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FRANCISCO CARAMELLO
Resumo. Estas são notas de aula da disciplina MTM3474 – Geometria Euclidiana, do Depar-
tamento de Matemática da Universidade Federal de Santa Catarina. O conteúdo é baseado
principalmente nas referências [1] e [2].
Sumário
Introdução 1
1. Um pouco de lógica 5
2. O disco de Poincaré 8
3. Axiomas de incidência 10
4. O plano projetivo 12
5. Axiomas de ordem 15
6. Axiomas de congruência 19
7. Axioma(s) de continuidade 25
8. Geometria neutra 28
9. O axioma das paralelas 32
Apêndice 34
Referências 36
Introdução
O objetivo principal deste curso é apresentar axiomaticamente Geometria Euclidiana, enfati-
zando as propriedades do método axiomático (que se aplica a qualquer outra área da Matemá-
tica, servindo aqui a Geometria Euclidiana como exemplo). Para tanto, faremos primeiro uma
abordagem informal do assunto para introduzir as principais ideias e conceitos e apresentar
o panorama geral, revisitando os axiomas usados por Euclides. Depois veremos o tratamento
moderno dessa disciplina, utilizando um sistema axiomático parecido com aquele elaborado por
David Hilbert. Discutiremos também as geometrias não-Euclidianas de maneira introdutória,
no decorrer da apresentação. Comecemos com uma breve contextualização histórica.
O advento da Geometria Euclidiana, como apresentada por Euclides de Alexandria em sua
obra Os Elementos (por volta de 300 a.C.), marca o início da formulação sistemática da Ma-
temática por meio do método axiomático. Antes disso o conhecimento matemático, apesar de
já relativamente volumoso, não era organizado sistematicamente em uma ordem lógica como
fazemos hoje, mas sim consistia apenas de compilações de várias fórmulas e maneiras de se
resolver problemas. Exemplos de tais trabalhos aparecem nos registros da maioria das civili-
zações da antiguidade, dentre eles podemos destacar: o papiro de Rhind (Egito, 1700 a.C.),
que traz uma aproximação π ≈ 256/81; o Sulbasutra dos Hindus, o texto matemático mais
antigo que se conhece (2000 a.C.); a matemática dos Babilônicos (600 a.C. até 300 d.C.), que
já usufruia de um sistema numérico posicional e já apresentava algumas triplas Pitagóricas
(números inteiros (a, b, c) satisfazendo a2 + b2 = c2 ); e o Jiuzhang suanshu dos Chineses, que
traz uma “prova pictórica” do teorema de Pitágoras. Foi na Grécia, começando por Tales de
Mileto no século VI a.C. (portanto antes de Euclides), que surgiu a ideia de formular resultados
1
geométricos de maneira sistemática e com demonstrações. A escola de Pitágoras deu continui-
dade a essa formulação e a estendeu à Aritmética, porém perderam-se no tempo todas as obras
que reuniam o desenvolvimento por ela alcançado. Cabe citarmos aqui também a importância
do pensamento de Platão (século IV a.C.) no estabelecimento da Matemática como disciplina
independente, responsável pelo estudo de entidades abstratas idealizadas
√ por meio da razão
pura. Platão argumentava, por exemplo, que a irracionalidade de 2 é algo que não se pode
verificar empiricamente, ou seja, próprio da razão.
A obra Os Elementos de Euclides traz praticamente toda a Geometria e Aritmética conhe-
cidas até então, organizadas num sistema lógico-dedutivo, e é portanto um símbolo da grande
mudança de paradigma que discutimos no parágrafo anterior. Apesar de utilizar um sistema
tecnicamente incompleto (como veremos), neste trabalho reside a ideia seminal que deu origem
à Matemática como a conhecemos hoje: uma coleção de resultados com demonstrações lógicas
que se apoiam em resultados mais elementares, assim sucessivamente até se atingir os axiomas
— as verdades elementares que servem de ponto de partida. Por volta de 2000 anos depois,
o desenvolvimento e as investigações acerca desse tópico também propiciaram outra grande
mudança de paradigma na Matemática: a descoberta das geometrias não-Euclidianas, que se
deu no início do século XIX, em escritos (não publicados) de Carl F. Gauss e Ferdinand K.
Schweikart, de forma independente, e pouco mais tarde, mas também no início daquele século,
nos trabalhos (publicados) de Franz Taurinus, Nikolai I. Lobachevsk e János Bolyai, também
de forma independente. Por fim, cabe citar brevemente aqui a terceira grande mudança de pa-
radigma ocorrida na Matemática, desta vez no início do século XX, por conta dos teoremas da
incompletude de Kurt Gödel, que enunciam que qualquer sistema axiomático capaz de expres-
sar verdades elementares da Aritmética é necessariamente incompleto, no sentido de existirem
afirmações verdadeiras que não podem ser demonstradas no sistema.
0.1. O método axiomático, ingenuamente. Nesta seção vamos discutir os elementos do
método axiomático de maneira informal. A Matemática pode ser descoberta de várias maneiras,
por exemplo por tentativa e erro, desenhos e diagramas, estudo de casos especiais, chutes etc.
O método axiomático é uma maneira de se provar que os resultados descobertos são de fato
verdadeiros e de organizá-los em uma estrutura lógica. Outra vantagem das demonstrações
é que elas geralmente levam a resultados mais gerais e a insights sobre as relações entre os
diferentes objetos que se está estudando.
A ideia básica de um sistema axiomático é a seguinte: suponha que você queira convencer
alguém que uma afirmação A1 é verdadeira, apenas usando deduções. Você poderia então
argumentar que A1 segue logicamente de uma afirmação A2 mais elementar, que esse alguém já
aceita. Se tal pessoa não aceita A2 , você deve então mostrar que A2 segue logicamente de uma
afirmação A3 , que seja ainda mais elementar, e assim por diante, até chegar a uma afirmação
An tão elementar que seja tida como evidente. Essa afirmação An fará o papel de um axioma
nessa discussão. Para que esta linha de argumentação funcione bem, algumas condições são
então necessárias:
Condição 1. Deve-se aceitar algumas afirmações, chamadas de axiomas, sem justificativa.
Os axiomas são então os fundamentos; o ponto de partida. A grande realização de Euclides
foi ter identificado algumas afirmações básicas e a partir delas ter demonstrado logicamente
todas as outras afirmações em geometrias conhecidas na sua época. Para o método axiomático
é preciso também, portanto, que todos concordem sobre a lógica usada:
Condição 2. Deve-se ter concordância sobre como e quando uma afirmação segue logicamente
de outra.
Mas antes disso, uma coisa ainda mais fundamental é necessária:
Condição 3. Deve haver compreensão mútua acerca dos termos e símbolos usados no discurso.
2
Isto é, é preciso que todos concordem com o significado das palavras que estão sendo usa-
das. Os termos introduzidos no discurso devem portanto ter definições, o que as vezes também
envolve demonstrar-se que tais definições estão bem postas. Por fim, acerca disso algo fun-
damental deve ser observado: posto que sempre que se for discutir o significado de alguma
palavra, outras palavras serão usadas para isso, alguns termos precisarão ficar sem definição
(caso contrário se recairia numa regressão infinita). Os termos sem definição são chamados
de termos primitivos. Como veremos, essa “brecha” que possibilita diferentes interpretações
para estes termos tem um importante e curioso papel no desenvolvimento axiomático de uma
disciplina.
Na teoria de conjuntos por exemplo, o termo “conjunto” é um termo primitivo, assim como
“elemento” e “pertence” (no sentido de um elemento pertencer a um conjunto). Para nós, os
termos primitivos serão os seguintes:
• ponto
• reta
• estar sobre (no sentido de um ponto estar sobre uma reta)
• estar entre (no sentido de um ponto estar entre outros dois, sobre uma reta)
• congruente
Denotaremos que o ponto A está sobre a reta r por A |• r. Já a noção de que B está entre A e C
(sendo os três sobre uma mesma reta) será denotada por A ∗ B ∗ C. Usaremos também termos
primitivos da teoria dos conjuntos, mas eles não entram na lista por não serem próprios da
geometria1. Para que o discurso fique menos monótono, seremos flexíveis admitindo construções
linguísticas e expressões equivalentes a estas, como por exemplo “a reta r passa pelo ponto
P ” (equivalente a “P está sobre r”). O termo congruente será nossa noção de equivalência,
denotada com o símbolo ∼ =. Intuitivamente, a ideia é que dois objetos geométricos (por exemplo
segmentos) são congruentes quanto um pode ser sobreposto perfeitamente sobre o outro com
um movimento rígido (translação e rotação). No caso de dois segmentos ou dois ângulos, isso
captura a ideia de eles terem a mesma medida (sem que de fato os meçamos). Euclides adotava
como “noções comuns” (algo como senso comum) que “uma coisa é congruente a si mesma” e
“duas coisas congruentes a uma terceira coisa são congruentes entre si”. Para ele estas eram
portanto parte do discurso lógico. Mais à frente nós adotaremos afirmações semelhantes como
axiomas adicionais.
0.2. Os axiomas de Euclides. Euclides usou cinco axiomas para fundamentar a geometria.
Veremos mais à frente que estes axiomas são insuficientes, pois ele considerava em seus argu-
mentos alguns fatos óbvios sem os ter postulado (como por exemplo que dois círculos de mesmo
raio se intersectam em dois pontos caso o centro de um esteja sobre o outro e vice-versa). É
instrutivo para esta nossa discussão informal, no entanto, discutirmos brevemente os axiomas
de Euclides.
Axioma 1 de Euclides (A1E). Para todo ponto A e todo ponto B diferente de A existe uma
única reta que passa por A e B.
Este axioma geralmente é citado informalmente como “dois pontos determinam uma única
!
reta”. Denotaremos a reta determinada pelos pontos A e B por AB. Para enunciar o próximo
axioma precisamos de nossa primeira definição.
Definição 0.1 (Segmento). Dados dois pontos A e B, o segmento AB é a união de {A, B}
!
com o conjunto dos pontos C que ficam sobre a reta AB e entre A e B. Os pontos A e B são
os pontos extremos de AB.
1Cabe salientar que poderíamos estabelecer nossa teoria sem usar a teoria dos conjuntos, aumentando nossa
lista de termos elementares.
3
Note que usamos os termos primitivos ficar sobre e estar entre, na definição acima. Usamos
também o termo não geométrico conjunto.
Axioma 2 de Euclides (A2E). Para todo segmento AB e todo segmento CD existe um único
!
ponto E na reta AB tal que B fica entre A e E e o segmento CD é congruente ao segmento
BE.
Isto é, o Axioma 2 nos permite estender qualquer segmento AB por um segmento BE con-
gruente a um segmento CD dado. Note que usamos a noção primitiva congruente. O Axioma 2
usado repetidamente nos permite estender um segmento o quanto quisermos, o que se aproxima
mais da ideia de “reta” que Euclides tinha: ele não pensava em retas como sendo infinitas de
fato, mas sim potencialmente infinitas no sentido de poderem ser indefinidamente estendidas.
Definição 0.2 (Círculo). Dados pontos O e A, o conjunto de todos os pontos B tais que o
segmento OB é congruente ao segmento OA é chamado de círculo de centro O e raio OA. Para
cada ponto B, dizemos que B fica sobre o círculo e que OB é um raio do círculo.
Pelas “noções comuns” de Euclides, segue que OA ∼ = OA, portanto A fica sobre o círculo.
∼
Além disso, se B fica sobre o círculo e OB = OC então C fica sobre o círculo.
Axioma 3 de Euclides (A3E). Para todo ponto O e todo ponto A diferente de O existe o
círculo com centro em O e raio OA.
Cabe salientar que, assumindo-se a linguagem de conjuntos (por exemplo na definição do
círculo), o Axioma 3 seria desnecessário, posto que o axioma da especificação da teoria dos
conjuntos já garantiria que o círculo em questão existe. Poderíamos evitar usar a linguagem de
conjuntos e trabalhar como Euclides, mas para isso precisaríamos acrescentar mais termos em
nossa lista de termos elementares. Não vamos nos preocupar muito com esses detalhes nesta
discussão informal. Para enunciarmos o quarto axioma precisamos de mais algumas definições.
−!
Definição 0.3 (Semirreta). Dados dois pontos A e B, a semirreta AB é o conjunto dos pontos
!
C que pertencem ao segmento AB ou ficam sobre a reta AB de forma que B fica entre A e C.
−! −! !
Dizemos que a semirreta AB emana do vértice A e que AB é parte da reta AB.
−! −!
