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Belo Horizonte
2021
Emanuelle Ferreira Freitas
Victória Rodrigues Silva
Belo Horizonte
2021
Emanuelle Ferreira Freitas
Victória Rodrigues Silva
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Prof. Dra. Letícia Carvalho de Souza Andrade
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Prof.
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Prof.
This monograph will address the multiple vulnerabilities of refugee women, focusing on the
Dadaab Refugee Camp Complex in Kenya. The purpose is to investigate the particularities of
women's experiences in refugee camps. Understanding how a condition of domination and
hierarchization instituted by the patriarchal structure is reflected within the camps. Based on a
feminist approach to International Relations, our argument is that issues related to the
condition of being a woman, together with the experiences of the refugee context, result in a
scenario of multiple vulnerability, as well as in various forms of oppression experienced by
women in rural areas. In methodological terms, the research is based on a literature review
and document analysis, in addition to a case study of the Dadaab Refugee Camp Complex.
1 INTRODUÇÃO ....……………………………………………………………………….. 13
2 A CONDIÇÃO DE SER MULHER EM DIFERENTES CONTEXTOS ...…….……. 15
2.1 Discussão de Gênero e Abordagens Feministas ………...……………………………...15
2.2 Mulheres em Conflitos Armados.……………...………………………………………. 24
2.3 Mulheres Refugiadas…………………………………………………………………….28
3 CAMPOS DE REFUGIADOS ...………………………………………………………... 35
3.1 História dos campos de refugiados…….……………………………………………….. 35
3.2 Campos de Refugiados na atualidade………………………………………….……….. 38
3.3 Mulheres em campos de refugiados……………………………………….……………. 48
4 ESTUDO DE CASO: O COMPLEXO DE CAMPOS DE REFUGIADOS DE
DADAAB ………………………………………………………….………………..………. 53
4.1 História do Complexo de Dadaab………………………………………………………. 53
4.2 Mulheres Refugiadas no Complexo de Dadaab………………………………………… 65
5 Considerações Finais ..…………………………………………..………………………...73
REFERÊNCIAS ..……………………………………………………………………….…..76
13
1 INTRODUÇÃO
em importantes esferas públicas, nos quais os homens já estavam inseridos, como Instituições
Internacionais, cargos políticos e grandes empresas (WHITWORTH, 2008).
Essa falta da participação feminina em inúmeros contextos, têm origem histórica e
estrutural. Historicamente, foi designada às mulheres um papel de subalternidade. Foram
muitos fatores que corroboraram para que o gênero feminino fosse visto de maneira desigual
em relação ao gênero masculino. Um dos principais fatores diz respeito aos aspectos
biológicos e está ligado à maternidade, principalmente porque em períodos gestacionais as
mulheres tinham sua capacidade produtiva reduzida nas atividades desempenhadas e nos
primeiros meses após o nascimento dos filhos, as mulheres eram aquelas responsáveis pela
criação dos mesmos. Diante disso, elas foram excluídas dos campos de batalha e passaram a
ser dependentes dos caçadores e dos guerreiros, visto que precisavam de proteção dos
mesmos para não serem atacadas por inimigos e necessitavam de alimentos para a
sobrevivência delas e da sua prole (BEAUVOIR, 1989).
Devido a sua força física relativamente maior do que das mulheres, e por sua função
ser considerada mais perigosa, o homem foi visto como líder da família e do clã. Entretanto, é
necessário pontuar que esse cenário não pode ser considerado como universal e primordial em
todas as sociedades, já que grande parte das mulheres, como eram as Amazonas2. Essas, que
viveram em meados do século VI a.C, tinham grande força física e em cenários de guerra, elas
desempenhavam as mesmas funções que os homens e eram consideradas tão corajosas e
cruéis quanto eles (BEAUVOIR, 1989).
Além disso, é necessário pontuar que em grande parte das primeiras sociedades, as
mulheres e crianças eram responsáveis pela coleta e caça de pequenos animais, que eram os
principais alimentos dos grupos, e o homem tinha como atividade caçar animais de grande
porte, sendo uma atividade auxiliar. Assim, a teoria do homem-caçador foi uma construção
sociocultural para manter a hegemonia e supremacia do homem. Como pontuado por parte
das autoras feministas, as características biológicas entre os homens e mulheres apresentam
adversidades, entretanto, tais diferenças foram agravadas através da construção da cultura, de
forma que elas viraram um produto cultural (LERNER, 2019).
