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1 ª edição

Brasília/DF
SGuerra Design
2021
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© 2021 Jakob Arnin
Contra Cronos — O trabalho e as horas
Editado em setembro de 2021

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser


reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou meio eletrônico ou
mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou sistema de armazenagem e
recuperação de informação, sem a permissão escrita do autor.

Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes


são produtos da imaginação do autor ou foram usados de forma fictícia.
Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou não, estabelecimentos
comerciais, acontecimentos ou localidades, é mera coincidência.

Revisão de textos:
Ricardo Franzin

Capa, projeto gráfico e diagramação:


SGuerra Design

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880)

A749c Arnin, Jakob

Contra Cronos: o trabalho e as horas [recurso eletrônico] / Jakob Arnin. – 1.ed. – Brasília(DF):
SGuerra Design, 2021.

1.500 kb

ISBN: 978-65-5899-216-5

1. Distopias na literatura. 2. Ficção brasileira. I. Título: o trabalho e as horas

CDD B869.3

Índices para catálogo sistemático


1. Distopias na literatura
2. Ficção brasileira
Dedico este livro também a todos que participaram da
minha história.

Dedico, especialmente, à minha esposa, que testemunha


meus atos e ao meu filho, com quem tenho uma ligação
eterna.

Dedico aos meus pais, pois me ensinaram a ética de


viver desde os meus primeiros dias.

Dedico aos meus irmãos, que formaram a minha vivência


prática dessa ética. Amo-vos.

Deixo um agradecimento especial aos amigos que


dedicaram seu valioso tempo para me ajudarem nessa
aventura de escrever.

Jakob Arnin

Brasília, setembro de 2021


1

O ito horas. Hormes calcula o que ele pode fazer com


esse tempo. Falta pouco para o fim da jornada de
trabalho na banca de frutas. Sorri. As pessoas da cidade
de Nova Ascra usam as oito horas de descanso diário
para recuperar as forças em casa, conversar com
familiares durante o jantar, dormir e recomeçar o
trabalho no dia seguinte. É assim, de domingo a
domingo. No entanto, se Hormes for para casa fazer
essas coisas, não restará tempo para fazer o que
realmente importa.

Às dez horas da noite, o bracelete de Cronos para de


tecer fios de ferro ao redor do seu antebraço esquerdo.
Hormes faz um aceno com sua mão de ferro para o dono
da banca de frutas, recebendo em retorno uma ordem
clara:

— Seja pontual amanhã, Hormes! Esteja aqui às seis,


viu? Chega de atrasos, pela misericórdia de Cronos!

Hormes aceita a bronca e sorri.

Ele sorri o tempo todo. O vinco do sorriso nas maçãs do


rosto não se mexe, mesmo quando o resto do rosto se
move ao falar ou comer. É seu sorriso laboral, forjado em
seu rosto metálico. Para atrair clientes, um vendedor
deve sorrir. Sempre.
Veste seu sobretudo velho, manchado e puído, do qual
sua mãe reclamava quando ainda era viva, carregando
uma manga, uma banana e uma maçã nos bolsos. Desce
uma rampa para as docas.

Ali encontra sua minimoto. Tem o banco duro, motor a


diesel de três cavalos de potência, barulhento e
esfumaçante. Todo mundo diz que ela parece um monte
de sucata. E é mesmo. Foi o próprio Hormes que a
construiu, com ferro-velho. Ele também se orgulha de ter
feito a sua mochila, mais estranha do que a moto, que
tem a forma quadrada, com uma cabeça robótica no
meio e um arco de metal no topo.

Hormes veste seu capacete de couro marrom e baixa


seus óculos de bordas emborrachadas, vedando bem as
laterais e firmando o elástico atrás da cabeça. Em sua
minimoto, atravessa o bairro de operários da cidade,
desviando da rua onde fica sua casa, para não ter que
responder perguntas de seu pai ou de sua irmã.

Deixa sua minimoto na última casa antes de atravessar,


a pé, a ponte sobre o caudaloso rio que leva a Palami. Lá
a moto seria inútil.

Hormes já havia subido Palami algumas vezes, sempre à


noite, ignorando os comentários sobre os perigos do
lugar. Custa-lhe uma hora e meia chegar ao topo, pelo
caminho em que ele consegue evitar a vigilância dos
Anansis. As ruelas de Palami são tão estreitas que
Hormes nem precisa esticar completamente os braços
para tocar as paredes de duas casas vizinhas. Nenhum
carro, moto ou mesmo bicicleta passaria ali, mas as
paredes são impregnadas de cheiro de fumaça e
manchas de fuligem, pois o morro fica na rota do vento
que sopra as chaminés das fábricas da cidade. Durante o
dia, Palami é marrom e cinza. À noite, por causa de um
toque de recolher autoimposto pelos moradores, não há
luzes acesas nos casebres. Palami é um breu que desafia
a visão noturna. Ilumina-se apenas por toques sutis da
fraca luz da lua que escapa pelas pesadas nuvens que as
chaminés lançaram ao céu. As casas se amontoam
desordenadamente sobre a encosta íngreme, de modo
que o telhado de uma casa mais baixa muitas vezes
coincide com a altura do parapeito da janela da casa logo
acima. Esses telhados, feitos de sucata, badalam aqui e
ali. Alguns badalares se aproximam. O som fica mais alto.
São Anansis correndo sobre o metal que cobre as casas,
indo na direção de Hormes.

Hormes se esconde nas sombras, encostado em uma


parede de tijolos aparentes, cobrindo-se com seu longo
casaco. Certifica-se de que nenhum objeto metálico
reluza a lua que atravessa a fenda entre os telhados a
apenas um metro acima de sua cabeça.

Espera. O som do badalar está muito próximo.

Dois vultos negros cortam a luz da lua. Dá para escutar


os Anansis conversando sobre o telhado da casa. Hormes
espera. “Eles não ficam muito tempo parados”, pensa.

Mas as pernas dos Anansis aparecem penduradas na


beira do telhado, logo acima da cabeça de Hormes.
— Quando esses caminhões vão passar? — pergunta um
Anansi.

— Não sei. Talvez tenhamos que esperar a noite toda —


diz o outro. — Temos que esperar o sinal da Hyp para
atacar.

— Trouxe as correntes?

— Vixe, esqueci...

— Vá pegar. A Hyp vai ficar furiosa se perdermos essa


chance.

Um dos Anansis sai, badalando telhados pelo caminho. O


outro fica sentado na beira do telhado, deixando os pés
escuros e nus balançarem. Ele não sairá dali tão cedo.
Parece estar descansando e aproveitando a paisagem
noturna de Nova Ascra.

Hormes tira duas esferas de um bolso do seu sobretudo.‐ ­


Atira-as no rumo de um lance de degraus de cimento,
descendo o morro. O som das esferas parece o de uma
pessoa descendo as escadas com pressa.

— Quem está aí? — pergunta o Anansi que ficou sentado.


Sem obter resposta, ele se levanta e sai correndo sobre
os telhados, morro abaixo, seguindo o som das esferas.

Hormes fica em pé, respira aliviado e segue morro acima.


Ele precisará se esconder mais algumas vezes ao longo
do caminho. Parece haver mais Anansis do que o normal
naquela noite. Chegar ao topo acaba levando duas horas.
Faltam apenas seis horas para voltar ao trabalho. Para
não levar uma bronca do chefe, Hormes precisa ainda
considerar o tempo de retorno, que não será menor do
que uma hora e meia. “Sobraram quatro horas e meia. É
muito pouco tempo. Será que eu consigo terminar hoje?”,
pensa.

No topo do morro, acima das nuvens de fumaça, Hormes


pode ver as estrelas, a verdadeira aparência da lua, os
navios no horizonte e, sob as densas nuvens de fumaça,
as luzes das casas de Nova Ascra se apagando. Mas
Hormes não subiu até ali para admirar a vista. Ele
somente parou para se recobrar do cansaço de subir o
morro por caminhos tortuosos, mesmo sabendo que há
um teleférico a poucos metros dali. É um teleférico
rudimentar, para transporte de carga, que não pode ser
usado à noite, pois é vigiado pelos Anansis.

Vira-se e corre até o alambrado do ferro-velho. O buraco


que Hormes havia feito dias antes agora está fechado,
remendado e reforçado. Anda até uma parte mais frágil
do alambrado. Tira das costas sua estranha mochila e
seu casaco — o calor do esforço o fizera suar. Puxa da
mochila a cabeça robótica, fazendo-a encaixar sobre o
topo. Puxa braços escondidos nas laterais e pernas na
parte de baixo. Com alguns cliques, seu fiel escudeiro,
Lampião, está montado.

Lampião tem a cabeça feita de... um velho lampião a


óleo, revestido de ferro, com o olho direito menor do que
o esquerdo. Os braços de engrenagens aparentes são
encaixados no corpo de latão com tiras de couro velho.
Essas tiras ora servem de alças da mochila, ora de
suspensórios para o robô. O braço esquerdo de Lampião
tem a forma e a função de um alicate. Hormes aponta
para a cerca de alambrado.

— Vamos lá, amigão... Mostre o que você sabe fazer.


Abra um buraco aqui.

Lampião caminha em círculos. Ignora o alambrado.

— Não, não... Um dia você ainda irá entender o que eu


digo e vai fazer essas coisas sozinho.

Hormes segura a mão-alicate e guia o braço de Lampião


para abrir uma nova passagem. O robozinho observa os
movimentos de abrir, encostar o alicate no arame, cortar.
Repete, então, algumas vezes, sem a ajuda de seu
criador.

— Isso — comemora Hormes, sussurrando. — Sabia que


você aprenderia...

Aberta a passagem na cerca, Hormes entra


engatinhando. Puxa o casaco e arrasta Lampião pela alça
em forma de semicírculo em sua cabeça, que lhe serve
de chapéu. Caminha por entre as montanhas de velhos
objetos de metal, no escuro quase absoluto. Pouco confia
na visão, pois apenas a luz da lua ilumina o lugar. Confia
sobretudo na memória. Aquele território não é novidade.
Ele anda até perto do portão principal do ferro-velho, no
local onde o teleférico de Palami despeja as coisas...
novas. Bem, nada ali é novo de verdade, mas aquelas
coisas velhas chegaram há pouco tempo.

Hormes acende a cabeça de Lampião com um palito de


fósforo e vira o tapa-olho para cobrir o olho esquerdo (o
maior), deixando o pequeno olho direito do robô vazar
um filete de luz. Assim consegue iluminar os objetos que
lhe interessam, sem atrair a atenção de quem quer que
vigie o lugar.

Abre seu sobretudo sobre o chão. As mãos metálicas de


Hormes vasculham a pilha com rapidez e cuidado para
não fazer barulho. Ele joga sobre o sobretudo algumas
peças importantes que cata na pilha — parafusos,
esferas de metal, rodas dentadas, hastes de ferro,
correias e outras peças que ali se amontoam — enquanto
silenciosamente comemora suas descobertas. Há diante
de Hormes um achado precioso: uma armadura quase
completa de bronze. Faltam-lhe apenas a cabeça e uma
parte do abdômen. Mas isso não será problema.

Apaga Lampião e cruza o terreno rapidamente, rumo aos


fundos, onde poeira, teias de aranha e a ferrugem dos
objetos denunciam que aquela área é pouco visitada.
Deixa ali o sobretudo com peças. Corre novamente pelo
terreno. Pega a armadura de bronze e a arrasta até a
área mais abandonada. Hormes está mais preocupado
em suportar o peso do que em apagar o rastro que os
pés de bronze deixam no chão de terra batida.
Acende Lampião novamente. Move o tapa-olho para
cobrir o olho menor. Do olho maior sai uma boa
quantidade de luz. Aquela área é mais segura.
Dificilmente alguém o verá ali. Abre um compartimento
nas costas de Lampião e de lá retira três chaves de fenda
de tamanhos variados, um alicate e sua coleção de
chaves de roda.

Abre o porta-malas de um automóvel corroído pela


ferrugem. “Esteja aqui, esteja intacto”, pede em
pensamento. Tira dali um caixote de madeira, um tanto
pesado, pois o rapaz já montara uma complicada
engenhoca em seu interior. Na lateral do caixote há uma
roda de ferro com uma manivela.

Retira também do velho automóvel algumas hastes


grossas de ferro, com as quais monta dois arcos do
tamanho de uma porta sobre o caixote. Nos arcos,
pendura pinças que fabricara com peças de outros
automóveis, cada uma com duas agulhas em suas
pontas.

Deita o corpo de bronze sobre o chão e completa a


superfície do abdômen com uma chapa de ferro. Prende
como pode, com parafusos e arames. Prende também as
juntas, para que não mudem de posição. Fica firme o
bastante para o corpo permanecer em pé.

— Agora, fique quieto aí — diz Hormes. A armadura de


bronze não faz menção de ir a qualquer lugar. O
estômago de Hormes ronca. Come a manga e a banana
que trouxera. Não tem tempo para comer a maçã.
Ergue o corpo de bronze e o coloca sobre o caixote,
posicionando-o debaixo dos arcos de metal. Prende os
pés do corpo de bronze sobre o caixote.

Suspira.

Lampião apaga. Não há mais óleo na cabeça do


robozinho.

Hormes espera seus olhos se acostumarem novamente


com o escuro. Tem apenas a luz da lua, agora.

Gira a manivela. Um cilindro gira por dentro do caixote,


rangendo baixinho ao tocar em outras peças. As pinças
sobem e descem os arcos, aproximando-se e afastando-
se do corpo de bronze, repetidamente, em uma
sequência precisamente calculada.

— Eureca!

Uma intensa luz ilumina o rapaz e sua invenção.

Não é Lampião, mas sim a lanterna a óleo de um homem


bastante velho, negro como a noite, de cabelo baixo e
grisalho, sem camisa, com um macacão marrom-claro e
uma bengala de ferro, acompanhado de seu cão manco,
cego de um olho e de longo rosnado.

— Hmmm, encontrei o rato que roeu o alambrado... Pega,


Marabô! — grita o velho.

O cão, correndo a três patas, avança sobre o rapaz.


— Calma, cãozinho... — ofega o jovem enquanto corre
por entre as pilhas de ferro-velho. — Eu sou da paz!
Amigo dos animais! Faz isso comigo não!

Marabô rosna e late a plenos pulmões. Hormes, correndo,


puxa de uma pilha de objetos uma roda de metal com
finas hastes de ferro e atira aos pés do cão. A pata
traseira se prende entre as hastes da roda. O cão tomba
e se debate no chão, rosnando, sem tirar os olhos de
Hormes. Marabô se levanta sobre as duas patas
dianteiras e, a coices da pata traseira, livra-se da roda.
Rosna ainda mais forte.

“Devo usar voz de autoridade para mostrar ao animal


quem é que manda aqui”, pensa Hormes.

— Marabô! Parado! Finja de morto!

Marabô recua um passo com cada pata.

Toma impulso.

Avança a um pulo sobre o intruso, mordendo-lhe a mão


direita enquanto rosna. A mandíbula do cão deixa marcas
na palma e nas costas da mão metálica de Hormes. O
rapaz cai de costas no chão e, com a mão esquerda,
tenta afastar o cão.

O velho de macacão escuta a peleja do intruso com o


cão, amainada pela distância. Observa a engenhoca. É
difícil entender para que serve aquilo. Gira a manivela e
assiste às pinças pinicarem o corpo de bronze sem
cabeça.

As vozes do intruso e os latidos se aproximam. O rapaz


havia levantado do chão e agora corre em direção ao
velho, gritando:

— Faz o Marabô parar! Eu faço qualquer coisa! Desculpe!

O velho não responde. Ele apenas finca a bengala em


uma pilha firme de ferro-velho, deixando-a paralela ao
chão.

O invasor se aproxima, correndo para escapar de


Marabô, sem enxergar muito bem o que há na sua frente.
Não vê a bengala horizontalmente fincada no ferro-velho.

Hormes bate sua testa de ferro na bengala. Seus pés


voam à sua frente e ele cai de costas no chão de terra.

— Marabô, parado! — ordena o velho.

O cão para de correr e rosna.

O velho puxa a bengala e olha diretamente para o rapaz


deitado no chão.

— Explique, garoto.

— Por favor, não me entregue à Guarda! Eu posso te


compensar pelos prejuízos!

— Explique! — insiste o velho.


— Eu-eu-eu-eu-eu não tava roubando, não... É que aqui
tem muitas peças boas...

— Explique o que é essa coisa que você está fazendo.

— Eu-eu-eu... — o rapaz procura ar. — Eu não dei nome


ainda... É um... hã... alfaiate... autômato.

O velho gira a manivela novamente. Observa o pinicar


das pinças. Os movimentos são feitos em partes do corpo
de bronze onde os cortes de roupa devem ser unidos por
costuras.

— Ele está fazendo uma camisa e uma calça?

— Sim — a voz do rapaz tremula. Ele se levanta do chão,


batendo a mão em suas calças para tirar a poeira.

— E se você quiser fazer uma roupa diferente? Um


casaco, um vestido de mulher?

O rapaz para a máquina. Abre o caixote. Retira um


cilindro com furos.

— Aqui está descrito o que as pinças devem fazer. Cada


furo representa um movimento — o rapaz ainda ofega
enquanto fala. — Aqui estão os movimentos de uma
camisa e uma calça. Para fazer um vestido, eu teria que
fazer outro cilindro, com outros furos. Tirei essa ideia
de...

— De uma caixa de música — completa o velho. —


Engenhoso. Mas... de todas as máquinas do mundo que
poderia fazer, por que você resolveu construir um
alfaiate autômato?

— Porque eu quero criar máquinas que aumentem a


produtividade das fábricas. Os empresários vão ganhar
dinheiro, os operários poderão cumprir suas metas e
trabalhar menos horas. Teremos mais do que apenas oito
horas para descansar. Todo mundo fica mais rico e mais
feliz — responde Hormes.

— Você ainda não me convenceu — diz o velho. — Você


não estaria aqui de madrugada se não tivesse um motivo
mais forte ainda. Um motivo pessoal. Mesmo quando as
pessoas querem o bem da humanidade, elas começam
de um problema que elas têm.

Hormes olha para a máquina. Gira a manivela e observa


as pinças “costurando”.

— Minha mãe trabalhava na fábrica de tecidos...

— Sua mãe largou o emprego? Ela não trabalha mais na


fábrica? — o velho interrompe.

— Não... Um dia, ela foi atingida pelo vapor quente de


uma máquina de tingir tecidos. Disseram que ela estava
muito distraída, mas eu sei que ela estava exausta. Ela
morreu naquele dia — responde Hormes.

— Sinto muito, rapaz — diz o velho.

— E eu sinto... sinto que meu pai vai viver a vida do


mesmo jeito... — a voz de Hormes tremula. — Quando
ele perceber, a vida já terá passado, e tudo o que ele fez
foi trabalhar na fábrica de tecidos, também. Se eu não
fizer nada, eu terei o mesmo destino.

— Então é isso que você quer? Passar mais tempo com o


seu pai?

— Eu quero mais do que isso. Eu imagino que o que


acontece na minha casa se repete na casa de muitas
famílias. Eu quero que todos se beneficiem das
máquinas.

— Então você quer salvar o mundo...

— É!

— ... com uma máquina de costura.

— Bem, falando assim não parece muito, né...

O velho sorri.

— Garoto, você já tem o que precisa para salvar o


mundo.

— Então eu posso levar a máquina?

A bengala do velho acerta a testa metálica do rapaz, que


soa como um sino.

— Ai, ai, ô! — o rapaz esfrega a testa, mas o sorriso


esculpido em seu rosto de ferro não se apaga.
— Claro que não! Você tem caráter. É disso que eu tô
falando: caráter. A máquina, não. A máquina você só vai
ter depois que pagar pelas peças.

— Ma-ma-ma-mas você gostou, não gostou?

— Gostei... mas é vendendo essas peças que garanto a


comida da minha família. A minha família é grande.

O rapaz leva sua mão direita ao antebraço esquerdo e


aperta o bracelete de Cronos. Dois fios de ferro correm
pelo bracelete, rumo à palma da sua mão. O velho põe a
mão debaixo da mão esquerda de Hormes.

Duas moedas de ferro surgem ali.

— Não é suficiente — diz o velho.

— Não tenho como pagar...

— Então, não pode levar essa máquina daqui. Arrume


dinheiro.

O rapaz olha para Marabô. A pata traseira esquerda lhe


falta.

— Eu poderia pagar com um serviço?

— Como?

Hormes junta algumas peças e parafusos. Depois,


arranca um pedaço do estofamento do automóvel
enferrujado e algumas tiras de couro de uma velha
cadeira. Chama Marabô para deitar-se perto dele. Marabô
não vai.

— Diga ao Marabô para vir aqui.

— Marabô, deita — o velho aponta o dedo para o lugar


onde o cão deve se deitar.

O rapaz se aproxima de Marabô, com cuidado para não o


irritar. Mede a pata do cão. Corta peças de ferro,
imitando os ossos da pata traseira.

— Qual é o seu nome, rapaz?

— Hormes. E você, como se chama?

— Todos me chamam de Babu — diz o velho. — Me


responda uma coisa, Hormes: você está trabalhando
agora e seu bracelete não está funcionando. Por quê?

— O bracelete só funciona no horário do trabalho


legítimo. Meu patrão não me paga para criar máquinas
ou ajudar cães.

Babu observa pacientemente. O cão, obediente ao dono,


permanece deitado.

Hormes prende sua nova engenhoca ao quadril de


Marabô, usando tiras de couro como cintos e espuma de
estofado para evitar que o corpo do cachorro toque
diretamente as peças de metal. Hormes sorri
sinceramente para o velho.
— Levante, Marabô — diz o velho.

Marabô se levanta, apoiando o corpo em sua nova pata


traseira. A pata é firme, mas o cachorro está
desacostumado com o apoio. Caminha desengonçado. A
pata metálica retrai e estica, acompanhando o
movimento do quadril, em oposição síncrona com a pata
traseira viva.

— Impressionante, meu jovem.

No céu, as estrelas se apagam aos poucos. Uma linha


dourada risca o horizonte. O sol pinta de laranja tudo o
que toca. O grosso aro do bracelete de Cronos ao redor
do pulso de Hormes começa a girar. Um fio de ferro brota
do aro, esticando-se para contornar o antebraço de
Hormes por um caminho helicoidal até o segudo aro,
abaixo do cotovelo.

— Meus deuses, já são seis horas! Meu chefe vai ficar


furioso! — Hormes bate a mão na testa, preocupado, mas
sorrindo.

Babu acha aquilo muito esquisito. O sorriso não condiz


com uma pessoa que está com medo de levar uma
bronca do chefe.

— Corra, vá. Não deixe seu senhor bravo. O que você fez
por Marabô foi muito bom, mas ainda não cobre o preço
das peças que você usou. Especialmente uma armadura
de bronze! Isso é bastante valioso.
Hormes expira longamente. Embora seu sorriso não
apague, seus braços largados à força da gravidade
revelam sua frustração. Babu acha aquela cena ainda
mais esquisita. Um frustrado sorridente. Nunca tinha
visto uma expressão assim.

— Mas volte quando quiser. Vou guardar o alfaiate para


você, em agradecimento ao que fez por Marabô. Arrume
cinquenta moedas de ferro para pagar pelas peças.

Hormes se alegra. Seu corpo se agita, em harmonia com


o sorriso que sustenta. O preço que Babu pediu é alto,
mas com esforço ele conseguirá pagar. Ele monta
Lampião na forma de mochila e o coloca nas costas,
dizendo:

— Tenham um bom dia! Até breve!


2

–D evíamos ter trazido armas de verdade — diz


Axion.

Sentado em uma caixa, com o cotovelo direito apoiado


sobre o joelho, ele pendura a corda de uma boleadeira
em seus dedos de ferro e deixa as esferas das pontas
baterem ao ritmo do balançar do caminhão. No fundo da
carroceria, e escassa luz lunar que entra vem da fresta
entre a boleia e a lona.

— Você quer dizer armas letais, certo? — pergunta Dário.


Sua cabeça balança, encostada em uma caixa, com o
elmo de bronze virado para cobrir-lhe os olhos.

— Sim, exatamente. Martelos e boleadeiras não passam


de brinquedos quando vamos enfrentar os Anansis. —
responde Axion.

— Eu já vi Anansis desviarem de balas de revólver. Não é


tão fácil pegá-los com armas de fogo. Acaba que temos
chance de fazer algum estrago prendendo-os com
boleadeiras e acertando-os com um martelo. Para quem
fez o treinamento, o martelo pode ser letal — explica
Dário. — Você lembra do treinamento?

— Por que a Guarda não faz um plano para acabar logo


com os Anansis? — indaga Axion, ignorando a última
pergunta do guardião de bronze.

— Não podemos fazer disso uma nova carnificina, Axion.


A opinião pública não está do nosso lado.

— Mas, Dário, somos poucos. Com armas não letais.


Numa estrada onde sabemos que vamos ser atacados.
Não temos nenhuma chance de vencer — insiste o
guardião de ferro.

— Quem conta vitórias são os políticos. Nós contamos


mortos e feridos. Somos apenas as engrenagens. Não
somos nós que decidimos nossas missões.

— Pois eu cansei de ser engrenagem no relógio, elo na


corrente, gota no oceano, grão de areia do deserto, ou
qualquer metáfora idiota — diz Axion. — Vou chegar a
guardião de ouro mais rápido que qualquer um. Aí,
poderei fazer algumas mudanças.

Dário ergue o elmo de bronze pela ponta para encarar o


seu subordinado, sem sair de sua posição de cochilo.

— Tenha calma, Axion. Falta pouco para sermos


promovidos. Você não vai chegar nem a bronze
questionando as ordens superiores — Dário suspira,
ajeitando-se. — Nosso Deus Nomos faz as leis. Nós
fazemos as pessoas obedecê-las. Temos que dar
exemplo, obedecendo às nossas ordens.

Com os olhos já acostumados ao escuro, Axion observa o


elmo, os braços e pernas de bronze de Dário. O bracelete
de Cronos no braço do amigo tece fios do mesmo metal.
Sim, ele já subiu um posto na hierarquia. Deve saber do
que está falando. Ele usa uma túnica de pano e couro.
Seu martelo tem forma retangular, cabo metálico e
entalhes elegantes na cabeça.

Axion detesta a inferioridade de sua farda. O couro de


sua túnica é visivelmente barato. O metal ainda não
dominou totalmente seus braços e pernas, o que revela
que ele travou menos combates do que Dário. O elmo de
Axion é pequeno e revela muito do rosto. O martelo de
ferro é rudimentar, com a cabeça em forma de cilindro e
uma haste que parece um cabo de vassoura fortificado.

As caixas ao redor dos guardiões chacoalham. Dário,


falando como amigo, sem jargões da Guarda, continua a
orientar seu subordinado:

— Veja, Axion... nosso trabalho de hoje é garantir a


segurança das provisões de Gaia até as docas. Só isso.
Com as bênçãos de Atena chegaremos lá sem nem
sequer sermos atacados.

— Nomos, Gaia, Atena... Você é muito religioso.

— Os deuses guiam nossa vida... ainda que poucos


consigam falar com eles — explica Dário.

— E aquela caixa com pratos e utensílios feitos de ouro?


E aqueles tapetes caros? Aquilo não é provisão de Gaia,
não é comida. Isso vai só atrair mais Anansis.
— Ordens são ordens, Axion. É bom defender essas
caixas com sua vida. Os piores castigos vêm quando os
ricos perdem algo caro.

A janela da boleia se abre. Um guardião de ferro dirige o


caminhão. Ao lado dele, sentado no banco de passageiro,
está Belerofonte, o superior daquele pelotão, sob um
manto de couro marrom vagabundo para esconder seu
corpo de guardião de prata e parecer um pouco mais
com os caminhoneiros que costumam viajar naquela
estrada. Ele relembra as instruções da operação e
aconselha:

— Atenção, vocês dois. Não estamos aqui para vencer os


Anansis. Não hoje. Mas temos que sair vivos.

— Você quer dizer, então, que é cada um por si — deduz


Dário.

— Não. É exatamente o contrário. Precisamos reforçar a


proteção que fazemos uns aos outros, para ninguém ficar
para trás. Não quero que ninguém aqui seja
homenageado como herói morto. Entendido?

— Sim, senhor — Axion e Dário respondem em uníssono.

Belerofonte fecha a janelinha e fixa o olhar na estrada.


Ele guarda um segredo. Foi escolhido para comandar a
operação, mesmo discordando dela. O que está
acontecendo agora é consequência da derrota sofrida
pela Guarda no mês anterior, em Palami.
Os moradores de Palami plantavam o suficiente para
comer e vendiam o excedente. Os comerciantes da
cidade diziam que isso era uma concorrência desonesta,
pois a maioria dos moradores de Palami não usa
braceletes de Cronos; logo, não seguiam as mesmas
regras. Vendiam as provisões de Gaia por preços mais
baixos. Além disso, os trabalhadores da cidade de Nova
Ascra começaram a desejar a liberdade que tinham os
moradores de Palami. Quem morava em Palami escolhia
a hora de trabalhar e de descansar. Isso preocupava não
apenas os comerciantes, mas também os empresários da
indústria, pois menos pessoas queriam trabalhar usando
braceletes de Cronos. Os comerciantes e industriais,
enfurecidos, exigiram que a Guarda queimasse as
plantações.

A noite em que os guardiões incendiaram as plantações


de Palami ficou conhecida como “a noite que se fez dia”.
O brilho do fogo era tão intenso que manteve a zona
oeste de Nova Ascra iluminada por todo o período. Houve
forte resistência dos Anansis, mas os guardiões
cumpriram sua missão. Queimaram até o último pé de
alface.

O problema é que essa não foi uma vitória dos guardiões.


Foi, na verdade, sua pior derrota.

Os moradores de Nova Ascra que não eram comerciantes


nem empresários da indústria se compadeceram do
sofrimento dos moradores de Palami. A opinião pública
se voltou contra os guardiões.
Agora, Belerofonte comanda uma operação para resgatar
a credibilidade da guarda perante a opinião pública. Os
guardiões de prata a apelidaram de “Operação Derrota”,
pois o objetivo é deixar que os Anansis roubem uma
carga. Os guardiões estão em menor número e não
usarão armas de fogo. Os Anansis roubarão as provisões
e a cidade de Nova Ascra terá um sério problema com o
desabastecimento de alimentos. Isso certamente deixará
os cidadãos bastante indignados.

No dia seguinte, de forma já bem planejada, o guardião


de ouro fará declarações à imprensa, apontando os
Anansis como uma ameaça fora de controle. A opinião
pública voltará a favorecer as ações enérgicas dos
guardiões em Palami.

Mas nada disso pode ser dito aos subordinados. Os


guardiões de bronze e de ferro não conseguem entender
o complicado jogo de manipulação da opinião pública. Se
os subordinados pensarem que a guarda está fazendo
algo errado, podem vazar a informação e colocar a
“Operação Derrota” a perder. Esses pensamentos
ocupam a mente de Belerofonte enquanto ele procura
por sinais de Anansis na estrada.

À esquerda do comboio de dez caminhões os casebres de


Palami se amontoam morro acima. À direita, vestígios da
plantação queimada, à beira do rio. Palami está
absolutamente escura.

Um canário canta três vezes, como se fosse dia.


— Não é um canário, é um sinal de ataque — avisa Dário,
o guardião de bronze. — Fique atento, Axion.

Na boleia, Belerofonte se inclina sobre o painel. Vê


silhuetas correndo e saltando, fazendo badalar os
telhados metálicos: os Anansis se aproximam.
3

D e corpos escuros como a noite, os Anansis deixam


sua presença ser denunciada por suas calças
brancas ou marrom-claras, usadas, por tradição,
amarradas à cintura por cordas em vez de cintos. Eles
não temem serem vistos. Sempre atacam em grupo e de
forma muito bem organizada.

Eles são jovens. Os homens correm com o peito nu ou


com as camisas abertas. As mulheres usam panos
firmes, apertados no pescoço e nas costas, para cobrir e
imobilizar os seios em seus movimentos fortes e astutos.
Todos usam máscaras de cerâmica marrom-escuras
sobre o rosto, com marcas brancas desenhando variadas
expressões raivosas, evidenciando seu espírito guerreiro.
Sua agilidade para escalar casas e saltar entre os vãos
parece algo sobrenatural. A pele escura banhada pela
fraca luz da lua os torna atemorizadores. Ganham
terreno e anumeram-se rapidamente, aproximando-se
dos caminhões.

Na boleia do primeiro caminhão do comboio, Belerofonte


acende um fósforo, queima o pavio de um tubo e o
aponta para fora da cabine. Lança fogos de artifício que
arrebentam estrondosamente, iluminando as pesadas
nuvens no céu. É um pedido de ajuda usado por
comboios sob ataque.
— Fomos vistos, Hyp — diz Hakim, sob uma máscara de
expressão raivosa, freando sua corrida sobre um telhado.
— Devemos continuar?

— Sim. Precisamos agir antes que cheguem os guardiões


— responde Hyp, a líder dos Anansis.

Hyp usa uma máscara diferente, de expressão triste e


confusa. Ela prefere assim, pois ajuda a confundir os
inimigos. Hyp tem o corpo magro e alongado, a pele
escura, cabelos volumosos e mal-arrumados, que
parecem aumentar o tamanho de sua cabeça. Ela é a
mais ágil dos Anansis. Ensina-lhes tudo o que ela
descobre, aprende, inventa.

— Faça sinal para cortarem os pneus — ela ordena.

Hakim, usando um velho espelho quebrado, faz a luz da


lua refletir em direção ao final da rua. Dois Anansis, à
frente do primeiro caminhão, recebem o sinal e
estendem uma corrente encravada com farpas
brilhantes, que furam e cortam os pneus como se
cortassem manteiga. Mais correntes com farpas são
lançadas aos pneus traseiros. Os pneus arrebentam.

O guardião de ferro ao volante tenta manter o controle,


mas o caminhão cai, arrastando o pesado chassi sobre os
paralelepípedos da rua, sacudindo as caixas em sua
carroceria. Belerofonte, o guardião de prata no banco de
passageiros, se apoia no painel e na porta para não
chacoalhar na boleia. Na carroceria, Dário e Axion se
protegem, segurando as caixas para que não caiam em
cima deles.

Os caminhões seguintes também param, com pneus


derrapando e freios chiando, enquanto evitam colidir uns
com os outros.

— Aposto que tem um baú de joias num desses


caminhões... — diz Cassiopeia para si mesma, ao lado de
Hyp, ao avistar os caminhões parando.

A expressão na máscara de Cassiopeia é a de uma


serpente furiosa. Diferente de Hyp, Cassiopeia tem um
corpo abençoado com generosas curvas. Ela sabe que
hipnotiza aliados e inimigos com sua beleza. Usa isso em
combate.

— Nem pense nisso, Cassiopeia. Vamos pegar apenas a


comida e ir embora — afirma Hyp. — Babu disse...

— ... que ouro roubado atrai castigos. Tá. Mas nunca


vamos melhorar de vida, então?

— O que precisamos agora, Cassiopeia, é de comida na


mesa. Se eu a vir pegando ouro, eu a expulso dos Anasis.

Cassiopeia vira seu rosto de serpente para Hyp, prende a


respiração e cerra os punhos. Hyp a encara, sob sua
máscara triste e confusa, depois olha para os caminhões
e dá o comando para os Anansis voltarem a correr.

Os Anansis se aglomeram nas traseiras dos caminhões,


próximos às aberturas das lonas. Querem as provisões de
Gaia.

Belerofonte salta da boleia e caminha rumo à parte


traseira do caminhão. Um dos Anansis, próximo ao
guardião, sopra uma zarabatana e atira farpas
venenosas; elas batem no peito prateado de Belerofonte
sob a capa de couro e caem no chão, desmoralizadas.
Belerofonte ri da arma insignificante do Anansi.
Responde com um soco rápido e brutal, arremessando o
inimigo a sete metros de distância. O Anansi cai no chão,
com sangue saindo pelo nariz e a marca do soco de
Belerofonte em seu peito. Tenta respirar. A dor é enorme.

Hyp ordena a dois Anansis que socorram o amigo


atingido por Belerofonte. Sua ordem é obedecida
rapidamente. Ela ordena a outros dois, Jitu e Sadiki, que
a ajudem a invadir a carroceria do caminhão. Com as
mãos entrelaçadas, eles oferecem um apoio para que a
jovem suba, a um salto. Lá de cima, ela destrava a cerca
de madeira da carroceria, que abre e fica pendurada
pelas dobradiças. Essa cerca serve de escada para Jitu e
Sadiki.

Os odores frescos das caixas confessam: essa é a


provisão destinada aos nobres. As travas metálicas e
cadeados confirmam. Aquela carga recebe a melhor
proteção. Há ainda uma caixa aberta, com utensílios
dourados, perto de tapetes elegantes. Não é o que Hyp
quer. A jovem puxa um cordão em seu pescoço, com um
apito de madeira na forma de pássaro. Ao soprar, ouve-
se o cantar de um canário, que avisa aos Anansis que o
alvo foi encontrado.

Axion, o guardião de ferro, sai de trás das caixas do


fundo, com martelo em punho e girando a boleadeira.
Em seguida surge Dário, o guardião de bronze.

“Eu devia mesmo esperar que desta vez haveria uma


emboscada”, pensa Hyp.

Os guardiões lançam as boleadeiras. Elas giram no ar


pelo peso de suas esferas, esticando a corda ao meio.
Hyp se esquiva com uma instintiva cambalhota para trás,
com os pés unidos. Sadiki é atingido pelas duas
boleadeiras, ficando com braços e pernas amarrados.
Cai. Jitu vai ao socorro de Sadiki para soltá-lo das
amarras.

Dário ordena, com a ponta dos dedos, que Axion ataque


a jovem Anansi. Enquanto isso, olha fixamente para seus
alvos, Jitu e Sadiki, que se levantam para o combate, à
ponta traseira da carroceria, iluminados pelos faróis do
caminhão seguinte.

Na parte mais escura da carroceria, Axion desfere golpes


contra sua oponente, mas seu martelo gira inutilmente
no ar. Hyp escapa com saltos imprevisíveis, apoia seus
pés nus nas laterais das caixas para pegar impulso, rola
pelo chão e encontra abrigo rapidamente nos vãos entre
as caixas. Um bruto golpe de martelo faz a lateral de
uma caixa sangrar um vinho de odor muito agradável.
— Axion, cuidado com as provisões! — grita o guardião
de bronze.

O guardião de ferro acena, indicando que entendeu o


comando.

A jovem Anansi sobe a um passo a caixa mais alta, para


evitar os ataques de Axion. Ela pega o apito pendurado
em seu pescoço e assovia como um canário. Outros
Anansis se aproximam da traseira do caminhão,
atendendo ao chamado.

Na outra ponta da carroceria, Dário luta contra os outros


dois Anansis. Jitu ergue-se para chutar o guardião, mas
uma mão prateada agarra-lhe o pé. Belerofonte o puxa
da carroceria, atirando-o contra a grade quente do motor
do segundo caminhão. As costas de Jitu ardem.

Belerofonte retira seu enorme casaco de couro,


revelando que era um guardião de prata disfarçado. Seu
corpo é inteiramente uma armadura prateada. Seu elmo
cobre o rosto quase inteiramente, deixando olhos, nariz e
boca encobertos nas sombras. Ele carrega um enorme
martelo de prata, ricamente adornado, que estava
escondido sob o casaco.

Mais Anansis vêm atacar Belerofonte. O guardião de


prata se move brutalmente, cada golpe de martelo
lançando Anansis à altura dos caminhões.

Boleadeiras roubadas pelos Anansis são lançadas e


enroscam nas pernas do guardião de prata. Anansis
escalam o segundo caminhão para tomar impulso e
desferir chutes mais fortes em Belerofonte, que se
desequilibra e cai. Guardiões de bronze e de ferro,
descidos dos outros caminhões, tentam vir ao socorro do
seu comandante, mas são impedidos de se aproximar.
Entram em confronto com a multidão de jovens de
máscaras raivosas.

No primeiro caminhão, Sadiki pula para trás de Dário e


imobiliza seus braços.

— Dário! Resista! — grita Axion, virando as costas para a


jovem de máscara triste.

Hyp, isenta de dúvida, voa com os dois pés para atingir


as costas de Axion, que por sua vez voa para fora da
carroceria, caindo ante o segundo caminhão, próximo a
Belerofonte. A jovem vê o martelo de ferro caído diante
de seus pés, recolhe-o e corre para as sombras, sumindo
entre as caixas.

No chão, entre os dois primeiros caminhões, os Anansis


se amontoam ao redor de Axion, o guardião de ferro, e
de Belerofonte, o guardião de prata. Cassiopeia, a Anansi
de máscara de serpente, sobe a tampa do motor do
segundo caminhão. Ela aponta para Belerofonte. O
guardião de prata é o alvo.

Os Anansis lançam as correntes com farpas brilhantes


para enroscarem-se nos braços, pernas e pescoço de
Belerofonte. Ele não consegue se levantar. Elas riscam a
armadura do guardião, amassam, rasgam e ameaçam
desmontá-la. O braço direito se desloca, sangrando
prata, mas fica pendurado ao corpo por poucas
estruturas internas. As pernas doem, com os muitos
cortes feitos pelas pontas brilhantes das correntes.

Alguns guardiões conseguem se aproximar, vencendo o


mar de Anansis, porém aguardam ordens de seu
superior. Mas Belerofonte não pode falar, está ocupado
tentando se livrar das correntes.

Axion, com um pouco de destreza e bastante sorte,


escapa de golpes das correntes dos Anansis. Vendo os
guardiões desorientados, o guardião de ferro passa a dar
ordens:

— Vocês dois, me ajudem a soltar Belerofonte! Vocês aí,


não deixem que mais Anansis se aproximem! O pelotão
do fundo... Defendam a carga!

Axion, com furiosos chutes, desequilibra os Anansis e


abre uma passagem na multidão. Os guardiões
conseguem se aproximar de Belerofonte e o ajudam a se
livrar das correntes.

Vendo Anansis fugirem com caixas de provisões, Axion


ordena:

— Prendam aqueles Anansis! Tragam a carga de volta!


Não vamos aceitar que esses vagabundos roubem nossas
provisões!
Os guardiões se sentem bastante motivados pelas
palavras de Axion. Seguem os Anansis, determinados a
recuperar as caixas.

Sadiki empurra Dário, o guardião de bronze, para fora da


carroceria. Dário cai sobre o chão de terra batida,
próximo a Axion e Belerofonte, cercados por Anansis.

— Você... não pode... dar ordens, passando por cima da


hierarquia... e do comando... do guardião de prata... —
diz Dário, levantando-se e repreendendo o amigo de
baixa patente. — Você é apenas um guardião de ferro!

— Ele agiu corretamente, guardião de bronze — diz


Belerofonte. — Foi necessário, pois eu estava
imobilizado. Sua atitude certamente será recompensada.

Axion se alegra ao ouvir aquilo. Belerofonte realmente


merece a fama de ser um guardião diferente. Na Sede da
Guarda, chamam-no de “coração mole”. Às vezes, esse
coração mole o faz se comportar de maneira inesperada,
mas justa. Belerofonte pode, muito facilmente,
convencer o guardião de ouro a dar-lhe uma promoção
como recompensa. Seria meritório.

Mas a batalha ainda não acabou.

Os três guardiões olham ao seu redor. Estão cercados de


jovens com máscaras raivosas. Axion pega do chão o
belo e pesado martelo prateado de Belerofonte. Dário, o
guardião de bronze, o repreende, pois tomar uma arma
de um guardião de alta patente também é uma ofensa
grave. Mas Belerofonte silencia, segurando seu braço
ferido; ele não pode usar o martelo, mesmo que queira.

— Eu não entro numa luta para perder! — Axion acerta o


martelo prateado no peito de um, dois, três Anansis,
arremessando-os alguns metros para trás. O peso do
martelo é muito maior do que ele supunha.

Os Anansis recuam, mas ainda cercam o espaço entre os


caminhões, girando as perigosas correntes, não deixando
os guardiões evadirem.
4

N a escuridão da carroceria do primeiro caminhão, Hyp


arrebenta a trava de uma caixa com o martelo de
ferro que pegou após a luta com Axion. A parca luz que
entra pela fresta entre a lona e a boleia deixa ver que é
uma caixa branca, marcada com cruzes vermelhas.
Dentro dela há uma pequena maleta branca metálica.
Hyp precisa ver o que há dentro. Leva a maleta até o fio
de luz.

Dentro da pequena maleta metálica, Hyp encontra um


pote de vidro com ervas minuciosamente trituradas; no
rótulo, lê-se Atropa belladonna . O interior da maleta é
forrado com um tecido macio e espuma almofadada —
apenas as coisas mais preciosas do mundo merecem
uma embalagem tão nobre.

Fecha a maleta. Aperta-a contra o peito e jura para si


mesma que a protegerá a qualquer custo.

Carregando a maleta, corre para a traseira do caminhão


e vê os três guardiões cercados pelos Anansis.

— Ela pegou alguma coisa! — aponta Axion.

Hyp percebe que está amanhecendo. Com um duplo


apito de canário, a jovem comanda a retirada dos
Anansis.
Cassiopeia, em cima do motor do segundo caminhão,
gesticula, questionando a ordem. Ela aponta para as
caixas, indicando que ainda há muito a ser levado. Mas
Hyp repete o apito, deixando claro que é hora de os
Anansis recuarem. O grupo todo obedece, inclusive
Cassiopeia, mesmo a contragosto.

Os Anansis fogem, levando apenas o que conseguem


carregar nas mãos. Derrubam caixas no chão, para
impedir que os guardiões os sigam. Sobem nos telhados
das casas, badalando-os.

Entre os caminhões, sobram poucos guardiões. Axion


continua a dar ordens:

— Assim que os carros de apoio chegarem, levem


Belerofonte para os médicos na Sede da Guarda.

Os guardiões, alguns de ferro e outros de bronze,


concordam. Mas não todos. Axion não percebe que Dário
o censura em pensamento pelo desrespeito à hierarquia.

— Vamos pegar a líder dos Anansis! — ordena Axion ao


seu superior.

— Ei!!! Sou eu quem dá as ordens aqui, lembra? —


reclama Dário, batendo a mão em seu peito de bronze.

— Desculpe, senhor — diz Axion, ajeitando seu elmo de


ferro. — O que vamos fazer, então?

Dário encara seu subordinado e determina:


— Vamos pegar a líder dos Anansis... Apenas eu e você.
O restante fica para proteger a carga e Belerofonte.

***

Adiantada, com a vantagem que lhe fora concedida pela


discussão dos guardiões, Hyp corre entre as casas de
tijolos aparentes. Ela anda pelas paredes com facilidade,
como se a lei da gravidade fosse apenas mais uma a ser
desobedecida.

O infindável labirinto de casebres rouba o senso de


orientação de Axion e Dário. Mas o silêncio da noite os
ajuda a escutar os caminhos trilhados pela jovem,
especialmente quando ela é traída por uma tábua mal
firmada ou um vaso de plantas que alguma dona de casa
deixou no caminho.

Hyp passa correndo por um estranho rapaz de sorriso de


ferro descendo as ruas. Não tem tempo a perder com ele.
Ignora-o. Instantes depois, os guardiões o encontram. É
Hormes, que minutos antes havia saído do ferro-velho,
carregando seu amigo Lampião nas costas.

— Saia do caminho, garoto — diz Dário. — Você vai


acabar se machucando.

— Você viu uma Anansi correndo por aqui? — pergunta


Axion.

Hormes apenas aponta para uma ruela, sorrindo. Os


guardiões agradecem, acenando positivamente com a
cabeça.

Hyp percebe que os guardiões se aproximam. Agarrada


ao produto do roubo, vê o guardião de ferro surgir em
uma ponta do corredor, entre duas casas. Ela entra em
um estreito e longo corredor à esquerda, onde uma cerca
de alambrado montada em canos de aço impede a saída.
Axion, ao avistar a cerca, sorri no íntimo. “Agora eu te
peguei. Você não terá tempo de escalar a cerca até eu
alcançá-la”, pensa.

Correndo pela parede à esquerda, como se ali houvesse


uma escada invisível, Hyp alcança altura, pula com força
para a parede à direita, toma novo impulso, salta por
cima do alambrado, aterrissa rolando do outro lado, olha
para trás, levanta sua máscara e, sem medo de revelar o
rosto, manda um beijo atrevido a Axion. Ela ri, vitoriosa.

Axion não acredita no que vê. Como ela pôde fazer aquilo
tão rápido? Ela vai escapar...

No entanto, ao virar-se, Hyp se depara com Dário, o


guardião de bronze, fechando a saída. Está encurralada.
Há um guardião em cada saída, e um alambrado no meio
do corredor.

Ela olha para cima. Entre os telhados, há apenas uma


estreita passagem para o céu. “É impossível escalar, as
telhas são muito grandes; eu teria que andar de cabeça
para baixo”, pensa ela. “Desta vez, eu não escapo”.
Ela vê Dário, o guardião de bronze, se aproximando
calmamente, feliz por tê-la cercado, girando o martelo
em sua mão.

Do outro lado, Axion, o guardião de ferro, a observa por


detrás do alambrado. Ele cruza os braços e balança a
cabeça, reprovando o atrevimento da garota.

Os telhados metálicos badalam.

— Ei, Hyp! — uma mão se estende lá do alto.

Sem pensar, a jovem gira o corpo e pega impulso para


cima, apoiando o pé na parede à direita, depois à
esquerda, depois à direita, pendura-se na cerca,
equilibra-se sobre o cano que sustenta o alambrado e,
sem soltar a maleta roubada, segura a mão de seu amigo
e sobe ao telhado.

Dário fica estupefato com os movimentos da jovem.


Axion, colérico, corre, salta e tenta escalar a cerca. Seus
pés metálicos derrapam nos arames do alambrado. Axion
persiste e chega ao cano no topo da cerca. Tenta
equilibrar-se. Suas mãos e pés escorregam sobre o cano
de metal e ele tomba por cima de Dário, do outro lado do
alambrado. Sente-se patético.

O rosto da jovem desponta no espaço entre as telhas.


Com a máscara levantada, sua pele negra, banhada
pelos raios de sol dourados do amanhecer, destaca o
sorriso debochado sobre a derrota dos guar­diões. Ela
desaparece, badalando telhas cada vez mais distantes.
— Eu vou prender aquela Anansi, Dário. Agora é a missão
da minha vida.

— Não hoje, Axion. Estamos no território deles.


Precisamos achar o caminho de volta sem sermos vistos.
5

L aranjas-pera, laranjas-lima, tangerinas, mangabas,


pêssegos, mangas, cajus e carambolas formam um
dégradé em quadrados perfeitos, organizadas nas caixas
da venda. As cores seguem pelas peras, goiabas, limas,
limões, maçãs verdes, maçãs gala, maçãs fuji, ameixas,
lichias, amoras, uvas.

Mas as frutas não são perfeitas. Elas estão organizadas


de modo que os lados amassados, oxidados ou secos
fiquem sempre escondidos dos transeuntes. Desse jeito,
parecem, sim... perfeitas.

Uma mão de ferro ergue uma tangerina. É de uma


mulher de meia idade, com rugas de cansaço impressas
no rosto, muitas horas trabalhadas na fábrica de
borracha. Ela cheira a fruta. Uma pequena mancha
marrom se revela quando ela gira a fruta diante dos
olhos. Ela avalia se o restante é aproveitável.

— É do carregamento de hoje? — ela pergunta.

Hormes, sob um toldo decorativo, com a mão esquerda


sob o queixo, cotovelo sobre a caixa de mamões,
sustenta seu rosto metálico de sorriso inapagável
apontado para o obeso dono da mal-organizada padaria
à sua frente. O bracelete de Cronos tece fios de ferro ao
redor do antebraço de Hormes: é hora de trabalho
legítimo.

— Essa fruta é nova? — a mulher sobe a voz, esperando


que Hormes a ouça.

Hormes suspira. Ronca. Tomba a cabeça. Uma gotinha de


saliva escorrega pelo canto da boca.

— Afff... Eu não acredito. Vá dormir em casa!

— A mulher repousa a tangerina em meio às ameixas. É


um enorme sacrilégio para a perfeita organização
daquela banca de frutas.

O gordo da padaria à frente vê Hormes a fitá-lo.

— Tá olhando o quê, ô maluco?!? — grita o velho de rosto


zangado, esculpido em ferro, com marcas de ferrugem
aparecendo por entre as rugas, acostumado a ser bruto
até com os clientes.

Hormes inspira profundamente. Apruma a posição da


cabeça sobre o braço. Expira.

— Só tem doido nessa estoa — reclama o gordo da


padaria. — E ainda dizem que é o melhor lugar para as
vendas...

A estoa é um longo edifício de colunas dóricas, próximo à


ágora e ao templo de Nomos, onde os comerciantes
alugam espaços para montar suas lojas. A sombra do
teto e das colunas ajuda a aliviar o calor de Nova Ascra,
criando um clima agradável para os clientes.

Momus caminha perto dali, a passos ritmados. Ele sobe a


rampa rumo ao piso principal da estoa. Sua camisa
branca de tecido ordinário exibe os fortes braços de
bronze ao que ele traciona um carrinho de madeira
carregado de frutas. Seu rosto metálico exibe um largo
sorriso.

Momus estaciona perante a tangerina transgressora da


ordem, aninhada entre as ameixas.

— HORMES!!!

O rapaz põe-se de pé em um sobressalto, batendo com a


cabeça na pobre viga de madeira do toldo decorativo,
chacoalhando as frutas em suas caixas. Algumas peras,
pêssegos, cajus e carambolas aproveitam a perturbação
para rebelar-se e saltarem para outras caixas. Hormes
contorna a banca e põe-se a disciplinar as frutas.

— Hormes, já falei que as provisões devem estar sempre


em perfeita ordem!

— Desculpe, senhor Momus, eu tomei um susto e


derrubei...

— Essa tangerina estava no meio das ameixas quando


cheguei. Você estava cochilando?

— Não, quê isso, patrão... não...


— Você chegou atrasado de novo, não foi? — Momus
questiona, furioso, mas sem apagar seu sorriso.

— Não, patrão, cheguei na hora... Eu abri a loja na hora...


— Hormes mente, mesmo sabendo que seu sorriso não
comove Momus.

— Você pensa que me enrola. Eu o descartaria agora


mesmo se tivesse alguém para pôr em seu lugar.

Hormes não desfaz seu sorriso, mas as mãos tremem e


se atrapalham enquanto tenta organizar as frutas. Sua
frio.

— Encontrei sua irmã. Ela disse que seu pai ficou muito
preocupado contigo, pois você não passou a noite em
casa — Momus percebe que as mãos de Hormes tremem
ainda mais intensamente e que o ritmo da organização
diminui. — Espero que você não tenha aprontado nada
durante a madrugada.

— Não, patrão, eu-eu-eu...

— O que você faz à noite não é da minha conta. Só não


quero você dormindo no trabalho.

— Sim, senhor... — responde Hormes.

— Não deixe seu pai sem saber o que você faz à noite.
Não é justo tratar um pai assim — Momus ensina.

Depois de organizadas as frutas rebeldes, Hormes e


Momus começam a ajeitar as frutas do novo
carregamento. Momus não é de conversar. A Hormes,
apenas dá ordens. Momus apenas conversa com clientes
ou comerciantes. Gosta muito de conversar com Aurora,
a bela dona da banca de cerâmicas. Ela sempre para na
banca de Momus para escolher algumas frutas.

Momus puxa assunto:

— Bom dia, dona Aurora.

— Bom dia, Momus — ela sorri para ele o mesmo sorriso


metálico que mostra aos clientes.

Hormes apenas escuta. Aprendeu a não se meter nas


conversas do patrão. Sabe também que o interesse de
Momus por Aurora vai muito além do comercial. Aurora
atrai o desejo de quase todos os donos de venda na
Estoa Trimegisto. Ela é a única mulher dona de uma loja.
Ela mantém próspera a loja de cerâmicas, com a mesma
habilidade que mantém os homens a uma distância
segura.

— Você sabia, dona Aurora, que os Anansis tiveram a


ousadia de tentar roubar nossas provisões de Gaia? Eu
não teria frutas para vender, e faltaria comida na mesa
de muitos cidadãos de Nova Ascra.

— É mesmo, Momus? — por educação, Aurora finge


interesse pela opinião de Momus.

— É isso mesmo. Me contaram isso quando fui buscar as


frutas. As caixas chegaram bagunçadas e várias frutas
foram danificadas. É por isso que dou total apoio aos
guardiões. Eles precisam acabar logo com esses
vagabundos.

— Eu não achei justo quando os guardiões queimaram as


plantações de Palami. Foi cruel — Aurora não costuma
mesmo concordar com Momus, sobre quase nada. —
Nesse ataque, parece que os Anansis só queriam levar
comida. Meus vasos estavam nessa carga da madrugada,
mas chegaram intactos.

— Então você não teve prejuízo nenhum, não é? Aí fica


fácil dizer que os Anansis não são criminosos.

— São pessoas com fome, Momus. Comida é mais


importante do que os vasos e as estátuas que vendo.

Momus não gostou da resposta. Estava pensando em


uma forma de responder a Aurora, discordando, mas sem
fazê-la perder o interesse pela conversa.

Para complicar, há um homem não muito longe dali, no


centro da ágora, à sombra do Obelisco de Cronos,
fazendo um discurso com um megafone:

— Os moradores de Palami tiveram suas casas e


plantações injustamente queimadas! Eles são os
moradores mais antigos desta região, deveriam ao
menos ter suas plantações respeitadas!

Aurora aplaude o discurso, como outros na ágora. Mas há


também vaias espalhadas na multidão.
— Quem é aquele? — pergunta Hormes, metendo-se na
conversa.

Momus olha fixamente para Hormes, reprovando a


intromissão. No entanto, Momus também tem um sorriso
inapagável. A encarada sorridente pareceu algo muito
estranho. Mas Hormes entendeu que deveria se calar.

— É Jan Cândhido — responde Aurora. — Ele tem lutado


por justiça em toda cidade a que vai.

— Isso é política, não gosto disso. Eu só acredito na


tecnologia — diz Hormes. — Meu trabalho é fazer
máquinas.

— Seu trabalho é o quê, rapaz? — pergunta Momus,


surpreso.

— Desculpa, desculpa! É vender frutas. Meu trabalho é


vender frutas — Hormes se corrige.

Momus sabe que o rapaz gosta de desmontar sucata,


pois o pegou algumas vezes com uma chave de fenda e
peças de relógio atrás da bancada. Mas desmontar
sucata não é fazer máquinas de verdade. O garoto deve
ter falado de algum sonho, do tipo “o que eu quero ser
quando crescer”. Não importa. O garoto é pago para
trabalhar, não para sonhar.

Momus volta a olhar para Aurora. Ele sempre quer


mostrar para ela o quanto é politizado, entendedor das
necessidades dos cidadãos de Nova Ascra; entretanto,
quanto mais ele argumenta, mais afasta a mulher que
ele deseja. Fica dividido entre defender as coisas em que
acredita e tentar conquistar Aurora. Acaba escolhendo
defender seus argumentos:

— Esse Jan Cândhido fala de justiça? Minha querida, nós


trazemos as provisões de Gaia plantadas em outras
cidades, por trabalhadores que usam braceletes de
Cronos como nós. Enquanto isso, esses moradores de
Palami plantavam aqui, de qualquer jeito, e vendiam por
um preço muito injusto. Não podemos concorrer assim —
Momus cata algumas frutas, coloca em um saco de papel
e sai conversando com Aurora.

Ele fala, ela discorda. Ele oferece uma fruta, “cortesia da


casa”, ela aceita. Mas ela não muda de opinião.

Os dois se afastam e deixam Hormes novamente


sozinho, cuidando da frutaria. “Momus fica parecendo um
bobo alegre quando a dona Aurora está por perto. Faz
qualquer coisa para chamar a atenção dela”, pensa o
rapaz.

Hormes adora esses momentos em que o patrão sai e


não há clientes para atender. Debaixo da bancada de
frutas, o jovem guarda seu amigo Lampião e uma caixa
de madeira com suas ferramentas e algumas peças. Ele
consegue essas peças desmontando máquinas
enguiçadas ou... furtando do ferro-velho.

Quando não pensa em algo útil para inventar, Hormes


constrói brinquedos com aquelas peças. Fez carrinhos
que aceleravam com motores acionados por molas; fez
uma pequena libélula metálica que voava de verdade – e,
no seu voo inaugural, acabou cravada em uma coluna da
estoa, tão alto que ninguém conseguiu pegar. Hormes
fingiu que quem estragou a coluna não foi ele. Ele disse
que nem sabia de onde tinha aparecido aquela coisa
estranha lá no alto.

E Hormes faz robôs. Muitos pequenos robôs. Eles ficam


escondidos dentro de uma caixa velha, do lado das
caixas de frutas selecionadas para descarte, onde
Momus nunca mexe.

Agora, Hormes está tentando criar um braço-robô que


lhe poupará o trabalho de organizar as frutas. Ele fixa o
braço-robô em uma caixa de ameixas quase vazia,
apertando parafusos. Ele precisa colocar na caixa de
exposição as ameixas que Momus trouxe, de forma bem
organizada. Hormes estica um cabo de aço até uma
roldana presa à caixa com ameixas recém-chegadas, por
onde correm duas garras mecânicas com três dedos
cada. Os dedos mecânicos têm as pontas
cuidadosamente acolchoadas com estofamento e capa
de borracha, para não estragar as frutas ao tocá-las.

Hormes gira uma manivela.

As garras mecânicas percorrem o cabo de aço, catam as


ameixas recém-chegadas e as soltam na caixa de
exposição, respeitando os espaços para deixar as frutas
perfeitamente alinhadas.
— Que legal! — diz uma jovem que observa Hormes
enquanto ele usa a parafernália.

— Shhhh! — Hormes levanta o dedo indicador diante da


boca, sorrindo. — Meu chefe não gosta que eu faça
máquinas no horário de trabalho. Mas eu quero fazer
uma surpresa para ele quando a máquina estiver pronta.

— Mas você é muito criativo! Que inteligente! Meu pai e


meus irmãos adorariam ver... — a jovem para de falar
repentinamente.

Ela é um tanto diferente das outras mulheres que


passam na estoa. Usa um uniforme de arrumadeira,
talvez de um hotel, mas pode ser que trabalhe em uma
casa de família rica. Tem quadris largos e rosto redondo,
com um belo sorriso. É difícil não perceber seus seios
grandes — mas na proporção do corpo “cheinho”. Sua
pele é muito branca, seus cabelos são escuros e
ondulados. As palavras saem muito bem articuladas de
seus lábios rosados. Cobre a cabeça com um pano
marrom. Incomum.

O incomum atrai Hormes. Ele desmonta o braço


mecânico organizador de ameixas e o cabo de aço;
esconde-os na velha caixa de madeira ao lado de
Lampião, sob a bancada, como se o robozinho pudesse
vigiá-la. Retira dali outras invenções e mostra à jovem
incomum. É uma forma de ganhar tempo para conversar
com ela.
Ela de fato se encanta com as pequenas máquinas de
Hormes. Vários pequenos robôs, feitos com peças de
relógio, fazem movimentos repetidos, mas sempre
parece haver algum sentido. Alguns robôs parecem
limpar, outros parecem apertar parafusos, desenhar,
transportar pequenos objetos. Todos se equilibram sobre
duas pernas. Alguns caem.

— Posso ficar com um desses?

— É... pode... como... como é o seu nome? — Dar um


robô para saber o nome de uma moça tão bonita parece,
para Hormes, um preço justo.

— Dirce — ela responde baixinho, encabulada.

— Disse? — o rapaz não entende.

— Dirce.

— Tá bom, Dirce. Pode levar um deles...

Hormes sorri. É capaz de fazer qualquer coisa para


chamar a atenção daquela jovem.

Ela escolhe o robô que parece limpar coisas. Então, diz:

— Eu gostaria de te retribuir de alguma forma.

— É? — Hormes sorri.

— Vou pensar em algo para te ajudar. Prometo que


retribuo com alguma coisa útil para você, tá?
Ela pega o pequeno robô e repousa sua mão sobre a mão
de Hormes. O coração do rapaz acelera. Ele fica
encantando pela mãozinha da Dirce. Ela tem mãos muito
pequenas, delicadas, sem nenhuma parte de metal.
Como ela consegue manter a pele tão suave,
trabalhando como arrumadeira?

Algo chama a atenção de Dirce; ela então se vira para


ver o que está acontecendo na ágora. O homem que
fazia um discurso está agora cercado pela multidão,
respondendo perguntas e defendendo o argumento de
que os guardiões abusaram do poder quando
incendiaram as lavouras de Palami.

— Aquele é Jan Cândhido — diz Hormes, apenas para


manter a conversa fluindo com Dirce.

— Eu sei, eu o conheço — Dirce responde.

— Você o conhece? — pergunta Hormes.

— Errr... conheço, assim... como todo mundo conhece. Eu


gosto de política, e sempre procuro saber o que está
acontecendo.

— Eu também adoro política! — diz Hormes. — É legal


ver que Jan Cândhido luta por justiça em todas as
cidades a que vai.

Pronto. Hormes havia acabado de dizer tudo o que sabia


sobre Jan Cândhido e sobre os acontecimentos políticos
recentes. Ele torce para que Dirce não faça nenhuma
pergunta difícil. Agora ele parece um bobo alegre.

— É legal mesmo, não é? Ele é um exemplo de pessoa


forte, que luta pelo que acredita — diz a jovem.

— É, sim — Hormes concorda, mesmo não sabendo ao


certo se Jan Cândhido é aquilo tudo mesmo. É bom ficar
de olho no que ele faz. Quem sabe, se ele e Dirce se
encontrarem de novo, ele possa usar Jan Cândhido como
um assunto para puxar conversa?

Na ágora, guardiões se aproximam e cercam Jan


Cândhido. Pressionam-no a desistir de discursar. Na
multidão, não parece haver ninguém disposto a defendê-
lo.

— Eu vou lá — diz Dirce.

— Tu vais aonde, garota? — pergunta Hormes.

— Vou defender Jan Cândhido.

— Tá louca?! Tem cinco guardiões lá! Vai fazer o quê?

— Vou fazer política também. Lutar pelo que acredito.

E foi. Debaixo da túnica marrom do uniforme de


arrumadeira, dois sapatinhos de salto reluzem, tornando
Dirce ainda mais incomum. É igualmente incomum o
ímpeto dela ao falar com os guardiões:

— Por que vocês o estão prendendo?


— Ele está fazendo um discurso perigoso — responde o
guardião de prata responsável pela segurança da ágora.

— É crime ter opinião? — ela insiste.

— Opiniões como as dele são crime, sim.

— Soltem o Jan Cândhido, ele não fez nada de errado.

— Quem você pensa que é para dar alguma ordem? Vá


espanar os móveis, mulherzinha inútil.

Dirce olha para as próprias roupas. Ninguém dará


importância para o que ela diz, por estar usando um
uniforme de arrumadeira. Sente-se impotente. Olha para
Jan Cândhido.

Ele olha de volta e sorri. Balança a cabeça, mostrando


que percebeu o apoio da moça e que está confiante de
que tudo ficará bem.

O guardião de prata percebe a troca de olhares. Vira-se


para Dirce e analisa as roupas dela.

— Você não é arrumadeira...

Dirce recua. Some na multidão. Os guardiões não a


seguem, pois o alvo mais importante já está algemado.
Jan Cândhido tem muito a explicar na Sede da Guarda.

Momus retorna à banca de frutas, exausto da discussão


com Aurora. Não convenceu a amada. Vendo Jan
Cândhido ser levado pelos guardiões, Momus diz para
Hormes:

— Quanto mais longe da política, mais longe da cadeia.


Você está certo de não gostar dessas coisas, rapaz.
6

O sol brilha por trás da fumaça das fábricas, mesmo


que o céu não possa ser visto. As casas de Palami se
mantêm frias, eternamente sombreadas pelas nuvens
densas que saem das chaminés e dominam a vista até o
horizonte. A fuligem preta, marrom e cinza pinta
dégradés nas paredes, tetos e janelas. Não há muito
mais cores do que essas.

Num trançar de vielas pouco coloridas, uma bifurcação


da calçada contorna uma casa de forma estranha. Ela
fica à sombra do teleférico que leva sucata até o ferro-
velho.

Os que veem aquela casa de cima estranham o formato


triangular, imaginando como devem ser os cômodos e os
móveis colocados nos cantos de ângulo agudo. A casa
tem apenas duas janelas, sem grades ou vidros para
proteger quem more ali. Tem uma lona servindo de teto,
presa a um trançado de madeira que acompanha o topo
das paredes de tijolos aparentes. Essa aparência de
construção inacabada é suficiente para causar
desinteresse nos ladrões; as janelas sem esquadrias não
são um problema. Uma escada de cimento e tijolos mal-
alinhados liga a calçada diretamente ao pavimento
superior, pela parte de trás. A pequena casa triangular é
um cômodo improvisado, construído sobre outra casa. O
improviso é algo comum em Palami.

Com os dedos entrelaçados, Hyp abraça o poste em


frente a uma das janelas da casa triangular e o escala.
Ela salta do poste e pousa sobre o peitoril da janela,
permitindo que a sombra anuncie sua presença.

Penia, uma mulher velha, esquelética, quase cega,


percebe ruídos e a variação da luz no ambiente.

— Filha, é você?

— Sim, mãe. Eu consegui ervas para fazer o seu remédio


— Hyp põe lenha no pequeno fogão de tijolos, já aceso,
em um dos vértices do cômodo triangular.

A mãe de Hyp toma fôlego para erguer-se. A cama de


ferro geme escandalosamente, sob uma espuma de
colchão coberta com panos aos trapos.

As juntas da velha mulher gemem como a cama gemeu.


Braços, pernas e costas de ferro, ligadas a um bracelete
de Cronos escangalhado, reclamam do esforço de longos
anos carregando carvão.

Hyp põe a pequena maleta branca metálica sobre o chão.


Retira o vidro de Atropa belladonna . Sua mãe se
aproxima.

— Você comprou essas ervas?

— Sim, mãe.
Penia percebe que a filha está mentindo. A velha pega o
pote de ervas, abre-o e sente o cheiro.

— Essas ervas são muito boas. Devem ter sido caras.

— Meu patrão me deu.

— Patrões não são caridosos assim...

— Eu terei que pagar por elas no fim do mês — Hyp


procura um balde. — Vou pegar água no poço...

— Já peguei.

— Mãããee, a senhora sabe que não pode carregar peso!

— E eu vou fazer o quê? Passar o dia todo aqui neste


chiqueiro esperando você voltar com ervas ou comida
roubada?

A lenha estala. A chama surge sobre a lenha nova. Mãe e


filha evitam cruzar olhares. Há muito o que dizer, mas
elas nunca disseram.

Hyp faz uma curta caminhada até a cortina que reserva


um vértice do cômodo às funções de banho. Ali encontra
o balde cheio d’água. A jovem laça a alça com os dedos
das duas mãos, mas subestima o peso do balde. “Ah,
Dona Penia, como é teimosa... Carregou esse peso todo
morro acima?”, pensa. Ela leva o balde até o fogãozinho
de tijolos. Hyp, então, pega o pote de Atropa belladonna ,
junta algumas folhas e um caule sobre uma cuia e
aperta-os com uma colher de madeira. Está preparando a
planta para ferver em água.

Penia sabe de tudo o que acontece apenas pelo som... e


porque as cenas se repetem todos os dias. Hyp sempre
mente sobre como conseguiu as ervas medicinais ou a
comida, sempre acende o fogão a lenha, sempre reclama
de a mãe ter ido pegar água no poço, sempre usa parte
da água para o remédio e outra parte para tomar banho.
Enquanto a água ferve, Hyp fica sentada no chão em
silêncio, maquinando novas mentiras para contar.

Mas Penia resolve quebrar a rotina naquele dia. Debruça-


se à janela. Aproveita uma brisa para encher o pouco
espaço que resta nos pulmões.

— Seu pai dizia que, se não fosse pela fumaça das


fábricas, teríamos a melhor vista da cidade.

Hyp continua em silêncio. Mas não maquina mentiras


agora. O que dizer para uma velha cega que está
elogiando a vista da janela? Bem...

— A senhora se lembra de como é a cidade, mãe?

— Lembro... Quando eu era menina, as fábricas eram


poucas e bem pequenas, e não jogavam fuligem pela
cidade toda. Eu ajudava meu pai a fazer jarros de
cerâmica e a minha mãe a cozinhar. Bem, eu acho que
eu mais atrapalhava do que ajudava — Penia ri e tosse,
tosse e ri.
Hyp se levanta do chão. Olha pela janela. A paisagem já
não é mesmo do jeito que sua mãe se lembrava. Ao
longe, embaçada pela distância e pela fumaça das
fábricas, vê-se a silhueta da torre das Indústrias SYM,
cercada por silhuetas de chaminés das outras fábricas.
Às vezes, escuta-se o movimento dos vagões carregados
de peças e matéria-prima correndo até a entrada oeste
das Indústrias SYM. A vida da cidade gira em torno
daquela fábrica. Se não houvesse a fumaça, poderiam
ver o mar por trás do distrito industrial. Mas tudo
desaparece em tons de marrom.

Hyp transfere parte da água do balde para um bule, e


põe ali as ervas. Penia continua a contar sua história.

— Aí, um dia, meus pais venderam tudo o que tinham


para trabalhar na olaria. Todas essas fábricas tiveram
tijolos feitos pelo meu pai.

Hyp se debruça à janela, ao lado de Penia. Vê apenas a


fumaça saindo das chaminés e a fuligem caindo,
pintando as ruas. Entrega um caneco a Penia, que deixa
o vapor perfumado invadir suas narinas.

— Eu comecei a carregar carvão e lenha para os fornos


da olaria. Eu tinha mais ou menos a sua idade, e foi ali
que conheci seu pai — a voz de Penia se adocica ao falar
do pai de Hyp. Ela encosta o caneco na boca para beber
o remédio, como se fosse um chá.

— Não, mãe! A senhora sabe que não pode beber isso! —


alerta Hyp.
— É mesmo, minha filha, desculpe. Eu me distraí...

— Isso não é chá. Pode matar se a senhora beber — diz


Hyp. — Apenas inale.

— Obrigada — Penia aproxima o nariz do caneco e volta


a inalar o remédio.

Hyp pensa no que a mãe disse. Ela imagina seus avós


trocando tudo o que tinham por um emprego na olaria.
Por que fariam isso? Ela tenta, com muito esforço, se
lembrar do rosto de seu pai. Penia continua a contar a
história...

— Viemos morar aqui porque não tínhamos dinheiro para


morar em outro lugar. Ainda era perto o bastante da
fábrica onde trabalhávamos. Ficamos aqui, neste morro,
porque dava para ir a pé para o trabalho. Seu pai e eu
vivíamos com muito pouco, mas aprendemos a levar a
vida. — Penia precisa recuperar o fôlego. Ela respira
lentamente, reorganiza seus pensamentos... e continua:
— Por isso, minha filha, é importante você arrumar um
emprego. Para sair daqui. Você precisa ter um bracelete
de Cronos, ganhar seu sustento honestamente, conhecer
um homem para ser seu marido...

— E acabar sem nada como a senhora, mãe? O papai


sumiu... Deve ter morrido na tal refinaria de petróleo
onde ele foi trabalhar... As provisões que ele mandava
não chegam mais! Há meses!

Penia ofega.
— De que adianta arrumar um emprego com bracelete?
A senhora foi descartada, mãe, e ninguém quer uma
velha cega cheia de dores nas juntas — Hyp não luta
contra as lágrimas que lhe escapam. — Eu passo cada
dia tentando mantê-la viva, do jeito que consigo...
Nenhum emprego paga o bastante por essas ervas, tá?
Roubei, sim!

Penia ofega, ofega, ofega. Cai sentada sob a janela.

— Ai, meus santos... — Hyp traz o bule. Pega o velho


caneco de cerâmica trincada e despeja ali mais um
pouco do líquido para a mãe inalar.

Penia inala o vapor da caneca e sente o calor descer pela


traqueia. Puxa o ar profundamente e então se lembra do
peso em seus pulmões. Apoia-se na filha para caminhar
até a cama escandalosa.

Hyp solta sua mãe lentamente sobre a cama.

— Descanse.

Na cabeça de Penia, as memórias se misturam. O pai de


Hyp, o trabalho na fábrica, carregar carvão para os
fornos, os roubos de Hyp, a dificuldade de respirar. Nada
anda muito bem. Ela fecha os olhos e adormece,
respirando melhor graças ao remédio preparado pela
filha.

Hyp retira o balde do fogãozinho e deixa o fogo acesso


para aquecer o interior da casa. Carrega o balde até a
cortina. Despe-se da calça e desamarra o pano que lhe
serve de bustiê. Suas costas vestem apenas as feridas
dos muitos tombos colecionados saltando muros e
telhados. Com um prato, tira água do balde e a faz
escorrer pelo corpo. As feridas vibram de ardor e alívio.
7

O edifício central da Sede da Guarda inspira


admiração e temor dos cidadãos de Nova Ascra. Em
seu jardim frontal, uma fonte circunda as estátuas de
Cronos, o Deus do Tempo, Nomos, o Deus da Lei, e Gaia,
a Deusa da Terra. As estátuas imortalizam o gesto de
Nomos e Gaia prestando respeito a Cronos, no acordo
que selou a paz na sociedade. “Pelo mérito se faz
justiça”, diz a inscrição sob a estátua.

Vista de cima, a Sede tem a forma de um hexágono, com


um grande anfiteatro ao centro. As janelas, verticalmente
longas, ocupam as laterais do edifício em uma única
linha, deixando claro que não há divisão de andares. Há
apenas o piso térreo, apesar de o edifício ser
majestosamente alto. A entrada da Sede é, por si
mesma, um arco de triunfo, cujas figuras esculpidas
contam as vitórias de Cronos contra deuses e mortais
rebeldes.

Axion, Dário e outros colegas aguardam no vestiário, em


silêncio. Sabem que Belerofonte, o guardião de prata
atacado pelos Anansis, está sendo atendido na
enfermaria. Os melhores médicos da cidade foram
encaminhados para lá. Além disso, desde o início da
tarde, Jasão, o guardião de ouro de Nova Ascra, está na
enfermaria conversando com Belerofonte. Todos os
guardiões de prata foram visitá-lo, também. Sem
nenhum superior disponível para lhes dar ordens ou
informações, cabe aos guardiões de ferro e bronze,
apenas, aguardar.

— Eles devem estar conversando sobre a operação desta


madrugada. No fim das contas, conseguimos proteger
quase toda a carga — diz Axion.

— Talvez... Mas não conseguimos proteger Belerofonte


dos ataques. Ele saiu muito ferido. Ele sempre foi um
guardião de prata diferente, nunca vi nenhum se meter
no confronto daquele jeito. Os outros guardiões de prata
só ficam dando ordens de um lugar seguro — diz Dário.

— Eu acho que eles deveriam pelo menos reconhecer


nosso trabalho. Belerofonte agiu como herói. E nós
também nos arriscamos muito...

— Você sempre fala de reconhecimento, Axion.

— Porque é importante. É assim que progredimos na


carreira.

— Nem sempre o reconhecimento vem na forma de uma


promoção. Veja, nós arriscamos nossas vidas para
manter a segurança da cidade e a opinião pública nunca
parece estar a nosso favor. Sempre que há uma
desordem, um assalto, um assassinato, as pessoas
reclamam que chegamos tarde demais. Se chegamos na
hora e pegamos o bandido, reclamam que somos muito
violentos — Dário olha para os colegas no vestiário,
todos eles tirando os capacetes, tomando banho ou
limpando ferimentos.

— É... — Axion suspira.

— Por isso, qualquer palavra de reconhecimento já


elevaria a moral do nosso pelotão — Dário olha para
Axion. — Guardiões são sedentos por reconhecimento.
Sempre foram.

— Mas o verdadeiro reconhecimento é a promoção.

— Não dá para contar com isso, Axion.

— A Lei de Cronos é justa, não é? Então a promoção virá.


Sinto que não falta muito.

Na enfermaria, o guardião de ouro cobra explicações de


Belerofonte. O objetivo da operação era deixar os
Anansis roubarem a comida. Mas, depois da intervenção
de Axion, os guardiões conseguiram recuperar quase
tudo. Belerofonte se esforçava para explicar o que
acontecera, mas o guardião de ouro não aceita que ele
tenha permitido que houvesse uma “vitória” na operação
que deveria ser uma “derrota”.

O resultado “vitorioso” da operação exige mudanças de


planos. É preciso que o guardião de ouro e os de prata
ajam da maneira como agiriam em uma operação bem-
sucedida. Os guardiões de bronze e de ferro não podem
nem sequer suspeitar de que o objetivo da operação
fosse fracassar. Isso poderia colocar em risco os planos
futuros.

Jasão, o guardião de ouro, escolhe o guardião de prata


Horcos para dar as notícias aos guardiões de baixa
patente. Horcos é hábil em dosar as palavras.

Horcos entra no vestiário lotado de guardiões de bronze


e de ferro, e arroja sua voz:

— O guardião Belerofonte está sendo atendido em nossa


enfermaria. Suas feridas parecem ter sido feitas por
obsidiana negra, uma pedra cortante, muito perigosa.

— Ele está bem? — pergunta Axion.

— Infelizmente, não. Os médicos avaliam que ele ficará


com sequelas da batalha.

— Ele voltará à ativa? — pergunta Dário.

— Não tenho informações oficiais sobre isso — responde


Horcos. — Mas ele nos trouxe boas notícias.

Horcos faz uma pequena pausa, passando os olhos pelos


guardiões e garantindo que todos estejam prestando
atenção. Então, continua:

— Dário e Axion, obrigado por vossos serviços nesta


madrugada. Graças a vós, impedimos que os prejuízos
fossem maiores. Conseguimos recuperar quase a
totalidade das provisões — Horcos olha para Axion e diz:
— Eu soube que você salvou a vida de Belerofonte.
Parabéns pelo trabalho.

Todos os guardiões prestam continência a Horcos. Axion


e Dário falam em uníssono:

— Fizemos apenas nosso dever, senhor.

Horcos mantém o olhar fixo sobre os dois e anuncia:

— Não vão embora. Hoje teremos uma cerimônia.

Os passos de Horcos ecoam solitários no vestiário


quando ele deixa o recinto. As vozes se misturam
novamente. Os guardiões sabem o que “cerimônia”
significa: alguém será promovido. Depois desses elogios
a Axion e Dário, os dois já se imaginam no palco da
cerimônia. As vozes no vestiário se animam, expressando
alegria e felicitações.

Axion sorri, discreto. “Meu plano de crescer e chegar a


guardião de ouro já começou a funcionar”, pensa.

Dário sobe em um banco, bate suas mãos de bronze


pedindo silêncio e projeta a voz:

— Obrigado, pessoal! Não sei se seremos promovidos ou


não, mas sei que não trabalhamos sozinhos. Nós
conseguimos isso juntos. Se um dia eu subir de patente,
com certeza farei um discurso demandando aos nossos
superiores o merecido reconhecimento aos parceiros que
lutaram conosco.
Dário estende a mão, convidando Axion a subir no banco
também. Esticando os braços em V e unindo as mãos,
Dário e Axion rugem como leões. Os colegas rugem
também.

— Dário! Axion! Dário! Axion!

Em meio aos gritos animalescos, Axion abraça o colega


com punhos cerrados, bate nas suas costas e diz:

— Obrigado, meu velho amigo.

— Apenas escute os mais experientes, Axion. Não quebre


a hierarquia e tudo vai dar certo, ok? — aconselha Dário.

Axion concorda, balançando a cabeça. Por um lado, está


arrependido de ter desconsiderado a hierarquia e
assumido o comando da tropa na luta contra os Anansis;
por outro, acha que era exatamente isso o que precisava
ser feito. Lembra de Belerofonte dizer que haveria uma
recompensa por ter feito aquilo. Mal pode esperar por
ela.

***

Um toque de corneta convoca os guardiões a se reunirem


no anfiteatro, ao centro do edifício.

Os guardiões descem as escadas que ladeiam as


arquibancadas de formato trapezoide, cujas arestas são
paralelas às paredes do edifício hexagonal. A hierarquia
também é obedecida na escolha dos lugares. Os
guardiões de bronze ocupam os lugares mais próximos
ao palco, seguidos pelos guardiões de ferro, nos lugares
mais distantes.

No palco, os doze guardiões de prata põem-se em pé,


desenhando um arco. Na ponta da esquerda, Belerofonte,
que lutou o combate da madrugada, segura o braço
direito ferido. Treme, com dificuldade para manter-se em
pé, pois sente dores por todo o corpo. Mas em pé
permanece, com o apoio de uma muleta.

O guardião de ouro, Jasão, sobe ao palco. Suas couraças


de ouro sobrepõem-se nas juntas; o tronco e o quadril
têm couraças que formam uma armadura bastante
imponente. Entalhes no peito, ombros e braços
rememoram vitórias e legitimam sua superioridade.

Os elmos, as armaduras e as armas também revelam a


hierarquia entre os guardiões. Os elmos e as armaduras
de guardiões de ferro e de bronze são padronizados,
quase não há distinções entre eles; quando há, são
símbolos que representam vitórias em batalhas. Mas os
elmos e armaduras dos guardiões de prata e de ouro são
todos diferentes entre si. Cada um parece contar uma
história diferente. Os rostos dos guardiões de prata ficam
pouco visíveis, pois há apenas estreitas aberturas para
olhos, nariz e boca. Do rosto do guardião de ouro, nada
se vê. Há apenas aberturas para que ele possa ver e
escutar o que está à sua volta; o restante é encoberto
pelo elmo elegantemente entalhado. Além disso,
escudos, martelos e armas de fogo usados pelos
guardiões de prata e de ouro são decorados com
entalhes que contam suas vitórias.

Moros, guardião de prata acostumado ao papel de


mestre de cerimônias, se aproxima da tribuna. Uma
grande concha acústica moldada em mármore, atrás da
tribuna, propaga o som para o anfiteatro. Ele fala com
eloquência:

— Guardiões de Nova Ascra! Saudamos com honras os


guardiões que, na madrugada de hoje, lutaram uma
difícil batalha para preservar as provisões de Gaia
destinadas aos cidadãos de Nova Ascra. Passo a palavra
a um guardião que lutou com bravura. Belerofonte,
assuma a tribuna, por favor.

Dois guardiões de ferro sobem ao palco para ajudar


Belerofonte a caminhar até a tribuna. Tremendo com as
dores, ele respira com dificuldade e faz força para
projetar sua voz:

— Respeitados guardiões de Nova Ascra, anuncio o fim


da minha carreira. Os ferimentos nesta última batalha
me incapacitaram para novos combates. Faço votos de
que lutem com garra, mas se cuidem, assim não
encerrarão sua carreira em uma idade em que ainda têm
muita energia para oferecer.

— Belerofonte desce da tribuna e cumprimenta


cabisbaixo o seu superior e os colegas de mesma
patente. Aplausos solenes o seguem. Deixa o anfiteatro,
ajudado pelos dois guardiões de bronze.
Moros volta à tribuna e anuncia:

— Dois outros guardiões foram peças-chave na operação


de proteção às provisões de nossa mãe Gaia e das leis de
nossa sociedade. Eles participaram da operação de
desmantelamento das lavouras ilegais que os Anansis
mantinham nas proximidades da nossa cidade. Agora, os
Anansis querem usurpar as provisões cultivadas e
vendidas legalmente. Porém, esses guardiões que agora
chamamos ajudaram a impedir que os Anansis tomassem
de nossos cidadãos o que lhes foi concedido pelos
deuses. Dário Kleos e Axion Nike, queiram subir ao palco.

