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FEIRA DE SANTANA, BA
FEVEREIRO DE 2012
MARINA LORDELO CARNEIRO
MESTRE EM ZOOLOGIA
FEIRA DE SANTANA, BA
FEVEREIRO DE 2012
FOLHA DE APROVAÇÃO
Vinícius de Moraes
Depois de dois anos de trabalho é difícil lembrar tod@s que passam pela nossa
vida, os que contribuem com uma palavra de conforto (e no momento certo faz toda a
diferença). Esse espaço de agradecimentos na dissertação é tão oportuno e especial que
a pessoa que o inventou deveria sempre receber os créditos.
Eu vou começar pela comunidade da Pedra Furada, porque sem a receptividade,
carinho, paciência de muitos dali, seria impossível dedicar tanto tempo e carinho a esse
trabalho, especialmente a Seu Gegê, Marujo, Vanelson, Paulo, Hashide, Haroldinho,
Seu Gildo e todos os pescadores que cederam um pouquinho dos seus saberes para criar
esse trabalho em conjunto. Ir à Cidade Baixa por vários dias e contemplar o mar da Baía
de Todos os Santos sem dúvida foi uma experiência incrível.
Impossível seria também este trabalho sem as inspirações, as cobranças, a
disponibilidade constante e o carinho do meu (queridíssimo!) orientador José Geraldo
Marques que há quase seis anos me deu a chance de desfrutar das suas pesquisas; um
pai acadêmico que desde a iniciação científica trilha comigo o percurso profissional.
Antes de escolher os peixes, eu o escolhi, ele aceitou e sou infinitamente grata por isso.
Muitíssimo obrigada.
As manhãs e tardes no LETNO, acompanhadas do carinho de Tati, dos
constantes salvamentos de Vivi e das piadas e contribuições enriquecedoras de Franzé
colaboraram como apoio logístico e de purificação (da alma!) em cada trecho desta
dissertação.
Aos membros da banca, muitíssimo obrigada por participar deste momento e
ceder um tantinho de tempo e conhecimento para enriquecer este trabalho.
Ao professor Paulo Roberto Duarte Lopes, muito obrigada pela identificação dos
peixes e ajuda na análise do conteúdo estomacal. E a Simony, obrigada pelo mapa
maravilhoso!
Aos amigos queridos do extrabem (Paulinha, Lala, Leo, Alan, Ina, Thico e
Thai), obrigada pelos dias de diversão, discussões filosóficas, risadas incansáveis e
amor incondicional.
Aos amigos “sítricos”, agradeço imensamente pelo apoio constante,
especialmente a Igor, Tatinha, Nana e Iuri pela viagem maravilhosa e revigorante! A
Mari e Bozinho pela presença nos finais de semana de séries, filmes, risadas e cochilos,
não é, prima?
Amigas lindas de infância, Ana e Miloca! Obrigada por aturar a dissertação que
ocupou um tempo gigantesco na minha vida; sem a compreensão de vocês seria muito
mais complicado de terminar...
Minha família: minha mãe, meu irmão e meu pai. Conseguimos vencer juntos
fases difíceis, e não desistiremos jamais. A sensação de fraqueza só nos fortalece.
Meu lindinho, um engenheiro que aprendeu um pouco de etnoictiologia, de
peixes, de zoologia, leu cada parágrafo, viu cada figura, tabela e quadros desta
dissertação e me ensinou tanto sobre paciência, calma, superação, dedicação. Obrigada,
meu bem! Viver os dois primeiros anos de casamento imersos (ambos!) neste trabalho
só trouxe amadurecimento e felicidade a nossas vidas.
Por fim, vou parafrasear os agradecimentos da tese de Franzé e reconhecer as
contribuições que eles tiveram nestes dois anos: Beatles (especialmente Paul que tive a
honra de ouvir cantar pessoalmente duas vezes!), Radiohead, Amy Winehouse, Belle &
Sebastian, Cranberries, Marcelo Camelo, Amarante (e Little Joy), Keane, Novos
Baianos, Chico Buarque, Roberta Sá, Strokes, Tiê, Vânia Abreu, Móveis Coloniais de
Acajú e a trilha quase diária de Hair. Alguns poucos que me ajudaram a ter um
momento só meu e de mais ninguém. E que sempre serão eternos.
Obrigada a tod@s.
RESUMO
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
LISTA DE FIGURAS...................................................................................................i
LISTA DE TABELAS.................................................................................................iv
LISTA DE QUADROS.................................................................................................V
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................15
2. REFERENCIAL TEÓRICO........................................................................................18
3. OBJETIVOS............................................................................................................23
4. METODOLOGIA.....................................................................................................25
4.1 ÁREA DE ESTUDO...........................................................................................26
4.2 COLETA DE DADOS.........................................................................................31
4.3 ANÁLISE DE DADOS........................................................................................32
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO...................................................................................35
5.1 ETNOTETOLOGIA............................................................................................41
5.2 ETNOECOLOGIA TRÓFICA................................................................................60
5.3 ETNOTAXONOMIA...........................................................................................78
6. CONCLUSÃO........................................................................................................100
7. REFERÊNCIAS......................................................................................................102
8. APÊNDICES......................................................................................................... 111
LISTA DE FIGURAS
ii
Figura 32: Diagramação de Venn com os específicos de “budião” correspondendo com
as espécies biológicas; categoria irmão...........................................................................92
Figura 33: Diagramação de Venn com os específicos do “caramuru”; categoria
espécie.............................................................................................................................93
Figura 34: Diagramação de Venn com o agrupamento de “caramuru” e “budião”
formando “peixe de pedra” e “arraia”, formando “peixe”...............................................93
Figura 35: Exemplo da classificação seqüencial da “tainha” registrado entre os
pescadores da Pedra Furada.............................................................................................95
Figura 36: Classificação da “tainha” (Mugil) pelos pescadores da Pedra Furada de
acordo com a sua fase ontogenética. A “saúna” seria a fase jovem e a “tainha” adulta. A
“curimã” apresentaria parentesco com ambas, mas sem representar nenhuma fase
ontogenética.....................................................................................................................95
Figura 37: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de loca”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................97
Figura 38: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de Pedra”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................97
Figura 39: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de Pedra”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................98
Figura 40: Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe que anda junto”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada, Salvador, BA........................................98
iii
LISTA DE TABELAS
iv
LISTA DE QUADROS
v
INTRODUÇÃO
15
1. INTRODUÇÃO
17
REFERENCIAL TEÓRICO
18
2. REFERENCIAL TEÓRICO
Etnoictiologia, o estudo (logia) dos peixes (ictio) à luz das etnociências (etno), é
reconhecida por praticantes como uma área da etnobiologia capaz de investigar e tentar
compreender os conhecimentos dos pescadores sobre os peixes.