Diante disso, o processo da dominação dos homens sobre as mulheres foi se
institucionalizando com o decorrer do tempo, e com isso se designando o patriarcado. De
acordo com o dicionário ideológico feminista de Victoria Sau (1981), define-se patriarcado
2
As Amazonas eram guerreiras temidas e mulheres fortes, possuíam grande habilidade na guerra. Elas
queimavam um dos seios como forma de negação a sua feminilidade, uma vez que os seios estão associados à
amamentação. Além disso, elas viviam em uma sociedade matriarcal, na qual a sociedade é regida pela mulher,
que exerce o papel de liderança, força e poder (MARTINEZ; SOUZA, 2014).
16
3
[...] Dicha toma de poder pasa forzosamente por el sometimiento de las mujeres a la maternidad, la represión de
la sexualidad femenina, y la apropiación de la fuerza de trabajo total del grupo dominado, del cual su primer pero
no único producto son los hijos.
4
A teoria do contrato social estabelece que os homens em seu estado natural, cederiam a liberdade individual
para o Estado em troca de uma liberdade civil. Os mesmos fariam isso pois havia insegurança na sua liberdade
individual, logo o Estado seria o responsável por proteger os indivíduos (PATEMAN, 1993).
17
política, em que haveria não só o predomínio dos homens sobre as mulheres, como também a
autoridade e liderança dos primeiros sobre as segundas, fatores que designaram a hegemonia
masculina como primordial.
Como resultado, o gênero feminino foi visto como inferior e subordinado ao
masculino, resultando em uma relação de exploração. Segundo a autora Joan Scott (1989),
gênero pode ser entendido de duas maneiras, que estão inter-relacionadas, “[...] (1) o gênero é
um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2), o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder.” (SCOTT,
1989, p.21). Logo, entende-se que a institucionalização do gênero feminino e masculino nas
sociedades atuais, foi estabelecida através da interação social e da construção de paradigmas
que vão além da definição baseada no sexo feminino e masculino.
É importante salientar que a questão do gênero surge como uma forma de rejeição ao
determinismo biológico do sexo feminino e masculino, pois a designação dos sexos foi
incapaz de abranger todo o contexto identitário, relacional e histórico que há entre os
indivíduos. Ademais, apesar da questão do gênero surgir em rejeição ao determinismo
biológico, ele abrange a questão do sexo mas não é exclusivamente determinado por ele,
como também não determina a sexualidade do indivíduo (SCOTT, 1989).
Neste ínterim, de acordo com Romani (1982), diversos estudos antropológicos não
demonstram existir um caráter universal de divisão dos papéis sexuais, o que os classifica
como específicos de cada sociedade e de cada cultura (ROMANI, 1982 apud. SIQUEIRA,
1993). Logo, os papéis sexuais, em uma abordagem mais abrangente, se relacionam com o
gênero e são classificados como o modo em que determinado indivíduo se comporta de
acordo com o seu sexo sociológico. Desse modo, mesmo que as relações de poder entre os
homens e mulheres possam ter início a partir de diferenças biológicas, as representações e
expectativas sobre o comportamento feminino e masculino partem principalmente dos papéis
atribuídos pela sociedade na qual estão inseridos (CHODOROW 1990; ROMANI, 1982 apud
SIQUEIRA, 1993).
Foram institucionalizados, assim, os papéis sociais a serem seguidos, postulando a
identidade feminina e masculina. De acordo com Moreno (1978, p. 27) “O papel é a forma de
funcionamento que o indivíduo assume no momento específico em que reage a uma situação
específica, na qual outras pessoas ou objetos estão envolvidos”, assim, o autor compreende
que o papel social é uma conduta cultural já preestabelecida (MORENO, 1978). Através
desses papéis sociais pré-estabelecidos, houve a legitimação do cenário de inferiorização ao
que as mulheres são expostas, determinando quais os direitos, os espaços, as atividades e as
18
condutas apropriadas a serem seguidas. Nesse sentido, a autora Garcia (2011) pontua que os
papéis que foram historicamente atribuídos às mulheres dentro de uma cultura considerada
masculina e patriarcal, são de subordinação e de passividade. Logo, mesmo antes do
Renascimento no século XIV, elas já eram vistas como incapazes de realizar quaisquer tarefas
que não fossem domésticas, retirando das mesmas a liberdade de expressar suas vontades e o
poder de decidir sobre a própria vida (GARCIA, 2011).