Dário e Axion descem as escadas da arquibancada ao


som de aplausos metálicos de seus companheiros.
Sobem a pequena rampa ao lado do palco e se
posicionam à direita de Jasão, o guardião de ouro.

— Dário, dê um passo à frente — chama Jasão,


conduzindo Dário a um ponto em que o guardião de
bronze possa ver toda a plateia e que toda a plateia
possa vê-lo.

Jasão toca o bracelete de Cronos no antebraço de Dário.


Os fios de bronze do bracelete se convertem em fios de
prata. Outros fios prateados correm por seu braço
esquerdo, costas, pescoço e, peça por peça de sua
couraça, o bronze dá lugar à prata. A transformação
corre pelo corpo de Dário como um sopro gelado, que
espalha pelos seus membros. O frio corre-lhe
rapidamente pelo tronco e tinge suas pernas de prata. O
elmo de bronze se transforma em elmo de prata,
deixando pequenas aberturas pelas quais pouco se vê do
rosto de Dário. O tronco, que ainda era de carne, se
transforma. O uniforme se converte em uma armadura
prateada.

O frio insiste em tomar-lhe as entranhas, mas Dário


resiste. Jasão aperta-lhe o bracelete de Cronos,
pressionando-o para que as vísceras de Dário se
convertam em prata. Quase todas são convertidas. Mas o
coração ainda é de carne. Dário resiste. Treme. Tonteia.
Cai sobre o joelho direito, com o pé esquerdo ainda
plantado, e apoia as mãos sobre o joelho esquerdo,
buscando respirar e reerguer-se. Jasão, notando que a
cena pode se tornar um constrangimento perante a
plateia, põe-se em pé diante de Dário e estende as mãos
sobre o novo guardião de prata. Cria de improviso um
gesto de condecoração sobre seu subordinado ajoelhado.

— Erga-se — sussurra Jasão.

Dário se levanta.

— Saúdem nosso novo guardião de prata!

— O brado de Jasão é seguido de aplausos e urros


vibrantes dos guardiões entusiasmados.

Dário firma o olhar no horizonte. Parece olhar todos e


ninguém. Imóvel, recebe os gritos e aplausos dos
colegas.
Axion, ainda à lateral do palco, regozija-se da glória de
seu colega. Ele próprio trava uma batalha interna para
manter a postura disciplinada, sem expressar a
ansiedade pelo momento em que será promovido
também. Mas precisa aguardar mais um discurso.

— Com a palavra, Dário Kleos, guardião de prata —


anuncia Moros.

Dário se dirige à tribuna, acostumando-se com o novo


corpo de prata. Respira profundamente. Enfim, declara:

— Respeitados colegas, guardiões de Nova Ascra. É


realmente glorioso, após uma noite de dura batalha,
receber o reconhecimento de nossos superiores e
finalmente subir uma patente. Lutei, sim, com muita
firmeza, na batalha desta madrugada e em muitas outras
que antecederam — os olhos de Dário percorrem a
plateia e encontram seus companheiros de combate. Eles
sorriem e erguem os punhos em apoio. — E agora, como
guardião de prata, preservarei meu compromisso com a
Guarda de nossa cidade, protegendo as riquezas contra
aqueles que querem saquear e violar nossa justa Lei de
Cronos. Honrarei não só a guarda, mas Cronos, Nomos e
Gaia. E honrarei o meu próprio nome!

Um profundo silêncio se segue ao discurso. Dário


caminha até seu novo posto, na ponta esquerda do arco
de guardiões de prata.

Axion escuta sussurros vindos da plateia. É difícil


entender o que dizem. O entusiasmo dos colegas se foi.
Nada de urros e aplausos. A inquietude dos que lutaram
na madrugada denuncia: Dário não cumpriu a promessa
de fazer um discurso demandando dos superiores o
reconhecimento dos companheiros.

Entre Moros e Jasão, um murmúrio:

— O coração dele se converteu em prata? — pergunta


Moros.

— Não, ele resistiu — responde Jasão.

— Isso ainda pode ser corrigido com tempo e disciplina.


Um guardião de prata não pode ter coração mole.

Os sussurros na plateia dão lugar a conversas em tom


mais alto, mas ainda menos inteligíveis.

Jasão pede silêncio. Então, convoca:

— Axion, dê um passo à frente.

Os olhares se voltam para o guardião de ferro. Um


sussurro indiscreto não escapa aos ouvidos de Axion:
“Ainda tem o Axion. Será que ele se lembrará de nos
agradecer?”.

A atenção de Axion se dissipa: “O que aconteceu com


Dário? Por que ele esqueceu? Devo me posicionar no
palco como instrui Jasão. Não posso permitir que a nova
patente me faça esquecer de meus amigos. É agora.
Jasão está com a mão sobre meu ombro. Não dá para
prestar atenção ao que ele diz, preciso ensaiar o que vou
dizer. ‘Estimados companheiros, guardiões de Nova
Ascra...’”

— Obrigado por seu serviço, guardião de ferro — diz


Jasão, levando as mãos aos ombros de Axion.

Jasão ergue as mãos e aponta para as novas ombreiras


de ferro, a da esquerda gravada com uma insígnia de
luta honrada.

“Não vou discursar?”. Axion dá um passo atrás,


obedecendo ao gesto de Jasão. Os companheiros na
plateia conseguem notar sua palidez e seu desconsolo.

Axion discretamente olha para as próprias mãos. São de


ferro. Ainda discretamente, baixa-as e toca as pernas.
São de carne. “Apenas ganhei ombreiras novas”.

Moros sobe à tribuna para anunciar o fim da cerimônia.


Os guardiões se levantam e sobem as escadas do
anfiteatro, rumo às saídas, conversando e deixando o
bater de seus pés metálicos sobre as pedras das
arquibancadas ampliarem o ruído.

Dário desce do palco, seguindo os demais guardiões de


prata. Encerrada a cerimônia, todos os guardiões devem
voltar às suas atividades normais.

Axion sabe que não deve dirigir a palavra ao guardião de


ouro, pois isso quebraria a hierarquia. Mesmo assim,
decide perguntar:
— Guardião Jasão, o que fiz de errado? Por que não subi
de patente, mesmo tendo lutado de forma importante ao
lado de Dário e Belerofonte?

Jasão vira seu elmo dourado em direção a Axion.

— Jovem guardião, guarde suas ansiedades. Não é tão


simples assim subir de patente. Não há espaço para
todos. Você ainda não mostrou seu verdadeiro valor. Lute
com honra e muito compromisso com a Guarda, que o
reconhecimento virá.

— Sim, senhor. Obrigado, senhor — responde Axion,


mecanicamente.
8

O sol se põe. As fábricas produzem em ritmo


acelerado. Os guar­diões fazem revezamento de
turnos. Nesse horário há um pequeno aumento do
movimento na estoa, pois algumas pessoas compram
provisões para preparar o jantar.

Momus se divide entre a alegria de vender frutas aos


fregueses e a raiva da lentidão de Hormes para manter a
banca bem organizada.

— É assim que se organiza, viu? Precisa ser rápido e


fazer direito — Momus demonstra.

Hormes organiza as frutas com mais rapidez. Sente o


metal do bracelete de Cronos mecanizar seus braços. Os
movimentos se repetem e se tornam mais ágeis.

As sombras de Hormes e Momus se lançam sobre as


frutas. Uma terceira sombra, maior, se avizinha. Momus
guarda para si o espanto e cumprimenta, com a voz
treinada de um hábil vendedor:

— Boa tarde! Em que posso servi-lo, senhor?

— Eu gostaria de comprar algumas frutas — diz Dário.


Ele usa uma elegante túnica, que esconde seu corpo de
guardião. Assim, pode se misturar aos civis.
Dário põe sua mão esquerda sobre uma pequena tábua
ao lado da caixa de tomates e a mão direita sobre o
bracelete de Cronos. Fios prateados saem do bracelete,
entrelaçando-se no caminho até a palma da mão
esquerda. Quando Dário levanta a mão da tábua, há ali
uma moeda prateada.

Hormes recolhe as frutas apontadas por Dário: dois


abacaxis, dois cachos de bananas, cinco cachos de uva
Niágara, dez maçãs, alguns morangos, cajus, mirtilos,
tomates. Hormes busca sacolas de papel para guardar as
frutas.

— Espere, Hormes — pede Momus. — Não deixaremos


que um cliente especial leve suas provisões em sacolas
de papel.

Momus corre à banca de artesanato e traz um belo cesto


de palha trançada, no qual deposita as provisões
escolhidas por Dário.

— Pronto! Agora sim. Quero que você saia daqui com as


melhores provisões de nossa mãe Gaia e...

Dário sinaliza com a mão, pedindo a Momus que não


conclua o atendimento ainda. Às suas costas surge
Axion, vestindo um casaco de botões e calças que lhe
dão um aspecto civil.

— Sim, meu jovem, como posso ajudar?

— Eu gostaria de comprar provisões também.


Axion toca seu bracelete de Cronos, põe a mão esquerda
sobre a tábua e ali surgem seis moedas de ferro.

— Meia dúzia de batatas, três tomates e duas cenouras,


por favor.

Hormes coloca as provisões em um saco de papel e


entrega ao guardião de ferro. Momus oferece seu velho
sorriso metálico.

— Obrigado pela visita, cavalheiros — Momus dirige o


olhar a Dário. — Será um prazer recebê-los em nossa
banca novamente.

Os guardiões retribuem com um rápido acenar de


cabeça. Eles se afastam da banca de Momus. Dário passa
o cesto para Axion carregar. A conversa entre eles se
torna incompreensível com a distância.

Momus agora fala a Hormes com um tom paternal:

— Bom, meu jovem, tenho boas notícias. Você pode


achar que sou um chato com mania de organização...

— Não, patrão, não acho isso...

— Shhhh! Aprenda a escutar, Hormes!

Hormes se cala e acena positivamente com a cabeça,


sorrindo seu sorriso laboral.

— Pois bem, esse esforço todo de cuidar da forma de


expor as provisões foi recompensado. O administrador da
residência da família Symvasi ficou sabendo do nosso
trabalho e nos escolheu para sermos os organizadores
das provisões deles! — A voz de Momus vibra de alegria,
mas sem se exaltar, para não chamar a atenção dos
vizinhos.

Hormes apenas olha para o patrão com o habitual


sorriso.

— Você não entende, não é?

Hormes acena negativamente com a cabeça, sorrindo.

— Vamos subir na vida! Theceo Symvasi é o homem mais


poderoso de Nova Ascra! É o cliente mais importante que
poderíamos ter! — Momus se pega elevando
acidentalmente a voz. Abaixa a cabeça, como se isso
pudesse impedir outros de ouvirem o que está dizendo.
— Se não fizermos nenhuma besteira, eu poderei ser um
empreendedor de ouro e você... você... talvez algo de
bronze!

Para variar, Hormes sorri. Mas pensa que tem algo errado
nesse trabalho.

— Quer dizer que nosso trabalho vai ser apenas


organizar as frutas desse homem rico e nosso tempo vai
valer mais dinheiro?

— Sim! Vamos organizar frutas na decoração da casa dos


Symvasi, e belas mesas de banquetes, também.

— Não estou entendendo...


— Não será fácil, viu? Vamos trabalhar lá três dias por
semana. Temos que mostrar nosso valor. Se formos bons
no nosso trabalho, podemos organizar outras coisas mais
importantes, trabalhar lá todos os dias e sermos muito
bem pagos por isso. A família Symvasi gosta de ter tudo
em perfeita ordem para receber as visitas.

— Ahnnn...

— Amanhã não abriremos a frutaria. Será um grande dia!


Nada de cochilar em serviço, viu? Vamos colocar nossas
melhores roupas e seguir direto para a ilha da família
Symvasi.
9

F oi apenas mais um dia de trabalho no hospital. Arete


Nike fez tudo o que pôde, mas os medicamentos de
que aquela menina precisava eram caros, e os pais dela
não podiam pagar. Choraram um rio de lágrimas sobre o
corpo imóvel da filha. Houve também aquele homem que
teve o braço esquerdo amputado por não poder pagar o
cirurgião. Também aquele bebê, que escapou da morte
porque Arete deu a ele mais leite do que a quantidade
permitida por paciente. O chefe a repreendeu pela
desobediência.

Arete recebeu uma bronca de Paeon, o diretor do


hospital, por ela desperdiçar tempo preenchendo
prontuários de pacientes. Ela tentou explicar que aquelas
informações eram importantes para as enfermeiras do
próximo turno darem continuidade aos tratamentos. Para
Paeon, a eficiência era mais importante: Arete deveria
atender mais gente em menos tempo.

No hospital, a maioria dos médicos e enfermeiras tem


corações metálicos. Mas não Arete. Ela insiste em se
importar com a dor dos pacientes. Talvez por isso seja
conhecida por ter mãos suaves para aplicar injeções. Ela
é sempre chamada a lidar com os pacientes difíceis,
especialmente as crianças apavoradas por agulhas. Arete
é a única capaz de se lembrar das pessoas de quem
cuidou, quando as encontra nas ruas da cidade. Porém,
por ser muito desobediente, nunca será mais do que uma
enfermeira de ferro.

Foi apenas mais um dia de trabalho na fábrica. Sísifo


Nike apertava parafusos em uma esteira de produção
das Indústrias SYM. O que ele produzia, pouco importava.
Importava que apertasse os parafusos com a máxima
precisão. Importava que fizesse isso rápido. Importava
que reduzisse os movimentos ao mínimo possível.
Importava que, conforme suas habilidades melhorassem,
seus braços ficassem mais metálicos — e sua rapidez
aumentasse cada vez mais. Importava que suas horas ali
garantissem boas provisões de Gaia e uma moradia
confortável. Importava que o supervisor elogiasse
quando Sísifo trabalhasse mais rápido. Importava que, ao
soar do apito da fábrica, ele pudesse ir para casa.

Foi apenas mais um dia na vida de Oniro Nike. Saiu de


casa dizendo aos pais que iria procurar emprego. Ajudou
seu mestre a organizar o ateliê para, em troca, receber
aulas de pintura e escultura. Desenhou, pintou e
esculpiu. Procurou quem quisesse comprar as obras de
um artista inexperiente. Não encontrou. Fez favores à
sacerdotisa do Templo de Nomos em troca do almoço.
Andou até o centro da cidade.

Sentou-se às escadas do propileu, o grande pórtico que


marca a entrada para a ágora. Deixou seu quadro e sua
pequena escultura escorados nos degraus. Assistiu aos
navios atracarem no porto lá longe. Relaxou, sentindo o
mundo ao seu redor andar mais devagar. Nada
importava.

O sol se esconde no horizonte. Algo importa. Seu irmão,


guardião de ferro, logo estará em casa. É melhor correr e
chegar primeiro.

Oniro chega à sua casa ofegante e encontra Axion


carregando um saco de papel com batatas, tomates e
cenouras. Axion sempre dá uma lição de moral para o
irmão quando chega em casa. Mas hoje não diz nada.
Axion deixa o saco de papel sobre a mesa de jantar, vai
para o quarto, deita, dorme.

A rotina da casa se repete de domingo a domingo. Axion


dorme. Arete chega do hospital, emudecida, pega as
provisões que Axion deixa sobre a mesa e prepara o
jantar. Ela não consegue conversar com ninguém, pois
passa o dia falando com muitas pessoas. Pacientes
nervosos por causa das doenças que enfrentam. Parentes
nervosos porque temem pela vida dos doentes. Paeon
estava nervoso todos os dias, cobrando que Arete
trabalhasse mais rápido e fosse menos atenciosa com os
pacientes. Quase todos os médicos cobravam-lhe o
mesmo. Ela passava o dia inteiro conversando com
pessoas nervosas. Por isso, ao chegar em casa, ela busca
o silêncio enquanto cozinha.

Sísifo chega da fábrica louco para conversar, para


compensar o tempo que passara em silêncio apertando
parafusos. Acaba frustrado, pois a esposa precisa de
silêncio, o filho mais velho dorme da tarde à noite e o
mais novo nunca tem algo interessante a dizer. Então
Sísifo bebe aguardente e relaxa. Nada importa.

Oniro observa tudo. Sabe que Axion acordará na hora do


jantar. Depois do jantar, todos vão dormir. Axion sairá
próximo da meia-noite para o trabalho. Sísifo e Arete
sairão ao raiar do dia. Sobra somente a hora do jantar
para a família conversar.

— Então, filho, alguma novidade no trabalho? —


pergunta Sísifo.

— É... Sim. Hoje teve cerimônia. Dário foi promovido a


guardião de prata e eu recebi uma insígnia por luta
honrada. Foi o reconhecimento pelo trabalho que fiz na
noite passada. — Axion quase engasga ao falar do
“reconhecimento”.

— Parabéns, rapaz. Me enche de orgulho saber que você


põe ordem nas ruas.

Oniro mastiga a batata cozida. Arete, do outro lado da


mesa, assiste à conversa. Sísifo, com a cabeça abaixada,
olha para o mais novo pelo canto dos olhos. Oniro
aguarda.

— Viu, Oniro? Seu irmão fez um progresso na carreira.

— Ele não disse que subiu na carreira, não. Apenas


ganhou um enfeite na roupa. Ganhou um tapinha nas
costas também?

Axion cerra os punhos. Respira fundo. E solta:


— E você, ganhou o quê, hoje? Conta! Adoraríamos saber
o que você faz com o seu tempo.

— Fiz arte. Tenho futuro como pintor e escultor. Meu


tempo ainda não vale muito, mas...

— Mas vai ficar perdendo tempo nas ruas sem procurar


um emprego de verdade — interrompe o pai.

— Sísifo! — Arete rompe o próprio silêncio. Encara o


marido, esperando que ele compreenda o erro que
cometeu sem que ela precise apontar.

Mas Axion usa sua imunidade de filho preferido para não


deixar o assunto esfriar:

— É verdade, Oniro, você precisa parar de sonhar. A arte


é um mau uso do seu tempo. Você precisa nos ajudar a
conseguir boas provisões para a casa.

— Pois um dia eu serei um artista famoso e viverei muito


bem!

— Você vai acabar como um desses artistas perdidos que


passam o dia bebendo e fumando, sem achar rumo na
vida — Sísifo ignora a expressão raivosa de Arete. Ela o
belisca, mas Sísifo continua: — Que foi, mulher? Isso
precisa ser dito, sim! Quer ter um filho perdido? Um
sujeito que não vai ter onde cair morto?

— Escuta aqui, pai...


— Escuta você, Oniro! Eu estou dizendo isso porque me
preocupo contigo. Você precisa arrumar logo um
bracelete de Cronos, senão vai ficar catando migalhas
pelo resto da vida!

Oniro se levanta, colérico:

— Que vida, pai? Que vida? Vocês três passam o dia


tentando ganhar a vida, mas vocês nem vivem! Nós não
nos vemos o dia todo! Não conversamos! Vocês não têm
amigos. Não conhecemos nada fora de Nova Ascra! Isso
é viver? Trabalhar, jantar, dormir e trabalhar de novo?
Todos os dias do ano? Isso é viver?

Oniro se levanta da mesa e anda apressado para o seu


quarto. Não se interessa em ouvir uma resposta. Nem há
resposta. O silêncio domina a mesa por alguns instantes,
até Arete quebrá-lo.

— Conversa com ele, Axion. Tente acalmá-lo — pede


Arete.

Axion entra no quarto. Está escuro, mas ele caminha


como se enxergasse. Axion se senta em sua cama, ao
lado da cama do irmão. Oniro cobre a cabeça com o
travesseiro.

— Oniro, não adianta ficar assim. Fugir da verdade não


vai ajudá-lo a enfrentar a vida. A vida é dura, por isso,
precisamos trabalhar o tempo todo.
— Vocês acham que eu vivo errado, mas vocês não são
felizes nos seus trabalhos.

— Mas você nem teria uma cama para se deitar se não


fosse por nós, os “infelizes” desta casa. No mínimo, seja
grato.

Oniro silencia.

Axion respira. Continua a falar.

— Todo trabalho é honrado. Bem, nem todo trabalho...


Nosso pai sempre diz que “vendedor” é uma profissão
que não deveria existir. Eles ficam o dia todo com
aqueles sorrisos falsos, empurrando o que não queremos
comprar. Mas existem muitos trabalhos que fazem bem
para a sociedade. Por isso escolhi ser guardião.

— E eu quero ser artista plástico. Qual é o problema


disso? Quero fazer algo bonito para as pessoas. Eu não
posso desistir da minha vocação.

— Essa coisa de talento, vocação, sonho, é muito bonita


quando somos crianças, Oniro, mas a realidade é
diferente. Na realidade, fazemos algo porque é
necessário, não porque desejamos. Ter um trabalho com
bracelete é o melhor para você.

— Esquece, Axion. Eu vivo melhor que vocês, mesmo que


vocês achem errado. Eu tenho tempo para pensar e para
fazer coisas de que gosto. Vocês passam o dia cumprindo
ordens. Eu acho que tem alguma coisa errada no jeito
como vocês vivem.

— Tá, vai pensando assim. — Axion percebe que é inútil


argumentar. — Um dia você vai entender o que estamos
tentando te dizer. Agora, preciso dormir. Daqui a pouco
dá meia-noite e tenho que estar no trabalho.
10

A s nuvens densas e cor de cobre do centro de Nova


Ascra ficam para trás. Elas dão lugar a um céu
azulado de nuvens brancas que Momus e Hormes
somente haviam visto em pinturas. Megali Axia é um
bairro diferente de tudo o que eles já viram.

Árvores podadas e enfileiradas às margens das calçadas


dão ao lugar um aspecto de organização que agrada os
olhos de Momus. Jardineiros de ferro e de bronze
ocupam-se de podar, regar e adubar.

— Todo o resto da cidade deveria ser assim — diz


Momus, dirigindo seu automóvel pelo boulevard central
de Megali Axia.

— Os ricos gostam mesmo de ter quem organize as


coisas para eles — observa Hormes –, mas pedir para
organizar as frutas... Achei um exagero! Esse senhor
Symvasi deve ser muito rico para poder gastar dinheiro
com uma coisa assim.

— Isso não é fantástico? Este é o nosso futuro:


especialistas em organização! Servindo aos ricos,
ganharemos muito mais dinheiro do que servindo àquela
gentinha que compra na estoa.
Momus não consegue conter sua alegria. Mas esconde
uma terrível dor em seu íntimo: seu automóvel apresenta
imperfeições imperdoáveis na lataria. Arranhões,
amassados e pequenos sinais de ferrugem pareceriam
imperceptíveis aos colegas da estoa, mas são facilmente
notados diante dos automóveis reluzentes de Megali
Axia. “Um dia serei empreendedor de ouro e poderei
manter um carro sempre limpo e encerado, sem ter que
carregar caixas ou me sujar no caminho da estoa”, pensa
Momus.

Quando Hormes e Momus se acostumam com a


opulência das primeiras casas começam a aparecer
casas ainda mais opulentas, suntuosas, ostentadoras.
Nunca tinham visto residências assim. Eles começam a
se indagar como será a casa da família Symvasi.

O boulevard principal do bairro nobre termina em uma


ponte. Uma enorme abóboda azul se destaca ao longe,
sobre um castelo, em uma ilha. Aquele lugar coincide
com o endereço que Momus recebera.

O automóvel imperfeito de Momus atravessa a longa


ponte de pedra. Antes que possam entrar na ilha,
precisam passar por um portão fortemente vigiado.
Adiante, na entrada, há um caminhão parado,
carregando serviçais na carroceria.

Hormes observa. Vê um guardião de prata ler um


documento entregue pelo motorista do caminhão. Um
guardião de bronze sobe à carroceria e conta quantas
pessoas há ali dentro. Faz um sinal positivo para o
guardião de prata. O caminhão é autorizado a entrar.

Os guardiões à entrada pedem que Momus apresente


uma prova de que foi convidado pela família Symvasi a
entrar na ilha. Momus apresenta uma carta com selo de
ouro. O guardião de prata lê a carta e ordena a Momus
que conduza seu automóvel pela pista que contorna a
ilha e leva à entrada de serviço do castelo.

Momus segue o caminho, deleitando-se com o jardim


meticulosamente podado, enquanto Hormes se admira
com o castelo de engenhosa arquitetura, construído com
enormes peças de mármore impecavelmente
encaixadas. Ao redor do jardim frontal, colunas de
mármore sustentam vasos de plantas que se regam de
raios do sol. Os pontos de luz refletidos no mar saúdam a
suntuosa construção. Atrás da ilha, navios a vapor
agitam as águas azuis que banham o arquipélago de
Megali Axia. Castelos sobre as verdes ilhas disputam
entre si um distante e silencioso concurso de beleza
arquitetônica.

Um guardião de bronze orienta Momus a estacionar


longe dos caminhões que já ocupam todo o espaço em
frente à porta de serviço. Três guardiões de ferro retiram
caixas de madeira da carroceria de um deles e as levam
para o interior do castelo.

Um homem dourado, de postura notavelmente ereta,


vestindo roupa dourada de linhas retas, aguarda Momus
e Hormes. Ele se apresenta como Ganimedes.
— Obrigado por terem vindo. Recebi ótimas referências
sobre vocês — diz o homem dourado. — Venham comigo,
vou explicar o trabalho a ser feito.

— Ele é o administrador da residência da família —


sussurra Momus para Hormes. — Até hoje me pergunto
como ele ficou sabendo de nosso trabalho na estoa. Ele
nunca esteve lá.

— Alguém deve ter contado a ele — sussurra Hormes de


volta.

— Por isso é importante ter boa reputação — ensina


Momus.

Momus e Hormes seguem o administrador até o salão


principal. O chão reluz como espelho, em quadrados de
mármore branco e preto ladeados por um padrão de
labirinto grego quadrangular. As colunas são altas o
bastante para se imaginar que um deus moraria ali. A luz
do sol entra em abundância por janelas de vidro azulado.
Um enorme relógio de pêndulo, com ponteiros e números
de ouro, domina o centro do salão.

— Nosso imponentíssimo patrão faz questão de exibir


fartura em sua casa. Os convidados sempre verão
provisões de nossa mãe Gaia em todos os pontos do
salão, nos corredores, banheiros, enfim, em todos os
cômodos — Ganimedes aponta para a mesa central. —
Queremos que vocês organizem as provisões, dando um
aspecto de... perfeição. Em seguida, quero que
organizem as frutas que deixamos no jardim, onde nosso
imponentíssimo patrão gosta de descansar.

— Sim, senhor! — Momus responde vigorosamente.

— O senhor escolheu os melhores de Nova Ascra —


Hormes emenda, mas Momus leva o indicador à boca,
pedindo ao jovem que se cale. O rapaz precisa aprender
a respeitar a hierarquia na comunicação. Afinal, Momus
ainda é o chefe de Hormes, mesmo no novo trabalho.

— Poderíamos conhecer o nosso patrão, o senhor Theceo


Symvasi? — pergunta Momus.

— Podem, sim, mas esperem um pouco. O


imponentíssimo está ocupado em conversa com sua
filha. Nunca é bom interrompê-los.

— Sim, senhor. Não vamos interromper.

Através da porta lateral do salão, vencido o brilho do sol


refletido no mar, vê-se Theceo Symvasi no jardim. Está
sentado em uma cadeira branca, com o lado esquerdo
voltado para a casa, de modo que possa observar a
movimentação da chegada das provisões e o trabalho
dos organizadores. À sua frente, uma mesa com um bule
de chá fumegante. Copos, xícaras, pratos e talheres
refletem o sol.

À direita de Theceo, as esparsas ilhas de Megali Axia


despontam por detrás do brilho da água. Nuvens brancas
atravessam o céu azul, vagarosamente.
Ao outro lado da mesa, um chapéu redondo figura sobre
uma silhueta indiscutivelmente feminina. Ela está de
costas para a casa; não se vê o seu rosto. Nota-se que
ela tem um quadril largo e braços gordinhos. Ela veste
um casaco de couro fino, calças e botas para cavalgar,
feitos sob medida.

Pode-se ouvir a conversa dos dois.

— Não é justo! Não é justo mesmo, pai! Por que as leis


são diferentes para nós? Por que não podemos votar? —
reclama a jovem.

— Porque as mulheres nunca decidem de forma racional.


Jogaríamos no lixo séculos de evolução civilizatória se
deixássemos que as mulheres tomassem decisões —
Theceo gira uma colher na xícara de chá.

— Que absurdo! O senhor não pode falar uma coisa


dessas. Isso nunca foi tentado!

— Ainda bem. Já pensou se vocês escolhessem o prefeito


da cidade? — Theceo leva a xícara à boca, mas não
bebe; deixa apenas o cheiro frutado amimar suas
narinas. — Acabariam escolhendo uma pessoa
despreparada, que não enxerga as nossas prioridades —
ele finalmente sorve o chá, em deleite.

— Eu não quero apenas votar! Eu quero poder me


candidatar a ser prefeita, e qualquer mulher também
deveria poder!
Theceo engasga, engasga. O chá lhe foge pelas narinas.

— O que é isso, minha filha! Escute o absurdo que você


mesma está dizendo! Se você fosse prefeita, o que faria?
Criaria uma multa para quem não penteia o cabelo?
Bom, talvez isso tirasse muita gente feia de circulação...
O que mais? Mandaria as funcionárias das fábricas
pintarem as unhas?

A filha de Theceo se levanta bruscamente e vira,


voltando sua face ao castelo. Hormes, que passava pela
calçada do jardim carregando uma bandeja de frutas
metodicamente dispostas, hipnotiza-se. Sob o chapéu
redondo, escorrem cabelos negros ondulados, alinhados
com perfeição. A jovem tem olhos castanhos que exalam
doçura, mesmo cortinados por uma expressão zangada.
Seus lábios têm um rosado pouco comum. O casaco de
couro e a calça são firmemente atados por fivelas
douradas. Fios de ouro correm pelas mangas do casaco,
em padrões curvos que poucas mãos saberiam fazer. O
reluzente entalhe da pulseira dourada em seu braço
esquerdo homenageia Cronos. A bota de salto alto com
detalhes dourados completa a visão fascinante. Mesmo
que pareça pronta para cavalgar, ela tem brincos e colar
brilhantes.

Mãos em riste, ela protesta.

— Eu não sou uma mulher fútil assim! Não é justo que as


mulheres não possam trabalhar.
— Mulheres como você não precisam trabalhar porque
têm pais ou maridos que ganham o bastante para
sustentá-las — Theceo olha diretamente para a filha,
desafiando-a. Mas resolve mostrar um argumento que
atenue a briga. — Minha fábrica emprega muitas
mulheres. Elas são boas em tarefas repetitivas, e a renda
delas ajuda em casa.

— Tarefas repetitivas? Só isso? — ela fica ainda mais


irritada. — Nós não podemos escolher se viremos ao
mundo como homens ou mulheres. Não é justo que isso
nos amarre pela vida toda a tarefas menos importantes.
Temos o direito de decidir sobre nossos destinos, tanto
quanto os homens.

— É a vontade dos deuses. Alguns vêm como homens,


outros... como mulheres. É natural que os homens
tomem as grandes decisões. Pergunte a qualquer um.

A jovem expira.

— Ei, você! — Ela chama o sorridente rapaz que carrega


uma bandeja de frutas.

— Eu? — pergunta Hormes, conferindo se havia mais


alguém ali perto que pudesse ter sido chamado pela filha
de Theceo.

— Sim, você! Você acha que as mulheres tomariam


decisões ruins se pudessem votar?
— Sim! Digo... Não! Decisões ruins? Não! Mulheres
tomam boas decisões — diz Hormes, sorrindo seu sorriso
laboral.

A jovem nota que o rapaz está abobado. Suspira. Pensa


em algo para dizer.

— Viu? Há aqui um homem que acha que as mulheres


podem votar, e que nós tomaríamos boas decisões.

— Mas ele é só um serviçal...

— Você disse para eu perguntar para qualquer um. Ele é


qualquer um — diz a filha de Theceo.

— Isso, eu sou qualquer um! Mas hein?! — Hormes sente


as mãos de Momus puxando-o para trás.

Theceo segura o riso. Aquele moleque de sorriso bobo foi


um bom palhaço para distraí-lo.

— Desculpe, impotentíssimo senhor Symvasi — diz


Momus, sem conseguir encarar Theceo. — Na minha
distração, esse rapaz se meteu em sua conversa. Ele
precisa aprender o lugar dele. Não acontecerá de novo.

— Fala-se “imponentíssimo”, não “impotentíssimo” —


Theceo diz com firmeza para Momus, ainda escondendo
o riso no íntimo. — Desse jeito você me cria problemas...

— Desculpe, mil desculpas, impotentíssimo — insiste


Momus, cada vez mais desconcertado.
— Chame-me apenas de “meu patrão”. Por Cronos,
nunca pensei que esse tratamento pudesse ser distorcido
assim...

— Sim, meu patrão, desculpe, não vai acontecer de novo


— diz Momus sem respirar, puxando Hormes pelo braço.

Hormes sorri para a jovem, torcendo o pescoço para vê-


la, enquanto carrega a bandeja a passos desengonçados,
empurrado pelo chefe. Ela acha graça.

Momus empurra Hormes até a cozinha.

— Você enlouqueceu? O senhor Ganimedes deixou claro


que não era para se meter na conversa do patrão com a
filha dele! E foi a primeira coisa que você fez!!!

— Ma-ma-ma-mas... Foi ela que pa-puxou assunto...

— Não interessa! Você tem que cumprir as ordens! Você


deveria dar graças aos deuses por ter um trabalho. Um
outro deslize desses pode nos colocar na rua. Aí, adeus
chance de ganhar ouro.

— Chefe...

— Se você fizer algo assim de novo, eu te descarto. Virei


trabalhar aqui sozinho.

Hormes sorri, mesmo sem querer.

***
No final da tarde, a filha de Theceo percorre os jardins,
apressada. Olha para os lados. Entra pela enorme porta
lateral da casa. Suas botas chiam no chão de mármore.

Da sala ela vê, na porta da cozinha, Momus conversando


com Ganimedes. Pelas poucas palavras que ela consegue
escutar, somadas à postura de Momus, conclui que ele
está se desculpando. Ela também vê Hormes no fundo da
cozinha, organizando uma prateleira de frutas.

Ela sai pela porta lateral, contorna o castelo e olha pela


porta da cozinha reservada aos serviçais. Chama Hormes
com os dedos.

Hormes aponta para si mesmo e pergunta, sem emitir


som: “eu?”. Ele olha para os lados, torcendo para que
desta vez ela esteja chamando outra pessoa.

Ela responde “sim”, apenas balançando a cabeça.

Hormes olha para Momus conversando com o


administrador. Ele se lembra do que Momus costuma
dizer: “Eu tenho um olho na nuca”. Por isso é tão difícil
esconder algo do chefe.

Hormes olha para a filha de Theceo, põe-se de costas


para Momus e gesticula com a mão direita em frente ao
peito: “Não... Meu chefe... Vai me degolar”.

A moça afrouxa os ombros e deixa os braços caírem,


desapontada.

Pensa.
Aponta para a prateleira de frutas e pede, sem emitir
voz, “maçã”. Aponta para si mesma e diz, em silêncio:
“Traga para mim”.

Hormes obedece. Isso ele não poderia descumprir.

Quando Hormes chega à porta, a moça já caminhara até


a esquina do castelo. O rapaz caminha até lá e oferece a
maçã. A jovem não pega a maçã; deixa Hormes com o
braço esquerdo estendido, como se estivesse apenas
dando banho de sol na fruta. Ela diz:

— Você foi corajoso ao falar comigo e com meu pai hoje.


Obrigada.

Hormes ensaia algumas palavras. Ela põe o dedo


indicador na boca dele, calando-o. A moça põe sua mão
esquerda sobre a mão vazia de Hormes. Com a outra
mão, ela toca a pulseira em seu braço esquerdo.

Fios de ouro percorrem a mão esquerda da jovem,


entrelaçando-se, até formar uma luva com rendas
douradas. Os fios de ouro correm rumo ao vão entre a
mão dela e a de Hormes. Surge, ali, uma moeda de ouro.
Hormes a segura.

— Eu não posso aceitar, é mais do que um mês inteiro de


trabalho — diz Hormes, esforçando-se para manter a voz
baixa.

— Não gaste, guarde contigo. Assim, você poderá vir me


visitar. Basta mostrar a moeda para os guardiões na
entrada. Pode vir sem o seu chefe.

— A filha de Theceo pressiona a moeda contra a mão de


Hormes, num gesto que, claramente, pede a ele que não
recuse o presente. Hormes sente o toque suave dos
dedos da moça. Ela tem mãozinhas pequenas, delicadas,
como as de alguém que ele já tinha sentido antes.

Hormes agradece em silêncio. Lê a inscrição na moeda:


Diceosine Symvasi. Esse é o nome dela. Diceosine...
Dice... Será ela?

— Era você lá na estoa. Dirce!

— Shhhh! — ela pede discrição. — Sim, era eu.

— Achei que você voltaria para lá...

— Eu ouvi Ganimedes dizer que precisava de alguém


para organizar aqui as provisões de Gaia, então eu disse
que “ouvira dizer” que havia na estoa uma banca de
frutas muito bem organizada. Eu o convenci a trazer
vocês dois para cá.

— Por quê?

— Porque talvez assim eu consiga ajudá-lo. E assim nos


veremos mais vezes também — diz ela, sorrindo e
piscando o olho esquerdo para Hormes. — Ainda tenho o
robô que você me deu.

Hormes sorri. Ele põe a moeda no bolso.


Momus aparece na porta dos serviçais e diz, com a
autoridade de chefe:

— Hormes, vamos!

Hormes olha para trás, sorrindo. Preocupa-se por seu


chefe tê-lo visto conversando com a jovem patroa.
Hormes olha para... ela se foi.

— Hormes, o que está fazendo com essa maçã aí na


mão? Será que eu tenho que ensinar tudo a você? Nós
não podemos comer as provisões que são destinadas aos
nossos patrões. Elas custam muito mais caro do que
podemos pagar — diz Momus. — Ponha a maçã de volta
no lugar e vamos embora.
11

H yp caminha, como não costuma fazer. Seus pés


tocam o chão. Ela não precisa saltar o alambrado,
pois no ferro-velho ela é bem conhecida. Próximo à casa
de Babu, ao redor de uma fogueira, ao som de tambores
acelerados, gente de pele escura acena e a saúda.
Apenas a fogueira e a lua iluminam o lugar.

Ela está acostumada a ver as pessoas formarem uma


roda em volta da fogueira para contar histórias, dançar,
chamar orixás, jogar capoeira. Mas hoje há uma segunda
roda, ao redor de uma estranha estátua de bronze sem
cabeça. Crianças rodam uma manivela na base e agulhas
pinicam a estátua.

— Esse orixá eu não conheço — diz ela ao velho Babu,


que afaga o cão Marabô.

Babu ri.

— Um jovem de cara de ferro fez isso aí. Ele chamou


essa máquina de “alfaiate autômato”. A estátua fica
parada, como um manequim, e as agulhas costuram uma
roupa no corpo. Achei muito inteligente — Babu passa a
mão esquerda sob uma orelha de seu cão. — Também fez
essa perna mecânica para o Marabô.
— Ainda bem que não é vodu. Seria uma tortura de
muitas agulhas.

Babu ri de novo.

— Minha bichinha, você está cheia de graça hoje.

Hyp não se sente assim. Ela sabe que a noite não será
fácil.

Biohó, um Anansi de longas tranças no cabelo, dá um


toque no atabaque. Sadiki toma um berimbau e bate
ritmadamente com a vareta no arame, pedindo à roda
em volta da fogueira que se abra para um jogo de
capoeira. Ele olha fixamente para Hyp, chamando-a sem
palavras, para dar os primeiros passos no centro da roda.

Hyp entrelaça os dedos e estica os braços acima da


cabeça. Sacode-se. Entra na roda em um forte impulso.
Salta, gira com as pernas esticadas, os pés
esporadicamente tocando o chão. Um enorme salto com
giro triplo no ar invoca a admiração que os presentes já
tinham por ela.

Outra jovem passa suavemente às bordas da roda,


abrindo passagem entre as pessoas que batiam palmas
no ritmo da música. Cassiopeia conquista respeito antes
mesmo de entrar na roda. Além da calça branca e do top
marrom-escuro, veste apenas um colar e uma pulseira de
miçangas — o que basta para que a “enriqueça” em
comparação a Hyp. Ela paralisa os homens apenas com o
olhar e desperta inveja das mulheres com sua sinuosa
silhueta.

Cassiopeia assiste à aterrisagem de Hyp e, numa fração


de segundo, se convida a entrar na roda. Hyp recua, pé
ante pé, para abrir espaço. As duas se cumprimentam,
curvando-se até os olhares se encontrarem à altura do
quadril.

Hyp salta por cima, Cassiopeia rola por baixo. Cassiopeia


gira com um chute alto, Hyp esquiva-se astutamente. A
sincronia dos movimentos das duas revela uma
intimidade de muitos anos. Golpes e esquivas não
precisam ser ensaiados. Elas jogam e encantam a
plateia.

No que o berimbau e os atabaques aceleram, as duas


giram com chutes ágeis, passando o pé a menos de um
palmo do rosto da oponente. Giram, giram, giram. Os pés
ventilam os rostos opostos. Os atabaques e o berimbau
desaceleram. As duas desaceleram. A música para. As
duas param. Todos aplaudem.

Como manda a tradição, uma das duas deve deixar a


roda para que outro desafiante entre para jogar. Jitu, alto,
forte e com pequenas tranças no cabelo, encara Hyp,
pedindo gentilmente para que ela lhe conceda a vez. Hyp
recua até a borda da roda. Jitu entra e curva-se para
cumprimentar Cassiopeia, convidando-a para jogar com
ele.
Cassiopeia interrompe sua ginga e caminha até a borda,
ignorando-o. Jitu ergue mãos e ombros, sem entender. O
berimbau de Sadiki e o atabaque de Biohó param. O
magricelo Hakim entra na roda e cumprimenta o
“gigante” diante dele. Jitu abaixa-se bastante para
alcançar a altura dos olhos de Hakim e o cumprimenta. O
berimbau de Sadiki recomeça. As palmas seguem o ritmo
dos atabaques e da ginga dos desafiantes.

Fora da roda de capoeira, Hyp baixa as mãos até a água


de um grande tanque. Molha generosamente o rosto e
bebe a água fresca que vem à sua boca. Cassiopeia, com
uma mão só, salpica gotas de água em sua nuca,
deixando-as escorrer pelas costas. Em um segundo
movimento, com a mesma mão, leva água à boca, e
deixa algumas gotas correrem por entre seus seios, só
para divertir-se com a expressão abobada dos homens
que a observam.

— Você é incrível, princesa.

Cassiopeia não está elogiando. Hyp sabe disso.

— Todos a reconhecem como líder — Cassiopeia continua


–, mas você não faz o mínimo pelos seus seguidores.
Você foi muito fraca ontem à noite, pensando...

— O que você quer, hein, Cassiopeia? Você quer que eu


leve os Anansis a se machucarem mais do que se
machucaram ontem? — a voz de Hyp sai rasgada de
raiva. — Chegou uma hora que eu tive que decidir por
recuar!
— Não precisa dizer, querida. Eu estava lá — Cassiopeia
paralisa seu rosto para ocultar o largo sorriso que sente
na alma. — Foi uma incrível coincidência que seu recuo
aconteceu logo que você conseguiu o que queria, não é?
Você saiu de lá carregando alguma coisa. Você mesma
falou que precisávamos de comida na mesa...

— Outros Anansis conseguiram levar algumas coisas nas


mãos — Hyp retruca.

— Deu no mesmo, não é? O que pegamos ontem não deu


nem para o café da manhã — Cassiopeia corre os olhos
pelos olhares daqueles que pararam a capoeira para
ouvir a discussão. — E você? O que pegou? Algo valioso?

— Era um remédio para minha mãe! Ela não podia passar


mais um dia sem aquilo!

— Você é uma líder fraca, Hyp — Cassiopeia continua a


açoitar com palavras. — Devíamos estar roubando ouro.
Um pouco de ouro melhoraria a vida de todos nós.

— Você esqueceu do que Babu nos ensinou? Ouro


roubado atrai castigos! Nós plantamos nossa comida
bem aqui, nesta terra! — Hyp eleva a voz.

— Plantávamos! Esqueceu que os guardiões queimaram


nossas lavouras? — protesta Cassiopeia.

Não, Hyp não esquecera. Ela viu o líder Zumbu morrer na


“noite que se fez dia”. Palami perdeu muito mais do que
a lavoura. Sem Zumbu, perdeu o rumo.
Cassiopeia espera um pouco. Pensa. Decide dizer algo
menos agressivo para não perder a simpatia das pessoas
que estão ficando interessadas na conversa.

— Nem todo mundo quer essa vida de pequeno


agricultor, Hyp. Eu não quero viver assim. Olha para a
cidade! Eles têm tecnologia, roupas elegantes, comida
chique... O dinheiro torna nossa vida melhor! Não foi por
isso que o velho Babu criou o ferro-velho?

— Não foi, não! Foi porque os homens de metal queriam


encher o terreno de lixo! Babu conseguiu que só ferro-
velho viesse para cá — diz Hyp. — Palami ainda está
reconstruindo a lavoura, tudo vai voltar ao normal.

— Esqueça esse sonho maluco! Não dá para voltar no


tempo! Veja, o Babu vende ferro-velho, consegue
dinheiro, compra coisas na cidade... No fundo, já entrou
no esquema.

— Ele não teve escolha! A cidade cresceu ao redor do


quilombo e...

— E já faz anos que estamos dentro da cidade! Acorda,


princesa, nem seus pais acreditavam na lavoura quando
vieram morar aqui. Sua mãe trabalhou em fábricas. Aliás,
nem você ajuda na plantação, não é? Só sabe falar. E o
seu pai largou a família para ir trabalhar numa fábrica
distante...

O pé esquerdo de Hyp acerta Cassiopeia na barriga. Hyp


gira no ar. Cassiopeia desvia de um chute que viria ao
seu rosto, um soco, uma rasteira. Hyp pensa... em nada.
Apenas explode em raiva, arremessando algumas
lágrimas com o impulso de seus giros.

Sadiki se coloca diante de Hyp, recebendo firmemente


um chute na lateral do tórax. Ele segura a perna de Hyp
e olha em seus olhos. Ela se acalma e silencia. Sadiki se
vira para ver Cassiopeia e entra na discussão,
defendendo a posição de Hyp:

— NÃO ROUBAMOS DINHEIRO! Você sabe bem disso,


Cassiopeia! Isso aumentaria a fúria dos guardiões contra
Palami.

— Ninguém pediu sua opinião! — Osebo, um rapaz que


tocava atabaques, deixa a roda de capoeira para se
intrometer na conversa.

Cassiopeia sorri, fitando Osebo e agradecendo a lealdade


do rapaz.

Sussurros e murmúrios se espalham. Os Anansis se


dividem entre os que são leais a Hyp e os que preferem
Cassiopeia. Os sons incompreensíveis viram falas. As
falas se misturam, mas não se entendem. Surgem gritos.

Marabô uiva, como se pedisse respeito. Logo percebem


que alguém se aproxima. Alguém que não é dali. O
estranho usa um capacete de couro, óculos de
motociclista, um sobretudo com muitos bolsos e carrega
uma mochila esquisita.
— Oi, eu queria falar com o dono do ferro-velho — diz o
recém-chegado, tímido, com seu sorriso metálico.

Jitu aponta Babu, alheio à rixa, sentado próximo ao


alfaiate autômato, observando as crianças que giram a
manivela. O jovem de rosto metálico atravessa o
caminho entre a fogueira, as rivais e os espectadores. A
briga de Hyp e Cassiopeia ganha uma inesperada trégua.

Ninguém ali tem partes de metal no corpo. Somente o


visitante. Muitos olhares seguem os passos do estranho.
Quem é ele?

— Boa noite, meu jovem — Babu reconhece Hormes.

— Boa noite. Hoje posso pagar.

Hormes estende a mão esquerda sobre a mão direita de


Babu. Ele toca o bracelete de Cronos e fios de ferro
correm por cima do seu braço esquerdo. Vinte moedas de
ferro aparecem sobre a mão direita de Babu.

— Isso é tudo que você tem, meu rapaz?

— É sim, senhor.

— Mas eu pedi cinquenta moedas de ferro — argumenta


o velho. — Ainda não posso deixar que você leve sua
máquina daqui. Você não tem mais nada?

— Não tenho, Babu. Pode me dar um desconto?


Cassiopeia observa. Ela sabe que o rapaz está mentindo.
Ela tem um faro infalível para a mentira, pois ela mesma
sabe mentir muito bem.

— Eu acho que você tem mais alguma coisa aí, cara de


ferro...

Hormes espanta-se com a beleza de Cassiopeia e com a


forma direta como ela fala. O rapaz recolhe
instintivamente sua mochila-Lampião para trás do corpo.
Cassiopeia fica mais curiosa e desafia:

— Mostre para mim o que você tem na mochila.

Cassiopeia nota que Hormes se retrai, desconfiado. Ela


sorri, fita-o por baixo das pálpebras abaixadas, deixa a
mão direita correr pelo pescoço, gira uma miçanga de
seu colar com a ponta dos dedos e diz:

— Aposto que é algo que nunca vi na vida.

Hormes não resiste aos encantos de Cassiopeia. Põe a


mochila-Lampião no chão e abre um bolso de couro
cuidadosamente. Pega a moeda de ouro que a filha de
Theceo lhe deu. Antes que abrisse a mão para mostrar,
Cassiopeia já percebia o reluzir do ouro por entre os
dedos de Hormes.

Ela se aproxima com a esperteza de uma serpente.

— Posso ver?

Hormes deixa que Cassiopeia pegue a moeda de ouro.


— Uau! Vejam só! Esse cara de ferro conhece uma mina
de ouro! Aqui diz “Diceosine Symvasi”. Ele é amigo de
gente importante, hein?

Cassiopeia se mistura à massa de pessoas escuras de


calças brancas, mostrando-lhes algo que nunca viram.
Hormes se preocupa, sem apagar o sorriso do rosto.

— Com licença! Moça! Devolve a minha moeda! — diz,


tentando não se exaltar para que ela não pense que ele a
está chamando de ladra.

Ele atravessa com dificuldade a maré de gente e fica


frente a frente com Cassiopeia. Ela estica o braço direito
para cima e mostra a moeda, deixando-a fora do alcance
de Hormes.

— Aqui está — ela salta, girando para trás. — Vem pegar!

Os observadores abrem uma roda. Hormes corre


desesperadamente atrás de Cassiopeia. Ela salta, rola,
rodopia e faz tudo que ele não sabe fazer. Esquiva-se
com humilhante facilidade. O rapaz ofega e cai de
joelhos.

Cassiopeia aterrissa de um salto e desfruta a glória de


superar o menino “rico”. Ri com malícia.

Então uma mão estapeia a moeda, arremessa-a ao ar e,


num rodopio, Hyp a pega antes de cair no chão.

Hyp ajuda Hormes a se reerguer e lhe devolve a moeda.


Ele agradece. Hormes caminha ofegante até sua
mochila-Lampião, perto do velho Babu.

— Isso, sim, seria um bom pagamento, meu rapaz — diz


o velho, vendo Hormes abrir o bolso da mochila para
guardar a moeda.

— Essa moeda é importante para mim.

— Mais importante do que a sua invenção? Acho que


não. Você precisa fazer uma escolha. Não se pode ter
tudo na vida.

Hormes agarra a moeda com força. Diceosine havia dito


para ele não gastar.

— Dê-me a moeda e em troca eu o deixo levar sua


máquina, ferramentas de solda, algumas peças para sua
próxima invenção e um carrinho para transportar tudo.

Hormes pensa em Diceosine: “Acho que ela ia gostar de


ver minha invenção”. Entrega suavemente a moeda a
Babu.

— Biohó, por favor, ajude nosso cliente a levar suas


coisas em um carrinho — pede Babu.

Biohó traz um bom carrinho, feito com uma caixa de


madeira que consegue abrigar o alfaiate autômato,
protegendo-o de olhares curiosos. O carrinho tem ainda
quatro rodas grandes, o que facilita o transporte por ruas
sem asfalto ou feitas de paralelepípedos.
Quando Hormes e Biohó seguem para a saída, puxando
juntos a alça do carrinho, Cassiopeia surge em um salto.

— Desculpe, amigo. Começamos mal. Eu fui muito má


com você.

Hormes acena positivamente com a cabeça.

— Mas podemos ser amigos. Você poderia me contar


como podemos entrar na casa da família Symvasi? Eles
são muito ricos, não são? Você trabalha lá na casa deles?

— Trabalho...

— O que você faz lá? — pergunta Cassiopeia.

— Eu arrumo as frutas para decorar os cômodos da casa,


preparo mesas de banquetes para as visitas... — diz
Hormes, constrangido.

— Então eles têm bastante comida lá, não é? — pergunta


Hyp.

— É... — responde Hormes, tentando desviar-se das duas


moças, procurando a saída.

— Aposto que têm muitas coisas de ouro lá também —


conclui Cassiopeia, esperando que Hormes dê mais
alguma pista.

Outros Anansis escutam à distância. Osebo sussurra para


Hakim:
— Cassiopeia deveria liderar um ataque à casa dos
Symvasi.

Hyp percebe que sua liderança está sendo ameaçada.


Precisa fazer algo para manter a lealdade dos Anansis.

— Sim, Cassiopeia, vamos entrar na casa dos Symvasi —


declara Hyp, retumbante. — Faremos isso amanhã
mesmo! Mas vamos pegar apenas a comida dos ricaços,
nada de roubar ouro. Não vamos atrair a ira deles para
nós.

Os Anansis vibram com Hyp. Ela agradece com um


sorriso. Cassiopeia vê suas chances de liderar os Anansis
escorrerem por entre os dedos.

A imagem de Diceosine lampeja no pensamento de


Hormes.

— Na-na-na-não, não façam isso, não! Os Symvasi são


boas pessoas! — grita Hormes.

— Você acha mesmo que eles ganharam aquele dinheiro


todo honestamente? Acorda — diz Cassiopeia. — Eu
aposto que você entra lá toda hora e sabe como
podemos entrar lá também.

— Não é bagunçado assim, não! Há guardiões na entrada


— diz Hormes.

— Os guardiões conferem a identidade dos serviçais? —


pergunta Hyp.
— Sim... Não... — diz Hormes, arrependendo-se logo em
seguida. — Quer dizer, eles contam para conferir se a
quantidade de serviçais é a mesma do documento
entregue pelo motorista do caminhão.

— Ótimo! Essa é a falha de segurança mais comum que


existe. Entraremos disfarçados de serviçais no caminhão
de transporte! Obrigada pelas informações!

— Hyp comemora. Roubar a comida de uma família rica


poderá redimi-la dos seus erros da noite anterior e
ninguém mais questionará a sua liderança.

— Vamos prender o inventor aqui para ele nos ajudar! —


Cassiopeia lança a ideia para conquistar apoiadores.

— NÃO! — intervém Babu. — Ele é meu cliente. Ele pode


ir em paz com suas coisas.

— Mas, Babu, ele pode estragar tudo... — insiste


Cassiopeia.

— É a minha palavra final. O rapaz pode ir. Biohó, por


favor, ajude-o a carregar as coisas até a casa dele. Ele é
um bom rapaz, ajudou o Marabô e sou muito grato a ele.

Ninguém ousaria desobedecer Babu.

Hyp comemora em silêncio ao perceber que Cassiopeia


desistira de lançar novas ideias.

Hormes sai do ferro-velho acompanhado de Biohó. Pensa


em avisar Diceosine sobre o perigo no raiar do dia, mas
Biohó não poderia desconfiar. Seguem a passos firmes,
puxando o carrinho de metal com a invenção,
ferramentas e peças extras.
12

U m caudaloso rio separa Palami do bairro de Ble-


Kolara. Hormes e Biohó, puxando o carrinho pela
alça, atravessam uma ponte. O rio continua correndo por
trás de casas de Ble-Kolara, na sua maioria habitadas por
operários das fábricas. O alfaiate autômato chacoalha
dentro do carrinho cada vez que as rodas batem nos
paralelepípedos mal-encaixados da rua.

— Boa noite. Pode deixar que daqui em diante eu me viro


— diz Hormes.

Biohó solta a alça do carrinho e observa o esforço de


Hormes para subir a calçada em frente à sua casa.
Hormes abre a porta e arrasta o carrinho para dentro. O
inventor espia pela fresta da porta antes de fechar: Biohó
não foi embora.

“Eu tenho que avisar a família Symvasi sobre o ataque


dos Anansis, mas com esse traste aí na porta não vou
conseguir sair”. Os pensamentos de Hormes são
imediatamente interrompidos por Polínia, sua irmã:

— Ora, ora! Achei que você não fosse mais voltar para
casa.

— Eu não lhe devo explicações — diz Hormes, tirando a


mochila-Lampião das costas e colocando-a no chão.
— Olha, o Hormes voltou para casa — interrompe
Epimoni, tentando evitar que seus filhos troquem farpas.

— Hormes, você ainda precisa explicar o que fez ontem à


noite. Papai ficou preocupado — diz Polínia.

— O que você trouxe aí? — pergunta Epimoni, tentando


mudar de assunto. Para ele, não importa brigar, pois seu
filho já está em casa.

— Você vai gostar, pai — diz Hormes, que também


convida a irmã a conhecer sua obra: — Olha isso, Polínia.

Hormes abre a caixa. Ergue com dificuldade a estátua de


bronze. Epimoni respira, alonga os braços, faz força para
ajudar. Seus braços e costas doem após o esforço.

— Não faça tanta força, pai. Você tem que cuidar para
suas dores não piorarem — diz Hormes.

Polínia remói a raiva de não ter conseguido convencer o


pai a dar uma bronca no irmão. Ela apenas torce para
que seja algo rápido e que todos se arrumem logo para
dormir.

— Quero ver se vocês descobrem o que é! — diz Hormes.


— Era nisso que eu estava trabalhando todas as noites.

Epimoni reconhece as agulhas de costura que o rapaz


tira da caixa e fixa em pinças nos arcos de metal ao
redor da estátua decapitada. Hormes gasta alguns
minutos fazendo encaixes e apertando parafusos.
Epimoni e Polínia quase perdem o interesse pela
geringonça. Assistem à montagem bocejando.

De repente, o rapaz gira a manivela ao lado do caixote-


pedestal e o que era tédio vira espanto. As agulhas
fazem movimentos precisos de costura, como os
movimentos das máquinas que Epimoni opera na fábrica
de tecidos. Porém, a máquina de Hormes costura em
vários lugares ao mesmo tempo – e com muita rapidez.

— Esperem pra ver o que ela faz com um material de


verdade!

Hormes vai ao seu quarto, apanha peças de tecido


cortado e as põe sobre a estátua. Prende o tecido com
clipes metálicos para que não caiam. Passa linha pelos
orifícios das agulhas e gira a manivela novamente. Em
poucos segundos, uma camisa e uma calça são
costuradas firmemente... ao avesso. As costuras ficam
aparecendo. Hormes tira a roupa do manequim e as vira,
para que fiquem do lado correto. Então, anuncia:

— Pronto!

— Você é realmente muito inteligente, filho — diz


Epimoni com alegria contida. — Eu não imaginava que
você soubesse fazer coisas assim.

— Eu também estou impressionada... — diz Polínia. — Eu


não sabia que você entendia tanto de costura, Hormes.

Hormes sorri. Vibra de alegria.


Mas Epimoni não consegue comemorar. Diz com voz
áspera:

— Por que você fez isso, filho?

— Pai, o senhor não gostou?

— Isso vai tirar o meu emprego — diz Epimoni.

— Por quê? Não é nada disso! Com essa máquina, você


poderá alcançar as metas da fábrica em menos tempo!
Sobrará tempo para ficarmos juntos, como família! É
para isso que as máquinas servem. Elas trabalham mais
para nós trabalharmos menos!

— O que você está dizendo não faz sentido, filho.

— Pai, o senhor se lembra do que a mamãe dizia quando


chegava em casa cansada? Ela dizia: “Eu não trabalho
para viver, eu vivo para trabalhar”.

— Eu me lembro disso — diz Polínia. — Ela reclamava de


que não passávamos nenhum tempo juntos.

— É isso. E agora ela morreu, pai... — diz Hormes. — E


nós não temos como recuperar o tempo perdido! Mas o
senhor ainda está vivo, e eu quero que a sua vida não
seja só trabalhar.

— Entendo, filho, mas você ainda não sabe como uma


fábrica funciona de verdade — diz Epimoni.
— Pai, eu acho que o Hormes fez uma coisa boa — diz
Polínia. — Eu fico sozinha nesta casa quase o dia todo,
sem ninguém para conversar. Vocês passam o dia fora,
trabalhando. Seria bom se passassem algum tempo em
casa.

— Você também deveria ter um emprego com bracelete


de Cronos, não é, filha? — diz Epimoni.

— O senhor já sabe o que eu penso a respeito disso, pai


— Polínia, impaciente, não mede as palavras. — Eu cuido
da casa porque quero ser uma boa esposa. Terei um
marido rico, que me dará tudo o que eu quero.

— Eu não gosto nada desse seu sonho de ser


improdutiva. Você está estragando a sua vida — reclama
Hormes.

— Eu quero saber quem cuidaria da casa se eu não


estivesse aqui. Mamãe se foi... Quem cuidaria de vocês
quando vocês ficam doentes? — retruca Polínia. — Se
todos trabalharem dezesseis horas por dia, quem cuida
da família?

— É isso que eu quero mudar, irmã — diz Hormes. —


Com a ajuda das máquinas, sobrará tempo no dia para
fazermos de tudo.

Epimoni não escuta mais a conversa. Apenas olha para a


máquina. É realmente muito benfeita. É também muito
rápida. Poderia sentir orgulho do filho. Mas...
— Venha, filho, vou explicar uma coisa. Venha você
também, Polínia — diz o pai.

Epimoni pede ajuda ao filho para carregar a máquina até


os fundos da casa. Hormes não entende, mas obedece.
Antes de levantar o alfaiate autômato, Hormes acende a
cabeça de Lampião, o seu robô.

Eles deitam a estátua para passá-la pela porta dos


fundos da casa. Descem cuidadosamente a escada de
três degraus que dá acesso ao chão de terra batida.
Poucos metros adiante, há um terreno malcuidado, com
algumas árvores frutíferas esquecidas. Polínia segue logo
atrás deles.

Atravessam as raízes das árvores que crescem


desordenadamente, disputando espaço com plantas que
não foram convidadas a compor o pomar. Os pés de
Hormes e Epimoni procuram espaços firmes, entre as
raízes ou sobre elas, para se apoiar e sustentar o peso da
máquina. Caminham vagarosamente. O peso da carga
parece aumentar, mas não há onde descansar. Epimoni
reclama das dores. Prosseguem.

Lampião também os acompanha, lançando sua luz


amarelada sobre o caminho, antes tingido somente dos
tons azulados da noite fria. Polínia, de braços cruzados,
protege-se do frio. Ouve-se o rio que corta o fundo do
terreno. A correnteza entoa seu infindável mantra ao
tocar pedras pelo caminho. Epimoni põe a máquina em
pé, à beira do rio.
Hormes pressente que algo estranho ocorrerá.

— Hormes, você foi muito ingênuo...

— Como é, pai?

— Trabalhamos da hora que acordamos até a hora de


dormir. Essa é a lei — Epimoni põe o pé na base da
estátua, em menção de empurrá-la para o rio.

— Por favor, pai, pare! — diz Hormes, segurando a


máquina para que não caia. — Pense um pouco! Nós
podemos mudar isso! Nós podemos conversar com o
dono da fábrica para reduzir o tempo do trabalho! Não
jogue a máquina fora. Por favor!

— Filho, o dono da fábrica não lhe dará ouvidos.

— Pai, não é assim. A Lei de Cronos diz apenas que


vamos trabalhar todos os dias.

— Errado, filho. A Lei de Cronos diz que todos devem


trabalhar dezesseis horas por dia, todos os dias, e isso
não muda se trabalharmos mais rápido.

— Com o pé, Epimoni empurra a máquina para o rio.


Hormes, atordoado pelas palavras do pai, vacila por um
instante, tempo suficiente para o alfaiate autômato cair
no rio. A estátua sem cabeça desce rapidamente a
correnteza.

— Nããããããooooo... — grita Hormes, pulando rumo ao rio.


Epimoni segura o filho pelos braços, mas Hormes luta
para escapar. Epimoni suporta as dores em seu próprio
corpo, adquiridas com o trabalho repetitivo, e segura seu
jovem filho para evitar que ele caia no rio. Os dois
observam a estátua sem cabeça se desmantelar contra
uma pedra. As peças se espalham e seguem a
correnteza, até desaparecerem no escuro da noite.

Hormes se mexe com força, tentando soltar-se das mãos


de seu pai. Ele quer pular no rio e recuperar as peças.
Qualquer peça. Aquela invenção lhe custara várias noites
subindo Palami, escondendo-se dos Anansis, enfrentando
Marabô, ganhando dinheiro, penhorando a moeda dada
por Diceosine... Tudo o que ele tinha está agora sendo
levado pelo rio. Epimoni o segura, com força e amor de
pai.

Polínia leva as mãos à boca e arregala os olhos. Respira.


Então, com os olhos cheios de lágrimas, protesta:

— Por que você fez isso, pai? Você destruiu o sonho do


Hormes! Ele fez isso pensando no melhor para a nossa
família! Você é muito cruel!

Epimoni conhecia a filha. Ela já o havia acusado de ser


muitas coisas ruins, mesmo sabendo que ele só queria
proteger a família. Mas Epimoni sabe quanto suor lhe
custa cada moeda de ferro que ganha na fábrica têxtil
Cotonifício para garantir mais um mês de comida na
mesa. Ele sente no fundo da alma a dor de cada
acusação feita por Polínia. Mas cura sua dor pensando
que a filha vive bem protegida e, exatamente por isso,
não conhece as dificuldades do mundo do trabalho. Ele
não responde à acusação. Apenas continua onde está,
evitando que seu filho se jogue no rio.

Hormes desiste de tentar se soltar do pai. Desiste de


pular na água. Ele volta à razão. Sabe que, se batesse
em uma pedra, teria o mesmo destino da estátua.

— Por quê, pai? Por que não podemos mudar as coisas?


Se o senhor produzir mais, poderia trabalhar menos
tempo...

Ignorando o que o filho diz, Epimoni faz uma exigência:

— Jure para mim que você não vai fazer outra máquina
de costurar. E nenhuma máquina para a Cotonifício.

— Não, pai...

— Jure!

— Mas e se...

— JURE!

— Tá bem, eu juro — diz Hormes, soluçando. — Nenhuma


máquina para a Cotonifício!

— Um dia você vai entender, filho.

Hormes se ajoelha sobre a terra úmida. Espreme


pequenos volumes de lama em suas mãos, deixando-a
escorrer entre os dedos. Mistura suas lágrimas ao
lamaçal. Deseja furiosamente que seu rosto não fosse
um sorriso idiota congelado para que todos pudessem
ver sua raiva e sua dor. “Tem alguma coisa errada”,
pensa ele. “Meu pai não pode estar certo sobre isso.
Onde está a justiça na Lei de Cronos?”.

Polínia caminha até Hormes, se abaixa e o abraça pelas


costas. Chama Lampião para perto, para aquecê-los. O
robozinho entende o comando. Ele se aproxima e se
ajoelha, imitando Hormes. Joga sua luz quente sobre os
dois.

Ela permanece assim por alguns instantes, ouvindo os


soluços desconsolados do seu irmão. Depois, desliza as
mãos pelos braços dele, chamando-o a se levantar.

Hormes olha para o rio que devorou sua criação.


Carregando Lampião, ele segue seu pai e sua irmã para
dentro de casa. Ainda precisa se preocupar com o ataque
que os Anansis planejam.
13

A s fábricas dormem. A estoa dorme. As ruas,


iluminadas por esparsos postes de luz elétrica,
dormem. Podem-se ouvir o fluir dos rios, o vento, o
cantar dos grilos, o bater de asas de pássaros noturnos, o
tique-taque e o ranger das engrenagens da enorme
máquina do relógio no topo do Obelisco de Cronos. O
obelisco marca o centro da ágora de Nova Ascra, com
quatro faces iguais, cada uma com um reluzente
mostrador de relógio com algarismos e ponteiros de
ouro. Quatro leões esculpidos em art déco , um em cada
ângulo do obelisco, expelem água pela boca, emitindo
um som contínuo que preenche a ágora de Nova Ascra.
Ao redor do obelisco, vinte e quatro postes de luz elétrica
posicionados em forma de círculo, representando as vinte
e quatro horas do dia, iluminam o centro da ágora.

Axion caminha sozinho, apressado, vendo sua sombra


crescer e diminuir, conforme se distancia de um poste e
se aproxima de outro. Ele cruza a ágora toda noite, a
caminho da sede da guarda.

Os relógios do obelisco funcionam em perfeita sincronia


com o relógio cravado no frontão (área triangular abaixo
do telhado) do Templo de Nomos. Esses relógios marcam
dezoito minutos para a meia-noite. Há um pequeno ponto
de luz amarela ao fundo do templo, lá dentro. Axion olha
novamente o relógio. Dezoito minutos. “Deve dar
tempo”. Resolve entrar.

Seus pés de ferro não silenciam sobre o mármore do


templo. Cada passo ecoa. O pequeno ponto de luz
amarela nada mais é do que uma vela aos pés de
Nomos; aquela vela, sem força para iluminar o enorme
templo, pede ajuda da fria luz da lua que atravessa os
vitrais e deixam marcas azuis e brancas no chão. O
corredor central, cercado de doze longos pilares à
esquerda e doze à direita, parece não ter fim. Axion
caminha, caminha, mas demora a se aproximar da
estátua de Nomos. Ele acelera o passo, até que
finalmente estaciona entre os dois pilares mais ao fundo
da nave do templo.

“O que devo fazer aqui?”, pensa. “Ajoelhar?”

Axion não conhece os ritos do templo. Ninguém jamais o


ensinara. Seus pais, assim como seus avós, sempre
trabalharam de domingo a domingo. Não sobra tempo
para práticas religiosas.

Hesitante, Axion se ajoelha. Olha para o rosto da estátua


de Nomos, que segura um raio e parece olhar ao longe.
Axion começa a falar, seguro de que ninguém está
ouvindo:

— Diga-me, poderoso Nomos, o que fiz de errado?


Descumpri alguma ordem? Ofendi sua vontade de
alguma maneira? Não sou um bom guardião?
O Nomos de mármore sustenta sua posição.

— O que você procura, jovem guardião? — uma suave


voz feminina ecoa no templo.

De uma porta lateral ao altar sai uma mulher de vestido


cândido, cujo tecido acompanha lentamente os
movimentos de seus braços e pés. O reflexo branco no
solo a persegue, contrastando com o fundo azul-escuro
das paredes mal iluminadas. O cabelo marrom-claro
carrega uma tiara de prata. No pescoço, um fino colar
entrelaçado de prata carrega uma pedra de topázio azul.
Pulseiras e luvas de fios de prata adornam-lhe as mãos e
pulsos. Ela é bela. Divinamente.

A sacerdotisa para na frente de Axion, bloqueando a


visão que tinha da enorme estátua. Axion está
estupefato. Ela insiste, docemente:

— O que o aflige?

Axion sente o coração acelerado. Respira. Busca


palavras. Busca razões. O que o incomoda, mesmo?

— Eu não entendo como funciona a justiça dos deuses.


Eu sou guardião. Fiz um bom trabalho, junto com um
colega. Sei que fiz um bom trabalho. Mas ele foi
promovido e eu, não.

— Você acha que merecia a promoção tanto quanto ele?

Axion avalia os fatos que perpassam seu pensamento.


— Sim, eu acho. Pelo mérito se faz justiça, não é? Foi
assim que os deuses organizaram nossa sociedade, não
foi?

— O juízo de mérito é dos homens — diz a sacerdotisa.

Axion emudece. Levanta-se e permanece de pé, pois ali


não há onde se sentar.

— Isso não faz sentido. O mérito tem origem divina. Se


não for assim, não existe justiça. Não acredito que estou
escutando isso de uma sacerdotisa.

A sacerdotisa começa a caminhar. Axion entende, pelo


silêncio dela, que aquilo é um convite para ele
acompanhar os seus passos.

— Eu mesma passei por isso. Somente sacerdotes de


ouro assumem templos como este. Mas eu assumi o
Templo de Nomos porque era a única ajudante do
sacerdote daqui, era a mais qualificada e...

— Mas você é de prata. Não a promoveram a ouro? —


indaga Axion.

— Não. Disseram que seria um ultraje uma mulher


tornar-se sacerdotisa de ouro.

— Você não ficou com raiva?

— Fiquei. Fiquei muito brava, especialmente no primeiro


dia. Mas quem se pronunciou sobre o meu mérito, o
tempo todo, foram homens. Não foram deuses. E eu sou
uma sacerdotisa! Serva dos deuses! Eu também
imaginava que os deuses diriam algo sobre o meu
merecimento, mas isso nunca aconteceu. Recebi as
peças do sacerdócio... — ela mostra as joias de prata que
usa — ... de um homem, não de um deus.

— Você aceitou tudo isso? Toda essa injustiça?

— Houve um momento em que eu cansei de brigar. Achei


que eu sairia mais prejudicada se insistisse.

— Mas você poderia ter sido uma sacerdotisa de ouro! —


Axion fala como se ele mesmo tivesse vivido a história
que ouviu.

— É, mas eu me lembrei de algo que um antigo


sacerdote ensinou. Ele dizia: “Calina, a maioria das
pessoas não sabe o que realmente busca na vida. Todo
mundo quer ser ‘de ouro’, ser admirado, mesmo sem
saber ao certo para onde está indo” — Calina suspira. —
Eu guardei essas palavras, mas não as entendi até o dia
em que assumi o templo como sacerdotisa de prata.
Percebi que minhas decisões são tão boas quanto as de
sacerdotes de ouro de outros templos.

Axion respira. Indaga:

— E daí? Qual o problema de querer ser da raça de ouro?

— O problema não é ser da raça de ouro, mas sim o


porquê de você querer isso. Diga-me: se você fosse de
ouro, o que seria diferente?
— Eu faria mudanças na Guarda. Exigiria mais ordem.
Mais disciplina. Acabaria de uma vez por todas com os
crimes em Nova Ascra. A cidade inteira iria reconhecer o
valor da Guarda.

— Você parece ser do tipo que tem problemas com


ordem e disciplina — Calina provoca.

— Como.... como você sabe disso?

— É um palpite.

Axion olha para a estátua de Nomos.

— Como as pessoas de ouro tomam as decisões


importantes, se não são ajudadas pelos deuses?

Os passos de Calina não fazem barulho sobre o mármore.


Ela para e reverencia Nomos. Vira-se para Axion e diz:

— As boas decisões são emaranhadas em dúvidas,


independentemente do metal no seu corpo. A certeza é a
sua maior inimiga quando você tenta descobrir o seu
verdadeiro lugar no mundo.

— Isso não faz o menor sentido! Se eu sei o que eu quero


é porque tenho certeza do que estou fazendo!

— Não, jovem guardião. Parece loucura, mas é


exatamente o contrário. Você não conhecerá seu
verdadeiro caminho com os olhos cegos por muitas
certezas. Suas certezas o manterão confinado em sua
zona de conforto. Você só se encontra quando se perde
completamente.

— Mas eu sei exatamente o que eu quero! Eu quero ser


guardião de ouro!

— Não, você não sabe. Mas o mundo cuidará de lhe


ensinar o que você precisa aprender — responde a
sacerdotisa. — Somente quando você aprende a tomar
suas decisões por si mesmo é que começa a construir o
seu lugar no mundo. Seu erro está em esperar que o
mérito lhe seja dado pelos outros; assim, você também
espera que os outros lhe digam o que fazer.

O sino do relógio do obelisco badala doze vezes,


anunciando a chegada da meia-noite. Axion já deveria
estar na Sede da Guarda. Ele havia sido convocado para
alguma tarefa importante.

— É mesmo uma perda de tempo vir ao templo! Não me


admira que isto aqui esteja vazio o tempo todo! Eu vim
aqui para resolver minhas dúvidas, mas estou saindo pior
do que entrei!

Os pés de Axion batem aceleradamente sobre o chão,


ecoando sem cerimônia. Ele resmunga consigo mesmo:
“Zona de conforto... perder-se... encontrar-se... quanta
besteira”. Calina observa Axion se distanciar. Logo o eco
metálico dá lugar a um som distante, quando os pés de
ferro correm sobre as pedras da ágora.
Calina aproxima seu rosto da vela, o único ponto de luz
amarela no meio do mármore enluarado. Assopra-a.
14

O Obelisco de Cronos, na ágora, dá o toque de


despertar. Em alguns minutos, os apitos a vapor das
fábricas anunciarão o início da jornada de trabalho.
Alguns trabalhadores já iniciam sua marcha pelas ruas.
Isso significa que os serviçais chegarão logo à casa dos
Symvasi. Quer dizer, serão Anansis disfarçados de
serviçais. Hormes precisa se apressar para avisar a
família de Theceo.

Ele abre uma fresta da janela de sua casa. Lá está Biohó,


encostado em um poste de luz, resistindo ao sono para
manter-se vigilante.

Hormes volta para dentro. Veste o sobretudo, botas e


capacete de couro. Calça luvas armadas com pequenos
geradores elétricos. Pega sua mochila-Lampião. Corre
para o quintal. Lá está sua minimoto.

Hormes monta. Acelera. Irrompe pela porta lateral da


casa e Biohó, de sobressalto, abandona o sono. Hormes
sorri, olhando para trás. Lá vem Biohó como um furioso
velocista.

Hormes acelera.

Biohó corre.
Hormes acelera ao máximo, fazendo o motor de sua
minimoto gritar e espalhar fumaça negra.

Biohó alcança a minimoto sem dificuldade.

— Sai daí, ô! — grita Hormes, golpeando com o braço


direito e tentando se livrar das mãos de Biohó.

“Eu preciso aumentar a potência desse motor”, pensa o


inventor.

Biohó tenta puxar Hormes para fora da vagarosa


minimoto. Hormes reage. Ele gira e dá um soco em Biohó
com sua luva de gerador elétrico. Biohó recebe uma forte
descarga elétrica, a ponto de perder o controle de seus
movimentos. Cai no chão, deixando que Hormes siga o
seu caminho.

O inventor aproveita a descida da ladeira para fazer sua


minimoto acelerar além do que Biohó consegue correr.
Dirige-se a Megali Axia.

O rapaz percorre o elegante boulevard central, rumo à


ilha da família Symvasi. Atravessando a ponte, vê um
guardião de ferro recebendo ordens de um de prata, à
frente do portão. Hormes desacelera. Encosta a minimoto
e interrompe a conversa.

— Oi, eu sou o Hormes. Tenho uma mensagem


importante para a família Symvasi. Os Anansis...

— Você é quem? — interrompe Dário, o guardião de


prata.
— Eu sou o Hormes...

— Não. Pergunto quem é você para os Symvasi. Não


parece ser amigo deles.

Hormes olha para o seu sobretudo puído e encardido, as


botas sem brilho, a mochila-Lampião... Não, realmente
não parece um amigo da família.

— Eu trabalho aqui — diz Hormes.

Axion, o guardião de ferro, desenrola um papiro. Seus


olhos percorrem o papel:

— Não vejo nenhum Hormes aqui na lista.

— Eu não devo estar na lista de hoje, mas eu vim


trabalhar ontem. Eu trabalho aqui três dias por semana.

Um ruidoso caminhão atravessa a ponte, se aproxima do


portão e interrompe a conversa. Axion fala com o
motorista. Confere o papiro. Em meio ao barulho do
motor, ouve-se Axion perguntar:

— Transporte de serviçais?

— Sim. Quinze a bordo.

Axion verifica o papiro. Vai até a traseira de caminhão e


olha sob a lona armada. Vê um punhado de serviçais de
ferro amontoados. Conta. São quinze.

Hormes puxa o braço prateado de Dário e diz:


— São Anan...

— NÃO INTERROMPA! ISSO É UM PROCEDIMENTO DE


SEGURANÇA! — vocifera Dário, soltando seu braço das
mãos de Hormes e encarando-o, deixando claro que o
rapaz está atrapalhando algo importante.

Hormes silencia.

Axion autoriza a entrada.

Dário, o guardião de prata, espera que o caminhão se


afaste. Fita Hormes. Ele não foi embora.

— Meu jovem, se você não está na lista, deve provar sua


nobreza. Você tem algo de ouro? — pergunta Dário.

Hormes sorri para o guardião. Tira a mochila-Lampião das


costas e mete a mão no bolso central. Procura. Nada.
Bate a mão na testa. “Dei a moeda de ouro para o Babu”.

— Vejo que você não tem nada. Dê meia-volta.

— Mas os Symvasi...

— VAAAAIII! — o guardião de prata aponta para a


minimoto e para a ponte, indicando que Hormes deve
sair da ilha.

Hormes se assusta com a força da voz do guardião.


Obedece. Monta na minimoto e se afasta.

Dário explica a Axion:


— É isso o que faz essa casa ser a mais bem guardada de
Nova Ascra. Não deixamos qualquer um entrar. Apenas
nobres têm assuntos importantes com a família Symvasi.
Esse rapaz parecia estar tentando algum truque para nos
enganar e roubar algo da casa.

— O rapaz parecia ter algo importante a dizer. Acho que


deveríamos ouvi-lo e levar a mensagem à família —
Axion pondera com Dário, ignorando os protocolos que
deveria obedecer para se dirigir a um superior
hierárquico. O próprio Dário permite que seja assim, pois
eles são velhos amigos. O tom da conversa entre eles é
mais informal do que entre outros guardiões.

— Não diga bobagem. Não se deve dar ouvidos a essa


gentinha de ferro — responde Dário.

Axion embaralha pensamentos: “Eu sou de ferro... sou


gentinha? Zona de conforto... perder-se para encontrar-
se... o que realmente busco... quero mesmo ser como
Dário? O que eu faria de diferente?”. Finalmente, ele
responde de maneira protocolar:

— Sim, senhor.
15

O ca minhão de transporte de serviçais estaciona


atrás do castelo Symvasi. Na boleia, Hyp, abaixada,
segura uma faca de obsidiana apontada para o estômago
do motorista.

— Desça e me ajude a abrir a carroceria. Não tente


nenhuma gracinha, senão eu arranco as suas tripas.

O motorista treme de medo. Acena com a cabeça,


concordando em ajudar. Hyp desce, seguindo o homem
acovardado. Ela e o motorista abrem a cerca de madeira
da carroceria. Hyp fala aos serviçais de ferro:

— É agora.

Os Anansis desmontam as couraças de metal fajuto que


lhes serviam de disfarce. Colocam suas máscaras de
cerâmica e ajustam sacolas de couro em suas costas.

— Muito bem, princesa — Cassiopeia não está elogiando.


— Foi realmente um ótimo plano para entrarmos aqui.
Mas diga: você tem algum plano para sairmos da ilha? Os
guardiões vão bloquear nossa passagem depois que
atacarmos o castelo.

Hyp odeia quando Cassiopeia está certa. Não, não há


plano de fuga. Ela precisa pensar rápido para que os
Anansis não pensem que foram levados para uma
arapuca.

Hyp oferece o cabo de sua faca a um amigo de


confiança.

— Hakim, você assume o controle sobre o motorista.


Vamos forçá-lo a atropelar os guardiões do portão
quando estivermos saindo.

Hakim percebe que o plano é absurdamente arriscado.


Hyp não é o tipo de líder que parte para o tudo ou nada.
Atropelar guardiões? Ela nunca havia dado uma ordem
assim. O velho Babu ensinava a não ferir pessoas
gratuitamente. Mas parece que não há saída melhor. Se
os Anansis tentarem deixar a ilha nadando, serão presas
fáceis para a Guarda.

Por lealdade a Hyp, Hakim pega o cabo da faca. Leva o


motorista até a boleia e ali permanece, com a faca
apontada, como Hyp fizera.

Hyp chama os demais a descer da carroceria e a segui-la


até a entrada dos serviçais. Os Anansis descem, em uma
fila acrobática, saltando da ponta da carroceria e rolando
assim que tocam o chão. Usam o impulso para ganhar
velocidade e atravessar o jardim rapidamente.

Dois guardiões de ferro que rondam os jardins do castelo


com escudos e martelos em punho notam a estranha
movimentação na traseira do caminhão. Serviçais não
andam daquela maneira... E essas máscaras...
— São Anansis!

— É um ataque! Parem aí mesmo!

Jitu e Osebo desviam-se do grupo e correm em direção


aos guardiões. Jitu agita uma corrente com farpas de
obsidiana e a usa como chicote. Os guardiões esquivam,
rebatendo a corrente com seus escudos. Jitu aproveita a
postura firme de um dos guardiões, apoia seu pé nu
sobre o escudo e salta a uma altura inacreditável. Ainda
no ar, ele lança a corrente para ferir o antebraço do
guardião que sustenta um martelo de batalha. Osebo
prefere girar o corpo e usar seu pé como gancho para
puxar o tornozelo do segundo guardião, desequilibrando-
o.

Jitu e Osebo giram no ar, chutam e desconcertam os dois


guardiões. Os guardiões decidem unir suas costas para
que possam se ajudar a combater os Anansis. Mas com
eles assim, juntos, o trabalho ficou mais fácil para os
invasores. Jitu gira a corrente, laçando os dois guardiões.
Osebo pega a pesada esfera da ponta solta da corrente e
puxa, fazendo-a enrolar nos guardiões, ferindo-os com as
farpas de obsidiana.

— ESTAMOS SENDO ATACADOS! PRECISAMOS DE


REFORÇOS! — grita um dos guardiões laçados.

Osebo arranca o escudo desse guardião e usa para bater


ferozmente na cabeça do adversário, silenciando-o. Jitu,
percebendo que o outro guardião também não ficaria
quieto, derruba-o com um chute na têmpora. Os dois
guardiões caem no chão, desacordados.

Enquanto isso, os outros Anansis invadem o enorme


castelo, dominando o salão principal.

Axion corre do portão até o meio do jardim, diante do


castelo, e faz um sinal para Dário: sim, está acontecendo
um ataque! Dário solta fogos de artifício, anunciando a
emergência e chamando guardiões para ajudar.

Theceo, sua esposa Melpômene e seus filhos, que


estavam vestindo as roupas para começar a rotina
matinal, correm para se esconder no quarto de casal, no
andar superior. Theceo tranca a porta.

Hormes, já distante, ouve os fogos estourarem.


Imediatamente, trava o pé esquerdo no chão e faz a
minimoto retornar bruscamente. Acelera rumo ao
castelo... Tanto quanto aquela minimoto consegue
acelerar.

Hyp e outros Anansis saqueiam toda a comida que


conseguem levar nas bolsas de couro. Tal como o cara de
ferro havia dito, os Symvasi decoram a casa com frutas,
como se elas estivessem expostas em um museu. Frutas
sem manchas, sem oxidação, sem marcas. Impecáveis.

