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TINHORÃO E A GÊNESE DA
“AUTENTICIDADE” FESTIVA
JUIZ DE FORA
2014
TINHORÃO E A GÊNESE DA
“AUTENTICIDADE” FESTIVA
JUIZ DE FORA
2014
1
Comissão Examinadora
______________________________________
Prof. Dr. Dmitri Cerboncini Fernandes
Orientador
______________________________________
Prof. Dr. Fernando de Jesus Rodrigues
Convidado(a) externo UFJF (UFAl)
______________________________________
Prof. Dr. Luiz Flávio Neubert
Convidado(a) interno UFJF
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:________________________________________________________ 6
3
CONCLUSÃO__________________________________________________________131
BIBLIOGRAFIA_______________________________________________________ 135
4
RESUMO
ABSTRACT
5
INTRODUÇÃO
A arte, a cultura ou as festas não têm uma vida própria, elas são produtos do
pensamento humano que se materializa em diversas forças e operam para que elas tomem
determinada forma. E, esta forma, muitas vezes, esconde os conteúdos que a compõe. Para
muitos, os festejos populares são meramente um passatempo ou um desvio momentâneo da
contumaz pasmaceira cotidiana. Para outros, porém, eles ocultam um emaranhado de segredos
e jogos de relações. Os atores presentes e os papéis desempenhados nestes eventos revelam
sutilezas da forma de se organizar de uma sociedade. Aqueles que prestarem atenção nestas
tramas conseguem desvendar um jogo de poder e de reputações simbólicas.
Muitos intelectuais fizeram das festas e da música seu objeto de estudo e tentam, a
partir deste, buscar as origens de uma brasilidade; todavia, poucos se debruçaram tão
efusivamente quanto Tinhorão, quer seja na qualidade das obras escritas, quer seja no tempo
despendido para tal empreitada. Já faz quase meio século, desde que José Ramos, o Tinhorão,
escreveu seu primeiro livro, e tanto tempo mais, desde que o bacharel e jornalista estuda e
escreve sobre as músicas, as festas, as literaturas, os cinemas e os teatros em nosso país.
Sendo assim, buscamos, prioritariamente, nas obras desse autor, compreender como o
pensamento deste se insere dentro de uma disputa de concepção simbólica da origem das
festas e da música popular no Brasil.
A vastidão de sua obra permite-nos buscar diversos caminhos, todavia permanecemos
dentro de um específico: como se manifestava a disputa entre os diversos estratos sociais
presentes no período da colonização do Brasil, sobre a música e as festas que aqui se
desenvolveram. E, por fim, qual era a estrutura social que possibilitou o carnaval emergir
como uma “autêntica” manifestação cultural e festiva brasileira.
RIBEIRO (1995) dizia que o povo brasileiro era fruto e uma síntese de encontros
culturais, étnicos e sociais, que não reproduziam aqui a sociedade portuguesa ou as diversas
matrizes africanas ou mesmo indígena, mas que criou nestas terras uma coisa distinta, uma
sociedade derivada de diversos contatos culturais, fluxos e experiências que se transformam
numa sociedade ímpar. Todo esse processo se dá não sem luta, sem resistência, sem disputas
6
nos campos econômico, cultural e simbólico. As diversas matrizes que vieram a formar o
Brasil disputavam suas visões de mundo e, deste encontro, das misturas e assimilações dos
diversos povos que para cá vieram se forma uma identidade que já não é branca, negra ou
índia, mas uma coisa nova.
Esse jogo de poder simbólico se manifesta em diversos campos, mas nos interessará
saber como ele se deu no campo musical e nas manifestações culturais que se reproduzem e se
originam desse contato entre os povos. Onde estaria a gênese de uma “autenticidade”? Como
ela dialogava com o conceito de “homem novo”, enquanto ideário dos movimentos
revolucionários contra a ditadura militar? Onde se manifestava a gênese da “cultura popular”,
enquanto representação de uma disputa política e simbólica no Brasil colonial?
Na América portuguesa os festejos populares se transformavam em manifestações
coletivas públicas, servindo de fonte privilegiada para o estudo de formas de organizações
sociais e representação política (RODRIGUEZ LOPEZ, 2004), pois a partir dessas, os sujeitos
interagiam e reconstituíam seus símbolos e representações pessoais ou de grupo. “As festas
que aqui se originam tiveram papel importante no processo de estruturação dessa sociedade e
de consolidação dos instrumentos de mando, mostrando como as representações e os símbolos
oferecem novas perspectivas de leitura dos processos sociais e políticos” (SOUZA, 2001;
251).
Pretendemos descobrir como funcionavam essas relações pessoais e os jogos
simbólicos, a partir da manutenção da forma dessas festas religiosas. Utilizamos o termo
“religiosas” porque é a partir destas que se desenvolvem as festividades no país; e ela tem um
caráter unificador no período colonial; é a principal e mais conhecida festa do país, o
carnaval. A terça-feira de carnaval é calculada pela Igreja Católica Romana a partir da
quaresma da Páscoa. Assim, ela faz parte do calendário oficial religioso. Todavia, o carnaval
não foi a principal festa no período colonial do Brasil. Para buscar onde se configurava o
caldeirão cultural que originou a especificidade brasileira, precisamos fazer uma viagem à
origem dessa conformação social. Assim, iremos remontar ao cenário onde isso aconteceu.
Então, partindo das obras de Tinhorão, seguiremos nossa viagem junto a relatos dos
viajantes, expedições e reconstruiremos a cenografia à luz das teorias contemporâneas.
Portanto, dialogamos com os textos clássicos da sociologia brasileira, como FREYRE (1980),
HOLANDA (2004), PRADO JÚNIOR (1994), CÂNDIDO (2001) e RIBEIRO (1995),
principalmente no que concerne à formação de uma identidade nacional a partir dos encontros
econômicos, políticos e culturais. Também relacionando com a sociologia internacional como
7
8
gêneros musicais, escrevendo em jornais. A obra citada do autor inglês é fruto de artigos
escritos em periódicos nos anos 50, mesmo período em que Tinhorão começa suas aventuras
no mundo musical brasileiro. Desta forma, surge uma concepção comum de autenticidade,
Relações entre que estaria umbilicalmente relacionada às classes sociais presentes na produção cultural e sua
Hobsbawn
e Tinhorão forma de organização da sua sociabilização. Para ambos, o conceito de autenticidade passa
pelos ritmos africanos com harmonias e melodias europeias, porém divergindo, a partir das
condições sociais e econômicas de cada país. Se para o caso brasileiro é o samba e choro,
conforme atesta FERNANDES (2010), para os norte-americanos é a partir do blues e
posteriormente o jazz.
Pois o fator crucial para o desenvolvimento do jazz, bem como para toda a música
popular norte-americana, que contribuiu mais do que qualquer outro para o
desenvolvimento forte e resistente da música folclórica em uma sociedade capitalista
em rápida expansão foi a sua não inundação por padrões culturais das classes
superiores. (HOBSBAWN, 2012, p. 64).
Para efeito didático, separamos a dissertação em quatro capítulos. O primeiro deles visa
compreender quem é o autor que estamos estudando. Os intelectuais estão inseridos dentro de
uma realidade objetiva, desta forma o primeiro capítulo é uma introdução ao autor. Assim
descrevemos sucintamente a trajetória de Tinhorão que, ao contrário de Joaquim Antônio de
Almeida, que faz do jornal o local para escrever seu livro, aquele sai da carreira do jornal e
faz sua incursão no mundo dos livros. Para tal feito, fazemos uma digressão dos ambientes
político, econômico e social em que sua obra é gestada. Qual era o referencial teórico que
dominava a cena acadêmica e como esta se imbrica com o objetivo do autor, quando escreve
sobre as festas? Ou seja, como se daria a formação de uma cultura popular, festiva e musical
“autenticamente nacional”? Qual é o posicionamento político e com quem ele dialogava, é
outra parte importante dessa dissertação. Para o sucesso de nossa análise, dividimos os outros
três capítulos restantes pelos séculos de colonização do país. Essa metodologia não é nossa, é
do próprio Tinhorão, quando escreve o livro guia de nossa empreitada “As festas no Brasil
Colonial”, que foi lançado no seio das comemorações dos 500 anos do Brasil.
Desta forma, a primeira divisão histórica se dará no segundo capítulo, que versa sobre o
século XVI, a ocupação do território e os “pioneiros”. Nesse quadro, surge a figura primordial
da Companhia de Jesus e a música dos missionários religiosos, chegando a uma civilização
estabelecida a milhares de anos em nosso território. Surge o debate entre a música gestada no
meio das vilas jesuíticas e nos primeiros vilarejos locais. Importante frisar desde o início a
palavra vila, pois para Tinhorão a formação de uma cultura nacional só se daria a partir das
9
cidades. Desta forma, as vilas são os locais desses encontros, nesse primeiro momento. E os
estratos sociais se dão prioritariamente entre os missionários e os índios, tendo muito pouco
da participação de portugueses leigos. Nesse capítulo, buscaremos trabalhar um mito
fundacional, do que seria o caráter de “tipo ideal” da “autenticidade”. Assim, desdobraremos
os fluxos culturais entre os católicos portugueses e os antigos habitantes dessas plagas, até
adentrarmos em uma das principais polêmicas que cerca essa fase, a baixa participação da
musicalidade indígena para a formação musical do país.
O terceiro capítulo se dá no século XVII, dentro de outro contexto histórico, pois agora
os territórios a oeste de Greenwich já estão providos de uma forma econômica lucrativa para a
metrópole a partir das capitanias hereditárias e da produção açucareira, principalmente no
nordeste do país. Embora os jesuítas continuassem ativos, tanto no que diz respeito à música e
formação de vilas, o que se mostrará como o polo mais dinâmico nessa formação social é a
dicotomia cunhada por FREYRE (1980) como “Casa Grande e Senzala”. Estas verdadeiras
PCB - Brasil cidades produtoras de açúcar não têm os traços assinalados pela corrente marxista do PCB nos
Feudal
anos 50-60 de um mundo feudal, mas sim de um território de produção de larga escala voltada
Tinhorão -
Brasil (produ- para o mercado mundial. Assim como PRADO JÚNIOR (1994), Tinhorão concebe o período
ção em larga
escala) conecta-açucareiro como alinhado ao mercantilismo, portanto ligado à nascente ideologia burguesa do
do ao mercado
internacional
lucro. E do ponto de vista social também se caracterizaria por um contato social, e não pelo
mercantilista isolamento do campo.
Na esfera social ganha vulto outro elemento: os negros africanos escravizados. Esse
período é importante, porque vai guinando a formação musical do Brasil, da música jesuítica
para os primeiros sincretismos rítmicos e festivos. Mostramos como o autor concebe essa
nova forma, a entrada dos negros dentro da sociedade brasileira, uma vez que estes já eram
bastante difundidos como escravos em Portugal. Outro ponto importante nessa disputa é a
chegada dos holandeses em Pernambuco, e como alterou a valoração de um tipo de
manifestação artística em detrimento de outros.
10
Por fim, o quarto capítulo abrange o século XVIII, particularmente o ciclo do ouro. Essa
forma de organização também traz como novidade a difusão da utilização de mão-de-obra
cativa para outros ramos econômicos, o que até então era quase exclusividade da agricultura.
PRADO JÚNIOR (1994) escrevera que o Brasil tem uma vocação agrícola, de exportador de
gêneros alimentícios para os países do velho continente. A primazia que essa nova forma de
organização econômica traz são o aparecimento de diversas outras profissões a utilizar mão-
de-obra escrava. Não apenas na mineração, que foi o que mais consumiu braços, mas também
em setores como comércio, artesanato, transporte e construção civil. LUNA (2009; 268)
apresenta dados referentes a 1718 em Vila Rica e adjacências.
de dois setores que chamam a atenção: o primeiro é o artesanato, que embora pequeno em
número de proprietários, alcança média de 5 escravos, menos que a média geral, porém mais
do que a agricultura. Outro fato é a informação referente a proprietários que tinham quatro
forros, e estes, em conjunto possuíam dezoito cativos (média de 4,5). Embora LUNA (2009)
não especifique em qual setor econômico atuavam os forros, o fato é que a média de escravo
por eles possuído também é superior ao do agricultor. Último fato relevante é a formação de
uma elite burocrática e militar, que detém uma média de 23,33 escravos por proprietário.
Além disso, poucos proprietários tinham uma leva maior de escravos que destoava de todas as
outras médias. Vale ressaltar, que o ano em questão, 1718, estamos no crescente do sistema
minerador. Ainda não se dividiu a capitania de São Vicente, e Vila do Carmo ainda não havia
se transformado em capital, o que aumentaria, principalmente, o poder dos proprietários da
parcela que mais detém cativos, os funcionários, patentes e militares.
Essas transformações sociais também trazem consigo outras consequências para a
compreensão da teoria de Tinhorão, a crescente formação de cidades. Esse é um elemento
importante para a formação de sínteses musicais e festivas, como elemento de construção.
TINHORÃO (1966) sustenta a tese que a diversidade econômica gera classe média, e esta
diversidade era fundamental para a formação de atividades culturais díspares que pudessem
tanto se atear ao local quanto ao universal. Do ponto de vista musical, temos tanto o
desenvolvimento de uma música barroca nacional, rebuscada e dialogando com as concepções
musicais de uma elite europeia, ou seja, universal, quanto o desenvolvimento de festividades
religiosas a partir da formação das irmandades.
Sobre a organização social, enfatizamos também outras características importantes,
sobretudo no que diz respeito a uma centralização política e econômica. A transferência da
capital de Salvador para o Rio de Janeiro e o desdobramento da província de São Paulo,
formando as Minas Gerais ao norte. Politicamente, temos o início dos processos de
independência e, consequentemente, a formação de uma identidade local ou nacional; de
qualquer forma, tem-se uma divisão entre os daqui e os de fora. Seria essa divisão o início de
uma identidade nacional? E, principalmente para nós: como Tinhorão analisou esse processo
do ponto de vista da formação musical e festiva do Brasil?
Por fim, esclarecemos que não entraremos no breve século XIX do Brasil colônia. Dois
motivos principais nos levaram a essa condição; o primeiro deles é que temos boa parte desse
período sob o governo direto de Portugal no Brasil, e a partir de 1808, sob o comando de Dom
João VI. Isso causaria uma divisão entre palacianos e não palacianos dentro de um período
12
muito curto de tempo e que, embora tenha sido de fundamental importância para a
manutenção de uma unidade territorial e tenha vindo junto à corte músicos e artistas da mais
fina classe portuguesa, eles não configurariam uma unidade válida dentro da concepção de
nacional. O segundo ponto que nos levou a ignorar esse curto período é a concepção do
próprio autor de que ali já estariam fundadas as bases de uma música e festividades
autenticamente brasileiras. A gestação do período colonial já estava madura o suficiente para
o surgimento do filho genuíno das festividades brasileiras, o carnaval. Fruto de aventuras
coloniais entre a melodia portuguesa com os ritmos africanos, em que surge sob a estética
barroca o que seria a mais autêntica das manifestações culturais brasileiras.
13
o curso de jornalismo, formando em ambas em 1953. Poderíamos dizer que ali se encerrava a
sua formação acadêmica, porém, já com setenta anos de idade fez o mestrado em História
Social na USP4.
A opção pelo curso de Direito vem como um caminho quase que “natural” para
aqueles formados no Clássico. Os cursos nas áreas das Ciências Humanas eram todos muito
recentes, à exceção do Direito5. Os bacharéis assumiam as funções burocráticas do Estado, se
gabaritavam para o parlamento além de exercer o jornalismo, formando-se como uma
categoria intelectual. No século anterior, Machado de Assis havia enviado sua criação, Brás
Cubas, para Coimbra estudar Direito. Na literatura Monteiro Lobato, também bacharel,
tentava formar um ideário nacional, tanto com o Jeca Tatu, quanto na construção de narrativas
infantis das lendas do mundo rural. Aqueles que andam sob as arcadas do Largo do São
Francisco observam a ostentação institucional na galeria de ex-presidentes, principalmente na
época da política do café com leite.
Nos anos 50, começara um deslocamento da legitimidade acadêmica para o
pensamento social, porém as Ciências Sociais contavam com menos de duas décadas de
existência no Brasil e outras carreiras como a Economia, História e Jornalismo davam os
passos iniciais de sua maturação, enquanto disciplina acadêmica. No caso do Tinhorão isso
fica visível pelo papel da sua formação em Jornalismo, como um curso anexo da Faculdade de
Filosofia da Universidade do Brasil. Os bacharéis em Direito ocupavam as primeiras cadeiras
no surgimento dos diversos cursos das Ciências Humanas6, junto com os “especialistas”
estrangeiros.
4
Segundo
o
próprio
para
dispor
da
verba
de
pesquisa
para
fazer
seus
estudos,
o
que
resulta
no
livro
“A
imprensa
Carnavalesca”.
Entrevista
para
a
roda
viva,
abril
de
2010.
5
“No
interior
do
sistema
de
ensino
destinado
à
reprodução
da
classe
dominante,
ocupava
posição
hegemônica
por
força
de
sua
contribuição
à
integração
intelectual,
política
e
moral
dos
herdeiros
de
uma
classe
dispersa
de
proprietários
rurais
aos
quais
conferia
uma
legitimidade
escolar.
A
Faculdade
de
Direito
atuava
ainda
como
intermediária
na
importação
e
difusão
da
produção
intelectual
europeia,
centralizando
o
movimento
editorial
de
revistas
e
jornais
literários”
(MICELI,
2001,
p.
115).
6
Câmara
Cascudo
vai
integrar
os
estudos
de
antropologia
na
Faculdade
de
Direito
de
Natal.
Oliveira
Viana
era
membro
de
diversas
academias
nacionais
e
internacionais
na
área
de
História,
Geografia,
Sociologia
e
Antropologia.
Antônio
Candido
começa
os
estudos
de
Direito,
mas
diferente
dos
anteriormente
citados,
não
conclui
o
curso,
optando
pelo
estudo
de
Sociologia.
15
16
sociais e políticos eram marcados por essa tradição. Desde juristas como Ruy Barbosa até
poetas como Castro Alves eram oriundos da Faculdade de Direito de Olinda e haviam
terminado sua formação no Largo São Francisco. De forma semelhante, os efeitos políticos do
Brasil, até a era Vargas, foram marcados pela hegemonia simbólica do Direito. Exceção que
deve ser feita à proclamação da república, que embora sua forma e seu conteúdo repousem na
discussão legítima do direito a quem deve deter o poder, que conta com a influência do
filósofo de formação e precursor da Sociologia August Comte.
Na “Revolução” Constitucionalista aparece com destaque a noção do respeito às leis e
à constituição. A derrota dos paulistas para Vargas marca também o nascimento da
Universidade no país, para além dos cursos isolados em faculdades. Também, marca a
fundação de uma cátedra de Sociologia, e esta entra na disputa da legitimidade simbólica do
discurso e do papel dessa ciência para a compreensão dos fenômenos sociais. O projeto para a
formação de uma nova classe burocrática do serviço público era gestado em São Paulo,
principalmente a partir da criação da Faculdade de Ciências Humanas e da unificação com a
Escola Politécnica, a Faculdade de Direito e de Medicina. No Rio de Janeiro, gestara-se a
Universidade do Brasil, e a divisão já ficaria nítida enquanto ao nome adotado. De um lado,
temos São Paulo e do outro o país. Mesmo com a crescente procura para os novos cursos nas
Universidades o capital social e a valorização do diploma acadêmico ainda pendia (ou pende)
para o tripé Direito, Engenharia e Medicina7.
Fazemos essa digressão com o intuito de pensar uma das grandes frustações do
Tinhorão, o fato de não ser reconhecido pela academia como um intelectual. Nem tampouco
nas outras áreas do conhecimento, sendo chamado, a contragosto, de crítico musical. Sua obra
sobre a música, festas, literatura e cultura brasileira continuam relegadas a segundo plano no
pensamento social brasileiro, recebendo mais crédito pelos seus livros na academia
portuguesa que na nacional. Uma das hipóteses para isso seria devido a sua formação não
advir das Ciências Sociais ou da História. Essa discussão prévia, sobre a formação acadêmica
dos intelectuais brasileiros, é justamente para desmistificar esse argumento como válido, pois
grande parte daqueles que o antecederam na Sociologia tem sua formação em outras áreas e
nem por isso deixam de ter importância reconhecida dentro das Universidades e publicações
dentro desse ramo do conhecimento, ocupando, muitos deles, papel de destaque na história do
7
“A
intervenção
do
Estado
para
a
regulamentação
de
conflitos
entre
patrões
e
operários
acarretou
a
criação
de
uma
nova
instância
judiciária,
a
Justiça
do
trabalho
(...)
novas
frações
intelectuais
levou
a
criação
das
faculdades
de
filosofia
ciências
e
letras,
dando
ensejo
à
introdução
de
novas
disciplinas
(sociologia,
antropologia,
etnografia,
geografia
humana,
economia
política,
ciências
políticas
etc.)”
(MICELI,
2001,
p.
214).
17
pensamento mundial. Outra consideração a esse respeito é o fato de que ele retoma os bancos
das Universidades para fazer o mestrado, dessa vez em História Social na USP. Isso também
serve como balizamento de que sua metodologia é condizente com o método científico e
epistemológico, sendo necessários outros motivos para o isolamento desse pensador para a
compreensão do Brasil, tanto atualmente quanto ao longo de sua história. Outra hipótese que
podemos levantar é o fato de Tinhorão procurar a formulação de “leis gerais”, ou o
A recusa da
academia em pensamento totalizante da sociedade, o que foi abandonado pelo discurso acadêmico que
relação ao
Tinhorão procura suas respostas cada vez mais no espaço micro ante ao macro.
Em 1952, o então José Ramos encontra o seu primeiro emprego na área jornalística, no
Diário Carioca. É contratado como estagiário na função de copidesque, ou redator, cargo que
exerceu durante toda a sua carreira. Chega à redação por intermédio do seu colega de
faculdade Armando Nogueira. Escrevia “notinhas” para o jornal até que um incêndio irrompe
no Teatro Copacabana e a seguinte nota é impressa:
Depois dessa nota, ele passa a ser efetivo no jornal. O espírito cômico acompanha
toda a sua produção e ganha contornos mais críticos ou polêmicos, por exemplo, quando diz
“filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana - que é,
inegavelmente, sua mãe – a bossa nova vive até hoje o drama de muitas crianças de
Copacabana: não sabe quem é seu pai.” (FERNANDES, 2010; p 177).
Por essas e por outras notas, sua alcunha vira sinônimo da “toxidade” dos seus
comentários. Agora, com um novo nome para assinar suas notas, Tinhorão começa a trilhar
uma carreira de jornalista que só iria se encerrar em 1981. Sua estada no Diário Carioca foi
uma importante experiência para a sua acumulação de capital social e, principalmente, para o
aprofundamento de suas pesquisas. Embora o jornal não fosse o principal em vendas, na
capital nacional, era voltado para o público dos “formadores de opinião”. Além de nomes
18
como Armando Nogueira, Jânio de Freitas, que estudara arquitetura, Nilson Lage, que
abandonara o curso de Medicina para se dedicar ao jornalismo, contava com colaboradores
como Sérgio Buarque de Hollanda, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino,
Otto Maria Carpeaux, Thiago de Mello e, como contínuo do jornal, Cartola. Não seria de se
estranhar que dentro desse ambiente se gestasse uma categoria de intelectuais que se
Grande impren- relacionava diretamente ao público, embora com a sempre temível “censura” do diretor.
sa =
prestígio Então, “em termos concretos, toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que
social
constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das
gratificações e posições intelectuais.8”. (MICELI, 2001, p.17)
Outro problema na profissionalização dos jornalistas era sua relação umbilical com o
poder público. Uma parte dos funcionários era ligada ao serviço público e exercia a profissão
de repórter como um segundo emprego. Essa situação criaria dois tipos de funcionários na
mesma empresa, os que teriam dedicação exclusiva, como Tinhorão, Jânio de Freitas,
Armando Nogueira etc., e os que utilizavam o serviço público para escrever suas matérias e
enviá-las aos copidesques. Esse fato contava com a conivência da direção do jornal e servia
como uma forma de se ter informações políticas que eram convenientes com a linha editorial.
O Diário Carioca surge em 1928 com a finalidade de fazer oposição ao governo do
Washington Luís. Do mesmo modo, apoiou tanto a Revolução de 32 quanto o Estado Novo.
Fazia ataques ao tenentismo e fez coro com a lei de segurança nacional após a Intentona
Comunista. Seu apoio ao movimento paulista rendeu a proibição da circulação do jornal por
alguns meses, porém a habilidade em mudar de lado e apoiar o governo em andamento
garantiu o retorno da circulação do jornal.
Problemas econômicos no Diário fizeram com que muitos de seus funcionários
trocassem essa redação por outras. Assim, com o convite do colega Jânio de Freitas, Tinhorão
faz as malas e se muda para o Jornal do Brasil, em 1958. Este era um jornal de circulação
JB
maior e que passava por uma reforma em sua edição. O suplemento cultural tinha o mesmo em 1958
número de páginas que o Diário Carioca, e Tinhorão, que já escrevia no caderno cultural, fez
dupla com Sérgio Cabral no novo periódico. Já no novo emprego, consegue a oportunidade
que vai marcar sua posição enquanto intelectual, o de pesquisador das músicas e festas em
nosso país. O novo jornal abria mais espaço para artigos de opinião e mais liberdade para
8
Miceli
(2001)
escreve
reportando-‐se
à
Republica
Velha,
todavia
a
criação
das
Universidades,
embora
criasse
uma
nova
categoria
de
intelectuais,
não
mantinha
um
relacionamento
direto
com
o
público,
o
que
fazia
daqueles
acadêmicos
que
escolhessem
o
jornalismo
mais
conhecidos
entre
os
letrados.
Caso
de
Sérgio
Buarque
de
Hollanda,
que
ficara
entre
1938
a
48
fora
do
meio
universitário,
onde
retomaria
carreira
na
Escola
de
Sociologia
e
Política,
após
trabalhar
para
a
burocracia
estatal
e
escrever
para
jornais.
19
escrever textos com mais fôlego. Na redação do Jornal do Brasil surge o convite para escrever
sobre o samba e música brasileira.
O final dos anos 50 e início dos 60 marca a modernização do Brasil e cria algumas
rupturas no cenário nacional. O Rio de Janeiro estava prestes a perder o posto de capital do
país, o que reduziria sua capacidade de atração de uma classe média vinculada à burocracia.
Também se afastaria do centro do poder político, as instâncias decisórias deixariam as praias
da Guanabara e se afastariam para o planalto central. De principal centro formulador do país,
reforçado pela perda do poder político da oligarquia paulista, em maior escala, e mineira
secundariamente, assiste a JK e sua industrialização abrir caminho para a construção da nova
capital. Já o clima no Jornal do Brasil permitia uma maior liberdade de crítica, uma vez que
não tinha ligações diretas com os políticos e partidos9, e se mantinha financeiramente pelos
classificados, o que garantia uma independência do jornal.
Surgia uma jovem geração de jornalistas, que puderam exercer suas atividades com
menor ingerência externa, “que permitiu um jornalismo leve, criativo, carioca, irreverente,
informal” (LORENZOTTI, 2010, 71). E parte considerável dessa “revolução” se daria no
Caderno B, “uma iniciativa de efeito multiplicador”, que visava se relacionar com um público
“sintonizado” com a modernização do Brasil. Nesse clima surge uma geração de
jornalistas/cronistas que estava transformando a imprensa atrelada ao regime político
vigente10. O início dos anos 60 não ficara marcado no Jornal do Brasil apenas pela relativa
independência que adquiria. Esse período também era de efervescência política, o que
culminou numa greve dos jornalistas, em 1962, que contou com forte participação dos
copidesques, o que resultou na demissão de Tinhorão.
Outra novidade adotada pelo Jornal do Brasil foram os manuais de redação. Estes
tendiam para uma uniformização da atividade jornalística, retirando parágrafos desnecessários
e prolixos do texto. A principal transformação foi a introdução do lead, em que a notícia
deveria ser anunciada logo no parágrafo introdutório. Outra transformação importante foi a
retirada de um saber intelectualizado daqueles que escreviam para os periódicos. Essa
transformação traz uma mudança fundamental para aqueles oriundos do ensino superior:
9
A
independência
financeira
evitaria
certas
cobranças
de
grupos
de
interesses
sociais
distintos
“As
sujeições
inerentes
à
vinculação
com
o
campo
do
poder
exercem
tão
bem
sobre
o
campo
literário
graças
às
trocas
que
se
estabelecem
entre
os
poderosos,
na
maior
parte
novos-‐ricos
em
busca
de
legitimidade,
e
os
mais
conformistas
ou
os
mais
consagrados
dos
escritores,
em
especial
através
do
universo
sutilmente
hierarquizado
dos
salões”
(BOURDIEU,
2000,
p.
66).
10
O
que
voltaria
a
acontecer
no
Rio
de
Janeiro
com
a
ditadura
militar,
utilizando-‐se
do
Globo
como
jornal
oficial,
o
que
lhe
valeria
prestígio
e
o
futuro
“monopólio”
das
comunicações.
20
Em 1963, ele se muda para São Paulo para trabalhar na TV Excelsior, onde é
demitido, como faz questão de frisar, no dia 31 de março de 196411. Trabalhou para o Correio
da Manhã, Globo, Veja, Pasquim, Jornal do Brasil novamente, e tantos outros. Escrevia textos
para a TV, mas principalmente artigos sobre música e cultura popular. Critico “tóxico” travou
brigas com praticamente todas as novidades, não pela sua condição de “evolução”, mas pela
perda de uma “autenticidade”, de uma raiz que fizesse com que os ritmos e as inovações não
pudessem ser considerados como os ritmos tradicionais, pois se perderiam na história junto
com seus criadores. Assim, vai colecionando notas e provocações “Samba Bossa Nova nasce
como carro JK. Só é montado no Brasil”. (LORENZOTTI, 2010; p. 91).
