo da lei podem colaborar para a consecução do objetivo
pretendido pelos legisladores, fugir a esse objetivo ou até mesmo contrariá-
-lo. Para um exemplo do primeiro caso, imagine-se uma medida antitabagista
que, além de proibir o fumo em certas circunstâncias, expresse reprovação
aos produtos do tabaco, logrando, graças a isso, alterar as preferências da
população e reduzir o consumo de cigarros. Considere-se, para exemplo da
segunda hipótese, uma emenda constitucional que aumente o número de
vereadores com o propósito de aperfeiçoar a representação municipal, mas
que seja entendida como sinal de desídia na gestão de recursos públicos e
faça assim aumentar a desconfiança dos eleitores. Finalmente, pense-se no
famigerado caso das cotas raciais em universidades, que podem expressar
a presunção de inferioridade daqueles aos quais as cotas são destinadas e
assim contribuir para aumentar, ao invés de reduzir, a discriminação prati-
cada contra essas pessoas.7

5
Como uma moral deontológica não tem que tratar toda e qualquer consequência como
moralmente relevante, mas apenas afirmar que alguns atos são dignos de apreço ou repúdio
independentemente das consequências que produzem, o expressivismo consequencialista é
compatível com o deontologismo moral.
6
Assim como pode ser conciliado a uma moral deontológica (ver a nota anterior), o expres-
sivismo consequencialista não precisa estar atrelado a uma visão puramente instrumental
do Direito, para a qual só importem as consequências desse último. Um instrumentalismo
moderado, que veja os resultados produzidos pelo sistema jurídico como apenas um entre
vários fatores a considerar, é suficiente para despertar interesse pelos efeitos do conteúdo
expressivo da legislação.
7
Em um artigo que versa sobre expressão, é particularmente conveniente salientar que
o exemplo não expressa concordância com esse argumento, frequentemente usado por
opositores das cotas.
seção 1 – filosofia jurídica e social 115

O interesse pelo impacto da legislação sobre comportamento, convic-


ções e desejos de uma população aproxima o expressivismo consequencia-
lista dos estudos sobre normas sociais.8 No entanto, enquanto esses últimos
atentam para o modo como a lei, em geral, forja padrões comportamentais
e previne condutas indesejáveis ao modificar convicções e desejos ou pôr
em ação meios sociais (ou «informais») de sanção ou culpa (autossanção),
o expressivismo se ocupa em saber como uma mudança nas normas sociais
pode advir, não do que a lei comina, mas do que «diz» ou expressa.9
Comparadas às do expressivismo consequencialista e, sobretudo, à
intensa investigação em torno da relação entre direito e normas sociais, as
manifestações em defesa do expressivismo deontológico ocupam reduzido
lugar na literatura. A área de aplicação por excelência dessa outra forma
de expressivismo tem sido a do direito constitucional, na qual por vezes se
defende que a conformidade das leis à Constituição (em especial a prin-
cípios constitucionais como o da não discriminação ou o da neutralidade
religiosa) seja aferida com base no conteúdo expressivo da legislação.10 O
caráter deontológico de tal doutrina se evidencia pelo fato de que «conteúdo
expressivo» está aí em contraposição a impacto da lei; o que se propugna,
em outras palavras, é que a inconstitucionalidade de uma lei seja declarada
não em razão do impacto dessa lei sobre uma dada população, mas do «dano
expressivo» por ela perpetrado.11

8
V., por exemplo, Eric Posner, «Law and Social Norms: The Case of Tax Compliance»,
Virginia Law Review, vol. 86, p. 1.781, 2000.
9
V. Cass Sunstein, «On the Expressive Function of Law», University of Pennsylvania Law
Review, vol. 144, p. 2.021, p. 2.024-2.025, 1996 (propondo-se a examinar como o Direito
modifica normas sociais não por meio da regulação de condutas, mas, simplesmente, ao fazer
certas afirmações).
10
V. Deborah Hellman, «The Expressive Dimension of Equal Protection», Minnesota Law
Review, vol. 85, p. 1, 2000 (afirmando que a conformidade de uma lei ao princípio consti-
tucional da igual proteção não depende da intenção com que a lei foi promulgada ou do
seu impacto, e sim daquilo que ela expressa); Elizabeth S. Anderson & Richard H. Pildes,
«Expressive Theories of Law: A General Restatement», University of Pennsylvania Law
Review, vol. 148, p. 1.503, p. 1.531-1.564, 2000 (sustentando que a jurisprudência constitu-
cional norte-americana é em considerável medida expressivista, ao declarar leis inconstitu-
cionais em razão daquilo que expressam e dispensar distinto tratamento a leis que, embora
com impacto similar, diferenciam-se por seu conteúdo expressivo).
11
Sobre o conceito de «dano expressivo», v. Pildes & Anderson, Expressive Theories of
Law, cit., p. 1.527-1.531; Richard H. Pildes, «Why Rights Are Not Trumps: Social Meanings,
Expressive Harms and Constitutionalism», Journal of Legal Studies, vol. 27: 725, 755,
1998: «Dano expressivo é o que resulta de ideias ou atitudes expressas por meio de uma
ação governamental e não das consequências mais materiais ou tangíveis produzidas por essa
ação.» («An expressive harm is one that results from the ideas or attitudes expressed through a
governmental action rather than from the more tangible or material consequences the action
brings about.»).
116 revista brasileira de filosofia – RBF 239

As diferenças entre as duas espécies de expressivismo deixam claro por


que a questão de determinar em que consiste o conteúdo expressivo de uma
lei é mais delicada no caso do expressivismo deontológico. Para o expres-
sivismo consequencialista, o conteúdo expressivo a ser considerado é todo
aquele que origine consequências. Pode-se, é verdade, a fim de sublinhar
a diferença entre esse expressivismo e outras teorias jurídicas instrumenta-
listas, observar que o conteúdo expressivo de uma lei se distingue, ou não
está limitado, ao sentido da sanção que ela comina. Afora isso, no entanto,
a questão de determinar o conteúdo expressivo da lei corresponde, para o
expressivismo consequencialista, à de verificar ou estimar qual dos possí-
veis sentidos atribuíveis a uma norma legal é relevante em razão de suas
consequências. No caso do expressivismo deontológico, em contrapartida, a
mesma questão ganha ares diferentes. Como se trata, nesse caso, de avaliar
a qualidade moral intrínseca de uma lei com base no que ela expressa (ou,
no que tem sido o principal uso dogmático dessa forma de expressivismo,
avaliar a conformidade de uma lei a certos mandamentos constitucionais),
a solução para o problema de determinar o sentido expressivo da legislação
precisa ser encontrada de uma outra maneira, não se reduzindo a apurar qual
ou quais dos sentidos possíveis da lei são assim de fato encarados, e como
tais influenciam o comportamento da população.
O problema de determinar o conteúdo expressivo da lei é enfrentado por
dois expressivistas deontológicos, Elisabeth Anderson e Richard H. Pildes,
em um artigo escrito há alguns anos atrás. Anderson e Pildes procuram
elucidar a questão de duas maneiras: primeiro, ao traçar a distinção entre
comunicação e expressão e, correspondentemente, entre sentido comunica-
tivo e sentido expressivo de uma lei. Em segundo lugar, os dois sustentam
que o sentido expressivo de uma lei não se prende à intenção do legislador,
nem está limitado àquilo que a lei expressa aos seus destinatários. Quanto ao
primeiro ponto, Anderson e Pildes definem «expressão» como a manifestação
de um estado mental – crença, emoção, desejo etc.12 «Comunicação», por sua
vez, é a manifestação deliberada de um estado mental. Embora, portanto,
toda manifestação comunicativa seja também expressiva, o inverso não é
verdadeiro, já que há atos que expressam certo estado mental sem terem sido
praticados com tal propósito, como no caso do ladrão que expressa a intenção
de furtar ao observar atentamente sua vítima sem, evidentemente, ter querido

12
O estado mental que é expresso não é necessariamente a causa da expressão. Anderson e
Pildes salientam isso ao referir a possibilidade de alguém expressar, por inabilidade, um estado
mental diferente do de fato existente (como no caso de uma pessoa que sente compaixão
mas, por timidez ou desinformação, acaba expressando desrespeito) e a de a expressão ser
deliberadamente incongruente com o estado mental do agente (como no exemplo, usado pelos
próprios Anderson e Pildes, do músico que se esforça para expressar tristeza mesmo não
estando triste). Ver Anderson & Pildes, Expressive Theories of Law, cit., p. 1.507-1.508.
seção 1 – filosofia jurídica e social 117

comunicar essa intenção.13 Quanto ao segundo ponto, Anderson e Pildes


afirmam que o sentido expressivo de uma lei é «construído socialmente» e,
como tal, vai além da expressão dos objetivos que levaram à aprovação da
lei ou do sentido emprestado a essa mesma lei pela população em um dado
momento.14 Uma norma pode, assim, expressar intenções, valorações ou
convicções estranhas aos legisladores que a promulgaram. Pode, além disso,
expressar mais do que acreditam as pessoas a ela sujeitas. A esse respeito,
Anderson e Pildes se valem do exemplo de práticas chauvinistas – como,
por exemplo, a de elogiar mulheres por sua aparência no local de trabalho –
que não eram outrora percebidas como tais. De maneira análoga, o sentido
expressivo de uma lei pode não ser de imediato reconhecido pelos membros
de uma sociedade, embora, como os autores ressalvam, deva ser ao menos
reconhecível por essas pessoas.15
Esse conceito de expressão não ficou livre de críticas. Smith, por
exemplo, ataca Anderson e Pildes por defenderem a ideia de que as leis
possuam um sentido objetivo, sem relação com as intenções do legislador
ou com a interpretação dada a essa lei por outras pessoas. Segundo Smith,
a ideia de tal sentido objetivo só se concilia com uma visão metafísica pré-
-moderna que não é encampada por autores expressivistas.16 Hurd e Moore,
por sua vez, alegam que a ideia de um «sentido social», (social meaning)
independente não só da intenção do emissor da mensagem e de seus destina-
tários, mas também de convenções sociais nas quais se baseie a atribuição de
significado, leva o expressivismo a um beco sem saída. Tomando o exemplo
de uma música que expressa tristeza usado por Anderson e Pildes, Hurd e
Moore observam que aqueles estão certos ao afirmar que o conteúdo expres-
sivo da peça musical pode não corresponder ao estado mental do músico ou
mesmo ao de sua audiência, mas sugerem que música alguma expressaria
tristeza se, para além das intenções do músico e da interpretação dos que o
ouvem, não dispuséssemos de convenções (musicais, no caso) com base nas
quais tal sentido é estabelecido.17
Essas críticas parecem não levar na devida conta a influência da doutrina
constitucional sobre o desenvolvimento do expressivismo no direito norte-

13
V. Anderson & Pildes, Expressive Theories of Law, cit., p. 1.508.
14
Idem, p. 1.525: «O sentido expressivo de um determinado ato ou prática não precisa, pois,
estar na cabeça do agente ou do destinatário, e nem mesmo na cabeça do público em geral.»
(«The expressive meaning of a particular act or practice, then, need not be in the agent’s head,
the recipient’s head, or even in the heads of the general public.»).
15
Idem, p. 1.524-1.526.
16
V. Steven S. Smith, «Expressivist Jurisprudence and the Depletion of Meaning», Maryland
Law Review, vol. 60: 506, 554-556, 2001.
17
V. Heidi M. Hurd & Michael S. Moore, «Punishing Hatred and Prejudice», Stanford Law
Review, vol. 56: 1.081, p. 1.106, 2004.
118 revista brasileira de filosofia – RBF 239

-americano. Segundo essa doutrina, já referida, a constitucionalidade de uma


lei pode depender, ao menos em certa medida, daquilo que ela expressa. No
âmbito constitucional, a plausibilidade de tal afirmação estaria seriamente
ameaçada caso o conteúdo expressivo da lei estivesse atrelado às intenções
do órgão legislativo, nada fáceis de determinar no caso de assembleias
legislativas com dezenas ou centenas de membros. De maneira similar, o
expressivismo constitucional levaria a resultados contraintuitivos caso se
prendesse ao sentido que a lei tem para os cidadãos. Pode-se imaginar, a tal
respeito, o caso de uma lei que, embora expressando desprezo racial, não
fosse assim percebida por suas vítimas, as quais, depois de subjugadas por
longo tempo, passaram a encarar com naturalidade a posição de inferioridade
que lhes foi designada. Entende-se, pois, que o conteúdo expressivo da lei
ao qual aluda a doutrina constitucional não seja dado nem pelas intenções
do legislador, nem pelo sentido emprestado à lei por uma parte, ou até pela
maioria, da população.18 Que esse conteúdo corresponda, em tal sentido, a
um conteúdo objetivo não significa, porém, como supõe Smith, que o expres-
sivismo deva se atrelar à posição metafísica, muito pouco palatável, segundo
a qual o sentido de uma lei existe independentemente de nós ou, como dão a
entender Hurd e Moore, que se pretenda determinar o conteúdo expressivo
de uma lei sem a ajuda de quaisquer convenções sociais. Assim como o
sentido chauvinista de certas práticas pode ser revelado a partir de ideias
socialmente compartilhadas até mesmo antes do surgimento do feminismo,
tal como a de que a boa aparência é irrelevante para o exercício de certas
profissões, o sentido de uma lei também pode ser construído socialmente –
isto é, estabelecido a partir de convenções sociais – e ainda assim destoar das
intenções do legislador e da atual interpretação dos cidadãos. Essa ideia de
sentido construído socialmente é, aliás, referida com clareza na descrição do
expressivismo feita por Anderson e Pildes.19
Se, por um lado, essa ligação com o direito constitucional ajuda a
entender a preferência de autores expressivistas por definir o conteúdo
expressivo das leis de maneira objetiva, isto é, não atrelada à intenção ou
percepção de algumas pessoas, por outro ela tem atrasado o desenvolvimento
do expressivismo ao fazer com que se insista em atribuir a cada lei um só

18
V. Hellman, The Expressive Dimension of Equal Protection, cit., p. 2 (tratando o expres-
sivismo como alternativa à opinião de que a infringência ao princípio constitucional da
igual proteção deva depender das intenções do órgão legislativo) e 22 (o controle judicial
de constitucional tampouco deve se guiar pelo modo como a lei é percebida pela maioria da
população).
19
V. Anderson & Pildes, Expressive Theories of Law, cit., p. 1.525: «Sentidos expressivos
são socialmente construídos» («Expressive meanings are socially constructed»); p. 1.527: «O
sentido expressivo de ações coletivas é uma questão de sentidos públicos e compartilhados»
(«The expressive meaning of collective actions is a matter of public and shared meanings»).
seção 1 – filosofia jurídica e social 119

sentido expressivo. Se essa insistência também é compreensível para quem


defenda a ideia de que o juízo de constitucionalidade dependa da confor-
midade entre o que a lei expressa e a Constituição, ela não é, no que se
refere ao expressivismo em geral, em absoluto necessária. Por conta, pois,
de sua origem «constitucional», o expressivismo tem sido levado a negar a
possibilidade de que a legislação tenha vários sentidos expressivos (quiçá
conflitantes) válidos, como se uma lei tivesse que expressar, por exemplo, ou
pesar e desejo de reparação pelo mal sofrido por um grupo racial no passado
ou a opinião de que tal grupo é inferior aos demais, jamais as duas coisas.
Quem pretenda, no entanto, atribuir a cada lei um único conteúdo
expressivo em detrimento dos demais conteúdos possíveis se depara com a
difícil tarefa de oferecer um critério – que não se limite a negar caráter deci-
sivo às intenções dos legisladores e às percepções da maioria da população
– para distinguir, entre os vários sentidos cogitáveis, o sentido válido de uma
lei. Hellman, uma defensora de uma interpretação expressivista da cláusula
da igual proteção perante a lei encontrada na Constituição norte-americana,
propõe um critério assim.20 Inspirado na obra de Habermas, o critério de
Hellman é um critério discursivo, segundo o qual o conteúdo expressivo de
uma lei é aquele «ao qual nós chegaríamos conjuntamente caso a questão
interpretativa fosse discutida sob justas (fair) condições».21 Ainda que essas
condições não sejam de todo realizáveis, sustenta Hellman, os juízes têm de
procurar atendê-las à medida do possível, tornando o debate judicial acerca
do sentido expressivo de uma lei uma instância tão próxima quanto possível
do discurso ideal. Para tanto, devem ouvir «com a mente aberta» as opiniões
de outras pessoas – partes, amici curiae, doutrinadores etc. – antes de chegar
a uma conclusão sobre o que a lei expressa.
Embora se possa discutir o critério proposto por Hellman,22 meu interesse
aqui é, diferentemente, o de chamar a atenção para aquilo que esse critério
pressupõe – a saber, que, dos vários sentidos que podem ser atribuídos a uma
lei, há um único sentido válido –, e para o que essa pressuposição acarreta.
Firmando-se à necessidade de um critério capaz de descartar todos exceto um
dos sentidos expressivos de uma lei, o expressivismo inconvenientemente
se sujeita aos ataques a que o critério escolhido se mostre vulnerável, e até

20
V. Hellman, The Expressive Dimension of Equal Protection, ob. cit., p. 23-24.
21
Idem, p. 23: «That we would arrive at if we were to discuss the interpretative question
together under fair conditions.»
22
Para uma crítica ao critério defendido por Hellman, v. Smith, Expressivist Jurisprudence
and the Depletion of Meaning, cit., p. 561 (ausentes as condições da situação ideal de fala
habermasiana, a discussão sobre o sentido da lei tornar-se-ia «inerentemente especulativa»,
com a tendência a que opositores da lei concluíssem ser o sentido odioso da última o sentido
válido segundo o critério de verdade discursivo).
120 revista brasileira de filosofia – RBF 239

à sugestão de que qualquer tentativa para estabelecer um critério assim está


fadada ao fracasso.
Tem-se, pois, de verificar se é mesmo necessário tal critério para um
controle de constitucionalidade das leis expressivista mas, mais do que isso,
tem-se de verificar se tal critério faz falta ao expressivismo deontológico
como um todo, e não apenas à sua aplicação ao direito constitucional. Após
examinar a justificação moral do expressivismo na parte seguinte, retornarei
a essa questão na parte IV.

3. Por que o expressivismo?

O objetivo desta parte é arguir em favor da plausibilidade moral do


expressivismo deontológico. Esse expressivismo é aqui entendido, recorde-
-se, como o ponto de vista segundo o qual a qualidade moral de uma lei é ao
menos em parte determinada pelo que essa lei expressa, independentemente
das consequências. O que se pretende é, pois, mostrar que há razão para
aprovar ou reprovar uma lei apenas em virtude do seu conteúdo expressivo.
Há basicamente duas estratégias para rejeitar o expressivismo deonto-
lógico. A primeira delas consiste em sustentar que a qualidade moral de um
ato (ou regra) depende exclusivamente de suas consequências, isto é, aderir
a uma concepção moral consequencialista.23 Como já afirmado, qualquer
moral consequencialista se mostra incompatível com a proposição central do
expressivismo deontológico, a de que o conteúdo expressivo da legislação
é relevante moralmente independentemente do impacto desse conteúdo
sobre a população. O debate em torno da justificabilidade do expressivismo
deontológico pode ser visto, pois, como uma instância do debate envolvendo
duas moralidades radicalmente distintas – consequencialista, de um lado, e
deontológica, de outro. Tomar parte em tal debate está, infelizmente, fora do
escopo deste artigo, mas é interessante notar que qualquer conclusão tirada
a esse respeito só será decisiva para a questão da validade do expressivismo
deontológico se favorecer um consequencialismo puro. Dizendo de outra
maneira, qualquer «recuo» feito na defesa de uma moral consequencialista
– como o que consiste, por exemplo, na defesa de uma moral consequencia-
lista sujeita a certos limites deônticos24 – significa adesão a uma tese moral
não fundamentalmente avessa ao expressivismo.

23
Um argumento recente em favor de uma concepção assim encontra-se em Louis Kaplow
& Steven Shavell, Fairness Versus Welfare, Cambridge, Harvard University, 2002.
24
V. Eyal Zamir & Barak Medina, «Law, Morality, and Economics: Integrating Moral
Constraints with Economic Analysis of Law», California Law Review, vol. 96: 323, 2008
(descrevendo como limites morais não consequencialistas podem ser incorporados a uma
análise econômica das normas jurídicas).
seção 1 – filosofia jurídica e social 121

A segunda estratégia para rechaço do expressivismo deontológico é a


de, embora admitindo a validade de uma moral não consequencialista, negar
que as normas de uma tal moral se apliquem ao conteúdo expressivo da lei
ou, pelo menos, a parte dele. Concluir que o conteúdo expressivo esteja como
um todo livre de qualquer obrigação moral é pouco plausível, no entanto,
ao menos se entendermos, como Anderson e Pildes, esse conteúdo como
dizendo respeito a qualquer estado mental – intenção, crença, convicção etc.
– representado pela lei, já que tal conclusão equivaleria a liberar o direito
mesmo de qualquer obrigação moral – a tratá-lo, pois, como uma espécie
de «território» amoral. Assim, a melhor maneira de perseguir essa segunda
estratégia é negar que uma parte do conteúdo expressivo da lei seja moral-
mente relevante. Essa parte poderia consistir no conteúdo expressivo que o
órgão legislativo não tenha querido comunicar – o sentido expressivo não
comunicativo da lei – ou em tudo o que transcenda o comando legal propria-
mente dito – que não corresponda, portanto, àquilo que a lei faculta, proíbe
ou prescreve.
Antes de levar adiante a segunda estratégia e examinar que argumentos
haveria para sujeitar apenas parte do conteúdo expressivo de uma lei aos
limites decorrentes de uma moral deontológica, é importante estabelecer se, e
em que medida, o sucesso dessa estratégia constitui uma ameaça ao expressi-
vismo. A fim de tornar a discussão mais clara, seja-me permitido retornar ao
exemplo inicial da separação de bens imposta pela legislação brasileira aos
que se casam com sessenta anos ou mais. A primeira das sugestões feitas ao
final do último parágrafo, de considerar apenas parte do conteúdo expressivo
da lei moralmente relevante consistiria em ignorar qualquer sentido expres-
sivo que não corresponda à intenção do legislador. Nesse caso, a crença
segundo a qual pessoas com mais de sessenta anos são pouco atraentes e
estão particularmente sujeitas a ser ludibriadas por falsos amantes só seria
relevante para o status moral do art. 1.641, II, do Código Civil brasileiro
se o legislador tivesse querido expressar essa crença ao incluir no Código
o referido artigo. Embora isso possa ter ocorrido, é também perfeitamente
possível que o legislador tenha sido movido por outro intuito, como, por
exemplo, o de impor a separação de bens para a proteção dos nubentes em
uma faixa etária na qual o valor do patrimônio acumulado costuma ser maior.
Em segundo lugar, poder-se-ia dizer que o mesmo art. 1.641, II se sujeita à
avaliação moral por seu comando, mas não pelo propósito, qualquer que seja,
com que foi instituído. Nesse caso, o que se teria de verificar é se a imposição
do regime de separação é em si mesma espúria, independentemente da razão,
real ou suposta, na qual essa imposição se baseia.
Caso se conseguisse demonstrar que apenas o sentido comunicativo ou
o comando da lei são moralmente relevantes, o expressivismo, ainda que não
122 revista brasileira de filosofia – RBF 239

de todo refutado, sofreria, no primeiro caso, pela dificuldade de determinar


a intenção do legislador e, no segundo, reduzir-se-ia a uma trivialidade. É
verdade que qualquer das restrições cogitadas, uma vez aceita, não tiraria
validade à afirmação de que a qualidade moral de uma lei depende do que
ela expressa. Porém, a admissão de que o sentido expressivo relevante para
o status moral da lei é apenas o sentido comunicativo – isto é, o estado
mental que se pretendeu comunicar com a promulgação da lei – tornaria o
discurso moral sobre a legislação dependente de a intenção dos autores da
lei fazer-se inteligível, o que requer, na melhor das hipóteses, evidências
nem sempre fáceis de colher. Por outro lado, limitar o sentido expressivo
da lei ao comando legal equivaleria a tratar o expressivismo jurídico como
não diferente de qualquer moral deontológica aplicada ao direito, já que é
razoável dizer que qualquer moral assim se aplica a comandos – como os
de não matar, não roubar, cumprir contratos, etc. – veiculados pelas normas
jurídicas.
Um argumento em favor de limitar a análise ao sentido comunicativo
é o de que o juízo sobre a qualidade moral de uma lei é um juízo sobre o ato
de promulgação dessa lei e, como tal, tem de se atrelar, além de ao ato em
si, às razões que levaram o agente – no caso, o órgão legislativo – a praticá-
-lo. Esse argumento, no entanto, não leva em conta o fato de que uma lei se
mantém em vigor graças não apenas ao ato que a promulgou, mas também
à recusa a revogá-la depois disso. À falta de um argumento adicional que
explique por que o ato de promulgação é moralmente relevante, mas não
a posterior omissão do legislador,25 o sentido comunicativo que se queira
considerar tem de ser, além do correspondente à intenção dos autores da
lei ao editá-la, também o das pessoas que a vêm mantendo em vigor desde
então. O que se ganha, no entanto, ao reconhecer relevância ao fato de uma
lei permanecer em vigor é tão-somente uma ampliação do sentido comuni-
cativo moralmente relevante, e não a independência do sentido expressivo
em relação ao primeiro. Em outras palavras, passam aí a importar, além dos
estados mentais que o legislador tenha pretendido expressar com a promul-
gação da lei, os que tenham sido deliberadamente manifestados pelo órgão
legislativo com a recusa em revogá-la.
Um argumento para que o sentido expressivo de uma lei se desprenda
do sentido comunicativo é bastante persuasivo, e baseia-se na alegação de
que a razão que leva uma lei a ser aprovada (ou a manter-se em vigor) é
relevante mesmo que o legislador não tenha querido manifestá-la. Assim

25
Ainda que se admita distinguir moralmente ações e omissões e imputar responsabilidade
com mais frequência às primeiras, essa distinção dificilmente se poderia ter como crucial a
ponto de invariavelmente eximir o órgão legislativo da responsabilidade por manter certas leis
em vigor.
seção 1 – filosofia jurídica e social 123

como o olhar furtivo do ladrão expressa a intenção de praticar o crime sem


comunicá-la, uma lei pode expressar de maneira não deliberada a razão
que a fez ser editada. Em tais casos, parece pouco plausível isentar o órgão
legislativo da responsabilidade por agir movido por uma razão moralmente
perversa apenas porque essa razão não foi revelada de maneira intencional.26
A fim de desprender o sentido expressivo da lei não só do sentido
comunicativo, mas também da intenção legislativa de um modo geral – isto
é, não só dos estados mentais que se tenham querido comunicar com a lei,
mas também de outros estados mentais que o legislador tenha preferido
ocultar – pode-se cogitar se a responsabilidade moral de quem institui uma
lei (ou a conserva em vigor) não depende também do sentido que se espere
ser atribuído (ou até que seja, de fato, atribuído) à lei por outras pessoas.
Considerando uma vez mais o exemplo do art. 1.641, II, do Código Civil
brasileiro, suponha-se agora que a crença na falta de atrativos das pessoas
maiores de sessenta anos não seja a razão que levou o Congresso brasileiro a
impor a separação de bens a essas pessoas, nem, tampouco, a razão que o tem
levado a mantê-la. Que essa norma pode ser entendida como expressando
essa crença era, não obstante, algo previsível para os legisladores que apro-
varam o Código Civil, além de ser constatável pelos legisladores de hoje.
Pode-se basear nisso a responsabilidade do órgão legislativo?
A questão levantada no parágrafo anterior é uma instância da questão
mais geral relativa à importância moral das aparências. Afinal, basta à mulher
de César ser honesta, ou tem também que parecer honesta? Um professor
disposto a ir à casa de uma estudante para ajudá-la a preparar-se para um
exame deve levar em conta o fato de que o gesto pode ser entendido por
outros estudantes como expressão de desejo sexual? A responsabilidade
moral pelas aparências e, em especial, a responsabilidade do legislador
pelas razões que a lei aparenta (em contraposição às razões que, de fato, a
levaram a ser aprovada) pode ser sustentada de duas maneiras, a primeira
das quais se referindo a consequências: posso ser moralmente responsável
pelo que meus atos expressam aos demais (mesmo que o estado mental
expresso seja apenas aparente) se esse sentido expressivo, bem como suas

26
Isso não significa que o propósito (ou a falta dele) de tornar patente a razão pela qual uma
lei é promulgada seja desprovido de importância. Um legislador racista pode ter sua respon-
sabilidade moral agravada pelo fato de alegar uma falsa razão para aprovar uma lei discri-
minatória, se considerarmos, por exemplo, que tal estratégia é em si mesma condenável por
aumentar a chance de a lei acabar aprovada. Sob outras circunstâncias, disfarçar a verdadeira
razão pela qual uma lei vem à luz pode ser louvável, como, por exemplo, no caso em que,
ao ser comunicada, tal razão possa causar pânico à população. O que se afirma acima não é,
assim, a irrelevância da intenção de comunicar (ou não) a razão na qual a lei se baseia, mas o
fato de que essa razão há de ser levada em conta moralmente mesmo que o legislador não a
tenha querido comunicar.
124 revista brasileira de filosofia – RBF 239

consequências negativas, eram ao menos previsíveis para mim.27 Assim, o


professor que vai à casa de uma aluna movido unicamente pelo propósito de
ajudá-la com o exame pode ser censurado pelo fato de tal gesto, como era
de se prever, ser entendido por outros estudantes como sinal de uma relação
amorosa entre professor e aluna, e pelas eventuais consequências, também
previsíveis, dessa interpretação – por exemplo, a desconfiança dos alunos
quanto à lisura dos exames aplicados pelo professor.28 Similarmente, o órgão
legislativo que aumenta o número de vagas em câmaras municipais poderia
ser responsabilizado se, como esperado, esse aumento for encarado por parte
da população como expressão do mero desejo de agradar correligionários
mediante a elevação inútil da despesa pública, e se essa (falsa, suponha-se)
impressão contribuir para o desencanto do eleitorado.
A outra maneira de arguir em favor da responsabilidade de um agente
pelos falsos estados mentais que seus atos expressam é relacionar a aparência
desses atos a um dever incondicional, lançando mão, assim, de um argumento
deontológico. Sarah Buss parece oferecer um argumento dessa espécie ao
afirmar que a responsabilidade pelo sentido aparente de um ato, além de
justificável do ponto de vista epistemológico, decorre de um dever geral de
respeito.29 Segundo ela, quem ignora o conteúdo ofensivo que um ato seu
tem para outros erra, em primeiro lugar, ao desconhecer o valor do inter-
câmbio de ideias para a descoberta da verdade – no caso, a verdade sobre o
sentido expressivo fidedigno do ato em questão.30 Erra também, em segundo
lugar, porque a indiferença à opinião alheia é em si mesma desrespeitosa, já
que, «ao menos na maior parte dos casos, [tal indiferença] é incompatível

27
Para uma defesa consequencialista – ainda que com restrições – da responsabilidade
pelo que atos (falsamente) aparentam, v. Marcia Baron, «The Moral Significance of How
Things Seem», Maryland Law Review, vol. 60: 607, 623, 2001, (embora não seja de exigir,
como regra, que levemos em consideração todos os mal-entendidos que nossos atos estão
sujeitos a criar, as consequências de uma falsa interpretação podem às vezes ser graves a
ponto de nos levar a concluir que devemos, lamentavelmente, alterar a nossa conduta a fim de
evitá-las). V. também Julia Driver, «Caesar’s Wife: On the Moral Significance of Appearing
Good», Journal of Philosophy, vol. 89: 331, 1992 (embora não o seja intrinsecamente, um ato
«mimeticamente imoral» – isto é, que aparenta ser imoral – pode revelar-se imoral devido a
suas consequências).
28
Como bem salienta Deborah Hellman, «Judging by Appearances: Professional Ethics,
Expressive Government, and the Moral Significance of How Things Seem», Maryland Law
Review, vol. 60: 653, 657, 2001, uma razão para censurar o professor pela aparência do seu
gesto não tem de ser uma razão determinante, suficiente para que se conclua que o correto a
fazer é não ir à casa da estudante. Qualquer que seja, o inconveniente moral do que esse ato
aparenta pode ser contrabalançado por razões favoráveis à sua prática – como, por exemplo,
a de que a estudante precisa de ajuda.
29
V. Sarah Buss, «In Defense of Appearances: A Reply to Marcia Baron’s The Moral
Significance of How Things Seem», Maryland Law Review, vol. 60: 642, 2001.
30
Idem, ob. cit., p. 644.
seção 1 – filosofia jurídica e social 125

com aparentar seriedade na consideração de outros pontos de vista, e porque


aparentar desprezo a outros pontos de vista é um modo de aparentar desprezo
aos seres humanos que os possuem».31
As duas partes do argumento de Buss merecem comentário. Primeiro,
quanto à vantagem epistemológica de considerar outros pontos de vista, é
necessário observar que, diferentemente do caso de Mill, para quem o inter-
câmbio de ideias contribuiria para o progresso moral, a verdade a que Buss
se refere é a verdade sobre o sentido expressivo de um ato. Assim, a atitude
supostamente retrógrada que o argumento de Buss tem em vista não é a do que
se nega a ouvir ou permitir que outros manifestem suas opiniões a respeito
do que é certo e errado moralmente, mas a do que se nega a ouvir as opiniões
de outros sobre o que os seus (do primeiro) atos expressam. Segundo, quanto
ao dever de respeito, é preciso saber em que medida esse dever pode se
referir ao conteúdo expressivo de um ato e não apenas à deliberação que
precede a prática desse ato.32 Afinal, o fato de uma lei conter um sentido
ofensivo para algumas pessoas não significa que os seus autores não tenham
previsto esse sentido e, após considerar seriamente a opinião dessas pessoas,
tenham chegado à conclusão de que as razões favoráveis à promulgação
da lei (e outros sentidos, não ofensivos, que a lei eventualmente possua)
são mais poderosas do que as razões contrárias. A resposta de Buss a essa
objeção consiste em dizer que o dever de respeito exige não só que se levem
a sério os pontos de vista de outras pessoas, mas que também se aparente
levar a sério esses pontos de vista. Sua justificativa para estender o dever
de respeito a tal ponto, porém, acaba tendo uma índole consequencialista:

31
Idem, ob. cit., p. 644-645: «(...) indifference to appearances is disrespectful as well as
unkind. In a nutshell, such indifference is disrespectful because, at least in most circum-
stances, it is incompatible with appearing to take other points of view seriously, and because
appearing to dismiss the value of other points of view is one way of appearing to dismiss the
human beings who occupy these points of view.»
32
A questão referida no texto é levantada pela seguinte passagem do artigo de Buss, ob. cit.,
p. 644: «Mesmo que eu tenha extensa e cuidadosamente examinado as razões para julgar meu
comportamento moralmente errado, e mesmo que, como resultado, eu esteja segura sobre a
minha própria avaliação, o respeito que devo às outras pessoas exige que eu seja sensível aos
seus pontos de vista quando interajo com elas, e isso, por sua vez, exige que eu evite parecer
indiferente quanto à maneira como essas pessoas interpretam minhas ações» («Even when I
have thoroughly and carefully reviewed the reasons for judging my behavior to be morally
wrong, and even when, as a result, I have confidence in my own assessment, the respect I owe
to others requires that I be sensitive to their points of view when I interact with them; and
this requires that I beware of appearing not to care about how they perceive my actions»). A
relação entre a penúltima e a última sentença dessa passagem permanece por explicar. Afinal,
é bastante plausível que o respeito devido às outras pessoas exija sensibilidade aos pontos
de vista dessas últimas, mas é longe de ser claro por que a sensibilidade aos pontos de vista
alheios obriga-nos a não parecer (em lugar de simplesmente não ser) indiferentes a esses
pontos de vista.
126 revista brasileira de filosofia – RBF 239

devemos aparentar levar a sério a opinião de outros sobre o sentido ofensivo


que nossos atos têm para eles por causa da humilhação que, de outro modo,
causaríamos a essas pessoas.33
Um argumento não consequencialista em favor da responsabilidade
pelas aparências é apresentado por Deborah Hellman.34 Segundo Hellman,
essa responsabilidade emana das relações que estabelecemos com outras
pessoas, já que estabelecer relação com outros exige «mútua acomodação»
(mutual accommodation), isto é, exige que, em certa medida, ajustemos
nossa conduta por causa uns dos outros. Para exemplificar, Hellman imagina
o caso de um clube no qual uma das frequentadoras, Alice, use cadeira de
rodas. Se John, outro membro do clube, não levar em conta a situação de
Alice ao definir o lugar em que as reuniões do clube ocorrerão (escolhendo,
sempre que possível, locais acessíveis para ela), estará infringindo com isso
um dever que «exsurge da relação em si mesma».35
Esse dever de mútua acomodação é que nos impõe considerar o sentido
que nossos atos têm para os que se relacionam conosco, mesmo que esse
sentido seja apenas aparente (isto é, que destoe da verdadeira razão pela qual
agimos, ou do estado mental que quisemos comunicar), e independentemente
das consequências que tal aparência acarrete. Hellman procura demonstrar
esse último ponto a partir de duas situações hipotéticas, a do professor que se
dispõe a ir à casa de uma aluna para ajudá-la a preparar-se para um exame e
a de um juiz encarregado de julgar causa envolvendo um jornal que publicou
recentemente uma nota louvatória a seu respeito.36 Hellman supõe que
ambos estejam prestes a agir por razões que não são imorais – o professor
quer mesmo ajudar a aluna, e o juiz somente decidirá a causa em favor do
jornal se acreditar que isso é o certo a fazer –, mas que seus atos poderão ser
encarados por outras pessoas como tendo uma motivação imoral. Hellman
supõe também que em nenhuma das situações imaginadas essa aparência
ilusória tenha algum efeito deletério, para então sustentar que, apesar disso, o
sentido aparente constitua uma razão (ainda que não determinante) para que
tanto o professor como o juiz deixem de agir como gostariam, razão essa que

33
Buss, ob. cit., p. 646. Segundo Buss, o dano que causamos a alguém para quem um de
nossos atos tem sentido ofensivo pode ser um dano «composto» (compounded). Causamos
dano pelo sentido ofensivo do ato em si mesmo, mas também se não levamos a sério a opinião
do outro sobre o sentido que esse ato tem, já que, nesse último caso, tratamos suas opiniões
como se não contassem. Embora Buss não seja clara quanto a isso, pode-se supor que a
prevenção desse dano «qualificado» seja a razão para que devamos aparentar (e não apenas
ter) consideração às opiniões alheias.
34
V. Hellman, Judging by Appearances, cit.
35
Idem, p. 658: «a duty that springs from the relationship itself».
36
Idem, p. 656-663.
seção 1 – filosofia jurídica e social 127

decorre da relação existente entre o professor e seus estudantes, no primeiro


caso, e entre o juiz e os litigantes, no segundo.
A ideia de que as relações que travamos com outras pessoas dão lugar a
determinadas razões para agir é difícil de refutar. É plausível afirmar, também,
que algumas dessas razões sejam não consequencialistas; em relação a um dos
casos imaginados por Hellman, muitos admitiriam que o dever de John em
relação a Alice não está condicionado aos resultados advindos da satisfação
desse dever, e que a situação de Alice ofereça, portanto, uma razão para que
John evite realizar alguma das reuniões do clube em local inacessível para
cadeirantes mesmo que, do contrário, não cause a Alice dano algum (por
exemplo, porque ela não pretenda ir à reunião em questão), e mesmo que a
própria Alice, por talvez entender que pessoas como ela sejam merecedoras
de atenção especial, não se senta ofendida por não poder frequentar alguma
das reuniões do clube.
Mais problemático, no entanto, é afirmar que as razões para agir prove-
nientes das relações que constituímos têm o alcance sugerido por Hellman,
isto é, que essas razões também se refiram às aparências que nossos atos
têm para outros e, principalmente, que sejam independentes das conse-
quências a que tais aparências dão lugar. O simples fato de haver deveres
cuja plausibilidade moral está atrelada à relação que se estabelece entre
determinadas pessoas não prova que esses deveres tenham o conteúdo que
Hellman pretende lhes atribuir. A intuição caminha, antes, na direção oposta:
se as aparências são importantes para as relações interpessoais, elas parecem
ter importância porque: a) influenciam o bem-estar dos que se relacionam
conosco; ou b) embora não influenciem o bem-estar dos demais, contribuem
para que nossa relação com eles conserve certas características ou se desen-
volva de modo desejável. Em ambos os casos, o dever de cuidar das aparên-
cias está condicionado às consequências do que nossos atos expressam – às
consequências sobre as demais pessoas envolvidas, no primeiro caso, e para
a relação em si mesma, no segundo. É só à luz dessas consequências que os
exemplos oferecidos por Hellman de responsabilidade moral pelas aparên-
cias se tornam inteligíveis.37 Se o professor tem razão para não ir à casa da
aluna em virtude do modo como outros estudantes interpretarão esse gesto,
isso se deve ao dissabor que essa interpretação causará aos próprios estu-
dantes ou (mais plausivelmente) ao efeito nocivo dessa falsa impressão sobre
a relação entre professor e alunos. De outro modo, se a crença na idoneidade

37
Hellman não está, naturalmente, de acordo com isso. Ao contrário, ela afirma que: «há algo
errado em dar a aparência de fazer algo errado que não parece atribuível às consequências
danosas que essa aparência pode causar» («there seems to be something wrong in appearing
to do wrong that is not attributable to the harmful consequences appearance may produce»).
Idem, p. 657.
128 revista brasileira de filosofia – RBF 239

do primeiro fosse, além de irrelevante para esses últimos, também irrele-


vante para a manutenção ou fortalecimento da relação em questão, o que
autorizaria tratar o dever de evitar o surgimento dessa crença como um dever
oriundo da relação mesma? Similarmente, se, apesar de entendida por uma
das partes envolvidas (o autor da ação contra o jornal) como sinal de parcia-
lidade, a decisão de julgar a causa não provocasse dano algum à essa parte
ou à relação entre juiz e litigantes, por que deveríamos nos interessar pelo
que essa decisão aparentemente expressa, ao invés de somente pelas razões
ou estados mentais que de fato a motivaram?
Caso se ambicione oferecer um argumento não consequencialista
em favor da responsabilidade do legislador pelo que a lei «ilusoriamente»
expressa (isto é, pelo sentido expressivo não comunicativo da lei ou por
razões ou estados mentais de que a lei erroneamente se considere expressão),
esse argumento não pode ser, portanto, nem o derivado por Buss de um dever
geral de respeito, nem o de Hellman sobre deveres provenientes das rela-
ções que estabelecemos com outras pessoas. Minha sugestão, então, é que
a responsabilidade pelo sentido expressivo da lei se relacione à importância
moral objetiva desse sentido.
A fim de expor o argumento, seja-me permitido esclarecer primeiro
o que designo como importância moral objetiva. Muitos dos nossos julga-
mentos morais se aplicam a atos e são, assim, julgamentos sobre o mere-
cimento de agentes. Consideramos, por exemplo, o ato de ajudar alguém
em perigo moralmente louvável, tratando o autor desse ato como merecedor
de aplauso, ao passo que um desvio de recursos públicos torna o agente
governamental que os pratica condenável aos nossos olhos. Há casos, no
entanto, em que nossa reação moral é provocada por fatos ao invés de atos,
não dizendo respeito, pois, ao valor ou desvalor de uma conduta ou ao
merecimento de um agente. Enquanto este artigo era escrito, um incêndio
no Rio de Janeiro destruiu parte considerável das obras deixadas pelo artista
plástico Hélio Oiticica, um dos mais apreciados participantes do movimento
neoconcretista brasileiro. Ainda que tenha dado lugar a juízos de reprovação
– manifestou-se descontentamento, por exemplo, com o fato de as autori-
dades terem permitido que o acervo permanecesse em um imóvel particular,
aos cuidados de familiares do artista – esse é um exemplo de um aconteci-
mento cuja importância moral transcende a dos atos que lhe deram causa.
É lamentável que parte da obra de Oiticica tenha se perdido, e o valor (ou
desvalor) moral dessa perda não só não se confunde, como é independente
do valor das condutas às quais essa perda possa ser atribuída.
Nem todo o fato é objetivamente importante do ponto de vista moral.
Se o incêndio na casa dos familiares de Oiticica tivesse consumido apenas
móveis comuns, seria em si mesmo moralmente irrelevante, embora pudesse
seção 1 – filosofia jurídica e social 129

interessar como consequência de um ato (esse sim) moralmente censurável,


como no caso de o incêndio ter sido deliberadamente provocado por alguém.
Os exemplos de fatos de moralidade ínsita não são, porém, difíceis de encon-
trar: não lamentamos apenas a destruição de uma obra de arte, mas também
o sofrimento de seres humanos ou de outros animais, a desaparição de uma
espécie e a degradação do planeta; aprovamos, por outro lado, a realização
de uma obra genial, a despoluição de um rio ou, simplesmente, o nascimento
de uma criança. Em todos esses casos, nosso juízo moral é provocado pelo
fato em si e, portanto, independentemente das condutas – essas também
merecedoras, ocasionalmente, de aplauso ou repúdio – que o ensejaram.38
A validade de um expressivismo legal não consequencialista pode ser
atrelada à importância moral objetiva daquilo que a lei expressa. Assim
como a criação e a destruição de uma obra de arte são moralmente relevantes
em si mesmas, uma lei pode ensejar aprovação ou reprovação pelo que obje-
tivamente expressa, isto é, independentemente da qualidade moral dos atos
que levaram à sua promulgação ou que a têm mantido em vigor.
O que confere importância moral objetiva ao conteúdo expressivo da
legislação? Assim como se pode alegar que o valor moral ínsito de uma obra
de arte se deva à sua beleza e o da preservação de uma espécie animal ao
modo de vida que lhe corresponde, quem se disponha a defender o expres-
sivismo deontológico tem que oferecer uma razão para tratar o sistema
jurídico como objetivamente importante. Minha sugestão é que essa razão
provenha do próprio caráter expressivo da legislação: diferentemente de um
mero instrumento para a realização de certos fins, as normas legais podem
ser concebidas como expressão de valores, atitudes, razões e normas regu-
ladores da vida em sociedade. O direito é, nesse sentido, a «voz» de um
povo ou nação, e é de lamentar que, ao expressar-se por meio de normas
jurídicas, uma sociedade o faça de maneira moralmente equivocada, ainda
quando parte considerável (ou até a totalidade) de sua população não seja
moralmente responsável pelo que essas normas expressam.
Pode-se, contudo, indagar por que se deva tratar um sistema jurídico
como expressão dos valores e normas de uma comunidade ainda quando
pouquíssimos dos membros dessa comunidade tenham contribuído signifi-
cativamente para a criação das normas legais atualmente em vigor, ou ainda

38
Embora reconheça que a ideia da importância moral objetiva de certos acontecimentos
possa ser alvo de objeções, não pretendo defendê-la mais longamente aqui. Meu intuito pode
ser entendido como o de apenas insinuar que, caso o expressivismo deontológico deseje lidar
com sentidos que não necessariamente correspondam às razões ou estados mentais que o
legislador intentou comunicar, precisa reconhecer a esses sentidos a referida importância. A
sorte do expressivismo dependeria, pois, da validade que se venha a atribuir (ou negar) à ideia
apresentada acima.
130 revista brasileira de filosofia – RBF 239

quando o conteúdo expressivo da legislação não corresponda ao que os legis-


ladores intentaram comunicar. A isso se pode rebater que O direito é meio de
expressão de um povo à medida que se perceba como o direito desse povo,
e independentemente, portanto, do quanto suas normas obedeçam à vontade
da população.39 Como direito de um povo, a legislação é também algo mais
do que o resultado da vontade de certos indivíduos, o que faz com que o seu
caráter expressivo não se atrele às intenções dos legisladores.
O que uma lei expressa é objetivamente importante, portanto, porque a
lei é veículo de expressão de uma comunidade; e é em si mesmo bom que os
valores ou atitudes expressos pela legislação sejam moralmente acertados,
e inerentemente ruim quando não o são. É porque o Código Civil é parte
do sistema jurídico brasileiro e, como tal, meio de expressão da sociedade
brasileira que é de lamentar a convicção expressa pelo seu art. 1.641, II, a
respeito das pessoas com mais de sessenta anos, tanto quanto é de lamentar,
por exemplo, que o direito de um país ocasionalmente expresse, ainda que de
maneira involuntária, ideias racistas.
Como meio de expressão, a legislação importa moralmente em toda a
sua potencialidade expressiva, e não apenas por aquilo que comanda. Afinal,
se a qualidade de meio de expressão da lei pode fazê-la inerentemente boa
ou ruim, nada que seja parte de sua expressão escapa ao juízo moral. Ignorar
as razões que as regras jurídicas revelam para além daquilo que prescrevem,
proíbem ou facultam equivaleria a ignorar boa parte dos valores e convic-
ções expressos por essas regras, o que contradiz a ideia de tratá-las como
moralmente relevantes por aquilo que expressam.
Essa importância moral objetiva da legislação é, ela mesma, e ainda
que de maneira limitada, causa de responsabilidade moral.40 Porque o sentido
expressivo da lei é em si mesmo relevante, não devemos permanecer indife-
rentes a esse sentido. Assim, mesmo que a razão aceita pelos congressistas
brasileiros para promulgar e manter em vigor o art. 1.641, II, do Código Civil
nada tenha a ver com a suposta falta de atrativos das pessoas maiores de
sessenta anos, não é possível ignorar a repulsiva mensagem que essa norma
veicula. A responsabilidade pelo que uma lei expressa é, de outra parte, limi-
tada, e isso porque o conteúdo expressivo da legislação nem sempre é de todo

39
Isso não significa que o status democrático da legislação não determine a responsabilidade
da população pelo conteúdo das suas leis, ou que o desprezo à vontade popular manifestado por
uma Constituição autoritária não constitua um equívoco à luz do expressivismo deontológico.
40
Não é relevante para a discussão do texto definir as condições gerais para que os legisladores,
ou mesmo a população em geral, sejam responsabilizados pelo conteúdo da legislação. O que
se afirma é tão-somente que, uma vez atendidas tais condições, a responsabilidade em questão
também pode decorrer – ainda que limitadamente, tal como se explicará em seguida – ao
sentido expressivo da lei.
seção 1 – filosofia jurídica e social 131

previsível. A lei pode ganhar sentidos inimagináveis para os seus autores,


não sendo plausível responsabilizar esses últimos quando tais sentidos se
mostrem moralmente perversos.

4. Os vários sentidos expressivos da legislação

Pode-se tratar uma mesma lei como expressão de estados mentais ou


razões muitíssimo diferentes, até mesmo conflitantes. Medidas de ação afir-
mativa são um conhecido exemplo de algo a que se pode atribuir o objetivo
de promover a igualdade, e descrever, assim, como manifestação de respeito
e consideração aos interesses de todos, mas que também se encara como
sinal de desprezo aos cidadãos brancos ou de crença na inferioridade dos que
são beneficiados pelas referidas medidas. Como afirmado anteriormente,41
essa diversidade de sentidos torna fundamental determinar qual ou quais os
sentidos da lei a serem considerados pelo expressivismo.
Na parte precedente, já se disse que o conteúdo expressivo de uma lei
não se limita àquilo que o legislador pretendeu comunicar, nem as razões
que de fato levaram à aprovação da lei (ou que a têm mantido em vigor).
Pode-se acrescentar agora que esse conteúdo também não é exaurido pelo
sentido que é atualmente ligado à lei, seja pela população a ela submetida,
seja por qualquer outra pessoa. A razão para isso está mais uma vez relacio-
nada ao fato de termos isolado a expressão da lei como objeto de atenção
moral, separando-a, assim, do ato de promulgação e das suas consequências.
Admitida a importância moral objetiva do que a lei expressa, não há por que
restringir a análise aos sentidos que são acidentalmente reconhecidos como
tais por certas pessoas, tal como ocorreria caso essa análise dissesse respeito
às consequências daquilo que a legislação expressa.42
O que, então, pode ser positivamente reconhecido como fazendo parte
do conteúdo expressivo de uma lei? Não parecemos dispor de uma resposta
para essa pergunta que não seja «tudo», ou, ao menos, tudo o que se venha
de fato a reconhecer como parte desse conteúdo. Admitida a importância
moral objetiva do que a lei expressa, torna-se infrutífera qualquer tentativa
de estabelecer um critério segundo o qual a expressão da lei seja algo que
não a expressão da lei mesma, isto é, o que a lei expressa para alguém. Isso

41
V. supra o texto acompanhando as notas 13 a 23.
42
Naturalmente, só se pode tratar algo como parte do conteúdo expressivo de uma lei se
esse algo for assim reconhecido por alguém – nem que seja apenas pelo próprio falante. Do
contrário, seria preciso admitir como válida a afirmação de que «a é parte daquilo que a lei
expressa, embora ninguém, nem mesmo eu, acredite nisso». Logo, o conteúdo expressivo da
lei não está limitado àquilo que atualmente se considere fazer parte desse conteúdo somente
por causa de eventuais sentidos que, embora reconhecíveis como tais, ainda não tenham sido
descobertos.
132 revista brasileira de filosofia – RBF 239

não significa, é claro, que a nossa responsabilidade moral pelo que uma lei
expresse estenda-se a tudo o que ela expressa, não importa para quem. Ao
contrário, essa responsabilidade (pondo-se de lado considerações consequen-
cialistas) diz respeito apenas ao que sinceramente acreditamos fazer parte do
conteúdo expressivo da lei. Afinal, agente algum pode (salvo, insista-se, por
razões consequencialistas) ser responsabilizado por aprovar ou manter em
vigor uma lei em virtude de algo que, para o agente mesmo, essa lei esteja
longe de expressar.43

5. Conclusão

Este artigo pretendeu determinar o fundamento de um expressivismo


jurídico do tipo não consequencialista ou deontológico. É conveniente, para
concluir, salientar alguns dos limites desse expressivismo.
Primeiro, é mister observar que o expressivismo jurídico está longe de
conter em si mesmo uma teoria normativa da moral ou do direito. A simples
afirmação de que o conteúdo expressivo da legislação é moralmente rele-
vante para além ou independentemente das consequências a que dá lugar
nada diz a respeito dos princípios morais ou de justiça à base dos quais esse
conteúdo tem de ser avaliado. O expressivismo mostra-se, assim, conciliável
com pontos de vista morais bastante diversos, descartando-se apenas aqueles
de acordo com os quais a bondade de uma regra jurídica dependa exclusiva-
mente das suas consequências.
Segundo, o expressivismo, ao menos tal como aqui defendido, não
pretende dar a palavra final sobre a qualidade moral da legislação. Afirmar
que o conteúdo expressivo da lei é relevante não é o mesmo que afirmar que
só esse conteúdo seja relevante, isto é, não significa negar a importância de
tudo o que não seja parte do que a lei expressa, como, por exemplo, o modo
como ela foi aprovada ou as suas consequências.44
Terceiro, como o fundamento acima atribuído ao expressivismo não
permite tratar parte do conteúdo expressivo de uma lei como mais digna
de atenção do que outra, as implicações desse conteúdo para a validade da

43
Isso não significa limitar a responsabilidade às razões que o agente teve para aprovar a lei.
Os congressistas brasileiros podem admitir que o art. 1.641, II, do Código Civil expressa uma
presunção desrespeitosa às pessoas maiores de sessenta anos ainda que a razão pela qual eles
estabeleceram a regra da separação de bens obrigatória nada tenha a ver com essa presunção.
44
Distinguir o conteúdo expressivo da lei de suas consequências ou do modo como essa
lei foi instituída não significa, no entanto, que essas consequências e esse modo não possam
de alguma maneira determinar aquilo que a lei expressa. Por exemplo, se as consequências
de uma lei se revelam desastrosas para uma parcela da população, essa mesma lei pode,
mantendo-se em vigor por certo tempo, passar a conter uma mensagem de desrespeito às
pessoas em questão.
seção 1 – filosofia jurídica e social 133

legislação devem ser consideradas com cuidado. Ao contrário do que por


vezes se pretende na doutrina constitucional norte-americana,45 o expressi-
vismo não autoriza distinguir, entre os vários sentidos que são de emprestar
a uma lei, um único sentido válido. Desta maneira, a ideia de que uma lei
venha a infringir a Constituição em virtude daquilo que expressa tem de
se confrontar com o fato de que, além de um sentido constitucionalmente
proibido, a lei possa ter outros que não o sejam. Que, apesar disso, uma lei se
declare inconstitucional devido àquilo que expressa é algo a demandar, pois,
uma explicação que a defesa pura e simples do expressivismo aqui contida
não proporciona.

