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O MISTERIOSO

NATAL DE
LOURENÇO

Márcio J. S. Lima
SEU TERÊNCIO E A PÓS-MODERNIDADE
O despertador marca sete horas da manhã.
Seu Terêncio acorda ainda ébrio, depois de uma longa
noite de sono.
Vai ao banheiro e se olha no espelho. Observa seu rosto
e só agora se dá conta como envelheceu nos últimos anos. Sua
pele está flácida, sua barba está branca, seus cabelos grisalhos
e sua face completamente enrugada.
Aos setenta e quatro anos, seu Terêncio já sente a
perspectiva da morte.
Subitamente sua consciência é envolta por pensamentos,
lembranças e axiomas que denotam o teor agonizante de sua
lucubração.
Questões de natureza existenciais existencial permeiam
a cabeça de seu Terêncio, que continua olhando atônito o
espelho a se perguntar:
– Quem sou eu?
– Como vim parar aqui?
– Para onde vou?
É só então que o nosso protagonista percebe que está
tomado pela angústia.
Em sua mente, a angústia se solidifica, toma forma,
torna-se volúvel. É como se seu Terêncio começasse a despertar
de um sonho perfeito, brilhante, voluptuoso e se deparasse com
o real, com o que está presente e está por vir, com o mundo da
vida...
Ele começa a lembrar como era a vida há 52 anos,
quando estava na fina flor da idade.
Seu Terêncio tinha uma vida pela frente. Seu futuro se
resumia a uma metanarrativa, pois, acreditava que, com o passar
dos anos, todos os seus objetivos iriam naturalmente se
concretizar. Cursar faculdade, conseguir um bom emprego,
casar-se, constituir família, criar os netos e ser feliz para sempre.
Porém, só agora seu Terêncio percebe que os tempos
tomaram outros rumos.
O agora se tornou fragmentado, uma era de incerteza,
não há mais garantia de nada. Apenas agora seu Terêncio
percebe que, por conta da competitividade e exigências do
mercado, chegou a perder vários empregos.
Aquilo que ele havia aprendido na faculdade, com o
passar dos anos, havia se tornado obsoleto. O conhecimento e a
informação se tornaram uma constante simultânea. Nada é mais
permanente, tudo se dissolve. Inclusive as relações amorosas.
Nosso protagonista cai em si e percebe que o amor há
muito se tornou líquido.
Não há mais eternidade nas relações, pois, analisando
seu passado, seu Terêncio se dá conta de que a pessoa que ele
achou que iria ficar para sempre ao seu lado, sua parceira e sua
amante, hoje não está por perto.
E cadê os seus filhos, os seus netos? Onde eles estão?
A relação com a família também é líquida.
Como um flash, de luz seu Terêncio reflete sobre os
valores morais. Esta engenhosa criação humana agora também
está extraviada. O que determina os valores nestes nesses
novos tempos é unicamente a relação de interesses. O
Imperativo Categórico kantiano há muito foi superado, pensa seu
Terêncio. Não há mais princípio ético nas relações sociais que
não seja determinado por interesses, sejam eles de cunho
econômico, político ou metafísico.
Esta máxima é comprovada pelo nosso protagonista,
quando ele lembra que ontem almoçou assistindo a um programa
sensacionalista cujo apresentador mostrava o corpo carbonizado
de uma mulher que foi assaltada e não tinha nenhum pertence de
valor para os criminosos levar. Como castigo, os três rapazes,
entre eles um menor de idade, jogaram gasolina e atearam fogo
na mulher, que foi completamente queimada ainda viva.
A banalidade da vida chegou até aos criminosos, que
ceifaram um ser vivente por não conseguirem o “lucro” almejado;
chegou ao apresentador, que viu em tal notícia uma forma de
conquistar audiência, e chegou até o próprio velho Terêncio, que
agora não vê problema algum em almoçar assistindo sangue e
corpos de pessoas mortas com requintes de crueldades.
Só agora seu Terêncio compreende a crise de identidade
que perpassa sua época.
As pessoas se apresentam socialmente de formas
variadas. Seu Terêncio lembra que sua vizinha, de dia, é uma
executiva de grande porte, mas a à noite transforma-se em gótica
e vira a madrugada visitando cemitérios. Isso sem falar no seu
síndico, que é autoritário e moralista, mas no final de semana é a
estrela das boates gays com seus espetáculos como
transformistas.
As identidades, por muitas vezes, também são definidas
pelo que você veste, pela alimentação que você consome, pelo
tipo de música ou leitura que você gosta.
Seu Terêncio se pega a pensar como o processo de
globalização transformou o espaço geográfico em um lugar
grande e curto ao mesmo tempo. Grande por que hoje ele está
no Brasil, mas em poucas horas pode está estar facilmente na
Europa ou na Ásia. Pode ficar lá, trabalhar lá, morar lá, mas
nunca vai ser de lá, sua identidade é daqui, lá ele terá uma falsa
identidade ou uma identidade ilusória.
O contrário também é verdadeiro, nem todos têm
condições de viajar para outros continentes. Nem todos têm
acesso às maravilhas tecnológicas produzidas pelos países
desenvolvidos, nem todos têm acesso à informação, à
alimentação e às vestimentas utilizadas nos países de ponta.
Para estes, a globalização tornou o mundo grande
demais, uma vez que os bens de consumo estão muito distantes
de sua realidade. Então, eles criam uma identidade falsa e
ilusória onde acreditam piamente estar inseridos no processo –
raciocina o velho Terêncio.
Seu Terêncio cogita sobre a política e percebe que esta
também foi afetada pelos “novos tempos”. O Estado agora é
permeado pela corrupção, os políticos visam atender benefícios
próprios e os órgãos públicos, ao que parece, foram
transformados em organismos particulares a serviço de seus
diretores. Na época do sufrágio, os homens da política saem dos
armários, transformam-se em seres caridosos, responsáveis,
éticos e dedicados.
Entretanto, ao vencerem o pleito, voltam a tratar dos
seus “negócios particulares”, investindo neles o dinheiro público
arrecadado pela alta e abusiva carga tributária existente no país.
Na insatisfação, agonizando sobre as veias abertas da
sociedade, proliferaram-se diversos movimentos sociais: sem
sem-terra, sem sem-teto, ecologistas, ambientalistas, glbtqia+,
multiculturalistas, feministas...
Os protestos são inevitáveis, mas a classe política os
ignora.
A própria religião tradicional se vê em crise, pois agora
surge uma infinidade de seitas com líderes, santos e deuses
particulares. Em cada esquina há uma igreja, em cada cidade há
um templo, são várias as denominações religiosas provenientes
do cristianismo (principalmente), do budismo, do hinduísmo e do
islamismo.
A mídia é tomada pela religiosidade que é amplamente
divulgada na televisão, no rádio, na internet... A fé novamente
virou um comércio. A prosperidade é vendida em programas de
TV. Todos querem enriquecer, mas, para isso, precisam ter fé e
investir. Se você tem fé em Deus, contribua com a igreja, que ele
te dará em dobro!
O problema é que o retorno parece só acontecer no
bolso dos líderes que assim pregam. O pobre fica ainda mais
pobre e o líder religioso fica ainda mais rico. É uma divisão
inversamente proporcional. E a desculpa! Se Deus não te
abençoou é porque você ainda não tem fé suficiente para isso.
O pobre Terêncio sabe que este é o tempo das
incertezas, a própria mecânica quântica já mostrou, provou e
comprovou isso. Não há mais a crença desenfreada que tivemos
há tempos atrás na razão.
Em nosso tempo, nada mais é permanente, tudo é
transitório, o espaço é vazio e lugar algum é melhor que o outro.
Tudo está contaminado, tudo está transpirando
novidades. Em poucos segundos, o agora se torna antigo.
A informação é transmitida em tempo real, não há mais
notícias atrasadas. A televisão, o rádio e a internet agora dão as
cartas.
São os meios de comunicação responsáveis pela
disseminação da notícia e da informação. Aliás, a informação
virou a base de tudo.
A ciência, a tecnologia, a filosofia, a linguística, todos se
voltaram para a informação. O problema é que nem sempre as
informações que nos chegam são totalmente falsas ou
verdadeiras. Elas podem ser criadas, legitimadas, deturpadas ou
manipuladas.
Mas também, fazer o quequê? Vivemos a era da
incerteza!
Há também uma produção extremamente exagerada dos
valores. Estes, por muitas vezes, são a causa do absurdo da
transitoriedade.
É nesta concepção que seu Terêncio percebe que os
valores não são mais aquilo que pareciam ser. Os valores agora
são determinados pela lógica do mercado. É o capitalismo quem
dita as regras do jogo. O bem ou o mal, o certo ou o errado, o
bom ou o ruim, o verdadeiro ou o falso só aparecem no contexto
da necessidade ou conveniência do capital. Se gerar lucro, pode!
Se não gerar lucro, não pode! Pois é errado, é feio, é desonesto.
Seu Terêncio conclui que esta forma peculiar de pensar
já é notória na política, na religião, na família e na sociedade.
Aquilo que havia sido prometido nos tempos áureos de
juventude, agora havia fracassado. Somente hoje nosso
miserável Terêncio se dá conta de que a proteção, a esperança,
a rotina diária e o discurso de que a razão iria salvar tudo e todos
fracassou.
A fragmentação é a ideia mais real nos neurônios de seu
Terêncio. Ao jogar água em seu rosto enrugado, ele percebe que
durante toda sua vida havia na cabeça a falsa crença em uma
vida maravilhosa, em um mundo extraordinário e em um espaço
fantástico.
É tomado pela angústia e marcado pela incerteza que
seu Terêncio acaba de lavar o rosto, enxuga-o e sai.
Outro dia se inicia. Um dia talvez igual ao anterior, mas
diferente em seus detalhes. Um dia em que o velho Terêncio
tomou conhecimento da sua real condição e aceitou
passivamente a sua natureza.
Agora ele segue atentamente o desenvolver da sua
história e, de alguma forma, parece (só parece) está estar mais
certo de si.

O MUNDO DANDO VOLTAS DENTRO


DE MIM
Era meados dos anos 2000. Voltava do trabalho. Dia
intenso. Amargurava meu primeiro fim de relacionamento.

no deserto
de nós dois
uma flor
de solidão
brotou

Entrei num um bar com amigos. Minha primeira vez


naquele lugar. Cerveja gelada, fumaça de cigarro, gente
conversando baixinho, garçom servindo e eis que começa a tocar
"As canções que fez pra mim".
Fui tomado por uma forte emoção, tipo essas coisas que
você não sabe se é saudade ou tristeza.
Meu coração se despedaçou ouvindo a música. Maria
Betânia entrava de forma descontrolada em minha mente.
Era finalzinho de tarde e eu só tinha 20 anos. Muita coisa
ainda iria acontecer nessa minha vida de boêmio vagabundo.
E eu só pensava nela.

é maravilhoso
quando
fecho os olhos
e aparece
você

Mas ela não estava ali. Não havia mais possibilidades e a


angústia partiu meu coração.
Somos avessos às mudanças. Às vezes demoramos
muito para aceitar uma nova realidade. Isso ocorre pelo simples
fato de gostarmos de estar num cantinho confortável.
Leva um tempo para nos readaptarmos e perceber que...

