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Revista O Negro Em Cena

OUTUBRO EDIÇÃO
N°01
Foto de Capa: Iere Ferreira

A ESCREVIVÊNCIA DE
CONCEIÇÃO EVARISTO
POR: IARA BRANDÃO FERREIRA
Escrita da Luz Divina
Ensaio fotografico de Severino Silva

O multiartista Paulinho Sacramento


fala sobre o maior festival de Vídeo Mapping da
América Latina

OTHELO O GRANDE
Um documentário de Lucas H Rossi
O NEGRO EM CENA
Editorial
"É unindo nossa gente que vamos pavimentar as estradas por
onde vão passar nossos filhos. Construindo e imprimindo
nossas histórias e preservando memórias ancestrais, deixando o
legado como herança".
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Nossa revista entra no mês da consciência
negra emanando potência para todos os lados,
enchendo de brilho os olhos dos nossos
leitores com o ensaio de um dos fotógrafos
profissionais mais admirados pelos
companheiros de trabalho e pelos
amantes da fotografia. Nosso parceiro
Severino Silva traz o seu olhar poético em
“Fé, Luz e Sombras”. Um mergulho
em nosso rico sincretismo religioso.
Saudamos a escrevivência de Conceição
Evaristo com a prosa da jovem colaboradora
Iara Brandão Ferreira e fotos de minha autoria.
Conversamos com o multiartista e cineasta
Paulinho Sacramento que criou o maior
festival de vídeo mapping da América Latina. “
O Rio Mapping Festival”, que ja iluminou
com multiplas projeções, do Cristo ao
Santo Cristo passando pela Câmara dos
vereadores, Gabinete Real Português,
Edifício A Noite entre outras fachadas
dentro e fora do nosso estado e do nosso país.
E vamos conhecer o jovem cineasta
Lucas H Rossi
que com ousadia e consciência
produziu o documentário (Othelo O Grande),
ganhador do prêmio de melhor
documentário do Festival do Rio
e destaque no Encontro de Cinema Negro
Zózimo Bulbul.
Como eu havia dito é
potência para todos os lados

Revista O Negro Em Cena


Essa REVISTA é pra você!
Apoie este trabalho pelo
PIX: 21-984237151
Ierê Ferreira

Editor: Iere Ferreira


Colaboradoras: Daniele da S. Araújo,
Sylvia Arcuri, Iara Brandão Ferreira

*Os textos e fotos publicados são de inteira responsabilidade dos autores.


01
O NEGRO EM CENA

O autor nos leva em suas viagens até


lugares distantes, distintos, numa
imersão em festividade da fé, romarias,
círios, rituais e oferendas de nosso rico
sincretismo religioso, ora numa vertente
mais cristã, ora via cultos de origem
africana.
Mas nāo se trata do tiípico olhar
estrangeiro ou de quem visita com
curiosidade tais procissões e rituais, são
imagens de dentro das cenas e cenários
de fé, são personagens que nos levam
pela mão, que nos recebem eu seus
lugares de oração e nos abençoam junto
às coisas mais sagradas em suas vidas.

Fotos: Severino Silva

02
O NEGRO EM CENA
Escrita da Luz Divina
Nosso imenso Brasil é um país sempre plural, seja por sua diversidade
étnica, seja por sua multiplicidade cultural, na mostra fotográfica Fé, Luz e
Sombra, o fotografo Severino Silva nos convida a uma peregrinação por
muitas facetas da religiosidade que se mantêm pelo país afora.

Fotos: Severino Silva

03
O NEGRO EM CENA

Registrar e expressar
fotograficamente esse
sentimento arraigado no
fundo da alma de cada
brasileiro - a Fé - tem
sido um dos desafios
mais fascinantes para
todos os fotógrafos
nacionais e estrangeiros
num país onde as mais
inusitadas e
espontâneas forma de
religiosidade se cruzam
e se desdobram numa
mesma necessidade de
esperança.
Severino Silva não se
restringe a exaltar a
espetacular beleza
plástica que reveste a fé
dos brasileiros por meio
de luzes, sombras,
cores e volumes. Sua
câmera também nos
passa a perplexidade
de um olhar em busca
Por: Flavio Di Cola
da origem dessa força
Fotos: Severino Silva
que nos ampara nas
ásperas jornadas da
vida. 04
O NEGRO EM CENA

Fotos: Severino Silva

05
O NEGRO EM CENA

A Revista O Negro Em Cena tem o prazer de


trazer para vocês o maior festival de vídeo
mapping da América Latina!
Mas, o que é vídeo mapping?
Fotos: Ierê Ferreira

Marcos Gatto, Paulinho Sacramento e


Leandro Malaquias

Para responder essa e outras perguntas


resolvemos entrevistar o grande artista visual,
cineasta e criador do Rio Mapping Festival,
Paulinho Sacramento.

