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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
CIÊNCIAS SOCIAIS

DOS FOLGUEDOS AO CARNAVAL

TINHORÃO E A GÊNESE DA
“AUTENTICIDADE” FESTIVA

BALTAZAR ASTONI SENA

JUIZ DE FORA

2014
 
 

UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA


INTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
CIÊNCIAS SOCIAIS

BALTAZAR ASTONI SENA

DOS FOLGUEDOS AO CARNAVAL

TINHORÃO E A GÊNESE DA
“AUTENTICIDADE” FESTIVA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob
orientação do Prof. Dr. Dmitri Cerboncini Fernandes

JUIZ DE FORA

2014

  1  
 
 
 

BALTAZAR ASTONI SENA

DOS FOLGUEDOS AO CARNAVAL


TINHORÃO E A GÊNESE DA “AUTENTICIDADE” FESTIVA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais do Instituto de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora, sob
orientação do Prof. Dr. Dmitri Cerboncini Fernandes

Comissão Examinadora

______________________________________
Prof. Dr. Dmitri Cerboncini Fernandes
Orientador

______________________________________
Prof. Dr. Fernando de Jesus Rodrigues
Convidado(a) externo UFJF (UFAl)

______________________________________
Prof. Dr. Luiz Flávio Neubert
Convidado(a) interno UFJF

Juiz de Fora, _____ de____________________de 20__.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO:________________________________________________________ 6

1 – A VIAGEM E AS PRIMEIRAS LETRAS_______________________________ 14


1.1– Acadêmicos do Papel Impresso____________________________________ 15
1.2 – O papel venenoso do copidesque__________________________________ 28
1.3 - Materialismo Popular Brasileiro___________________________________21
1.4 – A dialética entre o jornal e o livro__________________________________25
1.5 – Intelectuais de esquerda e o romantismo revolucionário______________ 26

2 – A MÚSICA DOS JESUÍTAS__________________________________________29


2.1 – A primeira missa e a primeira festa________________________________ 31
2.2 – Os jesuítas e seus órfãos__________________________________________36
2.3 – Jesuítas não cantam! Mas podemos dar um jeitinho__________________ 41
2.4 – “Samba não se aprende no colégio”:________________________________46
2.5 – “Alguma coisa está fora da ordem”:________________________________52
2.6 – Considerações sobre a música na sociedade inaciana:_________________ 60

3 – SÉCULO XVII, DE CICLO MEDIEVAL À CONFIGURAÇÃO DE UMA


UNIDADE_____________________________________________________________ 64
3.1 – Sobre reis, valetes e ginetes________________________________________65
3.2 – A memória pagã e a cultura católica_______________________________ 70
3.3 – “Olha lá vai passando a procissão”_________________________________72
3.4 – Os foliões, procissão e carnaval____________________________________76
3.5 – “Vou acender velas para São Jorge”________________________________82
3.6 – Gregório de Mattos, o primeiro trovador____________________________85
3.7 – Porque não falei dos flanders______________________________________90
3.8 – O ciclo medieval: memória de uma realidade externa__________________92

4 – SÉCULO XVIII: AS ENTRADAS E OS DESFILES SIMBÓLICOS DO


PODER_______________________________________________________________97

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4.1 – “O triunfo eucarístico”___________________________________________100


4.2 – O roubo dos sinos, ou o bispo está nu_______________________________104
4.3 – O bispo chegou! Viva o bispo!_____________________________________105
4.4 - As irmandades e o pertencimento__________________________________ 113
4.5 – As festas dos miúdos____________________________________________ 123
4.6 – Um pouco do que faltou sobre Minas Gerais e o Barroco_______________128

CONCLUSÃO__________________________________________________________131

BIBLIOGRAFIA_______________________________________________________ 135

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RESUMO

Esta dissertação visa estabelecer uma relação entre o conceito de autenticidade


presente nas obras de José Ramos Tinhorão e uma análise social e histórica. Estamos partindo
das disputas simbólicas e materiais para explorar os caminhos que levam o referido autor a
desenvolver sua tese por meio da cisão entre as formas festivas e musicais consideradas
“autênticas” e “inautênticas”. Desta forma, tomamos como ponto de chegada o carnaval, pois
de todas as festas que se desenvolveram no Brasil, esta é de longe a mais popular, e traz no
seu bojo uma identificação mundial com o país. Assim, recortamos o período colonial para
mostrar onde se desenvolvia a gênese dessas festas, e quais os caminhos evolutivos das
disputas entre diversas camadas para a formação de uma identidade nacional de uma festa
católica.  

Palavras chaves: Tinhorão, festas populares, carnaval, Brasil colônia, folguedos.

ABSTRACT

This thesis aims to establish a relationship between the concept of authenticity in


works of this Jose Ramos Tinhorão and a social and historical analysis. We're leaving the
symbolic and material disputes, develop paths that lead to the author to develop his thesis
among those festive and musical forms "authentic" from "inauthentic". Thus, we take as a
point of arrival, the carnival because of all the parties that developed in Brazil, this is by far
the most popular, and brings in its wake a worldwide identification with the country. So we
cut the colonial period to show where it developed the genesis of these parties, and that the
evolutionary paths of disputes between various layers for the formation of a national identity
of a Catholic party.
Key words: Tinhorão, festivals, carnival, Colonial Brazil, merrymaking.

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INTRODUÇÃO

Na medida em que a música não é uma manifestação [Erscheinung] da verdade, mas


efetivamente ideologia, quer dizer, na medida em que, na forma em que é
experimentada pelas populações, a música lhes encobre a realidade social, coloca-se
necessariamente a pregunta de sua relação com as classes sociais. (ADORNO, 2011,
p. 137)

A arte, a cultura ou as festas não têm uma vida própria, elas são produtos do
pensamento humano que se materializa em diversas forças e operam para que elas tomem
determinada forma. E, esta forma, muitas vezes, esconde os conteúdos que a compõe. Para
muitos, os festejos populares são meramente um passatempo ou um desvio momentâneo da
contumaz pasmaceira cotidiana. Para outros, porém, eles ocultam um emaranhado de segredos
e jogos de relações. Os atores presentes e os papéis desempenhados nestes eventos revelam
sutilezas da forma de se organizar de uma sociedade. Aqueles que prestarem atenção nestas
tramas conseguem desvendar um jogo de poder e de reputações simbólicas.
Muitos intelectuais fizeram das festas e da música seu objeto de estudo e tentam, a
partir deste, buscar as origens de uma brasilidade; todavia, poucos se debruçaram tão
efusivamente quanto Tinhorão, quer seja na qualidade das obras escritas, quer seja no tempo
despendido para tal empreitada. Já faz quase meio século, desde que José Ramos, o Tinhorão,
escreveu seu primeiro livro, e tanto tempo mais, desde que o bacharel e jornalista estuda e
escreve sobre as músicas, as festas, as literaturas, os cinemas e os teatros em nosso país.
Sendo assim, buscamos, prioritariamente, nas obras desse autor, compreender como o
pensamento deste se insere dentro de uma disputa de concepção simbólica da origem das
festas e da música popular no Brasil.
A vastidão de sua obra permite-nos buscar diversos caminhos, todavia permanecemos
dentro de um específico: como se manifestava a disputa entre os diversos estratos sociais
presentes no período da colonização do Brasil, sobre a música e as festas que aqui se
desenvolveram. E, por fim, qual era a estrutura social que possibilitou o carnaval emergir
como uma “autêntica” manifestação cultural e festiva brasileira.
RIBEIRO (1995) dizia que o povo brasileiro era fruto e uma síntese de encontros
culturais, étnicos e sociais, que não reproduziam aqui a sociedade portuguesa ou as diversas
matrizes africanas ou mesmo indígena, mas que criou nestas terras uma coisa distinta, uma
sociedade derivada de diversos contatos culturais, fluxos e experiências que se transformam
numa sociedade ímpar. Todo esse processo se dá não sem luta, sem resistência, sem disputas

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nos campos econômico, cultural e simbólico. As diversas matrizes que vieram a formar o
Brasil disputavam suas visões de mundo e, deste encontro, das misturas e assimilações dos
diversos povos que para cá vieram se forma uma identidade que já não é branca, negra ou
índia, mas uma coisa nova.
Esse jogo de poder simbólico se manifesta em diversos campos, mas nos interessará
saber como ele se deu no campo musical e nas manifestações culturais que se reproduzem e se
originam desse contato entre os povos. Onde estaria a gênese de uma “autenticidade”? Como
ela dialogava com o conceito de “homem novo”, enquanto ideário dos movimentos
revolucionários contra a ditadura militar? Onde se manifestava a gênese da “cultura popular”,
enquanto representação de uma disputa política e simbólica no Brasil colonial?
Na América portuguesa os festejos populares se transformavam em manifestações
coletivas públicas, servindo de fonte privilegiada para o estudo de formas de organizações
sociais e representação política (RODRIGUEZ LOPEZ, 2004), pois a partir dessas, os sujeitos
interagiam e reconstituíam seus símbolos e representações pessoais ou de grupo. “As festas
que aqui se originam tiveram papel importante no processo de estruturação dessa sociedade e
de consolidação dos instrumentos de mando, mostrando como as representações e os símbolos
oferecem novas perspectivas de leitura dos processos sociais e políticos” (SOUZA, 2001;
251).
Pretendemos descobrir como funcionavam essas relações pessoais e os jogos
simbólicos, a partir da manutenção da forma dessas festas religiosas. Utilizamos o termo
“religiosas” porque é a partir destas que se desenvolvem as festividades no país; e ela tem um
caráter unificador no período colonial; é a principal e mais conhecida festa do país, o
carnaval. A terça-feira de carnaval é calculada pela Igreja Católica Romana a partir da
quaresma da Páscoa. Assim, ela faz parte do calendário oficial religioso. Todavia, o carnaval
não foi a principal festa no período colonial do Brasil. Para buscar onde se configurava o
caldeirão cultural que originou a especificidade brasileira, precisamos fazer uma viagem à
origem dessa conformação social. Assim, iremos remontar ao cenário onde isso aconteceu.
Então, partindo das obras de Tinhorão, seguiremos nossa viagem junto a relatos dos
viajantes, expedições e reconstruiremos a cenografia à luz das teorias contemporâneas.
Portanto, dialogamos com os textos clássicos da sociologia brasileira, como FREYRE (1980),
HOLANDA (2004), PRADO JÚNIOR (1994), CÂNDIDO (2001) e RIBEIRO (1995),
principalmente no que concerne à formação de uma identidade nacional a partir dos encontros
econômicos, políticos e culturais. Também relacionando com a sociologia internacional como

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Bourdieu, Simmel, Elias, principalmente, no que concerne à interação no campo simbólico,


das concepções de vida prévias, que existiam nas mentes dos que para cá vieram. E, como se
manifestava a relação forma e conteúdo das festas religiosas, neste caso, o catolicismo. O que
nos move é descobrir como se guiou Tinhorão na busca dessa originalidade, de uma
manifestação “autêntica” que se transforma nessa especificidade de organização social, que se
cria nessas condições. Quais as origens do que se tem como uma manifestação cultural
“autêntica” e “inautêntica”? Tinhorão, enquanto marxista, procura no materialismo histórico
as origens que irão justificar as críticas que ele desenvolve desde a época em que se iniciou
como crítico musical (BASTOS, 2011; LORENZOTTI, 2010). Para isso, também nos será
particularmente importante outros dois ramos do conhecimento científico, a história e a
musicologia. Esta última nos é de uma necessidade singular, pois estamos tratando
concretamente de festas e, consequentemente, de música.
Tinhorão escreve sobre as atividades culturais e recreativas humanas em jornais desde a
década de 50 do século passado; fazia parte de uma geração anterior à total profissionalização
e acompanhou a introdução dos manuais de redação dos jornais em uma época em que o
jornalista ainda figurava como uma atividade intelectual e crítica (BERGAMO, 2013). Esse
período inicial faz com que ele atinja um público mais letrado, ansioso por opiniões dentro de
um círculo mais elitizado de leitores. As mudanças ocorridas com a introdução de normas
mais técnicas nas redações de jornais, principalmente a partir da década de 60, faz com que o
posicionamento crítico e reflexivo dos jornais devesse ser abandonado em nome de uma
norma técnica, de notificar de maneira mais direta possível. Este fato exige que Tinhorão sinta
a necessidade de voltar parte significativa da sua capacidade reflexiva para os livros, e é a
partir destes que adentraremos em sua obra.
Esta dissertação articula a relação entre a cultura popular e suas transformações com o
desenvolvimento das condições sociais e modificações econômicas no meio. Para tanto,
enfatizamos um período histórico específico, o Brasil Colônia. Porém, para entender as
disputas que havia na sociedade, também, analisamos as relações das festas católicas dentro
dos estratos sociais que as organizavam, separando-as entre as de corte ou de recepção,
aclamação ao religioso e ao político, que muitas vezes chegavam a se confundir, e as de
cunho popular, local prioritário onde Tinhorão vai buscar a autenticidade nacional.
Esse ponto de vista analítico estava em voga dentro do universo marxista dos anos 50-
60, sendo a preocupação de Hobsbawm quando escreveu “A História social do Jazz”. Outra
convergência entre os dois autores foi o fato de ambos terem começado sua produção sobre

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gêneros musicais, escrevendo em jornais. A obra citada do autor inglês é fruto de artigos
escritos em periódicos nos anos 50, mesmo período em que Tinhorão começa suas aventuras
no mundo musical brasileiro. Desta forma, surge uma concepção comum de autenticidade,
Relações entre que estaria umbilicalmente relacionada às classes sociais presentes na produção cultural e sua
Hobsbawn
e Tinhorão forma de organização da sua sociabilização. Para ambos, o conceito de autenticidade passa
pelos ritmos africanos com harmonias e melodias europeias, porém divergindo, a partir das
condições sociais e econômicas de cada país. Se para o caso brasileiro é o samba e choro,
conforme atesta FERNANDES (2010), para os norte-americanos é a partir do blues e
posteriormente o jazz.

Pois o fator crucial para o desenvolvimento do jazz, bem como para toda a música
popular norte-americana, que contribuiu mais do que qualquer outro para o
desenvolvimento forte e resistente da música folclórica em uma sociedade capitalista
em rápida expansão foi a sua não inundação por padrões culturais das classes
superiores. (HOBSBAWN, 2012, p. 64).

Para efeito didático, separamos a dissertação em quatro capítulos. O primeiro deles visa
compreender quem é o autor que estamos estudando. Os intelectuais estão inseridos dentro de
uma realidade objetiva, desta forma o primeiro capítulo é uma introdução ao autor. Assim
descrevemos sucintamente a trajetória de Tinhorão que, ao contrário de Joaquim Antônio de
Almeida, que faz do jornal o local para escrever seu livro, aquele sai da carreira do jornal e
faz sua incursão no mundo dos livros. Para tal feito, fazemos uma digressão dos ambientes
político, econômico e social em que sua obra é gestada. Qual era o referencial teórico que
dominava a cena acadêmica e como esta se imbrica com o objetivo do autor, quando escreve
sobre as festas? Ou seja, como se daria a formação de uma cultura popular, festiva e musical
“autenticamente nacional”? Qual é o posicionamento político e com quem ele dialogava, é
outra parte importante dessa dissertação. Para o sucesso de nossa análise, dividimos os outros
três capítulos restantes pelos séculos de colonização do país. Essa metodologia não é nossa, é
do próprio Tinhorão, quando escreve o livro guia de nossa empreitada “As festas no Brasil
Colonial”, que foi lançado no seio das comemorações dos 500 anos do Brasil.
Desta forma, a primeira divisão histórica se dará no segundo capítulo, que versa sobre o
século XVI, a ocupação do território e os “pioneiros”. Nesse quadro, surge a figura primordial
da Companhia de Jesus e a música dos missionários religiosos, chegando a uma civilização
estabelecida a milhares de anos em nosso território. Surge o debate entre a música gestada no
meio das vilas jesuíticas e nos primeiros vilarejos locais. Importante frisar desde o início a
palavra vila, pois para Tinhorão a formação de uma cultura nacional só se daria a partir das

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cidades. Desta forma, as vilas são os locais desses encontros, nesse primeiro momento. E os
estratos sociais se dão prioritariamente entre os missionários e os índios, tendo muito pouco
da participação de portugueses leigos. Nesse capítulo, buscaremos trabalhar um mito
fundacional, do que seria o caráter de “tipo ideal” da “autenticidade”. Assim, desdobraremos
os fluxos culturais entre os católicos portugueses e os antigos habitantes dessas plagas, até
adentrarmos em uma das principais polêmicas que cerca essa fase, a baixa participação da
musicalidade indígena para a formação musical do país.
O terceiro capítulo se dá no século XVII, dentro de outro contexto histórico, pois agora
os territórios a oeste de Greenwich já estão providos de uma forma econômica lucrativa para a
metrópole a partir das capitanias hereditárias e da produção açucareira, principalmente no
nordeste do país. Embora os jesuítas continuassem ativos, tanto no que diz respeito à música e
formação de vilas, o que se mostrará como o polo mais dinâmico nessa formação social é a
dicotomia cunhada por FREYRE (1980) como “Casa Grande e Senzala”. Estas verdadeiras
PCB - Brasil cidades produtoras de açúcar não têm os traços assinalados pela corrente marxista do PCB nos
Feudal
anos 50-60 de um mundo feudal, mas sim de um território de produção de larga escala voltada
Tinhorão -
Brasil (produ- para o mercado mundial. Assim como PRADO JÚNIOR (1994), Tinhorão concebe o período
ção em larga
escala) conecta-açucareiro como alinhado ao mercantilismo, portanto ligado à nascente ideologia burguesa do
do ao mercado
internacional
lucro. E do ponto de vista social também se caracterizaria por um contato social, e não pelo
mercantilista isolamento do campo.
Na esfera social ganha vulto outro elemento: os negros africanos escravizados. Esse
período é importante, porque vai guinando a formação musical do Brasil, da música jesuítica
para os primeiros sincretismos rítmicos e festivos. Mostramos como o autor concebe essa
nova forma, a entrada dos negros dentro da sociedade brasileira, uma vez que estes já eram
bastante difundidos como escravos em Portugal. Outro ponto importante nessa disputa é a
chegada dos holandeses em Pernambuco, e como alterou a valoração de um tipo de
manifestação artística em detrimento de outros.

A microempresa de subsistência funcionou, de fato, como um complemento da


grande empresa exportadora ou mineradora que, graças a ela, se desobrigava de
produzir alimentos para a população e para seu próprio uso nas quadras de maior
prosperidade econômica, quando tinha que concentrar toda a força de trabalho no
seu objetivo essencial. Essas microempresas é que fundaram, de fato, o Brasil-­‐povo,
gestando precocemente as células que, multiplicadas, deram no que somos. Isso
porque as missões teriam gerado uma sociedade teocrática e as plantações nem
sequer sobreviveriam sem a viabilidade que lhes dava uma população local de apoio
e sustento. (RIBEIRO, 1995, p. 112)

  10  
 
 
 

Por fim, o quarto capítulo abrange o século XVIII, particularmente o ciclo do ouro. Essa
forma de organização também traz como novidade a difusão da utilização de mão-de-obra
cativa para outros ramos econômicos, o que até então era quase exclusividade da agricultura.
PRADO JÚNIOR (1994) escrevera que o Brasil tem uma vocação agrícola, de exportador de
gêneros alimentícios para os países do velho continente. A primazia que essa nova forma de
organização econômica traz são o aparecimento de diversas outras profissões a utilizar mão-
de-obra escrava. Não apenas na mineração, que foi o que mais consumiu braços, mas também
em setores como comércio, artesanato, transporte e construção civil. LUNA (2009; 268)
apresenta dados referentes a 1718 em Vila Rica e adjacências.

Segmento  socioeconômico   Proprietários   Escravos  Possuidos   Média  de  Escravos  


Número   %   Número   %   por  proprietários  
 
Atividade   Extrativa       38   33,93   328   42,94   8,63  
Mineiro     36   32,14   321   42,02     8,92  
Faiscador       2   1,79   7   0,92     3,5  
Agricultura       30   26,79   126   16,49     4,2  
Artesanato     3   2,68   15   1,96     5  
Comércio     8   7,14   50   6,54     6,25  
Serviços        
Patentes,  Funcionários,  militar         3     2,68     70     9,16       23,33  
Eclesiástico    
Outros       2     1,79     3     0,39       1,5  
Não  identificado         28   24,99   172   22,52     6,14  
Total     112   100   764   100     6,8  
     
Antes de tudo, é preciso esclarecer que essa tabela refere-se somente à relação
proprietário e escravo, não dando a dimensão da ocupação das pessoas livres. Esse será um
dos maiores problemas, pois como a maioria das fontes da época são relatos fiscais, aqueles
que não tinham escravos para declarar eram pouco conhecidos. Mas o primeiro fato a se notar
é que dois terços dos proprietários estavam no ramo da mineração e juntos tinham 85% dos
escravos. Os faiscadores entravam como a parcela mais pauperizada daqueles que buscavam
ouro, apresentando uma média de 3,5 escravos por proprietário. Talvez devido ao fato de que
nessa época o ouro mais facilmente faiscado já não corria em grande quantidade nos rios
estando mais a cargo das lavras e das minas.
Por sua vez, os proprietários de escravos que se dedicavam à agricultura eram um
quarto dentre todos e dispunham de apenas 16,49% dos escravos, formando com os
faiscadores os setores mais pobres da futura capital da província. Já agricultura aparece atrás
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de dois setores que chamam a atenção: o primeiro é o artesanato, que embora pequeno em
número de proprietários, alcança média de 5 escravos, menos que a média geral, porém mais
do que a agricultura. Outro fato é a informação referente a proprietários que tinham quatro
forros, e estes, em conjunto possuíam dezoito cativos (média de 4,5). Embora LUNA (2009)
não especifique em qual setor econômico atuavam os forros, o fato é que a média de escravo
por eles possuído também é superior ao do agricultor. Último fato relevante é a formação de
uma elite burocrática e militar, que detém uma média de 23,33 escravos por proprietário.
Além disso, poucos proprietários tinham uma leva maior de escravos que destoava de todas as
outras médias. Vale ressaltar, que o ano em questão, 1718, estamos no crescente do sistema
minerador. Ainda não se dividiu a capitania de São Vicente, e Vila do Carmo ainda não havia
se transformado em capital, o que aumentaria, principalmente, o poder dos proprietários da
parcela que mais detém cativos, os funcionários, patentes e militares.
Essas transformações sociais também trazem consigo outras consequências para a
compreensão da teoria de Tinhorão, a crescente formação de cidades. Esse é um elemento
importante para a formação de sínteses musicais e festivas, como elemento de construção.
TINHORÃO (1966) sustenta a tese que a diversidade econômica gera classe média, e esta
diversidade era fundamental para a formação de atividades culturais díspares que pudessem
tanto se atear ao local quanto ao universal. Do ponto de vista musical, temos tanto o
desenvolvimento de uma música barroca nacional, rebuscada e dialogando com as concepções
musicais de uma elite europeia, ou seja, universal, quanto o desenvolvimento de festividades
religiosas a partir da formação das irmandades.
Sobre a organização social, enfatizamos também outras características importantes,
sobretudo no que diz respeito a uma centralização política e econômica. A transferência da
capital de Salvador para o Rio de Janeiro e o desdobramento da província de São Paulo,
formando as Minas Gerais ao norte. Politicamente, temos o início dos processos de
independência e, consequentemente, a formação de uma identidade local ou nacional; de
qualquer forma, tem-se uma divisão entre os daqui e os de fora. Seria essa divisão o início de
uma identidade nacional? E, principalmente para nós: como Tinhorão analisou esse processo
do ponto de vista da formação musical e festiva do Brasil?
Por fim, esclarecemos que não entraremos no breve século XIX do Brasil colônia. Dois
motivos principais nos levaram a essa condição; o primeiro deles é que temos boa parte desse
período sob o governo direto de Portugal no Brasil, e a partir de 1808, sob o comando de Dom
João VI. Isso causaria uma divisão entre palacianos e não palacianos dentro de um período

  12  
 
 
 

muito curto de tempo e que, embora tenha sido de fundamental importância para a
manutenção de uma unidade territorial e tenha vindo junto à corte músicos e artistas da mais
fina classe portuguesa, eles não configurariam uma unidade válida dentro da concepção de
nacional. O segundo ponto que nos levou a ignorar esse curto período é a concepção do
próprio autor de que ali já estariam fundadas as bases de uma música e festividades
autenticamente brasileiras. A gestação do período colonial já estava madura o suficiente para
o surgimento do filho genuíno das festividades brasileiras, o carnaval. Fruto de aventuras
coloniais entre a melodia portuguesa com os ritmos africanos, em que surge sob a estética
barroca o que seria a mais autêntica das manifestações culturais brasileiras.

  13  
 
 
 

1 - A VIAGEM A E AS PRIMEIRAS LETRAS

Em 1990 é editada, em Portugal, a primeira versão da “História Social da Música


Popular Brasileira”. Tinhorão alcança espaço para lançar sua audaciosa obra sobre nossa
música na “metrópole”, para “explicar o fenômeno da criação e evolução” desta na província.
A edição nacional é lançada oito anos após a versão lusitana, hoje está na terceira reimpressão
junto com os outros 27 livros publicados sobre músicas, festas e crítica literária1.
Filho do imigrante português, Luiz Maria Ramos, com uma mãe “nativa”, Amélia
Alvarez Ramos, nasce José Ramos, na cidade de Santos, SP, no dia 07 de fevereiro de 1928.
A alcunha “Tinhorão” só viria a ser incorporada na redação do Diário Carioca, em 1953. O
apelido é uma analogia a uma planta venenosa, de mesmo nome, pela acidez dos comentários
que escrevia o então iniciante jornalista. Este se transforma em sobrenome numa sociedade
patriarcal, em que a última parte do nome significa sua posição social e o papel esperado
dentro dessa sociedade.
O pai havia vindo criança para o Brasil, sozinho, aos cuidados de um amigo da
família, da região da Guarda. Trabalhou como vendedor de loterias, garçom e dono de
tinturaria. As constantes crises financeiras fizeram com que eles se mudassem de Santos para
Jundiaí, Bragança Paulista, ambas no interior do Estado de São Paulo, e finalmente chega ao
Rio de Janeiro aos nove anos de idade. O pai havia ido para a capital, a convite de um amigo
dos tempos da revolução constitucionalista, para trabalhar no cassino da Urca. Nesse período,
o menino retoma o estudo interrompido pelas mudanças constantes de cidade, e sua mãe o
auxiliou como professora, o que o possibilitou entrar direto no terceiro ano, em idade
condizente com a série2. Aos dezesseis anos é aprovado para fazer o Clássico3 no colégio
Juruena, onde hoje funciona a FGV.
O curso era noturno, pois não tendo origem em uma família abastada começou a
trabalhar junto ao Ministério da Fazenda, na divisão de materiais. Entra no serviço público
por indicação, o que demonstra que os poucos anos em que a família estava no Rio de Janeiro
já seriam suficientes para alcançar algum grau de relações sociais, que permitiu o ingresso no
Estado. Em 1948 entra para a faculdade de Direito do Rio de Janeiro e faz, simultaneamente,
                                                                                                                       
1
  O   autor   escreve   seu   primeiro   livro,   “A   província   e   o   naturalismo”,   em   1966.   Obra   em   dois   volumes,   que  
explica   o   surgimento   desta   corrente   de   pensamento   no   Estado   do   Ceará,   tem   seu   prefácio   feito   pelo  
historiador  Nelson  Werneck  Sodré,  embora  conste  sem  autor  na  primeira  edição.  Segundo  (LORENZOTTI,  2010,  
p.  114)  a  estratégia  era  para  não  vincular  o  nome  de  Tinhorão  com  o  de  outro  comunista,  Sodré.    
2
 Estudara  a  maior  parte  em  escola  pública,  mas  também  em  escola  particular,  com  auxílio  de  uma  bolsa.  
3
 Modalidade  de  estudo  técnica,  equivalente  ao  ensino  médio,  porém  com  inclinações  às  Ciências  Humanas.  
  14  
 
 
 

o curso de jornalismo, formando em ambas em 1953. Poderíamos dizer que ali se encerrava a
sua formação acadêmica, porém, já com setenta anos de idade fez o mestrado em História
Social na USP4.

1.1 Acadêmicos do Papel Impresso

A opção pelo curso de Direito vem como um caminho quase que “natural” para
aqueles formados no Clássico. Os cursos nas áreas das Ciências Humanas eram todos muito
recentes, à exceção do Direito5. Os bacharéis assumiam as funções burocráticas do Estado, se
gabaritavam para o parlamento além de exercer o jornalismo, formando-se como uma
categoria intelectual. No século anterior, Machado de Assis havia enviado sua criação, Brás
Cubas, para Coimbra estudar Direito. Na literatura Monteiro Lobato, também bacharel,
tentava formar um ideário nacional, tanto com o Jeca Tatu, quanto na construção de narrativas
infantis das lendas do mundo rural. Aqueles que andam sob as arcadas do Largo do São
Francisco observam a ostentação institucional na galeria de ex-presidentes, principalmente na
época da política do café com leite.
Nos anos 50, começara um deslocamento da legitimidade acadêmica para o
pensamento social, porém as Ciências Sociais contavam com menos de duas décadas de
existência no Brasil e outras carreiras como a Economia, História e Jornalismo davam os
passos iniciais de sua maturação, enquanto disciplina acadêmica. No caso do Tinhorão isso
fica visível pelo papel da sua formação em Jornalismo, como um curso anexo da Faculdade de
Filosofia da Universidade do Brasil. Os bacharéis em Direito ocupavam as primeiras cadeiras
no surgimento dos diversos cursos das Ciências Humanas6, junto com os “especialistas”
estrangeiros.

                                                                                                                       
4
  Segundo   o   próprio   para   dispor   da   verba   de   pesquisa   para   fazer   seus   estudos,   o   que   resulta   no   livro   “A  
imprensa  Carnavalesca”.  Entrevista  para  a  roda  viva,  abril  de  2010.  
5
 “No  interior  do  sistema  de  ensino  destinado  à  reprodução  da  classe  dominante,  ocupava  posição  hegemônica  
por  força  de  sua  contribuição  à  integração  intelectual,  política  e  moral  dos  herdeiros  de  uma  classe  dispersa  de  
proprietários   rurais   aos   quais   conferia   uma   legitimidade   escolar.   A   Faculdade   de   Direito   atuava   ainda   como  
intermediária  na  importação  e  difusão  da  produção  intelectual  europeia,  centralizando  o  movimento  editorial  
de  revistas  e  jornais  literários”  (MICELI,  2001,  p.  115).  
6
 Câmara  Cascudo  vai  integrar  os  estudos  de  antropologia  na  Faculdade  de  Direito  de  Natal.  Oliveira  Viana  era  
membro   de   diversas   academias   nacionais   e   internacionais   na   área   de   História,   Geografia,   Sociologia   e  
Antropologia.   Antônio   Candido   começa   os   estudos   de   Direito,   mas   diferente   dos   anteriormente   citados,   não  
conclui  o  curso,  optando  pelo  estudo  de  Sociologia.    
 
  15  
 
 
 

O período da sua formação acadêmica marca a primeira expansão do ensino superior


no país. Após a República Velha já não eram apenas as classes dirigentes que tinham acesso
ao curso superior, ele abria um pequeno leque para a incorporação de setores mais amplos da
sociedade, embora isso não signifique uma grande democratização do ensino. Politicamente,
durante a sua graduação, ele assiste ao primeiro presidente após Vargas, sua volta e, logo após
a conclusão do curso, sua morte. A politização nos cursos de Direito era bastante grande, e
não apenas como uma disputa entre frações das oligarquias. Desde a legitimidade do discurso
abolicionista até o fim da era Vargas a argumentação emanava do Direito. O iluminismo se
fez a partir das leis, desde esse período o embate ideológico utilizava o arcabouço jurídico. E
não seria diferente até a ascensão de Vargas. Com a revolução de 32 o debate central dentro
das disputas políticas passava por um recurso jurídico: a constituição. E, quer queira ou não,
hoje assistimos a um processo de judicialização da política, seja através das condenações do
“mensalão” ou mesmo o papel do judiciário na definição de eleições sindicais ou no
julgamento de representações dos partidos políticos contra os mandatários do poder.
O pensamento político Iluminista construiu a legitimidade dessa nova corrente
filosófica a partir da retomada da filosofia grega juntamente com o direito romano. Rousseau
buscou a construção do discurso de igualdade entre os homens perante o direito inalienável da
liberdade. Todos os homens se fazem iguais perante a lei, ninguém pode ter o poder de retirar
a liberdade de outro. Busca no contrato social a formação de leis que visavam garantir a
manutenção da vida e evitar a guerra de todos contra todos. Os contratualistas marcaram sua
formação a partir do arcabouço jurídico, a partir dele que se começa a questionar o
ordenamento natural e as leis de Deus, o que foi fundamental para forjar a nova sociedade,
que se criava não mais oriunda do direito divino dos escolhidos sobre a massa camponesa e
pobre nos novos centros manufatureiros europeus. Os círculos intelectuais dessa sociedade em
transição se fundaram principalmente ancoradas na tradição greco-romana. Assim, a
sociologia moderna também teve seu princípio no espírito das leis, como Weber e Marx,
oriundos dessa formação acadêmica.
As transformações no pensamento no novo mundo demoram a incorporar a evolução
do espírito que se gestara no velho continente. Os cursos de Direito só começaram a surgir no
Brasil com o fim do sistema colonial, somente cinco anos após a “independência” política que
se começa a formar um corpo de juristas com formação no território do país, primeiramente
em Olinda e São Paulo. O primeiro curso de sociologia só surgiria depois de mais de cem
anos. A legitimidade do discurso e a argumentação teórica sobre os principais acontecimentos

  16  
 
 
 

sociais e políticos eram marcados por essa tradição. Desde juristas como Ruy Barbosa até
poetas como Castro Alves eram oriundos da Faculdade de Direito de Olinda e haviam
terminado sua formação no Largo São Francisco. De forma semelhante, os efeitos políticos do
Brasil, até a era Vargas, foram marcados pela hegemonia simbólica do Direito. Exceção que
deve ser feita à proclamação da república, que embora sua forma e seu conteúdo repousem na
discussão legítima do direito a quem deve deter o poder, que conta com a influência do
filósofo de formação e precursor da Sociologia August Comte.
Na “Revolução” Constitucionalista aparece com destaque a noção do respeito às leis e
à constituição. A derrota dos paulistas para Vargas marca também o nascimento da
Universidade no país, para além dos cursos isolados em faculdades. Também, marca a
fundação de uma cátedra de Sociologia, e esta entra na disputa da legitimidade simbólica do
discurso e do papel dessa ciência para a compreensão dos fenômenos sociais. O projeto para a
formação de uma nova classe burocrática do serviço público era gestado em São Paulo,
principalmente a partir da criação da Faculdade de Ciências Humanas e da unificação com a
Escola Politécnica, a Faculdade de Direito e de Medicina. No Rio de Janeiro, gestara-se a
Universidade do Brasil, e a divisão já ficaria nítida enquanto ao nome adotado. De um lado,
temos São Paulo e do outro o país. Mesmo com a crescente procura para os novos cursos nas
Universidades o capital social e a valorização do diploma acadêmico ainda pendia (ou pende)
para o tripé Direito, Engenharia e Medicina7.
Fazemos essa digressão com o intuito de pensar uma das grandes frustações do
Tinhorão, o fato de não ser reconhecido pela academia como um intelectual. Nem tampouco
nas outras áreas do conhecimento, sendo chamado, a contragosto, de crítico musical. Sua obra
sobre a música, festas, literatura e cultura brasileira continuam relegadas a segundo plano no
pensamento social brasileiro, recebendo mais crédito pelos seus livros na academia
portuguesa que na nacional. Uma das hipóteses para isso seria devido a sua formação não
advir das Ciências Sociais ou da História. Essa discussão prévia, sobre a formação acadêmica
dos intelectuais brasileiros, é justamente para desmistificar esse argumento como válido, pois
grande parte daqueles que o antecederam na Sociologia tem sua formação em outras áreas e
nem por isso deixam de ter importância reconhecida dentro das Universidades e publicações
dentro desse ramo do conhecimento, ocupando, muitos deles, papel de destaque na história do

                                                                                                                       
7
 “A  intervenção  do  Estado  para  a  regulamentação  de  conflitos  entre  patrões  e  operários  acarretou  a  criação  de  
uma   nova   instância   judiciária,   a   Justiça   do   trabalho   (...)   novas   frações   intelectuais   levou   a   criação   das  
faculdades   de   filosofia   ciências   e   letras,   dando   ensejo   à   introdução   de   novas   disciplinas   (sociologia,  
antropologia,  etnografia,  geografia  humana,  economia  política,  ciências  políticas  etc.)”  (MICELI,  2001,  p.  214).  
  17  
 
 
 

pensamento mundial. Outra consideração a esse respeito é o fato de que ele retoma os bancos
das Universidades para fazer o mestrado, dessa vez em História Social na USP. Isso também
serve como balizamento de que sua metodologia é condizente com o método científico e
epistemológico, sendo necessários outros motivos para o isolamento desse pensador para a
compreensão do Brasil, tanto atualmente quanto ao longo de sua história. Outra hipótese que
podemos levantar é o fato de Tinhorão procurar a formulação de “leis gerais”, ou o
A recusa da
academia em pensamento totalizante da sociedade, o que foi abandonado pelo discurso acadêmico que
relação ao
Tinhorão procura suas respostas cada vez mais no espaço micro ante ao macro.

1.2 O papel venenoso do Copidesque

Em 1952, o então José Ramos encontra o seu primeiro emprego na área jornalística, no
Diário Carioca. É contratado como estagiário na função de copidesque, ou redator, cargo que
exerceu durante toda a sua carreira. Chega à redação por intermédio do seu colega de
faculdade Armando Nogueira. Escrevia “notinhas” para o jornal até que um incêndio irrompe
no Teatro Copacabana e a seguinte nota é impressa:

Uma lâmpada explodiu no interior do Teatro Copacabana, e o fogo – em dia de folga


da companhia – subiu à cena num espetáculo à parte. Foi destruindo os guarda-
roupas das Mulheres Feias, peça que a senhorita Henriette Mourineau ia
apresentando com os Artistas Unidos. Os bombeiros, como em todas as tragédias de
fogo nessa cidade chegaram só para o terceiro ato, mas faltou um personagem, a
água. Das calçadas fronteiras, onde se amontoou a bagagem dos hóspedes do
Copacabana e os estoques das casas comerciais vizinhas, vários Artistas Unidos
assistiram, unidos, ao melancólico espetáculo que não puderam tomar parte.
(LORENZOTTI, 2010, p.43-44)

Depois dessa nota, ele passa a ser efetivo no jornal. O espírito cômico acompanha
toda a sua produção e ganha contornos mais críticos ou polêmicos, por exemplo, quando diz
“filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana - que é,
inegavelmente, sua mãe – a bossa nova vive até hoje o drama de muitas crianças de
Copacabana: não sabe quem é seu pai.” (FERNANDES, 2010; p 177).
Por essas e por outras notas, sua alcunha vira sinônimo da “toxidade” dos seus
comentários. Agora, com um novo nome para assinar suas notas, Tinhorão começa a trilhar
uma carreira de jornalista que só iria se encerrar em 1981. Sua estada no Diário Carioca foi
uma importante experiência para a sua acumulação de capital social e, principalmente, para o
aprofundamento de suas pesquisas. Embora o jornal não fosse o principal em vendas, na
capital nacional, era voltado para o público dos “formadores de opinião”. Além de nomes
  18  
 
 
 

como Armando Nogueira, Jânio de Freitas, que estudara arquitetura, Nilson Lage, que
abandonara o curso de Medicina para se dedicar ao jornalismo, contava com colaboradores
como Sérgio Buarque de Hollanda, Otto Lara Resende, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino,
Otto Maria Carpeaux, Thiago de Mello e, como contínuo do jornal, Cartola. Não seria de se
estranhar que dentro desse ambiente se gestasse uma categoria de intelectuais que se
Grande impren- relacionava diretamente ao público, embora com a sempre temível “censura” do diretor.
sa =
prestígio Então, “em termos concretos, toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que
social
constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das
gratificações e posições intelectuais.8”. (MICELI, 2001, p.17)
Outro problema na profissionalização dos jornalistas era sua relação umbilical com o
poder público. Uma parte dos funcionários era ligada ao serviço público e exercia a profissão
de repórter como um segundo emprego. Essa situação criaria dois tipos de funcionários na
mesma empresa, os que teriam dedicação exclusiva, como Tinhorão, Jânio de Freitas,
Armando Nogueira etc., e os que utilizavam o serviço público para escrever suas matérias e
enviá-las aos copidesques. Esse fato contava com a conivência da direção do jornal e servia
como uma forma de se ter informações políticas que eram convenientes com a linha editorial.
O Diário Carioca surge em 1928 com a finalidade de fazer oposição ao governo do
Washington Luís. Do mesmo modo, apoiou tanto a Revolução de 32 quanto o Estado Novo.
Fazia ataques ao tenentismo e fez coro com a lei de segurança nacional após a Intentona
Comunista. Seu apoio ao movimento paulista rendeu a proibição da circulação do jornal por
alguns meses, porém a habilidade em mudar de lado e apoiar o governo em andamento
garantiu o retorno da circulação do jornal.
Problemas econômicos no Diário fizeram com que muitos de seus funcionários
trocassem essa redação por outras. Assim, com o convite do colega Jânio de Freitas, Tinhorão
faz as malas e se muda para o Jornal do Brasil, em 1958. Este era um jornal de circulação
JB
maior e que passava por uma reforma em sua edição. O suplemento cultural tinha o mesmo em 1958
número de páginas que o Diário Carioca, e Tinhorão, que já escrevia no caderno cultural, fez
dupla com Sérgio Cabral no novo periódico. Já no novo emprego, consegue a oportunidade
que vai marcar sua posição enquanto intelectual, o de pesquisador das músicas e festas em
nosso país. O novo jornal abria mais espaço para artigos de opinião e mais liberdade para
                                                                                                                       
8
 Miceli  (2001)  escreve  reportando-­‐se  à  Republica  Velha,  todavia  a  criação  das  Universidades,  embora  criasse  
uma   nova   categoria   de   intelectuais,   não   mantinha   um   relacionamento   direto   com   o   público,   o   que   fazia  
daqueles  acadêmicos  que  escolhessem  o  jornalismo  mais  conhecidos  entre  os  letrados.  Caso  de  Sérgio  Buarque  
de   Hollanda,   que   ficara   entre   1938   a   48   fora   do   meio   universitário,   onde   retomaria   carreira   na   Escola   de  
Sociologia  e  Política,  após  trabalhar  para  a  burocracia  estatal  e  escrever  para  jornais.  
  19  
 
 
 

escrever textos com mais fôlego. Na redação do Jornal do Brasil surge o convite para escrever
sobre o samba e música brasileira.
O final dos anos 50 e início dos 60 marca a modernização do Brasil e cria algumas
rupturas no cenário nacional. O Rio de Janeiro estava prestes a perder o posto de capital do
país, o que reduziria sua capacidade de atração de uma classe média vinculada à burocracia.
Também se afastaria do centro do poder político, as instâncias decisórias deixariam as praias
da Guanabara e se afastariam para o planalto central. De principal centro formulador do país,
reforçado pela perda do poder político da oligarquia paulista, em maior escala, e mineira
secundariamente, assiste a JK e sua industrialização abrir caminho para a construção da nova
capital. Já o clima no Jornal do Brasil permitia uma maior liberdade de crítica, uma vez que
não tinha ligações diretas com os políticos e partidos9, e se mantinha financeiramente pelos
classificados, o que garantia uma independência do jornal.
Surgia uma jovem geração de jornalistas, que puderam exercer suas atividades com
menor ingerência externa, “que permitiu um jornalismo leve, criativo, carioca, irreverente,
informal” (LORENZOTTI, 2010, 71). E parte considerável dessa “revolução” se daria no
Caderno B, “uma iniciativa de efeito multiplicador”, que visava se relacionar com um público
“sintonizado” com a modernização do Brasil. Nesse clima surge uma geração de
jornalistas/cronistas que estava transformando a imprensa atrelada ao regime político
vigente10. O início dos anos 60 não ficara marcado no Jornal do Brasil apenas pela relativa
independência que adquiria. Esse período também era de efervescência política, o que
culminou numa greve dos jornalistas, em 1962, que contou com forte participação dos
copidesques, o que resultou na demissão de Tinhorão.
Outra novidade adotada pelo Jornal do Brasil foram os manuais de redação. Estes
tendiam para uma uniformização da atividade jornalística, retirando parágrafos desnecessários
e prolixos do texto. A principal transformação foi a introdução do lead, em que a notícia
deveria ser anunciada logo no parágrafo introdutório. Outra transformação importante foi a
retirada de um saber intelectualizado daqueles que escreviam para os periódicos. Essa
transformação traz uma mudança fundamental para aqueles oriundos do ensino superior:

                                                                                                                       
9
A   independência   financeira   evitaria   certas   cobranças   de   grupos   de   interesses   sociais   distintos   “As   sujeições  
inerentes  à  vinculação  com  o  campo  do  poder  exercem  tão  bem  sobre  o  campo  literário  graças  às  trocas  que  se  
estabelecem  entre  os  poderosos,  na  maior  parte  novos-­‐ricos  em  busca  de  legitimidade,  e  os  mais  conformistas  
ou  os  mais  consagrados  dos  escritores,  em  especial  através  do  universo  sutilmente  hierarquizado  dos  salões”    
(BOURDIEU,  2000,  p.  66).  
10
  O   que   voltaria   a   acontecer   no   Rio   de   Janeiro   com   a   ditadura   militar,   utilizando-­‐se   do   Globo   como   jornal  
oficial,  o  que  lhe  valeria  prestígio  e  o  futuro  “monopólio”  das  comunicações.  
  20  
 
 
 

Cristalizou-se uma imagem de objetividade em torno dessa mudança porque ela


passou a ser tomada como um sinônimo do próprio jornalismo enquanto “profissão”,
deixando de lado, em grande medida, o que ela representava em termos de atividade
política e intelectual. A ideia de um texto mais objetivo e imparcial, portanto, não
dizia respeito apenas à produção de notícias, mas também à delimitação de uma
fronteira capaz de separar o jornalismo dos demais setores sociais. (BERGAMO
2013, p. 5)

Em 1963, ele se muda para São Paulo para trabalhar na TV Excelsior, onde é
demitido, como faz questão de frisar, no dia 31 de março de 196411. Trabalhou para o Correio
da Manhã, Globo, Veja, Pasquim, Jornal do Brasil novamente, e tantos outros. Escrevia textos
para a TV, mas principalmente artigos sobre música e cultura popular. Critico “tóxico” travou
brigas com praticamente todas as novidades, não pela sua condição de “evolução”, mas pela
perda de uma “autenticidade”, de uma raiz que fizesse com que os ritmos e as inovações não
pudessem ser considerados como os ritmos tradicionais, pois se perderiam na história junto
com seus criadores. Assim, vai colecionando notas e provocações “Samba Bossa Nova nasce
como carro JK. Só é montado no Brasil”. (LORENZOTTI, 2010; p. 91).

