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Educação poéƟca em educação não formal:

narraƟvas simbólicas e criações arơsƟcas


PoeƟc educaƟon in non-formal educaƟon: symbolic
narraƟve and arƟsƟc creaƟons
Renata Sieiro Fernandes*
Teca Minuzzo**
Severino Antônio Moreira Barbosa*
DOI: http://dx.doi.org/10.20435/2318-1982-2016-v.21-n.43(05)

Resumo
O ar go trata da educação poé ca no co diano de sujeitos adultos. A problemá ca é a de uma
educação permanente baseada na escuta e na produção de narra vas simbólicas e da criação por
meio de linguagens ar s cas. Para tanto, vale-se de ações interven vas por meio de oficinas com
mulheres, em rodas de leitura de literatura e de técnicas do sociodrama, do teatro espontâneo e do
Teatro do Oprimido, dentro da concepção de educação não formal como campo de educação e para
promover uma formação permanente e ao longo da vida. Os conteúdos e repertórios produzidos
no momento das oficinas deram origem a construções de poé cas pessoais sob a forma de uma
ação ligada simbolicamente ao universo feminino, a tecelagem. A par r disso, foi possível pensar
e refle r sobre ser mulher na sociedade contemporânea, com suas conquistas, desafios, avanços,
retrocessos, lutas, tensões, desejos, afetos, sensibilidades ao longo de todo o processo de vida.
Palavras-chave
Simbolismo; literatura; ações sociodramá cas.

Abstract
The ar cle theme is the poe c educa on in adult daily life and the problem is the ongoing educa on
based on listening and produc on of symbolic narra ves and crea on through ar s c languages.It
makes use of interven onal ac ons developed through poe c educa on with women from literature
reading groups and sociodrama techniques, spontaneous theater and the Theatre of the Oppressed,
within the non-formal educa on design and to promote permanent training throughout life. The
content and repertoires that were produced have led to personal ar s c construc ons in the form
of a symbolic ac on linked to the feminine universe, weaving. Reflec ons were developed about
being a woman in contemporary society and the need for con nuous training and lifelong educa on
through poetry that humanizes and touch people and rela onships.
Key words
Symbolism; literature; sociodrama c ac ons.

* Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Americana, São Paulo, Brasil.


** Rede Pública Municipal de Ensino de Paulínia, São Paulo, Brasil. (aposentada)

Série-Estudos, Campo Grande, MS, v. 21, n. 43, p. 89-107, set./dez. 2016


Renata Sieiro FERNANDES; Teca MINUZZO; Severino Antônio Moreira BARBOSA

1 INTRODUÇÃO De acordo com Palhares (2009,


citando Allan Rogers), os anos 2000 (re)
O tema abordado no ar go é a descobrem a educação não formal (e a
educação poé ca no co diano de sujei- educação informal) como sendo inerente
tos adultos, e a problemá ca envolvida é ao paradigma da aprendizagem ao longo
a de uma educação permanente baseada da vida e de uma educação permanente
na escuta e na produção de narra vas com perspec va de uma educação que
simbólicas e da criação por meio de “sustenta uma visão do ser humano
linguagens ar s cas. Este texto é fruto como ser inacabado, cuja realização
de encontros de educação poé ca de- se concretizaria pela aprendizagem
senvolvidos com mulheres, concebidos constante, ao longo da vida, indepen-
e postos em prá ca em 8 encontros de 4 dentemente da idade, e no decurso das
horas cada um, em uma ins tuição sem múl plas e diversas experiências de vida
fins lucra vos, em São Paulo, que produ- das pessoas” (PALHARES, 2009, p. 60).
ziu indagações e reflexões posteriores. Logo, a problemá ca dos adultos fora da
O objetivo do artigo é refletir escola e ou em situações de ausência de
sobre a importância, a necessidade e a trabalho remunerado se mostra urgente
urgência de uma formação con nuada e para ser enfrentada. E, sob essa perspec-
ao longo da vida, por meio de educação va, os encontros de educação poé ca
poé ca, que humaniza e sensibiliza as se inscrevem.
pessoas e as relações. Como diz Brandão (1981, p. 13),
A proposta de encontros de educa- educação acontece onde não existe essa
ção poé ca com mulheres foi lidar com ins tuição responsável por promover
demandas e repertórios advindos do ser ensino. A educação implica socialização
mulher na sociedade contemporânea, e trocas culturais e simbólicas dentro de
com suas conquistas, desafios, avanços, processos grupais, sem preocupações de
retrocessos, lutas, tensões, desejos, afe- formalizações, por meio de situações e
tos, sensibilidades a par r do momento experiências que educam.
que se tornam adultas e ao longo de
todo o processo de vida. O ensino formal é o momento
Dentro da concepção de educação em que a educação se sujeita
à pedagogia (a teoria da edu-
não formal como campo de educação
cação), cria situações próprias
que lida com demandas, necessidades
para o seu exercício, produz
e problemá cas advindas dos grupos os seus métodos, estabelece
envolvidos e que visa promover uma for- suas regras e tempos, e cons-
mação permanente e ao longo da vida, titui executores especializa-
foram desenvolvidas ações interven vas dos. É quando aparecem a
por meio de encontros de educação escola, o aluno e o professor...
poé ca. (BRANDÃO, 1981, p. 26).