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45
V. supra o texto acompanhando as notas 21 a 23.
134 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Pildes, Richard H., 1998: «Why Rights Are Not Trumps: Social Meanings, Expres-
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Razão prática, justificação da
autoridade e o dever
instrumental de obedecer1

Felipe Oliveira de Sousa


Doutorando em Teoria do Direito pela Universidade de Edimburgo,
Reino Unido. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do
Ceará (UFC). Bolsista GDE/CNPq.

Resumo: O problema contemporâneo da autoridade se refere à sua


compatibilidade com a autonomia ou a razão. Como pode um agente
completamente racional e autônomo submeter-se à autoridade de outra
pessoa ou instituição sem comprometer sua própria razão? Este trabalho
critica uma das respostas mais proeminentes na discussão contemporânea:
a teoria instrumental da autoridade de Joseph Raz. Para Raz, o dever de
obedecer tem valor instrumental. A autoridade opera como um meio para
um fim: conformar-se melhor com a razão. O que importa é a «probabi-
lidade de estar correto». Minha estratégia é mostrar que a teoria raziana
falha em seus próprios termos: há uma tensão entre razão e autonomia que
afasta completamente a possibilidade de justificar a autoridade em bases
meramente instrumentais.
Palavras-chave: Autoridade – Autonomia – Razão – Dever de obedecer
– Joseph Raz.

1
Uma versão reduzida foi apresentada nas «Jornadas de Investigadores en Derecho y
Ciencias Sociales» promovida pelo Instituto Ambrosio de Gioja na Faculdade de Direito da
Universidade de Buenos Aires (UBA), 2010. Agradeço a Luis Fernando Barzotto, Wladimir
Barreto Lisboa e Nelson Boeira que, com suas críticas, me ajudaram a dar maior precisão ao
argumento aqui apresentado.
136 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Abstract: The contemporary problem of authority refers to its compat-


ibility with autonomy or reason. How can a completely rational and
autonomous agent submit himself to the authority of another person or
institution without compromising his own reason? This paper criticizes one
of the most prominent responses at contemporary discussion: Joseph Raz’s
instrumental theory of authority. For Raz, the duty to obey has an instru-
mental value. Authority operates as a means to an end: being in conformity
with reason. What matters is the ‘probability of being right’. My strategy is
to show that Razian theory fails in its own terms: there is a tension between
reason and autonomy that completely undermines the possibility of justi-
fying authority merely in instrumental grounds.

Keywords: Authority – Autonomy – Reason – Duty to obey – Joseph Raz.

1. Introdução: Autoridade, Autonomia e Razão — qual é o


problema?

Na discussão contemporânea, o problema da autoridade é colocado nos


termos de sua compatibilidade com a noção de razão ou de autonomia. Estar
sujeito a uma autoridade, argumenta-se, é incompatível com a razão. Por
um lado, deve-se agir sempre com base na ponderação correta das razões.
Por outro lado, a autoridade exige submissão mesmo quando se pensa que a
ação requerida é contrária à razão. «A Razão em si mesma parece requerer
que sempre façamos o que é melhor na ponderação de razões... enquanto a
autoridade pretende aderência contrária à ponderação de razões e, portanto,
contrária à razão mesma».2 Submeter-se ou sujeitar-se a uma autoridade,
nessa medida, seria irracional. De modo similar, a autonomia requer que o
indivíduo sempre aja com base no próprio juízo: ele deve sempre tentar agir
com base na ponderação correta das razões. «[Um agente moral] nem sempre
faz o que é correto, mas não negligencia o dever de tentar verificar o que é
correto».3 A autoridade, em algumas situações, requer uma ação contrária
ao juízo do agente e, assim, requer que ele abandone sua autonomia. Uma
pessoa autônoma, porém, age somente quando está convencida de que, nos
méritos, a ação é apropriada. Logo, ela nunca poderia submeter-se à autori-
dade de outrem. Submeter-se ou sujeitar-se a uma autoridade, portanto, seria
imoral.
O problema, em termos gerais, é claro. Como alguém pode ter uma
obrigação para agir contra o que é correto fazer ou contra seu próprio juízo?
A obrigação de agir corretamente, pode-se pensar, sempre tem prioridade

2
Cf. Green, 1988: 25-6.
3
Cf. Wolff, 1976: 13.
seção 1 – filosofia jurídica e social 137

sobre outras obrigações para agir. Como pode uma pessoa completamente
racional e autônoma submeter-se à autoridade de outra pessoa ou instituição
sem comprometer sua própria razão? Essa é a questão crucial.
O desafio, na discussão contemporânea, é colocado pelo anarquismo
filosófico. O anarquismo é radical: não há possibilidade moral para a exis-
tência de uma autoridade. A noção de autoridade legítima ou justificada
é, em si mesma, uma contradição em seus termos. O texto clássico é In
Defense of Anarchism (1976) de Robert Paul Wolff. Para Wolff, há uma
incompatibilidade lógica entre autonomia moral e autoridade legítima. Toda
e qualquer submissão a uma autoridade seria imoral ou irracional. O argu-
mento é formulado a partir da teoria moral de Kant. «A hipótese fundamental
da filosofia moral é que os homens são responsáveis por suas ações».4 As
pessoas, em algum sentido, teriam a capacidade de escolher sobre como
devem agir. Estar apto a escolher como agir torna um homem responsável.
Porém, o mero ato de escolha não é, em si mesmo, suficiente. Para Wolff,
uma pessoa autônoma não é apenas responsável por suas ações: é uma pessoa
que assume responsabilidade por elas. E ela se torna responsável na medida
em que tenta determinar o que deve fazer. Portanto, uma pessoa autônoma
é, sobretudo, uma pessoa que delibera. «Somente porque o homem tem a
capacidade de deliberar sobre suas escolhas é que se pode dizer que ele está
sob uma obrigação contínua de tornar-se responsável por elas».5 Quem age
sem avaliar os méritos de suas ações falha em tornar-se responsável por essas
ações e, nessa medida, viola seu dever de agir com autonomia. Korsgaard,
p.ex., formula um argumento similar:
«Nem sempre fazemos o que, com base na reflexão, faríamos ou mesmo
o que, com base na reflexão, já decidimos fazer. A reflexão não tem um poder
irresistível sobre nós. Mas quando refletimos, não podemos deixar de pensar
que devemos fazer o que, com base na reflexão, concluímos que temos razão
para fazer.»6 (Korsgaard, 1996: 104)
Para Wolff, a autonomia não é apenas uma condição necessária da
responsabilidade moral ou da capacidade de escolha: ela é um dever moral
primário e independente.7 «A condição moral demanda que reconheçamos
a responsabilidade e que busquemos a autonomia onde e quando quer que
seja possível».8 Isso requer não apenas que o indivíduo faça suas escolhas
de acordo com o que ele pensa ser a ponderação correta das razões. Requer

4
Wolff, 1976: 12.
5
Idem, ibidem.
6
Cf. Korsgaard, 1996: 104 (tradução livre).
7
«The primary obligation of man is autonomy, the refusal to be ruled» (Cf. Wolff, 1976:
18).
8
Wolff, 1976: 17.
138 revista brasileira de filosofia – RBF 239

também que ele use toda a informação disponível para decidir o que fazer.9
Cada indivíduo, para ser autônomo, deve formar seu próprio juízo em ques-
tões morais. Mas, como Wolff observa, reconhecer a autoridade de outrem é
render seu próprio juízo ao juízo do outro: «obediência não é um problema
de fazer aquilo que alguém lhe diz para fazer. É um problema de fazer aquilo
que esse alguém lhe diz porque ele diz a você que o faça».10 Isso leva dire-
tamente a um problema: o indivíduo autônomo, na medida em que é autô-
nomo, não pode render seu juízo ou estar sujeito à vontade de outrem. «Ele
pode fazer o que outrem lhe diz, mas não porque lhe disseram que se faça».11
A pessoa autônoma age somente quando está convencida de que a ação é
apropriada. Tornar-se responsável pelas próprias ações é tomar as decisões
finais sobre o que fazer. «Ser autônomo... envolve tomar a si mesmo como a
autoridade última em questões morais».12
Um indivíduo responsável, escreve Wolff, «não é caprichoso nem anár-
quico, pois ele reconhece que está vinculado a restrições morais. Mas ele
insiste que ele, sozinho, é o juiz dessas restrições».13 Um agente moral, ao
reconhecer sua capacidade de escolha, faz de si mesmo o autor de suas ações:
ele se torna responsável por elas. Esse agente poderia seguir o conselho ou
comando de outrem. Mas ele o segue porque, ao deliberar por si mesmo,
se convenceu de que esse é um bom conselho ou um bom comando. Wolff
argumenta que, para um indivíduo autônomo,
«... não há algo, estritamente falando, como um comando. Se alguém...
está formulando o que se pretende ser um comando, e se ele... espera que esse
comando seja obedecido, esse fato será tido em conta nas minhas delibera-
ções. Posso decidir que devo fazer o que essa pessoa requer, e pode até ser
que sua formulação do comando seja o fator... que torne desejável para mim
segui-lo... Mas na medida em que a decisão é tomada por mim, não estou
obedecendo seu comando; não estou reconhecendo que ele tem autoridade
sobre mim.»14 (Wolff, 1976: 15-16)
Diante disso, pode-se perguntar: como pode um agente moral submeter-
-se à autoridade de outra pessoa ou instituição sem perder sua autonomia?

9
«Taking responsibility involves attempting to determine what one ought to do, and that…
lays upon one the additional burdens of gaining knowledge, reflecting on motives, predicting
outcomes, criticizing principles an so forth» (Wolff, 1976).
10
Wolff, 1976: 9.
11
Idem, ibidem, p. 14.
12
«The autonomous person does not act simply because another has told him to do so –
he acts only when convinced that action is appropriate. To be autonomous, in other words,
involves taking oneself as the ultimate authority on moral questions» (Cf. Shapiro, 2002:
389).
13
Idem, ibidem, p. 13.
14
Idem, ibidem, p. 15-6 (trad. livre).
seção 1 – filosofia jurídica e social 139

O argumento de Wolff conduz a um dilema. A autonomia moral requer que


cada indivíduo forme seu próprio juízo e aja com base nele. A autoridade,
porém, requer que se suspenda esse juízo. «Se o indivíduo preserva sua auto-
nomia ao reservar para si mesmo, em cada caso, a decisão final... ele nega
a autoridade... se, por outro lado, ele se submete... e aceita a pretensão de
autoridade... ele perde sua autonomia».15 Um agente autônomo, em resumo,
nunca poderia obedecer a uma autoridade e permanecer autônomo. A partir
de sua própria escolha, ele pode seguir o comando de uma autoridade, mas
não obedecê-lo.16 «Isso ocorre quando o comando torna o indivíduo ciente
de que tem razões para realizar o ato comandado e age por essas razões,
mas não em virtude do comando».17 Uma pessoa autônoma, p.ex., não aceita
a obrigação de pagar impostos porque a lei requer que se pague. Ela crê
que deve pagá-los porque acredita que essa é a ação correta a ser realizada
(independente do que a lei exige ou deixa de exigir). Para Wolff, reconhecer
a pretensão de autoridade de alguém seria reconhecer que seu direito de
comandar está em sua pessoa, i.e. em quem ela é, e não nos méritos do que
ela comanda.
O argumento de Wolff é formulado com base num dilema moral. Ele
postula que a autonomia, por ser o dever primário de cada indivíduo, é
incompatível com qualquer pretensão de autoridade. Essa posição, contudo, é
controversa. Alguns autores, por exemplo, questionam se a autonomia seria,
de fato, um dever moral. A autonomia pode ser associada a uma capacidade
ou habilidade de autodeterminação moral do indivíduo.18 Por que, p.ex., uma
pessoa deve sempre deliberar antes de realizar qualquer ação moral? Não
deveria ela deferir ao juízo de outrem quando esse juízo é melhor que o seu?
Por um lado, a ideia de que uma pessoa deve sempre ponderar as razões antes
de agir é problemática em alguns casos: nem toda ação moral exige que se
delibere antes de agir. Há casos, p.ex., em que o agente não tem informação
suficiente ou não está, em algum sentido, preparado para decidir correta-
mente. Tentar deliberar, nesses casos, não teria sentido: é melhor seguir o
juízo de alguém que tenha essa informação ou preparo do que seguir seu
próprio juízo. Wolff admite que há algumas situações «em que é razoável
desistir de sua autonomia».19 Um indivíduo «pode decidir obedecer aos
comandos de outrem sem realizar qualquer tentativa de determinar, por si
mesmo, se o que é comandado é bom ou sensato (wise)».20

15
Wolff, 1976: 40.
16
«A person who “obeys” a command because it coincides with his autonomous decision is
not obeying authority» (Cf. Reiman, 1972: 11).
17
Cf. Shapiro, 2002: 386.
18
Veja, p. ex.: Shapiro, 2002: 389-91; e Green, 1988: 25 e ss.
19
Cf. Wolff, 1976: 15.
20
Idem, ibidem, p. 14.
140 revista brasileira de filosofia – RBF 239

O argumento ainda pressupõe outro problema. Seu mérito é ressaltar os


riscos que qualquer relação de autoridade impõe à autonomia. Esses riscos
existem e são reais. O exercício das faculdades do juízo e da autorreflexão
são elementos necessários para a autodeterminação moral. Num sentido
relevante, portanto, o indivíduo que transfere muitas de suas decisões ao
juízo dos outros corre o risco de perder sua capacidade de autodeterminação.
«Quanto mais alguém depende do juízo de outrem, maior é a chance de
perder a habilidade de formar juízos por si mesmo e mais vulnerável alguém
se torna à manipulação».21 Mas, pode-se questionar, por que esses riscos
implicariam a negação de toda e qualquer autoridade? O mundo é muito
complexo para que um indivíduo possa viver completamente sem o auxílio
de nenhuma autoridade. O próprio Wolff assume que «há muitos, talvez
insuperáveis, obstáculos para alcançar uma autonomia racional e completa
no mundo moderno».22 Se, para Wolff, a autonomia completa não é possível,
por que não dar espaço a alguma autoridade e enunciar que nem toda autori-
dade é inconsistente com a autonomia? O argumento anarquista pode falhar
por ser radical.
Apesar dessas dificuldades, o problema permanece. A tensão entre auto-
nomia e autoridade pode ser colocada na forma de um paradoxo mais geral.
O problema estaria não no dever de autonomia, mas sim na concepção de
racionalidade que se pressupõe. Toda e qualquer relação de autoridade seria
incompatível com as exigências da razão. A linha de argumento é comum. A
autoridade formula uma diretiva que requer uma ação x. Na ponderação das
razões (i.e. levando tudo em consideração), há duas opções: ou x deve ser
realizada ou x não deve ser realizada. Se, na ponderação das razões, x deve
ser realizada, então o agente deveria fazê-la. Ele deve realizar x não porque
x foi requerida pela autoridade, mas sim porque ele deve agir com base na
ponderação das razões. Se, porém, a ponderação das razões indica que x não
deve ser realizada, o agente não deve fazê-la. Por definição, nenhum agente
racional deve agir contra a ponderação das razões. «Se uma diretiva dá o
resultado correto, a diretiva é irrelevante; se... dá o resultado errado, então a
obediência à diretiva é desarrazoada».23
O dilema, colocado desse modo, enuncia: as diretivas de uma autori-
dade nunca podem ser, em si mesmas, razões para ação; logo, um indivíduo
racional, na medida em que é racional, nunca pode estar na posição de
obedecer a uma autoridade. Na deliberação desse indivíduo, as diretivas da
autoridade operam «como uma informação que deve ser considerada, mas

21
«To cede too much decision-making to others is both foolhardy and morally irresponsible…
To sacrifice them is, in some real sense, to forfeit one’s humanity» (Cf. Shapiro, 2002: 388).
22
Cf. Wolff, 1976: 17.
23
Cf. Shapiro, 2002: 391.
seção 1 – filosofia jurídica e social 141

que deve ser seguida somente na medida em que o agente a julga correta e,
ressalte-se, somente pela razão de que ele assim a julga».24
Essa tensão leva alguns autores a defender que a noção de autoridade,
em si mesma, tem de ser dissociada da ideia de razão: «um apelo à autori-
dade – a requerimentos impostos por uma autoridade – é uma alternativa
a um apelo a razões – a requerimentos baseados em razões para agir».25
Uma ideia similar, ainda que em outro contexto, está presente na definição
de autoridade elaborada por Hannah Arendt. A autoridade, em virtude de
sempre demandar obediência, é facilmente confundida ou com alguma forma
de poder ou violência ou com alguma forma de persuasão:
«A autoridade impede o uso de meios externos de coerção; onde a
força é usada, a autoridade mesma falhou. A autoridade, por outro lado, é
incompatível com a persuasão, que pressupõe igualdade e opera através de
um processo de argumentação. Onde argumentos são usados, a autoridade é
suspensa...» (Arendt, 1977: 92)
Diante disso, pode-se perguntar: haveria então algum modo de conci-
liar a autoridade com a razão? Como se viu, o problema contemporâneo
é colocado nos seguintes termos: para obedecer à autoridade, uma pessoa
autônoma e racional teria de acreditar que o fato de ela ser sido requerida
a agir de certo modo lhe dá uma razão para realizar essa ação. «É o fato
de que lhe foi comandado agir, mais do que a ação que lhe foi comandada,
que daria a ela uma razão conclusiva para realizá-la».26 Mas, de novo, como
isso é possível? Na discussão recente, Joseph Raz oferece uma das respostas
mais articuladas para esse problema. Raz, em termos gerais, admite que
aceitar uma autoridade envolve, necessariamente, deixar de agir com base no
próprio juízo sobre a ponderação das razões. «A autoridade legítima envolve
uma negação do direito de alguém de agir com base nos méritos do caso».27
Ele, contudo, também argumenta que «a razão nunca justifica abandonar
a própria autonomia, ou seja, o direito e o dever de agir com base no seu
próprio juízo sobre o que deve ser feito, levando tudo em consideração».28
O desafio estaria em mostrar que a razão, em si mesma, pode justificar
a suspensão do próprio juízo em algumas circunstâncias. Tem de ser possível
agir de modo racional mesmo que isso implique agir contra a ponderação das
razões. «Aceitar uma autoridade... não é agir irracionalmente ou arbitraria-
mente. A necessidade por uma autoridade pode ser bem fundamentada na

24
Cf. Green, 1988: 26.
25
Cf. Gauthier, 1963: 139.
26
Cf. Shapiro, 2002: 390.
27
Cf. Raz, 2009: 27.
28
Idem, ibidem.
142 revista brasileira de filosofia – RBF 239

razão».29 O problema é claro: como alguém pode ter um dever de seguir uma
diretiva que está, de fato, errada? Como uma diretiva pode ser obrigatória
mesmo que errada? Esse é o problema que Raz enfrenta. Sua solução, basica-
mente, está numa teoria instrumental. A autoridade é um meio para realizar
um fim: conformar-se melhor com a razão. Se, ao seguir a autoridade, você
se sai melhor do que seguindo seu próprio juízo, você deve obedecê-la.
Preenchida essa condição, a autoridade seria legítima e, portanto, obedecê-
-la seria uma necessidade moral. As pessoas teriam a obrigação moral de
obedecê-la, porque isso lhes habilita a agir de modo racional. Esse é o núcleo
de sua teoria. O objetivo do próximo item é discutir as credenciais dessa
solução. A estratégia reside em elaborar uma reconstrução crítica das três
teses que Raz sugeriu em seu The Morality of Freedom (1986) para articular
uma teoria geral da autoridade.

2. A Justificação da Autoridade: uma reconstrução das três


teses de Raz

2.1 A tese da dependência (dependence thesis)

A formulação de Raz para a tese da dependência é a seguinte:


«(...) todas as diretivas de uma autoridade devem estar baseadas em razões
que já se aplicam independentemente aos destinatários das diretivas e que são
relevantes para sua ação [i.e. para a ação dos destinatários] nas circunstâncias
incluídas pela diretiva.» (Raz, 1999: 47)30
As razões em que as diretivas devem estar baseadas são chamadas de
«razões dependentes». «As autoridades devem estar limitadas... pelos tipos
de razões em que podem ou não restar ao tomarem decisões e formularem
diretivas».31 A tese da dependência enuncia o caráter geral das «conside-
rações que devem guiar as ações das autoridades».32 Ou seja: ela é «uma
tese moral sobre o modo em que as autoridades devem usar seus poderes».33
A tese da dependência, portanto, pretende dar uma limitação normativa ao
exercício de qualquer autoridade. Raz propõe duas matizações.
Primeiro, a tese não enuncia que as autoridades sempre agem por razões
dependentes, mas sim que deveriam fazê-lo. Ela formula uma condição para

29
Cf. Raz, 1999: 64.
30
No original: «all authoritative directives should be based on reasons which already
independently apply to the subjects of the directives and are relevant to their action in the
circumstances covered by the directive».
31
Raz, 1999.
32
Idem, ibidem, p. 47.
33
Idem, ibidem, p. 53.
seção 1 – filosofia jurídica e social 143

o exercício ideal da autoridade. Essa condição não pressupõe algo que as


autoridades sempre alcançam ao agir enquanto autoridades, mas sim algo que
deveriam alcançar ao menos «com uma frequência suficiente para justificar
seu poder».34 A tese da dependência, portanto, não pressupõe que as diretivas
de uma autoridade são obrigatórias «somente se refletem corretamente as
razões das quais elas dependem».35 Para Raz, não há sentido em ter qualquer
autoridade «a menos que suas determinações sejam vinculantes mesmo que
erradas (embora alguns erros possam desqualificá-las)».36
Parece haver uma tensão. Por um lado, Raz assume que é um dever
das autoridades refletir, em suas diretivas, razões dependentes. Por outro
lado, ele sustenta que as diretivas são obrigatórias mesmo que não reflitam
corretamente essas razões. Não há uma inconsistência nesse argumento?
Raz responde que não. A noção de obrigatoriedade tem de estar dissociada
da noção de correção: uma diretiva que é obrigatória apenas quando, na
ponderação de razões, está correta não é, a rigor, obrigatória. «Se apenas
temos uma obrigação de obedecer a uma autoridade quando a autoridade
está correta, não faria sentido dizer que temos um dever de obedecê-la».37
O propósito da autoridade é substituir o juízo individual sobre os méritos
de um caso. «Isso não será alcançado se, para estabelecer se uma determi-
nação da autoridade é vinculante, os indivíduos têm de restar em seu próprio
juízo sobre os méritos».38 As diretivas de uma autoridade «sempre são, e
sempre devem ser razões para que o problema seja decidido por outra pessoa
(someone else)».39 Raz é claro:
«Através da aceitação de regras formuladas por autoridades, as pessoas
podem confiar (entrust) o juízo sobre o que fazer a outra pessoa ou instituição
que estará vinculada, de acordo com a tese da dependência, a exercer seu
melhor juízo primariamente com base nas razões dependentes apropriadas ao
caso.» (Raz, 1986: 59)40
A autoridade deve servir uma função mediadora. Suas diretivas devem
dar uma base para a ação dos destinatários. Essa base deve ajudá-los a
conformar-se melhor com as razões dependentes. Por isso, a autoridade tem
o dever de refletir, tanto quanto possível, essas razões nas suas diretivas.

34
«Reality has a way of falling short to the ideal…naturally authorities are judged and their
performance evaluated by comparing them to the ideal» (Raz, 1999).
35
Raz, 1999.
36
Idem, ibidem.
37
Cf. Durning, 2003: 603.
38
Cf. Raz, 1986: 48.
39
Cf. Raz, 1999: 193.
40
Raz, 1986 (trad. livre).
144 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Em última instância, a força normativa das diretivas deriva de razões depen-


dentes, i.e. de considerações que as justificam.
A tese da dependência não implica que as diretivas estão imunes à
refutação. Uma diretiva não precisa ser uma razão conclusiva sobre o que
se deve fazer. Ela pode apenas determinar «o que deve ser feito com base
em certas considerações».41 A autoridade, p.ex., pode determinar que, do
ponto de vista econômico, uma ação x é requerida. Nesse caso, a diretiva só
pretende excluir fatores econômicos da deliberação prática, e não todos os
fatores relevantes. A autoridade, contudo, também pode formular uma dire-
tiva conclusiva. Ela pode ordenar que a decisão seja tomada apenas com base
em fatores econômicos: nenhum outro fator deve ser relevante na tomada de
decisão. Mesmo quando uma diretiva se pretende conclusiva, ela pode ser
refutada em algumas circunstâncias. Uma situação imprevista pode ocorrer
(p.ex. uma emergência) ou a autoridade pode agir de modo arbitrário. Um
juiz, p.ex., formula uma decisão que pretende refletir certas razões jurídicas.
Sua decisão, contudo, é tomada porque ele foi subornado ou estava sob efeito
de alguma substância alcoólica. Nesses casos, mesmo que a decisão reflita
de modo correto as razões, ela pode ser refutada. Em termos gerais, a base
disponível para refutar as diretivas da autoridade varia de caso para caso.
«Elas determinam as condições de legitimidade da autoridade e os limites de
seu poder legítimo (rightful power)».42
A tese da dependência enuncia: uma autoridade deve agir por razões
dependentes, i.e. por razões que se aplicam aos destinatários de modo inde-
pendente. Agir por essas razões não significa agir sempre de acordo com o
que os destinatários creem ser correto, ou de acordo com seus interesses. A
tese defende que «as ações devem refletir razões que se aplicam também aos
destinatários, mas não precisam ser razões que realizam seus interesses».43
Um comandante militar, p.ex., deve colocar a segurança nacional acima dos
interesses pessoais dos soldados. Ele, eventualmente, tem o dever de ordená-
-los a agir contra seus próprios interesses. Suas diretivas devem refletir certas
razões. Essas razões devem aplicar-se aos destinatários. Mas, ressalte-se,
elas não têm de ser razões que os próprios destinatários reconheçam como
válidas. A autoridade deve decidir com base em razões que, em princípio,
as pessoas deveriam usar para formar seu próprio juízo. Em geral, deve
haver uma coincidência entre o conjunto de razões usado pela autoridade e o
conjunto de razões com base no qual as pessoas deveriam agir.44

41
Raz, 1986: 46.
42
Idem, ibidem.
43
Idem, ibidem.
44
«Experts… are to give advice based on the very same reasons which should sway ordinary
people who wish to form their minds independently… The evidence on which he should base
seção 1 – filosofia jurídica e social 145

Agir por razões dependentes não significa que a autoridade deve agir
sempre com base nessas razões. A tese da dependência apenas requer que
«suas instruções reflitam razões que se aplicam a seus destinatários, i.e.
devem requerer uma ação que seja justificável pelas razões que se aplicam
aos destinatários».45 Uma autoridade, ao tomar decisões, pode perguntar-se
sobre quais razões ela deve refletir, e tentar segui-las. Essa, porém, não é a
única estratégia disponível. Em algumas situações, ela não é sequer a melhor
estratégia. Raz argumenta que, algumas vezes, a autoridade pode sair-se
melhor adotando uma estratégia indireta de «seguir regras e considerações
que não se aplicam, elas mesmas, aos destinatários».46 Ou seja: a autoridade,
em certas circunstâncias, deve agir com base em razões não-dependentes
para maximizar a conformidade com razões dependentes. Raz escreve:
«Uma autoridade pode basear-se em considerações que não se aplicam
a seus destinatários quando isso leva, de modo confiável, a decisões que se
aproximam melhor – do que qualquer outra decisão que teria sido tomada por
qualquer outro procedimento – àquelas decisões mais bem sustentadas por
razões que se aplicam aos destinatários.» (Raz, 1986: 52)47
Esse argumento pode gerar uma objeção. A autoridade, para saber com
base em que razões não-dependentes deveria agir, tem de saber quais razões
são dependentes. Se é assim, por que ela não deveria agir com base nas
razões dependentes, mas sim com base em outras razões, não-dependentes?
A objeção denuncia uma circularidade no argumento de Raz. Ela está equi-
vocada por duas razões. Primeiro, a autoridade não tem de saber quais razões
são dependentes. A exigência é que suas decisões reflitam essas razões: suas
decisões devem conformar-se com elas. Segundo, mesmo que a autoridade
saiba quais razões são dependentes, isso não implica que a melhor estratégia
para conformar-se com essas razões é agir com base nelas (ou seja: é tentar
segui-las diretamente). «A tese da dependência não exclui que a autoridade
aja por outras razões que se aplicam a ela apenas, e não a seus destinatários».48
Há, porém, outra objeção. Ela se baseia numa pergunta: quem decide
quais razões são dependentes? Quem decide quais razões se aplicam ou não
aos destinatários das diretivas? Para essa questão, há ao menos duas linhas
de resposta. Se quem decide é o destinatário, então a tese da dependência

his advice to me is the same evidence on which it would have been appropriate for me to form
my own judgment.» (Idem, p. 52-3).
45
Raz, 1986: 51.
46
Idem, ibidem.
47
«Reliance on such considerations is justified if and to the extent that they enable authorities
to reach decisions which, when taken as a whole, better reflect the reasons which apply to the
subjects» (Idem, p. 52) (tradução livre).
48
Idem, ibidem, p. 51.
146 revista brasileira de filosofia – RBF 239

levaria à tese da indiferença, segundo a qual «o exercício da autoridade não


deve fazer diferença ao que seus destinatários devem fazer, pois deve dirigi-
-los a fazer aquilo que eles devem fazer de qualquer modo».49 Um agente
racional, na medida em que é racional, nunca poderia agir contra a ponde-
ração de razões. Assim, o destinatário só deveria aceitar uma diretiva como
obrigatória se ela, de fato, reflete as razões que ele aceita como dependentes.
Essa hipótese é implausível. Raz não a sustenta. Se quem decide é a própria
autoridade, então há duas possibilidades. A tese da dependência pode enun-
ciar uma exigência forte: a autoridade deve sempre agir com base em razões
que, de fato, se aplicam aos destinatários. Ou a tese da dependência pode
enunciar uma exigência moderada: a autoridade deve sempre agir com a
crença de que as razões que ela pretende refletir em suas decisões se aplicam,
de fato, aos destinatários (ainda que elas, de fato, não se apliquem).50 Qual
das duas opções é preferível?
A primeira opção é a exigência forte. Ela implica a seguinte leitura. A
tese da dependência pressupõe a existência de «uma visão normativa objeti-
vamente correta sobre quais razões os indivíduos devem considerar, ou sobre
quais áreas da vida individual as autoridades podem... controlar».51 Himma,
p.ex., formula: «uma diretiva da autoridade... deve refletir a ponderação da
razão correta com respeito ao que os indivíduos deveriam ou não fazer».52
A «razão correta» se refere a um conjunto de razões objetivas, i.e. que se
aplicam objetivamente a uma pessoa. Não importa se ela sabe da existência
dessas razões, ou se ela crê que são razões válidas. «O que a ponderação
das razões corretas requer não depende de como o indivíduo percebe essa
ponderação».53 Uma diretiva, portanto, deve refletir não o que a autoridade
ou o que o destinatário creem ser a ponderação correta de razões. Ela deve
refletir o que essa ponderação, de fato, é. Essa leitura torna a tese da depen-
dência incompatível com a teoria de Raz. As diretivas de uma autoridade
devem prevalecer mesmo que não reflitam corretamente a ponderação de
razões. Ou seja: mesmo que a autoridade não acerte em seu juízo avaliativo
sobre quais razões os indivíduos devem considerar (i.e. sobre o que eles
devem ou não fazer).

49
Raz, 1986: 48.
50
Essa segunda possibilidade é adotada por Philip Soper: «a tese da dependência... parece
requerer somente que uma autoridade aja [com base em] razões que a autoridade crê que seus
destinatários devem reconhecer, [independentemente de] se eles de fato a reconhecem ou
não» (Cf. Soper, 1989: 223).
51
Idem, ibidem.
52
No original: «an authoritative directive… ought to reflect the balance of right reason with
respect to what subjects should or should not do». (Cf. Himma, 2007: 4).
53
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 147

A segunda opção é a exigência moderada. Ela oferece uma leitura mais


plausível. As razões dependentes não são razões que a autoridade crê ou
pensa que se aplicam de modo objetivo aos destinatários. Elas são razões
que, de fato, se aplicam a eles. Contudo, isso não implica que as diretivas
são obrigatórias apenas quando refletem corretamente essas razões. A leitura
moderada sustenta que a autoridade deve agir sempre de boa fé (good faith).
Ao tomar uma decisão, a autoridade tem de crer que essa decisão é correta,
i.e. que essa decisão reflete corretamente as razões que deve refletir. «A tese
da dependência... parece requerer somente que uma autoridade aja com base
em razões que ela acredita que seus destinatários devem reconhecer».54 A
autoridade, portanto, deve agir com a crença de que está agindo correta-
mente. Soper, p. ex., enuncia que «o governo... irá pretender que suas leis
estão baseadas em razões que se aplicam aos seus destinatários; mas irá
insistir que sua autoridade não está condicionada a uma determinação correta
do que essas razões são ou de como elas se aplicam a casos particulares».55
A leitura moderada se ajusta melhor à teoria de Raz. A tese da depen-
dência, como se viu, enuncia uma condição ideal. Não se deve esperar que
ela seja sempre preenchida. A autoridade não pode ser justificada apenas
com base no argumento de que ela agiu de boa fé ou tentou agir correta-
mente. Suas diretivas devem ser obrigatórias mesmo nos casos em que a
autoridade não reflete as razões de modo correto. A tese da dependência
apela à nossa compreensão comum sobre o modo em que uma autoridade
deve ser exercida. Ela é intuitivamente correta. É uma condição necessária
para que a autoridade levante uma pretensão de obediência que seja racional
ou moralmente razoável.56 «Nenhuma pessoa pode razoavelmente esperar
que os funcionários (officials) irão sempre agir por princípios que, de acordo
com o que ela pensa, são corretos; mas ela pode esperar que os funcionários
ajam por princípios que eles mesmos endossam».57 Uma autoridade que
falha, de modo sistemático, em cumprir a tese da dependência não pode
esperar, racionalmente, que os destinatários sigam suas diretivas. «Se a todo
tempo uma diretiva está errada, i.e. se toda vez que ela falha em refletir a
razão corretamente, ela pode ser refutada, a vantagem adquirida em aceitar a
autoridade como um guia mais confiável e bem-sucedido em direção à razão
correta (right reason) desapareceria».58

54
Cf. Soper, 1989: 223.
55
Idem, ibidem, p. 224.
56
Veja, para uma posição similar: Marmor, 2005: 89.
57
Cf. Dworkin, 2011: 113.
58
Cf. Raz, 1986: 61.
148 revista brasileira de filosofia – RBF 239

2.2 A tese da justificação normal (normal justification thesis)59 e a tese


da prevenção (pre-emption thesis)

A formulação de Raz para a tese da justificação normal é a seguinte:


«(TJN1) O modo normal e primário para estabelecer que uma pessoa deve
ser reconhecida como tendo autoridade sobre outra pessoa envolve mostrar
que o alegado destinatário provavelmente cumpre melhor com as razões que
se aplicam a ele (outras que não as alegadas diretivas autorizantes) se ele
aceita as diretivas da alegada autoridade como obrigatórias de modo autori-
zante e tenta segui-las, mais do que [se] tenta seguir as razões que se aplicam
a ele diretamente.»60 (Raz, 1994: 214)
Em outro texto, Raz sugere um enunciado mais sucinto para essa tese:
«(TJN2) o argumento primário e normal para a justificação da autoridade
deve mostrar que estar em conformidade com suas diretivas é mais provável
de levar alguém a conformar-se melhor com a razão do que [se esse alguém]
age independentemente [dessas diretivas].»61 (Raz, 1989: 1179)
Se as condições previstas na tese da justificação normal são preen-
chidas, então segue uma tese que enuncia «a relação geral entre a justificação
de uma diretiva obrigatória e seu status como uma razão para ação».62 Raz a
denomina de tese da prevenção:
«(...) o fato de uma autoridade requerer a realização de uma ação é uma
razão para a sua realização que não deve ser adicionada a todas as outras
razões relevantes quando se avalia o que fazer, pois deve excluir e tomar o
lugar de algumas delas [ressalte-se: não de todas elas].»63 (Raz, 1986: 46)
A tese da dependência, como se viu no item anterior, oferece uma
resposta à seguinte pergunta: como uma autoridade deve agir enquanto auto-
ridade? A tese da justificação normal, por sua vez, está direcionada a quem
está na posição de aceitar as diretivas de uma autoridade como obrigatórias.
Ela pretende responder outra questão: sob quais condições o destinatário está

59
No texto, por razão de brevidade, refiro-me à tese da justificação normal como TJN.
60
No original: «the normal and primary way to establish that a person has authority over
another person involves showing that the alleged subject is likely better to comply with
reasons which apply to him (other than the alleged authoritative directives) if he accepts the
directives of the alleged authority as authoritatively binding and tries to follow them, rather
than by trying to follow the reasons which apply to him directly» (Cf. Raz, 1994: 214).
61
No original: «the normal and primary argument for the justification of authority must show
that conforming to its directives is more likely to lead one to conform better with reason than
acting independently of it would» (Cf. Raz, Joseph, 1989: p. 1179) (grifo meu).
62
Cf. Raz, 1986: 57.
63
No original: «the fact that an authority requires performance of an action is a reason for
its performance which is not to be added to all other relevant reasons when assessing what to
do, but should exclude and take the place of some of them» (Cf. Raz, 1986: 46) (grifo meu).
seção 1 – filosofia jurídica e social 149

justificado em tomar uma diretiva como obrigatória? Caso a diretiva seja


obrigatória, que diferença esse fato faz no raciocínio prático do destinatário?
Essa é a pergunta da tese da prevenção.
Para iniciar a discussão, deve-se notar uma diferença importante entre
os dois enunciados de Raz para a tese da justificação normal. Se Raz pretende
formular a tese como em TJN1, o destinatário teria não apenas de conformar-
-se com as razões que se aplicam a ele: ele teria de «cumprir (comply with)
melhor» com essas razões. Ou seja: o destinatário teria de realizar a ação
requerida pelo fato de que está tentando seguir diretamente essas razões, e
não outras. Isso, porém, é incompatível com o caráter preventivo das dire-
tivas da autoridade. Uma diretiva opera como uma razão que não deve ser
adicionada a todas as outras razões relevantes: ela pretende substituir essas
razões. Para não ser inconsistente, Raz teria de enunciar que, em TJN, o desti-
natário tem de tentar seguir uma diretiva quando isso torna mais provável
conformar-se com as razões que já se aplicam a ele (i.e. com as razões que a
autoridade deve refletir). Em TJN2, contudo, Raz admite que o destinatário
não necessita sequer tentar seguir as diretivas da autoridade, sendo suficiente
que apenas esteja em conformidade com elas. Pergunta-se: se as diretivas
são razões para conformidade apenas, elas ainda fariam alguma diferença no
raciocínio prático das pessoas? Para evitar esse problema, assumo a seguinte
leitura para TJN:
«X tem autoridade sobre Y se é mais provável que Y, ao tentar seguir as
diretivas de X, possa conformar-se melhor com as razões que se aplicam a ele
do que se tenta seguir o seu próprio juízo independente.»
Uma linha inicial de crítica é que essa formulação não explica como
uma diretiva pode ser obrigatória para Y quando a ação requerida não é,
de fato, correta levando tudo em consideração. Há ao menos duas objeções
relevantes. Ambas sustentam que a tese da justificação normal seria incom-
patível com a posição raziana de que as diretivas são obrigatórias mesmo que
erradas. Ambas sustentam que da tese da justificação normal não se segue
a tese da prevenção. «Se as diretivas da autoridade são razões instrumentais
para ação, elas não podem, ao mesmo tempo, ser razões preventivas para
ação».64
A primeira enuncia que uma diretiva é obrigatória apenas quando, ao
segui-la, «é mais provável que Y se conforme melhor com as razões que se
aplicam a ele». Para essa crítica, a única exigência de TJN é que, ao seguir a
diretiva, seja de fato mais provável que Y faça o que deve fazer levando tudo
em consideração. Não importa se, ao obedecer à autoridade, Y acredita que
se sairia melhor do que seguindo seu próprio juízo ou que teria boas razões

64
Cf. Shapiro, 2002: 409.
150 revista brasileira de filosofia – RBF 239

para fazê-lo.65 A objeção é clara: se a autoridade não reflete corretamente as


razões na diretiva, Y poderia não aceitá-la como obrigatória. Se o propósito
é conformar-se melhor com a razão, então até se poderia afirmar que, nesse
caso, Y tem o dever de não segui-la.66 O melhor ato seria não fazer aquilo
que a autoridade requer que Y faça. Do ponto de vista objetivo, Raz não
pode sustentar que alguém deve fazer o que uma lei errada requer que se
faça: a pessoa sempre deve agir de acordo com a ponderação objetiva de
razões. «Um indivíduo tem um dever de obedecer alguém apenas porque
essa obediência irá ajudá-lo a fazer o que é melhor para ele fazer de modo
independente».67
A resposta de Raz é clara: a TJN exige apenas que a obediência à auto-
ridade torne mais provável que o destinatário faça o que é correto fazer, e
não que as diretivas sempre reflitam corretamente as razões. Uma autori-
dade está justificada quando «é mais provável que seus destinatários ajam
corretamente pelas razões corretas».68 O juízo da autoridade tem de ser mais
confiável que o juízo do destinatário. Como se viu, Raz admite que se a dire-
tiva sempre falha em refletir corretamente a razão, o destinatário não teria
qualquer vantagem em aceitá-la como um guia mais confiável. «A vantagem
de aceitar a autoridade como um guia mais confiável e bem-sucedido à razão
correta (right reason) desapareceria».69 «Razões que as diretivas da autori-
dade deveriam, mas falham em refletir estão, apesar disso, entre as razões
que justificam tomar as diretivas como vinculantes».70
A segunda objeção é uma variação da primeira: para Y saber se é ou não
mais provável que, ao seguir a diretiva, estará conformando-se melhor com
a razão, ele teria de saber com antecipação qual ação é correta. Isso implica
que Y teria de sempre deliberar sobre os méritos da ação requerida. «Ao
tentar estabelecer se a diretiva reflete ou não corretamente a razão correta, os
destinatários estarão restando em seus próprios juízos mais do que nos juízos
da autoridade».71 A objeção conclui que Y só deve seguir a diretiva quando

65
«It does not matter whether the ‘subject’ believes that obeying the ‘authority’ would have
better results or has good reasons to do so» (Cf. Durning, 2003: 602).
66
«The key to the justification of authority [is]: authority helps our rational capacity whose
function is to secure conformity with reason» (p. 139); «The point of being under an authority
is that it opens a way of improving one’s conformity with reason» (Cf. Raz, 2009a: 147).
67
«What it is independently best for an individual to do is what the individual ought to do
from an objective standpoint… Raz cannot claim that someone should do what a mistaken law
directs him to do rather than what he ought to do according to the independent reasons» (Cf.
Durning, 2003: 603).
68
Cf. Raz, 1986: 61.
69
Idem, ibidem.
70
Idem, ibidem.
71
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 151

se convence de que ela requer uma ação objetivamente correta.72 Raz, diante
dessa objeção, pode replicar. Há situações em que uma pessoa suspende seu
próprio juízo porque pensa que o juízo de outrem é melhor que o seu. Nesses
casos, a pessoa não decide seguir o juízo de outrem apenas quando está
totalmente segura de que esse juízo está correto. Para julgar a probabilidade,
o agente não precisa saber com segurança qual ação é correta. A objeção,
portanto, não é decisiva para a tese da justificação normal de Raz.73
Outra objeção pode ser formulada. Quando uma pessoa tem o dever de
realizar uma ação x, isso não significa apenas que seria bom realizá-la, ou
que x é melhor do que outras possíveis ações. Isso significa que se a pessoa
decide não realizar x, ela está tomando uma decisão moralmente errada.
«Uma pessoa apenas tem o dever de fazer algo se é errado para ela não
fazê-lo».74 A tese da justificação normal, porém, enuncia que, em algumas
circunstâncias, o destinatário tem o dever de obedecer à autoridade mesmo
que ele não cometa nenhum erro moral por não obedecê-la. Ou seja: uma
diretiva é obrigatória mesmo que o destinatário não erre ao decidir não segui-
-la. É isso possível? O destinatário teria realmente um dever de obedecer (a
duty to obey)? Raz responde que sim. Sua resposta, porém, é hesitante. A
autoridade «pode falhar em refletir corretamente as razões... que pretendia
refletir».75 Ela pode, p.ex., elaborar uma lei defeituosa ou errada. Uma pessoa
que decide não seguir essa lei está, em princípio, fazendo o que deve fazer a
partir do ponto de vista objetivo. «Alguém que erra ao tentar obedecer a uma
lei defeituosa pode fazer o que é correto, ainda que aja de modo ilegal».76
Raz argumenta que, nesse caso, a pessoa não faz o que é correto fazer (the
right thing). Ela comete um erro ao não seguir a lei defeituosa. Mas, ressalte-
-se, seu erro é «afortunado».77 Essa resposta é suficiente?
O problema de Raz está claro. Se a única razão que temos para obedecer
a uma autoridade é que isso nos ajuda a conformar-se com a razão, então
não há qualquer razão para obedecê-la quando isso não nos ajuda a fazer o
que devemos fazer (do ponto de vista objetivo). Diante desse problema, Raz
teria de sustentar uma justificação subjetiva da autoridade. Quer-se dizer:
Y tem um dever de obedecer às diretivas de X quando Y tem razões para
crer que, ao segui-las, é mais provável que ele faça o que deve fazer do

72
Veja, p. ex: Michelon, 2002: 59; e Soper, 1989: 226.
73
Raz enuncia que a TJN corresponde ao modo normal de justificar uma autoridade, e não
o único modo. Ela não pode ser, em si mesma, uma condição suficiente para a justificação da
autoridade.
74
Cf. Durning, 2003: 606.
75
Cf. Raz, 1989: 1159-62.
76
Cf. Durning, 2003: 603.
77
Cf. Raz, 1989: 1161.
152 revista brasileira de filosofia – RBF 239

que se tenta agir com base no próprio juízo sobre a ponderação de razões.
«Quando um agente aceita a legitimidade de uma autoridade e é ordenado a
agir de certo modo, o agente deve acreditar que ele prefere a conformidade
à não-conformidade».78
Raz parece admitir essa saída quando pergunta: «seguir as instruções
da autoridade melhora a conformidade com a razão?» E, logo em seguida,
responde: «para toda pessoa, essa questão tem de ser feita de modo reno-
vado, e para cada um tem de ser perguntada de uma maneira que admite
várias qualificações».79 Raz assume que um destinatário pode ter boas razões
para seguir uma diretiva e outro destinatário pode ter boas razões para não
segui-la: o que conta como «boa razão» varia de acordo com a posição ou
o nível de conhecimento de cada destinatário. Um farmacólogo especialista
«pode não estar sujeito à autoridade do governo em problemas sobre a segu-
rança dos remédios», ou «um habitante de uma pequena vila às margens de
um rio pode não estar sujeito à sua autoridade em problemas de navegação
e de conservação do rio».80 João pode estar justificado em tomar a decisão
de seguir uma diretiva e, ao mesmo tempo, Pedro pode estar justificado em
tomar a decisão contrária (i.e. de não segui-la). Ambos podem decidir do
modo mais racional possível dentro de suas condições. Note-se, porém, que
somente um deles estaria fazendo o que é correto fazer (ou a diretiva está
correta ou está errada). Isso permite sugerir uma reformulação para TJN:
«X tem autoridade sobre Y somente se Y tem razão para crer que é mais
provável conformar-se com as razões que se aplicam a ele seguindo as dire-
tivas de X do que tentando seguir essas razões diretamente, a partir de seu
próprio juízo.»
Nessa reformulação ainda se pode identificar outro problema. Para Raz,
o propósito de ter qualquer autoridade é melhorar a conformidade com a
razão. Uma pessoa deve fazer o que quer que lhe facilite conformar-se com a
razão. Se, p.ex., Y tem uma estratégia de decisão mais eficiente do que tentar
seguir as diretivas de X, então Y deveria adotar essa estratégia, e não deveria
seguir as diretivas de X. Nesse caso, não se poderia dizer que Y está errado
em agir com base nessa estratégia, e em rejeitar as diretivas de X como base
para sua própria ação. Na TJN, as diretivas de X somente seriam obrigatórias
para Y caso se pudesse provar que tentar segui-las é, de fato, a melhor estra-
tégia que Y poderia adotar para conformar-se com a razão. Tendo isso em
conta, a melhor leitura para a tese raziana da justificação normal é a seguinte:

78
Cf. Shapiro, 2002: 417.
79
Cf. Raz, 1986: 74.
80
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 153

«(TJN) X tem autoridade sobre Y somente se Y tem razão para crer que é
mais provável conformar-se com as razões seguindo as diretivas de X do que
tentando seguir essas razões diretamente ou tentando seguir qualquer outra
estratégia de decisão sobre como se conformar com essas razões.»81
É a partir dessa última reformulação que passo agora a tratar das obje-
ções que considero mais decisivas para a teoria de Raz.

