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O direito insurgente nas barragens

Chapter · January 2023

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Guilherme Cavicchioli Uchimura


Universidade Federal do Paraná
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Editora Lumen Juris
Rio de Janeiro
2023
Apresentação: O direito
insurgente nas barragens

Ricardo Prestes Pazello2

O que significa construir um campo de pesquisa e ação novo? Certamen-


te, começa por um aventurar-se para além de diques como os da departa-
mentalização dos saberes ou ainda da divisão, em geral, dos trabalhos. Por
exemplo, ao se tratar da relação entre direito e movimentos sociais, o obje-
to das preocupações de quem enfrenta tal desafio não pode restar imobili-
zado em uma ou outra ciência social, aplicada ou não. Nem tampouco no
mero conhecimento científico, devendo extravasar não só para a sabedoria
popular mas também para o trabalho técnico e, inclusive, para o prático,
conforme a realidade concreta o exija. Mesmo sob uma perspectiva crítica,
circunscrever-se ao que foi disciplinarizado e/ou intelectualizado pode im-
plicar incontornáveis limitações. É o que se depreende quando a ótica crítica
marxista tende a ser desembainhada para efetuar essa tarefa: entre direito e
movimentos sociais não cabe uma teoria apenas do direito ou da organiza-
ção popular, mas também sua interconexão, além de ensejar uma militância
historicamente condicionada; afinal, toda ciência é ciência da história.
Gesteira, o direito e o capital: o rompimento da Barragem de Fundão,
a luta popular pelo reassentamento coletivo e a moderna alquimia minero-
mercantil, de Guilherme Cavicchioli Uchimura, é uma obra que se propõe
a construir – e, em larga medida, é exitosa – um novo campo investigativo.
Na verdade, um feixe de campos como o de “direito e movimentos sociais”