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Educação e aprendizagens acon- tempo: a educação formal é orientada


tecem o tempo todo, em diferentes para o tempo futuro; a educação não
espaços e de várias formas e, apenas formal é de curto prazo e orientada para
didaticamente, podem-se denominar o tempo presente;
esses processos ins tucionalizados ou graƟficação: na educação formal, os “re-
não por: educação formal (escolar), edu- tornos” tendem a ser adiados e são de
cação não formal e educação informal longo alcance. Na educação não formal,
(que acontece o tempo todo e permeia os “retornos” tendem a ser tangíveis e
as relações sociais). imediatos ou a curto prazo;
A educação não formal, campo local: a educação formal é altamente
não exatamente novo – anteriormente já visível e fixada em um local. A educação
chamado de educação ao longo da vida não formal usualmente tem baixa visibi-
ou educação permanente ‒, encontra- lidade e pode ocorrer em quase todos os
-se em absorção recente no universo lugares, inclusive no trabalho;
acadêmico e de pesquisa, cons tuído método: a educação formal transmite
por reflexões e prá cas que ocorrem conhecimentos padronizados, do pro-
em espaços ampliados de educação, de fessor para o estudante na sala de aula.
forma ins tucionalizada ou não, aten- A educação não formal tende a ter mais
dendo a diferentes públicos (crianças, conteúdos específicos, com esforços
jovens, adultos e idosos) e em interface instrucionais dirigidos à aplicação;
com diferentes áreas do conhecimento. parƟcipantes: os estudantes da escola
Brembeck (1976) elenca alguns formal usualmente são definidos por
pontos que dis nguem e dão especifici- idade. Os professores são formalmente
dade a educação não formal (na compa- cer ficados. Os estudantes da educa-
ração com a educação formal): ção não formal podem ser de todos os
estrutura: os programas da escola for- grupos etários, e os professores têm
mal são altamente estruturados em um uma grande variedade de qualificação
sistema coordenado e sequencial. Os e não são necessariamente cer ficados
programas não formais usualmente têm formalmente. Em termos de aprovação
muito menos centralização e estrutura social, os estudantes que rejeitam ou
comum, eles podem ser mais bem des- “falham” nas escolas formais podem
critos tanto como um subsetor quanto sofrer es gma social; os par cipantes
como um sistema; da educação não formal podem rejeitar
conteúdo: a educação formal geralmente ou “falhar” com pequeno ou nenhum
é acadêmica, teórica e verbal. A educa- es gma social;
ção não formal normalmente é centrada função: as experiências em educação
em tarefas ou habilidades, com obje vos formal geralmente são designadas para
que se relacionam com a aplicação prá- irem ao encontro das supostas necessi-
ca em situações diárias; dades que as pessoas têm. A educação

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não formal mais frequentemente é como na formulação do conceito, tan-


designada em resposta às necessidades to no exterior quanto nacionalmente,
que as pessoas dizem ter. podem-se abordar as oficinas e encon-
E Trilla (1996) diferencia os termos tros como ações de educação no leque
como segue: de oferecimento do campo da educação
• a educação informal se caracteriza pela não formal, já que não estão dentro de
aprendizagem que realizamos (tanto um programa “fechado”, mas abertos
na função de aprendizes como na de para inclusão de demandas e necessida-
ensinantes) em que não há planeja- des dos grupos, orientados para o tempo
mento, que ocorre sem que nos demos presente e focados no desenvolvimento
conta – um exemplo bastante forte é a de habilidades que visem colaborar para
educação familiar; a formação do sujeito humanizado e
• a educação formal é aquela que tem para a qualidade das relações.
uma forma determinada por uma Apesar de manter uma estrutura,
legislação nacional, ou seja, que tem ela é flexível e aberta para a inclusão do
critérios específicos para acontecer novo e do inesperado, trazido a par r
e que segue o que é es pulado pelo dos encontros e das proposições feitas.
Estado – a educação escolar, hoje com- Os conteúdos abordados são pretextos
preendida pela educação infan l, ensi- para disparar experiências e vivências
no fundamental, médio e universitário; significa vas; o foco não é a gra ficação,
• a educação não formal é: a) toda e a metodologia u lizada é mista e cria -
aquela que é mediada pela relação de va, por combinar elementos que possam
ensino-aprendizagem, tem forma, as- proporcionar o percurso da formação
sume e desenvolve metodologias com de acordo com a(s) problemá ca(s) e
procedimentos e ações diferenciadas obje vo(s) envolvidos.
das adotadas nos sistemas formais, Dessa forma, os encontros foram
e b) estruturalmente, não tem uma estruturados a par r de rodas de leitura
legislação nacional que a regula e in- de literatura, seguidas de exercícios so-
cide sobre ela. Ou seja, uma série de ciodramá cos propostos por técnicas do
programas, propostas, projetos que re- sociodrama, do teatro espontâneo e do
alizam ações e interferências, que são Teatro do Oprimido, e, como finalização
perpassados pela relação educacional, de cada dia de encontro, foi proposto
mas que se organizam e se estruturam um trabalho manual de construção de
com inúmeras diferenças – um leque poé cas pessoais em teares rús cos,
bastante amplo de possibilidades con- feitos em caixas de papelão.
templa a educação não formal. A escolha de se iniciar pela litera-
A partir desses autores ampla- tura se deu por ela proporcionar motes
mente reconhecidos na trajetória das mobilizadores e servir como meio pro-
propostas de educação não formal bem vocador e disparador de lembranças,

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sensações e sen mentos relacionados ao se encadearam e se complementaram.


