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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ZOOLOGIA

ETNOICTIOLOGIA DOS PESCADORES URBANOS DA PEDRA


FURADA (SALVADOR, BAHIA): ASPECTOS ETOLÓGICOS,
ECOLÓGICOS E TAXONÔMICOS

MARINA LORDELO CARNEIRO

ORIENTADOR: JOSÉ GERALDO W. MARQUES

FEIRA DE SANTANA, BA
FEVEREIRO DE 2012
MARINA LORDELO CARNEIRO

ETNOICTIOLOGIA DOS PESCADORES URBANOS DA PEDRA


FURADA (SALVADOR, BAHIA): ASPECTOS ETOLÓGICOS,
ECOLÓGICOS E TAXONÔMICOS

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO APRESENTADA AO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ZOOLOGIA DO

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS DA

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, COMO

PARTE DO PRÉ-REQUISITO À OBTENÇÃO DO TÍTULO DE

MESTRE EM ZOOLOGIA

MARINA LORDELO CARNEIRO


ORIENTADOR: JOSÉ GERALDO W. MARQUES

FEIRA DE SANTANA, BA
FEVEREIRO DE 2012
FOLHA DE APROVAÇÃO

Marina Lordelo Carneiro

ETNOICTIOLOGIA DOS PESCADORES URBANOS DA PEDRA FURADA (SALVADOR,


BAHIA): ASPECTOS ETOLÓGICOS, ECOLÓGICOS E TAXONÔMICOS

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Zoologia da


Universidade Estadual de Feira de Santana, em 24 de Fevereiro de 2012, como requisito
parcial na integralização para obtenção do grau de Mestre nesta instituição, pela banca
examinadora formada pelos componentes:

Profº. Dr. José Geraldo Wanderley Marques


(Orientador – Univerisidade Estadual de Feira de Santana)

Profº. Dr. José da Silva Mourão


(Membro titular externo – Universidade Estadual da Paraíba)

Profº. Dr. Francisco José Bezerra Souto


(Membro titular interno – Universidade Estadual de Feira de Santana

Profº Dr. George Olavo Mattos e Silva


(1º Membro suplente interno – Universidade Estadual de Feira de Santana)

Profº. Dr. Alexandre Clistenes de Alcântara Santos


(2º Membro suplente interno – Universidade Estadual de Feira de Santana)

Profª. Dra. Flávia de Barros Prado Moura


(Membro suplente externo – Universidade Federal de Alagoas)
“(...) Ouve o canto misterioso das águas no firmamento...
É a alvorada, pescador, a inefável alvorada
A noite se desincorpora, pescador, em sombra
E a sombra em névoa e madrugada, pescador!
Vai, vai, pescador, filho do vento, irmão da aurora
És tão belo que nem sei se existes, pescador!
Teu rosto tem rugas para o mar onde deságua
O pranto com que matas a sede de amor do mar!
Apenas te vejo na treva que se desfaz em brisa
Vais seguindo serenamente pelas águas, pescador
Levas na mão a bandeira branca da vela enfunada
E chicoteias com o anzol a face invisível do céu.”

Vinícius de Moraes

A todos os pescadores da cidade de Salvador.


AGRADECIMENTOS

Depois de dois anos de trabalho é difícil lembrar tod@s que passam pela nossa
vida, os que contribuem com uma palavra de conforto (e no momento certo faz toda a
diferença). Esse espaço de agradecimentos na dissertação é tão oportuno e especial que
a pessoa que o inventou deveria sempre receber os créditos.
Eu vou começar pela comunidade da Pedra Furada, porque sem a receptividade,
carinho, paciência de muitos dali, seria impossível dedicar tanto tempo e carinho a esse
trabalho, especialmente a Seu Gegê, Marujo, Vanelson, Paulo, Hashide, Haroldinho,
Seu Gildo e todos os pescadores que cederam um pouquinho dos seus saberes para criar
esse trabalho em conjunto. Ir à Cidade Baixa por vários dias e contemplar o mar da Baía
de Todos os Santos sem dúvida foi uma experiência incrível.
Impossível seria também este trabalho sem as inspirações, as cobranças, a
disponibilidade constante e o carinho do meu (queridíssimo!) orientador José Geraldo
Marques que há quase seis anos me deu a chance de desfrutar das suas pesquisas; um
pai acadêmico que desde a iniciação científica trilha comigo o percurso profissional.
Antes de escolher os peixes, eu o escolhi, ele aceitou e sou infinitamente grata por isso.
Muitíssimo obrigada.
As manhãs e tardes no LETNO, acompanhadas do carinho de Tati, dos
constantes salvamentos de Vivi e das piadas e contribuições enriquecedoras de Franzé
colaboraram como apoio logístico e de purificação (da alma!) em cada trecho desta
dissertação.
Aos membros da banca, muitíssimo obrigada por participar deste momento e
ceder um tantinho de tempo e conhecimento para enriquecer este trabalho.
Ao professor Paulo Roberto Duarte Lopes, muito obrigada pela identificação dos
peixes e ajuda na análise do conteúdo estomacal. E a Simony, obrigada pelo mapa
maravilhoso!
Aos amigos queridos do extrabem (Paulinha, Lala, Leo, Alan, Ina, Thico e
Thai), obrigada pelos dias de diversão, discussões filosóficas, risadas incansáveis e
amor incondicional.
Aos amigos “sítricos”, agradeço imensamente pelo apoio constante,
especialmente a Igor, Tatinha, Nana e Iuri pela viagem maravilhosa e revigorante! A
Mari e Bozinho pela presença nos finais de semana de séries, filmes, risadas e cochilos,
não é, prima?
Amigas lindas de infância, Ana e Miloca! Obrigada por aturar a dissertação que
ocupou um tempo gigantesco na minha vida; sem a compreensão de vocês seria muito
mais complicado de terminar...
Minha família: minha mãe, meu irmão e meu pai. Conseguimos vencer juntos
fases difíceis, e não desistiremos jamais. A sensação de fraqueza só nos fortalece.
Meu lindinho, um engenheiro que aprendeu um pouco de etnoictiologia, de
peixes, de zoologia, leu cada parágrafo, viu cada figura, tabela e quadros desta
dissertação e me ensinou tanto sobre paciência, calma, superação, dedicação. Obrigada,
meu bem! Viver os dois primeiros anos de casamento imersos (ambos!) neste trabalho
só trouxe amadurecimento e felicidade a nossas vidas.
Por fim, vou parafrasear os agradecimentos da tese de Franzé e reconhecer as
contribuições que eles tiveram nestes dois anos: Beatles (especialmente Paul que tive a
honra de ouvir cantar pessoalmente duas vezes!), Radiohead, Amy Winehouse, Belle &
Sebastian, Cranberries, Marcelo Camelo, Amarante (e Little Joy), Keane, Novos
Baianos, Chico Buarque, Roberta Sá, Strokes, Tiê, Vânia Abreu, Móveis Coloniais de
Acajú e a trilha quase diária de Hair. Alguns poucos que me ajudaram a ter um
momento só meu e de mais ninguém. E que sempre serão eternos.

Obrigada a tod@s.
RESUMO

O presente estudo teve como objetivo principal investigar o conhecimento ictiológico


(taxonômico, etológico e ecológico) dos pescadores urbanos da Pedra Furada, Salvador,
Bahia. Eminentemente qualitativa, a pesquisa se deu através da coleta de dados por
técnica de snowball, totalizando 17 entrevistados. A estes foram aplicadas entrevistas
não-estruturadas e semi-estruturadas e exibição de um kit fotográfico para estímulo
visual. Em alguns casos foi necessária a utilização da técnica de grupo focal adaptada.
Houve obtenção de material biológico através de doação de 30 exemplares de uma
espécie de peixe para análise descritiva de conteúdo estomacal; esta foi devidamente
identificada (assim como as espécies do kit) por um especialista. Os dados foram
sistematizados e analisados pelo nível de abrangência (memes bem sucedidos) e
também a partir do modelo de união de diversas competências. Triangulações foram
utilizadas para testar consistência e validar informações. Modelos cognitivos baseados
em categorizações etnotaxonômicas, etnoecológicas e etnoetológicas foram
identificados entre os pescadores. Estes, nomeiam, identificam e classificam os peixes
de forma hierárquica, com base em critérios morfológicos e ecológicos, e também
paralelamente através de modelos alternativos de sobreposição hierárquico-ecológica,
de seqüencialidade e de um padrão de classificação econômica. Quanto às categorias
etnoetológicas, emergiram 18 categorias relacionadas com produção de som,
reprodução, agressão e repouso. Em ecologia trófica, houve vasta correspondência com
a literatura científica a respeito da dieta e alimentação dos peixes, bem como de seu
hábitat, interpretando-se as relações, inclusive, através de redes e cadeias tróficas.
Foram identificados dois tabus alimentares interferindo no comportamento e no
consumo das espécies em questão. É possível afirmar que os pescadores urbanos da
Pedra Furada partilham conhecimentos taxonômicos, ecológicos e etológicos
detalhados, e grande parte corresponde à literatura científica, validando assim a
relevância dos estudos etnobiológicos em comunidades urbanas, de forma a contribuir
inclusive em políticas públicas.

Palavras-chave: peixes, pesca urbana, etnotaxonomia, etnoecologia e etnoetologia.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the ichthyological knowledge (taxonomic, ecological


and ethological) of urban fishermen from Pedra Furada, Salvador, Bahia. Eminently
qualitative, the research was carried out through data collection by snowball technique,
totaling 17 interviews. It was applied to these fisherman non-structured and semi-
structured interviews and also a display of a photographic kit to function as visual
stimuli. In some cases it was necessary to use an adapted focus group technique. There
was obtained biological material through donation of 30 specimens of a species of fish
for descriptive analysis of stomach contents; this species was correctly identified (as
well as the species of the kit) by a specialist. The data were organized and analyzed
because of its level of scope (successful memes) and also through the model of union in
multiple skills. Triangulation tests were used to evaluate the consistency and validation
of information. Cognitive models based on ethnotaxonomics, ethnoecological and
ethnoethological categorizations were identified among the fishermen. The fishermen
name, identify and classify the fish in a hierarchical model, based on morphological and
ecological criteria, and also concurrently through alternative models, such as
hierarchical and ecological overlap of sequentiality and a pattern of economic
classification. As for ethnoethology, 18 categories emerged related to sound production,
reproduction, aggression and rest. In feed ecology, there was extensive correspondence
with the scientific literature on fish diet and feeding and their habitat, interpreting the
relationships, even across food chains and webs. We identified two food taboos,
interfering with behavior and consumption of the species concerned. We can say that
the urban fishermen from Pedra Furada shares taxonomic, ecological and ethological
detailed knowledge, largely congruent with the scientific literature, thereby validating
the relevance of ethnobiological studies in urban communities, to contribute even in
public policy.

Keywords: fish, urban fishing, ethnotaxonomy, ethnoecology and ethnoethology.


SUMÁRIO

RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS...................................................................................................i
LISTA DE TABELAS.................................................................................................iv
LISTA DE QUADROS.................................................................................................V
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................15
2. REFERENCIAL TEÓRICO........................................................................................18
3. OBJETIVOS............................................................................................................23
4. METODOLOGIA.....................................................................................................25
4.1 ÁREA DE ESTUDO...........................................................................................26
4.2 COLETA DE DADOS.........................................................................................31
4.3 ANÁLISE DE DADOS........................................................................................32
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO...................................................................................35
5.1 ETNOTETOLOGIA............................................................................................41
5.2 ETNOECOLOGIA TRÓFICA................................................................................60
5.3 ETNOTAXONOMIA...........................................................................................78
6. CONCLUSÃO........................................................................................................100
7. REFERÊNCIAS......................................................................................................102
8. APÊNDICES......................................................................................................... 111
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Localização da cidade de Salvador, Bahia, enfoque na península itapagipana.


O ponto destaca a Pedra Furada......................................................................................27
Figura 2: Imagem de Satélite da área ocupada pela comunidade da Pedra Furada:
12º55'26'' S e 38º30'48'' W. Fonte: Google maps............................................................28
Figura 3: Contrastes paisagísticos da comunidade, o mar e a favela..............................30
Figura 4: Contrastes paisagísticos da comunidade, o mar e a favela..............................30
Figura 5: Artes de pesca encontradas na Pedra Furada. A. Rede B. Grozeira C.
Munzuá............................................................................................................................30
Figura 6. Gráfico relacionando idade e tempo de pesca dos entrevistados.....................36
Figura 7: Mapeamento resultante da técnica do snowball (gerado pelo Pajek)
representando as relações entre as indicações dos pescadores da Pedra Furada.............37
Figura 8: Kit Fotográfico utilizado na pesquisa...............................................................38
Figura 9: Correspondências e diferenças entre as etnocategorias nos trabalhos de
Marques (1992), Costa-Neto & Marques (1999) e Moura et al. (2008); com destaque, as
etnocategorias encontradas no presente estudo...............................................................42
Figura 10: A. Aetobatus narinari. B.“Buzo” (Strombus costatus) consumido pelo A.
narinari segundo os informantes da Pedra Furada, ........................................................44
Figura 11: Memes relacionados à etnocategoria “peixe que ronca” na comunidade da
Pedra Furada....................................................................................................................50
Figura 12: Etnocategorias sobre agressividade e espécies correspondentes identificadas
na comunidade da Pedra Furada......................................................................................52
Figura 13: “Barbeiro”, Acanthurus chirurgus e o detalhe presente no pedúnculo caudal,
responsável pela etnocategorização “peixe que corta”....................................................53
Figura 14: Scarus coeruleus (“budião-azul”), o “peixe que dorme de noite”, segundo
pescadores da Pedra Furada.............................................................................................54
Figura 15: O “Cacuá”, Ogcocephalus vespertilio, “peixe que pega de mão/preguiçoso/
besta” e “peixe que fuma”...............................................................................................55
Figura 16: Fotografia do “Mero” (Epinephelus itajara), foto obtida e cedida por um
pescador da Pedra Furada................................................................................................58
Figura 17: Sequência da análise do conteúdo do estômago da arraia no momento de
‘tratar’ o pescado para a venda e/ou consumo próprio....................................................62
i
Figura 18: Exemplos de quatro fragmentos de cadeias alimentares com diferentes bases
e o homem como último nível. A seta semicircular representa a relação
canibal..............................................................................................................................68
Figura 19: Peixes que compõem as quatro cadeias alimentares da figura Y. A. Parú-
cinzento; B. Tainha; C. Dunda; D. Barbeiro-preto; E. Cacuá; F. Caramuru e G.
Pintado.............................................................................................................................69
Figura 20: Fragmento de rede trófica do siri boca preta e tendo o caramuru como último
nível. A seta sai de quem é comido e aponta para quem come.......................................70
Figura 21: Fragmento de teia alimentar com as cinco diferentes bases (lama, fruta, areia,
limo/algas e cachorro morto) e com o homem presente no último nível........................72
Figura 22: “Sardinha” Opisthonema oglinum fotografada na comunidade da Pedra
Furada..............................................................................................................................73
Figura 23: Inserção da sardinha (Opisthonema oglinum) em um fragmento de rede
trófica elaborada através de entrevistas na Pedra Furada................................................74
Figura 24: A. Anisotremus virginicus, o “frade”. B. Sphoeroides greeleyi, o “baiacu-
feiticeiro”.........................................................................................................................76
Figura 25: Diferença na morfologia dos corpos, acentuada na região ventral. A.
Sardinha (Opisthonema oglinum) e B. Cascuda (Harengula jaguana)...........................79
Figura 26: Placas dentárias da arraia aqui representada pela “arraia-cabrinha”
(Rhinoptera bonasus). Registro feito na Pedra Furada....................................................81
Figura 27: Taocas e o carácter morfológico que as identifica: presença/ausência do
chifre. A. “Taoca-de-chifre” e B.“Taoca-sem-chifre”.....................................................81
Figura 28: Recursos não-peixes encontrados na Pedra Furada, Salvador, BA. A. Siri-
boia. B. Polvo. C. Baratinha-da-praia. D. Lagosta. E. Lambreta. F. Camarão. G. Ouriço.
H. Buzo............................................................................................................................83
Figura 29: Esquema adaptado de Marques (dados não publicados), referindo-se a
organização dos lexemas na Pedra Furada......................................................................85
Figura 30: Diagrama (MOURÃO & MONTENEGRO, 2006) exibindo a relação de um
sistema de táxons com um sistema hierárquico de categorias das classificações lineana e
etnobiológica...................................................................................................................90
Figura 31: Diagramação de Venn com os específicos de “arraia” correspondendo com as
espécies biológicas; categoria parente.............................................................................92

ii
Figura 32: Diagramação de Venn com os específicos de “budião” correspondendo com
as espécies biológicas; categoria irmão...........................................................................92
Figura 33: Diagramação de Venn com os específicos do “caramuru”; categoria
espécie.............................................................................................................................93
Figura 34: Diagramação de Venn com o agrupamento de “caramuru” e “budião”
formando “peixe de pedra” e “arraia”, formando “peixe”...............................................93
Figura 35: Exemplo da classificação seqüencial da “tainha” registrado entre os
pescadores da Pedra Furada.............................................................................................95
Figura 36: Classificação da “tainha” (Mugil) pelos pescadores da Pedra Furada de
acordo com a sua fase ontogenética. A “saúna” seria a fase jovem e a “tainha” adulta. A
“curimã” apresentaria parentesco com ambas, mas sem representar nenhuma fase
ontogenética.....................................................................................................................95
Figura 37: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de loca”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................97
Figura 38: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de Pedra”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................97
Figura 39: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de Pedra”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................98
Figura 40: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe que anda junto”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................98

iii
LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Tipos de malhas e recurso capturado na comunidade da Pedra


Furada..............................................................................................................................40
Tabela 2. Etnocategorias encontradas, suas correspondentes etológicas e exemplos de
peixes que as apresentam.................................................................................................41
Tabela 3. Etnohábitats associados pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, aos
recursos pesqueiros capturados.......................................................................................60
Tabela 4. Fenômenos tróficos percebidos pelos pescadores da Pedra Furada e sua
comparação com a interpretação acadêmica....................................................................64
Tabela 5. Análise descritiva do conteúdo estomacal de Haemulon steindachneri o
“carrapato”.......................................................................................................................67
Tabela 6. Critérios morfológicos de identificação das espécies pelos pescadores da
Pedra Furada....................................................................................................................80
Tabela 7. Variações dos nomes vernáculos (sinonímias) encontradas na comunidade e
possíveis razões...............................................................................................................84
Tabela 8. Nomes secundários dos peixes de categorias superodenadas da comunidade da
Pedra Furada....................................................................................................................87

iv
LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Critérios para identificação dos memes nas entrevistas................................33