1.3 O Materialismo Popular Brasileiro

Seu interesse pela música popular data dos dez ou doze anos de idade, já no Rio de
Janeiro, onde começa a frequentar rodas de samba na região do Botafogo, perto do antigo
Mourisco. Essa relação com a música é fundamental quando, na redação do jornal, perguntam
quem escreveria sobre jazz e quem sobre samba. Segundo Tinhorão, ninguém queria escrever
sobre música brasileira, não tinha livros, tudo necessitaria do repórter que procurasse as fontes
e que escrevesse as histórias; o jazz já contava com muito material escrito, livros e centenas
de artigos em jornais tanto norte-americano como na Europa, (LORENZOTTI, 2010, p. 74).
Agora, sobre a música brasileira, era uma história que ainda precisava ser contada. A dupla
com Sérgio Cabral vai originar as primeiras histórias do samba, assim como a contribuição de
outros cronistas da época.
Esse evento “cria” o Tinhorão, estudioso da música popular brasileira, um “militante
solitário” de um nacionalismo cultural. Metodologicamente duas considerações são
fundamentais para desvendar o sentido adotado em suas obras. Primeiro é o materialismo

                                                                                                                       
11
  “No   dia   anterior   tinham   ido   praticamente   tomar   a   emissora   três   senhores   à   paisana,   três   coronéis   do  
Exército,  guiados  para  conhecer  as  instalações  daquele  “antro  de  comunistas”,  imagine,  que  trabalhavam  para  
o   grande   “comunista”   chamado   Wallace   Simonsen,   dono   da   Panair   do   Brasil,   que   vivia   em   Paris..”.  
(LORENZOTTI,  2010,  71).    

  21  
 
 
 

histórico. Como veremos no decorrer deste trabalho, este é um ponto crucial para a
dualismo compreensão, pois a direção de seus artigos e livros leva em consideração um dualismo que se
dialético
integra dialeticamente. A divisão entre música “do povo” versus as orquestras de câmara ou
as composições palacianas. As festas populares, públicas, em oposição às da corte. Esta
separação visa a dar uma coerência, ou uma atualização, do conceito marxista de luta de
classes. Na acepção do autor, o reflexo das disputas entre as classes, ou extratos sociais,
reflete numa forma de organização e disputa simbólica pela cultura e consequentemente pelo
poder12. A música, as festas, os instrumentos, os arranjos, as melodias, as danças, estão
diretamente relacionados ao papel social desempenhado por cada grupo. Desta forma a
divisão social do trabalho, o incremento de profissões e de relações sociais interfere, de
maneira quase positivista, no desenvolvimento do seu objeto.
Outro recurso importante na sua metodologia são as fontes utilizadas. Conforme
descrito anteriormente, ele se aventura num estudo em que não existiam materiais
bibliográficos suficientes. Tinhorão faz, assim como outros intelectuais da sua época, um
papel de arqueólogo. Suas fontes são buscadas em materiais diversos, principalmente em
fontes primárias escondidas em relatos de viajantes, cartas de padres jesuítas, arquivos
eclesiásticos, cordéis, partituras e livros publicados pela Real Academia Portuguesa no
período colonial do Brasil. Isto para o que nos interessa fundamentalmente nessa dissertação.
Na construção da música contemporânea, ele retira dos jornais, discos, partituras, e entrevistas
com os precursores do samba carioca, bem como no recôncavo baiano e em outros locais do
país. Segundo sua biógrafa (LORENZOTTI, 2010, p.117) “Sua posição única e taxada de
radical, não pode ser considera um “achismo”. Uma de suas broncas é não ter o
reconhecimento dos intelectuais acadêmicos.”.
Essa metodologia adotada para interpretar a formação musical do Brasil caminhava
paripassu com a produção intelectual brasileira daquele período. De um lado, existia uma
necessidade de gestar uma identidade nacional, de buscar o que haveria de “genuinamente”
nacional. Esta se daria numa valorização de elementos culturais “autônomos”, que se
desenvolveram no Brasil, com o mínimo possível de “interferências” externas13. Desta forma,

                                                                                                                       
12
 Segundo  Tinhorão  (1966,  p.14),  “desse  embate  –  que  traduz  o  reflexo  da  luta  de  classes  no  plano  cultural  –  
resulta  o  conservadorismo  estético  da  (que  identifica  a  perenidade  das  obras  clássicas  com  o  seu  propósito  de  
perenidade  de  poder)  e  o  caráter  revolucionário  da  estética  das  classes  aspirantes  ao  poder  que  desprezam  o  
passado  e  desejam  a  renovação”.  
13
  Veremos   no   decorrer   desse   trabalho   que   Tinhorão   busca   tanto   na   matriz   portuguesa   quanto   africana   um  
embrião  da  música  e  das  festas  no  período  colonial.  Todavia  mantem  seu  axioma  nas  manifestações  das  classes  
dominadas   como   o   elemento   fundante   da   nossa   matriz   cultural.   Assim   busca   nos   elementos   do   paganismo  
  22  
 
 
 

retira da marginalidade a capoeira, o choro, o samba, alavancados como manifestações


nacionais, bem como no reconhecimento das músicas regionais. “A defesa de gêneros
musicais “puros” e autenticamente brasileiros, porque pertencentes às classes dominadas
apresenta-se como uma constante nos mais de vinte volumes que compõe o corpus da obra
desse jornalista que se faz o maior historiador da música popular” (FERNANDES 2010, p.
178). Desta forma, aproximam-se das posições do nacionalismo-marxista do PCB14, na
separação entre os atores sociais presentes; de um lado teremos uma música e festas
palacianas “que se distinguem mais pelo que excluem do que pelo que aglutina”
(BOURDIEU, 2000, p. 69), de origem europeia, não apenas como forma, mas como uma
categoria imperialista, das classes dominantes, e do lado oposto uma música "autêntica"
construída pelo e para os “de baixo”.
Essa escola analítica caminhava junto à produção que melhor se fazia nas ciências
humanas daquele período. A leitura de natureza econômica, política e social que se fomentava
a intelectualidade no Brasil era a da busca de “sentido” nacional. Nessa mesma busca, Caio
Prado Júnior iria escrever “Formação do Brasil Contemporâneo” ou “História econômica do
Brasil”; Sérgio Buarque de Hollanda iria buscar as “Raízes do Brasil”; Gilberto Freyre
dividira o país entre a “Casa Grande e Senzala” para o mundo rural e entre “Sobrados e
Mocambos” para o urbano. Então, olhando pelo campo político era o que buscavam: uma
identidade nacional, separada de Portugal e das aristocracias e oligarquias que atrelavam o
país como uma “colônia” agrícola. O Brasil moderno, industrial, siderúrgico, da Copa do
Mundo e do Maracanã, procurava uma origem que o fizesse diferente da metrópole, que nos
tornasse mais nação que país. Este é o contexto sócio-histórico que se insere Tinhorão. Sua
busca, porém, recai sobre a organização da cultura, como se gestara uma cultura
“autenticamente” nacional. Qual o sentido que ela tomou até chegar ao seu produto mais
original, o samba e o carnaval? E para chegar ao “contemporâneo”, Tinhorão vai buscar sua
“formação”, as “raízes” do que somos hoje, buscando uma origem “de classe” na produção
musical, nas danças, nas festas, nos ritmos que nos formara.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
europeu   para   o   desenvolvimento   da   música   em   Portugal   bem   como   no   elemento   negro,   tanto   de   sua  
religiosidade  como  na  música,  que  caminhavam  lado  a  lado..  
14
 Embora  não  seja  conveniente  associar  “nacionalismos”  com  a  teoria  de  Marx,  essa  corrente  de  pensamento  
ganha  acentuado  relevo  nos  anos  50-­‐60,  principalmente  com  a  formação  do  bloco  de  países  não  alinhados.  A  
justificativa  teórica  desta  se  baseia  na  teoria  do  imperialismo  de  Lenin  e,  principalmente,  da  possibilidade  de  
construção   do   socialismo   em   um   só   país.   No   seio   da   terceira   internacional   estava   de   acordo   com   o  
browernismo,  corrente  inspirada  no  comissário  da  Internacional  para  a  América  Latina.    
  23  
 
 
 

Ao descrever as impressões de um sarau de meados do século XVIII na casa da


Marquesa de Alorna (mulher de Dom Pedro de Almeida, o conde de Assumar, que
governou a Capitania de São Paulo e Minas do Ouro de 1717 a 1721, e reprimiu a
insurreição em Vila Rica), Ribeiro dos Santos demonstra-se realmente
impressionado é com o fato de “mancebos e donzelas” interpretarem “cantigas de
amor tão descompostas”, que – afirma em tom de pudor ofendido – “corei de pejo
como se me achasse de repente em bordéis, com mulheres de má fazenda”
(TINHORÃO, 1997, p. 11)

Neste trecho, temos a personagem “nobre”, justificada pelo cargo ocupado por seu
marido, que traz hábitos palacianos de saraus, no século XVIII no Brasil. Politicamente, ele
foi marcado por instabilidades políticas, guerras e revoltas. Geograficamente, há um
crescimento populacional e um fluxo de migração para o interior do país. Economicamente, o
ciclo do ouro e de pedras preciosas tira o eixo da colônia exportadora de açucar para metais.
Socialmente, a formação de cidades e criação de uma nova fração do grupo dirigente, que
demanda novos hábitos na colônia, inclusive no quesito religioso “cujo surgimento na colônia
se explicava pelas menores restrições morais existentes longe do atuante sistema de censura
da metrópole”. HOLLANDA (2004; p. 103). Tinhorão utiliza-se da metodologia marxista de
aproximar as novas formas de interação social, as festas e espaços de sociabilidade,
engendrado nas transformações que ocorriam no país. Assim prossegue:

Na verdade, o ouro das minas brasileiras, carreando para o tesouro real em Lisboa
uma riqueza acima de qualquer previsão, permitia desde meados do século XVIII
uma tal ampliação do círculo das grandes famílias da burguesia e da nobreza,
agrupadas à sombra do trono, que a vida da corte ganhava um colorido jamais
imaginado. (TINHORÃO, 1997, p. 11)

Essa leitura, e a forma de interpretar as origens musicais e festivas do Brasil, seguem


um padrão já consagrado por Caio Prado Júnior, um dos principais teoricos do PCB15. O
materialismo efetua tendências estruturais, em que o desenvolvimento econômico segue uma
curva quase determinista da evolução dos meios de socialização. Metodologicamente, ambos
utilizam dos relatos de viajantes para comprovação de suas teses, utilizando esses intelectuais
do século XVIII com maior credibilidade, pois passavam ao largo dos registros oficiais, tanto
do governo quanto da igreja. Neste caso, ele se utiliza dos “Manuscritos de Ribeiro dos
Santos”, assim como é comum a utilização de correspondências de padres, jesuistas e textos já
consagrados das missões estrangeiras.

                                                                                                                       
15
  Embora   tenha   alguns   rompimentos   teóricos   com   o   seu   partido,   o   principal   deles   referente   a   sua   negação   do  
caráter   feudal   da   produção   rural   do   país.   Condição   essa   fundamental   para   os   ortodoxos   do   PCB   que  
procuravam  adaptar  a  realidade  nacional  para  a  evolução  histórica  da  Europa.  
  24  
 
 
 

Embora as Ciências Humanas em geral, e a Sociologia em particular estivessem


começando a florescer nos anos 50-60, quando ele ingressa nos seus estudos é importante
salientar o desmonte que sofrem as Universidades do país com o golpe de 1964. Boa parte da
intelectualidade, principalmente nas humanidades, segue uma produção acadêmica fora de seu
antigo ambiente. Isto também marca o contexto do início da produção bibliográfica de
Tinhorão, tendo lançado em 1966 seu primeiro livro “O Naturalismo e a província”. A
perseguição ao pensamento crítico já era tão avultuada (mesmo antes da promulgação do AI
5), que o editor do livro recomendara que a Introdução de Werneck Sodré fosse apócrifa, para
não vincularem o iniciante escritor ao circulo de intelectuais comunistas16.

1.4 A dialética entre o Jornal e o Livro

Os artigos em jornais e polêmicas geradas serviram, em grande parte, para popularizar


o nome de Tinhorão; desta forma, suas publicações recebiam atenção fundamental daqueles a
que ele criticava. Não é de se estranhar que uma de suas vítimas prediletas, o compositor
baiano Caetano Veloso, vem revidar polêmicas sobre a coerência do discurso do crítico17. Não
apenas o conteúdo das letras incomodava os artistas daquela época, mas também a forma. A
maneira irreverente, irônica e venenosa que tomava forma nos suplementos de cultura dos
jornais era uma turbina de polêmicas. “Tudo leva a pensar que o trabalho de escrita (...) visa
em primeiro lugar dominar os efeitos incontrolados da ambivalência da relação com todos
aqueles que gravitam no campo do poder” (BOURDIEU, 2000, p.44). Não que pudéssemos
dizer que Caetano gravitava no campo do poder, mas sua postura, enquanto político, era
ambidestra; da mesma forma que teve que se exilar durante o período imediatamente após o
AI 5, sempre conviveu de maneira conivente com o grupo do poder. E, quando tentou se
aproximar da juventude rebelde de 68 nos festivais, sentiu a mesma acidez das vaias que o
remoíam nas críticas. As críticas que vieram dos jovens naquele teatro tinham o mesmo teor
daquelas feitas no jornal.

                                                                                                                       
16
 Florestan  Fernandes,  Caio  Prado  Júnior,  dentre  outros  já  estavam  fora  das  Universidades  brasileiras,  e  ainda  
surgia   outra   gama   de   intelectuais   que   se   organizavam,   escreviam   e   publicavam   em   outra   rede   de   relações,  
como   o   Francisco   de   Oliveira,   Rui   Mauro   Marini   e   a   CEPAL.   Além   de   intelectuais   ligados   aos   partidos   de  
esquerda  como  Jacob  Goerender.    
17
 Em  1965,  Caetano  Veloso  escreveu  seu  primeiro  artigo  com  críticas  a  Tinhorão.  O  que  viria  a  se  repetir  em  
um   show,   em   2008,   numa   analogia   entre   a   música   Feitiço   da   Vila,   de   Noel   Rosa,   e   racismo.   Sua   questão   era  
porque   o   jornalista   havia   criticado   tanto   Vinicius   de   Moraes   e   Tom   Jobim   como   usurpadores   de   uma   música  
negra  e  nada  dizia  sobre  o  poeta  da  Vila.  (LORENZOTTI,  2010,  p.  64)  
  25  
 
 
 

Diferentemente do artista que “durante toda a sua vida, tentou manter-se nessa posição
indeterminada, nesse lugar neutro, onde se podem sobrevoar os grupos e seus conflitos”,
(BOURDIEU, 2000, p. 41) Tinhorão não fica refém das “lutas que opõem entre si as
diferentes espécies de intelectuais e artistas e aquelas que as defrontam globalmente com as
diferentes variedades de proprietários” (BOURDIEU, 2000, p. 41-42). Se nos jornais, tanto
pela limitação espacial quanto pela objetividade que estão dispostos os leitores a empreender,
os seus textos têm a conotação cáustica, quando este se lança na empreitada de escrever livros
o teor e seu estilo literário sofrem uma significativa alteração. Não vemos mais a ironia de
seus comentários, nem tampouco as provocações que o faziam famoso na imprensa. A
metodologia marxista lhe impunha outra objetividade, isto quando o livro não era uma
coletânea de jornais. Começa nos jornais (que seria uma condição secundária para um
intelectual) e, posteriormente, adentra na produção de uma vasta literatura sobre a cultura
popular, tanto no Brasil quanto em Portugal, até chegar ao ponto em que se desliga do
jornalismo – após sua aposentadoria, o que confere a condição financeira de se dedicar apenas
aos livros.

1.5 Intelectuais de esquerda e o romantismo revolucionário

O final dos anos 50 e, particularmente, os anos 60 do século passado assistiram a uma


cruzada dos intelectuais de esquerda para a forumulação do que seria o homem novo, portador
das características revolucionárias e que fossem o homem “puro”, brasileiro “autêntico”. Esse
fenômeno norteou o pensamento da esquerda tanto para a caracterização do sujeito histórico,
que iria nortear a tática revolucionária, quanto para saber onde estariam os germes da
revolução brasileira.
As alternativas revolucionárias levaram à concepção de um homem novo, que
estivesse alijado da contaminação capitalista que se amontova na crescente urbanização que
sofria o Brasil (RIDENTI, 2001). Essas características buscadas pelo romantismo
revolucionário foram contempladas na observação e na valorização do camponês como
categoria social capaz de açambarcar algumas condições específicas. Do ponto de vista da
estrutura social, os camponeses portam uma disputa histórica com a oligarquia agrária.
Condição sine qua non das revoluções burguesas, a reforma agrária era, e continua sendo, um
dos grandes entraves para a distribuição de poder e renda no país.

  26  
 
 
 

Desta forma, o que as revoluções latinoamericanas conseguiram no México em 1911,


Bolívia 1952 e, contemporaneamente, a esses intelectuais outorgaram a revolução cubana, em
1959, que serviu de inspiração para alavancar os camponeses como portadores de uma luta
histórica, que poderia levar à etapa burguesa e, posteriormente, à etapa socialista de uma
revolução brasileira. No país esse era o momento das ligas camponesas, e entre as reformas de
base projetadas durante o governo de João Goulart, essa era a mais importante e
consequentemente a que provocou a maior reação das oligarquias. Então, não se tratava de
um revisionismo brasileiro à teoria marxista, mas uma adaptação fruto de uma forma de
leitura que os intelectuais, na maioria ligados ao PCB, enxergavam nas condições objetivas da
realidade brasileira. Na teoria, o país passava da condição feudal do campo à industrial na
cidade. Entrava-se em uma etapa do desenvolvimento capitalista sem a completa destruição
do aparato feudal que eles enxergavam no campo. Os camponeses seriam, nesse momento,
fundamentais para acabarem com os resquícios da Idade Média que perduravam nos trópicos.
Do ponto de vista da formação de uma arte revolucionária e nacional, os camponeses
acabaram tornando-se a ponta da lança na busca de uma autenticidade local. Assim, elementos
das lutas camponesas, principalmente as calcadas no nordeste brasileiro, servem de inspiração
na acepção de um passado mítico, de luta antioligárquica. Assim, busca-se inspiração tanto
nas Ligas Camponesas quanto nas lutas históricas como Palmares, Canudos e no Cangaço.
“Em suma, busca-se no passado uma cultura popular autêntica para construir uma nova nação,
ao mesmo tempo moderna e desalienada, no limite, socialista” (RIDENTI, 2001, p. 15). Os
anos 60 foram palcos de inúmeras obras literárias, musicais, teatrais e cinematográfica dentro
dessa perspectiva, como o Cinema Novo, que roda “Deus e o Diabo na terra do Sol”, onde o
cangaço aparece como figura central na obra de Glauber Rocha; “Vidas Secas”, de Nelson
Pereira dos Santos, e “Cabra marcado para morrer” de Eduardo Coutinho, ou nas outras
esferas culturais que listamos:

Depois do golpe de 1964, essa estrutura de sentimento da brasilidade (romântico-)


revolucionária pode ser encontrada nas canções de Edu Lobo, Geraldo Vandré e
outros; nos desdobramentos da dramaturgia do Teatro de Arena – como a peça
Arena conta Zumbi e sua celebração da comunidade negra revoltosa; e
especialmente no romance Quarup, de Antonio Callado (1967), que exaltava a
comunidade indígena e terminava apontando a via da revolução social, e que foi
chamado por Ferreira Gullar de “ensaio de deseducação para brasileiro virar gente”.
(RIDENTI, 2005, p. 86)

Tinhorão é fruto das mesmas condições objetivas e subjetivas que fizeram parte esses
intelectuais, tanto que suas críticas ácidas não passavam por esses autores ou coletivos

  27  
 
 
 

culturais; essa formulação era a que recebia as melhores notas e críticas do então crítico
cultural. Todavia, ele vai construir sua teoria da autenticidade cultural brasileira dentro de
outro pressuposto teórico, grande parte ancorada pelo desenvolvimento intelectual e
socioeconômico do país, mas podemos observar já na sua primeira obra “A província e o
naturalismo”, de 1966, uma tendência a buscar nas cidades, e não no campo, as estruturas de
maior vulto para a formação de uma cultura popular autêntica. Para o autor a diversificação
social, principalmente no que concerne à divisão de trabalho e geração de classe média, é o
que poderá gerar uma síntese para uma autenticidade brasileira (TINHORÃO, 1966). Do
ponto de vista teórico, isso está inserido na leitura e estruturação no campo da cultura de uma
concepção alinhada à de Caio Prado Júnior, em que não estamos e nunca estivemos numa
sociedade feudal, o que faz o autor assinalar diversas vezes, que não está analisando o
desenvolvimento cultural do mundo rural e sim a do mundo urbano. Assim, ele buscará no
desenvolvimento da colonização do país os elementos que pudessem estar na autenticidade
cultural brasileira.
 

  28  
 
 
 

2 – A MÚSICA DOS JESUÍTAS

A música impressa na religiosidade brasileira apresentou-se socialmente de maneira


peculiar. Ao mesmo tempo em que os jesuítas incentivavam a prática musical indígena, com o
objetivo de cristianização e de retirada da barbárie as almas desprovidas de Deus do gentio,
também proibiam que os padres o fizessem. O padre Loyola, guardião dos jesuítas,
determinara que aqueles que servissem à companhia de Jesus deveriam ocupar-se
exclusivamente de salvar a alma dos gentios e catequizá-los. De maneira alguma poderiam
dedicar-se a hábitos triviais da vida profana, tal qual a música (HOLLER, 2010). Por outro
lado, é sabido da influência jesuíta para a formação da musicalidade brasileira. Esta se dá,
geralmente, a partir de ordem de leigos religiosos que, não podendo dedicar-se à consagração
da hóstia, dedicavam-se à formação musical dos indígenas.
Visto que as ocupações assumidas visando à assistência das almas são de grande
importância e próprias de nossa Instituição, e muito frequentes, e como por outro
lado nossa residência nesse lugar é incerta, que os nossos não usem o coro para
horas canônicas ou missas, nem em outros ofícios cantados, uma vez que àqueles, a
quem sua devoção move a ouvi-las, abundam locais onde se possam satisfazer.
(Cosntitutiones, 1583, Padre Inácio Loyola) in (HOLLER, 2010, p. 139)

Tinhorão trabalha o primeiro século da colonização do Brasil em três livros distintos, a


saber: “História Social da Música Popular Brasileira”, “A deculturação da Música Indígena
Brasileira” e em “Festas no Brasil Colonial”; essa trilogia será o guia da nossa estruturação da
música jesuítica no Brasil, comparando-a com livros e artigos diversos que trabalhem o tema.
A pesquisa do autor sobre esse período recai, sobretudo, nas músicas e festas desenvolvidas
pelos padres nas escolas, colégios e aldeias com o caráter de evangelização. Esse recorte
proposto por ele deriva principalmente pelo fato de que os jesuítas, enquanto missão oficial,
têm a obrigação de manter informados seus superiores sobre os progressos da colonização e
conversão dos gentios, HOLLER (2010).
Essa comunicação se dá, geralmente, em forma de epístolas, porém padres com maior
formação intelectual ensaiaram livros e crônicas sobre as novas terras portuguesas, como José
de Anchieta, Manoel da Nóbrega e Fernão Cardim. Como a intenção das cartas e relatórios
enviados para a Europa tinha um caráter de enaltecer e glorificar os feitos no Novo Mundo,

  29  
 
 
 

muito do que ocorria era ignorado nessas correspondências18. Embora a seleção intencional do
que se escrevia e do que se omitia possa originar termos ou de considerações questionáveis,
com elementos omitidos dentro dessas correspondências, elas servem como fontes primárias
na construção de uma identidade nacional proposta por Tinhorão.
Tomaremos como ponto inicial a “deculturação” proposta por ele em seu texto “A
deculturação da música indígena brasileira”, de 1972. Essa metodologia adotada por ele estará
de acordo com a visão de mundo do autor e com a construção de identidade que se pretende
em suas obras; desta forma ele traçará um panorama a partir de um ponto único de referência
(os jesuítas), que já estariam de antemão amarrados por não poderem, ou deverem, contar toda
a verdade que se passa nos trópicos.
Não poderia ser diferente. O poder da escrita estava nas mãos de poucos padres
instruídos, que junto com um pequeno grupo de colonizadores provenientes das zonas rurais
portuguesas e de alguns das colônias da África criam uma colonização sedentária junto ao
nomadismo dos nativos. A visão de mundo projetada no imaginário jesuíta conferia os valores
morais que os homens desta terra deveriam possuir, e isto convergia na concepção de festas
que deveriam ocorrer. Como Tinhorão trabalha em oposição ideológica aos jesuítas19, sua
linha de raciocínio segue buscando as formas de resistências encontradas, tanto pelos
indígenas quanto pelos brancos pobres, com vistas a formar uma nova identidade cultural.
Desta forma, desenvolveremos esse capítulo articulando a construção argumentativa
de Tinhorão dentro de uma perspectiva proposta por ele, de pensar a formação musical e das
festas no período através da organização econômica e social em que estavam inseridos os
agentes. Assim trabalharemos temas como “deculturação”, “etnocentrismo”, “controle”,
“disputa”, “resistência”, “músicas”, “afirmação” e “festas”, e temas não propostos por ele,
como “proibição”. Sendo nossa proposta delimitar os conceitos sugeridos por ele dentro da
perspectiva de uma análise do pensamento desse autor, e também analisar suas fontes,
referências e objetivos na construção de sua obra.

                                                                                                                       
18
Holler  (2010;  17)  
19
  Gilberto   Freyre,   em   Casa   Grande   e   Senzala,   também   se   coloca   em   oposição   aos   jesuítas,   justamente   pelo  
caráter   etnocêntrico   dessa   ordem   religiosa.   Dizia   ele   que   “o   missionário   ideal   para   um   povo   comunista   na  
tendência  e  rebelde  ao  ensino  intelectual,  como  os  indígenas  da  América  teriam  sido  os  franciscanos”  (1987;  
144)  
  30  
 
 
 

2.1 A primeira missa e a primeira festa.

O autor busca uma origem da formação das festas e músicas no Brasil. Desta forma,
ele encontra na carta de Pero Vaz de Caminha para o rei D. Manoel, sobre as terras “achadas”,
o episódio que tangera toda a concepção da disputa simbólica entre as festas e ritos que se
estenderá como coluna vertebral de seu argumento. A busca de uma natureza de classe, que
remontaria a uma música popular genuinamente brasileira, se dá no primeiro documento
escrito sobre essas terras. Deste, ele rememora várias passagens ritualísticas onde a
sociabilidade e a comunicação entre os dois povos que não se conheciam se reconheceriam.
Esse reconhecimento de atração mútua se deu pela música e pela dança. Desta forma,
dois eventos são importantes nessa observação: o primeiro é a famosa missa de celebração ao
descobrimento da nova terra, e outro seria um evento “espontâneo”, em que, movido pelo
espírito cordial, portugueses e indígenas tocavam e “folgavam” depois da travessia de um rio.
Esses dois eventos20 demarcam a construção de uma autenticidade das músicas e festas no
Brasil, um mito fundador21.
O primeiro deles remonta a uma concepção de observação complacente dos indígenas
com a tão bem falada primeira missa do Brasil. “Aparece na carta de Caminha ao mostrar que,
tendo assistido em atitude passiva não apenas à cerimônia da missa (“ E olhando-nos,
sentaram-se”22), mas da ereção da cruz diante do mar (“Ali estiveram conosco, assistindo”)23.
Não que negasse o caráter de “homem cordial” e o encontro entre as duas culturas, que os
nativos não reconhecessem no silêncio e no ato de sentar uma cerimônia importante para os
homens brancos e barbados que chegavam em grandes naus, mas que esse encontro marcou
uma diferenciação entre os dois povos. O desencadear da relação índios, brancos e igreja daria
uma condição de participação calada, contemplativa, do primeiro em relação aos outros.
Tinhorão reconhece aí o mito fundador da Igreja Católica e de uma elite portuguesa no Brasil,
de cunho religioso e conservador. Este fato, ele irá chamar de “modelo de transculturação pela
transliteração”24, em que a diferença cultural se daria com uma “deculturação” indígena.

                                                                                                                       
20
  Del   Priori   (1994)   afirma   que   as   festas   no   Brasil   colonial   podem   ser   agrupadas   em   duas   grandes   categorias  
para   a   análise;   as   festas   oficiais,   promovida   pelo   poder   político   ou   eclesial   e   as   festas   populares,  
reinterpretadas.    
21
 Chauí  (2000)  ira  conceitualizar  mito  fundador  como  um  fato  etiológico  que  visa  explicar  a  origem  de  um  rito,  
cidade,  nação.  Sua  preocupação  é  com  um  caráter  totalitário  brasileiro,  em  consonância  com  Franco  (1997)  e  
com  a  noção  de  medo  imposta  pelos  jesuítas  aos  nativos,  conforme  Tinhorão  (2000).  
22
 Tinhorão,  2000,  p  16.  
23
 Idem  
24
 Idem  
  31  
 
 
 

Então, o capital cultural se daria em um fluxo que atraía os modelos e costumes dos nativos
para um modelo de dominação religioso e civil.
Em oposição aos interesses da sociedade colonial, queriam os padres fundar no
Brasil uma santa república de ‘índios domesticados para Jesus’ como os do
Paraguai, seráficos caboclos que só obedecem aos ministros do Senhor e só
trabalhassem nas suas hortas e roçados. Nenhuma individualidade nem autonomia
pessoal ou de família. Fora o cacique, todos vestidos de camisola de menino dormir
como num orfanato ou num internato. O trajo dos homens igualzinho ao das
mulheres e das crianças (FREYRE, 1987, p. 23).
Outro evento que disputava simbolicamente com a música sacra eram os folguedos.
Aparece na mesma carta a Dom Manuel o relato de quando um dos integrantes da comitiva de
Pedro Alvares Cabral, Diogo Dias, resolveu atravessar o rio e se encontrar com os índios na
outra margem. “E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se a dançar com
eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som
da gaita”25. Esse evento marca um encontro entre povos não mediados pelas autoridades,
fossem elas eclesiais ou dos oficiais. Esse evento traz um contraponto à contemplação passiva
indígena, quando na carta de Caminha diz “Nesse dia enquanto ali andavam (os índios),
dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem
mais amigos nossos do que nós seus26”. E esse encontro só pôde transcorrer sem o “modelo
de transculturação”, porque este se dá pelas camadas mais baixas da tripulação. Desprovido
das mediações hierárquicas e dado seu caráter espontâneo, as diferenciações sociais e étnicas
seriam relativizadas em nome da festa.
A diferenciação entre os dois eventos leva em conta a origem daqueles que celebram
esses rituais, seja o padre ou o gaiteiro, e também a presença ou não de um órgão controlador,
“para a obediência civil”. Essas duas formas das festas, mesmo sob feição religiosa, se
diferenciariam pela música proveniente daquelas. Assim, nas passagens da carta de Caminha
observam-se a presença de dois instrumentos musicais: a gaita e o tamboril27.
Ora, como desde logo se observa, excetuado o uso eventual das trombetas – o tubo
longo de metal afunilado, e próprio para toques solenes ou marciais, o que restringe
seu uso -, o instrumento usado pelos marujos portugueses em seu divertimento com
os naturais da terra foi a gaita, que era então o mais popular instrumento da gente do
campo em Portugal. (TINHORÃO, 2004, p. 38)
Este ponto é importante na formulação do argumento do Tinhorão, a “sociologia dos
de baixo”, os instrumentos utilizados não eram os relacionados ao militarismo como as

                                                                                                                       
25
 Carta  de  Pero  Vaz  de  Caminha  à  D.  Manuel  sobre  o  descobrimento  do  Brasil.  Apud  Tinhorão  (2004;  38)  
26
 Idem  (2000;  15).  
27
  “Segundo   Bluteu,   o   tamboril   é   “uma   espécie   de   pequeno   tambor,   com   que   bailam   nas   aldeias,   ao   som   da  
flauta”.   Curiosamente,   a   citação   que   Bluteau   oferece   como   exemplo   é   de   um   trecho   da   Crônica,   do   padre  
Simão  Vasconcelos:  “um  índio,  que  tocava  seu  tamboril”.  (HOLLER,  2010,  p.  132)  
  32  
 
 
 

trombetas ou a tuba28, mas a gaita. O estudo da forma musical praticada traz os indícios do
caráter popular, não oficial, que o relacionaria aos camponeses alijados das terras pela
crescente necessidade de povoamento das cidades da metrópole. Desta forma, a gaita teria,
inclusive, suas manifestações ligadas não apenas pelo universo rural português, sendo
usualmente uma manifestação ligada ao norte das ilhas Inglesas, com os celtas29, uma versão
com fole de origem animal. Essa ligação traria uma ancestralidade pagã nos camponeses que
se refugiaram em Lisboa30 e que formaram a camada social mais baixa dos navios. Assim as
festas “espontâneas” “não expressavam a cultura dessa nova burguesia urbana dos mercadores
de Lisboa associada ao rei de Portugal na empresa das navegações, mas a velha estrutura
tradicional do mundo rural Ibérico” (TINHORÃO, 2000, p. 14). Seria sim uma manifestação
de estratos sociais distintos, do mesmo modo que o tamboril representa a cultura rural e pagã
ibérica:
Nos textos jesuíticos, os tambores e tamboris são mencionados em ocasiões
profanas, em sua maior parte em recebimentos, como a carta do padre Antônio
Blasques de 1564, que descreve o recebimento com “tambor de folia dos padres e
índios que vêm de outras aldeias, na Aldeia de São Tiago (Bahia), em 1564”.
(HOLLER, 2010, p. 132)
Embora não se tenha registro de gaitas de fole nas missões jesuíticas, temos as gaitas
como um substituto popular deste no novo mundo. A divisão musical de Tinhorão também
segue a lógica da origem de classe que os instrumentos representam; desta forma os órgãos,
violinos, trombetas estão ao lado de uma cultura europeia, palaciana, com vistas à
“transculturação”. Na outra margem surgem as gaitas, rabecas, violas e pandeiros no campo
da cultura popular com vistas a uma “integração”, sem dominação, entre os camponeses que
se aventuravam enquanto marujos. Porém, vimos que as gaitas também eram solicitadas por
padres para compor os instrumentos que farão parte do universo musical brasileiro, mas
conforme HOLLER (2010), apenas para tanger, sem caráter sacro. Essa comprovação da
utilização das gaitas e pandeiros no universo camponês e popular em Portugal vem através do

                                                                                                                       
28
  Holler   (2010;   101)   “O   termo   tubae   não   está   associado   somente   a   situações   bélicas   e   militares   ou   grandes  
comemorações,   como   ocorre   com   as   trombetas,   mas   também   a   cerimonias   sacras   junto   a   flautas   e  
charamelas”  
29
  Embora   mais   conhecida   hoje   na   cultura   escocesa   -­‐   pela   não   dominação   romana   no   norte   da   ilha   conferia  
autenticidade  pagã  -­‐  a  gaita  de  fole  era  muito  usada  em  Portugal,  sendo  inclusive  solicitada  em  “uma  carta  de  
1552   ao   padre   Pedro   Doménech,   na   qual   se   pede   que   “fizesse   prover   de   alguns   instrumentos   para   que   aqui  
possamos  tanger  (...)  como  são  flautas,  gaitas”;  a  carta  solicita  ainda  “algum  tamborileiro  e  gaiteiro”.  Segundo  
Bluteau,  “gaiteiro”  é  “o  que  toca  gaita  de  fole””.  Holler  (2010;  101)  
30
Holler   (2010)   Sustenta   que   o   Papa   Paulo   IV   responde   às   restrições   jesuíticas   aconselhando   o   uso   de  
trombetas,   harpas,   cravos   e   órgãos,   além   do   coro   como   uma   forma   de   reverberar   sons   celestiais   às   almas  
acostumadas  com  os  tambores  pagãos  que  enfeitavam  os  novos  domínios  católicos.  
  33  
 
 
 

teatro de Gil Vicente, o que demonstra um leque bastante diverso de fontes utilizadas por
Tinhorão.

Em Portugal vi eu já
Para cada casa um pandeyro
E gayta em cada palheyro
E de vinte anos acá
Nam há hi gayta nem gayteyro

A cada porta um terreyro


cada aldeia dez folias
cada casa atabaqueyro
e agora Geremias
e nosso tamborileyro31

Do teatro, recebemos notícias de 1529, que as aldeias, que antes se enchiam de


músicas e festas vivem “às moscas”. Tinhorão retirou desse texto as referências que precisa
para a comprovação da utilização das gaitas no tecido social rural português. Além de outros
instrumentos como o pandeiro e o atabaque, soando como demarcador cultural de uma
sociedade mestiça fora da corte, em que a influência católica das folias nasce do próprio
sincretismo das festas para os santos reis32, tendo a gaita pagã, o pandeiro árabe e o atabaque
dos negros da África.
Na primeira festa, na primeira missa rezada, se encontram os lados opostos da disputa
simbólica entre as festas e as músicas. Temos um funcionamento metodológico separado por
pares de oposição que operam de forma dialética: se na festa “espontânea” temos uma
horizontalidade das relações, entre marujos e índios, no exemplo da ereção da cruz está o polo
oposto “o exemplo mais perfeito dessa realidade aparece na descrição da verdadeira
encenação simbólica do respeito devido à hierarquia dos poderes real e espiritual”
(TINHORÃO, 2000, p. 17). Assim, conforme DA MATTA (1976), esse tipo de festa se
enquadraria nas de “afirmação” hierárquica, do mesmo modo que os desfiles de 7 de setembro
(pelo poder político) ou as entradas episcopais (pelo poder papal), que serão estudadas mais
adiante. Desta forma, Tinhorão considera as festas de “afirmação” como um modelo com
forma e conteúdo oriundo do poder colonizador, e este não poderia conferir síntese à
formação da nova sociedade, que teria seu desdobramento nas colônias jesuíticas que se
instalariam meio século após no Brasil.

                                                                                                                       
31
 Gil  Vicente  “Triunfo  do  inverno”  in  Tinhorão  (2000;  14)  
32
 A  história  do  catolicismo  popular  acerca  dos  três  reis  magos  que  visitam  o  menino  Jesus  é  a  integração  dos  
três  “povos”  conhecidos  no  mundo  medieval.  Assim  temos  o  rei  Gaspar  representando  os  brancos  europeus,  
Belchior  representando  os  árabes  e  Baltazar  representando  os  negros  da  África.  
  34  
 
 
 

As festas de afirmação contêm dentro de si outra característica importante: os agentes


que participam dela. Assim, conforme a carta de Pero Vaz de Caminha, temos uma clara
divisão social na sua forma ritualística, reforçado no argumento do autor enquanto lugar
ocupado por cada um dos atores envolvidos. Primeiro aqueles que carregam a grande e pesada
cruz são os capitães da nau, os sacerdotes e a oficialidade; estes são os portadores legítimos
do simbolismo religioso, cabendo aos marujos o trabalho de corte e talha da árvore, assim
como cavar o buraco onde ela seria colocada. A participação ritualística dos menos
afortunados se deu de maneira contemplativa, e a hierarquia se fez presente em todos os
aspectos da festa, desde o local, em que cada ator se apresenta até seu papel na organização da
mesma, dando mostras de uma “espécie de pré-lançamento do espetáculo de afirmação do
poder real e espiritual sobre a terra “achada”” (TINHORÃO, 2000, p. 17), em que “com os
religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a modo de procissão”
(TINHORÃO, 2004, p. 38).
Essa confraternização étnica enriquecedora da alegre manifestação lúdica – no caso,
a dança, representativa da cultura do povo do mundo rural português – não tinha
realmente como acontecer quando o evento se revestia da solenidade consagradora
de símbolos de poder civil e religioso. (TINHORÃO, 2000, p. 16).
Desta forma, Tinhorão estabelece a primeira divisão entre o processo de festas e
músicas na formação do Brasil. Uma disputa simbólica irá permear toda a visão do autor
sobre o que ou quais seriam as manifestações públicas “autênticas”. O sincretismo e os fluxos
culturais só seriam possíveis através das festas, que não buscavam uma afirmação hierárquica,
e estas estariam ligadas a uma cultura camponesa ibérica, que já era fruto de uma
miscigenação de séculos33, que conferia o caráter híbrido entre o paganismo romano, o
catolicismo popular e a influência moura. Essa natureza peculiar do camponês que se
aventurava nas caravelas confere uma legitimidade no processo de integração entre os povos,
pois já seriam mestiços e influenciados por diversas matrizes culturais. Assim, eles se
credenciariam como os atores que seriam responsáveis tanto pela difusão de uma cultura
europeia como pela manutenção de valores e práticas indígenas, pois não tendo um caráter de
conquistador, e sim colonizador, os camponeses se veriam obrigados a fazer trocas com os
nativos, a se integrarem, a conferirem um fluxo constante de saberes populares do velho e do
novo continente. Então, seria justamente desses cruzamentos culturais que se reportará uma
unidade estrutural da música brasileira que fornece as bases para os modelos de hoje.

                                                                                                                       
33
  Sérgio   Buarque   de   Holanda   destaca   uma   característica   peculiar   dos   Ibéricos   como   “territórios   ponte   pelos  
quais  a  Europa  se  comunicava  com  outros  mundos.  Assim,  eles  constituem  uma  zona  fronteiriça,  de  transição,  
menos  carregada,  em  alguns  casos,  desse  europeísmo”  (2004:31).  
  35  
 
 
 

De uma forma muito mais flagrante do que acontecera na Europa em mais de


quinhentos anos de história do cristianismo, até o Renascimento, o antigo sentido do
dionisíaco das gentes constrangidas ao exercício da obediência civil ou a
mortificação e abstinência em nome da fé iria infiltrar-se pelos desvãos dos rituais
públicos civil e religioso, acabando por transformar em diversão pessoal o que lhes
era apresentado como evento oficial ou de devoção. (TINHORÃO,2000, p. 8).

2.2 Os jesuítas e seus órfãos.


Depois do “achamento” do Brasil pelos portugueses, o segundo evento que marca as
desventuras dessa terra é a chegada dos jesuítas, em 1549. Durante meio século sem uma
política clara para as novas terras, a pressão sofrida pelas “novidades alemãs” exigia que os
católicos enfrentassem um novo desafio, a conversão dos gentios, ou seja, levar a palavra de
Deus àqueles que desconhecem o conceito do sagrado coração de Jesus. Essa empresa já
estava sendo preparada pela Igreja, pelo menos, duas décadas antes de se concretizar o fato.
Pela bula Inter Arcana, de 8 de maio de 1529, o Papa determinava que “as nações bárbaras
venham ao conhecimento de Deus não só por meio de éditos e admonições, como também pela
força e pelas armas, se necessário, para que suas almas possam participar do reino do céu”
(DOURADO, 1958, p. 25). Um dos argumentos centrais do Tinhorão para separar o que seria
uma cultura “autêntica” de uma cultura “importada” é a liberdade dos agentes em poder
formar sínteses. Desta forma, ele desenvolve alguns conceitos que explicarão essa relação,
dentre elas, o medo e o controle excessivo desenvolvido pelos Jesuítas.
A doutrina religiosa quinhentista advinha da Inquisição; assim se dividiam os índios,
não apenas entre aliados e inimigos, mas também entre o “papel em branco34” (que se pode
converter) daqueles que não conheceriam Jesus de nenhuma forma. “A política de catequese
adotada pela Companhia de Jesus (...) e etnocêntrico da superioridade da civilização europeia,
não permitiria o surgimento de nenhuma forma nova que pudesse se esperar de um encontro
de diferentes culturas.” (TINHORÃO, 2000, p. 23). Embora outras ordens religiosas
desembarcassem com vistas à catequese, os discípulos de Inácio de Loyola foram de longe os
mais numerosos e que deixaram mais rastros para seguir as pistas das relações sociais nos
primeiros séculos da formação do país.
No dia 29 de março de 1549, desembarca em Salvador o primeiro grupo de jesuítas,
formado por padres e por irmãos, pois a companhia sabia que necessitaria muito mais do que
doutrinadores para se estabelecerem no Novo Mundo. Desta forma, desembarcam em

                                                                                                                       
34
 Termo  utilizado  pelo  padre  Manuel  da  Nóbrega  para  se  referir  aos  indígenas  em  carta  para  frei  Navarro  em  
1549,  apud  Tinhorão  (2000;  23)  
  36  
 
 
 

Salvador, liderados pelo padre Manoel da Nóbrega, Leonardo Nunes, Antônio Pires, Juan de
Azpicuelta Navarro e os irmãos Vicente Rodrigues e Diogo Jácome35. A comprovação de que
a conversão dos gentios era uma missão prioritária é que esta desembarca na esquadra de
Tomé de Souza, o primeiro governador geral do Brasil. A jovem ordem, a companhia de Jesus
fora criada em 1539 por Inácio de Loyola e reconhecida pelo papa Paulo III em 1540, tem a
missão de coordenar a atuação e evangelização, conforme os preceitos da contrarreforma.
No mesmo ano, em que o grupo liderado pelo padre Manoel da Nóbrega desembarca
no Brasil, é criado o primeiro colégio de meninos órfãos da companhia em Portugal. No ano
seguinte, sete deles são enviados para os trópicos, criando o primeiro colégio da Companhia
nas Américas, o colégio dos Meninos de Jesus da Bahia36. Os ensinamentos do colégio se
davam em área conjunta à Igreja de Salvador, construída a mando do padre Manoel da
Nóbrega no local onde está a catedral, em frente ao que hoje é conhecido como Terreiro de
Jesus. A atuação na capital seria o evento que vai desenrolar tanto a formação católica quanto
musical dos jesuítas junto aos indígenas, e a presença dos meninos órfãos e a estruturação de
um colégio eram a estratégia para a aproximação dos gentios; assim eles poderiam aprender o
português, o latim, música e a catequese. Nessa primeira fase, o controle da igreja ia para
além da alma, também cuidava do espírito.
Toda a atividade musical ligada à catequese dos índios oscila entre esses dois polos
das danças e cantos coletivos populares para o folgar, e dos hinos e cantos eruditos
da Igreja Católica (à base de cantochão e órgão) para os atos solenes rituais ou de
estímulo à devoção religiosa. (TINHORÃO, 2004, p. 39)
Essa divisão em pares de oposição na formação musical do Brasil é baseada em
documentações da época, escritas tanto em latim quanto em galego ou espanhol, e por serem
antigas os significados não são necessariamente semelhantes aos que compreendemos hoje.
Assim, a palavra “órgão” deve ser relativizada. Se este instrumento começava a se difundir na
Europa, principalmente nas Igrejas reformadas, este demora a cair no gosto de Roma,
Portugal e principalmente no Brasil, sendo utilizado no dicionário Português Latim de Blateau
(1721). O musicólogo Marcos HOLLER (2010) esclarece que muitas das vezes quando
mencionado o órgão, trata-se de uma forma de canto, cantar à maneira de órgão. Daí, o
primeiro relato de um teclado no país é do padre Antônio Blasques de 1565:
Houve nessas vésperas três coros diversos: um de canto de órgão, outro de cravo e
outro de flautas de modo que, acabando um, começava o outro, e todos, certo, com
muita ordem quando vinha a sua vez. E dado que o canto do órgão deleitava
ouvindo-se a suavidade do cravo detivesse os ânimos com a doçura da sua harmonia,
todavia quando se tocavam as flautas se alegravam e se regozijavam muito mais os
circunstantes, porque, além de o fazer mediocremente, os que tangiam eram os
                                                                                                                       
35
 José  de  Anchieta  “Informações  do  Brasil  e  suas  capitanias”,  pg  48.  
36
 Holler  (2010;  51);  Tinhorão  (2004;  39)  
  37  
 
 
 

meninos brasis, a quem já de tempo o padre Antônio Rodrigues tem ensinado.