papel feminino socialmente desejado e Nesse momento de trabalho, aconte-
esperado e os sonhos de transgressão ao ceu o trabalho manual de elaboração e
proporcionar situações de projeções em construção de teares rús cos e manuais
seus personagens e narra vas. Portanto no qual foram confeccionadas tramas e
o primeiro momento dos encontros tecidos que registraram, guardaram e
envolveu leituras, em roda, de trechos representaram as memórias do vivido,
de livros previamente selecionados e do experienciado e do sen do, nas urdi-
que abordavam personagens femininas duras das linhas, ou seja, como diz Eglair
em temá cas que se relacionavam ao Quicolli1, a construção de narra vas com
feminino a par r da óp ca e escuta das a flexibilidade dos fios que tramam na
autoras dos livros. tensão que sustenta o tecido que se faz.
Os exercícios sociodramáticos Ao final dos encontros, as produ-
propostos a par r de técnicas do socio- ções individuais foram aproximadas e
drama, do teatro espontâneo e do Teatro compuseram uma trama única, porém
do Oprimido, foram u lizados valendo- múl pla e ímpar, e puderam ser expostas
-nos de dinâmicas próprias de cada lin- e visualizadas por todos os par cipantes
guagem, para se entrar em contato com e por um público mais amplo.
as emoções e lembranças advindas da
literatura e da experiência, compreen- 2 UMA TESSITURA FEMININA: VOZES
dendo-se e constatando a ressonância QUE NARRAM E MÃOS QUE TECEM
em outros membros do grupo, buscando
saídas individuais dentro de um contex- Escrever sobre uma experiência de
to criado pelo grupo. Portanto, nessa educação poé ca com mulheres, sobre
segunda parte do trabalho na oficina, suas vozes que narram histórias vividas
foram focadas situações, sensações e suas mãos que tecem objetos simbóli-
sugeridas e surgidas pela leitura das his- cos em teares, dificilmente poderia não
tórias como conteúdo de drama zação nos levar a pensar em Walter Benjamin
cole va e dos jogos teatrais. (1985), que tem o narrar e as narra vas
A terceira parte, a da construção de no centro de sua filosofia e sua crí ca
poé cas pessoais por meio de trabalho literária. Benjamin pensava e escrevia
manual envolvendo o desenvolvimento poe camente, de modo constelar, com
e o encontro com a imaginação e a cria- muitas imagens. Uma expressiva me-
ção, proporcionou descobrir expressões táfora proposta por ele é sua pologia
próprias que, ao mesmo tempo em que do narrador ‒ como marinheiro e como
surgiram como concre zações e mate-
1
rializações de repertórios imagé cos e É ar sta têx l e mora em São Paulo. Essa fala
foi anotada a par r de um curso ministrado por
simbólicos internos, também fizeram
ela em 26/09/2015. Para outras informações
parte de fazeres e pensares cole vos que consultar: h p://www.eglairquicolli.com/.

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camponês, pos que se interpenetram, a uma pergunta que fazer uma


de muitos modos. Em uma das primei- sugestão sobre a con nuação
ras obras publicadas no Brasil sobre o de uma história que está sendo
seu pensamento, Flávio Kothe (1976) narrada. [...] O conselho tecido
assim apresenta essas duas categorias na substância viva da existência
tem um nome: sabedoria. A
interpreta vas, relacionando-as com o
arte de narrar está definhando
conceito de aura:
porque a sabedoria – o lado
No ensaio “Der Erzahler ”, épico da verdade – está em
Benjamin postula dois pos- ex nção. Porém esse proces-
-ideais de narrador: o mari- so vem de longe. (BENJAMIN,
nheiro, isto é, o homem que 1985, p. 200-201).
viu terras exó cas e distantes,
das quais apresenta um relato;
Na sua concepção, a arte de narrar
e o camponês, isto é, o homem definha por causa do desaparecimento
que viu a história de sua terra. da vida em comunidade e do trabalho
O primeiro, através da narra- manual, devido ao desenvolvimento do
va, apresenta como próximo capitalismo.
algo afastado em termos basi- Poderíamos acrescentar, como
camente espaciais; o segundo, explicitação, o esvaziamento do mundo
em suas estórias, faz uma apro- rural, com as migrações forçadas para
ximação fundamentalmente as cidades, muitas vezes para uma vida
temporal, trazendo para perto solitária, anônima, sem as rodas de
dos ouvintes o ocorrido em conversas, sem o compar lhar do tra-
tempos longínquos. Sem que a balho comunitário e, além disso, sem o
palavra seja citada, em ambas
contato com a natureza. Consideração
as narra vas ocorre a categoria
da “aura”: a aparição única de
semelhante faz Mia Couto (2015), em
algo distante. (KOTHE, 1976, recente entrevista a um jornal brasileiro:
p. 39). O que me dá mais medo nas
grandes cidades, não é o fato
Nesse mesmo ensaio, O Narrador,
de os meninos deixarem de
Benjamin (1985) escreve uma de suas
ler, mas de não saberem mais
passagens que tem se tornado clássica: contar histórias. É algo grave.
[…] se dar conselhos parece Quando vou ao interior de
hoje algo de antiquado, é Moçambique, onde não há
porque as experiências estão escola e os meninos não sa-
deixando de ser comunicá- bem ler, encontro garotos que
veis. Em consequência, não têm narra vas fantás cas, que
podemos dar conselhos nem leem as nuvens, que podem
a nós mesmos nem aos outros. converter o mundo delas em
Aconselhar é menos responder história. (COUTO, 2015, p. C4).