Definição 0.4 (Semirretas opostas). Semirretas AB e AC são opostas se são distintas, emanam
! !
do mesmo ponto A e são parte da mesma reta AB = AC.
Definição 0.5 (Ângulo). Um ângulo com vértice em A consiste de um ponto A e duas semir-
−! −!
retas distintas e não-opostas, chamadas de lados, AB e AC.
Usaremos a notações ^A, ^BAC ou ^CAB para esse ângulo. Além disso, se estivermos
−! −!
denotando AB = r e AC = s, então poderemos também denotar tal ângulo por ^(r, s).
Definição 0.6 (Ângulos suplementares). Se dois ângulos ^DAB e ^CAD possuem um lado
−−! −! −!
AD em comum e os lados remanescentes AB e AC são semirretas opostas, dizemos que ^DAB
e ^CAD são suplementares.
Também é comum dizer que ^CAD é o suplemento de ^DAB, e vice-versa. Podemos agora
definir ângulos retos sem falar em graus (nem produtos internos etc), usando apenas a noção
primitiva de congruência. Esse é um dos pontos que salientam a nossa abordagem sintética à
geometria, em contraste com a abordagem analítica.
Definição 0.7 (Ângulos retos). Um ângulo ^BAC é reto se ele admite um suplementar ao
qual ele é congruente.
Axioma 4 de Euclides (A4E). Todos os ângulos retos são congruentes uns aos outros.
4
Este axioma postula uma certa homogeneidade: todos os ângulos retos têm o mesmo formato,
não importa onde estejam localizados. Além disso ele propicia uma forma intrínseca de se
comparar ângulos: ângulos retos foram definidos geometricamente e outros ângulos podem ser
comparados a eles.
Por fim, vamos agora ao quinto e controverso axioma de Euclides. Vamos de fato postular
um axioma equivalente ao axioma que aparece em Os Elementos que é de enunciado um pouco
mais simples, que aparece no tratamento da geometria Euclidiana de Proclus (Século V).
Definição 0.8. Duas retas r e s são paralelas quando elas não se intersectam, isto é, quando
nenhum ponto fica sobre ambas r e s. Neste caso denotamos rks.
Repare que nenhuma menção é feita às retas serem “equidistantes”. Isso não é, no entanto,
motivo para assumirmos que elas não o sejam, nem de fato que elas sejam: é algo a ser
investigado.
Axioma 5 de Euclides (A5E). Para qualquer reta r e qualquer ponto A que não fica sobre
r, existe uma única reta s que passa por A e é paralela a r.
Ressaltamos que esse é um axioma da geometria plana: no espaço existem infinitas retas s
passando por Q que não intersectam r. Por que este axioma é controverso? Ora, embora ele
pareça natural por estarmos acostumados com a geometria Euclidiana, ele é substancialmente
diferente dos outros: os quatro primeiros são abstrações de nossas experiências de trabalhar
com régua e compasso, enquanto o quinto não pode ser verificado empiricamente, pois nunca
conseguimos desenhar uma reta totalmente, apenas segmentos. Podemos estender segmentos
indefinidamente, é fato, mas isso ainda é insuficiente para verificarmos o axioma.
Outra maneira de testar se r e s são paralelas, Euclides argumenta, é considerar uma reta t
transversa a ambas. Se a “soma” dos ângulos internos formados de um lado de t for menor que
dois ângulos retos, então r e s devem se intersectar deste lado de t. Este é de fato o enunciado
original de Euclides para o seu quinto axioma. Novamente, incorremos no problema de ser
necessário estender indefinidamente as retas r e s para encontrar o ponto de interseção, pois se
a soma dos ângulos internos for muito próxima a dois ângulos retos, pode ser preciso estender r
e s mais do que qualquer medida física concebível para as escalas de um ser humano (podendo
inclusive ser maior que o raio do universo observável).
Até a descoberta das geometrias não-Euclideanas, muitos matemáticos tentaram por isso
demonstrar o quinto axioma a partir dos outros quatro. Para entender por que essa descoberta
significa que isso não é possível vamos precisar rever algumas noções de lógica.
1. Um pouco de lógica
Nesta seção veremos um pouco de lógica a fim de tornar a discussão anterior mais precisa.
Salientamos que nosso intuito aqui não é entrar em grandes detalhes técnicos a respeito deste
tópico (isso seria assunto para um curso de Lógica) mas precisamos criar um pouco de afinidade
com os termos dessa área.
Uma teoria axiomática consiste de três ingredientes: L, A e R, sendo que L é uma linguagem
formal; A é um conjunto de fórmulas em L, o conjunto dos axiomas; e R é um conjunto de
relações sobre as fórmulas, as regras de inferência. A linguagem L, a grosso modo, consiste
de uma coleção de símbolos e uma coleção de regras sobre como combinar esses símbolos, a
sua sintaxe. Para nós, dentre os símbolos estão as variáveis para denotar pontos (A, B, C,
. . . ) e retas (r, s, t, . . . ) e os símbolos · ∗ · ∗ ·, |• e ∼
=, correspondendo aos termos elementares
estar entre, estar sobre e congruente, respectivamente. São também parte da linguagem as
regras sobre como combinar os termos ou símbolos. Por exemplo, o símbolo |• sempre deve vir
acompanhado de outros dois símbolos: um antes, que deve denotar um ponto, e um depois, que
deve denotar uma reta. As combinações também envolvem os termos e/ou símbolos lógicos e
5
(∧), ou (∨), não (¬), implica (⇒), existe (∃), para todo (∀) e igual (=) e suas regras próprias.
As combinações de símbolos que seguem as regras de formação são as fórmulas da teoria.
Dentre elas temos os axiomas, que formam o conjunto A . Por exemplo, poderíamos escrever o
Axioma 1 de Euclides em símbolos como2
∀A∀B(¬(A = B) ⇒ (∃r(A |• r ∧ B |• r)) ∧ (∀s((A |• s ∧ B |• s) ⇒ s = r))).
Resta comentar um pouco sobre o conjunto R das regras de inferência. Expressando tudo em
símbolos, as relações em R estipulam regras sobre como manipular as fórmulas de maneira que
se “preserve a verdade”, ou seja, que se leve algo verdadeiro em algo também verdadeiro. Por
exemplo, a regra conhecida por modus ponens é a relação entre A2 ∧ (A2 ⇒ A1 ) e A1 — sendo
A2 e A1 fórmulas da teoria — e estabelece que a primeira pode ser substituída pela segunda se
desejado for. Foi essa regra que usamos ingenuamente na seção 0.1 ao dar a ideia intuitiva do
método axiomático: se A2 é uma afirmação já aceita e A1 segue de A2 (isto é A2 ⇒ A1 ), então
deve-se aceitar A1 . Na próxima seção vamos falar um pouco mais dessas regras, porém de uma
maneira um pouco mais flexível. Um teorema é uma fórmula T que admite uma demonstração,
isto é, uma sequência finita de fórmulas que termina em T , partindo de axiomas ou teoremas já
estabelecidos e obtidas através de aplicações das regras em R. O ponto principal para se ter em
mente é que as regras lógicas estipulam quais são os argumentos válidos em uma demonstração,
que a nível de L se traduzem a manipulações de símbolos permitidas. Dependendo do contexto,
um teorema também pode ser chamado de proposição, lema ou corolário. A escolha é subjetiva,
mas em geral reserva-se o título de teorema apenas aos resultados mais importantes de uma
teoria. Uma proposição é um “teorema menor”. Um lema é uma resultado técnico que precede
um teorema, destacado para melhorar a legibilidade da demonstração deste ou pois será usado
depois em outras demonstrações. Um corolário é um teorema que segue diretamente de outro,
com uma demonstração simples.
1.1. Regras lógicas. Boa parte dos teoremas serão fórmulas do tipo A ⇒ B, chamada de
condicional (pois estabelece que vale B sob a condição A). Acerca de demonstrações para
condicionais, vamos assumir duas regras que simplificarão nosso trabalho. A primeira estabelece
que para provar a fórmula A ⇒ B é suficiente assumir A e chegar a B utilizando as outras
regras3. A segunda é a da demonstração por contradição (ou absurdo), que é um tipo de
demonstração indireta. Essa regra estabelece que para se demonstrar A ⇒ B, pode-se assumir
¬B e obter uma contradição usando as regras de inferência e possivelmente A. Uma contradição,
no caso, é uma afirmação do tipo C ∧ ¬C, para alguma fórmula C. Uma contradição é sempre
uma afirmação falsa. A ideia por trás da regra de demonstração por absurdo é de que, por
modus ponens, se partimos de uma afirmação verdadeira e usamos apenas argumentos válidos,
então sempre chegaremos a afirmações verdadeiras. Se chegamos a uma afirmação falsa, então
é porque o ponto de partida ¬B deve ser falso. Sendo ¬B falsa, B deve ser verdadeira. Essa é,
por sinal, a regra do terceiro excluído: A ∨ ¬A é sempre válido. As outras regras (ou axiomas
lógicos4) que adotaremos são:
• ¬(¬(A)) é o mesmo que A;
• ¬(A ⇒ B) é o mesmo que A ∧ ¬B;
• ¬(A ∧ B) é o mesmo que (¬A ∨ ¬B);
• ¬(∀xA(x)) é o mesmo que ∃x¬A(x);
• ¬(∃xA(x)) é o mesmo que ∀x¬A(x);
2Note a necessidade da parte ∀s((A |• s ∧ B |• s) ⇒ s = r) para expressar a unicidade da reta r que passa por
A e B.
3Note a diferença entre isso e provar A ⇒ B diretamente.
4Algumas regras listadas abaixo tecnicamente são axiomas (lógicos) e não regras de inferência, mas para
não confundirmos as coisas vamos chamar de “regra” tanto as regras de inferência quanto tais axiomas lógicos.
Assim “axioma” refere-se apenas aos axiomas próprios da teoria, i.e., que envolvam os símbolos não lógicos.
6
• ((A ⇒ B) ∧ (B ⇒ C)) ⇒ (A ⇒ C)
• (A ∧ B) ⇒ A e (A ∧ B) ⇒ B
• (A ⇒ B) ⇔ (¬B ⇒ ¬A) (contrapositiva);
• (A ∨ B) ⇒ C é o mesmo que (A ⇒ C) ∧ (B ⇒ C) (prova por casos)
• ∀x(x = x);
• ∀x∀y(x = y ⇔ y = x);
• ∀x∀y∀z((x = y ∧ y = z) ⇒ x = z);
• Se x = y e A é uma afirmação sobre x, então A(x) ⇔ A(y).
Embora seja possível, e é bom ter isso em mente, não vamos expressar com símbolos e
fórmulas tudo o que fizermos: vamos por vezes usar os termos por extenso (e seus sinônimos)
para tornar o texto mais palatável. Seguindo esse espírito, as regras lógicas também estarão
implícitas no discurso e não vamos usar os símbolos lógicos em nossas demonstrações.
Exemplo 1.1 (O sistema ∗ ∝ −). Este é um “exemplo brinquedo”, para ilustrar de forma
simples a ideia de uma teoria axiomática. Os símbolos de L são apenas −, ∗ e ∝. O conjunto
A de axiomas é composto pelas fórmulas do tipo
x ∗ − ∝ x−,
em que x representa uma sequência qualquer de hifens. Note que, portanto, sistema tem uma
quantidade infinita de axiomas, mas temos uma maneira simples de descrever todos eles. Por
fim, há apenas uma regra de inferência em R: se x ∗ y ∝ z é uma fórmula válida, em que x,
y e z são sequências de hifens, então x ∗ y− ∝ z− é válida. E isso é tudo: o sistema é assim,
puramente tipográfico (como qualquer sistema). Mas, tratando se de uma linguagem, mesmo
que formal, espera-se que as fórmulas “digam algo”, ou sejam, tenham algum significado. Essa
é a semântica da linguagem, e é a noção de modelo que estabelece sentido para as fórmulas,
como veremos na próxima seção.
1.2. Modelos. Um modelo para a teoria é uma interpretação para os termos elementares (ou
símbolos) que torne os axiomas verdadeiros. Uma tal interpretação confere significado aos
símbolos, e é portanto parte da semântica da linguagem. Vamos considerar aqui que um modelo
é dado por uma associação entre os termos elementares da teoria em questão e elementos da
teoria dos conjuntos, de modo que os axiomas sejam afirmações verdadeiras na teoria dos
conjuntos.