As inter-relações e interações entre o ser humano e os peixes constituem um
fenômeno de natureza extremamente complexa, o qual inclui e ultrapassa o
simples/complexo ato de pescar, podendo se configurar como uma interação presa-
predador, ampliando-se, porém, através de implicações lúdicas, religiosas e simbólicas,
dentre outras (MARQUES 1995).
Os estudos pioneiros em etnoictiologia foram realizados por Morril (1967) nas
Ilhas Virgens com os ‘Cha-Cha’ e por Anderson (1967) em Hong Kong. A tese de
doutorado de Anderson (1967) abordou a classificação de peixes por pescadores
artesanais, tornando-se um referencial básico e permitindo questionamentos para
estudos posteriores. Desde então, inicialmente através de Maranhão (1975),
posteriormente Begossi & Garavello (1990) e também Marques (1991) a etnoictiologia
foi formalmente introduzida no Brasil e vem sendo ampliada e difundida.
Os estudos etnoictiológicos ocorrem sob diferentes perspectivas, dentre elas a
ecológica (etnoecologia), etológica (etnoetologia) e taxonômica (etnotaxonomia). A
20
etnoecologia trófica se destaca apresentando resultados complexos, envolvendo
inclusive teorias de forrageamento ótimo (SOSIS 2002; BEGOSSI et al. 2009).
A etnoecologia vem sendo a área de estudo com maior projeção (ANDERSON,
2011). Campo muito desenvolvido no México, através da escola de Victor Toledo, com
sua abordagem k-c-p (kosmos-corpus-praxis), se propõe a compreender cabalmente as
relações que se estabelecem entre a interpretação e leitura e o uso ou manejo da
natureza e seus processos (TOLEDO & BARRERA-BASSOLS, 2010). Marques (2001)
amplia as possibilidades e com seu conceito de etnoecologia abrangente inclui a
dimensão Pathos (emoção) à sua perspectiva:
22
OBJETIVOS
23
3. OBJETIVOS
- Objetivo Geral:
- Objetivos Específicos:
24
METODOLOGIA
25
4. METODOLOGIA
A C
31
etnoetologia da ictiofauna. As entrevistas incluíram as seguintes perguntas norteadoras
(respeitando-se a nomenclatura local): a) qual o nome desse peixe? b) de quem ele é
família ou parente? c) anda junto de outro peixe? d) onde vive esse peixe? e) o que esse
peixe come? f) quem come esse peixe? g) qual a melhor isca para capturar esse peixe?
h) onde esse peixe come? i) quando ele ocorre? j) ele faz algum som? k) como se
reproduz? l) vem de outro lugar?
O conhecimento etnoecológico dos pescadores, incluindo heterogeneidade
espacial e disponibilidade dos recursos pesqueiros foi obtido por meio das entrevistas
semi-estruturadas, também realizadas individualmente ou de acordo com a técnica de
grupo focal adaptada para formação espontânea de grupos de pescadores em trabalhos
rotineiros relacionados à pesca submetendo a estes, perguntas que puderam vir a
apresentar discrepância nas respostas (MOURA & MARQUES 2007) tomando-se por base
o calendário climático-estacional reconhecido pelos mesmos e enfocando-se o período
de ocorrência, abundância e maior atividade das espécies de peixes capturadas. Todas as
entrevistas foram registradas em gravador digital e posteriormente transcritas.
A consistência e validade dos dados fornecidos pelos pescadores foram testadas
por triangulação, recorrendo-se inclusive, as técnicas de controle sincrônico e
diacrônico (MARQUES 1991). Na primeira, perguntas foram feitas a pessoas distintas em
tempos muito próximos, na segunda, a mesma pergunta foi feita a mesma pessoa em
tempos distanciados.
Para as observações diretas em campo e reconhecimento das áreas de exploração
dos recursos pesqueiros, alguns pescadores foram acompanhados, sempre que possível,
em suas atividades pesqueiras, utilizando-se a técnica de “turnês guiadas” (SPRADLEY &
MCCURDY 1972), incluindo registros fotográficos. Uma turnê, inclusive, resultou em
um ensaio etnográfico (Apêndice 3).
Os peixes foram obtidos no mercado de peixe local por meio de compra e/ou em
outros possíveis locais por doação espontânea dos pescadores. Estes, sempre que
possível, foram fixados em solução de formaldeído a 10%, (ZAVALA-CAMIN 1996).
1. Memes bem sucedidos (mais adaptativo) - memes que foram identificados de forma
semelhante, repetidamente em mais de 50% das entrevistas (n≥9). Ex.: potencial
medicinal do cavalo-marinho; “Mulher parida não pode comer Frade”
2. Memes com diferença de freqüência – memes que foram identificados de forma
contraditória repetidamente em mais de 50% das entrevistas (n≥9). Ex.: “comer baiacú
faz mal”/ “comer baiacú não faz mal”.
3. Memes mal sucedidos (sem sucesso aparente ou de sucesso duvidoso) – memes que
foram identificados de forma semelhante em menos de 50% das entrevistas (n≤8). Ex.:
“arraia menstrua”; “arraia ejecula”
33
Esse critério foi utilizado para elaborar, inclusive, quadros de cognição
comparada (MARQUES 1995), no sentido de verificar similaridades ou não entre o
conhecimento tradicional e o conhecimento acadêmico.
ESTOMACAL
34
RESULTADOS E DISCUSSÃO
35
5. RESULTADOS E DISCUSSÃO
36
por indisponibilidade dos mesmos. O Pescador 1 foi o “piloto” e é o atual presidente da
Associação local, por conhecer todos os membros da comunidade e ter tido uma forte
relação com a pesca, foi escolhido para ser o primeiro a indicar outros pescadores,
justificando o alto número de indicações. Seguindo a teoria de redes ecológicas, este
caso se configura um exemplo de aninhamento, já que as conexões dos vértices de
menor grau representam um subconjunto das conexões dos vértices de maior grau. Ele
não teve nenhum retorno nas indicações provavelmente por estar afastado há pelo
menos 10 anos da pesca em si.