Seu interesse pela música popular data dos dez ou doze anos de idade, já no Rio de
Janeiro, onde começa a frequentar rodas de samba na região do Botafogo, perto do antigo
Mourisco. Essa relação com a música é fundamental quando, na redação do jornal, perguntam
quem escreveria sobre jazz e quem sobre samba. Segundo Tinhorão, ninguém queria escrever
sobre música brasileira, não tinha livros, tudo necessitaria do repórter que procurasse as fontes
e que escrevesse as histórias; o jazz já contava com muito material escrito, livros e centenas
de artigos em jornais tanto norte-americano como na Europa, (LORENZOTTI, 2010, p. 74).
Agora, sobre a música brasileira, era uma história que ainda precisava ser contada. A dupla
com Sérgio Cabral vai originar as primeiras histórias do samba, assim como a contribuição de
outros cronistas da época.
Esse evento “cria” o Tinhorão, estudioso da música popular brasileira, um “militante
solitário” de um nacionalismo cultural. Metodologicamente duas considerações são
fundamentais para desvendar o sentido adotado em suas obras. Primeiro é o materialismo
11
“No
dia
anterior
tinham
ido
praticamente
tomar
a
emissora
três
senhores
à
paisana,
três
coronéis
do
Exército,
guiados
para
conhecer
as
instalações
daquele
“antro
de
comunistas”,
imagine,
que
trabalhavam
para
o
grande
“comunista”
chamado
Wallace
Simonsen,
dono
da
Panair
do
Brasil,
que
vivia
em
Paris..”.
(LORENZOTTI,
2010,
71).
21
histórico. Como veremos no decorrer deste trabalho, este é um ponto crucial para a
dualismo compreensão, pois a direção de seus artigos e livros leva em consideração um dualismo que se
dialético
integra dialeticamente. A divisão entre música “do povo” versus as orquestras de câmara ou
as composições palacianas. As festas populares, públicas, em oposição às da corte. Esta
separação visa a dar uma coerência, ou uma atualização, do conceito marxista de luta de
classes. Na acepção do autor, o reflexo das disputas entre as classes, ou extratos sociais,
reflete numa forma de organização e disputa simbólica pela cultura e consequentemente pelo
poder12. A música, as festas, os instrumentos, os arranjos, as melodias, as danças, estão
diretamente relacionados ao papel social desempenhado por cada grupo. Desta forma a
divisão social do trabalho, o incremento de profissões e de relações sociais interfere, de
maneira quase positivista, no desenvolvimento do seu objeto.
Outro recurso importante na sua metodologia são as fontes utilizadas. Conforme
descrito anteriormente, ele se aventura num estudo em que não existiam materiais
bibliográficos suficientes. Tinhorão faz, assim como outros intelectuais da sua época, um
papel de arqueólogo. Suas fontes são buscadas em materiais diversos, principalmente em
fontes primárias escondidas em relatos de viajantes, cartas de padres jesuítas, arquivos
eclesiásticos, cordéis, partituras e livros publicados pela Real Academia Portuguesa no
período colonial do Brasil. Isto para o que nos interessa fundamentalmente nessa dissertação.
Na construção da música contemporânea, ele retira dos jornais, discos, partituras, e entrevistas
com os precursores do samba carioca, bem como no recôncavo baiano e em outros locais do
país. Segundo sua biógrafa (LORENZOTTI, 2010, p.117) “Sua posição única e taxada de
radical, não pode ser considera um “achismo”. Uma de suas broncas é não ter o
reconhecimento dos intelectuais acadêmicos.”.
Essa metodologia adotada para interpretar a formação musical do Brasil caminhava
paripassu com a produção intelectual brasileira daquele período. De um lado, existia uma
necessidade de gestar uma identidade nacional, de buscar o que haveria de “genuinamente”
nacional. Esta se daria numa valorização de elementos culturais “autônomos”, que se
desenvolveram no Brasil, com o mínimo possível de “interferências” externas13. Desta forma,
12
Segundo
Tinhorão
(1966,
p.14),
“desse
embate
–
que
traduz
o
reflexo
da
luta
de
classes
no
plano
cultural
–
resulta
o
conservadorismo
estético
da
(que
identifica
a
perenidade
das
obras
clássicas
com
o
seu
propósito
de
perenidade
de
poder)
e
o
caráter
revolucionário
da
estética
das
classes
aspirantes
ao
poder
que
desprezam
o
passado
e
desejam
a
renovação”.
13
Veremos
no
decorrer
desse
trabalho
que
Tinhorão
busca
tanto
na
matriz
portuguesa
quanto
africana
um
embrião
da
música
e
das
festas
no
período
colonial.
Todavia
mantem
seu
axioma
nas
manifestações
das
classes
dominadas
como
o
elemento
fundante
da
nossa
matriz
cultural.
Assim
busca
nos
elementos
do
paganismo
22
europeu
para
o
desenvolvimento
da
música
em
Portugal
bem
como
no
elemento
negro,
tanto
de
sua
religiosidade
como
na
música,
que
caminhavam
lado
a
lado..
14
Embora
não
seja
conveniente
associar
“nacionalismos”
com
a
teoria
de
Marx,
essa
corrente
de
pensamento
ganha
acentuado
relevo
nos
anos
50-‐60,
principalmente
com
a
formação
do
bloco
de
países
não
alinhados.
A
justificativa
teórica
desta
se
baseia
na
teoria
do
imperialismo
de
Lenin
e,
principalmente,
da
possibilidade
de
construção
do
socialismo
em
um
só
país.
No
seio
da
terceira
internacional
estava
de
acordo
com
o
browernismo,
corrente
inspirada
no
comissário
da
Internacional
para
a
América
Latina.
23
Neste trecho, temos a personagem “nobre”, justificada pelo cargo ocupado por seu
marido, que traz hábitos palacianos de saraus, no século XVIII no Brasil. Politicamente, ele
foi marcado por instabilidades políticas, guerras e revoltas. Geograficamente, há um
crescimento populacional e um fluxo de migração para o interior do país. Economicamente, o
ciclo do ouro e de pedras preciosas tira o eixo da colônia exportadora de açucar para metais.
Socialmente, a formação de cidades e criação de uma nova fração do grupo dirigente, que
demanda novos hábitos na colônia, inclusive no quesito religioso “cujo surgimento na colônia
se explicava pelas menores restrições morais existentes longe do atuante sistema de censura
da metrópole”. HOLLANDA (2004; p. 103). Tinhorão utiliza-se da metodologia marxista de
aproximar as novas formas de interação social, as festas e espaços de sociabilidade,
engendrado nas transformações que ocorriam no país. Assim prossegue:
Na verdade, o ouro das minas brasileiras, carreando para o tesouro real em Lisboa
uma riqueza acima de qualquer previsão, permitia desde meados do século XVIII
uma tal ampliação do círculo das grandes famílias da burguesia e da nobreza,
agrupadas à sombra do trono, que a vida da corte ganhava um colorido jamais
imaginado. (TINHORÃO, 1997, p. 11)
15
Embora
tenha
alguns
rompimentos
teóricos
com
o
seu
partido,
o
principal
deles
referente
a
sua
negação
do
caráter
feudal
da
produção
rural
do
país.
Condição
essa
fundamental
para
os
ortodoxos
do
PCB
que
procuravam
adaptar
a
realidade
nacional
para
a
evolução
histórica
da
Europa.
24
16
Florestan
Fernandes,
Caio
Prado
Júnior,
dentre
outros
já
estavam
fora
das
Universidades
brasileiras,
e
ainda
surgia
outra
gama
de
intelectuais
que
se
organizavam,
escreviam
e
publicavam
em
outra
rede
de
relações,
como
o
Francisco
de
Oliveira,
Rui
Mauro
Marini
e
a
CEPAL.
Além
de
intelectuais
ligados
aos
partidos
de
esquerda
como
Jacob
Goerender.
17
Em
1965,
Caetano
Veloso
escreveu
seu
primeiro
artigo
com
críticas
a
Tinhorão.
O
que
viria
a
se
repetir
em
um
show,
em
2008,
numa
analogia
entre
a
música
Feitiço
da
Vila,
de
Noel
Rosa,
e
racismo.
Sua
questão
era
porque
o
jornalista
havia
criticado
tanto
Vinicius
de
Moraes
e
Tom
Jobim
como
usurpadores
de
uma
música
negra
e
nada
dizia
sobre
o
poeta
da
Vila.
(LORENZOTTI,
2010,
p.
64)
25
Diferentemente do artista que “durante toda a sua vida, tentou manter-se nessa posição
indeterminada, nesse lugar neutro, onde se podem sobrevoar os grupos e seus conflitos”,
(BOURDIEU, 2000, p. 41) Tinhorão não fica refém das “lutas que opõem entre si as
diferentes espécies de intelectuais e artistas e aquelas que as defrontam globalmente com as
diferentes variedades de proprietários” (BOURDIEU, 2000, p. 41-42). Se nos jornais, tanto
pela limitação espacial quanto pela objetividade que estão dispostos os leitores a empreender,
os seus textos têm a conotação cáustica, quando este se lança na empreitada de escrever livros
o teor e seu estilo literário sofrem uma significativa alteração. Não vemos mais a ironia de
seus comentários, nem tampouco as provocações que o faziam famoso na imprensa. A
metodologia marxista lhe impunha outra objetividade, isto quando o livro não era uma
coletânea de jornais. Começa nos jornais (que seria uma condição secundária para um
intelectual) e, posteriormente, adentra na produção de uma vasta literatura sobre a cultura
popular, tanto no Brasil quanto em Portugal, até chegar ao ponto em que se desliga do
jornalismo – após sua aposentadoria, o que confere a condição financeira de se dedicar apenas
aos livros.
26
Tinhorão é fruto das mesmas condições objetivas e subjetivas que fizeram parte esses
intelectuais, tanto que suas críticas ácidas não passavam por esses autores ou coletivos
27
culturais; essa formulação era a que recebia as melhores notas e críticas do então crítico
cultural. Todavia, ele vai construir sua teoria da autenticidade cultural brasileira dentro de
outro pressuposto teórico, grande parte ancorada pelo desenvolvimento intelectual e
socioeconômico do país, mas podemos observar já na sua primeira obra “A província e o
naturalismo”, de 1966, uma tendência a buscar nas cidades, e não no campo, as estruturas de
maior vulto para a formação de uma cultura popular autêntica. Para o autor a diversificação
social, principalmente no que concerne à divisão de trabalho e geração de classe média, é o
que poderá gerar uma síntese para uma autenticidade brasileira (TINHORÃO, 1966). Do
ponto de vista teórico, isso está inserido na leitura e estruturação no campo da cultura de uma
concepção alinhada à de Caio Prado Júnior, em que não estamos e nunca estivemos numa
sociedade feudal, o que faz o autor assinalar diversas vezes, que não está analisando o
desenvolvimento cultural do mundo rural e sim a do mundo urbano. Assim, ele buscará no
desenvolvimento da colonização do país os elementos que pudessem estar na autenticidade
cultural brasileira.
28
29
muito do que ocorria era ignorado nessas correspondências18. Embora a seleção intencional do
que se escrevia e do que se omitia possa originar termos ou de considerações questionáveis,
com elementos omitidos dentro dessas correspondências, elas servem como fontes primárias
na construção de uma identidade nacional proposta por Tinhorão.
Tomaremos como ponto inicial a “deculturação” proposta por ele em seu texto “A
deculturação da música indígena brasileira”, de 1972. Essa metodologia adotada por ele estará
de acordo com a visão de mundo do autor e com a construção de identidade que se pretende
em suas obras; desta forma ele traçará um panorama a partir de um ponto único de referência
(os jesuítas), que já estariam de antemão amarrados por não poderem, ou deverem, contar toda
a verdade que se passa nos trópicos.
Não poderia ser diferente. O poder da escrita estava nas mãos de poucos padres
instruídos, que junto com um pequeno grupo de colonizadores provenientes das zonas rurais
portuguesas e de alguns das colônias da África criam uma colonização sedentária junto ao
nomadismo dos nativos. A visão de mundo projetada no imaginário jesuíta conferia os valores
morais que os homens desta terra deveriam possuir, e isto convergia na concepção de festas
que deveriam ocorrer. Como Tinhorão trabalha em oposição ideológica aos jesuítas19, sua
linha de raciocínio segue buscando as formas de resistências encontradas, tanto pelos
indígenas quanto pelos brancos pobres, com vistas a formar uma nova identidade cultural.
Desta forma, desenvolveremos esse capítulo articulando a construção argumentativa
de Tinhorão dentro de uma perspectiva proposta por ele, de pensar a formação musical e das
festas no período através da organização econômica e social em que estavam inseridos os
agentes. Assim trabalharemos temas como “deculturação”, “etnocentrismo”, “controle”,
“disputa”, “resistência”, “músicas”, “afirmação” e “festas”, e temas não propostos por ele,
como “proibição”. Sendo nossa proposta delimitar os conceitos sugeridos por ele dentro da
perspectiva de uma análise do pensamento desse autor, e também analisar suas fontes,
referências e objetivos na construção de sua obra.
18
Holler
(2010;
17)
19
Gilberto
Freyre,
em
Casa
Grande
e
Senzala,
também
se
coloca
em
oposição
aos
jesuítas,
justamente
pelo
caráter
etnocêntrico
dessa
ordem
religiosa.
Dizia
ele
que
“o
missionário
ideal
para
um
povo
comunista
na
tendência
e
rebelde
ao
ensino
intelectual,
como
os
indígenas
da
América
teriam
sido
os
franciscanos”
(1987;
144)
30
O autor busca uma origem da formação das festas e músicas no Brasil. Desta forma,
ele encontra na carta de Pero Vaz de Caminha para o rei D. Manoel, sobre as terras “achadas”,
o episódio que tangera toda a concepção da disputa simbólica entre as festas e ritos que se
estenderá como coluna vertebral de seu argumento. A busca de uma natureza de classe, que
remontaria a uma música popular genuinamente brasileira, se dá no primeiro documento
escrito sobre essas terras. Deste, ele rememora várias passagens ritualísticas onde a
sociabilidade e a comunicação entre os dois povos que não se conheciam se reconheceriam.
Esse reconhecimento de atração mútua se deu pela música e pela dança. Desta forma,
dois eventos são importantes nessa observação: o primeiro é a famosa missa de celebração ao
descobrimento da nova terra, e outro seria um evento “espontâneo”, em que, movido pelo
espírito cordial, portugueses e indígenas tocavam e “folgavam” depois da travessia de um rio.
Esses dois eventos20 demarcam a construção de uma autenticidade das músicas e festas no
Brasil, um mito fundador21.
O primeiro deles remonta a uma concepção de observação complacente dos indígenas
com a tão bem falada primeira missa do Brasil. “Aparece na carta de Caminha ao mostrar que,
tendo assistido em atitude passiva não apenas à cerimônia da missa (“ E olhando-nos,
sentaram-se”22), mas da ereção da cruz diante do mar (“Ali estiveram conosco, assistindo”)23.
Não que negasse o caráter de “homem cordial” e o encontro entre as duas culturas, que os
nativos não reconhecessem no silêncio e no ato de sentar uma cerimônia importante para os
homens brancos e barbados que chegavam em grandes naus, mas que esse encontro marcou
uma diferenciação entre os dois povos. O desencadear da relação índios, brancos e igreja daria
uma condição de participação calada, contemplativa, do primeiro em relação aos outros.
Tinhorão reconhece aí o mito fundador da Igreja Católica e de uma elite portuguesa no Brasil,
de cunho religioso e conservador. Este fato, ele irá chamar de “modelo de transculturação pela
transliteração”24, em que a diferença cultural se daria com uma “deculturação” indígena.
20
Del
Priori
(1994)
afirma
que
as
festas
no
Brasil
colonial
podem
ser
agrupadas
em
duas
grandes
categorias
para
a
análise;
as
festas
oficiais,
promovida
pelo
poder
político
ou
eclesial
e
as
festas
populares,
reinterpretadas.
21
Chauí
(2000)
ira
conceitualizar
mito
fundador
como
um
fato
etiológico
que
visa
explicar
a
origem
de
um
rito,
cidade,
nação.
Sua
preocupação
é
com
um
caráter
totalitário
brasileiro,
em
consonância
com
Franco
(1997)
e
com
a
noção
de
medo
imposta
pelos
jesuítas
aos
nativos,
conforme
Tinhorão
(2000).
22
Tinhorão,
2000,
p
16.
23
Idem
24
Idem
31
Então, o capital cultural se daria em um fluxo que atraía os modelos e costumes dos nativos
para um modelo de dominação religioso e civil.
Em oposição aos interesses da sociedade colonial, queriam os padres fundar no
Brasil uma santa república de ‘índios domesticados para Jesus’ como os do
Paraguai, seráficos caboclos que só obedecem aos ministros do Senhor e só
trabalhassem nas suas hortas e roçados. Nenhuma individualidade nem autonomia
pessoal ou de família. Fora o cacique, todos vestidos de camisola de menino dormir
como num orfanato ou num internato. O trajo dos homens igualzinho ao das
mulheres e das crianças (FREYRE, 1987, p. 23).
Outro evento que disputava simbolicamente com a música sacra eram os folguedos.
Aparece na mesma carta a Dom Manuel o relato de quando um dos integrantes da comitiva de
Pedro Alvares Cabral, Diogo Dias, resolveu atravessar o rio e se encontrar com os índios na
outra margem. “E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com
eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som
da gaita”25. Esse evento marca um encontro entre povos não mediados pelas autoridades,
fossem elas eclesiais ou dos oficiais. Esse evento traz um contraponto à contemplação passiva
indígena, quando na carta de Caminha diz “Nesse dia enquanto ali andavam (os índios),
dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem
mais amigos nossos do que nós seus26”. E esse encontro só pôde transcorrer sem o “modelo
de transculturação”, porque este se dá pelas camadas mais baixas da tripulação. Desprovido
das mediações hierárquicas e dado seu caráter espontâneo, as diferenciações sociais e étnicas
seriam relativizadas em nome da festa.
A diferenciação entre os dois eventos leva em conta a origem daqueles que celebram
esses rituais, seja o padre ou o gaiteiro, e também a presença ou não de um órgão controlador,
“para a obediência civil”. Essas duas formas das festas, mesmo sob feição religiosa, se
diferenciariam pela música proveniente daquelas. Assim, nas passagens da carta de Caminha
observam-se a presença de dois instrumentos musicais: a gaita e o tamboril27.
Ora, como desde logo se observa, excetuado o uso eventual das trombetas – o tubo
longo de metal afunilado, e próprio para toques solenes ou marciais, o que restringe
seu uso -, o instrumento usado pelos marujos portugueses em seu divertimento com
os naturais da terra foi a gaita, que era então o mais popular instrumento da gente do
campo em Portugal. (TINHORÃO, 2004, p. 38)
Este ponto é importante na formulação do argumento do Tinhorão, a “sociologia dos
de baixo”, os instrumentos utilizados não eram os relacionados ao militarismo como as
25
Carta
de
Pero
Vaz
de
Caminha
à
D.
Manuel
sobre
o
descobrimento
do
Brasil.
Apud
Tinhorão
(2004;
38)
26
Idem
(2000;
15).
27
“Segundo
Bluteu,
o
tamboril
é
“uma
espécie
de
pequeno
tambor,
com
que
bailam
nas
aldeias,
ao
som
da
flauta”.
Curiosamente,
a
citação
que
Bluteau
oferece
como
exemplo
é
de
um
trecho
da
Crônica,
do
padre
Simão
Vasconcelos:
“um
índio,
que
tocava
seu
tamboril”.
(HOLLER,
2010,
p.
132)
32
trombetas ou a tuba28, mas a gaita. O estudo da forma musical praticada traz os indícios do
caráter popular, não oficial, que o relacionaria aos camponeses alijados das terras pela
crescente necessidade de povoamento das cidades da metrópole. Desta forma, a gaita teria,
inclusive, suas manifestações ligadas não apenas pelo universo rural português, sendo
usualmente uma manifestação ligada ao norte das ilhas Inglesas, com os celtas29, uma versão
com fole de origem animal. Essa ligação traria uma ancestralidade pagã nos camponeses que
se refugiaram em Lisboa30 e que formaram a camada social mais baixa dos navios. Assim as
festas “espontâneas” “não expressavam a cultura dessa nova burguesia urbana dos mercadores
de Lisboa associada ao rei de Portugal na empresa das navegações, mas a velha estrutura
tradicional do mundo rural Ibérico” (TINHORÃO, 2000, p. 14). Seria sim uma manifestação
de estratos sociais distintos, do mesmo modo que o tamboril representa a cultura rural e pagã
ibérica:
Nos textos jesuíticos, os tambores e tamboris são mencionados em ocasiões
profanas, em sua maior parte em recebimentos, como a carta do padre Antônio
Blasques de 1564, que descreve o recebimento com “tambor de folia dos padres e
índios que vêm de outras aldeias, na Aldeia de São Tiago (Bahia), em 1564”.
(HOLLER, 2010, p. 132)
Embora não se tenha registro de gaitas de fole nas missões jesuíticas, temos as gaitas
como um substituto popular deste no novo mundo. A divisão musical de Tinhorão também
segue a lógica da origem de classe que os instrumentos representam; desta forma os órgãos,
violinos, trombetas estão ao lado de uma cultura europeia, palaciana, com vistas à
“transculturação”. Na outra margem surgem as gaitas, rabecas, violas e pandeiros no campo
da cultura popular com vistas a uma “integração”, sem dominação, entre os camponeses que
se aventuravam enquanto marujos. Porém, vimos que as gaitas também eram solicitadas por
padres para compor os instrumentos que farão parte do universo musical brasileiro, mas
conforme HOLLER (2010), apenas para tanger, sem caráter sacro. Essa comprovação da
utilização das gaitas e pandeiros no universo camponês e popular em Portugal vem através do
28
Holler
(2010;
101)
“O
termo
tubae
não
está
associado
somente
a
situações
bélicas
e
militares
ou
grandes
comemorações,
como
ocorre
com
as
trombetas,
mas
também
a
cerimonias
sacras
junto
a
flautas
e
charamelas”
29
Embora
mais
conhecida
hoje
na
cultura
escocesa
-‐
pela
não
dominação
romana
no
norte
da
ilha
conferia
autenticidade
pagã
-‐
a
gaita
de
fole
era
muito
usada
em
Portugal,
sendo
inclusive
solicitada
em
“uma
carta
de
1552
ao
padre
Pedro
Doménech,
na
qual
se
pede
que
“fizesse
prover
de
alguns
instrumentos
para
que
aqui
possamos
tanger
(...)
como
são
flautas,
gaitas”;
a
carta
solicita
ainda
“algum
tamborileiro
e
gaiteiro”.
Segundo
Bluteau,
“gaiteiro”
é
“o
que
toca
gaita
de
fole””.
Holler
(2010;
101)
30
Holler
(2010)
Sustenta
que
o
Papa
Paulo
IV
responde
às
restrições
jesuíticas
aconselhando
o
uso
de
trombetas,
harpas,
cravos
e
órgãos,
além
do
coro
como
uma
forma
de
reverberar
sons
celestiais
às
almas
acostumadas
com
os
tambores
pagãos
que
enfeitavam
os
novos
domínios
católicos.
33
teatro de Gil Vicente, o que demonstra um leque bastante diverso de fontes utilizadas por
Tinhorão.
Em Portugal vi eu já
Para cada casa um pandeyro
E gayta em cada palheyro
E de vinte anos acá
Nam há hi gayta nem gayteyro
31
Gil
Vicente
“Triunfo
do
inverno”
in
Tinhorão
(2000;
14)
32
A
história
do
catolicismo
popular
acerca
dos
três
reis
magos
que
visitam
o
menino
Jesus
é
a
integração
dos
três
“povos”
conhecidos
no
mundo
medieval.
Assim
temos
o
rei
Gaspar
representando
os
brancos
europeus,
Belchior
representando
os
árabes
e
Baltazar
representando
os
negros
da
África.
34
33
Sérgio
Buarque
de
Holanda
destaca
uma
característica
peculiar
dos
Ibéricos
como
“territórios
ponte
pelos
quais
a
Europa
se
comunicava
com
outros
mundos.
Assim,
eles
constituem
uma
zona
fronteiriça,
de
transição,
menos
carregada,
em
alguns
casos,
desse
europeísmo”
(2004:31).
35
34
Termo
utilizado
pelo
padre
Manuel
da
Nóbrega
para
se
referir
aos
indígenas
em
carta
para
frei
Navarro
em
1549,
apud
Tinhorão
(2000;
23)
36
Salvador, liderados pelo padre Manoel da Nóbrega, Leonardo Nunes, Antônio Pires, Juan de
Azpicuelta Navarro e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome35. A comprovação de que
a conversão dos gentios era uma missão prioritária é que esta desembarca na esquadra de
Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil. A jovem ordem, a companhia de Jesus
fora criada em 1539 por Inácio de Loyola e reconhecida pelo papa Paulo III em 1540, tem a
missão de coordenar a atuação e evangelização, conforme os preceitos da contrarreforma.
No mesmo ano, em que o grupo liderado pelo padre Manoel da Nóbrega desembarca
no Brasil, é criado o primeiro colégio de meninos órfãos da companhia em Portugal. No ano
seguinte, sete deles são enviados para os trópicos, criando o primeiro colégio da Companhia
nas Américas, o colégio dos Meninos de Jesus da Bahia36. Os ensinamentos do colégio se
davam em área conjunta à Igreja de Salvador, construída a mando do padre Manoel da
Nóbrega no local onde está a catedral, em frente ao que hoje é conhecido como Terreiro de
Jesus. A atuação na capital seria o evento que vai desenrolar tanto a formação católica quanto
musical dos jesuítas junto aos indígenas, e a presença dos meninos órfãos e a estruturação de
um colégio eram a estratégia para a aproximação dos gentios; assim eles poderiam aprender o
português, o latim, música e a catequese. Nessa primeira fase, o controle da igreja ia para
além da alma, também cuidava do espírito.
Toda a atividade musical ligada à catequese dos índios oscila entre esses dois polos
das danças e cantos coletivos populares para o folgar, e dos hinos e cantos eruditos
da Igreja Católica (à base de cantochão e órgão) para os atos solenes rituais ou de
estímulo à devoção religiosa. (TINHORÃO, 2004, p. 39)
Essa divisão em pares de oposição na formação musical do Brasil é baseada em
documentações da época, escritas tanto em latim quanto em galego ou espanhol, e por serem
antigas os significados não são necessariamente semelhantes aos que compreendemos hoje.
Assim, a palavra “órgão” deve ser relativizada. Se este instrumento começava a se difundir na
Europa, principalmente nas Igrejas reformadas, este demora a cair no gosto de Roma,
Portugal e principalmente no Brasil, sendo utilizado no dicionário Português Latim de Blateau
(1721). O musicólogo Marcos HOLLER (2010) esclarece que muitas das vezes quando
mencionado o órgão, trata-se de uma forma de canto, cantar à maneira de órgão. Daí, o
primeiro relato de um teclado no país é do padre Antônio Blasques de 1565:
Houve nessas vésperas três coros diversos: um de canto de órgão, outro de cravo e
outro de flautas de modo que, acabando um, começava o outro, e todos, certo, com
muita ordem quando vinha a sua vez. E dado que o canto do órgão deleitava
ouvindo-se a suavidade do cravo detivesse os ânimos com a doçura da sua harmonia,
todavia quando se tocavam as flautas se alegravam e se regozijavam muito mais os
circunstantes, porque, além de o fazer mediocremente, os que tangiam eram os
35
José
de
Anchieta
“Informações
do
Brasil
e
suas
capitanias”,
pg
48.
36
Holler
(2010;
51);
Tinhorão
(2004;
39)
37
37
Carta
de
Padre
Manoel
da
Nóbrega
do
dia
11
de
agosto
de
1551,
apud
Tinhorão
(2000;
27).
39
religiosas que compunham seu repertório com instrumentos do gentio. Outra consideração
importante é que, assim como já faziam os padres, os meninos também utilizaram das músicas
e da língua nativa para adaptar as canções. E dentro do espírito de integração que esses
tinham, chegavam a se confundir com os nativos, tendo inclusive o corte de cabelo à moda
local, conforme atesta o padre Manoel de Nóbrega à carta ao Superior dos Jesuítas, padre
Simão Rodrigues:
Os mininos dessa casa na Bahia se acostumavão a cantar pelo mesmo toom dos
Indios, e com seus instrumentos, cantigas na língua Tupi em louvor de N. Senhor,
com que muyto se athrahirão os corações dos Indios e asi alguns mininos da terra
(filho de portugueses locais) trazião o cabelo cortado a maneira dos Indios, que tem
muyto pouco diferença do nosso custume e fazião tudo para todos ganhassem.38
Outros meninos viriam de Portugal em missões em 1551 e 1555, no total de 18 ou 20,
“A última referência à atuação dos meninos órfãos é a carta de 1557 do padre Antonio
Blasques, que relata sua entrada na Aldeia do Rio Vermelho, na Bahia cantando em
procissão”, e prossegue com o relato original “do que eles (índios) se maravilharam e ficaram
atônitos, porque em extremo são dados à música, e ouvir cantar” (HOLLER, 2010, p. 51).