2.2.1 A tese da justificação normal como uma razão moral

Raz enuncia que a tese da justificação normal é uma «tese moral sobre
o tipo de argumento que poderia ser usado para estabelecer a legitimidade
de uma autoridade».82 O problema da autoridade legítima é um problema
de justificação normativa. Se as condições de TJN são preenchidas, o desti-
natário deve suspender o seu próprio juízo e seguir o juízo da autoridade.
Ele tem o dever moral de tentar seguir as diretivas, e não as razões que
elas pretendem refletir. A TJN, em outros termos, dá uma razão moral para
obedecer à autoridade. Ela, contudo, não oferece uma justificação completa.
A tese da justificação normal não é, em si mesma, condição suficiente para
a legitimidade da autoridade. «Uma justificação completa da autoridade tem
de fazer mais do que fornecer razões válidas para sua aceitação».83 Uma
justificação completa:
«(...) também tem de estabelecer que não há razões contrárias à sua acei-
tação que derrotam as razões em favor da autoridade. Na medida em que as
razões contra a aceitação da autoridade variam, não é possível descobrir com
antecipação quão fortes precisam ser as razões para a aceitação da autoridade
para serem suficientes.»84 (Raz, 1986: 56)
Diante disso, pode-se perguntar: esse argumento é compatível com a
tese da prevenção? Para Raz, a tese da justificação normal parece ser, ela
mesma, uma razão moral. Ela, contudo, não é a única razão disponível. Ela
também não é uma razão que supera, de modo necessário, todas as razões
contrárias à aceitação da autoridade. Nada garante, em princípio, que não há
nenhuma outra razão moral aplicável que possa derrotá-la. Para que a TJN
implique a tese da prevenção, tem de ser possível justificar uma prioridade

81
Essa reformulação não enuncia meramente que X só teria autoridade sobre Y quando, para
Y, fosse melhor seguir as diretivas de X do que seguir as diretivas de qualquer outra autoridade:
«quando várias autoridades se pronunciam sobre o mesmo problema e suas diretivas entram
em conflito, devemos decidir, no melhor de nossa habilidade, qual é a mais confiável como
guia» (Cf. Raz, 2009a: 143).
82
Cf. Raz, 1986: 53.
83
Idem, ibidem, p. 56.
84
Idem, ibidem (trad. livre).
154 revista brasileira de filosofia – RBF 239

sistemática de TJN com relação às outras razões morais disponíveis.85 Esse,


contudo, não é o caso. «A tese da prevenção... enuncia que se uma lei é
moralmente vinculante, então seus destinatários têm razões preventivas para
tentar segui-la».86 O problema é: se a TJN, em si mesma, não torna uma
lei moralmente vinculante, então ela, em si mesma, não pode justificar a
prevenção de razões. Da tese da justificação normal não se segue a tese da
prevenção. O destinatário tem de confrontar TJN com todas as outras razões
morais para decidir, em cada caso particular, se deve ou não seguir a auto-
ridade. As diretivas não podem operar como razões preventivas, i.e. razões
que devem substituir certas razões do raciocínio prático.
Essa objeção é plausível? A tese da justificação normal dá razões
válidas para obedecer. Isso, porém, não implica que ela seja, em si mesma,
uma razão moral. A TJN é uma condição de legitimidade. Ela apenas exige
que a autoridade esteja a serviço da ação racional: tem de ser mais provável
que o destinatário, ao segui-la, faça o que deve fazer levando tudo em consi-
deração.87 A tese da justificação normal, portanto, «não é bem uma diretiva
moral, mas sim um enunciado autoevidente sobre um traço estrutural parti-
cular da moralidade».88 Uma razão moral, a rigor, não poderia derrotá-la.
Pergunta-se: se é assim, então a TJN pode justificar a prevenção de razões?
Na teoria de Raz, o problema crucial é que, em alguns casos, o destina-
tário tem um dever de obedecer à autoridade mesmo quando, ao segui-la, não
seja mais provável conformar-se com a razão. Note-se: o problema não está
no juízo do destinatário. Ele pode ou não estar seguro de que seguir a auto-
ridade é a melhor estratégia disponível para conformar-se com a razão. O
problema é conceitual. Ele está na própria tese da justificação normal. Juízos
de probabilidade só são possíveis porque se pressupõe que juízos de certeza
são possíveis.89 Por definição, um juízo sobre a probabilidade de uma ação
estar correta pode ser superado por um juízo decisivo contra sua correção.
«A probabilidade é a marca da tese da justificação normal e juízos de proba-
bilidade são sensíveis a juízos de certeza».90 O argumento é simples: há

85
Veja, p.ex: Michelon, 2002: 62. Raz escrever, em uma nota de rodapé, que «[a TJN] deve
ser suficiente para superar as razões [que contam em favor] do contrário [i.e. que contam em
favor de não reconhecer as diretivas da autoridade como autorizantes]» (Cf. Raz, 1994: 214,
nota no. 7).
86
Cf. Raz, 2009a: 385.
87
«Their role and primary normal function [of authorities] is to serve the governed... It is to
help them act on reasons which bind them» (Cf. Raz, 1986: 55-6).
88
Cf. Michelon, 2002: 63.
89
Um argumento similar está na conhecida refutação do ceticismo feita por Wittgenstein:
«Quem quisesse duvidar de tudo nem chegaria à dúvida. O próprio jogo do duvidar já
pressupõe a certeza» (Cf. Wittgenstein, 1972: 18).
90
Idem, ibidem.
seção 1 – filosofia jurídica e social 155

casos em que pode haver boas razões de primeira ordem (objetivas) pesando
contra a diretiva. Nesses casos, não é mais provável que a autoridade leve o
destinatário a fazer o que é correto fazer (do ponto de vista objetivo). A tese
da justificação normal tem de enunciar: nesses casos, o destinatário não deve
seguir o juízo da autoridade. Por que então, como sugere Raz, o destinatário
teria um dever de segui-la mesmo nesses casos?
Raz, para responder essa objeção, teria de justificar porque, nesses
casos, o destinatário ainda assim teria um dever de seguir a diretiva da auto-
ridade. Um primeiro argumento que se pode identificar é o seguinte:
«(...) se alguém sabe que outra pessoa tem uma performance melhor que
si mesmo (no sentido de tomar a decisão correta mais frequentemente), e se
[esse] alguém não tem nenhuma informação adicional que sugeriria em que
sub-classe de casos o juízo da outra pessoa é melhor do que o seu próprio,
então esse alguém irá sair-se melhor ao seguir o conselho da outra pessoa do
que [ao seguir] qualquer estratégia que irá designar algum peso tanto ao seu
próprio juízo independente quanto ao conselho dessa pessoa.»91 (Raz, 1989:
1194)
De acordo com Raz, esse argumento implica que as diretivas da auto-
ridade são razões preventivas, e não razões prima facie que se deve sempre
ponderar com todas as demais razões disponíveis. Esse argumento é formu-
lado a partir de um exemplo:
«Um especialista financeiro alcança a decisão “correta”... em 20% mais
casos do que eu quando não sigo seu conselho... Em qualquer caso, a escolha
correta não exigiria que eu desse uma força prima facie a seu conselho, mais
do que preventiva? A resposta é que não exigiria. Nos casos em que apenas
sei que sua performance é melhor do que a minha, deixar seu conselho alterar
a ponderação em favor de sua solução irá, algumas vezes, dependendo da
minha taxa de erros (rate of mistakes),... melhorar a minha performance. Mas
irei continuar saindo-me pior do que ele a menos que deixe seu juízo prevenir
(pre-empt) o meu.»92 (Raz, 1986: 68)
Em resumo: se o destinatário, ao seguir as diretivas da autoridade,
diminui a quantidade de erros que teria se decidisse seguir seu juízo indepen-
dente, então ele deve, em todos os casos, obedecer à autoridade. Isso é assim
mesmo que o destinatário não tenha qualquer informação para identificar
em que classe de casos ele erraria menos ao seguir as diretivas. Note-se:
pode haver casos em que ele agiria melhor se decidisse agir com base no seu
juízo independente, e não com base no juízo da autoridade. Isso, contudo,
não é um problema: «sua taxa de erros permanece inalterada, i.e. maior do

91
Cf. Raz, 1989: 1194 (trad. livre)
92
Cf. Raz, 1986: 68 (trad. livre).
156 revista brasileira de filosofia – RBF 239

que a taxa de erros da autoridade».93 «Somente permitindo que o juízo da


autoridade substitua o meu próprio juízo, irei ter sucesso em melhorar minha
performance e aproximá-la ao nível da autoridade».94 «Se o raciocínio de
outrem é geralmente melhor que o meu, então comparar, em cada ocasião,
nossos... argumentos podem ajudar-me a identificar meu erro e corrigir meu
raciocínio».95 Isso, porém, não implica que essa comparação irá aproximar
minha performance da performance da autoridade. Se o destinatário, ao
seguir a autoridade, melhora sua conformidade com a razão, ele deve tratar
as diretivas como razões preventivas. Para Raz, «longe de ser irracional ou
de ser uma abdicação da responsabilidade moral, esse é, de fato, o curso mais
racional e o caminho correto para cumprir com as responsabilidades».96
Na teoria de Raz, um indivíduo deve sempre fazer o que quer que lhe
facilite conformar-se com a razão. A autoridade só está justificada na medida
em que ajuda o indivíduo a realizar esse propósito. Do ponto de vista objetivo,
a melhor estratégia seria obedecer à autoridade nos casos em que as diretivas
estão corretas, e desobedecê-la nos casos em que estão erradas. Desse modo,
o destinatário estaria sempre fazendo o que deve fazer, levando tudo em
consideração. Essa estratégia, porém, é muito simples. Ela só se aplica aos
casos em que o destinatário pode realizar um juízo de certeza sobre o que é
melhor fazer: seguir a autoridade ou seguir seu próprio juízo. Há situações,
contudo, em que não há como ele estar seguro disso. Nessas situações, em
vez de realizar um juízo de certeza, ele realiza um juízo de probabilidade
sobre o que é melhor fazer. Mesmo que não seja possível realizar sempre
a ação correta, conclui o argumento raziano, é moralmente melhor que o
destinatário realize mais vezes a ação correta do que a ação errada: mesmo
que o destinatário não consiga sempre fazer o que é correto fazer, ele deveria
obedecer a autoridade se, ao seguir as diretivas, a sua performance moral
fosse melhor do que se ele seguisse o seu juízo independente (i.e. se ele
errasse menos seguindo a autoridade do que seguindo seu próprio juízo).
O problema é que, de acordo com Raz, esse argumento só é válido
quando o destinatário «não tem nenhuma informação adicional que sugeriria
em que sub-classe de casos o juízo da outra pessoa é melhor do que o seu
próprio». Essa condição implica o seguinte: se o destinatário tem informação
suficiente para saber em que casos a autoridade não é melhor do que ele,

93
Raz, 1986.
94
Idem, ibidem.
95
«It may help me more indirectly by alerting me to the fact that I may be wrong, and forcing
me to reason again to double check my conclusion. But if neither is sufficient to bring my
performance up to the level of the other person then my optimific course is to give his decision
pre-emptive force» (Idem, ibidem, p. 69).
96
Idem, ibidem, p. 68.
seção 1 – filosofia jurídica e social 157

então, nesses casos, ele não tem o dever de obedecer à autoridade. Portanto,
a tese da justificação normal não se aplicaria. Raz escreve:
«quando alguém tem noção do que torna uma decisão correta, então ele
pode... ter a informação adicional requerida para indicar em qual sub-classe
de casos a outra pessoa é pior do que ele mesmo. Nesses casos, não se deve
seguir o conselho da pessoa no que concerne a essa sub-classe de casos em
nenhuma hipótese.»97 (Raz, 1989: 1195)
Essa «informação adicional» oferece um limite à teoria de Raz: o
destinatário pode estar seguro de que, em alguns casos, o juízo da autori-
dade não é melhor que o seu próprio juízo. Nesses casos, como se viu, ele
não deve seguir a autoridade. Isso, marque-se, não significa negar que, em
algumas situações, o destinatário pode decidir seguir o juízo da autoridade
mesmo pensando que a autoridade está errada. Há casos em que ele acredita
que a autoridade pode estar errada, mas não está muito seguro de que essa
crença seja verdadeira. O argumento de Raz pressupõe o problema: a tese
da justificação normal, em si mesma, não justifica a prevenção de razões.
O destinatário teria de deliberar por si mesmo e de decidir, em cada caso
particular, se deve ou não seguir a diretiva da autoridade. Ele, portanto, tem
de escolher obedecer. Um juízo de probabilidade pode ser superado por um
juízo de certeza. O destinatário pode ter informação suficiente para confiar
mais no seu próprio juízo do que no juízo da autoridade.
Para acomodar essa objeção, Raz realiza duas importantes conces-
sões em sua teoria: (a) a distinção entre tipos de erros; e (b) a condição de
autonomia.

A distinção entre tipos de erros

Raz introduz essa distinção para refutar uma objeção: «as diretivas da
autoridade podem ser superadas ou desconsideradas se elas se desviam muito
das razões que pretendiam refletir».98 Para essa objeção, a tese da prevenção
não é plausível. Devemos agir com base nas diretivas apenas quando são
vinculantes. E elas são vinculantes somente quando não se desviam muito
da razão correta (right reason). Portanto, «temos de examinar as razões em
favor e contra a diretiva e julgar se ela está justificada».99 Toda pessoa, em
todo caso, teria de considerar os méritos da diretiva antes de decidir segui-la.
A objeção não ataca diretamente a tese da prevenção: ela não nega que uma
diretiva pode substituir as razões que pretende refletir. Seu efeito é negar que
uma diretiva pode exercer uma função mediadora «entre considerações de

97
Cf. Raz, 1989: 1195 (trad. livre) (grifo meu).
98
Cf. Raz, 1986: p. 61.
99
Idem, ibidem.
158 revista brasileira de filosofia – RBF 239

nível mais profundo e decisões concretas». Ou seja: as diretivas não podem


fornecer «um nível intermediário de razões ao qual se pode recorrer em casos
normais onde surge a necessidade por uma decisão».100 Sempre temos de
examinar os fundamentos. O destinatário tem de deliberar, em cada caso,
sobre se a diretiva está justificada. E, no caso de não estar justificada, ele tem
de deliberar sobre se o erro da diretiva «é grande ou pequeno».101
Raz considera essa objeção implausível. Ele a refuta a partir de uma
distinção entre erros grandes e erros claros. Imagine-se uma operação de
adição entre vários números e em que apenas um desses números contém
uma fração decimal. Nessa situação, pode-se cometer um erro claro que
é, ao mesmo tempo, muito pequeno. Se o resultado da operação é, p.ex.,
um número inteiro, então a soma está claramente errada: o erro, apesar de
pequeno, é claro. Contudo, se os números da operação são todos fracionados
e extensos, a situação é diferente. Pode-se cometer um erro grande que
não seja de fácil identificação. A soma pode desviar-se muito do resultado
correto (p.ex., em algumas centenas). Esse erro, apesar de grande, só poderia
ser identificado refazendo-se – de modo cuidadoso – a adição passo a passo.
Raz argumenta que, para identificar um erro claro, não é necessário recorrer
ao raciocínio subjacente. Com isso, ele refuta a objeção. Uma diretiva pode
estar claramente errada e, ainda assim, exercer sua função mediadora. Isso
é assim mesmo que a diretiva não seja vinculante se está claramente errada.
Raz conclui: «não é o caso de que o poder legítimo das autoridades está
geralmente limitado pela condição de ser derrotado por erros significativos
que não são claros».102
Esse contra-argumento pode ser refutado. Primeiro, um erro claro nem
sempre pode ser identificado sem se recorrer ao raciocínio subjacente. Há
casos em que uma ação aparentemente correta revela-se como uma ação
claramente errada depois que o agente reflete sobre seus méritos. Nem toda
ação prima facie correta é, de fato, uma ação moralmente correta de ser
realizada.103 O próprio Raz afirma que «não há razão para crer que há uma
correlação positiva entre ver o problema como claro e uma probabilidade de
estar correto».104 Essa correlação só existe quando os destinatários têm uma
boa compreensão do que determina a correção das diretivas, ou quando são

100
Raz, 1986: 58. Na p. 61: «That role [i.e. the mediating function] is to enable people to act
on non-ultimate reasons. It is to save them the need to refer to the very foundations of morality
and practical reasoning generally in every case».
101
Idem, ibidem, p. 62.
102
Idem, ibidem.
103
«Sometimes an action which does not seem remarkable prima facie turns out to be clearly
wrong after reflection» (Cf. Michelon, 2002: 65).
104
Cf. Raz, 1989: 1195.
seção 1 – filosofia jurídica e social 159

«suficientemente sortudos para descobrirem um bom correlato de decisões


corretas ainda que tenham uma pobre compreensão do que corresponde à
correção de suas decisões».105 Portanto, nem todo erro que parece claro é,
de fato, um erro. Recorrer ao raciocínio subjacente pode ser útil tanto para
confirmar como para desconfirmar esse juízo prima facie. Nem todo erro
claro é compatível com a função mediadora que Raz atribui às diretivas de
uma autoridade. Não há correlação direta entre ver um erro como claro e a
necessidade de se recorrer ao raciocínio subjacente para identificá-lo corre-
tamente como tal.
Segundo, Raz argumenta que, em geral, o poder legítimo das auto-
ridades não está limitado por erros grandes que não são claros. Pode-se
objetar: se a autoridade comete, de modo sistemático, erros grandes que
não são claros, o destinatário, ao seguir as diretivas, estaria desviando-se
– também de modo sistemático – da conformidade com a razão. O desti-
natário, ao obedecer à autoridade, teria o dever de agir sistematicamente
contra a razão. Essa objeção erra seu alvo. Raz, como se viu, admite que se
a autoridade sempre falha em refletir as razões nas diretivas, o destinatário
não teria qualquer vantagem em obedecê-la. O propósito da autoridade é
um só: facilitar a conformidade com a razão. Outra objeção, contudo, pode
ser formulada: se a autoridade pode, eventualmente, cometer erros grandes
que não são claros, então o destinatário teria uma obrigação moral de tentar
identificar esses erros para que lhe fosse possível, ao menos, não se desviar
muito da conformidade com a razão. E, conclui a objeção, o destinatário
só pode cumprir essa obrigação engajando-se num processo de deliberação
prática para avaliar as razões contra e em favor da ação requerida na diretiva
da autoridade.
Para esclarecer essa crítica, explicito uma ambiguidade na expressão
«erro grande que não é claro». Com essa expressão, Raz pode referir-se a
um erro que, apesar de grande, não é de fácil identificação pela maioria dos
destinatários. Ou seja: é provável que nenhum destinatário possa identificar
um erro desse tipo sem recorrer ao raciocínio subjacente. Isso, porém, não
exclui a possibilidade de que alguns destinatários, em virtude de sua habili-
dade técnica, possam identificar esse erro sem sequer recorrer ao raciocínio
subjacente. Um erro que é de difícil identificação para a maioria das pessoas
pode ser de fácil identificação para esses destinatários. Nesse caso, o argu-
mento de Raz falha: se há alguns destinatários que podem reconhecer, corre-
tamente, um erro da autoridade como grande e claro, então não haveria razão
para sustentar que, enquanto eles não têm um dever de obedecê-la, a maioria
dos destinatários teria esse dever. Note-se: se isso fosse sustentado, então se

105
Raz, 1989.
160 revista brasileira de filosofia – RBF 239

teria de admitir que a maioria dos destinatários teria um dever de seguir a


autoridade mesmo que isso signifique desviar-se muito da razão correta.106
Com «erro grande que não é claro», porém, Raz pode referir-se a um
erro cuja identificação enquanto erro é, ela mesma, controversa. Um exemplo
típico está na autoridade política. Imagine-se, p.ex., uma disputa sobre a lega-
lização do aborto. Há várias posições conflitantes sobre a questão. Algumas
delas divergem de modo radical. Pessoas diferentes discordam sobre o que
é correto sem que nenhuma delas seja irracional. Em controvérsias morais,
«parece não haver um critério independente de sucesso».107 Aquilo que, para
uma pessoa, parece um grande erro moral é, para outra pessoa, moralmente
correto. O argumento de Raz parece aplicar-se bem a esses casos: se há desa-
cordo razoável sobre o erro, então esse erro não é claro. Portanto, o poder
legítimo da autoridade não poderia depender dessa condição.108 Esse argu-
mento, contudo, não é geral. Nem todo erro é controverso. Se o propósito de
qualquer autoridade é facilitar a ação racional, então seu poder legítimo tem
limites. A autoridade não deve cometer erros grandes. Suas diretivas não
devem desviar-se muito da razão correta. O destinatário segue a autoridade
porque confia nela. Sua confiança está baseada em razões. Logo, na medida
em que é racional, ele deve deliberar sobre os erros das diretivas. Ele deve
levar em consideração as razões de primeira ordem para decidir o que fazer.
«[Devemos] agir, se possível, com base na mais completa visão das circuns-
tâncias da ação que podemos alcançar».109
Raz ainda sugere que a tese da prevenção depende de uma distinção
entre erros jurisdicionais e outros erros. As autoridades, em geral, têm
poderes limitados. Elas podem formular diretivas dentro dos limites de sua
jurisdição. Quando uma pessoa decide se deve ou não seguir uma diretiva,
ela deve excluir todas as razões contra e em favor da ação requerida que
estão fora dessa jurisdição.110 «A tese da prevenção enuncia que os fatores
sobre os quais a autoridade estava errada, e que não são fatores jurisdicio-

106
Raz está ciente desse problema, mas hesita ao enuncia-lo: «mesmo que a autoridade
legítima estivesse limitada pela condição de que suas diretivas não são vinculantes se
claramente erradas, e eu não desejo expressar nenhuma opinião sobre se ela é assim limitada»
(Cf. RAZ, 1986: 62).
107
Cf. Mcmahon, 1987: 308.
108
Veja, p. ex: Waldron, 2004: 88 e ss.
109
Cf. Nagel, 1986: 118. O argumento deste parágrafo tem relação com a ideia de que, em
questões morais, a deliberação prática é uma forma de aproximar-se da verdade moral, i.e. de
chegar a uma decisão moralmente correta. Veja, p. ex: Nino, 1989: 131. Habermas defende
uma posição ainda mais enfática: o discurso racional seria o «único» meio de acessar as ideias
morais (Cf. Habermas, 2004: 292, nota 30).
110
Cf. Raz, 1999: 192.
seção 1 – filosofia jurídica e social 161

nais, são prevenidos pela diretiva».111 Se, porém, a autoridade comete erros
dentro dos limites de sua jurisdição, esses erros tornam suas decisões nulas:
os destinatários não teriam um dever de segui-las. Há dois problemas com
esse argumento.
Primeiro, o destinatário, para reconhecer um erro como jurisdicional,
teria de deliberar sobre os méritos da diretiva. Raz admite que a tese da
prevenção seria inútil «se a maior parte dos erros fossem jurisdicionais» ou
se, na maioria dos casos, «fosse particularmente controverso e difícil esta-
belecer quais [erros] são [jurisdicionais] e quais não são».112 Segundo, Raz
argumenta que a autoridade pode cometer erros sobre fatores que estão fora
dos limites de sua jurisdição. Esses erros, em princípio, não afetam a obriga-
toriedade das diretivas. O argumento é problemático. Em certas circunstân-
cias, pode-se admitir que a autoridade seja desculpada por cometer um erro
não-jurisdicional: a autoridade comete um erro que não tinha a obrigação de
não cometer (i.e. um erro que está fora dos limites de sua jurisdição). Isso,
porém, não implica que a obrigatoriedade da diretiva não pode ser afetada
por erros não-jurisdicionais. Nem implica que esses erros podem ser preve-
nidos pela diretiva. O próprio Raz afirma que, para decidir o que fazer, uma
pessoa «deve ponderar a diretiva... com quaisquer razões em favor e contra o
ato requerido que estão fora da jurisdição da autoridade».113

(b) A condição de autonomia

A outra concessão que Raz formula é a chamada «condição de auto-


nomia» (the condition of autonomy): o destinatário só poderia estar justifi-
cado em seguir uma autoridade nos casos em que é mais importante decidir
corretamente do que decidir por si mesmo.114 Essa condição está associada
ao argumento de que, em algumas situações, há uma «desejabilidade
intrínseca de as pessoas conduzirem suas próprias vidas por suas próprias
escolhas».115 A condição de autonomia figura, na teoria de Raz, como um
limite necessário à legitimidade de qualquer autoridade. Ela dá razões que
poderiam derrotar a tese da justificação normal. Raz sugere que «se tanto a

111
Cf. Raz, 1986: 62. «Minha tese da prevenção enuncia que as diretivas que caem dentro
dos limites da jurisdição de uma autoridade devem substituir mais do que serem adicionadas
à ponderação de razões sobre a qual a autoridade tinha poder para se pronunciar» (Cf. Raz,
1989: 1194).
112
Cf. Raz, 1986: 62.
113
Cf. Raz, 1999: 192.
114
A expressão «condition of autonomy» é sugerida por Leslie Green (Cf. Green, 1989: 810).
Em texto recente, Raz a denomina de «condição de independência» (independence condition).
Veja: Raz, 2009a: 137.
115
No original: «intrinsic desirability of people conducting their own life by their own lights»
(Cf. Raz, 1986: 57).
162 revista brasileira de filosofia – RBF 239

tese da justificação normal quanto à condição de autonomia são preenchidas,


então, no geral, a alegada autoridade é legítima».116 Em sua teoria, portanto, a
TJN e a condição de autonomia correspondem às duas condições necessárias
para a justificação da autoridade. Há pelo menos duas objeções. A primeira
é que seria impossível comparar o valor de decidir por si mesmo e o valor de
decidir corretamente: ambos, apesar de muito importantes, são valores inco-
mensuráveis. A objeção conclui que se esses dois valores são incomparáveis,
então não seria sequer inteligível distinguir em que casos é mais importante
decidir corretamente do que decidir por si mesmo. A segunda objeção ataca
um ponto mais fundamental: uma pessoa poderia perder sua capacidade de
autodeterminação racional se muitas de suas decisões fossem tomadas pela
autoridade, e não por ele mesmo.117
A primeira objeção pressupõe que não haveria qualquer relação entre as
razões para decidir por si mesmo e as razões para decidir corretamente (i.e.
entre as razões com as quais a pessoa deve conformar-se e as razões para agir
sempre com base no seu próprio juízo). Raz refuta essa objeção. Ele argu-
menta que essa pressuposição é falsa: algumas razões que uma pessoa tem
para agir com base no seu próprio juízo derivam «da necessidade de cultivar
a habilidade de ser autoconfiante».118 A autoconfiança, segue o argumento,
é uma condição necessária para que uma pessoa saiba tomar corretamente
suas próprias decisões. Uma criança, p.ex., para tornar-se autoconfiante,
tem de aprender a tomar decisões por si mesma, ainda que isso envolva
tomar algumas decisões erradas (i.e. ainda que os pais, ao decidirem por ela,
pudessem tomar uma decisão melhor). Em outros termos: a autoconfiança
que uma pessoa necessita para tomar suas próprias decisões tem valor instru-
mental. Seu exercício é um meio que a pessoa tem para estar em melhor
conformidade com a razão. Isso é suficiente para afastar a primeira objeção.
Se há casos em que as razões para decidir por si mesmo estão diretamente
relacionadas com as razões para decidir corretamente, então não se pode
afirmar que elas são dois tipos de razões incomparáveis ou incomensuráveis.
A segunda objeção à condição de autonomia, como se disse, refere-se
a um problema mais fundamental: ao seguir uma autoridade, a pessoa está
correndo o risco de perder «a autenticidade [de sua] vida, ou a habilidade de
conduzir uma vida autoconfiante e plena».119 Em resumo: ela está correndo
o risco de perder sua capacidade de autodeterminação racional. Essa objeção
leva à seguinte questão moral: tomar as decisões por si mesmo (i.e. agir

116
Cf. Raz, 1989: 1181.
117
«We are not fully ourselves if too many of our decisions are not taken by us, but by agents,
automata, or superiors» (Cf. Raz, 2009a: 138).
118
Idem, ibidem.
119
Idem, ibidem, p. 139.
seção 1 – filosofia jurídica e social 163

sempre com base no próprio juízo) é o que há de mais valioso na vida de


alguém e, portanto, decidir por si mesmo seria sempre mais importante do
que decidir corretamente. Se é assim, conclui a objeção, a condição de auto-
nomia não pode ser plausível: não há casos em que a importância de decidir
corretamente supera a importância de decidir por si mesmo. A resposta
raziana para essa objeção é mais geral: assim como a autoconfiança, a capa-
cidade de agir com base no próprio juízo tem valor instrumental. Ela deriva
da necessidade que tem uma pessoa de estar em conformidade com a razão.
«O valor de nossa capacidade racional, i.e. de nossa capacidade para formar
uma visão sobre nossa situação no mundo e agir com base nisso, deriva do
fato de que há razões que devemos satisfazer, e de que essa capacidade nos
habilita a isso».120 «Valorizamos a habilidade de exercer o próprio juízo e
de basear-se nele para a ação... [essa] é uma capacidade que valorizamos
em virtude de seu propósito, que é, por sua própria natureza, assegurar a
conformidade com a razão».121
Disso, porém, não se segue que a habilidade de agir com base no próprio
juízo é o único meio para estar em conformidade com a razão: nem sempre
essa habilidade é o melhor meio de que uma pessoa dispõe para agir correta-
mente. Há casos em que uma pessoa, para realizar a ação correta, deve agir
sem deliberar sobre a correção dessa ação, ou seja, há casos em que realizar
a ação correta não envolve o exercício prévio de uma deliberação racional
por parte de quem age. Isso ocorre, p.ex., quando se reage instintivamente a
certos perigos iminentes, ou quando se realiza alguns tipos de ação virtuosa,
como a ação misericordiosa.122 Nesses casos, o indivíduo age corretamente
quando age sem pensar ou refletir sobre se o que ele está fazendo é ou não
correto de ser feito. Há, ainda, outros casos em que o indivíduo, ao tomar
uma decisão por si mesmo, tem de submeter-se a um nível de esforço mental
e ansiedade que poucos indivíduos suportariam. Nesses casos, o indivíduo,
para não reduzir sua conformidade com a razão, pode estar justificado em
submeter-se à decisão de outra pessoa e de não decidir por si mesmo.123 Em

120
Raz, 1989: 140.
121
No original: «The point of this general capacity [of guiding our conduct and life by our
own judgment] is to enable us to conform to the reasons that confront us at any given time…
We value the ability to exercise one’s judgment and to rely on it in action, but it is a capacity
we value because of its purpose, which is, by its very nature, to secure conformity with reason»
(Idem, ibidem) (grifo meu).
122
Veja, p.ex.: Christodoulidis, 1999: 215-41; e Simmonds, 1993: 52 e ss.
123
Raz se refere a «sobrecargas de decisão e de reflexão» (burdens of decision and inquiry):
«Submitting to authority is one way of reducing the burdens. It can be justified only if it
is consistent with the independence condition of legitimacy (though when the psychological
vulnerability to the burden is extreme it may be justified to mitigate the condition to relieve the
burden)» (Cf. Raz, 2009a: 150).
164 revista brasileira de filosofia – RBF 239

resumo: o uso da capacidade racional (i.e. deliberativa) não é o único meio


que um indivíduo tem para estar em conformidade com a razão.
Essa conclusão conduz ao pressuposto fundamental da teoria de Raz:
se, em certas circunstâncias, o indivíduo pode conformar-se melhor com a
razão sem agir com base no seu próprio juízo (i.e. sem fazer uso de sua
capacidade deliberativa), então não há qualquer objeção de que o indi-
víduo, nessas circunstâncias, estaria comprometendo sua autoconfiança ou
autonomia moral ao seguir uma autoridade. Para Raz, o dever de seguir as
diretivas de uma autoridade é instrumental: esse dever existe na medida em
que o destinatário, ao seguir as diretivas, esteja se conformando melhor com
a razão. Raz argumenta que, desse modo, a capacidade de autodeterminação
racional do indivíduo estaria preservada, na medida em que é seu próprio
juízo que fundamenta a necessidade de suspendê-lo em alguns contextos de
ação: «ao deferir ao juízo de outros, ainda estamos agindo com base no nosso
próprio juízo».124 Nas palavras de Raz:
«Ao postular que as autoridades são legítimas somente se as suas dire-
tivas habilitam os indivíduos a se conformarem melhor com a razão, vemos
a autoridade pelo que ela é: não uma negação da capacidade das pessoas
para a ação racional, mas simplesmente como um instrumento, um método,
através de cujo uso as pessoas podem alcançar o objetivo (telos) de sua
capacidade para a ação racional, ainda que não através de seu uso direto.»125
(Raz, 2009a: 140)

3. Considerações finais

Dois foram os problemas centrais levantados nesse texto. Como conci-


liar a noção de autoridade com a de razão? Como justificar o fato de que um
indivíduo não está agindo contra a razão quando decide seguir uma diretiva
que não se ajusta à ponderação correta de razões? O projeto teórico de Raz,
como se viu, está baseado numa linha central de argumento. Uma pessoa
deve seguir as diretivas da autoridade quando, ao segui-las, é mais provável
que ela se conforme com a razão do que seguindo seu próprio juízo. A teoria
de Raz é epistemológica: a autoridade tem uma relação com a verdade. O
dever de seguir as diretivas é fundamentado na probabilidade que a autori-
dade tem de estar correta.
«É a verdade ou a correção das decisões que contam por último. A verdade
e a correção fornecem o argumento para a legitimidade da autoridade... Uma
autoridade é legítima somente se sua crença honesta é, ao menos no longo

124
Cf. Raz, 1998: 26.
125
Cf. Raz, 2009a: 140 (grifo meu).
seção 1 – filosofia jurídica e social 165

prazo, um indicador confiável do curso correto de ação a ser tomado.»126


(Raz, 1994: 116)
Raz, em sua teoria, internaliza uma tensão. Ele não pretende afastá-la.
Seguir uma autoridade é suspender o próprio juízo. Esse é o pressuposto
fundamental: deixa-se de agir com base no próprio juízo para agir segundo
o juízo de outrem. A autoridade tem valor instrumental. «[Ela] ajuda nossa
capacidade racional cuja função é assegurar a conformidade com a razão».127
Essa é uma condição de sua legitimidade. Ao segui-la, o indivíduo tem de
sair-se melhor do que seguindo seu próprio juízo. Ele confia na autoridade.
Sua confiança está baseada em razões. Isso, porém, não é suficiente. Uma
relação de autoridade só é possível quando há um espaço entre a correção
das diretivas e a sua obrigatoriedade. O indivíduo não deve obedecer apenas
quando a autoridade está correta. Da mesma forma, ele não deve obedecer
apenas quando o juízo da autoridade coincide com seu próprio juízo. «Não
há sentido em ter autoridades a menos que suas determinações sejam obri-
gatórias mesmo que erradas».128 Essa é a tensão. Uma autoridade é legítima
quando, ao segui-la, o indivíduo se conforma melhor com a razão. Porém,
para que seja uma autoridade, ele deve segui-la mesmo nos casos em que isso
não lhe ajuda a conformar-se com a razão.
Esse texto procurou demonstrar que essa tensão marca, ao mesmo
tempo, a força e a debilidade da teoria de Raz. Seu ponto forte é que a
autoridade figura apenas como um «instrumento» ou «método» que está a
serviço do indivíduo para um fim:129 conformar-se melhor com a razão. Ou
seja: realizar melhor sua capacidade para a ação racional. Isso valoriza o
status do indivíduo como agente racional. Um indivíduo, na medida em que é
racional, deve sempre tentar agir com base na ponderação correta de razões.
O problema é recorrente. Raz, ao mesmo tempo em que sustenta o valor
instrumental, demonstra um desconforto teórico em assumir sua implicação
mais óbvia. Haveria sempre um espaço para realizar um juízo de adequação
entre o meio e o fim. O indivíduo, em todo caso particular, deve deliberar
sobre se seguir a autoridade é ou não o melhor meio para conformar-se com
a razão. Essa implicação não se ajusta bem à sua teoria. E esse é seu ponto
fraco. Para Raz, o indivíduo não pode seguir uma diretiva apenas quando se
convence de que a ação é correta. Ele tem o dever de segui-la mesmo que

126
Cf. Raz, 1994: 116 (trad. livre).
127
Cf. Raz, 2009a: 139.
128
Cf. Raz, 1986: 48.
129
Raz chama sua teoria de «concepção da autoridade como serviço» (service conception of
authority), e enuncia que, nessa concepção, «a função normal primária [das autoridades] é
servir aos destinatários... é ajuda-los a agir com base em razões que são obrigatórias para eles»
(Idem, ibidem, p. 56).
166 revista brasileira de filosofia – RBF 239

discorde de sua correção. Esse argumento impõe uma restrição ao status do


indivíduo como agente autônomo. Na medida em que é autônomo, ele deve
agir não porque alguém lhe disse para agir de certo modo, mas sim porque,
ao deliberar por si mesmo, se convenceu de que a ação é correta.
Em resumo: buscou-se demonstrar que a solução instrumental para o
problema da autoridade implica uma tensão inevitável entre o dever de agir
racionalmente (i.e. com base na ponderação correta de razões) e o dever
de agir autonomamente (i.e. com base no próprio juízo acerca do que essa
ponderação correta de razões requer). A teoria de Raz oferece uma estratégia
clara e definida desse tipo de solução. Ela é levada até as últimas consequên-
cias. Essa é a dificuldade. As razões que a autoridade pretende refletir sempre
estariam à disposição do indivíduo. Em casos normais, ele deve deliberar
antes de decidir o que fazer. A deliberação, em si mesma, não determina
a ação. O indivíduo tem de tomar uma decisão para agir. Essa decisão põe
um fim na deliberação. Ela reflete uma escolha. Nesse modelo, é sempre o
indivíduo que tem o poder da decisão final. A autoridade está a seu serviço.
Ele escolhe obedecer. «O princípio instrumental, por enunciar apenas que
[devemos] escolher os meios em direção aos nossos fins, não nos pode dar,
em si mesmo, uma razão para fazer coisa alguma».130 A tensão entre razão
e autonomia afasta a possibilidade de justificar a autoridade em bases pura-
mente instrumentais. Como, então, podemos justificá-la? A resposta dada
por esse texto é apenas negativa. A questão ainda permanece. Sua resposta,
contudo, deverá ser objeto de outros trabalhos.

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130
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by itself give us a reason to do anything. It can operate only in conjunction with some view
about how our ends are determined, about what they are» (Korsgaard, 2008: 35). Na p. 45:
«A normative principle of instrumental action cannot exist unless there are also normative
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seção 1 – filosofia jurídica e social 167

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Seção 2

Lógica e filosofia da ciência


Teoremas de ajuste de
derivabilidade e normalização
em dedução natural

Marcelo Esteban Coniglio


Professor associado do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Unicamp. Membro do Centro de Lógica, Epistemologia e
História da Ciência da Unicamp.

María Inés Corbalán


Professora e Bacharel em Filosofia pela Universidad Nacional de La Plata,
Argentina, e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas,
Brasil. Atualmente continua seus estudos de posgrado sob a
orientação do Prof. Marcelo E. Coniglio.

Resumo: Em Natural Deduction, Prawitz demonstra que, dada uma


dedução em um certo cálculo clássico de Dedução Natural, é possível obter
sua forma normal através de certas operações, chamadas de reduções. Em
particular, as reduções que têm a ver com a regra clássica do absurdo têm
uma forma particular: a consequência de toda aplicação da regra clássica
do absurdo é atômica. Nós demonstramos esse resultado como corolário
de um Teorema de Ajuste de Derivabilidade e da propriedade de propa-
gação de um conectivo de determinação definido na Lógica Intuicionista.
Palavras-chave: Lógicas paracompletas – Lógicas da indetermi-
nação formal – Intuicionismo – Deduções normais – Conectivos de (in)
determinação.
172 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Abstract: In Natural Deduction, Prawitz demonstrates that, given a


deduction in a classic Natural Deduction calculus, it is possible to obtain
its normal form through certain operations, called reductions. In particular,
reductions that are connected to the classical absurdity rule have a parti-
cular form: the consequence of every application of the classical absurdity
rule is atomic. We demonstrate this result as a corollary of a Theorem of
Ajustment of Derivability and of the property of propagation of a connec-
tive of determination defined in Intuitionist Logic.

1. Teorema de Normalização

1.1 Introdução

No capítulo III de Natural Deduction, Prawitz considera a possibilidade


de se obter deduções «normais» na Lógica Clássica, isto é, deduções nas
quais uma conclusão seja obtida a partir das premissas de modo direito, sem
complicações desnecessárias. Ele demonstra o Teorema de Normalização
para o cálculo de Dedução Natural que, em termos informais, expressa que
toda dedução clássica Π de α a partir de Γ pode ser transformada em uma
dedução Π′ na qual a conclusão α seja obtida sem rodeios (detours) a partir de
Γ (cf. Prawitz, 1965: 34). O Teorema de Normalização proposto por Prawitz
para o sistema de Dedução Natural é um dos resultados mais importantes em
teoria da prova e resulta equivalente ao Hauptsatz proposto por G. Gentzen
(Gentzen, 1936) para o Cálculo de Sequentes.1

regras do absurdo, são de


1.2 Cálculo regras de introdução
Dedução Natural (regras I) e regras de eliminação (regras E).
Em particular, os sistemas
É bem sabidodeque
Dedução Natural
nos cálculos para a Lógica
de Dedução Natural Clássica (LC)dae para a
os conectivos
linguagem dos sistemas lógicos são caracterizados pelas regras de inferência
Lógica Intuicionista (LI) na assinatura Σ contêm as mesmas regras de introdução e
que, com exceção das regras do absurdo, são regras de introdução (regras
I) e dos
de eliminação regras de eliminação
conectivos , (regras
e , eE).
se Em particular, apenas
diferenciam os sistemas de Dedução
nas regras do absurdo.
Natural para a Lógica Clássica (LC) e para a Lógica Intuicionista (LI) na
Essas regrasassinatura
comuns Σpara
^ → ᴧᴠ
LC e LI
contêm as são:
mesmas regras de introdução e de eliminação dos
conectivos ᴧ, ᴠ e →, e se diferenciam apenas nas regras do absurdo. Essas
regras comuns para LC e LI são:
I αβ E αβ αβ
αβ α β
1
O Hauptsatz, por sua vez, expressa que toda dedução Π no Cálculo de Sequentes pode ser
transformada em uma dedução Π′, com o mesmo sequente final, na qual a regra do corte não
seja aplicada. Daqui, que o Hauptsatz o Teorema Fundamental seja conhecido, também, como
Teorema da Eliminação do Corte.
[α]
Π
I β E  α α β
αβ β
αβ α β
αβ I  αβα αββ α E  α αβα β β αββ
[α] [α]
p. 173 a 186 αβ α β
Π Π
aguardam seção 2 –[α]
lógica e filosofia da ciência 173
I
substituição
[α] β [α] I[α]
 β E  α α β E  α α β
Π
Π αβ Π [α]Π αβ β β
I β E  α α β
I βI  I  β Π β E  α αEβ  E αα β α α β
αβ β
αβI  αβαβ β β β
E  α α β β
[α] [β] [α]
αβ β
Π1 Π2 Π1
[α]
I α I α β β E αβ
[α] E γ
 γ
αβ
[β][α] [α][β] [β]γ
Π1
αβ αβ αβ αβ Π1 γ Π Π1Π2 Πγ2
Π
I α β E  2 1 [α]αβ [β] γ
I αI  I  α α β β β E αβ γγ Πγ γ Πγ
E  E  γαβ αβ
αβ αβ 1 2 γ
Observação 1: Observação
A notação 1: A notação
αβ I  αβ ααβ αβ αβ βαβ E  γ αβ γ γ γ γ
[] []
Observação
αβ 1: A notação αβ γ
Observação
ervação 1:Observação
A notação1: A 1:
notação Π
A notação Π
Observação 1: A notação []
ψ [] [] ψ
Observação 1:[] A notação Π
significa que a significa
regraΠsupõe, que como
aΠregra hipótese,
supõe, como
a existência
hipótese, de auma existência
derivação de uma
Π dederivação
ψa Π de
[]Π ψ
partir de . O cancelamento
partir ψde . Oda cancelamento
hipótese , denotado
da hipótese [],,édenotado
resultado[], da aplicação
é resultadodada aplicaçã
significa
significa que que
a regraaψregra Π ψ supõe,
supõe, como hipótese,
como hipótese, a existência a deexistência
uma derivaçãode uma Π derivação Π de
regra.
ifica significa de regra.
ψ a
quesupõe,
que asignifica aque partir
regra de j.
supõe,
a como
regra O
supõe, cancelamento
como hipótese, da hipótese
a existênciaj, denotado
de uma [j], é resultado
derivação ψ aΠ deΠψde a ψa
.
regra
da partir
aplicação de da
hipótese, ψ como
O cancelamento
. regra.
hipótese,
a existência dea uma
existência
derivação de uma Π de derivação
da hipótese , denotado [], é resultado da aplicaçã
A partir
respeitode das
.deOA
regras
respeitodo
da absurdo,
cancelamento das regras LI
da como do
aceita
absurdo,
hipótese uma LIdenotado
versão
denotado aceitafraca
[], uma do
é[],daversão
absurdo
resultado fraca
daclássico
do aplicação
absurdo
c,
aplicação clássico
ir de
a
. Opartir
cancelamento
significa que AaO
.
regra. cancelamento
regra
respeito hipótese
supõe,
das regras ,da
dodenotado,
hipótese
hipótese,
absurdo, LI,aceita
[],a éexistência
resultado
uma versãode éfraca
resultado
aplicação
uma da
da
derivação
do absurdo Π dedaψ ada
a. admitindo-se
regra.
regra. clássico
apenas a^regra
admitindo-sec
, admitindo-se
i:
apenas aapenas
regra aregra
i:
^i:
e partir de .
A O cancelamento
respeito das regras da hipótese
do absurdo,, denotado
LI aceita [], umaéversão resultado fracadadoaplicação
absurdodaclássico
espeitoA das
respeito
Aregras i regras
das
respeito
do das
absurdo, do LI
regras do aceita
absurdo, LI
i absurdo,
uma LI
aceita umafraca
aceita
versão umado
versão [α]
fracafraca
c versão
absurdo 
do clássico
absurdo [α]
clássico
doc absurdo c, c, c,
clássico
. regra. admitindo-se apenas a regra i:
admitindo-se
admitindo-se apenas ia: regra : :
absurdo, Π Π
itindo-se Aapenas
respeito das apenas
a regra regras a regra
do i i i LI aceita uma versão fraca doabsurdo c [α] clássico c,
i  apenas i a regra  i: c [α]  c  [α] [α] 
admitindo-se i c
Π
α α αΠ  [α] Π Πα
i c
ersão do cálculo de Dedução
Na versão doversão Natural
cálculo apresentado por apresentado
Prawitz, estas porduas regrasestas
do duas regras do
Na dodecálculo
Dedução Natural
de Dedução Natural apresentado Prawitz,
Π por Prawitz,
rdo recebemabsurdo
as seguintesduas restrições:
estasrecebem regras a) emrestrições:
do absurdo
as seguintes i a fórmula
recebem as em
a) finali αa éfórmula
seguintes diferente
restrições: de
final ;é b)
a) αem ^i a
diferente de ; b)
fórmula final α é diferente de ^; b) em ^c a fórmula final α não é da forma β→^.
c a fórmulaem final
 αa não é da final
fórmula formaα β→. não é da forma β→.
c As deduções em um cálculo de Dedução Natural costumam ser apre-
deduções em Asum cálculocomo
sentadas
deduções de um
em Dedução
árvores deNatural
cálculoderivaçãocostumam serdedução),
(árvores de
de Dedução Natural apresentadas
costumamtal quecomo
ser oapresentadas
topo
como
res de derivação (árvores
árvores de dedução),
de derivação (árvorestalde
que o topo —folhas—
dedução), da árvore
tal que o topo —folhas—são asda árvore são as
sições, ou hipóteses,
suposições,e aouraiz é a fórmula
hipóteses, final.
e a raiz é aAs fórmulas
fórmula queAsnão
final. estão noque
fórmulas topo
não estão no topo
obtidas das fórmulas que estão acima por meio da aplicação de alguma das regras de
são obtidas das fórmulas que estão acima por meio da aplicação de alguma das regras de
174 revista brasileira de filosofia – RBF 239

– folhas – da árvore são as suposições, ou hipóteses, e a raiz é a fórmula


final. As fórmulas que não estão no topo são obtidas das fórmulas que estão
acima por meio da aplicação de alguma das regras de inferência do cálculo.
Cada regra E, para um certo conectivo ⊡, contém uma premissa maior, que
é a premissa na qual o conectivo lógico ⊡ aparece; as outras premissas, se
existirem, são chamadas de premissas menores.

1.3 Inversão, Reduções e Normalização

1.3.1 Regras de Introdução e de Eliminação

Como fica claro, a ordem de aplicação das regras de inferência não é


determinada nem pela fórmula final, nem pelas suposições iniciais da infe-
rência. Assim, existem diversas deduções possíveis para uma fórmula α, a
partir de um conjunto de suposições Γ. E, ainda, podem existir deduções nas
quais a fórmula final seja obtida por aplicações desnecessárias das regras
de inferência. Assim, o objetivo da normalização das deduções consiste
em demonstrar que toda dedução pode ser transformada em uma dedução
que não contenha passos inferenciais desnecessários. Uma fórmula que seja
consequência de uma regra I ou de uma regra para ^ e que seja também
premissa maior de uma regra E constitui uma complicação na dedução e
deve, portanto, ser removida. Um primeiro teorema demonstrado por Prawitz
expressa que uma ocorrência de uma fórmula em uma dedução Π que seja
consequência da aplicação de uma regra I e que seja, também, premissa
maior de uma aplicação de uma regra E pode ser removida da dedução. Com
tal finalidade, Prawitz mostra, para cada uma das constantes Ù, Ú e →(“ e $),
a maneira de se reduzir tais deduções desnecessárias. Prawitz demonstra o
seguinte Teorema de Inversão.

Teorema 2: (Teorema de Inversão) Se Γ⊢α então existe uma dedução


de α a partir de Γ na qual nenhuma ocorrência de uma fórmula é tanto conse-
quência de uma aplicação de uma regra I, quanto premissa maior de uma
aplicação de uma regra E (cf. Prawitz, 1965: 34).

Exemplo 3: Na seguinte redução, a dedução à direita é uma Ú-redução


da dedução à esquerda:
Θ [α1] [α2] Θ
αi Π1 Π2 αi
α1Úα2 γ γ Πi
γ γ
Ω Ω
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 175

com i = 1 ou 2.

O Teorema de Inversão expressa que é possível remover as compli-


cações e se obter deduções que não façam rodeios (detours). No entanto, o
Teorema de Inversão requer certas modificações para se considerar também
o caso da regra ^c; esse Teorema não fala a respeito dos rodeios ocasionados
pelas aplicações da regra do absurdo cujas conclusões sejam, por sua vez,
premissas de uma regra E, pois a regra ^c fica fora da distinção entre regras
de Introdução e regras de Eliminação.
No entanto, como Prawitz assinala, seria possível ter um cálculo clás-
sico de Dedução Natural na linguagem Σ¬ÙÚ→, no qual todas as regras fossem,
bem regras I, bem regras E. Um tal sistema poderia se obter substituindo a
regra clássica ^c pelas seguintes duas regras de Introdução e Eliminação para
o conectivo da negação ¬:

[α] [α]
Π1 Π2
I ¬ β ¬β E¬ ¬¬α
¬α α

Contudo, como Prawitz nota, a dedução do Princípio de Terceiro


Excluído (PTE): αÚ¬α evidencia que essas regras para a negação, e portanto,
um tal cálculo clássico nessa linguagem, não satisfazem o Teorema de
Inversão. Com efeito, a fórmula ¬¬(αÚ¬α) é conclusão da aplicação da regra
I ¬ e premissa maior da aplicação da regra E ¬:

[α]
αÚ¬α ¬(αÚ¬α)
¬α
[¬(αÚ¬α)]
αÚ¬α
¬¬(αÚ¬α)

Assim, no capítulo III de Natural Deduction, Prawitz amplia o escopo


do Teorema 2, apresentando as reduções correspondentes à regra ^c.

1.3.2 Regra para o Absurdo


176 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Para minimizar problemas com a regra clássica ^c, Prawitz considera


o fragmento clássico LC’ escrito na assinatura reduzida Σ^Ù→, e na qual o
conectivo da disjunção Ú é definido da maneira usual a partir dos restantes
conectivos da linguagem. Assim, o sistema clássico LC’ contém apenas
regras de Introdução e de Eliminação dos conectivos Ù e →, e regras para o
absurdo ^.2 Para um tal cálculo LC’, Prawitz demonstra que as aplicações
da regra clássica ^c podem ser restringidas a casos nos quais a conclusão da
regra seja atômica.

Teorema 4: Seja LC’ o sistema clássico escrito na assinatura Σ^Ù→. Se


Γ⊢LC’α, então existe uma dedução em LC’ de α a partir de Γ na qual a conse-
quência de toda aplicação da regra ^c é atômica (cf. Prawitz, 1965: 39).
Demonstração: (cf. Prawitz, 1965: 39) Seja Π uma dedução em LC’
de α a partir de Γ na qual d é o grau maior da consequência da aplicação de
uma regra ^c, com d > o.3 Seja j uma consequência de uma aplicação ρ da
regra ^c em Π, tal que o seu grau seja d e nenhuma consequência de uma
aplicação da regra ^c em Π que esteja acima de j seja de grau d. Assim, Π
é da forma:
[¬j]
S
^
j
P1
em que [¬j] é o conjunto de suposições descarregadas por ρ. Assim, j é
da forma βÙγ ou β→γ (ou “xB). Para o nosso fim, é suficiente mostrar a maneira
na qual são removidas aplicações da regra ^c, transformando Π nos casos
em que j = βÙγ ou j = β→γ. Assim:
Caso 1: j = βÙγ
[βÙγ] [βÙγ]
β [¬β] γ [¬γ]
^ ^
¬(βÙγ) ¬( βÙγ)
S S
^ ^
β γ
βÙγ
P1

2
A rigor, o sistema clássico LC’ contém, também, “ como signo primitivo a partir do qual $
é definido.
3
O grau d de uma fórmula α é a quantidade de ocorrências de constantes lógicas em α,
exceptuando ^ (cf. Prawitz, 1965: 15).
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 177

Caso 2: j = β→γ
[β] [β→γ]
γ [¬γ]
^
¬(β→γ)
S
^
γ
β→γ
P1

As novas aplicações da regra ^c que surgem a partir dessas transforma-


ções têm consequências de grau menor do que d. Logo, aplicando sucessiva-
mente essas transformações, são obtidas deduções de α a partir de Γ nas quais
a conclusão de toda aplicação da regra ^c é atômica. ■

Desse modo, como a consequência de toda aplicação da regra do


absurdo ^c é atômica, então ela não pode ser, por sua vez, premissa maior de
qualquer regra de Eliminação.4
Assim, o Teorema de Inversão junto com o Teorema 4 expressam
que as derivações podem ser reduzidas de modo que elas não contenham
nenhuma ocorrência de uma fórmula que seja tanto consequência de uma
regra I ou de uma regra para ^, quanto premissa maior de uma regra E. O
Teorema de Normalização expressa que as deduções podem ser transfor-
madas em deduções normais.

Teorema 5: (Teorema de Normalização) Seja Π uma dedução em LC.


Então Π pode ser efetivamente transformada em uma dedução Π′ em LC’
tal que Π′ esteja na forma normal (cf. Prawitz, 1965: 40s).

Observação 6: Assim como a demonstração do PTE evidencia a falha


do Teorema de Inversão para o cálculo clássico com regras para o conectivo
da negação, o PTE não satisfaz, também, o Teorema de Normalização: não
é possível obter uma demonstração de αÚ¬α por aplicações da regra ^c, cujas
conclusões sejam apenas fórmulas atômicas.

4
No entanto, a conclusão de uma aplicação desta regra poderia ser, tal como se afirma em
(Bastos Massi, 1990: 11), premissa menor da regra E→, cuja premissa maior é uma fórmula do
topo da árvore da forma α→^. Contudo, neste caso a aplicação de ^c pode ser removida.
178 revista brasileira de filosofia – RBF 239

A seguir, nosso objetivo será demonstrar o Teorema 4 usando ideias


surgidas no âmbito das Lógicas da Inconsistência Formal e estendidas, poste-
riormente, para o âmbito das Lógicas da Indeterminação Formal (Logics of
Formal Undeterminedness – LFUs).

2. Lógicas paracompletas e LFUs

Levando em consideração a dualidade entre as lógicas paraconsistentes


e as lógicas paracompletas, em (Marcos, 2005) foi proposto o conceito de
Lógicas da Indeterminação Formal (LFUs). Como é bem sabido, uma lógica
é paracompleta com relação à negação ¬, se tal conectivo de negação não
satisfaz o Princípio de Terceiro Excluído (PTE). Em termos da relação de
consequência com conclusão múltipla ⊪, uma lógica se diz paracompleta
com relação a uma negação ¬, se ela não satisfaz o Princípio de Implosão
(PI):
⊪ α,¬α.
As LFUs são um tipo especial de lógica paracompleta. Apesar de terem
uma negação paracompleta, elas podem expressar a indeterminação da
negação e satisfazer uma versão fraca do PTE ou do PI. A internalização da
noção de indeterminação é feita, em termos gerais, a partir de um conjunto
⊛( ) de fórmulas, tal que ⊛(p) é um conjunto de fórmulas que depende apenas
da variável p. No caso de ⊛(p) ser um conjunto unitário, ∗p expressará o
único elemento desse conjunto. Nesse caso particular, ∗ é um conectivo
unário de indeterminação, de modo que ∗α denota que a fórmula α é indeter-
minada. Assim, por sua capacidade de expressar a noção de indeterminação
na linguagem objeto, as LFUs podem validar a seguinte versão fraca do
PTE, chamada de Princípio de Terceiro Excluído Gentil (PTEG):
⊩ αÚ¬αÚ∗α
ou do PI, isto é: Princípio de Implosão Gentil (PIG):
⊪ α,¬α,∗α.
Assim, mediante um conectivo de indeterminação ∗, as LFUs conse-
guem recuperar uma versão do PTE perdido nas lógicas completas, acres-
centando alternativas indeterminadas. Por outro lado, o conceito de deter-
minação das fórmulas pode ser definido na linguagem a partir do conectivo
unário de indeterminação e da negação paracompleta da seguinte maneira:

Definição 7: ∘α = def ¬∗α


seção 2 – lógica e filosofia da ciência 179

Desse modo, nas LFUs teremos, também, a seguinte versão fraca do


PTE:
∘α ⊩ αÚ¬α.

A ideia geral que está por trás destas versões dos princípios da lógica
completa é a de que as LFUs, por sua capacidade de assumir explicitamente
a (in)determinação das fórmulas por meio da introdução do conceito de (in)
determinação na linguagem objeto, podem recuperar tanto versões fracas do
PTE ou do PI, quanto da totalidade das inferências da lógica completa. A
recuperação das inferências da lógica completa no âmbito da lógica para-
completa é expressa no Teorema de Ajuste de Derivabilidade (DAT), cuja
formulação geral expomos a seguir.

Teorema 8: (DAT) Considere duas lógicas, L1 = <For(Σ1), ⊩1>


e L2 = <For(Σ2), ⊩2> tais que Σ1 = Σ2, tal que L1 satisfaz PTE e tais que
⊩2⊂⊩1⊆℘(For(ΣL))×(For(ΣL)) é um fragmento dedutivo próprio de L1 que
valida as inferências de L1 se, e somente se, elas forem compatíveis com a
falha do PTE. E seja ©(p) um conjunto —possivelmente vazio— de fórmulas
de L2 que depende exatamente da variável proposicional p. Então:

“Γ”α$Δ(Γ ⊩1 α Û©(Δ), Γ ⊩2 α).

Assim como é possível obter uma versão determinada de PTE, o DAT


expressa que cada inferência completa perdida na lógica paracompleta pode
ser recuperada nas LFUs pelo acréscimo de premissas determinadas.

2.1 Conectivos de determinação e Teoremas de Ajuste de


Derivabilidade

Neste trabalho, proporemos dois conectivos de determinação para a


Lógica Intuicionista e mostraremos a maneira de se recuperar o raciocínio
completo acrescentando premissas determinadas no âmbito desta lógica para-
completa. Definiremos dois conectivos de determinação ⊝ e ⊘ em termos
de princípios clássicos não aceitos em LI, demonstraremos dois teoremas
DATs e, finalmente, demonstraremos o Teorema 4 proposto por Prawitz.
Como é bem sabido, um sistema axiomático para LC pode ser obtido
acrescentando apenas uma das seguintes fórmulas como esquemas de
axiomas à base axiomática para LI:
180 revista brasileira de filosofia – RBF 239

PTE: αÚ¬α
DN: ¬¬α→α

Definição 9: Definimos dois novos conectivos em termos daqueles


princípios clássicos da seguinte maneira:
⊘α =def αÚ¬α,
⊝α =def ¬¬α→α.
O conectivo ⊘ recupera as derivações de LC em LI da maneira seguinte.