A figura consegue identificar os pescadores mais relacionados entre si, sendo os
mais indicados os pescadores 2, 6, 7, 10, 12, 13 e 14, todos com pelo menos cinco
37
indicações. Algumas razões podem influenciar na escolha dos indicados: relação social
aproximada (parentesco – indico meu irmão, meu primo, meu afilhado), grupos de
pesca (indico fulano, ele pesca comigo) especialistas (vou indicar pescador x, ele sabe
muito) e também aqueles que são indicados simplesmente por estarem no campo visual
no momento da entrevista. Uma relação intricada e não obrigatória entre estes fatores
gera o que pode ser chamado de “top of mind” (termo adaptado do marketing
empresarial): os pescadores mais populares à mente, configurando, a amostra de
indicações.
Estabelecendo uma relação com a teoria de redes ecológicas, a conectância
máxima da rede seria obtida se todos os pescadores se indicassem, o que resultaria em
380 indicações uma vez que excluiu-se a possibilidade de auto-indicação com número
de 19 por indicado. Em uma amostragem por snowball isto é muito improvável de
acontecer, devido à interferência direta das relações sociais em níveis distintos, fazendo
com que cada pescador limite-se a indicar no máximo quatro pessoas (exceto os
pescadores 1 e 12 que excederam esse limite por estarem mais diretamente envolvidos
no trabalho e na tentativa de otimizar o máximo possível de indicações), a conectância
real foi de 63 indicações, gerando a proporção de 16,57%. As indicações se mostraram
suficientes para a aquisição dos dados.
Com a execução das entrevistas, uma lista com nomes vernáculos dos peixes
mencionados foi produzida, e destes, alguns foram selecionados para compor o kit
fotográfico (Fig. 8), as identificações foram realizadas por um especialista (Quadro 3).
39
Os recursos pesqueiros são adquiridos através de diferentes tipos de artes de
pesca (Quadro 4 e Tab. 1) utilizadas de acordo com a necessidade e o domínio da arte
pelo pescador.
40
5.1 ETNOETOLOGIA
Peixe cismado/velhaco
Peixe sabido
Peixe que enxerga de longe MOURA et al, 2008
Peixe que dorme cedo
Peixe malvado
Peixe mole/besta
Peixe que come engolindo
Peixe que desova nas águas
Peixe que tem gênio
A B
44
arraias são capazes de quebrar as conchas sem necessidade de executar o salto, o qual
exige grande quantidade de energia, não admitindo a relação entre os fenômenos.
A outra etnocategoria etológica encontrada relacionada à alimentação foi “peixe
que segue outro peixe”, desempenhada pelo “bejupirá” (Rachycentridae) ao seguir a
“arraia” (tratada de forma generalizada). Os pescadores descreveram o comportamento
de forrageio do peixe:
“Ele fica em cima da arraia, ele tem alguma coisa que... esse lado
aqui da arraia é que segura os filhotes (por baixo), aí dentro dela
incha esse lado, igual a mulé quando tá grávida não incha os
quadris? Aí ele incha isso aqui. Aí o beijupirá, sei lá.. acho que ele
sabe quando ela tá, aí ele fica batendo aqui assim ó... batendo
nela, pra dar contração e ela soltar os filhotes pra ele engolir. Aí
as vezes a gente encontra o beijupirá aqui assim, ó, a arraia
embaixo e ele assim em cima”.
Pescador H.
Pescador Ma.
45
(NOMURA, 1984), porém, não há associação entre os fenômenos de “seguir arraia” e
“comer arraia” mesmo ela fazendo parte da dieta do “beijupirá” (NOMURA, 1984).
48
O peixe mais citado como “peixe que ronca” foi o “pocomã” (Batrachoididae),
seguido pelo “carrapato” (Haemulon steindachneri) e o “sambuio” (Archosargus
romboidales). Mas também foram citados: “cambuba” (Haemulon sp.), “baiacú-
feiticeiro” (Sphoeroides greeleyi) e “budião-azul” (Scarus coeruleus). Porém, outros
animais foram citados como “peixe que ronca” por apenas um pescador (reconhecido
por ser especialista em arraias): “curuvina” (Sciaenidae), “roncador”, “baleia”
(Cetacea), “golfinho” (Cetacea) e “arraia” (de forma geral).
Sobre o significado de “roncar” apresentou a informação “é pra se comunicar”.
O pescador M. descreve de forma interessante, incluindo, inclusive mamíferos como o
golfinho e a baleia:
“(...) E deve ter mais uns peixes que ronca né? Como a baleia
canta, ronca, golfinho, aquela arraia que eu trouxe aí, roncou.
ela ‘arhhhhhhhh’, abriu a boca e fechava. Eu não sei o que quer
dizer, mas sei que ronca. Muitos peixes ronca. (...) é pra se
comunicar, já no seco já, a gente matando ela (a arraia), tirando
os pedaços e ela roncando, ela abria a boca assim e ‘arhhhhhhh’.
Eu num vô saber o que ela tá falando (...)”
Pescador M.
50
A sonoridade manifestada por algumas espécies facilita sua identificação no
mar, durante os mergulhos e até mesmo sob as canoas. Os pescadores escutam e
identificam os sons emitidos pelos peixes, mas não reconhecem o significado destes.
5.1.4 AGRESSÃO – “PEIXE QUE DÁ BOTE”, “PEIXE QUE MORDE”, “PEIXE BRABO”,
“PEIXE VALENTE”, “PEIXE QUE CORTA”, “PEIXE QUE FURA” E “PEIXE QUE CORRE”
53
5.1.5 REPOUSO – “PEIXE QUE DORME DE NOITE” E “PEIXE QUE PEGA DE
MÃO/PREGUIÇOSO/BESTA”
Figura 14. Scarus coeruleus (“budião-azul”). O “peixe que dorme de noite”, segundo
pescadores da Pedra Furada.
O meme “peixe que fuma” bem sucedido entre todos os entrevistados é uma
etnocategoria que representa uma resposta a um estímulo artificial antropomorfizando o
peixe através do ato de “fumar”. O estímulo ocorre apenas no “Cacuá” (O. vespertilio)
que executa o movimento de “tragar” o cigarro aceso favorecido pela anatomia da sua
55
cabeça formada pelo primeiro raio da nadadeira dorsal e boca ântero-inferior, resultando
em uma projeção. O ato de “fumar” é resultado de um provável reflexo da espécie.
“Aqui no rabo aqui por baixo, fica aquela parte assim grossa,
assim, vermelha, sabe? Acho que é na época da menstruação... fica
assim na parte de baixo.. é que aqui é a parte de cima... fica assim,
aquele negócio assim inchado, vermelho.. deve ser... eu num sou
estudioso...mas deve ser...”
Pescador M.
