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OLAVO DE CARVALHO

O saber e o enigma
Introdução ao estudo dos esoterismos

VIDE EDITORIAI
OLAVO DE CARVALHO

O saber e o enigma
OLAVO DE CARVALHO

O saber e o enigma
Introdução ao estudo dos esoterismos

Organização e preparação de Ronald Robson


com a assistência de Mariana Reis

VIDE EDITORIAL
O saber e o enigma: introdução ao estudo dos esoterismos
Olavo de Carvalho
1ª edição - fevereiro de 2022 - CEDET.
Copyright © by Olavo de Carvalho

Os direitos desta edição pertencem ao


CEDET - Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
Av. Comendador Aladino Selmi, 4630, Condomínio GR2 Campinas — módulo 8
CEP: 13069-096 - Vila San Martin, Campinas-SP
Telefone: (19) 3249-0580
e-mail: livros@cedet.com.br

Editor:
Silvio Grimaldo de Camargo

Gestão editorial:

Thomaz Perroni

Assistência editorial:
Daniel Araújo

Organizand Roseparação:
Mariana Reis

Preparação de texto:
Gabriel Buonpater

Diagramação:
Mauricio Amaral

Capa:
Guilherme Conejo Lopes

Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d'Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA
Carvalho, Olavo de.
O saber e o enigma: introdução ao estudo dos esoterismos / Olavo de Carvalho- Campinas,
SP: Vide Editorial, 2021.
ISBN: 978-65-87138-73-2
1. Religião.
1. Autor II. Titulo

CDD - 200

INDICE PARA CATALOGO SISTEMÁTICO


1. Religião- 200

VIDE Editorial - www.videeditorial.com.br

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução


desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia,
gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário

Nota do organizador * 9
Advertência ortográfica * 11

PARTE I
Notas sobre simbolismo e realidade

1. O simbolismo natural & 15

2. A perspectiva rotatória * 19

3. Dado, sentido e unidade (1) * 21

4. Dado, sentido e unidade () * 25


5. Unidade e unidades * 27

PARTE I
Simbolismo e ordem cósmica

Apresentação * 31

CAPÍTULO 1 - Círculo de latência * 33


O ponto de partida do estudo do simbolismo - As três funções
da linguagem - A perspectiva rotatória - O conhecido anuncia
o desconhecido - Da necessidade ou não de prova - O universo
como sistema total das latências - O dado e o construido - Circulo
de latência e unidade do mundo - Conhecimento por presença -
A contemplação amorosa. Primeira abordagem - Finalidade da filosofia
CAPÍTULO II - A natureza simbólica do conhecimento di 53

Acidente metafisicamente necessário — Todo conhecimento é simbó-


lico - O simbolismo espacial — Ciência e fato concreto - Perigos
da gerência científica da sociedade

CAPÍTULO III - O simbolismo natural * 65

Essência da racionalidade humana — Abstração da experiência -


Simbolo e cultura - A tripla intuição - Abertura e fechamento dos
simbolismos - Duas vias a partir do simbolismo natural. Artes e
ciências - A contemplação amorosa. Segunda abordagem: saída do
ciclo subjetivo-objetivista

CAPÍTULO IV - O simbolismo astrológico * 77


A luz em torno da cruz de seis pontas - O sistema solar como sis-
tema simbólico total - O dilema astrológico - A estrutura total -
A imagem medieval do mundo - Carência de um senso de orientação
cósmica na Modernidade - O caso da Igreja Católica - A supres-
são dos milagres - O mundo liberal e seus inimigos - Tentativas de
restauração do simbolismo no Ocidente moderno

CAPÍTULO V - Heliocentrismo e mundo moderno * 95


Um retrospecto - Experimentos de Michel Gauquelin - Um falso
problema: heliocentrismo versus astrologia - A imagem de mundo
geocêntrica

PARTE III
O esoterismo na história e hoje em dia

Apresentação * 109

CAPÍTULO 1 - O que é esoterismo * 113


"Exoterismo" e "esoterismo" - Ritos mágicos e manipulação das
forças sutis da natureza - Ritos propiciatórios, ritos sacrificiais e
ritos de agregação - Os ritos iniciáticos - Filosofia iraniana como
esoterismo - Fé e religião no Islam - Esoterismo e Ocidente -
Tradição Primordial e unidade transcendente das religiões - Isla-
mizar o Ocidente
CAPÍTULO II - A Igreja e seus sacramentos iniciáticos * 137
Iniciação e esoterismo — Esoterismo natural e esoterismo for-
mal — Da "Maçonaria operativa" à "Maçonaria especulativa" -
Simbolismos espaciais e numéricos - Iniciação católica - A passagem
da ascese à mistica - "Pequenos mistérios" e "grandes mistérios".
Primeira abordagem - A Igreja perante as transformações do mundo
moderno - A Maçonaria como problema, segundo um ponto de
vista guénoniano

CAPÍTULO III - A Maçonaria * 159


O poder maçônico - O formalismo ético kantiano e maçônico - "Pe-
quenos mistérios" e "grandes mistérios". Segunda abordagem: realeza
e sacerdócio — Terrestrialização do pensamento - Contra-iniciação
CAPÍTULO IV - De volta à Igreja: um depoimento * 175

Em busca da "espiritualidade" - Contatos com o tradicionalismo


- Rompimento com Schuon — Uma anedota evoliana - Milagres -
A Eucaristia - O eu santificado

PARTE IV
As garras da Esfinge:
René Guénon e a islamização do Ocidente

1 * 191

II * 199

III * 205

IV * 209

V X: 215

VI $ 219

VII * 223
APÊNDICES

Para uma antropologia filosófica * 229

Influências discretas * 233

A Igreja humilhada * 237

Arte sacra e estupidez profana * 247


Nota do organizador

Olavo de Carvalho dirá, em um dos textos que o leitor está


prestes a ler, que os dois conceitos-chave de todo esoterismo
são os de "símbolo" e "rito". Este livro foi organizado tendo
por critério essa afirmação. Compõem-no:
Parte 1: Notas sobre simbolismo e realidade - apostila da-
tada de 1997..
Parte II: Simbolismo e ordem cósmica - curso ministrado de
14 de fevereiro a 14 de março de 2017 (cinco aulas semanais) em
Richmond, vA (com transmissão on-line). O texto foi preparado
pelo organizador a partir dos áudios originais e de transcrições
parciais feitas por Israel Kralco Machado e Lucas Valentim Binati.
Parte III: O esoterismo na história e hoje em dia — curso
ministrado de 21 a 25 de agosto de 2018 em Richmond, VA (com
transmissão on-line). Transcrições feitas por Alexandre dos
Santos da Silva e Rute Dinis serviram de base ao texto prepa-
rado pelo organizador.
Parte Iv: As garras da Esfinge: René Guénon e a islamização
do Ocidente — publicado originalmente na revista Verbum, ano 1,
n° 1-2, jul.-out. de 2016.
Reúnem-se nos apêndices i) o artigo "Para uma antropologia
filosófica", que, publicado originalmente em O Globo (19 de
julho de 2003) e reimpresso nas duas edições de A dialética
Olavo de Carvalho

simbólica: estudos reunidos (2008, 2015), dá maior amplitude à


discussão que o autor faz do simbolismo fundamental da "cruz
de seis pontas"; ii) o artigo "Influências discretas", publicado
originalmente no Jornal do Brasil (8 de maio de 2008); iii) os
artigos "A Igreja humilhada - 1" e "A Igreja humilhada - Il", aqui
apresentados como duas partes de um mesmo texto, publicados
orginalmente no Diário do Comércio (24 e 29 de julho de 2015);
e, por fim, iv) o ensaio "Arte sacra e estupidez profana", publicado
originalmente em A loso a e seu inverso (2012).

• 10
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Advertência ortográfica

Neste livro se adotou a grafia "Islam" em vez de "Islã", confor-


me o autor já fizera em O jardim das aflições e outros escritos
por considerá-la mais próxima à sua raiz trilítera árabe, slm (de
saláam, "paz"), e também "por saber que na religião islâmica
a grafia das palavras tem um uso ritual e um profundo sentido
simbólico — similar ao do hebraico - que se perde por completo
nessas adaptações arbitrárias" (O jardim). A grafia "mussulmano"
para "muçulmano", em outras ocasiões adotada pelo mesmo
motivo, foi preterida conforme vontade do autor.
1090
PARTE I
Notas sobre simbolismo e realidade
O simbolismo natural

Há três métodos de uso corrente para a explicação do símbolo:


1° O método etnológico, que o refere às intenções e valores de
uma cultura em particular ou de várias delas comparativamente.
2° O método psicológico, que os refere às estruturas mais
ou menos permanentes da psique humana.
3° O método esotérico (às vezes chamado também tradicional,
no sentido estrito que René Guénon confere ao termo), que refere
o símbolo a uma intencionalidade supra-humana.
Esses três métodos são redutivistas: os dois primeiros, os-
tensivamente; o terceiro, veladamente. Reduzem o símbolo a um
véu, a um disfarce: de normas culturais implícitas, no primeiro;
de anseios ou temores inconscientes, no segundo; no terceiro,
de realidades metafísicas.
Nenhum dos três, portanto, nos responde a pergunta: Que é
o simbolo? Fingindo respondê-la, substituem-na pela pergunta:
De quê o símbolo é símbolo? E, tendo-nos dito o simbolizado,
pretendem que aceitemos isso como conceito de símbolo - como
um homem que, interrogado sobre o que são as palavras, res-
pondesse indicando as coisas que elas nomeiam.
Esses três métodos desviam a nossa atenção do fenômeno
"simbolo" enquanto tal e a dirigem às causas reais ou supostas
da produção do símbolo, escorregando do quê para o porquê

• 15•
Olavo de Carvalho

— o expediente clássico de quem não sabe de quê está falando.


Isto não quer dizer, evidentemente, que tudo o que essas teorias
tenham a dizer sobre as causas do símbolo seja despropositado
ou falso; quer dizer apenas que é destituído de fundamento
sufciente e que este fundamento só poderia ser encontrado
justamente na investigação que essas teorias eludem e pretendem
substituir, que é a investigação do quid — a primeira de todas as
investigações, se não na ordem do tempo, ao menos na ordem
da prioridade lógica.
Dito de outro modo, esses três métodos tomam por implícito
que uma interpretação de simbolos, desde que se feche num
sistema mais ou menos completo, coerente e fundamentado, já é,
por si, uma elucidação suficiente quanto à natureza do símbolo -
confusão idêntica à de quem tomasse a interpretação exaustiva
de uma obra poética - ou mesmo de várias - como resposta
suficiente à questão: Que é a poesia? Ora, pode ocorrer, por
desgraça, justamente o contrário: que a elucidação da natureza
da poesia acabe por impugnar todas essas interpretações, por
exaustivas e coerentes que sejam, e por mais amparadas que
estejam em conhecimentos científicos, revelando nelas algo assim
como uma paralaxe, um desvio do eixo de atenção em relação
ao centro de interesse do objeto, uma concentração das ques-
tões em objetos parecidos, associados ou circunvizinhos, uma
metabasis eis allo genos como tão freqüentemente sucede nas
investigações científicas não suficientemente ancoradas numa
consciência critico-filosófica das complexidades e peculiaridades
do objeto que se pretende investigar.

A estratégia que proponho para a abordagem do símbolo


adotará como ponto de partida metodológico a seguinte regra:
todo empenho sistemático de interpretação de símbolos deve
ser posto entre parênteses como meramente hipotético, até que
se alcance uma elucidação suficiente da natureza do simbolo.
Esta elucidação, por sua vez, deve ser independente de qualquer

• 16 -
O saber e o enigma

chave ou sistema interpretativo ou explicativo-causal previamente


dado, por elegante, completo ou prestigioso que seja.
Como objeto inicial da investigação, não admitirei nada mais
senão o fato bruto de que existem palavras, grafismos, objetos,
entes enfim, aos quais os homens atribuem um tipo especial de
significação que denominam "simbólica", diferente de uma ou-
tra que denominam "não-simbólica". Este é um fato de ordem
histórica e cultural. A crença nele subentendida refere-se a uma
dualidade de modos de significação. Nossa primeira tarefa será
simplesmente verificar se essa dualidade é possivel e, se possivel,
em que pode ela consistir.

• 17 -
A perspectiva rotatória

1. Cada termo significa uma constelação de intenções atualizáveis.


No curso habitual do pensamento, essas intenções permanecem
latentes e em germe, como que comprimidas no invólucro do
termo. Não as atualizamos senão quando temos algum moti-
vo especial para fazê-lo. Uma pergunta, uma dúvida, podem
convidar-nos ou obrigar-nos a desdobrar as significações que
supomos carregar em algum canto obscuro do nosso "interior".
Então às vezes verificamos que elas não estão lá; foram-se, ou
então a enumeração não vem tão completa quanto esperávamos.
2. Esse caráter meramente potencial da intenção significante
revela-nos que, na comunicação habitual, as funções expressiva
e comunicativa da linguagem (K. Bühler) prevalecem amplamente
sobre a função denominativa, com a qual contamos, apenas,
como com uma reserva bancária sobre a qual passamos cheque
após cheque sem verificar o saldo.
3. A filosofia analítica pretende suplantar as "imprecisões" da
linguagem corrente, explicitando até o extremo limite as intenções e
significados latentes e submetendo-os à crítica filosófica. Mas uma
certa latência e imprecisão não são inerentes à natureza mesma
do pensamento, da percepção e do próprio ser das coisas? Uma
explicitação plena de todos os significados só é realizável sob
a forma de um sistema ideal de conceitos e juízos, que por sua
vez não se atualizará na consciência todo de uma vez, mas parte

* 19
Olavo de Carvalho

por parte, enquanto as demais partes permanecem latentes no


fundo. Ou seja, a consciência que temos desse sistema terá ela
mesma a estrutura de perspectivas rotatórias que observamos na
vida psíquica corrente e na comunicação habitual: um conceito
vem para a frente, enquanto os outros vão para o fundo, desa-
parecem como conteúdos atuais da consciência para se tornarem
esquemas compactos de conteúdos meramente atualizáveis.

4. Uma cadeia lógica não é, assim, mais conhecível de ins-


tantâneo e no todo do que uma casa ou uma paisagem. Temos
de percorrê-la, e quando no fim cremos conhecê-la "no todo", o
que sobrou em nossas mãos não é mais que um esquema simpli-
ficado, ou seja, uma potência de reatualizar no tempo a cadeia
percorrida. "Conhecer" um raciocínio é poder reproduzi-lo na
sequência, não é reproduzi-lo no todo e com todos os detalhes
num instante sem duração.

5. Forçosamente, cada passo que é atualizado na consciência


implica a virtualização dos outros, seu recuo para o depósito
do meramente atualizável.

6. É isto o que quero dizer com "perspectiva rotatória". E a


estrutura do ato mesmo de conhecimento, seja do conhecimento
pelos sentidos, seja do mero pensamento.
7. É, por outro lado, a estrutura mesma da fenomenalidade
como tal: nenhum objeto, nenhum ser, pode se apresentar a um
determinado sujeito cognoscente na totalidade instantânea dos
seus aspectos. E ilusão pensar que o objeto meramente ideal
pode fazê-lo. O conceito mesmo de "quadrado" só se apresenta a
mim no resumo compacto de um termo, e não no desdobramen-
to completo das propriedades que inclui. Tanto o pensamento
abstrato quanto a percepção sensível têm a estrutura de uma
perspectiva rotatória: o sujeito cognoscente circunda o objeto
tanto quanto circunda o conceito, e o faz precisamente porque
seu foco de atenção é circundado pelas latências de inumeráveis
objetos, conceitos e signos.

• 20 •
Dado, sentido e unidade (1)

A percepção do mundo como amontoado ou coleção de "coisas"


ou meros "dados" sem uma conexão espiritual última pressupõe
um observador destituído, por seu lado, de sua própria conexão
espiritual, do elo interior entre sensação e significado, consciên-

cia e ação, antes e depois; um observador estúpido, em estado


de divisão hipnótica e quase paralisia catatônica. E curioso,
ou mais propriamente absurdo, que o "mundo" fragmentário
captado por essa percepção deficiente seja tomado como norma
da "realidade" e medida de aferição da validade da conexão
interior que apreendemos no universo. A percepção efetiva do
real exige, na mais alta medida, as supremas faculdades de
síntese, que nos revelam, para lá mesmo da própria unidade
física do mundo, a unidade de um "sentido" do mundo para
o qual convergem todos os atos conscientes de um homem no
mundo, até os mais mínimos. O kantismo e outras escolas que
tomam como "realidade" os puros dados sensíveis e reduzem
toda síntese a uma contribuição subjetiva que a mente faz ao
mundo ignoram que um mundo sem unidade não poderia ser
"dado" a nenhum sujeito, para que o ordenasse segundo suas
categorias a priori, porque toda ordenação pressupõe a unidade
consciente do sujeito e esta unidade só se realiza, precisamente,
nos instantes de coesão ótima em que o mundo lhe aparece
como uno, não como um amontoado fragmentário de sensações.

* 21 »
Olavo de Carvalho

A fragmentação do mundo em "dados" supostamente pré-


-categoriais só se obtém por dois meios: pelos estados patológicos
de divisão do eu ou por esforço pessoal de abstração imaginativa;
no primeiro caso, o sujeito está separado de si funcionalmente;
no segundo, hipoteticamente e, em suma, ngidamente. Os
"dados" não são prévios à sintese signi cativa; obtêm-se, ao
contrário, por divisão abstrativa desta última, seja como resíduos
de uma sonolência alucinatória, seja como meras formas fanta-
siosas de um mundo construído pela imaginação. Os famosos
"dados" são em suma construídos, e a unidade espiritual última
do mundo, em vez de construída, é dada. Por isto fracassam
todas as tentativas de construí-la (ou mesmo de reconstruí-la)
por meio de criações mentais, seja na arte, seja na ciência, seja
na metafísica. A verdadeira metafísica não constrói um mundo,
não é metafísica construtiva; é fundamentação discursiva da
unidade do mundo espontaneamente percebida. Daí também o
fracasso de toda tentativa de "expressar" o sentido último; ele é
o pressuposto de toda expressão; é o supremamente percebido,
jamais construído; e, fatalmente, só expressamos o que nossa
mente constrói. É uma ilusão deduzir, da inexpressabilidade do
sentido, sua inapreensibilidade. Ele é inexpressável justamente
por ser apreensível eminente, por ser "O" apreensível como tal,
enquanto todos os demais apreensíveis só são apreensíveis nele
e por ele, sendo por isto expressáveis.

Por não fazer parte nem do mundo pragmático que cons-


truímos com nossas ações, nem do mundo imaginativo que
construímos com nossa arte, nossa ciência, etc., ele acaba por
parecer, à re exão losó ca de primeira instância (re exão sobre
a cultura, sobre o mundo construído pelo homem), como um "X"
remoto e distante, ao qual só poderíamos chegar no termo de uma
caminhada que começa no "dado" sensivel. Mas é uma ilusão
de ótica, que inverte a ordem do real; ao sentido não se chega,
pois ele é o pressuposto da própria percepção e, mais ainda,

× 22 •
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O saber e o enigma

da caminhada reflexiva. O objetivo desta não é atingir o sentido,


mas recuperar, no nível discursivo (portanto intersubjetivo), a
certeza inicial e intuitiva do sentido. O objetivo é tornar patri-
mônio comum essa certeza inicial e fundamental que o homem
só possui enquanto individualidade vivente, não enquanto ser
social falante, plural na variedade de seus papéis e idiomas.
No curso dessa recuperação, muitos desastres acontecem, que
separam o homem da recordação do sentido e o levam a imagi-
nar, seja que pode construir um sentido a partir dos dados, seja
que pode encontrar um sentido partindo de dados sem sentido,
seja que pode provar a inexistência do sentido ou a separação
abissal entre o dado e o sentido, seja que não necessita de um
sentido e pode viver entre puros dados. Tal é o panorama da
história da filosofia.
As presentes considerações vão um pouco além do que
habitualmente se chama "realismo". O realismo afirma somente
a realidade do mundo. Elas afirmam que a realidade do mun-
do é um dado, e que também o são, inseparavelmente dela, a
unidade espiritual e o sentido do mundo. Realidade, mundo
e sentido não podem ser construídos, seja pelo filósofo, seja
pela cultura; só podem, por isto, ser percebidos intuitivamente,
subentendendo que a intuição pressupõe um sujeito cognos-
cente dotado de unidade autoconsciente ótima no momento do
ato intuitivo. Todo o trabalho da filosofia - e da cultura - é
registrar o mundo intuído e defendê-lo, mediante a faculdade
discursiva, da dissolução. E quem o ameaça de dissolução é a
própria faculdade discursiva, constitutivamente dupla e auto-
-antagônica — dialética, em suma -; dupla pela duplicidade de
suas operações (significatio e suplentia), dupla pela duplicidade
de suas funções (pensar e comunicar).

• 23•
Dado, sentido e unidade (1)

A percepção imediata do sentido e da unidade do mundo, a que


me refiro, é simplesmente o saber imediato que temos acerca do
que estamos fazendo nele naquele preciso momento, e de aonde
pretendemos chegar em seguida, e de aonde pretendemos que
vão dar, no fim, todas as nossas ações. Sem esse pressentimento,
seríamos incapazes de dar o próximo passo. Seria tolice imaginar
que um homem dá seu próximo passo independentemente de
qualquer consideração do que vem depois - um próximo pas-
so isolado, atomístico. O "viver cada momento" é apenas uma
figura literária. Aquele que diz "viver o momento" o faz sobre
o pano de fundo de toda uma concepção do universo, a qual
inclui, forçosamente, uma expectativa de continuidade. Tanto
que, se fosse informado de sua morte iminente, seu momento
seguinte seria bem diferente daquele que experimentaria se lhe
dissessem, ao contrário, que a dama de seus desejos o espera
no quarto ao lado.
A expectativa de uma continuidade que se prolonga para
além da morte, seja na forma de uma vida celeste, seja sob a
forma da simples permanência temporal do mundo após nossa
saida dele, seja sob qualquer outra forma que se imagine, é
uma conditio sine qua non do agir humano, e está subentendi-
da mesmo nas nossas ações mais mínimas e corriqueiras. Mas
essa diversidade de imaginações e suposições traduz apenas
Olavo de Carvalho

a variedade de reações individuais a uma experiência que é


única e a mesma em todos os seres humanos: a experiência do
movimento geral do cosmos, que vai para alguma direção e nos
leva. Essa experiência pode ser vivenciada de maneira cons-
ciente, com mais probabilidade, na infância, mas em geral ela
se torna inconsciente pelo fato mesmo de ser a mais constante
e ininterrupta experiência humana, fundamento e condição de
toda e qualquer experiência em particular.

14 NOT

* 26 •
Unidade e unidades

Mas, se a unidade do mundo é dada e a unidade de cada ente


conhecido é apenas potencial, atualizada parcialmente e passo
a passo pela perspectiva rotatória, uma conclusão se segue
imediatamente: cada ente conhecido só é uno e só é ente a
título de imago mundi. Da unidade total extraem sua unidade
as unidades parciais.

• 27
PARTE II

Simbolismo e ordem cósmica


Apresentação'

W. R. Inge, no clássico Christian Mysticism (Nova York, 1956),


afirma: "O misticismo é a tentativa de realizar, no pensamento e
no sentimento, a imanência do temporal no eterno, e do eterno
no temporal [.]. Mas, uma vez que a nossa consciência do além
é ela própria desprovida de forma, ela não pode ser trazida
diretamente a uma relação com as formas do nosso pensamento.
Em decorrência disso, ela tem de se expressar por símbolos".
Tudo isso está certo, mas deixa de fora o principal: se os
símbolos são apenas instrumentos da linguagem humana, eles
são criados pelo homem e nada mais expressam do que o pen-
samento humano mesmo. A famosa "imanência do temporal no
eterno e do eterno no temporal" não passa, aí, de um fenômeno
interno da mente humana, sendo inteiramente temporal e nada
tendo de eterno exceto uma pretensão nominal que atesta a sua
própria impotência.
Ou os símbolos são a linguagem do próprio eterno e o canal
do seu ingresso na esfera temporal, ou toda pretensão de falar
do eterno só nos aprisiona mais e mais na esfera temporal.
Mais que o advento da física matematizada, mais que o
surgimento das monarquias nacionais e de um punhado de
impérios em concorrências, mais que a arte de Michelangelo

1 Texto redigido pelo próprio autor quando da divulgação do curso em 2018 - NO.

× 31 *
Olavo de Carvalho

e Leonardo, essa questão marca a passagem da civilização


medieval à "Idade Moderna".
Desde a distinção galilaica entre "qualidades primárias" e
"qualidades secundárias" dos objetos, tudo o que pudesse indicar
ou sugerir um simbolismo da natureza, uma intencionalidade
cósmica, a unidade profunda da alma humana com o cenário
cósmico em torno, a existência de um "sentido" na presença
humana no cosmos foi cada vez mais expulso do mundo real
e aprisionado no recinto fechado da subjetividade humana, da
fantasia arbitrária, da criatividade linguística, da "invenção cul-
tural". Quando não da superstição ou da loucura pura e simples.
O discurso religioso, nesse panorama, paira acima da ex-
periência real, como duas substâncias separadas e infungíveis,
como a água e o óleo. Os símbolos cristãos perdem força e
vida e se reduzem a figuras de linguagem. A fé, em vez de ser
a continuidade e o estágio superior da razão e da experiência,
torna-se uma aposta voluntarista em tradições veneradas e em
esperanças etéreas.

De que adianta o fiel repetir que "os Céus cantam a glória


de Deus" se o único céu que ele conhece é o da ciência física
moderna, o qual não apenas não canta, mas nem mesmo fala?

O objetivo deste curso é mostrar a urgência e a possibili-


dade de recuperar o simbolismo natural sem o qual o discurso
religioso se reduz cada vez mais a uma retórica convencional e
à expressão de um wishful thinking impotente.

• 32•
CAPÍTULO I

Círculo de latência

Escrevi as "Notas sobre simbolismo e realidade"' com o propó-


sito de iniciar um estudo sobre o simbolismo e sua natureza. É
apropriado que de agora continuidade aos temas daquela velha
apostila - embora com encaminhamento bem diverso -, ainda
mais que o objetivo primeiro deste curso é fazê-los entender o
que é um símbolo. O segundo é mostrar o estado da consciência
simbólica ou inteligência simbólica dentro do panorama atual,
sobretudo no meio de pessoas religiosas ou interessadas no
debate religioso.

O ponto de partida do estudo do simbolismo


Susanne Langer dizia que simbolo é uma "matriz de intelecções".
Isso não é uma definição completa, mas aponta para uma pro-
priedade do símbolo.
Quando tomamos consciência de um símbolo, ele de certo
modo nos provoca várias percepções ou intelecções. Com isso
o símbolo não está nos ensinado nada, mas está nos oferecendo
uma oportunidade de aprender; desempenha assim um papel
hormonal para a inteligência (de tal modo que qualquer estudo
a respeito do simbolismo deve exercer uma influência benéfica
1 Parte I deste volume - NO.

× 33 -
Olavo de Carvalho

sobre a inteligência, ainda que você não esteja interessado no


tema do simbolismo em si).
Uma marca do simbolo - aquela enfatizada na de nição de
Langer — é sua abertura, pois, a várias "intenções". Emprego
aqui a palavra "intenção" no sentido que lhe dá Edmund Husserl.
Segundo ele, toda consciência é consciência de algo, e intenção
seria essa referência do nosso pensamento a algo. Quando pen-
samos, não pensamos no vazio ou no nada; sempre existe algo a
que endereçamos nosso pensamento. Pode ser um elefante, uma
xícara de café, uma ação na bolsa de valores ou um discurso
presidencial. Será essa a intenção.
Cada termo ou palavra que usamos não indica uma coisa
apenas (uma intenção apenas), mas possivelmente muitas. Isso
acontece porque toda palavra significa as tantas outras palavras
que correspondem a ela em um dicionário. A comunicação huma-
na, assim, nunca é feita com base em um signo ou um significado
exclusivo. Ela implica não só uma constelação de significados
possíveis, mas também uma multidão de referentes, que são os
objetos. "Elefante" significa um animal com tais e quais caracte-
rísticas dadas no significado verbal da palavra; por outro lado,
seu referente é o próprio elefante. Pode ser um elefante, todos
os elefantes, uma parte dos elefantes, e assim por diante.
Nós entendemos muitas coisas, portanto, mas não temos a
menor idéia de como as entendemos em meio à imensa gama
de intenções que podem ser atualizadas. O tempo todo falamos
usando palavras que imaginamos significarem coisas específicas,
mas que na verdade significam muitas coisas; e, quando estamos
falando, nunca temos de tornar presente à nossa consciência
todos esses significados ou referentes possíveis.

Sendo assim, como nos entendemos? Se cada palavra que


alguém usa pode significar mil coisas, e eu quando ouço pos-
so me recordar de mil coisas diferentes relacionadas a ela,
como entendo o que a pessoa está falando? Esse fenômeno da

• 34
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O saber e o enigma

funcionalidade da linguagem humana é o ponto de partida para


o estudo do simbolismo.

As três funções da linguagem


Karl Bühler dizia que a linguagem possui três funções: a) a
função denominativa, que está em dizer os nomes das coisas;
b) a função expressiva, que busca tornar visível um sentimento
ou estado interior; e c) a função comunicativa, que visa a agir
sobre a mente do ouvinte. Se as significações a que nos referimos
correspondem a referentes inumeráveis e que estão meramente
latentes, ou que às vezes nem sabemos quais são, então a lin-
guagem está sendo usada na clave expressiva ou comunicativa,
mas não na clave denominativa, porque não estamos falando
sobre um referente preciso. Estamos apenas expressando um
sentimento ou agindo sobre o ouvinte. Deparo-me com um texto,
por exemplo, em que Teilhard de Chardin fala em "progresso do
universo". Uma empresa pode ter mais ou menos funcionários,
pode ter faturamento maior ou menor, e assim pode ter o seu
progresso aferido. Os carros podem sair das fábricas piores ou
melhores, e podem assim regredir ou progredir. Isto é: progresso
é necessariamente um termo comparativo. Mas o que seria o
"progresso do universo": seria tornar-se maior, seria funcionar
melhor do que funcionou até um dado momento (seja lá o que
for "funcionar"), ou seria tornar-se, quem sabe, mais denso? É
impossível saber. O "progresso do universo", em prol do qual
Teilhard de Chardin nos convida a trabalhar pelo bem de uma
humanidade em vias de se autodestruir numa conflagração
nuclear, não quer dizer simplesmente nada. Esse é um exemplo
simples, mas que torna bastante claro o predomínio das funções
expressiva e comunicativa na linguagem humana.
Haverá aqueles que reagirão a esse predomínio. A essência
da escola analítica, por exemplo, está em reduzir a filosofia

• 35 -
Olavo de Carvalho

a análise da linguagem - toda a obra do Bertrand Russell e


baseada nisso. Ele percebe que há algo de nebuloso e tremen-
damente impreciso em toda linguagem (inclusive na linguagem
cientifica), e resolve analisá-la até as últimas consequências,
para torná-la perfeitamente objetiva, referencialmente especifi-
ca. Assim, com o auxilio de Whitehead, pretende no Principia
Mathematica fazer uma espécie de enciclopédia geral das ciências,
uma filosofia universal na qual todas as terminologias científicas
estivessem perfeitamente definidas, sem nenhuma ambigüidade.
Suponhamos que tivessem finalmente conseguido elaborar esse
sistema de conceitos e juízos que põe ordem na linguagem. Lá
estariam dados os vários termos e conceitos que os definem e
justifiquem em toda a linha, de modo que cada conceito é en-
cadeado ao conceito seguinte com o máximo rigor, e assim por
diante. Seria um lindo sistema, todo arrumadinho, expresso numa
obra de quase duas mil páginas. Mas acontece o seguinte: eu
não posso me lembrar de todo o sistema de uma vez. Quando
me refiro a ele, ele também é uma intenção latente. Eu suponho
que talvez me lembre de tal ou qual parte, se me perguntarem
a respeito. Mas eu não posso ter uma visão integral do sistema
inteiro num único instante. No desejo de eliminar a latência da
linguagem, criou-se um sistema que também existe em latência.
O problema fundamental não foi resolvido. Tenho de sempre
prosseguir visualizando só aspectos. A imprecisão não é um
defeito de nossa linguagem - é da própria natureza dela.

A perspectiva rotatória
Chamei de perspectiva rotatória esta possibilidade de girar e ir
captando as várias intenções, sem nunca as esgotar.
Suponhamos que eu veja um quadro que retrate um cavalo.
Usa-se para o cavalo pintado a mesma palavra que para o
cavalo real, mas neste momento estou me referindo ao cavalo

• 36-
O saber e o enigma

da pintura. Assim, um referente veio para a frente, para o primeiro

plano da consciência, e o outro foi para o fundo, pois eu estou


me referindo ao cavalo pintado, e não ao cavalo do zoológico.

Cada palavra que usamos possui um estoque de conteúdos


atualizáveis ou possíveis, que em determinado momento não vêm
à tona por não os estarmos utilizando. Mas, se formos premidos
a buscar na palavra sua correspondência com determinada coisa,
é possível que esses conteúdos de fundo venham a se atualizar.

Isso não é só um fenômeno peculiar à linguagem, mas comum


a qualquer objeto de conhecimento. O exemplo mais simples
que posso dar se refere a um objeto cúbico. Só podemos ver
três lados dele ao mesmo tempo, mas não é possível que haja
um cubo com apenas três lados. Se ele não tiver outros três,
não será um cubo. Só podemos ver os seis lados do cubo ao
mesmo tempo se o desmontarmos, como se faz em geometria
descritiva. Nela, os vários lados são colocados no papel, de
modo que formem uma cruz a ser montada. Mas isso não é
um cubo, e sim uma folha de papel. De modo análogo, não
há como conhecer uma casa de todo e instantaneamente. Se
estivermos fora dela, veremos no máximo três dos seus lados,
enquanto que os outros ficarão escondidos. Também não se
pode percorrer todos os seus cômodos ao mesmo tempo. É
somente através da memória que nós percebemos a unidade da
casa: quando vamos de um cômodo para o outro, ainda nos
lembramos do anterior - se esquecermos, nunca formaremos
a imagem da casa e guardaremos dela somente, talvez, este e
aquele cômodos isolados.

Do mesmo modo, ao ver um cachorro deitado e depois vê-lo


andando, você sabe que é o mesmo cachorro. Há uma unidade
ou continuidade nele. Mas é só pela memória que você sabe
disso. Não é possível ver de uma vez o cachorro todo, em todas
as suas posições e momentos possíveis, desde o seu nascimento
até a sua morte. Tenho há doze anos o meu cachorro Big Mac,

• 37•
Olavo de Carvalho

um english mastiff (uma raça que vive em média oito anos, de


modo que vocês podem imaginar a situação de velhice em que se
encontra); eu me lembro de quando ele era pequenininho, mas é
uma memória vaga. É impossível imaginá-lo quando era pequeno
tão claramente quanto o vejo agora. Só me resta articular uma
coisa com a outra por meio de minha memória e imaginação.
O mesmo se aplica ao sistema lógico que explicaria a unidade
e coerência da linguagem. Não se pode vê-lo todo de uma vez:
vemos apenas um pedacinho dele e nos lembramos potencialmente
do resto. Note que, neste sentido, um sistema losó co é como
um cachorro, um quadro ou qualquer outra coisa. Você só pode
ver um pedaço dele por vez, enquanto que o resto existe na sua
memória, como possibilidade latente. Absolutamente tudo o que
sabemos é assim. Ao ler esta palavra, você sabe que eu já disse
outras e que a exposição tem coerência e continuidade (espero
eu). Você sabe disso só por causa da sua memória, por lembrar
vagamente o que eu disse antes e articulá-lo com o que digo agora.

O conhecido anuncia o desconhecido


Quando você está caçando e encontra um urso, o que você vê
não é o urso completo, mas apenas a superfície externa dele,
pois você não pode ver os seus órgãos internos. Porém, se
o urso estivesse vazio, se ele não tivesse estômago, pulmões
e coração; seria apenas uma aparência de urso, e isso não é
possível. Apesar de não vê-los, os órgãos internos do urso não
apenas devem estar presentes como devem estar funcionando.
É isso que faz com que o urso seja um urso: ele o é por causa
de tudo aquilo que não vemos. Do mesmo modo, eu não posso
vê-lo com um mês de vida e com dois anos de vida ao mesmo
tempo. Tenho de subdividir o urso e ver apenas um pedacinho
seu, me contentar com isso e adivinhar todo o resto que há por
trás do que vejo.

- 38 -
fi
fi
O saber e o enigma

Muitas vezes raciocinamos esquecendo que o mundo se


compõe de pedacinhos cuja totalidade não se manifesta a nós
de imediato. David Hume dizia que, quando conversamos com
alguém, percebemos um som, o qual talvez até faça sentido, mas
não vemos nenhum eu consciente por trás dele. O que vemos
é apenas um corpo falando, mas como saber se ele tem um eu
consciente?

Ora, nós sabemos de inúmeras coisas que não se apresentam


a nós. Se não pudéssemos contar com tudo o que não estamos
vendo (inclusive o eu pelo qual Hume pergunta), todo o conhe-
cimento humano seria impossível, inclusive o mais elementar. E
preciso que sejamos honestos e confessemos que largas porções
do que conhecemos dependem de coisas cujo conhecimento
direto em geral nos escapa.
Ainda assim, alguém pode conceber uma "análise crítica" do
conhecimento e fazer de conta que não sabe aquilo que sabe.
Isso cria um problema lógico insolúvel, pois não há como provar
que você — volto ao exemplo - tem um eu consciente por trás
do que diz. Mas tudo o que falamos se baseia no pressuposto
de que temos um eu consciente, de que cada um de nós fala as
próprias palavras por tê-las pensado e querer dizê-las. Com a
abstração disso, sobra apenas a palavra espocando no vazio
como uma bolha de sabão.

Da necessidade ou não de prova


Só podemos provar algo por termos algum conhecimento a
respeito desse algo. O conhecimento é a condição da prova, e
não o contrário. A prova é sempre secundária, como o mostra o
fato de que o número de coisas que precisamos provar é sempre
muito pequeno, pois quase tudo o que sabemos nos chega sem
necessidade de prova. É de fato impossível provar que você é
você mesmo. Também é impossível provar que eu estou dando

* 39 ×
Olavo de Carvalho

esta aula agora. Você sabe que estou dando esta aula, não em
razão de alguma prova, e sim pelo seu testemunho. Sócrates
nunca se empenha, nos diálogos platônicos, em provar o que
diz; o que ele faz é invocar o testemunho dos seus interlocuto-
res, é convidá-los a que dêem atenção à sua experiência real e
a testemunhem sinceramente. Ao fazerem, perceberão possíveis
incoerências em seu discurso ou no discurso do interlocutor, e
assim se encaminharão à expressão da verdade dada em suas
experiências.
Não apenas tudo o que conhecemos se compõe de fragmen-
tos, por trás dos quais há um universo inteiro adivinhado por
nós, mas também o nosso conhecimento inteiro se baseia nessa
troca de adivinhações. Pior: isso funciona. Não apenas tudo é
assim, mas toda a noção que temos de honestidade, sinceridade
e amor ao próximo também se baseia nisso. O compromisso
de não exigir que o outro prove aquilo que você também não
pode provar é a condição número um da convivência humana.
A nossa comunicação se baseia na confiança. Evidentemente,
ela pode falhar, na medida em que o outro minta ou tente me
enganar - os referentes da mentira não são atualizáveis: a
mentira não aponta para nada -, ou testemunhe erroneamente
a sua experiência.
Aristóteles dizia que não se deve argumentar com quem
não reconhece ou não percebe os princípios da prova. O que
está muito bem, caso se reconheça que os princípios da prova
dependem da confiabilidade dos interlocutores. Não há meio
de eliminar a honestidade humana como elemento fundamental
do conhecimento e da comunicação. Nada pode nos defender
desse fato. E querer se defender dele, querer um conhecimento
absolutamente apodítico que não dependa do testemunho de
ninguém, prova apenas que você é um covarde, que você não
está habilitado a viver a vida humana; você quer viver num
mundo totalmente protegido, numa espécie de mundo geométrico.

• 40 •
O saber e o enigma

Ao contrário, vivemos na comunidade humana, e nosso des-


tino depende de encontrarmos pessoas com quem possamos
dialogar honestamente. Uma pessoa desonesta não reconhece
a necessidade de aceitar prova alguma. Você pode no máximo
desmoralizá-la, tornar manifesta sua falta de sinceridade, mas
não pode forçá-la a aceitar a verdade que insiste em negar.

O universo como sistema total das latências

Todos os objetos, até os ideais, se apresentam como latências.


O fato de os objetos da geometria euclidiana (um triângulo, um
losango, um ângulo reto) serem concebidos pela nossa mente
não quer dizer que possam ser conhecidos na totalidade dos
seus aspectos. Se isso fosse possível, não haveria geometria
euclidiana. Suponhamos que eu defina uma figura e você pense
conhecê-la; depois deduzo as suas propriedades internas, e você
nota que não as conhecia. Mais concretamente, suponhamos que
você saiba que o quadrado é uma figura plana com quatro lados
iguais e quatro ângulos retos; contudo, pode ser que você não
saiba que, ao dividi-lo pela diagonal, obtemos dois triângulos
isósceles, ou ainda que, traçando uma perpendicular que vá do
meio deles até o outro lado, obtemos vários triângulos retângulos,
e assim por diante. Pode-se extrair mais e mais propriedades que
num primeiro momento não haviamos percebido.
Toda a geometria de Euclides é a prova de que mesmo uma
figura puramente ideal como o quadrado não pode ser conhe-
cida por inteiro e de maneira instantânea. O conceito mesmo
de quadrado só se apresenta a mim no resumo compacto de um
termo, e não no desdobramento completo das suas proprieda-
des. Tudo que conhecemos são feixes de latências: conhecemos
um aspecto, e este aspecto nos revela todo um feixe, toda uma
constelação de latências. Ao trazermos um aspecto da patência

" 41•
Olavo de Carvalho

para a latência, percebemos que de algum modo já o conheci-


amos, ainda que não nos advertissemos dele.
Mais ainda, adivinhamos não somente a latência de todas
as propriedades que compõem os objetos dos quais estamos
falando, mas também os seus enlaces, quais relações há entre
eles. O que conhecemos surge não como um emaranhado de
elementos, mas como um sistema de latências ordenadas. Não
há coisa alguma que exista solta, sem relação alguma com
mais nada, pois nesse caso a coisa solta seria a coisa acabada,
a coisa perfeitamente delimitada e fechada em si mesma - e
uma tal coisa simplesmente não existe. Jamais vimos sequer um
objeto em estado de isolamento absoluto. Os objetos sempre
surgem inseridos em um sistema de latências que os enlaça
com incontáveis outros objetos. O universo é o sistema total
das latências.

Contudo, existe toda uma tradição kantiana segundo a qual


tudo que percebemos são dados soltos e isolados e que somos
nós que os articulamos. Assim, criaríamos na nossa mente, na
nossa imaginação, a idéia de mundo; o que é dizer: a idéia de um
sistema ou uma totalidade seria uma projeção da nossa mente,
ao passo que tudo o que recebemos do mundo nos viria, na
verdade, sob forma fragmentária.

Esse é um erro monstruoso cometido por um grande filósofo.


Ele o comete porque descreveu de maneira errada a sua própria
experiência, ao supor que tudo o que percebe são, de algum
modo, fragmentos soltos. Mas como, no caso de apreender
um fragmento solto, você poderia perceber que se trata de um
fragmento, já que ele não apresentaria relação alguma com
mais nada? Como distinguiria fragmento de todo, elemento de
elemento, e assim por diante? Não faz sentido. Vejo a aparência
externa do urso, que é um fragmento dele, e sei que há um urso
por atrás dessa aparência, um urso que a completa e sem o qual
eu não seria capaz de perceber que captei uma aparência de urso

• 42 •
O saber e o enigma

e nem mesmo aparência alguma enquanto aparência. Tomo o


urso necessariamente inserido em um sistema de latências em
algum lugar e em algum tempo. Não posso ver um urso fora do
tempo nem fora do espaço.
A unidade do mundo está pressuposta em cada ato de per-
cepção. Se o meu pensamento fosse responsável pela unidade
do mundo, eu teria de reconstruir continuamente essa unidade,
porque eu só teria à minha disposição os dados soltos, ato-
místicos, com que me depararia a cada momento. Contudo,
ao acordar toda manhã, percebo que estou no mesmo quarto
da véspera. Fui eu que reconstruí mentalmente esse quarto, ou
apenas reconheci nele algo que já conhecia? Se o tivesse recons-
truído, não poderia saber que é o mesmo quarto, pois, a cada
vez que o reconstruísse, estaria fazendo algo inteiramente novo
sem nenhum parâmetro de comparação com mais nada - em
suma, seria um quarto de todo novo, e não o velho quarto de
sempre reconstruído.

O dado e o construído
Às vezes, os filósofos propõem que existem dados que são
anteriores ao pensamento categorial. Haveria os elementos pré-
-categoriais, em si mesmos caóticos e fragmentários, que você
arranjaria segundo as categorias do seu pensamento e, assim,
criaria uma imagem do mundo. Mas, como acabamos de ver,
esses elementos pré-categorias, ou fragmentos ou partes que
percebemos, só são fragmentos ou partes porque guardam em
si uma latência. Só percebemos uma coisa separada, distinta
da outra, porque a articulamos com as outras. Sou capaz de
distinguir entre um urso e uma pata de urso. Não posso ver um
urso se ele não tiver uma pata (podem lhe ter cortado as patas,
mas algum dia ele teve). E também não posso conceber uma
pata de urso sem o urso do qual ela é parte.

× 43 г
Olavo de Carvalho

Você não obtém dados separados porque eles assim se apre-


sentam; ou melhor, os dados jamais se apresentam, tudo o que
se apresenta são aspectos de latências. Dado é algo que você
abstrai, algo que você isola das demais potências e latências
que compõem o objeto. Você faz de conta que o dado não tem
conexões com os demais elementos e se refere a ele como se fosse
uma coisa isolada. Mas isso, sim, é uma criação da sua mente.
O que lhe chega é o próprio mundo, um mundo que você picota,
divide e a partir do qual obtém algo a que dá o nome de dado.

Em geral, o que professores de filosofia chamam de dado é


justamente o elemento construído por sua mente (a abstração,
os elementos tomados como átomos), e o que chamam de cons-
trução é justamente o que vem já dado na realidade (a unidade
do mundo). Mas isso é uma inversão da ordem do real. O sen-
tido, isto é, a unidade do mundo, é aquilo que é eminentemente
apreensivel, aquilo que está dado mesmo na mais humilde das
percepções. Não que se chegue propriamente ao sentido. Através
do discurso, recupero a consciência que tenho da presença do
sentido último em cada uma das minhas percepções, falo dela
e, quando falo, as outras pessoas a reconhecem. Elas sabem
que têm essa experiência, sabem do que estou falando, porque
elas já vivenciaram isso.
A idéia de unidade do mundo, tal como aparece na mente
de um lósofo na hora que ele está elaborando uma doutrina,
não é a mesma coisa que a unidade do mundo tal como aparece
na nossa experiência real; ela é uma tradução malfeita desta
última. Na verdade, a unidade da experiência real é indizível.
E, quando os filósofos tentam dizê-la, a dizem de maneira pu-
ramente analógica.

Nenhuma doutrina da unidade do mundo corresponde à


unidade do mundo, apenas a indica, porque essa unidade do
mundo, para nós, é infinita. Só é uma unidade porque é infinita.
Pois, dada uma finitude, por definição haveria outra finitude
fi
O saber e o enigma

para além de seus limites, e assim por diante, de modo que


haveria uma multiplicidade de universos. (Percebam que não
estou falando de infinito espacial, material, e sim de infinito do
ponto de vista das latências).

Circulo de latência e unidade do mundo


Em resumo, se as únicas coisas certas fossem os dados fragmen-
tários da realidade, ao passo que tudo o mais fosse interpretação
que nós fazemos, então todo o conhecimento se reduziria a um
conhecimento de fragmentos, sem que se atente que esses frag-
mentos devem sua natureza fragmentária justamente ao círculo
de latência no qual estão inseridos.
Para explicar o que denomino círculo de latência - e perce-
bam que vinha aludindo a vários aspectos dele -, costumo dar
o seguinte exemplo. Vem um sujeito andando pela rua, quando
então se depara com um cachorro deitado. Ele não sabe se o
cachorro vai mordê-lo, latir para ele, sair correndo, abanar o
rabo, ou se vai apenas continuar dormindo, ele simplesmente
não sabe; mas ele sabe que o cachorro pode fazer qualquer
uma dessas coisas, e sobretudo sabe que o cachorro não irá lhe
recitar odes de Pindaro nem sairá voando. Se ele não soubesse
nada disso, não saberia o que é um cachorro. Isto é: se na figura
externa do cachorro não visse elemento algum de latência, seria
incapaz de identificar o cachorro. Perceber um objeto é perceber
o seu circulo de latência; e, ainda que seja impossivel perceber
um circulo de latência inteiro, você sabe que está presente.
Não existem um objeto físico e, separado dele, a interpretação
inteiramente arbitrária que você faz dele; as latências que você
percebe estão dadas no círculo de latência do qual a aparência
física do objeto é só mais um aspecto.
Tudo que percebo, percebo no mesmo instante já operando
uma síntese de todo o seu circulo de latência e de todos os seus

* 45 *
Olavo de Carvalho

enlaces com as latências de tudo em volta. Eu não preciso pensar


discursivamente na definição de cachorro para, afinal, concluir
que ele não voa. Trata-se de uma percepção imediata dada
na apreensão do cachorro, o qual é inseparável do seu circulo
de latência. Manifesta-se uma espécie de uma antecipação no
ato de percepção, mas uma antecipação que não é feita pelo
nosso pensamento, mas pela própria estrutura perceptiva; ela
é instantânea. Edmund Husserl chamava a isso protensão. Se
a retenção é o ato pelo qual o indivíduo recolhe na memória
o que não está mais presente, a protensão é o ato pelo qual
projeta aquilo que ainda não está presente, mas pode vir a se
tornar presente. Mas esse esperar não é um pensar: está presente,
como disse, na própria percepção. Não se pode dizer que seja
uma percepção extra-sensorial, porque ocorre por meio dos
sentidos. Ela é sensorial, mas num nível, por assim dizer, quase
inconsciente, desde que se compreenda que, se não existisse
o trânsito permanente do inconsciente para o consciente e do
consciente para o inconsciente, não poderíamos pensar e nem
poderíamos perceber nada, porque teríamos de estar perma-
nentemente conscientes de tudo. Não sei que palavra direi em
seguida, mas daqui a pouco ela passa de meu inconsciente para
o meu consciente e a digo. (Consciente e inconsciente não são
coisas; não são sequer estados; são quase que só advérbios.
Substancializá-los leva a problemas insolúveis, a começar pelo
problema de como caracterizar a relação entre um e outro).