2 Professor do Curso de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade


Federal do Paraná (UFPR). Pesquisador em estágio pós-doutoral do Programa de Pós-
Graduação em Tecnologia e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR). Líder do Núcleo de Direito Cooperativo e Cidadania (NDCC/UFPR). Coordenador
do GT de Direito e Marxismo do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).
Coordenador do projeto de extensão/comunicação popular Movimento de Assessoria Jurídica
Universitária Popular - MAJUP Isabel da Silva (UFPR). Integrante do coletivo Planejamento
Territorial e Assessoria Popular (PLANTEAR/UFPR).
a partir do de “direito e marxismo”, ainda que não só estes e também espe-
lhando seus avanços rumo à práxis.
Na sempre difícil tarefa de apresentar um livro à comunidade dos
leitores, é preciso lembrar que todo leitor deve ser insubmisso – “todo
poder aos leitores”, diria Terry Eagleton sobre a “revolta do leitor”, assim
como, em dramaturgia, todo público deve ser “espect-ator”, para lembrar
o “teatro do oprimido”, de Augusto Boal. Aqui, a missão de apresentar
se torna ainda mais árdua, pois, para além de um lugar comum, deve
ser a apresentação de um lugar, como Gesteira, comunalmente concreto
(para o que um mapa seria o mínimo, porém, como não há cartografia
de escala um para um, contento-me), mas também de um lugar-campo
construído na bilinguajante posição de quem se distancia e se aproxima
ao mesmo tempo. Ou seja, de quem orienta uma pesquisa, reorientando-
-se (e não raras vezes desorientadamente), mas também de quem confra-
terniza e congrega e conhece o autor mais amplamente que a aparência
da relação jurídica universitária. Assim é que, posso dizer, Guilherme
coincide com a construção de um campo investigativo com o qual estou
integralmente comprometido; logo, a este prólogo precisa ser agregada
interpretação à luz dessas circunstâncias que nos co-implicam.
Pois bem, o livro que o rebelde leitor tem rebentado em seus braços foi
gestado por Uchimura e irrompeu com várias identidades projetivas pré-
vias. Aparece agora com um título mas nasceu com nome diferente. Como
tese, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
da Universidade Federal do Paraná, sob orientação de José Ricardo Var-
gas de Faria e minha coorientação, recebeu a seguinte identificação: “O
reassentamento da comunidade de Gesteira em movimento (2015-2022):
crítica à moderna alquimia mineromercantil e à forma jurídica da disso-
lução comunitária”. Ao longo de sua concepção, teve várias nomeações e
renomeações, as quais cansariam quem lesse seu resgate, ainda que fosse
um bom aprendizado sobre como uma pesquisa se dá, ao se as explici-
tar – da ênfase ao conflito particular aos processos subsuntivos do capital,
passando pela violência destes últimos, pelo que há de específico na luta
por direitos, pelo problema da igualação entre reparação e dano em confli-
tos socioambientais, pelas relações jurídicas assimétricas no contexto das
barragens da mineração, pela forma jurídica da dissolução comunitária até
chegar à luta pelo reassentamento coletivo e ao que chamou de moderna
alquimia mineromercantil, no desumano caso do rompimento da Barra-
gem de Fundão. Eis, portanto, o percurso que encadeou uma crítica mar-
xista ao capital como uma crítica ao direito tendo por realidade concreta a
situação da comunidade de Gesteira, em Barra Longa, Minas Gerais.
O texto, assim, exsurge residualmente de um compromisso mais am-
plo do autor: o seu exercício da militância política, da assessoria jurídica
popular e da pesquisa-ação. Conta a história de sua trajetória com a co-
munidade de Gesteira e permite revelar seu notável acúmulo de saberes e
experiências, único acúmulo cabível desde um ponto de partida marxista.
O estudante de direito da Universidade Estadual de Londrina que se torna
oficial de justiça e depois advogado popular em Curitiba, pesquisador das
formas de violação do direito, à luz da crítica jurídica marxista em contra-
ponto às análises econômicas (leia-se, neoliberais) do direito, no mestrado
da mesma universidade que o formaria doutor, não sem ter tido o tirocínio
como professor, mostra-se maduro o suficiente para publicar em livro sua
tese, adaptada para um público maior.
Em minha avaliação, a obra faz sobressair um fenômeno complexo que
decorre de uma análise igualmente complexa deste. Trata-se de um verdadei-
ro direito insurgente nas barragens, onde os atingidos convivem nos limites
do dentro e do fora do capital. Falar em um direito insurgente tem a ver com
isso: reconhecer que à testa do fenômeno jurídico está o modo capitalista de
produzir a vida; mas também não se isentar do manejo do direito em face
das relações sociais concretas vivenciadas pelas pessoas. Direito insurgente,
portanto, não é uma prédica, promessa ou desejo deontológico, mas antes
uma aparição real que precisa ser compreendida como tal. Carrega consigo,
sem dúvida, todos os limites essenciais das formas sociais que devêm do ca-
pital; ao mesmo tempo, revela o quão irredentos os coletivos sociais podem
ser, assim como, contraditoriamente, podem se adaptar a elas.