Exemplo 1.2 (Modelos para ∗ ∝ −). Se interpretarmos que no sistema ∗ ∝ − o símbolo ∗
corresponde à adição +, que ∝ corresponde à igualdade = e que uma sequência de n hifens
corresponde ao número n, então as fórmulas do sistema ∗− ∝ expressam algumas verdades
aritméticas. Por exemplo, tomando x como a sequência −, nos é dado por axioma que
− ∗ − ∝ −−,
que expressa 1 + 1 = 2. É claro que qualquer axioma x ∗ − ∝ x− é verdadeiro via essa
interpretação, portanto ela é um modelo. Tomando agora a fórmula − ∗ − ∝ −−, a regra de
inferência nos diz que
− ∗ −− ∝ − − −
é um teorema, que expressa 1 + 2 = 3.
Há, no entanto, pelo menos mais um modelo possível para esse sistema: se interpretarmos ∗
como a igualdade e ∝ como “subtraído de”, isto é, por exemplo, − − − ∝ − − −− significa “3
subtraído de 4”, ou seja, (−3) + 4 = 1. Agora a fórmula − ∗ − ∝ −− expressa 1 = (−1) + 2. É
claro, novamente, que todo axioma é verdadeiro nessa interpretação.
Exemplo 1.3 (Modelo usual da GE). O modelo usual da Geometria Euclidiana é a chamada
Geometria Analítica, isto é, uma variável A (para ponto) é entendida como um elemento qual-
quer (x, y) ∈ R2 ; uma variável r (para reta) é entendida como um elemento qualquer do conjunto
7
de subconjuntos de R2 que satisfazem a equação geral da reta ax+by +c = 0 (sendo a, b, c ∈ R);
o símbolo |• (estar sobre) é entendido como ∈; o símbolo · ∗ · ∗ · (estar entre) tem a interpretação
usual5 e o símbolo ∼ = (congruência), tanto para segmentos como para ângulos, significa “ter a
mesma medida” com relação ao produto interno canônico h , i em R2 .
A existência de um modelo para uma teoria estabelece sua consistência 6, isto é, que ela
não possui contradições. Uma importante característica dos modelos é que todo teorema do
sistema é um fato verdadeiro nos seus modelos. Isto se dá pois os axiomas são verdadeiros no
modelo e as regras de inferência preservam a verdade. Se queremos testar a validade de alguma
conjectura, o primeiro passo é então verificar se a afirmação da conjectura é válida nos modelos
que tivermos à disposição. Se a afirmação não é verdadeira em algum modelo, quer dizer que não
existe demonstração para a conjectura no sistema. Em particular, esse fato também é muito útil
quando queremos investigar se há dependência lógica entre os axiomas de uma teoria, isto é, se
algum axioma An pode ou não ser demonstrado a partir dos outros axiomas A1 , . . . , An−1 (como
a questão sobre o quinto axioma de Euclides). Para isso, podemos excluir An da nossa lista de
axiomas e tentar encontrar dois modelos para a nova teoria (que assume apenas A1 , . . . , An−1
como axiomas): um no qual An é verdadeiro e um no qual An é falso. Pelo que discutimos,
se obtivermos tais modelos isso significa que An é independente dos n − 1 primeiros axiomas,
isto é, não é possível demonstrar An a partir deles. Equivalentemente, podemos proceder como
segue: modificamos o conjunto dos axiomas para7 {A1 , . . . , An−1 , ¬An }. Se essa nova teoria
admitir um modelo quer dizer que ela é consistente, logo An não pode ser demonstrado nela
(caso contrário teríamos a contradição An ∧¬An , pois ¬An agora é um axioma). Em particular,
não pode ser possível demonstrar An a partir apenas de A1 , . . . , An−1 (a não ser que a teoria
original já fosse inconsistente).
2. O disco de Poincaré
Nesta seção veremos brevemente um modelo para a teoria axiomática cujos termos elemen-
tares e as regras lógicas são os mesmos que na GE, estabelecidos nas Seções 0.1 e 1.1, e cujos
axiomas são A1E, A2E, A3E, A4E e o seguinte axioma, que implica a negação do A5E:
Axioma Hiperbólico (H). Para qualquer reta r e qualquer ponto A que não fica sobre r,
existem pelo menos duas retas que passam por A e são paralelas a r.
Seguirá então, pelo que discutimos na Seção 1.2, que A5E não é demonstrável a partir dos
quatro primeiros axiomas de Euclides, o que responde a pergunta milenar discutida na Seção
0.2. Nosso tratamento será informal (inclusive não nos preocuparemos com axiomas extras que
são necessários na formulação moderna, como discutimos), mas salientamos o que veremos aqui
pode ser devidamente formalizado.
O conjunto de pontos do modelo do disco de Poincaré é
D2 = {(x, y) ∈ R2 | x2 + y 2 < 1}.
As retas desse modelo serão conjuntos de pontos de dois tipos: ou diâmetros de D2 , ou arcos
de círculos contidos em D2 e ortogonais à fronteira ∂D2 = {(x, y) ∈ R2 | x2 + y 2 = 1}. A noção
de um ponto A = (x, y) estar sobre uma reta r neste modelo é simplesmente A ∈ r. A noção
de um ponto A estar entre B e C significa que eles ficam sobre uma mesma reta r e B e C
ficam mais próximos de ∂D2 do que A quando caminha-se em direção a ∂D2 sobre r.
Resta falarmos da noção de congruência. Lembremos que na interpretação usual da geometria
Euclidiana duas figuras são congruentes se uma pode ser levada identicamente sobre a outra via
5Veremos isso em mais detalhes na Seção 5.1.
6Assumindo-se que a teoria dos conjuntos é consistente.
7Aqui também pode-se tomar, ao invés de ¬A , algum outro axioma que implique ¬A como teorema.
n n
Faremos isso para argumentar que o Axioma 5 de Euclides não é demonstrável a partir dos outros.
8
movimentos rígidos (isometrias). Para o caso do disco, precisamos então entender quais são os
análogos à translações, rotações e reflexões. No que segue será conveniente fazer a identificação
R2 ∼= C, entendendo os pontos de D2 como números complexos.
Uma isometria de D2 é uma transformação f : D2 ! D2 do tipo
Z −A
Z 7−! eiθ ,
1 − ĀZ
para θ ∈ R e A ∈ D2 . O conjunto de todas as transformações desse tipo, com a operação de
composição, forma o grupo H de isometrias de D2 . Note que eiθ é uma rotação de ângulo θ em
torno da origem. A expressão racional (Z − A)/(1 − ĀZ) corresponde a o que seria o análogo a
um tipo de translação do disco: uma deformação que leva D2 em D2 e leva o ponto A à origem.
Uma importante classe de elementos em H é a das inversões, que serão os nossos análogos às
reflexões do caso Euclidiano. Seja r uma reta de D2 , que é portanto ou um diâmetro de D2 ou
um arco de um círculo c que intersecta ∂D2 ortogonalmente. Caso a reta seja um diâmetro,
a inversão com relação a r é simplesmente a reflexão no sentido usual. No segundo caso, a
inversão de um ponto A ∈ D2 com relação a r é a inversão geométrica A0 de A com relação
−−!
ao círculo c. Isto é, A0 é o único ponto na semirreta OB (sendo O o centro de c) satisfazendo
OA · OA0 = ρ2 (sendo ρ o raio de c). Geometricamente, essa inversão ir : D2 ! D2 “reflete”
os pontos de D2 com relação a r, isto é, de fato i(D2 ) = D2 , mas os pontos em D2 de um lado
de r são levados ao outro lado e vice-versa. Segue que a composição de inversões é ainda uma
isometria de D2 . De fato, é possível mostrar o seguinte:
Proposição 2.1. Qualquer elemento de H é uma composição de inversões. Isto é, na linguagem
de grupos, H é gerado pelas reflexões.
É também interessante que relacionemos H com uma classe maior de transformações do
plano complexo. Para números complexos a, b, c, d ∈ C satisfazendo ad − bc 6= 0, uma aplacação
f : C \ {−d/c} ! C do tipo
az + b
z 7−!
cz + d
é uma transformação de Möbius. Não é difícil verificar que qualquer elemento de H é uma
transformação de Möbius. De fato, H é precisamente o grupo das transformações de Möbius
f que preservam D2 , isto é, tais que f (D2 ) = D2 . Um fato que nos ajuda a visualizar os
elementos de H, portanto, é o de que toda transformação de Möbius desse tipo pode ser vista
como a projeção estereográfica de uma rotação da esfera S2 ⊂ R3 . Lembrando: a projeção
estereográfica é uma projeção da esfera S2 ⊂ R3 que estabelece uma bijeção entre S2 \ {N }
(sendo N um ponto da esfera, digamos o polo norte) e o plano tangente à esfera no ponto
−N = S. Um ponto A sobre a esfera é levado pela projeção ao ponto no plano onde a única
reta em R3 passando por N e por A intersecta o plano.
Agora que entendemos melhor como são as isometrias do disco de Poincaré, podemos inter-
pretar o termo congruente: duas figuras são congruentes se existe um elemento de H que leva
uma identicamente sobre a outra. Para estabelecermos que D2 é mesmo um modelo restaria
checarmos que os axiomas são válidos. Vamos ver o caso de A1E: sejam A e B pontos dados.
!
Se o segmento (Euclidiano) AB passa pela origem, então a reta AB é um diâmetro de D2 : a
!
intersecção com D2 da reta (Euclidiana) determinada por A e B. Caso contrário, a reta AB
será um arco de círculo, que pode ser construído com régua e compasso como segue:
(1) Construa a inversão A0 do ponto A, com relação a ∂D2 ,
(2) Construa a inversão B 0 do ponto B, com relação a ∂D2 ,
(3) Construa o ponto médio M do segmento AA0 ,
(4) Construa o ponto médio N do segmento BB 0 ,
(5) Trace a reta r perpendicular ao segmento AA0 passando por M ,
9
(6) Trace a reta s perpendicular ao segmento BB 0 passando por N ,
(7) Considere o ponto C onde r e s se intersectam,
(8) Trace o círculo c de centro C e raio CA (ele também passará por B).
(9) O arco de círculo consistindo da parte de c no interior do disco D2 é a reta procurada.
Para checar a validade do Axioma H, dada uma reta r e um ponto A fora dela pode-se
−! −!
construir duas retas distintas AR1 e AR2 paralelas a r usando-se a construção acima, sendo
R1 , R2 ∈ ∂D2 os pontos onde r se intersectaria com a fronteira do disco (se prolongada).
Omitiremos a checagem dos outros axiomas, mas todos são verdadeiros nessa interpretação.
Pelas nossas considerações lógicas da Seção 1.2, segue que A5E não é demonstrável a partir dos
outros quatro axiomas de Euclides, pois encontramos um modelo para a teoria com os mesmos
termos elementares e mesma lógica, mas com os axiomas
{A1E, . . . , A4E, H}
(e o Axioma H claramente implica ¬A5E). Descobrimos assim, também, a Geometria Hiper-
bólica.
3. Axiomas de incidência
Vamos agora começar a axiomatização moderna da geometria Euclidiana. Por ora, vamos
desenvolver a chamada Geometria de Incidência. Então, mantendo apenas as noções de lógica
vistas na seção anterior, vamos recomeçar a estabelecer nosso conjunto de axiomas8 e os nossos
termos elementares. Como o nome sugere, esta teoria refere-se apenas à noção de incidência
entre pontos e retas. Ela é a geometria feita apenas com régua (sem compasso). Os nossos
termos elementares por enquanto serão apenas ponto, reta e incidir (que é sinônimo do nosso
antigo estar sobre e passar por e que também denotaremos com o símbolo |). •
Axioma de Incidência 1 (I1). Para todo ponto A e todo ponto B diferente de A existe uma
única reta que incide em A e B.
Este primeiro axioma é portanto apenas a repetição do Axioma 1 de Euclides. Como antes,
diremos que a reta r de qual ele garante a existência é a reta que passa por A e B, também
!
denotada por AB.
Axioma de Incidência 2 (I2). Para toda reta r existem pelo menos dois pontos distintos que
incidem em r.
Axioma de Incidência 3 (I3). Existem três pontos distintos tais que nenhuma reta incide em
todos eles.
Estes axiomas completam algumas falhas na axiomática de Euclides, como já discutimos. O
Axioma I2 garante que existem pelo menos dois pontos sobre cada reta (e nada impede de que
hajam mais) e o Axioma I3 nos garante “espaço suficiente”: impossibilita modelos em que toda
a teoria acontece sobre apenas uma reta. Note, além disso, que o Axioma I3 é uma conjunção
de duas afirmações: existem pelo menos 3 pontos distintos e para qualquer reta, pelo menos um
destes pontos não incide nela. Em particular, por nossa regra (A ∧ B) ⇒ A, podemos concluir
que existem pelo menos 3 pontos distintos A, B e C. Aplicando agora o Axioma I1 para cada
um dos possíveis pares desses pontos concluímos que existem também pelo menos três retas
! ! !
distintas AB, AC e BC.