Conhecimento por presença


Isso que apenas antecipamos, adivinhamos, nos chega como
um conhecimento por presença. É algo que a simples divisão
entre dado e construído não é capaz de esclarecer. Não se trata
de algo intuído, tampouco de algo construído racionalmente,
discursivamente, mas de algo que é a condição de possibilidade
de qualquer intuição e raciocínio. O circulo de latência que nos

• 46 •
O saber e o enigma

permite conceber a unidade do mundo é pré-condição de qualquer


tipo de conhecimento subsequente (o modo como chegamos a
percebê-lo, que designei conhecimento por presença, já havia
sido vislumbrado, aliás, por um filósofo iraniano do século XII,
Suhrawardi).

Só conheço os objetos pelas partes que eles me mostram de si


e pelo que me insinuam de seu sistema de latências e conexões.
Também me conheço a mim mesmo dessa mesma maneira. Não
posso neste exato momento me conhecer a mim mesmo numa
totalidade plena. Sei que essa totalidade está presente, sei que
algum dia eu fui um bebê, por exemplo, mas eu não posso me
lembrar de todos os momentos da minha vida de bebê, até porque,
se passasse a me lembrar, essa lembrança duraria tanto quanto
duraram esses momentos vividos no passado. Se o transcurso
do tempo na memória tivesse a mesma duração que o transcurso
do tempo no mundo físico, a memória seria impraticável. Logo,
é preciso que eu faça uma abstração de certos momentos do
passado, separe-os para efeito de recordação, porém sabendo
que eles estão articulados uns aos outros numa série ilimitada de
momentos, e que é isso que lhes dá a densidade de uma coisa real.
O conhecimento por presença parte da compreensão de que
há coisas que não estão na nossa mente, não acontecem na
nossa mente; ao contrário, é a nossa mente que está dentro de
um sistema, fora do qual ela não funcionaria e não poderíamos
conhecer nada. Considerar com atenção esse fato é tanto mais
importante porque durante três ou quatro séculos predominou
de tal modo a concepção idealista de que tudo é articulado pela
nossa mente, que a cultura ocidental inteira acabou viciada em
chavões como o de que "você é o que você pensa", ou em crenças
como a do "poder do pensamento positivo", para não falar de
coisas como programação neurolingüística. Em tudo isso vai
implícito o erro filosófico fundamental de crer na onipotência
do pensamento.

* 47•
Olavo de Carvalho

A contemplação amorosa. Primeira abordagem

É inclusive possível ampliar o circulo de latência do mundo. Para


além daquilo que você sabe, sabe que existem coisas que você
ignora, mas que precisaria saber para compor uma imagem mais
completa da realidade. A consciência disso lhe dá uma espécie
de sensibilidade aumentada, pela qual você permite que o objeto
seja aquilo que ele é, a esperar que espontaneamente se revele.
Você não está interessado em alterar o objeto, está interessado
em que ele seja eternamente tal como se manifesta a você, como
se falasse e você o ouvisse. A isso chamo contemplação amorosa.

Finalidade da filosofia

A filosofia se destina a abranger círculos cada vez mais amplos


de latência aos quais só temos acesso por presença. A maioria
das pessoas não é capaz de expressá-las, mas ao filósofo cabe
conhecer a técnica necessária para tanto. Se vista a partir da
teoria dos quatro discursos, essa seria a fase poética da ati-
vidade filosófica. Esta se iniciará pela percepção dos sentidos
para em seguida lhe dar expressão (lembrem-se da definição de
poesia segundo Benedetto Croce: "expressão de impressões").
O filósofo notará em seguida que em sua expressão há vários
elementos confundidos, que, tão logo depurados, permitem
que se chegue a um conceito genérico do objeto, o qual já não
incluirá, contudo, o seu circulo de latência (isso assinalará um
decurso dos níveis de credibilidade dos discursos, já ascen-
dendo ao nível dialético ou mesmo apodítico). A essa altura, o
filósofo necessita se esforçar para que o conceito não perca a
sua conexão com a percepção da qual se originou, ou do con-
trário se tornará um formalismo que não quer dizer mais nada.

2 Cf., do autor, Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro


discursos. 3ª ed., Campinas, SP: Vide Editorial, 2013 - NO.

• 48•
O saber e o enigma

Nesse caso, você poderá ir para a guerra, como Franz Rosenzweig,


e lá se perguntará de que lhe vale toda a loso a que estudou.
Pois você vai para a guerra enfrentar as questões reais da vida,
ou vai para lá se defender delas? Os primeiros lósofos, como
Heráclito e Parmênides, estavam interessados em questões
mortalmente importantes, prenhes de referência. Os princípios
fundamentais são todos formulados em face da vida e da morte.
Que Sócrates levava a sua loso a mortalmente a sério, ele o
mostrou com sua disposição de morrer por ela. Mas você não
vai querer morrer pela filosofia analítica. (Esse também é o tema
no qual José Ortega y Gasset pensava ao falar das únicas idéias
que importam, as "idéias dos náufragos", aquelas às quais você
se apegará em seu momento final e decisivo).
A mania de analisar conceitos sem ter a presença do objeto
concreto à sua frente é um problema derivado da institucionali-
zação da flosofia. Numa faculdade de filosofia não se examinam
objetos ou coisas; só se examinam conceitos e juízos todo tempo,
e isso gera o vício dos exames que nunca apelam ao próprio
objeto. Quando ingressa numa faculdade de filosofia, você re-
cebe todo um vocabulário filosófico, um conjunto de conceitos e
juízos para examinar, porém sem saber de onde foram extraídos.
O exame, assim, se inicia dos conceitos para diante, na ilusão
de que estes serão aplicados às coisas.
Mas não se deve estudar filosofia, e sim estudar outras
matérias e depois analisar filosoficamente o que se estudou. A
filosofia não é uma disciplina em sentido estrito, mas uma ativi-
dade sobre o conhecimento adquirido. Se não há conhecimento,
não há filosofia, pois esta é uma reflexão sobre aquele; e, na
ausência do conhecimento, tem-se apenas o conhecimento da
reflexão. Por isso não é possivel ensinar filosofia para crianças,
pois elas não têm ainda sobre o que filosofar; no máximo, terão
ouvido palavras da boca do professor, que se habituarão a
empregar em determinados contextos que serão orientadas a ter

• 49
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fi
fi
fi
fi
Olavo de Carvalho

como adequados a elas, num espirito de verbalismo filosófico


que mutila a inteligência. Em suma, para começar a filosofar é
necessário ter não só experiência de vida, mas um conhecimento
acumulado (da história, da vida, da arte) sobre o qual meditar.
Ou do contrário se tentará digerir o que não se comeu, o que
provocará uma úlcera na inteligência. Podemos falar, assim, da
filosofia institucionalizada como uma auto-ulceração masoquista.
No tempo em que Sócrates se reunia com seus amigos na
praça, ou na casa de um deles, eles estavam muito próximos do
mundo real, da natureza, referiam-se a acontecimentos do seu
dia-a-dia; mas, à medida que o debate filosófico se consolidou
em instituições ao longo dos séculos, dotadas de regulamento
e com sua própria hierarquia profissional, a filosofia passou a se
constituir mais claramente como objeto de estudo, e não como
certo modo de se endereçar a problemas reais.
É assim que surgem erros de percepção terríveis, como o que
encontramos em um livro de Cláudio Costa, professor brasileiro
de filosofia. Ele define a filosofia como "uma investigação vi-
sando obter um conjunto de generalizações verdadeiras, a qual
é realizada por membros de uma suposta comunidade crítica
de idéias, a comunidade dos filósofos".} Isso não pode ser a
filosofia de modo algum. A filosofia só começa na consciência
do pensador isolado, ou ele sequer teria o que dizer aos seus
amigos, ou, se dissesse, estes não reconheceriam do que fala-
va, pois eles próprios não teriam solitariamente observado sua
experiência. Os amigos de Sócrates reconhecem do que ele está
falando porque alguma experiência similar tiveram antes de ter
conversado com Sócrates. A filosofia não pode ser vista como
uma atividade social antes de ser uma atividade do indivíduo
humano concreto. A meditação filosófica funciona quando o
diálogo filosófico se dá com pessoas plenamente presentes, isto é,

3 Cláudio Costa, Uma introdução contemporânea à filosofia. São Paulo: Martins


Fontes, 2002.

• 50 -
O saber e o enigma

indivíduos investidos de toda a sua memória, de todos os seus


sentimentos, de toda a sua história real. Isso em geral está muito
distante do que ocorre em um congresso de filosofia, onde o
diálogo não é entre pessoas reais, mas entre papéis sociais; lá os
professores só podem discutir conceitos e termos que já estão, de
algum modo, consolidados no vocabulário de sua profissão. Isso
não é um diálogo filosófico, mas uma imitação de segundo grau
do que seria um verdadeiro diálogo filosófico. A consciência de
pertencer a uma comunidade filosófica profissional pode servir
de impedimento à verdadeira atividade filosófica.

× 51
CAPÍTULO II

A natureza simbólica do conhecimento

Tudo que existe, a menos que seja uma mera idéia, detém circulo
de latência. O conceito de leão não tem círculo de latência,
pois é apenas um esquema lógico que o sujeito percebe ser
aplicável a todos os leões. No entanto, o leão de verdade,
que existe concretamente, possui círculo de latência. Há uma
gama de possibilidades que ele poderá atualizar ou não, e
uma gama de impossibilidades que o definem. Se é assim, isto
é, se tudo que existe na realidade possui circulo de latência,
então a distinção entre substância, propriedade e acidente se
torna complexa.
Do ponto de vista aristotélico, substância é aquilo que a coisa
é (leão, montanha, ser humano etc.); propriedade é aquilo que
não faz parte da definição da coisa, mas que decorre logicamen-
te dessa definição (lembrem-se das propriedades do quadrado
decorrentes da definição de uma figura plana de quatro lados
com ângulos retos); e acidente, por fim, é aquilo que não está
dado na definição nem na propriedade, mas que pode acontecer
ao objeto. Da definição de gato e de suas propriedades não se
segue que ele poderá cair dentro de uma panela de água fervente,
mas isso pode lhe acontecer por acidente. Contudo, decorar as
odes de Pindaro é um acidente que não pode acontecer a um
gato de forma alguma.

*53 x
Olavo de Carvalho

Acidente meta sicamente necessário


Tudo o que acontece está imerso num oceano de acidentalidade.
Imagine uma tentativa de homicidio: um sujeito atira em outro
numa esquina movimentada. Bom, pode ser que a bala sofra
algum desvio e acerte outra pessoa. Pode ser, contudo, que acerte
o alvo desejado; pode ser que a arma falhe, pode ser que atinja
o alvo, mas não mate. Além disso, para que um deseje matar o
outro, é necessário algum motivo: quem sabe se trate de uma
vingança, quem sabe de latrocínio. Pois bem: o que o elemento
balístico do crime tem a ver com o motivo psicológico do crime?
Nada. E absolutamente impossível deduzir uma coisa a partir
da outra. As propriedades balisticas do projétil não podem ser
deduzidas do motivo do crime, e este não pode ser deduzido
das propriedades balísticas do projétil. Mas essas duas coisas
têm de estar presentes para que ocorra o crime. Tudo o que
acontece se compõe de substâncias que realizam suas proprie-
dades e que se mesclam umas com as outras, porém em meio
a acidentes sem os quais nada poderia acontecer. Chamo estes
de acidentes meta sicamente necessários.
Esses acidentes não são necessários logicamente, mas me-
ta sicamente, enfatizo; o que os torna indispensáveis não é a
ordem interna do pensamento, mas a ordem efetiva da realidade.
O conhecimento de qualquer fato real implica o conhecimento
dos acidentes que contribuiram para que ele sucedesse e sem
os quais ele não poderia suceder, bem como o conhecimento
de outros acidentes que contribuíram para que ele sucedesse,
mas sem os quais ele poderia suceder do mesmo modo. Se você
não entende essa distinção, você não entende o que aconteceu.

Todo conhecimento é simbólico


Tudo o que nos rodeia se manifesta como um circulo de latência:
mostra-se como uma parte que anuncia um todo. Isso equivale

• 54 •
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O saber e o enigma

a dizer que simbolo não é mais que outro nome para circulo
de latência. Logo, não existe diferença entre o conhecimento
em geral e o conhecimento simbólico - todo conhecimento
será simbólico, tudo com que lidamos são símbolos. Podemos
definir simbolo, em consequência, como uma parte que anuncia
totalidades latentes.

Mário Ferreira dos Santos afirma que a inteligência opera


por assimilação e acomodação (ele utiliza os termos de Jean
Piaget). Assimilação é o que você apreende do objeto, e aco-
modação é o seu ajuste à coisa que você está percebendo.
Mário Ferreira diz que, no caso da apreensão de um símbolo,
realiza-se a assimilação, mas não totalmente a acomodação.
Contudo, pergunto: há alguma ocasião em que a acomodação
se realiza totalmente? Concretamente, não há; é algo que só se
pode conceber no mundo da lógica, quando aquilo que você
pensou é exatamente o conteúdo do conceito, e a sua atitude
perante ele é de todo adequada a esse conteúdo. Mas na per-
cepção isso jamais ocorre porque não posso me relacionar com
nenhum ente na sua totalidade. A razão é que eu próprio nunca
estou inteiramente presente. Estou neste momento aqui com vo-
cês, tenho 71 anos de idade, já estive em muitos outros lugares,
já tive 2 anos de idade e 37 anos de idade, embora não possa
me apresentar de uma vez com todas as idades e aspectos que
tive, nem tampouco estar presente ao mesmo tempo em todos
os lugares onde estive.
Isso basta para ver que nossa presença é a de uma parte que
anuncia uma totalidade latente. Somos entes simbólicos que se
relacionam com outros entes simbólicos. Estamos continuamente
realizando apreensão, retenção e protensão, sem que sejamos
capazes de conceitualizar em sua totalidade as minúcias dessa
interação continua que mantemos com o conjunto da realidade.
Nossa posse intelectual desse processo é deficiente, embora
o realizemos de modo natural. O mundo que conhecemos

• 55•
Olavo de Carvalho

é muito mais vasto do que aquilo que dominamos intelectualmen-


te. Diante disso, muitas vezes o estudioso, o filósofo, se fecha
na parte que domina intelectualmente e se limita a lidar apenas
com ela, para assim obter uma falsa impressão de segurança.
Mas na verdade ele está fugindo da realidade. Tem medo do
que chama de "o irracional". Mas, com isso, não faz mais que
usar conceitos filosóficos estabelecidos para lidar com realidades
que ainda não foram descritas de modo adequado.
Não há muita diferença entre o conhecimento que você tem de
um objeto qualquer (seja de um gato, de uma lata de sardinhas,
de um urso) e o conhecimento que você tem do universo inteiro.
Em ambos os casos, trata-se de uma parte que anuncia uma
totalidade latente. A presença dessa latência é indispensável.
Jamais existiu alguém tolo a ponto de crer que tudo o que existe
se restringe ao que está vendo num dado momento. Todo mundo
sempre soube que para além do visível existe o invisível, mas
o invisível está tão presente quanto o visível, e ele é, por assim
dizer, o sustentáculo do visível - a isso Anaximandro chamava
ápeiron. Vivemos dentro de um círculo de coisas conhecidas
que bóia dentro de um oceano de coisas desconhecidas. Mas
as coisas estão continuamente passando desse oceano de coisas
desconhecidas para o âmbito do conhecido, do mesmo modo que
outras tantas coisas estão passando do conhecido para o desco-
nhecido. A presença do universo, a presença do infinito latente,
é da mesma natureza que a presença de qualquer outra coisa.

O simbolismo espacial

Quando eu era criança, tinha uma coleção de tartarugas, cuja


chefe, a mais velha, se chamava Biju. Todo ano meu pai me dava
uma nova. Ele passava cola no casco da tartaruga, cobria-o
de purpurina, punha-lhe um lacinho, e quando eu via lá estava
a tartaruga andando pela sala; por fim, eu lhe dava um nome.

• 56•
O saber e o enigma

Nos ns de semana, colocava todas elas em um tanque para


nadarem. Um dia resolvi fazer uma experiência.
Nasci com miopia no olho direito e hipermetropia no olho
esquerdo; com cada um dos olhos via um mundo diferente, e
ficava a me perguntar qual versão do mundo era a verdadeira.
Nesse dia, observei atentamente as tartarugas nadarem, ora as
enxergando só com o olho esquerdo, ora só com o olho direito.
Percebi que de fato se alterava um pouco a aparência que aquele
acontecimento tomava, mas uma coisa permanecia constante:
a direção para onde as tartarugas nadavam. Por exemplo, via
com um olho que as tartarugas nadavam para a direita, e em
seguida via com o outro olho que continuavam a nadar para a
direita, por mais que o aspecto geral da cena se alterasse. Não
importava com qual olho as visse: com ambos as veria indo
numa mesma direção. Foi assim que me dei conta da existência
de coisas ao meu redor que podem ser muito enganosas - o
mundo das aparências pode ser enormemente confuso -, mas
também de algo que nunca deixa de estar presente e que não
se altera: as direções do espaço. Elas estão presentes na minha
percepção como estão presentes nos objetos e na minha relação
com eles. Abrangem tudo o que percebemos. E o símbolo dos
símbolos.
Qualquer ponto do espaço está preso dentro dessa espécie de
cruz de três dimensões. Qualquer pontinho tem um "em cima"
e um "embaixo", uma "direita" e uma "esquerda", um "para
trás" e um "para frente". Qualquer grãozinho de poeira se situa
nesse sistema de referências, bem como o Sol, as galáxias, tudo.
Inclusive qualquer situação humana, e mais: todas as teorias
das ciências humanas. Essas teorias estabelecem, em primeiro
lugar, os elementos conflitantes com que irão lidar; sempre há
no mínimo duas forças em jogo, e isso não é nada mais que
um deslocamento horizontal, uma direita e uma esquerda.
Muitas dessas teorias também apresentam uma explicação do

« 57 -
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Olavo de Carvalho

movimento histórico, isto é, do movimento temporal, o qual cai


dentro das coordenadas de avanço e recuo, de para trás e para
frente. Mais ainda, essas teorias necessariamente apresentam
uma hierarquia de importância que distingue fatores principais
de secundários, o que se situa numa escala vertical, num eixo
que pressupõe o que está em cima e o que está embaixo. Todas
as teorias sociais e históricas se situam dentro da estrutura
espacial; elas exibem essa estrutura simplesmente porque não
existe outra estrutura fundamental.
Isso nos mostra como um único símbolo reúne em si uma
multidão de conhecimentos heterogêneos impossíveis de esgotar.
Entende-se assim por que Susanne Langer chama o simbolo de
"matriz de intelecções". É que a compreensão dos símbolos é
o começo de toda a educação, e isso é ainda mais importante
no caso do simbolismo espacial, do qual jamais escapamos.
Podemos abranger as direções do espaço até certo ponto, para
além do qual não vemos mais nada. Sabemos que a parte que
vemos anuncia a parte que não vemos. O visível anuncia o in-
visivel, e o invisível pode se tornar visível a qualquer momento.
As direções do espaço têm exatamente a mesma estrutura de
qualquer círculo de latência. E estamos presos dentro da cruz
de seis pontas (a esfera armilar, esse símbolo do universo que,
por sinal, já foi o emblema do Brasil; mas veio a República e
o substituiram por essa idiotice de "Ordem e Progresso", lema
de um lósofo que morreu louco - o que, parece, acabou se
revelando para nós coisa muito profética).
Como os símbolos fundamentais são a base de toda educa-
ção, insisto com meus alunos que primeiro adquiram formação
artística e literária, e antes ainda adquiram domínio corporal. A
ginástica e o esporte dão ao indivíduo a percepção real da sua
posição no espaço e da sua relação com os objetos. O sujeito
que não tem, por exemplo, a percepção correta do que é capaz
ou não de mover com a força física não tem noção muito precisa

× 58-
fi
O saber e o enigma

do limite de sua capacidade de ação. E poderá, no âmbito já do


pensamento, se imaginar capaz até de criar um novo universo;
daí as inúmeras pessoas hoje empenhadas em "transformar o
mundo". Mas são pessoas incapazes de transformar sequer a
si mesmas, sequer ao seu cachorro. Sem um correto senso de
orientação no espaço físico, o indivíduo não consegue se orientar
no mundo mais abstrato das especulações filosóficas.
A centralidade das direções do espaço no universo humano
é um dos motivos do impacto do simbolismo astrológico nas
civilizações. A astrologia se baseia na cruz de seis pontas, e é
fácil transformar o sistema planetário numa espécie de imagem
geral do mundo. Mas uma coisa é saber se o esquema simbóli-
co corresponde à estrutura geral do mundo e à estrutura geral
do acontecer humano, e outra coisa é saber se os movimentos
reais no céu, as posições dos planetas reais, têm algo a ver com
os fatos reais da Terra (questão à qual retornarei depois). A
astrologia como sistema simbólico é uma coisa e a astrologia
como pretensa ciência analítica e preditiva é outra, embora os
que se lançam à discussão da astrologia sempre confundam
uma e outra. E a possível existência de um fenômeno astral
real, quer dizer, a existência de alguma correspondência entre
os movimentos dos planetas e os acontecimentos terrestres, é
um terceiro problema diverso dos anteriores.

Ciência e fato concreto

A ciência opera limitando acentuadamente o círculo de latência


do seu objeto. Ela isola certos aspectos dele e os estuda como
se fossem toda a sua realidade; isto é, não estuda o objeto
concreto, mas apenas aspectos seus sem maior relação com a
totalidade de que são parte; estuda, portanto, objetos potenciais,
ou, se quiserem, objetos mentais. É por isso que, mesmo que
tomássemos todas as ciências e reuníssemos todos os aspectos

• 59 •
Olavo de Carvalho

que estudam de um dado objeto, ainda assim não seríamos


capazes de compor esse objeto em sua concretude. A natureza
abstrativa da ciência é o que lhe permite ser precisa, mas justa-
mente à custa da abdicação de tratar de maneira direta com a
realidade. Ela não é tanto um conhecimento da realidade quanto
um conhecimento da operacionalidade de certos aspectos do
real. É mais um saber fazer do que uma compreensão dos fatos.
Os dados cientificos podem lhe auxiliar a compor uma imagem
mais completa do circulo de latência do objeto, mas jamais serão
suficientes para perfazer o circulo de latência em seu todo. E é
por isso que a investigação científica não pode, por definição,
chegar a um termo. Ela nunca termina e não pode terminar:
sempre há latências no objeto que ainda não foram tornadas
patentes e nem sequer vislumbradas como latências, que dirá
separadas, abstraídas e ordenadas segundo uma lei científica.
Daí ser absurdo tomar a ciência como se fosse a imagem correta
e real do universo. A própria ciência é também um círculo de
latência - nunca sabemos o que mais ela produzirá, que aspectos
latentes em seu desenvolvimento irão se atualizar e até mesmo
redirecionar todos os esforços feitos até então, quadro típico
das "revoluções científicas".

O raciocínio científico é exatamente o contrário do racio-


cinio tecnológico. A ciência seleciona um conjunto de fenômenos
e isola-os de tal maneira a poder encontrar para eles uma expli-
cação comum, um princípio comum. A tecnologia, ao contrário,
toma inúmeros processos causais diferentes, heterogêneos, e os
junta para produzir um resultado prático. O computador, esse
produto tecnológico, resulta de uma combinação da matemática
do código binário, da física da eletricidade, da química do plás-
tico, para mencionar apenas algumas linhas causais. Não existe
princípio comum a elas, mas mesmo assim a tecnologia as reúne
na produção de um computador. É por isso que se pode falar
em progresso tecnológico, mas não em progresso da ciência.
O saber e o enigma

Um computador não tem explicação cientí ca. Cada um dos seus


aspectos, tomado em separado, pode ter explicação cientí ca,
mas o computador em seu todo não a tem.

Perigos da gerência cientí ca da sociedade


É uma suprema contradição que a ciência se a rme como ativi-
dade permanentemente critica (dai ser um circulo de latência),
mas ao mesmo tempo pretenda ter uma autoridade pública, ser
o árbitro da realidade. A ciência não se refere necessariamente
a um conhecimento da realidade, mas à possibilidade de agir
nela. O conhecimento é um campo aberto constituido de círculos
de latência que se prolongam até o in nito, que pressentimos
mas nunca realizamos, ao passo que nossa ação está sempre
limitada a tempo e espaço. Uma ação em aberto seria uma
ação descontrolada; a ação humana pressupõe o controle, e
este só é possível num território já previamente demarcado, que
não corresponde ao universo real, mas só à parte dele que nos
interessa no momento.
A própria natureza da atividade cientifica sugere a modés-
tia de suas pretensões. Mas, quanto mais a ciência progride,
maiores são as suas pretensões de autoridade, a ponto de hoje
em dia a classe científica pretender moldar a cabeça do resto
da humanidade do jeito que bem entende. Essa monstruosidade
acaba por tapar o acesso ao universo real; só se pode perce-
ber aquilo que a classe científica permite que se conheça. Não
é coincidência que todos os sistemas totalitários se baseiem
na ciência. A idéia oitocentista de que o progresso da ciência
inauguraria uma era de liberdade e democracia - como vemos
em L'Avenir de la Science, de Ernest Renan - é falsa, é mesmo
uma impossibilidade.

Ora, se o mundo da ciência não é delimitado pela estrutu-


ra da realidade, pela estrutura do cosmos, mas pelas nossas

• 61 •
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Olavo de Carvalho

possibilidades de ação, então é claro que quem tem mais poder


de ação delimita o horizonte cognitivo dos demais, o que lhes
é permitido e proibido, conveniente e inconveniente. A ciência
será necessariamente algo da seara dos governos e das grandes
fortunas. Esse é o mundo deles, é o mundo em que vivem, é o
mundo no qual querem que a gente viva também. Mas os bebês
que vão nascendo ignoram isso completamente e continuam
ingressando na mesma estrutura da realidade que sempre exis-
tiu. No limite, isso quer dizer que a proposta de controle social
científico sempre vai falhar, nunca será realizada, mas produzirá
outros resultados que ela mesma não prevê. As grandes propostas
totalitárias do comunismo e do nazismo não produziram o que
diziam que iriam produzir, mas produziram, sim, efeitos. Só que
efeitos absolutamente desastrosos, catastróficos. Quando um
sujeito diz que vai fazer alguma coisa impossível (como a gerência
científica da sociedade), ele poderá de fato fazer algo, mas que
será certamente outra coisa sobre a qual ele não tem controle.
Quanto maior o controle social, maior o descontrole social. A
sociedade perfeitamente controlada corresponderá ao caos total.
A estrutura da realidade é sempre uma estrutura em aber-
to, mas não totalmente: é uma tensão entre o conhecido e o
desconhecido, entre o controlável e o incontrolável. Isso se
aplica à nossa vida, às nossas percepções, artes e ciências, ao
poder político e assim por diante. E necessário que um dia esse
fato se torne de conhecimento geral, e que leve à percepção
de que toda proposta de controle social, se não for ela mesma
controlada, desmantelará toda a ordem. Tem razão Lao Tsé:
o melhor governante é aquele que não faz nada. O presidente
americano Calvin Coolidge costumava perguntar, depois de
sua soneca diária: "Is the country still there?". Isso distingue
um bom presidente.
Toda proposta de controle social vai contra o fato de que
o indefinido faz parte da estrutura da realidade. O nosso

• 62 •
O saber e o enigma

horizonte cognitivo muda todos os dias, entram nele informa-


ções novas e outras são esquecidas. Jean Fourastié a rma em
Les Conditions de L'Esprit Scienti que que, além da história
do conhecimento, precisamos escrever a história da ignorância,
quer dizer, de tudo aquilo que fomos esquecendo no decorrer
do tempo. Um caso sintomático é o dos saberes das ciências
antigas, que compreendiamos e deixamos de compreender, e que,
quando os recuperamos, o fazemos por meio de interpretações
místicas e esotéricas. Isso é uma bobagem: conhecimento é co-
nhecimento sempre. E, como toda a estrutura do conhecimento
é uma estrutura em aberto, é uma estrutura simbólica, não existe
separação terminante entre conhecimento científico, de um lado,
e conhecimento simbólico, místico, esotérico, de outro. Isso será
no máximo uma separação institucional e organizacional - como
os dos departamentos universitários -, mas não corresponde a
nenhuma separação cognitiva.
É verdade que Edmund Husserl acreditava na possibilidade
de uma ontologia geral, uma teoria geral do ser, que incluísse
o que chamava de ontologias regionais, modos de ser dos vá-
rios tipos de objeto, desde as borboletas, digamos, até a teoria
atômica. Cada objeto teria o seu modo de ser e suas exigên-
cias próprias, haveria zonas de objetos relacionadas a outras
zonas, ao passo que outras estariam eternamente separadas.
Ele o expressa com esta frase maravilhosa: "Não existe uma
embriologia dos triângulos nem uma trigonometria dos leões".
São domínios regionais absolutamente separados. De fato. Mas
esses domínios estão separados nos triângulos e nos leões, mas
não na nossa mente — ou do contrário a própria frase de Husserl
seria impossível, ele não seria capaz de relacionar triângulo e
leão, não conseguiria dizer que pertencem a domínios distintos.
Logo, esses objetos são conectados subjetivamente pela sua
desconexão objetiva, e podemos dizer isso até sobre a própria
distinção entre objetivo e subjetivo. Entre esses elementos reinam

× 63 «
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Olavo de Carvalho

o que Mário Ferreira dos Santos chamava de tensões. Em suas


relações existe um elemento tensional, algo que é forçado numa
certa direção, mas oferece resistência a tanto. Os elementos de
um domínio se apresentam como uma vasta pintura de aquarela,
com suas zonas de inde nição. Caracterizam-se pela precisão
da imprecisão

* 64 .
fi
CAPÍTULO III

O simbolismo natural

Tendemos a crer que é o pensamento que distingue o ser humano


dos demais animais. Mas, se meditarmos bem o famoso dito de
Aristóteles, concluiremos que não foi bem isso que quis dizer
ao afirmar que o homem é um animal racional.

Essência da racionalidade humana


De algum modo, um gato também pensa: parado diante de um
muro sobre o qual pretende saltar, a ponderar a força a imprimir
e o ângulo do salto, ele está realizando um cálculo trigonomé-
trico, ainda que por outros meios que não os da matemática
formal, mas de todo modo os de uma trigonometria rudimen-
tar. Um gato pensa, um cachorro pensa (chega até a sonhar);
ambos têm alguma vida interior. Logo, Aristóteles pensava em
algo mais específico que o mero pensamento ao apontar para a
racionalidade humana como coisa singular.
Até porque não é só no pensamento que existe razão. Razão
quer dizer proporção, ou senso das proporções; a razão se as-
sinala na capacidade de comparar uma coisa com outra. Ora,
se isso existisse só no pensamento, nós não seríamos capazes
de, ao tentar levantar uma mesa, fazer o cálculo da força de
que precisaremos para tanto. Levantar uma mesa e levantar um

* 65 *
Olavo de Carvalho

cachimbo não são a mesma coisa, e nós não precisamos meditar


longamente a respeito para chegar a essa conclusão. Na própria
percepção muscular existe um elemento de racionalidade, e
ele existe não só no homem mas também nos animais, como o
demonstra o exemplo do gato.

Abstração da experiência
O que distinguirá o ser humano como ser excepcionalmente
racional é sua capacidade de abstração. Abstração consiste em
você separar uma parte de um todo e dar atenção somente a
ela. Quando pensamos numa pessoa, podemos tomá-la apenas
como se encontra no presente momento, sem consideração do
fato de que a conhecemos em momentos pretéritos com outra
aparência. De certo modo, a pessoa concreta é inacessível,
porém não incognoscivel; nós a conhecemos por antecipação,
essa espécie de tensão entre o que ela foi, é e poderá ser. Mas,
quando estamos pensando nela, ou seja, quando estamos mais
pensando sobre o percebido do que o percebendo, nós separa-
mos ou abstraímos partes do todo para nos concentrar nelas,
fazendo de conta que os outros elementos não existem.
E assim, dizia Aristóteles, que obtemos, por exemplo, o con-
ceito geral de uma espécie: estou olhando um gato mas não estou
interessado no gato completo, no gato inteiro; estou interessado só
naquilo que ele tem em comum com todos os outros gatos. O gato
a minha frente é malhado ou rajado, mas não estou interessado
nisso; interessa-me apenas a forma que esse gato tem em comum
com os outros gatos. Meu professor Stanislavs Ladusāns sempre
dava este exemplo: uma ovelha, sem jamais ter visto um lobo, ao
avistar o primeiro sabe logo que não é boa coisa. Em um único
lobo ela vê a forma que de ne o lobo, ainda que seja incapaz de
realizar claramente o processo abstrativo. Mas nós somos capazes,
e isso nos singulariza. Sem abstração, seria muito difícil pensar;
fi
O saber e o enigma

só teríamos as percepções que nos ocorreriam instantaneamente,


umas atrás das outras, sem que pudéssemos controlá-las. Fora
que, na verdade, mesmo na percepção já existe um elemento de
abstração, pois em tudo que olhamos nós isolamos apenas o que
nos interessa num dado momento.
Acontece que, uma vez que a abstração separou duas coisas,
nós tendemos a acreditar que elas estão separadas na realidade, e
em seguida colocamos o problema de como podem se juntar, ao
passo que o problema não é esse. O problema não é que estejam
juntas; o problema é como eu as separei! Não nos perguntaria-
mos como uma causa produz um efeito se entendêssemos que o
trânsito da causa ao efeito é um movimento único ao qual dei
dois nomes, separando duas etapas do processo. Se entendês-
semos que essa sequência de fatos é uma linha ininterrupta, não
teríamos problema em conectar a causa ao efeito. O mesmo se
pode dizer da pergunta sobre a existência do mundo exterior.
Ora, quem foi que separou a minha mente do mundo exterior?
Fui eu mesmo. E como fiz isso? Prestei atenção aos meus próprios
pensamentos sem prestar atenção ao mundo exterior. Mas, se
não existisse mundo exterior, eu não poderia estar nele; e, se eu
não estivesse em lugar nenhum, não poderia existir, e portanto
não poderia estar pensando.
Com seu "penso, logo existo", Descartes está deduzindo o fato
da sua existência do fato do seu pensamento, que é conhecido
por ele. Mas ele não conhecia nenhum outro fato prévio ao fato
de pensar? Onde ele estava quando pensou isso? É claro que
ele estava em algum lugar (o que já seria um fato prévio), ou do
contrário não teria sido capaz de pensar nada. Foi a abstração
de Descartes que separou o interior e o exterior e em seguida
criou um problema inexistente, um problema restrito à esfera do
pensamento humano - um problema que não existe na realidade.
Na realidade o pensar, o conhecer e o estar fisicamente nunca
estiveram separados nem por um segundo.

• 67•
Olavo de Carvalho

Simbolo e cultura
A partir do momento em que a geração de Descartes, Galileu e
Bacon admitiu a distinção entre qualidades primárias e qualidades
secundárias dos objetos, criou-se um problema muito sério. Porque,
se as qualidades primárias são aquelas que estão nos próprios
objetos, que marcam a sua presença objetiva - o tamanho, o peso
e todos os aspectos mensuráveis -, então o resto, como a cor, o

gosto etc., se torna algo apenas subjetivo, passa a se manifestar


apenas na mente do observador. Essa divisão se incorporou de
tal modo à cultura humana, que hoje parece o modo natural de
encarar as coisas: em tudo nós distinguimos o objetivo e o sub-
jetivo. E essa distinção contamina as ciências humanas quando
estudam o símbolo tal como aparece nas várias culturas.
Sob essa ótica, o símbolo não pode ser jamais uma realidade
objetiva, e por isso as ciências humanas irão pressupor existência
de simbolos culturais. Mas os símbolos culturais não são pro-
priamente símbolos; são símbolos de símbolos. Os símbolos são
apreendidos na própria realidade e em seguida se condensam
em formas culturalmente admitidas, mas estas últimas não têm
explicação em si mesmas.

Ademais, se toda a nossa linguagem, toda a nossa razão,


todo o nosso pensamento está totalmente separado do mundo
objetivo por um abismo, não só epistemológico, mas ontológico
(pertenceria a uma espécie diferente de coisas), então como é
possível que todo o mundo subjetivo, separado do mundo ob-
jetivo, possa ter algum alcance sobre este mundo (por exemplo,
nas ciências)? Como é possivel, por exemplo, inventar um remédio
que cure uma doença fisicamente existente, se tudo o que eu
pensei a respeito é totalmente subjetivo e não tem nada a ver
com a presença da doença? É evidente que esse modo de pensar
é errôneo, mas ainda não encontramos uma linguagem capaz de
contornar a armadilha em que estamos presos há quatro séculos.

• 68 •
O saber e o enigma

Como assinala o professor Wolfgang Smith, a coisa mais


engraçada nesse dualismo é que medidas e tamanhos são coisas
que o ser humano inventa. Uma coisa não tem um tamanho
em si mesma; ela tem um tamanho em comparação com outra,
que não tem nada a ver com ela: uma régua, por exemplo. Mas
fomos nós que inventamos a régua. De maneira que o mundo
das qualidades ditas objetivas também é subjetivo.

A tripla intuição
Ou encontramos sinais do sentido do nosso pensamento no uni-
verso exterior, sinais fisicamente presentes, ou então estaremos
presos para sempre dentro dessa jaula dualista. Os sinais mais
evidentes, a esse respeito, são dados pela estrutura fundamental
do nosso pensamento: as direções do espaço, a cruz de seis
pontas, esse que é o simbolo dos simbolos. E, a iluminar essa
cruz, a luz.
Em todas as culturas, a luz - e mais especificamente a luz
do Sol - é um simbolo da consciência ou da inteligência. O
homem primitivo enxergava quando havia Sol; sem a luz deste,
nada via e sequer sabia onde estava. A presença da luz funda,
para ele, a possibilidade de exercício da sua consciência e da
sua inteligência; uma coisa determina a outra. O simbolismo
da luz não foi uma invenção humana; foi um fato vivenciado
concretamente pelos seres humanos, e não apenas nutrido em
suas imaginações.

Em todo o ato de percepção, você pode, por abstração, dis-


tinguir o sujeito, o objeto e a relação entre eles. Você pode fazer

isso com todos os objetos, menos um, que é a luz. Na percepção


da luz, o sujeito percebe o objeto, percebe que está percebendo
o objeto e percebe o que possibilita essa percepção (a luz) - e
essas três percepções são simultâneas; trata-se de uma tripla
intuição. A percepção da luz deveria ser, para nós, o modelo

• 69 •
Olavo de Carvalho

explicativo de todas as outras percepções. Até nossa certeza


da existência do mundo exterior advém da percepção da luz;
advém, entenda-se, da percepção de que não é você quem está
produzindo a luz. A epistemologia moderna se esquece da luz e
fala apenas da percepção de objetos físicos, sem perceber que
estes só existem para nós por serem superfícies que re etem a
luz. Dai que eles não sejam objetos, lá isolados, e nós sujeitos,
cá isolados; existe, em primeiro lugar, a luz que nos envolve a
ambos e permite que mantenhamos contato.
A meditação sobre a percepção da luz é a base para a com-
preensão do fenômeno do circulo de latência. A luz ilumina
uma face dos objetos para mim — a face que está voltada para
mim -, mas, quanto ao próprio objeto, envolve-o por inteiro.
Ela mostra para mim um aspecto que simboliza a presença do
resto. O mesmo podemos dizer da cruz de seis pontas. Cada
ponto iluminado está em alguma localização do espaço, isto é,
cada ponto iluminado se localiza na cruz de seis pontas. E nossa
própria percepção da luz se dá dentro da estrutura espacial,
dentro da cruz de seis pontas.

Se toda e qualquer percepção não é senão a percepção do


reflexo da luz sobre alguma superfície, então é a percepção da
luz que nos mostra a verdadeira natureza do ato de percepção.
Todas as outras percepções são percepções diminuídas, e é
por isso mesmo que você pode mais facilmente operar sobre
elas a abstração e a separação, correndo o risco já aludido de
acreditar, num segundo momento, que as coisas abstraídas no
pensamento se encontram positivamente separadas na própria
realidade. Isso se aplica até à distinção entre conhecimento
pelos sentidos e conhecimento pelo pensamento. Você opera
essa distinção sobre algo dado previamente, sobre um círculo
de latência que você particularizará desta ou daquela maneira.
Perguntar-se se algo foi percebido pelos sentidos ou pelo pen-
samento sequer faz sentido; a questão é que uma totalidade foi

• 70•
fl
O saber e o enigma

percebida mediante uma parte sua, uma latência foi anunciada


por uma patência, e a partir desse anúncio o indivíduo separa
o que coube aos sentidos e o que coube ao pensamento, sendo
que ambos — sentidos e pensamento - foram contemporâneos e
partes de um único e mesmo processo, o processo de percepção.
Não inventei a cruz de seis pontas, nasci dentro dela. Sem
a cruz de seis pontas não podemos pensar em absolutamente
nada. Não inventei a luz, percebi tudo à luz dela. De igual
modo, a luz como símbolo da passagem do tempo e das muta-
ções é algo que se impunha à observação humana de maneira
natural. O indivíduo olhava a Lua no céu noturno e percebia
as transformações do astro ao longo de certo período, e por
trás de suas diversas aparências (Lua cheia, Lua nova, quarto
crescente e quarto minguante) percebia a unidade do fenômeno
Lua. A própria apreensão do fenômeno Lua se ligava a uma
periodicidade: sem a percepção do ciclo lunar não seria possível
concluir pela existência de uma única Lua ou de pelo menos
quatro Luas diferentes.
A compreensão de fatos como esse é hoje em dia dificultada
por determinados vícios. Grande parte da compreensão corrente
do fenômeno simbólico está ancorada em um pressuposto da
lingüística: a arbitrariedade dos signos. Pensa-se, assim, que
os simbolos têm uma existência apenas cultural, no sentido de
serem convencionais, nada os obrigando fundamentalmente a
serem como são: pode ser o caso de que um símbolo possua
algum elemento material que lhe sugira uma conformação espe-
cífica, pode ser que não; é coisa arbitrária, sem universalidade
obrigante alguma.
No Crátilo, Platão conclui que alguns signos são naturais
e outros são arbitrários, o que me parece correto. Pelo simples
fato de termos a capacidade de abstração, temos também a
capacidade de invenção. Mas tudo aquilo que inventamos está.
em última análise, baseado em algum dado que colhemos do

71•
Olavo de Carvalho

universo visível. Nossa capacidade de inventar está limitada por


aquilo que percebemos. Por isso mesmo, Aristóteles dizia que
não criamos propriamente nada, apenas combinamos elementos
quando inventamos algo. Ele dá como exemplo a montanha de
ouro: já vi uma montanha e já vi ouro, e me basta compor uma
coisa com a outra para inventar a montanha de ouro. Inventar
algo a partir do nada absoluto a mente humana jamais conseguiu.
Isso mostra o quão arraigados estamos no simbolismo natural.

Abertura e fechamento dos simbolismos


Há culturas, há sociedades inteiras baseadas na recusa de enxer-
gar além do seu horizonte de consciência. Esse fechamento do
horizonte de consciência se dá pela delimitação de uma fronteira
para além da qual nada mais é permitido saber. As culturas que
se fecham simbolicamente estão evidentemente condenadas a
morrer. Basta uma primeira informação imprevista para que
todo o edifício simbólico venha abaixo. Hermann Hesse des-
creve, num conto estupendo chamado "O selvagem", como o
protagonista, tendo brigado com o pajé e sido expulso de sua
tribo, sai a caminhar, caminhar e caminhar, até que um dia se
vê diante do mar. Ali, descobre um mundo totalmente ignorado
pela tribo, que não sabia da existência do mar, meu Deus! Diante
da descoberta do mar, sua tribo não significa mais nada.
As culturas mais poderosas são aquelas que têm um horizonte
mais vasto, são as capazes de se adaptar à entrada de novas
informações. Mas a tendência de fechar-se num simbolismo já
não é coisa da ordem do domínio do homem sobre o universo,
mas do domínio de um homem sobre os outros homens. Como
disse, a ciência, diferentemente do que se costuma dizer, não
aumenta o nosso domínio sobre o mundo material; a ciência
aumenta o domínio de um homem sobre os outros homens. Ela
tenta encerrar-nos num panorama simbólico e com isso perde

- 72 -
O saber e o enigma

o domínio sobre a realidade material. Ela domina pessoas, es-


craviza pessoas, mas já não é capaz de se adaptar tão bem ao
universo material. O fato concreto lhe escapa.

Duas vias a partir do simbolismo natural. Artes e


ciências
Arraigada que está no simbolismo natural, a inteligência encontra
duas vias para fazer o conhecimento avançar. Ela pode aceitar
esse simbolismo natural e tentar descrever o universo tal como
ele se apresenta e tal como ele nos fala — esta é uma hipótese.
E daí, neste caso, nos vemos como se fôssemos uma cera na
qual o universo imprime a sua forma, e a nossa posição é de
receptores passivos; porém, pode ser que queiramos atuar sobre
o universo, e nós, evidentemente, não podemos atuar sobre ele
inteiro. Toda ação humana é abstrativa. Nunca agimos sobre
tudo, mas sempre sobre alguma coisa específica, que estamos
a separar do resto.
Da primeira postura - isto é, a de recepção e descrição do
real — nasce todo o universo das artes, e da segunda - a ação
sobre o real — nascem a ciência e tecnologia. A distinção entre
um plano e outro se encontra apenas no objetivo que temos
em mente. Ela não existe em si mesma; depende do que você
quer. Só que todas as ações que você empreende, e com base
nas quais criará as ciências, as tecnologias etc., estão dentro
do mesmo universo do qual você é um receptor passivo. Ou
seja, o universo do conhecimento científico jamais engloba o
universo real, ele está dentro do universo real, do qual sofre
o impacto e pelo qual é continuamente alterado e até corroido
(daí as eventuais crises científicas).

Toda concepção científica incidirá sempre sobre um aspecto


abstrativo. Para criar uma "concepção científica do universo"
- como muitos dizem hoje em dia -, você primeiro precisaria

• 73 •
Olavo de Carvalho

reduzir o universo aquilo que está ao alcance dos métodos das


várias ciências, fazendo abstração de todo o resto. Apenas peda-
cinhos do universo, os pedacinhos contemplados pelas diversas
ciências, seriam considerados como partes integrantes do real;
todo o resto, isto é, a maior parte do que existe concretamente
e não pode ser abrangido por ciência alguma, teria de car de
fora da assim chamada concepção cientí ca.

A contemplação amorosa. Segunda abordagem:


saída do ciclo subjetivo-objetivista
Quando surgiu, no começo dos tempos modernos, a idéia de
fazer da medição o critério máximo da objetividade, os aparelhos
de medição eram rudimentares e muito simples. Hoje, somos
capazes de medir o movimento de partículas, até o movimento
de partículas de partículas; e, perplexos, descobrimos, com a
física quântica, que a distinção entre objetivo e subjetivo não
se aplica muito bem à observação dessas particulas. Sabemos
mensurar muitos aspectos delas, mas não sabemos o que sig-
nificam, e às vezes nem sabemos se determinadas particulas
existem "objetivamente" ou se foram apenas imaginadas "sub-
jetivamente" pelo cientista. Richard Feynman, Prêmio Nobel de
física, reconhecia que ninguém, incluso ele próprio, entendia o
sentido dos fenômenos tão bem estudados e mensurados pela
física quântica.
Vivemos um momento no qual é urgente encontrarmos uma
saída para o dualismo objetivo-subjetivo. Essa saída está em re-
cuperar a maneira passiva de abordagem do universo, permitindo-
-lhe que nos impacte com todo o seu peso. Está em refrear um
pouco o impulso de comandar o processo humano, que é o
impulso básico da ciência moderna, e recolocar na escala dos
prestígios a aceitação, a recepção do universo, o reconhecimento
dele tal como se apresenta.

