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Páscoa: A morte de Cristo e a vida do cristão


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Para os textos bíblicos, foi usada a versão Nova Versão Transformadora (NVT)

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ÍNDICE
PÁSCOA 1

MORTE DE CRISTO E VIDA DO CRISTÃO 1

AS DUAS FACES DA PÁSCOA 3

A P ÁSCOA-PAIXÃO 4
A P ÁSCOA-PASSAGEM 6
A SÍNTESE AGOSTINIANA: A PÁSCOA, PASSAGEM ATRAVÉS DA PAIXÃO 7

O ANÚNCIO PROFÉTICO DO SALVADOR 10

A H ORA DE JESUS 16

A ORAÇÃO SACERDOTAL DE JESUS 21

QUATRO TEMAS IMPORTANTES DA ORAÇÃO 21

GETSÊMANI 27

A CAMINHO DO MONTE DAS OLIVEIRAS 27


A ORAÇÃO DO SENHOR 30

A MORTE DE JESUS COMO RECONCILIAÇÃO (EXPIAÇÃO) E SALVAÇÃO 34

A C RUCIFIXÃO 34
“MORTO PELOS NOSSOS PECADOS” 37

A RESSURREIÇÃO DE JESUS DA MORTE 42

A RESSURREIÇÃO DE JESUS: DE QUE SE TRATA? 42


O TÚMULO VAZIO 43
MADALENA NO SEPULCRO 43
CORAÇÕES PARTIDOS E O PARTIR DO PÃO 50
AS PORTAS ESTÃO FECHADAS 55
AQUELE QUE VÊ O LADO ESCURO DAS COISAS 61
A ÚLTIMA APARIÇÃO EM JERUSALÉM 64

A NATUREZA DA RESSURREIÇÃO E O SEU SIGNIFICADO HISTÓRICO 68

A P ÁSCOA CHAMA-NOS A UMA PLENA VIDA CRISTÃ 71

O CRISTÃO PERANTE A HISTÓRIA HUMANA 73


APROFUNDAR NO SENTIDO DA MORTE DE CRISTO 74

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As duas faces da Páscoa

O que recordamos nesse evento? Outra pergunta ainda mais importante: Que evento
salvífico que está na origem da Páscoa? Para nós cristãos, que nos preparamos cada ano
para celebrar a nossa Páscoa, tais perguntas podem ser um instrumento precioso para
chegar a uma compreensão sempre mais profunda do mistério pascal e, sobretudo, para
fazer nossa a compreensão que outros, antes de nós, tiveram dele.

À pergunta: “Que significa este evento?”, no Antigo Testamento, são dadas duas respostas
diversas, embora complementares. Segundo a explicação mais antiga, a festa da Páscoa
recorda, em primeiro lugar, “a passagem de Deus”; o nome mesmo de Páscoa deriva de um
verbo que indica a ação de Deus que “passa sobre”, no sentido de que “salta”, ou
“resguarda”, ou “protege” as casas dos hebreus, enquanto golpeia as dos seus inimigos:

“E quando seus filhos perguntarem: ‘O que significa esta cerimônia?’, e vocês


responderão: ‘É o sacrifício da Páscoa (Pesah) em honra do Senhor, pois ele passou
(pâsâhti) por sobre as casas dos israelitas no Egito. E, embora tenha abatido os
egípcios, poupou (pâsâhti) nossas famílias’”. Então todos que ali estavam se
prostraram e adoraram.” (Êx 12,26-27).

O conteúdo ou o evento que a Páscoa comemora é, então, a passagem salvífica de Deus:


Páscoa, porque Deus passou! Essa é uma explicação da Páscoa que pode ser definida
teológica ou teocêntrica, porquanto nela o protagonista é Deus; o aceno está todo na
iniciativa divina, isto é, na causa, mais que no efeito, da salvação.

No Deuteronômio e em outras partes mais recentes do próprio Êxodo, a atenção se desloca


do momento da imolação do cordeiro para o da saída do Egito, que é vista como a
passagem da escravidão para a liberdade (cf. Dt 16 e Êx 13-15). Com a mudança do evento
central, muda também o protagonista ou o sujeito da Páscoa: não é mais Deus que passa e
salva, mas o homem ou o povo que passa e é salvo. Essa é, pois, uma interpretação da
Páscoa que se pode definir antropológica ou antropocêntrica.

Note que se trata de duas respostas complementares, não exclusivas; é visto na


dependência de Deus; o Êxodo é para aliança do Sinai! Trata-se, por isso, de uma liberação
espiritual, não política, ao menos de modo principal: o povo torna-se livre para servir a
Deus, como tantas vezes repetem as fontes bíblicas: “deixa ir livre o meu povo para que me
sirva” (Êx 4,23; 5,1). Essa dupla interpretação – a teológica e a antropológica – mantém-se
ao longo de todo o Antigo Testamento.

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No tempo de Jesus, encontramos essa situação diversificada. No judaísmo oficial
palestinense, à sombra do templo e do sacerdócio hebraico, predomina a interpretação
teológica: A Páscoa comemora antes de tudo a passagem de Deus.

No judaísmo helenístico ou da diáspora, predomina, a outra explicação, a antropológica.


Aqui, o evento histórico central comemorado pela Páscoa é a passagem do povo pelo Mar
Vermelho; mas também esse é posto em segundo plano, em face do significado alegórico
do evento que é “a passagem do homem da escravidão à liberdade”.

A Páscoa-paixão

Migração, Êxodo, passagem, saída: são imagens de grande ressonância espiritual,


especialmente se vistas em contrastes com a mentalidade bíblica que vê na emigração de
Abraão e na emigração em geral o modelo plástico da fé e do destino de Israel (“Meu pai
era um arameu errante...”) e que se prolongará, no Novo Testamento, no ideal de vida como
“peregrinos e forasteiros” (1Pd 2,11; Hb 11,13).

Passamos, agora, da Páscoa judaica à Páscoa cristã. Mas antes de tudo uma pergunta:
quando começa a existir uma festa cristã de Páscoa?

A primitiva comunidade cristã, depois da morte e ressurreição de Jesus, embora


continuando por certo tempo a “subir ao templo” e a celebrar a Páscoa com outros judeus,
começou em certo momento a pensar e a viver essa festa anual, não mais como recordação
dos fatos do Êxodo e como espera da vinda do Messias, mas principalmente como
recordação daquilo que alguns anos antes tinha acontecido em Jerusalém durante uma
Páscoa, e como espera da volta de Cristo.

A festa cristã da Páscoa foi celebrada “em espírito e verdade”, no íntimo do coração dos
discípulos antes mesmo que com um rito e uma festa própria. E, talvez, quando Paulo, em
1Cor 5,7, exorta a “celebrar a festa”, já se refere à festa cristã da Páscoa. Foi assim que o
retorno anual da Páscoa terminou por ser celebrado também pelos discípulos com uma
festa própria, sempre mais consciente da sua novidade.

Como se chegou a isso? O ponto de encontro foi, aparentemente, um dado puramente


cronológico: Cristo fora morto (e ressuscitou) em Jerusalém, por ocasião de uma Páscoa
hebraica; para o evangelista João, aliás, foi até na mesma hora da imolação dos cordeiros
pascais no templo. Esse dado cronológico, por si só, não teria certamente bastado para
operar a grande transformação da Páscoa, se dentro dele não tivesse atuado outro dado

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mais forte: o tipológico. Aquele evento – a imolação de Cristo – fora visto como a realização
de todas as figuras e de todas as esperanças contidas na antiga Páscoa.

À luz desse evento, os autores do Novo Testamento reinterpretarão todos os fatos da vida
de Jesus, vendo neles a definitiva realização da Páscoa antiga. A Igreja herdou, pois, de
Israel a sua festa de Páscoa; esta, porém, na passagem de Israel para a Igreja, mudou de
conteúdo; tornou-se memorial de outro fato.

Coloca-se, por isso, de novo a antiga interrogação: Que significa esta cerimônia?

A Páscoa comemora toda a história da salvação, que tem como ponto culminante Jesus
Cristo, e se prolonga na espera do seu retorno final, pelo que diz também “escatológica”.
Num contexto semelhante, chega-se à afirmação audaz: “A Páscoa é Cristo”. De Cristo,
porém, a Páscoa comemora sobretudo “a grande imolação”, isto é, a sua paixão, a ponto de
a própria palavra “Páscoa” ter derivado do verbo que, em grego, significa sofrer.

No centro da Páscoa, nessa época antiquíssima, está, pois, a morte de Cristo, mas não a
morte em si mesma, como fato horrível, mas enquanto foi a “morte da morte”, o
“aniquilamento da morte na vitória” (cf. 1Cor 15,54). A morte de Cristo é vista na sua
irrompente “vitalidade” e na sua força de salvação de tal modo que – como dizia Inácio de
Antioquia (discípulo apóstolo João) – “a sua paixão foi a nossa ressurreição”. Isso porque
Jesus além de homem era também Deus e, “graças ao seu Espírito que não podia morrer,
matou a morte que matava o homem”.

A Páscoa-passagem

No plano teológico, a segunda grande tradição pascal nasce em Alexandria no início do III
século, com Clemente e Orígenes, que retomam, cristianizando-a, aquela concepção moral
e espiritual – que tem por centro o homem como sujeito protagonista da Páscoa – que
florescera no judaísmo helenístico. Neste novo quadro, toda vida do cristão e da Igreja é
vista como um Êxodo, como um caminhar contínuo que começa com a vinda para a fé e
termina com a saída deste mundo.

Se a Páscoa é antes de tudo uma passagem do homem, claro está que seu peso maior não
residirá no passado, mas no presente da Igreja, no qual essa passagem se realiza. Sinal
dessa mudança de ênfase da festa é a insistência na ideia de uma “Páscoa contínua”, em
detrimento da Páscoa anual, que faz um chamado muito mais explícito ao evento histórico
comemorado.

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O princípio que inspira essa tradição é que os fatos históricos do Êxodo e aqueles relativos
à morte-ressurreição de Jesus não encontram agora a sua atuação principal nos ritos
litúrgicos ou nas festas externas, mas sim em decisões e fatos interiores e espirituais; por
exemplo, o comer a carne do cordeiro remete-nos ao nutrir-nos espiritualmente de Cristo e
da sua palavra.

A síntese agostiniana: a Páscoa, passagem através


da paixão

Agostinho resolveu o contraste entre as duas explicações que pareciam insolúveis. Fez isso
tomando como referência um texto de João:

“O santo evangelista explicando, por assim dizer, a nós este nome da Páscoa, que
traduzido para o latim significa ‘passagem’, disse: No dia antes da ‘Páscoa’, Jesus
sabendo que havia chegado a hora de ‘passar’ deste mundo ao Pai... Eis a passagem!
Do quê e para quê? Deste mundo, para o Pai”

A partir desse texto é finalmente alcançado o equilíbrio e a síntese entre paixão e


passagem, entre Páscoa de Deus e Páscoa do homem, entre paixão e ressurreição de
Cristo, entre Páscoa litúrgica e sacramental, e Páscoa moral e ascética.

Agostinho se baseia num fato que até então passara despercebido aos autores que se
tinham ocupado da Páscoa: o próprio Novo Testamento contém uma explicação do nome da
Páscoa. João, aproximando um do outro os dois termos, “Páscoa” e “passar” pretendeu de
fato dar uma interpretação e um conteúdo cristão à Páscoa! O certo é que depois de
Agostinho, por toda a Idade Média, esta será a definição preferida da Páscoa cristã:
“Passagem de Jesus deste mundo ao Pai”.

A passagem de Jesus deste mundo ao Pai abrange, em uma unidade estreitíssima, paixão
e ressurreição: foi através da sua paixão que Jesus chegou à glória da ressurreição. Essa é
a quintessência da teologia de João (cf. por ex. João 12,20-36) e de todo o Novo
Testamento. “Através da paixão, escreve Agostinho, o Senhor passou da morte para a vida”.
Paixão e passagem já não são, pois, duas explicações contrapostas, mas conjugadas entre
si; a Páscoa cristã é uma passagem pela paixão.

Vêm logo em mente as palavras de Jesus aos discípulos de Emaús: Não era preciso que o
Cristo suportasse esses sofrimentos para entrar na sua glória? (Lc 24,26) e as palavras de
Paulo: É necessário passar muitas tribulações para entrar no Reino de Deus (At 14,22).

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Mas a síntese mais importante é outra: aquela entre Páscoa de Deus e Páscoa do homem.
Como se realiza tal síntese na nova definição da Páscoa? Aqui a teologia pascal atinge a
profundidade da pessoa mesma de Cristo e se une com o mistério da encarnação. Em
Jesus os dois protagonistas da Páscoa, Deus e o homem, deixam de ser alternativos
ou justapostos e tornam-se um só, porque em Cristo humanidade e divindade, duas
naturezas, são uma mesma pessoa! Autor e destinatário da salvação encontraram-se;
graça e liberdade abraçaram-se. Nasceu a “nova e eterna Aliança”; eterna, porque agora
ninguém poderá mais separar os dois contraentes, tornados em Cristo uma só pessoa.

Resta, porém, uma dúvida a dissipar: então, é apenas Jesus que faz a Páscoa? É apenas
ele que passa deste mundo ao Pai? E nós?

Eis a outra estupenda síntese agostiniana, aquela entre a Páscoa da Cabeça e a Páscoa do
corpo: “A partir do momento, de fato, em que, como diz o Apóstolo, Ele morreu pelos nossos
pecados e ressuscitou pela nossa justificação, na paixão e ressurreição do Senhor é
consagrada a nossa passagem da morte para a vida”.

A de Jesus não é uma passagem solitária, mas uma passagem coletiva, de toda
humanidade ao Pai. Comentando o versículo do Salmo (142,7) que dizia: “Eu sou só até
que não tenha passado”, Agostinho diz que isso é a voz de Cristo que fala antes da sua
Páscoa, como se dissesse: “Depois da Páscoa não estarei mais só. Muitos me seguirão,
muitos me imitarão. Que significa isto? “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de
trigo não cai em terra e não morre, fica só, mas se morre produz muito fruto”.

Na Páscoa nasceu a Igreja, corpo místico de Cristo, como espiga crescida no túmulo de
Jesus! Todos, portanto, já passamos com Cristo para o Pai e “a nossa vida já está
escondida com Cristo em Deus” (cf. CI 3,3), todavia todos devemos ainda passar.
Passamos “em esperança” e “em sacramento”, na confiança e pelo batismo, mas devemos
passar na realidade da vida cotidiana, imitando a sua vida e sobretudo o seu amor.

Passar de fato é preciso, diz Agostinho. E se não passamos para Deus que permanece,
passaremos com o mundo que passa.

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O anúncio profético do Salvador

s profecias do Antigo Testamento, consideradas em geral, contém todas,


três temas fundamentais: Há um só Deus; o seu reinado espiritual deve estender-se a todas
as nações; o Messias, enviado por ele, será o Cabeça – a Autoridade principal – o Senhor
desse reino.

Essa visão geral é precisada e confirmada em grande medida pelo estudo das principais
profecias em particular, sobretudo se se considera o desenvolvimento progressivo das
revelações divinas desde as promessas feitas ao primeiro homem e aos patriarcas, até as
profecias de Davi e Isaías, que especificam até mesmo as circunstâncias da vida e da
Paixão do Salvador.

É preciso lembrar também que, dentre esses patriarcas e profetas, vários são uma figura do
Cristo que devia vir, como Abraão, o pai dos fiéis, como Isaac, que carrega a lenha para o
seu sacrifício e se deixa atar para ser imolado, como José, vendido por seus irmãos e
tornando-se a salvação para os seus (cf Gn 50,20). Assim também Moisés, o libertador, o
líder e legislador do povo hebreu; Jó, figura do Cristo sofredor; Davi, tipo do Messias por
suas provações, sua realeza, sua oração, seus salmos; Jeremias por seus sofrimentos e
seu amor por seu povo, ou ainda Jonas é Nosso Senhor mesmo quem assinala em Jonas a
figura de sua pregação e de sua sepultura (Mt 12,39-41; Lc 11,29-32).

As revelações proféticas do período dos patriarcas até Moisés inclusive, anunciam o


Salvador do mundo que será da descendência de Abraão, de Isaac, de Jacó e de Judá, filho
de Jacó, que deu seu nome a uma das doze tribos de Israel e foi o pai da raça real de Davi.

No período dos Reis é sobretudo a de Davi, o Messias é anunciado como Rei, Filho de
Deus, Sacerdote por excelência, e mesmo a sua Paixão e o seu sacrifício são descritos. O
próprio Davi, nos Salmos, anuncia o reino universal de Deus e descreve as glórias e as
dores do Messias.

Este será Rei de todos os povos: “Todos os reis se prostrarão diante dele; todas as nações
os servirão. Pois ele libertará o indigente que clama, e o pobre que não tem quem o ajude”
(Sl 72,11-12). Este Rei é chamado por Davi o Ungido do Senhor, o Cristo, e mesmo Filho de

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Deus, como vemos no Salmo 2: “Os reis da terra se preparam para a batalha; os
governantes conspiram juntos, contra o Senhor e contra seu ungido”, isto é, contra aquele
que recebeu a unção real, o Rei-Messias. “Mas – continua o Salmo – aquele que habita nos
céus se ri de seus inimigos ... Vou proclamar o decreto de Yahweh, que me disse: “Tu és
meu Filho, eu hoje te gerei. Pede, e te darei as nações como herança, os confins da terra
como domínio”. Vemos a realização dessa profecia na universalidade da Igreja.

Mas Davi prevê também que o Messias será vítima voluntária pelo pecado. No salmo 40,6-7
se diz: “Não tens prazer em ofertas nem em sacrifícios; agora que me fizeste ouvir,
compreendo: tu não exiges holocaustos nem ofertas pelo pecado. Então eu disse: “Aqui
estou, conforme está escrito a meu respeito no livro.”. Na epístola aos Hebreus, o autor
escreve que Cristo disse essas palavras ao entrar no mundo, e se ofereceu como vítima
voluntária, pois os sacrifícios da antiga Lei eram impotentes para apagar o pecado (Hb
10,7-9).

Davi anuncia, por fim, os frutos do sacrifício do Messias e sua ressurreição, no Salmo 16,10:
“Pois tu não deixarás minha alma entre os mortos, nem permitirás que teu santo apodreça
no túmulo.” E os apóstolos, testemunhas da ressurreição de Cristo, aplicaram muito
naturalmente a ele esse texto (cf At 2,25-32; 13,35-37).

Em resumo, Davi anuncia os sofrimentos e as glórias do Messias (cf Sl 22,23-29). Ele será
Filho de Deus (Sl 2,7), será o rei poderoso, bondoso para com os humildes, mas temível
para os malvados (Sl 72), o sacerdote por excelência (Sl 111); mas ao mesmo tempo será a
vítima voluntária pelo pecado (Sl 40,6-7); será sobrecarregado de tormentos e sofrerá uma
morte pavorosa (Sl 22; Sl 69), mas sairá glorioso do túmulo (Sl 16,10).

Depois de Davi, Salomão canta a Sabedoria universal que deve manifestar-se ao mundo:
“Yahweh me possui como primícias de sua obra, diz a Sabedoria ... Desde a eternidade fui
estabelecida ... A Sabedoria construiu a sua casa ... Abateu seus animais, misturou o vinho
e pôs a mesa ... Ela diz aos sem juízo: Vinde comer do pão, e beber do vinho que misturei
... e segui o caminho da inteligência” (Pv 8,22 – 9,). Hoje nós conhecemos o pão da vida e o
preciosíssimo sangue.

Também o Cântico dos Cânticos, canta a união de Cristo com a Igreja, da qual se fala
também no salmo 45,7-9. Como vemos, nessas profecias do período dos reis, trata-se
sempre de um Messias descendente de Israel, mas ao mesmo tempo Filho de Deus (Sl
110,1 cg Mt 22,41-46; Mc 12,35-37; Lc 22,41-44).

No período dos profetas, nesta época da história do povo de Israel, o que é representado é
sobretudo a origem do Salvador, suas qualidades, suas funções, seu sacrifício.

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Obadias 21 anuncia de um modo geral, que virão salvadores ao monte Sião. Joel 2,28-32
prediz a efusão do Espírito de Deus sobre toda a carne, e acrescenta: “Então, todo aquele
que invocar o nome de Yahweh será salvo, porque no monte Sião haverá salvação, como
Yahweh falou, e entre os sobreviventes estarão aqueles que Yahweh chama”. Oseias
anuncia a conversão de Israel (3,5) e a realeza do futuro Messias (11,1). Miqueias 4 mostra
os povos acorrendo a Jerusalém, a cidade da salvação, e o Messias nascendo em Belém:
“E tu, Belém (Éfrata), embora seja a menor das aldeias de Judá, é de ti que sairá aquele
que será dominador em Israel, e cuja origem vem de tempos antigos, de dias imemoráveis
... Ele será grande até os confins da terra” (Mq 5,1-3). Vemos a realização dessa profecia,
hoje, no progresso das missões e da evangelização.

Mas é sobretudo Isaías que, em sua grande profecia, descreve a natividade do Messias, os
seus atributos divinos, o seu reino universal, o seu sacrifício que deve trazer a salvação a
todos os povos e o seu triunfo.

Primeiramente a natividade: “Por isso, o Senhor mesmo lhes dará um sinal. Vejam! A
virgem ficará grávida! Ela dará à luz um filho e o chamará de Emanuel” (Is 7,14). O nome de
Emanuel é explícito no capítulo seguinte (Is 8,8.10), onde Emanuel designa o Senhor, o
Messias, “Deus está conosco”.

As funções do Messias são descritas a partir do capítulo 9: “Pois um menino nos nasceu,
um filho nos foi dado. O governo estará sobre seus ombros, e ele será chamado de
Maravilhoso Conselheiro, Deus Poderoso, Pai Eterno e Príncipe da Paz” (v.6). Já se vê
nelas a elevação do Prólogo do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus ... E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”.

No capítulo 11, diz-se: “Do tronco da linhagem de Jessé brotará um renovo; sim, um novo
Ramo que de suas raízes dará frutos. E o Espírito do Senhor estará sobre ele, o Espírito de
sabedoria e discernimento, o Espírito de conselho e poder, o Espírito de conhecimento e
temor do Senhor” (1-2). É a descrição dos dons do Espírito que o Messias receberá de
modo iminente, e os justos por participação.