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No entanto se movem narradores ela me faz descobrir mundos


e narra vas. Nos úl mos anos, têm-se que se colocam em con nuida-
mul plicado os grupos de contadores de com essas experiências e me
de histórias, assim como os saraus em permite melhor compreendê-
-las. Não creio ser o único a
diferentes comunidades. O narrar e o
vê-la assim. Mais densa e mais
ouvir sobrevivem e se transformam,
eloquente que a vida co diana,
reapresentados em escolas, praças, mas não radicalmente diferen-
hospitais, centros comunitários e outros te, a literatura amplia o nosso
espaços de convivência. São prá cas de universo, incita-nos a imaginar
resistência e de recriação do contar, que outras maneiras de concebê-
revelam as histórias como necessidade -lo e organizá-lo. [...] Ela nos
vital dos sujeitos humanos, e da vida co- proporciona sensações insubs-
le va, como a vidade primordial para a tuíveis que fazem o mundo
sobrevivência e para o desenvolvimento real se tornar mais pleno de
da existência, assim como a arte. sen do e belo. Longe de ser
um simples entretenimento,
É preciso lembrar que todas as
uma distração reservada às
sociedades humanas têm histórias e
pessoas educadas, ela permite
têm manifestações ar s cas, como com- que cada um responda melhor
provam os mitos, as pinturas rupestres, à sua vocação de ser humano.
esculturas e instrumentos musicais, (TODOROV, 2009, p. 23-24).
recorrentemente encontrados em pes-
As palavras de Todorov têm pro-
quisas arqueológicas, por vezes em sí os
funda convergência com a reflexão de
com mais de quarenta mil anos.
Antônio Cândido (1995), em seu texto
Em um ensaio chamado A
sobre literatura e direitos humanos:
Literatura em perigo, Tzvetan Todorov
(2009) apresenta uma defesa ao mesmo Entendo aqui por humanização
tempo serena e apaixonada da literatura [...] o processo que confirma
e de sua relação com a vida: no homem aqueles traços
que reputamos essenciais,
Hoje, se me pergunto por que como o exercício da reflexão,
amo a literatura, a resposta que a aquisição do saber, a boa
me vem espontaneamente à disposição para com o próximo,
cabeça é: porque ela me aju- o afinamento das emoções, a
da a viver. Não é mais o caso capacidade de penetrar nos
de pedir a ela, como ocorria problemas da vida, o senso da
na adolescência, que me pre- beleza, a percepção da comple-
servasse das feridas que eu xidade do mundo e dos seres,
poderia sofrer nos encontros o cul vo do humor. A literatura
com pessoas reais; em lugar de desenvolve em nós a quota de
excluir as experiências vividas, humanidade na medida em

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que nos torna mais compreen- 3 O DESENVOLVIMENTO


sivos e abertos para a natureza,
a sociedade, o semelhante. O grupo de trabalho para os en-
(CÂNDIDO, 1995, p. 249). contros de formação poé ca compôs-se
de, aproximadamente, 26 mulheres, na
Ao discorrer sobre a experiência da
faixa dos 30-60 anos, alfabe zadas, de
leitura como um processo a vo e dialó-
variadas origens socioculturais, algumas
gico, Wanderlei Geraldi (1997) desdobra
provindas de um albergue feminino na
a metáfora, que tem muitos séculos, do
região do bairro Pinheiros, variou em
texto como tecido, significação já inscrita
sua frequência ao longo do tempo dos
na própria e mologia da palavra:
encontros, entretanto aproximadamente
O produto do trabalho de pro- 12 pessoas se man veram do princípio
dução se oferece ao leitor, e ao fim.
nele se realiza a cada leitura,
O encontro iniciou-se com a pro-
num processo dialógico cuja
trama toma as pontas dos fios
posição: fale um pouco sobre você; e a
do bordado tecido para tecer par r desse mote, percebe-se que os
sempre o mesmo e outro bor- temas que aparecem, nesse primeiro
dado, pois as mãos que agora momento, são: doenças, desmerecimen-
tecem trazem e traçam outra to, gostos, idade, habilidades, desejos,
história. (GERALDI, 1997, p. moradia, trabalho, estudo, formação
166). acadêmica e outros cursos, lugar de
As histórias, entretecidas nas nascimento, casamento, maternidade,
vozes femininas, enlaçam narradoras ser avó. Ou seja, as mulheres escolhem
e ouvintes nas mesmas tessituras. As apresentar-se pelos papéis sociais de-
considerações sobre a trama dos fios sempenhados ou lugares sociais ocu-
valem inteiramente para o tecer das pados, pela tulação escolar, por seus
narra vas e valem também para a pe- dramas e/ou por seus sonhos.
ças tecidas nos teares, por mulheres, Os materiais disparadores ou pro-
que se revelaram , com vozes e mãos positores foram escolhidos a par r de
femininas, como sujeitos de práxis e bibliotecas par culares, de memórias
de poiesis. De práxis, porque religam de histórias lidas e sen das, e chegou-
suas prá cas e suas reflexões, mesmo -se a livros que pudessem apresentar
que descon nuas. E de poiesis, porque temá cas ligadas ao feminino a par r
capazes de atos cria vos, de elaboração da apresentação de enredos dados
de histórias e obras que nos chamam pelas autoras dos livros selecionados, e
a viver e, muitas vezes, despertam e que envolvessem mulheres em papéis
intensificam o desejo de mudar a vida de personagens protagonistas e com
e transformar o mundo. as quais pudesse haver identificação
ou projeção, que fossem carregados de