Quadro 2. Perfil urbano dos pescadores entrevistados na Pedra Furada........................36
Quadro 3. Identificação das espécies do kit utilizado na pesquisa.................................39
Quadro 4. Artes de pesca e respectivos recursos capturados na comunidade da Pedra
Furada, Salvador, BA......................................................................................................40
Quadro 5. Peixes que formam cardumes, agregam-se eventualmente ou são
solitários...........................................................................................................................47
Quadro 6. Cognição comparada entre descrições dos pescadores da Pedra Furada sobre
hábitat dos peixes e informações científicas das espécies presentes no kit trabalhado...61
Quadro 7. Cognição comparada entre descrições dos pescadores da Pedra Furada e
informações científicas das espécies presentes no kit trabalhado....................................65
Quadro 8. Nomes primários simples e complexos citados na Pedra Furada...................86
Quadro 9. Agrupamentos genéricos monotípicos e politípicos identificados na Pedra
Furada..............................................................................................................................86
Quadro 10. Classificação folk encontrada entre os pescadores da Pedra Furada
comparada à berliniana e à lineana..................................................................................89
Quadro 11. Classificação Econômica dos peixes encontrados na comunidade da Pedra
Furada..............................................................................................................................99

v
INTRODUÇÃO

15
1. INTRODUÇÃO

Os peixes são utilizados como recursos alimentares desde o Paleolítico


(MARQUES 1995) e ocupam uma variedade de hábitats e nichos, o que torna a pesca
viável em ambientes estuarinos, lacustres, dulciaquáticos e marinhos. A ictiofauna atual
totaliza cerca de 31.600 espécies conhecidas (FISHBASE 2010), e do ponto de vista
comercial, diferente da maioria dos vertebrados, muitos peixes têm extrema importância
como alimento e embora grandes indústrias sejam estruturadas na sua captura (POUGH
et al. 2008), os métodos de coleta podem destruir seus hábitats.
O objeto de pesquisa dos ictiólogos há bastante tempo desperta o interesse e
aguça a imaginação dos estudiosos e dos povos que o utiliza como recurso – os
pescadores artesanais. Além de proporcionar recreação e até mesmo esportes, a pesca é,
e presumivelmente há de ser por muito tempo, uma atividade geradora de renda e
conhecimentos aprimorados em diversas comunidades tradicionais pelo mundo.
Segundo Morrill (1967) quando uma cultura depende fortemente de recursos
marinhos, pode-se esperar sistemas extensos de conhecimento acerca destes. Afirma
ainda que desde que os dados sobre os recursos estejam mais prontamente
disponíveis do que aqueles sobre os processos em torno dos mesmos, pode-se esperar
que um grupo de pescadores tenha uma taxonomia elaborada dos organismos
marinhos, uma compreensão do comportamento dos organismos e da ecologia de seu
ambiente.
Esse conhecimento, que não só pescadores, mas vários outros grupos humanos
detêm sobre seu hábitat e os recursos bióticos e abióticos que utilizam e com os quais
interagem é chamado na literatura de conhecimento tradicional ou local (FERNANDES-
PINTO & MARQUES, 2004). Ainda segundo os autores, o conjunto de informações
teórico-práticas que os pescadores apresentam sobre o comportamento, hábitos
alimentares, reprodução e ecologia dos peixes oferece grande fonte de conhecimentos
praticamente desconhecida pela ciência ocidental sobre como manejar, conservar e
utilizar os recursos naturais de maneira mais sustentável. A pesca artesanal é uma
atividade econômica muito importante, tanto quanto a agricultura e o extrativismo.
A pesca e os pescadores são evidentes nos entornos da Baía de Todos os Santos,
e a riqueza natural desta, com expressiva extensão de recifes de corais, estuários e
16
manguezais e sua forte relação com a História do Brasil transformam-na em um pólo
turístico e extrativista (INSTITUTO KIRIMURÊ, 2011).
Alguns trabalhos de etnobiologia realizados na Baía de Todos os Santos tiveram
destaque, com objetivos de compreender e contextualizar os conhecimentos dos
pescadores sobre os recursos pescados (SOUTO, 2007; ICMBIO, 2009; SOUTO &
MARTINS, 2009; SOUTO & MARQUES, 2010).
A hipótese central desta pesquisa é a de que os pescadores urbanos da Pedra
Furada são detentores de conhecimentos detalhados sobre os peixes que ocorrem na
área, parte do mesmo sobrepondo-se ao conhecimento academicamente produzido.

17
REFERENCIAL TEÓRICO

18
2. REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 CIDADE DE SALVADOR E PESCA URBANA

A cidade de Salvador apresentou uma história de lutas e adequações ao modelo


capitalista vigente implantado por um Brasil ainda dependente de Portugal. Cidade
litorânea e provinciana, rapidamente tornou-se vítima da voraz urbanização devido às
pressões e demandas do sistema de produção capitalista. Através das relações do seu
povo com o capital, o mercado, o comércio e o trabalho, estes atuando como um ímã e
atraindo pessoas de diversos lugares à procura de emprego e moradia. Estas na tentativa
de estarem próximas aos centros, centralidades e também do seu local de trabalho
ocupam em massa os espaços que ficam às margens da cidade (MAIA & ABIB, 2010).
Santos (2002) reitera a relação entre a expansão das cidades e a pobreza, devido
principalmente ao modelo socioeconômico vigente e ao modelo espacial.
Para se compreender a realidade socioambiental do início do século é
fundamental considerar o fenômeno urbano na configuração das relações
socioecológicas, tanto como conseqüência quanto como fenômeno gerador dessas
relações (ALMADA, 2010).
Nesse contexto, a pesca se torna uma alternativa razoável para enfrentar as
dificuldades impostas pelas pressões espaciais, econômicas e sociais que emergiam em
Salvador. De acordo com Lopes (1984), alguns bairros como a Barra, Amaralina,
Pituba, Boca do Rio, Rio Vermelho, ficaram reconhecidos por possuírem pescadores
dedicados. Mais afastada da região comercial da cidade, a península de Itapagipe,
banhada pela Baía de Todos os Santos (BTS), se torna também um reduto de
pescadores. Instala-se e permanece dentro do ambiente totalmente urbanizado, então, a
pesca urbana com técnicas tradicionais.
A pesca dentro da cidade foi brevemente discutida por Begossi e Nehrer (2000)
e Agostini (2004), no Bairro de Copacabana, Rio de Janeiro. Sem uma formação de
“comunidade”, as agregações de pescadores mantinham técnicas tradicionais para a
obtenção dos peixes. Recentemente, Chamy (2011), abordou em sua tese de doutorado
as amplas modificações sofridas pela pesca artesanal em Niterói devido aos fatores da
urbanização, evidenciando os esforços realizados para a sua resistência.
19
Provavelmente a pesca urbana é um fenômeno mais amplo do que se tem
documentado, e o contexto da cidade pode se configurar como um elemento interessante
para entender um pouco do conhecimento dos pescadores que por opção, ou não, vivem
no vértice da expansão da sociedade.
O ecossistema urbano (PICKETT et al., 2001) apresenta forte relação com a
pesca artesanal pois consegue manter muitas características tradicionais ainda que em
metrópoles. Do ponto de vista científico, as cidades ainda representam uma fronteira de
conhecimentos para a etnoecologia e outros campos relacionados (ALMADA, 2010), no
caso, a etnoictiologia que tem entre as suas finalidades conectar o conhecimento
ictiológico tradicional e o acadêmico.

2.2 A ETNOICTIOLOGIA ESTUDADA ATRAVÉS DE TRÊS VERTENTES: ETNOTAXONOMIA,


ETNOECOLOGIA E ETNOETOLOGIA

Etnoictiologia, o estudo (logia) dos peixes (ictio) à luz das etnociências (etno), é
reconhecida por praticantes como uma área da etnobiologia capaz de investigar e tentar
compreender os conhecimentos dos pescadores sobre os peixes.
As inter-relações e interações entre o ser humano e os peixes constituem um
fenômeno de natureza extremamente complexa, o qual inclui e ultrapassa o
simples/complexo ato de pescar, podendo se configurar como uma interação presa-
predador, ampliando-se, porém, através de implicações lúdicas, religiosas e simbólicas,
dentre outras (MARQUES 1995).
Os estudos pioneiros em etnoictiologia foram realizados por Morril (1967) nas
Ilhas Virgens com os ‘Cha-Cha’ e por Anderson (1967) em Hong Kong. A tese de
doutorado de Anderson (1967) abordou a classificação de peixes por pescadores
artesanais, tornando-se um referencial básico e permitindo questionamentos para
estudos posteriores. Desde então, inicialmente através de Maranhão (1975),
posteriormente Begossi & Garavello (1990) e também Marques (1991) a etnoictiologia
foi formalmente introduzida no Brasil e vem sendo ampliada e difundida.
Os estudos etnoictiológicos ocorrem sob diferentes perspectivas, dentre elas a
ecológica (etnoecologia), etológica (etnoetologia) e taxonômica (etnotaxonomia). A

20
etnoecologia trófica se destaca apresentando resultados complexos, envolvendo
inclusive teorias de forrageamento ótimo (SOSIS 2002; BEGOSSI et al. 2009).
A etnoecologia vem sendo a área de estudo com maior projeção (ANDERSON,
2011). Campo muito desenvolvido no México, através da escola de Victor Toledo, com
sua abordagem k-c-p (kosmos-corpus-praxis), se propõe a compreender cabalmente as
relações que se estabelecem entre a interpretação e leitura e o uso ou manejo da
natureza e seus processos (TOLEDO & BARRERA-BASSOLS, 2010). Marques (2001)
amplia as possibilidades e com seu conceito de etnoecologia abrangente inclui a
dimensão Pathos (emoção) à sua perspectiva:

“Etnoecologia é o campo de pesquisa (científica) transdisciplinar que


estuda os pensamentos (conhecimentos e crenças), sentimentos e
comportamentos que intermediam as interações entre as populações
humanas que os possuem e os demais elementos dos ecossistemas
que as incluem, bem como os impactos ambientais daí decorrentes”.
Marques (2001).

As análises etnoecológicas mais pragmáticas sobre hábitat, ecologia trófica, e


ecologia de paisagens, têm sido utilizadas, inclusive para estudos de manejo ecológico
(ANDERSON, 2011).
Etnoetologia, apesar de pouco explorada, apresenta um trabalho (MARQUES
1994) que vem recebendo referenciamento crescente. Nele, há o estabelecimento de
relações entre categorias etológicas e classificações, incluindo fenômenos relacionados
a produção de som, predação, reprodução, migração, sociabilidade e agressão. Outros
poucos estudos foram desenvolvidos (MARQUES, 1992; COSTA-NETO &
MARQUES, 1999; MOURA et al, 2008; ALENCAR, 2011), evidenciando a relevância
do aprofundamento da etnoetologia para as etnociências.
Iniciada por Anderson (1967) e aprimorada metodologicamente por Berlin
(1992), a abordagem etnotaxonômica estabelece relações entre a classificação folk e a
nomenclatura científica através de técnicas de categorização e diagramação de Venn
(BERLIN 1992) e de modelos taxonômicos alternativos sugeridos por Marques (1995). O
que os pesquisadores intitulam de taxonomia “folk”, Brown (1984) afirma que
“constitui o conhecimento classificatório compartilhado pela maioria dos falantes de
21
uma língua ‘madura’ ao invés do conhecimento detido por apenas alguns especialistas,
como os botânicos e zoólogos acadêmicos”, por exemplo.
Berlin (1992) distingue a existência de duas linhas básicas nas quais os
pesquisadores compreendem os sistemas de classificação: o mentalismo e o utilitarismo.
Adams (2000) afirma que os mentalistas (ou ideacionistas) acreditam que o homem, em
qualquer parte do mundo, reconhece a estrutura e ordem inerentes ao mundo biológico,
independentemente de qualquer valor prático que as plantas e animais possam ter. Essa
linha de pensamento foi despertada por Levi-Strauss (1963), quando ele afirmou que os
“animais se tornaram símbolos; não porque são bons para se comer, mas porque são
bons para se pensar”. A vertente utilitarista, segundo Adams (2000), acredita que o
principal objetivo da classificação etnobiológica é ajudar as populações humanas a
ajustarem-se a seus respectivos hábitats, nomeando apenas as espécies de consequências
práticas à adaptação humana. Hunn (1982) assim como Begossi et al. (2008), afirmam
que fatores utilitaristas podem ser importantes para a taxonomia folk, apontando,
inclusive, a importância (ou saliência) de um organismo.
Com uma metodologia bem definida, muitos trabalhos foram desenvolvidos na
área de etnotaxonomia, seja com plantas (BERLIN, BREEDLOVE & RAVEN, 1968),
artrópodos (POSEY, 1983; POSEY, 1984), aves (DIAMOND, 1966; BERLIN &
BERLIN, 1983), mamíferos (PATTON, BERLIN & BERLIN, 1981; BERLIN &
BERLIN, 1983), e também peixes (MARQUES, 1991; MOURÃO, 2000; SILVANO &
BEGOSSI, 2002; BEGOSSI et al, 2008; ALENCAR, 2011). O livro sobre
etnotaxonomia de Mourão & Montenegro (2006) vem sendo amplamente utilizado
como uma importante referência, simplificando a metodologia etnotaxonômica para a
etnoictiologia.
Os estudos etnoictiológicos analisados e interpretados com base na literatura
ictiológica têm contribuído de forma relevante para o avanço científico através da
geração de hipóteses a partir do conhecimento de populações locais e tais informações
referentes à ictiofauna e aos pescadores. No estado da Bahia, têm sido realizadas
pesquisas com etnoecologia de pescadores e marisqueiras (SOUTO, 2007; COSTA-
NETO, 2000) que têm gerado resultados interessantes.

22
OBJETIVOS

23
3. OBJETIVOS

- Objetivo Geral:

Caracterizar etnozoologicamente a ictiofauna reconhecida e capturada pelos pescadores


da Pedra Furada, com ênfase aos aspectos etológicos, ecológicos e taxonômicos,
localmente conhecidos e sua relação com o conhecimento zoológico academicamente
contruído.

- Objetivos Específicos:

- Identificar as espécies e etnoespécies de peixes desembarcadas pelos pescadores da


Pedra Furada;
- Identificar os modelos cognitivos utilizados pelos pescadores locais na classificação
etnotaxonômica dos peixes ocorrentes na sua área de pesca;
- Testar o enquadramento da(s) classificação(ções) supra nos modelos de classificação
etnoictiológica berliniana, e nos modelos alternativos propostos por Marques (1995).
- Obter modelos etnoecológicos de seqüenciação trófica (cadeias tróficas) e de inserção
reticulada (redes tróficas) das etnoespécies localmente reconhecidas e capturadas pelos
pescadores;
- Testar laboratorialmente o conteúdo alimentar de uma espécie de peixe comparando
com o conhecimento local fornecido;
- Identificar categorias etnoetológicas relacionadas com produção de som, reprodução,
comportamento social, repouso e agressão;
- Produzir quadros de cognição comparada correlacionando a correspondência e/ou a
discordância entre o conhecimento etnocientífico e o conhecimento acadêmico
relacionados com etnoetologia, etnoecologia e etnotaxonomia.

24
METODOLOGIA

25
4. METODOLOGIA

4.1 ÁREA DE ESTUDO

4.1.1 CARACTERÍSTICAS GERAIS E LOCALIZAÇÃO

Segundo informações da Prefeitura local, Salvador está situada no Recôncavo


Baiano, sendo constituída de uma parte continental (Fig.1), onde se localiza o distrito
sede, e outra insular, composta pelas ilhas de Bom Jesus dos Passos, Santo Antônio, dos
Frades, Maré e dos Santos. A cidade limita-se a Oeste pela Baía de Todos os Santos, ao
Sul e a Leste pelo Oceano Atlântico e ao Norte pelos municípios de Candeias, São
Francisco do Conde, Simões Filho e Lauro de Freitas. É em direção a estes municípios
que convergem os principais vetores de expansão da cidade. A posição geográfica
(12°58'43.22"S 38°28'35.80"W) da cidade imprime-lhe características de clima
intertropical e sua condição litorânea oriental assegura-lhe umidade relativa do ar da
ordem de 80%, com alto índice de precipitação pluviométrica ao longo do ano.
Apresenta vegetação de floresta ombrófila densa e formações pioneiras com influência
marinha (restinga).
A Baía de Todos os Santos (BTS), localizada nas bordas de Salvador, centrada
entre a latitude de 12°50’ S e a longitude de 38°38’ W apresenta uma área de 1.233 km2,
sendo a segunda maior baía do Brasil, superada apenas pela baía de São Marcos, no
Maranhão. No entorno da BTS há um contingente populacional superior a três milhões
de habitantes, em início de 2010. Dentre as baías da costa leste brasileira, é a única que
apresenta dez terminais portuários de grande porte, um canal de entrada naturalmente
navegável e canais internos profundos, fato este que a qualifica como pólo facilitador do
desenvolvimento da região (INSTITUTO KIRIMURÊ, 2011).
A Península de Itapagipe é banhada pela Baía de Todos os Santos e é composta
pelos bairros de Itapagipe, Massaranduba, Vila Rui Barbosa, Jardim Cruzeiro, Calçada,
Boa Viagem, Uruguai, Monte Serrat e Ribeira. Nos dois últimos, uma evidente área
urbanizada, ocorre intensa atividade de pesca artesanal. As
facilidades portuárias da península itapagipana levaram o lugar a ser ocupado
por pescadores artesanais, que contavam com a tranquilidade das águas para o abrigo
das embarcações.
26
Figura 1. Localização da cidade de Salvador, Bahia, com enfoque na península itapagipana. O ponto destaca Pedra Furada.
27
Após a urbanização e crescimento da cidade, por apresentar uma belíssima
paisagem, a região transformou-se em lugar de ocupação acentuada no início do século
XX. Apesar de ser uma área urbana, ainda hoje mantém a pesca artesanal como
atividade geradora de recurso para a população local. A comunidade estudada localiza-
se na área da península popularmente conhecida por Pedra Furada, coordenadas:
12º55'26'' S e 38º30'48'' W (Fig. 2).

Figura 2. Imagem de Satélite da área ocupada pela comunidade da Pedra Furada:


12º55'26'' S e 38º30'48'' W. Fonte: Google maps

4.1.2 BREVE CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-ECONÔMICA

O município de Salvador, por suas características de principal pólo de serviços,


apresenta o maior PIB municipal, sendo responsável por 24,9% da atividade econômica
do Estado da Bahia (SEI, 2011). Gera quase 19 milhões de reais no setor de serviços e
aproximadamente três milhões com o setor industrial, números característicos de uma
metrópole nacional considerada a cidade mais populosa do Nordeste e a terceira mais
populosa do Brasil (IBGE, 2011), com 2.675.656 milhões de habitantes residentes em
2010, sendo destes 2.674.923 moradores da área urbana (IBGE, 2011).
28
Salvador, como capital do Estado, detém a primeira posição do ranking da Bahia
com o mais alto IDH-M, apresentando taxas mais elevadas de alfabetização, de índices
educacionais e de renda. Apesar de possuir melhores condições de vida do Estado e ser
considerada uma metrópole, muitos aspectos sociais precisam ainda ser melhorados
para elevar a qualidade de vida da população, a exemplo da distribuição de renda
(IBGE, 2011). Na região metropolitana de Salvador, 47.035 pessoas residentes têm
renda inferior a ¼ de salário mínimo, enquanto que 5.452 apresentam renda superior a
30 salários mínimos, e em 2003 a incidência de pobreza da cidade atingia 35,76%
(IBGE 2011).
A península de Itapagipe compreende uma faixa de terra, limitada pela Baía de
Todos os Santos, que corresponde à parte baixa da falha tectônica que divide Salvador
em Cidade Alta e Cidade Baixa. A partir do bairro da Calçada e acompanhando seu
contorno litorâneo, percorrem-se os seguintes bairros e praias: Roma, Boa Viagem,
Monte Serrat, Ponta do Humaitá, Belvedere, Bonfim, Beira Mar, Ribeira, Enseada dos
Tainheiros e Alagados; outrora uma área de manguezal, mas que a partir da década de
1930, foi destruída, dando início à favelização (FRANÇA, 2003).
Na sua porção ocidental, a península abriga as áreas elevadas do Bonfim e do
Monte Serrat, que, no passado, desempenharam importante papel na defesa militar e na
cultura religiosa da comunidade baiana. A orla marítima apresenta-se diferenciada em
função da existência de recifes, enseadas e praias que são utilizadas para a captação dos
recursos pesqueiros para a população local, geralmente de baixa renda.
A península de Itapagipe nos últimos 30 anos vem passando por transformações
significativas, seguindo a tendência geral da cidade do ponto de vista político e sócio -
econômico. No entanto, essas transformações não se têm traduzido em melhoria para a
sua comunidade; pelo contrário o que se tem observado é a proletarização de sua
população, a degradação ambiental e a descaracterização do patrimônio arquitetônico-
paisagístico (FRANÇA, 2003).
A Pedra Furada, localizada na península de itapagipe, contemplada com a
Associação de Pescadores ‘Vida Nova’, é uma comunidade de contrastes. Com uma
paisagem peculiar (Figs. 3 e 4) e ao mesmo tempo sob intensa pressão da urbanização, é
de baixa renda e economicamente movida pelo comércio de alimentos e bebidas
(restaurantes de comidas típicas) e pela pesca artesanal. Os pescadores cadastrados na
Associação são poucos (em torno de 40) em relação aos ativos. A comunidade apresenta
29
diferentes modalidades de pesca, por exemplo: mergulho, rede, grozeira e munzuá (Fig.
5) e, na maioria das vezes, seus moradores conseguem comprar toda a produção de
pescado, tendo, inclusive, complementação de outros mercados de peixes (para dar
conta da demanda dos restaurantes). Há também a forte pesca de siri-bóia (Portunidae),
preferido por alguns pescadores em determinados períodos do ano.