(HOLLER, 2010, p. 123)
Este relato não retira a autoridade do Tinhorão, enquanto a divisão de uma música
sacra, que se utilizaria de instrumentos mais refinados e que necessitavam de uma técnica
mais apurada e de outro uma música “profana” com instrumentos mais simples e que
permitiriam que se aprendesse a tocar sem a necessidade de ser um erudito. Nem tampouco
seria conveniente uma separação rígida entre as duas facetas. Os órgãos não foram tão
populares quanto os cravos no primeiro século, mas já se encontra registro de sua utilização
em textos de José de Anchieta, em 1584, “o relato ‘Sobre os colégios e uso do órgão em
ofícios no colégio da Bahia, nas sextas-feiras da Quadragésima em 1583’ e a ‘Ânua da
província do Brasil de 1583’ descreve cerimônias acompanhadas de órgãos e outros
instrumentos, também no colégio da Bahia.” (HOLLER, 2010, p. 127).
A documentação levantada no primeiro século de colonização aponta o uso do órgão
apenas no colégio de Salvador, enquanto o cravo estivesse além do colégio, nas três aldeias
com trabalho jesuítico existentes na Bahia (Espirito Santo, Santo Antônio e São João), além
de ser utilizado no colégio de Pernambuco. Os mesmos relatos não informam sobre a origem
desses instrumentos, assim como o vasto material pesquisado por HOLLER (2010), o que o
leva à suposição da construção rudimentar desse instrumento em solo brasileiro. Este fato é
reforçado por relato de cravos feito com “cana” no colégio do Pará.
A utilização dos meninos órfãos de Portugal nos trópicos tem para Tinhorão o objetivo
de aproximar as crianças indígenas como fonte prioritária de conversão, com a busca de os
colocarem no colégio e ensinar-lhes modos, conduta e sobre Deus. Esta aproximação dos
jesuítas faz com que eles instituam a língua geral como idioma preferencial nas músicas e nas
rezas. Essa aproximação dos nativos utilizando tanto sua música, quanto cantigas católicas no
idioma “dos negros” serve para um aprofundamento das relações entre os dois grupos. Esse
momento de fluxo entre culturas é para Tinhorão o ponto de partida da “deculturação” da
música indígena:
Dentro desse espírito, a participação dos naturais da terra não teria como realizar-se
de maneira criativa, embora – de maneira cruelmente irônica – sua língua e sua
música viesse a ser usada nos primeiros anos de catequese como armas para a
aniquilação justamente da sua cultura. É que, como para melhor efetivar sua política
de atração dos habitantes da terra para círculos sob seu controle os jesuítas
precisavam fazer-se entender, os espertos padres liderados por Manoel da Nóbrega –
e logo, a partir de 1553, pelo segundo grande evangelizador José de Anchieta – não
apenas passaram a comunicar com os naturais em sua língua, mas a fazê-los cantar
com sua música versos destinados a desviá-los de suas tradições. (TINHORÃO,
2000, p. 24-25)
Esse é um dos pontos de inflexão do movimento cultural das décadas de 60-70.
Enquanto se pensava o indígena “selvagem” como um dos pilares do homem brasileiro,
  38  
 
 
 

potencialmente revolucionário, Tinhorão coloca a separação entre os índios “civilizados” e os


que continuavam livres. Essa divisão, também proposta por PRADO JÚNIOR (1994), choca-
se com o ideário tropicalista, em que tudo é divino e maravilhoso. Essa concepção, do nativo
que tem seu espírito retirado e substituído por uma alma católica, vai de encontro ao processo
gestado dentro dos movimentos de cultura do período final da ditadura, em que a música
indígena não influencia (pelo menos no espaço geográfico entendido das vilas e missões) as
canções portuguesas, e sim são utilizadas pelos jesuítas para retirar parte importante da
cultura tradicional para ocupar com a visão musical portuguesa. Mesmo que pese o fato do
padre Loyola condenar a prática dos jesuítas em terras brasileiras, utilizando tanto de suas
músicas quanto da língua, a estratégia dos primeiros evangelizadores foi a da ampla utilização
de músicas em tom dos gentios. Assim, a chegada dos meninos órfãos cria “uma franca
camaradagem entre os jovens recém-chegados e a meninada local” (TINHORÃO, 2000, p.
25).
Os meninos portugueses eram treinados tanto no canto gregoriano como nas cantigas
religiosas-profanas no estilo dos vilarejos portugueses já revestidos de um saber popular,
como indicava o padre Doménech. Embora imbuído da missão de cristianização, os meninos
acompanhavam um repertório europeu de música, que na visão do Tinhorão serviria para
aniquilar a cultura tradicional, mas ao mesmo tempo ele descreve uma grande integração
desses meninos com os indígenas. “Los niños huerfanos que nos enbiaran de Lisboa con sus
cantares atraen a si los hijos de los getiles y edifican mucho los christianos”37.
A chegada dos meninos órfãos de Lisboa tem do lado da música uma importância
muito grande para a conversão indígena e para atraí-los para a Igreja; do ponto de vista da
organização jesuítica ela também é muito importante, uma vez que a constituição da
Companhia de Jesus proibia que os padres se dedicassem a elementos triviais da vida como
músicas e festas, eles deveriam cuidar da alma e se dedicar à conversão religiosa, cerimoniais,
missas, confissões. Estavam proibidos pelo padre Loyola de se dedicar a qualquer atividade
que não fossem as necessitadas pelos ordenados. Assim, os meninos órfãos vêm para garantir
a divisão social do trabalho de evangelização, ficando os padres encarregados da consagração
da hóstia e os meninos do engrandecimento do espírito.
Do ponto de vista da estruturação musical adotada pelos órfãos, temos algumas
indicações. A primeira é que eles não dispunham de instrumentos musicais europeus, a não
ser os poucos que vieram de maneira aleatória. Disto decorre que eles adaptaram as cantigas

                                                                                                                       
37
 Carta  de  Padre  Manoel  da  Nóbrega  do  dia  11  de  agosto  de  1551,  apud  Tinhorão  (2000;  27).  
  39  
 
 
 

religiosas que compunham seu repertório com instrumentos do gentio. Outra consideração
importante é que, assim como já faziam os padres, os meninos também utilizaram das músicas
e da língua nativa para adaptar as canções. E dentro do espírito de integração que esses
tinham, chegavam a se confundir com os nativos, tendo inclusive o corte de cabelo à moda
local, conforme atesta o padre Manoel de Nóbrega à carta ao Superior dos Jesuítas, padre
Simão Rodrigues:
Os mininos dessa casa na Bahia se acostumavão a cantar pelo mesmo toom dos
Indios, e com seus instrumentos, cantigas na língua Tupi em louvor de N. Senhor,
com que muyto se athrahirão os corações dos Indios e asi alguns mininos da terra
(filho de portugueses locais) trazião o cabelo cortado a maneira dos Indios, que tem
muyto pouco diferença do nosso custume e fazião tudo para todos ganhassem.38
Outros meninos viriam de Portugal em missões em 1551 e 1555, no total de 18 ou 20,
“A última referência à atuação dos meninos órfãos é a carta de 1557 do padre Antonio
Blasques, que relata sua entrada na Aldeia do Rio Vermelho, na Bahia cantando em
procissão”, e prossegue com o relato original “do que eles (índios) se maravilharam e ficaram
atônitos, porque em extremo são dados à música, e ouvir cantar” (HOLLER, 2010, p. 51).
A utilização dos meninos para a conversão e prática da música nos trópicos resultou
em vários problemas para o Padre Manoel da Nóbrega e sua companhia no Brasil, pois o
método pouco ortodoxo de utilização do saber local para a conversão cria descompassos com
a Santa Sé, tanto no que se refere ao tipo de música adotada, e principalmente por que essas
músicas não faziam parte do repertório católico europeu, com o cantochão em versos mais
simples e instrumentos musicais apropriados. Disto resulta uma carta de preocupação do
Bispo Pedro Fernandes ao superior da Companhia de Jesus, Simão Rodrigues:
Los niños huerfanos antes que yo viniesse tem costumbre de cantar todo los
domingos e fiestas cantares de nuestra Señhora al tono gentílico, y tañerem ciertos
instrumentos que estes bárbaros tañen y cantan quando quierem bever sus vinos y
matar sus inimigos (cantos rituais). Platicé sobre esto com el Padre Nóbrega y com
algunas personas que sabem la condición y manera destos gentiles, em espicial com
el que lleva esta, que se llama Pablo Diaz, y allé los Buenos, pues los Padres y niños
tañian sus instrumentos y cantavam a su modo. Digo que Padres tañian, por que em
la companhia do los niños vênia hun Padre sacerdote, Salvador Rodriguez, tañia,
dançava y saltava con ellos.39
O padre que cantava e dançava com os nativos era nada mais nada menos que o
responsável pelo colégio de Salvador, o que demonstra que as orientações sobre danças e
cantos que recomendava o padre Loyola não eram seguidas à risca no Brasil. Não sei se
Tinhorão escolhe esse relato intencionalmente, porém como ele busca as origens de alguns
elementos inerentes a uma cultura tipicamente nacional, achamos uma das origens da
desobediência das leis e das normas no Brasil. A igreja é apostólica, portanto, permeável a
                                                                                                                       
38
 Apud  Tinhorão  (2000;  28,  29)  
39
 D.  Pedro  Fernandes  à  Simão  Rodrigues  (Bahia  1552)  Apud  Tinhorão  (2000;  29).    
  40  
 
 
 

uma interação entre os meninos órfãos, os padres e os nativos num fluxo de troca de saberes.
Prova disto são as constantes referências ao cantar no tom dos gentílicos, assim como a
referência ao uso de instrumentos que estão do lado oposto aos considerados sagrados. Este
ponto pode ser observado pelo termo “tañer” instrumentos, quando a orientação do papa era
que se pontilhasse o instrumento, ou seja, tocar por pontos (notas), e não por acordes. Essa
diferenciação é a base da oposição da música popular e a música clássica. Outro ponto são as
constantes desobediências às recomendações e a constituição da Companhia de Jesus, sendo
também visível na primeira frase “cantar todo los domingos”, pois para o catolicismo
domingo é o dia destinado a Deus e era recomendado que não se festejasse, trabalhasse ou
cantasse nesta data, de forma muito explícita nos dez mandamentos: “Guardai os domingos de
festa40”.

2.3 Jesuítas não cantam! Mas podemos sempre dar um jeitinho.


A organização jesuítica aparece em um período tardio dentro das ordens do
catolicismo. Ela remonta ao ano de 1539, quando Inácio de Loyola escreveu os primeiros
capítulos da “Summa”. Esta foi levada ao conhecimento do papa Paulo III, que relutou em
aceitar a criação da Companhia, primeiro porque a Igreja já possuía ordens religiosas em
demasia e, em segundo, porque a criação de novas fora abolida desde o 4◦ concílio de Latrão,
em 1215. Com a ajuda e intercessão de aliados importantes é promulgado em 27 de setembro
de 1540 a Companhia de Jesus, segundo O´MALLEY (2004, p. 5-6):
Todos que pretenderem, em nossa Companhia que desejamos que seja agraciada
com o nome de Jesus, militar por Deus sob o estandarte da cruz e servir somente ao
Senhor e à Igreja, Sua Esposa, à disposição do pontífice romano, vigário de Cristo
na Terra, professo o voto solene de castidade, pobreza e obediência, convença-se
profundamente de fazer parte de uma companhia instituída ao único propósito de se
ocupar especialmente da defesa e propagação da fé, e do progresso das almas na
vida e na doutrina cristã (1550, § 1)
Os jesuítas nascem com uma vocação militar, com um objetivo único, a
evangelização. A conjunção entre uma estrutura fortemente disciplinada e um objetivo da
conversão de almas em meio ao princípio das grandes navegações faz com que os jesuítas
sejam uma ordem destinada à pregação nas novas fronteiras. Isto não quer dizer que o corpo
burocrático e os canais decisórios da Companhia estivessem fora de Roma, ao contrário;
Loyola muda-se para a cidade eterna e passa o resto de seus dias lá, porém a América e as

                                                                                                                       
40
 Trata-­‐se  de  uma  modificação  católica  ao  original,  o  Shabat,  sábado  judaico.  
  41  
 
 
 

Índias se tornam uma obsessão41. Eram nessas novas fronteiras abertas que a Igreja procuraria
seus novos fiéis, após a Reforma Protestante que progredia a passos largos na Europa
setentrional. E a conversão dos gentios, nessas novas possessões ibéricas pelo globo, era a
mostra da capacidade que teria Roma de expandir os domínios da fé para um povo que
desconhecia os ensinamentos de Jesus, da fé católica e o conceito de Deus.
Assim, a empresa orquestrada por Loyola, para lograr êxito, deveria contar com a mais
alta disciplina de seus discípulos, pois eram poucos os que se aventurariam em terras hostis
com o mínimo de estrutura, e somente a confiança de que Deus abençoava essa empreitada. A
Companhia precisava de padres em tempo integral, de pessoas que se dedicassem ao
evangelho do nascer do Sol à hora de dormir. Assim viviam na pobreza para não perder tempo
negociando e não poderiam se dedicar a música, artes ou literatura (HOLLER, 2010). Estava
excluído das possibilidades dos jesuítas o desvio de suas funções, somente a salvação da alma
e consagração da hóstia eram permitidas para eles. Desta forma, podiam celebrar missas,
ouvir confissões, ensinar a catequese, cuidar dos colégios, rezar e fazer penitências; qualquer
outra atividade que não tivesse a função de converter as almas e elevar a moral dos já
batizados estava fora da área de atuação dos padres.
A preocupação da ordem religiosa com a música já figura no primeiro parágrafo da
“Suma”, em 1539, em que consta que os estabelecimentos jesuíticos não deveriam usar “na
missa e em outras cerimônias sacras, nem o órgão e nem o canto” (1539; 19). O revisor papal,
cardeal Ghinucci, achou as ordens da Companhia deveras restritivas, principalmente porque a
igreja luterana se utilizava da música como forma de atrair fiéis, e essa proibição poderia
fazer com que aumentasse a fuga de fiéis para as igrejas reformadas (HOLLER, 2010, p. 139).
Se no primeiro momento o revisor papal ganhou o debate, não tardou para que, em 1552, o
padre Loyola acabasse com a discussão e proibisse, finalmente, qualquer forma de canto e
música durante as missas e horas canônicas. Assim dizem as Constituições dos jesuítas, de
1558:
Visto que as ocupações assumidas visando à assistência das almas são de grande
importância e próprias da nossa Instituição, e muito frequentes, e como por outro
lado nossa residência neste ou naquele lugar é incerta, que os nossos não usem o
coro para horas canônicas ou missas, nem em outros ofícios cantados, uma vez que
àqueles, a quem sua devoção move a ouvi-las, abundam locais onde se possam
satisfazer (1583, p. 209-10)42

                                                                                                                       
41
  Os   jesuítas,   com   o   apoio   dos   reis   católicos,   enviam   missões   para   todos   os   portos   que   as   nações   católicas  
também   entrassem.   Assim   missões   se   espalham   pela   América,   Índia,   China   e   Japão,   tendo   como   um   dos  
grandes  pregadores  São  Francisco  Xavier,  até  a  expulsão  dos  católicos  na  ilha  asiática  do  Japão.  
42
 Constituições  da  Companhia  de  Jesus  in  Holler  (2010;  139).  
  42  
 
 
 

Essa ordem entrava em contradição com a prática musical desenvolvida pelos padres
tanto no Brasil quanto nas Índias. Principalmente no primeiro período de ocupação, em que a
proibição ainda não era absoluta. Os primeiros jesuítas chegaram ao Brasil no ano de 1549, e
a nova constituição vem a ser publicada em latim no ano de 1558. Embora o padre Loyola
demonstrasse uma desaprovação à prática musical pelos religiosos, a transformação dessas em
uma proibição demoraria mais um pouco para ser colocada em prática. Assim, os primeiros
membros da Companhia, que desembarcaram na colônia, utilizavam a música como uma
prática para atrair o gentio; coro, ritmos, festas, tudo o que servisse para quebrar a barreira
entre as duas culturas serviriam como meio de começar a evangelização.
Os padres que estavam espalhados pelas missões, nas diversas possessões católicas
pelo mundo, deveriam enviar notícias frequentes, fossem carta, ânuas ou comunicados. Estes
teriam uma conotação edificante, conforme já dito anteriormente, e as músicas desenvolvidas
pelos clérigos eram pouco mencionadas nas comunicações triviais. Confessar a prática do
canto entre padres e gentios seria o mesmo que assumir faltas graves junto aos superiores;
entretanto, mesmo evitando falar abertamente das músicas nas cartas que redigiam, outros
padres e religiosos remeteram as notícias do Brasil para seus superiores. Esta matéria acabaria
tomando parte, de uma forma ou de outra, nos registros eclesiásticos. Isto se torna motivo de
ásperos debates acerca de concepção religiosa e evangelização nas novas fronteiras, quando
escrita por visitantes estrangeiros, fossem eles de caráter religioso ou oficial. Muito chocavam
o povo da corte os hábitos desenvolvidos pelos jesuítas no Brasil, tanto no fato de utilizar a
língua do gentio para a catequese – quando na Europa ainda se utilizava o latim – e de utilizar
as músicas dos da terra, que seriam músicas pagãs e pouco celestiais para os padrões do Velho
Mundo. Assim, temos ainda nas Constituições:
Se em determinadas casas ou colégios for indicado, no tempo em que se tiver de
pregar ou ler à noite, para que detenha o povo em tais leituras ou prédicas, poderia
ser dito somente o ofício vespertino. Assim também ordinariamente nos domingos e
dias festivos, sem o chamado canto figurato ou firmo, mas em tom devoto, suave e
simples: e isso com a finalidade, e até onde for indicado, de mover o povo a
frequentar mais as confissões, pregações e leituras, e não de outro modo. No mesmo
tom poder-se-ia dizer o ofício que se costuma chamar “das trevas”, com suas
cerimônias, na Semana Santa (1583; 209-10)43
O canto figurado era um estilo comum nos conventos e missões católicas; ele contém
uma melodia cadenciada com sequências de notas longas e curtas, oscilando entre o breve e o
semibreve. Seu nome deriva de uma figuração “fora do corpo” que altera a cabeça da nota,

                                                                                                                       
43
 In  Holler  (2010,  p.  139-­‐140).  
  43  
 
 
 

sendo comum o uso de castrato44. Além do canto figurado se proibia a entrada de


instrumentos e de mulheres nos colégios. Todavia, os padres jesuítas da primeira missão do
Brasil comandavam músicas em cerimônias, como procissão e festas, sendo de muito agrado
para os indígenas que se aproximavam do ritual a partir da interação com a música. Não
apenas os da terra se aproximavam da religião através da melodia; a carta de Francisco
Estrada para Loyola mostra a preocupação do padre português com o poder de atração das
canções: “vindo a nossa capela e não ouvindo o canto, mas senão silêncio, dizem que os
cantos levam muito o povo a devoção, e que não ter é motivo para que muitos não venham a
nossa capela45”.
A aceitação restrita da incorporação musical pela Companhia limitava o potencial de
aproximação dos padres com os indígenas. No primeiro momento, eles se utilizavam do canto
de órgão para mostrar uma “superioridade” europeia, um motivo para a aproximação do
gentio junto aos padres músicos. Esse tipo de canto tem ainda mais variações musicais, sendo
comum ser acompanhado por instrumentos como o próprio órgão, cravo, violino e harpa,
além de se utilizar diferentes linhas de vozes como soprano, baixo, tenor, alto. Essas variações
da música católica era o objetivo com a fundação dos colégios dos jesuítas e a implementação
das aulas de músicas. Porém, isto entrava em choque com as novas diretrizes dos jesuítas. Os
cantos de órgão e figurado serviam para demonstrar uma superioridade cultural e aproximar a
cultura indígena em direção à europeia. Todavia era difícil para as missões manterem esse
tipo de organização, uma vez que dispunham de poucos homens, e para a execução desses
cantos, se necessita de grande quantidade de músicos, instrumentistas e cantores (RUSSEL,
2009).
Vendo a dificuldade de se obter empresa desse tamanho, principalmente nas missões,
tem-se a noção de por quê Loyola proibia que seus padres se empenhassem na música. Uma
empreitada desta envergadura em terras brasileiras faria com que os padres não se dedicassem
a outra tarefa. Principalmente porque lidavam com povos nômades, e que, de tempo em
tempo, saíam para suas jornadas e se esqueciam das civilidades adquiridas com os homens
brancos (TINHORÃO, 2000). O caminho encontrado por essa dupla negativa – proibição do
canto figurado nas missas e da prática musical pelos padres – foi a incorporação da
sonoridade do gentio. Os instrumentos indígenas seriam uma das saídas encontradas para a
integração entre padres e índios, só precisando alterar o conteúdo da música, que seguiria uma
                                                                                                                       
44
 Oriundo  da  prática  de  castração  de  homens  para  alcançar  tons  mais  agudos  de  voz,  sendo  muito  comum  nas  
republicas  italianas.  Mais  informações  sobre  o  canto  figurado:  Pacheco  (2004),  Russell  (2009).  
45
 Apud  Holler  (2010,  p.  142).  
  44  
 
 
 

melodia cristã, assegurando que se cantassem letras católicas sob o formato da cultura
ancestral. Para TINHORÃO (1972), esta seria a morte da música indígena, pois se retirariam
dela suas características e a incorporariam em outra realidade, tirariam a função de guerra,
chuva, colheita, sol e preencheriam com conceitos externos à produção e manutenção dessa
forma musical. Essa seria uma das formas em que se daria a “deculturação” da música do
gentio.
Essa tensão entre o Vaticano e a Companhia de Jesus esteve sempre latente nas
disputas cerimoniais das missas; assim, antes da morte do padre Loyola, em 1558, ele havia
afrouxado mais uma vez as restrições musicais, porém mantinha a proibição de instrumentos
musicais durante a missa, e permitia que estes tocassem nos ofícios de véspera do domingo e
dos dias santos. O conceito de “véspera” utilizado na proibição reforça o caráter de separação
entre os rituais: de um lado as missas continuariam sem o acompanhamento musical e abrir-
se-iam novos espaços no dia precedente à cerimônia, em que se utilizariam da música e dos
cantos. Mesmo com esse afrouxamento não estava permitido qualquer tipo de canto, pois
necessitava a incorporação de um canto que não fosse contrário aos preceitos da Companhia,
escolhendo o falso bordão. Também chamado de fabordão “é uma polifonia simples,
geralmente improvisada (...). Uma música para diversas vozes, mas simples e sem compasso,
cujas notas são quase todas iguais e cuja harmonia é sempre silábica” (HOLLER, 2010, p.
145-46).
A liberação da música na véspera dos dias santos aliada à manutenção da proibição do
canto por parte dos padres cria um novo grupo de pessoas que é incorporado, mesmo de
maneira indireta, à Igreja: os leigos dedicados à formação musical e preparação dos festejos.
No primeiro momento, os jesuítas procuravam recorrer aos alunos dos colégios; antes, os
meninos órfãos de Portugal; posteriormente, conforme fossem prosperando os colégios,
passariam a contar com os estudantes e os irmãos que ainda não fossem ordenados. “Nesta
quarta-feira comecem-se a cantar os ofícios da Semana Santa, e no dia de Páscoa comecem-se
as vésperas em um canto que tenha muita graça e devoção, parte em cantochão e parte
figurado46”.
Passado o primeiro momento, em que os padres jesuítas ainda entoavam canções junto
ao gentio, aumenta a necessidade de formação de um coro musical junto aos alunos do
colégio, com vistas a garantir uma música “divina” e liberar os padres para os confessionários
dos dias de véspera. “O ofício, que se começou a cantar na Quarta-Feira Santa (...), tiveram

                                                                                                                       
46
 Instrução  de  Inácio  de  Loyola,  1556,  p  183,  apud  Holler  (2010;  147)  
  45  
 
 
 

muito sucesso, e de grande maneira conquistaram almas de muitos; mas não por isso
diminuíram os confessores ou pregadores, porque os colegiais bastavam para fazer esta
festa47”. Assim, os alunos iam ganhando mais atividades para com o cerimonial litúrgico;
porém, como recomendava o próprio padre Loyola, só poderiam participar do coro aqueles
colégios que dispunham de “ao menos 50 pessoas”, (HOLLER,2010, p. 148). A preocupação
dos jesuítas com os seus padres era a de que estes se dedicassem estritamente aos anseios da
alma, tanto dos gentios, quanto dos colonizadores, portugueses ou não, no Brasil ou em outra
parte qualquer do mundo.

2.4 Samba não se aprende no colégio.


As restrições impostas pela Companhia de Jesus têm consequências diretas para com a
musicalidade que viria a se formar no Brasil. Estando a Igreja fechada para a música e
instrumentos sonoros, outro espaço ganha notoriedade e vai se configurar como lugar
privilegiado para as festas do povo: a rua. Assim, a divisão musical proposta por Tinhorão
entre a música sacra (erudita) e a música profana (popular) é acrescida de outra divisão entre
o público e o privado. Todavia, o próprio autor vai colocar as dificuldades de se dividir a
música entre sagrada e profana e as áreas de confluências existentes, condizente com a teoria
e metodologia proposta por ele. O duelo entre o sagrado e o profano se transfiguraria no
próprio duelo entre “classes”48.
Muito importante para o autor são as condições sociais que deram origem a
determinadas formas de se fazer música no Brasil. Desta forma, os condicionantes sociais
determinariam, em última instância, os modelos harmônicos e festivos da sociedade colonial.
A análise fundamental é saber quais forças disputavam a legitimidade sonora, tanto na Igreja
quanto fora, e como elas se organizavam para tal. A partir da forma de análise proposta pelo
Tinhorão, iremos travar o debate sobre o modo com que se organizavam as pessoas nas vilas e
aldeias para a produção de ritmos, utilizando, preferencialmente, os conceitos desenvolvidos
pelo autor e os arcabouços teóricos desenvolvidos por outros autores, tanto para situar as
possíveis origens de seu pensamento quanto para fazermos considerações sobre possíveis
lacunas.

                                                                                                                       
47
 Carta  de  padre  Polanco,  1556,  apud  Holler  (2010;  147)  
48
 Optamos  pelo  termo  “classes”  apenas  para  salientar  uma  disputa  entre  uma  ordem  hegemônica  contra  um  
grupo  de  pessoas  que  não  detinha  o  poder  temporal.  Mantivemos  a  palavra  “classe”  porque  é  esse  o  conceito  
utilizado  por  Tinhorão,  embora  alterne  com  o  conceito  “estrato  social”.  
  46  
 
 
 

TINHORÃO (2000) começa o quarto capítulo falando das restrições à música para
contemplação ou diversão nos colégios e faz a seguinte indagação: “seria o caso de perguntar
como se atendia a natural tendência das gentes às manifestações lúdicas, na área dos primeiros
núcleos urbanos da sociedade colonial” (TINHORÃO, 2000, p. 39). Ainda, há a reflexão
pertinente de BURKE (1995), que questiona sobre a conotação da festa. Com efeito, o autor
insinua ser a festa um elemento de equilíbrio social, admitindo que houvesse purgação dos
ressentimentos e compensação das frustrações dos grupos subalternos:
(...) a festa como um fenômeno cultural bem demarcado, um tempo coletivo em que
explosões vêm à tona como uma catarse, com estatuto de categoria histórica,
bastante bem circunscrita. (...) As festas são partes constitutivas da sociedade
colonial. Teriam elas conotação de “controle social” ou “protesto social”? Suas
funções se limitariam à diversão, pausa das tarefas cotidianas, tempo de
compartilhamento entre pessoas dos diversos estratos sociais, “ocasião de êxtase e
liberação”, “válvula de escape”? (BURKE, 1995, p. 223-6)

Seria ingênuo acreditar que as proibições evitem que as coisas aconteçam, elas apenas
originam outras formas, outros meios e outros lugares para ocorrer. Prova disto são as notícias
escritas pelo padre José de Anchieta em “Informações do Brasil”, de 1584:

É terra desleixada e remissa e algo melancólica e por esta causa os escravos e os


índios trabalham pouco e os portugueses quase nada e tudo se leva em festas,
convívios e cantares, etc, e uns e outros são mui dados a vinho e facilmente se tomão
dele e os Portugueses não o tem por afronta e desonra e os convívios que se dão
nesta terra, além de serem muitos e ordinários, são de grande custo e neles se fazem
49
muitos excessos de comerem esquisitices.
As considerações levantadas por BURKE (1995) servem de complementação à
proposta de Tinhorão. No que persiste das notícias enviadas pelo padre José de Anchieta, é
fruto da eterna busca do controle do corpo e das ações dos fiéis por parte da Igreja Católica. O
caráter contrariado com que se escrevem as linhas enviadas a Portugal seria a constatação de
um trabalho a ser realizado pelos jesuítas, pois a conduta, principalmente dos filhos da
metrópole, não estavam de acordo com os preceitos da religião. A teoria da etnocentricidade
europeia fica explícita na fala do religioso quando diz que os “Portugueses não os têm por
afronta e desonra e os convívios que se dão nessa terra, além de serem muitos e ordinários
(...)”. Embora não fique explícito se ele se refere aos escravos ou aos índios, isto pode fazer
diferença enquanto ao conceito de honra e desonra, pois embora os gentios fossem objetos de
desejo de evangelização, e ainda mais, eram bem quistos pela coroa, o ato de festejar e se
juntar aos escravos já não era recomendado. Todavia, o contato e miscigenação desejados
deveriam estar contidos dentro da “deculturação” do gentio, e nunca o oposto. Ainda por cima

                                                                                                                       
49
 Pe.  José  de  Anchieta  “Informações  do  Brasil”  p.  46.  
  47  
 
 
 

temos outro problema que não foi solucionado, nem mesmo com a leitura do original do padre
Anchieta: de que tipo de escravos se está falando, se os de origem africana ou indígenas que
foram capturados como escravos pelos bandeirantes? A carta se refere a festejos na vila de
Piratininga, atual São Paulo, e no período em que esta foi escrita, que não é o período dos
grandes empreendimentos exportadores, já se falava em que cerca de 30% da população
colonial era composta por escravos africanos50. Não temos as informações adicionais por
parte de Anchieta de que tipo de população se tratava, se de “negros” da terra ou se “negros”
africanos. Outro ponto é o fato de que a vila de Piratininga ficou mais conhecida pelo hábito
da “integração” do português junto ao gentio, sendo esse hábito mais comum do que nas
capitanias voltadas para o mercado externo, conforme HOLANDA (2004).
A estrutura dos colégios jesuíticos era a mesma nas diversas vilas do Brasil e das
outras colônias. A origem centralizadora da Companhia de Jesus não permitiria diferenças
significativas, principalmente no que diz respeito à hierarquia eclesial e às normas e condutas
dos próprios. E o colégio não era uma estrutura de pouca monta; ao contrário, ele ditava o
ritmo e desenvolvimento das vilas. Não é à toa que tanto em São Paulo, quanto Salvador e
Olinda o colégio é o centro da ocupação urbana, a partir dele e das igrejas que se desenvolvia
o resto do núcleo da colonização das vilas. Assim, as estruturas religiosas eram o próprio
centro da dinâmica social dessa forma de desenvolvimento. Não seria diferente com a
sociabilidade e com as práticas festivas e musicais: a forma dominante seria sempre a
empenhada pelos colégios. Os brancos ou mestiços que fossem sedentários, que vivessem nas
vilas e não nas aldeias, teriam uma formação regular pelo colégio. Embora o próprio padre
Anchieta reconhecesse que os alunos não se esforçavam muito nas aulas51, tanto na catequese
quanto nas línguas, o fato era que a iniciação musical desses se daria sob a influência das
normas católicas.
Essa prática musical dos colégios estaria em um polo de oposição na concepção de
Tinhorão; ela era direcionada a um público específico, os livres, brancos ou mestiços
sedentários. Outro ponto importante também era o fato de que ele deveria ser habitante da
vila, ou filho de proprietário que estivesse disposto a pagar pelo estudo de seus filhos. Porém
                                                                                                                       
50
  Capistrano   de   Abreu   “Descobrimento   do   Brasil”   faz   esse   cálculo,   embora   não   sejam   de   extrema   confiança   os  
dados  censitários  do  período,  ele  divide  da  seguinte  forma:  16%  de  brancos,  30%  de  escravos  africanos  e  50%  
de  indígenas  “amigos”,  num  universo  total  de  60  mil  pessoas.  Página  122.  
51
  “Os   estudantes   desta   terra,   além   de   serem   poucos   (as   aulas   de   ler,   escrever   e   contar,   segundo   o   próprio  
Anchieta,  tinham   “até  setenta   rapazes  filhos  dos  Portugueses”),  também  sabem  pouco,  por  falta  dos  engenhos  
e  não  estudarem  com  cuidado,  nem  a  terra  dá  de  si  (quer  dizer,  nem  o  ambiente  local  convida  a  isso),  por  ser  
relaxada,   remissa   e   melancólica,   e   tudo   se   leva   em   festas,   cantar   e   folgar”   José   de   Anchieta,   Informação   da  
Bahia  1585,  apud  Tinhorão  (2010,  p.  47)  
  48  
 
 
 

com a chegada da estrutura burocrática da metrópole a partir de 1549, o publico destinado a


morar nas vilas seria de funcionários da burocracia, com vistas administrativas de exportação
e importação, além do corpo destinado à defesa e religiosos. Ao redor dessas, algumas
fazendas despontavam, porém, as características do modelo econômico desenvolvido na
colônia não permitem uma diversificação e criações de camadas médias na sociedade. O
comércio interno era muito irregular e as propriedades agrícolas tomavam corpo
autossuficiente. Nesse ponto, surge o outro elemento do polo de oposição para o autor, pois, a
estruturação de uma musicalidade “autêntica” colonial dependeria de uma relação de relativa
autonomia por parte da colônia em relação à metrópole, e nesta questão concerne a
importância da formação de uma camada média, que não teria seus interesses econômicos e
políticos diretamente ligados a Lisboa.
As cidades do Brasil, assim como de Portugal, têm como característica principal o fato
de elas serem dominadas econômica e socialmente pelo campo (MARTINS, 1981). E este
último desenvolve dinâmica própria, tanto no que se refere à produção de bens materiais para
sobrevivência quanto no que diz respeito às formas de sociabilidade e lazer desenvolvidos
pela população (HOLANDA, 2004). Esse território encontra-se mais livre do controle real,
menos no que diz respeito aos impostos devidos, e afastado do controle eclesiástico. Os
poucos padres que se aventuravam no país estavam diretamente ligados à conversão indígena,
e os outros se fixavam nas cidades e deslocavam-se de quando em quando para o meio rural.
“E, assim, com as cidades voltando-se necessariamente ao campo, seria a cultura do campo
que iria projetar-se sobre o espaço da cidade” (TINHORÃO, 2010, p. 35).
No desenvolver do pensamento do autor, essa nova dicotomia que se abre entre as
festas e música no meio rural em contraposição ao urbano seria o desenvolvimento do
primeiro polo de oposição, já tratado anteriormente52. O processo de colonização baseado na
exportação de gêneros agrícolas traz uma forma de organização social e econômica distinta, a
própria gênese da vocação brasileira. Dentro de uma concepção marxista, como pressupõe
Tinhorão, traz consigo os sujeitos históricos desse processo. E estes trazem uma influência do
mundo rural português, de cantos, danças e folias de origem comunal com grande influência
pagã, e se é verdade que o meio rural influencia a cidade, esta forma torna-se a principal
herança da música popular que irá se projetar já no século XVI, com vistas a ser uma unidade
cultural que está na origem do país como portadora de uma “autenticidade”, herdeira de uma

                                                                                                                       
52
 Ver  capítulo  2.1  “A  primeira  missa  e  a  primeira  festa”  
  49  
 
 
 

tradição miscigenada desde a metrópole que tomará forma no Brasil a partir de fluxos e
interações com outras influências, negras e indígenas.
É de se supor, pois – admitindo como lógico que os portugueses integrados na vida
colonial não deixariam de aproveitar o repertório musical trazido de suas regiões de
origem -, ter havido ainda no século XVI paralelamente a esses cantos coletivos
profanos rurais tolerados pelos jesuítas, e aos cantos religioso-eruditos das igrejas,
um tipo de cantiga urbana semelhante àquela cultivada em Portugal pelos escudeiros
retratados nos autos vicentinos. (TINHORÃO, 2010, p. 34)
Nesse trecho, temos abertamente os polos que lutam por uma legitimidade cultural e
musical, o campo com sua influência de um catolicismo popular em disputa simbólica com a
erudição dos cantos promovidos pelas igrejas. A cantiga urbana aparece claramente no centro
dessa dicotomia, embora ela, herança dos escudeiros vicentinos, estivesse dentro de uma
síntese entre o permitido e o tolerado. E justamente o caráter de “tolerância” com as folias e
outros cânticos populares das zonas rurais portuguesas se transforma no elo entre os homens
livres, sejam eles pequenos produtores ou indígenas aliados. As folias se configuram como
uma festividade popular em louvor aos Santos Reis, “desfiles dançantes típicos da área rural
onde o grupo de folgazões precisa percorrer longas distancias até chegar ao local da festa”
(TINHORÃO,2010, p. 40-41). Como o autor trabalha a disputa simbólica a partir da visão dos
jesuítas, que deixaram a maior parte do material da época, se existe a tolerância dos padres e
se a origem da folia é a própria mistura de influências étnicas, ele conclui:

Segundo observaria ainda Serafim Leite, os primeiros contatos com os índios foram
propiciados exatamente pela “música de caráter exclusivamente popular no gênero
de folia”, ao que acrescenta, para não deixar dúvida quanto à origem profana da
criação: “Folia a que se não deve atribuir nenhum caráter religioso, mas de simples e
honesta diversão popular” (TINHORÃO, 2010, p. 41).
Ora, se existiam as folias é porque existiam também as comemorações natalinas53, e a
literatura dos padres rememora passagens que explicam o ritual desta que seria a principal
festa do catolicismo. As folias percorrem casas ou distâncias para chegarem a um local
sagrado, no mesmo espírito das peregrinações, na qual o final converge para uma festa. A
cultura popular aconselha a desmontar o presépio apenas no dia de reis, seis de janeiro, e o
papel dos foliões é visitar as casas na concepção simbólica de visitar os presépios. A
peregrinação e as danças junto à simbolização da manjedoura, onde nasceu o menino Deus,
como um local dotado de capacidades mágicas, é o próprio objetivo dessa festa. Visitar assim
como fizeram os Santos Reis no marco da mudança das eras – antes e depois de Cristo –

                                                                                                                       
53
  Festa   esta   que   remonta   às   comemorações   da   cultura   pagã   do   solstício   de   inverno.   A   partir   dessa   data,   23   de  
dezembro,   fecha-­‐se   o   ciclo   das   noites,   e   a   partir   de   então   os   dias   terão   cada   vez   mais   tempo   de   luz   abrindo  
outro  ciclo.  As  comemorações  natalinas  também  abrem  outro  ciclo,  a  da  redenção  do  filho  de  Deus  na  Terra  
para  redimir  os  pecados  humanos,  após  as  comemorações  de  natal  também  se  abrem  outras  possibilidades.    
  50  
 
 
 

dentro de uma simbologia que rememora as tradições pagãs da procissão se torna uma das
características principais da origem de uma “autenticidade” popular portuguesa que se
deslocaria para os trópicos. O padre Fernão Cardim relata sua viagem a Salvador, no ano de
1583, onde irá passar o Natal acompanhado do também padre Cristóvão Gouveia. Nele, ele
conta que já se comemorava à maneira portuguesa. “Tivemos pelo natal um devoto presépio
na povoação, onde algumas vezes nos ajuntávamos com boa e devota música, e o irmão
Barnabé nos alegrava com o seu berimbau”. E logo no Natal de 1584 ele também relatará
sobre a viagem do irmão Barnabé ao Rio de Janeiro: “Nesse colégio tivemos o Natal com um
presépio muito devoto, que fazia esquecer os de Portugal: e também cá N. Senhor dá as
mesmas consolações e avantajadas. O irmão Barnabé Telo fez a lapa, e à noite nos alegrava
com o seu berimbau.54”
Importante frisar neste ponto o cuidado na utilização dos termos pelo Cardim, pois nos
dois relatos ele chama Barnabé Telo de irmão, o que indica que ele ainda não havia sido
ordenado, já que nessa época era grande o esforço dos jesuítas para não permitir o canto e as
músicas feitas pelos padres, e as cobranças dos superiores sobre o deslocamento de funções
era demasiada. Esse aspecto desenvolvido pelos jesuítas faz com que eles necessitem criar seu
próprio corpo musical, pois se de um lado eles toleravam as cantigas “rural profano”
executadas com instrumentos mais simples e ligadas ao mundo popular português, como a
gaita, tamboril e agora o berimbau, estas não se enquadrariam na forma de canto perseguida
pelos evangelizadores.
É muito para louvar a Deus, ver nesta gente o cuidado com que já cristão acodem e
celebram as festas e os ofícios divinos. São afeiçoadíssimos à música e, prezam-se
muito do ofício e gastam os dias e as noites em aprender. Saem dextros em
instrumentos músicos, charamelas, flautas, trombetas, baixões, cornetas e fagotes;
com eles beneficiam, em canto de órgão, vésperas, completas, missas, procissões tão
solenes como entre os portugueses.55
Essa exigência musical na formação erudita dos internos do colégio complementaria o
argumento de Tinhorão; para ele esse currículo necessário para ficar apto a tocar nas
cerimônias oficiais da igreja aumentaria a distância entre uma esfera e outra da sociedade
colonial do século XVI: “o resultado dessa orientação universalista, em meio à pobre
realidade da sociedade colonial, foi, inevitavelmente, o isolamento cultural-musical da Igreja”
(TINHORÃO,2010, p. 43). Some-se ao fato as restrições à pratica musical dos padres, ponto

                                                                                                                       
54
  Cardim,   Fernão     “Tratados   da   Terra   e   Gente   do   Brasil”,   apud   Tinhorão   (2010).   É   importante   ressaltar   que  
nesse   ponto,   conforme   consta   na   nota   de   rodapé   feita   por   Tinhorão,   se   trata   de   um   berimbau   de   boca,  
instrumento   europeu   de   sopro   que   ressoa   uma   caixa   de   metal.   Não   se   trata   porém   do   instrumento   hoje  
conhecido  por  esse  nome,  nem  tampouco  existe  semelhança  entre  eles.  
55
 Vasconcelos,  Simão  “A  vida  venerável  do  Pe.  Anchieta”,  apud  Tinhorão  (2010;  43)  
  51  
 
 
 

este que não foi desenvolvido por Tinhorão. Observamos que se os jesuítas não podiam se
dedicar à música e se os alunos dos colégios eram instruídos ao sacerdócio, e sendo a
formação musical erudita um processo de lento aprendizado, isto significaria que quando os
alunos estivessem adiantados nos seus estudos, logo estariam proibidos de cantar e de tocar.
Assim, a formação de um corpo musical próprio e qualificado para a execução dessas tarefas
estaria sempre a cargo daqueles em processo de maturação intelectual, e os formados em
música e que optassem pelo celibato jamais poderiam retomar os ofícios litúrgicos que
necessitavam de acompanhamento, quer vocal, quer instrumental.
Esse processo de restrições, para além do “elitismo” do erudito religioso, é apregoado
por Tinhorão como causa do isolamento musical religioso; as intensas proibições jesuíticas
contribuíram mais para essa incapacidade da música sacra ocupar o papel integrador da
colônia. Seria um processo distinto se os padres recém-ordenados pudessem manter a prática
musical: teriam tanto mais músicos quanto mais professores de música ligados ao colégio,
tanto para a organização nas vilas quanto nas aldeias jesuíticas. A disputa pela legitimidade
das festas pendia para o lado da cultura popular justamente pelo fato de que os atores que
tinham a legitimidade do sagrado não poderiam se dedicar à música. O fato do “sagrado” não
poder dedicar-se à música não quer dizer que esta seria profana, mas justamente abre a
possibilidade de se profanar o espaço pela “ausência” do sagrado, ao menos no que tange à
condução cerimonial das festas.

2.5 Alguma coisa está fora da ordem


A cultura não é uma característica estanque em nenhuma sociedade. Ao contrário, ela
está em constante movimento; influenciada por circunstância de distintas ordens, ela se
desloca e tem a capacidade de açambarcar elementos que outrora estavam invisíveis em uma
determinada realidade. GEERTZ (1978) apresenta a cultura como um padrão de significados
que confere sentido às ações. Os significados estão emaranhados em uma rede de interações
sociais, formando um sistema. SAHLINS (1990) analisa culturas em contato, em que estas se
dão de maneira assimétrica entre os membros. Para explicar a morte do capitão Cook pelos
havaianos ele vai, como num modelo de romance policial, desvendar as circunstâncias que
fazem com que um povo que o idolatrava como a um deus levasse a assassinar o que
considerava como sagrado.