56
Na etnocategoria “Peixe que ejecula” o pescador identifica a presença do clásper
duplo nos indivíduos machos de A. narinari, “aí abre assim o pênis que são dois, o
macho tem dois pênis, igual a todas as arraias, que são dois (...)” que está presente em
todos os machos que atingiram a maturidade sexual (NORMAN, 1975) e o display
comportamental descrito por ele, onde ambos os gêneros tentam liberar seus gametas,
até mesmo óvulos fecundados (no caso das fêmeas) na iminência do abate, pode não se
configurar uma estratégia reprodutiva já que a fecundação do grupo em questão é
interna.
“Mas as fêmeas... o que tiver, o que tiver na barriga ela bota pra
fora. É rara a que consegue.. é que as vezes assim, quando você
pega um bocado de arraia, você bota uma sobre a outra, sabe
como é? Na canoa...então, as vezes, tá a vagina dela aqui e fica
outra em cima, não tem espaço pra ela.. pra sair..aí morre dentro.
Mas se botar uma de junto da outra assim, aí ela vai botar pra
fora. A gente solta, vai embora! (o filhote)”.
Pescador M.
Figura 16. Fotografia do “Mero” (Epinephelus itajara); foto obtida e cedida por
um pescador da Pedra Furada.
59
5.2 ETNOECOLOGIA TRÓFICA
61
em armadilhas específicas para atração dos peixes; e manipulação experimental
(MARQUES, 1991), através da análise ocasional do conteúdo dos estômagos no
momento de ‘tratar’ o pescado para a venda e/ou consumo próprio (Fig. 17).
Nem sempre as informações que emergem nas entrevistas são compatíveis com a
literatura científica, exibindo algumas discrepâncias como por exemplo no caso do
“Sambuio” (Archosargus rhomboidales) apresentar dois “buchos”, segundo alguns
informantes. Tal associação pode estar sendo confundida com a presença da bexiga
natatória ou a com uma constricção no próprio estômago do peixe.
Souto & Marques (2009) observaram em Acupe (BA) que o aumento da
eficiência da captura de diversos recursos em comunidades pesqueiras está fortemente
62
relacionado ao conhecimento sobre comportamentos das espécies capturadas,
reforçando o interesse dos pescadores em identificar as estratégias alimentares dos
peixes. O caráter urbano dos pescadores da Pedra Furada, por sua vez, não restringe o
conhecimento sobre o pescado; ao contrário, tem se mostrado resistente às pressões da
cidade, adaptando-se, inclusive, através de estratégias para captura mais eficiente e
barata, por exemplo, com iscas de frutas e verduras desprezadas em grandes feiras
livres.
Para um item alimentar aparecer na dieta de um peixe, de acordo com Wootton
(1990) ele precisa ser detectado, aproximado, selecionado, manipulado e ingerido. Tais
etapas são cruciais na identificação do recurso consumido pelo peixe, podendo haver
incongruências na identificação da dieta pelos pescadores no momento da observação
através do mergulho, devido à visualização fragmentada das etapas.
A composição da dieta dos peixes é abrangente e geralmente generalista, mas,
ainda assim foi localmente disposta em categorias compartimentalmente embasadas
(MARQUES, 1991), destacando o alimento de maior relevância, por exemplo, “peixe
que come fruta/verdura” caracterizando a frugivoria; “peixe que come buzo”
enquadrável na categoria trófica malacofagia; “peixe que come areia”, representando a
microfagia; “peixe que come peixe” podendo ter conotação ictiofágica ou até mesmo
canibal; “peixe que come camarão”, a carcinofagia; “peixe que come tudo”, abrangendo
a dieta onívora; “peixe que come lama”, caso clássico do Mugil sp. que é iliófago
(MARQUES, 1991; COSTA-NETO & MARQUES, 2000; DONNINI & HANAZAKI,
2007; MOURA et al., 2008; SOUTO & MARQUES, 2009); “peixe que come até
defunto”, discutível, porém adequado à necrofagia; e a preferência alimentar,
destacando a preferência, mas não a exclusividade em consumir um alimento. A
interpretação acadêmica dos fenômenos tróficos encontrados na comunidade (Tab. 4) é
um indicativo da diversidade de recursos alimentares obtidos pelos peixes. Foram
elaborados dois quadros de cognição comparada, evidenciando as compatibilidades
entre os conhecimentos científicos e os conhecimentos folk, neles constam informações
alimentares de 13 diferentes espécies (Quadro 7).
O hábito frugívoro evidencia uma característica interessante, pois o consumo de
frutos (e ocasionais sementes, folhas e flores) é comum em ambientes dulciaquáticos,
como por exemplo, o rio Amazonas (GERKING, 1994), a Várzea da Marituba, no baixo
São Francisco alagoano (MARQUES, 1995)
63
com consumo de frutos pelos “Tambaquis” (Colossoma macropomum), e também em
áreas estuarinas (SOUTO & MARQUES 2009), através do consumo de sementes
disponibilizadas pelos manguezais. A presença deste tipo de dieta no ambiente marinho,
provocada pela manipulação das iscas desenvolvidas pelos pescadores, cria uma dieta
oportunista, variando-a de acordo com a disponibilidade dos recursos, o que Marques
(1991) chamou de plasticidade trófica e Gerking (1994) de mudanças de dieta.
A variação alimentar devido à disponibilidade do recurso pode ser uma
estratégia interessante para evitar a sobreposição de nichos tróficos. Porém, duas
espécies estudadas do gênero Haemulon (o “carrapato” e a “cambuba”), de acordo com
os pescadores, exploram o mesmo ambiente e o mesmo recurso em tempos similares,
inclusive compondo um único cardume, o que pode se configurar ainda prematuramente
como um caso de formação de guildas alimentares (GERKING, 1994).
A análise descritiva do conteúdo estomacal do H. steindachneri (Tab. 5) indica
que a sua dieta pode de fato ser onívora, pois apresenta traços de diferentes recursos,
como escama de peixe, pedaço de crustáceo, alga e sedimento. Cervigón (1966)
descreve que o H. steindachneri apresenta análise estomacal com uma massa pouco
determinável de detritos e vermes. O seu comportamento triturador pode ser apontado
devido a abundância de matéria orgânica digerida encontrada.
65
Quadro 7. (continuação) Cognição comparada entre descrições dos pescadores da Pedra Furada e informações científicas sobre a ecologia
trófica das espécies presentes no Kit trabalhado.