Ganimedes, com o sol reluzindo em seu terno de ouro, vê


da porta a caótica cena e esbraveja:
— Tenham mais respeito por aquilo que esta família
conquistou com muito mérito.

Os Anansis param.

Todos olham para Ganimedes.

Riem.

Saqueiam.

Ganimedes sai do salão, apavorado e ignorado pelos


Anansis.

Cassiopeia ainda não encheu a sua sacola com frutas.


Seus olhos se dirigem a tudo que reluz. Ela se encanta
pelo enorme relógio ao centro do salão principal. O
relógio tem quatro lados iguais, cada um com um
mostrador apontando para um lado do grande salão
quadrado. Os ponteiros são de ouro. Os números e a
coroa dos mostradores são de ouro. Os pêndulos são de
ouro. E tudo nele é ENORME!

Cassiopeia olha ao redor. Não encontra Osebo, seu amigo


leal. “Sadiki é um inútil, mas talvez sirva para um
trabalho simples”, pensa ela. Ela se aproxima de Sadiki,
escorre a mão pelo ombro do rapaz e fala com ele a uma
distância em que ele seguramente sente o cheiro dela:

— Preciso de sua ajuda.

Usando gestos já bem conhecidos, ela pede a Sadiki que


entrelace os dedos, forme um apoio e dê impulso para
ela saltar bem alto.

— O que você vai fazer? — pergunta Sadiki.

— Eu gosto de desafios, só isso — ela sussurra no ouvido


dele, apontando para o alto do relógio. — Confie em
mim. É por diversão.

Sadiki faz tal como pedido. Entrelaça os dedos. Aguarda.

Cassiopeia vai até o fundo do salão e volta, correndo a


uma velocidade que poucos Anansis conseguiriam imitar.
Com o impulso dado por Sadiki, ela voa tão alto que
captura os olhares e emudece os companheiros. Ela
alcança o mostrador no topo do relógio, chutando-o com
os dois pés e agarrando-o com as duas mãos.

O grande relógio tomba, com Cassiopeia agarrada à


coroa do mostrador. Atinge o chão, espatifando-se. Peças
de ouro, estilhaços de vidro, fragmentos de madeira e
Cassiopeia são arremessados pelo impacto estrondoso. A
Anansi rola no chão, esquivando-se dos pedaços que
podem machucá-la. Os outros Anansis gritam de susto e
espanto, pois não esperavam aquele movimento de
Cassiopeia.

Ela se levanta e escala o relógio tombado, pensando em


como arrancar as peças de ouro. Fica em cima do
mostrador do relógio, com um pé em cada lado do
ponteiro dos minutos, escolhendo o algarismo romano
que lhe pareça ter sido feito com maior quantidade de
ouro.
— FRIKA!!! — grita Hyp, furiosa. — Era para roubarmos
apenas comida!!!

Cassiopeia finge que não escutou.

Guardiões de ferro e de bronze aparecem nas portas,


cercando as saídas do salão.

Os Anansis não se intimidam. Esquivam-se dos ataques


dos guardiões, escalando mobília e paredes, e revidam
com chutes, rasteiras e utensílios arremessados. Em
meio à caótica arena formada no salão dos Symvasi, Hyp
reconhece Axion, que por sua vez reconhece a máscara,
o corpo e os movimentos de Hyp.

“Vou ter que me entender com Cassiopeia depois”, pensa


Hyp.

“Eu jurei que a prenderia. Hoje é o dia, líder dos


Anansis”. Axion ignora a todos no salão e corre na
direção de Hyp, com o martelo de batalha em punho.
Hyp escala rapidamente o relógio tombado. Ela sabe que
lugares mais altos lhe dão vantagem no combate. Os
golpes de martelo de Axion atingem a madeira, com um
atraso de fração de segundos, nos lugares onde Hyp
pisara.

Entre saltos e piruetas, Hyp se aproxima de Cassiopeia.

— Me ajuda! Vamos derrubar esse homem de lata! —


pede Hyp, mesmo furiosa com Cassiopeia. Naquele
instante, enfrentar o guardião é mais importante.
Mas Cassiopeia está ocupada tentando arrancar o
enorme número VIII dourado do relógio. Não dá ouvidos a
Hyp. “Essa folgada deveria dar conta dos seus
problemas”, pensa.

Depois de muito insistir, Cassiopeia consegue meter os


dedos entre a madeira e o ouro do número VIII. Vê a
madeira ceder um pouco e a peça de ouro se elevar.
Força um pouco mais e a madeira quebra, dando
passagem para seus dedos alcançarem a parte de trás
do algarismo e tenham mais apoio para arrancá-lo.

A madeira arranha as costas da mão, fazendo sangrar.


Cassiopeia respira fundo. Vê sua imagem refletida no
segundo “I” do VIII. Decide usar toda sua força de uma
vez para arrancá-lo. Mas o pé de Hyp toca o “V” e logo o
martelo de Axion acerta a peça com fúria.

Cassiopeia salta para trás em ato reflexo. Agora ela sente


que Axion é problema dela também. O guardião de ferro
está furioso.

Axion escala os ponteiros do mostrador, agora


perpendicular ao solo. Sobe até o mostrador onde estão
Hyp e Cassiopeia. Seguindo os movimentos de Hyp, o
martelo de Axion atinge o pino de sustentação dos
ponteiros, fazendo o ponteiro das horas soltar-se e voar
pelo reflexo do impacto. Cassiopeia imediatamente
agarra o ponteiro arrancado.

— Se eu soubesse que você era forte assim já teria


pedido sua ajuda há muito tempo, bonitão! — Cassiopeia
ri por baixo da máscara.

Axion leva a provocação a sério e passa a atacar


Cassiopeia, distraindo-se de Hyp. Cassiopeia segura o
ponteiro como se fosse uma espada. Ela tenta espetar o
guardião com o ponteiro, mas não dá muito certo. Ele
rebate facilmente os golpes. Em um duelo de armas, ele
é o mais habilidoso. Ela então usa o ponteiro como uma
vara para dar mais força aos seus saltos e rodopios.
Fincando-o na madeira do relógio, usa-o para aumentar o
impulso, voando por cima de Axion e retirando-o para
golpear o guardião pelas costas.

Fora da ilha, Hormes vê que o guardião de prata não está


mais bloqueando o portão de acesso. O inventor
estaciona sua minimoto, deixando-a encostada no muro
ao lado do portão. Vê Dário no jardim, de costas,
passando ordens aos poucos guardiões disponíveis.
Hormes, então, entra sorrateiramente, escondendo-se
atrás dos arbustos bem podados e depois se esgueirando
por trás de colunas e árvores para chegar ao castelo sem
ser percebido.

Instantes depois, Dário decide voltar e monta guarda no


portão da ilha. Vê a minimoto estacionada. O guardião
pensa: “Ele pode ter me enganado agora, mas a ilha não
tem outra saída e mais guardiões estão chegando. Ele
não vai escapar”.

Enquanto isso, no salão do castelo, Axion cansa de ser


feito de bobo. Focaliza Cassiopeia. Firma os pés no chão.
Sente fios saírem do bracelete de Cronos para
fortalecerem as partes metálicas de seus braços.
“Quanto mais se usa, mais se tem”, ele lembra de um
ditado. Quando Cassiopeia aterrissa sobre o número XII,
Axion golpeia o seu estômago com o topo da cabeça do
martelo, arremessando a Anansi para fora do relógio. Ele
a segue, tomado de fúria. Hyp corre logo atrás.

Cassiopeia capota como uma boneca de pano jogada ao


chão por uma criança malcriada. Enquanto tenta
recuperar o fôlego e o senso de orientação, vê Axion
aproximar-se com um salto.

Axion aterrissa, quebrando o mármore sob os seus pés.


Os fios de ferro correm pelo corpo do guardião. Axion
sente sua força aumentar.

Pela primeira vez em muito tempo, Cassiopeia sente


medo.

De surpresa, Hyp aterrissa sobre as costas de Axion e


usa-o como apoio para saltar até o lado de Cassiopeia.

— Agora, vamos juntas, ok?

Cassiopeia aceita.

As duas Anansis movimentam-se com espantosa


sincronia, como se conversassem em pensamento.
Enquanto Hyp chuta alto, Cassiopeia passa uma rasteira;
enquanto Cassiopeia chuta o peito, Hyp salta por cima do
guardião. Axion se perde entre os quatro pés que tentam
acertá-lo. Mas não por muito tempo. Com golpes fortes e
ágeis, empurra as duas Anansis a três metros de
distância. Elas percebem que não será tão fácil vencer o
guardião. Ele está cada vez mais forte e hábil.

As duas Anansis passam a dar impulso uma à outra,


aumentando o alcance de seus saltos e chutes. Um
impulso de Cassiopeia lança os pés de Hyp com enorme
força à altura dos ombros de Axion, forçando-o a recuar
alguns passos, desequilibrado.

Jitu surge por trás das duas e, com a força de um longo


salto, chuta o rosto de Axion, derrubando-o. Osebo vem
logo atrás de Jitu e pergunta:

— Vocês estão bem?

Hyp e Cassiopeia entreolham-se, contendo a dor dos


golpes recebidos. Riem sob as máscaras. Respondem em
uníssono:

— Estamos.

Elas nunca admitiriam que, segundos atrás, achavam


que seriam derrotadas pelo guardião.

Cassiopeia dá a Osebo o ponteiro de ouro do relógio.

— Leve para o caminhão. Eu vou buscar mais coisas.

— Buscar mais? — Hyp interrompe — Tá louca,


Cassiopeia? Temos que ir embora. Deve ter mais
guardiões vindo para cá.
— Louca é você, Hyp. A gente se arriscou muito vindo até
aqui... E só vamos levar frutas?

— Ouro roubado atrai castigos, lembra? Se ficarmos


mais, vamos acabar todos presos, sem levar nada — diz
Hyp.

— Deixe de ser fraca. Dá tempo. Eu já volto — Cassiopeia


dá as costas a Hyp e corre rumo às escadas. No caminho,
agarra o braço de Sadiki, que não prestava atenção à
discussão. — Vem comigo. Preciso de ajuda.

— Cassiopeia, temos que sair! Sadiki, volta!

— Me espera! Não vai embora, não! — Cassiopeia grita


do alto da escada. Apertando o pulso de Sadiki, ela
emenda: — Vem comigo, não me deixe sozinha nessa.

Sadiki vive um rápido conflito interno. Ele se divide entre


sua lealdade a Hyp, sua índole de sempre ajudar quem
precisa e seu princípio de não deixar nenhum Anansi
para trás. Mesmo que seja Cassiopeia. “Vou convencê-la
a voltar logo”, pensa. Sobe as escadas, logo atrás de
Cassiopeia.

— NÃO! Sadiki! Não vai! — grita Hyp.

Axion se levanta. Guardiões de bronze e de ferro chegam


à ilha em barcos para oferecer reforço. Eles jogam
boleadeiras para prender braços e pernas de alguns
Anansis. Os Anansis ainda livres se dividem entre os que
enfrentam guardiões e os que ajudam a soltar os amigos
presos em boleadeiras.

Hormes, ignorado por todos, entra pela porta, atravessa


o salão e sobe as escadas, carregando sua fiel mochila-
Lampião.

Com seu apito de canário, Hyp avisa: é hora de fugir. Os


Anansis do salão seguram suas sacolas e fogem pelas
janelas, esquivando-se dos guardiões. Correm rumo ao
caminhão.

Enquanto isso, Cassiopeia e Sadiki correm no andar


superior, atravessando cômodo por cômodo. Chegam a
um quarto com quatro camas de ouro, que parece ser
dos quatro filhos homens da família Symvasi. A porta ao
fundo do quarto está trancada.

“Portas trancadas guardam os melhores tesouros”, pensa


Cassiopeia.

— Sadiki, me ajuda a derrubar.

Sincronizados, Cassiopeia e Sadiki chutam a porta. Faz


um estrondo, mas ela não abre. Ouve-se um grito
feminino — “Ai, meus deuses!” — vindo detrás da porta.
Os Anansis a chutam novamente. Outro estrondo.
Chutam novamente. A tranca de ouro se rompe, tiritando
pelo chão diante os olhos de Theceo, sua esposa
Melpômene e seus quatro filhos homens.
Cassiopeia sorri por baixo da máscara de cerâmica. O
quarto tem muitas, muitas peças de ouro.

Theceo esbraveja:

— Deixe minha família em paz, arruaceira!

A máscara de cerâmica de serpente raivosa aponta para


o rosto de Theceo e diz:

— Sua família não vale nada. A única coisa valiosa aqui é


o ouro. Saiam do caminho.

Cassiopeia corre as mãos pelos móveis, jogando em sua


sacola qualquer coisa que pareça ter muito valor. Sadiki a
imita. Cassiopeia descobre que no fundo do quarto há
mais uma porta. Sadiki a incomoda:

— Vamos. Já enchemos as sacolas. É hora de voltar.

— Não vamos sem saber o que tem atrás dessa porta.

Theceo se lança à frente da porta para impedir os


Anansis de entrarem. Impiedosos, os monstros
mascarados o afastam e o amarram ao pé da cama de
casal com um lençol. Melpômene e seus filhos recuam
até um canto do quarto.

— Por favor, NÃO!!! Não entrem aí!!! — Theceo implora,


tentando se soltar do lençol que prende suas mãos
dando solavancos que arrastam a cama alguns
centímetros adiante. Porém, a distância percorrida é pífia
diante do tamanho do quarto. Theceo não alcançará os
Anansis a tempo de impedi-los.

Com um chute sincronizado, Cassiopeia e Sadiki


arrombam a porta do último cômodo do castelo.

Deparam-se com um quarto decorado com muita


delicadeza. A luz entra abundante pelas grandes janelas.
Há uma elegante cama com dossel transparente. Do
outro lado, sentada no parapeito de uma janela, com um
braço descansando sobre um joelho, está Diceosine. Ela
olha para os invasores. Volta a olhar para o movimento
pela janela. Vê os Anansis entrando na carroceria do
caminhão. Vê que, na boleia, o motorista decide lutar
com um Anansi que carrega uma faca nas mãos. O
motorista é jogado para fora do caminhão. O Anansi que
segurava a faca pega o volante, obedecendo ao
comando de uma mulher com máscara estranha.

— Seus amigos estão indo embora — Diceosine diz, como


se conhecesse os invasores.

Ouve-se um canto de canário. É Hyp, conclamando todos


a subir no caminhão e fugir dali.

As mãos de Cassiopeia tremem. Ela derruba a sacola de


riquezas no chão. Corre e salta, chutando a janela, para
abrir uma rota de fuga. A dura armação de aço a joga de
volta para dentro do quarto.

— Essa janela não abre?


— Sou moça de família. Não posso sair sem que meus
pais saibam, nem mesmo pela janela. — Diceosine fala
como se fosse óbvio.

— O quê? Você é mantida presa em sua própria casa?! —


Cassiopeia não tem tempo de sentir pena da pobre
menina rica. Talvez não sentisse pena, mesmo que
tivesse tempo. Mas ela precisa fugir. — Vamos ter que
correr, Sadiki.

Cassiopeia e Sadiki voltam correndo pelo quarto do casal


Symvasi, onde a família permanece acuada, com o
empresário preso ao pé da cama. Mas os dois Anansis
veem uma figura conhecida entrar correndo pela outra
porta, seguido de guardiões de ferro.

— É o cara de lata! — Cassiopeia não se contém.

Porém, antes que ela conseguisse soltar uma nova


provocação, Hormes tira do bolso um pequeno saco de
pano manchado de óleo e espalha o conteúdo pelo chão
do quarto. São dezenas de esferas de aço, que Hormes
guardava para fazer o rolamento de suas máquinas.

Cassiopeia e Sadiki tentam saltar para escapar das


esferas, mas acabam pisando sobre algumas delas e
caindo, desconcertados. As esferas maltratam os
músculos das costas dos dois Anansis, tirando-lhes o ar
dos pulmões.

Axion vem correndo atrás de Hormes, pensando que o


jovem inventor fosse também um Anansi, quando vê o
ato heroico de Hormes.

— Obrigado, garoto.

Cassiopeia e Sadiki tentam se levantar. Axion não perde


tempo e lança duas boleadeiras, que amarram com
firmeza os braços dos dois invasores.

O guardião de ferro sente orgulho de si. Pede a outros


guardiões que levem os prisioneiros para fora do castelo.
Agradece novamente a Hormes e certifica-se de que a
família Symvasi está fora de perigo.

Diceosine surge na iluminada porta ao fundo do quarto.


Ela vê esferas no chão, Anansis sendo carregados por
guardiões de ferro e um guardião conversando com seus
pais. Vê também Hormes. Hormes a vê.

Hormes sorri.
16

S em o motorista na boleia do caminhão, Hakim se


senta atrás do volante.

— Você sabe o que fazer? — Hyp pergunta.

— Claro que sim! — Hakim olha o painel. “Como é


mesmo que liga isso?”, pensa. Suas mãos percorrem o
eixo do volante até ele encontrar a chave na ignição.
Gira-a. O motor faz barulho. — Viu?

— Vi. Agora, anda!

Os guardiões se aproximam, correndo. Hakim pisa forte


no acelerador. O motor grita. O caminhão não sai do
lugar.

Guardiões cercam o caminhão.

Hakim sua frio. “O motorista mexeu em uma dessas


alavancas...”. O limpador do para-brisa se move. Uma
seta luminosa se eleva na lateral do caminhão. “Anda! O
que falta para esse caminhão andar?!?”.

— Por Ogum, Hakim, você disse que sabia fazer isso


andar! — diz Hyp, abrindo a porta do caminhão para
chutar um guardião. Vendo o guardião rolar no chão, ela
fecha a porta novamente.
Guardiões tentam arrancar Anansis do fundo do
caminhão. Guardiões escalam a lona da carroceria e a
rasgam com furiosos golpes de martelo.

— HAKIM!!! — Hyp grita, já pensando na sua


responsabilidade por não conseguir salvar os Anansis que
estão na carroceria.

Com golpes de martelo, guardiões arrancam a porta do


lado de Hyp. Ela responde chutando os elmos de ferro.

Hakim pisa na embreagem e move uma alavanca.

Um guardião de bronze escala a tampa do motor, diante


da boleia, e ergue o martelo para golpear o para-brisa.

Hakim pisa o acelerador. O caminhão arranca, com toda


a força.

O guardião de bronze desequilibra-se e rola por cima da


boleia. Os Anansis da carroceria, aproveitando a
vantagem dada pelo movimento do caminhão, expulsam
os guardiões que nela subiram, chutando-os para fora.

O caminhão atravessa a pequena rua de paralelepípedos


e corre pelos jardins, arrancando tufos e pintando marcas
de pneu no gramado. Os arbustos podados com
perfeição esmigalham debaixo das rodas. A grade do
motor coleciona fragmentos de estátuas de mármore.
Hakim descobre como engatar a segunda marcha.

Os guardiões perseguem o caminhão, inutilmente. Ele


está ganhando velocidade. Os guardiões lançam
boleadeiras, martelos e escudos, mas os Anansis da
carroceria se divertem rebatendo, agarrando e atirando
as armas de volta.

— Árvore! Desvie! — Hyp agarra o volante e ajuda Hakim


a desviar de uma enorme árvore, forte o bastante para
destruir o caminhão e estragar o “plano” de fuga.

Guardiões de ferro formam uma barreira no caminho


para a saída. Hakim desacelera. Hyp pisa sobre o pé do
amigo, fazendo o caminhão acelerar.

Antes que Hakim pudesse perguntar “Você está louca?”,


Hyp diz:

— Você sabe que não podemos perder essa chance de


sair.

Ao verem o caminhão se aproximar sem frear, os


guardiões tentam escapar do impacto, correndo e
rolando para os lados. O caminhão ainda atinge dois
deles, que são arremessados ao chão e capotam
desengonçados. Os guardiões não atingidos agarram-se
às laterais do veículo. Hyp chuta as mãos do guardião
que se agarra ao vão da porta ao seu lado.

Adiante, no pórtico da entrada, Dário os aguarda. O


caminhão se aproxima, com velocidade crescente.

Dário reúne toda a sua força nos braços e pernas. Entre


os guar­diões, costuma-se dizer que a força do corpo
aumenta conforme se sobe na hierarquia. Então, é hora
de testar o corpo de prata. Ele firma seus pés no chão.
Estende os braços.

As mãos de Dário se chocam com a grade do motor,


deformando-a. Ele pode sentir o calor e o giro das
engrenagens a poucos milímetros de seus dedos. Com o
impacto, Dário é arrastando para trás, com seus pés
arrancando paralelepípedos do chão. O caminhão bate a
lateral esquerda no pórtico da ilha, derrubando os
guardiões de ferro agarrados à carroceria, e segue
caminho por cima da ponte que liga a ilha dos Symvasi
ao boulevard de Megali Axia. Os pés de Dário seguem
deixando um rastro de desorganização nos
paralelepípedos. Guardiões de ferro, levantando-se do
chão, insistem em perseguir o caminhão.

O volante parece ganhar vida, escapando aos dedos de


Hakim e decidindo por si se vai à direita ou à esquerda,
sem avisar, reagindo aos impactos do caminhão contra
as muretas da ponte e das rodas sobre os
paralelepípedos desalinhados. Hakim luta para manter a
direção. A velocidade diminui. Hyp tenta ajudar e puxa o
volante para a esquerda. O caminhão bate em um poste
de iluminação da ponte. Dário escapa de ser esmagado
entre o para-choque e o poste, jogando seu corpo para
rolar sobre o chão. O caminhão arrebenta a mureta da
ponte e se inclina. Cairá na água. Hyp vê os guardiões
que os seguiam se aproximarem.

— Corram! — grita ela.


Os Anansis saltam da traseira do caminhão pela abertura
ao fundo ou por rasgos na lona. Hakim e Hyp saltam da
boleia e alcançam a ponte.

O caminhão tomba no mar, espirrando água.

Dário, logo à frente, se levanta. O guardião de prata está


em posição de reter os Anansis para que os demais
guardiões os alcancem e efetuem as prisões. Resistindo
às dores do esforço que acabara de fazer, ele firma seus
pés sobre o chão.

Quando Hyp se aproxima, seguida de Hakim, Dário


agarra as sacolas dos dois e força-as para baixo,
ajoelhando e fazendo os Anansis caírem de costas no
chão. Dário vê frutas escaparem das sacolas e rolarem
pelos paralelepípedos da ponte.

Jitu vinha logo atrás. Ao avistar Dário reclinado, chuta-o,


afastando-o de Hyp e Hakim. Ajuda-os a se reerguer e
correr.

Os demais Anansis avançam em onda para cima de


Dário. O guardião agarra um objeto dourado que reluziu
em meio àquela gente de pele escura. É um ponteiro do
relógio da casa dos Symvasi. A onda de Anansis se volta
contra Dário. Surgem facas de obsidiana negra.

O guardião de prata se lembra do que aconteceu com


Belerofonte, poucos dias atrás, que quase acabou
esquartejado. Dário deixa-se ser empurrado e cai na
água.
Os Anansis ignoram o guardião prateado e fogem
correndo pela ponte. Guardiões de bronze e de ferro
correm logo atrás.

Ao final da ponte, Hyp toca o apito de canário quatro


vezes. É o código para bater em retirada, cada um por si.
Os Anansis se espalham pelas ruas de Megali Axia.

Uma rica família do bairro nobre assombra-se com os


fantasmas negros de máscaras de cerâmica que entram
saltando pelo quintal e saem buscando o terreno vizinho.
Instantes depois, um guardião de ferro se atrapalha ao
saltar a cerca, cai no chão arrancando tufos de grama e
corre na mesma trajetória que os estranhos fantasmas.

Anansis mais ousados correm pelo interior das casas,


arrancando gritos e aproveitando os labirintos
arquitetônicos para confundir os guardiões em seu
encalço. Saem quebrando vidros de janelas ou saltam do
alto das casas para os telhados vizinhos.

As pesadas couraças dos guardiões tornam-nos lentos.


As botas metálicas derrapam em quase todo tipo de
terreno. É difícil saltar cercas, que dirá saltar de um
telhado para outro. Os Anansis ganham vantagem e
desaparecem.
17

A família Symvasi desce as escadas até o salão. Axion


e Hormes seguem logo atrás. Outros guardiões de
ferro carregam Cassiopeia e Sadiki, amarrados e
amordaçados para que não ameacem a família.

— Eu tentei avisar do ataque dos Anansis — murmura


Hormes.

— Eu agradeço, cidadão — responde Axion, também em


voz baixa. — Estávamos cumprindo ordens bem claras,
por isso, não foi possível ouvi-lo naquele momento.

Melpômene se rompe em lágrimas ao ver o salão


destruído. O relógio de ponteiros de ouro, que muito
orgulhava a família, está tombado, com peças
espalhadas pelo chão. Theceo observa friamente. Os
quatro filhos homens conseguem ler o pensamento do
pai. Ele faz as contas do prejuízo. Chama Ganimedes,
que entra no salão temeroso de que ainda houvesse
algum Anansi escondido ali. O mordomo se alegra ao ver
os guardiões carregando dois Anansis, presos, para fora
do castelo.

Diceosine olha para os destroços. Não parece se


importar. “São apenas coisas”, pensa. Ela se aproveita da
distração dos familiares para falar com Hormes.
— Oi.

— Oi... — Hormes oferece um sorriso sem graça. — Você


está bem? Algum deles a atacou?

— Não... não me atacaram. Estou bem. Eu não esperava


que você fosse aparecer no meio dessa confusão.

Hormes divaga. Como explicar que ele sabia do ataque


dos Anansis? E se Diceosine pensasse que ele era um
Anansi disfarçado? E se o guardião desconfiasse dele?

— Obrigada. Você foi muito corajoso. De novo —


Diceosine desliza a mão sobre o antebraço de Hormes,
despedindo-se suavemente. Vai ao socorro de sua mãe,
que, sentada em um degrau, verte lágrimas, pedindo
abanos para respirar.

Axion deixa o salão e se junta, no jardim, aos guardiões


que recebem de Dário as ordens para reforçar a
segurança na ilha dos Symvasi.

Hormes se aproxima do topo do relógio tombado.


Observa os danos. Escuta Ganimedes dizer:

— O maior problema será consertar o relógio. A máquina


deve estar toda desmantelada.

— Eu posso consertar — diz Hormes, atraindo os olhares


de Ganimedes e Theceo. Nesse momento, o rapaz se
lembra de que não deve falar sem ser chamado. Recua
um passo.
— Consegue mesmo, rapaz? — pergunta Theceo.

Hormes olha o relógio caído. Nunca montara algo tão


grande na vida.

— Consigo, sim; sozinho, não. Preciso de ajuda para


reerguê-lo, claro, e de marceneiros para consertar as
peças de madeira. Mas a máquina... essa eu sei
consertar.

Theceo busca alguma razão para levar a sério aquele


criado de sorriso bobo. Qual era a função dele na casa,
mesmo? Não importa. Theceo nota que o garoto se
empolga com a ideia de consertar o relógio. Resolve dar-
lhe uma chance.

— Ganimedes, providencie tudo o que esse jovem


precisar para consertar o relógio. Chame também
aqueles organizadores que você contratou. Há muita
coisa para arrumar.

Theceo e Ganimedes não se recordam de que Hormes


era um desses organizadores. Constrangido demais para
importunar os seus chefes, ele deixa passar. Theceo,
passando diante de Hormes, procura Dário, o guardião de
prata, para cobrar explicações pela falha de segurança.

***

Horas mais tarde, Momus chega ao castelo da família


Symvasi. Resmunga para si mesmo por não ter
encontrado Hormes na estoa, em casa, em lugar
nenhum.

— Onde está seu subordinado? — pergunta Ganimedes.

— Desapareceu. Ele não leva o trabalho a sério. Estou a


um passo de descartá-lo — diz Momus, esforçando-se
para parecer um chefe firme, que não deixa
insubordinações impunes.

Então, ele dá um passo adiante e avista Hormes no alto


de uma escada, mexendo nas entranhas do grande
relógio e dando ordens a dois marceneiros que
consertam peças de madeira.

Momus se desconserta:

— Ele está... ali... desculpe... como...?

— Ah, ele é o seu subordinado? Eu nem me lembrava —


Ganimedes dá pouca importância. — O imponentíssimo
deu a ele a tarefa de consertar o relógio.

Theceo está sentado em um sofá no canto do salão,


lendo notícias de economia no jornal. Vez ou outra, olha
por cima do escudo de papel para ver como anda o
reparo do relógio. A seu lado está Melpômene, sua
esposa, Diceosine e os gêmeos, Midas e Minos. À frente
deles, uma mesa com chá e biscoitos.

— Oi, patrão! — Hormes saúda do alto da escada. Ele


desce em passos rápidos e, da altura do terceiro degrau,
dá um pequeno salto até o chão. É hora de trabalho
legítimo; o bracelete de Cronos tece fios. Hormes sorri
para Momus o seu sorriso laboral.

— Hormes, o que você está fazendo? — Momus prepara


uma inquisição em sua mente.

— O senhor Theceo me deixou consertar o relógio!

— E você pensa que é só chegar assim e ir consertando?


Isso não é igual à sucata que você desmonta como
passatempo. O que você vai dizer quando ele descobrir
que você não conseguiu consertar de verdade?

O relógio badala.

Momus se cala.

Hormes sorri.

Theceo espia.

Momus toma Hormes pelo braço e o conduz até o jardim.

— Hormes, eu não o contratei para isso.

— Mas, patrão, o impotentíssimo vai gostar...

— Você trabalha para mim! Você tem que me dizer onde


está, o tempo todo. Eu o procurei por horas, na estoa, na
sua casa, em todos os lugares que você frequenta. Você
trabalha para mim, não se esqueça disso.

— Mas patrão...
— Mas o quê, Hormes? Você acha que eu sou idiota?
Você quer roubar a atenção e se tornar um organizador
de ouro, não é? Mas eu sou o seu patrão! Eu tenho que
vencer primeiro, depois eu divido os méritos com você!
Depois de todos esses anos trabalhando naquela estoa
fedida... E você... nem mostra gratidão... Eu trouxe você
até aqui. Você faz o que eu mando — Momus se
entorpece com as próprias palavras.

— Ei, rapaz, vá terminar de consertar o relógio — Theceo,


parado à porta, bloqueia o sol do fim da tarde, que entra
pelo salão e se reflete no chão de mármore.

— Sim, senhor! — Hormes sorri. Olha para Momus.

Momus olha de volta, silencioso por fora.

Hormes entra no salão, satisfeito por dentro.

— Desculpe, mas o senhor ouviu a conversa? — Momus


sua frio.

— Ouvi o bastante — diz Theceo. — Sabe, Momus, eu


costumo descartar os meus recursos quando eles não
correspondem às minhas expectativas. Mas estou vendo
que entre você e... Como é mesmo o nome? Hormes!
Que entre você e Hormes está acontecendo o contrário:
é como se o recurso devesse descartar o patrão. Você
não sabe reconhecer o talento daquele rapaz. Ele é
capaz de fazer coisas muito maiores do que o que você
planejou para ele.
— Mas um patrão precisa impor respeito... — Momus
esboça uma resposta.

— Um recurso assim deve ser valorizado. Vá embora.


Esse rapaz vai trabalhar para mim.
18

É uma sa la de dimensões generosas. De um lado, as


janelas apontam para o jardim lateral da Sede da
Guarda; do outro, as janelas apontam para o grande
anfiteatro central, onde as cerimônias são realizadas. No
interior, a mobília de escritório pede ajuda a sofás,
armaduras, martelos, machados, lanças, espadas e
escudos decorativos para preencher o espaço. A mesa de
escritório, cujas dimensões não são de se desprezar, tem
sua madeira talhada com relevos em homenagem a
Cronos.

O guardião de ouro, Jasão, não está sentado à mesa. Está


em pé, com as mãos atrás da cintura, observando a
movimentação no jardim lateral por uma das longas
janelas. Parece monitorar cada movimento de seus
subordinados.

O guardião de prata Dário entra na sala, calculando a


força de suas passadas para que o ruído anuncie sua
presença sem perturbar os pensamentos de seu superior.
Para não desrespeitar o protocolo, Dário caminha até
ficar a cinco passos da mesa de Jasão, mesmo que seu
superior não esteja ali. Junta os pés, firma as mãos aos
lados da cintura e inspira até que seu tórax se alinhe
respeitosamente.
Dário calcula se deve ou não interromper os
pensamentos de Jasão.

A voz de Jasão retumba:

— Explique.

“Explicar o quê?”, pensa Dário.

— Explique sua terrível atuação na residência dos


Symvasi. Eles moram em uma ilha! É difícil invadir, por
ser um terreno isolado! A ilha foi invadida por terra, por
um caminhão cheio de Anansis. E eles escaparam.
Passando por VOCÊ!

— Senhor, fizemos tudo ao nosso alcance. Não


estávamos preparados para um ataque assim...

— Isso não é desculpa, guardião Dário! O que acha que


vamos ler nas páginas sensacionalistas do jornal
amanhã? Isso vai desmoralizar a nossa corporação —
Jasão espera que o som de sua voz pare de ecoar pelas
paredes da sala. — Você amoleceu, Dário. Fraquejou.
Deixou os Anansis passarem ao seu lado e sequer os
atingiu.

— Mas eu recuperei uma valiosa peça de ouro... Eles só


levaram comida...

— Você ficou com pena porque eles levaram só comida?

O silêncio de Dário diz a Jasão que sim.


— Esse é o problema de ter o coração mole, Dário. No
trabalho de um guardião não há espaço para piedade.
Nós mantemos a ordem, todos os dias, nas ruas. Piedade
é uma fraqueza. Se formos piedosos, as pessoas perdem
o medo dos guardiões. Nossa autoridade vem do medo.

A palavra “medo” ecoa na sala. Os passos de Jasão,


caminhando lentamente para contornar Dário, também.

— Medo, Dário. Quando chegamos a algum lugar, as


pessoas têm medo de serem presas. As pessoas têm
medo de nos dirigir a palavra, porque sabem que podem
ser presas pelas coisas que disserem. As pessoas têm
medo de apanhar dos guardiões. Medo de nossos
martelos. Medo — Jasão fala contornando Dário, cada vez
diminuindo mais a distância. — Sem o medo, o respeito
que essas pessoas têm por nós acaba. O que sobra?
Somente uma guarda desmoralizada, que não consegue
manter a ordem — Jasão para diante de Dário. — Você é
um guardião experiente. Já devia saber que não podemos
ter piedade dos criminosos.

— Sim, se-senhor...

— Você precisa de disciplina, Dário. De mais disciplina. E


de menos coração mole.

O suor frio escorrendo por dentro do elmo incomoda. A


voz de Dário tremula:

— Senhor, fizemos prisões...


— APENAS DUAS PRISÕES, você quer dizer.

— Jasão mostra que está bem informado sobre o que


aconteceu na casa dos Symvasi, sem precisar das
informações de Dário.

— Mas foram prisões importantes! Prendemos a líder dos


Anansis e o meliante que é o braço direito dela — Dário
prende a respiração. Sente seu coração pulsar
fortemente, junto com as artérias do pescoço.

Jasão percebe que há algo errado no que Dário está


dizendo.

— Sim. Essas prisões foram feitas por aquele guardião de


ferro do seu pelotão, Axion Nike. Ele já foi seu amigo, não
é? — Jasão deixa claro que não existe amizade entre
guardiões de patentes diferentes. — Então, decidi
promovê-lo a guardião de bronze. Amanhã teremos a
cerimônia.

Jasão silencia e encara Dário, que evita encarar o elmo


dourado do seu superior. Jasão continua:

— Minha dívida com o seu pai já foi paga, Dário. Não


pense que vou passar o resto da vida ajudando a sua
carreira. Ninguém em sã consciência promove um
guardião vacilante. Não há guardião de ouro com coração
de carne — asseverou Jasão, aproximando seu elmo do
elmo de Dário. — Não vacile novamente. Se vacilar,
teremos o primeiro guardião de prata da história a ser
rebaixado de patente. Entendido?
Dário faz um aceno positivo minimamente perceptível
com a cabeça.

Jasão silencia.

Dário dá um passo atrás, buscando o caminho da saída.

— Mais uma coisa. Ainda não o dispensei.

Dário retorna à posição de cinco passos à frente da mesa


de Jasão. Já havia se acostumado a ficar calado, apenas
ouvindo seu superior.

— Vamos manter esses Anansis presos até que o projeto


Tifão esteja pronto. A líder dos Anansis é mesmo valiosa.
Precisaremos das informações que ela nos fornecerá.

— Ela não é muito colaborativa, senhor — Dário quebra o


silêncio, sabendo que se arrependerá disso.

— ELA VAI NOS FORNECER INFORMAÇÕES. Ou essas


prisões foram perda de tempo, guardião de prata?

— Não, senhor.

Não é possível ver o rosto de Jasão por dentro do


capacete, mas Dário sabe que o guardião de ouro o está
encarando.

Dário espera. Jasão fica em silêncio. Dário dá um passo


atrás, buscando o caminho da saída.

— Mais uma coisa — diz Jasão.


Dário retorna à posição de cinco passos à frente da mesa
do guardião de ouro. A essa altura, já percebeu que Jasão
está apenas testando sua obediência e sua paciência.
Mas ele não pode reagir.

— Aquele agitador, Jan Cândhido, andou incitando


operários a se revoltarem contra os empresários. Estou
ordenando a todos os guardiões de prata que fiquem
atentos às suas ações e me reportem o que ele fizer. —
Se Jan Cândhido iniciar alguma baderna, você deve me
informar imediatamente.

— Sim, senhor.

Dário espera. Jasão o encara:

— Dispensado.

***

Axion sobe ao palco do anfiteatro, observado por seus


colegas nas arquibancadas. Jasão diz, a uma altura que
somente Axion pode ouvir:

— Você finalmente mostrou seu verdadeiro valor, rapaz.


Parabéns.

Jasão toca o bracelete de Cronos. Enquanto suas


couraças se convertem em bronze, Axion relembra sua
conversa com Dário, logo cedo:
— Axion, ensaie esse discurso. — Dário entregou um
pequeno pedaço de papel com um texto escrito a mão.

— Aqui diz que prendemos a líder dos Anansis, mas não é


verdade... — Disse Axion.

— Axion, se você quer mesmo subir de patente, precisa


aprender a guardar alguns segredos. Os líderes não são
sempre tão corretos quanto parecem ser. Se um dia você
quiser chefiar um batalhão, tem que entender isso desde
agora.

— Mas...

— Sem “mas”. Sua promoção virá ainda hoje. Concentre-


se no seu ganho... e no discurso. — Dário fez uma
pequena pausa. — Não se esqueça de me agradecer.
Também preciso de sua ajuda para não perder minha
patente. Você se lembra do quanto eu o ajudei, não é?
Estou ajudando com sua promoção também. Só preciso
que você memorize o discurso.

Jasão conduz Axion à tribuna. A concha acústica projeta a


voz de Axion para toda a plateia.

— Respeitados colegas, guardiões de Nova Ascra. Eu fico


muito feliz com esse reconhecimento recebido de nossos
superiores — Axion vê os olhares desesperançados dos
colegas na plateia e resolve falar de improviso. — Eu não
teria chegado aqui sem a ajuda de grandes guardiões.
Agradeço profundamente os colegas que lutaram a meu
lado nas várias batalhas que tivemos, especialmente
contra os Anansis. Fomos vitoriosos juntos — Axion fixa o
olhar nos colegas. — Dedico minha armadura de bronze a
vocês, e espero que seu reconhecimento também
chegue em breve.

Na plateia, os guardiões aplaudem. Os aplausos não


cessam. Axion simplesmente fez um aceno aos colegas,
agradecendo-os e mencionando que o trabalho de todos
eles deveria ser reconhecido. Era o que Dário tinha de ter
feito quando foi promovido a guardião de prata. Os
colegas estavam realmente sedentos por
reconhecimento.

Dário, em postura de continência, age como se buscasse


uma posição confortável para as pernas e levanta os
calcanhares prateados do chão, batendo-os em seguida
contra a pedra do assoalho. Axion sabe de onde vem
aquele barulho. Sabe o que ele significa. Volta a proferir
o discurso ensaiado:

— Foi com o valioso apoio de nosso chefe de pelotão, o


guardião de prata Dário, que conseguimos prender a
líder dos Anansis e o seu aliado. Com as informações que
conseguiremos deles, desmobilizaremos os Anansis e
livraremos Nova Ascra de seus crimes!

Alguém na plateia pergunta:

— Quando vocês vão interrogar a líder dos Anansis?

Jasão afasta Axion da tribuna e anuncia:


— Assim que o projeto Tifão estiver pronto. Não posso
revelar detalhes agora, mas esperem algo grandioso.
Esse projeto trará ordem à nossa cidade!

Os guardiões aplaudem Jasão vigorosamente. Axion


comemora, em pensamento, o fato de finalmente haver
um plano, um projeto da Guarda acabar com os Anansis
definitivamente. Ao menos é o que parece ser.

Cassiopeia, trancada sozinha em uma cela no subsolo da


Sede da Guarda, escutou o discurso. “Eles pensam que
eu sou a líder? O que vão fazer comigo? O que é o
projeto Tifão?”, pensa. Ela procura o olhar de Sadiki na
lotada cela do outro lado do corredor. Sadiki dorme no
chão, roncando desavergonhadamente, misturado a
outros homens que também não encontram conforto
para dormir. É impossível terem uma conversa particular
ali. “Preciso descobrir o que é esse projeto Tifão e avisar
aos outros Anansis. Mas como?”.

No anfiteatro, os guardiões de ferro e de bronze


aplaudem vigorosamente das arquibancadas. O coração
de Axion, que não se convertera em metal, treme de
amargura ao perceber seus colegas vibrando ao som da
mentira. Axion sabe que Dário está escondendo algo,
pois mentiu sobre Cassiopeia ser a líder dos Anansis. Ele
é cúmplice de algo mais sério, e uma promoção
carregada de culpa não parece ser tão saborosa. As
palavras de Calina voltam a incomodar sua mente.
“Desse dia em diante, o que eu vou fazer diferente, como
guardião de bronze? Será que isso era mesmo o que eu
queria? Se eu me tornar um guardião de prata ou de
ouro, terei que guardar mais segredos... e falar mais
mentiras?”.
19

H ormes ganhou uma nova moeda de ouro. Desta vez,


foi Theceo quem o presenteou. Com essa moeda,
Hormes passa sem dificuldades pelos guardiões que
protegem o grande portão da ilha da família Symvasi.
Theceo sempre o recebe com um sorriso bastante
interessado. Pede ao rapaz que conserte máquinas que
apresentam defeito.

Sempre há máquinas para Hormes consertar. Motores de


carro, relógios, rádios transistores, máquina de costurar,
cortador de grama... Theceo parece não ter muita sorte
com as máquinas, elas estão sempre quebrando.

Hormes não ganhara de Theceo um bracelete de Cronos.


O rapaz nem sequer se lembra de pedir algumas moedas
pelos seus serviços. Ele faz tudo com muito gosto,
movido pelo prazer de mexer nas máquinas e pelas
oportunidades de ter alguns minutos por dia para
conversar com Diceosine. Com algumas peças extras,
sempre inventa algo para impressionar a moça. Um
pássaro voador movido a corda. Um jarro que conserva a
água quente para ela lavar o rosto pelas manhãs. Botas
de solado silencioso (“para que ela pediu isso?”).
Esculturas de ímãs que podem mudar de forma como a
jovem quiser. Blocos de papel com desenhos que,
quando folheados, parecem se mexer.
Mas o presente preferido foi um abajur giratório de
cobertura opaca, com orifícios em forma de planetas e
constelações cuidadosamente lapidados por Hormes.
Essa invenção transformava qualquer sala em um
planetário. Ela levou o abajur para o seu quarto — aquele
quarto cuja única porta só podia ser acessada pelo
quarto dos seus pais. Lá, a entrada de Hormes é proibida.
Já que a jovem não pode sair do quarto no meio da noite
para contemplar as estrelas, o planetário é a melhor
distração em sua clausura noturna.

O tempo que Hormes tem para conversar com Diceosine


é sempre curto. Eles se sentam na grama, perto de uma
margem da ilha. O rapaz aprecia a luz do sol poente
refletida nas águas do arquipélago de Megali Axia. No
bairro onde ele mora, Ble-Kolara, ao contrário, tudo
parece ser pintado nos tons de marrom da fumaça das
fábricas.

Hormes tenta explicar para Diceosine seu plano de


aumentar a produtividade das indústrias com máquinas
novas. Mas Diceosine não parece se importar. Diz a
Hormes que ele está preocupado com as coisas erradas e
que deveria se preocupar com as precárias condições de
trabalho dos operários.

— Eu me importo com os operários também, Diceosine —


explica Hormes. — Quando aumentarmos a
produtividade das fábricas, eles ganharão salários mais
altos e poderão trabalhar menos horas por dia. Todos
viverão melhor.
— Acho que não é tão simples assim — diz Diceosine. —
Cronos não mudaria o tempo de trabalho diário só
porque as fábricas ficaram mais produtivas.

— Como você sabe disso? Já conversou com Cronos, por


acaso?

— Eu, não; mas meu pai conversa com ele toda semana.

— Tá, todos podemos pedir coisas aos deuses. Todo


mundo “conversa” com os deuses — Hormes fala com
desdém, incrédulo.

— Não, Hormes. Ele conversa mesmo com Cronos. E


Cronos responde.

Hormes precisa de alguns segundos para absorver o que


acabara de ouvir. Diceosine não parece estar brincando.

— Como ele encontra Cronos? Aqui em Nova Ascra só


temos o Templo de Nomos. É lá que eles se encontram?

— Não. O encontro acontece no Belvedere dos Titãs, toda


segunda-feira pela manhã. Somente homens de negócio
podem ir até lá.

— Você já foi lá?

— Não, Hormes — Diceosine suspira. — Eu falei que


somente homens de negócio podem ir. Homens .
Mulheres não podem ir. Meu pai apenas me conta o que
Cronos diz, fazendo sermões na hora do jantar.
— Será que eu poderia falar com Cronos também?

Diceosine, sisuda, encara o rapaz. É difícil dizer se ela


está queimando de raiva porque ele não se importou
com a proibição de mulheres subirem ao Belvedere dos
Titãs ou se quer devolver a Hormes a mesma indiferença.
De todo modo, sente um certo prazer vingativo ao dizer:

— Homens de negócio , Hormes. De negócio . Você


também não pode ir.

Hormes percebe o que ela quer dizer. Desvia o olhar.


Apesar de discordarem sobre quase tudo na vida,
Hormes e Diceosine querem muito se dar as mãos.
Sabem que estão sendo observados. Desistem.

Theceo e Melpômene se revezam, observando de longe.


Sempre que Hormes e Diceosine ficam muito perto um
do outro, Melpômene pede a uma copeira que leve uma
bandeja de lanche para eles, apenas para interrompê-los.
Depois acena, de longe, mostrando que está atenta aos
movimentos dos dois. Theceo, quando quer interromper,
faz diferente: chama Hormes para consertar alguma
coisa.

***

Perseo, Nereo e os gêmeos Midas e Minos, todos irmãos


de Diceosine, ficaram muito curiosos pelas habilidades
de Hormes. Os meninos ricos encomendam pequenos
brinquedos, como carrinhos, balões de ar quente, barcos
a vapor que são testados nas águas à margem da ilha e
pequenos robôs que movem os braços graças a
mecanismos reaproveitados de relógios de corda.

Theceo, apreciando as habilidades do rapaz, pede ao


mordomo Ganimedes que providencie peças e
ferramentas. Hormes se maravilha por ter tudo de que
precisa para inventar o que quiser. Suas habilidades
melhoram a cada descoberta, a cada novo teste, a cada
vez que supera uma dificuldade para criar algo que
divirta os filhos ou encante a filha de Theceo.

A rotina de Hormes mudou. Sem o dinheiro do seu


bracelete de Cronos, durante as manhãs ele ajuda a
família fazendo compras, arrumando a casa e...
auxiliando a irmã a cuidar de seu pai, que pegou uma
gripe forte. Não tem emprego, mas sente-se útil.

À tarde, Hormes monta em sua minimoto, atravessa o


propileu, desce até o boulevard de Megali Axia e chega à
ilha dos Symvasi. Põe-se a atender os desejos da família
rica: pequenos consertos, novos brinquedos. Quanto
mais difícil de fazer, mais Hormes se dedica. Theceo nota
que as máquinas de Hormes ficam mais sofisticadas a
cada dia.

À noite, Hormes janta junto com os empregados da


família. Volta para casa e recomeça tudo de novo no dia
seguinte.

Certo dia, Diceosine aproveitou um momento de


distração de seu pai e puxou Hormes pelo braço. Ela
conhece um lugar onde eles não serão vistos. Próximo ao
estábulo, há uma árvore de tronco largo que tem, em um
dos galhos, uma velha roupa de arrumadeira. Era lá que
Diceosine, fingindo ir cavalgar, trocava de roupa e fugia
para visitar a cidade.

— Esse é o meu segredo — diz Diceosine. — É assim que


consigo sair. Eu empresto minha roupa de cavalgar para
uma empregada... Ela adora andar a cavalo. Quando
volto, troco de roupa. Não conte isso para ninguém, está
bem?

— Sim! Digo... Não! Não vou contar a ninguém — garante


Hormes.

Hormes não está acostumado à beleza do sol poente


refletido nas águas de Megali Axia nem à beleza de
Diceosine vista de tão perto. Ela tem uma sensualidade
natural difícil de explicar... e de resistir.

Diceosine, mesmo achando esquisito o fato de aquele


rapaz ter um rosto de ferro, mesmo estranhando as
coisas que ele diz, sente que há nele uma bondade
incomum. O incomum a atrai.

Eles se aproximam, aproveitando que estão longe de


todos os olhares. Sentem a respiração um do outro
aquecer os lábios. Fecham os olhos.

— Jovem Hormes, o imponentíssimo o convida a jantar


com sua família hoje — anuncia Ganimedes.
— Me-me-me-meus deuses, Ganimedes! Você quase me
mata do coração! — Hormes recua de sobressalto.

Diceosine ruboriza e esconde as bochechas em suas


mãos. Ela pede:

— Não conte nada aos meus pais, por favor, Ganimedes!

Ganimedes sorri e diz:

— Eu não sei o que eu poderia contar, mademoiselle . Eu


nada vi — com o sorriso de lado, Ganimedes pisca o olho
para Diceosine.

Ela retribui o sorriso.

Enquanto isso, Hormes tenta se aprumar e pensa em


uma forma de não dizer besteiras em resposta ao
convite. Ganimedes continua:

— Acompanhe-me. Você precisa tomar um banho.

***

— Foi ideia de Diceosine chamar o rapaz para jantar, não


foi? Estou preocupada. Nossa filha gosta muito dele —
diz Melpômene em frente ao espelho do banheiro,
enquanto alinha fios de cabelo ainda teimosos, fazendo-
os render-se às ordens da escova.

— Foi, sim. Mas não se preocupe. Quero que ele vá


trabalhar na fábrica. Farei dele um homem muito
ocupado — Theceo lava as mãos e ajeita o cavanhaque
com a mão molhada. — Ele não terá muito tempo livre
para visitar Diceosine.

Melpômene olha para o reflexo do marido no espelho. Ele


parece muito calmo. Mais calmo do que deveria. Sua filha
está interessada por um rapaz de ferro e pode acabar
com a herança da família em um casamento sem futuro.

— Mas e se isso não for suficiente? E se ela ainda tentar


se manter próxima a ele?

Theceo suspira. É precipitado, mas ele tem que dizer:

— Há algo especial nesse rapaz, Melpômene. É a minha


intuição de homem de negócio. Ele tem um futuro
promissor — Theceo olha diretamente para a esposa
agora. — Há grandeza nele, e ele só precisa descobrir
isso. Ele é como aquele meu amigo, o Epifron, que
nasceu numa família de ferro e hoje é um homem de
ouro. Talvez ele venha a ser um homem digno de casar
com nossa filha.

Melpômene mal reconhece o homem que proferiu


aquelas palavras. Theceo sempre foi um pai ciumento,
superprotetor para a filha. Agora, ele aceita que um
rapaz de ferro se aproxime dela? Ele deve mesmo gostar
dele.

— Veja só, querida. Diceosine anda tendo ideias malucas,


dizendo que os operários sofrem na fábrica. Ela quer
acabar com meus negócios — diz Theceo. — Mas esse
rapaz, o Hormes, está sempre discordando dela. Ele fala
em aumentar a produtividade da indústria. Ele sabe o
que quer. Além de consertar máquinas, acho que ele
pode consertar a cabeça da nossa filha.

— Espero que você esteja certo...

— Não se preocupe. Não permitirei casamento, namoro,


nada disso. O rapaz precisa primeiro se tornar um
homem de ouro antes de tocar em nossa filha — Theceo
seca o rosto, olhando-se no espelho. — É por isso que
estou tão atento.

***

Um par de sapatos reluzentes. Calça com um notável


vinco e ainda um pouco do calor do ferro de passar.
Camisa branca de botões sob um colete e gravata
borboleta. Não parece, mas é o Hormes. Seu caminhar
desengonçado o denuncia. O cheiro de sabonete barato
também.

Theceo se senta à ponta da mesa. À sua direita, Perseo,


Nereo, Midas e Minos. À sua esquerda, a esposa
Melpômene e a filha Diceosine. Ganimedes indica a
Hormes um lugar ao lado de Minos.

Minos observa e se diverte com a inabilidade de Hormes


em lidar com cinco taças, três pratos, quatro colheres,
três garfos e cinco facas. Todos com formas e tamanhos
diferentes. Minos, com a frágil autocensura de seus sete
anos de idade, dispara:
— Hahaha! O Hormes não sabe comer à mesa!

Hormes sorri e assim disfarça seu desconcerto.

— Minos! Mostre seus modos! — a censura vem de


Diceosine. — Hormes, não se preocupe. Realmente, é um
exagero essa parafernália que usamos à mesa aqui em
casa.

Hormes agradece com o olhar. Diceosine observa as


pessoas ao seu redor. Há um enorme abismo entre o
estilo de vida dos Symvasi e o do convidado. A jovem
olha para o pai, que aprecia a textura de uma bruschetta
de pão artesanal feito com grãos do além-mar, coberta
com queijo brie e salmão.

— Pai...

— Diceosine, não aborreça seu pai. Ele teve um dia cheio


— Melpômene tenta evitar uma discussão na frente do
convidado.

Mas a garota insiste:

— Pai, por que vivemos uma vida tão mais abastada do


que as outras pessoas? Há justiça nisso?

Midas toma a palavra, mostrando ao pai e aos irmãos o


que aprendera:

— Porque nós somos abençoados pelos deuses. Nós


somos fiéis à Lei de Cronos.
Theceo sorri. Ensinou bem o menino.

Hormes se lembra do que seu pai lhe dissera quando


atirou o alfaiate autômato ao rio. Sem envergonhar-se da
própria ingenuidade, pergunta:

— Como Cronos escolhe a quem abençoar?

Diceosine gosta da pergunta feita por Hormes. Ela sorri.


Perseo, Nereo, Midas e Minos encaram Hormes, julgando-
o por questionar a sabedoria de Cronos. Melpômene não
o julga, pois nada esperava dele.

Theceo sabe que Hormes não tivera a mesma educação


de seus filhos. Aproveita a oportunidade para mostrar-
lhes como agir com liderança professoral. Pigarreia
discretamente para melhorar a voz e invocar a atenção
de todos. Então, conta uma história:

Cronos, o Deus do Tempo, e seu filho Nomos, o Deus da


Lei, propuseram à nossa mãe-terra, Gaia, um acordo para
pôr fim às disputas entre os deuses e entre os homens.
Pelo acordo, uma nova ordem social foi estabelecida.
Cronos convocou os homens de grande potência e deu a
eles luvas de platina, como esta aqui.

Theceo ergue a mão esquerda e deixa sua luva de


platina reluzir ante os olhos de Hormes.

Em seguida, Cronos recriou a raça de ouro; a primeira


raça de homens, que eram nobres e justos, tão honestos
que a lei lhes era desnecessária. Viviam sem castigos e
sem medo, e obtinham alimento sem arar a terra.

Mas desta vez não seriam todos os homens dignos de


viver como na Era de Ouro. Para viver assim, é preciso
mostrar mérito. E, assim, Cronos decidiu que todas as
raças viveriam ao mesmo tempo. Por isso, recriou
também as raças de prata, de bronze e de ferro.

Quando nascem, as pessoas não pertencem a uma raça,


mas elas podem se tornar uma raça de metal quando
recebem um bracelete de Cronos. As luvas de platina são
também chamadas de mãos originárias, porque podem
dar origem a braceletes de ouro, prata, bronze e ferro. Os
braceletes de Cronos feitos de ouro podem criar todos os
metais inferiores. Os de prata podem criar braceletes de
bronze e de ferro. E os braceletes de bronze podem criar
apenas braceletes de ferro.

Cada metal tem seu valor na sociedade. É assim que


funciona nossa ordem social. Os homens de maior mérito
recebem mais pelo seu tempo.

Theceo encara Diceosine:

— É por essa razão que vivemos uma vida mais abastada


do que a das demais pessoas. Somos mais dignos de
viver como na Era de Ouro.

Hormes absorve as palavras de Theceo. É simples, faz


sentido. Mas...
— Por que a diferença de valor é tão grande? — pergunta
Diceosine, interrompendo os pensamentos de Hormes. —
Ganhamos muito mais do que conseguiríamos gastar em
uma vida, mas vejo pessoas aí na rua trabalhando por
muitas horas para conseguir o que comer ao final do dia!

— Essa diferença de valor é justa! Nós damos os


empregos que essas pessoas precisam para viver! Não é
fácil ter tantas pessoas dependendo de você, sabia? Você
não sabe, porque é mulher e passa o dia em casa, mas o
meu trabalho, o trabalho da minha família por gerações,
tem sido manter essas pessoas trabalhando para que
elas tenham o que comer, sim! — Theceo tenta controlar
seu ímpeto para não parecer tão agressivo diante de
Hormes. — Mas que história é essa de que você viu
pessoas na rua? Anda saindo da ilha?

Diceosine se cala. Disse algo que não deveria dizer.

Para Hormes, aquela é a oportunidade que ele tanto


tinha esperado. Ele pode pedir a Theceo que permita que
seus funcionários trabalhem menos do que dezesseis
horas por dia, para que passem mais tempo com suas
famílias.

— Senhor Theceo, a cada dia fazemos máquinas


melhores que aumentam a produtividade...

— E o mundo ainda precisa de muito mais produtividade.


Ainda há muita gente que precisa comprar coisas para
viver — Theceo sorve um vinho aveludado de uvas da
variedade agiorgítiko .
— São as mesmas pessoas que trabalham nas fábricas, e
elas não ganham o bastante para comprar os produtos
que fabricam! — Diceosine se enerva. — Um dia, meu
pai, o senhor vai entender. Terá fabricado muitos carros,
mas não haverá pessoas com dinheiro para comprá-los,
porque o tempo delas não vale quase nada nos
braceletes de Cronos!

Theceo desconfia que alguém está colocando ideias na


cabeça de sua filha. Bem, um empresário importante
nunca deixa uma provocação sem resposta:

— Eu não controlo o valor do dinheiro! Essa é a parte de


Nomos no acordo. Pela Lei, se você quer comer, tem que
trabalhar e ganhar seu dinheiro! Cabe aos deuses decidir
quanto vale o tempo de cada um.

Hormes divaga, enquanto tenta acompanhar a conversa.


“Diceosine tem razão, porque o valor do tempo de quem
trabalha nas fábricas é baixo. Porém, se eu criar
máquinas para aumentar a produtividade, Theceo poderá
distribuir mais riquezas para as famílias de operários. O
que Theceo explicou faz sentido, e todos o apoiam,
menos Diceosine. Ela está muito nervosa; adoro vê-la
gesticular, brava assim... Os cabelos dela dançam
enquanto ela fala, agitando a cabeça. Ela é linda... Se
Ganimedes não tivesse aparecido, eu a teria beijado...”.

— Então, Hormes, o que você acha? — Diceosine


pergunta.
Hormes não tem a mínima ideia do que responder. É
difícil admirá-la e prestar atenção ao que ela diz ao
mesmo tempo. Mas ela aguarda uma resposta. Theceo
olha como quem aguarda uma resposta também. Os
irmãos também aguardam.

— Eu acho que sim, com certeza é melhor desse jeito —


responde o rapaz.

— HORMES?!? — Diceosine, espantada, vê-se forçada a


admitir uma derrota na discussão.

— Viu? Nossa ordem social é perfeita. Até um trabalhador


de ferro sabe disso — Nereo comemora a vitória dos
homens da casa sobre a irmã de ideias tortas.

Não era exatamente isso que Hormes queria. Diceosine


está enfurecida. Ele precisa de tempo para refletir, mas
não dá para voltar atrás no que disse. Há um ar de
aprovação na forma como Theceo diz:

— Amanhã o levarei para conhecer a fábrica.


20

É pela entrada oeste que chegam todos os recursos das


Indústrias SYM: metal, carvão, ferramentas, óleo, água,
rolos de tecido, espuma para estofamento, tinta,
borracha, operários. Hormes, com suas roupas marrons,
não se distingue do rio de operários que segue para lá.
Deixou Lampião em casa. O robozinho poderia parecer
algo muito rudimentar para se levar à fábrica mais
importante da cidade.

Mas Theceo dissera a Hormes, muito claramente, que ele


deveria entrar pela entrada norte da fábrica. A entrada
norte não parece ser de uma fábrica. O enorme jardim
frontal, com uma fonte no centro cercada de estátuas, e
a entrada com portas com desenhos geométricos em art
déco dão àquela entrada das Indústrias SYM o aspecto de
ser algo vindo de anos no futuro. Alguns carros luxuosos
contornam a fonte para o desembarque de executivos de
ouro, com cabelos dourados, sapatos dourados e
gravatas douradas.

Hormes entra pela rua do jardim a passos firmes. Seu


coração bate acelerado. Ele está a poucos passos de
trabalhar em uma fábrica, mostrando sua criatividade
para fazer máquinas mais produtivas. Isso fará a
diferença na vida das pessoas. Theceo o entende.
Diceosine também o entenderá. Talvez tenha uma nova
chance de pedir a Theceo que converse com Cronos para
mudar a lei.

Mas ele para diante da fonte. Observa os carros luxuosos


fazendo a volta. Deveria mesmo entrar por ali? Se ele
não sabia nem sequer usar os talheres da casa dos
Symvasi, saberia se comportar no meio de tantas
pessoas douradas? Hesita. Mas foi por ali que Theceo
havia dito que ele deveria entrar.

Vê um desses executivos dourados subir as escadas e


entrar pela porta central na entrada norte. Corrige a
postura, imitando o executivo, deixa a coluna reta e
empina o nariz. Segue o mesmo caminho.

Os passos de Hormes ecoam no hall da entrada. Algo na


acústica do lugar denuncia que os passos do rapaz não
têm a mesma elegância que os passos dos executivos
dourados. Atento a isso — e também à escandalosa
inadequação das roupas do rapaz –, um guardião de
bronze se aproxima.

— Você está no lugar errado. A entrada dos recursos


humanos é no lado oeste da fábrica, junto com os outros
recursos. — O policial tem um rosto metálico carrancudo,
sisudo, mal-humorado. Seu posto de vigilância exige que
mostre autoridade no olhar.

— Mas eu vim falar com Theceo. Ele pediu...

— Theceo não está disponível.


Mas Hormes vê Theceo entrar no salão e se aproximar.
Sua aparência é totalmente diferente da dos demais
executivos. Ele usa um refinado terno preto e tem um
rosto orgânico, com cabelos grisalhos contornando a
testa calva e o cavanhaque bem aparado. Theceo, com
sua luva de platina, toca gentilmente o ombro do
guardião.

— Desculpe, eu não avisei à Guarda. Eu estou esperando


esse rapaz. Ele se chama Hormes Aedo. Por favor, avise
aos demais.

O guardião assente. Pede a Hormes que diga seu nome


completo. Usando um radiotransmissor, o guardião avisa
a seus colegas:

— Theceo recebe um rapaz de rosto de ferro, de nome


Hormes Aedo. Deixem o rapaz entrar.

Hormes sorri seu sorriso de sempre. O policial encara de


volta, com seu rosto carrancudo de sempre. Abre
caminho.

Com a luva de platina sobre o ombro, Hormes segue o


caminho indicado por Theceo até o elevador. As portas se
abrem e revelam algo raro. Um homem da raça de ferro
usando terno. Ele opera a alavanca do elevador. Theceo
pede o décimo sexto andar, o homem de terno de ferro
move a alavanca.

— Preciso de terno para entrar, Theceo?


— Sim. Mas não se preocupe com isso agora. Você ainda
precisa passar por alguns testes.

— Que tipo de testes?

— Você logo verá.

O elevador de Theceo, assim como a fachada da entrada


norte, parece ter sido trazido do futuro. Ele é amplo, com
paredes de vidro. O chão e o teto são decorados com
ladrilhos geométricos, lembrando as formas que Hormes
vira na fachada alguns minutos antes.

Pelo vidro, Hormes vê, de um lado, o elegante salão da


entrada norte e, do outro, o chão de fábrica, com muitas
pessoas se posicionando diante das máquinas para
trabalhar. O chão de fábrica se distancia. As enormes
máquinas movimentavam esteiras cheias de peças,
prensas, caldeiras, máquinas de pintura, motores,
estofamentos, faróis, até a montagem final dos veículos.
Subindo acelerado, o elevador atravessa os andares, com
muitas outras máquinas e operários organizados em
vários mezaninos. Há pouco tempo para contemplar as
novidades.

No décimo sexto andar, as portas do elevador se abrem.


Não é um lugar onde pessoas fabricam coisas. Não há
ferramentas ou peças para usar ali. Há uma sala, com
uma enorme janela, de onde se pode ver o chão de
fábrica e todos os mezaninos onde os operários
trabalham. Hormes deseja passar o dia inteiro olhando a
janela. Mas não terá tempo para isso.
Homens de ouro e de prata, mais habituados que Hormes
àquela sala e desprezando a beleza da vista da fábrica,
se debruçam em uma mesa abarrotada de papéis.
Quando avistam Theceo conversando com Hormes,
perguntam ao patrão quem é aquele rapaz de rosto de
ferro.

— Este rapaz, senhores, é a promessa de inovação para


as Indústrias SYM — anuncia Theceo. — Peço a todos
vocês que apresentem os projetos de nossa fábrica a ele
e testem sua capacidade de resolver problemas.

Theceo se despede e, tomando o elevador, diz que


voltará mais tarde. O elevador segue para os andares
superiores.

Hormes sorri, mas está surpreso e treme por dentro.


Nunca haviam depositado nele tanta expectativa.

***

Hormes sabia o que eram plantas de projetos. Mas nunca


tinha visto uma de perto. Ele admira a riqueza de
detalhes nas enormes folhas de papel.

— Ei, garoto, você ainda tem muito a aprender. Aposto


que não sabe ler uma planta — diz um engenheiro de
prata, Ftonos.

Hormes percebe na rudeza daquelas palavras que Ftonos


não será um amigo. Mas não aceita a provocação:
— Eu aprendo depressa. Basta me deixar ver a planta.

Prometeus, engenheiro de ouro, sorri com a petulância


do rapaz.

— Não ponha suas mãos desajeitadas aqui. Vai estragar


nossos projetos. Você nunca aprenderá... — Ftonos tenta
tomar a planta das mãos de Hormes.

Hormes esquiva, virando as costas para Ftonos,


segurando a planta fora do alcance do engenheiro
rabugento, assim como Cassiopeia no dia em que ela lhe
roubou a moeda de ouro.

— Está com medo, Ftonos? Você acha que esse rapaz vai
fazer um trabalho melhor e roubar seu lugar na fábrica?
— Prometeus provoca, colocando seu braço dourado no
caminho e impedindo que Ftonos alcance a folha nas
mãos de Hormes.

Ftonos não reage por fora, mas ferve por dentro. Ele tem
coragem para afrontar pessoas de metal menos nobre,
mas nunca afrontaria uma pessoa de ouro. Respira fundo
e dá um passo para o lado, de modo que Hormes possa
analisar a planta.

— Eu não tenho nada contra ele. Só acho que ele não


tem condições de ler uma planta — insiste Ftonos. —
Pode-se ver que ele nunca entrou em uma universidade.
Ele não tem qualquer qualificação! O que Theceo quer
trazendo-o para cá?
Hormes simplesmente ignora a ladainha de Ftonos.
Aponta para a planta e diz:

— Vocês querem fazer um guindaste suspenso que


percorra toda a fábrica, mas estão tendo problemas com
as colunas de sustentação do telhado. Vocês desenharam
barras de sustentação móveis, com trilhos nos cantos da
fábrica, mas as barras se chocam com as colunas.

Ftonos morde os lábios. Prometeus sorri de canto de


boca. O garoto está certo. A máquina que os engenheiros
estão tentando desenvolver é um guindaste que mova as
carrocerias de automóveis quase completamente
montados até a área onde elas são encaixadas aos
chassis. Porém, o guindaste esbarra nas colunas internas
da fábrica.

— Você tem alguma ideia de como resolver isso, rapaz?


— pergunta Dédalo, outro engenheiro de ouro.

— Sempre se encontra um meio — Hormes já rascunha


em pensamento as alternativas para resolver o
problema. — Primeiro, podemos deixar o guindaste mais
leve se parte do motor de suspensão permanecer fixo em
um canto.

— Ideia ridícula — bufa Ftonos.

Prometeus ignora a bravata. Continua a ouvir Hormes,


que também ganha a atenção dos demais.
— Você quer dizer que o rolo do cabo de aço e o rotor
podem manter-se fixos e só um motor secundário e as
polias ficariam na parte móvel do guindaste? — Dédalo,
engenheiro de ouro, mostra-se curioso pela simplicidade
da solução.

— Sim. Em vez de barras de sustentação móveis,


faremos a peça móvel do guindaste correr sobre trilhos.
Assim, podemos fazer o guindaste correr em qualquer
direção e contornar qualquer obstáculo fixo.

Ícaro, engenheiro de prata, admite:

— É, não pensamos nisso antes.

— Parece que estávamos apostando em uma solução


mais complicada, quando a mais simples estava diante
dos nossos olhos. Impressionante, meu jovem —
Prometeus compreende o talento que Theceo viu no
rapaz.

— Não funciona. Com uma parte fixa e outra móvel, o


cabo de aço terá que fazer curvas quando a parte móvel
contornar uma coluna. O cabo não vai fazer a curva no
ar. Você pensou nisso, gênio? — alfineta Ftonos.

Epimeteu, engenheiro de prata, discorda:

— Bom, acho que temos detalhes a resolver, Ftonos, mas


o projeto tem chance de dar certo, sim. Vamos estudar
as soluções.
Assim, passam a manhã discutindo. Hormes, desafiado a
mostrar que saberia desenhar uma planta, mune-se de
régua e lápis. A cada traço, uma crítica de Ftonos. Mas o
novato retruca, comedidamente, para não perder o foco
sobre a tarefa que lhe foi dada.

À tarde, convidam Theceo à sala da engenharia e


apresentam o projeto. Prometeus, por tradição, explica
ao chefe o que será feito. Ele elogia as ideias de Hormes.
Ftonos alerta para os problemas e os custos do projeto.
Mas Theceo o aprova. De tudo que ouviu, o que mais o
impressionou foi a rapidez com que Hormes resolveu um
problema que os cinco melhores engenheiros da cidade
não conseguiam resolver havia dois meses.

— É, garoto, você passou no primeiro teste. Vamos


continuar.

***

Hormes entra no elevador de paredes de vidro, conforme


instruído. Já há três semanas frequenta a fábrica. Ele já
está habituado à elegância da entrada norte e à enorme
sala dos engenheiros. Desta vez, porém, foi convidado a
subir até a sala de Theceo, no vigésimo andar.

O elevador sobe, alcançando o teto da fábrica no décimo


nono andar. Atravessa o teto, sustentado por quatro
colunas metálicas. A fábrica e a cidade de Nova Ascra
ficam lá embaixo. Ao redor do elevador, apenas nuvens
de fumaça. À sua frente, Hormes vê as doze enormes
colunas da torre SYM, com elegantes vincos geométricos.
Elas são mais largas na base, mais estreitas no topo.
Conforme o elevador sobe, elas parecem afinar-se. O
elevador, então, atravessa um volume mais denso de
fumaça. Chega ao topo, onde abre as portas para uma
recepção ampla, com janelas enormes. O lugar parece
pairar sobre as nuvens de fumaça. Uma secretária de
bronze aguarda Hormes no hall da recepção. Quando ele
entra, as enormes janelas lhe oferecem uma vista quase
infinita. A fumaça das fábricas corre sob os rodapés das
janelas, que começam no chão e se estendem a sete
metros de altura. Atrás da fumaça, o mar se estende até
encontrar as nuvens naturais, aquelas que não são feitas
pelas fábricas. Navios trilham a linha do horizonte. A
leste, vê-se um pedaço de Megali Axia, com a ilha
Symvasi se destacando da parte continental. A norte, vê-
se o topo do morro de Palami, com seu teleférico
chegando com sucata para o ferro-velho. A nordeste, o
Belvedere dos Titãs. A oeste, veem-se montanhas e a
rodovia que liga Nova Ascra a outras cidades.

Hormes volta a caminhar acanhado, como se fosse seu


primeiro dia na fábrica. Aquela sala deve ser frequentada
apenas por pessoas muito, muito elegantes mesmo. Ele
calcula seus passos rumo à mesa de Theceo.

— Chamou, patrão?

— Sim, chamei — Theceo larga sobre a mesa os papéis


que lia. Hormes merece total atenção. A maioria dos
empregados da fábrica se sentiria honrada.
O empresário fita o rapaz.

A lgo intriga Theceo. Hormes já trabalhava entre os


engenheiros da fábrica havia três semanas, mas nunca
pediu um bracelete de Cronos. Nem de bronze, nem de
prata, nem de ouro. Faz o trabalho de graça. Qual é o
interesse daquele rapaz? Ele parece gostar do que faz.
Mas sem receber nada por isso? Já que Hormes não diz
seu preço, Theceo se sente à vontade para escolher
quanto pagar. Mas... Não, não é bem assim. Theceo sabe
que Hormes é valioso. Qual seria o preço certo a pagar
por esse talento?

Hormes não é como os demais engenheiros. Eles vieram


de boas universidades. Já se esperava que eles não
começassem a carreira do ponto mais baixo. Eles
começam como homens de prata.

Hormes, no entanto, vem de uma família de operários de


ferro. Não teve estudo, a não ser o esforço autodidata. É
um talento nato, bruto, puro. Ele consegue resolver
problemas mais rapidamente do que os engenheiros de
ouro. Merece ser um homem de ouro também.

Todavia, se feito homem de ouro, Hormes talvez


pensasse que chegou ao topo da carreira muito
facilmente. Ele não teria um objetivo a perseguir. Ficaria
acomodado. A insatisfação com o próprio status social é
uma força poderosa para motivar as pessoas a trabalhar.
Ela precisa ser mantida.
Assim, Theceo pondera que Hormes deve ser feito
homem de bronze. Se o rapaz tiver que trabalhar muito
para alcançar cada passo na carreira, ele... trabalhará
muito. Isso seria bom para a fábrica. Porém, se outro
empresário descobrisse o talento do rapaz, poderia tomá-
lo, oferecendo um bracelete de metal mais nobre.

Então, é isso. Theceo decide fazer de Hormes um


engenheiro de prata, mesmo sabendo que ele vale ouro.
Com sua luva de platina, ele toca o braço de Hormes.
Fios de prata correm pelo braço esquerdo do rapaz,
formando ali um novo bracelete de Cronos. Os braços do
rapaz se convertem em prata. Sobre seu corpo, sua
camisa e sua calça se transformam em um terno
prateado que lhe dá um aspecto elegante.

O sorriso de Hormes se mantém em seu rosto. Mas agora


é um sorriso de prata. O aprendizado de seu trabalho
anterior não sai do corpo tão facilmente.

Hormes sorri de alma plena. É um sonho que se realiza.


Entretanto, sorrindo, Hormes resiste à tentativa de
Theceo de converter seu coração em prata. Theceo
percebe isso.

— Não resista, rapaz. Quem tem o coração metálico


trabalha melhor. Você ficará mais objetivo e pragmático.

Mas Hormes resiste. No fundo da alma ele sabe:

— Se meu coração for de prata, Theceo, vou me


esquecer de todas as coisas com as quais me importo. É
por causa delas que eu trabalho como trabalho. Essa é a
fonte da minha criatividade.

Theceo imediatamente afasta sua mão do bracelete de


Hormes. Ele imaginara que o rapaz ficaria feliz por ter
saltado do ferro à prata, mas não era exatamente isso o
que importava para ele. A criatividade de Hormes é algo
muito fora do comum, sem dúvida. É algo que vem do
coração. Então, Hormes não é movido pelo dinheiro, nem
pelo status social? Como Theceo poderia controlá-lo?

Hormes se ajoelha. Não por deferência a Theceo, mas


porque aquela transformação de seu corpo em prata foi
extenuante.

Theceo usa esse tempo para pensar. A lógica de Hormes


realmente o desafia. Theceo está aturdido. Ajudando
Hormes a se levantar, ele deixa seus pensamentos
escaparem:

— Seu talento é realmente especial, Hormes. Vejo


grandeza em você. Não me desaponte.

Hormes sorri, sinceramente. Percebe que está trilhando o


caminho certo. Não precisará mais juntar trocados para
conseguir peças no ferro-velho. Ele agora terá em suas
mãos ferramentas e material para construir grandes
máquinas. Poderá provar para todo mundo que a
tecnologia veio para melhorar a vida de quem trabalha.

— Hormes, eu quero envolvê-lo em projetos mais


importantes. Vamos fabricar novos tipos de veículos.
— Sim, senhor.

— Há algo que preciso que você entenda. Para aumentar


a produtividade, apenas o tempo importa.

— Sim, senhor.

— É por isso que eu quero que você concentre seus


esforços em acabar com o desperdício de tempo dos
operários na fábrica. Eles ainda são muito lentos. Calcule
cada movimento que eles fazem, e faça com que eles
trabalhem mais rápido. Vamos também tentar reduzir o
tempo gasto com as pausas para alimentação e
banheiro. É um absurdo o que perdemos com isso.

Hormes se lembra de seu pai lançando o alfaiate


autômato no rio. “Então, é assim que funciona a Lei de
Cronos na prática”.

— Senhor Theceo...

— Sim?

— Isso poderia beneficiar os operários se...

— Claro que sim! Vai beneficiar os operários, certamente


— Theceo não permite que Hormes complete a frase. —
A mão invisível de Cronos sempre recompensa quem
trabalha mais. A vida deles vai melhorar.

Hormes sorri discretamente, fazendo força para


concordar com Theceo. Aquilo que o patrão disse ainda
não resolve o problema que mais o incomoda. Ele se
lembra do que dizia sua mãe: “Trabalho para viver ou
vivo para trabalhar?”. Não adianta ganhar mais dinheiro
se não é possível passar mais tempo com as pessoas
importantes na vida.

Theceo interrompe os pensamentos de Hormes:

— Você entenderá, rapaz, como a mão invisível de


Cronos é generosa. Quando você mostrar o seu valor
para a fábrica se tornará um engenheiro de ouro. Dará
uma vida confortável à sua família e desfrutará de
grande riqueza — Theceo oferece a Hormes um sorriso
experiente. — Ajude-me a aumentar a produtividade e as
recompensas virão.

Hormes se imagina, pela primeira vez, como um


engenheiro de ouro. Ele nunca havia imaginado que
chegaria à prata e hoje chegou. Ouro não parece mais
tão distante. Talvez Diceosine se encante por ele. Sua
família poderá viver em um bairro chique, como
Thalassaki ou, quem sabe, Megali Axia?

Por outro lado, ficou claro para ele que convencer Theceo
a reduzir a jornada dos operários não seria nada fácil.
Será que Theceo tem razão? Talvez seja melhor Hormes
mostrar seu valor, primeiro. Se não der para mudar o
mundo para todos, talvez dê para mudar o mundo para a
sua família. “Eu mereço mais, com certeza, e vou
trabalhar para isso”. E algo no rosto de Hormes muda.
Seu olhar muda. O sorriso não é tão entusiástico quanto
antes, mas seus olhos revelam: Hormes está confiante
em si mesmo.
21

A rotina mudou. Hormes vai ao trabalho, não mais a


pé. Nem com sua velha motocicleta. Usa uma
aeromoto a diesel, com duas turbinas e um rotor que a
mantém a vinte centímetros do chão. Sem atrito com o
solo, a velocidade depende apenas da potência das
turbinas. A aeromoto tem espaço para dois passageiros.
Foi a sua primeira invenção, depois de cinco meses de
trabalho, patenteada e fabricada pelas Indústrias SYM.
Theceo deu a primeira aeromoto a Hormes como prêmio
por tê-la inventado.

As aeromotos ainda são uma coisa muito nova e muito


cara. Apenas alguns homens de ouro conseguem
comprá-las. Mas Theceo não achou ruim. Homem de
negócios, achou um modo de vendê-las a um preço
muito elevado simplesmente decorando-as com algumas
peças de ouro e dizendo aos homens mais ricos de Nova
Ascra que eram uma exclusividade para “aqueles de
maior valor na sociedade”. Os homens mais ricos
compram a aeromoto apenas para exibir seu poder de
comprar algo tão exclusivo; outros, não tão ricos assim,
contraem dívidas para poder adquiri-las e ostentar sua
aparente riqueza.

Ftonos se ouriça ao ver Hormes chegar ao trabalho. O


novato é o único engenheiro a ter uma aeromoto. Ele dá
algumas voltas ao redor da fonte antes de estacionar a
geringonça, que expõe a incapacidade dos outros
engenheiros de criar algo parecido.

Ícaro e Epimeteu, também engenheiros de prata, não


sentem o mesmo que Ftonos, e pedem a Hormes para
experimentar a novidade. Descontraem-se e dão risadas,
especialmente quando Ícaro capota e cai na fonte
central. Hormes não se importa com os arranhões na
aeromoto e ajuda Ícaro a sair da água, rindo.

Aproveitando um momento em que Hormes se afasta um


pouco, Ftonos alerta seus colegas prateados:

— Não se enganem com a aparência gentil do Hormes.


Ele veio para tomar nossos lugares. Vocês repararam
como ele está progredindo rápido? Eu queria saber como
ele ficou tão amigo de Theceo...

Ícaro, ainda molhado, ingenuamente atiça Ftonos:

— Logo ele vai inventar um veículo pessoal que possa


voar até o céu. Ele é inteligente.

— E nós não somos? Temos que mostrar como as coisas


funcionam aqui. Esse rapaz não pode chegar assim,
querendo mudar tudo — Ftonos ferve.

Epimeteu emenda:

— Ícaro, o Ftonos tem razão. Se Hormes, como


engenheiro de prata, faz coisas que agradam Theceo
desse jeito, o patrão vai mudar o nível de exigência para
sermos promovidos a ouro. Hormes vai ser promovido e
nós, não.

Enquanto Epimeteu fala, Hormes pilota a aeromoto com


um controle remoto. O controle parece um estranho
talismã, do tamanho da palma de sua mão, com uma
roda central e alguns botões. Sem pes­soas na garupa, a
aeromoto voa alto. Quase alcança as nuvens de fumaça
da fábrica.

Ao ver o automóvel de Theceo se aproximar, Hormes


pousa a aeromoto. O patrão apeia, acompanhado de
Diceosine, Perseo, Nereo, Midas e Minos. Os meninos
cercam Hormes, curiosos pela aeromoto.

— Viram só? É assim que ele consegue as coisas. Já é


amigo dos filhos de Theceo — conclui Ftonos. — Por isso,
precisamos botar um freio no Hormes.

Epimeteu concorda. Ícaro não concorda tanto assim.

Os filhos de Theceo pedem para testar a aeromoto.


Perseo é o primeiro a experimentar a máquina. Os outros
três irmãos organizam uma fila entre si.

Perseo, sentado no banco, gira o acelerador da aeromoto


no guidão. Nada acontece. Hormes, percebendo que
Perseo não tem muita intimidade com aquela máquina,
saca do bolso o controle remoto. Com um clique no
dispositivo, a aeromoto começa a funcionar. Mais um
clique e ela se aproxima de Hormes, automaticamente,
parando a poucos metros dele.
— Viu, Hormes, como eu já sou bom em pilotar a
aeromoto? Já entendi como ela funciona! — diz Perseo
segurando o guidão, empolgado.

— Impressionante, Perseo! Você vai longe assim! —


Hormes elogia o filho do patrão, com desfaçatez.

— Agora dá licença que eu vou dar umas voltas por aqui


— diz Perseo.

Sem que Perseo perceba, Hormes aciona seu controle


novamente. A aeromoto volta a acelerar. Girando a roda
central na palma da mão, Hormes faz a aeromoto
contornar a fonte e desviar dos obstáculos. Perseo grita,
alegre, exibindo as “habilidades de pilotagem”.

Diceosine se mantém um pouco distante. Não parece ter


interesse pela aeromoto. Hormes se aproxima.

— Oi, Diceosine!

— Quem você pensa que é? — ela responde.

Ele olha diretamente para ela com seu sorriso, para ela
reconhecê-lo.

— Hormes! Meu pai disse que você estava trabalhando


aqui, mas... eu não sabia como você estava... —
Diceosine ainda precisa procurar naquele rosto prateado
o Hormes que ela conhecia.

Hormes volta os olhos para Perseo e evita que o “piloto”


bata em um poste de luz. Quer exibir a nova invenção
para a moça:

— Pois é... Estou indo bem... Invento novas máquinas


para a fábrica e também novos produtos.

— Suas máquinas fazem o que você queria?

— Fazem...

— Então você conseguiu que os operários tenham mais


tempo para as famílias? Conseguiu convencer o meu pai?

— Isso ainda não...

— Hmmm...

— Eu vou aumentar ainda mais a produtividade. É o meu


trabalho. Cada operário vai perseguir seus próprios
interesses. Assim, os interesses de todos serão
alcançados.

— Você foi bem doutrinado. Está falando igual ao meu


pai.

— Ele é bem inteligente. — Hormes pensa que agradará


se elogiar o pai dela. Gira novamente os controles da
aeromoto, evitando que Perseo colida contra um
automóvel.

— Hormes, ele não se importa com ninguém. Só se


importa consigo mesmo e com quanto dinheiro ele está
ganhando. É só isso que eu escuto, dia após dia, lá em
casa. Eu pensava que você fosse diferente.
— Mas...

— Cadê aquela vontade de ajudar as pessoas? Você dizia


que queria ajudar todo mundo — Diceosine encara
Hormes. — Agora você está aqui, cumprindo ordens do
meu pai e jogando fora as coisas em que você
acreditava. Você não é mais o Hormes que eu conheci.

— Diceosine, não é desse jeito...

Diceosine se aproxima. Toca o peito de Hormes. O


coração do rapaz, que não virou metal, palpita. Ela
sussurra, porque ela não quer que Theceo a escute. A
aeromoto sobe o gramado do jardim decorativo. Perseo
não entende como foi entrar ali.