Diante disso, se faz necessário pontuar que apesar da estrutura patriarcal estar presente
no mundo todo, a forma que a estrutura afeta a vida das mulheres e estabelece quais os papéis
sociais que elas terão que seguir, varia com base na região e cultura que estão inseridas. Toda
sociedade possui, em sua estrutura, suas próprias características culturais e com elas, fatores
que foram enraizados e que fomentaram a situação de subordinação feminina. A partir disso, é
necessário entender que a cultura influencia e afeta de diferentes maneiras as vivências das
mulheres em sociedade, mas, mesmo que haja uma diferenciação nas formas de opressão em
cada uma delas, as mulheres estão sempre sujeitas a um cenário de subalternidade e
subordinação ao gênero masculino (ORTNER, 1979).
Com o intuito de demonstrar a inferioridade feminina em diferentes culturas, Sherry
B. Ortner (1979) salienta três fatores que corroboram para esse cenário e que estaria incluído
na maioria das culturas. O primeiro deles é o elemento de ideologia cultural, no qual
desvaloriza de maneira explícita as mulheres e todas as funções nas quais elas atuam, e por
outro lado, atribui com mais prestígio as funções realizadas pelos homens. O segundo fator
diz respeito aos esquemas simbólicos, no qual retratam as mulheres no decorrer dos anos com
inferioridade, principalmente devido a fatores biológicos como a menstruação - vista por
muitas culturas como algo impuro-. E como último fator têm-se as classificações
sócio-estruturais, que atuam excluindo e impedindo a participação feminina em setores que
exercem poder na sociedade, o que inclui posições públicas de prestígio como cargos políticos
(ORTNER, 1979).
Diante disso, o processo de desigualdade de gênero no contexto das relações entre
homens e mulheres não é advindo de forma natural, mas é construída frequentemente dentro
das sociedades e das culturas, sendo postulada pela tradição cultural, pelos agentes e pelas
relações sociais estabelecidas (SAFFIOTI, 2011). Logo, desde a época do Renascimento, no
século XIII e XVI já era considerado, por parte de escritores, bispos e filósofos como São
Tomás de Aquino, que as mulheres eram “naturalmente inferiores” e apesar de haver
questionamentos por parte de algumas mulheres sobre a inferiorização vivida, não havia uma
movimentação coletiva para impor um pensamento contrário. Diante disso, o que começou a
19
gerar mudança nesse posicionamento, foi o foco dado à educação durante este período, visto
que possibilitou um maior entendimento por parte das mulheres sobre as posições e os
deveres dos sexos. Logo, iniciou-se um debate que perpassou séculos e ficou conhecido como
Querelle femmes5, em que as mesmas começaram a questionar a sociedade (GARCIA, 2011).
Isto posto, as reivindicações e pressão por parte dessas mulheres começou a causar
impacto no cenário internacional a partir das chamadas ondas do movimento feminista. A
primeira onda surgiu em decorrência da Revolução Francesa6 (1789-1799), onde as mulheres
foram grandes protagonistas nas reivindicações pela igualdade sexual. Para isso, elas se
mobilizaram em duas frentes: a primeira foi dentro da batalha e a segunda dentro da
Assembleia Constituinte, pela qual elas foram responsáveis pela criação de grupos femininos
e jornais em que pleiteavam os direitos civis e políticos das mulheres. Entretanto, a Revolução
Francesa barrou os avanços dos movimentos feministas da época, as impedindo de exercerem
atividades políticas. Nesse ínterim, muitas mulheres foram mortas e exiladas por compartilhar
a sua ideologia publicamente (GARCIA, 2011).
No que tange a segunda onda, ela ocorreu em meados do século XIX, no qual o
feminismo surge como um movimento social, de caráter internacional, possibilitando a
entrada das mulheres no âmbito político. Neste período, houve um grande avanço no número
de movimentos feministas em todo o mundo, tal como o movimento Sufragista, nos Estados
Unidos (EUA), juntamente a isso, surgiram vertentes feministas, que reivindicavam um dos
principais direitos civis, o direito ao voto das mulheres. Por fim, a terceira onda do feminismo
deu início a partir de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial. Neste período, inúmeras
teóricas passaram a criticar veemente as estruturas estabelecidas, o que ocasionou o
surgimento de outras vertentes do feminismo (GARCIA, 2011).