O seu reino universal é anunciado em 16,5; 18,7; 24-27; e também o seu caráter de pedra
angular, em 28,16. O apóstolo Pedro, depois do Pentecostes, dirá aos membros do
Sinédrio: Pois é a respeito desse Jesus que se diz: ‘A pedra que vocês, os construtores,
rejeitaram se tornou a pedra angular’ (At 4,11). Essa pedra angular, havia dito Isaías, “será
também uma pedra de tropeço ... Muitos tropeçarão nela, cairão e se despedaçarão” (Is
8,14). É o que o apóstolo Paulo lembra na Epístola aos Romanos. E acrescenta: “mas quem
nela crer não será confundido” (Rm 9,23).

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A salvação messiânica é normalmente associada pelos profetas à suprema aparição de
Deus sobre a terra (Is 7,14; 40,5; Malaquias 3,1).

Isaías insiste, e muito, sobre o sacrifício do Salvador; ele descreve com precisão numerosos
detalhes que se realizarão ao pé da letra durante a Paixão de Jesus: “Ofereci as costas aos
que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba. Não escondi o rosto daqueles que
zombavam de mim e em mim cuspiam. Porque o Senhor Soberano me ajuda, não serei
envergonhado. Por isso, firmei o rosto como uma pedra e sei que não serei envergonhado”
(Is 50,6-7). Também capítulos 52 e 53: “O castigo que havia de trazer-nos a paz, caiu sobre
ele; sim, por suas feridas fomos curados. Todos nós andávamos errantes como ovelhas,
seguindo cada um o seu próprio caminho, mas Yahweh fez recair sobre ele a iniquidade de
todos nós.

Essa profecia é de tal modo impressionante, que foi chamada “a Paixão segundo Isaías”; a
paixão redentora no que ela tem de mais profundo, em sua motivação suprema de
Misericórdia e de Justiça, a Paixão entrevista antecipadamente naquilo que tem de mais
íntimo, naquilo que, em certa medida, será percebido por Maria aos pés da Cruz, pelo
apóstolo João, pelas outras mulheres, pelo bom ladrão, pelo centurião; a Paixão como fonte
infinita de graças, algo que ficará oculto para a maior parte daqueles que verão Jesus
morrer na Cruz.

Por fim, depois da humilhação e dos sofrimentos do Messias, Isaías descreve o triunfo, e a
conversão de muitos: “Fazia parte do plano do Senhor esmagá-lo e causar-lhe dor. Quando,
porém, sua vida for entregue como oferta pelo pecado, ele terá muitos descendentes. Terá
vida longa, e o plano do Senhor prosperará em suas mãos. Quando ele vir tudo que resultar
de sua angústia, ficará satisfeito” (Is 53,10-11). O autor de Hebreus escreverá depois da
Ressurreição e da Ascensão: “Ele vive para sempre e não cessa de interceder por nós” (Hb
7,25).

A profecia de Isaías termina pela descrição da glória da nova Jerusalém, que atrai as
nações à sua luz, pelo quadro de sua santidade e de seu esplendor:

““Alguém tem sede? Venha e beba, mesmo que não tenha dinheiro! Venha, beba
vinho ou leite; é tudo de graça! Por que gastar seu dinheiro com comida que não
fortalece? Por que pagar por aquilo que não satisfaz? Ouçam-me, e vocês comerão o
que é bom e se deliciarão com os alimentos mais saborosos. “Venham a mim com os
ouvidos bem abertos; escutem, e encontrarão vida. Farei com vocês uma aliança
permanente, o amor que fielmente prometi a Davi. Vejam como eu o usei para
mostrar meu poder aos povos; eu o fiz governante das nações. Vocês também darão

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ordens a nações que não conhecem, e povos desconhecidos virão correndo lhes
obedecer. Pois eu, o Senhor, seu Deus, o Santo de Israel, os tornei gloriosos.”
Busquem o Senhor enquanto podem achá-lo; invoquem-no agora, enquanto ele está
perto. Que os perversos mudem de conduta e deixem de lado até mesmo a ideia de
fazer o mal. Que se voltem para o Senhor, para que ele tenha misericórdia deles; sim,
voltem-se para nosso Deus, pois ele os perdoará generosamente. “Meus
pensamentos são muito diferentes dos seus”, diz o Senhor, “e meus caminhos vão
muito além de seus caminhos. Pois, assim como os céus são mais altos que a terra,
meus caminhos são mais altos que seus caminhos, e meus pensamentos, mais altos
que seus pensamentos.” (Isaías 55:1-9)

Isaías é incontestavelmente o maior dos profetas, pela importância de suas revelações e


pela força de seu estilo. Ele viveu em uma das épocas mais conturbadas da história de
Israel, que muito teve de sofrer, então, por parte dos Assírios. O estilo de Isaías é ao
mesmo tempo simples e sublime, de uma perfeita naturalidade, de grande nobreza, de uma
clareza excepcional. Suas sentenças são concisas, penetrantes, e põem em relevo os
pontos importantes, para dissipar as desilusões e atrair fortemente a atenção para o Reino
de Deus, para fazer pressentir a grandeza do Messias e a majestade da glória divina.

Depois de Isaías, Jeremias prediz o verdadeiro pastor que Deus deve suscitar: “Dias virão –
oráculo de Yahweh – em que suscitarei a Davi um germe justo; um rei reinará e agirá com
inteligência, e exercerá na terra o direito e a justiça. Em seus dias, Judá será salvo” (Jr
23,4-5). Também Ezequiel diz, em nome do Senhor: “Suscitarei para as ovelhas um pastor
que as apascentará ... Será uma chuva abençoada ... E saberá que eu, Yahweh, estou com
elas” (Ez 34,23-31). Ezequiel diz também, depois da visão dos ossos secos que voltam à
vida: “O meu servo Davi será rei sobre eles, e haverá um só pastor para todos” (Ez 37,24).
E Jesus dirá: “Eu sou o bom pastor: o bom pastor dá a sua vida pelas ovelhas ... Eu sou o
bom pastor: eu conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem, como o Pai me conhece e
eu conheço o Pai. Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas. Tenho outras ovelhas que
não são deste redil; devo conduzi-las também; elas ouvirão a minha voz, e então haverá um
só rebanho e um só pastor” (João 10,11-16). O reino de Deus universal anunciado pelos
profetas será realizado na Igreja militante, padecente e triunfante.

Daniel vê a pequena pedra lançada do alto que irá despedaçar o colosso de pés de argila,
que é símbolo da idolatria. Ele vê também que “a pedra se tornou uma grande montanha
que ocupou a terra inteira” (Dn 2,34-35). Os que receberão o reino são os santos do
Altíssimo, e eles conservarão o reino para sempre, de eternidade em eternidade (Dn
7,14.18).

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Entre os últimos profetas, Ageu promete a seus contemporâneos que o Messias entrará no
novo templo que eles constroem (Ag 2,1-10). Zacarias saúda o Messias em Sião (2,8-13), o
“germe” (3,8) que deverá elevar o verdadeiro templo do Senhor (6,9-15), o Salvador, fonte
de graça para Jerusalém (13,1;14).

O último dos profetas, Malaquias, anuncia o precursor que o seguirá com mais de quatro
séculos de distância (Ml 3,1); fala do sacrifício que substituirá todos os outros (1,11): “Do
levante ao poente, meu Nome será grande entre as nações, e em todo lugar será oferecido
ao meu Nome um sacrifício de incenso e uma oferenda pura, porque o meu Nome é grande
entre os povos, disse Yahweh dos exércitos. Esse versículo é aplicado ao sacrifício da Nova
Lei, isto é, a Eucaristia.

Tal é o desenvolvimento progressivo das revelações divinas sobre o Messias. Podemos ver
sua admirável unidade, desde o início do período dos patriarcas. Todas essas profecias
anunciam o estabelecimento do monoteísmo, o reino universal do verdadeiro Deus, do Deus
de Abraão, de Isaac e de Jacó, que deverá tornar-se o Deus de todas as nações da terra.
Todas elas anunciam o Messias, senhor do reino de Deus, o Salvador do mundo, que será
descendência de Abraão, que será, portanto, filho de Davi segundo a carne, e no entanto
Filho de Deus e Sacerdote por excelência, cujo Sacrifício doloroso apagará os pecados do
mundo, e será uma fonte de graças sempre novas para todas as almas de boa vontade.

14
A Hora de Jesus

epois dos discursos com o ensinamento de Jesus na sequência da sua


entrada em Jerusalém, os evangelhos sinóticos retomam o fio da narração, com uma
declaração exata, que conduz à Última Ceia. Na abertura do capítulo 14, Marcos começa
escrevendo: “A Páscoa e os Ázimos seriam dois dias depois” (14,1); em seguida fala da
unção em Betânia e também da traição de Judas, e continua: “No primeiro dia dos Ázimos,
em que se imolava o cordeiro pascal, os seus discípulos perguntaram a Jesus: “Onde
queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?” (14,12).

Na descrição da última noite de Jesus com os seus discípulos antes da Paixão, põe em
destaque dois fatos muito particulares: em primeiro lugar, narra-nos como Jesus prestara
aos discípulos o serviço de escravo no lava-pés; nesse contexto, refere também ao anúncio
da traição de Judas e a negação de Pedro. O segundo aspecto consiste nos discursos de
despedida feitos por Jesus, que atingem o seu apogeu na Oração Sacerdotal. Sobre esses
dois eixos, se concentrará agora a nossa atenção.

“Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar desse mundo
para o Pai, tendo amado os Seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (João 13,1).
Com a Última Ceia, chegou a “hora” de Jesus, para a qual se orientava a sua atividade
desde o princípio (cf 2,4). O essencial dessa hora é delineado por João com duas palavras
fundamentais: é a hora da “passagem” (metabaínen – metábasis); é a hora do amor (ágape)
“até o fim”.

As duas expressões clarificam-se reciprocamente, sendo inseparáveis uma da outra. O


amor é precisamente o processo da passagem da transformação, da saída dos limites da
condição humana voltada à morte, na qual estamos separados uns dos outros e, no fundo,
impenetráveis uns aos outros – numa singularidade que não podemos ultrapassar. É o amor
até o fim que realiza o “metábasis” aparentemente impossível: sair das barreiras da
individualidade fechada – eis o que é o ágape, a irrupção na esfera divina.

A “hora” de Jesus é a hora da grande “passagem mais além”, da transformação, e esta


metamorfose do ser se realiza por meio do ágape. É um ágape “até o fim” – expressão essa
com que João, neste ponto, remete de antemão para a última palavra do Crucificado: “Está

15
consumado – tetélestai” (19,30). Esse fim (télos), essa totalidade de doação, da
metamorfose de todo o ser é precisamente o dar-se a si mesmo até a morte. Jesus aqui –
como, aliás, em outras partes do Evangelho de João – fala da sua saída do Pai e de seu
regresso a Ele; isso poderia trazer à mente a recordação do antigo esquema de exitus e
reditus, da saída e do regresso, como foi elaborado especialmente pela filosofia de Plotino;
o sair é uma descida do divino da criação, para zonas cada vez inferiores do ser. Em
seguida, o regresso consiste na purificação, isto é, na libertação do material numa subida
gradual e em purificações que tiram o que é inferior e por fim conduzem à unidade do
divino.

Pelo contrário, o sair de Jesus pressupõe, acima de tudo, a criação não como declínio, mas
como ato positivo da vontade de Deus. Depois, trata-se de um procedimento de amor que,
precisamente na descida, demonstra a sua verdadeira natureza – por amor à criatura, por
amor à ovelha perdida – revelando assim no descer aquilo que é verdadeiramente divino. E
Jesus, de regresso, não Se desembaraça de modo algum da sua humanidade como se
fosse algo contaminante. A finalidade da sua descida era aceitar e acolher todos os homens
e regressar juntamente com eles: o regresso de “toda a carne”.

Nesse regresso, dá-se uma novidade: Jesus não regressa sozinho. Não abandona a carne,
mas atrai todos a Si (cf João 12,32). A metábasis vale para a totalidade. Se, no primeiro
capítulo de João, se diz que os “Seus (idioi) não acollheram Jesus (cf 1,11), ouvimos agora
dizer que Ele amou os Seus até o fim (cf 13,1). Na descida, Ele reuniu de novo os “Seus” –
a grande família de Deus – fazendo com que eles, de estrangeiros que eram, se tornassem
“Seus”.

O evangelista continua: “levanta-Se da mesa, depõe o manto e, tomando uma toalha,


cinge-se com ela. Depois, coloca água numa bacia e começa a lavar os pés dos discípulos
e a enxugá-los com a toalha com que estava cingido” (João 13,4-5). Jesus presta aos seus
discípulos o serviço de escravo, “humilha-Se a Si mesmo” (Fp 2,7).

Aquilo que diz a Carta aos Filipenses, no seu admirável hino cristológico – isto é, que num
gesto contrário ao de Adão, que tentara com as próprias forças apoderar-se do divino,
Cristo desceu da sua divindade tornando-Se homem, “assumiu a condição de servo” e
fez-Se obediente até a morte de cruz (cf 2,7-8) – tudo isso ficou visível aqui num único
gesto. Com um ato simbólico, Jesus ilustra o conjunto do seu serviço salvífico. Despoja-Se
do seu esplendor divino, ajoelha-Se por assim dizer diante de nós, lava e enxuga os nossos
pés sujos, para nos tornar capazes de participar no banquete nupcial de Deus.

Quando no Apocalipse, aparece a formulação paradoxal segundo a qual os redimidos


“lavaram as suas túnicas e as branquearam no sangue do Cordeiro” (7,14), isso quer dizer:

16
é o amor de Jesus até o fim que nos purifica, que nos lava. O gesto do lava-pés exprime isto
mesmo: é o amor serviçal de Jesus que nos tira fora da nossa soberba e nos torna capazes
de Deus, nos torna “puros”.

Em Marcos, vemos a mudança de paradigma que Jesus deu ao conceito de pureza diante
de Deus: não são ações rituais que purificam. Pureza e impureza realizam-se no coração do
homem e dependem da condição do seu coração (cf Mc 7,14-23).

E imediatamente surge a pergunta: Como se torna puro o coração? Quem são os homens
de coração puro, que podem ver a Deus (cf Mt 5,8)? A exegese liberal disse que Jesus teria
substituído a concepção ritual da pureza pela moral: no lugar do culto e do seu mundo,
entraria a moral. Então o cristianismo seria essencialmente uma moral, uma espécie de
“rearmamento” ético. Mas desse modo não se faz justiça à novidade do Novo Testamento.

A verdadeira novidade divisa-se quando, nos Atos dos Apóstolos, Pedro toma posição em
face da objeção dos fariseus convertidos à fé em Cristo, que pedem que os cristãos vindos
do paganismo sejam circuncidados e lhes seja ordenado que “observem a lei de Moisés”. A
isso replica Pedro: O próprio Deus tomou a decisão de fazer com que “os gentios ouvissem
da minha boca a palavra da Boa Nova e abraçassem a fé [...]; não fez distinção alguma
entre nós e eles, purificando seus corações pela fé” (15,5-11). A fé purifica o coração. A fé
deriva do fato de Deus Se voltar para o homem. Não se trata simplesmente de uma decisão
autônoma dos homens. A fé nasce porque as pessoas são tocadas interiormente pelo
Espírito de Deus, que lhes abre o coração e o purifica.

Esse importante tema da purificação, acenado só de passagem no discurso de Pedro, foi


retomado e aprofundado por João na narração do lava-pés e, sob a palavra-chave
“santificação”, na Oração Sacerdotal de Jesus. “Vós já estais puros por causa da palavra
que vos fiz ouvir”, disse Jesus aos seus discípulos no discurso sobre a videira (15,3). É a
sua palavra que penetra neles, transforma o seu pensamento e sua vontade, o seu
“coração”, e abre-o de modo se torne um coração que vê.

Na Oração Sacerdotal vemos: “Consagra-os na verdade” (17,17). Na terminologia


sacerdotal, “consagrar” significa habilitar para o culto. A palavra designa os atos rituais que
o sacerdote deve cumprir, antes de se apresentar diante de Deus. “Consagra-os na
verdade”. A verdade é agora a “limpeza” que torna os homens capazes de Deus: é o que
nos faz compreender aqui Jesus. Nela deve ser imerso o homem, para que seja libertado da
imundície que o separa de Deus. João sabe que Jesus é a verdade em pessoa.

No capítulo 13 do Evangelho, o lava-pés realizado por Jesus apresenta-se como o caminho


da purificação. Uma vez mais se exprime a mesma coisa, e novamente de um ângulo

17
diferente. A limpeza que nos purifica é o amor de Jesus: o amor que se empenha até a
morte. A palavra de Jesus não é simplesmente palavra, mas Ele próprio. E a sua palavra é
a verdade e o amor. Em vez de pureza ritual, não entrou simplesmente a moral, mas o dom
do encontro com Deus em Jesus Cristo. O essencial é permanecer no seu Corpo, ser
permeados pela sua presença.

Para João, o dom de Jesus e a sua eficácia duradoura nos discípulos se exigem
reciprocamente. Essa dinâmica essencial do dom, pela qual agora Ele mesmo age em nós e
a nossa ação se identifica com a d’Ele, manifesta-se de forma particularmente clara na
afirmação de Jesus: “Quem crê em Mim fará as obras que faço e fará até maiores do que
elas, porque vou para o Pai” (João 14,12). Aqui está expresso precisamente aquilo que a
frase “Dei-vos o exemplo” no lava-pés quer dizer: o modo de agir de Jesus torna-se nosso,
porque é Ele mesmo que age em nós.

A partir disso, compreende-se também o discurso seguinte sobre o “mandamento novo”,


com que Jesus, depois do episódio sobre a traição de Judas, retoma o convite ao recíproco
lava-pés, elevando-o a princípio (13,34-35). Em que consiste a novidade do mandamento
novo? Dado que, no fim das contas, se toca aqui na novidade do Novo Testamento e,
consequentemente, na questão sobre a “essência do cristianismo”, é muito importante
darmos uma atenção especial.

Foi dito que a novidade – relativamente ao mandamento já existente do amor ao próximo –


estaria na expressão “amar como Eu vos amei”, isto é, no amar até a disponibilidade de
sacrificar a própria vida pelo outro. Se realmente consistisse nisso a essência e a totalidade
do “mandamento novo”, então o cristianismo dever-se-ia realmente definir como uma
espécie de esforço moral extremo. Desse modo é interpretado por muitos também o
Sermão da Montanha: relativamente ao antigo caminho dos Dez Mandamentos, que
indicaria por assim dizer o caminho do homem comum, o cristianismo teria inaugurado com
o Sermão da Montanha o caminho alto de uma exigência radical, que havia de revelar, na
humanidade, um novo nível de humanismo.

Mas, na realidade, quem pode afirmar de si mesmo que se elevou acima da “mediocridade”
do caminho dos Dez Mandamentos deixou-os, por assim dizer, para trás como algo
pressuposto e caminha agora sobre os caminhos altos, na “nova Lei”? Não, a verdadeira
novidade do mandamento novo não pode consistir na sublimidade da prestação moral. O
essencial precisamente nessas palavras não é o apelo a uma prestação máxima, mas o
novo fundamento do ser que nos é dado. A novidade só pode derivar do dom da comunhão
com Cristo, do viver n’Ele.

18
O que conta é a inserção do nosso eu no d’Ele (“já não sou eu que vivo, mas é Cristo que
vive em mim”: Gl 2,20). Por isso, a segunda palavra-chave, que aparece frequentemente na
interpretação de Agostinho do Sermão da Montanha, é o termo ‘misericórdia”. Devemos
deixar-nos mergulhar na misericórdia do Senhor; e então também o nosso coração
encontrará o caminho certo. O “mandamento novo” não consiste simplesmente numa
exigência nova e superior; mas está ligado com a novidade de Jesus Cristo, a crescente
imersão n’Ele.

A oração Sacerdotal de Jesus

o Evangelho de João, depois do lava-pés vêm os discursos de despedida de


Jesus capítulos 14-16), que no final, no capítulo 17, desembocam numa grande oração,
para qual o teólogo luterano David Chytraeus (1530-1600) cunhou a expressão “Oração
Sacerdotal”. No período da Patrística, foi sobretudo Cirilo de Alexandria (+ 444) que
sublinhou o caráter sacerdotal da oração. Ruperto de Deutz (+ 1129) escreve acerca do
caráter essencial dessa oração: “assim orou por nós o Sumo Sacerdote, sendo Ele mesmo
propiciador e oferta de expiação, sacerdote e sacrifício”.

A estrutura do rito descrito em Levítico 16 é retomada minuciosamente na oração de Jesus:


tal como o Sumo Sacerdote cumpre a expiação por si, pela classe sacerdotal e por toda a
comunidade de Israel, assim também Jesus ora por Si mesmo, pelos Apóstolos e finalmente
por todos aqueles que depois, por causa da palavra deles, haveriam de acreditar n’Ele, ou
seja, pela Igreja de todos os tempos (cf João 17,20). Ele santifica-se a “Si mesmo” e implora
santidade para os Seus.

QUATRO TEMAS IMPORTANTES DA ORAÇÃO

“A vida eterna é esta ...”

19
O tema “vida” (zõe), que desde o início (1,4), permeia todo o Evangelho, aparece
necessariamente também na nova liturgia da expiação, que se realiza na Oração
Sacerdotal. A expressão “vida eterna” não significa – a vida que vem depois da morte,
enquanto a vida atual seria passageira e não uma vida eterna. “Vida eterna” significa a vida
no sentido mais próprio e verdadeiro, a qual pode ser vivida mesmo neste tempo e contra a
qual, depois, já nada pode fazer a morte física. É isto que interessa: abraçar já desde agora
“a vida”, a vida verdadeira, que já não pode ser destruída por nada e por ninguém.