A leitura da pesquisa de Guilherme Uchimura traz várias aprendiza-
gens e sugestões de formulações. Uma delas que a mim me tocou expor aqui
tem a ver com o posicionamento do problema de fundo que a tese defendida
por ele permite apreender. Refiro-me à indicação de que o direito tem um de
seus nascedouros na circulação do mercado mundial. À parte a intrincada
fundamentação que deve ser feita nesse ponto, pois ele se refere ao problema
da relação jurídica dependente – categoria que venho formulando para rea-
lizar um diálogo inaudito entre as críticas marxistas do direito e da depen-
dência (na realidade, uma glosa interlinear da compreensão do direito para
Evguiéni Pachukanis a partir do nível de análise de Ruy Mauro Marini sobre
as relações de dependência) –, é razoável notar que a circulação mercantil
imposta, planetariamente, pelo colonialismo exportador e que se ressignifica
com a nova divisão internacional do trabalho do século XIX vai se ensejan-
do por via da garantia jurídica. A partir de um longo processo em que se
transita da relação político-jurídica colonial à relação jurídica dependente
exportadora, as subjetividades jurídicas na periferia do capitalismo sedi-
mentam, em sua formação, a violência da acumulação originária do capital e
a combinam, conforme a subsunção do trabalho pelo capitalismo completa-
-se, com os processos de extração de mais-valia, mesclando-os socialmente
à exploração normalizada tanto em sentido absoluto quanto relativo. Assim,
uma inequivalência subjetivo-protojurídica, marcada pela violência colo-
nial, atravessa a conformação da equivalência subjetivo-jurídica própria do
capitalismo em suas versões apoteóticas e aporta na característica, compa-
rativa em termos de mercado mundial, da in/equivalência subjetivo-jurídica
da superexploração da força de trabalho compensadora da transferência de
valor das nações dependentes para os centros imperialistas.
Esta sumaríssima explanação de um problema, ainda não inteira-
mente resolvido em âmbito categorial, foi um dos muitos estalos que me
acometeram durante a leitura do presente livro, já que ele parte do ferro-
-mercadoria como condensação histórica de uma trajetória que se tradu-
zirá pela história da comunidade de Gesteira, desde o período do colonia-
lismo, e pelas vozes das protagonistas da atual luta contra a hiperextrativi-
zação da economia brasileira, submetida a uma nova constrição na divisão
internacional do trabalho – a que demonstra uma nova fase da dependên-
cia, constrangida pela financeirização capitalista (para dizer pouquíssimo
sobre algo que exige muito aprofundamento).
Todas essas questões emergem dos primeiros capítulos da obra, não
assim formuladas, mas com tal cuidado expostas que vão admitindo uma
leitura insurgente. Todo conhecimento é coletivo e as contribuições indi-
viduais reúnem a sabedoria acumulada expressando-se, por exemplo, em
um livro autoral. Não é outro senão este o sentido de minha insurgência
ao ler o livro de Guilherme, ou seja, a de não incorrer em resignação
e buscar extrair dele inclusive o não dito, sugerindo com que qualquer
outra pessoa faça o mesmo (adentrando em um inevitável caleidoscópio
de releituras seja do texto do autor, do apresentador ou de qualquer outro
comentador que a partir daí se institua).
Não bastasse tal capacidade de instigar, Uchimura tem também a ne-
cessidade de emocionar, com sua redação de ritmo e estilo próprios. De
alguma maneira, o texto emana uma aura dolorosa, o que ocorre em vá-
rios momentos, notadamente naqueles em que se relata a destruição co-
munitária. É por isso que a voz do autor se une às de suas entrevistadas
– como nos casos de Vera, Gracinha até chegar a Simone, ápice da relação
inter-entre-vistadora – e cria paragens acabocladas assim como imagens
transpoéticas em que, de algum modo, Fausto e Riobaldo se enfrentam,
fazendo da crítica da modernidade uma corrida de bastão a partir da qual
Goethe, depois de sua disparada, é velado com uma rosa forjada em seu
peito e Guimarães Rosa tropeça drummondianamente num chão de an-
gulosas goethitas. Baucis e Filemon revezam com a máquina do mundo e
de Riobaldo; Diadorim está aguardando o bastão em um final utópico de
estafeta e sequer aparece por aqui...
Algo inegável é o caráter mutante do texto de Uchimura. Não por ser
errático, mas por sugerir suprassunções contínuas. Do mercado mundial fer-
rífero aos depoimentos das lideranças atingidas, da história de Barra Longa
ao reassentamento gesteirense: haveria espaço para nova elaboração teórica?
Um enfático sim deve ser a resposta. Toda a questão da crítica às mediações
jurídicas, que vão do assujeitamento jurídico à forma jurídica da dissolução
comunitária, promovem o achado do autor, qual seja, a crítica à moderna
alquimia mineromercantil. Tecida na transdisciplinaridade necessária a sua
confecção, a enigmática projeção categorial que o livro faz pulsar merece ser
acompanhada em seus desdobramentos futuros. Certamente não é o caso de
retomar esse fio da meada nesta apresentação, pois seria usurpar de quem lê
a possibilidade de visitar mais genuinamente o problema. Contudo, a indica-