Desta forma, as ondas dos feminino, principalmente a partir da segunda, foi
importante para as reivindicações dos direitos das mulheres. A instituição de direitos para
mulheres no âmbito internacional surgiu a partir da Carta das Nações Unidas e da Declaração
Universal de Direitos Humanos (DUDH), em 1979, que a Comissão de Status da Mulher
(CSW)7 criou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra
a Mulher (CEDAW)8, que posteriormente ficou conhecida como a Convenção da Mulher.
5
Tradução para o português como “A questão das mulheres”.
6
A Revolução Francesa foi um período de grande relevância na história mundial, marcado por revoluções na
França no período de 1789 a 1799, Estado esse que enfrentava uma grave crise econômica. Essas revoluções
tiveram grande participação popular, no qual tinham o intuito de destituir o absolutismo que estava instituído na
França (VOVELLE, 2012).
7
Sigla em inglês: Commission on the Status of Women
8
Sigla em inglês: Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women
20
Essa tem como objetivo promover direitos para alcançar a igualdade de gênero e fazer com
que não haja discriminações baseadas em gênero nos Estados signatários da convenção
(PIMENTEL, 2006). Assim, fica evidente que fatores históricos e culturais contribuíram para
que as diferenças baseadas em gênero se intensificassem e evoluíssem para um cenário de
violência. Entretanto, tal prática foi de certo modo, “legitimada” por muitas sociedades e vai
contra as normas do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e constituições internas dos
Estados, para aqueles que forem democráticos.
Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR),
define-se violência de gênero como “atos prejudiciais dirigidos a um indivíduo com base em
seu gênero. Têm suas raízes na desigualdade de gênero, no abuso de poder e nas normas
prejudiciais” (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 20--a).
Nesse sentido, a violência de gênero surgiu de maneira silenciosa dentro das esferas da
sociedade. É necessário levar em consideração que, na maioria das sociedades, a autoridade
máxima do ambiente doméstico é a figura masculina, por ter assumido o papel de provedor do
lar, enquanto a mulher que cuida dos filhos e da casa, se tornou cada vez mais submissa a ele.
Diante desse cenário, o homem, enquanto macho dominador, utiliza a virilidade como forma
de força, exploração e autoridade, a transformando num mecanismo de poder sobre a mulher,
por meio do qual passa a adotar atitudes agressivas e violentas contra a mesma, resultando em
múltiplos cenários de opressão e violência (SAFFIOTI, 2011).
Analisando que a tradição de determinada sociedade, no decorrer dos anos, atua como
uma forma de dominação, infere-se que a violência contra a mulher é uma maneira coercitiva
de manutenção do patriarcado, que garante a hegemonia masculina. Nesse sentido, as
inúmeras práticas violentas contra a mulher se caracterizam de inúmeras formas distintas e
variam de acordo com o contexto social e cultural no qual elas se inserem. Os tipos de
violência contra a mulher vão desde violência física, sexual, psicológica/emocional,
exploração e abuso no que tange ao caráter econômico no âmbito público e privado, até o
feminicídio. Este, é designado como o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres,
ou seja, devido a seu gênero, podendo ocorrer nos mais diversos ambientes e cenários, tanto
em cenários de paz, como em conflitos armados (ORGANIZACIÓN DE LAS NACIONES
UNIDAS, 2006).
Para mais, há práticas religiosas e culturais nocivas como a Mutilação genital feminina
(MGF), que “inclui todas as intervenções que envolvam a remoção parcial ou total dos órgãos
genitais femininos externos, ou que provoquem lesão nos órgãos genitais femininos por
razões culturais ou razões não médicas.” (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 1997. p. 3,
21
tradução nossa)9. Tal prática é considerada como uma grave violação dos Direitos Humanos e
também como violência contra a mulher. Em decorrência desse cenário, há debates
internacionais sobre o Relativismo Cultural10, no qual culturas em determinados contextos
geográficos, utilizam a prerrogativa de suas leis e práticas religiosas para impor
procedimentos cirúrgicos de mutilação do órgão genital feminino, violando os corpos das
mulheres e indo contra os Direitos Humanos. Logo, compreende-se que as normas culturais e
as violências contra as mulheres estão intrinsecamente relacionadas. Neste sentido, não se
deve classificar hierarquicamente os tipos de violência contra a mulher, pois todos os tipos
afetam de maneiras devastadoras o emocional e o psicológico das vítimas (ORGANIZACIÓN
DE LAS NACIONES UNIDAS, 2006).