— Hormes, para o meu pai, a única diferença entre você


e uma máquina da fábrica é que o metal do seu corpo
está mais limpo. Lembre-se disso.

Hormes, de prata, sente a frieza de Diceosine, de carne e


osso. Não era essa a reação que ele esperava. Ela não
lhe deu os parabéns pela conquista do novo cargo. Ela
nem se importou.

A aeromoto bate em uma moita. Perseo voa, cai no chão,


rola e capota, capota, capota, parando aos pés de seus
irmãos, completamente tonto.

— Hahaha! Você disse que era bom nisso! — diz Midas.

Nereo e Minos também gargalham. Perseo, levantando-


se, diz:
— Eu não sei o que deu errado. Eu pensei que tinha o
controle de tudo!
22

S omente Theceo leva seus filhos ao Belvedere dos


Titãs. Logo que chegam, os meninos Perseo, Nereo,
Midas e Minos correm para a cerca de mármore para ver
a cidade de Nova Ascra “do alto, como os deuses veem
os homens”. Brincam de correr e se esconder atrás das
estátuas dos Titãs. Catam folhas do chão e jogam para o
alto. Observam as nuvens, bem de perto, fugindo
apressadas rumo ao mar. Theceo ordena que parem em
respeito a Cronos, que sempre aparece ao nascer do sol
das segundas-feiras.

Os outros empresários acham isso ruim, não


simplesmente por causa da desordem que a presença
das crianças representa. Acham ruim porque Theceo é o
primeiro e o único a apresentar seus herdeiros a Cronos.
Além disso, há o acordo de que apenas membros do
grupo dos sete homens de negócio podem subir ao
Belvedere para ver e falar com Cronos. São os donos das
empresas mais importantes de Nova Ascra. São os
homens presenteados com luvas de platina pelo próprio
Deus do Tempo. Os comerciantes e os proprietários de
pequenas empresas, homens de prata, bronze ou ferro,
nunca poderiam pisar ali. Levar crianças ao Belvedere é,
portanto, algo difícil de tolerar.
Mas nenhum dos seis homens de negócio descontentes
tem coragem de reclamar de Theceo. Ele é o proprietário
das Indústrias SYM. Todos os demais dependem dele de
alguma maneira.

Kalíbono, o dono da siderúrgica, fornece metais para as


Indústrias SYM. Lástico, dono da indústria de borracha,
fabrica os pneus utilizados nos carros fabricados nas
Indústrias SYM. Fótizon, dono da indústria de
componentes eletrônicos, fornece lâmpadas para faróis,
painéis e outras peças usadas nos automóveis. Nautilus,
dono do porto e de uma enorme frota de navios,
transporta os automóveis das Indústrias SYM para todas
as partes do planeta. Macoos, dono da indústria têxtil
Cotonifício, fornece tecidos para o estofamento dos
automóveis e uniformes para toda a indústria da cidade.
Os uniformes são praticamente as únicas roupas que os
operários usam, então ele vende a maior parte do seu
estoque para as outras seis grandes empresas da cidade.
Túvlo, dono da olaria, fabrica tijolos, cimento e outros
materiais de construção, e Theceo sempre utiliza seus
serviços para reformar e expandir a fábrica. Ademais,
ainda consegue convencer o prefeito a construir outros
edifícios, o que ajuda o negócio de Túvlo.

Os primeiros raios de sol despontam no horizonte. O


relógio do Obelisco de Cronos badala na ágora,
anunciando a hora de despertar. Em seguida, os apitos
das fábricas soam, em uma sequência mal harmonizada.
As luzes das casas de Nova Ascra se apagam e os
operários caminham rumo às fábricas.
Theceo segura a mão de Perseo, que segura a mão de
Nereo, que segura a mão de Midas, que segura a mão de
Minos. As crianças fazem silêncio. Os homens de negócio
também.

Ao centro do círculo do Belvedere, uma mandala dourada


se forma. Ela se expande por baixo dos pés dos homens
de negócio e dos filhos de Theceo, até que todo o chão
do belvedere se cobre de inscrições douradas. Midas,
treinando sua leitura, lê em voz alta algo que está
escrito: Lei de Cronos.

Uma rajada de vento levanta as folhas espalhadas pelo


chão. Elas giram no ar, iluminadas pelo brilho dourado.

De repente, as folhas param onde estão. Tudo o que está


fora da mandala também para. As pessoas lá embaixo,
na cidade, estão paradas. A fumaça das fábricas parece
congelada no ar. As nuvens não se movem.

A silhueta de Cronos emerge ao centro da mandala.

Theceo sabe antecipar se Cronos está feliz ou furioso. O


Deus do Tempo tem apenas esses dois estados de
humor: ou está feliz ou está furioso. Mostra-se feliz
quando os empresários o presenteiam ou quando as
fábricas têm boa produtividade. Mas, quando fica furioso,
os homens de negócios precisam adivinhar o motivo, e
bem rápido. O Deus do Tempo não é misericordioso.

Cronos, como outros deuses, torna-se maior conforme a


fé ou o temor das pessoas por sua autoridade. Ele é,
portanto, o maior deus de seu tempo, em importância e
em tamanho. Ele se apresenta como um enorme homem
sem braços. Na verdade, Cronos tem braços, mas eles
são invisíveis.

— THECEO! — vocifera Cronos. Ele está furioso.

— Sim, meu senhor! — responde Theceo, pensando


consigo mesmo: “O que fiz de errado desta vez?”.

— Você se importa com o tempo? — pergunta Cronos.

— Sim, claro, meu senhor! — percebendo que as mãos


tremem, Theceo solta a mão de seu filho e cruza os
braços.

— Espero que você demonstre isso com atos, não com


palavras, Theceo.

— Mas, senhor, eu tenho feito tudo o que me pedes!


Nunca falhei... — Theceo olha para os outros homens de
negócio. — Nunca falhamos...

— Um ano atrás, você me prometeu que o Belvedere dos


Titãs seria reconstruído na montanha mais alta de Nova
Ascra. Qual foi o prazo que você mesmo me pediu?

— Um ano — diz Theceo, olhando para uma folha parada


no ar, para evitar que Cronos mire-o no fundo de seus
olhos.

— E quanto tempo se passou? — pergunta Cronos.


— Um ano! Foi um ano, né, papai? — diz Midas, tomando
a vez de seu pai falar.

— Silêncio, filho! — ordena Theceo.

— Seu filho tem boa memória — diz Cronos. — Pena que


o pai dele não seja tão inteligente.

Midas percebe que fez algo errado. Põe as mãos sobre a


boca.

Theceo não pode argumentar. Sim, há um ano, ele havia


prometido mudar o Belvedere para a montanha mais
alta. Mas não conseguiu cumprir prazo.

— Diga-me, o que estou vendo no alto da montanha mais


alta de Nova Ascra? — pergunta Cronos.

— Palami — responde Midas.

Theceo encara Midas.

Midas tampa a boca com as mãos.

— Acho que vou promover esse menino inteligente a


líder dos homens de negócio — diz Cronos, tocando as
costas de Midas com a ponta de seu dedo invisível e
trazendo-o para perto. — Sabe por que é importante
construir o lar de um deus no lugar mais alto da cidade?

— Não — responde Midas, sentindo-se empurrado por


uma força invisível.
— Porque são os deuses que, do alto, observam os
homens. Não são os homens que observam os deuses.
Mas, hoje, isso está invertido. No alto daquela montanha
há um ferro-velho. Lá de cima, alguém nos observa aqui
embaixo. Seu pai não cumpriu a promessa que fez para
mim.

— É verdade, papai? — pergunta Midas.

— É, sim, filho. Mas vou cumprir.

— Está atrasado, Theceo — diz Cronos.

— Meu senhor, tivemos problemas para fabricar os


equipamentos de que precisávamos para desocupar o
morro de Palami. Mas estamos perto de resolver.
Contratei um jovem inventor que consegue solucionar
qualquer problema de engenharia — diz Theceo.

— Não quero desculpas, quero resultados! — diz Cronos.


— Vocês têm tecnologia. Usam armas poderosas. E os
moradores de Palami são aborígenes que não
aprenderam a viver em civilização.

— Senhor, quando queimamos as lavouras de Palami,


houve pressão da opinião pública...

— Você se importa com opiniões? — interrompe Cronos,


afastando Midas e deixando o menino voltar ao seu lugar.

— Não, não... Mas...


— Não tenho como aceitar suas desculpas, Theceo.
Vocês todos, homens de negócio, são superiores aos
aborígenes. — Cronos se aproxima de Theceo. Cada
passo faz a terra tremer.

Midas tem medo de que Cronos esmague seu pai.


Theceo, ao pé de Cronos, resiste a sair do lugar.

Fótizon, o mais novo entre os sete homens de negócio,


não parece estar com medo. Talvez estivesse, na
verdade, bastante desatento à tensão que se formou
entre Cronos e Theceo. Sem segurar a língua, o rapaz diz
a Nautilus:

— Podemos ser superiores aos moradores de Palami, mas


Cronos é superior a todos nós. Por que ele mesmo não
resolve o problema e desocupa a montanha?

Ao ouvir isso, Nautilus se afasta. Cronos fixa o olhar


sobre Fótizon.

— Ele não falou por mal, divino Cronos. Por favor, perdoe-
o — pede Nautilus.

Cronos bate uma mão invisível contra o mármore. O chão


treme. Os homens de negócio fazem silêncio absoluto.
Cronos aproxima seu rosto de Fótizon e diz:

— Esses rebeldes são um risco para mim e para vocês.


Eles são um mau exemplo para os operários. A missão de
vocês é espalhar a Lei de Cronos para todos os povos, a
começar por Palami, que está aqui perto. Assim, todos
conhecerão os benefícios da Ordem, de ter uma vida
previsível, uma jornada de trabalho que dê utilidade às
suas vidas. Entendeu agora, rapaz?

Fótizon entendeu. Mas...

— Não há mais muitas pessoas saudáveis, meu senhor —


diz Fótizon. — Os operários adoecem muito rapidamente.
Poderíamos deixar que trabalhassem menos horas por
dia...

— Você quer mudar a minha Lei? — inquire Cronos.

— Você enlouqueceu, Fótizon? — pergunta Lástico.

— Isso vai nos destruir! — diz Túvlo.

— Você quer lucrar menos e dar seu dinheiro aos


empregados? — pergunta Macoos.

— É isso, sim! Nossas empresas poderiam fazer bem a


todo mundo — insiste Fótizon. — Nossos operários
também teriam mais tempo para descansar. Isso
reduziria os adoecimentos na fábrica.

— Pois faça isso sozinho — diz Theceo. — Uma coisa


dessas o fará perder o controle sobre seus operários.

A conversa prossegue por alguns minutos. Fótizon insiste


em suas ideias de permitir que os empregados façam
pausas e de pagar salários melhores, mas os outros seis
homens de negócio se posicionam contra ele. Cronos
para de falar e apenas assiste à discussão. “O prego que
se destaca será martelado”, pensa o Deus do Tempo.
“Minha Ordem é perfeita”.

— Está bem, está bem! Foi só uma ideia — conclui


Fótizon, resignando-se à opinião da maioria. — Eu só
queria partilhar nossos ganhos, mas deixa para lá.

Cronos fica feliz em ver Fótizon ser constrangido pelos


seus pares. Sorri.

Quando veem Cronos sorrir, os sete homens de negócio


respiram aliviados. Cronos, um pouco mais gentil, diz a
Theceo:

— Quanto a Palami, Theceo...

— O senhor poderia nos ajudar, senhor Cronos —


interrompe Fótizon — Afinal, o senhor tem muitos
poderes...

O chão treme. O sorriso de Cronos se apaga. Seis


homens de negócio lançam olhares furiosos na direção
de Fótizon.

— Você é muito petulante — diz Cronos. — Não, não


posso. Os homens de mente fraca não compreendem o
que um deus fala e faz. Prefiro que eles tenham fé e
temam algo que não podem ver. Enquanto respeitarem a
minha lei, estarão me respeitando.

— Mas... — insiste Fótizon.


“Parece que Cronos também se preocupa com a opinião
dos ‘homens de mente fraca’”, pensa Theceo. Mas não
tem coragem de falar isso em voz alta.

— Assunto encerrado! — grita Cronos. — Quanto à sua


promessa, Theceo: você tem vinte e oito dias para retirar
os aborígenes daquele morro. Nosso próximo encontro
será no dia 30 de abril, e quero ver os resultados! Não
aceito mais desculpas!

A mandala dourada no chão se apaga. Cronos


desaparece diante dos olhos dos homens de negócio em
um clarão que os cega por um instante. As folhas que
pairavam no ar caem sobre o mármore.

Na ágora, as pessoas caminham. A fumaça escapa pelas


chaminés das fábricas. As nuvens se movem rumo ao
horizonte. Nova Ascra segue sua vida.
23

A família de Hor mes poderia ter-se mudado para um


bairro melhor. Esse era o desejo de sua irmã Polínia.
Ela queria morar em um bairro onde pudesse ver o mar
azul, como Thalassaki. Mas Epimoni, o pai de Hormes,
ficou com medo de não se sentirem à vontade em um
lugar assim. Afinal, eles eram pessoas de ferro, e
morariam no meio de pessoas de prata e ouro. Seria
óbvio que eles não pertenciam àquele lugar.

Mudaram-se, então, para Ergazomenoi, onde a maioria


das pessoas era de bronze, um meio caminho entre o
que queria Hormes, que agora é um engenheiro de prata,
e seu pai, que continua sendo operário de ferro.

Hormes precisou argumentar bastante para convencer


seu pai a abandonar o emprego. Epimoni acabou
aceitando, diante da insistência do filho. Seu velho pai
pode, agora, descansar em casa. Enquanto isso, Polínia
cuida da saúde dele, já bastante fragilizada pelo esforço
na fábrica.

Então, Hormes percebeu que ainda não conseguira


alcançar o seu objetivo de passar mais tempo com o pai.
Hormes é, agora, o único que tem um bracelete de
Cronos em sua família. Precisa trabalhar todos os dias
para sustentar o pai e a irmã. Ele pensa nisso enquanto
dirige sua aeromoto, levando Lampião na garupa.

Lampião não parece mais ser feito de sucata. Hormes


conseguiu comprar boas peças para o pequeno robô, que
agora tem o corpo prateado e novas alças de couro, para
quando Hormes quiser usá-lo de mochila.

Chegando à sede das Indústrias SYM, Hormes estaciona


sua aeromoto e põe Lampião no chão. Sobe as escadas e
o robozinho o segue, andando. O inventor quer testar a
capacidade do pequeno robô de subir as escadas da
entrada da torre SYM, uma das novas funcionalidades
que implementou.

Entram no elevador. Chegando ao décimo sexto andar, o


ascensorista comenta:

— Seu pequeno robô é impressionante, meu jovem.


Nunca vi um que andasse de verdade. Foi você quem o
construiu?

— Sim, fui eu.

— Espero que consiga fazer alguns desses nas esteiras


de produção — diz o ascensorista.

— Não seria má ideia — comenta Prometeus, se


aproximando. — Realmente, eu nunca tinha visto um
robô andar sozinho, sem apoio de cordas nem nada.

— Como será que ele funciona? — pergunta Dédalo, que


chega a passos rápidos, pegando Lampião pelo pé e
virando-o de cabeça para baixo, para ver as engrenagens
sob a “caixa torácica” do robô.

— Eu calibrei um mecanismo de equilíbrio que criei para


ele, sincronizei o movimento dos pés... — Hormes
explica, tentando tomar Lampião das mãos de Dédalo,
que já parece interessado em desmontar o robô.

Dédalo, com um sorriso, devolve Lampião ao seu dono.


“Algum dia desses ele vai se distrair. Assim que isso
acontecer, vou pegar esse robô, desmontar e descobrir
como ele funciona”, pensa o engenheiro de ouro.

Hormes percebe que há algo errado. Dédalo e Prometeus


estão muito interessados em saber como seu robô
funciona. Decide não explicar mais nada até que
descubra o que eles pretendem.

A alguns metros do elevador, na mesa de projetos,


Epimeteu diz para Ftonos:

— Você percebeu como os engenheiros de ouro ficaram


interessados pelo robozinho? Aposto que estão tentando
desenvolver um robô que fique em pé.

— Quieto! — Ftonos censura, cochichando para Epimeteu


logo em seguida: — Temos de ser mais espertos e
desenvolver um projeto de robô antes que os
engenheiros de ouro o façam. Por sorte, parece que o
Hormes ainda não percebeu que isso pode ser
importante para Theceo.
— Então, só precisamos fazer primeiro, não é? —
pergunta Epimeteu.

— É claro! Eu, Hormes, Ícaro e... você... todos somos de


prata, e estamos competindo pela promoção. Você acha
que Theceo vai querer promover todo mundo de uma
vez?

— Não... — murmura Epimeteu.

— Claro que não! — responde Ftonos, como se gritasse


em voz baixa.

— Entendi! Mas como vamos fazer para criar um projeto


antes dos outros?

Hormes não ouviu a conversa de Ftonos e Epimeteu. Está


ocupado, tentando escapar das perguntas de Prometeus
e Dédalo. Percebe que falta alguém:

— Onde está Ícaro?

— Ainda não chegou. Sua esposa está doente, então ele


a levou ao hospital — responde Dédalo.

— Entendi. Quem bom que Theceo permite que cuidemos


dos doentes — diz Hormes.

— Na verdade, ele não permite, não. Vai ficar furioso se


chegar e não encontrar Ícaro — diz Prometeus.

Hormes suspira. Recolhe Lampião e o guarda em um


armário trancado a chave. Ftonos o acompanha com os
olhos.

Hormes atravessa a sala e olha pela enorme janela. Vê os


operários lá embaixo, trabalhando no ritmo da esteira.
Pensa em como melhorar a produtividade.

— Como podemos saber se o que planejamos aqui em


cima está dando certo? Quando vamos ao chão de
fábrica? — pergunta Hormes.

— Ao chão de fábrica? Nunca descemos até lá! Temos


todos os processos de trabalho mapeados bem aqui em
cima. Aliás, fomos nós mesmos que os desenhamos —
responde Dédalo.

— É perda de tempo descer até lá, garoto. Nós temos o


nosso lugar, e os operários têm o lugar deles. Se quiser
vê-los trabalhando, olhe pela janela — completa Ftonos,
que, depois de dizer isso, pensa que o lugar de Hormes
realmente é lá embaixo. — Mas, se você quiser ir até lá,
acho que vai gostar.

Toca o apito da fábrica. É meio-dia. Os braceletes de


Cronos param de tecer fios nos braços dos engenheiros.
Eles se cumprimentam, alegres.

— Vocês estão comemorando alguma coisa? — pergunta


Hormes.

— Decidimos almoçar no Faisão Dourado. Voltaremos às


duas da tarde — diz Epimeteu, com um sorriso no rosto.
Hormes não quer almoçar em um restaurante chique. Dá
uma desculpa, diz que vai ficar para organizar algumas
plantas de projetos e que depois almoça em outro lugar.

Pela janela, Hormes vê os operários saírem da fábrica e


se acomodarem em mesas na frente da entrada oeste.
Alguns se sentam em caixas de peças para comer. Bem,
eles serão uma boa companhia para o almoço.

***

Hormes trouxe uma lancheira que ele mesmo preparara.


Contém a mesma comida que sua mãe fazia, no tempo
em que Hormes trabalhava para Momus na estoa.
Comida de operário. Igual à dos companheiros de
almoço.

O brilho prateado de Hormes destoa do marrom ferroso


ao seu redor. Todos percebem isso, menos Hormes. Ele
ainda imagina que passa desapercebido entre os
operários.

— O que vocês fariam se pudessem melhorar o trabalho


na fábrica? — pergunta Hormes.

Os operários se entreolham. Apenas um, Granázio, tem a


coragem de perguntar:

— Essa pergunta é a sério, mesmo?

— É, sim — responde Hormes, sem entender o


estranhamento daquele homem com a pergunta.
— E você vai mudar as coisas que dissermos para
mudar? — questiona Granázio.

— Se me derem boas ideias, sim, pretendo levá-las aos


outros engenheiros e a Theceo.

— E quando é que você vai revelar que tudo não passa


de piada?

— Como assim? — pergunta Hormes.

— Todo mundo diz que eu sou piadista, mas você está


querendo me superar... — diz Granázio, com um sorriso
estranho no rosto.

— Eu estou falando sério! É verdade! Vou falar com


Theceo, sim! — afirma Hormes.

Os operários estranham a fala simples e direta de


Hormes. Ele fala do dono da fábrica sem chamá-lo de
“senhor Theceo”. Parece muito íntimo do patrão. Vale a
pena dar alguns palpites sobre o trabalho para aquele
rapaz prateado que come comida de operário?

Sísifo Nike, que até então escutava a conversa


mastigando seu feijão com batatas, pensa que sim:

— Eu colocaria bancos reguláveis para os operários que


montam motores na esteira.

— Por quê? — pergunta Hormes.


— Bom, porque cada operário tem um tamanho
diferente. Como não conseguimos regular a altura dos
bancos, a maioria acaba trabalhando em pé o dia todo.
No fim do dia, esse cansaço é difícil de vencer — Sísifo,
depois de explicar, aguarda a resposta do engenheiro
prateado.

Hormes mastiga, pensando e olhando para os operários.


Engole. Comenta:

— Gostei da ideia. Mudaria mais alguma coisa?

— Poderíamos organizar em bandejas as peças que mais


utilizamos, deixando-as ao alcance das mãos — diz outro
operário.

Hormes aprova a sugestão. Daí em diante, as ideias


começam a pipocar. Os operários falam cada vez mais
rápido. Pedem iluminação extra para a bancada onde
manipulam peças pequenas. Pedem proteção contra o
calor das fornalhas onde o metal derretido se transforma
em peças. Pedem que se instituam pausas para a
limpeza do chão da área de polimento, pois a poeira
metálica incomoda muito. Competem pela atenção de
Hormes, que, mastigando, absorve todas as ideias.

Hormes, então, fecha sua lancheira.

— Poderiam me mostrar como vocês trabalham?

Esse pedido já não era necessário. Os operários estão


afoitos para mostrar como trabalham. Granázio se
levanta em um salto:

— Peraí! Peraí! Peraí! — diz, abrindo os braços e fazendo


gestos bem largos. — Tenho de ser o primeiro, não é?
Não posso deixar que ele saia daqui sem ver a minha
técnica especial de fresagem. É a coisa mais inteligente
que ele vai encontrar nesse chão de fábrica!

Os outros operários ensaiam uma vaia irônica. Já estão


acostumados com o jeito expansivo de Granázio. Ele
daria um ótimo mestre de picadeiro de circo. Como foi
mesmo que ele virou operário numa fábrica?

Hormes segue os operários até o posto de trabalho de


Granázio, sem entender os comentários jocosos que eles
fazem a respeito do colega. Granázio para em frente a
uma fresadora. Posiciona na máquina uma roda de metal
bem polida. Faz vários ajustes no equipamento,
posicionando uma roda com dentes muito afiados em
ângulo de noventa graus à roda polida. Ajeita duas
mangueiras sobre o encontro das rodas. Liga a máquina.
As mangueiras jorram óleo em abundância, enquanto a
roda dentada gira e faz um corte na borda da roda
polida. Granázio move a roda polida para cima e para
baixo, para o corte ficar uniforme. Quando o corte é
terminado, ele desliga a máquina. Gira a roda recém-
cortada em um ângulo de doze graus, conforme indicado
no transferidor do equipamento.

Granázio repete o procedimento por alguns minutos.


Hormes assiste pacientemente. Quando termina,
Granázio ergue a peça recém-fabricada como se fosse
um troféu:

— Tchãrã ! Aqui está, uma roda dentada novinha!

— É isso? Você fabrica as rodas dentadas? — pergunta


Hormes.

— Sim! Essa é a minha arte!

Hormes percebe que fazer uma roda dentada é mais


complicado do que as pessoas imaginariam. Granázio
trabalha com uma prancheta repleta de cálculos
considerando o diâmetro da roda, a distância entre os
dentes e especificações para fazer dentes mais finos ou
mais grossos — ou mesmo dentes inclinados para fazer
rodas dentadas cônicas.

— Nada mau — conclui Hormes. — Se eu pudesse criar


uma máquina para ajudá-lo, Granázio, o que ela faria?

— Ela podia fazer o supervisor parar de reclamar no meu


ouvido, pois isso atrapalha a concentração...

Hormes ri. Entende agora por que Granázio tem fama de


piadista.

— Mas, falando sério, a minha fresadora não faz todos os


ângulos precisamente. Quando chega uma peça com
especificações novas, preciso fazer ajustes por tentativa
e erro. Acho que resolveria se a máquina tivesse
regulagens mais precisas, mais finas... Entende?
— Entendo — responde Hormes, pensando consigo
mesmo: “Vou pensar em algo para ajudá-lo. Ele vai ver
que eu não vim até aqui para fazer piada”.

Os operários sentem o bracelete de Cronos girar em seus


antebraços. Acabou o intervalo, todos devem voltar aos
seus postos. Mas Hormes fica com eles. Eles mostram os
problemas de todos os postos de trabalho. Falam de
posturas que lhes causam dores, do cansaço que sentem
ao ir para casa. As mulheres choram por não poderem
cuidar de seus filhos pequenos. Mostram a Hormes o
calor, o frio, a poeira, a dificuldade de enxergar e de
respirar, os odores da cola, do tíner e dos combustíveis, a
textura pegajosa da graxa e os movimentos repetitivos.
Hormes executa, por si próprio, as tarefas dos operários,
para entender como eles trabalham. Experimenta de
tudo. Sabe, agora, como a fábrica funciona.

Hormes vê algumas peças descendo de elevador até o


subsolo. “Falta um andar que eu não conheço ainda?”,
pensa. Descobre uma escada em caracol que o leva a
uma pesada porta de aço, com uma placa de “Acesso
Restrito” iluminada por uma lâmpada solitária. Um
guardião de prata a protege. Hormes se aproxima da
porta.

— Você não pode entrar aí — diz o guardião de prata,


batendo o cabo do martelo no chão em sinal de alerta.

Ruídos de máquinas trabalhando atravessam a porta.


— Mas eu sou engenheiro da fábrica. Preciso conhecer
todo o processo produtivo.

— O subsolo é de acesso restrito. Não sabe ler? — o


guardião de prata aponta a cabeça do martelo a Hormes.

Hormes volta a olhar para a porta. Não entende por que


Theceo restringe o acesso a parte da fábrica. Não está
preocupado em melhorar a produtividade desse setor?

O guardião varre Hormes para fora, empurrando-o com o


martelo. Hormes sobe as escadas.

Ele não percebe, mas passa a tarde toda no chão de


fábrica.

***

Ftonos e Epimeteu são os primeiros a retornar do almoço.


Pela grande janela da sala dos engenheiros, eles
observam os movimentos de Hormes. É fácil encontrar
uma cabeça prateada no meio da gente marrom.

— Ele finalmente encontrou o seu lugar — diz Ftonos.

— Poderia ficar por lá mesmo, assim não teríamos com


que nos preocupar — responde Epimeteu.

— Não é má ideia, caro amigo. Podemos convencer


Theceo a deixá-lo por lá mesmo... — Ftonos ri.

Ainda sorrindo, Ftonos caminha até o armário de Hormes.


Com uma chave de fenda e um bocado de força, quebra
a tranca. Dentro do armário, ele encontra o robozinho
Lampião, desligado e recostado como se estivesse
dormindo.

— Veja só, Epimeteu: o novato ainda nos deixou um


presente. Quanta consideração!
24

–O nde está Hormes? — pergunta Theceo ao entrar


na sala dos engenheiros.

A pergunta incomoda. Ela deixa bem claro que Hormes é


o novo engenheiro favorito do patrão. Theceo percebe
que os engenheiros evitam olhar nos seus olhos. Antes,
ele chamava primeiro por Prometeus, mas agora o patrão
está ansioso para conhecer as novas ideias do jovem
inventor.

Ftonos quebra o silêncio, sorrindo:

— Está no chão de fábrica, senhor, junto com os amigos


dele...

Prometeus o encara. O tom de Ftonos sugere que


Hormes não é digno de ser engenheiro.

— Os engenheiros se tratam com respeito, Ftonos.

— Calma, Prometeus. Eu não disse nada de errado... Você


está muito nervoso.

Theceo não dá importância para a discussão entre os


engenheiros e, olhando pela janela, pergunta:

— O que ele está fazendo lá embaixo?


— Ele passou a tarde aprendendo a trabalhar como um
operário — responde Ftonos.

— Já chega, Ftonos! — esbraveja Prometeus. — Respeite


seu colega!

— Eu só estou falando a verdade. Eu o vi fazendo isso —


retruca Ftonos.

— Você ficou a tarde inteira observando-o, não é? —


indaga Prometeus.

— Na verdade, não. Eu estive bem ocupado. Fiz algo para


mostrar ao senhor Theceo — diz Ftonos.

— Nós dois fizemos, Ftonos — acrescenta Epimeteu.

— Ah, sim, desculpe... O Epimeteu ajudou — diz Ftonos.


— Epimeteu, busque o nosso projeto, por favor.

Epimeteu não gostou nada de ser tratado como ajudante,


mas, obedecendo, busca algumas plantas. Pendura-as
em um cavalete e entrega uma varinha para Ftonos.

— Patrão, achamos a solução definitiva para modernizar


nossa fábrica. Nós descobrimos como colocar um robô
em pé! Já pensou ter robôs assim, substituindo
empregados? Robôs não se cansam, não reclamam, não
adoecem...

— Gostei da ideia, Ftonos — interessa-se Theceo. —


Como funciona?
Ftonos põe-se a explicar:

— Este giroscópio, no centro do robô, ajuda a compensar


o deslocamento do peso quando ele perde o equilíbrio.
Além disso, funciona como sensor para ele perceber
quando está caindo. O robô, então, ajusta sua posição,
movimentando os pés. Observe este protótipo.

Ao comando de Ftonos, Epimeteu tira de uma caixa um


esqueleto de robô sem cabeça, com aproximadamente
meio metro de altura. Na caixa torácica, sem couraça
para cobri-la, vê-se o giroscópio que está representado
no desenho.

Theceo não parece muito impressionado. Dédalo, por sua


vez, está silenciosamente furioso, pensando: “Ftonos
roubou minha ideia! Ele desmontou o robô de Hormes
enquanto estávamos almoçando”.

— Mostre-me como funciona — pede Theceo.

— Sim, senhor! Epimeteu, ligue nosso protótipo! —


ordena Ftonos.

— Mas, Ftonos...

— LIGUE!

Epimeteu obedece. Liga a chave nas costas do robozinho.


Nada acontece.

— Você o estragou? — pergunta Ftonos.


— Não... — diz Epimeteu, sussurrando em seguida: —
Depois que desmontamos o robô, eu não consegui
encaixar algumas peças de volta. Não vai funcionar...

— Você não faz nada direito, mesmo! Vou ter que


consertar — Ftonos diz isso de modo que Theceo escute.
Se o patrão tiver que escolher um só engenheiro para
promover, certamente escolherá aquele que não erra.
Então, Ftonos pede: — Só um instante, senhor Theceo!

Ftonos tira da caixa algumas engrenagens e tenta


encaixá-las no tórax do robô, por tentativa e erro,
virando a chave para testar o funcionamento. O pequeno
corpo sem cabeça e de esqueleto exposto nada faz.

O sino do elevador toca e a porta se abre. Surge Ícaro,


que olha constrangido para Theceo. O patrão já tinha
sido informado de que ele ainda não havia chegado e
aparecera para trabalhar somente àquela hora. Do
elevador também sai Hormes, com cheiros de chão de
fábrica. Ele vê o pequeno robô sobre a mesa e diz:

— O que vocês fizeram com o Lampião?

— É o seu robô, não é, Hormes? — pergunta Prometeus.

— Sim. Eu o chamo de Lampião porque sua cabeça tem a


forma de um lampião — explica Hormes. — Quem
desmontou o meu robô?

— Este robô é meu , Hormes — protesta Ftonos. — Você


está fazendo uma acusação terrível! Quer roubar a minha
invenção!

— Não é, não!!! O robô é meu! E você arrancou a cabeça


dele! Você é um monstro, Ftonos! — grita Hormes,
correndo para abraçar o corpo de Lampião e fazendo
engrenagens soltas despencarem pela mesa.

— Ftonos, se você tivesse mesmo feito o robô, saberia


fazê-lo funcionar. É claro que você roubou essa invenção
do Hormes — diz Theceo. — E eu não perdoo quem tenta
roubar ideias.

— Foi ideia do Ftonos — diz Epimeteu, esquivando-se e


abrindo passagem para o patrão.

Theceo se aproxima de Ftonos e toca-lhe o ombro.


Rapidamente, as partes prateadas do corpo do
engenheiro se convertem em ferro bastante ordinário.
Ftonos cai no chão, olhando para suas mãos marrons e
sem brilho. Grita com todo o ar de seus pulmões:

— NÃÃÃÃOOO!!! Patrão Theceo, dê-me outra chance! Eu


não vou desapontá-lo!

— Deveria ter pensado nas consequências antes de


roubar o projeto de seu colega, Ftonos. Exijo respeito
entre meus empregados. Agora, vá embora. Você não
conseguirá outro emprego em Nova Ascra. E você,
Epimeteu, espero que não siga os passos do seu colega.
Estou de olho em você.
Os outros engenheiros percebem o desespero de Ftonos.
Eles sabiam que Theceo podia dar e tirar o metal de seus
empregados, mas nunca tinham visto isso acontecer tão
de perto. Nunca imaginaram que testemunhariam um
engenheiro perder seu metal nobre e regredir ao ferro.

Hormes não está indiferente. Porém, é difícil dizer o que


ele sente. Parece justo Ftonos pagar pelo que fez ao
Lampião, mas sabe que a vida que ele terá sem a
couraça de prata não será fácil. Ele está condenado a
viver em pobreza por toda a vida. Talvez a pena tenha
sido dura demais. Talvez não.

Ftonos chora como uma criança. Soluçando, caminha até


o elevador. Ao passar por Ícaro, toca-lhe o ombro e diz:

— O patrão não está de bom humor hoje.

Ftonos desce de elevador, vendo seus colegas pela


última vez. Fixa seus olhos em Hormes, que devolve o
olhar com repugnância.

Dédalo está aliviado: “Ainda bem que não fui eu quem


desmontou o robô do Hormes. Esse destino poderia ter
sido o meu”.

Hormes pergunta a Epimeteu onde está a cabeça e as


outras peças do Lampião. Epimeteu aponta para o
armário. Hormes encontra as peças que faltam, busca
ferramentas e põe-se a consertar o robô.
— Ícaro, não adianta você vir trabalhar apenas no fim do
dia — diz Theceo. — Você sabe que há penalidades para
os atrasos.

— Perdoe, patrão, minha esposa estava doente. Tive que


levá-la ao hospital...

— Você precisa compensar pelas horas que não


trabalhou — diz Theceo. — Quero sua parte do projeto
pronta pela manhã.

— Mas, patrão, eu teria que ficar aqui a noite toda. Ainda


tenho que cuidar da minha esposa...

— Não quero desculpas, quero resultados — Theceo se


aproxima de Ícaro com dois passos rápidos e aperta sua
mão contra o peito de prata do engenheiro. — Seu
problema é seu coração mole, Ícaro. Você se importa
com as coisas erradas. Sua carreira é o mais importante.
Seu trabalho é o mais importante.

Ícaro tenta tirar a mão de Theceo de seu peito. Em vão.


O peito dói, é difícil respirar. Seu coração para de bater.

Theceo o solta.

Ícaro cai no chão com a mão direita sobre o peito. Não


sente seu coração bater. “Vou morrer”, pensa. Vê seus
colegas engenheiros de olhos arregalados. Eles querem
ajudar, mas temem que Theceo faça o mesmo com eles.
Ícaro fecha os olhos.

Seu coração bate.


Mas bate de um jeito diferente. Soa metálico. Ele sabe o
que está acontecendo: seu coração agora é de prata!
Nada em seu passado importa. Nenhuma preocupação
parece atormentá-lo. Nada teme. Precisa, apenas,
trabalhar.

— O projeto estará pronto pela manhã, senhor — diz


Ícaro.

— Assim é melhor — responde Theceo. — Agora,


cavalheiros, podemos voltar a tratar das nossas
prioridades?

— Sim, senhor! — todos respondem com um tom de voz


potente o bastante para que não se escute o medo que
sentem.

— Prometeus e Dédalo, quero que subam até a minha


sala e estudem uma solução para o novo projeto que
estamos desenvolvendo. Nosso prazo é curto.

— Sim, senhor! — os dois engenheiros de ouro se dirigem


ao elevador.

— Hormes! — chama Theceo, torcendo o nariz para o


cheiro de querosene que o inventor exala.

— Si-si-sim, senhor! — responde Hormes, afundando a


cabeça entre os ombros, sem saber o que o aguarda.

— Quero saber o que você foi fazer no chão de fábrica —


diz Theceo.
Hormes deixa Lampião no chão, já com a cabeça de volta
no lugar, mas ainda faltando muitas peças para voltar a
funcionar. Aproxima-se de Theceo e diz:

— Fui tentar descobrir como aumentar a produtividade


da fábrica, senhor — Hormes fica feliz em dizer isso. Foi a
melhor resposta que poderia ter dado sob pressão.
Theceo gosta de ouvir as palavras “aumentar” e
“produtividade” na mesma frase.

— É mesmo?

— Si-sim, senhor!

— E descobriu?

— Si-sim... Sim, senhor. Descobri.

— Isso era o que eu mais queria ouvir! Quero que me


conte tudo! O novo projeto, bem importante, vai precisar
da fábrica a todo o vapor nos próximos dias.
25

É apenas mais um dia de trabalho na fábrica. Sísifo


aperta parafusos de peças na esteira de produção.
Mas agora trabalha de uma forma diferente. O
engenheiro de prata Hormes havia feito muitas
mudanças no chão de fábrica. Foi surpreendente a
disposição de Theceo em apoio às mudanças. Guiado
pelas promessas de aumento da produtividade, o patrão
investiu muito em novas máquinas. Em menos de uma
semana, a fábrica parecia renovada. Os operários falam
sobre Hormes e sua incrível capacidade de cumprir as
promessas. Sísifo trabalha em um banco ajustável, com
as peças e ferramentas ao alcance das mãos.

Contudo, a velocidade da esteira de montagem não


mudou depois das melhorias feitas por Hormes. As peças
passam muito rapidamente. Sísifo precisa juntar as peças
e fixar quatorze parafusos com perfeição para que o
motor não desmonte quando for usado. O supervisor
anota em uma prancheta quantos conjuntos de motor
cada operário monta. Quem não obedece ao ritmo da
máquina termina descartado.

Foi o que aconteceu com Katsavidi e Bidas, os colegas


que se sentavam à esquerda e à direita de Sísifo. Eles
eram lentos demais.
O supervisor, homem de bronze, deixou bem claro aos
empregados da fábrica SYM que, depois das mudanças
feitas por Hormes, a empresa tem uma nova política:
“Fazer mais com menos”. Isso significa que Sísifo agora
faz o trabalho de Katsavidi e Bidas também. Mas Sísifo é
diferente de seus colegas. Ele é mais determinado.
Precisa garantir o sustento de sua família.

Nos primeiros dias, Sísifo achou que seus braços


precisavam ser mais rápidos do que a máquina, mas não
era bem assim. Ele precisa vencer a si mesmo.

As juntas em seus dedos e pulsos de ferro rangem. O


movimento de apertar parafusos, repetido mais vezes do
que Sísifo consegue contar, lhe causa dores. Ele muda de
lado e passa a apertar parafusos com o braço esquerdo.
Mas o braço esquerdo não é tão rápido. O supervisor
reclama. Sísifo volta a trabalhar com o braço direito.

Quando vai para casa, dói escovar os dentes, dói pentear


os cabelos e dói fazer carinho em Arete, sua esposa.

Não demora para que as dores nas pontas dos dedos


subam até o cotovelo. Em pouco tempo, chegam ao
ombro.

Sísifo aperta parafusos.

Suas mãos parecem se recusar a segurar a chave de


fenda e a chave de roda.

Sísifo aperta parafusos.


Ele sua. Não porque esteja calor. Não porque as peças
sejam pesadas. Sua porque dói. Sua porque precisa
convencer suas mãos a segurar as ferramentas com
firmeza. Move o braço. Dói de novo.

— Hoje você está mais lento, Sísifo. Você não era como
aqueles seus colegas lerdos. O que aconteceu? — o
supervisor vem com a prancheta em mãos.

— Vou acelerar, chefe, vou alcançar a meta de hoje.

O supervisor não responde. Apenas anota algo na


prancheta.

Sísifo aperta parafusos. Mais rápido. Sísifo aperta


parafusos. Mais rápido. Sísifo aperta parafusos. Mais
rápido. Sísifo aperta parafusos. Mais rápido.

Ouve-se um estalido. Um fino cabo de ferro se arrebenta


dentro do pulso direito de Sísifo.

Cai a chave de fenda.

Cai Sísifo sobre os joelhos.

A dor em seu pulso já é forte o bastante para fazê-lo


chorar. Mas algo lhe dói mais do que o pulso: saber o que
está para acontecer. Sísifo sabe como terminará este dia.
Sala da Administração de Recursos Humanos.
Descartado. Empresa nenhuma contratará alguém tão
velho. Lágrimas escorrem pelo seu rosto.
Os outros operários dividem seus olhares entre as peças
que andam pela esteira e a compaixão pelo colega caído.
Não podem parar, porque a máquina não para. Mas,
distraídos, diminuem sua produtividade. O operador
percebe a queda no ritmo e desacelera a máquina. Com
um apito, avisa o supervisor de que alguém está
causando problemas.

O supervisor se aproxima com a prancheta na mão


esquerda e um rádio na mão direita. Aperta um botão e
diz:

— Atenção, A. R. H. Precisamos de reposição para um


operário no posto AP 503-12.

Sísifo se levanta, sem apoiar os braços. Direciona toda a


sua força para as pernas. Inspira e expira
profundamente, como um dragão, como se aquilo fosse
curar suas dores.

— Eu ainda consigo trabalhar.

— Sísifo, não force. Acompanhe-me até a sala da


Administração de Recursos Humanos.

— EU AINDA CONSIGO TRABALHAR!

Sísifo apanha a chave de fenda no chão. Reúne seus


dedos ao redor da empunhadura. Espeta a ponta em um
parafuso. Gira. Não respira. O pulso se nega a continuar.
Sísifo insiste. O parafuso fica mais firme. Precisa de mais
força para apertá-lo até o fim. Sísifo insiste.
Ouve-se outro estalido. Mais um ligamento se rompe no
pulso.

Sísifo urra de dor.

Cai a chave de fenda.

A esteira, que já andava devagar, para completamente.

O supervisor recolhe a chave de fenda do chão. Entrega-


a a um rapaz que não tem braços metálicos, mas apenas
um bracelete de Cronos, novíssimo, no antebraço
esquerdo. O supervisor explica ao recém-chegado:

— Este é seu posto de trabalho. Junte os dois lados desse


conjunto e aperte os parafusos até o bloco ficar bem
firme. — Depois, vira-se para Sísifo e toca o ombro do
velho operário. — Venha comigo até a sala da A. R. H.

— Eu preciso continuar! Não me descarte! Minha família


depende de mim!

— Sísifo, acabou. Você não conseguirá ser rápido como


antes. Seus braços não aguentam mais. — O supervisor
fala olhando para a prancheta, anotando o nome do
novato, cujos braços se convertem em ferro, enquanto
ele aperta parafusos no lugar de Sísifo.

A esteira volta a andar. A máquina volta a cuspir peças.


Os operários voltam a montar motores.

— Isso não termina assim! — Sísifo acerta a nuca do


supervisor com um golpe de cotovelo. Lança o peso do
próprio corpo para empurrar o supervisor para cima da
esteira. Prende o pescoço do supervisor com o braço
direito e lhe soca o rosto com o braço esquerdo. Cada
soco dói mais em Sísifo do que no supervisor. Os dedos
estalam. As juntas do pulso rangem. Os ligamentos
ameaçam romper.

O operador da máquina escuta os operários da esteira


gritando: “Briga! Briga! Briga!”. Passa uma mensagem
por rádio. É preciso conter aquele louco antes que ele e o
supervisor terminem muito machucados.

— Pare imediatamente! — O grito de autoridade de um


guardião de bronze ecoa pela fábrica.

Mas Sísifo não para.

O guardião de bronze que gritara corre por entre as


esteiras e, aproximando-se veloz, derruba Sísifo ao chão
com um golpe de martelo. Saca algemas para prender o
operário.

— Pai? — surpreende-se o guardião de bronze.

— Axion, o que você faz aqui?

— Sísifo está atordoado pelo pulso rompido, pelo golpe


que levara do martelo de seu filho e pela vergonha da
situação toda.

Axion quer explicar que fazia a segurança da fábrica,


mas não consegue articular as palavras. Ele está
tentando entender por que seu pai estava agredindo o
supervisor.

O supervisor, levantando-se da esteira e tentando


desembaçar a vista, ainda prejudicada pelos golpes no
rosto, anuncia que o operário “descontrolado, agressivo e
desobediente” será levado à prisão.

Axion balança a cabeça, em sinal de concordância. Ajuda


o pai a erguer-se do chão e prende em algemas os seus
pulsos doloridos. A vergonha de Sísifo transborda. Está
sendo levado à prisão pelas mãos de seu próprio filho,
sob os olhos dos colegas. Nunca poderia imaginar que
sua carreira na fábrica terminaria assim.
26

A xion acomoda seu pai em um carro da guarda.


Senta-se ao volante. Dá a partida calmamente e sai
da fábrica. Mas não se dirige à prisão.

Dirige até o Hospital Central de Nova Ascra, onde espera


encontrar ajuda para Sísifo. Ao chegar, retira as algemas
que prendiam o pai. Ao entrar pelo hall principal, pede a
uma enfermeira:

— Chame Arete Nike, por favor. Diga que é uma


emergência com o marido dela.

Em poucos instantes, a mãe de Axion chega correndo


sobre seus sapatos de salto e segurando a saia que
limita o movimento de suas pernas e vale como
obstáculo para seu trabalho como enfermeira. Avista
Sísifo sentado em uma cadeira ao lado do filho de
bronze. Ela, que sempre dedicara enorme atenção a seus
pacientes, tem diante de si o caso de mais alta
prioridade.

Axion explica à mãe a doença do pai. Engasga ao


explicar que o retirou da fábrica dizendo que o levaria à
prisão.

— Como você conseguiu trazê-lo até aqui? — pergunta


Arete.
— Usei um carro da guarda... Não estava em uso,
mesmo.

— Quer dizer que você não tinha autorização para usar


aquele carro? — pergunta Sísifo. — Você roubou o carro?

— Pai, isso não é importante agora — Axion desvia o


olhar.

Arete puxa uma fita laranja de seu bolso e coloca em


volta do pulso de Sísifo:

— Use isso, querido. É uma identificação de urgência de


atendimento. Você será atendido mais rápido.

— Vocês estão se arriscando muito por mim. Vocês dois


estão quebrando regras do trabalho. Já basta eu ter sido
descartado — Sísifo teme que, se todos forem
descartados, não sobre ninguém para sustentar a família.

— Shhh... — Arete toca os lábios de Sísifo com o dedo


indicador — Precisamos cuidar de você primeiro.

— Pai, fique com a mamãe. Eu preciso devolver o carro


da guarda antes que alguém sinta falta dele.

Arete ajuda o marido a se levantar.

— Eu consigo caminhar! Meu problema está nos braços.


Não estou tão acabado assim! — diz Sísifo.

— Sei disso, querido, mas finja que precisa da minha


ajuda. Vou levá-lo para um lugar onde somente pacientes
muito graves recebem atendimento rápido.

— Arete caminha abraçada com o marido pelo corredor


do setor de emergência, pé ante pé, escorando-o.

***

À noite, na casa da família Nike, os talheres tiritam sobre


os pratos. O frango com batatas no prato de Axion tem
gosto de reprimenda. Ele não conseguiu escapar de uma
advertência dada por Dário, por ter roubado o carro da
guarda. Não adiantou dizer que era para prestar um
socorro médico. “Viatura da Guarda não é ambulância”,
foi o argumento de Dário. A escalada para a patente de
ouro está ficando mais difícil.

A comida de Arete tem o mesmo sabor que a de seu filho


guardião. Paeon, diretor do hospital, não gostou de saber
que ela favoreceu o marido, dando-lhe uma pulseira de
atendimento urgente. Ela só não foi descartada porque o
médico que atendeu Sísifo disse que o caso realmente
era grave.

O prato de Oniro não tem frango. Apenas batatas, feijão


e cenoura. E tudo tem gosto de realidade. Um gosto
daquela realidade de que ele fugira a vida toda.

Sísifo olha a batata cortada em rodelas, o arroz, o feijão,


a cenoura ralada e o frango desfiado. Vê a faca e o garfo
se esforçarem para brilhar, depois de muitos anos de
uso. Sísifo olha para a colher e vê sua imagem de cabeça
para baixo.

O braço direito não aceita se mexer. Qualquer


movimento dói, do ombro aos dedos.

Levanta o braço esquerdo. Não dói. Cerra seus dedos ao


redor do garfo. Os dedos estão dormentes, não dá para
sentir o garfo em sua mão. Finca-o em uma rodela de
batata. Ao erguer o garfo, os dedos se rebelam. O garfo
cai sobre o prato; o feijão espirra no peito de Sísifo e a
rodela de batata foge rolando pelo chão.

Arete pega o garfo e serve um pouco do arroz:

— Deixe-me ajudá-lo, querido...

Sísifo nada diz. Afasta o braço de Arete. Quer dar um


soco na mesa, mas seu braço direito não se mexe. Bufa.
Levanta-se, empurrando a cadeira com os tornozelos. A
cadeira cai, sem socorro, chocando-se contra o chão de
azulejos baratos e fraturando seu encosto de madeira.

Com o braço esquerdo, Sísifo pega seu prato e atira em


direção à parede da sala. Mas seus dedos se rebelam e o
prato cai antes de alcançar a parede, espalhando comida
pelo chão. Sísifo sai da mesa, escorregando e deixando
pegadas sobre o feijão, alcança uma poltrona de leitura
no canto escuro da sala e senta-se em silêncio.

Arete olha para seu prato. Tempera a comida com


lágrimas.
— O que o médico disse, mãe? — Axion guardava essa
pergunta para outra hora, mas não dá mais para esperar.

— Ele disse que seu pai tem synovite. É uma doença


comum em quem trabalha na fábrica SYM.

— Tem cura? — Oniro está preocupado com o pai, mas


também com o seu próprio futuro.

— Não. Seu pai deverá fazer alguns exercícios para poder


voltar a segurar algumas coisas... Mas não vai mais
conseguir trabalhar na fábrica.

— E esse médico é bom, mãe? — Axion pensa em pedir a


opinião de outro médico. Não pode ser o fim da carreira
de seu pai. Deve haver uma saída.

— É o doutor Ramazzini. Ele já estudou doenças de todas


as profissões do mundo. Acho que não existe ninguém
melhor do que ele para falar de uma doença adquirida no
trabalho.

Axion desiste da segunda opinião médica. Mas dói muito


ter de aceitar que aquilo é verdade.

Oniro se levanta da mesa do jantar. Segue os passos de


Sísifo. Ajoelha-se diante da poltrona e, como há anos não
fazia, se joga para abraçar o pai. Ficam abraçados. Por
muito tempo.

— Pessoas adoecem de enfermidades do trabalho todos


os dias, mas nunca pensei que um dia aconteceria com
alguém da minha família — admite Arete. — Os médicos
pensam que o paciente está inventando uma desculpa
para fugir do trabalho. Foi com o doutor Ramazzini que
eu aprendi a fazer de tudo para recuperar a saúde dos
pacientes. Mas eu não consigo curar as pessoas quando
faltam remédios.

Arete empurra uma batata para lá e para cá em seu


prato. Agora só tem Axion na mesa para ouvi-la.

— Faltou remédio para o papai?

— Faltou. Mas faltou principalmente dinheiro para uma


cirurgia. A recuperação dele vai demorar. Ele não vai
voltar a trabalhar — Arete sabe que, depois de
descartado, o marido deverá ser sustentado pelos
familiares, até a velhice.

— Mãe, o que podemos fazer?

A cabeça de Arete se enche de opções. Fazer sessões de


fisioterapia? Não. Tentar uma cirurgia em outro país?
Não. Fazer um tratamento com um médico especialista?
Não. O problema é sempre o mesmo: falta dinheiro.

— Na minha profissão, filho, eu não posso me negar a


tentar salvar nenhuma pessoa. Mas isso acontece todo
dia. Sempre tenho que negar atendimento às pessoas
que não têm dinheiro. Não deveria ser assim...

As mãos suaves de Arete agora limpam suas lágrimas.


Não há esperança.
Oniro, abraçado a Sísifo, escuta a conversa. Seus sonhos
de se tornar um artista conhecido agora soam como
desejos de criança. Simplesmente não fazem mais
sentido. Não dá mais para contar com a ajuda de seus
pais pelo resto da vida. Jura baixinho:

— Pai, vou conseguir meu emprego com bracelete de


Cronos. Você cuidou de mim esses anos todos, agora
chegou minha vez de cuidar de você.
27

P aremos e reflitamos. Trabalhamos durante todo o


tempo em que estamos acordados. Damos aos
nossos patrões o nosso tempo mais precioso, a nossa
energia mais vivaz. Voltamos para casa com pouca
energia e muita fadiga. É assim que nossas famílias nos
veem, todos os dias: fadigados. Muitos aqui saem de
casa antes de seus filhos acordarem, e quando voltam
para casa já os encontram dormindo.

Quando, afinal, desfrutaremos os frutos de nosso


trabalho? Aqueles que vivem com pouco temem ficar um
único dia sem emprego, pois isso significa que não
haverá alimento em suas mesas no próximo dia. Aqueles
que com esforço e sacrifícios alcançaram uma vida
confortável temem voltar aos tempos difíceis de outrora,
então buscam acumular em vida o suficiente para afastar
tal temor. Costumam morrer tentando alcançar esse
suficiente.

No fundo, a equação de nossas vidas termina sempre


com o mesmo resultado: nossa jornada nos toma todo o
tempo que temos. Não é apenas o tempo de um único
dia, mas, sim, de um dia após o outro, após outro, após
outro... até que nossa vida se resuma a um único dia,
repetido várias vezes. Um dia muito mal aproveitado.
Paremos por hoje, porque precisamos conversar sobre
como poderíamos viver, sem repetir para sempre o modo
como já vivemos. Não deveríamos ter de escolher... ‘ou a
nossa jornada de trabalho ou o nosso tempo para viver’.
Devemos, sim, ter tempo para trabalhar e para viver!

Vamos propor aos nossos patrões, portanto, uma nova


distribuição do tempo. Nosso dia, de 24 horas, será
dividido em três oitos: oito horas para trabalhar, oito
horas para repousar, oito horas para fazer o que
quisermos!

Jan Cândhido profere esse discurso em um megafone. Faz


uma pausa para aguardar que sua plateia absorva a
ideia. Deixa as vozes se multiplicarem.

Sussurros correm pela multidão na ágora. Jan Cândhido


está em pé sobre uma beirada do reservatório das fontes
em forma de leão ao redor do Obelisco de Cronos.

Ele escolheu cuidadosamente a hora e o lugar. Os


operários se desviaram do caminho das fábricas para
ouvi-lo discursar perto das seis horas da manhã. As
pessoas mais interessadas na mudança estão ali
reunidas. Ao lado dele, perto da fonte, estão Calina Sybil,
a sacerdotisa do templo de Nomos, e um homem gordo
de gestos efeminados, vestindo um fraque elegante e
cartola. Oferecem a Jan Cândhido o seu apoio.

Os guardiões Dário e Axion se aproximam.


Quase todos gostam do discurso de Jan Cândhido. Quase
todos gostam da ideia da jornada de trabalho de oito
horas por dia.

Algumas outras pessoas, contudo, não gostam. Nem um


pouco. Prometeus, um dos engenheiros de ouro da
fábrica SYM, que fazia compras na estoa ali perto, é uma
delas. Ele atravessa a multidão de ferro e bronze.
Hormes o acompanha a passos rápidos.

— Esse homem zomba dos deuses — grita Prometeus. —


Você ousa desafiar as regras do tempo da nossa
sociedade, diante do Obelisco de Cronos? Você só pode
ser louco! Ponha-se no seu lugar e mostre respeito!

— Minha proposta é respeitosa aos deuses, por isso,


faço-a aqui — responde Jan Cândhido. — Perceba,
cidadão, que não podemos sequer venerar os deuses,
pois não temos tempo para isso!

— Cidadão, não! Engenheiro de ouro! Melhor do que


você! — Prometeus detesta ser chamado de “cidadão”.
Sente-se rebaixado ao nível das pessoas de ferro.

Calina sorri. Ela já sabe o que Jan Cândhido está para


anunciar.

— Precisamos, certamente, de um dia de descanso por


semana, para que possamos comparecer aos templos!
Há muito tempo não fazemos festivais em honra aos
deuses, não é? Voltaremos a fazer! Acredito firmemente
que os deuses gostarão dessa proposta.
Ouvem-se aplausos. Calina comemora com a discrição de
uma sacerdotisa. O homem efeminado ao lado dela
acompanha os aplausos, sorrindo. Guardiões de ferro se
aproximam e formam uma cerca para impedir que a
multidão avance até perto do obelisco, onde Jan
Cândhido discute com Prometeus.

— Os deuses não aprovam isso, com certeza! — grita o


engenheiro dourado. — Se vocês trabalharem menos,
não terão dinheiro suficiente para alimentar vossas
famílias!

Os gritos de Prometeus não precisam de megafone.


Todos na ágora os escutam. Os aplausos silenciam.

— Calma, Prometeus — pede Hormes. — Podemos usar a


tecnologia para aumentar a produtividade e ainda reduzir
a jornada de trabalho.

— Não fale besteira, Hormes.

— Infelizmente, você está iludido, meu jovem — diz Jan


Cândhido.

Hormes detesta ser chamado de “meu jovem”. Ele


deseja discutir de igual para igual, e lembrar que ele é
mais jovem parece uma forma de dizer que é ingênuo.

— Não estou, não, Jan Cândhido — protesta Hormes. —


Tenho feito algo de verdade para ajudar as pessoas.
Estou criando máquinas que as fazem trabalhar mais
rápido e melhor! Os operários me agradecerão quando
alcançarem as metas de produção e ainda lhes sobrar
tempo para descansar. Quem está errado é você, que
pensa que só com um discurso conseguirá mudar o
mundo! No final das contas, você não está fazendo nada
por essas pessoas!

O homem efeminado atrás de Jan Cândhido leva as mãos


ao rosto. São mãos muito pequenas. Hormes nota que o
homem tem quadris bastante largos, botões repuxados
na camisa... Não é um homem!!! É Diceosine, em um
novo disfarce. Ela já tinha mostrado simpatia por Jan
Cândhido antes; agora, está do lado dele. Hormes está a
um passo de escolher o caminho oposto ao de Jan
Cândhido... E de Diceosine.

Jan Cândhido procura palavras para responder a Hormes.


Não as encontra. Calina sussurra:

— Diga algo, Jan Cândhido. As pessoas estão indo


embora. Não as deixe perder a esperança.

Jan Cândhido responde, sem usar o megafone:

— Temos que tentar, meu jovem... É simples assim.

Quase ninguém ouviu o que Jan Cândhido disse. Ele


parece ter sido derrotado pelo argumento de Hormes.

Prometeus toma o megafone das mãos de Jan Cândhido


e determina:

— Acabou o circo, pessoal! Vocês já viram que as


palavras desse palhaço não levam a nada. Vocês todos
estão atrasados para o trabalho. Ponham-se a andar se
dão valor a vossos empregos! — Prometeus, então, vira-
se e encara Jan Cândhido: — Quanto a você, espero
tenha belas palavras a dizer à Guarda.

Diceosine olha firmemente para Hormes. Ela parece mais


brava do que o normal, usando aquele fraque masculino
e cerrando os punhos.

Prometeus põe a mão direita sobre o ombro de Hormes:

— Parabéns, rapaz. Você conseguiu desmoralizar esse


arruaceiro. Agora, podemos trabalhar em paz.

Prometeus conduz Hormes à fábrica. Os pés do jovem


resistem a seguir esse caminho. Ele tem algo a dizer a
Diceosine. Algo... Mas não sabe o que dizer. Hormes cede
ao braço de Prometeus e se afasta, intimidado pelo olhar
masculino de Diceosine.

Enquanto isso, Dário, que se aproximara de Jan


Cândhido, anuncia:

— Você está preso. Queira me acompanhar.

Calina se assombra. Diceosine não contém o gesto de


levar as mãos ao rosto, de forma bastante feminina,
arriscando estragar seu disfarce.

— Sob que acusação, senhor guardião de prata? — Jan


Cândhido é peremptório.
— Perturbação da ordem. Incitação de revolta contra a
raça de ouro. Zombaria direcionada aos deuses —
responde Dário.

— Não fiz nada disso. As pessoas estão seguindo seu


rumo para as fábricas, como manda a Lei de Cronos. O
cavalheiro de ouro que discutiu comigo saiu daqui sem
ser agredido ou ameaçado. E a sacerdotisa é testemunha
de que nunca afrontei os deuses. Aqui permaneço, pois
não cometi crime algum.

Dário dá um passo atrás e empurra Axion, colocando-o


diante de Jan Cândhido.

— Axion, bata! Bata, até que ele se renda — ordena


Dário.

Axion, feito algoz, segura o martelo de forma invertida,


apontando o cabo para Jan Cândhido.

— Senhor, entregue-se. Você pode ser poupado desse


sofrimento.

— Não, eu não cometi crime algum.

Axion, titubeante, acerta o cabo do martelo no estômago


de Jan Cândhido. Não é um golpe muito forte, mas Jan
Cândhido entende que aquilo não será uma brincadeira.

Os operários que seguiam o caminho das fábricas param.


Voltam-se para ver o que está acontecendo.

— Não há nada para ver aqui! — esbraveja Dário.


É ignorado.

Dário, então, acena com a cabeça para Axion. O martelo


de bronze acerta Jan Cândhido com mais força.

Jan Cândhido cai. Seus pulmões procuram o ar que


perderam. A dor em suas entranhas é paralisante. A
multidão se agita:

— Deixem-no em paz!

— Quer dizer que não se pode mais fazer um discurso?

— Vocês não estão acima da lei!

— Tudo o que ele disse era apenas a verdade!

Dário ignora as opiniões. Concentrado em seu trabalho,


sente o peito gelar. Seu coração se converte quase
totalmente em prata. Nada mais sente. Tem claros os
objetivos de seu trabalho. É preciso disciplinar Jan
Cândhido. Assim, ele servirá de exemplo para os
operários que pensam em se rebelar. Dário determina:

— Bata mais forte.

— Mas... — Axion sente que bater em Jan Cândhido pode


enfurecer a multidão.

— Bata no rosto.

Não pode ser um golpe fraco. Ele não pode errar. A


ordem foi clara. Axion bate o martelo. O golpe joga Jan
Cândhido ao chão. Dentes caem. O supercílio esquerdo
incha e sangra.

Os operários correm, gritando, dispostos a agredir os


guardiões. São contidos pela barreira formada por
guardiões de ferro. Dário e Axion percebem que o cerco
não conseguirá conter, por muito tempo, um sem-
número de pessoas prontas para tirar Jan Cândhido dali à
força.

— NÃO! — Jan Cândhido estende a mão esquerda, com


os dedos bem abertos, pedindo claramente a todos que
não avancem sobre os guardiões. Ele pega o megafone
sobre o chão: — Nós não estamos lutando contra os
guardiões. A violência não resolverá nada!

Jan Cândhido põe-se de pé e aponta para o bracelete de


Cronos no braço de Axion.

— O guardião só está cumprindo ordens.

Axion sussurra para Dário:

— Ele consegue parar a multidão com um simples


gesto...

— Da mesma forma como consegue inflamá-la —


completa Dário. — As palavras dele são muito perigosas.
Vamos levá-lo.

Dário tapa a boca de Jan Cândhido com a mão e, com a


ajuda de Axion, carrega-o até uma viatura da Guarda,
gritando:
— Ele vai prestar depoimento na Sede da Guarda! Saiam
do caminho!
28

P equenos pés de ferro correm a espantosa velocidade


antes de o sol raiar. Com movimentos calculados, os
braços de ferro dos meninos entregadores lançam às
portas das casas uma edição gratuita do jornal.

Esse não era o costume. Normalmente, o jornal só era


entregue a quem pudesse pagar por ele. É a primeira vez
que os meninos entregadores correm por ruas em que
moram operários de ferro. Sobram até mesmo
exemplares para serem entregues em Palami.

Muitos ouvem pela primeira vez uma inesperada


pancada enquanto tomam o café da manhã. É o jornal,
na forma de rolo, batendo na porta de casa. Muitos põem
as mãos naquele papel pela primeira vez. Abrem-no e
leem notícias, como nunca leram antes. Outros, já
acostumados a receber o periódico, surpreendem-se por
ter sido entregue tão cedo.

Na capa, uma foto de Jan Cândhido, cercado de


guardiões em uma sala. A manchete diz: “Após 15 horas
de depoimento, Jan Cândhido se compromete a obedecer
às leis”. A matéria nas páginas internas diz que Jan
Cândhido saiu da Sede da Guarda ainda de madrugada e
declarou que permanecerá na cidade, respeitando o
acordo com os guardiões.
Uma segunda fotografia na capa mostra Axion diante de
Jan Cândhido na ágora. Lê-se na legenda sob a imagem:
“O herói da Ordem: Axion Nike deu um bom exemplo de
como a Guarda reprime agitadores que fomentam o caos
na sociedade ordeira”. Extensos elogios são dirigidos ao
guardião de bronze, que foi premiado com uma medalha
dourada de honra ao mérito presa em seu peito metálico.

Não para por aí. Quem leu todas as reportagens na


íntegra deparou-se com uma detalhada descrição da
arruaça promovida por populares ao redor da Sede da
Guarda na noite anterior. Operários em sua maioria – que
abandonaram seus postos de trabalho antes do horário
determinado pelos patrões –, mostraram-se dispostos a
confrontar guardiões para pedir a liberdade de Jan
Cândhido. Esses operários, iludidos pelas loucas
promessas do forasteiro, clamavam por uma absurda
redução das horas de trabalho diário de dezesseis para
oito horas.

Especialistas dourados explicavam em entrevistas que


essa proposta de jornada de oito horas não passava de
pura utopia. “É insustentável para a indústria, que
precisa manter o ritmo de produção para fazer frente à
enorme demanda de produtos”, disse o especialista
Poros. “Os empresários se verão forçados a migrar suas
fábricas para cidades ou países onde o custo da mão de
obra seja mais razoável”, disse o especialista Oizus.
“Seria uma catástrofe para a economia de Nova Ascra e
para a ordem social; afinal, o que fariam essas pessoas
com tanto tempo livre, sem a supervisão de pessoas de
maior mérito?”, ponderava o especialista Eniatos.

Aqueles que costumavam ler o jornal diariamente


ficaram satisfeitos. Encontraram eco para suas crenças.
Foi especialmente reconfortante ler que a Guarda não
apenas disciplinara Jan Cândhido, mas também fizera
seus apoiadores sentirem o peso dos martelos e o cheiro
das bombas de fumaça.

Porém, em outros bairros, aqueles que liam as notícias


pela primeira vez assombraram-se em incredulidade.
Aqueles dizeres não pareciam descrever o que viram
acontecer no dia anterior. Falava-se que cerca de cem
pessoas ouviram o delirante discurso de Jan Cândhido na
ágora. Depois, que cerca de 40 pessoas protestaram
diante da Sede da Guarda. Não foi assim. O número de
pessoas nas duas ocasiões era tão grande que não se
poderia contar. E a Guarda respondeu com armas a um
protesto que não usava mais do que palavras.

Jan Cândhido deixa a Sede da Guarda ao raiar do sol e


encontra alguns operários atônitos, pois tinham lido
sobre o acordo que garantira a saída do “agitador”.

— É verdade que você fez um acordo com a Guarda?

— Sim, é verdade.

— Como foi esse acordo?


— Se eu “incitar revolta”, serei preso. Jurei, por minha
conta, sempre preservar a paz e a justa convivência
entre os cidadãos de Nova Ascra. Então, deixaram-me
sair.

— Então, você vai desistir de mobilizar os operários? —


alguém pergunta.

— Eu jurei lutar para preservar a paz e a justa


convivência entre os cidadãos, não jurei? Então, vou lutar
por isso — respondeu Jan Cândhido. — Mas aquele rapaz
prateado estava certo. Não basta ter um discurso bonito.
Preciso fazer algo que realmente faça a diferença.
29

À s quatro horas da tarde, Axion prepara-se para ir


para casa. Veste seu casaco de botões, calças e
botas que escondem as partes metálicas do corpo de
guardião. Ao sair da Sede da Guarda, seu caminho
atravessa o Obelisco de Cronos e a estoa, onde costuma
parar para fazer compras. Mas várias pessoas pelo
caminho comparam seu rosto com a fotografia no jornal.
Um operário que comprava arroz perto dele confirma:
aquele é o guardião que golpeara Jan Cândhido na
manhã de ontem.

— Bruto!

— Cruel!

— Injusto, insensível!

— Você não golpeou apenas Jan Cândhido, golpeou a


todos nós!

Esses e outros inesperados desaforos acompanham os


passos do guardião. Comerciantes na estoa se recusam a
vender seus produtos para ele. Uma pequena multidão
se forma ao seu redor. Axion estufa o peito e a encara.

— O que vocês querem?


— Você é o agressor de Jan Cândhido. Não esqueceremos
disso — diz um cidadão com ar desafiador. Ele vê algo
reluzir no peito de Axion, por baixo do casaco de botões.
Estende o braço indiscretamente e puxa a lapela. — Uma
medalha de ouro! Você foi condecorado por bater em Jan
Cândhido, não foi?

Ao ouvirem isso, mais pessoas se aproximam,


murmurando críticas a Axion e à sua medalha.

— Então, vocês querem brigar? — Axion aceita o desafio.

— Não — dissimula o homem. — Quem quer brigar é


você. Você bateu em Jan Cândhido só porque ele fazia
um discurso. Você bateria em qualquer um de nós, não
é?

Axion se vê encurralado pelas palavras. Se bater


naquelas pessoas, confirmará para elas que agride
cidadãos de forma injusta; se evitar o confronto,
mostrará fraqueza perante os cidadãos.

Escolha difícil.

Axion, então, vira-se e sai caminhando com a expressão


mais arrogante possível, como se ignorasse os cidadãos.
Segue o caminho de casa, suportando gritos e insultos.

***

Às nove horas da noite, Axion enfrenta o mais duro


julgamento.
— Você quase o matou — assevera Arete. — O médico
que atendeu Jan Cândhido na Sede da Guarda disse que
um golpe mais forte teria quebrado o pescoço dele.

— Mãe, nós sabemos como desferir golpes não letais.


Treinamos para isso...

— Eu acho que você fez o certo. E foi pouco. Se aquele


doido morresse, é porque ele merecia morrer — Sísifo
advoga em defesa do filho. — As coisas que ele disse
provocaram distúrbios muito sérios ontem. Não sei
quando isso vai parar.

Arete reprova o argumento do marido com um ríspido


silêncio. Sísifo resmunga de dor nos braços, mas mastiga
a gororoba de restos do dia anterior com satisfação.

— Eu acho que você tinha que ter se recusado a bater no


Jan Cândhido. Você sabia que ele estava em
desvantagem. Ele não ofereceu resistência! Você abusou
da força! — argumenta Oniro.

— Eu estava cumprindo ordens! Não faria diferença


discordar, eu tinha que cumprir as minhas ordens!

— Ah, então você não pode negar ordens, mesmo que


discorde delas? — pergunta Oniro.

— Claro que não!

— Então, de hoje em diante, você vai arrumar o quarto


sem a minha ajuda! Isso é uma ordem! — provoca Oniro.
— Mas você não é meu chefe!

— Mas seu chefe pode lhe pedir qualquer coisa, não é?


Você arrumaria o quarto dele?

Axion silencia.

— Eu não estou gostando nada disso. Quer dizer que,


depois que vocês colocaram braceletes de Cronos no
pulso sua vontade própria foi vendida, também? Tudo o
que vocês fazem é obedecer?

As palavras de Oniro doem em todos. Sísifo, esfregando


os doloridos pulsos, proclama:

— Um dia, meu filho, você terá um bracelete de Cronos.


Você também precisa trazer dinheiro para casa, lembra?
— Sísifo suspira. — Sim, quando temos um bracelete de
Cronos, temos que cumprir ordens. Mesmo as ordens
com as quais não concordamos. Mas é isso que garante a
comida em nossa mesa.

— É isso que Jan Cândhido diz que está errado... — Oniro


insiste.

— Esse Jan Cândhido é um louco. Trabalhar oito horas por


dia? Ganhar um dia de descanso? Os patrões nunca
aceitarão isso. Nem os deuses aceitariam — Sísifo leva o
garfo lentamente à boca, com esforço para suportar as
dores do pulso.

Um vidro se quebra. Axion se levanta da mesa para ver o


que está acontecendo. Vozes desconhecidas gritam na
frente da casa:

— Aqui mora o agressor de Jan Cândhido! Uma vergonha


para nossa vizinhança!

Em frente à casa, pessoas de ferro se aglomeram com


lanternas a óleo, pedras e tomates nas mãos. Alguns
picham a casa com tinta vermelha. Apenas uma velhinha
de vestido florido parece não concordar com aquilo. Ela
diz que as casas de todo mundo devem ser respeitadas.

O operário que apontou a condecoração de Axion sobe


em uma caixa de madeira e improvisa um discurso:

— Esse guardião foi premiado por bater em Jan Cândido!


Não vamos dar descanso a ele nem à sua família!— Com
um braço estendido no ar, o operário sente seus
tornozelos serem amarrados e puxados por uma corda. É
uma boleadeira, atirada com tanta força que o faz cair e
bater o tórax na caixa de madeira, o que o faz perder o
ar de seus pulmões.

Ouvem-se tiros. Axion sai pela porta da frente e a fecha


rapidamente atrás de si. Um dos pichadores, que não se
intimida com os tiros de advertência, recebe um golpe de
martelo tão forte que o arremessa ao meio da multidão.

— NA MINHA FAMÍLIA NINGUÉM TOCA!— Axion avança


sobre a multidão, com o martelo na mão esquerda e uma
pistola na mão direita. Dá dois tiros que passam poucos
centímetros acima da cabeça das pessoas.
O operário que fazia o discurso se levanta, mais
preocupado em conseguir respirar do que em soltar a
boleadeira em seus tornozelos. Fica em pé, com as
pernas amarradas, e diz:

— O que você fez foi muito errado!

Axion estica o braço esquerdo em um movimento rápido


e forte, fazendo o martelo deter-se a milímetros do nariz
do operário. Se não freasse o martelo, o operário
acordaria no hospital. Ou nem acordaria mais.

— E atacar a minha casa é fazer a coisa certa? Vocês são


brutos e cruéis!

Axion devolveu à multidão as mesmas acusações que


recebera na estoa. Todos se calam. O guardião dá um tiro
para o alto, aponta a pistola para o coração das pessoas
e continua:

— Quem ameaçar a minha família morre. Entenderam?


Podem vir que eu estou pronto.

***

— Dário, eu quero tirar essa medalha do meu peito — diz


Axion.

— Você enlouqueceu, Axion? Com essa medalha, você é


o preferido para a próxima promoção a guardião de
prata! — O que você mais quer é a promoção, não é?
— É... Mas...

— Mas o quê, Axion? Você está no caminho certo!

— Minha casa foi atacada ontem à noite. Ameaçaram a


minha família. — Desde que o jornal me chamou de
herói, os operários me desprezam nas ruas.

— Nem mesmo os heróis agradam a todo mundo,


guardião Axion — interrompe Jasão, guardião de ouro,
aproximando-se. — Quando atacaram a sua casa, como
você reagiu?

— Dei tiros de advertência, prendi um dos arruaceiros


com uma boleadeira e espantei os demais a golpes de
martelo — responde Axion, arrependendo-se
imediatamente de ser sincero demais.

— Agora, sim, você está agindo como um guardião! —


Jasão elogia, dando um tapa no ombro de Axion. — Quero
mais dessa atitude!

— Mas eu moro em um bairro de operários, senhor. Todos


os meus vizinhos...

— Então, resista! — Jasão interrompe novamente. — Se


um dia for promovido a guardião de prata, poderá morar
em outro lugar. Eles não serão mais seus vizinhos. Isso
não é um problema.

Axion abaixa a cabeça. Quer concordar, mas ainda teme


que algum operário revoltado ataque sua família.
— Axion, recusar a medalha seria uma ofensa à própria
homenagem — explica Jasão. — Os guardiões de ferro e
de bronze precisam ver em você um bom exemplo, para
que se esforcem e acreditem que podem progredir
também. É pelo bem da Guarda.

— Mas...

— Assunto encerrado — diz Jasão.

Dário simplesmente concorda com o seu superior.

“Espero que não demore muito para eu ser promovido a


guardião de prata”, pensa Axion. “São doze guardiões de
prata e apenas um de ouro em Nova Ascra. São poucas
as chances. Essa medalha de honra ao mérito parece um
prêmio de consolação, enquanto não se abre uma vaga
para... Espera aí! Dário só foi promovido após Belerofonte
ter sido ferido, durante o ataque dos Anansis aos
caminhões. Belerofonte foi descartado... Então, só serei
promovido se algum guardião de prata for descartado ou
morrer? Pode levar anos!”

— Dário, você sabia que Belerofonte sairia ferido no


ataque dos Anansis aos caminhões?

— O quê? — Dário se surpreende com a pergunta. — O


que você está dizendo, Axion? Isso é uma acusação
muito séria, viu?

Axion aprendeu, em cursos sobre a arte de se conduzir


um interrogatório, que quando uma pessoa se esquiva de
responder, ela no fundo aceita a verdade da pergunta.
Dário sabia. Com certeza, sabia que algo ia acontecer
com Belerofonte. Mas Axion precisa medir as palavras,
pois Dário é seu superior, agora.

— Não, senhor, não falei na intenção de acusar.


30

H yp entra pela janela. O dono da casa, Kyongozi, já


está acostumado com Anansis indo e vindo pelas
janelas, como se se esquecessem de que a sua casa tem
portas. Mas Hyp não está entre os Anansis que
habitualmente visitam Kyongozi. Sua presença é uma
novidade.

— Bom dia, Kyongozi.

— Bom dia, princesa — ele responde.

— Não me chame assim... Por favor — pede Hyp.

Hyp não costumava pedir “por favor”. Kyongozi percebeu


isso. O espírito aguerrido da garota parece ter sumido.
Ele está cabisbaixa, segurando uma plantinha na mão.
Aquela planta é o motivo de ela ter ido procurá-lo, tão
educadamente.

Kyongozi age como se ignorasse o que Hyp tinha dito.


Pega sobre a mesa uma muda de planta que estava
preparando e a leva para o lado de fora da casa. Hyp vai
atrás, desta vez saindo pela porta.

Atrás da casa de Kyongozi fica o maior terreno de plantio


de Palami. Situa-se logo atrás do morro de Palami,
escondida depois do ferro-velho. Mas nem sempre foi
assim.

A plantação, antes, ficava no pé do morro, próximo à


cidade. Nova Ascra cresceu ao redor de Palami e a
plantação chamava a atenção dos cidadãos. Os Anansis
nunca deixaram que ladrões de mãos de metal
roubassem dali. Mas, na “noite que se fez dia”, aquela
plantação foi queimada pelos guardiões.

Kyongozi se viu obrigado a mudar-se para trás da


montanha com sua família. Fica mais distante do
caudaloso rio que separa Palami de Ble-Kolara, do qual
tirava a água para o plantio. Mas há, perto de onde
construiu sua nova casa, algumas nascentes. Ele decidiu
reconstituir a lavoura ali. Kyongozi sempre foi um líder
em Palami quando o assunto era cuidar da lavoura.
Grande e muito forte, com várias tranças na cabeça,
amarradas para trás, ele ensina os outros moradores a
cuidar da terra, mostrando pessoalmente como tudo
deve ser feito. Os produtos do plantio são compartilhados
por todos aqueles que cultivam a terra.

— O que você quer, princesa?

— Preciso que você me ensine a plantar.

— Achei que você fosse seguir o caminho de seus pais e


viraria uma mulher de ferro numa fábrica.

Hyp não consegue reagir àquilo rapidamente. Ela


precisa... pensar. Kyongozi a chama de “princesa” porque
ela não ajuda nos trabalhos da comunidade.

A principal razão de Hyp não ter aprendido a plantar é o


desgosto que sente por Kyongozi. Ela nunca o respeitou,
assim como ele também nunca a respeitara. Mas, agora,
Hyp engole o orgulho:

— Eu... Quero ajudar na comunidade. Me dê uma chance.

— Quer ajudar, é? — desdenha Kyongozi. — Eu aposto


que você só veio até aqui porque precisa resolver um
problema pessoal. Um problema seu . Se não fosse
assim, você nunca teria vindo.

Hyp olha para a plantinha em sua mão. É a planta que


ela usa para fazer o remédio para sua mãe. Sim, é um
problema pessoal. O que Kyongozi dizia era a mais pura
verdade.

— Por favor, Kyongozi, minha mãe pode morrer... Eu


preciso disso para fazer o remédio! — Hyp soluça.

Kyongozi ajeita a muda de planta que trouxera de casa


consigo, apertando a terra marrom com suas mãos
negras. Suspira forte, fazendo as folhas da pequena
muda balançarem.

— Deixe-me ver o que você tem aí — diz, estendendo a


mão para pegar a planta de Hyp.

Ela a entrega.
— Isso é Atropa belladona . Não será fácil plantá-la aqui.
Ela cresce em lugares úmidos e frios. Teríamos que achar
um lugar especial para protegê-la do calor — afirma
Kyongozi.

— Então, tem um jeito?

Kyongozi mira o horizonte, na direção de uma nascente à


sombra de algumas árvores.

— Há, sim. É longe, mas acho que valeria a pena, para


ajudar a sua mãe. Você tem sementes dessa planta?

— Não tenho.

— Sinto muito, princesa — a voz de Kyongozi já não é


áspera; pelo contrário, ele fala com suavidade. — Sem
sementes, eu não vejo como fazer. Este não é o lugar
natural dessa planta. Ela teria melhores chances se fosse
uma semente.

— Esta é a última que eu tenho. Pensei que, se a


plantasse, poderia ter mais.

— Só tem jeito com sementes, garota.

Hyp passa as mãos pela cabeça, com os dedos


desenhando caminhos em seu cabelo desarrumado. Olha
para a plantação. Vários moradores de Palami estão ali,
trabalhando, tentando recuperar a produção de
alimentos que existia antes de a Guarda queimar tudo.
Alguns olham para Hyp. Ela sabe o que eles estão
pensando: “A ‘princesa’ não vai ajudar na lavoura”.
Hyp quer resultados rápidos. Mas a plantação precisa de
tempo. A terra sempre pede paciência aos lavradores
antes de entregar seus frutos. Eles precisam de todas as
mãos que possam ajudar. Se conseguirem produzir como
antes, não será mais necessário atacar caminhões na
estrada. Haverá lutas com a Guarda somente para
defender o território.

Hyp se despede de Kyongozi. Vai para casa, preparar o


remédio de Penia, sua mãe, com a última beladona que
tem. Depois, volta à plantação.

— Por favor, Kyongozi, me ensine a plantar — diz Hyp,


sem trazer nada em suas mãos.
31

D ário pega seu martelo e escudo de prata. Chama


Axion e outros nove guardiões:

— Tem alguém fazendo discurso em frente ao hospital.


Temos que intervir antes que vire uma nova arruaça. —
Dário vira-se para Axion e diz com a voz mais baixa: —
Ainda não é hora de usar armas letais, mas poderemos
bater em vagabundos de novo.

— Mas acabamos de tomar o depoimento de Jan


Cândhido! Ele já está protestando de novo? — pergunta
Axion.

— Não é Jan Cândhido. Desta vez é uma mulher — diz


Dário. — Esses arruaceiros estão ficando cada vez mais
abusados!

Bater em arruaceiros não soa mais como uma boa ideia


para Axion. Jan Cândhido não reagira aos golpes de
martelo nem resistira à prisão. E apenas dizia o que
pensava. Iam mesmo começar a prender pessoas por
causa do que elas diziam?

Os pensamentos turvam a vista de Axion, que apenas


segue o ritmo dos passos de Dário e deixa-se guiar pela
marcha de seus nove colegas, um de bronze e oito de
ferro. O hospital não está longe. Solitária, com uma faixa
em que se lê “Saúde para todos”, a “arruaceira” grita:

— Não podemos mais recusar atendimento às pessoas só


porque elas não podem pagar pelo tratamento. Eu sou
enfermeira e tenho a mesma obrigação ética dos
médicos: salvar vidas e curar doenças! Não importa se
for a vida de uma pessoa rica ou pobre. Saúde para
todos!

Ninguém aplaude. Ninguém naquela rua parece se


importar. Aquela mulher não tem a mesma oratória que
Jan Cândhido mostrara alguns dias antes. O seu discurso
não hipnotiza ninguém. Mas a voz é familiar para Axion.

— Mãe?

Martelo em punho, braçadeiras do escudo firmadas sobre


o bracelete de Cronos, Axion corre. Descola-se do pelotão
e avança à frente de Dário. A visão não está mais turva.
Estica o braço direito, apontando o martelo em direção à
protestante. O gesto faz parecer que ele vai atacar; os
outros guardiões aguardam.

Os passos de bronze tiritam sobre a rua de


paralelepípedos. Arete Nike solta a faixa de protesto
quando vê seu filho avançar.

Axion freia, arrancando faíscas dos paralelepípedos sob


seus pés. Ele para a um metro de Arete. Larga o martelo
sobre o chão, mas não o escudo.
— Mãe! O que a senhora está fazendo?

— Filho, seu pai foi só mais um. Há sempre um paciente


que fica sem tratamento aqui. Hoje, vi uma criança
perder a visão porque a família não podia pagar pelo
tratamento. Eu não aguento mais.

— Mas tem que aguentar, mãe. Imagine se for


descartada do hospital! Eu não consigo sustentar a
família sozinho.

— Seu pai e Oniro estão procurando emprego... Espero


que encontrem algo logo.

Os outros guardiões não entendem o que está


acontecendo. Transeuntes tampouco. Todos veem um
guardião com as mãos sobre os ombros de uma
protestante, conversando com ela como se fosse abraçá-
la. O escudo no braço esquerdo de Axion esconde tanto o
rosto da mãe como o seu. Assim, os guardiões não
escutam a conversa.

Dário só tem certeza de uma coisa: aquilo está errado.


Não pode um guardião se apiedar de uma arruaceira. Se
aquilo continuar, os cidadãos não terão mais medo da
guarda. Farão protestos a toda hora. Dário cobra:

— Guardião, é hora de efetuar a prisão!

Axion baixa o escudo e ergue a cabeça.

— Chefe, eu tenho a situação sob controle! — Axion


nunca tivera tanta astúcia para responder à reprimenda
de um superior.