Paulinho Sacramento fez diversos filmes,


vendeu refrigerante na Praia da Bica, na Ilha
do Governador, quando era moleque, já foi
camelô, coordenou a área de audiovisual no
Circo Voador, já tocou em grupos de pagode e
reggae, viajou por diversos países, estudou
arquitetura, está como artista residente de
pesquisa em arte no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro e tudo isso fortaleceu seus
pensamentos e atitudes na luta pela cultura e
contra o racismo.
06
O NEGRO EM CENA
Quem foi o jovem Paulinho Sacramento e
como a tecnologia lhe afetou?

O Paulinho Sacramento foi um jovem


religioso, jogador de futebol, pagodeiro e
sagaz. Minha avó Mercedes, mãe do meu
pai Marcílio, era espiritualmente forte num
Centro de Umbanda lá no Manguinhos e
minha mãe sempre impôs que a formação
católica era importante.
Resultado: Por conta das turbulências
familiares e a desorganização da Igreja
Católica em seu entendimento de estudo
religioso, completei quase 7 anos de
catecismo, até a chegada da hóstia. Como
a minha família estava sempre se
mudando de bairro, os padres não
aceitavam a iniciação da igreja do bairro
anterior, mesmo sendo a bíblia o
direcionamento comum da formação. Por
outro lado, sempre me senti à vontade
dentro do terreiro, foi ali que conheci os Foto: Ierê Ferreira
tambores, a dança, o respeito e a arte.
Sou forjado no terreiro, na igreja católica e
no Cacique de Ramos - local que meu pai
me apresentou ainda criança e lá me
apaixonei pelo pandeiro,
sempre observando o mestre
Bira Presidente
construindo suas frases.

Na sequência, formei um grupo de pagode com meus amigos de bairro, na época eu morava em
Higienópolis e o grupo se chamava Raridade. Na década de 90, ser músico, preto e transitar em
todas as comunidades do entorno, dando calote em ônibus com pandeiro debaixo do braço, só
acreditando muito em si, que essa façanha era possível.
07
O NEGRO EM CENA

Eu sempre me amarrei em tecnologia e tenho


certeza que o samba foi quem mais me aproximou
desse olhar, pois foi mexendo em mesas de som,
amplificadores, colocando papel alumínio em
célula de microfone e bombril em antena de TV
que percebi que a tecnologia existia, antes minha
percepção era só do botão liga e desliga. Quando
percebi que eu precisava estudar tecnologia,
entrei pra faculdade de arquitetura, sabe-se lá por
que, mas em alguns períodos pulei fora, pois não
era nada barato construir maquetes e a distância
financeira me tirou daqueles corredores.

O que é vídeo mapping?

Video Mapping é a técnica de exibir conteúdos


audiovisuais em formato específico e único para
aquele objeto que esta recebendo a obra.
Diferente do cinema que é construído sabendo
que a forma de exibição é uma tela branca e que
cabe em qualquer sala de cinema, o video
mapping é ao contrário, primeiro você escolhe o
local onde a obra será projetada, você precisa de
um objeto para que o video seja exibido, seja uma
fachada arquitetônica, um tênis, uma parede, um
carro.
Video mapping não tem limites. É uma vertente financeiramente cara de se realizar, mas com uma
grande contra-partida de retorno de público, principalmente quando é realizado em grandes espaços
públicos.

08
FOTO: Fábio Calvi
O NEGRO EM CENA
FOTOS: IERÊ FERREIRA

Como foi a sua jornada até chegar ao vídeo mapping?