Definição 3.1 (Pontos colineares). Três ou mais pontos são colineares se existe uma reta que
incide em todos eles.
8Não estamos mais tomando os axiomas de Euclides como axiomas, portanto.
10
Com essa nova terminologia o Axioma I3 pode ser reformulado como “existem três pontos
não-colineares”.
Definição 3.2 (Retas concorrentes). Três ou mais retas são concorrentes se existe um ponto
que incide em todas elas.
Como anteriormente, quando A |• r e A |• s dizemos que “r e s se intersectam em A” ou também
“r e s têm o ponto A em comum”. Note a dualidade entre as noções de colinearidade e con-
corrência: elas são definidas exatamente da mesma maneira, apenas com as palavras “ponto” e
“reta” trocadas.
Definição 3.3 (Retas paralelas). Duas retas são paralelas se elas são distintas e nenhum ponto
incide em ambas.
Denotaremos que r é paralela a s por rks. Já podemos demonstrar nossas primeiras propo-
sições.
Proposição 3.4. Se r e s são retas distintas que não são paralelas, então elas se intersectam
em um único ponto.
Demonstração. Como r e s não são paralelas existe pelo menos um ponto A que incide em
ambas. Vamos demonstrar por contradição que este ponto é único. De fato, suponha que B é
distinto de A e também incide em r e s. Temos então dois pontos distintos A e B tais que r e s
incidem em A e B. Pelo Axioma I1 segue que r = s, o que contradiz nossa hipótese. Portanto
A é o único ponto incidindo tanto em r quanto em s.
Corolário 3.5. Se três retas distintas são concorrentes, então o ponto onde elas se intersectam
é único.
Demonstração. Suponha por contradição que as retas se intersectam em dois pontos distintos
A e B. Pela Proposição 3.4, o ponto de intersecção entre duas delas é único. Absurdo.
Proposição 3.6. Existem três retas distintas que não são concorrentes.
Demonstração. Pelo Axioma I3 exitem três pontos distintos A, B e C tais que nenhuma reta
! ! !
incide em todos eles. Pelo Axioma I1, existem as retas AB, AC e BC, que são duas a duas
distintas. Por contradição vemos que elas não são concorrentes: se elas fossem concorrentes,
então, pelo Corolário 3.5, concluiríamos que A = B = C.
Proposição 3.7. Para qualquer reta r, existe pelo menos um ponto que não incide em r.
Proposição 3.8. Para qualquer ponto A, existe pelo menos uma reta que não incide em A.
Proposição 3.9. Para qualquer ponto A, existem pelo menos duas retas que incidem em A.
Exercício 3.10. Demonstre as Proposições 3.7, 3.8 e 3.9.
3.1. Modelos para a Geometria de Incidência. Antes de mais nada, notemos que o modelo
usual da Geometria Euclidiana (a interpretação de pontos e retas como figuras num plano, como
estamos acostumados) é um modelo para a Geometria de Incidência. De fato, a Geometria
Euclidiana é uma sub-teoria da Geometria de Incidência (pois todo axioma da GI é axioma da
GE), e obviamente todo modelo para uma sub-teoria é também modelo para a teoria.
Exemplo 3.11 (Modelo dos três pontos). Considere a seguinte interpretação para nossa teoria:
os pontos são elementos do conjunto {X, Y, Z}, as retas são os subconjuntos de dois elementos
{X, Y }, {X, Z} e {Y, Z}, e |• significa ∈. Para checar se essa interpretação é um modelo,
precisamos verificar se os axiomas se tornam verdadeiros através dela. Para I1, se A e B são
pontos, {A, B} é a única reta que incide neles, isto é, tal que A, B ∈ {A, B}. Para I2, se {A, B}
11
é qualquer reta, então A e B são dois pontos distintos incidindo nela. Por fim, para I3 temos
os três pontos X, Y e Z distintos e não-colineares. Portanto este é de fato um modelo. Já
sabemos então que as proposições que vimos até agora devem ser verdadeiras nesse modelo.
Exercício 3.12. Verifique que as Proposições 3.4, 3.6 e 3.9 são verdadeiras no modelo dos três
pontos.
Este exemplo também nos provê uma boa ilustração para o fato de que podem existir modelos
diferentes para uma mesma teoria tais que alguns fatos são verdadeiros em um modelo e falsos
em outro. Façamos uma comparação com o modelo usual da Geometria Euclidiana. O Axioma
A5E é uma afirmação sobre incidência: para toda reta r e todo ponto A em que r não incide,
existe uma reta s tal que A |• s e rks. O Axioma A5E é verdadeiro no modelo usual, mas não
é verdadeiro no modelo {X, Y, Z}. De fato, nem existem retas paralelas neste modelo! Pelo
que vimos anteriormente, isso significa que não existe demonstração para A5E na Geometria
de Incidência.
Vejamos outro modelo:
Exemplo 3.13 (Modelo dos quatro pontos). Neste modelo os pontos são elementos do conjunto
{A, B, C, D} e as retas são subconjuntos com dois elementos e |• significa ∈, como no Exem-
plo 3.11 (note que agora temos 6 retas). Este é um modelo para a Geometria de Incidência
(verifique!) e nele o Axioma A5E é verdadeiro (verifique também!).
4. O plano projetivo
Antes de prosseguirmos com a axiomatização da GE, veremos nesta seção mais um modelo
para a geometria de incidência, chamado de plano projetivo. Este é, de fato, um modelo para
a chamada Geometria Elíptica, na qual se postula o seguinte axioma:
Axioma Elíptico (E). Não existem retas paralelas.
Definição 4.1. Um plano projetivo é um modelo para a geometria de incidência no qual vale o
Axioma E e a seguinte versão mais forte do Axioma I2, que chamaremos de I2*: qualquer reta
incide em pelo menos três pontos distintos.
O nome “plano projetivo” se dá ao fato de que este modelo é a formulação matemática das
teorias de perspectiva criadas pelos artistas do Renascimento para representar cenas tridimen-
sionais realisticamente nas telas via projeção. É neste modelo que acontece algo que muito se
ouve falar: “retas paralelas se encontram no infinito”. Pensando intuitivamente no caso de uma
pintura, a projeção se dá como segue: a partir do ponto A a ser projetado traça-se um segmento
até o ponto de observação O. Esse segmento deve cruzar o plano da tela em algum ponto A0 ,
que é a projeção de A. Isso faz com que retas paralelas contidas num plano que corta o plano da
tela se projetem encontrando-se em algum ponto. Algo similar acontece com fotografias e com
a nossa própria visão (com a diferença de que nesses casos a imagem é projetada após passar
pelo “ponto de observação”, e portanto é invertida). Por isso percebemos certas retas paralelas
(por exemplo trilhos de trem, quando se olha a partir de um cruzamento) como se encontrando
no horizonte.
Passemos à formulação matemática, que é feita estendendo-se o plano Euclidiano de modo
a adicionar os chamados “pontos no infinito”. Mais precisamente, vamos chamar de plano afim
qualquer modelo para a Geometria de Incidência no qual se verifique o Axioma 5 de Euclides
(por exemplo, o modelo usual da Geometria Euclidiana). Vamos então construir um plano
projetivo adicionando pontos a um plano afim de modo que quaisquer duas retas paralelas
se intersectem em um desses pontos. Será também necessário que adicionemos uma “reta no
infinito” que incida em todos estes pontos adicionais.
12
Seja então A2 um plano afim e considere a relação ∼ no conjunto das retas de A2 , dada por
r ∼ s quando r = s ou rks. Essa é uma relação de equivalência, isto é, para quaisquer retas r,
s e t, temos
• r ∼ r (reflexiva),
• r ∼ s ⇒ s ∼ r (simétrica),
• (r ∼ s) ∧ (s ∼ t) ⇒ r ∼ t (transitiva).
Exercício 4.2. Verifique que de fato a relação ∼ é uma relação de equivalência.
Podemos então considerar as classes de equivalência sob esta relação: a classe [r] consiste do
conjunto de todas as retas s tais que r ∼ s. Em outras palavras, [r] é o conjunto que contém
r e todas as retas paralelas a r. A vantagem técnica de passar às classes é que isso nos leva de
equivalências para igualdades: r ∼ s ⇔ [r] = [s]. Chamaremos as classes de equivalência que
criamos de pontos no infinito.
Agora podemos estender nosso plano afim A2 para um novo modelo P2 , adicionando os pontos
no infinito. A noção de incidência é estendida declarando-se que [r] |• s para toda s ∈ [r]. Em
outras palavras, estipulamos que o novo ponto [r] incide na reta r e em qualquer reta s paralela
a r. Portanto no modelo P2 as retas r e s não são mais paralelas: elas se intersectam no ponto
[r] = [s]. Para que P2 seja de fato um modelo para a geometria de incidência precisamos ainda
adicionar uma reta para que o Axioma I1 seja verdadeiro. Definimos a reta no infinito r∞ como
o conjunto dos pontos no infinito.
Proposição 4.3. P2 é um plano projetivo.
Demonstração. Precisamos verificar que os Axiomas I1, I2*, I3 e E são verdadeiros na inter-
pretação P2 que demos acima.
I1: Se A e B são pontos ordinários (isto é, pontos em A2 ) então existe uma única reta que
incide neles, pois I1 é válido em A2 . Além disso eles não incidem em r∞ por construção. Se A é
!
ordinário e B = [r] é um ponto no infinito, então temos dois casos: ou A |• r e portanto AB = r,
!
ou A incide com uma única reta s paralela a r (logo B |• s) e portanto AB = s. Por fim, se A e
!
B são pontos no infinito, AB = r∞ .
I2*: Cada reta r de A2 incide em pelo menos dois pontos distintos (pois I2 vale em A2 ) e
adicionamos o ponto [r] que verifica [r] |• r. Resta verificar I2* para r∞ . Pela Proposição 3.6
temos três retas distintas não-concorrentes r, s e t em A2 . Como elas se intersectam duas a
duas (logo não são paralelas), temos que [r], [s] e [t] são três pontos distintos sobre r∞ .
I3: Vale em A2 , portanto vale em P2 .
E: Se duas retas ordinárias (i.e., retas de A2 ) não se intersectam em A2 , então elas são
paralelas em A2 e portanto pertencem à mesma classe de equivalência. Sendo assim elas se
intersectam no ponto no infinito determinado por tal classe. Ademais, uma reta ordinária s
sempre intersecta r∞ em [s].
Note o que acontece com uma reta ordinária depois que a estendemos com um ponto no
infinito: ela se torna uma curva fechada. De fato, se rks em A2 então elas se intersectam
em pontos no infinito correspondendo a seus prolongamentos para as duas direções possíveis.
Porém, pela Proposição 3.4, esses pontos devem ser o mesmo. Portanto se percorremos uma
reta em uma direção “até o infinito e além”, retornamos ao ponto de partida pelo outro lado da
reta. O próximo exemplo nos dá uma maneira melhor de visualizarmos P2 e esse fenômeno em
particular.
Exemplo 4.4. Vamos usar uma projeção da esfera S2 ⊂ R3 ao plano afim A2 , identificado com
um plano tangente à esfera, chamada de projeção gnomônica. Ela é parecida com a projeção
estereográfica, com a diferença de que a projeção estereográfica é feita a partir de um polo da
esfera, e a gnomônica é feita a partir do centro da esfera. Mais precisamente, suponha que o
13
plano A2 é tangente à S2 no polo norte, e seja O o centro da esfera. A projeção gnomônica
é uma bijeção entre o hemisfério norte Hem e A2 , mapeando um ponto A0 no hemisfério ao
ponto A no plano que é dado pela interseção de A2 com a única reta passando por A0 e O.
Note que uma reta r no plano é levada, pela projeção inversa, a um arco de grande círculo9 em
Hem. Se rks no plano, então os planos que estas retas determinam com O se intersectam numa
linha contida no plano do equador da esfera. Segue que os grandes círculos correspondentes se
intersectam em dois pontos antipodais no equador da esfera. Podemos então visualizar P2 , via
esta projeção, como o hemisfério norte aberto (correspondendo a A2 via a projeção gnomônica)
mais os pontos no equador da esfera, que correspondem aos pontos no infinito. No entanto,
pontos antipodais no equador devem ser identificados, pois correspondem ao ponto no infinito
onde retas paralelas se intersectam, que já vimos, devem ser únicos pela Proposição 3.4. Mais
precisamente, temos P2 ∼ = Hem/ ∼, sendo ∼ a relação que identifica pontos antipodais no
equador.