viver
é se refazer
todos os dias

Paguei minha parte na conta e saí cambaleando pelas


ruas do centro em direção ao ponto de ônibus. O mundo estava
dando voltas dentro de mim.
Eu precisava esquecer para poder nascer novamente.
Ao final, depois de alguns dias, as coisas não saíram
muito bem como eu queria, mas assim eu fiz e como diz Frank
Sinatra: eu fiz do meu jeito.
A CANA DE PAU DENTRO
Zé Timbúcio atravessou a Praça principal de Riacho dos
Cavalos e encontrou Birino jogando dominó com os amigos.
– Birino, vamo tomar uma!?
– Vou não cumpadi, assanoite eu tive mal da barriga.
Mas, se tu quiser, eu posso tomar uma cerveja.
– Cerveja é bebida de mulher, mas se tu tá doente, vamo
assim mermo, eu bebo cana e tu cerveja.
Os dois amigos entraram no bar e sentaram à mesa que
ficava lá no canto do recinto. A menina que estava atendendo
perguntou o que os cavalheiros queriam beber.
– Traga uma cerveja bem gelada pra Birino e uma dose
caprichada de pau dentro pra mim!
A aguardente a que Timbúcio se referia era uma cachaça
contendo ervas e raízes de plantas locais, muitas vezes também
conhecida como garrafada. O composto de aguardente, ervas e
raízes sempre foi muito utilizado, pois, de acordo com a crença
popular, acredita-se que a bebida possui ricas e intensas
faculdades medicinais.
A menina trouxe imediatamente uma garrafa de cerveja e
um copo com a exigida cachaça. Timbúcio serviu ao amigo com
a cerveja e em seguida engoliu de uma só vez toda a pinga
contida no copo. Seus olhos ficaram vermelhos, seu semblante
empalideceu e ele sério, após da uma cuspida no chão, olhou
para o companheiro.
– Birino! O senso comum e o desenvolvimento científico
moderno nos habituam a compreender, perceber e imaginar o
mundo circundante apenas por um viés lógico. Em outras
palavras, issto quer dizer que temos o costume de olhar para as
coisas somente mediante sua dimensão lógica, através de
operações conduzidas a partir da relação sujeito-objeto, sendo o
homem quem determina sua ação por meio de uma autonomia
do sujeito.
Birino ficou olhando perplexo para o amigo que continuou
a discursar.
– Sob este esse ponto de vista, o homem é tido como a
causa do pensar, o poeta, a causa da poesia, o cientista, a causa
da ciência, o construtor, a causa da construção, o professor, a
causa da aprendizagem e assim por diante. Tudo parece
obedecer a uma ordem lógica de causa e consequência, cujo
sujeito tem o poder de manipular o objeto e atribuir a ele um
sentido. Esta forma de se compreender o mundo teve seu início
na Modernidade, mais precisamente a partir das noções
cartesianas de res cogitans como coisa pensante e res extensa
como coisa corpórea.
Birino continuou atônito sem entender.
– Daí pra frente, Birino, todo o pensamento moderno foi
moldado pela sequência lógica “sujeito e predicado”. Isto é, um
sujeito que determina o real, aquilo que aparece, aquilo que
pertence ao âmbito dos sentidos. O real é tido como aquilo que
podemos ver; que sentimos; que verificamos; que podemos
mensurar e quantificar sem que caia em contradição, ou seja,
que atenda os três princípios lógicos: identidade, contradição de
terceiro excluído.
– Aí Ai dento, homi!!! O que porra tu tá falano? Eu num tô
entendeno é nada! Interrompeu Birino impaciente.
– Birino, você não entende que o real compreendido a
partir de seus princípios lógicos, pensado através da relação
sujeito e objeto já é por si só um fenômeno secundário. Há por
trás de todo movimento, de todo acontecer, uma força propulsora
que faz com que o real, tal como ele nos aparece, seja o que ele
é. Há, portanto, uma abertura, um instante extraordinário, um
mecanismo propulsor em que o homem entra na dinâmica da
vida e se encontra numa determinada identidade. É tão somente
este mecanismo quem constitui o homem e o faz ser quem ele é.
Timbúcio fez uma pausa breve e, olhando nos olhos de
Birino, continuou...
– Meu amigo, é esta dimensão da vida quem faz o
homem ser um artista, um operário, um atleta ou um político.
Aqui se explica o fato de muitas pessoas falarem fulano tem
aptidão para uma determinada profissão ou que beltrano nasceu
com dom para ser músico, sacerdote, artesão ou jogador de
futebol. Por outro lado, há também aquelas pessoas que tentam
insistentemente se destacar nesta ou naquela atividade, mas não
consegue e no final, diz que não leva jeito para aquilo.
Timbúcio fez uma pausa breve e, olhando nos olhos de
Birino, continuou...
– Tais pessoas não foram tomadas, transpassadas,
atingidas por essa dimensão originária da vida, pois, foram
somente aquelas que, ao sentir o instante, o momento certo, o
momento de decisão, o chamado da vida, se entregaram e
deixaram a vida fluir em si. Por isso, tornaram-se bons médicos,
comerciantes, soldados, carpinteiros, engenheiros, cantores ou
motoristas. Trata-se de uma afecção que arrebata o homem
rumo a seu sentido próprio, àquilo que ele verdadeiramente é. É
por isso que às vezes ouvimos as pessoas, quando estão falando
sobre suas funções, dizerem: “Ah! Isso é só o que eu sei fazer na
vida”.
– Tu tá ficano é doido! – disse Birino dando pouca
atenção a Timbúcio.
– É sério, Birino, trata-se de um afeto originário que
assalta o homem e o lança sobreposto na vida, no mundo, no
cotidiano. Somente a partir daí ele passa a compor o real
retomando, enfim, a ação baseada na causa e efeito, de homem
que manipula a natureza através da relação lógica de sujeito e
objeto. Porém, como já dissemos, algo é anterior a isso. Não se
trata aqui de um Ser místico, absoluto ou divino. É apenas o
mecanismo da vida por meio do qual estão lançadas todas as
entidades vivas, sejam elas animal ou vegetal.
E continuou...
– Só o homem pode ter consciência disto. Somente ele
pode aceitar este afeto como um momento de decisão e decidir
se lançar no aberto constitutivo da vida. Isto é liberdade.
Compartilham desta visão de mundo muitos pensadores.
Pessoas para quem o homem seria uma condição de
possibilidade para a possibilidade. Neles a vida poderia ter se
apresentado como a possibilidade de ser pintor, lavrador,
advogado ou empresário, mas acabou possibilitando a eles a
capacidade de serem filósofos.
– Tá bom! – falou Birino de forma aborrecida.
– Vamo mudar o rumo dessa prosa que eu já tô ficano
encabulado.
– Eu sei Birino, pouca gente entende, mas, esta é a
dimensão do real. A lógica que perpassa a vida. É somente a
partir daí que o homem passa a manipular logicamente o real,
passa a ordenar as coisas e “dominar” a natureza. Mesmo não
sabendo ou esquecendo daquilo que está por trás; daquilo que
está velado, ou seja, aquilo que é real, mas que não aparece aos
sentidos.
Após estas palavras, Timbúcio sucumbiu e desmaiou.
Acordou três dias depois numa sala de hospício gritando alto e
em bom som que não era louco. Rapidamente a notícia se
espalhou pela região, que atribuiu a culpa do caso à cana de pau
dentro e, por isso, ninguém mais toma a bebida. Um grupo de
beatas da cidade achou que as “belas palavras” de Timbúcio
tinha sido um milagre do padre Cícero Romão. Já um grupo de
evangélicos neopentecostais divulgou que Timbúcio havia sido
dominado pelo diabo. A ciência ainda não encontrou respostas.
A QUENTINHA
Eu havia saído da escola e voltava pra casa por volta das
onze horas, estava no meu horário de almoço.
No caminho parei no restaurante de Dona Gumercinda
para comprar uma quentinha. Deixei minha moto cinquentinha
em frente ao estabelecimento e me dirigi ao balcão.
Coloquei feijão, arroz, farofa, frango e linguiça, a
atendente fechou o marmitex e recebeu os vinte reais.
Saí contente, mas ao chegar lá fora, tive uma
desagradável surpresa.
Minha cinquentinha não estava mais onde eu a deixei.
Havia sido roubada. Olhei para os lados e me desesperei.
Pensei nas quarenta e seis prestações que ainda
faltavam pagar.
Pensei que agora eu teria que ir ao trabalho de ônibus.
Voltaria a andar a pé e nunca mais veria minha cinquentinha.
Entretanto, para minha sorte, uma viatura da polícia militar ia
passando no local.
Corri em direção àa viatura. Desalentado, contei o fato
aos policiais que me ignoraram e disseram não poder ajudar,
pois estavam em horário de almoço.
Saí caminhando a cambalear entre o ódio e a tristeza.
Sentia-me incapacitado, injustiçado e até mesmo desorientado.
Foi então que avistei um posto de polícia. Dirigi-me
rapidamente ao local, mas, para minha decepção, não fui
atendido.
O policial disse que estava de plantão naquela guarita e
não poderia sair do lugar. Disse também que para ser atendido
eu teria que ligar para o 190 e depois prestar queixa na
delegacia.
Como não sabia o paradeiro dos elementos que me
roubaram, achei melhor seguir direto para a delegacia.
Chegando lá, o agente falou que nem o delegado, nem o
escrivão se encontravam no recinto. Disse que para ser atendido
eu deveria retornar às 14h:00 h, horário em que se iniciava o
expediente.
Eu já não sabia mais se chorava ou se sorria. Começava
a me dá conta que havia perdido minha cinquentinha. Imaginava
quantos anos seria necessário para eu ter condições de comprar
outra. Não seria fácil, pois ainda deveria quitar a atual. Pagar por
um bem que não se está usando é osso – pensava eu enquanto
contava e recontava o caso aos curiosos que estavam na
delegacia.
Subitamente meu celular tocou. Era João das Cordas,
meu amigo de infância.
– Pé de Pano cadê tua moto?
– Pôrra bicho, os caras roubaram.
– É porque fizeram um assalto em Mangabeira e
abandonaram uma cinquentinha igual a tua aqui no Geisel.
– Fala aí a placa Joãozinho.
Quando Joãozinho falou a placa uma imensa alegria
invadiu meu coração.
Corri para o local em busca de minha moto.
Quando lá cheguei, estava rodeado de gente querendo
saber acerca do ocorrido.
A imprensa também já estava lá. Tive que conceder
entrevista pra um desses repórteres que fazem cobertura para
programas sensacionalistas. Esses que passam na TV em
horário de almoço e exploram a desgraça alheia.
Pouco depois, também chegou por lá uma viatura e como
se tratava de um roubo, os soldados falaram que minha
cinquentinha seria encaminhada para a delegacia e que eu
poderia resgatá-la a qualquer hora com o delegado.
Tudo que eu queria era minha moto. Então voltei
novamente para aquela “bendita” delegacia. Por sorte, o
delegado já havia voltado, não demorou muito e minha moto foi
enfim liberada.
Na saída, um dos soldados me chamou:
– Bacana!?! A gente deu uma força pra ti aí com a moto.
Tem como tu deixar um trocado pra o lanche?
Já pensou numa coisa dessas? Depois de tudo que eu
passei ainda ter que dar dinheiro a policial vagabundo. E o pior...
O policial que me pediu uma grana era aquele mesmo que
passou numa viatura e disse que não me ajudaria por estar em
horário de almoço.
Falei pra ele que estava liso.
Grana pôrra nenhuma, vão pra puta que o pariu tudinho –
pensei.
Montei na minha cinquentinha e fui embora. Somente
quando cheguei a casa me dei conta que havia esquecido a
quentinha.
Caralho!!! Perdi a quentinha. Minha quentinha, meu
Deus!!! Vou ficar com fome.
O DIVÓRCIO
Margareth ligou desconfiada para sua irmã e falou:
– Reginalda, mulher, eu tô tão chateada com Betinho. Sei
não visse... Tô feliz com esse casamento não.
Reginalda, aproveitando-se da situação, não perdeu
tempo.
– Mulher, a gente não precisa passar por isso não.
Vamos deixar esses homens.
– Dá vontade mesmo – respondeu a irmã angustiada.
– É, mulher, vamos deixar estes trastes e vamos viver
nossa vida. Ninguém merece viver assim não. A gente tem que
cozinhar, lavar, passar... Tem que fazer tudo dentro de casa
presses home véi. Vamos deixar de ser besta.
Margareth sorriu com a revolta da irmã em relação ao
matrimônio. Reginalda continuou:
– Olha, Margareth, vou te falar uma coisa. Esses home
véi não servem pra nada. Só serve pra fazer raiva. Vivem
querendo mandar na gente, querem fazer a gente de empregada
e ainda querem fazer sexo toda noite, até quando a gente não tá
com vontade.
– Isso é verdade – respondeu Margareth.
– Margareth, mulher, eu não sei não visse, mas se tu
deixar Betinho eu também deixo o meu imprestável. Vamos fazer
assim... Ontem, quando eu vinha do trabalho, me encontrei com
seu Chico Piaba, ele disse que tava com umas casinhas pra
alugar, não é grande, mas, tem dois quartos, sala, cozinha e
terraço. A gente se separa, aluga uma das casinhas de seu
Chico Piaba e vamos viver lá. Livre de homens, livre de
compromisso, livre de tudo.
– É mesmo, eu tô precisando. Betinho tá precisando
tomar uma lição – respondeu Margareth já aceitando e
concordando com o plano da irmã.
– É, mulher... A gente tá precisando desopilar. Vamos
dar um chute no traseiro desses homi chato. Vamos ser feliz que
é isso que importa. Deixa o teu que eu deixo o meu!
– Tu acha que dá certo? Perguntou Margareth pronta
para tomar a decisão.
– Ôxe, dá certo demais. Deixa comigo, eu acerto tudo. A
gente é nova, a gente trabalha, tem dinheiro, não precisa de
nenhum homi desses não. Quando a gente quiser namorar, é só
a gente ir numa balada dessas aí e arrumar um namoradinho.
Não precisa ser nada sério, nem precisa trazer pra dentro de
casa pra família conhecer. É só curtir (risos).
– É mesmo, tu tá certa. A gente faz de tudo pra esses
homens e no final eles são chatos e ignorantes conosco. Outro
dia Betinho quase que me engolia somente porque eu tava
mexendo no zap zap. Pensou que eu tava conversando com
outro homem. Eu tava só falando com minhas amigas do grupo.
Tu acha?
– E eu num tô dizendo a tu! A gente tem que deixar
esses homi.
– Pois tá certo. Veja lá a questão do aluguel com seu
Chico Piaba. Hoje à noite, quando Betinho chegar do trabalho,
vou dizer a ele que quero me separar. Quero só ver a cara dele.
– Tudo certo então. Vou passar agora na casa de seu
Chico e já volto pra começar arrumar as coisas – respondeu
Reginalda transbordando animação.

.................................

No dia seguinte, após resolver o aluguel com Chico


Piaba e romper definitivamente com o marido, Reginalda liga
para a irmã a fim de dar-lhe as boas boas-novas.
– Margareth, deu tudo certo graças a Deus. Acertei com
seu Chico e ele já me entregou até as chaves. Disse que na hora
que a gente quiser, pode se mudar pra lá.
– Reginalda, mulher... Não vai dar certo não! Ontem eu
conversei com Betinho e cheguei à conclusão que é melhor
deixar assim mesmo.
Reginalda ficou indignada.
– Eu não acredito não Margareth! Depois que eu ajeito
tudo, Mulher? Mas tu é fraca, visse!
– Mulher, pensa comigo. Tu sabe que homem nenhum
presta. Se a gente deixar o nosso, uma hora ou outra vai
aparecer outro do mesmo jeito. No caso, a gente vai terminar
trocando seis por meia dúzia. Além do mais, tu sabe que a gente
não vai conseguir viver sem um homem, né? Quem é que vai
trocar o botijão de gás, trazer as compras pesadas do
supermercado e abrir o frasco de azeitonas? Quando a gente
tiver cheia de problemas, quem é que vai nos ajudar a resolvê-
los? E se aparecer uma barata? Tu tem que vê isso. Se é ruim tá
com essas desgraças, pior é tá sem eles.
– É, você quem sabe – falou Reginalda frustrada.
– E agora... tu vai fazer o que? Tu vai sozinha? –
Perguntou Margareth já preocupada com a irmã.
– Eu não! Eu num vou ficar sozinha sem marido não. Vou
ligar agora pra aquele nojento e vou dizer que não vou mais sair
de casa não.
– Será que ele vai aceitar?
– Vai, mulher! Isso é um bocado de besta. É só a gente
fazer um monte de ameaças que eles ficam tudo certinho.
– Pois tá certo. Que bom que vai terminar tudo bem, né?
– É... vai ficar tudo bem. Depois eu vou falar com seu
Chico Piaba pra ver se ele me devolve o dinheiro do aluguel que
eu paguei adiantado.
– Tá ok! Domingo eu vou pra casa de mãe. Vai também
que a gente conversa mais.
– Tá certo. Tchau!
– Tchau!
A ESTRADA DO PASSARINHO
O relógio marcava 14:h00 h quando saí de casa. Eu
sabia que seria uma viagem longa e imprevisível, mas eu queria
descobrir o novo, saber onde tudo isso poderia acabar.
O coração batia forte, as mãos suavam e o caminho
parecia não ter fim. Mas eu tinha um objetivo. Então, deixei o
GPS do carro me levar.
Queria conhecê-la, saber dos seus sonhos, desvendar
seus mistérios. Depois, queria bebê-la com vinho branco. Tirar
sua roupa, admirar suas curvas e tocar com a ponta dos dedos a
maciez de sua pele.
Amores casuais são sempre experiências interessantes.
Você não conhece o outro, sabe que tudo aquilo não vai durar
mais que uma noite e mesmo assim você mergulha na aventura.
Cheguei primeiro ao local combinado e fiquei a esperar.
Ela logo chegou. Disse que nunca havia feito isso e que estava
um pouco tensa. Ofereci uma bebida e ficamos conversando por
um tempo.
Saímos para outro local. Um lugar em que ficássemos a
sós, longe do mundo, longe das pessoas, longe do caos urbano
que com sua agitação desenfreada nos impede de respirar fundo
e relaxar.
Abri a primeira garrafa e, brincando, expliquei a ela que
abrir uma garrafa de vinho é como despir uma mulher. É preciso
capricho, delicadeza, observar os detalhes e aproveitar cada
segundo. É necessário ter leveza, sentir as sensações, os
aromas, o sabor.
Ela riu e disse que queria ser degustada como aquele
vinho. Mas antes queria me conhecer mais.
Falei que não era uma pessoa muito interessante e ela
disse que tinha medo de se apaixonar por mim. Disse que não
precisaria ter medo. Lembrei de Bukowski e disse que ninguém
nunca havia se apaixonado por mim. Por isso, ela podia ficar
tranquila e curtir o momento.
Fazia um calor insuportável, mas o vinho nos refrescava.
Ela servia minha comida favorita enquanto eu observava, da
varanda, as luzes da cidade. Depois, disse que iria preparar o
quarto, pois o show ainda estava por começar.
Um homem sedento, uma mulher excitada, uma garrafa
de vinho branco gelada e um jazz. A combinação perfeita para
uma orgia casual. A perdição babilônica capaz de esgarçar os
bons costumes. Não há certo nem errado. Não há pudor nem
temor. Apenas desejo. Apenas a vontade latejando entre os
corpos querendo explodir em orgasmos.
Entrei no quarto e tudo já estava preparado. As luzes, as
taças, o vinho, os travesseiros, a lingerie...
Toquei levemente seu corpo que aos poucos se
arrepiava. Ela me abraçou forte e me pediu que a possuísse
enquanto cantava Luísa Possi em meu ouvido.

“Quando essa boca disser o seu nome, venha voando


Mesmo que a boca só diga seu nome de vez em quando [...]”
E ali mesmo nos entregamos aos prazeres da vida. O
desejo pingando pelos nossos corpos suados. A quintessência
da libido explodindo por meio de nossa alquimia sexual.
Ficamos por um longo tempo entregues a esta
efervescência de sentimentos até que não aguentei mais e
adormeci.
Acordei, com ela me chamando, assim que o sol raiou no
horizonte. Era muito cedo. Eu ainda estava ébrio pelo vinho, pelo
cansaço da noite e pelo pouco tempo de sono.
Ela teria reunião logo cedo na empresa, precisava partir.
Disse que eu poderia ficar descansando e ir embora quando
quisesse. Mas preferi ir com ela. Falei que a deixaria em seu
trabalho.
No caminho, ela elogiou nossa noite e até disse que eu
era um gentleman. Me senti importante. Deixei-a na esquina de
sua empresa. Ela me acenou o caminho de volta e disse que eu
apenas deveria seguir a estrada.
O rádio tocava Days We'll Remember do Spock's Beard...

These are days we'll remember


When the pictures and words fade
Touched by timеs that drew us together
Thеy will live in us Always