Eu não estava mais curtindo fazer filmes pra sala de cinema, ali não me contemplava mais. Eu queria ir
pra rua, mas exibir filmes na praça no mesmo formato de tela, também não era o que eu queria.
09
O NEGRO EM CENA
FOTO: TOTA PAIVA

Eu estava em tomando uma cerveja na porta da


FOTOS: IERÊ FERREIRA

escola de samba Grande Rio, lá em Duque de


Caxias, enquanto eu esperava a condução para ir
na casa da minha mãe que mora no Parque
Araruama em São João de Meriti, quando eu vi
umas luzes verdes em grande intensidade,
batendo num prédio do entorno e resolvi ir até o
prédio pra ver o que estava rolando. Chegando lá
eu vi os camelôs testando canetas laser na base
na parede. Era uma intervenção visual foda e eles
nem estavam se ligando. Aquela ação me acendeu
uma luz. Precisava usar a arquitetura da cidade
pra projetar minhas idéias. Comecei a estudar
projeção outdoor e o video mapping surgiu em
minha vida como mágica.

Como e por que você criou o festival?


Em 2010 eu já estava testando projeções pela
cidade. Eu tinha acabado de sair do Circo Voador
e estava no gás das pesquisas audiovisuais. Em
2013 eu estava agoniado pois já tinha entendido
que a técnica era caríssima pra realizar em grande
escala e a única alternativa era criar algo coletivo
para que eu pudesse ganhar corpo pra inserir na
cidade essa possibilidade.
Participei de uma rodada de conversa na Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro, na época o
secretário de cultura era o Sérgio Sá Leitão, que entendeu perfeitamente a importância do projeto para a
cidade e resolveu investir na nossa primeira edição. Depois foi só dar continuidade e hoje já somos o
maior festival de video mapping da América Latina.
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FOTO: IERÊ FERREIRA
O NEGRO EM CENA

Quantas edições do festival você conseguiu fazer


até agora e em quais lugares?

Estamos caminhando para a V edição do festival.


As gestões culturais da cidade são flutuantes e
políticas e a cada ano, mesmo depois de todos os
levantamentos feitos por instituições importantes
como a FGV, tenho que gastar saliva pra apontar
FOTOS: TOTA PAIVA

a importância de um festival como esse pra nossa


cidade.

Já fiz projeção em dezenas de territórios e


fachadas. Cristo Redentor, Igreja da Penha, Real
Gabinete Português, Câmara Municipal, Quilombo
Machadinha em Quissamã, Edifício a Noite, na
Praça Mauá, durante 45 dias consecutivos nas
olimpíadas, Morro da Providência, Museu da
Maré, Fórum de Nova Friburgo, Taj Mahal (SESC
de São João da Barra), Arquivo Público do
Estado da Bahia, Porta de Jaffa em Jerusalém,
Museu Nacional, entre tantos outros locais e
fachadas já receberam obra minha e do meu
coletivo BPM Mapping.

Quantos artistas visuais nacionais e internacionais


já participaram no festival?

São dezenas. Eu teria que ver os catálogos pra te


dizer ao certo, mas me arrisco rapidamente aqui
em alguns nomes que já trabalhamos. Leandro
Malaquias, Ricardo Brízio, Jodele Larcher,
Marcus Vinicius, Ricardo Cançado (Espanha),
Leandro Vigas, VJ Ratón, Jeremy Oury (França),
Frouke Ten Velden (Holanda), Vinícius Luz, VJ
Leticia Pantoja, Arthur Pessoa, Vinny Fabretti,
BPM Mapping, VJ Sará, entre vários outros
artistas que já passaram pelo festival.

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O NEGRO EM CENA
Durante todas as edições trabalhamos com
Prefeitura, Governo do Estado, Oi, Rede Globo,
IRB Brasil que foram patrocinadoras pelas leis do
ICMS, ISS e Rouanet e tivemos apoio financeiro
dos governos Francês, Holandês e Espanhol, o que
nos deu a possibilidade de fazer conexões
internacionais. Em 2014 fui convidado pelo governo
francês para representar o Brasil e estar presente
na Fête de Lumieres em Lyon, o que me deu um
bom suporte de estudo de grandes festivais
tecnológicos, o que alavancou parcerias com FOTO: IERÊ FERREIRA