66
Espécies generalistas podem ocupar diferentes níveis energéticos em cadeias
alimentares, por exemplo, de consumidores secundários ou terciários. Odum & Barrett
(2011) afirmam que cadeias alimentares relacionam-se à transferência de energia, com a
repetição dos fenômenos de comer e ser comido, e quanto mais curta for a cadeia, maior
será a energia disponível. O próprio homem pode ocupar um lugar no fim ou perto do
final da cadeia dos alimentos, por exemplo, “o homem pode comer o peixe grande, que
come o peixe pequeno que come o zooplâncton que come o fitoplâncton que fixa
energia solar” (ODUM & BARRETT, 2011). Foram elaborados quatro exemplos de
cadeias tróficas (Fig. 18), cada uma com uma base distinta (cachorro morto, areia, lama
e fruta), mas todas apresentam o homem como último nível, os peixes do kit (Fig. 19)
ocuparam os terceiros e quartos níveis.
67
68
Figura 18. Exemplos de quatro fragmentos de cadeias alimentares com diferentes bases e o homem como último nível. A seta semicircular
representa a relação canibal.
69
Figura 19. Peixes que compõem as quatro cadeias alimentares da figura Y. A. Parú-cinzento; B. Tainha; C. Dunda; D. Barbeiro-preto; E. Cacuá; F.
Caramuru e G. Pintado.
Apesar de não se configurar um meme, pois emergiu em apenas uma entrevista,
o esquema trófico do siri-boca-preta (Fig. 20) indica o caramuru (Gymnothorax
funebris) como nível mais alto (4º), reafirmando os outros esquemas onde ele
geralmente alcança o topo ou um nível antes.
Na construção de um fragmento de teia alimentar com a disposição das
informações êmicas que se configuraram memes bem sucedidos (Fig. 21), o “caramuru”
junto com o “beijupirá” alcança um nível antes do topo (consumidor terciário), ocupado
novamente pelo homem. O 1º nível, formado por lama, fruta, areia, limo/algas e
cachorro morto apresenta cinco diferentes matérias, quatro orgânicas e uma inorgânica
compondo a base do fragmento da teia. O 2º nível trófico, constituindo o estrato de
consumidores primários, está representado por seres vivos de diferentes grupos:
Crustacea (“camarão” e “crustáceos”), Pisces (“tainha”, “cacuá”, “barbeiro-preto” e
“cavalo-marinho”) e Gastropoda (“buzo”). Os consumidores secundários, formados pelo
“pintado”, “parú-cinzento”, “taoca-de-chifre”, “saramonete”, “cambuba” e “dunda”,
apesar de ocuparem o 3º nível trófico, servem de alimento também para o 5º nível,
representado pelo homem.
Figura 20. Fragmento de rede trófica mostrando o siri boca preta e tendo o caramuru
como último nível. A seta sai de quem é comido e aponta para quem come.
70
No Complexo Estuarino-Lagunar Mundaú-Manguaba (CELMM), Alagoas,
Marques (1991) encontrou até seis níveis tróficos e este mesmo autor (1995) em seu
trabalho na várzea da Marituba na bacia do São Francisco encontrou até cinco níveis.
Fernandes-Pinto (2001) também descreveu até seis níveis na Barra do Superagui,
Paraná, e as cadeias tróficas encontradas por Silvano (1997) no rio Piracicaba (SP)
apresentaram quatro níveis. Odum & Barrett (2011) reforçam o fato de que o número de
passos das cadeias alimentares é limitado, geralmente quatro a cinco níveis, devido à
grande perda de energia sob a forma de calor (80 a 90%). No segundo nível trófico
(consumidores primários) do fragmento da teia representada (Fig. 21) estão presentes
peixes detritívoros, crustáceos e camarões, que costumam formar a base da maioria das
cadeias tróficas tropicais e exercem um importante papel na reciclagem de nutrientes e
na produtividade de ecossistemas aquáticos (FERNANDES-PINTO, 2001).
71
5
Figura 21. Fragmento de teia alimentar com cinco diferentes bases (lama, fruta, areia, limo/algas e cachorro morto) e com o homem presente no
último nível.
72
A “sardinha”, Opisthonema oglinum (Fig.22), ocupa uma posição relevante em
um fragmento de teia alimentar (Fig.23), pois, de acordo com os pescadores, serve de
alimento para pelo menos 16 diferentes “peixes” (“ipuaçú”, “beijupirá”, “guaraiúba”,
“olho-de-boi”, “atum”, “baleia”, “golfinho”, “tubarão”, “peixe-espada”, “bonito”,
“boto”, “albacora”, “cavala”, “aracanguira”, “xaréu” e “marlin”. Mourão (2000)
encontrou no estuário do rio Mamanguape oito diferentes peixes que consomem O.
oglinum, lá chamada de sardinha-azul. O. oglinum é um animal que vive em grandes
cardumes e consequentemente apresenta biomassa significativa estando em constante
disponibilidade enquanto recurso para peixes maiores. Moyle e Cech Jr. (1996) afirmam
que os clupeídeos desempenham papéis-chave em cadeias alimentares por causa de sua
abundância e sua habilidade em consumir tanto zooplâncton quanto fitoplâncton.
74
come sardinha. Peixes que consiga ter nadadeiras que consiga
alcançar como o marlin, xaréu, beijupirá, guaraiúba, aracanguira,
cavala, olho-de-boi, cação, todos os tipos de peixe que eu já peguei
comem sardinha, menos arraia, essa arraia pintada e a jamanta...
boto também come ela, golfinho, outros peixes também, baleia
também come, e em quantidade muito grande, ela abre a bocona e
come não sei quantas toneladas. Atum, albacora, bonito, marlin,
peixe-espada também comem direto, e tem também outro peixe que é
danado pra comer ela, o ipuaçú, tubarão-baleia. São peixes que é
favorito pro ecossistema aqui marítimo, tanto o brasileiro quanto
pra fora. Onde tem sardinha, tem peixe, qualquer tipo de peixe,
tubarão, de peixes altos a peixes baixos. Porque ela é um peixe
muito atraente, ela cheira muito quando tá nadando, os cardumes,
então, onde dá sardinha dá o peixe embaixo.”
Pescador V.
Foram identificadas duas espécies de peixes que são alvos de tabus alimentares
na comunidade estudada, Anisotremus virginicus o “frade”, que se configura um meme
bem sucedido e Sphoeroides greeleyi o “baiacú-feiticeiro” (Fig. 24) que apresenta uma
peculiaridade, pois o meme se estabelece na comunidade por diferencial de freqüência,
já que uma parte dos pescadores confirma a existência do tabu e outra parte nega.
Para Hanazaki (2006) as preferências alimentares podem ser explicadas tanto
culturalmente quanto ambientalmente, em função de fatores como a disponibilidade do
recurso, a posição da espécie na cadeia trófica ou a sua importância no contexto social
da comunidade, sendo que, as razões que conduzem às preferências e aversões
alimentares podem ser um resultado da inter-relação desses aspectos.