  52  
 
 
 

Para SAHLINS (1990)56 a cultura atualiza-se na ação dos sujeitos, e essa relação faz
com que alguns sentidos vão se ressignificando e influenciando as categorias sociais. A partir
da mudança da relação entre os termos que compõem cada cultura, seus agentes entram em
uma negociação simbólica para a alteração do significado dos elementos em jogo. Desta
forma, a mudança do significado de um dos termos em jogo acaba por alterar a relação entre
os termos da cadeia. Esse processo tende a ser mais intenso quanto mais desigual for a relação
entre os agentes. Em um processo em que as trocas culturais ocorrem juntamente com uma
dominação de um grupo em relação a outro as alterações dos significados dos termos tendem
a ocorrer de maneira ainda mais intensa. TINHORÃO (1972) vai chamar a troca desigual e
dominadora dos portugueses em relação aos indígenas de “deculturação”.
Esse processo, para o autor, ocorre quando os rituais religiosos e culturais
(principalmente a partir da música) do gentio começam a servir para outros propósitos do que
os que anteriormente formavam uma unidade, quando ocorre uma alteração do processo de
significados que leva uma cultura (a dominante) a colocar a sua compreensão de mundo
dentro dos elementos ritualísticos anteriormente formulados e compartilhados por uma
determinada cultura (dominada). Esta “espoliação” dos significados altera toda a cadeia na
qual estava inserida, e esse jogo é o que marcaria a nova síntese que levaria os havaianos a
assassinarem seu próprio deus (ou os romanos). Portanto, no encontro entre sociedades
distintas, a disputa cultural tende a se acirrar na confrontação dos elementos que
anteriormente eram dominantes pelos novos, imbuídos de significados díspares daqueles que
formavam uma unidade cultural.
VAINFAS (2001) e WITTMANN (2011)57 vão interpretar uma festa indígena
denominada pelos portugueses como “Santidade”. Este festejo se configuraria para eles como
um dos principais entraves sofridos pelos jesuítas no processo de conversão. “Porque se é
verdade que a história da Santidade está mais para tragédia que para festa, ela sem dúvida
começou numa festa. Terminou em tragédia, mas começou em festa” (VAINFAS, 2001, p.
216). A primeira descrição desse festejo surge nos relatos do padre Manuel da Nóbrega, em
1549, “o fez meio assustado e confuso, pois a cerimônia que presenciou contrariava sua

                                                                                                                       
56
 Sahlins  (1990,  p.  7)  “A  história  é  ordenada  culturalmente  de  diferentes  modos  nas  diversas  sociedades,  de  
acordo   com   os   esquemas   de   significação   das   coisas.   O   contrário   também   é   verdadeiro:   esquemas   culturais   são  
ordenados  historicamente  porque,    em  maior  ou  menor  grau,  os  significados  são  reavaliados  quando  realizados  
na  prática.”  
57
  Vainfas,   Ronaldo   “Da   festa   Tupinambá   ao   sabá   tropical:   a   catequese   pelo   avesso”,   in   “Festa:   cultura   e  
sociabilidade  na  América  portuguesa”,  Jancsó  e  Kantor  (2001).  Wittimann,  Luisa  “Flautas  e  maracas:  música  nas  
aldeias  jesuíticas  da  América  portuguesa”  (2011).  
  53  
 
 
 

opinião de que os índios não tinham fé nenhuma e eram como tábula rasa, papel branco onde
se podia escrever à vontade58”.
Mencionava o jesuíta que, de tempos em tempos, surgia um feiticeiro (nos termos de
Nóbrega), vindo de terras distantes, que era recebido com festas e regozijo na aldeia.
Apresentava-se com um elemento ritualístico e musical importante na marcação rítmica
tupinambá: a maracá. Esta era enfeitada conforme a condição que representava o feiticeiro no
processo ritualístico, geralmente adornada com plumas, olhos, dentes, boca e penas, e ambos
(feiticeiro e maracá) começavam a dialogar entre si até que entrassem em transe. “Os índios o
rodeavam, bailando em passos ritmados uma melodia triste e monótona, e de súbito já não era
ele, “feiticeiro”, quem falava, mas o espírito do ancestral abrigado na cabaça de poderes
mágicos”59. Da boca dos feiticeiros surgiam profecias que diziam que os índios não
precisariam mais trabalhar, que as flechas cairiam do céu e acertariam apenas as caças, que as
velhas se tornariam jovens e que os grandes guerreiros se tornariam imortais. O transe seguia
entre os participantes da festa, embebidos com fumo e fermentados de mandioca. A
nomenclatura dessa festa, Santidade, foi cunhada pelo próprio padre jesuíta, porém ele
deixava claro que se tratava de uma falsa santidade.
Este ritual foi observado por diversos outros padres e observadores da corte, em
diversas partes da colônia, Bahia, São Vicente, Piratininga, Maranhão etc., e seguiam uma
estruturação semelhante nos diversos pontos observados, inclusive no que diz respeito às
profecias entoadas pelo feiticeiro sob a orientação dos espíritos que habitam a cabaça
recheada de sementes que os nativos chamavam de maracá. WITTMANN (2011) vai utilizar
o conceito de religião enquanto tradução, retirando dos indígenas a condição de “vítimas” e
realocando sua cultura enquanto uma negociação permanente entre a cultura pré-colonial e o
catolicismo. Tinhorão já havia assinalado a utilização das melodias indígenas, estas sendo
apropriadas pelos missionários para alterar o seu sentido, retirando as conceptualizações
xamânicas e imbuindo-lhe de características católicas ocidentais. Os padres jesuítas
aprenderam a falar tupi e outras línguas do gentio, faziam pregações em português, latim e na
língua geral. Essa alteração significaria para Tinhorão a “deculturação” dos povos originários,
o que WITTMANN (2011) vai chamar de culturas em negociação, em que as características
anteriormente verificadas entram em um processo de incorporação de outros elementos, onde
a estrutura sofre alterações significativas, porém confere uma negociação permanente, o que o
Tinhorão trabalha como síntese.
                                                                                                                       
58
 Pe.  Manoel  da  Nóbrega,  apud  Vainfas  (2001;  216)  
59
 Pe.  Manoel  da  Nóbrega,  apud  Vainfas  (2001;  216)  
  54  
 
 
 

O conceito de tradução permite o entendimento de uma conjuntura missionária


dinâmica, onde elementos religiosos são cotidianamente ressignificados. Contribui,
assim, para esta inclusão da sonoridade como mediadora das relações entre sujeitos
históricos culturalmente distintos. Se a música era significativa na religiosidade
indígena e, consequentemente, nas cerimônias religiosas das aldeias jesuíticas, deve
ser percebida e analisada como elemento importante do contato entre ameríndios e
missionários. O que quero ressaltar é que a constituição da comunicação se deu
também através da música que era intensa e poderosa por ser canal de expressão
religiosa. Percebe-se a eficiência do efêmero, de um efêmero sonoro, imaterial, parte
do ritual pré-colonial e missionário. Se o religioso foi à linguagem da tradução, esta
não poderia ter se dado sem um dos seus aspectos fundamentais, o sonoro.
(WITTMANN, 2011, p.26).
Esse debate serve de reflexão para entender o catolicismo não apenas como um
apêndice do praticado na metrópole. Ele torna-se dinâmico, influenciando tanto os
missionários, que aprendiam as línguas originárias como forma de interlocução numa época
em que a missa era rezada em latim dentro do espaço da igreja, quanto na negociação musical
entre jesuítas da colônia e seu mentor Inácio de Loyola. Todavia, a alteração de significados
não se deu apenas na esfera dos colonizadores, que puderam adaptar sua concepção de mundo
dentro do universo simbólico compartilhado pelos indígenas. Estes mesmos foram capazes de
se reinventarem dentro do universo religioso apresentado pelos jesuítas. E o ritual da
Santidade configura-se como a resistência principal ao catolicismo no Brasil. Ao desvendar as
características desse ritual no Recôncavo Baiano por volta de 1580, VAINFAS (2001) conclui
que a santidade era ao mesmo tempo resistência ao colonialismo e amálgama cultural
católico-tupi.
A festa da Santidade foi bastante relatada, seja por viajantes como Hans Staden ou o
huguenote Jean de Lery, e por jesuítas como Azpicuelta Navarro, Anchieta, Cardim, além do
próprio Nóbrega. Todos eles estavam descrevendo o funcionamento ritualístico ainda no
século XVI, o que faria que esse ritual guardasse mais similaridade com a forma pré-colonial.
Os relatos convergem em muitos aspectos ritualísticos, guardando uma semelhança entre o
observado por Hans Staden nas proximidades de Bertioga, quando este era cativo dos
Tupinambás, e os relatos de Manoel da Nóbrega sobre as aldeias baianas. Relatos como o de
Jean de Léry ainda constam com datação musical em caderno de pauta, numa tentativa de
racionalizar a estrutura musical indígena.
Os selvagens acreditam numa coisa que cresce de forma parecida a uma abóbora.
Eles enfiam um bastão através dela, recortam um buraco com a forma de uma boca e
colocam pequenas pedras em seu interior, de modo a fazer um chocalho. Com isso
fazem barulho quando cantam e dançam. Dão-lhe o nome de maracá. Cada homem
tem o seu próprio maracá (...) [os pajés] anunciam que um espírito vindo de muito
longe esteve com eles e lhes delegou poder, que todos os chocalhos – os maracás –
poderiam falar e receber poder. Preparam uma grande festa, bebem, cantam e fazem
adivinhações, e se entregam a diversos usos estranhos. (...) Quando estão todos
reunidos, o adivinho pega os maracás um a um e lhes aplica uma erva que chama de
pitim. Então ele segura o chocalho bem próximo à boca, agita-o e lhe diz: “Né cora”,
  55  
 
 
 

agora fale e faça-se ouvir quando estiver aqui dentro. A seguir fala em voz alta e
rapidamente uma palavra de modo que não se pode reconhecer direito se é ele ou o
chocalho que emite o som. As pessoas acreditam que é o chocalho, mas é o feiticeiro
mesmo quem fala. Assim ele faz com todos os chocalhos, um depois do outro, e
todos os selvagens pensam que seu chocalho tem grande poder. Então os feiticeiros
ordenam que vão à guerra e capturem prisioneiros, pois os espíritos que habitam os
maracás se deleitam comendo carne dos escravos. Depois disso partem para a
guerra60.
Ademais, as referências sobre a existência ou não de divindades dentro das maracás
nos trazem algumas revelações da maneira organizativa do ritual ocorrido no litoral sul da
província de São Vicente. Do ponto de vista da estruturação musical, rítmica e melódica
entoada pelos nativos durante o processo, esta passagem nos remonta poucas informações,
apesar da elucidação cerimonial. Então, devemos abordar outros personagens que nos
ajudarão a compreender outras passagens. Léry presenciou este ritual também junto aos
Tupinambás61 na região do Rio de Janeiro. O relato de Léry conta com a vantagem de ter mais
conhecimentos musicais do que Staden, e a desvantagem de ter menos conhecimento da
língua do gentio que o alemão.
Essas cerimônias duraram cerca de duas horas e durante esse tempo os quinhentos
ou seiscentos selvagens não cessaram de dançar e cantar de um modo tão
harmonioso que ninguém diria não conhecerem música. Se, como disse, no início
dessa algazarra, me assustei, já agora me mantinha absorto em coro ouvindo os
acordes dessa imensa multidão e sobretudo a cadência e o estribilho a cada copla:
Hê, he ayre, heyrá, heyrayre, heyra, uêh. (LERY, 1980, p. 209).
Tanto Léry quanto Staden descreveram a marcação rítmica da música indígena através
da utilização do pé. Desta forma, eles alterariam em um tempo constante forte e monótono,
sendo quebrado de tempos em tempos com a perna oposta à da marcação. Outra característica
é que além das maracás que eram tocadas com a mão e suspensas por um pequeno cabo
também se amarravam junto ao tornozelo pequenos guizos para funcionarem como chocalho,
complementando a parte rítmica do ritual e preenchendo a harmonia. “Depois, todas as
mulheres começaram a cantar. Para acompanhar o ritmo delas eu devia bater no chão com o
pé da perna à qual estavam amarrados os chocalhos, para que fizessem ruído e se adequasse
ao canto delas62.”. Quanto ao enredo das músicas entoadas, Léry nos indica que se trata de
uma melodia seca, composta de poucas palavras que se repetem constantemente. Podendo se
referir aos animais, caça, ou mesmo como entonação de repulsa a um grupo inimigo, no caso
dos rituais antropofágicos conforme assinalado por Staden. Outra variação das músicas no
ritual da Santidade seriam as derivações das próprias profecias que saíam da boca dos
                                                                                                                       
60
 Descrição  de  Hans  Staden  sobre  o  ritual  da  Santidade  enquanto  era  prisioneiro.  In  Wittman  (2011,  p.    128)  
61
  Léry   acompanhou   a   cerimonia   enquanto   aliado   dos   Tupinambás,   uma   vez   que   os   huguenotes   tentavam  
também   a   colonização   das   Américas,   o   que   ficou   conhecido   como   França   austral.   Ao   passo   que   Hans   Staden  
acompanha  o  ritual  enquanto  um  aliado  dos  Tupiniquins  capturado  em  guerra.  
62
 Relato  de  Hans  Staden  in  Wittimann  (2011;  136)  
  56  
 
 
 

caraíbas. E, justamente, essas profecias seguiam normas variáveis; para Staden, era a guerra
que se aproximava, e para Azpicuelta, eram profecias sagradas de dias, em que os índios não
precisariam mais trabalhar: as caças seriam buscadas por flechas que cairiam do céu e assim
sucessivamente, conforme o relato.
En mitad de una plaça tenían hecha una casa grande, y en ella otra muy pequeña, en
la qual tenían una calabaça figurada como cabeça humana, muy ataviada a su modo,
y dezían que aquel era su sancto, y llamávanle Amabozaray, que quiere dezir
persona que dança y huelga, que tenía virtud de hazer que los viejos se tornassen
moços. Los índios andavan pintados con tintas, aun los rostros, y emplumados de
plumas de diversos colores, baylando y haziendo muchos gestos, torciendo las bocas
y dando aullidos como perros; cada uno traýa en la mano uma calabaça pintada,
diziendo que aquellos eran sus sanctos, los quales mandavan a los Indios que no
trabajassen, porque los mantenimientos nacerían por sí, y que las flechas yrían al
campo a matar la caça. Estas y otras muchas cosas, que eran para llorar muchas
lágrimas, vi63.
Os primeiros relatos das festas da santidade seguem um padrão que configuraria uma
cultura em equilíbrio, mantendo uma relação direta com a valorização de um modo de viver
que era compartido tanto pelos Tupinambás, descrito por Staden e Léry, quanto entre os
descritos pelos padres jesuítas. VAINFAS (2001) vai dizer que começam a ocorrer
transformações na festa a partir dos anos 60-70 do século XVI. A mudança mais significativa
não tem origem na morfologia da festa, esta continuava a ter como elemento central a
embriaguez, o tabaco, a dança ritmada e monótona, as maracás, o transe coletivo e a
participação central de um caraíba, que vinha de fora para revelar as profecias ditadas pelos
ancestrais. A principal mudança ocorreria nos dizeres que revelariam à Santidade. “Foi
assumindo um caráter novo, a história penetrando dentro do mito (...) e dirigindo sua fúria
beligerante contra os portugueses.” (VAINFAS, 2001, p. 218). Contudo, se continuava a falar
que as velhas virariam jovens, também aumentaram seu arcabouço profético e passaram a
dizer que os padres passariam a não existir, os portugueses seriam mortos ou se tornariam
escravos dos índios, que as doenças acabariam e nenhum nativo mais seria escravo. O mito
sofreria assim as transformações e atualizações históricas. O contato com o homem branco e o
fluxo cultural oriundo do contato entre os grupos faz com que as relações sociais entre as
culturas interfiram no mito. Mesmo que ele continue pregando o mundo macunaímico do não
trabalho e das mulheres jovens, ele tem a interferência do mito que sofre uma atualização.
WITTMANN (2011) vai usar a festa da Santidade para ajudar na formulação de uma
das suas teses de negação à “deculturação” indígena, conforme proposta por Tinhorão.
Embora o conceito tenha caído em desuso e apresente outras formas de se pensar o fluxo

                                                                                                                       
63
Do   P.   Juan   de   Azpilcueta   Navarro   aos   padres   e   irmãos   de   Coimbra.   Porto   Seguro,   24   de   junho   de   1555.   In  
Wittman  (2011;  126)  
  57  
 
 
 

cultural entre um lado dominante e outro dominado, é importante retomar o conceito. Para
Tinhorão, o ato de colocar elementos europeus dentro do referencial cultural indígena
formaria o ato de “deculturação”, não apenas aceitar a versão musical do padre conforme
salientado pela autora em “Flautas e maracás”. Mas o mito também se tornava rebelde apesar
de colonizado. “O mito parecia colonizado, apesar da festa intacta. Mas o mito tornar-se-ia
rebelde, a fomentar fugas, revoltas, assaltos a engenhos e missões.” (VAINFAS, 2001, p.
219).
O rito ganha rebeldia, mas junto com ele assegura um discurso de legitimidade
católica. Embora essa festa não seja ponto de formulação de Tinhorão para o discurso da
“deculturação”, o exemplo apresentado para seguir “o sentido oposto” daquele colocado por
WITTMANN (2011) na crítica ao conceito do Tinhorão, se não é reforçado pela principal
referência teórica utilizada por ela, VAINFAS (2001) reforça o conceito de Tinhorão.
Primeiro, é preciso salientar que ele está preocupado com a “deculturação” musical e não
ritualística; muitas vezes, o termo é refutável, porém não o conceito que está por trás. Dessa
forma, os elementos do catolicismo vão adentrando ao ritual da Santidade, e estes não vêm
acompanhados de uma intromissão dos jesuítas, e sim vêm dos próprios indígenas durante a
época mais rebelde do ritual.
A Santidade de Jaguaripe se adornou de catolicismo para subvertê-lo; conviviam em
conjunto a embriaguez, as fumaças e a melodia monótona que acompanhava o ritual, quando
descrito pela primeira vez pelo padre Manoel da Nóbrega. Agora, a versão escrita por padre
Anchieta, em 1585, era carregada de outros simbolismos. O gentio, além de tocar a maracá,
agora também empunha um rosário, que acompanha a sua reza. Erigiam uma cruz de madeira
à porta da Igreja, onde faziam o ritual. Eles realizavam o batismo invertido, utilizando os
mesmos elementos do ritual católico, óleos e águas; mudavam seus nomes para o arcabouço
simbólico romano. Não para os nomes que eles ganharam dos membros das suas tribos, não
para nomes que dialogavam com seus ancestrais. “Entre os nomes dados ao alto clero desta
Santidade, pontificaram verdadeiros santos, São Luís, São Paulo, São Pedro, um tal
Santíssimo, um outro Santinho, sem falar de certa índia que ostentava o título de Santa Maria
Mãe de Deus” (VAINFAS, 2001, p. 220).
O catolicismo estava presente não apenas no nome; a apropriação ou a transformação
de elementos sagrados xamânicos numa profusão eclética com formas pagãs e estrutura
romana terminavam por completar a nova “cara” dessa forma religiosa. “A mescla católico-
tupinambá dessa Santidade parecia não ter conhecido, de fato, nenhum limite. O caraíba-mor

  58  
 
 
 

do movimento dizia ser Tamandaré, ancestral dos tupinambás, ao mesmo tempo em que
apregoava ser o verdadeiro papa da Igreja.” (VAINFAS, 2001, p. 220). Outro elemento é a
transformação de uma religião politeísta em uma monoteísta a la católica. Os jesuítas
elevaram a importância ritualística de Tupã (herói-trovão), que foi simbolizado como o Deus
romano. Já os tupinambás criaram o Tupanasu, o herói trovão acrescido do sufixo “asu” ou
“açu”, que acrescentava grandeza na língua geral, tornando-se o Deus grande dos tupinambás,
criando um ídolo de pedra, personificado com boca, olhos, nariz, cabelos e roupas. As
maracás que conversavam com os espíritos dos ancestrais, que serviam de veículo entre o
mundo dos mortos e dos vivos são substituído por um ídolo, ou Deus, Tupanasu, que se ainda
mantinha feições limítrofes entre humano e natureza, começava a se vestir cada vez mais de
características humanas e cada vez menos de natureza.
Para demonstrar esta parceria inaciano-tupinambá na metamorfose da festa e das
crenças indígenas, elegeria, entre inúmeros episódios, uma ocasião em que os
jesuítas adentraram uma aldeia e desafiaram o pajé-açu que lá estava a pregar.
Disseram então os padres, entre outras coisas, que os índios não deviam acreditar
naquele feiticeiro, que era um falso pajé-açu, pois o verdadeiro pajé-açu era o bispo
da Bahia. Pois bem, se os jesuítas se permitiam dizer que o verdadeiro pajé-açu era o
bispo, porque o pajé-açu, como o caraíba da Santidade, não poderia alegar que era
ele o verdadeiro papa? Nesta luta pelo monopólio da santidade, o território de
desacertos e incertezas seria de todo incontrolável e imprevisível. (VAINFAS, 2001,
p.220).
No ano de 1585, os jesuítas destruíram a Santidade de Jaguaribe; era uma heresia
praticada pelos tupinambás desse sabá tropical. As causas parecem bem mais pela disputa da
santidade entre qual pajé-açu teria mais poder do que a tradução para a língua geral e para a
cultura tupinambá dos elementos do catolicismo, que utilizaram os recursos e mitos indígenas
para “exprimir a doutrina cristã e as hierarquias da igreja”. Talvez aí esteja a falha no
processo, disputar a legitimidade do sagrado com os inquisidores, ou professar que os padres
desapareceriam e os portugueses seriam escravos. Todavia, mesmo com a resistência do
gentio na transformação do mito, ele recheia de elementos católicos para fazer a mediação da
sua cultura, substituindo lentamente as relações entre os entes, humanizando a natureza ao
mesmo tempo em que forja a partir do catolicismo as relações entre os indígenas na esperança
de que, assumindo essa forma, negociando os símbolos com os inacianos, se livraria da
escravidão indígena que a maracá havia anunciado.
Mesmo que não possamos qualificar esse episódio como a “deculturação”, conforme
anunciado em Tinhorão, ele se aproxima melhor da experiência de subordinação cultural do
que a “tradução”, conforme o conceito de WITTMANN (2011). Os jesuítas traduziram,
literalmente, suas orações dentro de um contexto que já estava estruturado, a capacidade de
síntese dentro desse processo é muito difícil. O fato de haver a resistência dos Tupinambás
  59  
 
 
 

não elimina o fato de que, na melhor das hipóteses, exista uma troca desigual. Acho que isso,
ela também não negava. Talvez o exemplo que ela tenha utilizado não a ajudara muito, porém
pouco importa, a preocupação central do conceito do Tinhorão não era com a religião
indígena, e sim com a música. Pensando em Simmel, poderíamos dizer que a forma
permanece e o conteúdo se altera. Todavia a palavra “altera” ainda soa um pouco “neutra”
para o grau de transformação que ocorre dentro desse paradigma.

2.6 Considerações sobre a música na sociedade inaciana.


Pensamos esse primeiro século de colonização como um processo, em que não havia
um projeto estruturado para o Brasil. Desta forma, ele caminha muito ligado à prática
jesuítica. Isso talvez seja uma falha na proposta de formulação do eixo intelectual do
Tinhorão, pois se este pensa uma “autenticidade” festiva e musical que passasse ao largo do
modelo engessado das instituições religiosas, são justamente estas que vão lhe fornecer os
materiais de pesquisa. Está certo que uma parte das fontes, mesmo que de origem religiosa,
vem justamente para agraciar sua concepção; falamos particularmente dos relatórios da
inquisição. Nada mais profano e blasfemador do que enxergar sua tese sendo confirmada no
tribunal da Santa Inquisição. Neste primeiro momento, a preocupação do autor é mostrar
como se deu a inserção musical da primeira parcela da população que migra para os trópicos.
Desta forma, consolida-se uma condição que o acompanhará por toda sua obra, a oposição
irreconciliável da cultura popular e da cultura dominadora.
Nos primeiros duzentos anos da colonização portuguesa no Brasil, a existência de
música popular se tornava impossível desde logo, porque não existia povo: os
indígenas, primitivos donos da terra, viviam em estado de nomadismo ou em
reduções administradas com caráter de organização teocrática pelos padres jesuítas
(TINHORÃO, 1975, p. 5).
Desse contato entre portugueses e indígenas se abririam duas lacunas: de um lado uma
integração entre jesuítas e nativos dentro das aldeias que serviam à conversão, e de outro,
entre aventureiros ou camponeses que vieram para os trópicos e tinham contatos esporádicos
com o gentio. Tinhorão vai mudando o papel desempenhado pelos migrantes portugueses que
não estavam ligados nem à Igreja e nem à Coroa, e assim ele pôde apresentá-los como uma
“pequena burguesia64” que “constituíam uma minoria sem expressão, o que os levava ora a
identificar-se culturalmente com os negros, ora com os brancos da elite pelos proprietários
dirigentes.” (TINHORÃO, 1975, p. 5). Todavia, sua concepção vai mudando de acordo com o
transcorrer da sua obra, afinal de contas, depois de quase 50 anos escrevendo livros seria de

                                                                                                                       
64
 Na  concepção  de  Marx  em  “18  do  Brumário  de  Luís  Bonaparte”  
  60  
 
 
 

estranhar se sua posição permanecesse fixa. Posteriormente, ele desenvolverá um conceito


onde o português que migra nas primeiras levas tem uma identidade de camponês, conforme
trabalhamos neste capítulo. Essa posição aparece 25 anos após escrever “Pequena história da
Música Popular” e se encontra na “História Social da Música Popular Brasileira”.
A importância do conceito é notável, pois, se muda quem é o agente, muda-se também
sua função enquanto sujeito histórico. Assim, o imigrante que vem da Europa para os trópicos
tem suas características cambiadas, conforme as evoluções dos debates acadêmicos vão se
desenvolvendo. Embora fiquem explícitos nas diferenças entre os dois livros citados, não se
encontra nenhuma obra em sua bibliografia posterior ao lançamento da “Pequena História da
Música Popular” que pudesse justificar sua mudança de concepção acerca do camponês
migrante. As obras posteriores a 1974 que surgem nas referências bibliograficas da “História
Social da Música Popular Brasileira” são referentes à música, uma obra sobre Jazz e outra
sobre o Cartola, além de reimpressões ou edições com datas mais recentes que não
justificariam uma mudança na forma de pensar. E, finalmente, em sua obra posterior “As
festas no Brasil Colonial”, que nos acompanhou mais de perto e que continuará no restante
dessa dissertação, ele já apresenta um arcabouço mais exato de novas ideias e debates no meio
intelectual. Por isso que buscamos nesta obra os conceitos mais relevantes para o debate sobre
a estruturação do pensamento do autor. Portanto, é a partir desta que conseguimos ter algumas
das posições mais originais e mais fluidas sobre história, sociologia, música e festas.
Talvez essa seja uma inflexão importante que o autor faz, pois ele parte da crítica em
jornais ou em estudos mais densos em revistas e livros, e não se nega que ele tem um
conhecimento aprofundado sobre o assunto. Todavia, quando ele coloca a festa como objeto
de estudo simultaneamente à música, como na “Festa no Brasil Colonial”, as relações sociais
que acompanham os momentos de sociabilidade aparecem, são desvendadas, as relações
omissas ou que necessitavam de uma observação mais densa vão da aparência à essência. Isso
se torna particularmente importante, pois ao longo dos seus 28 livros, ele levantou muita
informação. Principalmente no que diz respeito às fontes históricas, este trabalho está muito
bem feito em suas obras, e sua concepção musical é apurada dentro daquilo que ele percorre.
Justamente sobre o ponto da música que entra a maior polêmica sobre a primeira parte
do texto, o conceito de “deculturação”. Se hoje conceitos como este ou como o de
“aculturação” estão fora de moda do universo acadêmico, o mesmo não se pode dizer do ano
de 1972. O debate cultural que se fazia naquele período permitia um amplo a partir deste
conceito, intelectuais marxistas como a antropóloga Nancy Fraser também o utilizaram,

  61  
 
 
 

porém para explicar coisas distintas. Desta forma, procuramos precisar o que Tinhorão propôs
com este termo e separá-lo do que entendeu WITTMANN (2011) sobre ele. Dessa forma, a
autora coloca a crítica sobre o conceito de “deculturação” proposto por Tinhorão nos motivos
que a levaram a escrever sua tese, o que nos fez esperar que realmente trouxesse esse debate à
tona, porém ela o faz em duas notas de rodapé (13 e 14) ainda na Introdução da sua tese.
Reproduzimos as duas para comentar posteriormente:
13 TINHORÃO, José Ramos. “A deculturação da música indígena brasileira”.
Revista Brasileira de Cultura, ano IV 4, n. 13, jul/set, 1972, p. 10. GALLET,
Luciano. Estudos de folclore. Rio de Janeiro: Carlos Wehrs e Cia, 1934, p. 37. O
etnomusicólogo Rafael Bastos sugere que as concepções de Gallet estão na base do
pensamento sobre a música brasileira, no qual a fábula das três raças retroagiria a
duas. A mestiçagem musical brasileira não incluiria participação indígena, tendo a
música brasileira se formado a partir da melodia e da harmonia portuguesas em
junção com o ritmo africano. A razão disso seria a abissal diferença dos sistemas
musicais indígenas, incompatíveis ao amálgama, ou mesmo extintos devido à
catequese jesuítica.
Assim, o branco e o negro foram eleitos como representantes da nacionalidade
brasileira. “Em contraposição a isto, o ‘índio’ é remetido para os confins do sistema,
para o mato, a floresta, o abismo do estado-nação moderno brasileiro que ali se
engendrava”. Nesta perspectiva, a admissão dos jesuítas de algumas das
manifestações indígenas seria apenas exemplo de astúcia por parte dos missionários.
A estratégia de aceitação fingida teria como escopo a imposição dos valores cristãos
e, por fim, o abalo sem retorno do modo de vida considerado selvagem. A síntese
cultural brasileira estaria reservada a outro sujeito histórico, elemento de fora, que
como o português teve que atravessar o oceano para alcançar a América, mas veio
para tornar-se a parte explorada do sistema escravista. BASTOS, Rafael José de
Menezes. “O índio na música brasileira: recordando quinhentos anos de
esquecimento”. In: TUGNY, Rosângela. QUEIROZ, Ruben (orgs). Músicas
africanas e indígenas no Brasil. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006, p. 122.

14 Alguns autores endossaram as ideias de Tinhorão, entre eles Vasco Mariz e


Bruno Kiefer, com um viés eurocêntrico e evolucionista: “Obviamente uma
civilização de nível tão baixo como a de nosso indígena teria de soçobrar ante uma
influência tão poderosa quanto à europeia. Ocorreu então o que se chamou,
apropriadamente, de ‘deculturação’ da música indígena brasileira”. MARIZ, Vasco.
História da música no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994, p. 38.
“Como decorrência da ação “civilizadora” dos jesuítas, a música dos índios,
expressão dos povos mais fracos culturalmente, cedeu o lugar à música europeia. O
fenômeno da deculturação da música indígena brasileira é incontestável”. KIEFER,
Bruno. História da música brasileira dos primórdios ao início do século XX. Porto
Alegre: Editora Movimento; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1976, p. 9/12.
Sobre as notas de rodapé que a autora coloca para desvalidar o conceito do Tinhorão,
temos poucas observações a fazer. Para quem ler apenas a nota de número 13, presente na
Introdução da sua tese, tende a imaginar que ela viria ao encontro da tese de Tinhorão.
Realmente, a base argumentativa dele para a formação da música brasileira nasce do encontro
entre a harmonia portuguesa e o ritmo africano. Ele opera dentro do paradigma entre a
modinha e o lundu. Sinceramente, não vemos nessa crítica exposta por ela nenhum argumento
falso, concordamos com toda a primeira nota de rodapé, e provavelmente o próprio Tinhorão
concordaria. O argumento da “deculturação” não quer dizer que os indígenas não fazem
  62  
 
 
 

música ou que as músicas que eles fazem hoje nas tribos e nas reservas sejam músicas
“importadas” dos padres e dos jesuítas. A questão fundamental colocada pelo Tinhorão é de
que a música que se faz hoje no Brasil não sofre influência das produções rítmicas,
harmônicas ou melódicas da música indígena. Se na nota número 13 ela utiliza conceitos de
um etnomusicólogo para discordar dela e concordar com Tinhorão, já na de número 14 ela
não comete esse equívoco. Ela coloca dois musicólogos para concordar com Tinhorão, ao
passo que discorda dela. Agora, se esperamos de um antropólogo que domine conceitos como
alteridade e etnocentrismo, já de um musicólogo espera-se que domine conceitos musicais.
Por fim, gostaríamos de dizer que concordamos com o argumento construído por
WITTANN (2011), apoiado em HOLLER (2010), e que não é explorado por Tinhorão, pois
consideramos que para compreendermos a formação musical no Brasil no século XVI é
necessário entender o papel que teve a proibição da prática musical dos padres jesuítas.
Talvez, neste ponto esteja o “elo perdido” que Tinhorão busca entre os brancos e mestiços
pobres, que viviam na colônia, com o conceito de autenticidade da música brasileira. Pois se é
tão importante para a formação de uma música que encarne um sentimento de pertencimento
de “classe”, ela deveria surgir desprendida das amarras oficialistas tanto da Coroa quanto da
Igreja. Talvez na proibição esteja a chave para entender. Todavia, a busca por materiais novos
que estariam fora da alçada religiosa é praticamente nula, e poderíamos cair no erro de sugerir
uma conclusão sem ter provas materiais para comprovar.

  63  
 
 
 

3– SÉCULO XVII, DE CICLO MEDIEVAL À CONFIGURAÇÃO DE UMA


UNIDADE.

TINHORÃO (2000) vai chamar o ciclo festivo no século XVII de medieval. Não que
acreditasse que o Brasil vivesse à semelhança do período feudal da Europa ou mesmo do
Japão; todavia, é inegável que ele se reporta a esse fenômeno para explicar as festas que se
desenvolveram no século XVII. Coerente com sua metodologia, o autor começa fazendo um
levantamento de fatos importantíssimos para a compreensão do período histórico que ele
estuda, observando como os acontecimentos de ordem política, econômica, social e religiosa
vão influenciando as ações dos homens, assim como os desdobramentos desses eventos vão
moldando a configuração e o desenvolvimento das festividades e da produção sonora na
colônia. Nessa toada, três são os eventos fundamentais para a compreensão da guinada do
primeiro século de povoamento para o segundo.
Primeiro foi a União Ibérica. Durante os anos de 1580 a 1640, os reinos de Portugal e
da Espanha foram unidos sob a dinastia dos Filipes, que além da unificação na península,
conforme ficou conhecido o evento, traz consequências na América, uma vez que as porções
das terras descobertas que o papa não havia dado à Espanha eram de Portugal. Segundo ponto
importante foi a ocupação de Pernambuco pelos holandeses (1630 – 1654). Assim, tanto o
novo império surgido da união das coroas católicas quanto o seu posterior desmembramento
tiveram que conviver com a “ameaça” batava em terras tropicais. Isso mudaria tanto a forma
de relação interna metrópole-colônia quanto a relação entre as nações mercantilistas. Terceiro
evento a ser destacado é a inserção do Brasil no comércio internacional através da produção
de açúcar, pois se era verdade que já se produzia a cana de açúcar no século anterior, agora
ela ocupa outro patamar. O pequeno comércio e uma vida dominada pelas aldeias e vilas
jesuíticas são substituídos por um modelo de vida no qual o latifúndio, a escravidão, os
engenhos e as capitanias dominaram as relações sociais daquele período.
Segundo Tinhorão, para compreender a evolução das relações festivo-musicais no
século XVII, é fundamental observar as mudanças que ocorreram no campo político,
econômico e militar para compreender as transformações nas relações sociais e,
consequentemente, na forma de se festejar, bailar, tocar e folgar. Se as primeiras cidades eram
instâncias administrativas e de defesa subordinadas social e economicamente à Companhia de

  64  
 
 
 

Jesus, nesta nova fase de ocupação o fator econômico e o domínio rural sobre o urbano vêm
ganhando contornos mais nítidos65.
Nossa preocupação central é a de analisar como o pensamento do autor está calcado no
seu método, e como ele enxerga as transformações da sociedade, como esta se organiza e,
principalmente, como se sociabiliza. Assim, temos alguns elementos para pensar dentro dos
três eventos anteriormente citados. A primeira delas diz respeito à União Ibérica, como este
evento poderia marcar uma pretensa unidade católica e um possível intercâmbio e afirmações
das regionalidades. O segundo ponto seria a influência holandesa e da multiplicidade religiosa
oriunda desse processo, bem como as transformações na administração pública e nas festas
oficiais ou religiosas. O terceiro ponto seria o aumento do fluxo de importação de escravos e o
novo modo de produção que se desenvolvia com os engenhos de açúcar. Não estamos mais no
patamar de pequeno escambo de produtos diversos e de baixa intensidade; existia uma
moderna forma produtiva que visava abastecer grandes mercados na Europa66. O centro da
vida social se deslocava das aldeias jesuíticas e da conversão do gentio para um período pré-
capitalista e mercantilista.
E por fim, procurar entender o porquê de Tinhorão chamar esse período de ciclo
feudal, dialogando assim com outros autores, para buscar uma unidade na construção de seu
pensamento. Desvendar como ele pensa a evolução festiva e musical do país nesse período e
os pontos de tensão que este carregava. Como se dava o limiar das rupturas e continuidades,
que o país irá guardar com o período anterior e como abre o caminho para o período seguinte,
conforme Tinhorão, no qual éramos feudais e modernos.

3.1 Sobre reis, valetes e ginetes.


A moral portuguesa estava em baixa após duas derrotas que por tempos aniquilaram o
projeto do Império colonial67; os resquícios da unidade lusa se mantinham nas tradições e
celebrações públicas. As cavalhadas surgem e ressurgem em contextos específicos e ganham
contornos de maior ou menor júbilo, dependendo do momento e para o que sua memória é
resgatada. E o momento da dupla derrota portuguesa era um desses períodos para relembrar a
tradição hípica, guerreira e festiva.

                                                                                                                       
65
 Ver  Martins  (1981)  “Introdução  crítica  à  sociologia  rural”  
66
 Ver  Prado  Júnior  (1994),  Hollanda  (2004),  Freyre  (1987)  
67
 A  primeira  delas  a  derrota  de  D.  Sebastião  no  norte  da  África  e  a  segunda  a  unificação  Ibérica  e  a  perda  de  
autonomia  lusitana.  
  65  
 
 
 

As cavalhadas são festas de afirmação hierárquica. Os cavalos tiveram sua imagem


construída em consonância a guerreiros, nobres e reis, sendo tanto objeto para montaria e
dominação espacial quanto para guerra, utilizando da força e velocidade do animal para
aniquilar inimigos. Além disso, os cavalos também eram utilizados para a consagração
pública e afirmação das hierarquias presentes na sociedade. Os jogos a cavalos eram muito
populares na península Ibérica, tanto em Portugal quanto na Espanha: “Muito praticado em
Portugal desde o século XV, o torneio das cavalhadas nas festas da corte nas quais os próprios
monarcas tomavam parte, com os príncipes e fidalgos da casa real, até que depois constituiu,
em geral, um predileto divertimento popular”68, constituindo na colônia uma forma de poder
pessoal. “As cavalhadas constituíam, com as touradas, as comédias e óperas, uma parte
obrigatória das grandes festas de igreja ou comemorativas de grandes eventos da metrópole,
nascimentos, batismos, casamentos, aclamações, de príncipes e reis” MEYER (2001; 230).
TINHORÃO (2000) construiu a importância da narrativa das cavalhadas para
rememorar uma pretensa identidade lusitana que se guardava na memória dos da terra, que
retornava enquanto um compartilhamento público nos momentos de festividades. Para fazer a
ligação entre ocupação batava, união ibérica e festas, ele retoma a vinda do português Matias
de Albuquerque, que havia sido enviado por Madri a Pernambuco no ano de 1629, ou seja, na
véspera da ocupação holandesa. Mesmo “encontrando ‘as fortalezas desmanteladas, sem
armamento nem guarnição’, preferiu promover a comemoração do nascimento do príncipe
herdeiro da coroa da Espanha” TINHORÃO (2000; 47-8). Não será necessário dizer que o
modo desregrado do ócio festivo católico ajudou a perder, ao menos momentaneamente, parte
do território. Todavia, os grandes acontecimentos da corte deveriam ser narrados na colônia,
pois esta era uma das poucas formas de compartilhar com os súditos o que se passava na
metrópole. As boas novas do nascimento do herdeiro real chegaram ao Brasil pela boca do
próprio Matias de Albuquerque, que se encarregou primeiro das festas e depois da guerra. As
competições a cavalo serviam tanto para uma competição interna da hierarquia social
(melhores cavalos, indumentárias mais finas, maior número de agregados montados e maior
destreza sobre a montaria, o que demonstra tempo ocioso, não laboral), quanto para uma
afirmação externa de força e valentia. Assim, as cavalhadas serviriam tanto ao propósito das
festividades oficiais quanto para relembrar feitos históricos, e de uma forma ou de outra o
novo comandante das tropas, ao mesmo tempo em que anunciava o nascimento do futuro rei
também aproveitava para se exibir e se apresentar para aqueles que ficaram sob sua espada.

                                                                                                                       
68
 Tinhorão  (2000;  47).  Neste  trecho  o  autor  cita  Pereira  da  Costa,  Anais  pernambucanos,  vol.  III,  p.  160.  
  66  
 
 
 

Não nos importa adentrar nas condições históricas que levam tanto à ocupação
holandesa quanto à união e ao desmembramento Ibérico; o que nos importa aqui é pensar
como esses acontecimentos alteraram as estruturas e os simbolismos nas festas, e
principalmente como o cronista enxerga e as relaciona com a formação de um sentido
sociohistórico que permeia as festividades. Desta forma, as cavalhadas tiveram diversas
roupagens, dependendo do que representariam. Toda a estrutura passa por demonstração
montada, podendo assumir distintas formas, o que podia representar a vitória dos portugueses
frente aos mouros, indicada pelas cores ou tipo de vestimentas69 que justifiquem o ritual e a
festividade. Tinhorão enxerga nas cavalhadas uma afirmação de uma identidade lusitana em
território colonial, como um evento que reforçaria os laços de solidariedade dentro de uma
origem comum, que resistiria nessas manifestações e se recriariam nos símbolos e nas
memórias coletivas. Portanto, se este tipo de festa serviu para anunciar o nascimento do novo
herdeiro nas vésperas da ocupação holandesa, também foi o principal meio de afirmação da
identidade portuguesa com o fim da União Ibérica. Dentro dessa perspectiva, ele coloca a
cavalhada como o principal acontecimento festivo ocorrido no Brasil com a retomada do
trono de Portugal por d. João IV.
Assim, não constitui surpresa que, em inícios de 1641, conhecida finalmente na
colônia a aclamação em 1º de dezembro de 1640 de d.João IV como novo rei de
Portugal, o ponto alto das comemorações no Rio de Janeiro fossem ainda uma
encamisada, um alarde feral, uma corrida de touros e uma de manilhas, e um jogo de
canas, contra apenas um ato cultural: a representação de uma comédia que “se
começou cõ loa de muitas vivas a El-Rey Nosso Senhor, e feneceo com a mesma
repetição” (TINHORÃO, 2000, p. 48).
Tinhorão concebe as festas no Brasil dentro da dicotomia fundamental de qual
segmento social está presente em cada uma delas. Melhor do que isso, ele relaciona qual o
papel ocupado por cada segmento da sociedade de acordo com o tipo de festa proposto.
Seguindo o conceito de DA MATTA (1981), vimos que as cavalhadas poderiam ser
agrupadas dentro daquelas que fazem parte das de afirmação hierárquica. Tanto pela condição
daqueles que são protagonistas nestas, pois, se ter calçados era sinônimo de não ter amo, ter
cavalo é o mesmo que o ser. No campo da simbologia da dominação, e, de reforço
hierárquico, esta característica se manifesta pela localização geográfica das pessoas de acordo
com a sua origem social e pelo papel desempenhado por aqueles que não dispõem de cavalos
ocupavam nas festividades. Esse período parece ser realmente de uma pungência de festas a
cavalo. Embora haja relatos de festas a cavalo desde 1549, com padre Manoel da Nóbrega,

                                                                                                                       
69
  “Os   festejos   do   Livramento   seguiram   à   risca   o   modelo   canônico:   procissão   solene,   andores   belíssimos,  
alegorias,   carros   triunfais,   danças   das   corporações,   figuras   “vestidas   à   trágica”,   “à   francesa”,   “à   mourisca”.  
Meyer  (2001;  233).  
  67  
 
 
 

Tinhorão coloca uma condição especial a essas que ocorriam nesse momento de limiar luso-
brasileiro. Enfatizando, como ocorria no Rio de Janeiro em aclamação ao novo rei também
era comum em terras ocupadas no Recife.
Isto serviria, para Tinhorão, como comprovação do caráter cordial e cúmplice entre
franceses, holandeses, portugueses e brasileiros que se vivia em Pernambuco, principalmente
com o fim da União Ibérica e a aliança entre o novo rei português com o reino de Orange70.
Nesse clima de camaradagem colonial as competições a cavalo também se faziam bastante
populares em terras dominadas pelos holandeses, que mantinha os hábitos portugueses nos
trópicos. Conta-nos frei Manoel Calado71 sobre uma competição que durou três dias em
homenagem à aclamação do rei D. João IV em 1641.
Tão logo “os mancebos cavaleiros de Pernambuco se viram avisados por carta do
Príncipe, logo se prepararam de vistosas librés, e ricos jaezes, como se requeria para
festas que haviam de fazer em honra de seu Rei e Senhor”, e o resultado do
inevitável confronto não apenas de garbo pessoal com os pragmáticos burgueses
súditos do duque de Orange (“iam os cavaleiros de dois em dois, misturados, um
holandês e um português”), mas de habilidade equestre, constituiu irrefutável triunfo
luso-brasileiro (TINHORÃO, 200, p.; 60-1).
Se por um lado, cria-se uma aliança entre luso-brasileiros e holandeses com o fim da
União Ibérica, por outro lado, reforça-se o sentimento de pertencimento de uma considerável
parcela da população. Conviveram em harmonia pessoas de todas as nacionalidades nas
cidades de Recife e Olinda, entre elas também se marcavam as diferenças entre os
comerciantes holandeses e os latifundiários e produtores de açúcar luso-brasileiros. Então, um
novo laço se cria entre as camadas subalternas e as elites coloniais, conferindo aos jogos e
competições das parcelas mais abastadas da sociedade uma identidade libertadora, que se
mostravam superiores (ao menos militarmente) aos ocupantes batavos. Pelo papel
desempenhado pelos despossuídos era de esperar que Tinhorão guardasse um distanciamento
do potencial criador de uma autenticidade que esse tipo de festa poderia ter, já que ele vai
abrir uma premissa que será repetida em outros pontos, e outras obras também.
As estruturas que concebem sobre a origem social das festas são permeáveis e se
alteram dialeticamente dependendo das relações sociais, econômica e política na qual elas
estão inseridas. E, justamente, nesse caso da aclamação do rei, ele reconhece uma participação
social “das festas oficiais (...) essa oportunidade de participação direta da gente do povo
miúdo (...) era muito rara, só tendo sido possível, no caso, essa passagem de simples
espectador a personagem ativo na manifestação de júbilo pela aclamação de d. João IV”

                                                                                                                       
70
  “Tanto   que   João   Lopes   se   partiu   para   a   Bahia,   tratou   o   Príncipe   [João   Maurício]   de   festejar   a   aclamação   d´El-­‐
Rei  Dom  João  com  grandes  festas  e  ostentações  de  alegria”  Manoel  Calado,  in  Tinhorão  (2000;  60)  
71
 Tinhorão  (2000)    
  68  
 
 
 

(TINHORÃO, 2000, p. 49). Nem de perto isso significa que essa festa foi organizada pelo
“povo miúdo”, mas justamente a criação de uma unidade em oposição a outro (espanhol e
holandês) criaria uma condição de participação popular, que assim tomaria contato não apenas
com as diferentes hierarquias sociais, mas principalmente, que criariam uma unidade entre
eles, uma unidade na diferença social devido a uma condição política e econômica particular,
que trará um elemento novo, que ainda estava guardado em Portugal e que chega ao Brasil,
que tomará parte dessa autenticidade da cultura nacional, mesmo que uma autenticidade
híbrida.
Retomamos aqui a dicotomia entre festas oficiais e festas populares, ela é muito
importante para a compreensão do conceito de Tinhorão, assim como para DEL PRIORI
(1994), conforme dito no capítulo anterior. Porém, ele vai retirar desse evento (aclamação de
d. João IV) alguns elementos importantes para compreender o fio condutor do seu
pensamento, ou seja, como saímos de uma terra “achada” à formação musical e festiva que
nos encontramos hoje. Nesse sentido, a compreensão de fenômenos como o carnaval é uma
das suas buscas72, ou onde encontramos elementos que nos rememorem sua origem. Dando
seguimento, ele remonta os relatos oficiais de Jorge Rodrigues intitulado “Relaçam de
aclamação” e vai desvendando o que poderia estar na origem da evolução festiva nacional73.
É claro que, a partir daí, a massa dos moradores da cidade, constituída pela gente da
baixa camada, passava ao papel de mero espectador das demonstrações das virtudes
cavaleiresas dos grandes, tanto na encamisada “em que passarão mostra alegrado
todas as ruas da cidade cento e dezaseis cavaleiros”, quanto no desfile de carros
alegóricos antecipadores do barroquismo destinado a prevalecer nas festas oficiais
dos Oitocentos: “E para mayor alegria se lhe agregarão dous carros ornados de
sedas, e aparatos de ramos, e flores, e tam prenhados de musica, que em cada
principio de rua parecia que o Coro do Ceo se avia humanado” TINHORÃO (2000;
50).
Mesmo que não encontre a participação popular que busca para a formação de uma
forma festiva e musical tipicamente brasileira “o forte da programação, afinal, continuava a
ser o das demonstrações da nobre arte equestre” TINHORÃO (2000; 52), ele encontra na
formação dos carros alegóricos um espetáculo de sincretismo entre o barroco e a participação
popular, sendo esta última a que falta na primeira. Assim Tinhorão vai buscar a participação
popular em outro evento, que para ele será o mais democrático das festas católicas brasileiras,
o Corpus Christi.