• 74 •
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O saber e o enigma

O grande ideal dos fundadores da ciência moderna, a re-


montar a Bacon, era ampliar o poder da humanidade sobre a
natureza. Sob esse aspecto, tratava-se de um esforço cientí co
completamente alheio ao espirito contemplativo que guiava o
ideal de ciência dos primeiros grandes lósofos. No tempo de
Platão e Aristóteles, o que se entendia por conhecimento eram
três coisas que se resumem em três palavras: (a) teoria, do verbo
theorein, olhar; (b) ón, o ser; e (c) logos, a palavra. Olhar o ser
e dizer o que ele é: nisso consistia o ideal cientí co. Nada tinha
que ver com transformar a natureza, com ter poder sobre ela.
Não que eu seja contra o poder humano sobre a natureza (seria
uma estupidez), mas sei que a obtenção desse poder não é a
mesma coisa que a compreensão do ser. O desejo de poder limita
a esfera da consciência, concentra-a nos pontos onde você pode
agir. Portanto, a consciência se afasta da estrutura da realidade
para concentrar-se num ponto isolado a ser transformado.

Contudo, se você compreender que tudo que existe é símbolo,


só existe como símbolo, e que é você quem transforma cada
simbolo em signo, dando-lhe um significado estável e um referente

para o significado da sua ação prática, então compreenderá ser


necessário sempre fazer os signos remontarem ao símbolo, fazer
com que os significados que você estabilizou tendo em vista uma
ação sejam dissolvidos no círculo de latência do qual emergiram.
Diante de um círculo de latência, só nos cabe fazer o que Hegel
fez ao olhar uma montanha: aceitar e dizer: - Sim, de fato é
assim. Na esfera contemplativa isso é tudo o que podemos fazer:
ver o ser e dizê-lo. É tão absurdo, por exemplo, querer mover
esta mesa de lugar e ao mesmo tempo ficar contemplando-a,
esperando que ela mude sozinha de lugar, quanto é absurdo
querer entender a natureza do ser pelos métodos da ação.
Quando Marx diz que os filósofos se limitaram a interpretar
o mundo, mas o que importa é transformá-lo, esquece-se de
que, se você transforma o mundo, ele assume nova existência,

× 75 ×
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Olavo de Carvalho

não existe mais como antes. Mas como você entenderá o que
não existe mais? Tudo aquilo que você transforma, transforma-se
numa outra coisa. Você pode entender essa outra coisa, mas não
a primeira. É claro que os mais interessados em transformar o
mundo são os que menos o compreendem.

• 76 •
CAPÍTULO IV

O simbolismo astrológico

Já lhes falei das direções do espaço, da cruz de seis pontas, como


o fundamento de todos os símbolos. Agora gostaria de explorar
o fato de que o simbolismo astrológico é justamente o esquema
da cruz de seis pontas levado ao seu limite de complexidade; é
assim o mais completo dos sistemas simbólicos.

A luz em torno da cruz de seis pontas


O simbolismo astrológico parte da cruz de seis pontas, que toma
como centro o lugar onde se está no planeta Terra, e a situa
tendo por referência uma fonte de luz, o Sol. Se visualizarmos
o Sol a partir de uma linha horizontal prolongada até o ideal
equador celeste, constataremos que ele está girando numa órbita
inclinada de mais ou menos 23 graus. Assim, tem-se a estrutura
em cruz do espaço e, a girar em torno dela, uma fonte de luz.
Compõem o simbolismo astrológico a estrutura fundamental
de todo o simbolismo e o simbolo principal da inteligência ou
espírito, a luz.
Creio que não exista um retrato melhor da posição do ho-
mem no espaço e no tempo e, ao mesmo tempo, de sua posição
na hierarquia do ser. Nós nos situamos no cruzamento de três
linhas e estamos envoltos num mundo de luz. A linha horizontal

• 77•
Olavo de Carvalho

marca o transcurso de diferentes ações e oposições, isto é, as


polaridades. A linha que vai de trás para frente marca o trans-
curso do tempo. E a linha vertical marca a hierarquia do ser:
do universal para o particular, do essencial para o acessório, e
assim por diante. Essa é a estrutura básica de percepção do ser
humano onde quer que ele esteja, e toda e qualquer percepção
sua só é possivel porque a luz está presente.

O sistema solar como sistema simbólico total


A ecliptica, por sua vez, se divide em doze pedaços de 30 graus,
que estão associados geralmente às estações do ano (pelo
menos na Europa Ocidental). Cada uma dessas áreas estaria
idealmente sob a in uência especial de um astro, de um planeta
(atentem que na astrologia antiga o Sol e a Lua são também
chamados de planetas por uma questão de convenção). Cada
planeta ocupa, ou domina, ou rege (para usar a terminologia
astrológica convencional) dois signos: Vênus rege Touro e
Libra, Marte rege Aries e Escorpião, Júpiter rege Sagitário e
Peixes, Saturno rege Aquário e Capricórnio, o Sol rege Leão,
e a Lua rege Câncer.
A idéia de regências é a chave da classificação simbólica. Os
planetas, e portanto os seus signos respectivos, regem várias
ordens de coisas: locais da Terra, seja países seja regiões; mi-
nerais, vegetais e animais; situações ou épocas da vida humana
e áreas ou domínios da sociedade humana, e assim por diante.
Todos os símbolos do universo estão de algum modo contidos
no sistema solar, e é por isso que o entendemos como sistema
simbólico total. Não há nenhuma atividade cognitiva humana
que deixe de ter alguma relação com ele, mas a abrangência e
perfeição desse sistema simbólico não têm absolutamente nada
a ver com a realidade ou não da suposta in uência dos planetas
sobre a vida das pessoas.

• 78 -
fl
fl
O saber e o enigma

O dilema astrológico
Na verdade, o sistema astrológico é tão abrangente que, se
houvesse coincidência entre o sistema como tal e a influência
dos astros, de tal modo que esta pudesse ser identificada por
técnicas astrológicas, o astrólogo seria praticamente onisciente.
Uma funcionalidade total do sistema astrológico em termos
de diagnóstico e previsão de acontecimentos terrestres é por
definição impossível (não sei se algum astrólogo já considerou
seriamente esse fato). Existe um deslocamento entre a astrologia
como sistema simbólico e a astrologia como atividade diagnóstica
e preditiva; a posse da chave de todos os símbolos e das relações
entre eles não basta para que se descubra uma correspondência
factual completa entre o céu e a Terra.
Por outro lado, pergunto, seria possível que não houvesse
nenhuma correspondência entre um plano e outro? Ou seja,
seria possível que o sistema simbólico total — uma espécie de
alfabeto organizado de todos os simbolos - não guardasse
nenhuma correspondência com os fatos concretos do acontecer
terrestre? Isso me parece impossível; alguma correspondência se
manifestará em ocasiões.

Mas aí entramos no terreno dos infindáveis debates sobre a


eficiência das técnicas astrológicas, que acredito jamais terão
fim. Infelizmente, quase todas as pessoas que participam do
debate astrológico o fazem como os filósofos profissionais de-
batem problemas filosóficos: tomando como ponto de partida
os termos e conceitos já estabelecidos de um debate intelectual
ou acadêmico, nunca voltando à raiz do problema, a partir da
qual aqueles termos e conceitos viriam a se cristalizar. A raiz
do dilema astrológico, à qual temos de nos ater, é a que enun-
ciei há pouco: um sistema simbólico abrangente e uma coleção
inesgotável de fatos que se sucedem no acontecer terrestre
nunca podem alcançar um estado de correspondência total,

* 79 -
Olavo de Carvalho

nem tampouco um estado de correspondência nenhuma. É algo


análogo à relação entre gramática e lingua. As regras da gra-
mática permitem compreender a língua, mas não prever o que
alguém dirá nessa língua, ou do contrário o gramático saberia
o que todas as pessoas dirão, o que é absurdo. Por outro lado,
tudo o que as pessoas dizem corresponde necessariamente a algo
das descrições da lingua contidas na gramática, ou simplesmente
não estariam falando a lingua descrita nessa gramática.
Desse modo, é preciso distinguir 1) o simbolismo astrológico,
2) o fenômeno astral, quer dizer, a possivel coincidência entre
posições planetárias e acontecimentos terrestres, e 3) a astrologia
como técnica desenvolvida ao longo dos tempos para diagnosticar
essa correspondência. Praticamente toda discussão a respeito
toma de maneira indistinta esses três aspectos, motivo de grande
confusão. Mas, se a astrologia é de fato o único sistema simbólico
abrangente e plenamente universal, ignorá-lo é, no mínimo, um
risco cognitivo, porque assim você estará abdicando de entender
alguns fenômenos essenciais. A estrutura do sistema simbólico
deve corresponder de algum modo à estrutura da percepção
humana, senão à estrutura da vida humana em geral.
O sistema astrológico, se visto a partir de sua articulação
básica, contará com as direções do espaço; a eclíptica ou roda
dos signos, isto é, o zodíaco, que corresponde a uma divisão do
tempo diário em doze intervalos ou seções; as casas astrológicas;
e os sete planetas (segundo a contagem da astrologia tradicio-
nal). A conjugação dessas estruturas serve de instrumental para
descrever praticamente qualquer situação humana; porém essa
descrição será sempre esquemática, corresponderá às situações
descritas apenas estruturalmente, e não factualmente. As regras
da aritmética elementar certamente guiam algo do orçamento
de Dona Maria, mas jamais me permitiriam saber, sem recurso
a elementos factuais, quanto dinheiro Dona Maria tem em sua
conta bancária. Mas, seja lá quanto houver, certamente essa

• 80 •
O saber e o enigma

soma não escapará às leis da aritmética elementar. O mesmo


se pode dizer do sistema astrológico em relação aos fatos da
vida humana.

A estrutura total
O problema mais complexo da astrologia está, em suma, em
estabelecer a diferença entre as estruturas gerais do universo,
as estruturas da cognição e os fatos da vida humana. Tanto
mais porque tendemos, tão logo descobrimos uma estrutura, a
aplicá-la inescrupulosamente a tudo com que nos deparamos.
Claude Lévi-Strauss ficou tão fascinado com sua descoberta das
estruturas do parentesco, que começou a deduzir fatos a partir
delas. O marxismo inventa uma estrutura da sociedade humana
e do acontecer histórico baseada na luta de classes; bom, algo
dessa estrutura de fato existe na realidade, mas não podemos
a partir dela deduzir fato algum. Entre as estruturas gerais e os
fatos particulares há sempre uma tensão.
Essa tensão é coisa altamente inspiradora porque nunca nos
dá uma resposta de nitiva ao que quer que seja, mas tampouco
nos sonega totalmente uma resposta. O destino humano parece
estar em viver nessa tensão permanentemente, e acostumar-se a
ela é de fato a raiz de toda vida intelectual pro ciente. A busca
de uma resposta de nitiva, nal, provada, na maior parte dos
casos é estéril, mesmo porque na maior parte das situações hu-
manas não precisamos de uma resposta final, mas apenas de uma
resposta adequada à situação. O próprio sistema astrológico nos
mostra que suas correspondências nunca se apresentam todas ao
mesmo tempo. As direções do espaço, os doze signos, as doze
casas e os sete planetas estão em contínuo movimento; isso quer
dizer que a cada minuto há uma configuração diferente, não só,
aliás, porque os planetas se movem, mas também porque a Terra
gira. Isso nos obriga a ter perante o sistema astrológico uma

- 81 •
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Olavo de Carvalho

atitude de maior parcimônia; ele tem sobre nossa inteligência


uma espécie de efeito hormonal, pois nos acostuma a lidar com
várias linhas de força ao mesmo tempo e articulá-las. Todos os
sistemas explicativos a respeito de qualquer coisa já estão de
algum modo dados na astrologia.
Por exemplo, chamam-se "aspectos" as distâncias entre os
vários planetas num dado momento. Existe a conjunção dos
planetas: podem estar alinhados um com o outro, e assim lo-
calizados mais ou menos no mesmo grau do zodíaco; podem
estar separados por 60 graus, formando o que chamamos de
sextil, ou separados por 90 graus, formando uma quadratura;
podem apresentar entre si um ângulo de 120 graus, formando
um triângulo, e assim por diante. Esses vários ângulos possiveis
descrevem praticamente todas as situações humanas. Tome um
par de pessoas: todos os tipos de situações entre elas podem
ser descritos em termos desses vários ângulos. Todo o estru-
turalismo pode ser reportado a esse mesmo princípio; a tão
elogiada classificação tipológica de Kurt Lewin para as relações
sociais não faz praticamente outra coisa senão usar conjunções,
oposições e quadraturas.
Dou outro exemplo. O psiquiatra húngaro Lipot Szondi
inventou uma espécie de mapa do destino humano, no qual
interagem vários fatores determinantes. O primeiro seria, evi-
dentemente, a esfera instintiva ou hereditária, quer dizer, as
"pulsões" ou "impulsos" herdados. Esse conjunto de pulsões
não é estático, também muda. Szondi compara os impulsos
dominantes numa psique a uma espécie de palco giratório, no
qual eles se cruzam com o ambiente cultural e psicológico, que
os modulará de certa maneira, mas não irá alterá-los substan-
cialmente. Esse ambiente social se cruza ainda com o ambiente
espiritual ou intelectual ou cognitivo, e, por fim, se cruza ainda
com um fator que Szondi chama "espírito". Assim, nesse esquema
existem quatro vetores básicos de pulsão que, conforme são

• 82•
O saber e o enigma

a rmados ou negados, geram oito impulsos básicos, e esses


oito impulsos básicos passam por esses quatro andares: ou se
expressam diretamente na vida instintiva, ou se mesclam com a
vida social, ou se mesclam com a vida intelectual ou cognitiva,
ou são influenciados pelo espirito.
Isso é um típico exemplo de articulação simbólica que re-
presenta um recorte da estrutura geral imbricada na astrologia.
O mesmo se pode dizer da psicologia de Jung, que toma deter-
minadas funções básicas, chamadas de "sensação", "intuição",
"sentimento" e "pensamento", e lhes aplica a distinção de intro-
vertido e extrovertido. Haverá assim oito tipos fundamentais
conforme a função predominante no sujeito seja uma das quatro
e conforme essa função se exerça de maneira extrovertida (isto
é, em direção ao mundo físico em torno) ou introvertida (em
direção ao mundo interior). E uma tipologia bastante rica,
mas que parece mirrada perante o simbolismo astrológico. A
processualidade das relações entre tipos fundamentais e sua
direção de exercício - assim como os oito impulsos básicos de
Szondi a transitar por quatro níveis - é uma versão diminuída
da processualidade dos planetas e seus aspectos (no sentido
astrológico da palavra) segundo a processão das casas.
Estruturas como as criadas por Kurt Lewin, Lipot Szondi e
Jung são apenas parcelas, recortes pequenos feitos dentro do
sistema astrológico. Na verdade, não há outro sistema classi-
ficatório no mundo; todos os que existem são partes suas, e é
por isso que não nos livramos dele por mais que a prática da
astrologia preditiva seja impugnada, porque ele não tem nada
a ver com ela.

A imagem medieval do mundo


A sociedade cristã da Idade Média tinha clara consciência da
universalidade e abrangência do simbolismo astrológico e se

* 83•
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Olavo de Carvalho

orientava segundo ele. Era uma sociedade que se via colocada


no centro de uma máquina cósmica determinada pelas direções
do espaço, pela eclíptica e pelas várias órbitas planetárias; e
essas órbitas iam até um certo ponto, até o planeta Saturno, e
dali para diante se tinha o céu das estrelas fixas, também móvel
em relação à Terra, e acima dele havia os domínios angélico e
divino. O homem medieval estruturava sua visão de mundo não
de acordo com uma concepção científica qualquer - que sempre
será abstrativa e incapaz de lidar com fatos concretos -, mas
de acordo com sua experiência diária da luz do dia, dos ciclos
cósmicos, das imagens móveis no firmamento.
Diz Santo Tomás de Aquino na Suma contra os gentios:
"Deus move os corpos inferiores por meio dos corpos supe-
riores". Assim, tudo o que se move na Terra deve seu próprio
movimento ao movimento dos astros. Claro que esse movimento
se refere apenas ao dominio físico: Santo Tomás está falando do
movimento local, do crescimento e da diminuição, da formação e
da decomposição; tudo isso, segundo ele, é regido pelos astros.

A dúvida possível era se esse fato equivalia a dizer que os


astros determinavam o destino humano. A ela, Santo Tomás
dava a resposta que me parece a mais razoável: os astros são
corpos, e um corpo só pode afetar outro corpo; um corpo
não pode afetar uma alma ou o espírito ou uma inteligência
diretamente; logo, em princípio, o ser humano está livre de
todas as influências astrais, embora elas dominem todo o
horizonte terrestre no qual ele se move. Mas em que medida
a inteligência e a vontade - que são as funções superiores do
ser humano - têm um controle completo sobre o indivíduo? Na
maior parte das pessoas esse domínio é muito precário; elas
são movidas muito mais por impulsos corporais. Na medida em
que os impulsos corporais ou apetites predominam, o indivíduo
fica mais sujeito à influência dos astros, como qualquer outro
objeto terrestre.

• 84 •
O saber e o enigma

Essa, percebam, é a solução de Santo Tomás para um pro-


blema que não nos interessa tanto aqui, mas que achei por bem
mencionar. As concepções sobre a natureza dos astros e de
sua ação são enormemente variadas. Há aqueles, como Santo
Tomás, que acreditam que os astros são apenas corpos físicos.
Há aqueles, como os antigos gregos e romanos, que acreditam
que são deuses. E há aqueles, como o falecido Dr. Juan Alfredo
César Müller, que sustentam que são demônios.

Concia de um senso de orientação cósmica na

Não temos mais nenhum senso de orientação cósmica. Dois


motivos concorrem para gerar essa situação. Após Copérnico
propor o sistema heliocêntrico, alguns autores consideraram que,
se a Terra não está no centro do universo, e sim o Sol, então
o sistema simbólico da astrologia está errado. Essa conclusão
é um equívoco em toda a linha. Que o Sol esteja no centro
do sistema solar não quer dizer que nós estejamos no Sol.
Descrever o sistema solar é uma coisa, e descrever a posição
humana no cosmos é outra completamente diferente. Mas essas
duas questões foram superpostas, e assim se seguiu um debate
absolutamente desastroso que disseminou a descrença naquele
que, no fim das contas, é o único sistema simbólico universal e
fundamentalmente verdadeiro (e que por isso continua em vigor,
por mais que não demos atenção a ele).
Esse foi um primeiro motivo. Um segundo motivo, não menos
determinante para que perdêssemos o quadro de referências da
astrologia tradicional, se originou da famosa distinção feita por
Bacon, Descartes e outros entre qualidades primárias e qualida-
des secundárias dos objetos. Passamos a viver num mundo que
só tem dois andares, e mais nada: existiria o chamado "mundo
material", composto de tudo aquilo que tem extensão, que pode

• 85×
Olavo de Carvalho

ser medido, e existiria o "mundo dos pensamentos humanos",


insubmisso a qualquer parâmetro de precisão e objetividade.
Como não sabemos qual o encaixe entre um andar e outro,
passamos a fazer questionamentos desprovidos de sentido. Por
exemplo: estará a consciência no cérebro ou em outro lugar?
Bom, a consciência, em si mesma, é um fenômeno imaterial que
não pode, portanto, estar em parte alguma do espaço; mas isso
não quer dizer que seu funcionamento seja sempre independente
da atividade cerebral. A confusão surge do fato de termos por
único critério de realidade a medição: se aquilo que pensamos
corresponde às medições e observações feitas no universo real,
então dizemos que se trata de uma verdade cientí ca, ainda que
não acreditemos muito nela por ser apenas uma correspondência
de super cie, por assim dizer.
Sem um senso de orientação no cosmos, só nos resta con ar
na ciência como provedora do conhecimento exato. A classe
cientí ca, a qual depende de verbas estatais e privadas, da con-
corrência nos departamentos universitários, das interproteções
ma osas e de uma in nidade de fraudes, se torna uma espécie
de novo clero incumbido de orientar a humanidade em todas as
questões, inclusive as de moralidade mais intima. Mas a ciência
só opera por recortes da realidade baseados em hipóteses, as
quais poderão se con rmar ou não, sendo assim mantidas ou
alteradas, ou determinando ou não a alteração dos recortes
iniciais. Esse é o movimento interno da pesquisa científica,
inteiramente válido em si mesmo, mas que não tem nada que
ver com a orientação do ser humano no conjunto da realidade.
A ciência não pode oferecer nenhuma orientação desse tipo.

O caso da Igreja Católica


O crescimento do poder da ciência sobre a sociedade se voltou
não só contra o sistema simbólico da Idade Média, mas também

* 86 -
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O saber e o enigma

contra a própria Igreja Católica, a qual adotava esse mesmo


sistema simbólico, que, repito, não tem nada a ver com crença em
astrologia no sentido preditivo ou diagnóstico. Desprestigiado o
sistema astrológico, cai também em desprestígio a Igreja Católica.
O problema da oposição entre geocentrismo e heliocentrismo
foge da alçada do sistema astrológico, como o prova, entre ou-
tros fatos, o de que Kepler, mesmo tendo descrito as órbitas dos
planetas, descobrindo que eram elípticas e não circulares, era ele
próprio um astrólogo praticante e nunca se sentiu perturbado
no mais mínimo que fosse pelo fato de que a Terra tenha saído
do centro, porque a Terra saiu do centro, mas nós continuamos
no centro de algum modo.
Na tentativa de se livrar de qualquer contaminação com
o sistema astrológico, a Igreja Católica aderiu maciçamente à
ciência moderna, e daí surgiu o problema de como articular fé
com razão ou ciência com religião, um problema que jamais
existira antes daquela oposição inepta entre uma teoria cientifica
e um sistema simbólico (que permanece intacto apesar de seus
eventuais erros de descrição da mecânica celeste). E claro que
havia argumentos muito legítimos para a Igreja recusar partes
do sistema astrológico, ou até mesmo recusá-lo por inteiro,
na medida em que ele acolheu versões francamente heréticas
(gnósticas, por exemplo) ou pagãs durante a Idade Média. Mas
render-se ao ataque de cientistas que confundiam o simbolismo
astrológico com o funcionamento material da órbita dos planetas,
jogando todo o quadro de referência astrológico fora sem ter
outro para substituí-lo, privou a Igreja do papel de diretora do
processo cultural do Ocidente.
Isso se mostra ainda mais absurdo se lembramos que em
todas as catedrais se encontrava presente o zodíaco; havia
nelas imagens tiradas diretamente do sistema astrológico, e a
própria estrutura das catedrais e do pensamento escolástico
partilhava desse mesmo simbolismo. As catedrais góticas eram

• 87•
Olavo de Carvalho

todas baseadas em um sistema de bifurcações, ou melhor, em


um sistema tridirecional: de cada arco partiam outros dois, a
assinalar três direções, o que representava a aplicação à arqui-
tetura do princípio da cruz de seis pontas. Não sei se consciente
ou inconscientemente, alguns filósofos acabaram por reproduzir
a estrutura simbólica das catedrais em seus textos, criando assim
o gênero medieval das sumas. Santo Tomás de Aquino aborda
os problemas por meio de uma pergunta: será tal coisa assim?
Em seguida, arrola argumentos a favor de uma posição e a favor
de outra, e a partir das razões contrárias prossegue bifurcando
a investigação, até que a sua conclusão sirva de premissa para
uma nova questão, uma nova bifurcação, e assim por diante.
É a mesmíssima estrutura que encontramos nas catedrais, que
por sua vez reproduzem arquitetonicamente a estrutura central
do sistema astrológico.

Na forma das sumas e das catedrais, você aprende a ler


o cosmos, a orientar-se no cosmos. Trata-se de um auxilio
indispensável no guiamento espiritual do indivíduo. A busca
da mensagem divina que pretende não passar pela leitura do
cosmos é desarrazoada; fazê-lo supõe que você já seja um ser
quase puramente espiritual, o que é falso. Você é um ser humano
que habita este planeta e realiza a sua vida em meio ao simbo-
lismo natural que se mostra a você, que serve de base para o
exercício da sua imaginação e da sua razão. De nada adianta
se apegar à palavra fé. Fé quer dizer confiança, e você confia
na Biblia porque acredita que ela é a palavra de Deus - mas
como poderá se certificar de que é mesmo a palavra de Deus?
Os meios de garantia para tanto só podem ser encontrados ao
longo da história humana e por meio dos simbolos e atos da
ação divina, aqueles que se dão não no mundo espiritual, mas
neste mundo. Sem nenhum indício da ação divina para além
do texto biblico, você jamais conseguirá justificar a autoridade
dos textos sacros.

• 88 •
O saber e o enigma

A supressão dos milagres


A ação de Deus se evidencia nos milagres, e os milagres não
podem se restringir a relatos biblicos. Há ao longo da história
testemunhos permanentes de milagres, e é a partir destes que
se deve justificar a autoridade da Igreja e da Biblia em que se
deposita a fé cristã. Na medida em que abandonamos o antigo
quadro de referência astrológico e passamos a nos orientar
segundo a ciência, começamos a crer que milagre é aquilo que
não possui explicação cientifica. Mas isso é manifestamente
absurdo. Não existe explicação científica de absolutamente
nada. A finalidade da ciência não é explicar algo; sua finalidade
é medir e descrever fenômenos com um grau ótimo de precisão.
A esfera do sentido, do modo e da finalidade permanece fora
do escopo da ciência. Logo, não se pode definir milagre como
um acontecimento para o qual não há explicação científica. Se o
milagre não tem características próprias, se precisa ser definido
por contraste com uma determinada criação humana (a ciência),
então não se trata de milagre algum.'

Em um mundo onde só existem as "coisas materiais" defi-


nidas pela quantidade, e por outro lado algo de evanescente
chamado "pensamento humano", que lugar haverá para Deus e
os milagres? Deus recuou para uma distância imensurável, ou,
como diz Arthur Koestler, "deixou o telefone fora do gancho".
A conclusão necessária, segundo essa perspectiva, será que não
pode haver presença de Deus no cosmos material porque Deus
é espírito e espírito só existe na mente humana, não no mundo
material. Deus se reduz a uma idéia que temos, na qual você
pode até acreditar, na qual você pode até ter fé, mas que jamais
passará de uma idéia nem tampouco se manifestará no cosmos.

1 Para maior desenvolvimento do tema de uma metodologia adequada ao


estudo dos milagres, cf. Olavo de Carvalho, "What is a miracle?", em Voegelin
View, 25 de janeiro de 2009, disponivel em https://voegelinview.com/what-is-
-a-miracle/ - NO.

- 89 •
Olavo de Carvalho

Assim, o Deus dos cristãos hoje parece o Deus islâmico: é um


Deus absolutamente inatingivel, que nunca está presente. Mas a
essência do cristianismo, bem ao contrário, é a Encarnação, é a
presença real de Cristo. Ele nos disse: "Eis que estou convosco
todos os dias, até a consumação do século" (Mt 28, 20). E nós
observamos sua presença por meio dos milagres.
Não havendo mais, portanto, a síntese cristã que transmutava,
por assim dizer, o sistema astrológico segundo a doutrina da
Igreja, de modo que desapareceu da esfera pública ocidental a
compreensão simbólica do cosmos e da vida, sobrou apenas, por
um lado, a ciência com o seu universo material, e, por outro, o
pensamento e a imaginação humana. Ao simbolismo não houve
outra saída senão se refugiar neste último terreno, a encontrar
ressonâncias nas artes e na literatura. Os poetas começam a
se inspirar em todo o simbolismo antigo; é impossível ler Ezra
Pound a sério sem conhecer o simbolismo astrológico, e o mesmo
se pode dizer de T. S. Eliot, de Yeats, de Apollinaire e tantos
outros. A poesia moderna é toda inspirada no simbolismo antigo,
mas com tons gnósticos porque não é católica, mesmo quando o
autor é católico. Chesterton estava correto ao dizer que "o mundo
moderno está repleto de velhas virtudes cristãs enlouquecidas".

O mundo liberal e seus inimigos

Por outro lado, na ausência de uma síntese simbólica, a única


relação possível entre imaginação humana e mundo material se
torna de tipo matemático. Isso acontece ao mesmo tempo que
a atividade econômica adquire uma importância extraordinária
com o advento do capitalismo. A economia passa a ser o centro
da realidade, e a medida do encaixe do sujeito na realidade se
torna o seu sucesso econômico. Pressupõe-se que, se o indivíduo
compreende a realidade, terá sucesso econômico; desaparecem a
sorte e o acaso. A eficácia econômica ganha o posto de padrão

• 90 •
O saber e o enigma

cognitivo, e todo liberal tende a raciocinar segundo a crença


de que o sucesso econômico prova a veracidade de suas idéias.
Naturalmente, surgem inúmeras formas de revolta contra esse
espírito liberal, em especial o nazismo e o fascismo. Cansados de
um mundo de arti cialismo e convenção, muitos buscam algum
meio de se reconectar à realidade mais primária. A geração
fascista é constituída de soldados que retornavam da frente
de batalha e que tinham passado dois ou três anos em meio à
violência e ao sangue. De repente, voltam para uma democracia
cheia de tipos tucanos, zelosos de formalismos democráticos e
legais. Consideram sufocante essa atmosfera e decidem mandar
todo o mundo liberal pelos ares; convencem-se de que precisam
instaurar um modelo de vida baseado no sangue, na violência,
no heroísmo, nas forças elementares; caso fosse preciso matar
metade da população, que assim fosse, pois pelo menos seria
uma ação real, colada ao real.
Eles tinham, portanto, uma ânsia de realidade. É essa a idéia
dominante entre os primeiros teóricos do fascismo, é ela que
encontramos em Mussolini; eram homens loucos, não pouco
loucos mas muitíssimo loucos, mas cuja loucura era de algum
modo compreensível.
Posteriormente, apareceriam tantas outras propostas de
recuperação do sentido da vida. Entre elas, hoje temos a pro-
posta eurasiana. O eurasianismo se pretende uma espécie de
nova religião do mundo, nova concepção simbólica que nos
recolocará num universo dotado de sentido. Diferentemente
do que em geral se pensa, a doutrina eurasiana - na versão
que hoje se difunde - não apareceu primeiro na Rússia; foi o
francês Raymond Abellio e o romeno-francês Jean Parvulesco
que a criaram. Alexander Dugin recuperou essas idéias e lhes
deu continuidade,' a ponto de ganharem grande circulação

2 Cf. o debate de Olavo de Carvalho com Alexander Dugin documentado em Os


ELA e a Nova Ordem Mundial. 2ª ed., Campinas, SP: Vide Editorial, 2020 - No.

• 91•
fi
Olavo de Carvalho

na extrema-direita francesa, contando com o endosso de autores


como Alain de Benoist.

Tentativas de restauração do simbolismo no Oci-


dente moderno

Houve no Ocidente três tentativas de restaurar o sistema sim-


bólico antigo. A primeira foi com o movimento ocultista ini-
ciado no século XIx por Madame Blavatsky e outros. Até hoje,
há remanescentes dessa corrente. Em seguida, surgiram René
Guénon e a escola tradicionalista de um modo geral, já com
uma perspectiva islâmica e com um patrimônio intelectual
imensamente mais sólido do que a teosofia e demais doutrinas
ocultistas. E, finalmente, veio a onda eurasiana, que surge de
dentro do movimento tradicionalista guénoniano, mas como
uma espécie de dissidência. Raymond Abellio absorveu todo o
legado tradicionalista, com o qual se incompatibilizou, em razão
de suas interpretações pessoais não se coadunarem bem com
o ensinamento sufi. Mas, de qualquer modo, essa corrente teve
uma importância política extraordinária no mundo ocidental.

Em parte, o grupo de Abellio, Jean Parvulesco e outros e,


em parte, o movimento tradicionalista tiveram uma influência
tremenda sobre o governo de Gaulle e sobre o governo Mitterrand
na França. Foram praticamente os gurus desses dois governos,
com alto nível de penetração nas instâncias de poder, pois o
grupo de Abellio e Parvulesco estava muito mais interessado
em ação política direta do que o grupo sufi de René Guénon.

A ação desses grupos encontrou grande ressonância em razão


do fato de a Igreja ter se eximido de oferecer uma orientação sim-

bólica durante a Modernidade — logo a Igreja, a maior herdeira


do simbolismo astrológico tradicional, que em posse dele, caso
perdesse sua atitude subserviente para com a ciência moderna,
poderia capitanear o processo de restauração da compreensão

• 92 •
O saber e o enigma

simbólica da ordem cósmica. Na ausência dessa ação da Igreja,


as pessoas preferem embarcar em uma mentira total como o
eurasianismo a ficar soltas, reduzidas à função de átomos no
processo econômico, vivendo no reino da quantidade, que é o
mundo do liberalismo. Os falsos esoterismos atraem tanta gente
porque a falta do simbolismo astrológico equivale à falta de um
referencial cósmico, de uma noção de encaixe da vida humana
numa totalidade cósmica. E as pessoas irão atrás de quem quer
que ofereça isso, ainda que se trate de uma empulhação.

• 93 "
CAPÍTULO V

Heliocentrismo e mundo moderno

Vimos que a imagem medieval do cosmos é descrita basicamente


como um mapa astrológico. Vou lhes recordar.

Um retrospecto
Em um mapa astrológico, a cruz de seis pontas demarca um
ponto no espaço (o ponto da Terra onde você está), em volta
do qual há dois quadrantes móveis: o sistema das casas, que é
a divisão do espaço em torno daquele ponto, e os doze signos
do zodíaco, que são a eclíptica ou a órbita aparente do Sol com
inclinação de 23 graus em relação ao equador celeste. Em volta
há os sete planetas visíveis (recordem-se de que o Sol e a Lua
também eram chamados de planetas), e para além deles há as
estrelas fixas. Acima destas se situa a esfera dos anjos, que é
sucedida, por fim, pelo trono do Altissimo.
Nessa imagem estavam contidos todos os setores possíveis
da vida humana. Por exemplo, as dozes casas se referem a
doze áreas de atuação do ser humano: a sua presença física e.
portanto, a sua aparência; os seus bens ou recursos; a força de
que dispõe; os seus meios de comunicação e o ambiente social
imediato; a sua origem familiar e os seus antecedentes; a sua
esfera lúdica e criativa e o seu trabalho, e assim por diante.

• 95 -
Olavo de Carvalho

Essas várias áreas se interpenetravam com os doze signos


do zodiaco, que representam doze diferentes modalidades de
existência ou doze impulsos fundamentais do ser humano, os
quais, por sua vez, também representam doze locais da Terra,
como nações e continentes, ou ainda várias espécies de mine-
rais, plantas e animais. Somam-se os planetas, a representar
impulsos e obstáculos da vida humana, o que tem por resultado
um padrão enormemente complexo de relações internas que se
expressam pelos ângulos entre os planetas, desde o ângulo zero
até a conjunção (isto é, o momento em que os planetas, quando
vistos da Terra, se superpõem por estarem na mesma direção,
embora estejam muito afastados longitudinalmente).
Isso era, ao mesmo tempo, o modelo cosmológico e o mo-
delo de um mapa astrológico singular, que podia ser o mapa
de um momento (por exemplo, o momento no qual se formula
uma pergunta, como aquelas a que respondia com assombrosa
exatidão o astrólogo uruguaio Boris Christoff, especializado em
apontar o cativeiro de vítimas de sequestro), ou o mapa de uma
vida a partir do instante do seu nascimento. Todos os demais
esquemas simbólicos são apenas extratos do sistema astrológico,
os quais poderão ser mais abrangentes ou menos.

A universalidade e abrangência do sistema astrológico não


implicam que ele seja capaz de estabelecer uma correspondência
factual entre seus princípios e a vida humana. Dito de outro
modo, o fato de uma estrutura ser adequada à descrição de algo
não implica que os elementos materiais dessa estrutura - os
signos, os planetas etc. — correspondam factualmente a algo que
está acontecendo na Terra. Os astrólogos em geral acreditam
nessa correspondência, mas eu me limito a crer que às vezes
se dá essa correspondência, às vezes não, e, mesmo no caso
de haver correspondência, esta será muito limitada. Um mapa
astrológico só lhe permite concluir, quando muito, duas ou três
coisas bastante modestas sobre um indivíduo.

• 96 -
O saber e o enigma

A essa altura, vocês já compreenderam que meu interesse


pela astrologia não se centra nas técnicas preditivas, e sim no
simbolismo astrológico enquanto tal, e a despeito até mesmo
da questão da realidade da in uência astral. Foi em virtude
disso que décadas atrás desenvolvi a astrocaracterologia!
Mais que saber se a astrologia preditiva funciona ou não,
interessava-me entender o seu sistema, entender o que é pre-
ciso para transformar a astrologia em um campo de estudo
cientí co. A astrocaracterologia representa a construção de
um corpo de hipóteses e nada mais. Desenvolvi um método e
avancei a pesquisa até o ponto em que era possível apenas ao
nível teórico; dali para diante seriam necessários recursos para
realizar levantamento de dados e análise experimental, coisa
que estava muito além de minhas possibilidades. Infelizmente,
houve alunos meus que, desatentos ao propósito primeiro da
astrocaracterologia, começaram a empregá-la na leitura de
mapas, o que era possível, mas que eu avisava ser um desvir-
tuamento de sua finalidade. Encerrei meus estudos na área há
mais de trinta anos.

Experimentos de Michel Gauquelin

Uma correspondência notável entre o sistema astrológico e


fatos da vida humana foi encontrada no curso de uma famosa
pesquisa dirigida pelo estatístico francês Michel Gauquelin.
Partindo do princípio de que determinados planetas regem
determinadas profissões ou grupos profissionais, e de que no
mapa astrológico de nascimento do sujeito há certos pontos
angulares mais importantes (de modo que um planeta que
esteja presente ali irá imperar sobre o mapa inteiro), Gauquelin
empreendeu uma pesquisa para verificar se de fato havia uma

1 Cf., do autor, O caráter como forma pura da personalidade. Rio de Janeiro:


Astroscientia Editora/Instituto de Artes Liberais, 1993 - No.

97*
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Olavo de Carvalho

correspondência entre a posição angular de determinados pla-


netas e a frequência com que as pessoas nascidas em momento
consequente àquela angulação acabavam seguindo carreira em
grupos pro ssionais ligados a ela. Por exemplo, Marte teria
algo a ver com a pro ssão militar, Saturno com as pro ssões
cientí cas e médicas, Júpiter com as pro ssões de comunicação
(professores, atores, oradores etc.). Ele foi contratado para fazer
essa pesquisa pelo astrônomo Paul Couderc, um sujeito que
odiava a astrologia e que queria acabar de uma vez por todas
com suas pretensões preditivas.
Gauquelin fez uma pesquisa com cinquenta mil horóscopos e
surpreendentemente descobriu que havia uma correspondência
estatística notável, de tal modo que - calculou ele -, para que
aquele resultado fosse mera coincidência, teria de se dar uma
possibilidade entre 70.000. Parece, assim, que havia mesmo
alguma correspondência. Só que as posições angulares dos pla-
netas verificadas na pesquisa não eram exatamente as descritas
pelos astrólogos: estavam um pouco mais para trás na roda do
zodíaco. Como não gostasse do resultado da pesquisa, Paul
Couderc mandou que Gauquelin a refizesse com quinhentos mil
horóscopos, e o resultado foi ainda mais claro no sentido de
confirmar a hipótese de uma correspondência real.
Mesmo isso, contudo, não quer dizer que todas as posições
planetárias tenham uma correspondência factual efetiva com
a vida humana, ou sequer que isso possa ser verificado esta-
tisticamente. Pesa ainda o fato de que são utilizados inúmeros
sistemas preditivos em astrologia, alguns deles enormemente
complicados. Alguns chegam mesmo a não ter nada a ver com
as posições reais dos planetas, como é o caso do método das
"direções primárias", um cálculo complicadissimo e puramente
hipotético, ao passo que outros métodos se baseiam nos "trân-
sitos" planetários.

• 98-
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O saber e o enigma

Um falso problema: heliocentrismo versus astro-


logia
A coincidência entre a estrutura do horóscopo individual e a
estrutura da imagem do cosmos medieval nos coloca o problema
de por que essa imagem foi abandonada. O motivo fundamental
foi a proposição do heliocentrismo, que, segundo a versão his-
tórica oficial, desencadeia uma Revolução Científica que altera
a posição do homem no cosmos. Esse processo nos é relatado,
por exemplo, no livro Cosmos e psique, de Richard Tarnas. Sob
vários aspectos, é um livro brilhante. Vou ler uma passagem do
capítulo "A aurora de um novo universo":2

Deve ter sido uma experiência de tirar o fôlego estar entre aqueles
primeiros revolucionários científicos da Era Moderna, Copérnico
e seus sucessores imediatos - Rheticus, Giese, Digges, Bruno,
Maestlin, Kepler, Galileu -, no instante em que começaram a
apreender a estupenda verdade da teoria heliocêntrica. A sensa-
ção de rebelião cósmica e maravilhamento deve ter sido quase
inexprimivel. Uma visão da Terra e do seu lugar no universo que
havia governado virtualmente a mente humana sem ser questiona-
da por milhares de anos era agora, repentinamente, reconhecida
como uma vasta ilusão. Nós, no século XXI, estamos longamente
acostumados a conviver com esse novo universo que aqueles vi-
sionários da Renascença primeiro revelaram, e precisamos forçar
um bocado a nossa imaginação intelectual para entrar de novo
naquele momento dramático da transição entre dois mundos. De
repente, estar diante do momento da revelação de que a pró-
pria Terra, a entidade mais obviamente estacionária e imóvel do
cosmos, na qual se havia vivido numa solidez imutável durante
toda a vida, na verdade estava se movendo no espaço através
dos céus, rodando e circulando em torno do Sol num universo
enormemente expandido, já não como centro fixo e absoluto do
universo, como se tinha suposto desde o começo da consciência
humana, mas antes como um planeta errante no céu. No entanto,
não é somente a magnitude da revelação copernicana que nos

2 Tradução improvisada de viva voz pelo autor durante o curso - NO.

‡ 99
Olavo de Carvalho

escapa hoje em dia. Também tendemos a esquecer, e as histórias


convencionais da Revolução Cientí ca tendem a negligenciá-lo
inteiramente, o grau em que a descoberta original veio carregada
de intensa signi cação espiritual. Os primeiros revolucionários
cientí cos perceberam as suas descobertas como revelações di-
vinas, como despertares espirituais para a verdadeira grandeza
estrutural e a beleza intelectual da ordem cósmica. Não foram
somente inovações conceituais abstratas ou descobertas empiri-
cas de interesse puramente teórico. Não foram meramente cons-
truções matemáticas instrumentais, elaborações epicíclicas enge-
nhosamente concebidas com o propósito de aumentar a exatidão
preditiva. As novas descobertas foram realizações triunfantes de
uma busca sagrada. Por milhares de anos, os reinos celestial e ter-
restre tinham sido olhados como inalteravelmente separados, tão
incomensuráveis como o divino era incomensurável ao humano.
Por causa da sua extrema complexidade, a verdadeira natureza
dos movimentos planetários tinha chegado a ser vista como algo
fundamentalmente além da capacidade do intelecto humano. A
respeito de matérias celestiais e divinas, parecia que só a Bíblia
podia revelar a verdade: os astrônomos humanos não podiam
produzir nada além de construções artificiais, como se olhando
através de um vidro obscuro. Mas agora a verdadeira realidade
do cosmos divinamente ordenado tinha finalmente sido revelada.
Os profundos mistérios do universo estavam repentinamente ex-
postos diante das mentes estupefatas dos novos cientistas através
da graça de uma divindade soberana cuja glória estava dramati-
camente desvelada aos olhos de todos.

A experiência de viver na obscuridade ao longo de milênios


e subitamente perceber a verdadeira estrutura do cosmos e o
verdadeiro lugar da Terra viria a ter um impacto de tipo reli-
gioso e espiritual que nos impregna até hoje. Vivemos dentro
do universo copernicano, porém sem compreender que a desco-
berta de Copérnico, quando publicada, não causou de imediato
escândalo algum. Na verdade, tão inocente parecia a teoria de
Copérnico, que quem a introduziu na Península Ibérica foi o chefe
da Inquisição. Quem criou a versão que produziu escândalo foi
Giordano Bruno, décadas depois, coisa a que retornarei.

• 100-
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O saber e o enigma

A imagem medieval do cosmos mostrava o céu tal como


visto desde a Terra, portanto tal como visto desde um centro
de observação dado pelo local onde transcorre a vida huma-
na. Mas que pensar do observador pressuposto pelo sistema
copernicano, um observador capaz de ver a Terra girando em
torno de um centro dado pelo Sol? Trata-se de um observador
celeste totalmente hipotético. Ninguém jamais viu a Terra dessa
maneira (mesmo o ponto de observação de um astronauta no
espaço não corresponde necessariamente à visão copernicana:
ele poderia eleger como centro outro astro, digamos que outra
estrela muito mais distante, e a partir dela observar o movimento
da Terra). Vivemos todos no bom e velho universo geocêntrico
de Ptolomeu, tanto que esse mesmo sistema geocêntrico é usado
até hoje na navegação e nas viagens espaciais. O Sol pode ser
o centro do sistema solar - mas nós não estamos no Sol, não
nos deslocamos sobre a superfície do Sol.

O sistema copernicano e o sistema ptolomaico, como o pró-


prio Copérnico acreditava, não se desmentem mutuamente de
maneira alguma; são apenas dois pontos de vista pelos quais
o céu pode ser descrito, mesmo porque você só pode afirmar
que o Sol está no centro do sistema solar se isolar esse sistema
do restante do cosmos. De igual modo, as órbitas elípticas dos
planetas descritas por Kepler só serão elípticas se tomarmos de
maneira isolada o sistema solar; caso consideremos o restante do
universo conhecido, elas se tornarão enormemente complexas e
será impossível descrevê-las. Por esse critério, só se poderá acusar
a imagem de mundo geocêntrica de ilusória caso se reconheça
também a ilusão do modelo copernicano, contra o qual, aliás,
até hoje existem argumentos sérios. Eis um rápido apanhado de
comentários a respeito feito por destacados cientistas:

Qual sistema é real, o ptolomaico ou o copernicano? Embora não


seja incomum as pessoas dizerem que Copérnico provou que Pto-
lomeu estava errado, isso não é verdade... Nossas observações

« 101
Olavo de Carvalho

dos céus podem ser explicadas presumindo-se que o Sol ou a


Terra esteja imóvel (Stephen Hawking, sico, em The Grand
Design, 2010, p. 41).
Do ponto de vista de Einstein, Ptolomeu e Copérnico estão
igualmente certos. Qual ponto de vista vamos escolher é matéria
de mera conveniência (Max Born, sico, Einstein's Theory of
Relativity, 1962, p. 345).
O sistema da Terra central é, na realidade, absolutamente
idêntico ao sistema copernicano, e todas as computações dos
lugares dos planetas são as mesmas nos dois sistemas (J. L. E.
Dreyer, astrônomo, A History of Astronomy from Thales to Ke-
pler, 1953, p. 363).
Se Galileu tivesse se confrontado com a Igreja na época de
Einstein, teria perdido a discussão (Carl F. Wulfman, matemáti-
co, carta citada na revista Christian Order, abril de 1993).
Não há observação planetária pela qual nós, na Terra, pos-
samos provar que a Terra está se movendo em torno do Sol (I.
Bernard Cohen, fisico, Birth of a New Physics, 1985, p. 78).

Na verdade, já à época de Galileu, conforme a documen-


tação reunida por Robert Sungenis em Galileu Was Wrong,
The Church Was Right, o inquisidor responsável pelo caso de
Galileu, São Roberto Belarmino, compreendeu bem que não
fazia sentido falar em "centro do universo" e situar nele o Sol.
Argumentava que ninguém sabe onde é o centro do universo,
e que portanto tomamos a Terra como centro pelo simples fato
de que estamos nela e de que observamos o resto do cosmos
tomando por referência nossa situação nele.

Como disse, o escândalo adviria apenas com Giordano Bruno,


que, fazendo uma confusão dos diabos, opôs um modelo de
mecânica celeste à imagem do cosmos própria à situação do ser
humano no conjunto do universo. Giordano Bruno não entendia
nada de astronomia, como de fato não entendia nada de nenhu-
ma das ciências modernas. Era um filólogo, um especialista na
lingua, na retórica e na arte da memória, e também conhecedor
de magia - isso era tudo que dominava. Por isso é um absurdo

• 102-
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O saber e o enigma

considerar Giordano Bruno como um herói da ciência moderna,


pois ele nada tem a ver com esta quanto ao fundamental. Apenas
deu o mau palpite de que o sistema copernicano alterava todo o
sistema simbólico anterior, criando uma confusão que se propa-
ga pelos séculos, a ponto de um historiador de gabarito como
Richard Tarnas a reproduzir convictamente. A única revolução
copernicana foi de natureza retórica, consistiu na divulgação
de certa visão popular, que foi muito utilizada para solapar a
autoridade da Igreja.
A confusão do panorama visível do firmamento com o esque-
ma mecânico dos movimentos planetários foi um dos grandes
desastres intelectuais da história humana, do qual não nos
refizemos até hoje. Ficamos assim desconectados do cosmos, a
alma humana isolou-se, passando a viver solta num universo
constituído apenas de forças físicas que não significam nada,
não têm linguagem, ao mesmo tempo que tudo que em nossa
vida parece indicar sentido, objetivo, meta, valor, recua para a
esfera das meras invenções subjetivas.
Esse ambiente de fantasia foi ainda favorecido por determina-
dos procedimentos fundamentais do método científico moderno,
que, por mais que tenha viabilizado descobertas espantosas, não
deixou de fomentar algum charlatanismo. E célebre a afirmação
de Galileu de que "não finjo hipóteses", mas é também ele quem
diz: "Suponhamos uma superfície inclinada sem atrito". Newton
começa os Princípios matemáticos da filosofia natural inven-
tando o "espaço absoluto", que é o espaço sem nada dentro,
e o "tempo absoluto", que é o tempo no qual nada acontece.
São, evidentemente, noções metafísicas propostas como axiomas
para fim de raciocínio. O que está muito bem, pois nem Newton
nem Galileu acreditavam que existisse na realidade a superficie
inclinada sem atrito ou o espaço absoluto. Eles estavam fazen-
do construções matemáticas, as quais podem coincidir com a
realidade observada sob certos aspectos e não coincidir sob

× 103
Olavo de Carvalho

outros, como acontece com qualquer cálculo que você faça; o


problema está em rotinizar o uso desses conceitos sem atenção
à carga de abstração que carregam, o que falseia inteiramente
a descrição deste mundo e de nossa experiência nele. O helio-
centrismo representa um problema dessa mesma espécie.