Eu segui o meu caminho refletindo sobre tudo o que tinha


ocorrido naquela noite. Me perguntei quanto tempo pode durar o
amor. Percebi que às vezes ele dura semanas, meses e anos.
Mas também, às vezes pode durar apenas uma noite e se
perpetuar nas lembranças.
E assim, em meio às minhas elucubrações, iniciei minha
trilha de volta para casa. Seguido por uma linda chuva de verão,
continuei pela estrada do passarinho.
ALIENÍGENAS, VIAGENS NO TEMPO E D.
FERNANDA
O Dr. Kasparinov chegou ao Manicômio com exatamente
25 minutos de atraso. Desceu do carro e se dirigiu de forma
muito apressada em direção ao consultório.
Chegando lá se deparou com Dona Fernanda, a
enfermeira de plantão.
– Bom dia, Dona Fernanda! O que temos pra hoje?
– Hoje o senhor ficou de conceder alta ao paciente José
Timbúcio, doutor!
– É verdade. Como ele está?
– Ele tem reagido muito bem desde que o senhor
suspendeu os medicamentos.
– Pois, vá buscá-lo! Precisamos terminar logo com isso.
Na enfermaria, Timbúcio escuta o barulho do salto alto
de Dona Fernanda vindo em sua direção.
Os passos da enfermeira aproximam-se cada vez mais.
Ao ver aquela mulher linda, alta, loira, com seios, pernas
e bumbum turbinados, nosso amigo começa a se desconectar
com o mundo circundante em que ele está solto, largado e
exposto.
– Dona Fernanda!!! A senhora é uma obra de arte da
natureza. Se eu tivesse a senhora acompanhada de uma morena
e de uma ruiva do seu porte completamente nuas em minha
cama, eu produziria dinamites, pois teria de uma só vez o
enxofre, o salitre e o carvão – pensou baixinho Timbúcio.
Dona Fernanda entrou e se dirigiu a Zé Timbúcio.
– Seu Timbúcio, finalmente chegou o tão esperado dia. O
Dr. Kasparinov avaliou seu prontuário e vai lhe conceder alta. O
senhor me acompanha?
Zé Timbúcio ficou feliz da vida. Desde que chegou
àquele lugar não havia mais tido contato com sua família nem
com os seus amigos.
Imaginou-se voltando pra Riacho dos Cavalos,
encontrando com os amigos, revendo seus parentes e jogando
dominó na praça da cidade.
Seguiu prontamente Dona Fernanda até a sala do Dr.
Kasparinov sem desviar os olhos, nem por um segundo, da
enorme traseira daquela enfermeira loira.
– Bom dia Seu Timbúcio! Sente-se aqui, vamos
conversar – disse o médico Kasparinov. Dona Fernanda saiu da
sala.
– Seu Timbúcio... Já faz algum tempo que o senhor está
aqui conosco. Já deu significativos sinais de melhoras. Diante
disso, consideramos que o senhor está curado e vamos lhe dar
alta.
Timbúcio, muito contente, agradeceu ao médico, disse
que estava feliz e cheio de vontades de retomar novamente sua
vida lá em Riacho dos Cavalos.
O médico assinou o prontuário concedendo alta a Zé,
apertou sua mão e desejou-lhe felicidades.
Quando Timbúcio deu as costas para sair, Kasparinov
perguntou:
– Seu Timbúcio, durante o tempo que o senhor esteve
aqui chegou a ver algum marciano?
– Marciano doutor?
– Sim, Timbúcio! Marciano.
Timbúcio se voltou para o médico e sentou-se
novamente na cadeira.
– Marcianos são extraterrestres, não é mesmo, doutor?
– Sim, seu Timbúcio. Extraterrestres!
– Extraterrestres não existem doutor. Respondeu
Timbúcio.
– Não???
– Não! Esses relatos de extraterrestres que as pessoas
contam não são de extraterrestres, mas de viajantes no tempo
vindo do futuro para nos visitar.
O médico todo desengonçado ficou curioso.
– Me explique melhor, por favor!!!
– Doutor! No futuro, a ciência evoluiu de forma tão
significante que o homem conseguiu encontrar uma forma de
viajar no tempo. Novas descobertas serão realizadas, novas
tecnologias serão criadas, sem falar na própria evolução da
humanidade. Quando alguém diz que viu um extraterrestre, em
parte, ele não está mentindo.
– Como assim, Seu Timbúcio?
– Vou lhe explicar! Essas pessoas quando dizem ter
avistado um extraterrestre, na verdade viram foi um viajante do
tempo.
– E por que então esses viajantes não fazem contato
conosco Timbúcio.
– Doutor, o passado é irreversível. Não podemos mudar
o passado. Se esses viajantes pudessem manter contatos e
relações conosco, o passado e o futuro seriam modificados. Por
isso, vervê-se apenas pequenas fagulhas desses viajantes que
se dissolvem no tempo.
– Como, por exemplo? Timbúcio.
– O senhor já viu alguma vez relatos de alguém que
marca horário para encontrar com extraterrestres e estes
extraterrestres aparecem mesmo na hora e no local?
– Não, Timbúcio. Às vezes essas pessoas ficam dias a
esperar e não aparece nada.
– Pois é isso mesmo que acontece doutor. Eles não
podem interferir no nosso tempo e nem a gente no deles. Por
isso, não fazemos contatos diretamente. Às vezes alguém avista,
de forma inesperada, uma espaçonave, um sinal luminoso no
céu, um homenmzinho verde, mas logo esses sinais
desaparecem e sabe por quê? Eles desaparecem
repentinamente justamente por isso, porque não podemos fazer
contatos. Se fizéssemos, a história seria modificada e isso é
impossível.
– Mas, se são humanos, por que não são iguais a gente,
seu Timbúcio? Perguntou o médico.
– Na verdade, eles são como nós sim. Possuem duas
pernas, dois braços, mãos, cabeça... O que difere são alguns
detalhes que foram modificados por conta do processo
evolucionário. No futuro, teremos colonizado outros planetas da
nossa Via-Láctea, o isolamento poderá afetar nosso processo
evolutivo. Sem falar da evolução do conhecimento e da
informação que já está em curso. Perceba que todos os relatos
apontam para extraterrestre com o tamanho da cabeça
aumentada. Isso já é um indício que nossa massa cefálica já está
em expansão dada à a carga de conhecimento e informação que
estamos a processar.
– Mas, Seu Timbúcio!!! Essa sua teoria acaba com a
possibilidade de termos vida extraterrestre em outros planetas.
– Não doutor, não acaba não! É bem provável que exista,
de fato, vida em outros planetas, mas ainda não conseguimos
encontrá-los, nem eles conseguiram encontrar a gente.
Provavelmente, um dia isso irá acontecer. Mas quando
acontecer, não haverá esconde-esconde. Ou os submeteremos
ou eles nos submeterão. Ou os conquistamos, tornamo-nos seus
amigos ou nos tornaremos inimigos. Teremos aeroportos
interplanetários, passaportes intergalácticos. Trabalharemos em
outros planetas, ficaremos de férias em outras galáxias e
receberemos habitantes dos mais longínquos confins do
universo. Não haverá motivo para se esconder ou aparecer só
para alguns.
E continuou Zé Timbúcio...
– Este tempo, doutor ainda não chegou! O que vemos
são alguns viajantes do futuro que regressam ao passado para
nos observar. Assim como nós, eles também não conseguem
modificar o passado. Por isso, não temos contatos. Se fosse
possível, era muito simples. Bastava que nos avisassem o que
deveríamos ou não fazer e a história tomaria outro curso.
Evitaríamos guerras, invasões, submissões, extinções e tudo
aquilo que pudesse nos prejudicar no futuro. Mas isso, sabemos
que é impossível.
– Mas seu Zé! O que eu não entendo é por que tem
pessoas que dizem e acreditam piamente terem visto
extraterrestres?
– A ignorância é a pior das falhas humanas, doutor! É
bem verdade que, vez ou outra, surgem indícios dessas
aparições. Foram aparições isoladas que configuram, de alguma
forma, uma falha na passagem futuro-passado. Mas o que fazem
as pessoas? Elas criam histórias mirabolantes, espalham boatos
e fundam até religiões cujos cultos são reverenciados aos
extraterrestres.
O médico continuou ouvindo Zé Timbúcio balançando a
cabeça afirmando que ele tinha razão. Quando Zé terminou,
Kasparinov pegou o telefone e fez uma ligação.
– Dona Fernanda, chame Lipefe e os rapazes até aqui.
Iremos precisar deles.
Dona Fernanda adentrou a sala acompanhada de Lipefe
e dois enfermeiros que traziam uma tradicional camisa de força.
Seguiram em direção a Zé Timbúcio que começava a
perguntar o que diacho estava acontecendo.
O doutor Kasparinov falou que havia se enganado e que
Timbúcio ainda não estava de todo curado. Este ficou
desesperado a se espernear gritando que não era louco e que
queria sair dali. Não adiantou! Levaram nosso amigo para a
enfermaria onde ficavam os esquizofrênicos em crise. Lá o pobre
Zé Timbúcio se encontra até hoje.
Dizem por aí que ele inventou toda essa história somente
para poder continuar apreciando a fantástica bunda de dona
Fernanda.
MINHAS MEMÓRIAS
“Por onde passo
faço estrago.”
(A paixão)
A vida é uma condição de possibilidade que se abre, pra
gente a cada segundo que passa.
E, nesta dinâmica, as escolhas que fazemos podem ficar
marcadas em nossas memórias por toda nossa vã existência.
Comigo não foi diferente. A vida me deu uma rasteira e
me mostrou que, por muitas vezes, esquecer é bem mais difícil
que lembrar.
Conheci Lúcio numa noite de sábado.
Eu e uma amiga procurávamos um lugar legal para
tomarmos um drink. Encontramos, mas lá também encontrei o
Lúcio.
Com aquele jeito meio tímido, meio sedutor, logo me
entreguei completamente aos braços daquele homem.
Não deu outra... Fiz amor loucamente com ele na mesma
noite. Esqueci o protocolo social no qual diz que mulher não pode
transar no primeiro encontro. Me lancei, me atirei, me joguei, me
entreguei... Não quis nem saber.
No outro dia, fiquei envergonhada. Tive medo que Lúcio
me achasse atirada, que me comparasse com uma dessas
mulheres fáceis – dessas que falam que tem por aí.
Fiquei calada e pensativa. Ele perguntava se havia algo
errado e eu apenas balançava a cabeça afirmando ou negando.
Não quis alimentar esperança, não quis depositar minhas fichas
numa aventura sem perspectiva nem sentido. Por isso, nos
despedimos como se tudo tivesse sido a primeira e a última vez.
Porém, Lúcio, no auge de sua delicadeza e doçura, me
ligou naquele mesmo dia. Era isso que faltava pra eu ter certeza
que estava completamente apaixonada por aquele deus grego.
Não suportei aquela explosão de sentimentos tomando
conta de mim.
Desejava-o mais uma vez me acariciando. Fechava os
olhos e ouvia seus sussurros ao meu ouvido, sentia seus braços
apertando meu corpo, suas mãos segurando forte meu cabelo...
Estava enlouquecendo com aquilo e queria tudo novamente.
Mas, nesse mundo injusto e cruel, nem tudo é perfeito.
Descobri de sua própria boca que outra já havia chegado antes
de mim.
Isso mesmo! Meu príncipe era casado.
Aquilo foi muito forte pra mim. Afinal de contas, nenhuma
mulher quer ser a outra.
Tive poucos amores, mas sempre fui a única, não era
agora que iria ser diferente. Nunca iria aceitar a condição de
segundo plano.
Seria muito difícil conviver com ele sempre às
escondidas. Não teria estrutura para encontrá-lo no shopping,
com a família, e fazer que não o conhecia. Passar sem falar, sem
abraçar, sem beijar... Que absurdo! Tô fora!
Mas a vida também é um absurdo. Nós é que tentamos,
buscamos e nos esforçamos, às vezes até de forma inútil, dar um
sentido lógico a ela.
O tempo foi passando e eu fui me acostumando com os
nossos encontros secretos.
Não perguntava nada sobre a vida conjugal dele, não
buscava saber quem era sua esposa, nunca quis saber o nome
dela, nem muito menos o que fazia.
Com o passar do tempo, Lúcio havia se tornado meu
passatempo favorito. Encontrávamos-nos sempre em nosso
esconderijo secreto. Lá o meu mundo se transformava.
A libido, a paixão e o desejo tomavam conta do meu ser.
Amava estar ali, amava estar com ele e não ligava para as regras
que a sociedade nos impõe.
Não fazia diferença se ele era, ou não, casado. Não
ligava se quando saísse dali a gente só se encontrasse em
quinze dias, no próximo mês ou somente depois de três meses.
Eu vivia o momento e nele eu me completava.
Sempre que terminávamos de fazer amor, adorava
deitar-me no colo de Lúcio. Ele ficava a cariciar meu rosto e me
contava sobre sua vida profissional. Falava de suas viagens,
relatava seus compromissos e discorria sobre o sucesso de sua
carreira.
Eu também lhe falava sobre meu cansativo trabalho,
sobre meus estudos e sobre meus projetos profissionais.
Às vezes lhe contava sobre meus raros namoricos, os
rapazes que me assediavam e até aqueles que porventura eu
ficava.
Ele não sentia ciúmes. Achava até engraçado quando eu
dizia que havia saído com alguém, mas que não havia sido
realizada.
E era assim, entre uma dose e outra de wisky, que
passávamos a tarde juntos.
Fazíamos amor ouvindo Led Zeppelin e depois ficávamos
largados um em cima do outro.
Com ele eu me sentia livre. Ninguém me determinava,
não tinha compromisso com nada.
Lúcio não pegava no meu pé, não me regulava e não
brigava comigo. Podia sair com quem eu quisesse, para onde eu
quisesse, na hora que desejasse e quando bem entendesse.
Contudo, a vida também é um profundo sem fundo e a
gente nunca se conforma com o que ela nos dá.
Talvez iludida com o mundo lá fora, uma ideia fixa
começou a tomar forma na minha cabeça.
E foi que , no auge dos meus vinte e nove anos, comecei
a querer constituir família.
Queria ter um esposo, casar, ter filhos e ser dona de um
lar.
Eu sabia que isso era uma norma imposta pela
sociedade, mas eu queria. Era preciso provar também daquilo
que todos fazem.
Havíamos acabado de fazer amor. Estava deitada em
seu colo quando falei que iria me casar e que nossos encontros
chegariam ao fim.
Falei que há dias namorava um cara e que recentemente
havia sido pedida em casamento.
Lúcio, acariciando meu rosto, permaneceu calado,
olhando fixo o teto. Deu um trago forte no wisky e disse que por
ele tudo bem, pois não tinha o direito de me cobrar nada e que
eu deveria buscar ser feliz.
Percebi uma lágrima em seu olho, mas não falei nada, fiz
que não percebi.
De certo que ele sentiria minha falta na sua vida. Afinal
de contas, já fazia dez anos que vivíamos aquele romance.
Aquela tarde foi diferente. Como sempre, Lúcio continuou
me tratando com muito carinho, conversava normalmente e não
perdeu o humor.
Às vezes ficava pensativo.
Ao final dos nossos encontros, sempre me deixava em
casa. O próximo encontro nunca ficava marcado, mas ele sempre
dizia: “eu te ligo, minha linda”.
Porém, sabíamos que aquele dia seria o último.
Ao chegar ao portão, beijou minha testa, olhou nos meus
olhos e desejou-me boa sorte.
Confesso que meu ego estava afagado, pois percebi que
ele sentia minha perda, mas... se nunca fez nada por mim!!!
Agora havia perdido.
Dois anos depois, estava casada e grávida de sete
meses. Havia realizado meu “sonho”.
Meus familiares estavam felizes comigo e as pessoas me
davam os parabéns. Agora eu era uma mulher casada, tinha um
marido, uma casa e um filho a caminho.
Não tive mais notícias do meu amante. Não sabia mais
por onde andava e não sabia com quem estava.
A única certeza que tinha era a minha: mulher
“respeitada”, mãe aplicada e esposa dedicada.

E foi assim que o tempo passou.


Depois do primeiro, logo veio o segundo filho. A
responsabilidade e os deveres foram gradativamente
aumentando. Os anos foram passando e os desgastes também
foram se fazendo presentes.
A rotina deixou de ser passageira, os afazeres foram me
envelhecendo e minha liberdade, aquela mesma de outrora,
começou se esvair.
Não havia mais festas, só em família. Não havia mais
aventuras, somente com os filhos.
Notei que meu esposo há muito também se sentia
entediado. E foi então que me dei conta: com o passar do tempo,
o convencional vira rotina!
Percebi que, para meu marido, a rotina do casamento
estava nos desgastando.
Supermercado aos sábados, conta a pagar no fim do
mês, levar as crianças ao médico e à escola, passeios de
domingo no parque.... Tudo aquilo estava ficando usual e
repetitivo.
Compreendi que era assim o casamento.
E o pior, tudo isso acaba virando uma coisa normal. A
gente vê e percebe, mas pensa – ou acha que pensa – que é
assim mesmo, que é natural.
No final de tudo, a sensação que se tem é que, no
casamento, procuramos um protetor. Buscamos alguém que nos
ampare, nos proteja e não um grande amor.
Tudo completo não existe. É sonho, é desejo, é fantasia!
Só isso e nada a mais.
E assim foram os meus últimos anos. As crianças
cresceram, fiz carreira numa empresa e meu esposo se
aposentou.
Hoje, aos cinquenta e seis, vejo o que passou e me
pergunto por onde andará Lúcio?
Ando pela cidade tentando vê se nos esbarramos por aí.
Já o procurei por várias vezes em redes sociais e nada.
Não sei o que aconteceu.
Não que eu quisesse encontrá-lo com o intuito de trair
meu marido. Isso é impossível! Nunca fiz durante esses anos
todos e não é agora que haveria de ser diferente.
A verdade é que, mesmo casada, nunca tirei Lúcio da
cabeça. Confesso que ainda hoje, quando fecho os olhos, sinto
suas mãos me tocando. Sinto sua boca percorrendo meu corpo e
isso me causa arrepios.
Dado o desgaste da relação, eu e meu esposo não
fazemos mais amor frequentemente.
Hoje somos mais amigos que amantes, mas não posso
esconder que, por muitas vezes, pensei em Lúcio enquanto
transava com ele.
Seria injusto, da minha parte, negar que não lembro da
forma como Lúcio me pegava e me fazia mulher.
Lembro com saudades das vezes em que realizava suas
fantasias e o fazia gemer de prazer ao meu ouvido. Mas são
lembranças, apenas lembranças.
Só queria encontrá-lo. Saber como passou estes esses
anos, por onde andou e o que fez da vida. Falar-lhe sobre mim,
sobre meu marido e sobre meus filhos.
Queria lhe dizer também que às vezes o diferente é mais
verdadeiro que o igual.
Não que eu esteja arrependida, mas hoje sei que tudo
poderia ter sido diferente.
Sei também que nem sempre o informal é sinônimo de
ruim, de inapropriado e de errado.
Só queria ter novamente a oportunidade de vê-lo, nem
que fosse por uma última vez.
Sei que o passado é irreversível. O tempo passa e não
volta atrás. Nossas ações precisam ser justificadas a cada
instante. Toda atitude, ainda que estúpida, precisa ser afirmada
por nós mesmos que decidimos de tal forma agir.
Entretanto, quem sabe um dia, ao ler estas memórias,
meu grande amor não se lembra de mim e entra em contato?
Quem sabe não me procura e me deixa novamente
admirá-lo, só admirá-lo. Sei que tudo isso, talvez seja apenas um
sonho. Mas, afinal de contas, o que são os sonhos se não nos
pegarmos a sonhá-los?
O CARRO DELA
Ainda lembro com saudade
Do dia em que conheci ela
Depois de algumas doses
Fui até ao carro dela.