A utilização dos meninos para a conversão e prática da música nos trópicos resultou
em vários problemas para o Padre Manoel da Nóbrega e sua companhia no Brasil, pois o
método pouco ortodoxo de utilização do saber local para a conversão cria descompassos com
a Santa Sé, tanto no que se refere ao tipo de música adotada, e principalmente por que essas
músicas não faziam parte do repertório católico europeu, com o cantochão em versos mais
simples e instrumentos musicais apropriados. Disto resulta uma carta de preocupação do
Bispo Pedro Fernandes ao superior da Companhia de Jesus, Simão Rodrigues:
Los niños huerfanos antes que yo viniesse tem costumbre de cantar todo los
domingos e fiestas cantares de nuestra Señhora al tono gentílico, y tañerem ciertos
instrumentos que estes bárbaros tañen y cantan quando quierem bever sus vinos y
matar sus inimigos (cantos rituais). Platicé sobre esto com el Padre Nóbrega y com
algunas personas que sabem la condición y manera destos gentiles, em espicial com
el que lleva esta, que se llama Pablo Diaz, y allé los Buenos, pues los Padres y niños
tañian sus instrumentos y cantavam a su modo. Digo que Padres tañian, por que em
la companhia do los niños vênia hun Padre sacerdote, Salvador Rodriguez, tañia,
dançava y saltava con ellos.39
O padre que cantava e dançava com os nativos era nada mais nada menos que o
responsável pelo colégio de Salvador, o que demonstra que as orientações sobre danças e
cantos que recomendava o padre Loyola não eram seguidas à risca no Brasil. Não sei se
Tinhorão escolhe esse relato intencionalmente, porém como ele busca as origens de alguns
elementos inerentes a uma cultura tipicamente nacional, achamos uma das origens da
desobediência das leis e das normas no Brasil. A igreja é apostólica, portanto, permeável a
38
Apud
Tinhorão
(2000;
28,
29)
39
D.
Pedro
Fernandes
à
Simão
Rodrigues
(Bahia
1552)
Apud
Tinhorão
(2000;
29).
40
uma interação entre os meninos órfãos, os padres e os nativos num fluxo de troca de saberes.
Prova disto são as constantes referências ao cantar no tom dos gentílicos, assim como a
referência ao uso de instrumentos que estão do lado oposto aos considerados sagrados. Este
ponto pode ser observado pelo termo “tañer” instrumentos, quando a orientação do papa era
que se pontilhasse o instrumento, ou seja, tocar por pontos (notas), e não por acordes. Essa
diferenciação é a base da oposição da música popular e a música clássica. Outro ponto são as
constantes desobediências às recomendações e a constituição da Companhia de Jesus, sendo
também visível na primeira frase “cantar todo los domingos”, pois para o catolicismo
domingo é o dia destinado a Deus e era recomendado que não se festejasse, trabalhasse ou
cantasse nesta data, de forma muito explícita nos dez mandamentos: “Guardai os domingos de
festa40”.
40
Trata-‐se
de
uma
modificação
católica
ao
original,
o
Shabat,
sábado
judaico.
41
Índias se tornam uma obsessão41. Eram nessas novas fronteiras abertas que a Igreja procuraria
seus novos fiéis, após a Reforma Protestante que progredia a passos largos na Europa
setentrional. E a conversão dos gentios, nessas novas possessões ibéricas pelo globo, era a
mostra da capacidade que teria Roma de expandir os domínios da fé para um povo que
desconhecia os ensinamentos de Jesus, da fé católica e o conceito de Deus.
Assim, a empresa orquestrada por Loyola, para lograr êxito, deveria contar com a mais
alta disciplina de seus discípulos, pois eram poucos os que se aventurariam em terras hostis
com o mínimo de estrutura, e somente a confiança de que Deus abençoava essa empreitada. A
Companhia precisava de padres em tempo integral, de pessoas que se dedicassem ao
evangelho do nascer do Sol à hora de dormir. Assim viviam na pobreza para não perder tempo
negociando e não poderiam se dedicar a música, artes ou literatura (HOLLER, 2010). Estava
excluído das possibilidades dos jesuítas o desvio de suas funções, somente a salvação da alma
e consagração da hóstia eram permitidas para eles. Desta forma, podiam celebrar missas,
ouvir confissões, ensinar a catequese, cuidar dos colégios, rezar e fazer penitências; qualquer
outra atividade que não tivesse a função de converter as almas e elevar a moral dos já
batizados estava fora da área de atuação dos padres.
A preocupação da ordem religiosa com a música já figura no primeiro parágrafo da
“Suma”, em 1539, em que consta que os estabelecimentos jesuíticos não deveriam usar “na
missa e em outras cerimônias sacras, nem o órgão e nem o canto” (1539; 19). O revisor papal,
cardeal Ghinucci, achou as ordens da Companhia deveras restritivas, principalmente porque a
igreja luterana se utilizava da música como forma de atrair fiéis, e essa proibição poderia
fazer com que aumentasse a fuga de fiéis para as igrejas reformadas (HOLLER, 2010, p. 139).
Se no primeiro momento o revisor papal ganhou o debate, não tardou para que, em 1552, o
padre Loyola acabasse com a discussão e proibisse, finalmente, qualquer forma de canto e
música durante as missas e horas canônicas. Assim dizem as Constituições dos jesuítas, de
1558:
Visto que as ocupações assumidas visando à assistência das almas são de grande
importância e próprias da nossa Instituição, e muito frequentes, e como por outro
lado nossa residência neste ou naquele lugar é incerta, que os nossos não usem o
coro para horas canônicas ou missas, nem em outros ofícios cantados, uma vez que
àqueles, a quem sua devoção move a ouvi-las, abundam locais onde se possam
satisfazer (1583, p. 209-10)42
41
Os
jesuítas,
com
o
apoio
dos
reis
católicos,
enviam
missões
para
todos
os
portos
que
as
nações
católicas
também
entrassem.
Assim
missões
se
espalham
pela
América,
Índia,
China
e
Japão,
tendo
como
um
dos
grandes
pregadores
São
Francisco
Xavier,
até
a
expulsão
dos
católicos
na
ilha
asiática
do
Japão.
42
Constituições
da
Companhia
de
Jesus
in
Holler
(2010;
139).
42
Essa ordem entrava em contradição com a prática musical desenvolvida pelos padres
tanto no Brasil quanto nas Índias. Principalmente no primeiro período de ocupação, em que a
proibição ainda não era absoluta. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil no ano de 1549, e
a nova constituição vem a ser publicada em latim no ano de 1558. Embora o padre Loyola
demonstrasse uma desaprovação à prática musical pelos religiosos, a transformação dessas em
uma proibição demoraria mais um pouco para ser colocada em prática. Assim, os primeiros
membros da Companhia, que desembarcaram na colônia, utilizavam a música como uma
prática para atrair o gentio; coro, ritmos, festas, tudo o que servisse para quebrar a barreira
entre as duas culturas serviriam como meio de começar a evangelização.
Os padres que estavam espalhados pelas missões, nas diversas possessões católicas
pelo mundo, deveriam enviar notícias frequentes, fossem carta, ânuas ou comunicados. Estes
teriam uma conotação edificante, conforme já dito anteriormente, e as músicas desenvolvidas
pelos clérigos eram pouco mencionadas nas comunicações triviais. Confessar a prática do
canto entre padres e gentios seria o mesmo que assumir faltas graves junto aos superiores;
entretanto, mesmo evitando falar abertamente das músicas nas cartas que redigiam, outros
padres e religiosos remeteram as notícias do Brasil para seus superiores. Esta matéria acabaria
tomando parte, de uma forma ou de outra, nos registros eclesiásticos. Isto se torna motivo de
ásperos debates acerca de concepção religiosa e evangelização nas novas fronteiras, quando
escrita por visitantes estrangeiros, fossem eles de caráter religioso ou oficial. Muito chocavam
o povo da corte os hábitos desenvolvidos pelos jesuítas no Brasil, tanto no fato de utilizar a
língua do gentio para a catequese – quando na Europa ainda se utilizava o latim – e de utilizar
as músicas dos da terra, que seriam músicas pagãs e pouco celestiais para os padrões do Velho
Mundo. Assim, temos ainda nas Constituições:
Se em determinadas casas ou colégios for indicado, no tempo em que se tiver de
pregar ou ler à noite, para que detenha o povo em tais leituras ou prédicas, poderia
ser dito somente o ofício vespertino. Assim também ordinariamente nos domingos e
dias festivos, sem o chamado canto figurato ou firmo, mas em tom devoto, suave e
simples: e isso com a finalidade, e até onde for indicado, de mover o povo a
frequentar mais as confissões, pregações e leituras, e não de outro modo. No mesmo
tom poder-se-ia dizer o ofício que se costuma chamar “das trevas”, com suas
cerimônias, na Semana Santa (1583; 209-10)43
O canto figurado era um estilo comum nos conventos e missões católicas; ele contém
uma melodia cadenciada com sequências de notas longas e curtas, oscilando entre o breve e o
semibreve. Seu nome deriva de uma figuração “fora do corpo” que altera a cabeça da nota,
43
In
Holler
(2010,
p.
139-‐140).
43
melodia cristã, assegurando que se cantassem letras católicas sob o formato da cultura
ancestral. Para TINHORÃO (1972), esta seria a morte da música indígena, pois se retirariam
dela suas características e a incorporariam em outra realidade, tirariam a função de guerra,
chuva, colheita, sol e preencheriam com conceitos externos à produção e manutenção dessa
forma musical. Essa seria uma das formas em que se daria a “deculturação” da música do
gentio.
Essa tensão entre o Vaticano e a Companhia de Jesus esteve sempre latente nas
disputas cerimoniais das missas; assim, antes da morte do padre Loyola, em 1558, ele havia
afrouxado mais uma vez as restrições musicais, porém mantinha a proibição de instrumentos
musicais durante a missa, e permitia que estes tocassem nos ofícios de véspera do domingo e
dos dias santos. O conceito de “véspera” utilizado na proibição reforça o caráter de separação
entre os rituais: de um lado as missas continuariam sem o acompanhamento musical e abrir-
se-iam novos espaços no dia precedente à cerimônia, em que se utilizariam da música e dos
cantos. Mesmo com esse afrouxamento não estava permitido qualquer tipo de canto, pois
necessitava a incorporação de um canto que não fosse contrário aos preceitos da Companhia,
escolhendo o falso bordão. Também chamado de fabordão “é uma polifonia simples,
geralmente improvisada (...). Uma música para diversas vozes, mas simples e sem compasso,
cujas notas são quase todas iguais e cuja harmonia é sempre silábica” (HOLLER, 2010, p.
145-46).
A liberação da música na véspera dos dias santos aliada à manutenção da proibição do
canto por parte dos padres cria um novo grupo de pessoas que é incorporado, mesmo de
maneira indireta, à Igreja: os leigos dedicados à formação musical e preparação dos festejos.
No primeiro momento, os jesuítas procuravam recorrer aos alunos dos colégios; antes, os
meninos órfãos de Portugal; posteriormente, conforme fossem prosperando os colégios,
passariam a contar com os estudantes e os irmãos que ainda não fossem ordenados. “Nesta
quarta-feira comecem-se a cantar os ofícios da Semana Santa, e no dia de Páscoa comecem-se
as vésperas em um canto que tenha muita graça e devoção, parte em cantochão e parte
figurado46”.
Passado o primeiro momento, em que os padres jesuítas ainda entoavam canções junto
ao gentio, aumenta a necessidade de formação de um coro musical junto aos alunos do
colégio, com vistas a garantir uma música “divina” e liberar os padres para os confessionários
dos dias de véspera. “O ofício, que se começou a cantar na Quarta-Feira Santa (...), tiveram
46
Instrução
de
Inácio
de
Loyola,
1556,
p
183,
apud
Holler
(2010;
147)
45
muito sucesso, e de grande maneira conquistaram almas de muitos; mas não por isso
diminuíram os confessores ou pregadores, porque os colegiais bastavam para fazer esta
festa47”. Assim, os alunos iam ganhando mais atividades para com o cerimonial litúrgico;
porém, como recomendava o próprio padre Loyola, só poderiam participar do coro aqueles
colégios que dispunham de “ao menos 50 pessoas”, (HOLLER,2010, p. 148). A preocupação
dos jesuítas com os seus padres era a de que estes se dedicassem estritamente aos anseios da
alma, tanto dos gentios, quanto dos colonizadores, portugueses ou não, no Brasil ou em outra
parte qualquer do mundo.
47
Carta
de
padre
Polanco,
1556,
apud
Holler
(2010;
147)
48
Optamos
pelo
termo
“classes”
apenas
para
salientar
uma
disputa
entre
uma
ordem
hegemônica
contra
um
grupo
de
pessoas
que
não
detinha
o
poder
temporal.
Mantivemos
a
palavra
“classe”
porque
é
esse
o
conceito
utilizado
por
Tinhorão,
embora
alterne
com
o
conceito
“estrato
social”.
46
TINHORÃO (2000) começa o quarto capítulo falando das restrições à música para
contemplação ou diversão nos colégios e faz a seguinte indagação: “seria o caso de perguntar
como se atendia a natural tendência das gentes às manifestações lúdicas, na área dos primeiros
núcleos urbanos da sociedade colonial” (TINHORÃO, 2000, p. 39). Ainda, há a reflexão
pertinente de BURKE (1995), que questiona sobre a conotação da festa. Com efeito, o autor
insinua ser a festa um elemento de equilíbrio social, admitindo que houvesse purgação dos
ressentimentos e compensação das frustrações dos grupos subalternos:
(...) a festa como um fenômeno cultural bem demarcado, um tempo coletivo em que
explosões vêm à tona como uma catarse, com estatuto de categoria histórica,
bastante bem circunscrita. (...) As festas são partes constitutivas da sociedade
colonial. Teriam elas conotação de “controle social” ou “protesto social”? Suas
funções se limitariam à diversão, pausa das tarefas cotidianas, tempo de
compartilhamento entre pessoas dos diversos estratos sociais, “ocasião de êxtase e
liberação”, “válvula de escape”? (BURKE, 1995, p. 223-6)
Seria ingênuo acreditar que as proibições evitem que as coisas aconteçam, elas apenas
originam outras formas, outros meios e outros lugares para ocorrer. Prova disto são as notícias
escritas pelo padre José de Anchieta em “Informações do Brasil”, de 1584:
49
Pe.
José
de
Anchieta
“Informações
do
Brasil”
p.
46.
47
temos outro problema que não foi solucionado, nem mesmo com a leitura do original do padre
Anchieta: de que tipo de escravos se está falando, se os de origem africana ou indígenas que
foram capturados como escravos pelos bandeirantes? A carta se refere a festejos na vila de
Piratininga, atual São Paulo, e no período em que esta foi escrita, que não é o período dos
grandes empreendimentos exportadores, já se falava em que cerca de 30% da população
colonial era composta por escravos africanos50. Não temos as informações adicionais por
parte de Anchieta de que tipo de população se tratava, se de “negros” da terra ou se “negros”
africanos. Outro ponto é o fato de que a vila de Piratininga ficou mais conhecida pelo hábito
da “integração” do português junto ao gentio, sendo esse hábito mais comum do que nas
capitanias voltadas para o mercado externo, conforme HOLANDA (2004).
A estrutura dos colégios jesuíticos era a mesma nas diversas vilas do Brasil e das
outras colônias. A origem centralizadora da Companhia de Jesus não permitiria diferenças
significativas, principalmente no que diz respeito à hierarquia eclesial e às normas e condutas
dos próprios. E o colégio não era uma estrutura de pouca monta; ao contrário, ele ditava o
ritmo e desenvolvimento das vilas. Não é à toa que tanto em São Paulo, quanto Salvador e
Olinda o colégio é o centro da ocupação urbana, a partir dele e das igrejas que se desenvolvia
o resto do núcleo da colonização das vilas. Assim, as estruturas religiosas eram o próprio
centro da dinâmica social dessa forma de desenvolvimento. Não seria diferente com a
sociabilidade e com as práticas festivas e musicais: a forma dominante seria sempre a
empenhada pelos colégios. Os brancos ou mestiços que fossem sedentários, que vivessem nas
vilas e não nas aldeias, teriam uma formação regular pelo colégio. Embora o próprio padre
Anchieta reconhecesse que os alunos não se esforçavam muito nas aulas51, tanto na catequese
quanto nas línguas, o fato era que a iniciação musical desses se daria sob a influência das
normas católicas.
Essa prática musical dos colégios estaria em um polo de oposição na concepção de
Tinhorão; ela era direcionada a um público específico, os livres, brancos ou mestiços
sedentários. Outro ponto importante também era o fato de que ele deveria ser habitante da
vila, ou filho de proprietário que estivesse disposto a pagar pelo estudo de seus filhos. Porém
50
Capistrano
de
Abreu
“Descobrimento
do
Brasil”
faz
esse
cálculo,
embora
não
sejam
de
extrema
confiança
os
dados
censitários
do
período,
ele
divide
da
seguinte
forma:
16%
de
brancos,
30%
de
escravos
africanos
e
50%
de
indígenas
“amigos”,
num
universo
total
de
60
mil
pessoas.
Página
122.
51
“Os
estudantes
desta
terra,
além
de
serem
poucos
(as
aulas
de
ler,
escrever
e
contar,
segundo
o
próprio
Anchieta,
tinham
“até
setenta
rapazes
filhos
dos
Portugueses”),
também
sabem
pouco,
por
falta
dos
engenhos
e
não
estudarem
com
cuidado,
nem
a
terra
dá
de
si
(quer
dizer,
nem
o
ambiente
local
convida
a
isso),
por
ser
relaxada,
remissa
e
melancólica,
e
tudo
se
leva
em
festas,
cantar
e
folgar”
José
de
Anchieta,
Informação
da
Bahia
1585,
apud
Tinhorão
(2010,
p.
47)
48
52
Ver
capítulo
2.1
“A
primeira
missa
e
a
primeira
festa”
49
tradição miscigenada desde a metrópole que tomará forma no Brasil a partir de fluxos e
interações com outras influências, negras e indígenas.
É de se supor, pois – admitindo como lógico que os portugueses integrados na vida
colonial não deixariam de aproveitar o repertório musical trazido de suas regiões de
origem -, ter havido ainda no século XVI paralelamente a esses cantos coletivos
profanos rurais tolerados pelos jesuítas, e aos cantos religioso-eruditos das igrejas,
um tipo de cantiga urbana semelhante àquela cultivada em Portugal pelos escudeiros
retratados nos autos vicentinos. (TINHORÃO, 2010, p. 34)
Nesse trecho, temos abertamente os polos que lutam por uma legitimidade cultural e
musical, o campo com sua influência de um catolicismo popular em disputa simbólica com a
erudição dos cantos promovidos pelas igrejas. A cantiga urbana aparece claramente no centro
dessa dicotomia, embora ela, herança dos escudeiros vicentinos, estivesse dentro de uma
síntese entre o permitido e o tolerado. E justamente o caráter de “tolerância” com as folias e
outros cânticos populares das zonas rurais portuguesas se transforma no elo entre os homens
livres, sejam eles pequenos produtores ou indígenas aliados. As folias se configuram como
uma festividade popular em louvor aos Santos Reis, “desfiles dançantes típicos da área rural
onde o grupo de folgazões precisa percorrer longas distancias até chegar ao local da festa”
(TINHORÃO,2010, p. 40-41). Como o autor trabalha a disputa simbólica a partir da visão dos
jesuítas, que deixaram a maior parte do material da época, se existe a tolerância dos padres e
se a origem da folia é a própria mistura de influências étnicas, ele conclui:
Segundo observaria ainda Serafim Leite, os primeiros contatos com os índios foram
propiciados exatamente pela “música de caráter exclusivamente popular no gênero
de folia”, ao que acrescenta, para não deixar dúvida quanto à origem profana da
criação: “Folia a que se não deve atribuir nenhum caráter religioso, mas de simples e
honesta diversão popular” (TINHORÃO, 2010, p. 41).
Ora, se existiam as folias é porque existiam também as comemorações natalinas53, e a
literatura dos padres rememora passagens que explicam o ritual desta que seria a principal
festa do catolicismo. As folias percorrem casas ou distâncias para chegarem a um local
sagrado, no mesmo espírito das peregrinações, na qual o final converge para uma festa. A
cultura popular aconselha a desmontar o presépio apenas no dia de reis, seis de janeiro, e o
papel dos foliões é visitar as casas na concepção simbólica de visitar os presépios. A
peregrinação e as danças junto à simbolização da manjedoura, onde nasceu o menino Deus,
como um local dotado de capacidades mágicas, é o próprio objetivo dessa festa. Visitar assim
como fizeram os Santos Reis no marco da mudança das eras – antes e depois de Cristo –
53
Festa
esta
que
remonta
às
comemorações
da
cultura
pagã
do
solstício
de
inverno.
A
partir
dessa
data,
23
de
dezembro,
fecha-‐se
o
ciclo
das
noites,
e
a
partir
de
então
os
dias
terão
cada
vez
mais
tempo
de
luz
abrindo
outro
ciclo.
As
comemorações
natalinas
também
abrem
outro
ciclo,
a
da
redenção
do
filho
de
Deus
na
Terra
para
redimir
os
pecados
humanos,
após
as
comemorações
de
natal
também
se
abrem
outras
possibilidades.
50
dentro de uma simbologia que rememora as tradições pagãs da procissão se torna uma das
características principais da origem de uma “autenticidade” popular portuguesa que se
deslocaria para os trópicos. O padre Fernão Cardim relata sua viagem a Salvador, no ano de
1583, onde irá passar o Natal acompanhado do também padre Cristóvão Gouveia. Nele, ele
conta que já se comemorava à maneira portuguesa. “Tivemos pelo natal um devoto presépio
na povoação, onde algumas vezes nos ajuntávamos com boa e devota música, e o irmão
Barnabé nos alegrava com o seu berimbau”. E logo no Natal de 1584 ele também relatará
sobre a viagem do irmão Barnabé ao Rio de Janeiro: “Nesse colégio tivemos o Natal com um
presépio muito devoto, que fazia esquecer os de Portugal: e também cá N. Senhor dá as
mesmas consolações e avantajadas. O irmão Barnabé Telo fez a lapa, e à noite nos alegrava
com o seu berimbau.54”
Importante frisar neste ponto o cuidado na utilização dos termos pelo Cardim, pois nos
dois relatos ele chama Barnabé Telo de irmão, o que indica que ele ainda não havia sido
ordenado, já que nessa época era grande o esforço dos jesuítas para não permitir o canto e as
músicas feitas pelos padres, e as cobranças dos superiores sobre o deslocamento de funções
era demasiada. Esse aspecto desenvolvido pelos jesuítas faz com que eles necessitem criar seu
próprio corpo musical, pois se de um lado eles toleravam as cantigas “rural profano”
executadas com instrumentos mais simples e ligadas ao mundo popular português, como a
gaita, tamboril e agora o berimbau, estas não se enquadrariam na forma de canto perseguida
pelos evangelizadores.
É muito para louvar a Deus, ver nesta gente o cuidado com que já cristão acodem e
celebram as festas e os ofícios divinos. São afeiçoadíssimos à música e, prezam-se
muito do ofício e gastam os dias e as noites em aprender. Saem dextros em
instrumentos músicos, charamelas, flautas, trombetas, baixões, cornetas e fagotes;
com eles beneficiam, em canto de órgão, vésperas, completas, missas, procissões tão
solenes como entre os portugueses.55
Essa exigência musical na formação erudita dos internos do colégio complementaria o
argumento de Tinhorão; para ele esse currículo necessário para ficar apto a tocar nas
cerimônias oficiais da igreja aumentaria a distância entre uma esfera e outra da sociedade
colonial do século XVI: “o resultado dessa orientação universalista, em meio à pobre
realidade da sociedade colonial, foi, inevitavelmente, o isolamento cultural-musical da Igreja”
(TINHORÃO,2010, p. 43). Some-se ao fato as restrições à pratica musical dos padres, ponto
54
Cardim,
Fernão
“Tratados
da
Terra
e
Gente
do
Brasil”,
apud
Tinhorão
(2010).
É
importante
ressaltar
que
nesse
ponto,
conforme
consta
na
nota
de
rodapé
feita
por
Tinhorão,
se
trata
de
um
berimbau
de
boca,
instrumento
europeu
de
sopro
que
ressoa
uma
caixa
de
metal.
Não
se
trata
porém
do
instrumento
hoje
conhecido
por
esse
nome,
nem
tampouco
existe
semelhança
entre
eles.
55
Vasconcelos,
Simão
“A
vida
venerável
do
Pe.
Anchieta”,
apud
Tinhorão
(2010;
43)
51
este que não foi desenvolvido por Tinhorão. Observamos que se os jesuítas não podiam se
dedicar à música e se os alunos dos colégios eram instruídos ao sacerdócio, e sendo a
formação musical erudita um processo de lento aprendizado, isto significaria que quando os
alunos estivessem adiantados nos seus estudos, logo estariam proibidos de cantar e de tocar.
Assim, a formação de um corpo musical próprio e qualificado para a execução dessas tarefas
estaria sempre a cargo daqueles em processo de maturação intelectual, e os formados em
música e que optassem pelo celibato jamais poderiam retomar os ofícios litúrgicos que
necessitavam de acompanhamento, quer vocal, quer instrumental.
Esse processo de restrições, para além do “elitismo” do erudito religioso, é apregoado
por Tinhorão como causa do isolamento musical religioso; as intensas proibições jesuíticas
contribuíram mais para essa incapacidade da música sacra ocupar o papel integrador da
colônia. Seria um processo distinto se os padres recém-ordenados pudessem manter a prática
musical: teriam tanto mais músicos quanto mais professores de música ligados ao colégio,
tanto para a organização nas vilas quanto nas aldeias jesuíticas. A disputa pela legitimidade
das festas pendia para o lado da cultura popular justamente pelo fato de que os atores que
tinham a legitimidade do sagrado não poderiam se dedicar à música. O fato do “sagrado” não
poder dedicar-se à música não quer dizer que esta seria profana, mas justamente abre a
possibilidade de se profanar o espaço pela “ausência” do sagrado, ao menos no que tange à
condução cerimonial das festas.
52
Para SAHLINS (1990)56 a cultura atualiza-se na ação dos sujeitos, e essa relação faz
com que alguns sentidos vão se ressignificando e influenciando as categorias sociais. A partir
da mudança da relação entre os termos que compõem cada cultura, seus agentes entram em
uma negociação simbólica para a alteração do significado dos elementos em jogo. Desta
forma, a mudança do significado de um dos termos em jogo acaba por alterar a relação entre
os termos da cadeia. Esse processo tende a ser mais intenso quanto mais desigual for a relação
entre os agentes. Em um processo em que as trocas culturais ocorrem juntamente com uma
dominação de um grupo em relação a outro as alterações dos significados dos termos tendem
a ocorrer de maneira ainda mais intensa. TINHORÃO (1972) vai chamar a troca desigual e
dominadora dos portugueses em relação aos indígenas de “deculturação”.
Esse processo, para o autor, ocorre quando os rituais religiosos e culturais
(principalmente a partir da música) do gentio começam a servir para outros propósitos do que
os que anteriormente formavam uma unidade, quando ocorre uma alteração do processo de
significados que leva uma cultura (a dominante) a colocar a sua compreensão de mundo
dentro dos elementos ritualísticos anteriormente formulados e compartilhados por uma
determinada cultura (dominada). Esta “espoliação” dos significados altera toda a cadeia na
qual estava inserida, e esse jogo é o que marcaria a nova síntese que levaria os havaianos a
assassinarem seu próprio deus (ou os romanos). Portanto, no encontro entre sociedades
distintas, a disputa cultural tende a se acirrar na confrontação dos elementos que
anteriormente eram dominantes pelos novos, imbuídos de significados díspares daqueles que
formavam uma unidade cultural.
VAINFAS (2001) e WITTMANN (2011)57 vão interpretar uma festa indígena
denominada pelos portugueses como “Santidade”. Este festejo se configuraria para eles como
um dos principais entraves sofridos pelos jesuítas no processo de conversão. “Porque se é
verdade que a história da Santidade está mais para tragédia que para festa, ela sem dúvida
começou numa festa. Terminou em tragédia, mas começou em festa” (VAINFAS, 2001, p.
216). A primeira descrição desse festejo surge nos relatos do padre Manuel da Nóbrega, em
1549, “o fez meio assustado e confuso, pois a cerimônia que presenciou contrariava sua
56
Sahlins
(1990,
p.
7)
“A
história
é
ordenada
culturalmente
de
diferentes
modos
nas
diversas
sociedades,
de
acordo
com
os
esquemas
de
significação
das
coisas.
O
contrário
também
é
verdadeiro:
esquemas
culturais
são
ordenados
historicamente
porque,
em
maior
ou
menor
grau,
os
significados
são
reavaliados
quando
realizados
na
prática.”
57
Vainfas,
Ronaldo
“Da
festa
Tupinambá
ao
sabá
tropical:
a
catequese
pelo
avesso”,
in
“Festa:
cultura
e
sociabilidade
na
América
portuguesa”,
Jancsó
e
Kantor
(2001).
Wittimann,
Luisa
“Flautas
e
maracas:
música
nas
aldeias
jesuíticas
da
América
portuguesa”
(2011).
53
opinião de que os índios não tinham fé nenhuma e eram como tábula rasa, papel branco onde
se podia escrever à vontade58”.
Mencionava o jesuíta que, de tempos em tempos, surgia um feiticeiro (nos termos de
Nóbrega), vindo de terras distantes, que era recebido com festas e regozijo na aldeia.
Apresentava-se com um elemento ritualístico e musical importante na marcação rítmica
tupinambá: a maracá. Esta era enfeitada conforme a condição que representava o feiticeiro no
processo ritualístico, geralmente adornada com plumas, olhos, dentes, boca e penas, e ambos
(feiticeiro e maracá) começavam a dialogar entre si até que entrassem em transe. “Os índios o
rodeavam, bailando em passos ritmados uma melodia triste e monótona, e de súbito já não era
ele, “feiticeiro”, quem falava, mas o espírito do ancestral abrigado na cabaça de poderes
mágicos”59. Da boca dos feiticeiros surgiam profecias que diziam que os índios não
precisariam mais trabalhar, que as flechas cairiam do céu e acertariam apenas as caças, que as
velhas se tornariam jovens e que os grandes guerreiros se tornariam imortais. O transe seguia
entre os participantes da festa, embebidos com fumo e fermentados de mandioca. A
nomenclatura dessa festa, Santidade, foi cunhada pelo próprio padre jesuíta, porém ele
deixava claro que se tratava de uma falsa santidade.