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aberturas possíveis e provocadoras no • minhas fronteiras


processo de formação e autoconheci- Ao criar a Terra, Alá separou
mento, elementos de uma prá ca edu- os homens das mulheres e pôs
ca va significa va e singular. As autoras um mar entre muçulmanos e
dos livros selecionados são todas mulhe- cristãos, e fez isso de propósi-
res, brasileiras ou la no-americanas ou to, meu pai sempre me disse.
orientais, como: Fá ma Mernissi, Laura Existe harmonia quando cada
grupo respeita os limites esta-
Esquivel, Marina Colasan , Ruth Rocha.
belecidos do outro; transgredir
O que de feminino apareceu nos
esses limites só pode trazer
temas, entre outros tantos possíveis como conseqüência angús a
de serem elencados, e que influenciou e infelicidade. No entanto, as
e determinou a escolha foi: lealdade; mulheres tinham um único
limites e transgressão; sonhos desfeitos; sonho na cabeça o tempo todo:
o casamento da jovem; e as histórias transgredir. O mundo além
foram organizadas em uma sequência de dos portões era sua obsessão.
leitura que forneceu um eixo orientador, (MERNISSI, 1996, p. 09).
tornando-se metáforas, como: • eu desfaço
• eu carrego Desta vez não precisou esco-
As mulheres tinham vindo lher linha nenhuma. Segurou
perguntar ao imperador se a lançadeira ao contrário, e,
podiam, realmente, contar jogando-a veloz de um lado
com a sua palavra. Se podia, para o outro, começou a des-
de verdade, sair do castelo, fazer seu tecido. Desteceu
carregando o que nham de os cavalos, as carruagens, as
mais precioso. Ofendido, ele estrebarias, os jardins. Depois
reafirmou sua palavra: ‘Palavra desteceu os criados e o palá-
de rei não volta atrás!’, ele cio e todas as maravilhas que
deve ter dito. As mulheres con nha. E novamente se viu
então voltaram ao castelo, na sua casa pequena e sorriu
para executar o seu plano. Daí para o jardim além da janela.A
a pouco começaram a sair, en- noite acabava quando o mari-
voltas em suas pesadas capas do, estranhando a cama dura,
de viagem, caminhando com acordou e espantado olhou
dificuldade, pois nos ombros em volta. Não teve tempo de
traziam o que nham de mais se levantar. Ela já desfazia o
precioso. Ante o olhar atônito desenho escuro dos sapatos,
dos homens de Conrado, as e ele viu seus pés desapare-
mulheres passavam com seus cendo, sumindo as pernas.
maridos nos ombros. (ROCHA, Rápido, o nada subiu-lhe pelo
1994, p. 10). corpo, tomou o peito apru-

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mado, o emplumado chapéu. mentos de beleza podia causar


(COLASANTI, 1985, p. 16). danos fatais. Errar na medida,
ou na dosagem dos componen-
• minhas exigências
tes, ou nos tempos de prepara-
Último rei de barba branca ção, podia resultar em alergias
avança, espada na mão. e coceiras, ou, o que era ainda
- Com o homem que desvendar pior, transformar cabelos rui-
meu labirinto, só com esse me vos em cabelos negros como
casarei, - diz a moça procu- carvão. Funcionavam, como
rando-lhe o olhar. E devagar de costume, as três equipes
some entre muros verdes (do de beleza: uma especializada
labirinto de cus). nas máscaras para cabelos,
Mas o rei não a segue, não outra em preparados de hena,
procura seu caminho. Com e a terceira em máscaras e
toda a força que séculos de fragrâncias para a pele. [...] Era
mármore lhe puseram nas considerado imprescindível,
mãos, desembainha a espada, entretanto, para a mulher, ficar
levanta a lâmina acima da o mais feia possível quando
cabeça, e zapt! Abre um talho se preparava para o hamman,
nas folhas, e novamente zapt! em grande parte porque todas
Corta e desbasta, e zapt! Zapt! acreditavam que, quanto mais
Zapt! Esgalha, abate, arranca feia alguém conseguisse se
os pés de cus. fazer antes de entrar nos ba-
Uiva o vento escapando pelos nhos, mais estonteantemente
rasgos, fugindo a cada golpe. bela estaria ao sair. (MERNISSI,
Sob a lâmina, trezentas e ses- 1996, p. 256-257).
senta e cinco quinas se desfaz.
Até que não há mais labirinto,
• encontro meu lugar
só folhas espalhadas. E a moça. O terraço situado acima daque-
Que livre, no gramado, lhe sor- le em que levávamos nossas
ri. (COLASANTI, 1985, p. 47-48). peças de teatro era proibido
porque não tinha muros, e
• meus cuidados
podíamos cair e morrer se
Já naquele momento metade déssemos um passo em falso.
das mulheres no pátio tinha Cinco metros mais alto do que
uma aparência hedionda, com o terraço de baixo, ele vinha a
pastas e misturas pegajosas co- ser, na verdade, nada menos
brindo cabelos e rostos. Do lado do que o teto do quarto de
delas sentavam-se as dirigentes a Habiba. Não havia escadas
de equipes, trabalhando numa que levassem até ele, porque
tranquilidade solene, pois co- não era para ser visitado; mas
meter um engano em trata- todos na casa sabiam que as