Lá ela me beijou na boca


Me mostrou que a vida é bela
Me convidou para entrar
E conhecer o carro dela,

No carro ela me abraçou


Fechou a porta e a janela
Me acariciou com prazer
Sentado no carro dela,

Eu estava pra enlouquecer


Parecia uma novela
Não conseguia me segurar
No banco do carro dela,

Era um carinho safado


Que trocávamos por tabela
Eu gemia de prazer
Trancado no carro dela,

E hoje eu me pego a lembrar


Dos sussurros em paralela
Quando vejo um automóvel
Penso logo que é o carro dela,
O GENEALOGISTA
Era uma rotina sagrada.
Todos os domingos, Ciomar levava sua filhinha de sete
anos de idade ao culto dominical. Ensinava-lhe sobre a Bíblia,
apresentava-lhe os hinos sagrados e adquiria, para ela, vários
artigos religiosos.
Aos sábados iam juntos à missa. Assistiam a homilia e a
pregação do padre, às vezes, até comungavam, ou ceavam se
assim o leitor preferir. A rotina religiosa dos dois (pai e filha)
dividia-se entre rituais católicos e evangélicos, pois para Ciomar
não havia distinção entre as duas, uma vez que ambas eram
cristãs.
Assim ocorria desde o nascimento da filha.
Ciomar, já nos primeiros anos de vida, procurou envolver
sua única filha nos desígnios da fé, buscando sempre aproximá-
la das coisas sagradas por meio do cristianismo, seja ele de
vertente católica ou evangélica.
A própria menina já se mostrava bastante entrosada com
a fé. Orava à noite antes de dormir, agradecia a Deus por mais
um dia que se iniciava, ao longo do dia realizava leituras da
Bíblia e sempre que podia pronunciava o nome de Deus.
Até aqui tudo bem, nada de diferente, vivemos num país
em que 86,8% da população é cristã. Desses, 64,6% são
católicos e 22,2% são evangélicos. É comum um comportamento
dessa natureza, o problema é que nosso colega Ciomar era ateu.
Isso mesmo... ateu. Não um ateu militante, desses que
fazem parte de associações, que prega o ateísmo ou que tenta
converter os crentes em ateus. Também não era um desses
ateus radicais que odeia pessoas religiosas; que se tornam
agressivos quando escutam alguma pregação ou que vivem
buscando uma oportunidade para iniciar um debate extremo com
algum religioso.
Ciomar era um cara tranquilo e não fazia questão que
soubessem que era ateu. Sempre que alguém lhe falava de
Deus, ouvia prontamente de forma educada e atenciosa, nada
disso o preocupava.
Entretanto, Ciomar acreditava em Deus tanto quanto
acreditava em Zeus da mitologia grega. Isso deixava seu amigo
Lipefe por demais intrigado.
Certa noite, enquanto comiam um prato de macaxeira
com carne de bode na UFPB:
– Ciomar, se você não acredita em nada disso, por que
então, leva sua filha pra igreja? – Perguntou aflito seu amigo
Lipefe.
Era uma pergunta que Ciomar também não fazia a
mínima questão de responder para ninguém. Porém, de tanto o
amigo insistir, decidiu explicar.
– Meu caro amigo Lipefe, eu apenas estou construindo
um conceito para logo em seguida destruí-lo.
– Como assim um conceito? – Perguntou Lipefe sem
entender.
– Isso mesmo! Eu apresento para ela tudo aquilo que nós
aprendemos um dia sobre a divindade. Depois, mostro que tudo
isso não passa de uma quimera resultante da imaginação
humana, ou seja, eu passo a desconstruir todo um arquétipo
conceitual que um dia foi criado e que, para a maioria das
pessoas, continua existindo.
Lipefe coçou o queixo inquieto.
– Então você está fazendo com o que a criança
desenvolva uma crença para depois mostrar-lhe que é só uma
crença e nada mais. Isso não soa perverso?
– Por que perverso? Em nossa sociedade muitas coisas
são assim. Garantimos àas crianças que Papai Noel existe e
quando elas estão mais velhas confessamos a verdade. Falamos
para elas de príncipes, princesas, fada madrinha, bruxas,
duendes, animais que falam... Depois damos indícios ou
deixamos claro de que nada disso existe.
– Mas, aqui estamos tratando da crença divina.
Respondeu Lipefe.
– Crenças são crenças, meu irmão. Acreditamos no
fantástico para formar nossa própria personalidade e, em
seguida, desenvolver nossas próprias ideias. Quando crianças,
acreditamos para crescer, depois, desacreditamos para nos
superar. Ao permanecermos na crença religiosa isso não
acontece, pois acreditamos, crescemos e continuamos na
crença, nunca nos superamos. Viveremos sempre acreditando
que uma força exterior irá resolver nossos problemas. E se não
resolver, será assegurado para nosnós um lugar no além-mundo.
Por isso, crenças são crenças.
– E se ficar um vazio na mente dela após você contar-lhe
tudo isso? – Perguntou novamente Lipefe.
– Este vazio deverá ser preenchido com conhecimentos
artísticos, científicos e filosóficos. Deverá ser desenvolvido nela a
sensibilidade artística, a busca por saber como a natureza se
comporta cientificamente e o poder questionador da filosofia.
– Mas a arte é subjetiva, a filosofia é especulativa e a
ciência requer crença! Retrucou Lipefe.
– Você quase tem razão. A arte depende do juízo de
gosto, a filosofia especula e acreditamos na ciência. Entretanto,
diferentemente da religião, a filosofia especula sobre as várias
verdades filosóficas, mas, não toma esta ou aquela verdade
como absoluta. Diferente da religião, acreditamos na ciência por
conta de seus resultados práticos. Levantarmos hipóteses, as
hipóteses são provadas ou reprovadas mediante análises
empíricas. Se ela apresenta resultados confiáveis, continuamos
acreditando, se não apresenta resultados, logo a descartamos.
Isso não ocorre na crença divina, pois nela precisa-se de fé para
crer e a fé não requer provas.
– Então isso quer dizer que exigir provas para crer é
deixar de ter fé naquilo que se acredita?
– Isso mesmo!
– Pois eu tô lascado!
– Por quê?
– Porque até agora eu achava que acreditava na
divindade por ter fé. Mas lembro que sempre busquei um
fundamento para minha fé.
– A crença na divindade exige fé e a fé não exige
comprovações. Você crê porque crê, não precisa de justificação.
O Santo Padre diria que é absurdo porque você crer e você crer
porque é absurdo. Asseverou Ciomar com ar de brincadeira.
E agora, o que é que eu faço? Agora que percebo que
não creio em divindade. Indagou Lipefe com uma irônica aflição.
– Depois de tanto ter estudado você aprendeu a pensar
de maneira lógica. Para não errar, passou a procurar coerência
na sua crença. Por isso, só agora compreende que não tem fé,
pois a fé não visa evidências. É se lançar na incerteza, é crer ou
crer. O grande problema disso tudo é que tanto faz você crer em
Thor, Zeus, Izis ou Jeová, no final, tudo será apenas uma crença.
Asseverou Ciomar.
– Isso me fez lembrar a história de Dolores.
– Que Dolores. ? Perguntou Ciomar.
– Era uma mulher que morava lá no Jardim São
Severino. Seu marido lhe traiu e fugiu com a vizinha. Dolores
ficou sozinha com cinco filhos pra criar. A mulher onde ela
trabalhava durante a semana fazendo faxina também a
dispensou, pois, de acordo com a nova lei das empregadas
domésticas, era preciso assinar sua carteira de trabalho e ela, a
patroa, não queria ter funcionário fixo. Fora isso, seu filho mais
velho tinha baixa imunidade e estava sempre adoentado. Não
restou outra opção a Dolores que procurou a igreja
neopentecostal mais próxima da sua casa.
A igreja “Deus está chegando” no antigo mercadinho de
seu Manteiga. Era aparentemente humilde, tinha poucas
cadeiras, um altar improvisado, nas paredes havia ventiladores e
perto do altar alguns instrumentos musicais.
A excentricidade ficava por conta do seu pastor, que se
vestia em elegantes ternos com finas gravatas de seda. Nas
últimas eleições presidenciais, enquanto pregava no culto,
aproveitou a oportunidade e pediu votos para candidatos
reacionários de extrema direita. Ele também era conhecido por
possuir um possante land rover do ano e morar em bairro nobre
de João Pessoa. Não preciso dizer que pregava a Teologia da
prosperidade.
Dizia ele enquanto pregava:
– Deus quer que todos os seus filhos possuam bens e
riquezas. Para isso, basta apenas que tenha fé. A graça de Deus
é diretamente proporcional ao tamanho de sua fé. Se tiveres fé,
então terás a graça, se tens fé, então verás o teu caminho mudar
de rumo e a prosperidade entrar de vez na tua vida. Terás carros,
empresas, funcionários, fazendas, casa de praia, apartamentos...
Passarás tuas férias na Europa, mandarás teus filhos para a
Disney... Porém, é preciso provar que tens fé, qual é o tamanho
de tua contribuição para Deus? Quanto tens doado de dízimo
para o Pai? Qual tem sido a tua contribuição de oferta durante o
culto? És um de nossos patrocinadores?
Dolores, que sobrevivia apenas com o salário do Rebda
Brasil, embarcou nessa de prosperidade. Vivia dia e noite na
igreja, orava diariamente, andava pra lá e pra cá com uma Bíblia
embaixo do braço e só falava em Deus. Foi Deus que fez isso,
era Deus quem iria fazer aquilo, se iria melhorar era porque Deus
queria.
Para cada dez palavras que Dolores pronunciava, três
eram “Deus” e quatro eram “Diabo”. Isso mesmo, a palavra
“Diabo” era quase mais falada que a palavra “Deus”. Se não tinha
dinheiro pra comprar comida, era obra do Diabo, se passava
fome, era obra do Diabo, se o filho estava doente, era obra do
Diabo. Por isso, tinha que orar.
O tempo passava e nada ocorria. Por mais que orasse,
Dolores não conseguia sair daquela situação, por mais que
contribuísse com doações na igreja, nada acontecia, exceto com
o pastor e sua família, que continuava na boa vida de sempre.
Dolores começou a ficar inculcada. Por que seria que Deus só
ajudava a família do pastor? Comentou isso com alguns irmãos
da igreja, que logo lhe disseram:
– Não irmã!!! O pastor é uma pessoa santa, uma pessoa
cheia de Deus! Por isso que é abençoado. Isso é o Diabo que
nos faz ter esse tipo de pensamento, temos que orar pra afastar
os males!
Só que Dolores não se convenceu. Aos poucos foi se
afastando da Igreja. Os irmãos, a mando do pastor, começaram a
lhe procurar.
Convidavam-na a ser obreira, a fazer parte da célula, dos
ministérios, do coral, de grupos de orações, etc., etc., etc. Ela,
com medo de ser discriminada, falava que a noite iria, que não
havia comparecido no dia anterior por conta dos filhos que
estavam adoentados... Sempre havia uma desculpa.
A verdade é que Dolores percebeu que esse papo de
prosperidade era tudo balela. Ela não possuía conhecimentos
científicos, não havia estudado em Universidades nem era uma
mulher de leitura. Mas possuía, como ser de razão, a capacidade
de raciocinar e refletir sobre a vida.
Ela percebeu que quando estava na igreja sua auto-
estima melhorava, seu humor melhorava e com isso se sentia
tranquila. Mas, percebeu ainda, que a causa responsável por
essa mudança não era nem Deus, nem o pastor, mas tão
somente a crença que ela depositava na falsa ilusão de
prosperar na vida.
Ao acreditar que iria ficar rica, Dolores esquecia de sua
realidade e, iludida pelas belas palavras do pastor, pensava que
tudo iria ficar bem. E ficava! Só que de forma muito superficial,
pois, no geral, tudo permanecia como estava.
Certo dia, o pastor procurou Dolores!
– Olá querida irmã, quanto tempo! Viemos resgatar a
ovelha desgarrada de Cristo, queremos que volte para a casa do
Pai.
– O senhor vá tomar é no centro do oi de seu cu! Pensa
que eu não sei da verdade. O senhor só tá aqui porque a minha
contribuição tá fazendo falta. – Respondeu Dolores irritada.
– Mas irmã...
– Irmã é o caralho! Eu trabalho o dia inteiro fazendo
faxina, lavando roupa, catando latinha e papelão pra no final o
senhor vir com essa conversinha de que se eu tiver fé Deus vai
me compensar!? Enquanto isso, tá aí o senhor todo no paletó,
andando de carro, viajando pra lá e pra cá e eu aqui lascada me
acabando de trabalhar pra vocês. E quer saber da verdade?...
Ponha-se daqui pra fora! Vá embora da minha casa!
– Irmã, a senhora está possuída!!!
– Só se for possuída pela puta que pariu, seu
aproveitador de uma figa. Fora isso, foi o senhor que ajudou a
eleger esse presidente nazi-facista que nós temos hoje. Foi o
senhor e seus colegas que fizeram a cabeça dos irmãos para
votar nessa desgraça.
– Mas irmã, nosso presidente é um homem de Deus!
– De Deus? Se esse genocida for de Deus, eu prefiro ir
pra o inferno. Mais de 600.000 pessoas morreram e seu
homenzinho de Deus nada fez pra evitar. Muito pelo contrário, no
começo disse que era uma gripezinha, que a economia não
podia parar, depois que não era coveiro e, por fim, perguntou: e
daí?? É assim que vocês se comportam. O senhor mesmo no
começo da pandemia vivia apoiando esse presidente, fazendo
aglomeração na igreja, andando sem máscara, dizendo que era
uma pessoa de fé e que Deus lhe protegia. Olhe!... pra encurtar
conversa, o senhor saia logo da minha casa. Vá embora e que
todos os demônios do inferno e do seu presidente lhe
acompanhem.
– Irmã, a senhora virou comunista? – perguntou o pastor
querendo encontrar um bode expiatório.
– Não sei nem que porra é essa, mas se isso for ser
contrário àas safadezas de vocês, então eu agora sou comunista.
Passe bem pastor.
Depois disso, nem o pastor, nem os devotos nunca mais
procuraram Dolores. Com o passar do tempo, ela conseguiu um
trabalho com carteira assinada lá na Coteminas.
Seus filhos também cresceram e entraram no Pronatec.
Dizem que já tem deles até na faculdade. Outro dia a viram
andando de carro lá no Alto da Boa Vista, parece que está bem.
Prosperou sem estar na igreja.
Ciomar escutou calado, deu uma risada e disse:
– É, meu jovem... Já pensou o que aconteceria se todos
os brasileiros que são ludibriados por esses falsos guias
espirituais; se todos aqueles que buscam a solução dos
problemas nas falsas retóricas dos pregadores que aparecem por
aí, se todos eles decidissem seguir a decisão de Dolores? O que
aconteceria? O quequê??? Me diga, Lipefe!!.
O MISTERIOSO NATAL DE LOURENÇO
Aconteceu quando eu tinha cerca de vinte e nove anos
de idade numa noite de natal.
Era um tempo difícil. O gerente do supermercado há
alguns dias tinha me demitido e Joana havia me abandonado.
Estava distante de minha família, possuía poucos amigos
e nenhum deles havia me convidado para a tão esperada ceia de
natal.
Cansado de tomar cachaça com feijoada enlatada,
resolvi dar uma volta. Queria ver as luzes da cidade, encontrar
um lugar legal, beber alguma coisa pra lavar a garganta do travo
amargo da solidão.
Perambulei pelas ruas por quase uma hora. Tudo estava
fechado. Muita gente caminhava em direção as às residências.
Era uma noite de confraternização em família e eu ali procurando
algum bar que estivesse aberto para encher a cara.
Depois de tanto procurar, perto do ponto final dos ônibus,
encontrei um lugar que talvez me acolhesse.
Era um boteco sem graça, com um carinha sentado no
canto fazendo um showzinho medíocre de voz e violão para as
mesas vazias.
Também havia um garçom desengonçado que olhou pra
mim com cara de quem estava emputecido por estar trabalhando
numa noite como aquela.
Para não o incomodar, preferi ir direto ao balcão, pois
assim, para me servir, ele não precisaria vir ao meu encontro.
Pedi uma cerveja e fiquei tomando ali mesmo. O garçom
me deixou e foi passar o pano sobre as mesas que estavam
sujas.
Percebi a chegada de uma linda mulher. Quer dizer, linda
não! Linda é demérito, ela era maravilhosa.
Era desse tipo de mulher que a gente só ver vê em
propaganda de cervejas. Alta, pernas grossas, bunda empinada,
bem vestida, cabelos longos e levemente aloirados, unhas bem
pintadas, salto alto e camisa decotada, mas nada vulgar.
Sensual, mas não vulgar.
Ela conversou alguma coisa com o garçom, olhou pra
mim e sorriu.
Achei estranho. Uma mulher daquela deveria estar
acompanhada ou a espera de alguém, afinal de contas, não se
encontra mulheres bonitas sozinhas. Ainda mais numa noite de
natal.
Pouco depois, o garçom veio ironicamente sorrindo em
minha direção. Disse que eu tinha a sorte grande. Isso mesmo,
aquela beldade queria saber se eu aceitaria beber em sua
companhia.
– Matei a charada – falei para mim mesmo – trata-se de
uma garota de programa vendo em mim a possibilidade de um
serviço.
Ela sentou ao meu lado e iniciamos um amigável bate-
papo.
Percebi, por meio da conversa e do seu comportamento,
que não se tratava de uma profissional do sexo. Mas também
não consegui decifrar completamente seus mistérios.
A única coisa que lembro é que se tratava de uma mulher
delicada, carinhosa, doce, amável. Dessas mesmo que você
perde a razão e se entrega de corpo e alma como se fosse uma
criança nos braços afetuosos da mãe.
A única coisa que, em certa medida, incomodava-me
nela era um odor que exalava não sei se de sua pele ou de seus
cabelos. Não chegava a incomodar, pois sua companhia
agradável e sua beleza exuberante compensavam qualquer
desagrado. Mas aquele odor estranho estava sempre rodeando
meu olfato.
Perguntei onde morava, ela sorriu e, de forma
engraçada, disse que morava num lugar escuro, profundo e
barulhento.
Levando na brincadeira, perguntei o porquê de ser
barulhento. Ela falou que tinha gente chorando, gritando,
lamuriando. Depois, dando um doce sorriso, disse que saía de lá
apenas para cumprir sua função. Mistério total – imaginei.
Quando percebi, estávamos completamente envolvidos.
Ela me acariciava o rosto, beijava minha boca e dizia, como que
anunciando algo, que tudo em minha vida daria certo.
Era dessas mulheres que só dizem sim. Tipo essas que
tudo que você propõe elas aceitam. Inclusive levá-las para casa,
para a cama, para... Tudo na primeira noite.
Fomos para minha casa e nos entregamos loucamente
aos prazeres da carne. Mesmo não sendo uma profissional do
sexo, minha amada era especialista na arte de amar.
Sempre saí com mulheres experientes, muitas delas até
mais experientes que eu, mas confesso que aquela era
extraordinária. Com ela nada era proibido, nada era censurado,
tudo podia e tudo fazia parte. Na cama, fez coisas que eu jamais
imaginei ser possível uma mulher fazer.
Dei-me conta de que estava loucamente apaixonado por
aquela deusa.
Ao amanhecer, não a vi ao meu lado, mas senti um
suave aroma de café vindo da cozinha. Ela apareceu com aquele
sorriso lindo e me deu bom dia. Em seguida, me beijou e disse
que havia preparado um delicioso café da manhã.
Meu coração derretia. Quis ter aquela mulher
eternamente só pra mim. Não sabia quem era ela, não sabia de
onde vinha nem para onde iria, só tinha uma certeza, eu a queria.
Ainda sentia aquele cheiro estranho, mas não sabia de
onde vinha. Até já havia me convencido de que não era dela,
podia ser de mim mesmo. Poderia ser também psicológico, até
porque aquele odor era totalmente incompatível com a beleza
estonteante daquela musa.
Após tomarmos café, minha amada falou que deveria
partir. Ligou para um amigo, um tal de Severino Cérbero, e pediu
que ele viesse buscá-la.
Fiquei meio triste, mas nada pude fazer. Ela disse que
teria outros compromissos, mas que havia adorado a noite
comigo.
Perguntei seu nome e ela apenas falou que gostava de
ser chamada de Samaela. Não tive tempo de perguntar o motivo
pelo qual gostava de ser chamada assim, pois o carro já havia
chegado.
Levei Samaela ao portão. Ela me deu um longo beijo
molhado seguido de um “até mais ver”. Entrou no carro, baixou
os vidros, olhou pra mim e juntando as pontas dos dedos das
mãos formou um coração e me apontou.
Não me contive e, na esperança de poder procurá-la,
perguntei novamente onde ela morava. Ela, sempre brincalhona,
sorriu e disse:
– Oh querido! Você não percebeu ainda? No inferno.
Severino Cérbero deu uma arrancada. Mais uma vez não
tive tempo de falar mais nada. Fiquei apenas olhando o carro
desaparecer na esquina.
À noite, voltei ao bar na expectativa de que ela
aparecesse.
Ao contrário da noite anterior, o ambiente estava lotado.
Pedi uma cerveja e fiquei a esperar.
Perguntei ao garçom se ele conhecia aquela garota. O
garçom disse que não sabia de que garota eu estava falando e
jurou-me que na noite de natal a minha pessoa teria sido o único
cliente daquele famigerado bar.
Voltei para casa pensando sobre as palavras daquele
cretino garçom. Sei que não estava bêbado, também não sou
louco, de certo aquele infeliz queria tirar uma onda com a minha
cara.
Entretanto, refletindo sobre o ocorrido e a à custa de
muito esforço, acabei percebendo que aquele cheiro estranho era
de enxofre. Foi somente a partir daí que fatalmente me dei
conta... Eu havia passado a noite inteirinha fazendo amor com o
diabo.
O TRISTE FIM DE TOBIAS SOVACO DE
COBRA1

1
O referido título faz uma alusão à obra Triste fim de Policarpo Quaresma de
Lima Barreto.
Era noite de segunda-feira.
Tobias Sovaco de Cobra voltava para casa. Havia sido
um dia intenso, exaustivo e cansativo.
A cidade já estava calma e a ave de Minerva há muito já
havia alçado voo.
Foi quando subitamente passou por ele um carro
estampado com um adesivo contendo o seguinte escrito:

Para vereador João Casagrande: porque o povo quer.