A imagem de mundo geocêntrica

Embora a Reforma Protestante contasse entre seus maiores


proponentes com astrólogos (é o caso de Philipp Melanchthon,
segundo no comando de Lutero), ela foi violentamente antias-
trológica e favorável à Revolução Cientí ca moderna, como o
foram também muitos membros da Igreja Católica. A imagem
de mundo geocêntrica e todo o insubstituível simbolismo ligado
a ela foram varridos para debaixo do tapete. Houve no meio
cristão alguns empreendimentos de recuperação desse legado,
como o de C. S. Lewis em The Discarded Image, livro no qual
ele exalta o valor simbólico e poético dessa imagem medieval,
mas sem ousar tocar no problema da sua validade objetiva, que
é, afinal, o grande problema.
Essa imagem, quando confrontada com a situação a que
chegamos após séculos de cientificismo, nos impõe realizar uma
escolha. Ou aceitamos de vez que qualquer idéia de sentido da
vida humana é pura especulação subjetiva e que na verdade
vivemos em um universo inóspito, que tentamos controlar ma-
terialmente mas se mostra cada vez mais indócil e até esquisito,
a ponto de o máximo controle - aquele alcançado pela física
quântica — se identificar com a máxima incompreensão dos fenô-
menos estudados, forçando-nos a nos trancarmos num hospício
cósmico, ou então temos de restaurar a velha imagem de mundo
medieval que, no fim das contas, é geocêntrica. (Seria de valia,
a esse respeito, a consulta ao livro monumental de Nicholas
Campion, Uma história da astrologia, obra de um reputado

• 104-
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O saber e o enigma

historiador e astrólogo, bem como aos Ensaios astrológicos de


Robert Hand. Os livros de John Frawley dão uma idéia do que
é a astrologia preditiva sob certos aspectos).
Não é possível representar a vida humana desde um ponto de
vista heliocêntrico. Além disso, pouco importa que a estrutura
do céu mecânico seja heliocêntrica ou não. O que importa, do
ponto de vista da presente discussão, são os vários padrões de
luz que se formam no céu a partir do movimento dos astros.
Podemos dizer que o mapa do céu, tal como visto nessa tra-
dição, é por si só um drama humano. Tudo ali tem vida, tem
sentido, fala como um personagem. Você pode descrever a
vida humana em função dessa imagem cósmica porque a vida
humana é um drama e essa imagem também é. No céu vemos o
drama humano inserido no drama cósmico, e o drama cósmico
inserido no drama humano.

* 105•
PARTE III

O esoterismo na história e hoje em dia


Apresentação'

Até umas décadas atrás, a crença geral da intelectualidade


ocidental era a de que tudo o que pudesse levar o nome de
"esoterismo" — astrologia, alquimia, magia, iniciações etc. -
tinha sido, pela influência conjunta da ciência e da religião no
início da Idade Moderna, banido para sempre da esfera do
conhecimento respeitável.
Depuradas desse ranço "medieval", a salvo de toda conta-
minação "supersticiosa", a ciência e a fé dividiam agora entre
si o território demarcado internamente por fronteiras nítidas,
ora fechadas para assegurar a integridade e independência das
duas ocupantes, ora abertas para uma colaboração em vista de
possíveis vantagens mútuas, ora arrombadas à força em disputas
ferozes que sempre terminavam em novos reconhecimentos das
jurisdições estabelecidas.
A estabilidade desse acordo começou a ser abalada quando a
crescente abertura do mercado editorial para textos provenientes
de antigas tradições orientais e o conhecimento cada vez maior
das culturas indígenas despertaram em muitas inteligências a
suspeita de que algo de essencial tinha sido perdido ao longo
do caminho histórico percorrido pela inteligência no Ocidente.

1 Texto escrito pelo próprio autor quando da divulgação do curso em 2018 - NO.

~ 109=
Olavo de Carvalho

Já por volta dos anos 20-30 do século passado a distinção,


não muito clara, mas persuasiva, entre "ciência ocidental" e
"sabedoria oriental" havia se tornado um lugar-comum em
muitos circulos de intelectuais, alguns influenciados pelo budis-
mo, pela cabala e pelo taoísmo, como Carl-G. Jung e Hermann
Keyserling, outros pela "teosofia" de Helena Petrovna Blavatsky,
outros pela "antroposofia" de Rudolf Steiner ou por qualquer das
muitas organizações "ocultistas" que pululavam na Alemanha,
na Inglaterra e na França desde meados do século xIx.
Foi então que entraram em cena dois personagens destinados
a impor ao Ocidente a humilhação final mediante a demonstração
ao menos aparente da "superioridade" oriental. Radicalmente
diferentes entre si e até antagônicos por suas personalidades e
seus modos de ação, Georges Ivanovitch Gurdjieff (1866-1949)
e René Guénon (1886-1951) tinham em comum o fato de que
seus ensinamentos, em contraste com os da maioria das esco-
las "ocultistas", não se espalharam primeiro entre as massas
populares para só depois, trabalhosamente, conquistar alguma
respeitabilidade nos altos círculos intelectuais. Bem ao contrário,

ambos fugiam da popularidade e só colhiam leitores e discípulos


entre as pessoas mais qualificadas intelectualmente que pudessem
encontrar — não raro celebridades das ciências, das artes e das
letras, gente, quase sempre, de um nível bem superior à média
dos profissionais universitários e "intelectuais públicos".

Gurdjieff, impondo a seus mais empombados seguidores uma


disciplina absurda e humilhante (provando com isso a credulidade
pueril de cientistas e filósofos), e Guénon, com suas exposições
teóricas aparentemente irrespondíveis, feriram de morte o orgulho
intelectual do Ocidente e anunciaram trazer de volta conheci-
mentos espirituais de importância vital, esquecidos há séculos,
capazes de restaurar o cristianismo - sob o guiamento, é claro,
de "mestres orientais qualificados" — e revolucionar até mesmo
o mundo das ciências, a jóia da coroa ocidental.

• 110-
O saber e o enigma

A profundidade da sua influência pode-se medir pelo número


de obras subscritas por grandes nomes da ciência e da filosofia
no Ocidente, que, descendo do pedestal cientifico-materialista,
pedem socorro ao esoterismo oriental para que lhes explique o
que eles mesmos estão fazendo.
The Tao of Physics, de Fritjof Capra, Beyond Biocentrism,
de Robert Lanza, Einstein, Tagore and the Nature of Reality,
de Partha Ghose (ed.), The Big Picture, de Huston Smith,
Extra-Universal Mechanics, de Curtis Crim, The Three Pillars
of Zen, de Roshi Philip Kapleau, Cosmos and Transcendence,
de Wolfgang Smith, a obra inteira de Ken Wilber e milhares de
outros livros comprovam até que ponto a alta intelectualidade
ocidental já abandonou seus paradigmas consagrados e entrou
num outro quadro de referências balizado, em essência, pela
"sabedoria oriental".

Ao mesmo tempo, as sociedades ocidentais, corroidas por


décadas de autocrítica masoquista e genuflexões rituais ante as
"culturas minoritárias", se mostram cada vez mais incapazes de
resistir aos ataques que recebem do invasor muçulmano e do
seu próprio antocidentalismo introjetado.
Tudo isso torna evidente a necessidade e urgência de reco-
locar a questão do esoterismo numa perspectiva histórica mais
veraz, da qual o curso das coisas, determinado pela voga de
toda sorte de chavões e lendas, parece afastá-la cada vez mais.
Este curso mostrará (1) como a civilização cristã, acuada e
atemorizada ante o avanço da ciência moderna, foi renunciando
a todo um legado de conhecimentos informalmente "esotéricos",
só para ter de recebê-los de volta no século XX por mãos "orien-
tais'; (2) uma vez que a Revolução Científica dos séculos XVII
a XIX foi empreendida eminentemente por esoteristas mais ou
menos disfarçados de materialistas, os conhecimentos esotéricos
que cultivavam em privado e condenavam em público foram

> 111•
Olavo de Carvalho

se tornando cada vez mais proibitivos tanto para a população


cristã quanto para a massa crescente dos ateus; tudo isso com a
cumplicidade passiva do clero católico e protestante; (3) como,
em essência, as tradições esotéricas que desencadearam esse
processo são as mesmas que, no século XX, se prevaleceram dele
para acusar a civilização ocidental de "perda da espiritualidade".

• 112•
CAPÍTULO I

O que é esoterismo

Com este curso, espero desfazer algumas confusões correntes


sobre o fenômeno do esoterismo. A própria palavra "esoterismo"
é por si fonte de confusões, já que usada para designar vários
fenômenos diferentes. De qualquer modo, vamos partir de uma
distinção estabelecida por René Guénon a esse respeito, a qual
pode ser usada como medida de aferição para o resto da dis-
cussão que faremos.

"Exoterismo" e "esoterismo"

Segundo René Guénon, todos os fenômenos da espiritualidade


humana dividem-se em dois aspectos: um exotérico, que diz
respeito à religião popular, e que seria, então, um princípio
obrigatório para todos os fiéis, ou para todos os membros de
uma determinada comunidade; e um aspecto esotérico ou inter-
no, que se destinaria especificamente a pessoas mais dotadas e
sobretudo mais interessadas.
A distinção remonta a uma cena da vida do profeta islâmico,
Mohammed. Alguém viu um grupo de companheiros reunidos
em volta de uma árvore recitando certas preces que não eram
comuns, que não faziam parte das cinco preces obrigatórias di-
árias; eram outros ritos, um tanto estranhos. Então o indivíduo
perguntou ao profeta o que era aquilo, e ele disse que aqueles

•113.
Olavo de Carvalho

ritos não são obrigatórios, não foi Deus que os impôs, portanto
aqueles companheiros os praticam porque querem, ou seja, por
devoção pessoal voluntária. Assim se consagra no meio islâmico
a distinção entre esses dois tipos de ritos.
Os pequenos grupos dedicados às preces voluntárias, que
remontam a fundação do Islam e transmitiram geração a ge-
ração os seus ritos e doutrinas, recebiam o nome de tasawwuf
- palavra cujo sentido se relaciona com a lã empregada no
manto que usavam (o que não sei se é verdade ou lenda) e da
qual deriva o termo mais ocidental "su smo". Essa designação
não é muito exata; abrange correntes muito diversas entre si,
especialmente no que diz respeito ao Islam iraniano, e se torna
ainda mais complexa na medida em que a pertinência a esses
grupos implicava certos ritos ditos "iniciáticos". É muito im-
portante esclarecer desde logo, portanto, os conceitos de rito
e de iniciação para que se entenda o sentido da distinção entre
exoterismo e esoterismo.

Ritos mágicos e manipulação das forças sutis da


natureza
Rito é a repetição formalizada de um gesto tido como primordial,
seja a criação do universo, seja uma revelação específica, seja
um momento qualquer da história divina do mundo.
Há, naturalmente, vários tipos de rito. Ritos mágicos são
aqueles nos quais, através de um jogo com as formas dos en-
tes e, portanto, com as suas afinidades ao menos aparentes, o
sujeito controla ou pelo menos acredita controlar certas forças
sutis da natureza. Talvez o exemplo mais claro, mais banal
e hoje muito conhecido seja a acupuntura chinesa. Segundo
a medicina tradicional chinesa, no corpo humano há certos
trajetos por onde circula a energia. Se você toca num ponto do
corpo, afeta não só esse ponto em particular, mas também todos

• 114.
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O saber e o enigma

aqueles que estiverem conectados ao mesmo trajeto do qual faz


parte aquele primeiro ponto. Quando isso se tornou conhecido
no Ocidente, sobretudo a partir da visita de Richard Nixon à
China, a eficácia da medicina tradicional chinesa despertou o
interesse em explicá-la.

A primeira hipótese a surgir foi a de que a energia circulava


pela rede nervosa. Essa explicação partia do pressuposto de
que não pode haver circulação de energia sem que haja um
canal material para tanto. Trata-se de um preceito materialista
moderno, quase um dogma ocidental, totalmente estranho às
civilizações antigas tradicionais. Fizeram-se testes: injetaram-
-se radioisótopos em determinados pontos de acupuntura para
verificar por onde circulavam; para grande espanto geral, eles
não circulavam pela rede nervosa, mas justamente por aqueles
canais imateriais, os chamados "meridianos". Esses canais não
são como tubos por onde circula a energia; é a própria energia
que delineia o seu trajeto. Logo, há no corpo humano, além
da sua estrutura anatômica e da rede conhecida de processos
fisiológicos, uma terceira rede puramente energética.

A acupuntura atesta a existência de forças sutis da natureza,


cuja manipulação é o que se chama de magia. Não se trata de
invocar um deus, de fazer uma prédica, de pedir algo: é você
que está no comando da situação, é você que, ao tomar ciência
dos processos energéticos, passa a manipulá-los.

Em O feiticeiro e sua magia, Claude Lévi-Strauss estuda


o fenômeno amplamente reconhecido de que, em certas tribos
indígenas, tanto da África quanto da América, é possível que
um feiticeiro mate uma pessoa por processos puramente mágicos.
Embasbacado com o fenômeno, Lévi-Strauss arrisca a explicação
de que isso só funciona em meios culturalmente homogêneos,
nos quais todo mundo crê na eficácia desse procedimento;
e, como todo mundo crê, basta o sujeito saber que fizeram
feitiçaria contra ele para que já comece a ficar apavorado,

× 115+
Olavo de Carvalho

o que irá inibir aos poucos a sua micro-circulação, por fim oca-
sionando a falência de vários órgãos. Isso, contudo, é apenas
uma hipótese. O fato reconhecido é que a morte por feitiçaria
é uma realidade. Se essa explicação é verdadeira ou se existe
outra, eu não sei, mas em todo caso esse também é um exemplo
de manipulação de forças sutis da natureza.
Outros exemplos são os processos alquímicos, nos quais,
mediante a manipulação de certos elementos através dos elos
de simpatia, analogia, contigüidade etc., você produz efeitos
de longuíssimo alcance. Armand Barbault, conforme nos conta
em L'Or du Millième Matin, decidiu refazer o caminho inteiro
de um procedimento alquímico, com a nalidade de produzir
ouro a partir de metais mais grosseiros, como o chumbo. Ele
não chegou à produção de ouro propriamente dito, mas chegou
a uma certa etapa muito avançada do processo: obteve "ouro
potável", um líquido dourado em cuja produção não entrou ne-
nhum elemento dourado, antes se fez apenas de plantas. Todas
as etapas do processo tiveram de ser realizadas em momentos
propícios, conforme a configuração astrológica, e também com
a ajuda de algum sensitivo que identificasse certos lugares, a
presença de certas energias etc. Barbault verificou que o tal
ouro potável curava lepra, tuberculose, esclerose, o raio que o
parta. Infelizmente, a quantidade de ouro potável que produziu
era pequena, cerca de dois litros. De qualquer modo, seu livro
é um testemunho de que as chamadas forças sutis da natureza
existem, embora sejam muito mal conhecidas.

Podemos mencionar também as fotografias Kirlian. Kirlian


foi um cientista russo que descobriu um modo de fotografar
a energia em torno do corpo humano, a "aura", cujas modifi-
cações podiam ser observadas conforme o estado de espírito
do indivíduo, sua saúde etc. Existem pessoas que afirmam
enxergar claramente a aura, mas aqueles que não a enxergam
podem experimentar a fotogra a Kirlian, que realmente mostra

+116
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O saber e o enigma

a presença de um campo energético habitualmente invisivel


que é alterado conforme o estado interior da pessoa, coisa
abundantemente estudada.
De modo similar, vale lembrar as famosas caixas de Reich
(tive a oportunidade de estar dentro de uma delas). Wilhelm
Reich dizia que o universo inteiro é perpassado por uma ener-
gia fundamental que ele chamava de "orgônio", entre cujas
manifestações estaria a energia sexual humana. Chegava até a
descrever, por exemplo, o advento e morte de Jesus Cristo como
uma imensa explosão de orgônio. É claro que essa explicação
é exagerada, mas algo daquilo a que dava o nome de orgônio
existe, e a função das caixas de Reich seria a de acumular ener-
gia orgônica de um determinado ambiente com o propósito de
melhorar a saúde do indivíduo, até mesmo curá-lo de doenças.
Você de fato sente alterações inexplicáveis em si próprio quando
está numa caixa de Reich. E surpreendente, porque lá você não
está tocando em nada, apenas está no espaço delimitado por
paredes compostas de camadas de metais diferentes. Em suma,
fotografias Kirlian e caixas de Reich são mais dois exemplos de
meios de acesso a forças sutis.

As vezes, essas forças são personificadas. No mundo islâmico


elas são chamadas de djinns, origem da palavra "gênio". Os
djinns são elementos invisíveis da natureza, mas de algum modo
materiais. (O fato de essas forças serem invisíveis não quer dizer
que não sejam de algum modo materiais. É claro que o são, ou
do contrário não afetariam o corpo humano. Ocorre que são
sutis. Por sinal, Santo Tomás de Aquino tem um tratado sobre
as forças sutis na natureza, e na época dele a existência dessas
forças era universalmente reconhecida). O conceito islâmico de
demônio é muito diferente do conceito cristão: não passa de
um djinn, é o rei dos djinns. Haveria assim djinns benignos e
malignos. Os benignos aderem ao Islam e rezam junto com as
pessoas. É por isso mesmo que as recitações do Alcorão possuem

• 117
Olavo de Carvalho

a fama de provocar algumas mudanças no ambiente e exercer


poder inclusive sobre os animais.

Pois bem: o rito mágico consiste na manipulação das forças


sutis da natureza, e evidentemente a magia não tem por si só
nenhum alcance religioso. A religião só começa a partir do
momento em que você se dirige a um personagem cuja escala
seja propriamente espiritual, jamais material. As forças sutis são
elementos que exercem controle sobre o mundo material (como
os anjos), mas não se confundem com ele.

Ritos propiciatórios, ritos sacrificiais e ritos de


agregação
Entre os ritos propriamente religiosos, existem os ritos propi-
ciatórios. Você vai começar um procedimento qualquer (uma
viagem, uma construção, uma nova etapa de sua vida etc.), e
então pede a proteção dos anjos ou de Deus. Existem também
os ritos sacri ciais: você sacri ca algo, o que teoricamente
agradará aos deuses. Ritos propiciatórios e sacri ciais existem
em todas as regiões do mundo. Alguns funcionam, outros não,
e nós não sabemos por quê.

Os ritos de agregação dirigem-se àquilo que no esoterismo


se chama de egrégora, o ser psíquico da comunidade religiosa.
O rito de agregação torna você um membro da egrégora, você
passa a participar desse ser psíquico. Segundo René Guénon,
todas as preces individuais não se dirigem diretamente a Deus
nem aos anjos, mas sim primeiro à egrégora, através da qual
chegam a uma escala mais alta. Conforme essa perspectiva,
se um individuo que não participa de nenhuma comunidade
religiosa (um não-membro ) reza, sua prece é sem efeito. Mas
se lembrem: quem diz isso é René Guénon; se é assim ou não,
eu não sei.

*118-
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O saber e o enigma

Os ritos iniciáticos
Por fim, existem os ritos iniciáticos. Um rito iniciático é uma
série de gestos imitativos de um ato primordial que dá ao indi-
víduo acesso a outra esfera de ação espiritual, de que antes não
dispunha. Há uma mutação espiritual nitida. E como se você
adquirisse uma supra-identidade, ou seja, um andar superior ao
da sua pessoa
Segundo René Guénon, esses ritos iniciáticos são próprios de
sociedades esotéricas. Sociedades esotéricas são organizações
como as dos companheiros de Mohammed que mencionei antes.
Eles formam, por si, uma sociedade, uma escola iniciática que
transmitirá os seus ritos através dos herdeiros dessa tradição, os
chamados sheikhs. Em árabe, sheikh quer dizer apenas "velho",
mas é um termo honorífico que designa qualquer pessoa que
tenha certo destaque na vida religiosa, especialmente os chefes
dessas organizações esotéricas - as tariqas. (O plural correto
de tariqa é turuk, mas em português é corrente a forma "tariqas",

que também eu empregarei aqui).


Tariqa quer dizer apenas "palmeira". A palmeira é tida como
um símbolo dessas organizações, e também significa "caminho"
ou "via". Portanto, existem vias iniciáticas consagradas pelo
tempo que persistem através de determinados ritos específicos.
Como o sheikh é o único autorizado a repassar as iniciações
às gerações seguintes, toda tariqa tem a sua própria árvore
genealógica, que, a xada atrás da porta da sociedade, informa
que o sheikh A foi iniciado pelo sheikh B, que por sua vez foi
iniciado pelo sheikh c, e assim por diante, remontando até os
primeiros companheiros do profeta islâmico.
Na imensidão que é o mundo islâmico, há diversas linhagens
esotéricas, umas sufis, outras não. Há também os casos de
conflito entre tariqas, bem como casos de certas associações
secretas entre umas e outras, das quais muitas vezes nem os

• 119•
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Olavo de Carvalho

próprios membros ficam sabendo. É coisa similar ao que ocorre


com a Maçonaria. Trata-se de uma rede de grupos secretos ou
visíveis, uma rede tão complexa que chega a ser difícil falar em
uma Maçonaria única, conforme discutirei depois. A situação
das tariqas é mais confusa ainda. Há muito mais sufis no Islam
do que maçons no Ocidente.
Nas tariqas, o compromisso que o indivíduo assume é de
outra natureza que não aquela das práticas rituais exotéricas.
O sheikh o inicia, e ele passa imediatamente a ter a obrigação
de obedecê-lo em tudo. Há um dito tradicional (não recordo se
é um hadith) segundo o qual o iniciante, o faqir (seu plural é
fuqara), se coloca nas mãos do sheikh como o cadáver se coloca
nas mãos do lavador de cadáveres (no Islam, o corpo precisa
ser lavado antes de ser enterrado). Trata-se de uma obediência
totalmente passiva em todos os aspectos da vida. No decorrer
de suas atividades espirituais, o faqir se deixa absorver pela
personalidade do sheikh, da qual se torna apenas um aspecto.
E absorvido assim não só pelo sheikh, mas por toda a linhagem
em que este se situa, indo dar no fundador do Islam. E uma
identificação de pessoa para com pessoa: você se encontra
pessoalmente diante de alguém que passa a ser para você, de
algum modo, a imagem de Deus.

Embora a expressão "imagem de Deus" seja considerada


herética no islamismo, na prática é isso que se vê dentro das
tariqas - o que foi origem de inúmeros conflitos entre a reli-
gião legal e as instituições esotéricas. E famosa a história do
sufi Al-Hallaj (morto no século x) que um dia gritou na rua as
palavras Ana al-Haqq, "Eu sou a Verdade". Alá é designado
por noventa e nove nomes no Corão, entre os quais "Verdade".
Al-Hallaj estaria dizendo, assim, que é Deus. Condenaram-no
à morte, mas depois se arrependeram. Reconheceram nele um
homem piedoso, que empregou aquela expressão em estado de
transe místico. Decretou-se depois que aquilo que o sujeito disser

• 120-
O saber e o enigma

em transe místico não pode ser julgado segundo os padrões


comuns. Isso marcou um início de uma maior tolerância para
com os sufis.

Filosofia iraniana como esoterismo

Nunca saberemos se os documentos produzidos pelas tariqas


sobre suas linhagens, suas doutrinas e seus ritos são verdadei-
ros ou falsos; e, pior, a maior parte dos ensinamentos dessas
sociedades era repassada oralmente. É claro que uma parte
escrita infima existe, mas até o século XX ela circulava apenas
dentro das próprias tariqas. Não por coincidência, seus primeiros
escritos internos a serem publicados o foram não nas linguas do
mundo islâmico (especificamente, o árabe e o persa iraniano),
mas sim em francês graças a Henry Corbin, que, embaixador
da França no Irã, por meio dessas traduções revelou o imenso
movimento filosófico que se estendia pela história iraniana. Para
a grande surpresa dos leitores ocidentais, descobria-se que o
Irã, sozinho, tinha mais filósofos que toda a Europa, e alguns
deles mais interessantes do que os europeus.
Porém, tudo nas tariqas girava em torno da interpretação
do Corão. O Corão continuava sendo o ponto de partida não
só de toda a atividade religiosa, mas de toda a especulação
filosófica no Irã. Além disso, essa especulação não era só de
ordem filosófica, mas também de ordem iniciática. Ora, isso
quer dizer que a distinção que René Guénon estabelece de
forma muito taxativa entre filosofia e esoterismo só vale para o
Ocidente (falo do ponto de vista guénoniano, perceba-se, que
logo irei criticar). O próprio Guénon não conhecia muito bem
essa variedade de filosofia esotérica ou iniciática existente no
Irã, daí pensando que esoterismo nada tem a ver com filosofia.
Hoje nós vemos que a distinção esoterismo versus exoterismo
era meramente nominal, porque aquilo que no Irã se chamava

+ 121*
Olavo de Carvalho

de " oso a" era exatamente o que tinha algo a ver com
as iniciações, como, aliás, ocorreria na própria Europa moderna.
Lá se constituíram loso as de caráter, nitidamente iniciático,
como a Escola de Sabedoria (Schule der Weisheit) do Conde
Hermann Alexander von Keyserling. Até hoje existe essa linhagem
iniciática. Tive a oportunidade de assistir a aulas do lho dele,
o Conde Arnold Alexander von Keyserling, as quais eram puro
esoterismo — astrologia, magia e alquimia. Para eles, tudo isso
leva o nome de "'filosofia". Do mesmo modo, no Irã o que se
chamava de filosofia englobava o esoterismo, ao passo que nos
países islâmicos de origem especificamente árabe (Egito, Iraque
etc.) desde cedo houve uma linha demarcatória entre o esoteris-
mo e o sufismo (embora eu preferisse dizer "entre o esoterismo
e a filosofia", por considerar a palavra "sufismo" vaga demais).
A relação entre exoterismo e esoterismo no Islam é cheia de
ambigüidades. Existem algumas situações nas quais o sheikh de
uma tariqa é também uma autoridade exotérica, ao passo que
há outros casos em que tariqas são malvistas, marginalizadas e
perseguidas. Al-Ghazalli, por exemplo, foi um famoso teólogo
islâmico, portanto uma autoridade exotérica da lei islâmica (ou
da shariah, como chamam), mas ao mesmo tempo foi um sheikh
sufi. Escreveu um livro chamado Destruição dos filósofos, no
qual afirma que a filosofia é uma herança de linhagem grega
destinada à especulação puramente racional e, portanto, não
poderia alcançar os supremos mistérios da revelação corânica.
Conseqüentemente, outro filósofo, Averróis, lhe respondeu com
um livro intitulado A destruição da destruição... Essa disputa
entre a filosofia e o esoterismo é muito clara e intensa no Islam.

Não é apenas uma disputa, chega a ser uma hostilidade. Conta-se


que, quando Averróis morreu, a sua biblioteca foi transportada:
puseram um asco a carregar todos os seus livros. Mestres sufis,
testemunhando o animal a levar tudo aquilo, nele teriam visto
um simbolo do próprio Averróis, um asno carregado de livros.

+122
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O saber e o enigma

Eu não sei se essa fábula é verdadeira ou falsa, mas ela circula


no mundo islâmico e testemunha o desprezo que um esoterista
poderia ter pela loso a, vista então como mera atividade
racional. Porém, isso só vale para o Islam árabe, que não é o
centro principal da atividade losó ca islâmica. O centro é o
Irã, evidentemente, e lá se desenvolviam outras linhas esotéricas
que não estavam ligadas às tariqas, uma vez que tinham como
origem a própria religião islâmico-iraniana, que desde o início
se caracteriza como tendente à ala xiita, shi ah.
Shi ah quer dizer apenas "os companheiros", isto é, os com-
panheiros de Ali, o genro do profeta Mohammed. Logo que o
profeta morreu, surgiu uma disputa a respeito da liderança do
mundo islâmico ser apenas de ordem política e civil, ou também
de ordem espiritual. A maioria adere à idéia de que a profecia
acabou, e que o profeta enquanto tal não tem sucessores. Tudo
seria então apenas questão de administrar o Islam politicamen-
te e juridicamente, e nada mais seria acrescentado à profecia.
Mohammed teria sido, como se dizia, o selo da profecia. Mas
uma minoria acreditava que a profecia prosseguia, e que o su-
cessor do profeta fosse Ali, não só genro de Mohammed, mas
também um herói de guerra, homem de um prestigio enorme,
o qual passaria o bastão da profecia de geração em geração,
numa sucessão de imames.
Imame designa, genericamente, o sujeito que à frente dos
demais dirige a prece numa mesquita. Mas no contexto ira-
niano o termo designa o líder espiritual, ou seja, o sucessor
da missão profética que continua recebendo revelações depois
de Mohammed. Existe assim uma linhagem de imames, que se
estende até o 12° imame; este desaparece misteriosamente e
até hoje se espera a sua volta. E uma situação como a de D.
Sebastião em Portugal: espera-se o retorno triunfal do 12° imame,
com uma mensagem espetacular e a instauração do domínio do
Islam sobre o mundo.

• 123•
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Olavo de Carvalho

Tudo isso existe no mundo iraniano; ou seja, entre os xiitas.


Mas no mundo xiita há pequenas diferenças em relação ao Islam
majoritário, que por sua vez segue a shari'ah - o conjunto dos
mandamentos deixados em parte no Corão, em parte no hadith,
o conjunto de ditos e feitos de Mohammed. Talvez não exista, na
história, um personagem cuja vida tenha sido tão bem documen-
tada, nos seus mais mínimos detalhes, como a de Mohammed.
A coleção inteira dos hadith abrange aproximadamente 40 mil
coisas que ouviram ele dizer, ou que o viram fazer, e que ao
longo do tempo se tornaram modelos a serem imitados.

Fé e religião no Islam
Como a revelação do Corão a Mohammed pelo Arcanjo Gabriel
levou vinte e oito anos para ser completada, acredita-se que o
aprendizado do Islam também deva levar vinte e oito anos, até
que se aprenda os últimos mandamentos consagrados no Corão
e no hadith. Mas no Corão você tem o resumo dos cinco pila-
res, as cinco obrigações regulamentares: (1) fé (shahadah); (2)
prece diária (salat); (3) jejum (ramadan); (4) caridade (zakat) e
(5) peregrinação à Meca (hajj). Logo, se o sujeito cumpre esses
cinco pilares, ele está dentro do Islam, no qual há um notório rito
de agregação, a chamada "declaração de fe". O sujeito se reúne
com os membros de uma mesquita e perante eles diz ritualmente
as palavras: La illa Allah, Muhammad rasul Allah, "Só Deus
é Deus, e Mohammed é seu profeta". Se o declarante acredita
mesmo no que diz ou não, pouco importa, pois, como diz um
hadith, "os hipócritas são nossos amigos". O sujeito se torna
imediatamente membro da comunidade e detentor de direitos,
ainda que todos os demais saibam que é descrente.
Assim, o rito não implica nenhuma transformação interior,
mas apenas um desejo de engajamento em certo meio. Todas as
obrigações religiosas no Islam são também regulamentares, e nada

• 124-
O saber e o enigma

mais que isso - não pedem nenhum conteúdo de fé. A noção de


fé e totalmente desconhecida no mundo islâmico; na verdade, a
própria palavra "religião" é enganosa sob esse aspecto. Não existe
no árabe corânico palavra alguma equivalente a "religião". Usa-
-se, isto sim, a palavra din, que quer diz lei ou ordem universal,
e portanto não designa um objeto de crença. Daí que o Islam
não seja exatamente uma religião no sentido ocidental, mas um
código civil hipoteticamente de origem divina e obrigatório para
todos. Os que o seguem - ainda que apenas da boca para fora
- participam da Dar al-Islam, a "Casa da Paz", e os que não o
seguem estão na Dar al-Harb, o "Mundo da Guerra".

Esoterismo e Ocidente
Esse é o quadro de referências, estritamente muçulmano, do qual
René Guénon parte para estabelecer a distinção entre exoterismo
e esoterismo. Se essa clivagem ocorre no Islam - no qual se
fala que a religião exotérica é a "casca" e a religião "esotérica",
o miolo -, seria de se imaginar que ocorreria coisa similar no
Ocidente, com a concomitante existência de uma religião popular
e, dentro dela, o ensinamento de determinadas organizações
esotéricas fiéis, de algum modo, à religião pública, porém com
seus ritos próprios, sua iniciação e sua linhagem própria ao
longo dos séculos.
Dizia assim Guénon que, de tudo que pode ter havido de
esoterismo cristão em outras épocas, só sobraram duas orga-
nizações, a Maçonaria e a Companheiragem (uma iniciação de
ofício que, à época que Guénon escrevia, contava com pouquís-
simos membros, restritos à França). Mesmo elas estariam numa
decadência extrema e precisariam ter seus rumos endireitados,
seus ritos e simbolismos reconstituídos.
Toda a Modernidade, ainda segundo Guénon, seria o resultado
da perda da perspectiva esotérica. Teria havido um esvaziamento

- 125.
Olavo de Carvalho

do esoterismo e, portanto, um esvaziamento do sentido da própria


religião exotérica. Esse diagnóstico parecia bastante verossimil
porque, a partir do século XIX, se via cada vez mais a religião
cristã se tornar apenas um sistema de moralidade, algo sem
alcance espiritual algum, mas a que teoricamente as pessoas
devem obedecer por ser algo decente. A religião teria se resu-
mido à moral, e a moral por sua vez à decência - a aparência
de moralidade (no sentido da mulher de César: não basta que
seja honesta, é preciso que também pareça sê-lo).
Convicto desse fenômeno, Guénon passa a rastrear as orga-
nizações iniciáticas cristãs até a Idade Média, a fim de verificar
as transformações históricas que haviam sofrido e que as tinham
marginalizado e, por outro lado, estragado por dentro. O esfor-
ço de Guénon para restaurar o sentido da doutrina maçônica
dentro da própria Maçonaria foi algo gigantesco. Mas 99% dos
maçons hoje em dia nem sabem quem foi Guénon. Os esforços
dele foram baldados; o maçom médio atualmente desconhece
tudo sobre autêntico esoterismo.
Pude verificar isso décadas atrás, quando escrevi um arti-
go sobre o simbolismo maçom n'A flauta mágica de Mozart.
Imediatamente vários grupos maçons se interessaram pelo assunto
e me convidaram para fazer uma conferência. Lá percebi que eles
não sabiam de nada do que eu estava falando. Eu, que nunca
fui maçom, conhecia o assunto, ao passo que eles ignoravam
inteiramente. Também tive nessa época um colega no movimento
astrológico paulista, um lider do movimento, que era também
um sujeito importante na Maçonaria. Espantava-me que ele não
percebesse a diferença entre esoterismo e ocultismo, o qual, con-
forme mostra Guénon, é um fenômeno especificamente europeu do
século XIX (espiritismo, teosofia, antroposofia, eubiose etc.), uma
espécie de esoterismo diminuído e popularizado, que precisaria
ser destruído para que se restaurasse o autêntico conhecimento
esotérico. Os meus poucos contatos com a Maçonaria real me

• 126
O saber e o enigma

mostraram que seus membros estavam muito abaixo do nível


em que Guénon formulava os problemas.
E da maior importância saber se o diagnóstico de Guénon
- que vê o catolicismo com a mesma estrutura do islamismo,
só que com conteúdo diverso — é correto ou não. Ademais, é
a partir desse diagnóstico que Guénon estuda o fenômeno que
denomina crise do mundo moderno, a queda do Ocidente no
materialismo mais grosseiro, mais crasso, a partir sobretudo
do século XvIII. Cria-se o Estado leigo, não comprometido
com religião alguma, e que assim administrará externamente a
relação das religiões umas com as outras, à maneira do precei-
to constitucional americano de que o congresso não legislará
sobre matérias religiosas e não preferirá uma religião às outras
(o que é curioso: à época, as "religiões"eram apenas correntes
diversas do protestantismo; o número de católicos e judeus era
irrisório). A religião se torna coisa de foro intimo do individuo.
Permanece válida, segundo Guénon, mas carente de uma rein-
jeção de esoterismo.
O indiferentismo em matéria religiosa estava consagrado no
regulamento da Maçonaria. O inglês James Anderson e o francês
John Theophilus Desaguliers criam em 1723 as "Constituições dos
Francos-Maçons", conhecidas como "Constituição de Anderson",
que para todos os efeitos são o regulamento da Maçonaria
moderna. Um dos mandamentos é que o maçom acredite em
Deus; um maçom não pode ser ateu. Mas o que o maçom pensa
a respeito de Deus não é coisa que interesse a alguém mais além
dele. Pode ser católico, protestante, hinduísta, budista, o que
quiser. Está bem que nas lojas maçônicas americanas as pessoas
fazem seus juramentos com a mão sobre uma Biblia, porém uma
Bíblia maçônica, que é a tradução do Rei James com introdução
e notas de teor maçônico. Foi sobre essa Biblia maçônica que
os founding fathers fizeram seus juramentos constitucionais.
Isso não é suficiente, contudo, para alegar que a Maçonaria

+ 127
Olavo de Carvalho

americana seja cristã. Se você quiser, pode jurar sobre o Corão.


Do ponto de vista da doutrina maçônica, será coisa indiferente.
Não deixa de ser interessante que Guénon, ele próprio um
iniciado maçom e um dos maiores teóricos maçons da história,
condene Anderson e Desaguliers por terem supostamente ocul-
tado as origens católicas da Maçonaria e inaugurado a fase do
indiferentismo religioso. Mas ora: se não fosse esse indiferentis-

mo religioso, como poderia Guénon falar tanto de Islam dentro


de um contexto maçônico? De certo modo, a obra guénoniana
dentro da Maçonaria se torna possível graças ao "erro" que ele
atribui aos fundadores modernos dessa sociedade.

Digo Maçonaria "moderna" porque ela de fato remonta a


muitos séculos através das corporações de ofício, que reuniam
profissionais de uma determinada área (construtores, pedreiros,
médicos etc.) e transmitiam aos seus membros não só as técnicas
do ofício, a ciência que praticariam, mas também a sua forma-
ção religiosa e, especificamente - percebam que isto é o mais
interessante -, os segredos de ordem material que veiculavam
em si um conteúdo de ordem espiritual. Se nos perguntarmos
por que foi a corporação dos pedreiros (ou "empreiteiros", como
chamaríamos hoje) que veio a constituir a Maçonaria, ao adquirir
prestígio maior que as demais corporações, concluiremos que
se deve ao fato de a arquitetura ser a arte que reúne todas as
ciências, como já ensinava Vitrúvio. Conhecimentos de aritmé-
tica, geometria, física, medicina, botânica etc. são requeridos
do arquiteto.

É notório que até certa fase da história, ainda na Idade


Média, todo o conhecimento esotérico dessas corporações
estava, por assim dizer, consolidado em pedra. As catedrais de
Notre Dame, de Chartres, de Rheims e tantas outras exibem
todos os elementos da astrologia, da alquimia, da geomancia, de
todo o simbolismo natural. Isso quer dizer que, até essa época,
os conhecimentos esotéricos não eram tão esotéricos assim.

• 128-
O saber e o enigma

Estavam à disposição de todos: uns os entendiam, outros não;


uns se interessavam em conhecê-los, outros não.
Fato, contudo, é que no período moderno o esoterismo
afastou-se da religião pública. Prosseguiram em Roma as discus-
sões (que até hoje volta e meia reaparecem) sobre a possibilidade
de absorção da Maçonaria pela Igreja, a m de que esta recu-
pere seu esoterismo. Isso é extremamente problemático, mesmo
inviável, em razão do indiferentismo religioso e de determinadas
doutrinas maçônicas incompatíveis com o catolicismo. O grande
defensor da ortodoxia católica da Maçonaria é um discípulo
de René Guénon, Jean Tourniac. Seus livros são maravilhosos,
mas não convencem da viabilidade dessa absorção. O só fato
do indiferentismo religioso é impeditivo à reunião de Maçonaria
e Igreja. Restaria saber se esse indiferentismo é algo dado nas
raizes da corporação, ou se é uma invenção dos fundadores
modernos (acredito nesta última hipótese).
A crítica de René Guénon à decadência do Ocidente moderno
se concentra sobretudo nos livros A crise do mundo moderno
(1927) e O reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945),
nos quais é capaz até de vislumbres proféticos, ao mesmo tempo
que comete erros de análise pueris (em O reino da quantidade
chega a prever o desaparecimento do dinheiro em espécie, pro-
cesso a que assistimos hoje em dia, e a asseverar que a China
jamais seria comunista). Nesses títulos afirma que o Ocidente
decaiu tanto, que não é mais capaz de se recuperar a si mesmo.
Seria preciso uma intervenção externa, a qual poderia tomar
basicamente duas formas: 1) a restauração da Igreja Católica sob
a orientação de mestres espirituais orientais, que em princípio,
diz ele, conservaram todo o legado esotérico; e 2) a islamização
do Ocidente.
Guénon tentou influenciar o meio católico através de uma série
de artigos brilhantíssimos que escreveu para a revista Regnabit
nos anos 1920 e 1930. Tentava ali, por meio da interpretação

* 129-
fi
Olavo de Carvalho

dos simbolos cristãos, restaurar uma espécie de consciência


esotérica entre o público clerical. Num certo ponto, desiste da
empreitada e se muda para o Egito, onde se islamiza completa-
mente. Percebam que ele não se converte ao Islam; é absurdo
pensar em conversão na esfera esotérica. É um conceito estranho
a essa via. Um praticante sufi está livre para praticar os ritos
da religião que quiser, pois o que interessa não é a casca, é o
miolo. O próprio Muhammad Ibn 'Arabi, o maior dos mestres
sufi, dizia que seu coração é ao mesmo tempo uma mesquita,
uma sinagoga, uma catedral católica, um templo budista etc. O
que não quer dizer que exotericamente ele não continuasse um
muçulmano ortodoxo.

Tradição Primordial e unidade transcendente


das religiões

Tomando o caminho do Islam, René Guénon acredita que temos


de preparar uma elite espiritual ocidental a partir dos ensinamen-
tos de mestres espirituais orientais qualificados, especificamente
islâmicos, sufis. O sufismo é para ele uma espécie de boca de
funil, para onde todos os ensinamentos esotéricos de todas as
épocas confluem. Guénon acredita piamente na existência de uma
Tradição Primordial, uma religião originária, a religião de Adão,
que teria depois se diversificado sob formas exotéricas diferen-
tes conforme as exigências do lugar e da época, adaptando-se,
portanto, às condições sociais e históricas. A diferença entre as
religiões, para além da diversificação segundo diferentes condi-
ções civilizacionais, não teria em si significado espiritual nenhum.
Assim se realizaria aquilo que dizia Teilhard de Chardin: "Tudo
que sobe converge". O aspecto mais externo e visivel das religiões
seria multifacetado, mas por dentro todas levariam ao mesmo
lugar. Contudo, não existe o mais mínimo sinal histórico de que
essa religião primordial tenha jamais existido. Quanto mais você

• 130-
O saber e o enigma

rastreia as religiões recuando no tempo, mais claramente percebe


que se manifestavam diferenças desde o início.
Mais tarde, Frithjof Schuon defenderia a tese da unidade
transcendente das religiões em um livro homônimo. Essa tese
pode ser interpretada de duas maneiras: você pode entender
essa unidade como uma espécie de mínimo múltiplo comum ou
de máximo divisor comum das religiões. No primeiro sentido,
a unidade transcendente constitui-se de uma série de teses de
ordem metafísica afirmadas uniformemente por todas as religi-
ões. Por exemplo, a distinção entre absoluto e relativo, entre
finitude e infinitude, a concepção de graus de realidade etc. -
em suma, a estrutura total da realidade. Nesse sentido, de fato
todas as religiões se equivalem. Só que a metafísica não é uma
religião; sobretudo, não é um caminho de salvação, é apenas
uma descrição da estrutura da realidade. A tese de Schuon, se
apreendida nesse sentido, está certíssima. A outra maneira de
interpretá-la está em crer que existe uma supra-religião universal
que abrange todas, o que é absolutamente inaceitável, tanto
historicamente quanto doutrinalmente. Schuon nunca afirmou
este segundo sentido, ele nunca disse existir uma supra-religião
como essa, mas a sua conduta transmitia algo dessa crença, pois
concretamente ele agia como se fosse um papa multiconfessional.
Há, aí, toda uma ambigüidade.

Acredito que Schuon seja o verdadeiro fundador das ciências


da religião comparada. Um discipulo dele, Whitall Perry, que co-
nheci, um homem inteligentissimo, brilhante, editou A Treasury of
Traditional Wisdom: An Encyclopedia of Humankind's Spiritual
Truth, uma antologia de textos das várias tradições religiosas
que mostra sua convergência em determinados pontos, a ilustrar
concretamente a tese de Schuon. Mas essas convergências sem-
pre se referem apenas à parte metafísica, no máximo a algumas
questões de mística, mas isso não basta para que, a partir de
elementos tão heteróclitos, se identifique uma supra-religião.

× 131-
Olavo de Carvalho

Essas convergências não fazem mais que apontar para uma


espiritualidade humana normal que está disseminada no mundo
inteiro, mas nada dizem das diversas religiões como vias de
transformação espiritual humana, se são ou não eficazes. No fim
das contas, esta é a pergunta decisiva: para onde as religiões
estão levando as almas? O teste final é o destino post mortem,
e, tomadas a partir desse aspecto, as religiões são inconciliáveis.
Seja como for, Guénon acreditava numa Tradição Primordial,
e acreditava ademais que sua versão mais pura se conservava na
tradição hindu, especialmente nos escritos de Shankaracharya,
o grande comentarista da revelação hindu. O hinduísmo, to-
davia, apresenta o problema de só poder ser praticado por
quem nasceu na India. Não é possível exportá-lo, não existe
conversão hindu. Assim, quem representaria de fato a força
viva do esoterismo no século XX seria a tradição islâmica, as
tariqas, o sufismo. E por isso que, embora René Guénon na
maior parte dos seus escritos utilize o vocabulário hindu, não
está tentando levar ninguém para o hinduísmo. As únicas vias
possíveis, segundo ele, são ou as iniciações ocidentais, como
a Maçonaria e a Companheiragem - decadentes o quanto
sejam -, ou o sufismo. E verdade que ele acreditava existirem
resíduos de esoterismo na Igreja Ortodoxa. Em torno do Monte
Atos existe uma série de ritos iniciáticos que continuaram sendo
praticados ao longo dos tempos. Mas com a ortodoxia também
se dá o já referido problema: a religião ortodoxa é uma religião
estatal, cujo chefe é o tzar; logo, sua expansão para além do
território russo não faz muito sentido. (Falo isso me atendo
apenas ao caso russo; não sei se coisa similar poderia ser dita
sobre a Igreja Ortodoxa Grega).

Reparem que Guénon considerava o protestantismo total-


mente herético e inválido; pensava coisa similar também sobre
o budismo. Ambos representariam um afastamento do tronco da
Tradição Primordial, não seriam conhecimento espiritual válido.

• 132-
O saber e o enigma

A divergência de Frithjof Schuon a respeito gerou um conflito


entre os dois. Talvez por ter nascido num meio protestante,
Schuon defendia a legitimidade esotérica de certas correntes
protestantes. Existiriam formas de espiritualidade próprias do
povo alemão, de serventia exclusiva aos alemães, e isso justifi-
caria historicamente certas correntes protestantes. Guénon não
queria nem ouvir falar disso.
Descartados, portanto, o hinduísmo, a ortodoxia, o pro-
testantismo e o budismo, a restauração do Ocidente - volto a
repetir - só poderia vir por meio de uma injeção de esoterismo
islâmico na Igreja Católica, ou por meio da destruição da Igreja
Católica e islamização do Ocidente.

Islamizar o Ocidente
Nos anos 1930, quando se muda para o Egito, Guénon se casa
com a filha daquele que talvez fosse o principal sheikh suf islâmi-

co na época, Abder-Rahman Elish El-Kebir; tem filhos egípcios,


vive uma vida cem por cento islâmica. Para mim, isso indica
que ele havia desistido da outra possibilidade (a restauração do
esoterismo cristão), tanto mais que a partir desse momento rompe
totalmente com os meios católicos. Sobrara apenas o Islam.

Essa opção é ainda mais clara no caso de Schuon. Esse


suíço, interessado em esoterismo mas sem rumo algum na vida,
um dia vê uma cavalgada de árabes no meio da rua. Toma a
imagem daqueles homens de turbante como uma mensagem. Vai
para a Argélia, ingressa numa tariqa dirigida por um dos mais
célebres mestres espirituais da época; quando da morte deste,
ele e alguns outros membros sonham que ele, Schuon, se torna
o sheikh. Uma parte acreditou nisso, outra parte não acredi-
tou; ele se tornou, de todo modo, sheikh dos que acreditaram.
Quando retorna à Europa, instalando-se em Lausanne, enuncia
seu projeto: "Vou islamizar o Ocidente".