Teorema 10: (DAT1 LC-LI) Para todo conjunto Γ e toda fórmula α tal
que ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^ÙÚ→ ). Então:
Γ ⊢LC α sse ⊘α, Γ ⊢LI α.
Demonstração: Por indução no comprimento da dedução, em Dedução
Natural, de Γ⊢LC α.
Þ Assuma Γ ⊢LC α. Então existe uma dedução Π, no sistema clássico
de Dedução Natural, de α a partir de Γ. Caso base: comprimento da dedução
c(Π) = 1. Como o sistema de Dedução Natural na versão de Prawitz não
contém axiomas, apenas devemos demonstrar o caso em que αÎΓ. Se αÎΓ,
então pela propriedade de reflexividade de ⊢LI temos que Γ ⊢LI α. Logo, pela
propriedade de monotonicidade obtemos ⊘α, Γ ⊢LI α.
Se αÏΓ, então Π é uma dedução de α a partir de Γ que resulta da aplicação
de algumas das regras de inferência para LC: IÙ, EÙ, IÚ, EÚ, ^c, etc. Como
a diferença entre o cálculo de Dedução Natural de LC e de LI reside nas
regras do absurdo, apenas devemos analisar o caso em que α for resultado da
aplicação da regra do absurdo clássico. Seja, então, c(Π) = n o comprimento
da dedução de α a partir de Γ por meio da regra ^c. Então, existe uma dedução
Σ de ^ a partir de ¬α, Γ tal que c(Σ) = m, com m<n. Por hipótese de indução,
temos então que existe uma dedução intuicionista de ^ a partir de ⊘^, ¬α,
Γ, i.e., ^Ú¬^, ¬α, Γ ⊢LI ^. Como ¬^ =def ^→^ e temos que ⊢LI ^→^, então por
IÚ temos que ⊢LI ^Ú(^→^) que equivale, por definição de ¬, a ⊢LI ^Ú¬^.
Logo, usando o corte obtemos ¬α, Γ ⊢LI ^. Por I→, temos que Γ ⊢LI ¬α→^, que
equivale, pela definição de ¬, a Γ ⊢LI ¬¬α. Por outro lado, temos que ¬α,
¬¬α, Γ ⊢LI ^ a partir do qual obtemos, aplicando a regra ^i, ¬α, ¬¬α, Γ ⊢LI α.
Como temos Γ ⊢LI ¬¬α, então pela propriedade do corte temos que ¬α, Γ ⊢LI
α. Como temos também que α, Γ ⊢LI α, então aplicando a regra EÚ às duas
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 181

demonstrações temos que αÚ¬α, Γ ⊢LI α. Daqui, pela definição de ⊘, temos


então ⊘α, Γ ⊢LI α.
Ü Assuma ⊘α, Γ ⊢LI α. Como LC estende LI, temos que ⊘α, Γ ⊢LC α que,
pela definição de ⊘ equivale a αÚ¬α, Γ ⊢LC α. Como ⊢LC αÚ¬α, então pela regra
do corte, temos que Γ ⊢LC α. ■

Exemplo 11: Considere os seguintes exemplos:


⊢LC ¬¬p→p, mas ⊬LI ¬¬p→p. Porém, (¬¬p→p)Ú¬(¬¬p→p)⊢LI ¬¬p→p.
⊢LC pÚ(p→q), mas ⊬LI pÚ(p→q). Porém, (pÚ(p→q))Ú¬(pÚ (p→q))⊢LI
pÚ(p→q).
¬p→q⊢LC pÚq, mas ¬p→q⊬LI pÚq. Porém, (pÚq)Ú¬(pÚq),¬p→q⊢LI pÚq.
¬(¬pÚ¬q)⊢LC pÙq, mas ¬(¬pÚ¬q)⊬LI pÙq. Porém, (pÙq)
Ú¬(pÙq),¬(¬pÚ¬q) ⊢LI pÙq.

Um segundo DAT vinculando LC e LI pode ser obtido trocando o


operador ⊘ pelo operador ⊝ no Teorema 10. O conectivo ⊝ recupera as
derivações de LC em LI do seguinte modo.

Teorema 12: (DAT2 LC-LI) Para todo conjunto Γ e toda fórmula α tal
que ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^ÙÚ→ ). Então:
Γ ⊢LC α sse ⊝α, Γ ⊢LI α.
Demonstração: Þ Como no caso anterior, apenas consideramos o caso
em que α é obtida a partir de Γ pela aplicação da regra ^c. Usando a hipótese
de indução obtemos ⊝⊥, ¬α, Γ ⊢LI ^. Pela definição de ⊝ obtemos ¬¬^→^,
¬α, Γ ⊢LI ^. Como ¬¬^→^ =def ((^→^)→^)→^ e, como ⊢LI ((^→^)→^)→^, pois ⊢LI
((α→α)→α)→α, então ¬α, ⊢LI ^. Logo, aplicando a regra I→, obtemos Γ ⊢LI ¬¬α.
Daqui, e pelo fato de ¬¬α→α,¬¬α ⊢LI α, então por corte obtemos ⊝α, Γ ⊢LI α.
Ü Como no Teorema 10, observando o fato de ⊝α =def ¬¬α→α e de ⊢LC
¬¬α→α. ■

Exemplos 13: Considere os seguintes exemplos:


¬p→¬q, q⊬LI p. Porém, ¬¬p→p, ¬p→¬q, q⊢LI p.
¬(p→q) ⊬LI pÙ¬q, mas ¬¬(pÙ¬q)→(pÙ¬q), ¬(p→q) ⊢LI pÙ ¬q.
¬p→q⊬LI pÚq, mas ¬¬(pÚq)→(pÚq), ¬p→q⊢LI pÚq.
182 revista brasileira de filosofia – RBF 239

¬(pÙ¬q) ⊬LI p→q, mas ¬¬(p→q)→(p→q), ¬(pÙ¬q) ⊢LI p→ q.

Esses dois Teoremas DATs —DAT1 LC-LI e DAT2 LC-LI— mostram


que toda dedução clássica Γ ⊩ α, com ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^ÙÚ→ ) pode ser recu-
perada em LI se a transformarmos em uma dedução na qual a conclusão
da inferência for acrescentada como única premissa determinada, isto é, se
acrescentarmos – unicamente – ⊘α ou ⊝α. Assim, temos que toda dedução
clássica Π da forma
Γ
Π
α

pode ser transformada em uma dedução intuicionista Π′ da forma

ΓÈ{αÚ¬α} ΓÈ{¬¬α→α}
Π′ ou Π′
α α

Apesar da similitude entre os teoremas Teoremas DATs 10 e 12, a


seguir mostraremos uma diferença importante entre eles: o DAT 10, a dife-
rença do Teorema DAT 12 pode ser, em um certo sentido, simplificado.

Definição 14: Dizemos que um conectivo unário ⊡ é propagado na


assinatura Σ do sistema L, sse ⊡α1,…,⊡αn ⊩ ⊡®(α1,…,αn), para todo conectivo
n-ário ®ÎΣ da linguagem de L.

Explicaremos a diferença entre esses DATs em termos da (não)propa-


gação dos conectivos de determinação ⊘ e ⊝ em LI.

Proposição 15: O conectivo ⊘ é propagado em LI na assinatura Σ ^¬ÙÚ→ :


⊧LI ⊘⊥,
⊘α⊧LI ⊘¬α,
⊘α, ⊘β⊧LI ⊘(αÙβ),
⊘α, ⊘β⊧LI ⊘(αÚβ),
⊘α, ⊘β⊧LI ⊘(α→β).
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 183

Demonstração: (Cf. Corbalan, 2012: 183s) ■

Como notamos, o Teorema 10 garante que as inferências clássicas


da forma Γ ⊩ α perdidas em LI podem ser recuperadas se acrescentarmos
a conclusão da inferência como única premissa ⊘α determinada. Como
demonstramos que o conectivo de determinação ⊘ usado em tal DAT é
propagado em LI na assinatura Σ ^¬ÙÚ→ , então podemos apresentar uma versão
simplificada do Teorema DAT 10. Nesta nova versão propomos recuperar
as inferências clássicas perdidas em LI acrescentando apenas premissas
determinadas atômicas.

Teorema 16: Seja var(α) = {p1,…,pn} o conjunto de variáveis proposi-


cionais de α. Então:
Γ ⊢LC α sse ⊘p1,…,⊘pn, Γ ⊢LI α.

Demonstração: Considere αÎFor(Σ ^¬ÙÚ→ ) tal que var(α) = {p1,…,pn}.


Pela Proposição 15, temos que ⊘p1,…,⊘pn⊧LI ⊘α. Pela completude da
semântica de modelos, temos que ⊘p1,…,⊘pn ⊢LI ⊘α. Pelo Teorema 10
temos que ⊘α, Γ ⊢LI α sse Γ⊢LC α. Daqui temos que ⊘p1,…,⊘pn, Γ ⊢LI α sse Γ
⊢LC α. ■

Exemplo 17: Considere os seguintes exemplos e confronte-os com 1 –


4 do Exemplo 11:
⊬LI ¬¬p→p, mas ⊘p ⊢LI ¬¬p→p,
⊬LI pÚ(p→q), mas ⊘p ⊢LI pÚ(p→q),
¬p→q⊬LI pÚq, mas ⊘p, ¬p→q ⊢LI pÚq,
¬(¬pÚ¬q) ⊬LI pÙq, mas ⊘p, ⊘q, ¬(¬pÚ¬q) ⊢LI pÙq.

Este novo DAT 16 pode ser considerado como uma versão simplifi-
cada do DAT 10, porquanto a recuperação em LI das inferências clássicas é
possível pelo acréscimo de premissas atômicas e, portanto, com estrutura de
menor complexidade que a premissa determinada do DAT 10. Com efeito, o
novo DAT 16 permite afirmar que toda dedução clássica Π de α a partir de
Γ, com ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^¬ÙÚ→ ),
Γ
Π
184 revista brasileira de filosofia – RBF 239

pode ser transformada em uma dedução intuicionista Π’ de α a partir de


ΓÈ{p 1 Ú¬p 1 ,…,p n Ú¬p n }, desde que var(α) = {p1,…,pn}

ΓÈ{p 1 Ú¬p 1 ,…,p n Ú¬p n }


Π’
α

No entanto, nesta nova versão DAT 16, a quantidade de premissas a


serem acrescentadas para garantir a recuperação das inferências clássicas
pode ser maior que no Teorema 10. Com efeito, a versão 10 do DAT entre
LC e LI, garante que é suficiente acrescentarmos apenas uma premissa
determinada; se utilizamos a versão 16, não temos como garantir que apenas
uma premissa deva ser acrescentada.
A situação do DAT 12 é diferente à do DAT 10, pois em LI o conec-
tivo de determinação ⊝ não é, em geral, propagado na assinatura Σ ^¬ÙÚ→ , mas
apenas em Σ ^¬Ù→ .

Proposição 18: Em LI temos:


⊧LI ⊝⊥,
⊝α ⊧LI ⊝¬α,
⊝α, ⊝β ⊧LI ⊝(αÙβ),
⊝α, ⊝β ⊭LI⊝(αÚβ),
⊝α, ⊝β ⊧LI ⊝(α→β).
Demonstração: (Cf. Corbalan, 2012: 187s) ■

Pelo fato da inferência clássica ¬¬p→p ⊩pÚ¬p não ser válida em LI, o
conectivo de determinação ⊝ não é propagado para o conectivo da disjunção
em LI. Embora não tenhamos a propagação do conectivo de determinação
⊝ na assinatura de LI, os seguintes exemplos sugerem que poderíamos obter
uma versão simplificada do Teorema 12, na qual apenas premissas atômicas
determinadas sejam acrescentadas para recuperarmos as inferências de LC
perdidas.
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 185

Exemplo 19: Considere os seguintes exemplos:


Em 13 dissemos que ⊝(p→q), ¬(pÙ¬q) ⊢LI p→q. Mas também temos que
⊝q, ¬(pÙ¬q) ⊢LI p→q.
Em 13 dissemos que ⊝(pÙ¬q), ¬(p→q) ⊢LI pÙ¬q. Mas também temos
que ⊝p, ¬(p→q) ⊢LI pÙ¬q.

2.1.1 Propagação e restauração

Como notamos, o Teorema DAT 12 não pode ser simplificado tal


como o Teorema DAT 10, pois a inferência ¬¬p→p⊩pÚ¬p não é válida em
LI e, portanto, em LI o conectivo de determinação ⊝ não é propagado para o
conectivo da disjunção. Desse modo, embora pÚ¬p seja um teorema clássico
perdido em LI, não temos como recuperá-lo acrescentando apenas ⊝p como
premissa de restauração.
No entanto, como mostramos na Proposição 18 a propagação do conec-
tivo de determinação ⊝ falha, apenas, para a disjunção. Desse modo, consi-
derando o fato do conectivo ⊝ ser propagado na assinatura Σ ^Ù→ , podemos
propor uma versão simplificada do Teorema DAT 12 para o fragmento de
LI escrito em tal assinatura reduzida. Assim, uma versão simplificada do
Teorema DAT 12 entre LC e LI, que garanta que é suficiente acrescentar
variáveis proposicionais determinadas da forma ⊝p para recuperarmos em
LI as inferências clássicas perdidas, pode ser demonstrado se restringirmos
a assinatura de LI, e consequentemente de LC, a Σ ^Ù→ . Para isso, a seguir
apresentamos, em primeiro lugar, uma versão do DAT 12 na assinatura Σ ^Ù→ .

Lema 20: Seja LC’ o fragmento da lógica clássica escrito na assinatura


Σ ^Ù→ e seja LI’ o fragmento da lógica intuicionista escrito nessa assinatura.
Para todo ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^Ù→ ). Então:
Γ ⊢LC’ α sse ⊝α, Γ ⊢LI’ α.
Demonstração: Similar à demonstração do Teorema 12, observando
que as regras da disjunção não foram utilizadas naquela demonstração. ■

Teorema 21: Seja ΓÈ{α}ÍFor(Σ ^Ù→ ). Seja var(α) = {p1,…,pn} o


conjunto das variáveis proposicionais de α. Então:
Γ ⊢ LC’ α sse ⊝p1,…,⊝pn, Γ ⊢ LI’ α.
186 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Demonstração: Similar à demonstração do Teorema 16, levando em


consideração o Lema 20 e a Proposição 18, cláusulas 1, 3 e 5. ■

3. Teorema de Ajuste de Derivabilidade e Normalização

Considerando essa nova versão simplificada do Teorema 12, cuja


demonstração é baseada na propagação do conectivo ⊝ em LI na assinatura
Σ ^Ù→ propomos, a seguir, uma nova demonstração do Teorema 4 proposto
por Prawitz. Para maior clareza, lembramos a formulação daquele teorema.

Teorema 4: Seja LC’ o sistema clássico escrito na assinatura Σ ^Ù→ . Se


Γ ⊢ LC’ α, então existe uma dedução em LC’ de α a partir de Γ na qual a
consequência de toda aplicação da regra ^c é atômica (cf. Prawitz, 1965:
39).

Demonstração: Seja ΠC’ uma dedução clássica de α a partir de Γ


em LC’. Se a regra ^c não foi utilizada em ΠC’ ou ^c foi utilizada e tem
conclusão atômica, então o teorema vale trivialmente. Se a regra ^c foi
utilizada em ΠC’ – e não pode ser substituída por aplicações das regras intui-
cionistas – então Γ ⊬LI’ α. Porém, pelo DAT 21, como Γ ⊬LI’ α, existe uma
dedução intuicionista ΣI de α a partir de ΓÈ{⊝p1,…,⊝pn}, em que {p1,…,pn} =
var(α). Em consequência, temos que toda aplicação da regra clássica ^c em
ΠC’ pode ser substituída por aplicações de regras intuicionistas, se acrescen-
tarmos as fórmulas ⊝p1,…,⊝pn como premissas da dedução. Assim, pelo
DAT 21, temos uma dedução de α a partir de ΓÈ{⊝p1,…,⊝pn} na qual a regra
^c não é utilizada, isto é, ⊝p1,…,⊝pn, Γ ⊢LI’ α. Daqui obtemos que existe uma
dedução em LC’ de α a partir de ΓÈ{⊝p1,…,⊝pn} na qual a regra ^c não é
utilizada. Para cada i, considere a seguinte dedução: ¬¬pi, ¬pi ⊢LC’ ^. Daqui,
aplicando a regra de absurdo clássico obtemos ¬¬pi ⊢LC’ pi e, daqui, por apli-
cação da regra I→, obtemos ⊢LC’ ¬¬pi→pi. Como ⊝pi =def ¬¬pi→pi, construímos
uma dedução de ⊝pi para cada variável piÎvar(α) e cada instância de ⊝pi
que é usada como premissa de uma inferência em ΣI . Assim, cada dedução
de ⊝pi, para cada variável piÎvar(α) e cada instância de ⊝pi que é usada
como premissa de uma inferência, é uma dedução clássica e tem conclusão
atômica. Aplicando a regra do corte às deduções ⊢LC’ ⊝p1,…, ⊢LC’ ⊝pn e
⊝p1,…,⊝pn, Γ ⊢LC’ α obtemos uma dedução clássica de α a partir de Γ na qual
toda aplicação da regra ^c tem conclusão atômica. Em consequência, se Γ
⊢LC’ α, então existe uma dedução clássica em LC’ de α a partir de Γ na qual a
consequência de toda aplicação da regra ^c é atômica. ■
seção 2 – lógica e filosofia da ciência 187

4. Considerações Finais

Neste artigo usamos a ideia das LFIs de definir na linguagem conectivos


que façam a tarefa de recuperar o raciocínio clássico no ambiente não-clás-
sico. Em particular, definimos dois conectivos de determinação no ambiente
da lógica intuicionista. Por meio dos teoremas DATs mostramos diferentes
maneiras de recuperar as inferências da lógica clássica. Mostramos que é
possível recuperar versões intuicionistas das inferências clássicas perdidas
no ambiente intuicionista acrescentando, tanto premissas atômicas, quanto
premissas complexas. Como resultado final, mostramos que, se assumimos
o nosso teorema DAT 21, podemos demonstrar o Teorema 4, proposto por
Prawitz. E, por outro lado, mostramos por que esse teorema de Prawitz não
pode ser demonstrado na assinatura de LC e pode apenas ser demonstrado
na assinatura reduzida LC’.

Agradecimentos

Para a elaboração deste artigo, os autores tiveram o apoio financeiro


da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp),
Projeto Temático LogCons 2010/51038-0. O primeiro autor recebeu apoio
financeiro do CNPq através de uma bolsa de Produtividade em Pesquisa. A
segunda autora recebeu apoio financeiro da Capes através de uma bolsa de
doutorado.

Bibliografia
Bastos Massi, C. D., 1990: Provas de normalização para a Lógica Clássica (Tese).
Campinas: IFCH-Universidade Estadual de Campinas.
Corbalan, M. I., 2012: Conectivos de restauração local. (Dissertação). Campinas:
IFCH-Universidade Estadual de Campinas.
Gentzen, G., 1934: «Untersuchungen über das logische Schließen I». Mathematische
Zeitschrift. 39: 176-210 (Tradução em inglês em Szasbo, M. E. (Editor). The
collected papers of Gerhard Gentzen. Amsterdam: North Holland Publishing
Company, 1969).
Marcos. J., 2005: «Modality and Paraconsistency». Em Bilkova, M. e L. Behounek.
(editores). The Logica Yearbook 2004. Proceedings of the XVIII International
Symposium. Hejnice: Institute of Philosophy of the Academy of Sciences of the
Czech Republic, p. 213-222.
Prawitz, D., 1965: Natural Deduction. A Proof–Theoretical Study. Stockholm:
Almquist & Wiksell.
Seção 3

Diálogos
La tópica jurídica:
un diálogo entre dos maestros

Milagros Otero
Professora Titular de Filosofia do Direito na Universidade
de Santiago de Compostela.

Resumo: O artigo apresenta a tópica jurídica no pensamento de Tercio


Sampaio Ferraz Junior e de Francisco Puy. Em seguida promove o diálogo
entre essas duas concepções, identificando seus principais pontos de
semelhança e de diferença.
Palavras-chave: Tópica – Tópica Jurídica – Argumentação.

Abstract: The paper presents the conception of legal topics in the


thought of Tercio Sampaio Ferraz Junior and in the thought of Francisco
Puy stressing its main different and points of convergence.
Keywords: Topics – Legal Topics – Argumentation

«Con mis maestros he aprendido mucho;


con mis colegas, más; con mis alumnos todavía más.» –
Proverbio hindú

1. Introducción

Vivimos tiempos de grandes cambios. Los modelos éticos, jurídicos,


económicos y hasta sociales se están modificando a pasos agigantados. Lo
que ayer se consideraba indubitable hoy genera duda y necesidad de cambio.
192 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Los seres humanos antes preocupados por instalarse en la certeza,1 tienen que
acostumbrarse ahora y con rapidez, a la realidad de la mudanza y del cambio
permanente. El mundo camina deprisa y parece querer arrollar a quienes no
sean capaces de seguir la carrera de velocidad que nos viene impuesta.
Frente a esta realidad quedan reductos, remansos de paz y de diálogo.
Siguen existiendo personas cuya vida se ha dedicado a aprender para
enseñar. Quedan maestros que quieren enseñar, aunque para encontrarlos
sea preciso buscarlos con lupa de muchos aumentos; quedan también discí-
pulos dispuestos a aprender, aunque para localizarlos haya que utilizar el
mismo instrumento de aumento; y desde luego, quedan muchos alumnos que
necesitan ser enseñados, y éstos sí que se ven a simple vista. La cadena de
conocimiento no corre peligro de ruptura, al menos mientras haya personas
dispuestas a enseñar y otras a aprender.2 Esa cadena es en realidad un
engranaje sin solución de continuidad porque todo el que enseña a su vez
aprende de otros e incluso del mismo al que enseña. Simplemente hay que
estar atento a esta realidad para saber aprovecharla. Para poder aprender es
preciso tener una disposición espiritual determinada que induzca a buscar
y aprovechar las enseñanzas de otros. Es preciso tener la mente abierta al
diálogo3 al intercambio de conocimientos. Sólo así avanza el complicado
proceso de enseñanza-aprendizaje.
En el ámbito intelectual, para que el diálogo sea productivo, quien habla
debe poder acreditar conocimientos suficientes sobre aquello en relación con
lo que se manifiesta. Debe tener cualificación suficiente para cumplir esta
función y además voluntad de desarrollarla. Porque se puede hablar por el
simple placer de comunicar o de reflexionar sobre cualquier tema, como
hablan los conocidos o los amigos en una charla coloquial. Pero para que
el diálogo se convierta en una relación enseñanza-aprendizaje es impres-

1
La certeza ha sido calificada por algunos autores como mito. Entre ellos se encuentra
Manuel Calvo García que en su obra (Calvo García, 1994: 12) explicaba que «el fundamento
del mito de la certeza en el derecho y el formalismo jurídico parece descansar más bien en
razones ideológicas que en las exigencias funcionales derivadas de los procesos reales de
aplicación del derecho».
2
No existen muchos trabajos sobre la forma de enseñar a trabajar en Derecho. Los profesores
suelen dar más importancia al trabajo teórico que al práctico lo cual constituye un error a mi
juicio. Los nuevos planes de estudio tratan de solucionar este problema aunque todavía no han
probado su éxito (Villoro Toranzo, s/a).
3
Como dice Villey, «nada había que fuera más apropiado a las necesidades de los juriscon-
sultos que el método del «diálogo» en el sentido de Aristóteles». «El derecho apareció primero
bajo las especies del litigio; sobre el estrado judicial en donde sucesivamente eran escuchadas
una y otra parte, en el tribunal del Areópoago. Audiatur el altera pars, fue la condición misma
de toda justicia. La cuna del derecho fue la Retórica. Pero deliberadamente hemos preferido
la palabra Dialéctica, que está mas cerca de las gestiones de los jurisconsultos». En Villey,
1981: 81.
seção 3 – diálogos 193

cindible poder acreditar conocimiento, oportunidad, eficiencia y eficacia. Es


necesario saber preguntar, saber escuchar y saber pensar. Y ninguna de estas
operaciones es fácil.4
Para saber preguntar es preciso formular preguntas bien hechas,
además de conocer el momento adecuado para hacerlas, saber elegir un buen
destinatario y la oportunidad de las mismas. En el ámbito de la experiencia
jurídica,5 es buena la pregunta expuesta de forma sucinta y clara, formulada
a quien puede saber contestarla y cuyo contenido se refiera a un problema
real de atribución de derechos (cosas) a personas, aplicando el principio de la
justicia. Sabrá preguntar únicamente aquella persona que tenga la capacidad
suficiente para imaginar y trasladar a su oyente una buena pregunta.6
Realizada esta operación inicial de preguntar, es preciso saber escuchar
la respuesta.7 Decía Plutarco que para saber hablar es preciso saber escuchar.
Completaba esta idea siglos después Goethe recordando que si bien hablar
es una necesidad, escuchar es un arte. A pesar de ello lo cierto es que saber
escuchar se ha convertido en una virtud poco frecuente.
Por último para que la comunicación final proporcione resultados obje-
tivamente valiosos es preciso saber pensar.8 Es decir, saber reflexionar sobre
la adecuación entre lo preguntado y lo respondido a fin de seleccionar en este
proceso aquello que deba ser incluido dentro del acerbo intelectual de cada
cual para poder a su vez trasladarlo a otros, completando así el proceso de
aprendizaje-enseñanza.
Bajo estas premisas la pregunta a responder en este momento es la
siguiente: ¿es enriquecedor el diálogo sobre Tópica Jurídica entre dos maes-
tros que propongo en este trabajo? Creo que sí. Dedicaré el estudio que ahora
se inicia a explicar mi valoración.

4
De esta dificultad habló Cicerón aportando algunos elementos a considerar para hacer
posible el diálogo entre los seres humanos. El gran orador era consciente de la dificultad de
saber hablar pero también, y aún quizá más de saber escuchar. De ahí su recomendación:
«pongamos buen cuidado en que nuestros interlocutores adviertan que los respetamos»
(Cícero, 1989: 70).
5
Hago esta apreciación porque en el ámbito filosófico por ejemplo la reflexión sobre
cualquier tema puede tener una finalidad puramente especulativa, que se traduce en el gusto
por elucubrar. En el ámbito jurídico por el contrario toda elucubración tiene una finalidad
práctica que se traduce en la solución normalmente conflictiva del reparto justo de las cosas y
de los bienes, de por sí escasos, entre quienes creen tener derecho a recibirlas.
6
Para adquirir esta capacidad vid. Calonje, 2007: 84 ss.
7
Como dice un célebre proverbio chino: El Gran Arquitecto del Universo hizo al hombre
con dos orejas y una boca; para que escuche el doble de lo que habla. Lástima que esta
enseñanza sea tan poco practicada.
8
Decía Confucio que: aprender sin pensar es inútil, pensar sin aprender, peligroso. No sólo
peligroso creo yo, sino además un desperdicio.
194 revista brasileira de filosofia – RBF 239

2. UN DIÁLOGO SOBRE TÓPICA JURÍDICA

Afirmo que no sólo es conducente sino además interesante este diálogo


basándome en razones tanto de fondo como de forma. En cuanto al fondo,
entiendo que es interesante el diálogo que propongo en este trabajo porque
el tema de que se ocupa es de máxima actualidad en el campo jurídico.9 La
Tópica Jurídica, se refiere a una cuestión de argumentación jurídica y por
tanto a la forma de hallar mejores vías para encontrar y comunicar razones
que convenzan al destinatario,10 sobre la pertinencia del mandato que le
afecta y está recogido en cualquier forma de manifestación de lo jurídico;
sea ésta una norma (poder legislativo); una orden de cualquier tipo (poder
ejecutivo) o una sentencia (poder judicial), por referirnos a las maneras más
usuales a través de las cuales se manifiestan los tres poderes del Estado.
Sabido es que una de las características del Derecho es su carácter
coactivo que dirían algunos, o su posibilidad de ser impuesto a través de la
fuerza en caso de incumplimiento, que diríamos otros. No obstante lo dicho
la experiencia cotidiana muestra que es mejor convencer que imponer, que
es mejor el uso de la persuasión que el del peso de la ley y que es mejor en
suma buscar el acuerdo que imponer el criterio. Dicho en otras palabras; que
hoy más que nunca es preciso usar de los tópicos o lugares comunes que
permitan llegar a acuerdos razonables y aceptados por todos, evitando el
desgaste que produce la continua lucha por la imposición coactiva del dere-
cho.11 La Tópica Jurídica proporciona, como tendré oportunidad de mostrar
a lo largo de este trabajo, los elementos precisos para mejorar la argumen-
tación jurídica general convirtiéndose de esta manera en un interesante y
actual problema relacionado con la argumentación jurídica. La pertinencia y
aún más la actualidad del tema objeto estudio resulta patente.12

9
La argumentación es «un fenómeno social (que) tiene un objeto práctico, como es el de
buscar orientar una determinada conducta en el otro, o sea intentar generar una actividad, un
cierto obrar». El que argumenta «no pretende únicamente lograr la adhesión de otro individuo
a la tesis que es sostenida, sino que su instrumento es la apelación a la razón del otro. El que
argumenta lo hace a partir de la utilización de elementos racionales a los efectos de lograr
por ellos la adhesión; aquel que dice argumentar con otro elemento distinto de la razón, no
argumenta» (Andruet, 2003: 107).
10
Siguiendo la opinión de Ote, Alexy opina que por «Tópica pueden entenderse tres cosas
distintas: 1. Una técnica de búsqueda de premisas. 2. Una teoría sobre la naturaleza de las
premisas. 3. Una teoría del uso de estas premisas en la fundamentación jurídica» (Alexy,
2008: 42).
11
Una de las funciones de la Tópica es la de proveernos de medios (se refiere a los tópoi) para
la discusión. ¿De que se trata?, pregunta Villey. Y el mismo responde: Se trata de perseguir
la adecuación de las palabras a las cosas. De buscar un mutuo acuerdo. Y ése sólo se logra
conociendo la cosa «a través de la diversidad de formulas contradictorias» (Villey, 1981: 77).
12
Pese a lo dicho hay autores como Alexy, que advierten que «la teoría esbozada por la tópica
sobre el uso de premisas en la fundamentación de los juicios singulares resulta problemática».
seção 3 – diálogos 195

Respondida la cuestión de fondo, resta aún contestar al interrogante


sobre la forma: ¿es útil estudiar la tópica jurídica a través del diálogo entre
maestros? A mi juicio no sólo útil, sino además necesario. En efecto, otra de
las consecuencias del mundo acelerado actual en el que vivimos es que el
exceso de información nos ahoga y por lo mismo hemos perdido el interés
por escuchar para reflexionar y así poder entender y aprender. Los seres
humanos no aprendemos de las máquinas, porque éstas sólo proporcionan
datos... No pueden reflexionar sobre su contenido, pertinencia, oportunidad
o utilidad. El acopio de datos nunca ha sido sinónimo de auténtico cono-
cimiento. Muy al contrario, para obtener un conocimiento completo sobre
algo es preciso reflexionar, seleccionar, cuestionar... Las personas que a lo
largo de la historia han hecho mejor esta labor han sido los maestros, esto
es, los mejores entre los doctores, que han adquirido su cualidad de maestros
precisamente como resultado de su saber socialmente reconocido.13
Los dos juristas cuyas opiniones voy a contrastar pueden ser sin duda
calificados como maestros. Iniciaré a partir de ahora un diálogo aunque solo
sea escrito con el Dr. Puy y el Dr. Sampaio. Ambos catedráticos eméritos
de las Universidades de Santiago de Compostela (España) el primero, y de
la Universidad de São Paulo (Brasil), el segundo. La condición de maestros
de ambos juristas no precisa ser probada por ser de público conocimiento y
resultar avalada por el número de obras y discípulos que ambos acreditan,
además de la fama internacional que a ambos les precede.
Respondidas las preguntas sobre la forma y el fondo del estudio que
me propongo, creo haber mostrado la pertinencia del trabajo que ahora se
inicia. No obstante lo dicho, para quienes duden aún del interés de abordar
un estudio sobre Tópica Jurídica, quiero llamar la atención sobre el hecho
de que he dedicado las primeras páginas de mi trabajo precisamente a hacer
Tópica Jurídica. Es decir a argumentar tratando de persuadir a mis posibles
lectores de la importancia y pertinencia del tema objeto de estudio. Ese ha
sido el primer paso, pero para completar el proceso debo continuar ahora
mostrando las razones por las que defiendo mi posición contestando, a ser
posible, a algunas de las objeciones que me podrían ser realizadas en su
contra, hasta alcanzar una conclusión en la que se recoja el trabajo hecho

Y lo es porque «la regla aquí considerada (la tópica) de considerar todos los puntos de vista
no dice nada sobre qué punto de vista debe prevalecer y ni siquiera determina cuáles son los
puntos de vista a considerar». Por tanto, y siguiendo con la opinión de este autor, «habría
que exigir por lo menos, que en tales discusiones se respeten determinadas reglas que las
caractericen como racionales» (Alexy, 2008: 42).
13
Es inútil pensar en la enseñanza como una ocupación comercial, bancaria o de seguros;
no se puede estimular las mentes jóvenes y despiertas por haber sólo aprendido un conjunto
determinado de reglas y datos... Los profesores deben ver, pensar y comprender más que la
persona corriente de la sociedad en la que actúan (Highet, 1982: 37).
196 revista brasileira de filosofia – RBF 239

tratando de presentar mi posición no sólo como posible sino además como


plausible y por lo mismo comúnmente aceptada14 y conveniente para aque-
llos a quienes afecta.15
Planteada la cuestión expondré a continuación las posiciones que
sostienen cada uno de estos autores sobre la Tópica Jurídica. A continua-
ción trataré de ver los elementos en que coinciden y en los que discrepan.
Y trataré de obtener por último, un resultado final, fruto de la investigación
anterior, que funcione como síntesis práctica.
El método de trabajo que utilizaré será el dialéctico,16 analizando las
posiciones de cada uno de los autores como tesis y antítesis17 y tratando de
obtener en función de ambas una síntesis18 que no sólo permita compaginar si
ello es posible las posiciones de ambos maestros, sino que aconseje además
el uso de la Tópica Jurídica al resto de operadores Jurídicos.

3. La tópica jurídica del dr. T. Sampaio Ferraz Jr.

El Dr. Sampaio Ferraz Jr. entiende la Tópica Jurídica como un método


de argumentación.19 De ahí que su aproximación a la tópica se produzca por

14
Sobre la estructura práctica del discurso vid. Puy Muñoz; Otero Parga, 2006: 19.
15
«La argumentación es un proceso en el cual se emplea el discurso razonado para defender
o justificar una toma de posición acerca de una cuestión opinable, y así lograr alguno de estos
tres objetivos: persuadir a otro de aquello que se afirma o se niega; reducirlo al silencio, u
obtener que el auditorio no lo tome en serio» (Bandieri, 2004: 19).
16
Me interesa la utilización de este método aplicándolo en el sentido que establece Tercio
Sampaio cuando habla de carácter de la dialéctica de «confrontar opiniones, de discutirlas,
instaurando un diálogo entre ellas» (Sampaio Ferraz, 2009: 178). Opinión que completa
refiriéndose a Aristóteles, pero con una afirmación que creo puede hacerse extensiva a
cualquier otro autor. «Na procura da verdade. O método dialéctico e fundamental» (Sampaio
Ferraz, 2009: 180).
17
Como recuerda (Perelman, 1988: 20), «los razonamientos dialécticos que Aristóteles
examinó en Los Tópicos, en la Retórica y en la Refutaciones de los Sofistas, no se dirigen a
establecer demostraciones científicas, sino a guiar deliberaciones y controversias. Tienen por
objeto los medios de persuadir y de convencer por medio del discurso, de criticar las tesis
de los adversarios y de defender y justificar las propias con ayuda de los argumentos más o
menos sólidos».
18
Como dice Villey, «al menos hasta la aparición del sistematismo moderno (que aplica
a la filosofía un método geométrico) el método tradicional de la filosofía era el diálogo, la
dialéctica, en el sentido clásico de la palabra: arte de la discusión bien organizada». «La
dialéctica fue al principio el método filosófico por excelencia, en las escuelas griegas y en las
escolásticas... sólidas razones hacen suponer que lo es todavía...» (Villey, 1979: 58).
19
En realidad dice Sampaio,»el nombre tópica viene de Aristóteles, pero el asunto ya
existía, y era un patrimonio de la cultura mediterránea antes de él, que apareció en diferentes
ejercicios de la retórica, con el nombre de euresis, inventio, ars inveniendi etc. Como tal la
tópica prevaleció durante la Edad Media por medio de las llamadas artes liberales, como parte
esencial de las tres primeras, que constituían el trivium (Gramática, Retórica y Dialéctica),
seção 3 – diálogos 197

la vía argumentativa.20 Su pensamiento parte de la base de que «argumentar


en oposición a describir, relatar etc., se caracteriza por la pretensión de
validez persuasiva».21 Con esta noción de argumentación realiza el profesor
brasileño su inmediata aproximación desde la argumentación general a la
argumentación tópica.
El Dr. Sampaio quizá influido por su faceta de práctico del Derecho, no
considera la argumentación en su sentido estricto, como técnica de razonar
sino que sobrepasando esa primera fase, planeando en realidad sobre ella sin
apenas tocarla, desciende directamente sobre el aspecto práctico. Cuando
un jurista razona, esto es cuando argumenta, lo hace siempre con afán de
persuadir a otro de que lo que dice es correcto, que además le conviene por
ser la mejor interpretación posible del asunto objeto de disputa, y consecuen-
temente quien lo escucha no puede hacer otra cosa, impulsado por la propia
razón, que actuar de acuerdo con lo que propone quien argumenta.22
Esa es, desde luego, una visión de la argumentación jurídica que nos
introduce de lleno en la tópica jurídica. Pues argumentar según el Diccio-
nario de la Real Academia de la Lengua Española es simplemente argüir
o sacar en claro, descubrir o probar, alegar, discutir, disputar o impugnar
una opinión ajena. No aparece en esta definición la faceta de convencer o
persuadir. No obstante el significado aludido, piensa el Dr. Sampaio, ¿para
qué otra cosa razona, discute, arguye o expone un argumento un jurista si no
es para persuadir?23
Sentada esta base ab initio, D. Tercio continua adentrándose en el
mundo de lo jurídico. Ya no le interesa únicamente discutir sobre la noción
de argumentar en abstracto, sino que quiere referirse directamente a la argu-

perdiendo significado posteriormente, con la institucionalización y supremacía del more


geométrico en el conocimiento moderno» (Sampaio Ferraz, 2009b: 306).
20
Sampaio lo dice de forma clara con estas palabras: «cuando se habla, hoy, de tópica, se
piensa en una técnica de pensamiento que se orienta a problemas. Se trata de un estilo de
pensar y no propiamente de un método» (Sampaio Ferraz, 2009b: 307).
21
Sampaio Ferraz, 2011: 403.
22
Dice Sampaio comentando la doctrina aristotélica, que los problemas prácticos son
problemas dialécticos; y a su vez la dialéctica es el arte de las contradicciones que tiene por
utilidad el ejercicio escolar de la palabra, ofreciendo un método eficiente de argumentación,
enseñándonos a discutir y finalmente representando la posibilidad de llegar a los primeros
principios de la ciencia, partiendo de premisas probables que representan la opinión de la
mayoría de los sabios (Sampaio Ferraz, 2009a: 177-178). La traducción del texto señalado es
mía.
23
Afirma Sampaio que «de modo general, se pude decir, pues, que la tópica vinculada a
la jurisprudencia hizo de ésta menos un método y más un estilo de pensar, que decía más
respecto a las aptitudes y habilidades, y que se reproducía por imitación e invención, a medida
que constituía para los juristas una actitud cultural de alto grado de fiabilidad para sus tareas
prácticas» (Sampaio Ferraz, 2009a: 306).
198 revista brasileira de filosofia – RBF 239

mentación jurídica. Dice que «argumentar jurídicamente significa tomar el


Derecho como imposición normativa de un orden de distribución, conforme
a principios de justicia». Analicemos la tesis que defiende esta afirmación. Si
ponemos en relación los conceptos de argumentación y argumentación jurí-
dica hasta aquí manejados, creo que es posible entender que para el ilustre
jurista brasileño argumentar jurídicamente es proporcionar razones que
permitan a quien lo solicita obtener un derecho concreto de acuerdo con la
norma jurídica general. Dicho de otro modo la argumentación jurídica es el
vehículo que permite a un particular obtener su derecho concreto, razonando
su pretensión a partir de la norma general. ¿Sin límites? No, se apresura
a matizar el autor. Esa operación debe hacerse conforme a principios de
justicia.
Y ¿qué papel se reserva entones a la persuasión que está en la base de
toda argumentación y sin embargo no se reitera en la definición de argumen-
tación jurídica? El papel es de gran importancia sin duda y profundo calado.
Se concreta en que cada uno de los que reclaman cree tener derecho a la
misma cosa, de ahí el conflicto, y además de acuerdo con las mismas normas
y con el mismo principio de justicia. Y como no suele ser posible que esa
pretensión conduzca a resultados aceptados como justos por las dos partes,
la persuasión de una de ellas será definitiva a la hora de conseguir de facto el
derecho que solicita y que entiende que le corresponde de forma individual,
de acuerdo con el orden de distribución que determina la norma jurídica.
La persuasión se convierte así en el factor que desequilibrará la balanza
hacia la pretensión de una de las partes. Quizá por eso el Dr. Sampaio no
duda en caracterizar al proceso argumentativo con la «pretensión de validez
persuasiva».
A esta interpretación ayuda también la referencia que hace a los princi-
pios de justicia como moderadores de todo el proceso. No se refiere el autor a
un principio único de justicia sino que utiliza el vocablo en plural indicando
de ese modo que al no existir una única respuesta posible en ningún conflicto
jurídico, y aún sin cometer injusticia, no existe una única valoración de la
justicia ni por supuesto una única manera de alcanzarla. Situación que de
nuevo nos confirma en el concepto inicialmente dado de argumentación en el
cual aparece la persuasión como elemento catalizador del proceso.
El nexo de unión entre argumentación jurídica y argumentación tópica
queda así establecido para este autor. No obstante lo dicho, esta afirmación
precisa de ulteriores aclaraciones, pues él entiende que establecida la rela-
ción existen dos posibilidades tipológicas de desarrollo de su concepción.
Las denomina tópica jurídica formal y tópica jurídica material.24

24
Sampaio Ferraz, 2011: 404 y ss.
seção 3 – diálogos 199

La tópica jurídica formal opera desde lo genérico a lo particular. Trabaja


utilizando la técnica de subsunción, primando el principio de igualdad en su
aplicación. La justicia se convierte en «justeza» como consecuencia de la
aplicación de los principios de igualdad ante la ley y de generalidad. El prin-
cipio rector de la tópica jurídica formal es la racionalidad. Y los principales
argumentos tipo que utiliza son: ab auctoritate, ad hominen, a fortiori, a
maiori ad minus, a minori ad maius y ad exempla.25
Para el Dr. Sampaio el resultado de la aplicación del método tópico
formal conduce en todo caso a hacer «lo correcto» satisfaciendo con ello las
exigencias de la justicia abstracta. No obstante, y como este jurista advierte
de inmediato, «lo correcto» no siempre satisface los intereses de la justicia
de la mejor manera posible ya que en algunos casos se opone a lo «bueno» o
«éticamente justo». Surge así la tópica jurídica material que actúa siguiendo
criterios diferentes. En su forma de funcionamiento opera de lo universal
a lo específico. Trabaja utilizando la técnica de ponderación, primando el
principio de elección en cada caso frente al de igualdad ciega en todos. La
justicia se convierte en el valor supremo del Derecho y se enfoca como razo-
nabilidad, como la búsqueda de lo justo en cada caso concreto. Los princi-
pales argumentos tipo que utiliza son: ab absurdo, a contrario sensu, ad rem,
a pari, a posteriori y el silogístico.26
El resultado de la aplicación del método tópico material conduce a
hacer lo bueno mediante la satisfacción de los fines previamente establecidos
a tal efecto.
Como puede observarse, la utilización de un tipo de Tópica argumen-
tativa o de otro puede conducir a resultados distintos, según se persiga la
justicia como igualdad estricta, dar a todos por igual, o como diferencia, dar
a cada uno según merezca, según necesite, o según acredite...
La concepción doble que desarrolla el Dr. Sampaio sobre Tópica Jurí-
dica nos conduce de lleno a la eterna polémica sobre la justicia, propuesta en
su día por Aristóteles. La pregunta a responder es ¿qué tipo de «justicia» es
«más justa»; dar a todos por igual o dar a cada uno lo suyo? Recordando la
obra del filósofo griego, ambas formas de contemplar la justicia son posibles
y plausibles, dependiendo del momento y de la circunstancia. Existe rela-
ción de justicia en dar a todos por igual, tal sería la justicia conmutativa.27 E

25
Un estudio claro sobre este y otros tipos de argumentos en: Weston, 1994. Más
recientemente Martínez Zorrilla, 2010.
26
Un estudio amplio sobre los distintos tipos de argumentos puede consultarse en Sampaio
Ferraz, 2009: 313-320. Desde un punto de vista diferente (Malato; Ferreira da Cunha,
2007).
27
La justeza en palabras del Dr. Sampaio.
200 revista brasileira de filosofia – RBF 239

igualmente existe relación de justicia en dar a cada uno de forma diferente


atendiendo a sus circunstancias, y tal sería la justicia distributiva.28
Dice Sampaio que la posibilidad de este «doble rasero» de actuación
lleva a un problema moral o por lo menos de neutralidad ética al que él mismo
responde afirmando que la Tópica no es buena ni mala, porque es el jurista
quien hace hablar a la ley. Esa circunstancia confiere a la Tópica Jurídica
una importancia crucial en la interpretación del Derecho. Importancia que
se multiplica toda vez que en muchos casos el Derecho se muestra como un
conjunto de símbolos incoherentes que lo hacen inseguro. Por eso, a juicio
de Sampaio, una parte del éxito de la Tópica Jurídica estaría en conseguir la
unificación en la aplicación e interpretación del Derecho.29 Así concebida la
Tópica Jurídica, y siguiendo siempre la opinión de este autor, esta metodo-
logía se convierte en una especie de «caja de resonancia» para los que creen
en el gobierno del Derecho por encima del arbitrio e los hombres.
La polémica está servida. ¿Debemos contentarnos con un Derecho
donde prime la legalidad o es necesario alcanzar la realización de la justicia?
¿Cuál es el valor jurídico más importante, el de igualdad o el de justicia?
¿A qué principio debe ajustarse la aplicación de la justicia, al de raciona-
lidad o al de razonabilidad? Estas preguntas nos conducen a dos formas
diferentes de enfocar la experiencia jurídica. La primera más iuspositivista,
la segunda más iusnaturalista. La primera, la iuspositivista, busca la preemi-
nencia de la ley como única fuente del Derecho que debe aplicarse a todos
por igual con criterio de generalidad, buscando la racionalidad y la justeza.

28
La justicia como «lo justo» en palabras del Dr. Sampaio.
29
Sampaio muestra la misma preocupación que (GarcÍa Amado, 1988: 369-370), cuando
afirma que «es limitada la capacidad de la Tópica Jurídica como método para proporcionar
respuesta al que hemos descrito como interrogante central de la metodología jurídica contem-
poránea, la cuestión de la racioanlidad de la decisión jurídica, que es tanto como decir de la
opciones valorativas que la originan». Porque «lo que la tópica jurídica no aporta es la pauta
para que sea racional, y no mero arbitrio discrecional, la opción que el llamado a decidir
lleva a cabo entre los tópicos igualmente legitimados que, como fundamentos o razones en
pro de decisiones distintas, se plantean a su consideración». Y por tanto opina este autor, «en
tanto ése que hemos venido considerando problema nuclear del método jurídico se mantiene
sin recibir respuesta clara de la Tópica Jurídica, ésta, en tanto que doctrina metodológica,
será incompleta». Idea similar es la que recoge Manuel Atienza en su obra Las razones del
Derecho. Teorías de la argumentación jurídica (Madrid: Centro de Estudios Constitucionales,
1991: 60-61), donde después de admitir que «la Tópica Jurídica permite explicar, o al menos
darse cuenta de ciertos aspectos del razonamiento jurídico que pasan inadvertidos si uno se
aproxima a este campo desde la vertiente exclusivamente lógica», afirma sin embargo que «la
Tópica por sí sola no puede dar una explicación satisfactoria de la argumentación jurídica».
Las razones que esgrime para esta afirmación son que «no permite ver el papel importante
que en el razonamiento jurídico cumplen la ley, la dogmática y el precedente... limitándose
a sugerir un catálogo de tópicos o de premisas utilizables en la argumentación, pero no da
criterios para establecer una jerarquía entre ellos».
seção 3 – diálogos 201

En su búsqueda de la racionalidad como principio regulador de la decisión


jurídica, el operador jurídico persigue únicamente comportarse de acuerdo
con la razón que en su caso se convierte únicamente en la razón legal, sin
mostrar interés alguno por contemplar otras opciones y sin intentar persuadir
de la plausibilidad de su actuación concreta. Este planteamiento conduce sin
duda a la igualdad, pero no siempre a la justicia entendida como dar a cada
uno lo suyo. Presenta la ventaja de la mayor certeza pero el inconveniente
de la posible falta de adecuación de la norma general al caso concreto. Es
rígida y estricta, porque en al afán por conseguir la igualdad es insensible
a otros valores que matizan dicho valor. Y es que lo igual no tiene por qué
ser siempre lo mejor. De hecho, lo es casi exclusivamente en cuanto a la
igualdad ante la ley, pero no en relación con todas las demás igualdades. Es
más, un mundo como el actual exige, al menos en los países desarrollados,
con mucha mayor fuerza la necesidad de que se respeten las diferencias en
vez de exigir las igualdades llevadas hasta el último extremo. A este tipo
de planteamiento corresponde la visión metodológica de la tópica jurídica
formal.
La segunda posibilidad, la iusnaturalista, busca la preeminencia del
Derecho entendido de una forma mucho más amplia que la pura ley escrita
en Códigos. No le preocupa tanto la igualdad (salvando claro está la igualdad
ante la ley) como la búsqueda de la justicia en el caso concreto, lo que implica
necesariamente prestar atención a las desigualdades que lleva consigo cada
una de las relaciones jurídicas. Es más flexible y plural, pero también por ello
menos cierta. En su forma de actuación persigue más la razonabilidad que
la racionalidad. Es decir trata de justificar su actuación concreta para el caso
particular siguiendo los parámetros de la ley y de otras fuentes del derecho;
usándolos todos para aducir razones que justifiquen su proceder y persuadan
o muevan a adoptarlas a aquellos a quienes van dirigidas. A este tipo de plan-
teamiento corresponde la visión metodológica de la tópica jurídica material.
A lo largo de la historia ha habido juristas y sistemas jurídicos que
han preferido una forma de actuación y otros la otra. Tomando como refe-
rencia la historia se puede afirmar que la visión iusnaturalista más pruden-
cial predominó durante los diecinueve primeros siglos de historia; mientras
que la iuspositivista fue la preferida a partir del siglo XIX. Las dos tienen
ventajas e inconvenientes; y llevadas al extremo, ambas arrojan resultados
poco recomendables.
Sin embargo no sería preciso tener que llevarlas al extremo sino buscar
el diálogo entre ambas y superar viejas rencillas que se muestran hoy cada
vez más, carentes de sentido al menos en su formulación clásica. Esta posi-
ción integradora parece ser la que defiende el profesor Tercio Sampaio Ferraz
cuando afirma la importancia de «construir un impero razonable de saber
202 revista brasileira de filosofia – RBF 239

jurídico en el que los ideales contradictorios aparezcan como coherentes».


Un ideal en el que «el Derecho sea a la vez seguro y elástico, justo y compa-
sivo, eficiente y equitativo, digno y solemne, pero funcional y técnico».30 Un
Derecho en suma en el cual la Tópica se convierta en un patrón de transfor-
mación social al servicio de la justicia.
De acuerdo con lo hasta ahora expuesto podemos concluir afirmando
que para el Dr. Sampaio la Tópica Jurídica es un tipo de metodología jurí-
dica. Su aplicación puede formalizarse desde dos puntos de vista diferentes,
que el denomina Tópica Jurídica formal y material.31 Cada una de ellas
presenta características diferentes y puede conducir a resultados diferentes
en cuanto a la interpretación de la norma aplicada al caso concreto se refiere.
Esta situación produce una cierta falta de certeza en el Derecho que puede
llegar a plantear problemas de carácter ético o moral. Pese a ello, Sampaio
defiende que la Tópica en sí misma no es buena ni mala puesto que es el
jurista el único que puede hacer hablar a la ley y por eso el único responsable
de la forma en que utilice este poder.
Y por eso, pese a la duplicidad interpretativa que puede producirse
en el método tópico jurídico, el jurista brasileño acepta la Tópica Jurídica
con esperanza; como elemento de integración del Derecho al servicio de la
justicia.

