Você está na página 1de 150

· Rostos do

. Protestantismo
.~o Latino-Americano
~cr JosÉ MiGUEL BONiN
.-
~

~
Escola .
, Superior de
Teologia
José Míguez Bonino

Rostos do protestantismo
latino-americano

~'
• ~E5cola
.,/1 Superior de
. ~... Teologia

2003
Traduzído do original Rastros deI protestantismo lattnoemertceno.
publicado pela editora Nueva Creación, Buenos Aires. fílíal de William
B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Míchígan, EUA. ©
1995 ISEDET.

Direitos em língua portuguesa reservados à

Editora Sinodal 2003


Rua Amadeo Rossi. 467
93030-220 São Leopoldo - RS
'TeI.: (51) 590-2366
Fax: (51) 590-2664
E-mail: editora@editorasinodal.com.br
Home page: www.editorasinodal.com.br

Capa: Editora Sinodal


Traducão: Luís M. Sander
Revisão: Letícia Schach

Coordenação editorial: Luís M. Sander

Série: 'Teologia na América Latina

Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações 'Ieolô-


gicas/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Thologia (IEPG)
da Escola Superior de Thologia (EST) da Igreja Evangélica de
Confissão Luterana no Brasil (IECLB).

CIP - Brasil Catalogação na Publicação


Bibliotecária responsável: Cristina 'Iroller CRB 10/1430

B715r BONINO. José Míguez


Rostos do Protestantismo Latino-Americano / José Mí-
guez Bonina; Tradução Luís Marcos Sander - São Leopol-
do. RS: Sínodal, 2002.
156 p.
ISBN 85-233-0694-3
1. Luteranismo 2. Protestantismo 3. América Latina I. Título.

CDU -284
CDD-284

Índice para catálogo sistemático


1. Luteranismo - América Latina 284
2. Protestantismo - América Latina 284
Índice

Prefácio................................................................................ 5
Capítulo 1
O rosto liberal do protestantismo latino-americano............ 9
1. Existe essa relação e que importância tem? 10
2. Que projeto liberal? 13
3. Renunciar à herança liberal? 22
Capítulo 2
O rosto evangélico do protestantismo latino-americano..... 31
1. Um protestantismo evangélico 31
2. Crescimento e diversificação 41
3. Sombras e luzes do "evangélico" 46
Capítulo 3
O rosto pentecostal do protestantismo latíno-amerícano ... 53
1. O que representa o pentecostalismo dentro do
protestantismo latino-americano?.............................. 55
2. A teologia do pentecostalismo 59
3. Uma teologia pentecostallatino-americana?.............. 62
Capítulo 4
Um "rosto étnico" do protestantismo latino-americano? 75
1. Como aproximar-nos do tema? 76
2. Protestantismo de missão e protestantismo étnico..... 79
3. Nação, etnia e missão 91
Capítulo 5
Em busca de coeréncia teológica: a trindade como critério
hermenêutico de uma teologia prostestante latino-americana 97
1. O futuro do protestantismo....... 97
2. O que significa a trindade como critério hermenêutico? 101
3. Rumo a uma crístología trinitária.............................. 106
Capítulo 6
Em busca da unidade: a missão como princípio material
de uma teologia protestante latino-americana.................. 115
1. A ambigüidade da defíníção missionária. 117
2. Por que uma míssíología trinitária? 122
3. Missão e evangelização............................................... 126
Notas 135
Prefácio

O inesperado convite para apresentar as conferências da


Cátedra Camahan em 1993 foi a tentação da qual nasceu
este livro. Não me pediram nem sugeriram um tema, mas se
supunha que tivesse algo a ver com "algum tema teológico de
seu interesse, no qual esteja trabalhando", como se costuma
dizer em cartas desse tipo. O tema que finalmente defini - sob
a pressão de divulgá-lo - é de meu interesse. Para ser mais
exato: é quase uma obsessão. Porém não é um tema no qual
eu tenha trabalhado profunda e sistematicamente. Ademais,
ele se move entre a história da igreja, a história da teologia, a
teologia sistemática e a interpretação social. Esta imprecisão
me liberta de aderir a uma metodologia estrita, mas me expõe
fortemente à improvisação e à superficialidade. Não obstante,
a paixão venceu a sensatez e assim nasceram as conferências
e o livro.
Até começar a embaraçar-me no caminho, na busca dos
fios do tema, na necessidade de envolver-me com temas e his-
tórias que não conhecia, não me perguntei que espírito maléfi-
co me haveria tentado. Não sou dado à introspecção - talvez,
por temor do que pudesse vir a encontrar -, mas cheguei à
conclusão de que duas interrogações são provavelmente as
responsáveis pela escolha do tema. E ambas são vergonhosa-
mente subjetivas. A primeira é a necessidade, que na realidade
nunca havia sentido explicitamente, de tomar clara para mim
mesmo minha identidade confessional e doutrinal. E aqui tive
uma surpresa. Já fui catalogado diversamente como conserva-
dor, revolucionário, barthiano, liberal, catolizante, moderado,
liberacionista. É provável que tudo isto esteja certo. Não sou eu
quem tem de se pronunciar a respeito. Porém, se tento definir-
me em meu foro íntimo, o que "sai de dentro de mim" é que
sou evangélico. Nesse solo parecem haver-se afundado, ao lar-
go de mais de 70 anos, as raizes de minha vida religiosa e de
minha militãncia eclesiástica. Dessa fonte parecem haver bro-
tado as alegrias e os conflitos, as satisfações e as frustrações
que se foram tecendo ao longo do tempo. Aí brotaram as ami-
zades mais profundas e aí se gestaram distanciamentos dolo-
rosos; aí descansam as memórias dos mortos queridos e a
6 Rostos do protestantismo latino-americano

esperança das gerações que vi nascer e crescer. Se verdadeira-


mente sou evangélico ou não, tampouco compete a mim dizê-
lo. Nem me preocupa que outros o afirmem ou neguem. O que
sou de verdade compete à graça de Deus. Mas pelo menos isso
é o que eu sempre quis ser.
Mas as coisas não são tão simples e daqui parte a segun-
da interrogação. Que significa ser evangélico? E, ainda por
cima, evangélico latino-americano? E ser evangélico latino-ame-
ricano hoje? Nada disso é tão claro assim. Por um lado, haveria
que buscá-lo em nossas histórias: de onde viemos? Algumas
dessas histórias - por exemplo, as do protestantismo clássico
ou as do catolicismo sobre cujo pano de fundo temos definido
nossos perfis - estudei com certo cuidado. Outras - particu-
larmente as trajetórias espirituais, teológicas e sociais do mun-
do evangélico anglo-saxão - conheço só em traços muito ge-
rais (e este trabalho me impôs a feliz obrigação de aprender
algo mais delas). Ainda outras - as de nossas igrejas e movi-
mentos religiosos evangélicos latino-americanos - ainda não
estão escritas, mas vão sendo perfiladas nos trabalhos de uma
série de jovens historiadores. E a teologia dos evangélicos lati-
no-americanos? O território é mais inexplorado ainda. Há con-
ferências, livros, sermões, revistas nas quais os notáveis desta
história escrevem. São uma rica pedreira, apenas aberta. Mas
como viviam teologicamente sua fé os "simples crentes"? Onde
estão as histórias de vida, as expressões espontâneas diante da
morte ou do amor, ou mesmo da vida cotidiana? Como desco-
brir as "mentalidades"? Thdo isto está suficientemente fluido
para que alguém se aventure a fazer conjecturas, propor hipó-
teses ou imaginar cenários sem a possibilidade (e, portanto,
sem a responsabilidade) de sustentá-las cientificamente. O que
ofereço não é mais do que isto.
Na América Latina "protestante" e "evangélico" (ou "evan-
gelista") têm sido sinônimos. Há cerca de 40 anos, Adam F.
Sosa questionava essa identificação e sustentava que nossas
igrejas eram, na verdade, "evangélicas" e não, protestantes.
Minha reação a essa tese foi negativa e procurei demonstrar a
firme raiz protestante - "herdeiros da Reforma de Lutero e
Calvino" - das igrejas evangélicas latino-americanas. Ainda
hoje sustento isso, porém é preciso admitir que, no caso da
maioria de nossas igrejas, a herança tem sido "re-monetaríza-
da" em outras terras e com outros moldes e que a ignorância
desses processos de mediação foi um grave obstáculo para que
os evangélicos nos entendêssemos a nós mesmos como protes-
Prefácio 7

tantes. Este livro é, em parte, uma tentativa de refletir sobre


essa "transferência".
Neste ponto, precisamente, se inscreve minha maior frus-
tração durante essas conferências. Decidi circunscrever o te-
ma a "três rostos" do protestantismo latino-americano - o
liberal, o evangelical e o pentecostal-, excluindo consciente-
mente o que tem sido chamado de "protestantismo de imigra-
ção" ou "igrejas de transplante" ou "igrejas étnicas". Minhas
razões, que eu acreditava serem suficientes, eram, em parte,
que este tema requereria um enfoque e uma metodologia dife-
rentes, mas principalmente que eu carecia - e ainda careço -
dos conhecimentos históricos e que não há suficiente trabalho
de pesquisa do tema para que se possa falar com certa idonei-
dade sobre ele. làmpouco me ocorria que esta exclusão fosse
uma negação da importância e significado dessas igrejas. E
muito menos, que não as considerasse uma autêntica mani-
festação do protestantismo latino-americano. A reação franca-
mente indignada de muitos pastores destas igrejas - queridos
companheiros de estudo, amigos pessoais com os quais fala-
mos com inteira franqueza, colegas no ministério e na docência
com os quais trabalhamos em toda sorte de tarefas comuns
todos os dias - me demonstrou que eu não sabia o que havia
feito. Minha decisão, que eu acreditava ser simplesmente fun-
cional e "econõmíca'', não podia ser entendida de outra manei-
ra do que como uma tomada de posição. E, mais profunda-
mente, demonstrava que, ainda que eu sentisse desde as maio-
res profundezas de meu coração e de minha experiência que
"pertencemos juntos" como cristãos e igrejas evangélicas, não
sabia dar conta desse sentimento e dessa experiência em ter-
mos históricos e teológicos. Por isso, decidi incluir um novo
capítulo, não porque haja encontrado uma resposta, e sim
porque não podemos nos conformar sem tentá-lo: será um
capítulo de interrogações mútuas, algumas talvez irritantes, de
questões abertas, possivelmente de algumas propostas. Tudo,
porém, presidido - ao menos de minha parte - pela convicção
de que Jesus Cristo nos constituiu já num sujeito de fé singu-
lar e seu Espírito tomou isso visível no caminho e nas tarefas
que crescentemente temos feito e fazemos em comum.
A imagem evocada pelo titulo que escolhi é ambígua: são
"rostos" distintos porque se trata de diferentes sujeitos? Ou
são "máscaras" de um sujeito único e, neste caso, qual é o
rosto que se oculta atrás dessas máscaras? É a busca de uma
resposta que me levou a procurar uma chave hermenêutica
8 Rostos do protestantismo latino-americano

que permita reconhecer a identidade única, a diversidade real


e a convivência dessa identidade em cada uma das manifesta-
ções desse sujeito que é "o protestantismo latino-americano".
Este é o sentido da exploração teológica dos dois últimos capí-
tulos. A analogia trinitária não deve ser buscada, em todo caso,
de forma direta ou atributiva - isso seria o pior erro -, mas
na unidade de intenção, de propósito, na comunhão de amor.
O que isto significa em termos das formas e expressões -
doutrinais, institucionais, missionárias, testemunhais, cultuais
- dessa unicidade, é uma tarefa que os evangélicos latino-
americanos ainda temos pela frente.
Duas observações para terminar esta apresentação e apo-
logia pro liber meo. Ao reler o texto comprovo que às vezes o
tom passa da argumentação e da análise para a retórica e a
exortação. Não me desculpo por isso. De que valem argumen-
tos e análises se não procuram convencer, se não estão a
serviço de uma paixão? Mas não quero ser interpretado como
quem pretende ter respostas definitivas, e sim como alguém
que convida a unir-se na reflexão e na paixão por esta promes-
sa e esta dor que é o protestantismo latino-americano. Foi
também a serviço desse convite que me permiti uma dose tal-
vez exagerada de notas como referências e perguntas abertas
para um diálogo que acredito que nosso protestantismo necessita.
É de bom gosto incluir a esta altura do prefácio os agra-
decimentos. Isso resultaria num elenco interminável de cole-
gas, amigos, irmãos e irmãs na fé por todo o nosso continente
e em outras partes. Não quero deixar no anonimato os três
interlocutores e amigos que me acompanharam nestas confe-
rências e nos seminários das manhãs, a professora EIsa 1à.mez
e os professores Antônio Gouvêa Mendonça e Bernardo Cam-
pos, cujos comentários, informações e críticas me ajudaram a
aprofundar, ampliar e corrigir o texto inicial: sem dúvida, mui-
tos traços do esquema inicial dos "rostos" ganharam em preci-
são por sua ajuda. E seguramente, a meus três filhos, que me
fornecem, amiúde à mesa familiar quando os netos o permi-
tem, as informações e referências históricas, sociológicas e bí-
blicas que eu não poderia reunir por mim mesmo. Os 48 em
que desfrutei da paciência e da impaciência de Noemí, minha
esposa, é algo que está além de todo reconhecimento.

José Míguez Bonino


Buenos Aires, março de 1995
Capítulo 1
O rosto liberal do protestantismo
latino-americano

Cristianismo protestante na América Latina? Por que e


como? Comecemos com algumas opiniões e juízos:
[O protestantismo é] uma forma do capitalismo norte-america-
no, elemento conquistador, amigo do capitalista e inimigo do
operário, que se propôs, mediante suas escolas, seus templos e
seus esportes, a americanização do povo. 1
O protestantismo latino-americano, portanto, aqui se estabe-
lece no bojo de uma invasão estrangeira e traz as marcas do
sectarismo e do individualismo que o caracterizavam. Resultou,
pois, numa aculturação que nada tem a ver com nossa origem
e formação histórica, e num subproduto das conquistas políti-
cas, econômicas e culturais dos séculos passados.ê
Creio firmemente que estender a Reforma ao mundo latino-
americano de uma maneira inteligente e vigorosa é provocar as
lutas de consciência nas quais são forjados e temperados os
grandes caracteres tão necessários para o engrandecimento e a
salvação das repúblicas e é levar a ele o sopro vivificador das
liberdades de tal modo conquistadas pelos povos do norte.ê

o controversista católico, o protestante "arrependido" da


década de 1960 e o entusiasta intelectual evangélico de 1916
têm avaliações muito diferentes. Parecem coincidir, porém, no
reconhecimento da existência de uma relação histórica e ideo-
lógica entre o protestantismo latino-americano, o projeto libe-
ral modernizador de setores politicos latino-americanos e a
influência norte-americana. Qualquer observador isento de pre-
conceitos terá de reconhecer nessa relação ao menos uma ve-
rossimilhança cronológica. Com algumas especificações que
indicarei oportunamente, a segunda metade do século passado
é o lugar histórico onde convergem na América Latina esses
três processos: o projeto liberal, o predorrúnio da presença dos
Estados Unidos e a entrada do protestantismo. Que relação os
liga, quais são as caracteristicas de cada um desses fatores,
10 Rostos do protestantismo latino-americano

como avaliar histórica, ideológica e teologicamente esse perío-


do: estas são as perguntas que têm sido objeto de apaixonadas
discussões e que dizem respeito à autoconsciência e à identi-
dade do protestantismo latino-americano. Minha contribuição
a essa discussão se limita, neste contexto, a colocar três per-
guntas: 1) Se existe uma relação, que importãncia histórica
tem? 2) Onde reside a "afinidade" que teria tornado possível
essa relação? 3) Como respondemos os protestantes a esse
"suposto" passado histórico em função de nossa missão aqui e
agora?

1. Existe essa relação e que importância tem?

Não vamos nos distrair com a análise do que Jean-Pierre


Bastian qualifica - e descarta - como a "hipótese conspíratíva'",
Segundo ela (como o manifesta nossa primeira citação), as
missões protestantes não teriam sido outra coisa do que "a
ponta de lança", "o acompanhamento ideológico" ou "a legiti-
mação religiosa" da penetração econômica, política e cultural
dos Estados Unidos na América Latina: em todo caso, um
instrumento consciente e deliberado do projeto neocolonial.
Essa é uma teoria que foi esgrimida amiúde por polemistas
catôlicos romanos, às vezes em aliança com os nacionalismos
de direita, e depois por alguns marxistas, e que perturbou a
consciência de não poucos protestantes "progressistas" na dé-
cada de 1960, levando às vezes a repúdios e "confissões" pre-
maturos.
Excluindo as coincidências no tempo, muito poucas evi-
dências respaldam tal teoria. Seria necessário, inclusive, preci-
sar os argumentos de datas, já que o projeto imperialista dos
Estados Unidos sô toma corpo na América Latina após a guer-
ra de secessão naquele país (1860), quando a presença protes-
tante já tinha aqui mais de duas décadas. Em todo caso, é
antes à influência e pressão britãnicas desde as guerras de
independência que se deveria atribuir (para o bem ou para o
mal) a abertura do panorama religioso no continente.
Por outro lado, é muito difícil fazer generalizações. Não
obstante os elementos comuns que permitem falar de "uma
histôria da América Latina", deve-se levar em conta a existên-
cia de uma grande diversidade entre as várias nações e regiões
em termos de cronologia, na orientação que tomaram os países
independentes, nas formas de sua incorporação ao processo
o rosto liberal 11

neocolonial e nas características e tempos de entrada do pro-


testantismo.
Muito diferente - e, em minha opinião, muito melhor
fundamentada - é a "hipótese associativa", que o próprio Bas-
tian formula nestes termos:
Portanto, a razão de ser das sociedades protestantes na América
Latina durante essas décadas tinha menos a ver com o "impe-
rialismo norte-americano" do que com as lutas políticas e so-
ciais internas ao continente e que se resumia no confronto entre
uma cultura política autoritária e essas minorias que buscavam
fundar uma modernidade burguesa baseada no indivíduo redi-
mido de sua origem de casta e, portanto, igualado numa demo-
cracia participativa e representantiva, esperando com isso pôr
fim aos privilégios plurísseculares."
Certamente esta tese não impede Bastian de reconhecer
que "o surgimento dos protestantismos de maneira sistemática
a partir da segunda metade do século 19 encontra sua explica-
ção na expansão do modelo de produção capitalista, em escala
contínental'", nem que, particularmente por volta de 1916, o
movimento missionário adota o lema do "panamericanismo" e
que, assim, "se abriu um caminho dificil" pelo qual "o protes-
tantismo se misturava com a penetração ideológica norte-ame-
ricana no continente"?
O valor desta hipótese reside no fato de reconhecer que a
entrada do protestantismo se explica fundamentalmente por
uma situação endógena à América Latina (a luta por uma mo-
dernização liberal) e que aí o protestantismo se alia com seto-
res latino-americanos que impulsionam tal projeto, principal-
mente (na tese de Bastian) com as "associações libertárias" de
distintos tipos (lojas maçónicas, associações operárias, grupos
de intelectuais, sociedades parapoliticas).
Se aceitamos em princípio essa hipótese (mais tarde fare-
mos algumas observações críticas), cabe fazer várias pergun-
tas. Em primeiro lugar, quem são os protestantes que assu-
mem essa "associação"? Dos estudos que têm sido realizados
ultimamente parece depreender-se que se trata, ao menos até
o fim do século 19 - que é o período mais importante para este
tema - de alguns missionários vinculados a igrejas mais "libe-
rais" (metodistas, presbiterianos e alguns batistas) e a alguns
"intelectuais" (alguns dos quais são ex-sacerdotes dissidentes)
que ingressaram cedo no protestantismo. O mais curioso é que
- como veremos - esses missionários têm uma formação
12 Rostos do protestantismo latino-americano

espiritual e teológica conservadora e pietista que combina mal


com a orientação secularista de seus "sócios" latino-america-
nos mais radicalizados. Cabe supor que a "associação" tenha
ocorrido com base numa coincidência em afirmar uma socie-
dade democrática - para a qual o modelo norte-americano
atraía a todos - e, provavelmente mais ainda, na necessidade
missionária de conseguir uma abertura para a liberdade de
consciência e de culto. Os dirigentes latino-americanos, por
sua vez, encontravam nessa aliança um apoio para sua luta
contra a oposição clerical às reformas que pretendiam introdu-
zir. Não me parece exagerado suspeitar que tenhamos aí mais
uma convergência de interesses do que uma semelhança de
idéias. Voltaremos a este tema no próximo capítulo. Em todo
caso, trata-se das elites de um e de outro lado, enquanto que,
no que diz respeito aos novos conversos que entravam no pro-
testantismo oriundos de setores margínaís da sociedade (à par-
te das repercussões no àmbito da liberdade religiosa), a "asso-
ciação" teve muito pouca importância.
Impõe-se, todavia, uma segunda consideração. Não en-
contrei estatísticas da população protestante na América Lati-
na por volta de 1840, mas as referências e informações dispo-
níveis nos fazem pensar em poucas dezenas de milhares, dos
quais a maíoria eram estrangeiros ou produto da escassíssima
obra missionária, quase reduzida à colportagem e a "tentati-
vas" de missão (Argentina, Brasil) muitas vezes frustradas. O
maior impacto no séc. 19 ocorre na segunda metade do século,
com as condições abertas pelos triunfos dos setores liberais.
Ainda assim, as estatísticas de 1903 mantêm-se abaixo de 120
mil pessoas'', Costuma-se dizer que a presença protestante
teve um peso muito maior do que seu número. Pode ser que
assim seja. Porém é curioso que isso só seja dito pelos protes-
tantes. Uma consulta aos trabalhos históricos dos autores "se-
culares" mais reconhecidos (tanto latino-americanos quanto
de fala inglesa) mostra uma ausência quase total de referên-
das à presença protestante. Mesmo aqueles, como Halperin
Donghí ou o norte-americano Burns, que dedicam seções à
discussão da problemática religiosa da época e à luta pela
tolerãncía religiosa, não atribuem ao protestantismo nenhum
papel como "sujeito" desses processos. É lapidar a conclusão
de John Iynch: "Não obstante, depois de um século de cresci-
mento, o protestantismo era um fenômeno raro e exótico na
América Latina. Na luta pelas consciências (minds), a fé cató-
lica tinha um rival mais forte [o positivismo)."9 Acaso vamos
o rosto liberal 13

querer atribuir tal vazio apenas a "preconceitos" compartilha-


dos por autores tão diversos? Não seria o caso, antes, que,
desafiados pela necessidade de "inserir-se na história" e de
reivindicar sua legitimidade latino-americana, alguns dos pri-
meiros historiadores ou intelectuais protestantes "inflamos"
participações ou ações limitadas e circunstanciais de protes-
tantes ou o reconhecimento de latino-americanos notáveis [Sar-
miento, Alberdi, Juárez, Bel1o, etc.), amiúde em citações seleti-
vas e descontextualizadas na totalidade da obra desses auto-
res, e as transformamos em chave hermenêutica para enten-
der uma história na qual nossa presença naverdade foimarginal?
Ironicamente, essa reivindicação voltaria como condena-
ção frente à crise do modelo ao qual se vinculava e, assim,
desencadearia sentimentos de mal-estar, culpa e auto-rejeição
numa geração posterior.

2. Que projeto liberal?


A historiografia protestante mais recente coincide em si-
tuar no Congresso Evangélico do Panamá (1916) um momento
decisivo na autoconsciência do protestantismo latino-america-
no. Com duas limitações, concordo com essa interpretação.
Em primeiro lugar, trata-se preponderantemente de um con-
gresso "missionário"; neste sentido, serve para delinear a con-
cepção e estratégia da empresa missionária, que não deve ser
confundida com a vida cotidiana, a piedade e a prática das
congregações evangélicas no continente. Em segundo lugar,
trata-se de um congresso realizado sob a hegemonia das deno-
minações históricas "liberais" (utilizo este termo aqui em sua
acepção norte-americana de "progressista" ou "avançado"), in-
fluenciadas em diversos graus pela teologia liberal e do evan-
gelho social dos Estados Unidos: metodistas, presbiterianos,
discípulos de Cristo, Convenção Batista Americana (do norte
dos Estados Unidos) e, mais ainda, pelos setores missionários
"liberais" dessas denominações. Não estão presentes, ou não
têm influência decisiva, as missões britànicas ou missões co-
mo a Convenção Batista do Sul, a Aliança Cristã e Missionária,
a Igreja do Nazareno ou os Irmãos de Plymouth, que já esta-
vam presentes na América Latina e desempenhariam um papel
muito importante no período seguinte.
Mesmo assim, o Congresso do Panamá é importante para
nosso tema: condensa uma reflexão das missões norte-amerí-
14 Rostos do protestantismo latino-americano

canas que, desde a Conferência Missionária de Edimburgo de


1910 (da qual foram marginalizadas as missões na América
Latina), vinha se desenvolvendo e adquirindo forma orgânica.
E lança uma série de iniciativas, particularmente o Comitê de
Cooperação para a América Latina (CCLA) como organismo
permanente de coordenação, com os programas de consulta e
de publicações, que frutificam em conselhos ou federações re-
gionais e diversas formas de cooperação. Por tudo isso convém
que nos detenhamos um pouco para situar o Congresso do
Panamá de 1916 sobre seu pano de fundo histórico, eclesial e
teológico.

1. Estados Unidos e América Latina desde meados do séc.


19. O presidente Monroe havia definido em 1823 sua doutrina,
resumida na expressão "a América para os americanos", de-
pois de diversas vacilações e supostamente como proteção con-
tra o risco de que a Europa consolidada da restauração de
1814 pretendesse recuperar posições na América Latina. Segu-
ramente, entretanto, a doutrina tinha um significado mais am-
plo: a reivindicação da América Latina como um espaço de
segurança, controle político e hegemonia comercial dos Esta-
dos Unidos. A isso se deve, sem dúvida, o fato de haver rejeita-
do a iniciativa da Grã-Bretanha de fazer essa declaração pro-
tetora em conjunto. As conseqüências não se fizeram sentir de
imediato: tanto a concentração na conquista do oeste quanto
as crises internas e a preocupação em consolidar o controle
territorial e "a conquista dos mares" (Mahan) ocupavam o pri-
meiro plano. Por volta de meados do século, porém, o velho
lema do "destino manifesto"lO é interpretado como critério da
relação com os vizinhos do sul. Negociada a anexação da Fló-
rida e das Luisianas, o controle do Caribe (particularmente
Cuba e Porto Rico) aparece como a meta imediata. E as estra-
tégias para incorporar o 'Iexas, o Novo México e a baixa Califór-
nia - já explícitas desde a década de 1820 - vão desde a
proposta de compra até a inserção da população e, finalmente,
a guerra em 1845.
A penetração econômica é mais lenta, e, até fins do século,
a Grã-Bretanha mantém a hegemonia econômica e comercial
na maior parte dos paises da América Latina. As mudanças,
contudo, iam favorecendo os Estados Unidos. E, ao fmal do
período colonial, o modelo mercantilista perdia altura na Amé-
rica Latina. Por algum tempo as revoluções de emancipação
sopraram em seu favor ao branquear e ampliar as relações
o rosto liberal 15

mercantis diversificadas que já existiam, fundamentalmente


com a Grã-Bretanha e a França. As elites crioulas que predo-
minaram nas primeiras décadas do século só tentavam trans-
ferir em beneficio próprio o monopólio comercial, o patronato
religioso e a estrutura social coloniais. Durante certo tempo
conseguiram fazê-lo sem maiores dificuldades. Em breve, po-
rém, tomou-se evidente que o modelo mercantil estava se es-
gotando e que era necessário avançar rumo a um modelo pro-
dutivo. Isso implicava incorporar uma nova força de trabalho
ao sistema econômico, o que significava estimular a imigração
e a educação da própria população. Mas tudo isso só podia vir
de mãos dadas com uma transformação da mentalidade, com
novos hábitos e valores: em suma, com a entrada na "moder-
nidade" ilustrada 11. E ai topam também com a resistência de
um Vaticano católico que assumiu a bandeira da luta contra a
modernidade liberal e que, pouco a pouco, recupera o controle
da desorganizada igreja latino-americana que ficara à deriva
após as lutas pela independência. A nova elite que vai assu-
mindo o poder - em longas e complexas lutas - a partir de
meados do séc. 19 representa essa nova visão. Seus sonhos
democráticos e progressistas e suas necessidades econômicas
vão aproximando-a do modelo norte-americano, e, embora ain-
da tenha reservas semelhantes às de seus antecessores, vai
"gravitando naturalmente" nessa direção, como George Adams
já o predizia em 1823 12 • A absorção econômica da América
Central ocorre já nas últimas décadas do século; a hegemonia
no Brasil e nos paises do norte da América do Sul cresce a
partir de fins do século, e o resto, só depois da Grande Guerra
(1914-18).
O rosto "conquistador" da política "panamerícana" dos Es-
tados Unidos desperta, como sabemos, reações distintas nas
elites governantes da América Latina. Alguns governos querem
conservar relações "européias" como freio de contenção; outros
propõem uma espécie de "panamerícanísmo" bolivariano. E
quase todos se manifestam - sinceramente ou não - contrá-
rios a intervenções armadas. Por volta da década de 1880 os
Estados Unidos começam a redefinir sua política em termos de
"panamertcanísmo'' e em 1888 convocam a Washington todos
os paises latino-americanos para participar da Primeira Confe-
rência Internacional de Estados Americanos. Gordon
Connell-Smith resume o problema de interpretação nas se-
guintes frases lapidares:
'Iem sido um mito cuidadosamente cultivado que o sistema in-
16 Rostos do protestantismo latino-americano

teramencano. estabelecido de toda forma como resultado da


conferência de Washington, se basearta nos ideais de Simón
Bolivar, e que Bolivar seria o pai do panamericanismo (...) 1àl
mito (0.0) não se baseia na realidade; antes, o mito cría sua
própría realidade. 13
Diferente é o "panamerícanísmo" que campeou nos con-
gressos continentais do Panamá (1825), de Lima (1847), de
Santiago do Chile (1856) e mais uma vez de Lima (1865) -
onde os Estados Unidos estiveram ausentes -, que se enten-
deram justamente como tentativas de criar defesas tanto fren-
te ao avanço norte-americano quanto ante a ameaça da Euro-
pa. A tensão entre essas duas concepções se evidencia na con-
feréncia de 1888: a oposição de vários governos (marcadamen-
te do governo argentino) frustrou várias propostas norte-ame-
ricanas (p. ex., a de uma união alfandegária), e o veto dos
Estados Unidos, por sua vez, rejeitou resoluções contrárias ao
"direito de conquista" ou à "cláusula Calvo", que teria impedi-
do estrangeiros de apelar a outras leis que as que estivessem
em vigor no país onde moravam (00') e faziam negócios. A con-
duta posterior dos Estados Unidos sob Theodore Roosevelt
(1901-1909), William 1àft (1909-1913) e inclusive WoodrowWil-
son (1913-1921) não fez senão confírmar os temores latino-
americanos. Esta última referência é importante porque o "dis-
curso" de Wilson tenta dar uma definição "liberal" do paname-
ricanismo.
Neste hemísférío, o futuro será muito diferente do passado (...)
Os estados latíno-amertcanos sofreram mais imposições [econô-
micas] (...) do que qualquer outro povo do mundo (...) Nada me
causa mais alegria do que pensar que em breve se emanciparão
dessas condições e que devemos ser os prímeíros a contríbuír
para tal emancipação (o .•) Devemos mostrar-nos amistosos e
entender seu interesse, esteja ele de acordo com o nosso ou não. 14
Mas quando o próprio Wilson destaca que, "como o comércio
não conhece fronteiras, (o .. ) a bandeira desta nação deverá ir
atrás deles [dos comerciantes norte-americanos] para derrubar
as portas das nações que não queiram se abrir" e, unindo a
ação à palavra, exerce pressão sobre a politica interna do Mé-
xico, incluindo intervenções armadas, e intervém no Caribe
(República Dominicana, Nicarágua e Haiti) , entende-se a con-
clusão do historiador norte-americano van Alstyne que fala de
"um forte cheiro de farisaísmo na diplomacia norte-americana" 15 •

2. Estamos assim em 1916. E na América Latina a inter-


o rosto liberal 17

pretação "latino-americana" do Congresso (evangélico) do Pa-


namá aparece escrita em português pelo distinto educador bra-
sileiro Erasmo Braga e em espanhol pelo professor uruguaio
Eduardo Monteverde (os documentos oficiais estão só em in-
glês) sob o titulo Panamericanismo: aspecto religioso. Ingenui-
dade? Cumplicidade deliberada? Convicção genuína? Provavel-
mente tudo isso e, ao mesmo tempo, nada disso. Na medida
(limitada) em que o protestantismo latino-americano desse pe-
riodo está formulado e representado pelo Congresso do Pana-
má, fica claro que trata-se de uma aliança explícita com "0
panamericanismo". Mas que panamericanismo? O do discurso
de Wilson ou o de suas ações? O da Conferência de Washing-
ton ou o dos "congressos continentais"? Está claro também
que os líderes reunidos no Panamá vêem o futuro dos países
latino-americanos como um "projeto liberal". Mas que projeto
liberal? Ao referir-se aos governos progressistas da segunda
metade do século 19, Halperin os distingue e divide em liberais
(México, Rio da Prata, Uruguai), césaro-progressistas (Vene-
zuela, Guatemala, América Central, Equador) e oligárquicos
(Colõmbia, Peru, Chile), além do Brasíl-", É claro que a proble-
mática neocolonial é entendida e assimilada de maneiras mui-
to diversas. O que representa o Congresso do Panamá nessa
diversidade?
Não posso me deter aqui num estudo detalhado da histó-
ria, dos conteúdos e das conseqüências desse evento. Há uma
vasta bibliografia na qual se podem encontrar as diversas
tnterpretações'". É, além disso, creio eu, um fato ambíguo no
qual se dão diferenças, divergências e contradições. Não obs-
tante, se se toma a opinião das pessoas que evidentemente
conduziram o processo preparatório e desempenharam um pa-
pel decisivo no desenvolvimento do congresso e na implemen-
tação de suas resoluções, é possível achar uma visão bastante
homogênea do protestantismo ilustrado que as inspira.
No que diz respeito ao "panamericanismo", quase não é
necessário argumentar em favor da rejeição do "intervencionis-
mo" armado. Na verdade, vários missionários já o haviam con-
denado explicitamente em relação com a guerra contra o Mé-
xico e as intervenções na América Central, e haviam denuncia-
do os interesses econômicos ocultos atrás delas. Dez anos de-
pois, uma missionária conservadora como Susan Strachan fa-
lava, nos conflitos da administração Coolídge com o governo
mexicano, do esforço "heróico" de Calles, que "merecia as ora-
çôes e a simpatia de todo cristão verdadeiro em sua luta gígan-
18 Rostos do protestantismo latino-americano

tesca". E acrescentava: "Ele se defronta com dois inimigos in-


saciáveis, sendo um deles a igreja de Roma e o outro as empre-
sas comerciais estrangeiras rivais que causaram os transtor-
nos políticos do México durante as duas últimas décadas, "18
'Iudo isso, entretanto, é para eles uma excrescência de uma
relação cultural, política e econômica que deve ser aberta, ge-
nerosa e fecunda para ambas as "Américas", Uma das seçôes
do informe do Congresso do Panamá'? reconhece que "os ofen-
sores foram agentes comerciais agressivos, o tipo de concessio-
nários que praticam pilhagens, gerentes e industriais cheios de
arrogância e insolência, turistas fanfarrôes, representantes di-
plomáticos e consulares malcriados e, ocasionalmente, missio-
nários complacentes", Considera, contudo, que a maioria do
povo norte-americano não é assim, E o informe, citando o
escritor Garcia Calderôn, convida a olhar, antes, "o espetáculo
dessa outra América, que desdenha o materialismo violento e
a cobiça imoral dos homens prátícos'w. Por isso se insiste na
necessidade de um maior contato mútuo, de uma relação que
destrua os preconceitos e dissipe "os temores de que a nova
doutrina [panamericanista] encerre o gérmen do predomínio
da águia do norte'v'. Não obstante, não vacila em ver na aber-
tura do Canal do Panamá ou na recém-inaugurada Estrada de
Ferro Panamericana fatos auspiciosos que se destacam como
penhor dessa nova relação e não parecem maculados pelo "ma-
terialismo violento" ou pela "cobiça",
Seria possivel multiplicar quase ad inlinitum as citações
que demonstram que, a partir dessa "ingenuidade", o trabalho
do CClA e de seus operadores na América Latina, pessoas
como Guy Inman, Stanley Rycroft e outros, coloca-se a serviço
de uma relação crescente entre os Estados Unidos e a América
Latina, em nivel missionário, educacional, social e econômico,
São precisamente a unidade e interconexão desses aspectos o
que caracteriza a versão de panamericanismo que eles promo-
vem, É evidente que as dimensões religiosa, educacional e so-
cial -especialmente de assistência - predominam sobre a
econômica, mas não se desligam dela, Só tentam "purificá-la"
denunciando suas corrupções, que atribuem a defeitos morais
de alguns de seus agentes e não a razões estruturais implícitas
no sistema ou na ideologia que a promove,
No protestantismo norte-americano nem todos comparti-
lham dessa "ingenuidade", Num artigo publicado em 1929,
Charles P, Miller, na época presidente da Federação Mundial
Cristã de Estudantes, fala da "invasão americana [dos Estados
o rosto liberal 19

Unidos) do mundo" e a vincula à nova "racionalidade" econô-


mica que assume o controle da totalidade da vida da nação
norte-americana. Duas breves citações resumem sua análise e
sua preocupação:
Seja qual for o futuro que está à nossa frente. o fato concreto é
que a estrutura fundamental (framework] nacional neste mo-
mento é a da produção e do comércio. É a máquina da indústria
e do comércio norte-americanos que nos dá a coesão nacional.
O sistema e a técnica que essa máquina gerou são as forças
mais dinãmicas de nossa vida nacional. Numa medida da qual
ainda não tomamos consciência. essas forças estão mudando
nossa mentalidade como indivíduos e nossos costumes como
sociedade (...) Este é. em resumo. o quadro dos Estados Unidos
visto pelas nações que sentem o pleno impacto de sua invasão
econômíca.ê-
A influência dessas idéias não se fará sentir no protestan-
tismo latino-americano até duas ou três décadas mais tarde,
mas o impacto do evangelho social. unido às preocupações
antiimperialistas introduzidas por socialistas e anarquistas na
discussão política latino-americana. desperta em alguns líde-
res protestantes latino-americanos certos questionamentos da
ênfase "panamerícanísta" do CCIA. Voltaremos a este ponto na
seção 3.

3. As incoerências. Segundo minha interpretação, as in-


coerências que se percebem no Panamá - e que se transfor-
marão em contradições mais abertas em Montevidéu (1925) e
Havana (1929) - provêm de duas fontes. A primeira é teológica
e tem a ver com uma dupla influência na formação acadêmica
e na orientação espiritual dos dirigentes. É verdade. como diz
Bastian, que muitos dos líderes missionários fizeram seus es-
tudos nas universidades liberais da Nova Inglaterra (Harvard,
Yale. Columbia) e ai absorveram elementos das ideologias libe-
rais progressistas, que em parte interpretaram teologicamente
com o evangelho social que se insinuava em suas igrejas desde
o começo do século. Por outro lado. porém. o movimento mis-
sionário ao que se somam está fortemente marcado pelo "se-
gundo despertar", com sua soteríología individualista e subje-
tiva: a pessoa de John R MoU, talvez a figura simbólica mais
importante em todo esse movimento, é a ilustração mais cabal
dessa posição "conservadoramente progressista". Se a visão
liberal os leva a esboçar um modelo missionário socialmente
comprometido, a soteríología missionária os obriga a aplicar de
20 Rostos do protestantismo latino-americano

imediato a surdina. A discussão surgida no Panamá em tomo


ao Informe da Comissão de Mensagem, e que levou a uma
correção do tom teológico ligeiramente liberal e progressista da
proposta da Comissão, ilustra essa tensão, à qual aludiremos
também no próximo capítulos',
A segunda razão da incoerência surge da sobreposição de
dois modelos democráticos debatidos na época entre os teóri-
cos politicos norte-americanos. C. B. MacPherson os caracteri-
zou muito bem ao distinguir as duas visões "liberais": "a demo-
cracia como proteção" e "a democracia como desenvolvimento".
A primeira começa quando se dá por assentada uma sociedade
capitalista regida pelo mercado e, por conseguinte, por um
certo conceito de ser humano e de sociedade: o ser humano
como "maxímízador de utilidades" é definido como o racional-
mente mais eficiente, ou seja, o que obtém o maior ganho com
a maior economia de esforço. A sociedade não é senão uma
soma de indivíduos com interesses conflituosos, já que cada
um persegue essa "maxímízação'', inevitavelmente, em alguma
medida, em detrimento dos outros. A formulação filosófica des-
sa visão foi o utilitarismo, expresso por Bentham como "o cál-
culo de felicidade", a maior felicidade do maior número. Como,
porém, medir a felicidade? Visto que é necessária uma medida
quantitativa, o que aparece imediatamente é o dinheiro: "O
dinheiro é o instrumento com o qual se mede a quantidade de
dor ou de prazer" (Bentham). Qual poderia ser, pois, a função
do estado, das leis e do governo senão a proteção da "equani-
midade" (fairness) desse processo social? Para tanto, devem
assegurar o funcionamento livre e sem travas do mercado, e
este garantirá, na luta da competitividade, a subsistência, a
abundância, a igualdade e a segurança. O governo é o "árbitro"
que impede os "golpes baixos". O voto, secreto, universal e
freqüente, é o instrumento suficiente que assegura que o esta-
do cumpra esse papel (em principio, tanto Jeremy Bentham
quanto James Mill pensavam num voto limitado ou qualifica-
do, mas depois se convenceram de que os problemas que gera-
ria tomavam preferível um voto universal).
Desde meados do século 19, entretanto - e isto é impor-
tante para nosso tema -, aparece uma nova visão democráti-
ca. A classe operária faz sentir seu peso, tanto pelo espetáculo
de sua miséria quanto pela força de seu protesto. John Stuart
Mill articula sua crítica da seguinte maneira:
Confesso que não me alegra o ideal de vida sustentado pelas
o rosto liberal 21

pessoas que crêem que o estado normal dos seres humanos seja
o da luta para vencer as dificuldades: que os empurrões. cotove-
ladas e pisadelas no próximo sejam o destino mais desejável
para a humanidade ou que não sejam senão meros sintomas
desagradáveis de uma das fases do progresso índustríal.ê"
Por conseguinte. uma nova geração de intelectuais - John
Stuart Mill, John Dewey, McIver - propõe uma concepção
diferente. O humano é um ser que procura melhorar como ser
moral e que não quer apenas acumular, mas desenvolver-se. A
sociedade. por sua vez, é um processo em busca de maior
liberdade e igualdade. Por conseguinte. a meta é "o avanço da
comunidade no tocante ao intelecto, à virtude, atividade práti-
ca e eficácia" (Stuart Mill). A partir dessa posição, critica o
modelo de seu pai (James Mill), mas não rejeita o capitalismo.
Como avançar, então. rumo a uma sociedade diferente? A per-
gunta toma-se-lhe difícil: propõe qualificações do voto que as-
segurem uma melhor distribuição dos recursos, a criação de
cooperativas, os partidos políticos representativos. John De-
wey dá uma contribuição decisiva: o caminho é a educação. O
objetivo é "desenvolver uma geração melhor". Esta é a linha
que predomina no Panamá em 1916.