Diante disso, vê-se uma luta contínua das mulheres em busca da liberdade e de uma
realidade em que são tratadas como seres humanos com direito à vida. A autora Rebecca
Solnit (2017), pontua que para o melhor entendimento da misoginia11 e da violência contra as
mulheres, é importante olhar por uma lente de análise completa, de forma a analisar o abuso
de poder como um todo. Assim, a autora pontua que devemos analisar as violências de forma
conjunta, não separando a violência doméstica de outros atos violentos, como o estupro, que
podem vir a ocorrer no ambiente on-line, em casa, no local de trabalho e principalmente nas
ruas (SOLNIT, 2017). Logo, quando analisado por uma lente ampla e conjunta, os padrões
ficam evidentes.
Ademais, os atos de violências, como estupro, assassinato e as ameaças são
mecanismos utilizados pelos homens como forma de obter controle sobre as mulheres,
fazendo com que o medo da violência limite grande parte delas. Assim, esse mecanismo está
institucionalizado na sociedade ao ponto que as mulheres muitas vezes não se dão conta disso,
e tratam como sendo algo habitual em suas vidas. A autora traz em seu livro uma matéria
jornalística do The New York Times que pontua que “no mundo todo, as mulheres entre 15 e
44 anos de idade têm uma maior probabilidade de morrer ou de serem mutiladas pela
violência masculina que por câncer, malária, guerras e acidentes de trânsito, tudo somado".
9
‘ Female genital mutilation comprises all procedures involving partial or total romoval of the external female
genitalia or other injury to the female genital organs whether for cultural or other non-therapeutic reasons.
10
O Relativismo Cultural parte do princípio da manutenção de questões identitárias de determinada cultura,
justificada através das crenças religiosas. Através dessa perspectiva, não há um padrão universal de Direitos
Humanos, uma vez que retiraria a individualidade de cada cultura. Logo, acreditam haver a necessidade do
respeito à diversidade cultural, mesmo que essas violem os princípios dos Direitos Humanos (PEREIRA; SILVA,
(20--).
11
A misoginia é definida como o ódio ou aversão às mulheres no qual pode se manifestar de diversas formas.
Como: violência, discriminação, objetificação sexual, entre outros (HOUAISS et al 2004, apud CARVALHO;
MOTERANI, 2016).
22
Diante desta informação, fica evidente como as violências contra a mulher estão presentes
dentro das sociedades e as atingem de forma muito grave (SOLNIT, 2017).
Agora que pontuado a maneira em que a estrutura patriarcal atua corroborando para o
cenário de violência contra a mulher e moldando a vida delas na sociedade, se faz necessário
compreender que as estruturas afetam de diferentes formas as diferentes mulheres. Para além
das questões de gênero, existem outros fatores que delimitam os papéis sociais que as
mulheres “terão que cumprir”, influenciando as suas experiências, os lugares que ocupam na
sociedade e como o mundo as enxerga. A defensora dos direitos civis Kimberlé Crenshaw
(2002), com o intuito de analisar e entender essas diferentes experiências a partir dos
contextos e das questões já citadas, cunhou o termo “Interseccionalidade”:
O uso da força pode ser caracterizado por diferentes naturezas de conflitos, sendo eles
interestatais e intraestatais. Os conflitos interestatais, ou conflitos internacionais como são
chamados mais comumente, são aqueles que englobam disputas entre atores estatais, ou seja,
Estados soberanos. Por outro lado, de acordo com Peter Wallensteen (2002), os conflitos
intraestatais são divididos em duas categorias, territoriais e governamentais. Os territoriais são
marcados por uma disputa territorial, envolvendo atores estatais e não estatais. Já os conflitos
intraestatais governamentais, são aqueles que têm como atores o governo de um Estado e
atores não-estatais, como grupos rebeldes e insurgentes, que tem como objetivo tomar o poder
do Estado (WALLENSTEEN, 2002).