Mas como se pode chegar a isso? A Oração Sacerdotal dá uma resposta talvez
surpreendente, mas já preparada no contexto do pensamento bíblico: o homem encontra a
“vida eterna” por meio do “conhecimento”, mas pressupondo aqui o conceito
veterotestamentário de “conhecer”, segundo o qual conhecer cria comunhão, é identificar-se
com o conhecido. Naturalmente não qualquer conhecimento seria a chave da vida, mas sim
o fato de “que eles Te conheçam a Ti, único Deus verdadeiro, e Aquele que enviaste, Jesus
Cristo” (17,3). Essa é uma espécie de fórmula sintética da fé, na qual aparece o conteúdo
essencial da decisão do ser cristão: o conhecimento que nos foi dado pela fé. O cristão não
acredita na multiplicidade de circunstâncias; no fundo, crê simplesmente em Deus, crê que
existe somente um único verdadeiro Deus.

Porém esse Deus se torna acessível ao cristão n’Aquele que Ele mesmo mandou: Jesus
Cristo. No encontro com Ele, verifica-se aquele conhecimento de Deus que se torna
comunhão e desse modo torna-se “vida”. Na fórmula duplicada “Deus e Aquele que me
enviou”, pode-se ouvir o eco daquilo que aparece muitas vezes sobretudo nos oráculos do
Senhor presentes no Livro do Êxodo: devem acreditar em “Mim” – em Deus – e em Moisés,
o seu enviado. Deus mostra o seu rosto no enviado e, de forma definitiva, no seu Filho.

Consequentemente, a “vida eterna” é um fato relacional. O homem não a adquiriu por si


mesmo, nem para si mesmo. Por meio da relação com Aquele que é em Si mesmo a vida,
também o homem se torna um vivente.

“Consagra-os na verdade”

Na oração pelos discípulos, Jesus diz: Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade.
[...] Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados de verdade” (João
17:17,19). Trata-se de uma tríplice consagração: o Pai consagrou o Filho e enviou-O ao
mundo; O Filho consagra-Se a Si mesmo e pede que, a partir da sua consagração os
discípulos sejam consagrados na verdade.

20
O que significam as três consagrações (santificações)? Encontramos resposta na vocação
do profeta Jeremias: “Antes mesmo de te formar no ventre materno eu te conheci; antes que
saísses do seio, eu te consagrei. Eu te constituí profeta para as nações” (Jr 1,5).
Consagração significa a reivindicação total do homem por parte de Deus, a separação para
Ele, que, todavia, é ao mesmo tempo uma missão para os povos.

Também na frase de Jesus, consagração e missão aparecem estreitamente ligadas uma


com a outra. Por isso pode-se dizer que a consagração de Jesus por parte do Pai se
identifica com a Encarnação: exprime conjuntamente a plena unidade com o Pai e o ser
plenamente para o mundo. Jesus pertence inteiramente a Deus e por isso mesmo está
totalmente à disposição “de todos”. “Tu és o Santo de Deus” – dissera-lhe Pedro na
sinagoga de Cafarnaum, pronunciando assim uma magnífica confissão cristológica (João
6,69).

Mas, se o Pai O consagrou, então que significa “Eu consagro-Me” (17,19)? João Crisóstomo
explica: “Consagro-Me, ofereço-Me a Mim mesmo como sacrifício”. Enquanto a primeira
“consagração” se refere à Encarnação, aqui se trata da paixão como sacrifício.

Chegamos agora à terceira consagração mencionada na Oração de Jesus: “Consagra-os na


verdade” (17,17). “Eu consagro-Me por eles, para que também eles sejam consagrados na
verdade” (João 17,19). Os discípulos devem ser envolvidos na consagração de Jesus;
também neles se deve realizar essa passagem de propriedade, essa transferência para a
esfera de Deus e assim realizar-se o seu envio ao mundo.

Segundo o Livro do Êxodo, a consagração sacerdotal dos filhos de Aarão realiza-se por
meio da paramentação com as vestes sagradas da unção (cf 29,1-9); no ritual do dia da
Expiação, fala-se também de um banho completo antes de tomar as vestes sacras (Lv
16,4). Os discípulos são santificados, consagrados na “verdade”. A verdade é o lavacro que
os purifica, a verdade é a veste e a unção de que têm necessidade.

Em última análise, essa “verdade” purificadora e santificadora é o próprio Cristo. N’Ele se


devem imergir, d’Ele devem ser como que “revestidos”; e assim se tornam participantes da
sua consagração, do seu cargo sacerdotal, do seu sacrifício.

“Eu lhes dei a conhecer o Teu nome”

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Outro tema fundamental da Oração Sacerdotal é a revelação do nome de Deus. “Manifestei
o Teu nome aos homens que do mundo Me deste” (João 17,6). “Eu lhes dei a conhecer o
Teu nome e lhes darei a conhecê-lo, a fim de que o amor com que Me amaste esteja neles e
Eu esteja neles” (João 17,26).

É obvio que Jesus, com essas palavras, Se apresenta como o novo Moisés: leva ao fim
aquilo que teve início com Moisés na sarça ardente. Deus revelou a Moisés o seu “nome”.
Esse “nome” era mais do que uma simples palavra. Significava que Deus Se deixava
invocar, entrara em comunhão com Israel. Assim, ao longo da história da fé de Israel, foi-se
tornando cada vez mais evidente que, por “nome de Deus”, se pretendia aludir à sua
“imanência”: ao seu “estar” no meio dos homens, um “estar” em que Ele se encontra
totalmente presente e, todavia, transcende infinitamente tudo o que é humano e terreno.

A expressão “nome de Deus” significa: Deus como Aquele que está presente no meio dos
homens. Assim, falando do templo de Jerusalém, diz-se que lá Deus “estabeleceu a morada
do seu nome” (cf Dt 12,11; 14,23; etc). Israel não teria jamais ousado dizer simplesmente:
ali habita Deus. Sabia que Deus era infinitamente grande, que transcendia e abraçava o
universo. E, todavia, estava verdadeiramente presente: Ele mesmo. É isso que se entende,
quando se afirma: “Lá Ele estabeleceu o seu nome”. Está realmente presente, e, contudo,
permanece sempre imensamente maior e inatingível. O “nome de Deus” é o próprio Deus
como Aquele que Se nos dá; Ele, não obstante toda a certeza da sua proximidade e toda a
alegria por esse fato, permanece sempre infinitamente maior.

Esse é o conceito do nome de Deus, com base na qual fala Jesus. Quando diz que deu a
conhecer o nome de Deus e quer ainda dá-lo a conhecer mais, não pretende com isso
referir-Se a qualquer palavra nova que Ele teria comunicado aos homens como palavra
particularmente adequada para qualificar Deus. A revelação do nome é um modo novo da
presença de Deus entre os homens, um modo novo e radical em que Deus Se torna
presente no meio dos homens. Em Jesus, Deus entra totalmente no mundo dos homens:
quem vê Jesus, vê o Pai (cf João 14,9).

A Encarnação, pela qual essa nova forma de ser de Deus como homem se realizou,
torna-se por meio do seu sacrifício um acontecimento para a humanidade inteira: como
Ressuscitado, Ele vem de novo para fazer de todos o seu Corpo, o templo novo. A
“revelação do nome” tem em vista que “o amor com que Me amaste esteja neles e Eu esteja
neles” (17,26). Visa à transformação do universo, para que este, em união com Cristo, se
torne de modo totalmente novo a verdadeira morada de Deus.

Em Cristo, Deus vem continuamente ao encontro dos homens – “lhes darei a conhecer” –
para que estes possam ir ao encontro d’Ele. Dar a conhecer Cristo significa dar a conhecer

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Deus. Mediante o encontro com Cristo Deus aproxima-se de nós, atrai-nos a Si (cf João
12,32), para nos conduzir, por assim dizer, para além de nós mesmos, rumo à amplitude
infinita da sua grandeza e do seu amor.

“Para que todos sejam um ...”

Outro grande tema da Oração Sacerdotal é a futura unidade dos discípulos de Jesus.
Assim, o olhar de Jesus – de modo único nos Evangelhos – estende-se para além da
comunidade dos discípulos de então e fixa-se em todos aqueles que “por meio de sua
palavra, crerão em Mim” (João 17,20): abre-se o vasto horizonte da comunidade futura dos
crentes através das gerações, a futura Igreja está incluída na oração de Jesus. Ele invoca a
unidade para os futuros discípulos.

Certamente é verdade que a unidade dos discípulos da Igreja futura – que Jesus pede, “não
é um fenômeno do mundo”. Isso é dito pelo Senhor muito claramente: a unidade não vem
do mundo; é impossível extraí-las das forças próprias dele. Bem vemos como essas forças
levam à divisão. Na medida em que, na Igreja, no cristianismo, entra em ação o mundo,
acaba-se em divisões. A unidade só pode vir do Pai por meio do Filho. Tem a ver com
a “glória” que o Filho dá: com a sua presença, que nos é concedida através do Espírito
Santo; uma presença que é fruto da Cruz, da transformação do Filho na morte e na
ressurreição.

Mas a força de Deus age penetrando no meio do mundo, onde vivem os discípulos. Aquela
deve ser uma qualidade tal que permita ao mundo “reconhecê-la” e, desse modo, chegar à
fé. O que não deriva dele, pode e deve absolutamente ser algo que seja eficaz no mundo e
para o mundo e também que lhe seja perceptível. É precisamente isto que a oração de
Jesus pela unidade tem em vista: que se torne visível aos homens a verdade da sua
missão, por meio da unidade dos discípulos. A unidade deve ser visível, reconhecível; e
reconhecível precisamente como algo que não existe em qualquer outra parte do mundo;
algo que é inexplicável com base nas forças próprias da humanidade e, consequentemente,
torna visível o agir de uma forma diversa. Por meio da unidade humanamente inexplicável
dos discípulos de Jesus através dos tempos, é legitimado o próprio Jesus. Torna-se
evidente que Ele é verdadeiramente o “Filho”. Desse modo, Deus aparece reconhecível
como Criador de uma unidade que supera a tendência do mundo à desintegração.

Foi por isso que Jesus orou: por uma unidade, que só é possível a partir de Deus e por meio
de Cristo, mas uma unidade que aparece de modo tão concreto que se torna evidente a
força presente e operante de Deus. Por isso, a fadiga em prol de uma unidade visível
dos discípulos de Cristo permanece uma tarefa urgente para os cristãos de todos os
tempos e lugares. A unidade invisível da “comunidade” não basta.

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Depois da ressurreição, Jesus atrai os discípulos para dentro dessa corrente da missão:
“Assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio” (20,21). A condição de ser enviado
por Jesus deve ser sinal qualificativo para a comunidade dos discípulos de todos os tempos.
Para ele, isso significa sempre: “A doutrina não é minha”; os discípulos não se anunciam a
si mesmos, mas declaram o que ouviram. Representam Cristo, como Cristo representa o
Pai. Deixam-se guiar pelo Espírito Santo, sabendo que, nessa fidelidade absoluta, está em
ação ao mesmo tempo a dinâmica da maturação: “O Espírito da verdade [...] vos conduzirá
à verdade plena” (João 16,13).

A unidade com o Senhor não seria global e confusa, mas íntima e pessoal, pois Ele disse:
“Chamo minhas ovelhas pelo nome”. Embora estivesse agora se dirigindo apenas a 11
homens, tinha em mente todos os milhões que mais tarde viriam a crer Nele por meio
destes homens e de seus sucessores. O vínculo de unidade deve existir entre os crentes e
o Senhor, com base naquela unidade mais elevada que há entre o Senhor e o Pai. Visto que
o Pai e Ele são um no Espírito, em poucos minutos Ele lhes contaria que este Espírito
haveria de vir sobre eles para fazer deles verdadeiramente um. Chamou a esse Espírito de
“Espírito da verdade”, isto é, Seu Espírito. Assim como o corpo é um porque tem alma,
assim também a humanidade deve ser uma quando tem o mesmo Espírito que faz do Pai e
do Filho um no céu. A unidade que os crentes tinham de ter com Ele havia de ser
intermediada pelos apóstolos.

Essa é precisamente a missão de Jesus, no qual foram envolvidos os discípulos: conduzir o


“mundo” para fora da alienação em que vive o homem relativamente a Deus e si próprio, a
fim de que o mundo volte a ser de Deus, e o homem, unido a Deus, volte a ser totalmente
ele próprio. Mas essa transformação tem o preço da cruz e, para as testemunhas de Cristo,
o da disponibilidade para o martírio: “Fui crucificado com Cristo; assim, já não sou eu quem
vive, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20).

A Igreja nasce da oração de Jesus. Mas essa oração não é meramente palavra: é o ato em
que Ele “Se consagra” a Si mesmo, isto é, “Se sacrifica” pela vida do mundo. Podemos dizer
também, invertendo a afirmação: na oração, o acontecimento cruel da cruz torna-se
“Palavra”, torna-se festa da Expiação entre Deus e o mundo. Disso nasce a Igreja como a
comunidade daqueles que, por meio da palavra dos Apóstolos, creem em Cristo (cf 17,20).

24
Getsêmani
A caminho do Monte das Oliveiras

upõe-se que Jesus, na perspectiva da Páscoa que Ele acabava de celebrar a seu
modo, tenha cantado talvez alguns Salmos do hallèl (114-119 e 137), nos quais se agradece
a Deus pela libertação de Israel do Egito; mas neles se fala também da pedra angular.
Nesses Salmos, a história passada torna-se sempre de novo realidade presente. O
agradecimento pela libertação é simultaneamente uma imploração de ajuda no meio de
tribulações e ameaças sempre novas e, na afirmação acerca da pedra rejeitada, tornam-se
presentes conjuntamente a escuridão e a promessa daquela noite.

Jesus recita com os discípulos os Salmos de Israel: trata-se de um dado fundamental para
compreensão não só da figura de Jesus, mas também dos próprios Salmos, que, em certo
aspecto, n’Ele ganham um novo sujeito, um novo modo de presença e, ao mesmo tempo,
um alargamento além de Israel, em direção à universalidade.

Como veremos, surge aqui também uma nova visão da figura de Davi: no Saltério canônico,
Davi é considerado o autor principal dos Salmos. Desse modo aparece como aquele que
guia e inspira a oração de Israel, aquele que assume todos os sofrimentos e as esperanças
de Israel, carrega-as consigo e transforma-os em oração. Por isso, Israel pode
continuamente orar com ele e exprimir-se a si mesmo nos Salmos, dos quais, em cada
escuridão, não cessa de receber também nova esperança. Na Igreja nascente, rapidamente
se começa a considerar Jesus como o novo, o verdadeiro Davi; e, assim, os Salmos, sem
ruptura e, todavia, de modo novo, podiam ser recitados como oração em comunhão com
Jesus Cristo. Esta maneira cristã de orar com os Salmos – uma forma que se desenvolveu
rapidamente – foi explicada de forma perfeita por Agostinho, ao dizer que, nos Salmos, é
sempre Cristo que fala, umas vezes como Cabeça outras como Corpo (veja-se por exemplo
Sl 61,1s; 62,5; 86,1.5). Mas, por intermédio d’Ele – Jesus Cristo, – somos agora um único
sujeito e podemos assim, juntamente com Ele, falar verdadeiramente com Deus.

Esse processo de assunção e transposição, que tem início com a oração dos Salmos por
parte de Jesus, é característico para a unidade dos dois Testamentos, como Ele nos ensina.
Jesus ora em perfeita comunhão com Israel e, contudo, Ele mesmo é Israel de um modo
novo: a Páscoa antiga aparece agora como um grande esboço antecipado. De fato, a nova

25
Páscoa é o próprio Jesus e a verdadeira “libertação” realiza-se agora por meio do seu amor,
que abraça a humanidade inteira.

Se desse ponto lançarmos retrospectivamente um olhar sobre o caminho inteiro de Jesus,


vemos também aqui o mesmo entrelaçamento de fidelidade e total novidade: Jesus é
“observante”. Celebra, com os outros, as festas judaicas; ora no templo; atém-Se a Moisés
e aos profetas. Mas ao mesmo tempo tudo se faz novo: desde Sua explicação do Sábado
(cf Mc 2,27), passando pelas prescrições relativas à pureza ritual (cf Mc 7), pela nova
interpretação do Decálogo no Sermão da Montanha (cf Mt 5,17-48), até a purificação do
templo (cf Mt 21,12-13), que antecipa o fim do templo de pedra e anuncia o novo templo, a
nova adoração “em espírito e verdade” (João 4,24).

Vimos que está em profunda continuidade com a vontade originária de Deus e, ao mesmo
tempo, é a reviravolta decisiva da história das religiões, reviravolta que se torna realidade na
cruz. Ora, foi precisamente a última intervenção – a purificação do templo – que contribuiu
de maneira essencial para a sua condenação à morte na cruz, e desse modo concreto se
cumpriu a profecia, teve início o culto novo.

“E foram a um lugar cujo nome é Getsêmani. E ele disse a Seus discípulos: “Sentai-vos
aqui, enquanto vou orar” (Mc 14,32). A esse respeito, observa Gerhard Kroll: “No tempo de
Jesus, encontrava-se nesta porção da encosta do Monte das Oliveiras uma quinta com um
lugar onde se espremiam as azeitonas [...]. Este dava à quinta o nome de Getsêmani [...].
Muito perto havia uma grande caverna natural, que podia proporcionar a Jesus e aos seus
discípulos um abrigo seguro, embora não muito cômodo para a noite”.

Quem lá se detém, encontra-se diante de um ápice dramático do mistério do nosso


Redentor: aqui Jesus experimentou a solidão extrema, toda a tribulação de ser
homem. Aqui o abismo do pecado e todo o mal penetrou até o mais fundo da sua
alma. Aqui foi assaltado pela turvação da morte iminente. Aqui, beijou-O o traidor.
Aqui todos os discípulos O abandonaram. Aqui Ele lutou também por mim.

João retoma todas essas experiências e dá ao lugar uma interpretação teológica, dizendo:
“Do outro lado da torrente do Cédron, havia ali um jardim” (18,1). A mesma palavra-chave
aparece de novo no fim da narração da Paixão: “Havia um jardim, no lugar onde Ele fora
crucificado e, no jardim, um sepulcro novo, no qual ninguém fora ainda colocado” (19,41).
Evidente que João, com a palavra “jardim”, alude à narração do Paraíso e do pecado
original. Quer dizer-nos que aquela história é retomada aqui. No “jardim” acontece a traição,
mas o jardim é também o lugar da ressurreição. De fato, no jardim, Jesus aceitou
completamente a vontade do Pai, assumiu-a e assim inverteu a história.

26
Depois da oração comum dos Salmos, ainda no caminho para o lugar do repouso noturno,
Jesus faz três profecias.

Aplica a Si mesmo a profecia de Zacarias, que dissera que o “pastor” haveria de ser ferido,
isto é, morto, e, como consequência, as ovelhas se dispersariam (cf Zc 13,7; Mt 26,31).
Numa misteriosa visão, Zacarias aludira a um Messias que sofre a morte e a uma
consequente nova dispersão de Israel. Só por meio dessas tribulações extremas é que ele
esperava a salvação da parte de Deus. A essa visão, em si mesma obscura e orientada
para um futuro incógnito, Jesus dá uma forma concreta: sim, o Pastor é ferido. O próprio
Jesus é o Pastor de Israel, o Pastor da humanidade. E Ele toma sobre si a injustiça, a carga
devastadora da culpa. Deixa-Se ferir. Coloca-Se da parte dos vencidos da história. Mas isso
significa que, naquela hora, também a comunidade dos discípulos se dispersa, que essa
nova família de Deus, acaba de nascer, se esfacela ainda antes de ter começado
verdadeiramente e estabelecer-se. “O bom Pastor dá Sua vida pelas Suas ovelhas” (João
10,11). Essa palavra de Jesus, com base em Zacarias, aparece numa nova luz: chegou a
hora da sua realização.

Mas, à profecia de desgraça segue-se imediatamente a promessa de salvação: “Mas,


depois que Eu ressurgir, Eu vos precederei na Galileia” (Mc 14,28). “Preceder” é uma
palavra típica da linguagem dos pastores. Jesus, depois da passar pela morte, de novo
viverá. Como Ressuscitado, Ele é plenamente aquele Pastor que, por meio da morte,
conduz pela estrada da vida. As duas coisas pertencem ao Bom Pastor: dar a própria vida e
ir à frente. Aliás, o dar a vida constitui o ir à frente. Precisamente por meio desse dar a vida
é que Ele nos conduz. Precisamente, por meio desse “dar”, Ele abre a porta a vastidão da
realidade. Por meio da dispersão, verifica-se a reunião definitiva das ovelhas. Por
conseguinte, no início da noite no monte das Oliveiras, acha-se a palavra obscura do ferir e
do dispersar-se, mas também a promessa que é precisamente assim que Jesus Se
manifestará como o verdadeiro Pastor, reunirá os dispersos e os conduzirá para Deus
introduzindo-os na vida.

A terceira profecia é uma nova variação das discussões com Pedro que ocorreram na
Última Ceia. Pedro não presta atenção à profecia da ressurreição. Fixa apenas o anúncio da
morte e dispersão, e isso lhe dá ocasião de exibir sua coragem inabalável e a sua fidelidade
radical em relação a Jesus. Dado que é contrário à cruz, não pode compreender a palavra
sobre a ressurreição, e queria – como já se viu em Cesareia de Filipe – o sucesso sem a
Cruz. Confia nas suas próprias forças.

Quem poderia negar que o seu comportamento espelhe a tentação contínua dos
cristãos, aliás, mesmo da Igreja: chegar ao sucesso sem a cruz? Assim, é preciso
anunciar-lhe a sua fragilidade, a tríplice negação. Ninguém, por si mesmo, é suficientemente

27
forte para percorrer o caminho da salvação até o fim. Todos pecaram. Todos precisam da
misericórdia do Senhor, do amor do Crucificado (cf Rm 3,23-24).

A oração do Senhor

Depois da recitação dos Salmos em comum, Jesus ora sozinho, como tantas noites o fizera
antes. Todavia deixa perto de Si o grupo dos três: Pedro, Tiago e João. Assim, eles, apesar
de repetidamente dominados pelo sono, tornam-se testemunhas da sua luta noturna.
Marcos conta-nos que Jesus começa a “apavorar-se e angustiar-se”. O Senhor diz aos
discípulos: “A minha alma está triste até a morte. Permanecei aqui e vigiai” (14,33-34).

