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VERSOS E MULHERES: o mito da maternidade na poesia contemporânea feminista

Jeciely Ildefonso de Oliveira – PIBIC/FUNDAÇÃO ARAUCÁRIA/UNIOESTE1


Clarice Braatz Schmidt Neukirchen – UNIOESTE2

RESUMO: O presente artigo tem o intuito de mostrar os primeiros dados obtidos com a pesquisa de
iniciação científica intitulada “Versos e mulheres: a poesia feminista nas redes sociais”, iniciada no
mês de agosto com recursos da Fundação Araucária, em que se investiga a poesia feminista
contemporânea, ou seja, explora as expressões poéticas femininas na contemporaneidade, a fim de
observar como se dá a construção da feminilidade na poesia pela voz da própria mulher. A
investigação se desenvolve por meio de pesquisa bibliográfica, pautada nos pressupostos teóricos da
Crítica Feminista e na Teoria do Imaginário, tendo como corpus os poemas presentes nos livros
Outros jeitos de usar a boca, de Rupi Kaur, Tudo nela brilha e queima, de Ryane Leão, e A princesa
salva a si mesma neste livro, de Amanda Lovelace, salientando-se que todos os livros abordados na
pesquisa são coletâneas dos poemas publicados pelas autoras nas redes sociais. A partir dos primeiros
dados coletados no mês de agosto de 2019, verificou-se nas produções a importância da figura
materna, tendo a quebra e a correspondência de expectativas na idealização da mãe.

PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Poesia; Feminino.

INTRODUÇÃO
O presente artigo é um recorte da pesquisa ‘‘Versos e mulheres: a poesia feminista nas redes
sociais’’ que analisa o fenômeno de ascensão da produção e publicação de poesias por mulheres nas
redes sociais. Além de explorar as expressões poéticas femininas, busca-se investigar como se dá a
construção da feminilidade na poesia pela voz da própria mulher.
O corpus da pesquisa é composto por três livros de poesia de diferentes autoras. A escolha
deu-se pelo fato de todas iniciarem a publicação de seus trabalhos nas mídias sociais e seguem o
mesmo estilo, devido aos temas tratados e o meio de circulação das obras. As obras que contêm os
poemas são de uma canadense imigrante da Índia, uma brasileira e uma americana, respectivamente.
Serão abordados na pesquisa poemas presentes em Outros jeitos de usar a boca, de Rupi Kaur (2014),
Tudo nela brilha e queima, de Ryane Leão (2017) e A princesa salva a si mesma neste livro, de
Amanda Lovelace (2017).
A investigação dar-se-á por meio de pesquisa bibliográfica, utilizando-se como aparato teórico
a Teoria do Imaginário e a Crítica Feminista, fazendo-se uso da Mitocrítica e da Mitanálise como

1
Acadêmica do 3° ano do curso de licenciatura plena em Letras Português/Inglês da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon. Pesquisa apoiada pelo
PIBIC/Fundação Araucária/UNIOESTE.
2
Professora Assistente do curso de Letras – Português/Alemão/Espanhol/Inglês, da Universidade
Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, campus de Marechal Cândido Rondon.
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métodos de pesquisa. Durante a primeira fase da investigação, que consta a leitura de textos teóricos e
fichamentos, notou-se a presença constante da figura da mãe no livro A princesa salva a si mesma
neste livro (2017) , sendo que em torno dessa imagem ocorre a construção da identidade do eu-
lírico, que ao vivenciar uma relação conturbada com a figura materna, conduz o leitor a uma
profunda reflexão sobre essa imagem, revelando explicações, inclusive, no plano do
imaginário e do mito, vez que a construção histórico-literária que se tem dessa figura permite
uma análise mais acurada do processo de produção poética na obra em questão.