Segundo Michael E. Brown (2001), dentro dessa última categoria enquadra-se a
Guerra Civil, caracterizada como um conflito armado de alta intensidade. Brown identifica
dois pontos que a diferencia dos demais conflitos. O primeiro é que, para ser considerada
como tal, ela precisa atingir mais de mil mortes por ano. O segundo é que os atores não
estatais possuem uma identidade de grupo com capacidade organizacional, possuindo
objetivos políticos que se sustentam com o passar do tempo (BROWN, 2001). Isto posto, se
faz necessário contextualizar as causas que levam a um conflito armado interno. Ainda na
perspectiva de Brown, ele pontua quatro categorias principais, sendo elas: os fatores
estruturais, políticos, econômicos/sociais e os fatores culturais e de percepção. Os fatores
estruturais, são a falência estatal, quando o governo é incapaz de prover os bens públicos e
garantir a segurança no território, como também a geografia étnica, em que há uma
distribuição territorial desigual entre os grupos étnicos (BROWN, apud CROCKER;
HAMPSON; AALL, 2001).
Para mais, os fatores políticos consistem na instituição de políticas discriminatórias,
que discriminam, oprimem e marginalizam determinado grupo em relação a outro. Além
disso, outro fator político é a ideologia nacional excludente, que prioriza somente uma
ideologia, em detrimento de ideologias de grupos minoritários, fazendo com que uma parcela
da população seja excluída. Ademais, o último fator político é a instituição de políticas
elitistas, que designam o poder somente a determinado grupo. Os fatores econômicos/sociais
estão relacionados aos problemas econômicos, no qual parte da população é mais vulnerável;
à modernização, em que os investimentos governamentais, em determinadas regiões, são
maiores em relação a outras; e aos sistemas discriminatórios, em que parte da população é
negligenciada. Por último, há os fatores culturais e de percepção, em que padrões culturais de
discriminação juntamente a grupos historicamente problemáticos corroboram para que haja
um cenário de conflito (BROWN, apud CROCKER; HAMPSON; AALL, 2001).
25
Diante de tudo que foi discutido acerca dos conflitos armados, se faz necessário
compreender que seus impactos recaem com maior intensidade sobre os grupos que já são
historicamente marginalizados, porém, cabe pontuar que essa é uma questão pouco discutida.
Como pontuado na primeira seção, em detrimento da estrutura patriarcal, as mulheres são
mais vulneráveis, marginalizadas e sofrem uma série de violências que não fazem parte da
realidade masculina, nem mesmo em um cenário de conflito. Ao levar em consideração a
questão de gênero, é possível afirmar que há diferenças notórias entre a realidade de mulheres
e de homens durante e no pós conflito armado. De acordo Anna Snyder (2009), cerca de 90%
das vítimas dos conflitos armados são civis, sendo as mulheres as que mais são mortas neste
ambiente (SNYDER, apud SANDOLE; BYRNE; SANDOLE-STAROSTE; SENEHI, 2009).
Essas, em um cenário de conflito armado, vivem uma extrema discriminação, opressão
e marginalização em relação a outros grupos, sofrendo inúmeros tipos de violência baseada
em seu gênero. A violência baseada em gênero (VBG), inclui a violência sexual, mas vai
muito além desta categoria. Ela abrange atos de agressão que causam danos físicos,
psicológicos, sociais e sexuais como também ameaças de tais atos, coerção e privação de
liberdade. Já a violência sexual, especificamente, inclui o estupro, a escravidão sexual, o
assédio, a mutilação, a gravidez forçada e, também, o ato de forçar a vítima a se despir. Além
disso, há outras práticas violentas que ocorrem em um contexto de conflito armado, como o
estupro sistemático12, tráfico de mulheres, exploração sexual13, tortura, violência doméstica
entre outros (INSTITUTO IGARAPÉ, 2018).
Para exemplificar, pode-se citar algumas situações de extrema violência vivenciadas
pelas mulheres em conflitos armados. Elisabeth Rehn e Ellen J. Sirleaf (2002), pontuam que
cerca de 94% das famílias que foram deslocadas do conflito de Serra Leoa passaram por um
cenário de violência, incluindo tortura, estupro e escravidão sexual. O cenário não se difere
muito do genocídio ocorrido em Ruanda, no ano de 1994, em que cerca de 250 a 500 mil
mulheres foram estupradas. Ademais, há inúmeros relatos de violência doméstica, além do
tráfico de mulheres nas zonas de guerra, em que as mulheres são forçadas a servir as tropas,
tanto sexualmente quanto no que diz respeito à garantia de sua alimentação e no carregamento
de seus pertences. Para além dessa situação, Rehn e Sirleaf relatam que os corpos femininos
se tornam como um campo de batalha, pois o ato de violar seus corpos é caracterizado como
12
Compreende-se o estupro sitemático como um instrumento e estratégia de guerra, em que há o uso intensivo de
abusos sexuais com o intuito de humilhar e desumanizar os seus opositores de guerra (LOSURDO; PASSOS,
2017).