diversos artistas, empresas e parceiros por várias Como artista visual você se sente realizado?
parte do planeta.
Não, jamais. Acho que nunca vou me sentir.
Como e feita a avaliação financeira desse projeto? Sofro de hiperatividade e só vou me realizar
quando todos os artistas pretos e periféricos se
Primeiro eu escolho as fachadas, depois eu faço o sentirem realizados. Como isso é praticamente
projeto e assim avalio o orçamento. Não é simples, impossível e a gestão cultural no país segue
pois, além da parte técnica que é complicada, tem a ultramente engessada, emperrando a construção
parte burocrática que é ocupar praças e ruas com da maioria dos projetos, vamos seguindo e
projetos de grande porte. Tem projeção que levam realizando da maneira que dá.
3 mil pessoas para uma praça. Muita gente, equipe E para terminar, gostaríamos de saber quando
imensa, tecnologia e gestão envolvida. será o próximo Rio Mapping Festival, onde será e
qual a sua expectativa?
Qual é o impacto social que esse projeto traz e
onde ele acontece? Estamos em busca de patrocínio, apoio e
financiamentos o tempo todo. Já tenho algumas
Sempre priorizamos a parte educacional. Em todos fachadas e prédios históricos que eu gostaria de
os locais por onde passamos, tudo começa pelas projetar, mas ainda não temos data. Não tenho
oficinas. O social não é somente contra partida em muita expectativa, o Rio Mapping Festival é um
nosso projeto. Tem aluno que fez nossa oficina em projeto super avançado em sua existência, para
2014 e hoje está trabalhando com artistas de peso, acontecer depende de inúmeras articulações e
como é o caso do Malaquias, que já passou pela mesmo com um levantamento da Fundação
Furacão 2000 e hoje é VJ do cantor Orochi, um dos Getúlio Vargas que aponta que o projeto gera
grandes artistas da atualidade. Formamos vários emprego, arrecadação de impostos e lucro sobre
profissionais que hoje estão inseridos no mercado. investimento, não é tão fácil captar recursos e os
Só na escola de cinema Darcy Ribeiro e nas Naves editais mesmo com o novo governo, seguem
do Conhecimento, ministramos oficinas gratuitas de burocráticos em alta escala e ainda estão bem
video mapping que potencializaram diversos artistas distantes de ser democráticos. Estamos na luta,
digitais da nossa cidade e fora dela também. vamos ver o que vai rolar. Axé.

FOTO: IERÊ FERREIRA

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O NEGRO EM CENA

O NEGRO EM CENA

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O NEGRO EM CENA

Nesta edição da revista “O Negro Em Cena" nos


entrevistamos o jovem Lucas H. Rossi dos
Santos.
Formado em Produção Cultural pelo Instituto de
Artes e Técnicas em Comunicação, em Cinema
pela Universidade Estácio de Sá, e com cursos
livres em Imersão em Cinema Negro pelo Centro
Afrocarioca Zózimo Bulbul, Produção Executiva
na Escola de Cinema de BH e Introdução à
Psicanálise pela Faculdade de Teologia e
Psicanálise do Rio de Janeiro - FACITEPERJ.

Lucas H Rossi atuou como produtor, diretor,


montador de diversos projetos audiovisuais para
cinema, televisão e publicidade. No campo
acadêmico, ministrou diversas oficinas em
festivais de cinema e universidades.

Como diretor e roteirista, lançou em 2016 seu


curta-metragem "O vestido de Myriam", que
circulou por 104 festivais de cinema ao redor do
mundo, ganhando mais de 40 prêmios. Desde
então não parou de circular em festivais até
mesmo internacionais, como o 33° Festival de
Toulose na França. Atualmente Lucas está
comemorando o sucesso do seu primeiro longa-
metragem "Othelo, o Grande ", uma cinebiografia
do ator Grande Othelo.
O filme que foi contemplado no FSA Prodecine
01/2016, conta com a coprodução da Globo
Filmes, Globo News, Canal Brasil e foi lançado no
Festival do Rio e já arrematou o prêmio de melhor
documentário no Festival.
Grande Othelo, pseudônimo de Sebastião
Bernardes de Souza Prata, foi um ator,
comediante, cantor, produtor e compositor
brasileiro que faleceu em 1993 e deixo um enorme
legado para a arte brasileira. 14
O NEGRO EM CENA

O Negro Em Cena:
Quanto tempo você levou para
conceber seu primeiro e já premiado
longa-metragem e o que te motivou a
contar essa história?