* 133-
Olavo de Carvalho

Quando hoje, passadas décadas, avaliamos a in uência de


Schuon sobre guras de primeirissimo plano da intelectualidade,
da política e das nanças européias, concluímos que a islami-
zação do Ocidente começou pelo alto. Quando tive, por cerca
de dois anos, contato com a Maryamiyya, a tariqa de Schuon,
notei que se iniciara certo intercâmbio entre Martin Lings - ou
sheikh Abu Bakr Siraj Ad-Din, o segundo no comando da tari-
qa — e o Principe Charles. Inclusive, o maravilhoso The Secret
of Shakespeare, de Lings, provavelmente o melhor livro que
alguém já escreveu sobre Shakespeare, a expor todo o conteúdo
esotérico e simbólico de sua obra, traz em sua segunda edição
um prefácio do Principe Charles. Isso 30 anos atrás. Ao longo
do tempo, o Principe Charles assumiu cada vez mais uma defesa
aberta do Islam. Em diálogo recente com o grande historiador
esotérico maçônico Angel Millar, enviou-me ele artigos que
confirmavam a adesão do Principe Charles ao Islam na versão
guénoniana, esotérica, sem agregação exotérica.
Mas pouco interessa se ele se converteu ou não ao Islam
público. O fato é que ele é membro de uma tariqa, e o membro
de uma tariqa faz o que o sheikh manda, mesmo que permaneça
exotericamente numa religião completamente diferente, como era,
aliás, o caso de Rama Coomaraswamy. Rama Coomaraswamy
era filho do historiador da arte sacra e estudioso de religiões
comparadas Ananda Coomaraswamy, um indiano que, hindu
praticante, muda-se para os Estados Unidos e continua pro-
fessando sua religião. Seu filho, contudo, porque nascido nos
Estados Unidos, não pode se integrar ao hinduísmo. Rama
Coomaraswamy segue então para a Igreja Católica, mas o faz
sendo ao mesmo tempo membro da tariqa de Schuon e executor
de ordens deste. Chegou a ser professor de seminário e escreveu
livros importantes sobre a religião cristã, inclusive A destruição

da tradição cristã, que invalida completamente as decisões do


Concilio Vaticano Il e enuncia a tese horripilante de que a missa

• 134
fi
fi
fl
O saber e o enigma

e as ordenações sacerdotais se tornaram inválidas, e portanto


não existiriam mais padres verdadeiramente ordenados com
menos de 90 anos. Essa tese foi muito bem rebatida por alguns
membros da Sociedade São Pio x (sSPx). Quem está certo, bom,
eu não sei.
Estudar essas coisas traz, entre outras vantagens, a de nos
habituar às palavras "não sei". Não à toa, uma vez Rama
Coomaraswamy me disse o seguinte, acerca de questões con-
cernentes a esoterismo: "Toda pergunta tem duas respostas: sim
e não". Isto é, certamente existirá uma resposta exata e ela será,
como diz Cristo, ou sim ou não. Porém não sabemos, e às vezes
temos de passar a vida inteira sem saber e agüentar o nosso
estado de ignorância. Para a maior parte das pessoas o estado
de dúvida é insuportável por mais de uns segundos. As pessoas
sentem a necessidade de encontrar alguma resposta logo para se
acalmarem. Mas, se você quer estudar problemas esotéricos a
sério, precisa se conformar com o seu estado de dúvida. Como
diz o haikai de Alberto da Cunha Melo: "Quem não se procura
se acha./ Diga 'Não sei' e receba/ uma aula de graça"
A propósito, uma dúvida pode nos ocorrer no momento: será
que a solução islamizante a que chegaram Guénon e Schuon
representa uma resposta autêntica ao problema que se colocaram?
Se observamos o que se passa hoje no Ocidente, nesse período
de intensa penetração islâmica, tenderemos a concluir que a
islamização no Ocidente não está restaurando a espiritualidade,
não está detendo a barbárie; está, ao contrário, aprofundando
a crise, acentuando a barbárie. Não sei ao certo o que René
Guénon diria se estivesse vivo, mas tendo a crer que não se
animaria muito com os resultados da islamização obtidos até
o momento.
Mas essa questão nos leva de volta ao problema do esoterismo
cristão. Afinal, é a esse problema que o projeto de islamização
responde. Será, afinal, a distinção entre exoterismo e esoterismo

× 135-
Olavo de Carvalho

uma maneira correta de apreciar o cristianismo e o Ocidente,


para dai derivar o diagnóstico da crise do mundo moderno no
sentido em que Guénon o faz? E, se for lícito falar em esoterismo
cristão, terá Guénon o identificado acertadamente? A Igreja é
mesmo absolutamente incapaz, como ele pretende, de se restaurar
a si mesma? São perguntas cujas respostas tentarei oferecer ao
longo das próximas lições.

• 136-
CAPÍTULO II

A Igreja e seus sacramentos iniciáticos

Iniciação e esoterismo
Ritos, como expliquei anteriormente, são repetições formalizadas
de gestos, de atos primordiais criadores. Mediante o rito, as
possibilidades abertas pelo ato criador são renovadas e alcan-
çam uma presença constante no mundo. Por exemplo, no rito
do Batismo se faz uma imersão na água; a água, evidentemente,
representa a fonte de toda a vida, o princípio da vida (diferente,
assim, da simbologia da água como fim, representada pelo mar,
pelas águas de um rio que vão desembocar no mar). O rito do
Batismo atualiza no fiel as possibilidades do gesto primordial
de nascer, de renascer para uma nova vida.
Em específico, ritos de iniciação são aqueles que se destinam
a abrir para o postulante certas possibilidades espirituais que
ele antes não possuía. A quase totalidade dos ritos de iniciação,
no entanto, permanece virtual: o indivíduo não se apropria
imediatamente das possibilidades conquistadas, para tanto é
preciso esforço, é preciso até a assistência divina.
Rito e simbolo são os conceitos centrais de todo esoterismo,
e grande parte dos ritos iniciáticos consiste apenas na exibi-
ção de um símbolo que você desconhecia antes. Este símbolo
contém uma forma que irá estruturar a sua vida espiritual ao

×137
Olavo de Carvalho

longo do tempo. No budismo tibetano, por exemplo, existem


iniciações coletivas que consistem na simples exibição de uma
mandala, uma gura concêntrica que representa a estrutura
total da realidade. A partir do momento em que o sujeito viu
aquilo, aquela gura começa a estruturar a sua experiência do
mundo. Este, notem bem, é um rito público, não é esotérico. É
muito importante desfazermos a mescla, a confusão, que existe
entre o que é iniciação e o que é esoterismo. Esse exemplo do
budismo tibetano mostra que pode haver iniciações públicas,
iniciações sem nenhum esoterismo.
Começamos a falar de esoterismo a partir do momento
em que se entende que este acesso às realidades espirituais se
dirige a um grupo privilegiado que se destaca da comunidade
dos fiéis por algum motivo - este é o primeiro componente do
esoterismo. Logo, o segredo lhe é inerente, não necessariamente
no sentido de se esconder algum elemento, mas no sentido de
que esse elemento por si mesmo é inacessível, vamos dizer, ao
profano, ao sujeito que o visse de fora.
Outra característica importante da iniciação é a de pressupor
uma cadeia de transmissão. O ato primordial que a fundamenta,
que abre as possibilidades iniciáticas, só pode ser transmitido
de geração a geração por uma cadeia ininterrupta: um sujeito
foi iniciado por outro, que o foi por outro, e este por outro, e
assim por diante. Sem isso, pode-se ter uma aparência de vida
religiosa, até de moral religiosa, mas não haverá iniciação de
modo nenhum.
A relação entre esoterismo e iniciação é um pouco mais
complexa do que as pessoas imaginam normalmente. O rito
iniciático, por si próprio, é de certa forma espontâneo: o seu
conteúdo só se descortinará aos poucos, ele permanece secreto
inclusive para aquele que recebeu o rito; nesse sentido, pode-se
dizer que o rito iniciático é esotérico, mas não no sentido formal,
no sentido de que precise de uma organização e de uma linhagem

• 138-
fi
O saber e o enigma

de transmissão. É claro que o sujeito que opera o rito iniciático


tem de ser parte da cadeia de transmissão, mas aqueles que re-
cebem iniciação coletivamente não dão prosseguimento a essa
cadeia, o que é uma distinção fundamental a ser feita. Quando
o monge tibetano reúne uma multidão e a inicia em massa, ele
está ali como um membro da cadeia de transmissão, porém
aqueles que recebem a iniciação não fazem parte da linhagem
iniciática, não têm autorização nem meios de propagar o rito.

Esoterismo natural e esoterismo formal


Podemos assim falar em esoterismo natural e em esoterismo
formal. O esoterismo formal requer uma organização iniciática
com uma história própria, com uma linha de transmissão com-
provada ao longo dos tempos. E o que ocorre, por exemplo,
com ordens sufis; toda tariqa tem sua árvore genealógica, que,
em princípio, remonta real ou alegadamente ao próprio profeta
fundador do Islam. E também o que ocorre nas organizações
maçônicas, cada uma com sua história, com uma linhagem que
vai até os fundadores modernos da Maçonaria, Anderson e
Desaguliers, mas idealmente vai até os tempos de Salomão. Ai
já entramos num reino mítico, não sabemos se essa origem se
verifica ou não (voltaremos depois ao assunto maçônico).
Pela sua natureza, que é, por assim dizer, compacta e virtual,
a iniciação se transmite por meio de um símbolo. Este símbolo
pode ser simplesmente visto, pode ser ouvido (no caso de uma
música), ou pode ser realizado no espaço por gestos que o próprio
postulante pratica (como na missa católica, na qual o sacerdote
realiza certos atos e o fiel os repete: são símbolos efetivados
no espaço e no tempo). Isso quer dizer que o sujeito pode re-
ceber uma iniciação e não ter a menor consciência do que está
se passando, de modo que os efeitos dela podem permanecer
inconscientes por muito tempo; e isso pode acontecer não só

× 139×
Olavo de Carvalho

com um indivíduo, mas com gerações inteiras. Nesse caso, a


iniciação terá sido transmitida a várias pessoas, elas continuam
não sabendo do que se trata, e o conteúdo da iniciação poderá
subir à consciência dos iniciados apenas em uma segunda, terceira
ou quarta geração. A arquitetura das catedrais na Idade Média
está repleta de símbolos geométricos, pictóricos, bestialógicos,
vegetais etc.; é como se fosse uma enciclopédia de símbolos, a
incluir todo o conteúdo de uma iniciação cristã. Esse conteúdo
está presente na própria materialidade das igrejas; as pessoas,
pelo simples fato de entrarem nelas, de serem expostas a elas, de
algum modo já recebem o impacto simbólico; porém, a tomada
de consciência disso pode levar muito tempo, pode ser muito
atribulada.
Em meu livro A filosofia e o seu inverso, inclui um estudo
sobre a relação entre a arquitetura sacra da Cristandade me-
dieval e a filosofia escolástica. Defendo, lá, que a tese de Erwin
Panofsky de que a arquitetura medieval ilustrava a filosofia
escolástica representa uma inversão da cronologia, porque
alguns dos principais templos da arquitetura cristã medieval já
estavam prontos antes do florescimento da filosofia escolástica
no século XII. Durante os séculos X, XI e XII, desenvolveram-se
as chamadas escolas monacais e catedrais, que não visavam
propriamente ao ensinamento intelectual, mas à formação da
personalidade das pessoas, de modo que cada personalidade
fosse uma espécie de obra de arte, uma forma a mais perfeita
possível. As pessoas que emergiam dali eram tão notáveis (não
pelos seus ensinamentos, mas pelo seu modo de ser), que se
chegou a falar na "inveja dos anjos" - até os anjos invejariam
a perfeição dessas pessoas.

No entanto, tudo isso permanecia ainda no nível do símbolo


fisicamente presente. Essas pessoas de certa forma eram símbolos;
o ensino consistia na transmissão de símbolos, e essas pessoas
os incorporavam ao seu modo de vida. Esse ensino pode ter

• 140-
O saber e o enigma

prosseguido durante muitas gerações sem que ninguém tivesse


uma clara consciência intelectual do que estava se passando.
A pergunta acerca do que exatamente aquele ensino estava
comunicando não encontraria resposta. A expressão do seu con-
teúdo ocorre justamente com o grande florescimento da filosofia
escolástica no século XIII - com Santo Alberto, Santo Tomás de
Aquino, Duns Scot etc. Toda a riqueza intelectual que vemos
na filosofia escolástica estava já contida compactamente nos
símbolos da arquitetura sacra, no ensino das escolas monacais
e catedrais e nas pessoas formadas por estas. Evidentemente,
esse conteúdo simbólico continha muito mais do que a filosofia
escolástica foi capaz de expressar.

Simbolo, na definição da filósofa Susanne Langer, é uma


matriz de intelecções (ele não é só isso, mas também é isso).
Ilustra-o com perfeição o caso do simbolismo iniciático medieval.
Os símbolos serviam àquelas pessoas como meio de alcançar um
corpo imenso de intelecções, sem necessidade de que, geração
após geração, se apercebessem claramente do que se passava
com elas.

Da "Maçonaria operativa" à "Maçonaria espe-


culativa"
Uma forma bem característica assumida pelas iniciações ao
longo dos tempos é a das corporações de ofícios, nas quais as
pessoas que transmitem uma técnica, ou uma arte, transmitem
junto com ela um simbolismo completo e, portanto, um conteú-
do iniciático virtual. Essas iniciações se concentram sobretudo
nas comunidades de construtores ou arquitetos por um motivo
muito simples: a arquitetura reúne todas as ciências, todo o
conhecimento; quer dizer, o número de conhecimentos de que
um arquiteto ou um urbanista pode necessitar não tem limite,
e evidentemente nada mais propício a transmitir simbolismos

* 141*
Olavo de Carvalho

numéricos, geométricos, espaciais etc. do que a arquitetura.


Quer você queira ou não, quer saiba ou não, no ato mesmo de
absorção dos símbolos ligados a um ofício você se torna detentor
de determinadas possibilidades espirituais correspondentes ao
simbolismo em questão, ainda que nunca venha a concretizá-las
(a maioria jamais chega a realizá-las).
E justamente dessas comunidades que sairá o que hoje conhe-
cemos como Maçonaria. Maçom quer dizer pedreiro; evidente-
mente, não um pedreiro no sentido prosaico da palavra, mas um
arquiteto, um urbanista. A história da Inglaterra mostra que os
grandes pioneiros da Maçonaria moderna não eram pedreiros,
mas arquitetos de altissimo nível. Contudo, acontece que (estou
adiantando um pouco o expediente) no século XVIII, quando se
constitui a Maçonaria moderna, essas comunidades de ofício se
encontram em crise, em conflito com o governo, o que terminará,
depois da Revolução Francesa, com a sua total extinção, com a
sua substituição pelo que hoje chamamos de sindicatos. Percebam
a distância que se percorreu aí desde as antigas iniciações de
ofícios até se chegar a um sindicato moderno.
Duas grandes mudanças definem a Maçonaria moderna. Com
as Constituições maçônicas de Anderson e Desaguliers de 1723,
toda referência ao catolicismo é abolida dentro da organização,
o que é estranhíssimo, pois todas as iniciações de ofício até
então eram católicas. A formação e a orientação religiosa dos
profissionais cabiam inteiramente à corporação de ofício, e esta
imprimia um caráter católico a seus ensinamentos. A segunda
mudança é que, até aquele momento, as corporações de ofício
só aceitavam, evidentemente, os praticantes do ofício - e até
houve por isso certo conflito, porque surgiram várias corpora-
ções do mesmo ofício, uma em disputa com a outra, do mesmo
modo como surgiram profissionais independentes, autônomos,
que contestavam os privilégios das corporações. Pouco depois
da Revolução, o rei dissolveu as corporações definitivamente.

•142•
O saber e o enigma

Assim, a sociedade esotérica que se forma com o nome de


Maçonaria começa a aceitar pessoas que não pertencem ao
ofício e que, portanto, não têm aquela formação universal das
artes, das técnicas e do simbolismo próprios à arquitetura. Eram
pessoas que simplesmente estavam interessadas em esoterismo
e que passam da chamada "Maçonaria operativa" à chamada
"Maçonaria especulativa", na qual todo o universo dos simbolos
não é mais realizado mediante a prática de uma arte, mas apenas
absorvido intelectualmente e passado de geração a geração.
Isso fará uma diferença brutal na história da Maçonaria e de
todo o mundo moderno.

Simbolismos espaciais e numéricos


As catedrais medievais exibem todo o simbolismo das direções do
espaço. Em primeiro lugar, nelas não havia extensão meramente
vazia a ser ocupada conforme o arbítrio de cada um. Entendia-
-se que a orientação no espaço era uma espécie de modelo em
miniatura terrestre da própria ordem cósmica. Em A estrutura
absoluta, Raymond Abellio estuda a condensação de todas as
estruturas do mundo, o que resulta nas direções do espaço vistas
não só estaticamente, mas também nas suas relações.
Outro simbolismo presente nas catedrais era o da medida e,
portanto, do número. Ao longo do tempo o próprio significado
dos números foi se perdendo, no Ocidente, justamente na mesma
medida em que se incrementava a capacidade de operar com o
número, que assim se tornava mais um instrumento a serviço
de outra coisa. O número perde sua substância, a ponto de ser
observado como mero elemento de contagem. Ora, os gregos não
tinham a nossa numeração, que é arábica e surgiu muito depois.
Eles representavam os números por pontos. Se isso por um lado
parece um sistema mais primitivo, por outro tinha a vantagem
de que qualquer representação numérica sugeria imediatamente

• 143-
Olavo de Carvalho

certas relações geométricas. Por exemplo, se você enumera "um",


depois enumera embaixo "dois", depois mais embaixo "três", e
por m mais embaixo "quatro", chega, por meio de sua soma,
ao número "dez". Nesse caso, torna-se visível uma relação entre
o quatro e o dez; procedimentos análogos passam a mostrar
certas relações internas entre os vários números. Nesse sentido,
os números aparecem não apenas como quantidades no sentido
discreto (uma bolinha, duas bolinhas, três bolinhas...), mas como
formas lógicas.
Ao falar do número um, você designa uma unidade, e a
unidade é a principal característica de todos os seres, pois um
ser só existe quando possui uma unidade em si: "ens et unum
convertuntur", diz Duns Scot. Ser algo é ser uma unidade. Se,
porém, pensarmos numa unidade simples, não composta, sem
divisão interna, ela só será concebível no plano da totalidade
universal e sem nada em si que assinale quantidade; portanto,
não será a unidade universal no sentido de reunião de todas as
coisas, mas no sentido de unidade cujo padrão unifica o conjunto.
Esse padrão, evidentemente, transcende o conjunto; a unidade,
tomada nesse sentido, é Deus. Mas tudo o que efetivamente
conhecemos são unidades compostas. Logo, o simples ato de
pensar na unidade que é Deus estabelece uma dualidade entre
aquilo que você está querendo signi car e o signo que está
empregando para tanto: você se vale de uma unidade menor,
simbólica, para representar aquela unidade absoluta inatingível.
Você passou simbolicamente do número um ao número dois, e
pode prosseguir simbolicamente até perfazer o decenário.
Acredito que depois dos antigos, especi camente depois dos
pitagóricos, Mário Ferreira dos Santos foi, em Pitágoras e o tema
do número e A sabedoria das leis eternas, o primeiro lósofo
a tirar as consequências óbvias dessas observações que estou
fazendo acerca dos números. Espécie de Platão brasileiro, ele
mostrou que cada número representa uma forma lógica - há uma

• 144-
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fi
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O saber e o enigma

forma da unidade, da dualidade, da ternariedade, da quaternidade


etc. —; a sucessão dessas formas constitui, no fim das contas,
a estrutura inteira do nosso pensamento, a estrutura inteira da
razão, das relações lógicas que somos capazes de conceber. Ao
compreender as formas lógicas dos números de um até dez, você
se apossaria do que Mário Ferreira chama de "leis", nas quais
residiria uma espécie de metalinguagem de todas as ciências.
Quem expôs isso em toda a linha pela primeira vez, repito,
foi Mário Ferreira dos Santos, mas houve várias sondagens
anteriores a respeito do assunto. Há muita coisa interessante
sobre o simbolismo dos números nas obras de René Guénon,
de Ananda Coomaraswamy e de Matila Ghyka, esse grande
investigador romeno, autor de O número de ouro. Todo esse
conhecimento da simbólica dos números já estava embutido na
estrutura das catedrais, na forma delas; suas medidas não são
apenas unidades espaciais, elas comunicam algo, de maneira
que, em princípio, a catedral é algo a ser lido.
Um dos princípios de decifração do simbolismo das catedrais
está na estrutura das sumas, o gênero literário predominante no
ensino universitário de filosofia na Idade Média. A estrutura delas
imita a das catedrais. Estas exibem com destaque arcos que se
desdobram: a partir de uma linha, traça-se um arco, o qual se
desdobra em um segundo arco, o qual por sua vez se desdobra em
um terceiro. Manifesta-se aí uma estrutura ternária do conjunto,
a qual imita e expressa, por sua vez, a estrutura do silogismo
(duas afirmações que levam a uma terceira). Ora, a estrutura geral
das sumas respeita essa divisão, essa triangulação do conjunto.
Contudo, a triangulação só se observa de afirmação para afir-
mação. Uma afirmação gera outras afirmações como conclusões.
Mas cada uma dessas conclusões se tornará uma nova premissa,
que, somada a uma segunda premissa (igualmente uma conclusão
já alcançada), leva a uma nova conclusão, e assim por diante.
Prossegue-se sempre triangulando o conjunto das proposições.

~ 145-
Olavo de Carvalho

Se você tomar a Suma teológica de Santo Tomás de Aquino


e a representar graficamente, exibindo seus inúmeros triângulos,
estes — quando somados uns aos outros - formam outras figuras.
Dadas duas premissas e uma conclusão, estas mesmas premis-
sas (que serviram a este silogismo), quando somadas a outras
premissas, formam outro triângulo ao lado, do qual, se aplicado
a ele o mesmo procedimento, surgirá outro triângulo, e assim
indefinidamente adiante, como uma geodésica de Buckminster
Fuller, que é considerada a estrutura mais sólida e mais resistente
que existe e só foi descoberta no século XX, embora já estivesse
prefigurada na estrutura das catedrais e das sumas.
As sumas não extraem desse simbolismo senão uma parcela
infinitesimal daquilo que ele sugere. Não terminamos de decifrar
essas formas até hoje. Isso também sugere o seguinte: quando
uma pessoa se dedica à leitura da Suma teológica ou da Suma
contra os gentios (que é de interesse mais geral, porque aquela
primeira se baseia em princípios revelados, mas esta última em
princípios filosóficos válidos para qualquer um), vê que a obra
tem, claro, uma linha central de demonstração, mas também
que ela em seu conjunto estabelece uma forma total no espaço
que não é redutível à ordem linear das demonstrações. Após
ler e reler essas obras várias vezes, você começa a vislumbrar a
estrutura total, percebe que a obra tem muito mais implicações
do que seu conteúdo escrito. Uma leitura estética da Suma teo-
lógica lhe abre o mundo absurdamente ilimitado dessas formas
criadas no espaço através da triangulação. Isso mostra o que é
a força de uma iniciação.
Todo sistema simbólico é assim: um núcleo aparentemente
simples que se prolonga ilimitadamente em consequências e abre
a consciência humana, cada vez mais, para possibilidades que
antes eram absolutamente inimagináveis. Isso pode partir, como
já disse, da simples exibição de um simbolo, ou, por exemplo, da
realização física do simbolo. Estudei tai chi com Michel Veber.

• 146-
O saber e o enigma

Os movimentos fundamentais eram apenas sete, sete posições,


mas dessas sete saía um número in nito de outras posições.

Iniciação católica
O fato de que tamanho conhecimento simbólico se apresente
a olho nu nas catedrais sugere o questionamento da armação
teórica que René Guénon oferece ao problema do esoterismo
no Ocidente.
Ora, a totalidade dos símbolos que aparecem nos ritos das
várias organizações esotéricas está presente nas catedrais. Mais
ainda, é o caso de dizer que as catedrais exibem até maior
conhecimento. Comparada à arquitetura ocidental medieval, a
arquitetura islâmica é até pobre, porque ela não podia apresentar
decoração gurativa, mas somente letras, frases do Corão. Ao
contemplar o templo islâmico, você contemplava apenas o que
já havia sido escrito. Você estava lendo o Corão.
Podemos nos perguntar sobre o sentido iniciático dos sacra-
mentos cristãos, e se é preciso ou possível acrescentar algum
conhecimento esotérico que já não esteja dado neles. Quando
Jesus morre na cruz, diz a Biblia que se rasga o véu do templo
(Mt 27, 51). O véu do templo é o segredo esotérico: aquilo que
só era acessível a uma certa elite de repente está exposto aos
olhos de todos, acessível a quem quiser buscá-lo. A crucificação
de Cristo é o rito iniciático por excelência, mas não esotérico.
Ou melhor: é esotérico no sentido interior, porém não no sentido
formal. O próprio Cristo o enfatizou claramente: "Nada ensinei
em segredo" (Jo 18, 20).
O fato de Ele não ter ensinado em segredo não significa que
todo mundo o tenha compreendido imediatamente (até mesmo os
apóstolos tinham certa dificuldade em compreendê-lo). Quando
Cristo diz: "Deixai vir a mim as criancinhas" (Mt 19, 14), quer
se referir com "criancinhas" àqueles que estão participando do

× 147
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Olavo de Carvalho

rito, mas sem ter clara consciência do que está se passando. São
aqueles que têm uma vida espiritual inconsciente, estão prenhes
da presença do Espírito Santo, mas inconscientes disso. Podemos
nos valer também de outro simbolismo neste ponto, o do cérebro
e coração. O cérebro é, de algum modo, a sede do pensamento
diferenciado, do raciocínio. Mas o raciocínio nada poderia se
você não tivesse a percepção imediata de certas presenças e de
certas verdades que são impensáveis - por exemplo, você pode
compreender o conceito de infinito, mas não pode pensá-lo. Você
pode conhecer uma pessoa com a maior intimidade possível,
mas não é capaz de pensá-la levando em conta simultanea-
mente todos os dados que a caracterizam. Você a conhece e
reconhece, sem a menor dificuldade, mas não consegue reduzi-la
inteiramente a um conteúdo da sua consciência. Pense no rosto
de uma pessoa. Mas estará pensando o rosto dessa pessoa
quando ela tinha que idade? Seu rosto se transformou ao longo
dos anos, você a conheceu com diferentes qualidades (feição
mais fina ou mais arredondada, com barba ou sem barba etc.);
mas, quando pensa nela, você tende a tomá-la a partir de um
único momento, de um único rosto fixado. Você a conhece com
mais detalhes do que aqueles que invoca ao reproduzi-la em seu
pensamento, o seu coração tem mais conhecimento dela do que
o seu cérebro - segundo o simbolismo que mencionei acima -,
do mesmo modo como as "criancinhas" de Jesus participam do
rito, são iniciadas, mas não o sabem muito bem. O fiel católico
que recebe os sacramentos, que comunga, se confessa, está com
isso recebendo o Espírito Santo, mas não sabe o que o Espirito
Santo está lhe dizendo. Ele, essa "criancinha", tende a traduzir
a mensagem do Espírito Santo limitadamente, à sua maneira.
Toda iniciação se baseia no fato de que o cognoscível é maior
do que o pensável. Podemos conhecer profundamente coisas que,
na mente mais superficial, não conseguimos pensar; coisas que,
quando as tentamos traduzir para um plano de expressividade

• 148-
O saber e o enigma

mais clara, nos escapam. São avessas àquilo que denomino ex-
trusão, o ato de puxar uma estrutura profunda dada em nosso
conhecimento e externalizá-la sob a forma de pensamento ou
palavra. Nem os maiores escritores da humanidade têm habilidade
para tanto. Todo o esoterismo de Shakespeare, expresso com
maior ou menor clareza, não é nada comparado ao esoterismo
presente numa única catedral medieval.

A passagem da ascese à mística


A esta altura, é preciso fazer uma distinção essencial, muito bem
enfatizada pelo Pe. Juan González Arintero em La Evolución
Mística, este que considero o maior livro do século xx. Penso
na distinção entre o asceta e o místico. O asceta é aquele que,
por um ato de vontade, é dirigido pela sua própria consciência
no caminho do esforço e da disciplina cristã. O asceta passa a
ser um místico a partir do instante em que é dirigido conscien-
temente pela ação do Espírito Santo. Ele a sente, sabe o que o
Espírito Santo o manda fazer, o que pode ser diferente do que
ele, com a melhor das intenções, faria em sua fase ascética. O
conjunto dos fiéis, das "criancinhas", é guiado idealmente pelo
estorço ascético, pelo esforço de fazer sua conduta e pensamento
corresponderem àquilo que leu no Catecismo, que ouviu num
sermão, que lhe foi de algum modo comunicado pela Igreja.
O fiel ainda não se deixa dirigir conscientemente pelo Espirito
Santo, ele ainda não consuma a iniciação. Quando a "crianci-
nha" amadurece, torna-se capaz de ouvir com clareza o Espírito
Santo. Deixa-se dirigir pelos imperativos d'Ele.

A trajetória mística se destina a fazer com que você seja


absorvido em Jesus Cristo, no sentido em que diz o Apóstolo:
"Já não sou mais eu que vivo, é Cristo que vive em mim" (Gl 2,
20). Vai-se portanto da ascética à mística e da mística à divi-
nização, a qual pode e deve se manifestar por meio de signos

* 149-
Olavo de Carvalho

exteriores visiveis mas não compreensíveis, em toda a sua ex-


tensão de sentido, aos outros. Dos estigmas nas mãos de São
Pio de Pietrelcina jorrou mais sangue do que haveria no corpo
de muitos seres humanos, mas ele não só continuava vivo, como
prosseguia operando um milagre atrás do outro. A capacidade
de fazer não coisas estranhas, mas coisas boas e salvadoras,
marca a manifestação de dons divinos na fase mística.

Enquanto você é um asceta, faz sentido dizer que você tem


fé, fé no sentido de crença, a qual em última instância consiste
na confiança em uma Pessoa, que é Nosso Senhor Jesus Cristo.
Mas, a partir do momento em que se passa à mística, a fé se
revela muito mais do que isso. Mostra-se como entrega total ao
Espírito Santo, uma entrega com a consciência de que, como diz
Paul Claudel, "Deus é Aquele que é em mim mais eu do que eu
mesmo". Nesse ponto começa a divinização, a transformação da
pessoa em Jesus Cristo. Esse é, evidentemente, o cume e realiza-
ção de todo o esoterismo. Não se pode pretender mais que isso.

Cabe perguntar se seria possível realizar a mesma coisa por


outras vias esotéricas. Acredito que não. Ibn 'Arabi fala, em
Jóias da sabedoria, da ascensão ou escalada mística do iniciado
sufi. Esse trajeto é representado pelas sete esferas planetárias.
Na primeira esfera, a esfera da Lua, você é restaurado ao seu
estado de homem primordial, você se torna um Adão de novo,
Adão que é, na linhagem islâmica, o primeiro profeta e aque-
le que preside essa primeira esfera. Na esfera seguinte, a de
Mercúrio, presidida por Jesus Cristo, você absorve a ciência
da criação. Embora reconhecido no Islam como não mais que
um profeta, Jesus Cristo é também o Logos divino, razão e
linguagem divinas, kalimah min Allah, "palavra de Deus". A
Ele se atribui o poder de infundir existência naquilo que não
existe, o que é representado numa lenda islâmica: Jesus faz um
pombo de barro e assopra sobre ele; assim, o objeto ganha
vida e sai voando.

• 150-
O saber e o enigma

Pergunto-me: algum outro profeta muçulmano faz isso? Li


um bocado de biogra as de profetas do Islam; não encontrei
nelas nada parecido com isso que se atribui a Jesus. Ao longo
das eras, o único âmbito no qual observamos a iniciação fun-
cionar em seu sentido pleno é no cristianismo. Imaginem assim
a frustração dos mestres esotéricos ao verem, com a morte de
Cristo, o véu do templo se rasgar. Aquelas iniciações que antes
eram reservadas a uma elite exclusiva agora são oferecidas a
todos. Mais que isso, é oferecida a iniciação suprema, a via para
a divinização, da qual as demais iniciações são apenas imagens,
umas mais éis, outras menos.

"Pequenos mistérios" e "grandes mistérios". Pri-


meira abordagem
A obra de René Guénon, à primeira vista, parece exibir uma ordem
cristalina, uma perfeita organização. Só à luz de um escrutínio
mais demorado é que começa a mostrar absurdidades muito
profundas. Ele distingue, por exemplo, mística de esoterismo, a
primeira como não mais que uma manifestação emocional huma-
na, o segundo como conhecimento espiritual verdadeiro. Porém,
em seu estudo homônimo sobre São Bernardo, chefe da Ordem
dos Templários, que ele considera como caracteristicamente
esotérica e iniciática, diz da obra do santo ser essencialmente
mística. Como poderia um místico no sentido guénoniano chefiar
uma ordem distintamente esotérica? Há uma óbvia confusão aí.
Um ponto obscuro da obra de Guénon que nos interessa
mais de perto aqui é o seguinte. Quando Frithjof Schuon diz
a Guénon que os sacramentos cristãos são iniciáticos, ele fica
furioso. Não quis nem discutir o assunto. Como Schuon in-
sistisse nisso, deixou de recebê-lo. Prestem atenção: negou-se
a receber o homem que fundou a tariqa que ele saudara dizendo
ser "o primeiro resultado efetivo do meu trabalho de muitas

• 151•
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Olavo de Carvalho

décadas". Passados alguns anos, quando Schuon descobre que


os sacramentos da Igreja são legitimamente iniciáticos, e não
apenas exotéricos, "religiosos", Guénon rompe com ele.
Para fugir dessa tese que lhe parecia inaceitável, Guénon
elabora a hipótese de que o cristianismo aparecera a princi-
pio, de fato, como um esoterismo. Mas depois, em função da
degradação da religião romana, teve de se exoterizar. O que
antes era próprio a um grupo fechado assume uma presença
pública, a m de arcar com as funções não mais atendidas pela
religião romana.
Essa hipótese é grotesca, absurda. Não existe o menor sinal de
que Jesus tenha ensinado algo a um grupo fechado nem por um
único dia. Quando Ele começa a falar, fala a todos, fala a quem
quisesse ouvi-lo. A hipótese tão rebuscada de Guénon, quando
somada à sua reação emocional desproporcionada a Schuon,
sugere que um bem muito precioso foi ameaçado pela afirmação
do caráter iniciático dos sacramentos. Esse bem, a meu ver, é
a simples posse do segredo esotérico. Esse receio em si mesmo
não tem nada que ver com a própria natureza do esoterismo.
Os ensinamentos esotéricos existem porque os conhecimentos
com que lidam são dificilimos e exigem uma vida de meditação
e dedicação, a fim de que deles se extraia algo muito mínimo.
Mas não são ensinamentos secretos no sentido organizacional.
Não exigem o segredo absoluto como elemento indispensável.
Guénon defende ainda que, das iniciações esotéricas cristãs
originais, teriam restado apenas algumas ministradas no inte-
rior de corporações de ofícios. Ora, as iniciações de ofícios
restringem-se, por de nição, a pequenos mistérios. Os peque-
nos mistérios são aqueles referentes ao cosmos, à natureza, à
história, ao ser humano etc., o que inclui, naturalmente, toda a
alquimia (a transformação dos metais), a astrologia (a relação
entre a vida humana na Terra e a posição dos astros no céu),
a geomancia (a leitura dos acontecimentos futuros através de

• 152-
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O saber e o enigma

indícios na Terra, que viria a ser transformada, aliás, numa


verdadeira ciência pelo geólogo alemão Willy Hellpach, cujo
livro Geopsique foi traduzido no Brasil há décadas), até mesmo
a ciência do governo, do poder. Já os grandes mistérios dizem
respeito à eternidade, a Deus, à vida após a morte, às esferas
mais altas da espiritualidade etc.
A Maçonaria representa Deus como o Grande Arquiteto.
Um arquiteto, contudo, não cria nada. Ele apenas modifica,
supostamente para melhor, as coisas que já existem. A visão
de Deus sob esse aspecto atesta que a Maçonaria administra
apenas pequenos mistérios, não grandes mistérios. Por outro
lado, os sacramentos da Igreja se referem exclusivamente aos
grandes mistérios. Você pode passar uma vida inteira indo à
missa, comungando e confessando e não aprender nada sobre
pequenos mistérios, sobre simbolismo das direções do espaço
ou dos números, sobre a ordem terrestre ou as funções cósmi-
cas das várias nações. Você não aprenderá nada disso. Você
aprenderá como obter a salvação e, acima disso, se possível, a
divinização já em vida.
À medida que as organizações de pequenos mistérios se afas-
tam da Igreja a partir do século XIX, esta última perde o domínio
desses mistérios, os quais passam a ser substitutivos inferiores
das iniciações de grandes mistérios. É por isso que em O jardim
das aflições comparei esse afastamento, essa ignorância mútua
entre os que ministram as iniciações aos pequenos mistérios
e os que ministram as iniciações aos grandes mistérios, a um
corte desferido a meia altura do corpo da humanidade. Resta
assim uma parte superior, a dos grandes mistérios, que se torna
ineficiente no mundo histórico; e uma parte que consegue agir
no mundo histórico, mas não garante a salvação e muito menos
a divinização. Essa foi a tragédia do Ocidente.
Desde então houve relações bastante estranhas entre a Igreja
e a Maçonaria (digo Maçonaria para me referir em geral às

× 153×
Olavo de Carvalho

iniciações de ofício; praticamente todas se concentraram na


Maçonaria), às vezes de aproximação, às vezes de hostilidade,
mas em geral relações complexas. A partir do século XVIII, o
clero católico mostra uma inabilidade cada vez maior em lidar
com as transformações históricas, as quais, em grande medida,
se sucedem em virtude da ação de lojas maçônicas; ação essa
que é difusa. A Maçonaria não tem administração central,
motivo pelo qual são absurdas teses como a de que Maçonaria
é o "governo secreto" do mundo. Na Maçonaria existe uma
ação anticatólica tremenda, no sentido de destruir a Igreja ou
infiltrá-la; assim como existem grandes simpatias pela Igreja,
como se vê na obra de um Jean Tourniac. Mas a boa intenção
de dialogar de uma parte e de outra não é suficiente para que
estabeleçam um contato frutífero. Com a ruptura entre pequenos
mistérios e grandes mistérios, a Igreja encontra dificuldades para
se comunicar com a Maçonaria e vice-versa.

A Igreja perante as transformações do mundo


moderno
A incapacidade da Igreja em lidar com os novos problemas que
o iluminismo lhe apresentava acabou por diminuir sua presença
na sociedade. Passou a reinar, em meio aos fiéis, o escândalo.
Escândalo é um fato que aparentemente desmente, desmantela
a fé do indivíduo, que assim ou abandona a fé, ou se apega a
ela de uma maneira puramente assertórica, reafirmando-a. Foi
exatamente isso que aconteceu nos últimos séculos, pois a Igreja
não realizou um verdadeiro trabalho intelectual para absorver
e transcender o pensamento dos que se opunham a ela. Em
suma, desempenhou de maneira muito deficiente a sua função
de mãe e mestra.
Isso é perceptível até no contato de altos membros da Igreja
com o pensamento de autores da escola perenialista. Por exemplo,

+ 154.
O saber e o enigma

as objeções que o Cardeal Daniélou fez à obra de René Guénon


são fraquíssimas. Este trata, em O simbolismo da cruz, do fato
de que o simbolo da cruz é muito anterior ao cristianismo e
possui um significado universal, o qual se dedica a expressar ao
longo do livro. O Cardeal Daniélou diz apenas que, para nós,
cristãos, a cruz é na verdade um acontecimento histórico, e não
matéria de simbolismo. Bom, de fato se trata de um aconteci-
mento histórico, de algo muito específico, mas isso não responde
às teses guénonianas referentes ao simbolismo da cruz. Por que
esse acontecimento histórico tinha de envolver a cruz, manifes-
tando assim um simbolismo que lhe era muito anterior? Aí está
o cerne do problema, ao qual o cardeal é incapaz de responder.
Isso mostra, como tantos outros episódios, que é inútil pole-
mizar com Guénon. O que se deve fazer é decifrá-lo, ou então
ele nos devorará. Afinal, não se pode reagir contra a verdade. Se
um sujeito a está dizendo, só nos cabe aceitar. Não faz sentido
negar a verdade porque ela aparentemente contradiz aquilo que
você entende como dogma da sua religião. Você é obrigado a
aceitá-la venha de onde vier. O propósito com que o sujeito nos
enuncia essa verdade já é outra questão. Como ensina Schuon,
o Diabo diz a verdade nove vezes para poder mentir melhor na
décima. E é a isso que se deve estar atento e responder.'

A Maçonaria como problema, segundo um ponto


de vista guénoniano

É curioso que o indivíduo que era a própria e perfeita síntese de


maçom e de islâmico, René Guénon, acreditasse (ou pelo menos
dissesse acreditar) que a Maçonaria, por ser iniciática, poderia
ser a semente de uma renovação da tradição cristã. Ora, isso
é impossível. O retrato que Guénon faz da Modernidade em

1 Cf. a parte IV deste livro: "As garras da Esfinge - René Guénon e a islamização
do Ocidente"

* 155.
Olavo de Carvalho

O reino da quantidade mostra que ele tinha perfeita ciência de


que todos os elementos que ele chama de antitradicionais foram
introduzidos na civilização islâmica através de maçons.
No Ocidente, o fenômeno é muito mais evidente. Quando
você vê os governos francamente anticristãos, antiespirituais
e grosseiramente materialistas que se espalharam pelo mundo
ocidental e tiveram preponderante participação de maçons (por
exemplo: o governo mexicano à época da Guerra dos Cristeros
era maciçamente maçônico, e coisa idêntica se poderá dizer
da França no período revolucionário ou da Espanha à época
da Guerra Civil). O reino da quantidade foi em grande parte
instaurado por maçons. Na medida em que eliminaram os ritos
e simbolos relacionados a conteúdos doutrinários concretos
(conteúdos especi camente católicos), sobrou à Maçonaria
só a ética formal, a qual, quando exteriorizada publicamente,
mostrou-se uma espécie de código civil sem conteúdo espiritual
nenhum, levando o mundo inteiro a se balizar pela idéia de
funcionalidade e, claro, pelos fatores acessíveis à ciência, isto
é, apenas os fatores quantitativos.

Como, então, poderia a Maçonaria restaurar a espiritualidade


católica se, em primeiro lugar, ela não tem iniciação sacerdotal
alguma? Não pode haver iniciação sacerdotal quando o Deus
em que o sujeito diz acreditar é vazio, é só um conceito de Deus,
pois o conceito abstrato de Deus vale para todos os deuses
que ocorrerem à imaginação humana. Um Deus abstrato não
pode ser objeto de culto nem de devoção, mas apenas objeto de
crença: você acredita que ele existe do mesmo jeito que acredita
que existe a gravitação universal ou as partículas subatômicas.
Esta crença é, por assim dizer, uma atitude intelectual, uma
admissão intelectual de algo que você considera verdade. Isso
está muito distante da fé religiosa e guarda algum reflexo do
mundo islâmico, porque nas mesquitas o altar ao qual se diri-
gem as preces é um espaço vazio chamado mihrab. Você pode
preenchê-lo subjetivamente com o conteúdo que bem entender,

• 156ª
fi
O saber e o enigma

contanto que não o diga em voz alta — se o zer, estará asso-


ciando Deus a algum conteúdo concreto, e o associacionismo
é a pior das heresias no mundo islâmico.
Há mais. Se Guénon acredita que as únicas tradições ini-
ciáticas que ainda resistem são as de tipo maçônico, por que
motivo ele sugere que a restauração da Cristandade no Ocidente
tenha de ser feita sob o guiamento de mestres islâmicos e não
de simples mestres maçons? Afinal, a Maçonaria é ocidental e,
em princípio, causaria menor choque cultural ver a Cristandade
ser restaurada por meio dela do que por meio de mestres espi-
rituais islâmicos. Guénon afasta a hipótese de restauração via
guiamento maçônico porque está consciente do estado em que
a Maçonaria se encontra; tem perfeita ciência de que o mundo
moderno que ele tanto condena apareceu graças à influência
de maçons - se bem que não possamos dizer que graças à
Maçonaria, como um todo, podemos sem dúvida alguma dizer
que graças a muitos maçons.
Isso, logo se vê, é um tremendo problema. Como Guénon o
trata? Simplesmente não toca no assunto, o que é muito suspei-
to. Ele não afirma de modo explícito em parte alguma de sua
obra, mas a conclusão lógica a que nos leva é a de que não
está tentando fazer da Maçonaria a força guiadora do Ocidente
(porque ela, em alguma medida, já o era), mas fazer do Islam a
força guiadora da Maçonaria. Foi isso o que ele fez, e vemos os
efeitos de sua ação hoje. A influência terrível que o Islam exerce
agora no mundo ocidental teria sido impossível sem alguma
penetração na Maçonaria. Angel Millar documenta profundos
contatos entre tariqas e lojas a maçônicas a datar pelo menos
do início do século xIx.?

2 Angel Millar. The Crescent and the Compass: Islam, Freemasonry, Esotericism
and Revolution in the Modern Age. Torazzi Press, 2017.

* 157•
fi
CAPÍTULO II

A Maçonaria

O poder maçônico
Gostaria agora de me concentrar no caso da Maçonaria.
Em primeiro lugar, temos de afastar a idéia de que a Maçonaria
seja uma espécie de governo mundial secreto, que dirige o fluxo
dos acontecimentos, de maneira que, ao ascender nas escalas
do poder, você sempre vai encontrar a Maçonaria no topo. Isso
é impossível pelo simples fato de que a Maçonaria não tem um
comando central, com suas lojas - pelo menos as suas repre-
sentações estaduais - sendo totalmente independentes, sem
conexão de umas com as outras. Existem dentro da Maçonaria
divisões tão drásticas, que praticamente em todos os conflitos
políticos você encontra maçons dos dois lados. É natural que
muitas pessoas vejam por trás dessa presença avassaladora uma
ação premeditada de um grupo planejador, mas essa impres-
são infringe a regra número 1 da Teoria do Estado de Georg
Jellinek em matéria de ciência política, que é distinguir entre a
ação premeditada e continuada e a confluência impremeditada
de uma somatória de fatores.

Para compreender a estruturação da Maçonaria, podemos


tomar como modelo o que aconteceu com o movimento comunista
a partir da década de 1980: a antiga organização hierárquica,

*159
Olavo de Carvalho

com comando central em Moscou e ramificações no mundo


inteiro, foi substituída por um sistema de redes no qual os focos
locais têm muito mais autonomia e agem mais por um princípio
de solidariedade analógica do que em obediência a uma palavra
de ordem. A experiência mostrou que esse sistema funcionava
muito melhor do que a antiga organização de tipo militar. Pois
bem: é esse o tipo de organização da Maçonaria.
Apesar de não existir um governo secreto maçônico, é ab-
solutamente inegável que a Maçonaria exerce uma influência
enorme sobre o curso das coisas políticas no Ocidente desde
pelo menos o século XVIII. Você pode ter uma idéia disso ao
perceber que os Estados Unidos, com apenas alguns milhões de
maçons, teve metade de seus presidentes membros da Maçonaria.
Os católicos americanos representam 30% da população, mas
quantos presidentes americanos católicos houve até o momen-
to? Apenas um. A história da França depois da Revolução de
1789 mostra os maçons sempre no primeiro plano do governo.
No Brasil, a influência maçônica é intensa desde os tempos do
Império. O Imperador era maçom, os republicanos eram maçons,
todo mundo era maçom. Minha experiência na Romênia, a esse
respeito, foi impressionante: era difícil encontrar um não-maçom

em qualquer circulo intelectual.

Portanto, a presença da Maçonaria na condução do destino


da humanidade é anormalmente grande, talvez mais do que a
de qualquer outra organização no mundo. Tenho duas expli-
cações para o fenômeno. Uma não é minha, na verdade, mas
do historiador Angel Millar. Ele mostra que, muito mais do
que uma influência política, a Maçonaria teve uma influência
cultural que antecipou a sua presença na política. Essa presença
se nota sobretudo no simbolismo arquitetônico. A cidade de
Washington, por exemplo, é inteirinha um templo maçônico.
Muitos templos batistas e presbiterianos guardam simbolismo
maçônico. Só não é assim no mundo islâmico, onde existe uma

• 160-
O saber e o enigma

presença maçônica, sim, mas com intercâmbios muito discretos


com as tariqas islâmicas. Schuon, líder de uma importante tariqa,
talvez a maior tariqa que existiu no Ocidente entre os anos 1950
e 1980, odiava a Maçonaria. Considerava que a extinção dela
era obrigação de todos os seus discípulos, e dizia que seus ritos

não passavam de pseudo-iniciação.