13
Entende-se como exploração sexual o abuso e a violação do corpo de uma pessoa, através de atos sexuais para
fins lucrativos (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 20--).
26
14
O Vírus da Imunodeficiência Humana, human immunodeficiency virus (HIV), pode ser caracterizado como
uma infecção em que causa danos para o sistema imunológico, em que diminui a imunidade e destrói células do
corpo humano. Nesse sentido, quando há um grande avanço na infecção de HIV, denomina-se que o indivíduo
esteja com a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, Acquired Immunodeficiency Syndrome (AIDS), Essa, é
capaz de desenvolver inúmeras doenças, como câncer e infecções (WORLD HEALTH ORGANIZATION,
2021a).
27
pelas mulheres e crianças, são na grande maioria irreversíveis e possuem raízes muito
profundas.
Nesse sentido, ao analisar a discussão de Johan Galtung (1990) sobre violência, é
possível afirmar que as mulheres, em um contexto de conflito armado, sofrem os tipos de
violência pontuados pelo autor. A priori, Galtung, pontua dois tipos de violência que se
encaixam no cenário vivido pelas mulheres, sendo eles a violência direta e a estrutural. A
violência direta diz respeito a um sujeito que pratica atos de agressão direcionados a um ou
mais indivíduos diretamente, por outro lado, a violência estrutural é indireta e está enraizada
nas práticas e costumes da sociedade como também no sistema político. Para mais, a violência
estrutural não necessariamente terá um sujeito praticando a violência. Diante disso, fica
evidente que as mulheres são frequentemente vítimas desses dois tipos de violência
(GALTUNG, 1990).
Os impactos gerados para as vítimas recaem sob todos os âmbitos, sejam eles físicos,
psicológicos, econômicos e sociais. Há dificuldades e riscos para as mulheres na procura de
alimento, água e combustível durante e após o cenário de conflito. Além disso, neste cenário,
há uma intensificação das responsabilidades familiares, pois as mulheres se tornam chefes de
família, devido ao fato de seus companheiros assumirem cargos de combatentes. Em
detrimento dessa situação, as mulheres dificilmente encontram um meio de subsistência, e
acabam recorrendo à prostituição como última alternativa para sua sobrevivência e de sua
família (INSTITUTO IGARAPÉ, 2018).
Para mais, as violências pontuadas anteriormente, como o estupro, tráfico, e
escravidão sexual, juntamente aos casamentos forçados e inúmeros outros tipos de atos
violentos, como a violência doméstica, geram danos psicológicos e físicos que perduram por
anos nas vidas das vítimas. Por fim, um dos maiores impactos dos conflitos armados que têm
crescido drasticamente no decorrer dos anos, é o deslocamento forçado internamente e para
fora das fronteiras (INSTITUTO IGARAPÉ, 2018).
Dessa maneira, os conflitos armados geram impactos diferenciados, sendo um dos
principais o ocasionamento do cenário de refúgio. Assim, se faz necessário compreender mais
especificamente como as mulheres estão inseridas neste contexto e principalmente em campos
de refugiados.
Diante do que foi discutido, para que seja possível compreender como o conflito
armado gera consequências para o refúgio, é importante entender que o transbordamento do
conflito para outros Estados é considerado como o efeito spill-over, em que pode gerar
consequências para os Estados vizinhos e para o mundo. Algumas dessas são a
desestabilização da economia e da política de toda a região, como também a entrada em
massa de refugiados, que muitas vezes são vistas como algo negativo para os Estados
receptores (OSTBY; URDAL, apud DEROUEN; NEWMAN, 2014). Assim, com a enorme
quantidade de deslocamentos forçados ocasionados pelos conflitos armados, principalmente
no pós Segunda Guerra Mundial, o efeito do spill-over foi intensificado. A Sociedade
Internacional notou que seria de grande relevância a criação de regras e de meios para garantir
a segurança e o respeito a essas pessoas tão vulneráveis, os chamados refugiados15 (JUBILUT,
2007).