4. O projeto educacional missionário. Não é necessana


uma grande perspicácia para perceber que é na educação. mui-
to mais do que no nível político e social, que o protestantismo
missionário liberal encontra uma possibilidade de integrar seus
diversos fios: isso corresponde a uma tradição protestante que
pode ser remontada até a Reforma e que desempenhou um
papel fundante no protestantismo norte-americano: a ênfase
na educação e na criação de escolas; oferece uma mediação
inobjetável para com o social sem obrigar a pronunciar-se so-
bre regimes políticos ou definições econômicas; permite recon-
ciliar a ênfase "conversíonísta" com a preocupação ética e a
noção liberal de um desenvolvimento pessoal - "uma educa-
ção que forma caráter" é uma frase que permeia os programas
educacionais protestantes em todo o continente - e oferece
um amplo campo de colaboração com as novas elites ilustra-
das da América Latina, obcecadas com a "redenção do povo"
mediante a educação. As duas vertentes de aproximação ao
tema da educação que se esboçam no projeto missionário es-
tão magnificamente ilustradas nas discussões registradas no
volume 1 do informe do Panamá-", De um lado estão os que
encaram a missão educacional como um caminho para a decí-
22 Rostos do protestantismo latino-americano

são religiosa; do outro. os que esperam a conversão como um


desenvolvimento do crescimento "integral" do aluno em conta-
to com a educação de uma escola evangélica. Uns e outros.
porém. coincidem - ao menos nessa etapa da história do pro-
testantismo no continente - em que aí se cumprem os diver-
sos propósitos da "colaboração missionária" para a redenção
do povo e a construção de um novo nuturo para as nações
latino-americanas. Jether Pereira Ramalho resumiu muito bem
- referindo-se ao Brasil- a inspiração do projeto educacional
protestante em toda a América Latina:
A proposição central deste trabalho [sua pesquisa) é demonstrar
que os princípios e as características da prática educativa intro-
duzidas no Brasil. no final do século passado e nas primeiras
décadas do atual, pelos colégios oriundos das denominações
históricas do protestantismo, provenientes de missões norte-
americanas, só podem ser interpretados na medida em que são
rederidos: à versão ideológica que os inspira mais profundamen-
te e lhes dá sentido e às condições estruturais da nova socieda-
de em que vão atuar.ê"

3. Renunciar à herança liberal?


1. O fracasso do "projeto liberal": Rubem Alves o chamou
de "projeto utópico" do protestantismo na América Latina e
descreveu seu naufrágio no "protestantismo da reta doutrína'V.
"Utópico" pode ter aqui o significado positivo de um "princípio
protestante" libertador que - como disse Tillich - foi incapaz
de abrir um caminho para a cultura ocidental que a levasse
além da crise da Grande Guerra. E pode também ser lido no
sentido negativo: uma expectativa sem fundamento na realida-
de. destinada a espatifar-se contra esta. No primeiro sentido -
assim o leram os apologistas do protestantismo latino-ameri-
cano - sugerimos que suas conquistas foram historicamente
muito pouco significativas.
Provavelmente deve-se concluir que. como projeto históri-
co concreto para a América Latina desde meados do século 19
e por mais de um século. o projeto fracassou. Olhando retros-
pectivamente. o que sempre tem a sabedoria dos fatos irrepa-
ráveis. é possível perceber que o fracasso era inevitável. Em
primeiro lugar. por causa da ambigüidade de uma postura
teológica que não permitiu aos dirigentes missionários. em sua
maioria. integrar o projeto em sua autocompreensão teológica
o rosto liberal 23

e por causa de uma insuficiência analítica que não percebeu a


incompatibilidade entre o projeto da "democracia do desenvol-
vimento humano" e a razão econômica e política que ditava o
funcionamento do "panamericanismo" dos Estados Unidos. Em
segundo lugar, porque não chegou a penetrar mais do que em
pequenos grupos dos membros de suas próprias igrejas e me-
nos ainda nas igrejas das correntes de santidade e fundamen-
talistas que entraram em grandes ondas na América Latina já
desde o final do século e de alguma maneira impregnaram todo
o protestantismo latino-americano. Em terceiro lugar - e fun-
damentalmente - porque o projeto em si era inviável na Amé-
rica Latina: as próprias elites que o auspiciaram topavam com
impossibilidades devidas à estrutura social e à sua própria
ambivalência e acabaram derrotadas ou absorvidas no modelo
capitalista dependente.
'Ialvez os primeiros anúncios da crise se fazem sentir por
volta de 1930 e têm importància para nosso tema. Com efeito,
a crise do capitalismo mundial de 1929 teve conseqüências
decisivas para a vida social, econômica e política da América
Latina. A recessão econômica expulsou milhares de trabalha-
dores rurais, que buscaram um espaço nas cidades ou nos
novos centros mineradores e industriais. O desemprego, a ano-
mia social e a pobreza das massas despertaram o protesto
social e abriram as portas aos movimentos socialistas. A res-
posta política do sistema foi o "populismo": a tentativa de gerar
uma mudança social mediante uma "aliança" de setores popu-
lares e elites culturais e econômicas latino-americanas, dentro
das estruturas do sistema capitalista.
A corrente protestante mais tradicional, ainda sob o im-
pulso do movimento missionário, tentou encontrar sua identi-
dade e definir sua missão nessa nova situação como - usando
os termos de Bastian - "uma via humanizante que instaurava
os valores fundadores numa sociedade dístorcída'?". "A inde-
pendência política", escrevia em 1942 o destacado missionário
presbiteriano W. Stanley Rycroft, "não trouxe liberdade para o
povo, no verdadeiro sentido da palavra. Essa liberdade ainda
precisa ser conquistada, e está intimamente ligada à difusão
do cristianismo evangélico. "29 Essa visão otimista se repete nos
escritos de alguns dos jovens líderes protestantes da América
Latina: p. ex., os mexicanos Alberto Rembao e Gonzalo Báez-
Camargo, o brasileiro Erasmo Braga, o argentino-norte-ameri-
cano Jorge P. Howard e missionários como Samuel Guy Inrnan
e Juan A. Mackay. Entre a brutalidade de um capitalismo
24 Rostos do protestantismo latino-americano

desalmado e o materialismo de um comunismo que pregava a


luta de classes, esses líderes viram o protestantismo como a
guarda avançada dessa democracia verdadeira, socialmente pro-
gressista, modernizante e participativa da qual falamos na se-
ção precedente. A ênfase do "evangelho social" na redenção
social e a dos evangélicos na transformação da pessoa pare-
ciam, assim, encontrar sua unidade.
Nessa linha foram criados, nas décadas de 1930 a 1950,
"conselhos" ou "federações" de igrejas na maior parte dos pai-
ses do continente. Seus propósitos declarados eram a coopera-
ção na publicação de literatura, a representação comum ante
as autoridades públicas, a defesa da liberdade religiosa e a
cooperação na evangelização e na educação cristã. Indicamos
acima quais eram a teologia e a ideologia dominantes. Um
vigoroso programa de publicações difundiu traduções de al-
guns dos clássicos antigos e moderno da teologia protestante;
fundaram-se seminários interdenominacionais em Cuba, na
Argentina e em Porto Rico e renovaram-se os seminários deno-
minacionais de outros paises, nutrindo uma geração de líderes
latino-americanos com mentalidade ecumênica e preocupação
social que haveriam de emergir nas décadas de 1950 e 1960. A
primeira Conferência Evangélica Latino-Americana (I CELA),
convocada e orientada a partir do próprio continente, reúne-se
em Buenos Aires em 1949.
Entre os líderes desse protestantismo não faltam aqueles
que avançam mais um passo com uma critica decidida ao
modelo burguês capitalista e uma simpatia explícita pelo so-
cialismo democrático. O próprio Mackay critica um informe do
Conselho Missionário Internacional "que reproduz os desejos e
interesses da sociedade burguesa ocidental que vê o cristianis-
mo como a alma de sua cultura, mas não como seu juíz">'.
Essa atitude critica aparece nos movimentos ecumênicos de
jovens que, em 1941, se juntam como União de Ligas Juvenis
Evangélicas (UIAJE), cujo primeiro congresso adota como le-
ma "Com Cristo, um mundo novo" e conclama a uma luta
contra "o presente sistema capitalista baseado na opressão e
na desigualdade económica" e a favor de "um sistema de coo-
peração". Opções semelhantes aparecem nos documentos das
décadas de 1930 e 1940 das assembléias da Igreja Metodista
do Chile, do Uruguai e da Argentina. Na década de 1940 apa-
recem os "movimentos estudantis cristãos" inspirados pela Fe-
deração Mundial Cristã de Estudantes, orientada principal-
mente a partir da França nessa mesma linha e que posterior-
o rosto liberal 25
mente, junto com a participação no movimento ecumênico do
pós-guerra e a partir de uma teologia mais européia, geraria as
novas lideranças das décadas de 1950 e 1960.
Enquanto isso, outra ala do protestantismo, nascida dos
movimentos de santidade do final do séc. 19 nos Estados Uni-
dos, seguiria uma direção diferente. No próximo capítulo ten-
taremos analisar esse desenvolvimento e as tensões que dele
se originaram. Agora, porém, precisamos dar mais um passo
na configuração da fisionomia do "rosto liberal". 'Iodo o mundo
coincide em situar por volta de 1960 um momento critico que
Prien chama de "a crise dos estados oligárquicos nacionais",
Dussel de "a crise dos estados independentes" e "a crise da
libertação" e Bastian de "a crise do capitalismo dependente:
entre a resistência e a submissão". A promessa do projeto
desenvolvimentista no qual o protestantismo - e boa parte do
"mundo ilustrado" latino-americano - havia depositado suas
esperanças se desvanece no fracasso dos planos de ajuda da
Aliança para o Progresso de Kennedy e dos projetos do Conse-
lho Econômico para a América Latina (CEPAL). Fica claro que
o "socialismo utópico" que campeia nos documentos da ULAJE
- e nos movimentos universitários vinculados à "reforma uni-
versitária" - requer uma política mais radical e uma funda-
mentação ideológica mais sólida. O rosto faminto das grandes
maiorias mostra-se nos cinturões de miséria que começam a
formar-se em tomo das grandes capitais. Faz-se necessária
uma nova forma de analisar a dinàmica das sociedades "peri-
féricas". A "teoria [sócio-econômica] da dependência" propõe
uma versão própria da análise marxista, mudanças radicais
das estruturas da relação entre mundo desenvolvido e mundo
dependente e um projeto socialista adequado às condições do
'Ierceíro Mundo.
No ambiente religioso, a consciência dessa crise repercute
profundamente na América Latina. A renovação teológica e
eclesial do Vaticano II é relida na ótica da "transformação da
sociedade" na Assembléia Episcopal de Medellín em 1968 e a
preocupação do Conselho Mundial de Igrejas (CMI) com "os
países em vias de desenvolvimento" converte-se em "transfor-
mação estrutural" na Conferência de Genebra de 1966, onde a
delegação latino-americana desempenhou um papel importan-
te, e na América Latina no movimento "Igreja e Sociedade na
América Latina' (ISAL) de 1960. A nova liderança que surge
assume essa perspectiva, apoiada numa visão teológica de ins-
piração barthiana, que procura combinar uma teologia bíblica
26 Rostos do protestantismo latino-americano

de redenção numa ótica histórica com um chamado à militân-


cia ativa nos movimentos sociais e políticos de libertação. No
protestantismo, os nomes de Valdo Galland, Jorge César Mot-
ta, Richard Shaull, Emílio Castro, José Míguez Bonino e outros
abrem o caminho que Rubem Alves, Julio de Santa Ana, Gon-
zalo Castillo, Jether P. Ramalho, Raúl Macín e outros, de diver-
sas maneiras e com matizes diferentes, tentarão desenvolver.
Do conjunto dessas linhas - e de desdobramentos análogos
no catolicismo - nasce por volta do fmal da década de 1960 a
chamada "teologia da Iíbertação'?".

2. O que fazer com esse fracasso? A geração de 1960 per-


cebe claramente o fracasso do modelo desenvolvimentista e,
ante o nó górdío representado pelo entrelaçamento do ideal
humanista e do capitalismo dependente, recorre à técnica de
Alexandre Magno: desembainha a espada e corta o nó: liberda-
de, democracia, desenvolvimento tomam-se termos pejorati-
vos; uma interpretação unilateral da "teologia da crise" e uma
aplicação igualmente parcial da análise marxista alimentam o
que chamarei, mais modestamente, de "estratégia da ruptura".
Sem dúvida, fatores psicológicos também intervêm na dureza
com que a ruptura se manifesta em alguns setores do protes-
tantismo (e também do catolícísmo): a tomada de consciência
de que a busca de justiça a que a realidade humana do conti-
nente e a fé cristã os haviam impulsionado fora ideologicamen-
te manipulada num sistema de opressão produz uma crise
pessoal justamente nas pessoas mais lúcidas e comprometidas
dessa geração. O núcleo central dessa crise, porém, é dado
pelos elementos objetivos que indicamos. Descartado o "pro-
testantismo liberal" e vedado teológica e ideologicamente o "pro-
testantismo conservador", ocorre nesse protestantismo uma
crise eclesial e teológica que ainda não superamos.
É essa a única resposta possível ao "fracasso" histórico do
projeto liberal? A partir de setores do pás-modernismo, e ironi-
camente por razões opostas às da geração de 1960, esta parece
ser a única possibilidade. Acabou-se a época dos "grandes re-
latos" que assinalavam a senda da história e inspiravam a
utopia do progresso; as ideologias morreram e chegamos ao
fím da história. 'Iarnbém aqui a estratégia de Alexandre é a
única proposta para resolver o problema da crise da moderni-
dade liberal. 'Ialvez seja mais penoso ainda o estado de ânimo
de cinismo desesperançado que alguns "revolucionários" da
década de 1960 parecem assumir ante o poder avassalador e
o rosto liberal 27

aparentemente invencível do neoliberalismo e da "nova ordem


econômica internacional".
É necessário reconhecer que a crise do modelo desenvol-
vimentista e a instalação do neoliberalismo implicam graves
suspeitas ante toda tentativa de recuperar a "herança huma-
nista" que acompanhou e freqüentemente legitimou os proje-
tos desenvolvimentistas. Surgem perguntas como: por que o
projeto "liberal" se deixa absorver tão facilmente e se coloca a
serviço dos interesses de uns poucos? Vale a pena fazer o
esforço de separar os aspectos "humanistas" do projeto refor-
mista e tentar reintegrá-los em termos de uma "opção pelos
pobres"? Não há uma contradição inerente à totalidade ideoló-
gica que o liberalismo representa e que impossibilita essa
recuperaçãoê-? Será que o liberalismo alguma vez foi "demo-
crático"?
Há, entretanto, também outras perguntas igualmente ur-
gentes. Em algum momento, Gustavo Gutiérrez caracterizou a
teologia da libertação dizendo que "a meta é a liberdade; a
libertação é o caminho". Se a liberdade é sempre - historica-
mente, ao menos'< - "um alvo móvel" e a libertação - tam-
bém hístorícamente - um caminho sem fim, temos direito de
desvincular uma da outra? Ou, antes, é possível desvinculá-
las sem desvirtuar a libertação que buscamos? Como crentes,
a "liberdade" que Jesus Cristo nos oferece gratuitamente não
é a raiz e o sentido de nossa participação na históríaê-? É
possível renunciar à "utopia da liberdade" sem destruir a espe-
rança e tirar de qualquer busca de libertação sua qualidade
humana?
Pessoalmente, proponho a "estratégia da paciência": o es-
forço de "desatar os nós", tentar desenredar os fios e preparar-
nos para voltar a tecer, no tear de um momento histórico
distinto, uma compreensão social e teológica nova.
Para tanto, creio que é indispensável recuperar alguns dos
fios do tecido da modernidade. Creio, em outras palavras, que
o chamado "projeto liberal" representa o encontro e a interação
de fatores diferentes e parcialmente divergentes que geram uma
tensão não resolvida ao longo da história moderna. Com efeito,
não é novidade para ninguém que a "modernidade" herda uma
complexa série de tradições nas quais se misturam de diversas
maneiras os "grandes relatos" bíblicos e das culturas mediter-
râneas, que, por sua vez, em certas ocasiões assumem e reín-
terpretam vários elementos. A variedade e multiplicidade de
28 Rostos do protestantismo latino-americano

sentidos dessa herança clássica são ilustradas. p. ex .. na for-


ma diversa em que ela é "recuperada" pelo Renascimento ita-
liano e pelo da Europa do Norte. Thdo isso se processa no novo
molde cientifico, tecnológico e econômico que vai se forjando
na Europa nos séculos 16 a 19, até desembocar no capitalismo
industrial burguês. As grandes palavras de sua ideologia co-
brem as ambigüidades dessa história. Os grandes lemas da
modernidade - a razão. a liberdade, o indivíduo, a democracia
- são, de fato, entendidos e vívídos de maneira diversa - e,
mais ainda, ambígua - nesse longo processo histórico gestado
desde o fmal da Idade Média. Assim, a razão é a capacidade
humana de discernir e discernir-se a partir de si mesma e sem
se submeter a uma autoridade externa, e é também a raciona-
lidade técnica que Vai resolvendo os problemas, a serviço da
"maxímízação'' da produção e da utilidade. A liberdade é o
direito inalienável de cada ser humano de dispor de si mesmo,
a suma dos direitos definidos secularmente na Carta da Revo-
lução Francesa e, em termos teístas, na norte-americana, e é,
ao mesmo tempo, o direito "sagrado" à propriedade que só é
protegido no mercado livre da competitividade. O indivíduo é a
pessoa-sujeito que assume sua singularidade e responsabili-
dade sem se perder na coletividade, e é também o indivíduo
auto-suficiente que defende sua privacidade como uma forta-
leza dentro da qual se protege de todos os demais. A sociedade,
por conseguinte, pode ser entendida como o "pacto" defensivo
dos interesses contrapostos dos indivíduos (como diria Hob-
bes) ou como uma estrutura humana insita que conduz à
busca do bem comum; a democracia é o governo "representa-
tivo" que assume e substitui a sociedade, e é, ao mesmo tem-
po, a organização "partícípatíva" na qual a comunidade organi-
za sua convívêncía.
Os "e", "também" e "ao mesmo tempo" do parágrafo ante-
rior poderiam ser multiplicados. Mas não constituem nem vi-
sões equilibradas nem elementos integrados numa sintese. São
motivos em conflito que disputam o controle da superestrutu-
ra ideológica das sociedades e, inclusive, convivem conflituosa-
mente num autor ou em autores muito próximos, como bem
se pode perceber numa comparação cuidadosa, p. ex., entre A
teoria dos sentimentos morais (1759) e A riqueza das nações
(1776) de Adam Smíth, ou na já mencionada divergência na
concepção de liberalismo entre James Mill e seu filho John
Stuart Mill. Na crescente maré do triunfo da (suposta) liberda-
de econômica, da razão técnica, do individualismo competitivo,
o rosto liberal 29

da democracia puramente eleitoral, naufragaram as utopias


humanistas desde Kant até os socialistas utópicos - e pode-
ríamos dizer: até Marx!
Na Améríca Latina, o protestantismo liberal ficou preso
nessa tragédia de duas maneiras: seu discurso "liberal" foi
empregado - na escassa medida de seu peso social - como
legitimador do capitalismo interno e externo mais selvagem e,
ao mesmo tempo, reinterpretado em suas próprias fileiras co-
mo "ideologia" da ascensão social ou como "teologia da prospe-
ridade". Isto é o que percebemos com razão na década de 1960.
Acaso isso significa que os protestantes de hoje devemos repu-
diar essa herança? Minha resposta é: não. Não, porque é a
herança protestante da liberdade, da identidade própria e da
responsabilidade da pessoa na solidariedade da comunidade,
da autonomia da razão humana (da razão da vida e do amor
ativo) na construção da cidade terrena, da racionalidade da
esperança numa história da qual Jesus Cristo é Senhor. O que
cabe é a re-interpretação dessa história como história em bus-
ca de um futuro, justamente como resposta à negação de todo
futuro, implícita e explícita na ideologia e na política do "Iim da
história". Reclamamos a herança do protestantismo utópico da
qual fala Rubem Alves, mas a reclamamos reinterpretada e re-
vivida em nosso tempo, com os marginalizados de nossas so-
ciedades e, a partir deles, como protesto frente ao suposto "fim
da história" e como programa na construção de um novo pro-
jeto histórico de nossos povos.
Capítulo 2
O rosto evangélico do protestantismo
latino-americano

1. Um protestantismo evangélico
1. Os iniciadores do protestantismo "crioulo". Eles são
missionários - em sua maioria norte-americanos ou brítâní-
cos (entre estes vários escoceses) - que chegam à América
Latina a partir da década de 1840. É notável perceber que, não
obstante sua diversidade confessional - metodistas, presbite-
rianos e batistas em sua maioria - e de origem - americana
e britãnica -, todos compartilham um mesmo horizonte teoló-
gico, que se pode caracterizar com o termo evangélico - utili-
zado aqui em sua acepção anglo-saxã! -, que Marsden define
muito bem dizendo que os evangélicos são "pessoas que pro-
fessam uma total confiança na Bíblia e se preocupam com a
mensagem da salvação que Deus oferece aos pecadores por
meio da morte de Jesus Cristo", e acrescentando: "Os evangé-
licos estavam convictos de que a aceitação sincera dessa men-
sagem do 'evangelho' era a chave para a virtude durante a vida
presente e para a vida eterna no céu e que sua rejeição signi-
ficava seguir o caminho largo que termina nas torturas do
inferno.'?
'Iodos podemos reconhecer nesse resumo a teologia do
pietismo e do Grande Despertar (ou avivamento) do séc. 18 que
associamos aos nomes de Wesley e Whitefield na Grã-Bretanha
e de Jonathan Edwards nos Estados Unidos e que permeia a
maior parte do protestantismo anglo-saxão e seguramente a
totalidade de seu etos missionário. Este é o pano de fundo
teológico da missão à América Latina em suas origens na se-
gunda metade do séc. 19. Porém essa teologia havia sofrido,
desde meados do século, influências significativas que vale a
pena salientar. Se fixamos - mais ou menos arbitrariamente
- o ano de 1870 para fazer um balanço, teriamos de anotar ao
menos os seguintes dados:
O segundo despertar, na década de 1850 (que podemos
associar com nomes como os de Iyman Beecher, TImothy Dwight
32 Rostos do protestantismo latino-americano

e sobretudo Charles Finney), que é continuado com a grande


cruzada evangelizadora e missionária de Moody, tem caracte-
rísticas próprias:
a) Corresponde ao crescimento da população urbana, pe-
netra nos colleges e nas universidades e em setores comerciais
da classe média e tem um prestigio religioso que não havia sido
alcançado pelo "avivamento" rural ou de fronteira.
b) 'Ieologícamente supera - o que já se percebe no próprio
Jonathan Edwards - o conflito entre a tradição calvinista e a
arminiana: na prática, admite-se um certo livre-arbítrio (seja
qual for a forma em que é justificado teologicamente) e uma
possibilidade de crescimento na santidade.
c) Ao individualismo já acentuado do primeiro despertar
acrescenta-se um alto grau de subjetivismo: alguém chamou a
atenção para a diferença entre a hinódia do "primeiro desper-
tar", centrada na admiração pelo aspecto inefável da graça (p.
ex., "Mil vozes para proclamar", de Charles Wesley, e até Ama-
zing grace, de John Newton), e a do segundo, que se detém na
descrição dos maravilhosos sentimentos que essa graça desperta:
No seio de minha alma uma doce quietude
se espalha inundando meu ser,
uma calma infinita que só poderão
os amados de Deus conhecer.
Paz, paz, que doce paz
é aquela que o Pai nos dá;
peço-lhe que inunde para sempre meu ser
com suas ondas de amor celestial [e de pazl."
d) O despertar religioso e a reforma social (revival and
reform) são vistos como estreitamente aliados: os evangelistas
da década de 1850 assumem, junto com a causa da moraliza-
ção da sociedade, a da abolição da escravatura e a do combate
à pobreza.
Concluída a guerra civil norte-americana (1865), o país
entra numa era de otimismo que contagia também o evangeli-
calismo. Os Estados Unidos aparecem agora como um modelo
destinado a inspirar o mundo inteiro: o despertar evangélico,
os avanços sociais e a educação se apóiam e sustentam mu-
tuamente. Nas palavras de um orador na reunião internacio-
nal da Aliança Evangélica Mundial (Nova Iorque, 1873), o ver-
dadeiro cristianismo
(...) educa os jovens, alimenta o faminto, cura o enfermo. Rego-
o rosto evangélico 33

zíja-se com o crescimento dos elementos da civilização material.


Sustenta. porém. que todos esses elementos são subordinados.
O método dívino de melhoramento humano começa no coração
dos homens mediante a verdade evangélica, e dali se expande
para fora até renovar a totalídade.?
Não me parece necessário provar que são essa teologia e
essa piedade que alimentam em grande parte a visão dos pri-
meiros missionários e que delas se nutrem os primeiros con-
versos. Muitos dos testemunhos destes últimos são bastante
estereotipados e seguem uma espécie de "estrutura" que cor-
responde ao esquema básico da "teologia soteríológíca evangé-
lica". Como mostra, compare-se um "resumo" da mensagem
com o testemunho de uma mulher convertida, e atente-se ao
mesmo tempo para o caráter polêmico e o conteúdo "evangéli-
co" que ambas as citações complementam:
O cristão evangélico crê: que Jesus veio ao mundo para salvar
os pecadores. Que Jesus os salva se eles querem ser salvos.
'Iodos nós somos pecadores; logo. ele quer salvar a todos. Não há
outro Salvador. Jesus tem todo o poder. A igreja não pode salvar
uma alma. porque é necessário que a pessoa renasça. 5
"Com sua morte Cristo me abriu as portas do céu. Seu san-
gue derramado lavou todos os meus pecados. Jesus pagou tudo
o que eu, pecadora, devia à justiça de Deus. É por sua mediação
que alcanço o perdão. e não por meio do confessor..."6
Sem dúvida, tanto na mensagem dos missionários quanto
na consciência das novas congregações aparecem diferenças
que se devem à peculiar situação desse "campo missionário".
Uma é a prioridade da polêmica anticatólica que ocupa o maior
espaço nas publicações evangélicas da época, tanto repetindo
os argumentos clássicos da controvérsia dos séculos 17 e 18
quanto denunciando os casos de corrupção. obscurantismo ou
autoritarismo da Igreja Católica Romana ou de seus represen-
tantes. Por isso se faz necessário munir os novos conversos de
conhecimentos e argumentos para esse conflito, de modo que
há uma ênfase muito grande no estudo da Bíblia e das doutri-
nas fundamentais do protestantismo. Outra é a peculiar im-
portância que se dá à Bíblia, que é exaltada ao mesmo tempo
como "arma" na "luta contra o erro" e como um meio indispen-
sável para a evangelização. Em ambos os sentidos, a Escritura
é concebida como tendo um "poder", uma certa eficácia intrín-
seca que repreende, convence e converte. Finalmente, a neces-
sidade de encontrar o espaço social para sua vida e seu desen-
34 Rostos do protestantismo latino-americano

volvimento pessoal e comunitário obriga o crente a preocupar-


se com as condições políticas que assegurem essa possibilida-
de: liberdade religiosa, secularização de serviços como a edu-
cação, o matrimõnio ou os cemitérios, não-discriminação no
trabalho e na educação e inclusive preocupação com a condi-
ção dos mais pobres. Porém deve-se notar que essa "dimensão
pública" não é integrada de maneira direta no horizonte de sua
fé: ela fica como "uma conseqüêncía" derivada ou como uma
esfera "independente" em que se deve dar um testemunho de
honradez e responsabilidade. Quando as condições sociais não
mais parecem exigir essa defesa das liberdades, ela facilmente
se desprende dessas posições.

2. Mudanças no horizonte teológico evangélico. As idéias e


atitudes centrais dessa teologia evangélica modelam a fé e a
vida das congregações que vão se formando ao longo dessas
décadas e dominam o protestantismo crioulo pelo menos até a
Grande Guerra. Pouco a pouco, entretanto, irão se insinuando
diferenças, ainda só larvadas em 1916, cujos efeitos têm mar-
cado até hoje o protestantismo latino-americano. Para enten-
dê-las temos de voltar ao cenário norte-americano. Ali, o pro-
testantismo "evangélico" se confrontava, desde o último terço
do século, com os desafios de uma cultura urbana reclamada
pelo secularismo, de uma cíêncía que colocava em xeque "ver-
dades" cristãs consideradas fundamentais e do liberalismo teo-
lógico - chamado genericamente de "modernismo" - que pa-
recia ameaçar a confiabilidade da Escritura e elementos cen-
trais da crístología e soteríología evangélica. Como responde o
protestantismo "evangélico" a esses desafios? Examinemos bre-
vemente três aspectos: a "piedade" evangélica, a ética social e
a "defesa da fé".
a) O que caracteriza a piedade evangélica nas últimas dé-
cadas do século 19 é "o movimento de santidade", que Mars-
den chamou de "a vida vitoriosa". Combinam-se aqui, como
salientávamos acima, a tradição wesleyana da santificação e
perfeição cristã e a tradição calvinista da luta permanente con-
tra o pecado. Uma e outra, porém, coincidem em afmnar um
"batismo do Espírito Santo" que permite ao crente libertar-se
do poder do pecado e viver uma vida cristã "vitoriosa". "Ser
repleto do Espírito", ser "totalmente consagrado" e expressões
semelhantes constituem a linguagem simbólica dessa piedade,
tal como a expressa, por exemplo, o conhecido hino de Havergal":
o rosto evangélico 35

Que minha vida inteira esteja consagrada a ti, Senhor, que mi-
nhas mãos sejam guiadas pelo impulso de teu amor;
que meus lábios possam dar testemunho de teu amor e eu
ofereça meus bens somente a ti, Senhor;
que meu tempo todo esteja dedicado a teu louvor e minha mente
e seu poder sejam consagrados a tua honra;
toma, ó Deus, minha vontade e faze-a tua, nada mais;
toma, sim, meu coração e nele terás teu trono.
No mundo da tradição wesleyana, a insistência na expe-
riência da "segunda bênção" - a plenitude da santificação -
originou divisões frente ao que alguns consideravam um aban-
dono da busca de santidade por parte das igrejas metodistas:
nascem assim, além do Exército da Salvação (Inglaterra, 1880),
a Igreja de Deus (Anderson, ID, 1880), a Aliança Cristã e Mis-
sionária (1887), a Igreja do Nazareno (1908) e a Igreja dos Pe-
regrinos (Pilgrim Holiness Church, 1897). A importãncia desse
desenvolvimento para nosso tema pode ser percebido na data
da entrada (de 1897 a 1914) de todas essas igrejas na América
Latina. No mundo evangélico de tradição reformada, o movi-
mento de santidade tem o mesmo vigor e ênfase. Derivou,
entretanto, numa maior preocupação doutrinal, como indica
sua participação na formação do grupo das "Conferências de
Keswick" e das Prophecy Conferences, antecedentes imediatos
do fundamentalismo.
b) David Moberg falou da "grande inversão" que acontece
no evangelicalismo norte-americano nas primeiras décadas do
século 20 no tocante à preocupação social". Com efeito, da
fórmula revivel and reiorm se passa à alternativa "evangeliza-
ção ou reforma social". A inversão parece ocorrer em duas
etapas: a primeira (de 1870 a 1900) significa uma retração da
esfera política como meio de reforma social, concentrando-se a
ação no âmbito privado da caridade; na segunda, como diz
Marsden, "toda preocupação social progressista, política ou
privada, toma-se suspeita para os revivalistas evangélicos e é
relegada a um lugar mínímo'". Os historiadores costumam
sugerir três causas: 1) O triunfo do modelo metodista de san-
tidade relega a tradição reformada muito ligada nos Estados
Unidos, desde o início, à "construção do reino de Deus" na
América. Por conseguinte, a santidade fica desconectada da
história para transformar-se numa experiência subjetiva, indi-
vidual- ou, quando muito, da pequena "comunidade" -, que
reduz o serviço a uma ação caritativa; 2) a experiência caris-
mática de viver numa espécie de "nova díspensação", numa
36 Rostos do protestantismo latino-americano

"era do Espírito Santo", leva a desprender-se da "história da


salvação", a relegar o Antigo 'Iestamento e, por conseguinte, a
preocupação reformada com uma lei divina que deve ser ins-
taurada também na sociedade: o predomínio crescente do pré-
milenarismo e o subseqüente dispensacionalismo introduzido
por Nelson Darby e difundido amplamente no mundo evangé-
lico consagram essa separação ao "dar por terminado" o perío-
do do "governo humano" e o período da lei e ao ver toda a
história da salvação somente como etapas necessárias para a
era presente, cujo único objeto é a pregação do evangelho; 3) a
aparição, a partir da década de 1910, do "evangelho social",
que é percebido como uma forma do modernismo ou liberalis-
mo teológico e produz uma rejeição nos setores evangélicos,
pois estes o vêem como a negação de doutrinas fundamentais
da fé. C. S. Scofield, um dos mais bem-sucedidos promotores
do díspensacíonalísmo, dirá sem rodeios que a única resposta
de Cristo à escravidão, à intemperança, à prostituição, à distri-
buição desigual das riquezas e à opressão dos fracos é pregar
a regeneração mediante o Espírito Santo'",
c) O que chamamos de "fundarnentalísrno" é um fenôme-
no complexo, e seria ridículo tentar abordá-lo em poucas li-
nhas. Não obstante, é imprescindível dedicar-lhe alguma aten-
ção aqui, com uma advertência: referimo-nos só ao fundamen-
talismo como fenômeno do mundo evangélico no final do séc.
19 e no início do séc. 20 11 . A primeira observação histórica de
importáncía é que será bom distinguir uma primeira etapa que
se estende mais ou menos até o começo da Grande Guerra e,
posteriormente, uma segunda, muito mais espetacular. Carac-
terizamos estas etapas como "a defesa da fé" e "a defesa da
América cristã", respectivamente.
1) O fundamentalismo aparece como a reação de uma fé
que se sente ameaçada pelo avanço do secularismo e de uma
ciéncia que nega a realidade do sobrenatural. Como respon-
der? Basicamente se delineiam duas respostas, que refletem
duas concepções filosóficas. Uns distinguem o nível da ciência
do nível da religião: o primeiro é o âmbito dos fatos objetivos; o
segundo, o da experiência subjetiva, do sentimento: podería-
mos dizer que temos ai a expressão da herança romántica na
cultura norte-americana. Outros, por sua vez, conhecem um
único critério de verdade: o dos fatos e dados concretos da
realidade, que qualquer pessoa pode observar diretamente: es-
ta é a tradição do "realismo do senso comum" de origem esco-
cesa que predominou no pensamento norte-amerícano '".
o rosto evangélico 37

Para esta última perspectiva é indispensável ter uma fonte


infalível, específica e irrefutável para afirmar os fatos do mun-
do sobrenatural com a mesma força com que o "senso comum"
afirma os do natural. Para isso se recorre à Escritura. Por
conseguinte, quando as descobertas da ciência parecem entrar
em conflito com as afirmações da Escritura, trata-se de uma
hipótese cientifIca equivocada ou de uma interpretação errada
da Escritura. As distintas formas do "concordísmo'' ou da "har-
monização" partem desta premissa. Além disso, o único crité-
rio que pode ser aplicado à leitura da Bíblia é que os textos
devem ser lidos e interpretados "literalmente" (a menos que
eles mesmos indiquem outra coisa). "Literalmente", é claro,
significa neste caso de forma positivista, como dados objetivos
comprováveis pela observação e razão (portanto, num sentido
muito diferente daquele que esse termo tem em seu uso me-
dieval ou no uso que dele faz Lutero). Inspiração plena e verbal,
interpretação literal e inerrãncia são as muralhas indispensá-
veis para proteger a verdade da fé. Eis aqui o fundamentalismo.
Uma posição desse teor parece exigir total intransigência:
não pode haver espaços indefInidos entre a verdade e o erro.
No movimento de avivamento e santidade nem todos estavam
dispostos a essa íntransígêncía. Moody, por exemplo, susten-
tava: "Mantenhamos a verdade, mas, por todos os modos, man-
tenhamo-la com amor e não com um porrete (c1ub) teológico."13
Na tradição reformada, entretanto, tais concessões parecem
indiferentismo: "É-nos dito constantemente que não ataque-
mos, mas que simplesmente ensinemos a verdade. Este é o
método do covarde e conciliador, não foi o método de Cristo",
responde 'Iorrey, um dos colaboradores de Moody. Essas duas
posições sempre existiram dentro do fundamentalismo, mas é
evidente que a segunda teve maior ascendência e definiu até
hoje o perfil do fundamentalismo.
Na combinação de literalismo e intransigência se insere o
tema do prê-milenarismo. Como tal, a interpretação pré-míle-
narista sempre existiu na discussão escatológica. Ela salienta
que vivemos antes do milênio, o qual inaugurará um tempo
diferente, que precede o estabelecimento do reino de Deus (com
diversos esquemas na sucessão e natureza dos acontecimen-
tos vindouros). A opinião dominante no protestantismo em
geral e no norte-americano em particular havia sido majorita-
riamente pós-mílenarísta. Segundo ela, as promessas apoca-
lípticas do milênio, o derramamento do Espírito, a luta contra
o anticristo (freqüentemente identifIcado com o papa ou os
38 Rostos do protestantismo latino-americano

chefes de outras religiões) teriam lugar neste tempo e levariam


a uma era de ouro: o milênio de Apocalipse 20, a última época
da história presente, em que o Espírito seria derramado e o
evangelho seria difundido por todo o mundo, e em cujo final
aconteceria o retomo de Cristo e a história chegaria a seu fim.
Na disposição otimista e secularizante da segunda metade do
século 19, a visão pós-mílenarísta se "naturaliza" cada vez mais:
o caminho do Reino passa a ser identificado com o progresso
humano e os avanços da cultura norte-americana são vistos
como sinais de um futuro em que a conjunção da religião e do
progresso da civilização criará uma nova era de paz, justiça e
prosperidade.
Essa "naturalização" da escatologia, da qual se acusava (e
ainda se acusa) o evangelho social, não poderia deixar de re-
pugnar à fé evangélica. Por um lado, esta a via como uma
negação da transcendência (dír-se-ía, em termos da época, do
"sobrenatural"). Por outro, transformava a revelação bíblica
numa "fantasia poética" sobre a história que o ser humano vai
forjando, e tal coisa é totalmente inaceitável na concepção de
verdade do "realismo do senso comum". O pré-milenarismo
mostra-se, pois, como uma reação contracultural, que tira da
cultura secular toda pretensão escatológica: esta história, esta
sociedade e estas igrejas, na medida em que algumas delas se
adaptam ao mundo, são um campo de batalha onde o verda-
deiro evangelho tem de ser pregado e os homens e as mulhe-
res, chamados a reunir-se na congregação escatológica que
espera o "arrebatamento", o começo do milênio ou "a aparição
do Senhor".
O escocês Nelson Darby dá a essa visão uma hermenêuti-
ca bíblica baseada na interpretação dos livros de Daniel e Apo-
calipse, que conhecemos como "díspensacíonalísrno'' e que tem
uma enorme influência em todo o mundo evangélico. Seu dis-
cípulo norte-americano C. S. Scofield publica uma tradução da
Bíblia cujas notas aplicam sistematicamente essa interpreta-
ção à totalidade da Escritura e que teve uma enorme difusão.
Enquanto que na Grã-Bretanha Darbyiniciou uma denomina-
ção independente - as igrejas dos Irmãos de Plymouth ou
Irmãos livres e as que delas surgiram -, nos Estados Unidos
o movimento vive no interior das igrejas exístentes'<.
A "defesa da fé" toma-se concreta na defesa das Escritu-
ras, com as características que indicamos acima. Em certo
sentido, todavia, a Bíblia não é só um "meio" de defesa da fé,
mas um "objeto de fé" que adquire uma espécie de autonomia.
o rosto evangélico 39

Em seu livro Fundamentalism, o inglês James Barr o expressa


assim:
Para os fundamentalistas a Bíblia é mais do que a fonte da
verdade para sua religião (...) Faz parte da própria religião. na
realidade é praticamente o centro da religião (...) Na mentalidade
fundamentalísta, a Bíblia funciona como uma espécie de corre-
lato de Cristo (...) Cristo é o Senhor e Salvador pessoal (00') a
Bíblia é uma entidade verbalizada, "ínscríturada" ('00) Na medida
em que Cristo é o Senhor e Salvador divino. a Bíblia é o símbolo
religioso supremo, tangível, articulado, que se pode possuir e é
acessível ao ser humano na terra. 15
Cristo está, é claro, ontologicamente acima da Escritura,
mas epístemologícamente está subordinado a ela. Por isso é
essencial ter a Bíblia, honrá-la, dar-lhe o lugar de honra no
coração e na mente, mas também na mesa da copa ou sobre o
criado-mudo, ao lado da cama. De alguma maneira, ela é o
ícone e o sacramento da fé.
2) 1àlvez não seja tão estranho que esse movimento con-
tracultural se transforme, especialmente a partir do início da
Grande Guerra. na defesa de uma cultura: a defesa da América
cristã. Afinal de contas, todo universo simbólico de ampla di-
fusão desempenha um papel cultural na sociedade. Não inte-
ressa agora investigar a gestação desse fenômeno, mas tam-
bém não podemos passar por cima dele, porque desempenha
um papel significativo no movimento missionário. Dentro do
fundamentalismo evangélico coexistiam diferentes atitudes pa-
ra com a cultura e a sociedade. Entretanto, predominavam as
que poderíamos chamar de mediadoras, representadas por uma
reafmnação do que se considera a "tradição evangélica norte-
americana" ("the old time religion", que deveria ser defendida
contra os avanços do secularismo, do modernismo e da imora-
lidade), representada, por exemplo, pelo tristemente famoso
William J. Bryan (do "julgamento do macaco", que conhecemos
na versão teatral de "Herdarás o vento") e pela linha mais
reformada de uma transformação da cultura sobre a base do
ensino cristão (p. ex., do professor J. Gresham Machen, de
Prínceton).
A Grande Guerra (1914-18) radicalizará as posíções, Qua-
se até a entrada dos Estados Unidos no conflito, os setores
evangélicos fundamentalistas se mostraram reticentes em re-
lação a essa guerra: o mundo caminha para seu fím, as guer-
ras nada podem melhorar. A partir de 1917 opera-se uma mu-
40 Rostos do protestantismo latino-americano

dança. Revisam-se as interpretações milenaristas e ao binõmio


classicamente representativo do anticristo (o papa e os muçul-
manos) se acrescenta agora Bismarck. Participar dessa guerra
torna-se um dever cristão:
O Kaiser jogou impudicamente a luva: a Alemanha infiel [berço
do liberalismo teológico] contra o mundo crente - a Kultur
contra o cristianismo -, o evangelho do ódio contra o evangelho
do amor. Assim Satanás se personifica: "Eu e Deus" (...) Jamais
os cruzados levantaram o machado de combate numa guerra
mais santa contra os sarracenos do que a que hoje nossos sol-
dados da cruz travam hoje contra o alemão.!"
Três elementos completam o quadro desse fundamentalis-
mo no fmal da guerra: o acréscimo do "comunismo bolchevi-
que" à trindade do anticristo, substituindo o Kaiser agora der-
rotado; a batalha para desterrar da cultura norte-americana
tudo que pudesse ameaçar a pura fé evangélica (dai o julga-
mento de Scopes contra o ensino da teoria da evolução nas
escolas'? e outras cruzadas semelhantes); e a transferência da
frente de combate para o sul agrário que legitima assim em
termos religiosos seu conflito com o norte industrial.
Estamos, é claro, tomando traços gerais: as coisas sempre
são mais matizadas e diversificadas do que estes breves pará-
grafos sugerem. Porém o quadro me parece fundamentalmente
correto como pano de fundo para entender aspectos de nosso
protestantismo latíno-amerícano". Como tudo isso afetou as
igrejas? Os historiadores costumam falar de três variantes: a)
Nas denominações mais tradicionais - episcopais, presbiteria-
nos, metodistas, batistas - formam-se setores internos que
levam a batalha para o seio da denominação, com maior êxito
em umas do que em outras, mas sem conseguir "expulsar"
sistematicamente seus adversários nem assumir o controle na-
cional da denominação (sem dúvida, as batalhas mais duras
ocorreram na Convenção Batista do Sul-? e nas duas igrejas
presbiterianas maiores); b) Em algumas denominações, parti-
cularmente das igrejas de santidade e dos nascentes movimen-
tos pentecostais, sua tradição pietista e evangélica foi como
que moldada novamente pela influência fundamentalísta: e c)
alguns dos fundamentalistas mais extremos, particularmente
os dispensacionalistas para os quais a "separação" era um
artigo de fé, formaram suas próprias denomínaçôes-v.
o rosto evangélico 41

2. Crescimento e diversificação
1) "Atomização dos protestantismos". Jean-Pierre Bastian
chama de "atomízação dos protestantismos" o período que ele
situa entre 1949 e 1959. Essa caracterização parece-me inade-
quada, porque pressupõe uma identidade protestante prévia
definida pela "opção liberal". O erro provém, creio eu, do fato
de julgar a "identidade" com base nas opções dos lideres mis-
sionários e locais representados nas conferências, e de não
prestar suficiente atenção ao desenvolvimento da piedade evan-
gélica como substrato real do protestantismo missionário lati-
no-americano. làmbêm não melhor a interpretação de Hans-
é

.Jürgen Prien, que tende a englobar a maioria das missões


norte-americanas sob a qualificação de pietistas, conservado-
ras e fundamentalistas, sem esclarecer o que entende especifi-
camente sob esses termos. Só Pablo Deiros se mostra mais
matizado e cuidadoso na análise do penodo que chama de
"desenvolvimento" e situa entre 1930 e 196()21. 1àmbêm ele
adota uma classificação do protestantismo latino-americano
em três grupos principais: libertacionistas, conservadores e
fundamentalístasê'. Na apresentação>, contudo, torna-se evi-
dente que trata-se, antes, de tendéncias presentes no mundo
evangélico como um todo e que se acentuam mais caracteris-
ticamente em algumas ou outras igrejas do que de uma típolo-
gía que permita distinguir entre estas.
Creio que para abordar devidamente o tema é necessário
partir do período anterior. E aqui minha tese que até 1916 o
é

protestantismo missionário latino-americano é basicamente "e-


vangélico" segundo o modelo do evangelicalismo norte-ameri-
cano do "segundo despertar": individualista, cristológico-sote-
riológico numa perspectiva basicamente subjetiva, com ênfase
na santificação.
Ele tem um interesse social genuíno, que se expressa na
caridade e na ajuda mútua, mas que carece de perspectiva
estrutural e política, exceto no tocante à defesa de sua liberda-
de e à luta contra as discriminações; portanto, tende a ser
politicamente democrático e liberal, mas sem sustentar tal op-
ção em sua fé e sem fazer dela parte integrante de sua piedade.
A partir do pós-guerra (1918) começam a ocorrer mudan-
ças dentro desse padrão fundamental. A análise dessas modi-
ficações é crucial para entender o fenômeno que Bastian qua-
lifica como "atomízação". Porém tal análise só será possível na
medida em que contarmos com uma pesquisa histórica que
42 Rostos do protestantismo latino-americano

trabalhe seriamente com a história das mentalidades, as his-


tórias de vida, a investigação do cotidiano: em suma, que res-
gate a vida objetiva e subjetiva das comunidades evangélicas e
não só seus aspectos formais e institucionais. Ainda assim,
atrevo-me a sugerir algumas pistas e hipóteses:
1) A partir do começo do século, porém mais ainda depois
da Grande Guerra e aceleradamente a partir de 1930, engros-
sam o protestantismo evangélico uma série de missões que
representam o movimento de santidade e as linhas milenaris-
tas e fundamentalistas da Grã-Bretanha e dos Estados Uni-
dos. Damboriena, sempre obcecado com esse tema, fala de
1.707 missionários estrangeiros em 1916 e 6.361 em 195724 •
Depois da II Guerra Mundial ocorre uma nova onda de entrada
de missionários. Mas também deve-se contabilizar o fato de
que as próprias igrejas "mães", "clássicas" (metodistas, presbi-
terianos, batistas) são fortemente influenciadas por esses mo-
vimentos. 1bdo o protestantismo evangélico absorve em ampla
medida as características dessa "nova onda" evangélica: um
dualismo e espiritualismo mais acentuados, uma ética de se-
paração do mundo acompanhada por rigidez legalista25 .
2) A "mentalidade" de classe vai se definindo no protestan-
tismo evangélico em direção aos nascentes estratos médios. É
neste contexto que devemos situar, em minha opinião, a rela-
ção mais profunda entre protestantismo e liberalismo burguês.
O aporte do protestantismo evangélico (e talvez também do de
"transplante") para o desenvolvimento do liberalismo burguês
na América Latina não consiste tanto na influência política ou
comercial norte-americana, nem sequer na transferência de
uma ideologia como tal, e sim numa série de atitudes e num
horizonte de significação que são gerados a partir de sua pró-
pria conversão e que coincidem com as aspirações de ascensão
de certos setores da sociedade e com o etos do liberalismo burguês.
Aqui, as categorias sociológicas de Max Weber ou a análise
estrutural de Durkheim são mais úteis para entender esse
fenómenos do que a teoria política ou os determinismos econô-
micos. Em outro trabalho tentei salientar alguns dados para
esse tipo de análise, que não repetirei agora-", Trata-se, em
síntese, de destacar como o chamado à conversão como deci-
são pessoal, total e transformadora, que está no próprio centro
da evangelização, significa a recriação de uma identidade, a
constituição de um sujeito que se sente capaz de decidir por si
mesmo, responsável e livre - "você tem de decidir", ''você está
o rosto evangélico 43

só diante do Salvador" -, com uma nova consciência de si


mesmo que o anima a tomar iniciativas. Em relação ao pente-
costalismo, Doug Petersen falou neste sentido de uma "esser-
tiveness", uma certa "segurança pessoal" como correlato da
experiência de conversão e dos novos papéis que ele assume
na comunidade. Se acrescentamos a isso uma série de valores
éticos, temos o quadro de sujeitos eminentemente preparados
para o modelo líberal-modernízador.
3) Na medida em que essa mentalidade de classe se afírma
e que, nas décadas subseqüentes, um número cada vez maior
de evangélicos acedem em realidade a modestas classes mé-
dias, a vertente política e social do socialismo e do comunismo
toma-se-lhes tão inaceitável quanto a anti-religiosa. Embora
não me seja possível prová-lo, atrevo-me a pensar que, até a
década de 1920, a maioria dos evangélicos inclinam-se por
partidos democráticos entre populares e de classe média que
lhes assegurem a liberdade religiosa - os radicais na Argenti-
na ou no Chile, os colorados no Uruguai, os liberais na Colôm-
bia, o PRI no México -, mas que, a partir desses anos, reagem
cada vez mais fortemente contra a ideologia "de esquerda". A
admiração pela democracia norte-americana, o antícomunís-
mo do fundamentalismo dos Estados Unidos a partir da déca-
da de 1920 e a ideologia de sua classe os levam nessa direção.
Ainda não se voltam para a direita por causa da conexão cleri-
cal dessa ideologia, mas não demorarão muito a sentir-se atraí-
dos por promessas militares de moral, ordem e estabilidade.
4) A tensão que sempre existiu na aliança do protestantis-
mo e do liberalismo como "sócios" na luta pela democratização
e contra os setores conservadores e clericais toma-se mais
polémica quando os intelectuais mais moderados de fins do
século 19 são sucedidos pela dura militância anti-religiosa do
livre pensamento e do posítívismo-". No Rio da Prata, por exem-
plo, aparecem, originadas especialmente no anarquismo espa-
nhol, traduçôes de Feuerbach, Baur e Strauss, obras de Renan
e outros autores "modernistas", que circulam em bibliotecas
de sindicatos e partidários do socialismo e do anarquismo e
que são assumidas por certos intelectuais. Clemente Ricci pu-
blica em 1906 no periódico evangélico La Reforma uma tradu-
ção da refutação do professor italiano Aníbal Fiori do famoso
livro de Milesbo (Emilio Bossí), Jesus Cristo nunca existiu,
traduzido para o espanhol em 1905, e toma a publicá-la como
livro em 1922. Escrevendo em 1928, Ricardo Rojas demonstra
44 Rostos do protestantismo latino-americano

em seu livro El Cristo invisible bastante conhecimento de cer-


tos aspectos de alta critica, das obras de Renan, Binet Sanglé
e outros. Não há por que pensar que isso fosse excepcional. Os
exemplos poderiam ser multiplicados, tanto em nível culto quan-
to popular. O "combate pela fé" se trava fortemente agora tam-
bém nesta frente.
5) Esse é o quadro em que se dá a recepção do fundamen-
talismo, e talvez especificamente do fundamentalismo pré-mí-
lenarista. Embora darbystas (Irmãos Livres) e outras denomi-
nações fundamentalistas e pré-milenaristas (Adventistas, Alian-
ça Cristã, União Evangélica) estivessem na América Latina des-
de ínícíos do século, a polêmica sobre esses temas só parece
ativar-se bastante mais tarde. Inclusive, não aparece entre as
doutrinas fundamentais e só indiretamente no tratamento de
vários temas num manual de Grandes verdades biblices publi-
cado pelos Irmãos livres só em 194428 • Não obstante, já na
Conferência Evangélica de Montevidéu (1925) a tensão se evi-
dencia em dois temas. Um deles é a relação com o catolicismo
em função do "status teológico" que uns e outros lhe atri-
buíam: para alguns, ele é uma igreja com a qual diferimos em
alguns temas; para outros, é uma igreja que se desviou do
evangelho; para outros ainda, é uma forma de paganismo dis-
farçado ou o anticristo. O outro tema, menos explícito, é a
atitude para com o liberalismo teológico, que é discutido às
vezes como o conflito de opções prioritárias pela evangelização
ou pela ação social, como critica ao "evangelho social" ou na
própria definição de "evangelho". Quando se define o "evange-
lho" no Informe de Montevidéu, começa-se na trilogia harnac-
kiana: "a paternidade de Deus" é continuada, em termos pro-
testantes clássicos, com "a centralidade de Cristo" e é comple-
tada "evangelicamente" com "o pecado e a necessidade de ar-
rependímenro">.
6) A intensificação do conflito se dá de diferentes maneiras
nos diversos países. Mas já em torno do fim da década de 1940
ela é muito forte, e não é arbitrário o fato de Bastian a situar
em 1949, ano da I CEIA (Conferência Evangélica Latino-Ame-
ricana) de Buenos Aires. A representação ainda é muito ampla.
Mas, simbolicamente, irrompem na Conferência representan-
tes do Conselho Evangélico Internacional de Carl Mdntyre.
Unanimemente a Conferência rejeita sua tática "putschísta"
para introduzir-se na reunião, porém não há dúvida de que
sua denúncia do modernismo liberal e comunista produz seu
o rosto evangélico 45

impacto. No Brasil, igrejas e setores de igrejas logo embarcam


no movimento, e em todas as partes - ainda que não se com-
prometam organicamente - o fundamentalismo separatista
cresce em diversas denominações. A história posterior dispen-
sa maiores explicações. Pode-se, caso se queira, segui-la muito
bem no manual de história de Deírosê", As organizações pro-
testantes de ampla participação - concilios, federação de jo-
vens, campanhas conjuntas de evangelização - são desatíva-
das ou alienadas. Os setores interessados em manter um tes-
temunho social ativo se agrupam (amiúde com o "ecumenis-
mo" internacional) e criam suas organizações (MEC, ISAL, MI-
SUR CELADEC, etc.). Buscam, de diversas formas, uma arti-
culação teológica na teologia dialética ou numa "teologia da
ação de Deus na história". Porém não conseguem obter a par-
ticipação de certas igrejas nem o apoio de boa parte dos mem-
bros (e às vezes tampouco das lideranças) das próprias igrejas
das quais fazem parte. Em torno de 1960 se percebe essa crise
muito claramente nas discussões da 11 CELA (1961) e, mais
ainda, nas da III CELA (1969). O rompimento torna-se logo
mais evidente: ecumênicos ou evangélicos, CLA! ou CONELA,
"direita" ou "esquerda", "evangélicos" ou "líbertacíonístas": não
se aceitam "terceírísmos",
7) Um novo fator incrementa a oposição. As mudanças
que, a partir da década de 1950, e mais especificamente a
partir do Concilio Vaticano 11, parecem aproximar o catolicismo
de posições evangélicas, levam as igrejas evangélicas a adotar
- estimuladas, sem dúvida, pelo movimento ecumênico -
uma atitude de diálogo. A condenação da Igreja Católica Roma-
na como "antíevangélíca" é sucedida por uma aceitação da
mesma como um possível "sócio" na missão evangelizadora,
atitude esta que os setores mais conservadores vêem como
uma "traição do evangelho".
O que parece importante destacar- e esta é minha tese
neste ponto - é que não se trata de igrejas contra igrejas nem
de denominações contra denominações. Embora algumas igre-
jas, em alguns países, fiquem voltadas para uma direção ou
outra e algumas se alinhem claramente no setor "evangélico",
a crise atravessa todas as denominações e até as congregações
locais. A ruptura, interna e externa, parece absoluta e defínítí-
va. Até em torno de 1990, a tese da "atomízação" de Bastian
parece justificada.
46 Rostos do protestantismo latino-americano