— Você tem um minuto para resolver isso! — Dário


precisa mostrar que, na verdade, é ele quem tem o
domínio da situação.

Axion sobe o escudo novamente e continua a


argumentar com Arete:

— Não é só isso, mãe. Eu e aqueles guardiões viemos


prender e bater na pessoa que estava protestando na
frente do hospital. Eu não quero fazer isso. Desista desse
protesto sem sentido! Por favor!

— Não posso...

— Desista, mãe!

— Filho, não posso. Isso que você me pede é muito caro.


Eu não posso simplesmente voltar para dentro e
continuar negando atendimentos. Vou passar o resto da
vida fazendo um trabalho sem sentido?

— Mãe, se não voltar para lá, não terá mais um trabalho


sem sentido, nem com sentido... Simplesmente não terá
trabalho algum. Mesmo que a senhora não consiga fazer
o bem com o seu trabalho, precisa fazê-lo, para que seu
bracelete de Cronos continue entregando dinheiro.

Arete abraça Axion. Um abraço bem apertado. O filho


tem a voz da razão. Axion retribui o abraço, apertando
sua mãe e virando o escudo de modo que o pelotão não
os veja.
Mas não tem jeito. É fácil perceber que Axion está
abraçando a arruaceira, pela proximidade dos pés que
aparecem sob o escudo. O pelotão está incrédulo. Aquilo,
sim, é uma ameaça. Guardiões não podem ser piedosos.

Mais ameaçadora ainda é a mira de um fotógrafo


jornalístico que assiste à cena. Dário estica seu escudo
até cobrir a lente da máquina fotográfica.

— Se eu ouvir um clique, destruo sua câmera — diz


Dário, mostrando o martelo.

— Você não pode impedir o trabalho de um jornalista!

— Posso, sim. Quer ir preso? Ou prefere ir direto para o


hospital, todo arrebentado?

O jornalista recua. Aponta a câmera para o chão.

— Melhor assim — diz Dário, caminhando em direção a


Arete e Axion.

“Clique.”

A máquina fotográfica registra a cena do guardião de


prata caminhando rumo aos dois que se abraçam no
meio da rua. O jornalista corre e escapa dos guardiões.

Dário se enfurece com a petulância do fotógrafo, mas


tem algo mais urgente para resolver. Ele se aproxima de
Axion e Arete. A sombra do guardião de prata, lançada
sobre mãe e filho, é suficiente para desfazer o abraço.
— Parece que você resolveu a questão, não é mesmo,
guardião de bronze? — Dário inquire.

— Sim, senhor. Esta é a minha mãe. Ela só precisa


retornar ao trabalho. Não voltará a protestar. Não é
necessário prendê-la.

Os nove guardiões do pelotão se ocupam de lembrar às


pessoas que assistiram ao discurso de Arete que elas
precisam cuidar de seus empregos.

Axion faz uma rápida continência para seu superior e


vira-se, dando o braço para guiar sua mãe. Arete sobe as
escadas do hospital. Sente como se estivesse sendo
arrastada para o Tártaro, lugar onde as almas são
castigadas. Está condenada a passar o resto de seus dias
contando com a sorte para salvar ou curar alguém.

Surge na porta um homem magro, alto, de braços de


ferro. Enxugando lágrimas, ele diz a Arete:

— Você estava certa, enfermeira. Este hospital não quis


salvar a minha esposa nem o bebê. Ela morreu no parto.
A bebê não resistiu. Não adianta vir para cá.

Arete não responde. Olha Axion, no fundo dos olhos. Ele


percebe que a dor da mãe é real. Mas ela precisa voltar
ao trabalho. O guardião de bronze dá um passo. A
enfermeira permanece estática. Ela pesa. O guardião
envolve o braço esquerdo ao redor da cintura da mãe e
força a caminhada. Ela move os pés apenas o bastante
para manter o equilíbrio. Mas a energia de trabalhar se
foi. Conduzida pelo guardião, ela vence a porta de
entrada.

Na sala de espera, cada doente, acompanhado de um


familiar, tosse, sente dor, resiste. Arete nem precisa
conhecer os diagnósticos em detalhes. Já pode ler o
futuro de todos eles. Pode ver seus colegas andando sem
pressa pelos corredores do setor de emergência. Andam
sem pressa porque a pressa é inútil. Eles já se
conformaram em fazer o trabalho de preencher papéis
em pranchetas, passar orientações vagas aos pacientes
e esperar pela hora em que a jornada de trabalho
termina.

Mas não Arete. Ela não se conforma. Aquilo dói. Devora-a


como um câncer. As pernas não a sustentam mais. Os
joelhos tocam o chão. O ar lhe falta. Axion diz algo
incompreensível, enquanto some na escuridão.

***

— Onde está o Doutor Ramazzini? — Axion corre pelos


corredores fazendo a mesma pergunta a todos que usam
jaleco. Um estranho homem de cabelos longos e
encaracolados, agarrado a uma prancheta como
qualquer outro médico, responde:

— Sou eu.

— Doutor, minha mãe...

— Estou ocupado, senhor guardião.


O médico não se comove com a cena de um guardião
agarrado a uma mulher desmaiada.

— Doutor Ramazzini, o senhor ensinou à minha mãe que


não se deve negar atendimento a uma pessoa em
necessidade. Ela trabalha contigo. Agora, ela precisa de
ajuda.

O médico tira os olhos da prancheta. Reconhece Arete.


Pede a Axion que explique o que aconteceu. Ao escutar a
história, Ramazzini mostra seu conhecimento:

— Chama-se burnout . É uma síndrome de esgotamento


físico e mental. Arete devia estar no seu limite já há
alguns dias.

— Qual o remédio para isso, doutor?

— Caro guardião, não há remédio. Ela precisa descansar


por trinta dias. Veremos se ela consegue voltar ao
trabalho depois disso.

O médico agarra-se à prancheta e põe-se a escrever.


Pede a um padioleiro que traga uma maca para Arete.
Axion segura a mão de sua mãe que, deitada, parece
respirar mais calmamente.

Ramazzini entrega uma folha de papel com a ordem


médica de repouso por um mês. O bracelete de Cronos
no braço de Arete para de tecer fios de ferro.
32

–H ormes, venha comigo. Preciso apresentar a você


o meu projeto mais importante.

Hormes acompanha Theceo até o elevador, carregando a


sua mochila-Lampião. Theceo assume o controle do
elevador e diz ao ascensorista:

— Descanse. Vá tomar um café.

Hormes acha aquilo estranho. Não é normal Theceo pedir


a alguém que saia do posto de trabalho e vá descansar.
Theceo move a alavanca e o elevador começa a subir.
Pelo vidro, Hormes vê o andar térreo se distanciar. O
rapaz continua em silêncio.

— Gostei muito dos resultados que conseguimos na


fábrica — diz Theceo. — Desde que você fez aquela visita
ao chão de fábrica, a produtividade triplicou. Você ainda
conseguiu que os empregados trabalhassem mais
felizes! Estou mesmo impressionado.

Este é o momento que Hormes tanto esperou. Ele


mostrou a Theceo que a produtividade poderia aumentar.
Theceo está ganhando muito mais dinheiro do que antes.
É hora de mudar a Lei de Cronos.
— Theceo, há algo que quero lhe dizer... — começa
Hormes.

Mas Theceo não parece escutar:

— Você passou em um teste muito importante, Hormes.


Você está pronto para o último teste, antes de eu
promovê-lo a engenheiro de ouro?

— Ah... Sim, senhor. Estou pronto.

Hormes precisa escolher bem as palavras. Ele está a


poucos passos de se tornar engenheiro de ouro. Theceo
quer apresentá-lo ao projeto mais importante da fábrica.
Isso deve garantir uma vida confortável para sua família.
Quem sabe ele poderá se mudar para Megali Axia, o
mesmo bairro em que mora seu patrão? Poderá ver
Diceosine todos os dias? Terá, finalmente, o dinheiro
necessário para casar-se e viver uma vida digna com ela?

Pelo vidro do elevador, Hormes vê operários trabalhando


nos mezaninos marrons das enormes máquinas da
fábrica. Ele precisa manter o foco. O verdadeiro objetivo
é mudar a jornada de trabalho dos operários. Conseguirá
dizer isso a Theceo sem estragar sua promoção?

— Se já aumentamos a produtividade e reduzimos o


desperdício de tempo, agora os trabalhadores podem ir
para casa mais cedo, certo? — Hormes fala como quem
suplica por aprovação. Sente medo. De quê? Talvez de
perder a oportunidade que acaba de conquistar. Talvez
de ser muito contundente na sua primeira fala com
Theceo, e que o patrão nunca mais lhe dê ouvidos.

— Não entendo o que você está dizendo, rapaz. Se as


pessoas forem para casa mais cedo, vamos pôr a perder
todo o ganho de velocidade na produção. Não faz
sentido.

— Quero dizer que, agora, os operários terminam as


tarefas mais rápido, eles alcançam as metas mais
rápido...

— Isso! — interrompe Theceo. — Eles terminam as


tarefas e alcançam as metas mais rápido...

— Portanto, podem ir para casa mais cedo — completa


Hormes. — Podem usar o tempo livre para outras coisas!

— Não! — exclama Theceo. — Se eles trabalham mais


rápido, então nós aumentamos as metas. Produtividade
nunca é demais!

— Mas logo vamos produzir o suficiente para atender a


todas as necessidades de todas as pessoas — argumenta
Hormes. — É para isso que estamos trabalhando, não é?
Para atender necessidades...

— Na verdade, não. A Ordem de Cronos não é sobre


atender necessidades. Se as necessidades forem
satisfeitas, as pessoas param de trabalhar. Veja, os
operários são... bovinos. Eles só trabalham se estiverem
passando por alguma necessidade, assim como um boi
faminto. Se o boi não tiver fome, ele não puxa a carroça.
É assim que funciona: carrot and stick . Colocamos uma
cenoura na frente do boi faminto para ele puxar a
carroça ao tentar alcançá-la. Se ele não se mexer,
acertamos o lombo dele com uma vara. A motivação dos
homens-bovinos funciona do mesmo modo — Theceo
repousa a mão sobre o ombro de Hormes. — Mas você,
Hormes, você não é um homem-bovino. Você é diferente.

O elevador atravessa as nuvens de fumaça, subindo para


o topo da torre SYM. Mas Hormes volta o seu
pensamento para os operários que trabalham nos
andares inferiores da fábrica, parafusando, soldando e
lubrificando peças que não sabem para que servem.
Apenas repetem os movimentos, inúmeras vezes.
“Então, não importa o quanto a tecnologia avance, as
metas sempre vão aumentar? Eles sempre trabalharão
pensando que a vida vai melhorar, mas serão sempre
mantidos em estado de necessidade, como bois
famintos?”.

O elevador chega ao último andar, no hall de acesso à


sala de Theceo. O sol entra pelas janelas e invade o
elevador como se o próprio Deus Apolo direcionasse
todos os raios de luz para lá.

A respiração de Hormes é claramente audível. O suor


escorre por seu rosto prateado. Seus olhos arregalados
procuram sentido nas palavras de Theceo. Sim, fazem
sentido. Tudo faz sentido.
— Você está dizendo, então, que o discurso de Jan
Cândhido traduz a verdade? — pergunta Hormes.

— É verdade, sim. Exceto pelo pessimismo do Jan


Cândhido, claro. Mas, sim, é verdade. Uma verdade que
não deve ser dita — Theceo finalmente se vira e olha
Hormes. — Mas você ajudou a silenciá-lo. Questioná-lo
publicamente foi uma ótima ideia. As pessoas terão
dúvidas se as ideias de Jan Cândhido são verdadeiras ou
não. Além disso, depois de Jan Cândhido ter apanhado da
guarda, quem vai querer ficar do lado dele? Só quem
quiser apanhar também, não é?

— Theceo, sua filha estava lá, ao lado de Jan Cândhido...

— É verdade. Prometeus me contou. Sei agora de onde


ela tira essas ideias malucas. Voto feminino, democracia,
igualitarismo... Ela precisa de alguém que tire isso dela.
Ela não me escuta mais. No fim das contas, você é minha
esperança de salvá-la. Ela lhe dá ouvidos.

Theceo faz cálculos sem números. Se Hormes se casar


com sua filha Diceosine, poderá dar força à ilusão dos
homens-bovinos. Afinal, Hormes seria o exemplo de
menino pobre que se tornou rico. Os homens-bovinos
precisam acreditar nisso: que podem ficar ricos e se
casar com uma mulher rica.

— Eu sei que você gosta dela. Se passar no teste e se


tornar engenheiro de ouro, terá minha benção, caso
queira se casar com ela. Só me prometa uma coisa: você
não deixará que ela mergulhe nessas ideias malucas do
Jan Cândhido.

Hormes vê, diante de si, tudo com que poderia sonhar.


Ele tem um futuro inigualável como engenheiro das
fábricas SYM. Seu bracelete de Cronos recompensa por
fazer aquilo de que mais gosta: inventar máquinas. Ele
tem à sua disposição todas as peças, ferramentas e
recursos para construir o que quiser. Terá a bênção de
Theceo para conquistar sua amada.

Basta seguir as recomendações de Theceo para garantir


uma vida próspera. Hormes precisa escolher certo o que
deve fazer. Precisa escolher certo o que deve dizer.

E o certo é aquilo que agrada a Theceo. Errado é pôr


tudo a perder.

Hormes respira. Respira. Respira... Respira.

Theceo continua a falar:

— Venha. Vou lhe mostrar o meu grande projeto.


33

A pós alguns dias de trabalho na lavoura, Kyongozi


chama Hyp até sua casa. Ele tira de um baú um
pequeno saco de moedas.

— Você tem dinheiro? — pergunta Hyp.

— Sim.

— Achei que você detestasse o dinheiro.

— Eu detesto. Pessoas como seus pais esqueceram que é


a terra que fornece o alimento. Elas pensam que é o
dinheiro.

— Tá, mas... E você? Por que, então, você tem dinheiro?

— Porque, quando havia sobras de nossas colheitas, nós


as vendía­mos para os moradores de Nova Ascra. Com
esse dinheiro, podíamos comprar ferramentas — explica
Kyongozi. — É disso que eu preciso, agora. Preciso que
você compre algumas ferramentas. Uma pá, uma enxada
e um ancinho.

— Não podemos construir nossas ferramentas nós


mesmos?

— Já fizemos isso no passado. Muitas vezes. Mas as


ferramentas fabricadas em Nova Ascra são realmente
melhores.

— E as ferramentas que conseguimos no ferro-velho? —


pergunta Hyp.

— Elas são ferro-velho. Nunca vem uma boa.

— Então, realmente dependemos dos moradores de Nova


Ascra. Eles nos vendem ferramentas...

— Não é tão ruim assim. Ainda vivemos melhor do que


eles — diz Kyongozi, com um sorriso orgulhoso.

Hyp sorri. Pega o saco de moedas e sobe o parapeito da


janela.

— Ah, uma coisa importante: não vá à estoa. Os preços


são mais altos lá, pois eles só vendem para os ricos.
Moradores de Palami não são bem-vindos ali. Vá ao
Mercado de Feno — alerta Kyongozi.

Hyp acena positivamente com a cabeça. Examina com os


olhos o caminho até o Mercado de Feno, calculando a
rota mais curta para chegar até lá por cima dos telhados.

— E princesa...

Ela volta o olhar para Kyongozi.

— Lá no Mercado de Feno tem alguns vendedores de


sementes. Talvez você tenha sorte e encontra sementes
de Atropa belladonna .
Hyp sorri um sorriso bem largo. Desce da janela e abraça
Kyongozi. Depois volta à janela, salta, badala o telhado e
some.
34

A o adentrar a sala de Theceo, no último andar da


torre SYM, Hormes vê Dédalo e Prometeus, os
engenheiros de ouro, discutindo um enorme projeto
sobre a mesa. Theceo pede:

— Senhores, por favor, expliquem para Hormes o Projeto


Tifão.

— Hormes está pronto? — pergunta Dédalo — Ele ainda


não é de ouro...

Theceo se lembra de Cronos cobrando-lhe que cumpra


sua promessa de remover Palami do morro e mudar o
Belvedere dos Titãs para o ponto mais alto. Falta menos
de uma semana para o prazo expirar. O Deus do Tempo
não tolerará mais atrasos.

— Está pronto o bastante. Precisamos dele para fazer o


projeto dar certo, não é? Eu tenho pressa.

Os homens dourados concordam em silêncio.

Hormes acomoda a mochila-Lampião no chão, ao lado da


mesa. Seus olhos já decifram o projeto. São robôs
gigantes, equipados de canhões e armas incendiárias.

— São máquinas de guerra, Theceo.


— Eu sabia que você entenderia logo de primeira.
Observe. Os projetos mais complicados são os mekhas,
esses robôs que terão o tamanho de uma casa... —
Theceo baixa a voz para que apenas Hormes escute. —
Esses engenheiros estão trabalhando há meses no
projeto, mas não conseguem fazer um único mekha
caminhar sobre duas pernas. Mas você já conseguiu isso
com seu pequeno robô. Aposto que também conseguiria
fazer um robô maior andar.

— Para que você precisa desses robôs de guerra?

— Queríamos construir caminhões e tanques de guerra.


Mas eles não seriam capazes de escalar o morro de
Palami. Então, eu pedi aos engenheiros que criassem
robôs que andassem sobre duas pernas. Quando vimos
seu pequeno robô, tivemos esperança de conseguir.

— Por que Palami, senhor Theceo? — Hormes se


surpreende quando ouve a palavra “senhor” sair de sua
boca. Não era assim que ele se dirigia a Theceo.

Theceo explica:

— Porque os moradores de Palami vivem alheios à Lei de


Cronos. Eles nem imaginam como é bom merecer as
recompensas do trabalho. Vivem como animais.
Precisamos ensiná-los a viver de acordo com o nosso
modo de vida. Para isso, criamos o Projeto Tifão.

“Se a Lei de Cronos será assim tão boa para essas


pessoas, por que precisamos de máquinas de guerra
para convencê-las a se adequar a ela?” É o que Hormes
gostaria de ter dito. Mas não disse.

Theceo, parecendo ter lido o pensamento de Hormes,


explica:

— O maior problema que temos com os moradores de


Palami é que eles não têm nenhuma necessidade que os
motive a trabalhar. Eles resistem a arrumar trabalho
legítimo — sorrindo, Theceo conclui: — Mas, como
dizemos no mundo dos negócios, se a necessidade não
existe, ela deve ser criada!

— Então, o Projeto Tifão serve para acabar com os


recursos de Palami. Com isso, os moradores terão
necessidade de arrumar empregos legítimos. É isso? —
conclui Hormes.

— É por isso que você não é um homem-bovino, Hormes!


A sua inteligência ainda vai levá-lo muito longe! Você me
deixa orgulhoso! — Theceo festeja em voz alta.

Hormes pode sentir o gélido olhar de inveja de Dédalo e


Prometeus por causa do elogio.

A secretária abre a porta com força, deixando-a bater na


parede. O barulho do impacto concorre com o som da
última frase de Theceo.

— É uma emergência, patrão — diz a mulher, assustada.

— Agora, não. Não há assunto mais importante do que o


que estou discutindo com meus engenheiros — responde
Theceo.

— Aconteceu um acidente na fábrica — insiste a


secretária.

— Não interessa.

— Parece sério...

— NÃO! — grita Theceo.

— A produção parou.

O rosto de Theceo fica vermelho como brasa em uma


fornalha.

— Aaaahhh... Ok. — Theceo, controlando a irritação,


volta-se aos engenheiros:

— Com licença, cavalheiros, às vezes problemas


pequenos atrapalham grandes projetos. Eu já volto.

Sai. Fecha a porta. Lá no hall , a caminho do elevador,


grita coisas incompreensíveis.

Hormes tem os olhos fixos nas plantas e muitas


perguntas na cabeça. Ele reconhece algumas partes dos
mekhas, que lhe parecem muito familiares.

— Vocês se basearam no estudo que Ftonos fez


desmontando o meu robô.

— Sim, isso mesmo — diz Dédalo.


“Theceo puniu Ftonos por roubar a minha ideia, mas
agora ele mesmo a está roubando. Que cara de pau!”,
pensa Hormes. Mas ele nunca havia desenhado uma
arma na vida. Não era para isso que ele queria criar
robôs.

— Theceo falou mais alguma coisa sobre como essas


coisas serão usadas? — pergunta Hormes.

— Theceo diz que os mekhas serão usados pelos


guardiões em Palami para expulsar os Anansis e queimar
lavouras, oficinas e qualquer coisa que eles usem para
trabalhar fora da Lei de Cronos. Servirão também para
reprimir protestos como os de Jan Cândhido. Depois, vão
atacar lugares que não seguem nosso modo de vida,
como os bárbaros do Vale Bucólico.

— Por que vocês concordaram em fabricar armas? Vão


matar pessoas, agora?

— Não seremos nós a apertar os gatilhos. Não vamos


matar ninguém. — Há uma raiva contida na voz de
Dédalo ao dizer isso. A justificativa não é boa, mas foi a
melhor que ele conseguiu elaborar.

— Não queremos perder nossos braceletes de Cronos,


Hormes. Precisamos do dinheiro do nosso trabalho.
Temos famílias para cuidar. Se não fizermos isso, Theceo
nos descarta e chama outros engenheiros para fazer o
serviço. Então dá na mesma. Esses mekhas serão
construídos de qualquer jeito — Prometeus sente sua
covardia arder.
— Onde vocês constroem essas máquinas? — pergunta
Hormes.

— As peças são fabricadas no chão de fábrica, em meio


às peças de automóveis, sem que os empregados saibam
o que são. Depois, as peças dos mekhas são enviadas
para o subsolo — explica Prometeus.

“Por isso havia um guardião de prata servindo de leão de


chácara do subsolo”, pensa Hormes.

— Mas você saberia resolver isso, não é, Hormes? —


Prometeus pergunta, voltando a atenção do jovem
engenheiro para as plantas dos mekhas que não ficam
sobre duas pernas, confiante de que a resposta será um
sonoro “sim”. Olha discretamente para a mochila-
Lampião de Hormes, aguardando uma explicação sobre
como o robozinho funciona.

— Talvez. Meu robô de dez quilos é muito diferente desse


mekha de dez toneladas, carregado de armas. Não é só
um problema de escala. Expliquem para mim esse outro
projeto...

Hormes pergunta muito. Enquanto os engenheiros


dourados falam, ele organiza as plantas, umas sobre as
outras. Coloca pesos nas pontas, para evitar que aquela
pilha de papéis enorme se enrole sozinha, e corre suas
mãos de prata sobre os desenhos, analisando cada
engrenagem. Pega uma nova planta e põe por cima da
anterior. Analisa de novo. A certa altura, conclui:
— Entendi.

Hormes vira e retira de bolso da mochila-Lampião o


controle da aeromoto. Aperta um botão. Ele eleva sua
voz:

— Há erros aqui. Precisamos corrigi-los.

— Que erros?

— Mostre!

Os engenheiros de ouro esperam pela explicação de


Hormes. Ele parece estar perto de encontrar a solução
para fazer os mekhas caminharem sobre as duas pernas.

Mas um barulho de motor surge em uma das janelas.


Hormes retira os pesos das pontas das plantas e dá um
tapa na pilha de papel. As enormes folhas se enrolam,
pela simples força do vício de ficarem enroladas por
muito tempo.

O barulho de motor soa mais alto.

Uma das grandes janelas da sala de Theceo estoura,


lançando fragmentos de vidro por toda a sala.

Dédalo rola para baixo da mesa, como que por reflexo.


Prometeus paralisa e deixa cacos de vidro o acertarem.

A aeromoto de Hormes invade a sala. O inventor,


segurando as plantas com a mão esquerda, veste as
alças da mochila-Lampião e sobe na aeromoto, fazendo-a
girar pela sala para poder sair pela mesma janela por
onde entrara.

Dédalo sai de baixo da mesa, agarra um vaso de ouro e


atira. Hormes desvia, perdendo o rumo da janela, e
Prometeus dá um salto para agarrar as plantas.

Hormes não as solta.

Enquanto Prometeus tenta puxar as plantas, Dédalo atira


uma luminária de mesa contra Hormes.

Presa pelo fio da tomada, a luminária cai, puxada pelo


fio, aos pés de Dédalo. Ele então arranca o fio do
telefone sobre a mesa e arremessa.

O telefone acerta a aeromoto, fazendo Hormes se


desequilibrar. Mas ele não solta as plantas do Projeto
Tifão.

Theceo entra na sala. Vê Hormes montado na aeromoto,


com Prometeus puxando as plantas de suas mãos e
Dédalo arremessando vasos, porta-lápis, grampeadores.

— O QUE ESTÁ ACONTECENDO AQUI? — grita Theceo.

Hormes responde:

— Dédalo e Prometeus querem destruir as plantas do


Projeto Tifão!

Hormes não sabia mentir. Mas acabou de aprender a


mentir, ali mesmo, pois tudo está em jogo.
Prometeus e Dédalo se surpreendem com a resposta
ardilosa do rapaz.

Theceo, ainda sem entender muito bem como a sua sala


se transformou naquele caos, corre e lança o peso de seu
corpo sobre Prometeus, fazendo o engenheiro de ouro
largar as plantas.

— Patrão, é o Hormes quem está roubando os projetos!


— diz Prometeus.

Theceo, incrédulo, vê Hormes aprumando a aeromoto e


acelerando em direção à janela. Hormes vai embora, com
as plantas do Projeto Tifão sob o braço, em trajetória
descendente rumo ao confuso bairro de Ble-Kolara, onde
moram os operários das fábricas.

O inventor escuta Theceo gritar:

— Eu vou caçá-lo custe o que custar, Hormes! Esses


projetos são meus! Você vai pagar por essa traição!
35

A aeromoto não foi feita para voar àquela altura


carregando uma pessoa. O motor aguenta subir a
torre das Indústrias SYM sem carregar peso, mas, agora
com Hormes a bordo, desce rapidamente.

O rapaz luta contra a vertigem da queda veloz, contra o


vento em seu rosto, contra os papéis que querem voar.
Agarra com força o guidão que quer escapar de sua mão.
Sente as alças da mochila-Lampião apertarem seus
ombros. Firma os pés contra o corpo da aeromoto para
não se despegar dela. Ajusta o curso e empina o nariz da
engenhoca, fazendo com que o rotor de sustentação
ajude a reduzir a velocidade da queda.

Os telhados das casas de Ble-Kolara se aproximam


rapidamente. Hormes desvia de postes, telhas, varais,
árvores, vasos de plantas. Força o guidão para a
esquerda para alcançar uma pequena rua.

A aeromoto agora sustenta uma altura estável, a vinte


centímetros do chão, mas ainda se desloca muito rápido,
devido à inércia da longa descida. Naquela rua estreita,
desvia de mais postes, de algumas pessoas e de alguns
veículos velhos estacionados. Desvia, por fim, de um cão
que atravessava a rua, mas neste momento Hormes
perde o controle.
A turbina esquerda bate com força contra um poste.
Hormes é arremessado para frente, girando no ar como
um pião. Seu corpo prateado badala como um sino cada
vez que ele capota no chão. Uma das alças da mochila-
Lampião arrebenta e o pequeno robô compactado capota
ao lado de seu dono. Param de capotar no final da rua.

— Você está bem, meu rapaz? — pergunta uma velha


senhora de mãos de ferro, que carrega suas compras
para casa para fazer o jantar.

Hormes sente o mundo girar ao seu redor. Ele consegue


ver a mulher que fala com ele, mas está enjoado demais
para responder.

— É um homem de prata! — admira-se outra mulher de


ferro.

— Ele caiu do céu! — diz a filha dela. — Mãe, posso me


casar com ele?

— O que é isso, menina, você nem o conhece e já sai se


atirando desse jeito?

— Você diz para eu arrumar um bom marido...

— Mas não viu que esse aí já enfiou a cara no poste e


saiu rolando pelo chão? Deve ser um bêbado perdido,
como seu pai. Não me engana, não. Mesmo entre os
ricos, tem muito homem que não presta.

— Ah, mãe...
Hormes ergue as mãos diante de seus olhos. O enjoo
está passando. Seus braços estão doloridos. Os dedos,
dormentes.

Ele se levanta. Calça a alça da mochila-Lampião que não


arrebentou. Ajeita os papéis do Projeto Tifão em um
único rolo. Tenta disciplinar as pernas. Elas
desobedecem, um pé se mete na frente do outro.
Tentando se reequilibrar, Hormes bate o rosto contra
outro poste e cai mais uma vez.

— Viu só, menina? É um bêbado! Sempre escute sua


mãe...

Hormes se levanta, caminha pé ante pé, acompanhado


pelos olhares das mulheres naquela rua.

Ao longe, um menino aponta para a aeromoto. Dois


guardiões, um de bronze e um de ferro, agradecem.
Olham para o brilho prateado de Hormes, segurando
rolos de papel.

Os guardiões correm em sua direção.

Hormes corre e sobe na aeromoto. Gira a chave para


acioná-la. O motor gira, chia... Mas não liga.

Os guardiões se aproximam, vencendo a distância da


rua.

— O que está falhando? — pergunta-se Hormes, girando


a chave e olhando para o motor entre suas pernas.
Falta pouco para os guardiões o alcançarem.

A jovem casadoira se aproxima e dá um chute na


dianteira da aeromoto. O motor ronca. As turbinas
assoviam. A aeromoto paira a vinte centímetros do chão,
afastando-se devagar do poste.

— Obrigado! — diz Hormes.

— Eu sou uma engenheira de futuro, sabia? Volte para


que eu lhe dê aulas de mecânica. E casar comigo!

Hormes sorri, agradecido e envergonhado.

A mão de um guardião de bronze alcança a ponta


traseira do banco da aeromoto:

— Parado! Você está preso!

Hormes acelera. Despede-se de sua quase-noiva com um


sorriso e uma piscadela. Segura os papéis com força sob
o braço, sem medo de amassá-los.

O guardião agarrado ao banco arrasta os pés no chão de


paralelepípedos, faiscando e reduzindo a velocidade do
veículo. O outro guardião corre e salta na frente da
aeromoto, bloqueando a passagem.

Hormes acelera, forçando o guardião à sua frente a saltar


para o lado. O guardião de bronze na traseira da
aeromoto solta o banco, admitindo que a máquina é
deveras potente.
— Encontramos o engenheiro de prata! Ele está aqui! —
grita o guardião de bronze.

Mais guardiões aparecem em cada esquina. Hormes


desvia dos ataques de martelo, das boleadeiras e dos
tiros disparados pelos guardiões.

“Que lugar seria seguro para eu me esconder? Não posso


ir para casa, pois isso atrairia os guardiões para lá”.
Enquanto pensa, Hormes acelera pelas ruas de Ble-
Kolara.

Desviando dos guardiões, chega às docas da estoa, o


centro comercial onde trabalhava quando era empregado
na banca de frutas de Momus. As docas são velhas
conhecidas de Hormes. É por ali que chegam as
mercadorias a serem vendidas aos clientes.

Os guardiões que o seguem atravessam com dificuldade


aquele labirinto de caixas com frutas, roupas, tapetes e
utensílios de toda sorte. Mas isso não é problema para
Hormes. Ele sabe muito bem desviar a aeromoto das
pilhas de mercadoria, pois sabe muito bem como elas
são organizadas.

Aos poucos, os guardiões ficam para trás. Mas Hormes


ainda precisa encontrar um lugar seguro. Saindo das
docas da estoa, ele avista enormes colunas douradas
pelo sol da tarde.

“O Templo de Nomos”, pensa.


36

A xion entra em casa, empurrando a porta com o pé e


carregando a sua mãe. Caminha alguns passos pela
sala e deita-a em um sofá.

— Preciso da sua ajuda, Oniro — pede Axion ao irmão.

— Veja, Axion. Consegui um emprego — anuncia Oniro,


exibindo o bracelete de Cronos em seu braço esquerdo.
Ele finalmente desistira dos seus mimos de irmão mais
novo e de seus sonhos malucos de se tornar um artista
famoso. Espera que Axion comemore a decisão.

Mas Axion nada diz. Olha para Oniro com frieza.

— Você nem se importa, né? — lamenta Oniro.

Oniro não sabe, mas pela cabeça de Axion correm muitas


preocupações. Questões importantes que precisam de
solução, e rápido. Arete não reage a nada. Permanece
muda, com o olhar distante.

— Oniro, espere.

— O que você quer?

— Mamãe precisa de você. Eu vou sair para comprar


comida e volto logo, mas ela não vai cozinhar. Tenho que
preparar algo para podermos comer hoje.
Oniro sente uma mistura de sentimentos. Está aliviado
por ter conseguido um emprego com bracelete de Cronos
para ajudar a sua família, mas fica preocupado por ver
sua mãe desmaiada. Ele entende que, agora, seus pais
não mais proveem a renda da casa. Cabe a ele e Axion a
responsabilidade de colocar a comida na mesa.

Axion sai, carregando seu martelo. Vai ao Mercado de


Feno, que fica em uma rua próxima da sua casa. Ao
chegar, um guardião de bronze lhe pergunta:

— Você tem alguma pista dele?

— De quem? — pergunta Axion.

— Do engenheiro de prata — diz o guardião de bronze. —


Você não está sabendo?

— Não...

— Por onde você andou hoje? Um engenheiro de prata


roubou planos das Indústrias SYM — explica o guardião
de bronze. — Jasão pediu prioridade total para encontrá-
lo. Dizem que são documentos sigilosos, com alguma
informação muito importante.

— Não, eu realmente não sabia. Eu estava com minha


mãe no hospital.

— Você é o filho da mulher que protestava na frente do


hospital?

— Sim, sou eu...


— Jasão está furioso com você. A notícia já correu por
toda a Guarda. Se eu fosse você, ficava longe da Sede
por um tempo.

— Bom, realmente terei de ficar longe por um tempo.


Com licença, tenho que ir. Obrigado pelas informações.
— finaliza Axion.

Ele se mistura à multidão que anda pelo Mercado de


Feno. Muito menos organizado do que a estoa, o Mercado
de Feno é um amontoado de barracas nas quais os
vendedores gritam seus bordões, competindo para atrair
clientes.

— Um pequeno investimento para um grande futuro! —


anuncia um vendedor de cupons de capitalização,
apelidados de “Cupons da Fortuna”.

Axion diria: “Eu não quero comprar cupons”. Porém,


aquele vendedor tem um rosto familiar. Familiar mesmo.
Mas, agora, exibe um rosto de ferro com um sorriso
inapagável. Sorriso de vendedor.

— Pai?

— Oi, filho! Olha só, consegui um emprego — Sísifo


mostra os cupons em suas mãos. — Não tem problema
se meus braços doem. Neste trabalho, não preciso
apertar parafusos. Só entrego cupons e pego dinheiro.

— Esse emprego paga bem, pai?

— Não muito...
— Vejo que o bracelete de Cronos está parado.

— Não recebo por hora. Recebo um trocado quando


vendo os cupons. Mas está bom. Graças aos deuses eu
tenho um trabalho.

— Com certeza, pai... — Axion esboça um sorriso que


esconda sua desilusão.

Sísifo sorri de volta. Sorriso de vendedor.

Axion conta a seu pai sobre a saúde de Arete.

— Ela está em casa agora, pai. Vou comprar comida e


levar para casa.

Sísifo observa, sorrindo, as pessoas que andam pelo


Mercado de Feno. Muitos saem por alguns minutos do
trabalho para comprar o que precisam. Alguns não têm
emprego. Mas todos, sim, todos têm suas batalhas
pessoais. Sempre há um parente doente aguardando em
casa. Ou um filho recém-nascido. Ou alguém que precisa
de cuidado. Todos continuam levando suas vidas como se
seus problemas existissem apenas dentro de casa.

— Então eu vou para casa. É hora de cuidar da sua mãe.

Pai e filho se despedem com sorrisos frios e cúmplices. O


guardião segue seu caminho. Sísifo sorri e tenta vender
cupons no caminho de casa. Axion carrega seu martelo.

Para Axion, parece que tudo está desmoronando. Arete


está afastada do trabalho. Não ganhará dinheiro até que
consiga voltar a trabalhar. Será que voltará a trabalhar?
Logo agora que Oniro conseguiu um trabalho legítimo,
com um bracelete de Cronos, precisará gastar tempo e
energia para cuidar da mãe doente. Sísifo tem um
emprego, mas nenhuma garantia de ganhos suficientes.

Daí em diante, pela cabeça de Axion só passam números.


Ele precisa comprar comida, água, lenha para o fogão,
sabão para lavar roupa... Há algo que ele possa cortar
das despesas? Tudo parece ser essencial!

Passa apressado pela banca que vende cestos, pela de


couros, pela de ferramentas... E para em frente a uma
banca que vende legumes. Os preços são muito mais
baixos do que na estoa, mas a qualidade das batatas, do
arroz, do feijão, do repolho também é muito mais baixa.
Mas é assim que Axion começa a economizar.

O vendedor da banca se assusta ao ver um guardião, de


armadura completa e martelo em punho, fazendo
compras. Axion percebe a reação. Estava tão absorto em
suas preocupações que esqueceu de vestir sua roupa
civil quando saiu de casa. Mas tem pressa. Decide
comprar logo e voltar para casa, rápido.

Seleciona como pode as melhores batatas para levar


para casa. Paga. O vendedor coloca a compra num saco
de papel, que Axion abraça com o braço esquerdo. Com o
direito, sustenta seu martelo de modo que não assuste
os transeuntes. Esbarra em uma mulher que comprava
ferramentas na banca ao lado.
— Você...— De repente, as preocupações de Axion dão
lugar à raiva. Solta as batatas, que espatifam e rolam
pelo chão. Agarra o martelo com as duas mãos.

— O que você está fazendo aqui?

— Estou comprando ferramentas, como qualquer pessoa.


Trouxe dinheiro, ó. — Hyp sacode um saquinho de
moedas diante do nariz de Axion, dando um sorriso
debochado pelo simples prazer de ver de que cor fica o
rosto do guardião quando está com raiva.

— Você é fugitiva! Está presa!

— Nada disso! Eu vou continuar fugitiva! — Hyp vira uma


caixa de ferramentas sobre os pés de Axion, apenas para
atrasá-lo.

Doeu. Muito. Axion mal consegue se sustentar em pé.

A jovem Anansi se mete pelo meio das pessoas, sabendo


que leva vantagem por vestir uma roupa muito mais leve
do que a armadura da Guarda e por não carregar um
martelo enorme.

Axion, recuperando-se das dores no pé, luta contra a


correnteza da multidão, gritando:

— Abram espaço! Guarda em serviço!

Mas pouca colaboração encontra naquelas pessoas.


Passa a empurrar transeuntes com mais força e a
abandonar os protocolos da guarda:

— Saiam do caminho, eu já disse!

Um feirante, indiferente aos gritos de Axion, para no


caminho e cruza os braços. Fixa os olhos no guardião,
desafiando-o em silêncio.

Sem pestanejar, Axion empunha seu martelo e dá-lhe um


golpe no estômago, arremessando o feirante a três
metros de distância, esbarrando em pessoas
boquiabertas e de olhos esbugalhados.

Surte efeito. O caminho se abre. Axion avista Hyp. Ele


grita, mais preocupado em afastar os transeuntes do que
em conseguir a obediência da Anansi:

— Parada! Você está presa!


37

J an Cândhido precisa conversar com a sacerdotisa


Calina. Sempre que conversa com ela, as ideias se
organizam e ele sabe o que fazer. É disso que ele precisa.
Ele entra no Templo de Nomos escutando, junto do eco
de seus passos, o eco do que um jovem de prata lhe
dissera na ágora: “Quem está errado é você, que pensa
que só com um discurso conseguirá mudar o mundo”.

Não basta ter um discurso. É preciso fazer algo. Mas... O


quê?

Ele precisa falar com Calina.

Meses antes, quando Jan Cândhido chegou à cidade, era


apenas um marinheiro desempregado. Fora expulso da
frota da guarda marítima depois de liderar um motim
contra as jornadas exaustivas e os castigos aplicados aos
marinheiros. Na frota, quem tentasse descansar era
punido com chibatadas no convés, sob os olhos dos
colegas.

Depois de ser expulso, Jan Cândhido viveu da caridade


de Calina e do trabalho esporádico de estivador. Ele
conseguia trabalhar no porto de Nova Ascra com a ajuda
de velhos colegas, que o indicavam aos patrões. A
maioria dos patrões não percebia que estava contratando
o “arruaceiro”, “agitador”, “amotinado”, “terrorista” que
insurgiu contra eles.

Conversando com Calina, ele concluiu que o problema


das jornadas de trabalho extenuantes tinha origem nas
fábricas. O padrão de jornada das fábricas era copiado
para as demais profissões. Era preciso, portanto, mudar
primeiro a jornada de trabalho das fábricas, com o apoio
dos operários, para então mudar a realidade dos
marinheiros. Tornou-se frequentador assíduo do templo.

Jan Cândhido para diante da estátua de Nomos, no fundo


da nave central do templo. O rosto de Nomos é iluminado
pela fraca luz das velas aos seus pés e pelo reflexo da luz
noturna, que atravessa os vitrais e ilumina o chão de
mármore.

A voz de Calina ressoa na sala detrás da estátua de


Nomos. Ela não está sozinha. Sua voz e a do visitante se
aproximam. Passando pela enorme porta à esquerda da
estátua, eles avistam Jan Cândhido.

— Você! — dizem Jan Cândhido e Hormes, em uníssono,


ao reconhecerem um ao outro.

O terno prateado de Hormes está sujo e tem vários


pequenos rasgos. Seu cabelo prateado está bagunçado.
Parece cansado. Seu sorriso sem graça é o de alguém
que teve um dia bastante ruim. Um pequeno robô o
acompanha, caminhando no chão e iluminando o
caminho. Mas Jan Cândhido tem certeza: aquele é o
jovem engenheiro que o desafiara na ágora. Hormes
também conhece Jan Cândhido, pois sabe de toda a
agitação que o ex-marinheiro costuma provocar com
seus discursos.

— Por favor, não briguem aqui... — pede Calina.

— Eu não tenho essa intenção — assegura Jan Cândhido.


— Você me conhece muito bem.

Calina observa Hormes. O que ele dirá?

Hormes olha para Jan Cândhido. Enrola os papéis em sua


mão e os esconde atrás do corpo. Espera que Jan
Cândhido não pergunte que documentos são aqueles.

— Hormes? — diz Calina.

O jovem não diz nada.

— Eu estou disposto a conversar — afirma Jan Cândhido.


— Se você também estiver.

Hormes tira os olhos de Jan Cândhido e pousa-os em


Calina. Ele quer que ela diga se Jan Cândhido é confiável
ou não. Porém, ela é uma sacerdotisa. Ela deve acreditar
que todas as pessoas são boas.

— Você estava certo nas coisas que disse, rapaz —


concede Jan Cândhido. — Eu realmente não posso mudar
o mundo só com um discurso bonito.

Hormes sorri.
— Você também estava certo, Jan Cândhido. Theceo não
mudará a jornada de trabalho dos operários, mesmo com
toda a tecnologia de que dispõe. Ele quer outra coisa.

Jan Cândhido nada diz. Apenas encara Hormes. Sabe que


o jovem descobriu algo importante e quer mostrar o que
é. Entretanto, se pedir para saber qual é o segredo,
talvez Hormes desista de revelar. É melhor esperar.

Hormes olha para Calina. Ela olha de volta, como quem


diz “a escolha é sua”. Ele então abre um dos papéis
sobre o chão. Mostra um mekha:

— Theceo pediu aos engenheiros para construírem essas


máquinas. Elas são as armas de um projeto, chamado de
Projeto Tifão. Ele quer usar isso para reprimir protestos,
expulsar pessoas de Palami e invadir terras. Ele quer
fazer com que as pessoas estejam sempre em estado de
necessidade, para que assim continuem aceitando
trabalhar por longas jornadas.

— É preocupante. Pior do que pensei — os olhos de Jan


Cândhido se arregalam, mas a voz dele não se altera. —
Agora sabemos com quem estamos lidando.

— Você só diz isso? — a voz de Hormes ecoa por todo o


templo. — Isso é muito sério! Se eu não tivesse roubado
os projetos, eles já estariam construindo essas
máquinas!

— Seu chefe certamente tem cópias desses projetos. E a


fábrica já deve estar produzindo peças desses robôs
gigantes. Os empregados não conhecem todo o processo
de produção, não é?

O que Jan Cândhido diz é verdade. Mas Hormes conhece


o processo todo. Ou quase todo. O acesso ao subsolo da
fábrica sempre lhe foi proibido.

Um dos vitrais estilhaça, interrompendo a conversa.


Calina, Jan Cândhido e Hormes veem Hyp aterrissar,
capotando, com braços e pernas para o ar, rolando pelo
chão acompanhada por cacos de vidro coloridos. Antes
que possam dizer algo, Axion atravessa o vidro
estilhaçado com um salto, martelo de bronze em punho.

Hyp costumava se levantar sem precisar encostar os


braços no chão. Mas desta vez ela apoia os dois braços
para se erguer. Esforça para que as pernas a sustentem.
O corpo está arranhado e dolorido. Olha diretamente
para Axion. Não se renderá.

O guardião anuncia:

— Você está presa, Hyp Rap. Venha comigo até a Sede


da Guarda.

— Vocês não vão a lugar algum — a voz de Calina não


está serena. — Vocês quebraram um vitral. Só sairão
daqui depois que o consertarem. Não lutarão aqui. Aqui
celebramos a paz, não a guerra.

— Eeeeeiii! Foi ele que me arremessou pelo vitral! Ele


que conserta! — Hyp nunca fora ensinada sobre falar
solenemente em um templo. Fala sem modos, dedo em
riste apontando o guardião.

— Não quero saber. Vocês dois vão consertar — assevera


Calina.

Axion, de repente, se retrai. Olha ao redor. Sim, ele está


dentro do Templo de Nomos. Desrespeitar o templo é
proibido a todos os guardiões. Ele sabe disso. Calina
também.

— Com todo o respeito, sacerdotisa, permita-me efetuar


a prisão e sair. Não posso ajudar com o vitral. Consertá-lo
levaria a noite toda — diz Axion.

— Você só poderá sair daqui quando o vitral estiver


consertado. Ou responderá pelos prejuízos — Calina
encerra o assunto.

Axion aquiesce. Teme criar problemas para a Guarda.


Seus superiores jamais poderiam saber que ele havia
quebrado um vitral do Templo de Nomos. É uma infração
gravíssima. Hormes e Jan Cândhido acham estranho o
guardião obedecer a ordem de Calina. Guardiões
normalmente não agem assim. Calina, por sua vez,
decide guardar em segredo o fato de que o guardião
estava cometendo uma infração que podia lhe custar a
carreira — ou punições ainda mais severas.

Jan Cândhido reconhece aquele guardião. É o mesmo que


o acertara com o martelo no dia do discurso na ágora. Vê
ali uma oportunidade.
— Vamos ajudá-los a montar o vitral. Não é, Hormes?

— Como assim, Jan Cândhido? — responde Hormes,


recolhendo as folhas do projeto espalhadas sobre o chão.
— Eu não quebrei nada...

— Você tem algum compromisso? Acho que é melhor


você passar a noite no templo, não é mesmo? — Jan
Cândhido sabe que Hormes está ali procurando um lugar
seguro para se esconder dos guardiões. E que Calina não
o deixará ser levado dali. — Vamos. Encare como um
passatempo.
38

H ormes chama Lampião para perto de si. Abre o


compartimento nas costas do pequeno robô. Pega as
ferramentas para consertar as ferragens que sustentam
o vitral.

Enquanto isso, Jan Cândhido, Axion e Hyp recolhem os


cacos de vidro e montam o “quebra-cabeça”. Usam uma
cola preparada por Hormes para juntar as peças. Calina,
em pé, observa. Os restauradores não têm a menor
habilidade para o trabalho, mas ela não critica.

— Isso é uma enorme perda de tempo — desabafa Axion.

— Calma, guardião. O trabalho manual tem uma beleza


como nenhum outro. — Jan Cândhido junta dois pedaços
de vidro e contempla o reflexo da peça.

— Eu não acredito que estou diante de dois criminosos e


não posso prendê-los! — Axion desabafa novamente,
mas logo pensa que é melhor ficar calado.

Calina nota que Axion chamou Jan Cândhido e Hyp de


criminosos, mas ignorou Hormes. Ela conclui que ele não
sabe que o rapaz havia roubado as plantas do Projeto
Tifão.
Axion guarda em segredo uma gratidão por Hormes. O
jovem inventor o ajudara a capturar Cassiopeia e Sadiki
no dia da invasão à casa da família Symvasi. Prefere não
demonstrar que conhece Hormes, sem antes saber como
ele foi parar no templo e entender por que ele estava
conversando tão calmamente com Jan Cândhido.

Hyp acha graça do guardião que não pode prender


ninguém. Realmente a situação é esdrúxula.

Axion nota o sorrisinho malandro dela.

— Eu estava a um passo de prender Hyp Rap, a líder dos


Anansis — Axion olha ao redor, mas ninguém esboça
qualquer reação. — Hyp Rap... Que nome de suburbana
sem futuro...

— Meu nome é Hypséa Rapsode, palhaço. Hyp Rap é só


um apelido.

— Obrigado pela informação — responde Axion.

Hyp bufa de raiva ao se dar conta de que aquilo foi


apenas um truque de Axion para descobrir seu
verdadeiro nome. O guardião vai repassar a informação
para o restante da Guarda, que passará a lhe infernizar a
vida.

Axion continua:

— Vocês dois são perturbadores da paz. Deveriam estar


presos.
— Essa paz que você defende tem um preço muito alto. É
a paz pela força. É a paz de silenciar quem incomoda —
responde Jan Cândhido, sempre sereno.

— Foram vocês, guardiões, que queimaram nossas


plantações — diz Hyp. — Estamos tentando reconstruir
nossas vidas.

Axion responde, confuso:

— Vocês não respeitam as leis. Jan Cândhido quer violar


a Lei de Cronos, e... mudar... como se as pessoas
pudessem trabalhar menos tempo e ganhar a mesma
coisa. E você, Hyp, atacou guardiões. Saqueou
caminhões de provisões. Vocês invadiram nossa cidade.

— Aquela terra era nossa antes de a cidade aparecer.


São vocês os invasores.

— Como você sabe disso? Você é muito nova para saber


tanto — Axion tenta desviar o foco da conversa.

— Precisamos estar prontos para qualquer batalha, seja


de armas ou de argumentos. É o que Babu nos ensina em
Palami. — Hyp termina uma peça do vitral. Faltam muitas
ainda.

— Já gostei desse Babu — Jan Cândhido sorri para Hyp.

Hormes apenas escuta. Martela as esquadrias de


sustentação do vitral para desamassá-las. Não pode falar
do Projeto Tifão na frente de um guardião.
— Guardião Axion — Jan Cândhido agora sabia o nome de
seu algoz na ágora –, sei que o seu trabalho é muito
difícil. Você precisa manter a ordem, preservar a paz,
mas não há paz se as pessoas estiverem sofrendo. Vocês
podem reprimir nossos protestos, mas nossas
necessidades gritam todos os dias. É por isso que
continuaremos a protestar.

— Eu não trabalho só para reprimir protestos. Eu prendo


criminosos.

— Criminosos? Como os que produzem comida sem


seguir a Lei de Cronos? Isso é crime? — alfineta Hyp.

— Se está fora da Lei de Cronos, é crime!!! — retruca


Axion. — Aliás, estamos no Templo de Nomos, o Deus da
Lei. Nossa lei diz que os alimentos são providos por Gaia,
a Deusa da Terra, e devem ser produzidos e vendidos por
pessoas com braceletes de Cronos. Não é, sacerdotisa?

Calina se aproxima. Suas sandálias afastam alguns cacos


de vidro, para que ela possa se ajoelhar e falar com eles.
Ela vê seu reflexo multiplicado e fragmentado nos cacos
sobre o chão. Precisa quebrar um juramento de
sacerdócio para dizer o que ela realmente pensa. Diante
dela há um inventor, um guardião, uma rebelde e um
marinheiro expulso. É o momento perfeito para quebrar o
juramento. Então, ela conta:

A grande história contada é a de que Cronos e Nomos


propuseram a Gaia, a deusa mãe-terra, um acordo para
manter a ordem entre os homens. Os homens viviam
brigando por tudo. Brigavam por terra, por poder, por
riquezas e até por comida.

Então, Cronos e seu filho Nomos, que há muito tempo


não se falavam, fizeram as pazes por uma causa comum:
dar ordem à sociedade dos homens. Cronos decidiu que
as pessoas deveriam obedecer a hora certa de fazer tudo
na vida. Nomos escreveu as regras, em concordância
com seu pai.

A parte principal da Lei de Cronos é a jornada de


trabalho. As pessoas devem cumpri-la rigorosamente, e
todas as outras atividades devem ser ajustadas em torno
dela.

Mas havia um problema nessa lei. As pessoas não a


obedeceriam se não fosse colocada uma punição aos
desobedientes. Foi então que Nomos teve a ideia de
procurar sua avó, a mãe de Cronos: Gaia.

Gaia provê tudo o que comemos e toda a matéria que


usamos para fabricar qualquer coisa. Chamamos de
provisões de Gaia os frutos da terra, mas não são apenas
as frutas e os legumes. A madeira para os móveis, o
barro para os tijolos, o ferro para as peças dos
automóveis, tudo é provido por nossa mãe Terra.

Gaia concordou em dar suas provisões conforme o mérito


de cada pessoa, de acordo com as regras de Cronos e
Nomos. A raça de ouro recebe mais, a raça de ferro
recebe menos. Àqueles que não tiverem dinheiro, as
provisões são negadas.
— Então foi assim que tudo começou? — pergunta
Hormes.

Calina olha para o rosto da estátua de Nomos. O deus


não parece condená-la pelo que ela vai dizer.

— É o que diz o Iéri Gnósi , o livro sagrado. Mas tem algo


que não gosto nessa história.

— O que é? — indaga Hyp.

— Ela não me parece dizer a verdade. Não entendo por


que Gaia teria concordado tão facilmente em limitar o
acesso de algumas pessoas às suas provisões. Isso não
se parece com o que eu estudei sobre ela — Calina
suspira. — Ela é generosa. Ela é mais forte do que
qualquer lei feita para a humanidade, pois está acima de
Cronos e Nomos.

Jan Cândhido percebe que Calina não está simplesmente


questionando as escrituras. Ela está fazendo uma grave
acusação. Ele diz:

— Você está dizendo que...

— Gaia não fez esse acordo. Ela foi forçada a isso —


Calina afirma. — Os deuses não resolvem conflitos
pacificamente. Eles usam a força. Homens sábios como
Hesíodo, Homero e Ovídio contam muitas histórias assim.
Mas somente os sacerdotes podem ler essas escrituras.
Pouco é dito às pessoas comuns.
— Como Cronos e Nomos poderiam forçá-la a fazer
alguma coisa que ela não quisesse? Ela é a deusa mais
poderosa, não é? — pergunta Hormes.

— Nomos aprisionava no Hades, o reino dos mortos, os


deuses que não o respeitavam — Jan Cândhido conhece
um pouco sobre os deuses.

— Não sabemos se ele fez isso com Gaia. Mas há uma


pessoa que sabe. Hesíodo ainda está vivo, e dizem que
mora no Vale Bucólico. É o último dos antigos sábios.
Vocês deveriam falar com ele — conclui Calina.

— Nada disso importa — diz Axion. — A Lei de Cronos é


boa para nós e sempre vou defendê-la.

— Mesmo que precise esmagar as pessoas com robôs


pesados e canhões enormes, não é? — Hormes quebra
seu silêncio.

— Do que você está falando? — pergunta Axion.

— Do Projeto Tifão — responde Hormes.

— Ei! Esse projeto é secreto. Como você sabe sobre ele?

— Parece que eu sei muito mais do que você, guardião


Axion — desafia Hormes.

— O Projeto Tifão trará ordem para a nossa sociedade,


apenas isso — assegura Axion.
— Não. O Projeto Tifão será um massacre. — Hormes
estica os projetos sobre o chão, por cima dos cacos de
vidro. — Este é o projeto Tifão.

Hormes explica cada detalhe. Conta que o armamento


será usado para reprimir protestos, invadir terras e
atacar Palami.

Hyp imagina os mekhas subindo o morro de Palami,


destruindo as casas e queimando a plantação. Os
Anansis não têm condições de enfrentar aquilo. Ela
treme. Perde a voz. Passa as mãos pelos volumosos
cabelos. Ofega.

— VOCÊ! Você! Você é o engenheiro que roubou projetos


das Indústrias SYM! — a voz de Axion reverbera entre as
colunas do templo.

— Sim, sou eu — confirma Hormes.

— Não acredito! NÃO ACREDITO! Vocês são todos


criminosos! Sacerdotisa, eles só saem daqui presos! —
Axion segura seu martelo, disposto a efetuar as prisões.

Hyp se levanta. Mãos em riste, pés firmes sobre o chão,


está pronta para lutar. Dane-se o que pensa a
sacerdotisa.

— Vocês vão destruir famílias inteiras com essas


máquinas! Vocês não podem fazer isso! Você não
percebe? Isso é mais cruel do que qualquer coisa! — Hyp
encara Axion, furiosa.
— É o meu trabalho! — responde o guardião.

— Que bela porcaria de trabalho você tem! — desfere a


Anansi.

Axion aguarda o primeiro movimento de Hyp. A Anansi


gira o corpo e salta, com tanta força que poderia
arremessar Axion até a parede. Mas não arremessa. Ela
fica paralisada no ar.

Aproveitando o estranho momento, Axion corre para


acertar Hyp com o martelo. Mas também fica paralisado.

Abaixo deles, no chão, mandalas com triângulos


concêntricos brilham com os dizeres Ieró Édafos — “Solo
Sagrado”. Hyp e Axion não conseguem se mover. Estão
capturados pelas mandalas. Calina, com as mãos
estendidas na direção dos dois em conflito, afirma:

— Como eu falei, vocês não podem lutar aqui. Neste


templo celebramos a paz, não a guerra.

— O que é isso? — pergunta Axion, sem conseguir se


mexer.

— Sou uma sacerdotisa de Nomos. Posso invocar regras e


determinar seu imediato cumprimento.

— Você está protegendo uma criminosa em nome de


Nomos? — surpreende-se Axion.

— Eu protegeria qualquer pessoa que estivesse sob risco


aqui. Ela tentou atacá-lo, então eu o protegi também —
explica Calina.

A sacerdotisa abaixa sua mão esquerda e liberta Hyp:

— Vá! Você precisa alertar as pessoas sobre o que vai


acontecer.

Os pés de Hyp tocam o chão suavemente. Porém,


Hormes pede que ela espere:

— Precisaremos da ajuda de Babu. Usando peças do


ferro-velho, posso construir máquinas parecidas com
essas do projeto para atacar a fábrica SYM. Vamos
destruir a fábrica para que nunca consigam montar essas
armas.

Hyp gosta da ideia. Jan Cândhido não gosta, não:

— Meu jovem, se você construir máquinas assim, você se


igualará ao seu patrão. Você vai acabar realizando o
plano dele, apenas de um modo diferente. As armas
existirão, mas pelas suas mãos. Haverá reação. Outras
fábricas construirão armas para detê-lo. Tudo isso só
servirá para fazer a violência aumentar — Jan Cândhido
gentilmente pega os papéis e os enrola. — As famílias
continuarão a ser atingidas pelas armas. Um dia, elas
cansarão da violência. Você ficará desmoralizado.

— Falou bonito. Então você quer enfrentar um cara


armado até os dentes... sem armas? — Hormes responde
com um pouco de petulância na voz.
— Tá na cara que isso não vai dar certo, homem de
prata! É suicídio! Desista! Eu estou falando para o bem
de vocês. E olha que nem estou do seu lado! — grita
Axion, paralisado no ar. — Sacerdotisa, deixe-me descer,
deixe-me prendê-los!

— Espere — Calina responde sem baixar o braço direito.


— Você precisa escutar.

Jan Cândhido continua:

— Não se vence uma batalha com armas, mas com a


moral. Não importa se ele tem armas melhores, pois nós
teremos o apoio das pessoas do nosso lado.

Hormes, Axion e Hyp olham para Jan Cândhido,


incrédulos. Quem vai dar moral para pessoas
desarmadas? Mas Calina sabe do que o velho marinheiro
está falando.

— Então o que vamos fazer? — Hormes pergunta, sem


esperança de ouvir uma resposta inteligente.

— Os operários precisam perceber que eles têm mais


força que seus patrões. São os operários que fabricam as
coisas. Para mostrar essa força, vamos convencer as
pessoas da fábrica a tirar um dia de folga.

— Pirou da batatinha! — Hyp caçoa.

— Jan Cândhido, eu também quero muito ter algum


tempo de folga para passar com a minha família — diz
Hormes –, mas esse plano não faz sentido. A Hyp está
certa. Você não tem noção...

— Escutem — interrompe Calina.

Jan Cândhido continua:

— Quando os operários tomarem consciência da força


que têm, poderão pressionar os patrões para que as
Indústrias SYM voltem a construir apenas carros,
aeromotos e outros veículos úteis para as pessoas. Nada
mais de projetos secretos e máquinas de guerra.

— Eu sabia que você era louco, Jan Cândhido, mas não


sabia que era tanto — desdenha Axion, paralisado no ar,
em sua posição de ataque.

Mas algo que Jan Cândhido disse fez sentido para


Hormes. Ele pede que o velho marinheiro continue a
explicar o plano.

— Temos que estar prontos para tudo. Temos que ensinar


os operários a sabotar as peças das máquinas de guerra.
É aí que você entra, Hormes. Você entende esses
projetos e sabe como a fábrica funciona — continua Jan
Cândhido. — Depois, ainda podemos usar o dia de folga
para passar tempo com família e amigos. Os operários
perceberão como é importante terem tempo para
descansar.

Calina aprova a ideia:


— É muito inteligente. No domingo, as pessoas poderiam
até vir ao templo, algo que não fazem há décadas.

A ideia é ousada. Mas há muitos riscos. Hormes faz


inúmeras perguntas a Jan Cândhido. Para cada problema
imaginado por Hormes, Jan Cândhido tem uma solução.
Conforme ele explica o plano, o que parecia loucura
torna-se uma proposta pragmática. Ou isso, ou Hormes,
Hyp e Calina se contagiaram com a loucura de Jan
Cândhido.

Axion, paralisado, escuta cada detalhe e se impressiona


com a inteligência do marinheiro. O plano irritará os
empresários profundamente, pois os operários de outras
fábricas também tentarão parar de trabalhar aos
domingos.

Calina abaixa seu braço direito. A mandala sob o


guardião se apaga aos poucos. Os pés de Axion tocam o
chão. Ele apoia o martelo sobre o piso e usa-o como
bengala, pois seu corpo todo está dormente. A
sacerdotisa se aproxima e lhe diz:

— Você tem uma importante decisão a tomar agora,


Axion. Você sabe quais serão as consequências de seus
atos.

Axion não dá voz de prisão a ninguém. Agarra seu


martelo e caminha rumo ao portão do templo. Seus
passos se aceleram, ecoando, ecoando, ecoando... Até
que ele alcança a ágora e os passos param de ecoar.
— Você o deixou escapar antes de consertar o vitral —
diz Hyp.

Calina sorri e diz:

— Consertar o vitral não era a coisa mais importante de


hoje.
39

–J á encontraram o fugitivo? — Theceo cobra.

— Não, senhor — responde Jasão.

O capacete do guardião de ouro deixa apenas pequenos


espaços para que seus olhos possam ver. Mas, mesmo
sem ver os olhos de Jasão, Theceo percebe que a cabeça
dele está inclinada para baixo, evitando o contato visual.

— De que adianta termos uma guarda, se ela não resolve


crimes? Vocês não são pagos para ficarem atrás da mesa
carimbando papéis. O que aquele criminoso levou pode
comprometer o Projeto Tifão.

— Senhor Theceo, meus homens estão nas ruas, todos


informados da descrição de Hormes Aedo. Estão todos
procurando...

— É pouco.

— Pouco? Mobilizei todos os homens da Guarda para


esse caso!

— Vocês procuraram em Palami?

— Senhor, ali é o território dos Anansis, o acesso é bem


difícil. — Jasão tem que admitir que seus guardiões não
conseguem manter a ordem naquela parte da cidade. É
sempre constrangedor responder a Theceo quando ele
pergunta sobre isso.

— Ameaçaram a família do Hormes? — Theceo caminha


impaciente pela sala, dizendo para si mesmo: “Será que
eu tenho que pensar em tudo?”.

— Senhor, nós interrogamos a família dele, mas nada


conseguimos. Não poderíamos fazer os familiares de
reféns, pois isso contraria o código de ética da Guarda.

— Código de ética? Código de ética? Aquele delinquente


roubou planos de máquinas que podem destruir a cidade
inteira e você está preocupado com um código de ética?

Theceo olha bem fundo pelos orifícios do capacete de


Jasão, tentando encontrar os olhos do guardião lá dentro.
Jasão tem a cabeça encolhida entre os ombros.

— Escute bem, Jasão, nós já estamos em guerra. Não me


venha com código de ética, pois não há ética na guerra.
Aquele rapaz sabe construir as máquinas que estão
desenhadas nos projetos. Ele só não tem dinheiro para
isso. Mas é só uma questão de tempo até ele conseguir
alguém mal-intencionado que financie as peças,
ferramentas e mão de obra.

— O Projeto Tifão está comprometido, senhor Theceo?

Theceo enche os pulmões e expira bem devagar.

— Não. Eu tenho cópias daqueles projetos, mas meus


engenheiros precisam de tempo para resolver problemas
de execução. Infelizmente, Hormes era o melhor
engenheiro da equipe — Theceo suspira. — Sem ele, os
outros engenheiros terão que aprender a fazer o que
Hormes fazia. Vai ser um atraso pequeno. Você terá suas
máquinas de guerra.

— Então poremos fim aos Anansis — Jasão diz isso só


para ver se Theceo responde com algum otimismo.

— Não se você vier com essa bobagem de código de


ética, guardião — Theceo retruca com a voz áspera. —
Quero seus melhores homens no Projeto Tifão. Deixe os
éticos trabalhando como guardas de trânsito.

Jasão balança a cabeça discretamente, concordando em


silêncio. Pensa que a conversa terminaria ali.

— Encontre Hormes Aedo o quanto antes, Jasão — insiste


Theceo. — Se Hormes construir uma máquina sequer,
você vai se aposentar como guardião de ferro!

Toca o telefone. Jasão deixa que a campainha do


aparelho se sobreponha ao eco da última frase de
Theceo. Toma o fone em sua mão e encosta no capacete:

— Ainda estou com Theceo. Eu pedi para não ser


interrompido... Jan Cândhido? Não interessa. Deixa-o
esperando aí. Só entra quem tiver informações sobre
Hormes Aedo.

Jasão não sabe que Axion encontrara Jan Cândhido e


Hormes no templo. Devolve o telefone à base.
Jasão não desvia o olhar de Theceo.

O telefone toca novamente. Jasão atende:

— EU JÁ FALEI QUE NÃO QUERO SER INTERROMPIDO!

O que pensaria Theceo se Jasão não tivesse comando


sobre a própria secretária? Mas a secretária diz algo que
acalma Jasão.

— Têm mesmo? Nesse caso, deixe-os entrar.

Theceo não entende.

— Dois guardiões têm informações sobre Hormes —


informa Jasão, com um sorriso de alívio escondido sob o
capacete. — Vamos ver o que eles dizem.

Dário abre a enorme porta da sala de Jasão e entra. O


acelerado bater de seus pés de prata sobre o mármore
dá o tom da urgência. Os pés de bronze de Axion se
esforçam para demonstrar igual vigor.

Dário estaciona em frente a Jasão, prestando continência.


Faz uma rápida reverência a Theceo, mostrando respeito
pelo visitante. Axion, prestando continência ao lado de
Dário, diz:

— Senhor, temos novas informa...

Dário estende seu braço diante do peito de Axion,


interrompendo-o. A comunicação entre os guardiões
deve obedecer a hierarquia. Apenas um guardião de
prata pode falar com um guardião de ouro.

— Senhor, temos novas informações sobre o ladrão de


projetos da fábrica SYM — anuncia Dário.

— Prossiga — pede Jasão.

— Hormes se encontrou Jan Cândhido no Templo de


Nomos e, juntos, eles planejam um ataque à fábrica SYM.

Theceo mira Jasão com um olhar lateral.

— Eles vão construir armas? — pergunta Jasão.

— Não, senhor. Eles não vão construir armas. Vão tirar


um dia de folga — afirma Dário.

Theceo solta uma gargalhada retumbante. Jasão toca a


testa com a ponta dos dedos da mão direita, como se
pudesse esconder ainda mais o seu rosto já coberto pelo
capacete.

— Essa é a informação que sua equipe de investigação


tem a oferecer? — desdenha Theceo. — Ah, Jasão, o seu
destino está selado...

— Essas foram as informações trazidas pelo guardião


Axion! — Dário dá um passo atrás e, com as mãos sobre
os ombros de Axion, faz o guardião de bronze avançar e
tomar a posição de escudo humano.
Axion. Jasão se lembra bem desse nome. Poderia mandar
prendê-lo ali mesmo por não ter sido capaz de punir a
enfermeira que protestava na frente do hospital. Mas
aquele traste poderia ter alguma informação útil. É
melhor ouvir.

— É verdade, senhor — diz Axion. — Eu vi Jan Cândhido e


Hormes no Templo de Nomos. Hormes tinha os projetos
roubados da fábrica SYM. Eles também fizeram planos
junto com a líder dos Anansis.

— Mas já prendemos a líder dos Anansis, não foi? —


Jasão cobra a veracidade da informação que lhe fora
passada quando Cassiopeia foi presa.

— É... Digo... A nova líder dos Anansis, que assumiu o


posto depois que prendemos Cassiopeia — Axion,
chamando Cassiopeia pelo nome que consta nos
arquivos da Guarda, espera que Jasão acredite na
história.

— E por que não os prendeu logo? — pergunta Theceo.

— A sacerdotisa me impediu — explica Axion.

— O quê?!? — Theceo não aceita a explicação.

— O Templo de Nomos é um lugar sagrado, não podemos


entrar em confronto ali — diz Jasão.

— É seu código de ética, Jasão? — questiona Theceo.


— É mais sério do que isso. Nomos é o Deus da Lei.
Invadir o Templo de Nomos seria como afrontar a própria
lei. Isso é impensável para um guardião. Veja, as pessoas
cumprem as leis apenas porque têm fé em Nomos,
porque consideram que as leis são sagradas. A
sacerdotisa sabe disso.

— Você está me dizendo que não pode entrar no templo,


então? — pergunta Theceo.

— Podemos entrar de forma respeitosa, apenas. Mas se


entrássemos em confronto com alguém ali dentro e
quebrássemos um vaso sequer daquele templo, as
pessoas perderiam a fé no caráter sagrado das leis —
explica Jasão. — Ninguém mais respeitaria as leis. Nossa
cidade mergulharia no caos.

Axion lembra que entrou no templo arrebentando um dos


vitrais. Foi muito pior do que quebrar um vaso. É melhor
não contar aos seus superiores. Afinal, a própria
sacerdotisa o perdoou e deixou sair sem terminar de
consertar o vitral. Mas Axion relata a seus superiores
tudo o que ouvira de Hormes, Jan Cândhido, Hyp e até de
Calina.

Theceo, Jasão e Dário entreolham-se. Sem esconder sua


decepção, Jasão pede a Axion que saia da sala.
Obediente, o guardião de bronze se retira, desapontado
por não ter recebido qualquer palavra de gratidão.

— Esse plano não faz o menor sentido. Esse rapaz está


escondendo alguma coisa — Jasão procura identificar o
interesse dos criminosos. — Por que seu engenheiro
roubou os projetos, se não vai fazer nada com eles? E
essa ideia de tirar um dia de folga... Para quê? Como ele
faria isso?

— Essa história de dia de folga não tem a menor chance


de dar certo. É fácil manter os operários trabalhando.
Eles morrem de medo de perder o emprego. Isso não me
preocupa — Theceo acaricia seu cavanhaque com a luva
de platina. — Mas Hormes vai fazer alguma coisa com
aqueles projetos. Pode não ser algo rápido, já que ele
não tem dinheiro, mas ele sabe montar as máquinas. Isso
sim é preocupante.

— Dário, fique de olho nesse tal de guardião Axion. Ele


está escondendo alguma coisa — Jasão tem uma das
mãos sob o queixo coberto pelo capacete e tamborila os
dedos da outra mão sobre a mesa. — Ele pode estar a
um passo de trair a guarda. Acho que está acobertando
os criminosos.

— Senhor, o guardião Axion tem servido à guarda com


muita dedicação, eu não consigo imaginar que ele deseje
trair...

— Não seja ingênuo, Dário — Jasão interrompe. — Ele


vem até aqui e conta que os meliantes têm um plano que
não faz sentido, que não vão construir armas, sendo que
eles têm em mãos os projetos das armas mais poderosas
do mundo! Você consegue acreditar nisso?

— Mas, senhor...
— ELE VAI TRAIR A GUARDA! Fique de olho nele!
Arranque toda informação que conseguir antes que ele
nos traia — exige Jasão.

— O guardião Axion viu os projetos nas mãos de Hormes.


Tente descobrir onde Hormes os está escondendo. Isso já
evitaria que eles construam as armas — ordena Theceo,
se intrometendo na conversa.

Dário se recusa a acreditar no que ele acaba de ouvir. Ele


encara Jasão tempo o bastante para que seu pensamento
possa ser lido pelo guardião de ouro: “Devo receber
ordens de um civil?”.

Jasão confirma o pensamento de Dário:

— É exatamente o que disse o senhor Theceo. Os


projetos são a maior prioridade. Prenda Hormes, para
que ele possa servir de exemplo a outros ladrões que
ameaçam a segurança da cidade.

— Sim, senhor — Dário agora aceita a ordem, pois foi


proferida pelo guardião de ouro.

— Não se esqueça de arrancar todas as informações de


Axion — completa Jasão. — Peça-o para investigar o caso
de Hormes. Deixe-o pensar que está tomando a frente
das investigações. Mas fique atento a cada passo e
reporte a mim tudo o que ele fizer. Toda informação é
importante.

— Sim, senhor.
40

–V amos entrar pelos fundos — Axion não quer que


Dário veja o vitral quebrado dentro do templo. —
A sacerdotisa geralmente fica no salão de trás.

Para sorte de Axion, Calina está mesmo no salão dos


fundos. Não será preciso entrar na nave do templo. Um
alívio.

Dário toma a iniciativa de interrogá-la:

— Boa tarde, sacerdotisa. Preciso lhe fazer algumas


perguntas.

— Boa tarde, guardião de prata — ela fala com Dário,


mas olha para Axion. — Como posso ajudar?

— Recebemos informações de que três procurados pela


Guarda estiveram aqui ontem à noite. Eram Hormes
Aedo, Jan Cândhido e Hypséa Rapsode.

Os olhos de Calina procuram os olhos de Axion. Ele


responde com contato visual constante, mas nota-se que
teme algo. Um castigo dos deuses, talvez.

Dário percebe que Calina e Axion se entreolham.


Mantém-se firme, aguardando a resposta.

Calina, então, volta seus olhos para Dário:


— Sim, senhor guardião. Os três estiveram aqui ontem.

— Eles fizeram algo que chamou sua atenção?

— Sim. Eles me ajudaram a consertar um vitral


quebrado. Axion também ajudou.

“Dário vai perguntar como o vitral quebrou. Estou


encrencado”, pensa Axion. Mas na verdade Dário não
está preocupado com isso.

— Com todo o respeito, sacerdotisa, Hormes roubou


projetos importantes. Jan Cândhido, Hormes e Hypséa
fizeram planos sobre o que fazer com eles?

— Sim, eles fizeram planos — diz Calina.

A sacerdotisa confirma cada detalhe da história. O que


ela diz repete tudo o que Axion disse diante de Jasão e
Theceo. Parece até que Calina e Axion haviam ensaiado o
que deveriam dizer.

— Hormes, Jan Cândhido e Hypséa ainda estão no


templo?

— Não, guardião Dário. Eles foram para Palami.

Dário desconfia das respostas.

Axion pensou que Calina mentiria sobre alguma coisa,


mas surpreende-se com as respostas verdadeiras e
detalhadas. Sem se aproximar, ele pergunta:
— A senhora não esconde nada? Sempre responde a tudo
que lhe perguntam?

Calina percebe a incredulidade dos guardiões. Dário,


desconfiado de que ela esteja mentindo; Axion,
espantado por ter ouvido a sacerdotisa dizer a verdade.

— Sacerdotes fazem voto de honestidade antes de serem


confirmados no ofício — Calina responde a Axion com a
mesma tranquilidade com que respondeu a todas as
perguntas de Dário. — Eu sempre digo a verdade, mesmo
que vocês não estejam inclinados a ouvi-la.

“Ela está mentindo”, pensa Dário. “Se ela está mentindo,


Axion também está. Jasão tem razão; eles podem estar
preparando algo, protegendo os criminosos. Talvez
planejem uma emboscada para a Guarda. Preciso ir mais
fundo nisso.”

— Com sua licença, sacerdotisa, vamos verificar o


interior do templo — diz Dário. — Venha, Axion.

Logo ao entrar, o guardião de prata vê o vitral


estilhaçado pelo chão e vestígios de uma tentativa de
consertá-lo. Isso confirma a história de Calina. Não há
onde os fugitivos se esconderem na nave do Templo.
Axion se apressa a propor que ele e Dário saiam logo
dali.

— Bom, Dário, eles realmente não estão aqui. Temos que


seguir nossa pista — diz Axion, tentando fazer o guardião
de prata esquecer o incidente com o vitral.
— Que pista? — pergunta Dário.

— A sacerdotisa disse que os fugitivos estão em Palami.


Vamos procurar lá — responde Axion.

— Você está louco? Não dá para acreditar no que a


sacerdotisa diz! — Isso parece uma armadilha para nos
pegarem em Palami. Você sabe que é perigoso subir o
morro sem um plano.

Axion toca o braço Dário, chamando-o a sair de perto da


sacerdotisa, dando as costas ao vitral quebrado. Os
guardiões saem do templo, para que nem o eco leve sua
conversa aos ouvidos da sacerdotisa que não sabe
guardar segredos.

— Precisamos descobrir um jeito de ir até lá — diz Axion.


— Hypséa mora em Palami, então os outros fugitivos
devem estar na casa dela. Vamos subir Palami com uma
estratégia precisa.

— Como vamos traçar essa estratégia? — pergunta


Dário. — Não sabemos em qual casebre Hypséa mora.

— Nós temos Cassiopeia sob custódia. Podemos


interrogá-la.

Dário concorda. Não por confiar em Axion, mas porque


quer saber até onde ele vai com a farsa.

***
Cassiopeia tem as mãos algemadas atrás das costas e os
pés acorrentados. É impossível caminhar. Vai saltitando,
com os pés juntos, até a sala de interrogatório. Senta-se
de mau jeito sobre a cadeira.

— Cassiopeia Etana, também conhecida como Cassiopeia


— Axion lê uma pasta com todas as informações que a
Guarda tem sobre a Anansi. Não é uma pasta muito
grande. Mas é o suficiente para fundamentar a acusação.
— Cassiopeia, você é a líder dos Anansis?

Aquela pergunta leva Cassiopeia a pensar sobre o


passado. Ela se lembra de quando era amiga de Hyp, na
infância. Os pais de Hyp trabalhavam nas fábricas e
sempre traziam dinheiro para casa. Cassiopeia, invejando
o dinheiro dos pais de Hyp, passou a chamá-la de
“princesa”. Hyp pensava que era um elogio.

Elas cresceram juntas, e Hyp aprendia rápido os


movimentos dos Anansis. Chegando à adolescência,
Cassiopeia se apaixonou por Shambe, o líder dos
Anansis. Eles namoraram por dois anos.

Em um dia chuvoso, Shambe perguntou por que


Cassiopeia chamava a amiga de “princesa”. Ela explicou
que os pais de Hyp trabalhavam na cidade e sempre
traziam dinheiro. Por isso Hyp não trabalhava na
plantação. Shambe, aproveitando que os Anansis
estavam reunidos em torno da fogueira no ferro-velho,
chamou Hyp de princesa diante de todos.
Shambe incitou os demais a fazerem o mesmo. Não
demorou muito para todos os Anansis começarem a
acusar a “princesa” de não ser igual aos outros
moradores de Palami. Cassiopeia nada fez para impedir o
namorado. Na verdade, ela ainda deu apoio, repetindo as
acusações contra Hyp.

Hyp levou chutes e empurrões dos Anansis, sem


reclamar. Cassiopeia se lembra apenas do olhar triste e
confuso de Hyp.

Após um golpe de Shambe, Hyp caiu em uma poça de


lama. Suja, ela se levantou. A lama escorria pelas mãos,
pernas e cabelo.

— É fácil vencer quando todos estão do seu lado, não é,


Shambe? — disse Hyp. — Eu o desafio. Apenas eu e você.

— Se eu ganhar, você sai de Palami — propôs Shambe.

— Sim — Hyp aceitou. — Porém, se eu ganhar, você sai


de Palami. Para nunca mais voltar.

Shambe não deu chance a Hyp de se preparar. Saltou por


cima da poça de lama e desferiu um chute violento
contra a barriga da desafiante. Hyp rolou e rolou, até
ficar completamente coberta de lama. Ela tentou se
reequilibrar. Shambe saltou novamente. Chutou o
quadril, a perna, o rosto de Hyp. Era tão rápido que os
respingos de lama ainda flutuavam no ar, enquanto ele
desferia quatro, cinco, seis golpes. Um chute no rosto
jogou Hyp ao chão, deixando-a quase completamente
mergulhada na lama.

A chuva ficou mais forte. A fogueira se apagou.

— Venci — anunciou Shambe. — Agora, vá embora de


Palami...

Hyp girou seus pés sob a lama, prendendo as pernas de


Shambe e fazendo-o ajoelhar. Em seguida, girou as
pernas no ar, lançando lama em todos ao redor. Ficou em
pé, inteiramente suja. Com dois passos, aproximou-se de
Shambe, apoiou os pés sobre os ombros dele e, usando-
os de apoio, deu um salto bastante alto e enterrou um
chute em sua têmpora. O líder dos Anansis caiu.

Ele não conseguia se manter de pé. Cambaleava. Hyp


gritou:

— QUEM VAI SAIR É VOCÊ!

Ela acertou um forte chute contra o peito do rival,


fazendo-o perder o ar em seus pulmões. Girou no ar com
fúria, chutou cabeça, peito, quadril e perna de Shambe.
O movimento foi rápido demais para ser visto. Os
Anansis percebiam apenas que Shambe sentia dor nos
locais atingidos. Especialmente na perna.

Era Shambe, agora, quem estava caído na lama.

— Levanta! — Gritou Cassiopeia, pensando no risco de


ele ter que sair de Palami.
Shambe se levantou. Algo estalou. Ele caiu novamente.
Soltou um grito de dor.

Cassiopeia correu ao encontro do namorado. A perna


dele estava torta.

— Alguém chame a Mema, por favor! Shambe quebrou a


perna! — disse Cassiopeia, esvaindo-se em lágrimas.

— Hyp venceu — anunciou Sadiki, que assistia ao


embate. — Shambe não pode mais lutar.

Mema, esposa de Babu, imobilizou a perna de Shambe e


deu-lhe um remédio de ervas para aliviar a dor. Depois
disso, ele foi embora de Palami. Nunca mais voltou.

— AFROZINE ETANA! — grita Axion, esmurrando a mesa


da sala de interrogatório. — Eu lhe fiz uma pergunta!
Você é a líder dos Anansis?

— Sou — diz Cassiopeia.

Axion se surpreende com a resposta. Aquilo não estava


nos planos. Ele imaginou que Cassiopeia não aceitaria
ser acusada injustamente de ser a líder dos Anansis, para
evitar que fosse responsabilizada pelo ataque aos
caminhões. Assim, para provar sua inocência, Cassiopeia
entregaria Hyp. Esse era o plano.

Mas não foi o que ela fez. Ela assumiu a


responsabilidade.
Para complicar, o próprio Axion havia dito aos seus
superiores que Cassiopeia era a líder dos Anansis, logo
antes de ser promovido. Ele precisa sustentar aquela
mentira:

— Você sabe muito bem que os ataques que vocês


fizeram a caminhões e a propriedades particulares são
crimes muito sérios...

— Criminosos são vocês, que incendiaram as plantações


de Palami. Antes disso, nunca precisamos atacar nada.
Às vezes ainda sobrava comida para vender para
moradores de Nova Ascra.

— Vender comida produzida sem respeito à Lei de Cronos


também é crime. Vocês precisam aprender a usar os
braceletes de Cr...

— Vocês destruíram nossa terra! Tínhamos fartura! Tudo


por causa dessa lei estúpida que transforma as pessoas
em máquinas! — Cassiopeia escuta o que acaba de dizer
e para de falar. É exatamente a mesma coisa que Hyp
havia dito quando elas brigaram. Cassiopeia acabou de
defender que sim, a vida em Palami era mais próspera do
que a dos moradores de Nova Ascra. E ela odeia admitir
que Hyp estava certa.

Dário se aproxima de Axion. Reclina-se. Sussura:

— Concentre-se na investigação, Axion. Está perdendo o


foco.
Axion balança a cabeça, assentindo. Retoma o
interrogatório:

— Então diga-me: onde podemos encontrar Hypséa


Rapsode, sua... seu... braço direito?

— Meu braço direito? Hyp é uma traidora! — Agora,


Cassiopeia fala por impulso. Ela sabe disso. Não suporta
escutar o nome de Hyp sem odiá-la. — Ela armou para
mim! É por isso que eu estou aqui!

Axion continua sem entender como funciona a cabeça de


Cassiopeia. As respostas surpreendem. Mas o que
importa é que isso que ela acabou de dizer é útil.

— Então imagino que você gostaria de vê-la atrás das


grades, não é? Ela andou se envolvendo com dois
criminosos perigosos: Jan Cândhido e Hormes Aedo. O
que você sabe sobre eles?

Cassiopeia olha para Axion com olheiras profundas.

— Você acha que eu sei de alguma coisa? Eu não tenho


notícias do que acontece lá fora! Eu tenho nojo de mim
mesma, pois não tomo banho há meses! O único
chuveiro que tem aqui fica à vista dos homens na cela. O
passatempo deles é dizer que vão me estuprar na
primeira chance que tiverem. Isso é tudo o que sei,
desde que cheguei aqui!

Dário observa, calado. É melhor deixar que Axion


continue conduzindo o interrogatório. De um modo
estranho, o guardião de bronze está conseguindo fazer a
Anansi falar.

— Diga-me onde eu encontro Hyp, e eu peço ao meu


chefe para transferi-la para uma cela longe dos homens.

— Com chuveiro!

— Verei se é possível.

Cassiopeia diz tudo o que Axion precisa para localizar a


casa de Hyp. Ela sugere usar o teleférico de Palami para
subir o morro, despistando os Anansis.

Axion cumpre sua parte no acordo. Pede a ajuda de


Dário.

Dário resiste, mas enfim concede uma nova cela para


Cassiopeia. Não tem chuveiro, mas tem uma bacia para
ela tomar banho e um pouco de privacidade.
41

A nansis correm pelas paredes e telhados das casas de


Pala mi, anunciando que Babu pediu para todos se
reunirem na praça do poço central.