O apelo à vigilância constitui um tema fundamental já no anúncio em Jerusalém, e agora


aparece como uma urgência muito imediata. Mas, apesar de se referir precisamente àquela
hora, tal apelo remete de antemão para a história futura do cristianismo. A sonolência dos
discípulos permanece, ao longo dos séculos, a ocasião favorável para o poder do mal. Essa
sonolência é um entorpecimento da alma, que não se alarma com o poder do mal no
mundo, com toda a injustiça e com todo o sofrimento que devastam a terra. É um
embotamento que prefere não se dar conta de tudo isso; tranquiliza-se com o pensamento
de que tudo, no fundo, não é assim tão grave, podendo desse modo continuar a se
autocomprazer na sua própria vida saturada. Mas esse embotamento das almas, essa falta
de vigilância, seja quanto à proximidade de Deus, seja quanto à força ameaçadora do mal,
confere ao maligno um poder no mundo. Diante dos discípulos sonolentos e não propensos
a alarmar-se, o Senhor diz de Si mesmo: “A minha alma está triste até a morte”. Trata-se de
uma palavra do Salmo 43,5, na qual ressoam outras expressões dos Salmos.

Mesmo na sua Paixão – tanto no monte das Oliveiras como na cruz – Jesus fala de Si a fala
a Deus Pai com palavras dos Salmos. Mas essas palavras, tiradas dos Salmos, tornaram-se
totalmente pessoais, palavras absolutamente próprias de Jesus na sua tribulação. Ele é
realmente o verdadeiro orante desses Salmos, o seu verdadeiro sujeito. Aqui se identificam
a oração muito pessoal e o orar com as palavras de súplica do Israel crente e sofredor.

Depois dessa exortação à vigilância, Jesus afasta-Se um pouco. Começa verdadeira e


propriamente a oração do monte das Oliveiras. Mateus e Marcos dizem-nos que Jesus caiu
de rosto por terra: é a oração que exprime a extrema submissão à vontade de Deus, o
abandono mais radical a Ele.

Segue-se a oração verdadeira e propriamente dita, na qual está presente todo o drama da
nossa redenção. Marcos começa por dizer, numa espécie de sumário, que Jesus orava para
que, “se possível, passasse d’Ele a hora” (14,35). Depois cita assim a frase essencial da

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oração de Jesus: “Abba! Ó Pai! Tudo é possível para Ti: afasta de Mim este cálice, porém
não o que Eu quero, mas o que Tu queres” (14,36).

Nessa oração de Jesus, podemos distinguir três elementos. Primeiro, a experiência primitiva
do medo, a turvação diante do poder da morte, o pavor perante o abismo do nada, que O
faz tremer, ou melhor, segundo Lucas, que O faz suar gotas de sangue (cf 22,44). Em João
(cf 12,27), essa turvação é expressa, como nos sinóticos, aludindo ao Salmo 43,5, mas com
uma palavra que torna particularmente evidente o caráter abissal do medo de Jesus:
tetáraktai – é a mesma palavra, tarássein, que João usa para descrever a perturbação
profunda de Jesus perante o túmulo de Lázaro (cf 11,33) e também a sua perturbação
interior no Cenáculo ao anunciar a traição de Jesus (cf 13,21).

Ao dizer isso, não há dúvida de que João exprime a angústia primitiva da criatura diante da
morte que se aproxima, mas trata-se de algo mais: é a turvação particular d’Aquele que é a
própria Vida diante do abismo de todo o poder da destruição, do mal, daquilo que se opõe a
Deus e que agora Lhe cai diretamente em cima, que Ele de modo imediato deve agora
tomar sobre Si, ou melhor, deve acolher dentro de Si até o ponto de ser pessoalmente “feito
pecado” (2Co 5,21).

Precisamente porque é o Filho, vê com extrema clareza toda a amplitude da maré imunda
do mal, todo o poder da mentira e da soberba, toda a astúcia e a atrocidade do mal, que se
apresenta com a máscara da vida, mas serve continuamente à destruição do ser, à
deturpação e ao aniquilamento da vida. Precisamente porque é Filho, sente profundamente
o horror, toda a imundície e perfídia que deve beber naquele “cálice” que lhe está destinado:
todo o poder do pecado e da morte. Ele tem de acolher tudo isso dentro de Si mesmo, para
que n’Ele fique despojado de poder e superado.

A angústia de Jesus é algo de muito mais radical que a angústia que assalta todo homem
face à morte; é o próprio duelo entre luz e trevas, entre vida e morte – o verdadeiro drama
da escolha que caracteriza a história humana. Nesse sentido, como fez Pascal, podemos
aplicar também a nós, de modo muito pessoal, o sucedido no monte das Oliveiras: também
o meu pecado estava presente naquele cálice pavoroso. “Aquelas gotas de sangue,
derramei-as por ti”: são as palavras que Pascal ouve dirigidas a si pelo Senhor em agonia
no monte das Oliveiras.

As duas partes da oração de Jesus apresentam-se como a contraposição de duas


vontades: há a “vontade natural” do homem Jesus, que se insurge contra o aspecto
monstruoso e fatal do acontecimento e quer pedir que o cálice “passe ao largo”; e há a
“vontade do Filho”, que Se abandona totalmente à vontade do Pai. Se quisermos procurar
compreender o mais possível esse mistério das “duas vontades”, é útil lançar de novo um

29
olhar à versão joanina daquela oração. Em João, encontramos também os dois pedidos de
Jesus: “Pai, salva-Me desta hora” e “Pai, glorifica o Teu nome” (12,27.28).

De fato, é precisamente assim que Deus Se torna manifesto naquilo que é: o Deus que, no
abismo do seu amor, doando-Se a Si mesmo, contrapõe a todas as forças do mal o
verdadeiro poder do bem. Jesus pronunciou ambos os pedidos, mas o primeiro, ou seja, o
de ser “salvo”, está amalgamado com o segundo, que pede a glorificação de Deus na
realização da sua vontade; desse modo, o contraste no íntimo da existência humana de
Jesus é conduzido à unidade.

O drama do monte das Oliveiras consiste no fato de a vontade natural do homem ser
reconduzida por Jesus da oposição à sinergia, e assim restabelece o homem na sua
grandeza. Na vontade humana natural de Jesus está, por assim dizer, presente n’Ele
mesmo toda a resistência da natureza humana contra Deus. A obstinação de todos nós,
toda a oposição contra Deus está presente, e Jesus, lutando, arrasta a natureza
recalcitrante para o alto na direção da sua verdadeira essência.

A passagem do contraste entre as duas vontades à sua comunhão se dá por meio da cruz
da obediência. Na agonia do Getsêmani, realiza-se essa passagem. Assim, a oração “não
se faça a minha vontade, mas a Tua” (Lc 22,42) é verdadeiramente uma oração do Filho ao
Pai, na qual a vontade humana natural foi totalmente arrastada para dentro do Eu do Filho,
cuja essência se exprime precisamente no “não Eu, mas Tu”, no abandono total do Eu ao
Tu de Deus Pai. Mas, este “Eu” acolheu em Si a oposição da humanidade e transformou-a,
de tal modo que agora, na obediência do Filho, estamos presentes todos nós, somos todos
arrastados para dentro da condição de filhos.

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A morte de Jesus como
Reconciliação (Expiação)
e Salvação
Se alguém lhes prega um Evangelho diverso daquele que receberam, seja anátema!
(Gl 1,9).

fé pascal dos cristãos exige, pois, que se creia conjuntamente nestas três
coisas: primeiro, que Jesus realmente morreu e ressurgiu; segundo, que morreu pelos
nossos pecados e ressurgiu pela nossa justificação; terceiro, que ele morreu pelos nossos
pecados, sabendo que morria pelos nossos pecados; que morreu por amor, nem forçado
nem por acaso.

A Crucifixão

Aquele que chorou em Betânia e Cujo sangue agora gotejava na estrada de Jerusalém
pediu-lhes que não chorassem por Ele, pois Sua morte era uma necessidade desejada —
livremente desejada por Ele, mas uma necessidade para os homens. Ademais, uma vez
que prometera enxugar toda lágrima, lágrimas por Ele eram desnecessárias.

A árvore verde era Ele mesmo; a árvore seca era o mundo. Ele era a verdejante árvore da
vida transferida do Éden; a árvore seca era primeiro Jerusalém, e depois o mundo não
convertido. Sua advertência significava que, se os romanos tratavam dessa forma Aquele
que era inocente, como tratariam Jerusalém, que O condenara à morte? Se Ele foi ferido
por causa das transgressões dos outros, como, no juízo final, seria punida a culpa por suas
próprias iniquidades? Quando há fogo na floresta, a árvore verde com seiva e umidade se
escurece; já as árvores velhas e secas, inteiramente podres, vão queimar! Se Aquele que
não tinha pecado sofreu, quanto mais sofrerão aqueles que estão podres com o pecado!

Pedro, que não foi mencionado nessa cena, mas que viveu intimamente com o Salvador,
mais tarde tomou o mesmo tema e escreveu: E, se o justo se salva com dificuldade, que

31
será do ímpio e do pecador? Assim também aqueles que sofrem segundo a vontade de
Deus encomendem as suas almas ao Criador fiel, praticando o bem. (1 Pedro 4,18-19)

Nenhuma lágrima de Dalila afastaria esse Sansão de sua obra hoje; nenhum lamento
superficial das mulheres de Jerusalém O enfraqueceria no propósito determinado do
sacrifício; o dote de lágrimas não podia fazer delas as noivas de Seu coração. Se Ele fosse
apenas um homem bom indo em direção à morte, então deixaria que abrissem a fonte de
lágrimas; mas, como Ele era um sacerdote indo ao sacrifício, então só as deixaria chorar se
não se aproveitassem dos frutos desse mesmo sacrifício. Assim como expiaria a morte ao
levantar-Se do sepulcro, também agora purificou as lágrimas de lamento, ao mostrar que só
o pecado merecia lágrimas. As mulheres choravam por Ele como um homem bom, mas Ele
não teria essas lágrimas no leito de morte. Ao rejeitar esse luto, o Senhor mostrou que não
era um homem bom enviado à morte, mas um Deus-homem salvando pecadores.

Oculto em Suas palavras estava o apelo por fidelidade para impedir a destruição de
Jerusalém; seu destino estava nas mãos das mulheres, se tão somente se arrependessem.
Nesta, como em muitas outras ocasiões, o Senhor levou Seus ouvintes a olhar para o
estado de suas almas. Ele desviou a atenção de Si mesmo, que não tinha pecado, para
aqueles que necessitavam da Redenção. Quando o jovem disse a Nosso Senhor que queria
ser Seu discípulo, Nosso Senhor disse-lhe que não tinha onde repousar a cabeça. A
condição da alma daquele jovem era adequada a tal pobreza? Quando Pedro disse que
morreria pelo Senhor, este contou ao apóstolo o quanto sua alma era débil; agora dizia às
mulheres que não desperdiçassem o pranto; que olhassem para a própria alma, para seus
filhos, para a cidade. Ele não precisava de lágrimas; elas, sim, precisavam.

O lugar designado para a Crucifixão era o Gólgota, ou o “Lugar da Caveira”. Diz a lenda que
foi ali que se deu o sepultamento de Adão. Representações da Crucifixão muitas vezes
mostram um crânio aos pés da Cruz, para indicar que o novo Adão estava morrendo pelo
velho Adão. Mas, decerto, era um lugar onde ossos de mortos eram jogados depois da
execução. Uma vez no monte, os executores despiram-No de Suas vestes, abrindo novas
feridas em Seu Corpo Santo. Ao todo, houve sete diferentes derramamentos de sangue: a
circuncisão, a agonia no jardim, a flagelação, a coroa de espinhos, o caminho da Cruz, e
agora os dois que se seguem — a Crucifixão e a perfuração do Sagrado Coração. A Cruz
estava preparada, e sobre ela puseram uma inscrição feita por Pilatos em hebraico, latim e
grego, que dizia: Jesus de Nazaré, rei dos judeus. (João 19,19)

Sua morte, e também Sua Realeza, foram proclamados em nome dessas três cidades do
mundo: Jerusalém, Roma e Atenas; no idioma do Bom, do Verdadeiro e do Belo; nas
línguas de Sião, do Fórum e da Acrópole. Pediriam a Pilatos que mudasse o que tinha
escrito, mas ele se recusaria: “O que escrevi, escrevi”. Sua Realeza permaneceu

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proclamada, embora, no momento, a Cruz fosse Seu trono; Seu sangue, a púrpura real; os
cravos, o Seu cetro; a coroa de espinho, Sua diadema. A verdade manifestou-se mesmo
quando os homens a ridicularizavam.

Ser despido de Suas vestes queria dizer que já não era possível identificá-Lo pela roupa.
Em Sua nudez, tornou-se o Homem Universal. Exilado da cidade, abandonou agora tanto a
nação quanto a vida. O Sagrado Coração já não estava confinado entre fronteiras. O cravo
rude transpassou aquela mão da qual fluía a graça do mundo, e a primeira pancada do
martelo foi ouvida em silêncio. Martelada após martelada, o som logo ecoou pelos muros da
cidade. Maria e João taparam os ouvidos; o eco soava com outra pancada. Os pés foram
fixados, os mesmos que buscavam a ovelha perdida entre os espinhos. Cada detalhe da
profecia estava sendo cumprido. Mil anos antes, Davi viu o papel que o martelo e os cravos
representariam com respeito ao Messias, quando os carpinteiros entregaram à morte
Aquele que fora o carpinteiro do universo.

Cercam-me touros numerosos, rodeiam-me touros de Basã; contra mim eles abrem
suas fauces, como o leão que ruge e arrebata. Derramo-me como água, todos os
meus ossos se desconjuntam; meu coração tornou-se como cera, e derrete-se nas
minhas entranhas. Minha garganta está seca qual barro cozido, pega-se no paladar a
minha língua: vós me reduzistes ao pó da morte. Sim, rodeia-me uma malta de cães,
cerca-me um bando de malfeitores. Traspassaram minhas mãos e meus pés: poderia
contar todos os meus ossos. Eles me olham e me observam com alegria [...] (Salmo
22,12-17)

Isaías previra que, em Sua morte, o Messias estaria relacionado a criminosos e malfeitores.
Sendo vítima vicária pelos pecados, Ele não era tido com mais estima do que a escória da
terra. Como profetizou Isaías:

Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao
matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. [...] O Justo, meu Servo,
justificará muitos homens, e tomará sobre si suas iniquidades. [...] ele próprio deu sua
vida, e deixou-se colocar entre os criminosos, tomando sobre si os pecados de
muitos homens, e intercedendo pelos culpados. (Isaías 53,7-12)

Porque a crucifixão era o mais excruciante dos tormentos, era costume oferecer ao
condenado uma medida para diminuir a sensibilidade à dor. Provavelmente, as mulheres de
Jerusalém levavam consigo tal poção. Em todo caso, os soldados deram-lhe de beber vinho
misturado com mirra, mas ele não o aceitou. (Lucas 15,23)

Quando Lhe levaram aos lábios, Nosso Senhor, sabendo que era um sedativo, recusou-se a
sorver. Embora Seu corpo, já exausto, bradasse por água, Ele não beberia aquilo que

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embotaria seu papel de mediador. No nascimento, Sua mãe recebeu mirra de presente e
aceitou-a como um sinal de sua morte redentora. Em sua morte, Ele recusaria a mirra, que
entorpeceria a razão de Sua vinda. Ele disse a Pedro na noite anterior que beberia do cálice
que o Pai Lhe dera. Mas, para beber aquele cálice de Redenção, não deveria beber o cálice
que lhe separaria Corpo e Espírito.

Nosso Senhor ocupou muitos púlpitos durante a vida pública, tais como o barco de Pedro
lançado ao mar, o topo da montanha, as ruas de Tiro e Sidom, o templo, a estrada junto ao
cemitério e um salão de banquetes. Mas todos perdem importância em comparação ao
púlpito em que Ele estava agora — o púlpito da Cruz. Esta foi lentamente erguida do chão,
balançou nos ares por um momento, rasgando e dilacerando Sua Carne Santa; então, de
repente, com um golpe seco que pareceu abalar até mesmo aos infernos, foi fincada no
buraco preparado para ela. Nosso Senhor subiu em Seu púlpito pela última vez.

Como todo orador, observava do alto Sua audiência. Ao longe, em Jerusalém, Ele podia ver
a abóboda dourada do templo, refletindo os raios do sol, prestes a esconder sua face,
envergonhado. Aqui e ali, nas paredes do templo, Ele podia captar um vislumbre daqueles
que estavam forçando os olhos para ver Aquele a quem as trevas não conheciam. Ao lado
da multidão estavam seguidores tímidos, prontos para fugir em caso de perigo; ali também
estavam os executores preparando-se para lançar sortes por Sua túnica (João 19,24). Perto
da Cruz estava o único apóstolo presente, João, cujo rosto tinha um aspecto como que
moldado pelo amor; Madalena também estava lá, como uma flor pisoteada, uma criatura
ferida. Mas, acima de todos — Deus tenha piedade dela! —, estava Sua própria mãe. Maria,
Madalena, João; inocência, penitência e sacerdócio; os três tipos de almas que para todo o
sempre seriam encontradas aos pés da Cruz de Cristo.

“Morto pelos nossos pecados”

Agostinho escreveu: “Não é grande coisa crer que Cristo morreu. Isto o creem até os
pagãos, os judeus e todos os ímpios. Todos creem que morreu! A fé dos cristãos é a
ressurreição de Cristo. Isto sim, que é grande coisa: crer que ele ressuscitou”. Mas com isso
Agostinho não quer dizer que a ressurreição seja mais importante para nós que a morte,
mas apenas que crer na ressurreição de Jesus é mais empenhativo e mais compreensivo
(quem crê que ressuscitou, crê também que morreu!) e por isso mais característico do
verdadeiro crente. Aliás, o mesmo santo doutor diz que das três coisas simbolizadas pelo
tríduo pascal, crucifixão, sepultura, ressurreição, a mais importante para nós, porque nos diz
respeito mais diretamente, é exatamente a simbolizada pela Sexta-feira Santa, isto é, a
morte: “Nós realizamos na vida presente aquilo de que é símbolo a cruz, enquanto
possuímos na fé e na esperança aquilo de que é símbolo a ressurreição”.

34
De Jerusalém castigada pelos seus pecados foi dito nos profetas que “bebeu da mão do
Senhor o cálice da sua ira, a taça da vertigem” (Is 51,17). Esse cálice é, pois, sim a paixão,
mas não em si mesma, mas enquanto castigo do pecado e fruto do pecado. Sob esta luz, o
tormento de Jesus mostra-se causado por dois fatos entre si independentes: a proximidade
do pecado e a distância de Deus.

Quando, no curso de uma purificação passiva, Deus permite a uma alma ver de frente seu
próprio pecado, ela se apavora mortalmente; um sentimento misto de horror, de medo e de
desespero apodera-se dela, tanto que gostaria de desaparecer e ser aniquilada para não
vê-lo diante de si. Ora, Jesus sentiu o pecado como algo próximo a ele ou até “sobre ele”; e
não um ou mais pecados, mas todo o pecado do mundo. Não fazia diferença nesse
momento o fato de não ter cometido; eram seus, porque os assumira livremente: Ele
carregou os nossos pecados no seu corpo (1Pd 2,24); Deus o fez pecado por nós (2Cor
5,21), tendo-se tornado “maldição por nós” (Gl 3,13). Tal proximidade do pecado provoca
como consequência o distanciamento de Deus ou mais precisamente o afastar-se de Deus:
o vê-lo ir-se embora, desaparecer e não mais responder.

O grito: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,46) (como aquele do salmo
22: Tu estás distante da minha salvação), Jesus o trazia no coração desde o Getsêmani. A
atração infinita de amor que havia entre Pai e Filho agora é atravessada por uma repulsa
igualmente infinita, porque Deus odeia infinitamente o pecado. Não existem parâmetros
para descrever esta experiência. Se o simples contraste na atmosfera entre uma corrente
de ar frio e uma corrente de ar quente é capaz de revolver o céu com trovões, relâmpagos e
raios atemorizantes, que terá acontecido na alma de Jesus, em que a suprema santidade de
Deus se chocou com a suprema malícia do pecado?

Nele se realizou misteriosamente a palavra do salmo que diz: Um abismo (aquele da


santidade) chama outro abismo (aquele do pecado) ao fragor das tuas cascatas; todos os
teus rios e as tuas ondas sobre mim passaram (Sl 42,7); os teus temores me aniquilaram (Sl
88,16). Maravilhamo-nos ainda depois disto com o grito que saiu dos lábios de Jesus: “A
minha alma está triste até a morte”? Ou procuraremos explicações de ocasião para esse
grito, como fizeram alguns no passado? A santidade de Deus faz sentir o pecado por aquilo
que é: como um perigo mortal, como um grito de revolta contra o Onipotente, o Santo, o
Amor. Deus deve distanciar-se para que se compreenda o que é o pecado e se revele sua
íntima natureza, através das suas consequências.

Quando Deus desapareceu de todo na escuridão mais total do espírito, quando a criatura
desceu “viva aos infernos”, então ela compreende o que fez pecando. A alma é como que
queimada e martirizada.

35
A Epístola aos Hebreus diz de Jesus: Pelos sofrimentos suportados aprendeu a obediência
(Hb 5,8): frase profundíssima! Agora sabemos o que custou a Jesus dizer o seu fiat, e por
que disse o seu fiat (seja feito). Disse “sim”, aceitando beber o cálice da justiça e da
santidade de Deus por todos nós; disse “sim também à sua paixão real, desde que a
compreendamos como resultado do pecado e não apenas como resultado de causas
acidentais e políticas. Numa palavra disse “sim” para realizar em si mesmo o destino do
Servo de Javé: Ele tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores... Ele foi
castigado pelos nossos crimes, esmagado pelas nossas iniquidades. O castigo que nos
salva, pesou sobre ele (Is 53,4s.). Foi necessário o “sim” humano, pronunciado por um Deus
na escuridão do espírito da sua humanidade, para resgatar a rebelião acumulada pelos
homens desde Adão.

