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METODOLOGIA CIENTÍFICA (QM/2021.1) – PROF.

MARCIO PEREIRA

09 – NOÇÕES DE MÉTODO DEDUTIVO (AXIOMÁTICO)

Objetivos: ao final deste capítulo, o estudante deverá:


a) ser capaz de explicar as noções de axioma, teorema e prova formal; bem como
conseguir relacioná-las entre si;
b) conseguir descrever, de modo geral, como são construídas as teorias dedutivas.
.
No final da seção “as ciências formais” do capítulo 05, mencionamos que essas
ciências articulam seus conteúdos de maneira profundamente sistemática e que
empregam um método que demonstra seus resultados de maneira exata e definitiva.
Depois, no capítulo 07, exploramos com detalhes a noção de inferência dedutiva e como
os argumentos dedutivos garantem necessariamente suas conclusões desde que suas
premissas sejam verdadeiras. No presente capítulo, iremos além da menção de simples
argumentos dedutivos isolados, e explicaremos melhor como as deduções são usadas
como um método científico, por si só, para elaborar teorias importantes. (Antes de
prosseguir com a leitura, talvez você queira fazer uma pausa e voltar àqueles capítulos
para revisar rapidamente o que foi apresentado ali.)
O ideal de sistematização dedutiva nas ciências remonta aos antigos gregos,
especialmente Euclides de Alexandria (cerca de 300 a.C.), chamado de “pai da geometria”,
e Arquimedes de Siracusa (287-212 a.C.), famoso pela descoberta da lei do empuxo e pela
expressão “eureka”. Esse ideal pretendia derivar dedutivamente um conjunto de verdades
a partir de axiomas, os quais por sua vez seriam aceitos por si mesmos como verdades
autoevidentes, sem que precisassem ser derivados de outros princípios. Tudo isso para
evitar uma regressão infinita, com princípios sendo derivados de outros princípios que
seriam derivados de outros princípios e assim infinitamente...
Para sermos mais rigorosos do ponto de vista histórico, Euclides distinguia entre dois
tipos de princípios básicos em um sistema dedutivo: os axiomas e os postulados. Para
aquele pioneiro da geometria, seguindo uma perspectiva do filósofo Aristóteles, os axiomas
seriam as verdades mais gerais e autoevidentes (ou seja, bastaria conhecê-los para
perceber intelectualmente sua verdade), aplicáveis a qualquer ciência; enquanto os
postulados seriam também verdades intuitivas, porém específicas de uma ciência (por
exemplo, a geometria ou a aritmética).

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Considere a seguinte versão de um axioma tradicional (aristotélico):

O todo é sempre maior do que qualquer de suas partes próprias.

Em outras palavras: dados os conjuntos A e B, se A  B e A  B, então:


(quantidade de elementos de A) < (quantidade de elementos de B).
Esse princípio supostamente se aplica de maneira universal, não importa do que
você esteja falando. Por outro lado, na visão tradicional, os postulados mencionam noções
e conceitos de disciplinas específicas, como pontos e retas na geometria, ou números na
aritmética. Por exemplo, o primeiro postulado da geometria de Euclides costuma ser
enunciado dessa maneira:

Dados dois pontos distintos, somente um segmento de reta os liga.

Assim, dado um conjunto de axiomas e um conjunto de postulados, usando-se regras


(dedutivas) de demonstração, todas as demais verdades daquela ciência seguiriam sendo
demonstradas (deduzidas). Essas verdades demonstradas na teoria dedutiva são
chamadas de teoremas.

AXIOMAS + POSTULADOS + REGRAS

TEOREMAS

Essas noções tradicionais foram parcialmente modificadas em nossa época, como


explicaremos a seguir.
Na ciência contemporânea, os lógicos e matemáticos abandonaram a exigência
aristotélica de que os princípios mais fundamentais (os axiomas) precisam ser
autoevidentes. Poderíamos conversar bastante sobre isso, mas indicaremos apenas uma
razão bem convincente: essa é uma exigência muito subjetiva (e, como todo critério
subjetivo, está sujeito a imprecisões e erros).
Considere, por exemplo, a suposta verdade autoevidente que mencionamos acima:
“o todo é sempre maior do que qualquer de suas partes próprias” – em outras palavras,
todo conjunto é maior do que qualquer um de seus subconjuntos próprios. Parece algo
óbvio, não é? Se você tomar qualquer conjunto, e separar uma parte dele que não seja o
conjunto inteiro, obviamente essa parte será menor do que o conjunto inteiro, não