Figuras 3 e 4: Contrastes paisagísticos da comunidade, o mar e a favela.

A C

Figura 5. Artes de pesca encontradas na Pedra Furada. A. Rede B. Grozeira C. Munzuá


30
4.2 COLETA DE DADOS

4.2.1 DADOS QUALITATIVOS

O projeto se desenvolveu de agosto de 2010 a março de 2011, com idas


semanais, totalizando aproximadamente 41 dias ou 164 horas de pesquisa em campo.
Com a montagem do kit fotográfico (SILVANO, 2004) contendo 36 fotografias de
espécies de peixes locais, foram realizadas entrevistas informais, visualmente
estimuladas e semi-estruturadas (com duração média de 1 hora). Seguindo a
metodologia de snowball (BAILEY, 1987) a amostra de informantes totalizou 20 e
foram realizadas 17 entrevistas visualmente estimuladas (plotadas em tabelas para
comparação e identificação dos memes1), além de pelo menos 21 entrevistas informais.
Toda a pesquisa seguiu as normas da resolução 196/96 para pesquisa com seres
humanos e as entrevistas foram sempre precedidas do preenchimento do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice 1).
A amostragem de informantes foi não probabilística e inicialmente de
conveniência, aproveitando-se encontros ocasionais, adequando-se a metodologia de
amostragem por snowball. Quando as informações repetiram-se exaustivamente, a
mesma foi considerada representativa, dispensando o prosseguimento das entrevistas.
Os critérios de informantes-chave e especialistas nativos (MARQUES 1991) foram
utilizados na seleção dos sujeitos da pesquisa. As informações preliminares acerca das
espécies de peixes reconhecidas e capturadas foram coletadas com auxílio de um kit
fotográfico, exibido a indivíduos e/ou a grupos. O kit foi montado com fotografias dos
peixes locais obtidas no decorrer de seis meses com idas semanais ao campo, além da
metodologia complementar de deixar uma câmera fotográfica na comunidade (a pedido
dos pescadores) para garantir fotografias de peixes esporádicos. Complementou-se o
levantamento da biodiversidade íctica por meio da técnica de listagens livres. Foram
conduzidas entrevistas não-estruturadas, também de aplicação individual e/ou grupal.
Uma etapa subseqüente foi a da aplicação de entrevistas semi-estruturadas
(Apêndice 2), com grupos de perguntas sobre etnotaxonomia, etnoecologia trófica e
1
De acordo com Dawkins (1972), memes são unidades de transmissão cultural, permitindo
uma forma de compreender a replicação das informações culturais através de mecanismos
não necessariamente genéticos.

31
etnoetologia da ictiofauna. As entrevistas incluíram as seguintes perguntas norteadoras
(respeitando-se a nomenclatura local): a) qual o nome desse peixe? b) de quem ele é
família ou parente? c) anda junto de outro peixe? d) onde vive esse peixe? e) o que esse
peixe come? f) quem come esse peixe? g) qual a melhor isca para capturar esse peixe?
h) onde esse peixe come? i) quando ele ocorre? j) ele faz algum som? k) como se
reproduz? l) vem de outro lugar?
O conhecimento etnoecológico dos pescadores, incluindo heterogeneidade
espacial e disponibilidade dos recursos pesqueiros foi obtido por meio das entrevistas
semi-estruturadas, também realizadas individualmente ou de acordo com a técnica de
grupo focal adaptada para formação espontânea de grupos de pescadores em trabalhos
rotineiros relacionados à pesca submetendo a estes, perguntas que puderam vir a
apresentar discrepância nas respostas (MOURA & MARQUES 2007) tomando-se por base
o calendário climático-estacional reconhecido pelos mesmos e enfocando-se o período
de ocorrência, abundância e maior atividade das espécies de peixes capturadas. Todas as
entrevistas foram registradas em gravador digital e posteriormente transcritas.
A consistência e validade dos dados fornecidos pelos pescadores foram testadas
por triangulação, recorrendo-se inclusive, as técnicas de controle sincrônico e
diacrônico (MARQUES 1991). Na primeira, perguntas foram feitas a pessoas distintas em
tempos muito próximos, na segunda, a mesma pergunta foi feita a mesma pessoa em
tempos distanciados.
Para as observações diretas em campo e reconhecimento das áreas de exploração
dos recursos pesqueiros, alguns pescadores foram acompanhados, sempre que possível,
em suas atividades pesqueiras, utilizando-se a técnica de “turnês guiadas” (SPRADLEY &
MCCURDY 1972), incluindo registros fotográficos. Uma turnê, inclusive, resultou em
um ensaio etnográfico (Apêndice 3).

4.2.2 DADOS QUANTITATIVOS: OBTENÇÃO DO MATERIAL ICTIOLÓGICO

Os peixes foram obtidos no mercado de peixe local por meio de compra e/ou em
outros possíveis locais por doação espontânea dos pescadores. Estes, sempre que
possível, foram fixados em solução de formaldeído a 10%, (ZAVALA-CAMIN 1996).

4.3 ANÁLISE DE DADOS


32
4.3.1 DADOS QUALITATIVOS
Para sistematização das informações obtidas nas entrevistas foi utilizado o
modelo de união das diversas competências (HAYS 1976).
A partir do levantamento etnoictiológico foi construída uma lista taxonômica
composta pelos nomes científicos e vernáculos. Para análise dos padrões de
nomenclatura e classificatórios percebidos pelos pescadores, foram utilizados os
princípios de categorização e diagramação de Venn (BERLIN 1992) e foram testados os
modelos taxonômicos alternativos sugeridos por Marques (1995), baseados em três
padrões de agrupamento: a) inclusividade/exclusividade; b) seqüencialidade; c)
sobreposição hierárquica/ecológica.
Foram identificados possíveis memes locais, concordando com a definição de
Dawkins, seguiu-se o critério de Brodie (1996) onde “um meme é uma unidade de
informação em uma mente cuja existência influencia eventos que geram cópias deste
meme em outras mentes” e a partir desse conceito foi gerado um sistema para análise
(Quadro 1) dos memes encontrados. O sistema seguiu o seguinte critério:

Tipo de Meme Exemplo Configuração na amostra


Bem sucedido “Mulher parida não pode comer Frade” (n≥9)
Com diferença de freqüência “Comer baiacú faz/não faz mal” (n≥9)
Mal sucedido “A arraia menstrua” (n≤8)
Quadro 1. Critérios para identificação dos memes nas entrevistas

1. Memes bem sucedidos (mais adaptativo) - memes que foram identificados de forma
semelhante, repetidamente em mais de 50% das entrevistas (n≥9). Ex.: potencial
medicinal do cavalo-marinho; “Mulher parida não pode comer Frade”
2. Memes com diferença de freqüência – memes que foram identificados de forma
contraditória repetidamente em mais de 50% das entrevistas (n≥9). Ex.: “comer baiacú
faz mal”/ “comer baiacú não faz mal”.
3. Memes mal sucedidos (sem sucesso aparente ou de sucesso duvidoso) – memes que
foram identificados de forma semelhante em menos de 50% das entrevistas (n≤8). Ex.:
“arraia menstrua”; “arraia ejecula”

33
Esse critério foi utilizado para elaborar, inclusive, quadros de cognição
comparada (MARQUES 1995), no sentido de verificar similaridades ou não entre o
conhecimento tradicional e o conhecimento acadêmico.

4.3.2 DADOS QUANTITATIVOS: ANÁLISE DESCRITIVA DO CONTEÚDO

ESTOMACAL

Em laboratório, os tubos digestivos foram retirados e analisados em


estereomicroscópio, com aumento máximo de 40x. Os itens alimentares foram
identificados e descritos até o menor nível taxonômico possível, utilizando-se chaves
específicas e consultando-se especialistas.
O material-testemunho foi tratado de acordo com as técnicas usuais zoológicas,
identificado por especialistas e depositado na coleção científica da Divisão de Peixes do
Museu de Zoologia da Universidade Estadual de Feira de Santana.

34
RESULTADOS E DISCUSSÃO

35
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para traçar um perfil de quantos pescadores entrevistados nasceram em área


urbana foi feito o quadro 2, destacando que 16 dos 17 pescadores entrevistados
nasceram e aprenderam a pescar na cidade. A forte relação entre a idade e o tempo de
pesca (Fig. 6), mesmo em áreas urbanas, abrange pescadores entre 24 e 76 anos. Os
pescadores 1 e 17 apresentaram tempo de pesca relativamente baixo por que pararam de
pescar por diferentes razões particulares.

Quadro 2. Perfil urbano dos pescadores entrevistados na Pedra Furada.

Nasceram na comunidade Outros Bairros Interior Total Urbanos Total Geral


12 4 1 16 17

Figura 6. Gráfico relacionando idade e tempo de pesca dos entrevistados.

A técnica de snowball mostrou-se suficiente para a configuração da amostra de


entrevistados, e caracterizou-se como uma forma interessante de perceber as relações
entre os indicados através de um gráfico bipartido (Fig. 7). Dos 20 indicados, 17 foram
entrevistados e três entrevistas não puderam ser realizadas, com os pescadores 5, 6 e 8,

36
por indisponibilidade dos mesmos. O Pescador 1 foi o “piloto” e é o atual presidente da
Associação local, por conhecer todos os membros da comunidade e ter tido uma forte
relação com a pesca, foi escolhido para ser o primeiro a indicar outros pescadores,
justificando o alto número de indicações. Seguindo a teoria de redes ecológicas, este
caso se configura um exemplo de aninhamento, já que as conexões dos vértices de
menor grau representam um subconjunto das conexões dos vértices de maior grau. Ele
não teve nenhum retorno nas indicações provavelmente por estar afastado há pelo
menos 10 anos da pesca em si.
A figura consegue identificar os pescadores mais relacionados entre si, sendo os
mais indicados os pescadores 2, 6, 7, 10, 12, 13 e 14, todos com pelo menos cinco

Figura 7. Mapeamento resultante da técnica de snowball (gerado pelo Pajek)


representando as relações entre as indicações dos pescadores da Pedra Furada.

37
indicações. Algumas razões podem influenciar na escolha dos indicados: relação social
aproximada (parentesco – indico meu irmão, meu primo, meu afilhado), grupos de
pesca (indico fulano, ele pesca comigo) especialistas (vou indicar pescador x, ele sabe
muito) e também aqueles que são indicados simplesmente por estarem no campo visual
no momento da entrevista. Uma relação intricada e não obrigatória entre estes fatores
gera o que pode ser chamado de “top of mind” (termo adaptado do marketing
empresarial): os pescadores mais populares à mente, configurando, a amostra de
indicações.
Estabelecendo uma relação com a teoria de redes ecológicas, a conectância
máxima da rede seria obtida se todos os pescadores se indicassem, o que resultaria em
380 indicações uma vez que excluiu-se a possibilidade de auto-indicação com número
de 19 por indicado. Em uma amostragem por snowball isto é muito improvável de
acontecer, devido à interferência direta das relações sociais em níveis distintos, fazendo
com que cada pescador limite-se a indicar no máximo quatro pessoas (exceto os
pescadores 1 e 12 que excederam esse limite por estarem mais diretamente envolvidos
no trabalho e na tentativa de otimizar o máximo possível de indicações), a conectância
real foi de 63 indicações, gerando a proporção de 16,57%. As indicações se mostraram
suficientes para a aquisição dos dados.
Com a execução das entrevistas, uma lista com nomes vernáculos dos peixes
mencionados foi produzida, e destes, alguns foram selecionados para compor o kit
fotográfico (Fig. 8), as identificações foram realizadas por um especialista (Quadro 3).

Figura 8. Kit Fotográfico utilizado na pesquisa


A comunidade dispõe de variados recursos marinhos (siri-bóia, siri-mole, polvo,
lagosta, camarão, peixinhos de aquário, gastrópodos, bivalves, corais, e peixes) para
utilizar como iscas, na alimentação, comércio ou até mesmo decoração de suas casas e
estabelecimentos comerciais.
38
Quadro 3. Identificação das espécies constantes do kit utilizado.

Nome vernáculo Menor nível taxonômico identificado


Agulhinha Hemiramphus sp.
Aracanguira Alectis ciliaris, Bloch, 1787
Arraia Cabrinha Rhinoptera bonasus, Mitchill, 1815
Badejo Epinephelus niveatus, Vacenciennes, 1828
Baiacú Sphoeroides greeleyi, Gilbert, 1900
Barbeiro preto Acanthurus chirurgus, Bloch, 1787
Budião-azul Scarus coeruleus, Bloch, 1786
Budião-batata Scarus sp.
Cacuá Ogcocephalus vespertilio, Linnaeus, 1758
Cambuba Haemulon sp.
Caramuru verde Gymnothorax funebris, Ranzani, 1839
Caranha Lutjanus sp.
Carapicuaçú Diapterus sp.
Carrapato Haemulon steindachneri, Jordan & Gilbert, 1882
Cascuda Harengula jaguana, Poey, 1865
Cavala Scomberomorus brasiliensis, Collette, Russo & Zavala-Camin, 1978
Cavalinho do mar Hippocampus reidi, Ginsburg, 1933
Dunda Aluterus monoceros, Linnaeus, 1758
Frade Anisotremus virginicus, Linnaeus, 1758
Guaraiúba Caranx sp.
Jaguaraçá Holocentrus ascensionis, Osbeck, 1765
Jamanta Manta birostris, Walbaum, 1792
Parú Cinzento Pomacantus arcuatus, Linnaeus, 1758
Peixe-rato Catherhines macrocerus, Hollard, 1895
Pintado Aetobatus narinari, Euphrasen, 1790
Pocomã Batrachoididae
Sambuio Archosargus rhomboidales, Linnaeus, 1758
Saramonete Pseudupeneus maculatus, Bloch, 1793
Sardinha-facão Opisthonema oglinum, Lesueur, 1818
Sulapeba Alphestes afer, Bloch, 1793
Tainha Mugil sp.
Taoca de chifre Lactophrys quadricornis, Linnaeus, 1758
Vermelho Lutjanus synagris, Linnaeus, 1758
Xinxarro roliço Decapterus punctatus, Cuvier, 1829

39
Os recursos pesqueiros são adquiridos através de diferentes tipos de artes de
pesca (Quadro 4 e Tab. 1) utilizadas de acordo com a necessidade e o domínio da arte
pelo pescador.

Quadro 4. Artes de pesca e respectivos recursos capturados na comunidade da Pedra


Furada.

Arte Material Recurso Capturado


Grozeira Anzóis e Corda Peixes e Siri
Munzuá Palha ou Tela Plástica Peixe
Gereré Nylon e Aro de Arame Peixe
Lixeira Nylon resistente; Malha 40 cm² Cação-Lixa; Pintada
Arraieira Nylon de seda nº 24, malha 25cm² Arraias (exceto pintada)
Paruzeira Nylon seco, nº 60, malha 70/80cm² Parú
Lagosteira Nylon de seda, nº 12, malha 7cm². Lagosta
Rede
Calão Rede de 200 metros ...
Rede grande ½ calão Camarão
Redinha 3 tipos de malhas, sem cordas Camarão e peixe miúdo
Cata-cata Rede pequena, malha de picolé* ...
Arpão - ...
Mergulho Espingarda - ...
Tarrafa Nylon seco, malha 20/25 cm² ...
*malha muito pequena, recebe o nome de cata-cata porque consegue capturar recursos
em tamanhos reduzidos, inclusive em fases muito juvenis.

Tabela 1. Tipos de malhas e recurso capturado na comunidade da Pedra Furada.

Tipos de Malhas Nylon Recurso Capturado


6 cm² Seco 60 Peixes ≥ 1 Kg
5 cm² Seco 50 Peixes ≥ 0,5 Kg e ≤ 1,5 Kg
4 cm² Seco 40 Peixes ≤ 0,5 Kg
3 cm² Seco 30 Tainha, Xumberga
2,5 cm² ... Sardinha, Cascuda, Camarão Pistola
2 cm² ... Camarão

40
5.1 ETNOETOLOGIA

As etnocategorias etológicas que emergiram nas entrevistas e que apresentaram


uma riqueza de informações (memes bem sucedidos) foram 16, sendo duas outras
citadas por apenas um pescador, totalizando 18 etnocategorias (Tab. 1). Estas se
enquadraram nas seguintes categorias etológicas: a) alimentação, b) formação de
cardumes, c) comunicação (produção de sons), d) agressão, e) repouso e f)
comportamento reprodutivo.

Tabela 2. Etnocategorias encontradas, suas correspondentes etológicas e exemplos de


peixes que as apresentam.
Etnocategoria etológica Categoria Etológica Fenômeno Etológico Exemplo
Peixe que pula Alimentação Comportamento alimentar Aetobatus narinari
Peixe que segue outro
Alimentação Predação Rachycentridae
peixe
Formação de
Peixe de cardume Comportamento social Haemulon sp.
cardume
Peixe que chuvisca em Formação de
Comportamento social Harengula jaguana
cima d'água cardume
Formação de
Peixe que anda só Comportamento social Manta birostris
cardume
Peixe que fuma - Comportamento induzido Ogcocephalus vespertilio
Estratégia de
Peixe que dá bote Agressão Gymnothorax funebris
defesa/predação
Peixe que morde Agressão Estratégia de defesa Batrachoididae
Peixe brabo Agressão Estratégia de defesa/fuga Alectis ciliaris
Peixe valente Agressão Estratégia de defesa/fuga Aetobatus narinari
Peixe que corta Agressão Estratégia de defesa Acanthutus chirurgus
Peixe que fura Agressão Estratégia de defesa Holocentrus ascensionis
Peixe que corre Agressão Fuga Pomacanthus arcuatus
Peixe que ronca Comunicação Produção de som Batrachoididae
Peixe que dorme de noite Repouso - Scarus coeruleus
Peixe que pega de
Repouso - Ogcocephalus vespertilio
mão/preguiçoso/besta
Peixe que menstrua Reprodução Comportamento reprodutivo Aetobatus narinari
Peixe que ejecula Reprodução Comportamento reprodutivo Aetobatus narinari

Em geral as etnocategorias vêm apresentando semelhanças e novidades em


alguns trabalhos pelo Brasil. Marques (1994) encontrou pelo menos 11 etnocategorias,
41
Costa-Neto & Marques (1999) identificaram 18 etnocategorias, e 17 foram encontradas
por Moura et al (2008). As correspondências e diferenças estão apresentadas na figura
9.