Mas ele a resgatou verdadeiramente! Fomos curados nas suas chagas... Livrada a sua alma
dos tormentos, verá a luz, o justo será saciado de contentamento. O meu servo justificará a
muitos... (Is 53,5.11) O Getsêmani termina não na derrota, mas na vitória. Por todos Jesus
desceu ao inferno, mas não perdeu sua confiança filial em Deus que, pelo contrário,
continuou chamando de Abba, Papai! A sua obediência absoluta destruiu assim o inferno e
a morte e renovou a vida. Ele foi, de fato, “ouvido pela sua piedade”, ou seja, pela sua
obediência (Hb 5,7), e ouvido para além de toda a previsão; Deus lhe concedeu de tal modo
a sua complacência que, a partir dele, ela extravasa sobre todos os homens; nele foram
abençoadas todas as estirpes dos povos, pela sua obediência todos “foram constituídos
justos” (Rm 5,19).

Mas não é certamente isso que Jesus espera e deseja de nós em primeiro lugar. Quer que
nos unamos a ele na obediência ao Pai, quer que “realizemos na nossa carne aquilo que
falta à sua obediência, em favor do seu corpo que é a Igreja (cf. Cl 1,24). Quem cumpre a
vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe (Mc 3,35): esse está verdadeiramente
próximo a mim na minha agonia e me consola. Cada vez que estamos diante de uma
obediência difícil, é preciso que logo nos ponhamos de joelhos ao lado de Jesus no
Getsêmani, e ele nos ensinará a obedecer; antes, ele obedecerá em nós e por nós. A
obediência é a virtude sobretudo de quem governa, dos sacerdotes. Neles, de fato,
como em Jesus, refulge “a obediência essencial”, que é obedecer a Deus. Pedro,
diante do Sinédrio, disse que é mais importante obedecer a Deus que obedecer aos
homens (cf. At 4,19). É obedecendo a Deus que alguém tem o direito de ser obedecido
pelos homens. E isso para que, no universo e na Igreja, uma só Vontade governe tudo e
seja cumprida direta ou indiretamente por todos: a do Pai celeste.

Obedecer a Deus não é um programa abstrato ou para ocasiões raras; ao contrário, é o


tecido cotidiano da existência cristã. Cada vez que acolhemos uma boa inspiração, estamos

36
obedecendo a Deus; cada vez que dizemos “não” a uma vontade da carne, estamos
obedecendo a Deus! Não há momento ou ação da vida de um crente que não possam ser
transformados num ato de amorosa obediência ao Pai; basta que nos perguntemos com um
pouco de recolhimento e de insistência: Que quer o Senhor que eu faça neste momento e
nesta circunstância? Sabemos que assim fazia Jesus, tanto que podia dizer: Eu faço
sempre o que é do seu agrado (João 8,29); o meu alimento é fazer a vontade daquele que
me enviou (João 4,34). A alegria maior que uma criatura humana pode dar a Deus é
partilhar o destino de Jesus “Servo de Deus”, levando sua “vontade de obedecer” ao
extremo, até obedecer na obscuridade mais total, como o fez Jesus no Getsêmani.

O servo de Jesus Cristo, aquele que em Jesus põe sua vida em total disponibilidade diante
de Deus, por isso mesmo, torna-se, como Jesus, objeto da complacência do Pai; aplicam-se
a ele as palavras que o Pai pronunciou um dia sobre Jesus. Sobretudo aquelas palavras
ditas a Jesus no seu batismo: Tu és meu filho muito amado, em ti pus todo o meu
contentamento (Mc 1,11).

Voltemos nossa atenção de novo as palavras tão familiares de Filipenses 2, que resumem
todo o mistério que quisemos contemplar nessa reflexão. Escutemos, não como procedente
da boca de Paulo, mas como se fosse Deus Pai em pessoa a proclamá-las: “Tende em vós
os mesmos sentimentos de obediência que havia em Cristo Jesus, meu filho, o qual,
embora sendo de natureza divina, não considerou um tesouro somente seu a sua igualdade
com Deus; mas despojou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo e tornando-se
semelhante aos homens; aparecido em forma humana, humilhou-se a si mesmo fazendo-se
obediente até a morte e à morte na cruz. Por isso eu o exaltei e lhe dei o nome que está
acima de todo outro nome, para que, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre nos céus, na
terra e sob a terra; e toda língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor!”

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A ressurreição de Jesus da morte

A ressurreição de Jesus: de que se trata?

“E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e é vã a fé que vocês têm. Além disso,
somos tidos por falsas testemunhas de Deus, porque temos testemunhado contra Deus que
ele ressuscitou a Cristo, ao qual ele não ressuscitou, se é certo que os mortos não
ressuscitam.” (1Co 15,14-15).

om estas palavras, Paulo põe drasticamente em relevo a importância que a


fé na ressurreição de Cristo tem para a mensagem cristã no seu conjunto: é o seu
fundamento. A fé cristã está de pé ou cai com a verdade do testemunho segundo o qual
Cristo ressuscitou dos mortos.

Caso se suprima isso, certamente ainda se pode recolher da tradição cristã uma série de
ideias dignas de nota sobre Deus e sobre o homem, sobre o ser do homem e sobre o seu
dever ser (uma espécie de concepção religiosa do mundo), mas a fé cristã está morta.
Nesse caso, Jesus é uma personalidade religiosa falida; uma personalidade que, não
obstante a sua falência, continua a ser grande e pode impor-se à nossa reflexão, mas
permanece numa dimensão puramente humana e a sua autoridade é válida na medida em
que a sua mensagem nos convence. Ele deixa de ser o critério de medida; então o critério é
apenas a nossa avaliação pessoal, que escolhe do seu patrimônio aquilo que parece útil. E
isso significa que estamos abandonados a nós mesmos. A nossa avaliação pessoal é a
última instância.

Somente se Jesus ressuscitou aconteceu algo de verdadeiramente novo, que muda o


mundo e a situação do homem. Então Ele, Jesus, torna-Se critério no qual podemos confiar;
porque então Deus manifestou-Se verdadeiramente.

Que Jesus tenha existido só no passado ou, pelo contrário, exista também no presente,
depende da ressurreição. No “sim” ou no “não” a essa questão não nos pronunciamos sobre
um acontecimento particular ao lado de outros, mas sobre a figura de Jesus como tal.

38
Por isso é necessário ouvir, com atenção particular, o testemunho sobre a ressurreição que
nos oferece o Novo Testamento. O que é que aconteceu lá? Vê-se claramente nas
testemunhas que encontraram o Ressuscitado, que isso não era fácil de exprimir. Viram-se
diante de um fenômeno totalmente novo para elas mesmas, porque ultrapassava o
horizonte das suas experiências. E se a realidade do sucedido as deixara fortemente
agitadas e as impedia de testemunhá-la, contudo aquela era totalmente inusitada. Lucas
narra-nos que os discípulos, ao descerem do Monte da Transfiguração, refletiam
preocupados sobre a palavra de Jesus segundo a qual o Filho do homem havia de
“ressuscitar dos mortos”. E perguntavam-se entre si que queria dizer “ressuscitar dos
mortos” (9,9-10). Isso, de fato, em que consiste? Os discípulos não o sabiam; só o encontro
com a realidade lhes permitira aprendê-lo.

O túmulo vazio

Os gentios foram convencidos pela natureza de que Cristo estava morto; os judeus foram
convencidos pela lei de que Ele estava morto. Foram, pois, e asseguraram o sepulcro,
selando a pedra e colocando guardas. (Lucas 27,66)

O Rei repousava no local com Sua guarda. O fato mais surpreendente acerca desse
espetáculo de vigilância de um morto era que os inimigos de Cristo esperavam a
ressurreição, mas Seus amigos, não. Os crentes eram céticos; os descrentes, crédulos.
Seus seguidores precisavam e exigiam provas antes de ficarem convencidos. Nos três
grandes atos do drama da Ressurreição, havia uma nota de tristeza e incredulidade. O
primeiro ato foi o de Madalena, chorosa, que foi cedo ao túmulo com ervas aromáticas, não
para saudar o Salvador Ressuscitado, mas para ungir o corpo morto.

Madalena no sepulcro

Na escuridão da aurora de Domingo, foram vistas várias mulheres se aproximando do


túmulo. O próprio fato de as mulheres levarem as ervas aromáticas provava que elas não
esperavam a Ressurreição. Parecia estranho que fosse esse o caso após muitas
referências de Nosso Senhor à Sua morte e Ressurreição. É evidente, no entanto, que os
discípulos, bem como as mulheres, sempre que Ele profetizava Sua paixão, pareciam
recordar mais da morte que da Ressurreição. Nunca lhes ocorreu que fosse uma coisa
possível; era estranho ao pensamento deles. Quando a pedra foi rolada na entrada do
sepulcro, não só o Cristo foi enterrado, mas também todas as esperanças deles. O único
pensamento que as mulheres tinham era ungir o corpo do Cristo morto — um ato nascido
do desespero e, até então, de um amor descrente. Duas delas, ao menos, haviam

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testemunhado o enterro, por isso sua grande preocupação era o ato prático: Quem nos há
de remover a pedra da entrada do sepulcro? (Lucas 16,3)

Esse foi o grito dos corações de pouca fé. Homens fortes fecharam a entrada do sepulcro
ao colocar uma pedra enorme diante dela; a preocupação das mulheres era como remover
a barreira para que pudessem realizar a incumbência de misericórdia. Os homens não
deveriam chegar à tumba até que fossem convocados — tampouco acreditavam.
Entretanto, as mulheres, só por conta do pesar que buscavam consolar, foram embalsamar
o morto. Nada é mais anti-histórico que dizer que as mulheres pias estavam esperando que
o Cristo ressuscitasse dos mortos. A Ressurreição era algo que nunca esperaram. A
mentalidade deles não permitia que tais expectativas florescessem.

No entanto, ao se aproximarem, encontraram a pedra removida. Antes da chegada, houve


um grande tremor de terra e um anjo do Senhor, que descera dos céus, rolara a pedra e
sentara-se nela:

Resplandecia como relâmpago e suas vestes eram brancas como a neve. Vendo isto,
os guardas pensaram que morreriam de pavor. (Mateus 28,3-4)

Quando as mulheres se aproximaram viram que a pedra, imensa como era, já fora rolada.
Entretanto, não chegaram imediatamente à conclusão de que Seu Corpo havia
ressuscitado. Concluíram que alguém havia removido o corpo. Em vez do corpo morto do
Mestre, viram um anjo, cuja face brilhava como um relâmpago e as vestes eram brancas
como a neve, e este lhes disse:
Não tenhais medo. Buscais Jesus de Nazaré, que foi crucificado. Ele ressuscitou, já
não está aqui. Eis o lugar onde o depositaram. Mas ide, dizei a seus discípulos e a
Pedro que ele vos precede na Galileia. Lá o vereis como vos disse. (Marcos 16,6-7)

Para um anjo, a Ressurreição não seria um mistério, mas Sua morte seria. Para o homem,
Sua morte não era um mistério, mas Sua Ressurreição o seria. O que era natural para o
anjo, portanto, foi, nesse momento, o assunto do anúncio. O anjo era um guardador maior
do que aqueles que os inimigos tinham colocado diante do túmulo do Salvador, um soldado
maior do que os que Pilatos nomeara.

As palavras do anjo foram o primeiro Evangelho proclamado após a Ressurreição e retomou


a Sua paixão, pois a ele o anjo referiu-se como “Jesus de Nazaré, que foi crucificado”.
Essas palavras traziam o nome de Sua humanidade, a simplicidade do lugar que habitara e
a desonra de Sua morte; em todos os três, humildade, modéstia e vergonha são
comparadas à Sua Ressurreição dos mortos. Belém, Nazaré e Jerusalém tornam-se marcos
identificadores da Ressurreição.

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As palavras do anjo, “Eis o lugar onde O depositaram”, confirmaram a realidade de Sua
morte e o cumprimento das antigas profecias. Os túmulos trazem a inscrição: Hic jacet, ou
“Aqui jaz”. Em seguida, o nome do morto e, talvez, algum elogio ao finado. Todavia, em
contraste, o anjo não escreveu, mas expressou um epitáfio diferente: “Já não está aqui”.
Pediu às mulheres que contemplassem onde tinham posto o corpo de Nosso Senhor, como
se o túmulo vazio fosse prova o bastante do fato da Ressurreição. A uma virgem foi
anunciado o nascimento do Filho de Deus; a uma mulher que fora imoral foi anunciada Sua
Ressurreição.

Os que viram o túmulo vazio foram instados a ir até Pedro, que tentara Nosso Senhor uma
vez a fugir da Cruz e três vezes O negara. O pecado e a negação não abafam o Amor
Divino. Embora seja paradoxal, quanto maior o pecado, menor a fé; e, ainda assim, quanto
maior o arrependimento pelo pecado, maior a fé. Foi para a ovelha perdida e ofegante no
deserto que Ele veio; foi para os publicanos e as prostitutas; era aos Pedros que O
negavam e aos Paulos que O perseguiam que as súplicas de amor mais persuasivas eram
enviadas. Ao homem que fora chamado de Pedra e que tentara o Cristo a não tomar a cruz,
o anjo, agora, enviava pelas mulheres a mensagem “Ide, dizei a Pedro”.

A mesma proeminência individualizadora dada a Pedro na vida pública continuou na


Ressurreição. Entretanto, embora Pedro fosse mencionado aqui com os apóstolos dos
quais era o cabeça, o Senhor apareceu para ele sozinho, antes de revelar-se a Si mesmo
para os discípulos de Emaús. Isso ficou evidente pelo fato de, mais tarde, os discípulos
dizerem que Ele apareceu a Pedro. A boa-nova da redenção foi dada, assim, a uma mulher
decadente e a um apóstolo que O negara, mas ambos tinham se arrependido.

Maria Madalena, que, no escuro, andou à frente das companheiras, notou que a pedra já
fora rolada para o lado, de modo que a entrada do túmulo estava aberta. Um olhar rápido
revelou que a tumba estava vazia. O primeiro pensamento dela foi o dos apóstolos Pedro e
João, para os quais correu, agitada. Segundo a lei mosaica o testemunho de uma mulher
era inaceitável. Maria, contudo, não lhes deu notícias de ressurreição; não esperava por
isso. Pressupôs que Ele ainda estivesse sob o poder da morte, como disse a Pedro e João:

Tiraram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde o puseram! (João 20,2)

De todos os discípulos e seguidores, havia apenas cinco que o “guardavam”: três mulheres
e dois homens, assim como os cinco da parábola que aguardavam a vinda do noivo.
Nenhum deles suspeitava da Ressurreição.

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Agitados, Pedro e João correram para o sepulcro, deixando Maria para trás. João era, dos
dois, o melhor corredor e chegou primeiro. Quando Pedro o alcançou, ambos entraram no
sepulcro, onde viram os panos de linho ao redor, bem como o véu que tinham colocado
sobre a cabeça de Jesus, mas este não estava com os panos de linho, estava dobrado. O
que ocorrera ali fora feito de maneira decente e ordenada, não por um ladrão nem mesmo
um amigo. O corpo desaparecera do túmulo; os panos que o envolviam foram encontrados
enrolados. Se os discípulos tivessem roubado o corpo, não teriam na pressa o
desembrulhado e deixado os panos de linho. Cristo ressuscitara pelo Seu poder divino.

Pedro e João ainda não haviam entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia
ressuscitar dentre os mortos. (João 20,9)

Tinham os fatos e as provas da Ressurreição, mas ainda não tinham compreendido o pleno
significado. O Senhor agora começou a primeira das 11 aparições registradas entre a
Ressurreição e Ascensão: às vezes para Seus apóstolos, outras vezes para quinhentos
irmãos, em algumas outras vezes para as mulheres. A primeira aparição foi para Maria
Madalena, que voltou ao sepulcro depois de Tiago e João partirem. A ideia da Ressurreição
também não parecia entrar em sua mente, embora ela mesma tenha se erguido de uma
tumba selada pelos sete demônios do pecado. Ao encontrar o túmulo vazio, ela irrompeu
novamente em uma fonte de lágrimas. Com os olhos baixos, enquanto o brilho do nascer do
sol nas primeiras horas da manhã espalhava-se pela relva coberta de orvalho, percebeu
vagamente alguém perto dela que perguntou:

Mulher, por que choras? (João 20,13)

Chorava por aquilo que estava perdido, mas Sua pergunta espantou o infortúnio das
lágrimas ao fazê-la parar de chorar. Ela disse:

Porque levaram o meu Senhor, e não sei onde o puseram. (João 20,13)

Não houve pavor ao ver os anjos, pois o mundo em chamas não a teria comovido, tamanho
o pesar que dominava sua alma. Quando ela disse isso, voltou-se e viu Jesus de pé; não
sabia que era Ele. Pensou ser o jardineiro — o jardineiro de José de Arimateia. Ao acreditar
que esse homem pudesse saber onde Aquele que estava perdido poderia ser encontrado,
Maria Madalena caiu de joelhos e perguntou:

Senhor, se tu o tiraste, dize-me onde o puseste e eu o irei buscar. (João 20,15)

Pobre Madalena! Desgastada pela Sexta-Feira Santa, esgotada no Sábado Santo, com a
vida resumida a uma sombra e com as forças por um fio, ela O “iria buscar”. Por três vezes

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ela falou Dele sem dizer o nome. A força do amor era tal que supunha ninguém
compreender.

Maria! (João 20,16)

A voz foi mais alarmante que o estrondo de um trovão. Certa vez ouvira Jesus dizer que
chamava Suas ovelhas pelo nome. E agora para Aquele que individualizara todo o pecado,
o pesar e as lágrimas do mundo e marcara cada alma com um amor pessoal, particular e
discriminado, ela se voltou, e ao ver as lívidas marcas rubras nos Seus pés e mãos,
pronunciou apenas uma palavra:

Rabôni! (João 20,16)

(Que em hebraico significa “mestre”). Cristo pronunciara “Maria!” e todo o céu estava
contido ali. Foi a única palavra que pronunciou, e toda a terra nela estava. Após a
meia-noite mental, houve esse deslumbre; após horas desesperançadas, essa esperança;
após a busca, a descoberta; após a perda, esse achado. Madalena estava preparada
apenas para derramar lágrimas reverenciais sobre o túmulo; não estava preparada para
vê-Lo a caminhar no raiar da aurora.

Somente a pureza e a ausência de pecado poderiam dar as boas-vindas a este mundo ao


Santíssimo Filho de Deus; somente um pecador arrependido, no entanto, que tivesse
ressurgido do túmulo do pecado para a novidade da vida em Deus poderia compreender de
maneira apropriada o triunfo sobre o pecado. Em honra da feminilidade para sempre se
deve dizer: uma mulher esteve mais perto da Cruz na Sexta-Feira Santa e foi a primeira no
túmulo na manhã de Páscoa.

Maria estava sempre a Seus pés. Lá estava quando O ungiu para o sepultamento; estava
aos pés da Cruz; agora, feliz ao ver o Mestre, lançou-se a Seus pés para abraçá-los. Ele,
contudo, disse-lhe com um gesto impeditivo:

Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai. (João 20,17)

Os ternos gestos de afeto foram dirigidos a Ele mais como Filho do Homem que como Filho
de Deus. Por isso Ele ordenou que ela não O tocasse. Paulo daria aos coríntios e aos
colossenses a mesma lição:

Nós daqui em diante a ninguém conhecemos de um modo humano. Muito embora


tenhamos considerado Cristo dessa maneira, agora já não o julgamos assim. (2
Coríntios 5,16)

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Afeiçoai-vos às coisas lá de cima, e não às da terra. Porque estais mortos e a vossa
vida está escondida com Cristo em Deus. (Colossenses 3,2)

As lágrimas delas, insinuou, seriam enxugadas não porque ela O tinha visto novamente,
mas porque Ele era o Senhor do Céu. Quando ascendesse à direita do Pai, que significava
o poder do Pai, quando enviasse o Espírito da Verdade, que seria o novo confortador e Sua
presença interior no meio deles, então, de fato, ela verdadeiramente O teria, Aquele por
quem ansiava — o Cristo glorificado e ressuscitado. Essa foi a primeira pista, após Sua
Ressurreição, do novo relacionamento que teria com os homens, sobre o qual falou de
modo tão fluente na noite da Última Ceia. Teria de dar a mesma lição a seus discípulos, que
estavam demasiado preocupados com Sua forma humana, ao dizer-lhes que era oportuno
que partisse. Madalena desejou estar com Ele como estivera antes da crucifixão,
esquecendo que esta foi suportada para a glória e para que Ele enviasse o Seu Espírito.

Embora Madalena estivesse submissa à proibição de Nosso Salvador, não obstante estava
destinada a sentir a extrema felicidade de portar as notícias de Sua Ressurreição. Os
homens compreenderam o significado do túmulo vazio, mas não a relação com a Redenção
e a vitória sobre o pecado e o mal. Ela estava prestes a quebrar a caixa de alabastro de Sua
Ressurreição, de modo que o perfume pudesse inundar o mundo. Disse o Senhor a ela:

Não me retenhas, porque ainda não subi a meu Pai, mas vai a meus irmãos e
dize-lhes: Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus. (João 20,17)

Essa foi a primeira vez que chamou os apóstolos de “meus irmãos”. Antes que o homem
pudesse ser filho adotivo de Deus, tinha de ser redimido da inimizade com Deus.

Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica
só; se morrer, produz muito fruto. (João 12,24)

Tomou a crucifixão para multiplicar a filiação para outros filhos de Deus. No entanto, havia
uma ampla diferença entre Ele mesmo como Filho natural e os seres humanos, que por
intermédio de Seu Espírito tornaram-se filhos adotivos. Por isso, como sempre, Ele fez uma
distinção rígida entre “Meu Pai” e “Vosso Pai”. Nunca em Sua vida disse “Nosso Pai” como
se o relacionamento fosse o mesmo entre Ele e os homens; Sua relação com o Pai era
única e incomunicável. A Filiação era Sua natureza, somente pela graça e adoção os
homens eram filhos de Deus:
Aquele para quem e por quem todas as coisas existem, desejando conduzir à glória
numerosos filhos, deliberou elevar à perfeição, pelo sofrimento, o autor da salvação
deles, para que santificador e santificados formem um só todo. Por isso, (Jesus) não
hesita em chamá-los seus irmãos. (Hebreus 2,10-11)

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Nem mesmo Ele disse a Maria para informar aos apóstolos que Ele havia ressuscitado e
que ascenderia aos céus. A Ressurreição estava sugerida na Ascensão, que ainda ocorreria
quarenta dias adiante. Seu objetivo não era apenas enfatizar que Ele, que morrera, agora
vivia, mas que esse era o início de um Reino espiritual que se tornaria visível e unificado
quando Ele enviasse o Seu Espírito.