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mulheres com problemas, • escolho minhas parcerias


quando nham seus acessos de Yaya (a co-esposa negra es-
hem (uma forma de depressão trangeira) era a mais reservada
moderada), iam lá para cima a de todas as co-esposas, uma
fim de encontrar a quietude e a mulher alta e esguia, com apa-
beleza de que precisavam para rência de extrema fragilidade
curar-se. (MERNISSI, 1996, p. em seu cafetã amarelo. Tinha
171). um rosto de ossatura fina, com
• meu renascimento olhos sonhadores, e trocava de
turbantes conforme o estado
Nesse dia, longe do vale do de espírito em que se encon-
Anahuac, na região de Painala, trasse, embora sua cor favorita
uma mulher lutava para dar à fosse o amarelo – ‘como o sol, é
luz seu primogênito. A chuva uma cor que dá luz’. Era propen-
abafava os lamentos. A sogra, sa a resfriar-se, falava o árabe
atuando como parteira, não de- com sotaque e não man nha
cidia se prestava atenção à nora muitos contatos com as outras
parturiente ou à mensagem do co-esposas. Preferia recolher-se
deus Tlaloc. [...] A nota já estava em sossego nos seus aposen-
havia algum tempo desnuda e tos. Não muito tempo depois
de cócoras e, fazendo força pe- de sua chegada, as outras co-
nosamente, não conseguia dar -esposas resolveram que fariam
à luz. A sogra, prevendo que o por ela a parte que lhe cabia
rebento não passaria pela ba- nas tarefas domésticas, tão
cia, começou a preparar a faca frágil era a sua aparência. Em
de obsidiana com que par a troca, ela prometeu contar-lhes
em pedaços o corpo dos fetos uma história por semana...
que não conseguiam nascer. (MERNISSI, 1996, p. 68).
[...] De repente, a futura avó
O ambiente foi esteticamente
– ajoelhada diante da nora –
preparado com cuidado para propor-
conseguiu ver a cabeça do feto
emergindo da vagina, retroce- cionar aconchego e envolvimento, pro-
dendo no momento seguinte, ximidade, ritualização: a roda, a vela, os
indicando que provavelmente tapetes, os colchonetes, as músicas2, a
trazia o cordão umbilical enre-
dado no pescoço. De repente 2
Foram usados o cd do Mawaca, “Astrolábio
uma cabecinha surgiu entre as tucupira.com.brasil”, o cd do Grupo Anima, “A
pernas da mãe, com o cordão donzela guerreira”, “Danças folclóricas brasilei-
umbilical entre os lábios, como ras”, com canções de roda e brincadeira, “Indian
se uma serpente amordaçasse classical instrumental”, com cítara e tabla, o cd
“1492 – a conquista do Paraíso”, de Vangelis, “La
a boca da criança. (ESQUIVEL,
strega – a bruxa”, de Andréas Vollenweider, do
2007, p. 8-9). cd “Book of roses”.

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Renata Sieiro FERNANDES; Teca MINUZZO; Severino Antônio Moreira BARBOSA

leitura em voz alta, a escuta. E seguiu- Dentre as técnicas do psicodrama,


-se o desenvolvimento das três fases da foram u lizadas: Inversão de papéis –
ação sociodramá ca: o aquecimento ou quando o interlocutor toma o lugar do
a preparação do grupo; a representação protagonista na drama zação; Solilóquio
ou encenação; o compar lhamento das – quando congela-se a cena e o prota-
ressonâncias no cole vo. gonista pensa alto; Espelho – quando
Imediatamente após a audição da a pessoa que auxilia no drama imita o
história, passou-se para a drama zação protagonista em suas expressões e sua
cole va, para evitar o foco na racionali- forma de comunicar; Duplo – quando
zação, no argumenta vo, do discursivo, o protagonista está com dificuldade
para que não se construísse previamente de expressar seus pensamentos e
e não se materializasse uma forma pré- sen mentos.
-determinada que pudesse encaminhar o Foram u lizados também jogos e
exercício sociodramá co. A intenção foi técnicas de improvisações tendo como
passar diretamente para o simbolismo inspiração o Teatro do Oprimido, desen-
das sensações e situações e do corporal, volvidas por Augusto Boal (1996, p. 27).
do gestual; sem a mediação racional Nesse caso,
enfa zada de início de forma a poderem
Teatro – ou teatralidade – é
aparecer aspectos de associações livres,
aquela capacidade ou proprie-
iniciais, de lapsos, como elementos
dade humana que permite
cons tu vos do trabalho psico ou socio- que o sujeito se observe a si
dramá co (MORENO, 2011). E assim se mesmo, em ação, em a vida-
procedeu em todos os encontros. de. O autoconhecimento as-
O psicodrama é um método de sim adquirido permite-lhe ser
trabalho desenvolvido por Jacob Levy sujeito (aquele que observa)
Moreno, que se propõe investigar de um outro sujeito (aquele
os aspectos psicológicos através das que age); permite-lhe imaginar
representações dramáticas, livres de variantes ao seu agir, estudar
performances já definidas; de forma alternativas. O ser humano
espontânea, com o intuito de ampliá-las pode ver-se no ato de ver, de
para se tomar contacto consigo mesmo, agir, de sen r, de pensar. Ele
potencializando processos cria vos e pode se sen r sen ndo, e se
transformadores. A principal caracte- pensar pensando.
rís ca é a drama zação e, para tanto, Visam rar o sujeito do papel de
convida-se uma pessoa do grupo para passividade ou pacífico e provocá-lo em
protagonizar uma situação conflituo- sua potência criadora e de desconstru-
sa, realizando intervenções através de ção de hábitos, costumes, condiciona-
técnicas para facilitar o contato com a mentos que impõem limites aos modos
situação. de viver e de interpretar a complexidade