Outra razão da hegemonia da Maçonaria está no fato de
que cada membro está unido a ela por uma série de juramentos
de fidelidade que se sobrepõem a qualquer obrigação moral ou
legal externa. Esses juramentos de fidelidade se dirigem não à
organização abstratamente, mas aos seus companheiros concretos
(seus irmãos, como chamam); quer dizer, onde quer que você
esteja, terá de favorecê-los acima de qualquer outra pessoa. Aliás,
por funcionar dessa maneira, a Maçonaria é um terreno fértil
para que associações ainda mais secretas se desenvolvam dentro
dela. Foi exatamente o que aconteceu no caso dos Illuminati,
organização secreta criada por Adam Weishaupt em 1776.
Por sinal, quando George Washington assumiu a presidência,
foi imediatamente informado de uma tremenda infiltração de
Iluminati na Maçonaria norte-americana, conforme se pode ler
em Proofs of a Conspiracy, de John Robinson. Fenômeno similar,
hoje em curso, é o das Urloges ou aquilojas, como as chama
um maçom altamente respeitado na Itália, Gioele Magaldi,' as
quais até pouco tempo atrás eram desconhecidas dos próprios
maçons. São compostas de bilionários, de potentados da eco-
nomia e da política, os quais as dirigem segundo um projeto
globalista, oligárquico e centralizador. Mas também existe
dentro da Maçonaria uma multidão de lojas ditas democráticas,
que pregam a divisão do poder, a extensão de maior poder de
mando ao povo. Há, assim, uma direita e uma esquerda dentro
da Maçonaria, e elas aparecem invertidas no debate público:

1 Gioele Magaldi, Massoni. Società a responsabilità illimitata. La scoperta delle


Ur-Lodges. Chiarelettere, 2019 - NE.

-161
Olavo de Carvalho

a direita maçônica aparece publicamente na figura dos globalistas


de esquerda, e a esquerda maçônica aparece publicamente na
figura dos conservadores democratas.
Em suma, muitos conflitos políticos nascem dentro da Maçonaria
e se exteriorizam. Não é o caso, portanto, de que a Maçonaria
esteja dirigindo o processo histórico: em primeiro lugar, ela é uma
imensa caixa de ressonância, e tem assim uma influência enorme,
a despeito de sua incapacidade de dirigir o processo.

O formalismo ético kantiano e maçônico


Um terceiro fator, que Millar não observa, é o fato de que a
estrutura da Maçonaria é a estrutura do Estado moderno, da
sociedade moderna. Essa estrutura é baseada em um princípio
que poderíamos chamar, um tanto impropriamente, de indi-
ferentismo religioso, adotado quando da fundação oficial da
Maçonaria moderna por Anderson e Desaguliers. Até então, as
organizações que mais tarde seriam chamadas de maçônicas, as
corporações de ofício, eram formal e acentuadamente católicas.
A partir desse momento, o compromisso com a religião católica
é abolido, sobrando apenas a obrigação de crer em Deus (pouco
importa como você o interprete). Você pode ser um cristão, um
muçulmano, um budista, o que você quiser. Ora, isso responde
a uma situação muito peculiar. No grande livro Mainsprings
of Civilization, Ellsworth Huntington assinala que ao longo
da história humana há um pequeno número de constantes em
meio a uma variabilidade imensurável. Uma dessas constantes
seria o crescimento da população. De fato, a população mun-
dial nunca parou de crescer. Outra constante, decorrente dessa
primeira, é a aproximação cada vez maior entre as diferentes
culturas e sociedades. Pelos escritos de Marco Apolo, ou por
A peregrinação de Fernão Mendes Pinto, bem como através de
muitos outros livros do período das navegações, você vê que em

* 162-
O saber e o enigma

muitos casos os europeus chegavam até sociedades que nunca


tiveram a menor notícia deles. Os portugueses, ao chegarem à
América, não sabiam nada sobre os índios; sabiam quase nada
até mesmo sobre os chineses. Esse processo de aproximação de
culturas prossegue até hoje. Isso naturalmente leva à coexistência
de culturas diferentes num mesmo território. Assim, diferentes
religiões terão de conviver num mesmo espaço.
Por volta dos séculos XVI e XVII, as guerras de religiões
eram consideradas o problema social e político mais premente.
Ao advento da Reforma Protestante se segue uma série de
confitos horríveis, que em poucos anos mataram mais gente
do que Inquisição matara em séculos. Horrorizados com a
situação, muitos autores buscaram solucioná-la. Um deles foi,
evidentemente, Thomas Hobbes. Seu Leviata corresponde à
idéia de um Estado que se sobrepõe às confissões religiosas e
as mantém sob rédea curta; é uma espécie de paz imposta pela
tirania. Idéia similar circula pela cabeça de muita gente, como
Maquiavel e John Locke.
Essa idéia tomaria grande impulso com o formalismo ético
de Kant, o qual afirma que não podemos resolver nenhuma
questão metafísica ou moral substantiva. Poderíamos no máxi-
mo estabelecer deveres formais que não impliquem a adesão a
nenhum valor concreto, porque esses valores concretos dizem
respeito a coisas que estão além da experiência humana, coisas
acerca das quais podemos muito pensar, mas jamais delas ter
algum conhecimento. Em um conflito entre a teologia católica,
a teologia protestante e a teologia muçulmana, o formalismo
ético kantiano nos convenceria da impossibilidade de arbitrá-lo
e decidir pela verdade de uma dessas teologias. Teríamos de
nos conformar com algum princípio meramente formal que, sem
nada subscrever deste ou daquele valor concreto e determinado,
possibilite a convivência entre pessoas com opiniões religiosas
diversas. Isto é a moral kantiana, e ela corresponde em toda linha

• 163•
Olavo de Carvalho

não a uma doutrina maçônica, percebam, mas à Constituição


efetiva da Maçonaria. É assim que ela age concretamente.
Os conflitos internos à Maçonaria não podem ir além de
um certo ponto. Você pode odiar seu irmão maçom, mas deve
assumir o compromisso de não prejudicá-lo além de alguma
medida razoável. Quando os maçons republicanos derrubaram
o maçom Pedro II, garantiram-lhe impostos coletados da cidade
de Petrópolis para que sustentasse a ele e sua família em Paris.
Era-lhes vedado fazer-lhe mal além desse ponto. Em suma,
os conflitos entre irmãos de Maçonaria podem ser intensos e
às vezes chegar a desfechos trágicos - por exemplo, Lênin e
Trotsky eram maçons, mas ministros do tzar também o eram;
nem por isso se deixou de executar a família real -, mas em
geral os maçons evitam isto. Sempre tratam de contornar as
diferenças de uma maneira ou de outra. Como disse William
McKinley, presidente americano que foi também grão-mestre
da Maçonaria: "A Constituição da Maçonaria é a Constituição
dos Estados Unidos. A convivência é a sociedade americana".
E ele tinha toda a razão, porque a Maçonaria é um espaço
privilegiado no qual você assume uma série de compromissos
sociais e morais de ordem puramente formal, que não implicam
adesão a nenhum valor específico, mas permitem a convivência
dos desiguais dentro de um ambiente não só de compreensão,
mas de proteção recíproca. Ou seja, você tem certos deveres
para com seu companheiro de loja e com os outros maçons, e
esse compromisso se estende ao universo inteiro, sem que você
tenha de subscrever aquilo em que acreditam.

Essa idéia de um conjunto de deveres formais que não impli-


cam a adesão a nenhum valor concreto definido corresponde,
como já disse, à moral kantiana, e é ela, a estruturar a Maçonaria,
que possibilita a existência do Estado laico moderno como árbitro
de todas as questões. O preço disso, no mundo, é o mesmo que se
cobra dentro da Maçonaria. Como não há valores positivos que

• 164-
O saber e o enigma

você possa a rmar de maneira decisiva, mas só existem relações


formalmente de nidas, todos os valores acabam se esvaziando.
Nada mais interessa, só a forma do conjunto. É claro que isso
termina por ser de um artificialismo miserável, convidando, às
vezes, os próprios maçons a trairem os seus companheiros, já
que não se sentem empenhados pessoalmente em nada.

"Pequenos mistérios" e "grandes mistérios". Se-


gunda abordagem: realeza e sacerdócio
O conjunto de elementos que René Guénon chama de esoterismo
no Ocidente está limitado aos pequenos mistérios, portanto às
chamadas iniciações reais, jamais sacerdotais. Guénon explica
em Autoridade espiritual e poder temporal que existem inicia-
ções próprias à casta real, aos kshatriya, as quais são iniciações
de pequenos mistérios. Afinal, é a casta real que irá governar
este mundo, de maneira que é natural que seus conhecimentos
devam se dirigir a este plano de existência. Há, por outro lado,
as iniciações sacerdotais, que se referem aos grandes mistérios
e são exclusivas dos brâhmanes. Destinam-se a abrir o caminho
para o mundo do além, para a eternidade, o destino eterno do
ser humano.
Ora, já expliquei que os sacramentos cristãos são notoriamente
iniciações, e especificamente iniciações de grandes mistérios, por-
que desde o Batismo elas se destinam à divinização do homem e
à sua conversão, à sua transformação em Deus, de maneira que
a presença do indivíduo seja a presença do próprio Deus. Isso
se manifesta às vezes no fato de o indivíduo portar os estigmas
de Cristo. Anna Catarina Emmerich, monja alemã do século
XVIII, tinha estigmas nas mãos, no tronco (no lugar onde Cristo
foi ferido) e na testa (as marcas da coroa de espinhos). Suas
visões, que remontavam à criação do mundo, ela as ditava ao
poeta Clemens Brentano, homem famoso na época, que largou

* 165-
fi
fi
Olavo de Carvalho

a vida literária para secretariar Anna Catarina Emmerich. Era


uma mulher de muito pouca cultura, que logo jovem se tornou
inválida e passou o resto da vida na cama. Ainda assim, suas
visões tinham tamanho nível de exatidão que serviriam de base
para que, mais tarde, se localizasse a casa da Virgem Maria
em Éfeso.
Essa freira agostiniana do século do iluminismo, período
em que a Igreja vinha sendo destruída, em que a própria ordem
religiosa de que ela fazia parte vinha sendo destruída, vivia cla-
ramente um processo de divinização. Sua vida, que foi estudada
com muito rigor, exibe uma iniciação sacerdotal no mais alto
grau. Todos os esoterismos ocidentais estudados por Guénon
são apenas símbolos desse grande processo de divinização da
alma, cujas possibilidades são inclusive sacerdotalmente passadas
gerações adiante. No ato de ordenação do sacerdote católico,
diz-se esta passagem biblica: "Tu es sacerdos in aeternum
secundum ordinem Melchisedech"' (SI 109, 4). Melquisedeque
é o indivíduo que executou para Abraão um rito com pão e
vinho muito tempo antes do advento de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Ele deu a iniciação sacerdotal a Abraão, e essa mesma
iniciação é passada de geração em geração aos sacerdotes
ordenados. O sacerdócio de que determinados indivíduos são
investidos vem desde Melquisedeque, ou seja, desde antes que
existisse Igreja, passa pelos apóstolos e chega aos padres de
hoje, e se constitui numa iniciação sacerdotal plena, e não em
simples rito de agregação. Por meio do Batismo, o ser humano
adquire uma possibilidade, uma potência espiritual de santifi-
cação e divinização que por si só antes não tinha. Cada um
dos outros sacramentos abre novas possibilidades espirituais.
A iniciação sacerdotal lhe dá as chaves dos dois reinos: "Tudo
o que ligardes sobre a Terra será ligado no Céu, e tudo o que
desligardes sobre a Terra será também desligado no Céu" (Mt
18, 18). O fiel comum, por mais desenvolvimento que tenha dado

• 166-
O saber e o enigma

às possibilidades que lhe advieram com o Batismo, não tem


essa capacidade. A própria Santíssima Virgem Maria não tem
essa capacidade, ela não faz parte da linhagem sacerdotal, ela
não é clero, não pode rezar uma missa. É uma possibilidade
reservada àqueles que tiveram a iniciação sacerdotal. De igual
modo, o Crisma, a Confirmação, abre a possibilidade de que
você se torne um defensor da fé. Não é qualquer um que pode
se arrogar o papel de defensor da doutrina da Igreja.

A Maçonaria eventualmente até fala em iniciações sacerdo-


tais. Daniel Beresniak, em O sentido da iniciação sacerdotal,
descreve ritos maçônicos do que seria uma iniciação sacerdotal.
Todos eles, contudo, limitam-se a pequenos mistérios. Logo, a
palavra "sacerdotal" aí não significa nada. E algo no nível mais
baixo do simbolismo alquímico que encontramos nas catedrais
medievais. Existem vários níveis na alquimia, o que se pode
notar indagando o que seja a matéria-prima alquímica. Os
alquimistas sempre disseram que essa matéria-prima é a coisa
mais misteriosa e ao mesmo tempo a mais óbvia, a mais rara
e ao mesmo tempo a mais acessível. Ela simplesmente está por
toda parte. A matéria-prima da alquimia não é necessariamente
uma matéria, ela é qualquer coisa que sirva de ponto de partida
para o processo da transmutação. Pode ser um pedaço de terra,
pode ser um metal, pode ser uma população, uma sociedade, se
vista sob o princípio de solve et coagula. Todas as revoluções e
golpes de estado seguem esta fórmula alquímica. Você primei-
ro usa o fator dissolvente, que é o mercúrio; depois adiciona
enxofre, que é a substância fixadora, e assim obtém o sal, que
é a nova forma. Não existe nenhum maçom acima de um certo
nível de iniciação que não saiba que o processo político mundial
inteiro se resume a isso.
Mas a matéria-prima alquímica pode ser bastante material,
como na verdade é usual pensar acerca da alquimia. Conheci
pessoas que se dedicavam seriamente à pesquisa alquímica,

× 167 ×
Olavo de Carvalho

que tinham laboratórios e chegavam a realizar certas fases da


obra. Nunca chegaram até o fim, evidentemente, mas iam aos
poucos se aproximando da meta, provando pelo menos a possi-
bilidade teórica da transmutação do chumbo em ouro. Contudo,
a transmutação dos metais, a alquimia entendida apenas ao
nível dos pequenos mistérios, ao nivel mais imediato do que
nos oferece o simbolismo de uma catedral, não passa de uma
imagem da suprema alquimia que é a divinização do homem.

Terrestrialização do pensamento
Até o advento da Modernidade, a religião não era coisa restrita
a um espaço específico da vida, sem maior influência sobre tudo
mais. Ao contrário - e vocês podem, lendo O outono da Idade
Média, de Johan Huizinga, apreciar como mesmo as coisas mais
simples, como uma colheita, a partida para uma viagem, uma
caçada, a chegada de um visitante, tudo necessitava de um
suporte ritual bastante complexo -, a religião penetrava toda
a existência do ser humano e constituía sua essência. A rigor,
nada podia ser profano naquele contexto, tudo era visto a partir
da perspectiva religiosa.
O mundo moderno, muito diferentemente, é um espaço es-
sencialmente profano no qual se reserva um pequeno espaço
para a religião, a qual passa a ser definida como matéria de
foro íntimo, exatamente como dentro da Maçonaria. Nesse
âmbito religioso indeterminado é que entram as iniciações
de ofícios. Nada mais natural, diz Guénon, que aquilo que
seja a base da presença do homem no mundo, justamente o
seu trabalho, o seu ofício como uma extensão da sua própria
natureza, sirva de excipiente simbólico para uma iniciação.
Todo simbolismo da iniciação está de certo modo contido nos
vários atos, gestos e matérias do seu ofício, seja a pedra, seja
os metais, seja o que for.

• 168-
O saber e o enigma

Um ofício toma um ser humano comum e desenvolve nele o


que possui de superior, portanto de mais ordenado, mais lúcido,
mais clarividente. O princípio de ensinamento do ofício é o de
ordenação da alma do postulante. Evidentemente, a partir do
momento em que, extintas as corporações de ofício, a Maçonaria
passa a aceitar como membros pessoas que desconheciam intei-
ramente o ofício da arquitetura, aquele objetivo de ordenação
da alma não mais se cumpre. Se chegou a esse ponto, é claro
que a Maçonaria perdeu o contato com a sua raiz iniciática, de
modo que pouco adianta enchê-la posteriormente de simbolismo.

Por outro lado, o fato é que as iniciações maçônicas, ainda


que conduzidas de maneira responsável, levam o indivíduo
somente até certo ponto do seu desenvolvimento interior, até
os pequenos mistérios. Sua complementação com os grandes
mistérios, aqueles que estão dados nos sacramentos da Igreja,
cria uma questão das mais espinhosas sobre a compatibilidade
ou não entre Maçonaria e Igreja.
Por exemplo, François Chenique escreveu, com base nas
idéias do Abade Henri Stéphane (que é muito querido pela escola
tradicionalista), O culto da Virgem ou A metafísica do feminino.
Tenta-se aí explicar a vida da Virgem por meio da doutrina hin-
duista. De saída, só pela proposta do estudo, a Virgem deixa de
ser a fonte da mensagem divina para se tornar um objeto a ser
estudado. No instante mesmo em que se põe a explicar a função
metafísica, cosmológica da Virgem, o sujeito nega automatica-
mente a prioridade dela como mãe de Deus. É evidente que essa
posição é inconciliável com o catolicismo. Ademais, François
Chenique pode ser um homem muito culto e muito simpático, mas
será que ele conhece a Virgem tão bem quanto as três criancinhas
de Fátima? Não é possível, porque essas criancinhas conhecem
a Virgem não porque leram algum livro do Abade Stéphane
sobre cultura hinduísta, mas porque conversaram com ela. De
igual modo, aquele menino de Ruanda, Emmanuel Segatashya,

• 169-
Olavo de Carvalho

conhece Jesus Cristo não porque leu alguma coisa a respeito


d'Ele, mas porque Jesus Cristo conversou com ele.?
Além disso, serão vãs as discussões que se concentrarem
apenas na doutrina maçônica, mas descuidarem do fato de que
na Maçonaria essa doutrina se apresenta em primeiro lugar como
uma estrutura. Recordem que, em O jardim das aflições, defini
os Estados Unidos como Estado maçônico, e a Maçonaria como
religião. Você não pode dizer que o Estado laico americano
não tem religião; a religião dele é a Maçonaria, e esta é uma
espécie de religião sem dogmas, porque constituída de fórmulas
rituais e obrigações regulamentares que se impõem a todos sem
que haja necessariamente um culto. O Estado moderno é todo
feito de formalismos jurídicos, e os valores morais com os quais
você preenche esses formalismos não têm validade pública, pois
recuam para a dimensão da crença intima.
Não é coisa simples, contudo, opor-se à estrutura maçônica, à
estrutura do Estado moderno. Isso implica encontrar outro meio
de resolver os mesmos problemas que o Estado laico resolve,
ainda que criando outros. O Estado islâmico, por exemplo, resolve
o problema da convivência de muitas religiões da maneira mais
drástica: transforma os praticantes da religião minoritária em
cidadãos de segunda classe, que só podem praticar sua religião
dentro de casa, ou do contrário são mortos. O Estado moderno
ocidental parece ser, até o mesmo, a solução menos problemática.
Não adianta, contudo, fazer do Estado e da Maçonaria os
únicos promotores da terrestrialização do pensamento (valho-me
do termo de Antonio Gramsci). A própria Igreja tem se furtado
a tratar do elemento fundamental da doutrina católica, que são
os milagres, e isso em larga medida contribui para a restrição
do horizonte espiritual do mundo moderno. A Igreja Católica
foi contaminada pela ética formal: ela pode falar de valores
2 Immaculée Ilibagiza, Steve Erwin, O menino que conheceu Jesus. Trad. Rafael
Guedes. Campinas, SP: Ecclesiae, 2013.

• 170=
O saber e o enigma

morais que todo mundo aceita, porque são vazios. Ela pode
defender a justiça social, mas justiça social é algo que cada um
pode compreender como bem quiser. É o tipo do preceito vazio
que corresponde à ética formal kantiana.
Esse tipo de valor, exterior e formal, não corresponde à dou-
trina cristã, sobretudo ao cristianismo pelo qual zelou a Igreja
Católica ao longo dos séculos. No cristianismo, absolutamente
tudo é ascetismo, tudo é feito com vistas à verdadeira realização
espiritual, à divinização. Quando não se tem isso em mente, o
casamento monogâmico indissolúvel, por exemplo, passa a não
fazer o menor sentido socialmente, pois, do ponto de vista pu-
ramente prático da decência exterior, da manutenção da ordem
social, a poligamia funciona tão bem quanto a monogamia. De
igual modo, comungar, confessar-se e fazer jejum se tornam
apenas incomodidades, estranhos preceitos que não traduzem
nenhum imperativo civil meramente formal. Frente a tudo isso,
o destino eterno é coisa absolutamente desproporcional. O
julgamento moral segundo a escala da sociabilidade terrestre
nada pode dizer sobre o centro da doutrina cristã, que são os
milagres, as ações reais de Deus no mundo.
Se os milagres não recebem atenção, Deus se torna uma
entidade abstrata, não uma presença real. Ora, mas será o
fundamento do cristianismo a afirmação da presença real de
Nosso Senhor Jesus Cristo no Céu? Não, trata-se de afirmar
sua presença real na Terra, trata-se de sua Encarnação, não de
sua desencarnação.

Contra-iniciação

O rito iniciático abre possibilidades para o indivíduo que ele pode


ou não realizar. É como se depositassem dinheiro na sua conta
bancária. Se você não souber qual o banco e que o dinheiro foi
depositado, nunca poderá gastá-lo.

+ 171
Olavo de Carvalho

Existe uma série de práticas e deveres, por assim dizer dis-


ciplinares, morais, espirituais, que auxiliam o indivíduo a pros-
seguir espiritualmente de modo a efetivar aquela possibilidade.
Deveres, aliás, que se forem cumpridos sem a respectiva iniciação
não produzirão nada. (Se bem que, como o próprio Guénon
reconhece, pode ocorrer de um indivíduo não ter recebido uma
iniciação com o ritual devido, mas ter se iniciado diretamente
por uma fonte não-humana. É o caso do menino que mencionei
há pouco, Emanuel Segatashya, que foi batizado pelo próprio
Jesus Cristo - que, contudo, o mandou procurar uma igreja
para realizar o Batismo ritualmente instituído. Mas a ausência
deste último não só não invalida a iniciação já recebida, como
ainda é muito inferior a ela).
Os deveres disciplinares visam a impedir, ademais, uma situ-
ação perigosa. O não apossamento devotado e sistemático das
novas possibilidades espirituais pode eventualmente destruir a
vida do indivíduo e enlouquecê-lo completamente. Às vezes, o
simples fato de o indivíduo ter acesso a essas informações pode
ter esse efeito. Recordo que o meu professor de artes marciais,
Michel Veber, advertiu no primeiro dia do seu curso sobre a
Metafísica oriental de Guénon na então Escola Júpiter, em São
Paulo, que a simples revelação da existência desses temas po-
deria desestruturar e destruir muitas vidas. De certa forma, é
algo que impressiona saber: se você foi batizado, você recebeu
uma iniciação de grandes mistérios. E, como demonstra o Pe.
Juan Gonzalez Arintero em dois livros estupendos, Questiones
Misticas e La Evolución Mistica, o destino de todo católico
batizado é completar a sua trajetória espiritual até o ponto em
que passa a ser conscientemente dirigido pelo Espírito Santo.

3 Uma pequena brochura editada por Olavo de Carvalho registra esse curso:
Michel Veber, Comentários à "Metafísica oriental" de René Guénon. São
Paulo, Speculum, 1984 — NO.

• 172-
O saber e o enigma

Meçam, a partir disso, a investidura que significa uma inicia-


ção sacerdotal, e contrastem isso com a completa ignorância do
comum dos padres a esse respeito. Na medida em que padres e
leigos não se abrem às possibilidades de divinização garantidas
por suas respectivas iniciações, estas se transformam no seu con-
trário, tornam-se contra-iniciação, demonismo. Evidentemente,
os sacramentos, compreendidos do ponto de vista iniciático, se
apresentam como uma promessa tão maravilhosa, tão gigantesca,
que as pessoas têm medo de assumi-la. Eu mesmo tenho. Parece
uma graça imerecida

× 173×
CAPÍTULO IV

De volta à Igreja: um depoimento

Em busca da "espiritualidade"
Gostaria de lhes fazer um relato de teor mais pessoal. Os ele-
mentos autobiográficos que aqui reúno podem, acredito, lançar
alguma luz sobre os assuntos que vinha discutindo.
Quando criança, recebi excelente formação católica numa
escola dirigida por padres italianos da Ordem Carlista, sacerdo-
tes dedicados especificamente à educação. A minha experiência
com eles foi excelente, não vivi nenhum dos acontecimentos
traumáticos que algumas pessoas relatam terem em escolas
católicas. Não me lembro de ter levado uma única bronca dos
padres durante o tempo em que estive lá. E foi na rotina dessa
escola que tive a experiência mais primordial da minha infân-
cia, que foi a Eucaristia. A escola ficava junto à Igreja Nossa
Senhora da Paz, uma obra-prima de arquitetura moderna, sim,
mas de acordo com os cânones da arquitetura românica, tudo
em mármore branco, com painéis de autoria do grande pintor
brasileiro Fulvio Pennacchi. Havia painéis com Santa Clara a
curar os doentes, com São Francisco a falar com os peixes e o
lobo. E havia ainda painéis, na entrada da Igreja, que mostravam
o Céu e o Inferno, os eleitos e os condenados. Ali eu percebia que
tudo, na vida, se resumia àquilo; e eu sabia para onde queria ir.

× 175
Olavo de Carvalho

Quando passei para a escola secundária, a coisa mudou


bastante. O meio católico ali era inteiramente dominado por um
negócio chamado Juventude Estudantil Católica (JEC), a qual era
ligada à Juventude Universitária Católica (juc), entidade que,
embora à época não fosse muito bem vista pelas autoridades
católicas, era tolerada de algum modo. Qualquer que fosse o
caso, o fato é que toda iniciativa católica naqueles meios era
dominada por essas duas organizações, eram elas que faziam
as pregações, levavam os garotos para fazer primeira comu-
nhão etc. Após o Concilio Vaticano II, repentinamente essas
organizações adquiriram um poder hegemônico absolutamente
fantástico e acabaram por se transformar na Ação Popular
(AP) - mais tarde, confessadamente marxista-leninista -, que
dominou toda a atmosfera da Igreja em São Paulo (não posso
dizer o que aconteceu no resto do país, mas em São Paulo esse
processo foi muito claro).
O conteúdo dos sermões que se ouvia nas igrejas foi se
tornando cada vez mais ralo: só se falava de justiça social e de
moralidade (especificamente moralidade sexual), e mais nada. Os
meios católicos passaram a parecer apenas um clube, um movi-
mento social ou coisa similar; foram deixando de lado a doutrina
católica, e assim naturalmente deixaram de ser interessantes. Eu,
como muitas outras pessoas, sem romper com a Igreja, comecei
a investigar o que havia em volta, a buscar alternativas possí-
veis, a fim de encontrar um treco que eu chamava (e muita gente
ainda chama) de "espiritualidade". Evidentemente, o que estava
mais à mão eram doutrinas orientais, especialmente budistas e
hinduístas - o Islam entrou na órbita de meus interesses só mais
tarde. Também me chamavam atenção as religiões indígenas e
africanas e todo o movimento Nova Era, com o qual tive um
contato profundíssimo por ter sido durante anos redator da
revista Planeta, que só se interessava por isso. Conheci quase
todo o pessoal ligado ao movimento Nova Era em São Paulo.

• 176=
O saber e o enigma

Passei quase vinte anos transitando por essa área de estudos.


Não só li Mircea Eliade, Carl Jung, Daisetsu Suzuki e tantos
autores afins, como cheguei a traduzir Tabu, de Allan Watts, o
guru da Nova Era nos Estados Unidos. Nessa mesma época,
graças a Allan Watts — pois ele fazia muitos paralelos entre o
budismo e os ensinamentos da escola analítica anglo-americana,
especialmente Ludwig Wittgenstein -, mergulhei no Tractatus
Logico-Philosophicus, que muito me impressionou. Mas continuei
procurando, buscando mais a fundo uma autêntica espiritualidade,
e fui perdendo cada vez mais o interesse pela Igreja Católica. Era
um tempo em que não encontrávamos absolutamente nada que
pudesse aplacar a sede de algum conhecimento de tipo espiritual.
Meu trajeto não diferiu muito do de outras pessoas que
passaram por experiência similar. Essas pessoas primeiro têm
contato com o que há de mais vulgar: Nova Era, teosofia,
ufologia, espiritismo etc. Depois, fazem contato com escolas
derivadas de George Gurdjieff, que foi um crítico terrível de toda
pseudo-espiritualidade e propunha uma disciplina muito mais
exigente, com pretensões infinitamente mais elevadas. Nesses
meios, assisti a coisas extraordinárias. Um argentino chamado
Livio Vinardi desenvolveu uma disciplina a que chamou "biop-
sicoenergética". Tratava-se de uma maneira de fazer com que
o corpo humano absorvesse energias do ambiente. Com base
nessas técnicas, punha um homem a fazer exercícios de flexão.
Um esportista normal pode fazer umas oitenta flexões, mas
Vinardi levava uma pessoa comum a fazer mais de mil flexões
e não morrer. Ele podia mandar uma velhinha de setenta anos
subir numa palmeira e descê-la de cabeça para baixo, com só a
força de braços e pernas; e a velhinha fazia. Vi um sujeito com
essas técnicas curar a esposa de um famoso ator paulista, que
estava condenada à morte, com câncer terminal.
Testemunhei muitas coisas desse teor, mas tudo isso me
parecia ter muito pouco a ver com espiritualidade, pois, aí,

• 177
Olavo de Carvalho

estávamos sempre no reino das forças sutis da natureza. Não


se ia além disso, e não se deve pensar que algo seja espiritual
apenas por ser invisivel. O Dalai Lama chamou toda essa cor-
rente de materialismo espiritual.

Contatos com o tradicionalismo


Após essa minha etapa gurdjieffiana (que já era highbrow em
comparação com a Nova Era), naturalmente passei ao tradi-
cionalismo de Guénon e Schuon. O primeiro contato que tive
com a escola perenialista foi através do livro The Sword of
Gnosis: Metaphysics, Cosmology, Tradition, Symbolism, de
Jacob Needleman (o qual vim a conhecer depois). Trata-se de
uma antologia de textos de Ananda Coomaraswamy, do próprio
Frithjof Schuon, de Titus Burckhardt e outros. Era tudo muito
impressionante, o que me fez sentir que acabara a brincadeira,
agora estava lidando com algo de primeira plana.
Guénon, em especial, ofereceu a todos os interessados em
conhecimento espiritual, e que estivessem na mesma busca que
eu, uma chave interpretativa extraordinária: ele foi o único autor,
no século XX, que explicou como funciona verdadeiramente o
simbolismo, o qual, se bem manejado, permite que você faça
analogias entre várias tradições religiosas e as compreenda a
partir de seus pontos comuns. Acontece que tanto Schuon quanto
Guénon insistiam que essas várias tradições (cristã, budista etc.)
não podiam fundir-se: elas tinham a sua autonomia e você tinha
de seguir pela via de uma delas, permanecer fiel a ela; mas, no
topo de todas, encontrava-se um esoterismo que era comum a
todas as religiões, o qual, porém, não alterava o corpo de cada
religião em particular. Assim, a distinção entre esoterismo e
exoterismo aparecia como a base de tudo. A religião é conside-
rada um elemento puramente exotérico, mais popular, que tem
autoridade divina, sim, mas só nos aspectos sociais e externos.

• 178-
O saber e o enigma

Quanto aos aspectos internos, para acessá-los você precisaria


de um esoterismo que lhe permitisse compreender aquilo que
Schuon chamava de "unidade transcendente das religiões".

Tudo parecia muito bem articulado. Uma coisa, contudo, co-


meçou a me chamar a atenção: o baixo nível moral desses meios
esotéricos. Reinava a fofocagem, a intriga, a maldade. Como
poderiam aquelas pessoas se dedicarem tanto a conhecimentos
e exercícios espirituais e, ainda assim, não melhorarem nada do
ponto de vista moral mais elementar? Em especial, impressionou-
-me negativamente a pseudo-tariqa liderada pelos irmãos Idries
Shah e Omar Ali-Shah, súditos britânicos nascidos na Índia e cuja
familia estava em parte no Afeganistão. Eram picaretas totais,
charlatães de altíssimo nível; intelectualmente eram monstros e
tinham como discípulos somente pessoas muito inteligentes e
bem preparadas, que eles reduziam a uma espécie de escravidão
mental e exploravam até lhes tomar o último tostão.

Fiquei muito assustado com o que lá vi e comecei a escrever


para pessoas que conheciam o assunto, especialistas em sufismo
como William Stoddard, Martin Lings e Marco Pallis. Acabei
indo parar na Maryamiyya, a tariqa de Schuon, por ter sido
orientado a conhecer o que seria o sufismo autêntico, a fim de
distingui-lo dessa impostura. Felizmente, essa era uma tariqa
multiconfessional, pois não exigia conversão ao Islam: você sim-
plesmente fazia práticas islâmicas sem se converter formalmente
ao islamismo, do mesmo modo que Thomas Merton havia feito
práticas budistas sem se converter ao budismo. Schuon dirigia
grupos budistas, ortodoxos, católicos, islâmicos, hinduistas etc.,
e se considerava uma espécie de papa inter-religioso.

Rompimento com Schuon


Já dentro da tariqa de Schuon, recebi ordem de que parasse de
brigar com o grupo de Idries Shah. Na época, eu tinha denun-
ciado à polícia os negócios escusos daquela pseudo-tariqa,

179
Olavo de Carvalho

cujos membros estavam envolvidos com contrabando de tape-


tes. Ai, deu-se uma coincidência notável. Um dia, nos Estados
Unidos, eu estava fazendo um ritual sufi na casa de um sujeito
que tinha sido mukadam (o segundo no comando da tariqa).
Como precisasse vestir roupas islâmicas (dialab) para tanto,
dirigi-me ao banheiro. Ao passar na frente de um quarto de
casal, vi lá uma foto do dono da residência abraçado com um
sheikh turco chamado Muzafer, que era o contato de Idries Shah
na Turquia, e portanto o articulador do negócio milionário de
contrabando de tapetes. Ali me dei conta de que, embora as
tariqas de Schuon e de Idries Shah pudessem ser doutrinalmente
contrárias uma à outra, elas estavam de algum modo ligadas e
serviam a alguma finalidade conjunta.
Além disso, intelectualmente alguns elementos começariam
a me intrigar. Por exemplo, li Knowledge and the Sacred, de
Seyyed Hossein Nasr, que me deu ele próprio um exemplar
autografado em árabe. Fiquei fascinado. Mas o livro mostra
toda a história cultural e espiritual do Ocidente como se fosse
uma longa preparação para o advento de Guénon e Schuon.
Essa obra me ofereceu a estranheza de percorrer encantado um
longo caminho para que, no fim, surgisse essa tese deslocada.
Pois bem. Poucas semanas de experiência na tariqa de Schuon
bastaram para me deixar completamente desiludido, mesmo por-
que eu esperava lá encontrar um sheikh tradicional, talvez um
velhinho a varrer o chão da tariqa, alguém com quem pudesse
ter uma conversa pessoal verdadeira. Não era nada disso. A
coisa parecia a Casa Branca, era de uma hierarquia burocrática
infernal, você não podia nem conversar com o sheikh sozinho,
era preciso haver um funcionário observando. Não demorei a
arrumar uma briga com eles e, graças a Deus, fui posto para
fora da tariqa (numa tariqa você só pode entrar, não pode
sair, a menos que seja expulso). Aplicaram contra mim uma
técnica comum na Maryamiyya, a de assediar judicialmente
os seus desafetos. Felizmente contra mim só puderam mover

× 180-
O saber e o enigma

um processo, porque só havia oito membros na tariqa em São


Paulo e faltavam testemunhas (outros mais desafortunados, em
outras partes do mundo, seriam sobrecarregados com dezenas
de processos). Levei seis anos de trabalho para ser inocentado
ao fim, tendo com isso consumido tempo, dinheiro e energias.
Essa pequenez moral, insisto, é muito difundida no meio
esotérico. Um dos principais membros da tariqa de Schuon era
um sujeito de tendências reconhecidamente pedófilas. O próprio
Schuon, embora grande conhecedor do cristianismo, não era
um santo cristão. Era apenas um gênio, como tantos outros. De
Guénon, que inclusive era viciado em ópio, se pode dizer o mesmo.
Quando sua primeira esposa morreu, caiu numa depressão que se
prolongou por anos; ele não conseguia fazer praticamente nada.
Essa, vejam bem, não é a postura de um homem de verdadeira
fé, por maior que tenha sido sua perda. Mas que se diga também
que, quando estava prestes a morrer, disse para a esposa algo
do seguinte teor: "Vou morrer e não estarei mais aqui, vocês
não me verão mais, mas eu estarei vendo vocês. Portanto, se os
meninos chorarem, não permita, mas lhes pergunte: como ousam
se comportar dessa forma na presença de seu pai?". Isso mostra
que, a essa altura, ele já havia vislumbrado algo do que seja a
vida eterna para além de todo e qualquer esoterismo. Mas, em
sua maioria, as pessoas do meio esotérico e tradicionalista não
estão realmente interessadas nisso. Elas têm interesse por assuntos
"espirituais", um interesse cognitivo e lúdico, elas se entregam a
uma espécie de brincadeira erudita que até pode ser relevante
para a realização de uma boa carreira universitária, e nada mais.
Isso, é claro, atravanca a vida espiritual autêntica.

Uma anedota evoliana


No entorno tradicionalista havia tipos muito peculiares, como
Julius Evola, que, verdade seja dita, é mais um fenômeno
local italiano do que um fenômeno de importância universal.

* 181
Olavo de Carvalho

A linha-mestra de sua obra estava em recuperar uma tradição


de iniciações que iam dar no Império Romano e restaurá-la. E
uma idéia que se aproximava vagamente do que representa-
vam, em versão diminuída, os projetos de Mussolini, que não
invadiu a Etiópia senão para tentar restaurar o Império. O pro-
jeto evoliano, ademais, implicava na total destruição da Igreja
Católica, coisa com a qual René Guénon jamais concordaria,
porque pensava mais, à maneira gramsciana, em usar a Igreja do
que em destruí-la. Evola é sem dúvida um gênio - seu livro A
tradição hermética é um dos melhores que já se escreveu sobre
alquimia -, mas por outro lado era meio louco. Começou sua
carreira como pintor e poeta dadaista - e, francamente, acho
que continuou dadaista até o fim da vida. Apesar de sua loucura,
Evola, homem cultissimo e escritor absolutamente maravilhoso,
é alguém com quem se tem a aprender.
Aliás, passo a contar um episódio singular, que me parece
mostrar bem o tipo de personagem que Evola era. O meu
falecido amigo Ignácio da Silva Telles, que foi professor da
Faculdade de Direito da usp e um dos primeiros a ler autores
perenialistas no Brasil, numa época em que ninguém sabia do
que se tratava, interessou-se muito por Evola. Longos anos após
a morte deste, o Prof. Ignácio, viajando à Itália, quis conhecer
a residência do autor que admirava. Descobriu o endereço e o
telefone. Telefonou: "Quem está falando?". Respondem-lhe: "É
o Barão Julius Evola". O que o Prof. Ignácio me contou a res-
peito do estranho encontro foi o seguinte: "Bom, fui até à casa.
Conversei com Julius Evola, o qual estava morto fazia anos, e
sai de lá sem entender nada do que aconteceu. Não entendo até
hoje. Juro que isso aconteceu, não me peça para explicar, eu não
sei o que houve, não sei se a morte dele foi uma encenação, se
queria se livrar de todo mundo e mandou avisar que morreu,
ou se morreu mesmo e eu conversei com um fantasma, não me
pergunte, porque eu não sei".

• 182=
O saber e o enigma

Milagres
Ser expulso da tariqa de Schuon foi a melhor coisa que me
aconteceu na vida. A partir desse dia, percebi que não preci-
sava mais de sheikh nem guru algum. Tinha de buscar o que
precisasse contando somente com meus próprios meios. Ao
pôr o campo esotérico de lado, percebi que aquilo que estava
buscando há tempos era simplesmente o que se chama de Deus,
de eternidade, de vida além da morte. Eu havia estudado Kant,
com quem tinha aprendido que tudo quanto se refere a Deus e à
eternidade está além das possibilidades da nossa experiência. De
fato, só podemos saber aquilo que o próprio Deus nos mostra.
Mas ora: como é que Ele nos mostra? Encontrei a resposta nos
versículos do Evangelho de Mateus em que João Batista, preso
na cadeia, manda seus discípulos perguntarem a Jesus: "Sois vós
aquele que deve vir, ou devemos esperar por outro?", ao que
Jesus responde: "Ide e contai a João o que ouvistes e vistes: Os
cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos
ouvem, os mortos ressuscitam, o Evangelho é anunciado aos
pobres"' (Mt 11, 2-5).
Foi como se caíssem escamas dos meus olhos. Encontrara
nesses versículos um critério real para discernir onde se encon-
tra Deus. Onde, pois, pode estar a presença de Deus senão
no mundo físico em que habitamos? Que outros sinais temos
de Deus - conforme as indicações que dá Jesus Cristo nessa
passagem - senão aqueles que recebemos por meios materiais
neste mundo? Uma profecia, para ser profecia, depende do meio
material: de um homem concreto que anuncia coisas especificas
que irão transcorrer neste mundo. Um milagre, se milagre mes-
mo, é uma ação direta de Deus no mundo físico, de tal modo
que ela se torna visível para os seres humanos. Não fosse isso,
e nada saberíamos de Deus. É certo que, filosoficamente, pelo
raciocínio de analogia, como explica Santo Tomás de Aquino,
podemos conhecer algo de Deus. Mas isso é algo que convence

- 183 •
Olavo de Carvalho

você intelectualmente - e a convicção intelectual desacompa-


nhada de alguma evidência física não tem força.
René Guénon compara a realização de milagres ao que no
hinduísmo se chamam de poderes ou sideres, isto é, meras
manifestações externas de um estado interior. Por exemplo: um
sujeito brâhmane que chegou a certo nível de realização espiritual
adquire certos poderes, mas, diz Guénon, esses poderes não têm
valor nenhum, o que realmente importa é o estado espiritual
interno. Bem, a comparação dos sideres com os milagres cristãos
é absolutamente inviável, porque os milagres cristãos não são
poderes adquiridos por um indivíduo humano, eles são a pró-
pria ação de Deus — não é o Pe. Pio que faz o milagre, é Jesus
quem faz usando-o como instrumento; o Pe. Pio em pessoa, na
verdade, não tem poder nenhum. Fica muito claro no Evangelho
que não existe outro poder senão o do próprio Cristo.
Ocorreu-me também reparar que muitas religiões alegam
milagres, mas o cristianismo, para além disso, é todo feito de
milagres: é a imaculada conceição de Jesus, são as curas que
Jesus fez durante a vida, é a sua Ressurreição, e assim por diante.
O milagre não é um elemento a mais no cristianismo, mas é o
próprio centro da religião cristã. Jamais vi um sufi realizar um
milagre (circulam umas poucas histórias de milagres de iniciados
sufis, jamais comprovadas), e o próprio profeta Mohammed se
gabava de jamais ter feito um. De todo modo, se há milagres no
campo islâmico, eles aparecem como um acréscimo, não fazem
parte do núcleo da religião, coisa absolutamente estranha ao
cristianismo, onde tudo de mais fundamental em seu núcleo é
de natureza miraculosa.

A Eucaristia
Os milagres que fundam o cristianismo culminam na Santa Ceia,
quando Jesus diz aos apóstolos: "Isto é o meu corpo, que é dado

• 184-
O saber e o enigma

por vós; fazei isto em memória de mim" (Le 22, 19). A Igreja
Católica sempre insistiu que o rito da Eucaristia é a repetição
do sacrifício, ao passo que a interpretação protestante a toma
como não mais que uma cerimônia de rememoração. Ora, quem
estudou um pouco de esoterismo e sabe o que é um rito (e sabe
que, relembro, símbolo e rito são os conceitos centrais de todo
esoterismo) está ciente de que ele é a repetição formalizada de um
ato primordial - por exemplo, a criação do mundo, o Batismo de
Nosso Senhor Jesus Cristo, o sacrifício do Calvário. Se você diz
que a Eucaristia é apenas um memorial, então está afirmando que
ela não tem sentido ritual, mas só comemorativo, rememorativo.
O texto grego, contudo, é inequívoco. Quando Cristo diz
"Em memória de mim", emprega a palavra anámnesis. Ora,
essa palavra tem uma estrutura muito peculiar por ser uma
dupla negação. Verifica-se nela nemata, o que chamariamos de
memória; a negação da memória, amnésia; e, por fim, a nega-
ção da amnésia, anámnesis (no texto evangélico com a forma
anámnesin). Evidentemente, a recordação ou memorização
de que o Cristo fala não é apenas uma coisa que lhe ocorre,
que apareceu na sua memória: é uma destruição da amnésia;
portanto, uma atividade que você faz. Cristo designa essa ati-
vidade empregando a palavra poiéin (no Evangelho empregada
na segunda pessoa do plural, poiétes), da qual seria derivada
a nossa palavra "poesia". Falar em poiéin é falar em criar algo,
fazer algo no sentido prático, no sentido em que se constrói
uma mesa. Mais ainda: a frase grega para "Isto é o meu corpo",
touto estin to soma mou, emprega o verbo ser (estin) que, em
geral, tem sentido atemporal ou supratemporal, pois só adquire o
sentido temporal quando acompanhado de alguma palavra que
o modifique. Isso quer dizer que, se Cristo empregou a palavra
touto, "isto", "esta coisa", ele quis dizer: "Isto é o meu corpo
eternamente". Ele não disse que simbolizava ou representava o
seu corpo, mas que efetiva e eternamente era o seu corpo. De
igual modo, quando instrui os apóstolos quanto ao que fazer,

× 185×
Olavo de Carvalho

é taxativo ao dizer: "Fazei isto em memória de mim". Não se trata


de recordar aquele ato, não se trata de fazer algo parecido; Ele
ordena que se faça exatamente o que Ele fez ao abençoar o pão
e o vinho de maneira que se tornem o corpo e o sangue d'Ele.
Assim, ficou-me claro que ou a Eucaristia é um rito no sentido
rigoroso do termo, é uma repetição atual e presente do sacrifício
do Calvário, ou do contrário seria apenas uma rememoração,
uma referência a uma passagem da vida do Cristo. E, no caso
de ser mera referência, chegamos a conclusões devastadoras,
porque assim esse ato ficará posto no passado, algo restrito à
ação de Cristo, algo portanto preso em um momento histórico
e que jamais se repetirá.
Isto é de uma gravidade extraordinária, ainda mais que os
efeitos da Eucaristia são visíveis em milagres que acontecem aos
milhares. Assistam às palestras disponíveis on-line de Ricardo
Castañon, doutor em psicologia clínica e grande investigador
dos milagres eucarísticos. Os casos de hóstias que sangram são
abundantemente documentados. É célebre o caso da hóstia com
um traço de substância avermelhada que Castañon, à época um
descrente, foi convidado a analisar. Testes em laboratórios de
renome demonstraram que se tratava de sangue, mas não só isso:
sangue com células ainda vivas, com glóbulos brancos ainda
ativos, como se estivessem cicatrizando um ferimento, coisa
característica de quem teve uma morte traumática, sofrendo
muito. Identificou-se também tecido muscular cardíaco. Acredito
que a pessoa bem-intencionada que se dedicar a acompanhar
os casos estudados pelo Dr. Ricardo Castañon acabará por se
convencer da realidade dos milagres eucarísticos.

O eu santificado

Creio que só existe um único caminho iniciático, dos quais


os demais são apenas reflexos diminuídos: os sacramentos da

* 186-
O saber e o enigma

Igreja Católica. O protestantismo participa deles de maneira


menor, mas de todo modo ainda conserva alguns sacramentos,
ao passo que a Igreja Ortodoxa conserva todos, e a ortodoxia
e o catolicismo reconhecem mutuamente a validez dos sacra-
mentos administrados por ambos. O indivíduo que é iniciado
nos sacramentos e realiza suas potencialidades passará por um
processo de santificação e divinização, o que fará com que alguns
atributos divinos sejam personificados nele. A matéria não resistia
ao que o Pe. Pio pedia a Nosso Senhor Jesus Cristo. A matéria,
em suma, não era obstáculo suficiente para ele. Através do Pe.
Pio, dava-se uma ação divina direta no mundo.
Cristo, citando um salmo, diz: "Não está escrito na vossa
Lei: Eu disse: Vós sois deuses?" (Jo 10, 34). O Apóstolo Paulo,
por outro lado, afirma: "Já não sou mais eu que vivo, é Cristo
que vive em mim" (Gl 2, 20). E não disse ainda o próprio Cristo:
"Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e
fará ainda maiores do que estas" (Jo 14, 12)? Não há margem
para dúvida: trata-se da divinização do ser humano (fazer dele
Deus, torná-lo capaz de coisas ainda maiores do que as reali-
zadas por Cristo), trata-se da solidificação do eu (fazer Deus
habitar plenamente nele, no seu eu).
A transfiguração da pessoa por meio dos sacramentos não tem
o sentido de uma absorção que abolisse a sua individualidade,
que destruísse o seu eu, como se diz em doutrinas budistas e
hinduístas. A rigor, a única coisa divina que temos em nós é
o nosso eu. Os demais bichos em alguma medida também têm
raciocínio, memória, sentimento etc., mas eles não têm um eu,
não são um centro agente, eles apenas reagem a uma cadeia
de causas exterior a eles e que os arrasta, ao passo que em
nós essa cadeia de causas pode ser interrompida por nossa
vontade: podemos naturalmente propender a fazer certa coisa,
mas podemos decidir fazer outra. Os mártires tinham tudo para
negar o Cristo, mas não o fizeram. Escolheram não o negar,

• 187-
Olavo de Carvalho

apesar de tudo lhes premer a tanto. Mostrava-se neles a força


da divindade no ser humano, a força do eu, que tem seu modelo
em Deus, que disse: "Eu sou o que sou" (Ex 3, 14). Quanto mais
nos santificamos, mais somos Deus. Como diz Santo Tomás de
Aquino: em Deus estaremos fundidos, mas não confundidos.
Só Deus é um eu pleno, verdadeiro e permanente. Em nós, o
eu tem uma presença intermitente, é escandido, cortado, volta e
meia é neutralizado por outros fatores (o sono ou a embriaguez,
por exemplo), mas o reconquistamos de novo, e de novo, e de
novo. O que assegura a permanência desse eu é somente a ação
do Espírito Santo, que tem de passar por uma barreira de resis-
tência material: o nosso corpo. O Espírito Santo nos torna eus
mais sólidos não à medida que estudamos mais esoterismo ou
lemos mais a Biblia, e sim à medida que vivemos os sacramentos.
Você tem de tomar o corpo e o sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo, e isso é algo que se faz, algo que requer uma ação física
no mundo físico. Sem isso, não se alcança a salvação e muito
menos a divinização.