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concorda? Desde Aristóteles (séc. IV a.C.) até meados do século XIX, praticamente todos
os filósofos e cientistas concordariam com você também!
Mas essa afirmação é simplesmente falsa! Ela não considera os conjuntos infinitos.
Para mencionar apenas um caso bem fácil, pense no conjunto dos números naturais {0, 1,
2, 3, 4, 5,...}, e separe um subconjunto próprio dele (uma parte própria dele), digamos: o
conjunto dos números naturais pares {0, 2, 4, 6, 10,...}. Os dois possuem o mesmo
tamanho (ou seja, a mesma quantidade de elementos – ou, como chamamos na
matemática: a mesma cardinalidade).
Você poderia se perguntar: mas como podemos saber isso se ambos são conjuntos
infinitos? Um importante matemático alemão chamado Georg Cantor (1845-1918),
considerado o principal desenvolvedor da teoria dos conjuntos, provou matematicamente
que existem infinitos de diferentes tamanhos, mostrou como podemos compará-los, e que
o menor dos infinitos é justamente o tamanho do conjunto dos números naturais, cuja
cardinalidade é a mesma que a do conjunto dos números naturais pares.
Mas, como podemos comparar dois conjuntos infinitos para saber se possuem o
mesmo tamanho (a mesma cardinalidade)? Afinal, não dá para contar todos os seus
elementos um a um! Simples: provando que há uma bijeção entre seus elementos – ou
seja, a cada elemento de um conjunto corresponde exatamente um elemento do outro
conjunto e vice-versa.
A prova não é complicada; porém, sem entrar em detalhes técnicos, você pode
facilmente perceber essa bijeção na contagem informal abaixo:

0 1 2 3 4 5 ... 100 101 102 ...

0 2 4 6 8 10 ... 200 202 204 ...

Apenas para satisfazer sua curiosidade, como seria um conjunto infinito maior do que
o infinito dos números naturais? Basta você se lembrar de quando estudou os números
reais nas aulas de Cálculo Infinitesimal. Não é possível fazer essa bijeção entre a
sequência dos reais e a dos naturais, porque dados quaisquer dois números reais, você
sempre tem outro número real entre eles. Não há, por isso, um sucessor imediato para um
número real, e sim outra quantidade infinita de números entre quaisquer dois números
reais.

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Moral da história: aquele axioma acima mencionado, e considerado uma verdade


autoevidente, não vale universalmente! Talvez não devêssemos nos apoiar tanto assim no
que é intuitivo ou não, quando se tratar de construir sistemas dedutivos...
Outro matemático muito importante que contribuiu para a busca desse ideal de
sistematização dedutiva foi o alemão David Hilbert (1862-1943). Desde suas contribuições,
os cientistas formais (tanto lógicos como matemáticos) abandonaram essa exigência de
que os axiomas deveriam ser autoevidentes ou intuitivamente verdadeiros. O que importa
é que eles funcionem adequadamente como princípios a partir dos quais todos os
teoremas desejados tenham como ser efetivamente demonstrados. Com isso, desaparece
também a necessidade de distinguir entre axiomas e postulados, os quais são
frequentemente considerados agora como sinônimos.
Portanto, as noções mais exatas e adotadas em nossa época são as seguintes
(variando apenas a redação de um autor para outro, mas expressando basicamente o
mesmo conteúdo):

Uma teoria dedutiva é um sistema de teses derivadas dedutivamente (os


teoremas da teoria) a partir de um conjunto inicial de teses previamente
fornecidas (os axiomas da teoria).

Da definição acima, podemos extrair automaticamente as seguintes noções centrais


para uma teoria dedutiva:

Axiomas são as teses básicas (iniciais) de uma teoria dedutiva, a partir


dos quais todas as demais teses são derivadas por meio das regras de
dedução definidas para aquela teoria.

Teoremas são as teses demonstradas em uma teoria dedutiva.

Para um panorama mais didático, observe o seguinte esquema informal e bastante


abstrato descrevendo a construção de uma possível teoria dedutiva:

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... teorema
teorema
teorema ...
teorema
teorema ...
axiomas teorema
... teorema
teorema
teorema teorema
...
...
...