Peixe que reboja


Peixe que imanta
Peixe que brinca
Peixe de buraco Peixe que aboiô
Peixe que choca na boca Peixe que desova na boca
Peixe que se alevanta Peixe que faz cama
Peixe que rota Peixe que pula Peixe que tem cantiga
Peixe que inserra Peixe que responde a chamado
Peixe covarde Peixe selvagem
Peixe que tem raça
Peixe valente Peixe brabo
Peixe que ronca Peixe violento
Peixe que viaja
MARQUES, 1992
COSTA-NETO &
MARQUES, 1999
Peixe que corta Peixe que anda de noite
Peixe que faz ninho

Peixe cismado/velhaco
Peixe sabido
Peixe que enxerga de longe MOURA et al, 2008
Peixe que dorme cedo
Peixe malvado
Peixe mole/besta
Peixe que come engolindo
Peixe que desova nas águas
Peixe que tem gênio

Figura 9. Correspondências e diferenças entre as etnocategorias nos trabalhos de


Marques (1992), Costa-Neto & Marques (1999) e Moura et al. (2008); com destaque, as
etnocategorias encontradas no presente estudo.

As etnocategorias em comum nos três trabalhos foram “peixe valente”, “peixe


que ronca”, e “peixe que viaja” sendo as duas primeiras também encontradas no
presente estudo. As peculiaridades regionais são muito evidentes na compreensão da
etnoetologia de peixes, especialmente desenvolvida pelas diferenças semânticas de cada
42
região, o que justifica as nomenclaturas diferenciadas para exibir o mesmo fenômeno
etológico em alguns casos.

5.1.1 ALIMENTAÇÃO - Aetobatus narinari EUPHRASEN, 1790 “PEIXE QUE PULA” E

RACHYCENTRIDAE “PEIXE QUE SEGUE OUTRO PEIXE”

Com hábitat bentopelágico costeiro de águas rasas (SZPILMAN, 2000), o


“pintado” (Aetobatus narinari) (Fig. 10) é amplamente ingerido na Pedra Furada,
contrariando dados da literatura que afirmam que sua carne não costuma ser consumida
(CARVALHO-FILHO, 1992). A pesca do “pintado” ocorre de mergulho (arpão),
grozeiras e de rede, mas nem todos os pescadores estão habilitados a realizá-la, devido
ao seu nível de dificuldade e à necessidade de dominar artes específicas.
Existem basicamente duas formas de alimentação da arraia descritas pelos
pescadores: a ‘mariscagem’ e o ‘cavar’, definidos respectivamente como o ato de
forragear na areia (favorecido pela sua anatomia), e o salto para quebrar a concha de
moluscos maiores e mais duros.
O comportamento trófico da A. narinari é um meme bem sucedido, aparecendo
em 100% das entrevistas. Segundo os pescadores, o recurso mais procurado pelo
“pintado” é o “buzo” (Strombus costatus), dotado de uma concha dura e pesada (Fig.
10). A parte carnosa e viva do “buzo” é frequentemente utilizada como isca em
grozeiras. Em seu hábitat natural a arraia seria capaz de quebrar a concha para se
alimentar do molusco, como descrito abaixo:

“É interessante, ele (o pintado) vê aquele molusco buzo,


destamanho (se referindo a um tamanho grande), come, sobe, e com a
descida que ele desce ele parte na boca”. “Marina: ele sobe, ele sai da
água?”. “É, ele pula. Ele quebra, aí sai todo quebrado já. É. Com o
impacto. Ele tem duas cartilagem aqui na boca que são tipo uma pedra,
imprensa, quebra e aí...o que é pra comer ele come, o que não é pra
comer ele joga fora”. Pescadores G. e M.

Foi descrito um padrão comportamental: o salto para fora da água e a


conseqüente quebra da concha dura. Os pescadores em geral associam o fenômeno do
43
salto à quebra da concha, o que na literatura é descrito de forma dissociada, inclusive
confirmando a existência do salto, mas direcionado para a fuga de predadores
(STEHMANN, 1981; NELSON, 1984; CARVALHO-FILHO, 1992), ou ainda, segundo
Szpilman (2000), “durante sua migração e reprodução costumam formar enormes
cardumes e na época reprodutiva, ou para fugir de seus predadores (tubarões),
costumam executar saltos para fora d’água”.

A B

Figura 10. A. Aetobatus narinari. B.“Buzo” (Strombus costatus) consumido por A.


narinari segundo os informantes da Pedra Furada.

O consumo de moluscos é referendado por Carvalho-Filho (1992), afirmando


que os dentes pavimentosos e fortes esmagam as carapaças de moluscos e crustáceos.
Szpilman (2000), por sua vez, informa que A. narinari alimenta-se principalmente de
moluscos bivalves, esmagando-os com suas fortes placas dentárias para devorar apenas
seu interior mole. Não fica claro o consumo específico de gastrópodes na literatura
científica, porém, o fato é amplamente consolidado na comunidade estudada, sugerindo
sua viabilidade pela possível semelhança de valores nutricionais com outros moluscos.
A associação entre o comportamento de salto e o trófico é intrigante do ponto de
vista etológico. Um fator que colabora com a relação entre os fenômenos é a quantidade
de resíduo de conchas do gastrópodo encontrado pelos pescadores no fundo do mar. A
descrição da preferência alimentar é tão evidente que a parte mole do molusco em
questão é a isca mais eficiente para se capturar o “pintado” na grozeira. Porém, apesar
de levar em consideração que os pescadores mergulhadores são indivíduos empíricos
que realizam observação etológica periódica, é mais parcimonioso acreditar que as

44
arraias são capazes de quebrar as conchas sem necessidade de executar o salto, o qual
exige grande quantidade de energia, não admitindo a relação entre os fenômenos.
A outra etnocategoria etológica encontrada relacionada à alimentação foi “peixe
que segue outro peixe”, desempenhada pelo “bejupirá” (Rachycentridae) ao seguir a
“arraia” (tratada de forma generalizada). Os pescadores descreveram o comportamento
de forrageio do peixe:

“(...) tem bejupirá que segue a arraia fêmea quando tá perto de


parir, pra comer os filho quando nasce (...) ele sabe... sabe quando
tá na época já (...) ele sente o faro (...) o bejupirá (...) ele segue.. se
você vê... onde tem arraia cavando pra se alimentar ele segue todo
tipo de arraia. Pra comer os filho quando nasce. Quando ela pare,
ele come tudo. Quando você mergulha e vê arraia vê ele em cima
rodando... rodando pra comer os filhotes.”
Pescador M.

“Ele fica em cima da arraia, ele tem alguma coisa que... esse lado
aqui da arraia é que segura os filhotes (por baixo), aí dentro dela
incha esse lado, igual a mulé quando tá grávida não incha os
quadris? Aí ele incha isso aqui. Aí o beijupirá, sei lá.. acho que ele
sabe quando ela tá, aí ele fica batendo aqui assim ó... batendo
nela, pra dar contração e ela soltar os filhotes pra ele engolir. Aí
as vezes a gente encontra o beijupirá aqui assim, ó, a arraia
embaixo e ele assim em cima”.
Pescador H.

“(O beijupirá) Acompanha a arraia pra se alimentar quando ela


pare... Qualquer arraia...”

Pescador Ma.

Na literatura foi encontrado que uma espécie de Rachycentridae (Rachycentron


canadum) desempenha esse comportamento de acompanhar algumas arraias

45
(NOMURA, 1984), porém, não há associação entre os fenômenos de “seguir arraia” e
“comer arraia” mesmo ela fazendo parte da dieta do “beijupirá” (NOMURA, 1984).

5.1.2 A FORMAÇÃO DE CARDUMES – “PEIXE DE CARDUME”; “PEIXE QUE ANDA SÓ”;


“PEIXE QUE CHUVISCA EM CIMA D’ÁGUA”

Os cardumes de peixes constituem uma organização social. Os indivíduos das


espécies formadoras de cardumes não apenas vivem próximas umas das outras, como
mantêm também uma orientação geométrica constante em relação aos seus
companheiros, movimentando-se na mesma direção, com seus corpos paralelos e
separados uns dos outros por distâncias iguais (NOMURA, 1996).
De acordo com os pescadores, dos 34 peixes, 22 apresentam formação de
cardumes, 6 formam agrupamentos eventuais e 8 são solitários, sendo que destes 1
peixe exibe tanto o comportamento de agrupamento eventual quanto o solitário e 1
peixe apresenta tanto formação de cardume quanto solitário (Quadro 5). Em outros
trabalhos etnoetológicos, foram encontradas as etnocategorias “peixe que imanta”
(COSTA-NETO, 1998) e “peixe que anda de manta” (MOURÃO, 2000) que se referem
à formação de cardumes.
Os grupos sociais não são comuns entre peixes cartilaginosos, como tubarões e
arraias (NOMURA, 1996); podem apresentar agregações eventuais, em épocas
reprodutivas ou em casos de abundância de recurso. As três arraias estudadas foram
citadas como formadoras de agrupamentos eventuais ou solitárias, corroborando a
informação científica.
Outro meme bem sucedido entre os pescadores é o da existência de cardumes
mistos formados por indivíduos da família Haemulidae (“carrapatos” e “cambubas”), “o
carrapato é o inverso da cambuba, às vezes se juntam no cardume”. Há casos de
agregação de espécies semelhantes (NOMURA, 1996) e em Santa Catarina foi
registrada a presença de cardumes mistos de espécies da família Haemulidae (BRAGA
et al., 2009).
Proteção contra predadores e eficiência na busca de alimento são a principal
chave para a compreensão dos cardumes (PITCHER & PARRISH, 1993), e
contrapondo tais benefícios, a formação de cardumes provoca o aumento da competição
46
Quadro 5. Peixes que formam cardumes, agregam-se eventualmente ou são solitários.
Agrupamentos
Nome vernáculo Espécie Cardume Solitário
eventuais
Agulhinha Hemiramphus sp. X
Aracanguira Alectis ciliaris X X
Arraia-cabrinha Rhinoptera bonasus X X
Badejo Epinephelus niveatus X
Baiacú Sphoeroides greeleyi X
Barbeiro-preto Acanthurus chirurgus X
Budião-azul Scarus coeruleus X
Budião-batata Scarus sp. X
Cacuá Ogcocephalus vespertilio X
Cambuba Haemulon sp. X
Caramuru-verde Gymnothorax funebris X
Caranha Lutjanus sp. X
Carapicuaçú Diapterus sp. X
Carrapato Haemulon steindachneri X
Cascuda Harengula jaguana X
Scomberomorus
X
Cavala brasiliensis
Cavalinho-do-mar Hippocampus reidi X
Dunda Aluterus monóceros X
Frade Anisotremus virginicus X
Guaraiúba Caranx sp. X
Jaguaraçá Holocentrus ascensionis X
Jamanta Manta birostris X
Parú-cinzento Pomacanthus arcuatus X
Peixe- rato Catherhines macrocerus X
Pintada Aetobatus narinari X
Pocomã Família Batrachoididae X
Archosargus
X
Sambuio rhomboidales
Saramonete Pseudupeneus maculatus X
Sardinha-facão Opisthonema oglinum X
Sulapeba Alphestes afer X
Tainha Mugil sp. X
Taoca-de-chifre Lactophrys quadricornis X
Vermelho Lutjanus synagris X
Xinxarro-roliço Decapterus punctatus X

entre indivíduos em casos de escassez de recursos. Segundo Braga et al. (2009) os


benefícios do forrageamento mais efetivo e da melhor vigilância contra predadores são
47
provavelmente maiores quanto maior for a similaridade morfológica e da dieta dos
diferentes participantes. Para peixes generalistas, trituradores, como são os Haemulidae,
viver em cardumes pode ser uma grande vantagem, até mesmo reprodutiva, uma vez
que o recurso seja sempre abundante.
A etnocategoria “peixe que chuvisca em cima d’água” emergiu para duas
espécies, a “cascuda” (Harengula jaguana) e a “tainha” (Mugil sp.) enquanto filhote,
chamada “saúna”. A descrição do comportamento de ascensão na água está relacionada
com a movimentação dos cardumes e a busca por alimentos (planctônicos). Os
indivíduos das ordens Clupeiformes e Mugiliformes são conhecidos por apresentarem
nadadeiras peitorais pequenas e achatadas, não apresentando muita mobilidade, tendo
dificuldades para nadar para trás, e assim, quando o peixe perde um pedaço de alimento
é preciso dar uma volta para pegá-lo (NOMURA, 1996). A formação de cardumes entre
esses indivíduos pode ser uma compensação para essa limitação de movimentos.

5.1.3. COMUNICAÇÃO - “PEIXE QUE RONCA”


A produção de sons por peixes é amplamente discutida e acredita-se que a
grande maioria dos sons emitidos por eles sejam produzidos em um contexto social, e
envolvam interações entre indivíduos (HAWKINS, 1993). Estudos demonstraram que
os sons estimulam atividades de corte, de atração de fêmeas a machos e que estimulam
o comportamento agressivo e de fuga, servindo como sinais de alerta (WINN, 1964).
Nos poucos trabalhos de etnoetologia têm-se encontrado especificações
inclusive na diferenciação dos tipos de sons. Marques (1994), por exemplo, encontrou a
etnocategoria “peixe que faz zoada” subdividida em cinco tipos de expressões sonoras
diferentes: “peixe que chia”, “peixe de cantoria”, “peixe que ronca”, “peixe que poca” e
“peixe que esturra”. No trabalho de Alencar (2011) também emergiu “peixe que faz
zoada” subcategorizado em “peixe que canta”, “peixe que ronca” e “peixe que chia”.
Na comunidade foi encontrada apenas a categoria “peixe que ronca” com
indicações de proteção contra predação, corroborando a opinião de Hawkins (1993), que
afirma ser a produção de som comum em peixes quando o indivíduo é perturbado por
um predador. Houve diferenças e semelhanças nas opiniões dos informantes a respeito
das espécies que “roncavam” (Fig. 11), expressando dois tipos de memes presentes, os
bem sucedidos e os mal sucedidos, tratados aqui devido ao potencial de discussão.

48
O peixe mais citado como “peixe que ronca” foi o “pocomã” (Batrachoididae),
seguido pelo “carrapato” (Haemulon steindachneri) e o “sambuio” (Archosargus
romboidales). Mas também foram citados: “cambuba” (Haemulon sp.), “baiacú-
feiticeiro” (Sphoeroides greeleyi) e “budião-azul” (Scarus coeruleus). Porém, outros
animais foram citados como “peixe que ronca” por apenas um pescador (reconhecido
por ser especialista em arraias): “curuvina” (Sciaenidae), “roncador”, “baleia”
(Cetacea), “golfinho” (Cetacea) e “arraia” (de forma geral).
Sobre o significado de “roncar” apresentou a informação “é pra se comunicar”.
O pescador M. descreve de forma interessante, incluindo, inclusive mamíferos como o
golfinho e a baleia:

“(...) E deve ter mais uns peixes que ronca né? Como a baleia
canta, ronca, golfinho, aquela arraia que eu trouxe aí, roncou.
ela ‘arhhhhhhhh’, abriu a boca e fechava. Eu não sei o que quer
dizer, mas sei que ronca. Muitos peixes ronca. (...) é pra se
comunicar, já no seco já, a gente matando ela (a arraia), tirando
os pedaços e ela roncando, ela abria a boca assim e ‘arhhhhhhh’.
Eu num vô saber o que ela tá falando (...)”
Pescador M.

Houve também uma sutil distinção entre as etnocategorias “cantar” e “roncar”,


utilizando do exemplo da “curuvina” evidenciando, inclusive, que o som é emitido
apenas no período específico da maré:

“A curuvina também ronca. Quando a maré está em préa-mar, em


plena altura pra vazar, a maré enche até certa altura pra começar
a vazar, chama-se préa-mar, na préa-mar a curuvina canta, os
cardumes, você abaixa o ouvido na canoa e você vê ela cantando,
roncando, né cantando não, roncando.”
Pescador M.

Os três principais peixes citados na categoria “peixe que ronca” foram o


“Pocomã” (Batrachoididae), o “Carrapato” (Haemulon steindachneri) e o “Sambuio”
49
(Archosargus romboidales). Alguns peixes da família Batrachoididae (ex.: Opsanus
tau) são conhecidos pela produção de sons altos a partir da vibração da bexiga natatória
(MOYLE & CECH JR., 1996). Essa sonoridade, possível devido à presença de
musculatura intrínseca, soa como uma vibração e possui uma qualidade tonal
(TAVOLGA, 1964). Esse tipo de vibração é identificado pelos pescadores como o
“roncar”, som que caracterizaria uma forma de comunicação entre a presa e o predador.
Um dos informantes disse que “o Pocomã ronca (...) ele faz isso pra intimidar”, um
padrão comportamental agressivo relacionado também com a tentativa de afastar o
predador, no caso, humano. O hábitat do peixe também pode configurar uma pista
etológica, pois o mesmo apresenta comportamento isolado e territorialista:

“O Pocomã toma a casa do polvo e come ele” Pescador P.


“O Pocomã vive na loca do polvo” Pescador D.

Figura 11. Memes e informações relacionadas à etnocategoria “peixe que ronca” na


comunidade da Pedra Furada.

O “Carrapato”, unânime nas entrevistas enquanto “peixe que ronca”, exibe o


som do “ronco” de forma um pouco distinta. Segundo Moyle & Cech Jr. (1996) os
Haemulidae emitem os chamados ‘grunhidos’ porque utilizam os dentes faríngeos para
produzir sons graves, sons que são amplificados pela bexiga natatória.

50
A sonoridade manifestada por algumas espécies facilita sua identificação no
mar, durante os mergulhos e até mesmo sob as canoas. Os pescadores escutam e
identificam os sons emitidos pelos peixes, mas não reconhecem o significado destes.