ção se me impõe ante o sentimento de que a obra oferece um belíssimo mo-
mento para se assistir ao nascimento de uma formulação teórica inovadora.
A pujança e a imersão que o texto produz atestam-no.
Isto me traz novamente ao tema da construção de um novo campo de
investigações. O direito, sendo antes de qualquer coisa uma relação social
vinculada à produção capitalista da vida, implica a compreensão de sua es-
pecificidade relacional e dos elementos que compõem tal relacionalidade.
Para além de tais dimensões, implica também conhecer suas intersecções
jurídico-políticas e seus momentos aparentes. Do ponto de vista de uma
certa normalidade (que sempre é, no fundo, normalização da violência),
as relações sociais são tomadas por um conflito latente, que se apresenta
interindividualmente, mas que na verdade guardam em si a estrutura de
classes antagônicas que caracterizam o capitalismo. Por isso, quando or-
ganizações coletivas se fazem evidenciar descortinam os conflitos estrutu-
rantes da sociedade que as gerou e, nesse sentido, a noção de movimentos
sociais ajuda a visibilizá-las. Agora, o conflito não é mais latente, já que
manifesto, e sua concretude impõe a apreensão de sua dinâmica singular.
Eis, entrementes, o encontro entre o campo de “direito e marxismo” (críti-
ca marxista ao direito como relação social específica do capitalismo) com
o de “direito e movimentos sociais” (estudo das relações sociais e jurídicas
conflitivas entre organizações coletivas e o capital, incluindo-se o estado).
Guilherme Uchimura esboça várias das que podem ser considera-
das como novas categorias jurídicas do campo que une direito, marxis-
mo e movimentos. Isto está consignado entre os capítulos 4 e 7 do livro.
As “relações jurídicas decorrentes de violências praticadas por grandes
empresas” geram uma contraditória “forma jurídica da correlação entre
os efeitos destrutivos e as pretensões a medidas de reparação”, em que o
“assujeitamento jurídico” enreda-se em um “fetichismo jurídico”, a partir
do qual o “direito aparece como mediação” desde “relações jurídicas assi-
métricas”. Como fica visível, toda uma gama de categorias arejadoras da
crítica marxista ao direito se mostra pertinente e todas elas estão no texto,
algumas mais outras menos desenvolvidas.
Da mesma maneira, o pesquisador chama a atenção para o fato de que
“o ambiente da entrevista era em si expressão concreta das relações jurídi-
cas” implicadas em “violações de direitos”, cuja resolução conduzia para a
“inexistência de qualquer automatismo na garantia de seus ‘direitos’, sejam
os declarados em normas legais sejam os negociados com as empresas” e
para a demonstração de que a “condução jurisdicional de litígios envolvendo
populações atingidas por barragens baseada na principiologia geral do direi-
to civil tem o potencial de desagregar coletividades e colocar-lhes em risco a
própria existência comunitária”, sendo que a “luta por direitos observada em
concreto, ao resultar em uma expressiva conquista popular, manifestou-se
como contradição alargadora dos estreitos horizontes do processo de assu-
jeitamento jurídico; embora sem superá-los, mobilizou politicamente as rei-
vindicações populares”. Eis as indicações que, tomando em conta a relação
entre direito e movimento popular, podem ser destacadas, também como fio
condutor de uma nova abordagem socioantropológico-jurídica.
Na cimeira desse encontro de campos, entendo que a advertência de
Uchimura acerca da distinção entre “reassentamento coletivo” e “direito ao
reassentamento coletivo” seja dos exemplos mais bem acabados da proble-
mática sob sua análise. Como negar a precisão (no duplo sentido de algo que
é necessitado mas também bem delimitado) da luta pelo direito, explicado
com contornos coletivos, ao reassentamento por parte da organização po-
pular? Não é sequer imaginável (muito menos desejável) pressupor que haja
inércia de pessoas afetadas por uma situação violadora de seu ser no mundo
— a barragem de rejeitos de minérios que se rompe, por omissão ou mesmo
ação, a depender do ponto de vista, criminosa de seus arriscados proprietá-
rios, Samarco, Vale e BHP Billiton. Por outro lado, como afirmar que a luta
por tal direito consegue desbaratar a contradição imanente da reivindicação
por qualquer condição jurídica? A titularização de direitos baseados na pro-
priedade fundiária ou na da força de trabalho, bem como nos deveres-seres
de, por exemplo, termos de transição e ajustamento de conduta ou de mi-
lhares de (na verdade, em torno de noventa mil) ações judiciais relativas ao
rompimento da Barragem de Fundão comprovam a gravidade do problema
e indicam os limites de todo e qualquer acordo a ele atinente.
A meu ver, nem o texto nem o autor do texto aqui apresentado se es-
quivam dessa contraditória análise. Se as relações sociais — de produção
e de juridificação — são contraditórias, a pesquisa não poderia deixar de
corroborá-lo. Elemento crucial para se compreender a questão, assim, é a
luta social em concreto, da qual o Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB) é o protagonista como movimento popular nacionalizado, atuando