                                                                                                                       
72
 Também  estará  presente  em  outras  obras  dele  como  “Festa  de  Negro  em  devoção  a  Branco”  e  “História  da  
Música  Popular  Brasileira”.  
73
  Da   Matta   (1981;   36)   vai   conceitualizar   o   papel   desempenhado   por   festas   de   afirmação:   “Isso   quer   dizer   que,  
quando   se   realiza   um   ritual   nacional,   toda   a   sociedade   deve   estar   orientada   para   o   evento   centralizador  
daquela  ocasião,  com  a  coletividade  “parando”  ou  mudando  radicalmente  suas  atividades”  
  69  
 
 
 

3.2 A memória pagã e a cultura católica


Os deslocamentos de pessoas com finalidades religiosas são uma prática comum e
remontam a tempos imemoráveis. Exemplos não faltam: o êxodo do povo judeu em direção à
terra prometida, ou os filhos de Rubén que peregrinavam à Siquém ao encontro dos filhos de
Efraim. Da divisão das tribos entre as do norte e do sul com a construção do templo de
Jerusalém por Salomão e à posterior construção do templo de Betel. As caminhadas ao monte
Sinai como localidade com poderes especiais ou aqueles locais mais próximos de Deus ou até
mesmo a transladação da arca da aliança liderada pelo rei Davi74, que segundo o antigo
testamento foi acompanhado por canções e músicas ao som das trombetas.
Apesar dos eventos anteriormente citados estarem contidos dentro do velho testamento
não convém colocá-los dentro do arcabouço fundamental da cultura do catolicismo. Embora
este tenha referência nos escritos anteriores à vida de Jesus, é este último, sua vida e conduta
descrita nos relatos de seus apóstolos, que servem de guia e referência para os costumes e
procedimentos dos membros dessa comunidade religiosa. Da mesma forma que o catolicismo
não guarda apenas o sábado de festas, conforme o mandamento, mas também o dia primeiro,
domingo, como o dia da ressurreição. Mesmo que a origem monoteísta do catolicismo e do
judaísmo não reservaria espaço para locais mais santos que outros, o deslocamento de pessoas
por motivos religiosos esteve presentes na cultura destes. “As três festas de peregrinação são
três festas de colheita: dos primeiros feixes (festa dos Ázimos), do trigo (Pentecostes) e da
vindima (Tendas).” KONINGS (2002; 136). A busca por lugares considerados sagrados não
era exclusividade do judaísmo ou das tribos de Israel, ela estava presente também na Europa.
Assim como os deuses gregos habitavam o Olimpo, e ali era o lugar onde os homens deviam
ir se quisessem encontrar o sagrado, ou faziam oferendas, ou mesmo desafiar algum
semideus.
A motivação das caminhadas coletivas de fé baseou-se sempre na crença de que, em
determinados locais, existiriam poderes sobrenaturais, quer por estarem
concentradas neles as forças da natureza, quer pela descoberta de algo julgado
milagroso junto a rios, fontes, cavernas, pedras, árvores e bosque. TINHORÃO
(2010; 13).
A memória coletiva associou essa busca pelo sagrado dentro do universo da
peregrinação como um sacrifício necessário para encontrar o sobrenatural que de alguma
forma estaria mais presente em um determinado local do que em outro. As religiões pagãs
estiveram em voga na Europa meridional, principalmente após o desmantelamento do império
romano, e as peregrinações pagãs eram muito populares em Portugal até o século X, depois
                                                                                                                       
74
  Mais   informações   em   Konings,   J.   “A   festa   na   Bíblia”   in   “A   festa   na   vida”   e   Tinhorão   “Festa   de   negro   em  
devoção  de  branco”.  
  70  
 
 
 

desse ponto, começa a receber um fluxo maior de influência judaica, muçulmana e católica,
TINHORÃO (2010). Dessa forma, as caminhadas com objetivos religiosos ganham contornos
híbridos dentro de uma negociação de crenças que acompanhavam a formação de um Estado
português quatro séculos após, tendo como ponto de fixação de uma religião única com
costumes híbridos a partir da instalação da Inquisição. Com isso, as peregrinações católicas
vão receber o nome de romarias, justamente pelo fato de Roma simbolizar o local sagrado
onde os católicos deverão se conduzir, “todos os caminhos levam a Roma”.
A vitória dos católicos sobre os árabes na batalha de Toledo, em 1086, reforça a
necessidade de retomada da Terra Santa, e encontra no papa Urbano II o aliado para essa nova
peregrinação, não à nova cidade sagrada, mas a primeira delas. Assim o rito põe em
movimento os arquétipos para a fundação de outro mito, que nada mais é do que a atualização
do rito de peregrinação pagão, agora institucionalizado e com um elemento novo que também
remonta às religiões politeístas europeias, a caça e coleta de relíquias. Essa nova busca nada
mais era do que objetos datados de uma força sagrada, não por suas qualidades intrínsecas,
mas por motivos históricos75.
O esquema das procissões, logo adotado pelo cristianismo quando de sua
institucionalização como igreja, sob o conceito do katholikós universal, ia ganhar
com a organização de suas regras litúrgicas diversas variantes: procissões de benção,
para dias determinados, como Domingo de Ramos, procissões votivas, como a
celebração da Assunção (recebimento da Virgem Maria no céu); procissões de
trasladação, para acompanhar a mudança pública de imagens ou relíquias; procissões
de peregrinação, à volta de grutas milagrosas como a de Lourdes, na França, ou do
Santuário de Fátima, em Portugal; e, por fim, procissões comemorativas de milagres
ou acontecimentos da vida religiosa ou civil. TINHORÃO (2010; 6).
Essa digressão sobre as influências pagãs nas festividades religiosas portuguesas é
fundamental para a compreensão do sincretismo e da particularidade das festas no Brasil, pois
Tinhorão, como Gilberto Freyre, trabalha com o conceito de que só foi possível a constituição
de uma sociedade miscigenada e híbrida porque a raiz desta já estava em gestação em
Portugal76, assim para compreender o fenômeno do Corpo de Deus conforme anunciado no
ponto anterior é necessária a reflexão sobre as origens peregrinas e as relações com as festas.

                                                                                                                       
75
 Franco  Júnior  (1990;  57)  “De  fato,  as  relíquias  eram  vistas  como  um  elo  entre  o  mundo  transcendente  e  o  
mundo  humano,  instrumentos  de  canalização  de  poderes  daquele  para  este.  Conseguiriam  algo  de  energia  do  
mundo  invisível,  daí  a  famosa  espada  de  Rolando  ter  no  cabo  um  dente  de  São  Pedro,  sangue  de  São  Basílio,  
cabelos   de   São   Dionísio   e   fragmentos   da   roupa   de   Santa   Maria,   enquanto   a   de   Carlos   Magno   continha   a   ponta  
de  lança  que  ferira  Cristo.”  
76
 Ver  também  Tinhorão  (1997)  “Os  negros  em  Portugal,  uma  presença  silenciosa”  
  71  
 
 
 

3.3 “Olha lá vai passando a procissão”


TINHORÃO (2000) vai chamar a procissão de “o auto democrático”. Temos nesse
ponto dois problemas centrais para relacionar o pensamento do autor. O primeiro deles é a
conceitualização de auto e o segundo é versar sobre o democrático. O papel desempenhado
pela procissão de Corpus Christi no desenvolvimento do seu argumento. Um marxista ateu
dedica dois capítulos do seu livro “Festas no Brasil Colonial”, reforçando um papel positivo e
construtor de uma identidade virtuosa nacional a partir do desenvolvimento dessa procissão, e
tem, praticamente, um livro inteiro dedicado a esse tipo de festa religiosa, também com
considerações edificantes de um ideário nacional em “Festa de negro em devoção de branco”,
ideário nacional este que está ancorado nas festas religiosas portuguesas, como ficará cada
vez mais evidente na nossa dissertação. Podemos pensar essas considerações positivas dos
comunistas ao catolicismo a partir do desenvolvimento na América Latina da teologia da
libertação, que teve papel importante nas guerrilhas no continente e na luta contra a ditadura
militar brasileira. Assim, a negação fervorosa à religião vinda da primeira geração de
comunistas e do movimento anarquista se transforma num diálogo de significação do
catolicismo e sua origem popular em oposição à Igreja enquanto instituição e ao Vaticano.
Desta forma, ele entra numa disputa simbólica dos ritos e das festas enquanto formador de
identidades coletivas.
Primeiro, precisamos dizer que quando estamos nos referindo a autos estamos falando
de uma teatralização do culto. Estamos falando de uma divisão espacial e de uma construção
de uma narrativa a partir de diversas cenas, em que um enredo estrutura a construção de uma
narrativa e essa narrativa faz a mediação entre o público e a palavra das escrituras. O teatro,
ou a interpretação de determinadas cenas bíblicas transforma o homem simples, mortal, que
está afastado da hierarquia eclesial para o centro, ele é capaz de encarnar os elementos
sagrados, misturando os puros e os impuros, os santos e os pecadores, DA MATTA (1981).
Para TINHORÃO (2000) é nessa festa que “a gente comum dos primeiros centros urbanos
coloniais estava destinada a encontrar oportunidade de figurar como personagem ativa desde
o século XVI” TINHORÃO (2000; 67). Essa teatralização do culto é responsável pela
aproximação do divino ao humano, de aproximação entre elementos que não se misturam. O
céu desce a Terra ou o mundano se eleva ao celestial.
“Essa passagem da representação ritual para formas quase declaradas de diversão
coletiva se daria por uma espécie de transbordamento das festas litúrgicas do calendário
religioso do interior das igrejas para as ruas” TINHORÃO (2000; 67). O fato da procissão

  72  
 
 
 

adentrar as ruas está intimamente ligado ao ponto 2.3 dessa dissertação, ela é uma forma
litúrgica que está fora do ambiente da Igreja, porém, diferentemente de ter a festa e a música
como um espaço de disputa entre o sagrado e o profano, a partir do leigo e do religioso, as
procissões representam a própria instituição Igreja que se dissolve para caminhar junto ao
povo. DA MATTA (1981; 51) vai chamar de ritual de neutralização:
Além disso, a própria procissão teria características conciliadoras, pois seu núcleo é
formado das pessoas que carregam a imagem do santo, e tais pessoas estão
rigidamente hierarquizadas: são autoridades eclesiásticas, civis e militares.
Entretanto o núcleo é formado e seguido por um conjunto desordenado de todos os
tipos sociais: penitentes que pagam promessas, aleijados que buscam alívio para
seus males, homens normais que apenas demonstram sua devoção ao santo. (...) Pois
ao mesmo tempo que em que o santo homenageado está num andor e separado do
povo por sua natureza e pela mediação das autoridades que o cercam, ele caminha
com o povo e dele recebe na rua (e não na igreja) suas orações, cânticos e piedade.
Existe uma aproximação do sagrado e do profano, do homem e dos “deuses” nessa
forma litúrgica. As diferenças sociais se reduzem e os espaços hierárquicos se reproduzem em
poucos locais. Conforme DA MATTA, esta diferença estaria em quem carrega o andor.
Enquanto a procissão prossegue, ela se divide em alguns grupos, muitos deles com papel
importante nessa teatralização, ele enxerga a hierarquia funcionando principalmente entre
aqueles que sustentam e caminham com o santo daqueles que “apenas” seguem a procissão.
Todavia, aqueles que carregam a imagem estão invisíveis no desenvolver do processo, pois
eles estão no mesmo nível das outras pessoas, eles não podem ser vistos de longe pelos outros
fiéis, nem tampouco estão destacados, na verdade eles servem para destacar os santos e não a
si próprios. Não estão em palanques ou altares, não estão separados fisicamente dos outros,
estão todos no mesmo nível e suas diferenças se reduzem, ou se “neutralizam”. Existem
outros grupos que ficaram invisíveis na descrição de Da Matta, como o coro, as rezadeiras e
os músicos, entretanto eles não desempenham nenhum papel superior dentro da hierarquia
religiosa ou social, eles prestam serviços à fé sem se importar em ser um anônimo dentro
desse processo.
As procissões de Corpus Christi ocorrem pelo menos desde o século XIII, por obra do
papa Urbano IV, todavia a primeira menção dessa festa em Portugal data de 1318, na cidade
de Guimarães77. No Brasil, temos relatos desta a partir de 1549 com o padre Manoel da
Nobrega e também com o inquérito da Inquisição, de 1591. Começamos colocando a
procissão de Corpus Christi como uma encenação em autos, onde o humano adentrava ao
mundo do divino, ou que profanava o sagrado. A teatralização do culto serve justamente para

                                                                                                                       
77
 Tinhorão  (2000)  
  73  
 
 
 

inverter a ordem ou aproximar os entes. Dessa forma, temos um exemplo de como a atuação
dramática quase leva para a fogueira um luso-brasileiro:
E outrosi disse ele denunciante que Estevão Ribeiro morador em Sam Vicente lhe
disse que em hua procissão das emdoenças em que hiamhu homem na figura de
Christo com hua cruz ás costas e outros nas figuras dos fariseus puxado pella corda
hia o dito Fernão Roiz cõhua caixa de cousa doces da misericórdia consolando os
penitentes e sempre dava consollação e cousas doces aos fariseus e nada ao da figura
de Christo de que se escandalizou o dito Estevão Ribeiro78
Para além da característica jocosa desse evento, este serve para comprovar a
encenação dos últimos passos de Cristo. Nesse pequeno enxerto do texto inquisitório, temos
duas informações importantes acerca da dramatização da procissão, temos um Cristo que
carrega a cruz e os fariseus. Para, além disso, temos explícita a incorporação do hábito de
servir doces dentro dessas festas. A título de não deixar a história sem um final e para que
ninguém imagine que Fernão Roiz fora para a fogueira por não dar doces ao intérprete de
Jesus “sendo o denunciante inimigo do morador que fazia a “figura de Cristo” ao parar a
procissão (...) nada mais humano do que o encarregado da distribuição de docinhos (...) ter
preferido consolar seus amigos (ainda que fariseus) em lugar do desafeto na vida real (ainda
que Cristo)”. Esse episódio também tem como valor explicitar que as encenações nas
procissões eram um costume que seguia os padrões portugueses no Brasil, mesmo que com as
limitações populacionais que se encontrava o Brasil na virada do século XVI, para o XVII. A
teatralização desse auto era realmente levada a sério em Portugal, sendo uma das principais
festividades do país e que contava com suporte financeiro para transformar a procissão em um
verdadeiro teatro a céu aberto. Consta que “em 1511, Gil Vicente recebe, por representação
feita no dia de Corpo de Deus desse ano, a importância de 5.070 réis79”.
Essa digressão ao universo luso tem dois objetivos primordiais, ambos estão ligados à
concepção de Tinhorão acerca da formação da identidade nacional. Primeiro que as
representações presentes no Brasil bebem da fonte portuguesa, não qualquer fonte, uma fonte
híbrida entre um catolicismo popular que ao mesmo tempo em que remete ao universo da
Igreja também jogava com uma negociação simbólica fora desta, principalmente em uma
hereditariedade pagã, assim “essa teatralização de caráter evangélico dos primeiros padres,
tendo nascido da necessidade de aproveitar nas igrejas a tendência à participação coletiva,
características dos ritos pagãos (...) estava destinada com suas pequenas encenações de
episódios bíblicos” (TINHORÃO, 2000, p. 68). O segundo ponto é a teatralização da vida

                                                                                                                       
78
  Primeira   visitação   do   Santo   Ofício   às   partes   do   Brasil   pelo   licenciado   Heitor   Furtado   de   Mendonça.   Apud  
Tinhorão  (2000;  71)  
79
  Antônio   Dias   Miguel,   “Entremeses   e   representações   na   Procissão   do   Corpo   de   Deus,   no   reinado   de   d.  
Manuel”  apud  Tinhorão  (2000)  
  74  
 
 
 

através dos autos, que acompanhará uma cultura popular através dos cordéis, espetáculos,
festas e carnaval, esse último seria a “novidade” brasileira herdeira dessa tradição lusa-pagã
da procissão com elementos trazidos pelos negros para cá80. TINHORÃO (2012) irá chamar a
procissão de Corpus Christi de “carnaval da fé”, além das histórias pregressas do teatro
vicentino e da hereditariedade pagã ele coloca outras influências que transformam essa
festividade como progenitora do carnaval. Acrescenta ainda outras influências:
Aparentada com os desfiles de carros alegóricos italianos dos Quatrocentos,
chamados triomphi, com o Teatro de Rua da confraria da paixão parisiense do
século XV e com as histórias narradas na sequência de painéis dos pageants ingleses
da virada do século XV e XVI – todos de iniciativa aristocrática -, a procissão
portuguesa distinguia-se por constituir uma exibição coletiva de criações da mais
nítida formação popular. (TINHORÃO, 2012, p. 16).
A parte democrática do auto pode ser observada nessa última citação, ao mesmo
tempo em que remonta à suntuosidade dos carros alegóricos italianos e também recebe a
influência dos pageants ingleses. Do luxo à parte mais humilde da sociedade, do aristocrata
ao plebeu, do sadio ao enfermo, da virgem à puta, todos concentram o mesmo poder nesse
tipo ritualístico, conforme DA MATTA (1981) as diferenças sociais seriam neutralizadas
dentro desse processo. O simbolismo hierárquico estaria ausente se não fosse o santo sentado
sob o andor e carregado pelos devotos, porém entre os mortais presentes essa festa se faz de
maneira horizontal. Soma-se a isso o público que se apresenta nas terras da colônia. Para isso,
é fundamental, no conceito de Tinhorão, a história agindo dentro da vida material. O século
XVII assiste ao primeiro grande fluxo de migração de escravos oriundos da África. Vão
prioritariamente aos centros produtores de açúcar no nordeste, todavia ainda respingam entre
São Vicente e Rio de Janeiro. “Seriam essas novas camadas de gente negra e mestiça que, ao
integrar-se (...) ao lado da minoria branca de portugueses e mazombos, o elenco e o público
das procissões festivas e gradulatórias surgidas seguindo o estilo do teatro ambulante
português” TINHORÃO (2000; 79).
Essa conformação social faz, tanto para Tinhorão como para Da Matta, da procissão
um evento democrático. Para o primeiro, essa característica estaria desenvolvida na
constituição histórica desta, na origem híbrida e miscigenada, que recebe no Brasil influências
próprias, todavia ela já chega carregada de sincretismo e hibridismo desde Portugal.
Consegue, mesmo sendo uma festa religiosa, transfigurar elementos para além da própria
religiosidade e incorporar os diversos elementos da sociedade. Para Da Matta, esse último
fenômeno está presente, porém para ele o que traz a singularidade é que ela não reforça

                                                                                                                       
80
  O   carnaval   seria   uma   das   comprovações   de   Tinhorão   acerca   do   mito   das   duas   raças   e   não   três,   processo  
derivado  da  deculturação  indígena.  
  75  
 
 
 

nenhuma hierarquia social. Mesmo nas festas de inversão hierárquica, a sociedade continua
verticalizada, mesmo que por papéis momentâneos. Trocam-se os sujeitos, mas mantém-se o
conteúdo. Na procissão eles são “neutralizados”, isso traria uma condição especial para esse
tipo de festejo.

3.4 Os foliões, procissão e carnaval.


Seria a procissão capaz de fazer uma nova síntese no Brasil? Tinhorão acredita que
sim, embora tenha mudado um pouco de opinião dos primeiros livros para os mais recentes,
ele constrói a origem do carnaval a partir das derivações das procissões. Visto a partir de uma
foto aérea, pouca diferença restaria entre as duas, ambas são cortejos pelas ruas, arrastam
multidões, encenações teatrais estão presentes e sempre terá alguém disposto a trair alguém.
Então se vamos buscar as semelhanças e as diferenças, precisamos ajustar o foco e aproximar
um pouco a lente para enxergar a estrutura social funcionando em paralelo em duas lâminas
diferentes.
Conta-nos TINHORÃO (2000, p. 80) que no ano de 1673, na cidade de Salvador, uma
procissão seria encenada para relembrar o fim da União Ibérica. Dessa forma, a Câmara de
Salvador manda construir um carro alegórico em que uma serpente (aquela que tentou Eva a
comer a maçã seria representada e carregada por negros encobertos dentro dessa mesma
estrutura, escondidos sob panos que serviriam para dar acabamento à serpente81. O detalhe é
que o enredo trata da Eva, da maça e do pecado, qualquer semelhança com um desfile de
escola de samba no século XXI não seria mera coincidência. O segundo ponto é a
preocupação oficial com a construção de carros alegóricos que condiziam com o enredo e a
teatralização do desfile. Outro destaque a se fazer é que ao ser essa procissão em aclamação
d´el Rey, esta festa teria necessariamente contornos de afirmação hierárquica. Os negros
estariam confinados ou a assistir à cerimônia à distância ou a ficar por debaixo dos panos
carregando os carros alegóricos (tal qual o membro de uma comunidade que desfila na
primeira divisão do Carnaval carioca, embora eles também possam compor a bateria).
Todavia, também existiam as procissões organizadas por comunidades religiosas, e essas

                                                                                                                       
81
 “E  acordarão  dos  ditos  officiaes  da  Camera,  que  os  officiaes  de  Carpinteiro  darão  a  bandeira  que  Costumão  e  
assi   mesmo   a   Armação   demadeira   para   a   Serpe,   entrando   nesta   obrigação   os   marceneiros   e   torneiros.   E   os  
officiaes   de   Alfayate,   serão   obrigados   a   dar   a   bandeira   que   Costumão   e   o   panno   com   que   se   cobre   a   Serpe  
pintadoeaparelhado,  ficando  asua  e  guardallo  e  conseruallo  sempre,  eos  carpinteiros  amadeira  cadaues  que  for  
necessário  edarãohus  e  outros  officios,  negros  que  a  carreguem  nas  Procissões”.  Texto  da  Câmara  de  Salvador  
de  22  de  novembro  de  1673.  Apud  Tinhorão  (2000;  80)  
  76  
 
 
 

eram mais permeáveis à figura do negro, mesmo porque muitos desses já faziam parte de
alguma irmandade católica.
Tais ritos em geral são iniciados com uma missa, estão centrados na procissão (onde
a imagem do santo sai de um santuário para outro) e terminam com uma festa no
adro da Igreja onde foi depositada a imagem. Aí se vendem doces, bebidas e são
leiloados objetos para a irmandade do santo, há jogos e danças, criando-se um
ambiente de encontro e comunhão muito semelhante ao do Carnaval. DA MATTA
(1981; 51).
Está certo que DA MATTA (1981) está escrevendo de maneira geral, sem uma
conotação temporal ou espacial, todavia ele reconhece uma relação com o Carnaval (festa que
ele conhece bem melhor). Tinhorão por sua vez tem uma preocupação diferente sobre o
mesmo tema, como se deram essas transformações e qual era a disposição social daqueles
membros que faziam a festa. Então, ele vai chamar a atenção para outros eventos que
começam a ocorrer, principalmente ligado ao papel das irmandades. Neste caso, ele coloca
como marco de uma iniciativa da Irmandade de S. Antônio de Cartagena de Salvador como
precursora da iniciativa de organizar procissões para os Santos não apenas com a presença de
negros82 mas principalmente com os negros como organizadores destas. Dessa forma, ele cita
uma passagem do manuscrito dessa mesma Irmandade que diz que “estabeleciam que o Juiz,
o Escrivão e o Tesoureiro seriam crioulos (negros nascidos na terra), e os mordomos que
necessários forem seriam angolas”, assim como para as mulheres seguiriam de forma
semelhante “a eleição das crioulas, e outra das Angolas, e todos serão eleitos no dia do
glorioso” (TINHORÃO, 2000, p. 81). Esse ponto seria a virada para Tinhorão entre uma
sociedade de organização muito simples e com pouca diversidade social, basicamente
dividida entre senhores de engenho, portugueses e mazombos com funções públicas,
pequenos comerciantes, escravos e indígenas, para uma divisão mais complexa de trabalho.
Dessa forma, a própria separação entre negros nativos e estrangeiros dentro das irmandades
serviriam a esse propósito83.
A divisão social que se criava era acompanhada por uma diversificação econômica e
criação de camadas médias na sociedade. Esse período marca para Tinhorão um momento de
efervescência cultural que iria culminar, ainda no final do século XVII, no primórdio das
canções modernas. Diferente do que ele havia preconizado na introdução da “Pequena

                                                                                                                       
82
  Tinhorão   (2012)   afirma   que   a   prática   de   utilização   de   negros   em   procissão   era   muito   comum   em   Portugal  
antes  mesmo  do  “achamento”  do  Brasil,  principalmente  como  músicos  e  para  carregar  objetos.  Muitas  vezes  
eles  até  participavam  enquanto  devotos,  porém  sem  a  iniciativa  de  organização.  
83
  Tinhorão   (2000;   81)   “A   preocupação   da   irmandade   de   diferenciar   negros   brasileiros   de   africanos  
acompanhava,   apenas,   a   tendência   do   tempo   de   estabelecer,   através   dos   diversos   tipos   de   associações   de  
leigos  a  santos  patronos  da  Igreja,  as  diferenças  étnicas  e  de  ofícios  que  refletem,  em  última  análise,  a  divisão  
de  classes  da  própria  sociedade.    
  77  
 
 
 

História da Música Popular Brasileira” ele enxerga uma riqueza maior nas festas que se
organizavam no Brasil nesse período. Assim ele vai encontrar elementos de festas à moda
Corpus Christi para receber a primeira imagem do agora Santo Inácio em Olinda 1611
“jubiloso representado por carros alegóricos e “soldados vestidos elegantemente de seda”, a
desfilar ao som de “orquestra de flautas”, “instrumentos de corda”, e um “coro de música””
(TINHORÃO, 2000, p. 82). Ou mesmo a “festa de arromba” organizada pelo governador de
Salvador em 1641 para comemorar a aclamação de D. João IV84.
As festas que seguem o modelo de procissão se tornaram cada vez mais frequentes e
começavam a ganhar contornos que fugiam às normas e maneiras que deveriam se portar os
devotos, nessa forma surge a necessidade dos vereadores de Salvador porem fim a esse
“festival de demonstração”, com “confusão e pouco respeito”. Esse evento na câmara de
Salvador guarda para Tinhorão outro aspecto, as confrarias começavam a organizar as festas
por vontade própria e quando solicitadas para participar das procissões e solenidades oficiais
acabavam pedindo contribuição financeira para arcar com aquelas que a própria confraria
organizava para si. Desta maneira, a câmara de Salvador enfrenta o dilema em tentar chamar
para si as procissões ao modo que era feito em Portugal ou enfrentava essa nova situação, de
uma descentralização das festas a partir das irmandades.
Na geral a ordenação da Câmara de Salvador seguia em seus dispositivos a tradição
oficial de reproduzir o que “hera uso, e costume em todas as cidades de Portugal”,
mas, pelo menos num ponto, iria aparecer já nessa ata de novembro de 1673 uma
contribuição brasileira à série de personagens responsáveis pelo clima carnavalesco
das procissões tipo Corpus Christi: a figura de “humanano que o vulgo chama pai
dos gigantes”. Como os padeiros e confeiteiros cabia participar nas procissões
“oficiais” apresentando “dous gigantes, e uma giganta”, nada mais dentor do espírito
de graça carnavalesca pela inversão do que acrescentar por contraste a figura de um
anão, destinado a ser logo identificado comicamente como o “pai dos gigantes”.
TINHORÃO (2000; 85).
A festa de Corpus Christi trouxe a participação popular que Tinhorão esperava para a
comprovação da tese da origem do carnaval. As procissões eram muito famosas em Portugal,
e vão apresentando contornos lúdicos e de chacotas também na colônia, como a introdução de
anões como pai dos gigantes. Importante salientar nesse ponto sobre os gigantes; para além de
ser a oposição aos anões, Tinhorão remete a outro ponto dentro da mitologia católica, como

                                                                                                                       
84
 “Por  coanto  em  todo  o  Reyno  de  Portugal  se  fazem  ao  primeiro  de  Dezembro  grandes  festas  em  acção  de  
grasas   pela   restituição   de   Sua   Coroa   a   El   Rey   Nosso   Senhor   Dom   João   o   Coarto   [...]   ordeno   aos   officiaes   da  
Camera  desta  Cidade  fassão  assento  nos  liuros  dela  para  que  no  tal  dia  primeiro  de  Dezembro  haja  daqui  em  
diante  as  festas  que  as  possibilidades  dos  moradores  permitirem  e  se  fassahuma  procissão  como  a  de  Corpus  
com  toda  a  pompa  que  pede  acto  de  tanto  solenidade  e  aplauzo,  mandando  que  a  véspera  se  ponhãoliminarias  
e   ao   dia  se  preparem  e  adereçarem  as  ruas  com  toda  a  desencia  e  festival  demostrassçao  o  que  espero  que  
nestas   primeiras   se   fassa   de   maneira   que   se   enxerguem   nelas   os   affectos   de   verdadeiros   vassalos”   Texto   da  
portaria  do  governador-­‐geral  Antonio  Telles  da  Silva  15/11/1641.  Apud  Tinhorão  (2000;  82).  
  78  
 
 
 

assinalado no início desse capítulo, ele classifica as festas no século XVII como o ciclo das
festas medievais. O gigante introduzido no Brasil a essa festa dialoga com outros referenciais
pagãos da Idade Média que se faziam presentes nas festas de Corpus Christi como a serpente,
que já foi lembrado nesse ponto, e o dragão, que será melhor aprofundado no capítulo
posterior. Portanto, o universo mágico do mundo medieval se faz presente dentro de um
território que não conheceu diretamente o universo simbólico do mundo cavalheiresco e
mágico do período feudal, todavia ele foi remetido para essas plagas pelo contato entre
culturas, principalmente da cultura dominante85, a dos portugueses.
Os acontecimentos do século XVII – fim da união Ibérica, perda e retomada do
controle territorial de Pernambuco e crescimento econômico, através do ciclo da exportação
de produtos agrícolas – confere ao Brasil um fluxo populacional que faz com que as cidades,
embora continuassem sendo dominada pelo rural, tivesse princípios de autonomia cultural.
Esse ponto é importante para compreender o pensamento de Tinhorão. Até agora não falamos
das festas no mundo rural, e nem tampouco falaremos. Talvez, esse seja um lapso na forma da
construção do argumento do autor, pois se as cidades viviam sob o domínio simbólico do
campo, uma melhor compreensão deste seria fundamental para perceber as nuances dos
acontecimentos na cidade. Todavia, o foco dele é a cidade, pois ela é que estaria em contato
com as diversas culturas, nela que ocorreriam os fluxos de diversas partes do mundo e
principalmente é nela que ocorreria uma maior divisão do trabalho, e consequentemente o
surgimento do conceito de indivíduo só poderia ser dado nas áreas urbanas. E partindo do
metodológico é o ponto de vista das cidades que os observadores escreveram e pintaram sobre
as festas, o povo e a música. A partir de observadores nas cidades portuguesas do século XVII
Tinhorão vai nos trazer alguns elementos que figurariam no comportamento das pessoas que
frequentavam as procissões de Corpus Christi:
As oportunidades para abusos, aliás, não faltavam porque, como indicavam ainda os
textos régios, até pelo menos o início do século XVII, a procissão “parava debaixo
de árvores ou de toldos, e aí havia sermão”. Porém, era exatamente em tais
momentos, como observaria o mesmo comentador das ordens régias, que o lado
profano da festa se sobrepunha à intenção religiosa: aproveitando as paradas. “a
gente do préstito debandava pela cidade, e ia comer e beber para as tabernas
enquanto o padre pregava”. TINHORÃO (2012; 20).
Embora estivesse tratando das procissões em Portugal, ele nos traz elementos que
reforçariam uma feição festiva de um ritual religioso. E o caráter ébrio que recorria uma

                                                                                                                       
85
 Aqui  vou  precisar  o  termo  de  cultura  dominante  dentro  do  campo  teórico  de  Tinhorão.  Cultura  dominante  
está   ligada   à   ideologia.   Ideologia   segundo   “A   ideologia   alemã”   é   a   da   classe   dominante,   dessa   forma   a   sua  
cultura  será  preponderante  sobre  as  demais,  isso  não  quer  dizer  que  não  existiam  fluxos  dentro  dela  e  que  não  
exista  sujeito  histórico.  
  79  
 
 
 

parcela dos fiéis possibilitaria os excessos e relaxamentos que reforçariam com a presença de
grupos de folias e pelas variedades de danças que se faziam presentes. Mesmo reforçando as
influências do catolicismo popular e influências pagãs também estavam presentes elementos
da cultura árabe, principalmente nas danças mouriscas, conforme relato da festa do Porto em
1621, em que existia uma “carreira de quarenta homens com seu rei Mouro e Alfaqui (...) com
repertório previsto de tuadas ao antiguo com seus alaúdes e pandeiros” TINHORÃO (2012;
21). Devido a isso, colocamos em relevo uma das características musicais desenvolvidas pela
presença árabe na península Ibérica que irá se constituir em um dos elementos chave na
formação musical brasileira. Embora o alaúde (que leva o nome do profeta em seu prefixo)
não tenha caído no gosto musical da colônia, outro instrumento dessa tradição, o pandeiro, se
faz presente desde as primeiras levas de portugueses que desembarcaram na colônia. A
presença figurativa dos mouros segue uma conhecida receita dos desfiles carnavalescos de
teatralizar as relações e interpretar personagens e histórias ressignificando os elementos
sociais.
O ritual, então, tem como traço distintivo a dramatização, isto é, a condensação de
algum aspecto, elemento ou relação, colocando-o em foco, em destaque, tal como
ocorre nos desfiles carnavalescos e nas procissões, onde certas figuras são
individualizadas e assim adquirem um novo significado, insuspeitado anteriormente,
quando eram apenas partes de situações, relações e contextos do cotidiano. DA
MATTA (1981; 30).
Esclarecendo, a procissão de Corpus Christi também tem a função de memória e
ressignificação da história portuguesa. Os mouros entram tanto no papel de uma chacota
quanto com influências reais e pertinentes dentro do rito. Falamos anteriormente dos
instrumentos musicais, mas podem ser acrescidas as danças como a mouriscada. Do ponto de
vista histórico, isso se faz bastante importante, pois em 1578, ou seja, menos de 50 anos antes,
o exército português havia sofrido grande derrota em Alcácer-Quibir, que entre outras
consequências leva a União Ibérica sob o reinado dos reis Filipes e a morte prematura D´El
Rey D. Sebastião. Este mesmo, servindo de tema para diversas procissões e rezas devotas dos
fiéis lusitanos. Dessa forma, a “chacota” junto aos mouros é na verdade um ato de memória e
estranhamento, uma vez que a história de Portugal está interligada à expansão do reino de
Mafona e as trocas culturais entre esses povos, mesmo que as guerras e disputas se façam
entre eles.
Todavia, essa mesma relação que ocorria em Portugal com os mouros ocorria na
Espanha em relação a Portugal. Durante a União Ibérica era comum se fazer as procissões a la
lusitana, com negros e gente oriundos de vários reinos que viviam sob domínio português e se

  80  
 
 
 

apresentavam agora sob domínio espanhol. Numa projeção de curiosidades do mundo sob o
domínio de Madri.
Não gostei nada de uma intervenção que fizeram sair aos portugueses de muito
gosto para os castelhanos, e foi um tabernáculo, que estava no meio da praça, ao
qual subiram um mulato e mulata português [sic] com adufe e pandeiro e com eles
também um doudo da corte, e todos tangiam e bailavam com grande riso dos rapazes
que cuidavam que aquilo é Portugal86.
Ou mesmo como no casamento de Dona Catarina, após a restauração da coroa
portuguesa, com Carlos II da Inglaterra, em que houve danças e folias de ruas entre arcos
triunfais “um grande desfile com reis etíopes, danças de negros, cortejo de animais, incluindo
as inevitáveis séries e monstros marinhos, além de danças sobre carros da Fama e da
Concordia” TINHORÃO (2012; 59). Desta maneira, grande parte do cartão de visitas
português junto às outras nações europeias passava necessariamente pelas festas e pelo
exotismo que este representava, já apresentando características híbridas, fruto de um contato
com povos de várias partes do mundo que datava de muito tempo antes de qualquer outra
nação do velho continente.
No Brasil, embora as procissões não tomassem o esplendor lusitano, elas foram
marcando época, para Tinhorão essas serviram como o precursor do carnaval, como já deve
ter ficado claro nessa dissertação, a mesma relação entre os povos que estavam sob o domínio
de Portugal era representada nos trópicos. Nessa representação das nações “bárbaras”, sob
domínio colonial, estariam os negros africanos, isso causa certo espanto a um observador
francês no final do século XVII, em 1696, ao ver uma procissão na Bahia. Froger diz que
“bandos mascarados, músicos e dançarinos que com posturas lúbricas, perturbavam
inteiramente a ordem da cerimônia” TAUNAY (1925; 290). Ou como anota um observador
inglês anônimo sobre as festas em Portugal: “O dia começa com missa seguida de sermão.
Porém, mal termina a cerimônia religiosa, tem início o deboche capaz de fazer corar os
antigos devotos de Baco87”.

3.5 “Vou acender velas para São Jorge”


O herdeiro do trono florentino, Cosme de Médici, esteve durante um ano em Lisboa, e
lá teve a oportunidade de assistir a diversas procissões, em uma delas, viu São Jorge “a
brandir espetacularmente uma espada seguido de doze cavalos de reserva igualmente
ajaezados e conduzidos por peões”, tinha à sua volta “diversos figurantes vestidos à mourisca
e ainda vários representantes de diferentes nações de bárbaros sob domínio do rei de
                                                                                                                       
86
 Veiga  “Fastigimia”  apud  Tinhorão  (2012)  
87
 APDG,  Sketches  ofPortuguese  Life.  Apud  Tinhorão  (2012;  73)  
  81  
 
 
 

Portugal” TINHORÃO (2000; 86). No Brasil contemporâneo, São Jorge surge como uma das
figuras mais populares do catolicismo. Presença constante em canções, desfiles de escola de
samba, padroeiros de diversos times de futebol e serve como proteção tanto para os devotos
do catolicismo quanto para a umbanda. Embora Tinhorão não tenha dedicado nenhum
capítulo para o santo, esse aparece em vários capítulos de livros distintos. Nossa preocupação
é demonstrar como desponta a figura dele dentro das relações sociais que se criaram em
Portugal, e como sua popularidade atravessou o oceano.
O poder real faz representar a figura de São Jorge pela primeira vez na procissão de
Corpus Christi no ano de 1387. A intenção é homenageá-lo para lembrar a ajuda por ele
concedida na batalha dos portugueses contra os castelhanos a partir da batalha de
Aljubarrota88. Dessa forma, a popularização do santo esteve diretamente ligada à
popularização da procissão. Falamos no ponto anterior sobre a influência de figuras pagãs nos
rituais de romarias e peregrinações, falamos também da utilização de elementos que remetem
ao imaginário das religiões politeístas da Europa, como as serpentes, gigantes e dragão. Não
podemos afirmar se a associação se dá de maneira direta ou indireta, todavia uma das
principais representações de São Jorge é uma associação entre o santo, dragão e a lua. Não
temos elementos para desvendar a origem do mito do santo que mata dragões, porém temos
relatos que os portugueses já faziam essa associação “havia ainda São Jorge em tamanho
natural montado em cavalo branco, ao lado de “um homem darmas bem disposto”; um dragão
com “Dama, e pessoa que com ele dance””. TINHORÃO (2000; 74). Essa associação lusitana
da figura do santo nas procissões chegaria aos trópicos juntamente com o hábito de se festejar
as datas santas como atesta a carta da câmara de Salvador de 1673 que dizia que era “dever de
apresentar na procissão a alegoria bíblica da serpente do Paraíso, os vereadores baianos
reiteravam aos sapateiros a obrigação de dar “o Drago, como sempre dauão”, ou seja, o drago
dos pegados, desafiador do São Jorge” TINHORÃO (2000; 84).
No Brasil, São Jorge aparece bastante relacionado à cultura negra, embora esteja
ligado a todos os grupos étnicos e classes sociais. TINHORÃO (2012) nos traz alguns pontos
que podem ser analisados dentro dessa perspectiva “Embora a presença de negros metidos em
coloridas librés nas procissões, parece indicar a quase necessária participação dos músicos
destinados a transformar-se em tradição sob o significativo nome de “Pretinhos de São
Jorge89””.

                                                                                                                       
88
 Tinhorão  (2000;  71)  
89
 Tinhorão  (2012;  54)  
  82  
 
 
 

Os homens d´armas, todos bem armados sem nenhuma cobertura, e com as espadas
nuas nas mãos, e levarão São Jorge mui bem ornado com um pajem e uma donzela
para matar o drago, tantos de uma banca como da outra, e seu atabaque (atabale ou
tambor) e bandeira90.
Os instrumentos musicais de origem africana já estavam presentes junto à comunidade
de negros devotos de São Jorge. Como “presença obrigatória”, era este santo indicado para
abrir a procissão a ritmo marcial, isso ajuda a reforçar a imagem de Santo Guerreiro. Embora
a lenda diga que o santo teve presença destacada nas cruzadas, ele não seria o único santo
católico a participar das cruzadas ou de ter sido um guerreiro, todavia sua imagem é
diretamente associada às guerras, lanças e espadas. Essa associação, de um santo de guerra
com espadas e metais, pode remeter aos santos de origem africana, ainda mais quando a
utilização dos negros se fazia presente para conduzir ou para abrir caminho para a passagem
da imagem, conforme observa assustado o visitante francês Duc duChâtelet “Quase todos [os
negros] exercem atividades vis ou menores. São eles que geralmente vão à frente das
profissões tocando cornetas, e que conduzem pelas ruas imagens de santos para o culto da
superstição91”.
Temos nesse ponto, uma associação direta do francês a uma condição que marcava os
negros naquela época e os acompanham até os dias de hoje: “atividades vis e menores”. Nesse
caso específico, ele está relacionando a atividade da música como menor, todavia esse mesmo
escritor dificilmente falaria dessa forma de Mozart ou de Bach, isso porque ele esteve em
Portugal em 1777, publicando seu livro em 1798. Portanto, temos duas associações distintas a
serem feitas, o papel do negro e qual tipo de música deveria ser valorizado. Tinhorão, com
base em livro de Guimarães, nos traz também a informação de que muitos desses negros que
tocavam nas procissões eram profissionais da música, ligados ao Estado de São Jorge com o
apoio real “desde 1750 os músicos negros contratados para arautos se vestiriam para a
procissão em quarto reservado, na própria igreja real [...] os cinco pretos ganham em toda
festa 2$ 400 réis cada um”. (TINHORÃO, 2012, p. 59).
Tinhorão também nos dá a origem de uma das principais formas de sociabilidade e
ascensão social dos negros até hoje no Brasil. Esses elementos vão conduzindo uma das
principais características da estruturação do pensamento do autor sobre a música e as festas no
Brasil, a de uma dupla origem, uma europeia e outra africana, que já se desenvolvia na
metrópole e vai ganhar outro contorno na colônia, porém, todavia ainda não chegamos à
origem do mito de São Jorge. Os reis portugueses costumavam, desde os tempos das lutas
                                                                                                                       
90
  Idem.   Esse   trecho   é   uma   citação   que   Tinhorão   faz   da   obra   de   Guimarães,   R.   “Sumário   de   varia   história”  
Lisboa  1872.  
91
 Voyage  duci-­‐devantducChâteleten  Portugal.  Apud  Tinhorão  (2012;  58)  
  83  
 
 
 

contra os mouros na península Ibérica, lançar-se em conflito apoiando-se na figura de


Santiago (São Tiago), apóstolo espanhol de Compostela. Todavia após a configuração do
reino português a partir de Avis e o princípio da unificação dos reinos espanhóis, a partir de
Castela ambos começam a entrar em guerra e não seria de bom tom pedir proteção ao santo do
inimigo.

o que levou à troca por São Jorge, popularizado em Portugal pelos cruzados ingleses
que ajudaram na Campanha do território. “A imagem de São Jorge começou a
figurar na procissão do Corpo de Deus, no ano de 1387. El-rei, d. João I, na famosa
batalha, a 14 de agosto de 1385, d´Aljubarrota, invocou como grito de guerra o santo
bardando: ‘Avante, á vante S. Jorge, Portugal – São Jorge, Portugal, que eu sou rei
de Portugal”. TINHORÃO (2000; 71).

3.6. Gregório de Mattos, o primeiro trovador.


Tinhorão tem sua origem enquanto pensador na crítica musical, assim ele coloca a
figura do escritor Gregório de Mattos como figura fundamental na formação da música no
Brasil92. Além de suas obras escritas, na qual ele transcreve muito do cotidiano da colônia, ele
também era conhecido pela música. Para nós interessa como pode surgir um músico que
adquire contornos de uma produção autoral nesse momento histórico. Quais eram as
condições materiais e sociais que se realizavam na sociedade que permitiu o surgimento e
reconhecimento de um artista individualmente, em um momento histórico, em que as músicas
e as festas se davam de maneira coletiva e que as narrativas das canções se perdiam no tempo,
configurando-se muito mais como ladainhas de domínio público entoado por vozes coletivas.
O que permitiu que uma voz individual preponderasse naquele momento histórico é o ponto
de observação de Tinhorão e nosso objetivo é delimitar como o autor a construiu, dialogando
com outros referenciais teóricos.
A música popular, enquanto criação típica da gente das cidades destinada a
transforma-se no século XX em produto cultural de massa, após quase quinhentos
anos de evolução do estilo de canto solista acompanhado, representado pela canção,
surgiu na passagem do século XV para o XVI como mais um resultado do processo
de urbanização anunciador do fim do longo ciclo de economia rural da Idade Média.
(TINHORÃO, 1997, p. 11)
O surgimento de um novo tipo de música estaria então ligado a dois elementos
principais, o primeiro ao surgimento da cidade moderna, esta não mais determinada pelo
ânimo da economia rural, mas com características próprias de produção material. E o segundo
ponto, ao surgimento de novas categorias laborais, originadas pela divisão social do trabalho.
Essas características estão diretamente relacionadas com a transformação da vida e
                                                                                                                       
92
  “Apreciado   sob   esse   ângulo   de   poeta-­‐compositor   urbano   pioneiro   no   século   XVII,   mas   não   certamente   o  
único”.  Tinhorão  (1998;  58)  
  84  
 
 
 

consciência coletiva de uma sociedade estática para o advento do conceito de indivíduo93.