5.1.4 AGRESSÃO – “PEIXE QUE DÁ BOTE”, “PEIXE QUE MORDE”, “PEIXE BRABO”,

“PEIXE VALENTE”, “PEIXE QUE CORTA”, “PEIXE QUE FURA” E “PEIXE QUE CORRE”

As interações agressivas mais conhecidas entre os peixes são aquelas


relacionadas à reprodução e à defesa dos territórios de nidificação, porque fazem
parte de conjuntos elaborados do comportamento visível. Porém, tão importantes
para muitos peixes, mas muito menos visíveis, são comportamentos agressivos
associados com a defesa do alimento e do espaço (MOYLE & CECH, 1996). Há uma
grande discussão se o comportamento agressivo tem um significado adaptativo, e um
dos elementos a favor é o fato da viabilidade de ganho de alimento compensar os custos
de defesa de território.
“Peixe que corre” referiu-se exclusivamente ao “Parú-cinzento” (Pomacanthus
arcuatus), e foi descrita por pescadores mergulhadores. A dificuldade de capturar um
exemplar da espécie porque “ele corre demais” representa um provável comportamento
de fuga.
As etnocategorias que emergiram e estavam relacionadas com o comportamento
agressivo foram “peixe que dá bote”, “peixe que morde”, “peixe brabo”, “peixe
valente”, “peixe que corta”, “peixe que fura” e “peixe que corre” (Fig. 12). Há uma
distinção entre a categoria “peixe valente”, representada pelo “pintado” (A. narinari)
que resiste à rede e à grozeira, dando trabalho de ser capturado tentando fugir; e “peixe
brabo”, representada pela “Aracanguira” (Alectis ciliaris) e pelo “Caramuru”
(Gymnothorax funebris), ambos resistindo à predação atacando o seu predador, porém,
no caso do caramuru esta exibição é complementada pelas categorias “peixe que morde”
e “peixe que dá bote”, aproximando-se do ato de atacar de algumas serpentes,
provavelmente por conta de sua semelhança morfológica com o réptil. A descrição do
G. funebris pelo pescador M’ evidencia seus comportamentos agonísticos:

“O caramuru é um perigo, ele entra no munzuá e sai fazendo


miséria (...) dá bote e é um peixe brabo que dá nó nele mesmo (...)
tem dente e morde” Pescador M’
51
Figura 12. Etnocategorias sobre agressividade e espécies de peixes correspondentes identificadas na comunidade da Pedra Furada.
52
“Peixe que fura” e “peixe que corta” são representados respectivamente pelo
“Jaguaraçá” (Holocentrus ascensionis) e pelo “Barbeiro” (Acanthurus chirurgus).
Ambos apresentam estruturas morfológicas que possibilitam o comportamento. O
primeiro chama atenção por possuir um pré-opérculo provido de grande acúleo
(SANTOS, 1982), e o segundo um detalhe no pedúnculo caudal (Fig. 13), mesmo na
linha lateral, de cada lado, um espinho móvel imitando a lâmina de uma navalha, arma
perigosa que o peixe traz oculta (SANTOS, 1982).

Figura 13. “Barbeiro”, Acanthurus chirurgus e o detalhe presente no pedúnculo caudal,


responsável pela etnocategorização “peixe que corta”.

53
5.1.5 REPOUSO – “PEIXE QUE DORME DE NOITE” E “PEIXE QUE PEGA DE

MÃO/PREGUIÇOSO/BESTA”

A etnocategoria “peixe que dorme de noite” encontrada para (Scarus coeruleus),


“budião-azul” (Fig. 14), foi identificada devido ao hábitat do peixe de ‘viver’ em
pedras, se escondendo de predadores.
Alguns autores tratam a categoria etológica da mesma forma que os pescadores e
a palavra “dormir” é também utilizada na linguagem científica. Segundo Szpilman
(2000), outra espécie de Scaridae (Scarus guacamaia) tem o hábito de dormir, pois à
noite secreta um muco transparente que forma uma capa protetora, passando a dormir
dentro de um verdadeiro “casulo” que é rompido na manhã seguinte. No FishBase
(2011), nos detalhes sobre a família Scaridae, é possível encontrar que algumas espécies
descansam à noite, envolvidas por uma secreção de muco.

Figura 14. Scarus coeruleus (“budião-azul”). O “peixe que dorme de noite”, segundo
pescadores da Pedra Furada.

“Peixe que pega de mão/preguiçoso/besta” foi uma etnocategoria que apareceu


sempre de forma conjugada (pega de mão, é besta e é preguiçoso). O “Cacuá”,
54
Ogcocephalus vespertilio (Fig. 15), foi o único peixe disposto na categoria, e seu hábito
bentônico (MOYLE & CECH JR., 1996) é decorrente de suas nadadeiras modificadas,
tornando possível o ato de “caminhar” pelo fundo (PEREIRA, 1976). Tais adaptações
ao ambiente bentônico conferem ao peixe certa lentidão em executar seu deslocamento,
facilitando assim sua captura pelos pescadores, inclusive sem a utilização de nenhum
apetrecho.
Para O. vespertilio surgiu também uma etnocategoria, “Peixe que fuma”,
decorrente da resposta a um estímulo artificial, induzido pelos pescadores:

“(...) ele fuma. O cacuá, ele fuma. Traga.” Pescador M.


“Esse é o fumão, peixe de moqueca de pescador (...)” Pescador H.

Figura 15. O “Cacuá”, Ogcocephalus vespertilio, “peixe que pega de mão/preguiçoso/


besta” e “peixe que fuma”.

O meme “peixe que fuma” bem sucedido entre todos os entrevistados é uma
etnocategoria que representa uma resposta a um estímulo artificial antropomorfizando o
peixe através do ato de “fumar”. O estímulo ocorre apenas no “Cacuá” (O. vespertilio)
que executa o movimento de “tragar” o cigarro aceso favorecido pela anatomia da sua

55
cabeça formada pelo primeiro raio da nadadeira dorsal e boca ântero-inferior, resultando
em uma projeção. O ato de “fumar” é resultado de um provável reflexo da espécie.

5.1.6 REPRODUÇÃO – “PEIXE QUE MENSTRUA” E “PEIXE QUE EJECULA”

“Aqui no rabo aqui por baixo, fica aquela parte assim grossa,
assim, vermelha, sabe? Acho que é na época da menstruação... fica
assim na parte de baixo.. é que aqui é a parte de cima... fica assim,
aquele negócio assim inchado, vermelho.. deve ser... eu num sou
estudioso...mas deve ser...”
Pescador M.

“Mas na hora de morrer, na hora de morrer, o que tiver dentro...


de... se for fêmea, o que tem dentro ela bota pra fora... até o
ovulozinho assim... sabe como é? Parece uma gema de ovo quando
tá fecundado, aí vai desenvolvendo lá o pintado, ou qualquer outra
espécie. Na hora de parir se contrai, igual a mulé, se contrai, fica
se contraindo aí bota pra fora... o macho... né história de pescador
não.. o macho, inclusive o pintado, o macho quando vai morrer, a
gente percebe que ele se prende e se contrai, aí abre assim o pênis
que são dois, o macho tem dois pênis, igual a todas as arraias,
que são dois, ele abre assim e ejecula. Bota pra cima os esperma
(...)”.
Pescador M.

“Peixe que menstrua” e “Peixe que ejecula” foram etnocategorias que


emergiram em entrevistas com apenas um pescador, provavelmente pelo fato de ser o
especialista em arraias (reconhecido pela comunidade). Outro fator que pode ter
influenciado na baixa freqüência da citação é o fato de serem etnocategorias que
remetem a nomenclaturas sexuais, e a questão de gênero da entrevistadora pode ter sido
uma barreira, quando um tabu verbal. “Peixe que menstrua” não apresentou
correspondências científicas na literatura consultada.

56
Na etnocategoria “Peixe que ejecula” o pescador identifica a presença do clásper
duplo nos indivíduos machos de A. narinari, “aí abre assim o pênis que são dois, o
macho tem dois pênis, igual a todas as arraias, que são dois (...)” que está presente em
todos os machos que atingiram a maturidade sexual (NORMAN, 1975) e o display
comportamental descrito por ele, onde ambos os gêneros tentam liberar seus gametas,
até mesmo óvulos fecundados (no caso das fêmeas) na iminência do abate, pode não se
configurar uma estratégia reprodutiva já que a fecundação do grupo em questão é
interna.

“Mas as fêmeas... o que tiver, o que tiver na barriga ela bota pra
fora. É rara a que consegue.. é que as vezes assim, quando você
pega um bocado de arraia, você bota uma sobre a outra, sabe
como é? Na canoa...então, as vezes, tá a vagina dela aqui e fica
outra em cima, não tem espaço pra ela.. pra sair..aí morre dentro.
Mas se botar uma de junto da outra assim, aí ela vai botar pra
fora. A gente solta, vai embora! (o filhote)”.

Pescador M.

No caso das fêmeas, do ponto de vista evolutivo, é muito interessante que na


iminência da morte do indivíduo adulto os filhotes ainda em desenvolvimento sejam
expelidos, criando-se chances de propagação dos genes. Porém, não foram encontrados
registros de liberação de gametas descritos na literatura.

5.1.7 O HERMAFRODITISMO DO “MERO” – UM MEME MAL SUCEDIDO E SEM


ETNOCATEGORIA EVIDENTE

“O Mero (...) você sabe que ele é hermafrodita, né?”

O “Mero” (Epinephelus itajara) (Fig. 16) é um peixe criticamente ameaçado de


acordo com a lista vermelha da IUCN (2010), e essa informação está amplamente
difundida entre os informantes. Em todas as entrevistas nas quais o mero foi citado, a
57
informação de ameaça de extinção foi colocada pelos pescadores. Este talvez tenha sido
um dos fatores que dificultaram rastrear mais informações sobre este serranídeo, apesar
dele eventualmente ser capturado por causa do seu alto valor comercial.

Figura 16. Fotografia do “Mero” (Epinephelus itajara); foto obtida e cedida por
um pescador da Pedra Furada.

Apenas quatro informantes (configurando o meme como mal sucedido) falaram


sobre a peculiaridade reprodutiva da espécie, o hermafroditismo. O mais detalhado foi o
pescador V.:

“O Mero é o seguinte, é que o criador ele fez a natureza de uma


forma diferente, hoje o peixe, quando é dois macho, ele tem o
poder de se transformar em fêmea, pra poder continuar a
procriação dele. Coisas que já é dele mesmo essa natureza, se tiver
dois macho o mero, basta um ficar cortejando o outro o tempo todo
até ele virar fêmea, ele tem os dois tipos de sexo, como se fosse
uma mulher hermafrodita. Ele pra virar fêmea, larga aquele lado
machista dele e vira fêmea, pro outro cortejá-lo e continuar a
procriação. Isso existe sim e só esse peixe consegue fazer isso. Por
isso que a proteção dele tá bem alta, de ser extinto, aí nego quer
proteger ele de qualquer forma, de qualquer maneira.”
Pescador V.

Segundo Sanches (2006), os membros da subfamília Epinephelinae são


hermafroditas protogínicos, ou seja, nascem fêmeas e em dado momento de seu
desenvolvimento sofrem uma inversão sexual, tornando-se machos. Norman (1975)
58
afirma que membros da família Serranidae apresentam o hermafroditismo, sendo uma
fêmea funcional até se tornarem machos, o que resulta em machos maiores e mais
velhos do que as fêmeas no momento da cópula. As informações científicas coincidem
com a descrição folk, que provavelmente sofrem interferências externas devido ao
reconhecimento evidente de que se trata de uma espécie ameaçada de extinção, gerando
um possível conhecimento híbrido.

59
5.2 ETNOECOLOGIA TRÓFICA

Existe uma relação intricada, mas não necessariamente obrigatória, entre o


conhecimento sobre hábitats e alimentação dos peixes na comunidade estudada.
Segundo Odum & Barrett (2011) o hábitat de um organismo é o local onde este vive ou
o local onde se deverá ir procurá-lo.
Os tipos de etnohábitats (FERNANDES-PINTO & MARQUES, 2004) descritos
por pescadores da Pedra Furada, muitas vezes estão associados a um tipo de substrato,
gerando os grupos “peixe de pedra”, “peixe de loca”, “peixe de pesqueiro”, “peixe de
areia”, “peixe que vive no cascalho”, “peixe de lama”, “peixe de mangue”, “peixe que
vive no limo”, “peixe da flor d’água”, “peixe de meia água”, “peixe que anda em cima
d’água” (Tab. 3). A relação entre as informações êmicas e éticas sobre os hábitats dos
peixes representando cinco diferentes tipos de substratos/associações, foi correspondida
e em alguns casos complementada (Quadro 6). Emergiu ainda o grupo “peixe de
passagem” caracterizando as espécies que não apresentam “moradia”, explorando
diferentes tipos de hábitat a depender da disponibilidade de recurso.

Tabela 3. Etnohábitats associados pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, aos


recursos pesqueiros capturados
Etnohabitat Recursos Pesqueiros
Pedra Jaguaraçá; Barbeiro; Budião; Carrapato; Cambuba; Budião-azul
Loca Pocomã; Caramuru
Pesqueiro Vermelho; Cambuba
Areia Baiacú-feiticeiro
Cascalho Pintado
Lama Tainha; Cabrinha; Carapicum
Mangue Tainha
Limo Cavalo-marinho; Sambuio
Flor d'água Cascuda; Sardinha; Dunda
Meia água Guaraiúba; Cavala
Em cima d'água/superfície Sardinha; Agulhinha; Xinxarro

Os conhecimentos sobre a alimentação dos peixes (etnoecologia trófica) estão


pautados em formas distintas (e não necessariamente complementares) de perceber o
ambiente. Pelo menos três foram identificadas: observação naturalística (ou direta),
executada pelos pescadores mergulhadores que algumas vezes presenciam o forrageio
no ato do acontecimento; escolha de iscas (provavelmente por tentativa e erro) inseridas
60
Quadro 6. Cognição comparada entre descrições dos pescadores da Pedra Furada sobre hábitat dos peixes e informações científicas das espécies
presentes no Kit trabalhado.

Menor nível taxonômico Informação êmica Informação ética

“Solitárias, ficam entocadas durante o dia vigiando os arredores


"Caramuru vive dentro da loca" | "É um peixe com a cabeça na entrada de sua toca. Utilizam a cauda
Gymnothorax funebris
de pedra e pesqueiro, mas fica escondido". musculosa para fixar-se no fundo da mesma”. (SZPILMAN,
2000).

“Nectônicos demersais costeiros vivem nas águas relativamente


"Pedras próximas (...) não vive junto, fica na
Holocentrus ascensionis rasas em associação com os fundos coralinos e/ou rochosos”.
área costeira" | "É de pedra e de pesqueiro".
(SZPILMAN, 2000).

“Pelágicas costeiras de águas rasas nadam perto da superfície


"Peixe de lama, só a tainha" | "Anda em beira nas áreas com fundo de areia e/ou lama. São muito comuns nas
Mugil sp.
de praia, arrecife, onde tem lama". praias, estuários, mangues, lagoas salobras (...)”. (SZPILMAN,
2000).

“Peixes pequenos, maioria de águas costeiras tropicais, mas


"É de pedra, fica grudado nas algas por causa da
Hippocampus reidi alguns são pelágicos (associados com Sargassum)”. (ROBINS
correnteza" | "É peixe de limo".
et al, 1986).

“Alguns Tetraodontidae são demersais costeiros de águas


"Esse aqui ó, se alimenta mais na areia e na relativamente rasas, vivem sobre os fundos arenosos e/ou
Sphoeroides greeleyi
beira da praia, o baiacú, tá vendo?" lamacentos”. (SZPILMAN, 2000). “É encontrado sobre fundos
moles, geralmente com vegetação”. (FISHBASE, 2011).

61
em armadilhas específicas para atração dos peixes; e manipulação experimental
(MARQUES, 1991), através da análise ocasional do conteúdo dos estômagos no
momento de ‘tratar’ o pescado para a venda e/ou consumo próprio (Fig. 17).

Figura 17. Sequência da análise do conteúdo do estômago da arraia no momento de


‘tratar’ o pescado para a venda e/ou consumo próprio.

Nem sempre as informações que emergem nas entrevistas são compatíveis com a
literatura científica, exibindo algumas discrepâncias como por exemplo no caso do
“Sambuio” (Archosargus rhomboidales) apresentar dois “buchos”, segundo alguns
informantes. Tal associação pode estar sendo confundida com a presença da bexiga
natatória ou a com uma constricção no próprio estômago do peixe.
Souto & Marques (2009) observaram em Acupe (BA) que o aumento da
eficiência da captura de diversos recursos em comunidades pesqueiras está fortemente

62
relacionado ao conhecimento sobre comportamentos das espécies capturadas,
reforçando o interesse dos pescadores em identificar as estratégias alimentares dos
peixes. O caráter urbano dos pescadores da Pedra Furada, por sua vez, não restringe o
conhecimento sobre o pescado; ao contrário, tem se mostrado resistente às pressões da
cidade, adaptando-se, inclusive, através de estratégias para captura mais eficiente e
barata, por exemplo, com iscas de frutas e verduras desprezadas em grandes feiras
livres.
Para um item alimentar aparecer na dieta de um peixe, de acordo com Wootton
(1990) ele precisa ser detectado, aproximado, selecionado, manipulado e ingerido. Tais
etapas são cruciais na identificação do recurso consumido pelo peixe, podendo haver
incongruências na identificação da dieta pelos pescadores no momento da observação
através do mergulho, devido à visualização fragmentada das etapas.
A composição da dieta dos peixes é abrangente e geralmente generalista, mas,
ainda assim foi localmente disposta em categorias compartimentalmente embasadas
(MARQUES, 1991), destacando o alimento de maior relevância, por exemplo, “peixe
que come fruta/verdura” caracterizando a frugivoria; “peixe que come buzo”
enquadrável na categoria trófica malacofagia; “peixe que come areia”, representando a
microfagia; “peixe que come peixe” podendo ter conotação ictiofágica ou até mesmo
canibal; “peixe que come camarão”, a carcinofagia; “peixe que come tudo”, abrangendo
a dieta onívora; “peixe que come lama”, caso clássico do Mugil sp. que é iliófago
(MARQUES, 1991; COSTA-NETO & MARQUES, 2000; DONNINI & HANAZAKI,
2007; MOURA et al., 2008; SOUTO & MARQUES, 2009); “peixe que come até
defunto”, discutível, porém adequado à necrofagia; e a preferência alimentar,
destacando a preferência, mas não a exclusividade em consumir um alimento. A
interpretação acadêmica dos fenômenos tróficos encontrados na comunidade (Tab. 4) é
um indicativo da diversidade de recursos alimentares obtidos pelos peixes. Foram
elaborados dois quadros de cognição comparada, evidenciando as compatibilidades
entre os conhecimentos científicos e os conhecimentos folk, neles constam informações
alimentares de 13 diferentes espécies (Quadro 7).
O hábito frugívoro evidencia uma característica interessante, pois o consumo de
frutos (e ocasionais sementes, folhas e flores) é comum em ambientes dulciaquáticos,
como por exemplo, o rio Amazonas (GERKING, 1994), a Várzea da Marituba, no baixo
São Francisco alagoano (MARQUES, 1995)
63
com consumo de frutos pelos “Tambaquis” (Colossoma macropomum), e também em
áreas estuarinas (SOUTO & MARQUES 2009), através do consumo de sementes
disponibilizadas pelos manguezais. A presença deste tipo de dieta no ambiente marinho,
provocada pela manipulação das iscas desenvolvidas pelos pescadores, cria uma dieta
oportunista, variando-a de acordo com a disponibilidade dos recursos, o que Marques
(1991) chamou de plasticidade trófica e Gerking (1994) de mudanças de dieta.
A variação alimentar devido à disponibilidade do recurso pode ser uma
estratégia interessante para evitar a sobreposição de nichos tróficos. Porém, duas
espécies estudadas do gênero Haemulon (o “carrapato” e a “cambuba”), de acordo com
os pescadores, exploram o mesmo ambiente e o mesmo recurso em tempos similares,
inclusive compondo um único cardume, o que pode se configurar ainda prematuramente
como um caso de formação de guildas alimentares (GERKING, 1994).
A análise descritiva do conteúdo estomacal do H. steindachneri (Tab. 5) indica
que a sua dieta pode de fato ser onívora, pois apresenta traços de diferentes recursos,
como escama de peixe, pedaço de crustáceo, alga e sedimento. Cervigón (1966)
descreve que o H. steindachneri apresenta análise estomacal com uma massa pouco
determinável de detritos e vermes. O seu comportamento triturador pode ser apontado
devido a abundância de matéria orgânica digerida encontrada.