Este ritual foi observado por diversos outros padres e observadores da corte, em
diversas partes da colônia, Bahia, São Vicente, Piratininga, Maranhão etc., e seguiam uma
estruturação semelhante nos diversos pontos observados, inclusive no que diz respeito às
profecias entoadas pelo feiticeiro sob a orientação dos espíritos que habitam a cabaça
recheada de sementes que os nativos chamavam de maracá. WITTMANN (2011) vai utilizar
o conceito de religião enquanto tradução, retirando dos indígenas a condição de “vítimas” e
realocando sua cultura enquanto uma negociação permanente entre a cultura pré-colonial e o
catolicismo. Tinhorão já havia assinalado a utilização das melodias indígenas, estas sendo
apropriadas pelos missionários para alterar o seu sentido, retirando as conceptualizações
xamânicas e imbuindo-lhe de características católicas ocidentais. Os padres jesuítas
aprenderam a falar tupi e outras línguas do gentio, faziam pregações em português, latim e na
língua geral. Essa alteração significaria para Tinhorão a “deculturação” dos povos originários,
o que WITTMANN (2011) vai chamar de culturas em negociação, em que as características
anteriormente verificadas entram em um processo de incorporação de outros elementos, onde
a estrutura sofre alterações significativas, porém confere uma negociação permanente, o que o
Tinhorão trabalha como síntese.
58
Pe.
Manoel
da
Nóbrega,
apud
Vainfas
(2001;
216)
59
Pe.
Manoel
da
Nóbrega,
apud
Vainfas
(2001;
216)
54
agora fale e faça-se ouvir quando estiver aqui dentro. A seguir fala em voz alta e
rapidamente uma palavra de modo que não se pode reconhecer direito se é ele ou o
chocalho que emite o som. As pessoas acreditam que é o chocalho, mas é o feiticeiro
mesmo quem fala. Assim ele faz com todos os chocalhos, um depois do outro, e
todos os selvagens pensam que seu chocalho tem grande poder. Então os feiticeiros
ordenam que vão à guerra e capturem prisioneiros, pois os espíritos que habitam os
maracás se deleitam comendo carne dos escravos. Depois disso partem para a
guerra60.
Ademais, as referências sobre a existência ou não de divindades dentro das maracás
nos trazem algumas revelações da maneira organizativa do ritual ocorrido no litoral sul da
província de São Vicente. Do ponto de vista da estruturação musical, rítmica e melódica
entoada pelos nativos durante o processo, esta passagem nos remonta poucas informações,
apesar da elucidação cerimonial. Então, devemos abordar outros personagens que nos
ajudarão a compreender outras passagens. Léry presenciou este ritual também junto aos
Tupinambás61 na região do Rio de Janeiro. O relato de Léry conta com a vantagem de ter mais
conhecimentos musicais do que Staden, e a desvantagem de ter menos conhecimento da
língua do gentio que o alemão.
Essas cerimônias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos
ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão
harmonioso que ninguém diria não conhecerem música. Se, como disse, no início
dessa algazarra, me assustei, já agora me mantinha absorto em coro ouvindo os
acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho a cada copla:
Hê, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, uêh. (LERY, 1980, p. 209).
Tanto Léry quanto Staden descreveram a marcação rítmica da música indígena através
da utilização do pé. Desta forma, eles alterariam em um tempo constante forte e monótono,
sendo quebrado de tempos em tempos com a perna oposta à da marcação. Outra característica
é que além das maracás que eram tocadas com a mão e suspensas por um pequeno cabo
também se amarravam junto ao tornozelo pequenos guizos para funcionarem como chocalho,
complementando a parte rítmica do ritual e preenchendo a harmonia. “Depois, todas as
mulheres começaram a cantar. Para acompanhar o ritmo delas eu devia bater no chão com o
pé da perna à qual estavam amarrados os chocalhos, para que fizessem ruído e se adequasse
ao canto delas62.”. Quanto ao enredo das músicas entoadas, Léry nos indica que se trata de
uma melodia seca, composta de poucas palavras que se repetem constantemente. Podendo se
referir aos animais, caça, ou mesmo como entonação de repulsa a um grupo inimigo, no caso
dos rituais antropofágicos conforme assinalado por Staden. Outra variação das músicas no
ritual da Santidade seriam as derivações das próprias profecias que saíam da boca dos
60
Descrição
de
Hans
Staden
sobre
o
ritual
da
Santidade
enquanto
era
prisioneiro.
In
Wittman
(2011,
p.
128)
61
Léry
acompanhou
a
cerimonia
enquanto
aliado
dos
Tupinambás,
uma
vez
que
os
huguenotes
tentavam
também
a
colonização
das
Américas,
o
que
ficou
conhecido
como
França
austral.
Ao
passo
que
Hans
Staden
acompanha
o
ritual
enquanto
um
aliado
dos
Tupiniquins
capturado
em
guerra.
62
Relato
de
Hans
Staden
in
Wittimann
(2011;
136)
56
caraíbas. E, justamente, essas profecias seguiam normas variáveis; para Staden, era a guerra
que se aproximava, e para Azpicuelta, eram profecias sagradas de dias, em que os índios não
precisariam mais trabalhar: as caças seriam buscadas por flechas que cairiam do céu e assim
sucessivamente, conforme o relato.
En mitad de una plaça tenían hecha una casa grande, y en ella otra muy pequeña, en
la qual tenían una calabaça figurada como cabeça humana, muy ataviada a su modo,
y dezían que aquel era su sancto, y llamávanle Amabozaray, que quiere dezir
persona que dança y huelga, que tenía virtud de hazer que los viejos se tornassen
moços. Los índios andavan pintados con tintas, aun los rostros, y emplumados de
plumas de diversos colores, baylando y haziendo muchos gestos, torciendo las bocas
y dando aullidos como perros; cada uno traýa en la mano uma calabaça pintada,
diziendo que aquellos eran sus sanctos, los quales mandavan a los Indios que no
trabajassen, porque los mantenimientos nacerían por sí, y que las flechas yrían al
campo a matar la caça. Estas y otras muchas cosas, que eran para llorar muchas
lágrimas, vi63.
Os primeiros relatos das festas da santidade seguem um padrão que configuraria uma
cultura em equilíbrio, mantendo uma relação direta com a valorização de um modo de viver
que era compartido tanto pelos Tupinambás, descrito por Staden e Léry, quanto entre os
descritos pelos padres jesuítas. VAINFAS (2001) vai dizer que começam a ocorrer
transformações na festa a partir dos anos 60-70 do século XVI. A mudança mais significativa
não tem origem na morfologia da festa, esta continuava a ter como elemento central a
embriaguez, o tabaco, a dança ritmada e monótona, as maracás, o transe coletivo e a
participação central de um caraíba, que vinha de fora para revelar as profecias ditadas pelos
ancestrais. A principal mudança ocorreria nos dizeres que revelariam à Santidade. “Foi
assumindo um caráter novo, a história penetrando dentro do mito (...) e dirigindo sua fúria
beligerante contra os portugueses.” (VAINFAS, 2001, p. 218). Contudo, se continuava a falar
que as velhas virariam jovens, também aumentaram seu arcabouço profético e passaram a
dizer que os padres passariam a não existir, os portugueses seriam mortos ou se tornariam
escravos dos índios, que as doenças acabariam e nenhum nativo mais seria escravo. O mito
sofreria assim as transformações e atualizações históricas. O contato com o homem branco e o
fluxo cultural oriundo do contato entre os grupos faz com que as relações sociais entre as
culturas interfiram no mito. Mesmo que ele continue pregando o mundo macunaímico do não
trabalho e das mulheres jovens, ele tem a interferência do mito que sofre uma atualização.
WITTMANN (2011) vai usar a festa da Santidade para ajudar na formulação de uma
das suas teses de negação à “deculturação” indígena, conforme proposta por Tinhorão.
Embora o conceito tenha caído em desuso e apresente outras formas de se pensar o fluxo
63
Do
P.
Juan
de
Azpilcueta
Navarro
aos
padres
e
irmãos
de
Coimbra.
Porto
Seguro,
24
de
junho
de
1555.
In
Wittman
(2011;
126)
57
cultural entre um lado dominante e outro dominado, é importante retomar o conceito. Para
Tinhorão, o ato de colocar elementos europeus dentro do referencial cultural indígena
formaria o ato de “deculturação”, não apenas aceitar a versão musical do padre conforme
salientado pela autora em “Flautas e maracás”. Mas o mito também se tornava rebelde apesar
de colonizado. “O mito parecia colonizado, apesar da festa intacta. Mas o mito tornar-se-ia
rebelde, a fomentar fugas, revoltas, assaltos a engenhos e missões.” (VAINFAS, 2001, p.
219).
O rito ganha rebeldia, mas junto com ele assegura um discurso de legitimidade
católica. Embora essa festa não seja ponto de formulação de Tinhorão para o discurso da
“deculturação”, o exemplo apresentado para seguir “o sentido oposto” daquele colocado por
WITTMANN (2011) na crítica ao conceito do Tinhorão, se não é reforçado pela principal
referência teórica utilizada por ela, VAINFAS (2001) reforça o conceito de Tinhorão.
Primeiro, é preciso salientar que ele está preocupado com a “deculturação” musical e não
ritualística; muitas vezes, o termo é refutável, porém não o conceito que está por trás. Dessa
forma, os elementos do catolicismo vão adentrando ao ritual da Santidade, e estes não vêm
acompanhados de uma intromissão dos jesuítas, e sim vêm dos próprios indígenas durante a
época mais rebelde do ritual.
A Santidade de Jaguaripe se adornou de catolicismo para subvertê-lo; conviviam em
conjunto a embriaguez, as fumaças e a melodia monótona que acompanhava o ritual, quando
descrito pela primeira vez pelo padre Manoel da Nóbrega. Agora, a versão escrita por padre
Anchieta, em 1585, era carregada de outros simbolismos. O gentio, além de tocar a maracá,
agora também empunha um rosário, que acompanha a sua reza. Erigiam uma cruz de madeira
à porta da Igreja, onde faziam o ritual. Eles realizavam o batismo invertido, utilizando os
mesmos elementos do ritual católico, óleos e águas; mudavam seus nomes para o arcabouço
simbólico romano. Não para os nomes que eles ganharam dos membros das suas tribos, não
para nomes que dialogavam com seus ancestrais. “Entre os nomes dados ao alto clero desta
Santidade, pontificaram verdadeiros santos, São Luís, São Paulo, São Pedro, um tal
Santíssimo, um outro Santinho, sem falar de certa índia que ostentava o título de Santa Maria
Mãe de Deus” (VAINFAS, 2001, p. 220).
O catolicismo estava presente não apenas no nome; a apropriação ou a transformação
de elementos sagrados xamânicos numa profusão eclética com formas pagãs e estrutura
romana terminavam por completar a nova “cara” dessa forma religiosa. “A mescla católico-
tupinambá dessa Santidade parecia não ter conhecido, de fato, nenhum limite. O caraíba-mor
58
do movimento dizia ser Tamandaré, ancestral dos tupinambás, ao mesmo tempo em que
apregoava ser o verdadeiro papa da Igreja.” (VAINFAS, 2001, p. 220). Outro elemento é a
transformação de uma religião politeísta em uma monoteísta a la católica. Os jesuítas
elevaram a importância ritualística de Tupã (herói-trovão), que foi simbolizado como o Deus
romano. Já os tupinambás criaram o Tupanasu, o herói trovão acrescido do sufixo “asu” ou
“açu”, que acrescentava grandeza na língua geral, tornando-se o Deus grande dos tupinambás,
criando um ídolo de pedra, personificado com boca, olhos, nariz, cabelos e roupas. As
maracás que conversavam com os espíritos dos ancestrais, que serviam de veículo entre o
mundo dos mortos e dos vivos são substituído por um ídolo, ou Deus, Tupanasu, que se ainda
mantinha feições limítrofes entre humano e natureza, começava a se vestir cada vez mais de
características humanas e cada vez menos de natureza.
Para demonstrar esta parceria inaciano-tupinambá na metamorfose da festa e das
crenças indígenas, elegeria, entre inúmeros episódios, uma ocasião em que os
jesuítas adentraram uma aldeia e desafiaram o pajé-açu que lá estava a pregar.
Disseram então os padres, entre outras coisas, que os índios não deviam acreditar
naquele feiticeiro, que era um falso pajé-açu, pois o verdadeiro pajé-açu era o bispo
da Bahia. Pois bem, se os jesuítas se permitiam dizer que o verdadeiro pajé-açu era o
bispo, porque o pajé-açu, como o caraíba da Santidade, não poderia alegar que era
ele o verdadeiro papa? Nesta luta pelo monopólio da santidade, o território de
desacertos e incertezas seria de todo incontrolável e imprevisível. (VAINFAS, 2001,
p.220).
No ano de 1585, os jesuítas destruíram a Santidade de Jaguaribe; era uma heresia
praticada pelos tupinambás desse sabá tropical. As causas parecem bem mais pela disputa da
santidade entre qual pajé-açu teria mais poder do que a tradução para a língua geral e para a
cultura tupinambá dos elementos do catolicismo, que utilizaram os recursos e mitos indígenas
para “exprimir a doutrina cristã e as hierarquias da igreja”. Talvez aí esteja a falha no
processo, disputar a legitimidade do sagrado com os inquisidores, ou professar que os padres
desapareceriam e os portugueses seriam escravos. Todavia, mesmo com a resistência do
gentio na transformação do mito, ele recheia de elementos católicos para fazer a mediação da
sua cultura, substituindo lentamente as relações entre os entes, humanizando a natureza ao
mesmo tempo em que forja a partir do catolicismo as relações entre os indígenas na esperança
de que, assumindo essa forma, negociando os símbolos com os inacianos, se livraria da
escravidão indígena que a maracá havia anunciado.
Mesmo que não possamos qualificar esse episódio como a “deculturação”, conforme
anunciado em Tinhorão, ele se aproxima melhor da experiência de subordinação cultural do
que a “tradução”, conforme o conceito de WITTMANN (2011). Os jesuítas traduziram,
literalmente, suas orações dentro de um contexto que já estava estruturado, a capacidade de
síntese dentro desse processo é muito difícil. O fato de haver a resistência dos Tupinambás
59
não elimina o fato de que, na melhor das hipóteses, exista uma troca desigual. Acho que isso,
ela também não negava. Talvez o exemplo que ela tenha utilizado não a ajudara muito, porém
pouco importa, a preocupação central do conceito do Tinhorão não era com a religião
indígena, e sim com a música. Pensando em Simmel, poderíamos dizer que a forma
permanece e o conteúdo se altera. Todavia a palavra “altera” ainda soa um pouco “neutra”
para o grau de transformação que ocorre dentro desse paradigma.
64
Na
concepção
de
Marx
em
“18
do
Brumário
de
Luís
Bonaparte”
60
61
porém para explicar coisas distintas. Desta forma, procuramos precisar o que Tinhorão propôs
com este termo e separá-lo do que entendeu WITTMANN (2011) sobre ele. Dessa forma, a
autora coloca a crítica sobre o conceito de “deculturação” proposto por Tinhorão nos motivos
que a levaram a escrever sua tese, o que nos fez esperar que realmente trouxesse esse debate à
tona, porém ela o faz em duas notas de rodapé (13 e 14) ainda na Introdução da sua tese.
Reproduzimos as duas para comentar posteriormente:
13 TINHORÃO, José Ramos. “A deculturação da música indígena brasileira”.
Revista Brasileira de Cultura, ano IV 4, n. 13, jul/set, 1972, p. 10. GALLET,
Luciano. Estudos de folclore. Rio de Janeiro: Carlos Wehrs e Cia, 1934, p. 37. O
etnomusicólogo Rafael Bastos sugere que as concepções de Gallet estão na base do
pensamento sobre a música brasileira, no qual a fábula das três raças retroagiria a
duas. A mestiçagem musical brasileira não incluiria participação indígena, tendo a
música brasileira se formado a partir da melodia e da harmonia portuguesas em
junção com o ritmo africano. A razão disso seria a abissal diferença dos sistemas
musicais indígenas, incompatíveis ao amálgama, ou mesmo extintos devido à
catequese jesuítica.
Assim, o branco e o negro foram eleitos como representantes da nacionalidade
brasileira. “Em contraposição a isto, o ‘índio’ é remetido para os confins do sistema,
para o mato, a floresta, o abismo do estado-nação moderno brasileiro que ali se
engendrava”. Nesta perspectiva, a admissão dos jesuítas de algumas das
manifestações indígenas seria apenas exemplo de astúcia por parte dos missionários.
A estratégia de aceitação fingida teria como escopo a imposição dos valores cristãos
e, por fim, o abalo sem retorno do modo de vida considerado selvagem. A síntese
cultural brasileira estaria reservada a outro sujeito histórico, elemento de fora, que
como o português teve que atravessar o oceano para alcançar a América, mas veio
para tornar-se a parte explorada do sistema escravista. BASTOS, Rafael José de
Menezes. “O índio na música brasileira: recordando quinhentos anos de
esquecimento”. In: TUGNY, Rosângela. QUEIROZ, Ruben (orgs). Músicas
africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 122.
música ou que as músicas que eles fazem hoje nas tribos e nas reservas sejam músicas
“importadas” dos padres e dos jesuítas. A questão fundamental colocada pelo Tinhorão é de
que a música que se faz hoje no Brasil não sofre influência das produções rítmicas,
harmônicas ou melódicas da música indígena. Se na nota número 13 ela utiliza conceitos de
um etnomusicólogo para discordar dela e concordar com Tinhorão, já na de número 14 ela
não comete esse equívoco. Ela coloca dois musicólogos para concordar com Tinhorão, ao
passo que discorda dela. Agora, se esperamos de um antropólogo que domine conceitos como
alteridade e etnocentrismo, já de um musicólogo espera-se que domine conceitos musicais.
Por fim, gostaríamos de dizer que concordamos com o argumento construído por
WITTANN (2011), apoiado em HOLLER (2010), e que não é explorado por Tinhorão, pois
consideramos que para compreendermos a formação musical no Brasil no século XVI é
necessário entender o papel que teve a proibição da prática musical dos padres jesuítas.
Talvez, neste ponto esteja o “elo perdido” que Tinhorão busca entre os brancos e mestiços
pobres, que viviam na colônia, com o conceito de autenticidade da música brasileira. Pois se é
tão importante para a formação de uma música que encarne um sentimento de pertencimento
de “classe”, ela deveria surgir desprendida das amarras oficialistas tanto da Coroa quanto da
Igreja. Talvez na proibição esteja a chave para entender. Todavia, a busca por materiais novos
que estariam fora da alçada religiosa é praticamente nula, e poderíamos cair no erro de sugerir
uma conclusão sem ter provas materiais para comprovar.
63
TINHORÃO (2000) vai chamar o ciclo festivo no século XVII de medieval. Não que
acreditasse que o Brasil vivesse à semelhança do período feudal da Europa ou mesmo do
Japão; todavia, é inegável que ele se reporta a esse fenômeno para explicar as festas que se
desenvolveram no século XVII. Coerente com sua metodologia, o autor começa fazendo um
levantamento de fatos importantíssimos para a compreensão do período histórico que ele
estuda, observando como os acontecimentos de ordem política, econômica, social e religiosa
vão influenciando as ações dos homens, assim como os desdobramentos desses eventos vão
moldando a configuração e o desenvolvimento das festividades e da produção sonora na
colônia. Nessa toada, três são os eventos fundamentais para a compreensão da guinada do
primeiro século de povoamento para o segundo.
Primeiro foi a União Ibérica. Durante os anos de 1580 a 1640, os reinos de Portugal e
da Espanha foram unidos sob a dinastia dos Filipes, que além da unificação na península,
conforme ficou conhecido o evento, traz consequências na América, uma vez que as porções
das terras descobertas que o papa não havia dado à Espanha eram de Portugal. Segundo ponto
importante foi a ocupação de Pernambuco pelos holandeses (1630 – 1654). Assim, tanto o
novo império surgido da união das coroas católicas quanto o seu posterior desmembramento
tiveram que conviver com a “ameaça” batava em terras tropicais. Isso mudaria tanto a forma
de relação interna metrópole-colônia quanto a relação entre as nações mercantilistas. Terceiro
evento a ser destacado é a inserção do Brasil no comércio internacional através da produção
de açúcar, pois se era verdade que já se produzia a cana de açúcar no século anterior, agora
ela ocupa outro patamar. O pequeno comércio e uma vida dominada pelas aldeias e vilas
jesuíticas são substituídos por um modelo de vida no qual o latifúndio, a escravidão, os
engenhos e as capitanias dominaram as relações sociais daquele período.
Segundo Tinhorão, para compreender a evolução das relações festivo-musicais no
século XVII, é fundamental observar as mudanças que ocorreram no campo político,
econômico e militar para compreender as transformações nas relações sociais e,
consequentemente, na forma de se festejar, bailar, tocar e folgar. Se as primeiras cidades eram
instâncias administrativas e de defesa subordinadas social e economicamente à Companhia de
64
Jesus, nesta nova fase de ocupação o fator econômico e o domínio rural sobre o urbano vêm
ganhando contornos mais nítidos65.
Nossa preocupação central é a de analisar como o pensamento do autor está calcado no
seu método, e como ele enxerga as transformações da sociedade, como esta se organiza e,
principalmente, como se sociabiliza. Assim, temos alguns elementos para pensar dentro dos
três eventos anteriormente citados. A primeira delas diz respeito à União Ibérica, como este
evento poderia marcar uma pretensa unidade católica e um possível intercâmbio e afirmações
das regionalidades. O segundo ponto seria a influência holandesa e da multiplicidade religiosa
oriunda desse processo, bem como as transformações na administração pública e nas festas
oficiais ou religiosas. O terceiro ponto seria o aumento do fluxo de importação de escravos e o
novo modo de produção que se desenvolvia com os engenhos de açúcar. Não estamos mais no
patamar de pequeno escambo de produtos diversos e de baixa intensidade; existia uma
moderna forma produtiva que visava abastecer grandes mercados na Europa66. O centro da
vida social se deslocava das aldeias jesuíticas e da conversão do gentio para um período pré-
capitalista e mercantilista.
E por fim, procurar entender o porquê de Tinhorão chamar esse período de ciclo
feudal, dialogando assim com outros autores, para buscar uma unidade na construção de seu
pensamento. Desvendar como ele pensa a evolução festiva e musical do país nesse período e
os pontos de tensão que este carregava. Como se dava o limiar das rupturas e continuidades,
que o país irá guardar com o período anterior e como abre o caminho para o período seguinte,
conforme Tinhorão, no qual éramos feudais e modernos.
65
Ver
Martins
(1981)
“Introdução
crítica
à
sociologia
rural”
66
Ver
Prado
Júnior
(1994),
Hollanda
(2004),
Freyre
(1987)
67
A
primeira
delas
a
derrota
de
D.
Sebastião
no
norte
da
África
e
a
segunda
a
unificação
Ibérica
e
a
perda
de
autonomia
lusitana.
65
68
Tinhorão
(2000;
47).
Neste
trecho
o
autor
cita
Pereira
da
Costa,
Anais
pernambucanos,
vol.
III,
p.
160.
66
Não nos importa adentrar nas condições históricas que levam tanto à ocupação
holandesa quanto à união e ao desmembramento Ibérico; o que nos importa aqui é pensar
como esses acontecimentos alteraram as estruturas e os simbolismos nas festas, e
principalmente como o cronista enxerga e as relaciona com a formação de um sentido
sociohistórico que permeia as festividades. Desta forma, as cavalhadas tiveram diversas
roupagens, dependendo do que representariam. Toda a estrutura passa por demonstração
montada, podendo assumir distintas formas, o que podia representar a vitória dos portugueses
frente aos mouros, indicada pelas cores ou tipo de vestimentas69 que justifiquem o ritual e a
festividade. Tinhorão enxerga nas cavalhadas uma afirmação de uma identidade lusitana em
território colonial, como um evento que reforçaria os laços de solidariedade dentro de uma
origem comum, que resistiria nessas manifestações e se recriariam nos símbolos e nas
memórias coletivas. Portanto, se este tipo de festa serviu para anunciar o nascimento do novo
herdeiro nas vésperas da ocupação holandesa, também foi o principal meio de afirmação da
identidade portuguesa com o fim da União Ibérica. Dentro dessa perspectiva, ele coloca a
cavalhada como o principal acontecimento festivo ocorrido no Brasil com a retomada do
trono de Portugal por d. João IV.
Assim, não constitui surpresa que, em inícios de 1641, conhecida finalmente na
colônia a aclamação em 1º de dezembro de 1640 de d.João IV como novo rei de
Portugal, o ponto alto das comemorações no Rio de Janeiro fossem ainda uma
encamisada, um alarde feral, uma corrida de touros e uma de manilhas, e um jogo de
canas, contra apenas um ato cultural: a representação de uma comédia que “se
começou cõ loa de muitas vivas a El-Rey Nosso Senhor, e feneceo com a mesma
repetição” (TINHORÃO, 2000, p. 48).
Tinhorão concebe as festas no Brasil dentro da dicotomia fundamental de qual
segmento social está presente em cada uma delas. Melhor do que isso, ele relaciona qual o
papel ocupado por cada segmento da sociedade de acordo com o tipo de festa proposto.
Seguindo o conceito de DA MATTA (1981), vimos que as cavalhadas poderiam ser
agrupadas dentro daquelas que fazem parte das de afirmação hierárquica. Tanto pela condição
daqueles que são protagonistas nestas, pois, se ter calçados era sinônimo de não ter amo, ter
cavalo é o mesmo que o ser. No campo da simbologia da dominação, e, de reforço
hierárquico, esta característica se manifesta pela localização geográfica das pessoas de acordo
com a sua origem social e pelo papel desempenhado por aqueles que não dispõem de cavalos
ocupavam nas festividades. Esse período parece ser realmente de uma pungência de festas a
cavalo. Embora haja relatos de festas a cavalo desde 1549, com padre Manoel da Nóbrega,
69
“Os
festejos
do
Livramento
seguiram
à
risca
o
modelo
canônico:
procissão
solene,
andores
belíssimos,
alegorias,
carros
triunfais,
danças
das
corporações,
figuras
“vestidas
à
trágica”,
“à
francesa”,
“à
mourisca”.
Meyer
(2001;
233).
67
Tinhorão coloca uma condição especial a essas que ocorriam nesse momento de limiar luso-
brasileiro. Enfatizando, como ocorria no Rio de Janeiro em aclamação ao novo rei também
era comum em terras ocupadas no Recife.
Isto serviria, para Tinhorão, como comprovação do caráter cordial e cúmplice entre
franceses, holandeses, portugueses e brasileiros que se vivia em Pernambuco, principalmente
com o fim da União Ibérica e a aliança entre o novo rei português com o reino de Orange70.
Nesse clima de camaradagem colonial as competições a cavalo também se faziam bastante
populares em terras dominadas pelos holandeses, que mantinha os hábitos portugueses nos
trópicos. Conta-nos frei Manoel Calado71 sobre uma competição que durou três dias em
homenagem à aclamação do rei D. João IV em 1641.
Tão logo “os mancebos cavaleiros de Pernambuco se viram avisados por carta do
Príncipe, logo se prepararam de vistosas librés, e ricos jaezes, como se requeria para
festas que haviam de fazer em honra de seu Rei e Senhor”, e o resultado do
inevitável confronto não apenas de garbo pessoal com os pragmáticos burgueses
súditos do duque de Orange (“iam os cavaleiros de dois em dois, misturados, um
holandês e um português”), mas de habilidade equestre, constituiu irrefutável triunfo
luso-brasileiro (TINHORÃO, 200, p.; 60-1).
Se por um lado, cria-se uma aliança entre luso-brasileiros e holandeses com o fim da
União Ibérica, por outro lado, reforça-se o sentimento de pertencimento de uma considerável
parcela da população. Conviveram em harmonia pessoas de todas as nacionalidades nas
cidades de Recife e Olinda, entre elas também se marcavam as diferenças entre os
comerciantes holandeses e os latifundiários e produtores de açúcar luso-brasileiros. Então, um
novo laço se cria entre as camadas subalternas e as elites coloniais, conferindo aos jogos e
competições das parcelas mais abastadas da sociedade uma identidade libertadora, que se
mostravam superiores (ao menos militarmente) aos ocupantes batavos. Pelo papel
desempenhado pelos despossuídos era de esperar que Tinhorão guardasse um distanciamento
do potencial criador de uma autenticidade que esse tipo de festa poderia ter, já que ele vai
abrir uma premissa que será repetida em outros pontos, e outras obras também.
As estruturas que concebem sobre a origem social das festas são permeáveis e se
alteram dialeticamente dependendo das relações sociais, econômica e política na qual elas
estão inseridas. E, justamente, nesse caso da aclamação do rei, ele reconhece uma participação
social “das festas oficiais (...) essa oportunidade de participação direta da gente do povo
miúdo (...) era muito rara, só tendo sido possível, no caso, essa passagem de simples
espectador a personagem ativo na manifestação de júbilo pela aclamação de d. João IV”
70
“Tanto
que
João
Lopes
se
partiu
para
a
Bahia,
tratou
o
Príncipe
[João
Maurício]
de
festejar
a
aclamação
d´El-‐
Rei
Dom
João
com
grandes
festas
e
ostentações
de
alegria”
Manoel
Calado,
in
Tinhorão
(2000;
60)
71
Tinhorão
(2000)
68
(TINHORÃO, 2000, p. 49). Nem de perto isso significa que essa festa foi organizada pelo
“povo miúdo”, mas justamente a criação de uma unidade em oposição a outro (espanhol e
holandês) criaria uma condição de participação popular, que assim tomaria contato não apenas
com as diferentes hierarquias sociais, mas principalmente, que criariam uma unidade entre
eles, uma unidade na diferença social devido a uma condição política e econômica particular,
que trará um elemento novo, que ainda estava guardado em Portugal e que chega ao Brasil,
que tomará parte dessa autenticidade da cultura nacional, mesmo que uma autenticidade
híbrida.