Embora o Exemplo 4.4 nos dê uma maneira bastante geométrica de pensar sobre P2 , ainda
não é possível fazermos um desenho perfeitamente realístico de P2 , pois precisamos identificar
os pontos antipodais no equador. De fato, demonstra-se que é impossível visualizar P2 como
um objeto no espaço tridimensional R3 (são necessárias ao menos 4 dimensões). Por isso é bom
que tenhamos várias maneiras de pensar sobre P2 . O próximo exemplo nos dá mais uma, de
sabor mais algébrico.
Exemplo 4.5. Em R3 , considere o conjunto RP2 das retas passando pela origem. Note que RP2
pode ser visto como (R3 \ {0})/ ∼, sendo ∼ a relação de equivalência (x1 , y1 , z1 ) ∼ (x2 , y2 , z2 )
se, e somente se, (x1 , y1 , z1 ) = λ(x2 , y2 , z2 ) para algum λ ∈ R. As classes de equivalência são
usualmente chamadas de coordenadas homogêneas, e denotadas por [x : y : z]. Há uma bijeção
entre os elementos de RP2 e P2 . De fato, cada reta em RP2 intersecta a esfera S2 ⊂ R3 em
dois pontos antipodais. Portanto qualquer reta em RP2 que não esteja no plano do equador
da esfera fica identificada com exatamente um ponto no hemisfério norte Hem. Já as retas
contidas no plano do equador cruzam Hem em dois pontos antipodais. Como tais pontos são
identificados em P2 , obtemos a bijeção procurada. Isso nos indica que RP2 deve ser de fato um
plano projetivo.
Ocorre que há uma interpretação muito curiosa e conveniente para os termos ponto, reta
e incidir em RP2 : pontos e retas são ambos interpretados como coordenadas homogêneas
[x : y : z], e dizemos que o ponto [x : y : z] incide na reta [a : b : c] quando
ax + by + cz = 0.
Vejamos que RP2 é mesmo um plano projetivo estabelecendo que RP2 é a extensão do plano
afim R2 (o usual, visto em GA). Faremos uma bijeção entre as interpretações mapeando cada
ponto (x, y) ∈ R2 em [x : y : 1] ∈ RP2 e cada reta {(x, y) ∈ R2 | ax + by + c = 0} de R2 na reta
[a : b : c] de RP2 . Verifica-se facilmente que essa correspondência é injetiva e preserva a noção
de incidência. Mapeamos ainda a reta r∞ na reta [0 : 0 : 1] em RP2 . Um “ponto no infinito”
sobre esta reta é portanto um ponto da forma [a : b : 0], que corresponde ao ponto no infinito
representando a classe de equivalência de todas as retas paralelas a {(x, y) ∈ R2 | ax + by = 0}.
Isso estabelece um isomorfismo entre as interpretações e portanto RP2 é de fato um plano
projetivo.
É instrutivo salientar uma construção similar à de RP2 pode ser feita trocando-se R por
qualquer corpo F (por exemplo Q, C ou mesmo Zp , com p primo), obtendo-se assim outros
planos projetivos. Isso ilustra a interação entra a álgebra, a geometria e até a teoria dos
números (por exemplo, aplicando-se as intuições geométricas de RP2 a Zp P2 ) etc.
9Lembre-se que um grande círculo numa esfera é um círculo determinado pela interseção da esfera com um
plano que passa por seu centro, neste caso o plano determinado por r e O.
14
O fato de tanto os pontos quanto as retas serem interpretados como coordenadas homogêneas
no Exemplo 4.5 traz à tona a dualidade entre estes termos na geometria projetiva. De fato, se
P é um plano projetivo, considere a interpretação dual P∗ na qual os pontos são as retas em P e
as retas são os pontos em P (incidência tem o mesmo significado pois é uma relação simétrica:
um ponto incide em uma reta se e somente se a reta incide no ponto). Então P∗ também é um
plano projetivo:
I1: Precisamos verificar que quaisquer dois pontos distintos de P∗ incidem em uma única
reta, o que equivale a mostrar que quaisquer duas retas distintas de P incidem em um
único ponto. A existência desse ponto é garantida pelo Axioma E, e a unicidade pela
Proposição 3.4.
I2*: Precisamos verificar que em qualquer reta de P∗ incidem pelo menos três pontos dis-
tintos, o que significa verificar que em qualquer ponto A de P incidem pelo menos três
retas distintas. Pela Proposição 3.8, existe uma reta r que não incide em A. Como P
é um plano projetivo, sabemos que existem pelo menos três pontos distintos em r. O
Axioma I1 nos dá portanto três retas distintas incidindo em A.
I3: Para verificar I3 precisamos mostrar que existem três pontos não colineares em P∗ , ou
seja, três retas não-concorrentes em P, o que segue da Proposição 3.6.
E: A interpretação de E em P∗ corresponde em P a dois pontos distintos quaisquer incidirem
em alguma reta, o que é garantido pelo Axioma I1.
Como consequência, para qualquer teorema que valha em qualquer plano projetivo, existe um
teorema dual obtido trocando-se “ponto” e “reta” e vice-versa (e as noções duais correspondentes,
por exemplo, “colineares” e “concorrentes”) que também vale automaticamente.
5. Axiomas de ordem
Nesta seção vamos enriquecer nossa linguagem adicionando o termo estar entre (e seus sinô-
nimos) e alguns axiomas que versam sobre ele. Dentre as consequências, alguns modelos que
vimos anteriormente para a Geometria de Incidência deixarão de ser modelos para nossa teoria,
pois teremos mais axiomas que deverão ser satisfeitos pelos modelos. Como anteriormente,
vamos usar a notação A ∗ B ∗ C para denotar que “o ponto B está entre A e C”. A primeira
coisa que estabeleceremos é que esta é uma noção que só se aplica a pontos colineares:
Axioma de Ordem 1 (O1). Se A ∗ B ∗ C então A, B e C são três pontos distintos sobre uma
mesma reta, e também vale C ∗ B ∗ A.
Com os cinco axiomas de Euclides, apenas, não havia como garantirmos que “o ponto B
está entre A e C” implica que eles são colineares. A segunda parte do Axioma O1 também
estabelece que “entre A e C” tem o mesmo sentido que “entre C e A”.
Axioma de Ordem 2 (O2). Dados dois pontos distintos B e D, existem pontos A, C e E
!
que incidem na reta BD de forma que A ∗ B ∗ D, B ∗ C ∗ D e B ∗ D ∗ E.
!
Esse axioma garante, então, que sempre existe algum ponto entre B e D e que a reta BD
não termina em B nem em D. Note também que este axioma implica que os pontos sobre uma
reta não formam um conjunto discreto (como o caso de N ⊂ R): sempre é possível encontrar
um ponto entre outros dois pontos dados. Em particular, os modelos para a GI que vimos nos
Exemplos 3.11 e 3.13 não são mais modelos para nossa teoria.
Axioma de Ordem 3 (O3). Se A, B e C são três pontos distintos colineares, então um, e
apenas um, deles fica entre os outros dois.
O Axioma O3 garante que as retas não são circulares. Planos projetivos, portanto, não
são mais modelos para nossa teoria. Segue que em Geometria Projetiva (e Elíptica) não é
15
possível ter axiomas de ordem correspondendo a nossa noção intuitiva desse conceito; em lugar
deles são estabelecidos os chamados axiomas de separação, que veremos mais à frente em outra
oportunidade.
Lembremos que para dois pontos distintos A e B o segmento AB é definido como a união
−!
de {A, B} com o conjunto de todos os pontos entre A e B. O raio AB é a união de AB com
o conjunto de todos os pontos C tais que A ∗ B ∗ C. Note que o Axioma O2 garante que tais
pontos existem, o Axioma O3 garante que C não está entre A e B e o Axioma O1 garante que
−!
C não é igual a A nem a B. Em particular, o raio AB é maior que o segmento AB. Por fim,
−! !
note que o Axioma O1 garante que todos os pontos em AB incidem na reta AB.
Proposição 5.1. Para quaisquer pontos distintos A e B, valem
−! −!
(1) AB ∩ BA = AB,
−! −! !
(2) AB ∪ BA = {AB}.
−!
Demonstração. Demonstremos (1). Pela definição de segmento e semirreta, temos AB ⊂ AB e
−! −! −!
AB ⊂ BA, portanto AB ⊂ AB ∩ BA. Resta mostrar a inclusão contrária.
−! −!
Seja então C ∈ AB ∩ BA e mostremos que C ∈ AB. Se C = A ou C = B, claramente
C ∈ AB. Podemos então supor que C é diferente de A e de B. Neste caso, pela definição de
raio, temos ou A ∗ C ∗ B, ou A ∗ B ∗ C, ou C ∗ A ∗ B. Se vale A ∗ B ∗ C, então C não pertence
−! −!
a BA; e se vale C ∗ A ∗ B, então C não pertence a AB. Portando deve valer A ∗ C ∗ B, o que
implica C ∈ AB.
A prova do item (2) é similar e deixada como exercício.
Exercício 5.2. Termine a demonstração da Proposição 5.1 demonstrando o item (2).
Definição 5.3 (Lados de uma reta). Seja r uma reta qualquer e sejam A e B pontos que não
incidem em r. Se A = B ou se o segmento AB não contém pontos que incidem em r, dizemos
que A e B estão do mesmo lado de r. Se A 6= B e o segmento AB contém pontos que incidem
em r, dizemos que A e B estão em lados opostos de r.
A regra lógica do terceiro excluído garante que um dos casos sempre acontece: ou A e B
estão do mesmo lado de r ou eles estão em lados opostos.
Axioma de Ordem 4 (O4). Para qualquer reta r e quaisquer três pontos A, B e C que não
incidem em r, valem:
(1) Se A e B estão do mesmo lado de r e B e C estão do mesmo lado de r, então A e C
estão do mesmo lado de r.
(2) Se A e B estão de lados opostos de r e B e C estão de lados opostos de r, então A e C
estão do mesmo lado de r.
Corolário 5.4. Com a notação do Axioma O4, se A e B estão em lados opostos de r e B e C
estão do mesmo lado de r, então A e C estão em lados opostos de r.
O Axioma O4 garante que nossa geometria é bidimensional (note que ele não vale no espaço
3D). Podemos agora definir um lado de uma reta r como o conjunto ladorA de todos os pontos
que ficam do mesmo lado que um dado ponto A que não incide em r. Pelo Axioma O4(2), se
C fica do mesmo lado de r que A, então ladorA = ladorC . Também é comum chamar um lado
de r de semiplano com fronteira r.
Proposição 5.5. Qualquer reta r é a fronteira de exatamente dois semiplanos e tais semiplanos
não possuem pontos em comum.
Demonstração. Seja r uma reta qualquer. Pela Proposição 3.7, existe um ponto A que não
incide em r. Pelo Axioma I2, existe um ponto O que incide em r. Pelo Axioma O2, existe
16
!
um ponto B sobre OA tal que B ∗ O ∗ A. Portanto A e B estão em lados opostos de r, por
definição, e segue que r tem pelo menos dois lados.
Para mostrarmos que r tem exatamente dois lados, seja C um ponto distinto de A e B e
não incidente com r. Se C e B não estão do mesmo lado de r, então C e A estão do mesmo
lado de r, pelo Axioma O4. Portanto o conjunto dos pontos que não incidem com r é a união
ladorA ∪ ladorB . Resta mostrar que os lados não possuem pontos em comum, ou seja, que esta
união é disjunta. De fato, suponha por absurdo que D está em ambos os lados de r. Então A
e D ficam do mesmo lado de r e B e D ficam do mesmo lado de r, portanto pelo Axioma O4,
A e B ficam do mesmo lado de r, o que é uma contradição.
Proposição 5.6. Se A ∗ B ∗ C e A ∗ C ∗ D, então B ∗ C ∗ D e A ∗ B ∗ D.
Demonstração. Sejam A, B, C e D pontos tais que A ∗ B ∗ C e A ∗ C ∗ D. Provemos que
! !
B ∗ C ∗ D. Pelo Axioma O1, A, B, C são colineares, portanto AB = AC e A, C e D são
! !
colineares, portanto AC = AD, logo os quatro pontos A, B, C e D são colineares. Denotemos
a reta que passa por todos eles por r. Pela Proposição 3.7, existe um ponto E que não incide
!
em r. Considere a reta EC. Como A ∗ C ∗ D, segue que AD intersecta r em C. Portanto A e
!
D estão em lados opostos de EC, por definição.