De maneira obediente, Maria Madalena correu aos discípulos que estavam “pesarosos e
chorosos”. Ela lhes disse que vira o Senhor e as palavras que Ele lhe dissera. Qual a
recepção que essas notícias tiveram? Novamente, ceticismo, dúvida e descrença. Os
apóstolos O ouviram falar em imagens, símbolos, parábolas e o discurso direto de Sua
Ressurreição que ocorreria após a morte, mas:

Quando souberam que Jesus vivia e que ela o tinha visto, não quiseram acreditar.
(Marcos 16,11)

Eva acreditou na serpente, mas os discípulos não acreditaram no Filho de Deus. Quanto a
Maria Madalena e às outras mulheres que podiam relatar a respeito de Sua Ressurreição:

Mas essas notícias pareciam-lhes como um delírio, e não lhes deram crédito. (Lucas
24,11)

Era um prenúncio de como o mundo receberia as notícias da Redenção. Maria Madalena e


as outras mulheres, primeiro, não acreditaram na Ressurreição; tiveram de ser convencidas.
Nem mesmo os apóstolos acreditaram. A resposta deles foi “Conheceis as mulheres!
Sempre imaginando coisas”. Muito antes do advento da psicologia científica, as pessoas
temiam os truques que a mente lhes pregava. A incredulidade moderna diante do
extraordinário não é nada comparado ao ceticismo que imediatamente saudou as primeiras
notícias da Ressurreição. O que o ceticismo moderno diz acerca da história da Ressurreição
os próprios discípulos foram os primeiros a dizer, a saber, uma história inútil. Como os
agnósticos originais do cristianismo, os apóstolos concordaram em rechaçar toda a história
como um delírio. Algo muito extraordinário deveria acontecer e alguma prova muito concreta
deveria ser apresentada para todos os duvidosos, antes de vencerem a relutância em
acreditar.

O ceticismo deles foi ainda mais difícil de superar que o ceticismo moderno, porque o deles
partiu de uma esperança que aparentemente fora frustrada no Calvário; isso era muito mais
difícil de curar que o ceticismo moderno, que é sem esperança. Nada poderia estar mais
distante da verdade que dizer que os seguidores de Nosso Senhor Bendito estavam à
espera da Ressurreição e, portanto, prontos a acreditar nela ou a consolarem-se por uma
perda que parecia irreparável.

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Corações partidos e o partir do pão

Naquele mesmo Domingo de Páscoa, Nosso Senhor Santíssimo fez outra aparição para
dois discípulos que estavam a caminho de um vilarejo chamado Emaús, que ficava próximo
de Jerusalém. Não havia muito, as esperanças deles estiveram ardentes, mas as trevas da
Sexta-Feira Santa e o sepultamento na tumba lhes fizeram perder a alegria.

Nenhum assunto estava mais na mente dos homens naquele dia em especial senão a
pessoa de Cristo. Enquanto conversavam com tristeza e com os corações inquietos sobre
os incidentes terríveis dos últimos dois dias, um estranho se aproximou. Os olhos dos
apóstolos, no entanto, estavam tão cegos que não reconheceram que era o Salvador
Ressuscitado; pensaram que fosse um viajante comum. No desenrolar da história ficou
claro que o que os cegava era a incredulidade; caso esperassem vê-Lo, poderiam tê-Lo
reconhecido. Porque estavam interessados Nele, Cristo concedeu Sua Presença; porque
duvidaram de Sua Ressurreição, Cristo ocultou a alegria e o conhecimento de Sua
Presença.

Agora que Seu Corpo estava glorificado, o que os homens viam Dele dependia da boa
vontade do Cristo para revelar-se e também da disposição dos próprios corações dos
homens. Embora não reconhecessem Nosso Senhor, mesmo assim os discípulos estavam
prontos para iniciar uma conversa com o estranho a respeito Dele. Após escutar a longa
conversa, o estranho perguntou:

De que estais falando pelo caminho, e por que estais tristes? (Lucas 24,17)

Obviamente, o motivo da tristeza dos discípulos era a perda. Tinham estado com Jesus,
tinham-No visto ser preso, insultado, crucificado, morto e sepultado. O pesar aflige o
coração da mulher quando ela perde o amado, mas os homens, em geral, ficam
mentalmente perplexos diante de uma situação semelhante. O pesar deles era o pesar de
uma carreira destruída.

O Salvador, com infinita sabedoria, não começou falando “sei que estais tristes”. Sua
técnica, em vez disso, era fazê-los expressar a tristeza; um coração pesaroso tem melhor
consolação ao se expressar. Se o pesar deles tivesse boca e falasse, Ele teria um ouvido e
revelar-se-ia. Se não quisessem nada mais que demonstrar suas feridas, Ele lhes
derramaria o bálsamo de Sua cura.

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Um dos dois, cujo nome era Cleófas, foi o primeiro a falar. Expressou espanto diante da
ignorância do estranho que, aparentemente, não estava familiarizado com os
acontecimentos dos últimos dias.

És tu acaso o único forasteiro em Jerusalém que não sabe o que nela aconteceu
estes dias? (Lucas 24,18)

O Senhor Ressuscitado perguntou:

Que foi? (Lucas 24,19)

O estranho chamou a atenção deles para os fatos. Aparentemente não tinham se


aprofundado o bastante nos fatos para chegar a conclusões apropriadas. A cura para o
pesar que sentiam estava nas próprias coisas que os perturbavam, vê-las na relação
correta. Assim como perguntou a mulher no poço, fez uma pergunta não para obter uma
informação, mas para aprofundar o conhecimento Dele mesmo. Então, não só Cleófas, mas
também seu companheiro, contaram-Lhe o que havia ocorrido. Disseram:

As coisas que aconteceram com Jesus de Nazaré”, responderam eles. “Ele era um
profeta de palavras e ações poderosas aos olhos de Deus e de todo o povo. Mas os
principais sacerdotes e outros líderes religiosos o entregaram para que fosse
condenado à morte e o crucificaram. Tínhamos esperança de que ele fosse aquele
que resgataria Israel. Isso tudo aconteceu há três dias. Algumas mulheres de nosso
grupo foram até seu túmulo hoje bem cedo e voltaram contando uma história
surpreendente. Disseram que o corpo havia sumido e que viram anjos que lhes
disseram que Jesus está vivo. Alguns homens de nosso grupo correram até lá para
ver e, de fato, tudo estava como as mulheres disseram, mas não o viram.” (Lucas
24,19-24)

Esses homens esperavam grandes coisas, mas Deus, disseram, os desapontara. O homem
faz um mapa e traça as esperanças de que Deus de algum modo as ratifique; o
desapontamento muitas vezes se deve à trivialidade das esperanças humanas. Os esboços
iniciais agora tinham de ser rasgados — não porque eram demasiado grandiosos, mas
porque, aos olhos de Deus, eram demasiado pequenos. A mão que quebrou a taça dos
desejos mesquinhos ofereceu um cálice mais rico. Pensavam que tinham encontrado o
Redentor antes de Ele ser crucificado, mas, na verdade, descobriram um Redentor
crucificado. Esperavam por um salvador de Israel, mas não esperavam por um que fosse
igualmente Salvador dos gentios. Deviam tê-Lo ouvido falar, em muitas ocasiões, que Ele
seria crucificado e ressurgiria novamente, mas não podiam encaixar a catástrofe na ideia de
um Mestre.

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Podiam acreditar Nele como Mestre, como um messias político, como um reformador ético,
como um salvador do país, um libertador dos romanos, mas não podiam acreditar na tolice
da cruz; nem tinham a fé do ladrão que pendeu da cruz. Por isso, recusaram-se a
considerar o indício que as mulheres relataram. Não estavam certos de que as mulheres
tinham avistado anjos. Possivelmente era apenas uma aparição. Ademais, era o terceiro dia
que findava, e Ele não fora visto.

Entretanto, o tempo todo caminhavam e conversavam com Ele. Parece haver um duplo
propósito na aparição de Nosso Senhor após a Ressurreição: primeiro, seria mostrar que
Aquele que morreu ressuscitara; segundo, embora tivesse o mesmo corpo, este agora
estava glorificado e não era sujeito a restrições físicas. Mais tarde, faria refeição com os
discípulos para provar o primeiro ponto; nesse momento, assim como proibiu que Maria
Madalena O tocasse, enfatizou Seu estado ressuscitado.

Com esses discípulos, assim como com todos os apóstolos, não existia predisposição a
aceitar a Ressurreição. A prova dela tinha de abrir passagem diante da dúvida e das
recusas mais obstinadas da natureza humana. Estavam entre as últimas pessoas no mundo
a dar crédito a tal história. Poderíamos até dizer que estavam decididos a se sentir
miseráveis, recusando-se a investigar a possibilidade verídica da história. Ao resistir tanto
aos indícios dados pelas mulheres e à confirmação daqueles que foram verificar a história, a
palavra final é que não tinham visto o Senhor. Então, o Salvador Ressuscitado lhes disse:

Ó gente sem inteligência! Como sois tardos de coração para crerdes em tudo o que
anunciaram os profetas! Porventura não era necessário que Cristo sofresse essas coisas e
assim entrasse na sua glória? (Lucas 24,25-26)

Foram acusados de tolice e de ter o coração indolente, pois, se tivessem parado e


analisado o que os profetas disseram a respeito do Messias — que seria levado como um
cordeiro para o abate —, teriam tido a crença confirmada. A credulidade para com os
homens e a incredulidade para com Deus é a marca dos corações embrutecidos; a
prontidão em acreditar no especulativo e a vagareza em acreditar na prática é o sinal dos
corações morosos. A essa altura, surgiram as palavras-chave da jornada. Anteriormente,
Nosso Senhor Bendito dissera que era o bom pastor, que disporia de Sua vida para a
redenção de muitos; agora, em Sua glória, proclamou uma lei moral que, como
consequência de Seus sofrimentos, os homens seriam elevados do estado de pecado para
a companhia de Deus.

A Cruz era a condição da glória. O Salvador Ressuscitado falou da necessidade moral


fundada na verdade de que tudo o que Lhe acontecera fora predito. O que lhes parecia
ofensa, escândalo, derrota e renúncia ao inevitável era, na verdade, um momento tenebroso

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antevisto, planejado e preanunciado. Ainda que a Cruz lhes parecesse incompatível com
Sua glória, para Ele era o caminho indicado até ela. E, caso conhecessem o que as
Escrituras disseram acerca do Messias, teriam acreditado na Cruz.
E começando por Moisés, percorrendo todos os profetas, explicava-lhes o que dele
se achava dito em todas as Escrituras. (Lucas 24, 27)

Demonstrou-lhes todos os tipos, todos os rituais e todos os cerimoniais que se cumpriram


Nele. Citando Isaías, mostrou o modo de Sua morte e crucifixão e as últimas palavras ditas
da Cruz; citando Daniel, como Ele se tornaria a montanha que preencheria a terra; citando o
Gênesis, como a progênie de uma mulher esmagaria a serpente do mal nos corações
humanos; citando Moisés, como seria a serpente de bronze erguida para curar os homens
maus e como o Seu lado seria a rocha de onde bateriam e brotariam as águas da
regeneração; citando Isaías, como Ele seria Emanuel ou “Deus conosco”; citando Miqueias,
como Ele nasceria em Belém; e citando muitos outros escritos deu-lhes a chave para o
mistério da vida de Deus entre os homens e o propósito de Sua vinda.

Por fim, chegaram a Emaús. Ele fez parecer como se estivesse prestes a continuar sua
jornada pela mesma estrada, assim como certa vez, antes, quando uma tormenta estava a
alcançar o lago, Ele fez parecer que passaria pelo barco dos apóstolos. Os dois discípulos
Lhe imploraram, entretanto, que ficasse com eles. Aqueles que têm bons pensamentos a
respeito de Deus durante o dia não se renderão com presteza ao cair da noite. Aprenderam
muito, mas sabiam que não tinham aprendido tudo. Ainda não O tinham reconhecido, mas
havia uma luz Naquele que prometia levá-los à plena revelação e dissipar a tristeza. Ele
aceitou o convite para ser um hóspede, mas imediatamente agiu como anfitrião, pois

estando sentado conjuntamente à mesa, ele tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e


serviu-lhe. Então se lhes abriram os olhos e o reconheceram..., mas ele
desapareceu. (Lucas 24, 30-31)

Tomar o pão, parti-lo e dar a eles não era um ato de cortesia, pois isso assemelhava-se
muito à Última Ceia, na qual ordenara aos apóstolos a repetição do ato como memorial de
Sua morte, ao partir o pão que era Seu corpo e distribuí-lo. Imediatamente, ao receber o
Pão Sacramental que foi partido, os olhos da alma foram abertos. Assim como os olhos de
Adão e Eva foram abertos para ver a vergonha depois de ter comido do fruto proibido do
conhecimento do bem e do mal, da mesma maneira, nesse momento, os olhos dos
discípulos foram abertos para discernir o Corpo de Cristo. A cena encontra paralelo com a
Última Ceia: em ambas houve uma ação de graças; em ambas houve o partir do pão e, em
ambas, a partilha do pão com os discípulos. Com a doação do pão veio um conhecimento
que conferiu maior claridade do que todas as outras instruções. O partir do pão os

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introduzira na experiência do Cristo glorificado. Então, Ele sumiu de vista. Ao se voltarem,
um ao outro, refletiram:

Não se nos abrasava o coração, quando ele nos falava pelo caminho e nos explicava
as Escrituras? (Lucas 24,32)

Sua influência sobre os discípulos foi afetiva e intelectual: afetiva, no sentido de fazer seus
corações arderem de amor, e intelectual, visto que lhes conferiu um entendimento das
centenas de presságios de Sua vinda. A humanidade está naturalmente disposta a acreditar
que qualquer coisa seja impressionante e bastante poderosa para dominar a imaginação.
Ainda assim, esse incidente no caminho para Emaús revelou que as verdades mais
potentes muitas vezes surgem nos lugares comuns e nos acidentes triviais da vida, tais
como em um encontro com um companheiro de viagem em uma estrada. Cristo ocultou sua
presença na estrada mais comum da vida. O conhecimento Dele veio ao caminharem com
Ele; e o conhecimento era da glória que veio por intermédio da derrota. Em Sua vida
glorificada, assim como em Sua vida pública, a cruz e a glória caminharam juntas. Não só
os ensinamentos foram lembrados; também os Seus sofrimentos e como foram oportunos
para Sua exaltação.

Os discípulos retornaram de imediato e voltaram a Jerusalém. Assim como a mulher no


poço, em seu entusiasmo, deixou a jarra d’água no poço, os discípulos igualmente
esqueceram o propósito de sua viagem a Emaús e voltaram para a Cidade Santa. Ali
encontraram os 11 apóstolos reunidos e, com eles, outros seguidores e discípulos.
Contaram tudo que acontecera no caminho e como O reconheceram no partir do pão.

As portas estão fechadas

Os dois discípulos, ao voltar a Jerusalém, encontraram os apóstolos em graus variados de


incredulidade. É provável que Tomé estivesse com os apóstolos no início da noite, mas saiu
mais cedo. Os discípulos de Emaús viram a Ressurreição primeiro com os olhos da mente e
depois com os olhos do corpo. Os apóstolos a veriam primeiro com os olhos do corpo e,
depois, com os olhos da mente.

O local em que os discípulos estavam reunidos naquela noite do Domingo de Páscoa era o
salão no andar de cima onde Nosso Senhor deu aos 12 a Eucaristia, havia apenas 72
horas. Acrescido às dúvidas dos discípulos estava o medo que os impeliu a fechar as portas
e aferrolhá-las, para que os representantes do Sinédrio não entrassem para prendê-los sob
a acusação falsa de terem roubado o corpo. Havia também o pavor de que o povo pudesse

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irromper, como sempre fazia, na casa daqueles que não eram populares. Ainda que as
portas estivessem cerradas, de repente, no meio deles aparece o Senhor Ressuscitado,
saudando-os com as palavras:

A paz esteja convosco! (Lucas 24,36)

Pediu às mulheres no sepulcro, imersas em sofrimento, que se rejubilassem; mas agora, ao


ter trazido a paz pelo Sangue da Cruz, veio em Pessoa concedê-la. A paz é o fruto da
justiça. Somente quando a injustiça do pecado contra Deus se paga é que pode haver a
afirmação da verdadeira paz. A paz é a tranquilidade da ordem, não só a tranquilidade; para
os ladrões pode existir tranquilidade em possuir os frutos do roubo. A paz também encerra a
ordem, a subordinação do corpo à alma, dos sentidos à razão e da criatura ao Criador.
Isaías disse que não haveria paz para os maus porque eles estão em inimizade consigo
mesmos, uns com os outros e com Deus.

Agora o Cristo Ressuscitado se punha no meio deles como o novo Melquisedec, o Príncipe
da Paz. Três vezes depois de Sua Ressurreição, Ele deu a benção solene da paz. A
primeira foi enquanto os apóstolos estavam aterrorizados e amedrontados; a segunda,
depois que Ele deu a prova de Sua Ressurreição; e a terceira, uma semana depois, quando
Tomé estava entre eles.

Os apóstolos acreditavam, num primeiro momento, que tinham visto um Espírito; apesar das
palavras das mulheres, do testemunho dos discípulos de Emaús, do sepulcro vazio, da
visão angélica e da narrativa de Pedro de sua entrevista com o Ressuscitado. Sua
presença, admitiam para si mesmos, não poderia ser explicada de nenhuma maneira
natural, já que as portas estavam trancadas. Ao reprová-los pela incredulidade, como fez
com os discípulos de Emaús, Ele lhes disse:

Por que estais perturbados, e por que essas dúvidas nos vossos corações? (Lucas
24,38)

Mostrou-lhes as mãos e os pés que foram transpassados pelos cravos na Cruz; depois,
mostrou-lhes a lateral do corpo, que fora aberta com a lança, e disse-lhes:

Apalpai e vede: um espírito não tem carne nem ossos, como vedes que tenho. (Lucas
24,39)

É provável que os apóstolos incrédulos tenham de verdade tocado o Corpo de Cristo; isso
pode explicar por que Tomé, posteriormente, exigiu tal sinal; não seria inferior aos outros.
João, que se debruçara sobre Seu peito na noite da Última Ceia, estava particularmente

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interessado na lateral do corpo ou no coração. Nunca esqueceu aquela cena tocante, pois,
mais tarde, escreveu:

O que era desde o princípio, o que temos ouvido, o que temos visto com os nossos
olhos, o que temos contemplado e as nossas mãos têm apalpado no tocante ao
Verbo da vida. (1 João 1,1)

João também se recordaria disso ao escrever seu Apocalipse, em que descreveu a


humanidade sagrada do Senhor entronizada e adorada no céu:
Um Cordeiro de pé, como que imolado. (Apocalipse 5,6)

Portanto, Ele seria reconhecido como o Crucificado, ainda que agora em glória, Príncipe e
Senhor. Não que as feridas cruéis ali estivessem para ser uma lembrança da crueldade dos
homens, mas, antes, de que a Redenção fora forjada em dor e pesar. Se as cicatrizes
tivessem sido removidas, os homens poderiam esquecer que houve um sacrifício e que Ele
era tanto Sacerdote quanto Vítima. Seu argumento era que o Corpo que lhes apresentava
era o mesmo que nascera da Virgem Maria, fora pregado na Cruz e posto em um sepulcro
por José de Arimateia. No entanto, tinha propriedades que não possuía antes.

Pedro, Tiago e João viram-No transfigurado quando Suas vestes estavam mais alvas que a
neve, mas o restante dos discípulos só O vira como o Homem de Dores. Esse foi o primeiro
olhar que deram ao Senhor ressuscitado e glorioso. As marcas dos cravos, o lado
lancetado, eram cicatrizes inconfundíveis de uma batalha contra o pecado e o mal. Assim
como muitos soldados olham para as feridas que adquiriram em batalhas não como uma
desfiguração, mas como um troféu de honra, Ele, igualmente, portava as feridas para provar
que o amor era mais forte que a morte. Depois da Ascensão, essas cicatrizes seriam como
bocas oratoriais de intercessão diante do Pai Celestial; cicatrizes que portaria no último dia
para julgar os vivos e os mortos. Em uma antiga lenda dizem que Satanás apareceu a um
santo e disse: “Eu sou o Cristo”. O santo o confundiu ao perguntá-lo: “Onde estão as
marcas dos cravos?”.

Se os homens fossem deixados ao bel-prazer para formar a própria concepção do Cristo


Ressuscitado, nunca o teriam representado com os sinais remanescentes de Seu opróbrio e
Sua agonia na terra. Caso tivesse ressuscitado sem nenhum memorial da Sua Paixão, os
homens poderiam ter duvidado Dele com o passar do tempo. Não podia haver dúvida
quanto ao propósito sacrificial de Sua vinda, Ele lhes deu não só o Memorial de Sua morte
na noite da Última Ceia, pedindo que fosse perpetuado enquanto perdurasse o tempo, mas
também comportava em Sua Pessoa, como Jesus Cristo, o “mesmo ontem, hoje e para
sempre”, o Memorial de Sua Redenção. Entretanto, os apóstolos estavam convencidos?