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Educação poéƟca em educação não formal: narraƟvas simbólicas e criações arơsƟcas

da realidade. Uma das técnicas usadas Ao final de cada vivência sociodra-


nos encontros foi o teatro-jornal em que má ca a par r das metáforas suscitadas
a ação teatral toma por base uma no cia pela leitura das histórias em roda e à luz
de jornal ou de outro material; outra da vela, fazia-se uma pausa para que a
foi o teatro-fórum em que os sujeitos verbalização necessária aparecesse, se
par cipam da solução cole va de um fosse o caso. Em alguns momentos, isso
problema. foi presente, mas não foi recorrente, o
Em cada encontro, como parte do que mostra a busca por uma educação
aquecimento uma reapresentação oral dos sen dos e do sensível que não passa
foi solicitada, para que cada uma das diretamente pela via da racionalização,
mulheres falasse um pouco mais e si. mas sim do atravessamento e da afecção
O intuito era sen r e saber se haveria provocada pela experiência.
mudança em relação ao que escolheram Terminada a drama zação, passa-
falar – ou a mudez – do primeiro encon- mos ao momento de compar lhar, onde
tro. E então, o que haviam privilegiado e se revelam os sen mentos para ressonar
como se (re)contavam. no outro. Escuta-se para encontrar em si
Ao longo dos encontros, a rea- os sen mentos do outro. Compar lhar
presentação pareceu ser mais tranquila para me encontrar no outro. É aqui que
para quase todas as mulheres, a fala nos sen mos pertencentes.
fluiu, e elas elencaram outros aspectos Nesse momento, o sensível apa-
que ficaram de fora naquele primeiro receu nas falas no compar lhamento:
dia. No geral, poucos aspectos daquela “Nesses dias dos encontros eu me sen
apresentação foram man dos. Grande bem, nunca gostei de coisas con nuas,
parte das mulheres preferiu trazer à mas acho que vou aguentar até o fim”,
tona novos dados sobre si para se con- “ao longo do curso, as coisas vão acon-
tar e se apresentar ao outro. Em alguns tecendo, estou sen ndo que as emo-
casos, perguntas feitas por outras pes- ções estão fluindo. Sem querer, a gente
soas ajudaram a compor a narrativa. se expõe, não apenas falando, mas em
Serviram como es mulos ou elemento atos”, “gosto dos encontros. Tem sido
de ancoragem e de encorajamento e de muito ú l e eu estou aprendendo muito
ressignificação. para a minha profissão”, “estou queren-
Os temas que apareceram foram: do redefinir tudo. O que eu precisava
desejos, sonhos, nome, idade, doenças, era começar”, “nasci há algum tempo e
quedas, redefinições, reinvenções de si, todo dia eu nasço. Um novo com cara de
separações, lugar de nascimento, famí- velho ou de bebê. Escolhi fazer isso que
lia, maternidade, relação mãe e filha, or- é ligado ao teatro e ao psicodrama”, “eu
fandade, estudo, trabalho, desemprego, acabei de passar por uma separação. Na
sofrimentos, casamento, companheiro/ realidade, se separaram de mim. Estou
parceiro, acidentes, as artes. me reinventando. Uma de vocês me

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Renata Sieiro FERNANDES; Teca MINUZZO; Severino Antônio Moreira BARBOSA

disse se eu era dançarina. Adorei ouvir Como parte de finalização dos


isso porque é algo que gostaria de fa- encontros de cada dia, par a-se para a
zer. Disseram-me que minha assinatura construção das poé cas tecidas usando-
era musical, que eu tenho a música em -se, para tanto, fios, arames, objetos que
mim. A fala de vocês foi espelho para simbolizavam e expressavam as narra-
mim. Quero poder descobrir isso em vas e as escutas internas. Essa produ-
mim”, “voltei a fazer canto, tocar tam- ção comunica va e expressiva foi onde
bor, ‘a fazer danças brasileiras. Agora desaguaram as emoções e sensações e,
estou estudando”. “Estou aliviada, que no úl mo encontro, todas as produções
podemos encontrar nos outros algo que foram expostas compondo um mosaico
necessitamos, que todos tem algo pra ou um caleidoscópio ou uma constelação
dar e receber”. do feminino poe zado.

Figura 1
Fonte: acervo par cular. Foto: Renata Sieiro Fernandes

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Educação poéƟca em educação não formal: narraƟvas simbólicas e criações arơsƟcas

Figura 2
Fonte: acervo par cular. Foto: Renata Sieiro Fernandes

Figura 3
Fonte: acervo par cular. Foto: Renata Sieiro Fernandes

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Renata Sieiro FERNANDES; Teca MINUZZO; Severino Antônio Moreira BARBOSA