Faltavam 33 dias para as eleições municipais, a cidade


estava agitada com o pleito, por toda parte havia propaganda, as
ruas estavam sujas com letreiros, placas e santinhos.
Tobias se pegou a pensar no adesivo daquele carro, a
fotografia do candidato lhe deu náuseas e dor de barriga.
Ele sabia muito bem que em política não há santos,
99,99 % dos candidatos estão ali apenas para usurpar o dinheiro
dos impostos que os cidadãos entregam ao sistema.
Sabia também que a intenção daqueles candidatos,
longe de ser o trabalho honesto em prol da atividade pública, era
comprar casas, carros e fazendas. Mandar a filha para a Disney,
colocar uma prótese de silicone na esposa, conseguir um bom
emprego, desses que você só precisa passar lá para assinar o
ponto, para os familiares e encaminhar o filho para ocupar seu
lugar futuramente.
Tobias não tirava a imagem daquele apelo político de sua
mente.
Lembrava com veemência o teor apelativo da frase, a
marca do carro e a imagem daquele candidato cara de pau.
Chegou a sua casa, preparou o seu cuscuz com ovo,
acendeu um cigarro e pôs-se a pensar.
Morava sozinho, pois há cinco anos sua mulher fora
embora com um vaqueiro que morava na mesma rua. Após sua
refeição, Tobias adormeceu ali mesmo no sofá em frente à
televisão.
Quando o dia amanheceu, Tobias levantou e
completamente permeado por suas elucubrações dirigiu-se até a
feira de Oitizeiro e comprou uma arma.
Era uma arma linda, parecia a face desdentada e
descorada da morte. Tinha o cano longo como o túnel que dá
acesso ao inferno, sua coronha era macia como a voz das
sereias que cantaram para Homero. A munição era delgada,
delicada e trazia consigo o espírito que apavora as mães
daqueles que por ela é tocado.
Tobias Sovaco de Cobra pegou carinhosamente a arma,
guardou em sua cintura e dirigiu-se para o comitê mais próximo
que conhecia.
Chegando ao comitê, apresentou-se e disse que queria
falar com o Dr. Januário de Assunção, candidato a vereador pelo
PSL – Partido Socialista Liberal. Na verdade, Dr. Januário de
Assunção não era doutor porra nenhuma, nem mestrado ele
tinha, apenas fez uma graduação em Medicina com o dinheiro do
pai que era empresário. Com este mesmo dinheiro montou um
consultório e todos passaram a lhe chamar de doutor. Vale
ressaltar que seu consultório, além de prestar um serviço de má
qualidade, ainda custava os olhos da cara daqueles que ali eram
atendidos.
Tobias aguardou penosamente ser atendido, até que
chegou sua vez. Adentrou a sala e logo foi muito bem recebido
por Dr. Januário de Assunção.
– Por favor, senhor, diga o que lhe trouxe até aqui. O que
você deseja? Precisa de telha, tijolos, cesta básica ou prefere
dinheiro?
– Não preciso de nada, gostaria apenas que o senhor
falasse sobre o seu projeto político.
– Boa sugestão, senhor. Eu, quando eleito, pretendo
trabalhar pela comunidade carente, lutar pela educação, saúde,
pelo pequeno produtor, pelos mendigos. Pretendo lutar para que
seja reforçada a segurança em nosso bairro, a criação de
creches e abrigos para idosos. Pretendo também elaborar um
projeto para aumentar o salário mínimo, o número de empregos.
Lutarei pelos marginalizados, homossexuais, afro-descendentes
e prostitutas.
– Puta que pariu!!! Como o senhor é mentiroso! Qualquer
imbecil, estúpido e ignorante sabe que o senhor tá mentindo.
Mas isso não vem ao caso, estou aqui para convidá-lo a
concorrer uma vaga de vereador que ocorrerá em breve no
mármore do fogo do inferno. Aqui esta está sua passagem.
Tobias plantou duas azeitonas na testa do ilustre
candidato. Os tiros foram tão certeiros quanto a flecha que o
cupido acerta nos corações dos apaixonados.
Saindo dali, nosso anti-herói dirigiu-se até a residência
do próximo candidato, o Sr. Crispim Colorado.
Este era um homem eloquente, treinado na arte da
oratória, concorria ao segundo mandato. Seu patrimônio, em
pouco mais de três anos, já havia triplicado, seus filhos
estudavam nos Estados Unidos, sua esposa abrira uma boutique
de luxo e sua casa, de tão ornamentada, parecia mais os jardins
suspensos da Babilônia. Seu slogan de campanha era:

Crispim Colorado: pelo povo, para o povo.