3. Sombras e luzes do "evangélico"


A "atomízação'' e a "críse de identidade" do protestantismo
latino-americano, das quais tanto se fala, estão muito ligadas
ao desenvolvimento desse processo do "mundo evangélico" e às
respostas e reações que ele despertou dentro do próprio campo
protestante. Vinculando o movimento evangélico que acaba-
mos de delinear e o pentecostalismo, Bastian fala de "um pro-
testantismo sectário e mílenarísta" que, entre os anos de 1930
e 1949, "irrompeu fora e independentemente do protestantis-
mo estabelecido de origem liberal". Deixando de lado neste
momento a identificação do pentecostalismo com o processo do
protestantismo evangélico nas décadas precedentes, parece-
me errôneo falar de "a partir de fora e independentemente". O
parentesco de origem, de piedade e até de teologia e a interpe-
netração das ondas missionárias anteriores e das novas nos
obrigam a considerar o fenômeno como "interno ao protestan-
tismo evangélico missionário" na América Latina. O que cha-
mei de "o rosto evangélico do protestantismo latino-americano"
define sua identidade desde o começo e até o presente. E uma
identidade protestante latino-americana que exclua esses tra-
ços não é concebível. Mais ainda: me atreveria a dizer que o
futuro do protestantismo latino-americano será evangélico ou
não será. E por isso que interessa tanto tomar consciência de
processos e direções negativos que ocorreram em nossa histó-
ria protestante.

1. A influência do fundamentalismo extremo, divisioniste


e majoritariamente, ainda que não só, pré-milenarista tem tido
efeitos negativos no protestantismo evangélico na medida em que:
1.1) nos tem vinculado aos - e tem sido correia de trans-
missão dos - piores traços da ideologia e da política dos Esta-
dos Unidos, ao ponto de assumir como próprias as campanhas
ideológicas reacionárias da "nova direita religiosa" dos Estados
Unidos e apoiar os "regimes de segurança" e as políticas re-
pressivas que, durante as últimas décadas, acompanharam
essa política (os exemplos do Chile, da Guatemala e do apoio
material e ideológico aos "contras" na Nicarágua são ilustração
suficiente do que dizemos)?':
1.2) no campo ético, tem desenvolvido os aspectos mais
vulneráveis da tradição evangélica e pietista: o legalismo e a
justiça própria, a oposição do material e do espiritual, a "sepa-
ração do mundo", que na prática induz a uma dupla moral, os
o rosto evangélico 47
critérios sociais e políticos introvertidos (basta que um governo
permita ou favoreça as igrejas para que seja aceitável: "Nós
temos liberdade para pregar" costuma ser a resposta ante os
reclamos pelos direitos humanos);
1.3) na vida eclesiástica, a "doutrina da separação" tem
levado ao isolamento e ao divisionismo.
1.4) O mais grave, porém, me parece ser a distorção dou-
trinal que legitima e, ao mesmo tempo, reforça essas tendên-
cias. Atrevo-me a dizer que esse tipo de fundamentalismo pro-
duziu, em vários sentidos, uma caricatura do rosto autentica-
mente evangélíco>:
a) A rica e transformadora experiência da fé se transforma
na aceitação de um esquema teológico estreito e estereotipado,
mal chamado de "plano de salvação", como se se tratasse de
um computador em que se tem de tocar algumas teclas para
obter os resultados desejados;
b) o reconhecimento da centralidade da Palavra bíblica
vivificada pelo poder do Espírito Santo transforma-se numa
"bíblíolatría" baseada numa hermenêutica ao mesmo tempo
arbitrária e racionalista, além de estéril e repetitiva: em lugar
do rico tesouro do qual "o escriba sábio tira coisas novas e
velhas", o estudo da Bíblia vira um exercício de permanente
repetição;
c) em lugar da riqueza da comunhão fraterna em Jesus
Cristo dos collegia pietetis luteranos, das "classes" e grupos
metodistas ou das congregações batistas, o pré-milenarismo
despoja a comunidade de fé de todo o seu significado, transfor-
mando a igreja numa espécie de "sala de espera" do milênio,
sem nenhuma significação soteríológíca:
d) o mesmo esquema transforma a história humana nu-
ma série de números e sinais a serem decifrados, em vez de um
espaço onde o poder de Jesus Cristo avança e nos convida a
participar de sua luta: a espera alegre da "parúsía do Senhor"
vira uma charada de somas e subtrações de anos e datas.
Certamente participei de cultos e reuniões em número
sufícíente e tive uma relação fraterna com um número dema-
siado de homens e mulheres dessa persuasão para não saber
que essa é uma caricatura quando se a relaciona com sua vida
cristã concreta: vi aí a alegria da salvação, a vida transforma-
da, o amor fraterno, a solidariedade e o serviço, o testemunho
no mundo e até a participação em causas de justiça e paz.
48 Rostos do protestantismo latino-americano

Jesus Cristo é maior do que nossas imagens dele, e o Espírito


é mais poderoso que nossas expectativas mesquinhas. E eles
são capazes de atuar apesar de nossas distorções teológicas.
Mas vi também o mal que essas distorções têm causado: as
polêmicas estéreis, as divisões desnecessárias, as oportunida-
des de testemunho perdidas e os "antítestemunhos" na vida
privada e pública de igrejas e crentes. Nenhuma igreja tem o
monopólio desses elementos negativos e nenhuma está total-
mente isenta deles. Mas é bom identificá-los dentro e fora de
nossa casa para corrigi-los.

2. Não há como deixar de perguntar-se: se essa tendência


tem tantos aspectos negativos, como é possível que tenha ob-
tido e obtenha tão ampla difusão em nossas igrejas?
2.1) Sem dúvida há fatores sociais - já salientados - que
têm contribuído para isso. Por outro lado, Rubem Alves anali-
sou com muita perspicácia aspectos psicológicos ligados à se-
gurança e ao sentido de poder que operam nesse fundamenta-
lismo, que ele analisa com profundidade no "protestantismo da
reta doutrina" de sua própria igreja de origem. 1à.mpouco po-
demos silenciar o fato de que a soberba, a acusação indiscri-
minada e a zombeteira auto-suficiência com que muitos de nós
temos respondido ao fundamentalismo não fizeram mais do
que confirmá-lo.
2.2) Há, entretanto, um elemento positivo que me parece
mais importante: confrontados a partir de fora pela crítica des-
trutiva das correntes positivistas e atéias e a partir de dentro
pelas linhas teológicas que pareciam esvaziar de conteúdo a fé
evangélica, muitos evangélicos viram no fundamentalismo a
única barreira que podiam levantar ante esses inimigos, a úni-
ca defesa de uma fé que dava sentido a sua vida. Se por causa
da crítica atéia e do liberalismo teológico perdiam a Escritura,
de cujas páginas haviam recebido a mensagem da salvação, se
o fervor de sua piedade se esfriava numa religião tão formal e
ritualista quanto a que haviam deixado ao se converter, se o
relativismo ético os submergia numa anomia, destruindo as
normas que haviam pautado sua vida, e se o relativismo reli-
gioso destruía a motivação e a urgência para comunicar a
mensagem a outros, o perigo era mortal e era necessário bus-
car uma resposta. O fundamentalismo se lhes apresentava
como uma resposta segura, como um baluarte inexpugnável e
como uma arma poderosa no combate pela verdadeira fé.
o rosto evangélico 49

3. Se houvesse uma saída para essa situação, a resposta


deveria surgir do próprio seio da piedade evangélica. Ela chega
de duas maneiras. Uma, que olharemos mais de perto no pró-
ximo capítulo, é o movimento pentecostal. A outra, à qual de-
dicaremos algumas poucas linhas para concluir nossa reflexão
deste capítulo, é o que tem sido chamado de movimento "neo-
evangélico", um neologismo que não me agrada: eu preferiria
falar simplesmente da renovação evangélica que na América
Latina é representada principalmente pela Fraternidade 'Teoló-
gica Latino-Americana (FTL), vinculada com os nomes de René
Padilla, Pedro Savage, Samuel Escobar, Pedro Arana, Emilio A.
Nunez e muitos outros, e que tem tido uma gravitação cada vez
maior no mundo evangélico desde suas origens em 1970. Sem
dúvida ela também tem sido estimulada e nutrida por movi-
mentos no exterior, particularmente em grupos evangélicos
dos Estados Unidos e na ala evangélica do anglicanismo brità-
nico. Mas tem um rosto próprio e uma história particular em
nosso continente. Eu me animaria a destacar o que considero
os traços mais significativos:
3.1) Resgata-se e recupera-se uma tradição evangélica,
particularmente ligada ao movimento anabatista dos séculos
16 e 17 e ao despertar evangélico do séc. 18 na Inglaterra e nos
Estados Unidos (de que falamos antes) tanto na tradição refor-
mada quanto na wesleyana, mas também às origens de nosso
próprio protestantismo missionário na América Latina. Os tra-
balhos de Escobar, Arana e Padilla nos mostram, ao mesmo
tempo, que não se trata da mera reivindicação de uma tradi-
ção, e sim de buscar nela elementos que fecundem uma refle-
xão teológica e uma prática evangélica para a América Latina
de hoje;
3.2) o movimento começa com uma afirmação da centre-
lidade das Escrituras, na dupla frente da critica ao literalismo
torpe e à interpretação arbitrária do fundamentalismo e de um
liberalismo que parecia reduzir a Bíblia a uma coleção de do-
cumentos do passado ou a um repositório de verdades religio-
sas e éticas gerais e universais. Na reunião de Cochabamba de
1970 isso foi expresso da seguinte maneira:
O assentimento à autoridade da Bíblia poderia ser considerado
uma das características mais gerais do movimento evangélico
na América Latina (...) Cabe, entretanto, admitir que o uso real
da Bíblia por parte da generalidade do povo evangélico latino-
americano nem sempre coincide com esse assentimento que a
distingue. A Bíblia é reverenciada, mas a voz do Senhor que fala
50 Rostos do protestantismo latino-americano

nela nem sempre é obedecida (000) Necessitamos de uma herme-


nêutica que em cada caso faça justiça ao texto bíblico (...) A
mensagem bíblica tem indiscutível pertinência para o homem
latino-americano, porém sua proclamação não ocupa entre nós
o lugar que lhe corresponde, 33
Desde então o trabalho se aprofundou e ampliou, e podemos
vê-lo em comentários bíblicos, trabalhos de tradução e exegese
Capítulo 3
O rosto pentecostal do protestantismo
latino-americano

Em sua famosa obra Siete ensayos sobre la realidad pe-


ruana, Carlos Mariátegui sentenciava em 1928:
O protestantismo não consegue penetrar na América Latina por
obra de seu poder espiritual e religioso, mas de seus serviços
sociais (ACM, missões metodistas da serra, etc.). Este e outros
sinais indicam que suas possibilidades de expansão normal en-
contram-se esgotadas. 1
Naquela época Maríáteguí tinha razão: o protestantismo já
contava com quase meio século na região; as igrejas estavam
instaladas, mas só haviam conseguido, em nível estritamente
religioso, colher membros no que há anos chamei de "o pó
solto na superfície da sociedade latino-americana". O que o
escritor peruano não podia adivinhar era que, 20 anos antes,
numa cidade portuária do Chile e um par de anos depois na
crescente São Paulo, havia começado a gestar-se um protes-
tantismo que, nas transformações sociais que começavam a
aparecer quase na data em que ele escrevia, derrubaria a bar-
reira que fechava para o protestantismo o acesso às massas
populares.
O mais notável dos missionários vindos para a América
Latina, concordando explicitamente com a critica de Maríáte-
guí, sustentava que "nenhum movimento cristão pode ter êxito
se não comove as massas (...) Estou convencido de que boa
parte do esforço missionário e a obra cristã em geral erraram
por tentar alcançar exclusivamente os líderes.'? 1àlvez fosse
uma confissão, depois de 16 anos em que tentou, precisamen-
te, a "evangelização dos intelectuais". Vinte e cinco anos de-
pois, já radicado nos Estados Unidos e depois de uma toumée
latino-americana, John A. Mackay - pois é dele que se trata
- saudaria o crescimento pentecostal como cumprimento da-
quela visão de 1939:
Os pentecostais tinham algo a oferecer, algo que fez vibrar pes-
soas letargadas pela monotonia e desesperança de sua exístên-
54 Rostos do protestantismo latino-americano

cía, Milhões responderam ao evangelho. Sua vida foi transfor-


mada, seu horizonte foi ampliado; a vida cobrou um significado
dinâmico. A realidade de Deus, Jesus Cristo e o Espírito Santo
- que antes não passavam de termos sentimentais ligados ao
ritual e ao folclore - cobraram novo significado, tomaram-se
meios pelos quais se comunicavam luz, força e esperança ao
espírito humano. Elas se transformaram em pessoas com um
propósito para viver.3
Entrementes, com efeito, o movimento pentecostal estava
bem avançado nesse desenvolvimento que já começava a fas-
cinar os estudiosos de fenômenos religiosos.
Todas as histórias do pentecostalismo latino-americano
começam com o "despertar" associado ao nome do missionário
Willis C. Hoover, da Igreja Metodista, e à cidade de Valparaíso,
no Chile, e continuam com Francescon e as Assembléias de
Deus no Brasil. Logo o pentecostalismo se multiplica, diversi-
fica e expande, e a partir da década de 1950 se apresenta como
o rosto popular do protestantismo na América Latinas: 14.500
em 1938, 1 milhão em 1950, 37 milhôes em 1980. E os entu-
siastas falam de 65 milhôes de pentecostais no final do milênio.
Não é meu propósito seguir essa história. Menos ainda
tentar "típífícar" os diversos "pentecostalísmos". Interessa-nos
também aqui refletir sobre sua piedade e teologia. E para fazer
isso vamos limitar-nos ao que tem sido chamado de "pentecos-
talismo crioulo", colocando entre parênteses as novas corren-
tes pentecostais da última década e os movimentos carismáti-
cos dentro das igrejas "tradicionais". Não se trata de negar ou
subestimar a importância desses movimentos. Quanto ao pri-
meiro, creio que sua diferença em relação ao pentecostalismo
crioulo é de ordem qualitativa: inscreve-se em outra dinãmica
social, relacionada com as condições e estratificações sociais
geradas na aplicação das políticas econômicas e sociais do
"neolíberalísmo'': tem outra racionalidade, mais vinculada ao
uso de meios criados pela "razão técnica" e empregados "a
partir de cima" sobre as novas condições, muito diferente da
"criação social" popular do pentecostalismo crioulo. Gera, por
conseguinte, outro tipo de adesão, mais ligada ao "consumo de
bens religiosos" do que à incorporação ativa a um sujeito reli-
gioso intencional. Creio, portanto, que requer outros métodos
de pesquisa e outras pautas teológicas de avaliação. Não é este
o caso dos movimentos carismáticos dentro de igrejas já esta-
belecidas. Estes, contudo, também diferem por originar-se so-
bre o pano de fundo de uma prática religiosa protestante ou
o rosto pentecostal 55
católica já estabelecida e, em geral, dentro dos parâmetros da
mesma e por pertencer, em sua maioria, a setores de classe
médía, com suas características psicológicas e sociais próprias.
E de se esperar que um trabalho metodológico mais preciso e
profundo permita entender melhor essas realidades do campo
religioso latino-americano atual".

1. O que representa o pentecostalismo dentro


do protestantismo latino-americano?
Diferentemente do que fizemos em casos anteriores, não
me parece adequado começar com as raízes estrangeiras do
pentecostalismo. Não se trata de negá-lo; voltaremos a isso na
segunda seção deste capítulo. Começar aí, entretanto, obscu-
receria a natureza do fenômeno que tencionamos evocar. Sem
dúvida teve importância o contato do pastor Hoover com as
primeiras manifestações pentecostais norte-americanas; curio-
samente, por meio de uma carta e um livrinho enviados da
Índia à esposa do missionário por uma amiga missionária que
havia descoberto lá o movimento nascido na Califórnia apenas
quatro anos antes. Ou a história do italiano valdense Luígí
Francescon, que havia recebido o batismo do Espírito numa
congregação batista de fala italiana de Chicago em 1907 e veio
à Argentina e ao Brasil em 1910 como resultado de uma visão.
Esses "dísparadores", porém, só fazem despertar uma vivência
religiosa de setores populares latino-americanos. A semente
poderá ter sido produzida em Los Angeles ou Chicago, mas foi
plantada em terra latino-americana, alimentou-se das subs-
tâncias vitais desta terra e as novas massas populares latino-
americanas comprovaram que o sabor de seus frutos corres-
pondia às exigências de seu paladar. Francescon, Hoover ou
Berg podem ter tido um sotaque estrangeiro, mas "a língua do
Espírito" que falavam encontrou eco nos portuários de Valpa-
raíso ou nos operários de São Paulo e foi repetida na linguagem
de rotos [integrantes da classe baixa] chilenos, de indígenas
tobas ou aymaras ou de camponeses centro-americanos.

1. O protestantismo latino-americano não reparou no que


estava ocorrendo até que as congregações pentecostais come-
çaram a multiplicar-se em sua vizinhança. Para o protestantis-
mo "evangélico" elas representavam um desafio e uma tenta-
ção. Podiam reconhecer nos pentecostais sua própria teologia,
56 Rostos do protestantismo latino-americano

suas posturas éticas e seu zelo evangelizador. Porém suas ma-


nifestações lhes pareciam estranhas e seu crescimento os as-
sustava e, ao mesmo tempo, os seduzia. Alguns se entrinchei-
ram em sua identidade denominacional e os rejeitam, outros
se entusiasmam e os emulam. Geraram-se conflitos e, em al-
guns casos, rupturas. Batistas e Irmãos Livres sofreram mais
agudamente essas tensões, mas elas não estão ausentes entre
metodistas, presbiterianos ou Discípulos de Cristo.

2. Para o protestantismo "liberal" o tema foi mais difícil


ainda. A primeira reação foi decididamente negativa. A Igreja
Metodista do Chile o resolveu drasticamente em 12 de setem-
bro de 1909: Hoover e seus seguidores foram expulsos da Igre-
ja Metodista e os ensinamentos e práticas de seu movimento
foram rejeitados por serem "antlmetodistas, contrários às Es-
crituras e irracionais". "Nesse dia", comenta Hollenweger, "os
metodistas asseguraram a lei e a ordem, mas perderam o co-
ração das pessoas. Os pentecostais [chilenos] celebram o dia
12 de setembro como o aniversário de sua reforma."6 O tempo
apararia as arestas. Durante muitos anos, porém, o veredicto
seria o mesmo.
Quando a Igreja Metodista qualifica o pentecostalismo co-
mo "irracional", ela levanta um problema que não pode ficar
sem resposta. Com base em que racionalidade se emite esse
juízo? É possível que haja uma racionalidade que permita en-
tender o que ocorre? Uma nova geração do "protestantismo
liberal" começa a tentar responder essas perguntas. Seu ins-
trumental para fazer isso nasce da racionalidade moderna que
conformou esse protestantismo: tenta-se buscar a resposta
nas ciências sociais.

3. A partir dessa perspectiva aparecem uma série de hipó-


teses diversas, mas que têm um denominador comum: vêem o
pentecostalismo como um movimento que se situa na transi-
ção da América Latina de uma sociedade tradicional a uma
moderna ou, mais especificamente, na transição de uma socie-
dade majoritariamente agrária a uma parcialmente industria-
lizada, de uma sociedade rural a uma urbana. A inserção do
pentecostalismo nesse espaço de mudança é vista a partir de
várias perspectivas. Embora este não seja nosso ponto central
de concentração, convém repassar rapidamente algumas das
teses mais caracteristicas:
Embora haja alguns trabalhos anteriores, curiosamente
o rosto pentecostal 57

três obras protestantes - duas delas suíças e uma brasileira


de origem alemã - são as primeiras que tentam uma análise
profunda do fenômeno pentecostal.
O professor e historiador Walter Hollenweger? o vê como
um fenômeno típico da cultura das classes populares: trata-se
de uma religião oral, que se expressa em símbolos - canto,
dança - e emoção, pré-conceitual, da qual não se pode espe-
rar uma teologia explícita e sistematizada. A perspectiva em-
pregada corresponde a uma visão para a qual há uma espécie
de "progresso" de etapas mais primitivas, inarticuladas e pri-
márias para outras mais evoluídas, caracterizadas pelo discur-
so escrito, capazes de abstração e sistematização. Nesta teoria
há uma certa verdade: parece, com efeito, que tanto no nivel
do desenvolvimento psíquico individual quanto no nivel das
sociedades, os processos de abstração, conceitualização e sis-
tematização levam certo tempo para desenvolver-se. Amiúde,
entretanto, essas teorias revelam certos preconceitos: que se
trata de um avanço de formas "inferiores" para outras "supe-
riores"; que as segundas são mais "profundas" ou têm maior
riqueza do que as primeiras; que a "abstração" capta com maior
precisão as realidades às quais se refere. Surpreende-nos, en-
tão, quando culturas "desenvolvidas" regressam a manifesta-
ções que acham mais satisfatôrias,mais completas, mais ex-
pressívas''.
Os sociólogos Emilio Willems e Christian Lalive d'Epinay
estudam o pentecostalismo chileno e brasileiro seguindo um
esquema weberiano: o pentecostalismo funciona como uma
saida ou uma maneira de responder à crise pessoal e coletiva
desencadeada pela passagem de uma cultura rural tradicional
a uma cultura urbana, industrial e democrática. Para Wíllems?
o pentecostalismo constrôi um caminho de transição rumo a
uma nova identidade, modos de vida e estrutura social, e por
ele os fiéis podem entrar positivamente na sociedade moderna,
adaptando-se a ela'", Para Lalíve!', por sua vez, o que o pente-
costalismo lhes oferece é um "refúgio", que, ao mesmo tempo
que lhes permite viver na nova sociedade, os protege, recriando
na comunidade eclesial uma espécie de "sociedade tradicional"
substituta. Para ambos, a nova identidade que a conversão
proporciona, a liderança aberta que não se legitima profissio-
nalmente, e sim pelo carisma pessoal, e a solidariedade cara a
cara da comunidade pentecostal são os novos fatores que fa-
zem do pentecostalismo uma religiosidade adequada à condi-
ção de anomia produzida pela mudança.
58 Rostos do protestantismo latino-americano

làmbém para o sociólogobrasileiro Francisco Cartaxo Rolim 12


a transição é fundamental. Faz, porém, duas críticas impor-
tantes a seus predecessores. A primeira é que eles se preocu-
pam mais com "o que o pentecostalismo faz" do que com "o que
o pentecostalismo é", a saber, um movimento religioso e, por-
tanto, postado no plano simbólico, de busca de sentido. A se-
gunda é que a transição na sociedade não deve ser vista prin-
cipalmente como uma passagem do agrário ao urbano, da so-
ciedade tradicional à moderna, e sim como uma transição de
um sistema económico para outro, especificamente, para o
capitalismo dependente. Por conseguinte, o problema tem a
ver com um conflito de classe. Seguindo uma linha marxista,
Rolim pressupõe que a identidade dos setores sociais só pode
ser construída em relação com sua posição na estrutura so-
cial. Assim, o pentecostalismo faz parte de uma identidade
própria de uma "classe indefinida" que se situa entre a classe
média e os trabalhadores-", necessariamente portadora de uma
consciência ambígua. Por isso, quando o compara com as co-
munidades de base (CEBs), conclui que, ao passo que o pente-
costalismo desloca o reclamo de justiça social para o mundo
espiritual (porque não tem uma inserção definida de classe no
mundo operário), as CEBs criam consciência social porque são
uma classe "em si e para si". Embora esta proposição seja
muito discutível, o enfoque de Rolim tem o valor de ver o pen-
tecostalismo não só como parte de uma dinâmica social, mas
como urna estrutura de significado, como um fenômeno espe-
cificamente religioso. 'lenta inclusive definir sua teologia - que,
naturalmente, chama de "ideologia pentecostal" - e reconhece
a medida de continuidade que existe entre essa religiosidade e
a religiosidade tradicionallatino-amerícana.
Mais uma vez devemos perguntar-nos se essas são as
pressuposições adequadas para entender um fato religioso. É
razoável pensar que a posição na estrutura social influencie as
características do fenômeno religioso. Entretanto, acaso o fará
ao extremo que Rolim supõe? Ainda dentro da mesma perspec-
tiva, os trabalhos de Néstor Garcia Canclini permitem avançar
mais. Por um lado, se é verdade que os sentidos construídos
por um setor social tentam harmonizar sua visão da realidade
com as condições objetivas nas quais vive, também é verdade
que não se trata de visões "congeladas", e sim de processos
dinâmicos, nos quais cada setor luta para impor uma perspec-
tiva do mundo que tem a ver não só com sua situação estru-
tural' mas também com suas tradições - neste caso, com
o rosto pentecostal 59

suas tradições religiosas - e com outros elementos: "o que o


homem imagina para além de suas condições materíaís">'. En-
tão, "é razoável pensar (...) que devamos considerar a possibi-
lidade de que haja outras ordens da vida humana (conflituosas
ou não) que se expressem através de canais religiosos: o medo
da morte ou da doença, o sentido de culpa, a busca de um
sentido transcendente para a vida"15. Nesta direção começam
a aparecer estudos que buscam uma perspectiva hermenêutica
do sistema simbólico pentecostal utilizando trabalhos de auto-
res tão diversos como Ricoeur, Cassirer, Bourdieu ou Luckmann.

4. Não convém esquecer que todos esses ensaios compar-


tilham uma posição comum: olham o pentecostalismo a partir
de fora. Mesmo um "observador participante" - como se defi-
ne Lalive - continua desfrutando dessa "vantagem", que po-
deria garantir uma maior objetividade, e sofrendo dessa limita-
ção, o difícil acesso aos dados de uma subjetividade que não
compartilha e que constitui o próprio cerne daquilo que estu-
da. Por isso não é de estranhar que os pentecostais olhem de
forma dubitativa esses estudos: por um lado, reconhecem-se
neles em sua realidade social; por outro, sentem que não se
levou em conta o que é mais decisivo e vital para eles.
Uma segunda ou terceira geração de pentecostais, que
conhece a fundo as categorias dos trabalhos realizados e não
rejeita algumas de suas hipóteses, começa a elaborar a partir
de dentro uma compreensão mais profunda da experiência
pentecostal. Duas obras recentes me parecem particularmente
valiosas nesse sentido: a pesquisa da equipe chilena apoiada
pelo SEPADE que foi publicada em dois tomos com o sugestivo
titulo En tierra extreiiew e os trabalhos do encontro pentecos-
tal latino-americano realizado no Chile em 1990 17. Antes de me
referir a eles, entretanto, gostaria de propor o tema da "teologia
pentecostal normativa", que nos permitirá - na última parte
- um diálogo com essas novas tentativas.

2. A teologia do pentecostalismo
1. Existe uma teologia "pentecostel"? Embora quase todos
os autores advirtam que é necessário levar em conta as varia-
ções teológicas existentes dentro do pentecostalismo, a maioria
coincide em propor um esquema teológico vertebrado em tomo
de quatro temas:
60 Rostos do protestantismo latino-americano

A salvação, pela graça de Deus, obtida pela morte vicária


de Jesus Cristo - o sangue redentor - e recebida pela fé. Aqui
é central a experiência da conversão, pois, se é verdade que a
graça é gratuita e para todos, a experiência pessoal dessa gra-
ça, muitas vezes mas nem sempre associada a uma conversão
dramática e biograficamente identificável, confere realidade pes-
soal à salvação-".
O batismo do Espírito Santo, interpretado como uma "se-
gunda experiência", testemunhada pelo "dom de línguas" e
vinculada à santificação, que às vezes é entendida como um
processo de crescimento e outras como um dom divino conce-
dido numa experiência única e definitiva. Embora nem todos
os pentecostais atribuam o mesmo peso ao "dom de línguas",
para todos o "receber poder" é central para o batismo do Espí-
rito ou no Espírito.
A saúde divina como promessa para todos os crentes, que
se toma realidade na comunidade da igreja, habitualmente
mediante a oração e a imposição de mãos. Deve-se reconhecer
que a ênfase na saúde não é igual nos diversos ramos do
pentecostalísmo'v.
Uma escatologia apocalíptica, quase sempre pré-milena-
rista, cujos subtemas costumam ser: a ressurreição, a segun-
da vinda e o Reino milenar, o juízo e o Reino eterno.
Este esquema não implica a negação das outras doutrinas
clássicas da fé. Algumas declarações doutrinais incluem a ins-
piração das Escrituras (Assembléias de Deus, 1949), qualifica-
da em alguns casos como "verbal" (Igreja de Deus de Cleve-
land), a doutrina de Deus e da trindade (Igreja de Deus de
Cleveland e Assembléias de Deus), uma crístología calcedonen-
se (ambos os grupos), o batismo (normalmente de crentes) e a
igreja. Mas o que Donald Dayton chama de "o padrão quádru-
plo" (Cristo é o salvador, o santificador, aquele que cura e o rei
que vem) parece representar adequadamente a tradição co-
mum do pentecostalísmo-",
2. Devemos incluir este resumo no contexto do que desta-
camos no capítulo precedente sobre os "avivamentos" ocorri-
dos nos Estados Unidos na segunda metade do século 19,
porque ai se acende a faísca do despertar pentecostal. Na ver-
dade, toda a teologia do avivamento norte-americano se inscre-
ve numa "teologia do Espírito" que se move, por assim dizer,
em três etapas que em boa medida se sobrepõem: a conversão
como obra subjetiva do Espírito na salvação, a santiJicação
o rosto pentecostal 61

como "segunda bênção" - seja repentina ou gradual, plena ou


crescente, às vezes chamada de "batismo do Espírito" - e a
"plenitude do Espírito" (ou "receber o poder do Espírito"), asso-
ciada no pentecostalismo ao dom de línguas e a outras mani-
festações extáticas (às vezes consideradas uma "terceira bên-
ção" e outras vezes identificadas com a segunda).
Habitualmente se fala do começo do pentecostalismo com
as manifestações do ministério do pastor negro William Sey-
mour no salão da rua Asuza em Los Angeles em 1906. Em sua
obra clássica intitulada The Holiness-Pentecostal Movement in
the United Ststes", V. Synan caracteriza essa teologia como
"armíníana, perfeccionista, pré-milenarista e carismática".
Essa interpretação, porém, foi criticada pelas pessoas que
vêem uma dupla orígem-", sendo que um de seus componen-
tes está mais ligado à tradição reformada e batista. Seguindo
essas interpretações, o pastor Douglas Petersen, missionário
das Assembléias de Deus na Costa Rica, sustenta em sua tese
de doutorado que se deve falar de duas correntes que conver-
gem no movimento: a tradição wesleyana de santidade e a
linha pré-milenarista e dispensacionalista das Conferências de
Keswick e das "Propbecy Conferences" em sua inserção dentro
do movimento de Moody, Thrreye outros evangelistas. A "recu-
peração" do dom de línguas, cuja longa tradição conhecemos e
que já tivera manifestações nos avivamentos da segunda me-
tade do séc. 19, vem a transformar-se num elemento distintivo
do pentecostalismo desde o ministério de Parham em 'Iopeka.
Kansas (do qual se desliga - em parte devido às tendências
racistas de Parham - o evangelista leigo Seymour), e a tradi-
ção do "empowerrnent" relacionado com a evangelização. saú-
de e milagres, mais ligada à linha Keswick e igualmente rece-
bida em algumas linhas do desenvolvimento pentecostal. A
convergência das duas linhas não impede que as ênfases se-
jam distintas entre aqueles que estão mais ligados a uma ou outra.

3. O rápido desenvolvimento posterior, tanto na própria


Califórnia quanto no leste e em igrejas batistas de Chicago.
gera logo uma variedade de igrejas. sejam igrejas novas, seja
entre as existentes no movimento de santidade que assumem
o pentecostalismo. Essa é a tradição teológica das diversas
igrejas pentecostais que entram na América Latina na primeira
metade deste século.
62 Rostos do protestantismo latino-americano

3. Uma teologia pentecosta1latino-americana?


1. Os trabalhos de Sepúlveda e Campos, que mencionei
anteríormente, buscam uma expressão teológica que se origine
na própria experiência pentecostal latíno-amerícana. Assim,
Sepúlveda descreve a teologia pentecostal da experiência chile-
na inicial (1910-1960) "no contexto da exclusão", cujos eixos
seríam: a) uma visão maniqueísta do mundo (Espírito versus
matéria, céu versus terra, igreja versus mundo, crente versus
gentio, Deus versus diabo, bem versus mal e alma versus cor-
po), como uma radicalização devida "a uma experiência real da
negatividade e crueldade do mundo". "Quando um pentecostal
diz: 'Este mundo nada oferece, só oferece perdição', não está
fazendo uma afirmação dogmática, e sim narrando ou tematí-
zando sua própria experiência" (miséria, desemprego, doença,
alcoolismo, etc.); b) "determinismo e pessimismo antropológi-
co" descreveríam respectivamente a experiência do "homem
velho", incapaz de libertar-se por si mesmo de certos "vícíos",
e seu sentimento de impotência frente a forças objetivas que
não pode dominar (personificadas em Satanás e nos demô-
nios); c) no pentecostalismo chileno, diferentemente do norte-
americano, a afirmação do "poder do Espírito Santo" não cor-
responde a uma doutrina e uma codificação, mas a um reco-
nhecimento da obra do Espírito em "múltiplas manifestações
(...) desde as línguas angélicas até a simples alegria, passando
pela dança, pelas visões, etc. (...) a certeza da proximidade e da
presença viva de um Deus perdoador e acolhedor (...) É uma
forma de reapropriação social e popular do poder de Deus
frente à sua apropriação sacramental pela Igreja Católica e à
sua apropriação racionalista pela pregação do protestantismo
histórico"; d) igualmente, frente à apropriação da Bíblia pelos
"profissionais da religião", "desaparece toda mediação entre o
crente e a Bíblia que não seja a iluminação e inspiração do
Espírito Santo; cada crente pode ter sua própria Bíblia, a ler,
compreender e pregar; e) finalmente, há "uma 'igreja militante'
na qual se entra pela conversão e à qual se subordina seus
interesses pessoais, da qual se participa plenamente e com a
qual se assume um compromisso total"23.

2. Essa teologia é suficiente? Provavelmente, ninguém que


tenha lidado ainda que rnínímamente com irmãos e congrega-
ções pentecostais vai querer disputar a exatidão dessa inter-
pretação. Sepúlveda, entretanto, quer levantar a pergunta acer-
o rosto pentecostal 63

ca de como o pentecostalismo crioulo pode evoluir teologica-


mente frente às mudanças que acontecem na sociedade (em
seu caso, o do Chile, frente à abertura social de 1964 a 1973 e
à ditadura de 1973 a 1985). É que agora o pentecostal já não
se percebe simplesmente como alguém excluído de um mundo
dominado por Satanás, e sim como um possível participante
de mudanças democráticas que melhorem a condição de to-
dos, alguém excluído por fatores históricos (a ditadura) que
podem ser identificados. As pessoas com essa percepção come-
çam a ler a Bíblia com outros olhos, a ver a militáncia e a
missão cristã de outra maneira, a buscar sua "identidade pen-
tecostal" em outros termos. Ao mesmo tempo, porém, essa
mudança implica uma certa "mediação ideológica" na qual mui-
tos temem perder sua identidade evangélica e alguns vêem
como única saída a defesa do status quo e, portanto, se incli-
nam a linhas de participação social e política que o assegurem
(com o que, de fato, também assumem uma mediação ideoló-
gica de outro signo).
Ocorre-me que haveria aqui uma pergunta a ser colocada:
em que medida essas opções ideológicas são resultado da ex-
periência geral do povo pentecostal - como parece pensar
Sepúlveda - e em que medida são opções ideológicas de al-
guns dirigentes, que não são necessariamente assumidas pela
maioria? As indicações dos resultados da votação no próprio
Chile em plebiscitos e eleições em circunscrições com uma
presença pentecostal significativa parecem sugerir que nem
sempre as opções dos dirigentes, que são seguidas no plano
religioso, também o são no plano político. Essa suspeita pode
ser corroborada em outras experiências "políticas" de líderes
pentecostais em outros países latino-americanos. Esta obser-
vação, todavia, não invalida a afirmação fundamental de Se-
púlveda no sentido de uma evolução da consciência pentecos-
tal de um plano predominantemente simbólico para um plano
mais histórico.
Parece necessário salientar que essa passagem a uma par-
ticipação social e política mais marcante tem ao menos três
formas de expressão, que em alguns aspectos são contraditórias.
a) Por um lado, é evidente que surge nas igrejas pentecos-
tais uma consciência social que se expressa em "serviço aos
mais necessitados", não mais simplesmente em nível pessoal e
ocasional, mas de forma institucionalizada, e não mais só aos
membros da igreja, mas à comunidade que os rodeia. Os pro-
64 Rostos do protestantismo latino-americano

gramas de serviço à ínfãncía das Assembléias de Deus na Amé-


rica Central, os serviços sociais, médicos e jurídicos oferecidos
em muitas igrejas pentecostais e outros projetos semelhantes
- que às vezes sofrem alguma resistência por parte de pasto-
res ou grupos mais tradicionais - mostram ao mesmo tempo
um avanço institucional e um sentido mais reflexivo de res-
ponsabilidade social.
b) Em segundo lugar, várias consultas latino-americanas
de igrejas pentecostais - por certo não de todas elas - tenta-
ram articular convicções éticas relativas à sociedade, uma es-
pécie de "projeto de credo social". O "Encontro de Pentecostais
Latino-Americanos" realizado em Salvador, Bahia (Brasil) em
janeiro de 1988, constata o seguinte:
As experiências narradas pelos palestrantes e compartilhadas
por todos os grupos nos permitiram reconhecer como um fato
novo, e já com certa força no universo pentecostal, o surgimento
de igrejas pentecostais que, superando uma tendência histórica
à marginalização do social, vêm se comprometendo com os que
sofrem e descobrindo novas formas de participação socíal.ê?
O encontro seguinte tem lugar em Santiago do Chile em
dezembro de 1990 sob o tema "Pentecostalismo e libertação" e
se propõe a "propiciar um espaço para debater problemas,
desafios e contribuições do movimento pentecostal no contexto
latíno-amerícano'w. Dois parágrafos me parecem significativos
para resumir essa nova consciência:
O movimento pentecostal se situa, majoritariamente, entre os
setores mais empobrecidos de nossos campos e cidades. A partir
dessa realidade, que foi também a realidade a partir da qual
Jesus situou seu ministério (Lc 4.18), o pentecostalismo desafia
uma sociedade em pecado e em franco processo de decomposi-
ção. Ao mesmo tempo ele é desafiado pela necessidade de justiça
e restauração de nossos povos, e aí ressaltam a marginalização
da mulher, dos aborígenes, dos negros, dos jovens. A esses de-
safios são dadas respostas esperançosas, mas também muitas
vezes escapistas.
Reafirmamos nossa convicção na obra do Espírito Santo, que
se manifesta nos diversos dons; nas experiências de fé que pro-
duzem impacto na vida pessoal. na vida familiar, na vida comu-
nitária e em toda a criação. transformando-as e enchendo-as da
plenitude de Deus. Plenitude de Deus que se mostra na multi-
forme graça do Senhor, nas ações libertadoras do Espírito que
rompem estruturas pecaminosas de destruição. miséria e morte
vencidas por Jesus Cristo; nos testemunhos poderosos de mu-
o rosto pentecostal 65
lheres e homens que, na igreja e fora dela, lutam e trabalham
pela "vida abundante", promessa de Jesus, com os pobres, os
tristes, os que não têm quem os socorra, os oprimidos.
Thmei a liberdade de destacar frases que, entre outras,
marcam um significativo aprofundamento da consciência teo-
lógica: uma leitura da Bíblia que vai além do literal e chega a
uma fusão, que o pentecostal já faz na prática, do horizonte
social do texto e do próprio horizonte social; uma visão da
sociedade que leva em conta os aspectos estruturais da vida
humana - opressão, discriminação, decomposição social- e
vê neles um âmbito de ação do Espírito; e, por conseguinte, a
consciência de que, nesse espaço - fora da igreja - há uma
genuína vocação evangélica.
c) Ao lado dessas ações de serviço e dessas reflexões em
nivel teológico e social se desenvolve, amiúde sem maior con-
tato com aquelas, uma "atividade política" de líderes e grupos
pentecostais que, inclusive, tem chamado a atenção de obser-
vadores não-crentes. Os exemplos conhecidos do Peru nas úl-
timas eleições, de parlamentares evangélicos no Brasil, de ten-
tativas de formar partidos políticos evangélicos na Argentina e
outros menos conhecidos em nivel de eleição de autoridades
comunitárias e municipais ou de funcionários em postos de
indubitável sentido político, para não falar da presença evan-
gélica na vida e nas lutas políticas da América Central, consti-
tuem uma nova realidade que não podemos excluir de nossa
análíse-".
As observações que fiz a partir de contatos pessoais, geral-
mente ocasionais e um tanto superficiais, me sugerem que, na
maioria dos casos, não há ainda uma vinculação consciente da
fé que professam com a atividade política que assumiram, ex-
ceto pela afirmação muito geral de "fazer o bem" ou "procurar
ajudar" e das possibilidades de evangelização (p. ex., levar a
Bíblia e a oração para o seio da vida política ou favorecer as
condições de trabalho da igreja e, inclusive, defender a liberda-
de religiosa). Não que essas motivações não sejam genuínas e,
até certo ponto, legitimas. Porém a falta de mediação entre
uma estrutura de pensamento ético-social e uma compreensão
analítico-critica do âmbito político pode facilmente trair a ho-
nestidade das pessoas que participam (quando optam por po-
sições ideológicas cujas conseqüências sociais não chegam a
perceber) ou dar lugar a uma instrumentalização "teocrática"
do poder - habitualmente bastante limitado - dessa partici-
pação.
66 Rostos do protestantismo latino-americano

Por outro lado, a falta de experiência das pessoas que


assumem essas atividades - em não poucos casos, pastores
cuja popularidade local foi construída a partir de sua liderança
religiosa ou atividade beneficente - as toma muito vulneráveis
às tentações do poder ou às "artimanhas" de uma política
caracterizada pelo clientelismo. Talvez fosse desejável que a
crescente consciência social dessas e de outras comunidades
evangélicas que habitualmente estiveram ausentes da ativida-
de política se encaminhasse para a participação em "movimen-
tos sociais"; associações de bairro, grupos que se ocupam de
diversos interesses da comunidade, associações de consumi-
dores, movimentos ecológicos, entidades de direitos humanos,
associações de apoio a escolas ou hospitais e muitas outras
formas de participação social em nível local ou nacional. Em
primeiro lugar, porque as metas e propósitos estão mais deli-
mitados e especificamente definidos, e os crentes podem parti-
cipar mais confiadamente; em segundo lugar, porque as rela-
ções são mais pessoais e cara a cara, mais semelhantes ao que
estão acostumados na comunidade eclesial; e, finalmente, por-
que há um nível menor de corrupção e a luta pelo poder é
menos violenta. Neste sentido, os participantes podem adquirir
experiência, ao mesmo tempo que dão uma contribuição para
a vida pública. As constituições mais modernas de nossos pai-
ses começam a incluir diferentes possibilidades de participação
indireta ou semidireta na vida política, nas quais os evangéli-
cos podem começar a canalizar sua consciência social. Certa-
mente isso não substitui nem reduz a importãncia e a neces-
sidade da vida política, em sentido mais estrito, e da participa-
ção partidária, mas talvez proporcione um espaço onde as vo-
cações políticas específicas possam despertar e se desenvolver.