Foi uma longa jornada, o processo de


realização do filme levou cerca de 08
anos desde que começamos a
elaborar, pesquisar, levantar recursos
para trabalhar e finalizar o filme.
Quanto a motivação, acho que todas
as pessoas negras que trabalham com
cultura no Brasil, tem o Grande Othelo
como referência, como um ancestral -
a motivação também é fruto dessa
conexão de identificação entre
diferentes gerações, conectadas pela Acho que a minha formação sobre a história do cinema
arte, pelo cinema e pela negritude. brasileiro é toda em cima de Othelo, da trajetória dele
e dos caminhos que ele abriu, passando por diversos
Ao longo do processo de pesquisa do momentos da construção de uma identidade do Brasil
documentário, o quanto o personagem nas telas.
Grande Othelo te transformou e qual é Gosto sempre de imaginar e me referir a ele como um
a sua expectativa com relação ao Griot - um sábio mais velho que veio ao mundo com a
público e críticas do filme? linda e dura missão de passar aprendizado e cultura
para novas gerações.
Diante disso, penso que Othelo me transformou de
várias maneiras e me deixou mais atento na
construção do nosso olhar crítico para o mundo - para
o papel do negro na construção do cinema brasileiro e
no olhar do mundo (muitas vezes cruel) para nós
pessoas negras.
15
O NEGRO EM CENA
Quanto as expectativas, estou bem animado e
confiante no filme que construímos.
O filme é todo narrado em primeiro pessoa, o
que faz com que possamos conhecer o que
existe por trás do artista. Essa pesquisa de
linguagem documental que quebra as cartilhas
cinematográficas mais comuns e esperadas, me
interessa muito.

Já em relação as críticas, como a maior parte


das pessoas que escrevem sobre cinema ainda
são pessoas brancas, deles, sabemos bem que
não podemos esperar nada.
Embora eu tenha me surpreendido com os
elogios e a recepção calorosa que o filme tem
tido, também tenho vivenciado questões de
reflexão sobre a raça.
Acordei outro dia com um crítico de cinema
indicando meu filme sem citar meu nome, dia
desses eu fui exibir o filme num festival e o
apresentador quando foi me chamar ao palco
para apresentar a sessão, não sabia meu nome
- pronto para solucionar a questão, me
chamaram de "equipe".
Não que isso seja pejorativo, pelo contrário - eu
acho a ideia de equipe e coletivo fundamental
no processo de fazer cinema, mas é que não se
trata disso.
A reflexão que fica é: será que fariam o mesmo
com um diretor branco qualquer?
De toda forma, a gente vai levando o barco
devagar e com riso largo, vamos construindo
um mundo melhor para se viver.
Mas, seguimos atentos e pisando leve em terra
firme.

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O NEGRO EM CENA

Qual é a frase do personagem Grande


Othelo que você gostaria de deixar aqui
para os nossos leitores?

"Aquilo que você me vê representar, não


tem nada a ver comigo, e nem tem nada a
ver com o negro brasileiro. Mas eu preciso
sobreviver..."

Com o boom das plataformas de streaming,


como você vê o cinema negro nacional hoje
e que caminhos essas produções devem
seguir na sua opinião?

Penso que, hoje em dia, tem várias formas


de se realizar um projeto.
O digital já viabilizou muito a forma de
produzir cinema, a internet se tornou um
canal livre de experimentação e produção
de conteúdos, os streamings têm se
interessado por diversos projetos de
diferentes naturezas, e tudo isso fez a
gente se reinventar um pouco.
No fundo, tem espaço (não confundam com
chances) para todo mundo.
Essas frentes, de forma assertiva ou não,
acabam sendo novas maneiras de abrir
caminhos e possibilidades para novas
produções de filmes com protagonismo
negro nas telas e nos bastidores.
Em resumo, o que mais me instiga hoje, no
cinema negro brasileiro, são duas coisas:
A primeira, é entender que podemos
assumir o protagonismo da nossa própria
história. O que significa que cada vez
menos precisamos de intermediários para
realizar filmes e projetar nossas imagens e
vozes em telas grandes ou pequenas.

17
O NEGRO EM CENA

A segunda, é ver a gente conduzindo os


processos em posição de liderança, com mais
afeto e delicadeza, desconstruindo uma cultura e
uma falta de educação absoluta que foi imposta
pelas pessoas brancas durante décadas de
cinema no Brasil.