Sobre A. virginicus incide um tabu circunstancial, ou segmentário (COLDING,
1995 apud PACHECO & MARQUES, 2009) ou ainda, segundo Costa-Neto (2000) o de
um “peixe consumido com restrições” (somente mulheres “paridas” não podem comê-lo
por ser “reimoso” e “carregado”). Costa-neto (2000) encontrou o mesmo tipo de
75
restrição para pelo menos oito diferentes espécies de peixes, mas nenhuma delas
corresponde especificamente o A. virginicus. Para Pacheco & Marques (2009) a
categoria emergente foi “mulher de resguardo” e as espécies restringidas foram quatro.
77
5.3 ETNOTAXONOMIA
Azul Budião-azul
Cinzento Parú-cinzento
Coloração
Verde Caramuru-verde
Preto Barbeiro-preto
D
E
Figura 28. Recursos não-peixes encontrados na Pedra Furada, Salvador, BA. A. Siri-boia. B. Polvo. C. Baratinha-da-praia. D. Lagosta. 83
E. Lambreta. F. Camarão. G. Ouriço. H. Buzo.
Tabela 7. Variações dos nomes vernáculos (sinonímias) encontradas na comunidade e possíveis razões.
Arraia Cabrinha Cabrinha; Arraia duas bocas; Arraia branca; Aproximação morfológica entre as espécies e/ou Hibridismo Cultural
Arraia morcego
Caramuru Moréia Aproximação morfológica entre as espécies e/ou Hibridismo Cultural
Carapeba Carapicum; Carapicum-açú Aproximação morfológica entre as espécies e/ou Qualidade da foto
84
peixe-prata, que só compartilham a classificação “peixes” onde mesmo os que não
carregam o nome “peixe” também se enquadram); e o não produtivo, um nome
composto (ex.: cavalinho-do-mar) que não representa nenhuma categoria superior (Fig.
29). Os nomes (lexemas) primários simples e complexos (Quadro 8) representam os
agrupamentos genéricos monotípicos.
Berlin (1992) configurou o seu sistema de nomeação e classificação baseados na
seguinte terminologia hierárquica: reino, forma-de-vida, intermediário, genérico,
específico e varietal. As categorias reino e varietal não foram encontradas de forma
evidente na comunidade.
Compondo os lexemas, estão os supracitados agrupamentos genéricos
monotípicos e também os politípicos (Quadro 9) que são a maioria e, no caso,
correspondem muitas vezes às espécies lineanas. Os agrupamentos monotípicos estão
representados por nomes que não caracterizam nenhum grupo maior, ou subgrupos. Os
politípicos nomeiam os grupos que subdividem-se, carregando no nome a ideia de uma
categoria levemente superior. Quando o nome é genérico monotípico, este é a categoria
terminal, enquanto no caso do politípico, este é a categoria subterminal, tendo como
terminal o específico (BROWN, 1983).
LEXEMA
PRIMÁRIO SECUNDÁRIO
Dunda
86
Todos os agrupamentos genéricos politípicos emergiram através da utilização do
kit fotográfico, e quanto aos nomes secundários a que estes se referem, alguns estiveram
presentes e outros não, mas foram suficientemente citados para haver a diferenciação
entre os específicos (Tab. 8). Dos nove genéricos politípicos encontrados, seis
(“budião”, “parú”, “taoca”, “vermelho”, “xinxarro” e “sardinha”), tiveram citados pela
maioria apenas dois específicos. Nos outros três, dois tiveram quatro específicos (o
“caramuru” e o “baiacú”) e um teve cinco diferentes específicos (a “arraia”). Todas as
citações de específicos configuraram-se memes bem sucedidos, sendo citados pela
maioria dos entrevistados. O agrupamento genérico “vermelho” teve outras nomeações
de específicos, citadas por apenas um pescador.
87
Modelos de nomeação através de binômios são amplamente encontrados em
diferentes culturas (e.g.: o povo Fore: Diamond (1966); entre os Aguaruna e Huambisa
(BERLIN & BERLIN, 1983); entre os população Tzeltal (HUNN, 1982), com os
Kayapó Gorotire (POSEY, 1984), e também dentre pescadores brasileiros (MARQUES,
1991; FERNANDES-PINTO, 2001; MOURÃO, 2002; BEGOSSI et al, 2008; SOUTO
& MARTINS, 2009).
Influências da urbanização estão evidenciadas na nomeação africana (Ex.:
cambuba, cacuá,) e indígena (Ex.: caramuru) das espécies folk, em hibridismos com a
informação científica, e contrariando o que Begossi et al. (2008) explicitam:
5.3.2 CLASSIFICAÇÃO
- HIERÁRQUICA – BERLINIANA
88
relacionam-se com os estabelecidos por Berlin (1992) e pode se fazer uma comparação
com a taxonomia lineana, estabelecendo relações entre os sistemas de classificação
(Quadro 10). Existe um sistema comparativo padronizado (Fig. 30) e não
necessariamente todos os modelos de diferentes culturas são 100% compatíveis entre si.
89
Figura 30. Diagrama (MOURÃO & MONTENEGRO, 2006) exibindo a relação de um sistema de táxons com um sistema hierárquico de
categorias das classificações lineana e etnobiológica.
90
O primeiro diagrama criado (Fig. 31) corresponde à classificação das três
arraias presentes no kit, “arraia pintada” (Aetobatus narinari), “arraia cabrinha”
(Rhinoptera bonasus) e a “arraia jamanta” (Manta birostris). Consideradas diferentes
pelos entrevistados, foram agrupadas em nível de parente, e segundo os pescadores
“todas as arraias são parentes”, configurando-se um meme bem sucedido, presente em
todas as entrevistas. Neste caso, houve uma correspondência 1:1 com a taxonomia
biológica.
O segundo diagrama (Fig. 32), agrupando os dois “budiões”segue o mesmo
padrão do primeiro, com a ressalva de retratar o nível irmão, configurando-o como um
agrupamento genérico politípico, com dois específicos.
Algumas classificações ultrapassaram as imagens do kit trabalhado, com a
inclusão de espécies que continham apenas a nomenclatura folk, sem as identificações
biológicas. Um dos casos foi o “caramuru” (Muraenidae), que através da fotografia do
Gymnothorax funebris (“caramuru-verde”), fez outras etnoespécies aparecerem: o
“caramuru-cachorro”, o “caramuru-mulato” e o “caramuru-pintado” (Fig. 33) presentes
na maioria das entrevistas. Outros “caramurus” emergiram, mas se configuraram memes
mal sucedidos; foi o caso do “caramuru-pinima”, da “mutuca”, da “manteiga” e do
“amarelo”. A categoria que eles foram incluídos (“é tudo a mesma espécie”) apresenta
divergência com a classificação biológica, apesar de não terem sido identificados, são
de espécies lineanas distintas.