Tabela 4. Fenômenos tróficos percebidos pelos pescadores da Pedra Furada e sua


comparação com a interpretação acadêmica.
Tipo de Dieta (Interpretação
Exemplo Citação Êmica
Ética)
“Come tudo, ele mesmo, sardinha,
Ictiofagia/Canibalismo Gymnothorax funebris
jaguaraçá, quatinga”
“Camarão, siri, frutas, verduras, peixe
Onivoria Lutjanus synagris
miúdo”
Iliofagia Mugil sp. “Come lama”
“O que aparecer, defunto, cachorro
Necrofagia Catherhines macrocerus
morto”
Scomberomorus
Preferência alimentar "A cavala ama a sardinha"
brasiliensis
Frugivoria Scarus sp. "Come abóbora e mamão no munzuá"
Planctofagia Hippocampus reidi "Cavalinho come limo"
Malacofagia Aetobatus narinari "O pintado quebra o buzo pra comer"
Carcinofagia Alphestes afer "Come mais é camarão..."
Microfagia Ogcocephalus vespertilio "O cacuá come é areia"
64
Quadro 7. Cognição comparada entre descrições dos pescadores da Pedra Furada e informações científicas sobre a ecologia trófica das
espécies presentes no Kit trabalhado.
Menor nível taxonômico Informação êmica Informação ética
“A maior parte da alimentação das
“À noite, quando é mais ativa, sai para capturar
“Come tudo, ele mesmo, sardinha, moréias é de pequenos peixes,
Gymnothorax funebris seu alimento que constitui-se de peixes,
jaguaraçá, quatinga”. polvos, crustáceos e moluscos”.
crustáceos e polvos”. (SZPILMAN, 2000).
(ROBINS et al.,1986).
“Os membros da família
Syngnathidae costumam sugar
Hippocampus reidi "Cavalinho come limo" zooplâncton, larvas de peixes e
pequenos crustáceos”. (ROBINS et
al,1986)
“Os Scaridae alimentam-se
“Alimentam-se de algas bentônicas e pólipos de
primariamente de algas e pólipos
"Come limo, não come outro coral que raspam dos substratos com seus fortes
Scarus coeruleus obtidos ao raspar corais e pedras
peixe"; "Come areia e limo" dentes, e de invertebrados que vivem na areia”.
incrustadas”. (ROBINS et
(SZPILMAN, 2000).
al.,1986).

“Os Mugilidae alimentam-se de


“Alimentam-se de algas, microorganismos e
detritos e microorganismos
Mugil sp. “A Tainha come lama”; detritos encontrados no lodo e na areia, que
encontrados em superfície de
engolem junto”. (SZPILMAN, 2000).
plantas”. (ROBINS et al.,1986)

"Ele come abóbora, manga, algas"; “Acanthuridae são principalmente


Acanthurus chirurgus
"Algas, limo, frutas, verduras". herbívoros”. (ROBINS et al.,1986)

"O Pocomã é carnívoro, come


“Alimentam-se de outros peixes e
Batrachoididae crustáceos e peixes menores";
crustáceos”. (ROBINS et al.,1986)
"Peixe, camarão, siri".

65
Quadro 7. (continuação) Cognição comparada entre descrições dos pescadores da Pedra Furada e informações científicas sobre a ecologia
trófica das espécies presentes no Kit trabalhado.

Menor nível taxonômico Informação êmica Informação ética


“Capturam crustáceos bentônicos que
Alphestes afer "Come mais é camarão..." formam sua dieta básica”. (SZPILMAN,
2000).
“Alimentam-se, geralmente à noite, de “Alimentam-se principalmente de pequenos
"Camarão, lula, crustáceos,
Anisotremus virginicus ofiuróides, crustáceos, moluscos e crustáceos que se encontram entre corais e
caranguejinhos"
anelídeos”. (SZPILMAN, 2000). moluscos”. (CERVIGON, 1966).
“Alimentam-se principalmente de
"Limo"; "Algas"; "Limo, algas, invertebrados bentônicos, como
Archosargus rhomboidalis
camarão e areia". crustáceos e moluscos bivalves, e matéria
vegetal”. (SZPILMAN, 2000).
“Alimentam-se de algas, esponjas,
“Parece ser onívoro, alimentando-se de toda a
"Ele come porcaria, areia, gorgônias, hidróides e outros
Pomacanthus arcuatus pequena fauna e flora de fundos coralinos”.
camarão"; "Limo e algas" invertebrados bentônicos”. (SZPILMAN,
(CERVIGON, 1966).
2000).
“Alimentam-se principalmente de
"A taioca se alimenta de peixes invertebrados sésseis, como os tunicados,
menores, camarão, siri-mole"; gorgônias, anêmonas e esponjas, mas
Lactophrys quadricornis
"Camarão, algas, até chupa o podem atacar alguns crustáceos lentos que
camarão do anzol". se enterram na areia”. (SZPILMAN,
2000).
“À noite saem para se alimentar nos
"Filé de sardinha, lula, camarão"; fundos de areia ou de algas e capturam
Holocentrus ascensionis "Come siri, camarão, outros principalmente caranguejos, camarões e
peixes"; "Come é siri pequeno". outros pequenos crustáceos”.
(SZPILMAN, 2000).

66
Espécies generalistas podem ocupar diferentes níveis energéticos em cadeias
alimentares, por exemplo, de consumidores secundários ou terciários. Odum & Barrett
(2011) afirmam que cadeias alimentares relacionam-se à transferência de energia, com a
repetição dos fenômenos de comer e ser comido, e quanto mais curta for a cadeia, maior
será a energia disponível. O próprio homem pode ocupar um lugar no fim ou perto do
final da cadeia dos alimentos, por exemplo, “o homem pode comer o peixe grande, que
come o peixe pequeno que come o zooplâncton que come o fitoplâncton que fixa
energia solar” (ODUM & BARRETT, 2011). Foram elaborados quatro exemplos de
cadeias tróficas (Fig. 18), cada uma com uma base distinta (cachorro morto, areia, lama
e fruta), mas todas apresentam o homem como último nível, os peixes do kit (Fig. 19)
ocuparam os terceiros e quartos níveis.

Tabela 5. Análise descritiva do conteúdo estomacal de Haemulon steindachneri, o


“carrapato”

Individuo Biometria Amostra de Origem Conteúdo estomacal


1 148mm 31/05/2011 Matéria Orgânica (MO) digerida
2 187mm 31/05/2011 MO digerida
MO digerida; Material não identificado de origem
3 156mm 31/05/2011
animal
4 171mm 31/05/2011 MO digerida; 1 escama de peixe
5 174mm 31/05/2011 MO digerida
6 148mm 31/05/2011 MO digerida
7 174mm 31/05/2011 MO digerida
8 176mm 31/05/2011 MO digerida
9 170mm 04/06/2011 MO digerida; Alga; Sedimento; 1 escama de peixe
10 162mm 04/06/2011 MO digerida; 1 escama de peixe
11 162mm 04/06/2011 MO digerida
12 182mm 01/06/2011 MO digerida; fragmento de crustáceo
13 180mm 01/06/2011 MO digerida; 1 escama de peixe
14 119mm 01/06/2011 MO digerida
15 164mm 01/06/2011 MO digerida
16 149mm 01/06/2011 MO digerida
17 160mm 01/06/2011 MO digerida
18 146mm 01/06/2011 MO digerida; fragmento de crustáceo
19 136mm 01/06/2011 MO digerida
20 149mm 01/06/2011 MO digerida; fragmento de crustáceo

67
68

Figura 18. Exemplos de quatro fragmentos de cadeias alimentares com diferentes bases e o homem como último nível. A seta semicircular
representa a relação canibal.
69

Figura 19. Peixes que compõem as quatro cadeias alimentares da figura Y. A. Parú-cinzento; B. Tainha; C. Dunda; D. Barbeiro-preto; E. Cacuá; F.
Caramuru e G. Pintado.
Apesar de não se configurar um meme, pois emergiu em apenas uma entrevista,
o esquema trófico do siri-boca-preta (Fig. 20) indica o caramuru (Gymnothorax
funebris) como nível mais alto (4º), reafirmando os outros esquemas onde ele
geralmente alcança o topo ou um nível antes.
Na construção de um fragmento de teia alimentar com a disposição das
informações êmicas que se configuraram memes bem sucedidos (Fig. 21), o “caramuru”
junto com o “beijupirá” alcança um nível antes do topo (consumidor terciário), ocupado
novamente pelo homem. O 1º nível, formado por lama, fruta, areia, limo/algas e
cachorro morto apresenta cinco diferentes matérias, quatro orgânicas e uma inorgânica
compondo a base do fragmento da teia. O 2º nível trófico, constituindo o estrato de
consumidores primários, está representado por seres vivos de diferentes grupos:
Crustacea (“camarão” e “crustáceos”), Pisces (“tainha”, “cacuá”, “barbeiro-preto” e
“cavalo-marinho”) e Gastropoda (“buzo”). Os consumidores secundários, formados pelo
“pintado”, “parú-cinzento”, “taoca-de-chifre”, “saramonete”, “cambuba” e “dunda”,
apesar de ocuparem o 3º nível trófico, servem de alimento também para o 5º nível,
representado pelo homem.

Figura 20. Fragmento de rede trófica mostrando o siri boca preta e tendo o caramuru
como último nível. A seta sai de quem é comido e aponta para quem come.

70
No Complexo Estuarino-Lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM), Alagoas,
Marques (1991) encontrou até seis níveis tróficos e este mesmo autor (1995) em seu
trabalho na várzea da Marituba na bacia do São Francisco encontrou até cinco níveis.
Fernandes-Pinto (2001) também descreveu até seis níveis na Barra do Superagui,
Paraná, e as cadeias tróficas encontradas por Silvano (1997) no rio Piracicaba (SP)
apresentaram quatro níveis. Odum & Barrett (2011) reforçam o fato de que o número de
passos das cadeias alimentares é limitado, geralmente quatro a cinco níveis, devido à
grande perda de energia sob a forma de calor (80 a 90%). No segundo nível trófico
(consumidores primários) do fragmento da teia representada (Fig. 21) estão presentes
peixes detritívoros, crustáceos e camarões, que costumam formar a base da maioria das
cadeias tróficas tropicais e exercem um importante papel na reciclagem de nutrientes e
na produtividade de ecossistemas aquáticos (FERNANDES-PINTO, 2001).

71
5

Figura 21. Fragmento de teia alimentar com cinco diferentes bases (lama, fruta, areia, limo/algas e cachorro morto) e com o homem presente no
último nível.

72
A “sardinha”, Opisthonema oglinum (Fig.22), ocupa uma posição relevante em
um fragmento de teia alimentar (Fig.23), pois, de acordo com os pescadores, serve de
alimento para pelo menos 16 diferentes “peixes” (“ipuaçú”, “beijupirá”, “guaraiúba”,
“olho-de-boi”, “atum”, “baleia”, “golfinho”, “tubarão”, “peixe-espada”, “bonito”,
“boto”, “albacora”, “cavala”, “aracanguira”, “xaréu” e “marlin”. Mourão (2000)
encontrou no estuário do rio Mamanguape oito diferentes peixes que consomem O.
oglinum, lá chamada de sardinha-azul. O. oglinum é um animal que vive em grandes
cardumes e consequentemente apresenta biomassa significativa estando em constante
disponibilidade enquanto recurso para peixes maiores. Moyle e Cech Jr. (1996) afirmam
que os clupeídeos desempenham papéis-chave em cadeias alimentares por causa de sua
abundância e sua habilidade em consumir tanto zooplâncton quanto fitoplâncton.

Figura 22. “Sardinha” Opisthonema oglinum fotografada na comunidade da Pedra


Furada.

Segundo alguns informantes, a “sardinha” come o “peixe prata”, um aparente


contra-senso já que biologicamente ela se alimenta basicamente de fitoplâncton
73
(Szpilman, 2000). Alguns pescadores relatam que a sardinha se sente atraída pelo brilho
provocado pelo anzol sem iscas, dando a impressão de ser o “peixe-prata”. Outros
informantes afirmam que a sardinha se alimenta de algas. Os pescadores reforçaram em
todas as entrevistas a importância da sardinha na alimentação de peixes maiores, e em
contrapartida, apresentaram dificuldades em recordar o item alimentar de O. oglinum,
comentando inclusive que era desnecessário possuir iscas para capturá-la.

Figura 23. Inserção da sardinha (Opisthonema oglinum) em um fragmento de rede


trófica elaborada através de entrevistas na Pedra Furada, Salvador, BA.

A fala mais completa de um dos entrevistados retrata a relevância da “sardinha”


como espécie fundamental no elo trófico:

“O problema da sardinha é o seguinte, é que ela é tão observada


por vários tipos de variedade de peixe, quase todo tipo de peixe

74
come sardinha. Peixes que consiga ter nadadeiras que consiga
alcançar como o marlin, xaréu, beijupirá, guaraiúba, aracanguira,
cavala, olho-de-boi, cação, todos os tipos de peixe que eu já peguei
comem sardinha, menos arraia, essa arraia pintada e a jamanta...
boto também come ela, golfinho, outros peixes também, baleia
também come, e em quantidade muito grande, ela abre a bocona e
come não sei quantas toneladas. Atum, albacora, bonito, marlin,
peixe-espada também comem direto, e tem também outro peixe que é
danado pra comer ela, o ipuaçú, tubarão-baleia. São peixes que é
favorito pro ecossistema aqui marítimo, tanto o brasileiro quanto
pra fora. Onde tem sardinha, tem peixe, qualquer tipo de peixe,
tubarão, de peixes altos a peixes baixos. Porque ela é um peixe
muito atraente, ela cheira muito quando tá nadando, os cardumes,
então, onde dá sardinha dá o peixe embaixo.”

Pescador V.

5.2.1 O PREDADOR DE TOPO E TABUS ALIMENTARES

Foram identificadas duas espécies de peixes que são alvos de tabus alimentares
na comunidade estudada, Anisotremus virginicus o “frade”, que se configura um meme
bem sucedido e Sphoeroides greeleyi o “baiacú-feiticeiro” (Fig. 24) que apresenta uma
peculiaridade, pois o meme se estabelece na comunidade por diferencial de freqüência,
já que uma parte dos pescadores confirma a existência do tabu e outra parte nega.
Para Hanazaki (2006) as preferências alimentares podem ser explicadas tanto
culturalmente quanto ambientalmente, em função de fatores como a disponibilidade do
recurso, a posição da espécie na cadeia trófica ou a sua importância no contexto social
da comunidade, sendo que, as razões que conduzem às preferências e aversões
alimentares podem ser um resultado da inter-relação desses aspectos.
Sobre A. virginicus incide um tabu circunstancial, ou segmentário (COLDING,
1995 apud PACHECO & MARQUES, 2009) ou ainda, segundo Costa-Neto (2000) o de
um “peixe consumido com restrições” (somente mulheres “paridas” não podem comê-lo
por ser “reimoso” e “carregado”). Costa-neto (2000) encontrou o mesmo tipo de
75
restrição para pelo menos oito diferentes espécies de peixes, mas nenhuma delas
corresponde especificamente o A. virginicus. Para Pacheco & Marques (2009) a
categoria emergente foi “mulher de resguardo” e as espécies restringidas foram quatro.

Figura 24. A. Anisotremus virginicus, o “frade”. B. Sphoeroides greeleyi, o “baiacú-


feiticeiro”.

“Mulher de resguardo” e “mulher parida” podem apresentar conotações


semelhantes, ambas relacionadas com o pós-parto. Este e a menstruação seriam
representáveis como momentos de maior fragilidade e vulnerabilidade para mulheres e é
76
quando a ingestão de um alimento “reimoso” pode prejudicar não apenas a mulher, mas
aqueles que estão ligados física e emocionalmente a ela (MURRIETA, 2001).
Em alguns trabalhos no Brasil diferentes espécies de “baiacús” foram
relacionadas com tabus alimentares (COSTA-NETO, 2000; FERNANDES-PINTO,
2001; PACHECO & MARQUES, 2009) geralmente associados a características
toxicológicas, sendo “venenoso” ou “podendo matar”. Fernandes-Pinto (2001)
encontrou as classificações “peixes venenosos” e “peixes perigosos”; para Costa-Neto
(2000) “peixe venenoso” foi atribuído a espécie pertencente ao mesmo gênero estudado,
o Sphoeroides testudineus.
A peculiaridade do tabu alimentar em causa é que os pescadores entrevistados
dividem sua opinião a respeito das características tóxicas. Todos os entrevistados
reconhecem a existência do meme “se comer o baiacu morre” e inclusive a maioria
relatou o fato de conhecer a estória de uma família inteira que morreu ao consumir a
espécie. Porém, alguns afirmam que não se importam com o “mito” e consomem o
animal sem problemas, enfraquecendo a opinião daqueles que não o consomem. “O
segredo é o jeito de tratar – tem que saber” argumentam alguns pescadores. Segundo
Fernandes-Pinto (2001), os pescadores da comunidade que estudou afirmaram que o
veneno encontra-se no “figo” e no “fel”, o que corresponde à vesícula biliar e colabora
com informações científicas sobre análise de toxicidade dos baiacús da sua região. De
acordo com Robins et al (1986), membros da família Tetraodontidae produzem um
veneno poderoso, a tetraodontoxina, que está especialmente concentrada na pele,
gônadas, fígado e outros órgãos e comê-los pode ser fatal a não ser que se tenha muito
cuidado no preparo.

77
5.3 ETNOTAXONOMIA

“Existe a moréia pintada, verde, marrom, cinza, amarela, pinima,


tem uma família de uns 15 familiares, a verde é a que manda no
pedaço”.
Pescador V.