Babu não está sozinho: Hyp está ao seu lado. Também


estão Jan Cândhido e Hormes. Os moradores de Palami,
formando rodas em pé, ao redor do poço, aguardam para
saber o que eles têm a dizer.

— Não são boas notícias, minhas crias — anuncia Babu.


— Hyp e esses homens descobriram mais um plano dos
homens de metal para atacar Palami.

— Mas vamos vencer, como todas as outras vezes! —


alguém grita do meio da multidão. — Os homens da
cidade não conseguem tomar Palami!

Os aplausos são abundantes. Todos erguem os punhos,


gritando desordenadamente, mostrando o quanto estão
dispostos a defender seu território.

Jan Cândhido dá três passos à frente. A postura


respeitosa é o suficiente para acalmar a multidão e se
fazer ouvir:

— Desta vez é diferente. Eles estão muito bem


equipados. Theceo, o dono das Indústrias SYM, vai
fabricar estas novas armas para que a Guarda invada
Palami — Jan Cândhido aponta para as plantas do Projeto
Tifão, exibidas por Hormes e Hyp, para que todos possam
ver. — Ele quer forçar todos vocês a usarem braceletes
de Cronos. Ele quer que vocês trabalhem nas fábricas,
como os operários.

As vozes agora correm baixas, assustadas. Alguém


pergunta:

— Mas nós não queremos trabalhar nas fábricas. Nossas


plantações, em breve, estarão com a produção
normalizada. Como ele acha que vai nos convencer a
usar braceletes?

— Theceo sabe que, em Palami, a maioria de vocês vive


da própria lavoura, dos animais que criam e da produção
de artesanato, o que não é feito dentro da Lei de Cronos.
Levam uma vida mais tranquila do que a maioria dos
operários de ferro ou bronze — explica Jan Cândhido. —
Por isso vocês são vistos como ameaça. Vocês são um
“mau exemplo” para os operários.

— Você não respondeu minha pergunta. Como ele pensa


que vai nos convencer a usar braceletes?

Hormes é quem responde:

— A Guarda vai destruir Palami completamente e prender


quem não trabalhar sob a Lei de Cronos.
Faz-se o silêncio. Os moradores sentem que os planos da
Guarda estão muito próximos de se concretizar.

Kiongozi, o líder dos lavradores de Palami, atravessa a


multidão para chegar ao centro da praça, ficando a
poucos passos de Babu. Em todas as reuniões em que se
discutiam os problemas de Palami, Babu e Kiongozi se
estranhavam. Nesses embates, os argumentos de Babu
conseguiam desconsertar e silenciar Kiongozi. Assim,
Babu se mantinha como líder natural de Palami.

Mas Kiongozi não se dirige a Babu. Fala a Hormes e Jan


Cândhido:

— Vocês estão dizendo que seremos atacados com muito


mais força do que nas vezes anteriores. Vocês chamaram
todos os moradores a se reunirem aqui. Acho que vocês
têm alguma ideia para resolver isso, não é?

— Temos sim. A ideia é pressionar Theceo para que ele


desista de usar os moradores de Palami como operários
— explica Jan Cândhido.

— Como? — Kiongozi aguarda uma boa explicação.

— Vamos convencer os operários a tirar um dia de folga


— afirma Hormes.

— Vocês são malucos... — Kiongozi sente que a boa


explicação não veio.

— Escute — pede Jan Cândhido. — Os operários da


fábrica SYM não conseguem ficar no emprego por muito
tempo, pois adoecem logo de tanto trabalhar. Quando
ficam doentes, eles são descartados, e é por isso que
Theceo precisa dos moradores de Palami: em breve,
vocês serão as últimas pessoas saudáveis da cidade. —
Jan Cândhido corre os olhos pelos moradores. Eles ainda
não entendem o problema. — O dia de folga servirá para
os operários tomarem consciência da sua força de
mobilização. Depois, eles poderão pressionar Theceo a
desistir de fabricar essas máquinas.

— Desculpe, senhor Jan Cândhido — diz Kiongozi –, você


é muito educado e fala muito elegante, mas não ter o
descanso é problema dos operários. Não é problema
nosso. Nosso problema é defender Palami dos guardiões.

— Mas vocês precisam ouvir... — diz Hormes, com a voz


trêmula.

— Já ouvimos o bastante — Kiongozi interrompe,


aproveitando-se da insegurança de Hormes. — Já tomei a
minha decisão. Os Anansis são muito importantes para a
defesa de Palami. Eles vão ficar aqui e lutar. Os
moradores que não são Anansis podem se preparar para
a luta também. Desculpe, senhor Jan Cândhido, mas não
podemos ajudar agora. Mas obrigado por nos avisar
sobre o ataque.

— A decisão dos Anansis não é essa — rebate Hyp. — A


sua decisão não representa nossa opinião. Temos que
ajudar os operários, sim! Alguns moradores de Palami já
são operários de fábricas. Minha mãe tem os pulmões
cheios de carvão por conta do tempo que ela trabalhou
alimentando fornalhas. Meu pai foi embora atrás de um
trabalho melhor. O que Jan Cândhido e Hormes estão
dizendo já está acontecendo aqui!

— Não confunda os erros da sua família com os


problemas de Palami, Hyp — a voz de Kiongozi é
controladamente raivosa. — Os seus pais trabalhavam
em fábricas. Quem fez isso, fez errado. Não é assim que
trabalhamos aqui. Aqui comemos o que plantamos.

— Eu sei disso, mas...

— Quem trabalha nas fábricas devia sair de Palami e


mudar-se para os bairros de operários, como Ble-Kolara.
— Kiongozi sabe que é arriscado dizer isso, pois os pais
de Hyp não são os únicos operários de Palami. Mas
insiste e decide ir mais fundo na ofensiva — Não sei se
você percebeu, mas seus amigos Anansis não pensam o
mesmo que você.

Misturados aos demais moradores de Palami, os Anansis


se entreolham. Eles não tinham conversado sobre aquilo.
Nenhum Anansi sabe o pensamento do outro. Não sabem
sequer o que dizer. Enquanto os líderes se engalfinham,
as opiniões mudam muito, muito rapidamente.

Hyp cochicha:

— Babu, você não vai dizer nada?

— Minha cria, Kiongozi está certo. É hora de defender


Palami.
— Mas você é o nosso líder! Precisa tomar a frente...

— Não, Hyp Rap. Eu já estou velho. Essa guerra precisa


de um líder jovem. Eu costumo discordar de Kiongozi,
mas ele é o melhor líder que Palami pode ter agora.

Hyp emudece. Nunca tinha visto Babu se entregar assim


ao destino. Sem esperança de encontrar olhares de apoio
na multidão, ela olha para as silhuetas refletidas nas
poças d’água à sua frente e diz:

— Deveríamos ajudar os operários, e eles passariam a se


importar conosco também. Eu discordo dessa forma de
defender Palami. Se querem insistir nesse erro, eu não
sou mais a líder dos Anansis.

Kiongozi sorri em silêncio, comemorando a vitória de seu


argumento. Agora basta esperar que os Anansis
escolham seu novo líder.

Mas Hyp não pode esperar. As sombras esticadas pelo


pôr do sol, cercadas de tons alaranjados, anunciam o fim
do dia. Olhando cada pedra onde pisa, Hyp se aproxima
de Hormes e Jan Cândhido:

— Eu ainda vou ajudar vocês. Mas, agora, é hora de


cuidar da minha mãe. Vejo vocês mais tarde — diz,
subindo em um telhado.

Hormes e Jan Cândhido sequer conseguem se despedir


de Hyp. Ela some a passos rápidos, badalando telhados
das casas de Palami.
Hormes diz:

— Não acredito que eles não aceitaram, Jan Cândhido!


Eles não veem que isso vai se voltar contra eles?

— Não, Hormes, eles não veem, não. Mas nós fizemos o


que estava ao nosso alcance. Veja pelo lado bom: nossa
vinda aqui não foi perdida: eles vão preparar suas
defesas contra a Guarda. Vão fazer as coisas do jeito
deles, mas ajudamos um pouco.
42

O s guardiões percebem que há algo estranho em


Palami. Não há Anansis vigiando as ruas. Na
verdade, não há ninguém na base do morro.

Dário, Axion e os três guardiões de ferro que os


acompanham não sabem que os moradores de Palami
estão reunidos na praça central, discutindo com Hormes
e Jan Cândhido. Sabem, apenas, que a ausência de
vigilância é uma oportunidade única para subir e
emboscar a casa de Hyp.

Seguindo a informação dada por Cassiopeia, os guardiões


entram na estação do teleférico de transporte do ferro-
velho. Um dos guardiões de ferro aponta uma pistola
para a cabeça do único Anansi que vigia o equipamento.

— Espere — sussurra Axion, empurrando a arma para


baixo com sua mão de bronze.

Axion atira uma boleadeira contra o Anansi, que cai no


chão, atingido de surpresa. Ele corre e cobre a boca do
Anansi para que ele não possa pedir ajuda. Um guardião
de ferro o ajuda, amarrando firmemente os braços e as
pernas dele.

— Eu poderia ter dado o tiro — reclama o guardião de


ferro.
— Isso chamaria a atenção de outros Anansis —
responde Axion.

— Não podemos correr riscos, Axion — diz Dário. —


Trouxemos armas “de verdade” desta vez. Vamos usá-
las. Não era isso que você sempre quis?

— Dário... Eu... — Axion teme admitir que não pensa


mais em matar Anansis ou qualquer outro morador de
Palami. Ele quer apenas prender os fugitivos e cumprir a
missão.

— O que é, Axion?

— Nada.

Um guardião de ferro gira manivelas, move alavancas e


consegue ligar o teleférico. Dário, Axion e os outros três
guardiões sobem em um vagão, que parece uma enorme
caixa perfurada pendurada no cabo de aço. Pelos furos,
os guardiões podem ver os telhados das casas de Palami
passando sob seus pés.

Eles chegam perto de uma casa triangular com teto de


lona, exatamente como Cassiopeia descreveu. Axion
salta do teleférico, seguido por Dário e pelos três
guardiões de ferro.

A lona cede logo que os pés dos guardiões a tocam,


caindo sobre o piso da casa de Hyp. Eles aterrissaram
firmes, fazendo o chão tremer. Penia arregala os olhos,
assustada. Amparada por Mema, a esposa de Babu, ela
inalava o conteúdo de uma caneca sustentada por Hyp.

— O que está acontecendo? — pergunta Penia.

Sem enxergar, é difícil para ela imaginar que cinco


guardiões ­caíram do céu sobre sua casa, derrubando o
teto de lona. Mema e Hyp, igualmente surpresas, mesmo
conseguindo enxergar, não sabem explicar o que está
acontecendo ali.

Axion anuncia:

— Hypséa Rapsode, você está cercada! Não adianta fugir.

Dário observa as atitudes do subordinado. Axion gira


uma boleadeira com a mão direita, pronto para lançar
contra a Anansi se ela tentar escapar.

Hyp não se move. Permanece sentada na cama, ao lado


de Penia. Segura o caneco com inalante feito das últimas
folhas de Atropa belladonna , fervido pela terceira vez. O
remédio está muito fraco, quase não ajuda Penia a
respirar.

Axion nota que algo está errado, mas não há tempo para
tentar entender. Dário está logo atrás dele, cobrando o
resultado da missão.

— Onde estão Jan Cândhido e Hormes? — interroga


Axion.
— Você já tem todas as informações que precisa,
soldadinho.

A resposta de Hyp coloca Axion em uma posição


delicada. Dário pensará que Axion trocou informações
privilegiadas com Hyp em outro momento. E é
exatamente o que Dário está pensando. Ele admite que
Jasão tinha razão: Axion está envolvido com os
criminosos.

— Quero saber onde eles estão agora — insiste Axion. —


Eles subiram o morro com você, não foi?

— Eu não vou dizer nada — esbraveja Hyp. — Se não vê,


eu tenho coisas mais importantes com que me
preocupar!

Axion vê que Hyp e Mema estão cuidando da saúde de


Penia. É tudo o que ele consegue depreender até ali. Ele
olha para Dário, que o lembra do objetivo da missão.

— Então você vai nos acompanhar até a Sede da Guarda


— determina Axion, olhando fixamente para Hyp. Ela
parece ignorá-lo.

Penia ofega. Ofega profundamente. O vapor do remédio


não faz efeito.

— Vocês não vão me levar a lugar algum! Eu tenho que


conseguir mais beladona para minha mãe!

Axion sabe que beladona é remédio para asma.


Aprendeu com sua mãe. Arete sempre contava casos do
hospital para os filhos. Era uma forma de desabafar. Esse
também era o único assunto que Arete tinha para
compartilhar.

— Não dá tempo. Precisamos levá-la ao hospital — diz


Axion.

— Saiam da minha casa! — Hyp segura o bule e joga a


água fervida contra os guardiões. Eles recuam, por puro
reflexo, mesmo que a água quente não possa ferir suas
partes metálicas. — Minha mãe está em boas mãos com
a Mema.

— Hyp, escute o rapaz. Ele pode levar a sua mãe ao


hospital — diz Mema. — Eu já não posso fazer mais nada
aqui sem o remédio.

Hyp se recusa a acreditar no que Mema está dizendo.


Mas Mema percebeu que Axion é diferente dos outros
guardiões. Ele parece se importar em salvar a vida de
Penia. Poucas pessoas são tão nobres.

Axion se aproxima de Hyp. Ele solta a boleadeira da mão


direita, indicando que não deseja ameaçá-la, mas ela
entende o contrário.

Hyp se levanta rapidamente e salta, apóia o pé esquerdo


no peito de Axion e gira o pé direito em direção à cabeça
dele. Mas o guardião se defende, segurando o golpe com
o braço esquerdo.
Aproveitando que Hyp perdeu equilíbrio, por estar com
os dois pés levantados ao ar, Axion usa o braço direito
para forçar o ombro dela contra o chão. Naquela posição,
Hyp não consegue golpear Axion. Mas o guardião não faz
menção de agredi-la.

— Vamos fazer um trato. Nós levamos a sua mãe ao


hospital e, em troca, você vem para a Sede da Guarda e
conta tudo o que sabe sobre os planos de Jan Cândhido e
Hormes. Feito?

Hyp escuta sua mãe lutar para respirar, como se


estivesse se afogando.

— Feito.

— Vocês não vão a lugar algum — decide Dário. — Ela é


uma criminosa, vai direto para a cadeia. Não vamos fazer
acordo com ela.

— Com todo o respeito, senhor — Axion usa


formalidades, na esperança de que aquilo incomode o
amigo que ainda habita em Dário —, Hyp é criminosa,
mas a mãe dela não é. Esta senhora precisa de
atendimento médico urgente.

— Isso é problema dela. Ela é mãe de uma criminosa.


Deve pagar por isso. — Ao dizer isso, Dário acredita que
está ensinando uma grande lição aos guardiões de seu
pelotão.
— Não haverá diferença entre nós e os criminosos, se
deixarmos que ela morra assim. — contrapõe Axion.

Os guardiões de ferro concordam silenciosamente, com


acenos de cabeça. Dário percebe que foi vencido pelo
argumento.

— Quem lhe ensina essas coisas, Axion?

— A minha mãe, senhor.


43

A xion carrega Penia nos braços, com Hyp a seu lado.


Mema anda do outro lado, segurando uma cuia com
um pouco de inalante de beladona. Os demais guardiões
fazem um cerco ao redor. Hyp aceitara levar sua mãe ao
hospital porque Mema havia dito que lá a vida dela
poderia ser salva.

No salão da entrada, Axion tem o impulso de procurar


sua mãe, Arete, mas lembra que ela está afastada do
trabalho. Ele percebe que a triagem de pacientes
identifica, com uma pulseira vermelha, quem corre risco
de morte.

Axion pede aos guardiões do pelotão que acomodem


Penia em uma maca. Diz que vai chamar um médico.

Dário solicita uma maca, mas não está tão preocupado


com isso. Tão logo Penia se deita, ele ordena aos
guardiões que vigiem Hyp e Mema. E elas vigiam Penia,
que está perdendo a consciência.

Em poucos instantes, Axion retorna, acompanhado do


Doutor Ramazzini. Tocando o braço de Penia, o guardião
de bronze mostra:

— Como lhe falei, doutor, o caso dela é grave.


Ramazzini vê que uma pulseira vermelha apareceu no
braço de Penia. O médico sabe que a pulseira não estava
ali antes. Sabe que Axion é filho de Arete. Sabe que
pulseiras vermelhas nunca são colocadas em pessoas
com membros de ferro. Atendimento de urgência é
exclusividade de pacientes de ouro ou de prata.

— Qual é o trabalho dela? — pergunta o médico.

Hyp vem responder:

— Ela não trabalha mais. Mas ela trabalhava carregando


carvão para fornalhas da fábrica de tijolos.

— Então ela precisa mesmo de atendimento urgente —


Ramazzini conclui, segurando uma ponta da maca,
indicando a Axion que segure a outra. — Vamos ao
terceiro andar.

Hyp segue a maca que leva sua mãe. O pelotão segue


Hyp. Mema segue todos eles.

***

O diretor do hospital, Paeon, costuma circular pelo


terceiro andar. Ali oferece palavras de conforto para
pessoas de ouro e de prata cujos parentes estejam em
estado grave. Esse apoio dado aos familiares ricos nas
horas mais difíceis é recompensado: os homens de ouro
e prata dizem que Paeon é um bom diretor e o prefeito
de Nova Ascra sempre o mantém no cargo.
Caminhando pelos arredores, Paeon encontra uma maca
com uma mulher idosa de braços de ferro, cercada de
guardiões e duas outras mulheres. Doutor Ramazzini
prepara uma mistura de medicamentos.

— Essa mulher não pode pagar pelo atendimento


médico, Doutor Ramazzini. Tire-a daqui imediatamente —
exige Paeon. Ele não usa jaleco ou instrumentos
médicos, mas um terno preto elegante e uma gravata de
ouro que projeta seus reflexos pelo corredor.

— Senhor, ela precisa de atendimento imediato. Ela vai


morrer se não fizermos nada — Ramazzini continua a
preparar o medicamento, desobedecendo educadamente
a ordem do diretor.

— Então a conta dessa internação será sua, doutor —


determina Paeon.

A passos firmes e velozes, Axion se aproxima e agarra


Paeon pela gravata dourada. Empurra-o, pressionando as
costas do diretor contra a parede, e vocifera:

— Se houver conta a pagar, vou contar aos jornalistas a


verdade sobre como seus pacientes são tratados aqui.

Segurando a mão de Penia, Hyp arregala os olhos. Ela


não acredita que o guardião que antes a perseguia agora
está enfrentando um homem de ouro para tentar salvar a
mãe dela. Aquilo não faz o menor sentido. Por que ele
está ajudando se não ganha nada com isso? Pior, o
guardião de prata, Dário, dá sinais de que Axion pode ser
punido por ajudar a sua mãe. Ela olha para Mema. A
velha curandeira sorri, aprovando a atitude de Axion.

Hyp segura forte na mão de Penia e espera que os


medicamentos injetados pelo Doutor Ramazzini façam
efeito.

— Eu conheço você! Você é o filho de Arete. É um


encrenqueiro como sua mãe — Paeon ignora a ameaça
do guardião de bronze. Fala mais baixo, para que apenas
Axion escute: — Os pacientes a adoram, mas ela sempre
desrespeitava as regras do hospital. Eu percebi que ela
dava muito prejuízo. Fiquei feliz por saber que ela está
doente. Ela não voltará a trabalhar aqui.

— Isso só mostra o tipo de homem que você é — Axion


bate as costas de Paeon na parede.

— E o que você está fazendo, guardião, mostra o homem


que você é — Paeon desafia. — O que você está fazendo
terá um preço. Tudo tem um preço.

— Axion! Basta! Você ficou louco? — Dário puxa Axion


pelo ombro, fazendo-o soltar o refém. — Desculpe,
senhor diretor, eu nunca tinha visto o guardião Axion
fazer algo parecido. Ele me pegou de surpresa.

— Dome seus animais, guardião de prata — Paeon pouco


se importa em ver que todos os guardiões do pelotão o
escutam. — E tire essa velha de ferro daqui logo que ela
voltar a respirar.
Paeon caminha pelo corredor, sem nada temer.
Ramazzini suspira, pois na presença do diretor é difícil
respirar.

Penia também suspira, sentindo seus pulmões voltarem a


funcionar.

Hyp suspira. Funga.

Mema expira, sorrindo.

Axion expira ruidosamente.

Dário inspira e cobra:

— Agora cumpra sua parte do acordo, Hypséa Rapsode.

***

Hyp suportou as quatro horas de depoimento na Sede da


Guarda sem explodir de raiva. Só pensa em sua mãe. A
essa altura, ela já deve estar em casa, recebendo os
cuidados de Mema.

Mas Axion e Dário não estão tão calmos quanto Hyp.

— RESPONDA ÀS PERGUNTAS DE UMA VEZ! — vocifera


Dário.

— Mas eu estou respondendo...

— Onde estão Hormes e Jan Cândhido?


— Em Nova Ascra, ué! Já falei isso — Diz Hyp,
gesticulando com as mãos algemadas.

— Mas isso não ajuda nada! Em que bairro eles estão? —


exaspera-se Dário.

— O que eles estão planejando? — indaga Axion.

— Ah, eu não sei onde eles estão, assim, na cidade —


Hyp mente. — Mas eles estão planejando fugir e levar
todos os operários com eles em um navio. Vão todos
viver em outro país!

— O quê? — Axion sabe que aquilo é mentira, pois ele


mesmo havia escutado os planos de Jan Cândhido. Ele
precisa apenas descobrir detalhes que ajudem a prender
Hormes e Jan Cândhido antes de executarem o plano.
Além disso, precisa de mais alguém que confirme a
história que contara diante de Jasão e Theceo. Axion
tinha virado piada na Sede da Guarda desde o dia em
que contou que o “terrível plano” dos revoltosos era
convencer os operários a tirar um dia de folga. O
guardião de bronze precisa recuperar sua credibilidade.

— É melhor você colaborar, garota — exige Dário.

Axion cutuca Dário, chamando-o para falarem do lado de


fora da sala de interrogatório.

— Dário, ela só quer ganhar tempo. Precisamos pensar


em algo.

— O que podemos fazer?


Axion olha pela janela da sala.

Hyp, vendo o nervosismo estampado na cara de Axion,


sorri. Ela gira o corpo na cadeira e cruza as pernas, de
lado para a mesa, tensionando a corrente das algemas
presas ao redor de seus tornozelos. Ela tenta cruzar os
braços, mas a corrente das algemas em seus pulsos é
muito curta; então, ela estica os braços e entrelaça os
dedos ao redor do joelho esquerdo. Relaxa os ombros,
sentindo-se vitoriosa. Seu comportamento é exatamente
oposto ao da sacerdotisa Calina quando interrogada.
Calina dissera a verdade, mesmo que fosse difícil
acreditar. Hyp mente o tempo todo, até que os guardiões
acreditem em alguma coisa.

— Já sei o que fazer. Vamos fazê-la mentir mais e mais,


até ela mesma cansar. — propõe Axion.

— Axion, de onde você anda tirando tanta ideia maluca?


Essa foi a coisa mais estranha que você inventou até
agora, e olha que seus últimos dias não foram nem um
pouco normais — diz Dário, espantado.

Axion sorri, olhando Hyp pela janela. Ela percebe.

***

Passa-se quase uma hora desde que Axion e Dário


interromperam o interrogatório. Hyp ainda está na sala.
Ela tem a cabeça deitada sobre o braço direito, em cima
da mesa, enquanto procura uma posição para o braço
esquerdo, ainda algemado. As pernas estão relaxadas
sob a cadeira, tanto quanto as correntes permitem. Uma
voz familiar grita do outro lado da porta:

— O que vocês querem de mim agora? Eu já disse tudo o


que eu sei.

A porta se abre com força, batendo contra a parede, e


Cassiopeia é jogada para dentro da sala, também com
pulsos e tornozelos algemados.

Hyp e Cassiopeia se entreolham. Hyp observa Cassiopeia


ser empurrada até uma cadeira do outro lado da mesa.

Axion entra na sala, disposto a provocar:

— Você não mentiria diante da sua líder, não é, Hyp?

— Oi? Líder? Quem? — Hyp fica confusa e vê Cassiopeia


sorrir. — Você disse para ele que era a líder dos Anansis?

— Eu era a líder, sim, até o dia em que você armou uma


emboscada para mim, não é, Hyp? — Cassiopeia parece
disposta a fazer o jogo dos guardiões. Em troca, talvez
ganhe mais alguma regalia na prisão.

— Você pirou, garota?

— Você me traiu, Hyp — responde Cassiopeia. — Agora


está pagando por isso.

“Então esse é o jogo da Cassiopeia”, pensa Hyp.


Enquanto isso, Axion se afasta das duas, vai até a porta
da sala, abre uma fresta e sussurra para Dário, que está
do lado de fora:

— Está evoluindo mais rápido do que eu pensei. Daqui a


pouco, a Hypséa vai ficar tão estressada que acabará
dizendo a verdade. Só precisamos “atiçar o fogo” entre
as duas e esperar.

— Ok, Axion, desta vez você me convenceu. Sua ideia


maluca parece estar funcionando — responde Dário,
também em voz baixa.

Axion sorri. É a sua chance de recuperar a credibilidade


perante os chefes. Volta-se para dentro da sala e fecha a
porta.

Hyp fica em pé, deixando a cadeira cair e estalar contra


o chão. Bate as mãos algemadas contra a mesa e grita:

— Então foi você que disse para a Guarda como


encontrar a casa onde eu moro! Foi assim que eles me
encontraram tão fácil!

— Foi uma troca justa por você ter me abandonado na


ilha dos Symvasi, não foi? Agora estamos nós duas aqui,
queridinha.

Axion cruza os braços. Apenas aguarda a conversa


evoluir para provocar Hyp a revelar o paradeiro de
Hormes e Jan Cândhido.
Hyp olha nos fundos dos olhos de Cassiopeia. Cassiopeia
não desvia o olhar. Aceita o contato visual firme.

Hyp desvia o olhar por uma fração de segundo. Quando


volta a encarar Cassiopeia, não é o mesmo olhar raivoso.
Cassiopeia percebe a diferença. Novamente, por uma
fração de segundo, Hyp olha em direção a Axion; depois
volta a olhar Cassiopeia, com um sorriso no canto da
boca. A raiva esvanece do rosto de Cassiopeia. Ela
também sorri.

Hyp sussurra algo para Cassiopeia, batendo a mão na


mesa. Axion não consegue escutar. Cassiopeia responde,
sussurrando e batendo a mão na mesa também. Elas
parecem estar brigando em voz baixa.

— Ei, vocês estão em um interrogatório — diz Axion,


aproximando-se da mesa. — O que quer que digam,
devem dizer para mim.

— Você quer saber a verdade, não é, soldadinho? —


pergunta Hyp, ainda em voz baixa.

Axion se aproxima.

— Sim, quero.

— É o seguinte... — começa Hyp.

— Sou todo ouvidos — diz Axion.

Ele sente um vulto atrás de si e, de repente, algo lhe


aperta o pescoço. É Cassiopeia, pendurada em suas
costas, forçando a corrente da algema para sufocá-lo.

Ele cai no chão, quase sem ar nos pulmões.

Dário entra, chutando a porta e correndo para salvar


Axion. Hyp salta com os pés algemados e acerta um
chute duplo no lado do peito de Dário. O guardião de
prata se desequilibra e cai no chão, desengonçado.

Cassiopeia solta o pescoço de Axion, rola e salta com os


pés juntos sobre o capacete de Dário. A pancada contra o
chão o tonteia. Vem Hyp e salta sobre sua barriga de
prata, tirando-lhe o fôlego.

As duas Anansis aproveitam que os guardiões estão


caídos e correm para fora, saltando com os pés juntos.
Acorrentadas daquela maneira, parecem duas
habilidosas minhocas saltando pela sala e ganhando o
corredor da Sede da Guarda.

Guardiões de ferro que as veem saindo da sala do


interrogatório correm para tentar prendê-las. De nada
adianta. Com movimentos combinados, as duas
distribuem chutes e cabeçadas contra os guar­diões,
agarram-nos com as correntes das algemas, usam as
paredes como apoio para saltar e fazem os homens se
sentirem humilhados por não conseguirem conter duas
garotas que têm mãos e pés acorrentados.

Distribuindo chutes duplos pelo caminho, elas alcançam


uma rua aos fundos da Sede da Guarda. Depois da rua,
não há casas. Há apenas árvores, e entre as árvores a
escuridão da noite.

— Tem um rio aqui perto — diz Cassiopeia.

— É a única chance que temos. Vamos.

Correm, saltando, atravessam a rua e entram na


escuridão.

— Paradas aí! — grita Axion.

— Olha, o soldadinho acordou — debocha Hyp.

Tiros estalam nas árvores, próximo a elas.

— Ele está zangadinho — completa Cassiopeia.

Axion, Dário e outros soldados entram no bosque escuro,


atirando com armas de fogo e lançando boleadeiras em
qualquer coisa que se mexa.

Cassiopeia vê um reflexo da lua se mexer atrás de


algumas árvores, seguido do interminável barulho de
água batendo em pedras.

— O rio!

Elas aceleram os saltos. O rio não fica encoberto pela


escuridão das árvores. É fácil vê-lo. É fácil ver as duas
fugitivas, contra a luz da lua refletida no rio, também.

Uma boleadeira se enrosca em Cassiopeia, prendendo


seus braços ao redor do corpo. Hyp para e, com os
movimentos limitados pela algema, ajuda a amiga a se
soltar.

Axion surge das sombras e abraça Hyp pelas costas, com


cuidado para ela não contra-atacar.

— Peguei!

Cassiopeia salta, chutando com os dois pés os ombros de


Hyp, fazendo-a cair de costas sobre Axion. Ele não
esperava um ataque assim.

Dário sai das sombras e agarra Cassiopeia. Muito mais


forte do que Axion, ele consegue segurá-la sob o braço
esquerdo.

Hyp se levanta e salta sobre Dário. Ele responde com um


soco, lançando-a para trás. Ela quase cai no rio.

Hyp vê mais guardiões se aproximarem. Vê Cassiopeia se


debatendo, contida por Dário. Axion está se levantando.

— Eu volto — diz Hyp, olhando para Cassiopeia, rolando o


corpo e se jogando na correnteza do rio.

Axion mergulha, logo atrás. Nada para alcançar Hyp. Ela,


como uma enguia apressada, nada rápido. Sente a mão
de Axion puxá-la pelo pé. Aproveita o movimento da
puxada para dar-lhe um chute duplo no rosto. Vira-se e
enrosca a corrente das algemas no pescoço do guardião.

Axion, que já estava com pouco ar nos pulmões, deixa


escapar algumas bolhas. Vê o fundo do rio passar rápido,
pois ele e Hyp estão sendo levados pela correnteza. Enfia
os dedos por trás da corrente da algema para aliviar a
pressão em seu pescoço. Hyp força novamente, para
sufocá-lo. Ela também está ficando sem ar.

Axion força os dedos contra a corrente de novo, apoia um


pé no fundo do rio e dá um impulso para cima. Hyp o
solta. Axion sai da água, deita-se à margem do rio e
tosse. Tosse e respira. Ali fica por alguns instantes,
recuperando as forças.

Hyp nada por mais alguns metros, toma ar e deixa o rio


levá-la para longe. Ela sai da água em um delta, quando
o rio já está quase alcançando o mar. Banhada pela lua,
com mãos e pés ainda algemados, ela se joga na areia
do delta e respira.

— Droga! Cassiopeia...
44

T ão logo o dia nasce, Dário é chamado à sala de Jasão.


O guardião de prata está exausto do longo dia de
investigação, da assistência dada à mãe de Hyp no
hospital, da luta contra as Anansis na sala do
interrogatório, da fuga de Hyp.

— Dário, ele não pode mais ser um guardião! Eu o quero


preso! — Jasão esmurra a mesa, sem dó de deixar uma
marca sobre o tampo milenar.

— Mas comandante Jasão...

— Dário, em um único dia, Axion forneceu informações


falsas, concedeu privilégios à prisioneira Cassiopeia,
mobilizou seu pelotão a uma busca inútil em Palami,
ajudou a mãe da fugitiva Hypséa e ameaçou o diretor do
hospital! Depois ainda deixou Hypséa escapar! Tudo isso
em um único dia! Ele é uma máquina de desobedecer!
Se não o punirmos, os outros guardiões pensarão que
podem desobedecer também! Quero Axion expulso da
Guarda!

— Senhor, temos alguma outra pista sobre Hormes?

— Não — admite Jasão.

— Algum outro guardião trouxe qualquer informação útil?


— Não...

— Então Axion é tudo o que temos. Não é o ideal, mas é


o que temos. Como o senhor me pediu, eu o deixei
conduzir a investigação, sempre vigiando o que ele fazia.
Foi muito arriscado, mas, de um jeito estranho, ele
estava ajudando.

— Porém, quando estavam quase conseguindo, você


perdeu o controle da situação, não foi?

O argumento de Jasão doeu como uma chibatada. Dário


tem que aceitar. Respira fundo e volta o foco da questão
para Axion.

— Sim, comandante, as coisas deram errado. Entretanto,


se expulsarmos Axion, não teremos como continuar
investigando. Não teremos nenhuma pista a seguir. Ao
invés de expulsá-lo da Guarda, apenas o rebaixe de
patente. Já será uma enorme punição.

O que Dário propõe é uma solução absolutamente


improvisada, despropositada, sem pé nem cabeça. Jasão
pensa no que dirá a Theceo. Terá que admitir, mais uma
vez, que nada progrediu. Mas e se, no dia seguinte,
aquela loucura proposta por Dário desse algum
resultado? E se Axion, cometendo os erros dele, sob a
supervisão de Dário, chegasse a Hormes e Jan Cândhido?
Haveria resultados a apresentar a Theceo. Mas é
arriscado.
— Você quer que eu ameace a estabilidade da Guarda
por causa de um guardião que dá claros sinais de que
está nos traindo? Dário, isso que você propõe é absurdo.

— E se rebaixarmos a patente dele com um anúncio


público, no auditório? — Dário insiste na proposta. É
estranho propor algo que magoará profundamente o seu
amigo, mas que pelo menos o salvará da expulsão.

— Tem que ser algo humilhante. Para que nenhum outro


guardião tenha coragem de fazer o que Axion fez.

— Posso providenciar para que seja assim — assegura


Dário.

Jasão não responde. Apenas avalia as consequências


daquela decisão.

— Certo, Dário, proceda assim, então. Que seja uma


punição exemplar. Você entende o que quero dizer.

— Obrigado pela confiança.

Dário presta continência e vira-se de costas para Jasão,


rumo à saída.

— Espere, Dário — Jasão se aproxima. — Lembre-se de


uma coisa: Axion não é seu amigo. Ele é um traidor da
Guarda. Trate-o como um traidor. Nunca o perdoe.
45

H ormes e Jan Cândhido escolheram o Mercado de


Feno porque fica no caminho das pessoas que saem
de suas casas rumo ao trabalho nas fábricas. O local está
sempre apinhado de gente comprando provisões de Gaia
nas barracas de madeira cobertas de lonas velhas e
encardidas de fuligem. Hormes e Jan Cândhido precisam
falar aos operários muito rapidamente e depois correr
para o Templo de Nomos antes que a Guarda apareça.

Eles não sabem que, por cósmica coincidência, nenhum


guardião aparecerá no Mercado de Feno naquela manhã.
Estão todos os guardiões assistindo a uma cerimônia
incomum na Sede da Guarda: um rebaixamento de
patente.

Os trabalhadores, ao avistarem Jan Cândhido, se reúnem


ao seu redor. Em poucos minutos, o Mercado de Feno fica
tomado de curiosos.

Operários da fábrica de Theceo reconhecem Hormes, “o


engenheiro que melhorou a vida no chão de fábrica”.
Havia também alguns homens de bronze — na maioria,
supervisores de produção das pessoas que trabalham
nas esteiras.

— Hormes, você também precisa começar a exercer a


liderança — diz Jan Cândhido. — Nunca sabemos quanto
tempo nos resta.

— Mas o que eu digo a eles? — pergunta Hormes.

— Diga simplesmente o que você sabe — responde Jan


Cândhido. — Será suficiente.

Hormes abre os desenhos do Projeto Tifão e conta tudo o


que sabe sobre os planos de Theceo. Deixa claro que
grande parte das peças fabricadas nas Indústrias SYM
será usada para fabricar mekhas com armas poderosas.

— Ninguém gosta de fabricar uma arma, não é? — diz


Hormes. — Queremos mudar isso.

Os operários nada falam. Apenas escutam. Eles


pensavam que passavam os dias apertando porcas e
parafusos de automóveis, motocicletas, aeromotos. Não
de armas.

Jan Cândhido explica a ideia de tirar um domingo de


folga. Será uma forma de demonstrar a força dos
operários, que assim ganharão força para barganhar que
a fábrica pare de produzir armas. Além disso, Hormes
mostrará como sabotar as peças das máquinas de
guerra.

Os operários apenas escutam.

— Então é isso, amigos. Temos uma chance transformar


os domingos em dias de descanso e, ao mesmo tempo,
fazer com que as Indústrias SYM parem de fabricar
armas. Juntem-se a nós nessa luta!
Por um longo instante, os operários permanecem em
silêncio.

— Esse plano não vai funcionar — diz uma voz familiar. —


Filho, não enfrente Theceo. Ele é mais forte do que você.

Um homem de membros de ferro atravessa a multidão e


lança um olhar de preocupação sobre Hormes.

— Pai, não estrague isso — pede Hormes. — O senhor


não vê que é importante?

— Todos aqui têm medo de perder os seus empregos —


insiste Epimoni Aedo. — Os operários precisam ganhar
por suas horas de trabalho, mesmo que fabricando
armas.

— Pai, é a nossa única chance de mudar essa história...

Um vendedor de cupons, sorrindo seu sorriso laboral,


decide se meter na conversa:

— Desculpe, meu senhor, mas seu filho está com a


razão. Eu pensava como você detestava Jan Cândhido,
mas eu não imaginava que estava fabricando armas. É
terrível... — Sísifo olha para as mãos de ferro,
imprestáveis. — Agora, não posso trabalhar mais, porque
meus braços enguiçaram. Eu devia ter dado ouvidos a
Jan Cândhido antes. Se tivéssemos tempo para
descansar e nos recuperar, talvez eu ainda tivesse meu
emprego.
Hormes se lembra de Sísifo. Era um dos operários que
ajudara na fábrica.

— Vocês querem arriscar a perder tudo, como aconteceu


com este homem? — pergunta Hormes. — Vocês se
lembram dele? Ele foi seu colega de trabalho! Seus
braços quebraram porque ele não podia parar, descansar
e se recuperar! Tirar um dia de folga por semana é
essencial para que vocês continuem saudáveis e possam
trabalhar por muitos anos! Pensem nisso!

As feições dos operários se alteram. É difícil tentar


adivinhar o que estão pensando. Raiva, angústia, dúvida,
coragem... Vê-se tudo misturado, ouvem-se discussões
na multidão:

— Vamos perder os nossos empregos!

— Vamos conquistar o dia de folga!

— Não me importo de fabricar armas, pois eu só trabalho


aqui.

— O que importa é receber o pagamento.

— Descansar todo domingo é uma boa ideia!

— É loucura, nunca vai acontecer... Ou vai?

— Estamos fabricando armas, não estamos matando


ninguém. Não há nada de errado no nosso trabalho.
— Nós não temos a doença desse homem, não
precisamos descansar para continuar trabalhando.

— O pai de Hormes está certo, não dá para enfrentar


Theceo.

A discórdia divide os operários. No meio daquele mar de


gente, alguém se exalta e começa a distribuir socos e
pontapés nos colegas de trabalho. Alguns tentam contê-
lo, mas outros empurram e fazem a confusão crescer.

Muitos se afastam dos que estão brigando e acabam


seguindo o caminho das fábricas, pensando em como
justificar seu atraso para os patrões. Não veem
esperança, lógica, sentido. Nada de bom parece sair do
plano de Hormes e Jan Cândhido.

Entre os que brigam, alguns usam ferramentas para


bater em seus colegas, que acabam feridos. Hormes e
Jan Cândhido tentam fazê-los parar, mas os ânimos se
acalmam apenas quando já estão todos cansados de
bater uns nos outros. Os feridos são socorridos por
parentes e amigos e levados ao hospital.

Hormes olha, incrédulo, para as pessoas se afastando.


“Como podem brigar entre si desse jeito? Não vamos
conseguir nada assim”.

Epimoni oferece uma garrafa de água para seu filho e o


abraça, dizendo:
— Você deve estar com sede depois de falar para toda
essa gente. Espero que saiba o que está fazendo,
Hormes. Você viu a confusão que aconteceu aqui.

Epimoni afrouxa o abraço e sai andando.

Hormes está com sede, sim. Bebe da água da garrafa.

Passando a garrafa a Jan Cândhido, Hormes confidencia:

— Não entendo, Jan Cândhido. Achei que todos


aceitariam as nossas ideias sem dificuldade. Porém, seja
em Palami, seja no Mercado de Feno, tudo que
conseguimos foi dividir os grupos que poderiam nos
apoiar.

— Tenha paciência, garoto. Não há mesmo como


conquistar os corações de todos apenas com palavras —
diz Jan Cândhido. — Mas alguns nos ouviram. Veja.

Um pequeno grupo permaneceu. Ele é menor do que a


décima parte da totalidade dos que haviam se reunido
em torno de Hormes e Jan Cândhido há pouco. Querem
saber mais sobre o plano do dia de folga. Jan Cândhido
convida:

— Vamos para o Templo de Nomos. Lá, explicaremos os


detalhes.
46

O brilho do ferro não é tão bonito quanto o do bronze.


É um passo atrás na carreira. Um passo definitivo.
Durante a cerimônia — se é que se pode chamar aquilo
de cerimônia –, todos os guar­diões, seguindo as ordens
de seus superiores, juraram nunca repetir os atos do
guardião que desobedeceu a ordens, protegeu uma
criminosa e ainda facilitou sua fuga. O discurso de Dário
feriu Axion como uma longa lança atravessando o peito,
parecendo nunca ter fim. Dário não proferiu uma única
palavra de baixo calão, mas os jargões que usou foram
mais do que suficientes para esmagar o orgulho de Axion
até que virasse farelo.

Depois do discurso, Dário arrancou a medalha de ouro


que Axion ganhara por bater em Jan Cândhido. Em
seguida, Jasão completou o rebaixamento, convertendo
em ferro o que era bronze. Os outros guardiões de ferro e
de bronze assistiam, silenciosos, da arquibancada. Axion
preferia ter sido vaiado pela plateia ao invés de suportar
aqueles olhares.

Um passo atrás na carreira. Nunca mais ter a chance de


progredir. É o pior pesadelo de Axion se realizando. Em
outros tempos, ele imaginava que, se esse pesadelo se
realizasse, teria preferido a morte. Viver sem poder
chegar a guardião de ouro não seria viver de verdade.
Mas Axion aceitou que o rebaixamento era uma
consequência de seus atos. Aceitou voltar a usar sua
armadura de ferro. Aceitou que lhe arrancassem a
medalha de ouro. Aceitou o discurso de Dário, por mais
que tenha doído.

Algo estranho aconteceu após a cerimônia. Os guardiões


de ferro e bronze não saíram das arquibancadas. Eles
esperaram até que Jasão, o guardião de ouro, e os doze
guardiões de prata tivessem saído do anfiteatro para
então falar com Axion.

— Ninguém havia nos dirigido palavras de


reconhecimento antes. Você foi o primeiro — disse um
guardião de bronze.

Axion levou alguns segundos para entender. Do que ele


estava falando? Durante a cerimônia de rebaixamento,
não lhe fora concedida a palavra.

— Quando foi promovido a bronze, você, diante dos


chefes, reconheceu o nosso trabalho. Nós nos arriscamos
todos os dias nas ruas, mas parece que ninguém se
importa com o que fazemos. Só apontam nossos erros —
continuou um guardião de ferro.

Ele colocou a mão esquerda sobre a mão de Axion e lhe


deu uma moeda. Depois, um a um, os outros guardiões
de ferro e de bronze também lhe ofereceram moedas.
Nada mais disseram. Mas o gesto falava por si.
“Eu fiz a coisa certa”, pensou Axion. Ele tinha salvado a
mãe de Hyp e foi Hyp quem descumpriu o acordo ao
fugir. Mas ela foi a desonesta. Agora, ela deveria pagar.
Deveria ser presa. Talvez Dário e Jasão um dia viessem a
entender que ele agiu de boa-fé, e então o perdoassem.

Quem ele estava querendo enganar? No fundo, ele sabe


que Dário e Jasão não irão perdoá-lo. Nunca mais.

Enquanto volta para casa, carregando carne, legumes e


temperos — o jantar será melhor naquela noite, graças
às moedas que ganhou – Axion pensa no que sua família
irá perguntar quando o vir numa armadura de ferro.
“Salvei a vida de uma pessoa. Essa é a história que
tenho para contar”.
47

–B om dia! Aonde você vai? A fábrica fica do outro


lado.

— Hoje é domingo. Vou tirar o dia de folga.

— É aquela ideia maluca do Jan Cândhido?

— É, sim. Vou encontrar com ele e os outros na ágora.

— Você vai acabar perdendo o emprego.

— Vale a pena o risco. Estamos trabalhando sem parar.


Se der certo, ganho um dia de descanso com minha
família.

Conversas como essa se repetem em Ble-Kolara, onde


moram operários de ferro, e em Ergazomenoi, onde
moram trabalhadores de bronze. O desfecho varia.
Muitos mudam de ideia. Porém, após todas as decisões
tomadas no meio do caminho, uma parte dos operários
vai trabalhar, outra parte tira o dia de folga.

Na ilha dos Symvasi, em Megali Axia, Theceo cavalga


com a família, como costuma fazer aos domingos. Mas
aquele domingo será diferente. Ganimedes, o
administrador de ouro da residência, a passos
apressados, aproxima-se do cavalo de Theceo e diz algo
ao patrão. Theceo apeia do cavalo imediatamente e corre
para o automóvel, onde o motorista já o aguarda.
Diceosine se aproxima cavalgando e para o cavalo diante
do carro, bloqueando o caminho.

— O que está acontecendo, pai?

— Nada. Problemas na fábrica. Nada que lhe interesse —


responde Theceo.

— Quero ir junto, posso ajudar em algo. — Diceosine


percebe, pela reação de seu pai, que algo grande está
acontecendo. Algo em que Jan Cândhido deve estar
envolvido.

— Fica aqui! Você só vai me atrapalhar na fábrica.

— Eu não vou sair daqui — Diceosine faz o cavalo ajeitar


sua posição diante do automóvel, bloqueando-o
totalmente.

— Você escutou o papai — interrompe Perseo, que se


aproxima cavalgando, julgando que Diceosine está dando
“uma de suas birras”.

— Eu quero ver o que está acontecendo na fábrica —


insiste Diceosine. — Também sou herdeira da fábrica, não
sou?

— Arrhh!!! EU NÃO TENHO TEMPO PARA ISSO, MINHA


FILHA! — grita Theceo. Ele pensa por um instante e
determina: — Entre no automóvel. Depressa. Perseo,
venha junto você também, para ficar de olho na sua
irmã. Vamos embora. Agora!

***

Theceo adentra a fábrica pelo portão oeste — aquele por


onde entram apenas os recursos – seguido por Diceosine
e Perseo. Vai direto ao chão de fábrica. Vê, incrédulo, que
muitos postos de trabalho estão vazios. Os supervisores
não sabem o que fazer, pois não conseguem ligar as
esteiras. Os empregados que vieram trabalhar discutem
o que fazer sem os colegas que sabem montar
determinadas partes dos motores, ou fazer costuras de
estofamentos, ou polir com precisão as peças que
precisam de um ajuste perfeito.

Theceo atravessa o chão de fábrica e sobe o elevador.


Diceosine e Perseo continuam a segui-lo. Nunca tinham
visto seu pai tão nervoso. No décimo terceiro andar,
Theceo fala diretamente com o administrador de
recursos humanos, um homem de ouro que há anos
exerce essa função.

— É hora de chamar os recursos humanos de reserva —


ordena Theceo. — Os recursos humanos que não vieram
trabalhar devem ser imediatamente descartados.

— Senhor, não temos candidatos treinados para todas as


substituições necessárias — explica o administrador. —
Precisaremos de alguns dias para treinar os substitutos.
Muitas pessoas faltaram.
— ENCONTRE GENTE PARA TRABALHAR! É PARA ISSO
QUE VOCÊ É PAGO!!!

O diretor da A. R. H. olha para Theceo de olhos


arregalados.

— Não há o que fazer, senhor Theceo. O senhor sabe que


a situação está difícil.

Sim, Theceo sabe. Não adianta gritar. Mas o prazo que


Cronos lhe deu está perto do fim. Não há espaço para
atrasos na produção. Os gritos fazem pouco mais do que
liberar a tensão presa em sua garganta.

Não há solução que possa vir de dentro da fábrica. É hora


de falar com Jasão.

***

Sob o Obelisco de Cronos, um pequeno grupo de


operários de ferro e alguns supervisores de bronze
esperam. Eles observam que há menos fumaça no ar do
que em outros dias. Podem ver fragmentos do céu azul
por trás das nuvens de fuligem. Mas essa contemplação
não dura muito tempo. A ausência de Hormes e de Jan
Cândhido começa a incomodar.

— Eles não virão?

— Eles vêm, sim.


— E se eles armaram para nós? Disseram para tirarmos o
dia de folga, mas vão nos deixar aqui sozinhos?

— Calma...

A leste, brilhando sob os raios de sol que escapam entre


as nuvens, surgem silhuetas de guardiões. Estão em
maior número do que os operários. Marcham em
sincronia. Por cima do pelotão, o capacete de Jasão se
destaca.

Não é comum o guardião de ouro ir a uma missão. Ele


normalmente permanece no gabinete da Sede da
Guarda, traçando as estratégias. Mas, desta vez, é
diferente.

Com um grito, Jasão ordena o fim da marcha. O pelotão


para a poucos passos dos operários.

— Onde está o seu líder? — Jasão usa sua voz de


autoridade.

— BEM AQUI! — Jan Cândhido anuncia em seu megafone,


enquanto desce as escadas do Templo de Nomos
acompanhado de Hormes.

Hormes veste seu velho sobretudo manchado e puído,


cobrindo seu corpo prateado. Jan Cândhido caminha
segurando o megafone em suas mãos negras. Ele veste
calça marrom e camisa branca. Os dois caminham até o
Obelisco de Cronos. Põem-se entre os operários e os
guardiões.
— Em que podemos ajudar, guardião?

— Vocês estão presos.

— Sob qual acusação? — pergunta Jan Cândhido.

— Incitação à desordem — responde Jasão.

— Que tipo de desordem, guardião?

Jasão não sabe responder. Os operários estão


simplesmente parados. Não fazem nada que represente
uma ameaça.

Um carro preto se aproxima, contornando a ágora. Jasão


deixa que o barulho do motor sirva de desculpa para
demorar a responder e, assim, poder pensar em alguma
coisa.

— Esperem aqui — diz Theceo a Diceosine e Perseo,


descendo do carro e fechando a porta.

— Vou ver o que vai acontecer — Diceosine abre a porta


do lado oposto.

— Papai mandou ficarmos no carro — reclama Perseo,


puxando a irmã pela calça de cavalgar.

— Não vou sair de perto do carro. Só vou ficar em pé


aqui do lado para poder olhar! — Diceosine puxa a calça,
soltando-a da mão do irmão, e fecha com força a porta
do carro, como se exigisse que ele não a siga.

Theceo chama Jasão, sinalizando com os dedos.


Jasão olha para Theceo. Depois olha para Jan Cândhido.
Olha para Theceo de novo e ensaia um passo. Olha para
Hormes. Estufa o peito e atravessa o pelotão,
encontrando Theceo atrás dos guardiões.

— O que você está esperando, Jasão? Por que ainda não


os prendeu? É algum problema com o seu código de
ética? — Theceo fala de forma discreta e impaciente.

— Eles não estão fazendo nada, senhor Theceo — Jasão


explica, já sabendo de antemão que seus argumentos de
nada adiantam. — Não tenho como prendê-los sem um
motivo.

— Hormes roubou as plantas do Projeto Tifão, lembra?

— Estas plantas? — diz Hormes, cutucando Theceo com


um tubo de papéis enrolados e interrompendo a
conversa. — São suas. Eu não preciso delas.

Theceo pega o tubo de papéis e o aperta com força.


Hormes sorri com petulância.

— Isso não vai ficar assim, Hormes — Theceo vira as


costas para o rapaz e volta a falar com Jasão: — Eles
estão roubando propriedades da minha fábrica. Esses
homens deveriam estar trabalhando lá, mas estão aqui.
Esse é o motivo.

— Senhor Theceo, os empregados não são sua


propriedade...
— Mas o tempo deles é, sim. Eu pago por cada minuto de
trabalho deles. É melhor você colocar seus guardiões em
ação se não quiser ser rebaixado ou expulso da guarda.

— Atenção, pelotão! — Jasão, desta vez, não se aproxima


de Jan Cândhido. Prefere dar as ordens de longe. —
Prendam esses desordeiros! Usem a força necessária!

Os guardiões da primeira fila empunham seus martelos


de combate, os da segunda giram boleadeiras, os de trás
preparam armas de fogo.

Jan Cândhido usa o megafone novamente:

— Não vai dar certo, Theceo! Se você machucar seus


empregados, quem irá trabalhar na sua fábrica amanhã?
Você sabe muito bem que a cidade não tem pessoas
disponíveis para você empregar na fábrica.

Os guardiões desistem de atacar. Viram seus rostos para


trás esperando nova ordem de Jasão, que por sua vez
volta o olhar para Theceo.

Theceo atravessa o pelotão e fica cara a cara com Jan


Cândhido. Vira-se para olhar para os operários e
esbraveja:

— Sempre há mais recursos humanos! Sempre! Vocês,


que permaneceram ao lado de Jan Cândhido, perderão os
seus empregos e eu encontrarei novos recursos humanos
para pôr em seus lugares!

Hormes solta a voz:


— É por isso que você precisa do Projeto Tifão, não é?
Você quer forçar os moradores de Palami a trabalhar na
sua fábrica. Você está ficando sem opções para achar
novos empregados.

Surgem gritos de apoio no grupo de operários:

— Não concordamos em fabricar armas para atacar


Palami!

— Nem para atacar qualquer outro povo!

— Quando isso vai parar? Sempre que seus empregados


adoecerem você vai destruir algum povo para ter novos
recursos humanos?

— VOCÊS ESTÃO DESCARTADOS!!! — vocifera Theceo.

Os operários silenciam. Olham para Hormes e para Jan


Cândhido. Eles acenam positivamente com a cabeça.

— Nós aceitamos o descarte — diz um operário.

— Agora, não somos mais seus empregados. Podemos


descansar por hoje — afirma outro.

— Jasão, prenda-os — determina Theceo.

— Sob que acusação? — pergunta Jasão.

— Eles estão me roubando. O tempo deles é minha


propriedade. É essa a acusação.
— Mas o senhor acabou de descartá-los — pondera Jasão.
— O tempo deles não é mais sua propriedade...

Theceo olha para Jasão. Jasão olha de volta. Nada dizem.


Theceo recua em meio aos guardiões, enfurecido.

— Eles têm razão, não é, pai? — pergunta Diceosine,


encostada no carro.

— Não têm, não — responde Theceo, instintivamente.

— O que o senhor vai fazer, senhor Theceo? — pergunta


Jasão, com a voz baixa.

Theceo não sabe o que responder. Os guardiões esperam


a sua decisão. Os operários também. Theceo levanta a
cabeça. Encara Jasão.

— Espere aqui.

O empresário caminha sem pressa. Sua cabeça está tão


erguida que é possível ver a barba imperdoavelmente
malfeita em seu pescoço.

Um corredor se abre no meio dos guardiões para dar


passagem a Theceo. Ele caminha até parar diante de Jan
Cândhido e Hormes.

— Tomei minha decisão. Quero que saibam que sou um


homem benevolente — Theceo respira. Suas mãos se
seguram uma à outra, para que parem de tremer. —
Então... Vocês estão readmitidos. Por hoje, e apenas por
hoje, concedo um dia de folga aos empregados das
Indústrias SYM. Mas quero todos vocês de volta à fábrica
amanhã para um dia normal de trabalho. Vocês estarão
descansados, então quero que cumpram todas as metas
de produção, entendido?

Os operários não acreditam no que acabaram de escutar.


Apenas sorriem uns para os outros.

— Ainda não é o bastante — diz Jan Cândhido. —


Sabemos dos seus planos com o Projeto Tifão.
Fecharemos um acordo se você prometer não construir
máquinas de guerra. Sua fábrica deverá produzir apenas
carros, aeromotos e outros produtos voltados para os
consumidores.

— Não abuse da sorte, velhote... — resmunga Theceo,


rangendo os dentes.

— Podemos pensar em outros meios de impedir a


produção de máquinas de guerra — provoca Hormes.

Theceo suspira ruidosamente. Pensa em Cronos lhe


cobrando resultados. Passa a mão na cabeça, arrepiando
os cabelos brancos, e diz:

— Ok, sem máquinas de guerra. E a folga dos operários


durará apenas o dia de hoje. Temos um acordo?

— Sim, senhor. Temos um acordo — Jan Cândhido


estende a mão em um gesto de compromisso com
Theceo. — Não temos, companheiros?

— Sim! Temos um acordo — os operários respondem.


Theceo ignora a mão estendida de Jan Cândhido.
Encarando Hormes, ele diz:

— Era isso o que você queria, não era?

— Exatamente. Era isso o que eu queria. Eu só não


imaginava que as coisas seriam desta maneira —
responde Hormes. — Mesmo assim, obrigado, Theceo.

Theceo sorri, sem nem saber por quê. Atravessa o


corredor de guardiões, deixando para trás operários
sorridentes. Diz algo a Jasão. Encara sua filha, sem
ternura no olhar. Toma-a pelo braço e a força a entrar no
carro.

Hormes vê Diceosine pela janela do carro. Ela também o


vê. Cada um imagina o que o outro está pensando.

Jasão pensa. É assim que as coisas vão acabar? Sem


confronto? Não está acostumado com aquilo. Os
guardiões muito menos. Aguardam ordens.

— Pelotão! — chama Jasão, ainda sem saber direito que


ordem dará. — Retornem às suas atividades de ronda...
normais... de domingo.

O pelotão não se mexe.

Jasão bate continência. Os guardiões o imitam.

— É sério. Podem ir. Cada um para o seu posto.


— Podemos tirar o domingo de folga? — pergunta um
guardião de ferro.

— Não — responde Jasão, peremptório. — Vá para o seu


posto.

Os guardiões saem da ágora. Separam-se em grupos, e


cada grupo toma uma rua diferente. Seus pés não
marcham em sincronia. Caminham e conversam.

Sob o obelisco, Hormes pergunta:

— E agora, Jan Cândhido?

— Agora, temos um dia de liberdade. Vamos desfrutar!


Alguém tem uma boa ideia de onde podemos ir?

— Eu conheço um lugar... e parece divertido — sugere


um operário.
48

P oucos lugares no mundo têm um nome tão


apropriado. A Praia das Madames é assim conhecida
por ser frequentada por... madames. Elas são as esposas
dos homens mais ricos da cidade. São as mulheres que
não precisam trabalhar.

Aos domingos, após cavalgar com sua família,


Melpômene Symvasi costuma pedir ao motorista que a
deixe na praia, onde encontra outras madames. Ela
mostra os novos presentes que ganhou do marido e
compara sua riqueza e beleza com as das amigas,
sempre se saindo vitoriosa. Reveste de modéstia o
orgulhoso sorriso e não deixa que sua superioridade soe
como auto-adulação.

Mas hoje Melpômene não está tão atenta à conversa das


madames. Tenta esconder a decepção por Diceosine não
ter vindo com ela. Inventa motivos. Muitas amigas
engolem as desculpas que ela inventa. Mas não uma
delas. Hismina, que conhece Melpômene desde a
infância, sabe quando há algo de errado. Convida-a para
tomarem um chá a sós. O chá as aguarda sobre uma
pequena mesa, ao lado de xícaras de vidro, frutas e
pães, à sombra da barraca branca de Hismina, que tem
enormes aberturas em cada lado para a brisa lhes
refrescar. Ali as amigas não serão interrompidas. Elas se
sentam em cadeiras de ferro trazidas pelos serviçais.
Hismina serve o chá e pergunta:

— Aconteceu alguma coisa com Diceosine, Melpômene?

— Não, Hismina, como eu falei, ela quis cavalgar um


pouco mais hoje.

— Melpômene, eu te conheço há muito tempo. Você não


precisa esconder as coisas de mim.

Melpômene olha o mar. Deixa a brisa aliviar a tensão em


sua mente. O cheiro do chá a convida a voltar à
realidade. Hismina se ajeita na cadeira, segurando o
chapéu para que o vento não lho roube e olha para
Melpômene.

— Hismina... Ela foi para a fábrica com Theceo...

— Ela quer trabalhar?

— Não! Isso, não! Ela só foi por curiosida-

— Cuidado, viu, Melpômene? Daqui a pouco aparece sua


filha com um braço de ferro em casa. Essas meninas de
hoje têm essa vontade estranha de trabalhar...

— A Diceosine não vai trabalhar, Hismina! Deixa de falar


besteira! Ela sabe bem que não teria esse padrão de vida
se trabalhasse.

— Eu falo essas coisas porque sou sua amiga de verdade,


Melpômene. Ela não seria a primeira menina curiosa a
fugir de casa para experimentar o trabalho. Essas
meninas dizem que têm que ganhar dinheiro por seus
próprios méritos. Bobagem! — Hismina gira seus dedos
indicadores no ar e sorri para si mesma. — Deixemos que
os homens se preocupem com o mérito. Só precisamos
nos casar com o homem certo.

— É isso mesmo. Sempre digo a ela...

— Mas o fim da picada é quando uma menina rica se


apaixona por um idiota de ferro... — Hismina se diverte
com suas palavras e esquece de deixar Melpômene falar.
— Aí não tem jeito mesmo. A filha de Melina largou toda
a herança da família e se casou com um operário! Que
horror! É por isso que Melina vem pouco à praia. A filha
dela, então, não vem mesmo. Começou a trabalhar.
Quem trabalha não tem tempo de vir à praia.

— É...

Melpômene já não escuta mais a amiga. Deixa-a falando


sozinha. Há, sim, motivos para se preocupar. Diceosine
parece estar apaixonada por Hormes. Fala muito dele.
Uma vez, convenceu Theceo a chamá-lo para jantar.
Bom, pelo menos ele se tornou um engenheiro de prata.
Mas andou criando problemas para Theceo. Argh!!! Que
Diceosine não se meta em confusão!

— Melpômene! — Hismina interrompe as divagações da


amiga com um grito. — O que é aquilo? — Ela aponta,
com a mão trêmula, para a montanha verde atrás da rua
onde os carros das madames estão estacionados.
Os motoristas, que conversavam e riam enquanto
lavavam os carros, param. Olham para a montanha.
Nunca viram aquilo antes.

Homens e mulheres de ferro ou bronze descem a encosta


da montanha, saltitando. Às vezes rolam, aproveitando o
declive, ou simplesmente deslizam suas calças já
marrons sobre o gramado. Seja como for, o destino é
certo. Todos estão indo à praia.

Os motoristas, vendo a multidão marrom se aproximar,


não sabem o que fazer. As madames tampouco. Todos
estão petrificados de pavor. Hismina encontra forças para
gritar:

— Não os deixem chegar até nós!

Os motoristas se colocam entre os carros e o pé da


montanha. Eles não podem deixar os carros saírem
arranhados, pois levarão uma dura bronca dos patrões e
acabarão descartados. Mas não proteger as pa­troas
também pode deixá-los em uma péssima situação com
seus chefes. Precisam escolher: protegem os carros ou
protegem as madames. E agora? Pedem aos deuses, em
pensamento, proteção aos seus empregos.

Os operários de ferro e bronze se aproximam. Sorriem e


inventam brincadeiras. Todos correm. Têm muita pressa
de chegar à praia.

— Boa tarde!
— Boa tarde!

— Boa tarde! — os operários, aqui e ali, cumprimentam


os motoristas ao passarem pelos carros.

— Boa tarde — apenas um motorista tem a cortesia de


responder.

Os operários passam pelos carros sem encostar em


nenhum deles. Atravessam a rua. Tiram os sapatos para
sentir a areia entre os dedos dos pés. Esticam os braços
metálicos como asas, como se fossem voar com o vento.
Admiram a imensidão do mar se perdendo no horizonte.

Não sabem muito bem o que há para se fazer em uma


praia. Avançam para a água. Alguns recuam quando uma
onda se aproxima. Correm apenas para ver a água
espirrar sob seus pés. Enxergam seus reflexos na areia
molhada. Fazem bolas de lama e atiram uns nos outros.
Riem. Rolam no chão. Desfrutam do seu primeiro dia livre
como se fosse o último. E será mesmo o último, pois o
acordo com Theceo somente garante a folga do dia de
hoje.

As madames correm, deixando para trás barracas,


guarda-sóis, toalhas, jarras de suco, bules de chá, pães,
biscoitos e frutas. Esquecem as sandálias também.
Agarram saias e chapéus para preservar sua digni­dade
enquanto correm até o limite de suas energias. Elas se
juntam sob uma tenda na extremidade leste da praia,
gritando e fazendo sinais para que seus motoristas as
busquem e levem para casa.
Os motoristas entram nos carros e tentam manobrar,
desviando dos operários (que não param de chegar) e
dos outros carros (que se põem em movimento todos ao
mesmo tempo).

O motorista de Melpômene, desesperado para resgatar a


patroa, acelera forte e lança o carro à areia, parando
próximo à tenda onde as madames estão aglomeradas.

— Dê-me uma carona! Por favor! — As madames querem


sair logo dali.

O carro grande de Melpômene fica lotado, com nove


madames se espremendo nos bancos. O motorista
acelera. O automóvel não sai do lugar. Ele tem que
admitir:

— Madame Melpômene, o carro atolou.

— Então desatole! — exige Melpômene.

— Não tem jeito, madame. Temos que descer do carro e


empurrar — responde o motorista.

— Empurrar? Nem pensar! Vamos embora! — Melpômene


abre a porta e chama as amigas: — Vamos para o
próximo carro que estiver livre.

E, assim, se vão. Entram nos carros sem se importar em


amassar seus vestidos, espremendo-se nos bancos
traseiros e seguindo viagem. Entregam a praia àquelas
pessoas que não têm educação para usá-la.
Hormes, com seu corpo de prata, se destaca no mar de
gente de ferro e bronze. Jan Cândhido desce a encosta ao
lado dele. Os dois riem muito, deixando-se contagiar pela
alegria dos operários na praia. Ao chegarem à areia, Jan
Cândhido convida:

— É seu primeiro dia na praia, não é? Então vamos logo


entrar no mar!

O velho marinheiro negro corre, quebrando recordes de


velocidade para alguém da sua idade. Seus pés
espalham a água do mar, buscando ir mais fundo. Jan
Cândhido deixa que uma onda o derrube e ele mergulha,
sumindo nas águas alegremente.

Hormes segue atrás dele, ainda com timidez. Acha


estranho sentir a água salgada puxando e empurrando
seus pés. Aproxima-se de Jan Cândhido. O velho está
acostumado com o mar. Uma onda forte se aproxima de
súbito, levantando os pés de Hormes e fazendo-o capotar
e rolar na areia.

Jan Cândhido solta uma gargalhada que atrai a atenção


de todos ao redor. Hormes, tentando se levantar e ajeitar
a roupa, encolhe a cabeça entre os ombros.

— Divirta-se, Hormes. Você não sabe se divertir?

— Acho que não... Nunca tinha vindo à praia.

— Comemore as vitórias, rapaz!

— Nós vencemos, mesmo? — pergunta Hormes.


— Hoje, sim. Nós vencemos. Não sabemos o que nos
aguarda amanhã — responde Jan Cândhido. — Então, não
perca tempo, pois hoje nós podemos nos divertir!

Hormes sorri. Olha em volta. Ninguém ali sabe usar a


praia. Ele corre e, desengonçado, salta as ondas e
mergulha.

***

Percebendo que as madames abandonaram tendas,


comidas e bebidas, dois meninos, filhos de operários,
decidem saciar sua sede com suco de laranja. Demoram
a perceber que uma madame permaneceu ali.

— Desculpe, madame. Não vamos roubar o seu suco...

— Não, esse não é meu. Não é minha tenda.

— A senhora não se importa?

— Não.

— Por que não foi embora, como as outras madames?

— Porque meu irmão está aqui.

Hormes, saindo do mar com seu sobretudo encharcado,


reconhece Polínia, sua irmã, que conversa com os
meninos. Ela acena. Hormes é o único homem de prata
na praia. Impossível confundi-lo.
— O que você está fazendo na praia, Hormes? Você não
foi trabalhar?

— Conseguimos convencer Theceo a nos dar esse dia de


folga.

— E você não foi descartado por isso?

— Fui, mas não por isso. Theceo não gostou de eu ter


roubado plantas de um projeto dele.

— A Guarda esteve na nossa casa perguntando sobre


essas plantas. Então era verdade...

— Desculpe, eu não falei nada, mas era melhor você e o


papai não saberem.

— Papai me contou que você estava encorajando


operários a se revoltarem.

— Estava...

— Não me importo com essas coisas que você faz. Só


espero que arrume logo outro emprego para sustentar a
casa.

Um homem de ouro ouve a conversa enquanto se


aproxima. Ele descera de um carro não havia muito
tempo. Não se importa em sujar os pés de areia. Vem
andando calmamente e envolve Polínia com o braço
direito:
— Acho que você não vai conseguir muita coisa, não,
rapaz. Theceo pode ter fraquejado hoje, mas já deve
estar discutindo com os outros empresários o que fazer
para que não haja um novo dia de folga.

Hormes observa o braço do homem de ouro ao redor da


cintura de sua irmã. Pergunta a Polínia:

— Você o conhece?

— Conheço! Ah, é verdade, eu não o apresentei. Esse é


Radamanto. Ele é advogado — ela anuncia com gosto. —
É meu namorado.

Radamanto, mantendo seu braço na cintura de Polínia,


retorna ao assunto:

— É você que está fazendo toda essa agitação na cidade


junto com Jan Cândhido, não é?

— Vai me prender?

— Não, isso é coisa para os guardiões. Eu respeito todas


as opi­niões e manifestações de pensamento —
Radamanto é eloquente, quase intimidador. — Mas é
meu dever avisá-lo, garoto: você está do lado errado da
história. As máquinas, o progresso e a Lei de Cronos
vieram para ficar. Tome cuidado. Jan Cândhido só levou
confusão aos lugares por que passou.

— As máquinas não estavam ajudando as pessoas a


viverem melhor. Resolvi tentar algo diferente — diz
Hormes. — Jan Cândhido tem se mostrado um líder
experiente. Está fazendo bem para essas pessoas.

— Você vai se dar mal enfrentando o poder de Cronos —


adverte Radamanto.

— Obrigado, já fui avisado disso.

— Então, boa sorte com os seus planos.

Radamanto aperta a mão de Hormes e se despede,


chamando Polínia a entrar no carro. Hormes a segura e
pergunta, baixinho:

— Onde você o conheceu?

— Numa festa.

— Você não tem condições de ir às mesmas festas que


ele.

— Tenho sim. Graças a você, aliás — Polínia mostra as


joias de prata penduradas em seu pescoço, braços e
orelhas. Também mostra uma pulseira dourada. — Esta
daqui foi o Radamanto que me deu. Ele tem tudo para
ser meu sonhado marido.

— Eu não acredito que seus sonhos se resumam a isso,


Polínia — diz Hormes.

— Do modo que eu vejo, Hormes, meus sonhos são


melhores do que os seus — ela responde. — Tem uma
coisa que você não sabe: quando você sumiu, a Guarda
nos procurou em nossa casa. Interrogaram a mim e ao
papai. Fizeram muita pressão para dizermos onde você
estava. Se não fosse por Radamanto, estaríamos presos.
Ele convenceu o guardião Jasão a nos soltar, dizendo que
uma prisão arbitrária feriria o código de ética da Guarda.

— Desculpe. Eu não queria ser rude.

— Hormes olha para Radamanto. Quem diria que um


advogado de ouro se sensibilizaria com a situação de sua
irmã e de seu pai...

— Um dia vou me casar com ele, Hormes. Ele me


protege, e talvez ajude a proteger o papai também.

Hormes dá um abraço fraterno em sua irmã. Assim, bem


perto, ele pode dizer:

— Então, boa sorte com seus planos.


49

T heceo sobe ao Belvedere dos Titãs ao anoitecer. Não


leva seus filhos. Não convoca os outros homens de
negócios. Sabe que Cronos não estava feliz quando
enviou o chamado.

Uma mandala dourada, repleta de inscrições, brilha no


chão. As folhas se levantam com o vento e pairam no ar.
O tempo para. Cronos surge.

— No que você estava pensando, Theceo?

— Estou tentando manter o controle da situação, meu


senhor.

— Então, está fazendo um péssimo trabalho. Você


entregou aos operários o que eles queriam. Agora, vão
querer um dia de folga toda semana.

— Senhor, eu não tinha mais meios para impedir...

— Não quero desculpas, quero resultados! — interrompe


Cronos. — O seu prazo para remover Palami está quase
acabando e você ainda deu um dia de folga para os
empregados! No que você estava pensando?

— Mas...
— Você cedeu em algo que não poderia ceder. Eu
confiava em você para proteger a minha Lei, mas você a
quebrou! Eu nunca lhe dei autorização para mudar a Lei!

— Perdoe-me, Cronos, eu recuei para ganhar tempo e


tentar consertar as coisas...

— Então conserte. O tempo não está a seu favor.


50

T ambores rufam.

Cornetas soam.

Pés marcham em uníssono.

Ainda não raiou o dia. Mas, pelas ruas de Ble-Kolara,


ouvem-se sons de um desfile da Guarda.

Granázio abre a janela de casa. Não vê um desfile, mas


guardiões caminhando em pequenos grupos dispersos.

Nunca é uma boa ideia conversar com os guardiões. Mas,


com o juízo prejudicado pelo sono interrompido, Granázio
pergunta:

— O que está acontecendo?

— Acorda, operário! É hora de ir trabalhar! Hoje vamos


acompanhar todos vocês até o trabalho! — responde um
guardião sisudo, batendo em um tambor amarrado ao
corpo.

Os operários nunca tiveram escolta da Guarda para ir ao


trabalho. Aliás, o bairro de Ble-Kolara nunca recebera
vigilância. O que mudou?
Os guardiões tocam instrumentos, despertando os
operários antes do horário habitual. Bloqueiam
passagens nas ruas até que reste apenas um caminho
possível para todos os trabalhadores.

Os operários saem de suas casas, especulando:

— A cidade está sob ataque?

— Não sei...

— De onde vieram tantos guardiões?

A resposta logo vem. Uma velha mulher, carregando um


cesto de palha com cheiro de pão fresco, é impedida de
atravessar uma rua.

— A senhora não pode passar por aqui — diz o guardião


de ferro.

— Eu vou entregar uma encomenda em Ergazomenoi —


ela explica.

— Hoje as ruas estão fechadas. Em Ergazomenoi,


também. Vá trabalhar na fábrica. Seu patrão a espera.

— Eu não trabalho mais na fábrica. Fui descartada há


mais de um ano — diz ela.

— Não posso deixar a senhora passar. Hoje, o único


caminho aberto é o que leva até as fábricas — finaliza o
guardião.

Algumas pessoas ouvem a discussão. Aproximam-se.


— Ei, deixe ela passar! Ela não tem nada a ver com isso!
— grita um operário de punho em riste, desafiando o
guardião.

Mais operários se aproximam. Protestam. Unem-se para


forçar uma passagem pelo cerco da guarda.

O guardião de ferro não se impressiona com a


aglomeração. Ele saca um tubo de fogos de artifício e o
aponta para o alto. Um rastro de fogo vermelho risca o
ar, indicando claramente a posição do guardião que o
lançou. Em instantes um caminhão da Guarda para na
rua, atrás do guardião de ferro.

Do caminhão, descem mais quatro guardiões. Todos


giram bolea­deiras. Os guardiões que cercam a rua sacam
seus martelos.

— Agora! — ordena um guardião de bronze.

Os guardiões com martelos golpeiam operários na altura


do estômago, fazendo-os cair no chão, quase sem
respirar. Atrás deles, os outros guardiões lançam as
boleadeiras. Uma delas prende a velha mulher que
queria sair de Ble-Kolara.

Outros operários assistem a tudo. Veem seus vizinhos


serem carregados pelos guardiões e colocados no
caminhão. Ouvem o guardião de bronze declarar que
estão todos presos. O caminhão vai embora.
Na noite anterior, após voltarem da praia, os operários
chegaram a pensar que a segunda-feira seria um dia de
trabalho mais animado. Todos acordariam bem-dispostos
e sorridentes. Porém, depois daquelas prisões, não
sobram lembranças do dia de folga. Não há sorrisos.
Simplesmente seguem o caminho para as fábricas, sob
fria vigilância.

***

Theceo já está na fábrica. Ainda é muito cedo, mas ele


chegou antes de todos. Ele treme. Tem olheiras. Repete
para si mesmo: “Não posso mudar a lei... O tempo não
está a meu favor... Resultados...”.

Ele está na frente do portão oeste, aquela entrada suja


por onde chegam os recursos. Seria uma honra para os
operários ver o patrão. Entretanto, nota-se que Theceo
não está de bom humor. Ele observa os operários
entrarem, como se ele soubesse quem são aquelas
pessoas. Como se pudesse perceber a falta de alguém.
Theceo não sabe quantas pessoas devem entrar por ali.
Não pode reconhecer o rosto de nenhum dos operários.
Mas ali ele permanece, pois os empregados realmente
acreditam que ele está vigiando para saber quem faltará
ao trabalho.

Theceo chama para perto de si os homens de bronze que


supervisionam o chão de fábrica. Exige:
— Fique de olho. Faça com que todos cumpram as metas.
Hoje eu não tolerarei falhas. Quero resultados.

Os supervisores assentem.

Os operários assumem os seus postos.

As máquinas começam a funcionar, pontualmente.

As peças caminham pelas esteiras, muito mais


apressadas do que de costume. Desafiam a velocidade
com que os operários parafusam, soldam, lubrificam,
costuram, moldam, torneiam, fresam, pintam... Eles
percebem que há muitas peças diferentes das habituais.
Algumas são enormes. Cochicham entre si:

— São peças de máquinas de guerra, sem dúvida.

— Theceo não cumpriu a palavra.

— Ei! De volta ao trabalho! Vocês não são pagos para


conversar — cobra um supervisor. — Quem quiser
reclamar pode ir já para a rua.

Os operários voltam a apertar parafusos e soldar. Não


conseguem pensar em como poderiam deixar de fabricar
máquinas de guerra. Não podem conversar. Se a
velocidade dos movimentos diminui, eles são
repreendidos pelos supervisores. Até pensar é perda de
tempo. O ritmo da esteira está muito acelerado. Cada
movimento precisa ser repetido, com exatidão, em
poucos segundos.
Após alguns minutos de trabalho, um operário do setor
de pintura solta o spray de tinta e limpa os dedos com
estopa.

— Aonde você pensa que vai, folgado? — pergunta,


ríspido, o supervisor.

— Ao banheiro, senhor.

— Você poderá ir ao banheiro na hora da sua pausa, em


50 minutos.

— Mas, senhor...

— Aguente! Temos metas a cumprir.

Aquele não será um dia comum. Todo movimento é


controlado. Ir ao banheiro, comer, limpar o suor do rosto,
suspirar... Roubar o tempo que pertence a Theceo? Nem
pensar.

Os movimentos rápidos e repetidos cobram seu preço.


Braços, pescoços, costas e pernas doem. Quando os
fracos reduzem o ritmo da produção, os supervisores
gritam. Depois da bronca, a produção volta ao normal.

Após duas horas de trabalho, três operários caem. Os


ligamentos de seus braços de ferro estão arrasados. As
juntas rangem. Os punhos, cotovelos e ombros ardem de
dor ao menor movimento.

— Vocês estão bem? — alguém pergunta.


— Volte ao trabalho!

— Eles precisam de ajuda...

— A Administração de Recursos Humanos já vai resolver


isso. VOLTE AO TRABALHO!

A ação da A. R. H. é imediata. Três jovens moças recebem


braceletes de Cronos e são colocadas no lugar dos três
operários doentes. Eles são descartados.

As meninas olham para as máquinas enormes, para a


fumaça dos fornos, sentem o cheiro de óleo e tinta.
Entendem agora o que seus pais contavam quando
chegavam em casa. Entendem, também, quem são os
supervisores. Aqueles homens de bronze que nunca
deixam os operários pararem.

Seguindo ordens dos supervisores, uma delas pega um


pincel para lubrificar peças com graxa e outra empunha
uma pesada furadeira. A terceira segura um martelo e
recebe instruções sobre como bater em ferro quente
sobre uma forma de modo a se moldar uma peça
perfeita.

Granázio abandona o posto e interrompe a conversa,


carregando uma pesada roda dentada em sua mão de
ferro.

— Senhor supervisor, essa menina é minha filha — diz


Granázio.
— Que sorte, Granázio, pois ela agora vai ajudar com as
despesas de casa. — O supervisor mostra o bracelete de
Cronos no braço esquerdo da garota.

— Ela não estava procurando emprego. Ela é muito


jovem — explica Granázio. — Como ela veio parar aqui?

Um homem de prata da A. R. H. se intromete na


conversa:

— Foi necessário, para substituir os descartados. Eles


saem das fábricas velhos e doentes demais. A guarda
recebeu ordens de coletar todos os jovens que estiverem
vadiando nas ruas.

— Tenha mais respeito ao falar da minha filha, sua lata


de sardinha — diz Granázio ao homem de prata. — Ela
não vadia na rua!

— Então ela não deveria ter saído de casa hoje. Não tem
nada para fazer na rua — responde o homem de prata.

Granázio bate a roda dentada com violência sobre a


esteira, sacudindo todas as peças. O homem de prata
recua um passo, com os olhos arregalados. Os operários
ao redor silenciam. Alguns tentam recolocar as peças no
lugar, para não interromperem a produção.

O homem da A. R. H. ajeita a gravata de prata e apruma


a postura, dizendo ao supervisor:

— Dê um jeito nisso. Ou a produção volta ao normal, ou


você será o próximo descartado de hoje.
O supervisor sua e treme. Precisa resolver. Agora.

— Granázio, ela vai ficar aqui — assevera o supervisor.

— Mas, senhor...

— Volte ao trabalho, se não quiser ser descartado.


Enquanto você está aqui, sua fresadora está parada.

— Escute, senhor, ela pode se acidentar. Ela não tem


habilidade para moldar ferro quente. Não seria bom para
a fábrica perder uma funcionária logo que ela chega, não
é?

— Se isso acontecer, colocaremos outra no lugar. Volte


ao trabalho.

A menina olha para o pai. Segura o martelo com as duas


mãos, fazendo força para suportar o peso. Olha para o
ferro quente sobre a forma. Calcula por quanto tempo
conseguirá fazer aquele trabalho.

— Você está segurando o martelo do jeito errado —


ensina Granázio, tomando a ferramenta da mão da
menina e empunhando o cabo com destreza. — É assim
que se faz...

O braço de Granázio traça um caminho perfeito no ar,


mas não em direção à forma. O martelo atinge o rosto do
supervisor que, desorientado, cai sobre o ferro quente.
Ele tenta se levantar, apoiando as mãos nas partes
menos quentes da forma.
Mas o martelo retorna.

Pesando sobre seu pescoço, o martelo pressiona o rosto


do supervisor contra o metal quente.

— ARGHHHH!!!!!

— É você quem vai ser descartado hoje, seu desgraçado!


— grita Granázio, cego pela fúria e pelo calor,
desarmando qualquer tentativa do supervisor de se
levantar.

Todos os operários abandonam seus postos. As peças


correm pelas esteiras, sem encontrarem mãos que lhes
deem forma ou função. Algumas caem e estalam sobre o
chão, antes que os supervisores consigam desligar as
máquinas.

Os operários correm. Alguns seguram Granázio,


puxando-o para longe do supervisor de rosto queimado,
aconselhando:

— Você é louco, vai destruir a sua vida... Não bata nos


supervisores!

Mas outros oferecem apoio:

— Vocês não podem forçar nossos filhos a virem para a


fábrica! Isso deve ser uma escolha deles, não de vocês!

O supervisor de rosto queimado se levanta, mas é logo


puxado para o meio de uma roda de operários furiosos
empunhando chaves de fenda, martelos, chaves
inglesas, serrotes, correntes... como armas. Entre eles
está Granázio, olhando firmemente para o supervisor.

Pela janela do escritório dos engenheiros, bem acima do


chão de fábrica, Theceo observa a cena. Ele não está
sozinho.

— Está vendo? A coisa saiu do controle — ele diz para


Jasão. — Você sabe muito bem o que precisa fazer.

Jasão dá alguns passos até a mesa mais próxima. Tira um


telefone do gancho. Disca. Ordena. Aguarda.

Com movimentos precisos e bem ensaiados, os


guardiões ocupam todas as saídas do chão de fábrica.
Cercam os operários. Axion entra no meio da roda,
afastando Granázio e o supervisor, pedindo-lhes que se
acalmem.

— Abaixem as ferramentas e retornem aos seus lugares!


— grita Dário, próximo à entrada oeste.

Granázio desafia:

— Deixem nossas famílias viver em paz! O que você faria


se sequestrassem sua filha e a forçassem a trabalhar
contra a vontade?

Dário ergue seu rosto prateado e olha para Jasão lá no


alto. O guardião de ouro cruza os braços. Dário sabe o
que isso significa. Estica seu braço prateado e faz um
sinal com dois dedos da mão direita. Um guardião de
bronze aponta um lança-chamas contra Granázio e
dispara.

Axion sente o calor do fogo passar muito perto. Desvia


para não ser atingido.

O fogo arde na pele e nas engrenagens do corpo de


Granázio. Ele rola no chão, urrando de dor. Ao notar
alguns operários se inclinando para ajudar Granázio, o
supervisor de rosto queimado alerta:

— Se o ajudarem, acabarão como ele!

Os operários se afastam de Granázio, tomados pelo


medo. Não querem acabar queimados pela Guarda. Não
querem perder seus empregos. Mas também não querem
aceitar a injustiça contra Granázio, que estava apenas
defendendo sua filha.

O guardião de bronze solta o gatilho do lança-chamas.


Aponta para as pessoas ao redor, para que ninguém se
aproxime.

Granázio ainda se mexe no chão, lutando contra o fogo.


A poucos metros, sua filha cobre o rosto com as duas
mãos, chorando por presenciar o que estão fazendo com
seu pai.

Axion corre até o setor de estofamentos. Encontra uma


pilha de tecidos para bancos de automóveis. Retira uma
enorme peça de couro e corre pelo caminho de volta.
Joga o pedaço de couro sobre Granázio. O fogo se
extingue.