O que aprendemos com esse esquema geral é que o ideal de sistematização


dedutiva prevê que o sistema comece com axiomas e prossiga demonstrando novos
teoremas, e que todos os teoremas assim demonstrados possam ser usados para seguir
demonstrando novos teoremas, e assim por diante, como se fosse uma espécie de
tapeçaria de resultados sendo tecida infinitamente. É assim, por exemplo, que o famoso
Teorema de Pitágoras é construído dentro da geometria clássica, que é um sistema
dedutivo.
Agora, aprofundaremos um pouco mais, sempre com o objetivo de deixar o assunto
mais claro: como essas derivações de teoremas acontecem? Nós já deixamos uma pista
quando mencionamos a aplicação de regras dedutivas. Pois bem, cada ciência tem seus
conceitos básicos e noções primitivas. Nós chamaremos isso de linguagem da teoria. Se a
teoria é formal, as afirmações da teoria serão escritas como fórmulas (sentenças
compostas por símbolos). Daí, toda ciência dedutiva define uma ou mais regras primitivas
para obter novos resultados. Por exemplo, a título de curiosidade, na lógica temos uma
regra famosa chamada de Modus Ponens, que é definida assim:

A  B
A
B

Ou seja, se uma fórmula A implica em uma fórmula B, e a fórmula A está garantida, com
certeza a fórmula B também está garantida! Bem intuitivo, não é? Saiba que é possível,

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apenas com essa regra e três ou quatro axiomas, demonstrar todas as infinitas verdades
lógicas do nível mais básico da lógica, chamado de cálculo proposicional!
Não precisaremos entrar em detalhes aqui, mas apenas diremos que cada ciência
dedutiva tem suas próprias regras para demonstrar teoremas, sempre muito exatas e
rigorosas. Sabendo disso, você pode entender melhor a seguinte definição (bem informal,
mas ainda assim rigorosa):

Uma demonstração (ou prova formal) em uma teoria consiste em uma


sequência finita, não vazia e enumerada de fórmulas (da linguagem
daquela teoria), em que cada fórmula ou é um axioma, ou foi obtida de
fórmulas anteriores naquela sequência por meio de alguma regra da
teoria. A última fórmula na demonstração é chamada de teorema (daquela
teoria).

Com essa definição, descobrimos algo fascinante: axiomas também podem ser
demonstrados! Basta escrever uma demonstração com apenas um passo contendo esse
axioma. Para visualizar melhor, considere a seguinte fórmula lógica, adotada como axioma
em alguns sistemas da lógica clássica:

A  (B  A) (axioma da prefixação)

Pois bem, essa fórmula foi definida como axioma; então agora pode ser usada, junto
com os demais axiomas e regras, para demonstrar novos teoremas. Observe a seguinte
prova:

1. A  (B  A) (justificativa do passo: é axioma)

A prova acima, simples como seja, satisfaz todas as exigências da definição de prova
formal: contém uma fórmula (uma quantidade finita e não vazia), onde essa fórmula é um
axioma (uma das duas possibilidades; a outra era derivar de fórmulas anteriores). Ora,
então, temos ao final um teorema da teoria (a última fórmula na derivação, que por acaso
era também a primeira). Como isso pode ser feito para qualquer axioma da teoria, mas
nem todo teorema está no conjunto inicial, você pode entender facilmente que:

Todo axioma é teorema, mas nem todo teorema é axioma!

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Nossa explicação deve ter permitido a você perceber que a velha noção de axioma
como verdade aceita sem prova não é muito boa, embora ainda seja usada informalmente
(fora do contexto científico). O fato é que, embora o conjunto de axiomas seja fornecido
previamente de maneira um tanto arbitrária (“sem provas”) ao começarmos a construir um
sistema dedutivo, ele imediatamente se torna um teorema da teoria. Podemos assim
simplesmente considerar uma teoria dedutiva como uma coleção de teoremas.
Para encerrar este capítulo, mencionaremos de passagem outro ponto especial.
Dissemos em várias ocasiões que as ciências formais (ou seja, as ciências dedutivas ou
demonstrativas) provam seus resultados em caráter definitivo. Isso continua sendo
verdade, mas não esqueça de que cada resultado é dependente da teoria; portanto, todo
teorema é teorema de uma teoria específica, e não existe teorema sem uma teoria na qual
ele foi provado.
Por exemplo, o resultado bem conhecido de que a soma dos ângulos internos de
qualquer triângulo sempre totaliza 180º só vale na geometria clássica! Existem sistemas de
geometria, matematicamente bem construídos e legítimos, nos quais esse resultado não
acontece. Em alguns desses sistemas, a soma dos ângulos internos de qualquer triângulo
sempre é maior do que 180º, e em outros sistemas, é sempre menor do que 180º.
O que ocorreu foi que, ao longo do século XIX, diversos matemáticos em diferentes
países (Gauss, Bolyai, Lobachevsky, Riemann) foram se dando conta de que há várias
geometrias possíveis e não equivalentes entre si. Eles perceberam isso ao substituir o
famoso quinto postulado de Euclides (o postulado das retas paralelas) por outros
diferentes. Os resultados foram fascinantes, gerando as “geometrias não-euclideanas”,
algumas das quais encontraram depois aplicações importantes, inclusive na física
relativística. Porém, para não estender demais este capítulo, deixaremos essa história para
quem tiver curiosidade de pesquisar por conta própria!