Chegando lá mais uma vez, Tobias foi muito bem


recebido. Ofereceram-lhe cafezinho, suco, água... Foi chamado
ao escritório e, antes de qualquer coisa, já foi logo dizendo:
– Prezado Sr. Crispim, vim lhe trazer um honroso convite.
O senhor será vereador do Inferno pela chapa do Satanás.
Antes que o Sr. Crispim Colorado esboçasse qualquer
reação, Tobias meteu-lhe uma bala na cabeça. Do furo ficou
saindo fumaça, como se fosse um vulcão que acabara de entrar
em erupção.
Saiu correndo e, na esquina, encontrou o palhaço
Pichuleta distribuindo os santinhos de sua campanha. Ele
imediatamente olhou para Tobias e falou:
– Caro amigo: sou artista há muitos anos, sou uma
pessoa humilde, quero incentivar a arte de nossa cidade, sou
candidato a vereador pelo PAC (Partido Anarquista Cristão) e
conto com o seu apoio.
– Ajudar a arte é o caralho! Você passou fome a vida
toda e agora tá querendo mudar de vida e se dar bem na política.
Quer entrar na panelinha apenas para, com os seus amigos,
desviar as verbas da merenda escolar, dos remédios para os
velhinhos e do Bolsa Família. Mas, vou lhe dar a chance de
seguir carreira na política, só que vai ser lá no olho do furacão, lá
no quinto fosso do oitavo círculo do Inferno.
Tobias Sovaco de Cobra meteu três tiros no miserável
palhaço que ficou no chão a estrebuchar. Rapidamente
recarregou a arma e se retirou correndo do recinto.
Dali pra frente, Tobias tomou gosto pela coisa. Matava
todos os candidatos que conseguia encontrar.
Matou o padre Jesuíno Lopes, que tentava o seu quarto
mandato; o pastor Manoel Timbúcio, Camilo Pestanejo da
Padaria e até Tristão Albuquerque, que era funcionário público e
tinha se candidatado apenas para ficar alguns meses afastado do
ofício.
Porém, o assassinato mais emblemático foi o da militante
armamentista Maria Perna Torta, vulgo adquirido devido a uma
deficiência de nascença.
Dona Maria era presidente de uma ONG chamada
“Armas que revolucionarão o mundo”. Era candidata pela terceira
vez, nunca ganhara uma eleição. Após um longo e caloroso
diálogo sobre seus planos na política, Tobias fez a seguinte
observação:
– Dona Maria: , respeito a sua vontade de exercer um
cargo público, mas a sua eloquência não condiz com as suas
atitudes. Nós dois sabemos que a sua ONG é só uma forma de
explorar o dinheiro do governo, pois de útil ela não tem é nada.
Nunca vimos seu trabalho, nunca vimos resultados práticos de
sua ONG, apenas sabemos que ela existe e, se existe, é porque
ali entra dinheiro e, se entra dinheiro, é porque o governo paga e,
se o governo paga, é com os nossos impostos. Por isso, Dona
Maria, considero a senhora uma forte candidata a vereadora no
mais antigo local subterrâneo habitado pelos demônios.
Em seguida, Dona Maria caiu atingida pela bala que
perfurou o seu coração, fazendo um enorme buraco em sua
alma.
A esta altura, a cidade inteira já havia tomado
conhecimento de um certo “psicopata”, que estava realizando
assassinatos em série.
Todas as guarnições de polícia rapidamente se
dispuseram a capturar o famoso “eleitor assassino”, nome pelo
qual Tobias ficou conhecido.
E não era pra menos. Tobias havia mexido com gente
“importante” da sociedade. Não foi difícil elaborar um retrato
falado e identificar o homicida.
Descobriram seu endereço e, quando lá chegaram,
encontraram-no na calçada soberbamente lendo um exemplar da
obra O Leviatã, de Thomas Hobbes.
Hoje, o pobre coitado se encontra sob os cuidados do Dr.
Kasparinov e abriga o mesmo teto que Zé Tibúrcio.
ALMOÇO DE DOMINGO
Meio dia ensolarado de um domingo qualquer.
Ciomar aperta a campanhia e espera. Marisa abre a
porta com um sorriso sem graça.
– Cadê Carol?
– Tá lá na cozinha com Algodão, mas pode entrar e ficar
aà vontade. – Responde Marisa numa atmosfera de demagogia.
Outrora tudo isso era de Ciomar. A casa, os quadros na
parede, o sofá, a televisão, a cozinha e o fogão em que agora
Algodão cozinha alegremente na companhia de Carol.
Esta vem com um sorriso, abraça o pai, parece estar
feliz. Algodão também vem, se apresenta e deseja boas-vindas.
Ciomar cumprimenta os dois e senta numa cadeira que
está no canto da sala. Ele quase não conversa. É calado, tímido
e introvertido.
Outrora ele e Marisa construíram um paraíso juntos.
Neste paraíso, eles encontraram um tesouro: Carol.
Acontece que quando não temos algo, nós lutamos para
conquistá-lo. Porém, quando conseguimos, não sabemos cultivá-
lo. Abandonamos, esquecemos e até deixamos de dar
importância. Isso aconteceu com Ciomar e Marisa. Não
souberam cultivar o paraíso conquistado e, como nos tempos
modernos tudo é líquido, o paraíso derramou-se por entre seus
dedos.
Quando isso ocorre, tudo tem que recomeçar. Uma nova
vida, novas relações de amizades, novos lugares para
frequentar, novos lugares para viajar. A vida se torna uma colcha
de retalhos. São experiências, máagoas, lembranças boas e
más, ressentimentos, momentos...
Você precisa o tempo todo está explicando para aquele
amigo distante ou parente afastado que sua relação acabou, que
não estão mais juntos e tem que escutar frases do tipo: mas
vocês formavam um casal tão lindo, por que se separaram?
Depois aparece uma outra pessoa na sua vida e você
continua tendo que explicar paras as pessoas que sua antiga
relação acabou e que agora está com outro alguém.
Daí surge todo tipo de comentário: trocou de pessoa, foi
trocado, não gostava da antiga pessoa, abandonou a outra
pessoa, abandonou a outra e vai abandonar a próxima, foi
abandonado pela outra e vai ser abandonado por essa aí
também... especulações infinitas.
Enquanto espera impaciente o almoço ser servido,
Ciomar lembra de um livro que leu quando era adolescente.
Na trama, um homem estava perdido e tentava, sem
sucesso, voltar para sua esposa e seu filho. Por muito tempo ele
buscou saber onde estava, então descobriu que estava muito
longe de casa. Quando descobriu como voltar, não conseguiu,
pois não havia transporte para sua cidade. Quando finalmente
conseguiu um meio de transporte, também não obteve êxito, pois
o caminho estava interditado. Enfim... sempre que ele encontrava
uma solução, logo um novo obstáculo aparecia. Somente ao final
do livro o leitor descobria que aquele miserável homem não
conseguia voltar para casa porque estava morto. Isso mesmo!
Morto. Ele havia morrido em um acidente e por isso não
conseguia voltar para casa. Estava, portanto, condenado a viver
das lembranças de sua casa, de sua esposa e de seu filho.
Assim se sente Ciomar. Ele sabe que seu passado com
Marisa está morto, não há como reviver.
Não importa quanto ele lembre, com nostalgia, de sua
vida ao lado de Carol.
Não importa se outrora houve um paraíso. Hoje só há
lembranças. Tudo ficou para trás, o tempo consumiu. O paraíso
virou um inferno.
Outrora Ciomar foi o dono de tudo. Hoje ele é apenas um
convidado. Ali ele só cumpre uma formalidade. Escuta as piadas
sem graças de Marisa só para manter as aparências. São as
regras da “boa convivência”.
Tudo o que ele mais quer é que aquilo logo termine. Quer
ir embora. Vida que segue.
O VELHO DA MONTANHA
O fato ocorreu no ano de 2005. Naquela época, eu havia
acabado de concluir meu doutorado em Arqueologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Cheguei a
Campina Grande vibrando. Queria mostrar para a comunidade
acadêmica da UEPB, e para os colegas da Sociedade
Campinense de Arqueologia, todo aquele conhecimento
adquirido, lá fora, durante tantos anos de pesquisa.
Descobri, então, que lá pela região de Pedra D’Água
havia uma Serra onde, vez por outra, as pessoas encontravam,
enterrada, uma grande quantidade de Igaçaba. As igaçabas
encontradas, em sua grande maioria, traziam restos mortais de
crianças. Por isso, criara-se uma atmosfera de mistério em torno
daqueles achados. Eu, na qualidade de arqueólogo recém-
formado, aproveitei a oportunidade para realizar aquela que seria
minha primeira pesquisa como profissional da área.
Organizei meu material de trabalho e me dirigi à Pedra
D’Água. Chegando lá, rapidamente dei início às pesquisas. Já no
primeiro dia, estudei a topografia da região, realizei o
mapeamento do local e comecei o processo de escavação. Da
maneira que as coisas transcorriam, o material de pesquisa logo
foi aparecendo. Não demorou muito para eu perceber que
aqueles potes cerâmicos, há muito ali enterrados, não passavam
de cântaros, utilizados por tribos indígenas para transportar água.
Contudo, as igaçabas também eram utilizadas como
câmara mortuária para enterrar os pequenos curumins que,
porventura, viessem a óbito. As pessoas, ao encontrar aqueles
artefatos, atribuíam a elas todo tipo de explicação, as mais
esdrúxulas possíveis. Culto satânico, crianças alienígenas,
sacrifício humano, tudo era explicação para aqueles achados.
Eu, empolgado pela ciência e maravilhado com seus resultados,
fiquei tão a à vontade que saí caminhando pela serra em busca
de novas descobertas. Naquele lugar, cada trilha levava a um
novo achado, cada lajedo revelava um mundo e cada artefato
encontrado mostrava uma possibilidade científica.
Saí caminhando pela caatinga em direção a um enorme
inselberg. Escalei a grande pedra e percebi que, em sua parte
inferior, havia uma fenda em forma de caverna. Fiquei
maravilhado com aquilo. Naquele Sol terrível, pensei que a
sombra da caverna me traria descanso, pois poderia sentar,
beber água, descansar um pouco e continuar. Adentrei ao lugar
e, para a minha surpresa, percebi um velho com enormes
cabelos e barba branca sentado de costas para a entrada a
contemplar o interior na caverna.
– Olá, ilustre senhor! Falei gentilmente. O velho se virou
lentamente; percebi que seu semblante não demonstrava
hospitalidade. Fiquei meio sem jeito.
– Estamos a quase 10 km da cidade, o senhor conhece
bem essa região? – perguntei, na esperança de iniciar uma
conversa amistosa com aquele esquisito ancião.
– E o que é que você tem a ver com isso? Você entra
aqui sem pedir licença, não avisa antes de vir e ainda chega
fazendo perguntas. Quem você pensa que é?
– Calma, senhor! – respondi sem compreender o que
estava acontecendo. Fiquei preocupado. Afinal, quem seria
aquele velho? O que lhe levara até aquela soturna caverna? O
que fazia por ali? Comecei a sentir medo. Repeti:
– Calma, meu senhor!
– Calma? Você me pede pra ter calma? Pois saiba que
eu tive calma a vida toda. Sempre lidei com pessoas como você,
que adentram nossas casas sem pedir licença. Eu morava na
cidade, era casado e tinha filhos. Mas ninguém respeitava minha
casa. Todos entravam ao sabor de suas vontades. Minha mulher
levava sua família sem me avisar; meus filhos levavam seus
amigos sem que eu consentisse. Tinha um cunhado folgado que
entrava, abria a geladeira, pegava minha cerveja e despojava-se
no meu sofá.
– Mas senhor, eu... Tentei me explicar.
– Senhor nada! Você me fez lembrar o tempo em que eu
tinha a minha casa invadida pelas irmãs de minha mulher que
faziam de lá um hotel. Elas molhavam o banheiro e não
enxugavam. Comiam todo o alimento que a à custas de muito
trabalho eu comprava. Sem falar nas colegas da minha filha
caçula que ficavam lá alojadas como se minha casa fosse uma
creche. Muitas vezes, até meus amigos queriam tirar proveito da
minha calma. Chegavam lá sem avisar, justamente na hora do
almoço.
A cada frase que pronunciava, o velho ficava mais
exaltado. Era nítido o seu rancor. Estava muito nervoso.
Prosseguiu...
– Por muitos anos eu aceitei aquela situação. Banquei o
“educado”. Aceitei ver minha casa invadida por cunhadas e
cunhados, amigas de esposa, amigos dos filhos, genro e nora,
sogro e sogra e, até mesmo, os aproveitadores dos meus
“amigos”. Mas, chegou o dia em que eu decidi por um fim
naquela zorra.
A história do velho estava começando a ficar
interessante. Eu, que estava nervoso, agora começava a ficar
com bastante curiosidade. Já estava até me sentindo à vontade.
E o velho continuou...
– Decidi que não queria mais aquilo. Abandonei
emprego, esposa e filhos. Saí de casa e vim para cá. Encontrei
esta caverna e nela me instalei. Aqui, finalmente, consegui ter
sossego. Ninguém me importunou, não havia entradas
inesperadas e até os animais passavam distantes daqui. Foi aqui
que vivi na tranquilidade por quase dez anos; aqui passei meus
dias sem que ninguém entrasse sem pedir licença. Até que você
chegou trazendo esse vício miserável da cidade grande. Entrou
de uma vez em minha morada e já foi fazendo perguntas como
se fosse um pariceiro meu.
– Desculpa, senhor! Eu não fiz por mal – ponderei,
tentando me explicar.
– Desculpa coisa nenhuma, seu cabra de peia. Esse foi o
meu erro: sempre desculpar as pessoas. Eu vou resolver esse
problema é do meu jeito... E vai ser é agora.
Dizendo isso, o velho foi até uma pequena moita,
abaixou-se e pegou uma espingarda. Eu fiquei sem saber o que
dizer. Por um instante pensei que fosse brincadeira, mas,
rapidamente, percebi que a parada era séria. Não fiquei pra
comprovar. Saí na carreira e escutei o primeiro tiro. Achei que
havia sido atingido, pensei que já estivesse morto, mas continuei
correndo e, se estava correndo, então estava vivo. Escutei o
segundo tiro. Então percebi que o maldito velho estava correndo
atrás de mim. Ouvi também sua voz.
– Volte aqui seu cabra da peste. Volte aqui pra eu lhe
mostrar o que é ter bons modos.
Acelerei na corrida. Não era possível aquilo, o velho
estava quase me alcançando. No desespero, o solado da minha
bota descolou. Entraram tantos espinhos na sola do meu pé que
eu passei cerca de um mês para retirá-los. Acho que ainda hoje,
se eu procurar, é bem capaz que eu encontre espinhos no meu
pé. Minhas canelas ficaram todas lapeadas pela tiririca. Passei
meu braço esquerdo na urtiga, ficou todo inchado. Corri tanto que
perdi a trilha da volta. Passei três horas perdido até encontrar o
caminho que levava à cidade.
Na disparada, perdi minhas anotações, deixei cair minha
mochila, rasguei minha camisa e esqueci meus instrumentos de
pesquisa. Voltei para casa, estava desanimado, moralmente
abatido, cabisbaixo, triste, desolado, desanimado, envergonhado,
humilhado e derrotado.
Dias depois, comentei o caso com meus amigos da
Sociedade Paraibana de Arqueologia (SPA) e todos ficaram
interessados em conhecer esse tal velho da montanha.
Realizaram uma expedição à Pedra D’Água em busca da
caverna onde morava o lazarento velho, mas não encontraram
nada.
Convenceram-me de que não haviam encontrado a trilha
certa e que, para guiá-los, eu deveria acompanhá-los em uma
nova expedição àquele lugar. Tomei coragem e, com eles, voltei
à caverna. Chegando lá, não encontramos vestígios de nada. A
caverna parecia intacta. Não havia sinais da presença humana
naquele lugar. O velho não estava lá, também parecia que nunca
esteve. Provavelmente, após o episódio, abandonou a gruta e
saiu em busca de um novo local onde ninguém pudesse lhe
aborrecer.
Quem se deu mal fui eu. Não acreditaram em minha
história e me puseram aqui nesse manicômio. Aos cuidados do
Dr. Kasparinov e da exuberante Dona Fernanda.
VIDA DE PROFESSOR
O despertador marca cinco horas da manhã.
Tive uma noite terrível, medonha e envolta de pesadelos.
Sonhei que era Gregor Samsa, estava em sala de aula e
todos os alunos me espancavam.
Isso mesmo! Em sala de aula. É que eu trabalho como
professor de Língua Portuguesa numa escola de Ensino Básico.
Estudei a história da língua, linguística aplicada, literatura
portuguesa e brasileira, psicologia da educação, didática e o
caralho a quatro para cair de paraquedas numa sala
empanturrada de crianças e adolescentes, ou melhor, várias
salas.
Tenho uma diretora exigente e ditadora, além de uma
supervisora, que não sabe porra nenhuma de educação, muito
menos de Português e que fica o tempo todo pegando no meu pé
me exigindo um plano de aula.
O problema é que ela precisa garantir o
pseudoempreguinho dela e, para isso, tem que mostrar trabalho.
Como não sabe exercer corretamente seu ofício, limita-se a
cobrar planos de aulas dos professores.
Acordo cedo e tomo sozinho meu café da manhã. Vivo
só, meu salário é pouco e não tenho condições de sustentar uma
família. Por isso, moro de aluguel num sobrado na Rua da
República.
Após fazer minha primeira refeição, pego os livros e
cadernetas, tomo um ônibus superlotado e dirijo-me até a escola
onde começa o meu martírio.
Na entrada do colégio, uma mãe de aluno me espera,
quer saber como anda o desenvolvimento intelectual de seu filho.
– Minha senhora! O seu filho não se importa com o
ensino, não se comporta em sala de aula, não respeita os
professores, os colegas nem a diretora, não presta atenção nos
conteúdos, não faz as tarefas de casa, não escreve nossas
orientações, não participa das aulas, não lê os livros, não deixa
seus colegas se concentrarem durante a aula, não tem recursos
cognitivos suficientes para o aprendizado e não tem condições
de passar de ano. Entretanto, a senhora não precisa se
preocupar, os professores irão reprovar seu filho, mas a senhora
irá vir aqui, conversará direitinho com a diretora que passará seu
filho de ano e ainda dirá que se o garoto não aprendeu, não se
comportou ou não quis prestar atenção nas aulas, os culpados
são os professores.
Isso é o que eu pensei em falar para a mãe do aluno.
É tudo o que eu penso a respeito do filho dela e queria
expor. Falar o quanto o filho dela é mentecapto, futuro sem
conteúdo do nosso país, caminho sem volta da nossa cultura.
Mas eu não posso falar nada do que penso. Caso fale, serei
imediatamente taxado como ignorante, arrogante, inescrupuloso.
Perderei meu emprego e ainda serei chamado de antiético.
Este é o sistema. Vivemos numa sociedade de
aparência, omitimos nosso ponto de vista em nome da “ética”,
dos “bons modos”.
Vivemos uma vida de mentiras, de hipocrisia, de
demagogia. Não podemos falar a verdade, somos impedidos de
falar aquilo que achamos, que compreendemos, que
percebemos.
Nosso mundo é fictício. E é nesse mundo de ficção, vazio
de fundamento que eu fico. Digo a ela que o seu filho tem
problemas como qualquer outro menino da idade dele, que é um
aluno inteligente e que logo irá superar esta fase e que, com o
tempo, desenvolverá todo o seu potencial.
É aí que ela passa a me confundir com um psicólogo.
Conta-me sua vida, diz que foi mãe precoce, que o pai de seu
filho é violento e por várias vezes a maltrata. Fala-me que é
constantemente traída, que mora na casa dos pais e está
desempregada.
Eu até que quero continuar a conversa, mas o sino toca
para a primeira aula e eu tenho que entrar. Digo a ela o que
todos falam nessas ocasiões, ou seja, que tudo vai ficar bem,
que as coisas tendem a melhorar e que Deus vai ajudar. Essa
mesma repetição de discurso em que aàs pessoas, de tanto
repetirem, já virou vício de linguagem.
Entro na sala, o caos está instalado, levo trinta minutos
para controlar aquela galera e fazê-los prestar atenção em mim.
Pergunto a uma aluna se ela fez a tarefa de casa e ela
me manda tomar no cu. Eu não faço questão que eles tragam a
tarefa pronta, mas é norma da escola e eu tenho que seguir.
Mando a aluna para a diretora, porém o máximo que acontece é
ela ficar sentada na sala dos professores conversando com os
colegas que estão em aula vaga.
No final a garota é que se dá bem, pois nem fica na aula
nem precisa fazer as atividades. Eu é que continuo naquela
balburdia estragando inutilmente minhas cordas vocais.
É assim que a manhã prossegue. Saio de uma sala
maldita e entro em outra amaldiçoada. Sim! Amaldiçoada por
aqueles que pensam que é papel do professor tomar conta dos
menores enquanto seus pais trabalham. A escola tornou-se um
espaço onde se guarda os menores enquanto os pais trabalham
ou não estão em casa.
Felizmente, depois de seis aulas, chega o momento de ir
para casa. Estou cansado, com fome, estressado e descontente,
mas antes de sair ainda tenho que preencher os diários de
classe. Isso leva mais uns vinte minutos.
Quando estou saindo, a supervisora ainda faz questão de
me lembrar que no sábado tem reunião de pais e mestres e que
os professores não podem faltar. Isso me deixa muito
emputecido, só que o pior é ter que pegar o ônibus de volta para
casa, pois este está superlotado com alunos bagunceiros de
outras escolas.
A essta altura, a úlcera já começa a se corroer dentro de
mim, a azia é tão imensa que penso que um vulcão acaba de
entrar em erupção no meu estômago.
Compro uma quentinha para almoçar. O sabor é
agradável, mas sei que é por demais gordurosa, não me vai fazer
bem.
À tarde não tenho descanso, trabalho em casa. Corrijo
tarefas, preparo avaliações e as atividades futuras, planejo as
próximas aulas.
Não tenho tempo pra mim mesmo, a única coisa de que
não abro mão é da minha sagrada leitura. Leio tudo,
especialmente os clássicos: Kafka, Dostoievski, Tolstoi, Oscar
Wilde, Goethe, Alexandre Dumas, Álvares de Azevedo, Honoré
de Balzac, Machado de Assis, William Shakespeare, Vitor Hugo,
Gabriel García Márquez, Jorge L. Borges, Augusto dos Anjos,
Thomas Mann, James Joyce, Guimarães Rosa, Albert Camus,
Aldous Huxley, George Orwell, Jean Paul Sartre, D.H. Lawrence,
José Saramago, José de Alencar, Mary Shelley, Bram Stoker,
entre outros.
Todos os meses, cerca de cinquenta por cento do meu
“mínimo” salário é gasto com livros. Por isso, sou chamado de
mentalmente desordenado por meus colegas. É que em nosso
país não se dá crédito à leitura, as pessoas não gostam de ler,
para elas é um sacrifício, um desgaste das forças vitais
corpóreas, uma banalização do tempo, uma pura e inquietante
vagabundagem.
A noite chega e tenho mais uma guerra a travar. Sou
professor contratado do município e leciono Educação para
jovens e adultos em uma escolinha da periferia.
A princípio deveria ser um serviço pacato, sem maiores
alterações, pois, trata-se de jovens e adultos e não de crianças.
O problema é que 90% dos alunos são completamente
descompromissados com a aprendizagem. A maioria passa o dia
em casa ou na rua, fazendo sabe Deus lá o quê, e à noite vai até
a escola apenas para passear, tirar uma onda com os
professores, filar a merenda ou descolar uma boyzinha, ou um
boy, para ficar.
Alguns, no entanto, estão ali porque cumprem pena
judicial, envolveram-se com o crime, adquiriram problemas com a
Justiça e precisam estar matriculados para terem direito a à
condicional. Outros são jovens traficantes disfarçados de alunos
a fim de vender seus produtos ilícitos.
Inicio a aula, o conteúdo é: períodos compostos por
subordinação. Tento explicar orações subordinadas adjetivas
reduzidas de gerúndio enquanto eles conversam entre si
assuntos banais fora do contexto da aula. Atendem em sala de
aula o celular e entram e saem do local constantemente. Dou
aula para as paredes, sinto a sensação de um louco que fala
sozinho e ninguém lhe dá ouvido. Quando peço silêncio, sou
ameaçado pelo filho do policial João Caveira, que tem fama na
comunidade de ser um cara pra lá de violento, ou pelo irmão de
Zé Pezão, que é chefe do tráfico na região.
Ensino os conteúdos com a certeza de que não estão
aprendendo. Mas, na reunião de planejamento, fomos prevenidos
pela diretora de que nossos alunos são especiais, são
“coitadinhos” que estão às margens da sociedade, que não
tiveram oportunidade na vida e que precisam de um diploma para
tornarem-se cidadãos aptos para o mercado de trabalho. Por
isso, são alunos que não podem, de maneira alguma, serem
reprovados, pois já passaram da idade e precisam concluir
apressadamente o ensino fundamental.
Esta parece ser a lógica dos programas de alfabetização
para jovens e adultos. Os professores devem apresentar os
conteúdos de maneira superficial, elaborar avaliações dadas e
nunca reprovar um aluno seja por incapacidade ou por falta, pois
teoricamente eles têm outras atividades e nem todos os dias
podem frequentar a escola.
Ao final, o resultado é lastimante, os alunos terminam o
ensino fundamental, mas não conseguem exercer atividades
básicas de compreensão de textos, realizar operações com
números nem, muitos menos, refletir e questionar sobre os temas
que norteiam a sociedade.
As estatísticas do governo e dos programas de educação
mostram um número crescente de alunos terminando o ensino
fundamental e médio, mas quantidade é desproporcional à
qualidade. São teoricamente “formados”, mas na prática são os
chamados analfabetos funcionais.
Estou desanimado, desapontado, humilhado, afulepado,
descontente, sem esperança, triste, desencorajado,
desestimulado, desalentado, desprovido de vontade,
desperdiçado, envergonhado, despropositado, emputecido,
despossuído, necessitado, abatido, aborrecido, enfastiado,
esmorecido, desalentado, desfalecido, decaído, abandonado,
fatigado, cansado, exausto, sem brilho nos olhos, sem sentido e
sem sentimento. Minha alma perdeu a nitidez.
Desço do ônibus e entro em um bar qualquer da Rua da
Areia.
Peço uma cerveja.
De repente, seu Terêncio entra no recinto. Vem até mim
e começa a narrar sua visão sobre a pós-modernidade. Ouvindo-
o tento recompor as forças, pois amanhã se inicia tudo outra vez,
meu labor, meu trabalho.
UMA FRAUDE QUE DURA 24 HORAS
Há tempos que Birino vinha se sentindo sozinho.
O jogo de dominó na praça, a pinga com os amigos e a
pelada aos finais de semanas não lhe traziam mais tantas
satisfações.
Nos últimos dias havia sentido muita saudade de
Timbúcio. Ficou sabendo dos acontecimentos recentes e encheu-
se de pena ao saber que o amigo não conseguiu receber alta.
Foi então que ele teve uma ideia. Chegou a sua casa
calado e pensativo. A mulher, ao perceber o modo diferente de
proceder do marido, perguntou enquanto servia o jantar:
– O que é que tu tem?
– Nada não. Respondeu ele.
– Amanhã vou pra João Pessoa.
– O que é que tu vai ver em João Pessoa, homi?
– Vou visitar cumpadi Timbúcio.
– Tu tá ficano doido, cumpadi Timbúcio enlouqueceu. Tá
na colônia. Que é que tu vai ver lá?
A mulher não gostou muito da ideia, mas ninguém faria
Birino mudar de opinião. No dia seguinte, acordou bem cedinho,
tomou um café, despediu-se da esposa, que ficou reclamando, e
se dirigiu à rodoviária, pois o Guanabara passaria em poucos
minutos.
Chegando ao manicômio, Birino se identificou como
parente de Timbúcio. Os funcionários estranharam. Nunca
Timbúcio recebera visitas.
Birino foi levado ao pátio onde os pacientes tomavam
banho de sol. De longe avistou Timbúcio sentado em um
banquinho, calado e pensativo. Aproximou-se e chamou o amigo
pelo nome...
– Cumpadi Timbúcio??? Timbúcio olhou para traz
espantado e reconheceu automaticamente o amigo.
– Birino, meu amigo!!! Os dois se abraçaram. Grande foi
a satisfação de Timbúcio ao receber o amigo naquele local.
Desde que chegara ali, nunca havia recebido visitas de ninguém.
Birino seria a primeira pessoa a lhe visitar.
– Vamo, Birino, vou te apresentar onde eu moro. Vou te
mostrar também Dona Fernanda, tu não conheceu ela ainda não,
né?
– Não, cumpadi! Quem é Dona Fernanda?
– Dona Fernanda, Birino, é a enfermeira! Mas ela
também é a primeira obra de arte de Deus. É um furacão em
forma de mulher. É o ser responsável por toda falta de controle
sobre as ações e desejos da raça masculina. Ahh!!! Dona
Fernanda. Suspirou Timbúcio.
– Agora eu fiquei curioso, cumpadi.
– Birino... Dona Fernanda é tudo o que há. Olha ela
passando ali!!!
– Caramba, cumpadi, a mulhé é gostosa demais.
Respondeu Birino apreciando as lindas pernas e o cabelo loiro de
Dona Fernanda.
– Eu não disse a você. Essa mulher vai acabar me
deixando doido.
Os dois conversaram por um longo tempo. Falaram sobre
os amigos, os parentes e os familiares. Visitaram as repartições
do manicômio, conversaram com os demais funcionários e
também brincaram com os demais internos. Até que chegaram
ao quarto onde Timbúcio dormia. Lá, distante de todos, Birino
confessou para Timbúcio a verdadeira razão da sua visita.
– Cumpadi, eu vou te levar daqui!
– Não pode, Birino, o Doutor Kasparinov não me dá alta
não.
– Eu sei, cumpadi. Por isso, a gente vai fugir desse lugar.
Já tá tudo planejado.
– Não posso, Birino. Não tem como eu sair daqui! E, do
jeito que você disse, eu não quero.
– Porra, cumpadi Timbúcio! Eu tô querendo te libertar
daqui, homi. Trazer de volta sua liberdade.
Timbúcio parou por um instante, olhou fixamente para
Birino e perguntou:
– O que é a liberdade para o ser humano, Birino? E o
que fazer desta liberdade quando conquistada? Um dia desses,
eu tava lendo um livro de um tal de Jean-Paul Sartre; o livro
apresentava a liberdade como uma escolha incondicional que o
próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Dizia ainda que
esta liberdade vem acompanhada de valores que formam
diversas personalidades. Dessa forma, os valores não são
presenteados aos homens, mas tão somente criados por eles
mesmos. Sua realização implica um comportamento moral.
– E o que carai isso tem há a ver com a gente, cumpadi?
Perguntou Birino começando a ficar nervoso.
– Birino, sendo livres, nós somos responsáveis por tudo
aquilo que escolhemos e fazemos. A liberdade possui seu valor
significativo na ação e na capacidade de o homem impor
modificações ao real.
– E isso não é bom não, cumpadi Timbúcio?
– Depende do ponto de vista, Birino. Semana passada
Dona Fernanda levou a gente pra assistir ao filme A Concepção
de um diretor aí, um tal de José Eduardo Belmont. O filme tratava
justamente da questão da liberdade. A liberdade do sistema, a
liberdade do cotidiano monótono da sociedade, a liberdade do
ser... Narrava a história de um grupo de jovens, em Brasília, que
ao tentar se libertar da realidade, numa fuga desesperada, se
reuniam num apartamento para formar um movimento chamado
concepcionismo. Para eles, a concepção servia como uma
quebra dos paradigmas impostos pela sociedade e pela total
subversão dos valores morais.
Birino prestou atenção nas palavras de Timbúcio, que
continuou:
– Para serem livres, os concepcionistas faziam uso
abusivo de vários tipos de drogas; praticavam atos absurdos,
como mandar cartas a um desconhecido; não tinham opção
sexual, o sexo também tinha que ser livre; falsificavam
documentos; emitiam cheques sem fundos; modificavam a
personalidade, pois tinham que ser uma pessoa diferente a cada
dia; e o principal, buscavam sempre perder a memória e
esquecer-se de tudo.
– Cumpadi Timbúcio, eu vou perguntar de novo, o que
casseta isso tem há a ver com o fato d’agente fugir daqui? Tu
voltasse a falar besteira, foi?
– Birino, o concepcionismo era o momento efêmero da
liberdade, em que os participantes deixavam de ser quem
pensavam ser, libertavam-se das regras sociais, fugiam do
“normal” e viviam cada dia como se fosse o último. Para os
concepcionistas, a humanidade estava doente e o
concepcionismo seria o caminho, uma fraude que durava apenas
24 horas.
Birino ficou sem compreender e Timbúcio continuou:
– Na liberdade concepcionista, Birino, o caminho do
excesso leva ao palácio da sabedoria, não existem normas,
regras nem verdades. Xis (x), personagem de Matheus
Nachtergaele, cansado da rotina da própria mudança, resolve
delatar seus companheiros e, parafraseando Krishnamurti, diz
que a verdade é uma terra sem caminhos, você não pode chegar
nela nem pela religião, nem pelas leis. Segundo ele, só o
indivíduo pode resolver os seus conflitos.
– Cumpadi, pelo amor de Deus, não faça isso não! Assim
você não vai se libertar daqui é nunca – implorou Birino.
– Mas Birino, você não está entendendo! A concepção foi
a tentativa de explorar a liberdade no sentido mais literal da
palavra. Mesmo que, para isso, eles tivessem que recorrer à
prática de crimes, para poder sustentar seu estilo de vida
pseudo-hedonista. E isso você sabe, consequentemente envolve
valores morais.
Prosseguiu Zé Timbúcio:
– Se a liberdade em si, caracteriza-se pela autonomia e
imunidade diante de algo que a determine, então os valores
morais, impostos pela sociedade e suas regras, suprimem esta
ação. E isso é tudo que um concepcionista abomina. Tanto é
que, no final do filme, todos se fuderam.
– Cumpadi Timbúcio, eu tô convidando o senhor pra fugir
daqui. Não tô nem aí com essa leseira que tu tá dizendo. Fora
esse filme, onde foi que tu aprendeu essas coisas?
– Sei lá! Eu li outro dia num livro aí.
– Que livro é esse, homi?
– Sei não! Era o livro de um desses escritorzinho pé
rapado que tem por aí. Um tal de Márcio J. S. Lima.
– Cumpadi!!! Eu só tô lhe oferecendo a liberdade lá fora.
– E você acha que estando lá fora eu estou livre, Birino?
Lá fora estamos aprisionados no medo. O doutor Kasparinov, por
exemplo, mora preso em um condomínio fechado com muros
altos, cerca elétrica, câmeras de segurança e vigilante 24 horas
por dia. Vive preso com medo dos bandidos. Isso é liberdade?
– Mas cumpadi... – falou Birino sendo interrompido por
Timbúcio.
– Todas as noites quando sai daqui e vai a sua
residência, Dona Fernanda não pode ir por qualquer rua; não fica
em qualquer parada de ônibus e não frequenta qualquer lugar
que queira ir, pois tem medo de ser assaltada. Isso é liberdade,
Birino? Lá fora também não somos livres, somos determinados
pelo sistema.
– Que se foda o sistema, homi, vamos sair daqui.
– Birino, eu entendo você. É fácil perceber que todo ser
humano traz em si essa busca e esse desejo pela liberdade.
Fazer o que bem entender, ir aonde quiser, ou até mesmo não
fazer nada são características inatas da própria vontade de ser
livre. Todo homem, talvez inconscientemente ou não, anseia pela
sensação de sentir-se em liberdade. No nosso dia- a- dia, a
liberdade se apresenta como a possibilidade de se fazer
escolhas, de se auto-determinar de forma espontânea, sem que
para isso seja necessário interferências exteriores.
– E então, homi, vamo embora! – Insistiu Birino.
– Não posso, Birino! Eu sei que não buscar a liberdade é
aprisionar a consciência, é causar coerção e constrangimento
para o ser. Sei também que quando isso ocorre, o homem
sucumbe, e por não se sentir livre, se retrai, fica condicionado ao
sistema que o manipula. Coagido pela situação, ignora a
realidade e se conforma, talvez por sedentarismo ou pelo fato de
já está estar progressivamente alienado. Mesmo assim eu não
posso ir. Tenho que aceitar meu destino.
Neste momento, adentrou ao quarto um dos vigilantes da
instituição avisando que o horário da visita havia acabado. Birino,
que já estava revoltado com a atitude do amigo, saiu do quarto
reclamando.
– Você é um tolo, cumpadi! Um tolo.... Não sabe
aproveitar as oportunidades da vida.
– Birino, meu amigo, muito obrigado pela visita. Mande
lembrança pra o pessoal lá em Riacho dos Cavalos. Birino!!! Não
fique com raiva de mim. Birino!!! Venha me visitar mais vezes...
Gritava Timbúcio enquanto observava o amigo se afastar na
companhia do vigilante.
Lá fora, quando já se dirigia para a rodoviária, Birino se
pôs a pensar:
– Será mesmo que a liberdade, de alguma forma, é pré-
determinada por alguém que não seja nós mesmos?
AMOR DE MENINA
Erasmus chegou aà faculdade por voltas das 7:00
horas. Os poucos alunos que ali estavam junto aos funcionários
lhe olhavam de forma diferente. Conversavam baixinho como se
estivessem comentando algo. Ele achou estranho, mas seguiu
em direção a à sala dos professores.
– Seu Erasmus! – disse a secretaria secretária, que lhe
seguia pelo corredor.
– Pois não, minha querida.
– O reitor disse que queria falar com o senhor.
– Mas agora? Já está no horário da minha aula.
– É que ele quer falar com o senhor antes que entre em
sala.
– Ok! Vou até lá então.
Erasmus sabia que alguma coisa estava acontecendo.
Tudo aquilo estava muito estranho.
Entrou na sala e cumprimentou o reitor.
– Sente-se seu Erasmus. O senhor sabe por qual
motivo lhe chamei aqui?
– Não senhor.
– Então, seu Erasmus, o que acontece é o seguinte. Eu
fui procurado pela família de uma aluna sua. A mãe da garota
está lhe acusando de abuso sexual. O senhor tem se envolvido
com alguma de suas alunas nos últimos dias?
Erasmus percebeu que a parada era segura. Seu
coração acelerou e sua respiração ficou ofegante.
– Não abusei de ninguém não, senhor reitor. Saí com
uma das minhas alunas, mas foi tudo consensual.
– Porra, seu Erasmus, o senhor é maluco? Se envolver
com uma garota de 17 anos que tem idade para ser sua filha. O
que o senhor tem na cabeça?
– Desculpa, senhor. Ela tem corpo de 25, mas
desculpa.
– Desculpas, seu Erasmus? O senhor acha que tudo
pode ser resolvido com um simples pedido de desculpa? A
faculdade inteira está sabendo, os alunos estão todos
comentando, os pais delas estão processando a faculdade e
querem acusar o senhor de pedofilia. O senhor sabe que ela é
menor de idade, não sabe?
– Sei sim, senhor.
– O senhor sabe que em nossa faculdade é proibido
relações sentimentais entre professores e alunos, não sabe?
– Sei sim, senhor.
– E então, seu Erasmus, como o senhor deixou uma
coisa dessa acontecer?
– Vou contar para o senhor. Outro dia cheguei para dar
aula e ela se aproximou de mim. Sentou-se próxima a minha
mesa e ficou me dando indiretas. Disse que apreciava homens
mais experientes, que já havia namorado homens mais velhos e
me mostrou algumas de suas fotos na praia. Até aí tudo bem,
pouco tinha chamado minha atenção. Mas o golpe mesmo foi
quando ela disse que bebia vinho e ouvia Frank Sinatra. O
senhor sabe o que é uma mulher que gosta de Sinatra? É outro
nível. Eu não consigo resistir.
– Puta que pariu, seu Erasmus! O senhor já vai
começar com essa conversinha mole. Todos aqui na faculdade
conhecem sua fama de mulherengo. Sua noiva já ameaçou lhe
deixar por conta de suas aventuras diversas vezes. O senhor não
tem juízo?
– Tenho sim, senhor, mas o senhor sabe como são
essas coisas... quando a gente alcança uma certa idade, todas
essas garotas nos chamam de senhor, de moço e até de seu Zé.
Isso nos deixa muito pra baixo, pois percebemos que estamos
ficando velhos. Aí, de repente, uma garota linda começa a se
interessar por você. Ela lhe rodeia de charme, usa todos os
artifícios de sedução e você acaba se deixando levar pelas
circunstâncias da ocasião.
– Porra nenhuma, seu Erasmus! Eu sou casado há
trinta anos e isso nunca me aconteceu. Agora o senhor vem me
dizer que as novinhas da faculdade estão se apaixonando por
você. – replicou o reitor indignado. – Agora me conte como isso
aconteceu!
– É como lhe falei. Depois que me falou tudo aquilo, ela
conseguiu meu telefone e entrou em contato comigo. Disse que
estava com dificuldades nos conteúdos e queria minha ajuda. A
partir daí, começamos a nos envolver.
– E de que forma vocês foram às vias de fato? – O
reitor começava a ficar curioso.
– Ela disse que queria conhecer um motel, pois nunca
havia estado em um. Pediu que a levasse.
– Ela era virgem, seu Erasmus?
– Não, senhor. Disse que já havia saído com outros
garotos da idade dela e me pareceu até experiente. Pediu que eu
tirasse sua roupa como quem desembrulha um presente de natal.
Depois pediu que beijasse seus seios e fosse descendo até que
minha boca encontrasse o seu sexo perfumado. Depois ela...
– Pare, seu Erasmus! Me poupe desses detalhes. –
interrompeu o reitor, que já estava ficando excitado.
Neste momento, o telefone tocou. O reitor atendeu,
mas desconversou. Era da imprensa. Queriam saber mais
detalhes sobre o caso do professor que havia assediado a aluna.
– Olhe, seu Erasmus! O senhor sabe que estou numa
posição difícil em relação ao senhor. Os pais da garota estão me
pressionando, o jornal está me ligando e logo a polícia e o
conselho tutelar estarão nos procurando. Vá para casa, procure
um advogado e prepare uma estratégia de defesa. O senhor irá
precisar.