Retomamos aqui a dicotomia entre festas oficiais e festas populares, ela é muito
importante para a compreensão do conceito de Tinhorão, assim como para DEL PRIORI
(1994), conforme dito no capítulo anterior. Porém, ele vai retirar desse evento (aclamação de
d. João IV) alguns elementos importantes para compreender o fio condutor do seu
pensamento, ou seja, como saímos de uma terra “achada” à formação musical e festiva que
nos encontramos hoje. Nesse sentido, a compreensão de fenômenos como o carnaval é uma
das suas buscas72, ou onde encontramos elementos que nos rememorem sua origem. Dando
seguimento, ele remonta os relatos oficiais de Jorge Rodrigues intitulado “Relaçam de
aclamação” e vai desvendando o que poderia estar na origem da evolução festiva nacional73.
É claro que, a partir daí, a massa dos moradores da cidade, constituída pela gente da
baixa camada, passava ao papel de mero espectador das demonstrações das virtudes
cavaleiresas dos grandes, tanto na encamisada “em que passarão mostra alegrado
todas as ruas da cidade cento e dezaseis cavaleiros”, quanto no desfile de carros
alegóricos antecipadores do barroquismo destinado a prevalecer nas festas oficiais
dos Oitocentos: “E para mayor alegria se lhe agregarão dous carros ornados de
sedas, e aparatos de ramos, e flores, e tam prenhados de musica, que em cada
principio de rua parecia que o Coro do Ceo se avia humanado” TINHORÃO (2000;
50).
Mesmo que não encontre a participação popular que busca para a formação de uma
forma festiva e musical tipicamente brasileira “o forte da programação, afinal, continuava a
ser o das demonstrações da nobre arte equestre” TINHORÃO (2000; 52), ele encontra na
formação dos carros alegóricos um espetáculo de sincretismo entre o barroco e a participação
popular, sendo esta última a que falta na primeira. Assim Tinhorão vai buscar a participação
popular em outro evento, que para ele será o mais democrático das festas católicas brasileiras,
o Corpus Christi.
72
Também
estará
presente
em
outras
obras
dele
como
“Festa
de
Negro
em
devoção
a
Branco”
e
“História
da
Música
Popular
Brasileira”.
73
Da
Matta
(1981;
36)
vai
conceitualizar
o
papel
desempenhado
por
festas
de
afirmação:
“Isso
quer
dizer
que,
quando
se
realiza
um
ritual
nacional,
toda
a
sociedade
deve
estar
orientada
para
o
evento
centralizador
daquela
ocasião,
com
a
coletividade
“parando”
ou
mudando
radicalmente
suas
atividades”
69
desse ponto, começa a receber um fluxo maior de influência judaica, muçulmana e católica,
TINHORÃO (2010). Dessa forma, as caminhadas com objetivos religiosos ganham contornos
híbridos dentro de uma negociação de crenças que acompanhavam a formação de um Estado
português quatro séculos após, tendo como ponto de fixação de uma religião única com
costumes híbridos a partir da instalação da Inquisição. Com isso, as peregrinações católicas
vão receber o nome de romarias, justamente pelo fato de Roma simbolizar o local sagrado
onde os católicos deverão se conduzir, “todos os caminhos levam a Roma”.
A vitória dos católicos sobre os árabes na batalha de Toledo, em 1086, reforça a
necessidade de retomada da Terra Santa, e encontra no papa Urbano II o aliado para essa nova
peregrinação, não à nova cidade sagrada, mas a primeira delas. Assim o rito põe em
movimento os arquétipos para a fundação de outro mito, que nada mais é do que a atualização
do rito de peregrinação pagão, agora institucionalizado e com um elemento novo que também
remonta às religiões politeístas europeias, a caça e coleta de relíquias. Essa nova busca nada
mais era do que objetos datados de uma força sagrada, não por suas qualidades intrínsecas,
mas por motivos históricos75.
O esquema das procissões, logo adotado pelo cristianismo quando de sua
institucionalização como igreja, sob o conceito do katholikós universal, ia ganhar
com a organização de suas regras litúrgicas diversas variantes: procissões de benção,
para dias determinados, como Domingo de Ramos, procissões votivas, como a
celebração da Assunção (recebimento da Virgem Maria no céu); procissões de
trasladação, para acompanhar a mudança pública de imagens ou relíquias; procissões
de peregrinação, à volta de grutas milagrosas como a de Lourdes, na França, ou do
Santuário de Fátima, em Portugal; e, por fim, procissões comemorativas de milagres
ou acontecimentos da vida religiosa ou civil. TINHORÃO (2010; 6).
Essa digressão sobre as influências pagãs nas festividades religiosas portuguesas é
fundamental para a compreensão do sincretismo e da particularidade das festas no Brasil, pois
Tinhorão, como Gilberto Freyre, trabalha com o conceito de que só foi possível a constituição
de uma sociedade miscigenada e híbrida porque a raiz desta já estava em gestação em
Portugal76, assim para compreender o fenômeno do Corpo de Deus conforme anunciado no
ponto anterior é necessária a reflexão sobre as origens peregrinas e as relações com as festas.
75
Franco
Júnior
(1990;
57)
“De
fato,
as
relíquias
eram
vistas
como
um
elo
entre
o
mundo
transcendente
e
o
mundo
humano,
instrumentos
de
canalização
de
poderes
daquele
para
este.
Conseguiriam
algo
de
energia
do
mundo
invisível,
daí
a
famosa
espada
de
Rolando
ter
no
cabo
um
dente
de
São
Pedro,
sangue
de
São
Basílio,
cabelos
de
São
Dionísio
e
fragmentos
da
roupa
de
Santa
Maria,
enquanto
a
de
Carlos
Magno
continha
a
ponta
de
lança
que
ferira
Cristo.”
76
Ver
também
Tinhorão
(1997)
“Os
negros
em
Portugal,
uma
presença
silenciosa”
71
72
adentrar as ruas está intimamente ligado ao ponto 2.3 dessa dissertação, ela é uma forma
litúrgica que está fora do ambiente da Igreja, porém, diferentemente de ter a festa e a música
como um espaço de disputa entre o sagrado e o profano, a partir do leigo e do religioso, as
procissões representam a própria instituição Igreja que se dissolve para caminhar junto ao
povo. DA MATTA (1981; 51) vai chamar de ritual de neutralização:
Além disso, a própria procissão teria características conciliadoras, pois seu núcleo é
formado das pessoas que carregam a imagem do santo, e tais pessoas estão
rigidamente hierarquizadas: são autoridades eclesiásticas, civis e militares.
Entretanto o núcleo é formado e seguido por um conjunto desordenado de todos os
tipos sociais: penitentes que pagam promessas, aleijados que buscam alívio para
seus males, homens normais que apenas demonstram sua devoção ao santo. (...) Pois
ao mesmo tempo que em que o santo homenageado está num andor e separado do
povo por sua natureza e pela mediação das autoridades que o cercam, ele caminha
com o povo e dele recebe na rua (e não na igreja) suas orações, cânticos e piedade.
Existe uma aproximação do sagrado e do profano, do homem e dos “deuses” nessa
forma litúrgica. As diferenças sociais se reduzem e os espaços hierárquicos se reproduzem em
poucos locais. Conforme DA MATTA, esta diferença estaria em quem carrega o andor.
Enquanto a procissão prossegue, ela se divide em alguns grupos, muitos deles com papel
importante nessa teatralização, ele enxerga a hierarquia funcionando principalmente entre
aqueles que sustentam e caminham com o santo daqueles que “apenas” seguem a procissão.
Todavia, aqueles que carregam a imagem estão invisíveis no desenvolver do processo, pois
eles estão no mesmo nível das outras pessoas, eles não podem ser vistos de longe pelos outros
fiéis, nem tampouco estão destacados, na verdade eles servem para destacar os santos e não a
si próprios. Não estão em palanques ou altares, não estão separados fisicamente dos outros,
estão todos no mesmo nível e suas diferenças se reduzem, ou se “neutralizam”. Existem
outros grupos que ficaram invisíveis na descrição de Da Matta, como o coro, as rezadeiras e
os músicos, entretanto eles não desempenham nenhum papel superior dentro da hierarquia
religiosa ou social, eles prestam serviços à fé sem se importar em ser um anônimo dentro
desse processo.
As procissões de Corpus Christi ocorrem pelo menos desde o século XIII, por obra do
papa Urbano IV, todavia a primeira menção dessa festa em Portugal data de 1318, na cidade
de Guimarães77. No Brasil, temos relatos desta a partir de 1549 com o padre Manoel da
Nobrega e também com o inquérito da Inquisição, de 1591. Começamos colocando a
procissão de Corpus Christi como uma encenação em autos, onde o humano adentrava ao
mundo do divino, ou que profanava o sagrado. A teatralização do culto serve justamente para
77
Tinhorão
(2000)
73
inverter a ordem ou aproximar os entes. Dessa forma, temos um exemplo de como a atuação
dramática quase leva para a fogueira um luso-brasileiro:
E outrosi disse ele denunciante que Estevão Ribeiro morador em Sam Vicente lhe
disse que em hua procissão das emdoenças em que hiamhu homem na figura de
Christo com hua cruz ás costas e outros nas figuras dos fariseus puxado pella corda
hia o dito Fernão Roiz cõhua caixa de cousa doces da misericórdia consolando os
penitentes e sempre dava consollação e cousas doces aos fariseus e nada ao da figura
de Christo de que se escandalizou o dito Estevão Ribeiro78
Para além da característica jocosa desse evento, este serve para comprovar a
encenação dos últimos passos de Cristo. Nesse pequeno enxerto do texto inquisitório, temos
duas informações importantes acerca da dramatização da procissão, temos um Cristo que
carrega a cruz e os fariseus. Para, além disso, temos explícita a incorporação do hábito de
servir doces dentro dessas festas. A título de não deixar a história sem um final e para que
ninguém imagine que Fernão Roiz fora para a fogueira por não dar doces ao intérprete de
Jesus “sendo o denunciante inimigo do morador que fazia a “figura de Cristo” ao parar a
procissão (...) nada mais humano do que o encarregado da distribuição de docinhos (...) ter
preferido consolar seus amigos (ainda que fariseus) em lugar do desafeto na vida real (ainda
que Cristo)”. Esse episódio também tem como valor explicitar que as encenações nas
procissões eram um costume que seguia os padrões portugueses no Brasil, mesmo que com as
limitações populacionais que se encontrava o Brasil na virada do século XVI, para o XVII. A
teatralização desse auto era realmente levada a sério em Portugal, sendo uma das principais
festividades do país e que contava com suporte financeiro para transformar a procissão em um
verdadeiro teatro a céu aberto. Consta que “em 1511, Gil Vicente recebe, por representação
feita no dia de Corpo de Deus desse ano, a importância de 5.070 réis79”.
Essa digressão ao universo luso tem dois objetivos primordiais, ambos estão ligados à
concepção de Tinhorão acerca da formação da identidade nacional. Primeiro que as
representações presentes no Brasil bebem da fonte portuguesa, não qualquer fonte, uma fonte
híbrida entre um catolicismo popular que ao mesmo tempo em que remete ao universo da
Igreja também jogava com uma negociação simbólica fora desta, principalmente em uma
hereditariedade pagã, assim “essa teatralização de caráter evangélico dos primeiros padres,
tendo nascido da necessidade de aproveitar nas igrejas a tendência à participação coletiva,
características dos ritos pagãos (...) estava destinada com suas pequenas encenações de
episódios bíblicos” (TINHORÃO, 2000, p. 68). O segundo ponto é a teatralização da vida
78
Primeira
visitação
do
Santo
Ofício
às
partes
do
Brasil
pelo
licenciado
Heitor
Furtado
de
Mendonça.
Apud
Tinhorão
(2000;
71)
79
Antônio
Dias
Miguel,
“Entremeses
e
representações
na
Procissão
do
Corpo
de
Deus,
no
reinado
de
d.
Manuel”
apud
Tinhorão
(2000)
74
através dos autos, que acompanhará uma cultura popular através dos cordéis, espetáculos,
festas e carnaval, esse último seria a “novidade” brasileira herdeira dessa tradição lusa-pagã
da procissão com elementos trazidos pelos negros para cá80. TINHORÃO (2012) irá chamar a
procissão de Corpus Christi de “carnaval da fé”, além das histórias pregressas do teatro
vicentino e da hereditariedade pagã ele coloca outras influências que transformam essa
festividade como progenitora do carnaval. Acrescenta ainda outras influências:
Aparentada com os desfiles de carros alegóricos italianos dos Quatrocentos,
chamados triomphi, com o Teatro de Rua da confraria da paixão parisiense do
século XV e com as histórias narradas na sequência de painéis dos pageants ingleses
da virada do século XV e XVI – todos de iniciativa aristocrática -, a procissão
portuguesa distinguia-se por constituir uma exibição coletiva de criações da mais
nítida formação popular. (TINHORÃO, 2012, p. 16).
A parte democrática do auto pode ser observada nessa última citação, ao mesmo
tempo em que remonta à suntuosidade dos carros alegóricos italianos e também recebe a
influência dos pageants ingleses. Do luxo à parte mais humilde da sociedade, do aristocrata
ao plebeu, do sadio ao enfermo, da virgem à puta, todos concentram o mesmo poder nesse
tipo ritualístico, conforme DA MATTA (1981) as diferenças sociais seriam neutralizadas
dentro desse processo. O simbolismo hierárquico estaria ausente se não fosse o santo sentado
sob o andor e carregado pelos devotos, porém entre os mortais presentes essa festa se faz de
maneira horizontal. Soma-se a isso o público que se apresenta nas terras da colônia. Para isso,
é fundamental, no conceito de Tinhorão, a história agindo dentro da vida material. O século
XVII assiste ao primeiro grande fluxo de migração de escravos oriundos da África. Vão
prioritariamente aos centros produtores de açúcar no nordeste, todavia ainda respingam entre
São Vicente e Rio de Janeiro. “Seriam essas novas camadas de gente negra e mestiça que, ao
integrar-se (...) ao lado da minoria branca de portugueses e mazombos, o elenco e o público
das procissões festivas e gradulatórias surgidas seguindo o estilo do teatro ambulante
português” TINHORÃO (2000; 79).
Essa conformação social faz, tanto para Tinhorão como para Da Matta, da procissão
um evento democrático. Para o primeiro, essa característica estaria desenvolvida na
constituição histórica desta, na origem híbrida e miscigenada, que recebe no Brasil influências
próprias, todavia ela já chega carregada de sincretismo e hibridismo desde Portugal.
Consegue, mesmo sendo uma festa religiosa, transfigurar elementos para além da própria
religiosidade e incorporar os diversos elementos da sociedade. Para Da Matta, esse último
fenômeno está presente, porém para ele o que traz a singularidade é que ela não reforça
80
O
carnaval
seria
uma
das
comprovações
de
Tinhorão
acerca
do
mito
das
duas
raças
e
não
três,
processo
derivado
da
deculturação
indígena.
75
nenhuma hierarquia social. Mesmo nas festas de inversão hierárquica, a sociedade continua
verticalizada, mesmo que por papéis momentâneos. Trocam-se os sujeitos, mas mantém-se o
conteúdo. Na procissão eles são “neutralizados”, isso traria uma condição especial para esse
tipo de festejo.
81
“E
acordarão
dos
ditos
officiaes
da
Camera,
que
os
officiaes
de
Carpinteiro
darão
a
bandeira
que
Costumão
e
assi
mesmo
a
Armação
demadeira
para
a
Serpe,
entrando
nesta
obrigação
os
marceneiros
e
torneiros.
E
os
officiaes
de
Alfayate,
serão
obrigados
a
dar
a
bandeira
que
Costumão
e
o
panno
com
que
se
cobre
a
Serpe
pintadoeaparelhado,
ficando
asua
e
guardallo
e
conseruallo
sempre,
eos
carpinteiros
amadeira
cadaues
que
for
necessário
edarãohus
e
outros
officios,
negros
que
a
carreguem
nas
Procissões”.
Texto
da
Câmara
de
Salvador
de
22
de
novembro
de
1673.
Apud
Tinhorão
(2000;
80)
76
eram mais permeáveis à figura do negro, mesmo porque muitos desses já faziam parte de
alguma irmandade católica.
Tais ritos em geral são iniciados com uma missa, estão centrados na procissão (onde
a imagem do santo sai de um santuário para outro) e terminam com uma festa no
adro da Igreja onde foi depositada a imagem. Aí se vendem doces, bebidas e são
leiloados objetos para a irmandade do santo, há jogos e danças, criando-se um
ambiente de encontro e comunhão muito semelhante ao do Carnaval. DA MATTA
(1981; 51).
Está certo que DA MATTA (1981) está escrevendo de maneira geral, sem uma
conotação temporal ou espacial, todavia ele reconhece uma relação com o Carnaval (festa que
ele conhece bem melhor). Tinhorão por sua vez tem uma preocupação diferente sobre o
mesmo tema, como se deram essas transformações e qual era a disposição social daqueles
membros que faziam a festa. Então, ele vai chamar a atenção para outros eventos que
começam a ocorrer, principalmente ligado ao papel das irmandades. Neste caso, ele coloca
como marco de uma iniciativa da Irmandade de S. Antônio de Cartagena de Salvador como
precursora da iniciativa de organizar procissões para os Santos não apenas com a presença de
negros82 mas principalmente com os negros como organizadores destas. Dessa forma, ele cita
uma passagem do manuscrito dessa mesma Irmandade que diz que “estabeleciam que o Juiz,
o Escrivão e o Tesoureiro seriam crioulos (negros nascidos na terra), e os mordomos que
necessários forem seriam angolas”, assim como para as mulheres seguiriam de forma
semelhante “a eleição das crioulas, e outra das Angolas, e todos serão eleitos no dia do
glorioso” (TINHORÃO, 2000, p. 81). Esse ponto seria a virada para Tinhorão entre uma
sociedade de organização muito simples e com pouca diversidade social, basicamente
dividida entre senhores de engenho, portugueses e mazombos com funções públicas,
pequenos comerciantes, escravos e indígenas, para uma divisão mais complexa de trabalho.
Dessa forma, a própria separação entre negros nativos e estrangeiros dentro das irmandades
serviriam a esse propósito83.
A divisão social que se criava era acompanhada por uma diversificação econômica e
criação de camadas médias na sociedade. Esse período marca para Tinhorão um momento de
efervescência cultural que iria culminar, ainda no final do século XVII, no primórdio das
canções modernas. Diferente do que ele havia preconizado na introdução da “Pequena
82
Tinhorão
(2012)
afirma
que
a
prática
de
utilização
de
negros
em
procissão
era
muito
comum
em
Portugal
antes
mesmo
do
“achamento”
do
Brasil,
principalmente
como
músicos
e
para
carregar
objetos.
Muitas
vezes
eles
até
participavam
enquanto
devotos,
porém
sem
a
iniciativa
de
organização.
83
Tinhorão
(2000;
81)
“A
preocupação
da
irmandade
de
diferenciar
negros
brasileiros
de
africanos
acompanhava,
apenas,
a
tendência
do
tempo
de
estabelecer,
através
dos
diversos
tipos
de
associações
de
leigos
a
santos
patronos
da
Igreja,
as
diferenças
étnicas
e
de
ofícios
que
refletem,
em
última
análise,
a
divisão
de
classes
da
própria
sociedade.
77
História da Música Popular Brasileira” ele enxerga uma riqueza maior nas festas que se
organizavam no Brasil nesse período. Assim ele vai encontrar elementos de festas à moda
Corpus Christi para receber a primeira imagem do agora Santo Inácio em Olinda 1611
“jubiloso representado por carros alegóricos e “soldados vestidos elegantemente de seda”, a
desfilar ao som de “orquestra de flautas”, “instrumentos de corda”, e um “coro de música””
(TINHORÃO, 2000, p. 82). Ou mesmo a “festa de arromba” organizada pelo governador de
Salvador em 1641 para comemorar a aclamação de D. João IV84.
As festas que seguem o modelo de procissão se tornaram cada vez mais frequentes e
começavam a ganhar contornos que fugiam às normas e maneiras que deveriam se portar os
devotos, nessa forma surge a necessidade dos vereadores de Salvador porem fim a esse
“festival de demonstração”, com “confusão e pouco respeito”. Esse evento na câmara de
Salvador guarda para Tinhorão outro aspecto, as confrarias começavam a organizar as festas
por vontade própria e quando solicitadas para participar das procissões e solenidades oficiais
acabavam pedindo contribuição financeira para arcar com aquelas que a própria confraria
organizava para si. Desta maneira, a câmara de Salvador enfrenta o dilema em tentar chamar
para si as procissões ao modo que era feito em Portugal ou enfrentava essa nova situação, de
uma descentralização das festas a partir das irmandades.
Na geral a ordenação da Câmara de Salvador seguia em seus dispositivos a tradição
oficial de reproduzir o que “hera uso, e costume em todas as cidades de Portugal”,
mas, pelo menos num ponto, iria aparecer já nessa ata de novembro de 1673 uma
contribuição brasileira à série de personagens responsáveis pelo clima carnavalesco
das procissões tipo Corpus Christi: a figura de “humanano que o vulgo chama pai
dos gigantes”. Como os padeiros e confeiteiros cabia participar nas procissões
“oficiais” apresentando “dous gigantes, e uma giganta”, nada mais dentor do espírito
de graça carnavalesca pela inversão do que acrescentar por contraste a figura de um
anão, destinado a ser logo identificado comicamente como o “pai dos gigantes”.
TINHORÃO (2000; 85).
A festa de Corpus Christi trouxe a participação popular que Tinhorão esperava para a
comprovação da tese da origem do carnaval. As procissões eram muito famosas em Portugal,
e vão apresentando contornos lúdicos e de chacotas também na colônia, como a introdução de
anões como pai dos gigantes. Importante salientar nesse ponto sobre os gigantes; para além de
ser a oposição aos anões, Tinhorão remete a outro ponto dentro da mitologia católica, como
84
“Por
coanto
em
todo
o
Reyno
de
Portugal
se
fazem
ao
primeiro
de
Dezembro
grandes
festas
em
acção
de
grasas
pela
restituição
de
Sua
Coroa
a
El
Rey
Nosso
Senhor
Dom
João
o
Coarto
[...]
ordeno
aos
officiaes
da
Camera
desta
Cidade
fassão
assento
nos
liuros
dela
para
que
no
tal
dia
primeiro
de
Dezembro
haja
daqui
em
diante
as
festas
que
as
possibilidades
dos
moradores
permitirem
e
se
fassahuma
procissão
como
a
de
Corpus
com
toda
a
pompa
que
pede
acto
de
tanto
solenidade
e
aplauzo,
mandando
que
a
véspera
se
ponhãoliminarias
e
ao
dia
se
preparem
e
adereçarem
as
ruas
com
toda
a
desencia
e
festival
demostrassçao
o
que
espero
que
nestas
primeiras
se
fassa
de
maneira
que
se
enxerguem
nelas
os
affectos
de
verdadeiros
vassalos”
Texto
da
portaria
do
governador-‐geral
Antonio
Telles
da
Silva
15/11/1641.
Apud
Tinhorão
(2000;
82).
78
assinalado no início desse capítulo, ele classifica as festas no século XVII como o ciclo das
festas medievais. O gigante introduzido no Brasil a essa festa dialoga com outros referenciais
pagãos da Idade Média que se faziam presentes nas festas de Corpus Christi como a serpente,
que já foi lembrado nesse ponto, e o dragão, que será melhor aprofundado no capítulo
posterior. Portanto, o universo mágico do mundo medieval se faz presente dentro de um
território que não conheceu diretamente o universo simbólico do mundo cavalheiresco e
mágico do período feudal, todavia ele foi remetido para essas plagas pelo contato entre
culturas, principalmente da cultura dominante85, a dos portugueses.
Os acontecimentos do século XVII – fim da união Ibérica, perda e retomada do
controle territorial de Pernambuco e crescimento econômico, através do ciclo da exportação
de produtos agrícolas – confere ao Brasil um fluxo populacional que faz com que as cidades,
embora continuassem sendo dominada pelo rural, tivesse princípios de autonomia cultural.
Esse ponto é importante para compreender o pensamento de Tinhorão. Até agora não falamos
das festas no mundo rural, e nem tampouco falaremos. Talvez, esse seja um lapso na forma da
construção do argumento do autor, pois se as cidades viviam sob o domínio simbólico do
campo, uma melhor compreensão deste seria fundamental para perceber as nuances dos
acontecimentos na cidade. Todavia, o foco dele é a cidade, pois ela é que estaria em contato
com as diversas culturas, nela que ocorreriam os fluxos de diversas partes do mundo e
principalmente é nela que ocorreria uma maior divisão do trabalho, e consequentemente o
surgimento do conceito de indivíduo só poderia ser dado nas áreas urbanas. E partindo do
metodológico é o ponto de vista das cidades que os observadores escreveram e pintaram sobre
as festas, o povo e a música. A partir de observadores nas cidades portuguesas do século XVII
Tinhorão vai nos trazer alguns elementos que figurariam no comportamento das pessoas que
frequentavam as procissões de Corpus Christi:
As oportunidades para abusos, aliás, não faltavam porque, como indicavam ainda os
textos régios, até pelo menos o início do século XVII, a procissão “parava debaixo
de árvores ou de toldos, e aí havia sermão”. Porém, era exatamente em tais
momentos, como observaria o mesmo comentador das ordens régias, que o lado
profano da festa se sobrepunha à intenção religiosa: aproveitando as paradas. “a
gente do préstito debandava pela cidade, e ia comer e beber para as tabernas
enquanto o padre pregava”. TINHORÃO (2012; 20).
Embora estivesse tratando das procissões em Portugal, ele nos traz elementos que
reforçariam uma feição festiva de um ritual religioso. E o caráter ébrio que recorria uma
85
Aqui
vou
precisar
o
termo
de
cultura
dominante
dentro
do
campo
teórico
de
Tinhorão.
Cultura
dominante
está
ligada
à
ideologia.
Ideologia
segundo
“A
ideologia
alemã”
é
a
da
classe
dominante,
dessa
forma
a
sua
cultura
será
preponderante
sobre
as
demais,
isso
não
quer
dizer
que
não
existiam
fluxos
dentro
dela
e
que
não
exista
sujeito
histórico.
79
parcela dos fiéis possibilitaria os excessos e relaxamentos que reforçariam com a presença de
grupos de folias e pelas variedades de danças que se faziam presentes. Mesmo reforçando as
influências do catolicismo popular e influências pagãs também estavam presentes elementos
da cultura árabe, principalmente nas danças mouriscas, conforme relato da festa do Porto em
1621, em que existia uma “carreira de quarenta homens com seu rei Mouro e Alfaqui (...) com
repertório previsto de tuadas ao antiguo com seus alaúdes e pandeiros” TINHORÃO (2012;
21). Devido a isso, colocamos em relevo uma das características musicais desenvolvidas pela
presença árabe na península Ibérica que irá se constituir em um dos elementos chave na
formação musical brasileira. Embora o alaúde (que leva o nome do profeta em seu prefixo)
não tenha caído no gosto musical da colônia, outro instrumento dessa tradição, o pandeiro, se
faz presente desde as primeiras levas de portugueses que desembarcaram na colônia. A
presença figurativa dos mouros segue uma conhecida receita dos desfiles carnavalescos de
teatralizar as relações e interpretar personagens e histórias ressignificando os elementos
sociais.
O ritual, então, tem como traço distintivo a dramatização, isto é, a condensação de
algum aspecto, elemento ou relação, colocando-o em foco, em destaque, tal como
ocorre nos desfiles carnavalescos e nas procissões, onde certas figuras são
individualizadas e assim adquirem um novo significado, insuspeitado anteriormente,
quando eram apenas partes de situações, relações e contextos do cotidiano. DA
MATTA (1981; 30).
Esclarecendo, a procissão de Corpus Christi também tem a função de memória e
ressignificação da história portuguesa. Os mouros entram tanto no papel de uma chacota
quanto com influências reais e pertinentes dentro do rito. Falamos anteriormente dos
instrumentos musicais, mas podem ser acrescidas as danças como a mouriscada. Do ponto de
vista histórico, isso se faz bastante importante, pois em 1578, ou seja, menos de 50 anos antes,
o exército português havia sofrido grande derrota em Alcácer-Quibir, que entre outras
consequências leva a União Ibérica sob o reinado dos reis Filipes e a morte prematura D´El
Rey D. Sebastião. Este mesmo, servindo de tema para diversas procissões e rezas devotas dos
fiéis lusitanos. Dessa forma, a “chacota” junto aos mouros é na verdade um ato de memória e
estranhamento, uma vez que a história de Portugal está interligada à expansão do reino de
Mafona e as trocas culturais entre esses povos, mesmo que as guerras e disputas se façam
entre eles.
Todavia, essa mesma relação que ocorria em Portugal com os mouros ocorria na
Espanha em relação a Portugal. Durante a União Ibérica era comum se fazer as procissões a la
lusitana, com negros e gente oriundos de vários reinos que viviam sob domínio português e se
80
apresentavam agora sob domínio espanhol. Numa projeção de curiosidades do mundo sob o
domínio de Madri.
Não gostei nada de uma intervenção que fizeram sair aos portugueses de muito
gosto para os castelhanos, e foi um tabernáculo, que estava no meio da praça, ao
qual subiram um mulato e mulata português [sic] com adufe e pandeiro e com eles
também um doudo da corte, e todos tangiam e bailavam com grande riso dos rapazes
que cuidavam que aquilo é Portugal86.
Ou mesmo como no casamento de Dona Catarina, após a restauração da coroa
portuguesa, com Carlos II da Inglaterra, em que houve danças e folias de ruas entre arcos
triunfais “um grande desfile com reis etíopes, danças de negros, cortejo de animais, incluindo
as inevitáveis séries e monstros marinhos, além de danças sobre carros da Fama e da
Concordia” TINHORÃO (2012; 59). Desta maneira, grande parte do cartão de visitas
português junto às outras nações europeias passava necessariamente pelas festas e pelo
exotismo que este representava, já apresentando características híbridas, fruto de um contato
com povos de várias partes do mundo que datava de muito tempo antes de qualquer outra
nação do velho continente.