DISCUSSÃO
A pesquisa está em seu início, ainda no estágio das leituras teóricas e fichamentos. Porém, nas
leituras de O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir (1980), Campos do Imaginário, de Gilbert
Durand(1996), e Mulheres e Deusas, de Renato Nogueira (2017), relacionados com a leitura de A
princesa salva a si mesma neste livro, de Amanda Lovelace (2017), nota-se a presença constante da
figura da mãe, sendo que em torno dessa imagem ocorre a construção da identidade do eu-lírico, que
ao vivenciar uma relação conturbada com a figura materna, conduz o leitor a uma profunda reflexão
sobre a essa imagem, revelando explicações, inclusive, no plano do imaginário e do mito, vez que a
construção histórico-literária que se tem dessa figura permite uma análise mais acurada do processo de
produção poética na obra em questão.
Costumeiramente, a figura materna é associada a sentimentos de amor e cuidado, como no
mito de Deméter, personificação grega do zelo materno. Distintamente é considerada, no entanto, a
ninfa Liríope, mãe de Narciso, que teve que renegar aquilo que mais amava, a liberdade, por algo que
nem ao mesmo desejada, a gravidez, e, assim, tendo que exercer de forma obrigada o papel de mãe.
Liríope não personifica o amor materno idealizado, mas o amor materno que é “apreendido”.
Assemelha-se ao “tornar-se mulher” preconizado por Simone Beauvoir em O Segundo Sexo, ao
observar que a própria feminilidade é uma construção histórica voltada à necessidade do outro, e não
da própria mulher/mãe. E é perceptível que a figura idealizada do eu lírico construído por Lovelace
não é correspondente ao que ele desejava, não é uma mãe como Deméter, é uma mãe como Liríope, o
que leva a uma um sentimento de frustração e negação em relação à mãe, o que influencia diretamente
na construção da identidade do eu lírico. Que podem ser exemplificados com os poemas que serão
analisados na sequência.
Nos poemas a seguir é notável os sinais de indignação do eu-lírico com a figura materna,
devido a não correspondência a imagem carinhosa construída socialmente do que é ser mãe.
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Página
Mostrando a idealização de uma mãe como Deméter, mas tendo uma mãe como Liríope, o eu-lírico
visivelmente sente-se frustrado:

̶a̶ ̶r̶ai̶ ̶n̶ha̶ ̶


minha mãe
sorria
ao me oferecer
um torrão de
açúcar
na
palma da mão.

avidamente,
eu aceitava.

abria,
minha boca,
e delicadamente colocava um
(apenas um)
no centro
da minha língua,
& eu o
apertava.

sal

isso é o que eu chamo de abuso:


saber que você vai
receber sal,
e ainda esperar receber açúcar
durante dezenove anos.

- você pode ter ido embora, mas ainda tenho dor no estômago.
(LOVELACE, 2017, p.19).

você não deve


nunca amar
nada
mais do que
ama
seus próprios
filhos.

você nunca deve


nunca amar
ninguém
mais do que
ama
seus próprios
3

filhos.
Página
- como você pode?
(LOVELACE, 2017, p.29).

O eu-lírico do poema, ao debruçar-se sobre as memórias que envolvem sua mãe,


sente-se “abusado” por não receber o amor, representado pela doçura do açúcar. O sal, ao
invés do açúcar, surge demonstrando a aridez e a falta de delicadeza da mãe, que, por
maldade, ou por desejar fazer uma brincadeira de mau gosto, oferece à filha sal no lugar do
açúcar. Nítida é a expectativa tenaz da filha que, por dezenove anos, permite que o ato se
repita, sempre esperando o “doce amor” da mãe, mesmo sabendo que não irá recebê-lo. É a
tensão social entre a figura da mãe/santa (Deméter/Maria mãe de Jesus) versus a mãe/humana
(Liríope) que se torna visível. A indagação do verso “Como você pode?”, após a afirmação de
que não é direito de uma mulher amar alguém além de seus próprios filhos, demonstra com
esmero a tensão que ainda é latente em uma sociedade em que a maternidade sustenta-se no
ideário cristão da mãe santa, a Mater dolorosa, imagem da Virgem Maria.
Em um certo momento do livro, o eu-lírico descobre que sua mãe está com câncer, e
começa a refletir sobre a sua relação com a sua mãe e sua existência, sendo possível, assim,
notar como a figura da mãe influencia diretamente na construção do eu-lírico.
quando sua mãe
começa a esquecer
seu nome,
você começa
a se perguntar
se existe mesmo
afinal.