3. É claro que nem todo o pentecostalismo, nem sequer


todo o pentecostalismo crioulo, compartilha dessa nova cons-
ciência e se abre espontaneamente a uma participação social e
política. Ocorre que temos também aqui expressões de dirigen-
tes pentecostais. Mas fica em pé a pergunta se as igrejas que
se moveram nessa direção e os dirigentes que as expressam
"explicitam" um desenvolvimento real da consciência religiosa
e expressam as aspirações sociais do povo pentecostal ou se,
pelo contrário, introduzem um "revulsívo" que provocará uma
crise interna ou conspirará contra a continuidade do cresci-
mento que o tem caracterizado.
O problema é real, mas não pode ser resolvido com facili-
o rosto pentecostal 67
dade: estamos, finalmente, frente a um pentecostalismo pu-
jante, crescente, porém ameaçado pelos mesmos fatores so-
ciais que tomam possível seu desenvolvimento? A pergunta
não é puramente retórica quando vemos as opções sociais e
políticas de importantes setores pentecostais no próprio Chile,
no Peru, no Brasil ou na Guatemala. Parece que o pentecosta-
lismo, ao constituir-se num ator central do campo religioso,
enfrenta decisões em que já não poderá perpetuar uma vivên-
cia de sua experiência de salvação nas condições de suas ori-
gens. Pode ser que muitos pentecostais contem entre os pobres
e marginalizados, mas conjuntamente representam um ator
social e político, o que modifica o contexto de sua experiência
e, conseqüentemente, os conteúdos implícitos nela.
Num excelente artigo, que, por respeito à sua complexida-
de e riqueza me eximo de resumir, Bernardo Campos desenvol-
ve, com um aparato teórico diferente do de Sepúlveda, uma
tese semelhante: a exclusão da qual o pentecostal é vítima se
transforma em fator positivo porque lhe permite romper com o
sentido da "sócio-produção oficial" e "criar seu próprio sentido".
Dessa maneira, a ruptura de um sentido opera simultaneamen-
te a criação (recomposição) de outro sentido. 'Irata-se de um
labor artesanal, com o qual a comunidade pentecostal produz
(reconstrói) o mundo, autoproduzíndo-se.ê?
Até aqui tudo bem. Um pouco mais adiante, porém, Campos
continua afirmando:
Dessa forma, a comunidade pentecostante articula uma visão
do mundo cunhando-a com os elementos de que dispõe no mo-
mento. Não importa se, para o caso, esse elementos já estão
identificados com os modos de conhecer ou os modos de atuar
de formações religiosas católicas ou protestantes, se correspon-
dem a ideologias (...) ancestrais de seu mundo social antigo (.. .)
ou se são estranhos à sua produção nacional. 2 8
É verdade que nessa reconstrução "não importam" os mo-
dos de conhecer e de atuar que já façam parte da bagagem
prévia das pessoas que reconstroem? A própria experiência
religiosa - seja pentecostal, seja qualquer outra - não está
condicionada por essa "bagagem"? Em relação ao movimento
pentecostal, vários observadores têm notado aparentes "para-
doxos e contradições". André Droogers-", por exemplo, salienta
alguns desses paradoxos:
a) A fé pentecostal reabilita os leigos por meio dos dons do
68 Rostos do protestantismo latino-americano

Espírito Santo. Não obstante, há igrejas com uma forte estra-


tificação e determinação do poder.
b) Há ampla possibilidade de expressão emocional num
contexto de uma direção rígida com um discurso fundamentalista.
c) Os pentecostais rejeitam este mundo e se apartam dele.
Ao mesmo tempo, porém, são vistos como cidadãos e trabalha-
dores exemplares.
d) Os crentes evitam a política... Entretanto, alguns auto-
res vêem nas igrejas pentecostais um protesto social e neste
momento algumas igrejas intervêm ativamente na política e
outras surgem como a alternativa santa frente ao comunismo.
e) As pessoas aparecem rejeitando a sociedade e esperan-
do a vinda de Cristo, mas também comprometidas com o aqui
e agora.
f) Os movimentos carismáticos impõem que as pessoas
sejam da mesma igreja, mas as congregações mantêm uma
ampla autonomia.
g) Por um lado, as mulheres ocupam um papel central na
vida congregacíonal, e, não obstante, formalmente sua posição
subordinada é justificada com a Bíblia na mão.
Em nível puramente empírico, alguns desses "paradoxos"
deveriam ser examinados com cuidado. Para mencionar ape-
nas dois exemplos: no tocante ao último, referente à situação
da mulher na comunidade pentecostal, é interessante levar em
conta a tese, ainda inédita, de Elisabeth Brusco, que mostra
como a modificação das condutas "machistas", embora sem
variar o símbolo da subordinação feminina, de fato muda a
prática da relação e, por conseguinte, a autovalorização e a
autoconsciência da mulherê". O outro "paradoxo" exigiria um
desenvolvimento mais amplo: trata-se da relação entre a parti-
cipação do leigo na comunidade pentecostal e a forte estrutu-
ração hierárquica que dá um poder quase total aos dirigentes.
Este tema nos levaria a uma discussão do conceito de poder,
na qual não podemos entrar neste momento. Mas seria inte-
ressante levar em conta duas observações que Bourdieu coloca
em tensão mútua ao estudar o tema do poder. Por um lado. afirma:
A concentração de capital político nas mãos de um pequeno
número de pessoas é algo muito dificil de evitar, e, portanto, o
que ocorre com maior probabilidade é que os indivíduos mais
completamente comuns fiquem desprovidos dos instrumentos
o rosto pentecostal 69

materiais e culturais necessários para participar ativamente da


política...
Por outro lado, reconhece:
A coincidência estrutural dos interesses específicos dos delega-
dos e dos interesses dos mandantes constitui a base do milagre
de um ministério sincero e eficaz. As pessoas que servem bem
aos interesses dos mandantes são as que servem bem a seus
próprios interesses ao servir aos outros.
Embora Bourdieu se refira aqui ao poder político, suas
observações são, como ele mesmo diz, pertinentes - mutatis
mutandis - também no aspecto relígíosov. Neste sentido, já
Lalive chamava a atenção para o fato de que, embora o poder
ministerial fosse exercido de maneira autoritária e tradicional
no mundo pentecostal, o acesso dependia do "carisma", da
possibilidade de que o dirigente fosse capaz de promover e
interpretar a experiência religiosa comum.
4. Questões abertas para uma reflexão teológica. O proble-
ma colocado pelos "paradoxos" é, na realidade, mais profundo
e tem a ver com a relação entre a lógica linear da racionalidade
"ilustrada" à qual estamos habituados e a racionalidade do
simbólico, que inclui uma "multívocídade" que, às vezes, se
aproxima muito mais da "racionalidade da vida" como é expe-
rimentada pelo povo. Pretender reduzir a segunda à primeira
acarreta o grave risco de esterilizar a experiência.
Na conversa que se estabeleceu no curso das conferências
que deram origem a este livro, Bernardo Campos colocou o
problema em termos que ajudam a reflexão. Ele definiu a "pen-
tecostalidade" como uma "categoria religiosa" que aparece, ao
menos, em toda a história do cristianismo, como uma "expe-
riência espiritual" imediata e transformadora (uma "experiên-
cia extática"), cujo primeiro Iogos - sua primeira articulação
intelectual - é "o testemunho", uma atividade narrativa que
se expressa no culto e que "encontra uma primeira racionali-
zação na pregação pública, no discurso apologético ou na ora-
ção (experiência contemplativa)". A partir daí há uma transição
para a formulação ética ou a confissão dogmática e a articula-
ção tcolõgícav. O pentecostalismo, numa situação histórica e
social particular, neste caso a das sociedades latino-america-
nas, vive essa experiência e a expressa na vida e no culto. O
processo de "teorização" mal e mal começou. Daí que haja
certa "esquizofrenia" entre sua experiência e a teologia que
"herdou". A transição para uma articulação própria leva tem-
70 Rostos do protestantismo latino-americano

po. Não obstante esses esclarecimentos, ainda considero váli-


das a observação acerca do problema da transição a que Se-
púlveda alude e nossa objeção à solução de Bernardo Campos.
De fato, um setor importante do pentecostalismo se vê obriga-
do a "reconceítualízar'' os simbolos que "ressígníficou". E essa
"reconceítualízação" teológica, ainda que seja sempre perigosa
porque pode enfraquecer a dinãmica do símbolo, não é indife-
rente, mas realimenta o significado do simbolo. Em outras
palavras, o símbolo pode ser "tnultivoco", mas se é simples-
mente absurdo ou contraditório em relação a seu novo "signi-
ficado", mais cedo ou mais tarde acaba sendo descartado. Nes-
te sentido, persiste a necessidade de que o movimento pente-
costal examine sua teologia explícita em termos da teologia
implicite em sua experiência fundante.
Não se trata de uma critica ao pentecostalismo. Na reali-
dade, as observações que fiz aplicam-se em maior ou menor
medida a todo o protestantismo evangélico latino-americano, e
talvez não só a ele. E menos ainda podem ser interpretadas
como um convite a tomar seu perfil menos nítido ou a "mode-
rar" a intensidade de sua experiência. Exatamente porque o
pentecostalismo é, quantítatívamente, a manifestação mais sig-
nificativa e, qualitativamente, a expressão mais vigorosa do
protestantismo latino-americano, seu futuro é decisivo não só
para o protestantismo em seu conjunto, mas também para
todo o campo religioso e sua projeção social. Neste sentido,
muitos perceberam que a roupagem teológica que o pentecos-
talismo latino-americano herdou é demasiado estreita para abri-
gar sua experiência ou para permitir-lhe a expressão livre de
seu vigor. Trata-se, pois, de que a partir dessa mesma expe-
riência ele se liberte das distorções e encontre uma linguagem
teológica que lhe sírva para explorar a riqueza da experiência
do Espírito e para superar, assim, as contradições que amiúde
se percebem entre sua experiência religiosa, seu vigor eclesíal,
sua consciência de solidariedade e sua pertença popular, por
um lado, e a linguagem e o marco teológicos em que as preten-
de enquadrar e expressar, por outro.
Dois aspectos dessa necessidade de revisão me parecem
centrais, pois creio que neles a conceitualização dentro da qual
o símbolo foi assumido contradiz de tal maneira a experiência
e a prática reais da grande maioria do movimento pentecostal
atual, que ameaça provocar uma crise de fé em novas gerações
pentecostais. Refiro-me ao fundamentalismo bíblico e ao apo-
calipsismo pré-milenarista.
o rosto pentecostal 71

a) "A escravidão da letra e a liberdade do Espírito". Subli-


nhamos repetidamente a centralidade da Escritura na vivência
pentecostal (na realidade, em toda a vida evangélica latino-
americana). Ela é seu sinal de identificação, quando caminha
para sua igreja com a Bíblia debaixo do braço; é sua "arma de
defesa", quando outros zombam de sua fé ou a desqualífícam:
e de "conquista", quando dá seu testemunho e o ratifica: "é o
que Deus diz em sua palavra"; é a resposta a seus dilemas,
quando abre a Bíblia "sem olhar" e "lhe salta aos olhos" o texto
que responde à sua necessidade ou problema imediato; ela lhe
dá uma "linguagem" para louvar o Senhor, para orar, para dar
seu testemunho.
O que acontece, contudo, quando se trata de expressar
conceitualmente "o que é" e "como se entende" essa Escritura?
'Iodos os documentos doutrinários pentecostais que conheço
afirmam indubitavelmente o princípio somente a Escritura:
não poucos acrescentam uma palavra sobre sua "inspiração
verbal", sua "infalibilidade" ou sua qualidade de "palavra ins-
pirada e infalível de Deus". O ensino a esse respeito na maioria
dos seminários das igrejas pentecostais adota uma interpreta-
ção fundamentalista do sentido literal dos textos e, em muitos
casos, segue a hermenêutica dispensacionalista da Bíblia de
Scofíeld. Normalmente, quando um pentecostal explica por que
a Bíblia é palavra de Deus aduz essas razões... ainda que mui-
tas vezes a explicação culmine com uma referência a "como ele
ou ela encontrou na Bíblia a mensagem de vida e salvação",
"como Deus lhe falou".
Quando se colocam lado a lado a conceitualidade funda-
mentalista com a qual se expressa doutrinalmente o sígnífíca-
do da Escritura e a vivência da mesma e a interpretação e o
uso dos textos na pregação ou exortação, percebemos uma
incongruência: são duas aproximações ao "livro" totalmente
diferentes: uma busca nele "verdades" irrefutáveis; a outra,
uma inspiração, um poder, uma orientação para viver e atuar,
uma resposta a sua angústia ou uma expressão de sua alegria.
Uma tenta acertar indubitavelmente a "letra" e interpretá-la a
partir do positivismo do "senso comum"; a outra discerne nela
o que "lhe diz o Espírito" e a interpreta no âmbito do "milagre".
São duas maneiras de viver a Bíblia: para o fundamentalismo,
ela é um testemunho objetivo, em alguma medida externo, que
"está aí". O pentecostal, no dizer de Campos, "sente-se parte
do texto, 'renarra' a Bíblia, sente uma 'congenialidade com o
texto'" que lhe permite atualizá-lo, revívê-lo em sua situação,
72 Rostos do protestantismo latino-americano

prolongá-lo. Na tradição teológica ela tem sido chamada de


"interpretação espiritual", tendo assumido diversas formas e
ocupado um lugar importante na vida da igreja.
1àlvez seja possível dizer que essas duas maneiras de viver
a Bíblia podem conviver - e de fato o fazem - e até ser
compatibilizadas. Creio que as coisas são mais complexas, por-
que, por um lado, a concepção de Escritura e a tradição cultu-
ral atuantes no fundamentalismo contêm implicitamente vi-
sões teológicas e ideológicas que limitam o horizonte conceitual
do pentecostalismo. E o fato de que a liberdade da interpreta-
ção "espiritual" deste se realiza apesar da conceitualidade fun-
damentalista impede que a Escritura funcione adequadamente
como "controle" da liberdade de interpretação.
Em vez de constituir uma "mediação" que permita uma
comunicação fluida e uma inter-relação sadia entre o texto e a
experiência, a conceitualidade fundamentalista "interrompe"
essa relação em ambas as direções: nem a dinãmica da expe-
riência pessoal e social do pentecostalismo consegue informar
adequadamente a leitura do texto nem este fazer uma crítica
dinãmica e construtiva daquela. É claro que a obra do Espírito
muitas vezes supera essas contradições. Mas quão mais rica
poderiam ser a experiência, a prática e a leitura sem o lastro
de um esquema hermenêutico que muito pouco tem a ver com
a identidade real da experiência e da fé do crente!
Na medida em que essa crítica seja justificada, o teólogo
pentecostal é chamado a repensar, a partir de sua comunida-
de, as categorias de uma hermenêutica que corresponda à
maneira como sua comunidade "vive a Escritura" e, ao mesmo
tempo, ao necessário respeito pela distãncia que o texto man-
tém até mesmo dentro da unidade entre texto e experiência e
texto e prática. Provavelmente, sem desprezar os aportes que
os estudos bíblicos e a história da interpretação deram a essa
reflexão, o que eu chamaria de as três dimensões fundamen-
tais da experiência da Bíblia no pentecostalismo proporciona-
riam o "insumo" básico dessa reflexão: em primeiro lugar, a
Bíblia como relato que é escutado, repetido e memorizado no
culto, no estudo, na leitura diária - em contraposição à Bíblia
como repositório de textos de prova. Em segundo lugar, a Bí-
blia como o instrumento mediante o qual o Espírito nos guia
em meio às alternativas e decisões de toda ordem. Finalmente,
a Bíblia como "linguagem" expressiva das vivências da fé: o
temor, a alegria, o louvor, a confissão, a súplica.
b) "Nossa salvação está agora mais perto do que quando
o rosto pentecostaJ 73

no princípio cremos" (Rm 13.11). Sepúlveda nos explica o que


tem significado a esperança do "regresso próximo" do Senhor
na experiência dos "excluídos". Mas também nos indica que os
pentecostais não podem mais ver a si mesmos simplesmente
como excluídos. Na verdade, eles estão agora em ambos os
lados da beira do crescente mar da exclusão; entre os que,
precariamente, conseguiram um espaço em terra firme e ten-
tam assegurar aí sua morada e junto com muitos mais, e maís
conscientes de sua condição comum, com os quais lutam in-
frutiferamente para emergir das águas. Em ambos os casos, a
necessidade de encontrar "um lugar no mundo" se lhes torna
imperiosa e tentam avançar para satisfazê-la. Alguns se afer-
ram a um "evangelho da prosperidade" que lhes promete segu-
rança, progresso material e tranqüilidade como conseqüência
quase automática da fé. Outros procuram ajudar a si mesmos
e a outros mediante diversas formas de solidariedade social.
Alguns aspiram incorporar-se à construção da cidade terrena
mediante a participação social e política. Em nenhum desses
casos a conceitualidade apocalíptica pré-mílenarísta, em cer-
tos casos dispensacionalísta, que receberam corresponde à sua
vivência e sua prática histórica. Parece-me que, como conse-
qüência disso, o discurso apocalíptico - o quarto pilar da
teologia clássica: "o Senhor volta" - vai se transformando nu-
ma afirmação um tanto oca ou tende a ficar relegado.
Essa perda seria lamentável: a dimensão apocalíptica é,
com efeito, parte constitutiva da fé evangélica, inseparável da
mensagem do Novo 'Iestamento e necessária para dar sentido
e marcar o caráter de uma participação responsável na histó-
ria. Para isso, porém, tem de ser purificada de alguns dos
traços adquiridos na interpretação mílenarista e escapista que
assumiu no fundamentalismo anglo-saxão desde finais do sé-
culo passados' e retornar a seu sentido bíblico: a afirmação do
poder de Deus no não-poder dos sacrificados da terra; o cha-
mado à "resistência" (à hypomone) aos poderes escravizantes
deste mundo e o anúncio do triunfo final do rei crucificado; o
juízo das potestades e a aniquilação do poder da injustiça, da
crueldade, da opressão, da destruição e da morte, não como
mero "escape" da alma individual para outro mundo, e sim
como a chegada do reino de Deus enquanto destino da história
e do mundo; e, por conseguinte, a comunidade do Messias
ressuscitado como o espaço onde o Espírito Santo constrói um
"sinal" do mundo novo e os crentes como as testemunhas
dessa nova realidade que aguardamos.
74 Rostos do protestantismo latino-americano

Essa "reconceítualízação'' da linguagem e dos símbolos


bíblicos acerca do "fim" e da relação do fim com a história e a
igreja não pode ser simplesmente o resultado de uma revisão
teológica: tem de ser o acompanhamento teológico e bíblico da
própria experiência de fé, de luta e de sofrimento, embora, ao
mesmo tempo, de poder e de esperança dos crentesê-.
Faço essas observações estando agudamente consciente
de sua precariedade. Gostaria que fossem vistas apenas como
perguntas abertas. Não posso pretender, a partir de minha
própria experiência e formação, formular uma resposta que
tem de ser dada a partir da própria vida, experiência e reflexão
do pentecostal. 'Irata-se simplesmente, portanto, de perguntas
a meus irmãos pentecostais, em função da fé evangélica que
compartilhamos.
Capítulo 4
Um "rosto étnico" do protestantismo
latino-americano?

No prólogo de sua notável e pioneira obra sobre o protes-


tantismo brasileiro, Emile Léonard esclarece que "deixamos de
considerar as igrejas de colônias estrangeiras, cujos proble-
mas, não apresentando nada de especificamente brasileiro, não
serão aqui discutidos" 1. É curioso que um autor capaz como
Léonard - cujo propósito é estudar os "problemas institucio-
nais e práticos (...) levantados pela implantação e desenvolvi-
mento de crenças e de igrejas" e do "corpo social' no qual se
encarnam essas crenças, fazendo das igrejas realidades, reali-
dades humanas, com todas as peculiaridades" - não encontre
nada de especificamente brasileiro na implantação e no desen-
volvimento das numerosas comunidades protestantes (princi-
palmente alemãs, mas também japonesas, letãs, holandesas)
que foram chegando desde muito cedo ao Brasil.
De fato, sua própria chegada, assim como a de boa parte
do "protestantismo de imigração", não é nem casual nem ca-
rente de significado. Como dizíamos acerca das igrejas de mis-
são, seguindo a Bastian neste ponto, temos de repetir que
tampouco essas imigrações chegam como um fenômeno "exó-
geno", por mero impulso próprio, mas sim em resposta a certas
políticas ímígratórías gerais, quando não a convites expressos,
das mesmas elites modemizadoras que abrem as portas às
missões. Esse mesmo fato define em boa parte, inicialmente,
os locais de assentamento, as condições materiais e o status
que se lhes outorga, as dificuldades com que se deparam e, por
conseguinte, as respostas ideológicas, institucionais e teológi-
cas que elas vão desenvolvendo. Nesse sentido, não obstante
suas grandes diferenças, há um denominador comum no mo-
mento e nas condições históricas em que as igrejas "de mis-
são" e "de imigração" entram na América Latina, no lugar que
ocupam na consciência e no propósito dos dirigentes latino-
americanos e nas condições sociais, culturais e religiosas que
precisam enfrentar. Que umas e outras respondam, em alguns
sentidos, de formas muito diversas a essas condições é precí-
76 Rostos do protestantismo latino-americano?

samente um dos temas que merecem estudo, porque pode


dizer-nos alguma coisa a respeito do caráter de umas e outras-.

1. Como aproximar-nos do tema?

1. Um problema de vocabulário que é mais do que voca-


bulário. Elas foram designadas de diversas maneiras: Daniel P.
Monti (referindo-se ao Rio da Prata, 1967) e Bastian falam de
"igrejas de residentes" (subentendendo-se estrangeiros residen-
tes), porém é mais corrente falar de "igrejas de imigração". Este
é o termo usado por Damboríeria, Deiros e Prien
(Einwanderungsprotestantismus). A pesquisa sobre essas igre-
jas na Argentina, levada a cabo por uma equipe do Centro de
Estudos Cristãos, dirigido por Christian Lalive d'Epínay, apa-
rece sob o titulo Las iglesias deI trasplant&. As designações "de
residentes", "de imigração" e "de transplante" dizem algo acer-
ca dessas comunidades religiosas. As duas primeiras desta-
cam a forma de sua entrada e a terceira sugere o modo desta.
Entretanto, essas três designações são insuficientes e podem
tomar-se equívocas. Com efeito, no primeiro caso parece suge-
rir-se que o que caracterizaria essas igrejas é sua origem exó-
gena: elas vêm "de fora". Mas isso acontece com todas as igre-
jas que entram na América Latina, inclusive com a Igreja Ca-
tólica Romana. E isso não é um mero truísmo: "vêm de fora"
significa que entram a partir do contexto de uma cultura, de
uma língua, de configurações institucionais, de usos e costu-
mes plasmados em outra parte e em outro tempo. A imagem
do "transplante", segundo indica Villalpando em seu prólogo,
foi tomada de um escrito meu em que cito a conclusão a que
chega Robert Ricard num estudo da implantação da Igreja
Católica no México: "O que se estabeleceu no México", diz Ri-
card, "não foi uma Igreja mexicana, e sim uma Igreja espanho-
la transplantada para o México."4 Mutatis mutandis, indicaria
Víllalpando, isso ocorreu com as igrejas de imigração na Ar-
gentina. A analogia, contudo, não é totalmente exata: a Igreja
Católica é trasladada para a América e imposta a uma popula-
ção autóctone; as igrejas de imigração são trasladadas com a
população original na qual nasceram.
Na realidade, forçando um pouco as coisas, poderíamos
dizer que a própria natureza da fé cristã, por sua inevitável
referência histórica, é ser "transportada" por testemunhas de
um lugar - da Palestina, digamos - e "introduzida" em outro.
Um "rosto étnico" 77

Ela não pode nascer "espontaneamente" de uma cultura ou de


uma religiosidade preexistente. O que de fato difere são os
modos da imigração. Porém os imigrantes que constituem es-
sas igrejas protestantes diferem também sensivelmente em nos-
so caso: alguns são "colônias" de camponeses (galeses na Ar-
gentina ou menonitas no Paraguai), outros são implantes co-
merciais (donos ou administradores de fazenda nas províncias
de Buenos Aires ou na Patagônia ou empregados das empresas
britânicas no Chile ou na Argentina), outros são traballladores
"de cor" importados para obras públicas (as estradas de ferro
ou plantaçôes na América Central ou no Brasil). E também as
formas do transplante variam: em alguns casos, trata-se direta
e estruturalmente da criação de uma "filial" oficial, uma exten-
são de igrejas nacionais no país de origem; em outros, trata-se
de uma imigração de grupos populacionais de uma mesma
origem nacional e religiosa que se reúnem e organizam em sua
nova localização no país de imigração. E outra é, ainda, a
situação dos últimos anos, de ímígrações de países orientais -
Coréia, Japão, 1àiwan - vínculadas a denominaçôes de mis-
são em seus próprios países de origem, onde também são mi-
norias. Poderíamos aprofundar-nos nessas diferenciaçôes. Mas
a pergunta é: há algo em comum que seja mais significativo e
profundo que sua origem exógena?

2. Igrejas étnicas? Creio que esta é a pergunta que se quis


responder ao utilizar essa expressão. Aqui não se estaria maís
falando simplesmente da origem ou do modo de entrada, e sim
da própria natureza de uma Igreja; não de um acidente histó-
rico, mas de uma característica constitutiva. Como veremos,
esta designação amplia e complica o tema. Mas também abre
uma temática teológica mais profunda e significativa do que a
mera menção da origem e do modo de entrada.
Ela complica o tema, em primeiro lugar, porque amplia o
panorama. Se, em termos muito elementares, a característica
distintiva dessas igrejas é sua "homogeneidade étnica", então
entram nesse quadro as igrejas indígenas, como a Igreja Unida
toba na Argentina ou as igrejas indígenas moravas misquitas
na Nicarágua ou igrejas quase exclusivamente negras no Pa-
namá, para citar apenas alguns casos.
Mas ela complica o tema, principalmente, porque introduz
a complexa e discutida categoria "étnico". Os estudos antropo-
lógicos debateram e continuam debatendo sobre uma definição
ou identificação adequada do que constitui uma "etnia" e sobre
78 Rostos do protestantismo latino-americano?

o que é "etnícídade". Em 1964, num resumo citado com fre-


qüência, R. Narroll destaca quatro indicadores geralmente em-
pregados pelos antropólogos para definir uma etnia: 1) uma
comunidade que em grande medida se perpetua biologicamen-
te a si mesma; 2) compartilha valores culturais fundamentais
realizados com unidade manifesta em formas culturais; 3) in-
tegra um campo de comunicação e interação; e 4) conta com
membros que se identificam e são identificados por outros e
que constituem uma categoria distinguível de outras catego-
rias da mesma ordem",
No século passado, uma antropologia voltada em grande
medida para o estudo de culturas chamadas "primitivas" colo-
cava a maior ênfase em elementos objetivos, como a reprodu-
ção biológica e os usos culturais. Posteriormente, a crescente
consciência, nas ciências sociais, dos valores subjetivos e, por
outro lado, a mobilidade de migrações que criam constante-
mente novas minorias étnicas fizeram com que se salientasse
a importãncia da comunicação e interação e das redes sociais
que são criadas por adscrição própria (as pessoas que se iden-
tificam conscientemente com uma comunidade ou um grupo)
e adscrição por outros (as pessoas que são identificadas pelas
demais como pertencentes a esse grupo). Por outra parte, tam-
bém se tem destacado a importãncia dos processos de trans-
formação que acontecem no interior de uma etnia. Não é mais
possível sustentar uma visão estática, como se as culturas
étnicas se reproduzissem sem mudanças ao longo do tempo e
do espaço. Finalmente, é importante levar em conta a plurali-
dade de adscrições que ocorrem numa sociedade moderna:
uma pessoa pode identificar-se como "alemã" em termos étni-
cos, como "de classe média" em termos sociais, como "agnós-
tica" em termos religiosos e como "socialista" em termos ideo-
lógicos ou políticos. Ou seja, as dimensões em que se assume
a identidade étnica podem variar. E, por sua vez, as redes de
comunicação e as organizações que se estabelecem sobre a
base da identidade êtnica podem definir seus limites de formas
diversas: por exemplo, admitindo ou rejeitando outras pessoas
com base em opções ideológicas, políticas ou religiosas ou no
uso da mesma língua".
Tudo isso deveria levar-nos a sermos muito cuidadosos ao
falar de "igrejas étnicas" como se defrníssemos uma unidade
homogênea e estática, totalmente identificável em termos de
uma origem nacional, um idioma e uma série de usos culturais
uniformes e imutáveis. A importãncia e a significação que a
Um "rosto étnico" 79

dimensão religiosa tem na definição da identidade étnica va-


riam consideravelmente de um grupo para outro e dentro de
um mesmo grupo, e de um momento para outro". Na próxima
seção vamos tentar ilustrar algumas dessas variações ao dis-
cutir características de "igrejas étnicas", sobretudo em igrejas
originadas da imigração no Cone Sul da América do Sul".

2. Protestantismo de missão
e protestantismo étnico
A distãncia e a falta de comunicação entre igrejas de mis-
são e igrejas étnicas, pelo menos há até quase 50 anos, são um
fato inegável. Podemos, mais ainda, falar de desconfiança e
"deslegítímação" mútua. Nenhuma Igreja de imigração - na-
quela época elas já estavam presentes por cerca de meio século
na Argentina, no Uruguai e no Brasil (para referir-nos só a esta
parte do Cone Sul) - participou do Congresso do Panamá
realizado em 1916. Em Montevidéu (1925) já houve um repre-
sentante da Igreja Valdense, um do Comité Protestant Français
e um da Igreja Presbiteriana da Escócia - todos de origem
reformada -, além de um da Igreja Luterana Unida, que a essa
altura já havia assumido uma linha de missão. Por outro lado,
porém, não houve nenhuma representação de igrejas de imi-
gração no Congresso Evangélico realizado em Havana em 1929.
Só a Primeira Conferência Evangélica Latino-Americana (Bue-
nos Aires, 1949) registrou unia presença da Igreja Valdense, da
Igreja Protestante de Fala Francesa, das Igrejas Menonitas do
Paraguai e (como observador) do Sinodo Evangélico Alemão do
Rio da Prata. A Confederação de Igrejas Evangélicas do Rio da
Prata, criada em 1939, já contava com quatro igrejas "étnicas"
e outras três se uniram a ela no período de 1940-19499 .

1. Desconhecimento e rejeição. Os estereótipos mútuos


podem ser marcados com facilidade. Aos olhos das igrejas de
missão, as étnicas apareciam como catolizantes, igrejas de es-
tado, formalistas e "mundanas". Freqüentemente encontram-
se referências que as identificam com o protestantismo e angli-
canismo europeus que determinaram a decisão da Conferência
Missionária de Edimburgo em 1910 de excluir a América Lati-
na por ser "um continente cristão". A ordem litúrgica, o uso de
uma língua estrangeira e a renúncia a fazer "proselitismo"
eram incompreensíveis e escandalosos para a mentalidade mís-
SO Rostos do protestantismo latino-americano?

sionária e evangelizadora dos "evangélicos". E o consumo de


bebidas alcoólicas ou tabaco, a dança e outras atividades so-
ciais de algumas dessas igrejas chocavam a ética puritana da
maioria das igrejas de missão.
As igrejas de imigração, por sua vez, traziam desde sua
origem uma forte desconfiança para com as "igrejas livres",
que em muitos casos se apresentavam, nos países de origem,
como proselitistas em detrimento da "igreja do povo" (Vo1kskir-
che). Sua piedade parecia desordenada, fanática ou "entusias-
ta", própria de "seitas" que, ainda no conhecido vade-mécum
alemão de Kurt Hutten (3. ed., 1954), apareciam como "Seher,
Grübler, Enthusiasten" (visionários, fantasiosos, fanáticos) 10.
E sua pregação inflamada e repetitiva lhes parecia superficial,
carente de sólida base confessional ou doutrinária.
É claro que sempre houve exceções em nível pessoal, par-
ticularmente entre alguns missionários estrangeiros nas igre-
jas de missão aos quaís as relações ecumênicas haviam colo-
cado em contato com as igrejas européias e entre líderes nacío-
naís com uma formação e experiência mais ampla. làmbém
houve exceções em nível institucional, particularmente entre a
Igreja Valdense e a Metodista, que colaboraram na formação
teológica (com breves intervalos) desde a década de ISSO (in-
cluindo os Discipulos de Cristo a partir de 1917).
Desde o final da década de 1930, porém, começam a es-
treitar-se relações fraternas e de colaboração entre as igrejas
de imigração e as de missão identificadas com o que chama-
mos de "rosto liberal" do protestantismo latino-americano, no
marco da já mencionada Confederação de Igrejas Evangélicas
do Rio da Prata (1939), que posteriormente teve continuidade
na Federação de Igrejas Evangélicas da Argentina (FAlE) e na
Federação de Igrejas Evangélicas do Uruguai (FUIE), da Comis-
são de Literatura do Comitê de Cooperação para a América
Latina (CCIA, 1925) e da formação teológica nas associações
de instituições de educação teológica (a ASIT na região sul e
outras no Brasil, no Caribe e na região norte) que se organizam
a partir de 1960. As suspeitas, contudo, não desapareceram:
quando, na década de 1950, se coloca a questão do possível
ingresso da Igreja Reformada Argentina (de origem reformada
holandesa) à associação ecumênica que, na época, auspiciava
a Faculdade Evangélica de 'Ieología de Buenos Aires, apare-
cem, embora já houvesse "associados" calvinistas (a Junta de
Missões da Igreja Presbiteriana do Norte dos Estados Unidos e
a própria Igreja Valdense), inconvenientes - que às vezes pa-
Um "rosto étnico" 81

recem referir-se a uma questão teológica, como um suposto


fundamentalismo calvinista; outras vezes, a uma questão de
modalidades éticas; e outras têm mais a ver com uma descon-
fiança instintiva para com uma igreja "étnica" européia - e
essa incorporação tem de esperar até que se organize o Insti-
tuto Evangélico Superior de Estudos 'Ieológícos (ISEDET), que
conta com uma presença mais ampla de igrejas "de ímígração"!':
Os leitores que olham esse panorama a partir de outras
regiões - o Caribe, os países do Pacífico, a América Central, o
México - encontrarão paralelos e diferenças, tanto em termos
de tempo quanto de modalidade, mas atrevo-me a crer que a
experiência da região do Rio da Prata, à qual me limitei na
maior parte, não é qualitativamente diferente da experiência
das outras regiões. Além disso, é preciso destacar que, a partir
da Conferência Evangélica de 1949, tem continuado uma rela-
ção em nível Iatíno-americano - cuja forma institucional foi a
Unidade Evangélica Latino-Americana (UNEIAM) e depois o
Conselho Latino-Americano de Igrejas (ClAI) - que teve um
desenvolvimento muito amplo e na qual houve uma participa-
ção, na condição de protagonistas, de igrejas de missão e igre-
jas étnicas em igual medida. Elas também participaram ativa-
mente de movimentos como Igreja e Sociedade na América
Latina (ISAL), a Federação de Estudantes Cristãos, os Movi-
mentos Estudantis Cristãos (MECs) e de outras organizações
ecumênicas da década de 1960 em diante. Cabe salientar, não
obstante, que essas organizações evangélicas latino-america-
nas - e, em boa parte, as organizações correspondentes em
nível local - têm só parcialmente merecido a participação e o
respaldo das correntes que chamamos de "evangélica" e "pen-
tecostal", entre as quais, com efeito, surgiram estruturas de
unidade alternativas, como a Confraternidade 'Ieológíca Latino-
Americana (CONELA) ou as convocatórias do Congresso Lati-
no-Americano de Evangelização (ClADE I, CLADE II e ClADE
III), com as quais só recentemente foram estabelecidas rela-
ções, como assinalamos num capítulo anterior.

2. Por onde passam as fronteiras? Essas observações bas-


tante anedóticas colocam, não obstante, uma pergunta mais
profunda e necessária para que se superem realmente os mal-
entendidos e se estabeleçam relações fecundas e duradouras:
por onde passam as verdadeiras fronteiras? O que é que real-
mente separa as diversas correntes do protestantismo latino-
americano? 'Irata-se de uma pergunta que não pode ser res-
82 Rostos do protestantismo latino-americano?

pondida unilateralmente a partir de uma dessas correntes,


nem superficialmente em função da boa vontade e de uma
atitude de abertura, ainda que estas sejam imprescindíveis.
Felizmente, creio que estamos em ótimas condições para abor-
dar o tema. Creio, inclusive, que já iniciamos esse caminho no
ámbito da prática ecumênica, na formação do ministério, no
testemunho e esforço comum em questões de natureza social,
na defesa dos direitos humanos, no trabalho de difusão das
Escrituras. Creio, porém, que devemos a nós e ao Senhor ao
menos duas tarefas: uma é a de incorporar efetivamente nessa
relação as correntes evangélicas e pentecostais do protestan-
tismo de missão, o que não pode significar "absorver" os de-
mais nas estruturas e relações ecumênicas que já temos, e sim
as revisar, modificar ou superar e recriar juntos essas estrutu-
ras e relações de maneira que assumam efetivamente as legiti-
mas e sérias perguntas que nos são dirigidas a partir dessas
correntes. A outra tarefa consiste em considerar a fundo o
tema de "missão e evangelização" e "identidade étnica", que
são possivelmente os nós centrais, ou talvez o nó teológico e
eclesial central dessa relação. Entrementes, e como uma hu-
milde contribuição a essa tarefa, gostaria de explorar alguns
trechos dessa fronteira e verificar se ela é uma linha simples-
mente imaginária ou artificialmente traçada ou se de fato exis-
te e por onde passa.
a) Uma primeira linha demarcatória seria a que, utilizan-
do o vocabulário corrente nas igrejas protestantes européias,
passa entre as "igrejas livres" e as "igrejas tenitoriets" ou "na-
cionais" ou "do povo" (Volkskirchen), de algum modo vincula-
das organicamente ao estado ou pelo menos à nação. A clássi-
ca obra de Ernst Troeltsch intitulada Die Soziallehren der chris-
tlichen Kirchen und Gruppen ["As doutrinas sociais das igrejas
e grupos cristãos"], de 1912 12 , consagrou os termos "igreja" e
"seita" como categorias sociológicas características, justamen-
te, das igrejas - que se concebem como coincidentes com um
povo, das quais se faz parte por nascimento e que, por conse-
guinte, praticam majoritariamente o batismo de infantes, que
se integram com a cultura nacional, tém relação orgânica com
o estado e não praticam o proselitismo fora de suas fronteiras
- e das seitas - que são formações voluntárias, nas quais se
entra por decisão pessoal, que praticam majoritariamente o
"batismo de conversos", são contraculturais, não têm vincula-
ção com o estado e praticam o proselítísmov'. Infelizmente, o
vocabulário de Troeltsch e Max Weber assumiu significados
Um "rosto étnico" 83

que os autores não lhe quiseram dar, transformando uma ca-


racterização sociológica numa luta por legitimação doutrinal e
até legal. 'Irata-se, na verdade, de duas formas de ser igreja que
têm permeado a história, ao menos desde o século 4, e cuja
fundamentação teológica e concepção missionária e pastoral
com certeza continuarão presentes, não necessariamente en-
tre igrejas particulares, e sim no seio das próprias igrejas. Não
obstante, creio que - ao menos na situação latino-americana
- temos de relativizar as diferenças entre um e outro modelo.
Por um lado, a própria concepção do relacionamento entre
igreja e povo/nação/etnia é diferente em diferentes igrejas "ét-
nicas". O anglicanismo, por exemplo, parece conceber-se como
a dimensão religiosa da nação e considerar que em cada nação
a igreja nacional deve organizar-se autonomamente. Por isso,
inicialmente se propôs a formação de uma igreja de modelo
anglicano na nova nação independente dos Estados Unidos da
América do Norte, não como uma extensão da Igreja Anglicana
da Inglaterra, mas como uma igreja autônoma. 1àl coisa era
impossível no panorama religioso dos Estados Unidos e a Igreja
Episcopal foi, na realidade, uma das "igrejas livres" no campo
religioso plural existente no país». Na América Latina, o angli-
canismo enfrentou um dilema: ou reconhecia a Igreja Católica
Romana como "a igreja" da nação latino-americana - o que fez
em muitos casos - e, portanto, reduzia sua ação aqui ao
ministério dirigido aos "expatriados ingleses" e seus descen-
dentes como uma espécie de "capelania" da nação inglesa no
exterior ou à evangelização das "nações indígenas autóctones"
que não tivessem sido alcançadas pela Igreja Católica - o que
também foi feito por sociedades missionárias da Igreja da In-
glaterra - ou se transformava numa "igreja livre", em uma das
igrejas que competiam no campo religioso latino-americano.
Esta parece ser a opção da Igreja Episcopal, como a define
Kater num estudo da região centro-americana:
Uma vez mais, estão em jogo a identidade anglicana e os mode-
los eclesiais que têm definido o anglicanismo. O anglicanismo
latino-amelicano pode desempenhar um papel ativo no processo
de reflexão, para que juntos, e em diálogo com crístãos de outras
tradições, os anglicanos busquemos outros modelos de igreja
que se encaixem mais adequadamente na realidade deste conti-
nente, e de outros. 15
Algumas das igrejas étnicas entram ou se consolidam na
América Latina em momentos em que suas nações de origem
alcançam a unidade nacional. Este é o caso da Alemanha, que
84 Rostos do protestantismo latino-americano?

se unifica sob Bismarck em 1871. E, em grau distinto, é tam-


bém o caso da migração dinamarquesa para a Argentina, cujo
maior contingente chega depois de 1875, quando "os novos
ares nacionalistas começaram a soprar a partir do sul da Jut-
lãndia depois da guerra de 1864"16. É lógico que a identificação
de igreja e nacionalidade se manifeste com maior força em tais
situações, ainda que, como veremos, de forma um tanto distin-
ta em cada um desses casos!". 1ànto no Brasil quanto no Uru-
guai e na Argentina, essa vinculação entre nacionalidade e
igreja marcou profundamente a vida das igrejas de origem ale-
mã, criando profundas tensões e até divisões 18.
Mencionamos, em terceiro lugar, igrejas que, embora etni-
camente homogêneas e semelhantes às anteriores em alguns
dos traços derivados dessa situação, vivem uma relação dife-
rente com a nacionalidade. Este é o caso da Igreja Valdense,
porque remonta a uma igreja minoritária - e por muito tempo
perseguida - em seu país de origem, para a qual a tradição
religiosa, a língua patoá e, em todo caso, a identificação com os
"vales valdenses" do Piemonte eram mais fortes que a vincula-
ção com a identidade nacional, ainda que, ideologicamente,
coincidisse com a corrente liberal e anticlerical do garibaldismo
que conseguiu a unidade 19. Esse é também o caso da imigra-
ção holandesa, que se identifica majoritariamente com as igre-
jas reformadas da Holanda que, desde o cisma de 1834 que
consolidou, em 1869, a Christelijke Gereforrneerde Kerken in
Nederland, ficaram desvinculadas da Igreja Reformada da Ho-
landa, mais estreitamente vinculada ao estado.
Deve-se, além disso, observar que, embora as igrejas "ét-
nicas" fossem, em muitos casos, "igrejas do estado" em seus
países de origem, viram-se, em alguns casos, libertadas para
transformar-se de fato em "igrejas livres" ou obrigadas a fazê-
10 na nova situação. Por exemplo, a imigração alemã ao Brasil
chega a partir de 1823/1824, bastante antes da unificação da
Alemanha. A respeito dessas migrações precoces, Walter Alt-
mann faz uma observação interessante: "Entre os aspectos
que lhes [sc. esses imigrantes alemães] foram mais agradáveis
estava, sem dúvida, a possibilidade de organizarem autonoma-
mente suas comunidades religiosas. Criaram-se comunidades
livres da tutela de organismos eclesiásticos atrelados, como
igrejas de Estado, aos governos territoriais alemães. "20 Por ou-
tro lado, estavam obrigadas pela necessidade de pagar seus
pastores e manter fmanceiramente suas congregações quando
o apoio recebido do país de origem não era suficiente ou era
Um "rosto étnico" 85

interrompido. E, mais importante ainda, porque de fato se en-


contravam com "igrejas nacionais", com uma Volkskirche - a
Igreja Católica Romana - que gozava de forma exclusiva das
relações com a sociedade que haviam modelado seu status e
suas formas de atuação nos paises de origem e agora tinham
de operar, não como "as igrejas do povo", e sim como as igrejas
de um espaço social, cultural e religioso parcial e delimitado, e
amiúde discriminado ou ameaçados'.
'lendo dito e considerado tudo isso, creio que cabe reco-
nhecer que há uma diferença no modo como umas e outras
igrejas - as de missão e as de imigração - se situam na
sociedade. Em minha opinião, a diferença reside em que as
primeiras prolongam e reproduzem na América Latina, com
suas condições religiosas diferentes, mas, do ponto de vista
antropológico e, em parte, politico, análogas, a experiéncia nor-
te-americana do século 19, que o teólogo metodistaAlbert Outler--
caracterizou como uma "imensa e complexa irrupção do Espí-
rito que resgatou a causa cristã e definiu o protestantismo
[norte-americano] de grande parte do século passado". "Irans-
formou o reavívamentísmo", continua dizendo ele, "de um fato
episódico numa instituição permanente. Relegou os sacramen-
tos e a educação cristã a um lugar marginal e seu próprio etos
teológico se identificou com a palavra 'evangélico'." Finalmente,
Outler resume essa nova formação religiosa:
O traço mais destacado desse Segundo Despertar é seu fervor
emocional, concentrado sempre nestes dois pontos, e quase só
neles: 1) a salvação: libertação do pecado e da culpa (do inferno
e da condenação) e 2) uma moralidade pessoal "auto-íníbídora".
[Este é] o triunfo efetivo no Novo Mundo do "protestantismo
radical" tão severamente reprimido na Europa pelas igrejas de
estado luteranas, refonnadas e anglicanas dominantes. Essa
tradição protestante era majoritariamente "montanísta" em sua
eclesíología (igreja "baíxa", igreja "livre"): anti-sacerdotal, anti-
sacramental, antiintelectualista. Ela fazia uma distinção pejora-
tiva entre teologia especulativa e fé existencial. Suspeitava de
um clero erudito. Considerava a conversão, e não a iniciação, o
clímax: da experiência cristã. Insistia na religião pessoal como a
única essência verdadeira do cristianismo.
Como salientamos, nem todas as igrejas de missão corres-
pondem a esse esquema, nem as de imigração são todas ou
totalmente alheias a ele. Parece-me, porém, que há uma certa
verdade nesse quadro, que nos ajudaria a entender-nos me-
lhor uns aos outros dentro de toda a família evangélica-protes-
tante da América Latina.
86 Rostos do protestantismo latino-americano?

