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MARCIO PEREIRA
TEOREMAS
concorda? Desde Aristóteles (séc. IV a.C.) até meados do século XIX, praticamente todos
os filósofos e cientistas concordariam com você também!
Mas essa afirmação é simplesmente falsa! Ela não considera os conjuntos infinitos.
Para mencionar apenas um caso bem fácil, pense no conjunto dos números naturais {0, 1,
2, 3, 4, 5,...}, e separe um subconjunto próprio dele (uma parte própria dele), digamos: o
conjunto dos números naturais pares {0, 2, 4, 6, 10,...}. Os dois possuem o mesmo
tamanho (ou seja, a mesma quantidade de elementos – ou, como chamamos na
matemática: a mesma cardinalidade).
Você poderia se perguntar: mas como podemos saber isso se ambos são conjuntos
infinitos? Um importante matemático alemão chamado Georg Cantor (1845-1918),
considerado o principal desenvolvedor da teoria dos conjuntos, provou matematicamente
que existem infinitos de diferentes tamanhos, mostrou como podemos compará-los, e que
o menor dos infinitos é justamente o tamanho do conjunto dos números naturais, cuja
cardinalidade é a mesma que a do conjunto dos números naturais pares.
Mas, como podemos comparar dois conjuntos infinitos para saber se possuem o
mesmo tamanho (a mesma cardinalidade)? Afinal, não dá para contar todos os seus
elementos um a um! Simples: provando que há uma bijeção entre seus elementos – ou
seja, a cada elemento de um conjunto corresponde exatamente um elemento do outro
conjunto e vice-versa.
A prova não é complicada; porém, sem entrar em detalhes técnicos, você pode
facilmente perceber essa bijeção na contagem informal abaixo:
Apenas para satisfazer sua curiosidade, como seria um conjunto infinito maior do que
o infinito dos números naturais? Basta você se lembrar de quando estudou os números
reais nas aulas de Cálculo Infinitesimal. Não é possível fazer essa bijeção entre a
sequência dos reais e a dos naturais, porque dados quaisquer dois números reais, você
sempre tem outro número real entre eles. Não há, por isso, um sucessor imediato para um
número real, e sim outra quantidade infinita de números entre quaisquer dois números
reais.
... teorema
teorema
teorema ...
teorema
teorema ...
axiomas teorema
... teorema
teorema
teorema teorema
...
...
...
A B
A
B
Ou seja, se uma fórmula A implica em uma fórmula B, e a fórmula A está garantida, com
certeza a fórmula B também está garantida! Bem intuitivo, não é? Saiba que é possível,
apenas com essa regra e três ou quatro axiomas, demonstrar todas as infinitas verdades
lógicas do nível mais básico da lógica, chamado de cálculo proposicional!
Não precisaremos entrar em detalhes aqui, mas apenas diremos que cada ciência
dedutiva tem suas próprias regras para demonstrar teoremas, sempre muito exatas e
rigorosas. Sabendo disso, você pode entender melhor a seguinte definição (bem informal,
mas ainda assim rigorosa):
Com essa definição, descobrimos algo fascinante: axiomas também podem ser
demonstrados! Basta escrever uma demonstração com apenas um passo contendo esse
axioma. Para visualizar melhor, considere a seguinte fórmula lógica, adotada como axioma
em alguns sistemas da lógica clássica:
A (B A) (axioma da prefixação)
Pois bem, essa fórmula foi definida como axioma; então agora pode ser usada, junto
com os demais axiomas e regras, para demonstrar novos teoremas. Observe a seguinte
prova:
A prova acima, simples como seja, satisfaz todas as exigências da definição de prova
formal: contém uma fórmula (uma quantidade finita e não vazia), onde essa fórmula é um
axioma (uma das duas possibilidades; a outra era derivar de fórmulas anteriores). Ora,
então, temos ao final um teorema da teoria (a última fórmula na derivação, que por acaso
era também a primeira). Como isso pode ser feito para qualquer axioma da teoria, mas
nem todo teorema está no conjunto inicial, você pode entender facilmente que:
Nossa explicação deve ter permitido a você perceber que a velha noção de axioma
como verdade aceita sem prova não é muito boa, embora ainda seja usada informalmente
(fora do contexto científico). O fato é que, embora o conjunto de axiomas seja fornecido
previamente de maneira um tanto arbitrária (“sem provas”) ao começarmos a construir um
sistema dedutivo, ele imediatamente se torna um teorema da teoria. Podemos assim
simplesmente considerar uma teoria dedutiva como uma coleção de teoremas.
