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O faroleiro da 133

Renan Fattah

Foi em dezembro quando tudo começou. Eram muitas escolhas para o jovem
recruta, mas, em meio a elas, optou pela que pareceu mais chamativa, tanto por
localização quanto público: Imbé Sul. Quando foi assinar a folha que selaria a opção,
percebeu uma estranha cor na tinta da caneta, como se brilhasse. Um verde
fosforescente. Na sala estavam alguns tenentes e sargentos em descontraídas
conversas. Quando finalizou a assinatura, as luzes piscaram rápido e um forte vento
carregou dezenas de folhas pelo ar, espalhando-as por toda parte. Entre risadas e
correria para fechar as janelas, um dos tenentes fechou o rosto, sério, e olhou fixamente
para o jovem. Em seus olhos havia apreensão, como se visse algo que somente ele
compreendera.
No dia seguinte, uma manhã quente de céu limpo, o recruta foi apresentado ao
efetivo antigo da praia e à sua guarita: 133, guarita central. Era incomum que recrutas
fossem designados para aquele local, movimentado e com mais veranistas que o normal.
Prevenir e salvar era sua missão e ele estava disposto a cumpri-la durante todo aquele
verão. Os primeiros dias foram tranquilos, com poucas prevenções e acontecimentos
adversos. Num desses calmos turnos, um dos sargentos da praia subiu até o topo da
guarita e ficou ao lado do novato.
—Bom dia, recruta. Tudo certo por aqui? — disse, quanto corria os olhos pela
extensão da praia
— Tudo certo! Sem novidades.
Durante algum tempo os dois ficaram admirando o mar e suas flutuações enquanto
sentiam no ar um cheiro salgado e fresco.
— Me diz — começou o sargento, sem tirar os olhos do mar — Você viu?
— Ver o que, senhor? — o jovem cerrou os olhos num meio sorriso
— Me enganei — o sargento fez um sinal com a mão — deixa pra lá.
O jovem deu de ombros e seguiu em sua patrulha enquanto seu superior ia
embora. Os dias passaram rápido e sem nenhuma alteração durante duas semanas, até
que, num sábado de chuva intensa, algo estranho ocorreu: seu colega de guarita, sempre
enérgico e alegre, estava em alerta máximo. Não havia ninguém na praia durante aquela
chuva torrencial, mas seus olhos não se moviam do mar.
— Tá forte essa ch…
— Shhh — o soldado fez um sinal de “pare” com a mão — olhos no mar!
Apesar de considerar a atitude um tanto rude, o recruta nada disse e levantou sua
cabeça para o revolto oceano, rápido o suficiente para vislumbrar um poderoso raio azul
cair no mar, pesado.
— Escuta — começou o soldado — o faroleiro vai aparecer. Não diga nada, apenas
me siga e obedeça meus comandos, entendeu? — sua expressão nunca havia estado tão
séria.
— Que faroleiro?
— Apenas faça. Lá! — o soldado levantou-se da cadeira e apontou para a direita
da guarita.
Um homem flutuava na água como se fosse um cadáver, de barriga para cima.
Estava longe, mas era possível ver suas roupas brilhando num verde melancólico. Um
verde fosforescente. Ele usava uma regata branca que, se alguém atento olhasse bem,
tinha uma cruz vermelha no peito. Ela estava rasgada em vários pontos. Seu cabelo longo
era branco e movia-se num comportamento semelhante a como se estivesse submerso.
Em sua mão esquerda carregava uma caixa de madeira através de uma alça redonda de
ferro coberta de mariscos e musgo. Sua pele era pálida e era possível ver seus ossos em
alguns pontos. Os olhos não tinham fundo, como se fossem somente buracos ocos.
— Pula!! — gritou o soldado, correndo e atirando-se no monte de areia em frente
ao posto.
Seguindo-o em meio à tempestade, os dois correram para o homem. Ao chegarem
perto do corpo, o mesmo inclinou-se para frente e a chuva engrossou, limitando muito a
visão. Seus olhos, então, inflamaram-se em chamas verde-claro. A mesma chama
acendeu dentro da caixa, criando um círculo de luz ao redor dos três, afastando a água.
Do chão, pegou quatro cordas de aspecto muito velho e ofereceu uma a cada um dos
guarda-vidas, ficando ele com duas, que posicionou sobre os ombros. O soldado olhou
para o recruta e fez um sinal de “positivo” com a cabeça. Os três, então, puxaram as
cordas enquanto caminhavam para a beira da praia. Ao chegar na areia, puxaram-nas
com força máxima. Em cada uma havia um corpo amarrado. O recruta, por instinto,
abaixou-se para verificar o estado das vítimas. Ágil, seu colega colocou a mão em seu
peito e fez um sinal negativo com a cabeça. O faroleiro, então, largou suas cordas e
ajoelhou-se. Colocou a mão no rosto de um dos corpos e, como mágica, veias verdes
entraram por sua boca, pulsando e vertendo fluídos estranhos. A pessoa tremeu, como
numa convulsão. As veias saíram rápido, levando consigo muita água. Num susto, o peito
do corpo inflou e seus olhos abriram-se por um instante. Ele repetiu o processo em todas
os outros afogados. Depois disso, seu lampião e olhos apagaram-se lentamente até que
seu corpo desmanchou-se numa espécie de pó.
A chuva não demorou a acalmar.
Os dois entregaram as vítimas à resgate do Corpo de Bombeiros, que as encaminhou ao
hospital com vida. Aquelas pessoas não lembravam e nunca lembrariam do que ocorrera.
O soldado antigo não quis falar sobre o assunto naquele dia, dizendo apenas que
mantivesse o faroleiro em segredo.
Alguns dias depois, num dia calmo, o sargento lhe perguntou novamente.
— Você viu?
— Sim, senhor. — respondeu, de pronto, o novato.
— Eu sabia que veria. Quando assinou o documento já estava feito.
— Quem é ele?
— O faroleiro foi um guarda-vidas logo que a profissão começou a existir. Era
conhecido por seus salvamentos impossíveis. Um dia, numa competição amistosa, ele
submergiu no mar e nunca mais voltou até a superfície. Seu nome nós quem demos, pois
nos guia como um farol aos navios. A verdade é que ele faz todo o trabalho quando surge.
O sargento virou para o jovem
— Escuta só, recruta. Cada ano que passar nessa praia vai aumentar sua conexão
com o faroleiro. Poucos são escolhidos para vê-lo e todos os salvamentos que fazemos
com ele são mantidos em segredo e nem sequer os registramos.
Depois de dizer isso, o sargento colocou a mão em seu ombro e se foi, deixando o
jovem sozinho com seus pensamentos confusos e impressionados com aquilo tudo.