— O que você está fazendo, Axion? — pergunta Dário, já


habituado a estranhar as ações do guardião de ferro.

— Eu... — “Pensa, Axion, pensa...” — Estou preparando


para levar o prisioneiro... para a Sede da Guarda... Não
daria para levar se ele estivesse pegando fogo, não é?

Dário sabe que é mentira. Mas é uma mentira


conveniente. De certa forma, quando Axion apagou o
fogo, Dário sentiu um alívio em sua consciência.

A fábrica retorna a uma estranha normalidade. A A. R. H.


anuncia que Granázio foi descartado. Sua filha é
transferida para o posto de lubrificadora. Um jovem
rapaz é colocado para trabalhar na modelagem de ferro
quente. As máquinas funcionam, apressadas. Metas
precisam ser cumpridas.

***

— Dário, temos que levá-lo ao hospital.

— Axion, para com essa mania de levar rebeldes ao


hospital. Ele vai para a Sede da Guarda. Esse homem
está preso.

— Ele não vai viver para chegar lá — diz Axion.


Granázio, enrolado sob a manta de couro, pouco se
mexe. Pouco respira. Dário dá razão a Axion. Aquele
homem precisa de um médico. Urgentemente. Dirigem-
se para o hospital, levando Granázio em uma viatura da
Guarda. Os gemidos de dor que seguem o balançar do
carro confirmam que o operário ainda está vivo.

No hospital, enquanto Dário tira Granázio da viatura,


Axion corre para roubar uma pulseira vermelha no setor
de triagem de pacientes. Porém, um brilho dourado
anuncia a presença do diretor do hospital.

— Desta vez, não, encrenqueiro — a voz de Paeon é


calma e firme. — Temos regras a cumprir neste hospital.

— Temos um paciente que vai morrer se não for atendido


logo — pontua Axion, ignorando Paeon e ainda
procurando uma pulseira vermelha.

Paeon olha para a entrada do hospital. Vê Dário entrar no


salão carregando um homem de ferro com o braço
apoiado sobre seu pescoço, pernas arrastando no chão.

O salão está lotado. Homens e mulheres de ferro e de


bronze, com pulseiras verdes em seus braços, aguardam
atendimento. São, na maioria, operários das várias
fábricas da cidade, que também tiveram o ritmo de
trabalho aumentado naquele dia. Alguns têm braços
doloridos por causa dos movimentos repetitivos, outros
perderam a audição por trabalharem perto de máquinas
barulhentas, outros haviam respirado o ar quente e sujo
de fornalhas, outros se feriram com ferramentas ou se
intoxicaram com produtos químicos.

— Ele vai esperar na fila — determina Paeon.

— Não será preciso — Dário acomoda o operário em uma


cadeira, tocando o pescoço queimado com a ponta dos
dedos. — Ele está morto.
51

C alina está dividida. Por u m lado, está contente, pois


há muito tempo não via o Templo de Nomos tão
cheio de gente. São operários de todas as fábricas. Mas
eles vêm trazer a notícia da morte de Granázio. Não é
motivo para contentamento.

Já não é segredo que Hormes e Jan Cândhido passam as


noites no templo. O endereço fixo faz com que seja fácil
para os operários encontrá-los.

Os operários têm muito a contar.

Os guardiões os escoltaram até as fábricas pela manhã.


Os patrões foram muito duros no controle de tempo de
cada tarefa. Pessoas cada vez mais jovens estão sendo
recrutadas para trabalhar nas fábricas. Granázio morreu
tentando proteger a filha.

“Onde foi que eu me meti?”, pensa Hormes, “Granázio


está morto por causa de coisas que eu fiz... Não posso
continuar com isso...”

Jan Cândhido também sente o peso da morte de


Granázio. É nítido. Tem os olhos fixos no portão do
templo. Parece mirar fixamente o Obelisco de Cronos,
longe, lá fora, na ágora. Escuta muito. Fala pouco.
Os operários discutem o que fazer. Falam sem parar, um
após o outro:

— Agora parece que todos estamos sob a mesma


ameaça.

— Se enfrentarmos os patrões, teremos o mesmo fim de


Granázio.

— Não dá mais para aguentar o ritmo da fábrica.


Precisamos de descanso. Um novo dia de folga.

Jan Cândhido escuta com a habitual serenidade. Por fim,


diz:

— Acalmem-se. Vocês não sabiam, mas sempre


estiveram sob essa ameaça. É que nunca ousaram
desafiar aqueles que vocês veem como autoridades.

— E o que vamos fazer?

As vozes se emaranham. Hormes não escuta mais.


Apenas nota que alguém se aproxima, saindo da
multidão, para uma conversa franca com ele.

— Eu não queria que as coisas chegassem a esse ponto,


Hormes — diz Epimoni. — Você vê agora quais são as
consequências de seus atos? Aquele homem na fábrica
SYM morreu. Poderia ter sido você.

— Pai...
— Por favor, filho, pare com isso agora mesmo! Outras
pessoas podem se machucar. Você está lidando com
forças que não conhece. Volte para casa — a voz de
Epimoni solavanca.

— Pai...

— Com todo o respeito, senhor Epimoni... — interrompe


Jan Cândhido.

— Espere, Jan — Hormes também sabe interromper. —


Esse assunto é meu.

Jan Cândhido abaixa a cabeça e recua um passo.

— Pai — continua Hormes –, estou fazendo isso porque


quero passar mais tempo com você. E todas essas
pessoas aqui desejam o mesmo: mais tempo para passar
com suas famílias.

Hormes não percebe, mas as vozes dos operários


silenciam rapidamente. A voz do inventor prateado é a
única que se escuta ecoar no templo:

— Eu vi como a fábrica funciona. As pessoas saem de lá


doentes demais ou velhas demais para viver a vida!
Todos temos familiares nos esperando em casa, e quase
nenhum tempo nos sobra. Eu... eu... eu não queria que
Granázio morresse. Não quero que ninguém morra por
causa disso...

Jan Cândhido aguarda.


Hormes treme. Inspira.

— Mas eu também não quero desistir. Não quero viver


preso a esses braceletes que controlam o nosso tempo...
não quero que as metas das fábricas sejam as únicas
metas das nossas vidas! Por favor, entenda, pai...

Palmas metálicas estalam no meio da multidão. Não são


solitárias. Aos poucos, se multiplicam. Em poucos
instantes, todos no templo saúdam Hormes. Assoviam.
Aplaudem mais forte.

A passos suaves, Epimoni se aproxima do filho. Tem


medo de sorrir, mas sorri. Oferece a Hormes um abraço
que o jovem esperava receber há alguns anos.

Os aplausos são ainda mais fortes. O barulho é


inadequado num templo como aquele. Mas Calina não se
importa com a falta de modos dos operários. Ela olha
para a estátua de Nomos, que segura um raio,
incansável, pedindo em pensamento que o deus não se
irrite com o barulho. A alegria é bem-vinda.

— É muito perigoso, filho. Tenha cuidado, tá?

As palmas abrandam. O silêncio se faz completo por um


longo instante. Hormes, enfim, responde:

— Tá...

Hormes se separa, devagar, de seu pai. Único homem de


prata ali, ele caminha para o meio da multidão de ferro e
bronze. Jan Cândhido segue seus passos.
— Vamos nos organizar — diz Hormes. — Precisamos ter
claro quais são os nossos objetivos.

Jan Cândhido apenas assiste. Não se importa que Hormes


o tenha esquecido por alguns instantes. Algo se acendeu
na alma do inventor. Ele quer mudar as coisas porque é
importante para ele, porque ele consegue se colocar no
lugar das pessoas com as mesmas dificuldades.

Após alguns minutos de discussão, um operário de ferro


conclui:

— Precisamos descansar um pouco, todos os dias. Que


tal se tivéssemos metade do dia para descansar?

— Não sobra muito, se dormirmos por oito horas — diz


outro.

— Das dezesseis horas que ficamos acordados, metade


deveria ser para trabalharmos e a outra metade para
fazermos o que quiséssemos.

— Essa era a ideia de Jan Cândhido. Agora, ela faz


sentido, não é? — pontua Hormes, encontrando um
sorriso cúmplice em Jan Cândhido. — Então, vamos
defender a proposta dos três oitos: oito horas para
trabalhar, oito horas para descansar, oito horas para
fazer o que quiser.

— Será que vamos conseguir? — pergunta um operário.

— Não sei — diz Hormes. — Mas agora temos um


objetivo em comum.
52

R aia o dia. Os guardiões fecharam as ruas. Preparam


a escolta dos trabalhadores até as fábricas. Mas há
algo de diferente. Os operários não estão reclamando.
Não provocam brigas com a Guarda. Sorriem
discretamente.

A rua do Mercado de Feno é uma via obrigatória para


todos os que estão a caminho das fábricas. Diferente de
outros dias, em que vários mercadores montavam suas
tendas ali, hoje há apenas uma. Perto dela, os operários
param.

Os primeiros a chegar são operários da fábrica SYM. Em


seguida, chegam os empregados da fábrica de tecidos
Cotonifício. Depois vêm os empregados da siderúrgica,
das fábricas de borracha, de componentes eletrônicos,
da olaria, do porto... Não demora para que o Mercado de
Feno pareça um mar de metais pouco nobres. A
coloração marrom se espalha pela rua que dá acesso às
fábricas. Todos conversam discretamente, especulando
sobre o que vai acontecer ali.

Os guardiões de ferro e bronze, sem entender o que está


acontecendo, cercam as saídas, deixando apenas uma
pequena passagem para que os operários possam seguir
até as fábricas. Guardiões de prata, por trás do cerco,
chamam os operários para prosseguirem pelo caminho
que os guardiões deixaram aberto. Mas são ignorados.
Quase todos os operários permanecem frente à única
tenda do Mercado de Feno. Aglomeram-se mais e mais.

A pequena tenda se abre. Dela saem Hormes e Jan


Cândhido. O ex-marinheiro carrega seu megafone na
mão esquerda, abaixada, ao lado da perna.

Hyp, sob uma túnica marrom, se mistura à multidão.


Quer ver de perto o que está para acontecer.

Todos apontam para Hormes, porque é fácil encontrar o


engenheiro de prata em meio a tanta gente de ferro e
bronze.

— Jan Cândhido está ao lado dele — apontam.

Todos esperam que Jan Cândhido faça um grande


discurso.

Mas ele não faz.

Passa o megafone a Hormes.

A multidão marrom faz silêncio.

Hormes olha no fundo dos olhos de Jan Cândhido. Ele se


vira e toca a ponta do dedo indicador no peito do rapaz:

— Sim, agora é a sua vez.

Hormes expira. Olha para a multidão que lota a rua do


Mercado de Feno. Inspira. Ajeita o megafone diante do
rosto e põe-se a falar.

É hoje! É neste dia primeiro de maio de 1919 que vamos


começar, pela força de nossa união, a organizar nosso
dia em três oitos. Oito horas para trabalhar, oito para
descansar, e oito para fazermos o que quisermos!

Jan Cândhido aplaude. Amigos de Hormes aplaudem.


Logo os aplausos se espalham. As penúrias vividas
alimentam o interesse por aquele discurso.

Não é somente isso. Descansaremos aos domingos.


Todos os domingos. Faremos isso porque não é possível
trabalhar sem descansar. Aqueles que não descansam
padecem de terríveis doenças. Tornam-se recursos
humanos descartados.

Precisamos de tempo para fazer o que quisermos, por


nós mesmos; para construir algo para nós mesmos; para
passar tempo com nossas famílias. Seja como for, vamos
usufruir os frutos de nosso trabalho.

Vamos, ainda, proteger as pessoas que precisam de


atenção. Até ontem, tínhamos que abandonar os que
amamos à própria sorte quando ficavam doentes. Hoje
vamos fazer diferente. Poderemos usar as horas livres
para cuidar das pessoas que amamos. Vamos inaugurar
um novo tempo. O tempo dividido em três oitos: oito
horas para trabalhar, oito horas para descansar, oito
horas para fazer o que quisermos!

A multidão aplaude, em êxtase.


— Três oitos! Três oitos! Três oitos! — Gritam as pessoas
de metal pouco nobre. Aplaudem. Vibram. Pulam. A terra
treme. Gritam mais forte. — Três oitos! Três oitos! Três
oitos!

A terra treme.

— Guardem suas posições. Não deixem ninguém sair do


Mercado de Feno. — ordenam os guardiões de prata aos
seus subordinados.

Axion está entre os guardiões de ferro que evitam a saída


dos operários. Ele está de braços dados aos seus
companheiros à esquerda e à direita, formando uma
corrente humana que fecha as passagens.

A terra treme.

Algo grande se quebra na fábrica SYM. A parede da face


leste da fábrica desaba e uma enorme nuvem de poeira
se levanta, cobrindo a rodovia que liga o parque
industrial ao porto. A terra treme.

— Três oitos! Três oitos! Três oitos!

— O que é aquilo? — pergunta Hormes.

Jan Cândhido olha para a nuvem de poeira ao lado da


fábrica. Balança a cabeça, negativamente, e ergue os
ombros:

— Não sei.
A silhueta de um homem sai da fábrica e atravessa a
nuvem de poeira. É enorme. Muito maior do que os
muros. A terra treme. É maior do que as poucas árvores
secas que ladeiam a rua. E ele ainda está com as mãos
apoiadas no chão.

O homem gigante apoia a mão esquerda sobre o que


sobrou da face leste da fábrica. Seus enormes olhos
brilham como faróis de automóvel. Faróis enormes. Agora
se sabe que a enorme silhueta está olhando para o
Mercado de Feno. Ela se ergue. Desapoia a mão direita
do chão. Arrisca um passo adiante. A terra treme.

Os operários viram-se para a fábrica. Não gritam mais.


Tentam decifrar o que é aquele homem gigante. O que
ele quer? Nunca se viu nada igual.

O segundo passo do gigante é trêmulo, como um bebê


que ainda não consegue se equilibrar. O gigante cai,
espalhando poeira sobre a rodovia. A terra se abala por
um longo momento. Um grito de dor e raiva sai de dentro
do gigante:

— HORMES!

Os operários se agitam.

Hormes paralisa. “É um mekha? É muito maior do que eu


imaginei. Quem o está pilotando?”

O gigante se levanta novamente, apoiando as mãos


sobre o chão. Mas não fica em pé. Engatinha. Sai da
nuvem de poeira, sacudindo a terra a cada movimento. O
gigante é feito de aço polido. Um cano de escapamento
em suas costas expele uma enorme quantidade de
fumaça de diesel. Tem uma couraça incompleta,
parecendo um automóvel inacabado. Muitas de suas
peças e engrenagens estão expostas nos braços, nas
pernas, no tronco. Peças fabricadas pelos operários da
SYM.

— HORMES! — É a voz de Theceo, saindo potente de um


alto-falante na cabeça do gigante e ecoando por toda
Nova Ascra. — Veja só o que conseguimos construir sem
a sua ajuda. Este é o Mekha 01. Você não viu o projeto
dele. É algo especial, que só mostrei para pessoas
merecedoras da minha confiança.

— Você vai usar esse mekha para nos atacar, Theceo? —


pergunta Hormes ao megafone. — Não percebe que isso
já passou dos limites?

— Isso tudo é culpa sua! — esbraveja Theceo.

O gigante engatinha, rumo ao Mercado de Feno. As


pessoas de ferro e bronze não sabem o que fazer.
Algumas se aproximam de Hormes para protegê-lo e
ajudá-lo a escapar do gigante de Theceo. Outras fogem,
preocupadas em salvar a própria vida. Mas não dá para ir
longe. Os guardiões cercam todas as saídas e não
deixam os operários saírem do Mercado de Feno.

Desengonçado, o enorme robô se sustenta sobre os


joelhos e a mão esquerda, apontando a mão direita para
o Mercado de Feno.

— Você está destruindo as fábricas, iludindo essas


pessoas — grita Theceo pelo alto-falante do robô. — Elas
nunca poderão trabalhar menos tempo! Elas precisam
produzir o suficiente para ganhar dinheiro e sobreviver!
Operários, não acreditem em Hormes! Voltem ao
trabalho!

— Essas pessoas dão todo o tempo e toda a saúde que


têm para as fábricas, Theceo! O que elas têm recebido
em troca, mal dá para viver — diz Hormes no megafone.
— Você tem, sim, condições de pagar salários melhores e
exigir menos tempo de trabalho!

— O que você está fazendo é roubo, entendeu? Roubo! —


vocifera Theceo pelo alto-falante.

— Como pode falar em roubo o homem que usa um robô


feito com a tecnologia que eu inventei? — retruca
Hormes. — Você está usando a minha tecnologia para
ferir pessoas! Eu não aceito isso!

— Já chega! Este mekha foi criado na fábrica! Portanto, é


da fábrica! E a fábrica é minha! E o tempo dos
empregados é meu também! Pare de me roubar!

A mão direita do robô, apontada para o mercado,


desprende-se do braço e cai no chão, fazendo um
enorme estrondo. Isso põe fim à discussão. Engrenagens
se movem e convertem o pulso do robô em um canhão.
Ouve-se um zumbido. O interior do canhão se acende.

Todos no Mercado de Feno correm e empurram os


guardiões que bloqueiam as saídas. Hormes e Jan
Cândhido procuram sair da mira do canhão.

— Ele vai atirar! — alguém grita.

O canhão estrondeia. O tiro, parecendo um cometa de


fogo, corre por cima do Mercado de Feno e incendeia
algumas casas de Ble-Kolara.

— Não! Minha casa! — Axion vê o rastro de fumaça


deixado pelo tiro do mekha. Ele calcula rapidamente a
trajetória do disparo e, mesmo sem conseguir ver dali as
casas atingidas, sabe quais foram. “Minha família! Será
que tinha alguém em casa?”. Ele tem que manter a
postura e impedir os operários de fugirem do Mercado de
Feno. Olha ao redor. Alguns colegas de ferro também
mantêm os olhos fixos na fumaça que vem de Ble-Kolara.
Axion não é o único guardião de ferro que mora por ali.
“Encurralando os operários assim, eles serão alvo fácil
para o robô gigante”, pensa. “Mas essas são as nossas
ordens. Por quê?”. Axion logo chega a uma resposta às
suas ponderações, mas se recusa a acreditar nela. “Meus
deuses...”.

Os braços de Axion perdem a força. Solta-se de seus


colegas. Deixa passar um casal. Deixa passar crianças.
Deixa passar mais pessoas.
— Axion! Mantenha a formação! — grita Dário. — Não
deixe ninguém sair!

Dário corre. Ao se aproximar, puxa Axion pelos braços,


para que fique em postura adequada para receber a
reprimenda.

— O robô destruiu minha casa, senhor... — apesar da fala


formal, Axion busca encontrar o amigo que existia dentro
do guardião de prata. — Não sei se minha família está
bem...

— Isso não é problema nosso, soldado — responde Dário.


— Você recebeu suas ordens. Cumpra-as.

Axion cai de joelhos sobre os paralelepípedos da rua.

— Não posso. Estamos segurando os operários para que


sejam atingidos pelo canhão.

Ouve-se outro zumbido. Um novo cometa de fogo voa por


cima da multidão. Voa bem alto. Alcança e queima casas
de Palami, no morro atrás do bairro de Ble-Kolara.

“A ameaça era mesmo verdade”, pensa Hyp, escondida


sob a túnica. Ela corre pela parede de uma casa,
deixando sua túnica cair, salta e alcança o telhado da
casa vizinha. Além da sua roupa de Anansi, ela ostenta
novas pulseiras e tornozeleiras prateadas. São as
algemas que ganhara na noite em que foi levada para a
Sede da Guarda. Com a ajuda de amigos, ela conseguiu
quebrar as correntes, e agora tem seus movimentos de
volta. Elos das correntes rompidas ficaram pendurados
em cada pulseira da algema, tiritando com os
movimentos de Hyp.

Do alto da casa, ela avista o incêndio em Palami. Vê que


a casa de sua mãe não foi atingida, mas as casas de
vários de seus amigos estão sendo devoradas pelas
chamas.

— Uma Anansi! — grita um guardião de ferro.

— Ignore-a! Mantenha sua posição! — ordena Dário. —


Não deixem os operários saírem!

Dário volta a cuidar de Axion. Segura o guardião de ferro


com os dois braços e ergue-o com força. Os pés do
subordinado não tocam o chão.

— Eu tentei defendê-lo de todas as maneiras que pude,


Axion. Mas Jasão tinha razão. Você é um traidor. Você
está preso!

Axion não pensa. Dobra as pernas, toma impulso e chuta


o peito do guardião de prata, empurrando-o para longe.
Escapando dos braços de Dário, ele cai e rola pelo chão.
Corre e se mistura à multidão. Andar em meio aos
operários de ferro, todos em pânico, lhe garante uma
perfeita camuflagem.

— Que decepção, velho amigo — diz Dário para si


mesmo. — Arrr... Jasão vai me matar...
***

Enquanto isso, de sua cabine na cabeça do mekha,


Theceo grita para os engenheiros:

— Façam essa geringonça funcionar direito! A mira está


horrível!

Prometeus, Dédalo e Epimeteu, amarrados por cordões


de segurança dentro do tórax do mekha, se apressam em
corrigir o atrito das engrenagens e calibrar as correias de
transmissão de movimento.

— Está tudo pronto, senhor. A mira está precisa, agora.


— Prometeus exibe mais convicção em sua voz do que
tem em sua alma.

— Já era hora — reclama Theceo, enquanto ajusta a mira,


apontando para Hormes. — Eu pensava que você
alcançaria a grandeza, Hormes. É uma pena. Você era
um ótimo engenheiro.

O zumbido zune. O canhão se acende.

A bola de fogo agora vem em direção à multidão. As


pessoas se espalham.

Hyp vê o canhão apontado para Hormes e corre na


direção do inventor de prata, saltando de um telhado a
outro. Mas está muito longe.

Hormes recua um passo, mas aceita que será atingido.


Jan Cândhido avança dois passos, veloz, e empurra
Hormes. O impacto o arremessa para trás.

— JAN!

Hormes corre em direção ao amigo. Ajoelha-se. Pega-o do


chão.

O corpo de Jan Cândhido está muito queimado. Ele não


consegue falar. Olha firmemente para Hormes e toca a
ponta do seu dedo indicador no peito do rapaz. Fica
assim até que ele entenda a mensagem. “Sim, agora é a
sua vez”. Respira com dificuldade. Ofega. Fecha os olhos.
Pela primeira vez, não resiste. Hormes sente o corpo do
amigo amolecer em seus braços.

— Jan Cândhido, não morre...

Hormes pressiona o dedo contra o pescoço de Jan


Cândhido. Não sente nada. Encosta a cabeça sobre o
peito do velho. Não escuta o coração. “O que vou fazer
agora?”

Ao redor de Hormes, tudo está queimado. O chão,


carbonizado, arde com os focos de incêndio ainda
acesos. As poucas plantas ao redor estão em chamas.
Algumas casas tiveram suas paredes queimadas. À sua
frente, pessoas pedem ajuda aos parentes e amigos mais
próximos, com braços e pernas terrivelmente queimados.

Hormes permanece no mundo dos vivos e Jan Cândhido


agora vai para o mundo dos mortos. Tudo porque
resolveram enfrentar forças muito mais fortes do que
eles. É loucura. Aquele é o preço da loucura. Quantos
mais precisam morrer?

As engrenagens do canhão rangem. O zumbido zune.


Hormes vira o rosto. Vê todas as peças do interior do
canhão, que novamente se acende. Lança uma nova bola
de fogo.

Hyp corre para ajudar Hormes, mas o tempo está contra


ela.

Instintivamente, Hormes solta o corpo de Jan Cândhido e


cruza os braços em frente ao rosto. Sente o calor bater
abruptamente. Sente-se arremessado para trás. E não vê
mais nada.
53

A xion atravessa a multidão de trabalhadores de ferro


e de bronze. Muitos se assustam e abrem espaço, ao
verem um guardião de ferro entre eles. Pensam que o
guardião está procurando alguém para prender.

Ele está, sim, procurando alguém, mas não para prender.


Ele procura seus pais, Sísifo e Arete, e seu irmão Oniro.
Sua esperança é de que ninguém estivesse em casa
quando ela foi destruída. Mas não é fácil encontrar
alguém ali. Todos estão em pânico, pressionados pelos
guardiões e ao alcance da mira do mekha de Theceo.

O canhão fumegante do mekha se ergue. Procura um


alvo. Mais um tiro virá, com certeza. Mais pessoas
perderão suas casas. Ou, então, serão as pessoas o alvo
do canhão. Ao redor do Mercado de Feno, os guardiões
ainda tentam evitar que os operários escapem ao
alcance de Theceo.

— Voltem ao trabalho, agora mesmo — diz Theceo pelos


alto-falantes do robô, com falsa serenidade. — Pensem
em seus empregos. Vocês não precisam ter o mesmo
destino que seus líderes loucos.

Entre os operários, as vozes se multiplicam:


— Jan Cândhido morreu? E o que aconteceu com
Hormes?

— Jan Cândhido e Hormes morreram?

— Jan Cândhido e Hormes morreram! Não! Não acredito!

— O que vamos fazer agora?

Axion confere suas armas. Tem apenas uma boleadeira.


Não pensa. Gira a boleadeira e a arremessa contra o
canhão do mekha.

A boleadeira voa, certeira. Nem Axion acreditava que ela


chegaria lá. Mas chegou. Ela some dentro cano do
canhão.

Nada acontece.

Theceo tem o olhar atento sobre a multidão. Vê de onde


veio aquela boleadeira. Ri.

— Isso é tudo o que você tem? Algumas pessoas não


surpreendem mesmo, não é? Lembro de você, guardião
de ferro. Eu já sabia que você era um traidor — a voz de
Theceo ecoa em Ble-Kolara.

Os guardiões ao redor do Mercado de Feno agora sabem


onde Axion está. A fala de Theceo confirma os boatos
que há algum tempo corriam pela Sede da Guarda: Axion
é mesmo um traidor.

Theceo ajusta a mira contra Axion.


As engrenagens do canhão rangem. O zumbido zune. As
engrenagens rangem mais. O zumbido zune. As
engrenagens rangem. Rangem mais. E mais.

O canhão explode, arrebentando o braço direito do


mekha. O robô cai de lado no chão, sacudindo a cabine
de Theceo na cabeça e a dos engenheiros no tórax do
enorme homem metálico. Sem um braço, o mekha não
consegue se reerguer. Ele mexe inutilmente o braço
esquerdo ao ar. Não há nada em que ele possa apoiar
para se levantar.

— ATACAR! — Axion grita a plenos pulmões.

Os operários veem uma boa chance de vencer. O robô


está caído, sem armas, sem chance de atacar. Os muitos
operários formam uma furiosa onda marrom, rumo ao
mekha. A multidão, inteiramente voltada para a mesma
direção, forma uma torrente mais forte do que a Guarda
pode suportar.

— Atenção, guardiões! Nova prioridade! Protejam


Theceo! — determina Jasão.

Os guardiões enfraquecem os bloqueios nas vias laterais


de Ble-Kolara e correm para fortalecer o bloqueio no
caminho para o mekha. Os operários se espalham,
buscando contornar os guardiões. Theceo reclama pelos
alto-falantes:

— Não, não! Guardiões idiotas! Cerquem os operários!


Enquanto operários e guardiões se enfrentam, Jasão
alcança o mekha. Ele escala a cabeça do gigante.
Encontra uma fenda e força-a a abrir. Poucas vezes um
guardião de ouro exibia sua força em público. É o caso,
agora. Jasão, forçando a fenda na cabeça do gigante, faz
o metal estalar. Parafusos arrebentam. A cabine de
Theceo se abre.

— Desculpe, senhor, mas é meu dever garantir sua


segurança, mesmo quando não é isso o que o senhor
quer — afirma Jasão, arrancando Theceo da cadeira e
carregando-o por cima do corpo do gigante.

Theceo protesta por estar sendo levado contra sua


vontade. Jasão ignora. Em seguida, o guardião de outro
escuta batidas vindas de dentro do tórax do mekha.

— E quanto a nós? — reclama Prometeus em nome dos


engenheiros presos ali.

— Facilitem o resgate. Ele já está a caminho — responde


Jasão. Virando-se para os guardiões de prata, ele grita: —
Atenção, há mais pessoas a resgatar aqui!

Dário e outros dois guardiões de prata se aproximam


rapidamente. Atravessam a multidão com fúria,
afastando-os, e depois entrando pelo cerco de guardiões
de bronze e ferro formado ao redor do mekha.

Com a ajuda dos outros dois guardiões de prata, Dário


abre a cabine. Eles retiram os engenheiros de dentro do
gigante. Todos seguem Jasão para dentro da fábrica,
entrando pela enorme abertura que o mekha deixara na
face leste. No caminho, guardiões de ferro os protegem,
desviando e afastando a multidão.

Os operários pressionam os guardiões ao redor do


mekha. Axion, em meio aos operários, é um dos
primeiros a tentar furar o cerco. Precisa enfrentar seus
velhos colegas. É difícil vencer as palavras duras que
eles dizem:

— Você realmente traiu a guarda.

— O castigo de Jasão foi pouco para você, não foi?

Axion escolhe não dar ouvidos aos seus colegas de farda.


Usa os golpes que aprendeu em treinamentos para
tentar passar por eles. Axion cruza sua perna contra um
dos guardiões, passa-lhe uma rasteira e joga-o contra o
chão. Pressiona os ombros do ex-companheiro para que
ele não se levante.

Outro guardião saca uma pistola e aponta para a cabeça


de Axion:

— Solte-o, Axion.

Mas uma ordem superior o contém:

— Recuem imediatamente! — A ordem vem de um


guardião de prata no meio da confusão do Mercado de
Feno. O mekha não precisa mais de proteção. É inútil
conter os operários.
— Dessa vez você deu sorte — diz o guardião com a
pistola na mão.

Axion solta o ex-companheiro que pressionava contra o


chão. Ajuda-o a levantar, segurando-o pelo antebraço,
como os guardiões costumam fazer. Encara-os.

— Você fez sua escolha, Axion. Espero que saiba o que


está fazendo.

Axion não sabe. Mas está fazendo. Espera os guardiões


se afastarem. Vira-se para os operários e grita:

— Vamos desmontar o monstro!

Os operários sacam ferramentas dos bolsos e começam a


desparafusar as peças do mekha. Desconstroem a maior
máquina que ajudaram a fabricar. Em meio aos sorrisos e
gritos de vitória, Axion se lembra de que ainda não
resolveu tudo. Ele precisa encontrar seus pais e seu
irmão. Eles estavam em casa quando o disparo a atingiu?

***

Axion escala até a cabeça do mekha, para poder ver o


que havia sido atingido. Ele vê fumaça e fogo nos quatro
lugares alvejados por Theceo.

O quarto e o terceiro tiros foram dados bem próximos um


do outro. Eles atingiram Hormes e Jan Cândhido, no
Mercado de Feno. Há pessoas por ali, apagando o fogo e
prestando socorro aos feridos. O segundo tiro atingiu
Palami. O primeiro tiro atingiu a casa de Axion. Alguns
vizinhos tentam apagar as chamas.

Axion desce do mekha e corre em direção à sua casa.


Não é fácil atravessar a multidão ainda aterrorizada no
Mercado de Feno. Por outro lado, a Guarda havia se
dispersado. Após atravessar o mar de operários, o
caminho estará livre.

Sentindo um sopro de esperança, Axion pergunta pelos


seus pais e pelo irmão a qualquer um no caminho. Não é
difícil encontrar pessoas que saibam quem eles são. Sua
mãe, Arete, é conhecida por ter ajudado muitas pessoas
no hospital. Seu pai, Sísifo, é conhecido por sua simpatia
ao tentar vender cupons que ninguém quer comprar.
Oniro, seu irmão, embora já tivesse arrumado emprego,
é conhecido por ser “aquele vagabundo que sonha em
ser artista”.

— O seu irmão não ficou aqui. Eu o vi descer a rua rumo


à fábrica — informa uma mulher que socorria a filha, cujo
braço havia sido gravemente queimado. — Ele seguiu
outros operários que também não queriam “perder
tempo” com Hormes e Jan Cândhido.

Axion segue, correndo, para a entrada oeste da fábrica


SYM. Lá, encontra Oniro encostado em uma parede,
conversando com outros operários que não participaram
da agitação no Mercado de Feno.

— Oniro! Que bom que está aqui! Você está bem?


Oniro estranha a alegria do irmão. “Agora o Axion quer
saber se eu estou bem? Será que ele bateu a cabeça?”.
De qualquer modo, a julgar pela sujeira em sua armadura
e pela fala ofegante, Axion devia ter presenciado o que
quer que tivesse acontecido no Mercado de Feno. Oniro
não viu nada do confronto, pois permanecera entre os
muros da entrada oeste das indústrias SYM.

— Que bagunça foi essa que aconteceu no Mercado de


Feno? Senti vários terremotos — pergunta Oniro. — Esses
protestos estão ficando cada vez mais barulhentos! Ouvi
até tiros de canhão!

— Um robô gigante atacou as pessoas que faziam o


protesto — explica Axion. — Achei que você estaria lá.

— Tá louco, Axion? Eu não posso perder esse emprego.


Nem posso me dar ao luxo de ser atacado por um robô
gigante, se é que isso aconteceu mesmo. Temos que
sustentar os nossos pais, lembra?

É verdade. Oniro, que antes não queria arrumar trabalho,


agora está muito preocupado em ganhar dinheiro. Não é
mais o irmão sonhador. Preocupa-se apenas em
sustentar a família. Esse é o papel de Axion também.

Porém, depois de trair a guarda publicamente, Axion


certamente será descartado. Deve contar que ele perdeu
o trabalho como guardião? Melhor não. Agora não. É
melhor focar no que é importante.

— O robô queimou a nossa casa, Oniro.


— O quê?

— É por isso que eu queria vê-lo. Precisava saber se você


estava vivo. Agora, preciso encontrar os nossos pais. —
diz Axion.

— Meus deuses...

— Eles estavam em casa hoje?

— Não — Oniro sente um alívio ao se lembrar de ter visto


os pais saindo de casa pela manhã. — Eles foram para o
tal protesto. Eles foram atacados pelo robô?

— Não sei — responde Axion.

Oniro ainda não acredita naquela história. Robô gigante?


Destruiu a sua casa?

— Essa história não faz sentido, Axion. Onde estão os


nossos pais?

— É isso o que eu quero descobrir.

***

Axion atravessa Ble-Kolara. Não há mais guardiões


bloqueando as ruas. Alguns operários voltam para suas
casas carregando feridos. Outros dizem que é melhor
voltar ao trabalho, mas não sabem se as fábricas vão
funcionar naquele dia.
— Não sobrou nada... — Diz ele, vendo ruínas negras,
tomadas de cinzas e brasas, no terreno onde morava. Em
poucos instantes, lembra-se de tudo o que vivera ali.
Axion percebe sinais de que os vizinhos lutaram contra o
fogo, para evitar que se alastrasse para as casas deles.
Mas sua família precisará de uma nova casa.

— Você é o filho da Arete Nike, não é? — pergunta uma


vizinha de corpo curvado, vestido florido, cabelos
brancos e braços e pernas metálicos que rangem em
demasia.

— Sou sim — responde Axion.

— Eu lembro de você bem pequenininho... — diz a


vizinha.

— Errr... que bom... — Com licença, eu preciso encontrar


meus pais.

— Eu vi os seus pais!

— Viu? Para onde eles foram?

— Eles foram para lá — a vizinha aponta para o fim da


rua. — Estavam ajudando a carregar o corpo de um
homem de prata. Acho que iam enterrar...

“Estavam carregando o corpo de Hormes”, pensa Axion.

— Tinha uma moça estranha ajudando eles. — continua a


vizinha, parecendo adivinhar os pensamentos de Axion.
— Moça? Que moça? Sabe o nome dela?

— Não — responde a vizinha. — Mas ela era muito


estranha, não tinha nada de ferro nela. Ela nunca deve
ter trabalhado na vida.

Axion suspira. Em Ble-Kolara, realmente, seria estranho


ver alguém sem nenhuma parte metálica no corpo.
Então...

— Ela tinha os cabelos grandes assim? — Axion gesticula


como se desenhasse um globo enorme ao redor da sua
cabeça.

— Tinha, sim!

— E pele bem escura?

— Tinha, sim! Você a conhece? — pergunta a vizinha.

— Hyp Rap... — conclui Axion.

— O quê?

— Nada. Você viu mais alguma coisa? Eles disseram para


onde estavam indo?

— Sim! Eles foram para... Palami!

— Obrigado! — Axion segura os ombros da vizinha com


as duas mãos, beija-lhe a testa e sai correndo.

Mas ele não está seguro das coisas que aquela velha
senhora falou. Ela podia estar confundindo as coisas.
Sísifo e Arete, ajudados pela Hyp, levando o corpo de
Hormes para Palami? Axion se pergunta se aquela cena
faz sentido.

É bem verdade que a minha mãe não consegue deixar


uma pessoa sem socorro médico. Talvez Hormes ainda
esteja vivo. Mas por que ela não o levou para o hospital?
Porque Paeon recusaria a recebê-lo, já que ele não
poderia pagar as despesas médicas. Não daria para levar
para casa também, pois ela foi incendiada. Mas levar
Hormes para Palami? Qual o sentido? Será que Hyp pediu
para fazerem isso? O que tem em Palami? Lá não tem
médicos, é um lugar infestado de Anansis. Anansis... É,
realmente. Se os Anansis estiverem dispostos a proteger
Hormes, lá ele estará seguro. A Guarda não sobe em
Palami. É isso!

Axion atravessa a segunda ponte sobre o rio que separa


Ble-Kolara de Palami. Cruza a estrada onde a Guarda e os
Anansis se enfrentaram, ao redor dos caminhões com
provisões de Gaia. Entra pelas ruas apertadas, morro
acima. As telhas de metal badalam, aqui e ali, perto de
onde ele corre. Ele se lembra desse som. Há Anansis por
perto. Mas continua avançando. É a única forma de ter
notícias de seus pais. Isso se a vizinha não estivesse
caducando quando lhe passou as informações.

O badalar das telhas acompanha Axion. “Estou sendo


seguido”, pensa, “mas não posso parar agora”. Ele
insiste em correr.
Alguns Anansis correm mais rápido sobre as telhas. Dá
para ouvir. Axion vê quando a sombra de um deles passa
pelo vão entre duas casas. É alguém muito grande.

Jitu desce do telhado, aproveitando o próprio impulso da


descida para chutar o peito de Axion. Jitu rola no chão e
para em pé. Axion capota, sentindo o mundo girar ao seu
redor; braços, pernas e costas soltam faíscas quando
raspam no chão. Finalmente para de rolar. Ainda tonto,
escuta a voz do gigante negro:

— O que você quer aqui, guardião?

Axion não se lembra de ter recebido um golpe tão forte


em toda a sua carreira. Mas se lembra de já ter visto
aquele Anansi. Ele é muito alto. O corpo enorme não faz
dele um lutador lento. Pelo contrário. Os movimentos de
Jitu são muito rápidos e fortes. Axion se lembra do
enorme Anansi, pois o vira no ataque à casa de Theceo
meses atrás.

Jitu ainda aguarda, vigilante. Axion, lutando contra a


tontura, ainda deitado no chão, responde:

— Eu não sou mais guardião.

Jitu não acredita na resposta:

— Você parece um guardião para mim. Você tem


armadura e elmo de guardião. Você estava ajudando
aquele gigante de metal que atirou nas nossas casas,
não estava?
Axion se lembra de segurar os operários para que o
mekha pudesse atirar neles. Ele desertou da Guarda no
meio da história, mas a verdade é que, por algum tempo,
ajudou Theceo e seu robô gigante.

Jitu pisa sobre o peito de Axion para que ele não consiga
se levantar. O ex-guardião, quase sem ar, murmura:

— É complicado...

— O que disse, homem de lata?

— Deixe-me falar com Hyp Rap, por favor... — suplica


Axion, economizando o ar dos pulmões.

— Você conhece a Hyp? — Jitu nunca tinha ouvido um


guardião chamar um Anansi pelo nome. Ele alivia a
pressão do seu pé, para que o guardião caído consiga
falar.

— Conheço. Eu já a ajudei...

***

— Hyp! — grita Jitu, entrando no ferro-velho.

O ferro-velho está cheio de gente. Cheio como nunca


estivera antes. Operários e moradores de Palami se
misturam. Os operários foram ao ferro-velho por variados
motivos. Alguns, porque tiveram suas casas destruídas e
precisam de peças para reconstruí-las; outros, porque
pensam que ali o mekha de Theceo não conseguirá
chegar. Outros, porque ouviram dizer que o corpo de
Hormes havia sido carregado para lá.

Mas todos ajudam em uma tarefa comum, sob a


liderança de Babu. Estão construindo um abrigo, usando
peças de carrocerias de caminhões. Falta pouco para
ficar pronto.

Hyp estava dentro do abrigo. Ela sai ao escutar o


chamado de Jitu. Atravessa as pessoas atarefadas,
caminha até a entrada do ferro-velho e encontra o
amigo.

— Hyp, esse guardião disse que quer falar com você.


Você o conhece?

Hyp olha para Jitu, rindo por dentro. Há uma preocupação


fraterna na voz do amigo. Ela agradece a proteção,
tocando o peito dele. Em seguida, olha para Axion. O ex-
guardião olha para o chão.

— Oi, soldadinho! Pensei que eu não fosse vê-lo hoje...

— Oi Hyp — responde Axion, sem olhar nos olhos dela. —


Preciso de sua ajuda.

— Eu sabia que aquela ajuda toda teria um preço — diz


Hyp, lembrando-se do dia em que Axion levou Penia ao
hospital. — Pelo menos ganhei pulseiras novas, não é? —
Ela agita os braços, fazendo as pulseiras das algemas
balançarem. Os elos das correntes, ainda pendurados,
tiritam como sininhos.
Mas Hyp falou daquele modo apenas para provocar
Axion. Jitu não entendeu do que se tratava, mas
percebeu que Axion havia dito a verdade. O ex-guardião
ainda está constrangido, pois tem que admitir que
ajudou uma criminosa e, ao fim de um maremoto de
eventos insanos, ainda acabou traindo a guarda.

— Não estou aqui para lhe cobrar nada, Hyp.

— Axion ainda nutre esperança de que a relação entre


eles seja “estritamente profissional”, apesar de tudo o
que já aconteceu.

Hyp sorri com um canto da boca e pergunta:

— O que é, então?

— Estou procurando meus pais. Disseram que eles


estavam ajudando a carregar o corpo de Hormes. Quero
saber se estão bem.

— Como eles são?

Axion descreveu sua mãe como uma boa enfermeira e


seu pai como um vendedor de braços quebrados. Hyp
sorri novamente:

— Eu sei onde eles estão.

Hyp conduz Axion pelo ferro-velho, até o abrigo recém-


cons­truído. Lá dentro, ele vê Hormes, desacordado, sobre
uma cama feita de estofamento de automóveis, coberto
por um lençol marrom. O rapaz havia sido trazido até
Palami por Hyp, Arete, Sísisfo e Epimoni. Eles se revezam
nas tarefas de cuidar dele. Polínia, sentada em um
pequeno banco improvisado, olha para o irmão,
esperando que ele acorde. Arete frequentemente confere
os sinais vitais do rapaz.

— Mãe! Pai! — Axion corre e os abraça. Abraça-os muito


forte, soluçando como uma criança de cinco anos que
estava perdida e foi encontrada. — Fiquei muito
preocupado. Que bom que vocês estão bem.

Axion também se alegra por ver que sua mãe está


cuidando de alguém, como fazia quando era enfermeira
no Hospital Central de Nova Ascra. É como se ela tivesse
voltado ao trabalho, depois da doença que a deixou
insensível a tudo o que acontecia ao redor. Vê sua mãe
curada.

Mas Arete ainda está fria. Não parece se importar com o


que Axion falou.

— Estou vendo que a Guarda faz tudo o que Theceo quer.


Agora, estamos sem casa — diz Arete amarga, sem
conseguir disfarçar que aquilo significa uma crítica ao
seu próprio filho também.

— Arete, ele só estava obedecendo ordens — Sísifo


assume a defesa de Axion.

— O preço dessa obediência é alto demais — ela retruca.


— Onde vamos morar agora? Em Palami?
Axion não sabe o que dizer. Tem que admitir que existe,
sim, a possibilidade de eles terem que morar em Palami.
Ele ainda terá que contar que perdeu o emprego que
tinha como guardião e que tudo que a família tem agora
é o dinheiro que Oniro traz trabalhando na fábrica e os
trocados que Sísifo consegue vendendo cupons. Não
conseguirão comprar outra casa em Ble-kolara com esse
dinheiro. Levarão muitos anos até que consigam se
restabelecer.

Axion respira fundo. É melhor dizer agora do que deixar


para depois:

— Mãe, eu...

Hormes tosse.

Arete leva o indicador à boca, pedindo a Axion que se


silencie. Cuida do inventor de prata como se fosse um
herói de guerra.

— Onde... onde estou? — pergunta Hormes.

— Você está no ferro-velho de Palami — responde Arete.

— É um milagre você ter sobrevivido àquele tiro de


canhão — emenda Epimoni. Ele suspira. Alegra-se ao ver
o filho abrir os olhos.

Hormes tosse novamente. Pede um copo de água. Arete


o traz. Hormes não consegue pegar o copo. Sente que
seus braços estão presos sob o lençol. Olha para o
guardião de ferro presente no abrigo.
— Eu estou preso? — pergunta Hormes.

— Não, não está — responde Axion. “Vou precisar contar


para todo mundo, todo o tempo, que eu não sou mais um
guardião?”, pensa.

— Então por que meus braços estão amarrados?

Todos se entreolham. Hormes aguarda uma resposta.


Arete, por hábito da profissão, toma a iniciativa de falar:

— Seus braços não estão presos, Hormes. Eles foram


atingidos pelo canhão.

Arete puxa gentilmente o lençol, deixando à mostra os


braços de Hormes, totalmente queimados e com as
engrenagens de prata muito retorcidas.

Hormes ofega. Testa os movimentos das mãos. Os dedos


se mexem com muita dificuldade, sem obedecê-lo direito.
Os pulsos quase não se movem. Hormes olha para Arete.
Espera dela uma opinião de especialista:

— Eu vou voltar a mexer os braços?

Arete demora poucos segundos para responder. É o


suficiente para Hormes perceber que ela não tem boas
notícias.

— Não, querido, lamento. Vamos fazer curativos em seus


braços, mas não há esperança de eles voltarem ao
normal.
As lágrimas de Hormes vertem, silenciosas. Chora cheio
de culpa, por ter levado adiante o plano de fazer um
protesto na frente da fábrica. Chora a culpa por ter feito
escolhas que levaram à morte de Jan Cândhido e à
destruição de seus próprios braços. Chora porque não
conseguiu a redução da jornada nas fábricas, nem
conseguiu nada do que ele queria.
54

–D eixe-me em paz! Ponha-me no chão! Eu não


estou ferido! — Theceo protesta, carregado sobre
o ombro direito de Jasão, batendo as mãos nas costas do
guardião de ouro.

Jasão aguarda que Dário e outros dois guardiões de


prata, acompanhados dos engenheiros Prometeus,
Dédalo e Epimeteu o alcancem e entrem no elevador. O
ascensorista nunca tinha visto tanta gente ao mesmo
tempo naquela cabine. Fica apertado.

Quando o elevador se põe a subir, Jasão desce Theceo,


cuidadosamente, até que os pés do homem de negócios
toquem o chão. Theceo cambaleia.

O elevador sai pelo teto da fábrica e segue seu rumo até


o topo da torre SYM. Pelo vidro, Theceo vê os operários
desmontando o mekha. Vê as chaminés da fábrica
desativadas. Vê Ble-Kolara e Palami, com algumas casas
pegando fogo.

No último andar, as portas se abrem. Jasão, sem a


costumeira formalidade, entra na sala de Theceo e pede
a todos que o acompanhem.

— Aqui estamos seguros — diz o guardião de ouro.


Mas não é ali que Theceo quer estar. Fora arrastado,
contra sua vontade. Ele olha para cima. Quando não está
sentado, Jasão é muito maior do que ele. Mas isso não o
intimida. Theceo volta a esbravejar:

— Você foi extremamente incompetente, guardião Jasão!


O que você fez para segurar os operários? Nada! Eles
escaparam!

Os guardiões de prata e os engenheiros se afastam,


ficando perto da porta. Pensam em sair. Têm curiosidade
para ficar. Mantêm uma distância segura de Jasão e
Theceo, que ocupam o centro da enorme sala.

Jasão escuta, mas não se retrai. Permanece em pé,


olhando diretamente para Theceo através dos pequenos
buracos em seu capacete. Olha em volta e vê os
guardiões constrangidos com as palavras do empresário.
Vê os engenheiros cochicharem qualquer coisa que
certamente não ajuda a situação da guarda.

Dá um passo à frente e interrompe o discurso de Theceo.

— O que você esperava que eu fizesse, Theceo? — o tom


da voz de Jasão é firme, mas não tão firme quanto o que
ele costuma usar diante de seus subordinados. — Você
se colocou em situação de risco! Você não tem a menor
experiência com armas, usou um canhão enorme e fez
da cidade um caos! Você achou mesmo que aquele robô
iria ajudar?
— Eu fiz mais em trinta minutos do que você em toda a
sua carreira, guardião — esbraveja Theceo. — Admita!
Você perdeu o controle sobre os operários!

Jasão suspira. Se dá por feliz por ter seu rosto coberto


pelo capacete, pois assim Theceo não pode ver sua
expressão constrangida. Mas não se dá por vencido:

— Quem perdeu o controle sobre os operários foi você,


Theceo. Onde eles estão? Eles não estão na sua fábrica,
não é? Como você vai fazer para trazê-los de volta? Não
tente me responsabilizar pelos seus erros! — Jasão sorri
por baixo do capacete, sentindo-se vencedor.

— Preciso mesmo lembrá-lo de como você se tornou um


guardião de ouro? — Theceo tenta enxergar os olhos de
Jasão dentro do capacete. — Quem levou o seu nome a
Cronos? Quem o apresentou ao conselho dos guardiões
de platina? Sem minha ajuda, você não seria nada.

Um vento forte sopra dentro da sala, entrando pelo vidro


quebrado pela aeromoto de Hormes. Faz os papéis sobre
a mesa de Theceo voarem. Os papéis se espalham pela
sala seguindo o vento, em círculos; então pairam no ar,
imóveis.

— Cronos quer me ver. — conclui Theceo, temeroso, ao


ver os papéis flutuando. Ele olha para Jasão: —
Voltaremos a essa conversa mais tarde.

***
— Seu prazo expirou ontem, Theceo. Você não veio falar
comigo.

— Eu precisei terminar o mekha — responde Theceo,


com a voz trêmula, sem a habitual convicção. — Você viu
como ele é poderoso?

— Sim, fiquei impressionado — há uma pitada de ironia


na voz de Cronos. — Ele tem um canhão poderoso.

Theceo mantém sua postura respeitosa, embora no


íntimo esteja comemorando como um garoto que foi
elogiado pelo pai. O empresário não perde a
oportunidade:

— Isso é uma pequena amostra do que podemos fazer,


meu senhor. — A frase de Theceo foi calculada para
tornar discreto o autoelogio. Ele buscava desviar o
pensamento de Cronos. Quem sabe ele se esquecesse ou
perdoasse o prazo descumprido.

Os outros seis homens com mãos de platina estão ali


perto, mas afastados do centro do Belvedere, onde
Theceo e Cronos conversam. Eles percebem que Theceo
tenta ganhar a atenção de Cronos. Jasão, que subiu ao
Belvedere insistindo em proteger Theceo, observa tudo
silenciosamente. É a primeira vez que se vê na presença
de Cronos. Não quer dizer nenhuma besteira.

Cronos fixa os olhos sobre o lado destruído da fábrica e


os vestígios do combate no Mercado de Feno. Chama
Theceo. Ele se aproxima do deus, que permanece
sentado ao centro do Belvedere, com as pernas
cruzadas.

— Mas onde é que você estava com a cabeça quando


resolveu atacar seus próprios operários com o mekha?
Você estragou tudo! — Cronos esbraveja.

— Não, meu senhor, eu não estraguei! Eu não podia


perder o controle! Precisava de uma medida enérgica
contra os operários vagabundos!

Cronos se vira. Aproxima-se. Theceo treme diante do


rosto de Cronos, duas vezes maior do que o o corpo
inteiro do empresário.

— Se você matar os operários, quem vai fabricar novos


mekhas para o Projeto Tifão? Como vai remover Palami
do alto da montanha?

— Meu Deus... — Theceo tenta começar a falar, mas de


repente sente-se flutuar, puxado pela gola do paletó. A
mão invisível de Cronos ergue-o no ar.

— Seu prazo para a remoção de Palami terminou ontem,


Theceo. Eu fui paciente demais.

Cronos abre a boca, para impor a Theceo a pior das


punições.

— Por favor, não! Não me devore! Eu fiz tudo o que


pude! — Theceo balança as pernas desesperadamente;
seus sapatos caem na bocarra de Cronos. — Por favor, eu
preciso de sua ajuda! O Senhor precisa de mim! Juntos,
ainda podemos remover Palami do morro, não é? O que
fazemos com os operários que já se rebelaram?

Theceo sente a língua de Cronos tocar o seu pé. O hálito


ardido lhe entorpece as narinas. Os dentes enormes se
aproximam e Theceo tenta afastá-los com as mãos, mas
o deus é muito mais forte.

— Podemos matar apenas alguns deles? — pergunta


Kalíbono, o dono da siderúrgica, tentando desviar a
atenção de Cronos e salvar Theceo da morte certa.

Cronos retira Theceo da boca.

Jasão quebra seu silêncio e pergunta:

— Devemos matar apenas o líder? o Hormes? Recebi a


informação de que ele ainda está vivo.

Cronos segura Theceo pelo paletó e vira-se para


responder às perguntas. Theceo parece flutuar, de olhos
arregalados e com o paletó repuxado.

— O que quer que façam, não o matem. Criar um mártir


entre eles só piora as coisas. Se o matarmos, as ideias de
Hormes vão se espalhar e ganhar força — afirma Cronos.

— Então o que devemos fazer? — pergunta Theceo,


desejando que o deus nunca mais pare de falar.

Cronos determina:
— Vamos criar neles um trauma. Algo que os faça se
arrependerem de terem tido essa ideia de trabalhar
menos horas.
55

O telhado feito de peças de automóvel remendadas


protege Hormes do sol, mas é praticamente inútil
contra a chuva. Cada gota estala no metal. Uma, duas,
quatro, quinze, trinta... Os estalidos se multiplicam.

Hormes tenta dormir, resistindo ao barulho. Dormir é


como um anestésico. Em seus sonhos, suas mãos ainda
são saudáveis. Ele consegue inventar todo tipo de
máquinas. Máquinas pequenas para divertir Diceosine e
seus irmãos. Máquinas grandes para enfrentar os
mekhas de Theceo. Nos sonhos, Jan Cândhido ainda está
vivo e oferece a Hormes conselhos difíceis de entender —
como sempre fazia.

A água escorre pelas peças do telhado e adentra o abrigo


sem cerimônia. Algumas gotas encontram buracos na
lataria do teto e pingam. Hormes sente uma gota cair em
sua testa. Vira-se, para continuar dormindo. Mas as gotas
encontram outros caminhos. Pingam sobre o joelho de
Hormes. Ele se mexe. Pingam sobre o ombro. Hormes se
vira. A próxima gota, certeira, entra pela orelha do rapaz.
Ele desperta.

Levanta a cabeça. Tenta apoiar a mão sobre a cama, mas


dói. Dói muito. A dor é uma queimadura intensa sobre
estruturas quebradas. Dos seus antebraços até suas
mãos, tudo dói.

Hormes apoia o cotovelo direito sobre a cama, toma


impulso para se sentar. O sol ainda não raiou. A única luz
no abrigo vem do olho do seu velho amigo Lampião,
sentado no chão com a cabeça meio inclinada, como se
tivesse cochilado de olho aberto. Polínia, que havia
trazido Lampião para Palami, dorme em um banco de
carro que, para ela, virou sofá. O pai de Hormes, Epimoni,
está sentado com os braços apoiados sobre os joelhos.

— Oi, filho — diz Epimoni. — Você dormiu por muito


tempo. Quer comer alguma coisa?

— Quero.

De uma bandeja com frutas harmoniosamente


organizadas, Epimoni pega uma maçã. Ele a lava nos
pingos de chuva que entram pelas goteiras e a entrega a
Hormes. Hormes estende os braços, mas não consegue
segurar a maçã. Ela rola e cai sobre a terra molhada.

Epimoni percebe que havia errado. Pega a maçã do chão,


lava-a novamente e a segura perto da boca de Hormes.
O jovem de prata morde. Enquanto mastiga, estende os
braços e abraça o pai, com cuidado para não pressionar
seus antebraços doloridos. Deixa as gotas de chuva
escorrerem pela cabeça e pelas costas.

Hormes olha ao redor. Tudo no abrigo é feito de ferro-


velho, menos algumas coisas que se amontoam próximo
à porta. Epimoni, notando a curiosidade do filho, ajeita a
cabeça de Lampião para iluminar os objetos.

— São presentes para você, filho. Muitos estiveram aqui


para lhe agradecer e desejar sua recuperação.

— Agradecer o quê, pai? Não consegui nada...

— Você inspirou muita gente.

— Isso não basta. Não resolve nada.

Hormes morde a maçã novamente. Olha para a bandeja


de frutas. Está muito bem organizada. “Nada disso teria
acontecido se eu ainda estivesse trabalhando com
Momus, organizando frutas”.

Epimoni se levanta.

— Venha, filho. Você precisa caminhar um pouco, ou suas


pernas também ficarão fracas. — Epimoni apoia as mãos
sob as axilas de Hormes, para ajudá-lo a levantar. O
jovem caminha calculando os passos.

A chuva diminui. O céu se abre. Hormes e Epimoni


caminham até a saída do ferro-velho, desviando das
poças de lama. Axion está lá, em pé, ao lado do portão.

Hormes para de caminhar. Encara Axion.

— O que você está fazendo aqui?

— Estou vigiando.
— Esperando para me prender?

— Não. Fui expulso da guarda. Eles não gostaram quando


eu ataquei o robô do Theceo — Axion suspira. — Estou
vigiando para evitar que alguém o ataque no ferro-velho.
Meu turno está acabando. Daqui a pouco é a vez do Jitu.

Aquilo é estranho. Hormes ainda lembra de Axion


ameaçando prendê-lo no Templo de Nomos, junto de Jan
Cândhido e Hyp. Agora está trabalhando com um Anansi
para vigiar o ferro-velho? Poderia confiar?

Nas muitas conversas que tivera com Jan Cândhido, o


velho marinheiro ensinava que até os inimigos merecem
votos de confiança. “É assim que as pessoas aprendem a
confiar em nós, também”. Só se desfaz a confiança sobre
alguém quando, por atos ou palavras, esse alguém
mostra não ser digno dela.

Quando Jan Cândhido dizia aquilo, não fazia o menor


sentido. Agora faz.

— Venha comigo — pede Hormes.

Dali, do alto de Palami, é possível ver toda a cidade de


Nova Ascra. A cidade está diferente. As chaminés não
fabricam nuvens de fumaça e fuligem. Hormes vê
estrelas. Elas somem aos poucos, dando lugar ao brilho
do sol.

Hormes, Epimoni e Axion caminham sobre a terra


molhada, olhando para a cidade. Os pés de Hormes
derrapam. Ele abre os braços, tentando se reequilibrar.
Epimoni e Axion o seguram e evitam uma queda. Sim,
até caminhar, com os braços quebrados, é muito
diferente. Equilibrar-se é diferente.

— Vamos nos sentar ali — diz Epimoni, apontando para


uma mureta de pedra, certamente construída para evitar
deslizamentos de terra no morro de Palami.

Ali se sentam. Hormes ainda come frutas com ajuda do


pai. Axion cata algumas pedras do chão.

O sol, aos poucos, revela o resultado da batalha contra


Theceo. Há ruínas de casas em Ble-Kolara e em Palami. A
fábrica das Indústrias SYM tem um enorme buraco na
parede do lado leste, por onde havia saído o mekha.
Próximo ao Mercado de Feno, o esqueleto do mekha
desmantelado permanece deitado na rua, desmoralizado.

— Foi assim que tudo acabou. Uma guerra sem


vencedores — lamenta Hormes.

— Não acabou ainda não, meu jovem — a velha voz de


Babu surge por detrás do trio sentado na mureta.

— Você quase me mata de susto! — resmunga Hormes,


com a respiração acelerada e o coração palpitando. —
Avise quando estiver chegando assim, por favor!

Babu sorri seu sorriso de poucos dentes, com o cachimbo


pendurado no canto da boca.
— Você estava certo, rapaz, quando veio até aqui e nos
avisou de que Palami corria perigo. — O velho de pele
escura se aproxima, pé ante bengala ante pé. Equilibra-
se para não escorregar no declive molhado. Axion cede
espaço e Babu se senta ao lado de Hormes.

Axion atira uma pedra. Ela atinge a lona molhada que


cobre uma casa de teto triangular.

Hormes mostra os braços para Babu:

— Acabou, Babu.

Axion atira outra pedra sobre a casa triangular. A pedra


ricocheteia na lona, fazendo um pequeno estalo.

Hormes olha para o esqueleto do mekha. “O que Theceo


está planejando agora?”.

Babu toma a palavra:

— Não acabou, não. Se você não fizer nada, as pessoas


vão voltar para as fábricas, fazendo tudo o que faziam
antes. Seu antigo chefe vai construir outro gigante. E o
novo gigante vai destruir Palami.

— Então vocês precisam de um outro herói. Eu nunca fui


um. Jan Cândhido era um líder, mas ele está morto. Eu só
inventava coisas. Não invento mais.

Axion atira outra pedra. Sempre acerta a mesma casa


triangular.
— Eu lhe disse certa vez que você tinha o que precisava
para mudar o mundo. Lembra? — insiste Babu.

— Eu inventava máquinas...

Babu bate a bengala na testa de Hormes, fazendo-a


badalar. Axion e Epimoni se assustam.

— Ei, tenha mais respeito, velho maluco! — diz Epimoni.


— Não costumo bater em velhos, mas posso abrir uma
exceção!

Babu ignora a ameaça de Epimoni.

— Você não escutou, né? Você tem caráter, meu jovem.


Caráter! Ninguém tirou isso de você. Ninguém pode
roubar isso de você. Você só perde o seu caráter se
desistir de ser quem você é.

Mais uma pedra lançada por Axion acerta a casa


triangular. Hyp aparece na janela, escala o poste diante
dela e salta para a beirada do telhado de sua casa.
Equilibra-se, caminhando na beirada para não pisar na
lona. Apoia os pés, aproveitando o vértice de duas
paredes, e se depara com quatro homens sentados em
uma mureta, no alto do morro.

— O que vocês querem? Quem aí está de gracinha,


jogando pedras na minha casa a essa hora da manhã?
Tem uma mulher doente aqui e ela precisa dormir. — Hyp
percebe que um dos homens é Hormes. Afinal, o homem
de prata ali, refletindo a luz do sol, só pode ser Hormes.
Ela corre e escala os telhados de Palami, badalando
telhas de metal, rumo à mureta dos quatro homens
sentados.

Das telhas, ela passa para o morro de terra molhada.


Corre, com as mãos apoiadas, subindo mais rápido do
que a terra que desliza para baixo. As correntes rompidas
de suas algemas tiritam num ritmo acelerado enquanto
ela escala, fazendo um sonzinho metálico que
acompanha os movimentos de seus pés e mãos. Ela
estaciona diante do quarteto, fazendo sombra sobre
Hormes.

— E aí? — pergunta.

— E aí o quê? — devolve Hormes, ainda tonto da


bengalada na testa.

— O que vamos fazer? Seu chefe vai tentar de novo, não


é? Vamos destruir a fábrica dele?

— Não dá para fazer nada, Hyp. — Hormes mostra os


braços quebrados.

Ela acerta um soco furioso na cara de Hormes. Hormes


cai para trás, melando as mãos na terra molhada
sustentada pela mureta.

— Você é louca! — protesta Epimoni. — Ninguém aqui em


Palami respeita um homem ferido?

— Seu filho é um frouxo, murcho, fracote! — Hyp


responde firme, segurando a mão direita, que dói por ter
socado a testa prateada de Hormes.

Axion e Babu seguram o riso. Aquilo foi estranho, mas foi


engraçado.

Hormes apoia os cotovelos no chão. Levanta-se com a


ajuda do pai.

— Ai, ai, ô... Hyp, o que você quer que eu faça? —


balbucia Hormes.

Ela acerta um soco de esquerda. Hormes cai novamente.

Axion e Babu riem.

— Pare com isso, sua maluca! — Epimoni se levanta e


encara a Anansi, cerrando os punhos. — Não acredito
que terei de começar a bater em velhos e em mulheres,
agora!

Hormes se ergue novamente. Hyp ignora Epimoni e diz


ao rapaz:

— Será que você não aprendeu nada nesse tempo todo?


Não aprendeu a liderar?

— Encontrem outro líder. Eu não tenho mais condições de


fazer nada.

Hyp arma outro soco. Epimoni se prepara para bater


nela. Hormes cruza os braços na frente do rosto. As
ataduras nos braços de Hormes evidenciam o resultado
do tiro do mekha no dia que em que ele enfrentara
Theceo. Hyp percebe que Hormes tem medo de a história
se repetir. Ela abaixa os braços.

— Hormes, você pode liderar as pessoas com as coisas


que você diz. Não precisa inventar máquinas. Até agora,
você não inventou nada para enfrentar Theceo.

— Mas eu não sei o que fazer — responde Hormes.

Hyp segura o impulso de desferir outro soco. Expira.


Inspira. Expele:

— Acorda, Hormes! Ninguém sabe o que fazer. Nem o


dono das Indústrias SYM deve saber o que fazer agora!

Hormes volta a olhar para a cidade. Vê as casas


arruinadas, o esqueleto do mekha, a fábrica quebrada, a
ágora com o Obelisco de Cronos, o Templo de Nomos.
Suspira.

— Axion, quando estávamos no Templo de Nomos, por


que você não nos prendeu? — pergunta Hormes.

— Eu tentei, lembra? Mas ali é um solo sagrado. Por isso


a sacerdotisa me impediu — responde Axion. — Os
guardiões devem respeitar o templo, pois isso demonstra
respeito ao Deus da Lei. Ofender o templo seria ofender
a própria Lei.

Hormes pensa. A resposta para tudo deve estar ali.

— Então precisamos falar com a sacerdotisa Calina — ele


diz. — Mas, antes, temos muito o que preparar aqui em
Palami. Babu, podemos usar peças do ferro-velho?

— Do que você precisa, jovem?

— De muita coisa. E não poderei pagar — responde


Hormes. — Na verdade, eu preciso de tudo o que tem no
ferro-velho.

Babu percebe que Hormes não está para brincadeira.


Vale a pena abrir mão de tudo o que ele juntou ao longo
de décadas, sem receber uma única moeda de ferro em
troca? Deveria confiar na intuição daquele rapaz de
braços enfaixados? Arriscar TUDO?

O velho fixa os olhos sobre o mekha de Theceo, largado


inerte no chão.

— Pode pegar o que quiser, garoto — assente Babu. —


Mas como você vai montar a sua invenção?

— Vou precisar de ajuda. Muita ajuda — diz Hormes. —


Hyp, chame todos os operários e moradores de Palami
que puder. Diga-lhes que os chamei para trabalhar em
algo importante no ferro-velho.

— Certo — Hyp sai correndo pelos telhados.

— Quando todos estiverem trabalhando, vamos ao


templo. Não podemos esperar nem mais um minuto —
afirma Hormes.
56

A terra treme.

O caminhão que atravessa as ruas de Ble-Kolara não é do


tipo que costumava passar por ali. É do tipo que só se vê
nas rodovias entre as fábricas e o porto, transportando
cargas muito pesadas.

Os guardiões se agarram à enorme lona sobre a


carroceria. Na boleia do caminhão, conduzido por um
guardião de ferro, Jasão e Dário conversam.

— Não é muito discreto passarmos com esse caminhão


pelo meio da cidade — pondera Dário. — As pessoas
podem se perguntar o que estamos carregando.

— Não há com o que se preocupar, Dário. Estamos muito


bem armados — diz Jasão.

— Estranho… As ruas estão muito vazias, não estão? —


pergunta Dário.

— Eu não me importo mais com os operários de Ble-


Kolara — responde Jasão. — Depois que terminarmos, a
cidade terá novos operários. Fora isso, ainda vamos
ensinar uma lição àquele Hormes. Voltaremos a ter paz,
finalmente.
Chegando ao pé do morro de Palami, os guardiões puxam
a lona da carroceria do caminhão. Há um novo mekha
deitado ali. Menor do que aquele usado por Theceo, mas
ainda ameaçador.

Dário acomoda-se na cabine do mekha. Os controles são


simples. Alavanca para frente, para andar, para os lados,
para virar. Há também um botão para lançar fogo e
botões para fazer a engenhoca golpear com os braços. A
cabine é um pouco apertada para alguém do seu
tamanho, mas é realmente uma honra — e uma diversão
— pilotar o mekha.

— Está pronto? — pergunta Jasão.

— Sim, senhor — responde Dário.

— Então, feche a cabine.

— Senhor?

— O que é, Dário?

— Deixe o Hormes comigo. Preciso encerrar a missão que


me foi dada — diz Dário.

— É assim que se fala, guardião. — Jasão dá dois tapas


na tampa da cabine.

Dário a recolhe, guardando-se no peito do mekha. A


cadeira da cabine se eleva e a cabeça de Dário se
encaixa dentro da cabeça do robô. Ele sente como se o
corpo do mekha fosse uma extensão do seu. Sente que
se tornou um gigante indestrutível.

Dário faz o mekha sentar-se na carroceria do caminhão.


As pernas do robô não alcançam o chão. Então, com um
impulso, ele se joga. O robô cai com as mãos apoiadas
no chão e as pernas curtas esticadas, logo atrás, também
inteiramente apoiadas.

Hormes certamente não esperaria por isso. Prometeus e


Dédalo fizeram uma modificação interessante no projeto:
encurtaram as pernas do mekha. Agora, elas têm o
mesmo tamanho dos braços. Assim, o mekha consegue
andar sobre quatro patas, como se fosse um gato. Pode,
sim, subir Palami.

E sobe. O mekha vai à frente, a quatro patas,


espremendo-se nas paredes estreitas entre as casas de
Palami. É seguido por guardiões de ferro, de bronze,
alguns de prata e Jasão.

As calçadas de cimento e pedra estão encobertas pelas


sombras das casas e riscadas de dourado pelos raios de
sol que escapam pelos vãos entre os telhados. Não há
ninguém à vista. Apenas calçadas e ruas vazias.

Do alto da rua estreita que os guardiões sobem, ouvem-


se barulhos metálicos. Não são Anansis caminhando
sobre as telhas de metal ordinário. É um barulho
diferente. Nas calçadas mal iluminadas pelos últimos
raios de sol fica difícil ver o que é. O barulho se
aproxima. De repente, fica claro. São rodas de ferro,
esferas, engrenagens e muitas outras peças rolando
abaixo e quicando, a enorme velocidade, como uma
avalanche metálica.

Dário, instintivamente, desvia o mekha para uma rua


lateral. As peças de ferro-velho atingem os guardiões que
vinham logo atrás. Cada impacto os arremessa com força
para trás, caindo sobre os seus companheiros
espremidos entre as paredes das casas de Palami.

“Essas peças estão chegando com muita força”, pensa o


guardião de prata. “Devem ter sido lançadas do topo do
morro.”

— Desviem das peças! Usem outras ruas! — grita Dário,


pelo alto-falante.

Os guardiões da retaguarda se distribuem pelas ruas


laterais. Por onde vão, uma nova avalanche de metal os
encontra. Dário também toma o caminho de outra rua
para subir. Ouve o barulho de peças descendo e se
aproximando. Desvia de novo para escapar. Fica entre
duas casas, em uma calçada que não está na rota da
avalanche.

Dário nota vultos saltando pelos vãos das casas. “É


assim que eles conseguem nos ver”, pensa. “Então,
vejamos o que esse brinquedinho consegue fazer”.

O guardião de prata faz o mekha golpear e atravessar a


parede de uma casa. Ao ouvir o telhado badalar, controla
o mekha para saltar com toda a força. O teto se abre,
com o mekha agitando os braços no ar, tentando
alcançar os Anansis que se escondem ali em cima. Os
Anansis voam, arremessados pelo impacto que veio de
baixo do telhado, e se agarram às bordas para não
caírem. Com impulsos, voltam para enfrentar a fera
mecânica.

Os braços do mekha tentam se agarrar ao telhado, para


que não caia de volta para dentro da casa. É inútil. As
garras nas pontas dos dedos do mekha arranham o metal
do telhado da casa, mas o robô cai de costas no chão.

Dário vê três silhuetas de Anansis aparecerem no buraco


que o mekha deixou no telhado. Eles riem e comemoram
a vitória.

“Eles vão experimentar o gosto deste lança-chamas”,


pensa Dário, pronto para acionar canhão do mekha
contra os três jovens que riam dele. Mas vem-lhe a
lembrança do dia em que, na fábrica, vira Granázio ser
queimado vivo com um lança-chamas. Foi cruel. Não
quer testemunhar aquilo de novo. “Preciso tentar outra
coisa. Quebrar o telhado não vai dar certo”. Então, faz o
mekha se reerguer e empurra a alavanca para frente,
com toda a força.

O mekha corre e bate com a cabeça em uma parede,


abrindo ali um enorme buraco. Dário ri para si mesmo.
Ele não sentiu nada do impacto. Poderia passar a tarde
toda cabeceando paredes. A mobília das casas não
oferece qualquer resistência ao mekha. Subir Palami,
abrindo passagens por dentro das casas, é uma maneira
eficaz de escapar da avalanche de ferro-velho que desce
pelas ruas.

Concentra-se. Abre um buraco na parede da casa onde


está, depois em outra parede, depois em outra, outra,
outra, outra. Algumas casas, atrás de Dário, desabam.
Mas ele continua a subir o morro.

Chegando ao topo de Palami, depara-se com uma


enorme aglomeração de pessoas de pele escura e
operários, perto do alambrado do ferro-velho. “Então era
aqui que vocês estavam escondidos. É por isso que as
ruas e as casas estavam vazias”.

Dário faz o mekha correr em direção aos arruaceiros. O


pânico se espalha. Os moradores de Palami, misturados
aos operários, não conseguem mais jogar peças para
rolar morro baixo. Correm para salvar suas vidas.

Os guardiões lá embaixo, percebendo que as ruas agora


estão livres, conseguem avançar. Sobem destruindo tudo
pelo caminho. Martelam e incendeiam as casas. Fazem
tudo desmoronar. Agora, ao invés de uma avalanche
descendo o morro, o fogo e os desabamentos fazem
parecer que um terremoto, seguido de lava, está subindo
o morro, desafiando a gravidade.

Kyongozi, no meio da multidão, grita:

— ATENÇÃO! TODOS ATAQUEM O ROBÔ!


Pela pequena abertura na cabeça do mekha, Dário vê
todo tipo de peça de metal ser lançado contra ele. A não
ser pelo barulho irritante que as peças fazem quando
acertam a couraça do robô, o ataque não o incomoda.

O mekha salta no meio da multidão, dando golpes que


arremessam os moradores de Palami e operários a
metros de distância. “Onde está Hormes?”, procura
Dário. “Onde está aquele líder que mandou os moradores
me atacarem?”.

A resposta logo vem.

Kyongozi gira uma corrente no ar e laça a cabeça do


mekha. O robô se agita, puxando a corrente. É
exatamente o impulso de que Kyongozi precisa. Puxado
pela corrente, vira o corpo no ar e monta nas costas do
monstro. Puxa da cintura um punhal de obsidiana negra
e golpeia várias vezes, abrindo enormes rasgos nas
costas do mekha. Kyongozi, vendo as engrenagens sob a
carcaça do mekha, atira no meio delas a sua faca. Ela
bate, gira e quebra algumas engrenagens,
desestabilizando os movimentos do robô.

Os Anansis lançam outras correntes com farpas de


obsidiana negra que se enroscam nos braços e pernas do
mekha, rasgando-lhe a lataria.

O mekha balança o corpo. Não adianta. Kyongozi ainda


se agarra, usando a corrente. Então, a mão direita do
mekha se abre e muda de forma. Torna-se um canhão,
semelhante ao canhão do mekha de Theceo, embora
menor.

O canhão lança labaredas pelo ar, por cima dos


moradores de Palami, que correm em pânico. Dário não
aponta diretamente para as pessoas, mas usa o lança-
chamas para intimidá-las. Kyongozi, sem conseguir
resistir ao calor intenso, solta a corrente e desaba no
chão.

O mekha corre, cambaleante, até a lavoura, que não fica


muito distante do ferro-velho. Há um pomar ao fundo,
com árvores claramente organizadas em fileiras. Perto do
pomar, um rio provê a água. Na plantação mais próxima,
veem-se verduras e legumes igualmente organizados.
“Deve ter dado muito trabalho organizar tudo isso
assim”, pensa Dário. Seu dedo gira em torno do botão do
lança-chamas. “Preciso cumprir minha missão”.

Aperta o botão.

Kyongozi vê as folhas verdes queimando sob o fogo


alaranjado e a terra marrom tornar-se negra como
carvão.

— NÃÃÃÃÃOOOO!!! — Kyongozi tenta saltar novamente


sobre o mekha.

O robô se vira, com o lança-chamas ainda aceso. Jitu, em


um salto, agarra Kyongozi e evita que ele seja atingido.
Kyongozi, tentando se soltar de Jitu, vê a lavoura de
Palami arder em chamas.
— A primeira parte da missão está cumprida — diz Dário
para si mesmo.

Volta ao entorno do ferro-velho. Os Anansis, outros


moradores de Palami e operários atiram boleadeiras e
peças contra os guardiões. Os guardiões os cercam com
dificuldade. Jasão está entre eles, rebatendo boleadeiras
e engrenagens e tentando manter o foco do pelotão na
missão. Outros Anansis, correndo pelos vãos pouco
iluminados entre as casas, lançam correntes que se
enroscam nos pés dos guar­diões e os arrastam para as
sombras, um a um. Os guardiões que ainda estão em pé
dividem sua atenção entre cercar os moradores e evitar
um ataque surpresa.

Dário se afasta da lavoura em chamas e se aproxima dos


moradores encurralados pelos guardiões.

— Onde está Hormes Aedo? — ele pergunta pelo alto-


falante.

Kyongozi se aproxima do mekha e diz:

— Está no ferro-velho, em um abrigo.

— Não, não está — diz Babu. — Ele já saiu.

— Não proteja o homem de prata, Babu. Ele só nos


trouxe desgraça — diz Kyongozi. — Você viu o que esses
guardiões fizeram com a lavoura?

— Ele nos ajudou a nos defender — retruca Babu.


— Calados, vocês dois — ordena Jasão, agitando seu
martelo de ouro no ar. — Dário, entre no ferro-velho e
traga Hormes aqui.

Dário direciona o mekha para lá. Derruba parte do


alambrado e entra.

No ferro-velho, Dário encontra mesas. Muitas mesas.


Parecem organizadas como uma linha de produção. Ao
redor, há carros, caminhões, betoneiras, tratores...
desmontados. Foi dali que vieram as peças da avalanche.
“Será que eles só desmontaram os veículos? Ou
construíram alguma coisa também?”, pergunta-se Dário.

Andando mais um pouco, Dário encontra um abrigo feito


de peças de ferro-velho. Posiciona o mekha ante à porta,
aponta o canhão para dentro do abrigo e anuncia, pelo
alto-falante:

— Hormes Aedo, você está preso!

— Por favor, não atire — pede Polínia, a única pessoa


dentro do abrigo. — Hormes não está aqui.

— Onde ele está?

Polínia está com medo demais para pensar em alguma


mentira que proteja o irmão. Ela responde dizendo a
verdade:

— Ele foi ao Templo de Nomos.


57

C alina espera. Não sabe o quê, mas espera. Está


acostumada com os momentos de solidão no
templo. Ela tem todo o tempo do mundo.

Com Hormes e Jan Cândhido, o templo tinha passado por


dias movimentados. Mas, agora, o que esperar? Ela sabe
que Jan Cândhido morreu. Sobre Hormes, chegavam
notícias confusas. Alguns diziam que havia morrido
também; outros, que tinha sido levado para longe. Como
saber quem falou a verdade?

Sentada nas escadas da parte traseira do templo, com a


cabeça encostada em uma das enormes colunas, ela
observa pássaros brincando em poças d’água do pátio.
Repassa em sua mente todos os juramentos que fizera
quando assumiu o sacerdócio.

Fixa o pensamento naquele juramento que ela fez de


proteger o templo, em qualquer circunstância. Isso a
prende ao solo sagrado. Não pode sair das redondezas
do templo, nem mesmo para buscar notícias sobre o que
aconteceu depois da batalha do Mercado de Feno. Tem
que ficar esperando que as notícias venham procurá-la.

— Calina!
Quem a chamou? Calina esquece dos pássaros que
observava. Procura qualquer movimento ao seu redor. No
fundo do pátio, de trás de uma estátua de Atena, sai
Hormes, com os braços enfaixados, acompanhado de
Axion. Hyp, a passos calmos, como não lhe é de
costume, vem logo atrás.

A sacerdotisa se levanta e corre. Seu vestido não voa


como uma cauda graciosa, mas sim um amontoado de
pano voando desengonçado e se molha com a água que
respinga dos pés de Calina enquanto ela pisa sem hesitar
nas poças do pátio. Abraça Hormes calorosamente:

— Você está vivo!

Hormes sente, em seu ombro, que os olhos de Calina


derramam lágrimas sinceras. Hormes não esperava por
isso. Não mesmo. Não imaginava que Calina se
importasse tanto assim.

Sem se afastar de Hormes, ela abre os braços e, com as


pontas dos dedos, chama Axion e Hyp a se aproximarem.
Junta todos em um só abraço. Hormes, agora menos
surpreso, retribui, abraçando Calina com os antebraços
enfaixados. Axion, por sua vez, pensa que não merece o
abraço, pois causou muitos problemas à sacerdotisa e ao
templo. Mas aceita a ternura dela. É como se ela
estivesse declarando paz. Hyp não está acostumada a
abraços. Pensa em fugir. Pensa que é uma armadilha
para prendê-la. Pensa que não é nada disso. Pensa que é
bom receber um abraço. Aproveita o momento.
— Eu estou muito feliz! Pensei que não fosse mais vê-
los... — diz Calina.

Hormes, Hyp e Axion entreolham-se. Calina os trata


como se todos fossem amigos. Mas eles não sabem se
são amigos de verdade. As circunstâncias os uniram, é
verdade, mas amigos? Bem, não seria ruim.

Hormes estende os braços, mostrando seus ferimentos a


Calina:

— Preciso de sua ajuda.

Calina toca os braços de Hormes suavemente. Mesmo


por cima dos curativos, ele pode sentir o toque, como
uma queimação. A dor ainda é forte. Ele tenta mexer as
mãos, mas elas pouco obedecem.

— Como isso aconteceu? — pergunta Calina.

— Levei um tiro de fogo do mekha de Theceo.

— Daqui do templo, pude ver um pedaço daquele


monstro. Eu soube que ele atacou os operários no
Mercado de Feno — diz Calina. — Hormes, eu gostaria
muito de ter o dom de curar seus ferimentos. Mas é um
dom muito raro, poucos sacerdotes são abençoados com
ele.

Mas Hormes tem outras preocupações:

— Não é só isso. Eu preciso de sua ajuda para proteger


os operários. Eles ainda correm perigo.
— Como posso ajudar, Hormes?

— Vamos reunir todos eles aqui no templo.

— Como vamos trazer todos para cá? Esse templo fica


quase sempre vazio... — lamenta Calina.

— Vamos pedir aos operários que venham homenagear


Nomos — diz Hormes. — Aposto que Nomos não se
recusaria a aparecer se todos chamarem por ele.
Pediremos a ajuda de Nomos para mudar a Lei de
Cronos.

— Um dia de homenagem a Nomos, o Deus da Lei? —


Calina já imagina o templo cheio de gente.

— Sim, exatamente. Mas você sabe que há riscos.


Theceo pode ter outras máquinas para nos atacar.

Calina relembra seus juramentos. Ela jurou proteger o


templo. Colocá-lo em risco não é uma opção. Pergunta a
si mesma qual é o sentido de tudo aquilo. Pergunta a si
mesma se Nomos a perdoaria. O templo ficaria mais
seguro se permanecesse vazio.

— Não posso colocar o templo em risco, Hormes. Eu fiz


um juramento...

— Calina, essa é a nossa última opç...

— Calma, Hormes, ainda não terminei.


Calina não costuma interromper assim. Hormes silencia.
Ela continua:

— Mas este templo não terá cumprido o seu propósito se


impedirmos as pessoas de homenagearem Nomos. —
Calina olha para Hormes. — Trazer pessoas para o templo
não é ameaçá-lo. Se alguém vier a ameaçar, seria
Theceo, seriam os guardiões. Eles é que terão que
acertar as contas com Nomos.

Hormes, Hyp e Axion concordam. Eles abraçam Calina.


Ela lhes sussurra:

— Tenho certeza de que o Deus da Lei virá ver a


homenagem que vamos preparar para ele.

***

O Obelisco de Cronos anuncia o amanhecer com seis


badaladas. Pode-se ouvir o eco do sino em toda a cidade.
Não há fumaça das fábricas no ar. Não há guardiões
cercando as ruas e ordenando aos operários que sigam
para o trabalho. Há silêncio.

Notícias correm de boca em boca pelas casas de Ble-


Kolara e Ergazomenoi. Dizem que Hormes está no templo
e convida todos a comparecerem a uma homenagem a
Nomos.

— Homenagear Nomos? Para quê? — pergunta um


supervisor de bronze.
— Hormes diz que vai pedir ao Deus da Lei que reduza a
jornada de trabalho para oito horas por dia — comenta
um operário de ferro. — Para invocar Nomos, precisa de
todos reunidos.

— Ah...

Os operários deixam suas casas e seguem para o templo.


Não imaginam o que pode acontecer, mas a curiosidade
os move.

Calina, Hormes, Axion e Hyp observam as pessoas


adentrando o templo. Os operários trazem flores,
perfumes e outros presentes para deixar diante da
estátua de Nomos. Sentam no chão.

Sísifo, pai de Axion, traz notícias:

— Os guardiões atacaram Palami, Hormes.

— Como estão os moradores?

— A maioria não se feriu. Suas ideias ajudaram bastante


na defesa do morro.

— E meu pai? Polínia? Babu? — pergunta Hormes.

— Estão bem — assegura Sísifo.

— E minha mãe? — pergunta Hyp.

— Sua mãe? Penia, não é? Ela está bem. Está com Mema
na casa de Babu.
— Conseguiram construir tudo que pedi? — pergunta
Hormes.

— Sim — diz Sísifo, com um sorriso. Ele se vira e mostra


um escudo, feito de ferro-velho, preso às suas costas por
uma alça feita de uma tira de borracha. — Os operários
trarão as outras coisas que você pediu.

— Espero que seja o bastante— diz Hormes.