Para encerrar este capítulo, mencionaremos de passagem outro ponto especial.
Dissemos em várias ocasiões que as ciências formais (ou seja, as ciências dedutivas ou
demonstrativas) provam seus resultados em caráter definitivo. Isso continua sendo
verdade, mas não esqueça de que cada resultado é dependente da teoria; portanto, todo
teorema é teorema de uma teoria específica, e não existe teorema sem uma teoria na qual
ele foi provado.
Por exemplo, o resultado bem conhecido de que a soma dos ângulos internos de
qualquer triângulo sempre totaliza 180º só vale na geometria clássica! Existem sistemas de
geometria, matematicamente bem construídos e legítimos, nos quais esse resultado não
acontece. Em alguns desses sistemas, a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo
sempre é maior do que 180º, e em outros sistemas, é sempre menor do que 180º.
O que ocorreu foi que, ao longo do século XIX, diversos matemáticos em diferentes
países (Gauss, Bolyai, Lobachevsky, Riemann) foram se dando conta de que há várias
geometrias possíveis e não equivalentes entre si. Eles perceberam isso ao substituir o
famoso quinto postulado de Euclides (o postulado das retas paralelas) por outros
diferentes. Os resultados foram fascinantes, gerando as “geometrias não-euclideanas”,
algumas das quais encontraram depois aplicações importantes, inclusive na física
relativística. Porém, para não estender demais este capítulo, deixaremos essa história para
quem tiver curiosidade de pesquisar por conta própria!
Apesar de toda a precisão e rigor do método dedutivo, você deve ter percebido que
ele não é suficiente para construirmos as ciências empíricas. E isso acontece por uma
razão muito simples: o raciocínio, isoladamente, é incapaz de descobrir como funcionam
os processos empíricos. Ao elaborarmos modelos explicativos para o funcionamento do
mundo à nossa volta, precisamos coletar dados na experiência, testar predições; enfim, é
preciso ir além do puro cálculo e fazer observações ou experimentos de algum tipo. As
ciências formais, portanto, embora indispensáveis às demais ciências, não conseguem,
sozinhas, descrever o mundo.
Por outro lado, o senso comum sempre acreditou que somente pela observação dos
eventos e pelo mapeamento de sua regularidade, os seres humanos foram criando teorias
científicas acerca da natureza. Essa concepção ingênua tendia a ver o cientista como uma
página em branco, na qual a experiência supostamente imprimia informações. É claro que
não é assim que ocorre, uma vez que é a inteligência humana que reconhece nexos entre
os fenômenos, e pode imaginar princípios ou mecanismos para explicar seu
funcionamento. A pura observação, destituída de julgamentos e raciocínios, não poderia
gerar conhecimento algum! Mesmo o reconhecimento de nexos simples entre eventos (por
exemplo: “isto causou aquilo”) já envolve uma contribuição da inteligência criativa e uma
extrapolação do que foi observado.
De todo modo, aquela concepção incluía também a ideia de que nós descobrimos as
leis responsáveis pelo funcionamento da natureza simplesmente colecionando casos
particulares em que a lei parece se aplicar, e depois generalizando para todos os casos
similares possíveis. Temos aqui uma versão bastante ingênua e próxima do senso comum,
daquilo que se costuma chamar de método indutivo.
A definição de inferência indutiva foi estudada no capítulo 07. Na ocasião, ela foi
definida como a inferência que não gera uma conclusão necessária (segura), mas apenas
uma conclusão provável. A rigor, existem vários tipos de indução. Examinaremos aqui o
tipo mais frágil e ingênuo de todos: a indução enumerativa.
Podemos esquematizar qualquer raciocínio indutivo por enumeração da seguinte
forma:
(...)
---------------------------------------------------------------------------------------------
(Portanto,) água pura (todo objeto do tipo A) sempre atinge o ponto
de ebulição ao ser aquecida a 100ºC em 1 atm (possui a propriedade
B).