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Mas, vacilando eles ainda e estando transportados de alegria, perguntou: Tendes
aqui alguma coisa para comer? (Lucas 24,41)

Assim, colocaram diante Dele um pedaço de carne e um favo de mel. Tomou-os e comeu na
presença deles, e mandou que partilhassem de Sua refeição. Não era um fantasma o que
viam. Até certo ponto, acreditaram na Ressurreição, e essa crença lhes deu alegria; mas a
alegria era tão grande que quase não podiam acreditar. De início estavam muito assustados
para crer; depois estavam muito alegres para crer. No entanto, Nosso Senhor não
descansaria até que lhes tivesse saciado completamente os sentidos. Comer com eles era a
prova mais forte de Sua Ressurreição. Depois de ressuscitar a filha de Jairo, pediu que lhe
fosse dado o que comer; depois da ressurreição de Lázaro, este comeu com Ele; agora,
depois da própria Ressurreição, Ele comeu com os apóstolos. Dessa maneira os
convenceria de que era o mesmo Corpo vivo que viram, tocaram e sentiram, mas era, ao
mesmo tempo, um Corpo que estava glorificado. Não tinha as feridas como sinal de
fraqueza, mas como cicatrizes gloriosas de vitória. Esse Corpo glorificado comia, não como
as plantas extraem nutrientes da terra por necessidade, mas assim como o sol as impregna
de energia. Ele dera algumas indicações de como seria a Sua natureza glorificada na
Transfiguração, quando Moisés e Elias Lhe falaram sobre Sua morte. Aquela era uma
promessa e um penhor que a corrupção imporia à incorrupção, que o mortal imporia à
imortalidade e a morte seria tragada em vida.

Após ter provado aos discípulos que ressuscitara ao mostrar-lhes as mãos, os pés e o lado
e ao comer diante deles, ofereceu-lhes uma segunda saudação de paz ao dizer:

A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós.
Depois dessas palavras, soprou sobre eles dizendo-lhes: Recebei o Espírito Santo.
(João 20,21-22)

A primeira saudação de paz foi quando estavam atemorizados; agora que estavam cheios
da alegria de acreditar, a segunda saudação de paz referia-se ao mundo. Sua preocupação
não era com o mundo de Sua vida pública, mas com todo o mundo que redimira. Poucas
horas antes de ir para a morte suplicara ao Pai:

Como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo. (João 17,18)

Prosseguindo com a ideia, Ele disse estar orando não só por aqueles que seriam seus
representantes na terra, mas por todos, por toda a história, que viessem a crer Nele.

Não rogo somente por eles, mas também por aqueles que por sua palavra hão de
crer em mim. (João 17,20)

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Assim, na noite da Última Ceia, antes de ir de encontro à morte, preocupava-se com Sua
missão no mundo após a crucifixão — uma missão em um mundo que o rejeitara. Nesse
momento, após a Ressurreição, reiterou aos Seus apóstolos a mesma ideia das 12 pedras
da fundação dessa cidade de Deus. No Antigo Testamento o sumo sacerdote punha pedras
nas vestes que usava por cima do peito; agora, o Sumo Sacerdote encravou pedras vivas
em Seu coração. Sua missão e a deles era uma só. Como Cristo foi enviado e por meio do
sofrimento ingressou na glória, igualmente agora Ele lhes transmitiu Sua parte da Cruz e,
depois disso, Sua glória.

Nosso Senhor não disse “Como Meu Pai Me enviou, também vos enviarei”, porque há duas
palavras gregas totalmente diferentes utilizadas no original para “enviar”. A primeira palavra
foi usada para descrever tanto a missão de Nosso Senhor vindo do Pai quanto a missão do
Espírito Santo; a segunda palavra, em vez disso, significava uma delegação; referia-se à
autoridade de Cristo como um embaixador. Cristo veio do seio eterno do Pai em Sua
encarnação; dessa maneira, os apóstolos, agora, teriam de partir dele. Assim como Nosso
Senhor insistiu na diferença entre “Meu Pai” e “Vosso Pai”, nesse momento enfatizava a
diferença entre as respectivas missões. Cristo foi enviado para tornar manifesto o Pai
porque era um em natureza com o Pai; os apóstolos, que eram as pedras fundamentais do
Reino, deveriam manifestar o filho.

Enquanto o Senhor falava essas palavras, os apóstolos podiam ver as gloriosas cicatrizes
em Seu corpo ressuscitado. Ao imprimi-las nas mentes dos apóstolos, eles compreenderam
que assim como o Pai O enviara para sofrer a fim de salvar a humanidade, também o Filho
os enviava para sofrer perseguição. Assim como o amor do Pai estava Nele, igualmente o
amor do Pai e Dele estaria nos apóstolos. A autoridade subjacente à missão apostólica era
irresistível, pois suas raízes estavam em analogia com o Pai ao enviar seu Filho e o Filho os
enviando. Não é de admirar que Ele lhes dissesse que quem quer que rejeitasse um de
Seus apóstolos O rejeitaria. Embora Tomé não estivesse lá, mesmo assim, ele partilharia
dos dons, e até mesmo Paulo os partilhou.

Então, Nosso Senhor soprou sobre eles ao conferir algum poder do Espírito Santo. Quando
o amor é profundo, sempre cala a fala ou as palavras; o amor de Deus é tão profundo que
pode ser humanamente expresso por um suspiro ou um sopro. Nessa hora, em que os
apóstolos aprenderam a balbuciar o alfabeto da Redenção, o Senhor soprou sobre eles
como símbolo e penhor do que haveria de vir. Nada era senão a nuvem que precede a
chuva abundante; melhor ainda, foi um sopro da influência do Espírito e um presságio do
vento diligente do Pentecostes. Assim como soprara sobre Adão o fôlego de uma vida
natural, nesse momento Ele soprou sobre os apóstolos o fundamento de Sua Igreja, o
fôlego da vida espiritual. Assim como o homem se torna a imagem de Deus em virtude da

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alma que nele foi soprada, da mesma maneira, agora, eles se tornavam a imagem do
Cristo, no instante em que se encheram do poder do Espírito neles insuflado.

A palavra grega utilizada para expressar Seu sopro sobre os apóstolos não é empregada
em nenhum outro lugar do Novo Testamento, mas é a mesma palavra que os tradutores
gregos do hebraico utilizaram para descrever o sopro de Deus na alma vivente em Adão.
Desse modo, há uma nova criação como o primeiro fruto da Redenção. Ao soprar sobre
eles, Ele lhes deu o Espírito Santo, que não mais os tornava servos, mas filhos.

Por três vezes o Espírito Santo é mencionado com algum sinal externo; como uma pomba
no batismo de Cristo, pressagiando Sua inocência e a Filiação Divina; como línguas de fogo
no dia de Pentecostes, como sinal do poder do Espírito de converter o mundo; e como o
sopro do Cristo Ressuscitado com todo o poder regenerativo. Assim como o Senhor fez
lama para ungir os olhos do cego, demonstrando que Ele era o Criador do homem, da
mesma maneira, ao soprar o Espírito sobre os apóstolos, Ele demonstrou que era o
regenerador da vida do barro que decaiu. Quando Nosso Senhor estava na Festa dos
Tabernáculos, observando a água que brotava da piscina, disse que se qualquer homem
acreditasse Nele, faria brotar fontes de água viva que emanariam de Seu interior. As
Escrituras acrescentam:

Dizia isso, referindo-se ao Espírito que haviam de receber os que cressem nele, pois
ainda não fora dado o Espírito, visto que Jesus ainda não tinha sido glorificado. (João
7,39)

Naquela festividade comemorativa, afirmou que primeiro Ele teria de morrer e passar à
glória, antes que o Espírito Santo pudesse vir. Suas palavras, nesse momento, sugeriam
que Ele já estava em estado de glória, pois estava concedendo o Espírito. Nessa ocasião,
associava os apóstolos à vida de Sua Ressurreição; no Pentecostes, os associaria à Sua
Ascensão.

Posteriormente, conferir-lhes-ia o poder de perdoar pecados. Havia mesmo de se fazer uma


distinção entre os pecados que os apóstolos perdoariam e os que não poderiam perdoar. É
evidente que a maneira como distinguiriam os dois dependeria de ouvi-los. Disse Jesus:

Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os


retiverdes, ser-lhes-ão retidos. (João 20,23)

Assim como o sacerdote judaico declarava quem estava e quem não estava purificado entre
os leprosos, Cristo, do mesmo modo, conferiu o poder de perdoar e de reter o perdão dos
pecadores. Somente Deus pode perdoar os pecados; mas Deus, em forma de homem,

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perdoou os pecados de Madalena, do ladrão penitente, do cobrador de impostos desonesto
e de outros. A mesma lei da Encarnação agora seria mantida; Deus continuaria a perdoar
os pecados por intermédio do homem. Os ministros designados seriam os instrumentos de
Seu perdão, assim como a própria natureza humana era o instrumento de Sua divindade ao
adquirir o perdão.

Essas palavras solenes do Salvador Ressuscitado indicavam que os pecados seriam


perdoados pelo poder judicial autorizado a examinar o estado de uma alma e conferir ou
recusar o perdão, conforme o caso. Daquele dia em diante, o remédio para o pecado
humano e para a culpa era fazer humilde confissão a alguém com autoridade para perdoar.
Ser humilde, de joelhos, confessar àquele a quem Cristo deu o poder de perdoar (em vez de
prostrar-se num divã para ouvir a culpa explicada), foi uma das maiores alegrias dadas à
alma humana oprimida.

Aquele que vê o lado escuro das coisas

Quando chegaram a Nosso Senhor as notícias acerca da morte de Lázaro, Tomé queria ir e
morrer com ele. Depois, quando Nosso Senhor Bendito disse que voltaria ao Pai e
prepararia lugar para os apóstolos, a resposta sombria de Tomé era que ele não sabia
aonde o Senhor estava indo, tampouco ele mesmo sabia o caminho.

Imediatamente depois que os demais apóstolos se convenceram da Ressurreição e da


glória de Nosso Divino Salvador, levaram a Tomé tais novidades. Tomé não disse que se
recusava a crer, mas que era incapaz de crer até que tivesse uma prova empírica da
Ressurreição, a despeito do testemunho deles, segundo o qual o Senhor tinha
Ressuscitado. Ele enumerou as condições dessa fé:

Se não vir nas suas mãos o sinal dos pregos, e não puser o meu dedo no lugar dos
pregos, e não introduzir a minha mão no seu lado, não acreditarei! (João 20,25)

A disparidade entre aqueles que creem e aqueles que não estão preparados para a crença
podia ser vista na recepção que os dez tiveram quando falaram a Tomé sobre a
Ressurreição. Sua recusa a confiar no testemunho de dez companheiros confiáveis, que
tinham visto o Cristo Ressurreto com os próprios olhos, provou o quanto é cético o sombrio.
No entanto, seu ceticismo não é o ceticismo frívolo da indiferença ou da hostilidade à
verdade; ele queria o conhecimento para então ter a fé. Era diferente do sábio aos próprios
olhos, que quer o conhecimento contra a fé. Em certo sentido, sua atitude era a do teólogo
científico que promove o conhecimento e a inteligência depois de ter acabado com toda

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dúvida. Esta é a única passagem das Escrituras Sagradas em que a palavra “pregos” é
usada num contexto relacionado a Nosso Salvador, e que remete às palavras do Salmista:

“Perfuraram minhas mãos e meus pés” (Salmo 22,16).

As dúvidas de Tomé surgiam, em sua maioria, de seu desânimo e da influência depressiva


da tristeza e do isolamento, pois era um homem à parte de seus companheiros. Às vezes
um homem que perde um encontro perde muito. Se os minutos do primeiro encontro fossem
escritos, eles teriam contido as trágicas palavras do Evangelho: “Tomé não estava lá” (João
20,24). O domingo estava começando a se tornar o Dia do Senhor; pois, após oito dias, os
apóstolos estavam mais uma vez reunidos no cenáculo, e Tomé estava com eles. As portas
ainda estavam sendo fechadas, o Salvador Ressurreto postou-Se entre eles e, pela terceira
vez, saudou:

A paz esteja convosco! (João 20,19)

Logo depois de falar de paz, Nosso Divino Salvador passou a falar sobre em que se
fundamentava a paz, a saber, Sua morte e Ressurreição. Não havia o menor sinal de crítica
em Nosso Senhor, como não haveria o menor sinal de crítica com Pedro numa aparição
posterior às margens do Mar da Galileia. Tomé pedira uma prova com base nos sentidos ou
faculdades que pertencem ao reino animal, e uma prova dos sentidos lhe seria dada. Nosso
Senhor disse a Tomé:

Introduz aqui o teu dedo, e vê as minhas mãos. Põe a tua mão no meu lado. Não
sejas incrédulo, mas homem de fé. (João 20,27)

O Mestre dissera certa vez que uma geração perversa e adúltera pede um sinal, e nenhum
sinal lhe seria dado senão o do profeta Jonas. Esse era precisamente o sinal dado a Tomé.
O Senhor sabia das palavras de ceticismo que Tomé havia dito anteriormente aos demais
apóstolos — outra prova de Sua Onisciência. A ferida em Seu lado deve ter sido muito
grande, visto que Ele pediu a Tomé que pusesse a mão nela; e também as feridas em Sua
mão devem ter sido grandes, pois Tomé foi convidado a colocar o dedo no lugar do cravo.
As dúvidas de Tomé não duraram mais que as dos outros, e seu ceticismo extraordinário é
uma prova a mais da realidade da Ressurreição.

Havia todas as razões para supor que Tomé fez o que fora convidado a fazer, assim como
havia toda razão para supor que os dez apóstolos tinham feito exatamente a mesma coisa
na primeira noite da Páscoa. As palavras de repreensão de Nosso Senhor a Tomé — a não
mais duvidar — também continham uma exortação a crer e a livrar-se de sua tristeza, que
era o pecado que o assediava.

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Paulo não foi desobediente à visão celestial; tampouco o foi Tomé. O cético foi tão
convencido por uma prova positiva que se tornou adorador. Prostrando-se de joelhos, disse
ao Salvador Ressurreto:

Meu Senhor e meu Deus! (João 20,28)

Numa declaração ardente, Tomé reuniu todas as dúvidas de uma humanidade deprimida
para curá-las pelas implicações da exclamação: “Meu Senhor e meu Deus”. Era um
reconhecimento de que o Emanuel de Isaías estava diante dele. Ele, que foi o último a crer,
foi o primeiro a fazer plena confissão da Divindade do Salvador Ressurreto. Contudo, desde
que ela veio de uma evidência de carne e sangue, não foi seguida pela bênção conferida a
Pedro quando este reconheceu que Ele era o Filho do Deus Vivo. O Salvador Ressurreto
disse a Tomé:

Creste, porque me viste. Felizes aqueles que creem sem ter visto! (João 20,29)

Há quem não creia ainda que veja, como o Faraó; há quem só creia quando vê. Acima de
ambos os tipos, o Senhor Deus colocou aqueles que não viram e creram. Noé fora advertido
por Deus de coisas que ainda não tinham sucedido; ele creu e preparou a arca. Abraão saiu
de sua terra sem saber aonde ia, mas ainda confiando no Deus que prometera — que ele
seria o pai de uma descendência mais numerosa que os grãos de areia da praia. Se Tomé
tivesse crido pelo testemunho de seus colegas discípulos, sua fé em Cristo teria sido maior;
pois ouvira muitas vezes seu Senhor dizer que seria crucificado e se ergueria novamente.
Ele também sabia pelas Escrituras que a Crucifixão era o cumprimento de uma profecia,
mas queria o testemunho adicional dos sentidos.

Tomé pensou estar fazendo a coisa certa ao exigir toda evidência de uma prova sensível;
mas o que seria das gerações futuras se a mesma evidência fosse exigida por eles? Os
futuros crentes, sugeria o Senhor, hão de aceitar o fato da Ressurreição pelo testemunho
daqueles que estiveram com Ele. Nosso Senhor retratou assim a fé dos crentes depois da
era apostólica, quando não haveria ninguém que o viu, mas a fé deles teria fundamento,
porque os próprios apóstolos tinham visto o Cristo Ressurreto. Viram que o fiel pode ser
capaz de agir assim sem ver, crendo no testemunho deles. Os apóstolos foram homens
privilegiados, não só porque viram Nosso Senhor e creram; foram ainda mais privilegiados
quando compreenderam plenamente o mistério da Redenção e nele assim viveram — e até
chegaram a ser decapitados por causa da realidade da Ressurreição. Alguma gratidão
sempre deve ser creditada a Tomé, que tocou a Cristo como homem, mas creu Nele como
Deus.

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A última aparição em Jerusalém

Antes de expirar os quarenta dias, os apóstolos voltaram mais uma vez a Jerusalém, onde o
Cristo Ressuscitado lhes aparecera anteriormente. Ali, Ele deixou claro que Sua companhia
no meio deles era passado; Sua influência agora seria no céu. No entanto, antes de partir,
reiterou a importância da profecia e da história. Ninguém antes foi preanunciado, mas Ele o
fora, e quanto mais buscassem no Antigo Testamento, mais compreenderiam. Daquele
momento em diante, a Igreja deveria sacar do tesouro da Lei, dos profetas e de todos os
Salmos que se referiam a Ele.

Era necessário que se cumprisse tudo o que de mim está escrito na Lei de Moisés,
nos profetas e nos Salmos. Abriu-lhes então o espírito, para que compreendessem as
Escrituras. (Lucas 24,44-45)

Uma nova luz fez todas as coisas parecerem diferentes daquilo que havia antes; à luz da
ressurreição, pareciam diferentes do que eram na escuridão anterior. É preciso mais que a
luz do sol para ler Moisés, os profetas e os salmos: também é necessária certa iluminação
interior, que é inseparável da boa vontade e do amor. Várias vezes Nosso Senhor contou a
própria autobiografia e, em cada momento, sem exceção, referiu-se à reparação que faria
entre Deus e o homem. Agora, resumiu Sua vida pela última vez, repetindo que o Antigo
Testamento se referiu a Ele como o Servo Sofredor, mas Vencedor.

Assim é que está escrito, e assim era necessário que Cristo padecesse, mas que
ressurgisse dos mortos ao terceiro dia. (Lucas 24,46)

Não era pelo sermão do Monte que Ele seria lembrado, mas por Sua Cruz. Não haveria
Evangelho se não houvesse Cruz; e a morte na Cruz teria sido inútil para retirar a culpa do
homem se Ele não tivesse ressuscitado dos mortos. O Senhor disse que se obrigou a sofrer
porque tinha de mostrar o mal do pecado, e o mal se torna manifesto em plenitude na
crucifixão do bem. Nunca tombou sobre a terra uma escuridão mais densa do que aquela
que recaiu sobre Ele no Calvário. Em todas as outras batalhas, em geral, existe um
acinzentado ou uma mistura de bem e mal em ambos os lados; na crucifixão, no entanto,
havia o preto de um lado e o branco do outro. O mal nunca seria mais forte do que foi
naquele dia em especial; pois a pior coisa que o mal pode fazer não é bombardear as
cidades, matar crianças e promover guerras. A pior coisa que o mal pode fazer é matar o
bem. Derrotado nisso, nunca poderia ser novamente vitorioso.

A bondade diante do mal deve sofrer, pois, quando o amor encontra o pecado, será
crucificado. Um Deus que expõe Seu Sagrado Coração como demonstração pública de Seu
amor, como o fez Nosso Senhor quando se tornou homem, deveria estar preparado para

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tê-lo bicado por gralhas. Entretanto, ao mesmo tempo, a bondade utilizou aquele mesmo
sofrimento como condição de vencer o mal. O bem arrebatou toda a raiva, ira e ódio e
implorou “perdão”; tomou a vida e ofereceu-a por outro. Consequentemente, para Ele, era
oportuno sofrer para ingressar na glória. O mal, vencido de armadura completa e no instante
do ápice monumental, poderia, no futuro, vencer algumas batalhas, mas nunca ganharia a
guerra.

Não haveria qualquer esperança para um mundo ferido se esta fosse oferecida por um
Confúcio, um Buda, ou mesmo por um Cristo que tivesse ensinado a bondade e depois se
decompusesse numa tumba. Asas quebradas não podem ser curadas pelo humanismo, que
é a irmandade sem lágrimas; ou por um Cristo gentil que não tem outra fonte de
conhecimento diversa de qualquer outro mestre e que, no fim, como eles, não pode romper
os grilhões da morte, nem provar que a verdade esmagada na terra pode ressurgir
novamente.

Esse resumo que Nosso Senhor ofereceu de Sua vida lançou o desafio aos homens e O
colocou fora da história. Que certeza existiria de que o mal não triunfaria sobre o bem?
Suponhamos que Ele fosse apenas um homem bom ou o maior moralista que o mundo já
viu. Então que certeza existiria para a vitória da virtude? Qual inspiração para o sacrifício?
Se Ele, que veio à terra para ensinar a dignidade da alma humana, que podia desafiar um
mundo pecador a condená-Lo pelo pecado, que no momento da morte podia perdoar os
inimigos, não tinha outro desenlace e destino senão restar pendurado em um madeiro
ordinário com criminosos e ladrões comuns para promover um espetáculo público de
barbárie e sadismo, aí, então, todos os homens desesperadamente perguntariam: “Se é
isso o que acontece com um homem bom, por que alguém deveria levar uma vida
honesta?”. Nesse caso, a maior de todas as injustiças ficaria sem reparação e a mais nobre
de todas as vidas se esvairia sem justificativa. Quaisquer que sejam os elogios que
possamos fazer aos Seus ensinamentos, à Sua paciência sob os golpes, à Sua humildade
diante das multidões — eles não O tornam o Senhor da morte e da vida; ao contrário,
tornam vãs tais virtudes, pois não têm recompensa.

Ao dizer que Ele tinha de sofrer, Cristo glorificou Seu Pai. Admiremos o quanto quisermos a
santidade, mas o que pensar de um Deus que olha para o espetáculo da Inocência
caminhando para o patíbulo e não remove os cravos, dando, no lugar, um cetro? Ou o que
pensar de um Deus que não envia um anjo para arrebatar a coroa de espinhos e pôr no
lugar uma guirlanda? Será Deus um partícipe ao dizer que a vida mais nobre que já andou
por esta terra é impotente perante os atos malignos dos homens? O que a humanidade
deve pensar sobre a natureza humana, se a flor alva de uma vida sem mácula é esmagada
sob as botinas rústicas dos executores romanos e, então, destinada a definhar como as
flores maceradas? Não exalaria maior odor pestilento por conta da doçura primeva e nos

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faria odiar não só o Deus que não se importou com a verdade e o amor, mas até mesmo
nossos semelhantes, por serem partícipes de Sua morte? Se esse é o fim da bondade,
então, por que, afinal, ser bom? Se isso é o que acontece à justiça, deixemos que reine a
anarquia!