em situações específicas, como é o caso da comunidade de Gesteira e suas
lideranças. Nesse sentido, o MAB também faz sua fala ressoar por toda a
escrita de Guilherme, seja pelas vozes de sua militância, seja pela de seus
documentos ou pela de seus confrontos, privados ou públicos.
Na conjuntura brasileira, a partir da qual se assiste à regressão eco-
nômico-política, com intensificação de processos de transferência de valor
e reprimarização produtiva, acentuar a presença de um movimento po-
pular como o do MAB é depor no sentido do movimento histórico, com
a existência de suas lutas, por vezes passíveis de derrotas, mas que pelo
simples fato de crescerem ao longo de mais de três décadas importam em
conquistas, inclusive concretíssimas. O Brasil, e toda a América Latina,
continuamente se encontram achacados pela “barbárie” que a “civilização”
capitalista implica. A democracia sob ataque, a soberania na encruzilha-
da, o povo emparedado, as trabalhadoras e os trabalhadores como alvo de
desarticulação — tantos são os sinais negativos que chega a surpreender o
vigor da organização de atingidas e atingidos, mesmo que em circunstân-
cias tão adversas. Mas a vida é exatamente assim, e as contradições impul-
sionam a história, sem teleologismos mas também sem pontos finais. Tudo
é possível enquanto for possível o comum.
Se a conjuntura dos anos que levaram Guilherme Cavicchioli Uchi-
mura a fazer sua pesquisa, produzir seu texto e agora publicá-lo foi a dos
anos de golpe institucional no Brasil e de protofacistização de sua socieda-
de e institucionalidade, momento no qual mais ou menos coincidiram os
rompimentos de barragens em Mariana e Brumadinho, também foi o tem-
po da resistência ao ascenso conservador, do enfrentamento da fascistiza-
ção de órgãos de estado e, sobretudo, foi o tempo da organização popular
sempre onde uma nova ameaça se impunha a camponesas e camponeses,
bem como a povos e comunidades tradicionais ou a comunidades periféri-
cas das grandes cidades. Os movimentos populares, como espécie de mo-
vimentos sociais com posição de classe consubstancializada, enraizaram
sua existência e dão seu exemplo para o conjunto das classes populares.
Assim sendo, o presente livro é um rebento da criativa mente de seu
autor, atordoado pela imensidão de assuntos que a verdejante vida ofere-
ce mesmo quando a cor terracota parece dominar a aquarela. Desde uma
perspectiva teórica, como busquei ressaltar ao longo desta minha emotiva
e singela apresentação, é o resultado do encontro inédito em sua aplicação
dos campos enfeixados de direito, marxismo e movimentos sociais. A par-
tir de uma mirada prática, é gigante esforço de investigação militante e mi-
litância na assessoria popular, especificadamente jurídica ou não. Enfim,
conforme um ponto de partida de práxis, é a tentativa de fazer encarnar
um direito insurgente, porque não adstrito ao jurídico e sem temer seu
enfrentamento, mas também porque o faz admitindo seu uso tático sem
submergir a uma concepção juridificadora do mundo, na qual o direito é
a estratégia emancipadora. Portanto, um diálogo franco, conflituoso mas
assertivo e responsável com os movimentos populares, suas direções e suas
assessorias técnicas, para além de toda a contribuição que realiza em ter-
mos intelectuais para os analistas e teóricos. Um direito insurgente se re-
vela, então, nas barragens, contra elas porque contra o capital, mas a partir
delas porque partícipe do intento da organização popular que delas deflui.
Depois de sete capítulos, cada qual uma pequena cabeça (caput), a
hidra se agiganta projetando toda sua sombra. Não é possível saber se essa
expressão da máquina do mundo carrega consigo a revelação ou apenas a
monstruosidade. A verdade, porém, é que o caboclo Guilherme olha, repa-
ra e ausculta. E ao ouvir, difunde. A quem interessar possa, como um tele-
fone sem fio, ou um recado do morro, repito o que me foi dito e relembro
Drummond tal como Uchimura me o recordava:

olha, repara, ausculta: essa riqueza


sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,


esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente


em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.

Quem tiver olhos que veja, quem tiver ouvidos que ouça. Dentro da
totalidade estão as contradições. O bicho de sete cabeças só pode ser enfren-
tado se conhecido. O caboclo insurgente se prepara a cada grão de conheci-
mento. Se o que com ferro fere, com ferro será ferido, o direito que garante
a dissolução comunitária precisa enfeitiçar o feiticeiro. O direito insurgente
nas barragens evoca Gesteira Velho, Barra Longa, Mariana, Minas, Brasil e
América Latina. Enfim, narra-se em Gesteira, o direito e o capital: o rompi-
mento da Barragem de Fundão, a luta popular pelo reassentamento coletivo e
a moderna alquimia mineromercantil. O convite para a leitura seria o óbvio;
para a construção do campo entre direito, marxismo e movimentos popula-
res, a busca; para a continuidade da luta, o mais que necessário!

Curitiba, outono de 2023.

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