O que ainda falta para que documentários como o Eu estou agora produzindo uma série para Warner
seu sejam melhor distribuídos em nosso país? e desenvolvendo um projeto de ficção e uma série
documental. Estou esperançoso em seguir
Eu acredito que agora, depois de uma mudança realizando e pensando cinema como uma
fundamental de governo - vamos seguir ferramenta para contar novas histórias.
reestabelecendo a cultura que foi completamente Eu sou apaixonado pelo que faço e levo muito a
violentada pelos quatro anos que já viraram sério o ofício de fazer cinema nesse país.
passado. Por mais que tenhamos dificuldades, todos os
A caminhada é longa, mas as políticas públicas meus filmes até hoje foram feitos com muita
estão voltando. Uma das coisas mais lindas que dedicação, coragem e amor - torço e cuido para
pude vivenciar nos últimos tempos foi ver a que siga sendo assim.
Joelma Gonzaga assumir a SAV (Secretaria do
Audiovisual) - isso nos enche de alegria e
esperança. Desde já agradecemos e desejamos sucesso e
Naturalmente, gosto de imaginar e contar com a AXÉ GRANDÃO e que OTHELO O GRANDE
certeza de que teremos mais chances de produzir venha pousar nas principais telas do mundo.
e lançar nossos filmes daqui pra frente. Axé

Você já está trabalhando em um novo projeto? Se


sim, pode nos dizer em que história suas lentes
estão apontando? Fotos: Acervo FUNARTE

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Foto: Marcos Bonisson
O NEGRO EM CENA

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O NEGRO EM CENA
Conceição Evaristo
Se eu perguntar para um grupo de pessoas
pretas quem são os maiores intelectuais negros
da atualidade, com certeza Conceição Evaristo
vai ser um dos nomes mais falados. Mineira de
Fotos: Ierê Ferreira

Belo Horizonte, nascida em 29 de novembro de


1946, criada numa área pobre da cidade - na
extinta favela do Pindura Saia na região centro-
sul da capital de Minas Gerais - é filha de Joana
Josefina Evaristo e criada pelo padrasto Aníbal
Vitorino. Além dela, sua mãe teve mais oito
filhos, sendo mais três meninas e cinco
meninos.
Seu primeiro contato com a literatura foi através
das histórias e das fabulações sobre a rotina
que ouvia dentro da sua casa, contada pelos
seus familiares. Mesmo com essa presença
riquíssima das histórias orais na sua criação,
sua mãe também gostava de pegar livros,
revistas e jornais velhos e brincar com os filhos
de associar as imagens presentes na revista a
palavras que remetessem àquela imagem. Tudo
era narrado e virava prosa e poesia. E isso
também despertou uma curiosidade de
Conceição pelos textos escritos e impressos.

ConceiçãoEvaristo Ganha uma


marca de cerveja
20
O NEGRO EM CENA
Quando Conceição tinha sete anos, foi morar com
sua tia Maria - que era lavadeira assim como sua
mãe – por causa da necessidade que a família dela
passava. Como ela e o marido não tiveram filhos,
eles possuíam uma condição de vida um pouquinho
melhor, o que permitiu que Conceição tivesse
acesso à educação com um pouco mais de
facilidade. Vinda de uma família de mulheres que
trabalhava com serviço doméstico, com oito anos
começou também a trabalhar como doméstica,
cuidando de casa e de crianças. Além disso,
ajudava a mãe e a tia na lavagem das roupas,
entregando as trouxas nas casas das patroas. Sua
mãe, tias e primas trabalharam em casas de
grandes escritores e professores mineiros, então o
seu contato com a literatura também ocorreu nos
fundos das cozinhas dessas pessoas de classe
média/alta.
Ao ingressar na escola, sua mãe optou por colocar
elas e os irmãos em uma escola pública
reconhecida pela qualidade do ensino, que era
longe de sua casa e frequentada pela classe alta de
Belo Horizonte, com o intuito de que os filhos
aprendessem e gostassem de ler. Tanto sua mãe
quanto a tia que a criou liam bastante e isso
também foi um incentivo para Conceição desejar ter
contato com os livros, mesmo que não tivesse
acesso a muitos livros em casa. Na escola, passou
a ter contato com a biblioteca, o que aumentou
A Jornalista Flávia Oliveira, a ativista do
ainda mais o seu encanto. Ainda quando criança,
grupo Pantera Negra Angela Davis, a
uma de suas tias virou servente da Biblioteca
intérprete e Conceição Evaristo no
Pública de Minas Gerais, localizada na capital do
Encontro de Cinema Negro Zózimo
estado, o que aumentou o contato e a curiosidade
Bulbul.
de Conceição Evaristo com a vasta produção
literária que aquele prédio podia oferecer. Como ela
tinha livre acesso à Biblioteca Pública, por conta do
trabalho da tia, pegava os livros e passava boa
parte do dia sentada, lendo, em uma praça próxima
- a Praça da Liberdade.