.......................

Seu Erasmus foi para casa, mas não demorou muito.


Logo seu nome saiu nos noticiários locais, o oficial de justiça
bateu a sua porta, sua noiva o abandonou e sua carreira se foi
pelo ralo.
Não aguentando a pressão, pouco tempo depois, o
professor Erasmus também acabou sob os cuidados de D.
Fernanda e do Dr. Kasparinov.
NA ALVORADA DAS INCERTEZAS
I

A rotina de Camilo seguia sempre a mesma cadência.


Acordava, tomava café, levava os filhos à escola e seguia para o
trabalho. Ao final da tarde, antes de voltar para casa, tomava
sempre uma cerveja na esquina.
Sua vida parecia um programa de computador. Aos 17
anos terminou o ensino médio, aos 24 formou-se em engenharia
mecânica, aos 25 conseguiu seu primeiro emprego, encontrou
seu grande amor e se casou.
Sabrina também seguia uma vida regrada. Menina de
família, logo cedo se apaixonou, amou, casou e se tornou mãe.
Sua rotina também transitava entre o filho, o esposo, os deveres
domésticos e o emprego que exercia apenas na parte da manhã.
Entretanto, alguma coisa não a satisfazia, estava sempre
estressada, irritada, impaciente. Não entendia o que era aquilo,
morava numa bela casa com piscina e churrasqueira, um carro
só para ela, tinha um trabalho modesto, um filho, um esposo. O
que estava acontecendo? Pensava ela em face da rotina diária
do casamento.
Há muito que Camilo também começara a duvidar de seu
contexto. Passou a se sentir muito parado, casa família, família
casa, começou a sentir-se sufocado. Fazer compras, ir ao
zoológico aos sábados, à praia e ao cinema aos domingos.
Bancar o marido exemplar, o pai dedicado, o homem
responsável...
Tudo isso parecia não ter mais graça, queria pelo menos
uma vez na vida deixar de ser bossa nova e se tornar rock and
roll. Até que um acontecimento inesperado mudou sua vida. E a
de Sabrina também.

II

Era noite de segunda-feira, Camilo havia chegado


exausto de problemas trazidos do trabalho, abriu uma garrafa de
vinho, ligou seu notebook e iniciou uma navegação
despretensiosa pela internet. Entrou em uma dessas redes
sociais e, sem querer, percebeu e curtiu uma postagem de
Sabrina.
Os dois não se conheciam, contudo, dias depois,
recebeu uma solicitação de amizade da mesma. Aquela
solicitação podia dizer muita coisa, mas também podia dizer nada
e foi esse o questionamento que Camilo fez por várias semanas
depois que a aceitou como uma nova amizade virtual.
Sabrina também passou a seguir Camilo virtualmente,
admirando-o e até comentando suas publicações. Certa manhã,
passando pelo centro da cidade, Camilo observa uma pessoa
muito parecida com Sabrina. Dirigiu-se até ela e...
– Sabrina???
Subitamente ela olha curiosa.
– Está me reconhecendo? Sou eu, Camilo.
– Ah! Sim, sim. Como vai?
Ele se aproximou, pegou sua mão e, com um gesto
delicado, beijou-a no rosto. Quando Sabrina virou a face para o
segundo beijo, os lábios de Camilo acabaram tocando sem
querer uma parte de sua boca. Os dois ficaram meio sem jeito,
mas fingiram que nada havia acontecido.
Seus corações dispararam, não esperavam se encontrar
ali naquela situação e por acaso. Foram breves na conversa e se
despediram. Camilo fotografou a imagem de Sabrina em sua
mente, passou o resto do dia pensando naquele momento. Não
conseguia tirar o doce sabor de seus lábios da cabeça. Ao
chegar a casa correu para o computador e se pôs a observar o
perfil da moça no facebook.
– Ela é exatamente como na foto! Pensou Camilo sem
fazer grandes expectativas.
Da parte de Sabrina, dizem que ela também não
conseguiu tirar Camilo da cabeça, mas ainda não temos fontes
suficientes para afirmar o que ela passou a sentir pelo mancebo,
apenas podemos asseverar que ficou interessada.
Porém, dadas às circunstâncias, os dois viviam vidas
diferentes. Seus contatos ocorriam apenas a partir daquilo que
observavam, acompanhavam ou comentavam nas postagens um
do outro.
Camilo descobriu que, como ele, Sabrina apreciava
Literatura. Então, ingenuamente, a perguntou se ela não estaria
interessada em uma cópia do livro de Hermann Hesse, pois,
havia sido presenteado com um exemplar, mas, já possuía um do
mesmo. Sabrina não pensou duas vezes, disse que aceitaria.
III

Os dois marcaram num Café da cidade, o Café Cultural.


Lugar muito badalado culturalmente, onde acontecia
lançamentos de livros, sarais saraus poéticos, cafés filosóficos,
encontro de intelectuais... Camilo chegou mais cedo e pediu uma
cerveja. Sabrina chegou logo em seguida, no horário combinado.
Os dois iniciaram uma conversa onde a sedução era a grande
autoridade.
Camilo olhava nos olhos de Sabrina. Observava
discretamente seus seios, seu cabelo, suas curvas e suas pernas
sensualmente delineadas e escondidas por dentro da calça
jeans.
Imaginou como seria aquela mulher, de aparência
experiente, despida. Qual seria o sabor dos seus beijos? Como
seria seu corpo nu?... Ficou levemente excitado. Imaginou suas
mãos percorrendo a pele branca e macia, apertando com força o
bumbum enquanto beijava o pescoço.
– Devo estar enlouquecendo. Que comportamento
canalha esse meu. Melhor tirar isso da cabeça!
Da parte dela, não sabemos com certeza, mas parece
que correspondia. Quando perceberam, já estava tarde. Hora de
voltar.
Ao chegar, Camilo percebe uma mensagem inocente em
seu celular.
– Oi! Deu tudo certo na volta? Tava um trânsito danado.
– Deu sim.
– Fiquei preocupada.
– Não há de quequê, estava tudo calculado.
A partir dali, a lógica e a razão perderam o sentido na
vida dos dois. Camilo se pegou completamente apaixonado por
Sabrina. Amava seu jeito de se expressar, apreciava sua
dedicação e sua admiração para com ele, amava seus gestos e
passou a considerá-la uma espécie mais que absurda de mulher
ideal. Não se preocupava com seus amores passados, não se
interessava em saber sobre sua vida conjugal, desdenhava seu
marido, não lhe cobrava nada. Não pretendia mudar suas rotinas
familiares, apenas queria que fosse possível o encontro entre os
dois para o resto da vida.
Sabrina também se sentiu atraída pela situação. Há
tempos que sonhava reviver um grande amor. Desejava ser
acariciada, beijada e tocada de forma vulcânica, explosiva e
excitante como há muito tempo seu esposo não fazia. Imaginava-
se fazendo coisas que nunca havia feito entre quatro paredes.
Coisas que para muitos são consideradas tabus, mas que
quando se ama faz a alma ficar leve, límpida, sem fronteiras.
Pensou estar gostando de Camilo. Sentiu um misto de êxtase e
medo, tentou voltar, ficou indecisa sem saber o que era aquilo. O
princípio lógico da não-contradição se esvaziou, pois ao mesmo
tempo em que não queria aquilo, pensava em se atirar e ir
adiante. Marcaram um novo encontro.