Onde você pode ler mais sobre o assunto: (opcional)


MORTARI, Cezar A. Introdução à lógica. 2ª ed. São Paulo: Editora da UNESP, 2016. ISBN 978-85-393-
0630-5. (Ver p. 297-303).

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10 – APRESENTAÇÃO CRÍTICA DO MÉTODO INDUTIVO

Objetivos: ao final deste capítulo, o estudante deverá:


a) ser capaz de explicar a estrutura de uma indução enumerativa;
b) saber apontar o principal problema lógico relacionado com a indução enumerativa;
c) conseguir refutar as justificativas apresentadas para a indução enumerativa.

O problema com a indução enumerativa

Apesar de toda a precisão e rigor do método dedutivo, você deve ter percebido que
ele não é suficiente para construirmos as ciências empíricas. E isso acontece por uma
razão muito simples: o raciocínio, isoladamente, é incapaz de descobrir como funcionam
os processos empíricos. Ao elaborarmos modelos explicativos para o funcionamento do
mundo à nossa volta, precisamos coletar dados na experiência, testar predições; enfim, é
preciso ir além do puro cálculo e fazer observações ou experimentos de algum tipo. As
ciências formais, portanto, embora indispensáveis às demais ciências, não conseguem,
sozinhas, descrever o mundo.
Por outro lado, o senso comum sempre acreditou que somente pela observação dos
eventos e pelo mapeamento de sua regularidade, os seres humanos foram criando teorias
científicas acerca da natureza. Essa concepção ingênua tendia a ver o cientista como uma
página em branco, na qual a experiência supostamente imprimia informações. É claro que
não é assim que ocorre, uma vez que é a inteligência humana que reconhece nexos entre
os fenômenos, e pode imaginar princípios ou mecanismos para explicar seu
funcionamento. A pura observação, destituída de julgamentos e raciocínios, não poderia
gerar conhecimento algum! Mesmo o reconhecimento de nexos simples entre eventos (por
exemplo: “isto causou aquilo”) já envolve uma contribuição da inteligência criativa e uma
extrapolação do que foi observado.
De todo modo, aquela concepção incluía também a ideia de que nós descobrimos as
leis responsáveis pelo funcionamento da natureza simplesmente colecionando casos
particulares em que a lei parece se aplicar, e depois generalizando para todos os casos
similares possíveis. Temos aqui uma versão bastante ingênua e próxima do senso comum,
daquilo que se costuma chamar de método indutivo.

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A definição de inferência indutiva foi estudada no capítulo 07. Na ocasião, ela foi
definida como a inferência que não gera uma conclusão necessária (segura), mas apenas
uma conclusão provável. A rigor, existem vários tipos de indução. Examinaremos aqui o
tipo mais frágil e ingênuo de todos: a indução enumerativa.
Podemos esquematizar qualquer raciocínio indutivo por enumeração da seguinte
forma:

Um objeto (ou processo) do tipo A exibiu a propriedade B na ocasião t1.


Um objeto (ou processo) do tipo A exibiu a propriedade B na ocasião t2.
Um objeto (ou processo) do tipo A exibiu a propriedade B na ocasião t3.
(...)
Um objeto (ou processo) do tipo A exibiu a propriedade B na ocasião tn.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
(Portanto,) todo objeto (ou processo) do tipo A possui a propriedade B.