b) Essas últimas considerações excedem o campo socioló-


gico e político e nos conduzem a uma segunda linha de demar-
cação que valeria a pena explorar: a que se refere à teologia de
um e de outro tipo de igrejas. Em princípio, poderia ser fácil
contrapor "igrejas da Reforma" com uma doutrina luterana ou
calvinista clássica e igrejas de missão que se desenvolvem a
partir das igrejas dissidentes do mundo anglo-saxão. Samuel
Escobar fez essa distinção, traçando - à semelhança de Outler
- a linhagem eclesial e teológica do protestantismo evangélico
latino-americano a partir da "Reforma radical" do século 16:
igrejas "voluntárias", livres da tutela do estado, criticas da cul-
tura imperante e, muitas vezes, socialmente vinculadas aos
setores pobres ou margínalízadoss'. Em relação aos Estados
Unidos, Richard Niebuhr ofereceu uma interpretação seme-
lhante em sua clássica obra The Social Sources ofDenomina-
tionalism ["As fontes sociais do denomínacíonalísrno'Ps.
Trata-se, sem dúvida, de uma diferença a se levar em
conta. Se tomarmos, por exemplo, o trabalho de Lalive d'Epí-
nay sobre dez25 igrejas de imigração na Argentina, acharemos
algumas indicações significativas: todas elas consideram "a or-
dem no culto e na vida espiritual" entre as trés orientações
"que essa denominação enfatiza particularmente"; sete delas a
colocam em primeiro lugar, uma coloca em primeiro lugar a
eucaristia, uma a justificação pela fé e uma a conversão e o
novo nascimento. Por certo, o resultado teria sido distinto em
igrejas evangélicas ou pentecostais. O próprio Lalive destaca
uma diferença marcante no "tipo de piedade":
É interessante assinalar que os dois itens que defmem uma
espiritualidade "ardente" (hot) (.. -l nunca foram mencionados,
ao passo que dez denominações insistem (...) na ordem, numa
vida cultual "fria" icool, se se nos permite utilizar estes conceitos
da linguagem pietista, e também da linguagem do jazz). Assina-
la-se aqui um consenso quanto ao estilo da vida religiosa, e
também quanto a um certo racionalismo da fé (a saúde seria um
conceito mais do campo médico do que da vida relígíosal.ê"
Outra observação interessante, também salientada por La-
live, é que oito das dez igrejas escolhem, no tocante à autori-
dade da Bíblia, uma alternativa que a reconhece como "inspi-
rada em seu fundo e em suas idéias, mas seus redatores, seres
humanos, podem ter introduzido erros (conceitos superadosl'<".
Esta resposta provavelmente seria também comum à corrente
"liberal", mas não à evangélica e à pentecostal.
Esse levantamento é significativo, mas exige algumas reti-
Um "rosto étnico" 87

ficações: 1) é uma pesquisa quantitativa usando a técnica do


"leque de respostas": ou seja, a formulação das respostas pos-
síveis é determinada pelo pesquisador; 2) trata-se de um levan-
tamento feito entre os dirigentes das igrejas, em sua maioria
pastores; tenho a impressão, depois de anos de experiéncia
com ambos os tipos de igreja, que uma pesquisa qualitativa,
que incluísse distintos niveis de membros, poderia alterar sig-
nificativamente as respostas, provavelmente com mais respos-
tas "evangélicas" nas igrejas de imigração; 3) mais importante
é que as alternativas colocadas na seção "doutrínal" da pesqui-
sa me parecem mais direcionadas a marcar os pontos onde
possivelmente estejam as discrepãncias mais visíveis: "glosso-
lalia" e profecia, saúde, atuação comprometida na sociedade
(marcada pela condição de membro em clubes, sindicatos ou
partidos políticos) do que a explorar as teologias realmente
vigentes na piedade e no ensino dessas igrejas.
Não é minha intenção desconhecer as diferenças que essa
pesquisa destaca nem as observações válidas, como aquela de
Escobar mencionada acima. Gostaria, isto sim, de colocá-las
num contexto histórico e religioso mais amplo. Em nível histó-
rico, deve-se observar que, se o protestantismo clássico recebi-
do pelas igrejas de missão é remodelado em sua história anglo-
saxã, o de imigração proveniente da Europa central passa por
várias mediações, às vezes diversas, às vezes coincidentes. Co-
locando a questão em termos gráficos: Lutero e Calvino che-
gam da Europa depois de atravessar os filtros da ortodoxia
protestante, do racionalismo, dos movimentos pietistas, quase
contemporaneamente com as revisões liberais. Os pastores de
igrejas de origem alemã, suíça, francesa ou escocesa que res-
pondem a Lalive em 1970 a respeito da autoridade da Escritu-
ra certamente leram, em suas faculdades de 'Ieología e seminá-
rios, Schlatter ou Vinet, Harnack ou Herrmann e Barth. Per-
gunto-me, por outro lado, se um estudo cuidadoso não mos-
traria que a maior parte dos pastores das primeiras migrações
representariam teologicamente antes a ortodoxia ou o pietismo
ou alguma mescla de ambos em diversas proporções. Sabemos
do peso que o despertar do século 19 teve na Escócia e no País
de Gales. E sabemos também que a influéncia desses movi-
mentos não faltou no risveglio (despertar) valdense quase no
momento em que os valdenses zarpavam para o Uruguai e a
Argentínaw, Na Argentina, tanto a Igreja Evangélica Luterana
Argentina (lEIA) quanto a Igreja Evangélica Congregacíonal,
que se desliga do Sínodo (Alemão) do Rio da Prata, têm um
88 Rostos do protestantismo latino-americano?

forte componente pietista e rígorísta. A prtmeira se vincula ao


Sínodo de Míssúrí dos Estados Unidos, criado sob a direção de
Wilhelm Walther, cuja adesão ao pietismo é conhecida, e a
segunda corresponde em parte a uma imigração de grupos
alemães que viveram durante muito tempo uma existência pró-
pría e isolada na Rússia - costuma-se chamá-los de teuto-
russos ou "alemães do Volga" - também com forte influência
pietista (além disso, os líderes da cisão se relacionam com a
Igreja Congregacional dos Estados Unidos). Nesses dois casos,
parece haver paralelos interessantes no Brasil. Por outro lado,
em seu estudo sobre as igrejas alemãs do Brasil, Hans-Jürgen
Príen comprovou a dificuldade de identificar as linhas teológi-
cas predominantes nos prtmeiros pastores. No único caso em
que obtém informações precisas na prímeíra metade do século
19, no do pastor Sauerbronn, a teologia é o que na Alemanha
se chamava de "neología", vinculada às linhas teológicas de
Schleiermacher, Nitzsch, Neander. Sauerbronn rejeita a idéia
da inspiração verbal e define "a revelação cristã", ao estilo
"schleíermacheríano'', como arraigada na experíêncía-",
Essas referências histórtcas tomadas ao acaso não visam
provar que há diversidade teológica entre as igrejas de imigra-
ção, que nelas freqüentemente competem posições teológicas
análogas às que encontramos nas igrejas de missão e muitas
vezes aparentadas com elas. Minha intenção é, antes, ressaltar
que essas diferenças teológicas não afetam grandemente o com-
portamento "étnico" em relação com o meio: ortodoxos ou pie-
tistas, biblicistas ou liberais, "mundanos" ou "ascéticos", pro-
venientes de igrejas de estado ou livres, até há muito poucos
anos todos tendem a compreender sua missão e o émbito de
sua responsabilidade exclusiva ou quase exclusivamente em
termos da comunidade étnica. 'Ianto é assim que mesmo igre-
jas de forte influência "evangélica", como a Congregacíonal e a
Igreja Evangélica Luterana Argentina que se caracterizam a si
mesmas como igrejas "míssíonárías", definem essa missão co-
mo a de reativar a fé dos protestantes nominais, o que Lalive
chama de "missão ínterna'<v. E a Igreja Evangélica Pentecostal
(ucraniana) só se abre ao uso do idioma e à evangelização no
meio crtoulo em fins da década de 1970.
Não obstante tudo isso, também no que diz respeito à
teologia, embora devamos relativizar a diferença entre igrejas
de missão e igrejas de imigração, não a devemos ignorar. Atre-
ver-me-ia a caractertzá-la como uma tendência das prtmeiras
a uma orientação pneumatológica e das segundas a uma orien-
Um "rosto étnico" 89

tação cristolôgice em suas teologias. Digo "tendência" porque


nem umas nem outras excluem ou relegam a crístología ou a
pneumatología. A tendência se percebe, antes, nas referências
a uma piedade mais subjetiva nas primeiras e mais ligada aos
símbolos e às formas objetivas nas segundas; a uma concep-
ção mais cara a cara de igreja num caso e a uma mais institu-
cional no outro; a uma interpretação mais livre, circunstancial
e exortativa da Escritura frente a outra mais exegética e docen-
te. Seria muito difícil precisar mais essas diferenças. Seria,
inclusive, necessário um estudo mais cuidadoso e documenta-
do para justificá-las. Creio, porém, que não me equivoco ao
perceber que há uma certa "dissonância" que uns e outros
experimentam no contato com comunidades da outra linha e
uma sensação de "familiaridade" em comunidades de seu pró-
prio setor, que não resultam apenas de diferenças de cultura
ou de língua, e sím de "tonalidade" teológica, percebida não
tanto intelectualmente, mas antes na forma de se sentir e
situar em sua vida religiosa.
c) As referências desses últimos parágrafos ficam condi-
cionadas porque algumas das igrejas étnicas assumem, em
distintos momentos, uma tarefa missionária que excede as
fronteiras da comunidade étnica. Esse é o caso de pelo menos
duas igrejas cujas circunstâncias são diferentes. A Igreja Evan-
gélica Luterana Unida (IELU) tem uma dupla origem: na pri-
meira (1909-1920), os missionários trabalham com imigrantes
luteranos de vários idiomas: sueco, inglês, alemão. A partir de
1920, porêm, com a chegada do missionário norte-americano
Muller, a IELU surge como igreja de evangelização na popula-
ção de fala espanhola, criando uma série de congregações de
conversos na Grande Buenos Aires e em alguns lugares do
interior. Ao mesmo tempo, em outras regiões do país, formam-
se congregações de língua alemã e, em tomo da guerra e do
pós-guerra (1939-1945), constitui-se uma série de igrejas de
imigrantes - em alguns casos, refugiados - de origem esto-
niana, letã, húngara.
Diferente é o caso da Igreja Reformada Argentina (IRA),
que, sob a influência de alguns missionários holandeses e,
sobretudo, norte-americanos, toma uma decisão explicita de
estender seu campo de crescimento à população crioula, orga-
niza seus recursos e pessoal para esse fim e, em poucos anos
(1960-1968) triplica suas congregações e seus locais de culto.
Em outras palavras, como o expressa Lalive, a IRA decide "re-
nunciar a ser uma igreja determinada por sua origem étnica
90 Rostos do protestantismo latino-americano?

para transformar-se numa igreja evangelistica dírígídaa todas


as nações'v". Em ambos os casos, teríamos rupturas com o
modelo de "conservação" ou "missão interna", mas rupturas
que, de alguma maneira, são provocadas a partir de fora da
vida da própria igreja por missionários ou sociedades missio-
nárias que tomam a iniciativa de realizar uma tarefa evangeli-
zadora entre a população local, às vezes à margem da comuni-
dade étnica local e inclusive com tensões nela--.
Outra é a situação de igrejas que seguiram um processo
progressivo de "naturalização". Trata-se, neste caso, de uma
19reja que vai sendo integrada ao panorama religioso nacional
por fatores sociológicos e históricos - as sucessivas gerações,
II ascensão social e a subseqüente incorporação em diversos
setores da vida nacional, os casamentos mistos. Como índice
para a aculturação Lalive tomou o uso da língua e, para a
nacionalização, a formação de um pastorado Iocalv'. 'leria sido
interessante incluir um terceiro indicador: a quantidade e a
proporção de membros da igreja que entram nela a partir "de
.ora do campo religioso étnico" que a igreja representa: em
outras palavras, a quantidade de "conversos". No levantamen-
1.0 de 1970 só duas igrejas - a IRA e a IELA - incluem espe-
cífícamente a evangelização do povo argentino na definição de
sua missão. Ainda assim, é claro que a atual maioria das ou-
tras - a Anglicana, a IERP, a IELU, a Igreja Valdense, a Igreja
Presbiteriana - têm um número minoritário mas significativo
de membros de origem nacional não pertencentes ao grupo
étnico, de ministros da mesma origem e, em muitos casos, de
congregações quase totalmente ou totalmente nacionais. Acaso
essa mudança ocorreu espontaneamente, por um processo de
naturalização da igreja? Deve-se a mudanças na concepção teo-
lógica derivadas da relação ecumênica em nível nacional ou em
nível ecumênico internacional? 'Iem a ver com a formação nacional
de seus pastores em seminários unidos, ou com as transfor-
mações sociais: participar de uma sociedade crescentemente
pluralista, ver-se obrigados por circunstãncias econômicas a
migrar a outra região onde não podem participar de sua igreja
étníca>, ou com o fato de assumir, devido à crescente integração
na sociedade nacional, problemáticas sociais e até politicas sobre
as quais se vêem obrigados a "refletir" teológica e eclesialmen-
te? É provável que vários desses fatores estejam atuantes em
diversas proporções em cada caso'"; Prefirodeixar aqui em aberto
essas perguntas e colocar um último tema que me parece cen-
tral para toda esta discussão: a relação entre etnicidade e missão.
Um "rosto étnico" 91

3. Nação, etnia e missão


1. .~ todos os gentios". Já "a primeira história da igreja"
coloca o tema de "etnia" e "missão". Para Lucas, com efeito, há
uma clara seqüência: cumprindo as promessas de Deus, Jesus
Cristo "começou a fazer e ensinar" o que diz respeito ao reino
de Deus. 'lendo completado sua obra, o Senhor ressuscitado
continua, no poder do Espirito Santo, estendendo sua obra e
cruzando todas as fronteiras - Jerusalêm, Judêia, Samaria-
atê "os confins da terra". Promessa (Antigo 'Iestamento), cum-
primento (evangelho), missão marcam o caminho do propósito
de Deus. A estrutura do livro dos Atos dos Apóstolos está
determinada por essa rota. Quando interrompe sua história,
Lucas deixa o "apóstolo dos gentios" olhando para esses "con-
fms da terra" (At 28.28) que o próprio Paulo assumirá: a Espa-
nha, o nec plus ultra ocidental do mundo (Rm 15.24,28).
Já a trajetória profêtica presente em Gênesis inclui "todas
as familias da terra" no propósito de Deus (Gn 12.1-3) ao cons-
tituir em Abraão seu povo eleito. E essa relação salvífica com
"os gentios" ou "os povos" (ta ethne) recebe uma expressão
clássica em Is 2.2-22 3 6 • Essa "bênção" que se estende de Israel
aos "povos" só se transforma em "missão" como anúncio e
convite no judaísmo por volta do ano 300 a.C.: os "prosélitos"
são como um prenúncio dessa missão que Lucas transforma
no próprio sentido da existência da igreja.
Cabe ao apóstolo Paulo a tarefa de fundamentar teologica-
mente esse salto qualitativo na história da salvação, que é "a
missão aos gentios". O tema tem sido estudado repetidamente
e, embora haja aspectos ainda debatidos, uma coisa é clara:
em Jesus Cristo, a justiça redentora de Deus irrompe no uni-
verso inteiro, derruba o muro que separa judeus e gentios e
convoca todas as "nações". Uma nova era, a definitiva, come-
çou. Sabemos dos conflitos que Paulo teve de enfrentar em
relação ao significado e às conseqüências concretas dessa nova
situação. Trata-se, particularmente, de saber como entender a
condição de "povo eleito". Romanos 9 a 11 é a expressão mais
elaborada e precisa que o apóstolo oferece sobre o dilema da
condição e do futuro do povo de Israel: a justificação por graça
por meio da fé é a chave'? e o desenvolvimento da "história da
salvação" é o marco teológico dentro do qual ele articula sua
interpretação: há um tempo de graça para que "a plenitude dos
gentios" se incorpore à promessa e em seu cumprimento Israel
é introduzido novamente nessa história. Mas nem uns nem
92 Rostos do protestantismo latino-americano?

outros entram por mérito próprio, e sim unicamente pela graça


de Deus.
Não obstante o papel decisivo que o apóstolo Paulo tem no
que diz respeito à missão entre os gentios e a vocação particu-
lar ao qual ele se sente convocado pelo Senhor ressuscitado,
sabemos que o ministério aos não-judeus ou a gentios-prosé-
litos foi muito mais amplo. A igreja de Roma, à qual Paulo se
dirige, já tem gentios-prosélitos e possivelmente gentios con-
vertidos. A comunidade samaritana à qual (e a partir da qual)
provavelmente são escritos o quarto evangelho e as epístolas
joaninas, a igreja de Antioquia e as comunidades de que temos
conhecimento no Egito e na Siria atestam um amplo desenvol-
vimento independente da missão paulina. Seja qual for sua
relação direta ou indireta com Paulo, a Epístola aos Colossen-
ses desenvolve uma concepção complementar à "história da
salvação" de Atos e Romanos: a unidade de judeus e gentios
está enraizada na própria criação, na dimensão cósmica da
pessoa do Filho (Cl 1.12-23). Em Efésios, ela é o cumprimento
da vontade original de "reunir todas as coisas em Cristo" (Ef
1.9-14).

2. Quem são ta ethne e como caracterizá-los? Os estudos


lingüísticos nos tornaram muito cautelosos ao tentar identifi-
car o sentido das palavras e seu uso. É bom lembrar-nos disso
quando lidamos com termos como "gentios", "nações", "povos".
Já os vocábulos hebraicos originais e suas traduções para o
grego e o latim representam interpretações diversas. E quando
hoje em dia falamos de "nações", de "etnias" e de "povos", as
coisas se complicam mais ainda. Em termos muito gerais, atre-
ver-nos-íamos a dizer que, no uso vétero-testamentário, o ter-
mo goyim, que se costuma traduzir por "nações", representa:
a) a diversidade dos distintos povos, caracterizados por seu
lugar de origem (sua "terra"), sua consangüinidade ('famílías'')
ou sua "língua", reconhecidos, especialmente na tradição pro-
fética, como criação do Senhor Javé e submetidos à sua sobe-
rania, ainda que não o conheçam e honrem a outros deuses, e
b) em contraposição ao povo ('am) de Israel, o povo do pacto,
como o conjunto dessas nações na medida em que não conhe-
cem nem honram o único Deus verdadeiro. No primeiro senti-
do, Israel pode ser contado entre os demais povos; no segundo,
é agudamente distinguido deles. No Novo 'Iestamento, embora
o primeiro sentido não tenha desaparecido, predomina o se-
gundo quando se utiliza a expressão "as nações" ou "os gen-
Um "rosto étnico" 93
tios". E por isso a igreja nascente se esforça para entender de
que maneira os gentios podem, como Israel, ser "povo de Deus".
Que são, pois, as "nações" enquanto diversidade de "po-
vos", no primeiro sentido que mencionamos? O Novo 'Iesta-
mento não se ocupa muito do tema; talvez só reconheça a
existência dessa diversidade e, no Apocalipse, a presença dos
"povos, nações, tribos e línguas" no drama do juizo e da reden-
ção, que culmina na nova Jerusalêm que recebe, cumprindo a
profecia de Isaías (60.11), "a honra e a glória das nações" (Ap
21.26).
Com base no reconhecimento da soberania universal de
Deus e da extensão universal da redenção em Jesus Cristo,
parece fácil abandonar essa variedade de famílías, tribos, po-
vos, línguas e nações e reduzi-las a uma humanidade comum.
O pensamento grego clássico emprestou a essa noção uma
andaimaria filosófica, uma "razão" universal que todos os seres
humanos temos em comum e frente à qual as singularidades
são acidentais e sem importància. E a tradição liberal amalga-
mou as duas correntes e definiu "direitos humanos": igualda-
de, liberdade e fraternidade de todos sem distinções.
Seria ao mesmo tempo ingrato e sumamente perigoso me-
nosprezar essa herança universalista. Ela é uma conquista
humana à qual não podemos renunciar; menos ainda hoje,
quando a história política, econômica, científica e técnica nos
misturou numa só grande urbe cosmopolita. Mas seria igual-
mente tolo não perceber como essa diversidade jamais deixou
de reclamar seus direitos, de afirmar suas identidades, de fazer
sentir sua presença. 'Iem-no feito de forma perversa, procla-
mando-se "nações" eleitas, não poucas vezes reclamando legi-
timidade religiosa e missões divinas, avassalando outras na-
ções e manifestando-se violentamente quando se a desconhe-
ce. E o tem feito construtivamente, desenvolvendo suas cultu-
ras, organizando-se para o bem comum, criando, a partir de si
e sem renunciar à sua peculiaridade, relações de cooperação,
organizações internacionais e projetos comuns.
Será possível passar do mero reconhecimento dessa diver-
sidade para uma compreensão teológica dela? O caminho mais
trilhado no mundo protestante tem sido o de uma teologia das
"ordens da críação'<". A nação aparece, assim, como uma rea-
lidade ordenada por Deus e, embora corrompida pelo pecado,
de validade permanente. Parece que esse conceito predominou
na forma em que as "igrejas de imigração" têm interpretado
94 Rostos do protestantismo latino-americano?

sua "etnicidade". Em alguns casos, a ênfase recaiu mais na


"etnicidade" como cultura, como "modo de ser" (alemães, dina-
marqueses, escoceses ou galeses), inclusive como "cultura evan-
gélica" (alemã, dinamarquesa, etc.). Mesmo aí, porém, a vincu-
lação à "mãe pátria" ocupa um lugar fundamental. E, freqüen-
temente, os residentes se sentem como representantes de sua
nação de origem e a serviço dos interesses dela. Esse perigo de
identificação de "etnicidade", "cultura étnica" e "nação" (de ori-
gem) torna-se sumamente grave em situações conflituosas co-
mo aquela criada pelo nacional-socialismo alemão. Mas a equa-
ção da idéia bíblica de "os povos" como sinõnimo da forma
política do "estado-nação" moderno introduz, em todo caso,
um perigoso elemento de confusão e o risco de sacralizar os
interesses políticos, econõmicos ou ideológicos de uma deter-
minada nação num determinado momento.
Se rejeitamos a identificação de diversidade étnica com a
nacionalidade como uma "ordem da criação", como reconhecer
teologicamente essa diversidade?

3. Espaço, história e missão. O pastor e teólogo luterano


brasileiro Vítor Westhelle colocou a problemática teológica da
relação tempo-espaço em seu artigo "Re(ll)gião, o Senhor da
história e o espaço ílusórío'v". Quando nos lembramos dos
horrores perpetrados pelas "ideologias do espaço" - geopolíti-
ca, expansionismo, Blut und Boden - não podemos deixar de
sentir um calafrio ao ver reivindicada a legitimidade do "espa-
ço", aparentemente contra a do "tempo" e da história. Entre-
tanto, ao superar essa primeira sensação e prosseguir cuida-
dosamente com a leitura, a importância e a urgência do tema
se nos impõem. O espaço representa, nas palavras de Westhelle,
o território de um povo, a terra que pisamos, a cultura à qual
pertencemos, o meio ambiente com o qual ínteragímos, a casa
em que moramos, as ruas familiares que cruzamos, as redes
pessoais às quais estamos ligados ou das quais dependemos (...)
cadavez mais intrinsecamente ligados à nossa autocompreensão,"?
Acaso estamos condenados a optar entre "espaço" e "his-
tória"? O autor nos propõe uma revisão tanto da visão de uma
"história ideal" desvinculada do espaço quanto de um "espaço
ilusório" que é simplesmente o locus de um conflito de pode-
res. E, em lugar dele, nos fala - alinhado com algumas obser-
vações de Foucault - de um "espaço tangencial", representa-
do pelo "deserto" na experiência de Israel ou por "Gólgota" na
Um "rosto étnico" 95

de Jesus, "quando o círculo do poder é interceptado por um


espaço tangencial que revela os limites do espaço próprio e o
rosto da alteridade como epífanta'<.
Não é possível seguir detalhadamente o trabalho de Wes-
thelle, que me permito recomendar. Parece-me, contudo, que
uma visão trinitária do tema poderia ser um marco teológico
adequado para situar a problemática que ele nos coloca e que
é central para o tema de nossa reflexão sobre as "igrejas étnicas".
A criação, com efeito, é a afirmação do espaço, de um
espaço ordenado, povoado de espécies, lugar de diálogo com
Deus, de comunhão humana e de produção de vida. Nem o
pecado, nem a violéncia, nem a corrupção humana anulam
definitivamente a santidade desse espaço: Javé o reconstrói e
restaura para "as famílias" de povos (Gn 10). A encarnação do
Filho, longe de ser a dissolução do espaço pela presença do
tempo eterno, é sua confirmação: num lugar, em meio a um
povo, uma cultura, uma condição política e social e uma lin-
guagem, o Filho de Deus "arma sua tenda", "nascido de mu-
lher, nascido sob a lei" (GI 4.4).
O ministério terreno do Filho tem os limites e as limita-
ções desse espaço. Porém o Espírito abre esse espaço rumo ao
"outro". A maravilhosa narrativa de Me 7.24-30 acerca da cura
da mulher síro-fenícía dramatiza a crise dos espaços fechados:
Jesus se atém a seu limite. E o Espírito o repreende na voz de
"um outro total": em terra estranha, de outra raça, mulher e
contaminada por uma filha endemoninhada. E Jesus, que na
seqüência dessas passagens ganhou todas as discussões, per-
de justamente esta: "Disseste a palavra justa".
A universalidade da hístóría da salvação não é a dissolu-
ção dos espaços específicos, étnicos e diferenciados. Não é uma
negação da etnicidade como criação de Deus, como espaço de
encarnação do evangelho de Jesus Cristo. É, isso sim, a nega-
ção do espaço fechado sobre si mesmo. O que o apóstolo Paulo
rejeita é "a etnicidade como méríto'<'. A universalidade da gra-
ça não é a eliminação de raça, sexo ou condição social, e sim
sua libertação para o exercício do amor-e.
Uma doutrina autõnoma da criação transforma a etnící-
dade num espaço fechado, imutável, que se justifica a si mes-
mo e que só pode conceber a relação com o outro como domí-
nio. Essa é a etnicidade teológica do apartheid, dos "teuto-
cristãos", do "destino manifesto", da "cultura ocidental e cris-
tã", da "missão confiada à raça branca". No outro extremo,
96 Rostos do protestantismo latino-americano?

uma doutrina autônoma da redenção reduz o ser humano a


um pecador sem nome, nem terra, nem povo, nem cultura,
nem família - e, na versão subjetivista e individualista que
tanto nos tem afetado, sem corpo nem comunidade!
Com razão Westhelle reclama contra ambas as tergiversa-
ções' representando, em nível teológico, uma critica legítima à
modernidade liberal. E, ao mesmo tempo, protege esse reclamo
das tendências dissolventes de uma certa pós-modernidade ao
salientar que "por esse reconhecimento da 'alteridade' meu
próprio espaço recebe um significado religioso, porque em seu
limite o outro toma-se epííãníco'w.
Será que perdemos, nessa reflexão teológica, o sentido
concreto de nosso tema: a presença do "rosto étnico" junto aos
demais do protestantismo latino-americano? Creio que não. E
me atreveria a concluir com três afirmações que, mais do que
propostas, já são experiência em nossas relações entre igrejas
de origem étnica e de origem missionária: 1) o protestantismo
latino-americano necessita que as igrejas étnicas mantenham
e recriem constantemente a memória de sua terra, de sua
língua, de sua "mentalidade", de suas tradições teológicas; 2) o
protestantismo latino-americano necessita que essa memória
seja oferecida e recebida, não como um "pacote fechado", mas
como uma participação ativa que gera constantemente, em
uns e outros, a identidade evangélica nesse espaço particular
latino-americano no qual nos encontramos juntos, e 3) o pro-
testantismo latino-americano - de origem étnica e de origem
missionária - necessita abrir-se, a partir dessa identidade, ao
espaço e à história da sociedade latino-americana, onde o Es-
pírito de Deus está sempre presente e ativo. E por entre tudo
isso, o protestantismo latino-americano não pode se esquecer
que toda identidade é sempre criação que Deus ama e preserva
e "velha criatura" que tem de morrer e ressuscitar "à imagem
do Ressuscitado".
Capítulo 5
Em busca de coerência teológica: a trindade
como critério hermenêutico de uma teologia
protestante latino-americana

'Ientamos, nos capítulos antertores, seguir o desenvolvi-


mento teológico do protestantismo latino-amertcano, o desen-
volvimento desses "rostos" simultâneos, às vezes tão super-
postos, às vezes mal conformados, às vezes em confronto. A
pergunta é: para que fazemos este exercício? Embora nosso
trabalho não tenha sido estrttamente histórtco, constato que
estas palavras de Rubem Alves correspondem plenamente à
minha intenção:
O historiador (...) é alguém que recupera memórias perdidas e
as distribui. como se fossem um sacramento. por aqueles que
perderam a memória. Na verdade, que melhor sacramento co-
munitário existe que as memórias de um passado comum, mar-
cadas pela experiência da dor. do sacrificio e da esperança?
Recolher para distribuir. Ele não é apenas um arqueólogo de
memórias. É um plantador de vísões e de esperanças.'

1. O futuro do protestantismo
1. A exploração dessas visões com respeito ao futuro do
protestantismo latino-amertcano se desdobra em várias per-
guntas: será que o novo interesse pela religião que se percebe
em nossas terras - e não só nelas - é uma fase passageira
num processo histórtco que se encaminha inexoravelmente, a
médio e longo prazo, para "um mundo sem religião"? Em todo
caso, o protestantismo continuará crescendo ou tem ele um
teto ou limite que, mais cedo ou mais tarde. deterá seu avan-
ço? As formas mais dinâmicas do protestantismo - funda-
mentalmente o pentecostalismo - estão fatalmente condena-
das aos mecanismos de rotínização e burocratização descrttos
por Max Weber, que o levam a imitar as "igrejas tradicionais"?
Qual é. em todo caso, o futuro dessas "igrejas tradicionais"?
98 Rostos do protestantismo latino-americano

As tentativas de responder essas perguntas já constituem


uma crescente bibliografia. Há de tudo nela. Já em 1968 Lalive
falava desse "teto". Outros sociólogos, como David Stoll e David
Martin - com avaliações distintas - prevêem uma continua-
ção do crescimento. Alguns entusiastas falam de 80 milhões de
evangélicos na América Latina no final do século. Em alguns
círculos da Igreja Católica Romana se olha esse processo com
alarme, às vezes utilizado como incentivo para a própria tarefa
evangelizadora, outras vezes como denúncia de uma "invasão"
que se precisa tentar conter por todos os meios. Pessoalmente,
pedidos de origens diversas me tentaram a imaginar, sem qual-
quer pretensão de clarividência, possíveis cenários e a propor
algumas aproximações (que poderão ser vistas especialmente
em quatro artigos recentess.)
Muitas das tentativas de responder essa pergunta proce-
deram com base num esquema sociológico que pressupõe co-
mo cenário histórico a passagem da sociedade tradicional para
a modernidade. Esta seria, em tal caso, o futuro de toda a
humanidade. Aceitando-se esse modelo, a sociologia da religião
elaborada por Max Weber doravante nos permite projetar o
campo religioso, com diversos cálculos dependentes da celeri-
dade, lentidão ou descompensações que possam ocorrer na-
quela passagem. Em resumo, o final da história está amanhe-
cendo progressivamente sobre a humanidade: uma ordem mun-
dial homogênea, caracterizada pela economia do livre mercado,
pela abundância para todos, pela era tecnológica e pela demo-
cracia representativa. É interessante registrar que o profeta
maior desse "paraíso", o japonês-norte-americano Francis Fu-
kuyama, observou, num artigo recente, que não foi em todas
as partes que se gestou o "novo mundo" no ventre da democra-
cia e - embora não lhe agrade inteiramente - admite que
bem pode haver lugares onde o "fim da história" ande de mãos
dadas com regimes autoritários.
As exceções ao mundo de Fukuyama são, seguramente,
mais amplas e profundas do que ele está disposto a admitir.
Num trabalho ao mesmo tempo erudito e atrevido, O império e
os novos bérberoe', um historiador e especialista em 'Ierceíro
Mundo, o francês Jean Christophe Rufín, pinta um cenário
muito diferente: um "império", o mundo desenvolvido, rico,
tecnológico, democrático e ilustrado, que se dobra sobre si
mesmo e levanta barreiras frente aos "novos bárbaros" do 'Ier-
ceiro Mundo e, ao mesmo tempo, constrói guetos e fortificações
para manter controlados os "bárbaros" dentro de suas pró-
Em busca de coerência teológica 99

prías fronteiras; e um 'Ierceíro Mundo heterogêneo, caracteri-


zado por "estados-tampões" ao longo das fronteiras Norte-Sul
que separam os mundos, por "feitorias" onde o mundo do Nor-
te tem interesses e "representantes" e terrae incognitee, mun-
dos abandonados a si mesmos na maior parte do 'Ierceíro Mun-
do (e as "terras ignotas" no seio do próprio Primeiro Mundo).
Alguns dos sinais de crise emitidos recentemente pelos proje-
tos econômicos latino-americanos, precisamente nos "estados-
tampões" e "feitorias" - escrevo no início de 1995 - prestam
certa verossimilhança ao cenário de Rufin. É mais provável,
entretanto, que a realidade venha a ser uma mescla, em diver-
sas proporções, das duas visões: em todo caso, um panorama
confuso, cambiante e conflituoso. Que lugar poderão ter a re-
ligião em geral e o protestantismo em particular numa América
Latina em que estados-tampões, feitorias e terras ignotas se
separem e superponham ao mesmo tempo?

2. É moeda corrente supor que, à medida que as socieda-


des tradicionais se incorporem à "modernidade" - e possivel-
mente depois à pós-modernidade (supondo que esta venha a
ser outra coisa do que uma "modernidade" à qual se tenha
amputado a alma) -, a religião tende a enfraquecer-se e desa-
parecer. A experiência das últimas décadas parece questionar
esse axioma. Já Luckmann, em A religião invisíveJ4, havia co-
locado perguntas a respeito do "desaparecimento da religião" e
destacado que a busca de um "horizonte de significado" de
alguma maneira transcendente continua ocorrendo, ainda que
de formas distintas - com uma pluralidade de horizontes -
na sociedade moderna. Num interessante artigo sobre "Reli-
giões populares e modernidade no Brasíl'", o professor brasi-
leiro de ciências sociais Ali Pedro Oro destaca ao menos três
formas em que o religioso se toma "necessário" em sociedades
como a brasileira, com setores modernos e setores marginali-
zados: como provedora de sentido em setores médios e até
altos - um sentido que a modernidade exige, mas é incapaz de
proporcionar; como "reencantamento do mundo" que permite
sacralizar ou "ressacralízar" a vida", mesmo num ambiente
urbano; e como religião de êxtase que toma possível projetar-
se "para fora" do mundo ordinário e aceder a outro estado de
consciência que liberta a pessoa da prisão de uma cotídíanída-
de insuportável. Embora estas duas últimas funções tenham
sua maior atração em setores marginais, não deixam de ser
sentidas como necessidade nos setores médios e altos. A partir
100 Rostos do protestantismo latino-americano

de uma localização geográfica e cultural muito diferente, o so-


ciólogo B. W. Hargrove dedica dois capítulos de sua sociologia
da religião aos novos movimentos religiosos que surgem, se-
gundo sua interpretação, como conseqüência da "crise de con-
fiança na cultura ocidental moderna", uma crise para a qual
tanto as pessoas que se sentem "alienadas" quanto as que
caem numa situação de "anomía'' buscam e produzem uma
resposta",
Dentro dessas possibilidades, as igrejas evangélicas - se-
ja que mantenham o ritmo de seu crescimento, ou o dimi-
nuam, ou cheguem a um ponto de "saturação" - terão, sem
dúvida, um lugar nesse panorama complexo e confuso mas
enormemente dinãmico. No campo religioso latino-americano,
a presença evangélica já não é e seguramente não será mais
um fenômeno periférico, acidental ou "folclórico". Seu cresci-
mento levou alguns a esperar, querer ou temer que elas ve-
nham a substituir a Igreja Católica Romana, ou seja, a ocupar
o lugar e cumprir a função que esta desempenhou e desempe-
nha na sociedade e na cultura latino-americanas. Abstraindo
do fato de que não creio que isso seja histórica e sociologica-
mente realizável, tal proposta me pareceria uma tentação peri-
gosíssima. Nosso secular debate com o catolicismo deixaria de
ser evangélico se se transformasse em competição pelo poder,
pelo domínio das almas, pela hegemonia do campo religioso.
Ttete-se. pelo contrário, de uma discussão sobre como, de acor-
do com o evangelho, a igreja deve estar presente no mundo. O
que os evangélicos rejeitamos não é que se tenha estabelecido
ou se procure estabelecer uma "cristandade católica romana",
e sim que se estabeleça uma "crístandade'".

3. A responsabilidade do protestantismo, seja qual for seu


lugar na vida religiosa latino-americana, é o testemunho fiel do
evangelho, que se mede pela fidelidade na propagação do evan-
gelho, pela fidelidade em que se o vive e pela fidelidade com que
se o celebra, ou seja, em sua evangelização, seu comportamen-
to e seu culto. Disso nos ocuparemos, em parte, no último
capítulo. Agora, entretanto, gostaria de demorar-me na busca
de fidelidade na compreensão do evangelho, ou seja, na teolo-
gia. É possível que a teologia não seja o mais importante nem
o primeiro que deve ocupar-nos, mas certamente é indispensável.
A igreja não pode existir sem se interrogar constantemente a si
mesma, à luz da Escritura, acerca da fidelidade de seu teste-
munho, da coerência entre sua mensagem, sua vida e seu culto.
Em busca de coerência teológica 101
Há algumas décadas, René Padilla destacava que as igre-
jas evangélicas latino-americanas eram igrejas "sem teologia".
Se a análise que esboçamos é ao menos parcialmente adequa-
da, a debilidade teológica do protestantismo latino-americano
não consiste tanto na ausência de teologia, nem em seus des-
vios - que existem, como vimos -, mas, antes, em seus "re-
ducíonísmos", A herança evangélíca dos "despertares" anglo-
americanos, cujo fervor e impulso não devemos menosprezar
nem perder, produziu uma dupla redução, cristológica e sote-
riológica. E, embora as chamadas "igrejas de imigração" te-
nham retido, em sua definição doutrinal, as formulações clás-
sicas da Reforma, na prática não funcionaram - por diversas
razões - como corretivo desse reducionismo. Este, por sua
vez, combinou-se com o caráter individualista, subjetivista e
aistórico da visão religiosa da modernidade, desembocando em
algumas das graves deformações de que sofrem nossas igrejas.
Assim, a teologia se resume à crístología, esta à soteriologia e,
por fim, a salvação fica caracterizada como uma experiência
individual e subjetiva. É verdade que, lentamente, temos ten-
tado superar esses estreitamentos. E o tentamos, mais uma
vez, quase exclusivamente em "chave crístológíca", mas sem
chegar a colocar a cristologia no marco total da revelação. Por
isso estou propondo hoje uma perspectiva trinitária que ao
mesmo tempo amplie, enriqueça e aprofunde a própria com-
preensão cristológica, soteriológica e pneumatológica que está
na raiz de nossa tradição evangélica latino-americana. O que
se segue é, pois, apenas uma espécie de "ruminações" ou "pis-
tas" teológicas.

2. O que significa a trindade


como critério hermenêutica?
Ao propor a doutrina trinitária como critério hermenêutí-
co no desenvolvimento de uma teologia, parece-me necessário
destacar três riscos: o primeiro é esquecer que a doutrina da
trindade - não, por certo, a realidade do Deus trino - é uma
formulação teológica da igreja que procura integrar a totalida-
de da experiência da revelação, não como se pretendesse "a-
barcar" essa totalidade ou "esgotar" seu significado, mas sim
como uma "lembrança" permanente de que cada vez que fala-
mos de Deus, de sua palavra, de sua ação, estamos falando
dessa riqueza inescrutável e inesgotável que chamamos Pai,
Filho e Espírito Santo. A doutrina, porém, não é nem menos
102 Rostos do protestantismo latino-americano

nem mais do que isso: uma tentativa da igreja; por isso, o


objeto de nossa fé não é a doutrina da trindade, e sim o Deus
trino. A doutrina tem o caráter de um princípio diacrítico, que
nos permite distinguir, discernir, corrigir.
Em segundo lugar, não devemos nos deixar obcecar pelo
"número mágico" três e transformar a doutrina da trindade
numa espécie de adivinhação numérica - para ver quantos
"três" conseguimos encontrar na natureza, na ciência ou no
cosmo; os exemplos dessa "pítagorízação" da trindade são le-
gião na história da doutrina. Mais perigoso ainda é ver na
trindade uma espécie de "divisão de trabalho" em Deus, uma
repartição de funções que nós, depois, podemos manipular
para servir-nos do "funcionário divino" que mais nos convenha
na ocasião. Assim temos proclamado eras do Pai, do Filho ou
do Espírito ou temos justificado nossos reducionismos confes-
sionais proclamando que nossas teologias são "do primeiro
artigo", "crístocêntrícas" ou "espirituais".
Finalmente, quando falamos do "mistério" da trindade, é
bom definirmos em que sentido nosso Deus é mistério: ele o é por
sua liberdade, porque nunca poderemos sondar "a mente de
Deus", porque permanece sempre essa "alterídade", essa trans-
cendência divina ante a qual, em última análise, só nos cabe
cair de joelhos, calar num silêncio de amor e reverência e adorar:
Santo, santo, santo,
meu coração te adora;
meu coração sabe dizer-te:
Santo és tu, Senhor!
Porém Deus não é o mistério obscuro e inomeável de al-
guns misticos; não é o "abismo" que não admite qualificações.
O Deus da Escritura, o Deus do evangelho é o "mistério reve-
lado" (Ef 3.1-13); é o Deus que disse seu nome e entrou num
pacto (Êx 3); é o Deus que quis qualificar sua ação, chaman-
do-a amor, justiça, fidelidade.
Raros serão os evangélicos latino-americanos que neguem
a trindade. Creio, porém, que não é injusto dizer que essa
afirmação ficou como uma doutrina genérica, que não informa
profundamente a teologia e, o que é pior, a piedade e a vida de
nossas igrejas. Para que ela constitua verdadeiramente um
critério hermenêutico, é preciso explorar com maior profundi-
dade o que é que afirmamos na doutrina da trindade. A igreja
fez isso, especialmente nos primeiros séculos. No século 16,
Calvino e depois teólogos anglicanos souberam aproveitar essa
Em busca de coerência teológica 103

tradição. Alguns teólogos católicos latino-americanos (Juan Luis


Segundo, José Comblin, Leonardo Boff Ronaldo Munoz, entre
outros'') têm chamado recentemente a atenção para sua ím-
portãncia. O protestantismo latino-americano tem de reclamar
e cultivar essa tradição trínítáría, sem nos amedrontar porque
a terminologia às vezes parece abstrusa e vetusta. Três das
afirmações clássicas me parecem particularmente fecundas pa-
ra nosso tema.

1. Em primeiro lugar, devemos lembrar-nos que a doutri-


na da trindade é a expressão do que a Escritura nos revela
acerca da história de Deus com seu povo. Com efeito, nessa
história Deus se manifestou como Javé, o Senhor soberano
que esteve antes do "princípio de todas as coisas" (Gn 1.1),
cuja palavra origina tudo o que é e tudo o que vem a ser. Nessa
história Deus manifesta sua liberdade de decidir e escolher (na
verdade, escolhe o povo mais fraco e insignificante da terra e
faz um pacto com ele [Dt 7.7-8; 26.5ss.]) e de "ficar" fielmente
com a humanidade até chegar a "armar sua tenda" e habitar
com ela. Nessa história a comunidade de Pentecostes recebe a
presença desse Deus como efusão na vida da própria assem-
bléia e de seus membros. O Deus da trindade não é eterno na
intemporalidade de um princípio ideal ou de uma constante
indeterminada. Ele é o Deus que faz história: crer no Deus
trino é entrar nessa história 10.
Juan Luis Segundo expressou isso muito graficamente ao
dizer que Deus é sempre aquele que "está antes que nós",
aquele que "está conosco" e aquele que "está em nós". O "an-
tes" é a expressão da transcendência e liberdade de Deus em
toda a sua obra: quando descobrimos a presença de Deus na
natureza, na história, na igreja, no pão e vinho da comunhão
ou na relação pessoal da oração, não estamos "tomando posse
de Deus", não estamos lhe prescrevendo que apareça; ele pre-
cede e transcende todas as suas manifestações. Não há tem-
plo, nem sacramento, nem oração, nem igreja, nem doutrina,
nem experiência que o contenha (l Rs 8.27; Is 66.1-2; 55.8). E,
como nos adverte pela boca de Jeremias (7.1-14), ele pode
destruir todo templo - ou experiência, ou igreja, ou sacramen-
to - que se transforme em ídolo!'. À liberdade soberana do
Deus que está sempre "antes" corresponde a liberdade proféti-
ca do juízo purificador. "Com" significa que, não obstante, Deus
se faz realmente carne neste mundo, que não se recusa a
tomar-se vulnerável, tomar nome humano em nossa história,
104 Rostos do protestantismo latino-americano

tornar-se nosso vizinho: fazer-se palavras humanas, gestos,


lei, povo, presença visível, audível. À encarnação de Deus na
história correspondem a palavra concreta de um livro - a
Bíblia - e a congregação concreta de um povo - a igreja -
onde Deus verdadeiramente está, de maneira plena e real. O
"em" expressa a própria vida de Deus em nossa vida, a energia
que nos permite ser ("nele vivemos, e nos movemos, e existi-
mos"; At 17.28) e que garante essa vida para sempre; a força
do Espírito que repleta a totalidade de nossas capacidades e
dons e nos permite consagrá-los a seu serviço, a alegria de
sentir sua presença e de celebrá-la com emoção e a viva voz. À
morada desse Deus "em" nós correspondem a experiência, a
oração, a pregação, o culto, não como meros fenómenos psico-
lógicos ou simbólicos, mas como "sarça ardente" de sua presença.