IV
Enquanto dirige, os pensamentos de Sabrina voam
distante. Sua carne treme, não consegue esconder o nervosismo.
Sua frio. Suas batidas cardíacas a cada vez mais se aceleram.
– Vou voltar... Isso vai dá merda!
Mas, de súbito, uma energia extraordinária toma conta do
seu ser. Pensa como seria grande aquele momento. Imagina
seus complexos exteriorizados por um simples momento em que
se desencadeia o amor, a paixão, a libido. O carro para na
esquina...
– Ainda dá tempo de desistir! Droga, como sou fraca...
O telefone de Camilo toca.
– Já estou aqui!
– Estou descendo.
Camilo entra no carro de Sabrina.
– Oi!
– Camilo, por favor, vamos desistir disso!
Camilo beija sua boca. Ela percebe o quanto está
apaixonada. O êxtase toma conta dos seus corpos. Os dois se
excitam. Sabrina liga o carro, os dois saem em disparada.
No motel ocorre uma explosão de sentimentos. Camilo
tira lentamente a blusa de Sabrina, que só agora percebe que é
muito tarde pra voltar atrás. Depois, acaricia sua nuca prendendo
forte com as mãos os cabelos. Beija sua boca, explora seus
seios com a língua enquanto morde, de forma suave, sua barriga.
Inebriada pelo desejo, Sabrina deixa se levar pelos
carinhos de Camilo e decide retribuir o que sente. Ajoelha-se em
sua frente como se tivesse realizando um ato de submissão e
oferece ao rapaz o lado bom da vida. Sua boca o faz perceber
que o proibido às vezes vale a pena ser vivido.
Deitam-se na cama e seus corpos se encontraram e se
encaixam pela primeira vez como se fossem Adão e Eva no
paraíso cometendo o famigerado pecado carnal.
Camilo arranca a calcinha e percorre todo o corpo de
Sabrina com a língua. Explora sedento cada curva até chegar a
suas pernas, que se abrem mostrando um sexo lindo, cheiroso e
levemente depilado.
Agora não há mais pudor. Tudo o que resta é o prazer
extraordinário que um pode oferecer ao outro.
Esqueceram o mundo que estava lá fora repleto de
vicissitudes, de tristeza, de contrastes, de angústia e de dever.
Para eles, trancados naquele quarto, a cada segundo o universo
se estende e a eternidade acontece a todo instante.
Os dois percebem sozinhos que a vida é bem mais
profunda do que parece. Percebem, também, que esta, a vida, na
forma como se apresenta, mecanicamente correta, obedecendo
a uma lógica e seguindo uma ordenação, no fundo no fundo não
passa de uma grande Matrix que nos manipula e que busca
determinar nossos desejos, nossas ideias, nossos sentimentos.
Camilo e Sabrina desvendam os mistérios que desvelam
o prazer, amam-se loucamente como se aquele momento fosse o
primeiro, mas também fosse o último. Estão perdidamente
apaixonados.
V

E foi assim que ocorreu com os dias que se seguiram dali


em diante. Sabrina e Camilo construíram um mundo paralelo em
que somente os dois habitavam. Entre as paredes daquele motel
foi construído construída uma história, um mundo e um
monumento à paixão.
Sempre que terminavam de fazer amor, Sabrina recitava
poemas românticos que ela mesma fazia para Camilo. Bebiam
vinho e declaravam seu amor um ao outro.
A coisa acontecia da seguinte forma: Sabrina chegava de
manhã para trabalhar e logo batia a saudade. Então ligava para
Camilo, que arrumava uma desculpa para faltar na empresa. À
tarde, ela passava, pegava-o e fugiam para o Motel. Sabrina lhe
buscava, lhe salvava, lhe resgatava, lhe amava.
Assim aconteceu durante meses. Até que Camilo
recebeu uma mensagem via WhatsApp.
– Preciso falar com você!
Mais uma vez estavam os dois lá no Café Cultural.
Sabrina pediu um chocolate quente e Camilo tomou um whisky
duplo.
– Camilo, quero que você entenda o que tenho pra falar!
Camilo escutou baixando os olhos.
– Temos nos encontrado todos esses dias, temos nos
amado. Busquei a cada encontro te fazer meu. Usei todos os
meus truques secretos para te conquistar, mas você há de convir
comigo que tudo isso é muito louco e errado. Toda essa
felicidade me apavora e me faz sentir medo. Não pense que foi
mentira! Da minha parte, tudo foi e será verdadeiro. Sei que pode
pensar que não quero ou que nunca quis, mas eu só estou
assustada. Toda essa felicidade que transborda em meu coração
irá ter um preço. E o preço custa caro!
Camilo ficou sem entender, não esperava aquela atitude.
Sempre achou que Sabrina tivesse pulso pra ir até o fim naquela
odisseia de sensações.
Sabrina continuou:
– Sempre admirei o teu mundo, sempre quis seguir os
teus passos, criamos um mundo em que não podemos
permanecer, o outro nos espera. Entenda que tudo isso foi muito
bom, esquecemos nossas aflições. Agora vamos apenas cultivar,
em nossa memória, o sonho que vivemos para que depois não
sejamos punidos. Amo meu esposo, juntos temos um filho e,
apesar dos pesares, é com ele que devo ficar. Espero que me
perdoe, não pense que não te quero, nem pense que não te
desejo. É só esse excesso de felicidade que me assusta.
Depois de falar, Sabrina pediu licença e saiu. Uma
lágrima de tristeza escorreu pelo seu rosto borrando a
maquilagem.
Camilo ficou desconsolado, não sabia o que dizer ou o
que fazer. Voltou para casa emocionalmente descontrolado.
Passou um longo tempo calado, pensativo, reflexivo, não comia,
não dormia.
Alguns dias depois, sua esposa descobriu tudo entre ele
e Sabrina e também o abandonou. Camilo enlouqueceu.
AS MEMÓRIAS DE TOBIAS
Quando eu saí do hospício, o Brasil havia sido distorcido
e mastigado pela hipocrisia e pela falta de vergonha. O respeito
ao outro, a forma educada no tratamento e o apoio aos menos
favorecidos havia virado “politicamente correto” e o próprio
presidente, em seu discurso de posse, falou que uma de suas
lutas seria contra o politicamente correto. Quem não gostasse,
estava com aquilo que eles denominaram “mi mi mi”.
Eu não podia ficar parado. Precisava fazer alguma coisa.
Havia sido criado um ministério do ódio para espalhar notícias
falsas nas redes sociais. O escândalo das rachadinhas havia
vindo à tona. Um sistema nazi-fascista havia sido instalado. E o
pior: com o apoio de grande parcela da população.
O Ministro Lessa havia aberto a porteira para a boiada
passar, a epidemia estava matando todo mundo, a economia
havia despencado. Era um governo que negava a Ciência,
apoiava que a terra era plana e conclamava a população a não
tomar vacina, pois, segundo ele, esta seria prejudicial à saúde.
Eu me senti dentro de um caos. Lá no hospício as coisas
faziam mais sentido e havia uma lógica na realidade. Aqui fora
estava tudo no mais completo absurdo, parecia até que o
hospício era aqui.
Então eu tomei uma atitude. Viajei para Brasília, reuni
todos os nomes numa lista e comecei a caçada. Iniciei pela
Secretária dos Direitos Humanos, uma mulher suja e sem
escrúpulos, mas com discurso puritano, famosa por inventar
mentiras e proferir absurdos, como dizer que os holandeses
masturbavam recém-nascidos e que meninos só deveriam vestir
azul e meninas só deveriam vestir rosa.
Fora isso, ela ainda ficou famosa por empregar
extremistas nazifascistas em seu gabinete. Pessoas de baixa
categoria cuja função seria destruir a democracia e derrubar o
poder judiciário a fim de cavar um golpe militar e instalar o
totalitarismo tupiniquim. Tudo isso com o conhecimento e apoio
do presidente, é claro.
Mas eu não deixei barato. Me dirigi até seu gabinete e
passando-me como por pastor evangélico marquei uma
audiência. A secretária estava sentada e me recebeu com um
sorriso falso que logo perdeu o brilho quando viu o cano de meu
oitão.
– Sabe como se chama isso, secretária? – perguntei de
forma irônica e sarcástica.
– Isso se chama passaporte. É o seu documento especial
para adentrar as moradas de Lucífer. – respondi.
Enfiei-lhe três tiros no focinho e ela ficou lá estendida
com aquela cara de vilã de filmes de suspense. Saí dali rapidinho
antes que alguém percebesse minha presença. Eu ainda tinha
muito trabalho a fazer.
A próxima vítima seria Pacheco, o Ministro da Economia.
Pacheco tinha entregado para as empresas estrangeiras todo o
resto das riquezas que ainda tínhamos. Andava por aí
reclamando que em outros tempos era uma festa danada, todo
mundo viajava, até as empregadas domésticas iam pra
Disneylândia e que isso, portanto, teria que acabar. Também
chamava funcionário público de parasita e ainda dizia que pobre
não enriquece porque não sabe poupar dinheiro.
Eu não podia ficar parado. Alguma coisa precisava ser
feita.
Cheguei por volta das 7:00 da manhã. O ministro
acabara de chegar, mas tinha ido a à copa tomar um cafezinho.
Eu o segui.
Me aproximei com trajes de funcionário e lhe dei bom dia.
Ele me olhou com nojo e não respondeu. Sabe como é, né? Esse
povo tem nojo de pobre.
Puxei os pinos de duas granadas e coloquei rapidamente
em seu casaco. Em seguida, saí correndo e ouvi o estrondo.
Rolou sangue e pedaços de carne por toda parte. Foi um corre
corre dos infernos, mas eu já estava bem longe planejando a
minha próxima visita.
O ministro da cultura era um sujeito esquisito. Suas
declarações sobre arte e cultura se aproximava por demais
daquilo que os nazistas concebiam acerca do tema.
Em uma de seus vídeos destinado ao público, o
famigerado ministro encenou, com riqueza de detalhes, o mesmo
ambiente e discurso proferido pelo ministro de cultura e
comunicação nazista Joseph Goebbels, quando discursou para
diretores de teatro em maio de 1933.
E eu fui lá, ver qual era a dele.
Fui a sua residência. Cheguei à tardinha. Disse que era
da manutenção e a empregada me deixou entrar.
O ministro estava sentado. Escutava Richard Wagner
com um copo de whisky single malt na mão.
Enfiei-lhe minha peixeira no pescoço e rodei. Ele
começou a se debater, soltou o copo e colocou as mãos no corte
que sangrava de forma abundante.
Fui até a cozinha e falei para a empregada que eu
precisava ir buscar uma ferramenta que estava lá fora. Ela abriu
a porta da cozinha e eu saí pelos fundos. Nunca mais voltei.
O ministro da educação também tinha admiração pelos
nazistas alemãs. Certa vez, ao fazer uma declaração em público
sobre os comunistas, o energúmeno plagiou um trecho do livro
Mein Kampf, de Adolph Hitler, e substituiu descaradamente todas
as palavras “judeus” por “comunistas”. Fora isso, como ministro
da educação, dizia que as universidades públicas eram lugares
de balburdia. Xingava os ministros do STF e foi acusado de
racismo por difamar o povo chinês. Eu não podia deixar isso
barato. O digníssimo precisava de uma visitinha.
Comecei os preparativos. Passei a acompanhar os
passos do ministro. Estudei sua rotina, fotografei seus
movimentos e fiquei aguardando a melhor hora para agir.
Mas os ventos do destino nem sempre sopram a nosso
favor. O ministro percebeu que algo de estranho estava para
acontecer, ficou com medo e desapareceu na calada da noite.
Isso mesmo! O covarde tremeu nas bases ao tomar
conhecimento daquilo que tinha acontecido com a secretária, o
ministro da cultura e o Pacheco. Às pressas, juntou seus trapos,
pegou sua família e, fazendo uso do seu passaporte diplomático,
fugiu do país. Em seu lugar foi nomeado um vigarista que logo foi
desmascarado e substituído por uma alma invisível.
Havia também o guru da porra toda. Um charlatão de
primeira classe que no passado havia se envolvido com todo tipo
e qualidade de ocultismo. Naquela oportunidade se declarava
filósofo e, achando-se como tal, havia construído as bases
ideológicas do Governo. Era considerado uma espécie de santo
por parte da caterva que o seguia. Vivia isolado em um sítio,
sentado em frente a um computador desenvolvendo teorias da
conspiração e pós-verdades que eram propagadas por meio da
internet.
Descobri seu endereço e me escondi no bosque, pois
sabia que todas as manhãs ele gostava de caçar. Ele sentia
prazer em atirar e matar aqueles animais indefesos que
rodeavam sua propriedade. Entretanto, naquela manhã de sexta-
feira 13, ele teve uma surpresa. Como um delírio historiográfico,
como a vileza do momento fúnebre, naquele dia ele de caçador
se transformou em caça.
Dei o primeiro tiro em sua perna direita, o projetil
estourou seu joelho. Ele caiu gritando e eu me aproximei.
Perguntou-me quem eu era, o que estava fazendo ali, por que
atirei. Disse que estava vindo fazer uma caridade para meu país
e ele me chamou de comunista, aliás esqueci de contar: naquela
conjuntura, qualquer um que discordasse ou fosse contrário
àquele governo nazifascista era considerado comunista.
– Se comunista for todo aquele que não concorda com a
gestão genocida desse governo, então pode me chamar de
comunista – disse eu.
Ele começou a praguejar. Eu não liguei. Saí de lá o mais
rápido que pude.
O tiro havia atingido uma artéria. Jorrava muito sangue.
Primeiro deram conta de seu desaparecimento. Cinco dias
depois encontraram o cadáver.
Eu mirei no próximo da lista. O secretáario das relações
internacionais. Esse foi mais fácil. Descobri que ele gostava de
happy hour com os amigos. Passava o dia proferindo Fake News
nas redes sociais e à tardinha enchia a cara de gim com água
tônica no melhor restaurante de Brasília.
Entrei no restaurante e fui até o bar. Pedi um conhaque e
comecei a observar a roda de conversa em que estava o
secretário. Eles riam alto. Davam escrotas gargalhadas. Talvez
tivessem rindo da mísera situação do país. Eu apenas
observava.
Até que chegou minha vez. O secretário saiu sozinho e
eu o acompanhei. Entrou no banheiro e eu o segui. Olhou para
mim e sorriu de forma cínica. Percebi um dos vasos sujos e
perguntei se ele já havia sentido o cheiro da merda. Ele
perguntou que merda.
– A merda em que você vive, a merda em que você vai
morrer. – respondi.
Ele olhou para os lados procurando proteção. Foi em
vão, não havia ninguém ali para protegê-lo. Enfiei sua cabeça no
vazo e o fiz provar todo odor e sabor do excremento alheio. Ele
se debateu desesperado enquanto consumia todo aquele dejeto
que o organismo humano expele. Até que ficou calminho, o
silencio silêncio voltou a imperar no recinto. E eu? Eu saí dali
deixando nosso secretário de quatro com a cara enterrada
naquela privada fétida.
...............................

Eu sentia gosto pela coisa. Enquanto sujava as mãos,


purificava a alma. Segui, capturei e executei com 50 balas de
prata o secretário da Justiça, que usava o poder para reprimir
quem se opusesse ao regime. Também fui atrás dos três
porquinhos: o primeiro era famoso por desviar e lavar dinheiro
público, já os outros dois, além de roubar, também fizeram fama
distribuindo e fomentando o ódio nas redes sociais. Não deu
outra, encontrei-os e os cortei em mil pedaços. Depois, joguei
tudo aos jacarés daquele lago que agora esqueci o nome.
As forças armadas era o braço direito daquele regime
nazifascista. Havia um ou outro que discordava, mas a maioria
dos militares se sentia confortável com a carnificina. Muitos deles
tinham inclusive sido premiados com cargos e ministérios
federais. Mas, não parei! Nada disso me intimidou. Fui atrás do
secretário da saúde e o infectei com o vírus da sífilis e da AIDS.
Depois, fiz desaparecer três generais de exército genocidas, dois
brigadeiros e um almirante fanfarrão. Em seguida, arranquei os
olhos do vice-presidente com as próprias mãos.
Era uma terça-feira e eu estava livre. Fui atrás do
blogueiro. Esse era metido a macho. Puxava o saco do regime e
lambia as botas do presidente. Em menos de um ano saiu de um
casebre na periferia e foi morar numa mansão no bairro mais
nobre de Brasília. Deixou de dirigir um celta ano 2012 e passou a
andar de Honda Civic. Andava se autodenominando empresário.
Dizem que era bancado por um dos três porquinhos para
administrar uma das facções do ministério do ódio.
Mas ele era esperto. Percebendo que eu estava me
aproximando, inventou uma teoria da conspiração e fugiu do
país. Disse que estava sendo perseguido pelo comunismo chinês
e que, por isso, havia fugido. Perdi minha presa.
A vida não estava fácil. Meu nome já estava em todos os
jornais. O presidente já havia colocado todas as milícias do país
em meu encalço, a imprensa divulgava meu retrato nos
telejornais de hora de almoço e as políicias civil, militar e federal
me procuravam. Mas eu era Tobias Sovaco de Cobra, o
invencível, o intocável, o tenebroso, o espetacular, o fabuloso, o
incrível... Eu precisava concluir o último ato da minha peça. Eu
tinha que concluir minha missão. Eu necessitava matar o
presidente.
Estávamos em meio à pior crise sanitária da História.
Meu país era o segundo mais infectado do mundo e o presidente
adorava aglomerar. Com o seu copo de leite sobre a mesa,
asseverou que aquilo era uma gripezinha, que não deveríamos
ser um país de maricas, que se toda população se contaminasse,
o mais rápido possível, adquiríamos imunidade de rebanho e que
não era coveiro para falar sobre os milhões de mortes que
acumulávamos.
Seguindo a aglomeração, fui atrás do presidente.
Descobri que ele estaria, junto com sua boiada, na inauguração
de um trecho de uma rodovia com menos de 15 km em
Sobolândia. Me dirigi até lá com a minha peixeira de 12
polegadas escondida dentro da calça. Meu plano era enfiar-lhe a
faca no bucho e fazer um rombo tão imenso, mas tão imenso que
daria origem a um portal.
Sim! Um portal.
Um portal para o inferno. Um portal por onde toda sua
boiada pudesse passar.
Mas meus planos deram errado. Um de seus seguidores
miliciano me reconheceu e avisou para os demais. Tentei fugir,
mas não deu, fui pego. Me levaram para a sede da polícia federal
e lá me me espancaram a perder de vista. Me torturaram, me
chamaram de esquerdista, de socialista, de anarquista, de
marxista, de comunista, de progressista, de petista, de bicha e
maconheiro, mas... como diria Cazuza, foram eles que
transformaram o país inteiro num puteiro.

... E foi assim que depois de passar por todos os


processos legais e ilegais, depois de ter sido condenado na
primeira, na segunda e na terceira instância, retornei ao
manicômio. Daqui talvez nunca mais me deixem sair, pois a
sujeira da política, só eu posso limpar.
E isso, eles não querem.
THE END

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