Ou seja, se observarmos uma grande quantidade de ocorrências de certo objeto do


tipo A, e, em todas essas ocorrências, esse objeto A exibir uma mesma propriedade B, em
um número suficientemente grande de ocasiões (momentos + lugares), estaríamos
autorizados logicamente a concluir que isto sempre acontece. Em outras palavras, a partir
de um número considerado satisfatório de constatações particulares (circunscritas no
espaço e no tempo) de uma conjunção de eventos ou propriedades, podemos inferir que
essa conjunção ocorre sempre para todos os casos similares, inclusive os que não foram
observados ainda.
Observe como o esquema acima seria aplicado em dois exemplos bem simples de
indução enumerativa, um envolvendo o ponto de ebulição da água e o outro, a dilatação de
metais. Considere também que a quantidade n de diferentes constatações em ocasiões
distintas é puramente arbitrária, e apenas indica que um grande número de testes foi feito,
sem especificar exatamente quantos testes precisariam ser feitos. Horários e locais dos
testes também são irrelevantes nas descrições abaixo.

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Uma quantidade arbitrária de água pura (um objeto do tipo A) atingiu


o ponto de ebulição ao ser aquecida a 100ºC em 1 atm (apresentou a
propriedade B) às 15:00 de ontem na sala do laboratório de química
(ocasião t1).

Uma quantidade arbitrária de água pura (um objeto do tipo A) atingiu


o ponto de ebulição ao ser aquecida a 100ºC em 1 atm (apresentou a
propriedade B) às 18:00 de ontem na sala do laboratório de química
(ocasião t2).

(...)

Uma quantidade arbitrária de água pura (um objeto do tipo A) atingiu


o ponto de ebulição ao ser aquecida a 100ºC em 1 atm (apresentou a
propriedade B) às 11:00 de hoje na sala do laboratório de química
(ocasião t232).

---------------------------------------------------------------------------------------------
(Portanto,) água pura (todo objeto do tipo A) sempre atinge o ponto
de ebulição ao ser aquecida a 100ºC em 1 atm (possui a propriedade
B).

(ou simplesmente: o ponto de ebulição da água é 100ºC em 1atm.)

Uma barra de metal (um objeto do tipo A) dilatou-se ao ser aquecida


(apresentou a propriedade B) às 15:00 de ontem na sala do
laboratório de química (ocasião t1).

Outra barra de metal (um objeto do tipo A) dilatou-se ao ser aquecida


(apresentou a propriedade B) às 15:30 de ontem na sala do
laboratório de química (ocasião t2).

(...)

Outra barra de metal (um objeto do tipo A) dilatou-se ao ser aquecida


(apresentou a propriedade B) às 18:00 de hoje na sala do laboratório
de química (na ocasião t347).

---------------------------------------------------------------------------------------------
(Portanto,) todos os metais (todo objeto do tipo A) sempre se dilatam
quando aquecidos (possui a propriedade B).

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Em ambos os exemplos, supostamente descobrimos algo acerca do comportamento


da água ou dos metais em geral, a partir de alguns testes – não importam quantos foram
necessários para nos convencer!
A passagem das hipóteses particulares para a conclusão geral, em uma inferência
indutiva enumerativa, é chamada às vezes de “salto” indutivo, porque concluímos uma
propriedade para todos os casos possíveis (inclusive os que não foram observados, claro)
a partir de uma quantidade finita de casos examinados. Em outras palavras, como em
todos os casos observados houve essa regularidade, o indutivista simplesmente se dá por
satisfeito e generaliza para todos os casos existentes ou que possam vir a existir.
O principal problema lógico aqui é que nenhuma quantidade de constatações
particulares de uma propriedade associada a exemplares de um tipo de objeto, por maior
que seja essa quantidade, nos permite concluir com certeza que todos os objetos similares
exibirão a mesma propriedade. Pelo menos, não é possível concluir esse resultado
somente por causa das repetições anteriores. Não há fundamento lógico algum em se
concluir que algo continuará acontecendo indefinidamente somente porque tem acontecido
assim até aquele momento. Isto é bastante intuitivo e não deve oferecer maiores
dificuldades.
Se não há garantias racionais evidentes para as inferências indutivas (pelo menos,
as enumerativas), por que fazemos inferências assim? Desde a infância, aprendemos,
talvez por instinto, a evitar o fogo depois de termos nos queimado uma ou duas vezes.
Mesmo animais não-humanos aprendem a associar experiências a eventos, e, assim,
evitam situações que os remetam a experiências desagradáveis e procuram situações que
os remetam a prazer ou recompensa.
Parece que há algum mecanismo mais ou menos instintivo por trás da indução
enumerativa, e tanto filósofos como cientistas se debruçaram sobre esse mecanismo.
Desde as reflexões do filósofo escocês David Hume (séc. XVIII) passando pela teoria do
condicionamento clássico do cientista russo Ivan Pavlov (séc. XX), as explicações
encontradas sempre apontaram para fatores estritamente subjetivos como o hábito ou o
condicionamento.
Não estamos questionando a importância cotidiana desse tipo de induções –
obviamente, dependemos muito delas para nossa sobrevivência enquanto espécie ou
indivíduos –, nem sequer se as conclusões de tais procedimentos indutivos são