! ! !
Suponha por absurdo que A e B não estão do mesmo lado de EC. Então EC e AB se
intersectam em algum ponto entre A e B, por definição. Pela Proposição 3.4 tal ponto precisa
ser C. Logo A ∗ B ∗ C e A ∗ C ∗ B, o que contradiz o Axioma O3. Portanto A e B estão do
!
mesmo lado de EC. ! !
Como A e D estão em lados opostos de EC e A e B estão do mesmo lado de EC, segue Pelo
!
Corolário 5.4, segue que B e D estão de lados opostos de de EC. Portanto, o ponto C onde
! ! !
EC e BD = AB se intersectam fica entre B e D, isto é, B ∗ C ∗ D.
!
Argumento análogo usando a reta EB mostra que A ∗ B ∗ D.
Assim como uma reta r separa o plano em dois semiplanos — os lados de r —, um ponto P
sobre r separa r em duas semirretas. Provemos isso.
Proposição 5.7. Sejam A, B e C três pontos colineares, sobre uma reta r, tais que C ∗ A ∗ B.
−! −!
Então para qualquer ponto P incidindo em r, ou P pertence a AB ou P pertence a AC.
−!
Demonstração. Seja P qualquer tal que P |• r. Pela lei do terceiro excluído, ou P ∈ AB ou
−! −! −!
P ∈ / AB. Se P ∈ AB então terminamos, portanto assuma que P ∈ / AB. Pelo Axioma O3,
−!
isso significa que P ∗ A ∗ B. Se P = C então P ∈ AC, por definição, portanto assuma que
P 6= C. Pelo Axioma O3, acontece exatamente uma das três possibilidades seguintes: C ∗A∗P ,
C ∗ P ∗ A ou P ∗ C ∗ A.
Suponha por absurdo que vale C ∗ A ∗ P . Pelo Axioma O3 novamente, vale então uma das
três possibilidades: P ∗ C ∗ B, C ∗ P ∗ B ou C ∗ B ∗ P . Se P ∗ C ∗ B, então segue de P ∗ A ∗ B e
da Proposição 5.6 que A ∗ B ∗ C, o que contradiz nossa hipótese. Se C ∗ P ∗ B então segue de
segue da nossa hipótese da prova por contradição C ∗ A ∗ P e da Proposição 5.6 que A ∗ P ∗ B,
o que contradiz P ∗ A ∗ B (que estabelecemos no parágrafo anterior). Por fim, se C ∗ B ∗ P ,
então segue de C ∗ A ∗ B (pela hipótese e pelo Axioma O1) e da Proposição 5.6 que A ∗ C ∗ P ,
o que contradiz nossa hipótese da prova por contradição. Portanto em qualquer caso obtemos
um absurdo, logo C ∗ A ∗ P não vale.
−!
Logo, vale C ∗ P ∗ A ou P ∗ C ∗ A, o que significa que P ∈ AC.
O próximo teorema leva o nome de Moritz Pasch, matemático alemão do século XIX que
percebeu que Euclides usava este teorema sem demonstração. Intuitivamente, o teorema afirma
algo de fato um tanto óbvio: se uma reta “entra” em um triângulo, ela deve “sair” por algum
dos outros lados.
17
Teorema 5.8 (Pasch). Se A, B e C são três pontos distintos não-colineares e r é uma reta
que intersecta AB em um ponto entre A e B, então r também intersecta AC ou BC. Além
disso, se C não incide em r, então r não intersecta ambos AC e BC simultaneamente.
Demonstração. Pela lei do terceiro excluído, ou C incide em r ou não. Note que se C |• r
terminamos, portanto podemos supor que C não incide em r.
Por hipótese, A e B não incidem em r e o segmento AB intersecta r, portanto A e B ficam
em lados opostos de r. Segue pela Proposição 5.5 que C ∈ ladorA ou C ∈ ladorB .
Se C ∈ ladorA então C e B ficam em lados opostos de r, pelo Axioma O4. Portanto r
intersecta BC e não intersecta AC. Similarmente, se C ∈ ladorB , então r intersecta AC e não
intersecta BC.
Apresentamos os resultados a seguir sem demonstração, pois todas elas envolvem apenas
aplicações similares das técnicas que vimos até agora.
Proposição 5.9. Se A ∗ B ∗ C, então AC = AB ∪ BC e AB ∩ BC = {B}.
−! −! −! −−!
Proposição 5.10. Se A ∗ B ∗ C então AB = AC e BA ∩ BC = {B}.
Exercício 5.11. Demonstre as Proposições 5.9 e 5.10.
Relembremos a definição de ângulo: um ângulo com vértice em A consiste de um ponto A e
−! −!
duas semirretas distintas e não-opostas, chamadas de lados, AB e AC. Como antes, usaremos
a notações ^A, ^BAC ou ^CAB para esse ângulo.
Definição 5.12 (Interior de um ângulo). Dado um ângulo ^CAB, dizemos que um ponto D
! !
fica no interior de ^CAB, se D ∈ ladoAC
B ∩ ladoAB
C .
5.1. Planos afins sobre corpos ordenados. Vimos na Seção 4 que R2 é um plano afim —
isso é, um modelo para a GI verificando também A5E — quando munido das noção de reta usual
da GA. Mais geralmente, F2 é um plano afim, para qualquer corpo F. Quando introduzimos os
axiomas de ordem, F2 deixa de ser um modelo para nossa teoria, a não ser que F seja um corpo
ordenado: tenha uma relação < compatível com as operações + e ·. Esse é o caso, por exemplo,
de Q e R. Já os corpos C e Zp , para p primo, não admitem uma ordem, pois uma relação de
ordem implica que o corpo é infinito e que o quadrado de qualquer número é positivo.
Um modelo para a nossa teoria construída até agora, com os axiomas de incidência e ordem,
é chamado de plano de incidência ordenado. Se F é um corpo ordenado, F2 é um plano de
incidência ordenado com a noção de reta usual r = {(x, y) | ax + by + c = 0}. A interpretação
de incidência é a usual ∈. A interpretação de ordem é dada como segue. Primeiro, estabelecemos
que para a, b, c ∈ F distintos, b fica entre a e c quando a < b < c ou c < b < a. Feito isso,
Dados três pontos distintos A, B, C ∈ F2 sobre uma reta r, interpretamos que A ∗ B ∗ C da
seguinte maneira:
• Se r se escreve como y = mx+b, então A∗B ∗C se, e somente se, a primeira coordenada
de B fica entre as primeiras coordenadas de A e C (em F).
• Se r se escreve como x = k, então A ∗ B ∗ C se, e somente se, a segunda coordenada de
B fica entre as segundas coordenadas de A e C.
Exercício 5.18. Verifique que, com a interpretação acima, F2 é de fato um plano de incidência
ordenado.
Fica estabelecida, então, a consistência (relativa) da nossa teoria até o momento, posto que
ela admite modelos (e.g. Q2 ).
6. Axiomas de congruência
Trataremos agora do último termo elementar da teoria: congruência, denotada com o símbolo
∼
=. Aqui refinaremos mais o significado desse termo como uma noção que se aplica apenas a seg-
mentos e ângulos. De fato, analisando profundamente, formalmente o correto seria estipularmos
dois termos elementares (e dois símbolos diferentes), um para a congruência entre segmentos e
outro para a congruência entre ângulos, mas vamos nos permitir esse pequeno abuso de lingua-
gem pois a ideia intuitiva é a mesma para ambos. Vamos também usar o termo congruente (e
flexões) para algumas noções que definirmos em função da congruência de segmentos e ângulos,
como é o caso da seguinte.
Definição 6.1 (Congruência de triângulos). Se A, B e C são três pontos não-colineares, cha-
mamos a reunião 4ABC dos segmentos AB, AC e BC de triângulo com vértices A, B e C. Os
segmentos AB, AC e BC são chamados de lados de 4ABC. Dois triângulos 4ABC e 4DEF
são ditos congruentes se existe uma correspondência um a um entre seus vértices de forma
que os lados correspondentes são congruentes e os ângulos correspondentes são congruentes.
Denotaremos 4ABC ∼ = 4DEF para indicar que 4ABC e 4DEF são congruentes com a
correspondência A ↔ D, B ↔ E e C ↔ F (isto é, a ordem dos vértices importa!).
19
Vamos precisar estabelecer seis axiomas de congruência. Alguns deles substituirão algumas
afirmações que Euclides postulou como “noções comuns”, outros substituirão e completarão os
próprios axiomas de Euclides. O primeiro, por exemplo, é parecido com o Axioma 2 de Euclides:
Axioma de Congruência 1 (C1). Se A e B são pontos distintos e A0 é um ponto qualquer,
então para qualquer semirreta r emanando de A0 existe um único ponto B 0 sobre r tal que
B 0 6= A0 e AB ∼
= A0 B 0 .
Intuitivamente, este axioma diz que podemos “transportar” o segmento AB de forma que ele
fique sobre o raio r e A se sobreponha a A0 .
Axioma de Congruência 2 (C2). Se AB ∼ = CD e AB ∼
= EF , então CD ∼= EF . Além disso
qualquer segmento é congruente a si mesmo.
O Axioma C2 substitui a noção comum de Euclides de que duas coisas congruentes a uma
terceira são congruentes entre si.
Axioma de Congruência 3 (C3). Se A ∗ B ∗ C, A0 ∗ B 0 ∗ C 0 , AB ∼
= A0 B 0 e BC ∼
= B 0 C 0 , então
AC ∼=AC .0 0
Intuitivamente, este axioma afirma que se segmentos congruentes são “adicionados” 10 a seg-
mentos congruentes, então as “somas” são congruentes. Note que, usando C1 e C3 repetida-
mente, é possível justapor várias “cópias” de um segmento AB de forma a se obter um novo
segmento n · AB.
−−!
Axioma de Congruência 4 (C4). Dado qualquer ângulo ^BAC e qualquer semirreta A0 B 0
−! −−!
emanando de um ponto A0 , em cada lado da reta A0 B 0 existe uma única semirreta A0 C 0 tal que
^B 0 A0 C 0 ∼
= ^BAC.
Ou seja, intuitivamente o Axioma C4 afirma que um dado ângulo pode ser “transportado”
de forma única para um dado lado de um raio qualquer.
Axioma de Congruência 5 (C5). Se ^A ∼ = ^B e ^A ∼ = ^C, então ^B ∼
= ^C. Além disso,
qualquer ângulo é congruente a si mesmo.
Este é simplesmente a versão análoga, para ângulos, do Axioma C2. Note que C5 implica
na simetria ^A ∼= ^B ⇒ ^B ∼ = ^A. De fato, de ^A ∼ = ^B e ^A ∼= ^A (pela hipótese e pelo
Axioma C5) segue, aplicando C5 para C = A, que ^B ∼ = ^A.
O último axioma de congruência é conhecido critério lado-ângulo-lado (LAL) para a con-
gruência de triângulos.
Axioma de Congruência 6 (C6 ou LAL). Se dois lados e o ângulo interno correspondente
de um dado triângulo são congruentes, respectivamente, a dois lados e o ângulo interno corres-
pondente de outro triângulo, então os triângulos são congruentes.
O Axioma C6 provê a relação entre a noção de congruência de segmentos e a de congruência
de ângulos. A partir dele podemos deduzir todas os outros resultados básicos envolvendo
congruência de triângulos.
Corolário 6.2. Dados um triângulo 4ABC e um segmento DE tal que DE ∼ = AB, em cada
! ∼
lado da reta DE exite um único ponto F tal que 4ABC = 4DEF .
−−! !
Demonstração. Por C4, existe um único raio DF 0 , em um dado lado de DE, tal que ^CAB ∼
=
0
−−!0 ∼
^F DE. Por C1, podemos escolher o único ponto F sobre DF tal que AC = DF . Portanto
por C5, 4ABC ∼= 4DEF .
10Aqui “adicionar” significa justapor os segmentos sobre uma mesma reta.
20
Aqui cabe um pequeno comentário histórico. Euclides não assumia LAL como um axioma,
ele tentou demonstrá-lo como um teorema. Seu argumento foi basicamente o seguinte. Mova
−−! −!
4A0 B 0 C 0 de modo que A0 fique sobre A e A0 B 0 fique sobre AB. Como, por hipótese, AB ∼ = A0 B 0 ,
−− ! −!
o ponto B 0 se sobrepõe ao ponto B. Como ^A ∼ = ^A0 , a semirreta A0 C 0 se sobrepões a AC.