- estágio 4, terminal.
(LOVELACE, 2017, p.72).

quem
eu
vou
ser
sem
ela?

como
eu
posso
ser
sem
ela?
(LOVELACE, 2017, p.76 e 77).

meses depois
que minha mãe
morreu,
4

achei o livro
Página

que ela estava


lendo
por último
com um recibo
ficando amarelo
ainda dentro dele,
marcando onde ela parou
& finalmente
me dei conta de que

você
nunca
vai terminar
esse livro específico
você nunca
vai começar
ou terminar
outro livro
nunca mais
você nunca
vai ver eu
me formar
na faculdade
você nunca
vai conhecer o amor
da minha vida
você nunca vai
estar presente no meu
casamento
você nunca
vai ler essas palavras

nós não vamos


nunca nunca nunca mais
sentar na varanda dos fundos
& contar uma a outra histórias de fantasmas
com canecas de café
fumegante
nunca
nunca
nunca
mais.

(LOVELACE, 2017, p.98 e 99).

foda-se,
câncer,

por ter me tirado


a possibilidade

da mãe
que eu nunca
5
Página

mais vou
ter agora.
- 03/11/10.
(LOVELACE, 2017, p.85).

A partir do momento em que o eu-lírico depara-se com a mortalidade da mãe, nota-se


um processo de construção de uma imagem mais real. A mãe passa a ser vista como figura de
grande importância para a formação da identidade do eu-lírico, apesar de seus defeitos, apesar
de não corresponder com a idealização que o eu-lírico demonstrar sentir nos poemas iniciais
do livro. E é justamente a descoberta dessa potencialidade humana e falível da mãe que
contribui para que a jornada de autodescoberta e autoaceitação do eu-lírico se solidifique.
Ainda sobre a construção do eu-lírico, a autora faz referência em seus poemas de
forma indireta, mostrando como os atos da mãe influenciaram na sua vida. Como nos poemas
“mãe e filha”, da página 42, e em “ela nunca precisou daquelas asas”, presente na página 111:

pássaros
não podem
voar
quando
você corta
uma das
suas asas.

você
não ficou
satisfeita
em cortar
apenas
uma das
minhas asas.

você tosou
as duas
bem perto
da raiz
para ter certeza
de que eu
nunca mais voasse
para nenhum lugar
jamais outra vez.

- mãe & filha.


(LOVELACE, 2017, p.42)

a princesa
pulou da
torre
& ela
aprendeu
que podia
6

voar
Página

desde o começo.
- ela nunca precisou daquelas asas.
(LOVELACE, 2017, p.111)

Há que se mencionar, aqui, uma particularidade dos poemas de Lovelace: os títulos


dos poemas encontram-se, via de regra, no final dos poemas, subvertendo a ordem comum.
Em “mãe & filha”, é o título que revela ter sido a mãe que cortou suas asas. Não uma asa, mas
as duas, na tentativa de impedir completamente o voo. Nota-se, nessa imagem, a presença da
representação da mãe castradora, que busca podar seus filhos, talvez até mesmo como uma
atitude de proteção. No poema seguinte, no entanto, descobre o eu-lírico que aquelas asas não
lhe fizeram falta. Ao arriscar-se diante do mundo e atrever-se a pula a torre (representação do
mundo limitado oferecido pela mãe), descobre que voava mesmo sem as asas. Descobrir o
mundo/vida apresenta-se, assim, como algo que pode ser alcançado mediante a coragem e
atrevimento do eu-lírico.
Por fim, apesar de todo o sofrimento vivenciado, o eu-lírico reconhece que a vida e a a
morte da mãe auxiliaram seu crescimento e a possibilidade de salvar-se, deixando ao leitor
entender o quanto essa relação de amor e frustração influenciou sua formação enquanto
sujeito:

estou
presa entre
chorar
por você

&

pensar
que sua morte
me
salvou.