4. La tópica jurídica del dr. F. Puy

Para el Dr. F. Puy la Tópica Jurídica no es únicamente un método


de trabajo, ni siquiera un tipo de argumentación jurídica, sino una forma
de comprensión de la totalidad de la experiencia jurídica inspirada en la
concepción jurídica clásica helenística y medieval.32 Según el mismo autor
cuenta, su convicción se basa en su propia experiencia investigadora de
muchos años de trabajo continuado. Afirma que llegado un momento de su
vida profesional como investigador del Derecho se dio cuenta de que era
preciso buscar una forma de entender la realidad jurídica que se alejase de
las fórmulas científico-deductivas en curso.33 Para encontrarla se inspiró en

30
Sampaio Ferraz, 2011: 407.
31
En esta afirmación Sampaio se mueve en la órbita de Atienza cuando afirma que existen
tres concepciones sobre argumentación, la lógica formal, la material y la dialéctica. La más
propia de la tópica es la material, como señala (Cárdenas Gracia, 2005: 21).
32
La Tópica Jurídica dice es «el arte de encontrar dentro de varios discursos discrepantes
algunos lugares comunes en los que se pueda restablecer una armonía a partir de la cual se
podrá llegar al consenso especulativo y a una pacificación activa» (la traducción es mía) (Puy
Muñoz, 2003: 201).
33
Otros autores como Hartmann ya habían abierto brecha en este sentido al afirmar que «la
matemática no es la ciencia suprema y más sublime, sino la elemental e ínfima. Considerada
seção 3 – diálogos 203

el conocimiento prudencial vigente primero en la cultura griega, después en


la romana,34 y después en la medieval; que se mantuvo en el renacimiento y
en el barroco, aunque desde ahí empezó a ser sustituido por criterios racio-
nalistas que triunfaron definitivamente en el siglo XIX. Tomando base en
estos orígenes, Puy intenta poner al día esa experiencia consciente de que la
obsesión actual por la búsqueda de un método resulta excesivamente rígida
para el conocimiento de la experiencia jurídica. Cualquier método a su juicio,
fuere cual fuere, resulta pobre frente a la pluralidad de la experiencia jurídica
y por eso es insuficiente para dar respuesta a los problemas que plantea cada
día el Derecho, al intentar dar a cada uno lo suyo.
Puy no buscaba únicamente un método de trabajo. Su intención era
mucho más ambiciosa aunque quizá ni siquiera él mismo fuera consciente
de ello entonces. Su intento era describir la realidad jurídica teniendo en
cuenta la amplitud que tuvo en tiempos pretéritos, y no sólo la restringida
que se le atribuyó a partir del s. XIX. Esto es, desde el momento en que la
investigación jurídica se concentró únicamente en resolver los problemas
que se planteaban en torno al estudio y aplicación de la norma jurídica.35
En su intento, el jurista español ha recuperado los métodos de descripción y
valoración de la realidad jurídica clásica modificándolos hasta adaptarlos a
las necesidades actuales.
El resultado ha sido la construcción de una forma de trabajo que aplica
un método de investigación, exposición y argumentación propio.36 En este
modo de intelección de la experiencia jurídica defiende que tanto la visión
retórica del derecho, como la dialéctica, e incluso la científica necesitan, de

en sí, es indudablemente la ciencia más perfecta que nosotros tenemos. Pero la perfección se
halla sólo en la exactitud y no es una medida entitativa de su objeto» (Hartmann, 1989: 45).
34
La inspiración de la tópica en la cultura romana es compartida por muchos estudiosos
de Tópica Jurídica. Entre ellos Viehweg, que en su Tópica y Jurisprudencia, que afirma que
«el jurista romano plantea un problema y trata de encontrar argumentos. Se ve, por ello,
precisado a desarrollar la técnica adecuada. Presupone irreflexivamente un nexo que no
intenta demostrar, pero dentro del cual se mueve. Es la postura fundamnetal de la Tópica»
(Viehweg, 1986: 78).
35
En este extremo Puy coincide con Villey cuando advierte que «los juristas deben guardarse
de estas dos doctrinas extremas, el normativismo y el sociologismo. Posiblemente el Derecho
no sabe adaptarse ni a un método tomado de la moral idealista ni tampoco a otro elaborado
con miras a las exigencias de las ciencias que operan sobre lo fáctico. Pero si queremos
definir un método realmente apropiado al derecho, el método tendrá que ser en función de él.
Y podremos una vez más dispensarnos de inventar ninguna teoría nueva; el trabajo ha sido
hecho ya... Nos bastará sacar del olvido la doctrina clásica de las fuentes y del razonamiento
jurídico (Villey, 1979: 224).
36
La tópica podiana ha sido objeto de estudio en una monografía escrita por Joaquín
Rodríguez-Lugo Baquero, titulada Las Tópica Jurídica del doctor Francisco Puy, publicada
por la editorial Porrúa en México en 2009.
204 revista brasileira de filosofia – RBF 239

la Tópica.37 Esta realidad había sido olvidada en detrimento de la Tópica


Jurídica. Consciente de esta situación Puy rompe una lanza a favor de ella,
defendiendo que a partir de la descripción de los hechos objeto de disputa
que son puramente científicos, fríos, y objetivos, el resto del proceso jurídico
es de interpretación, y por lo tanto es siempre tópico. Consecuentemente,
la recuperación de la Tópica en el ámbito de lo jurídico no se manifiesta, a
su juicio, únicamente como algo conveniente, sino que es imprescindible
para dar respuesta cabal a los múltiples problemas que en la actualidad tiene
planteada la experiencia jurídica.
La posición del Dr. Puy no es excluyente, sino integradora. Es consciente
del servicio que ha prestado la Ciencia Jurídica al Derecho, pero advierte
de que es sólo eso, un servicio más como coadyuvante, pues el Derecho es
ahora, de la misma manera que ha sido siempre, mucho más que una ciencia.
Y por eso se transforma en Jurisprudencia, en conocimiento prudencial, en
el que tiene cabida la Ciencia Jurídica especialmente en alguna parte del
proceso como el puramente descriptivo; pero se extiende mucho más allá. Es
en este «mucho más allá» donde cobran protagonismo la Tópica, la Retórica
y la Dialéctica como formas prudenciales de conocimiento, explicación y
valoración de la experiencia jurídica.
El camino del Dr. Puy discurre por esos parámetros y en él encuentra
otros viandantes que recorren algunos tramos con él y se alejan en otros.38
Este es el caso del Dr. Sampaio. Ambos maestros buscan una fórmula mejor
de comprender, aplicar y valorar la experiencia jurídica. Ambos juristas
acreditan un largo camino de búsqueda de la justicia que parte de orígenes
diferentes, de experiencias vitales y profesionales distintas e incluso de
formación filosófica jurídica no coincidente. Pero ambos se quieren acom-
pañar un trecho de sus caminos personales para dialogar sobre la Tópica
Jurídica. Y los demás, quienes queremos aprender de ellos, deseamos, si nos
lo permiten, acompañarlos también para escuchar su diálogo y beneficiarnos
de su conocimiento reponiendo con ellos la tradición de la Filosofía griega
del maestro que pasea hablando con sus discípulos y dialogando sobre la
ciencia de lo justo y de lo injusto extraída del conocimiento de las cosas
divinas y humanas.39

37
En realidad él piensa que «la Tópica es un arte, pero no es solamente un arte, porque
es también simultáneamente una teoría, un método y un repertorio. Tal conjunto se puede
mantener autónomamente dentro de sus propios límites lógicos, construyendo teoría plena.
Pero nada le obliga a practicar el aislacionismo. Al contrario, todo le pide que se integre,
porque también puede integrarse perfectamente en la Ciencia, o en la Retórica o en la
Dialéctica» (Puy Muñoz, 2004: 293).
38
Por usar la metáfora tan querida para los compostelanos del Camino de Santiago.
39
Ulpiano, Digesto, 1.1.1.1.
seção 3 – diálogos 205

En sus reflexiones sobre la Tópica Jurídica Puy parte habitualmente


de la definición de Aristóteles autor del primer tratado de Tópica conocido.
El filósofo definía entonces la Tópica como «el método que habilita al que
lo usa para razonar, partiendo de opiniones que sean generalmente admi-
tidas, acerca del cualquier problema que se le proponga, y que le capacite así
mismo, cuando esté defendiendo un argumento, para evitar decir algo que
pueda estorbárselo».40
Recuerda D. Francisco que ésta es la forma en la que se entendió la
Tópica General durante siglos. Pero en el ámbito de lo jurídico es preciso
ocuparse también de la Tópica Jurídica que no coincide exactamente con
su visión general. En efecto, continúa firmando Puy41 en la actualidad y de
acuerdo con la opinión generalmente defendida, la Tópica Jurídica puede ser
visualizada desde cuatro puntos de vista diferentes. A saber: a) como reper-
torio, b) como arte, c) como método y c) como sistema. Como repertorio,
catálogo o depósito, será aquel en el que se guarden de forma ordenada a fin
de poder ser fácilmente localizados, los datos que más interesen a los opera-
dores jurídicos para desenvolver sus misiones. Como arte, la tópica jurídica
se manifiesta como una técnica o práctica particularmente conveniente
para resolver problemas jurídicos o de atribución de derechos discutidos a
quienes litigan por ese motivo. Como método la tópica se muestra como
un procedimiento o estilo de pensar y comunicar, especialmente adecuado
para desenvolver un pensamiento jurídico complejo. Y como sistema aunque
débil y efímero, la tópica jurídica agrupa conocimientos altamente desarro-
llados y a la vez contrastados empíricamente.
Las palabras transcritas del Dr. Puy fueron escritas en 2000.42 En la
actualidad 12 años más tarde, su concepción está más terminada.43 Él mismo
la ha ido concretando sucesivamente en sus reflexiones posteriores. No
obstante estas palabras están vigentes con carácter general y desde luego

40
El razonamiento de Puy se establece sobre la base de estudio de elencos de tópicos,
entendidos como lugares comunes que facilitan el consenso entre las partes en conflicto y
que por lo mismo tienden a la solución del mismo con la fuerza de la persuasión (Puy Muñoz,
2006). Con ese mismo sistema de estudio de tópicos vid sus (Puy Moñoz, 1984). Esta obra no
lleva en su rótulo ninguna referencia a la Tópica Jurídica; sin embargo la considero un estudio
tópico porque en él el Dr. Puy analiza 90 derechos humanos entendidos como tópicos.
41
Puy Muñoz, 2000: 418.
42
Puy Muñoz; López Moreno, 2000: 417-535.
43
La tópica podiana no fue hecha de una vez sino que fue perfeccionándose con el tiempo.
En su libro Tópica Jurídica, editado por la Imprenta Paredes en Santiago de Compostela en
1984, advertía que no quería hacer un estudio teórico sobre los tópicos jurídicos sino que
quería directamente topiquear, es decir trabajar en la práctica con ellos para ver hasta donde
podían llegar. Y eso es lo que ha hecho desde ese momento. Por lo tanto su forma de entender
la tópica se ha ido desarrollando y sin cambiar sustancialmente, se ha enriquecido hasta la
actualidad, momento en que ha alcanzado su más terminada originalidad y utilidad práctica.
206 revista brasileira de filosofia – RBF 239

a los efectos para los que han sido expuestas en este trabajo. Las he recor-
dado porque me interesaba probar, acudiendo a la fuente del propio autor
estudiado, mi afirmación anterior de que para el maestro compostelano, la
Tópica Jurídica excede la simple consideración de ésta como método, si bien
ésta es una faceta importante que no debe ser obviada.
Y a ella nos dedicaremos a partir de este momento a fin de poner en
diálogo el pensamiento de Puy con el de Sampaio analizándolos desde
parámetros semejantes. Esto es desde la perspectiva de la Tópica Jurídica
considerada como un método de argumentación.44
Desde este punto de vista que, recuerdo, es el de considerar a la tópica
jurídica exclusivamente como un método argumentativo, Puy accede desde
una perspectiva particular que me parece importante resaltar. Se refiere al
hecho de que el método tópico resulta útil desde dos puntos de vista dife-
rentes. Esto es como método para construir el discurso propio y como método
para contestar el discurso ajeno. Resulta importante a mi juicio esta primera
puntualización toda vez que en general, la tópica jurídica como método se
esfuerza en analizar, y si es posible solucionar, los problemas que plantean
los problemas de la experiencia jurídica, tomando como base a los otros.
Esta forma de proceder es lógica porque los problemas jurídicos se plantean
siempre frente a los otros y no frente a uno mismo. Esos problemas, que sí
existen son generalmente de carácter moral pero no jurídico. De ahí y por
simplificación la mayoría de los autores que han tratado la Tópica Jurídica
se han preocupado por resolver problemas jurídicos, es decir problemas de
adscripción de derechos sin caer en la cuenta de que la Tópica también sirve
para la creación y comunicación del propio pensamiento.
Puy llegó a esta conclusión después de muchos años de trabajo y
reflexión sobre el asunto ofreciendo a la comunidad científica una construc-
ción propia sobre el método tópico de argumentación jurídica que intentaré
presentar a continuación de forma sucinta.
Puy sostiene que el método tópico constituye un intento por perfilar
la forma más segura de decir el propio derecho así como de entender lo
que otros dicen sobre el propio derecho. Este doble punto de vista permite
abordar los problemas de la experiencia jurídica desde el ámbito del que
tengo enfrente (puesto que la relación jurídica suele ser conflictiva) o desde
el mío propio (como defensor de mi propia posición). Así planteado, el
método tópico tiene dos partes perfectamente diferenciadas que denomina
método tópico de comprensión y método tópico de composición.

44
Dejaremos por tanto sin tratar en este momento las demás posibilidades de análisis de la
tópica jurídica
seção 3 – diálogos 207

El primero, el de comprensión ayuda a entender e interpretar correc-


tamente lo que otro expresa sobre un derecho cualquiera. El segundo, el de
composición, ayuda a comprender y expresar, o comunicar correctamente lo
que queremos decir sobre un derecho cualquiera.
La labor de comprensión de lo que otros dicen o quieren es complicada
en sí misma como puede ser cualquier labor de comprensión. A la dificultad
inicial hay que añadirle el hecho de que cuando lo que se discute está en
contra de la propia opinión del sujeto le causa un problema añadido que es
el de defenderse de ella mostrando otra opinión más plausible y que pueda
por tanto resultar vencedora en una hipotética lid de cualquier tipo. Para
conseguir entender mejor la posición del otro, Puy recomienda la técnica de
fraccionarla en los diversos comunicados, a fin de simplificar su contenido y
así poder enfrentarse mejor a lo que manda, prescribe o prohíbe.
Para poder analizar por separado los discursos ajenos resulta conve-
niente dividirlos en estructuras comunicativas básicas. Puy propone las
siguientes: términos, proposiciones, argumentos, teorías y sistemas. A su
vez estos últimos, los sistemas, por ser los más complejos en sí mismos los
subdivide en sistemas científicos, dialécticos, retóricos y tópicos. Al final
todo buen discurso jurídico, especialmente si ha seguido un buen método de
trabajo se debe finalizar con una conclusión.
Analicemos ahora brevemente cada uno de estos pasos metodológicos.
El análisis de los términos de un comunicado supone la primera fase para
intentar comprender el contenido del mensaje que entraña el mismo. En este
análisis será preciso tratar de comprender los significados técnicos, vulgares
y etimológicos de cada una de las expresiones o palabras nucleares del caso
en cuestión incluidas dentro de un derecho, una sentencia, una norma o
doctrina a dictaminar. Y no sólo a juicio de Puy aquellos que contienen las
normas ya que éstas sólo son una parte y para eso bien pequeña del contenido
total del Derecho, o de la Jurisprudencia, de acuerdo con la nomenclatura que
él prefiere utilizar para referirse al conocimiento de lo justo y de lo injusto.
Analizados los términos llega el turno de las proposiciones. Enten-
demos por proposiciones el conjunto de tres o más términos que consti-
tuyen un sujeto, verbo y predicado. Las proposiciones pueden ser de tres
tipos. Descriptivas (definiciones); valorativas (estimaciones) y normativas
(mandatos o principios).
Estudiados los términos y las proposiciones el análisis tópico jurídico
se complica algo más llegando a los argumentos. Los argumentos son el
resultado de tres o más proposiciones en las cuales unas constituyen la base
de razonamiento sobre las que se asientan las otras. Existen tres tipos funda-
mentales de argumentos: Los constructivos que afirman la existencia, valor
208 revista brasileira de filosofia – RBF 239

y fuerza normativa del objeto analizado. Los destructivos que niegan esas
mismas dimensiones y los inoperantes que no afirman ni niegan algo que
tenga que ver con el asunto debatido.
La cuarta fase de la Tópica Jurídica entendida como método es el
análisis de teorías. Entendemos por teoría la unión de varios argumentos.
Este análisis comprende la interpretación de las principales teorías desen-
vueltas sobre el caso, derecho, sentencia, norma o doctrina a dictaminar. En
relación con ellas es conveniente distinguir las teorías explícitas que explican
el asunto confesando querer hacerlo. Las teorías implícitas que explican el
asunto, negando que lo estén haciendo. Y por último las teorías ocultas que
tratan el objeto sin nombrarlo.
Realizados los análisis precedentes llegamos al último paso que es el
análisis de los sistemas. Constituyen un sistema el conjunto de varias teorías.
Existen diversos tipos de sistemas. Los más usados en el ámbito jurídico
son cuatro: sistemas científicos, sistemas dialécticos, sistemas retóricos y
sistemas tópicos.
La Tópica Jurídica de análisis de sistemas científicos, contiene en sí
mismo la consideración de análisis crítico interpretativo de los discursos
científicos existentes sobre el objeto estudiado. A los efectos jurídicos
cabe distinguir los sistemas normativos (códigos), los sistemas estimativos
(plexos) y los sistemas sociológicos (redes). Este análisis es el más utilizado
en las corrientes iusfilosóficas positivistas. Los otros tres que veremos a
continuación casi no los consideran. Por el contrario, las corrientes iusfilosó-
ficas iusnaturalistas hacen al revés, prestan mucha mayor importancia a los
análisis tópicos, retóricos y dialécticos que a los puramente científicos aún
sin dejar de apreciar la importancia de estos últimos.
La Tópica Jurídica de análisis de sistemas dialécticos comprende el
análisis crítico interpretativo de los discursos dialécticos existentes sobre un
asunto dado. Dichos discursos se estructuran en afirmativos (tesis); negativos
(antítesis) y subsuntivos (síntesis).
La Tópica Jurídica de análisis de sistemas retóricos comprende el
análisis crítico interpretativo de los usos retóricos del objeto estudiado.
Distinguen entre discursos defensivos (defensas, apologías), discursos ofen-
sivos (contestaciones, detracciones) y conciliadores o de síntesis (media-
ciones y conciliaciones).
Por último la tópica jurídica de análisis de sistemas tópicos comprende
el análisis crítico interpretativo de los usos tópicos del objeto estudiado.
Los fundamentales son dos. Los Diccionarios Jurídicos y los Repertorios de
Jurisprudencia y Legislación, porque recogen el conjunto ordenado de topoi
seção 3 – diálogos 209

o lugares comunes, que normalmente consulta un operador jurídico en la


realización de su trabajo.
Concluidas estas fases de comprensión del discurso ajeno resta todavía
una de suma importancia que suele ser olvidada. Es la que se conoce con
el nombre de conclusión. Y es que el análisis interpretativo tópico de todo
discurso ajeno debe cerrarse con una conclusión propia que recoja los puntos
más importantes abordados en la totalidad del discurso a fin de sacarlos
nuevamente a la luz y así poder aclarar el sentido del discurso total. Una
conclusión bien hecha debe distinguir las descripciones de las valoraciones y
de las normaciones o propuestas de conducta.
Hasta aquí se han analizado los pasos que debe seguir un discurso
tópico jurídico de comprensión del comunicado ajeno. Aquí termina el
método tópico para muchos autores cuya única preocupación es analizar y
comprender el discurso ajeno para poder contrarrestarlo de la mejor manera
posible.45 Los que aquí terminan el estudio tópico desatienden una impor-
tante función de la Tópica Jurídica que no se limita a ser una técnica de
defensa frente a otros sino que funciona además como excelente forma de
construcción del discurso propio.
Cada operador jurídico debe estar preparado para poder ofrecer un buen
comunicado jurídico, claro, comprensible, ordenado y fundamentado, que
sirva para alcanzar sus objetivos y a ser posible, siguiendo la definición aris-
totélica de tópica jurídica, para oponerse a los de la parte contraria. Y desde
luego ningún operador jurídico nace sabiendo hacer esto. Por ello lo más
prudente es tratar de imitar al principio, los discursos de algún maestro a fin
de conseguir un modelo de referencia que le sirva a cada operador jurídico
como tabla de salvamento a la que amarrarse. Después, con el tiempo, cada
operador, en realidad cada jurista, conseguirá su propia manera particular
de manifestarse. Manera que normalmente lo identificará como tal jurista.
Precisamente por eso es conveniente aprender primero la forma correcta de
presentar un discurso para poder después, amoldarla a las circunstancias y
peculiaridades personales, sociales etc.
El primer paso para conseguir un discurso bien elaborado, seguro y
convincente es saber qué es lo que se quiere decir, defender o argumentar.

45
En este caso se encuentra Viehweg, para quien la tópica sólo sirve para entender los discursos
de otros, no para la elaboración de los propios. Por eso nos recuerda en su (Viehweg, 1986:
60-61), que «la tópica hoy casi desconocida, era justamente «el almacén de provisiones». Lo
almacenado en ese almacén es el conjunto de tópicos cuya función se concreta en «servir a
una discusión de problemas». Normalmente los problemas se tienen con los otros que es con
quien se discute y no con uno mismo. Lo que nos reafirma en la idea de que para el autor
alemán la funcionalidad de la tópica está en servir para comprender y contrarrestar el discurso
del otro, pero no para la elaboración del propio.
210 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Soy consciente de que decir esto parece un poco redundante por evidente. Sin
embargo no lo es tanto al menos si observamos la práctica. Es habitual que
operadores jurídicos, incluso supuestos especialistas en un tema, comiencen
a desarrollar un discurso sin saber exactamente qué es lo que quieren decir,
qué posición deben defender, qué están dispuestos a perder, o qué pueden
ganar... No es posible obtener buenos resultados obviando estas premisas.
Advertido este asunto conviene ahora llamar la atención sobre otro
error frecuente. Consiste en pensar que los operadores jurídicos presentan
discursos jurídicos tipo, semejantes entre sí. No es así, los discursos jurídicos
de los operadores jurídicos son variables; tan diferentes en realidad como las
profesiones jurídicas existentes y aún más, pues las personas que no juegan
un papel jurídico determinado concreto tiene también su forma peculiar de
manifestarse en derecho que debe ser metodológicamente considerada.
El Dr. Puy quiere llamar la atención con sus palabras sobre la impor-
tancia de conocer la variabilidad de posibilidades de manifestación de
los operadores jurídicos cuando realizan sus discursos con la finalidad de
convencer de que su propuesta es la más plausible y por lo mismo debe ser
aceptada, frente a otra que se erige normalmente como la contraria.
El Dr. Puy es un defensor de la pluralidad y de la necesidad de analizar
cada caso concreto teniendo en cuenta las especificidades del mismo pues
las fuentes del Derecho son siempre locales e igualmente son particulares y
específicas en la realidad cotidiana las formas de manifestación, discusión y
petición del Derecho. Porque no se expresa igual un abogado defensor que
uno que acusa, ni hace el mismo discurso un juez que un fiscal o un notario,
y un procurador, o un testigo y un particular, y así sucesivamente.46 Y todos
ellos hacen discursos de petición y defensa de sus derechos que deben ser
considerados en un estudio tópico metodológico.
Los roles y las profesiones jurídicas continúa diciendo el maestro
compostelano, son muchas y muy variadas y por lo mismo el conjunto de
tipos de discursos jurídicos constituye un numerus apertus. Circunstancia
ésta que no es óbice para que sea posible hacer un elenco de los modelos de
mayor uso. Para D. Francisco, estos modelos se pueden reducir a cuatro. A
saber: los académicos, los forenses, los legales y los naturales.
A su vez los discursos académicos tipo son fundamentalmente cinco:
discurso lección magistral del profesor y demás académicos; discurso
monografía, propio del investigador; discurso programa que corresponde al
maestro que quiere explicar y hacer comprender una materia a sus alumnos;

46
Vid. Puy Muñoz, F & Portela, J., 2005: La argumentación de los operadores jurídicos,
Buenos Aires: Editorial de la Universidad Católica Argentina.
seção 3 – diálogos 211

discurso examen que corresponde al discípulo que quiere hacer comprender


a su maestro lo mucho que sabe y por lo mismo la alta calificación que
merece; y el discurso de graduación que es posiblemente el más estudiado
pues está muy reglamentado por corresponder a aquel que debe hacer la
persona que quiera alcanzar el más alto grado en el ámbito de la calificación
de conocimientos.
Los discursos forenses son aquellos que se desarrollan por los distintos
participantes en el foro. Son fundamentalmente diez que se corresponden
con los principales papeles o roles jurídicos que se dan en el combate en los
tribunales. Puy los individualiza así: discurso sentencia del juez, discurso
veredicto del jurado, discurso demanda del abogado civilista, discurso
defensa del abogado penalista, discurso dictamen del jurisprudente, discurso
informe del perito, discurso testimonio del testigo, discurso escritura del
notario, discurso acta del secretario y discurso mediación del mediador.
Los discursos tópicos legales son los que prefieren los legisladores
o normadores. Son fundamentalmente seis. El discurso constitución del
legislador constituyente, el discurso ley del legislador parlamentario, el
discurso código también del legislador parlamentario, el discurso decreto del
normador individual, el discurso canon del concilio eclesiástico y el discurso
oficio, propio del funcionario.
Por último denomina Puy discurso natural al propio del ciudadano
medio o persona corriente. Sus principales tipos son cuatro. A saber: el
discurso instancia a través del cual se cursan las peticiones del administrado,
el discurso declaración mediante el cual cada individuo proclama su derecho,
el discurso petición propio del individuo que pide protección para sus dere-
chos, y el discurso reclamación indicado para el individuo que reivindica su
derecho.
Una vez determinada la variabilidad de discursos que realiza el
operador jurídico, y establecidos los modelos principales que cada uno de
ellos prefiere, Puy hace todavía un intento por ofrecer a todos y cada uno de
ellos un modelo general de elaboración de un discurso propio. Pretende con
ello proporcionar un modelo general de común aplicación. Lo hace desde el
más profundo respeto hacia la variabilidad de métodos, de profesiones y de
operadores jurídicos. Consciente de la necesidad de que cada uno de ellos
utilice el método que estime más oportuno y que le dé mejores resultados. Y
convencido de que cada operador jurídico en realidad acabará por tener un
modelo propio que lo identifique en su trabajo. ¿Para qué entonces propor-
cionar un modelo general?
El Dr. Puy lo expresa claramente. Después de haberse dedicado a la
investigación y enseñanza en el Derecho durante más de 50 años ininterrum-
212 revista brasileira de filosofia – RBF 239

pidos es consciente de que la formación que proporcionan las Facultades


de Derecho a sus egresados es lastimosamente sesgada y limitada. Se preo-
cupan mucho por enseñar métodos de interpretación, es decir metodología
de comprensión del discurso ajeno y singularmente del discurso legal. Pero
lamentablemente se olvidan de enseñar y practicar el método de comunica-
ción, es decir el que habilita para construir y trasladar con éxito el discurso
propio.47
Esa situación debe a su juicio cambiar radicalmente. Y fiel a su meto-
dología de descripción, valoración y normación de la realidad, después de
describir el problema y valorarlo como negativo propone una forma de
solucionarlo o al menos paliar sus consecuencias. En este caso es ofrecer
un método, aunque solo sea uno, para que sea aprendido y practicado por
los alumnos, futuros operadores jurídicos. Ese método será con seguridad
modificado por cada uno de ellos, pero al menos sabrán cómo empezar a
comunicar. Y por eso será de gran utilidad en el comienzo de la andadura
jurídica de cada operador.
El esquema general de discurso jurídico que enseña Puy de acuerdo
con el estilo establecido ya por Quintiliano aunque adaptado y modernizado
propone los siguientes pasos: 1. Presentación de quien habla. 2. Exposición
del conflicto que motiva el discurso, destacando su gravedad e interés. 3.
Formulación de la tesis a mantener o defender como adecuada para resolver
el conflicto planteado. 4. Formulación de los argumentos que avalan dicha
tesis. 5. Alusión de al menos algún argumento que la contradice. 6. Respuesta,
en la medida de lo posible a éstos últimos. 7. Reafirmación de la propia
posición recordando los principales argumentos utilizados para defenderla.
8. Agradecimiento al auditorio por la atención prestada deseando haberlos
convencido de que su posición es la mejor y por lo tanto la que debe ser
seguida. 9. Despedida con alguna fórmula ad hoc como «he dicho».
Con este esquema de discurso el maestro, que no olvida la necesidad
que tienen los demás de aprender, proporciona una guía adaptable a las
circunstancias concretas de cada operador y de cada discurso, pero al menos
una guía para empezar que entiende que será de gran utilidad práctica para
quien se sienta perdido en el trance de iniciar un discurso.
Pero su utilización, recuerda, no debe separarnos del problema prin-
cipal que es la situación insostenible en la que se encuentra la Jurisprudencia

47
Afirma Puy que en su concepción «la Jurisprudencia no es tanto un saber teórico como un
saber práctico. No consiste tanto en saber pensar como en saber hacer. La jurisprudencia o el
Derecho es el arte de hacer las cosas que estorban la ocurrencia de conflictos, antes de que se
produzcan, y las cosas que los resuelven de la forma más económica cuando se produjeron
pese a todo» (Puy Muñoz, 2008: 1005).
seção 3 – diálogos 213

especialmente a partir del S. XIX cuando dejó de ser el arte de la prudencia


en decir lo justo de cada uno, para convertirse lisa y llanamente en Ciencia
del Derecho. ¿Cuál es la manera de solucionar este problema? A su juicio la
respuesta a este problema está en la utilización de la Tópica, de la Retórica y
de la Dialéctica Jurídicas o lo que es lo mismo de la Argumentación Pruden-
cial en el conocimiento y aplicación de la Jurisprudencia, toda vez que las
teorías simbólicas de la Argumentación Jurídica ya han probado su falta de
acierto para solucionar todos los problemas de adjudicación de lo suyo de
cada uno, que plantea la experiencia jurídica.
Una vez expuestas las líneas generales del método tópico de ambos
maestros conviene ahora analizar si existen elementos de coincidencia y de
divergencia, cuáles son éstos y que conclusiones operativas pueden extraerse
de sus aportaciones al tema objeto de debate.

5. UN DIÁLOGO ENTRE DOS MAESTROS. Similitudes y diferencias

El diálogo sobre Tópica Jurídica entre Puy y Sampaio permite analizar


dos formas diferentes de enfocar la misma realidad. Este resultado en sí mismo
ya es interesante. Hemos escuchado las opiniones de dos juristas procedentes
de ámbitos jurídicos diferentes, con adscripción jurídica filosófica diferente
y con preocupaciones intelectuales diversas. Uno de ellos, el Dr. Puy, ha
dedicado su vida entera a la docencia e investigación de Derecho; el otro, el
Dr. Sampaio, compagina su dedicación universitaria con la preocupación por
la práctica del Derecho e incluso con la política. Ambos son maestros en lo
que hacen pues tiene acreditada además de la excelencia en sus respectivos
campos de actuación, la formación de discípulos que se confiesan deudores
intelectuales de sus enseñanzas.
Encontramos-nos ante dos juristas con caminos paralelos cuya vida
profesional ha discurrido por sendas diferentes, que han llegado a entrecru-
zarse en algunos momentos incluso físicamente. El Dr. Puy y el Dr. Sampaio
no se conocen personalmente pero sí intelectualmente. Su primer contacto
fue académico. Se produjo cuando el Dr. Gil Cremades en aquel momento
director del Anuario de Filosofía del Derecho, encargó al Dr. Puy una nota
crítica sobre un libro del Dr. Sampaio. Este último agradeció al primero su
trabajo y ahí comenzó su amistad intelectual teñida de mutuo respeto.
No podría ser de otro modo y no debería serlo en el ámbito intelectual.
El diálogo entre ambos permite comprobar la afirmación antes realizada a
la vez que prueba a mi juicio la plausibilidad del uso del método tópico en
sí mismo. En efecto, el estudio que ahora concluye ha establecido la conve-
niencia del estudio de un problema jurídico. En este caso ha sido el concepto
y utilización de la Tópica Jurídica según la visión de dos importantes juristas.
214 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Elegido el problema teórico con implicaciones prácticas en la experiencia


jurídica, se ha procedido a la descripción de los hechos que en este caso se
concretó en las enseñanzas de ambos maestros sobre el objeto de estudio y
su forma de enfocarlo.
El análisis de la descripción de ambos autores ha permitido comprobar
una vez más la plausibilidad de la Tópica Jurídica al mostrar la existencia de
distintos puntos de vista sobre un mismo problema. Puntos de vista que se
presentan como el haz y en envés de la misma moneda y permiten el juego
dialéctico de la tesis y de la antítesis en la búsqueda de la síntesis integradora.
Las opiniones descritas y contrastadas permiten hacer una valoración
inicial sobre el papel que la Tópica Jurídica juega en el pensamiento de
ambos autores así como en el mundo de la experiencia jurídica en general.
El diálogo establecido muestra elementos en común y elementos que señalan
diferencias entre ambos pensamientos.
La principal semejanza es el punto de partida de ambos pensadores. A
mi juicio ambos están preocupados por la escasa capacidad de la Ciencia Jurí-
dica actual para solucionar los problemas que plantea la experiencia jurídica
real. El Dr. Puy llega a esta conclusión a través del análisis intelectual de la
Jurisprudencia. Advierte que el intento de sistematizar la experiencia jurídica
que imperó en los estudios jurídicos desde el siglo XIX postulando reducir
el fenómeno jurídico a la ley escrita positiva, sistematizada en códigos, está
superado porque ha mostrado su ineficacia. No es un intento vano ni ha sido
inútil, pero ya resulta escasamente provechoso. La realidad jurídica es mucho
más amplia y precisa un engranaje mucho más abierto para su estudio. Para
el Dr. Puy es preciso encontrar una forma de comprensión de la experiencia
jurídica analizada desde una perspectiva mucho más amplia que comprenda,
por supuesto, las situaciones descritas por las leyes positivas, pero que se
extienda mucho más hacia cualquier otro conflicto en el cual se discutan
los derechos de las personas.48 En esta búsqueda Puy no trataba de destruir
lo que otros habían creado, ni siquiera trataba de crear un sistema propio,
pues estaba cansado de la excesiva sistematización de los estudios impe-
rantes desde el siglo XIX que sólo concebían el conocimiento del Derecho

48
Puy es un jurista realista que como Villey opina que «los filósofos realistas no trabajan
sobre meras palabras; no se contentan con registrar, como nominalistas, unos «hechos
científicos» aislados, con estudiar algún sector abstracto y especializado de las cosas, como
las ciencias modernas, ni con razonar o con construir sobre sencillas ideas, al modo de los
idealistas». «Nuestras visiones de las cosas son parciales y cada cual no percibe de ellas mas
que un «perfil» dirá Husserl. La única manera de obtener un conocimiento menos incompleto
es mirarlas partiendo de una multitud de puntos de vista. Y estos puntos de vista son los
«lugares» (topoi) en los que uno ha de irse colocando sucesivamente para considerar desde
ellos el mismo objeto» (Villey, 1981: 71).
seção 3 – diálogos 215

bajo el soporte de una ciencia. Él buscaba una forma de describir la realidad


jurídica teniendo en cuenta la amplitud que tuvo desde sus comienzos como
conocimiento del arte de lo justo y de lo injusto, hasta el siglo XIX cuando
impusieron su dominio las escuelas positivistas. En ese intento recuperó los
métodos de descripción y valoración de la realidad aprendidos de los grandes
maestros clásicos, pero adaptándolos a la realidad actual. Y de este modo y
casi sin pretenderlo o quizá sin llegar a ser consciente de ello Puy elaboró
una forma propia de aproximación y conocimiento de la realidad jurídica que
a él no le gusta decir que es un sistema (ya que lo construyó precisamente
huyendo de ellos) pero sí es, desde luego, una forma de acercamiento a la
realidad jurídica ordenada y como tal sistematizada, aunque no cerrada ni
rígida.
En su estudio Puy ha recuperado la Retórica y la Dialéctica jurídicas y
ha observado que ambas precisan de la Tópica Jurídica. Las tres formas de
conocimiento jurídico, complementan de forma necesaria los datos obtenidos
en el proceso total de análisis del Derecho. En realidad los datos científicos
necesarios para una descripción de la realidad son únicamente una parte del
juego que debe ser interpretada por el operador jurídico, y es ahí donde cobra
especial relevancia la Tópica, la Retórica y la Dialéctica. De manera que
estas tres formas de conocimiento no han desaparecido nunca del ámbito de
lo jurídico, si bien han permanecido en muchos casos lavradas, «gustando de
esconderse».
El Dr. Sampaio llegó por otro camino a una conclusión semejante. Su
desazón se produjo en el ámbito práctico cuando se dio cuenta de que el
conjunto de las leyes recogidas en los códigos no podían asegurar la realiza-
ción de la justicia. La realidad jurídica que muestra cada día la experiencia
jurídica es mucho más amplia y pretender encerrarla en leyes es siempre
un vano intento. Sampaio buscó entonces otras formas de aproximación a
la realización de la justicia y se topó con la Tópica Jurídica. Pero para él la
Tópica Jurídica es únicamente un método de trabajo y no un modo de apro-
ximación a la realidad del Derecho. Un método que la defiende y contempla
como un posible «patrón de transformación social del Derecho al servicio de
la justicia». Con su implementación trata de alcanzar un «imperio razonable
de saber jurídico en el que los ideales contradictorios aparecen como cohe-
rentes, en el que el Derecho es a la vez seguro y elástico, justo y compasivo,
eficiente y equitativo, digno y solemne pero funcional y técnico».
La visión de ambos juristas es diferente pero mantiene elementos
comunes. Es diferente en cuanto a su concepción y amplitud ya que para
uno Puy, la Tópica Jurídica es el espejo en el cual se refleja toda la realidad
jurídica. Mientras que para el otro, Sampaio, es un método de análisis de la
misma.
216 revista brasileira de filosofia – RBF 239

También es diferente en cuanto al campo al que se aplica. Para Puy la


Tópica Jurídica se aplica al campo de la Jurisprudencia entendida en modo
amplio como el conocimiento de lo justo y de lo injusto. Para Sampaio la
Tópica se aplica únicamente como método de conocimiento, a la interpreta-
ción de las leyes positivas, a las normas jurídicas, que es en suma lo que él
considera Derecho. Para Puy la Tópica Jurídica persigue la realización de la
justicia entendida como dar a cada uno la cosa que le pertenece y que está
en disputa. Para Sampaio, la Tópica Jurídica es una forma de alcanzar la
legalidad y la igualdad proporcional de reparto de derechos realizada por el
principio de subsunción del caso concreto en la norma general.
También es diferente la concepción de Tópica de ambos maestros en
cuanto a su modo de utilización. Sampaio habla de una serie de argumentos
concretos, que son los más utilizados por la Tópica formal o por la material
(que según su posición son las formas en que puede manifestarse la Tópica
Jurídica) y Puy por el contrario no habla de argumentos concretos a utilizar
por la Tópica, pero sí advierte de que cada operador jurídico tiene su forma
peculiar de manifestarse y de actuar en Derecho y por ello todos usan los
tópoi pero de forma diferente. Puy no centra su interés en el tipo de argu-
mentos sino en el tipo de operador jurídico que los utiliza según el momento
en que habla, la intención que tiene al hablar, el auditorio al que va dirigido
su discurso y el objetivo a alcanzar.
Por último es diferente la concepción de ambos maestros en lo que se
refiere a la valoración de la Tópica. Para Puy la Tópica es esencial para pasar
de la fase de descripción de los hechos a la de mandato. La tópica tiende un
puente invisible pero de extraordinaria importancia entre los hechos y sus
consecuencias de acción. Ese puente es la valoración. Una vez descrita la
realidad problemática el jurista debe valorarla para saber a partir de esa valo-
ración cómo debe actuar. Qué debe mandar, o qué debe prohibir... La función
valorativa se convierte así en un elemento esencial del método tópico pues es
el que posibilita su faceta práctica tendente a mejorar la realidad social. Para
Sampaio en cambio «la Tópica no es un conjunto de principios de valoración
de la evidencia ni de cánones para juzgar la adecuación de las explicaciones
propuestas, ni siquiera un criterio para seleccionar hipótesis».49 La Tópica
es sólo y exclusivamente un método de trabajo que actúa mediante «series
argumentativas» y por tanto «no presupone ni tiene por objetivo una totalidad
sistematizada. Parte de conocimientos fragmentarios o de problemas, enten-
didos como alternativas para las cuales se buscan soluciones. El problema
es asumido como un dato, como algo que dirige y orienta la argumentación,
que culmina en una solución posible entre otras». No hay en su concepción
cabida para ningún tipo de valoración.

49
Sampaio Ferraz, 2009b: 307.
seção 3 – diálogos 217

La descripción la Tópica Jurídica tomada de la exposición de ambos


maestros ha permitido descubrir la concepción que ambos defienden, sobre
esta forma de aproximación y conocimiento de la experiencia jurídica.
También ha permitido una valoración de los elementos comunes y diferentes
esenciales del pensamiento de ambos maestros. Dicha valoración parcial
nos ha permitido llegar a una valoración general sobre la Tópica Jurídica.
Entiendo que esa valoración debe expresarse a través de un par valorativo
que permita ver una tesis y una antítesis y que facilite después la síntesis.
De las opiniones contrastadas expuestas en el discurso de ambos maes-
tros se puede deducir que los dos aprecian la Tópica Jurídica como algo
valioso en sí mismo y como forma aconsejable de aproximación práctica a la
experiencia jurídica.50 Ambos llegan a esta conclusión después del cansancio
y decepción que les ha producido la imposibilidad de la Ciencia Jurídica
actual de dar respuesta a los problemas de adscripción concreta de derechos
que la realidad cotidiana le plantea. De modo que es posible afirmar que aún
con amplitud diferente, ambos juristas entienden la realidad Tópica Jurídica
como valiosa, apreciable y justa.
Por lo tanto y como consecuencia de la descripción y valoración
alcanzada, ambos autores recomiendan su práctica como alternativa viable
y plausible a la actual Ciencia Jurídica por entender que la Tópica Jurídica
se erige hoy en día como la caja de resonancia que puede dar esperanzas de
transformación del mundo jurídico en busca de una mejor realización de la
justicia. El diálogo ha sido fructífero.

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50
Dice Sampaio: «la propia interpretación de los hechos exige el estilo tópico, pues los
hechos de los que se ocupa el aplicador del Derecho, sabidamente, dependen de las versiones
que les son atribuidas» (Sampaio Ferraz, 2009b: 308).
218 revista brasileira de filosofia – RBF 239

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Topica jurídica151

Tercio Sampaio Ferraz Junior


Professor Jubilado da Universidade de São Paulo.

En líneas generales, las diferentes etapas del acto de argumentar en el


Derecho marcan su especificidad. El argumentar, en oposición al describir, al
relatar, etc., se caracteriza por la pretensión de validez persuasiva de sus aser-
ciones. Esta pretensión implica siempre un deber de prueba (onus probandi)
que se explicita, particularmente en el saber dogmático, en la forma entre-
cruzada de su decurso, en términos de afirmaciones y contra-afirmaciones,
argumentos y contraargumentos.
Por ejemplo, si, en la interpretación del Derecho, se propone el
problema del conflicto de las normas, que es, de inicio, desdoblamiento de
nivel argumentativo, pues se levanta la posibilidad de incompatibilidad no
solamente entre scriptum y voluntas, sino entre dos scripti y voluntates, sin
embargo, más allá de eso, el conflicto de las normas constituye, en realidad,
un conflicto de validez: en el nivel crítico, el problema de la validez es puesto
en términos de valoración de una norma por otra norma. Colocamos aquí
la cuestión de jerarquía y extensión (estructura) en relación al ámbito de
incidencia (repertorio) del sistema del ordenamiento. La cuestión cualitativa,
en el nivel crítico –válido/no válido– nos conduce, entonces a un nivel meta-
crítico en que la norma es cuestionada en su sentido metanormativo, esto es,
más allá de su vigencia, en su eficacia (social) y en su fundamento axiológico
(cuestión de la legitimidad). En la argumentación jurídica se puede así hablar
de técnicas de subsunción o de ponderación.

1
51Texto em homenagem ao Prof. Francisco Puy, publicado em Tópica, Retórica y Dialéctica
em la Jurisprudencia: Estudios em Homenaje a Francisco Puy, edición a cargo de Milagros
Otero Parga, Universidad de Santiago de Compostela, 2011.
220 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Eso nos permite examinar la cuestión de la argumentación jurídica


como argumentación tópica.
Argumentar jurídicamente significa actualmente y de un punto de vista
retórico tomar el derecho como imposición normativa de un orden de distri-
bución, conforme a principios de justicia, que admiten dos posibilidades
tipológicas que podemos denominar «tópica formal» y «tópica material».
El primero es un tipo que organiza el conjunto de las normas vigentes
como una relación que va de lo genérico a lo particular, conforme a grados
de generalidad (topos de cantidad). Véase, por ejemplo, la relación entre
ley y sentencia como una cuestión de subsunción. Este orden es justo en
la medida en que consigue delimitar, conforme al principio de la igualdad,
las correspondientes competencias de la autoridad jurídica. Generalidad
significa extensión normativa, siendo general la norma que se dirige,
proporcionalmente, al mayor número de sujetos: la justicia como «igualdad
de todos ante la ley». Ya la sentencia es norma individual, limitada al caso
concreto. En esos términos, argumentar significa presuponer que la justicia
del orden está en una tópica de racionalidad en el sentido de delimitación
de la competencia de la autoridad como condición de la autonomía de los
sujetos y de su igualdad ante la ley, no importa, primariamente, cuáles sean
sus contenidos. En ese caso predomina el uso de argumentos tópicos como el
ab auctoritate, ad hominem, a fortiori, a maiori ad minus, a minori ad maius
y el de los exempla.
El segundo tipo organiza el conjunto de normas vigentes como una
relación uniforme que «va de lo universal a lo específico, conforme a grados
de universalidad». Universalidad (topos de calidad) significa intensión
normativa, siendo universal la norma que abarca, en su abstracción, la mayor
amplitud de contenido en términos de una ponderación. Así, el orden es justo
en la medida en que consigue delimitar los contenidos normativos, conforme
a un principio material abarcador de inclusión o exclusión. Aquí la elec-
ción de un principio genera, conocidamente, diversas posturas, hablándose
a veces de topoi como el bien común, las necesidades vitales o el respeto a
la dignidad del hombre, o su condición de ciudadanía, o de designio divino,
etc. La justicia de ese orden está en la razonabilidad de la delimitación de
los contenidos normativos a partir de un criterio de supremacía (tópica de
razonabilidad), no importa la competencia de la autoridad o el grado de
autonomía de acción de un sujeto frente a otro. De donde surge el «reco-
nocimiento como justo» de un orden que se organiza mediante un «elenco
de derechos y valores fundamentales materiales» (vida, propiedad, libertad,
seguridad, igualdad) y en él se basa. En ese caso predominan argumentos
tópicos como el argumento ab absurdo, a contrario sensu, ad rem, a pari, a
posteriori, entimema o silogístico.
seção 3 – diálogos 221

Esa doble posibilidad de argumentación tópica, centrada y fundamen-


tada en la percepción de la justicia como tema central del raciocinio tópico en
el derecho, repercute en la actividad argumentativa jurídica y se manifiesta
en el enfoque de la justicia a veces como justeza (relación/subsunción), otras
como sentido de lo justo (absoluto/ponderación).
Este doble enfoque, encarado por el aplicador en la construcción de los
argumentos, traduce una elección ética dentro de un conflicto fundamental
entre inducir a hacer aquello que es correcto e inducir a hacer aquello que es
bueno. Lo que implica argumentaciones unas veces para obtener decisiones
consistentes en actuar correctamente según las leyes y los principios, en las
cuales las ideas de deber y corrección (justicia como topos de la relación
justa: justeza) son los temas centrales, y otras para obtener decisiones consis-
tentes en la tentativa de la satisfacción de determinados fines considerados
buenos, en las cuales la idea de bien (justicia como topos del sentido absoluto
de lo justo) es el tema central.
Por ejemplo, si el precepto constitucional determina que «hombres y
mujeres son iguales en derechos y obligaciones, en los términos de la Cons-
titución», la argumentación tópica, en términos de justeza, va a buscar en el
contexto real aquellos rasgos que tornan significativa la igualdad, aunque la
realidad presente otros rasgos tal vez más significativos para la aprehensión
del modo como la sociedad vive aquella relación. Así, si, socialmente, la
igualdad entre hombres y mujeres aún presupone la desigualdad de los sexos
y, en nombre de la igualdad, todavía trata desigualmente a los desiguales,
la argumentación dará menos relevancia significativa a las diferencias de
sexo, otorgando importancia significativa mayor a la capacidad de hombres
y mujeres de desempeñar las mismas funciones (sociales, políticas, econó-
micas, profesionales, familiares, etc.). Con ello, al legitimarse ciertos rasgos
comportamentales, el sentido de la igualdad en el contexto real se altera,
no porque las diferencias sexuales sean ignoradas, sino porque son neutrali-
zadas por la relevancia conferida a las semejanzas.
Por otra parte, por ejemplo, la atención de un ciudadano que reclama
del Estado la prestación de un servicio de salud, mediante la provisión de un
medicamento importado de alto costo, puede ser apreciada según un patrón
racional de justeza (lo que exigirá cálculos de utilidad, comparación con la
atención de la masa de usuarios del sistema público de salud en el sentido
de la garantía constitucional de acceso universal e igualitario a las acciones
y servicios para la promoción de la salud), o, no obstante la falta de justeza
(proporcionalidad), la noción de necesidad conferirá a lo justo la exigencia
de tomar en cuenta, por encima de cualquier cálculo, la persona del enfermo,
su dignidad, el riesgo de su vida, en detrimento de otros factores.
222 revista brasileira de filosofia – RBF 239

La distinción entre la justicia como justeza y como sentido absoluto


de lo justo en términos de sentido orientador de la argumentación tópica
permite, en suma, entender las diferentes posibilidades argumentativas en el
derecho, alcanzando incluso las combinatorias de argumentos de allí resul-
tantes. En esos términos, si los argumentos admiten usos tópicos diferentes,
que afectan la fuerza de la argumentación, la presencia predominante de una
(justeza) o de otra (justo absoluto) afectan también la toma argumentada de
decisiones jurídicas.
Esa doble posibilidad de ver tópicamente la justicia lleva a un problema
moral o, por lo menos, de una neutralidad ética.
De un cierto punto de vista, la tópica, se puede decir, no es ni gentil ni
malvada, pues la voluntad de la ley o del legislador en términos de búsqueda
de la justicia no tiene, estrictamente, ningún carácter. Así, el derecho debe
permanecer inaccesible, en cuanto instrumento dirigido a la manutención del
orden. Con todo, de otra parte, por ello, para el jurista, el derecho no miente
jamás, dado que existe, precisamente, con la finalidad de oscurecer la verdad
social, dejando que se juegue la ficción del buen poder.
En realidad la argumentación tópica de los juristas revela que, en razón
de la enorme producción normativa de la cual ellos tienen el encargo inter-
pretativo, todo pasa como si un único texto (el ordenamiento) estuviese en
expansión continua. Sus diversas operaciones técnicas –interpretación siste-
mática, sociológica, teleológica, histórica etc.– consisten exclusivamente
en reformular (parafrasísticamente) el mismo objeto (el ordenamiento).
Sin embargo, de esa forma, se obturan las eventuales salidas y se impide
el diálogo con la ley. Es decir, es el jurista que hace a la ley hablar. Sin
embargo, así, se cercena a los sujetos la palabra plena, pues todo debe pasar
por la lengua jurídica, que pone todo bajo el control del jurista. Se entra,
así, en un universo de silencio, el universo del ordenamiento, que sabe todo,
que hace las preguntas y da las respuestas. Se entretiene, de ese modo, el
misterio divino del derecho, el principio de una autoridad permanente, fuera
del tiempo, inmanente a toda sociedad (ubi jus ibi societas; ubi societas, ibi
jus –donde hay derecho, hay sociedad; donde hay sociedad, hay derecho–).
La rudeza de estas observaciones nos muestra, sin embargo, un aspecto
funcional importante de la tópica jurídica. Para el hombre común, el derecho
a veces aparece como un conjunto de símbolos incoherentes, que lo torna
inseguro, por ejemplo, cuando se ve envuelto en una disputa procesal.
Confrontado con los derechos del otro, éstos, aunque le parezcan ilegítimos,
también son afirmados. Está claro que sería impensable que el derecho admi-
tiese oficialmente que se mueve en múltiples e incoherentes direcciones. Su
éxito, como fuerza unificadora, depende, pues, de dar un significado efectivo
seção 3 – diálogos 223

a la idea de un gobierno del derecho, unificado y racional. Para ello también


trabaja la tópica jurídica.
Funcionalmente, la finalidad de la argumentación jurídica tópica
consiste, last but not least, en ser una caja de resonancia de las esperanzas
prevalecientes y de las preocupaciones dominantes de los que creen en el
gobierno del derecho por encima del arbitrio de los hombres. De ahí la cons-
titución de ese imperio razonable del saber jurídico de la argumentación, en
que los ideales contradictorios aparecen como coherentes, en que el derecho
es, simultáneamente, seguro y elástico, justo y compasivo, económicamente
eficiente y moralmente equitativo, digno y solemne, pero funcional y técnico.
Lo que significa una función de la tópica a servicio de la modificación del
status quo y de la justicia como padrón de transformación social.
Tercio Sampaio Ferraz Junior

Francisco Puy
Professor Catedrático de Filosofia do Direito da Universidade
de Santiago de Compostela.

Querido Tercio:
¿Me permites que agradezca el estupendo ensayo «Tópica jurídica» con
que te sumaste a mi homenaje participándote los pensamientos que me ha
suscitado su lectura? Lo intentaré sin hacer tediosa una carta que quiero sea
humilde y cordial acuse de recibo.
Percibo tu texto como una sucesión de proposiciones brillantes, escritas
con la concisión propia del maestro que conoce el tema, emplea un lenguaje
preciso, expone con un estilo personal, y desea economizar tiempo y papel.
La voluntad de concisión se evidencia hasta en una omisión que carece de
importancia, pero que delata, me parece, lo que digo: has dejado sobreenten-
dida la voluntad de obsequio. La explicito, sin embargo, para tomar pie para
agradecértela. Recibe pues mi acción de gracias, por haber escrito para mí un
resumen de tu visión de la Tópica jurídica, y lo que es más de agradecer, que
hayas convertido ese resumen en un discurso pro, en una defensa.
Cuando empecé a trabajar la Tópica jurídica hace treinta años me
planteé la opción tópica «en contradicción» con la opción dogmática. No
tardé mucho en comprender que ambas metodologías son en realidad distintas
224 revista brasileira de filosofia – RBF 239

pero complementarias, de modo parecido a como son distintas y complemen-


tarias, y no contradictorias o incompatibles, las metodologías más concretas
que conjuntamos para entendernos en esas dos grandes corrientes. Como
es lógico, las visiones radicales y excluyentes siguen apareciendo, sobre
todo entre gente joven deseosa de «hacer armas». Y como es lógico los más
maduros tenemos la obligación de abogar por la cooperación y la concordia
en este y en todos los campos. Tú lo haces así en este ensayo, creo no te
interpreto mal, y te felicito y te lo agradezco.
Lo que me has ofrecido gentilmente, y con prontitud pasmosa, pues
creo haberle oído comentar a la Dra. Otero que tu ofrenda fue la primera en
llegar a sus manos, es un relatorio de argumentos o razones que justifican
la presencia en la academia, o el conocimiento y uso por los operadores
jurídicos, de la argumentación tópica; o que pueden justificar una u otra cosa
a los ojos de cualquier jurisprudente o jurisperito cuya metodología habitual
de trabajo de interpretación y aplicación de las normas no sea la argumenta-
ción tópica (retórica, dialéctica o prudencial) sino la dogmática (epistémica,
logística o científica).
Creo que no te interpreto mal, he dicho antes con cierta malicia, porque
no expresaba una corazonada o un simple deseo, sino el resultado de una
comprobación previa que sostiene lo que digo con «indicios racionales». En
efecto, como tu concisión telegráfica (y envidiable) no anuncia tu esquema
argumental, no dice en ningún momento que ésa sea tu intención. Así es que
intenté encontrar en ulteriores lecturas los argumentos intuidos por mí en la
primera de ellas. Así, leyendo en broma y en serio he encontrado cinco. Te
los expongo con la esperanza de que la reelaboración aún más condensada de
tus ideas que implican a la fuerza no te parezca errada e inaceptable.
Primer argumento. Suena así. Un conflicto de Derechos conduce a un
conflicto de normas en el nivel fáctico. Un conflicto de normas conduce a
un conflicto de validez en el nivel crítico. Un conflicto de validez conduce
a un conflicto valores en el nivel meta-crítico. Los conflictos de validez los
resuelve la dogmática con los argumentos de subsunción. Los conflictos
de valor los resuelve la tópica con los argumentos de ponderación. Lo cual
permite examinar (o juzgar) la argumentación jurídica como argumentación
tópica.
Tercio, me parece un argumento excelente. Tu razonamiento toma
el tópico «norma» en su sentido más restringido, o sea, en el de regla de
conducta relacionada con el dominio sobre cosas o servicios emanada del
Estado o aceptada por él. Pero yo creo que tu argumento vale también si se
piensa en el sentido más amplio de norma, o sea, en el de regla de conducta
relacionada con el dominio sobre cosas o servicios emanada de cualquier
seção 3 – diálogos 225

fuente (la naturaleza de las cosas, la naturaleza de las personas, los dioses,
los contratantes, los escribanos, los funcionarios, los jueces, los legisladores
de cualquier nivel territorial)...
Segundo argumento. Lo resumo así. Argumentar jurídicamente signi-
fica tomar el Derecho como un orden de distribución conforme a principios
de justicia formales y materiales. Y por ser de justicia, ambos reclaman la
argumentación tópica y están sometidos a sus reglas naturales.
También se trata de un argumento razonable. Tú lo formulas restrin-
giendo su valor en el tiempo: solo «actualmente», dices; y en la perspectiva;
sólo mirado «desde el punto de vista retórico», dices. Se trata de cautelas
razonables, pero a mi entender superfluas, porque los requisitos de facticidad
en acto y de comunicación retórica pertenecen a la naturaleza del derecho: a
mi entender, lo subrayo.
Antes de pasar al siguiente argumento no puedo por menos que
manifestarte mi admiración por la admirable descripción que has hecho al
explicitar éste con una descripción de las dos ramas de la Tópica jurídica
correspondientes. a) La que llamas tópica formal o tópica de racionalidad
(esta denominación me gusta más), que razona según el topos de cantidad
considerando el ordenamiento legal como una relación que va de lo genérico
a lo particular, conforme a grados de generalidad. b) Y la que llamas tópica
material, o tópica de ponderación (esta denominación me gusta más), que
razona según el topos de calidad considerando el ordenamiento legal como
una relación uniforme que va de lo universal a lo específico, conforme a
grados de universalidad. Tengo que reflexionar más despacio sobre esta
divisoria.
Tercer argumento. En resumen creo que dice esto. La justicia es el tema
central del raciocinio tópico del Derecho. La Tópica jurídica trata y habilita
de forma especializada para razonar armonizando las contradicciones que
presentan la justicia y los demás valores jurídicos que la acompañan; y para
resolver los conflictos que nacen de las diversas relaciones de percepción,
de jerarquía y de polaridad que presenta. Por eso no es razonable prescindir
de la argumentación tópica como un complemento de la argumentación
dogmática.
Comparto el argumento, Tercio. Y vuelvo a felicitarte por el fino análisis
que lo acompaña de la dialéctica que desenvuelven las dos imágenes del
tópico justicia-principio que denominas: a) justicia-justeza, que se obtiene
por subsunción, y b) justicia-justo, que se obtiene por ponderación.
Cuarto argumento. Dice literalmente así: «La Tópica no es ni gentil ni
malvada, pues la voluntad de la ley o del legislador en términos de búsqueda
de la justicia no tiene estrictamente ningún carácter». «La rudeza de esta
226 revista brasileira de filosofia – RBF 239

afirmación, añades, muestra sin embargo un aspecto funcional importante


de la Tópica jurídica»: que ayuda al «hombre común» a entender que «el
Derecho no es un conjunto de símbolos incoherentes» sino que posee un
sentido «unificado y racional». «Para ello, concluyes, trabaja también la
tópica jurídica».
También comparto este razonamiento.
Quinto y último argumento. Lo reproduzco a la letra: «La finalidad
de la argumentación jurídica tópica consiste, last but not least, en ser una
caja de resonancia de las esperanzas prevalecientes y de las preocupaciones
dominantes de los que creen en el gobierno del Derecho por encima del arbi-
trio de los hombres... lo que significa una función de la Tópica a servicio de
la modificación del status quo y de la justicia como patrón de transformación
social».
Yo no lo sabría decir mejor, Tercio. Mil gracias por tu estudio.
Paz y bien.
Francisco Puy
Seção 4

Traduções
O problema da autoridade:
revisitando a concepção da
autoridade como serviço
(The problem of authority:
revisiting the service conception)1

Joseph Raz
Professor de Filosofia do Direito na Universidade de Oxford e professor na
Escola de Direito da Universidade de Columbia.2
Doutorando em Filosofia do Direito na Universidade de Edimburgo
(Reino Unido). Mestre em Direito pela UFRGS e Bacharel em Direito
pela UFC. Pesquisador associado ao grupo «Direito e Filosofia» do CNPq.
Bolsista GDE/CNPq.