No Brasil, embora as procissões não tomassem o esplendor lusitano, elas foram
marcando época, para Tinhorão essas serviram como o precursor do carnaval, como já deve
ter ficado claro nessa dissertação, a mesma relação entre os povos que estavam sob o domínio
de Portugal era representada nos trópicos. Nessa representação das nações “bárbaras”, sob
domínio colonial, estariam os negros africanos, isso causa certo espanto a um observador
francês no final do século XVII, em 1696, ao ver uma procissão na Bahia. Froger diz que
“bandos mascarados, músicos e dançarinos que com posturas lúbricas, perturbavam
inteiramente a ordem da cerimônia” TAUNAY (1925; 290). Ou como anota um observador
inglês anônimo sobre as festas em Portugal: “O dia começa com missa seguida de sermão.
Porém, mal termina a cerimônia religiosa, tem início o deboche capaz de fazer corar os
antigos devotos de Baco87”.
Portugal” TINHORÃO (2000; 86). No Brasil contemporâneo, São Jorge surge como uma das
figuras mais populares do catolicismo. Presença constante em canções, desfiles de escola de
samba, padroeiros de diversos times de futebol e serve como proteção tanto para os devotos
do catolicismo quanto para a umbanda. Embora Tinhorão não tenha dedicado nenhum
capítulo para o santo, esse aparece em vários capítulos de livros distintos. Nossa preocupação
é demonstrar como desponta a figura dele dentro das relações sociais que se criaram em
Portugal, e como sua popularidade atravessou o oceano.
O poder real faz representar a figura de São Jorge pela primeira vez na procissão de
Corpus Christi no ano de 1387. A intenção é homenageá-lo para lembrar a ajuda por ele
concedida na batalha dos portugueses contra os castelhanos a partir da batalha de
Aljubarrota88. Dessa forma, a popularização do santo esteve diretamente ligada à
popularização da procissão. Falamos no ponto anterior sobre a influência de figuras pagãs nos
rituais de romarias e peregrinações, falamos também da utilização de elementos que remetem
ao imaginário das religiões politeístas da Europa, como as serpentes, gigantes e dragão. Não
podemos afirmar se a associação se dá de maneira direta ou indireta, todavia uma das
principais representações de São Jorge é uma associação entre o santo, dragão e a lua. Não
temos elementos para desvendar a origem do mito do santo que mata dragões, porém temos
relatos que os portugueses já faziam essa associação “havia ainda São Jorge em tamanho
natural montado em cavalo branco, ao lado de “um homem darmas bem disposto”; um dragão
com “Dama, e pessoa que com ele dance””. TINHORÃO (2000; 74). Essa associação lusitana
da figura do santo nas procissões chegaria aos trópicos juntamente com o hábito de se festejar
as datas santas como atesta a carta da câmara de Salvador de 1673 que dizia que era “dever de
apresentar na procissão a alegoria bíblica da serpente do Paraíso, os vereadores baianos
reiteravam aos sapateiros a obrigação de dar “o Drago, como sempre dauão”, ou seja, o drago
dos pegados, desafiador do São Jorge” TINHORÃO (2000; 84).
No Brasil, São Jorge aparece bastante relacionado à cultura negra, embora esteja
ligado a todos os grupos étnicos e classes sociais. TINHORÃO (2012) nos traz alguns pontos
que podem ser analisados dentro dessa perspectiva “Embora a presença de negros metidos em
coloridas librés nas procissões, parece indicar a quase necessária participação dos músicos
destinados a transformar-se em tradição sob o significativo nome de “Pretinhos de São
Jorge89””.
88
Tinhorão
(2000;
71)
89
Tinhorão
(2012;
54)
82
Os homens d´armas, todos bem armados sem nenhuma cobertura, e com as espadas
nuas nas mãos, e levarão São Jorge mui bem ornado com um pajem e uma donzela
para matar o drago, tantos de uma banca como da outra, e seu atabaque (atabale ou
tambor) e bandeira90.
Os instrumentos musicais de origem africana já estavam presentes junto à comunidade
de negros devotos de São Jorge. Como “presença obrigatória”, era este santo indicado para
abrir a procissão a ritmo marcial, isso ajuda a reforçar a imagem de Santo Guerreiro. Embora
a lenda diga que o santo teve presença destacada nas cruzadas, ele não seria o único santo
católico a participar das cruzadas ou de ter sido um guerreiro, todavia sua imagem é
diretamente associada às guerras, lanças e espadas. Essa associação, de um santo de guerra
com espadas e metais, pode remeter aos santos de origem africana, ainda mais quando a
utilização dos negros se fazia presente para conduzir ou para abrir caminho para a passagem
da imagem, conforme observa assustado o visitante francês Duc duChâtelet “Quase todos [os
negros] exercem atividades vis ou menores. São eles que geralmente vão à frente das
profissões tocando cornetas, e que conduzem pelas ruas imagens de santos para o culto da
superstição91”.
Temos nesse ponto, uma associação direta do francês a uma condição que marcava os
negros naquela época e os acompanham até os dias de hoje: “atividades vis e menores”. Nesse
caso específico, ele está relacionando a atividade da música como menor, todavia esse mesmo
escritor dificilmente falaria dessa forma de Mozart ou de Bach, isso porque ele esteve em
Portugal em 1777, publicando seu livro em 1798. Portanto, temos duas associações distintas a
serem feitas, o papel do negro e qual tipo de música deveria ser valorizado. Tinhorão, com
base em livro de Guimarães, nos traz também a informação de que muitos desses negros que
tocavam nas procissões eram profissionais da música, ligados ao Estado de São Jorge com o
apoio real “desde 1750 os músicos negros contratados para arautos se vestiriam para a
procissão em quarto reservado, na própria igreja real [...] os cinco pretos ganham em toda
festa 2$ 400 réis cada um”. (TINHORÃO, 2012, p. 59).
Tinhorão também nos dá a origem de uma das principais formas de sociabilidade e
ascensão social dos negros até hoje no Brasil. Esses elementos vão conduzindo uma das
principais características da estruturação do pensamento do autor sobre a música e as festas no
Brasil, a de uma dupla origem, uma europeia e outra africana, que já se desenvolvia na
metrópole e vai ganhar outro contorno na colônia, porém, todavia ainda não chegamos à
origem do mito de São Jorge. Os reis portugueses costumavam, desde os tempos das lutas
90
Idem.
Esse
trecho
é
uma
citação
que
Tinhorão
faz
da
obra
de
Guimarães,
R.
“Sumário
de
varia
história”
Lisboa
1872.
91
Voyage
duci-‐devantducChâteleten
Portugal.
Apud
Tinhorão
(2012;
58)
83
o que levou à troca por São Jorge, popularizado em Portugal pelos cruzados ingleses
que ajudaram na Campanha do território. “A imagem de São Jorge começou a
figurar na procissão do Corpo de Deus, no ano de 1387. El-rei, d. João I, na famosa
batalha, a 14 de agosto de 1385, d´Aljubarrota, invocou como grito de guerra o santo
bardando: ‘Avante, á vante S. Jorge, Portugal – São Jorge, Portugal, que eu sou rei
de Portugal”. TINHORÃO (2000; 71).
onde, além de formar-se bacharel, encontra o ambiente boêmio e as canções modernas que se
desenvolviam na metrópole. Volta à Bahia em 1683, inicialmente, para exercer a função de
tesoureiro do arcebispado. Casa-se com uma viúva, perde o cargo no aparato eclesiástico e
“começa suas andanças boêmias pelos engenhos do Recôncavo baiano, cujos proprietários o
abrigavam naturalmente atraídos por suas qualidades de compositor de coplas e romances –
que acompanhava na viola” (TINHORÃO, 1998, p. 55). O nomadismo que ele se dedicava,
como as visitas aos engenhos, o aproximava da arte dos trovadores medievais, além disso,
Tinhorão enxergava outras semelhanças:
Em seu caso pessoal Gregório de Mattos não apenas continuava a tradição daqueles
desocupados escudeiros “trovadores” quinhentistas, cultivadores de romances
acompanhados à viola, mas entregava-se já à glosa de quadras e estribilhos de
cantigas populares do tempo sob a forma de décimas (tão comuns duzentos anos
depois em Portugal, com o advento da moda dos “fados na segunda metade do XIX).
TINHORÃO (1998; 56).
Assim, a “nova tradição” musical Portuguesa chega à Bahia no final do século XVII,
mesclando a tradição dos poemas rimados e ritmados que encontraria outros elementos na
vida social baiana que acabaria por incorporar outras influências como a chula. Entretanto ele
não era o único cantor, poeta ou tocador que animava as noites de Salvador, existia já naquele
momento, uma legião de boêmios que se dedicavam à música e as farras na cidade que crescia
com o auge do ciclo açucareiro e que dispunha de uma inicial divisão do trabalho a partir das
atividades comerciais, portuárias e administrativa que floresciam na capital. Soma-se a isso a
companhia de mulheres “mulatas” que acompanhavam as noites da trupe, fruto da sociedade
patriarcal brasileira. Então temos “talentos citadinos como o cantor Silva Arião (...) o também
cantor e tocador de viola Chico Ferreira (parceiro de farras de Gregório de Mattos a quem (...)
chamava seu mestre de solfa, porque com ele cantava às vezes) e ainda um certo Gil”
TINHORÃO (1998; 58).
Assim, se os brancos mais folgados do pequeno grupo de funcionários, profissionais
liberais e pequenos proprietários que formavam a camada alta da sociedade colonial
podiam manter tão íntimas relações com essas “mulatinhas da Bahia”, era
certamente porque o afrouxamento do controle social conferia, nas cidades, uma
margem de liberdade pessoal capaz de permitir essas aproximações lúbrico-
amorosas de caráter interétnico. E era o que o mesmo Gregório de Matos deixava
perceber, ao registrar flagrantes inequívocos de tais liberdades, ao menos para o caso
de Salvador: TINHORÃO (2000; 100).
Mulatinhas da Bahia
Que toda a noite em bolandas
Correis ruas, e quitandas
Sempre em perpétua folia94
Temos aí outro ponto importante para a compreensão do tempo vivido por Gregório de
Mattos, a formação das Irmandades de Negros e Pardos no Brasil. Esse foi um dos pontos que
94
Gregório
de
Mattos,
Obras
completas,
vol
III,
p
1247
86
ajudou a criar uma canção com características próprias, que versava sobre pontos pertinentes
a realidade baiana. As confrarias começavam a se estruturar e produzir suas próprias folias.
Não é de se estranhar que além dos ritmos provenientes de Portugal, ele também se dedicava à
chula, que conforme o próprio nome anuncia seria a música de uma camada inferior da
sociedade. Essa mistura vai fazer também com que a harmonia dessas canções se fizesse pelo
rasgado (ato de ferir todas as cordas simultaneamente) ao invés de pontear as cordas conforme
a preferência erudita. Outra característica das suas composições (não é à toa que ganhou a
alcunha de Boca do Inferno) se refere aos duplos sentidos que envolviam as letras. Nesse
ponto, a folia fica no duplo sentido da mulatinha com a qual começa o verso. A folia poderia
se tratar tanto do ato de festejar quanto da conjugação carnal, que repetirá em diversas outras
quadras compostas por ele:
No grande dia do Amparo
Estando as mulatas todas
Entre festas, e entre bodas,
Um caso sucedeu raro:
E foi, que não sendo avaro
O jantar do canjirões,
Antes fervendo em cachões,
Os brindes de mão em mão
Depois de tantas razões
Tiveram certas razões.
Macotinha a foliona
Bailou rebolando o cu
Duas horas com Jelu
Mulata também bailona:
Senão quando outra putona
Tomou posse do terreiro,
E porque ao seu pandeiro
Não quis Macota sair,
Outra saiu a renhir
Cujo nome é Domingueiro95
Dessa vez, os versos estão mais diretos, temos alguns elementos interessantes para
recompor um pouco do cenário da sociabilidade que se fazia a partir das festas e das músicas
pela voz de um dos poucos cronistas que estavam fora da alçada oficial. Primeiro era a
importância das festas católicas e populares, nesse caso a do Amparo, Nossa Senhora do
Amparo. O poeta deixa claro que se tratava de uma festa de negros, pois “estavam as mulatas
todas”, indo ao encontro da outra quadra descrita anteriormente. Então, temos uma festa em
homenagem a uma santa, em que a folia era o ponto alto, e a música se fazia presente, o que
levava todas as mulatas a dançarem, como um hábito, que se mantém até hoje na música
brasileira, o de rebolar. Isso demonstra uma característica popular na dança, uma vez que o
hábito de dançar em par estava ligado a uma concepção de dança europeia, mais próxima dos
95
Gregório
de
Matos,
Obras
Completas,
vol.
III,
p.
622
87
96
Gregório
de
matos,
obras
completas,
vol.
1,
p.
20.
88
festiva. Ele dedica quatorze páginas aos eventos relacionados à capacidade de festejar da
trupe de Nassau. Sintetizaremos em duas palavras “boi voador”. Para aqueles que leram
Weber e sua “Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo” (não sei se é o caso do Tinhorão,
todavia ele não coloca essa obra na bibliografia consultada de nenhuma das obras por mim
estudadas), bem saberíamos que aqueles sujeitos grandes, brancos e desengonçados têm pouca
afeição às festas, não pelo seu biótipo, mas pela sua religião. Segundo WEBER (1967), a ética
protestante estaria ligada a uma conduta metódica de valorização do trabalho em oposição à
celebração católica. E embora Tinhorão não assuma que tenha sido influenciado de uma
forma ou de outra por esse autor, ele dá uma resposta bem condizente com a razão da
organização desse espetáculo:
Um espetáculo idealizado, por sinal, pelo próprio príncipe Maurício de Nassau, com
o objetivo muito prático e rasteiro de arrecadar dinheiro. (...) mandou anunciar que
no domingo 28 de fevereiro de 1644 – dia da inauguração da ponte sobre o rio
Capiberibe, que fizera concluir com recursos pessoais, e que agora pretendia
recuperar cobrando pedágio97.
Fizemos esse aparte para justificar o porquê quase não falamos da influência batava
nas festas coloniais, acreditamos que agora faremos todas as contribuições significativas nesse
quesito, que podem ter sido oferecidas pelo povo oriundo dos países baixos. Mas também não
havíamos adentrado nesse quesito por outro motivo. Essa série proposta por Tinhorão levava
o nome de ciclo das festas medievais, e embora tenha se passado no século XVII em nada
podemos dizer que se guarda de influência medieval. Não podemos colocar uma festa para
arrecadação de recursos nesse quesito, os espetáculos com vistas ao enriquecimento é um
fenômeno contemporâneo, e mesmo que ele possa ter ocorrido vez ou outra em algum lugar,
em alguma data da idade média, este seria um ponto fora de uma memória coletiva. Todavia,
a título de curiosidade, poderia ser justificado. Porém se Tinhorão quisesse dar alguma
contribuição mais relevante sobre esse tema, para além do conhecimento geral, caberia uma
discussão sobre a possibilidade ou não de festas pelos protestantes em solos pernambucanos.
Para não acusar-nos de má fé, afinal nos debruçamos em sua obra e fazemos isso porque
consideramos que nela tem muitos elementos importantes para se compreender a
sociabilidade no Brasil colonial, pegaremos outros dois trechos que julgamos ser de uma
importância sociológica:
Assim, vivendo de certa forma alheios ao dia-a-dia da vida da comunidade que
dominavam – a partir das próprias diferenças religiosas mais profundas e difíceis de
transpor do que as culturais em geral -, os holandeses eram incapazes não só de
impor ou promover qualquer forma nova de criação popular, como iriam tornar-se,
97
Segundo
frei
Manoel
Calado
“juntara
ali
o
conde
Nassau
tanta
gente
para
fazer
passar
pela
ponte,
e
tirar
aquela
tarde
grande
ganância,
e
tanta
gente
passou
de
uma
a
outra
parte,
que
naquela
tarde
rendeu
a
ponte
mil
e
oitocentos
florins”.
Apud
Tinhorão
(2000;
64)
89
um ponto de vista, conforme já assinalado: a Igreja. E não Igreja de maneira abstrata, mas
uma determinada corrente do catolicismo, que surge simultaneamente às grandes descobertas
territoriais e que têm em sua vértebra os preceitos da contrarreforma e do concílio de Trento.
Ao contrário de Érico Veríssimo, que enxergava nas missões uma doutrina civilizadora e
humanista em relação à questão indígena, Tinhorão se agarra no pensamento de Gilberto
Freyre, embora, mais uma vez, não se encontra nenhuma referência ao pensador
pernambucano em nenhum dos livros consultados, no efeito da lobotomia cultural indígena.
No que diz respeito à formulação do Tinhorão sobre o século XVII, temos outros tipos de
fontes de pesquisa que servem de guia: atas públicas, relatos de viajantes leigos, produções de
escritores portugueses ligados à Universidade de Coimbra e literatos. Essas fontes de
informações seculares encontradas pelo autor fazem com que, mesmo que todas as festas por
ele analisadas fossem de cunho católico (não podemos imaginar que o “boi voador” seja uma
festa), a interpretação delas é de uma mistura de festa oficial e religiosa, em que mesmo São
Jorge adquire um caráter totêmico que não se confunde em nenhum momento como um
símbolo do catolicismo romano, transparecendo muito mais a encarnação humana de uma
divindade pagã ou a representação perpétua dos reis portugueses durante a história, montado a
cavalo na luta contra um mal abstrato.
Tinhorão busca um catolicismo “laico”, o que PASSOS (2002) vai chamar de
catolicismo popular. No estudo desse autor, encontramos elementos que podem traduzir o que
se anuncia como ciclo das festas medievais.
O catolicismo popular tradicional predominou nos três primeiros séculos (1500 –
1800). Vinda com os portugueses, a fé católica era de importação lusitana. Com essa
matriz foi se formando o catolicismo popular. Trata-se de uma mentalidade
tradicional portuguesa. J. Comblin99 reconhece seu caráter medieval e popular. A fé
do povo se manifestava através das devoções aos santos, das procissões das orações
de invocações e perdão, dos milagres. (PASSOS, 2002, p. 171).
Se o catolicismo popular chega, segundo PASSOS (2002), no Brasil em 1500 e
perdura até 1800, por que ele está ausente no primeiro ciclo festivo? Justamente pelas fontes
de pesquisa, pois se trata de um costume popular, no sentido estrito da palavra, como poderia
obter informações acerca da sua estruturação? Então, Tinhorão vai buscar esses elementos nas
cenas ditadas pelos jesuítas, o que pode acarretar numa compreensão incompleta. Todavia, ele
consegue fontes em Portugal que fazem com que ele contemple parte dessa problemática,
justamente nas influências do paganismo europeu como uma das partes formadoras desse
catolicismo popular. Importante frisar também que Tinhorão não procura a música e as festas
99
“O
catolicismo
que
chegou
ao
Brasil
foi
essencialmente
o
catolicismo
popular
dos
últimos
séculos
da
Idade
Média.
A
única
coisa
que
o
Brasil
recebeu
da
Idade
Média
foi
a
religião
popular
dos
portugueses”
Comblin,
J.
“Situação
histórica
do
catolicismo
brasileiro.
Apud
Passos
(2002;
171)
92
no meio rural, ele deixa isso explícito em sua metodologia, talvez por essa dificuldade de
encontrar fontes que possam comprovar sua teoria e evitar as suposições (do qual ele é
acusado muitas vezes) teóricas. Assim, ele divide em ciclo das folias devotas (onde, para os
jesuítas, as folias perpassam como maus costumes que vieram junto com os portugueses) e
ciclo das festas medievais.
As festas medievais também trazem consigo alguns elementos que figuram numa
memória coletiva e de afirmação real. Embora o padre Manoel da Nobrega tenha descrito
cavalhadas já em 1549, elas tornam-se importantes para Tinhorão somente no século XVII.
Conforme dito no ponto 3.1, trata-se de festas montadas a cavalo que retomam cenas da
história da formação da nação, nesse caso a portuguesa. Portanto, a figura das guerras a
cavalo com estandartes de confrarias e corporações de ofícios que remontam a símbolos de
armas e castelos traz à tona o ideal medieval da honra e do cavalheirismo. Por isso, descreve
uma epopeia que serve de unificadora de um povo, tais quais as procissões. A teatralização do
rito através dos autos transparece em ambas as festas, servindo de uma estruturação da
memória medieval conforme uma tradição oral, em que os grandes feitos são contados pelos
trovadores. Estes servem como alguém que conhece o mundo, um ser cosmopolita em um
universo restrito pelas dificuldades de comunicação. São porta-vozes de um mundo
justamente por não estarem arraigados em um local pré-determinado, mas detêm uma
mobilidade e o dom da palavra que o eleva em espírito, capaz de conferir sentido a uma
narrativa. Desta forma, eles contavam histórias de um mundo real e de um mundo místico, em
que o catolicismo e a influência pagã caminhavam lado a lado, entre dragões, donzelas, reis,
princesas, luas e serpente. Eis o espírito medieval das festas do século XVII.
Outro ponto que podemos articular sobre a opção de Tinhorão em dar ênfase a um
caráter de autenticidade às festividades desse período pode ter origem em uma corrente de
pensamento. Já está assinalada para nós, desde o primeiro parágrafo dessa dissertação, a
filiação do autor dentro do que chamamos de marxismo. Dessa forma, a construção
argumentativa do autor segue uma trajetória que visa colocar as questões sociais, políticas e
econômicas como fatores que influenciam sobremaneira os desdobramentos culturais que
ocorriam no país. As fontes e os documentos recolhidos pelo pesquisador conferem a ele um
leque de informações dispersas. Entre ter as sucessões de fatos documentados em estado bruto
e transformá-lo em uma tese bem fundamentada, exige um conhecimento que vai bem além
da informação, é justamente isso o que faz Tinhorão. Ele observa uma série de eventos
93
ocorridos durante três séculos no Brasil e constrói uma narrativa coerente a partir delas. O que
está por trás dessa construção?
Tinhorão retoma uma perspectiva muito semelhante aos questionamentos de
BOURDIEU (2000) quando versa sobre “A educação sentimental”. O que está intrínseco no
pensamento deles é que não existe a “arte pela arte”, pois da mais engajada à mais inocente e
apolítica forma de manifestação artística está relacionada aos eventos que ocorrem no
cotidiano. Desta forma, a arte é uma esfera da vida e não pode e não está separada das
condições objetivas de reprodução material da vida. Eventos políticos, econômicos e sociais
influenciam de maneira decisiva as formas de se expressar de um povo, assim a perda da
autonomia lusitana com os reinados dos Filipes enseja uma retomada dos valores de
identidades portuguesa. As mouriscadas e as cavalhadas se relacionariam como memória
coletiva da unificação do reino de Avis a partir das vitórias sobre os mouros. São Jorge se
reforça como o santo que ajudou a derrotar os espanhóis, ainda no século XIV, em oposição
ao equivalente Santiago do reino inimigo. E o Corpus Christi figuraria como a herança
ancestral do povo que se manifesta como a autenticidade híbrida do povo lusitano. As festas
serviriam como um termômetro dos conflitos na vida social.
A festa não apaga as diferenças, mas antes une os diferentes. A identidade que cria é
uma unidade diferenciada e, na medida em que as diferenças representem ou gerem
conflitos, uma identidade conflituosa, que une os dois extremos contrastante e,
aparentemente, contraditórios, da cooperação e da competição. Toda festa, como
vimos, implica uma determinada estrutura de produção e de consumo e, portanto,
uma estrutura de poder, passível de controle diferenciado. (GUARINELLO, 2001, p.
972).
Desta forma as festas, tanto as de origem oficial quanto as populares, traziam no seu
bojo as contradições existentes na sociedade. Tinhorão se influencia nas discussões marxistas
sobre as libertações nacionais, muito em voga nos anos setenta, para pensar as festas como
uma unidade fronteiriça e de costumes compartilhados, que acabam por ofuscar as
contradições internas dentro dessa unidade. Assim, as resistências culturais dos povos das
colônias contra uma nova força de domínio moldam uma experiência portuguesa de
valorização do elemento hibrido, principalmente na metrópole, TINHORÃO (2012).
As formações das primeiras irmandades de negros no Brasil seria uma das
consequências dessa necessidade de criar uma “unidade diferenciada”, que iriam dialogar com
essa identidade lusitana mais aberta à miscigenação que os espanhóis, que detinham o poder
político nas antigas possessões portuguesas. Com o fim da União Ibérica, e a retomada do
trono pela dinastia de Bragança, não encerra esse capítulo de uma unidade nacional, pois
ainda se mantinha, em solo brasileiro, a ocupação holandesa, que passa de um aliado contra a
94
100
Passos
(2002;
177).
Na
evolução
histórica
do
Brasil,
o
catolicismo
popular
lusitano
sofreu
um
processo
de
aculturação
que
o
modificou,
consequência
do
fenômeno
de
transplantação,
tendo
como
resultado
atitudes
e
comportamentos
novos,
com
relação
aos
componentes
religiosos
e
culturais
originários,
principalmente
africano
e
indígena.
95
trazem uma resposta às reformas que ocorriam na Europa também carregam um universo
simbólico cosmopolita de uma construção festiva de diversas influências.
Requintada forma final da velha tradição europeia dos ruidosos corsos, envolvendo
enredos montados cenograficamente sobre carroças (às vezes com o formato de
navios, como tradição alemã dos Narreschiff, a nave dos loucos), e já conhecidos
desde o século XV com os charriotsdas companhias burlescas na França, os
trionfina Itália e os pageants na Inglaterra, os desfiles barrocos da colônia brasileira
vinham, na verdade, transformar em espetáculo oficial as antigas criações
portuguesas chamadas de “invenções. (TINHORÃO 2000, p. 105).
Os apontamentos feitos por Tinhorão também nos revelam um caráter cosmopolita
assinalado por esse tipo de festa, principalmente pela influência que trazia de outras partes da
Europa, fazendo do Brasil o local de pungência das entradas triunfais. SIMMEL (1983) diz
que as festas de corte tiveram seu auge no Ancient Régime, Luís XIV teria sido talvez o que
melhor se aproveitou dessas festas. Em Portugal, ela ganha uma relevância muito
significativa, justamente com a criação da União Ibérica e com o fim da autonomia lusa.
Entradas reais como a de Filipe I (1581) e Filipe II (1619), ambas em Lisboa, ajudavam a
construir um imaginário de relações simbólicas e de representação pública da coroa “distante”
portuguesa. Reavivar essa relação dinástica no Brasil era uma forma de procurar uma
identidade comum que os separava da Espanha e os reaproximasse de uma identidade
“originária” de desbravadores, católicos e fiéis servos da Santa Igreja. Desta forma, o
processo inverso da afirmação real exótica, agora migrava para a colônia, desta vez não tendo
mais a dinastia dos Filipes e sim de Bragança. Esse, talvez, seria o caráter “requintado” de que
falava Tinhorão, não do ponto de vista da alegoria mas das relações de poder.
Esse capítulo articula as festas de demonstração real de poder desenvolvido pelo poder
central e religioso, principalmente em duas festas distintas: A transladação do “Divino
Sacramento” da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova matriz de Nossa Senhora do
Pilar, em 1733, que fica registrada para história pelo “Triunfo Eucarístico” de Simão Ferreira
Machado e a entrada do primeiro bispo de Mariana e a elevação desta para diocese, em 1748,
que ficou registrado com o “Áureo trono episcopal”, anônimo. Outro ponto importante é saber
como se dava a organização festiva dos “miúdos” dentro desse processo, uma vez que,
embora importantes e suntuosos, nada nos leva a crer que, dentro de uma tradição festiva
católica, os eventos públicos se resumiriam a apenas poucas festas de grande magnitude.
Sustentamos que a necessidade de manutenção do Brasil enquanto colônia era a tarefa
principal da metrópole, que terá seu último suspiro com a chegada da família real ao Rio de
Janeiro em 1808. Porém, um longo período de desenvolvimento, povoamento e lutas no
interior do país sucedem essa chegada. A necessidade de “aportuguesamento” da sociedade
era uma delas, e se desenvolvia em meio à mineração. Este processo ocorre tanto nas
97
Esse relato da manhã do dia 21 de maio dá a tônica do aparato que se preparava para
os festejos públicos. A suntuosidade da riqueza produzida na região mineradora se
transformava não apenas em ouro para Portugal ou para os altares das Igrejas, se transformava
em cenário para os festejos públicos, que fazia com que qualquer figurino de atriz de
Hollywood fosse ofuscado pela magnitude dos adereços armados nas ruas e ladeiras da capital
do ouro. “Foi pelas ruas dessa Vila Rica do auge da riqueza da exploração do ouro e
diamantes, assim ornadas para formar um quadro de fé ostensiva (...) o mais aparatoso
espetáculo de símbolos consagradores do poder espiritual e temporal” TINHORÃO (2000, p.
108). Esse estado de euforia vivido pela sociedade mineradora estava para além dos
diamantes e ouros que enfeitavam as ruas da cidade, também se manifestava nas danças
dramatizadas e nos carros alegóricos que desfilavam pela cidade, guardando para o dia 23 seu
apogeu.
O “Triunfo Eucarístico” evidencia, sem dúvida, o estado de euforia da sociedade
mineradora, que se faz expandir através de uma festa de regozijo dos sentidos que
propriamente de comprazimento espiritual. A igreja vê também a oportunidade de
afirmar sua hierarquia colonizadora em Minas, realizando, quinze anos antes da
instalação do primeiro bispado, verdadeira demonstração de poderio temporal e
domínio religioso. (AVILA, 1980, p. 117).
Esse poderio se revela também na outra ponta desse processo de regozijo público, a da
separação entre os papéis desempenhados por cada um daqueles que habitavam a Vila Rica. A
estruturação da sociedade barroca estava marcada pela sua tendência fortemente
hierarquizada, que se por um lado garantia o desenvolvimento das festas populares de
inversão hierárquica, por outro fazia jus a essa hierarquia societal quando aqueles que
dispunham do poder temporal e religioso fossem os organizadores e consequentemente os
protagonistas da festa. “É que no aparatoso desfile de carros alegóricos de inspiração barroca,
a participação popular só poderia ser de espectador passivo” (TINHORÃO, 2000, p. 106).