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verdadeiras ou não, estamos examinando sua legitimidade racional na construção do


conhecimento científico. Como o conhecimento crítico se pretende fundamentar na
racionalidade, se não pudermos justificar racionalmente o emprego da indução, teremos
um problema em admiti-la como um método científico legítimo.
Do ponto de vista estritamente lógico, nada impede que, mesmo em face de um
número imenso de constatações particulares de que um objeto qualquer A sempre esteve
associado (no passado) a uma propriedade B, apareça uma situação nova em que A não
apresente B. Isto acontece porque, ao contrário de uma dedução, a conclusão de uma
inferência indutiva não se segue necessariamente de suas hipóteses. Por isso, aquela
conclusão poderia ser negada (mesmo por mera suposição) sem que isso envolvesse uma
contradição lógica com as hipóteses.
Muitos pensadores não consideram o procedimento indutivo como um raciocínio
propriamente dito, devido a esse caráter adivinhatório de sua conclusão. As informações
obtidas por indução podem ou não ser verdadeiras; e, mesmo que sejam verdadeiras, o
procedimento indutivo não havia garantido esse resultado. Em outras palavras, não haveria
um modo seguro de diferenciar entre esse acerto indutivo e uma mera coincidência! Isso
pode ser suficiente para o senso comum (que é até capaz de fazer generalizações
indevidas sem o menor escrúpulo); mas, não parece ser bom o suficiente para o senso
crítico.

A indução enumerativa pode ser justificada?

Para tentar diminuir a fragilidade lógica da indução, bem como evitar induções
precipitadas, alguns indutivistas acrescentam requisitos para os testes indutivos, tais como
testar uma quantidade suficientemente grande de casos, variar o máximo possível as
circunstâncias envolvidas, verificar se todos os casos observados exibem sem exceção
aquela propriedade, etc. Entretanto, nenhum desses requisitos resolve o problema lógico
da indução; pois, de toda maneira, desconsideram que não podemos concluir com certeza
que todos os casos similares não testados se comportarão da mesma forma que os casos
testados.
Isso é particularmente grave quando consideramos que os testes relevantes para a
pesquisa científica, em geral, envolvem uma quantidade infinita de testes possíveis! (Por
exemplo, quantas vezes a água deveria ser aquecida a 100ºC em 1atm para verificarmos
se ela sempre ferve ou não sob essas condições? Ou quantas vezes cada metal existente

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deveria ser aquecido para verificarmos com certeza se os metais sempre se dilatam ou
não? Não é possível calcular, porque as escalas de teste são infinitas!)
Uma tentativa de defender a indução contra essa classe de críticas é torná-la mais
modesta, por assim dizer, fazendo-a produzir conclusões apenas com caráter
probabilístico, numa espécie de recuo à probabilidade. Em outras palavras, em vez de
concluir taxativamente que os objetos de tipo A sempre exibem a propriedade B, a indução
probabilística concluiria que é alta a probabilidade de A sempre exibir B, sem se
comprometer absolutamente com todos os casos possíveis (como ocorre na indução
enumerativa simples).
Nessa linha de raciocínio, as conclusões dos dois exemplos anteriores teriam que ser
modificadas para as seguintes estruturas, respectivamente:

(Portanto,) é altamente provável que o ponto de ebulição da água seja


100ºC em 1atm.

(Portanto,) é altamente provável que todo metal se dilate quando


aquecido.