Tinhorão parte do pressuposto que a origem do cancioneiro está relacionada diretamente ao
trovador medieval. Este estaria imbuído de características peculiares que o colocavam em um
híbrido de popular, no sentido de pertencimento social, à corte, pois ideologicamente está
relacionado aos eventos edificantes de reis e nobres em batalhas ou caças. Desta forma, os
trovadores eram aqueles que registravam a história de um povo e a cantavam como forma de
ativar a memória do povo para períodos remotos. Em tempos em que a escrita era pouco
desenvolvida a tradição gramatical estava confinada em mosteiros e nas igrejas, e a
transmissão das notícias e, consequentemente da história, se dava de maneira oral. Dentro
dessa sociedade hierarquizada, os trovadores surgem como os portadores de todos os tipos de
notícia, desde as guerras, nascimentos reais, fome e pragas. Os trovadores poderiam ser
associados como a “intelligentia” feudal, que compunham ou decoravam versos ritmados
acompanhados de instrumentos musicais. Desta forma, como um dos pontos versados eram as
mudanças que ocorriam em determinados locais, alguma coisa iria se transformar quando as
“mudanças” tomassem ritmo mais acelerado.
(...) no Prólogo de sua Miscelânea, em 1554 publicada como parte do Livro das Obrs
de Garcia de Resende, e em que punha em forma de crônica rimada em versos de
redondilha maior os factos de Portugal e do mundo de entre 1490 e 1530, o cronista
Garcia de Resende registra esse tempo como o das “novas novidades”, ou seja, dos
“grandes acontecimentos, / & desvairadas mudanças/ de vidas, & costumes”.
TINHORÃO (1997; 21)
Essas características peculiares de Portugal, navegação, descobrimentos e
desenvolvimento de cidades mercantis, concedem a esse pequeno país a oeste da península
ibérica as condições de desenvolver um tipo de canção urbana, diferente dos trovadores que
tinham características rurais e nômades ou de corte, baseada em versos ritmados à moda
portuguesa (redondilhas) e com acompanhamentos de instrumentos de corda tangida. Então,
os temas impressos por Camões ganham contornos populares com a canção, uma vez que não
era necessário saber ler e escrever para compreender o que se passava em um teatro de Gil
Vicente ou nas canções que se desenvolviam nas cidades. Todavia nos interessa saber como
aquelas canções que se desenvolviam na metrópole, podiam chegar à colônia, como do
surgimento de indivíduos que narravam uma história e não mais que uma história que era
contada por alguém que chega aos trópicos, ou como surge o primeiro cancioneiro em terras
brasileiras.
Gregório de Mattos era filho de senhor de engenho que vai para Coimbra, assim como
muitos de sua classe social, fazer os seus estudos. Permanece por quinze anos em Portugal
                                                                                                                       
93
 Maiores  informações  podem  ser  acessadas  em  Durkheim  (2002).  
  85  
 
 
 

onde, além de formar-se bacharel, encontra o ambiente boêmio e as canções modernas que se
desenvolviam na metrópole. Volta à Bahia em 1683, inicialmente, para exercer a função de
tesoureiro do arcebispado. Casa-se com uma viúva, perde o cargo no aparato eclesiástico e
“começa suas andanças boêmias pelos engenhos do Recôncavo baiano, cujos proprietários o
abrigavam naturalmente atraídos por suas qualidades de compositor de coplas e romances –
que acompanhava na viola” (TINHORÃO, 1998, p. 55). O nomadismo que ele se dedicava,
como as visitas aos engenhos, o aproximava da arte dos trovadores medievais, além disso,
Tinhorão enxergava outras semelhanças:
Em seu caso pessoal Gregório de Mattos não apenas continuava a tradição daqueles
desocupados escudeiros “trovadores” quinhentistas, cultivadores de romances
acompanhados à viola, mas entregava-se já à glosa de quadras e estribilhos de
cantigas populares do tempo sob a forma de décimas (tão comuns duzentos anos
depois em Portugal, com o advento da moda dos “fados na segunda metade do XIX).
TINHORÃO (1998; 56).
Assim, a “nova tradição” musical Portuguesa chega à Bahia no final do século XVII,
mesclando a tradição dos poemas rimados e ritmados que encontraria outros elementos na
vida social baiana que acabaria por incorporar outras influências como a chula. Entretanto ele
não era o único cantor, poeta ou tocador que animava as noites de Salvador, existia já naquele
momento, uma legião de boêmios que se dedicavam à música e as farras na cidade que crescia
com o auge do ciclo açucareiro e que dispunha de uma inicial divisão do trabalho a partir das
atividades comerciais, portuárias e administrativa que floresciam na capital. Soma-se a isso a
companhia de mulheres “mulatas” que acompanhavam as noites da trupe, fruto da sociedade
patriarcal brasileira. Então temos “talentos citadinos como o cantor Silva Arião (...) o também
cantor e tocador de viola Chico Ferreira (parceiro de farras de Gregório de Mattos a quem (...)
chamava seu mestre de solfa, porque com ele cantava às vezes) e ainda um certo Gil”
TINHORÃO (1998; 58).
Assim, se os brancos mais folgados do pequeno grupo de funcionários, profissionais
liberais e pequenos proprietários que formavam a camada alta da sociedade colonial
podiam manter tão íntimas relações com essas “mulatinhas da Bahia”, era
certamente porque o afrouxamento do controle social conferia, nas cidades, uma
margem de liberdade pessoal capaz de permitir essas aproximações lúbrico-
amorosas de caráter interétnico. E era o que o mesmo Gregório de Matos deixava
perceber, ao registrar flagrantes inequívocos de tais liberdades, ao menos para o caso
de Salvador: TINHORÃO (2000; 100).

Mulatinhas da Bahia
Que toda a noite em bolandas
Correis ruas, e quitandas
Sempre em perpétua folia94
Temos aí outro ponto importante para a compreensão do tempo vivido por Gregório de
Mattos, a formação das Irmandades de Negros e Pardos no Brasil. Esse foi um dos pontos que
                                                                                                                       
94
 Gregório  de  Mattos,  Obras  completas,  vol  III,  p  1247  
  86  
 
 
 

ajudou a criar uma canção com características próprias, que versava sobre pontos pertinentes
a realidade baiana. As confrarias começavam a se estruturar e produzir suas próprias folias.
Não é de se estranhar que além dos ritmos provenientes de Portugal, ele também se dedicava à
chula, que conforme o próprio nome anuncia seria a música de uma camada inferior da
sociedade. Essa mistura vai fazer também com que a harmonia dessas canções se fizesse pelo
rasgado (ato de ferir todas as cordas simultaneamente) ao invés de pontear as cordas conforme
a preferência erudita. Outra característica das suas composições (não é à toa que ganhou a
alcunha de Boca do Inferno) se refere aos duplos sentidos que envolviam as letras. Nesse
ponto, a folia fica no duplo sentido da mulatinha com a qual começa o verso. A folia poderia
se tratar tanto do ato de festejar quanto da conjugação carnal, que repetirá em diversas outras
quadras compostas por ele:
No grande dia do Amparo
Estando as mulatas todas
Entre festas, e entre bodas,
Um caso sucedeu raro:
E foi, que não sendo avaro
O jantar do canjirões,
Antes fervendo em cachões,
Os brindes de mão em mão
Depois de tantas razões
Tiveram certas razões.
Macotinha a foliona
Bailou rebolando o cu
Duas horas com Jelu
Mulata também bailona:
Senão quando outra putona
Tomou posse do terreiro,
E porque ao seu pandeiro
Não quis Macota sair,
Outra saiu a renhir
Cujo nome é Domingueiro95
Dessa vez, os versos estão mais diretos, temos alguns elementos interessantes para
recompor um pouco do cenário da sociabilidade que se fazia a partir das festas e das músicas
pela voz de um dos poucos cronistas que estavam fora da alçada oficial. Primeiro era a
importância das festas católicas e populares, nesse caso a do Amparo, Nossa Senhora do
Amparo. O poeta deixa claro que se tratava de uma festa de negros, pois “estavam as mulatas
todas”, indo ao encontro da outra quadra descrita anteriormente. Então, temos uma festa em
homenagem a uma santa, em que a folia era o ponto alto, e a música se fazia presente, o que
levava todas as mulatas a dançarem, como um hábito, que se mantém até hoje na música
brasileira, o de rebolar. Isso demonstra uma característica popular na dança, uma vez que o
hábito de dançar em par estava ligado a uma concepção de dança europeia, mais próxima dos

                                                                                                                       
95
 Gregório  de  Matos,  Obras  Completas,  vol.  III,  p.  622  
  87  
 
 
 

bailes de corte. Dentre os índios ou os negros, as danças se faziam separadas. As bebidas se


fazem presentes também junto ao hábito de “brindar de mão em mão”, até que temos um
duplo sentido religioso em “Tomou posse do terreiro”, assim temos referência à religiosidade
híbrida característica das irmandades de negros. Por fim, utilizaremos o pandeiro como
elemento musical presente na festa. Esse ponto é importante, pois dialoga com o conceito de
autenticidade que Tinhorão busca na música brasileira e que, para ele, tem a forma moderna
no samba. Para tanto, segue outra quadra que colocará dois outros elementos fundamentais na
formação dessa autenticidade que já estava impressa nos versos de Gregório de Mattos:
Criam-nos em liberdade
Nos jogos, como nos vícios,
Persuadindo-lhes que saibam
Tanger guitarra e machete96
Temos a guitarra, que é o que entendemos por violão nos dias de hoje e machete,
Tinhorão traduz como cavaquinho, todavia preferia manter o termo, pois temos até hoje a
viola de machete sendo usada nas rodas de samba chula no recôncavo baiano.
Temos assim a formação da canção urbana a partir de Gregório de Mattos, procuramos
trabalhar de maneira sucinta a criação de novos gêneros musicais no Brasil, a partir do
encontro de duas formas musicais, uma a harmonia de origem africana, expressa na obra do
poeta pela junção entre o ritmo desenvolvido pelos membros das irmandades de negros e a
melodia portuguesa que se expressa na obra pela utilização das redondilhas como forma
poética ou os versos em sétima. Bem como a simplificação destes pelas quadras, que de
caráter mais popular e mais fácil de manejar que recebeu o nome de chula. Essa formação só
pode, para Tinhorão, desenvolver no país pelas mudanças e transformações que ocorriam na
organização social do país e que para bem compreendida é importante ficar atento às
contribuições de ELIAS (1991; 15):
Após um exame mais acurado, não é raro que as realizações notáveis ocorram mais
frequentemente em épocas que poderiam, no máximo, ser chamadas de fases de
transição, caso usemos o conceito estático de "épocas". Em outras palavras, tais
realizações surgem da dinâmica do conflito entre os padrões de classes mais antigas,
em decadência, e os de outras, mais novas, em ascensão.

3.7 Porque não falei dos flandres!


Não falamos dos holandeses porque preferimos nos centrar apenas nas partes em que
poderíamos traçar um paralelo entre uma memória medieval e festas populares, conforme a
chamada da reflexão de Tinhorão. Desta forma, dedicamos apenas alguns parágrafos à
dominação holandesa, enquanto ele dedica um capítulo até que bem denso pela importância

                                                                                                                       
96
 Gregório  de  matos,  obras  completas,  vol.  1,  p.  20.  
  88  
 
 
 

festiva. Ele dedica quatorze páginas aos eventos relacionados à capacidade de festejar da
trupe de Nassau. Sintetizaremos em duas palavras “boi voador”. Para aqueles que leram
Weber e sua “Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo” (não sei se é o caso do Tinhorão,
todavia ele não coloca essa obra na bibliografia consultada de nenhuma das obras por mim
estudadas), bem saberíamos que aqueles sujeitos grandes, brancos e desengonçados têm pouca
afeição às festas, não pelo seu biótipo, mas pela sua religião. Segundo WEBER (1967), a ética
protestante estaria ligada a uma conduta metódica de valorização do trabalho em oposição à
celebração católica. E embora Tinhorão não assuma que tenha sido influenciado de uma
forma ou de outra por esse autor, ele dá uma resposta bem condizente com a razão da
organização desse espetáculo:
Um espetáculo idealizado, por sinal, pelo próprio príncipe Maurício de Nassau, com
o objetivo muito prático e rasteiro de arrecadar dinheiro. (...) mandou anunciar que
no domingo 28 de fevereiro de 1644 – dia da inauguração da ponte sobre o rio
Capiberibe, que fizera concluir com recursos pessoais, e que agora pretendia
recuperar cobrando pedágio97.
Fizemos esse aparte para justificar o porquê quase não falamos da influência batava
nas festas coloniais, acreditamos que agora faremos todas as contribuições significativas nesse
quesito, que podem ter sido oferecidas pelo povo oriundo dos países baixos. Mas também não
havíamos adentrado nesse quesito por outro motivo. Essa série proposta por Tinhorão levava
o nome de ciclo das festas medievais, e embora tenha se passado no século XVII em nada
podemos dizer que se guarda de influência medieval. Não podemos colocar uma festa para
arrecadação de recursos nesse quesito, os espetáculos com vistas ao enriquecimento é um
fenômeno contemporâneo, e mesmo que ele possa ter ocorrido vez ou outra em algum lugar,
em alguma data da idade média, este seria um ponto fora de uma memória coletiva. Todavia,
a título de curiosidade, poderia ser justificado. Porém se Tinhorão quisesse dar alguma
contribuição mais relevante sobre esse tema, para além do conhecimento geral, caberia uma
discussão sobre a possibilidade ou não de festas pelos protestantes em solos pernambucanos.
Para não acusar-nos de má fé, afinal nos debruçamos em sua obra e fazemos isso porque
consideramos que nela tem muitos elementos importantes para se compreender a
sociabilidade no Brasil colonial, pegaremos outros dois trechos que julgamos ser de uma
importância sociológica:
Assim, vivendo de certa forma alheios ao dia-a-dia da vida da comunidade que
dominavam – a partir das próprias diferenças religiosas mais profundas e difíceis de
transpor do que as culturais em geral -, os holandeses eram incapazes não só de
impor ou promover qualquer forma nova de criação popular, como iriam tornar-se,
                                                                                                                       
97
  Segundo   frei   Manoel   Calado   “juntara   ali   o   conde   Nassau   tanta   gente   para   fazer   passar   pela   ponte,   e   tirar  
aquela  tarde  grande  ganância,  e  tanta  gente  passou  de  uma  a  outra  parte,  que  naquela  tarde  rendeu  a  ponte  
mil  e  oitocentos  florins”.  Apud  Tinhorão  (2000;  64)  
  89  
 
 
 

bem ao contrário, o público entusiasmado das festas locais. (TINHORÃO, 2000, p.


53)
Tinhorão reconhece a diferença religiosa como central dentro do processo de
integração dos holandeses com os portugueses ou com os mazombos, o que nos deixa em
dúvida sobre a leitura ou não da obra de Weber, que recai sobre a parte de se tornarem
“publico entusiasmado das festas locais”, pois fazendo as festas no sentido de participar
ativamente delas ou apenas assistindo, pouca diferença para uma ética protestante tem. A
única diferença seria a de intensidade, porém sobre uma perspectiva geral ambos, os que
organizam e participam ativamente da festa e aqueles que só a observam como espectadores,
estão gastando tempo em quem poderiam estar fazendo engrandecer a obra divina com
trivialidades. Poderia também se argumentar que estamos tratando de Presbiterianos e não de
Quakers, que faria todo sentido dentro da gradação religiosa.
Outra possibilidade seria a de que eles se tornam “o público entusiasmado das festas
locais” por um motivo muito nobre dentro da ética protestante. Eles estão lá a trabalho. Sendo
administradores da capitania e adjacências, governador e responsável pelo funcionamento do
comércio de açúcar entre Pernambuco e Europa ser público da festa é o mesmo que estar
monitorando o funcionamento daquela sociedade que eles administravam. Conhecer o hábito
e o gosto daqueles que ali vivem seria um modo de bem gerir os domínios batavos sobre o
novo mundo. Todavia, não quer dizer que eles não estariam interessados nas artes de maneira
geral, conforme atesta Tinhorão mais adiante.
Assim, enquanto à volta do palácio de Friburgo, erguido pelo conde Maurício de
Nassau, “passeava a elite do Brasil holandês, e onde às vezes se davam concertos
musicais abertos ao público”, a gente da baixa camada formada por escravos e
trabalhadores brancos e mestiços (e eventualmente até portugueses ligados àquela
“elite do Brasil holandês”) continuava a cultivar suas formas tradicionais de
diversão, alheios à presença do dominador. (TINHORÃO, 2000, p. 55.)
Temos aqui um indício de uma diferença fundamental entre as manifestações artísticas
produzidas pelas nações protestantes, ou de maior influência destas, com as católicas e
particularmente, Portugal. Escrevemos no capítulo anterior sobre as músicas jesuíticas e sobre
a utilização dos cantos e instrumentos musicais. Enquanto no Brasil, os órgãos e violinos
ficavam em segundo plano na organização musical em Viena Bach, que tocava e regia
orquestra de câmara nas igrejas protestantes e nos salões da aristocracia. O conceito de
indivíduo se desenvolvia mais rapidamente no seio dessas sociedades reformadas e isso se
refletiria também no Brasil com a chegada dos holandeses. Ao passo que as sociedades mais
hierarquizadas desenvolviam festas de cunho mais coletivistas, privilegiando momentos de
“neutralização” ou “inversão” hierárquica, DA MATTA (1981). Embora tenhamos afirmado
que a contribuição para as festas populares por parte dos holandeses se resumia a duas
  90  
 
 
 

palavras, eles tiveram outras contribuições, principalmente no que se refere a registro e


memória. Durante o curto período batavo, foram enviados para cá pintores, escritores e
artistas98 de maneira geral que documentaram a vida nos trópicos, a cultura, natureza, música
e folguedos.

3.8 O ciclo medieval: a memória de uma realidade externa.


Na primeira parte do capítulo inicial sobre o ciclo medieval no livro “As festas no
Brasil colonial”, o autor diz “o século XVII revelar-se-ia muito pobre de festas oficiais
capazes de merecer registro histórico” TINHORÃO (2000; 51). Talvez Tinhorão estivesse
esperando mais fontes históricas, como todo pesquisador gostaria sempre de encontrar aquelas
considerações que estiveram perdidas entre arquivos ou gavetas e que de repente se tem em
mãos um material novo para completar o quebra cabeça. Todavia, o século XVII é o que
merece mais páginas e capítulos nessa sua obra, além de receber destaque no livro “Festa de
Negro em Devoção de Branco”, embora tratando dos negros em Portugal, segue a premissa do
autor de uma relação dialética entre as festas na colônia e metrópole.
No que tange à organização da música jesuítica, Tinhorão busca em pequenos detalhes
espalhados em algum fragmento de textos, ânuas ou cartas dos padres a seus superiores,
informações que pudessem lhe conferir uma autenticidade de uma música ou festa popular. A
opressão jesuítica era um sintoma e um obstáculo à constituição de uma síntese de uma
expressão artística musical, esta era tolhida pela repressão implacável dos missionários.
Qualquer capacidade de hibridismo que pudesse surgir estava condenada a padecer, salvo se
esse ocorresse sob a coordenação dos padres, o que vai originar a “deculturação” conforme já
foi debatido anteriormente. Assim, o primeiro ciclo do livro é de uma luta de classes
declarada tendo o opressor, vestindo bata e empunhando uma cruz e os oprimidos, aqueles
que apresentassem nus quaisquer partes do corpo. Estes buscavam nos ínterins uma
organização secreta que pudesse garantir a sobrevivência de uma nova forma cultural.
Todavia, no segundo ciclo a palavra jesuíta não aparece    e o autor se encontra em uma posição
muito mais livre para poder ensaiar o que para ele, parece ser o ponto áureo da formação
festiva do Brasil colonial.
Podemos relacionar essa condição sob algumas óticas diferentes, uma delas diz
respeito às fontes, a outra sobre corrente de pensamento. Começaremos no que tange à
obtenção das informações. No primeiro ciclo, às informações provêm basicamente de apenas
                                                                                                                       
98
 Albert  Eckout,  enviado  ao  Brasil  como  pintor  da  comitiva  de  Nassau  foi  o  primeiro  a  pintar  aquarelas  em  solo  
nacional.  Além  dele  se  destacaram  na  pintura  Franz  Post  e  Zacharias  Wagener.  Mello  (2001)  
  91  
 
 
 

um ponto de vista, conforme já assinalado: a Igreja. E não Igreja de maneira abstrata, mas
uma determinada corrente do catolicismo, que surge simultaneamente às grandes descobertas
territoriais e que têm em sua vértebra os preceitos da contrarreforma e do concílio de Trento.
Ao contrário de Érico Veríssimo, que enxergava nas missões uma doutrina civilizadora e
humanista em relação à questão indígena, Tinhorão se agarra no pensamento de Gilberto
Freyre, embora, mais uma vez, não se encontra nenhuma referência ao pensador
pernambucano em nenhum dos livros consultados, no efeito da lobotomia cultural indígena.
No que diz respeito à formulação do Tinhorão sobre o século XVII, temos outros tipos de
fontes de pesquisa que servem de guia: atas públicas, relatos de viajantes leigos, produções de
escritores portugueses ligados à Universidade de Coimbra e literatos. Essas fontes de
informações seculares encontradas pelo autor fazem com que, mesmo que todas as festas por
ele analisadas fossem de cunho católico (não podemos imaginar que o “boi voador” seja uma
festa), a interpretação delas é de uma mistura de festa oficial e religiosa, em que mesmo São
Jorge adquire um caráter totêmico que não se confunde em nenhum momento como um
símbolo do catolicismo romano, transparecendo muito mais a encarnação humana de uma
divindade pagã ou a representação perpétua dos reis portugueses durante a história, montado a
cavalo na luta contra um mal abstrato.
Tinhorão busca um catolicismo “laico”, o que PASSOS (2002) vai chamar de
catolicismo popular. No estudo desse autor, encontramos elementos que podem traduzir o que
se anuncia como ciclo das festas medievais.
O catolicismo popular tradicional predominou nos três primeiros séculos (1500 –
1800). Vinda com os portugueses, a fé católica era de importação lusitana. Com essa
matriz foi se formando o catolicismo popular. Trata-se de uma mentalidade
tradicional portuguesa. J. Comblin99 reconhece seu caráter medieval e popular. A fé
do povo se manifestava através das devoções aos santos, das procissões das orações
de invocações e perdão, dos milagres. (PASSOS, 2002, p. 171).
Se o catolicismo popular chega, segundo PASSOS (2002), no Brasil em 1500 e
perdura até 1800, por que ele está ausente no primeiro ciclo festivo? Justamente pelas fontes
de pesquisa, pois se trata de um costume popular, no sentido estrito da palavra, como poderia
obter informações acerca da sua estruturação? Então, Tinhorão vai buscar esses elementos nas
cenas ditadas pelos jesuítas, o que pode acarretar numa compreensão incompleta. Todavia, ele
consegue fontes em Portugal que fazem com que ele contemple parte dessa problemática,
justamente nas influências do paganismo europeu como uma das partes formadoras desse
catolicismo popular. Importante frisar também que Tinhorão não procura a música e as festas
                                                                                                                       
99
 “O  catolicismo  que  chegou  ao  Brasil  foi  essencialmente  o  catolicismo  popular  dos  últimos  séculos  da  Idade  
Média.  A  única  coisa  que  o  Brasil  recebeu  da  Idade  Média  foi  a  religião  popular  dos  portugueses”  Comblin,  J.  
“Situação  histórica  do  catolicismo  brasileiro.  Apud  Passos  (2002;  171)  
  92  
 
 
 

no meio rural, ele deixa isso explícito em sua metodologia, talvez por essa dificuldade de
encontrar fontes que possam comprovar sua teoria e evitar as suposições (do qual ele é
acusado muitas vezes) teóricas. Assim, ele divide em ciclo das folias devotas (onde, para os
jesuítas, as folias perpassam como maus costumes que vieram junto com os portugueses) e
ciclo das festas medievais.
As festas medievais também trazem consigo alguns elementos que figuram numa
memória coletiva e de afirmação real. Embora o padre Manoel da Nobrega tenha descrito
cavalhadas já em 1549, elas tornam-se importantes para Tinhorão somente no século XVII.
Conforme dito no ponto 3.1, trata-se de festas montadas a cavalo que retomam cenas da
história da formação da nação, nesse caso a portuguesa. Portanto, a figura das guerras a
cavalo com estandartes de confrarias e corporações de ofícios que remontam a símbolos de
armas e castelos traz à tona o ideal medieval da honra e do cavalheirismo. Por isso, descreve
uma epopeia que serve de unificadora de um povo, tais quais as procissões. A teatralização do
rito através dos autos transparece em ambas as festas, servindo de uma estruturação da
memória medieval conforme uma tradição oral, em que os grandes feitos são contados pelos
trovadores. Estes servem como alguém que conhece o mundo, um ser cosmopolita em um
universo restrito pelas dificuldades de comunicação. São porta-vozes de um mundo
justamente por não estarem arraigados em um local pré-determinado, mas detêm uma
mobilidade e o dom da palavra que o eleva em espírito, capaz de conferir sentido a uma
narrativa. Desta forma, eles contavam histórias de um mundo real e de um mundo místico, em
que o catolicismo e a influência pagã caminhavam lado a lado, entre dragões, donzelas, reis,
princesas, luas e serpente. Eis o espírito medieval das festas do século XVII.
Outro ponto que podemos articular sobre a opção de Tinhorão em dar ênfase a um
caráter de autenticidade às festividades desse período pode ter origem em uma corrente de
pensamento. Já está assinalada para nós, desde o primeiro parágrafo dessa dissertação, a
filiação do autor dentro do que chamamos de marxismo. Dessa forma, a construção
argumentativa do autor segue uma trajetória que visa colocar as questões sociais, políticas e
econômicas como fatores que influenciam sobremaneira os desdobramentos culturais que
ocorriam no país. As fontes e os documentos recolhidos pelo pesquisador conferem a ele um
leque de informações dispersas. Entre ter as sucessões de fatos documentados em estado bruto
e transformá-lo em uma tese bem fundamentada, exige um conhecimento que vai bem além
da informação, é justamente isso o que faz Tinhorão. Ele observa uma série de eventos

  93  
 
 
 

ocorridos durante três séculos no Brasil e constrói uma narrativa coerente a partir delas. O que
está por trás dessa construção?
Tinhorão retoma uma perspectiva muito semelhante aos questionamentos de
BOURDIEU (2000) quando versa sobre “A educação sentimental”. O que está intrínseco no
pensamento deles é que não existe a “arte pela arte”, pois da mais engajada à mais inocente e
apolítica forma de manifestação artística está relacionada aos eventos que ocorrem no
cotidiano. Desta forma, a arte é uma esfera da vida e não pode e não está separada das
condições objetivas de reprodução material da vida. Eventos políticos, econômicos e sociais
influenciam de maneira decisiva as formas de se expressar de um povo, assim a perda da
autonomia lusitana com os reinados dos Filipes enseja uma retomada dos valores de
identidades portuguesa. As mouriscadas e as cavalhadas se relacionariam como memória
coletiva da unificação do reino de Avis a partir das vitórias sobre os mouros. São Jorge se
reforça como o santo que ajudou a derrotar os espanhóis, ainda no século XIV, em oposição
ao equivalente Santiago do reino inimigo. E o Corpus Christi figuraria como a herança
ancestral do povo que se manifesta como a autenticidade híbrida do povo lusitano. As festas
serviriam como um termômetro dos conflitos na vida social.
A festa não apaga as diferenças, mas antes une os diferentes. A identidade que cria é
uma unidade diferenciada e, na medida em que as diferenças representem ou gerem
conflitos, uma identidade conflituosa, que une os dois extremos contrastante e,
aparentemente, contraditórios, da cooperação e da competição. Toda festa, como
vimos, implica uma determinada estrutura de produção e de consumo e, portanto,
uma estrutura de poder, passível de controle diferenciado. (GUARINELLO, 2001, p.
972).
Desta forma as festas, tanto as de origem oficial quanto as populares, traziam no seu
bojo as contradições existentes na sociedade. Tinhorão se influencia nas discussões marxistas
sobre as libertações nacionais, muito em voga nos anos setenta, para pensar as festas como
uma unidade fronteiriça e de costumes compartilhados, que acabam por ofuscar as
contradições internas dentro dessa unidade. Assim, as resistências culturais dos povos das
colônias contra uma nova força de domínio moldam uma experiência portuguesa de
valorização do elemento hibrido, principalmente na metrópole, TINHORÃO (2012).
As formações das primeiras irmandades de negros no Brasil seria uma das
consequências dessa necessidade de criar uma “unidade diferenciada”, que iriam dialogar com
essa identidade lusitana mais aberta à miscigenação que os espanhóis, que detinham o poder
político nas antigas possessões portuguesas. Com o fim da União Ibérica, e a retomada do
trono pela dinastia de Bragança, não encerra esse capítulo de uma unidade nacional, pois
ainda se mantinha, em solo brasileiro, a ocupação holandesa, que passa de um aliado contra a

  94  
 
 
 

antiga dominação e permite a continuidade de um discurso da unidade entre colônia e


metrópole dentro de um paradigma comum, a reunificação territorial de Portugal.
As contradições inerentes a esse processo são, para Tinhorão, fundamentais para a
construção de um discurso musical e festivo de características próprias, que conseguia atrair
as camadas populares para dentro e simultaneamente para fora das festas tradicionais
portuguesas, que sofreriam influências populares de diversas magnitudes100, tanto no que se
refere à herança pagã quanto aos híbridos que surgiam tanto na metrópole, mas
principalmente na colônia. Todavia, a unidade nacional e sua ideologia começam a entrar em
choque quando inexiste um inimigo externo que necessita a unificação dos diferentes dentro
de um projeto comum. A ameaça estrangeira ou o inimigo comum sai de cena e as projeções
de uma nova forma de dominação política, o absolutismo, adquirem outro patamar. As festas
oficiais perdem gradativamente seu caráter popular e híbrido, e a teatralização dos cultos, que
remontam ao teatro de Gil Vicente, vão perdendo espaço para a nova tendência europeia das
festas barrocas.

                                                                                                                       
100
Passos   (2002;   177).   Na   evolução   histórica   do   Brasil,   o   catolicismo   popular   lusitano   sofreu   um   processo   de  
aculturação  que  o  modificou,  consequência  do  fenômeno  de  transplantação,  tendo  como  resultado  atitudes  e  
comportamentos   novos,   com   relação   aos   componentes   religiosos   e   culturais   originários,   principalmente  
africano  e  indígena.  
  95  
 
 
 

4 – SÉCULO XVIII: AS ENTRADAS E OS DESFILES SIMBÓLICOS DO


PODER
As entradas ocuparam papel central no ideário e na construção da identidade
absolutista das famílias reais na Europa nos séculos XVI, XVII e até mesmo no XVIII. No
Brasil, elas ganham força, sobretudo no ciclo do ouro. “Embora destinada a coexistir com os
primitivos modelos festivos de espírito medieval (...) a associação dos interesses real e
religioso iria lançar no século XVIII uma moderna forma de evento público” TINHORÃO
(2000; 105). Esses eventos se caracterizam pela suntuosidade e pelo desfile de alegorias sobre
rodas, preconizando os interesses tanto da coroa quanto da igreja, dentro de um universo de
centralização do poder.
O desenvolvimento do barroco em Minas Gerais determinava outro comportamento,
tanto do mundo profano quanto do sagrado. As regras religiosas cambiariam assim com uma
centralização da vida social a partir do ciclo do ouro. Nessas transformações, em que
mergulhava o Brasil colônia, com a mineração no interior do país101, trazem uma condição de
guinada tanto do ponto de vista político, cultural, religioso e principalmente festivo. As festas
religiosas desse período fundem-se com o ideal da coroa para essas terras. Se no primeiro
momento o exótico, o selvagem, o paraíso tropical povoavam a imaginação lusitana sobre as
terras tupiniquins, a partir desse momento a febre do ouro contagia o povo que migrava em
massa com vistas a fazer fortunas em meio às montanhas. Esse crescimento demográfico, sem
precedentes na história do Brasil, obriga tanto a coroa quanto a Igreja a mudarem a sua
concepção de mundo a ser instalado nos trópicos102.
A criação desse universo alegórico com o desenvolvimento das entradas triunfantes,
como característica própria do século XVIII no Brasil, marca, do ponto de vista religioso, o
rompimento da coroa portuguesa com a companhia de Jesus e do ponto de vista político, com
as reformas pombalinas. Essas transformações no campo político e religioso se por um lado
                                                                                                                       
101
Caio   Prado   Júnior   (2000),   vai   assinalar   uma   guinada   no   modo   de   organização   social   no   Brasil   a   partir   da  
descoberta   do   ouro.   Se   no   primeiro   momento   a   ocupação   se   dava   no   litoral   e   baseada   na   agricultura,   nesse  
momento   se   interioriza   a   ocupação   e   se   baseia   no   extrativismo   mineral.   Luna   (2009)   assinala   a   diferença  
existente  entre  a  distribuição  da  escravaria  entre  a  produção  açucareira  do  nordeste  com  a  praticada  nas  lavras  
de   Minas   Gerais.   No   primeiro   caso   era   necessária   uma   concentração   escravista   muito   grande,   com   média  
variando  entre  20  e  50  escravos  por  proprietários,  enquanto  em  Minas  variava  entre  5  a  7.  
102
Ávila   (2006;   23;   24)   “O   próprio   destino   do   catolicismo,   seja   como   religião,   seja   como   expressão   política,  
estaria  irremediavelmente  comprometido  ante  o  bloqueio  reformista  que  empolgava  a  Europa  e  ameaçava  de  
isolamento   os   países   peninsulares   (...)   A   saída   para   a   América   se   constituiu,   portanto,   na   grande   cartada  
inaciana,   risco   em   que   se   lançaram   simultaneamente   os   interesses   econômicos   de   Espanha   e   Portugal,  
associados   também,   por   afinidades   de   formação   espiritual   e   histórica,   no   projeto   de   manutenção   da  
supremacia  religiosa  do  catolicismo.”  
  96  
 
 
 

trazem uma resposta às reformas que ocorriam na Europa também carregam um universo
simbólico cosmopolita de uma construção festiva de diversas influências.
Requintada forma final da velha tradição europeia dos ruidosos corsos, envolvendo
enredos montados cenograficamente sobre carroças (às vezes com o formato de
navios, como tradição alemã dos Narreschiff, a nave dos loucos), e já conhecidos
desde o século XV com os charriotsdas companhias burlescas na França, os
trionfina Itália e os pageants na Inglaterra, os desfiles barrocos da colônia brasileira
vinham, na verdade, transformar em espetáculo oficial as antigas criações
portuguesas chamadas de “invenções. (TINHORÃO 2000, p. 105).
Os apontamentos feitos por Tinhorão também nos revelam um caráter cosmopolita
assinalado por esse tipo de festa, principalmente pela influência que trazia de outras partes da
Europa, fazendo do Brasil o local de pungência das entradas triunfais. SIMMEL (1983) diz
que as festas de corte tiveram seu auge no Ancient Régime, Luís XIV teria sido talvez o que
melhor se aproveitou dessas festas. Em Portugal, ela ganha uma relevância muito
significativa, justamente com a criação da União Ibérica e com o fim da autonomia lusa.
Entradas reais como a de Filipe I (1581) e Filipe II (1619), ambas em Lisboa, ajudavam a
construir um imaginário de relações simbólicas e de representação pública da coroa “distante”
portuguesa. Reavivar essa relação dinástica no Brasil era uma forma de procurar uma
identidade comum que os separava da Espanha e os reaproximasse de uma identidade
“originária” de desbravadores, católicos e fiéis servos da Santa Igreja. Desta forma, o
processo inverso da afirmação real exótica, agora migrava para a colônia, desta vez não tendo
mais a dinastia dos Filipes e sim de Bragança. Esse, talvez, seria o caráter “requintado” de que
falava Tinhorão, não do ponto de vista da alegoria mas das relações de poder.
Esse capítulo articula as festas de demonstração real de poder desenvolvido pelo poder
central e religioso, principalmente em duas festas distintas: A transladação do “Divino
Sacramento” da Igreja de Nossa Senhora do Rosário para a nova matriz de Nossa Senhora do
Pilar, em 1733, que fica registrada para história pelo “Triunfo Eucarístico” de Simão Ferreira
Machado e a entrada do primeiro bispo de Mariana e a elevação desta para diocese, em 1748,
que ficou registrado com o “Áureo trono episcopal”, anônimo. Outro ponto importante é saber
como se dava a organização festiva dos “miúdos” dentro desse processo, uma vez que,
embora importantes e suntuosos, nada nos leva a crer que, dentro de uma tradição festiva
católica, os eventos públicos se resumiriam a apenas poucas festas de grande magnitude.
Sustentamos que a necessidade de manutenção do Brasil enquanto colônia era a tarefa
principal da metrópole, que terá seu último suspiro com a chegada da família real ao Rio de
Janeiro em 1808. Porém, um longo período de desenvolvimento, povoamento e lutas no
interior do país sucedem essa chegada. A necessidade de “aportuguesamento” da sociedade
era uma delas, e se desenvolvia em meio à mineração. Este processo ocorre tanto nas
  97  
 
 
 

condições objetivas de formas de governo, seja pela introdução da burocracia portuguesa na


vida cotidiana das vilas e comarcas, seja pelo aumento da autoridade da igreja católica
regular. Importante ressaltar também que com o fim da União Ibérica e a formação da dinastia
de Bragança, a igreja católica mantém o seu apoio à Espanha, só reconhecendo o novo
governo português no mandato de dom João V, no ano de 1732103. O papa Urbano VIII havia
recusado os embaixadores portugueses no Vaticano e negado a ordenação de bispos
portugueses indicados por dom João IV. Havia uma tensão entre a igreja católica e Portugal
que, de certa forma, ajudou a formação de um catolicismo leigo em terras tropicais, segundo
PASSOS (2002).
O sincretismo religioso era tolerado, e as feições das festas populares em Minas Gerais
adquiriam um caráter singular, que pouco se parecia com a cerimônia e ritual das festas da
Igreja Romana, SOUZA (2001). A retomada do acordo entre Portugal e Vaticano faz com que
volte a crescer a influência eclesial tanto na metrópole quanto na colônia, e partimos da
premissa de TINHORÃO (2000), de que as formas do barroco eram parte fundamental no
processo de dominação e aportuguesamento da sociedade colonial104. Seja pelo rebuscado dos
traços arquitetônicos que se faziam surgir nas igrejas, seja pela ordenação e racionalidade
musical com a introdução dos órgãos, cravos e violinos no ritual litúrgico da Igreja.
Importante salientar também a perda de influência dos jesuítas até a sua expulsão definitiva
como contribuição ao processo de musicalização litúrgica, principalmente nas cidades
mineradoras, onde a influência da companhia de Jesus era muito baixa.
Todavia, paripassu à imigração portuguesa, também estava a importação de escravos
para abastecer tanto a mineração quanto atividades agrícolas e outras conforme
descreveremos mais adiante. Esse tencionamento causado pela eclosão de dois mundos
distintos em oposição: branco e negro, senhor e escravo, livre e cativo, traz um limiar de
múltiplas relações que não pode ser simplificado para a compreensão de um todo que se
formava no interior do país e que, de certa forma, também influenciava outras partes da
colônia. Seria simplista de nossa parte colocar um par de oposições dentro desse processo,
pois temos muito mais elementos atuando, gerando conflitos, sínteses e híbridos.
                                                                                                                       
103
“Como   é   sabido,   a   ascensão   da   dinastia   de   Bragança   (1640)   não   recebeu   o   apoio   do   papado,   que   tendeu   aos  
interesses   da   Espanha   naquela   circunstância.   Urbano   VIII   (1623-­‐1644)   recusou-­‐se   a   aceitar   um   embaixador  
português   em   Roma,   negando-­‐se,   também,   a   confirmar   bispos   nomeados   por   D.   João   IV.   [...]   As   tensões   com   a  
Santa  Sé  só  seriam  definitivamente  equacionadas  no  governo  de  D.  João  V,  nos  anos  de  1728  a  1732.”  KANTOR  
(2001,  p.  173-­‐4)  
104
O  espetáculo  das  entradas  eram  “no  fundo,  a  realização  mais  perfeita  do  pensamento  derivado  da  Contra-­‐
Reforma,   ao   propor-­‐se   a  responder  à  crítica   dos   opositores   da   Igreja   de   Roma   “com   um   sentido   de   mais  viva  e  
colorida  exterioridade””.  Tinhorão  (2000,  p.  108)  
  98  
 
 
 

Para o desenvolvimento desse trabalho, precisamos atentar e retomar os estudos sobre


as irmandades católicas. Descobrir como se dava a relação delas com a igreja oficial e como
essa rede religiosa leiga dialogava entre si. Sustentamos que dessa disputa entre a Igreja
oficial e irmandades surge uma importante síntese na formação da identidade nacional,
pendendo mais para o catolicismo popular, principalmente quando pensamos a festa na sua
forma. O barroco fica preso na memória daqueles que pensam a formação do Brasil quanto
uma extensão portuguesa, na qual se encaixa a teoria desenvolvida por Tinhorão. Era a
música de um país que queria se manter ligado à Europa, mesmo aquelas derivadas de síntese
de uma multicidade étnica que aqui se desenvolvia em oposição a um rigor formalístico
desenvolvido na corte. Dessa forma, procuraremos identificar os processos que se
desenvolviam no interstício entre a oposição autêntica popular versus barroca e elitista,
proposta pelo autor.

4.1 “O triunfo Eucarístico”


Das grandes festas que se desenvolveram no Brasil durante o século XVIII, nenhuma
atingiu tamanho esplendor como o translado do Divino Sacramento entre a Igreja do Rosário
para a nova matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Vila Rica, no dia 24 de maio de 1733. Essa
festa fica marcada pelo registro de Simão Ferreira Machado no “Triunfo Eucarístico”,
conforme atestado no capítulo anterior, destinado a “perpétua lembrança, e contínua narração
aos presentes, e futuros toda a ordem de tão magnífica solenidade com douta, e tão elevada
exposição relata a superabundante e triunfal magnificência da solene transladação105”. As
palavras do autor dão mostras de quão requintada foram os festejos em comemoração à
construção da nova matriz, talvez mais requintado que o rebuscado da forma como se
enunciam os festejos. Embora o ponto culminante da festa fosse o deslocar da imagem do
Santíssimo, ela havia sido preparada há muito mais tempo, e as comemorações duraram pelo
menos um mês antes desse granfinale. Entretanto, os preparativos para esse evento valem
tanto, ou mais, que o seu desfecho, que por pouco não se torna trágico106.
Estavam nas ruas em distancia competente cinco elevados arcos, em cujo artificio
ajudou a preciosidade do ornato e arte, e competência dos artífices: erão o mayor
empenho da magnificência; da vista, em vagarosa atenção, disvello, e delicia;
contencioso triunfo de ouro, e diamantes.107
                                                                                                                       
105
 Simão  Ferreira  Machado  (1733,  p.37)  
106
 Uma  chuva  inesperada  no  meio  do  outono  fez  com  que  o  translado  fosse  adiado  do  dia  23  de  maio  para  o  
dia  seguinte.  “Pode  se  imaginar,  pois,  a  decepção  que  se  abateu  sobre  a  população  com  a  chuva  repentina  que  
desabou   sobre   Vila   Rica   na   tarde   de   sábado   23   de  maio,  em  que  deveria  sair  a  procissão-­‐espetáculo”  Tinhorão  
(2000;  107)  
107
 Simão  Ferreira  Machado  (1733;  108)  
  99  
 
 
 

Esse relato da manhã do dia 21 de maio dá a tônica do aparato que se preparava para
os festejos públicos. A suntuosidade da riqueza produzida na região mineradora se
transformava não apenas em ouro para Portugal ou para os altares das Igrejas, se transformava
em cenário para os festejos públicos, que fazia com que qualquer figurino de atriz de
Hollywood fosse ofuscado pela magnitude dos adereços armados nas ruas e ladeiras da capital
do ouro. “Foi pelas ruas dessa Vila Rica do auge da riqueza da exploração do ouro e
diamantes, assim ornadas para formar um quadro de fé ostensiva (...) o mais aparatoso
espetáculo de símbolos consagradores do poder espiritual e temporal” TINHORÃO (2000, p.
108). Esse estado de euforia vivido pela sociedade mineradora estava para além dos
diamantes e ouros que enfeitavam as ruas da cidade, também se manifestava nas danças
dramatizadas e nos carros alegóricos que desfilavam pela cidade, guardando para o dia 23 seu
apogeu.
O “Triunfo Eucarístico” evidencia, sem dúvida, o estado de euforia da sociedade
mineradora, que se faz expandir através de uma festa de regozijo dos sentidos que
propriamente de comprazimento espiritual. A igreja vê também a oportunidade de
afirmar sua hierarquia colonizadora em Minas, realizando, quinze anos antes da
instalação do primeiro bispado, verdadeira demonstração de poderio temporal e
domínio religioso. (AVILA, 1980, p. 117).
Esse poderio se revela também na outra ponta desse processo de regozijo público, a da
separação entre os papéis desempenhados por cada um daqueles que habitavam a Vila Rica. A
estruturação da sociedade barroca estava marcada pela sua tendência fortemente
hierarquizada, que se por um lado garantia o desenvolvimento das festas populares de
inversão hierárquica, por outro fazia jus a essa hierarquia societal quando aqueles que
dispunham do poder temporal e religioso fossem os organizadores e consequentemente os
protagonistas da festa. “É que no aparatoso desfile de carros alegóricos de inspiração barroca,
a participação popular só poderia ser de espectador passivo” (TINHORÃO, 2000, p. 106).
Nesse ponto é preciso salientar mais uma vez a oposição constante feita pelo autor entre o
barroco, erudito e segregador, do popular e autêntico das camadas populares.
A condição simbólica de construção das festividades parte de dois pontos de apoio
principal para Tinhorão, de um lado temos a influência dos carros e alegorias vinda de
diversas partes da Europa, o que demonstraria um caráter cosmopolita atingido por Portugal
com sua monetarização a partir do ouro, e de outro lado temos o fortalecimento de uma
tradição portuguesa e popular que se revestia na forma como se manifestava a festa, ao
melhor do estilo católico pagão das procissões de Corpus Christi. Bem como a eterna luta dos

 100  
 
 
 

católicos sobre os mulçumanos que é o tema de diversas festas populares luso-brasileiras


conforme já assinalado nesta obra.
Organizado no melhor estilo das procissões de Corpus Christi portuguesas, o desfile
destinado a conduzir o Sacramento da Igreja do Rosário até a Matriz, a nova igreja
da Senhora do Pilar, no bairro de Ouro Preto, constituiu, do ponto de vista da
exibição da riqueza de ouro e diamantes na decoração de planejamentos e vestuário,
talvez a mais faustosa demonstração pública em seu tempo nas Américas, como
testemunharia o próprio Simão Ferreira Machado. TINHORÃO (2000; 108-9).
O translado do Santíssimo revela outro ponto que iria ajudar a moldar a identidade
mineira, a dos grandes e suntuosos templos. A magnitude da festa era um presságio de outras
magnitudes que iriam povoar as cidades mineradoras, o “fausto dos Templos” e da
“preciosidade dos Altares” demonstrando que “Villa Rica, mais que esfera da opulência, he
teatro da Religião”108. Isso tudo, quinze anos antes da instalação do primeiro bispado, na qual
a fé religiosa que servia como amálgama da civilidade local também era caracterizada por
certo desprendimento material de seus habitantes. Esse poderia ser avaliado pelos aportes
financeiros “prodigamente ofertados para maior brilho de tais solenidades religiosas” ÁVILA
(2006; 29). Essas relações desenvolvidas no seio da sociedade foram capazes de ofertar à
igreja “numeroso cortejo de sacerdotes, variada e ricamente paramentados” que seguiam a
procissão junto com a “força diretora da Igreja, soma-se o séquito das irmandades, que se
sucedem num desfile competitivo de preeminência social e de recursos de organização”
ÁVILA (2006; 30-1).
A competição pelas irmandades e o reforço da mesa diretora da Igreja, reforçam uma
das características principais da sociedade barroca, a hierarquização desta, que se fazia jus não
apenas no “desfile competitivo”, mas também no próprio “desprendimento”, como uma forma
de galgar pontos numa escala social simbólica. Isso poderia ser visto na construção de
palacetes, mas também no ato de se desprender desses para a construção de suntuosos altares,
financiados pelas irmandades, doação de imagens sacras, e tudo o mais que pudesse
reproduzir a lógica patriarcal do benemérito, daquele que propiciou o acontecimento de algo.
Esse algo repousa justamente na riqueza dos detalhes que a sociedade mineradora conseguiu
imprimir nas suas relações sociais, e que se reproduziam também nos seus eventos públicos,
onde minuciosamente as relações sociais iriam transparecer nos detalhes e nas posições
ocupadas por cada ator no transcorrer desta. Os detalhes eram tão importantes que a própria
obra de Simão Ferreira de Machado é carregada destes e que nos permite revelar essa
construção sócio-histórica.