Nesse ponto é preciso salientar mais uma vez a oposição constante feita pelo autor entre o
barroco, erudito e segregador, do popular e autêntico das camadas populares.
A condição simbólica de construção das festividades parte de dois pontos de apoio
principal para Tinhorão, de um lado temos a influência dos carros e alegorias vinda de
diversas partes da Europa, o que demonstraria um caráter cosmopolita atingido por Portugal
com sua monetarização a partir do ouro, e de outro lado temos o fortalecimento de uma
tradição portuguesa e popular que se revestia na forma como se manifestava a festa, ao
melhor do estilo católico pagão das procissões de Corpus Christi. Bem como a eterna luta dos
100
108
Simão
Ferreira
de
Machado
(1734;
27)
101
103
jogo de poder e de relações que se criaram fortalece uma posição de independência ritualística
das festas leigas e a parcela administrativa das Minas Gerais, que pretendiam aumentar o
poder deles, tanto em relação à coroa quanto em relação a seus pares. Embora independências
estivessem longe de ocorrer no universo colonial nas Américas, os germes da formação de
uma elite nacional branca e mestiça começa a se formar.
D. João da Cruz acusou o ouvidor Caetano Furtado de Mendonça e o intendente
Domingos de Pinheiro de terem encabeçado a transgressão ritual. Prosseguia dizendo que a
motivação para tal ato seria pela contrariedade à remoção do padre Francisco de Pinheiro de
Fonseca para outra freguesia. KANTOR (2001; 175) “O referido sacerdote tinha sido
destituído dos seus cargos e suspenso pelo bispo, atitude que atraiu a ira de sua influente
clientela na vila.” Após disputas entre o ouvidor e o bispo, e após solucionar o mistério do
roubo dos sinos, que foram encontrados num córrego perto da catedral, ainda, a devassa final
veio com o indiciamento do padre Francisco da Costa e Oliveira e do Padre Antônio
Sarmento.
Dois anos após o processo do roubo dos sinos, a Vila do Carmo é elevada à categoria
de sede do bispado. Cinco anos após, é a hora de remontar uma entrada triunfal do novo
bispo.
104
como São João del Rey, São Sebastião del Rey, vila do Príncipe, vila da Rainha. Portanto,
uma das discussões mais interessantes que pretendemos trabalhar nesse ponto é a relação
coroa, igreja, cidade e festas. Desta forma, o primeiro tema a se tratar é no que concerne à
formação de uma identidade barroca e religiosa a partir da entrada episcopal, dentro do
arcabouço teórico do Tinhorão.
Esse tipo de festa de aclamação pública é composto de vários atos, desde a recepção
na entrada da cidade, até a tomada do coração desta, para a coroação simbólica de um rei,
sacerdote, fidalgo e, neste caso, Bispo. Relações simbólicas entre a importância dos nobres a
partir do papel que eles representam e o local que ocupam nessa cerimônia até a hierarquia
eclesiástica que recepciona o monarca e, finalmente, os festejos populares que se seguiam em
festas públicas durando cerca de três dias.
Esse modelo era central para a aclamação pública e popularidade da nobreza, não
sendo de maneira alguma exclusiva dos monarcas. Trata-se muito mais de uma forma que
revela e desvenda um conteúdo a ser seguido, um modelo padrão de identidade que deveria
ser copiado aqui, de devoção à figura da sagrada família portuguesa, mesmo que pela via
religiosa. No Brasil, a primeira entrada episcopal data da chegada do bispo de Olinda, Don
Estênio Brioso de Figueiredo, em 1678, sendo comum esse tipo de festa com a criação das
dioceses e chegada de tão ilustre figura católica.
Os jesuítas, que anteriormente eram os responsáveis pela conversão das almas e
fundação de vilas – dividido com as capitanias hereditárias, tinham outra concepção de
mundo, que chocava com esses novos interesses da coroa. As missões jesuíticas fundaram e
influenciaram a formação de dezenas de vilas e, contrariando as vilas mineiras, não tinham
sua alcunha relacionada à família real, mas sim lembravam os santos católicos. Desta forma,
Salvador, São Vicente, São Paulo, São Luís, Santa Catarina ou mesmo Belém surgem como
consequência das missões e colégios jesuítas. Outra característica da influência da Companhia
de Jesus nos trópicos foi o intercâmbio linguístico com o gentio. Assim, surgem Paranaguá,
Marajó, Itapecerica, Carapicuíba, Porangabá ou Caucaia. Mas os tempos eram outros; a Igreja
romana perdia poder e influência na Europa Setentrional com a reforma protestante, e
Portugal via a possibilidade de fazer fortuna e ocupar um papel de destaque na geopolítica do
Velho Continente. Esta não seria a condição única, mas que passa pela necessidade de
afirmação portuguesa. O país havia ficado sem relação formal com a Igreja católica desde o
105
fim da União Ibérica, que reconhecia nos reis da Espanha o primado e direito sagrado à
coroa112.
A entrada da rainha Maria Ana da Áustria em Lisboa no ano de 1708 merece ser citada
como destaque, uma vez que com a escolha da diocese das Minas Gerais, a vila do Carmo
troca seu nome para o da rainha portuguesa. Este fato serve para relacionar diretamente a
mudança do nome da vila para Mariana, com a festa para a entrada do bispo. Uma festa
barroca simbolizando a chegada do eclesiástico e a afirmação real de que aquela cidade
pertence à rainha. KANTOR (2001; 171) “Entre as linhas de força que marcam a nova
conformação das festividades públicas na Europa moderna, convém destacar a multissecular
disputa de insígnias e ritos entre os monarcas europeus e a Santa Sé.” A realização de festas
em recepções e solenidades revela um processo de apropriação ritualística usada em honra ao
“Santíssimo Sacramento na procissão de Corpus Christi para o domínio secular” KANTOR
(2001; 171). A igreja traz para si como sendo o próprio corpo de Cristo que sendo um só
corpo e espírito à Santa Sé e a corte de Lisboa.
Não convém separar igreja e reis nesse momento histórico, pois eles se confundiam
como um grande corpo que dava estabilidade política à Europa, como há muito não se via.
Esse moribundo rito do velho continente se transportava como a tentativa de manter as
tradições e festas da corte nesse território longínquo, pois era nessas festas que os súditos
conheceriam o rosto do rei estampado em tapetes, e também a figura da dinastia que sucedera
o monarca gravado em metal, porcelana, tecidos etc. A entrada do bispo Dom Bartholomeu da
Cruz, em 1748, era o ponto de afirmação do poder do rei em terras, já que essas se
encontravam muito afastadas do governador mor do Rio de Janeiro, e ainda mais da corte de
Lisboa. O formato da festa barroca, dividida em diversos ritos de maneiras hierárquicas,
entradas e alegorias, vem para legitimar uma ordem social que não necessariamente
representava as relações de poder existentes. A figura da diocese legitima e centraliza os
padres e leigos que formavam o corpo da igreja católica, que também em muito diferiam do
ideal do Vaticano.
Vale lembrar, diferentemente do restante da América Portuguesa, o fato de que a
vigência do Padroado Régio na Capitania Mineira caracterizou-se, por um lado, pela
proibição de atuação e de instalação das ordens religiosas regulares e por outro, pela
proliferação das ordens terceiras, leigas, eretas, em alguns casos, antes mesmo do
112
“Como
é
sabido,
a
ascensão
da
dinastia
de
Bragança
(1640)
não
recebeu
o
apoio
do
papado,
que
tendeu
aos
interesses
da
Espanha
naquela
circunstância.
Urbano
VIII
(1623-‐1644)
recusou-‐se
a
aceitar
um
embaixador
português
em
Roma,
negando-‐se,
também,
a
confirmar
bispos
nomeados
por
D.
João
IV.
[...]
As
tensões
com
a
Santa
Sé
só
seriam
definitivamente
equacionadas
no
governo
de
D.
João
V,
nos
anos
de
1728
a
1732.”
KANTOR
(2001;
173-‐4)
106
113
“Assim,
se
a
esses
mais
de
vinte
dias
santos
e
santificados
se
acrescentarem
os
domingos
e
os
dias
de
padroeiros
de
cada
cidade,
vila
e
freguesia
(que
valiam
quase
sempre
como
dias
santos
locais),
apenas
a
Igreja
contribuía
com
cerca
de
um
terço
de
365
dias
do
ano
para
atividades
fora
do
trabalho”
Tinhorão
(2000;
9).
107
Portugal era permeada de sincretismo, tanto do paganismo quanto dos negros escravos que
desfilavam em Lisboa e outros centros importantes.
O início das corridas era precedido de uma espécie de introdução de caráter teatral,
que incluía danças e mesmo desfiles de carros alegóricos. E era ao aparecimento de
cada uma dessas novidades na arena que se chamava de entrada, tal como informava
a descrição dos festejos de 1687, no Terreiro do Paço, pela chegada de D. Maria
Sofia de Neuberg para casar com D. Pedro II (“Na entrada seguinte, vieram
cinquenta mouros vestidos de tela escarlate”) e a indicação final de enumeração das
exibições (“Finalmente fez a quarta entrada com cinquenta negros, nus da cintura
para cima, etc.”). (TINHORÃO, 2012, p. 103).
Assim a incorporação das irmandades no seio das grandes festas barrocas tinha alguns
significados importantes, primeiro o de dar volume e destaque à cerimônia que se realizava,
não mais de maneira a serem contemplados como “exóticos”, mas de criar diálogos entre
identidades. Com a entrada episcopal de Mariana, as dezenas de grupos musicais e
performáticos ligados às irmandades precediam à entrada principal do bispo ao pálio.
Acompanhado dele, entravam as figuras mais proeminentes da sociedade religiosa, política e
econômica. Tudo em torno do bispo lembrava as relações hierárquicas e simbólicas da
sociedade colonial, conforme atesta ÁVILLA (2006), apresentava nesta festa elementos das
culturas indígena e negra, sendo essa última relegada a um papel marginal na festa. Mesmo
assim, havia sido a primeira vez que participavam irmandades de negros das entradas
triunfais, uma vez que em ocasião das festas de comemoração pela construção da igreja do
Pilar haviam sido vetada a participação e entrada ao pálio pelos negros.
Depois de mais de um ano de viagem desde o Maranhão até as Minas Gerais, passando
e parando pelo interior do país, chega à já então cidade de Mariana Dom Bartolomeu da Cruz.
Sua chegada era muito esperada tanto para acalmar os ânimos da divisão religiosa quanto para
o aumento do poder régio e controle maior da população. A presença do bispo deveria traçar
novos rumos no desenvolvimento religioso da região, e a primeira demonstração do poder
dessa nova era foi descrito como o Auro Trono Episcopal, a entrada do bispo à cidade e sua
recepção e aclamação pública. Segundo ÁVILA (2006, p. 43), “A partir de 28 de novembro
de 1748, iniciam-se as festas, que se estenderão até o decorrer do mês de dezembro, entre
procissões, desfiles alegóricos, jogos de iluminação, missas solenes, encenações teatrais e
oralizações poéticas”. Podemos notar uma preocupação com a demonstração pública de uma
cultura europeia mais refinada, que abria espaços centrais nas comemorações para o teatro e
para o concurso de poemas que se realizava, em grande parte, incentivada pela
intelectualização que se desenvolvia para suprir as demandas administrativas que se
108
e nas danças. “Entre os africanismos musicais que os escravos trouxeram consigo estavam a
complexidade rítmica, certas escalas não clássicas como a pentatônica comum (...). O mais
característico deles é o padrão de “canto e resposta””. HOBSBAWM (2012; 60). No Brasil, o
uso dos instrumentos populares de couro percussivos em caixas de madeiras, ou cordas para
construções harmônicas mais simples herdadas da fabordão, desfilava pelas ruas que eram os
espaços destinados àqueles que não eram permitidos frequentarem determinadas Igrejas.
Porém, a influência do falso bordão, da música apreendida junto aos jesuítas, também se
misturavam outras práticas culturais dentro das confrarias dos negros “ser membro de uma
irmandade não excluía a possibilidade de estar nos calundus, de portar uma bolsa de
mandinga junto ao corpo, nem tampouco de manter uma relação de veneração afetivizada
com os santos de devoção” (VIANA, 2007, p. 102).
Os escravos negros de “partes distantes” aproveitavam os dias santos para virem dos
“Arraiaes de fora” trazer, “com galanteria” feixes de lenha qu amontoavam no pátio
do palácio de Sua Excelência. Quando isso acontecia, conta o cronista do “Aureo
Trono Episcopal”, entravam “pela cidade formando em duas alas,com bandeiras,
tambores e instrumentos e cantos a seu modo”. E o “canto a seu modo era
certamente o estilo responsorial, à base de coro e refrão, até hoje característico dos
africanos, e que talvez já os brancos imitassem nesse tempo, como dá a entender o
cronista anônimo ao descrever as figuras mascaradas que apareciam na procissão a
exibir-se “em várias danças, e cantos compostos ao modo dos pretos, que taes
representavão nas feições, e cor das mascaras”. É que os “ditos mascaras”, além de
dançarem “ao modo dos pretos”, às vezes “formavam entre si hum coro de música,
que a solos, e a cheios [coro] respondião e acompanhavão o Coro superior”116
Toda essa tensão entre diversos grupos disputando um poder simbólico dentro das
posições conflitivas de uma sociedade nova e com grande mobilidade social117, nesse primeiro
momento da colonização, transforma a chegada do Bispo à Mariana em uma grande festa
popular, em que conviviam (embora cheio de rupturas) as diversas organizações populares, a
festa da “chusma” com a festa dos nobres e ricos homens da corte. O resultado disso é uma
afirmação coletiva, em que as máscaras da sociedade não caem, mas que reafirmam e
disputam sua posição social através da proximidade física que se mantinha nas festividades
com o Bispo, o que de maneira estética da constituição de uma memória coletiva, promove
uma festa bastante suntuosa, cheia de luxo e extremamente popular. “as comemorações de rua
116
Tinhorão
(2000,
p.
112-‐
113).
As
partes
postas
entre
“aspas”
pelo
autor
foram
retiradas
da
obra
anônima
“Aureo
Throno
Episcopal”.
117
No
senso
de
1718
“evidencia-‐se
o
comparecimento
de
quatro
forros,
que,
em
conjunto,
possuíam
dezoitos
cativos
(média
de
4,50).”
Já
para
o
ano
de
1804,
no
final
do
ciclo
do
ouro,
as
cidades
onde
tiveram
grande
fluxo
de
mineração
tinham
a
maioria
da
população
formada
por
homens
livres,
tendo
o
pico
em
Mariana,
onde
73%
da
população
eram
livres
e
o
menor
índice
para
Furquim,
com
55%.
Vila
Rica
detinha
68%
da
população
nessas
condições.
Luna
(2009,
p.
269-‐277)
.
Mello
e
Souza
(2001,
p.
184-‐185)
“Nesse
sentido,
se
os
primeiros
anos
pareciam
indicar
uma
sociedade
aberta
à
promoção
social
e
ao
talento
individual,
à
maneira
das
sociedades
de
classes,
os
anos
subsequentes
retomaram
princípios
próprios
á
sociedade
de
estados,
característica
do
mundo
de
Antigo
Regime”.
110
118
Aureo
Throno
Episcopal,
fax
símile
do
original
in
Ávila
(2006,
p.
462)
111
119
Tinhorão
assemelha
a
incorporação
do
negro
em
Portugal
com
o
Brasil,
assim
o
processo
de
desenvolvimento
das
irmandades
segue
semelhança,
todavia
com
pioneirismo
português.
“com
a
criação
da
Confraria
de
Nossa
Senhora
do
Rosário
dos
Homens
Pretos
naquela
localidade,
no
início
dos
Setecentos,
com
certeza
logo
se
somariam
eles
a
irmandade
dos
devotos
que,
já
por
aqueles
tempos,
à
sombra
dessas
organizações
religiosas,
demonstram
com
efusão
africana
a
sua
fé
cristã”.
Tinhorão
(2012;
81)
112
irmandade buscava na sua aceitação pública para aumentar sua reputação ampliando poderes
tanto junto aos grupos sociais dominantes quanto aos grupos dominados.
VIANA (2007) e BORGES (2005) vão descrever diversas formas de divisões entre as
irmandades. A primeira divisão é entre as de “brancos”, “negros” e “pardos”. Se o
vocabulário faz pensar que essas associações eram formadas apenas por grupos de “cor”
veremos que existiam divisões muito além destas, que critérios sociais, que naquele contexto
eram bem mais complexos. “Mas, se a marca das irmandades foi a diversidade, isso não
deixou de significar também um fator de discórdias, ou seja, de negação do “outro” enquanto
portador de uma lógica distinta de interpretação” (BORGES, 2005, p. 34). Elas podiam estar
ligadas às profissões exercidas por seus membros, assim criam-se irmandades de faiscadores,
mascates, mineradores, artesãos120. Geralmente, as irmandades de negros se dividiam entre
libertos, livres (nascidos na corte) e escravos. Outra característica é que algumas delas são
exclusivas de determinadas nações, assim uma irmandade Mina não aceitava pessoas de
Angola, ou vice-versa121. LUNA (2009) vai mostrar, através da análise da escravidão, a
preferência dos proprietários de escravo por determinadas nações, assim vai descrever, com
relatos da época, que não se pode fazer mineração sem um escravo da Mina, pois estes
possuem “poderes místicos” para encontrar ouro e contar sobre a preponderância física desse
grupo. Assim como existia a divisão entre os negociantes de escravos, essa divisão também se
faz presente no seio do próprio grupo dos escravos. Essa diferença também se dava no preço
que valia cada escravo, segundo o próprio LUNA (2009), uma peça de negro mina podia
custar o dobro de um banto ou de um escravo colonial122.
Essa diferença também se dá em relação aos pardos, sendo a mais comum dela a
caracterização física do pardo. Portugal nesse momento buscava um branqueamento, ou um
“aportuguesamento” do Brasil. Para as irmandades era muito comum a busca por uma pureza
de sangue, como atesta VIANA (2007), o que poderia ser conseguido a partir da terceira
geração “pura”, que podia significar tanto em gerações livres quanto gerações onde não se
120
Idem
p.
52.
“No
Brasil
os
portugueses
implementaram
diversas
formas
de
organização,
como
as
“corporações
de
ofícios”,
cujo
objetivo
era
proteger
os
interesses
de
uma
mesma
categoria
profissional”
121
Viana
(2007)
As
irmandades
fundamentavam-‐se
na
noção
de
respeito
da
origem
ou
na
percepção
sobre
a
noção
de
cor
e
limpeza
de
sangue.
Na
confraria
de
Nossa
Senhora
do
Amparo,
para
ingressar
nela
“era
necessário
que
o
candidato
comprovasse
ser
legitimamente
pardo,
além
de
desfrutar
da
condição
de
liberto”.
“A
irmandade
do
Glorioso
São
Jorge,
que
reunia
os
mestres
dos
ofícios
ligados
ao
trabalho
com
ferro”.
Ou
mesmo
a
irmandade
de
São
Elesbão
que
só
aceitava
“pretos
oriundos
da
Costa
da
Mina,
Cabo
Verde,
São
Tomé
e
Moçambique”.
122
Luna
(2009,
p.
231)
“Em
1725,
o
governador
da
Capitania
do
Rio
de
Janeiro
voltava
ao
tema
e
reafirmava
a
“superioridade”
do
elemento
sudanês”.
113
123
Viana
(2007,
p.
52)
coloca
que
a
origem
da
pureza
sanguínea
remonta
aos
cristãos
novos
na
península
Ibérica,
conceito
esse
que
vai
tomar
parte
do
sistema
colonial,
servindo
para
manter
“estreita
relação
entre
a
noção
de
honra
e
o
ideal
de
“pureza
de
sangue””.
Desta
forma
a
honra
seria
obtida
através
de
seu
afastamento
do
ancestral
escravo,
negro
ou
até
mesmo
trabalhador
manual.
124
Viana
(2007)
coloca
três
formas
principais
de
alforria
dos
escravos,
a
primeira
é
pela
compra
a
prestação
do
escravo
com
o
dinheiro
suplementar
do
seu
jornal.
O
segundo
é
a
compra
pela
irmandade,
que
pode
se
dar
tanto
por
empréstimo
quanto
pela
simples
alforria.
A
terceira
libertação
pelo
senhor,
geralmente
por
testamento.
125
Aguiar
(2001,
p.
365)
“Nas
confrarias
negras,
os
gastos
com
missas
pela
alma
dos
irmãos
defuntos
eram
pouco
expressivos,
menos
de
dez
por
cento
do
total
da
receita.
Em
alguns
casos
não
chegavam
nem
a
cinco
por
cento”.
114
irmandades, para que estas pagassem para a paróquia a encomenda das almas dos mortos,
assim como com o batismo que muitas vezes era feito pelas próprias irmandades126.
A formação de um catolicismo leigo ajuda na manutenção de ritos da antiga cultura
africana dentro de um cenário de uma pretensa cidade portuguesa. Essa falta de controle
eclesiástico reinante nas Minas Gerais oferece uma possibilidade de reunião e culto
independente127 nas irmandades, em que na mesma forma que se assemelha ao catolicismo,
estava impregnada da cultura africana. A utilização de atabaques durante rezas e romarias, ou
o coro característico das lavadeiras em louvor ao seu Santo em nada relembram o coro
jesuítico de aclamação ou o refinamento do coro barroco. A utilização de instrumentos
percussivos ao passo que a preferência da Igreja romana era os instrumentos de corda, que
dava uma sonoridade celestial ao passo que os tambores relembravam práticas “selvagens”128.
E até mesmo a incorporação das procissões a locais “sagrados”, ou por aparecimento de
Santos ou de peças recheadas de simbolismo religioso, rememorando uma tradição pagã de
ritual, neste caso muito mais ligado a uma memória de um catolicismo popular português que
ganha um novo contorno no sincretismo à brasileira129.
É hora de chorar e acabar de pasmar da louquice dessa terra. Haver nela donas
ilustres e de qualidade com tão larga licença como tomaram na deslocação, de andar
no modo de romarias, e na invenção como que pedem a Deus vida e liberdade de
maridos e filhos cativados, porque não há devoção defesa, que não façam, nem
feitiçaria que não busquem, para lhes dizer o que vai em África. Não há beata que
com suas superstições as não roube de quanto têm130.
Sabemos também que as missões jesuíticas pouca relação tiveram nas Minas Gerais,
quando se dá a descoberta do ouro, a Companhia de Jesus estava em franca decadência, tendo
sua extinção decretada no auge da mineração, em 1759.
A religiosidade leiga e a organização dos escravos, negros libertos, indígenas131,
mestiços, brancos vai encontrar nas irmandades uma forma de organização tanto de caráter
religioso, pois estavam diretamente ligados às igrejas e paróquias, quanto de caráter profano,
126
Aguiar
(2001,
p.
372)
“Nos
casos
de
cancelamento
de
festas,
contudo,
a
falta
de
justificativas
suficientes
poderia
ocasionar
reveses
no
balanço
financeiro
das
instituições.”
127
Um
dos
motivos
listados
por
Borges
(2005,
p.
57)
era
“fato
dos
eclesiásticos
das
ordens
primeiras
(Jesuítas,
Carmelitas,
Beneditinos
e
Franciscanos)
não
se
subordinarem
à
Coroa,
nem
aos
Bispos
diocesanos,
mas
à
sua
própria
hierarquia”.
128
Holler
(2010)
Sustenta
que
o
Papa
Paulo
IV
responde
às
restrições
jesuíticas
aconselhando
o
uso
de
trombetas,
harpas,
cravos
e
órgãos,
além
do
coro
como
uma
forma
de
reverberar
sons
celestiais
às
almas
acostumadas
com
os
tambores
pagãos
que
enfeitavam
os
novos
domínios
católicos.
129
Tinhorão
(2012;
78)
“Uma
prova
do
rigor
com
que
a
chusma
dos
miúdos
e
pés
de
poeira
continuava
a
reverenciar
a
herança
de
antigas
festas
rituais
pagãs,
vésperas
do
pesar
das
cinzas”
130
“Carta
de
um
abade,
que
da
Beira
mandou
pedir
novas
a
um
seu
amigo,
no
tempo
das
alterações
deste
reino,
ano
de
1579”.
Apud
Tinhorão
(2012,
p.
76).
131
“É
através
desse
autor
[Aldrin
Moura
Figueiredo]
que
tomamos
conhecimento
da
presença
de
irmandades
de
índios
no
interior
do
Pará”
Borges
(2005,
p.
31)
115
pois sua organização não visava à conversão de almas, esta estava a cabo dos padres, mas de
auxílio na manutenção de uma identidade comum daquele povo, de ajuda e prestação de
socorro, de pertencimento onde todos eram “estranhos”. Desta forma, a Igreja atuaria por
intermédio dessas mesmas irmandades, a partir do corpo de devotos que elas conseguissem
organizar132.
Para os negros, surgem as congadas justamente no período em que houve uma
aproximação da igreja católica com os povos africanos, a partir da conversão oficial do rei do
Congo ao catolicismo em 1514. A eleição de reis por comunidades de africanos e seus
descendentes foi costume amplamente disseminado na América portuguesa. Conforme atesta
SOUZA (2001) existiam nas organizações de trabalho, geralmente organizadas por grupos
que se identificavam como pertencentes a uma mesma etnia, e nas quais se elegiam e
festejavam reis e capitães. Segundo SOUZA (2001, p. 251): “Estes mesmos títulos eram
atribuídos aos cabeças de levantes de escravos, muitas vezes tramados e raramente
concretizados, sendo reis, capitães e embaixadores identificados como idealizadores e
articuladores dessas.” Portanto, os eleitos reis ou para qualquer outro cargo da comitiva nos
festejos eram investidos de um arcabouço moral de liderança dentro da sua comunidade,
utilizando-o tanto para fins de resistência e afirmação de uma identidade como também
frequentemente eram procurados para conter revoltas ou mesmo garantir a paz e a calmaria
dentro das senzalas133. Posição semelhante tem Tinhorão sobre o papel dúbio que continham
as irmandades conforme o argumento utilizado por ele:
Apesar do duro cativeiro em que vivem, os negros não deixam de se divertir
algumas vezes. No domingo 10 de setembro de 1666 teve lugar a sua festa em
Pernambuco. Depois de ter ido à missa, em número de cerca de quatrocentos
homens e cem mulheres, elegeram um rei e uma rainha, marcharam pelas tuas
cantando e recitando versos por eles improvisados, precedidos de atabaques,
trombetas e pandeiros. Vestiam as roupas de seus senhores e senhoras, trazendo
correntes de ouro e pérolas; alguns estavam mascarados. Os gastos da cerimônia
lhes custaram cem escudos. Durante toda a semana o rei e os seus oficiais não
fizeram outra coisa senão passarem gravemente pelas ruas, de espada e punhal ao
cinto134.
132
Borges
(2005;
56)
“Um
fato
que
ajudou
a
imprimir
uma
certa
peculiaridade
à
vida
das
associações
em
Minas
foi
a
proibição
de
entrada
das
ordens
religiosas
na
região.
A
fim
de
controlar
o
contrabando,
e
reservar
para
si
todos
os
benefícios
advindos
da
extração
do
ouro
e
diamantes,
a
Coroa
decretou
uma
série
de
medidas
visando
manter
afastado
de
Minas
o
clero
regular”.
133
Idem
p.
85
“no
arraial
do
Tejuco
um
morador
local,
Caetano
Leonel
de
Abreu,
for
a
aconselhado
a
procurer
o
rei
da
Irmandade
para
mandar
soltar
seu
escravo,
que
se
encontrava
preso
na
cadia
da
cidade.
Só
não
o
fizera
porque
não
queria
sujeitar-‐se
ao
poder
de
um
rei
negro.
A
carta
do
padre
denota,
ainda,
que
a
eleição
dos
reis
da
irmandade,
longe
de
ser
um
ritual
fictício,
conferia
aos
eleitos
poder
sobre
sua
comunidade,
investindo-‐os
durante
a
semana
da
festa
como
autoridades
simbólicas
de
fato”.
134
UrbainSouchut
de
Rennefort
(c.
1623-‐c.
1689)
Histoire
des
Indes
Orientales.
Apud
Tinhorão
(2000;
89).
Todavia
Tinhorão
reconhece
essa
contradição
na
irmandade
pernambucana,
pouco
espelhando
nas
contradições
das
irmandades
de
Minas
Gerais,
pra
ele
mais
“oficial”.
Conforme
Borges
(2005,
p.
59)
“Pessoas
116
A organização dos festejos ficava a cargo dos irmãos de Santo. Essa organização
católica dentro das senzalas era imbuída de fator importante nas relações de reputação. Para
os escravos, isto garantiria a manutenção de alguns símbolos de sua cultura ancestral dentro
desse novo mundo. Os batuques africanos, repletos de significados místicos e de feitiçaria,
apareciam como elo principal da amarra entre a religião católica e a antiga religião do rei do
Congo. Também se transformava na primeira forma legitimada pela coroa de organização nas
senzalas, os líderes das irmandades eram geralmente eleitos para a comitiva dos cortejos,
sendo identificados como reis, generais e embaixadores daquele grupo. Assumiam a
característica de uma nação dentro de um país, criando e legitimando os responsáveis pela
interlocução entre escravos, senhores e igreja. Outra característica desse estado intermediário
ocupado pelos escravos é que a eles não caberia os mesmos valores morais sobre o qual
recaíam aos brancos, podendo manter hábitos como andar com menos vestes, embriaguez e o
despudor, tese importante na formação cultural brasileira para Tinhorão:
Ora, se a gente livre, presa a regras e leis pela sua condição de ajustamento às
estruturas, na qualidade de cidadão – ainda que pobres -, precisava assumir atitudes
fingidas, os negros escravos, colocados à margem do sistema por não constituírem
pessoas jurídicas, podiam entregar-se a impulsos mais espontâneos do instinto e da
natureza, para livremente amar, comer e folgar quando pudessem. (TINHORÃO,
2012, p. 65).