• 188
PARTE IV

As garras da Esfinge: René Guénon


e a islamização do Ocidente
As transformações históricas e espirituais profundas que vão
determinar o futuro da humanidade estão tão distantes da nossa
mídia, da nossa vida universitária e, de modo geral, de todos os
debates públicos neste país, que com certeza aquilo que vou dizer
neste artigo parecerá estratosférico e alheio à realidade imediata.
O doente incurável que geme de dor num leito de hospi-
tal dificilmente se interessará, nessa hora, pelas controvérsias
médicas, bioquímicas e farmacológicas que se desenrolam em
países longínquos e em idiomas que ele desconhece, mas das
quais poderá vir, um dia, a cura da sua doença. O que mais de
perto diz respeito ao seu destino lhe parece distante, abstrato
e alheio à sua dor.
Os que se interessam pelo futuro do Brasil deveriam prestar
atenção ao que vou lhes dizer aqui, mas será muito difícil fazê-
-los ver que uma coisa tem algo a ver com a outra.
Vou começar analisando a resenha que um autor desconhe-
cido neste país faz do livro de outro autor igualmente ignorado
por aqui
O livro é False Dawn: The United Religions Initiative,
Globalism, and the Quest for a One-World Religion, de Lee
Penn (Sophia Perennis, 2005), que já recomendei muitas vezes
mas poucos leram, por ser um calhamaço de documentos longos

× 191×
Olavo de Carvalho

e chatíssimos. O resenhista é Charles Upton, autor de The System


of the Antichrist (id., 2001), que foi menos lido ainda, já que o
recomendei com menos ênfase e constância. A resenha foi publi-
cada num livro mais recente de Upton, Findings: In Metaphysic,
Path, and Lore, A Response to the Traditionalist/Perennialist
School (id., 2010), e reproduzida na revista eletrônica da editora.'
O livro de Lee Penn descreve e documenta com abundância de
fontes primárias a formação e desenvolvimento de uma religião
biônica mundial, com todas as características de uma paródia
satânica, sob os auspícios da ONu, do governo americano, de
praticamente toda a grande mídia ocidental e de um punhado
de megafortunas. Iniciado em 1995 por William Swing, bispo
da Igreja Episcopal, com o nome de United Religions Initiative
(urI), embora extra-oficialmente existisse desde muito antes
(remontando ao Lucis Trust fundado em 1922 por Alice Bailey),
o empreendimento, sustentado por recursos financeiros incal-
culavelmente vastos e apoiado por todo um cast de estrelas do
show business e da política, conquistou até o apoio informal
do Papa Francisco.3
Com o lindo objetivo de criar "um mundo de paz, sustentado
por comunidades engajadas e interconectadas, comprometidas
com o respeito à diversidade, com a resolução não-violenta dos
conflitos e com a justiça social, política, econômica e ambiental",
o movimento reúne, em festivas celebrações ditas "ecumênicas",
católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, budistas, xintoístas,
animistas, espiritas, teosofistas, ba'hais, sikhs, adeptos da New
Age, da Wicca, do satanismo, do Reverendo Moon, dos Hare
Krishna e de qualquer culto indígena ou ufológico que se apresente,

1 V. http://www.sophiaperennis.com/discussion-forums/sophia-perennis-book-
-reviews/false-dawn-the-united-religions-initiative-globalism-and-the-quest-
-for-a-one-world-religion/
2 http://www.uri.org.
3 V. http://remnantnewspaper.com/web/index.php/articles/item/511-pope-francis-
-and-the-united-religions-initiative.

• 192~
O saber e o enigma

dando a tudo um sentido de fraternidade universal que dissol-


ve entre sorrisos de condescendência mútua as mais óbvias e
insuperáveis incompatibilidades entre essas diversas crenças.
Todas as religiões e pseudo-religiões somadas, fundidas e
mutuamente neutralizadas reduzem-se assim a um instrumento
auxiliar do projeto globalista voltado à criação de um Governo
Mundial.
Grosso modo, a ideologia que gruda uns nos outros esses ele-
mentos heterogêneos e inconciliáveis é o universalismo lowbrow
da "Nova Era", que, copiando mal e mal a linguagem da tradição
hindu, proclama serem todas as religiões nada mais que aspectos
locais e acidentais assumidos por uma Revelação Primordial
única, donde se conclui que, por este ou aquele caminho, todo
mundo chegará mais dia, menos dia, aos mais altos estágios da
realização espiritual humana ou mesmo sobre-humana.
Essa ideologia teve precursores no século XIX, como Allan
Kardec, Helena Petrovna Blavatsky, a célebre teosofista e -
literalmente - batedora de carteiras, Jules Doinel, fundador da
Igreja Gnóstica francesa (1890), Gerard Encausse, mais conhe-
cido como "Papus", Jean Bricaud e, de modo geral, todos os
componentes do movimento que viria a se chamar "ocultista".
Esse "universalismo", que no início do século XX soava apenas
como uma fantasia exótica, acabou por penetrar tão fundo no
senso comum das multidões que hoje a equivalência de todas as
religiões em dignidade e valor é um dogma subscrito por toda
a grande mídia mundial, pelos parlamentos, pelas legislações
da quase totalidade dos países e pela maioria das próprias
autoridades religiosas.
Longe de ser um fenômeno espontâneo, essa radical trans-
formação das crenças coletivas reflete o trabalho incessante
dos onipresentes agentes da URI, a cuja interferência nenhuma
organização socialmente relevante está imune.

* 193*
Olavo de Carvalho

Não é necessário, portanto, enfatizar a importância desse


projeto dentro dos planos globalistas, nem, é claro, é possível
negar o valor do trabalho de Lee Penn ao reunir e ordenar
documentação mais que suficiente para provar a unidade de
inspiração e de estratégia por trás de fenômenos que ao obser-
vador leigo podem parecer dispersos e inconexos.
O resenhista, Charles Upton, enaltece os méritos do livro e
acrescenta-lhe um esclarecimento que, diz ele, já havia trans-
mitido pessoalmente ao autor, com total concordância deste.
O esclarecimento é este: não se deve confundir o "universalis-
mo" paródico da Nova Era e da urI com o universalismo high-
brow da escola dita "tradicionalista" ou "perenialista" inspirada
em René Guénon, Frithjof Schuon, Ananda K. Coomaraswamy
e seus continuadores.
E verdade. São muito diferentes. Com muita antecedência,
o fundador da escola, René Guénon, já havia submetido a
devastadoras análises críticas toda a ideologia "ocultista" que
décadas mais tarde viria a constituir a base doutrinal — se cabe
o termo — da "Nova Era" e da uRi.
Membro e até bispo da Igreja Gnóstica na juventude, Guénon
logo saiu atirando e não fez prisioneiros. Nem um pouco mais
intactos ficaram o espiritismo de Allan Kardec, a teosofia de
Madame Blavatsky e mil e um outros movimentos nos quais
Guénon via a encarnação mesma daquilo que ele chamava
"pseudo-iniciação" e "contra-iniciação" - a primeira consti-
tuindo a imitação simiesca da espiritualidade, a segunda a sua
inversão satânica.
Na verdade o contraste entre o universalismo da uRi e o da
corrente guénoniana-schuoniana vai muito além da mera diferença
entre lowbrow e highbrow, embora essa diferença seja patente
aos olhos de quem os compare.
De um lado vemos um pastiche de sincretismos inconseqüentes
reforçados por alguma retórica humanitária sentimentalóide ou

~ 194-
O saber e o enigma

futurista (ora "progressista", ora "conservadora", para agradar a


todos) e adornado no máximo, aqui e ali, pela adesão superficial
de algum escritor da moda, como Aldous Huxley e Allan Watts.
Do outro lado, construções intelectuais sofisticadas, uma
compreensão profunda e organizada dos símbolos religiosos e
esotéricos de todas as tradições, um domínio cabal das fontes
reveladas e uma técnica comparatista que se aproxima, em pre-
cisão, quase que de uma ciência exata. Por acréscimo, algumas
das análises mais consistentes da crise civilizacional do Ocidente
nas suas várias expressões: cultural, social, artística etc.
A diferença salta aos olhos de qualquer leitor culto. Em con-
traste com a mixórdia sincretistica da "Nova Era", temos aqui um
universalismo no sentido forte da palavra, uma visão abrangente
e ordenadora que não somente apreende com extrema agudeza
os pontos comuns entre as várias cosmovisões espirituais, mas
dá a razão e fundamento da sua diversidade, de modo que a
essa articulação do uno e do múltiplo se subordina, na verdade,
toda a história universal das idéias e das crenças, das teorias e
práticas, numa palavra: tudo o que o ser humano fez e pensou
na sua caminhada sobre a Terra. Não há praticamente nada,
nenhum fenômeno, nenhum pensamento, nenhum acontecimento
fausto ou infausto, que de algum modo não encontre alguma
explicação "perenialista" eficiente e persuasiva, quando não
irrefutavelmente certa.
Do ponto de vista do buscador comum que, proveniente
dos meios revolucionários, modernistas e ateísticos, é alertado
para a importância dos temas "espirituais" e, após uma ilusão
temporária com a "Nova Era", se desilude com a sua superficia-
lidade e sai em busca de alimento mais nutritivo, a passagem ao
tradicionalismo de Guénon e Schuon é um upgrade intelectual
formidável, um impacto desaculturante, quase uma transfigu-
ração interior que repentinamente o isolará do ambiente mental
em torno, marcado a um tempo pelo descrédito das religiões e

* 195 =
Olavo de Carvalho

pela vulgaridade sem fim do ocultismo onipresente, e o deixará


sozinho, face a face com a sua consciência. Cumpre-se assim,
na escala individual, a célebre profecia emitida por um biógrafo
anônimo de René Guénon logo após a morte do mestre:
Chegará o momento em que cada um, sozinho, privado de todo
contato material que possa ajudá-lo em sua resistência interior,
terá de encontrar em si mesmo, e só nele mesmo, o meio de
aderir firmemente, pelo centro de sua existência, ao Senhor de
toda Verdade."

Raros, raríssimos são os que chegam a esse ponto — a maioria


vai tombando pelo caminho -, mas, para aquele que chega, é
difícil resistir, então, ao impulso de fazer contato pessoal com os
circulos guénonianos e schuonianos, em busca de alívio, apoio
e orientação. É por esse processo de seleção espontânea que se
forma a "elite intelectual" que, como veremos adiante, Guénon
tinha em vista no livro Oriente e Ocidente, de 1924.
Pois é evidente que, entre as várias cosmovisões em luta, a
mais abrangente, que absorve e explica todas as outras, está
no topo. E o cume da consciência de uma época, o nec plus
ultra da inteligência e do inteligível.
O que confere ainda mais autoridade ao ensinamento perenia-
lista é a afirmação reiterada de seus expositores, de que ele não é
invenção sua, mas o mero traslado, em linguagem teórica atual,
de revelações imemoriais que remontam a uma Fonte originária
única, a Tradição Primordial. Afirmação idêntica, na superfície,
à dos próceres da "Nova Era", mas agora fundamentada numa
superabundância de provas documentais, de argumentos racio-
nais, de toda uma ciência organizada do simbolismo universal
e do comparatismo, da qual nascem tours de force intelectual-
mente deslumbrantes como os Symboles de la Science Sacrée do

4 J. C., "Quelques remarques sur l'ouvre de René Guénon", em Etudes


Traditionnelles, 52e. Année, 1951, ns. 293-294-295, p. 307.

• 196-
O saber e o enigma

próprio René Guénon' e A Treasury of Traditional Wisdom, de


Whitall N. Perry,' um dos mais próximos colaboradores de F.
Schuon nos EUA, monumental coletânea de textos sacros orga-
nizados de modo a ilustrar, acima de qualquer dúvida razoável,
a convergência essencial das doutrinas e símbolos das grandes
tradições religiosas e espirituais, a Unidade Transcendente das
Religiões como a denominava Schuon no título de um livro que
ninguém menos que T. S. Eliot considerou o maior feito de todos
os tempos no campo da religião comparada.
Toda semelhança com o "universalismo" da uRI é enganosa.
Em primeiro lugar, todos os perenialistas, sem exceção,
insistem que as doutrinas, símbolos e ritos das várias tradições
em particular, malgrado apontem sempre para uma Realidade
suprema que é a mesma em todos os casos, têm uma integridade
própria, não podem ser objeto de fusão, mescla ou sincretismo.
Ou seja: não podem sofrer o tipo de operação unificante que,
precisamente, caracteriza a "Nova Era".
Em segundo lugar, nem tudo o que se apresente com o nome
de religião, espiritualidade, esoterismo ou coisa parecida pode
entrar nessa síntese. Bem ao contrário, é comum a todos os
perenialistas a distinção precisa, rigorosa e até intolerante entre
Tradição, Pseudtradição e Antitradição. Boa parte do material
compactado na "Nova Era" entra nestas duas últimas categorias
e, longe de integrar a unidade da fonte primordial, representa a
paródia ou negação de tudo o que vem dela.
Em terceiro e mais importante lugar, a unidade transcendente
das religiões é mesmo transcendente, não imanente. As religiões
aí estão unificadas apenas pelo topo, pelo cume e núcleo vivo
das suas concepções doutrinais, e não pela variedade irredutivel
das suas liturgias, dos seus códigos morais e das suas diferentes

5 Gallimard, 1962 (coletânea póstuma de artigos sobre o simbolismo).


6 Harper & Row, 1986, reed. Fons Vitae, 2000.

* 197-
Olavo de Carvalho

"vias" de realização espiritual. E onde, precisamente, está esse


núcleo e topo? Está nas suas respectivas concepções metafisi-
cas, que de fato são convergentes, como a simples coletânea
organizada por Whitall Perry basta para demonstrá-lo acima de
toda possibilidade de controvérsia. Nesse sentido, as religiões
e tradições espirituais podem ser vistas, sem distorção, como
adaptações de uma mesma Verdade Primordial às condições
histórico-culturais, lingüísticas e psicológicas dos vários tempos,
lugares e civilizações. Os vários exoterismos refletiriam, nas
suas diferenças, a unidade de um mesmo esoterismo primordial.
Os homens que chegaram a apreender claramente a unidade
desse esoterismo superaram, intelectivamente, a diferença entre
as religiões, mas, como não são feitos de puro intelecto e têm
ainda uma existência histórico-temporal de pessoas de carne e
osso, continuam subordinados cada um à sua respectiva tradição
religiosa, sem poder fundi-la ou misturá-la com qualquer outra.
O exemplo clássico é o grande mestre sufi Mohieddin Ibn 'Arabi.
Afirmando explicitamente que seu coração podia assumir todas
as formas - a do brâhmana hindu, a do rabino cabalista, a
do monge cristão ou qualquer outra -, ele continuava, na sua
vida de indivíduo real e concreto, inteiramente fiel à mais estrita
ortodoxia islâmica.
Mas é aí que começam os problemas.

- 198-
Desde logo, essa concepção exige, ao lado da diferenciação
"horizontal" entre as várias tradições no tempo e no espaço, uma
distinção "vertical", ou hierárquica, entre as partes "inferiores"
e "superiores" de cada uma. As "inferiores", ou exotéricas, são
historicamente condicionadas e por elas as tradições se afastam
umas das outras até o ponto da hostilidade mútua e da total
incompatibilidade. As partes "superiores", esotéricas, refletem
a eternidade imutável da Verdade, onde todas as tradições
convergem e se encontram.
Há, em suma, uma religião popular, feita de ritos e normas
de conduta, igual para todos os membros da comunidade, e uma
religião de elite, apenas para as pessoas "qualificadas", que por
trás dos simbolos e das leis podem apreender o "sentido" último
da revelação. Pela prática dos ritos de agregação que os integram
na tradição religiosa e pela obediência às normas, os homens
do povo obtêm a "salvação" post mortem das suas almas. Por
meio de ritos de iniciação, os membros da elite obtêm já em vida,
e muito acima da mera "salvação", a realização espiritual que
os arrebata do simples "estado individual" de existência para
transfigurá-los na própria Realidade Ultima, ou Deus.
É bom não falar muito dessas coisas perante o público em geral,
que pode escandalizar-se ante a decifração de um mistério que

× 199×
Olavo de Carvalho

deve permanecer opaco para a sua própria proteção espiritual.


É bem conhecida a história do sufi Mansur Al-Hallaj (858-922),
que após ter chegado à última "realização espiritual", saiu gri-
tando "Ana al-Haqq!" ("Eu sou a Verdade") e foi decapitado
pelas autoridades exotéricas. Al-Haqq não quer dizer somente
"a verdade" no sentido genérico e abstrato. E um dos noventa
e nove "Nomes de Deus" impressos no Corão, de modo que a
declaração de Al-Hallaj equivalia literalmente a "Eu sou Deus'".
Do ponto de vista da ortodoxia exotérica, isso resultava em
negar o princípio corânico da unicidade de Deus, constituindo
um crime que devia ser castigado com a morte. Mais tarde os
juristas islâmicos admitiram que afirmações proferidas por sufis
em estado de "arrebatamento místico" escapavam à alçada da
justiça comum e deviam ser aceitas como mistérios indecifráveis.
No sentido explícito, legal e oficial, a distinção entre exo-
terismo e esoterismo só existe numa única tradição: o Islam.
Corresponde à distinção entre shari'ah e tariqa. De um lado, a
lei religiosa obrigatória para todos; de outro, a "via"espiritual,
de livre escolha, só para as pessoas interessadas e dotadas. A
aplicação dessa distinção a todas as outras tradições é mera-
mente sugestiva ou analógica - uma figura de linguagem e não
um conceito descritivo apropriado. Com isso o edifício inteiro
do "perenialismo" começa a balançar um pouco.
Existem, por exemplo, exoterismo e esoterismo na tradição
hindu, justamente aquela de cujo vocabulário René Guénon
se serve mais freqüentemente, por julgar que o hinduísmo al-
cançou clareza máxima na exposição da doutrina metafísica?
Evidentemente não. A distinção de castas é algo de completa-
mente diverso. Primeiro, porque o ingresso na casta superior
não é de livre escolha: o sujeito nasce shudra, vaishia, kshatriya
ou brâhmana e assim permanece para sempre. Segundo, porque
acidentalmente membros das castas inferiores podem alcançar
os mais altos níveis de realização espiritual sem mudar de casta.

× 200-
O saber e o enigma

Terceiro, porque os ritos da casta superior, ou brâhmana, nada


têm de secreto ou discreto: qualquer zé-mané pode conhecê-los,
só não tem a autorização de praticá-los.
Existe um "esoterismo cristão"? A coisa, aí, complica-se
formidavelmente. Existiram e existem, aqui e ali, organizações
esotéricas que se professavam cristãs e que, por meio de ritos
especiais, diferentes dos sacramentos da Igreja, transmitem ini-
ciações. A Companheiragem, os Fedeli d'Amore, a Maçonaria
e a Ordem Templária são exemplos. Mais modernamente, inú-
meros ocultistas, como Madame Blavatsky, Rudolf Steiner e
Georges Ivanovich Gurdjieff apresentaram seus ensinamentos
como modalidades de esoterismo cristão.
Mas restam alguns fatos que bastam para dar por terra com
essas pretensões.
Desde logo, não há traços de nenhuma organização esotérica
cristã nos primeiros dez séculos da Igreja. Em segundo lugar,
o próprio Nosso Senhor Jesus Cristo afirmou taxativamente:
"Nada ensinei em segredo" (Jo 18, 20). Mesmo Suas parábolas,
cujo sentido não era imediatamente evidente a todos, eram ditas
em público, não a um circulo reservado. Como é possível então
que o núcleo do ensinamento do Salvador fosse conservado em
segredo durante dez — ou vinte - séculos?
Em contraste, no Islam a diferença de exoterismo e esoterismo
aparece nitidamente desde o primeiro momento. Ao ver um grupo
de companheiros do profeta praticando certos ritos estranhos,
diferentes das cinco preces diárias, os fiéis foram perguntar a ele
de que se tratava. Ele explicou que eram devoções voluntárias,
meritórias mas não obrigatórias. Esse foi o primeiro sinal da
existência do tasawwuf ou "sufismo", o esoterismo islâmico.'

1 Outras modalidades de esoterismo islâmico desenvolveram-se mais tarde,


especialmente na Pérsia, mas não vêm ao caso. V. Henry Corbin, En Islam
Iranien.

*201-
Olavo de Carvalho

Em terceiro lugar, e mais decisivo: os sacramentos da Igreja


não são meros "ritos de agregação". São iniciáticos de pleno
direito. Não dão acesso somente à comunidade de fiéis - ou
à sua "egrégora" ou consciência coletiva -, mas, Deo juvante,
ao conhecimento mais intimo da Realidade Suprema a que um
ser humano pode aspirar. "Não sou mais eu que existo", diz o
Apóstolo, "é Cristo que existe em mim" (Gl 2, 20).
João Paulo II, no seu Catecismo, declara explicitamente que
os sacramentos são os passos "da iniciação cristã", e não é
concebivel que, num texto tão formalmente doutrinário, usasse
o termo como mera figura de linguagem.
O Pe. Juan González Arintero, em dois livros memoráveis que
provavelmente constituem o cume da literatura mística no século
XX, demonstra com abundância de argumentos e exemplos que
a via dos sacramentos foi aberta justamente para dar a todos,
sem exceção, o acesso aos mais altos patamares da realização
espiritual.? A distinção de exotéricos e esotéricos só serve aí
como metáfora para designar o diferente aproveitamento espiri-
tual obtido por este ou aquele indivíduo conforme suas aptidões,
seu empenho e os movimentos da graça divina.
Todos os cristãos que receberam os sacramentos são, por-
tanto, iniciados, no sentido estrito que o perenialismo dá a
essa palavra. A diferença entre os vários resultados espirituais
obtidos pode ser explicada por um conceito desenvolvido pelo
próprio René Guénon, o de iniciação virtual. Nem todos os ritos
de iniciação produzem imediatamente os resultados espirituais
que lhes correspondem. Esses efeitos podem permanecer retidos
por muito tempo até que algum fator externo — ou a evolução
do próprio recipiente — os convoque à plena manifestação.

2 La Evolución Mistica en el Desenvolvimiento y Vitalidad de la Iglesia,


Salamanca, Fides, 1940, várias reedições pela B.A.C., Madrid, a partir de 1952,
e Cuestiones Misticas, o Sea, Las Alturas de la Contemplación Accesibles a
Todos, Madrid, B.A.C., 1956.

• 202-
O saber e o enigma

Para complicar um pouco mais as coisas, o próprio F. Schuon


reconheceu que os sacramentos cristãos tinham alcance iniciático.
Para vocês avaliarem o quanto essa questão é espinhosa para
a escola perenialista, basta lembrar que, publicada a opinião
de Schuon a respeito, Guénon reagiu com indignação e fúria,
chegando a romper relações com o seu discípulo e continuador.?
Guénon continuou teimando que os sacramentos cristãos
eram apenas ritos de agregação e que autênticas iniciações só
existiram em determinadas organizações secretas ou discretas,
como a Companheiragem ou a Maçonaria. Para sustentar essa
tese, inventou uma das hipóteses históricas mais artificiosas que
alguém já viu: o cristianismo teria surgido inicialmente como
um esoterismo, mas, em vista da decadência geral da religião
greco-romana, teria sido forçado ex post facto a popularizar-se,
acabando por reduzir-se a um exoterismo. Não há absolutamen-
te nenhum sinal de que isso jamais tenha acontecido. Bem ao
contrário, Jesus falou abertamente às multidões desde o início
da sua pregação, e os sacramentos não sofreram nenhuma mu-
dança substancial de forma ou conteúdo ao longo dos tempos.
Quaisquer que possam ter sido os seus erros em outros domínios,
nesse ponto Schuon estava com a razão.
E também só como figura de linguagem que a distinção
de exoterismo e esoterismo - ou de ritos de agregação e de
iniciação - pode se aplicar ao judaísmo, já que os cultores
de mistérios cabalísticos ali não são outros senão os próprios
sacerdotes do culto oficial.
Tão inapropriada é a aplicação dessa dupla de conceitos ao
território extra-islâmico, que membros da própria escola pere-
nialista acabaram tendo de reconhecer a existência de iniciações
"exo-esotéricas" e até "exotéricas" ao lado das propriamente
3 V., entre outros, Timothy Scott, "René Guénon and the Question of Initiation",
em Sophia: The Journal of Traditional Studies, 2008, reproduzido em http://
timothyscott.com.au/Assets/pdfs/Guenon_initiation.pd

× 203×
Olavo de Carvalho

"esotéricas", o que já basta para mostrar que esses conceitos


servem para pouca coisa.
A falta de argumentos razoáveis e a reação desproporcional
de Guénon ante o que poderia ter se limitado a uma discus-
são entre amigos sugerem que nesse episódio ele podia estar
escondendo alguma coisa. Não podendo falar claramente,
apelou a uma hipótese absurda e tentou reduzir o interlocutor
ao silêncio mediante uma exibição de autoridade, que Schuon
educadamente rejeitou.
Qual a razão pela qual Guénon teria escolhido enquadrar
à força todas as tradições numa dupla de conceitos que não se
aplicava apropriadamente a nenhuma delas exceto o islamismo
em particular? Por que esse homem, tão criterioso em tudo o
mais, se permitiu tamanha arbitrariedade, colocando-se assim
numa posição vulnerável que se viu posta em risco tão logo
Schuon levantou a questão das iniciações sacramentais? Quase
com certeza teve, para fazê-lo, motivos que, ao menos naquele
momento, não podiam ser discutidos abertamente.
Mas antes mesmo de esclarecer esse ponto é preciso levantar
uma outra questão.

4 Upton, Findings, p. 285.

× 204™
Que as tradições materialmente diferentes convergem na direção
de um mesmo conjunto de princípios metafísicos é algo que não
se pode mais colocar seriamente em dúvida. A tese da Unidade
transcendente das religiões é vitoriosa sob todos os aspectos.
Só há um detalhe: que é propriamente uma metafísica? Não
uso o termo como denominação de uma disciplina acadêmica
mas no sentido muito especial e preciso que tem nas obras de
Guénon e Schuon. Que é uma metafísica? É a estrutura da rea-
lidade universal, que desce desde o Primeiro Princípio infinito e
eterno até os seus inumeráveis reflexos no mundo manifestado,
através de uma série de níveis ou planos de existência.
O fato de que ela seja essencialmente a mesma em todas as
tradições indica que existe uma percepção normal da estrutura
básica da realidade, comum a todos os homens de qualquer
época ou cultura.
Essa percepção exige uma consciência clara ou ao menos
um pressentimento da escalaridade do real, isto é, das distin-
ções entre diferentes planos ou níveis de realidade, desde os
objetos sensíveis da percepção imediata até a Realidade última,
o Princípio absoluto, eterno, imutável e infinito, passando por
uma série de graus intermediários: histórico, terrestre, cósmico,
angélico etc.

× 205 ×
Olavo de Carvalho

A perfeita submissão da subjetividade humana a essa estrutura


está subentendida em todas as tradições como uma conditio sine
qua non da vida religiosa e, mais ainda, da realização espiritual.
Sua negação, mutilação ou alteração é a raiz de todos os erros
e desvarios da humanidade.
É por isso que F. Schuon propõe uma distinção entre here-
sia essencial e heresia acidental. A palavra "heresia" vem de
uma raiz grega que tem as acepções de "escolher" e "decidir".
Um heresiarca é alguém que, por vontade própria, escolhe da
verdade total as partes que lhe interessam e ignora as demais.
Heresia acidental, segundo Schuon, é a negação, mutilação
ou alteração dos cânones de uma tradição em particular, como
por exemplo o monofisismo na Cristandade (a teoria de que Jesus
tinha só a natureza divina, não a humana) ou o associacionismo
no Islam (associar Deus a outros seres).
Heresia essencial é a negação, mutilação ou alteração da
própria estrutura da realidade - um erro, portanto, que seria
condenado não apenas por esta ou aquela tradição em particular,
mas por todas elas. O materialismo ou o relativismo, por exemplo.

Tudo isso está muito bem, mas há um problema lógico. Se


a metafísica é comum a todas as tradições, como pode ser o
topo e a suprema perfeição de cada uma delas? Por definição,
a perfeição de uma espécie não pode estar no seu gênero: tem
de estar na sua diferença específica. A perfeição do leão e da
pulga não pode residir no simples fato de que ambos são animais.
É admissível, na escalada iniciática do indivíduo, a chegada à
Realidade Suprema, que o eleva acima do seu estado individual
e o absorve no próprio Ser da divindade, o que é a culmina-
ção dos seus esforços. Ela corresponderia também, segundo o
perenialismo, ao momento em que as diferenças entre as tradi-
ções espirituais são definitivamente transcendidas, sem deixar
de continuar valendo para a existência empírica do iniciado no

× 206-
O saber e o enigma

plano terrestre. É Mohieddin Ibn 'Arabi sendo cristão, zoroas-


triano ou judeu "por dentro" sem deixar de ser ortodoxamente
muçulmano "por fora".
Mas, por isso mesmo, a metafísica só pode ser a culminação
das tradições enquanto tais se aceitarmos uma indistinção entre
a ordem do Ser e a ordem do conhecer, que, segundo ensinava
Aristóteles, são inversas. O topo da escalada iniciática não pode
ser, ao mesmo tempo, a culminação das religiões porque, sendo
comum a todas elas, é apenas o gênero a que pertencem e não
a suprema perfeição específica de cada uma.
Mais razoável seria supor que a Tradição Primordial é a base
comum não só a todas as tradições espirituais, mas a todas as
culturas e, no fim das contas, ao núcleo de inteligência sã presente
em todos os seres humanos. Partindo dessa base, ou origem, as
várias tradições se desenvolvem em direções diferentes, cada
uma buscando refletir mais perfeitamente o Princípio absoluto
e dar aos homens os meios de retornar a Ele. Nesse sentido,
a culminação de cada tradição não é o Princípio em si, mas o
sucesso que obtém na operação de retorno. E não há por que
supor que, das várias espécies, todas expressem igualmente bem a
perfeição do gênero: as pulgas e os leões são igualmente animais,
mas nem por isso a pulga expressa a perfeição da animalidade
tão bem quanto o leão, para nada dizer do ser humano.
Schuon afirma que a pretensão de cada religião de ser "me-
lhor" que as outras só se justifica pelo fato de que todas elas são
"legítimas", isto é, refletem a seu modo a Tradição Primordial,
mas que, vistas na escala da eternidade e do absoluto, essa
pretensão se revela ilusória. No entanto, se a perfeição de uma
espécie não pode residir apenas no seu gênero, e sim na sua di-
ferença específica, não há nenhum motivo para dar por provado

1 "L'idée du 'meilleur' dans l'ordre confessionnel", em Etudes Traditionnelles,


1981, vol. 82, no 471, pp. 3-12.

× 207-
Olavo de Carvalho

que todas as espécies representem por igual a perfeição do gê-


nero. Todas as religiões remetem a uma Tradição Primordial,
ok, mas todas a representam igualmente bem? A pergunta é
inteiramente legítima, e em parte alguma a escola perenialista
lhe ofereceu - ou tentou oferecer - uma resposta aceitável.
Na verdade, nem colocou a pergunta. Será que até nessas altas
esferas encontraremos o fenômeno da proibição de perguntar,
que Eric Voegelin discerniu nas ideologias de massa?

• 208-
IV

"A geração da Escola Tradicionalista reunida em torno de Frithjof


Schuon" — escreve Charles Upton - "apresentou e revelou as
religiões em suas essências celestiais, sub specie aternitatis"!
Se as essências celestiais das religiões são substancialmente a
mesma, a diferença entre elas é puramente terrestre e contingente,
as formas particulares de cada uma nada tendo de sagrado em
si mesmas sem a seiva que recebem da Tradição Primordial: só
esta, a Religio Perennis,' é verdadeira em sentido estrito. As
demais são símbolos ou aparências imperfeitas de que ela se
reveste nas suas várias encarnações terrestres.
Mas, prossegue o mesmo Upton,
essas revelações são consideradas ramos da Tradição Primor-
dial, mas esta Tradição não é presentemente vigente enquanto
sistema religioso; não é uma religião que possa ser praticada.
Os únicos caminhos espirituais viáveis existem sob a forma - ou
dentro - das presentes revelações viventes: hinduísmo, zoroas-
trismo, budismo, judaísmo, cristianismo e islam.3

Mas esses caminhos levam somente à "salvação" numa vida


post mortem. Para subir um pouco mais alto já na vida presente é

1 Findings, p. 284.
2 Eles usam o termo numa acepção diferente da que tem para os católicos.
3 Id., p. 294.

« 209-
Olavo de Carvalho

preciso, sem abandoná-los, filiar-se a uma organização esotérica


e praticar, além dos ritos e mandamentos da religião popular,
alguns ritos e mandamentos especiais, de caráter iniciático.
Dito de outro modo, a religião popular é um atestado de
qualificação exigido do postulante na entrada do caminho
iniciático. Para o muçulmano, isso não é um grande problema.
Embora tenham uma existência à parte, as tariqas (turuq, em
árabe) são em geral reconhecidas como legítimas pela religião
oficial, de modo que o fiel interessado pode transitar livremente
entre os dois tipos de práticas.
Para o hindu, também não é problema: ainda que inexistindo
propriamente um esoterismo hindu, o hinduísmo aceita e absorve
todas as práticas de outras religiões, de modo que - desconta-
dos os conflitos políticos entre hinduístas e muçulmanos - nada
impede que um hindu se filie a uma tariqa, à Maçonaria, a uma
Tríade chinesa ou a qualquer outra organização esotérica sem
mudar de estatuto na sua sociedade de origem.
No caso de um católico, porém, a coisa se complica. Segundo
Guénon, todas as organizações iniciáticas cristãs foram desa-
parecendo depois da Idade Média, deixando os pobres fiéis
limitados a um exoterismo espiritualmente capenga. Sobraram
só uns resíduos de organizações extintas e... a Maçonaria.
Acontece que uma sentença do Papa Clemente XII, em 1738,
condenou à excomunhão automática todo fiel católico que se
filiasse à Maçonaria (ou a qualquer outra sociedade secreta). A
decisão foi reforçada pelo Papa Leão X em 1890 e formalizada pelo
Código de Direito Canônico de 1917. O novo Código do Papa
João Paulo II, em 1983, falava somente em "sociedades secretas",
sem mencionar nominalmente a Maçonaria, o que por breves
instantes deu a impressão de que a excomunhão fora suspensa,
até que a Congregação para a Doutrina da Fé, em novembro
daquele mesmo ano, esclareceu que não era nada disso, que a
proibição de ingressar na Maçonaria continuava em vigor.

• 210-
O saber e o enigma

Isto é, o el católico que lesse René Guénon e acreditasse


nele, vendo na perda da dimensão iniciática a raiz de todos os
males do mundo moderno, era espremido contra a parede pela
opção entre desistir de vez do esoterismo, contentando-se com
o exoterismo cada vez mais reduzido a um moralismo exterior,
e aceitando portanto ser cúmplice da degradação espiritual mo-
derna, ou então buscar uma iniciação maçônica e ser excomun-
gado, isto é, perder a filiação exotérica que, segundo o mesmo
Guénon, era a conditio sine qua non do ingresso no esoterismo.
O conflito não era somente de ordem legal. Embora tivesse
origem remota em organizações esotéricas professadamente cristãs,
a Maçonaria tinha se tornado, em várias partes do mundo, uma
força ostensivamente e violentamente anticatólica, incentivando
perseguições e matanças de católicos, principalmente na França
(durante a Revolução e depois de novo no princípio do século
XX), no México (onde isso provocou a Guerra dos Cristeros) e
na Espanha, onde, com a mal disfarçada conivência do governo
republicano maçônico, padres e fiéis foram mortos a granel e
muitas igrejas destruídas antes mesmo da eclosão da Guerra Civil.
Quer dizer: o católico que se filiasse à Maçonaria não apenas
incorria em excomunhão automática, mas se tornava um traidor
de seus correligionários assassinados.
Guénonianos católicos como Jean Tourniac fizeram o diabo
para provar que as doutrinas maçônicas eram compatíveis com
o catolicismo, mas, é claro, isso ficou na teoria. Conversações
entre líderes católicos e maçons em busca de um acordo não

4 V. Jean Dumont, La Révolution Française ou Les Prodiges du Sacrilège,


Paris, Critérion, 1993; Jean Sévillia, Quand les Catholiques Étaient Hors la
Loi, Paris, Perrin, 2006; Francis Clement Kelley, Blood-Drenched Altars: A
Catholic Commentary on the History of Mexico, Tan Books, 1989; Robert
Royal, Catholic Martyrs of the Twentieth Century, The Crossroad Publishing
Company, 2006; Santiago Mata, Holocausto Católico: Los Martires de la
Guerra Civil, Madrid, La Esfera de los Libros, 2013.
5 V. Propos sur René Guénon, Paris, Dervy, 1973.

× 211×
fi
Olavo de Carvalho

deram em nada. A excomunhão continuava em vigor, e o risco


moral continuava altíssimo.
A partir dos anos 60, quando esses problemas começaram
a tornar-se objeto de discussão mais aberta nos círculos de in-
teressados em tradicionalismo, o grupo perenialista começou a
sugerir ao católico encurralado as seguintes soluções possíveis:

1. Largue tudo e converta-se ao Islam.


2. Busque abrigo na Igreja Ortodoxa Russa, onde ainda há um
resíduo de esoterismo e cujos sacramentos, no fim das contas,
são aceitos como válidos pela Igreja Católica.
3. Filie-se à tariqa multiconfessional de F. Schuon, onde você
poderá praticar ritos iniciáticos islâmicos sem conversão formal
e mantendo-se a uma prudente distância dos muçulmanos exo-
téricos.

A primeira opção era com certeza a mais traumática. Afinal,


o próprio Schuon tinha escrito que "mudar de religião não é
como mudar de país: é como mudar de planeta".6
A segunda era mais confortável, mas esbarrava num obstá-
culo que jamais vi algum autor perenialista sequer mencionar:
a Igreja Ortodoxa Russa estava infestada de agentes da KGB,
sendo quase impossível ao recém-chegado orientar-se naquela
selva selvaggia de conspirações e fingimentos. Não por coinci-
dência, a KGB estava, naquele mesmo momento, organizando e
treinando organizações terroristas islâmicas para a guerra contra
o Ocidente cristão?

6 Entre duas mudanças de casa, minha biblioteca está toda guardada num
depósito, de modo que farei algumas citações de memória. Agradeço eventuais
correções.
7 V. Ion Mihai Pacepa, Disinformation: Former Spy Chief Reveals Secret
Strategies for Undermining Freedom, Attacking Religion, and Promoting
Terrorism, WND books, 2013 (há edição brasileira: Desinformação: ex-chefe
de espionagem revela estratégias secretas para solapar a liberdade, atacar a
religião e promover o terrorismo. Trad. Ronald Robson. Campinas, SP: Vide
Editorial, 2015).

*212-
O saber e o enigma

Sobrava a terceira, a mais fácil e natural. A tariqa de Schuon


estava, de fato, repleta de membros de origem católica - a co-
meçar pelo próprio Schuon e por alguns de seus colaboradores
mais próximos, como Martin Lings, Titus Burckhardt e Rama P.
Coomaraswamy, dos quais os dois primeiros converteram-se ao
Islam, o terceiro continuou católico ao menos em público, sem
deixar de prestar ao sheikh o voto regulamentar de obediência
total exigido nas tariqas.°
Nas almas daqueles que permaneciam católicos - ex pro-
fesso ou de coração apenas -, realizava-se assim, em escala
microscópica, o plano que, desde 1924, René Guénon traçara
para o Ocidente inteiro

8 Schuon regulava até o estilo de mobiliário permitido nas casas de seus


discípulos e o número de cigarros que eles poderiam fumar por dia (ele próprio
dava uma fumadinha de vez em quando, em contraste com o tabagismo voraz
de René Guénon).

×213×
Após descrever com as cores sombrias de um genuíno Apocalipse
a degradação espiritual da civilização no Ocidente, atribuindo-a
à perda da "verdadeira metafísica" e das ligações entre a Igreja
Católica e a Tradição Primordial (ligações que só poderiam
ter sido mantidas por intermédio das organizações iniciáticas),'
René Guénon prevê três desenvolvimentos possíveis do estado
de coisas no Ocidente:?
1. A queda definitiva na barbárie.
2. A restauração da tradição católica, sob a orientação
discreta de mestres espirituais islâmicos.
3. A islamização total, seja por meio da infiltração e da
propaganda, seja por meio da ocupação militar.
Essas três opções reduziam-se, no fundo, a duas: ou o
mergulho na barbárie ou a sujeição ao Islam, seja discreta, seja
ostensiva.
A eclosão da II Guerra Mundial pareceu mostrar que o
Ocidente preferira a primeira opção, sendo um detalhe irônico o
fato de que importantes autoridades religiosas islâmicas deram

1 Das igrejas protestantes Guénon nem fala, pois tinha todas na conta de desvios
antitradicionais. Schuon, mais tarde, atenuaria esse diagnóstico sem impugná-
-lo formalmente.
2 V. Orient et Occident, Paris, Véga, 1924.

*215-
Olavo de Carvalho

apoio total ao Führer, especialmente na questão do extermínio


dos judeus. Coincidência macabra ou profecia auto-realizável?
Não sei.
Após a guerra, a colaboração íntima entre governos islâmicos
e regimes comunistas no esforço antiocidental conjunto veio a
se tornar tão notória que nem é preciso insistir nesse ponto.
Não deixa de ser oportuno lembrar que hoje em dia a esquerda
mundial empenhada em corromper o Ocidente "até fazê-lo feder",
como preconizava André Breton, é a mesma que apóia ostensi-
vamente a ocupação muçulmana do Ocidente pela imigração em
massa, bem como boicota por todos os meios qualquer esforço
sério de combate ao terrorismo islâmico, de modo que há entre
os dois blocos como que um acordo leninista de "fomentar a
corrupção e denunciá-la". Novamente cabe a mesma pergunta
do parágrafo anterior, com a mesma resposta.
Para o aspirante de origem católica, tudo o que a tariqa
oferecia era a escolha entre tornar-se muçulmano ou ser cató-
lico sob orientação muçulmana. A mesma escolha que Guénon
oferecia a todo o mundo ocidental.
Creio que com isso fica mais clara a intenção de Guénon ao
espremer todas as religiões, especialmente a cristã, no molde for-
çado de um conceito descritivo islâmico, a distinção exoterismo-
-esoterismo. De fato, como dominar toda uma civilização sem
enquadrá-la primeiro no sistema de coordenadas intelectuais
da civilização dominadora, onde ela deixará de ser uma totali-
dade autônoma para se tornar parte de um mapa abrangente?
Também é óbvio que não bastava fazer isso em teoria: era preciso
conquistar para essa nova visão das coisas os elementos mais
valiosos, mais ativos intelectualmente, da elite da civilização-
-alvo. Só quando esta começasse a se compreender a si mesma

3 V. Barry Rubin, Nazis, Islamists, and the Making of the Modern Middle East.
Yale University Press, 2014, e David Motadel, Islam and Nazi Germany's War.
Belknap Press, 2014.

• 216-
O saber e o enigma

nos termos do dominador, em vez dos seus próprios, ela esta-


ria madura para aceitar, sem maiores reações, uma operação
mais vasta de ocupação cultural. Tanto mais que a redução do
cristianismo ao binômio exoterismo-esoterismo, acompanhada
do diagnóstico sombrio da perda da dimensão esotérica, cul-
minava inexoravelmente na conclusão de que a "restauração da
Cristandade", das suas conexões com a Tradição Primordial e
portanto das dimensões mais altas da sua espiritualidade, só
poderia realizar-se sob a direção de um "esoterismo vivente",
isto é, do sufismo. Para usar os termos do próprio Guénon, era
preciso submeter o Ocidente à "autoridade espiritual" do Islam
antes de submetê-lo ao seu "poder temporal".

A teoria de Schuon, segundo a qual os sacramentos cristãos


conservavam o seu poder iniciático, parecia atenuar um pouco a
força do argumento islamizante, mas na verdade não o fazia de
maneira alguma. Sem a devida instrução espiritual, que só um
"esoterismo vivente" poderia lhe oferecer, o portador de uma
"iniciação virtual"permanecia inconsciente de tê-la recebido e
não apenas ficava paralisado no meio da escalada iniciática,
mas se arriscava, com isso, a sofrer toda sorte de distúrbios
espirituais e psíquicos. Só a espiritualidade sufi - encarnada,
neste caso, na pessoa de F. Schuon - poderia salvar os cató-
licos de si mesmos.
A islamização do Ocidente - discreta ou ostensiva, pacifica
ou violenta — é o objetivo central e, na verdade, único, de toda
a obra de René Guénon. Ela inteira converge para essa meta,
não como uma mera conclusão lógica, mas como uma espécie de
única saída à qual o leitor - e, idealmente, o Ocidente inteiro -
vai sendo levado, entre os muros de uma construção labirintica,
por um senso de fatalidade inexorável. Excluído esse objetivo,
ela não passaria de um conjunto de especulações teóricas sem
finalidade, um edifício de belas possibilidades espirituais irrea-
lizáveis, coisa que ele sempre negou que ela pudesse ser.

×217×
Olavo de Carvalho

Se fosse preciso uma confissão explícita para confirmá-lo,


bastaria lembrar que, justamente no momento em que F. Schuon
voltava da Argélia com o título de sheikh, alardeando sua inten-
ção de "islamizar a Europa", Guénon declarava que a fundação
da tariqa de Schuon em Lausanne, Suíça, era o primeiro e único
fruto produzido pelo seu esforço de décadas.

×218~
VI

O que pode tornar esse objetivo nebuloso ou até invisível aos


olhos do público são dois fatores.
Primeiro: Guénon afirma reiteradamente seu total desprezo
por qualquer atividade, corrente ou ideologia política, assegu-
rando que seus interesses nada têm a ver com a luta pelo poder
e se voltam exclusivamente à esfera do espiritual e do eterno.
Isso parece colocá-lo, aos olhos de muitos, incomparavelmente
acima da atual disputa entre os países islâmicos e o Ocidente.
Esse modo de ver não é propriamente falso, é apenas vazio.
É óbvio que Guénon não está disputando poder político. Está
disputando algo que está infinitamente acima disso e do qual,
segundo ele mesmo explica, o poder político não é senão um
reflexo secundário, quase desprezível: está disputando auto-
ridade espiritual. Está disputando-a com a Igreja Católica,
colocando-se muito acima dela e pretendendo orientá-la desde
as alturas sublimes da espiritualidade sufi (não necessariamente
em pessoa, é claro).
Ele é muito explícito quanto a esse ponto. A Igreja Católica,
em algum ponto da sua história, diz ele, perdeu contato com a
Tradição Primordial e já não tem sequer uma compreensão das
"partes superiores" da metafísica: detém-se na pura ontologia,
ou teoria do Ser, sem penetrar nos mistérios supremos do Não-
-Ser (Schuon prefere dizer "Supra-Ser").