— Os guardiões atacaram Palami com tudo, Hormes. A


situação não está nada boa — lamenta Sísifo. — Eles
queimaram a lavoura e destruíram muitas casas. O líder
de Palami, Kyongui... Koyngo...

— Kyongozi — Hyp completa.

— Isso. Kyongozi! Ele está arrasado de tristeza. Terá que


achar outro lugar para plantar.

— Isso não é nada bom — concorda Hormes. — Depois


que tudo isso passar, precisaremos ajudá-los a
reconstruir o que perderam. Mas se as coisas não derem
certo aqui no templo, não teremos mais opções.

Calina também se preocupa. E se Nomos não aparecer?


Ficarão desapontados com ela. Pior: perderão a fé em
Nomos. Murmura:

— Será que a fé das pessoas aqui vai aumentar? Será


que o Deus da Lei vem atender ao pedido delas?
— Pode ser que sim, pode ser que não, Calina. Mas não é
isso o que realmente importa.

A resposta de Hormes surpreende. Ele parece falar como


Jan Cândhido. O objetivo não é o que está ao alcance dos
olhos?

— Então o que é? — pergunta a sacerdotisa.

— Você está vendo que todos os operários da cidade


estão reunidos aqui?

— Sim.

— O que é que eles não estão fazendo?

— Não entendi a pergunta.

— Eles não estão brigando entre si sobre quem tem


razão e quem não tem. Eles não estão divididos, como
estavam no passado. Estão unidos por um motivo
comum. O que realmente importa é que eles aprendam a
se mobilizar, independentemente de quem seja líder. Não
quero que eles dependam de mim para sempre.

Calina sorri. Ela continua a ver as pessoas entrarem no


templo.

— Hormes, espero que você descubra a verdade por trás


do acordo entre Cronos, Nomos e Gaia.

— Por que você diz isso, Calina?


— Porque, se houvesse paz entre os deuses, essa luta
aqui na terra dos homens não existiria. Há algo de errado
na história contada no Iéri Gnósi .

— Você acha que não vamos vencer aqui hoje?

— Tudo o que sei é que nenhuma batalha é a última.


58

T odos os operários das fábricas de Nova Ascra


parecem estar no Templo de Nomos. Vieram também
comerciários, feirantes, enfermeiras, motoristas. Eles
prestam suas homenagens a Nomos e pedem mais
tempo livre para passar com suas famílias.

Um homem enorme, com sorriso de vendedor de bronze,


vem falar com Hormes.

— Recebeu as frutas?

— Frutas? — Hormes reconhece a voz. — Momus! Você


veio! Ué... Você veio?

— Vim, Hormes — Momus ri.

— Foi você quem deixou as frutas para mim no abrigo?

— Sim. Espero que as tenha encontrado em perfeita


ordem.

Momus está acompanhado.

— Você se lembra da Aurora? — Momus traz a amada


para mais perto. Aurora sorri para Hormes. Momus
continua: — Eu concordo que precisamos de mais tempo
para a família.
Aurora está grávida. Abraça a própria barriga com um
dos braços. Momus desliza uma mão carinhosamente
sobre o ventre dela.

— Mas você pode mudar seu horário, Momus. Você é o


dono da banca... — diz Hormes.

— Quando eu tentei, Hormes, os outros feirantes


disseram que eu estava quebrando algo sagrado.
Ameaçaram nos expulsar da estoa. Não se brinca com a
Lei de Cronos. É por isso que viemos apoiá-lo.

Hormes estende os braços enfaixados para


cumprimentar Aurora. Ela responde com um toque suave
nas costas das mãos do rapaz. Ele diz:

— Finalmente escutei uma boa notícia.

***

Assim passa o dia. Pessoas de ferro e bronze chegam a


todo momento. Muitas cumprimentam Hormes e
expressam seus sentimentos pela morte de Jan
Cândhido. Lamentam que os braços de Hormes estejam
tão gravemente feridos. Encantam-se com a beleza do
templo, com a enorme estátua de Nomos segurando um
raio, as enormes colunas, os vasos e grinaldas no alto.
Para a maioria dos trabalhadores, aquela é a primeira vez
que contemplam o templo por dentro. O sol entra
alaranjado pelos vitrais, lançando cores quentes sobre o
mármore frio do piso, das paredes e das colunas
internas.

Epimoni, o pai de Hormes, é um dos últimos a entrar. Não


traz oferendas para Nomos.

— Que bom que veio, pai.

— Filho, eu entendo que o que você está fazendo é


importante. Mas tome cuidado, tá?

Hormes silencia. Não dá para dizer que ele está tomando


cuidado. Na verdade, ele está arriscando tudo.

— Eu trouxe uma coisa para você. Quase me esqueci. —


Epimoni puxa uma bolsa de couro que trazia pendurada
no ombro.

Hormes não consegue abri-la. Epimoni abre a aba que


cobre a abertura da bolsa e alarga a abertura com as
mãos. Hormes vê no fundo da bolsa um megafone
queimado, com o cabo retorcido, as beiradas quebradas
e trincadas.

— Ainda funciona. Eu o encontrei no Mercado de Feno.


Pode ficar com ele — Epimoni passa a alça da bolsa por
cima do pescoço de Hormes.

— Obrigado, pai.

— Filho, desculpe-me por ter destruído a sua invenção,


jogando-a no rio. Se eu não a tivesse destruído, talvez
nada disso teria acontecido.
— É, pai... talvez nada disso teria acontecido. Mas as
minhas invenções não conseguiriam mudar a Lei de
Cronos. No fim das contas, o senhor tinha razão quando
jogou o alfaiate autômato no rio.

— Essa luta só faz sentido se você voltar para casa


quando isso acabar. Vença... e volte. Por favor — pede
Epimoni.

Hormes abraça seu pai, tão forte quanto seus braços


permitem. Cada minuto adiante é incerto. O abraço de
seu pai é de valor inestimável.

Axion está longe de Hormes. O ex-guardião está em pé,


próximo aos portões frontais do templo, observando o
movimento da ágora. Dali, faz um sinal para o inventor
se aproximar.

Hormes chama Hyp com um olhar sério. A hora chegou.


Atravessam o templo, desviando-se dos operários que
lotam o longo corredor de colunas e encontram Axion sob
os portões. Juntos, Hormes, Axion e Hyp descem as
escadas do templo.

As peças de metal dos portões frontais do templo


refletem a luz do sol poente quando fecham.

— Você está muito ansioso, soldadinho. Ninguém chegou


ainda — provoca Hyp, ao avistar a ágora vazia.

— A Guarda está chegando — confirma Axion.

— Como você sabe?


— Posso sentir.

Guardiões de ferro, bronze, prata e Jasão, de ouro,


marcham em perfeita sincronia. O tremor ritmado da
terra dizia a Axion que a Guarda se aproximava. Todos os
guardiões de Nova Ascra estão chegando. Reluzem os
últimos raios do sol. Ocupam toda a parte da ágora ao
sul do Obelisco de Cronos. Hormes, Axion e Hyp estão
sozinhos na parte norte, a poucos passos do templo.

Atrás dos guardiões vem um gigante. Não é um mekha.


O gigante apresenta movimentos orgânicos e sabe se
equilibrar sobre as pernas. Tem o tamanho do obelisco ao
centro da ágora e cada passo seu faz a terra tremer em
dobro. Parece não ter braços.

— Aquele é Cronos — diz Axion. — O deus de mãos


invisíveis.

— Eu não imaginava que enfrentaríamos um deus — o


coração de Hormes palpita.

Hyp está quieta. Ela não admite, mas sabe que aquilo
que ela sente é medo. Como vencer um deus? Cronos é
maior e mais poderoso do que qualquer coisa que ela já
enfrentou na vida.

Cronos avista os três desafiantes ao norte do obelisco.


Mas alguém, atrás dos guardiões, chama sua atenção.
Cronos se ajoelha. Parece conversar com essa pessoa.
Os guardiões abrem um corredor em sua formação.
Hormes percebe que Cronos conversa com Theceo. Jasão
está entre eles. Outros seis homens de mãos de platina
aguardam, logo atrás do guardião de ouro.

Era verdade o que Diceosine dizia. Theceo realmente


conversava com Cronos. Aliás, Diceosine está ao lado do
pai. Ela parece tentar se intrometer. Theceo a afasta.
Estão muito longe para se ouvir o que dizem.

Cronos se levanta, encerrando a conversa. Theceo


caminha pelo corredor de guardiões, olhando firmemente
para Hormes. Diceosine o acompanha, desobedecendo
os gestos do pai que pedem para ela ficar parada onde
está.

— Se ele tentar alguma gracinha, vai se arrepender — diz


Hyp, cerrando os dentes. Theceo poderia tê-la ouvido.
“Se ele ouviu, esteja avisado”, pensa Hyp.

Já longe dos guardiões, Theceo detém-se e espera que


Hormes se aproxime. Ele percebe que o jovem está
acompanhado do guardião que traiu a guarda e de uma
Anansi que atacara a sua casa algumas semanas antes.
Hormes veste seu sobretudo manchado e puído por cima
do corpo de prata, o que lhe deixa mais parecido com o
guardião de ferro e a maltrapilha moradora de Palami.

— Hormes, pense no que você está fazendo. Você trocou


sua carreira na fábrica por isso? Você se juntou a esses
delinquentes?
— Ei, somos amigos dele, riquinho safado — Hyp recua o
pé direito, preparando-se para dar um chute em Theceo.
A corrente da algema em seu tornozelo tirita.

Axion reconhece uma negociação de trégua quando vê


uma. Ele estende o braço diante do rosto de Hyp:

— Calma, agora não. Deixe Hormes cuidar disso.

— Eu sei o que estou fazendo, Theceo — responde


Hormes.

— Eu acho que você não sabe, não — Theceo usa sua


“voz de líder”, como quando quer ensinar uma lição aos
seus empregados. — Desista dessa loucura, Hormes.
Ainda há tempo. Você pode vir trabalhar comigo como
engenheiro de ouro. Terá recursos para criar qualquer
coisa que imaginar.

Hormes pensa um pouco. Ele queria usar a tecnologia


para melhorar a vida das pessoas. Poderia fazer isso.
Poderia tentar convencer Theceo a reduzir a jornada dos
operários, usando as máquinas para manter a produção
no mesmo patamar. Mas Theceo já mostrou que não faria
isso. O que resta, então? Ser um engenheiro de ouro
significa trabalhar na fábrica, dezesseis horas por dia,
fazendo os operários trabalharem tanto quanto, sem
questionar o que a fábrica está produzindo.

Diceosine, atrás de Theceo, permanece silente. Seus


olhos dizem que ela sabe o que vai acontecer se Hormes
recusar a oferta. Ela também sabe o que vai acontecer se
Hormes aceitar a oferta. Não sabe o que dizer. Apenas
aguarda.

— Theceo, o preço que você cobra é muito alto. Você


quer me dar recursos para criar as coisas que você
imaginar. Essas coisas ferem e matam outras pessoas. As
pessoas que trabalham na sua fábrica adoecem e são
descartadas. As coisas que você fabrica e o modo como
você as fabrica precisam mudar.

— Você não está pensando direito, Hormes. Eu posso


ajudá-lo a se tornar o maior inventor de todos os tempos.
Você vai alcançar todos os seus objetivos na vida.

— A diferença entre nós, Theceo, é que eu me importo


com as pessoas que trabalham na sua fábrica e com as
que são alvo das suas máquinas de guerra. Você, por
outro lado, não se importa com as consequências para os
outros. — rebate Hormes, com firmeza ímpar.

— Você tem razão. Essa é a diferença entre nós. Mas isso


também significa que eu sempre alcanço minhas metas,
e você nunca vai alcançar as suas. Eu torno esse mundo
mais produtivo, enquanto você atrapalha. Você escolheu
o seu lado, Hormes.

— Sim, escolhi — confirma Hormes. — Você, Theceo, só


se importa com números. No fim das contas, até você
mesmo é prisioneiro das metas e da produtividade.

— Belo discurso, rapaz. Mas a vida real premia quem é o


melhor gestor. Tudo o que tenho é fruto do que
conquistei.

— Suas preocupações são apenas essas: conquistar,


enriquecer, acumular... Para quê? — questiona Hormes.
— Você deveria se preocupar com o bem que sua fábrica
pode fazer pelas pessoas, mas parece que você se
esqueceu disso, já há muito tempo.

Theceo o encara. Ajeita o paletó com altivez. Puxa


Diceosine pelo braço e retorna para junto dos guardiões.

Hormes dá alguns passos para trás. Chama os amigos


para voltarem ao templo.

— Você tem ideia do que acabou de recusar? — Axion


está de olhos arregalados. — Você poderia ser um
homem de ouro amanhã mesmo. E ainda poderíamos ter
conseguido uma trégua, não teríamos de lutar...

— Eu sei, Axion — Hormes suspira. — Espero que eu


esteja certo sobre o que vai acontecer de agora em
diante. Um passo em falso pode botar tudo a perder.
Vocês lembram dos nossos princípios?

— Sem provocações, sem agressões, sem feridos. Vamos


apenas nos defender — relembra Hyp. — Você acha
mesmo que isso vai funcionar?

— A batalha que precisamos vencer é moral, Hyp. Tem


que funcionar — afirma Hormes.

Hormes, Axion e Hyp sobem as escadas e abrem uma


fresta nos portões do templo. Entram e trancam os
portões.

Theceo atravessa o corredor de guardiões, seguido por


Diceosine. Ele caminha desapontado com Hormes,
pensando no que aquele jovem poderia ter se tornado.

Jasão, em pé à direita de Cronos, observa Theceo se


aproximar. O homem de negócios toca o ombro do
guardião.

— Eles vão se render? — pergunta Jasão.

— Não — responde Theceo.

Jasão empunha uma lança na mão direita e carrega seu


martelo com a mão esquerda. Ele ergue a lança. Olha
para Cronos por alguns instantes.

Cronos olha para o templo que homenageia seu filho


Nomos. Invadir aquele templo pode ter um preço alto.
Desonrá-lo pode levar as pessoas a perder a fé na Lei de
Cronos ou em qualquer outra lei dada pelos deuses.

Por outro lado, a situação não pode permanecer como


está. Os operários não obedecem mais aos seus patrões.
A desobediência ultrapassou todos os limites. A cidade
parou. É preciso restaurar a Ordem.

Cronos volta o olhar para Jasão. Acena positivamente


com a cabeça. Jasão aponta sua lança para o templo e
ordena:

— Ataquem!
Os guardiões erguem martelos e lanças, agitam escudos
e dão tiros para o ar. Urram, batendo seus pés sobre o
chão, sincronizados, fazendo um barulho ensurdecedor
ecoar por toda Nova Ascra.

— Não desonrem o templo! Façam os operários sair de


lá! — grita Cronos.

Todos os guardiões ouviram, mas o fervor do sangue em


suas veias os deixa entorpecidos. Estão prontos para o
combate, por maior que venha a ser. Prontos para usar
toda a força. Os guardiões próximos ao centro do pelotão
erguem um aríete, um tronco enorme para derrubar
portões, que eles carregavam escondido. Apontam o
aríete para os portões do templo. Marcham em sincronia,
fazendo a terra tremer.
59

O s portões do templo pulsam. O aríete ataca ao ritmo


de um enorme e vagaroso coração. A fresta que se
abre entre as duas enormes portas dá aos operários, por
uma fração de segundo, um relance do Obelisco de
Cronos iluminado pelos últimos raios de sol do dia.

Os pulsos dos operários aceleram. Hormes pede a todos


que se acalmem, mas ele mal consegue controlar a
tensão em si mesmo. A cada pulsar do portão, os
guardiões gritam mais forte.

— Nós sabemos o que fazer, não é? — grita Hormes.

Os operários mais próximos ao portão levantam escudos


feitos de capôs de automóveis e boleadeiras, feitas de
correias, fios grossos ou qualquer coisa que pareça uma
corda amarrando duas esferas, uma em cada ponta, de
metal retorcido. Confiantes, eles acenam positivamente
para Hormes. Outros recuam, preferindo não estar na
vanguarda quando os portões se abrirem. Os mais
corajosos se preparam. Não há escudos nem boleadeiras
para todos. Os que têm escudos protegem os que nada
carregam.

Hormes, Calina, Axion e Hyp, à frente dos operários,


veem os portões baterem. Eles parecem frágeis contra o
aríete, mas retornam à posição firme de antes. Cada vez
que o portão volta à posição fechada, recebe um golpe
mais forte, vindo do lado de fora.

— Quanto tempo esses portões aguentam? — pergunta


Axion.

— Eles não foram feitos para a guerra — responde


Calina.

— Cadê o seu Deus Nomos? Ele existe, não existe? —


indaga Hyp.

— Existe. Eu também queria saber por que ele está


demorando tanto. É a primeira vez que reunimos tanta
gente no templo para chamá-lo. Ele já deveria ter
chegado — estima Calina.

— Uma ajudinha divina seria muito útil. Eu não estava


pronto para enfrentar um deus. Cronos está do outro lado
da porta — diz Hormes, baixinho, para que apenas Calina
possa ouvir.

Calina, desta vez, não tem palavras de conforto para


oferecer a Hormes.

Os portões recebem mais golpes. Golpes mais fortes.


Mas não cedem.

Os golpes cessam.

Os operários escutam o eco da última batida na porta se


dissipar pelo templo. Cada operário pode escutar seu
próprio coração pulsando acelerado. Após alguns
instantes de silêncio, expiram longamente. Abaixam as
armas.

— Desistiram? — pergunta Calina.

— Não. Mudaram a estratégia — responde Axion.

Escuta-se uma voz grandiloquente reclamar do lado de


fora:

— Será que eu tenho que fazer tudo sozinho?!?

É a voz de Cronos.

As portas irrompem subitamente após o estrondoso


golpe do deus gigante. Cronos é tão alto quanto o
enorme portão. Por baixo de suas pernas entram os
guardiões, com martelos, lanças, revólveres, escudos e
boleadeiras. Cronos logo percebe que não pode ir além
da porta, pois as colunas internas do templo são muito
estreitas para alguém do seu tamanho. Então, com seus
braços invisíveis, segura a porta aberta para os
guardiões entrarem.

Ao olhar para baixo, vê a armadura dourada de Jasão


entrar no templo. Cronos lhe diz:

— Você sabe o que fazer. Não destruam o templo do meu


filho.

— Sim, senhor — responde Jasão.


— E dê um jeito de prender aquele ali — Cronos aponta
para o inventor prateado.

— Quem, senhor?

— Aquele para quem estou apontando, ora!

— Senhor, sua mão é invisível... — diz Jasão.

Cronos estala sua mão na própria testa e escorre os


dedos pelo rosto, expirando sem paciência. Jasão não
entende o que está acontecendo com o rosto da
divindade, que parece se deformar.

— Prenda o homem prateado que roubou os planos de


Theceo. Entendeu agora?

— Entendi. Sim, senhor! — Jasão, então, autoriza os


guardiões a atacar.

— É agora! — grita Hormes.

Os operários da linha de frente reerguem seus escudos.


Os guardiões lançam seus martelos e lanças por cima,
em direção aos operários que estão no meio do salão. Por
baixo, atacam com revólveres.

Porém, os martelos e as lanças param e ficam suspensas


no ar. Os tiros não alcançam seus alvos. As balas caem
no chão, desmoralizadas. Calina, com os braços
estendidos, sustenta enormes mandalas brilhantes, como
escudos, que paralisam as armas e os projéteis atirados
pelos guardiões.
— Não haverá guerra no Templo de Nomos! Tenham
respeito! Os operários vieram pedir a mudança da lei. Se
vocês querem algo diferente, digam o que é! Mas façam
isso pacificamente! Aqui é o Templo da Lei! — Calina
sente sua fé aumentar, pelo reflexo de suas palavras.
Suas mandalas se tornam mais fortes. Aguentam mais
golpes de martelo e mais tiros de revólver.

Mas Cronos a olha diretamente. Ela se lembra que não é


uma deusa. É apenas uma serva. O que os deuses dão,
eles podem tirar.

— Guardião, ensine aquela sacerdotisa a respeitar um


deus.

Jasão traduz o comando. Os guardiões apontam suas


armas e atiram martelos e lanças em direção a ela.

Os tiros, martelos e lanças atingem com força a mandala


que protege Calina. Ela une as mãos diante do rosto,
concentrando suas forças para sustentar sua defesa.

— São muitos! Preciso de ajuda!

Hormes olha para os operários. Estende os braços


enfaixados e aponta para os guardiões.

— Agora!

Os operários lançam as boleadeiras de ferro-velho contra


os guardiões, sem muita habilidade. Muitas se perdem,
acertando paredes ou colunas. Algumas se enroscam nas
pernas dos guardiões, outras nos braços deles. Os
guardiões atingidos caem ou deixam suas armas caírem.

Calina sente que a pressão dos tiros, martelos e lanças


contra suas mandalas diminui. Retoma fôlego.

— Hormes, não podemos travar uma guerra aqui dentro


— reclama a sacerdotisa.

— Não vamos ferir ninguém, Calina. Mas não podemos


deixá-los nos ferir também — pondera o inventor de
prata. — Além disso, estamos protegendo o templo, não
é? Espero que Nomos compreenda.

“Também espero”, pensa Calina.

Axion lança boleadeiras. Ele, sim, esbanja habilidade.


Todas as suas boleadeiras amarram braços de seus
antigos companheiros de Guarda, imobilizando-os.

— Tomem a opinião pública na sua cara!!! — grita Axion,


entusiasmado com a precisão de seus lançamentos.

— Sem provocações, Axion — reclama Hormes.

— Ops... Desculpe... Eu me empolguei.

Hyp põe sua máscara. Recua. Mete-se no meio da


multidão de operários. Pede a um deles que lhe ofereça
apoio. Ela corre por cima das costas do homem e, com
um salto, alcança a metade da altura de uma coluna
interna do templo. Agarrada à coluna, contorna-a e se
lança, saltando de uma para a outra, até alcançar uma
coluna bem próxima aos guardiões. Ela salta. Aterrissa
sobre os ombros de um guardião de bronze. Toma
impulso e salta novamente, caminhando por ombros e
capacetes de guardiões como quem brinca de se
equilibrar em tocos de madeira.

Os guardiões reagem. Se antes atiravam contra os


operários, agora ocupam-se de lançar martelos e
boleadeiras contra a Anansi, que salta por cima do
pelotão. Decidem atirar com revólveres. Os tiros
ricocheteam nas paredes e colunas do templo. Alguns
acertam Cronos, que protege seu rosto com a mão
invisível. Ele grita, furioso:

— Prestem atenção no que estão fazendo! Controlem


essa delinquente!

Um guardião de ferro aponta para os elos de correntes


pendurados nos pulsos e tornozelos de Hyp e diz:

— Ela é a Anansi que fugiu da Sede da Guarda. Vamos


prendê-la!

As boleadeiras e os martelos lançados contra Hyp caem


sobre outros guardiões. Alguns se irritam com a
estupidez dos seus colegas:

— Acertem a Anansi! Não os seus companheiros!

Hyp se diverte com o caos que se forma. Vendo abrir um


espaço circular entre os guardiões, atrapalhados com os
golpes recebidos de “fogo amigo”, ela decide mostrar o
que sabe fazer. Aterrissa no centro da roda.

Todos olham para ela. Um guardião de ferro, sem


titubear, lança uma boleadeira. Hyp se esquiva, girando
o corpo. Sob a máscara, ela ri.

A boleadeira acerta um guardião de bronze do outro lado


da roda.

Hyp cruza a mão direita por trás do cotovelo esquerdo e


manda uma banana para o guardião que lançou a
boleadeira.

Outro guardião de bronze lança um martelo contra Hyp.


Ela se esquiva, rolando no chão. O martelo se choca
contra o rosto de um guardião de ferro do outro lado da
roda e ele cai, desacordado.

Hyp levanta a máscara e manda um beijinho para o


guardião que lançou o martelo.

Os guardiões percebem que é exatamente esse o intuito


de Hyp: fazer com que se acertem uns aos outros.
Enquanto os guardiões estão distraídos com ela, os
operários se recuperam da primeira onda de ataques.

Um guardião de bronze, abrindo os braços para afastar


os colegas, encara Hyp. Ele gira seu martelo no ar, mas
ao invés de acertá-la por cima, passa o martelo rente ao
chão, para derrubá-la.
Hyp, percebendo o movimento, salta, gira seu corpo no
ar com facilidade, toca o chão com o pé esquerdo e
chuta o peito do guardião com o pé direito.

O guardião de bronze dá alguns passos para trás,


somente parando quando os seus companheiros o
apoiam, evitando uma queda. Seu orgulho está ferido.

Mais guardiões se aproximam para lutar com ela. Quatro


tentam atacá-la ao mesmo tempo, mas logo percebem
que isso torna mais fácil o trabalho de Hyp de fazê-los se
acertar mutuamente.

Hyp se move como um furacão que se esquiva de todos


os ataques. Nada a atinge. Lutar contra ela pode levar os
guardiões a um fim muito humilhante.

Dário resolve agir. Estende seus braços de prata e abre


caminho. Dá um salto enorme, com o martelo em suas
duas mãos, apontado para esmagar Hyp no meio dos
guardiões.

Ela rola por baixo das pernas de um guardião de bronze e


escapa do golpe. A martelada de Dário arrebenta o chão
de mármore, levantando as pedras ao redor do ponto de
impacto e lançando os guardiões mais próximos a dois
metros de distância. Ele se levanta e gira novamente seu
martelo no ar, com os olhos fixos em Hyp.

“Ela não vai me fazer de bobo como fez com Axion”,


pensa Dário. Ele corre em direção à Anansi mais uma
vez, segurando o martelo em suas mãos com toda a
força.

Um guardião de ferro, tentando desviar de boleadeiras


arremessadas pelos operários, entra na frente de Dário,
obstruindo a sua visão. Hyp aproveita a oportunidade
para correr em fuga, saltando por cima dos ombros e
capacetes de guardiões.

Dário martela com força o guardião que o atrapalhou,


arremessando-o para cima de outros. Abre caminho mais
uma vez e toma impulso. Vê Hyp saltar bem alto, girando
o corpo no ar, rumo ao grupo de operários, procurando
proteção. Dário salta atrás dela, mais veloz.

— Você não vai conseguir fazer uma curva em pleno ar,


Anansi maldita — vocifera Dário, atingindo Hyp com o
martelo e arremessando-a contra uma coluna.

Até aquele momento, Hyp achou que nunca seria


atingida pelo martelo de um guardião. Mas ela é atingida
no estômago, enquanto seu corpo gira no ar. A dor é
intensa. Ela sente como se seus órgãos tivessem sido
esmagados. As costas, a cabeça e os membros batem na
coluna do templo. A Anansi não sabe qual parte do corpo
dói mais. Mas não acabou. Tonta, ela não consegue se
agarrar à coluna... e sente seu corpo cair. O próximo
impacto logo virá, pois ela apenas consegue sentir que
está caindo, sem controle, de uma altura enorme.

Axion corre e se lança para segurá-la, antes que atinja o


chão. Ele apoia seu braço direito nas costas da garota e
sustenta a sua cabeça com a mão. Então, usando a mão
livre, retira a máscara dela para que possa respirar
melhor.

— Você está bem?

— Oi, soldadinho. De perto, você não é tão feio...

— Acho que isso quer dizer que sim.

Axion escuta alguém gritar “Cuidado!” e corre,


carregando Hyp. Dário vem furioso, saltando e
empurrando os operários. Axion entrega Hyp para que
receba os cuidados de operários do fundo do templo. Tem
apenas o tempo de se virar para se desviar dos ataques
de Dário.

— Chegou a hora de acertarmos as contas, Axion — avisa


Dário, girando o martelo prateado no ar, rebatendo
boleadeiras arremessadas pelos operários.

— Não precisa ser assim, Dário. Vamos conversar? —


retruca Axion, lembrando-se que havia prometido a
Hormes que não lutaria no templo.

— Já conversamos demais, traidor! — Dário agita o


martelo, mergulha-o em direção a Axion, mas o ex-
guardião se esquiva.

Axion cata dois martelos, um de bronze e um de ferro,


que estavam caídos sobre o chão. Segura um em cada
mão e diz para si mesmo:
— Desculpe, Hormes, mas vou descumprir o nosso
combinado. Tenho que lutar.
60

A xion, com os martelos de ferro e de bronze em


punho, esquiva dos golpes do martelo prateado de
Dário. O guardião de prata tenta manter sua raiva sob
controle para não atingir o mármore do Templo de
Nomos. Mas a raiva vence. O mármore ao seu redor
ganha fraturas.

— Eu acreditei em você! — Dário gira o martelo no ar. —


Eu o defendi! Quando todos diziam que você trairia a
guarda, eu o protegi! E o que você fez?!? VOCÊ TRAIU A
GUARDA!!! Eu fiz papel de palhaço! Eu devia tê-lo
expulsado na primeira vez que você desobedeceu!!!

Dário mergulha o martelo sobre Axion. Axion cruza seus


martelos recém-adquiridos, segurando o golpe com o
eixo do “x” formado pelos cabos. Firma seus pés no chão
para aguentar a pressão da força de Dário.

— Eu quebrei meu juramento porque ele me levava a


trair a própria razão de ser um guardião, Dário — justifica
Axion. — Qual é o sentido de ser um guardião se apenas
massacramos as pessoas que deveríamos proteger?

Dário levanta o martelo. Axion respira, desfazendo o “x”


que o protegia. Dário olha Axion no fundo dos olhos. Algo
ferve no guardião de prata. Dário gira o corpo e passa o
martelo rente ao chão. Axion não tem a mesma
habilidade que Hyp para desviar de golpes assim e o
martelo acerta os seus pés. Axion cai, batendo as costas
no chão.

— Você protege quem seus superiores disserem que


deve ser protegido. É assim que funciona — Dário para,
pensa e tenta melhorar o que disse. — Protegemos a
todos, mas alguns são nossa prioridade...

— Vocês servem a pessoas que não precisam ser


protegidas. Vocês servem a Theceo, ao diretor do
hospital, a Cronos... Se preciso, massacram quem
atrapalhar os planos deles. Esse é o seu papel, Dário? É
para isso que você escolheu ser guardião? — pergunta
Axion, engatinhando de costas e tentando se levantar.

Dário responde com outro golpe. Ao defender, usando


seus martelos, Axion percebe que o último golpe não é
tão forte quanto os anteriores.

Jasão, que já tinha perdido sua lança em uma mandala


de Calina, agarra seu martelo com as duas mãos e,
saltando como apenas os guardiões de ouro conseguem
saltar, vem ajudar Dário a punir Axion.

— Espero que agora você escute o que eu digo, Dário! Eu


avisei que ele trairia a Guarda. Já vi isso acontecer antes
— Jasão gira o martelo em direção a Axion; o ex-guardião
desvia, dando um golpe contra o cabo da arma do
guardião de ouro.
Dário novamente gira seu martelo rente ao chão, mas
desta vez Axion percebe o movimento e contragolpeia o
martelo de prata, saltando para trás e tomando
distância.

— Como você sabia, Jasão? — pergunta Dário.

— É sempre assim. Axion é desses guardiões que


pensam que a missão da Guarda é defender fracos e
oprimidos. Ele se compadece da pobreza e não enxerga o
valor dos grandes homens — responde Jasão. —
Servimos aos grandes homens, protegendo-os contra a
inveja dos fracos.

— Você acabou de confirmar o que eu acabei de dizer ao


Dário, mas usando outras palavras — provoca Axion.

— O quê? — Jasão olha para Dário.

Dário para e abaixa o martelo de prata, olhando para


Jasão. Axion não está mais se defendendo. Dário não
consegue mais atacar.

— Dário... — Jasão não sabe como reverter o efeito de


suas palavras. Sabe que Dário está confuso. No meio de
uma batalha, o pior que pode acontecer com um
guardião é não saber o que fazer. É preciso trazer o
guardião de prata de volta à realidade.

— Dário, é por isso que abandonei a Guarda. Eu percebi


que eu não estava fazendo bem às pessoas. Você precisa
fazer a sua escolha, agora — Axion encoraja o velho
amigo.

— Guarde essas palavras venenosas para você —


protesta Jasão sob o capacete dourado, batendo o
martelo com força contra o peito de Axion. O ex-guardião
capota no chão, mas logo se reergue.

Dário olha em volta. Vê Cronos segurando o portão


central do templo para os guardiões entrarem. Vê Calina
tentando deter tiros e golpes de martelo com suas
mandalas. Vê Hormes, com os braços enfaixados,
liderando os operários. Vê os operários lançando
boleadeiras, encurralados dentro do templo. Vê os
guardiões entrando no templo e ganhando o território.

— Não posso fazer isso. — Dário deixa o seu martelo cair,


trincando o mármore sob seus pés. Ajoelha-se. Põe as
mãos sobre os joelhos, disposto a aceitar os golpes que
vierem de Axion ou de Jasão. Tanto faz. Dário não sabe
de que lado está.

— Esse foi o maior erro que você cometeu na sua vida,


Dário! — Jasão gira seu martelo dourado no ar,
apontando-o para Dário. Axion corre e tenta golpear o
cabo de ouro, mas não é rápido o bastante. Dário
aguarda o golpe.

Dário contina aguardando. Mas o golpe não vem.

Uma mandala segura o martelo de ouro. Calina, com um


braço estendido para a entrada do templo e outro
apontando na direção de Jasão, impediu o que seria um
golpe furioso e fatal.

— Eu não permito isso no Templo de Nomos! — ela grita.

Dário agradece a Calina com um olhar amistoso. Ela


dispensa agradecimentos, em pensamento. Fez apenas o
seu dever. Vê Axion segurando o martelo sem intenção
de golpeá-lo. Vê Jasão irritado com a mandala que
paralisou seu martelo. O guardião de ouro acusa:

— TRAIDOR!

Dário se levanta, devagar. Ele caminha até Jasão, que


tenta inutilmente retirar o martelo da mandala de Calina.

— Estamos lutando do lado errado, Jasão. Os operários


são pais, mães e irmãos de nossos guardiões. Somos
como eles. Podemos acabar com isso sem ferir mais
ninguém — diz o guardião, tocando o ombro de Jasão.

Jasão larga o martelo, que flutua no ar, preso pela


mandala. Saca de sua cintura uma boleadeira.

— Traidor... Não acredito que confiei em você... Eu devia


saber... — murmura Jasão. — Isso é culpa sua, Axion.
Você é o pior guardião que já tivemos. Seus pensamentos
são perigosos! Você não passa de escória!!!

— Vindo de você, encaro como um elogio — responde


Axion, com tranquila ironia.

O sangue dourado de Jasão ferve:


— Vocês vão pagar, desgraçados!

Jasão gira a boleadeira e a lança ao ar. Ela atravessa o


templo, com direção certa.

Calina está sobrecarregada, sustentando muitas


mandalas ao mesmo tempo. Ela sente uma corda
circundar suas pernas. É a boleadeira lançada por Jasão.
A força é tamanha que Calina se desequilibra e cai.

As mandalas se apagam.

Os guardiões urram.

Um guardião de bronze, afoito para mostrar sua força,


salta em direção a Calina, com o martelo apontado para
esmagá-la.

Hormes oferece seus braços.

Calina segura os braços de Hormes com força. A dor que


ele experimenta é lancinante. Mesmo assim, arrasta a
sacerdotisa com as pernas amarradas para longe do
guardião. Sente os ligamentos de prata quase
arrebentarem e as queimaduras arderem sob os
curativos.

O martelo do guardião de bronze acerta o chão,


trincando o mármore.

Fora de perigo, Calina consegue soltar a boleadeira que


prendia suas pernas. Levanta e abraça Hormes. Esconde-
se atrás dele. Ela vê que os operários estão encurralados
e os guardiões ganham domínio do templo.

— O que vai ser de nós? — pergunta Calina. —


Fracassamos, não foi?

— Não sei. Só sei que essa é a hora perfeita para Nomos


aparecer — responde Hormes.

Todos os vitrais do templo se quebram ao mesmo tempo.


Tomados pelo susto, operários e guardiões fazem uma
trégua instantânea, tentando entender o que está
acontecendo.

Pelos vãos dos vitrais entram jovens de pele escura,


mascarados, com a estranha habilidade de andar pelas
paredes e colunas. Eles correm em direção aos
guardiões.

Hyp, recobrando a consciência, se alegra em ver seus


amigos.

— Não é Nomos, mas são os Anansis — comemora


Hormes. — Uma boa ajuda.

Boleadeiras e martelos são inúteis contra os Anansis.


Eles desviam como se estivessem apenas brincando. Mas
eles respondem com ataques verdadeiros, lançando de
volta as boleadeiras contra os guardiões, amarrando-os
até que não possam mais reagir.

Junto dos Anansis vem Kyongozi. Ele reconhece a figura


prateada de Hormes no meio da multidão e vem logo
falar com ele.

— Eu não esperava que vocês viessem — diz Hormes.

— Nem eu — admite Kyongozi. — Mas Babu tem razão


em uma coisa: precisamos vencer esses guardiões. Essa
é nossa melhor chance.

— Obrigado — agradece Hormes.

— Não pense que faço isso por você. Faço pela minha
lavoura. Vou ensinar a esses guardiões que jamais
devem pensar em destruir a plantação de Palami
novamente.

— Ainda assim, obrigado, Kyongozi.

Kyongozi põe sua mão sobre o ombro de Hormes.

Alguns guardiões, tentando acertar os Anansis, sacam


armas de fogo e atiram. Mas é como se uma centena de
“Hyps” os fizesse acertar uns aos outros. Os tiros
ricocheteiam nas paredes, ferem as colunas, quebram
vasos e estátuas.

— Parem! Mostrem respeito ao templo do meu filho!


Mostrem respeito pela Lei! — exige o Deus do Tempo. —
Ataquem o líder deles!

Os guardiões desistem de atacar os Anansis e fecham o


cerco ao redor de Hormes, que protege Calina com seus
braços feridos.
Um guardião de prata se aproxima de Hormes e, sem
fazer muita força, separa-o de Calina.

— Não queremos ferir a sacerdotisa. É você que


queremos, Hormes Aedo.

Hormes sabe o que está prestes a acontecer. Ele enche


os pulmões e diz, bem alto, para todos escutarem:

— Parem tudo, amigos.

Os operários silenciam. Jasão, Dário e Axion — que, sem


armas, trocavam socos e chutes entre si — param. Os
Anansis, que corriam, saltavam, esquivavam dos
guardiões e contra-atacavam, param.

Hormes usa as costas das duas mãos para abrir a bolsa


de couro que carrega. Puxa o megafone queimado e o
sustenta frente ao rosto, pressionando o cabo com os
dois punhos. Dói segurar assim. Ele diz:

— Viemos pedir para falar com Nomos, mas ele não


apareceu. Então, defendemos o templo e a nós mesmos.

— Não diga besteira. Vocês estão aqui para nos atacar —


responde Cronos.

— Não, não estamos. E não atacaremos.

O guardião de prata diante de Hormes olha para Cronos.

Cronos acena positivamente com a cabeça. O guardião


entende o comando. Dá um soco potente no estômago
de Hormes. O engenheiro de prata cai sobre os joelhos. O
megafone escapa de suas mãos.

— Sua fé em suas ideias tem um limite, Hormes — diz


Cronos, garantindo que todos no templo o escutem.

Os Anansis se movimentam para abrir caminho entre os


guar­diões e ajudar Hormes. Operários giram boleadeiras.
Axion e Dário se afastam de Jasão e correm para ajudar
Hormes.

Hormes arrasta sua cabeça pelo chão, aproximando-a do


megafone. Ele pede:

— Parem todos. Não estamos aqui para atacar.

O guardião de prata chuta as costas de Hormes. Ele


gritaria de dor, mas não encontra fôlego para isso.

— Parem com isso, por favor! — implora Calina.

— Estou punindo quem desobedece à minha Lei —


responde Cronos.

— Não, Cronos — Hormes respira e fala o mais alto que


pode, longe do megafone. — Viemos pedir a Nomos uma
lei justa. É o que queremos. De que adianta a Lei de
Cronos, se ela escraviza a maioria e enriquece a poucos?

Cronos bate o pé no chão. O templo inteiro treme.

Hormes vira e se levanta, ficando sobre seus joelhos.

O guardião de prata aguarda novas ordens.


— Se Hormes não fizer nada, não vamos vencer Cronos...
— cochicha um operário.

— Esse é o seu grande líder? — resmunga Kyongozi,


tendo escutado o operário. — Ele está entregando tudo
para Cronos, sem lutar.

Os cochichos se espalham, mas todos tentam falar baixo,


para que nem Cronos nem Hormes os escutem.
Operários, Anansis, guardiões... Todos concordam. Cronos
vencerá. Basta assistir.

Cronos sorri. Não há diferença entre temor e fé.


Conforme as pessoas acreditam em sua vitória, ele se
sente mais forte. Por isso, cresce.

— Está na hora de lhe ensinar a ter respeito pelos deuses


— diz o Deus do Tempo.
61

H ormes ainda recupera o fôlego perdido, após os


golpes recebidos. Cronos estica o braço invisível na
direção do jovem e, com as costas da mão, afasta o
guardião de prata, como se fosse um soldadinho de
brinquedo. O guardião de prata se sobressalta por não
ver de onde vem a força que o empurra.

Hormes entende que Cronos está tentando alcançá-lo.


Ele foge, engatinhando com um cotovelo no chão e uma
mão no peito, catando cada bocado de ar que consegue
inspirar no caminho. A mão invisível de Cronos o segue,
mas o enorme braço fica preso entre as colunas internas
do templo.

Cronos se ajoelha e estica o braço invisível, mas não


alcança Hormes. O inventor de prata, arrastando em
direção ao fundo do templo, sente apenas um forte vento
se agitar diante de si. Mas sabe o que Cronos está
tentando fazer.

Cronos faz cálculos sem números. Se derrubar apenas


uma coluna, talvez não destrua o templo. Seria o
suficiente para entrar e alcançar Hormes. Cronos, então,
força o seu corpo contra uma das colunas, até que ela
trinca, racha, estilhaça, cai e se desmantela. Assim, sua
mão chega mais perto de Hormes.
Acima da coluna ruída, porém, o teto desaba e
estrondeia ao cair sobre a cabeça de Cronos. O deus se
irrita com a pancada. A luz da lua invade o templo pelo
vão deixado no teto. Guardiões, Anansis, operários,
Calina... Todos correm para longe do teto desabado. Mas
novas rachaduras aparecem, convidando a luz da lua a
entrar um pouco mais.

Jasão se lembra de um antigo ensinamento da Guarda:


“Não há vitória se não houver guardiões vivos para
conquistá-la”. Ordena, gritando:

— Corram todos! O teto vai desabar!

Os guardiões evadem pela porta da frente do templo,


pois é a saída mais próxima para eles. Operários e
Anansis correm para os vitrais quebrados, saltando para
fora, desordenadamente. Alguns se lembram que há uma
saída pelo fundo do templo, atrás da estátua de Nomos.
É para lá que correm.

Porém, poucos conseguem sair rapidamente. As


aglomerações nas proximidades das saídas são
inevitáveis. Há muita gente, mas poucas passagens.

Hyp, ignorando as dores em seu corpo, tenta correr


contra o fluxo da multidão, em direção a Hormes. Arrisca
um salto para agarrar-se a uma coluna. O salto não foi
digno de uma Anansi, o corpo todo reclama de dor. Ela
abraça uma coluna e a escala, devagar. Calcula se
conseguirá saltar até a próxima coluna.
Enquanto isso, Jasão se afasta de Axion e Dário. A
prioridade agora é retirar os guardiões do templo, para
que possam continuar a batalha do lado de fora.
Prioridade maior ainda é salvar a própria vida.

Mais uma pedra do teto desaba, quase esmagando


Hormes. Agora, Cronos sabe que, se quebrar mais uma
coluna, o templo virá abaixo.

Hyp salta para a próxima coluna. Ao agarrá-la, o corpo


bate contra a pedra e reclama de dor. Ela espera que a
dor volte a ficar suportável. Ela salta, alcançando a área
central do templo, agora esvaziada de operários, que
procuram uma forma de sair.

Dário, o guardião de prata, não sabe para onde correr. O


amigo Axion percebe sua confusão. Para Dário se sentir
seguro, ele precisa receber uma missão. Axion, então,
diz:

— Dário, leve a sacerdotisa Calina para um lugar seguro.

— E você?

— Tenho que ajudar Hormes.

Calina vê o guardião de prata se aproximar, correndo. Por


ato reflexo, ela lança uma mandala. Dário, paralisado,
tenta explicar:

— Eu vim ajudar!
— Obrigada, guardião, mas minha missão neste templo
ainda não acabou — responde Calina. — Não sairei daqui.

Dário suspira. A sacerdotisa é tão rebelde que se recusa


até a ser ajudada. Dário sente que já fracassou logo em
sua primeira missão após trair a Guarda. Mas acha um
meio:

— Então, ficarei aqui para protegê-la. Por favor, tire-me


desse feitiço!

Calina assente e desfaz a mandala.

Dário sente seus pés novamente firmes sobre o chão. Ele


vê uma rachadura se abrir no teto. Sem pensar duas
vezes, salta sobre Calina, retirando-a da zona de perigo,
deixando a pedra espatifar no chão de mármore,
lançando estilhaços em todas as direções. Calina não se
feriu.

Cronos se move com cuidado, para que o templo não


venha abaixo. Ele rasteja para passar pelas colunas sem
derrubá-las.

— Hormes, você levou isso às últimas consequências.


Veja o caos que você trouxe à cidade. Você não passa de
um sonhador, que juntou todas essas pessoas em torno
de uma falsa promessa.

Todos ouvem a fala de Cronos. Todos, sem exceção.


Silenciosos, olham para Hormes. As promessas eram
falsas?
Ouve-se apenas o estalar de pedras do teto, ameaçando
ruir. Hormes está ao centro do templo. É fácil vê-lo, pois
seu cabelo de prata reflete e espalha a luz da lua. Mas
não é fácil imaginar o que ele está pensando.

Cronos para de se mover. Não é mais necessário que


arrisque derrubar outra coluna. A batalha já está vencida.
Escolheu as palavras certas para deixar Hormes sem
ação e sem moral. Permanece onde está, com o quadril
entre colunas, esperando que sua vitória seja
confirmada, para então sair sem causar mais danos ao
templo.

Axion e Hyp se aproximam de Hormes, devagar. Ninguém


mais está fazendo qualquer movimento ameaçador.
Todos ao redor têm os braços abaixados. Axion toca o
ombro de Hormes, convidando-o a sair dali. Hormes, com
um giro de tronco, recusa.

Hormes retira o seu sobretudo manchado e puído. Deixa-


se servir de espelho para refletir a luz lunar. Estende o
braço, apontando para o megafone caído no chão. Axion
o pega e segura próximo à boca de Hormes.

O inventor ergue os olhos e encara Cronos:

— Não fui eu quem fez falsas promessas, Cronos. Foi


você. Você prometeu que a vida seria mais próspera se
todos trabalhassem bastante. Você prometeu que a
recompensa viria pelo esforço, e que essa recompensa
seria justa — Hormes olha para os operários ao redor. —
E essas pessoas? Elas conheceram essa prosperidade?
Elas trabalham 16 horas por dia, mas o que ganham em
troca? Elas ganham mais trabalho. Ganham metas de
produção mais difíceis de alcançar. No fim das contas,
Cronos, você falhou. A Ordem que você criou não
funciona. Sua promessa de prosperidade não foi
cumprida.

Os operários lançam olhares julgadores contra Cronos.


Os Anansis também. Até mesmo alguns guardiões o
fazem.

Cronos sente algo doer em seu peito. Não consegue falar.

Hormes continua:

— Você conseguiu fazer com que a jornada de trabalho


estruturasse toda a nossa sociedade. Porém, esqueceu
que “ser humano” não é apenas trabalhar. O meu sonho
é, apenas, uma jornada mais justa, com tempo para
vivermos enquanto ainda somos jovens. Para cuidarmos
de nossas famílias e de nós mesmos.

Cronos encolhe sob os olhares de operários, Anansis e


guardiões. Aperta a mão contra o peito.

Hormes percebe que há algo de errado. Cronos ainda


guarda algum segredo. Ele se lembra de Calina ter falado
sobre o acordo entre Cronos, Nomos e Gaia. E que havia
algo errado naquela história. O que será? Hormes
continua:
— Diga a verdade, Cronos. Não houve acordo nenhum
entre você, Nomos e Gaia, não é? Você está aqui,
sozinho. Isso tudo, essa ordem social com tempo
controlado e raças privilegiadas, tudo isso foi ideia sua,
só sua, não foi? Onde está Nomos? Onde está Gaia?

A dor no peito de Cronos aumenta. O Deus do Tempo


sente que a fé das pessoas está diminuindo rapidamente.
Ele não é mais uma divindade temida. Já não é um deus
amado. Cronos encolhe. A dor no peito aumenta. O peito
brilha. Ele tenta falar, mas não consegue.

Um relâmpago sai do peito de Cronos e sobe pela


abertura no teto do templo. Hormes dá um salto para
trás, assustado, seguido por Axion e Hyp.

— ARRGGHH! — Cronos solta um grito medonho. Há algo


dentro do peito dele, querendo sair. Ele bate em seu
peito, tentando impedir... o que quer que aquilo seja. As
colunas balançam, atingidas pelos braços invisíveis.
Cronos não tem mais medo de destruir o templo.

O pânico retorna. As pessoas correm para escapar por


portas e janelas. As colunas desabam, trazendo consigo
porções generosas do teto. Calina, sob a guarda de
Dário, lança mandalas para todos os lados que consegue,
segurando os enormes blocos que esmagariam pessoas
que ainda tentam sair.

Axion, por impulso, cata um martelo de ferro do chão,


gira-o e atira contra Cronos. Acerta em cheio a luz que
sai do peito do Deus do Tempo.
A dor se torna insuportável. Cronos grita e se joga no
chão. Aperta as mãos invisíveis contra o peito. Raios,
cada vez mais fortes, saem dali.

— Rá! Derrubei um Deus! — vangloria-se Axion.

— Acho que não foi sua martelada que derrubou Cronos,


não... — diz Hyp.

— Calina, o que está acontecendo? — pergunta Hormes.

Calina, sustentando mandalas, vê os raios saindo do


peito de Cronos. Arregala os olhos. Lembra-se de
histórias muito antigas e diz:

— Cronos costumava devorar outros deuses...

— Eu, hein! E vocês ainda dizem que nós somos os


selvagens? — reclama Hyp.

— Quer dizer, então, que esse tempo todo... — Axion não


consegue completar a frase.

Em meio a uma tempestade de raios, emerge do peito de


Cronos a figura de um homem forte, de cabelos e barba
longos e grisalhos, usando uma túnica branca antiga.
Não é qualquer um. É Nomos.
62

–P ai — diz Nomos com uma voz ríspida, afastando-se


de Cronos.

Cronos não é mais um gigante do tamanho da porta do


templo. Ele e Nomos são um pouco maiores do que um
homem comum.

— Filho — responde Cronos com a mão invisível sobre o


peito, ainda suportando as dores de ter deixado Nomos
sair –, eu precisava trazê-lo de volta. Era hora...
Precisamos restabelecer a Ordem.

— EU NUNCA CONCORDEI COM A SUA ORDEM!!! —


Nomos, com um furioso soco cheio de relâmpagos,
arremessa Cronos contra uma coluna.

O templo treme. Mais pedaços do teto desabam.

— Tá na hora de a gente se escafeder — aconselha Hyp.

Hormes, Axion, Calina e Dário entreolham-se.

— Tá na hora de quê, garota? — pergunta Axion.

— VAMOS EMBORA PORQUE ESSE BARRACO VAI


DESABAR — grita Hyp. — Ou vocês planejam apartar a
briga desses dois aí?
— Eu não vejo como.

— Nem eu.

— Não mesmo.

Os demais concordam que aquela disputa entre os


deuses não é coisa que eles possam resolver.

— Vamos embora — Hormes dá o comando.

Calina conduz seus amigos para o portão da frente, sob


uma mandala.

Porém, antes de saírem, Nomos voa por cima deles,


arremessado por Cronos. Na queda, ele derruba uma
coluna próxima dos amigos em fuga.

— Precisa de ajuda? — pergunta Axion, esquecendo-se


de que há poucos instantes havia concordado em não
entrar na briga dos deuses.

— Eu dou conta — garante Nomos. — Apenas tenham fé


em mim.

Os mortais em fuga aceitam o pedido de Nomos. Eles


atravessam o portão e partem rumo à ágora.

Cronos caminha sobre os escombros do telhado do


templo, fazendo os fragmentos de mármore estalarem no
chão.

— Filho, veja o que acontece quando deixamos os


mortais decidirem seus rumos. É o mais absoluto caos!
Eu e você, unindo forças, manteremos a Ordem e
obteremos a obediência de todos. Una-se a mim. Desta
vez, por sua livre vontade. Haverá recompensas.

Nomos se levanta:

— Não pense que eu acredito em suas MENTIRAS!!!

Os olhos de Nomos brilham. Raios escapam por suas


mãos, iluminando o templo vazio. Veloz e brilhante como
um relâmpago, Nomos salta em direção a Cronos,
arremessando-o contra a enorme estátua ao fundo do
templo. A estátua, que homenageia o próprio Nomos,
parte-se na altura dos joelhos, desabando e se
estilhaçando no chão.

Do lado de fora, veem-se luzes escapando pelo portão,


pelas janelas quebradas, pelo buraco que se abriu no
lugar do teto. Pesadas nuvens negras se juntam sobre o
templo, escondendo a lua, trazendo mais raios para a
batalha.

Hormes, Axion, Hyp, Calina e Dário se afastam do


templo, andando o mais rápido que podem. Na ágora, ao
redor do Obelisco de Cronos, todos aguardam. As
expectativas se misturam. Trabalhadores, Anansis,
guardiões, todos apenas assistem ao que acontece no
templo. Não lutam entre si. Afinal, não é todo dia que se
testemunha uma batalha entre deuses.

Diceosine discutira com Theceo durante toda a batalha


entre operários e guardiões. Ela se afasta e corre rumo a
Hormes.

— O que está acontecendo lá dentro? — pergunta.

Trovões estouram dentro do templo.

— Nomos está... — começa Hormes.

— Dando uma baita surra no Cronos! — termina Axion,


empolgado.

— É, isso... — Hormes concorda.

O jovem se endireita e, voltando-se para a multidão, diz


em voz alta:

— Atenção, todos! Precisamos manter a nossa fé em


Nomos! Ele pode vencer essa batalha e nos trazer uma
lei mais justa!

Os operários concordam. Concentram-se em Nomos,


para que ele tenha forças para vencer o tirano Cronos.

Os Anansis não sabem direito do que Hormes está


falando, pois aqueles não são seus deuses. Apenas ficam
para assistir ao espetáculo de raios e escutar os
estrondos da luta.

Os guardiões... esses estão confusos. Muito confusos.


Eles sempre pensaram que serviam a Nomos e Cronos ao
mesmo tempo, pois a lei era a de Cronos. Nunca
imaginaram que os dois deuses lutariam um contra o
outro. E agora? A quem devem servir?
Theceo, que mantém claros seus objetivos, dá uma
ordem a Jasão. O guardião de ouro assente e determina:

— Cerquem os traidores!

A maior parte dos guardiões nem se mexe. Alguns


poucos, sem muita convicção, posicionam-se ao redor de
Hormes e seus amigos.

— Diceosine, saia já daí — grita Theceo, indicando que


ela deve ficar a seu lado.

— Não, pai. Este é o meu lugar — responde a jovem aos


berros, tentando se fazer ouvir em meio ao barulho da
batalha que acontece no templo. — Eu não concordo que
você explore as pessoas da maneira como o senhor faz.
Já escolhi o meu lado.

Theceo agarra os cabelos brancos na própria cabeça. Sua


respiração é quente e bufante como a de um dragão.
Furioso, ele diz para si mesmo:

— Essa menina ainda vai acabar comigo! Onde ela


aprendeu a ser tão tinhosa?

Jasão aguarda. “Prendo a filha dele junto ou não


prendo?”, pensa. Mas Theceo está ocupado demais
arrancando tufos de cabelo e batendo os pés no chão,
enquanto grita coisas sem sentido. Não dará ordens. E a
Guarda, sem ordens, não age.

Ouve-se um enorme estrondo vindo do templo. Cronos


sai pelo teto, voando rumo às nuvens com os braços e
pernas entregues ao movimento.

Rápido e brilhante, Nomos vem logo atrás e apanha


Cronos em pleno ar. Com a mão esquerda segurando o
pescoço de seu pai, ele diz, com uma voz potente para
todos ouvirem:

— A humanidade não deve mais respeitar leis injustas


por mera adoração aos deuses.

— Você está louco! — Cronos segura o braço de seu filho,


afastando-o do pescoço para conseguir falar. — Sabe
onde isso vai dar!

— Eu sei do que você tem medo — responde Nomos,


estendendo a mão direita aos céus. — Eu também já
pensei como você um dia. Mas isso precisa acabar.

Um raio gigantesco sai das nuvens negras, seguido de


um trovão tão estrondoso que poderia ser ouvido a
quilômetros dali. Seguido pelo clarão, Nomos força
Cronos brutalmente para baixo, em rumo inequívoco ao
centro do templo, muitos e muitos metros abaixo deles.

Na ágora, Theceo desiste de arrancar os cabelos. Jasão


desiste de esperar ordens. Os guardiões que cercam os
“traidores” desistem de vigiá-los. Hormes e seus amigos
não tentam escapar, pois também desviam a atenção.
Todos fixam os olhos nos dois deuses que riscam o céu,
rumo ao chão, seguidos de relâmpagos e trovões.
Calina antevê que os deuses cairão sobre o templo.
Cobre o rosto, forçando-o contra o peito de Hormes.

Cronos, com o pescoço ainda apertado pela mão de


Nomos, sente que o chão está próximo. Nomos não cede.
Carrega seus raios para aumentar a força do impacto.

Os raios os alcançam.

A colisão é brutal. O barulho do impacto parece uma


erupção vulcânica sem precedentes. Os raios que Nomos
usa contra seu pai ofuscam os olhos dos espectadores na
ágora, que ainda sentem a forte ventania provocado pela
queda dos deuses. Pedaços de mármore voam pelos
céus, alcançando alturas e velocidades impressionantes.
Voam em todas as direções, e algumas alcançam o mar,
a muitos quilômetros dali.

Do templo, pouco sobra. Em seu lugar, surge uma


cratera, com círculos concêntricos formando degraus até
o fundo. Das colunas, pouco sobra; resta apenas o
suficiente para lembrar que naquele lugar houve um
templo. E, lá no fundo, está Cronos, caído aos pés de
Nomos.

— Uma lei injusta não é lei alguma — assevera Nomos. —


As leis devem nascer de acordos entre os homens, para
trazer paz à sociedade. É por isso que as leis devem ser
respeitadas. Porque elas pavimentam o caminho da paz.

— NÃÃÃOOO ! ! ! — grita Cronos. — A humanidade nunca


estará pronta para decidir seus próprios destinos! É por
isso que nós, deuses, existimos! Você vai destruir todo o
legado dos deuses!

Cronos reúne suas últimas energias e levanta, pé ante


pé, apoiando-se nos braços. Não mais invisíveis? Sim,
Cronos consegue ver seus braços. Não consegue mais
manipular os destinos da humanidade sem ser percebido.
Ele percebe também que seu filho Nomos está, agora,
muito mais alto.

Cronos desiste do combate. Anda calmamente, com os


braços outrora invisíveis abaixados, em direção ao seu
filho Nomos. Mas desvia, sem confrontá-lo. Escala as
bordas dos círculos da cratera, rumo à ágora.

Nomos vê que seu pai está combalido, derrotado,


incapaz de reagir. Deixa-o subir os degraus. Sentindo sua
força aumentar, Nomos consegue flutuar e segui-lo.

Degrau após degrau, o Deus do Tempo escala. Alcança o


último círculo, cuja borda coincide com o lugar onde
antes ficavam os portões do Templo de Nomos. Ainda é
possível ver os restos das paredes frontais do templo de
um lado e do outro, deixando ao meio o vão do portão.
Ao redor, veem-se os pés das colunas que seguravam o
frontão do templo. Ali Cronos se ergue. Caminha
devagar, olhando para a ágora lotada. Desce os degraus
da frente do templo.

Cronos vê Hormes e seus amigos cercados pela Guarda,


Theceo gesticulando como louco, Jasão paralisado e os
demais apenas olhando de volta aos escombros do
templo.

— Guardiões! O que vocês estão esperando? Prendam


esses traidores imediatamente! — grita Cronos.

Os guardiões percebem que Cronos foi derrotado na


batalha. Suas mãos são visíveis. Ele manca como um
derrotado. Os guardiões, então, olham uns para os
outros. “Devemos obedecer?”, pensam. Jasão determina,
sem convicção:

— Vocês ouviram. Prendam Hormes e os outros traidores.

Os guardiões não são habituados a descumprir ordens.


Nem mesmo a questioná-las. Caminham, a passos lentos,
para reforçar o cerco aos traidores e garantir a prisão.

— Esperem! — grita Hormes. — Não há fundamento para


vocês nos prenderem. Não há mais a Lei de Cronos.

— Você ainda ousa me desafiar, mortal? — responde


Cronos.

— Veja por si mesmo, Cronos. Você destruiu o Templo da


Lei. E todos nós ouvimos as coisas que Nomos disse
enquanto lutava contigo. Admita, acabou.

Por alguns instantes, os guardiões olham para Jasão,


aguardando que ele desista da ordem de prender os
traidores.
Mas Jasão não desiste. Se desistisse da ordem, nada
mais o sustentaria como guardião de ouro. Seria
rebaixado ou expulso. Assim como os guardiões
perderam a fé e o respeito por Cronos, poderiam perder a
fé e o respeito por sua liderança. Jasão apenas estende o
braço em direção a Hormes, indicando que a ordem deve
ser cumprida.

Os guardiões sabem que precisam cumprir a ordem,


simplesmente porque têm o hábito de cumprir ordens.
Ou porque, se deixarem de seguir as ordens de Jasão ou
de Cronos, não saberão o que fazer.

Mas um dos guardiões larga sua lança e seu escudo.


Deixa-os cair no chão. O bater do metal sobre as pedras
da ágora ressoa. Ele cruza os braços, recusando-se a
cercar Hormes e seus amigos.

Outra lança, outro escudo batem no chão.

Hormes olha nos olhos dos guardiões ao seu redor. Eles


olham de volta.

Outros metais batem no chão. Todos estão entregando


suas armas e cruzando os braços.

Nomos emerge das ruínas do templo, flutuando atrás de


Cronos. Ele está muito maior do que seu pai e segura um
raio na mão direita.

— Fui um deus benevolente. Perdoei e tolerei todos os


abusos que vocês cometeram, e é assim que vocês me
retribuem — diz Cronos. — Está claro que a humanidade
não sabe escolher o próprio destino. Vocês não me
deixam escolha. Retrocederei ao tempo em que vocês
temiam os deuses. O que os deuses dão, os deuses
podem tirar.

— Não gostei nada disso — diz Axion.

— O que ele vai fazer? — pergunta Hyp.

— Boa coisa não é — conjectura Diceosine.

— Ele é o Deus do Tempo... — lembra Calina.

Hormes aguarda. Olhos e ouvidos atentos.

Cronos olha para o céu. Suas mãos visíveis estão


erguidas. Aos poucos, estilhaços de mármore retornam,
desfazendo o caminho pelo qual foram lançadas e se
encaixando novamente no Templo de Nomos.

— Tirarei de vocês as habilidades que adquiriram ao


longo da história. A escrita, o domínio do fogo, o poder
de trabalhar os minérios, o barro e a madeira. Nada disso
existirá mais. Retornaremos tudo ao início. Darei um
novo rumo à humanidade.

— Isso, NUNCA! — grita Hormes. O jovem inventor junta


as duas mãos, prendendo entre elas o cabo de uma lança
deixada no chão. É difícil levantá-la. As queimaduras e os
ligamentos rompidos em seus antebraços doem de
maneira excruciante. Com os poucos movimentos que
lhe restam, Hormes encaixa o cabo entre os polegares e
os indicadores das duas mãos, mantendo a lança mal
equilibrada sobre sua cabeça.

Ele sobrepuja a dor de seus braços, direcionando para as


pernas toda a força que lhe resta. Corre, concentrando-se
para conseguir respirar e manter a lança apontada para
o Deus do Tempo.

Cronos, vendo Hormes se aproximar, atira-lhe uma pedra


de mármore.

Nomos, atrás de Cronos, lança um raio na direção do


inventor. O corpo de prata do jovem atrai a eletricidade
como um para-raios.
63

O raio atirado por Nomos traça uma estranha curva no


ar e atinge as costas de Hormes. A luz reflete no
corpo de prata, ofuscando a todos na ágora. Veloz e
brilhante, Hormes voa, acelerado pelo raio, atropelando a
pedra de mármore lançada por Cronos. O impacto da
pedra dói na barriga de prata, mas Hormes mantém o
foco em Cronos.

A eletricidade corre pelas mãos de Hormes e faz seus


dedos se fecharem, como que por reflexo, prendendo o
cabo da lança que ele carrega. Ele alcança Cronos com
enorme velocidade, derrubando-o no chão.

Ouve-se o impacto retumbar.

Na ágora, todos se parecem. Por um breve momento,


esquecem que são guardiões, Anansis, operários,
empresários, sacerdotisa. Todos se igualam em sua
surpresa. Correm na direção de Hormes, que está caído
sobre Cronos, diante dos degraus do templo. Nomos a
tudo assiste. Seus pés tocam o chão.

Axion se aproxima de Hormes e tenta erguê-lo.

— Ai! — exclama Axion, levando um choque ao tocar as


costas de Hormes. Aproxima a mão de novo e toca o
jovem de leve algumas vezes. Sem sinal de um novo
choque, o ex-guardião se sente seguro para apoiá-lo.

Hyp se aproxima e ajuda Axion a erguer Hormes. Os


cabelos prateados do inventor estão em pé, formando
uma redoma eletrificada em sua cabeça. Ele sorri seu
velho sorriso. Os amigos carregam Hormes para longe de
Cronos.

Calina e Diceosine não resistem a rir daquela cara de


bobo com cabelo arrepiado. Os cabelos de Hyp e Axion
começam a se arrepiar também, tocados pela
eletricidade do amigo prateado.

O Deus do Tempo permanece caído, com a lança fincada


em sua testa. Aquilo não é nada demais. Não pode matar
um deus. Mas causa muita dor. Cronos ergue, com
dificuldade, um de seus braços visíveis. Sente a dor em
sua cabeça, mas não consegue enxergar a lança. Tateia
para encontrar o cabo. Agarra-o e arranca a lança. Põe-se
de joelhos no chão.

As pessoas na ágora se afastam, temendo que Cronos


esteja preparando um novo ataque. Nomos arma alguns
raios em sua mão direita, precavido.

Cronos sente dores terríveis. Sua cabeça incha, esticando


a pele. Do lado direito, uma luz azul parece querer
escapar de dentro do crânio aumentado; do lado
esquerdo, uma luz vermelha. A cabeça incha mais. As
luzes azul e vermelha brilham mais forte. A ferida da
lança se abre em sua testa, deixando sair dois espíritos,
em forma de duas mulheres, uma azul e outra vermelha.
Elas são transparentes, intangíveis e muito, muito belas.

Em nenhum momento as duas mulheres tocam o chão.


Elas flutuam. Sorriem uma para a outra. Admiram-se
mutuamente. Aproximam-se, como se fossem se beijar,
tão irresistivelmente belas que são.

Cronos olha ao redor, ofegante, segurando os lados de


sua cabeça ferida com as mãos visíveis. As pessoas da
ágora assistem. Hormes e seus amigos tentam entender.

— O que está acontecendo? Quem são essas duas? —


pergunta Diceosine.

— Não tenho como saber — diz Calina. — São espíritos


novos.

As irmãs azul e vermelha tocam o rosto uma da outra.


Seus olhares mudam. Não mais se encantam com a
beleza da irmã de outra cor. Elas se detestam
mutuamente. Afastam-se uma da outra e flutuam
rapidamente para o meio da multidão.

Elas sussurram nos ouvidos das pessoas que encontram


pelo caminho. Sussurram aqui, ali e acolá, como se
disputassem entre elas qual conseguirá sussurrar no
ouvido de mais pessoas.

Quem as escuta se deixa seduzir. Homens ou mulheres,


jovens ou velhos, não importa. Elas dizem algo que soa
agradável.
Cronos aperta a cabeça, tentando fechar a cicatriz por
onde saíram as duas mulheres-espíritos. Ajoelhado sobre
o chão, encolhido, ele não assusta mais.

— Teremos agora uma nova lei, guardiões — anuncia


Nomos, aproximando-se do centro da ágora. — Vocês
deverão respeitá-la e garantir que outros também a
respeitem.

Nomos caminha até bloquear a visão que Jasão tem de


Hormes, Axion, Hyp, Calina, Dário e Diceosine,
garantindo, assim, que o guardião de ouro não tente
mais nada contra eles. O deus se inclina, procurando
ficar à altura de Hormes. O inventor, percebendo que o
Deus da Lei falará com ele, tenta arrumar os cabelos
eletrificados, para ficar mais digno da conversa.

— Meu jovem, foi você quem teve a coragem de


enfrentar o deus mais poderoso de sua era, mesmo
sendo um mortal.

— Sim, senhor... Nomos.

— Nomos? É assim que me chamam, agora? — o Deus da


Lei está verdadeiramente surpreso.

— É... Foi assim que sempre o conhecemos — responde


Hormes.

— Não... Esse é apenas um de meus epítetos. Meu


verdadeiro nome é Zeus.

— Zeus!?!
— Sim, meu jovem. Eu sou Zeus.

— Sério mesmo? Zeus?

— Sim — orgulha-se o deus ao ouvir o seu nome


repetidas vezes, depois de tantos anos aprisionado. —
Está feliz de me conhecer em pessoa?

— Eu nunca tinha ouvido falar desse nome. Só Nomos,


mesmo... — responde Hormes.

Zeus rola os olhos sob as pálpebras. “Argh, o que fizeram


com a minha história? Apagaram?”.

Mas Hormes está inquieto. Precisa perguntar:

— Oi, Nomos... Digo... Zeus... Quem são aquelas


mulheres que saíram da cabeça de Cronos?

— Elas são o preço da autodeterminação da humanidade.


São as irmãs Ideós. Elas correrão pela Terra para seduzir
a humanidade com promessas de vida perfeita. As duas
irmãs são perfeitas, mas opostas uma à outra. Quem por
uma delas for seduzido entrará em conflito com aquele
que for seduzido pela outra.

— Como você sabe disso, Zeus? — pergunta Hormes.

— Eu sei porque eu sou Zeus, sabedor de tudo, com a


ciência de Métis.

— Quem é Métis? Ela lhe deu o poder de saber de tudo?


— indaga Hormes, curioso.
— Vamos mudar de assunto — pede Zeus.

— Ela poderia dar esse poder a mais pessoas?

— Esquece isso, Hormes! — Zeus se irrita, mas depois


tenta controlar o tom de sua voz: — Preste atenção ao
que é mais importante. As irmãs Ideós vão seduzir a
todos com seus sussurros.

— Podemos pará-las? — pergunta Hormes.

— Infelizmente, não.

— Não entendi — intromete-se Axion. — Não deve ser tão


ruim assim. Se elas são perfeitas, que mal podem fazer?

— Elas podem fazer a humanidade brigar pelos motivos


errados. Podem fazer com que as pessoas não olhem
para a realidade e persigam, sem sucesso, ordens sociais
que não podem existir na sua forma pura — explica
Calina. — Isso dificulta a nossa caminhada para a paz.

— Continuo sem entender — responde Axion. — Acho


que a linguagem das divindades é muito complicada.

— As pessoas se dividirão entre duas visões de


sociedade, Axion. Brigarão por acreditarem que um
mundo perfeito é possível, mas haverá duas promessas
incompatíveis de mundo perfeito — explica Hyp.

— Eu pensei que você não entendesse dessas coisas... —


diz Axion, surpreso com a explicação de Hyp.
— Você é que não sabe de muita coisa, soldadinho —
retruca Hyp.

Cronos se levanta. A ferida em sua cabeça deixou uma


cicatriz, mas está quase curada. Zeus, ao vê-lo de pé,
arma raios em suas mãos. Hormes, por sua vez, tenta
apanhar do chão uma outra lança, ainda que seus braços
doloridos relutem em obedecê-lo. Hyp, Axion, Calina e
Dário cercam Hormes e Zeus, prontos para defendê-los.

Ao fundo da ágora, atrás da multidão, está Theceo. Ele já


tinha arrancado bons punhados de cabelo, e os cabelos
que restam estão em pé. Aquela imagem em nada
lembra o homem outrora centrado e convicto de seus
objetivos.

— Eu não vou atacar — assegura Cronos com a voz


trêmula, esforçando-se para permanecer em pé. — Mas
quero falar com Theceo e Jasão.

— Por que deveríamos confiar em você? — pergunta


Nomos.

— Meu filho, eu sei reconhecer uma derrota — responde


Cronos. — Se vocês querem fazer sua lei, façam. Eu
posso apenas orientar, agora, para que essa nova paz
não vire desordem. Depois disso, vou embora.

— Vai mesmo embora? — pergunta Hormes.

— Sim. Prometo não interferir mais — garante Cronos.


Ele olha diretamente para Nomos e diz: — Desde que
você me prometa que não ficarei preso no Tártaro
novamente.

— Jure sobre o Rio Estige que não interferirá jamais.

— Farei lá o meu juramento. Apenas me deixe falar com


Theceo e Jasão.

Cronos atravessa a ágora. Conversa com Theceo e Jasão


por alguns instantes. Não dá para ouvir o que eles
discutem.

Cronos, então, se afasta. Caminha rumo ao propileu, o


grande pórtico da cidade de Nova Ascra, que recebe os
tons dourados do nascer de um novo dia. Uma nuvem
encobre o Deus do Tempo e ele desaparece.

No horizonte, um arco-íris surge sobre o Rio Estige,


confirmando que Cronos fez o seu juramento.

— Acabou — diz Hormes, suspirando.

Theceo se aproxima, arrumando o cabelo que lhe resta.

— Teremos tempos de paz, agora, certo? Acabaram as


revoltas? — pergunta Theceo.

— Elas cessam quando baixarmos a nova lei da jornada


de trabalho — responde Hormes. — Você terá de
aprender a dividir seu poder com os operários.

— Certo, certo — concorda Theceo. — Eu e os outros


homens de negócios estudaremos com cuidado a
implementação da jornada de oito horas.

— Não será apenas uma conversa entre vocês.


Discutiremos aqui, à vista de todos, com a participação
de todos — responde Hormes, apontando para a cratera
deixada no lugar do Templo de Nomos. — Resolveremos
nossas diferenças e nossos interesses com argumentos,
não mais com armamentos.

Theceo balança a cabeça, concordando. Estende a mão


para Hormes.

— Com isso, nós dois concordamos. Argumentos são


melhores do que armamentos. É nosso primeiro acordo
— diz Theceo.

Hormes cumprimenta Theceo, apertando sua mão.

Zeus se aproxima de Hormes e Theceo. Aponta para a


enorme cratera.

— Precisamos que, neste local, seja construído um novo


templo. Um templo sem deuses. Um lugar onde os
homens possam discutir livremente sobre como a
sociedade deve funcionar. Esse lugar se chamará
Parlamento, da mesma forma como antigamente se
chamavam lugares assim — explica.

— Zeus... Eu acho que isso não vai funcionar... — diz


Hormes.

— Por quê?
— Porque nós tentamos de tudo. Os empresários são
irredutíveis. Acho que é necessário impor uma nova lei —
responde Hormes.

— Meu jovem, o que você está propondo é uma


revolução. Revoluções são transformadoras, mas,
acredite quando eu digo: depois de toda revolução vem
uma nova tirania — Zeus explica. — Não adianta trocar
uma ordem opressora por outra, também opressora.

— Então, não podemos determinar como vai ser a nova


lei? — pergunta Hormes.

— Unilateralmente, não. Se você o fizer, em pouco tempo


essa nova lei será derrubada. Só se pode criar uma lei
duradoura mediante a participação de todas as pessoas
— ensina Zeus.

— Isso quer dizer que temos que negociar com os


empresários?

— Sim.

— Já tentamos isso.

— Mas agora vocês farão de um jeito diferente. Antes,


ninguém conseguia dialogar, pois todas as decisões eram
feitas a portas fechadas. Vocês não participaram das
decisões da Lei de Cronos. Agora, todas as negociações
serão feitas a portas abertas. Todos os pontos de vista
serão considerados para que se chegue a uma lei
equilibrada.
— Senhor Zeus — Theceo pigarreia –, o senhor quer que
nós negociemos à vista de todos?

— Sim.

— Mas isso não é possível... Seriam pessoas demais para


opinar... Pessoas demais fazendo pressão... — diz
Theceo.

— Se são pessoas demais, usem representantes


legítimos. Era assim na Antiguidade. Quanto à pressão,
sim, será enorme. Acostume-se — afirma Zeus. — É por
isso que quero que construam o Parlamento. Assim,
todos poderão entrar e participar.

— Como vamos construi-lo? — pergunta Theceo.

— Eu quero que você e Hormes cooperem para construir


o Parlamento — pontua Zeus.

— Certo — diz Theceo. — Hormes, amanhã venha ao


meu escritório para que eu lhe diga como vai ser esse
Parlamento.

— Não — interrompe Zeus. — Você, Theceo, vai seguir a


liderança de Hormes. É ele quem sabe como é
importante construir um lugar onde as novas leis serão
criadas.

Hormes sorri com sinceridade. Theceo não gosta da


ideia:

— Não, Nomos, assim eu não vou...


— Tem algum problema em seguir minha liderança,
Theceo? — pergunta Hormes. Zeus está logo atrás, com
raios ainda estalando nas mãos.

— Errr... Não, não tenho, não. Vamos fazer do seu jeito —


Theceo cede.

— As diferenças entre nós sempre existirão, Theceo. É


por isso que faremos os acordos, para conciliar nossos
interesses — diz Hormes.

Theceo suspira. Sim, precisa se acostumar com os novos


tempos. “O tempo dirá quem tem a razão”, pensa.

Zeus aponta sua mão para o céu e diz:

— Obrigado, Hormes, por me libertar. Agora, tenho que


descobrir o que aconteceu no mundo enquanto eu estive
preso. Adeus!

Rápido e brilhante, Zeus sobe até as nuvens em um raio.


As nuvens escuras se espalham, dando lugar a um céu
claro. O sol brilha no horizonte, dourando a ágora.

— Adeus, Nomos — despede-se Hormes, olhando para o


céu. — Agora estamos por nossa conta.

Hyp cutuca o ombro de Hormes, chamando sua atenção


para uma pequena briga que começou na ágora,
enquanto ele e Theceo conversavam com Zeus. Quatro
operários brigam entre si, especulando sobre como
deveriam ser feitos os acordos entre patrões e
empregados.
— O que aconteceu ali? — pergunta Hormes.

— Eles foram seduzidos pelas irmãs Ideós — responde


Hyp.

— O caminho para os acordos não vai ser fácil, não é? —


indaga Diceosine.

— Não, não será fácil. As pessoas precisarão desapegar


das utopias das Ideós para que possam se entender —
responde Calina.

— É... Temos muito trabalho pela frente — reconhece


Hormes, vendo Axion e Dário acalmarem os operários
que estavam brigando.

Um homem e uma mulher pedem licença e atravessam a


multidão ainda aglomerada na ágora. São Epimoni, o pai
de Hormes, e Polínia, sua irmã. Eles correm e o abraçam.

— Você está bem? — pergunta Epimoni.

— Estou.

— Você está bem! Que alívio! Ficamos preocupados com


você! — diz Polínia.

Epimoni, Polínia, Diceosine, Axion, Hyp e Calina se


juntam num abraço a Hormes. Dário fica onde está, com
os dedos prateados entrelaçados diante do corpo,
apenas olhando o grupo reunido. Axion estende a mão e
o chama com um gesto. Dário dá três passos rápidos e os
abraça.
Ao redor deles, operários e Anansis comemoram. Cercam
Hormes e seus amigos, com gritos de alegria. Exaltam:

— Hormes! Hormes! Hormes!

Os guardiões aguardam ordens. Os operários, quando


param de gritar, também não sabem o que fazer. Eles
agora têm tempo livre. O que se faz com o tempo livre?
Os Anansis também querem saber o que acontecerá dali
em diante.

Axion pergunta:

— O que vamos fazer, agora?

Hormes suspira. Sorri.

— Vamos à praia!

***

Calina se diverte com a sensação da água salgada


batendo em seus pés. Ela lembra de ter ido à praia, pela
última vez, quando ainda era uma menina. Desde que
começou a estudar para se tornar uma sacerdotisa, ficou
reclusa a monastérios e ao Templo de Nomos. Quase
nunca saía de lá, por causa do seu juramento de protegê-
lo o tempo todo.

A poucos metros dali, Diceosine segura a mão de Hormes


com cuidado para não machucar, enquanto eles
caminham sobre a areia molhada. Hormes fala sobre
coisas que Jan Cândhido havia lhe ensinado. Diceosine
retribui com olhares e sorrisos.

Ao longe, Epimoni conversa com Polínia e seu namorado,


Radamanto, todos sentados em toalhas estendidas na
areia. Sísifo e Babu observam Jitu escalar um coqueiro e
dele arrancar cocos. Frustram-se, porém, ao não
conseguirem abrir os cocos, pois não trouxeram facas ou
outra ferramenta. Arete, Hyp e Mema ajudam Penia a
caminhar até a água. A mãe de Hyp solta gargalhadas ao
descobrir que a água do mar deixa seus pulmões mais
limpos. Ela respira melhor. Em um campo improvisado,
uma partida de futebol de um time de Anansis contra um
time de operários não oferece muitas emoções. Os
Anansis vencem por 9 a 1.

Axion caminha, tímido, se aproximando de Calina. Ele


deixa a água molhar seus pés. Deixa seus olhos se
acostumarem com o horizonte distante. Como todos ali,
não está habituado a ver o mar tão de perto.

— Calina, preciso lhe dizer uma coisa... Você me disse


que o mundo cuidaria de me ensinar o que eu precisava
saber. Hoje, sei que não quero me tornar guardião de
ouro, se para isso tiver que fazer mal às pessoas que
jurei proteger...

— Sim, Axion, você aprendeu algo realmente importante


— Calina reconhece. — Agora que você sabe qual é o
lugar que você quer ocupar no mundo. Você precisa
construí-lo. Não importa que outros lhe digam o que você
merece e o que não merece.
— Depois de passar por tudo isso, finalmente entendo o
que você quis dizer — diz Axion. — Mas, então... No
fundo, você já sabia o que ia acontecer, não sabia?

— Axion, eu apenas fiz você prestar mais atenção às


conse­quências de suas ações — explica Calina. — Seu
foco estava no lugar errado.

— Então... Você sabia? — insiste Axion.

— Sim e não — responde Calina.

— Você algum dia vai me responder de forma clara? —


reclama Axion.

Calina ri e diz:

— Eu sabia que você aprenderia a lição da sua vida.


Quando você saiu do templo, naquela noite, você estava
mais aberto à mudança do que quando entrou. Mas não,
eu não sabia exatamente o que iria acontecer.

Axion suspira. Finalmente ela disse algo que faz sentido.

— Então você só abriu minha cabeça, me confundindo e


plantando dúvidas. Foi assim que fiquei mais aberto à
mudança.

— Sim, foi isso.

— Agora entendi — felicita-se Axion. — Mas, da próxima


vez, diga as coisas de forma clara. Eu consigo entender.
Entendeu?
— Não funciona assim, Axion — responde Calina.

Ele suspira de novo. Levanta os ombros e bate as mãos


contra as próprias coxas.

— Bom, eu tentei — conclui, dando um pequeno chute na


água, fazendo-a espirrar contra as ondas.

— Axion, já parou para pensar que nem eu mesma sei o


que vai acontecer na minha vida?

— Como assim, Calina?

— O Templo de Nomos foi destruído. O templo que jurei


proteger. Dediquei minha vida a ele. Sabe o que eu vou
fazer, agora?

— Não, Calina, não sei. O que você vai fazer?

— Eu também não sei.

Calina olha para o horizonte. Nuvens brancas caminham


lentamente, arrastando seus reflexos pela borda do mar.

— E você não está angustiada com isso? — pergunta


Axion.

— Um pouco... Na verdade, muito.

Axion ri:

— Rá! Então você não é bem qualificada para dar pitaco


na vida dos outros, né?
Calina ri. Dá um chute forte na água, fazendo-a espirrar
em Axion.

— Não, bobo... É que recomeços são difíceis, mesmo. É


isso.
Epílogo

P or que trabalhamos da maneira que trabalhamos?


Por que tantas regras, horário de trabalho rígido,
políticas de reconhecimento e remuneração? Quando foi
que criamos tudo isso?

Quando entramos no mercado de trabalho, aceitamos


que seu funcionamento é resultado de um fluxo natural
da evolução da humanidade. A maioria ignora os
conflitos históricos, em variados lugares do mundo, que
confluíram para o modo que existe hoje. Curiosamente,
no lugar dos conflitos históricos, essa maioria passou a
aceitar explicações criacionistas:

“Quando Deus criou o mundo, ele trabalhou por seis dias


e descansou no sétimo. Por isso a nossa semana de
trabalho é assim.”

“Nós trabalhamos assim porque é a vontade de Deus.”

“Algumas pessoas são ricas e outras são pobres porque


algumas são abençoadas e outras, não.”

“Se ele é rico é porque faz coisas do agrado de Deus.


Deus sempre recompensa com justiça.”

Argumentos desse tipo conduzem à aceitação acrítica de


injustiças sociais e eliminam qualquer ímpeto de se
buscar saber como o mundo do trabalho se tornou o que
é hoje.

Como teria sido se realmente um Deus tivesse criado as


regras de jornada de trabalho e de recompensa pelo
esforço? O que aconteceria se pudéssemos ver, sem
dificuldade, o quão abençoadas são as pessoas pela
divindade que distribui as riquezas?

Haveria conflitos? Sim, haveria. Sempre há conflitos onde


há injustiça. Sempre há injustiça onde há distribuição de
pobreza e concentração de riqueza.

Contra Cronos não reproduz fielmente os eventos


históricos. Imagino que a presença de figuras mitológicas
e a ambientação de retrofuturismo Dieselpunk sejam
suficientes para deixar isso evidente. Embora o livro seja
distópico, os argumentos dos personagens se
assemelham aos que escutamos na vida real, nos jornais
e nas conversas com amigos e conhecidos.

Contra Cronos foi escrito para ser uma distopia, uma


extrapolação paranoica dos perigos que observamos ao
nosso redor. Infelizmente, a realidade tem mostrado
ampla capacidade de superar distopias. Vivemos tempos
estranhos.

Este livro é um agradecimento e uma homenagem aos


homens e às mulheres que, ao longo dos últimos 150
anos, lutaram por melhores condições de trabalho e por
regras mais justas de jornada de trabalho. Hoje temos a
oportunidade de falar de equilíbrio entre vida pessoal e
trabalho. Houve um tempo em que isso seria impossível.
Não permitamos retroceder.

Jakob Arnin

Setembro de 2021

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