2. O mesmo Juan Luis Segundo foi o primeiro a insistir,


entre nós, em recuperar uma tradição dos pais gregos - par-
ticularmente dos chamados "capadócios" - para a qual a trin-
dade significava primordial e fundamentalmente "a comunhão
das pessoas" da trindade 12 . Recentemente Leonardo Boff de-
senvolveu com cuidado essa linha teológica em seu livro A
trindade, a sociedade e a libertação. Reduzindo-o a uma lin-
guagem menos técnica, isso significa afmnar que Deus, em
seu próprio ser, não é o Eu absoluto dos filósofos, nem o mo-
narca unipessoal que projeta nos céus a imagem de um impe-
rador absoluto, nem a solidão inacessível do "Uno" em egrégio
isolamento; antes, Deus é em si mesmo uma permanente con-
versação, uma comunhão de amor, uma identidade de propó-
sito e uma unidade de ação: Pai, Filho e Espírito Santo. Um
escritor do século 6 parece ter sido aquele que utilizou um
termo grego para sublinhar essa afirmação: pertchoresis (mo-
rar um no outro, "in-habitar" e/ou compenetrar-se um com
outro). As referências bíblicas que sustentam essa maneira de
expressar-se são mais do que abundantes, particularmente no
Evangelho de João (17.21-23; 10.30,38; 14.11) e nas fórmulas
ternárias que encontramos em Paulo (Rm 8.10; 1 Co 2.11; 2 Co
13.14; 1.21-22). Por isso, com a mesma energia a igreja dirá
que as pessoas são irredutíveis uma à outra - "outro é o Pai,
outro é o Filho, outro é o Espírito Santo" - e que "o Pai está
totalmente no Filho e totalmente no Espírito Santo" e assim
sucessivamente em relação ao Filho e ao Espírito. Não se trata
de um enigma a resolver: a diferenciação e a unidade não se
opõem porque "Deus é amor".
Em busca de coerência teológica 105

o que aqui se nos revela é a natureza da realidade última:


a vida de Deus é comunhão. não se afirma a identidade re-
traindo-se sobre si, mas abrindo-se ao outro: a unidade não é
singularidade. e sim comunicação plena. À semelhança dessa
natureza fomos crtados>: na participação nessa constante "con-
versação" divina encontramos o sentido de nossa existência. a
vida abundante; sobre esse modelo devemos estruturar nossas
relações humanas. Nem a autoridade onímoda de um sobre os
demais, nem a uniformidade indiferenciada da massa. nem a
auto-suficiência do self-made mano e sim a perichoresis do
amor é nossa origem e nosso destino como pessoas, como
igreja. como sociedade.

3. A tradição teológica ocidental. talvez mais pragmática.


tentou afirmar a mesma verdade em relação com a ação do
Deus trino ao cunhar, a partir de Agostinho, a fórmula opus
trinitatis ad extra indivisum (ou opera trinitatis ad extra indi-
visa sunt ["a(s) obra(s) da trindade voltada(s) para fora éísão)
índívísalsl'f}'". Ou seja. o que o Deus trino faz no mundo - na
criação. na reconciliação. na redenção - é sempre. ao mesmo
tempo e de maneira concertada. obra do Pai. do Filho e do
Espírito. Mesmo que talvez se explique que. teologicamente,
nos acostumamos a "apropriar" a cada uma das pessoas res-
pectivamente essas três formas de ação de Deus. é necessário
que evitemos transformar essa apropriação numa separação.
OUo Weber nos adverte, com razão:
Só quando também não perdemos de vista a unidade de Deus
em sua obra, podemos evitar uma "teologia do primeiro artigo"
isolada, um "cristocentrismo" isolado ou um "espiritualismo"
isolado na teologia. Pode-se até dizer que aqui a doutrina da
trindade alcança sua relação mais imediata com a piedade; em
todo caso, não é dificil se dar conta de que, com a ruptura ou o
retrocesso da doutrina da trindade na consciência da comuni-
dade, a própria piedade toma-se unilateral e, nessa medida,
perde em vitalidade e ríqueza.P
Conhecemos muito bem, em nossa experiência latino-ame-
ricana. o que tem sido uma "piedade da providencia" passiva
ou conservadora no catolicismo popular. uma "piedade cristo-
monísta" que se esquece do reino de Deus e se desinteressa do
mundo em nossa comunidade evangélica e uma "espiritualiza-
ção" que se perde na perseguição descontrolada de experiên-
cias cada vez mais espetaculares e esotéricas em alguns gru-
pos pentecostais. A doutrina trinitária nos lembra que o Deus
106 Rostos do protestantismo latino-americano

que vem ao nosso encontro na criação e na história, no perdão


dos pecados e na busca de santificação é o mesmo Deus Pai,
Filho e Espírito Santo ao qual devemos responder sempre se-
gundo a plenitude e "plurídímensíonalídade" de sua obra.

3. Rumo a uma cristologia trinitária


É minha convicção que essas afirmações trinitárias nos
oferecem uma estrutura de pensamento teológico que pode
resgatar-nos dos reducionismos que afligem o protestantismo
latino-americano. Desenvolver essa convicção nos levaria a apli-
car esse critério aos distintos loci theologici. Seria particular-
mente significativo fazê-lo em relação à eclesíología, à doutrina
da santificação ou à escatologia. É evidente que essa tarefa
escapa, neste momento, a nossas possibilidades, porque signi-
ficaria abordar a totalidade dos temas doutrinais. Mas, já que
insisti no estreitamento "crístológíco" como um aspecto central
de nossa debilidade teológica, permitam-me concluir este capí-
tulo destacando alguns dos aspectos nos quais o critério trini-
tário poderia corrigir e enriquecer a crístología característica
das igrejas evangélicas latino-americanas.
1. A fé em Jesus Cristo no mundo das religiões. Um dos
problemas que a teologia evangélica tem de enfrentar em nossa
época é como responder à crescente e complexa pluralidade
religiosa de nossos povos.Tradtcíonalmente. definíamo-nos co-
mo "a verdade do evangelho" frente aos "erros do romanísmo"
(esta era nossa linguagem). Juan Mackay teve a perspicácia
teológica de desprender-se dos argumentos apologéticos se-
cundários - purgatório, veneração dos santos, maríología - e
colocar o debate em termos crístológícos: o contraste entre o
"Cristo da morte" trazido da Espanha (ou da África, segundo
sua análise) a nossas terras com a conquista e o "Cristo vivo"
do evangelho, o Cristo ressuscitado, vivente, próxímo'", Entre-
tanto, a discussão se colocava dentro de uma referência crís-
tológíca mutuamente aceita. Este não é mais o caso: os novos
movimentos religiosos, a presença ativa de outras grandes re-
ligiões, o renascimento - ou melhor, a manifestação e a vindi-
cação pública - das religiões indígenas ou afro-americanas
negadas e ocultadas, tudo isso nos coloca uma problemática nova.
Como entender essa nova realidade? O crescimento pen-
tecostal introduziu o problema dentro de nossa própría vida
evangélica, porque não podemos ignorar o fato de que a píeda-
Em busca de coerência teológica 107

de popular pentecostal e carismática incorpora muitos elemen-


tos e manifestações tipicas da piedade popular. A esse respeito
já há estudos de autores pentecostais, como os da equipe chi-
lena auspiciada pelo SEPADE, já citados (especialmente vol, lI,
caps. 4 e 5) e o interessante artigo de Bernardo Campos sobre
"O influxo das 'huakas' ou a espiritualidade pentecostal no
Peru" (trabalho preparado para a Associação Ecumênica de
'Ieólogos do 'Ierceíro Mundo [ASElT] e não publicado até o
momento), que reconhecem e afirmam a legitimidade desses
elementos. Será suficiente, frente a isso, que os protestantes
nos empenhemos em repetir, como já o temos feito por mais de
um século, o grito de combate da ínquísíção: tudo isso não
passa de superstição, paganismo, bruxaria ou artimanhas de
Satanás?
Sabemos que a igreja enfrentou de diversas maneiras, a
partir do século 2, a pergunta: como Jesus Cristo se relaciona
com o mundo das religiões? Encontramos, inclusive, sinais
desse tema já no Novo 'Iestamento, O movimento missionário
dos séculos 18 a 20 manifestou a mesma diversidade de enfo-
ques. Alguns tentaram típíflcar as várias linhas como: Cristo
contra as religiões, Cristo nas religiões, Cristo por sobre as
religiões (como seu "cumprimento") e Cristo com as religiões
(na linha de uma crístología do Iogos)!7.
Os protestantes temos reagido com razão contra toda for-
ma de "sincretismo". Com razão, mas nem sempre com discer-
nimento. Nos termos de um agudo dito de Jesus, temos visto
"o argueiro no olho do próximo" (o sincretismo, a idolatria e a
magia que denunciávamos no catolicismo), mas não temos
percebido "a trave em nosso olho" (p. ex., a incorporação de
elementos da cultura e da ideologia anglo-saxã em nossa pró-
pria religiosidade). De alguma maneira temos nos autodesígna-
do como os únicos possuidores e juízes de uma tradição dou-
trinal pura e absoluta, e a partir dai temos condenado a mescla
da religiosidade popular católica.
1àl posição é, de qualquer ponto de vista, inaceitável. Por
um lado, já salientamos que nossa própria "religiosidade popu-
lar" não é imune à assimilação de elementos da cultura e da
religiosidade dominantes na sociedade. Por outro, só por pre-
conceito ou miopia se pode negar que a tradição bíblica -
tanto em Israel quanto na igreja - atesta a assimilação e
incorporação de termos, categorias, formas litúrgicas e tradi-
ções das culturas e religiões circundantes. Conscientes desses
fatos, alguns dos mais lúcidos teólogos e teólogas de uma nova
108 Rostos do protestantismo latino-americano

geração se puseram a trabalhar sobre o tema, mostrando os


condicionamentos e limitações de nossas próprias experiências
- e, portanto, concepções - de Deus e da fé, e destacando a
necessidade de prestar atenção, com humildade e respeito, a
outras experiências e concepções. O diálogo no qual se desco-
brem diferenças e coincidências, no qual se reconhecem in-
fluências e contribuições mútuas seria a nova forma de abor-
dar esse tema. Parece-me que se trata de uma atitude sadia e
correta. A pergunta fundamental que devemos fazer-nos, en-
tretanto, parece-me ser se todas essas influências e contribui-
ções que nos vêm da cultura e de outras experiências religiosas
foram, ao serem assumidas em nossa própria experiência de
fé, "reínterpretadas e ressignificadas" a partir da revelação do
Deus do pacto ou se, pelo contrário, foram "batízadas" sem
nascer de novo. Se, efetivamente, devemos tomar distância
tanto de uma atitude de "purismo" quanto de uma aceitação
acritica, como pensar teológica e pastoralmente esse dilema?
Creio que um enfoque crístológíco trinitário pode servir-nos de
guia nessa tarefa.
O que significaria encarar esse tema no marco de uma
cristologia trinitária? Em primeiro lugar, não desligar o Jesus
Cristo neotestamentário da Palavra "que era desde o princípio"
"com Deus e era Deus". Digo expressamente palavra, e não
"Logos", porque não se trata de um princípio racional eterno
que informaria toda a realidade, e sim da Palavra criadora que
criou e recria constantemente o mundo, do Espírito de poder e
vida que dinamiza o mundo natural e humano: a dabar e o
ruach de Javé que se fez carne não têm estado ausentes tanto
do mundo natural quanto da história dos povos, como o diz de
maneira tão bela e vigorosa o profeta Amós: "Não fui eu que fiz
subir os filisteus de Caftor e os siros de Quir?" (9.7); ou Isaías:
"(Ciro) é meu pastor (...) o ungido" (44.28; 45.1); ou o salmista:
"se tiras teu Espírito (de toda a criação), morrem e voltam a seu
pó; envias teu Espírito, eles são criados e renovas a face da
terra" (104.29-30). Reconhecer na história, nas culturas, nas
lutas e nas religiões dos povos a presença dessa Palavra e
desse Espírito não é ceder ao paganismo, e sim confessar aque-
le sem o qual "nada do que foi feito se fez" (Jo 1.3). Com razão
dizia um cristão da Ásia: "Nosso Deus não é um deus inválido
que chegou à Ásia às costas de um missionário."
Porém não é menos certo que uma teologia cristã não
pode desligar a Palavra e o Espírito de Deus da "carne" do filho
de Maria, de seu ensinamento, de sua mensagem, de sua vida
Em busca de coerência teológica 109

e de sua morte, de sua ressurreição e seu senhorio. Aí estão as


marcas da autêntica Palavra e do Espírito do Deus do pacto.
Pelo critêrio da presença de Deus nele se mede toda suposta
presença desse Deus na história humana; aí se afirma o genui-
no e se rejeita o idolátrico em toda religião e em toda cultura
humana - inclusive em nossa religião e em nossa cultural
Não está equivocada EIsa 1àmez quando interpreta a luta pela
identidade de Quetzacoatl como Deus de vida ou de morte na
cultura maia e asteca à luz do combate profêtico da Escritura
pelo verdadeiro Deus!". E, em minha opinião, Leonardo Boff
não está desencaminhado quando propõe "a gratuidade da
graça de Deus" e "o compromisso com a misericórdia e a justí-
ça" como marcas de uma verdadeira apropriação cristã de qual-
quer tradição cultural.
Mas há tambêm uma "pista trinitária" frente à pergunta
acerca do como dessa "transsígnífícação" das tradições religio-
sas e culturais. Com efeito, a possibilidade de uma transforma-
ção genuína só existe quando o Espírito de Deus trabalha na
história e na cultura dos povos para atestar o sígnífícado de
Jesus Cristo em sua vida. Esse processo ficou rompido em
nossa América pela violenta imposição da religião espanhola. O
sincretismo latino-americano não é resultado de uma excessi-
va tolerãncia ou acomodação - como às vezes temos dito os
protestantes - e sim da tentativa brutal de "apagar" a hístôría
desses povos e substitui-la por outra, supostamente cristã. Ele
é produto de uma resistência, quando a conquista anulou as
possibilidades de uma evangelização genuína. É claro que o
evangelho nunca "volta vazio". Mas esses séculos sem verda-
deiro encontro e diálogo pesam gravemente. 1àlvez se nos dê
hoje aos evangélicos (como se está dando em alguns lugares a
partir da Igreja Católica) uma oportunidade de recuperar algo
desse encontro. É justamente aqui que valorizo a experiência
que está ocorrendo no que chamamos de "pentecostalísmo criou-
lo". Aí se opera uma evangelização "a partir de baixo", a partir
da vivência e da realidade dos setores populares. 'leremos de
dizer uma palavra mais sobre o discernimento dessa obra do
Espírito. Mas uma teologia trinitária tentará ver e ouvir o que
o Espírito do Senhor - o Jesus Cristo presente - opera na fé
desses setores populares para atualizar a unidade da Palavra
eterna da criação, da carne histórica de Jesus Cristo e da
experiência de fé do pOV0 19 •

2. A trindade e a responsabilidade social dos cristãos. Es-


llO Rostos do protestantismo latino-americano

sa perspectiva crístológíca trinitária vem igualmente guiar-nos


naquela que talvez seja a questão mais instigante e debatida
no mundo evangélico: nossa responsabilidade ante a proble-
mática de nossas sociedades. Creio que não é exagerado dizer
que a crtstología e a soteríología quase exclusivas na tradição
evangélica latino-americana se enquadram no marco de uma
interpretação sacerdotal. Com efeito, Jesus Cristo vem "lim-
par-nos" da mancha do pecado mediante seu sacrificio expia-
tório (veja-se praticamente toda a hínología centrada no tema
do "sangue" que "lava", "do preço" pago em nosso benefício).
Quem duvida disso? Mas, à parte dos problemas teológicos que
essa exclusividade implica (dos quais o mais grave é a cisão
que muita pregação "evangelizadora" corrente introduz entre o
Filho e o Pai), trata-se de uma leitura "redutora" e unilateral da
Escritura. Há uma tradição profética que Jesus assume e re-
clama para si que não pode ser reduzida legitimamente a "pre-
dição" ou "tipologie". Vale aqui recordar a sóbria admoestação
de Bonhoeffer de não se passar com demasiada rapidez do
Antigo 'Iestamento ao Novo.
Essa tradição profética, situada no marco da teologia bí-
blica do pacto, tem a ver com a redenção como libertação da
escravidão aos poderes opressores da história - e não só das
culpas pessoais ou coletivas - e para um pacto que exige a
prática da justiça, misericórdia e fidelidade, um pacto de sha-
10m histórica e não só de resgate escatológico. A partir daquela
interpretação sacerdotal "redutora", toda a vida da Palavra en-
carnada - o ensino, o ministério, os atos de poder de Jesus -
fica reduzida a uma espécie de "prefácio" à sua morte e ressur-
reição: uma conclusão na qual, curiosamente - ou não -
coincidem os fundamentalistas dispensacionalistas e o super-
liberal existencialista Rudolf Bultmann-vl
O "evangelho social" tentou restaurar a perspectiva profé-
tica insistindo nos "princípios sociais" de Jesus. Mas tanto sua
interpretação "liberal" desses princípios quando sua incapaci-
dade de vinculá-los a uma visão teológica mais plena frustra-
ram em parte essa tentativa. No movimento carismático, a
insistência em Jesus Cristo como "Senhor" e, por conseguinte,
na fé como "díscípulado" abria as portas para um desenvolvi-
mento crístológíco mais pleno. Não obstante, parece-me que
ele não conseguiu defmir os conteúdos sociais mais profundos
do discipulado para o qual convoca. Hoje, por outro lado, no
desenvolvimento dos trabalhos históricos, o "ceticismo" com
referência à possibilidade de acesso ao "Jesus histórico" está
Em busca de coerência teológica 111

dando lugar a trabalhos de contextualização social e histórica


que, sem negar as dificuldades de falar de tpisissime verba ou
ipissime acta de Jesus, mostram-nos o movimento gerado por
Jesus dentro da tradição profética nas condições conflituosas
do século 121 • Na América Latina, esses trabalhos confírmam
urna hermenêutica dos evangelhos centrada na mensagem do
Reino e na inserção de Jesus na "tradição dos pobres" em
conflito com as tradições da condução religiosa e política dos
setores dominantes do judaísmo e do poder imperial-é.
Não se trata agora, de maneira nenhuma, de substituir
um unilateralismo sacerdotal por um profético, e sim de afir-
mar claramente a unidade de ambas as interpretações. O Ser-
vo sofredor que carrega o fardo de nosso pecado e nos liberta
da culpa para iniciar urna vida nova é também o profeta que
purifica o templo de mercadores e nos convoca para um pacto
de justiça e shalom. EIsa 'Iarnez, trabalhando sobre a tradição
paulina, resumiu, com muita razão, a mensagem da justifica-
ção pela fé corno "livres de toda condenação" para poder amar
e servir em verdade e justíça>.
Se entendemos nossa crístología em termos trinitários,
ternos de levar seriamente em conta urna atuação da Palavra e
do Espírito do trino Deus que atua no mundo corno convite e,
ao mesmo tempo, corno juízo na busca de shalom e justiça
antes que nós cheguemos e à parte de toda ação dos crentes e
das igrejas. Esse mesmo Jesus Cristo, que nos convoca a par-
ticipar de sua obra na sociedade e na história, define os con-
teúdos de paz e justiça em seu ensino e em sua ação histórica
e, no poder do Espírito Santo, nos capacita para discernir os
modos e as características de nossa participação corno crentes
e corno igrejas no presente histórico em que nos cabe atuar. A
consciência de sua transcendência nos impede de fixar numa
proposta social, econômica ou política o horizonte último dessa
ação; seu "esvaziamento" numa vida condicionada social e cul-
turalmente nos protege de uma "assepsia" histórica com a qual
freqüentemente disfarçamos corno neutralidade piedosa o que não
passa de traição ao evangelho e, ao mesmo tempo, a nosso povo.

3. A trindade e o "Cristo no Espírito". Ricardo Rojas profe-


tizava em 1928:
o mundo necessita novamente da vinda do Messias; e se há 20
séculos veio à terra, como homem de carne, o Cristo dos ritos e
templos, hoje esperamos o Cristo social, que virá no Espírito,
como ele o anunciou, para a elevação das almas e a paz dos povos.ê"
112 Rostos do protestantismo latino-americano

Acaso seu vaticínio estará se cumprindo no crescimento


do cristianismo pentecostal de nosso tempo? De fato, a tradi-
ção evangélica latino-americana é fortemente pneumatológíca.
'Ianto em sua expressão nos "avivamentos" quanto no "movi-
mento de santidade" do século 19 e no pentecostalismo do
século 20, a adscrição à "obra do Espírito" tem sido a dinâmica
fundante e fundamental. Não obstante, nenhum desses movi-
mentos desenvolveu uma verdadeira teologia do Espírito, e me-
nos ainda uma teologia do Espírito Santo num contexto trini-
tário. Na realidade, tal teologia tem estado ausente na tradição
teológica dominante no Ocidente. O catolicismo não teve uma
teologia pneumatológtca, talvez, como o dizia não faz muito um
eminente teólogo católico, "porque a igreja substituiu o Espírito".
O protestantismo clássico deu ao Espírito Santo um papel
passivo de legitimação da Escritura, uma espécie de "selo" sub-
jetivo de aprovação, que nada contribuia para a interpretação
de seu conteúdo. E o protestantismo pietista e evangélico lhe
atribuiu um papel na "subjetivação" da fé como experiéncia. O
movimento pentecostal destacou as manifestações extraordi-
nárias do Espírito, mas sem as vincular à totalidade da "obra
do Espírito" e menos ainda a seu contexto trinitário. Atrever-
me-ia a sugerir, no contexto da hermenêutica que venho pro-
pondo, que uma crístología trinitária deveria considerar, na
América Latina, a relação Cristo / Espírito em relação com ao
menos dois temas: a liberdade e o poder do Espírito, e o discer-
nimento do Espírito Santo.
Com efeito, na linguagem bíblica o Espírito é o poder, a
força de Deus (por certo, em nossa perspectiva, do Deus trino)
atuando no mundo e na história para cumprir o propósito
divino. Essa palavra e esse poder armaram sua tenda entre
nós em Jesus o Cristo. Parece-me que a tendência de alguns
historiadores contemporãneos da teologia a ver no Novo 'Iesta-
mento uma oposição de "crístologías do lagos" e "crístologías
do Espírito" não leva suficientemente a sério a relação entre
"palavra" e "espírito" na tradição bíblica e está demasiado in-
fluenciada pelo peso que assumiram posteriormente as inter-
pretações helenizantes de "palavra" como "logos". Não é este o
momento de aprofundar um estudo do uso teológico dos con-
ceitos de "palavra" e "espírito" no Antigo e no Novo 'Iestamen-
tos. Limito-me a sugerir que, embora haja diversos matizes e
tradições bíblicas em ambos os casos, tanto uma noção quanto
a outra incluem um elemento fundamental de ação, força e
realização, e outro de propósito, vontade e revelação. Pela Pa-
Em busca de coerência teológica 113

lavra e pelo Espírito, Deus manifesta sua vontade - ou seja,


se manifesta a si mesmo - e a realiza dinamicamente no
mundo e na história.
Se não estou equivocado, a experiência do Espírito Santo
é, no pentecostal, a experiência do "poder do Espírito Santo".
Na expressão das origens do pentecostalismo nos Estados Uni-
dos, o verbo empower, to be empowered aparece constante-
mente. E, embora o português não tenha esse verbo, os termos
"receber o Espírito", ou "ficar cheio do poder do Espírito", ou
"agir no poder do Espírito", ou "o Espírito de poder" têm a
mesma conotação. Trata-se do poder para testemunhar, para
curar, para expressar-se em línguas, para ser "inteiramente
santificados". Atrever-me-ia a falar aqui, em termos do capítu-
lo 8 de Romanos, da experiência do Espírito como antecipação
da redenção final: é "conhecimento cara a cara", é eliminação
"de toda fraqueza e de toda doença", é louvor e gozo pleno num
milagre e numa situação extática em que desaparecem nossa
finitude e nosso pecado. Entretanto, essa perspectiva escatoló-
gica fica aqui, como em quase toda a tradição evangélica lati-
no-americana, restrita à obra do Espírito no ãmbito da reden-
ção e, mais estreitamente ainda, da redenção individual ou,
quando muito, da igreja. Quanto à antecipação da plenitude da
obra do Espírito na redenção da totalidade da criação - da
qual também fala Romanos 8 - nada escutamos. Nossa teolo-
gia evangélica latino-americana não parece saber nada do Es-
pírito que renova a face da terra, do Espírito que unge Ciro, do
Espírito que faz falar a jumenta de Balaão (Nm 22) ou que unge
Meliquisedeque, sacerdote e rei pagão (Gn 14.17ss.}25. Em ou-
tras palavras: sabemos do poder do Espírito, mas não da liber-
dade do Espírito para atuar ubi et quando visum est deo ["onde
e quando aprouver a Deus"]. Nesse vazio fica sufocada a voca-
ção profética da igreja no mundo.
O tema da liberdade e do poder do Espírito, porém, recla-
ma o do discernimento do Espírito. O "poder" -é, com efeito,
um "bem religioso" muito cobiçado. Quem o possui - como
"rnaná", "carisma" ou legitimação da "ordem sagrada" - goza
de um espaço de liderança, de prestígio, de influência. Mas
acaso esse bem é sempre o Espírito Santo? Esta é uma proble-
mática muito concreta e muito conflituosa na vida de nossas
igrejas.
O discernimento do Espírito é, nos termos do Novo 'Iesta-
mento, um dom do próprio Espírito, não uma fórmula que se
aplique mecanicamente. Mas não se trata de um círculo vicio-
114 Rostos do protestantismo latino-americano

so porque há certos critérios ligados ao caráter e ao propósito


do Deus trino manifestados na história da revelação. O Espíri-
to Santo é o Espírito do Deus criador que dá vida, a protege e
redime, do Deus do pacto que permanece fiel e exige justiça e
misericórdia. Quando o poder e a liberdade do Espírito são
invocados e reclamados para ações e condutas que conspiram
contra a vida, a justiça e a misericórdia, temos razões para
duvidar de que seja o Espírito Santo.
O Novo 'Iestamento estabelece uma dupla relação entre
Jesus Cristo e o Espírito. Por um lado, Jesus Cristo vem e atua
"no poder do Espírito", ou seja, no propósito e no poder de Javé
assim como se manifestaram na criação e no pacto. Por outro
lado, Jesus Cristo outorga o Espírito. Não pode haver contra-
dição, mas deve haver complementação de ambas as afirma-
ções. O Espírito que Jesus Cristo concede não é outro do que
aquele no qual ele mesmo atua e que é reconhecido pela con-
tinuidade desse propósito e dessa obra, agora interpretados e
definidos na própria ação do Filho. Por isso se justifica, ainda
que não haja por que aferrar-se literalmente à fórmula, a ex-
pressão do credo ocidental: o Espírito "procede do Pai e do
Filho {fllioque)". O apóstolo Paulo, por sua vez, toma muito
concretos esses critérios: não é o "caráter espetacular" das
manifestações, e sim os "frutos" do Espírito (GI 5.22-23) que
legitimam a reivindicação de ter recebido os "dons do Espírito",
como ilustra muito bem a ampla discussão do tema em 1
Corintios 12-14. É verdade que em 1 Corintios 12 Paulo propõe
a afirmação "Cristo é Senhor" como prova de se ter o Espírito.
Mas também exige que quem está no Espírito do Senhor ande
"segundo o Espírito" (Rm 8.1; GI 5.16,25; CI 2.6), ou, nas pa-
lavras de 1 João 2.6: "Aquele que diz que permanece nele, esse
deve também andar assim como ele andou." E recordemos que
"andar" no Senhor ou no Espírito significa, segundo Paulo ou
João, "andar no amor". Quando se utiliza o poder divino como
instrumento para auto-engrandecer-se e dominar ou explorar
por ganho econômico, a fidelidade ao evangelho nos obriga a
duvidar da legitimidade desses dons.
Esta tentativa pretende apenas mostrar algumas das pos-
sibilidades de desenvolver uma perspectiva hermenêutica tri-
nitária na interpretação e integração da temática teológica,
como correção e sustentação de nossa resposta às exigências
da vida e missão das igrejas evangélicas latino-americanas em
nosso tempo.
Capítulo 6
Em busca da unidade:
a missão como princípio material
de uma teologia protestante
latino-americana

Em que consiste a identidade protestante? Ou mais preci-


samente: há um critério teológico de referência para identificar
uma teologia protestante? 'lemos suposto que os clássicos "so-
mente" - sola tide, sola scriptura, solus Christus - identifi-
cassem o protestantismo. Mais tecnicamente, fala-se de um
"princípio formal" (a autoridade exclusiva da Escritura) e de
um "princípio material" (a doutrina da justificação pela fé) co-
mo os eixos sobre os quais se constrói uma teologia protestan-
te. Na realidade, trata-se de resumos cunhados com propósitos
testemunhais ou polêmicos, com um valor mais simbólico do
que estritamente teológico. Ao primeiro, ligado ao advérbio "so-
mente", é preciso sempre acrescentar que, de fato, nem a fé,
nem a Escritura, nem Cristo nunca estão sós, e sim num
contexto teológico mais amplo que permite definir seu verda-
deiro conteúdo. O diálogo teológico dos últimos 40 ou 50 anos
nos ensinou a relativizar essas formulações. Os dois princípios
- formal e material - resultam de uma longa história, cuja
origem nos reformadores é um tanto remota e imprecisa 1. Por
certo há nesses princípios um conteúdo significativo que é
necessário resgatar. Paul Tillich contribuiu para a discussão
do "próprio" protestante com sua formulação do "princípio pro-
testante", que interpreta a justificação pela fé como um princí-
pio antiidolátrico que "contém o protesto humano e divino con-
tra toda pretensão de absolutizar qualquer realidade relativa,
inclusive de uma igreja protestante'<. Rubem Alves, por sua
vez, retoma o princípio protestante de Tillich e vê nas origens
do protestantismo latino-americano a atuação de um "princí-
pio utópico" desinstalador em relação à absolutização católica,
mas um princípio que o próprio protestantismo abandonou ao
absolutízar-se "no protestantismo da reta doutrina e numa
atitude cada vez mais conservadora'".
116 Rostos do protestantismo latino-americano

Como já destacamos, tanto a autoridade da Escritura quan-


to a doutrina da salvação pela graça somente e da justificação
pela fé foram consistente e vigorosamente afirmadas no protes-
tantismo latino-americano. Parece-me claro, porém, que elas
funcionaram de maneira diferente do que na ortodoxia protes-
tante: eram armas teológicas utilizadas na "batalha pelas al-
mas". E esse combate não era simplesmente anticatólico: era
- e continua sendo -, antes, o testemunho de uma experiên-
cia religiosa nova, transformadora, vital, da qual se convida o
homem latino-americano a participar.
Essa afirmação, que não requer comprovação no tocante
ao "rosto evangélico" e ao "pentecostal" do protestantismo mis-
sionário latino-americano, parece-me ser válida também para
o próprio "rosto liberal", embora não o seja, ao menos na mes-
ma medida, para as chamadas "igrejas de imigração", por ra-
zões que indicamos no capítulo 4. Não só porque a mesma
piedade informa a vida das igrejas "liberais", "evangélicas" e
"pentecostaís", mas porque até mesmo os líderes liberais con-
cebem a presença protestante na América Latina como essen-
cialmente missionária e, se se empenham em tarefas educacio-
nais, sociais e até mesmo políticas, justificam-nas como parte
dessa missão evangelizadora. Seria muito simples - e um
tanto enfadonho - documentar essa afirmação com citações
dos congressos do Panamá, de Montevidéu e de Havana, das
três CElA e de destacados "liberais" latino-americanos dos
últimos 50 anos como Gonzalo Báez-Camargo, Alberto Rem-
bao, Erasmo Braga, Sergio Arce, Jorge P. Howard ou Sante U.
Barbieri.
A participação das chamadas "igrejas históricas" (incluin-
do neste caso as de imigração) da América Latina no movimen-
to ecumênico oferece uma interessante contraprova: na inte-
gração do Conselho Missionário Internacional, da Conferência
de Vida e Obra e da de Fé e Constituição no Conselho Mundial
de Igrejas (integração institucional que ainda não conseguiu
transformar-se em plena unificação de propósito e funciona-
mento), os participantes latino-americanos alistaram-se quase
exclusivamente no primeiro ou na segunda, ou em ambos. Fé
e Constituição nunca conseguiu firmar pé nas igrejas latino-
americanas. Atrevo-me a dizer que a razão é precisamente
esta: a unidade como missão - evangelizadora e social - faz
sentido na autocompreensão do protestantismo latino-ameri-
cano; a unidade como projeto predominantemente doutrinal
ou eclesiástico não evoca resposta. De fato, os organismos "e-
Em busca da unidade 117

cumênícos" que as igrejas latino-americanas gestaram no con-


tinente - particularmente a UNELAM e o CLA!. e inclusive o
CaNEIA - mantêm a mesma orientação: têm privilegiado qua-
se exclusivamente a dimensão evangelizadora e, em diversas
medidas, social da colaboração e da unidade, mas têm negado,
esquivado ou ao menos não incorporado significativamente a
consideração da unidade doutrinal e orgânica.
Por isso. se se tenta descobrir um "princípio material", ou
seja, aquela orientação teológica que, por expressar melhor a
vivência e a dinãmica da comunidade religiosa, dê consistência
e coerência à compreensão do evangelho e se constitua em
ponto de referência para a construção teológica dessa comuni-
dade, temos de falar da "missão como 'princípio material' de
uma teologia protestante latino-americana". Só que, no caso
do protestantismo latino-americano, esse princípio não se apre-
senta como uma formulação teológica explicita, e sim, antes,
como um etos que impregna o discurso, o culto, a própria vida
da comunidade evangélica, uma autocompreensão que se ma-
nifesta em suas atitudes, seus conflitos e suas príorídades-,

1. A ambigüidade da defíníção missionária


Admitir que "missão-evangelização" é o princípio que defi-
ne o protestantismo latino-americano nos envolve de imediato
na ambigüidade histórica e teológica desse movimento. Qual é
a relação entre missão e colonialismo? Como se expressam
essa relação e as reações a ela na "teologia da missão"? a que
significaria uma teologia da missão proposta a partir de uma
perspectiva trinitária?

1. Missão e colonialismo. A evangelização que alcança a


Arnerica Latrna a partir do secuío 19 se inscreve. com efeito. na
totalidade da empresa missionária do protestantismo europeu
- em nosso caso, particularmente do anglo-saxão - nos sé-
culos 18 e 19. E hoje em diajá é um lugar comum recordar que
essa missão avança na crista da expansão colonial e neocolo-
nial e carrega as marcas dessa relação. A enorme literatura
existente sobre esse tema me dispensa de estender-me sobre
este ponto.
No capítulo 1 rejeitei uma interpretação simplista da rela-
ção entre protestantismo e imperialismo. Sustento que, no ca-
so da América Latina. há uma tensão que se evidencia, por
118 Rostos do protestantismo latino-americano

exemplo. na permanente discussão sobre o significado do pa-


namericanismo. Mas é necessário colocar-se uma pergunta
mais de fundo: até que ponto a própria autocompreensão que
dirigiu e mobilizou a enorme empresa missionária européia e
norte-americana dos séculos 18 e 19, tal como se reflete em
suas atitudes, seu culto, sua teologia, carrega as marcas do
espírito colonialista? Algumas poucas observações bastarão pa-
ra explicar de que estamos falando.
O que poderiamos chamar "o caso metodista" é um bom
exemplo. 'Iodos conhecem a preocupação de John Wesley com
o problema da pobreza - inclusive suas tentativas de entender
as causas econõmicas da mesma -, sua oposição à escravidão
e sua critica à política colõnia de seu país, particularmente na
Índia e na África. Curiosamente, por volta do fim do século
(1800) a Igreja Metodista inglesa havia silenciado esses temas
e expulso de seu seio as correntes trabalhistas. O estudioso
norte-americano Bernard Sernmel" defendeu uma tese interes-
sante. que ele resume nos termos "liberalismo. ordem e mis-
são": na revolução industrial que estava em gestação no perio-
do do nascimento e crescimento do metodismo. este conseguiu
incorporar no processo de mudança social que gera uma nova
classe - que hoje chamamos de média - grupos importantes
dos setores marginais que, assim, assumiram a cosmovisão e
o etos burgueses. Na realidade, deve-se observar que o próprio
Wesley já percebeu - com um assombro não isento de alarme
- os primórdios desse processo. A expansão colonial que acom-
panhou o desenvolvimento industrial permitiu que os dirigen-
tes metodistas canalizassem o fervor do despertar para a em-
presa missionária. No teólogo mais influente do metodismo
desse periodo, Richard Watson, a relação tornou-se consciente
e expressa: com o advento do Império Britãnico, os cristãos
podiam cumprir sua missão de compaixão para com os pagãos
submersos "nas trevas e na corrupção da grosseira idolatria".
Estes, com efeito, "merecem nossa atenção, tanto como pagãos
que se encontram nas trevas quanto como súditos britânicos".
Deus prepara o "grande ataque contra o paganismo"; por isso
desperta o zelo missionário num país com uma marinha pode-
rosa e colõnias de ultramar: "Essa coincidência entre nossos
deveres e nossas oportunidades. nossos desejos e nossos meios
(...) não é acidental." A mão de Deus move os navios para que
levem "não só nossas mercadorias, mas também nossos mis-
sionários; não só nossos bales [fardos). mas também nossas
blessings [bênçãos)."6 O interessante aqui não é o providencia-
Em busca da unidade 119

lismo ingênuo, e sim a passagem para a consciência burguesa


- empresária, triunfalista, conquistadora - que assume, si-
multânea e coincidentemente, a empresa religiosa e a econô-
mico-política no mesmo "etos conquistador". Esse fenômeno
metodista não é um caso isolado. Cinqüenta anos mais tarde,
quando os Estados Unidos haviam orientado sua visão de "des-
tino manifesto" na direção do neocolonialismo, o presbiteriano
Josiah Strong se expressava, em Princeton, em termos seme-
lhantes acerca da "missão" dos Estados Unidos, em suas obras
Our Countxy (1886) e Tbe New Age: or the Coming Kingdom
(1893).
Enrique Dussel fez observações filosóficas interessantes
sobre o "eu conquisto" - em lugar do cogito cartesiano -
como núcleo constitutivo da consciência burguesa. Um estudo
do vocabulário "militar" do discurso missionário - campa-
nhas, conquista, combate, ofensiva, soldados da cruz, "hostes
da fé" e muitas outras expressões - parece apontar para esse
"eu conquisto" religioso como núcleo da consciência missioná-
ria. A hínología missionária da época une curiosamente o mo-
tivo da compaixão com os da suposta abjeção, ígnoráncía e
desamparo dos "objetos" da missão e da conquista dos "con-
fms da terra" para Jesus Cristo, o Rei:
De geladas cordilheiras / de praias de coral,
de etiópicas ribeiras / do mar meridional,
nos chamam afligidas / a dar-lhes liberdade
nações submergidas / em densa obscuridade.
Nós, iluminados / de celestial saber,
tantos desgraçados / veremos perecer?
Às nações demos / de Deus a salvação;
o nome proclamemos / que operou a redenção.
A perspectiva das lutas anticoloniais de libertação de nos-
so século nos toma dificil conciliar essas manifestações com a
"boa consciência" dos que as expressaram. Justamente essa
unidade, entretanto, atesta até que ponto a "ideologia" colonia-
lista foi intemalizada. James S. Dennis, professor de míssíolo-
gía em Princeton, colega de Strong, escreve em 1897 um alen-
tado volume sobre "Missões cristãs e progresso social", funda-
mentando "empiricamente" sua tese:
O cristianismo, em virtude de sua própria energia benfeitora
como poder transformador e superador na sociedade, já escre-
veu uma nova apologia [grifo do autor] das missões. Não se
necessita de um argumento requintado para demonstrar isso.
Os simples fatos que o resultado do esforço missionário revela
120 Rostos do protestantismo latino-americano

em todos os campos o estabelecem de maneira fidedigna (...) O


crístíanísmo (...) é imorredouro e as missões cristãs represen-
tam, no momento presente, a única promessa e o único poder
de ressurreição espirttual no moribundo mundo do paganismo. 7
Muito poucas pessoas se atreveriam hoje a repetir tal tese
e menos ainda nesses termos, embora alguns profetas do "neo-
liberalismo" e da "nova direita religiosa" pareçam haver encon-
trado uma versão renovada dela. Poderiam, todavia, surgir duas
perguntas: a primeira, se a missão e evangelização pós-colonial
- ou até anticolonial- que mudou a designação das juntas e
do pessoal de missão - juntas de ministérios globais, obreiros
fraternais, compartilhar de recursos - encontrou uma articu-
lação teológica coerente com a transformação desejada. A se-
gunda, talvez mais importante, é se as características imperia-
listas que marcaram o etos e a linguagem das missões que nos
formaram não ficaram impressas em nossa própria evangeliza-
ção crioula.

2. Em busca de uma nova teologia da missão. Não é meu


propósito repassar agora o desenvolvimento da teologia da mis-
são do último século, mas gostaria de fazer algumas observa-
ções antes de retomar ao campo evangélico latino-americanos.
"À parte de algumas exceções" - diz Wilhelm Andersen
referindo-se ao labor missionário protestante do século 18 e
especialmente do século 19 - "o pietismo tem sido, até este
século, o solo no qual cresceu a atividade missionária."9 Com
efeito, é nesse solo que se geram na Grã-Bretanha, na Alema-
nha, na França, na Suíça, nos países escandinavos, nos Esta-
dos Unidos, as "sociedades missionárias", às vezes relaciona-
das com as igrejas e outras vezes formadas por indivíduos,
mas normalmente pouco ligadas à ortodoxia doutrinal de suas
confissões. 'Ianto é assim que, desde o início do presente século
(de 1910 em diante), as conferências missionárias de Edimbur-
go colocam a integração de "missão" e "igreja" como um de
seus objetivos. Dentro dessa busca começam a articular-se
"teologias da missão" inseridas na globalidade de uma pers-
pectiva teológica. Duas me parecem ter sido as tentativas do-
minantes e mais frutíferas: uma míssíología eclesíológíca e uma
míssíología da soberania de Jesus Cristo e do reino de Deus.
Dito de forma muito geral, na primeira se procura enten-
der a missão como central para a própria definição de igreja.
Interpretando a Conferência de Madras de 1938, Karl Hartens-
tein caracteriza muito bem essa perspectiva:
Em busca da unidade 121

"Missão" significa também "igreja" e "igreja" significa também


"missão" (0.0) Não falamos mais de (000) missões e igrejas; falamos
da Igreja, da comunidade de Deus no mundo, de sua tarefa
fundamental, da qual as igrejas antigas e as jovens, as que
enviam e as que estão surgindo participam em termos absolu-
tamente íguaís. Está-se construindo o santuário de Deus entre
os povos, e mãos negras e brancas, morenas e amarelas partici-
pam da tarefa 10
o

Nem todos interpretam essa identificação de missão e igre-


ja da mesma maneíra.vleólogos anglicanos trabalham em Ma-
dras com o conceito de igreja como extensão da encarnação, "o
corpo que Deus criou mediante Jesus Cristo" Os delegados da
o

Europa continental, em termos mais protestantes, falam do


"perdão dos pecados em Cristo e nova vida de discipulado"
como "o dom decisivo [de Deus] para o mundo" mediante o
ministério da igreja. 'Iodos, porém, concordam que toda defini-
ção da igreja deve ser míssíológíca e toda definição da missão,
eclesiológica. Na Conferéncia de missão de Wíllíngen (1952),
um trabalho do teólogo holandês J. C. Hoekendijk causa agita-
ção teológica ao criticar duramente essa visão eclesiocêntrica
da missão:
A concepção eclesiocêntrica, que desde Jerusalém (1928) parece
ter sido o único dogma quase indiscutido da teoria da missão,
nos aferrou tão estreitamente, nos enredou numa trama tão
densa, que mal podemos dar-nos conta da medida em que nos-
so pensamento se "eclesífícou". Não escaparemos nunca desse
abraço asfixiante a menos que aprendamos a perguntar-nos de
novo o que significa repetir uma que outra vez nosso amado
texto missionário: "Esse evangelho do Reino deve ser pregado
em todo o mundo" e a tentar encontrar nossa solução para o
problema da igreja nesse marco de Reíno-Evangelho-Jestemu-
nho (apostoladol-Mundo.!'
Na linha da proposta de Hoekendijk, em que a igreja e sua
missão ficam inseridas na relação Cristo-mundo, desenvolve-
se toda uma tarefa teológica, que se percebe, com distintas
tonalidades, em quase toda a míssíología dos últimos 40 anos.
A ênfase no senhorio de Jesus Cristo e no reino de Deus e sua
presença ativa na história humana caracteriza uma linha evi-
dente nas formulações ecumênicas do CMI. E na Conferência
de Lausanne e na corrente "evangelícal" que ela expressa, a
ênfase recai na mediação da igreja como aquela que, no poder
do Espírito, anuncia esse Reino no mundo e convida a aceitar
a soberania redentora de Jesus Crtsto'".
122 Rostos do protestantismo latino-americano

As observações de Hoekendijk apontam para um perigo


que a obra missionária e evangelizadora freqüentemente não
soube evitar: uma espécie de "monopólio eclesiástico" de Jesus
Cristo e do Espírito Santo e, por conseguinte, um "triunfalismo
eclesiástico" que, longe de corrigir os reflexos coloniais ou neo-
coloniais da missão, os sustenta e alimenta. Cabe perguntar-
se, entretanto, se a teologia missionária do senhorio de Jesus
Cristo e da primazia do reino de Deus é, por si mesma, corre-
ção suficiente para esses reflexos. Não se presta ela demasia-
damente a um novo imperialismo cristão, que, no fím das con-
tas, acaba sendo também eclesiástico? Na América Latina, es-
se risco de uma teologia "imperial" do reino de Deus é, em
parte, contrabalançado pela "opção pelos pobres" como critério
de interpretação do reinado de Jesus Cristo e da missão do
Reino. Richard Shaull trabalhou nessa direção na década de
60, sendo seguido por latino-americanos como Gonzalo Castil-
lo ou Rubem Alves (em seus primeiros trabalhos). A interpre-
tação eclesíológíca de Jon Sobríno e a míssíológíca de Emilio
Castro são excelentes exemplos dessa hermenêutica: o Cristo
que identifica sua missão com o reino de Deus é o Cristo que,
por sua vez, se identifica com os pobres - é a tese de Sobrino.
O Cristo que reina é o "Cristo servo", esclarece Castro 13. Pare-
ce-me, contudo, que ambas as linhas seriam fortalecidas se
procurássemos levar a sério uma proposta quase esquecida de
Willingen em 1952:
(...) teologicamente precisamos aprofundar-nos mais ainda; pre-
cisamos remontar o impulso originário da fé ao Deus trino: só
desse ponto de vista podemos ver sinoticamente a empresa mis-
sionária em sua relação com o reino de Deus e em sua relação
com o mundo. 14

2. Por que uma missiologia trinitária?


A pergunta é inteiramente legítima. Ela seria colocada,
sobretudo, por uma tradição protestante para a qual a doutri-
na trinitária sempre foi mais uma espécie de resumo da histó-
ria da salvação (uma trindade "econômica") do que uma afir-
mação acerca do próprio ser de Deus (uma trindade "imanen-
te"). O missiólogo nessa tradição possivelmente veria em nossa
insistência nessa tema uma espécie de especulação que pode
acabar desviando a atenção. E interessante observar que o
chamamento de Willingen citado acima ficou quase sem reper-
Em busca da unidade 123

cussão na missiologia protestante e nos desdobramentos da


Comissão de Missão e Evangelização do CM!.
Creio que se trata de uma "má economia". Enquanto a
igreja e o Reino permanecerem como horizonte último da mis-
são/evangelização, esta será um ato de obediência e/ou uma
expressão da fé. Certamente essas motivações são bíblicas e
evangélicas. Obediência e testemunho são dimensões da vida
cristã que não podem ser ignoradas nem relegadas. Creio, po-
rém, que essas mesmas motivações são fortalecidas e aprofun-
dadas quando o horizonte último é "a própria vida de Deus" e,
portanto, a missão não é só obediência e testemunho, mas
também contemplação, oração, louvor, participação - como
diriam os irmãos ortodoxos - no que Deus mesmo "é" e, por
conseguinte, no que ele "faz".
Creio que é essa relação que o autor da Epístola aos Efé-
síos estabelece - mais ainda se a lemos em conjunção com o
hino cristológico de Cl 1.10-27 - quando situa o fato missio-
nário fundamental, a inclusão dos gentios junto com os ju-
deus, derrubando o "muro de separação" (Ef2.14-19), na pers-
pectiva do "mistério" oculto "desde antes da criação do mun-
do": a recapitulação do universo inteiro em Cristo (1.1-14 e
3.1-13). O próprio Deus incorpora o crente no ámbito desse
mistério, que não é outro do que o do amor de Deus que habita
pela fé no crente, e o introduz na "total plenitude de Deus"
(3.14-19).