Resumo: O problema que tenho em mente é o problema da possível justi-


ficação da sujeição de alguém à vontade de outrem, e o status normativo de
demandas desse tipo. A teoria da autoridade que ofereci, há muitos anos,
intitulada concepção da autoridade como serviço, tratou dessa questão, e
assumiu que todos os outros problemas relacionados à autoridade estão

1
O texto original em inglês foi publicado sob o título «The Problem of Authority: Revisiting
the Service Conception» em Minnesota Law Review, vol. 90: 1003-1044, 2006. Disponível
em SSRN: http://ssrn.com/abstract=999849. Tradução: Felipe Oliveira de Sousa.
2
Ao escrever esse texto, beneficiei-me dos comentários orais e publicados sobre minhas
ideias de mais pessoas que posso recordar-me. Dentre esses, tenho uma dívida de gratidão
com Jules Coleman, Ronald Dworkin, Lesley Green, Herbert Hart, Scott Hershovitz, Heidi
Hurd, Michael Moore, Stephen Perry, Donald Regan, Philip Soper, Jeremy Waldron – a maior
parte deles irá pensar que minhas respostas a seus comentários são inadequadas.
230 revista brasileira de filosofia – RBF 239

nela subsumidos. Muitos pensaram que a teoria era implausível. Ela seria
muito superficial, fundando-se em algumas poucas ideias. Ela pode até
parecer muito superficial, e pode até distanciar-se muito de várias ideias
que ganharam aceitação na história da reflexão sobre autoridade.
Palavras-chave: Filosofia do direito – Autoridade – Democracia
consensual.

Abstract: The problem I have in mind is the problem of the possible justi-
fication of subjecting one’s will to that of another, and of the normative
standing of demands to do so. The account of authority that I offered, many
years ago, under the title of the service conception of authority, addressed
this issue, and assumed that all other problems regarding authority are
subsumed under it. Many found the account implausible. It is thin, relying
on very few ideas. It may well appear to be too thin, and to depart too far
from many of the ideas that have gained currency in the history of reflec-
tion on authority. The present article modifies some aspects the account,
and defends it against some criticism made against it.
Keywords: Jurisprudence – Authority – Consent Democracy.

O problema que tenho em mente é o problema da possível justificação


da sujeição de alguém à vontade de outrem, e o status normativo de demandas
desse tipo. A teoria da autoridade que ofereci, há muitos anos,3 intitulada
concepção da autoridade como serviço, tratou dessa questão, e assumiu que
todos os outros problemas relacionados à autoridade estão nela subsumidos.
Muitos pensaram que a teoria era implausível. Ela seria muito superficial,
fundando-se em algumas poucas ideias. Ela pode até parecer muito superfi-
cial, e pode até distanciar-se muito de várias ideias que ganharam aceitação
na história da reflexão sobre autoridade.
A crítica pode ser radical rejeitando inclusive a concepção da autoridade
como serviço por completo. Ou pode ser mais moderada, aceitando-a por
completo ou ao menos em alguns de seus traços principais, especialmente
a tese da justificação normal, estabelecendo as condições necessárias para
a legitimidade da autoridade, mas negando que elas constituam condições
suficientes. De modo mais comum, os críticos moderados argumentam que
a autoridade legítima, em qualquer medida a autoridade política legítima,
pressupõe uma conexão especial entre quem produz as regras (rulers)
e quem é o destinatário dessas regras (ruled), um vínculo especial que é

3
Algumas dessas ideias básicas aparecem em: Raz, Joseph. The Authorityof Law (1979);
os principais elementos da concepção da autoridade como serviço são estabelecidos em: Raz,
Joseph. The Morality of Freedom (1986).
seção 4 – traduções 231

desconsiderado pela concepção da autoridade como serviço. Meu objetivo


é revisitar o problema da autoridade, e examinar moderadamente os contra-
-argumentos, ou alguns deles. Começarei explicando na primeira seção
algumas considerações metodológicas de fundo. A Parte II irá brevemente
enunciar a concepção da autoridade como serviço e o modo com que ela
lida com o problema da autoridade. A Parte III desenvolve a concepção e
elabora algumas de suas implicações lidando com um conjunto de questões e
dúvidas mais ou menos conectadas às quais a concepção está aberta. A Parte
IV examina em termos gerais o argumento de que a autoridade, em qualquer
medida a autoridade política, pressupõe uma conexão especial, ausente na
concepção da autoridade como serviço, entre o governo e os governados.
A Parte V considera a possibilidade de que essa conexão seja forjada pelo
consentimento, enquanto a Parte VI comenta sobre a possibilidade de que a
conexão seja constituída pela identificação ou pela pertença a uma comuni-
dade política (ou a algum outro grupo).

I. ALGUMAS OBSERVAÇÕES METODOLÓGICAS

Para começar, considere algumas observações sobre a teoria geral.


Primeiro, autoridade, obrigação política, e obrigação de obedecer ao
Direito: alguns autores pensam que a chamada obrigação política de obedecer
ao Direito, e, com ela, o fato de que alguém tem uma obrigação de obedecer
ao Direito existe se e somente se o Direito ou as instituições jurídicas têm
autoridade legítima. Isso é um erro, mesmo se restringirmos nossa atenção às
autoridades jurídicas apenas. A obrigação política é a mais ampla dentre três
noções, e corresponde às obrigações que os membros de uma comunidade
política têm em relação a ela ou às suas instituições e à ordem política, em
virtude de sua pertença. Isso inclui muito mais e muito menos do que uma
obrigação de obedecer ao Direito. Mais – porque inclui alguns deveres para
ser um bom cidadão de modo que tem pouco a ver com o Direito. Eles serão
deveres para reagir à injustiça perpetrada pela ou em nome da comunidade,
para contribuir para seu funcionamento adequado (v.g., votando e sendo
ativo de vários outros modos) etc. Eles requerem menos que a obediência ao
Direito, uma vez que boa parte do Direito não se relaciona com a comuni-
dade política. Se pego a maçã de meu vizinho e a como, posso ter violado o
Direito, mas é muito improvável que eu tenha causado algum dano à comu-
nidade política (polity). As obrigações de obedecer ao Direito não dependem
da legitimidade de suas autoridades. Poderia haver várias razões, incluindo
razões morais, para obedecer ao Direito num país em que as autoridades jurí-
dicas não são legítimas. As considerações de estabilidade e de proteção dos
232 revista brasileira de filosofia – RBF 239

interesses são frequentemente tomadas como razões desse tipo.4 Finalmente,


é importante mencionar que temos deveres políticos que não dependem nem
da pertença a uma comunidade política nem da sujeição as suas leis. O dever
rawlsiano de apoio e respeito a instituições justas é desse tipo, aplicando-se
a todos nós, no que concerne a quaisquer instituições justas, onde quer que
elas estejam.5 Esse texto lida exclusivamente com a natureza da autoridade.
Segundo, poder e direito: Em nosso uso comum do conceito de auto-
ridade, o poder e o direito a ela estão interconectados. Qualquer tentativa
de separá-los corre o risco de ser artificial. Mesmo assim, a separação tem
de ser feita, pois eles estão inter-relacionados de um modo sistemático, que
requer a descrição de suas contribuições particulares ao conceito de autori-
dade. Minha sugestão enfatizou que até mesmo a noção de mera autoridade
de fato (i.e., a que exerce o poder sobre seus sujeitos, mas não tem o direito
de assim fazer) envolve a noção de legitimidade. O que torna as autoridades
de fato diferentes das pessoas ou dos grupos que exercem um poder bruto
(naked power, i.e. aterrorizando ou manipulando uma população) é que as
meras autoridades de fato pretendem, de um modo que aqueles que possuem
um poder bruto não pretendem, ter um direito para governar os que estão
sujeitos ao seu poder. Elas pretendem legitimidade. Elas agem, como digo,
sob a ideia de legitimidade.6
Por outro lado, como sugeri, as autoridades legítimas não são sempre
autoridades de fato. Por exemplo, o governo legítimo da Polônia em 1940
foi o governo exilado em Londres, que não possuía qualquer poder sobre
a população da Polônia.7 A metodologia resultante se aplica a clarificação
de outros conceitos também: há uma classe de conceitos normativos que

4
Vários sistemas jurídicos reconhecem essas razões ao terem doutrinas que conferem efeito
jurídico a autoridades de fato.
5
V. Rawls, John. A Theory of Justice, p. 293-94 (ed. rev. 1999).
6
Mesmo aqueles que não pretendem ter um direito de regular – sem considerar casos
excepcionais – pretendem que eles possam agir como eles agem, que suas ações são
defensáveis. Mas eles não pretendem que aqueles sobre os quais eles detêm poder lhes devam
obediência, i.e. tenham um dever de obedecer-lhes. Eles estão satisfeitos em poder fazer com
que lhes obedeçam, através de ameaças efetivas ou de algum outro modo.
7
Possivelmente, o governo no exílio tinha alguns poderes de fato (havia um exército
polonês – também exilado – que o reconhecia etc.), mas sua legitimidade não dependia de
sua posse desse poder. Sua legitimidade dependia, no entanto de um fato não normativo,
de ser reconhecida como legítima por boa parte da população polaca e por alguns outros
países. Em outras circunstâncias, a legitimidade pode depender da chance do governo em ter
controle efetivo. Isso torna possível manter a distinção entre autoridade sem o poder de usá-la
efetivamente, e alguém que está autorizado a ter autoridade (diga-se, quando foi devidamente
eleito) mas não a tem (porque, p.ex., não foi admitido ao cargo para o qual foi eleito). Compare
isso com o caso de um pai que tem autoridade sobre seu filho mesmo que ele não tenha poder
sobre ele.
seção 4 – traduções 233

possuem um uso secundário em que se indica uma pretensão por seus usuá-
rios, ou por alguns deles, de que eles se aplicam em seu sentido primário,
normativo, uma pretensão que pode estar equivocada. O conceito mais
importante desse tipo é o de uma razão (normativa).8 Uma razão para uma
ação é uma consideração que torna a escolha inteligível, e pesa em seu favor.
Mas quando digo «minha razão para ter ido embora é que estava com medo
de perder o último ônibus», indico qual razão eu acreditei que tivesse para ir
embora (o fato de que iria perder o último ônibus se não fosse embora), ainda
que não esteja comprometido com o fato de que houvesse de fato essa razão.
Se isso está correto, então o conceito de autoridade legítima tem uma
prioridade explicativa sobre o conceito de uma mera autoridade de fato. O
último pressupõe o primeiro, e não o contrário. A partir de agora, o termo
«autoridade» irá referir-se à autoridade legítima.
Terceiro, a aquisição do conceito e sua aplicação. Não é literalmente
verdadeiro que o conceito de «autoridade» se aplica apenas às pessoas que
pensam que a elas se aplica. Pode haver autoridades que não pretendem ter
autoridade. Contudo, como já explicado, as autoridades de fato pretendem
ter autoridade legítima, e como será visto adiante, as autoridades políticas
geralmente pretendem também. A questão surge sobre se é uma condição
de adequação da explicação do conceito de autoridade a de que aqueles que
têm autoridade ao menos implicitamente aceitem a explicação como correta.
(Alternativamente, pode alguém aceitar a explicação do conceito como
tendo validade limitada, aplicando-se apenas às pessoas – talvez na posição
de autoridade, ou talvez sujeitas à autoridade – que ao menos implicitamente
tomem essa explicação como verdadeira?)
Não. Se as pessoas disputam uma teoria da autoridade que de algum
modo é bem sustentada, elas cometem um erro. A concepção da autoridade
como serviço é uma teoria da autoridade, que inclui uma explicação sobre o
que é ter autoridade, o que é estar sujeito à autoridade, quando é que alguém
tem autoridade ou está sujeito a ela, e questões similares. A teoria não é
sobre o que as pessoas pensam que significa ter ou estar sujeito a uma auto-
ridade, mas sim sobre que é tê-la ou estar sujeito a ela. Ela é compatível com
argumentos de que as pessoas têm diferentes crenças sobre essas questões,
embora dela se siga que essas crenças estão erradas. Disso se segue que elas
incorrem numa confusão conceitual? Ou, de modo mais radical, disso se
segue que elas não podem conhecer sua própria linguagem? Claro que não. Se
elas têm crenças falsas sobre autoridade (e não meramente sobre os poderes

8
Qualifico-as como «normativas» para distinguir entre elas e razões explicativas
(explanatory reasons), que são simplesmente fatos ou eventos que explicam como ou porque
as coisas são como são.
234 revista brasileira de filosofia – RBF 239

das pessoas que têm realmente autoridade), então elas possuem o conceito
de autoridade, elas possuem alguma compreensão do que isso envolve. Mas
sua compreensão é parcial, e em parte incorreta. Nossa compreensão de
conceitos frequentemente é. Ela deixa muito espaço para erros e desacordos.9
Quarto, esperanças de neutralidade: alguns autores consideram que
sua tarefa é a de prover uma explicação de conceitos normativos, tal como o
de «autoridade», que seja normativamente neutra, que seja consistente com
qualquer visão normativa possível.10 Não está claro se há algum sentido em
que isso pode ser uma demanda razoável. Se ela é satisfeita apenas com a
explicação de conceitos normativos em termos não normativos (ou não valo-
rativos), isso corresponde a um requerimento de redução semântica de todos
os conceitos normativos para os quais ela se aplica, e, dessa forma, não há
razão para aceitá-la como um requerimento metodológico geral. Alternati-
vamente, pode-se pensar que, enquanto explicações de conceitos normativos
podem restar em outros conceitos normativos ou valorativos, esses devem
ser de um tipo que qualquer um, sejam quais forem suas crenças normativas
ou valorativas, esteja comprometido a aceitar como tendo possivelmente11
instanciações verdadeiras (ou válidas). Assim entendido, o requerimento
aponta em direção a uma redução semântica de densos termos valorativos ou
normativos em termos mais superficiais. Não está claro, contudo, se muitos
termos normativos preenchem esse requisito. É duvidoso se muitos conceitos
densos podem ser reduzidos a conceitos mais superficiais.
Talvez o requisito da neutralidade deva ser tomado como um problema
de grau: quanto mais próxima estiver a explicação de satisfazê-lo, melhor
ela é, se as circunstâncias permanecerem as mesmas. Depois de tudo, as
explicações que preenchem o requisito, ou melhor, os conceitos que elas
explicam com sucesso podem ser aceitos e usados pelas pessoas quaisquer
que sejam suas crenças normativas.
Algumas pessoas supõem que a explicação da autoridade deve ser
normativamente neutra num sentido diferente. Elas pensam que a explicação
da autoridade deve ser tal que seja possível para a forma proposicional «X
tem autoridade sobre Y» ter instâncias verdadeiras, i.e. que seja possível para
alguém ter autoridade legítima sobre os outros. Deixe-me chamar o primeiro

9
Veja: Raz, Joseph. Two Views of the Nature of the Theory of Law: A Partial Comparison,
em Hart’s Postcript (Jules Coleman ed., 2001).
10
Por exemplo, se uma explicação correta da desonra implica (a) que aqueles que agiram de
modo desonroso merecem ser mortos, e (b) que qualquer um que tenha traído uma relação de
confiança age de modo desonroso, então essa explicação é inconsistente com minhas visões
normativas.
11
No sentido não epistêmico de «possivelmente».
seção 4 – traduções 235

tipo de neutralidade normativa de «neutralidade explicativa», e o segundo de


«neutralidade existencial».
A neutralidade existencial tem a vantagem de não entrar em conflito com
a visão de que podem existir autoridades legítimas, uma visão que é muito
amplamente defendida, e tem sido defendida durante a história, onde quer
que as pessoas tenham visões sobre esse tópico. As pessoas podem cometer
erros, incluindo erros normativos, mas uma explicação de um conceito de
amplo uso e mais ou menos universalmente endossada por ter aplicações
que, em combinação com crenças normativas verdadeiras, implica que não
há nenhuma, que há uma grande tarefa em explicar como é que as pessoas
estão erradas.
É possível exagerar a dificuldade da tarefa. Primeiro, é possível explicar
como as pessoas estão geralmente erradas sobre a possibilidade da autoridade
legítima sem atribuir a elas uma má compreensão absurda do conceito. Seu
erro, se erradas elas estiverem, pode ser em algumas de suas crenças norma-
tivas, mais do que em sua compreensão conceitual.12 Segundo, os conceitos
têm uma história, e as condições de sua persistência ou identidade ao longo
do tempo são, quando muito, vagas. Assim, pode ser que a impossibilidade
da autoridade legítima seja a impossibilidade de haver instâncias de nosso
conceito atual de autoridade. Possivelmente, para alguns ancestrais de nosso
conceito, a autoridade legítima era possível. O contrário também é possível,
e até mais provável. Uma fonte de pressão para a mudança do conceito pode
ter sido uma gradual descoberta de que o conceito então prevalecente não
tem instâncias (v.g. se o conceito de autoridade era tal que não tivesse de
derivar da autoridade divina, então o reconhecimento da impossibilidade da
autoridade divina pode ter encorajado a mudança no conceito, uma mudança
que tornou possível para o conceito ter instanciações, ao menos aos olhos das
pessoas da época).
A teoria que ofereço tem instanciações. Mas o nível em que ela vai de
encontro à opinião popular pode ser maior ou menor. Por exemplo, minha
teoria tem a consequência de que provavelmente as autoridades políticas têm
uma autoridade mais limitada do que a autoridade que muitas delas, talvez
todas elas, pretendem ter, e que as pessoas geralmente creem que elas têm.

12
Para manter o cuidado, deixe-me ampliar aqui: não há implicação nas considerações acima
de que uma explicação de um conceito para ser correta deve ser uma que esteja geralmente
disponível para aqueles que tenham o conceito. Há muitos aspectos de um conceito que
seus usuários podem não estar cientes, e muitos erros sobre ele que eles podem cometer. O
argumento é meramente o de que seria necessário para uma boa explicação de como uma
crença errada na possibilidade de instanciações do conceito, em nosso caso uma crença na
possibilidade de autoridades legítimas, tornou-se tão difundido.
236 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Isso ainda requer a explicação de por que as pessoas estão assim erradas,13
embora uma vez que o erro atribuído seja menor, o ônus da explicação
também seja muito menor.
Meus comentários prévios explicaram quais as vantagens que vejo tanto
na neutralidade explicativa quanto existencial. Elas não contribuem para
nenhum princípio metodológico. Suspeito que a demanda por neutralidade
explicativa seja impossível de preencher (i.e., explicações que a preenchem,
se houver alguma, são de alguma forma equivocadas). Não há muita plausi-
bilidade nela. Não esperamos que todos os conceitos científicos, v.g., sejam
neutros no sentido explicativo, i.e. que suas instanciações sejam consistentes
com todas as possíveis teorias científicas. Alguns conceitos científicos podem
transcender teorias (theory-transcendent), ou podem transcender mais ou
menos as teorias. Mas muitos não o fazem. Mutatis mutandis, o mesmo,
eu suspeito, é verdadeiro dos conceitos normativos. As mesmas considera-
ções afastariam o requerimento de neutralidade existencial. Casos especiais
à parte, esse não é um requerimento que normalmente impomos sobre a
explicação de outros conceitos, e parece não haver razão para impô-lo em
conceitos normativos genericamente ou na autoridade em particular.
A esperança por neutralidade pode expressar em si mesma um reque-
rimento de que a teoria da autoridade deve explicar o que se segue quando
alguém tem autoridade, mas não irá incluir nada sobre as condições sob as
quais alguém pode adquirir ou ter autoridade. Para que esse requerimento
faça sentido, deve ser o caso não apenas de que quem quer que ofereça a
teoria não escreva sobre as condições sob as quais alguém tem autoridade,
mas também que nada se siga da teoria no que concerne às condições que
tornam alguém uma autoridade. Isso parece ser um requerimento impossível
de preencher: como pode ser que o modo de justificar uma pretensão de
alguém que tenha autoridade não seja afetado pelas consequências de se ter
autoridade (de fato, não guiado por aquilo que deve ser justificado)?
Ainda, há uma diferença entre as duas partes da teoria da autoridade.
Alguém pode razoavelmente esperar que uma teoria da autoridade espe-
cifique, mesmo que abstratamente, todas ou ao menos as consequências
centrais de se ter autoridade. No entanto, para além de enunciar que as condi-
ções sob as quais alguém tem autoridade são aquelas que justificam atribuir
autoridade – nomeadamente, atribuir às ações de alguém as consequências
que se seguem de se ter autoridade – não está claro que alguém possa
razoavelmente esperar por uma completa especificação dessas condições.
Se alguém oferece algumas condições suficientes para se ter autoridade, a
questão surge: é possível determinar que nenhuma outra condição estabeleça

13
Essa é uma consideração que me foi feita privadamente por H. L. A. Hart.
seção 4 – traduções 237

alguém como uma autoridade? Estabelecer um existencial negativo é noto-


riamente difícil, e enquanto tentei articular a teoria que se segue de modo
exaustivo, não tenho um argumento para mostrar que seja assim.
Quinto, a aquisição do conceito e os limites de sua aplicação: A
observação sobre a historicidade do conceito de autoridade requer algumas
clarificações breves. Ela implica duas possibilidades: primeiro, que houve
um tempo em que o conceito não existiu, e segundo, que nosso conceito é
um descendente de conceitos anteriores. É plausível pensar que ambos são
realizados, o que explica como o termo é usado: algumas vezes para referir-
-se a todo um conjunto de conceitos que são ancestrais de nosso conceito,
algumas vezes para referir-se ao conceito isoladamente.
Disso não se segue que há um conceito mais amplo, que seja usado
quando quer que usemos o termo no primeiro modo, i.e. para referir-se ao que
chamamos de um conjunto de conceitos ancestrais? E não é esse o conceito
real de autoridade? Sim e não. Sim, pois há um conceito geral. Não, porque é
errado identificar o conceito geral com o conceito de autoridade simpliciter.
A principal razão é que o modo, e penso que seja o único modo, em que a
noção ampla pode ser identificada como a identifiquei, i.e. historicamente,
como o conceito que se aplica a todas as instanciações do que chamei de
«nosso» conceito de autoridade é aquelas dos seus ancestrais (mais do que
suas características a-históricas). «Nosso» conceito é o conceito de autori-
dade, apenas se ele for nosso modo de acesso a todos seus ancestrais, que são
identificados por suas relações com ele.
É também verdadeiro que precisamos do conceito mais amplo, ou
melhor, que regularmente nos referimos a ele. Por exemplo, e crucialmente,
não pode haver autoridade de fato entre pessoas que não têm o conceito de
autoridade, pois ter autoridade de fato é, dentre outras coisas, pretender auto-
ridade legítima. Disso se segue que quando falamos de autoridades de fato
existentes na Idade Média, ou no Japão do século XV, ou na Pérsia Antiga,
referimos a algo similar ao conceito amplo: havia nesse tempo pessoas ou
instituições com poder sobre populações que pretendiam autoridade sobre
elas, usando-se aqui o ancestral apropriado de nosso conceito, ou o conceito
amplo, que inclui todos os ancestrais.
Um conceito é um ancestral se o conceito que sucede emergiu como
uma modificação de seu ancestral e reteve uma similaridade suficiente com
ele, ou em suas características ou em sua função. A relação não é tipicamente
uma de similaridade apenas. Ela contém um componente causal contingente.
Tipicamente, quando isso não existe, assim como quando encontramos numa
cultura diferente um conceito causalmente não-relacionado mas similar,
poderíamos identificá-lo apenas assim: «Eles», diríamos, «também têm
238 revista brasileira de filosofia – RBF 239

um conceito como (ou similar ao) nosso conceito de ----». Por outro lado,
similaridade e parte da relação ancestral, pois de outro modo não teríamos
quaisquer critérios para distinguir entre a modificação de um conceito por
um que lhe sucede e um conceito rejeitado em favor de uma alternativa.
Não e necessário dizer, uma vez que o conceito amplo e identificado
por suas relações com nosso conceito e seus ancestrais, e uma vez que
«nosso» conceito pode mudar ao longo do tempo e adquirir mais ancestrais,
o conceito geral que temos agora é diferente do que tínhamos, ou do que
teremos, quando «nosso» conceito foi ou irá ser diferente.
Sexto, explicação e sustentação: Estou sempre me referindo ao «nosso»
conceito de autoridade. Mas há um conceito como esse? Não haveria vários
conceitos, todos eles derivados dos mesmos ancestrais? É bem possível que
sim. Cada pessoa quando usa o conceito de autoridade usa seu conceito,
e deveria permitir a possibilidade de que haja vários. Isso não leva a uma
explosão de conceitos. A razão e simples: no uso de conceitos, assumimos
que somos ignorantes sobre muitos aspectos deles, que podemos usá-los
incorretamente, e que seu caráter é determinado pelas regras que governam
seu uso na comunidade, regras cuja compreensão completa pode enganar
alguns ou até mesmo todos nós. Ao permitir a possibilidade da ignorância
ao menos parcial no que concerne a natureza de nossos conceitos, reconhe-
cemos que os conceitos são seres sociais, possuindo as características de uma
comunidade de falantes através de modos que podem enganar a qualquer
um deles, e de fato a todos eles. Isso significa que nossos conceitos não são
muito idiossincráticos, que há conceitos comuns, mesmo que não possamos
conhecer todas suas características.
É desnecessário dizer que se há um número de conceitos de autoridade
prevalecentes numa sociedade singular, eles provavelmente irão competir
entre si. Os limites entre eles são fluidos, e aqueles que usam pretendem
mérito por ele, e (quando conscientes, mesmo que vagamente, da existência
dos outros) encontram razão para preferi-lo aos outros. Isso significa que
cada explicação de um conceito pode também ser usada na batalha dos
conceitos, onde houver essa batalha; ou seja, pode ser usado para sustentar
os méritos de um conceito sobre seus concorrentes.
A indeterminação dos conceitos é outro fator que força todas as expli-
cações a entrarem, se bem-sucedidas, no contexto da competição. As expli-
cações podem replicar as indeterminações dos conceitos que elas explicam,
mas é quase impossível replicá-las perfeitamente, e o sucesso da explicação
irá inevitavelmente exercer alguma influência na modificação do conceito
para conformá-lo a sua explicação.
seção 4 – traduções 239

II. UM BREVE RESUMO DA CONCEPÇÃO DA AUTORIDADE COMO SERVIÇO

A concepção da autoridade como serviço trata de dois problemas, um


teórico e outro moral. Iniciando pelo senso comum, que de modo geral e
com qualificações e amplificações apropriadas eu endosso, segundo o qual
autoridade corresponde a um direito de regular (a right to rule), a questão
teórica é a de como entender o status de uma diretiva autorizante (authori-
tative directive – como devo chamar o produto do exercício do direito de
regular). Se produzido por alguém que tem um direito de regular, então seus
receptores estão vinculados a obedecer. A diretiva é vinculante para eles e
eles estão obrigados a obedecê-la.14 Mas, como pode ser que a mera enun-
ciação (say-so) de uma pessoa constitua uma razão, um dever, para outrem?
É assim tão fácil fabricar deveres a partir de quase nada?
A questão moral é a de como pode ser possível que alguém tenha um
dever de sujeitar a própria vontade e juízo aos de outrem? Claro, somos
afetados por outros e pelas ações dos outros de vários modos. Com frequência,
agimos para induzir os outros a ajudar-nos ou a não nos atrapalhar, a cola-
borar conosco num empreendimento comum, a evitar danos ou a usar as suas
ações em nossa vantagem. Mas o caso da autoridade é especial. As diretivas
produzidas pela autoridade visam constituir razões para seus sujeitos e são
vinculantes porque elas pretendem ser vinculantes. Se reconhecemos um
dever de obedecê-las, reconhecemos que a autoridade tem um direito de
comando com relação a nós, não apenas para afetar as circunstâncias que
conformam nossas oportunidades e os obstáculos em nosso caminho. As
autoridades nos dizem o que pretender, com o propósito de alcançar quais-
quer objetivos que elas persigam ao comandar nossa vontade. Pode um ser
humano ter esse tipo de poder normativo sobre outrem? Pode ser correto
reconhecer esse poder sob si mesmo de outrem?
O problema teórico é similar ao que as promessas (e todas as obrigações
voluntárias) apresentam. Ao prometer, impomos em nós mesmos obrigações
que não tínhamos antes, e isso ocorre simplesmente através da comunicação
de uma intenção de assim fazer. Ao exercer autoridade, impomo-nos outros
deveres que eles não tinham antes, e isso corre simplesmente através da
expressão de uma intenção de assim fazer.15 Como ações que comunicam

14
As autoridades fazem muito mais do que impor deveres. Mas o que quer que elas façam
– conferir poderes ou direitos, garantir permissões ou imunidades, mudar o status, criar ou
terminar pessoas jurídicas (corporações e seus similares), regular as relações entre órgãos
de pessoas jurídicas, e muito mais – elas o fazem através da imposição de deveres, reais ou
condicionais. Irei, portanto, continuar, como escritores sobre autoridade geralmente fazem, a
discutir o problema da autoridade em relação a seu direito de impor deveres.
15
Em ambos os casos, algumas vezes a pessoa que está sob a obrigação já tem uma obrigação
de realizar o mesmo ato. «Uma obrigação que ele não tinha antes» não significa uma obrigação
240 revista brasileira de filosofia – RBF 239

intenções podem criar razões ou obrigações (para nós mesmos ou para os


outros) apenas porque elas comunicam essas intenções?
O começo da resposta está em notar que não há fundamentalmente
nada de especial nesse caso. Várias de nossas ações incorrem em obriga-
ções. Conceber e dar nascimento a uma criança é frequentemente um caso
como esse. Infringir os direitos das outras pessoas é outro caso (gera uma
obrigação de realizar reparos etc.). Se os argumentos de que temos uma obri-
gação por aquilo que fizemos, ou por como agimos, forem verdadeiros, eles
o são em virtude de razões gerais para pessoas que agiram de certos modos
para contraírem certas razões ou obrigações. Há, pode-se assumir, razões
gerais para que qualquer um que tenha uma criança demonstre cuidado, ou
uma razão geral para qualquer um que viole o direito de outrem realiza uma
compensação, e assim por diante.
Promessas e autoridades não são exceções. Nem sempre que alguém
age com a intenção de contrair uma obrigação com respeito a outrem, isso
significa que ele ou ela realiza uma promessa vinculante. Uma promessa
é vinculante somente se a ação prometida é de uma classe com relação a
qual há razões suficientes para considerar quem promete vinculado a sua
promessa. Isso significa que para serem vinculantes, as promessas devem
preencher muitas condições: quem promete deve ser capaz de saber o signi-
ficado de sua ação; deve ser capaz de ter uma compreensão razoável de suas
prováveis consequências, e, de modo mais importante, (a) o ato prometido
deve pertencer a uma classe de ações tal que se melhore o controle das
pessoas sob sua própria vida através da realização dessas promessas, e (b) o
ato não deve ser extremamente imoral etc. Uma promessa para ser escravo
não é vinculante, nem uma promessa para tornar alguém um escravo, e assim
por diante.
A questão teórica com relação à natureza da autoridade é respondida de
modo similar. Uma pessoa pode ter autoridade sobre outrem somente se há
razões suficientes para que o último se sujeite aos deveres do primeiro. Isso,
é claro, ainda que seja provavelmente correto, não nos informa sobre quando
uma pessoa tem autoridade sobre outrem. Não estabelece sequer que alguém
possa ter qualquer autoridade. Mas enuncia o que deve ser o caso se algumas
pessoas têm autoridade sobre outras. Isso é tudo que alguém pode extrair
de uma teoria geral da autoridade, nomeadamente, que ela estabeleça o que
se deve preencher para que exista autoridade legítima, mais do que mostrar
quem tem autoridade sobre quem e com relação ao que. Essa última tarefa
é um problema para avaliar em casos individuais. Mas, é claro, uma teoria

para fazer algo que até então ele não tinha nenhuma obrigação para fazer. A obrigação é nova,
mesmo se outra obrigação para realizar o mesmo ato já exista.
seção 4 – traduções 241

geral da autoridade pode, ainda que não estabeleça quem realmente tem
autoridade, dizer muito mais sobre as condições sob as quais as pessoas estão
sujeitas à autoridade. Em particular, esperamos que ela trate do problema
moral da autoridade, a saber, como pode ser consistente com o status de
alguém como pessoa a situação de estar sujeito à vontade de outrem, do
modo como alguém está sujeito à autoridade de outrem?
A sugestão da concepção da autoridade como serviço é que a questão
moral pode ser respondida quando duas condições são preenchidas, e com
relação aos problemas de que elas tratam: primeiro, que o sujeito deva
conformar-se melhor com as razões que se aplicam a ele de qualquer modo
(ou seja, com razões diferentes das diretivas da autoridade) quando ele
pretende16 ser guiado pelas diretivas da autoridade mais do que quando ele
não o faz (irei referir-me a isso como a tese ou condição da justificação
normal). Segundo, que os problemas aos quais a primeira condição se aplica
sejam tais que com respeito a eles seja melhor conformar-se com a razão do
que decidir por si mesmo, sem o auxílio da autoridade (irei referir-me a isso
como a condição de independência).
Exemplos simples de regulações relacionadas a atividades ou materiais
perigosos ilustram a situação. Posso mais bem evitar uma situação de perigo
a mim mesmo e a outros me conformando com a lei relacionada à dispensa
e ao uso de produtos farmacêuticos. Posso confiar nos especialistas cujas
opiniões refletem o conhecimento sobre o que é perigoso nesse contexto
melhor de que posso julgar por mim mesmo; um fato que é reforçado por
minha confiança na conformidade das outras pessoas a referida lei, o que me
habilita a agir com uma segurança que de outro modo não poderia fazê-lo.
Nada disso, é claro, é necessariamente assim. A lei pode refletir os interesses
das empresas farmacêuticas, e não dos consumidores. Se for assim, ela pode
não possuir autoridade sobre mim porque falha em preencher a condição da
justificação normal.17 Mas se ela de fato preencher a condição da justificação
normal, é provável que ela também preencha a condição de independência
também. As decisões sobre a segurança dos produtos farmacêuticos não são
como decisões pessoais com relação às quais devo decidir por mim mesmo
mais do que seguir a autoridade. Elas não exigem de mim o uso de quaisquer

16
Talvez devo dizer «tentar» em vez de «pretender» para cobrir casos em que embora
alguém pretenda ser guiado pela autoridade, ele irá falhar em virtude da debilidade de sua
vontade, e faria portanto melhor se ignorasse a autoridade e tentasse conformar-se com as
razões subjacentes. Há provavelmente refinamentos intermináveis desse tipo, que não tentarei
oferecer, e que são provavelmente impossíveis de enumerar.
17
Para o propósito do exemplo apenas. Desconsidero o fato complicador de que a autoridade
da lei é mais ampla do que com relação à posse e o uso de produtos farmacêuticos. Isso
levanta a questão da unidade de avaliação em determinações da legitimidade das autoridades,
que será discutida adiante.
242 revista brasileira de filosofia – RBF 239

remédios etc, e, nesse sentido, elas são diferentes de decisões sobre adotar
certo tipo de medicação ou tratamento em que podemos muito bem pensar
que devo decidir por mim mesmo, mais do que submeter-se às ordens da
autoridade.
Afirmei que as duas condições resolvem a questão moral sobre a auto-
ridade. Mas em que sentido elas o fazem? Várias objeções podem ser ante-
cipadas. A condição da independência, pode-se objetar, meramente repete o
problema e não ajuda em sua solução. O cerne do problema moral é que agir
por si mesmo é mais importante do que qualquer outra coisa. Que avanço é
realizado ao enunciar que a autoridade é legítima apenas quando agir por si
mesmo é menos importante do que conformar-se com a razão?
Outra objeção à condição de independência enuncia que ela sugere que
alguém compara a importância de conformar-se com a razão com a impor-
tância de decidir por si mesmo, independentemente da autoridade. Mas isso,
a objeção enuncia, não pode ser feito: as duas são preocupações muito dife-
rentes, incomensuráveis. Não há nunca uma resposta à questão de qual das
duas é a mais importante? Duvido que essa objeção seja válida. Ela parece
estar baseada no pensamento de que as preocupações que subjazem às razões
com que nos devemos conformar e aquelas que subjazem à razão para agir
de modo independente da autoridade não guardam relação entre si. Mas isso
não é assim.
Algumas das razões para confiar no próprio juízo derivam da neces-
sidade de cultivar a habilidade de ser autoconfiante, simplesmente porque
com frequência uma pessoa não tem mais ninguém em quem confiar. O caso
mais claro é o modo em que os pais devem permitir que seus filhos decidam
com liberdade numa quantidade gradualmente maior de problemas, mesmo
que eles saibam que fariam uma escolha melhor por seus filhos se eles deci-
dissem sobre esses problemas. Esse é o modo em que os filhos aprendem a
como decidir por si mesmos e tornam-se autoconfiantes. Há outras razões
para decidir por si mesmo. Alguns problemas devem, pelas formas sociais
de várias culturas, ser resolvidos pelo próprio agente. Por exemplo, enquanto
que em algumas formas de casamento os pais escolhem os cônjuges, em
outras se espera que nem os pais nem qualquer outra pessoa tenha qual-
quer poder sobre isso. Nesses casos, a pessoa não pode ter uma relação, ou
engajar-se no bem ou na atividade, a menos que ela o faça por si mesma, não
através de um agente, nem seguindo um superior.
O caso anterior da autoconfiança (o caso dos pais e do filho) é instru-
mental, no sentido de que o fim é assegurar o que a conformidade com a
razão irá, a longo prazo, assegurar; o último caso (o casamento) depende
do fato de que haja razões que possam apenas ser satisfeitas pela ação inde-
seção 4 – traduções 243

pendente.18 Ambas visualizam as preocupações sobre a independência como


preocupações sobre as razões a serem satisfeitas. O pensamento de que as
duas preocupações nunca se relacionam e devem ser incomensuráveis é
injustificado. A questão da função do que chamei de independência também
envolve outras considerações, talvez mais fundamentais. Não somos comple-
tamente nós mesmos se muitas de nossas decisões não são tomadas por nós,
mas por agentes, máquinas, ou superiores. Por outro lado, algumas vezes
é nosso dever, nosso dever moral alguém pode dizer, aceitar a autoridade.
Algumas vezes – por exemplo, na cena de um acidente – a coordenação,
que nas circunstâncias requer o reconhecimento de que alguém é o respon-
sável pelo resgate, é essencial para que vidas sejam salvas. Devemos restar
na autoridade, quando há alguém capaz de desempenhar essa função. Na
esfera política, há muitos casos análogos e menos dramáticos do que essas
situações, onde um bem substancial está em jogo, um bem que temos razões
morais para assegurar por nós mesmos e para os outros, mas que pode nas
circunstâncias ser mais bem assegurado através de uma autoridade coorde-
nadora. Esses casos justificam a desistência de decidir por si mesmo, e não
põem qualquer ameaça a autenticidade da vida de alguém, ou a habilidade
de levar uma vida autoconfiante e bem-sucedida. Nada disso nega que, com
frequência, as duas preocupações, uma satisfeita pela conformidade com
razões, e a outra através da ação com base no seu próprio juízo, podem ser
radicalmente diferentes, e os casos em favor da conformidade ou da indepen-
dência podem ser incomensuráveis, com o resultado (não confortável) de que
se alguém está ou não sujeito à autoridade é algo indeterminado.
A outra objeção à condição de autonomia não pode ser refutado tão
facilmente. Ele deve criticado não por uma refutação, mas por uma deflexão.
De fato, a condição da independência faz pouco para resolver o problema.
Esse não é seu objetivo. Ela meramente articula a questão. Parte da resposta
ao desafio moral a toda a autoridade está na primeira condição, a qual
enuncia que a autoridade pode ser legítima se a conformidade com ela
melhora a conformidade de alguém com a razão.19 Ela fornece a chave para
a justificação da autoridade: a autoridade ajuda a nossa capacidade racional
cuja função é assegurar a conformidade com a razão. Ela permite que nossa
capacidade racional alcance seu propósito de modo mais bem-sucedido.
Essas observações expressam um modo de compreender nossa capacidade
geral de guiar nossa conduta (e nossa vida mais genericamente) por nosso

18
Referi-me a noção de razões de segunda ordem para expressar essas situações. Elas
envolvem razões para agir por certa razão, e a faculdade da razão cumpre sua função quando
nos conformamos com essa razão de segunda ordem.
19
À guisa de brevidade, usarei esse e outros enunciados similares menos precisos da primeira
condição.
244 revista brasileira de filosofia – RBF 239

próprio juízo. O propósito dessa capacidade geral é habilitar-nos a conformar


com as razões que nos confrontam em quaisquer circunstâncias particulares.
É a conformidade alcançada pelo exercício do próprio juízo. Valorizamos
a habilidade de exercer o próprio juízo e de agir com base nele, mas essa
é uma capacidade que valorizamos em virtude de seu propósito, que é, por
sua própria natureza, assegurar a conformidade com a razão. O argumento é
perfeitamente geral. O valor de muitas de nossas capacidades não deve ser
reduzido ao valor de seu uso. Mas, mesmo quando seu valor também reflete
o valor da liberdade de usar ou não as nossas capacidades, ele depende do
valor de seu uso bem-sucedido.
O valor de nossa capacidade racional, i.e. nossa capacidade para formar
uma visão sobre nossa situação no mundo e para agir com base nela, deriva
do fato de que há razões que devemos satisfazer, e que essa capacidade nos
habilita a assim fazê-lo. Esse não é, contudo, o único modo que temos de
conformarmos com razões. Temos a tendência, p.ex., de estar alertas a certos
perigos e de reagir frente a eles instintivamente e sem deliberação, como
reagimos ao fogo ou ao movimento repentino daquilo que nos circunda. Em
outros contextos nos saímos melhor se seguimos nossas emoções mais do
que se raciocinamos sobre nosso modo de agir. Esses exemplos sugerem que
o valor primário de nossa habilidade geral de agir com base no nosso próprio
juízo deriva da preocupação em conformamos com razões, e essa preocu-
pação pode ser preenchida de variados modos. Não é, portanto, surpreen-
dente que estejamos diante de situações em que seja mais fácil preenchê-la
com a obediência a uma autoridade, tal como realizar juramentos, seguir
conselhos, vincular a si mesmo aos outros antes do momento da ação com
uma promessa para agir de certos modos, ou restar em conselhos técnicos
para «tomar decisões em nosso lugar», quando, p.ex., acertamos um relógio
de alarme, ou limites de velocidade etc.
Tanto quando somos guiados por nossas emoções como quando somos
guiados por nosso juízo (não necessariamente condições mutuamente exclu-
sivas), participamos de algumas atividades e relações que são valiosas em si
mesmas, apontando para casos em que a condição da legitimidade enquanto
independência não é satisfeita. Do mesmo modo, pode haver outras formas
de atividades, atividades e empreendimentos em conjunto, que são valiosos
em si mesmos e que inerentemente envolvem sujeitar-se a decisões tomadas
por outros. As condições de legitimidade estão abertas a diferentes visões
sobre o que é o que não é valioso e útil. Elas meramente enunciam como as
conclusões sobre esses problemas se relacionam com a questão da autoridade.
Ao postular que as autoridades são legítimas somente se suas diretivas
habilitam seus sujeitos a mais bem se conformarem com a razão, vemos a
autoridade pelo que ela é: não uma negação da capacidade das pessoas para
seção 4 – traduções 245

a ação racional, mas simplesmente como uma estratégia, um método, através


de cujo uso as pessoas podem alcançar o fim (telos) de sua capacidade para
a ação racional, mesmo que não por seu uso direto. Esse modo de entender
o problema é reforçado pelo fato de que, ao seguir a autoridade, do mesmo
modo em que se segue um conselho, ou em que se é guiado por qualquer
consideração técnica, a autoconfiança última de alguém está preservada, pois
é seu próprio juízo que lhe direciona a reconhecer a autoridade de outrem,
assim como lhe direciona a cumprir suas promessas, seguir conselhos, usar
artifícios técnicos e assim por diante.
É claro que a autoridade é um caso especial, uma vez que ela restringe
a ação independente de alguém. A concepção da autoridade como serviço
expressa esse pensamento através da tese de que as diretivas autorizantes
isolam as razões que pesam contra a conduta que elas requerem e que a
autoridade deve ter tomado em consideração ao decidir sobre quais dire-
tivas ela deveria formular. Aqueles que estão sujeitos à autoridade não estão
permitidos a especular sobre a correção (wisdom) ou a razoabilidade (advisi-
bility) das diretivas da autoridade. Uma descrição simplificada de situações
típicas explica o argumento. Há razões com as quais todos nos devemos
conformar, diga-se, p.ex., com relação à segurança no trânsito. Na ausência
de uma lei (ou de outras diretivas autorizantes) que nos diga como dirigir
(impondo restrições de velocidade, luzes de tráfego, sinais nas estradas etc.),
tentaríamos dirigir quão seguro nos fosse possível. A lei de trânsito busca
habilitar-nos a dirigir de modo mais seguro (i.e. a se conformar melhor com
as razões subjacentes), e ela o faz direcionando-nos a fazer coisas que, de
outro modo, não faríamos. Onde a lei deixa espaço para decisões sobre como
dirigir para nós mesmos, ainda assim somos guiados pelas considerações
subjacentes. Mas onde ela intervém e requer certos modos de como dirigir,
estamos vinculados a obedecê-la, e não estamos permitidos a questionar sua
força, mesmo quando estamos, é claro, permitidos a questionar sua correção
e a lutar por sua reforma. Isso é, basicamente, o que significo quando digo
que leis legítimas, e as diretivas de autoridades legítimas genericamente,
isolam as razões subjacentes que podem militar contra as diretivas autori-
zantes e procuram substituí-las com seus próprios requerimentos.20

20
Não pretendo realizar uma análise excessivamente detalhada, mas se deve notar que há
dois tipos de razões que a tese da substituição (preemption thesis) afeta: primeiro, ela substitui
razões contra a conduta requerida pela diretiva autorizante. Segundo, ela substitui razões que
não necessariamente se relacionam com os prós e contras de comportar-se como a diretiva
requer, mas de fato pesam contra a desejabilidade em formular a diretiva. Essas razões podem
ser que o conteúdo deva ser relegado à discricionariedade individual, ou que a diretiva terá
efeitos colaterais indesejáveis que a tornam indesejável, e assim por diante.
246 revista brasileira de filosofia – RBF 239

A força substitutiva (preemptive force) da autoridade é parte de sua


natureza. Ela não pode ser bem-sucedida como uma autoridade (i.e. bem-
-sucedida em aumentar nossa conformidade com a razão), se ela não isolar
as razões subjacentes. A função das autoridades é aumentar nossa conformi-
dade com essas razões subjacentes fazendo-nos tentar seguir suas instruções,
mais do que as razões subjacentes mesmas. As autoridades não podem fazer
isso sem ao menos haver a possibilidade de que suas diretivas irão algumas
vezes levar-nos a agir de modo diferente do que teríamos agido sem elas.
Em si mesmo, apesar de isso exigir que as diretivas da autoridade devam
ser capazes de mudar o que devemos fazer, levando tudo em consideração,
isso não especifica de que modo elas influenciam no que temos mais razão
para fazer. A tese da substituição (preemption thesis) explica isso: ela reflete
o pensamento de que as autoridades podem funcionar do modo descrito,
porque seus decretos são produto de decisões tomadas por agentes que são
eles mesmos designados para determinar o que devemos fazer, e direcionar-
-nos nesse sentido. Eles constituem autoridades legítimas quando, assim
fazendo, irão de fato alcançar o resultado de conformar-nos melhor com
a razão (respeitando as razões existentes para determinar nossas ações por
nosso próprio juízo). O fato de que esse é o modo em que elas operam indica
que quando as autoridades são legítimas, seus decretos devem substituir as
razões subjacentes. Os decretos isolam essas razões. Quão grande é esse
isolamento? O que conta como razões subjacentes? Elas são as razões que
a autoridade deveria considerar ao formular suas diretivas, considerando,
claro, que ela age dentro de seu poder legítimo.
O caráter substitutivo das diretivas autorizantes mostra porque a questão
moral sobre o Direito é uma questão séria. Ele mostra que alguma verdade
existe no enunciado de que, ao aceitar uma autoridade, rendemos nosso juízo
ao da autoridade. Ao mesmo tempo, a solução do problema teórico mostra
que, a despeito de seu caráter especial, a autoridade, quando submetida às
condições da justificação normal e da independência, é apenas outro caso do
mundo que nos confronta com razões para ação. O desafio teórico foi «como
podem pessoas criar razões para agir com a intenção de assim fazer?» A
resposta é que isso é assim quando considerações que são independentes da
vontade humana podem assim fazê-lo.
Aqui novamente vemos a analogia (assim como a diferença) entre auto-
ridade e promessas. Ambas produzem razões geradas por ações designadas
para assim fazer, um fato que dá a ambas seu ar duvidoso, e ambas podem
fazê-lo porque considerações independentes da vontade humana validam a
criação dessas razões. Portanto, ao seguir ambas, seguimos a razão, e, assim,
exercemos nosso juízo – embora em ambos os casos façamos isso suspen-
dendo nosso juízo – ao aceitar, através de nosso juízo, a força vinculante
seção 4 – traduções 247

dos atos (promessas, diretivas) que substituem nossa liberdade de agir por
algumas dessas razões subjacentes. É verdadeiro que somente a autoridade
envolve a aceitação das diretivas de outrem. Mas se as duas condições estão
corretas, as diretivas autorizantes, assim como as promessas, são vinculantes
quando elas melhoram nossos poderes, habilitando-nos a conformar melhor
com a razão, mais do que poderíamos fazer sem elas.

III. REFINAMENTOS E ELABORAÇÕES

Até agora, procurei mostrar as linhas gerais da concepção da autoridade


como serviço e explicar como ela lida com os dois problemas básicos sobre
a autoridade. Seu sucesso em lidar com eles é o caso principal para acreditar
que ela está no caminho correto. Mas para que a teoria se mostre plausível no
todo, ela também tem de lidar com um conjunto de dificuldades adicionais.
Nessa seção, irei brevemente atentar para um grupo de dificuldades, cuja
reflexão levará ao refinamento da teoria, assim como à demonstração de
alguns de seus pontos fortes.

A) PODEMOS ESTAR SUJEITOS A VÁRIAS AUTORIDADES AO MESMO


TEMPO?

Claro que podemos. A questão mais difícil é se podemos estar sujeitos


a mais de uma autoridade com relação à mesma matéria ao mesmo tempo.
A tese da justificação normal está baseada no contraste entre como eu agiria
se não fosse afetado pela autoridade e como eu agiria quando tentasse seguir
a autoridade. No contexto, isso é ambíguo. Isso significa «como eu agiria
quando não influenciado por qualquer autoridade?» ou «como eu agiria
quando não tentasse seguir essa autoridade em particular?». A primeira
questão permite a possibilidade de que estejamos sujeitos a várias autori-
dades ao mesmo tempo e com relação à mesma matéria. Isso é como deve
ser. Podemos estar sujeitos à autoridade de nossos pais, de nossas escolas, e
do Direito, por exemplo, ao mesmo tempo, e sobre a mesma questão.
Quando sujeitos a várias autoridades com jurisdições similares ou
parcialmente coincidentes, algumas questões podem estar reguladas por
uma autoridade, enquanto outras podem não ser por ela reguladas. Devemos,
nesses casos, seguir aqueles que formulam as diretivas sobre a questão.
Quando várias autoridades se pronunciam sobre o mesmo problema e suas
diretivas estão em conflito, devemos decidir, com o melhor de nossa habili-
dade, qual é mais confiável como um guia. Com frequência, há relações de
cooperação entre autoridades. O Direito reconhece a autoridade das escolas
e dos pais, por exemplo, e confere-lhes autoridade jurídica, direcionando as
pessoas relevantes a obedecê-los, ou implementando suas diretivas através
248 revista brasileira de filosofia – RBF 239

de procedimentos jurídicos. Em outras situações, as autoridades podem ser


hostis entre si, direcionando seus sujeitos a não obedecerem, e mais gene-
ricamente a não cooperarem com o trabalho de outras autoridades. Nesses
casos, a questão de se o poder de uma dada autoridade se estende de modo a
excluir a autoridade de outrem deve ser julgado do modo em que julgamos
a legitimidade de seu poder em qualquer matéria, a saber, se nos conforma-
ríamos melhor com a razão ao tentar seguir suas diretivas do que se não o
fizéssemos.