No entanto, Nosso Senhor tomou o pior que o mundo tinha a oferecer e, assim, pelo poder
de Deus, elevou-se acima disso; se Ele, o desarmado, podia fazer a guerra sem arma
alguma senão a bondade e o perdão, de modo que a morte era ganho e aqueles que O
mataram, perdedores, então, quem não deveria ter esperança? Quem se desesperaria
diante de qualquer vitória momentânea do mal? Quem deveria deixar de confiar ao ver
andar nas trevas o Senhor Ressuscitado com as cicatrizes gloriosas nas mãos, nos pés e
no lado?

A lei que Ele deu era clara: a vida é uma luta, a não ser que exista uma Cruz em nossas
vidas, nunca haverá um sepulcro vazio; a não ser que exista uma coroa de espinhos em
nossas vidas, nunca haverá o halo de luz; a não ser que exista uma Sexta-Feira Santa,
nunca haverá um Domingo de Páscoa. Quando Ele disse “Venci o mundo”, não queria dizer
que Seus discípulos ficariam imunes dos lamentos, das dores, do pesar e da crucifixão. Ele
não deu uma paz que prometia banir a contenda, pois Deus detesta a paz daqueles que
estão destinados à guerra. Se o Pai Celestial não poupou o próprio filho, Ele, o Filho
Celestial, não pouparia Seus discípulos. O que a ressurreição oferecia não era a
imunidade ao mal no mundo físico, mas a imunidade do pecado na alma.

O Divino Salvador nunca disse aos apóstolos “Seja bom e não sofrerá”, mas afirmou: “Neste
mundo tereis tribulações” (João 16,33). Ele também lhes disse que não temessem aqueles
que matam o corpo, mas, antes, que temessem quem pode matar a alma (Lucas 10,28).
Agora disse aos apóstolos que Sua vida era um modelo para todos os seus seguidores; que
eram encorajados a assumir o pior que a vida tinha a oferecer com coragem e serenidade.
Afirmou que todos os sofrimentos eram como a sombra de “Sua mão estendida,
acariciando-os”. Não era como um talismã para prometer defesa das provações; ao
contrário, como um capitão, ingressou na batalha para inspirar os homens a transfigurar
algumas das maiores dores da vida em maior proveito da vida espiritual. Foi a Cruz de
Cristo que elevou as questões da vida; foi a Ressurreição que as respondeu. Não o Cristo
feminizado, mas o viril, é o que desfralda no próprio corpo o testemunho da vitória diante de
um mundo mau — a flâmula estriada das chagas da Salvação. Como descreveu o poeta
Edward Shillito: “Nenhum falso deus, isento de dor e pesar, pode consolar-nos nesses dias”.

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A natureza da Ressurreição
e o seu significado histórico

uma espécie de síntese, questionemo-nos agora uma vez mais sobre de que
gênero foi o encontro com o Senhor ressuscitado. São importantes as seguintes distinções:

● Jesus não é alguém que voltou à vida biológica normal e depois, segundo as leis da
biologia, teve um dia de morrer novamente.
● Jesus não é um fantasma (um “espírito”), ou seja, não é alguém que, na realidade,
pertence ao mundo dos mortos, embora possa de algum modo manifestar-Se no
mundo da vida.
● Entretanto, os encontros com o Ressuscitado são uma realidade distinta de
experiências místicas, nas quais o espírito humano é por um momento elevado acima
de si mesmo e enxerga o mundo divino e do eterno. A experiência mística é uma
superação momentânea do âmbito da alma e das suas faculdades de percepção;
mas não é um encontro com uma pessoa que externamente se aproxima de mim.
Paulo distinguiu com grande clareza as suas experiências místicas – por exemplo, a
sua elevação até o terceiro céu, descrito em II Coríntios 12,1-4 – do encontro com o
Ressuscitado no caminho de Damasco, que era um acontecimento na história, um
encontro com uma pessoa viva.

Baseados em todas essas informações bíblicas, que podemos verdadeiramente dizer agora
sobre a natureza peculiar da ressurreição de Cristo?

A ressurreição é um acontecimento dentro da história que todavia, rompe o âmbito da


história e a ultrapassa. Podemos talvez servir-nos da uma linguagem analógica, que
permanece, em muitos aspectos, inapropriada, mas pode abrir um acesso à compreensão.
Podemos considerar a ressurreição como uma espécie de salto radical de qualidade em que
se entreabre uma nova dimensão da vida, do ser homem.

Sem dúvidas, a própria matéria é transformada em novo gênero de realidade. Agora o


Homem Jesus, precisamente com o seu próprio corpo, pertence totalmente à esfera do
divino, do eterno. Embora, o homem, segundo a sua natureza, seja criado para a
imortalidade, só agora existe o lugar onde a sua alma imortal encontra o espaço, aquela

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“corporeidade”, na qual a imortalidade recebe sentido como comunhão com Deus e com a
humanidade reconciliada. As Cartas (de Paulo na prisão) aos Colossenses (cf 1,12-23) e
aos Efésios (cf 1,3-23) supõem isso, quando falam do corpo cósmico de Cristo, indicando
assim que o corpo transformado d’Ele é também o lugar onde os homens entram em
comunhão com Deus e entre si; e, desse modo, podem viver definitivamente na plenitude da
vida indestrutível. Dado que nós mesmos não possuímos qualquer experiência de tal gênero
renovado e transformado de materialidade e vida, não devemos maravilhar-nos se isso
ultrapassa aquilo que podemos imaginar.

Essencial é o dado de que, com a ressurreição de Jesus, não foi revitalizado um indivíduo
qualquer, morto em determinado momento, mas na ressurreição verificou-se um salto
ontológico que toca o ser como tal; foi inaugurada uma dimensão que nos interessa a todos,
e que criou para todos nós um novo âmbito de vida, o estar em Deus.

A partir daqui, é preciso afrontar a questão acerca da ressurreição como acontecimento


histórico. Por um lado, temos de dizer que a essência da ressurreição está precisamente no
fato de que ela rompe a história e inaugura uma nova dimensão que, habitualmente,
chamamos de dimensão escatológica. A ressurreição descerra o espaço novo que abre a
história para além de si mesma e cria o definitivo. Nesse sentido, é verdade que a
ressurreição não é um acontecimento histórico do mesmo gênero que o nascimento ou a
crucifixão de Jesus. É algo novo, um gênero novo de acontecimento.

Ao mesmo tempo, porém, é preciso não esquecer que ela não está simplesmente fora ou
acima da história. Como erupção para fora da história e para além dela, a ressurreição tem,
contudo, o seu início na própria história e até certo ponto pertence a ela. Talvez se pudesse
exprimir tudo isso assim: a ressurreição de Jesus ultrapassa a história, mas deixou o seu
rastro na história. Por isso pode ser atestada por testemunhas como um acontecimento de
qualidade completamente nova.

De fato, o anúncio apostólico, com o seu entusiasmo e a sua audácia, é inconcebível sem
um contato real das testemunhas com o fenômeno totalmente novo e inesperado que os
tocava externamente, e que consistia no manifestar-se e no falar de Cristo ressuscitado. Só
um acontecimento real de uma qualidade radicalmente nova será capaz de tornar possível o
anúncio apostólico, que não se pode explicar por meio de especulações ou experiências
interiores, místicas. Na sua audácia e novidade, o referido anúncio ganha vida da força
impetuosa de um acontecimento que ninguém tinha ideado e que ultrapassa toda a
imaginação.

Mas, no fim, para todos nós permanece a pergunta que Judas Tadeu dirigiu a Jesus no
Cenáculo: “Senhor, por que Te manifestarás a nós e não ao mundo?” (João 14,22). Sim, tal

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é a pergunta que gostaríamos de fazer: por que é que não Te opuseste com força aos teus
inimigos que te levaram à cruz? Por que não lhes demonstraste, com vigor irrecusável, que
Tu és o Vivente, o Senhor da vida e da morte? Por que é que Te mostraste apenas a um
pequeno grupo de discípulos, em cujo testemunho temos agora de acreditar?

A pergunta, porém, diz respeito não só a ressurreição, mas a todo o modo como Deus se
revela ao mundo. Por que só a Abraão, porque não aos poderosos do mundo? Por que só a
Israel, e não de modo indiscutível a todos os povos da terra?

É próprio do mistério de Deus agir desse modo suave. Só pouco a pouco é que Ele constrói
na grande história da humanidade a sua história. Torna-Se homem, mas de modo a poder
ser ignorado pelos contemporâneos, pelas forças respeitáveis da história. Padece e morre,
e, como Ressuscitado, quer chegar à humanidade apenas pela fé dos Seus, aos quais Se
manifesta. Sem cessar, Ele bate suavemente às portas dos nossos corações e, se Lhe
abrimos, lentamente vai-nos tornando capazes de “ver”.

Contudo, não é esse precisamente o estilo divino? Não se impor pela força exterior, mas da
liberdade, conceder e suscitar amor. E – pensando bem – não é o aparentemente mais
pequenino o realmente grande? Porventura não irradia de Jesus um raio de luz que cresce
ao longo dos séculos, um raio que não podia provir de nenhum simples ser humano, um raio
mediante o qual entra verdadeiramente no mundo o esplendor da luz de Deus? Teria o
anúncio dos apóstolos podido encontrar fé e edificar uma comunidade universal se não
operasse neles a força da verdade?

Se ouvirmos as testemunhas com coração atento e nos abrirmos aos sinais que o Senhor
não cessa de autenticar as Suas testemunhas e de atestar-Se a Si mesmo, então
saberemos que Ele verdadeiramente ressuscitou; Ele é o Vivente. A Ele nos entregamos,
sabemos que assim caminhamos pela estrada justa. Com Tomé, metamos a nossa mão no
lado traspassado de Jesus e professemos: “Meu Senhor e meu Deus!” (João 20,28).

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A Páscoa chama-nos a uma plena vida cristã

a tragédia da Paixão, consuma-se a nossa própria vida e toda a história


humana. A Semana Santa não pode reduzir-se a uma simples recordação, porque é a
consideração do mistério de Jesus Cristo, que se prolonga em nossas almas; o cristão está
obrigado a ser outro Cristo, o próprio Cristo. Pelo Batismo todos fomos constituídos
sacerdotes da nossa própria existência, para oferecer vítimas espirituais que sejam
agradáveis a Deus por Jesus Cristo, para realizarmos cada uma das nossas ações em
espírito de obediência à vontade de Deus, e assim perpetuarmos a missão do
Deus-Homem.

Por contraste, esta realidade leva-nos a deter o olhar nas nossas tribulações, desventuras e
infortúnios, nos nossos erros pessoais. É uma consideração que não nos deve desanimar
nem nos colocar na atitude cética de quem renunciou às grandes esperanças porque o
Senhor nos reclama tal como somos, a fim de que participemos da sua vida e lutemos por
ser santos.

A santidade! Quantas vezes não teremos pronunciado esta palavra como se fosse um som
vazio! Para muitos chega até a ser um ideal inacessível, um lugar comum da ascética (vida
contemplativa com mortificação dos sentidos), mas não um fim concreto, uma realidade
viva. Não pensavam assim os primeiros cristãos, que usavam o nome de santos para se
chamarem entre si, com toda a naturalidade e com grande frequência: Todos os santos vos
saúdam (Rm 16,15), saudai todos os santos em Cristo Jesus (Fp 4,21).

Situados agora perante o momento do Calvário, em que Jesus já morreu e ainda não se
manifestou a glória do seu triunfo, temos uma excelente ocasião para examinarmos os
nossos desejos de vida cristã, de santidade; para reagirmos com um ato de fé contra as
nossas fraquezas e, confiantes no poder de Deus, fazermos o propósito de depositar amor
nas coisas do nosso dia a dia. A experiência do pecado tem de conduzir-nos à dor, a uma
decisão mais amadurecida e mais profunda de sermos fiéis, de nos identificarmos realmente
com Cristo, de perseverar custe o que custar nessa missão sacerdotal que Ele confiou a
todos os seus discípulos sem exceção, e que nos impele a ser sal e luz do mundo (cf Mt
5,13-14).

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O pensamento da morte de Cristo traduz-se num convite a nos situarmos com absoluta
sinceridade perante os nossos afazeres diário e tomarmos a sério a fé que professamos. A
semana santa não pode, pois, ser um parêntese sagrado no contexto de um viver dominado
exclusivamente por interesses humanos; deve ser uma ocasião de penetrarmos na
profundidade do Amor de Deus, para assim podermos mostrá-lo às pessoas, com a Palavra
e com as obras.

Mas o Senhor estabelece condições. Lucas conserva-nos uma declaração sua da qual não
podemos dispensar: “Se alguém que me segue amar pai e mãe, esposa e filhos, irmãos e
irmãs, e até mesmo a própria vida, mais que a mim, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,26).
São termos duros. As palavras do Senhor foram fortes porque também não se reduzem a
um amar menos, como por vezes se interpreta temperadamente, para suavizar a frase. É
terrível uma expressão tão contundente, não porque implique uma atitude negativa ou
impiedosa – pois o Jesus que agora fala é o mesmo que manda amar o próximo como à
própria alma, e que dá a sua vida pelos homens – mas por ser uma locução que indica
simplesmente que, diante de Deus, não são possíveis as meias medidas. As palavras de
Cristo poderiam traduzir-se por amar mais, amar melhor, ou antes por não amar de maneira
egoísta nem tampouco com um amor de curto alcance: devemos amar com o amor de
Deus.

É disso que se trata. Observemos com atenção a última das exigências de Jesus: A vida, a
própria alma, é o que o Senhor nos pede. Se somos arrogantes, se nos preocupamos
apenas com a nossa comodidade pessoal, se centramos a existência dos outros e até do
mundo em nós mesmos, não temos o direito de nos chamarmos cristãos e de nos
considerarmos discípulos de Cristo. A entrega tem de se realizar com obras e com verdade,
não apenas com a boca (cf 1Jo 3,18). O amor a Deus convida-nos a levar a cruz a pulso, a
sentir também sobre nós o peso da humanidade inteira, e a cumprir, dentro das
circunstâncias próprias do estado e do trabalho de cada um, os propósitos, claros e
amorosos ao mesmo tempo, da vontade do Pai. Na passagem que comentamos, Jesus
prossegue: E aquele que não carrega a sua cruz e me segue, também não pode ser meu
discípulo” (Lc 14,27).

Temos de aceitar a vontade de Deus, sem medo, temos de formular sem vacilações o
propósito de edificar toda a nossa vida de acordo com que a nossa fé nos ensina e exige.
Não há dúvida que encontraremos luta, sofrimento e dor, mas, se possuirmos uma fé
verdadeira, nunca nos consideraremos infelizes: mesmo com penas e até com calúnias,
seremos felizes, com uma felicidade que nos impelirá a amar os outros e fazê-los participar
da nossa alegria sobrenatural.

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O cristão perante a história humana

Ser cristão não é título de mera satisfação pessoal: tem nome – substância – de missão. Já
antes recordamos que o Senhor convida todos os cristãos a serem sal e luz do mundo.
Fazendo-se eco desse preceito, e com textos tirados do Antigo Testamento, Pedro escreve
umas palavras que definem muito claramente essa missão: “Vocês, porém, são povo
escolhido, reino de sacerdotes, nação santa, propriedade exclusiva de Deus. Assim, vocês podem
mostrar às pessoas como é admirável aquele que os chamou das trevas para sua maravilhosa luz”
(1Pe 2,9).

Ser cristão não é algo acidental; é uma divina realidade que se insere nas entranhas da nossa vida,
dando-nos uma visão límpida e uma vontade decidida de agir como Deus quer. Aprende-se assim
que a peregrinação do cristão pelo mundo tem de converter-se num contínuo serviço, prestado de
modos muito diversos, conforme as circunstâncias pessoais, mas sempre por amor a Deus e ao
próximo. Ser cristão é agir sem pensar nas pequenas metas do prestígio e da ambição, nem em
outras finalidades aparentemente mais nobres, como a filantropia ou a compaixão pelas desgraças
alheias; é avançar em direção ao termo último e radical do amor que Jesus Cristo manifestou ao
morrer por nós.

Observam-se, por vezes, certas atitudes que procedem de não se saber captar esse mistério de
Jesus. Por exemplo, a mentalidade dos que encaram o cristianismo como um conjunto de práticas
ou atos de piedade, sem perceberem a sua relação com as situações da vida de todos os dias, com
a urgência de atender às necessidades dos outros e de se esforçar por remediar as injustiças.

Eu diria que os que têm essa mentalidade ainda não compreenderam o que significa que o Filho de
Deus se tenha encarnado, que tenha assumido corpo, alma e voz de homem, que tenha participado
do nosso destino até experimentar o despedaçamento supremo da morte. Talvez involuntariamente,
certas pessoas consideram Cristo como um estranho no ambiente dos homens.

Outros, por sua vez, tendem a imaginar que, para poderem ser humanos, têm de pôr em surdina
(abafar) alguns aspectos centrais da fé cristã, e comportam-se como a vida de oração, a relação
contínua com Deus, constituísse uma fuga às responsabilidades e um abandono do mundo.
Esquecem que foi o próprio Jesus quem nos deu a conhecer até que extremos se devem levar o
amor e o serviço. Só se procurarmos compreender o mistério do amor de Deus, desse amor que
chega à morte, é que seremos capazes de entregar-nos totalmente aos outros, sem nos deixarmos
vencer pelas dificuldades ou pela indiferença.

É a fé em Cristo – morto e ressuscitado, presente em todos e cada um dos momentos da vida – que
iluminam as nossas consciências, incitando-nos a participar com todas as forças das vicissitudes e
dos problemas da história humana. Nessa história, que se iniciou com a criação do mundo e findará
com a consumação dos séculos, o cristão não é um apátrida. É um cidadão da cidade dos homens
com a alma absorvida pelo desejo de Deus, cujo amor começa a entrever já nesta etapa temporal e
no qual reconhece o fim a que estamos chamados todos os que vivemos na terra.

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Seguir Cristo não significa refugiar-se no templo, encolhendo os ombros perante a evolução da
sociedade, perante os acertos ou as aberrações das pessoas e dos povos. Muito pelo contrário, a fé
cristã leva-nos a ver o mundo como criação do Senhor, a apreciar, portanto, tudo o que é nobre e
belo, a reconhecer a dignidade de cada pessoa, feita à imagem de Deus, e a admirar o dom
especialíssimo da liberdade, que nos faz donos dos nossos próprios atos e nos permite – com a
graça do céu – construir o nosso destino eterno.

Amesquinharíamos a fé se a reduzíssemos a uma ideologia terrena, arvorando um estandarte


político-religioso para condenar, não se sabe em nome de que investidura divina, os que não
pensam do mesmo modo em problemas que são, pela sua própria natureza, suscetíveis de receber
numerosas e diversas soluções.

Aprofundar no sentido da morte de Cristo

Falar do cristão perante a história humana não é outra coisa que afirmar uma verdade
central: a vida encontra seu sentido em Deus. Os homens não foram criados apenas para
edificar um mundo o mais justo possível; para além disso, fomos estabelecidos na terra para
entrar em comunhão com o próprio Deus. Jesus Cristo não nos prometeu nem a
comodidade temporal nem a glória terrena, mas a casa de Deus Pai, que nos espera no
termo (final) do caminho (cf João 14,2).

O Redentor do Universo, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, ao ser imolado,
vence. Deus, Senhor de todas as coisas criadas, não afirma a sua presença pela força das
armas, ou mesmo pelo poder temporal dos seus, mas pela grandeza do seu amor infinito.

O Senhor não destrói a liberdade do homem: foi Ele precisamente quem nos fez livres. Por
isso, não quer respostas forçadas; quer decisões que procedam da intimidade do coração.
E espera de nós cristãos, que vivamos de tal maneira que as pessoas das nossas relações
percebam, por cima das nossas misérias, erros e deficiências, o eco do drama de amor do
Calvário. Tudo o que temos, recebemo-lo de Deus, para sermos sal que salgue, luz que leve
aos homens a alegre notícia de que Ele é um Pai que ama sem medida. O cristão é sal e
luz do mundo, não porque vence e triunfa, mas porque dá testemunho do amor de
Deus; e não será sal se não servir para salgar; não será luz se, com o seu exemplo e sua
doutrina, não oferecer um testemunho de Jesus, se perder aquilo que constitui a razão de
ser de sua vida.

Temos de aprofundar nos aspectos que a morte de Cristo nos revela, sem ficarmos em
formas exteriores ou em frases estereotipadas. É necessário penetrar verdadeiramente nas
cenas que revivemos nestes dias: a dor de Jesus, as lágrimas de sua Mãe, a fuga dos

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discípulos, a coragem das santas mulheres, a audácia de José e Nicodemos que pedem a
Pilatos o corpo do Senhor.

Aproximemo-nos em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume do
Gólgota. Mas aproximemo-nos com sinceridade, sabendo encontrar esse recolhimento
interior que é sinal de maturidade cristã. Desta forma, os acontecimentos divinos e humanos
da Paixão penetrarão nossa alma, como palavra que Deus nos dirige para desvendar os
segredos do nosso coração e revelar-nos o que espera das nossas vidas.

Há uma pintura antiga feita por um artista cristão que pode representar bem esse momento
do Calvário. Junto do lenho, três anjos: um chorava desconsoladamente; outro tinha um
prego na mão, como que para se convencer de que tudo aquilo era verdade; o terceiro
estava recolhido em oração. Um programa sempre atual para cada um de nós: chorar, crer
e orar.

Perante a Cruz, dor dos nossos pecados, dos pecados da humanidade, que levaram Jesus
à morte; fé, para aprofundarmos nessa verdade sublime que ultrapassa todo o
entendimento e para nos maravilharmos com o amor de Deus; oração, para que a vida e a
morte de Cristo sejam o modelo e o estímulo da nossa vida e da nossa entrega. Só assim
nos chamaremos vencedores. Porque Cristo ressuscitado vencerá em nós, e a morte se
transformará em vida.

Páscoa é passar para aquilo que não passa! Que Deus, pelos méritos de Jesus Cristo
nossa Cabeça, conceda-nos completar de verdade essa “santa passagem”, no fim da qual
veremos a sua imagem e nos saciaremos da sua presença para sempre! Amém.

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