5.3.1 IDENTIFICAÇÃO E NOMEAÇÃO

Classificar, agrupar, organizar, nomear os peixes, é uma estratégia interessante


que os pescadores utilizam para compor a estrutura dos conhecimentos sobre o recurso a
ser capturado. Berlin (1973) afirma que em sistemáticas folk há desdobramentos que
abarcam essa forma de organizar os indivíduos: a identificação, a nomenclatura e a
classificação, envolvendo princípios de reconhecimento de aspectos morfológicos,
estruturas lingüísticas de denominação e organizacionais.
Na Pedra Furada o grande grupo “peixes” inclui o que por conveniência a
biologia classifica como tais, mas, alguns pescadores incluem neste grupo mamíferos
como o golfinho e a baleia, assim como Fernandes-Pinto (2001) e Marques (1991)
também encontraram nas comunidades por eles trabalhadas a inclusão da baleia e do
boto no grupo dos peixes. No trabalho de Mourão (2000) peixe-boi, boto, baleia, e
alguns invertebrados (camarões e eventualmente caranguejos) foram incluídos na
categoria dos peixes. No caso dos mamíferos, uma possível explicação seria a anatomia
externa hidrodinâmica análoga aos peixes e, no caso, ocupação do ambiente marinho,
configurando a similaridade do hábitat. Para Marques (1995), a inclusão ou exclusão de
indivíduos no grupo “peixes” pode configurar um padrão comum às comunidades de
pescadores do litoral brasileiro, configurando o que ele cunhou como “padrão de
inclusividade/exclusividade”. Não emergiram nas entrevistas exemplos de exclusão do
grupo “peixes”.
As características morfológicas são grandes aliadas na identificação das espécies
e no agrupamento de semelhantes, mesmo para a taxonomia folk. A presença/ausência
de algumas estruturas é crucial na identificação do exemplar pelos pescadores.
Um importante critério morfológico avaliado é o padrão de coloração, algumas
vezes soberano às outras características, inclusive repercutindo na nomeação do
78
indivíduo. No “budião-azul” (Scarus coeruleus) sua coloração azul o diferencia do
“budião-batata” (Scarus sp.), no “parú-cinzento” (Pomacanthus arcuatus) a coloração
cinza o diferencia dos outros “parús” (o preto, por exemplo, muito citado); o “caramuru-
verde” (Gymnothorax funebris) também tem a sua cor como característica mais forte
para diferenciá-lo dos outros, e o “barbeiro-preto” (Acanthurus chirurgus) tem sua
coloração preta utilizada para diferenciá-lo do “barbeiro-azul”.
Um dos pescadores diferenciou a “sororoca” (Scomberomorus brasiliensis)
através de características morfológicas. Apesar de não ser um meme, é interessante
destacar a forma de diferenciar as espécies:

“Então a cavala ela teve um cruzamento com a sororoca, então quer


dizer, gerou a prima, que é a sororoca, olha a diferença, tá vendo o
amarelo, em cima do pescoço dela, bem estirado, a cavala já não é
assim, não tem as pintas não, só as cores cinzas e ela é redonda,
mais carnuda, tem mais potência de peso”.
Pescador V.

A forma do corpo é outra característica aplicada para diferenciar espécies


semelhantes morfologicamente, e no caso da “sardinha” (Opisthonema oglinum) e da
“cascuda” (Harengula jaguana) este é o critério mais utilizado (Fig. 25).

Figura 25. Diferença na morfologia dos corpos, acentuada na região ventral. A.


Sardinha (Opisthonema oglinum) e B. Cascuda (Harengula jaguana).

Algumas terminologias (incluídas no nome do peixe) são utilizadas para


identificar as espécies de acordo com caracteres morfológicos (Tab. 6), “xinxarro-
79
roliço” (Decapterus punctatus), “agulhinha” (Hemiramphus sp.), “taoca-de-chifre”
(Lactophrys quadricornis), “baiacú-espinho”, são exemplos que emergiram em
entrevistas. Outras estruturas também são reconhecidas pelos pescadores como
identificatórias; tal é o caso dos barbilhões (ou barbas) do “saramonete” (Pseudupeneus
maculatus), das placas dentárias (Fig. 26) da arraia (Aetobatus narinari e Rhinoptera
bonasus), dos espinhos no “jaguaraçá” (Holocentrus ascensionis), dos dentes no
“pocomã” (Batrachoididae), e da presença/ausência de chifres na “taoca-de-chifre” (L.
quadricornis) e na “taoca-sem-chifre” (Fig. 27).
Algumas analogias com outras espécies de animais também foram identificadas:
“arraia-morcego”, “cavalinho-do-mar”, “peixe-rato”, são alguns exemplos, sendo que os
três primeiros estão de acordo com similaridades morfológicas e o último refere-se ao
comportamento (comer porcaria).

Tabela 6. Critérios morfológicos de identificação das espécies pelos pescadores da


Pedra Furada.

Critérios de Identificação Característica Espécies folk

Azul Budião-azul
Cinzento Parú-cinzento
Coloração
Verde Caramuru-verde
Preto Barbeiro-preto

Mais redonda Sadinha-facão


Forma do corpo Mais reta Cascuda
Roliço Xinxarro-roliço
Barbilhões Saramonete
Chifre Taoca-de-chifre
Estruturas no corpo Placas dentárias Arraia
Espinhos Jaguaraçá
Dentes Pocomã

Apesar da mencionada semelhança entre o caramuru e a cobra, assim como em


Mourão (2000) este não foi categorizado como cobra ou como inseto, informação
encontrada por Marques (1991). O formato do corpo foi evidenciado nas entrevistas,
mas os indivíduos da família Muraenidae foram incluídos na categoria “peixes”. Outros
indivíduos não-peixes emergiram nas entrevistas, por se tratar de que compartilham o
hábitat marinho e/ou servem de alimentos para os peixes.
80
Figura 26. Placas dentárias de arraia aqui representada pela “arraia-cabrinha”
(Rhinoptera bonasus). Registro feito na Pedra Furada.

Figura 27. Taocas e o caráter morfológico que as identifica: presença/ausência do chifre.


A. “Taoca-de-chifre” e B.“Taoca-sem-chifre”.
81
Destacam-se o buzo (Strombus costatus), o camarão (Crustacea, Decapoda), o polvo
(Octopus sp.), a lagosta (Crustacea, Decapoda), a baratinha-da-praia (Lygia sp.), o siri-
bóia e o siri-boca-preta (Crustacea, Decapoda), a lambreta (Bivalvia), a bunda-de-véio
(Molusca) e o ouriço (Echinodermata, Equinoidea) (Fig.28).
Alguns peixes apresentaram variações nomenclaturais (Tab. 7) oriundas de
quatro possíveis razões não necessariamente excludentes: hibridismo cultural (acesso a
documentários científicos, jornais, revistas, livros, pesquisadores), regionalismo/
semântica (leves deslocamentos de vogais ou supressão destas em virtude do grupo de
convivência), falta de qualidade da fotografia (escala e/ou desfoque) e aproximação
morfológica entre peixes parecidos associado à baixa frequência de acesso ao pescado
(ex. sororoca e cavala pertencem a mesma família zoológica - Scombridae - e são
difíceis de pescar).
Dois pescadores apresentaram um detalhamento dos nomes de duas espécies
trabalhadas que se aproximam da literatura científica, o “pomacatus” e o “caterine” se
referindo ao “parú” e ao “peixe-rato”. Estes podem se configurar como exemplos fortes
de hibridização cultural, já que os nomes referem-se ao gênero latino das espécies em
questão, Pomacanthus e Catherines. Os pescadores que prestaram esta informação
possuem um diferencial por executarem a pesca focada também no aquarismo, entrando
em contato direto com vendedores que trabalham utilizando a nomenclatura científica.
Esse tipo de intercâmbio cultural informal (hibridização) gerou a pronúncia de nomes
semelhantes aos gêneros biológicos, restritos aos pescadores que mantêm relação
comercial.
Os lexemas (nomes) podem ser criados seguindo alguns padrões de nomeação.
Essa configuração explica a lógica estabelecida na classificação e nos níveis de
organização criados pelo grupo folk. O lexema pode ser primário ou secundário, sendo
este último representado por um binômio (BROWN, 1983) e seu primeiro nome refere-
se a uma categoria imediatamente superior (Ex.: arraia-pintada). O primário, por sua
vez, subdivide-se no que Marques (dados não publicados) chama de analisável e não
analisável e Mourão (2000) atribui o conceito de complexo e simples, respectivamente.
O lexema primário não analisável (simples) seria um nome único que não representa
nenhuma categoria superior e é suficiente para descrever uma espécie (ex.: Dunda). O
lexema primário analisável (complexo) desmembra-se, ainda, em produtivo, binômio
em que o primeiro nome refere-se a uma categoria muito superior, (ex.: peixe-rato e
82
A B C

D
E

Figura 28. Recursos não-peixes encontrados na Pedra Furada, Salvador, BA. A. Siri-boia. B. Polvo. C. Baratinha-da-praia. D. Lagosta. 83
E. Lambreta. F. Camarão. G. Ouriço. H. Buzo.
Tabela 7. Variações dos nomes vernáculos (sinonímias) encontradas na comunidade e possíveis razões.

Nome Vernáculo Variações Encontradas (Sinonímias) Possíveis Razões


(mais citado)
Cascuda Sardinha Aproximação morfológica entre as espécies

Pintada Pintado Regionalismo/Semântica e/ou Hibridismo Cultural

Badejo Garoupa Aproximação morfológica entre as espécies/Qualidade da foto

Cavala Sororoca Aproximação morfológica entre as espécies

Cavalo-marinho Cavalinho; Cavalinho-do-mar Hibridismo Cultural

Taoca Taioca Regionalismo/Semântica

Dunda Peixe-rato Aproximação morfológica entre as espécies

Arraia Cabrinha Cabrinha; Arraia duas bocas; Arraia branca; Aproximação morfológica entre as espécies e/ou Hibridismo Cultural
Arraia morcego
Caramuru Moréia Aproximação morfológica entre as espécies e/ou Hibridismo Cultural

Aracanguira Peixe-galo Aproximação morfológica entre as espécies

Carapeba Carapicum; Carapicum-açú Aproximação morfológica entre as espécies e/ou Qualidade da foto

84
peixe-prata, que só compartilham a classificação “peixes” onde mesmo os que não
carregam o nome “peixe” também se enquadram); e o não produtivo, um nome
composto (ex.: cavalinho-do-mar) que não representa nenhuma categoria superior (Fig.
29). Os nomes (lexemas) primários simples e complexos (Quadro 8) representam os
agrupamentos genéricos monotípicos.
Berlin (1992) configurou o seu sistema de nomeação e classificação baseados na
seguinte terminologia hierárquica: reino, forma-de-vida, intermediário, genérico,
específico e varietal. As categorias reino e varietal não foram encontradas de forma
evidente na comunidade.
Compondo os lexemas, estão os supracitados agrupamentos genéricos
monotípicos e também os politípicos (Quadro 9) que são a maioria e, no caso,
correspondem muitas vezes às espécies lineanas. Os agrupamentos monotípicos estão
representados por nomes que não caracterizam nenhum grupo maior, ou subgrupos. Os
politípicos nomeiam os grupos que subdividem-se, carregando no nome a ideia de uma
categoria levemente superior. Quando o nome é genérico monotípico, este é a categoria
terminal, enquanto no caso do politípico, este é a categoria subterminal, tendo como
terminal o específico (BROWN, 1983).
LEXEMA

PRIMÁRIO SECUNDÁRIO

Arraia -pintada Arraia-cabrinha

ANALISÁVEL (Complexo) NÃO ANALISÁVEL (Simples)

Dunda

PRODUTIVO NÃO PRODUTIVO


Peixe-rato Cavalinho-do-mar

Figura 29. Esquema adaptado de Marques (dados não publicados), referindo-se à


organização dos lexemas na Pedra Furada.
85
Quadro 8. Nomes primários simples e complexos citados na Pedra Furada.

Nome primário simples Nome primário complexo


Guaraiúba Cavalo-marinho
Badejo Peixe-pena
Garoupa Olho-de-vidro
Saramonete Peixe-rato
Sambuio
Cavala
Carrapato
Sulapeba
Jaguaraçá
Pocomã
Frade
Cacuá
Quadro 9. Agrupamentos genéricos monotípicos e politípicos identificados na Pedra
Furada.

Agrupamento Genérico Monotípico Agrupamento Genérico Politípico


Guaraiúba Budião
Cascuda Parú
Peixe-rato Arraia
Badejo Taoca
Saramonete Sardinha
Tainha Caramuru
Sambuio Barbeiro
Cambuba Xinxarro
Cavala Baiacú
Carrapato Vermelho
Dunda Barbeiro
Sulapeba
Jaguaraçá
Pocomã
Frade
Aracanguira
Cacuá
Agulhinha
Caranha
Peixe-rato
Carapicum
Cavalinho-do-mar

86
Todos os agrupamentos genéricos politípicos emergiram através da utilização do
kit fotográfico, e quanto aos nomes secundários a que estes se referem, alguns estiveram
presentes e outros não, mas foram suficientemente citados para haver a diferenciação
entre os específicos (Tab. 8). Dos nove genéricos politípicos encontrados, seis
(“budião”, “parú”, “taoca”, “vermelho”, “xinxarro” e “sardinha”), tiveram citados pela
maioria apenas dois específicos. Nos outros três, dois tiveram quatro específicos (o
“caramuru” e o “baiacú”) e um teve cinco diferentes específicos (a “arraia”). Todas as
citações de específicos configuraram-se memes bem sucedidos, sendo citados pela
maioria dos entrevistados. O agrupamento genérico “vermelho” teve outras nomeações
de específicos, citadas por apenas um pescador.

Tabela 8. Nomes secundários dos peixes de categorias superordenadas da comunidade


da Pedra Furada.

Categoria Superordenada Nome Secundário


Budião-azul
Budião
Budião-batata
Parú-cinzento
Parú
Parú-preto
Taoca-de-chifre
Taoca
Taoca-sem-chifre
Vermelho verdadeiro
Vermelho
Vermelho-ariacó
Arraia-branca
Arraia-pintada
Arraia Arraia-cabrinha
Arraia-morcego
Arraia-jamanta
Xinxarro-roliço
Xinxarro
Xinxarro-do-olhão
Baiacú-espinho
Baiacú-feiticeiro
Baiacú
Baiacú-guima
Baiacú-de-mangue
Sardinha-facão
Sardinha
Sardinha-do-reino
Caramuru-verde
Caramuru-cachorro
Caramuru
Caramuru-mulato
Caramuru-pintado

87
Modelos de nomeação através de binômios são amplamente encontrados em
diferentes culturas (e.g.: o povo Fore: Diamond (1966); entre os Aguaruna e Huambisa
(BERLIN & BERLIN, 1983); entre os população Tzeltal (HUNN, 1982), com os
Kayapó Gorotire (POSEY, 1984), e também dentre pescadores brasileiros (MARQUES,
1991; FERNANDES-PINTO, 2001; MOURÃO, 2002; BEGOSSI et al, 2008; SOUTO
& MARTINS, 2009).
Influências da urbanização estão evidenciadas na nomeação africana (Ex.:
cambuba, cacuá,) e indígena (Ex.: caramuru) das espécies folk, em hibridismos com a
informação científica, e contrariando o que Begossi et al. (2008) explicitam:

“Como as sociedades se movem em direção a urbanização e


organizações de grande escala, eles perdem o contato íntimo com a
natureza, e o número de designações forma-de-vida tende a
aumentar. Culturas que dependem diretamente dos recursos naturais,
em contraste, tendem a ter um conhecimento detalhado do
organismo e, como resultado enfatizar termos genéricos/
específicos”.

Begossi et al., 2008.

A comunidade urbana em questão apresentou uma variedade maior de genéricos


e específicos do que “formas-de-vida”, colocando-a em um patamar semelhante a
populações rurais que mantêm contato mais dependente da natureza.

5.3.2 CLASSIFICAÇÃO

- HIERÁRQUICA – BERLINIANA

As estratificações que emergiram em cinco ranks foram: parente, família, primo,


irmão e espécie/tipo, que apresentam uma relação hierárquica decrescente. Tais grupos

88
relacionam-se com os estabelecidos por Berlin (1992) e pode se fazer uma comparação
com a taxonomia lineana, estabelecendo relações entre os sistemas de classificação
(Quadro 10). Existe um sistema comparativo padronizado (Fig. 30) e não
necessariamente todos os modelos de diferentes culturas são 100% compatíveis entre si.

Quadro 10. Classificação folk encontrada entre os pescadores da Pedra Furada


comparada à berliniana e à lineana.
Classificação folk Equivalente berliniano Equivalente lineano
Parente Forma-de-vida Ordem/Classe
Família Intermediário ou Família
Primo Genérico Gênero
Irmão Genérico Gênero/Espécie
Espécie/Tipo Específico Espécie

A forma mais inclusiva de classificação, “peixes”, não esteve explícita na


maioria das entrevistas, nem teve uma nomenclatura específica, tornando-se uma
categoria encoberta (BERLIN, 1992) relacionando-se com algo entre o que Berlin
(1992) chama de reino e forma-de-vida. Por sua vez, forma-de-vida equivaleria aos
grupos lineanos ordem ou classe, já que parente foi usado diversas vezes para distinguir
peixes cartilaginosos de ósseos assim como para ordens biológicas mais específicas.
Família é um grupo incluído em parente, e assim como primo, estaria de forma
fluida entre o que Berlin (1992) chama de Intermediário e Genérico, relacionando-se
com famílias e também gêneros biológicos (ex.: a família dos vermelhos – alguns
possuem o mesmo gênero biológico, outros enquadram-se na família Lutjanidae).
Genéricos politípicos seriam os irmãos (ex.: “taoca-de-chifre”, “taoca-sem-chifre”),
representados por gêneros e espécies biológicas que também incluem o grupo folk
espécie/tipo e na classificação berliniana seriam o específico.
O sistema de classificação berliniano é geralmente apresentado através dos
diagramas de Venn, que consiste em um sistema de círculos algumas vezes contidos uns
nos outros relacionando as etnoespécies e as espécies biológicas. Pode haver a
correspondência de 1:1, ou não, o que não invalida o conhecimento folk estudado, até
porque esta é apenas mais uma forma de classificar.

89
Figura 30. Diagrama (MOURÃO & MONTENEGRO, 2006) exibindo a relação de um sistema de táxons com um sistema hierárquico de
categorias das classificações lineana e etnobiológica.
90
O primeiro diagrama criado (Fig. 31) corresponde à classificação das três
arraias presentes no kit, “arraia pintada” (Aetobatus narinari), “arraia cabrinha”
(Rhinoptera bonasus) e a “arraia jamanta” (Manta birostris). Consideradas diferentes
pelos entrevistados, foram agrupadas em nível de parente, e segundo os pescadores
“todas as arraias são parentes”, configurando-se um meme bem sucedido, presente em
todas as entrevistas. Neste caso, houve uma correspondência 1:1 com a taxonomia
biológica.
O segundo diagrama (Fig. 32), agrupando os dois “budiões”segue o mesmo
padrão do primeiro, com a ressalva de retratar o nível irmão, configurando-o como um
agrupamento genérico politípico, com dois específicos.
Algumas classificações ultrapassaram as imagens do kit trabalhado, com a
inclusão de espécies que continham apenas a nomenclatura folk, sem as identificações
biológicas. Um dos casos foi o “caramuru” (Muraenidae), que através da fotografia do
Gymnothorax funebris (“caramuru-verde”), fez outras etnoespécies aparecerem: o
“caramuru-cachorro”, o “caramuru-mulato” e o “caramuru-pintado” (Fig. 33) presentes
na maioria das entrevistas. Outros “caramurus” emergiram, mas se configuraram memes
mal sucedidos; foi o caso do “caramuru-pinima”, da “mutuca”, da “manteiga” e do
“amarelo”. A categoria que eles foram incluídos (“é tudo a mesma espécie”) apresenta
divergência com a classificação biológica, apesar de não terem sido identificados, são
de espécies lineanas distintas.
Para relacionar os três diagramas, foi gerado um quarto (Fig. 34), estabelecendo
as relações entre o grupo dos “budiões” e dos “caramurus”, que são alguns exemplos de
“peixes de pedra”, dissociado das “arraias”. Os três grupos, porém incluem-se no
agrupamento “peixes”.

91
Figura 31. Diagramação de Venn com os específicos de “arraia” correspondendo com as
espécies biológicas; categoria parente.

Figura 32. Diagramação de Venn com os específicos de “budião” correspondendo com as


espécies biológicas; categoria irmão.