1. Em termos da elaboração teológica posterior, o que Pau-


lo faz nessas passagens é unir a "trindade econômíca" (o que
Deus faz) e a "imanente" (o que Deus é). A chave para interpre-
tar as repetidas (e às vezes complexas e redundantes) formula-
ções trinitárias que encontramos nos primeiros séculos é vê-
las como o esforço de estabelecer firmemente essa unidade, de
proteger-se contra toda formulação que pudesse negá-la e de
articulá-la com a maior clareza possível, afirmando ao mesmo
tempo os grandes "feitos de Deus" e a "plenitude de Deus" em
todos e cada um deles. Excesso de "purismo teológico"? De
maneira nenhuma! Pelo contrário, é uma afirmação funda-
mental da fé. É a revelação de Deus testemunhada pela Escri-
tura um "retrato autêntico" de Deus ou uma "imagem" para
consumo religioso? Está Deus real e totalmente "comprometi-
do" nas ações que a história da salvação nos relata ou essa
história é apenas um de vários e diversos cenários nos quais
Deus atua, reservando-se uma entidade "privada" diferente?
124 Rostos do protestantismo latino-americano

Fica, atrás dessa revelação ou para além dela - ad usum


Christianorum - um mistério de Deus que talvez seja acessí-
vel por outros meios: gnósticos, místicos ou mágicos? Leonar-
do Boff expressa muito bem a resposta:
Ora, Deus se revela assim como é. Se para nós Ele aparece como
Trindade é porque Ele é em si mesmo 1iindade; não apenas para
nós mas também nele mesmo, Deus é Pai, Filho e Espírito San-
to. Se Deus apareceu como mistério fontal e princípio sem prin-
cípio (...), portanto, como Pai, é porque Deus é Pai. Se Ele se nos
revelou como Palavra esclarecedora e Verdade, portanto, como
Filho ou Lagos eterno, é porque Deus é verdade. Se Ele se nos
comunicou como Amor e Força que busca a realização do desíg-
nio último de Deus, portanto, como Espírito Santo, é porque
Deus é Espírito Santo. A realidade trínítáría faz com que a ma-
nifestação divina na história seja trinitária e a manifestação
realmente trinitária de Deus nos faz compreender que Deus é de
fato 1iindade de Pessoas, Pai, Filho, Espírito Santo.l"

2. Ao falar da pericboresis. destacávamos a unidade que


nasce da comunicação "íntratrínítáría": a eterna conversação,
o vínculo de amor que Deus é em si mesmo. Agora temos de
sublinhar a outra "direção" desse diálogo: seu caráter extrover-
tido; ele não se esgota em si mesmo: "desborda'', por assim
dizer, em relação com a realidade criada: o mundo, o ser hu-
mano, a história. Essa relação entre as três pessoas como
realidade imanente em Deus e como presença e ação na tota-
lidade da criação é o que a teologia clássica chamou de as
"missões" na trindade. Missão tem aqui o significado etimoló-
gico de envio. O Novo 'Testamento é muito explícito a esse res-
peito: o Filho é "enviado" pelo Pai (Jo 3.16; 5.23,36,38); o Espí-
rito Santo é enviado pelo Pai mediante o Filho (Lc 24.49; Jo
14.16,26; 15,26; 16.7; G14.6). Esse envio não é um ato aciden-
tal ou limitado a um momento. Embora ele tenha uma "data"
em que se toma manifesto de uma vez para sempre (efapax)-
Natal e Pentecostes -, esses momentos revelatórios decisivos
encontram sua origem numa "missão" eterna que corresponde
à própria realidade trinítária. Por isso se pode falar do "Cordei-
ro imolado desde a criação do mundo" (Ap 13.8) ou do Espírito
que Deus "envia" para sustentar sua criação e a própria ativi-
dade do homem nela (SI 104.29-30; o verbo usado aqui é sha-
Iech, o mesmo do qual derivamos "enviado" ou "apóstolo").

3. Nesse "diálogo missionário" nós somos incluídos. As


"vísítas" de Deus, desde a criação atê a redenção e a criação da
Em busca da unidade 125

igreja, incorporam sempre o ser humano como ator ou co-ator


da missão divina. Nesse sentido há um legítimo syn-ergismo
que não desmerece a absoluta prioridade da ação divina por-
que essa mesma ação possibilita, exige e incorpora em sua
própria dinâmica o "sócio" que Deus escolhe. No relato da
criação, essa missão se chama trabalho, labor. Por isso, o rit-
mo semanal da ação divina incorpora um ritmo semanal na
vida humana; a continua sustentação e a continua criação de
Deus se instrumentam numa ação humana que elas envolvem
e excedem. mas não esvaziam nem alienam. Na história da
salvação, essa missão se chama "pacto", aliança. Por isso, a
justiça. a misericórdia, a paz (shalom) de Deus se corporificam
na boa lei, no bom governo, na comunidade fiel: a "palavra" ou
o "espírito" que Deus envia incorpora aqueles que, por sua vez.
Deus inclui em seu "envio".
Na plenitude do tempo, o "enviado", Jesus Cristo. assume
"os que creram ... e os que hão de crer" na mesma missão.
Como o diz graficamente a versão latina na oração de Jesus:
"Sicut tu me missiste in mundo et ego missi eos in mundo" (Jo
17.18). Quando Paulo fala de "ser conformado" à imagem de
Cristo, ou de "reproduzir" as marcas de Cristo. ou, de maneira
mais atrevida. de "cumprir" em seu corpo a continuidade da
obra redentora. não está falando de uma imitação externa e
menos ainda de uma ação autônoma do crente, e sim de uma
participação que permite dizer. pela fé. "Cristo vive em mim".
O "testemunho" do evangelho que a igreja foi chamada a pro-
clamar é sempre "no poder do Espírito". No Espírito que o Pai
e o Filho enviam, a própria trindade dá testemunho da veraci-
dade do evangelho. A missão evangelizadora não é um ato
externo cumprido pela igreja. e sim "o rosto visível" da missão
do Deus trino.
A "missão" do Espírito não tem a ver tão-só com a palavra
da redenção, mas também com a totalidade da obra do Deus
trino; por conseguinte, com o trabalho, com a justiça, com a
paz. enfim. com a história do mundo e da humanidade. As
pessoas. crentes ou não. que são incorporadas nessa obra. são
"enviadas". tanto quanto o puderam ser Ciro (rei persa), Mel-
quisedeque (sacerdote do Deus do céu) ou o soldado que Cor-
nélio enviou para buscar Pedro ("vai com eles I...) porque eu os
enviei" - At 10.20).
'Irabalho, governo e sociedade humana, testemunho e ser-
viço do evangelho. construção da história são igualmente par-
ticipação na totalidade dessa missão do Deus trino que é "o
126 Rostos do protestantismo latino-americano

mesmo", Pai, Filho e Espírito Santo, em tudo que faz. Mas a


igreja tampouco se equivocou ao sublinhar, junto com a uni-
dade dessa obra, a distinção das dimensões da mesma: "o Pai
não é o Filho nem o Espírito, o Filho não é o Pai nem o Espírito,
o Espírito não é o Pai nem o Filho". Fórmulas como esta não
são mero jogo verbal. O que se tem chamado de "propriedades"
ou "apropriações" refere-se especificamente a essa distinção
necessária. Deus é Pai, Filho e Espírito Santo quando cria e
preserva o mundo, quando convida para a fé em Jesus Cristo
e constrói sua igreja, quando fecunda e dirige a história. Mas
ele o é de maneira distinta e, por conseguinte, incorpora os
seres humanos em sua obra - os "comissione" - de maneira
distinta. Honrar a unidade dessa obra e corresponder à diver-
sidade dessas distinções é a tarefa do pensamento e, ao mesmo
tempo, da prática da igreja.
Há distinções precisas e necessárias na forma em que a
unidade inseparável da obra do Deus trino e de nossa partici-
pação nela na tarefa cultural, social, política, económica, ecle-
sial e evangelizadora é, ao mesmo tempo, reconhecida e respei-
tada e a particularidade de cada uma dessas tarefas é igual-
mente levada em conta. Distinções referentes ao sujeito pró-
prio dessas ações - sociedade organizada, igreja, pessoas in-
dividualmente - à modalidade de participação nas distintas
identidades que temos como membros de uma sociedade, de
famílias e da comunidade de fé e ao modo de execução dessa
participação: o uso do poder, as esferas da lei e do evangelho,
a autonomia própria, querida e ordenada por Deus, de cada
uma dessas esferas. Uma teologia e uma ética teológica cuida-
dosa, assim como uma pastoral que respeite a liberdade cristã,
devem trabalhar dando atenção a esses temas. E nesse marco
devemos situar também uma reflexão sobre essa "evangeliza-
ção" que está no coração de nossa compreensão protestante
latino-americana do evangelho.

3. Missão e evangelização
Simplificando, poderíamos, talvez, dizer que o protestan-
tismo latino-americano teve a tendência de confundir evange-
lização e missão; ou seja, de reduzir a totalidade da missão de
Deus à "tarefa evangelizadora" concebida de modo estreito co-
mo o anúncio do chamado "plano de salvação" e o convite à
conversão. Embora possamos dizer, com gratidão, que essa
Em busca da unidade 127

obra tena sido abençoada e nrrilhões de pessoas tiverana una


verdadeiro encontro com o Senhor e entraram numa nova vi-
da, também devemos dizer, com pesar, que nos ternos recusa-
do a participar da plenitude da obra do Deus trino. A partir do
reconhecímento dessa deficiência, gostaria de perguntar-me
agora onde estão nossos problemas centrais em relação com a
evangelização e como a compreensão da evangelização no con-
texto da míssão total de Deus pode guiar-nos na resposta a
esses problemas. Certamente a mesma reflexão deveria ser
feita acerca de nosso culto e nossa piedade, e acerca de nosso
"caminhar", nossa conduta. Não obstante, concentramo-nos
agora na evangelização, precisamente por causa da ímportãn-
cia singular que ela tem tido e tem para a comunídade evangé-
lica latíno-amerícana,

1. Profetas e evangelistas. Quando Billy Graham, questio-


nado a respeito da "neutralidade" social de sua pregação, res-
pondeu: "Não sou una profeta do Antigo 'Iestamento, e sina una
evangelista do Novo 'Iestamento'', fez, creio eu, uma distinção
legítima, mas em termos gravemente distorcidos. O Novo 'Ies-
tamento reconhece uma vocação e una dona particular de "e-
vangelista": a evangelização como proclamação do evangelho e
convite para a fé tem sua identidade própria. Mas desprender
essa tarefa da mensagem profética do Antigo e do Novo 'Iesta-
mentos introduz na obra de Deus e em Deus mesmo uma
dícotomía que depois se reproduz na igreja e na vida do crente-",
É dificil negar que essa dícotomía tenha tido conseqüên-
cias sérias em nossas igrejas evangélicas. Ela não só distin-
guiu, mas separou a evangelização do serviço, a conversão da
busca da justiça, a adoração de Deus da vida do mundo, a
participação na comunidade de fé da responsabilidade na so-
ciedade. Inclusive as contrapós, criando "facções" antagônicas
dentro das igrejas e entre elas. 'Iemos suposto que possamos
"priorizar" por nossa conta aspectos da obra de Deus e, maís
ainda, escolher "o deus" que queremos honrar: que os liberais
se ocupem do Criador, os evangélicos do Salvador e os pente-
costais do Espírito! 'Iemos crido que uma comunidade cristã
poderia fazer uma coisa sem a outra e que poderíamos isolar a
evangelização e o serviço como compartímentos estanques que
se admínístram com conteúdos, propósitos e critérios indepen-
dentes. 'Iemos, inclusive, criado instãncias institucionais autô-
nomas e concorrentes para assumír essas tarefas em nível
local, denomínacíonal e supradenomínacíonal, com "cliente-
128 Rostos do protestantismo latino-americano

las" diferenciadas e em conflito. Nessa especialização, a men-


sagem do evangelho se transformou freqüentemente num es-
quema doutrinário formal, reduzido a uma interpretação par-
ticular da doutrina da expiação, na qual o Pai, o Filho e Espí-
rito Santo parecem personagens que "desempenham" papéis e
não o Deus vivo das Escrituras. E o serviço à sociedade se
transforma numa atividade feita "a partir de fora" e evangelica-
mente asséptica ou numa forma de coação a serviço do cresci-
mento da igreja. Esta pode ser uma caricatura; se o é, infeliz-
mente é a caricatura de um rosto que temos visto demasiadas
vezes.
Se a missão é participação na plenitude da "missão de
Deus", toda evangelização deve ser -junto com a proclamação
da reconciliação operada na vida, morte e ressurreição de Je-
sus Cristo - testemunho da criação boa de Deus e chamado
para cultivá-la e cuidar dela, anúncio da justiça de Deus e
conclamação a praticá-la e servir a ela. Uma mensagem que,
em meio à repressão e à tortura, fala do Crucificado como se
ele não tivesse nada a ver com os pobres crucificados da histó-
ria ou que, na crescente destruição e marginalização de gran-
des setores da população, apresenta Jesus Cristo como se ele
nada tivesse dito sobre esse tema, como se o Espírito Santo
não fosse aquele que desceu sobre Amós, Oséias e Tiago, como
se os que sofrem e morrem não fossem "imagem e semelhança"
do Criador, não merece ser chamada de evangélica. Mas uma
evangelização que dissesse tudo o que há a dizer a respeito
disso sem um chamado ao arrependimento, à fé e ao discipu-
lado, tampouco é participação na missão do Deus trino. Uma
evangelização verdadeiramente trinitária - assim como uma
adoração e uma ação que o sejam - é o convite a participar
em fé da própria vida do Deus trino e, por isso. da totalidade
do que Deus fez, faz e fará para cumprir seu propósito de ser
"tudo em todos".

2. Evangelização e crescimento da igreja. Está a evangeli-


zação a serviço do crescimento da igreja ou da transformação
do mundo? Uma polêmica interessante desencadeou-se na Igre-
ja Católica Romana, após o Concílio Vaticano Il, em torno desse
tema. Ela tinha a ver com o antigo tema da conservação ou
recuperação da cristandade. Enquanto alguns sustentavam
que a criação ou manutenção de uma "sociedade cristã" cujos
costumes, estruturas, leis e valores se fundamentassem na fé
eram indispensáveis para que as grandes massas chegassem à
Em busca da unidade 129

fé e perseverassem nela, outros davam as boas-vindas a uma


secularização que tirou da igreja os apoios externos, deixan-
do-a entregue à própria vitalidade e força de sua mensagem e
que, portanto, deu lugar à formação de cristãos conscientes,
comprometidos, maduros que, embora sejam minoria, são fer-
mento na socíedade'? Na Europa, o livro do cardeal Jean Da-
niélou intitulado A oração, problema POliÜC0 18 , que sustentava
a primeira posição, foi motivo de uma polêmica na qual inter-
vieram alguns destacados teólogos dominicanos como Jean-
Pierre Jossua e Claude Geffré'", Em nosso meio, são bem co-
nhecidas a critica aguda que Juan Luis Segundo moveu contra
a "pastoral de cristandade", bem como sua tese de uma mino-
ria de cristãos "adultos" cuja missão não é "converter as maio-
rias", mas dar testemunho do propósito de salvação e plenífí-
cação de Deus para toda a humanídade-". Na encíclica Evan-
gelii Nunüandi, de 1976, Paulo VI tentou reconciliar e integrar
os temas da conversão pessoal e da evangelização da cultura.
Não é meu propósito deter-me nesse debate, no qual estão em
jogo complexos temas teológicos como os do universalismo, da
piedade popular, da relação entre fé e amor. Interessa-me, an-
tes, que nos perguntemos se se coloca um problema seme-
lhante em nosso protestantismo e como.
Não há dúvida de que a prática evangelizadora tradicional
do protestantismo latino-americano apontou para a conversão
do indivíduo e que, embora tenha sido levada a cabo em cam-
panhas de evangelização e reuniões de pregação em templos,
salões ou ao ar livre, nas quais fatores coletivos desempenha-
ram um papel importante, ela se alimentou principalmente de
relações face a face de amizade, família, vizinhança. A "síngu-
larízação" da experiência foi uma de suas características mais
marcantes. Cada pessoa devia ter "um encontro pessoal com o
Senhor", muitas vezes claramente datado, que podia ser teste-
munho em privado e em público. Esperava-se, inclusive, que
as crianças que nasciam e cresciam numa família evangélica
chegassem a um momento de "decisão pessoal", o que fez com
que, em igrejas que praticavam o batismo de infantes, muitos
membros escolhessem o "batismo de crentes" (expressão que
considero errônea, mas que era a que se utilizava). Neste ponto,
a crítica de uma "religiosidade massiva", "herdada", "tradicional"
católica estava quase sempre presente na pregação evangélica.
Provavelmente uma enquete sobre o tema nos diria que a
maioria dos evangélicos pensa assim ainda hoje. Não obstante,
as práticas de evangelização massiva hoje em voga introduzem
130 Rostos do protestantismo latino-americano

elementos que dão às coisas um sentido diferente. Quando a


ênfase é colocada no "crescimento da igreja" - entendido em
seu sentido numérico - a conversão pessoal se transforma
num meio: o que está em jogo é o número, não a pessoa dos
convertidos. A pergunta dominante é, então: como se conse-
guem mais conversos? Surgem aqui os métodos de crescimen-
to: por exemplo, a teoria das "unidades homogêneas", que sig-
nifica realmente como se ganha melhor uma etnia, um setor
da população, uma classe social. 1àlvez sem o querer ou sem o
pensar, já estamos falando do "sustentáculo cultural" da evan-
gelização. Outro exemplo: quando o possível acesso de evangé-
licos a funções de governo - parlamento, prefeituras, mínísté-
rios - é bem-vindo tendo como base que eles poderão facilitar
a evangelização - introduzir a Bíblia nas escolas ou a oração
no parlamento ou conceder facilidades - é evidente que se
pensa em utilizar as estruturas da sociedade para "fazer cris-
tãos", e esta é a premissa fundante da concepção de cristandade.
A partir da perspectiva teológica que viemos sublinhando
- e que creio que, neste caso, estaria corroborada por uma
análise sociológica - deveríamos descartar a disjuntiva: evan-
gelização do individuo ou da sociedade. Em primeiro lugar,
porque separa a obra do Deus Criador daquela do Deus Reden-
tor: o Deus que se dirige a cada pessoa é o mesmo que estabe-
leceu as relações que constituem a pessoa e que envia o Espí-
rito que opera tanto nessas relações - no lugar em que ela
nasceu, nas relações que a socializaram, no meio em que atua,
nos valores que internalizou - quanto no espírito do indiví-
duo. 'Ianto nessas relações quanto na identidade pessoal que
as sintetiza de maneira própria e intransferível, o Espírito com-
bate o poder destrutivo do pecado e recria constantemente a
força construtiva do amor. 'Ianto em seu foro íntimo quanto em
suas relações sociais, o evangelho chama o ser humano ao
arrependimento e à conversão. Em ambas as dimensões da
vida, o Espírito compromete os crentes na obra transformado-
ra de Deus. Ao mesmo tempo, porém, trata-se de duas formas
distintas de presença divina e de ação humana, nenhuma das
quais pode ser vista simplesmente como um instrumento da
outra. Em outros termos, uma evangelização verdadeira deve
apontar tanto para esse núcleo pessoal que toma um ser hu-
mano sujeito responsável de sua própria existência quanto
para a urdidura das relações interpessoais e estruturais que o
rodeiam, o condicionam e constituem seu âmbito de existência

1~? Rn... to... rln nrnt».. t arvti... mn Isitiruv-arnericerm


Em busca da unidade 133

aparecer como "neutra", fria e "burguesamente respeitável".


Seguramente há mais verdade evangélica num grito espontã-
neo de Aleluia! do que em muitos esmerados argumentos apo-
logéticos. Por certo há, além disso, um uso legítimo de uma
"razão instrumental" que nos indica métodos e meios eficazes
e compatíveis com o propósito evangelizador. Minha preocupa-
ção surge quando essa razão instrumental se toma autônoma
e substitui a "razão evangélica" que nasce da própria vida divi-
na e da "pedagogia de Deus" em sua missão.
Provavelmente esse é um ponto adequado para concluir
este capítulo. Entramos aqui num âmbito de pastoral que me-
rece uma consideração mais cuidadosa, ampla e experta do
que aquela que eu posso dar-lhe. Minha preocupação é que
essa consideração mantenha uma relação constante com o
centro de nossa fé e que o fervor evangélico de nosso protes-
tantismo latino-americano se afirme, purifique e expresse a
partir da plenitude da fé evangélica no Deus uno e trino: Pai,
Filho e Espírito Santo.
Notas

Capítulo 1:
o rosto hõeral do protestantismo latino-americano
1 Regís PlANCHET, La intervención protestante en México y Sudamérica,
Revista Católica, El Paso, 1928, p. 180; v. também, do mesmo autor, La
propaganda del Protestantismo en México, Revista Católica, El Paso, 1922;
cf. Camilo CRlVELLI, Los protestantes y la América Latina, Isola de Liri:
Macioce y Písaní, 1931, p. 104-107.
2 Waldo CESAR et al., Protestantismo e imperialismo na América Latina,
Petrópolis: Vozes, 1968, p. 12.
3 Erasmo BRAGA, Panamericanismo: aspecto religioso, Nueva York: Socie-
dad para la Educación Misionera en los Estados Unidos y el Canadá,
1917, p. 199s.
4 Jean-Pierre BASTIAN, Historia del protestantismo en América Latina, Mé-
xico: Casa Unida de Publicaciones, 1990, p. 178ss. As diversas vertentes
de argumentação se repetem cada vez que há circunstáncias que "amea-
çam" modificar o campo religioso. A este respeito é interessante uma
pesquisa de Alejandro FRIGERIO intitulada La ínvasíón de las sedas: el
debate sobre nuevos movímíentos religiosos en los medios de comunica-
ción en Argentina, Sociedad y Rehgton, n. lO/lI, p. 24-51, 1993.
5 Jean-Pierre BASTIAN, op. cit., p. 187.
6 Id., ibid., p. 22.
7 Ibíd., p. 160.
8 A cifra indicada para 1903 é de Joseph I. PARKER (Ed.), Interpretative
Statistical Survey ofthe World Mission ot the Cbrtstien Church, New York
/London: Intemational Míssíonary Council, 1938, deduzindo a cifra cor-
respondente ao Caribe não-hispânico.
9 John IYNCH, The Catholic Church, in: Leslie BETHELL (Ed.), Latin Ame-
rica: Economy and Society, Cambridge: Cambridge Uníverstty, 1989, p.
331-336, especialmente o resumo à p. 332 citado no texto.
10 O tema do "destino manifesto" tem uma longa história na cultura e na
política dos Estados Unidos, não alheia a concepções messiânicas e a
influências teológicas. Duas obras que resumem bem e interpretam essa
história são: Albert K. WEINBERG, Manifest Destiny: A Study ofNationa-
list Expansionism in Amerícan Hístory, Baltimore: John Hopkíns, 1935, e
Frederíck MERK, Manifest Destiny and Mission in American History: A
Reinterpretation, New York, 1963.
11 Voltaremos ao tema da busca, por parte dos dirigentes latino-americanos
liberais, de uma imigração que contribuísse para o novo modelo, no capí-
tulo 4: Um rosto étnico do protestantismo latino-americano?
12 Cito ap. Cordon CONNELL-SMm-I, Los Estados Unidos y la América Lati-
na, México: Fondo de Cultura Económíca, 1974, p. 84-85.
136 Rostos do protestantismo latino-americano

13 1d., íbíd., p. 134.


14 Cit. ap. ibid., p. 160.
15 R. W. van ALSTINE, The Rising American Empire, Oxford, 1960, p. 160.
16 Veja Tulio Halperin DONGHI, Historie contemporánea de América Latina,
Buenos Aires: Alianza, 1986, p. 189-250.
17 Há uma ampla bibliografia nos livros de história de Hans-Jürgen Príen,
.Jean-Píerre Bastian e Pablo A. Deiros.
18 Citado no artigo de Juan Stam intitulado La misión latinoamericana y el
imperialismo norteamerícano, 1àller de 'Ieologie, México. v. 9, p. 52, 1981.
'Iodo o artigo é sumamente interessante dado o momento histórico, o auge
do fundamentalismo nos Estados Unidos e sua marca política nacionalis-
ta, bem como o caráter da própria Missão Latino-Americana naquela época.
19 Informe n. 2, cit. ap. BRAGA-MONIEVERDE, ibid., p. 41.
20 Ibid., p. 19.
21 Ibíd, p. 18.
22 Francis P. MILLER, Americanism and Christisnity, New York: Student
Dívísíon, National Council ofYoung Men's Christian Assocíatíons, 1929. A
reflexão desse discurso do Prof. Miller está dirigida principalmente à rela-
ção com a Europa e aos esforços da Federação Cristã Mundial de Estu-
dantes (WSCF /FUACE) para redefmir a base teológica e as linhas de uma
reconstrução social com base na responsabilidade pessoal e na democra-
cia participativa. Percebe-se muito bem a síntese das idéias do evangelho
social, da democracia participativa e das novas preocupações teológicas
que começam a aparecer na Europa.
23 Embora não tenhamos muitos estudos biográficos adequados sobre al-
guns dos primeiros missionários, os poucos trabalhos existentes parecem
coincidir nesse perfil: cf., só como mostras, Irven PAUL, A Yankee Reior-
mer in Chile: The Life and Works of David Trunbull, Califórnia: William
Carey Library, 1973; G. Stuart McINTOSH, The Life and Times of John
Ritchie. 1878-1952, Lima: NUC Research Monographs, 1988; John H.
SINCLAIR, John A. Mackay: un escocés con alma latina, México: Casa
Unida de Publicaciones, 1990.
24 Principles oi Political Economy, livro IV, capo VI, seção 2. in: Warks, v. 3,
p.754-755.
25 Christian Work in Latin America, New York: The Míssíonary Education
Movement, 1917, V. 1.
26 Jether Pereira RAMALHO, Prática educativa e sociedade, Rio de Janeiro:
Zahar, 1975, p. 10. Esta obra é um estudo cuidadoso das corresponden-
tes escolas brasileiras no contexto histórico do Brasil e das linhas ideoló-
gicas que tiveram influência nesse projeto educativo.
27 Rubem ADIES, Función ideológica y posibilidades utópicas del protestan-
tismo latinoamericano, De la Iglesia y la Socieded, Montevideo: Tierra
Nueva, 1971, p. 4ss. V. também, do mesmo autor, Protestantismo e re-
pressão, São Paulo: Ática, 1979.
28 Jean-Pierre BASTlAN, op. cit., p. 189.
29 W. Stanley RYCROFT, Sobre este fundamento, Buenos Aires: La Aurora;
México: Casa Unida de Publicaciones, 1944. p. 212. Quase na mesma
data, Jorge P. HOWARD publica seu livro Lalibertad religiosa en América
Latina, Buenos Aires: La Aurora, 1945, um levantamento destinado a
Notas 137

mostrar - ante uma campanha antimissionária da Igreja Católica -,


com testemunhos de líderes intelectuais e políticos latino-americanos, a
contribuição do protestantismo para a vida democrática da América Lati-
na. E as mesmas editoras - La Aurora e Casa Unida de Publicaciones -
ligadas ao CCLA, publicam também por esses mesmos anos (1949 e 1951)
a tradução para o espanhol do livro de Federico Hoffet, Imperialismo
protestante, afogueada apologia do papel progressista do protestantismo,
em nível mundial, na construção de democracias avançadas, progressis-
tas e bem-sucedidas, em comparação com o atraso dos países onde do-
minava o catolicismo romano.
30 V. John A. MACKAY: "The function of Chrístíaníty in relation to such a
cultural effort [modem bourgeoís society] ís not that of provídíng a soul to
perpetuate it but a reactive to produce a crísis" ["Afunção do cristianismo
em relação a tal esforço cultural (a moderna sociedade burguesa) não é a
de oferecer uma alma para perpetuá-lo, mas um reativo para produzir
uma crise"]. The Theology of the Laymen's Foreígn Míssíon Report, Inter-
national Review ofMissions, v. 22, p. 180, 1933.
31 Não me deterei aqui em definir as características ou analisar o desenvol-
vimento e a situação atual da teologia da libertação. Os dois últimos
capítulos deste livro pretendem dar por assentados elementos centrais
dessa teologia a partir de uma perspectiva teológica protestante. 'Ialvez,
porém, não seja ocioso destacar que creio que a inspiração, a metodologia
básica e as intuições centrais da teologia da libertação têm plena vigência
para o pensamento e a prática da fé em nosso contexto histórico e eclesial.
32 O sociólogo e ensaísta peruano Aníbal QUIJANO colocou o tema da "crise
da modernidade" que ocorre quando suas "promessas prímígênias de
libertação da sociedade e de cada um de seus membros das desigualdades
sociais e das hierarquias fundadas sobre elas" parecem ser negadas e
contraditas pela própria história da modernidade. Em seu texto Moderni-
ded, identidad y utopia en América Latina. Lima: Conejo, s. d. (Coleção 4
Suyus), Quijano critica a forma em que a "modernidade" se estabeleceu
na América Latina, mas propõe "as bases de outra modernidade" que se
arraigue nas próprias tradições culturais latino-americanas e nas expe-
riências históricas e atuais. V. também o recente e sugestivo ensaio de
Enrique DUSSEL intitulado Sistema-mundo, dominação e exclusão: apon-
tamentos sobre a história do fenômeno religioso no processo de gIobaliza-
ção da América Latina, in: Eduardo HOORNAERr (Ed.), História da Igreja
na América Latina e no Csribe, 1945-1995, Petrópolis/São Paulo: Vozes/
CEHILA, 1995, p. 39-79.
33 1àlvez o "ao menos" dessa frase chame a atenção. É que aqui se coloca
um tema escatológico da maior importância: a esperança num reino de
Deus e numa vida eterna - oferecidos pelo Deus trínítárío, o Deus cria-
dor, o Deus do amor dinãrnico - é compatível com a imagem de um "céu"
estático e uma vida "eterna" sem novidade, sem crescimento, sem diálogo
criador? Se seremos "como ele é", se Deus será "tudo em todos", seria
quase herético conceber uma eternidade hierática, "congelada" e unifor-
me. Ora, é precisamente esse "céu" onde todo crescimento é meramente
quantitativo que se nos oferece como "meta da história" em algumas
versões neoliberais.
34 Esse é o tema que EIsa 1àmez desenvolveu magnificamente em sua inter-
pretação da justificação pela fé como libertação de toda condenação, uni-
138 Rostos do protestantismo latino-americano

versal em seu propósito, que possibilita a aparição de um sujeito humano


livre para servir em amor aos demais. EIsa 1AMEZ, Contra toda condena:
la justificación por la fe desde los excluídos, San José, Costa Rica: DEI,
1991 fedo em port.: Contra toda condenação: ajustificação pela fé, partin-
do dos excluídos, São Paulo: Paulus, 1995].

Capítulo 2:

o rosto evangélico do protestantismo latino-americano


1 Não é fácil orientar-se na selva de significados, matizes, acepções, conota-
ções, denotações e sobreposições no uso do vocábulo "evangélico", no que
os lingüistas chamariam de sua "políssemía''. Em inglês, os dicionários
resolvem facilmente uma primeira acepção: "evangelícal" é definido como
"relativo aos evangelhos ou ao evangelho". Mas numa segunda ou terceira
acepção aparecem os problemas. O norte-americano Webster New Colle-
giate Dictionary fala de uma diferenciação com "protestant" e se interna
em precisões teológicas ao defini-lo como um setor do protestantismo que,
originalmente dentro do anglicanismo e posteriormente em igrejas livres,
afirma "que a essência do evangelho consiste principalmente em suas
doutrinas da condição pecaminosa do homem e sua necessidade de sal-
vação, da revelação da graça de Deus em Cristo, da necessidade de uma
renovação espiritual e da participação na experiência de redenção me-
diante a fé". Embora mais cauteloso, o brítâníco Oxford 5tudents' Dictio-
nary tampouco pode evitar o tema: "aqueles protestantes que sublinham
a ímportãncía de uma fé pessoal" e de arrepender-se pela morte de Jesus
Cristo (?; "rnaking amends for the death of Jesus Chríst"). Porém o termo,
assim como a definição, está longe de ser preciso. E as recentes distinções
(particularmente nos Estados Unidos) entre "evangélicos", "evangélicos
conservadores" e "neo-evangélícos" não tornam as coisas mais claras. Na
Alemanha, particularmente na Prússia, várias igrejas territoriais com in-
fluências pietistas adotaram o termo "evangelísche". E, para confundir
mais o quadro, na América Latina o termo "evangélico" é utilizado indis-
tintamente para todas as igrejas originadas direta ou indiretamente da
Reforma e, em muitos casos, ê praticamente sinônimo de protestante.
Neste trabalho, preferi deixar intacta a equívocídade do uso latino-ameri-
cano, esperando que os contextos permitam ao leitor determinar o sentido.
2 George M. MARSDEN, Fundamentalism and American Culture: The Sha-
píng of Twentíeth-Century Evangelicalism: 1870-1925, New York: Oxford
Uníversíty, 1980, p. 3.
3 Tradução de V. Mendoza do hino "Far away in the depth of my soul
toníght", de W. D. Cornell; melodia "Wonderful peace". Aparece em hiná-
rios metodistas, batistas e de várias denominações evangélicas de princí-
pios do século em toda a América Latina.
4 Joseph ANGUS, Duty of the Church in Relation to Míssíon, in: Philip
SCHAFF, S. Irenaeus PRIME (Eds)., History, Essays, Orations and Other
Documents of the 5Mh General Conference of the Evange1ical Alliance
held in New lVrk, October 2-12, 1873, New York, 1874, p. 583, cito ap.
George M. MARSDEN, op. cít., p. 12.
5 Editorial, E1 Estandarte Evangelico, 15 fev. 1894, p. 2.
Notas 139

6 20 dez. 1894, p. 3. Um interessante trabalho sobre a leitura dos "testemu-


nhos" e sua importância, que ao mesmo tempo salienta a necessidade de
seu maior estudo, foi apresentado no encontro realizado no México por
ocasião dos dez anos de falecimento de Gonzalo Báez Camargo, por Carlos
Garma Navarro: Conversos, creyentes y cambio cultural. É evidente que
testemunhos, "histórias de vida", etc. constituem elementos indispensá-
veis para recuperar a experiência religiosa do povo cristão (em nosso caso,
do povo evangélico latino-americano). Ao mesmo tempo é necessário levar
em conta as caracteristicas particulares desse tipo de materiais e as pre-
cauções metodológicas (basicamente as diversas formas do que os soció-
logos chamam de "triangulação") que devem ser tomadas ao se avaliar
esses materiais. Veja, entre outros, as observações metodológicas em Tho-
mas ROBBINS, Cults, Converts and Charisma: The Sociology of New Re-
ligious Movements, London: SAGE, 1988, e o artigo muito interessante de
R Stephen WARNER, Oenology: The Making of New Wine (um estudo de
campo numa igreja presbiteriana na Califórnia), in: Anthony ORUN, Joe
FAGIN, Gideon SJOBERG, A Case for the Case Study, California: Uníver-
síty of California, 1991, p. 175-195. Em Bapüst Battles New Brunswíck:
Rutgers Uníversíty 1990, Nancy AMMERMAN oferece um interessante
excurso metodológico em seus Apêndices A e B, p. 287-340.
7 É interessante observar que Francis R Havergal (1836-1879), de confissão
anglicana, tem em 1850 uma experiência de conversão, que descreve
nestes termos: "I committed my soul to the Saviour and earth and heaven
were brighter from that moment") (Entreguei minha alma ao Senhor e
desde esse momento céu e terra ficaram mais luminosos). Condição de
membro da Igreja Anglicana, teologia "míldly Calvíníst" (tibiamente calvi-
nista) - diz um biógrafo - e experiência "evangélica" ("creio" - dizia ele
- "numa salvação gratuita e plena"). A síntese que domina esse movi-
mento não poderia ser ilustrada de maneira melhor.
8 The Great Reversal: Evangelism versus Social Concern, Philadelphia: Lip-
pincott, 1972. Cf. Donald DAYTON, Discovering an Evange1ical Heritage,
New York: Harper and Row, 1976, e Richard PIERARD, The Unequel Yoke,
Philadelphia: Lippincott, 1970.
9 George M. MARSDEN, op. cít., p. 86.
10 Resumo de id., ibid., p. 255, nota 30, de C. 1. Scofie1d's Question Box,
compilado por EUa A. POBLE, Record of Christian Work, Chicago: Moody
Bible Institute, s. d.
11 O tema do "fundamentalísrno" readquiriu atualidade hoje como fenômeno
religioso ou religioso-político que surge em diversas religiões (p. ex., no
judaísmo e no islamismo), bem como em movimentos políticos caracteri-
zados pelo autoritarismo ou pela intransigência. Neste sentido são inte-
ressantes a pesquisa dirigida e editada por Martin MARIY e R Scott
APPLEBY, Fundamentalisms Observed, Chicago: University of Chicago,
1991, e a avaliação dos mesmos editores em sua obra The Glory and the
Power: The Fundamentalist Challenge to the Modem World, Boston: Bea-
con, 1992. Já faz uns 30 anos que um singular escritor norte-americano,
Eríc Hoffer, tentou encontrar em traços de caráter, experiências sociais de
"frustração" e uma determinada "mentalidade" características comuns a
diversos movimentos de massas - religiosos, sociais ou políticos - que
ele definia como formas de fanatismo: a personalidade que chamava "the
true believer". Embora não se refira especificamente ao fundamentalismo,
140 Rostos do protestantismo latino-americano

trata-se evidentemente de uma tentativa de achar as "estruturas psicoló-


gicas" que correspondem ao que hoje em dia designamos com esse nome:
Eric HOFFER, The 'Itue Believer. New York: Harper and Row, 1966. Mui-
tas tentativas na mesma direção se seguiram depois. O trabalho de Marty
e Appleby que indicamos acima (The Gloiy end the Power) inclui observa-
ções a esse respeito. Não obstante. embora exista entre todos esses movi-
mentos uma série de elementos psicológicos e atitudes políticas análogas,
não creio que seja conveniente trabalhar o tema em termos tão gerais.
Trata-se de movimentos que surgem dentro de um contexto histórico
definido e que devem ser considerados primeiramente à luz desse contexto
e não como meros "casos" de um fenômeno generalizado.
12 Sobre a importãncia da escola filosófica escocesa do sentido comum e o
surgimento do fundamentalismo na América do Norte veja Martin MARIY.
R Scott APPLEBY. The Gloty end the Power. p. 59-60. e George M. MARS-
DEN. Fundamentalism and American Culture, p. 14-16. 110-116.
13 What was Christ's Attitude Thward Error: A Symposíum, Record of Chris-
tian Work. p. 600. 602, novo 1899; cito ap. Stanley N. GUNDRY. Love them
In: The Proclamation Theology of D. L. Moody, Chicago. 1976. p. 217-218.
14 Martin MARIY. R Scott APPLEBY. The GImyand the Power, p. 48-52.
resumem uma interpretação interessante das características da escatolo-
gia pré-milenarista e pós-milenarista. Há uma boa discussão teológica do
tema em James BARR. Fundamentalism. London: SCM. 1977. passim.
15 James BARR. op. cit .. p. 36.
16 Cito ap. George M. MARSDEN. Fundamentalism and American Culture,
p. 151; citação de Henry WKITERSON em The Kíng's Busíness, V. 9. p.
1026-1027. dez. 1918. de um editorial de The Louisvillle Courier JournaI.
17 Sobre o tema da criação e da evolução das espécies. que curiosamente
apareceu novamente em discussões sobre a educação nas campanhas
eleitorais em vários estados dos Estados Unidos em fins de 1994. veja
Martin MARIY. R Scott APPLEBY, The Glory and the Power. p. 53-56.
18 O fenômeno fundamentalista, tal como se deu particularmente no mundo
anglo-saxão. foi interpretado de diversas maneiras: como uma reação
contracultural, como uma forma de "natívísmo", como uma manifestação
do pré-milenarismo e inclusive (o autor alemão Riesenbrandt) como "pa-
triarcalismo radical". Um tanto inesperadamente. na discussão dos "con-
teúdos básicos" da educação básica do novo plano proposto na Argentina.
levantou-se uma forte oposição religiosa (majoritariamente católica) à in-
clusão do tema da evolução e do próprio nome de Darwín, e o Ministério
da Educação parece ter-se visto obrigado a modificar sua proposta. pro-
vocando a renúncia de vários dos educadores que trabalharam na prepa-
ração do projeto.
19 Com respeito aos conflitos na Convenção Batista do Sul é fascinante o
cuidadoso e equilibrado estudo de Nancy AMMERMAN. Baptist Bettles. a
que nos referimos anteriormente (nota 6).
20 C. W. DOLlAR. A History ofFundamentalism in America. Greenville: Bob
Jones Uníversíty, 1973; Introdução. p. 7; capo V, p. 14; capo XXI. p. 32.
Este livro é interessante por ser uma história do fundamentalismo a
partir de dentro do fundamentalismo.
21 Pablo A. DEIROS. Historia deI cristianismo en América Latina. Buenos
Aires: Fratemidad 'Ieológíca Latinoamericana. 1992. Veja do mesmo autor.
Notas 141

Protestant Fundamentalism in Latin Ameríca, in: Martin MARIY, R Scott


APPLEBY (Eds.), Fundamentalism Observed, v. I, p. 142-196.
22 Pablo A. DEIROS, Historte del cristianismo, p. S02.
23 Id., íbíd., p. S03-S06.
24 Prudencío DAMBORIENA, S.J., El protestantismo en América Latina, Frí-
burgo: FERES, 1962, tomo I, p. 32. Damboriena explica esse aumento
principalmente em termos da recolocação de missões, missionários e re-
cursos deslocados por causa da perda de campos missionários na Ásia,
como na China, Indochina, etc. (p. 27-45). As outras cifras que ele dá para
o mesmo período sugerem que uma causa exógena não consegue expli-
car, p. ex., o aumento de obreiros locais de 2.176 para 14.299 ou o de
membros comungantes de 170.S27 para 4.230.413.
25 Por exemplo, é interessante observar que em IS94 se podia discutir livre-
mente, no El Estandarte Evangélico, o uso de vinho nas mesas metodis-
tas, sem que uns e outros fizessem disso um artigo de fé, enquanto que,
em tomo de 1930, o voto de abstinência e a fita branca que o atestava
eram quase um requisito para ser membro da Igreja Metodista latino-
americana.
26 Cf. Historia y misión, in: Protestantismo y liberalismo, San José de Costa
Rica: DEI, 1983, p. 15-36.
27 Sobre essa transição veja Leopoldo ZEA, /Las ideas en Iberoaméríca en el
síglo XIX, La Plata: Universidad Nacional de La Plata, Departamento de
Filosofia, 1956, p. 43ss. Quanto ao significado ideológico dessa transição
é interessante uma citação de Zea que, mutatis mutandis, talvez também
tenha sentido para os evangélicos: "abandona-se a discussão pela liber-
dade e se estabelece a ordem que permitirá o progresso material de cada
país e, com ele, a liberdade como conseqüência" (p. 43).
28 Originalmente artigos no El Sendero del Creyente, v. XXXV, que em 1945
foram publicados num livro com o mesmo título.
29 Christian Work in Latin America, Montevideo: CCIA, 1926, tomo I, p. 350.
30 Pablo A. DEIROS, Historie dei cristianismo, p. 771s., SOl-808.
31 O desenvolvimento dessa linha em setores fundamentalistas norte-ame-
ricanos foi amplamente estudado. A melhor referência que conheço é o
estudo de Erlíng JORS1AD, The New Christian Riglit: 1981-1988, Lewís-
ton/Queenston: Edwin Mellen, 1987, com excelentes notas bibliográficas.
32 Um trabalho recente de George M. MARSDEN, Understanding Funda-
mentalism and Evangelicalism, Grand Rapids: Eerdmans, 1991, é muito
esclarecedor para situar a relação entre o evangelicalismo e os recentes
desdobramentos do fundamentalismo.
33 Declaración Evangélica de Cochabamba, Fraternidad de 'Ieólogos Latinoa-
mericanos, Pensamiento Cristiano, n. 69, p. 19, mar. 1971.
34 Let the Earth Hear His Voice, Minneapolis: World Wide Publications, 1975,
p.25s.
35 Buenos Aires: Certeza, 1975.
36 Ibid., p. 35.
37 Let the Earth Hear His Voice, p. 310.
38 Veja os números do ano de 1990 do Boletin 'Ieolôgico publicado pela FTL
e as palestras e discussões da reunião de Quito no n. 42-43 de setembro
de 1991.
142 Rostos do protestantismo latino-americano

39 O informe CLADE III: Tercer Congreso Latinoamericano de Evangeliza-


ciôn. Buenos Aires: FTL, 1993, 867 p., inclui a totalidade dos trabalhos
preparatórios, as palestras, os debates e os documentos finais do CLADE
III e é o melhor material para avaliar o processo que a FTL inspirou e a
amplitude de participação que obteve.