Esse tipo de conclusão mais cautelosa seria, assim, um resultado mais aceitável para
uma indução enumerativa, por aparentemente evitar o compromisso com o comportamento
universal de todos os casos similares possíveis, abrindo a possibilidade para que talvez
nem todos os casos se comportem do mesmo modo.
Entretanto, embora essa estratégia evite o problema lógico com possíveis
contraexemplos (situações em que se constate o oposto do que vinha sendo observado),
já que esses não invalidariam necessariamente a conclusão; por outro lado, a indução
probabilística padece do mesmo tipo de problema lógico que a indução enumerativa
simples (não-probabilística). O fato é que mesmo a indução probabilística continua
ousando concluir algo para todos os casos possíveis (mesmo que seja apenas
probabilisticamente) a partir de apenas alguns testes feitos (mesmo que numerosos). O
recuo à probabilidade não resolve, pois, o problema da indução.
Dizendo de outro modo, tanto na indução enumerativa simples como na
probabilística, analisando objetivamente o argumento, não há nada na constatação das
hipóteses que nos permita estender (ainda que com caráter apenas probabilístico) aquela
regularidade para todos os casos possíveis.

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Outra tentativa muito conhecida de justificar a indução consiste em recorrer ao


testemunho da experiência em seu favor. Ou seja, tendo em vista que não conseguimos
justificar racionalmente o procedimento indutivo enumerativo, podemos tentar justificá-lo
empiricamente, apresentando nossas experiências bem sucedidas com a indução até o
momento. É como se disséssemos: “a experiência cotidiana nos mostra que a indução
funciona!”.
Quem raciocina dessa maneira para justificar o procedimento indutivo está, na
realidade, construindo o seguinte argumento:

O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião t1.


O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião t2.
O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião t3.
(...)
O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião tn.
---------------------------------------------------------------------------------------------------------
(Portanto,) o procedimento indutivo enumerativo funciona (ou seja, ele
sempre será bem sucedido).

Uma breve análise do esquema acima facilmente revela que se trata, ele próprio, de
uma indução enumerativa. Comparando com o esquema inicial, o processo A consiste aqui
em uma aplicação particular do procedimento indutivo e a propriedade B representa o
sucesso dessa aplicação. Assim, cada ocasião em que realizamos uma indução com
sucesso contou como uma constatação particular, e daí fizemos uma indução a partir das
induções bem sucedidas para concluir que a indução sempre funciona.
Esse sucesso normalmente consistiria em uma predição baseada em uma indução
anterior. Por exemplo, realizamos a predição indutiva de que a água ferverá a 100ºC em
1atm numa determinada ocasião, baseados nas ocasiões anteriores em que ela ferveu
nessas condições, e a predição funciona (ela ferve novamente). Isso contaria como mais
uma constatação particular de indução bem sucedida. E assim por diante.
Você certamente já percebeu o problema:

O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião t1.


O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião t2.
O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião t3.
Mas, isto já é (...)
uma indução O procedimento indutivo enumerativo foi bem sucedido na ocasião tn.
enumerativa! ----------------------------------------------------------------------------------------------------
(Portanto,) o procedimento indutivo enumerativo funciona (ou seja,
ele sempre será bem sucedido).

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Em outras palavras, para provar a indução a partir de induções bem sucedidas no


passado, acabamos por empregar o próprio procedimento indutivo cuja validade está em
questão! Cometemos uma falácia parecida com o círculo vicioso (estudado no capítulo 09),
chamada de petição de princípio.

A falácia da petição de princípio ocorre sempre que, para provar uma


conclusão, empregamos premissas ou estratégias que somente valeriam
se a conclusão já estivesse garantida.

A tentativa de justificar a indução enumerativa a partir da experiência consiste em


uma falácia circular, completamente inaceitável como um bom argumento, conforme
estudamos no capítulo 08.
Para encerrar este capítulo, precisamos destacar que, embora a indução não seja
aceita como uma inferência logicamente justificada, ela representa um papel muito
importante na investigação científica. É bem verdade que a indução enumerativa, como
apresentada neste capítulo, não tem nenhum respaldo científico, nem é empregada na
investigação científica; porém, outras formas bem mais sofisticadas de método indutivo são
utilizadas com freqüência, como as variantes do chamado método experimental clássico ou
métodos de Mill, que estudaremos no próximo capítulo.

Atividade: participação no fórum aberto no AVA sobre este capítulo.

Onde você pode ler mais sobre o assunto: (opcional)

CHALMERS, Alan F. O que é ciência, afinal? São Paulo: Brasiliense, 1993. ISBN 85-11-12061-0.
(Ver p. 23-45).

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