92
Figura 33. Diagramação de Venn com os específicos do “caramuru”; categoria espécie.

Figura 34. Diagramação de Venn com o agrupamento de “caramuru” e “budião” formando “peixe de
pedra” e “arraia”, formando “peixe”.
93
5.3.3 CLASSIFICAÇÃO ALTERNATIVA

Os pescadores formam muitos grupos de peixes ordenando as espécies como


parentes e primos (BEGOSSI et al., 2008) e utilizam não apenas critérios morfológicos,
mas também ecológicos, comportamentais e de hábitat para gerar tal sistema
classificatório. Além da classificação hierárquica, na Pedra Furada foram encontradas
outras formas de arranjo entre as espécies dispostas no kit. Os diferentes padrões de
classificação seguiram critérios morfológicos, ontogenéticos, econômicos, ecológicos,
e/ou etológicos. Segundo Mourão (2000), modelos de importância cultural e econômica
não devem ser utilizados para incluir agrupamentos em níveis hierárquicos. Portanto
estes foram analisados através do que Marques (1991) chama de modelos alternativos.

- SEQUENCIAL

A classificação seqüencial existe para categorizar fases ontogenéticas de


indivíduos da mesma espécie, recebendo nomes distintos de acordo com o tamanho ou a
morfologia dos indivíduos, seguindo uma ordenação seriada (FERNANDES-PINTO,
2001) e os níveis de seqüenciamento podendo variar, inclusive, de dois a sete
(MARQUES, 1991).
O modelo foi claramente percebido no agrupamento da “tainha” (Mugil sp.), que
inclui a “saúna” e a “curimã”. Os pescadores, em sua maioria (n=15), relatam o meme
de que a “saúna” seria a fase juvenil da “tainha” (Fig. 35), representando o mesmo
indivíduo. Já a “curimã”, seria um parente da “tainha”, porém maior e mais robusto
(Fig. 36).
Dos 17 entrevistados, porém, dois apresentaram opinião divergente quanto à
classificação da “tainha”, afirmando que o nome não reflete diferencial ontogenético,
caracterizando diferentes espécies:

“A Tainha é um peixe que anda de cardume. Essa mesma se chama


olho-de-fogo. A saúna, a prima dela não tem o olho assim; a sauna é
todo preto. O povo diz que a sauna quando crescer vai ter o olho-de-
fogo, mas não é, é a prima próxima da Tainha é a Saúna. Tem 3, a
94
curimã que cresce mais do que elas. A curimã no início que é a
Tainha, é aquela confusão que eles fazem, mas são tudo prima, é o
cruzamento e tal tal de seres que gera essa misticês, que vira
mestiço, então todos são parentes próximos, a curimã, a tainha e a
sauna, todas são parentes próximos.”
Pescador V.

Apesar da divergência de opiniões, em outros estudos etnobiológicos foi


encontrado o modelo seqüencial e a “tainha” (Mugil) emergiu em relatos de pescadores
(MARQUES, 1991; FERNANDES-PINTO, 2001; ALENCAR 2011).

SAÚNA TAINHA

Figura 35. Exemplo da classificação seqüencial da “tainha” registrado entre os


pescadores da Pedra Furada.

Curimã

Tainha

Saúna

Figura 36. Classificação da “tainha” (Mugil) pelos pescadores da Pedra Furada de


acordo com a sua fase ontogenética. A “saúna” seria a fase jovem e a “tainha” adulta. A
“curimã” apresentaria parentesco com ambas, mas sem representar nenhuma fase
ontogenética.

95
- PADRÃO DE SOBREPOSIÇÃO HIERÁRQUICO-ECOLÓGICO E ETOLÓGICO

Os pescadores da Pedra Furada também relacionam critérios ecológicos na


classificação dos peixes, sobretudo relacionados ao hábitat. Alguns pescadores,
inclusive, apresentaram este tipo de classificação anteriormente à berliniana, e de forma
até mesmo complementar. Segundo Marques (1995) a classificação berliniana associada
às classificações alternativas mantêm um esquema cognitivo hierárquico que pode
somar-se ou manter-se em paralelo.
Algumas categorias que emergiram foram: “peixe de loca”, “peixe de pedra”
(ecológicas) e “peixe que anda junto” (etológica), havendo sobreposições em alguns
casos. “Peixe de loca” (Fig. 37) refere-se aos indivíduos que se escondem em orifícios
contidos em áreas pedregosas, e os peixes mais citados foram: o “caramuru” (G.
funebris) e o “pocomã” (Batrachoididae). “Peixe de pedra” (Figs. 38 e 39) foi uma
categoria que agrupou os indivíduos que preferem habitar áreas pedregosas, mas sem
esconder-se em “locas”. Neste caso, houve divergências, mas a maioria dos pescadores
incluiu neste grupo o “budião-azul” (Scarus coeruleus), o “budião-batata” (Scarus sp.),
o “parú-cinzento” (Pomacantus arcuatus), o “vermelho ariacó” (Lutjanus synagris), o
“barbeiro-preto” (Acanthurus chirurgus) e o “jaguaraçá” (Holocentrus ascensionis).
“Peixe que anda junto” (Fig. 40) agrupou em 100% das entrevistas o “carrapato”
(Haemulon steindachneri), e a “cambuba” (Haemulon sp.).
Outra forma interessante de classificar os peixes foi através do seu potencial
econômico (Quadro 4), subdividindo-os em três níveis: peixes de 1ª, 2ª e 3ª. Alguns
peixes foram excluídos deste tipo de classificação, como por exemplo, o “cavalinho-do-
mar” (Hippocampus reidi) e outros, que foram citados por um número muito baixo de
pescadores, não foram levados em consideração. Tal sistema é muito utilizado na
comunidade para a comercialização e também na identificação do potencial de mercado
dos peixes. Alguns pescadores complementaram as informações dizendo que há
diferença na preferência dos tipos de peixes em outros bairros da cidade, por exemplo o
“pintado” que tem uma aceitação elevada na Pedra Furada sendo considerado de 2ª,
porém em outros lugares seria de 3ª em diante.

96
Figura 37. Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de loca”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada.

Figura 38. Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de Pedra”,


apresentada pelos pescadores da Pedra Furada.
97
Figura 39. Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de Pedra”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada.

Figura 40. Classificação hierárquico-etológica com a categoria “Peixe que anda junto”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada.

98
Quadro 11. Classificação Econômica dos peixes encontrados na comunidade da Pedra
Furada.

Peixe Categoria Econômica


Guaraiúba 1a
Badejo 1a
Cavala 1a
Vermelho 1a
Aracanguira 1a
Budião-azul 2a
Pintado 2a
Saramonete 2a
Tainha 2a
Sambuio 2a
Cambuba 2a
Carrapato 2a
Budião-batata 2a
Arraia Cabrinha 2a
Agulhinha 2a
Xinxarro-roliço 2a
Sardinha 3a
Taoca 3a
Dunda 3a
Sulapeba 3a
Sardinha facão 3a
Caramuru Verde 3a
Jaguaraçá 3a

99
CONCLUSÃO

100
CONCLUSÃO

Os pescadores da Pedra Furada são detentores de acurado conhecimento sobre os


peixes, principalmente no que tange à ecologia trófica, taxonomia e etologia dos
mesmos, contemplando assim, o objetivo geral desta pesquisa.
Os modelos classificatórios encontrados estão organizados principalmente em
modelos hierárquicos berlinianos (permitindo, inclusive comparações lineanas), mas
também apresentaram agrupamentos alternativos em paralelo, marcados principalmente
por uma abordagem ecológica. As classificações alternativas também emergiram de
forma a criar uma discussão a respeito da influência mercadológica na venda e consumo
dos peixes.
Os agrupamentos genéricos foram superiores às outras formas de nomeação,
contrariando o esperado pela literatura, que por se tratar de uma comunidade urbana
teria “perdido” seu íntimo contato com a natureza, exibindo exatamente o contrário.
A nomenclatura utilizada pelos pescadores entrevistados abarcou a presença de
sinonímias marcada por razões distintas. Critérios morfológicos e ecológicos se
destacaram na nomeação dos peixes, principalmente os relacionados com a morfologia
externa e hábitat.
Conhecimento sobre a ecologia dos peixes também se mostrou evidente e
detalhado, especialmente sobre hábitat e ecologia trófica, com destaque para o último.
Houve grande correspondência entre o modelo trófico percebido pelos pescadores e o
encontrado na literatura cientifica.
Há a percepção na comunidade de fluxo energético, através da descrição de
cadeias e redes tróficas, apontando, inclusive, peixes que são predadores de topo. O ser
humano foi evidenciado em algumas vezes como participante destes fluxos energéticos.
Sobre as categorias etológicas encontradas, estas foram relacionadas com
fenômenos comportamentais de produção de sons, níveis de agressividade,
comportamentos sociais, repouso e reprodução e se mostraram relevantes na
compreensão da dinâmica de vida dos peixes, facilitando assim sua captura.
Foram identificados dois tabus alimentares reconhecidos pela população local,
regulando alguns comportamentos e o consumo dos recursos pesqueiros.

101
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110
APÊNDICE 1

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ZOOLOGIA
Pesquisador: Marina Lordelo Carneiro
Orientador: Prof. Dr. José Geraldo Wanderley Marques

PESQUISA: Etnoictiologia dos pescadores urbanos da Pedra Furada, Salvador,


Bahia: aspectos taxonômicos, ecológicos e etológicos.

ROTEIRO PRELIMINAR DE ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA

N° _______________ Data________________
Início______________h Término______________h

Dados de Identificação:
Sexo: ____________________
Idade: ____________________
Profissão: _________________
Procedência: _________________________
Tempo em que vive na comunidade: ______________________
Tempo que desenvolve atividade pesqueira: __________________
Perguntas norteadoras:
1) Como se chama esse peixe?
2) Ele anda junto com outros peixes?
3) Esse peixe é parente ou família de outros peixes?
4) O que esse peixe costuma comer?
5) Onde esse peixe se alimenta?
6) Quais são os animais que comem esse peixe?
7) O que serve de isca para esse peixe?
8) Onde esse peixe vive?
9) Onde esse peixe é mais encontrado?
10) Desse peixe existe mais de uma marca (ou mais de um tipo)?
11) O que esse peixe faz para se reproduz?
12) Esse peixe vem de outro lugar?
13) Ele faz algum som?
111
APÊNDICE 2

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS BIOLÓGICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ZOOLOGIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Esta pesquisa pretende saber o que os pescadores desta comunidade conhecem sobre os
peixes capturados em suas atividades. Para isto, eu Marina Lordelo e o Prof. José
Geraldo Marques, responsável pelo projeto de pesquisa, gostaríamos de convidá-lo a
participar dessa pesquisa, estando o senhor(a) livre e à vontade para aceitar ou não. Nós
estudamos a pesca artesanal, como os peixes são chamados, o que serve de alimento
para os peixes e onde se alimentam, quais peixes são parentes, se existem peixes que
andam juntos e por quê. A pesquisa será realizada pela Universidade Estadual de Feira
de Santana, e dará origem ao trabalho Etnoictiologia dos pescadores urbanos da Ribeira,
Salvador, Bahia: aspectos taxonômicos, ecológicos e etológicos. Para isto, precisarei,
durante um ano, a partir do mês de julho de 2010 até junho de 2011, vir à comunidade
realizar o nosso “trabalho de campo”, que são as conversas, fotos e acompanhamento
das atividades de vocês. Nas conversas realizadas, nós não vamos anotar e nem divulgar
o seu nome, nem vamos fazer perguntas sobre a intimidade da sua vida. Para as
conversas, que chamamos de entrevistas, vamos seguir um questionário e vamos pedir
para gravar o que estivermos conversando, para que a gente não esqueça na hora de
escrever o trabalho. Poderemos pedir também para tirar fotos, mas antes de qualquer
coisa, deixamos claro que o senhor(a) pode ou não autorizar. Caso o senhor(a) não se
sinta à vontade pode parar a entrevista, pode ficar sem responder qualquer pergunta e se
quiser, continuar em outro momento. Se em algum dia não quiser mais que suas
respostas sejam divulgadas, o (a) senhor(a) pode pedir para que elas sejam retiradas do
trabalho, que isso não vai lhe causar nenhum problema. Nós nos comprometemos a
trazer os resultados da pesquisa para a comunidade e só usar os resultados em trabalhos
científicos e para comunicar a outros pesquisadores. O risco que o senhor(a) pode correr
ao participar seria perder tempo de trabalho ou outras atividades, mas faremos o
possível para que isso não aconteça.
Se o(a) senhor(a) precisar tirar alguma dúvida sobre a pesquisa ou se simplesmente
quiser que suas respostas sejam retiradas dela, você só vai precisar ligar para o
Laboratório de Etnobiologia, para o número (75) 3224-8131 ou escrever para o
endereço do Laboratório de Etnobiologia (LETNO) que fica na Universidade Estadual
de Feira de Santana - BA, na Avenida Transnordestina, bairro Novo Horizonte, Cep:
44.036.900.
Caso o(a) senhor(a) tenha se sentido esclarecido(a) e tenha interesse em participar desta
pesquisa, por favor assine este termo de consentimento; uma cópia ficará com o(a)
senhor(a) e outra ficará comigo. Muito Obrigada.

Salvador, ______ / ______ / 2010

____________________________________ ________________________________
Prof. José Geraldo Wanderley Marques Entrevistado
-Pesquisador Responsável-
_______________________________
Marina Lordelo Carneiro
-Entrevistadora-
112
APÊNDICE 3

O ‘quase’ dia de pescaria


Ensaio etnográfico da pesca urbana em Salvador

Seu Vanelson era um pescador polêmico. Tinha os que não gostavam por achá-
lo rude, grosseiro. Tinha os que admiravam, por achá-lo conhecedor do mar, dos peixes.
Ele tinha a pele negra cansada do sol, da maresia. Tinha os braços resistentes ao
castigo dos remos e o porte de um homem que desistiu de prezar pela aparência e
precisa de um peso na cintura toda vez que resolve mergulhar na baía em busca de seu
munzuá. Não posso deixar de dizer que estava hesitante no dia que o entrevistei. Com
mais três amigos e algumas garrafas de cerveja na mesa, não imaginava que aquele
senhor poderia ter um conhecimento tão vasto da ecologia dos peixes. Enfim, eu lhe dei
um mau julgamento, ele me deu uma conversa promissora.
Hoje fui para a comunidade com as mesmas perspectivas de sempre: talvez
encontrar alguém para entrevistar; talvez pegar de rabo de ouvido uma estória antiga;
talvez ouvir de Marujo uma coisa nova e incrível sobre arraias; mas tinha uma certeza:
olhar o mar com a sensação de estar em minha própria casa. Logo me deparei com seu
Vanelson e seu Vivaldo tratando alguns peixes e depois de alguma conversa, marquei
com ele de ir junto puxar o munzuá e colocar as iscas na grozeira. Em quase um ano de
pesquisa, seria a minha primeira vez naquele mar.
O munzuá é uma armadilha interessante. Uma caixa vazada de ferro, forrada
com uma tela de plástico, com um cone no meio que tem uma abertura maior do lado de
fora que do lado de dentro. O peixe curioso e faminto que entra atrás da isca
(geralmente de sardinha fresca) não consegue mais sair. Ele tinha me mostrado no dia
anterior como fazia para montar aquela arapuca, comprando no ferro velho e pagando
um alguém para soldar as arestas. A tela de plástico vinha depois, forrando aquela quase
obra de arte moderna.
Enfim o mar. A maré vazando e as rochas ficando emersas era sinal de que
estava na hora de aprumar a canoa. Eu, convidada, subi e me sentei na proa. Não tinha
motor, só dois remos antigos e gastos amarrados por uma corda que tinha enfrentado
tanto sol que descoloriu. Uma caixa verde de frutas cheia de cordões e anzóis era a

113
grozeira, um isopor antigo, uma espingarda (que para mim parecia um arpão envolvido
por um estilingue), dois bicheiros (um cabo de ferro com um anzol na ponta), pés de
pato, máscara de mergulho, água mineral e um educado pacote de biscoitos de
chocolate. Essa foi a casa mais humilde e encantadora que já fui convidada a entrar. Ele,
um excelente anfitrião, remou até nos afastarmos da costa.
No caminho, me contou a história sofrida do pai que por não querer desistir da
pescaria, se complicou com o pós-operatório de cálculos renais. Ao mesmo tempo o
fardo era sua grande referência de pescaria. O desabafo mais difícil veio no descanso da
remada “Meu pai não queria que eu fosse pescador, ele dizia que não existia pescador
rico; minha mãe, coitada, queria que eu fosse doutor”.
Ao longe eu vi a comunidade. Dava para ver do cais da Pedra Furada até a ponta
do Humaitá; iluminados pelo sol forte e refletidos na água transparente do mar. Naquele
segundo eu senti que estava exatamente no ponto do mundo onde deveria estar.
Ele rapidamente localizou o munzuá de cima da canoa. Eu não vi absolutamente
nada. Lançou a âncora, colocou os pés de pato, a máscara de mergulho e, de costas, se
lançou contra a água. O minuto debaixo d’água foi uma eternidade para a minha
ansiedade. Subiu, me olhou e disse o que eu não queria escutar: tinham dois caramurus
no munzuá. Dois. Eu já tinha ouvido falar mal do caramuru em absolutamente todas as
minhas entrevistas, anotava tudo empolgadíssima, estimulava as estórias de medo e
lutas com o peixe. Eu não queria acreditar que teria que conviver com dois deles na
mesma canoa que eu. No instante que ele subiu com a armadilha, a canoa encolheu, o
coração acelerou, as mãos gelaram. “Tira a foto” ele disse. “Foto?” eu pensei. Foto.
“Sim, claro, vou tirar”. Obviamente que as fotografias não ficaram boas, o caramuru
verde (e maior) e o mulato (menor e machucado pelo outro) não fizeram a menor
questão de fazer pose para a câmera medrosa.
Rumo ao isopor, acompanhavam as poucas quatingas e carrapatos, que deveriam
estar sentindo exatamente a mesma coisa que eu. Ele apanhou um pouco de água e
despejou no isopor sem pestanejar “Eles ficam mais calmos”. Depois, colocou novas
sardinhas no munzuá e o mandou de volta para o mar.
Com os convidados inadequados dentro do barco, seu Vanelson, muito solícito e
sensível, desistiu de colocar as grozeiras e resolveu continuar a mergulhar para me
mostrar ‘novidades’ marinhas. Me levou um ouriço satélite, um cacuá, uma taoca, uma
cioba, um budião-azul, um peixe gato. Para alimentar a minha tensão, me levou dois
114
niquins, um de areia e um de pedra. Tudo isso em mergulhos empolgados e imbuídos
em me mostrar algo que eu pudesse fotografar.
Depois de inúmeros mergulhos e fotografias, uma tentativa de ataque de
caramuru aconteceu. Ele saiu do isopor, rastejou por trás de seu Vanelson e num tom de
maldade abriu a boca para a mordida. Eu, alerta, avise-o a tempo evitando o ‘bote’.
Ficamos de pé na canoa e conseguimos nos livrar do perigo com o bicheiro – que
passou a ser um companheiro meu até a chegada em terra.
Depois de quase duas horas no mar, fomos voltando devagar. Seu Vanelson
remava e descansava. Eu apreciava a brisa e conversava sobre a pescaria do dia
seguinte. Chegamos em terra e agradeci a ele a experiência, desculpei-me por qualquer
coisa e segui pensativa.
Para mim, um momento. Para ele, toda a vida.

Marina Lordelo, 07 de Abril de 2011.

115

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