As semanas seguiram e mais três vezes o faroleiro mostrou-se, sempre em dias de


tempestade ou névoa intensa. Foram doze pessoas salvas nesses eventos. Nunca houve
diálogo com ele e nenhum guarda-vidas da 133 tocava no assunto. A temporada chegava
ao fim.
No último dia de trabalho, às 19h de domingo, o tenente subiu até o topo da
guarita. O colega do garoto fez uma continência e desceu, deixando-os sozinhos. Apoiou-
se no muro e jogou seu olhar no oceano, relaxando a posição enquanto o jovem o
cumprimentava.
— O faroleiro não escolhe qualquer um — começou, calmo — e você já fez contato
com ele várias vezes.
— Sim, senhor.
— Hm… — o tenente olhou para baixo — talvez você já saiba, mas quanto mais
contato tiver com ele, mais aguçados serão seus olhos. O faroleiro te deu a visão e ela vai
crescer todo ano, até que você se torne parte dele.
O jovem arregalou os olhos, desconfiando.
— Como assim?
— Olhe lá, na esquerda. — o tenente apontou a direção com o indicador.
O jovem não enxergou nada. A noite já era escura demais.
— Não vejo nada. — e olhou novamente para o tenente, que agora tinha os olhos
brilhando em chamas.
— Não se preocupe, soldado — disse ele — vou te emprestar um pouco do que
tenho — e tocou no braço do recruta.
Imediatamente, aos olhos do jovem, a praia iluminou-se em branco e azul e ele
enxergava uma chama verde no alto de cada guarita, como faróis. Ao longe, mas não
tanto, avistou o faroleiro caminhando com seu lampião à frente, iluminando ainda mais o
mar. Como se sempre estivesse ali, um navio azul incandescente fez-se ver. O faroleiro
subiu sua escada, e, num adeus, levantou o braço com a mão aberta. O tenente retribuiu
o gesto e, após isso, o faroleiro assumiu o timão e a embarcação desvaneceu e sumiu.
Os olhos do tenente voltaram ao normal, e, ao olhar para o boquiaberto jovem, abriu um
sorriso enorme.
— Bem-vindo ao Imbé Sul. Nos vemos ano que vem, recruta.
Ao dizer isso, sorriu e tornou-se areia. Areia verde fosforescente.

Em homenagem ao IMBÉ SUL e seus HERÓIS!

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