B) SUBSTITUIÇÃO (PREEMPTION) E AGIR PELAS MELHORES RAZÕES

Com frequência, temos mais do que uma razão suficiente para fazer
algo. Uma diretiva autorizante nos pode direcionar a fazer algo que faríamos
por razões independentes de toda forma. Por exemplo, posso ter prometido a
um amigo dirigir vagarosamente e uma lei também me instrui a dirigir assim.
Se dirijo vagarosamente, posso fazê-lo em virtude da promessa apenas, sem
estar ciente da lei ou sem me importar em obedecê-la, ou posso fazê-lo em
virtude da lei apenas, ou em virtude de ambas, ou ainda por alguma outra
consideração que parece ser uma razão cogente, mas que pode não o ser.
Essas situações não levantam problemas. Mas o Direito envolve um
diferente tipo de sub-determinação. Pelo Direito não devemos matar, mas
também temos uma razão independente para não matar, a saber, o respeito
pela vida humana. Esse caso é típico de muitos. Outro tipo de sub-determi-
nação é diferente. Temos uma razão independente do Direito para contribuir
com nossa parte nos custos para manter serviços comuns. O Direito impõe um
dever de pagar taxas como um modo de fazê-lo. De maneira independente do
Direito, não temos uma razão para pagar a soma precisa que devemos como
taxa. Mas, uma vez que o Direito existe, temos duas razões, poderíamos dizer,
para pagar a soma que devemos como taxa (podemos desconsiderar aqui
que o Direito tributário provavelmente serve a outros propósitos também).
Uma é a nossa obrigação de obedecer ao Direito, o outro é o nosso dever de
contribuir com os custos dos serviços da comunidade.
Idealmente, deixaríamos de matar exclusivamente por nosso respeito
pelas vidas das pessoas, e não por respeito ao Direito. Idealmente, devemos
pagar nossas taxas porque devemos contribuir com nossa parte para os custos
dos serviços da comunidade, assim como porque o Direito exige isso. É isso
consistente com a tese da substituição (preemption thesis)?
Uma compreensão adequada da substituição (preemption) remove
qualquer suspeita de problema. Uma diretiva autorizante vinculante não
é apenas uma razão para comportar-se como ela exige, mas também uma
razão excludente, ou seja, uma razão para não seguir (i.e. para não agir com
seção 4 – traduções 249

base nas) as razões que entram em conflito com a regra. É desse modo que
as diretivas autorizantes substituem as razões. Elas excluem a ação com
base nas razões conflitantes, não todas elas, mas aquelas que o legislador
deveria considerar antes de formular a diretiva. Essas razões excludentes não
excluem, é claro, a ação com base em razões para comportar-se do mesmo
modo que a diretiva requer. Pense sobre isso: a autoridade melhora nossa
conformidade com a razão ao evitar aquilo que faríamos sem ela, quando
isso significa não conformar-se com a razão. Então, assumindo que ela é
inteiramente bem-sucedida em sua tarefa, ela não precisa e não nos impede
de seguir as razões do lado vencedor de um argumento. Ela deve, no entanto,
se melhora nossa conformidade com a razão, impedir nossa inclinação de
seguir as razões do lado perdedor do argumento. A substituição (preemption)
exclui apenas razões que entram em conflito com a diretiva da autoridade.
Então, quando uma ação é corretamente requerida pela autoridade (i.e.
quando há razões conclusivas em seu favor, independentemente da inter-
venção da autoridade), podemos (em ambos os sentidos) fazer o que nos é
requerido tanto porque somos requeridos a fazê-lo, como pelas razões que
justificam o requerimento, ou por ambos. Algumas vezes, como no caso da
proibição de assassinato, fazer o que é requerido pela autoridade por razões
cogentes diferentes do fato de que a conduta é requerida é a melhor opção.
Há outros casos, por exemplo, casos em que a diretiva formulada pela autori-
dade está errada ou não justificada. Ela requer alguma ação, cuja realização,
enquanto sustentada por razões independentes de alguma autoridade, não
é sustentada de modo suficiente para requerer essa ação, nem mesmo se a
diretiva que a requer fosse ignorada. Isso pode ser consistente com o fato
de a diretiva ser vinculante para nós. Mesmo autoridades legítimas podem
cometer erros. Nesses casos, devemos conformar-nos com a diretiva, e o
caso ideal é aquele em que o fazemos porque somos requeridos pela autori-
dade e não por outras razões que sustentam a ação.
O exemplo da taxa é diferente porque não temos uma razão indepen-
dente do Direito para pagar exatamente o que é requerido pelo Direito e
pagá-lo a essa autoridade em particular, mesmo que, quando o Direito esteja
vigente, a razão que justifica pagá-la é uma razão para fazer aquilo que o
Direito requer, o que é distinto do dever geral que temos de obedecer a uma
autoridade legítima. Nesses casos, a melhor opção é agir por ambas as razões,
i.e. tanto pelo Direito como pela razão subjacente a ele.
Em que sentido são essas opções as melhores? Tudo que nos é requerido
é conformar-se com a razão, e não importa por qual razão, ou razão imagi-
nada, assim fazemos. No entanto, não apenas o que fazemos, mas também
porque fazemos diz algo sobre nós. É com relação a esses juízos, juízos sobre
250 revista brasileira de filosofia – RBF 239

o agente, sobre que tipo de pessoa ele é, como ele se comporta e assim por
diante, que as razões reais que o conduzem a ação importam.

C) RAZÕES CONFLITANTES

As diretivas autorizantes não são sempre razões conclusivas para a


conduta que elas requerem. Elas podem ser derrotadas por razões confli-
tantes, ou por diretivas conflitantes. As razões que podem derrotá-las são
as que elas não excluem. A questão é de alguma importância quando rela-
cionada ao Direito. Tipicamente, uma regra do Direito não exclui outra de
mesma hierarquia (no sentido em que regras constitucionais, legislação
primária, legislação delegada, e o common law são de diferente hierarquia).
As regras do Direito excluem muitas considerações não jurídicas, embora
os sistemas jurídicos tipicamente permitam que algumas contenham e que,
algumas vezes, superem requerimentos jurídicos. Mas elas não excluem
outras regras jurídicas de mesma hierarquia. Meu argumento é que regras
jurídicas constituem razões prima facie para a conduta que elas prescrevem.
Quando regras jurídicas entram em conflito, como o resultado deve
ser decidido? Há muitos artifícios a que o Direito apela como auxílio. O
problema surge quando nenhum artifício formal está disponível ou é sufi-
ciente. A questão é se os méritos relativos das razões subjacentes, aquelas
contra e em favor de cada uma das regras, conta na correta determinação de
um conflito como esse. Parece desarrazoado ignorar essas razões subjacentes,
pois isso implica tomar todas as regras de mesma hierarquia constitucional
como contando do mesmo modo e no mesmo grau com respeito ao resultado.
Dado que uma regra pode ser trivial, p.ex. alguma regulação tributária menor,
enquanto a outra pode referir-se a uma questão central sobre a proteção dos
direitos fundamentais, seria desarrazoado tomá-las como sendo de mesma
importância. Ainda assim, a tese de que as diretivas autorizantes excluem
a ação com base em considerações conflitantes não significa que alguém
não está permitido a avaliar a verdadeira importância de uma regra, o que
envolveria avaliar tanto as razões contra como as razões em seu favor, e isso
inclui as razões contra e em favor da conduta que ela prescreve?
No entanto, a tese da substituição implica rejeitar ambas as alternativas.
Como mencionado, ela exclui a referência a considerações subjacentes e,
então, impede uma avaliação da importância da regra. No entanto, disso
não se segue que todas as regras de mesma hierarquia constitucional devem
ser vistas como sendo de mesma importância. Do mesmo modo em que a
autoridade formula o Direito, ela também indica, ou ao menos pode indicar,
sua importância. Há vários modos de fazê-lo, em sua maior parte implícitos,
alguns mais explícitos, como preâmbulos e outros materiais legislativos.
seção 4 – traduções 251

Outras indicações são implicadas na linguagem em que o Direito é expresso


no contexto de sua legislação. Na medida em que a prática judicial instrui as
Cortes a recorrerem a esses artifícios, eles são reconhecidos como juridica-
mente vinculantes e têm status autorizante.
Não se nega que essas considerações são improváveis para determinar
todas as questões que possam surgir sobre a importância de cada regra
jurídica. Nem podem todas as questões que surjam de conflitos entre regras
jurídicas serem determinadas a partir da prioridade de algumas sobre outras.
Com frequência, em vez de seguir uma regra em detrimento de outra, os
conflitos práticos devem ser resolvidos encontrando a opção que satisfaz
as regras conflitantes no maior grau possível. Isso se segue da natureza da
racionalidade prática que requer que quando razões não possam ser comple-
tamente satisfeitas, elas devem ser conformadas no maior grau possível. Isso
requer que as Cortes confrontadas com conflitos desse tipo encontrem um
resultado ótimo, o que envolverá uma compreensão do propósito das regras
conflitantes. Já vimos que isso é consistente com a concepção da autoridade
como serviço.
Mesmo assim, não com pouca frequência em diferentes conflitos entre
regras do Direito, o Direito não contém os recursos para resolver o conflito.
Ele é indeterminado com relação à questão, usualmente deixando essas deci-
sões para a discricionariedade dos juízes, i.e. para seu juízo sobre o mérito
real das diferentes regras, um juízo que vai além do que o Direito determina.

D) RAZÃO E POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO

É um problema de disputa se um fator não conhecido por alguns agentes,


ou não conhecível para eles, pode ainda assim constituir uma razão para esses
agentes. Qualquer que seja a verdade sobre essa questão geral, há razões
independentes para pensar que alguém ou alguma instituição pode ser uma
autoridade apenas se o fato de que as duas condições são preenchidas podem
ser conhecidas pelos sujeitos. O sentido que há em sujeitar-se a uma autori-
dade é que ela abre um caminho para melhorar a conformidade de alguém
com a razão. Um indivíduo alcança isso ao conformar-se com as diretivas
da autoridade, e (circunstâncias especiais à parte) ele pode conformar-se
com segurança apenas se ele tem crenças confiáveis com respeito a quem
tem autoridade legítima, e o que suas diretivas são. Se alguém não pode ter
crenças confiáveis de que certa instituição preenche as condições de legiti-
midade, então a crença de alguém na autoridade é arbitrária, e não pode (de
novo, circunstâncias especiais aparte) ser confiável. Portanto, para preencher
sua função, a legitimidade de uma autoridade deve ser conhecível por seus
sujeitos.
252 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Ao enunciar esse argumento, assumo que quando quer que alguém


possa formar crenças confiáveis sobre o preenchimento das condições para
legitimidade, esse alguém pode também ter conhecimento de que elas são
preenchidas. Também estive baseando-me no fato de que, genericamente, o
único meio confiável de conformar-se com a autoridade é através da posse
de uma crença confiável de que ela é uma autoridade, e portanto que deve
ser obedecida. Essa hipótese ajuda a definir mais precisamente o que tem de
ser o caso para que a legitimidade seja conhecida. Na medida em que o foco
é a melhor conformidade com a razão, há ao menos uma medida genérica de
quão importante essa melhora é. Quanto mais importante ela é, mais ques-
tões extensas sobre os modos de alcançá-la são levantadas. O grau indicado
da questão define o limite da possibilidade do conhecimento: é conhecível
apenas se uma questão desse tipo conduz a esse tipo de conhecimento.
Engajamo-nos nessas avaliações em todos os dias da semana. Regu-
larmente precisamos decidir até quando engajar-se na questão com a espe-
rança de chegar a uma conclusão mais confiável ou detalhada sobre qual é
o curso correto de ação em várias ocasiões. Quando a questão é de impor-
tância, ampliamos nosso projeto e nossa deliberação para muito além do que
fazemos quando a questão é relativamente sem importância. O mesmo tipo
de consideração se aplica ao estabelecimento da existência de autoridades.
Quanto se pode esperar a melhora de nossa conformidade com a razão, e
quão importante é a questão estabelecem em qual projeto é razoável engajar-
-se. Quando o projeto razoável não revela o caso para a autoridade, esse caso,
se é que existe, não é conhecível. Disso se segue que as pessoas não estão
sujeitas a qualquer autoridade com relação a essas questões.
Esse argumento é usado aqui para estabelecer não meramente que não é
racional, nem valioso, perseguir o projeto sobre a existência de certas razões,
mas que essas razões, diretivas autorizantes, não existem. Não há autori-
dade sobre a questão, porque para que existam, as autoridades devem ser
conhecíveis (knowable). Essa extensão do argumento não é surpreendente.
A concepção da autoridade como serviço faz a legitimidade das autoridades
restar primariamente em seu valor para atingir algo além delas, i.e. a confor-
midade com as razões subjacentes que existem de modo independente delas.
Em geral, não temos razão para perseguir os meios a menos que tenham
algum valor em serem perseguidos, dado o custo de fazê-lo relativo à impor-
tância dos fins. Para dar um simples exemplo: suponho que posso fazer
com que você me dê cinco reais ao dar-lhe dez reais sob a condição de que
você me dê cinco reais de volta. Mas (circunstâncias especiais à parte), não
tenho qualquer razão para perseguir esse meio para esse fim, nenhuma razão
mesmo. Não é meramente o caso de que tenho uma razão que é derrotada
pelo custo de perseguir o meio. O caso da autoridade não é exatamente o
seção 4 – traduções 253

mesmo, mas é análogo: obedecer a Joana, digamos, me ajudaria a mais bem


conformar-me com as razões que se aplicam a mim. No entanto, não posso
saber isso sem engajar-me num projeto em que seria irracional engajar-me.
Disso se segue que não tenho razão para obedecer a Joana, e disso se segue
que Joana não tem autoridade sobre mim.

E) A CLASSE MENOR

Há outras restrições epistêmicas para as condições de legitimidade. Elas


restringem a aplicação de condições substantivas. Por exemplo, suponha-se
que podemos estabelecer que nos conformaremos melhor com a razão se
seguimos a autoridade com relação a problemas em certo domínio, diga-se
problemas relativos a regulações de segurança no trabalho. O poder da auto-
ridade se estende por todo o domínio ou está limitado a apenas parte dele?
A condição da justificação normal pode ser tomada como significando que
ela tem autoridade sobre todo o domínio. Mas se pode levantar a objeção
de que o domínio pode ser artificialmente estendido (v.g., adicionando a ele
segurança no domicílio residencial) sem qualquer razão para acreditar que
realmente faremos melhor seguindo essas extensões mesmas (v.g. podemos
ser melhores juízes sobre a segurança de nossas casas do que qualquer um
que esteja na posição de autoridade sobre segurança no trabalho). O domínio
estendido pode ainda preencher ambas as condições de legitimidade simples-
mente porque o domínio mais restrito as preenche, e as desvantagens da
extensão não são suficientemente ruins para cancelar o caso em favor da
autoridade.
A solução para esse problema é, segundo creio, que uma pessoa ou
instituição tenha autoridade com relação a qualquer domínio se essa pessoa
ou instituição preenche as condições relativas a esse domínio e não há
qualquer parte do domínio relativa à qual se possa saber que a pessoa ou
instituição falha nas condições.

F) ÔNUS DE INQUIRIÇÃO (INQUIRY) E DECISÃO

A segunda condição de legitimidade, a da independência, está baseada


no pensamento de que é importante que as pessoas decidam por si mesmas
como elas conduzem suas vidas, e que, especialmente em algumas áreas, elas
devem fazê-lo com confiança apenas limitada em conselhos diretos, e ainda
mais em comandos dos outros. Não viveremos como pessoas autônomas se
não decidimos por nós mesmos. Não se segue, é claro, que sempre gostamos
de fazê-lo. Algumas pessoas consideram que o ônus da decisão é difícil de
suportar. Elas desistem, sentem-se deprimidas, oprimidas ou pressionadas, e,
254 revista brasileira de filosofia – RBF 239

é claro, frequentemente decidem de modo inapropriado, decidindo quase de


modo arbitrário para afastar de si mesmas o ônus da decisão.
Nem todos sofrem de uma aversão em tomar decisões e assumir respon-
sabilidade, embora a maior parte das pessoas sinta o ônus. Somos tentados
a pensar que alguém não é um agente responsável se não o sinta, uma vez
que mostra uma falta de seriedade sobre as próprias ações. Seja como for,
qualquer um tem de suportar o ônus da inquirição. Isso demanda nossa
atenção, energia, tempo e recursos. Ele pode impor um limite nas nossas
relações com os outros, e assim por diante. Para ser claro, o processo de
inquirição propositiva (purposeful inquiry), de trabalhar em direção a uma
decisão, pode ser também prazeroso e válido por si mesmo. Mas dado que o
propósito primário e a justificação é que ele contribui para uma boa decisão,
não se pode esperar que os méritos sempre superem o ônus, e algumas vezes
o ônus excede em muito os méritos.
Há modos de reduzir os ônus de decisão e inquirição, e alguns deles
envolvem transferir o ônus para outros. A prática de confiar em conselhos
profissionais tem crescido nos últimos tempos, talvez em paralelo com
um declínio da família como uma fonte de conselho e apoio na tomada de
decisão. Submeter-se a autoridade é um modo de reduzir o ônus. Pode-se
justificá-lo apenas se for consistente com a condição de legitimidade como
independência (embora quando a vulnerabilidade psicológica do ônus seja
extrema, pode-se justificar a mitigação da condição para afastar o ônus).
A condição da justificação normal, no entanto, é mais bem compreendida
amplamente para permitir que o preenchimento dos ônus da decisão e da
inquirição seja um dos benefícios que autoridades podem trazer.

G) RESPEITO E OUTRAS RAZÕES

Podemos acomodar os ônus da decisão e da inquirição numa teoria da


autoridade legítima, tanto através da leitura apropriada das duas condições,
como através do reconhecimento desses ônus como fatores adicionais que
afetam a legitimidade, fatores que modificam ou adicionam às duas condi-
ções. Não creio que seja possível enumerar exaustivamente as considerações
que podem afetar a legitimidade da autoridade, ou a justificação de qualquer
outra instituição normativa que seja largamente aceita e esteja contida em
práticas sociais. Essas instituições algumas vezes de fato possuem propósitos
centrais, mas uma vez que sejam reconhecidas e sejam seguidas na prática,
elas se tornam partes de outras práticas e preocupações, o que as levam,
sem desviar de sua justificação primária, a preencher propósitos adicionais e
razões justificadoras.
seção 4 – traduções 255

Um fator como esse surge do modo em que, em muitas sociedades,


algumas autoridades se tornam a expressão visível primária de instituições a
que elas pertencem, e em nome da qual elas operam. Instituições jurídicas e
políticas com autoridade jurídica são um caso importante. Em muitos países,
as autoridades jurídicas superiores são identificadas com o Estado ou o país
ou a nação e falam em seu nome. Onde isso é assim, o respeito pelo e a
identificação com o Estado, país ou nação pode ser expresso no respeito
pela autoridade jurídica, e isso, por sua vez, toma a forma (dentre outras)
da confiança nessas instituições, confiança de que elas têm a autoridade
para fazer o que fazem, de não questionar sua conduta de modo tão incisivo
para ver se ela excedeu em sua autoridade etc. A confiança (trust) é uma
marca geral do respeito, e uma marca natural. Se o respeito pelo Estado,
país ou nação é desejável, e algumas vezes o é, e se for apropriado, dadas
as circunstâncias da sociedade em questão, pois ele expressa a si mesmo
através do respeito e da confiança em suas instituições jurídicas, então certa
flexibilidade na vigilância com relação às duas condições de legitimidade
é também aceitável. Ou seja, nesses casos, enquanto as condições mesmas
permanecem não afetadas, as pessoas estariam justificadas em sustentar que
o governo tem autoridade com base em evidências que não seriam suficientes
para alcançar essas conclusões, mas sim com base na confiança que elas têm
no governo.
Não sustento que as pessoas tenham um dever de confiar e respeitar
seu governo desse modo. Isso seria como argumentar que elas têm um dever
de ter alguém como seu amigo. O respeito que nos concerne aqui não é o
respeito básico que devemos a toda pessoa. É o respeito que surge da identifi-
cação com o país, e não há nenhum dever para qualquer um em se identificar
com qualquer país. O argumento é simplesmente que a atitude é algumas
vezes (i.e. quando certas condições morais são preenchidas) apropriada.
Isso mostra que algumas vezes as pessoas que confiam no governo
estão justificadas em acreditar que o governo tem autoridade quando ele não
tem, ou isso mostra que algumas vezes o governo tem autoridade sobre essas
pessoas mesmo que não tenha autoridade ou tenha apenas uma autoridade
mais limitada sobre pessoas que não confiam nele? Pode-se argumentar
de ambos os modos. De um lado, pode-se pensar que é desejável separar
as considerações epistêmicas das substantivas, e ter uma teoria que tenda
a tornar a autoridade do governo independente de fatores individualmente
variáveis tais como a confiança resultante da identificação com o país. De
outro lado, como vimos, a concepção da autoridade como serviço de fato
incorpora elementos epistêmicos nas condições de autoridade, e, como
veremos, permite uma variabilidade considerável na medida da autoridade
do governo sobre a população em que ele pretende autoridade. Então, pode
256 revista brasileira de filosofia – RBF 239

ser que a melhor visão seja considerar que a identificação afeta as condições
de legitimidade, e não meramente as ocasiões em que seja justificado crer
que elas são preenchidas. Nesse modo, a teoria está mais próxima de atitudes
familiares (e racionais) que as pessoas têm com relação a uma autoridade.

H) RAZÕES PRÉ-EXISTENTES E CONCRETIZAÇÃO

A teoria parece ser muito restritiva. Pode parecer que ela exclui qual-
quer poder aos governos para melhorar as condições econômicas de seus
cidadãos. Por exemplo, a autoridade pode fazê-lo através da imposição de
taxas e usando o montante para subsidiar treinamento, que é útil para o pleno
emprego e para o desenvolvimento econômico. Nem eu nem outros habi-
tantes temos razão para impor taxas ou subsidiar treinamento no país. Mas
isso é uma percepção errada. Na medida em que os habitantes de um país têm
razão para melhorar sua situação econômica, eles terão razão para fazê-lo
através de uma autoridade comum sobre essas questões, pois essa autoridade
será capaz de alcançar esse objetivo melhor do que eles podem fazê-lo se
agissem de modo independente dela.
Isso significa que tenho razão para aumentar as taxas? Não necessaria-
mente, mas a questão surge da não observância do fato de que tipicamente
razões não se colocam singularmente, mas sim em rede. Tipicamente, temos
uma razão porque conformar-se com ela é um modo de realizar outra razão.
As razões mais gerais se aplicam como um padrão para nossas atividades,
e são menos afetadas pela mudança nas circunstâncias, enquanto que razões
mais específicas que se conectam com elas tendem a se aplicar durante
períodos mais curtos e dependem de condições que são com frequência
sujeitas a mudança. Minha razão para melhorar minha situação econômica é
um exemplo de uma razão relativamente geral, que não é provável de despa-
recer até a minha aposentadoria ou mesmo depois, embora sua urgência e
força possam mudar com o tempo. Uma razão para mudar de emprego pode
derivar disso. Posso ter razão para mudar de emprego de modo a melhorar
minha condição econômica. Mas é uma razão de curto prazo, que pode desa-
parecer se, por exemplo, meu atual empregador me oferece uma promoção,
ou através de outras circunstâncias.
As pessoas designadas para ajudar-nos o fazem conformando-se ou
realizando algumas razões que se aplicam a nós, razões que temos nós
mesmos. Essas razões têm outras conectadas com elas, que estabelecem
os modos de realizá-las. Mas essas razões conectadas (nested reasons) não
precisam ser razões para nós. Ou seja, aqueles que nos ajudam podem ter boas
bases para perseguir os objetivos estabelecidos pelas razões que se aplicam
a nós de modos que não nos estão disponíveis. De fato, como a concepção
seção 4 – traduções 257

da autoridade como serviço ilustra, pode-se designar a essas pessoas a tarefa


de ajudar-nos precisamente em virtude disso. Através de sua intervenção,
adquirimos novos modos de realizar os objetivos estabelecidos pelas razões
gerais, e assim novas razões para realizar a ação requerida.
Há vários outros modos em que a flexibilidade da concepção da autori-
dade como serviço pode ser subestimada. Ao dar os exemplos que seguem,
não pretendo endossá-los. Menciono-os apenas para ilustrar o poder da
concepção da autoridade como serviço. Por exemplo, alguém pode crer que
pessoas, membros de certo grupo, tem um dever, talvez um dever religioso
ou um dever de lealdade originado a partir de algumas circunstâncias histó-
ricas, para obedecer alguma pessoa ou instituição. Nesse caso, a tese da justi-
ficação normal é facilmente satisfeita. Ao obedecer a essa pessoa ou insti-
tuição, a pessoa está cumprindo esse dever. Ou supondo-se que os membros
de certo grupo, talvez de um grupo étnico, tem um dever de obedecer alguém
que pode comandar a lealdade ao grupo, um tipo de dever nacional para a
glória da nação. Novamente, se qualquer um pode comandar a lealdade ao
grupo, então essa pessoa irá satisfazer as condições para ter autoridade da
concepção da autoridade como serviço. Ou suponha-se que alguém tenha um
dever de obedecer quem quer que ganhe na loteria; novamente, as condições
da concepção da autoridade como serviço seriam preenchidas com respeito
a qualquer um que ganhe na loteria. Algumas pessoas acreditam que alguém
tem um dever de obedecer a qualquer um que seja eleito pela maioria. Nova-
mente, não há problema para a concepção da autoridade como serviço. Se
isso é assim, isso simplesmente mostra que as condições da concepção da
autoridade como serviço são preenchidas com respeito a qualquer um que
seja assim eleito.21

I) COORDENAÇÃO E META-COORDENAÇÃO

Um fator significativo, se não o principal, no estabelecimento da legi-


timidade das autoridades políticas é sua habilidade para assegurar coorde-

21
É claro que não é nenhum acidente que minha teoria da autoridade não faça nenhuma
referência especial a autoridade democrática. Não creio que a democracia seja o único regime
que possa ser legítimo, nem que todos os governos democráticos sejam legítimos. Isso não
é o mesmo que dizer que governos democráticos não tenham, em muitos países, pretensões
únicas para ter alguma autoridade limitada ou qualificada, seja em sua habilidade para produzir
resultados benéficos ou por sua habilidade de dar expressão ao aspecto das pessoas enquanto
agentes livres, autônomos, ou quaisquer outros valores a que possam servir. Parece-me, no
entanto, de vital importância que não caiamos na retórica democrática atual, muito abusada,
e sustentar uma perspectiva crítica e clara sobre a natureza das instituições democráticas, e
que devemos preservar nossa habilidade de reconhecer as limitações de regimes democráticos
assim como reconhecer a possibilidade que aquilo que ocorre em regimes democráticos
poderia completamente não ter legitimidade.
258 revista brasileira de filosofia – RBF 239

nação. Alguns escritores, ao comentar sobre esse fato, foram além e argu-
mentaram: (1) que a única (ou a única importante) função das autoridades
políticas é coordenar a conduta daqueles que estão a elas sujeitos para o
alcance de alguns bens; (2) que a coordenação seja assegurada através de
uma convenção do tipo Lewis não requer uma autoridade com um direito de
regular (a right to rule): tudo que se requer é a habilidade de tornar saliente
certos resultados da coordenação; e (3) que se segue que as autoridades polí-
ticas, enquanto tais, não têm um direito de regular.
Essas visões deixam de atentar para vários fatos que são centrais para o
funcionamento de autoridades políticas legítimas. Primeiro, que elas podem
satisfazer a tese da justificação normal não apenas ao assegurar a coordenação,
mas também tendo um juízo mais confiável com relação às melhores opções,
dadas as circunstâncias, e que em suas atividades normais, a especialização
(expertise) e a coordenação estão inextricavelmente misturadas. Segundo,
que a coordenação que as autoridades políticas devem assegurar e que com
frequência asseguram é raramente o tipo de coordenação que constitui a
solução de um problema de coordenação do tipo Lewis. Coordenar as ações
de muitos agentes significa nada mais do que fazê-los ou habilitá-los a agir
de tal modo que todos eles desempenhem diversos papéis em algum possível
plano de ação que provavelmente pode levar a alguns resultados buscados
depois. Esse tipo de coordenação não pode geralmente ser alcançado via uma
convenção do tipo Lewis. Terceiro, uma razão para isso é que a necessidade
de coordenação e o meio para atingi-la não são necessariamente conhecidos
de modo geral e são com frequência um problema controverso. Quarto, uma
vez que os objetivos que as pessoas realmente têm não necessitam ser dese-
jáveis, a coordenação buscada para assegurar esses objetivos não necessita
ser desejável também. Os esquemas coordenados de ação que as autoridades
políticas devem perseguir são aqueles para os quais as pessoas devem estar
comprometidas, ou aqueles necessários para assegurar os objetivos que as
pessoas devem ter, que nem sempre são os objetivos que elas têm. Quinto,
tipicamente, quando a autoridade política é de alguma forma legítima e
razoavelmente bem-sucedida, ela será também corretamente tomada, ao
menos em algumas áreas, como sendo uma autoridade na questão de segunda
ordem sobre quando a coordenação deve ocorrer.

IV. A OBJEÇÃO DA QUALIFICAÇÃO

Uma possível reação à concepção da autoridade como serviço é que


ela erra seu alvo. Ela descreve as condições sob as quais uma autoridade
é uma autoridade suficientemente boa. Ela articula testes de sucesso para
autoridades, mas não explica o que é ser uma autoridade. Ela descreve as
condições que tem de ser preenchidas se uma autoridade for capaz de cumprir
seção 4 – traduções 259

com sucesso suas tarefas, mas não pode ser o caso de que cada um que possa
cumprir bem uma tarefa tenha essa tarefa. Nem todos que podem ser um bom
primeiro ministro de um país são primeiros ministros desse país, nem todos
que podem ser um bom professor na escola primária de minha vizinhança
é um professor nessa escola. Ademais, ninguém é um primeiro ministro ou
um professor apenas em virtude do fato de que eles podem realizar bem a
tarefa. Algo mais precisa ocorrer para conferir-lhes a tarefa, para torná-la a
sua tarefa.
Para avaliar esse ponto, devemos contrastar a autoridade prática e
teórica. As autoridades teóricas são especialistas cujo conhecimento e
compreensão do problema em que são autoridades é tanto excepcionalmente
extensivo e notadamente sistemático e seguro, tornando-as guias confiáveis
nesses problemas. Sua palavra é uma razão para endossar certas crenças e
descartar outras. Nisso, ela é como um testemunho: os relatos de testemunhas
sobre os eventos que elas relatam. Mas o conselho do especialista é muito
diferente do relato das testemunhas. Primeiro, normalmente seu conselho não
relata suas crenças perceptuais ou o conteúdo de suas experiências. (As exce-
ções são casos em que o que vemos é difícil de entender, onde especialistas
podem ser úteis em nos dizer o que vemos e o que eles veem). Melhor, ele
relata crenças inferenciais, conclusões que eles extraem da evidência deri-
vada de sua própria experiência ou dos outros. Segundo, como um corolário,
seu conselho não depende de sua situação vantajosa relativa ao problema
em consideração: diferente do relato das testemunhas, eles não necessitam
estar no lugar correto no momento correto para ver ou de algum modo teste-
munhar os eventos que eles relatam. Eles derivam suas conclusões não da
observação, que requer uma posição de vantagem, mas por inferência da
evidência, incluindo testemunho, e isso não requer uma posição privilegiada
ou vantajosa relativa aos eventos sobre os quais eles aconselham. Como
resultado, enquanto o testemunho se relaciona apenas com eventos passados,
os especialistas podem também prever eventos futuros.
Essas diferenças dão conta das diferenças normativas entre testemu-
nhas e especialistas. Com testemunhas, tudo que temos de fazer é avaliar
a confiabilidade de seu relato: a qualidade de sua visão, as condições do
tempo, sua atenção no momento, sua distância dos eventos relatados etc.
Com especialistas, nenhuma dessas questões normalmente é levantada. O
que está em jogo é sua habilidade para extrair conclusões da evidência. Com
frequência, é o conhecimento da teoria, diga-se alguma teoria científica, e
em outros momentos a profundidade da experiência e da compreensão que
estabelece suas credenciais como especialistas, i.e. como pessoas que podem
com segurança inferir uma coisa de outra. Uma vez que sua autoridade como
especialistas seja estabelecida, segue-se que nossas avaliações não especia-
260 revista brasileira de filosofia – RBF 239

lizadas da mesma evidência não podem com segurança desafiar as deles.


Vejo o pedaço de carne no açougueiro, e sua cor me faz pensar que não é
fresco. Mas não tenho experiência ou teoria para sustentar isso. Meu amigo
especialista reafirma que a carne é fresca, e eu apenas concedo. Se aceito a
especialidade de meu amigo, relativa a mim, não tenho escolha. O conselho
teórico substitui as razões para crer em que eu teria restado de outra forma.
Do mesmo modo com qualquer autoridade prática, o propósito de uma
autoridade teórica é habilitar-me a conformar com a razão, nesse caso razão
para crer, mais do que eu poderia fazer de outra forma. Isso requer tomar o
conselho do especialista, e permitir que ele substitua minha própria avaliação
da evidência. Se não faço isso, não me beneficio dele.
A autoridade teórica se assemelha a autoridade prática em seu propósito
(melhorar a conformidade com a razão) e em ser substitutiva (preemptive),
assim como em ser relacional tanto com relação a quem tem de tomar a
palavra de uma autoridade como autorizante (authoritative), como com
relação ao que importa: é possível que eu deva tomar sua palavra de especia-
lista como autorizante, porque ele sabe muito mais do que eu, mas você não
tem razão para fazer o mesmo, se você souber tanto quanto ele sobre esses
problemas.
Apesar das similaridades, há diferenças significativas entre autoridades
práticas e teóricas. Observei que, diferente do testemunho, algum grau de
especialidade pode ser a base de predições de eventos futuros. Mas isso
não pode mudar nada. A habilidade de autoridades práticas para melhorar a
coordenação, um fator inteiramente ausente das atividades das autoridades
teóricas, torna-as sujeitas a razões derivadas22 para assegurar objetivos
preexistentes de modos que, de outra forma, não seria possível. Elas podem,
como resultado, mudar algo no mundo.
Ademais, é desnecessário dizer, as autoridades teóricas, especialistas,
não nos podem ordenar a crer em uma coisa ou outra, e não podem impor
deveres para crer – a natureza da crença e da formação da crença exclui esses
deveres. A formação de uma crença, assim como as ações, é suscetível a
razões, mas apenas ações, e não a formação das crenças, envolvem a vontade
(will). Os deveres existem apenas quando (mas nem sempre, mesmo assim)
a resposta à razão envolve a vontade.
Esses pontos estão associados com importantes diferenças de idioma.
Por exemplo, algumas pessoas são autoridades em métodos de lavoura do

22
Note-se que não é meramente que as autoridades criem novas razões ao formular diretivas.
Isso é verdadeiro de autoridades teóricas também. Sua existência mesma abre oportunidades,
e, portanto, as sujeita a novas razões derivadas, razões para satisfazer previamente razões
existentes de novos modos.
seção 4 – traduções 261

século XVIII, mas elas não têm autoridade sobre qualquer um. Eu não sei
nada sobre métodos de lavoura do século XVIII e devo tomar o que eles
dizem como autorizante, mas eles não têm autoridade sobre mim. De modo
similar, a noção de autoridade legítima está restrita a autoridade prática. As
pessoas podem ou não ser especialistas em ou autoridades em métodos de
lavoura do século XVIII. Mas elas não podem ser autoridades de fato ou
autoridades legítimas sobre a questão. Finalmente, somente com relação a
problemas práticos podemos dizer que alguém tem autoridade, e que não
a tem. Em problemas teóricos, alguém ou é ou não é uma autoridade, mas
ninguém tem autoridade.
O que esses pontos têm a ver com a crítica da concepção da autoridade
como serviço, com o argumento de que ela se equivoca na análise de quando
uma autoridade é boa no que ela faz por uma análise do que é ser uma autori-
dade? À primeira vista, pode-se sugerir que a crítica está correta em relação
a autoridades práticas, mas errada em relação a autoridades teóricas.
Uma vez que autoridades teóricas não possuem legitimidade, e não
podem impor deveres (nem mesmo deveres para crer), elas não podem
requerer uma condição adicional além daquelas da concepção da autoridade
como serviço. Se elas são qualificadas como autoridades, elas são autori-
dades. De fato, mesmo a condição epistêmica que percebemos antes, a saber,
que sua posse de autoridade seja conhecível para aqueles sobre quem elas
têm autoridade, não se aplica a autoridades teóricas, que não tem autoridade
sobre ninguém. O maior especialista em métodos de lavoura do século XVIII
pode ser um acadêmico solitário desconhecido da comunidade acadêmica
e não reconhecido por ninguém. Ele ainda assim é uma autoridade, apenas
em virtude de seu conhecimento da área. Nada mais é necessário.23 Então, a
objeção falha com relação a autoridades teóricas.
As autoridades práticas, por outro lado, impõem deveres nas pessoas.
Elas têm autoridade sobre as pessoas. Elas têm poderes normativos sobre as
pessoas. Para serem autoridades, assim o argumento continua, elas precisam
mais do que a capacidade funcionar bem. Elas precisam ser tornadas auto-
ridades, não necessariamente através de sua nomeação para a função, mas
através de algo como uma designação deve ocorrer.
No entanto, a admissão de que a objeção falha com relação a autori-
dades teóricas parece estabelecer que ela falha em si mesma. É implausível
pensar que o que é uma análise bem sucedida do que é ser uma autoridade
em problemas teóricos não faz nenhuma contribuição a uma compreensão

23
É claro que normalmente não podemos saber se ele e uma autoridade a menos que alguém
ateste isso. Mas parece melhor aderir à implicação de que ninguém que é totalmente não
conhecido pode ser uma autoridade para a pragmática do discurso.
262 revista brasileira de filosofia – RBF 239

da noção de autoridade, do que é ter autoridade prática. Possivelmente, as


diferenças entre os dois tipos de autoridade significa que é uma análise bem
sucedida de um tipo, e apenas uma análise parcial do outro. Mas é implausível
argumentar que não tem nada a ver com a análise do outro. Há outra razão
para duvidar da objeção. Parece implausível pensar que alguém pode ser
uma autoridade legítima independente de quão ruim ela seja em agir como
uma autoridade. Se o propósito primário da autoridade, a autoridade prática
incluída, é melhorar a conformidade com a razão, é implausível pensar que
alguém que não contribui em nada a esse respeito, alguém que de fato nos faz
agir mais contra a razão do que faríamos se não tentássemos segui-lo, pode
ter autoridade legítima.
Podemos, portanto, rejeitar a objeção. Mas outra objeção mais modesta
também pode ser colocada. Ela enuncia que com relação a autoridades
práticas, dada sua habilidade para mudar algo, para impor deveres e conferir
direitos, a concepção da autoridade como serviço oferece apenas parte de sua
análise. Ela enuncia uma condição necessária para ser uma autoridade, mas
não uma condição suficiente.
Essa objeção é mais plausível. Mas para ser bem sucedida, ela precisa
sanar uma dúvida: as diferenças entre as autoridades práticas e teóricas podem
conduzir a diferenças sobre o que deve ser estabelecido para confirmar se elas
de fato preenchem os critérios da concepção da autoridade como serviço para
a autoridade legítima. Essas diferenças não seriam suficientes para mostrar
que nem todos que podem ser uma boa autoridade têm autoridade práticas?
Limitando a discussão as autoridades políticas, conhecemos uma
grande parte de sua função: melhorar os serviços públicos, a segurança
pessoal, a segurança dos contratos e de outras transações comerciais, e isso
requer que elas sejam bem sucedidas em coordenar a conduta de um grande
número de pessoas. Essa habilidade não é suficiente para a realização dessas
tarefas, mas é necessária. Disso se segue que apenas instituições que tenham
autoridade de fato (i.e. que são de fato seguidas ou ao menos conformadas
por segmentos consideráveis da população) podem ter autoridade legítima
sobre essas questões. Portanto, não pode haver uma autoridade política não
conhecida. De modo similar, não pode haver uma autoridade política que
não exerça sua autoridade, i.e. que não formule diretivas que imponham
deveres, confiram direitos etc. Podemos contrastar isso com a autoridade
teórica: pode ser que nosso especialista em métodos de lavoura do século
XVIII nunca formule qualquer conselho ou expresse qualquer opinião sobre
a questão. É suficiente que ele poderia fazê-lo, pois sua autoridade depende
de seu conhecimento, e não de seu poder sobre pessoas, de sua habilidade
para fazê-las modificar seu comportamento para conformar-se com suas
diretivas, como no caso da legitimidade das autoridades políticas.
seção 4 – traduções 263

Finalmente, mas de modo mais importante, dadas as coisas como são


em nosso mundo, governos do tipo com que estamos familiarizados podem
apenas ter sucesso em preencher as condições de legitimidade (de acordo
com a concepção da autoridade como serviço) se eles têm autoridade para
usar e têm sucesso no uso da força contra aqueles que violam algumas de
suas diretivas. Não há necessidade agora de estabelecer quais são as condi-
ções gerais para o uso correto (rightful) da força pelos governos. Para nossos
propósitos, é suficiente que esse direito deva existir para que um governo
preencha as duas condições de legitimidade, e que deva ser efetivamente
usado. Esse é um obstáculo adicional e duplo no caminho para a posse de
uma autoridade governamental legítima. É um obstáculo normativo: para
justificar a posse de um direito moral para o uso da força; e um obstáculo
fático: para poder de fato usá-lo efetivamente. Nenhuma condição como
essa precisa ser preenchida por autoridades teóricas. A existência dessas
condições não mostra que a concepção da autoridade como serviço explica
algo não sobre quem seria bom se lhe fosse concedido autoridade, mas sobre
quem realmente tem autoridade? No mínimo, elas mostram que a concepção
da autoridade como serviço reconhece e tem algo a dizer sobre a diferença
entre estar qualificado para ter autoridade, e ter autoridade. A questão é se
isso é adequado. Essa questão está ainda em aberto. Mas a acusação de que
ela simplesmente confunde qualificação para autoridade com autoridade é
falha.

V. CONSENTIMENTO

Deixe-nos examinar um candidato para esse elemento ausente: o


consentimento dos sujeitos. Na visão a ser considerada, as condições da
concepção da autoridade como serviço precisam ser preenchidas através do
consentimento para conferir autoridade a alguém. Para ter autoridade, uma
pessoa ou instituição deve preencher as qualificações necessárias para ter
autoridade. As duas condições da concepção da autoridade como serviço
enunciam quais são essas qualificações, e, portanto, alguém que possa
qualificar-se como tendo autoridade necessita preenchê-las. Mas, realmente,
para se ter autoridade sobre outrem se requer seu consentimento também.
De modo mais comum, no entanto, o argumento de toda autoridade
deriva de que o consentimento é tomado por seus defensores como baseado
em outras considerações, independentes do argumento anterior. Para usar
slogans familiares, não pode ser – algumas pessoas dizem – que uma pessoa
esteja sujeita a vontade de outrem exceto por sua própria escolha, expressa
por seu consentimento de estar sujeito a essa autoridade.
264 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Algumas pessoas consideram que essa visão é uma aplicação ao caso


da autoridade de uma tese mais ampla, a saber, de que nenhuma obrigação
vincula a qualquer um exceto por sua própria vontade. Terei de desconsiderar
essa visão, que nos leva muito além da ocasião presente. Concentro-me na
visão mais limitada de que ao menos todas as pessoas que são pessoas, que
são agentes autônomos, não podem sujeitar-se a vontade de outrem exceto
por escolha. Ninguém pode ter autoridade sobre nós e dizer o que devemos
fazer sem nosso consentimento.
No entanto, assumimos que pode haver deveres sem o consentimento
da pessoa vinculada. Tenho um dever de respeito aos outros, que não
depende de meu consentimento para respeitar os outros, e isso mesmo sem
considerar meu consentimento numa obrigação de fazê-lo. Para o que, então,
é o consentimento um pré-requisito? Uma linha de argumento seria a de
que nenhuma obrigação cujo cumprimento afete uma pessoa pode ser válida
sem seu consentimento. Mas isso parece muito implausível. A obrigação
de outras pessoas para respeitar-me, para não me matar, assim como seu
dever de proteger o meio ambiente, por exemplo, afetam-me bem profun-
damente, e elas mesmo assim a tem sem considerar meu consentimento.
Como parece ser plausível pensar, sequer posso liberá-las dessas obrigações.
Não posso liberá-las de sua obrigação para proteger o meio ambiente, pois
seu impacto em mim não é central na sua justificação. Mas tampouco posso
liberar pessoas de seu dever de respeitar-me, ou de minha humanidade, como
Kant diria, mesmo que eu seja o foco de sua justificação. Para ser claro, meu
consentimento pode tornar atos que, sem ele, violariam esse dever, em atos
inócuos. Por exemplo, ao dar-lhe meu carro de presente, o seu ato de dirigi-
-lo, em vez de um assalto, torna-se um ato permitido de uso de sua própria
propriedade. Mas o efeito de meu consentimento pressupõe a existência
de um dever precedente, e seu escopo (posso consentir em ser morto? Ou
em tornar-me um escravo?) é determinado por esse dever, que existe em si
mesmo de modo independente do consentimento.
Então, passamos à sugestão mais plausível: a saber, que ninguém pode
intencionalmente impor uma obrigação numa pessoa sem o seu consen-
timento. Essa ideia supostamente se conecta com o ideal de autonomia
pessoal. O que torna as obrigações intencionalmente criadas por outrem um
caso especial de consentimento? Não pode ser o conteúdo dessas obrigações,
pois a demanda por consentimento não depende do conteúdo das obrigações.
Isso depende de sua fonte. Dado que apenas uma coisa é conhecida sobre
a fonte, a saber, que ela é supostamente uma autoridade, a demanda por
consentimento parece depender da relação geral que é indicada: uma relação
de uma pessoa estando sujeita a vontade de outrem.
seção 4 – traduções 265

Tem você a impressão de que chegamos num argumento circular? Não


consideramos esse argumento mesmo? Não era essa a questão moral que
foi respondida antes? Se essa resposta fosse boa, e nada houvesse sido dito
para indicar o contrário, por que voltamos a isso? Presumidamente, há uma
sensação residual de que a resposta anterior não cobriu todos os aspectos do
problema moral. O que mais resta? Como podemos encontrá-lo? O caminho
para uma resposta foi indicado antes. Vimos que o consentimento é uma
fonte de obrigação apenas quando algumas considerações, elas mesmas
independentes do consentimento, requerem ser em si mesmas a fonte. E
essas considerações também determinariam que tipo de consentimento é
requerido para legitimar a autoridade e determinar sobre quais problemas ela
poderá atuar.
De modo estranho, é esse teste que não vejo como preencher. A
questão moral era sobre a legitimidade de uma pessoa estar sujeita a vontade
de outrem. Mas esse problema não pode ser resolvido por consentimento.
Suponha-se que você me fala: «Imponho em você uma obrigação de vir
a minha festa amanhã», (e você pode adicionar: «dado, é claro, que você
concorde»), e respondo: «Concordo». Eu definitivamente consenti em minha
ida a sua festa. Posso até mesmo ter prometido fazê-lo. Mas, claramente, o
que quer que você tenha dito, você não impôs uma obrigação em mim. A
obrigação é inteiramente minha própria criação. Você pode ter-me convi-
dado de um modo divertido, ou expresso um forte desejo de que deveria ir,
de novo de um modo divertido. Mas você não me obrigou a ir.
Agora, suponha-se que você me fala: «Você terá uma obrigação de
fazer o que quer que eu lhe diga para fazê-lo», ou: «Quando quer que eu diga
a você para fazer algo que em meu juízo você deveria fazer de todo modo,
você terá um dever de fazê-lo, sob a condição de que você agora concorde
com isso». Se você me fala algo como isso e eu concordo, então, na medida
em que concordo, e até o momento do acordo, não estava sujeito a sua
vontade; uma vez que concordo em sujeitar-me a você, estarei submetido.
É uma situação análoga a tornar-se escravo. Eu era livre, mas perdi minha
liberdade. Aqui, eu era independente de sua vontade, e agora estou sujeito
a ela. Claro que não é o caso de estou sujeito a sua vontade porque quero
estar. Posso ter querido isso quando consenti. Mas uma vez consentido, o
que quero se torna imaterial. Estou sujeito a sua vontade se quero ou não.
Isso não levanta o problema moral, mais do que o responde?
Mesmo assim, como disse, a sensação persiste de que a solução a questão
moral dada antes deixou algumas de nossas preocupações não respondidas.
A questão era a de alguém diferente de si mesmo decidindo mais do que
decidindo por si mesmo. A ênfase era em «não decidir por si mesmo».
Mostrou-se que não há objeção a isso, de que devemos aprová-lo quando
266 revista brasileira de filosofia – RBF 239

isso nos faz conformar melhor com a razão. O argumento traçou analogias
entre autoridades, agentes, artifícios mecânicos, e assim por diante. E é aí
que ele falha. Ele não ressaltou que apesar de todos esses serem casos de não
decidir por si mesmo, há uma diferença entre esses casos e o da autoridade,
pois apenas a autoridade envolve sujeitar-se sua própria vontade a de outrem,
e isso não é meramente um problema de não decidir por si mesmo.
Deixe-nos conceder que o problema existe, que talvez a solução
oferecida o ignora. O fato permanece de que o consentimento não resolve o
problema. Ele pode resolver o problema apenas quando há uma razão para
que esse consentimento nos vincule, e não há nenhuma diferente da que
alguém pode liberá-la com o consentimento, mas não pode explicar por que
um ato singular de consentimento pode sujeitar-nos pela vida a vontade de
outrem, i.e. de que a autoridade nos irá fazer mais bem conformar-se com a
razão. Deve ser observado que, ao negar que o consentimento seja necessário
para a legitimidade, não nego que tenha alguma significância. Suspeito que o
modo em que ele é tratado no Direito de alguns países mostra que é tomado
como significante, mas não para a legitimidade de uma autoridade. Cidadãos
naturalizados e ocupantes de alguns cargos públicos com frequência são
requeridos a expressar consentimento formal, embora não necessariamente
para a legitimidade da autoridade. Uma vez que o Direito pretende autori-
dade sobre todos nós, mas requer consentimento apenas para alguns, ele não
toma o consentimento como necessário para sua autoridade. Mas se pode
considerar que o requerimento do consentimento expresse algumas atitudes
mais específicas que são requeridas em alguns contextos em particular. Para
além do Direito, podemos sentir que o consentimento faz uma diferença:
«agora (tendo consentido) você tem apenas a você mesmo para culpar»,
algumas vezes dizemos. Não posso questionar aqui essas possibilidades, mas
irei simplesmente reiterar que, pelas razões dadas, elas não estabelecem que
o consentimento é uma condição para a autoridade.
Talvez, no entanto, a popularidade de explicações baseadas no consen-
timento tenha algo a nos dizer. Talvez ainda que erradas, elas apontem na
direção correta. A questão é uma de apropriação. O aspecto do problema
moral que estamos confrontando não é o dos limites da liberdade de alguém
que o Direito ou outras diretivas autorizantes impõem. É o de que os limites
são impostos deliberadamente, e que eles são impostos por outrem. Eles
não são limites estabelecidos por mim. As explicações baseadas no consen-
timento são atraentes porque elas buscam tornar os limites em limites do
próprio agente. Elas são quiméricas porque falham em fazê-lo. Eles perma-
necem limites impostos, deliberadamente impostos por outrem. Meu consen-
timento histórico tem a significância que lhe é conferida; ele não pode tornar
os limites meus próprios.
seção 4 – traduções 267

O que necessitamos, você pode pensar, é outro modo de explicar a


apropriação, de explicar como os comandos da autoridade podem perder o
caráter de sujeição de uma pessoa a vontade de outrem. É aqui onde a busca
por identidades coletivas começa.

VI. IDENTIDADES COLETIVAS

A falha nas teorias do consentimento está em que elas se afastam da


realidade. Elas sustentam que o que não é meu é meu, a despeito do claro fato
de que me seja vinculante a despeito da minha vontade, e que com frequência
o é contra a minha vontade. O melhor que pode ser dito em seu favor é que
elas nos tornam escravos de nossas próprias decisões quando jovens. Mas
há outro caminho. Pode ser que uma regra ou diretiva não seja nem imposta
a mim por outrem nem seja feita por mim. Ela pode ser feita por «nós»,
por uma coletividade da qual sou uma parte. Os exemplos mais simples e
menos controversos derivam de empreendimentos coletivos limitados. Nós,
seis amigos, podemos fazer uma viagem juntos, ou organizar uma festa ou
uma conferência juntos. E podemos decidir, por consulta mútua, o que fazer
para perseguir nosso empreendimento comum, decisões que vinculam a cada
um de nós e a todos nós. Ainda que nenhuma delas seja tomada por mim,
nenhuma delas é a mim imposta pela vontade de outrem. Elas são tomadas
por nós. Não seria essa uma condição necessária adicional da legitimidade da
autoridade, a de que ela aja por uma coletividade de modo que suas diretivas
não sejam impostas nos membros desse grupo, mas que sejam suas decisões,
coletivamente tomadas, talvez através de seus agentes ou representantes?

A) ESTÃO AS AUTORIDADES AGINDO EM FAVOR DAS PESSOAS?


COLETIVIDADES E AÇÕES COLETIVAS

Há um discurso sobre coletividades, sua identidade e ação, e como nos


relacionamos com elas quando dizemos «nós», significando «a Universidade
de Oxford» «fez isso ou aquilo» ou «sustenta esses ideais fortemente» etc.
Esse é um discurso compreensível, portanto, ele tem condições de verdade, e
há estados de coisas em virtude dos quais esses enunciados são verdadeiros
ou falsos.
Não tenho nenhuma razão geral para pensar que não há autoridades
práticas, i.e. autoridades com um direito de regular ou comandar, que não
sejam órgãos de coletividades no modo em que governos são órgãos de
países ou de Estados. Mas pode muito bem ser que esses casos em que as
autoridades agem por coletividades e são órgãos de coletividades sejam
típicos. Eles podem ser o paradigma a partir do qual entendemos todas as
autoridades. Então, deixe-nos conceder que é necessário, para o sucesso
268 revista brasileira de filosofia – RBF 239

desse argumento, que a resposta ao problema moral é que as ações das auto-
ridades sejam nossas ações.
Esse não é o lugar para investigar as condições de verdade de propo-
sições sobre ação coletiva. Mas um aspecto dessa investigação é impor-
tante para nosso propósito: é o caso de que uma universidade, um país, um
governo, ou qualquer outra coletividade, seja minha universidade, país ou
governo apenas se me identifico com ela?
A noção de identificação é tanto importante quanto obscura, mas penso
que não haja dúvida de que a resposta à questão seja negativa. A Universi-
dade de Oxford é minha universidade com independência de se me identifico
ou não com ela. Seu país é seu país com independência de se você gosta ou
não dele, de se você está ou não afastado dele, e esse governo é o governo
de todas as pessoas desse país com independência de quanto as pessoas o
odeiem. Houve momentos no passado em que muitos Anglo-Irlandeses não
se identificavam com Eire e seu governo. Eles não o consideravam como
seu Estado e seu governo. Mas Eire era seu Estado, e seu governo era seu
governo. Não com pouca frequência encontramos num país indivíduos ou
grupos que não se identificam e não podem identificar-se a si mesmos com
seu país ou considerar seu governo como seu. Eles não irão usar a linguagem
do «nós», assim como em «nós mudamos a lei para tornar mais difícil o
acesso a quem busca asilos para permanecer no país». Sua negação, com
frequência sua inabilidade para usar essas locuções, é altamente significa-
tiva, mas não muda o fato de que esse é seu país, sua lei, e seu governo.