Para relacionar os três diagramas, foi gerado um quarto (Fig. 34), estabelecendo
as relações entre o grupo dos “budiões” e dos “caramurus”, que são alguns exemplos de
“peixes de pedra”, dissociado das “arraias”. Os três grupos, porém incluem-se no
agrupamento “peixes”.
91
Figura 31. Diagramação de Venn com os específicos de “arraia” correspondendo com as
espécies biológicas; categoria parente.
92
Figura 33. Diagramação de Venn com os específicos do “caramuru”; categoria espécie.
Figura 34. Diagramação de Venn com o agrupamento de “caramuru” e “budião” formando “peixe de
pedra” e “arraia”, formando “peixe”.
93
5.3.3 CLASSIFICAÇÃO ALTERNATIVA
- SEQUENCIAL
SAÚNA TAINHA
Curimã
Tainha
Saúna
95
- PADRÃO DE SOBREPOSIÇÃO HIERÁRQUICO-ECOLÓGICO E ETOLÓGICO
96
Figura 37. Classificação hierárquico-ecológica com a categoria “Peixe de loca”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada.
Figura 40. Classificação hierárquico-etológica com a categoria “Peixe que anda junto”,
apresentada pelos pescadores da Pedra Furada.
98
Quadro 11. Classificação Econômica dos peixes encontrados na comunidade da Pedra
Furada.
99
CONCLUSÃO
100
CONCLUSÃO
101
REFERÊNCIAS
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SILVANO, R. A. M. 2009. Fishers’ decision-making, optimal foraging and
102
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de pescadores do município de Conde, estado da Bahia, Brasil. Revista de Nutrição,
Campinas, 13 (2): 117-126.
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paulista: particularidades do conhecimento local. In: ALBUQUERQUE U. P.; ALVES
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Etnoecologia. Recife: Nupeea/Sociedade Brasileira de Etnobiologia e Etnoecologia.
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cidade de Salvador-BA. Fórum Nacional de Crítica Cultural 2, Educação básica e
cultura: diagnósticos, proposições e novos agenciamentos.
POUGH, F. H.; JANIS, C. M. & HEISER, J. B. 2008. A vida dos vertebrados. São
Paulo: Atheneu, 4ª Edição.
ROBINS, C. R.; RAY, G. C. & DOUGLAS, J. 1986. Atlantic coast fishes. Peterson
Field Guides. New York.
108
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Piracicaba (SP). Dissertação de mestrado, UNICAMP.
WINN. H. E. 1964. The Biological Significance of Fish sounds. In.: TAVOLGA, W.N.
(Ed.). Marine Bio-Acoustics. Pergamon Press, Oxford.
110
APÊNDICE 1
N° _______________ Data________________
Início______________h Término______________h
Dados de Identificação:
Sexo: ____________________
Idade: ____________________
Profissão: _________________
Procedência: _________________________
Tempo em que vive na comunidade: ______________________
Tempo que desenvolve atividade pesqueira: __________________
Perguntas norteadoras:
1) Como se chama esse peixe?
2) Ele anda junto com outros peixes?
3) Esse peixe é parente ou família de outros peixes?
4) O que esse peixe costuma comer?
5) Onde esse peixe se alimenta?
6) Quais são os animais que comem esse peixe?
7) O que serve de isca para esse peixe?
8) Onde esse peixe vive?
9) Onde esse peixe é mais encontrado?
10) Desse peixe existe mais de uma marca (ou mais de um tipo)?
11) O que esse peixe faz para se reproduz?
12) Esse peixe vem de outro lugar?
13) Ele faz algum som?
111
APÊNDICE 2
Esta pesquisa pretende saber o que os pescadores desta comunidade conhecem sobre os
peixes capturados em suas atividades. Para isto, eu Marina Lordelo e o Prof. José
Geraldo Marques, responsável pelo projeto de pesquisa, gostaríamos de convidá-lo a
participar dessa pesquisa, estando o senhor(a) livre e à vontade para aceitar ou não. Nós
estudamos a pesca artesanal, como os peixes são chamados, o que serve de alimento
para os peixes e onde se alimentam, quais peixes são parentes, se existem peixes que
andam juntos e por quê. A pesquisa será realizada pela Universidade Estadual de Feira
de Santana, e dará origem ao trabalho Etnoictiologia dos pescadores urbanos da Ribeira,
Salvador, Bahia: aspectos taxonômicos, ecológicos e etológicos. Para isto, precisarei,
durante um ano, a partir do mês de julho de 2010 até junho de 2011, vir à comunidade
realizar o nosso “trabalho de campo”, que são as conversas, fotos e acompanhamento
das atividades de vocês. Nas conversas realizadas, nós não vamos anotar e nem divulgar
o seu nome, nem vamos fazer perguntas sobre a intimidade da sua vida. Para as
conversas, que chamamos de entrevistas, vamos seguir um questionário e vamos pedir
para gravar o que estivermos conversando, para que a gente não esqueça na hora de
escrever o trabalho. Poderemos pedir também para tirar fotos, mas antes de qualquer
coisa, deixamos claro que o senhor(a) pode ou não autorizar. Caso o senhor(a) não se
sinta à vontade pode parar a entrevista, pode ficar sem responder qualquer pergunta e se
quiser, continuar em outro momento. Se em algum dia não quiser mais que suas
respostas sejam divulgadas, o (a) senhor(a) pode pedir para que elas sejam retiradas do
trabalho, que isso não vai lhe causar nenhum problema. Nós nos comprometemos a
trazer os resultados da pesquisa para a comunidade e só usar os resultados em trabalhos
científicos e para comunicar a outros pesquisadores. O risco que o senhor(a) pode correr
ao participar seria perder tempo de trabalho ou outras atividades, mas faremos o
possível para que isso não aconteça.
Se o(a) senhor(a) precisar tirar alguma dúvida sobre a pesquisa ou se simplesmente
quiser que suas respostas sejam retiradas dela, você só vai precisar ligar para o
Laboratório de Etnobiologia, para o número (75) 3224-8131 ou escrever para o
endereço do Laboratório de Etnobiologia (LETNO) que fica na Universidade Estadual
de Feira de Santana - BA, na Avenida Transnordestina, bairro Novo Horizonte, Cep:
44.036.900.