Como AC ∼ = A0 C 0 , o ponto C 0 se sobrepõe a C. Portanto B 0 C 0 se sobrepõe a BC, logo os
ângulos restantes também vão se sobrepor ao ângulos correspondentes e os triângulos serão
congruentes.
O argumento de Euclides vêm da experiência empírica de recortar um triângulo e movê-
lo até o sobrepor a outro. Embora seja um bom argumento, ele não constitui uma prova
para LAL, pois nenhum de seus axiomas garante que figuras possam ser “movidas”. Algumas
abordagens para a GE assumem o termo elementar “mover” e estabelecem axiomas que o
envolvem11. Fizemos algo semelhante ao interpretar a noção de congruência na nossa discussão
sobre o disco de Poincaré, na Seção 2: determinamos quais são os movimentos permitidos (as
transformações em H) e interpretamos congruência a partir deles. Outra maneira é definir a
noção de distância e determinar que as transformações permitidas são aquelas que preservam
a distância entre dois pontos, as isometrias. No caso do disco de Poincaré, isso envolve usar
a métrica hiperbólica, uma maneira diferente de medir distâncias entre dois pontos, de forma
que H passa a ser o grupo das isometrias. Esta é também a abordagem moderna à Geometria
como um todo, a partir do famoso Erlangen Programme de Felix Klein, do século XIX, que
define Geometria como o estudo de propriedades de figuras que são preservadas por grupos de
transformações. Todas estas abordagens, no entanto, tendem mais ao teor analítico, e portanto
menos sintético, como é nossa proposta aqui.
Proposição 6.3. Se para 4ABC temos AB ∼
= AC, então ^B ∼
= ^C.
Demonstração. Considere a seguinte correspondência entre os vértices: A ↔ A, B ↔ C e
C ↔ B. Sob esta correspondência, dois lados e o ângulo interno correspondente são levados
a dois lados e o angulo interno correspondente, pela hipótese AB ∼
= AC e pois ^A ∼ = ^A
(Axioma C5). Portanto 4ABC = 4ACB, por LAL (Axioma C6), e portanto ^B ∼
∼ = ^C, pela
definição de congruência de triângulos.
Similarmente à interpretação de C3, a próxima proposição pode ser pesada como a “subtra-
ção” de segmentos.
Proposição 6.4. Se A ∗ B ∗ C, D ∗ E ∗ F , AB ∼
= DE e AC ∼
= DF , então BC ∼
= EF .
Demonstração. Abaixo segue o esboço da demonstração. Veja o Exercício 6.5.
(1) Assuma que BC não é congruente a EF .
−!
(2) Então existe G sobre EF tal que BC ∼
= EG.
(3) G 6= F .
(4) Como AB ∼ = DE, temos AC ∼ = DG.
(5) Por outro lado, DF ∼
= DG.
(6) Portanto F = G.
(7) Portanto BC ∼= EF .
Exercício 6.5. Explique qual é a justificativa formal para cada passo da demonstração da
Proposição 6.4 dada acima.
Proposição 6.6. Sejam AC e DF dois segmentos tais que AC ∼ = DF . Então para qualquer
ponto B entre A e C existe um único ponto E entre D e F tal que AB ∼
= DE.
11Há abordagens, inclusive, que assumem apenas os termos ponto e mover como elementares.
21
−−!
Demonstração. Pelo Axioma C1, existe um único ponto E em DF , com E 6= D, tal que
AB ∼= DE. Resta mostrar que D ∗ E ∗ F . Suponha por absurdo que E não fique entre D e
F . Então ou E = F ou D ∗ F ∗ E, por definição de semirreta. Se E = F , então B e C são
−!
pontos distintos sobre AC tais que AC ∼
= DF ∼
= AB, o que contradiz a unicidade no Axioma
−!
C1. Se D ∗ F ∗ E, então por C1 existe um ponto G na semirreta oposta a CA de forma que
−!
FE ∼= CG. Logo AG ∼ = DE, pelo Axioma C3, e temos dois pontos distintos B e G sobre AC
de modo que AG ∼ = DE ∼= AB, o que também contradiz a unicidade no Axioma C1. Portanto
D ∗ E ∗ F.
Definição 6.7. Denotaremos AB ≺ CD (ou CD ≺ AB) quando existir um ponto E tal que
C ∗ E ∗ D e AB ∼
= CE.
Proposição 6.8 (Ordem de segmentos). Valem as seguintes afirmações:
(1) Um, e só um dos casos ocorre: AB ≺ CD, AB ∼= CD ou CD ≺ AB.
(2) Se AB ≺ CD e CD ∼ = EF , então AB ≺ EF .
(3) Se CD ≺ AB e CD ∼ = EF , então EF ≺ AB.
(4) Se AB ≺ CD e CD ≺ EF , então AB ≺ EF .
−−!
Demonstração. Provemos o item (1). Tome, pelo Axioma C1, o único ponto F sobre CD tal que
AB ∼= CF . Então exatamente um dos casos ocorre: F = D, C ∗ F ∗ D ou C ∗ D ∗ F . Se F = D
temos AB ∼= CD. Se C ∗ F ∗ D, então temos AB ≺ CD, por definição. Se C ∗ D ∗ F , então
pela Proposição 6.6 existe um único ponto E tal que A ∗ E ∗ B e CD ∼
= AE, logo CD ≺ AB.
Convidamos o leitor a provar os outros itens no Exercício 6.9.
Exercício 6.9. Use a Proposição 6.6 para provar os itens (2) e (3) da Proposição 6.8. Feito
isso, use a Proposição 5.6 para provar o item (4) da Proposição 6.8.
Para o próximo resultado relembre a Definição 0.6 de ângulos suplementares.
Proposição 6.10. Suplementos de ângulos congruentes são congruentes.
Demonstração. Seja ^ABC com suplementar ^CBG e ^DEF com suplementar ^F EH e
assuma ^ABC ∼ = ^DEF . Abaixo segue o esboço da demonstração de que ^CBG ∼ = ^F EH,
veja o Exercício 6.11.
(1) Rearranjando os nomes dos pontos se necessário, podemos supor que AB ∼
= DE, CB ∼
=
∼
F E e BG = EH.
(2) Então 4ABC ∼ = 4DEF .
(3) Portanto AC = DF e ^A ∼
∼ = ^D.
(4) Além disso, AG ∼= DH.
(5) Logo 4ACG ∼ = 4DF H.
(6) Em particular, CG ∼= F H e ^G ∼
= ^H.
∼
(7) Portanto 4CBG = 4F EH.
(8) Segue então ^CBG ∼ = ^F EH.
Exercício 6.11. Explique qual é a justificativa formal para cada passo da demonstração da
Proposição 6.10 dada acima.
Definição 6.12. Dizemos que dois ângulos ^BAC e ^DAF são opostos pelo vértice A quando
B ∗ A ∗ D e C ∗ A ∗ F . O resultado abaixo segue diretamente da Proposição 6.10.
Corolário 6.13. Ângulos opostos por um vértice são congruentes e todo ângulo congruente a
um ângulo reto é reto.
22
! !
Definição 6.14. Duas retas que se intersectam, r = P A e s = P B, são perpendiculares quando
^AP B é um ângulo reto. Neste caso denotamos r ⊥ s.
Proposição 6.15. Para qualquer reta r e qualquer ponto P existe uma reta incidente com P
e perpendicular a r.
Demonstração. Assuma primeiro que P não incide em r e, por I2, tome A e B dois pontos
−−!
quaisquer sobre r. Por C4, no lado de r oposto a P existe uma semirreta AX tal que ^XAB ∼ =
0 −−! 0 ∼
^P AB. Por C1, exite um ponto P em AX tal que AP = AP . Por definição de lados opostos
de uma reta, o segmento P P 0 intersecta r em um ponto Q. Se Q = A, então P ∗ A ∗ P 0 , logo os
!
ângulos ^P 0 AB ∼ = ^P AB são suplementares, portanto retos, logo P P 0 ⊥ r. Se Q 6= A, então
!
4P AQ ∼ = 4P 0 AQ, por LAL (Axioma C6). Em particular ^P QA ∼ = ^P 0 QA, logo P P 0 ⊥ r,
pois tais ângulos são suplementares (pois P ∗ Q ∗ P 0 por construção).
Assuma agora que P |• r. Pela Proposição 3.7, podemos escolher um ponto Y que não incida
em r e repetir o caso anterior, construindo assim um ângulo reto ^Q0 . Pelo Axioma C4, podemos
construir um ângulo congruente a ^Q0 (portanto reto, pelo Corolário 6.13) com vértice em P
e que tenha um dos lados em r. O outro lado desse ângulo é parte de uma reta perpendicular
a r passando por P .
A proposição seguinte é o critério ângulo-lado-ângulo (ALA) para congruência de triângulos.
Proposição 6.16 (ALA). Sejam 4ABC e 4DEF triângulos tais que ^A ∼ = ^D, AC ∼ = DF
∼ ∼
e ^C = ^F . Então 4ABC = 4DEF .
Demonstração. Abaixo segue o esboço da demonstração. Veja o Exercício 6.17
−−!
(1) Existe um único ponto B 0 em DE tal que DB 0 ∼
= AB.
∼
(2) 4ABC = 4DB F . 0
8. Geometria neutra
Nesta seção veremos mais alguns resultados para a teoria que tem como axiomas os axiomas
de incidência, ordem, e congruência. Esta teoria é chamada de Geometria Neutra, pois tudo que
demonstrarmos aqui vale tanto para a geometria Euclidiana quanto para a geometria hiperbó-
lica, já que não temos ainda um axioma sobre paralelas. Cabe ressaltar que todos os resultados
que demonstramos até agora, desde que começamos a desenvolver a teoria, são resultados da
Geometria Neutra. Nesta seção os postulados de continuidade e o Axioma D não são parte
da nossa lista de axiomas: eles aparecerão como hipóteses caso sejam necessários. O primeiro
resultado que veremos é o teorema dos ângulos alternos internos. Para enunciá-lo, precisamos
de uma definição. Sejam r e r0 duas retas e seja t uma reta transversa a ambas, isto é, que
intersecta ambas, sendo os pontos de intersecção B e B 0 , respectivamente. Escolha pontos A e
C sobre r de forma que A ∗ B ∗ C e escolha pontos A0 e C 0 sobre r0 de forma que A e A0 ficam
do mesmo lado de t e A0 ∗ B 0 ∗ C 0 . Então os ângulos ^A0 B 0 B, ^ABB 0 , ^C 0 B 0 B e ^CBB 0 são
ditos internos. Os pares (^A0 B 0 B, ^CBB 0 ) e (^ABB 0 , ^C 0 B 0 B) são ângulos alternos internos.
Teorema 8.1 (Ângulos alternos internos (AAI)). Se duas retas distintas r e r0 intersectadas
por uma transversal t possuem um par de ângulos alternos internos congruentes, então r e r0
são paralelas.
Demonstração. Mantenhamos a notação estabelecida antes do enunciado do teorema e supo-
nhamos que ^A0 B 0 B ∼= ^CBB 0 . Suponha por absurdo que r e r0 se intersectam em um ponto
D que, digamos, fica do mesmo lado de t que C e C 0 (sem perda de generalidade). Pelo Axioma
−−!
C1, seja E sobre B 0 A0 tal que B 0 E ∼
= BD. Por LAL, temos 4B 0 BD ∼ = 4BB 0 E, portanto em
particular temos ^DB 0 B ∼ = ^EBB 0 . Como ^DB 0 B é suplementar a ^EB 0 B = ^A0 B 0 B, segue
da Proposição 6.10 e da unicidade no Axioma C4 que ^EBB 0 é suplementar a ^DBB 0 . Por-
tanto E incide em r, logo r e r0 são retas distintas que se intersectam em dois pontos distintos
(pois E e D ficam em lados opostos de t), o que contradiz a Proposição 3.4. Portanto rkr0 .
Usando a Proposição 6.25, temos diretamente o seguinte.
Corolário 8.2. Duas retas distintas r e r0 que são perpendiculares a uma reta t são paralelas.
Em particular, vemos que a reta r perpendicular a uma reta t dada, passando por um ponto
P dado (pela Proposição 6.15) é única. O ponto de interseção de r com t é o pé de t em r.
Corolário 8.3. Se r é uma reta qualquer e P um ponto que não incide em r, então existe ao
menos uma reta r0 incidindo em P e paralela a r.
Demonstração. Pela Proposição 6.15 existe uma reta t incidindo em P e perpendicular a r.
Novamente pela Proposição 6.15, existe uma reta r0 incidindo em P e perpendicular a t. Pelo
Corolário 8.2 temos rkr0 .