                                                                                                                       
108
 Simão  Ferreira  de  Machado  (1734;  27)  
 101  
 
 
 

Servirão á festividade deste dia muitas danças, e máscaras, ricamente vestidas; e


continuarão aos olhos sempre vario, e agradável espetáculo, ordinariamente de dia;
aos ouvidos sonoros, e contenciosa harmonia de músicas, principalmente de noite,
até vinte e quatro de Mayo, dia da Transladação109
Ao que parece, nenhum detalhe se deixou escapar da pena do autor, ele detém-se na
discrição pormenorizada dos festejos e serviu de grande fonte de pesquisa para compreender
as festividades mineiras naquele período. Atento “à fusão expressivamente barroca das
sugestões místicas e profanas, minucioso no relato de trajes e alegorias, sensível à variedade
dos efeitos visuais e sonoros das danças e músicas” ÁVILA (2006; 31) vai completando o
cenário das exceções que compreendia uma regra na sociabilidade barroca, as festas. Assim a
festa das festas não poderia passar sem açambarcar as diversas formas de sociabilidade que
acompanhavam o imaginário popular como “Turcos e Cristãos, em número de trinta e duas
figuras, militarmente vestidas; huns e outros, em igualdade divididos a hum Emperador, e
Alferes; a estes conduziraõdous carros de excelente pintura, e dentro acompanhavaõ músicos
de suaves vozes e vários instrumentos”110.
A procissão se revestia de um teatro musical a céu aberto, onde um enredo se entrelaça
a música, a fantasias, a interpretação e carros alegóricos, bem ao modo dos desfiles
carnavalescos contemporâneos. Ao mesmo passo que se procurava contar um enredo virtuoso
da transladação do Santíssimo, também se misturavam simbologias católicas de origem pagã
“dous pajens, como pinta a antiguidade a Mercurio: nas cabeças davaõ nos chapeos ao vento
duas azas”111 estas “asas que, aliás, por contaminação ideológica com a figura dos anjos do
céu cristão também lhe “saihão nas costas” (TINHORÃO, 2000, p. 110).
Das atrações musicais da procissão do Triunfo Eucarístico, aliás, não figuraria como
destaque apenas o alemão que feria o “silencio dos ares” com seu clarim de “sonoras
vozes”, porque logo atrás “vinhão a pé oito negros, vestidos por galante estilo” a
tocar “todos charamelas, com ordem que alteravão as suas vozes (dos instrumentos)
com as vozes do clarim, suspendidas humas, em quanto soavam outras” (o que
indicava uma harmonização dos toques alternados de clarins e charamelas).
(TINHORÃO, 2000, p. 110).
Essa parte dos festejos indica a única possibilidade de participação do cortejo dos
negros, tocando charamelas dentro do cortejo em oposição ao alemão que tocava o clarim.
Todavia, esta participação se deu apenas a título de curiosidades, como um elemento exótico
no seio da festa, não tendo os negros participação no desfile, e nem de suas irmandades
conforme AVILLA (2006). E estes vêm para anunciar os elementos dos zodíacos que
adentravam no desfile com carros próprios correspondendo a cada um dos signos, bem como
os sete planetas desfilavam na sequência, fazendo uma alegoria entre os conhecimentos
                                                                                                                       
109
 Simão  Ferreira  Machado  (1734,  p.  39-­‐40)  
110
 Simão  Ferreira  Machado  (1734,  p.  47)  
111
 Idem  (57)  
 102  
 
 
 

advindos dos corpos celestiais terminando com a magnificência do Santíssimo. Importante


salientar a opulência que revestia cada uma dessas encenações, a ponto de que é praticamente
impossível achar uma página da obra de Simão Pereira Machado, em que não se encontre a
palavra ouro. Se pensarmos a tríade ouro, prata e diamante, elas correspondem a uma parte
fundamental da obra, e consequentemente da festa. A exacerbação da forma e exuberância das
vestimentas dava o tom do relato do “Triunfo Eucarístico”, o modelo de hierarquia das formas
sobre um conteúdo era contemplado pelos brilhos e riqueza dos detalhes. Esse foi um formato
clássico das festas barrocas, todavia não é o único, ele aparecerá fortemente quinze anos após,
na cidade de Mariana.

4.2 O Roubo dos sinos, ou o bispo está nu!


Outro motivo que pode ser levantado para sustentar a posição de que o controle
português necessitava da incorporação de outros setores da sociedade foi o episódio do roubo
do sino da igreja em 1743, em ocasião da visita do bispo do Rio de Janeiro, D. João da Cruz à
Vila de Ribeirão do Carmo. Segundo KANTOR (2001) muitos distúrbios se promoveram com
a chegada do bispo à região, em parte suscitados pelo relaxamento dos padres com os leigos e
pelos hábitos maliciosos deles com as mucamas e também por descontentamentos da
população mineira tanto com a capital quanto com a coroa. Outro motivo seria a tentativa de
auditar as irmandades, exigindo-lhes uma maior contribuição financeira “costumava autuar as
contas das irmandades, restringindo o número de festas realizadas, proibindo a utilização de
fogos de artifício, procissões noturnas ou qualquer festividade realizada fora da Igreja”
KANTOR (2001; 175). O que seria um duro golpe às práticas festivas desenvolvidas pelas
irmandades.
Nesse episódio, no dia de despedida do bispo, após vários dias de festividades com a
entrada triunfal do bispo à cidade, festas e apresentações musicais e literárias, tem-se a
cerimônia de despedida, após a missa que anunciaria a sua volta, na qual deveriam soar os
sinos da igreja. E para a surpresa geral, todos os quatro sinos que deveriam repicar haviam
sido roubados, o que rendera muitos problemas para a organização episcopal, assim como
rendeu reclamações por escrito do bispo que pedia soluções enérgicas de castigo para os
envolvidos. Confrontos políticos e eclesiais se somavam, por um lado, um setor da elite
política pressionava para um maior suporte e reconhecimento da Igreja para a região e por
outro, padres e leigos que se associavam para não perderem a relativa autonomia que
conquistavam no interior do país, longe dos olhos do vice-rei ou do bispo da capital. Esse

 103  
 
 
 

jogo de poder e de relações que se criaram fortalece uma posição de independência ritualística
das festas leigas e a parcela administrativa das Minas Gerais, que pretendiam aumentar o
poder deles, tanto em relação à coroa quanto em relação a seus pares. Embora independências
estivessem longe de ocorrer no universo colonial nas Américas, os germes da formação de
uma elite nacional branca e mestiça começa a se formar.
D. João da Cruz acusou o ouvidor Caetano Furtado de Mendonça e o intendente
Domingos de Pinheiro de terem encabeçado a transgressão ritual. Prosseguia dizendo que a
motivação para tal ato seria pela contrariedade à remoção do padre Francisco de Pinheiro de
Fonseca para outra freguesia. KANTOR (2001; 175) “O referido sacerdote tinha sido
destituído dos seus cargos e suspenso pelo bispo, atitude que atraiu a ira de sua influente
clientela na vila.” Após disputas entre o ouvidor e o bispo, e após solucionar o mistério do
roubo dos sinos, que foram encontrados num córrego perto da catedral, ainda, a devassa final
veio com o indiciamento do padre Francisco da Costa e Oliveira e do Padre Antônio
Sarmento.
Dois anos após o processo do roubo dos sinos, a Vila do Carmo é elevada à categoria
de sede do bispado. Cinco anos após, é a hora de remontar uma entrada triunfal do novo
bispo.

4.3 O bispo chegou! Viva o bispo!


Outra característica importante da sociedade que nascia era sua sociabilidade. Pela
característica mista entre uma confusão e desordenamento, formada pela explosão
demográfica, e uma organização centralizada buscada pela coroa, os principais
acontecimentos públicos se davam através das festas religiosas. Aqui, descreveremos um dos
eventos mais importantes nesse sentido, a formação da diocese e a chegada do primeiro bispo
para as Minas Gerais.
A vila do Carmo foi elevada à cidade com a função de ser a primeira capital das Minas
Gerais, porém uma das primeiras medidas do governador geral foi transferir a sede do
governo para Vila Rica, a cidade pioneira viria a ganhar como prêmio de consolação figurar
como sede do governo episcopal em 1745, vinte e cinco anos após ter sido elevada a capital.
Neste mesmo ano, a vila vê seu nome trocado para Mariana, recebendo o nome da esposa de
Don João V, a rainha Maria Ana da Áustria. Interessante nesse ponto é a necessidade de
afirmação que a coroa tinha em decretar o nome dos “verdadeiros” donos das cidades. Assim,
como vila do Carmo recebe o nome da rainha, outras cidades tinham alcunha semelhante,

 104  
 
 
 

como São João del Rey, São Sebastião del Rey, vila do Príncipe, vila da Rainha. Portanto,
uma das discussões mais interessantes que pretendemos trabalhar nesse ponto é a relação
coroa, igreja, cidade e festas. Desta forma, o primeiro tema a se tratar é no que concerne à
formação de uma identidade barroca e religiosa a partir da entrada episcopal, dentro do
arcabouço teórico do Tinhorão.
Esse tipo de festa de aclamação pública é composto de vários atos, desde a recepção
na entrada da cidade, até a tomada do coração desta, para a coroação simbólica de um rei,
sacerdote, fidalgo e, neste caso, Bispo. Relações simbólicas entre a importância dos nobres a
partir do papel que eles representam e o local que ocupam nessa cerimônia até a hierarquia
eclesiástica que recepciona o monarca e, finalmente, os festejos populares que se seguiam em
festas públicas durando cerca de três dias.
Esse modelo era central para a aclamação pública e popularidade da nobreza, não
sendo de maneira alguma exclusiva dos monarcas. Trata-se muito mais de uma forma que
revela e desvenda um conteúdo a ser seguido, um modelo padrão de identidade que deveria
ser copiado aqui, de devoção à figura da sagrada família portuguesa, mesmo que pela via
religiosa. No Brasil, a primeira entrada episcopal data da chegada do bispo de Olinda, Don
Estênio Brioso de Figueiredo, em 1678, sendo comum esse tipo de festa com a criação das
dioceses e chegada de tão ilustre figura católica.
Os jesuítas, que anteriormente eram os responsáveis pela conversão das almas e
fundação de vilas – dividido com as capitanias hereditárias, tinham outra concepção de
mundo, que chocava com esses novos interesses da coroa. As missões jesuíticas fundaram e
influenciaram a formação de dezenas de vilas e, contrariando as vilas mineiras, não tinham
sua alcunha relacionada à família real, mas sim lembravam os santos católicos. Desta forma,
Salvador, São Vicente, São Paulo, São Luís, Santa Catarina ou mesmo Belém surgem como
consequência das missões e colégios jesuítas. Outra característica da influência da Companhia
de Jesus nos trópicos foi o intercâmbio linguístico com o gentio. Assim, surgem Paranaguá,
Marajó, Itapecerica, Carapicuíba, Porangabá ou Caucaia. Mas os tempos eram outros; a Igreja
romana perdia poder e influência na Europa Setentrional com a reforma protestante, e
Portugal via a possibilidade de fazer fortuna e ocupar um papel de destaque na geopolítica do
Velho Continente. Esta não seria a condição única, mas que passa pela necessidade de
afirmação portuguesa. O país havia ficado sem relação formal com a Igreja católica desde o

 105  
 
 
 

fim da União Ibérica, que reconhecia nos reis da Espanha o primado e direito sagrado à
coroa112.
A entrada da rainha Maria Ana da Áustria em Lisboa no ano de 1708 merece ser citada
como destaque, uma vez que com a escolha da diocese das Minas Gerais, a vila do Carmo
troca seu nome para o da rainha portuguesa. Este fato serve para relacionar diretamente a
mudança do nome da vila para Mariana, com a festa para a entrada do bispo. Uma festa
barroca simbolizando a chegada do eclesiástico e a afirmação real de que aquela cidade
pertence à rainha. KANTOR (2001; 171) “Entre as linhas de força que marcam a nova
conformação das festividades públicas na Europa moderna, convém destacar a multissecular
disputa de insígnias e ritos entre os monarcas europeus e a Santa Sé.” A realização de festas
em recepções e solenidades revela um processo de apropriação ritualística usada em honra ao
“Santíssimo Sacramento na procissão de Corpus Christi para o domínio secular” KANTOR
(2001; 171). A igreja traz para si como sendo o próprio corpo de Cristo que sendo um só
corpo e espírito à Santa Sé e a corte de Lisboa.
Não convém separar igreja e reis nesse momento histórico, pois eles se confundiam
como um grande corpo que dava estabilidade política à Europa, como há muito não se via.
Esse moribundo rito do velho continente se transportava como a tentativa de manter as
tradições e festas da corte nesse território longínquo, pois era nessas festas que os súditos
conheceriam o rosto do rei estampado em tapetes, e também a figura da dinastia que sucedera
o monarca gravado em metal, porcelana, tecidos etc. A entrada do bispo Dom Bartholomeu da
Cruz, em 1748, era o ponto de afirmação do poder do rei em terras, já que essas se
encontravam muito afastadas do governador mor do Rio de Janeiro, e ainda mais da corte de
Lisboa. O formato da festa barroca, dividida em diversos ritos de maneiras hierárquicas,
entradas e alegorias, vem para legitimar uma ordem social que não necessariamente
representava as relações de poder existentes. A figura da diocese legitima e centraliza os
padres e leigos que formavam o corpo da igreja católica, que também em muito diferiam do
ideal do Vaticano.
Vale lembrar, diferentemente do restante da América Portuguesa, o fato de que a
vigência do Padroado Régio na Capitania Mineira caracterizou-se, por um lado, pela
proibição de atuação e de instalação das ordens religiosas regulares e por outro, pela
proliferação das ordens terceiras, leigas, eretas, em alguns casos, antes mesmo do
                                                                                                                       
112
“Como   é   sabido,   a   ascensão   da   dinastia   de   Bragança   (1640)   não   recebeu   o   apoio   do   papado,   que  
tendeu   aos   interesses   da   Espanha   naquela   circunstância.   Urbano   VIII   (1623-­‐1644)   recusou-­‐se   a   aceitar   um  
embaixador   português   em   Roma,   negando-­‐se,   também,   a   confirmar   bispos   nomeados   por   D.   João   IV.   [...]   As  
tensões  com  a  Santa  Sé  só  seriam  definitivamente  equacionadas  no  governo  de  D.  João  V,  nos  anos  de  1728  a  
1732.”  KANTOR  (2001;  173-­‐4)  
 
 106  
 
 
 

estabelecimento dos poderios municipais na região aurífera. O desenvolvimento de


um “catolicismo leigo”, praticado pelas irmandades mineiras e a ausência de
missões e ordem regulares possibilitou uma politização mais intensa dos interesses
clericais, levando, muitas vezes, a confrontos diretos com as autoridades
metropolitanas, mas também consagrando alianças mais estáveis. (KANTOR, 2001,
p. 169).
A cultura barroca traz para o mundo dos homens uma exacerbação estética do luto, da
dor, das igrejas escuras e frias, em que as imagens sacras perseguem com seus olhos o
movimento daqueles que se encontram em suas igrejas e catedrais. Persegue uma matriz
medieval religiosa que se esfacelava na maior parte do continente europeu, serve à
restauração dos princípios da santa Igreja ameaçada pelas reformas que ocorriam. Dessa
forma, visa uma contra reforma que busca uma inspiração ritualística que rememore as
grandes cerimônias reais, numa atmosfera indissolúvel entre Igreja e Estado. Segundo
BARBOSA FILHO (2006, p. 9) “O barroco é certificação, é verismo e voluntarismo
produzido por uma subjetividade trágica, em dúvida e em solidão”. Aproxima o martírio, o
sombrio, o medo, luto e reafirma princípios ritualísticos monásticos, em que a festa, o jejum, a
penitência, o retiro e as peregrinações ganham importância e condição fundamental para a
relação Senhor e criatura.
Em constante oposição de mundo, o sistema organizativo barroco vinha na contramão
das novas influências europeias, da valorização da obra material na vida terrena como
garantia para alcançar a salvação. WEBER (1967) vai resolver bem a questão da
predestinação e da vida asceta, que conduzem o homem à certeza da salvação de sua alma,
desta forma, o trabalho e a aversão às paixões e desventuras terrenas são relevos dentro da
perspectiva protestante. Então, o barroco servia de coluna vertebral da formação dos
primeiros Estados católicos na Europa. Essa nova concepção de mundo trazia a teatralização
da vida religiosa e a demasiada dramatização de gestos em tempo de retiros espirituais, de
festas abundantes seguidos de períodos de jejum, martírio, resguardo e festa. Um ciclo
constante onde o trabalho enquanto labor tão necessário para a confirmação divina na Igreja
reformada levaria toda península Ibérica ao purgatório113.
A incorporação dessa forma de ver o mundo na colônia ganha forças com a expulsão
dos jesuítas da Companhia de Jesus. Sem a resistência da velha ordem, acreditou-se que
pudesse transportar automaticamente uma festividade de corte para a colônia desprovida e que
começava a criar dúvidas quanto sua metrópole. Mesmo a composição das festas barrocas em

                                                                                                                       
113
  “Assim,   se   a   esses   mais   de   vinte   dias   santos   e   santificados   se   acrescentarem   os   domingos   e   os   dias   de  
padroeiros   de   cada   cidade,   vila   e   freguesia   (que   valiam   quase   sempre   como   dias   santos   locais),   apenas   a   Igreja  
contribuía  com  cerca  de  um  terço  de  365  dias  do  ano  para  atividades  fora  do  trabalho”  Tinhorão  (2000;  9).  
 107  
 
 
 

Portugal era permeada de sincretismo, tanto do paganismo quanto dos negros escravos que
desfilavam em Lisboa e outros centros importantes.
O início das corridas era precedido de uma espécie de introdução de caráter teatral,
que incluía danças e mesmo desfiles de carros alegóricos. E era ao aparecimento de
cada uma dessas novidades na arena que se chamava de entrada, tal como informava
a descrição dos festejos de 1687, no Terreiro do Paço, pela chegada de D. Maria
Sofia de Neuberg para casar com D. Pedro II (“Na entrada seguinte, vieram
cinquenta mouros vestidos de tela escarlate”) e a indicação final de enumeração das
exibições (“Finalmente fez a quarta entrada com cinquenta negros, nus da cintura
para cima, etc.”). (TINHORÃO, 2012, p. 103).
Assim a incorporação das irmandades no seio das grandes festas barrocas tinha alguns
significados importantes, primeiro o de dar volume e destaque à cerimônia que se realizava,
não mais de maneira a serem contemplados como “exóticos”, mas de criar diálogos entre
identidades. Com a entrada episcopal de Mariana, as dezenas de grupos musicais e
performáticos ligados às irmandades precediam à entrada principal do bispo ao pálio.
Acompanhado dele, entravam as figuras mais proeminentes da sociedade religiosa, política e
econômica. Tudo em torno do bispo lembrava as relações hierárquicas e simbólicas da
sociedade colonial, conforme atesta ÁVILLA (2006), apresentava nesta festa elementos das
culturas indígena e negra, sendo essa última relegada a um papel marginal na festa. Mesmo
assim, havia sido a primeira vez que participavam irmandades de negros das entradas
triunfais, uma vez que em ocasião das festas de comemoração pela construção da igreja do
Pilar haviam sido vetada a participação e entrada ao pálio pelos negros.
Depois de mais de um ano de viagem desde o Maranhão até as Minas Gerais, passando
e parando pelo interior do país, chega à já então cidade de Mariana Dom Bartolomeu da Cruz.
Sua chegada era muito esperada tanto para acalmar os ânimos da divisão religiosa quanto para
o aumento do poder régio e controle maior da população. A presença do bispo deveria traçar
novos rumos no desenvolvimento religioso da região, e a primeira demonstração do poder
dessa nova era foi descrito como o Auro Trono Episcopal, a entrada do bispo à cidade e sua
recepção e aclamação pública. Segundo ÁVILA (2006, p. 43), “A partir de 28 de novembro
de 1748, iniciam-se as festas, que se estenderão até o decorrer do mês de dezembro, entre
procissões, desfiles alegóricos, jogos de iluminação, missas solenes, encenações teatrais e
oralizações poéticas”. Podemos notar uma preocupação com a demonstração pública de uma
cultura europeia mais refinada, que abria espaços centrais nas comemorações para o teatro e
para o concurso de poemas que se realizava, em grande parte, incentivada pela
intelectualização que se desenvolvia para suprir as demandas administrativas que se

 108  
 
 
 

necessitam fomentar no principal centro econômico da colônia114, “[...] diversificada


programação, mais do que o mero objetivo da diversão pública e do regozijo religioso, uma
notória preocupação como brilho intelectual, com a introdução de elementos e formas cultos
nas várias solenidades” (ÁVILA, 2006, p. 44).
Sendo assim, embora as festividades de rua em homenagem ao primeiro bispo de
Mariana conservassem o modelo tradicional das procissões do Corpo de Deus,
acrescidas do requinte barroco nos carros alegóricos, o objetivo de espetáculo para
gozo público dividia agora o interesse dos organizadores com a parte da
programação declaradamente dirigida apenas às pretensões artísticas da elite local.
Para o povo miúdo, mais uma vez, a oportunidade de participação continuava mais
na agitação ruidosa dos preparativos do que na festa propriamente dita, dado seu
distanciamento cada vez maior do gosto geral da maioria115.
Esse espaço privilegiado que se abria para as manifestações culturais ligadas à elite
econômica e social marcava um papel simbólico importante do projeto que tinha o barroco,
pelo caráter competitivo da literatura ao passo que as manifestações festivas e musicais caíam
no jogo simbólico da contemplação trivial por parte das camadas mais abastadas. Outro
destaque era pela quantidade de apresentações musicais que ocorreram no interior das igrejas
dentro da perspectiva de superação das restrições jesuíticas e introdução de instrumentos
musicais estranhos à ordem do catolicismo tropical, com a presença de cravos, violinos,
harpas e o canto gregoriano, isso em oposição frontal aos instrumentos e músicas que já eram
desenvolvidas nessas terras sendo prioritariamente a partir da viola, guitarra espanhola,
atabaques, tambores e instrumentos de sopros que haviam sido desenvolvidos a partir das
experiências jesuíticas. Mas, muito além das diferenças rítmicas e melódicas que surgiam de
extratos diferentes da sociedade, também estava a posição simbólica que cada um ocupa na
Entrada Episcopal. A música de matriz europeia, executada por instrumentistas estrangeiros
ou nascidos na corte, permanecia num processo de audiência contemplativa, em que os
membros de maior reputação na sociedade assistiam tal qual a quem assiste a uma missa, no
silêncio que permite a incorporação divina através do ritmo celestial orquestrado pelas cordas
melódicas e construções harmônicas racionalmente desenvolvidas para este fim. Do lado
oposto se encontra a música leiga dentro desse processo. Esta não se dá de maneira
contemplativa, muito pelo contrário, assume formas participativa e mais coletivista na música
                                                                                                                       
114
  Tinhorão   desenvolve   a   tese   da   intelectualização   a   partir   da   formação   de   um   corpo   administrativo,   o   que  
daria   a   condição   para   o   desenvolvimento   de   uma   camada   ligada   ao   não   “labour”.   Isso   aparece   na   obra   “As  
festas   no   Brasil   Colonial”,   porém,   principalmente,   na   sua   obra   pioneira   “A   província   e   o   naturalismo”   onde  
descreve  o  surgimento  e  desenvolvimento  do  naturalismo  na  província  do  Ceará.  
115 115
    Tinhorão   (2000,   p.   112).   Importante   frisar   a   palavra   “embora”   utilizada   pelo   autor   na   primeira   linha.  
“Embora   as   festividades   (...)   conservasse   o   modelo   tradicional   das   procissões   do   Corpo   de   Deus”,  
rememorando  uma  matriz  popular,  de  origem  pagã  das  romarias  e  compartilhada  pelo  catolicismo  brasileiro  e  
luso,  no  sentido  de  um  atestado  de  diálogo  com  a  cultura  popular.  
 
 109  
 
 
 

e nas danças. “Entre os africanismos musicais que os escravos trouxeram consigo estavam a
complexidade rítmica, certas escalas não clássicas como a pentatônica comum (...). O mais
característico deles é o padrão de “canto e resposta””. HOBSBAWM (2012; 60). No Brasil, o
uso dos instrumentos populares de couro percussivos em caixas de madeiras, ou cordas para
construções harmônicas mais simples herdadas da fabordão, desfilava pelas ruas que eram os
espaços destinados àqueles que não eram permitidos frequentarem determinadas Igrejas.
Porém, a influência do falso bordão, da música apreendida junto aos jesuítas, também se
misturavam outras práticas culturais dentro das confrarias dos negros “ser membro de uma
irmandade não excluía a possibilidade de estar nos calundus, de portar uma bolsa de
mandinga junto ao corpo, nem tampouco de manter uma relação de veneração afetivizada
com os santos de devoção” (VIANA, 2007, p. 102).
Os escravos negros de “partes distantes” aproveitavam os dias santos para virem dos
“Arraiaes de fora” trazer, “com galanteria” feixes de lenha qu amontoavam no pátio
do palácio de Sua Excelência. Quando isso acontecia, conta o cronista do “Aureo
Trono Episcopal”, entravam “pela cidade formando em duas alas,com bandeiras,
tambores e instrumentos e cantos a seu modo”. E o “canto a seu modo era
certamente o estilo responsorial, à base de coro e refrão, até hoje característico dos
africanos, e que talvez já os brancos imitassem nesse tempo, como dá a entender o
cronista anônimo ao descrever as figuras mascaradas que apareciam na procissão a
exibir-se “em várias danças, e cantos compostos ao modo dos pretos, que taes
representavão nas feições, e cor das mascaras”. É que os “ditos mascaras”, além de
dançarem “ao modo dos pretos”, às vezes “formavam entre si hum coro de música,
que a solos, e a cheios [coro] respondião e acompanhavão o Coro superior”116
Toda essa tensão entre diversos grupos disputando um poder simbólico dentro das
posições conflitivas de uma sociedade nova e com grande mobilidade social117, nesse primeiro
momento da colonização, transforma a chegada do Bispo à Mariana em uma grande festa
popular, em que conviviam (embora cheio de rupturas) as diversas organizações populares, a
festa da “chusma” com a festa dos nobres e ricos homens da corte. O resultado disso é uma
afirmação coletiva, em que as máscaras da sociedade não caem, mas que reafirmam e
disputam sua posição social através da proximidade física que se mantinha nas festividades
com o Bispo, o que de maneira estética da constituição de uma memória coletiva, promove
uma festa bastante suntuosa, cheia de luxo e extremamente popular. “as comemorações de rua

                                                                                                                       
116
 Tinhorão  (2000,  p.  112-­‐  113).  As  partes  postas  entre  “aspas”  pelo  autor  foram  retiradas  da  obra  anônima  
“Aureo  Throno  Episcopal”.  
117
 No  senso  de  1718  “evidencia-­‐se  o  comparecimento  de  quatro  forros,  que,  em  conjunto,  possuíam  dezoitos  
cativos  (média  de  4,50).”  Já  para  o  ano  de  1804,  no  final  do  ciclo  do  ouro,  as  cidades  onde  tiveram  grande  fluxo  
de   mineração   tinham   a   maioria   da   população   formada   por   homens   livres,   tendo   o   pico   em   Mariana,   onde   73%  
da  população  eram  livres  e  o  menor  índice  para  Furquim,  com  55%.  Vila  Rica  detinha  68%  da  população  nessas  
condições.   Luna   (2009,   p.   269-­‐277)   .   Mello   e   Souza   (2001,   p.   184-­‐185)   “Nesse   sentido,   se   os   primeiros   anos  
pareciam  indicar  uma  sociedade  aberta  à  promoção  social  e  ao  talento  individual,  à  maneira  das  sociedades  de  
classes,  os  anos  subsequentes  retomaram  princípios  próprios  á  sociedade  de  estados,  característica  do  mundo  
de  Antigo  Regime”.  
 110  
 
 
 

chegaram a atingir o nível de suntuosidade e os contornos do maravilhoso peculiares às


expansões festivas da sociedade barroca” (ÁVILA, 2006, p. 44).
Na disputa de espaços simbólicos tudo poderia demonstrar a posição que exerce uma
pessoa ou grupo na Entrada do Bispo, o convite ao governador para sentar próximo ao
religioso, assim como os diversos profissionais do alto escalão da burocracia à posição da
casa onde determinada família contemplava o cortejo. A partir de sacadas posicionadas nos
andares superiores de um sobrado próximo a catedral ou a janela de ruas mais afastadas que
esperavam pela passagem dos diversos grupos que participavam do cortejo até a entrada no
final da fila após verem “de perto” a figura do eclesiástico e da elite local. Assim como a
qualidade dos panos e dos enfeites que se fazia nas janelas das casas, lembrando muitas vezes
as cores das confrarias que faziam parte - no caso dos menos abastados - até mesmo as cores
do brasão da família - no caso dos mais afortunados e daqueles que apresentam “sangue
nobre” que poderiam ostentar.
Por se não fazer fastidiosa esta noticia com a larga descripção das figuras, se expõe
por resumo, que as mais, que se seguião, na riqueza, e primor dos adornos tinhão
igualdade, e imitação; suposto que mutuamente se vencião humas às outras nos
exquisitos das sedas, quantidade e valor das joias, e varias galantarias de gostosa
eleição e arte118.
Grandes festas como a do Áureo Trono Episcopal serviam para que as posições sociais
dos grupos se mostrassem de maneira mais clara, aliviando momentaneamente as tensões
sociais a partir de episódios e confraternização de unidade. Diferentemente das festas
exclusivas de negros como as congadas, onde ocorria uma inversão hierárquica das
correlações de forças que se enfrentavam na sociedade, a grande festa barroca buscava uma
unidade simbólica através de uma figura que sintetizava uma conquista coletiva no seio da
religiosidade. Mariana chegava ao auge da sua vida com o reconhecimento do Vaticano que
consentia sua elevação à sede episcopal, esse símbolo de unidade convertia as festas de um
momento de exceção e êxtase coletivo numa investida de legitimação da ordem social. Ao
mesmo tempo, as irmandades e confrarias depositavam na organização coletiva a busca da
formação de uma identidade nova das classes menos favorecidas. Os negros e pardos
depositavam nessa forma de organização tanto seu pertencimento enquanto grupo, mas
também a tentativa de elevação e reconhecimento social.
Na concepção de Tinhorão, as festas barrocas serviam de um grande pano de fundo, de
um mosaico, em que as relações de poder e hierarquia social se mostravam às claras, mas
muitas coisas nelas ficavam escondidas da visão do grande público, pois a própria entradas,

                                                                                                                       
118
Aureo  Throno  Episcopal,  fax  símile  do  original  in  Ávila  (2006,  p.  462)  
 111  
 
 
 

que faziam as irmandades dos menos afortunados, já os colocavam em destaque em relação


aos outros escravos que não se organizavam nela e só puderam acompanhar os desfiles e
cortejos a centenas de metros da figura principal. Desta forma, depositavam a esperança de
mudar sua reputação simbólica com toda a sociedade, permitindo garantir ganhos individuais
nas relações e ganhos coletivos através do aumento de status das irmandades de que faziam
parte. Por outro lado, estas grandes festas de unidade e afirmação hierárquica serviam aos
mais afortunados para se recomporem e mostrarem a força que detinham e, ao mesmo tempo,
mostrar a capacidade de organização para a manutenção do seu poder, uma vez que essas
festas eram momentos excepcionais, como esta só havia tido entradas com semelhante vulto
nas cidades mineradoras em 1733 com a construção da nova Igreja matriz.

4.4 As irmandades e o pertencimento


A situação limiar do negro no Brasil119, o colocava-o em uma posição nas quais os
antigos modos de ação que organizavam seu "ser no mundo" em outro continente, não
constituíam a mesma eficácia em outro tempo e espaço que ora se apresentava. O estar no
mundo humano não é apenas constituído de uma presença física, ela é permeada por
mediações simbólicas, pertencimento, disputas por reputação e reconhecimento, que norteiam
essa presença, conduzindo-a a um posicionamento social do indivíduo, assegurando-lhe um
lugar na estruturação da sociedade.
Essa condição faz com que se desenvolvam no interior da sociedade religiosa as
irmandades, e quando formos pensa-las devemos pensar em toda a complexidade que existia
em uma sociedade hierarquizada. Assim, existiam diversas divisões entre essas sociedades
religiosas. Tanto no que se refere ao Santo de devoção quanto ao que se refere à posição
social ocupada por determinado grupo ou indivíduo. As irmandades eram a forma primordial
de organização num mundo construído por relações de encantamento, místico e salvacionista
e por outro determinado por relações de dominação, sujeição e opressão. Dessa forma, não
podemos pensar limites fixos que determinavam cada Santo pertencente a determinado grupo
social, e sim num processo mais fluído que será condizente social e historicamente com as
condições concretas do mundo em que vivia e quais eram os aliados principais que cada

                                                                                                                       
119
  Tinhorão   assemelha   a   incorporação   do   negro   em   Portugal   com   o   Brasil,   assim   o   processo   de  
desenvolvimento   das   irmandades   segue   semelhança,   todavia   com   pioneirismo   português.   “com   a   criação   da  
Confraria  de  Nossa  Senhora  do  Rosário  dos  Homens  Pretos  naquela  localidade,  no  início  dos  Setecentos,  com  
certeza   logo   se   somariam   eles   a   irmandade   dos   devotos   que,   já   por   aqueles   tempos,   à   sombra   dessas  
organizações  religiosas,  demonstram  com  efusão  africana  a  sua  fé  cristã”.  Tinhorão  (2012;  81)  
 112  
 
 
 

irmandade buscava na sua aceitação pública para aumentar sua reputação ampliando poderes
tanto junto aos grupos sociais dominantes quanto aos grupos dominados.
VIANA (2007) e BORGES (2005) vão descrever diversas formas de divisões entre as
irmandades. A primeira divisão é entre as de “brancos”, “negros” e “pardos”. Se o
vocabulário faz pensar que essas associações eram formadas apenas por grupos de “cor”
veremos que existiam divisões muito além destas, que critérios sociais, que naquele contexto
eram bem mais complexos. “Mas, se a marca das irmandades foi a diversidade, isso não
deixou de significar também um fator de discórdias, ou seja, de negação do “outro” enquanto
portador de uma lógica distinta de interpretação” (BORGES, 2005, p. 34). Elas podiam estar
ligadas às profissões exercidas por seus membros, assim criam-se irmandades de faiscadores,
mascates, mineradores, artesãos120. Geralmente, as irmandades de negros se dividiam entre
libertos, livres (nascidos na corte) e escravos. Outra característica é que algumas delas são
exclusivas de determinadas nações, assim uma irmandade Mina não aceitava pessoas de
Angola, ou vice-versa121. LUNA (2009) vai mostrar, através da análise da escravidão, a
preferência dos proprietários de escravo por determinadas nações, assim vai descrever, com
relatos da época, que não se pode fazer mineração sem um escravo da Mina, pois estes
possuem “poderes místicos” para encontrar ouro e contar sobre a preponderância física desse
grupo. Assim como existia a divisão entre os negociantes de escravos, essa divisão também se
faz presente no seio do próprio grupo dos escravos. Essa diferença também se dava no preço
que valia cada escravo, segundo o próprio LUNA (2009), uma peça de negro mina podia
custar o dobro de um banto ou de um escravo colonial122.
Essa diferença também se dá em relação aos pardos, sendo a mais comum dela a
caracterização física do pardo. Portugal nesse momento buscava um branqueamento, ou um
“aportuguesamento” do Brasil. Para as irmandades era muito comum a busca por uma pureza
de sangue, como atesta VIANA (2007), o que poderia ser conseguido a partir da terceira
geração “pura”, que podia significar tanto em gerações livres quanto gerações onde não se

                                                                                                                       
120
  Idem   p.   52.   “No   Brasil   os   portugueses   implementaram   diversas   formas   de   organização,   como   as  
“corporações  de  ofícios”,  cujo  objetivo  era  proteger  os  interesses  de  uma  mesma  categoria  profissional”  
121
 Viana  (2007)  As  irmandades  fundamentavam-­‐se  na  noção  de  respeito  da  origem  ou  na  percepção  sobre  a  
noção   de   cor   e   limpeza   de   sangue.   Na   confraria   de   Nossa   Senhora   do   Amparo,   para   ingressar   nela   “era  
necessário  que  o  candidato  comprovasse  ser  legitimamente  pardo,  além  de  desfrutar  da  condição  de  liberto”.  
“A   irmandade   do   Glorioso   São   Jorge,   que   reunia   os   mestres   dos   ofícios   ligados   ao   trabalho   com   ferro”.   Ou  
mesmo  a  irmandade  de  São  Elesbão  que  só  aceitava  “pretos  oriundos  da  Costa  da  Mina,  Cabo  Verde,  São  Tomé  
e  Moçambique”.  
122
 Luna  (2009,  p.  231)  “Em  1725,  o  governador  da  Capitania  do  Rio  de  Janeiro  voltava  ao  tema  e  reafirmava  a  
“superioridade”  do  elemento  sudanês”.  
 113  
 
 
 

mantém a miscigenação étnica123. Mesmo que fenotipicamente continuassem pardos, eles já


teriam “limpado” o seu sangue. Essa busca por um sangue mais “puro” era uma forma de
aceitação dos pardos no universo branco e português que tentava se copiar nos trópicos.
Assim como também marcaria uma divisão entre o que seria o “nativo” brasileiro pardo em
contraste com o português branco no contexto da intensificação de uma identidade nacional.
Processo semelhante ao vivido na formação de uma nova elite mestiça na América Espanhola
através do Criollos.
Desta maneira, a própria ordem de disputa entre as diversas irmandades refletia a
condição de pertencimento simbólico nessa sociedade hierarquizada e estamental. A
capacidade de financiamento das irmandades era fundamental para sua afirmação de
identidade, tanto através das festas e da sua capacidade de mobilização de pessoas quanto para
enfeitar as ruas com suas cores e sons. Outra importância das irmandades era para ajudar
financeiramente na compra de irmãos que ainda permaneciam como servos124. Essa
possibilidade de ter sua alforria comprada pela irmandade da qual um escravo era devoto
ajudava muito no poder de atração destas, bem como o papel proeminente que esses poderiam
ter pertencendo a algum grupo. As irmandades devem ser pensadas em termos de confrarias,
de formação de grupos de ajuda mútua, encarregado também de socorro espiritual e material,
dependendo da constituição de cada uma delas. Os confrades deixavam a condição de ser
apenas mais um “preto” em terra estranha, e ganhavam uma nova forma de sociabilização,
eles tinham um grau de pertencimento àquele lugar longínquo para o qual foram trazidos. A
própria palavra irmandade dá uma conotação de laços de parentesco que se cria longe da terra
natal, longe do espaço onde estão sepultados seus ancestrais. Dessa forma, uma das principais
atribuições das irmandades era ajuda aos velhos, a encomenda dos mortos e administração de
seus cemitérios125. Uma das principais queixas do episcopado sobre as irmandades era pelo
não pagamento regular com as despesas de encomenda de morte e missas em homenagem ao
sétimo dia de um morto. AGUIAR (2001) vai atestar que existia uma tensão entre Igreja e

                                                                                                                       
123
Viana   (2007,   p.   52)   coloca   que   a   origem   da   pureza   sanguínea   remonta   aos   cristãos   novos   na   península  
Ibérica,  conceito  esse  que  vai  tomar  parte  do  sistema  colonial,  servindo  para  manter  “estreita  relação  entre  a  
noção  de  honra  e  o  ideal  de  “pureza  de  sangue””.  Desta  forma  a  honra  seria  obtida  através  de  seu  afastamento  
do  ancestral  escravo,  negro  ou  até  mesmo  trabalhador  manual.  
124
Viana   (2007)   coloca   três   formas   principais  de   alforria   dos   escravos,   a   primeira   é   pela   compra   a   prestação   do  
escravo   com   o   dinheiro   suplementar   do   seu   jornal.   O   segundo   é   a   compra   pela   irmandade,   que   pode   se   dar  
tanto   por   empréstimo   quanto   pela   simples   alforria.   A   terceira   libertação   pelo   senhor,   geralmente   por  
testamento.  
125
Aguiar   (2001,   p.   365)   “Nas   confrarias   negras,   os   gastos   com   missas   pela   alma   dos   irmãos   defuntos   eram  
pouco  expressivos,  menos  de  dez  por  cento  do  total  da  receita.  Em  alguns  casos  não  chegavam  nem  a  cinco  por  
cento”.  
 114  
 
 
 

irmandades, para que estas pagassem para a paróquia a encomenda das almas dos mortos,
assim como com o batismo que muitas vezes era feito pelas próprias irmandades126.
A formação de um catolicismo leigo ajuda na manutenção de ritos da antiga cultura
africana dentro de um cenário de uma pretensa cidade portuguesa. Essa falta de controle
eclesiástico reinante nas Minas Gerais oferece uma possibilidade de reunião e culto
independente127 nas irmandades, em que na mesma forma que se assemelha ao catolicismo,
estava impregnada da cultura africana. A utilização de atabaques durante rezas e romarias, ou
o coro característico das lavadeiras em louvor ao seu Santo em nada relembram o coro
jesuítico de aclamação ou o refinamento do coro barroco. A utilização de instrumentos
percussivos ao passo que a preferência da Igreja romana era os instrumentos de corda, que
dava uma sonoridade celestial ao passo que os tambores relembravam práticas “selvagens”128.
E até mesmo a incorporação das procissões a locais “sagrados”, ou por aparecimento de
Santos ou de peças recheadas de simbolismo religioso, rememorando uma tradição pagã de
ritual, neste caso muito mais ligado a uma memória de um catolicismo popular português que
ganha um novo contorno no sincretismo à brasileira129.
É hora de chorar e acabar de pasmar da louquice dessa terra. Haver nela donas
ilustres e de qualidade com tão larga licença como tomaram na deslocação, de andar
no modo de romarias, e na invenção como que pedem a Deus vida e liberdade de
maridos e filhos cativados, porque não há devoção defesa, que não façam, nem
feitiçaria que não busquem, para lhes dizer o que vai em África. Não há beata que
com suas superstições as não roube de quanto têm130.
Sabemos também que as missões jesuíticas pouca relação tiveram nas Minas Gerais,
quando se dá a descoberta do ouro, a Companhia de Jesus estava em franca decadência, tendo
sua extinção decretada no auge da mineração, em 1759.
A religiosidade leiga e a organização dos escravos, negros libertos, indígenas131,
mestiços, brancos vai encontrar nas irmandades uma forma de organização tanto de caráter
religioso, pois estavam diretamente ligados às igrejas e paróquias, quanto de caráter profano,

                                                                                                                       
126
  Aguiar   (2001,   p.   372)   “Nos   casos   de   cancelamento   de   festas,   contudo,   a   falta   de   justificativas   suficientes  
poderia  ocasionar  reveses  no  balanço  financeiro  das  instituições.”  
127
 Um  dos  motivos  listados  por  Borges  (2005,  p.  57)  era  “fato  dos  eclesiásticos  das  ordens  primeiras  (Jesuítas,  
Carmelitas,  Beneditinos  e  Franciscanos)  não  se  subordinarem  à  Coroa,  nem  aos  Bispos  diocesanos,  mas  à  sua  
própria  hierarquia”.  
128
Holler   (2010)   Sustenta   que   o   Papa   Paulo   IV   responde   às   restrições   jesuíticas   aconselhando   o   uso   de  
trombetas,   harpas,   cravos   e   órgãos,   além   do   coro   como   uma   forma   de   reverberar   sons   celestiais   às   almas  
acostumadas  com  os  tambores  pagãos  que  enfeitavam  os  novos  domínios  católicos.  
129
Tinhorão   (2012;   78)   “Uma   prova   do   rigor   com   que   a   chusma   dos   miúdos   e   pés   de   poeira   continuava   a  
reverenciar  a  herança  de  antigas  festas  rituais  pagãs,  vésperas  do  pesar  das  cinzas”  
130
  “Carta   de   um   abade,   que   da   Beira   mandou   pedir   novas   a   um   seu   amigo,   no   tempo   das   alterações   deste  
reino,  ano  de  1579”.  Apud  Tinhorão  (2012,  p.  76).  
131
“É  através  desse  autor  [Aldrin  Moura  Figueiredo]  que  tomamos  conhecimento  da  presença  de  irmandades  
de  índios  no  interior  do  Pará”  Borges  (2005,  p.  31)  
 115  
 
 
 

pois sua organização não visava à conversão de almas, esta estava a cabo dos padres, mas de
auxílio na manutenção de uma identidade comum daquele povo, de ajuda e prestação de
socorro, de pertencimento onde todos eram “estranhos”. Desta forma, a Igreja atuaria por
intermédio dessas mesmas irmandades, a partir do corpo de devotos que elas conseguissem
organizar132.
Para os negros, surgem as congadas justamente no período em que houve uma
aproximação da igreja católica com os povos africanos, a partir da conversão oficial do rei do
Congo ao catolicismo em 1514. A eleição de reis por comunidades de africanos e seus
descendentes foi costume amplamente disseminado na América portuguesa. Conforme atesta
SOUZA (2001) existiam nas organizações de trabalho, geralmente organizadas por grupos
que se identificavam como pertencentes a uma mesma etnia, e nas quais se elegiam e
festejavam reis e capitães. Segundo SOUZA (2001, p. 251): “Estes mesmos títulos eram
atribuídos aos cabeças de levantes de escravos, muitas vezes tramados e raramente
concretizados, sendo reis, capitães e embaixadores identificados como idealizadores e
articuladores dessas.” Portanto, os eleitos reis ou para qualquer outro cargo da comitiva nos
festejos eram investidos de um arcabouço moral de liderança dentro da sua comunidade,
utilizando-o tanto para fins de resistência e afirmação de uma identidade como também
frequentemente eram procurados para conter revoltas ou mesmo garantir a paz e a calmaria
dentro das senzalas133. Posição semelhante tem Tinhorão sobre o papel dúbio que continham
as irmandades conforme o argumento utilizado por ele:
Apesar do duro cativeiro em que vivem, os negros não deixam de se divertir
algumas vezes. No domingo 10 de setembro de 1666 teve lugar a sua festa em
Pernambuco. Depois de ter ido à missa, em número de cerca de quatrocentos
homens e cem mulheres, elegeram um rei e uma rainha, marcharam pelas tuas
cantando e recitando versos por eles improvisados, precedidos de atabaques,
trombetas e pandeiros. Vestiam as roupas de seus senhores e senhoras, trazendo
correntes de ouro e pérolas; alguns estavam mascarados. Os gastos da cerimônia
lhes custaram cem escudos. Durante toda a semana o rei e os seus oficiais não
fizeram outra coisa senão passarem gravemente pelas ruas, de espada e punhal ao
cinto134.
                                                                                                                       
132
 Borges  (2005;  56)  “Um  fato  que  ajudou  a  imprimir  uma  certa  peculiaridade  à  vida  das  associações  em  Minas  
foi   a   proibição   de   entrada   das   ordens   religiosas   na   região.   A   fim   de   controlar   o   contrabando,   e   reservar   para   si  
todos  os  benefícios  advindos  da  extração  do  ouro  e  diamantes,  a  Coroa  decretou  uma  série  de  medidas  visando  
manter  afastado  de  Minas  o  clero  regular”.  
133
  Idem   p.   85   “no   arraial   do   Tejuco   um   morador   local,   Caetano   Leonel   de   Abreu,   for   a   aconselhado   a   procurer  
o  rei  da  Irmandade  para  mandar  soltar  seu  escravo,  que  se  encontrava  preso  na  cadia  da  cidade.  Só  não  o  fizera  
porque  não  queria  sujeitar-­‐se  ao  poder  de  um  rei  negro.  A  carta  do  padre  denota,  ainda,  que  a  eleição  dos  reis  
da  irmandade,  longe  de  ser  um  ritual  fictício,  conferia  aos  eleitos  poder  sobre  sua  comunidade,  investindo-­‐os  
durante  a  semana  da  festa  como  autoridades  simbólicas  de  fato”.  
134
UrbainSouchut   de   Rennefort   (c.   1623-­‐c.   1689)   Histoire   des   Indes   Orientales.   Apud   Tinhorão   (2000;   89).  
Todavia   Tinhorão   reconhece   essa   contradição   na   irmandade   pernambucana,   pouco   espelhando   nas  
contradições  das  irmandades  de  Minas  Gerais,  pra  ele  mais  “oficial”.  Conforme  Borges  (2005,  p.  59)  “Pessoas  
 116  
 