21
O NEGRO EM CENA

No ano de 1958, quando terminou o antigo ciclo Dentro da universidade, teve contato com o
“primário” na escola, ganhou o seu primeiro grupo Quilombhoje, que a incentivou a iniciar sua
concurso literário, que foi um concurso de redação. escrita, teve seu primeiro texto publicado na série
Esse foi o primeiro prêmio da autora, que hoje tem Cadernos Negros (publicação literária periódica),
muitos outros. Saiu do primário para fazer um onde passou a publicar vários contos e poemas.
ginásio dentro do curso normal no Instituto de Em 1996, concluiu o mestrado em Literatura
Educação de Minas Gerais. Nessa época, Brasileira pela PUC do Rio de Janeiro, com a
conciliava o curso com o trabalho de empregada dissertação Literatura Negra: uma poética de
doméstica. E conforme ela ia passando por todas nossa afro-brasilidade. No ano de 2003, foi
essas fases da vida, a leitura e a escrita sempre a publicado o seu primeiro romance Ponciá
acompanhavam. Esses recursos eram, inclusive, Vicêncio, pela Editora Mazza. Com uma narrativa
um suporte para ela encarar a realidade que vivia, sobre a trajetória de uma mulher preta, da infância
enquanto adolescente/jovem, preta, pobre, à idade adulta, onde passado e presente dialogam
empregada doméstica que estudava em escolas através da memória da personagem principal, o
nas quais a maioria das alunas, alunos e livro fez bastante sucesso e foi objeto de pesquisa
professores eram branca/os, onde certamente o de muitos trabalhos acadêmicos. Três anos
racismo se fazia presente. Durante o seu curso depois, Conceição Evaristo nos presenteia com
ginasial, a cidade de Belo Horizonte passava por seu segundo romance, intitulado Becos da
um plano de desfavelamento, que enviava os memória, em que trata do drama de uma favela
moradores das favelas próximas ao centro para as em processo de remoção. As obras da autora
periferias da cidade, o que deixou a família da colocam em evidência as experiências de
escritora mais longe das localidades que estudava. mulheres negras, que são as protagonistas de
Conceição se inseriu no movimento da Juventude seus escritos literários, misturando realidade e
Operária Católica ainda naquela época, que ficção, que trazem reflexões e denúncias sobre as
promovia encontros de reflexões que visavam desigualdades sociais e as opressões conferidas
comprometer a Igreja com realidade brasileira. Em aos negros através racismo.
1973, ao terminar o curso normal, como não Seus textos foram conquistando cada vez mais
conseguiu emprego na capital mineira, se mudou leitores no Brasil e no mundo, dentro e fora das
para o Rio de Janeiro, onde passou em um instituições acadêmicas. Conceição participou de
concurso público para o magistério e trabalhou publicações em países como Alemanha e
como professora da rede pública de ensino. Se Inglaterra. Em 2007, Ponciá Vicêncio é traduzido
formou em Letras pela Universidade Federal do para o inglês, nos Estados Unidos pela Host
Rio de Janeiro (UFRJ) na década de 1980. Publications. Com isso, a escritora participou de
vários eventos de lançamento e de palestras em
universidades estadunidenses.
22
O NEGRO EM CENA