B) E O PROBLEMA MORAL RESOLVIDO QUANDO A AÇÃO DA AUTORIDADE


É NOSSA?

O fato de que as pessoas podem estar afastadas de seus países, de que


elas podem recusar a referência ao que «nós» fizemos quando falam sobre
seus países, levanta várias dúvidas sobre a hipótese de que a resposta ao
problema moral é que os comandos das autoridades sejam nossos comandos,
mesmo quando somos seus sujeitos. Diga isso a pessoas que estão afastadas
de seu país ou de seu regime. Diga-lhes que são elas as que aprovam as
leis que elas consideram um anátema etc. É uma triste forma de artifício
pensar que o simples fato de ser a autoridade de seu país torna o comando seu
comando (das pessoas) em qualquer sentido que resolva o problema moral.
Uma resposta a isso é dizer que há um sentido diferente de pertença, de
um grupo sendo nosso, de suas ações serem nossas ações, um sentido que
preenche a lacuna que estamos observando. Talvez. Pode haver um sentido
de pertença a um país, ou uma identificação com seu regime (i.e. sua cons-
tituição política), um sentido que poderia habilitar às pessoas a afirmarem
seção 4 – traduções 269

que as ações de autoridades que elas identificam como suas ações – dissol-
vendo, assim, o problema moral. A questão é: isso significa que o poder
legítimo de autoridades é limitado a pessoas que assim se identificam com as
coletividades que as autoridades representam? Isso significa, por exemplo,
que os Anglo-Irlandeses que não se identificaram com Eire e seu governo
não estavam sujeitos a sua autoridade, de que eles não estavam sujeitos ao
Direito de Eire?
O problema dos limites da autoridade do Estado é ainda mais amplo.
Tendemos a crer que Estados têm alguma jurisdição extraterritorial, e que
em qualquer caso eles tem jurisdição territorial sobre todas as pessoas dentro
dos limites do Estado. Mas não esperamos que visitantes se identifiquem
com o Estado ou o regime. Pode ser algo bom se a população de um país se
identifica com ele, e com seu regime. Mas não há argumento razoável para
negar que quando o Estado tem qualquer autoridade legítima, sua autoridade
vai além de regular aqueles que se identificam com ela.
A identificação pode desempenhar uma função importante numa teoria
da legitimidade de outro modo. Pode-se dizer que ela é um requerimento para
a legitimidade do Estado, e de suas autoridades, que seria razoável aos cida-
dãos que se identificassem com ela. A identificação, esse é o pensamento, não
é um fato bruto, é uma atitude que, assim como crenças, emoções e desejos,
é afetada por razões. Há, ou pode haver, razões para identificar-se e razões
para não se identificar. Assim, em algumas vezes identificar-se é razoável e
em outras não o é.24 Pode-se argumentar que é uma condição da legitimidade
de uma autoridade a de que seja razoável para seus sujeitos sua identificação
com ela. Isso pode ser assim, ao menos no caso de algumas autoridades.
Mas, não de modo surpreendente, creio que a concepção da autoridade como
serviço oferece as condições para o preenchimento desse requisito (os outros
tendo a ver com as relações do indivíduo com a autoridade ou a instituição
em nome da qual ela age). Então, esse pensamento não oferece nem uma
crítica nem um suplemento à concepção da autoridade como serviço.

C) DEVEM AUTORIDADES LEGÍTIMAS AGIR EM FAVOR DE COLETIVIDADES


E ISSO IMPORTA?

Esse breve argumento resta no fato de que as pessoas, incluindo a nós


mesmos, que creem que autoridades políticas podem ser legítimas, sustentam
visões sobre sua legitimidade em muitos casos concretos que não podem ser
reconciliadas com a visão de que as instituições políticas têm autoridade

24
Algumas pessoas diriam que, em algumas vezes, alguém deve ou tem um dever de
identificar-se, embora eu duvide disso.
270 revista brasileira de filosofia – RBF 239

legítima apenas sobre pessoas que se identificam com elas, e com os regimes
para os quais elas agem. Está aberto para alguns sustentar que devemos
revisar nossas crenças sobre o escopo da autoridade. Minha impressão é que
isso seria um erro. O problema da apropriação, para o qual supostamente a
identificação é a resposta, é uma questão equivocada. Ela não é parte de nossa
compreensão normal da autoridade de que suas ações são as ações de seus
sujeitos. Pelo contrário, a compreensão normal é que a autoridade envolve
uma relação hierárquica, que ela envolve uma imposição aos sujeitos. A
concepção da autoridade como serviço explica como e quando esse poder
pode ser justificado, ao menos no sentido de ser direcionado para o que é
bom. A busca por uma solução ao problema da apropriação é talvez mais
bem vista como um ideal a que se aspira: seria bom, desejável que aqueles
sujeitos a uma autoridade política se identifiquem com o regime em favor do
qual ela age. Mas a identificação não deve ser vista como uma condição de
legitimidade.
Quase-verdade e
mecânica quântica1

Newton C. A. da Costa
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade
Federal de Santa Catarina.

Otávio Bueno
Professor do Departamento de Filosofia – Universidade de Miami.
Graduada em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora
na Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP), no Centro de Compe-
tência em Software Livre da USP (CCSL/Legal) e no Grupo de Estudos de
Lógica Aplicada ao Direito (GELAD). Advogada.

INTRODUÇÃO

Desde a sua formulação inicial, a mecânica quântica não-relativista


(MQ) tem sido fonte de constante controvérsia sobre seus fundamentos.
Apesar de seu impressionante sucesso empírico, várias questões fundamen-
tais ainda não foram resolvidas pela teoria: O que exatamente acontece com
os observáveis quando um sistema quântico não está sendo medido? E o
que exatamente acontece durante a medição? Qual a natureza das partículas
quânticas? Em particular, elas são individuais ou não? Pode algum tipo de
identidade ser aplicada a essas partículas? Não surpreendentemente, uma
variedade de interpretações da MQ tem sido desenvolvida na tentativa de

1
Tradução: Bruna de Bem Esteves.
272 revista brasileira de filosofia – RBF 239

resolver essas e outras questões fundamentais. Talvez, também não surpreen-


dentemente, até agora não houve acordo sobre qual dessas interpretações (ou
se alguma) deve ser preferida.
Neste artigo, examinamos, em linhas gerais, algumas dessas interpre-
tações e sustentamos que, devidamente entendidas, todas elas são quase-
-verdadeiras. Ou seja, estão atualmente empiricamente adequadas no que diz
respeito às evidências disponíveis em seu domínio (grosso modo, o domínio
da mecânica quântica não-relativista). Isso explica por que, pelo menos nesse
momento, não há fundamentos empíricos para escolher alguma dessas inter-
pretações. Em seguida, oferecemos um quadro provisório para avaliar tais
interpretações da MQ, e indicamos que, apesar de seus semelhantes suportes
empíricos, existem fatores pragmáticos para preferir algumas delas a outras.
Devido a limitações de espaço, precisaremos deixar de lado várias
complicações que são inevitáveis nas discussões sobre MQ, e não seremos
capazes de oferecer um tratamento abrangente dessas questões. Em parti-
cular, a seleção de interpretações que estaremos aptos a discutir é limitada, e
nossa exposição será bastante informal. Nosso objetivo aqui é simplesmente
esboçar as ideias centrais, deixando detalhes para outra ocasião.

1. MECÂNICA QUÂNTICA E ALGUMAS INTERPRETAÇÕES

Vamos começar discutindo uma conhecida tensão que emerge na mecâ-


nica quântica não-relativista, e que é uma das razões para a necessidade de
interpretarmos a teoria. Considere um sistema quântico não-relativista. A
fim de descrever a dinâmica do sistema, o formalismo matemático da MQ
oferece dois tipos distintos de transformações: (a) Por um lado, temos as
transformações reversíveis, descritas por operadores unitários no espaço de
estado relevante, e que são, de um modo geral, obtidas a partir da equação de
Schrödinger. (b) Por outro lado, temos as transformações não reversíveis e
aleatórias, descritas por operadores mais complexos, que surgem no sistema,
em particular, como resultado da medição. A questão é: Como exatamente
estão relacionadas (a) e (b)? O que há de tão especial sobre a medição?
O formalismo da MQ, por si só, não resolve este problema, uma vez que
apenas indica como calcular as probabilidades relevantes em cada caso. Para
resolver o problema, precisamos de uma interpretação sobre o formalismo.
Na interpretação de Copenhagen – em sua formulação padrão (ver Bohr
[1987/1998], e Heisenberg [1955]) – há algo especial sobre medição: ela
leva ao colapso da função da onda (Von Neumann [1955]).2 Central para essa

2
O que a interpretação de Copenhagen exatamente é e quem é responsável por sua
formulação consistem em questões complexas, que infelizmente não podemos discutir aqui
seção 4 – traduções 273

interpretação é a ideia de que, antes da medição, normalmente não é possível


determinar em que estado exato está um sistema quântico não-relativista.
Por exemplo, o spin de um elétron está para cima ou para baixo? Por tudo
que sabemos, o sistema pode estar evoluindo em uma superposição (uma
combinação linear) de spin para cima e spin para baixo. Após a medição,
no entanto, uma resposta definitiva é sempre obtida. Ela é determinada, por
exemplo, pelo fato de que o spin está pra cima. O processo de medição leva
ao colapso da função da onda, e agora o sistema tem um estado definitivo,
determinado.
A interpretação de Copenhagen é freqüentemente associada a dois
princípios: (A) Princípio da incerteza, de Heisenberg e (B) Princípio da
complementaridade, de Bohr. Grosso modo, o princípio da incerteza afirma
que não é possível medir conjuntamente com certeza absoluta a posição e
o momento de uma partícula quântica. Este princípio pode ser interpretado
de duas maneiras diferentes: (A.i) uma leitura entende o princípio como
fornecedor de uma restrição epistemológica sobre a medição, enquanto (A.ii)
outra o descreve como uma característica ontológica dos sistemas quânticos.
(A.i) Na leitura epistemológica, que Heisenberg parecia ter adotado
ao menos inicialmente, a incerteza emerge como resultado das limitações
no processo de medição. Considerando essa interpretação, ao mensurarmos
a posição da partícula, inevitavelmente perturbamos o seu momento, e ao
mensurarmos seu momento, inescapavelmente afetamos sua posição. O
resultado é a impossibilidade de medir ambos com certeza absoluta.
(A.ii) Bohr parece ter oferecido, no entanto, uma interpretação onto-
lógica do princípio da incerteza. De acordo com essa leitura, a incerteza
descrita no princípio não é uma mera limitação epistemológica dos nossos
instrumentos de medição. A incerteza é uma expressão de natureza última
da realidade quântica: a natureza complementar dos fenômenos envolvidos.
Mesmo se pudéssemos conceber métodos de detecção de partículas quân-
ticas com interferência mínima, a incerteza ainda estaria presente como um
componente intrínseco dos próprios fenômenos quânticos. Tendo em vista
essa situação, a incerteza é algo que não poderia, até mesmo por postulado,
ser superada.
(B.i) A razão pela qual Bohr pode ter favorecido essa interpretação
do princípio da incerteza deriva de uma particular – e também ontológica
– leitura do próprio princípio da complementaridade. De acordo com esse
princípio, os fenômenos quânticos têm uma natureza complementar na qual
sua completa descrição requer que se considere, por exemplo, tanto a carac-

(ver Howard [2004]).


274 revista brasileira de filosofia – RBF 239

terística ondulatória quanto a característica corpuscular. No entanto, não é


possível para esses fenômenos exibirem simultaneamente a característica
ondulatória e a característica corpuscular. Temos aqui a dualidade onda-
-partícula como um aspecto intrínseco e ontológico dos fenômenos quânticos.
E esse atributo pode ser estendido para outras propriedades complementares
no mundo quântico, como a posição e o momento.
(B.ii) Mas à semelhança do princípio da incerteza, o princípio da
complementaridade pode ser lido também como uma teoria epistemológica.
Nessa interpretação, o princípio expressa uma limitação epistemológica
em que os componentes dos fenômenos quânticos em estudo, tais como as
características ondulatória e corpuscular, não podem ser detectados simul-
taneamente. Evidentemente, a leitura ontológica é mais sólida que a episte-
mológica. Afinal, se faz parte da natureza dos fenômenos quânticos que suas
características complementares não possam ser exibidas conjuntamente,
não podemos detectar aquelas características simultaneamente – ainda que
nossos instrumentos de medição sejam confiáveis.
Normalmente, no entanto, a interpretação de Copenhagen tem sido
apresentada em um tom mais antirrealista, enfatizando que a MQ trata funda-
mentalmente dos resultados de medição, e insistindo que o que realmente
acontece no intervalo das medições é algo que a teoria não resolve. Dessa
forma, os antirrealistas tendem a apoiar apenas as leituras epistemológicas
sobre os princípios da incerteza e da complementaridade. Os realistas,
entretanto, tendem a apoiar as correspondentes leituras ontológicas.3 Mas o
atributo que se sustenta é que em ambas as formulações da interpretação de
Copenhagen, realista e antirrealista, a medição é crucial – e especial.
No entanto, algumas interpretações da MQ negam que há algo especial
sobre a medição; ou seja, qualquer coisa que requeira um tratamento especial
no formalismo da MQ. Este é, em certa medida, o caso da interpretação dos
muitos mundos (ver Everett [1957], e De Witt [1970]). Nesta interpretação,
a característica essencial da dinâmica de um sistema quântico não-relativista
é dada pela equação de Schrödinger. O que acontece na medição – na versão
de De Witt da interpretação dos muitos mundos – é que o mundo se divide.4
Um sistema quântico não-relativista evolui sem perturbações, por exemplo,
em uma superposição de estados de spin para cima e spin para baixo, até que
seja medido. Nesse momento, o mundo se divide: um mundo termina com o

3
Isso em linhas gerais, já que, em princípio, os realistas podem adotar ambas as leituras,
ontológica e epistemológica, dos dois princípios. Em qualquer caso, os antirrealistas são mais
propensos a negar as versões ontológicas correspondentes.
4
A formulação de Everett da interpretação dos muitos mundos não está comprometida
com a divisão dos mundos. Grosso modo, todos os mundos existem independentemente de
medição e esclarecem os estados quânticos relevantes.
seção 4 – traduções 275

estado de spin para cima e outro com o estado de spin para baixo mensurado.
Dessa forma, obtém-se cada um dos componentes alternativos do sistema
quântico– embora em mundos diferentes.
Um dos benefícios dessa interpretação é que ela evita a introdução
do colapso da função da onda, ignorando, assim, completamente a necessi-
dade de introduzir um acontecimento genuinamente aleatório para explicar o
que acontece na medição. Em última análise, tudo o que há nessa interpretação
são os estados quânticos descritos especialmente pela equação de Schrö-
dinger. Acontece que há muitos mais mundos do que tínhamos inicialmente
antecipado. E, dado que todos esses mundos existem, a rigor, não existe o
colapso da função da onda: cada mundo apresenta um dos relevantes estados
quânticos definidos. No entanto, este benefício – de evitar a introdução do
colapso da função da onda – somente pode ser obtido se não acatarmos a
sugestão de que os mundos se dividem como resultado das medições. Caso
contrário, há, de fato, algo especial sobre a medição que precisa ser levado em
conta: a decomposição dos mundos em si mesmos (ver Barrett [1999]). Em
outras palavras, a formulação original de Everett da interpretação dos muitos
mundos – livre da suposição de suas próprias divisões – parece ser melhor do
que De Witt neste aspecto (ver também Vaidman [1998]).
Uma objeção que tem sido frequentemente levantada contra a interpre-
tação dos muitos mundos é que não fica claro como o conceito de probabi-
lidade pode fazer sentido nesta teoria (ver, por exemplo, Albert e Loewer
[1988], e Barrett [1999]). Afinal de contas, tendo em vista que cada compo-
nente da superposição é obtido, não há distinção entre o que é verdadeiro e
o que é possível e, portanto, não fica claro como seria possível traçar exata-
mente a divisão ente o que é real e o que é provável.5
Além disso, o mundo pode realmente se dividir da maneira defendida
pela versão de De Witt da interpretação dos muitos mundos sem que ninguém
perceba? A interpretação das muitas mentes com relação à MQ é tida como
uma formulação ontológica mais parcimoniosa do que a concepção dos
muitos mundos, uma vez que preserva a suposição de que há apenas um
mundo físico. Nossas mentes, por assim dizer, sofrem a decomposição (ver
Albert e Loewer [1988], e Barrett [1999]). Dado que não há multiplicidade
de mundos na interpretação das muitas mentes, mas apenas de mentes, a
dificuldade em prover sentido à probabilidade não aparece. Afinal de contas,
na interpretação das muitas mentes, não há dificuldade para distinguir o que
é real do que é possível.

5
Para uma resposta a essa objeção no âmbito dos muitos mundos, invocando o conceito de
«medida da existência de mundos», ver Vaidman [1998].
276 revista brasileira de filosofia – RBF 239

No entanto, embora a interpretação das muitas mentes não requeira a


existência de mais de um mundo, não fica claro se existem muitas mentes
– uma para cada possível resultado de medição, ou, mais genericamente,
para cada potencial resultado de uma interação quântica em toda a história
do universo. E mesmo se existissem muitas mentes, o compromisso com
relação a elas não é encontrado no formalismo da MQ, que nem sequer quan-
tifica essas coisas. Como resultado, não fica claro se o compromisso com a
hipótese das muitas mentes é ontologicamente menos problemático do que
aquele com a pluralidade de mundos. Além disso, dado que o resultado de
uma medição supostamente seja um processo físico no mundo, em vez de
um evento psicológico na mente, não fica claro se a interpretação das muitas
mentes oferece, em última análise, uma explicação adequada do processo de
medição. O referido processo não parece mesmo ser propriamente caracteri-
zado como um evento físico.
Essa pequena amostra de interpretações da MQ claramente indica
a dificuldade em avaliar esses pontos de vista. Cada interpretação possui
claras vantagens, proporcionando algum entendimento sobre o modo como o
mundo quântico pode ser (van Fraassen [1991]). Além disso, cada interpre-
tação vai além do formalismo da MQ e oferece um relato sobre o que pode
estar acontecendo para além dos fenômenos. Algumas interpretações são
bastante inexpressivas com relação ao que acrescentam na descrição ofere-
cida pelo formalismo. Por exemplo, na leitura antirrealista da interpretação
de Copenhagen, os componentes adicionados ao formalismo enfatizam as
limitações epistemológicas que restringem nosso acesso a alguns aspectos
dos fenômenos que a MQ estuda. Outras interpretações, por sua vez, acres-
centam muito ao formalismo, a tal ponto que pode até não ficar claro se
estamos lidando com uma única interpretação de MQ ou, de fato, com uma
teoria rival, que revelaria diferentes resultados empíricos comparados aos
que a MQ proporcionaria se tivéssemos os dispositivos tecnológicos neces-
sários para testar essas previsões. Por exemplo, a interpretação dos muitos
mundos pode ser vista dessa maneira. Na revisão da exposição de Everett,
articulada por Vaidman [1998], a interpretação dos muitos mundos implica
a existência de uma pluralidade de mundos. No entanto, essa não é uma
interpretação realizada por qualquer interpretação de Copenhagen ou pelo
formalismo da MQ não-relativista isoladamente. De fato, a introdução do
colapso da função da onda pode ser vista como uma tentativa de bloquear
o compromisso com a pluralidade de mundos (Vaidman [1998]). Estamos,
no entanto, incapazes, atualmente, de testar a existência dessa pluralidade e,
portanto, não é possível avaliar empiricamente os méritos das interpretações
em conflito.
Torna-se claro que as interpretações aqui relacionadas também possuem
prejuízos consideráveis. Elas são inconsistentes uma com as outras – pelo
seção 4 – traduções 277

menos nas suposições ontológicas que fazem para descrever o mundo quân-
tico. E suas tentativas de explicar o que se passa para além dos fenômenos
introduzem, em alguns casos, considerações que não são plausíveis, como o
número de mentes necessário pela interpretação das muitas mentes. Então,
é necessário um quadro para avaliar essas (e outras) interpretações de forma
objetiva. Pensamos que um possível aparato é fornecido pela abordagem das
estruturas parciais (da Costa e French [2003]).

2. QUASE-VERDADE E ESTRUTURAS PARCIAIS

A abordagem das estruturas parciais tem três conceitos principais:


relação parcial, estrutura parcial e quase-verdade (para detalhes, ver da Costa
e French [2003]). Um dos principais motivos para introdução dessa proposta
decorre da necessidade de fornecer um quadro formal no qual a abertura e a
incompletude das informações com que lidamos na prática científica possam
ser acomodadas. Isso é realizado, em primeiro lugar, alargando a noção usual
de estrutura, a fim de acomodar as parcelas de informação que temos sobre
certo domínio (introduzindo, em seguida, a noção de uma estrutura parcial).
Em segundo lugar, a caracterização tarskiana sobre o conceito de verdade é
generalizada para contextos parciais, direcionando-nos para a introdução do
conceito correspondente.
O primeiro passo, então, para caracterizar as estruturas parciais é
formular um conceito adequado de uma relação parcial. A fim de investigar
certo domínio de conhecimento D – (digamos, a física das partículas), os
pesquisadores formulam uma estrutura conceitual que auxilia a sistematizar
e interpretar a informação que se obtêm sobre D. Este domínio pode ser
representado por um conjunto D de objetos (que inclui objetos reais, como
as configurações em uma câmera Wilson, e objetos ideais, como os quarks).
D é estudado pelo exame das relações que mantém entre seus elementos. No
entanto, frequentemente, acontece que, dada uma relação R definida sobre
D, não sabemos se todos os objetos de D (ou n-uplas disso) estão relacio-
nados com R ou se precisamos ignorar algumas das relações que sabemos ser
mantidas pelos objetos de D, a fim de estudar, de forma manejável, outras
relações sobre esse domínio. Isso faz parte da incompletude e parcialidade
das informações que possuímos sobre D –, e é formalmente acolhido pelo
conceito de uma relação parcial. Tal relação pode ser caracterizada como
segue. Seja D um conjunto não-vazio. Uma relação parcial n-ária em D é
uma tripla 〈R1, R2, R3〉 onde R1, R2 e R3 são conjuntos mutuamente disjuntos,
com R1∪R2∪R3 = Dn e tal que R1 é o conjunto de n-uplas que (sabemos)
pertencem a R; R2 é o conjunto de n-uplas que (sabemos) não pertencem a
R, e R3 é o conjunto de n-uplas que não sabemos (ou, por razões de simpli-
278 revista brasileira de filosofia – RBF 239

ficação, ignoramos que sabemos) se pertencem ou não a R. (Note que se R3


está vazio, R é uma relação n-lugar usual que pode ser identificada com R1).
Mas, a fim de ajustar a informação sobre o ramo em estudo, um conceito
de estrutura é necessário. A caracterização a seguir, explicitada em termos
de relações parciais e baseada no conceito padrão de estrutura, oferece
uma concepção que é ampla o suficiente para acomodar a parcialidade que
normalmente é encontrada na prática científica. Uma estrutura parcial A é
um par ordenado 〈D,Ri〉i∈I, em que D é um conjunto não vazio, e (Ri)i∈I é uma
família de relações parciais definidas sobre D.6
Definimos agora dois ou três conceitos básicos da abordagem de
estruturas parciais. Com o propósito de enunciar o último (quase-verdade),
precisaremos de uma noção auxiliar. A ideia aqui é usar os recursos forne-
cidos pela definição de verdade de Tarski. Mas tendo em vista que referido
conceito somente define estruturas completas, temos que introduzir uma
noção intermediária de estrutura para vincular a estrutura parcial à completa.
Este é o primeiro papel destas estruturas que estendem uma estrutura parcial
A a uma completa (que são chamadas estruturas A-normais). Seu segundo
papel é modelo-teórico, isto é, apresentar uma interpretação de uma determi-
nada linguagem e caracterizar as noções semânticas. Seja A = 〈D,Ri〉i∈I uma
estrutura parcial. Dizemos que a estrutura B = 〈D′,R′i〉i∈I é uma estrutura
A-normal se (i) D=D′, (ii) cada constante da linguagem em questão seja
interpretada pelo mesmo objeto, tanto em A quanto em B, e (iii) R′i amplia a
correspondente relação Ri (no sentido de que, cada R′i, de suposta aridade n,
é definido para todos n-tuplas de elementos de D′). Note que, embora cada
R′I seja definido para todos n-tuplas sobre D′, isso vale para alguns deles (o
R′i1-componente do R′I ), e não vale para outros (o R′i2–componente).
Como resultado, dada uma estrutura parcial A, existem várias estruturas
A-normais. Suponha que, para determinado n-lugar relação parcial n-ária Ri,
não sabemos se Ria1...an se dá ou não. Uma das maneiras de estender Ri a uma
relação completa R′i é procurar informações para estabelecer que isso se dá;
outra maneira é procurar informações ao contrário. Ambas são, prima face,
possíveis formas de estender a parcialidade de Ri. Mas a mesma indetermi-
nação pode ser encontrada com outros objetos do domínio, distintos de a1,
..., an (por exemplo, Rib1...bn se sustenta?), e com outras relações distintas de
Ri (por exemplo, é o caso que Rjb1...bn com j ≠ i?). Nesse sentido, há muitas

6
A parcialidade das relações e estruturas parciais se deve à incompletude do nosso
conhecimento sobre o domínio em investigação. Com informações adicionais, uma relação
parcial pode se transformar numa relação completa. Assim, a parcialidade aqui examinada
não é ontológica, mas epistêmica.
seção 4 – traduções 279

extensões possíveis das relações parciais que constituem A. Por isso, preci-
samos oferecer limites para restringir as extensões aceitáveis de A.
Para fazer isso, primeiro precisamos formular mais uma noção auxiliar
(ver Mikenberg, da Costa e Chuaqui [1986]). Uma estrutura pragmática
é uma estrutura parcial na qual um terceiro componente foi adicionado:
um conjunto de sentenças aceitas P, que representa as informações aceitas
com relação ao domínio da estrutura. (Dependendo da interpretação da
ciência adotada, diferentes tipos de sentenças podem ser introduzidas em P:
realistas geralmente incluem leis e teorias, enquanto empiristas acrescentam
principalmente certas regularidades e declarações observacionais sobre o
domínio em questão.) Uma estrutura pragmática é, em seguida, uma tripla
A = 〈D,Ri,P〉i∈I,, em que D é um conjunto não vazio, (Ri)i∈I é uma família de
relações parciais definidas sobre D, e P é um conjunto de sentenças aceitas.
A ideia é que P introduz limites sobre as maneiras que uma estrutura parcial
pode ser estendida (as sentenças de P se sustentam nas extensões A-normais
da estrutura parcial A).
Nosso problema é: dada uma estrutura pragmática A, quais são as
condições necessárias e suficientes para a existência de estruturas A-normais?
Aqui está uma dessas condições (Mikenberg et alii [1986]). Seja A = 〈D,Ri,P〉
i∈I
uma estrutura pragmática. Para cada relação parcial Ri , construímos um
conjunto Mi de sentenças atômicas e de negações de sentenças atômicas, tais
que o primeiro corresponde a n-tuplas que satisfazem Ri, e o último àquelas
n-tuplas que não satisfazem Ri. Seja M=∪i∈IMi. Portanto, uma estrutura prag-
mática A admite uma estrutura A-normal se e somente se i conjunto M∪P
for consistente.
Assumindo que tais condições sejam satisfeitas, podemos formular
agora o conceito de quase-verdade. Uma sentença α é quase-verdadeira em
uma estrutura pragmática A = 〈D,Ri,P〉i∈I se existir uma estrutura A-normal B
= 〈D′,R′i〉i∈I tal que α é verdadeira em B (no sentido Tarskiano). Se α não é
quase-verdade em A, dizemos que α é quase-falsa em A. Além disso, dizemos
que uma sentença α é quase-verdadeira se existe uma estrutura pragmática
A e uma correspondente estrutura A-normal B, tal que α é verdade em B (de
acordo com a teoria de Tarski). Caso contrário, α é quase-falsa.
A ideia, intuitivamente falando, é que uma sentença quase-verdadeira α
não descreve, de forma exaustiva, todo o domínio com que ela se preocupa,
mas apenas um aspecto dele: delimitado pela estrutura parcial relevante A.
Afinal, existem várias maneiras diferentes em que A pode ser estendida a
uma estrutura completa, e em algumas dessas extensões α pode não ser
verdade. Assim, o conceito de quase-verdade é estritamente mais fraco
do que a verdade: apesar de que cada sentença verdadeira é (trivialmente)
280 revista brasileira de filosofia – RBF 239

quase-verdadeira, uma quase-verdade pode não ser verdadeira (uma vez que
pode muito bem ser falsa em certas extensões de A).
Para ilustrar o uso da quase-verdade, vamos considerar um exemplo.
Como se sabe, a mecânica Newtoniana é adequada para explicar o compor-
tamento dos corpos sob certas condições (por exemplo, corpos que, grosso
modo, têm uma baixa velocidade em relação à velocidade da luz, que não
estão sujeitos a fortes campos gravitacionais etc.). Mas, com a formulação da
relatividade especial, sabemos que se essas condições não forem satisfeitas,
a mecânica Newtoniana é falsa. Nesse sentido, essas condições especificam
uma família de relações parciais, que delimitam o contexto no qual a teoria
Newtoniana se sustenta. Embora a mecânica Newtoniana não seja verda-
deira (e sabemos em que condições ela é falsa), é quase-verdadeira, isto é,
é verdadeira em um determinado contexto, determinado por uma estrutura
pragmática e uma A-normal correspondente (ver da Costa e French [2003]).

3. UM QUADRO PARA INTERPRETAÇÕES DE MECÂNICA-QUÂNTICA

A abordagem das estruturas parciais fornece um quadro nos termos do


qual podemos rever e avaliar, pelo menos em parte, as interpretações de MQ
discutidas acima. Nesta seção, motivamos, em linhas gerais, esta alegação.
Apesar das diferenças significativas que existem entre elas, as inter-
pretações discutidas acima têm uma característica comum: todas elas são
(parcialmente) empiricamente adequadas – no sentido de que a evidência
empírica disponível atualmente não questiona qualquer dessas interpre-
tações. No entanto, a evidência empírica também não diferencia as várias
interpretações, dado que são igualmente amparadas pela evidência dispo-
nível. Existe ainda a possibilidade de que no futuro alguma nova evidência
questione alguma dessas interpretações sem modificar as demais. Mas,
para fornecer sentido a essa possibilidade, precisamos ter um conceito de
adequação empírica que não seja «absoluta», isto é, a adequação empírica de
uma teoria não caracterizada em termos de todas as evidências do passado,
presente e futuro. (Ainda não temos acesso ao último, em qualquer caso).
Pelo contrário, a adequação empírica de uma teoria é melhor concebida
emergindo da, e mudando com a, evidência que se torna disponível por
último. Mudanças na evidência podem muito bem transformar a adequação
empírica da teoria. Por exemplo, Van Fraassen ([1980], p. 64) oferece uma
teoria da adequação empírica que é «absoluta» no sentido relevante: uma
teoria científica é (ou não) empiricamente adequada relativamente a todas as
evidências possíveis – passado, presente e futuro. Parece-nos, contudo, que
é importante desenvolver uma teoria da adequação empírica que seja mais
refinada e sensível às mudanças das evidências no decurso da história de uma
seção 4 – traduções 281

teoria científica. Em particular, a teoria deve ser sensível à maneira com que
as evidências se deslocam na adequação empírica da teoria em análise (ver
também Bueno [1997]).
A abordagem das estruturas parciais nos permite caracterizar um
conceito de adequação empírica que é sensível a mudanças nas evidências.
Considere uma estrutura parcial A que representa a informação gerada a
partir de vários tipos de experimentos envolvendo sistemas quânticos não-
-relativistas e os relatos das medições resultantes. Essa estrutura é clara-
mente parcial, uma vez que, por exemplo, não há informação disponível
relativamente aos resultados de experimentos futuros. Como mais e mais
informações se tornam disponíveis, mais as relações parciais na estrutura
parcial A modificarão seus R3–componentes para R1– ou R2–relações. Cada
uma das interpretações de MQ discutidas acima é quase-verdadeira na estru-
tura parcial A; isto é, as evidências atualmente disponíveis em A não excluem
a possibilidade de que essas interpretações possam vir a ser verdade. Desse
modo, as interpretações são (parcialmente) empiricamente adequadas – isto
é, quase-verdadeiras no que diz respeito à evidência disponível na estrutura
parcial A. É possível que, no entanto, a evidência que se torne disponível
no futuro descarte algumas interpretações em questão. Nesse caso, haverá
uma mudança na estrutura parcial A, que representa a evidência disponível.
E com respeito à nova evidência, algumas dessas interpretações deixarão
de ser (parcialmente) empiricamente adequadas – isto é, não serão mais
quase-verdadeiras.
Embora as interpretações de MQ discutidas acima sejam (parcialmente)
empiricamente adequadas dada a evidência atual, ainda é possível avaliá-las
em termos de três fatores pragmáticos:
(F1) potência explicativa: Quanto satisfatoriamente podem essas
interpretações explicar aspectos intrigantes da MQ não-relativista (como o
problema da medição)?
(F2) novas predições: As interpretações geram novas predições –
embora tais predições não possam ser atualmente testadas?
(F3) coerência: As interpretações oferecem uma visão coerente do que
está acontecendo além dos fenômenos observáveis?
Esses três fatores são pragmáticos no sentido de que, mesmo se respostas
positivas forem fornecidas para as perguntas acima, não podemos concluir
que as interpretações resultantes são, por causa disso, mais prováveis de
serem verdadeiras. Por quê?
Responder exigências explicativas, tais como a de (F1), é certamente
um aspecto útil de uma interpretação de MQ. Mas fica muito menos claro, e
282 revista brasileira de filosofia – RBF 239

muito mais controverso para decidir, se uma resposta bem-sucedida a (F1)


aumenta a probabilidade de que as interpretações em questão sejam verda-
deiras. Uma resposta positiva a (F1) apoia claramente a quase-verdade das
interpretações envolvidas por destacar as estruturas parciais que podem ser
usadas na explicação dos fenômenos sob investigação. Mas não fica claro
se estamos autorizados a dizer qualquer coisa além disso. Afinal, como a
mecânica clássica ilustra brilhantemente, uma teoria pode explicar vários
aspectos de um determinado ramo, sem, por isso, ser verdadeira.
Pode-se pensar que gerar novas predições, como foi sugerido em (F2),
equivale a mais de uma característica pragmática de uma interpretação: que
deve oferecer uma avaliação epistêmica da proposta. Mas estamos consi-
derando aqui novas predições que de fato não podem ser testadas. Como
tal, as predições não parecem dialogar com a verdade, ou mesmo com a
verdade aproximada, das interpretações em questão, uma vez que o resul-
tado dos prognósticos não pode ser determinado no momento. Originais, as
predições não testáveis podem ser consideradas como tendo, no máximo, um
papel pragmático – até o momento em que as predições possam, de fato, ser
testadas (se alguma vez chegarem a esse ponto).
Finalmente, o desenvolvimento de uma visão coerente do mundo quân-
tico, o fator (F3) acima, evidencia claramente uma dimensão pragmática.
Ter uma explicação coerente do domínio quântico nos ajuda a entender cada
um dos domínios melhor. Mas, mais uma vez, esse entendimento ressalta
um fator pragmático, em vez de um epistêmico. Afinal, por que é que o fato
de a descrição fazer sentido para nós – aumentando nossa compreensão –
deve, por meio disso, oferecer-nos razões para acreditar que essa descrição é
verdadeira? Considere, por exemplo, romances históricos. Eles, sem dúvida,
oferecem-nos a compreensão de nuances, complexidades e aspectos signifi-
cantes da vida em determinados períodos históricos. Mas não consideramos
as descrições fornecidas nesses romances como verdadeiras. O mesmo
ponto, mutatis mutandi, vale para as interpretações de MQ.
Como é que a interpretação de Copenhagen se sai com relação a (F1)-
(F3)? A interpretação não parece se sair particularmente bem com relação
a (F1). Se nos concentrarmos no problema da medição, a introdução do
postulado do colapso, em vez de oferecer uma abordagem bem motivada
para a questão, parece basicamente reformular o problema. Se esperamos
entender por que a medição é tão especial que precisamos introduzir um
evento verdadeiramente aleatório no núcleo da MQ, apenas mencionar o
colapso da função da onda não chega a resolver o problema. Isso essencial-
mente reafirma-o.
No que diz respeito a (F2), a interpretação de Copenhagen não parece
fazer muito melhor também. Afinal, a interpretação não oferece quaisquer
seção 4 – traduções 283

novos prognósticos – inclusive aqueles que não podem ser atualmente


testados.
No entanto, a interpretação de Copenhagen oferece uma explicação
coerente, muito deflacionária, do domínio quântico, particularmente na sua
versão anti-realista. Nesse sentido, (F3) está adequadamente atendida. Esta é,
provavelmente, a principal razão pela qual essa interpretação parece ser tão
amplamente aceita entre os físicos. Dada a natureza caprichosa do domínio
quântico, é uma virtude da interpretação de Copenhagen – particularmente
em sua forma antirrealista – não obrigar a ficar comprometido com significa-
tivamente mais do que o estritamente necessário para usar a teoria quântica.
Como é que a interpretação dos muitos mundos se sai com relação a
(F1)-(F3)? Se considerarmos (F1), e focarmos no problema da medição, a
interpretação dos muitos mundos não endereça muito bem a questão, espe-
cialmente em sua formulação da «decomposição dos mundos». Afinal, nesta
formulação, ainda há algo especial sobre medição: a cisão dos mundos! A
melhor justificativa da medição é oferecida pela versão dos muitos mundos
que não invoca o pressuposto da decomposição dos mundos. No entanto, essa
versão precisa introduzir uma medida da existência de mundos (Vaidman
[1998]), a fim de acomodar a probabilidade na interpretação dos muitos
mundos. A preocupação aqui é saber se tal medida dos mundos realmente faz
sentido, uma vez que não temos acesso empírico a esses objetos concretos.
No que diz respeito a (F2), a interpretação dos muitos mundos, particu-
larmente na formulação de não-divisão dos mundos, oferece predições origi-
nais, mas de fato não testáveis: a existência de uma pluralidade de mundos.
Nunca seremos capazes de testar tal prognóstico, mas, certamente, se trata de
uma previsão interessante e bastante inesperada para se fazer!
Finalmente, se considerarmos (F3), a versão de não-separação dos
mundos da interpretação dos muitos mundos oferece uma explicação coerente
para o domínio quântico. Acontece que, se a interpretação for verdadeira, há
muitos mundos mais do que inicialmente pensado.7
A interpretação das muitas mentes é uma variação da concepção dos
muitos mundos, e por isso nossa discussão aqui pode ser breve. No que se
refere a (F1), como discutido na seção 2 acima, a interpretação das muitas
mentes não parece oferecer uma solução adequada para o problema da
medição, dada a necessidade de demandar um número incrível de mentes.

7
Não fica claro se a sugestão de que mundos literalmente decompostos em medição é
coerente, já que parece entrar em conflito com vários pressupostos físicos (ver Albert e
Loewer [1988], e Barrett [1999]). Assim, o ponto de coerência não parece se aplicar à versão
da divisão dos mundos na interpretação dos muitos mundos.
284 revista brasileira de filosofia – RBF 239

Com relação a (F2), em oposição a proposta dos muitos mundos, a interpre-


tação das muitas mentes não gera novas predições, uma vez que não requer
a existência de uma pluralidade de mundos. No entanto, concentrando-
-se agora em (F3), a interpretação parece oferecer uma visão coerente do
domínio quântico – particularmente se a ideia de que existam tantas mentes
puder fazer sentido!
Como este breve relato de algumas interpretações de MQ indica, apesar
de todas as interpretações examinadas aqui serem (parcialmente) empiri-
camente adequadas – isto é, quase-verdadeiras com relação às evidências
atuais – ainda é possível avaliá-las em termos dos três fatores pragmáticos
(potência explicativa, novas predições e coerência). As considerações acima
sugerem que, entre as interpretações discutidas, a versão de não-divisão
dos mundos da interpretação dos muitos mundos parece oferecer a melhor
explicação desses fatores. Isso significa que essa interpretação é verdadeira?
Realmente, não, dado que os fatores envolvidos são pragmáticos na melhor
das hipóteses. Satisfazer esses três fatores pode fornecer-nos razão para
aceitar essa interpretação, mas não para acreditar na sua verdade – para
invocar uma distinção bem conhecida utilizada pelo empirista construtivista
(van Fraassen [1980]).
Agora, suponha que incorporamos satisfatoriamente os fatores (F1)-
(F3) na formulação de quase-verdade; por exemplo, incluímos (F1)-(F3)
como parte do conjunto de sentenças aceitas P que se espera sejam satisfeitas
em uma estrutura pragmática. A ideia, então, é que quantos mais fatores
satisfazem uma interpretação de MQ, mais quase-verdadeira se torna. Nesse
sentido, podemos dizer que a versão de não-divisão dos mundos da interpre-
tação dos muitos mundos é mais quase-verdadeira do que a de Copenhagen
ou a das muitas mentes. Além disso, também podemos entender como essas
interpretações oferecem diferentes explicações do domínio quântico, uma
vez que tratam de forma muito diferente – dos pontos de vista ontológico e
epistemológico – os três fatores pragmáticos, (F1)-(F3), que discutimos.

CONCLUSÃO

Nesse artigo, esboçamos como a abordagem de estruturas parciais


oferece um panorama útil para examinar as interpretações de MQ. Como
vimos, a abordagem fornece uma explicação da adequação empírica parcial,
segundo a qual as interpretações de MQ que examinamos são parcialmente
empiricamente adequadas, isto é, quase-verdadeiras dada a evidência atual.
No entanto, ainda é possível avaliar as interpretações em questão em termos
de quão bem elas enfrentam fatores pragmáticos significantes. Apesar de não
nos fornecer motivos para acreditar que as interpretações sejam verdadeiras,
seção 4 – traduções 285

a satisfação desses fatores nos permite aceitar algumas dessas interpreta-


ções, por razões pragmáticas, e explorar a compreensão que oferecem sobre
o mundo quântico.

BIBLIOGRAFIA
Albert, David; Loewer, Barry, 1988: «Interpreting the Many Worlds Interpreta-
tion». Synthese 77: 195-213.
Barrett, Jeffrey, 1999: The Quantum Mechanics of Minds and Worlds. Oxford:
Clarendon Press.
Bueno, Otávio, 1997: «Empirical Adequacy: A Partial Structures Approach».
Studies in History and Philosophy of Science 28: 585-610.
Bohr, Niels, 1987-1998: The Philosophical Writings of Niels Bohr. (4 volumes.)
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Da Costa, Newton; French, Steven, 2003: Science and Partial Truth. New York:
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Von Neumann, John, 1932: Mathematical Foundations of Quantum Mechanics
(trad. R.T. Beyer, 1955). Princeton: Princeton University Press.
Membros da Diretoria do IBF
e da Fundação Nuce e M. Reale

Instituto Brasileiro de Filosofia

Prof. Celso Lafer – Presidente


Prof. Tercio Sampaio Ferraz Junior – Vice-Presidente
Prof. Ari Marcelo Sólon – Secretário Geral
Prof. Juliano Souza de Albuquerque Maranhão – Tesoureiro
Prof. Miguel Reale Júnior – Diretor de Publicações
Prof. Antonio Paim – Diretor de Cursos e Conferências

Fundação Nuce e Miguel Reale

Dr. Ruy Martins Altenfelder Silva – Presidente


Prof. Milton Vargas – Vice-presidente
Prof. Cláudio de Cicco – Secretário
Dr. José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro – Tesoureiro
Membros efetivos do
Instituto Brasileiro de Filosofia

Alino Lorenzon
Amauri Mascaro Nascimento
Ana Maria Moog
Antonio Brito da Cunha
Antonio Carlos Moreira
Antonio Celso Mendes
Aquiles Cortes Guimarães
Ascendino Leite
Benedito Eliseu Leite Cintra
Benedito Nunes
Carlos Henrique Cardim
Claudio De Cicco
Cláudio Souto
Constança Marcondes Cesar
Creusa Capalbo
Dante Pacini
Dinorah Araújo C. Castro
Eduardo Rocha Virmond
Elyana Barbosa
Emmanuel Carneiro Leão
Ernildo Stein
Fernando Arruda Campos
Fernando Bastos
Flamarion Tavares Leite
Francisco dos S. Amaral Neto
Francisco Martins de Souza
Gilberto de Mello Kujaswski
Gilda Maciel de Barros
Gumercindo Dórea
Irineu Strenger
Italo da Costa Jóia
Iulo Brandão
Ives Gandra Martins
João Alfredo S. Montenegro
João de Scantimburgo
João Maurício Adeodato
João Ricardo Moderno
Joaquim Carlos Salgado
Joaquim Clotet
Jorge Cintra
Jorge Jaime de Souza Mendes
José Amado do Nascimento
José Carlos Moreira Alves
José Eduardo de Oliveira Faria
José Maurício de Carvalho
José Oswaldo de Meira Penna
Leodegário A. de Azevedo Filho
Leonardo Prota
Leonidas Hegenberg
Luiz Fernando Coelho
Luiz Fernando Whitaker da Cunha
Machado Paupério
Maria do Carmo Tavares de Miranda
Mariluze F. A. Silva
Mario Barata
Mario Bruno Sproviero
Mario Lins
Mario Vieira de Mello
Milton Vargas
Nelson Saldanha
Newton Carneiro da Costa
Newton Sucupira
Oliveiros Litrento
Oswaldo Porchat
Paulo Condorcet
Paulo de Freitas Mercadante
Paulo Dourado de Gusmão
Paulo Nader
Pinto Ferreira
Raimundo Bezerra Falcão
Renato Ribeiro
Ricardo Velez Rodriguez
Ronaldo Poletti
Senvino Malfatti
Shozo Motoyama
Silvino J. Lopes Neto
Ubirajara Calmon Carvalho
Ubitaran d’Ambrosio
Vamireh Chacon
Vicente Barreto
Washington Bolivar de Brito
Zeno Veloso
Membros Internacionais

Angeles Mateos García – Argentina


Antonio Braz Teixeira – Portugal
Augustin Squella Narducci – Chile
Carlos Eduardo Pacheco Amaral – Portugal
Celeste Natário – Portugal
Cristiana A. de Soveral
Domingo Garcia Belaunde – Peru
Enrico Pattaro – Itália
Francisco Miró Quesada – Peru
Francisco Olmedo Llorente – Equador
Gustavo Fraga – Portugal
Italo Paolinelli Monti – Chile
Jaime Brufau Prats – Espanha
Javier Garcia Medina – Espanha
Jean-Marc Trigeaud – França
Joaquim Domingues – Portugal
Juilio Chiappini – Argentina
Leonel Ribeiro dos Santos – Portugal
Lino Arias Rodrigues Bustamante – Venezuela
Lino Arias-Bustamante – Venezuela
Luigino Valentini – Itália
Luiz Taul Rossi Baethen – Uruguay
Manuel Cândido Pimentel – Portugal
Marcela Varejão – Itália
Mário Losano – Itália
Martín Laclau – Argentina
Miguel Angel Ciuru Caldani – Argentina
Olsen A. Ghirardi – Argentina
Orlando Vitorino – Portugal
Pedro Calafate – Portugal
Pierangelo Catalano – Itália
Renato Epifânio – Portugal
Roberto José Vernengo – Argentina
Wolf Paul – Alemanha
Zdenek Kourim – França
Normas de publicação para os autores

1. Os artigos originais para publicação na Revista Brasileira de Filosofia


deverão ser inéditos e sua publicação não deve estar pendente em outro local.
Uma vez publicados, consideram-se licenciados para a Editora Marcial Pons
com exclusividade para o veículo impresso em papel ou digital, pelo prazo
de duração dos direitos patrimoniais do autor. Os trabalhos também poderão
ser publicados em outros lugares, desde que após a autorização prévia da
Editora Marcial Pons e citada a publicação original como fonte, constando o
nome da editora, a cidade, o ano e as páginas.

2. Os trabalhos devem ser enviados para os Editores nos endereços eletrônicos


julianomaranhao@usp.br e revista@ibf.net.br, juntamente com o endereço
completo do autor para correspondência, curriculum resumido, autorização
de publicação em caso de aprovação e declaração de ineditismo do artigo.

3. Os trabalhos deverão ter entre 20 e 50 laudas e poderão ser escritos em


português, espanhol e inglês. Os parágrafos devem ser alinhados à esquerda.
Não devem ser usados recuos, deslocamentos, nem espaçamentos antes ou
depois. Não se deve utilizar o tabulador <TAB> para determinar os pará-
grafos: o próprio <ENTER> já determina, automaticamente, a sua abertura.
Como fonte, usar a Times New Roman, corpo 12. Os parágrafos devem ter
entrelinha 1,5; as margens superior e inferior 2,5 cm e as laterais 3,0 cm. O
tamanho do papel deve ser A4. O artigo não poderá conter o nome do autor
ou qualquer outra referência que permita identificá-lo ao longo do texto.

4. Os trabalhos deverão ser precedidos por uma folha na qual se fará constar:
o título do trabalho, o nome do autor (ou autores), endereço, telefone, fax e
e-mail e instituições às quais pertença.

5. São publicados trabalhos em Inglês, Português, Espanhol, Italiano e


Francês. O autor deverá encaminhar um resumo do artigo na língua original
e outro em inglês com no máximo 250 palavras.
6. Deverão ser destacadas pelo menos três e no máximo cinco palavras-chave
(palavras ou expressões que expressem as ideias centrais do texto), as quais
possam facilitar posterior pesquisa ao trabalho. Vide exemplo:

Palavras-chave: Condicionais – Modalidades deônticas


– Lógica derrotável.

7. As referências bibliográficas deverão ser feitas ao final do trabalho de


acordo com as regras descritas a seguir. Uma referência bibliográfica básica
deve conter: sobrenome do autor em letras maiúsculas; vírgula; nome do
autor em letras minúsculas ou suas iniciais; vírgula; ano da publicação; dois
pontos; título da obra em itálico; ponto; local (cidade); dois pontos; editora
(não usar a palavra editora); ponto, como no exemplo a seguir:

CROCCO, Gabriella, FARIÑAS DEL CERRO, Luis, HERZIG,


Andreas, 1995: Conditionals: from philosophy to computer
science, Oxford: Clarendon Press.

8. As citações diretas e indiretas deverão ser incluídas no próprio texto, sendo


reservadas às notas de rodapé somente as citações acompanhadas de comen-
tários ou considerações do autor. Uma citação deve conter: o sobrenome
do autor em letras maiúsculas; vírgula; o ano da publicação; dois pontos;
número da página ou do intervalo de páginas, e deve ser apresentada entre
parêntesis, como no exemplo a seguir:

[...] “we think that it is important for the philosophical


analysis of conditionals to know the motivations, problems
and techniques of non-monotonic reasoning and belief revi-
sion, and from the opposite viewpoint it is important for
the understanding of non-monotonic reasoning and belief
revision systems to learn from the philosophical discussion
of conditionals” (CROCCO, FARIÑAS DEL CERRO, HERZIG,
2009: 10).

9. Todo destaque que se queira dar ao texto impresso deve ser feito com o
uso de itálico. Jamais deve ser usado o negrito ou a sublinha. Citações de
textos de outros autores deverão ser feitas entre aspas, sem o uso de itálico.

10. Será prestada uma retribuição autoral pela licença de publicação dos traba-
lhos na Revista Brasileira de Filosofia ou qualquer tipo de mídia impressa
(papel) ou eletrônica (Internet, CD-rom, e-book etc.), correspondente a um
exemplar da revista em cujo número seu trabalho tenha sido publicado ou do
produto digital quando contido em suporte físico.
11. Os trabalhos que não se ativerem a estas normas serão devolvidos aos
seus autores, que poderão reenviá-los, desde que efetuadas as modificações
necessárias.

12. A seleção dos trabalhos para publicação é de competência do Conselho


Científico da Revista, por meio de sistema de blind review. Os trabalhos
aprovados por dois referees indicados pelo Conselho Científico serão publi-
cados conforme ordem definida pelo editor para os volumes da revista, sendo
que a notificação de aceitação do trabalho será feita em, no máximo, três
meses. O trabalho poderá ser aprovado para publicação sob a condição de
serem efetuadas alterações no artigo, situação na qual o autor deverá realizar
todas as alterações propostas ou então justificar as sugestões que não foram
aceitas.
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unpublished and their publication must not be pending in other locations.
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2. Papers must be sent to Editors at the e-mail addresses julianomaranhao@


usp.br and revista@ibf.net.br, with the full mailing address of the author,
sum marized curriculum, permission to publish in the event of approval and
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3. The papers must have 20 to 50 pages and may be written in Portuguese,


Spanish or English. Setbacks, offsets, or spacing, before or after, must not be
used. Paragraphs must be fl ush left. The tabulator <TAB> must not be used
to determine paragraphs: <ENTER> itself already provides automatically the
opening of the paragraph. Times New Roman, 12, must be used as a source.
Paragraphs must have 1.5 line spacing, margins 2.5 cm top and bottom, and
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author’s name or any other reference that can identify him or her throughout
the text.

4. The papers must be preceded by a sheet, which shall record: the paper’s
title, the name of the author(s), address, phone, fax and e-mail and institu-
tions to which the author(s) belongs.

5. The RBF accepts papers in English, Portuguese, Spanish, Italian and


French. The author should at least be master’s degree and must send an
abstract of the article in the original language and another abstract in English,
with a maximum of 250 words.
6. At least three and maximum five keywords (words or expressions that
express the central ideas of the text) must be pointed. Those keywords may
facilitate future research to the paper. As an example:

Keywords: Conditionals – Deontic modalities – Defeasible


logic.

7. Bibliographical references must be made at the end of the paper, in accor-


dance with the rules described as follows. A basic bibliographical refer-
ence should contain: author’s surname in capitals; comma; author’s name
or initials in lowercase letters; comma; year of publication; colon; title in
italics; point; locus (city); colon; Publisher (not using the word editor); point,
as in the example below:

CROCCO, Gabriella; FARIÑAS DEL CERRO, Luis; HERZIG,


Andreas, 1995: Conditionals: from philosophy to computer
science. Oxford: Clarendon Press.

8. The direct and indirect quotations must be included in the text, and only the
quotations accompanied by comments or considerations of the author should
be reserved for the footnotes. A citation must contain: the author’s surname
in capital letters; comma; year of publication; colon; page number or range of
pages, and should be presented in brackets, as in following example:

“[...] we think that it is important for the philosophical


analysis of conditionals to know the motivations, problems
and techniques of nonmonotonic reasoning and belief revi-
sion, and from the opposite viewpoint it is important for
the understanding of non-monotonic reasoning and belief
revision systems to learn from the philosophical discussion
of conditionals” (CROCCO, FARIÑAS DEL CERRO, HERZIG,
2009: 10).

9. Every enhancement in the printed text must be done with the use of italics.
Bold or underline must never be used. Quotes from texts of other authors
must be done between quotation marks, without the use of italics.

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