- você será capaz de me perdoar algum dia?


(LOVELACE, 2017, p.110)

quando
alguém
se oferece para
salvar você
faça disso
a missão
para
salvar a si mesma.

- acredito em você.
(LOVELACE, 2017, p.199)

Infelizmente, resta a esse eu-lírico marcadamente feminino, não apenas a conquista de si


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própria que se deu, em parte, com a ocorrência da morte da mãe, mas também a eterna culpa que
carregam as mulheres durante os séculos. A culpa de não corresponder ao ideal social. A culpa de
dissociar-se de sua sujeição à figura materna para encontrar-se. A culpa de carregar em seu próprio
imaginário as marcas de uma submissão que ultrapassa os limites temporais e auxilia na escravidão
psicológica das mulheres.
Em contradição a Lovelace, em Outros jeitos de usar a boca, de Rupi Kaur (2017), a
construção do eu-lírico também se dá por meio da figura materna. Porém, se tem a figura materna
amorosa e voltada ao zelo com os filhos, correspondendo, assim, ao mito de Deméter. Os poemas de
Kaur mostram constantemente um carinho e gratidão pela figura materna, havendo uma
correspondência direta com a imagem construída socialmente do que é ser mãe. Em Ryane Leão
(2017), por sua vez, em Tudo nela brilha e queima, não se nota, inicialmente, um aprofundamento tão
intenso em relação a imagens que remetem à figura materna. Vale salientar que neste artigo
privilegiaram-se os poemas de Lovelace, sendo que as obras de Kaur e Leão serão analisadas com
maior atenção nas próximas etapas da pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste momento inicial da pesquisa ainda é cedo para tecer conclusões. No entanto, já é
possível notar que as expressões poéticas femininas na contemporaneidade refletem problemas que já
foram questionados durante a história, ainda de uma forma bastante simbólica, como já se faziam há
séculos por meio dos mitos antigos, contos de fada e outras narrativas, usando de símbolos e imagens
arquetípicas para mostram a inquietação e a desilusão das mulheres perante esses problemas, além de
ser perceptível que as construções sociais de “como ser mulher” e de “como exercer esse papel diante
a sociedade” tem frustrado as mulheres desde a antiguidade, mesmo quando suas vozes apenas eram
ouvidas no plano do simbólico e por meio da escrita masculina.

AGRADECIMENTOS
Agradeço a Fundação Araucária, tanto pela concessão de bolsa, quanto pelo incentivo dado
aos pesquisadores paranaenses.
E a Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Estadual do Oeste do Paraná,
que me proporcionou a chance de pesquisar e aprimorar os meus conhecimentos.

REFERÊNCIAS
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BEAUVOIR, Simone de. O segundo Sexo: Fatos e Mitos. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1980.
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: A Experiência Vivida. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira,1980.
BRUNEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Trad. Carlos Sussekind. 2. ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1997.
CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Trad. Vera da Costa e Silva
et. al. 17. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.
DURAND, Gilbert. Mito, símbolo e mitodologia. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
DURAND, Gilbert. Campos do Imaginário. Trad. Maria João Batalha Reis. Lisboa: Instituto Piaget,
1996.
KAUR, Rupi. Outros jeitos de usar a boca. Trad. Ana Guadalupe. 1. ed. São Paulo: Planeta, 2017.
LEÃO, Ryane. Tudo nela brilha e queima. São Paulo: Planeta do Brasil, 2017.
LOVELACE, Amanda. A princesa salva a si mesma neste livro. Trad. Izabel Aleixo. Rio de Janeiro:
LeYa, 2017.
NOGUEIRA, Renato. Mulheres e deusas. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017.
ZOLIN, Lúcia Osana. “Crítica feminista’. In: BONICCI, Thomas e ZOLIN, Lúcia Osana (org.).
Teoria literária. Maringá: Eduem, 2005, p. 181-203.

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