Fez doutorado em Literatura Comparada pela Quem acabou sendo eleito para ocupar o lugar foi
Universidade Federal Fluminense, com a tese o cineasta Cacá Diegues. Isso causou uma
Poemas malungos, cânticos irmãos (2011). Na enorme indignação na comunidade negra, porque
sua tese de doutorado, estudou as obras poéticas ela seria a primeira mulher negra a ocupar um
dos intelectuais Nei Lopes e Edimilson de Almeida lugar na Academia Brasileira de Letras, que até
Pereira em contraste com a do angolano hoje, 2023, não tem nenhuma. Isso nos mostra
Agostinho Neto. No mesmo ano, ela lança o livro que, apesar da vasta produção literária de
de contos Insubmissas lágrimas de mulheres, mulheres negras e sobre mulheres negras,
obra que também possui um contexto marcado circulando dentro e fora das universidades e
pelo racismo e pelas relações de gênero. outras instituições de educação, elas ainda são
Em 2014, a escritora publica Olhos D’água, que dominadas pela branquitude racista e machista,
foi um dos livros finalistas do Prêmio Jabuti, que continuam a invisibilizar nossas experiências
concorrendo na categoria “Contos e Crônicas”. e histórias. Apesar dessa questão, Conceição
Nos últimos anos, alguns de seus livros, que Evaristo foi premiada com o Troféu do Prêmio
continuam recebendo novas edições no Brasil e Juca Pato como Intelectual do Ano de 2023. A
foram traduzidos para o francês e publicados em escritora ganhou o prêmio não apensa pela sua
Paris pela editora Anacaona. Em 2018, a escritora contribuição à literatura brasileira, mas pelo
recebeu o Prêmio de Literatura do Governo de lançamento de Canção para Ninar Menino
Minas Gerais pelo conjunto de sua obra, no qual Grande, obra literária lançada no ano passado.
foi reconhecida como uma das escritoras Nesta obra, a escritora apresenta as contradições
brasileiras mais importantes. Mas é uma pena que e vivências da masculinidade de homens negros
nem todas as pessoas e instituições conseguem e as suas relações com mulheres negras.
reconhecer a grandiosidade e a importância da Outro feito importante da escritora esse ano foi a
obra de Conceição Evaristo, já que ela não foi abertura da Casa da Escrevivência, onde
eleita para ocupar a cadeira de número 7 Conceição dispõe parte do seu acervo
(originalmente ocupada por Castro Alves) na bibliográfico para o público.
Academia Brasileira de Letras. Ela lançou a sua
candidatura em junho de 2018 e a eleição ocorreu
em agosto, quando recebeu apenas um voto. 23
O NEGRO EM CENA
Ou seja, o espaço contém uma biblioteca que Ela traz a vivência de mulheres negras, das suas
reúne todas as obras da intelectual e de outros relações político-sociais, da sua ancestralidade e
pensadores e escritores para que as pessoas das consequências e experiências oriundas dos
possam acessar, ler e pesquisar. Esse espaço processos diaspóricos negros. A escrevivência
cultural fica localizado na subida do Morro da não fala apenas da esfera individual, mas sobre
Conceição (próximo ao Largo da Prainha), no vivência de uma coletividade. Atualmente, o termo
centro do Rio de Janeiro, na região da Pequena é utilizado nas universidades como aparato
África. A escolha dessa localidade não foi à toa. Ali teórico e metodológico de pesquisa, sobretudo
existem vários pontos simbólicos e importantes feitas por estudantes e pesquisadores negras e
para a história da população negra brasileira, como negros, em diversas áreas além da literatura. É
o Cais do Valongo, principal ponto de desembarque uma episteme nascida de experiência negra e
de escravizados no Brasil durante o processo de sobre experiências negras.
colonização. Assim, ter contato com a obra de Conceição
O termo “Escrevivência” foi cunhado pela autora Evaristo nos permite entender a vida de uma
ao longo de sua pesquisa de mestrado. É um jogo mulher que usou a literatura como uma
entre as expressões “escrever”, “viver” e “se ver”, ferramenta de denúncia das opressões vividas
que se culminam na “escrevivência”. Para ela, a pela população negra brasileira, sobretudo pelas
escrevivência está fundada em um passado mulheres negras. Para além de seu rico e
histórico, que remonta a fala de mulheres negras grandioso legado, Conceição nos faz entender
escravizadas, a partir da imagem da Mãe Preta - que as nossas histórias precisam sim ser
aquela que vivia a sua condição de escravizada contadas por nós, mesmo que a branquitude não
dentro da casa-grande. A Mãe Preta tinha como queira escutar ou ler e mesmo que o sistema
tarefa a função forçada de cuidar dos filhos dos tente nos silenciar das mais variadas formas, pois
senhores brancos. Eram elas que os alimentava, segundo ela “a nossa escravivência não é para
ensinava a falar e contava histórias para adormecer os da casa-grande, e, sim, para
“adormecer a casa-grande”, como diz a própria acordá-los de seus sonos injustos”.
Conceição Evaristo. Nesse contexto, corpo e voz
de mulheres negras eram controlados por pessoas
brancas.
A escrevivência então, inicialmente, se estrutura
como o ato de escrita e autoria de mulheres
negras, que faz o caminho inverso ao da figura da
Mãe Preta, fazendo ecoar (através da escrita) as
vozes de mulheres negras que narram suas
próprias experiências e não mais histórias para
ninar a casa-grande.

POR: IARA BRANDÃO FERREIRA


Graduada em História, atua como professora
voluntária dos pré-vestibulares comunitários Brota na
Laje e Sintuperj (UERJ). Também atua como
educadora em Museus desde 2012.

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O NEGRO EM CENA

Obrigado Mestra Conceição Evaristo, sucesso e AXÉ sempre.

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