(...)
---------------------------------------------------------------------------------------------
(Portanto,) todos os metais (todo objeto do tipo A) sempre se dilatam
quando aquecidos (possui a propriedade B).
Para tentar diminuir a fragilidade lógica da indução, bem como evitar induções
precipitadas, alguns indutivistas acrescentam requisitos para os testes indutivos, tais como
testar uma quantidade suficientemente grande de casos, variar o máximo possível as
circunstâncias envolvidas, verificar se todos os casos observados exibem sem exceção
aquela propriedade, etc. Entretanto, nenhum desses requisitos resolve o problema lógico
da indução; pois, de toda maneira, desconsideram que não podemos concluir com certeza
que todos os casos similares não testados se comportarão da mesma forma que os casos
testados.
Isso é particularmente grave quando consideramos que os testes relevantes para a
pesquisa científica, em geral, envolvem uma quantidade infinita de testes possíveis! (Por
exemplo, quantas vezes a água deveria ser aquecida a 100ºC em 1atm para verificarmos
se ela sempre ferve ou não sob essas condições? Ou quantas vezes cada metal existente
deveria ser aquecido para verificarmos com certeza se os metais sempre se dilatam ou
não? Não é possível calcular, porque as escalas de teste são infinitas!)
Uma tentativa de defender a indução contra essa classe de críticas é torná-la mais
modesta, por assim dizer, fazendo-a produzir conclusões apenas com caráter
probabilístico, numa espécie de recuo à probabilidade. Em outras palavras, em vez de
concluir taxativamente que os objetos de tipo A sempre exibem a propriedade B, a indução
probabilística concluiria que é alta a probabilidade de A sempre exibir B, sem se
comprometer absolutamente com todos os casos possíveis (como ocorre na indução
enumerativa simples).
Nessa linha de raciocínio, as conclusões dos dois exemplos anteriores teriam que ser
modificadas para as seguintes estruturas, respectivamente:
Esse tipo de conclusão mais cautelosa seria, assim, um resultado mais aceitável para
uma indução enumerativa, por aparentemente evitar o compromisso com o comportamento
universal de todos os casos similares possíveis, abrindo a possibilidade para que talvez
nem todos os casos se comportem do mesmo modo.
Entretanto, embora essa estratégia evite o problema lógico com possíveis
contraexemplos (situações em que se constate o oposto do que vinha sendo observado),
já que esses não invalidariam necessariamente a conclusão; por outro lado, a indução
probabilística padece do mesmo tipo de problema lógico que a indução enumerativa
simples (não-probabilística). O fato é que mesmo a indução probabilística continua
ousando concluir algo para todos os casos possíveis (mesmo que seja apenas
probabilisticamente) a partir de apenas alguns testes feitos (mesmo que numerosos). O
recuo à probabilidade não resolve, pois, o problema da indução.
Dizendo de outro modo, tanto na indução enumerativa simples como na
probabilística, analisando objetivamente o argumento, não há nada na constatação das
hipóteses que nos permita estender (ainda que com caráter apenas probabilístico) aquela
regularidade para todos os casos possíveis.
Uma breve análise do esquema acima facilmente revela que se trata, ele próprio, de
uma indução enumerativa. Comparando com o esquema inicial, o processo A consiste aqui
em uma aplicação particular do procedimento indutivo e a propriedade B representa o
sucesso dessa aplicação. Assim, cada ocasião em que realizamos uma indução com
sucesso contou como uma constatação particular, e daí fizemos uma indução a partir das
induções bem sucedidas para concluir que a indução sempre funciona.
Esse sucesso normalmente consistiria em uma predição baseada em uma indução
anterior. Por exemplo, realizamos a predição indutiva de que a água ferverá a 100ºC em
1atm numa determinada ocasião, baseados nas ocasiões anteriores em que ela ferveu
nessas condições, e a predição funciona (ela ferve novamente). Isso contaria como mais
uma constatação particular de indução bem sucedida. E assim por diante.
Você certamente já percebeu o problema:
CHALMERS, Alan F. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993. ISBN 85-11-12061-0.
(Ver p. 23-45).