No dia da festa, escravos, negros libertos, mestiços e curiosos partem em direção à
igreja ou capela. A bebida e o despudor faziam parte da inversão, uma vez que aos negros era
negado aquilo que os senhores tinham como legitimado, e embora a embriaguez pública
assustasse aos olhos da elite branca e cristã, nada mais era do que tornar público o que se
passava dentro tanto da senzala quanto da casa grande. Assim, as festas e o ordenamento
dessas dependiam muito das condições financeiras das irmandades, da reputação dos
senhores, das distâncias a se percorrer até a igreja mais próxima, alterava-se a celebração,
mas, comumente, os reis negros eram coroados na Igreja pelo padre. Vestimenta propícia para
a ocasião, coberta de muito luxo, cetro, coroa e tudo o que manda o figurino para a coroação
de um rei europeu, tendo seu início oficial quando o padre coloca sobre a cabeça do rei,
ajoelhado a seus pés, a coroa135. Importante frisar que a utilização da forma e conteúdo
europeu na festa dos reis de Congo não forma, necessariamente, uma unidade válida para a
de
todos
os
grupos
sociais
estavam
representadas
nas
322
organizações
religiosas
de
leigos
que
se
criaram
na
Capitania
de
Minas”.
135
Holler
(2010)
“Uma
música
para
diversas
vozes,
mas
simples,
sem
compasso,
cujas
notas
são
quase
todas
iguais
e
cuja
harmonia
é
sempre
silábica”.
117
136
Sobre
a
musicalidade
negra
nos
Estados
Unidos
da
América
afirmou
Hobsbawn
(2012,
p.59-‐60)
“Pouca
coisa
da
organização
social
dos
negros
da
África
Ocidental
sobreviveu
à
sociedade
escravocrata,
a
não
ser
por
alguns
cultos
religiosos,
notadamente
no
vodu
no
Haiti
e
na
Louisiana,
com
sua
música
ritual,
e
essa,
como
nota
Marshall
Steans,
sobreviveu
melhor
sob
os
donos
de
escravos
católicos
do
que
sob
os
protestantes,
pois
os
católicos,
não
estando
muito
preocupados
com
a
salvação
das
almas
de
seus
escravos,
toleravam
um
certo
paganismo
com
toques
de
cristianismo.”
137
Faltarão
nesse
tema
algumas
considerações
importantes
do
pensamento
do
Tinhorão,
pois
está
prestes
a
ser
lançado
mais
um
livro
do
autor
exclusivo
sobre
a
musicalidade
e
festas
dos
negros
nas
próprias
colônias
portuguesas
da
África.
138
Luna
(2009,
p.
21)
mostra
a
divisão
dos
escravos
em
Minas
Gerais
de
acordo
com
a
origem
deles.
Aponta
que
entre
o
período
de
1759-‐1818
(a
partir
de
batismos
realizados
na
freguesia
de
N.
Sra.
da
Conceição
de
Antônio
Dias)
existia
85%
de
Sudaneses
e
15%
de
Bantos,
divididos
em
diversas
nações,
sendo
as
mais
representativas
os
de
Mina,
Nagô
e
Fom
(Sudaneses)
e
Maquino,
Angola
e
Congo
entre
os
Bantos.
118
139
Essa
conclusão
baseia-‐se
no
debate
anterior
sobre
a
deculturação
da
música
indígena
brasileira,
onde
a
forma
foi
estabelecida
pelos
jesuítas
ao
passo
que
se
mantinha
a
língua
do
gentio
como
unidade
de
comunicação
dentro
de
uma
cerimônia
ou
ritual
de
matriz
europeia,
conforme
Tinhorão
(1972).
140
“Cabe
realçar
o
significativo
número
de
indígenas
reduzidos
à
condição
escrava,
na
época
em
estudo
(...)
correspondiam
a,
aproximadamente,
40%
da
massa
de
coloniais
[escravos
nascidos
na
colônia,
negros
ou
gentios]
e
a
cerca
de
3%
dos
escravos
computados
nos
documentos
de
que
nos
servimos”.
Luna
(2009,
p.
271)
119
informados, o que aumentava o prestígio dos párocos perante a diocese. E para que tal fato se
concretizasse, era importante que os senhores de engenhos não criassem obstáculos para a
organização das irmandades, o que incluía festejos preparatórios durante o ano todo. Assim,
os dias de domingo e os feriados religiosos serviam de pretexto aos escravos para os festejos,
que embora marcassem datas comemorativas aos santos católicos, expressam um traço
importante do intercâmbio e fluxo de culturas, criando um catolicismo recheado de
sincretismo e magias.
AGUIAR (2001) faz uma minuciosa análise de receitas e despesas de irmandades nas
Minas Gerais setecentistas e traz dados relevantes para a nossa abordagem. Ele compara as
receitas destas irmandades e seus gastos num período que vai do auge do ciclo do ouro à sua
decadência no final do século XVIII e início do XIX, e constata como já era de se esperar uma
queda vertiginosa nas receitas destas. De maneira geral, as irmandades negras gastavam entre
20 e 40% de suas receitas para a realização das festas, tendo picos de até 80%, e gastos em
torno de 40% com os capelães. O restante dos gastos se dividia entre reformas e construção de
igrejas, missas para encomendar a alma, batismo e outros não especificados. Esse quadro nos
apresenta um pouco da importância dos festejos para esse grupo, e inclusive como atesta
AGUIAR (2001, p. 371): “Precaviam-se do desaparecimento dos confrades, pois, como
reconhecia um visitador eclesiástico anteriormente citado, sem festa não haveria esmolas”.
Porém, essa dádiva vai se transformando em veneno. O triunfo das irmandades serve em
um primeiro momento para garantir a conversão das almas e estender os domínios da Santa Sé
entre os negros. Porém suas festas e, principalmente, a falta de recursos financeiros por parte
dos negros, leva a outras consequências. Primeiro, pela necessidade cada vez maior de
recursos; as irmandades necessitam de suportes financeiros com os quais não podiam arcar,
cabendo aos senhores e juízes uma parcela considerável dos proventos das irmandades. Disto
resulta um aumento significativos da influência dos senhores brancos dentro das irmandades
negras, do poder estatal sobre uma tutela da igreja, embora não se intrometessem diretamente
nas questões organizativas141. Esta benevolência dos senhores traz em uma mão um maior
controle sobre os escravos, oferecendo a eles dias de não trabalho e reputação positiva,
principalmente entre os líderes das irmandades, que consequentemente eram líderes e
organizadores das senzalas. Desta forma, pretendiam os senhores reduzir as fissuras entre a
casa grande e a senzala, aumentando a confiança de seus homens e referendando através dos
141
Borges
(2005,
p.
83)
“Em
algumas
irmandades
existia
o
cargo
de
Protetor,
personalizado
por
um
homem
branco,
de
posses,
encarregado
de
auxiliar
financeiramente
a
organização,
o
qual,
não
raro,
imprimia
a
sua
palavra
final
nos
assuntos
internos
da
organização.”
120
feriados e da euforia passageira de alguns dias em lucro futuro, quer pelo aumento de
produtividade dos negros, quer pela redução do número de fugas. Na outra mão, aumenta
também a reputação deles junto à igreja.
Em segundo lugar, a partir do momento em que cresce a influência dos senhores junto
às irmandades, cresce também a pressão da igreja sobre os senhores. Se no primeiro momento
a igreja não colocava obstáculos ao sincretismo contumaz dessa festa, não haveria de
continuar sem que algumas fissuras se abrissem. Principalmente quando começam a ocorrer a
decadência do ciclo do ouro e, consequentemente, a redução dos recursos para a construção
de novas igrejas e a queda significativa do dinheiro destinado aos capelães. Importante
particularmente para nós esse período, pois é a partir da decadência econômica que se
aumentam as revoltas no país, tanto dos negros quanto de uma população branca brasileira de
tendências liberais, influenciados principalmente pelo fim do Ancient Régime.
121
escandalosamente até a Quinta-feira Santa, o que levaria, como represália das autoridades, à
ordem de fechamento das tavernas até a Páscoa” TINHORÃO (2000; 117).
Nesse pequeno trecho, ele trabalha dois elementos principais da identidade
caricaturada da nossa sociedade, a primeira seria o caráter festivo baiano, mostrando que o
fervor com que as festividades carnavalescas se estendem nos dias de hoje já estava contida
ao menos desde o século XVIII na Bahia, caricaturalmente podemos pensar na preguiça
macunaímica, pois se as festividades são associadas ao não trabalho, um entrudo com duração
de quarenta dias coroaria o caráter de repulsa ao trabalho compulsório dos miúdos. Outro
elemento importante da nossa identidade seria a repressão, o fechamento das tavernas
evidencia um conflito latente entre as comemorações toleradas daquelas que não o seriam.
Esse ponto também evidencia outra característica que podemos associar diretamente com o
formato carnaval, o elemento do ébrio. Para além de ser um fenômeno isolado de determinada
localidade, Tinhorão (2012) trabalha o entrudo também em Portugal:
Festa da mais declarada tradição popular, o carnaval representado em Portugal por
esse entrudo, de que até escravos se permitiam participar atirando pedradas e
laranjadas, não parece mesmo ter sofrido qualquer diminuição com o
desencadeamento dos problemas nacionais, por certo a preocupar muito mais a
nobres e burgueses, agora sujeitos aos humores de Castela.
Uma prova do rigor com que a chusma dos miúdos e pés de poeira continuavam a
reverenciar a herança de antigas festas rituais pagãs, às vésperas do pesar das cinzas
e do rigor dos jejuns da quaresma cristã, ia transparecer apenas quatro anos depois
daquela lei extravagante, numa reveladora iniciativa intentada por padres de Lisboa
para enfrentar a incômoda popularidade do nocivo entrudo. (TINHORÃO, 2012, p.
78).
Tinhorão traça um paralelo entre as duas festas do entrudo. Temos a reprodução social
ocorrendo de maneira semelhante para o autor no processo lusitano e tupiniquim, o que traria
pontos de congruência na forma de organização festiva. Então, temos a influência pagã
europeia e rítmica africana, esses elementos atuariam simultaneamente no Brasil e em
Portugal, e em ambos os casos temos um rompimento com a tolerância do status quo, que
leva a represálias ou respostas diferentes para o mesmo processo, o que poderia explicar, em
parte, o afastamento da popularidade desse mesmo evento nos dias de hoje nesses dois países.
A resposta no Brasil foi à imposição da “lei seca” e a de Portugal seria o “Jubileu das
Quarenta Horas”, com o objetivo de distrair os ânimos das brutalidades carnavalescas para as
diversões ao divino. A festa “bem ao estilo das traquitanas do teatro jesuítico do tempo – um
chamariz para o público de caráter espetacular” se utilizava de elementos que rememoram nas
festas barrocas (vilipendiadas por Tinhorão que agora reaparece) como “mecanismo
semelhante aos usados quatro séculos mais tarde em carros alegóricos das escolas de samba
do Brasil, o serafim situado na capela-mor (...) abria e fechava suas largas asas, cobrindo e
122
descobrindo a custódia, como enorme pássaro humano celestial” (TINHORÃO, 2012, p. 78-
9).
Embora o padre Baltazar Teles alegasse que tais diversões devotas “chegassem a
fazer dias de devoção dos que ele [o diabo] tinha por dias de perdição”, a verdade é
que a diversão religiosa mal chegaria ao fim do século reduzida a uma única
procissão na terça-feira, “à qual assistia o Rei e a Corte, acompanhando-a e pegando
nas varas do pálio” segundo o cronista historiador. (TINHORÃO,2012, p. 79)
Os motivos religiosos de devoção carnavalesca não durariam muito, o fenômeno
aparece como uma resposta oficial a um brincar popular, todavia o popular já estava às ruas e
já se colocavam como brincantes, que embora fossem atraídos para as comemorações da
Igreja se acostumara a não ter uma atitude contemplativa no período que antecede a quaresma,
para se integrar dentro de uma unidade ativa dentro dos entrudos. Importante, sobretudo para
a análise de Tinhorão é que essas disputas entre os padres e os foliões tinham um pano de
fundo, a tentativa de domesticar a herança pagã na religião romana.
Bem examinados os fatos do ponto de vista da evolução histórica das baixas
camadas no Ocidente desde o advento do cristianismo, a vitória das festas pagãs
sobre as religiosas revela-se mais do que natural, pois as “diversões ao divino”
tenderam sempre a sair das igrejas para transformar-se, nas ruas, em diversões
profanas do mais aberto sentido dionisíaco. (TINHORÃO,2012, p. 80).
Outra tradição popular trazida ao debate como um contraponto às festas barrocas para
Tinhorão seria o exemplo das Onze Mil Virgens. Festa que já acontecia no Brasil desde a
chegada dos jesuítas, conforme atesta HOLLER (2010), em que a tonalidade burlesca, a
embriaguez e o uso de máscaras davam uma tonalidade galanteadora para os jovens
estudantes de famílias importantes se misturarem com as camadas populares. O tom jocoso já
caminha para a contradição entre uma festa profana em homenagem às Santas Virgens, ainda
mais onze mil! A estratégia de uma mistura entre estratos sociais distintos também se pode
caracterizar como uma festa de inversão hierárquica, embora o termo não seja utilizado por
Tinhorão nessa leitura, todo o arcabouço teórico destas está presente no argumento do autor.
E essa mistura de uma festa popular, com formato de procissão, mesmo que de origem
“nobre”, faz parte das exéquias do autor sobre as festas de afirmação, em que se encontram as
Entradas. Ainda sobre a festa das onze Mil Virgens:
Pois além dessa infiltração declarada da “gente caleceira e vadia” , a que se
juntavam negros, mulatas e até prostitutas da cidade dispostos a aproveitar a
promoção particular dos estudantes filhos da elite branca, para democrática diversão
conjunta, as camadas baixas da colônia puderam ainda fazer-se representar, agora de
certa forma já oficialmente, dentro do copo mesmo das festividades civis ou
religiosas setecentistas, na qualidade de representações étnicas. TINHORÃO (2000;
121).
Outra festa que recebe destaque entre a “gente miúda” é em homenagem a São
Gonçalo. Esse santo ganhou enorme popularidade entre os negros por ser um “mulato” (na
verdade é de origem indiana) e junto com seu carisma entre uma parcela da população vêm os
123
festejos em devoção a ele. Em maio de 1745 acontece em Recife os preparativos para as festas
dedicadas à consagração do novo culto de São Gonçalo Garcia. “Os festejos começaram no
dia 2 de maio de 1745, com “fogos de todas as invençoens”, repiques de sinos e “bombus de
artilharia”” (TINHORÃO, 2000, p. 122). No terceiro dia de folia, a cidade de Olinda também
se junta à festa e anunciam esta como sendo o preparativo de uma grande festa, organizada
pela irmandade de homens pardos de São Gonçalo do Recife.
A grande solenidade segue o modelo consagrado por Tinhorão como uma estrutura
fundamental das festas populares, o estilo de procissão de Corpo de Deus, em que “no dia 30
[agosto] pela saída de um bando de pardos “revestidos de requissimas ropas, a quem
precedião dous ternos de charamelas, e boazes, com cuja armonia, e suavidade se incitava a
devoção popular””142. As festividades contavam com os elementos musicais populares que já
estavam familiarizados às populações “miúdas” das sedimentações mais antigas do país,
conforme já discutido anteriormente sobre a utilização de instrumentos e categorias sociais.
Todavia o que vai se configurar como um diferencial entre as primeiras festas aos santos no
século XVII em Pernambuco para as do século XVIII é a incorporação de elementos que
estavam contidos nas festas barrocas, embora não fosse exclusividade delas, a utilização de
carros alegóricos. É justamente dentro desses elementos estruturantes de uma ordem social,
que percebemos a manutenção hierárquica nesses festejos, muito semelhante aos desfiles
carnavalescos de hoje:
E o curioso é que, tal como faziam os brancos em suas procissões, também os
mulatos, agora dignificados com a representação devota de seu irmão de cor São
Gonçalo Garcia, entregariam aos negros a dura tarefa de puxar o pesado carro
alegórico da Senhora do Bom Parto (“de 22 palmos de longitude e 14 de altitude”),
sobre o qual se assentava a imagem em seu trono TINHORÃO (2000; 123).
Segundo os relatos, o que não seria nenhuma surpresa, os outros carros também eram
puxados por “Guinés”, a exceção ficaria com o último carro, justamente aquele que levava o
“mártir” São Gonçalo, este era puxado por um par de cavalos, cobertos com manta de tafetá
verde mar. Todavia, o que faz com que Tinhorão diferencie esse auto do Aureo Trono
Episcopal e Triunfo Eucarístico é justamente que apesar de puxar os carros, a participação dos
negros não se resumiria a isso, eles também estavam contidos em posições distintas dentro
das festividades. Conta o autor, a partir de relatos de Sotério da Silva Ribeiro, que um grupo
de treze jovens negros exibia-se na “dança chamada de Quicumbiz” com vestimentas de
veludo negro e diferenciando-se entre si nos “saiotes” “dançavam servindo de comissão de
frente, pois os “acompanhavam outros tantos na ocupação de caudatários, ornados também
142
Sotério
da
Silva
Ribeiro
“Summula
triunfal
da
nova
e
grande
celebridade
do
glorioso
e
invicto
martyr
S.
Gonçalo
Garcia”
apud
Tinhorão
(2000,
p.
122)
124
com caprichoso aceyo, a sabersayotes de seda e finas rendas”. Destaque merece também o
acompanhamento musical “a som de violas, pandeiros, cantando e dançando ao modo
Ethiópico” (TINHORÃO 2000, p. 124). Assim a música e dança de diversas etnias africanas
ganham destaque dentro dessa representação musical, que logo em seguida ganha também
contorno da contribuição europeia através dos flautistas. Neste caso, a festa dos pardos em
homenagem a São Gonçalo, se por um lado reforça a hierarquia societal, tanto dos brancos em
relação aos mulatos como também dos próprios mulatos em relação aos negros (como os
negros puxando os carros alegóricos), por outro propiciava uma confluência de ritmos e
melodias de diversas categorias, até mesmo os indígenas estavam representados:
Representação étnica mais apagada seria a dos naturais da terra. Muito aculturados
pela longa convivência, em condição inferior, com os moradores brancos e mestiços
do Recife, “os nove rapazes Indios do Paiz”, apesar de “ricamente ornados, e nus da
cintura para cima ao modo pátrio”, que exibiam uma “dança de cabouclinhos”, já
não conseguiam reunir sequer um grupo completo de tocadores de sua música, pois
entre eles aparecia apenas um negro que tocava gaita: (TINHORÃO, 2000, p. 124).
“vários gyros, e voltas entrecadentes, com passo informe, fazião todos pelo centro
de huns carcos de sipó, ornados e pintados de varias cores, e penas. Variosgyros
digo formavão, a som e compaço de um tamborinho, e gaita, que tangia de hum
Ethiope (se bem que não a nosso modo) não deixava por isso de atrair attençoens
pelo indico modo, com que sabe esta nação portar-se nas occaziões de suas mayores
celebridades143”
Vinte e oito anos após escrever “A deculturação da música indígena brasileira” o autor
retornou com mais alguns elementos sobre o processo de aniquilamento da memória musical
dos nativos que viviam em contato direto com os brancos. Assim ele descreve outra festa,
desta vez ocorrida no Recôncavo baiano em homenagem ao casamento de D. Maria I, a louca.
Festa organizada pela elite branca ligada ao poder real, ela segue todos os predicados da festa
de São Gonçalo, com a diferença que continha mais negros, justamente pela divergência
populacional entre as regiões brasileiras. Também seguia a estrutura da procissão de Corpus
Christi e dividido em atos com carros e alas étnicas. E a questão do gentio permanece
conforme Tinhorão (2000, p. 125): “a participação dos indígenas brasileiros, além de mais
apagada, correspondia apenas ao interesse dos brancos pelo pitoresco e o exótico”.
Essa configuração festiva dos setecentos para Tinhorão segue um conceito distinto
daqueles realizados pelo poder episcopal ou real, segundo ele conta a partir do relato de
Francisco Calmon sobre a festa de 1760 no recôncavo baiano “verifica-se que, dos eventos
realizados nos catorze dias que medearam entre o início das festas (...) apenas uma diversão
de brancos foi bisada (...) a exibição do auto dramático negro do Reinado do Congo repetiu-se
por nada menos do que catorze vezes” (TINHORÃO, 2000, 127).
143
Sotério
da
Silva
Ribeiro.
Apud
Tinhorão
(2000;
124)
125
que nem para capital de província, além-mar, tinha porte. Os nobres não eram mais
aventureiros desde 1578, e aqueles enviados para Coimbra são em números muito menores do
que se supõe145. Esse modelo apresentado por Tinhorão, de uma divisão simples das
categorias sociais desenvolvidas nos anos 70, provavelmente não condiz com o pensamento
atual do autor146, isso pode ser analisado pelo arcabouço teórico que o leva a pensar Minas
Gerais a partir da bibliografia da obra “As festas no Brasil colonial” onde ele utiliza de parte
do arcabouço de Francisco Vidal Luna147, que também foi utilizado por nós como referência
aos dados sobre escravidão em Minas Gerais ou mesmo Laura de Mello e Souza uma
produção mais recente sobre o período minerador e seus “Desclassificados do Ouro”. Então
preferimos deixar essa nota como uma concepção remota do pensamento do Tinhorão, e
pensar em outras possibilidades para o destaque quase inexistente sobre Minas Gerais148 na
formação festiva do Brasil.
Todavia seria injusto dizer que foi um destaque praticamente inexistente, doze páginas
foram utilizadas em sua obra “As festas no Brasil colonial” para descrever os desfiles
barrocos, também eram chamados de entrada. A descrição da suntuosidade das festas públicas
do período minerador recebe menos atenção (ao menos no que se refere a páginas escritas)
que o boi voador de Maurício de Nassau, que a nenhuma festa foi. Dentro do aspecto geral do
livro, o século XVIII é o que tem menos capítulos, dois, mesmo número que o reservado para
o século XIX, salvo que este século só teve vinte e dois anos enquanto colônia. E no que diz
respeito a páginas escritas, o século XVIII continua na lanterna do livro. Sentido contrário
tomou a nossa dissertação, que procurou dividir de maneira mais homogênea mesmo que
algumas vezes na contramão do autor que serve de guia a esse trabalho. Mesmo assim ainda
não conseguimos pensar o porquê da não exploração por parte do autor das contradições do
barroco mineiro dentro do arcabouço das possibilidades.
O que nos parece mais plausível dentro desse ponto de vista seria a opção que ele toma
na separação do “autêntico” e do “inautêntico”, em que estaria o “inautêntico” mineiro das
145
Holanda
(2004,
p.
119)
“dos
naturais
do
Brasil
graduados
durante
o
mesmo
período
(1775-‐1821)
em
Coimbra,
que
foi
dez
vezes
menor
(relacionado
à
América
espanhola),
ou
exatamente
720”
146
Em
conversa
com
o
autor
no
mês
de
abril,
deste
corrente
ano,
ele
ponderou
suas
considerações
mais
antigas
e
ainda
falou
sobre
a
formação
de
uma
música
nacional
a
partir
do
barroco
mineiro.
147
“Como
revelaria
o
professor
Francisco
Vidal
Luna
e
Iraci
del
Nero
da
Costa
(...)
padres
de
Minas
não
hesitaram
em
transformar
a
festa
do
Espírito
Santo
de
1738
(...)
em
verdadeiro
desfile
carnavalesco,
de
que
participaram
inclusive
como
fornecedores
da
música
que
animou
a
pagodeira”
Tinhorão
(2000,
p.138).
148
Destaque
praticamente
inexistente
sobre
o
papel
de
Minas
Gerais
nas
ciências
humanas
e
sociais
do
Brasil
que
remontam
a
Gilberto
Freyre
e
Sérgio
Buarque
de
Holanda.
Podemos
ampliar
o
arcabouço
dos
intelectuais,
porém
se
colocarmos
mais
será
injusto
com
os
outros.
O
pensamento
clássico
das
ciências
humanas
estabelece
um
tripé
Pernambuco,
Rio
de
Janeiro
e
São
Paulo
como
o
centro
formador
do
Brasil,
no
campo
musical
Tinhorão,
justamente,
retira
São
Paulo
e
acrescenta
a
Bahia.
127
irmandades e das festas de reis (sejam os santos reis ou os reis de Congo)? Porque o rei de
Congo aparece nas obras de Tinhorão, porém não os de Minas Gerais. A hipótese nossa é de
que o autor coloca no campo do inautêntico, porque enxerga na estrutura confrarial das
irmandades de Minas Gerais uma relação umbilical com os poderes instituídos. Acredito que
dentro dos pares de oposição formulados pelo autor, as irmandades mineiras estavam
atreladas e controladas fortemente pelo poder real e episcopal, as ordens terceiras que se
multiplicavam na região mineradora tinham funções que antes ficavam a cargo da Igreja,
como batismo, velório, encomenda de almas, além das festas. Essa concepção dúbia das
irmandades afasta o olhar do autor para a realização da sua aguçada pesquisa, fazendo com
que os elementos por ele apresentados não venham necessariamente de um olhar apurado para
os elementos contraditórios dessas festas. Outra possibilidade seria de não debruçar os olhares
dentro das divisões entre as irmandades de negros, não que Tinhorão tenha medo de
colecionar inimigos, todavia um marxista não gostaria de ter o movimento negro, que se
formava nos anos 70, como inimigo de classe.
Outra hipótese seria a teoria geral da estatística, em que deixamos de lado alguns
elementos para a validação da nossa teoria. Desta forma, um embate simbólico direto, entre as
festas medievais versus a festa barroca, fornece uma síntese válida para a formação dos
elementos centrais que dão origem às festividades brasileiras, dentre elas ou principalmente, o
carnaval. Assim os elementos exógenos, como os carros alegóricos das festas barrocas são
apropriados pela chusma da mesma forma como a Igreja se apropria da peregrinação pagã
para rituais oficiais. Assim, teríamos o povo miúdo com uma estrutura festiva que seria sua
por direito (as peregrinações, romarias e Corpus Christie), uma música que seria sua e a
apropriação de um elemento (carros alegóricos) que seriam subvertidos dentro de uma festa
de inversão, ao invés das de afirmação ao estilo barroco. Todavia, o trunfo para unir o popular
ao erudito, o medieval ao barroco, a procissão e o povo recai aos cariocas:
Com esse desfile de “magníficos carros” fabricado na Casa do Trem do Rio de
Janeiro, completava-se o ciclo dos grandes espetáculos barrocos do Brasil colonial,
herdeiros dos trionfi florentinos do Quattrocento, a que o povo assistia. O
Setecentos brasileiro, porém, não terminaria sem antes permitir ao nascente povo
citadinho da colônia infiltrar-se, como participante ativo, em outros eventos festivos
ou solenidades de rua promovidos pela Igreja, ou pelos representantes da Coroa.
TINHORÃO (2000, p. 116).
128
CONCLUSÃO
129
130
singular. É nele que a cultura pagã portuguesa se adentra e se mistura, foi a partir daí que fica
latente o caráter fluido e permissivo às manifestações populares no que chamamos de
catolicismo popular. Essa se desenvolve como um auto democrático, que consegue agrupar
elementos religiosos distintos, retirando o caráter divino no catolicismo e aproxima-o ao
humano. E não seria diferente ao se transportar essa festa de Portugal para o Brasil, os
elementos novos desse universo colonizado se traduziriam na incorporação de novos signos
sociais e religiosos. Para Tinhorão, é a partir do desenvolvimento dessa festa que podemos
pensar no autêntico, no popular, e no transformador.
Todavia, esse elemento vai se transformando conforme a sorte dos brasileiros mudava.
A descoberta dos metais preciosos no interior da colônia traz um dialogo do autor com a
vocação brasileira, proposta por PRADO JÚNIOR (1994). Já não poderia dizer que se tratava
de uma colônia voltada para a exportação de gêneros alimentícios, mas sim de uma colônia
exportadora, em que a lavoura ocupava um espaço dividido com a mineração. Se nas lavouras
canavieiras do nordeste o elemento rural era o predominante, o que trará a concepção dos
intelectuais ligados ao PCB de uma autenticidade rural, para Tinhorão a preocupação central é
com as músicas e festas urbanas.
Já assinalamos anteriormente como o desenvolvimento das cidades mineradoras
mineiras ajudou a criar e desenvolver inúmeras outras profissões, destacadamente duas seriam
fundamentais para a criação de uma camada de intelectuais que pudesse atuar no campo das
ideias, os funcionários públicos, estes geralmente formados em Direito na Universidade de
Coimbra, como Gregório de Mattos ou Tomás Antônio Gonzaga, e na outra ponta o
desenvolvimento dos artesãos, estes diretamente ligados a um saber desenvolvido
anteriormente na metrópole. Além disso, estavam umbilicalmente ligadas às sociedades
confrarias, que se desenvolviam tanto no Brasil como na Europa ou nas treze colônias
inglesas no norte das Américas. Esse modelo de sociedade confrarial conferia um tipo novo
para os trópicos de associação de pessoas, e que não apenas se reproduz entre as pessoas
livres como também entre os cativos. Assim, jogos simbólicos de disputa de identidade
desenvolvem-se tanto no campo do labor quanto no campo musical e festivo.
A hierarquia barroca faz com que essa disputa entre os irmãos de distintas confrarias
entrassem em batalhas simbólicas de identidade. Isso se refere às igrejas, mas também, e
principalmente (pois sem festa não havia dinheiro para as irmandades) na identidade visual de
cada uma das confrarias. Esse desenvolvimento visual, muito mais que o musical, é a
novidade mineira nesse processo de formação festiva “autêntica” nacional. Esse processo
131
132
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