 
 

A organização dos festejos ficava a cargo dos irmãos de Santo. Essa organização
católica dentro das senzalas era imbuída de fator importante nas relações de reputação. Para
os escravos, isto garantiria a manutenção de alguns símbolos de sua cultura ancestral dentro
desse novo mundo. Os batuques africanos, repletos de significados místicos e de feitiçaria,
apareciam como elo principal da amarra entre a religião católica e a antiga religião do rei do
Congo. Também se transformava na primeira forma legitimada pela coroa de organização nas
senzalas, os líderes das irmandades eram geralmente eleitos para a comitiva dos cortejos,
sendo identificados como reis, generais e embaixadores daquele grupo. Assumiam a
característica de uma nação dentro de um país, criando e legitimando os responsáveis pela
interlocução entre escravos, senhores e igreja. Outra característica desse estado intermediário
ocupado pelos escravos é que a eles não caberia os mesmos valores morais sobre o qual
recaíam aos brancos, podendo manter hábitos como andar com menos vestes, embriaguez e o
despudor, tese importante na formação cultural brasileira para Tinhorão:
Ora, se a gente livre, presa a regras e leis pela sua condição de ajustamento às
estruturas, na qualidade de cidadão – ainda que pobres -, precisava assumir atitudes
fingidas, os negros escravos, colocados à margem do sistema por não constituírem
pessoas jurídicas, podiam entregar-se a impulsos mais espontâneos do instinto e da
natureza, para livremente amar, comer e folgar quando pudessem. (TINHORÃO,
2012, p. 65).
No dia da festa, escravos, negros libertos, mestiços e curiosos partem em direção à
igreja ou capela. A bebida e o despudor faziam parte da inversão, uma vez que aos negros era
negado aquilo que os senhores tinham como legitimado, e embora a embriaguez pública
assustasse aos olhos da elite branca e cristã, nada mais era do que tornar público o que se
passava dentro tanto da senzala quanto da casa grande. Assim, as festas e o ordenamento
dessas dependiam muito das condições financeiras das irmandades, da reputação dos
senhores, das distâncias a se percorrer até a igreja mais próxima, alterava-se a celebração,
mas, comumente, os reis negros eram coroados na Igreja pelo padre. Vestimenta propícia para
a ocasião, coberta de muito luxo, cetro, coroa e tudo o que manda o figurino para a coroação
de um rei europeu, tendo seu início oficial quando o padre coloca sobre a cabeça do rei,
ajoelhado a seus pés, a coroa135. Importante frisar que a utilização da forma e conteúdo
europeu na festa dos reis de Congo não forma, necessariamente, uma unidade válida para a

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   
de  todos  os  grupos  sociais  estavam  representadas  nas  322  organizações  religiosas  de  leigos  que  se  criaram  na  
Capitania  de  Minas”.  
135
Holler   (2010)   “Uma   música   para   diversas   vozes,   mas   simples,   sem   compasso,   cujas   notas   são   quase   todas  
iguais  e  cuja  harmonia  é  sempre  silábica”.  
 117  
 
 
 

“aculturação” ou “deculturação” conforme trata TINHORÃO (2000 e 1972)136, pois embora


estivesse presente o arcabouço da nobreza europeia, na coroa, vestimentas e acessórios, os
ritmos e a musicalidade continuavam a ter influência negra para além desse momento de
afirmação, diferentemente do processo indígena. As congadas apareceriam como uma festa de
inversão, exclusiva dos africanos que deixaram a terra natal na condição de cativos.
Justamente o fato dessa inversão que confere uma das diferenças com o processo das músicas
jesuíticas ao “tom do gentio”, outra fato importante é o de que eram os próprios negros em
suas irmandades que faziam e organizavam as festas, outro fator importante para diferenciar
as músicas nos dois períodos históricos do Brasil colônia137.
Aos folguedos seguem então uma multidão acompanhando o rufar dos tambores, de
diversos tipos, numa comitiva real, apresentando o rei e sua embaixada aos moradores do
local. Passam de porta em porta para que todos saibam quem são os reis daquela nação. As
celebrações continuam com farta comida, aguardente em abundância, ao ritmo das músicas
entoadas em louvor aos santos no ritmo dos orixás.
Sabemos, porém, que em uma sociedade estratificada em classes, as forças simbólicas
dependem do lugar que cada ator ocupa na hierarquia social. Desta forma, os negros que para
cá vieram não poderiam simplesmente transferir sua cultura, nem tampouco poderiam, pois
vieram de diversas etnias do mesmo continente africano138. Com diversas línguas e culturas.
Negar isso é negar a própria organização das diversas nações africanas. Nem tampouco,
poderíamos falar de uma imposição única dos colonizadores portugueses junto à massa de
escravos que se espremiam nas senzalas. Isto seria perder o potencial dinâmico do fluxo
cultural. A partir de um grande processo de reelaboração das tradições, fronteiras e até

                                                                                                                       
136
 Sobre  a  musicalidade  negra  nos  Estados  Unidos  da  América  afirmou  Hobsbawn  (2012,  p.59-­‐60)  “Pouca  coisa  
da  organização  social  dos  negros  da  África  Ocidental  sobreviveu  à  sociedade  escravocrata,  a  não  ser  por  alguns  
cultos   religiosos,   notadamente   no   vodu   no   Haiti   e   na   Louisiana,   com   sua   música   ritual,   e   essa,   como   nota  
Marshall   Steans,   sobreviveu   melhor   sob   os   donos   de   escravos   católicos   do   que   sob   os   protestantes,   pois   os  
católicos,   não   estando   muito   preocupados   com   a   salvação   das   almas   de   seus   escravos,   toleravam   um   certo  
paganismo  com  toques  de  cristianismo.”    
137
Faltarão  nesse  tema  algumas  considerações  importantes  do  pensamento  do  Tinhorão,  pois  está  prestes  a  ser  
lançado   mais   um   livro   do   autor   exclusivo   sobre   a   musicalidade   e   festas   dos   negros   nas   próprias   colônias  
portuguesas  da  África.    
138
 Luna  (2009,  p.  21)  mostra  a  divisão  dos  escravos  em  Minas  Gerais  de  acordo  com  a  origem  deles.  Aponta  
que   entre   o   período   de   1759-­‐1818   (a   partir   de   batismos   realizados   na   freguesia   de   N.   Sra.   da   Conceição   de  
Antônio   Dias)   existia   85%   de   Sudaneses   e   15%   de   Bantos,   divididos   em   diversas   nações,   sendo   as   mais  
representativas  os  de  Mina,  Nagô  e  Fom  (Sudaneses)  e  Maquino,  Angola  e  Congo  entre  os  Bantos.    
 118  
 
 
 

mesmo da mescla de tradições diferentes, foi possível a constituição de um novo patrimônio


cultural, festivo e musical, sendo este não mais africano ou brasileiro, mas afro-brasileiro139.
Dentro desta disputa simbólica da sociedade que se formavam os escravos, negros e
indígenas140 sabiam que a condição que os unia era bem maior do que a que os dividia
enquanto classe social, tanto na sua condição econômica quanto na condição cultural. Assim,
formava-se uma aliança simbólica entre essas camadas, porém não suficiente para lhe
assegurar a garantia de manter algumas de suas tradições. Desta forma, os negros encontraram
nas irmandades católicas um espaço fundamental para a manutenção de traços de sua cultura e
sua ressimbolização em terras tupiniquim. A aceitação formal da religião católica abria espaço
para os negros fora da dicotomia senzala e trabalho. Voltava-se para os negros a possibilidade
de participação das festas religiosas, mesmo que essas fossem entre si divididas entre santos
da casa grande e da senzala.
No período da pasmaceira cotidiana, a Igreja ainda mantinha pela lembrança coletiva
das suas festas um poder central e de dominação sobre a vida e a alma das pessoas da região,
que de pronto atuará para a construção de cada vez mais igrejas e com mais brilho, ouro e
suntuosidade. O rei e seus defensores, na burocracia que se criava, asseguravam seu poder na
dominação da estrutura da cidade, deixando claro o poder real a partir do próprio nome delas,
bem como pela sua capacidade de recolhimento dos impostos e de garantir recursos em
abundância para seus membros e poder para suas forças armadas. Aos menos afortunados não
restava muito além de garantir o máximo de tempo livre para dispor do seu corpo sem a
influência do seu senhor. Assim se estruturavam, a fim de utilizar as festas como momento de
reafirmação de identidades africanas misturada ao mundo cristão na esperança de ter sua
liberdade comprada, ou pelo seu próprio esforço ou com a ajuda da sua irmandade.
Para os padres, o sucesso dos festejos servia como comprovação de sua fé na conversão
de almas para a igreja. E para tal sucesso era necessário que as irmandades tivessem vida ativa
e poder de estreitar laços de solidariedade entre os escravos e a Santa-Sé. Mesmo utilizando-
se de ritmos ligados à ancestralidade africana, em oposição à música barroca racionalizada e
rebuscada em voga nos rituais católicos, ao menos aqueles escravos estavam integrados ao
catolicismo. E com os sucessos dos festejos, os comandos superiores da igreja eram

                                                                                                                       
139
  Essa   conclusão   baseia-­‐se   no   debate   anterior   sobre   a   deculturação   da   música   indígena   brasileira,   onde   a  
forma   foi   estabelecida   pelos   jesuítas   ao   passo   que   se   mantinha   a   língua   do   gentio   como   unidade   de  
comunicação  dentro  de  uma  cerimônia  ou  ritual  de  matriz  europeia,  conforme  Tinhorão  (1972).  
140
 “Cabe  realçar  o  significativo  número  de  indígenas  reduzidos  à  condição  escrava,  na  época  em  estudo  (...)  
correspondiam  a,  aproximadamente,  40%  da  massa  de  coloniais  [escravos  nascidos  na  colônia,  negros  ou  
gentios]  e  a  cerca  de  3%  dos  escravos  computados  nos  documentos  de  que  nos  servimos”.  Luna  (2009,  p.  271)  
 119  
 
 
 

informados, o que aumentava o prestígio dos párocos perante a diocese. E para que tal fato se
concretizasse, era importante que os senhores de engenhos não criassem obstáculos para a
organização das irmandades, o que incluía festejos preparatórios durante o ano todo. Assim,
os dias de domingo e os feriados religiosos serviam de pretexto aos escravos para os festejos,
que embora marcassem datas comemorativas aos santos católicos, expressam um traço
importante do intercâmbio e fluxo de culturas, criando um catolicismo recheado de
sincretismo e magias.
AGUIAR (2001) faz uma minuciosa análise de receitas e despesas de irmandades nas
Minas Gerais setecentistas e traz dados relevantes para a nossa abordagem. Ele compara as
receitas destas irmandades e seus gastos num período que vai do auge do ciclo do ouro à sua
decadência no final do século XVIII e início do XIX, e constata como já era de se esperar uma
queda vertiginosa nas receitas destas. De maneira geral, as irmandades negras gastavam entre
20 e 40% de suas receitas para a realização das festas, tendo picos de até 80%, e gastos em
torno de 40% com os capelães. O restante dos gastos se dividia entre reformas e construção de
igrejas, missas para encomendar a alma, batismo e outros não especificados. Esse quadro nos
apresenta um pouco da importância dos festejos para esse grupo, e inclusive como atesta
AGUIAR (2001, p. 371): “Precaviam-se do desaparecimento dos confrades, pois, como
reconhecia um visitador eclesiástico anteriormente citado, sem festa não haveria esmolas”.
Porém, essa dádiva vai se transformando em veneno. O triunfo das irmandades serve em
um primeiro momento para garantir a conversão das almas e estender os domínios da Santa Sé
entre os negros. Porém suas festas e, principalmente, a falta de recursos financeiros por parte
dos negros, leva a outras consequências. Primeiro, pela necessidade cada vez maior de
recursos; as irmandades necessitam de suportes financeiros com os quais não podiam arcar,
cabendo aos senhores e juízes uma parcela considerável dos proventos das irmandades. Disto
resulta um aumento significativos da influência dos senhores brancos dentro das irmandades
negras, do poder estatal sobre uma tutela da igreja, embora não se intrometessem diretamente
nas questões organizativas141. Esta benevolência dos senhores traz em uma mão um maior
controle sobre os escravos, oferecendo a eles dias de não trabalho e reputação positiva,
principalmente entre os líderes das irmandades, que consequentemente eram líderes e
organizadores das senzalas. Desta forma, pretendiam os senhores reduzir as fissuras entre a
casa grande e a senzala, aumentando a confiança de seus homens e referendando através dos
                                                                                                                       
141
  Borges   (2005,   p.   83)   “Em   algumas   irmandades   existia   o   cargo   de   Protetor,   personalizado   por   um   homem  
branco,   de   posses,   encarregado   de   auxiliar   financeiramente   a   organização,   o   qual,   não   raro,   imprimia   a   sua  
palavra  final  nos  assuntos  internos  da  organização.”  
 120  
 
 
 

feriados e da euforia passageira de alguns dias em lucro futuro, quer pelo aumento de
produtividade dos negros, quer pela redução do número de fugas. Na outra mão, aumenta
também a reputação deles junto à igreja.
Em segundo lugar, a partir do momento em que cresce a influência dos senhores junto
às irmandades, cresce também a pressão da igreja sobre os senhores. Se no primeiro momento
a igreja não colocava obstáculos ao sincretismo contumaz dessa festa, não haveria de
continuar sem que algumas fissuras se abrissem. Principalmente quando começam a ocorrer a
decadência do ciclo do ouro e, consequentemente, a redução dos recursos para a construção
de novas igrejas e a queda significativa do dinheiro destinado aos capelães. Importante
particularmente para nós esse período, pois é a partir da decadência econômica que se
aumentam as revoltas no país, tanto dos negros quanto de uma população branca brasileira de
tendências liberais, influenciados principalmente pelo fim do Ancient Régime.

4.5 As festas dos miúdos


Conforme observamos anteriormente, Tinhorão relativiza a importância das entradas
triunfais na formação festiva brasileira. Os espetáculos grandiosos, desenvolvidos pelo corpo
religioso ou político, como a entrada de 1786 em comemoração ao casamento do príncipe D.
João (futuro D. João VI) com Carlota Joaquina, apresenta-se como um elemento estranho ao
corpo social, principalmente enquanto uma “autenticidade”, um elemento de construção
popular. Assim Tinhorão vai dividir seus relatos sobre as festas no século XVIII em duas
partes, as entradas e as “festas dos miúdos”.
Essa metodologia utilizada por ele visa, sobretudo, reforçar os pares de oposição que
ele desenvolve. Se por um lado, temos as festas oficias, por outro, temos os festejos
populares. Dessa forma, ele vai separar os elementos presentes em um daqueles que estão
contidos em outra. A concepção do autor é de buscar nas formas elementares da religiosidade
e das festas no país uma unidade, um fio condutor que nos levaria de volta às relações sociais
que criaram o carnaval. A resposta que ele encontra como a espinha dorsal é o entrudo. O
entrudo é o contraponto à entrada, embora enquanto forma ambos seguissem modelos
semelhantes, eles estavam estruturados de maneiras distintas. No primeiro seria a chusma os
responsáveis pela inversão hierárquica da sociedade, enquanto no segundo seria a
oficialidade, religiosa e política, quem estaria no encargo de ativar e reforçar as estruturas
sociais vigentes “em 1727, na Bahia, as brincadeiras do entrudo se estenderam

 121  
 
 
 

escandalosamente até a Quinta-feira Santa, o que levaria, como represália das autoridades, à
ordem de fechamento das tavernas até a Páscoa” TINHORÃO (2000; 117).
Nesse pequeno trecho, ele trabalha dois elementos principais da identidade
caricaturada da nossa sociedade, a primeira seria o caráter festivo baiano, mostrando que o
fervor com que as festividades carnavalescas se estendem nos dias de hoje já estava contida
ao menos desde o século XVIII na Bahia, caricaturalmente podemos pensar na preguiça
macunaímica, pois se as festividades são associadas ao não trabalho, um entrudo com duração
de quarenta dias coroaria o caráter de repulsa ao trabalho compulsório dos miúdos. Outro
elemento importante da nossa identidade seria a repressão, o fechamento das tavernas
evidencia um conflito latente entre as comemorações toleradas daquelas que não o seriam.
Esse ponto também evidencia outra característica que podemos associar diretamente com o
formato carnaval, o elemento do ébrio. Para além de ser um fenômeno isolado de determinada
localidade, Tinhorão (2012) trabalha o entrudo também em Portugal:
Festa da mais declarada tradição popular, o carnaval representado em Portugal por
esse entrudo, de que até escravos se permitiam participar atirando pedradas e
laranjadas, não parece mesmo ter sofrido qualquer diminuição com o
desencadeamento dos problemas nacionais, por certo a preocupar muito mais a
nobres e burgueses, agora sujeitos aos humores de Castela.
Uma prova do rigor com que a chusma dos miúdos e pés de poeira continuavam a
reverenciar a herança de antigas festas rituais pagãs, às vésperas do pesar das cinzas
e do rigor dos jejuns da quaresma cristã, ia transparecer apenas quatro anos depois
daquela lei extravagante, numa reveladora iniciativa intentada por padres de Lisboa
para enfrentar a incômoda popularidade do nocivo entrudo. (TINHORÃO, 2012, p.
78).
Tinhorão traça um paralelo entre as duas festas do entrudo. Temos a reprodução social
ocorrendo de maneira semelhante para o autor no processo lusitano e tupiniquim, o que traria
pontos de congruência na forma de organização festiva. Então, temos a influência pagã
europeia e rítmica africana, esses elementos atuariam simultaneamente no Brasil e em
Portugal, e em ambos os casos temos um rompimento com a tolerância do status quo, que
leva a represálias ou respostas diferentes para o mesmo processo, o que poderia explicar, em
parte, o afastamento da popularidade desse mesmo evento nos dias de hoje nesses dois países.
A resposta no Brasil foi à imposição da “lei seca” e a de Portugal seria o “Jubileu das
Quarenta Horas”, com o objetivo de distrair os ânimos das brutalidades carnavalescas para as
diversões ao divino. A festa “bem ao estilo das traquitanas do teatro jesuítico do tempo – um
chamariz para o público de caráter espetacular” se utilizava de elementos que rememoram nas
festas barrocas (vilipendiadas por Tinhorão que agora reaparece) como “mecanismo
semelhante aos usados quatro séculos mais tarde em carros alegóricos das escolas de samba
do Brasil, o serafim situado na capela-mor (...) abria e fechava suas largas asas, cobrindo e

 122  
 
 
 

descobrindo a custódia, como enorme pássaro humano celestial” (TINHORÃO, 2012, p. 78-
9).
Embora o padre Baltazar Teles alegasse que tais diversões devotas “chegassem a
fazer dias de devoção dos que ele [o diabo] tinha por dias de perdição”, a verdade é
que a diversão religiosa mal chegaria ao fim do século reduzida a uma única
procissão na terça-feira, “à qual assistia o Rei e a Corte, acompanhando-a e pegando
nas varas do pálio” segundo o cronista historiador. (TINHORÃO,2012, p. 79)
Os motivos religiosos de devoção carnavalesca não durariam muito, o fenômeno
aparece como uma resposta oficial a um brincar popular, todavia o popular já estava às ruas e
já se colocavam como brincantes, que embora fossem atraídos para as comemorações da
Igreja se acostumara a não ter uma atitude contemplativa no período que antecede a quaresma,
para se integrar dentro de uma unidade ativa dentro dos entrudos. Importante, sobretudo para
a análise de Tinhorão é que essas disputas entre os padres e os foliões tinham um pano de
fundo, a tentativa de domesticar a herança pagã na religião romana.
Bem examinados os fatos do ponto de vista da evolução histórica das baixas
camadas no Ocidente desde o advento do cristianismo, a vitória das festas pagãs
sobre as religiosas revela-se mais do que natural, pois as “diversões ao divino”
tenderam sempre a sair das igrejas para transformar-se, nas ruas, em diversões
profanas do mais aberto sentido dionisíaco. (TINHORÃO,2012, p. 80).
Outra tradição popular trazida ao debate como um contraponto às festas barrocas para
Tinhorão seria o exemplo das Onze Mil Virgens. Festa que já acontecia no Brasil desde a
chegada dos jesuítas, conforme atesta HOLLER (2010), em que a tonalidade burlesca, a
embriaguez e o uso de máscaras davam uma tonalidade galanteadora para os jovens
estudantes de famílias importantes se misturarem com as camadas populares. O tom jocoso já
caminha para a contradição entre uma festa profana em homenagem às Santas Virgens, ainda
mais onze mil! A estratégia de uma mistura entre estratos sociais distintos também se pode
caracterizar como uma festa de inversão hierárquica, embora o termo não seja utilizado por
Tinhorão nessa leitura, todo o arcabouço teórico destas está presente no argumento do autor.
E essa mistura de uma festa popular, com formato de procissão, mesmo que de origem
“nobre”, faz parte das exéquias do autor sobre as festas de afirmação, em que se encontram as
Entradas. Ainda sobre a festa das onze Mil Virgens:
Pois além dessa infiltração declarada da “gente caleceira e vadia” , a que se
juntavam negros, mulatas e até prostitutas da cidade dispostos a aproveitar a
promoção particular dos estudantes filhos da elite branca, para democrática diversão
conjunta, as camadas baixas da colônia puderam ainda fazer-se representar, agora de
certa forma já oficialmente, dentro do copo mesmo das festividades civis ou
religiosas setecentistas, na qualidade de representações étnicas. TINHORÃO (2000;
121).
Outra festa que recebe destaque entre a “gente miúda” é em homenagem a São
Gonçalo. Esse santo ganhou enorme popularidade entre os negros por ser um “mulato” (na
verdade é de origem indiana) e junto com seu carisma entre uma parcela da população vêm os
 123  
 
 
 

festejos em devoção a ele. Em maio de 1745 acontece em Recife os preparativos para as festas
dedicadas à consagração do novo culto de São Gonçalo Garcia. “Os festejos começaram no
dia 2 de maio de 1745, com “fogos de todas as invençoens”, repiques de sinos e “bombus de
artilharia”” (TINHORÃO, 2000, p. 122). No terceiro dia de folia, a cidade de Olinda também
se junta à festa e anunciam esta como sendo o preparativo de uma grande festa, organizada
pela irmandade de homens pardos de São Gonçalo do Recife.
A grande solenidade segue o modelo consagrado por Tinhorão como uma estrutura
fundamental das festas populares, o estilo de procissão de Corpo de Deus, em que “no dia 30
[agosto] pela saída de um bando de pardos “revestidos de requissimas ropas, a quem
precedião dous ternos de charamelas, e boazes, com cuja armonia, e suavidade se incitava a
devoção popular””142. As festividades contavam com os elementos musicais populares que já
estavam familiarizados às populações “miúdas” das sedimentações mais antigas do país,
conforme já discutido anteriormente sobre a utilização de instrumentos e categorias sociais.
Todavia o que vai se configurar como um diferencial entre as primeiras festas aos santos no
século XVII em Pernambuco para as do século XVIII é a incorporação de elementos que
estavam contidos nas festas barrocas, embora não fosse exclusividade delas, a utilização de
carros alegóricos. É justamente dentro desses elementos estruturantes de uma ordem social,
que percebemos a manutenção hierárquica nesses festejos, muito semelhante aos desfiles
carnavalescos de hoje:
E o curioso é que, tal como faziam os brancos em suas procissões, também os
mulatos, agora dignificados com a representação devota de seu irmão de cor São
Gonçalo Garcia, entregariam aos negros a dura tarefa de puxar o pesado carro
alegórico da Senhora do Bom Parto (“de 22 palmos de longitude e 14 de altitude”),
sobre o qual se assentava a imagem em seu trono TINHORÃO (2000; 123).
Segundo os relatos, o que não seria nenhuma surpresa, os outros carros também eram
puxados por “Guinés”, a exceção ficaria com o último carro, justamente aquele que levava o
“mártir” São Gonçalo, este era puxado por um par de cavalos, cobertos com manta de tafetá
verde mar. Todavia, o que faz com que Tinhorão diferencie esse auto do Aureo Trono
Episcopal e Triunfo Eucarístico é justamente que apesar de puxar os carros, a participação dos
negros não se resumiria a isso, eles também estavam contidos em posições distintas dentro
das festividades. Conta o autor, a partir de relatos de Sotério da Silva Ribeiro, que um grupo
de treze jovens negros exibia-se na “dança chamada de Quicumbiz” com vestimentas de
veludo negro e diferenciando-se entre si nos “saiotes” “dançavam servindo de comissão de
frente, pois os “acompanhavam outros tantos na ocupação de caudatários, ornados também
                                                                                                                       
142
Sotério   da   Silva   Ribeiro   “Summula   triunfal   da   nova   e   grande   celebridade   do   glorioso   e   invicto   martyr   S.  
Gonçalo  Garcia”  apud  Tinhorão  (2000,  p.  122)  
 124  
 
 
 

com caprichoso aceyo, a sabersayotes de seda e finas rendas”. Destaque merece também o
acompanhamento musical “a som de violas, pandeiros, cantando e dançando ao modo
Ethiópico” (TINHORÃO 2000, p. 124). Assim a música e dança de diversas etnias africanas
ganham destaque dentro dessa representação musical, que logo em seguida ganha também
contorno da contribuição europeia através dos flautistas. Neste caso, a festa dos pardos em
homenagem a São Gonçalo, se por um lado reforça a hierarquia societal, tanto dos brancos em
relação aos mulatos como também dos próprios mulatos em relação aos negros (como os
negros puxando os carros alegóricos), por outro propiciava uma confluência de ritmos e
melodias de diversas categorias, até mesmo os indígenas estavam representados:
Representação étnica mais apagada seria a dos naturais da terra. Muito aculturados
pela longa convivência, em condição inferior, com os moradores brancos e mestiços
do Recife, “os nove rapazes Indios do Paiz”, apesar de “ricamente ornados, e nus da
cintura para cima ao modo pátrio”, que exibiam uma “dança de cabouclinhos”, já
não conseguiam reunir sequer um grupo completo de tocadores de sua música, pois
entre eles aparecia apenas um negro que tocava gaita: (TINHORÃO, 2000, p. 124).
“vários gyros, e voltas entrecadentes, com passo informe, fazião todos pelo centro
de huns carcos de sipó, ornados e pintados de varias cores, e penas. Variosgyros
digo formavão, a som e compaço de um tamborinho, e gaita, que tangia de hum
Ethiope (se bem que não a nosso modo) não deixava por isso de atrair attençoens
pelo indico modo, com que sabe esta nação portar-se nas occaziões de suas mayores
celebridades143”
Vinte e oito anos após escrever “A deculturação da música indígena brasileira” o autor
retornou com mais alguns elementos sobre o processo de aniquilamento da memória musical
dos nativos que viviam em contato direto com os brancos. Assim ele descreve outra festa,
desta vez ocorrida no Recôncavo baiano em homenagem ao casamento de D. Maria I, a louca.
Festa organizada pela elite branca ligada ao poder real, ela segue todos os predicados da festa
de São Gonçalo, com a diferença que continha mais negros, justamente pela divergência
populacional entre as regiões brasileiras. Também seguia a estrutura da procissão de Corpus
Christi e dividido em atos com carros e alas étnicas. E a questão do gentio permanece
conforme Tinhorão (2000, p. 125): “a participação dos indígenas brasileiros, além de mais
apagada, correspondia apenas ao interesse dos brancos pelo pitoresco e o exótico”.
Essa configuração festiva dos setecentos para Tinhorão segue um conceito distinto
daqueles realizados pelo poder episcopal ou real, segundo ele conta a partir do relato de
Francisco Calmon sobre a festa de 1760 no recôncavo baiano “verifica-se que, dos eventos
realizados nos catorze dias que medearam entre o início das festas (...) apenas uma diversão
de brancos foi bisada (...) a exibição do auto dramático negro do Reinado do Congo repetiu-se
por nada menos do que catorze vezes” (TINHORÃO, 2000, 127).

                                                                                                                       
143
Sotério  da  Silva  Ribeiro.  Apud  Tinhorão  (2000;  124)  
 125  
 
 
 

4.6 Um pouco do que faltou sobre Minas Gerais e o Barroco


Mesmo a grande popularidade das festas dos reis de Congo não foram suficientes para
que Tinhorão se debruçasse sobre as festas mineiras e, nem tampouco, sobre as suas
irmandades. Isso nos leva a algumas considerações que, embora não tenham sido confirmadas
por Tinhorão (não tinha esse questionamento ainda), concerne à forma de organização. No
que tange o desenvolvimento das obras do autor, percebemos que ele pondera e fala das
irmandades e de suas festas, todavia, ele não leva em consideração o desenvolvimento das
irmandades de Minas Gerais. Quais os motivos para esse silêncio?
Partimos da premissa de que Tinhorão divide em pares de oposições as situações que
serão analisadas, sua busca é para encontrar as origens de uma festa popular “autêntica”, e por
que ele não busca também nas irmandades mineiras e suas contradições esses elementos?
Vimos anteriormente às diversas contradições que estavam no seio das organizações
confrarias, tanto no que concerne às disputas simbólicas entre elas quanto no que diz respeito
a participações, diretas ou indiretas de revoltas, como no caso do roubo dos badalos dos sinos.
Podemos pensar esse ponto, a partir de uma interpretação equivocada das configurações
sociais por parte do autor como, por exemplo, quando ele diz:
Isso explica desde logo por que na zona das Minas Gerais, apesar da existência de
cidades ricas e importantes como o Tijuco (Diamantina), Vila Rica (Ouro Preto) e
São João del-Rei, as criações culturais se restringiram aos campos da arquitetura, da
escultura, da pintura e da música religiosa. Como a exploração das minas excluía a
possibilidade de diversificação econômica e dividia as classes entre trabalhadores
escravos e nobreza proprietária-elite dirigente (doutores por Coimbra), todas as
manifestações de cultura se originavam ou no campo folclórico (batuques de negros,
danças e cantos ligados às festividades das irmandades religiosas) ou no campo
erudito, tendo também a igreja como centro, por representar essa instituição a ponte
espiritual entre as duas classes. (TINHORÃO, 1975, p.7)
A divisão simplista, conforme exposto por Tinhorão em “Pequena História da Música
Popular” não condiz com as ramificações econômicas que originaram a partir da descoberta
do ouro144, uma vez que, sendo o metal equivalente geral, seria “natural” uma capilaridade
econômica e social maior do que o modelo agroexportador, que traz consigo a produção para
autoconsumo junto aos canaviais. Tampouco a imaginação fértil da nobreza que estava
presente nas Minas Gerais e que isso configuraria um degrau a mais dentro de uma sociedade
hierarquizada, mas isso não se deve levar em consideração, pois só após mais de vinte anos de
faiscação em terras alterosas que se configura a transformação em uma província autônoma,
precisaria de muito senso imaginativo para pensar uma nobreza (que já se esbaldava nas
cortes de Versalhes, longe do ideal do nobre cavaleiro medieval) estrebuchando numa cidade
                                                                                                                       
144
 Luna  &  Costa  lista  uma  gama  de  86  ocupações  distintas  na  comarca  de  Vila  Rica  no  ano  de  1804.  In  Luna  
(2009,  p.  61-­‐2-­‐3).  
 126  
 
 
 

que nem para capital de província, além-mar, tinha porte. Os nobres não eram mais
aventureiros desde 1578, e aqueles enviados para Coimbra são em números muito menores do
que se supõe145. Esse modelo apresentado por Tinhorão, de uma divisão simples das
categorias sociais desenvolvidas nos anos 70, provavelmente não condiz com o pensamento
atual do autor146, isso pode ser analisado pelo arcabouço teórico que o leva a pensar Minas
Gerais a partir da bibliografia da obra “As festas no Brasil colonial” onde ele utiliza de parte
do arcabouço de Francisco Vidal Luna147, que também foi utilizado por nós como referência
aos dados sobre escravidão em Minas Gerais ou mesmo Laura de Mello e Souza uma
produção mais recente sobre o período minerador e seus “Desclassificados do Ouro”. Então
preferimos deixar essa nota como uma concepção remota do pensamento do Tinhorão, e
pensar em outras possibilidades para o destaque quase inexistente sobre Minas Gerais148 na
formação festiva do Brasil.
Todavia seria injusto dizer que foi um destaque praticamente inexistente, doze páginas
foram utilizadas em sua obra “As festas no Brasil colonial” para descrever os desfiles
barrocos, também eram chamados de entrada. A descrição da suntuosidade das festas públicas
do período minerador recebe menos atenção (ao menos no que se refere a páginas escritas)
que o boi voador de Maurício de Nassau, que a nenhuma festa foi. Dentro do aspecto geral do
livro, o século XVIII é o que tem menos capítulos, dois, mesmo número que o reservado para
o século XIX, salvo que este século só teve vinte e dois anos enquanto colônia. E no que diz
respeito a páginas escritas, o século XVIII continua na lanterna do livro. Sentido contrário
tomou a nossa dissertação, que procurou dividir de maneira mais homogênea mesmo que
algumas vezes na contramão do autor que serve de guia a esse trabalho. Mesmo assim ainda
não conseguimos pensar o porquê da não exploração por parte do autor das contradições do
barroco mineiro dentro do arcabouço das possibilidades.
O que nos parece mais plausível dentro desse ponto de vista seria a opção que ele toma
na separação do “autêntico” e do “inautêntico”, em que estaria o “inautêntico” mineiro das
                                                                                                                       
145
  Holanda   (2004,   p.   119)   “dos   naturais   do   Brasil   graduados   durante   o   mesmo   período   (1775-­‐1821)   em  
Coimbra,  que  foi  dez  vezes  menor  (relacionado  à  América  espanhola),  ou  exatamente  720”  
146
  Em   conversa   com   o   autor   no   mês   de   abril,   deste   corrente   ano,   ele   ponderou   suas   considerações   mais  
antigas  e  ainda  falou  sobre  a  formação  de  uma  música  nacional  a  partir  do  barroco  mineiro.    
147
  “Como   revelaria   o   professor   Francisco   Vidal   Luna   e   Iraci   del   Nero   da   Costa   (...)   padres   de   Minas   não  
hesitaram   em   transformar   a   festa   do   Espírito   Santo   de   1738   (...)   em   verdadeiro   desfile   carnavalesco,   de   que  
participaram  inclusive  como  fornecedores  da  música  que  animou  a  pagodeira”  Tinhorão  (2000,  p.138).  
148
 Destaque  praticamente  inexistente  sobre  o  papel  de  Minas  Gerais  nas  ciências  humanas  e  sociais  do  Brasil  
que   remontam   a   Gilberto   Freyre   e   Sérgio   Buarque   de   Holanda.   Podemos   ampliar   o   arcabouço   dos   intelectuais,  
porém  se  colocarmos  mais  será  injusto  com  os  outros.  O  pensamento  clássico  das  ciências  humanas  estabelece  
um   tripé   Pernambuco,   Rio   de   Janeiro   e   São   Paulo   como   o   centro   formador   do   Brasil,   no   campo   musical  
Tinhorão,  justamente,  retira  São  Paulo  e  acrescenta  a  Bahia.  
 127  
 
 
 

irmandades e das festas de reis (sejam os santos reis ou os reis de Congo)? Porque o rei de
Congo aparece nas obras de Tinhorão, porém não os de Minas Gerais. A hipótese nossa é de
que o autor coloca no campo do inautêntico, porque enxerga na estrutura confrarial das
irmandades de Minas Gerais uma relação umbilical com os poderes instituídos. Acredito que
dentro dos pares de oposição formulados pelo autor, as irmandades mineiras estavam
atreladas e controladas fortemente pelo poder real e episcopal, as ordens terceiras que se
multiplicavam na região mineradora tinham funções que antes ficavam a cargo da Igreja,
como batismo, velório, encomenda de almas, além das festas. Essa concepção dúbia das
irmandades afasta o olhar do autor para a realização da sua aguçada pesquisa, fazendo com
que os elementos por ele apresentados não venham necessariamente de um olhar apurado para
os elementos contraditórios dessas festas. Outra possibilidade seria de não debruçar os olhares
dentro das divisões entre as irmandades de negros, não que Tinhorão tenha medo de
colecionar inimigos, todavia um marxista não gostaria de ter o movimento negro, que se
formava nos anos 70, como inimigo de classe.
Outra hipótese seria a teoria geral da estatística, em que deixamos de lado alguns
elementos para a validação da nossa teoria. Desta forma, um embate simbólico direto, entre as
festas medievais versus a festa barroca, fornece uma síntese válida para a formação dos
elementos centrais que dão origem às festividades brasileiras, dentre elas ou principalmente, o
carnaval. Assim os elementos exógenos, como os carros alegóricos das festas barrocas são
apropriados pela chusma da mesma forma como a Igreja se apropria da peregrinação pagã
para rituais oficiais. Assim, teríamos o povo miúdo com uma estrutura festiva que seria sua
por direito (as peregrinações, romarias e Corpus Christie), uma música que seria sua e a
apropriação de um elemento (carros alegóricos) que seriam subvertidos dentro de uma festa
de inversão, ao invés das de afirmação ao estilo barroco. Todavia, o trunfo para unir o popular
ao erudito, o medieval ao barroco, a procissão e o povo recai aos cariocas:
Com esse desfile de “magníficos carros” fabricado na Casa do Trem do Rio de
Janeiro, completava-se o ciclo dos grandes espetáculos barrocos do Brasil colonial,
herdeiros dos trionfi florentinos do Quattrocento, a que o povo assistia. O
Setecentos brasileiro, porém, não terminaria sem antes permitir ao nascente povo
citadinho da colônia infiltrar-se, como participante ativo, em outros eventos festivos
ou solenidades de rua promovidos pela Igreja, ou pelos representantes da Coroa.
TINHORÃO (2000, p. 116).

 128  
 
 
 

CONCLUSÃO

Percebemos nessa dicotomia de festas espontâneas e festas oficiais, um


desdobramento no pensamento de Tinhorão entre festas “autênticas”, aquelas advindas do
diálogo e de fluxos mais horizontais, que conferem uma síntese entre os povos em contato,
daquelas “inautênticas”. Estas se dariam a partir de um projeto oficial, quer seja do poder
político quer seja do poder eclesiástico. Dessa forma, durante os três séculos analisados nessa
dissertação, mostramos como operavam os pares de oposição propostos por Tinhorão.
Assim, no primeiro destes séculos, estava uma preocupação latente no processo de
ocupar o “papel em branco” nas mentes dos nativos dessa terra com os ideais português e
papal. Desta forma, a primazia conferia ao reino de Portugal e à Companhia de Jesus, que
tinham um projeto colonizador, uma formulação entre os desafios e resultados esperados
previamente concebidos na corte. As formas de organização festiva estariam mais
homogeneizadas pelo papel centralizador conferido pelos jesuítas e as diferenças se dariam a
partir dos instrumentos utilizados por cada um dos estratos sociais. Isso ajudaria a explicar os
diversos tipos de música que se desenvolviam nas terras colonizadas, de um lado temos as
músicas formadas por instrumentos mais populares, como a gaita, flauta e percussões e de
outro por órgãos, violinos e instrumentos militares. Essa diferença ocasionada pelos
instrumentos utilizados carrega consigo estilos musicais distintos e outras formas de se fazer
músicas, as cordas tangidas e as notas ponteadas. Essas diferentes formações musicais seriam
o ponto de partida entre o que seriam as músicas brasileiras “autênticas” e “inautênticas”. Do
ponto de vista festivo, operava a separação entre as festas e a Igreja. Embora as festas
tivessem caráter religioso, a Companhia de Jesus, principalmente durante a vida do padre
Loyola, trabalhava dentro da lógica da proibição. Os padres eram proibidos de exercer a
música, ficando a cargo dos leigos essa empreitada. Desta forma, ganha terreno o espaço
público como local prioritário para desenvolver as festividades e como consequência algumas
lacunas no processo civilizador proposto pelo Vaticano abriria brechas para uma incipiente
formação musical e festiva. Todavia, conforme atestado nessa dissertação, para Tinhorão não
se poderia falar de uma música do povo, pois ainda não havia povo. Neste caso, teremos
muito mais um desabrochar de tradições populares portuguesas que iam adentrando na
colonização e no contato com os indígenas, ao mesmo passo que ocorria a “deculturação” da
música indígena.

 129  
 
 
 

O segundo século da colonização já aparece como a estrutura dominante desse


processo, em que a premissa econômica sofre alterações significativas. A introdução da mão
de obra de cativos africanos, que já era vastamente utilizada em Portugal, traz alterações
significativas na configuração social, bem como a consolidação das capitanias hereditárias. Se
no primeiro momento a dinâmica dos lusitanos nesse solo pendia para uma consolidação
religiosa sobre o gentio, no século XVII as demandas econômicas do latifúndio davam as
cartas na organização social.
Do ponto de vista político, é marcado pelo fim da União Ibérica e da necessidade de
reafirmação da coroa portuguesa, assim as festas de caráter medieval ganham contornos
significativos, que formaram o embrião das quermesses modernas. Jogos de argolas, teatros
de autos e demonstração de destrezas a cavalo configurariam o pano de fundo, em que se
desenvolviam as procissões, romarias e os entrudos. Nesse período histórico já podemos
afirmar, como assim o fizera Tinhorão, que existia um povo. O crescente fluxo de colonização
trazia consigo um aumento populacional significativo, grande parte deste a partir da
importação de mão de obra de africanos.
Nesse sentido, dois pontos são cruciais para a tese do autor, a primeira delas é a
mudança do sentido proposto por FREYRE (1987) e RIBEIRO (1995), se este via a formação
brasileira através do tripé brancos, negros e índios, para Tinhorão, e que fique frisado que se
refere apenas à música, os três pilares viram dois, o gentio deixa quase nula influência na
formação musical e festiva, cabendo aos europeus e africanos a primazia dos fluxos de
relações musicais. Se fosse verdade para a economia, também o era para a música e as festas.
Outro ponto importante é a premissa da formação de uma classe média a partir de uma
diversidade econômica. Se o modelo era basicamente da exportação da manufatura, alguma
nuance era necessária para esse desenvolvimento. O binômio senhor de engenho x escravo era
o modo dominante nesse sistema, todavia um arcabouço de profissões intermediárias se
formava inclusive de músicos. Assim, temos o surgimento de nomes da música e do romance
tupiniquim, como Gregório de Mattos, Tomás Antônio Gonzaga, Claudio Manuel da Costa e
Domingos Caldas Barbosa. Mesmo que incipiente, a questão chave para a compreensão do
pensamento que Tinhorão carrega desde seu primeiro livro começa a aparecer no século
XVII, o desenvolvimento de setores médios, e destes adivinham a negociação entre o popular
e o erudito, entre o negro e o branco, entre a Europa e a África.
Ponto principal do desenvolvimento festivo do século XVII foi sem dúvida as
procissões de Corpus Christie. Tinhorão observa neles um clamor popular de interesse

 130  
 
 
 

singular. É nele que a cultura pagã portuguesa se adentra e se mistura, foi a partir daí que fica
latente o caráter fluido e permissivo às manifestações populares no que chamamos de
catolicismo popular. Essa se desenvolve como um auto democrático, que consegue agrupar
elementos religiosos distintos, retirando o caráter divino no catolicismo e aproxima-o ao
humano. E não seria diferente ao se transportar essa festa de Portugal para o Brasil, os
elementos novos desse universo colonizado se traduziriam na incorporação de novos signos
sociais e religiosos. Para Tinhorão, é a partir do desenvolvimento dessa festa que podemos
pensar no autêntico, no popular, e no transformador.
Todavia, esse elemento vai se transformando conforme a sorte dos brasileiros mudava.
A descoberta dos metais preciosos no interior da colônia traz um dialogo do autor com a
vocação brasileira, proposta por PRADO JÚNIOR (1994). Já não poderia dizer que se tratava
de uma colônia voltada para a exportação de gêneros alimentícios, mas sim de uma colônia
exportadora, em que a lavoura ocupava um espaço dividido com a mineração. Se nas lavouras
canavieiras do nordeste o elemento rural era o predominante, o que trará a concepção dos
intelectuais ligados ao PCB de uma autenticidade rural, para Tinhorão a preocupação central é
com as músicas e festas urbanas.
Já assinalamos anteriormente como o desenvolvimento das cidades mineradoras
mineiras ajudou a criar e desenvolver inúmeras outras profissões, destacadamente duas seriam
fundamentais para a criação de uma camada de intelectuais que pudesse atuar no campo das
ideias, os funcionários públicos, estes geralmente formados em Direito na Universidade de
Coimbra, como Gregório de Mattos ou Tomás Antônio Gonzaga, e na outra ponta o
desenvolvimento dos artesãos, estes diretamente ligados a um saber desenvolvido
anteriormente na metrópole. Além disso, estavam umbilicalmente ligadas às sociedades
confrarias, que se desenvolviam tanto no Brasil como na Europa ou nas treze colônias
inglesas no norte das Américas. Esse modelo de sociedade confrarial conferia um tipo novo
para os trópicos de associação de pessoas, e que não apenas se reproduz entre as pessoas
livres como também entre os cativos. Assim, jogos simbólicos de disputa de identidade
desenvolvem-se tanto no campo do labor quanto no campo musical e festivo.
A hierarquia barroca faz com que essa disputa entre os irmãos de distintas confrarias
entrassem em batalhas simbólicas de identidade. Isso se refere às igrejas, mas também, e
principalmente (pois sem festa não havia dinheiro para as irmandades) na identidade visual de
cada uma das confrarias. Esse desenvolvimento visual, muito mais que o musical, é a
novidade mineira nesse processo de formação festiva “autêntica” nacional. Esse processo

 131  
 
 
 

aliado a grande quantidade de dinheiro circulante nas áreas mineradoras leva ao


desenvolvimento de fantasias, carros alegóricos, estandartes e ordenamento e competição
entre as confrarias. Tinhorão reconhece o desenvolvimento independente do barroco
brasileiro, assim como Sérgio Buarque de Holanda e principalmente Afonso Ávila, seu
principal interlocutor sobre o assunto. Esse barroco à brasileira entra como condição sine qua
non para o que seria a festividade mais autêntica dessas plagas: o carnaval. Que pese o fato, já
descrito no último parágrafo do quarto capítulo, que a mistura direta dos entrudos com as
festas de aclamação barroca seja mérito dos habitantes da capital da colônia, o
desenvolvimento desta remete ao desenvolvimento musical entre brancos e negros no século
XVII e das alegorias barrocas do século XVIII.
Por fim, mostramos como as transformações ocorridas tanto no Brasil, mas
particularmente na carreira do jornalismo, operaram para a guinada intelectual do autor. A
transmutação nas redações dos periódicos foi fundamental para a guinada do intelectual para
os livros. Isso foi importante para que saísse do folhetim e debruçasse no pensamento social
brasileiro. Assim, ele nos forneceu um vasto material para compreender a música e as festas
no Brasil, do seu período nos jornais nos deixou uma vastidão de fontes, que hoje compõem o
acervo Tinhorão no Instituto Moreira Sales. Além disso, deixou a redação e se transformou
em um dos maiores pensadores vivos de nosso país, sendo fundamental para todos que
querem adentrar no estudo da cultura popular do Brasil.

 
 132  
 
 
 

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MACHADO, Simam Ferreira Triunfo eucarístico. Lisboa, 1734. Edição fotografada do
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Entrevistas com José Ramos Tinhorão


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