As mulheres, sujeitos dessas expe- instante de um tempo de ressurreição


riências poé cas de criação de histórias de sen dos que pareciam mortos para
e de objetos simbólicos, revelaram-se sempre.
ao mesmo tempo como narradoras Protagonistas, narradoras de suas
marinheiras – porque fazem suas tra- histórias, fazedoras de seus objetos sim-
vessias com sen dos nômades, e tra- bólicos, essas mulheres também revela-
zem distantes e diferentes espaços ‒, ram que as experiências vividas podem
e como narradoras camponesas – uma ser comunicáveis. Apesar das solidões,
vez que trazem distantes e diferentes dos desenraizamentos, das dilacerações,
tempos nos enredos e desenredos de das espoliações, e precisamente por cau-
suas existências. sa das diferentes formas de desfiguração
Revelaram-se também como sujei- da nossa existência, como um dos modos
tos que têm voz e história. Sujeitos que, de recusa à desumanização, é possível
ao contar com voz própria a sua própria criar e recriar encontros humanos de voz
história, seus sonhos, suas feridas, seus própria, de escuta sensível, de diálogos
amores e desamores, seus desenganos em que podemos nos reconhecer uns
e encantamentos, entretecem uma ex- aos outros.
periência de liberdade, de emancipação, A fecundidade existencial e sim-
no campo do discurso e da elaboração bólica de suas narra vas e de suas obras
esté ca, o que é muito significa vo em elaboradas nos teares reitera a tese
um mundo cada vez mais dilacerado, de que as histórias chamam a sen r, a
com crescente perda de sen do, em que pensar, a viver. Os múl plos e moven-
as pessoas muitas vezes já não sabem a tes sen dos vão também ao encontro
que pertencem, não reconhecem sua das concepções que reconhecem a arte
historicidade, tratadas como coisas entre como necessidade humana fundamen-
coisas, cada vez mais descartadas. tal, como forma de conhecimento e
As mulheres que par ciparam dos reconhecimento, e como ampliação das
encontros de educação poé ca viven- margens da existência.
ciaram outra vez a unidade entre a voz
que narra e a mão que tece. Revelaram, 5 CONSIDERAÇÕES
mais uma vez, que a arte de narrar, assim
como a poesia, não está ex nta, embora Otavio Paz (1982, p. 15) escreve
ameaçada de ex nção: ambas, a narra - que “a poesia revela este mundo; cria
va e a criação poé ca, podem ser reco- outro”. Escreve também: “Será uma
meçadas sempre, trazendo o que foi, o quimera pensar numa sociedade que
que poderia ter sido, o que pode vir a ser. reconcilie o poema e o ato, que seja
Cada experiência genuína de ex- palavra viva e palavra vivida, criação de
pressão, que nasce e cresce de encontros comunidade e comunidade criadora?”
humanos significa vos, pode se tornar (PAZ, 1982, p. 309).

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Educação poéƟca em educação não formal: narraƟvas simbólicas e criações arơsƟcas

Oliveira (s/d, p. 2-3) em sua análise educação em que a escuta de si e do


sobre Paz diz: outro e de olhares sensíveis para o
[...] a poesia (para ele) permite- mundo são modos cria vos e inven -
-nos, a nós, habitantes de um vos de os sujeitos se fazerem a vos e
mundo apaziguado da ira dos crí cos, produtores de conhecimento e
deuses, uma experiência de mais humanizados em si e nas relações,
re-velação da nossa condição especialmente no caso de adultos e de
de seres con ngentes e tempo- sujeitos que se fazem mulheres.
rais: sempre sem pouso, erran- As oficinas ou encontros de forma-
tes e nostálgicos de um “estado ção, bem como outras formas de ações
anterior” de unidade e iden - interven vas no campo da educação não
dade do ser (AL, 1982, p. 164).
formal, de curta, média ou longa duração
Nesse sen do, a experiência
poética seria, para Paz, uma são modos pontuais ou regulares de cons-
experiência profundamente truir saberes, fazeres e sen res, de modo
enraizada no tempo, pois é pelo a inves r no autoconhecimento como for-
vivenciar de sua própria histori- ma primeira e, na sequência e/ou simul-
cidade que o homem, esse ser taneamente, no conhecimento do outro
da e para a linguagem, sente-se e do mundo, como foi o processo aqui
compelido à transcendência do descrito. A educação ao longo da vida,
tempo, transcendência que se para sensibilizar e humanizar as pessoas
dá no rito e na poiésis. e as relações na sociedade capitalista, ou
Nesse sen do, essas experiências seja, o individual e o social, no universo
de educação poé ca representam indí- dos adultos e, no caso, das mulheres
cios de utopia no co diano mais próximo, é uma necessidade e uma busca que
pequenas frestas nos cercos das misérias, se faz presente na atualidade, ao invés
por onde podem circular vida, histórias, de apenas se inves rem em formações
símbolos, sempre recomeçados. con nuadas visando ao econômico e ao
O narrar e o ouvir são modos de re- mundo do trabalho. É mais do que apren-
cusa à desumanização, em que é possível dizagem; é formação, porque promove
criar e recriar encontros humanos de voz sensibilidades, experiência e sen dos.
própria, de escuta sensível, de diálogos Educar o adulto é também um
em que podemos nos reconhecer uns modo de construir uma sociedade mais
aos outros. inclusiva, sensível e poé ca, sem disso-
A poiesis e a práxis podem vir pela ciação entre sen r, imaginar, pensar, agir.
via da educação não formal, nessa pers- As histórias, as narra vas simbólicas, as
pec va de uma formação que acontece drama zações e as criações ar s cas
ao longo da vida e permanentemente. produzidas e ouvidas no co diano são
Dessa forma, outros lugares e tempos modos de potencializar e canalizar esse
podem fazer acontecer processos de saber com sensibilidade.

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Renata Sieiro FERNANDES; Teca MINUZZO; Severino Antônio Moreira BARBOSA

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Educação poéƟca em educação não formal: narraƟvas simbólicas e criações arơsƟcas

Sobre os autores:
Renata Sieiro Fernandes: Pedagoga, mestre e doutora em Educação pela Faculdade
de Educação – UNICAMP e pós-doutoranda pela Faculdade de Educação – UNICAMP,
docente do Mestrado em Educação Sociocomunitária do Centro Universitário
Salesiano de São Paulo (UNISAL), campus Maria Auxiliadora, Americana, SP. E-mail:
rsieirof@hotmail.com
Teca Minuzzo: Psicodramatista, pedagoga e mestre em Educação Física pela
Faculdade de Educação Física – UNICAMP. E-mail: andarilha56@gmail.com
Severino Antônio Moreira Barbosa: Doutor em Educação pela Faculdade de
Educação – UNICAMP, docente do Mestrado em Educação Sociocomunitária – UNISAL,
campus Maria Auxiliadora, Americana, SP. E-mail: severinoantonioeduc@uol.com.br

Recebido em novembro de 2015.


Aprovado em junho de 2016.

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