Um ângulo que é suplementar a um ângulo de um triângulo é um ângulo externo de tal
triângulo. Neste caso os outros dois ângulos do triângulo são chamados de ângulos remotos
relativos àquele ângulo externo.
15Isso é a recíproca da correção: se é demonstrável então é verdade em todos os modelos.
28
Teorema 8.4 (Ângulo externo (AE)). Um ângulo externo de um triângulo 4ABC é maior
que seus ângulos remotos.
Demonstração. Seja D tal que B ∗C ∗D. Precisamos mostrar que ^BAC ≺ ^ACD e ^ABC ≺
! !
^ACD. Se ^BAC ∼ = ^ACD então, pelo Teorema 8.1, ABkCD, o que contradiz a hipótese
de que estas retas se intersectam em B. Suponha que ^ACD ≺ ^BAC. Então por definição
−! −! −!
existe uma semirreta AE entre AB e AC tal que ^ACD ∼ = ^CAE. Por um lado, o Teorema
! ! −!
8.1 afirma que AEkBC; por outro lado, o Teorema da Barra, afirma que AE intersecta BC em
um ponto G. Contradição. Portanto ^BAC ≺ ^ACD pela Proposição 6.22(1).
Resta mostrar que ^ABC ≺ ^ACD. O mesmo argumento dado acima conclui que ^ABC ≺
^BCF , para F tal que A ∗ C ∗ F . Como ^BCF ∼ = ^ACD (pela Proposição 6.13), o resultado
segue pela Proposição 6.22.
É fácil ver que o Teorema 8.4 não vale em Geometria Elíptica (dê um contra-exemplo).
Corolário 8.5. Se um triângulo tem um ângulo reto ou obtuso então os seus dois outros ângulos
são agudos.
A definição a seguir é, portanto, bem posta:
Definição 8.6 (Triângulo retângulo). Um triângulo 4ABC é retângulo quando um de seus
ângulos é reto. Neste caso os dois lados que compartilham este ângulo reto são os catetos de
4ABC, e o lado remanescente é a hipotenusa de 4ABC.
Como corolários do Teorema 8.4, é possível demonstrar agora os conhecidos resultados a
seguir.
Proposição 8.7 (LAA). Dados dois triângulos 4ABC e 4DEF , se AC ∼ = DF , ^A ∼= ^D e
^B ∼= ^E, então 4ABC ∼
= 4DEF .
Proposição 8.8. Se a hipotenusa e um cateto de um triângulo retângulo 4ABC são congru-
entes, respectivamente, à hipotenusa e a um cateto de um triângulo retângulo 4DEF , então
4ABC ∼ = 4DEF .
Exercício 8.9. Demonstre as Proposições 8.7 e 8.8.
Relembremos que um ponto M é um ponto médio de um segmento AB se A ∗ M ∗ B e
AM ∼
= M B.
Proposição 8.10. Todo segmento AB possui um único ponto médio.
Demonstração. Abaixo segue o esboço da demonstração. Veja o Exercício 8.11
!
(1) Seja C um ponto que não incide em AB
−−! !
(2) Seja BX a única semirreta no lado oposto de AB que C tal que ^CAB ∼ = ABX.
−−!
(3) Seja D o único ponto em BX tal que AC ∼ = BD.
!
(4) C e D ficam em lados opostos de AB.
!
(5) Seja E o ponto onde CD intersecta AB.
(6) Assuma que E não fica entre A e B.
(7) Então ou E = A ou E = B ou E ∗ A ∗ B ou A ∗ B ∗ E.
! !
(8) AC é paralela a BD.
(9) Portanto E 6= A e E 6= B.
(10) Assuma que E ∗ A ∗ B.
! !
(11) Como CA intersecta o lado EB de 4EBD em um ponto entre E e B, CA também
intersecta ou ED ou BD.
(12) Isso é impossível, portanto não vale E ∗ A ∗ B.
29
(13) Similarmente não vale A ∗ B ∗ E.
(14) Portanto A ∗ E ∗ B.
(15) Então ^AEC ∼ = ^BED.
(16) ∼
Logo 4EAC = 4EBD.
(17) Logo E é ponto médio de AB.
Exercício 8.11. Explique qual é a justificativa formal para cada passo da demonstração da
Proposição 8.10 dada acima.
Segue da Proposição 8.10 que todo segmento admite uma única reta perpendicular que o
divide em dois segmentos congruentes. Também da Proposição 8.10 segue facilmente a afirma-
−−!
ção análoga a ela para o caso de ângulos. De fato, relembremos que uma semirreta AD é uma
−−! −! −!
bissetriz dum ângulo ^BAC quando AD fica entre AB e AC e ^BAD ∼ = ^CAD. Temos o
seguinte.
Corolário 8.12. Todo ângulo possui uma única bissetriz.
A grosso modo, a próxima proposição nos diz que o maior ângulo de um triângulo é oposto
ao maior lado deste triângulo, e vice-versa.
Proposição 8.13. Seja 4ABC um triângulo. Então BC ≺ BA se, e somente se, ^A ≺ ^C.
Demonstração. Assuma que BC ≺ BA. Então, por definição existe um único ponto D entre A e
B tal que BC ∼= BD. Pela Proposição 6.3, temos ^BDC ∼ = ^BCD. Pelo Teorema AE aplicado
ao ângulo externo ^BDC de 4ACD, temos ^A ≺ ^BDC, logo ^A ≺ ^BCD, pela Proposição
−−! −! −−!
6.22. Pela Proposição 5.13, a semirreta CD fica entre CA e CB, logo ^BCD ≺ ^BCA.
Portanto ^A ≺ ^BCA = ^C, novamente pela Proposição 6.22.
Provaremos a recíproca (^A ≺ ^C) ⇒ (BC ≺ BA) pela contrapositiva, isto é, demonstrando
que ¬(BC ≺ BA) ⇒ ¬(^A ≺ ^C) (vide Seção 1.1). Se ¬(BC ≺ BA), então ou BA ∼ = BC ou
BA ≺ BC, pela Proposição 6.8. No primeiro caso temos ^A ∼ = ^C, pela Proposição 6.3. No
segundo caso o mesmo argumento do parágrafo anterior, com os papeis de A e C trocados, nos
permite concluir que ^C ≺ ^A. Nos dois casos temos, portanto, ¬(^A ≺ ^C).
Estamos finalmente em condições de associar medidas para segmentos e ângulos, isto é,
associar a um segmento AB um número real |AB| que corresponde ao seu comprimento (com
relação a alguma unidade fixada) e associar a um ângulo ^A um número real (^A)◦ entre
0 e 180, que corresponde a sua medida (em graus). Para tanto, precisamos do Postulado
de Arquimedes (A) e da existência de pontos médios. Além disso, para garantir que para
qualquer número real dado x existe algum segmento de comprimento x e, caso 0 < x < 180,
existe também algum ângulo de medida x, é necessário o Postulado de Dedekind (D). Mais
precisamente, temos o seguinte.
Teorema 8.14. Assuma que vale o Axioma D. Então existe uma única associação ^A 7! (^A)◦
satisfazendo
(1) (^A)◦ é um número real e 0◦ < (^A)◦ < 180◦ ,
(2) (^A)◦ = 90◦ se, e somente se, ^A é reto,
(3) (^A)◦ = (^B)◦ se, e somente se, ^A ∼ = ^B,
−!
(4) Se AC é interior a ^DAB, então (^DAB)◦ = (^DAC)◦ + (^CAB)◦ ,
(5) Para qualquer x ∈ (0, 180) existe um ângulo ^A tal que (^A)◦ = x◦ ,
(6) Se ^B é suplementar a ^A, então (^A)◦ + (^B)◦ = 180◦ ,
(7) (^A)◦ < (^B)◦ se, e somente se, ^A ≺ ^B,
Além disso, dado um segmento OI, existe uma única associação AB 7! |AB| satisfazendo
30
(8) |AB| é um número real positivo e |OI| = 1,
(9) |AB| = |CD| se, e somente se, AB ∼ = CD,
(10) A ∗ B ∗ C se, e somente se, |AC| = |AB| + |BC|,
(11) |AB| < |CD| se, e somente se, AB ≺ CD,
(12) Para todo x ∈ (0, ∞), existe AB tal que |AB| = x.
Não faremos a demonstração completa deste teorema, mas ressaltamos que ela não é compli-
cada, apenas trabalhosa. O método de se associar as medidas para segmentos por exemplo, é
o seguinte. Definimos |OI| = 1. Para qualquer segmento AB do tipo n ·r OI, as propriedades
implicam que necessariamente |AB| = n. Para qualquer outro segmento AB, o Postulado A
garante que existem Bn−1 e Bn tais que |ABn−1 | = n − 1, |ABn | = n e Bn−1 ∗ B ∗ Bn . A
condição (9) implica que |AB| = |ABn−1 | + |Bn−1 B|, portanto (a menos de trocarmos os nomes
dos pontos momentaneamente) podemos assumir que n = 1 e Bn−1 = A. Se B é o ponto médio
B1/2 de AB1 , então definimos |AB| = 1/2. Caso contrário, B fica em AB1/2 ou em B1/2 B1 .
Digamos que B ∈ AB1/2 . Se B é o ponto médio B1/4 de AB1/2 , definimos |AB| = 1/4; caso
contrário B fica, digamos, em AB1/4 . Continuando esse processo, ou o ponto B será eventual-
mente obtido como ponto médio de algum segmento de comprimento determinado pelos passos
anteriores (neste caso ter-se-á que |AB| = a/2n para algum n, ou seja, |AB| é um número
racional diádico), ou então o processo continua indefinidamente, nesse caso |AB| será o limite
de uma sequência infinita de números racionais diádicos (ou seja, |AB| será um decimal infinito
em base 2). O método de se associar medidas para ângulos é totalmente similar. Para todo o
processo de associação de medidas, apenas o Postulado A é usado, sendo o Axioma D neces-
sário (com toda sua força) apenas nos itens (5) e (12). Para o item (12), por exemplo, dado
−!
x ∈ (0, ∞), considere o conjunto Σ1 dos pontos B sobre na semirreta OI tais que |OB| ≥ x.
!
Se Σ2 é o complemento de Σ1 em OI, então (Σ1 , Σ2 ) é um corte de Dedekind. Afirmamos que
!
|OX| = x, sendo X o ponto em OI fornecido pelo Axioma D. De fato, suponha por absurdo
que |OX| < x. Então existe um número y da forma y = m + d/2n tal que |OX| < y < x. Então
podemos construir, por finitos passos das operações “justapor OI” e “tomar pontos médios”, um
−!
ponto Y ∈ OI tal que |OY | = y < x, logo Y ∈ Σ2 . Mas pelo item (11), devemos ter O ∗ X ∗ Y ,
logo Σ2 ∪ X não é uma semirreta emanando de X, o que contradiz o Axioma D. Por argumento
similar vemos que também não pode ocorrer |OX| > x, logo |OX| = x.
Definição 8.15. Se (^A)◦ + (^B)◦ = 90◦ , os ângulos ^A e ^B são ditos complementares.
Considere um triângulo 4ABC e seja D tal que A ∗ B ∗ D. Pelo Teorema 8.4 (AE), tem-
se (^A)◦ < (^CBD)◦ , logo (^A)◦ + (^CBA)◦ < (^CBD)◦ + (^CBA)◦ = 180◦ . Isto é,
demonstramos o seguinte.
Corolário 8.16. Assuma que vale o Axioma D. Para qualquer triângulo, a soma de dois de
seus ângulos é menor que 180◦ .
Teorema 8.17 (Desigualdade triangular). Assuma que vale o Axioma D. Então para qualquer
triângulo 4ABC, vale |AC| < |AB| + |BC|.
Demonstração. Pelo Axioma C1 existe um único D tal que A ∗ B ∗ D e BD ∼ = BC. Pela
∼
Proposição 6.3 temos ^BCD = ^BDC. Pelo Teorema 8.14, temos |AB| + |BD| = |AD| e
|BD| = |BC|, logo
(1) |AD| = |AB| + |BC|.
−−! −! −−!
Pela Proposição 5.13, CB fica entre CA e CD, logo ^BCD ≺ ^ACD. Pela Proposição 6.3
temos ^BCD ∼ = ^BDC, logo, pela Proposição Proposição 6.22, segue que ^ADC = ^BDC ≺
^ACD. Pela Proposição 8.13, segue AC ≺ AD, logo |AC| < |AD|. Substituindo em (1), temos
|AB| + |BC| = |AD| > |AC|.
31
19Isto é, as projeções em RP2 de grandes círculos, que nada mais são que as interseções da esfera com planos
que passam pela origem.
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