Capítulo 3:
o rosto pentecostal do protestantismo latino-americano

1 Carlos MARlitrEGUI, Siete ensayos sobre la realidad peruana. Lima: Amau-


ta, 1975, p. 172-173.
2 John A. MACKAY, How my Mind Has Changed in the Last Thírty Years,
The Christian Centwy. p. 875, jul. 1939.
3 Latín America and Revolution-II: The New Mood in the Churches, The
Christian Centwy, p. 1.439, 24 novo 1965.
4 O Prof. Mendonça me chamou a atenção para um relato contido na obra
de Emile LÉONARD, O protestantismo brasileiro, São Paulo: ASTE, S. d.
(publicação original de 1951-1952), sobre uma manifestação de caráter
pentecostal em 1840, no ministério de um missionário presbiteriano e ex-
sacerdote católico, José Manoel de Conceição, que depois continuaria esse
ministério por si mesmo (p. 56ss.). Léonard foi talvez o primeiro a perceber
o que Bernardo Campos chama de "a pentecostalidade" - e que Léonard
define como "o iluminismo" - no protestantismo brasileiro. Cf. seu libro
L'lllutninisme dans un protestantisme de constitution récente (Brésil),
Paris: Presses Universitaires de France, 1952.
5 Há várias tentativas de tipificar os pentecostalismos na América Latina ou
de elaborar o que Petersen chamou de "taxonomías do pentecostalismo
latino-americano". O Prof. Antonio Gouvea Mendonça distingue entre o
"pentecostalísrno clássico" e o "neopentecostalísmo" e, dentro deste, entre
um "pentecostalísmo autónomo" e o "pentecostalísrno de cura". O bispo
Manuel Gaxiola-GAXIOLA, da Igreja Mexicana Pentecostal Unida, fala de
distintos "agrupamentos" de igrejas pentecostais: autóctones, denomina-
ções fundadas por igrejas estrangeiras e um tipo especial de igrejas que se
assemelham ás igrejas messiânico-proféticas independentes da África (La-
tin American Pentecostalism: A Mosaic wíthín a Mosaic, Pneume, V. 13, n.
2, p. 107, 1991). As primeiras, em sua opinião, teriam nascido com escas-
sa ou nenhuma influéncia estrangeira e suas práticas se derivariam dire-
tamente das tradições do povo em que surgem. Carmelo ADlAREZ, de sua
parte, distingue também entre um "pentecostalísmo crioulo" com certo
arraígamento histórico na América Latina e igrejas implantadas mais re-
centemente por missões estrangeiras, que ele associa à "igreja eletrónica"
e a evangelistas como Jimmy Swaggart (Latin American Pentecostals:
Ecumenical and Evangelicals, Catholic Ecumenical Review, n. 23, n. 1-2,
p. 93ss., out. 1986). No último capítulo, faremos algumas observações a
respeito disso. 1àmbém deve-se levar em conta o forte colorido ideológico
de muitos desses movimentos, vinculados direta ou indiretamente "nova
à

direita religiosa" nos Estados Unidos. Veja a respeito disto os trabalhos de


Erling JORSlAD, The Politics of Moralism: The New Christian Right in
American Life, Minneapolis: Augsburg, 1981, e sobretudo sua ampla pes-
Notas 143

quísa e análise em The New Christian Right: 1981-1988, Lewiston/Queens-


ton, Edwin Mellen, 1987 (Studies in Amerícan Relígíon, 23). Em sua tese
ainda não publicada, Douglas Petersen questiona as taxonomias basea-
das na "origem" -local ou em missões estrangeiras -, pois o que impor-
ta não é a origem histórica, e sim a medida de efetiva "índígenízação"
alcançada. Parece evidente que ainda carecemos de critérios que nos
permitam uma tipificação mais adequada. Por outro lado, o caráter suma-
mente dinámico de todo o processo toma díficíl definir tais critérios.
6 Walter HOLLENWEGER, Spiritus: Estudios sobre Pentecostalismo, v. 1, n.
1, 1985.
7 São muitas as publicações do professor Hollenweger, partindo de sua
monumental tese em oito volumes, Handbuch der Plingstbewegung, Genf:
Õkumeníscher Rat der Kirchen, 1965, mimeografada. As referências que
utilizamos aquí encontram-se em id., El pentecostalismo: história y doe-
trina, Buenos Aires: La Aurora, 1976.
8 Em publicações mais recentes, o Prof. Hollenweger revisou e ampliou suas
teses iniciais. Veja, por exemplo, íd., Veinte anos después, Spiritus: Estu-
dios sobre Pentecostalismo, v. 2, n. 1, 1986. Reproduzido por Juan SE-
PÚUlEDA (Ed.J, Antologia sobre pentecostalismo, Santiago de Chile, 1989.
9 Emilio WILLEMS, Followers of the New Faith, Nashville: Vanderbilt Uni-
versity, 1967. Do mesmo autor, Relígíous Mass Movements and Social
Change in Brazil, in: E. N. BAKlANOFF (Ed.), New Perspectives on Brezil,
1966.
10 Recentemente, o sociólogo brítáníco David MARTIN retomou, com algu-
mas variantes, a mesma tese em seu livro 1bngues ofFire, 2. ed., Oxford:
Basil Blackwell, 1991, que, curiosamente, foi celebrado no mundo anglo-
saxão como um "descobrimento", mas cuja informação, conhecimento da
América Latina e metodologia nos parece que deixam muito a desejar.
11 Chrístían Lalive d'EPINAY, El refugio de las masas, Santiago de Chile:
Editorial deI Pacífico, 1968 fedo em port.: O refúgio das massas: estudo
sociológico do protestantismo chileno, Rio de Janeiro: Paz e 'Ierra, 1970).
Do mesmo autor há vários artigos (citados na bibliografia do livro mencio-
nado) e Religion, dynamique social et dépéndence, Paris: Mouton, 1975.
12 Pentecostais no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1985.
13 Id., ibid., p. 15.
14 Las culturas populares en e1capitalismo, México: Nueva Imagen, 1983, p. 22.
15 Daniel P. MÍGUEZ, Estilos de vida e identidades, manuscrito, 1993.
16 Amerindia, Santiago de Chile, tomo I, 1988; tomo lI, 1991.
17 Carmelo AUTAREZ (Ed.J, Pentecostalismo y liberación, San José de Costa
Rica: DEI, 1992.
18 Como curiosa exceção a essa "universalidade da graça" deve-se mencio-
nar a "Igreja de Deus", do Brasil, presbiteriana em sua origem, que adere
firmemente à doutrina da dupla predestinação e, por conseguinte, não faz
tentativas de proselitismo ou de "converter as pessoas", mas simplesmen-
te recebe a quem se aproxima e "atesta" sua eleição. Não obstante, é uma
igreja que tem crescido extraordinariamente e continua crescendo.
19 A ênfase quase exclusiva na "cura divina" caracteriza alguns movimentos
pentecostais mais recentes e o "neopentecostalísmo" ao qual fazemos alu-
são na nota 5. Neste sentido parecem-me de grande interesse algumas
144 Rostos do protestantismo latino-americano

observações do Prof. Mendonça sobre a preponderância do tema dos "es-


píritos" nesse neopentecostalismo de cura divina. Ele considera que essa
tendência, introduzida por missionários da "Igreja Quadrangular" em tor-
no de 1950, produz um "desequilíbrio no pentecostalismo clássico", na
medida em que assume o imaginário social popular de um mundo regido
por espíritos bons e maus e propõe uma forma de "manejar" o mundo dos
espíritos, restrita aos que detenham o poder "mágico". Dessa maneira se
deslocam os conteúdos evangélicos: o pecado é possessão demoníaca. a
libertação se realiza por exorcismo, freqüentemente o manejo dos espíritos
utiliza "instrumentos", como chaves abençoadas, tocar um objeto. A igreja
não é aqui principalmente a congregação de crentes comprometidos. Es-
tamos - pergunta-se Mendonça - frente a uma nova religião? Poder-se-
ia ver também aqui, pensando no pano de fundo afro-americano, uma
manifestação sincrética.
20 Raíces teológicas del pentecostalismo, Buenos Aires: Nueva Creación, 1991,
p.9s.
21 Grand Rapids: Eerdmans, 1971, p. 217.
22 Robert M. ANDERSON, The Vision of the Disinherited: The Making of
American Pentecostalísm, New York: Oxford Uníversíty, 1979, capítulo
sobre The Message of Pentecostalism.
23 Pentecostal Theology in the Context of the Struggle for Lífe, in: D. KIRK-
PJITRICK (Ed.l, Faith Bom in the 5truggle for Life, Grand Rapids: Eerd-
mans, 1988, p. 299ss.
24 Documento de síntese, Encontro de Pentecostais Latino-Americanos, Sal-
vador, Bahia, Brasil, 6 a 9 de janeiro de 1988, mimeografado, p. 5.
25 Esta e as demais citações desse encontro são tomadas de seu Documento
final, publicado ap. Carmelo AllTAREZ, op. cít., p. 252-254.
26 Ainda há poucas investigações confiáveis e abrangentes dessa atividade e
trabalhos sobre seu significado social e teológico. Os poucos trabalhos
que chegaram a nossas mãos se referem aos "evangélicos" em geral. Por
exemplo, David S1DLL, Is Latin America 'Iiirning Protestant?: The Politics
of Evangelical Growth, Berkeley: University of California, 1990; Rethin-
kingProtestantism in LatinAmerica, Philadelphia: 'Iemple Uníversity, 1993;
René PADILLA, De la marginación al compromiso: los evangélicos y la
política en América Latina, Buenos Aires: Fraternidad 'Ieológíca Latinoa-
mericana, 1990; Fortunato MALLIMACI, Protestantismo y política parti-
daria actual en Argentina: del campo religioso al campo político, la lucha
por la legitimidad, Buenos Aires, 1994 (mimeografado); Paul FRESTON,
1eocratas fisiológicos: nova direita e progressistas: protestantes e política
na Nova República, Rio de Janeiro: CEDI, 1989.
27 Lo testimonial: un caso de teologia oral y narrativa, in: Carmelo AllTAREZ,
op. cit., p. 128.
28 Id., íbíd., p. 129, grifes meus.
29 In: Algo más que opio, San José de Costa Rica: DEI, 1991, p. 26.
30 Elizabeth BRUSCO, The Household Besis ofEvangelical Religion and the
Reformation of Machismo in Colombie, Míchígan: Uníversíty Microfilm
International, 1986. A bacharel Móníca TI\RDUCCI apresentou na Univer-
sidade de Buenos Aires um trabalho sobre o mesmo tema sob o título
"Servir al marido como al Senor": las mujeres pentecostales.
Notas 145

31 Pierre BOURDIEU, Language and Symbolic Power, Cambridge: Cambríd-


ge Polity, 1991, p. 173 e 215.
32 Cf. artigo citado na nota 27. p. 126.
33 Sobre a importância do "milenarismo" como elemento central do funda-
mentalismo entabulou-se uma interessante discussão entre Emest SAN-
DEEN (The Roots of Fundamentalism: Brítísh and Amerícan Míllenaría-
nism 1800-1930, Chicago: Uníversíty of Chicago, 1970) e George MARS-
DEN [Defíníng Fundamentalism, Christian Scholars Review, n. 1, p. 141-151.
1971); veja a resposta de Sandeen no número seguinte da mesma publi-
cação. Enquanto que Sandeen considera que o milenarismo é "a raiz" do
fundamentalismo, Marsden o vê como "uma das raízes" de um movimen-
to cuja característica defmidora é a rejeição da modernidade.
34 Uma discussão significativa da relevância atual do "evangelho apocalípti-
co" de Paulo e, ao mesmo tempo, uma critica aguda das deformações e
adulterações que tem sofrido encontram-se no livro de J. Chrístían BE-
KER, Paul's Apocaliptic Gospel: The Coming Tríumph of God, Phíladel-
phia: Fortress, 1989.

Capítulo 4:
Um "rosto étnico" do protestantismo latino-americano?
1 Emíle-G. LÉONARD, O protestantismo brasileiro: estudo de eclesíología e
de história social, São Paulo: ASTE, 1964. p. 17 (grifos meus).
2 Não cremos que seja necessárto tentar resumir os dados históricos da
entrada das igrejas de imigração na América Latina. As obras de Príen,
Bastían, Deiros e outros às quais nos referimos dão os dados básicos e
incluem as referências bibliográficas necessártas para empreender um
estudo mais detalhado dos aspectos históricos.
3 Waldo L. VILLALPANDO (Ed.), Las igJesias del trasplante: protestantismo
de ínmígracíón en la Argentina, Buenos Aires: CEC, 1970.
4 Robert RICARD, La. conquête spirituelle du Mexique, Paris. 1933; cito ap.
J. MÍGUEZ, Las perspectivas deI cristianismo en América Latina, Cuader-
nos de Embelse, FUMEC, 1964. p. 1-13.
5 R NARROLL, Ethnic Unit Classífícatíon, Current Anthropology, V. 5, n. 4,
resumido por Fredrík BARTI-I en Los grupos étnicos y sus fronteras, Mé-
xico: Fondo de Cultura Econórníca, 1976, p. l l ,
6 Encontramos apresentações que resumem de forma clara e simples essa
discussão no livro editado por Fredrík Barth indicado na nota anterior (p.
9-49) e na compilação editada por Roberto RINGUELET, Procesos de con-
tacto interétnico, Buenos Aires: Búsqueda, 1987, p. 13-48. Ambos in-
cluem uma bibliografia abundante.
7 Waldo VILLALPANDO, op. cít., p. 9, cita expressões de Roger Bastide (Bré-
silo terre de contrastes. Paris: Hachette, 1957, p. 241) sobre a importância
da religião na preservação cultural: "De um modo geral, a religião é o
centro mais importante da resistência. Podem-se mudar a língua, o modo
de viver e as concepções sobre o amor. A religião integra a última trinchei-
ra ao redor da qual se cristalizam os valores que não querem morrer. O
sagrado é, nas batalhas das civilizações, o último baluarte que recusa
render-se." Em alguns dos "despertares étnicos" que - para surpresa de
146 Rostos do protestantismo latino-americano

muitos - vêm cobrando força em diversas partes do mundo, esta afirma-


ção de Bastide parece confirmar-se. Creio, porém, que, como generaliza-
ção, ela deve ser tomada com cautela; é verdade que, entre esses "renas-
cimentos étnicos", há alguns nos quais o elemento religioso desempenha
um papel importante (mesmo que só ideologicamente), mas outros fatores
como a língua, a filiação política ou ideológica e os interesses econômicos
comuns ocupam um lugar ao menos da mesma ímportãncía na auto-
afirmação e nas lutas étnicas.
8 Na impossibilidade, por razões tanto de espaço quanto de conhecimento,
de considerar o tema a partir de fontes primárias e à altura da grande
diversidade de igrejas que podem ser consideradas étnicas na América
Latina, decidi fazer só algumas observações com base em trabalhos de
pesquisa realizados sobre algumas igrejas no Cone Sul, particularmente
na Argentina, no Uruguai e no Brasil. Com respeito ao Brasil, utilizei
principalmente, junto com os trabalhos histórtcos de Mendonça, citados
anteriormente, os livros de Martin N. DREHER, Igreja e gerrnanidade:
estudo critico da história da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no
Brasil, São Leopoldo: Sinodal; Caxias do Sul: UCS; Porto Alegre: EST São
Lourenço de Brindes, 1984; André DROOGERS, Religiosidade popular
luterana: relatório sobre uma pesquisa no Espírito Santo em julho de
1982, São Leopoldo: Sinodal, 1984; e Hans-Jürgen PRIEN, Evangelische
Kirchwerdung in Bresilten, Gütersloh: Gerd Mohn, 1989. Na Argentina. a
mencionada pesquisa Las igJesias del trasplante e a tese de Maria M.
BERG. Dinamarca bejo la cruz del sur: los asentarnientos daneses del
centro-sur de la províncía de Buenos Aires. 1850-1930, Universidade de
Buenos Aíres, 1994. Outras indicações aparecem nas respectivas referências.
9 Dados documentados respectivamente nos informes dos congressos do
Panamá. de Montevidéu e de Havana citados em capítulos precedentes.
Com respeito à Confederação Evangélica do Rio da Prata. veja Horacio
GUALDIERI. FAlE: Apuntes para una historia de las relaciones eclesiales
en el Rio de la Plata, Buenos Aires. s. d. (mimeografado), e Eugenio E.
MOHR, Confederación de Iglesias Evangélicas del Rio de la Pieis, tese
apresentada no ISEDET, Buenos Aires. 1993.
10 Kurt HUTIEN, Seher, Grúbler, Enthusiasten: Sekten und relígíõse Son-
dergemeinschaften der Gegenwart, Stuttgart: Quell. Nas edições iniciais e
até 1954 ao menos, igrejas como a metodista. nazarena. etc. aparecem
sob a designação de "comunidades perfeccíonístas". Na 8 a edição. de 1962.
desaparecem os metodistas. mas os nazarenos continuam.
II Faço essa observação com base em referências indiretas e de comentários
de pessoas envolvidas nessas conversações. mas não conheço documen-
tação específica sobre elas.
12 Ernst mOELTSCH. Die Soziallehren der christlichen Kirchen und Grup-
peno in: íd., Gesammelte Schrtiten, 3. ed., Tübingen: J. C. B. Mohr, 1923.
v. I, p. 358-377.
13 Além da obra de Troeltsch citada na nota anteríor, veja Max WEBER. Díe
protestantischen Sekten, in: id., Gesammelte Auisêtze zur Religionssozio-
logic. v. I, p. 207-236. As distinções de 'Iroeltsch e Weber foram refinadas
posteriormente. incluindo categorias mais precisas e delimitadas, como
igreja universal. ecclesie. seita estabelecida e seita. Veja a esse respeito J.
Milton YINGER, Religiôn, persona, sociedsd, Madrid: Razôn y Fe, 1968. p.
192-208.
Notas 147

14 Numa reflexão sobre o anglicanismo na "Região Central da América", o


secretário de educação da Igreja Episcopal no Panamã, John L. Kater,
descreve essa concepção anglicana, citando a clássica formulação de Hoo-
ker: "cada igreja foi originalmente organizada para servir a um povo ou a
una nação particular (...) A imposição da monarquia papal (...) foi um
desenvolvimento tardio, que despojou as igrejas de sua habilidade para
servir adequadamente sua própria nação." E então Kater mostra como
essa concepção não pôde funcionar nos Estados Unidos, para concluir
com uma teoria dos "distintas ramos" da igreja e, portanto, da pluralida-
de. In: Ashton J. BROOKS (Ed.), Eclesiologie: presencia anglicana en la
Regíón Central de América, San José, Costa Rica: DEI, 1990.
15 Id., íbíd., p. 33.
16 Maria M. BERG, op. cít., p. 277.
17 Embora não seja o caso da imigração protestante (valdense) da Itálía, é
interessante observar que a colônia italiana na Argentina sentiu forte-
mente a pressão de consolidar a unidade italiana para uma "identidade
nacional italiana" em lugar das identidades regionais de origem que ha-
viam predominado anteriormente. Cf. Eduardo J. MÍGUEZ, 'Iensíones de
identidad: reflexíones sobre la experiencia italiana ínmígrante en la Argen-
tina, in: F. J. DEVOTO, E. J. MÍGUEZ (Eds.) , Asociacionismo, trabajo e
identidad étnica: los italianos en América Latina en una perspectiva com-
parada, Buenos Aires: CEMlA-CSER-IEHS, 1992, p. 333-358.
18 Não vamos nos deter no complexo problema da identidade étnica "germã-
níca" da nação "alemã", que, como indicamos mais adiante, manifesta-se
em algumas das cisões posteriores, nem na debatida questão da adesão
ou oposição à "germanídade" impulsionada pelo nacional-socialismo. O
tema é discutido em relação ao Brasil nas obras de Dreher e Prien já
citadas. No tocante à Argentina e ao Uruguai, é sumamente ilustrativo o
artigo de Alejandro WRZIN (parte de uma investigação que o autor está
continuando), Pastor Wilhelm Nelke, un impulsor de la germanidad en el
Rio de la Plata, Cuademos de 7eología, Buenos Aires, ISEDET, v. 12, n. 2,
p. 29-57, 1992.
19 Em sua Storia dei Valdesi, 10000: Cíaudíana, 1980, v. 3, p. 196-202, Valdo
VINAY faz esta interessante observação: "Em seu foro íntimo os evangelis-
tas se regozijaram com a independência nacional (...) Mas sua espírítualí-
dade do despertar {risvegJiata] separava com rigor a esfera espiritual da
política e eles não conseguiam ver um vínculo vital efetivo entre o evange-
lho pregado e a libertação política e social de seu povo." Cf. também
Giorgio roURN, Los Valdenses, Montevideo: Iglesia Valdense, 1983, v.
Ill/2, p. 274ss.
20 Walter ALlMANN, Lutero e libertação: releitura de Lutero em perspectiva
latino-americana, São Leopoldo: Sinodal, São Paulo: Ática, 1994, p. 121s.
(grifos meus).
21 Vale a pena registrar aqui que, embora tenham sido recebidas e até con-
vidadas, as comunidades estrangeiras foram amiúde discriminadas so-
cialmente, rejeitadas pelas elites tradicionais e sofreram, em muitos mo-
mentos, nas mutações políticas dos distintos países, graves discrimina-
ções em temas como a construção de seus templos, o matrimônio e o
sepultamento de seus membros e a educação religiosa de seus filhos, e
tiveram sérios conflitos com o estado, que, ocasionalmente, só foram su-
148 Rostos do protestantismo latino-americano

perados mediante a intervenção dos representantes diplomáticos dos paí-


ses de origem.
22 Albert C. OUTLER, Evangelism in the llésleyan Spirit, Nashville: Tídíngs,
1971, p. 60-61 (grifas meus).
23 Samuel ESCOBAR, La fe evangélica y las teologias de la hberectôn. El
Paso: Casa Bautista de Publícacíones, 1987, p. 45s.
24 H. Richard NlEBUHR, The Social Sources of Denomineiionelism, New
York: Merídían Books, 1957 (edição original de 1929). Níebuhr vê, ao longo
de toda a história, o surgimento das "igrejas dos deserdados" como um
protesto contra a "acomodação" das igrejas aos interesses das classes
dominantes e sua incapacidade para manter o testemunho ético e profé-
tico da fé cristã. Quanto à Reforma e aos movimentos radicais do século
16, veja p. 34-53, e uma tese geral sobre a origem social do denomínacío-
nalismo às p. 21-25.
25 O estudo documentado no livro se limita a dez igrejas; em seus resumos
finais Christian lALIVE acrescenta a Igreja Evangélica de Fala Francesa
do Rio da Prata, cujos dados ele conhece mas não inclui (veja op. cít., p.
164, nota 6). Descontei esse dado e me ative aos indicados no livro; daí a
diferença entre meus dados e as cifras dele.
26 Id., íbíd., p. 165.
27 Ibid., p. 164.
28 Esse despertar, que acontece nas igrejas valdenses depois da unidade
(1848), representa diversas influências "evangélicas" - pietismo reforma-
do, batistas, "darbístas", metodistas e o anglicanismo evangélico - bem
documentadas nas histórias que mencionamos; Valdo VINAY, op. cít., v.
3, p. 73-165; Gíorgío TOURN, op. cít., v. ll/2, p. 274ss. No momento em
que concluía este trabalho, chegou-me às mãos a obra, recentemente
publicada, de Roger GEYMONlIT, EI templo y la escuela: los valdenses en
el Uruguay, Montevideo: Cal y Canto, OBSUR, Fundacíón Giovanni Ag-
nelli, 1994. Embora o autor não analise a orientação teológica dos primei-
ros pastores, chama a atenção para um aspecto que corresponde a nosso
tema: o contraste entre o que Geymonat chama de "o píetísmo dos pasto-
res vindos da Itália em fins do século 19 e inícios do século 20, imbuídos
de um decidido espírito de evangelização" e a atitude majoritãria do que
"poderíamos qualificar de 'militância religiosa passíva'" da maioria dos
colonos (p. 120-121).
29 Hans-Jürgen PRIEN, Evangelische Kirchwerdung, p. 91-93.
30 Christian lALIVE, op. cit., p. 174.
31 Id., ibid., p. 171.
32 Um caso muito interessante é o da Igreja Presbiteriana Escocesa, que até
há poucos anos teríamos caracterizado como eminentemente "étnica",
sem perceber que sua história inicial teve uma intenção evangelizadora e
missionãria que depois se extinguiu. Mesmo sem contar a obra missioná-
ria iniciada por presbiterianos de origem norte-americana (cf. Daniel P.
MONTI, Presencia deI protestantismo en el Río de la Plata durante el siglo
XIX, Buenos Aires: La Aurora, 1969), a congregação rural residente esco-
cesa de Chascomús e seu pastor Robertson iniciaram um trabalho de
evangelização que depois foi descontinuado. Essa significativa história foi
recuperada e analisada numa interessante tese do pastor Girvan Christíe
McKAY, Growth and Decrease of Presbyterian Missiotiery Outreach in
Notas 149

Argentina, Buenos Aires: ISEDET, 1974. Em anos recentes essa vocação


parece ter sido reencontrada, porém não sem tensões e conflitos.
33 Chrístían IALIVE, op. cít., p. 166-170.
34 Numa palestra feita no ISEDET (Buenos Aires, 1983), Walter Altmann
destacou como a crise econômica que obrigou muitos luteranos brasilei-
ros a emigrar para a periferia das cidades ou para a fronteira com o
Paraguai gerou uma integração religiosa ou a formação de comunidades
eclesiais abertas.
35 A discussão sobre aculturação, adaptação, assimilação, pluralidade cul-
tural é totalmente pertinente a nosso tema, mas escapa a nossas possibi-
lidades. Haveria que falar aqui, em relação com o tema que nos ocupa, ao
menos de dois aspectos. Um é o modelo de recepção e tratamento da
imigração que distintos países adotaram: em alguns, houve uma "política
dura" de pressão social, cultural e política para assimilar a população que
se recebia - que abandonassem seu idioma, seus usos particulares, a
endogamia - , o que poderiamos chamar de a ideologia do "crisol de
raças"; em outros, uma "política branda" de educação bilíngüe, estímulo
a manifestações culturais diversas e até aceitação de dupla nacionalidade
(o que nem sempre significa maior apreço pelas etnias imigrantes, mas
pode ser também uma forma de discriminação). A maioria dos países
latino-americanos, buscando construir uma identidade própria, aderiu,
com distintos graus de intensidade e execução, à primeira. Mas veja-se
também, em relação à política imigratória argentina, o interessante artigo
de Dolores JULIANO, EI discreto encanto de la adscripción étnica volun-
tarta, in: R RINGUELET (Ed.), op. cít., p. 83-109. 1àmbém são interessan-
tes os trabalhos de Roy A. Preíswerk: alguns de seus textos foram recolhi-
dos no livro editado por seu sucessor, Gilbert RIST, A contre-courents,
l'enjeu des réleiions interculturelles, Lausanne: Edítíons d'en Bas, 1984;
veja especialmente o artigo do próprio Rist, Pour une épístemologíe inter-
culturelle, e o de Matthias PREISWERK, Identíté culturelIe et développe-
ment. Isto conduz a um segundo tema, a saber, como se gera uma "iden-
tidade"? Em vários países latíno-amerícanos - tomo a Argentina como
exemplo - tem havido um conflito entre duas formas de entender a
conformação de uma "identidade nacional": uma, que eu chamaria de
"mítica", que postula uma certa "essência" ou "ser nacional", vinculada
ao solo, ao sangue ou à ideologia - que pode ser religiosa - e que é
representada por símbolos: a bandeira, o hino, algum personagem, etc.
Curiosamente, tambêm algumas igrejas de imigração entenderam sua
identidade neste sentido e lutaram para mantê-la. Outra linha - que,
como se verá, considero mais frutífera - é a que as ciências sociais
modernas nos propõem: a identidade de um povo não é uma entidade
estática e supra-histórica, e sim uma autopercepção, uma "elaboração da
pertença social" que é gerada na consciência de um povo na interação de
condições objetivas e da criação intersubjetiva. 1àl elaboração é possível
em relação com um "outro" externo (quer dizer, na pluralidade dos povos)
e com "outros" internos (quer dizer, na pluralidade dentro de um povo, em
nosso caso, a pluralidade religiosa). Por isso, a identidade ê criada a partir
das identidades: não há um único modo de ser, como, por exemplo,
argentino (ou "rnetodista", se vamos ao caso). E ê a interação desses
distintos modos que permite criar símbolos sufícíentemente amplos para
incluir essa diversidade. Alguns trabalhos recentes colocaram esse tema
de forma sumamente interessante e frutífera; entre outros: COHEN, The
150 Rostos do protestantismo latino-americano

Symbolic Construction of Community, 'Iavístock, 1985; KERrZER, Ritual


Politics and Power, New Haven: Yale Uníversíty, 1989; Craíg CALHOUN
(Ed.) , Social Theory and the Politics of Identity, Oxford: Blackwell, 1994;
Anthony GlDDENS, Modemity and Self-Identity, Cambridge: Polity, 1991;
Jorge lARRAÍN, Ideology and Cultural Identity, Cambrídge: Polity, 1994.
36 Numerosas passagens proféticas apresentam basicamente a mesma men-
sagem. A esse respeito, há um bom resumo no artigo sobre "os gentios"
(ethnon) na seção do M, escrita por BERTI-IAM, in: Gerhard KITTEL (Ed.),
Tbeologicel Dictionexy of the New 1estament, Grand Rapids: Eerdmans,
1964, v. n. p. 364-369.
37 Krister STENDHAL argumentou - com razão, em minha opinião - que
não se deve ver a discussão da relação entre judeus e gentios como "um
caso" no qual Paulo "aplica" a doutrina da justificação pela fé, e sim, pelo
contrário, como o problema crucial em tomo do qual o apóstolo define
essa doutrina: Paul Among Jews and Genttles, Philadelphia: Fortress,
1964, p. 2, 36-37.
38 É claro que não se trata aquí de resumir ou analisar esse complexo tema
teológico. 1àlvez a discussão favorável mais cuidadosa se encontre na obra
de Helmut TI-llELlCKE, Theologische Ethik, Tübíngen: J. C. B. Mohr (paul
Siebeck), 1955, especialmente v. n. Dietrich BONHOEFFER reinterpretou
o conceito de forma mais dinâmica em sua doutrina dos "mandatos":
Ethik (editada postumamente), München: Kaiser, 1949, seção 11 (há tra-
dução para o português publicada em sucessivas edições pela Editora
Sinodal). Emil BRUNNER também trabalha a partir da perspectiva das
ordens da criação em sua ética: Das Gebot und âie Ordnungen, 1932
Itrad, para o inglés: The Dtvitie Impera tive, Philadelphia: Westminster,
1947), v. Ill, criticada duramente por Karl BARTI-I em Nem (1934) por
considerá-la uma perigosa concessão à teologia natural e às pretensões
de um estado racista! Num sentido perigosamente próximo desta última
interpretação: Paul ALTI-lAUS, Die deutsche Stunde der Kirche, Gõttín-
gen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1933.
39 Re(li)gion, the Lord of History and the lllusory Space, in: Lutheran \furld
Federation Studies: Region and Religion, Geneva: IWF, 1994.
40 ld., íbíd., p. 82.
41 lbid., p. 94.
42 Cf. Ernst KÃSEMANN, Gottesgerechtigkeit beí Paulus, in: Joumal for
Theology and the Cburch, Harper, 1965, v. 1, p. 108-109.
43 Nils A. DAHL, Studies in Paul, Minneapolis: Augsburg, 1977, p. 109.
44 Vitor WESTI-lELLE, op. cít., p. 95 (grifos meus). Fica-me um tema para o
qual o autor não retoma e que me parece importante: é a abertura do
espaço próprio pelo reconhecimento da alteridade que se toma epífáníca
o suficiente, sem a relação dessa "epifania" existencial com uma abertura
para o "futuro de Deus"? Mais simplesmente: pode haver uma teologia
bíblica sem esse "metarrelato" que tanto desgosta o pós-modernismo,
mas que parece inerente à escatologia bíblica? Não correm, nessa visão, o
tempo humano e o propósito divino o risco de ficar reduzidos a momentos
e espaços descontínuos? Possivelmente temos aqui uma conversação lu-
terano-reformada que convém continuar mantendo.
Notas 151

Capítulo 5:

Em busca de uma coerência teológica:


a trindade como critério hermenêutica
de uma teologia protestante latino-americana
1 RubemADlES, Dogmatismo e tolerância, São Paulo: Paulinas, 1982, p. 170.
2 EI futuro del protestantismo, Boletín 'Ieolôgico, n. 42-43, p. 155-157, set.
1991: Kirchlicher Pluralismus und wechselnde Koalitionen, Jahrbuch Mis-
sion 1992, p. 19-31; Campo religioso latinoamericano y desafios ecuméni-
cos, Tópicos '90, Santiago de Chile, Centro Diego de Medellín, n. 7, p.
11-22, jan. 1995, e Ecumenismo y unidad de la íglesía, palestra apresen-
tada na III Assembléia do ClAI, Concepción, Chile, 1995.
3 Jean-Christophe RUFIN, L'empire et les nouveaux barbares, Mesnil sur
l'Estrée: Jean-Claude Lattes, 1991.
4 Thomas LUCKMANN, La religión invisible: el problema de la religión en la
socíedad moderna, Salamanca: Sígueme, 1973.
5 Sociedad y Rcligiôn, Buenos Aires, n. 10/11, p. 52-61, jun. 1993.
6 Cf. o recente texto de Leonardo BOFF, 'Ieologis: e ecologia, São Paulo:
Paulinas, 1994.
7 B. W. HARGROVE, The Sociology of Religion, Chicago: Harlan Davison,
1989, caps. 14 e 15.
8 A tendência de setores da Igreja Católica Romana, neste momento apa-
rentemente dominantes em sua condução central e no CELAM, a reto-
mar, numa versão atualizada, um novo projeto de cristandade, implica,
em minha opinião, uma grave divergência com a concepção evangélica de
missão e evangelização, com sérias conseqüências em nível teológico, ecu-
mênico e pastoral. 'Ienteí articular esse problema na apresentação feita à
Assembléia do ClAI mencionada na nota 2 e, mais extensamente, num
artigo escrito por ocasião do Quinto Centenãrio: Evangelio y cristiandad:
apuntes para una reflexíón sobre 500 anos de evangelización católica en
América Latina, in: Quinientos afios de evangelización en América Latina,
Buenos Aires: IDEAS-REDLA, 1992, p. 93-111, e em Cuademos de 'Ieolo-
gia, v. 13, n. 1, p. 27-46, 1993.
9 Juan Luis SEGUNDO, Nuestra idea de Dtos, Buenos Aires: Carlos Lohlé,
1970 [ed. em port.: Nossa idéia de Deus, São Paulo: Loyola, 1977]: Ronal-
do MUNOZ, El Dios de los cris tian os, Santiago de Chile: Paulinas, 1987
[ed. em port.: O Deus dos cristãos, Petrópolis: Vozes, 1986]: José COM-
BUN, El Espiritu Santo y la liberación, Madrid: Paulinas, 1987 [ed. em
port.: O Espírito Santo e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1987]: Leonardo
BOFF, A 1hndade, a sociedade e a libertação, Petrópolis: Vozes, 1986.
10 Essa é a perspectiva teológica em que Ronaldo Muüoz (cf. nota 9) desen-
volve o tema trinitãrio.
11 Esse tema, central na ênfase calvinista na soberania de Deus, resgatado
e atualizado radicalmente no Rõmerbrief (Comentãrio da Epístola aos
Romanos, edição de 1921) de Barth, constitui o eixo das conferências
pronunciadas em Buenos Aires, na Cátedra Camahan, por Juan A. MAC-
KAY em 1953 e publicadas sob o título Realidad e idolatria en el cristianis-
mo, Buenos Aires: La Aurora, 1970.
152 Rostos do protestantismo latino-americano

12 Éjusto salientar que foi E. Peterson o primeiro (1935) a chamar a atenção


para as interpretações teológicas que, ao reduzir a doutrina da trindade a
distinções modais dentro de uma concepção unitária, não só não faziam
justiça à revelação, mas refletiam e legitimavam um modelo de dominação
imperial. Veja E. PETERSON, Monotheismus als politisches Problem, re-
produzido em Theologische 1taktate, München, 1951; A. SCHINDLER,
Monotheismus ais theologisches Problem: Erich Peterson und díe Kritík
der politischen Theologíe, Gütersloh, 1978, e Jürgen MOLTMANN, 'Itini-
dad y Reino de Dios, Salamanca: Sígueme, 1983, p. 208-212.
13 Convém aqui recordar Martin BUBER, que, em sua breve e já clássica
obra lli y tú (Diaiogisches Leben, 1947) propunha essa interpretação dia-
logal como base de uma antropologia a partir de uma perspectiva teológi-
ca judaica. lli y tú, Buenos Aires: Galatea Nueva Visión, 1956.
14 AGOSTINHO, De 1Hnitate, 1.4.7; Mígne, PL, 42/804.
15 Otto WEBER, Grundlagen der Dogmatik, Neukirchen: Neukirchener, 1955,
vol. I, p. 435.
16 Juan A. MACKAY, El otro Cristo espeiiol: un estudio de la hístorta espiri-
tual de Espana e Hispanoamérica, México / Buenos Aires / Guatemala:
CUPSA / La Aurora / Semilla, 1988. A primeira edição em espanhol,
tradução de Gonzalo Báez-Camargo, é de 1952.
17 Recordar-se-ào particularmente o debate no Conselho Missionário Inter-
nacional e as clássicas obras William E. HOCKING (Ed.), Re-Thinking
Mission: A Layman's Enquíry after One Hundred Years, New York: Harper
and Brothers, 1932, e a resposta critica de Hendrik KRAEMER The Chris-
tian Message in a Non-Chrtstisn World, London: Edinburgh House, 1938,
que resumem dois pontos de vista antagônicos. Um bom resumo da pro-
blemática e uma bibliografia inicial encontram-se no livro de Paul F.
KNITIER No Other Name?, Maryknoll, New York: Orbis, 1985. O mesmo
Knitter prepara una obra com vários autores com o título The Uniqueness
ofJesus, que será publicada em 1994/95 pela 'Iemple Uníversíty Press, de
Filadélfia. Sobre a questão do "sincretismo" - verdadeiro e falso - pare-
ce-me interessante o capítulo 7 de Leonardo BOFF, Igreja, carisma e
poder, Petrópolis: Vozes, 1981.
18 EIsa 1AMEZ, Quetzacoatl y la lucha de los díoses, Pasos, San José, Costa
Rica: DEI, n. 35, p. 9-22, 1991.
19 'Iodo esse conjunto de temas reclama um estudo, uma reflexão e uma
discussão detida e aberta, que já teve início. É claro que fica fora das
perspectivas deste trabalho entrar nesse tema. Permítír-me-ía, contudo,
salientar apenas a necessidade de deslindar ao menos dois temas: (1) a
relação entre o caráter transcendente da "experiência de Deus" que con-
fessamos e os condicionamentos de toda ordem (históricos, ideológicos,
psicológicos, culturais) da "materialidade" dessa experiência e das mani-
festações doutrinais, litúrgicas ou éticas que toma essa confissão; (2) o
risco de confundir, na discussão da evangelização cristã da Amêrica Lati-
na, o problema do "poder" com o da "verdade": denunciar o crime e
contra-senso de uma evangelização baseada no poder não significa re-
nunciar à comunicação da "verdade" do evangelho, reconhecendo todas
as ambigüidades inerentes a qualquer formulação e comunicação huma-
nas dessa verdade.
20 Uma rápida olhada na pregação evangelizadora dos púlpitos e campanhas
evangélicas revela a escassa presença de textos dos evangelhos e, partícu-
Notas 153

larrnente, da vida e dos ensinamentos do Senhor Jesus durante sua vida


terrena. A menção dos evangelhos costuma limitar-se a textos da semana
da paixão ou à interpretação isolada de alguns ditos de Jesus. Creio que
valeria a pena fazer um estudo mais cuidadoso desse aspecto da teologia
evangélica latino-americana "em ação".
21 Os trabalhos sobre as condições sociais do penado do nascimento do
cristianismo, iniciados no final do século passado pela escola de Chicago
(Shailer Mathews, Shirley Jackson Case e outros), foram retomados, com
as necessárias correções, por autores como Scroggs, Meeks, Theíssen,
Horsley e outros. Particularrnente os trabalhos de Horsley e Crossan mos-
tram claramente a raiz do "movimento de Jesus" na tradição profética.
Em espanhol temos agora a fundamental obra de J. D. CROSSAN, Jesús,
vida de un campesino judio (Barcelona, 1994) [ed. em port.: O Jesus
histórico: a vida de um camponês judeu do Mediterrâneo, Rio de Janeiro:
Imago, 1994], que resume, atualiza e, ao mesmo tempo, aprofunda os
estudos sobre o tema.
22 Entre a ampla literatura a esse respeito destaco os trabalhos de Jon
SOBRINO, Cttstologie desde América Latina (1976) fedo em port.: Cristo-
logia a partir da América Latina, Petrópolis: Vozes, 1983], Jesús en Amé-
rica Latina (1982) fedo em port.: Jesus na América Latina, São Paulo:
Loyola, 1985] e Resurrección de la verdadera Igiest« (1981) fedo em port.:
A ressurreição da verdadeira igreja, São Paulo: Loyola, 1982]; Raúl VIDA-
LES, Desde la tradición de los pobres (1978): Juan L. SEGUNDO, El
hombre de hoy ante Jesús de Nazaret (1982, V. Il/l, p. 69-284) fedo em
port.: O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, São Paulo: Paulinas,
1985]: e a tese inédita de René KRÜGER, Díos y el Mamón: estudio
semântico y hermenéutico del proyecto económico y social en Lucas,
ISEDET, 1987.
23 EIsa lAMEZ, Contra toda condena: la justífícacíón por la fe desde los
excluídos, San José, Costa Rica: DEI, 1991 [ed. em port.: Contra toda
condenação: a justificação pela fé, partindo dos excluídos, São Paulo:
Paulus, 1995).
24 Ricardo ROJAS, El Cristo invtsible. Buenos Aires: Líbrería "La Facultad",
1928, p. 343.
25 A opinião mais corrente é que o "Altíssimo" do qual Melquisedeque apa-
rece como sacerdote é a divindade cananéia honrada em Jerusalém antes
de sua conquista por Davi e sua aceitação do javísmo. Em todo caso, o
que importa aqui é a suposição do autor: o próprio Deus de Israel se
manifesta em Melquisedeque abençoando Abraão.

Capítulo 6:
Em busca da unidade: a missão como princípio material
de uma teologia protestante latino-americana
1 Quanto à história dessa formulação, veja o detalhado trabalho histórico-
critico de A. RITSCHL, Über die beiden Principien des Protestantismus, in:
id., Gesammelte Aufsãtze, Freíburg: J. C. B Mohr, 1893, v. I, p. 234-257.
2 Paul TILLICH, Tbe Protestant Era, Chicago: Uníversíty of Chicago, 1957,
p. 163 e passím.
154 Rostos do protestantismo latino-americano

3 Rubem ADJES, Protestantismo e repressão, São Paulo: Átíca, 1979. p.


40-41 e passírn.
4 Atrever-me-ia a dizer que, se queremos caracterizar o princípio material
da justificação pela fé como o eixo da Reforma. valeria em alguma medida
também esta observação. Com efeito. creio que há uma grande distância
entre o uso que a ortodoxia luterana fez do lema articulus stantis et
cadentis ecclesiee e a intenção da expressão de Lutero nos Artigos de
Esmalcalda, em que essa formulação busca apoio ("De hoc articulo [a
justificação pela fé] cedere aut aliquid contra illum Iergire aut permittere
nemo piorum potest, etiamsi coelum et terra ac omnia conuant'). O erro
consiste, em minha opinião. em isolar esse critério doutrinal de sua fun-
ção na própria teologia crístológíca de Lutero; em função do ''was Cbrts-
tum treibt", da autocomunicação de Jesus Cristo na "viva vox" da procla-
mação. a justífícação pela fé tem seu lugar e significado.
5 The Methodist Revolution, New York: Basic Books, 1973.
6 Ibíd.. p. 162-163.
7 Christian Mission and Social Progress: A Socíologícal Study of Foreígn
Míssíons, New York: Fleming H. Revell, 1897. p. x.
8 Felizmente temos hoje um amplo e documentado guia para estudar esse
desenvolvimento na obra de David J. BOSCH, 1tansforming Missioti: Pa-
radígm Shifts in the Theology of Míssíon, New York: Orbís, 1991. A edição
em português está sendo preparada pela Editora Sinodal.
9 WilhelmANDERSEN. 7bwards a Ttieology otMission. London: SCM. 1955.
p.15.
10 Karl HARrENSTEIN. Das Wunder der Kirche unter den V61kern der Erde,
Berlin: Martin Schlunk, 1939, p. 194s.
11 J. C. HOEKENDIJK, Evangelische Miesionszcttschrtit, 1952, p. 9; trad. em
International Review of Missions, p. 324-336, 1952.
12 Let the Earth Hear His Voice: Intemational Congress on World Evangeli-
zatíon, Lausanne, Swítzerland, Mínneapolís, Minn.: World Wíde, 1975,
particularmente The Lausanne Covenant, p. 3-9. § 1. 6 e 14 e as apresen-
tações na seção m.
13 Veja especialmente Jon SOBRINO. Resurrección de la verdadera tglesia:
los pobres. lugar teológico de la teología, Santander: Sal 'Ierrae, 1981.
especialmente caps. 1-5 fedo em port.: Ressurreição da verdadeira igreja,
São Paulo: Loyola, 1982); Emilio CASTRO. Freedom in Mission: An Ecu-
menical Enquíry, Geneva WCC. 1985. especialmente caps. 4 e 5.
14 Wilhelm ANDERSEN. op. cít .. p. 10.
15 A Titiidede, a sociedade e a libertação. Petrópolis: Vozes. 1986. p. 124.
16 'Iodos sabemos que, felizmente. a genuína integridade da fé evangélica de
Billy Graham o levou a superar na prática o reducionismo dessa interpre-
tação. Mas também é certo que não foi suficiente para informar os con-
teúdos de sua visão acerca do que é "a mensagem" do evangelista.
17 O tema tem preocupado também pastoralmente. A famosa frase de Kier-
kegaard, "quando todos são cristãos, ninguém é cristão". resume a pro-
blemática de uma "cristandade" formal que cobre e anula a falta de um
compromisso de fé pessoal e ativo. É interessante observar que Karl Barth
na Igreja Reformada e o padre Hurtado - este sem questionar radical-
mente a base doutrinal do batismo de infantes - na Igreja Católica no
Notas 155

Chile propuseram a suspensão da prática do batismo de infantes como


urna disciplina necessária para recuperar a autenticidade de uma Igreja
desnaturada por um cristianismo apenas nominal. Veja Karl BARIH, Die
kirchliche Lehre von der 1àufe, Zollíkon-Zurích: Evangelischer Verlag, 1947.
18 La priére, problême politique, Paris: Fayard, 1965.
19 A polêmica apareceu em castelhano na publicação Cristianismo de masas
o minorias, Salamanca: Sígueme, 1968.
20 Veja especialmente suas obras: 'ieologi« abierta para ellaico adulto: v. 2:
Esa comunidad llarnada Iglesía, Buenos Aires: Carlos Lohlé, 1968 fedo em
port.: teologia aberta para o leigo adulto: v. 2: Essa comunidade chamada
igreja, São Paulo: Loyola, 1976]; Masas y minorias en la dialéctica de la
Itberecion, Buenos Aires: La Aurora, 1973 fedo em port.: Massas e mino-
rias na dialética divina da libertação. São Paulo: Loyola, 1975]: e Acción
pastorallatinoamericana: sus motivos ocultos, Buenos Aires: Búsqueda,
1972 fedo em port.: Ação pastoral latino-americana: seus motivos ocultos,
São Paulo: Loyola, 1978].
21 O vocabulário paulino sublinha essa dupla dimensão de diversas manei-
ras. Remeto aqui a um breve comentário de alguns aspectos desse voca-
bulário em meu livreto Integración humana y unidad cristiene, Rio Pie-
dras Puerto Rico' La Reforma, 1969, p. 42-46, e a algumas interessantes
pãginas de L. CERFAUX, Le chrétien dans la théologie paulinienne. Paris:
Cerf, 1962, p. 243-245.

Você também pode gostar