Caso o(a) senhor(a) tenha se sentido esclarecido(a) e tenha interesse em participar desta
pesquisa, por favor assine este termo de consentimento; uma cópia ficará com o(a)
senhor(a) e outra ficará comigo. Muito Obrigada.
____________________________________ ________________________________
Prof. José Geraldo Wanderley Marques Entrevistado
-Pesquisador Responsável-
_______________________________
Marina Lordelo Carneiro
-Entrevistadora-
112
APÊNDICE 3
Seu Vanelson era um pescador polêmico. Tinha os que não gostavam por achá-
lo rude, grosseiro. Tinha os que admiravam, por achá-lo conhecedor do mar, dos peixes.
Ele tinha a pele negra cansada do sol, da maresia. Tinha os braços resistentes ao
castigo dos remos e o porte de um homem que desistiu de prezar pela aparência e
precisa de um peso na cintura toda vez que resolve mergulhar na baía em busca de seu
munzuá. Não posso deixar de dizer que estava hesitante no dia que o entrevistei. Com
mais três amigos e algumas garrafas de cerveja na mesa, não imaginava que aquele
senhor poderia ter um conhecimento tão vasto da ecologia dos peixes. Enfim, eu lhe dei
um mau julgamento, ele me deu uma conversa promissora.
Hoje fui para a comunidade com as mesmas perspectivas de sempre: talvez
encontrar alguém para entrevistar; talvez pegar de rabo de ouvido uma estória antiga;
talvez ouvir de Marujo uma coisa nova e incrível sobre arraias; mas tinha uma certeza:
olhar o mar com a sensação de estar em minha própria casa. Logo me deparei com seu
Vanelson e seu Vivaldo tratando alguns peixes e depois de alguma conversa, marquei
com ele de ir junto puxar o munzuá e colocar as iscas na grozeira. Em quase um ano de
pesquisa, seria a minha primeira vez naquele mar.
O munzuá é uma armadilha interessante. Uma caixa vazada de ferro, forrada
com uma tela de plástico, com um cone no meio que tem uma abertura maior do lado de
fora que do lado de dentro. O peixe curioso e faminto que entra atrás da isca
(geralmente de sardinha fresca) não consegue mais sair. Ele tinha me mostrado no dia
anterior como fazia para montar aquela arapuca, comprando no ferro velho e pagando
um alguém para soldar as arestas. A tela de plástico vinha depois, forrando aquela quase
obra de arte moderna.
Enfim o mar. A maré vazando e as rochas ficando emersas era sinal de que
estava na hora de aprumar a canoa. Eu, convidada, subi e me sentei na proa. Não tinha
motor, só dois remos antigos e gastos amarrados por uma corda que tinha enfrentado
tanto sol que descoloriu. Uma caixa verde de frutas cheia de cordões e anzóis era a
113
grozeira, um isopor antigo, uma espingarda (que para mim parecia um arpão envolvido
por um estilingue), dois bicheiros (um cabo de ferro com um anzol na ponta), pés de
pato, máscara de mergulho, água mineral e um educado pacote de biscoitos de
chocolate. Essa foi a casa mais humilde e encantadora que já fui convidada a entrar. Ele,
um excelente anfitrião, remou até nos afastarmos da costa.
No caminho, me contou a história sofrida do pai que por não querer desistir da
pescaria, se complicou com o pós-operatório de cálculos renais. Ao mesmo tempo o
fardo era sua grande referência de pescaria. O desabafo mais difícil veio no descanso da
remada “Meu pai não queria que eu fosse pescador, ele dizia que não existia pescador
rico; minha mãe, coitada, queria que eu fosse doutor”.
Ao longe eu vi a comunidade. Dava para ver do cais da Pedra Furada até a ponta
do Humaitá; iluminados pelo sol forte e refletidos na água transparente do mar. Naquele
segundo eu senti que estava exatamente no ponto do mundo onde deveria estar.
Ele rapidamente localizou o munzuá de cima da canoa. Eu não vi absolutamente
nada. Lançou a âncora, colocou os pés de pato, a máscara de mergulho e, de costas, se
lançou contra a água. O minuto debaixo d’água foi uma eternidade para a minha
ansiedade. Subiu, me olhou e disse o que eu não queria escutar: tinham dois caramurus
no munzuá. Dois. Eu já tinha ouvido falar mal do caramuru em absolutamente todas as
minhas entrevistas, anotava tudo empolgadíssima, estimulava as estórias de medo e
lutas com o peixe. Eu não queria acreditar que teria que conviver com dois deles na
mesma canoa que eu. No instante que ele subiu com a armadilha, a canoa encolheu, o
coração acelerou, as mãos gelaram. “Tira a foto” ele disse. “Foto?” eu pensei. Foto.
“Sim, claro, vou tirar”. Obviamente que as fotografias não ficaram boas, o caramuru
verde (e maior) e o mulato (menor e machucado pelo outro) não fizeram a menor
questão de fazer pose para a câmera medrosa.
Rumo ao isopor, acompanhavam as poucas quatingas e carrapatos, que deveriam
estar sentindo exatamente a mesma coisa que eu. Ele apanhou um pouco de água e
despejou no isopor sem pestanejar “Eles ficam mais calmos”. Depois, colocou novas
sardinhas no munzuá e o mandou de volta para o mar.
Com os convidados inadequados dentro do barco, seu Vanelson, muito solícito e
sensível, desistiu de colocar as grozeiras e resolveu continuar a mergulhar para me
mostrar ‘novidades’ marinhas. Me levou um ouriço satélite, um cacuá, uma taoca, uma
cioba, um budião-azul, um peixe gato. Para alimentar a minha tensão, me levou dois
114
niquins, um de areia e um de pedra. Tudo isso em mergulhos empolgados e imbuídos
em me mostrar algo que eu pudesse fotografar.
Depois de inúmeros mergulhos e fotografias, uma tentativa de ataque de
caramuru aconteceu. Ele saiu do isopor, rastejou por trás de seu Vanelson e num tom de
maldade abriu a boca para a mordida. Eu, alerta, avise-o a tempo evitando o ‘bote’.
Ficamos de pé na canoa e conseguimos nos livrar do perigo com o bicheiro – que
passou a ser um companheiro meu até a chegada em terra.
Depois de quase duas horas no mar, fomos voltando devagar. Seu Vanelson
remava e descansava. Eu apreciava a brisa e conversava sobre a pescaria do dia
seguinte. Chegamos em terra e agradeci a ele a experiência, desculpei-me por qualquer
coisa e segui pensativa.
Para mim, um momento. Para ele, toda a vida.
115