• 219
Olavo de Carvalho

Já me expliquei em outras ocasiões quanto ao que me parece


ser a absurdidade intrínseca da doutrina do Não-Ser, e não
vou voltar a esse assunto aqui. O que interessa no momento é
salientar que, segundo Guénon, o catolicismo, a partir dessa
mutilação inicial, veio decaindo acentuadamente até reduzir-se
a uma mera devoção sentimental para as massas.
Como só quem pode reerguê-la desse abismo é quem ainda
possua a conexão originária com a Tradição Primordial, é
evidente que a salvação da Igreja e, através dela, de todo o
Ocidente, só pode vir de fora. De onde, precisamente?
Do budismo não pode ser, já que Guénon nem mesmo o
considera uma tradição inteiramente válida.
Do hinduísmo também não, porque não pode ser praticado
fora da India nem por quem não seja de nacionalidade indiana.
Tudo o que o hinduísmo pode fornecer é uma compreensão
mais aprofundada da doutrina metafísica - e de fato Guénon
recorre abundantemente aos textos hindus para isso -, mas a
mera compreensão teórica, sendo indispensável, nem de longe
pode fornecer por si mesma a autêntica "realização metafísica".
Do judaísmo, menos ainda, pois seria inconcebível que a Igreja,
tendo nascido dele, voltasse ao ventre materno sem anular-se
ipso facto e cessar de existir.
Da Maçonaria? Impossível, não só por causa das incompa-
tibilidades acima apontadas e jamais superadas, mas porque,
segundo Guénon, as iniciações maçônicas são apenas de "pe-
quenos mistérios", segredos do cosmos e da sociedade que nem
de longe tocam as alturas da suprema realização metafísica, os
"grandes mistérios".
De obstáculo em obstáculo - não é preciso examinar todas
as alternativas -, a conclusão inexorável é que o labirinto de
impossibilidades só tem uma saída: o catolicismo só pode ser de-
volvido à sua integridade originária se consentir em submeter-se

•220-
O saber e o enigma

ao guiamento de mestres islâmicos. Ou isso, ou a ocupação do


Ocidente pelos muçulmanos. Tertium non datur.
Que, en passant, Guénon e seus continuadores tenham feito
várias contribuições valiosas até mesmo à compreensão do ca-
tolicismo pelos próprios intelectuais católicos, especialmente no
que concerne ao simbolismo e à arte sacra, é coisa que ninguém
em seu juízo perfeito poderia negar!
Mas, também aí, nada a estranhar. Que autoridade poderia
um mestre sufi pretender exercer sobre os católicos se, pelo
menos em alguns pontos seletos, não provasse compreender a
sua religião melhor do que eles mesmos?
Os artigos "católicos" de Guénon publicados na revista
Regnabit entre 1925 e 1927 não provam, nem mesmo sugerem,
que ele tivesse aceitado a independência e muito menos a su-
perioridade do catolicismo em relação ao Islam. Prova apenas
que, nesse período, ele ainda acreditava na possibilidade de
dirigir o curso das coisas na Igreja Católica por meio da persu-
asão gentil e da infiltração. Sua partida para o Egito, em 1930,
com a firme decisão de não mais voltar e de só se comunicar
com o seu público daí por diante por meio da revista Etudes
Traditionelles, assinala o momento em que ele perde essa es-
perança e, integrando-se cada vez mais nos meios esotéricos
egípcios (até mesmo casando-se com a filha do prestigioso sheikh
Elish El-Kebir), passa a bola de volta às autoridades islâmicas
que de longe haviam orientado suas ações no quadro europeu.
Como as coisas evoluíram desde esse ponto até a adoção da

1 V., nos Apêndices, "Arte sacra e estupidez profana".


2 A presença de Rama P. Coomaraswamy (filho de Ananda) como professor
num seminário católico prova que ainda nos anos 80 do século xx F. Schuon
acreditava nessa possibilidade, já abandonada por Guénon meio século antes.
O Dr. Coomaraswamy, conhecido como teólogo católico e brilhante defensor
do catolicismo tradicional (tive o prazer de vê-lo reduzir a pó o Pe. Gutierrez,
prócer da "teologia da libertação", num debate em Lima, Peru), era mais que
um membro comum da tariqa: era o braço direito de Schuon.

• 221
Olavo de Carvalho

política de terrorismo e "ocupação pela imigração" (coisa que,


é claro, jamais aconteceria sem o beneplácito das autoridades
espirituais islâmicas), é uma história que ignoramos e que só
poderá ser contada, talvez, daqui a várias décadas. O que é
absolutamente certo é que Guénon, desde o início da sua ati-
vidade pública, declarou não falar em seu nome próprio mas
seguir estritamente a orientação de "representantes qualificados
das tradições orientais", entre os quais, sabe-se hoje, principal-
mente o próprio sheikh El-Kebir. É uma bobagem descomunal
dizer que Guénon "se converteu ao Islam" em 1930. Ele já era
membro regular de uma tariqa pelo menos desde os vinte e um
anos, o que basta para mostrar que foi longamente preparado
para a missão dificilima que iria desempenhar.

• 222~
VII

O segundo fator que dificulta a percepção da identidade de


Guénon como agente islâmico é o próprio impacto da obra dele
sobre os seus discípulos. Qualificada como "o mais deslumbrante
milagre intelectual da nossa época", essa obra lança tantas luzes
imprevistas sobre o fenômeno religioso e sobre a decadência
espiritual do Ocidente, e é tão grande o seu contraste com todo
o pensamento moderno ateu ou cristão, que se torna quase
irresistível a tentação de encará-la realmente como um milagre,
uma intervenção divina no curso da história. Seyyed Hossein
Nasr, em Knowledge and the Sacred, não hesita em apresentar
toda a história intelectual do Ocidente como se fosse uma lon-
ga, tateante e semicega preparação para o advento das luzes
guénonianas. Vista desse modo, a obra de Guénon parece uma
mensagem supra histórica vinda da aurora dos tempos, da própria
Tradição Primordial e não de um sheikh egípcio contemporâneo.
O desejo de apagar suas raízes contemporâneas e pairar acima
das contingências históricas é manifesto em vários trechos dessa
obra, e reforçado ainda por várias expressões de desprezo à
"mera" perspectiva histórica, segundo Guénon um ilusório véu
de aparências passageiras encobrindo a realidade das coisas

1 Michel Valsân.

* 223-
Olavo de Carvalho

eternas. Ele chega a criticar o apego da mentalidade ocidental


aos "fatos" como se fosse um vício de pensamento.
Jean Robin, caracteristicamente, proclama o guénonismo uma
intervenção providencial e "a última chance do Ocidente"? É
um direito inalienável do discipulo entusiasta celebrar a obra
do mestre com os qualificativos mais enfáticos. Mas um quali-
ficativo nada significa quando separado da substância que ele
qualifica. Uma coisa é falar, genericamente, de "última chance
do Ocidente"' — e todos bem sabemos que o Ocidente precisa
de uma. Mas outra coisa completamente diversa é esclarecer
que não se trata de uma chance qualquer, de uma abstrata e
genérica "restauração da espiritualidade" e sim de uma salvação
pela islamização. Jean Robin simplesmente omite esse ponto.
Também é muito justo privilegiar o eterno e imutável acima
do temporal e transitório. Mas qualquer fiel católico habituado
ao sacramento da Confissão entende que o salto para o eter-
no, sem passar pela consciência dos detalhes factuais da vida
terrestre, tão freqüentemente humilhantes e deprimentes, não
é espiritualidade, é angelismo. O Apóstolo que afirma "já não
sou eu quem vivo, é Cristo que vive em mim" é o mesmo que
confessa trazer "um espinho na carne" (2Cor 12, 7) até o fim
dos seus dias.
O desejo de voar para o mundo dos arquétipos eternos
saltando por cima da realidade histórica concreta não aparece
somente nos perfis hagiográficos da "missão de René Guénon'",
mas em pelo menos três livros de importantes autores perenia-
listas sobre o Islam.
Ideals and Realities of Islam, de Seyyed Hossein Nasr,'
Comprendre l'Islam, de Frithjof Schuon,* e Moorish Culture
2 René Guénon, La Dernière Chance de l'Occident, Editions de la Maisnie -
Guy Trédaniel, Paris, 1983.
3 Beacon Press, 1972.
4 Éditions du Seuil, 1976.

* 224-
O saber e o enigma

in Spain, de Titus Burckhardt,' mal escondem sua estratégia


retórica de mostrar a vida muçulmana só pelos arquétipos eternos
que simboliza, contrastando-os, explícita ou implicitamente, com
as misérias factuais brutas do Ocidente materialista. A coisa
chega mesmo a ser um pouco ingênua. Até uma criança percebe
que não é justo comparar as virtudes de um com os defeitos do
outro, em vez de virtudes com virtudes e defeitos com defeitos.
Tudo isso torna difícil, tanto ao leitor recém-chegado quanto
às vezes aos próprios porta-vozes do perenialismo, admitir o
óbvio: a obra de René Guénon pode ter todo o caráter providen-
cial e salvador que se deseje, com a condição de que se admita
claramente o óbvio: que, no fim das contas, ela jamais ofereceu
outra via de salvação para o Ocidente exceto a islamização.
Também é certo que qualquer cristão inteligente, católico
ou não, pode tirar proveito dos ensinamentos de René Guénon
sem aderir ao projeto guénoniano, mas como recusar adesão
sem saber ou querer saber que o projeto existe? Todo idiota
útil é idiota e útil na medida mesma em que nega a existência
daquele que o utiliza.
Muitos cristãos, católicos ou não, sentiram-se tão indigna-
dos ante os ensinamentos de René Guénon que fizeram várias
tentativas de refutá-lo e até de achincalhá-lo. Essas tentativas
só provaram a superioridade intelectual do adversário e caíram
no ridículo ou no esquecimento.
Sob esse aspecto, os discípulos de Guénon não estavam total-
mente errados ao considerá-lo insuperável (a "bússola infalível",
dizia Michel Valsân). Mas Guénon não precisa ser combatido
nem vencido. Ao adotar o pseudônimo de "Esfinge" nos seus
primeiros escritos, ele sabia que aqueles que não decifrassem
a sua mensagem seriam engolidos e reduzidos à obediência.
Aqueles que esperneiam entre gritos de revolta não deixam de

5 George Allen & Unwin Ltd., 1972.

× 225 ×
Olavo de Carvalho

prestar-lhe obediência, a contragosto ou mesmo inconsciente-


mente." Uma vez decifrada, porém, a Esfinge não tem remédio
senão soltar gentilmente a presa, que sairá das suas garras não
somente livre, mas fortalecida.
Petersburg, VA, 2 de julho de 2016

6 O exemplo mais típico são os cristãos conservadores antiguénonianos que,


revoltados ante a "decadência do Ocidente", aderem à política eurasiana de
Alexandre Duguin, bisneto espiritual de Guénon. São talvez as pessoas mais
burras do universo.

* 226 -
Apêndices
Para uma antropologia filosófica'

A condição humana mais geral e permanente, a estrutura fixa por


trás de toda variação local e histórica, pode-se resumir em seis
interrogações básicas, articuladas em três eixos de polaridades,
cujas tentativas de resposta, estas sim temporais e variáveis, dão
as coordenadas da orientação do homem na existência.
O primeiro eixo é "origem-fim". Ninguém jamais soube onde
e quando o conjunto da realidade começou nem como ou quan-
do vai terminar. Pode-se arriscar uma teoria da eternidade do
mundo, um mito cosmogônico ou a imagem do "Big Bang", uma
teologia da criação ou um atomismo materialista, cada qual com
sua respectiva explicação do fim. Nenhuma delas jamais obteve
aceitação universal. O que não se pode é ignorar a questão,
pois dela depende o nosso senso de orientação no tempo, a
possibilidade de conceber projetos e dar forma narrativa às
nossas experiências.
O segundo eixo é "natureza-sociedade". Todo homem vive
entre dois campos da realidade, um anterior e independente da
ação humana, o outro criado por ela. A diferença e a articulação
desses campos aparecem no contraste entre o geometrismo da
taba circular e o matagal informe, na oposição de Lévi-Strauss

1 O Globo, 19 de julho de 2003. Depois recolhido em A dialética simbólica e


outros estudos, 2ª ed., Campinas, SP: Vide Editorial, 2015 - NO.

× 229-
Olavo de Carvalho

entre o cru e o cozido, no instinto de buscar a proteção do grupo


contra os animais e as intempéries ou, inversamente, no sonho
rousseauniano de encontrar na natureza um abrigo contra os
males do convívio social. A natureza pode aparecer como um
pesadelo temível ou como seio materno acolhedor. A sociedade
pode ser lar ou prisão, fraternidade ou guerra. Pode-se fazer
da natureza uma espécie de ordem social, como na antiga cos-
mobiologia, ou naturalizar a sociedade, como na antropologia
evolucionista. Mas essas tentativas só revelam a impossibilida-
de, seja de explicar um dos termos pelo seu contrário, seja de
articulá-los numa equação definitiva, seja de compreender um
deles sem referência ao outro.
O terceiro eixo é "imanência-transcendência". Cada ser huma-
no sabe que ele próprio existe, que tem um "mundo" interior de
experiências, recordações, desejos, temores. Mas sabe também
que esse poço é sem fundo, que ninguém pode compreender-se
ou ignorar-se totalmente, que cada alma encontra dentro de
si algo de estranho e atemorizante, que cada um se conhece
e se desconhece quase tanto quanto aos demais. Buscamos
na nossa intimidade o abrigo contra a maldade alheia, assim
como buscamos no outro, no amigo, na esposa, a proteção
contra nossos fantasmas interiores. Cada um de nós é próximo
e estranho a si mesmo. Por outro lado, para além de tudo o que
se pode conhecer da realidade, para além de toda experiência
alcançável, cada homem e cada cultura pressente um fator "X",
que, desde acima ou desde o fundo do fluxo dos acontecimentos,
faz com que as coisas sejam o que são e não de outro modo.
"Por que existe o Ser e não antes o nada?": assim formulava
Schelling a interrogação suprema. Podemos tentar respondê-la
pela concepção de um absoluto metafísico, de uma divindade
ordenadora ou de uma fantástica auto-regulação de coincidên-
cias. Podemos até expulsá-la da discussão pública, deixando-a
à mercê do arbítrio privado, com a abjeta covardia intelectual

• 230-
O saber e o enigma

do agnosticismo moderno. Mas mesmo então sabemos que não


escapamos dela. Entre a imanência e a transcendência, várias
articulações são possíveis, mas nenhuma satisfatória. Podemos
conceber o transcendente à imagem do nosso ser íntimo, como
divindade bondosa que nos compreende e nos ama - mas isso
fará ressaltar ainda mais o que a vida tem de estranheza fria
e hostilidade demoníaca. Podemos imaginá-lo com os traços
impessoais e mecânicos de uma fórmula matemática - mas
isso não nos impedirá de amaldiçoar ou bendizer o destino,
subentendendo nele uma intencionalidade humana quando nos
oprime ou nos reconforta.
Cada um dos pólos é uma interrogação, um misto de igno-
rância e conhecimento, um foco de tensões espirituais. Cada um
articula-se com seu oposto, num mútuo esclarecimento - ou
multiplicação - de tensões. E no ponto de interseção dos três
eixos, como no das três direções do espaço, fixado na estrutura
da realidade como Cristo na cruz, está o ser humano.
Crenças, cosmovisões, doutrinas, diferem sobretudo pela
hierarquia que estabelecem entre os seis fatores por meio de
assimilações e reduções. Muitas culturas arcaicas privilegia-
vam o fator "origem", explicando sociedade e natureza por um
mito cosmogônico, ignorando a transcendência e a imanência.
A escolástica medieval remeteu-se à transcendência, sonhando
poder deduzir dela uma ordem intelectual completa e definitiva.
A Modernidade absorveu tudo na oposição natureza-sociedade,
esperando não menos utopicamente reduzir os mistérios da
transcendência e da imanência, da origem e do fim, a questões
de partículas subatômicas, código genético e análise lingüística.
Preparou assim o advento das ideologias totalitárias que fizeram
da sociedade a razão última da origem e do fim, colocando
entre parênteses a natureza, sufocando a imanência e vedando
o acesso à transcendência. Cada um desses arranjos, mesmo
o mais limitador, é legítimo e funcional a título provisório,

× 231×
Olavo de Carvalho

como experimento de sondagem numa certa direção que os


interesses de um momento enfatizaram. Torna-se alienante e
opressivo quando se cristaliza numa proibição de olhar para
além da articulação admitida. Só a abertura da alma para
a simultaneidade dos seis pólos, com suas luzes e trevas, dá
acesso à experiência realista da condição humana e, portanto,
à possibilidade da sabedoria. Todas as explicações que, para
enfatizar uma articulação em particular, negam ou suprimem a
estrutura do conjunto, são falsas ou estéreis.
Filosofias como o marxismo, o positivismo, o pragmatismo, a
escola analítica, o nietzscheanismo, o freudismo, o desconstru-
cionismo, — todas aquelas, en m, que ocupam o espaço inteiro
do ensino acadêmico neste país - são doenças espirituais, ob-
sessões que nos encerram hipnoticamente no fascínio de uma
resposta ao mesmo tempo que apagam o quadro de referências
que dá sentido à pergunta.

*232"
fi
Influências discretas'

Quando o pintor e poeta suíço Frithjof Schuon (1907-1998) voltou


do Oriente nos anos 40, transfigurado em mestre supremo de
uma das mais influentes organizações esotéricas muçulmanas e
anunciando que iria islamizar a Europa, deu a clara impressão
de que estava completamente louco. Hoje convém examinar
com humildade as suas palavras e o curso das suas ações, cuja
eficiência avassaladora contrasta com a total discrição com que
foram empreendidas.
Desde logo, a criação da tariqa (loja iniciática islâmica) de
Schuon em Lausanne foi saudada pelo escritor esotérico René
Guénon (1886-1951) como o único resultado promissor obtido
pelos seus próprios esforços de quatro décadas. Isso mostra
claramente o sentido desses esforços e, malgrado a posterior
ruptura entre Guénon e Schuon, evidencia a perfeita continuida-
de da obra desses dois esoteristas, cujos discípulos respectivos
hoje em dia preferem odiar-se mutuamente em vez de celebrar
a vitória comum sobre uma Europa espiritualmente debilitada.
Na década de 20, Guénon, autor de análises magistrais sobre
a decadência do Ocidente europeu, havia concluído que só três
caminhos se ofereciam a essa civilização: a queda na barbárie, a
restauração da Igreja Católica ou a islamização. Quando pronunciou

1 Jornal do Brasil, 8 de maio de 2008 - NO.

× 233~
Olavo de Carvalho

aquelas palavras sobre Frithjof Schuon, ele já havia desistido


da segunda alternativa. O fiasco do Concílio Vaticano II, cujas
aparências os papas em vão tentam ainda salvar, veio a provar
que seu diagnóstico, em linhas gerais, estava certo.
A Europa radicalmente descristianizada é hoje o palco de
uma concorrência aberta entre a barbárie e o islamismo. Não
há terceira via, aparentemente ("civilização laica" é piada). A
possibilidade de um resgate da opção cristã depende inteiramente
da influência americana ou da dedicação admirável de padres e
pastores orientais e africanos que, num giro paradoxal da histó-
ria, voltam para tentar recatequizar o povo que os cristianizou.
A ação de personagens como Guénon e Schuon passa des-
percebida à mídia, aos analistas políticos e aos "intelectuais"
em geral, que têm os olhos fixados hipnoticamente na superfície
vistosa dos acontecimentos. Mas sem ela a "ocupação por dentro"
por meio da imigração teria permanecido inócua, por falta das
condições culturais que desarmaram a elite intelectual e política
européia. Guénon e Schuon muito contribuíram para criá-las,
subjugando as camadas mais altas e circunspectas dessa elite ao
culto da superioridade intelectual do Oriente em todas as áreas
decisivas, fora as ciências naturais e a tecnologia.
Guénon assinava seus primeiros artigos com o pseudônimo
Sphynx (Esfinge), denotando que seus leitores não tinham opção
senão aproveitar inteligentemente suas lições ou deixar-se dominar
por elas sem entendê-las. Num único país europeu essas lições
foram meditadas com seriedade por pensadores independentes:
a Romênia. Quando morei em Bucareste, não encontrei ali um só
intelectual eminente que não tivesse uma compreensão profunda
e crítica da obra de Guénon.
No resto da Europa, o que se viu foi a alternância entre
a recusa incompreensiva e a submissão devota, incluindo um
número significativo de conversões secretas ao Islam e a arregi-
mentação de muitos intelectuais e líderes — entre eles o futuro

•234
O saber e o enigma

rei da Inglaterra - no esquema de proteção estatal ao expan-


sionismo islâmico. Não por coincidência, a Romênia é um dos
raros países europeus onde a penetração muçulmana é irrisória.
Para fazer uma idéia da força da influência sutil de Guénon
e Schuon, basta saber que este último interferiu diretamente na
produção da crise entre Monsenhor Lefebvre e o Vaticano, em
1976, e até hoje os historiadores católicos - sejam progressistas
ou conservadores - nem se deram a mínima conta disso.
Sei que escrevi este artigo para poucos leitores e que, destes,
alguns dos que podem mais ou menos compreendê-lo vão segu-
ramente detestá-lo. Mas há coisas que é preciso dizer só para,
no futuro, não ser acusado de dar testemunho tardio.

× 235×
A Igreja humilhada'

Por que o Papa Francisco, ao falar do simbolismo sagrado da


natureza, preferiu citar um místico muçulmano em vez de colher
alguma frase na imensa literatura cristã sobre o assunto?
Os cérebros iluminados da mídia nacional e internacional
enxergaram aí toda sorte de intenções ecumênicas e diplomáticas,
mas não creio que esse simples detalhe de um discurso papal
possa ser compreendido sem um recuo histórico de muitos séculos.
"Nós falamos com palavras, mas Deus fala com palavras
e coisas", dizia Santo Tomás de Aquino. Na época dele, e de
fato desde o começo do cristianismo, isso era uma obviedade
de domínio público.
Muito antes de ditar aos profetas as palavras da Biblia, Deus
havia criado o universo, sendo inconcebível que não deixasse aí
as marcas da sua Inteligência, do Logos divino que contém em
si a chave de todas as coisas, fatos e conhecimentos.
Nada mais lógico, portanto - assim pensavam os santos e
místicos -, do que buscar nas formas e aparências do universo
físico os sinais da intenção divina que tudo havia criado.

1 Diário do Comércio, 24 e 29 de julho de 2015 - NO.

× 237×
Olava de Carvalho

O próprio texto da Biblia está tão repleto de referências a


animais, plantas, minerais, partes do corpo humano, acidentes
geográficos, fenômenos astrais e climáticos, etc., que sem algum
conhecimento da natureza física sua leitura se torna completa-
mente opaca. Não havia e não há como fugir desta constatação
elementar: o universo era a primeira das revelações.
Essa intuição não havia escapado aos povos pagãos da
Antigüidade, cujas culturas se erguem inteiramente em cima de
prodigiosos esforços para apreender alguma mensagem divina
por trás dos fenômenos da natureza terrestre e celeste e fazer da
sociedade inteira um modelo cósmico em miniatura (a bibliografia
sobre isso é tão abundante que não vou nem começar a citá-la).
Apesar da imensa variedade das linguagens simbólicas que
se desenvolveram nas mais diversas épocas e lugares, elas todas
obedecem a um conjunto de princípios que permitem estabelecer
correspondências entre as concepções cosmológicas e antropo-
lógicas dessas civilizações.
Essas concepções foram absorvidas e apenas ligeiramente
remodeladas pela Europa cristã para tornar-se veículos de uma
cosmovisão bíblica.
A principal modificação foi um senso mais apurado da indole
dialética do simbolismo natural, onde os fatos da natureza física
já não apareciam como expressões diretas da presença divina,
como no antigo culto dos astros, mas como indícios analógicos
que ao mesmo tempo revelavam e ocultavam essa presença.?
A cosmologia medieval incorporava o velho mapa planetário
ptolemaico, com a Terra no centro e as várias esferas planetá-
rias - correspondentes a distintas dimensões da existência -
afastando-se até o último céu, morada de Deus. Que esse mapa
não devesse ser interpretado como um simples retrato material

2 Expliquei um pouco disso no meu livro A dialética simbólica. São Paulo: É


Realizações, 2008. [2ª ed., Campinas, SP: Vide Editorial, 2015 - No.]

*238-
O saber e o enigma

do mundo celeste, prova-o o fato de que ele era compensado


dialeticamente por uma concepção oposta, na qual Deus estava
no centro e a Terra na extrema periferia.
A tensão entre as duas esferas condensava de uma maneira
abrangente os paradoxos da existência humana num ambiente
natural que era ao mesmo tempo um templo e uma prisão. A
visão medieval do céu não era uma cosmografia, mas uma
cosmologia — uma ciência integral do significado da existência
do homem no cosmos.
A eclosão do debate heliocentrismo versus geocentrismo
baixou o nível da imaginação pública para um confronto en-
tre duas concepções puramente materiais, rompendo a tensão
dialética entre as duas esferas e rebaixando a cosmologia ao
estado de mera cosmografia.
Os progressos extraordinários desta última serviram para
mascarar o fato de que a Modernidade assim inaugurada ficou to-
talmente desprovida de uma cosmologia simbólica, não havendo
até hoje nenhum meio de articular a visão material-científica do
universo com os conhecimentos de ordem espiritual: essas duas
dimensões pairam uma sobre a outra sem jamais interpenetrar-se,
como água e óleo num copo, de tempos em tempos ressurgindo,
sob formas variadas, o "conflito entre ciência e religião", ou
"entre razão e fé", o qual, nesses termos, só pode ser apaziguado
mediante arranjos convencionais de fronteiras, tão artificiais e
instáveis quanto qualquer tratado diplomático.
O que era tensão dialética tornou-se um dualismo estático,
como numa guerra de posições entre exércitos imobilizados
cada um na sua trincheira. Talvez o traço mais característico
da Modernidade seja precisamente a coexistência enervante
entre uma ciência sem espiritualidade e uma espiritualidade
sem base natural.
Para piorar ainda mais as coisas, a ruptura entre as duas
dimensões não se deu só no domínio da cosmologia, mas também

× 239-
Olavo de Carvalho

na metafísica e na gnoseologia, onde René Descartes, rompen-


do com a antiga visão aristotélico-escolástica do ser humano
como síntese indissolúvel de corpo e alma, ergueu um muro de
separação entre matéria e espírito, fazendo deles substâncias
heterogêneas e incomunicáveis.
Malgrado as inúmeras contestações e correções que sofreu,
o dualismo cartesiano acabou por deitar raízes tão fundas na
mentalidade ocidental, que suas consequências nefastas ainda
se fazem sentir até mesmo no domínio das ciências físicas.
Na esfera cultural, isso resultava em dividir o universo in-
teiro da experiência em duas categorias: os objetos reais, isto
é, materiais e mensuráveis, conhecidos pela ciência física, e os
puramente pensados, para não dizer imaginários - leis, insti-
tuições, valores, obras de arte, o mundo propriamente humano.
Dos primeiros, só o que se podia saber eram as suas pro-
priedades mensuráveis, sendo proibido querer descobrir neles
algum significado ou intenção. Os segundos eram repletos de
significado, mas só existiam como pensamentos, como "constru-
ções culturais"sem nenhum fundamento na realidade.
Por mais obviamente danosa à cosmovisão cristã que fossem
essas idéias, elas foram rapidamente assimiladas pela intelectua-
lidade católica. Durante todo o século XVIII o cartesianismo foi
a doutrina dominante nos seminários da França. As chamadas
"heresias modernistas" ainda não haviam surgido, mas a hege-
monia intelectual cristã estava perdida. Rendeu-se praticamente
sem luta.
Começava uma era na qual uma alma cristã não teria alter-
nativa exceto amoldar-se à mentalldade Moderna ou esbravejar
em vão contra o que não podia vencer - as duas atitudes que
até hoje caracterizam respectivamente os "modernistas" e os
"tradicionalistas".
3 V. Wolfgang Smith, O enigma quântico. Trad. Raphael de Paola. Campinas,
SP: Vide Editorial, 2011.

•240-
O saber e o enigma

A pá de cal foi lançada por Immanuel Kant, quando cavou


um abismo intransponivel entre "conhecimento" e "fe", enfa-
tizando a autoridade universal do primeiro e trancafiando a
segunda no recinto fechado das meras preferências e fantasias
particulares — uma doutrina que se tornou a base não só do
positivismo científico ainda imperante nas universidades em
geral, mas também de todo o "Estado laico" moderno, onde
não há diferença legal entre crer em Deus, em duendes, em ex-
traterrestres, nas virtudes espirituais das drogas alucinógenas
ou na bondade de Satanás.

Il
Condenar a cosmologia medieval porque em alguns pontos ela
não coincide com os "fatos observáveis do mundo físico" é tão
estúpido quanto condenar um desenho por não haver corres-
pondência biunivoca entre os traços a lápis e as moléculas que
compõem o objeto retratado.
Estruturas representativas abrangentes só podem ser com-
preendidas e julgadas como totalidades. O fisicalismo ingênuo,
apegando-se aos detalhes mais visiveis, deixa sempre escapar
o essencial. A Física de Aristóteles foi rejeitada no início da
Modernidade porque dizia que as órbitas dos planetas eram
circulares e porque sua explicação da queda dos corpos não
coincidia com a de Galileu.
Só no século XX o mundo acadêmico entendeu que, retiradas
essas miudezas, o valor da obra persistia intacto justamente por-
que não era uma "física" no sentido moderno do termo e sim uma
metodologia geral das ciências. Quatro séculos de orgulhosas
cretinices cientificas haviam tornado incompreensível um texto
com o qual ainda se pode aprender muita coisa.*

4 V. as atas do congresso da Unesco Penser avec Aristote. Org. M. A. Sinaceur.


Toulouse: Erès, 1991.

«241-
Olavo de Carvalho

Toda a simbólica natural da qual o cristianismo só pode


prescindir em prejuízo próprio desapareceu de circulação por-
que, visto com os olhos do fisicalismo ingênuo, o debate entre
geocentrismo e heliocentrismo parecia colocar fora de moda o
desenho medieval das sete esferas planetárias, uma concepção
cosmo-antropológica enormemente complexa e sutil.
Expelido do universo intelectual respeitável, o simbolismo
natural só sobreviveu como fornecedor ocasional de figuras de
linguagem com que os poetas sentimentais da Modernidade,
carentes de toda compreensão espiritual e extasiados na contem-
plação do próprio umbigo, projetavam nas formas da natureza
visível as suas emoçõezinhas. Georges Bernanos escreveu em
L'Imposture algumas páginas devastadoras contra esse empo-
brecimento do imaginário moderno.
Os estudiosos que conservaram o interesse pelo velho tema
tornaram-se esquisitões marginalizados não só pela classe uni-
versitária como também pela própria intelectualidade católica,
mais interessada em fazer boa figura ante o fisicalismo acadêmico
do que em defender o patrimônio simbólico da religião.

Uma obra notabilissima como Le Bestiaire du Christ. La


Mystérieuse Emblématique de Jésus-Christ (Bruges, Desclée de
Brouwer, 1940), em que o arquiteto Louis Charbonneau-Lassay
foi de igreja em igreja copiando e explicando cada símbolo animal
de Nosso Senhor Jesus Cristo na arquitetura sacra medieval,
passou quase despercebida dos meios católicos (mas, como
veremos adiante, foi muito valorizada por autores muçulmanos).
Mesmo escritores que compreendiam a cosmologia medieval
só ousavam falar dela em termos de valor estético, ao mesmo
tempo que ofereciam as genuflexões de praxe ante a autoridade
do fisicalismo acadêmico.
Um exemplo característico foi C. S. Lewis, que montou o
edifício das suas Crônicas de Nárnia sobre o modelo de uma
escalada espiritual pelas sete esferas planetárias mas manteve

• 242
O saber e o enigma

essa chave simbólica cuidadosamente escondida até que ela fosse


descoberta, após a morte do autor, pelo erudito Michael Ward:
Seguindo-se à sua conversão - escreve Ward -, Lewis natural-
mente considerava as religiões pagãs menos verdadeiras do que
o cristianismo, mas, olhando-as sem referência à verdade, sentia
que elas possuíam uma beleza superior. A beleza e a verdade
podiam e deviam ser distinguidas uma da outra, e ambas da
bondade.'
Não deixa de ser uma ironia que, restaurando na arte jus-
tamente aqueles elementos da simbólica pagã que a cultura da
Europa medieval havia absorvido e cristianizado, Lewis ao
mesmo tempo se opusesse tão frontalmente à doutrina esco-
lástica segundo a qual o belo, o verdadeiro e o bom - Unum,
Verum, Bonum, na fórmula de Duns Scot - eram essencialmente
a mesma coisa.
A timidez cristã ante os dogmas da Modernidade chega a
ser obscena.
O filósofo calvinista holandês Herman Dooyeweerd - no
mais, um pensador de primeira grandeza - foi um pouco além
da timidez.
Alegando que a dialética hegeliana de tese, antitese e sintese
só se aplica às coisas relativas, e que tão logo entramos no
domínio do absoluto o que vigora é o antagonismo irrecorrível
e a necessidade da escolha, ele condena a filosofia escolástica
— portanto a cosmologia medieval inteira - por não ter banido
completamente os resíduos culturais do paganismo (exigência im-
possível que, é claro, o próprio calvinismo também não cumpriu).
Nesse panorama, não estranha que o patrimônio simbóli-
co desprezado e varrido para baixo do tapete fosse rapida-
mente colhido por intelectuais muculmanos interessados, sim,

5 Michael Ward, Planet Narnia. The Seven Heavens in the Imagination of C. S.


Lewis. Oxford University Press, 2008, p. 27.

× 243 ×
Olavo de Carvalho

numa restauração da cultura cristã tradicional, mas sob o guia-


mento e controle sutil... de organizações esotéricas islâmicas.
Ninguém, absolutamente ninguém na Europa cristã desde o
século XVI dominou e explicou tão magistralmente o simbolismo
espiritual cristão e demonstrou tão valentemente o seu valor
cognitivo, e não só estético, como o fizeram René Guénon,
Frithjof Schuon, Titus Burckhardt, Jean Borella e outros autores
meio impropriamente chamados "perenialistas".
Todos eles membros de tariqas - organizações esotéricas
islâmicas -, e empenhados em abrir na dura carapaça do fisi-
calismo moderno um rombo por onde pudesse se introduzir a
influência intelectual islâmica e avolumar-se até à conquista da
hegemonia, usando o tradicionalismo cristão como força auxi-
liar, mais ou menos como Jesus, na versão islâmica do Segundo
Advento, será rebaixado a segundo-no-comando dos exércitos
do Mahdi.
Autores não diretamente ligados ao esoterismo islâmico
que exploraram o mesmo veio, como Matthila Ghyka, Ananda
K. Coomaraswamy e Mircea Eliade, sempre foram devedores
intelectuais dos "perenialistas".
Se hoje em dia a velha cosmologia readquire aos poucos o
seu estatuto de conhecimento profundo, necessário e respeitável,
multiplicando-se em todas as universidades do mundo civilizado
os estudos a respeito, não há como deixar de reconhecer que
isso foi devido, sobretudo, à obra de Guénon, de Schuon e de
seus seguidores.
"A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a chave de
abóbada", profetiza a Biblia. A profecia ainda não se cumpriu
totalmente, mas é óbvio que só a restauração da cosmologia
simbólica pode ser a chave de abóbada numa reconstrução da
cultura cristã. Apenas, os muçulmanos perceberam isso antes dos
intelectuais cristãos e trataram de utilizá-lo em proveito próprio.

*244-
O saber e o enigma

Temos uma dívida para com Guénon, Schuon e tutti quanti?


É claro que temos. Eles nos devolveram o que era nosso, mesmo
fingindo que era deles. Está na hora de praticar com eles aquilo
que um velho ditado - islâmico, por sinal - recomenda: "Não
perguntes quem sou, mas recebe o que te dou".
Se o Papa, em vez de fazer isso, prefere esboçar um vago
reconhecimento dos direitos de propriedade islâmicos sobre o
simbolismo cristão da natureza, é que ele ainda padece daquela
timidez auto-humilhante que reluta em afirmar vigorosamente o
primado da Cristandade nessa área.

× 245~
Arte sacra e estupidez profana'

No seu livro memorável sobre O simbolismo do templo cristão


(Le Symbolisme du Temple Chrétien, Guy Trédaniel, 1990), Jean
Hani observa que nos tempos modernos a arte sacra desapareceu
do Ocidente, sendo substituída pela arte meramente "religiosa".
A diferença é que esta última expressa apenas sentimentos oca-
sionais e concepções culturalmente localizadas, enquanto aquela
é uma cristalização visível de certos princípios ordenadores,
universais, transcendentes não só à subjetividade individual
mas a todo condicionamento histórico-cultural. Junto com a arte
sacra, essa mesma diferença veio desaparecendo do horizonte
de consciência da Modernidade desde o século XvIII pelo menos,
só tendo sido recuperada parcialmente graças a um pequeno
grupo de etnólogos e historiadores das religiões, como Mircea
Eliade, Ananda Coomaraswamy, Matila Ghyka, Schwaller de
Lubicz, Mary Hambidge, Louis Charbonneau-Lassay e outros.
Estudando edifícios sagrados do Extremo Oriente, da Índia,
do Egito e da Antiguidade clássica, esses pesquisadores des-
cobriram que a estrutura dos templos obedecia a um conjunto
de preceitos, substancialmente os mesmos que se poderiam
observar nas catedrais da Idade Média cristã. Esses preceitos,

1 Publicado originalmente em A filosofia e seu inverso. Campinas, Sp: Vide


Editorial, 2012 — NO.

+247•
Olavo de Carvalho

por sua vez, condensavam todo um saber simbólico sobre a


ordem da realidade em geral e o posto do homem no universo.
Uma vez atravessado o véu dos símbolos, a presença desses
mesmos ensinamentos em civilizações separadas por enormes
distâncias no tempo e no espaço dava testemunho de algo que,
na mais tímida das hipóteses, eram "constantes do espírito", que
a história não podia explicar, porque constituíam, ao contrário,
a moldura da possibilidade mesma de uma história humana.
Hani deveria ter acrescentado à sua lista de pioneiros os
nomes de René Guénon, Frithjof Schuon, Titus Burckhardt,
Seyyed Hossein Nasr e Martin Lings, que influenciaram con-
sideravelmente o seu próprio trabalho. O detalhe que parece
ter-lhe escapado é que, de todos esses autores, somente um -
Charbonneau-Lassay — era católico, e nenhum protestante. A
reconquista da compreensão simbólica da arte sagrada cristã
veio, em substância, de fora: de fora não só do clero ocidental,
mas de toda a intelectualidade católica e protestante. Mesmo
considerado só do ponto de vista da história da arte, esse dado já
seria inquietante: religiosos e leigos que não entendem o sentido
dos edifícios onde oram estão, literalmente, perdidos no espaço.
Mas a perda da compreensão dos símbolos é, ao mesmo tempo,
a perda da ciência que eles veiculam. E esta ciência constitui,
para dizer o mínimo, o único fundamento intelectualmente sa-
tisfatório de uma distinção entre o sagrado e o profano. Os que
a perderam, por mais religiosos que sejam, estão condenados a
curvar suas cabeças ante a ciência materialista, rebaixando-se
ao ponto de esperar dela a legitimação racional da sua fé.
Nada poderia ilustrar melhor a crise do cristianismo - e
da civilização ocidental inteira - do que esse fenômeno a um
tempo humilhante e providencial de nossos tesouros intelectuais
perdidos há séculos nos serem devolvidos por pessoas estranhas
às nossas comunidades religiosas. A arte sacra é, por essência,
o único suporte sensível para a ascensão do fiel a um vislumbre

• 248-
O saber e o enigma

das realidades espirituais últimas. A beleza, segundo Platão,


é "a forma da Verdade". Desprovida desse suporte, a prática
religiosa reduz-se a um obediencialismo literalista, grosseiro e
compulsivo, apenas adornado aqui e ali pelas fantasias, não
raro disformes, de "artistas", cristãos ou ateus, muito alheios
ao universo de conhecimentos espirituais que, em suas obras,
deveriam teoricamente expressar. Mesmo descontando mons-
truosidades explícitas como as catedrais de Brasília e do Rio de
Janeiro e outras celebrações em pedra de tudo quanto há de mais
hostil ao cristianismo, os locais de culto são hoje em dia meras
construções profanas usadas para fins nominalmente religiosos.
Esse fenômeno, por si, basta para ilustrar o estado de aliena-
ção que foi se espalhando entre sacerdotes e intelectuais cristãos
nos últimos séculos, tornando-os incapazes de fazer face aos
desafios culturais e ideológicos da Modernidade; desafios que,
em si mesmos, nada tinham de muito temível e que poderiam
ter sido exorcizados, sem maiores dificuldades, por uma classe
intelectual capacitada. Que o debate religioso dos últimos
séculos tenha se congelado no estereótipo "razão versus fé"
foi somente o primeiro sinal da inépcia que havia se espalhado
entre os intelectuais religiosos. As vulgaridades do modernismo
católico e do "protestantismo liberal", para não falar da "teologia
da libertação" em suas várias versões, teriam sido facilmente
estranguladas no berço se os defensores da religião tivessem uma
compreensão mais aprofundada dos princípios universais que a
fundamentam. Na ausência desta condição, aquelas correntes
adquiriram uma importância desmesurada, suscitando, em reação,
o surgimento de tradicionalismos meramente exteriores, baseados
antes numa exasperação de sentimentos religiosos ofendidos do
que numa compreensão real da situação. Não é preciso dizer
que centenas de milhões de almas individuais se viram atingidas
e desnorteadas por esse processo, cujas consequências politi-
cas e culturais são imensuráveis. Não creio que seja possível

× 249×
Olavo de Carvalho

compreender nada da história dos últimos séculos sem encará-la


desse ponto de vista, pois as religiões são a espinha dorsal de
suas respectivas civilizações, e a multidão levada ou a abandonar
a fé ou a sustentá-la sem qualquer apoio estético e intelectual
está condenada a ver-se presa de toda sorte de fantasias e
delírios satânicos, que acabam se incorporando à cultura supe-
rior e à vida cotidiana. Não conheço um só indivíduo humano
cujos dramas pessoais não remontem, de algum modo, a esse
processo. Também não imagino como os fenômenos paralelos
da invasão islâmica e do ódio anticristão generalizado possam
ser explicados fora desse quadro, tão distante da imaginação
dos cientistas políticos e analistas de mídia.
A Igreja sempre insistiu que o conhecimento da existência e
das qualidades de Deus não é matéria de fé, mas de inteligência
racional. Matérias de fé são, em contrapartida, o nascimento mi-
raculoso de Nosso Senhor Jesus Cristo, Sua missão de Salvador,
etc. Mas esta fé, sem aquele conhecimento, di cilmente pode
se defender de ataques um tanto so sticados intelectualmente.
O que falta aos cristãos não é a fé, mas uma consciência clara
dos seus fundamentos cognitivos inabaláveis. São precisamen-
te estes os que a arte sacra genuína ilustra e torna acessíveis
à imaginação das multidões, aplanando o caminho de uma
posterior compreensão intelectual. Esses princípios, como não
se referem exclusivamente às matérias de fé da religião cristã,
são substancialmente os mesmos que aparecem na arte sacra
de todas as grandes religiões. Que essa temivel arma intelec-
tual fosse perdida durante séculos e só voltasse pelas mãos de
pessoas alheias ao meio cristão é uma das grandes ironias da
história, mas, ao mesmo tempo, é uma oportunidade providencial
que os cristãos não têm o direito de desprezar. O próprio livro
de Jean Hani é uma prova de quanto eles têm a ganhar com a
lição recebida daqueles estudiosos muçulmanos, budistas, etc.
Eu mesmo me lembro de ter tido pela primeira vez a notícia da

× 250-
fi
fi
O saber e o enigma

existência de um fenômeno espiritual tão gigantesco quanto o Pe.


Pio de Pietrelcina por meio de um autor budista, Marco Pallis.
Guiado pelos princípios universais que haviam se incorporado
não só à sua inteligência, mas à sua personalidade, Pallis, que
conheci quando ele já tinha passado dos noventa anos de idade,
tinha clara consciência de que os feitos miraculosos do Pe. Pio
eram, depois da aparição de Fátima, o centro mesmo da vida
católica no século xx. Mas os fiéis e a mídia católica não pa-
recem capazes de distinguir entre o Pe. Pio e Madre Teresa de
Calcutá (ou, pior ainda, Paulo VI). A fé, sem o devido suporte
intelectual, acaba por buscar apoio nos critérios dos formado-
res de opinião usuais, para os quais a distinção entre um santo
e um pop star é difícil de conceber. O elogio do Osservatore
Romano a Michael Jackson não é um caso isolado de demência
clerical. Nem os afagos do Papa Bento XVI ao regime cubano
por sua "solidariedade para com os outros povos" (solidarie-
dade constituída essencialmente da exportação de guerrilhas e
drogas) são um erro acidental. São sinais de que a consciência
católica perdeu algo do senso da realidade e busca refúgio no
simulacro montado pela opinião dominante, mesmo sabendo que
esta última é, em essência, anticristã. A debacle da inteligência
precede a dissolução da fé. Mas hoje em dia você não pode
falar de conhecimento espiritual sem que logo apareça algum
fiel indignado acusando-o de "gnóstico". Se, de um lado, as mais
aberrantes heresias revolucionárias são paternalmente toleradas
dentro da Igreja (afinal, a teologia da libertação nunca sofreu
nada além de reprimendas verbais), qualquer tentativa de dar à
fé algum suporte intelectual mais amplo do que um tomismo de
manual é vista com suspeita verdadeiramente suicida. Quantos
tomistas de carteirinha notaram, por exemplo, que a construção
formal da Suma teológica, estruturalmente idêntica à das cate-
drais góticas, veicula uma mensagem ainda mais luminosa que a
do sentido literal do texto? Eu jamais teria percebido isso sem a
ajuda de Erwin Panofsky, um autor a cuja palavra os católicos

• 251-
Olavo de Carvalho

nunca dariam mais credibilidade que à de um Jacques Maritain,


mesmo sabendo de todos os danos que este fez à sua Igreja.
Em compensação, os trabalhos do grupo de estudiosos men-
cionados por Hani também trazem, junto com sua contribuição
positiva, alguns riscos consideráveis para o fiel cristão que se
deixe deslumbrar por eles. Desde logo, sua perspectiva univer-
salista destaca os pontos que são comuns a todas as religiões,
e a soma desses pontos desenha apenas a armadura metafísica
da realidade, sem nenhuma abertura para a diferença especifi-
ca do cristianismo, que se constitui, de um lado, pela presença
histórica e pessoal do Logos encarnado e, de outro, por essa
mesma presença reverberada e prolongada em milagres que não
cessam de acontecer, dos quais a vida do próprio Pe. Pio dá
testemunho incontestável. A mera doutrina metafísica, em si,
não dá conta desses milagres. Eles não acontecem por causa
de leis universais, mas por atos divinos imprevisíveis que não
as desmentem, é claro, mas que não podem ser deduzidos delas
a priori. Outro perigo inerente a esses estudos é que, dentre os
autores que a eles se dedicam, vários são aqueles que, como
René Guénon ou Frithjof Schuon, a pretexto de enfatizar a
prioridade da espiritualidade profunda sobre as meras práticas
devocionais, acabam privilegiando desmedidamente o papel de
certas tradições esotéricas e usando, para isso, de boas doses de
mistificação. Isso não invalida, é claro, o ensinamento que nos
legam sobre o simbolismo universal e as doutrinas metafísicas.
É quando entram no capítulo das "iniciações" que eles começam
a deformar as coisas e a incutir no leitor as mais extravagantes
ilusões. Na confusão espiritual reinante, alguns chegaram a
apegar-se à autoridade intelectual de René Guénon ao ponto de
celebrá-lo como "bússola infalível". Não só a renitente falibilidade
de René Guénon, mas provas inequívocas de sua desonestidade
intelectual, ao menos nos escritos de juventude, aparecem de
maneira tão nítida nas meticulosas análises feitas sine ira et
studio por Louis de Maistre em L'Enigme René Guénon et les

• 252"
O saber e o enigma

"Superieurs Inconnus". Contribution a l'Étude de l'Histoire


Mondiale "Souterraine" (Milano, Arché, 2004), que continuar
a negá-las só pode ser coisa de fanáticos deslumbrados.
Outro erro grave em que se pode incorrer na leitura desses
autores é ignorar o fato de que, aparentando contribuir para
uma restauração da civilização cristã, eles não acreditavam
absolutamente na possibilidade histórica de realizá-la e, ao
contrário, apostaram tudo na "islamização do Ocidente". Dai a
ambigüidade temivel da sua contribuição. Aqueles que, desespe-
rados ante a autodestruição feroz da nossa civilização, busquem
auxílio no estudo de Guénon, Schuon, Nasr, Lings e respectivos
continuadores, devem estar conscientes de que encontrarão ai
uma espada de fio duplo, bem difícil de manejar sem danos para
o aprendiz. O Islam que hoje vai ocupando a Europa e os EUA
com uma força avassaladora e uma autoconfiança psicopática
não é aquele Islam lindamente espiritual, mítico, enaltecido por
esses autores com um irrealismo que raia a hipocrisia. E um
Islam reduzido à expressão mais grosseira de um imperialismo
globalista inspirado no equivalente muçulmano da "teologia da
libertação", remontando às idéias de Sayyd Qutub.?
É a este Islam que a proteção ostensiva do Principe Charles
da Inglaterra - não por coincidência, um discípulo de Martin
Lings - abre as portas do seu país, aprofundando a crise cultu-
ral britânica, apressando um desenlace que se anuncia iminente
e fatal. Se até esse aristocrata longamente preparado para as
mais altas funções de comando pode servir de instrumento a
mudanças históricas cujo alcance ele dificilmente compreende,
quanto mais sujeitos a isso não estarão os jovens intelectuais
que, em crise de desespero diante do suicidio ocidental, saiam
em busca das "Luzes do Oriente"?

2 V., por exemplo, Robert Irwin, "Is this the man who inspired Bin Laden".
Disponivel em: http://www.guardian.co.uk/world/2001/nov/01/afghanistan.
terrorism3.

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~BIBLIOTECA~
OLAVO DE CARVALHO

Esta introdução ao estudo dos esoterismos reúne cursos, ensaios e


notas de Olavo de Carvalho sobre simbolismo natural, astrologia e
diversas tradições esotéricas. Estão aqui presentes suas Notas sobre
simbolismo e realidade, os cursos Simbolismo e ordem cósmica e O
esoterismo na história e hoje em dia, bem como o artigo As garras
da Esfinge, entre outros estudos.

Se os símbolos são apenas instrumentos da linguagem humana, eles


são criados pelo homem e nada mais expressam do que o pensa-
mento humano mesmo. A famosa "imanência do temporal no eterno
e do eterno no temporal" não passa, aí, de um fenômeno interno da
mente humana, sendo inteiramente temporal e nada tendo de eterno
exceto uma pretensão nominal que atesta a sua própria impotência.
Ou os símbolos são a linguagem do próprio eterno e o canal do seu
ingresso na esfera temporal, ou toda pretensão de falar do eterno só
nos aprisiona mais e mais na esfera temporal. Mais que o advento da
física matematizada, mais que o surgimento das monarquias nacionais
e de um punhado de impérios em concorrência, mais que a arte de
Michelangelo e Leonardo, essa questão marca a passagem da civili-
zação medieval à "Idade moderna"

— Olavo de Carvalho

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