Nesse sentido, com o fim da Segunda Guerra, em 1945, a Organização das Nações
Unidas (ONU) surge como o principal órgão para manter a paz e a segurança no Sistema
Internacional. Com a Carta das Nações Unidas estabelecida em 1945, a organização é
instituída, e com ela, o delineamento dos direitos básicos a todos os seres humanos, trazendo
um novo ordenamento internacional. A partir dela foi elaborada a Declaração Universal dos
Direitos do Homem (1948), que surge como um meio de internacionalizar os Direitos
Humanos stricto sensu, de forma a garantir as regras mínimas de proteção a todos os seres
humanos na ordem internacional, e não apenas no ordenamento jurídico interno dos Estados.
Ao passo que os Estados que se comprometem internacionalmente com a Declaração,
assumem a responsabilidade internacional de cumpri-la e assegurá-la (JUBILUT, 2007).
Contudo, Liliana Lyra Jubilut (2007) pontua que a proteção advinda da Declaração
Universal do Direitos do Homem precisava se estender para além de um cenário de paz.
Assim, foi necessário agregar novas vertentes, que trabalham em um âmbito mais específico
de proteção, contemplando a proteção das pessoas que se encontram em situações especiais,
15
Para fins didáticos, é necessário pontuar a diferenciação das terminologias migrantes e requerentes de asilo.
“Entende-se como migrantes aqueles que escolhem se deslocar não por causa de uma ameaça direta de
perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar sua vida em busca de trabalho ou educação, por reunião
familiar ou por outras razões. À diferença dos refugiados, que não podem voltar ao seu país, os migrantes
continuam recebendo a proteção do seu governo”. (EDWARDS, 2015, [s/p]). Por outro lado, “o asilo é uma
instituição que visa à proteção frente a perseguição atual e efetiva. Já nos casos de refúgio é suficiente o fundado
temor de perseguição.[..]o asilo pode ser solicitado no próprio país de origem do indivíduo perseguido. O
refúgio, por sua vez, somente é admitido quando o indivíduo está fora de seu país.” (BARRETO, 2006, [s/p]).
Assim, para fins metodológicos, as definições dos termos migrantes e requerentes de asilo não serão
incorporadas no corpo do texto, uma vez que o foco do presente trabalho são os refugiados, entretanto, se faz
necessário diferenciá-los.
29
A partir de tal definição, entende-se que os refugiados não podem permanecer em seus
Estados de origem por algum fator já mencionado. Eles enfrentam dificuldades tanto no que
diz respeito ao âmbito interno, uma vez que precisam deixar seus pertences, suas famílias e
toda a vida construída ali, como também no âmbito externo, em que eles enfrentam
dificuldades na saída, sendo expostos a múltiplas situações, como a falta de alimentos,
dificuldade na locomoção, discriminação, diversos tipos de violência, fatores esses que
colocam suas vidas em risco. Neste contexto, é importante ressaltar que as leis em relação aos
refugiados variam de Estado para Estado, e aqueles só podem usufruir dessas leis caso o
Estado em questão os reconheça como tal. Entretanto, esse reconhecimento é muitas vezes
visto como um custo para os Estados, que fecham as fronteiras, e também pela população, que
ao invés de auxiliar e proteger esses indivíduos, majoritariamente aumentam a discriminação
que os refugiados sofrem (JUBILUT, 2007).
Com o Direito Internacional dos Refugiados, houve a instituição internacional de
proteção e de direitos para aquelas pessoas que são perseguidas em seu Estado de origem e,
como resultado, são obrigadas a se deslocarem dentro e fora da fronteira de seus Estados.
Porém, vê-se que apesar de positivado e internacionalizado, há uma grande dificuldade para o
16
O Direito Internacional Humanitário é “o corpo de normas internacionais de origem convencional ou
consuetudinária especificamente destinado a ser aplicado aos conflitos armados, internacionais ou não
internacionais, que limita, por razões humanitárias, o direito das partes em conflito escolherem livremente os
métodos e meios utilizados na guerra ou que protege as pessoas ou os bens afetados, ou que possam ser afetados
pelo conflito.” (SWINARSKI, 1996, p. 18).
30
que Direito Internacional dos Refugiados se efetive, visto que tal acontecimento depende da
atuação e comprometimento dos Estados. De acordo com a Convenção de Genebra de 1951
relativa ao Estatuto dos Refugiados, juntamente com o Protocolo Adicional de 1967, foram
designados os direitos dos refugiados como também os deveres dos Estados em cumpri-los
(JUBILUT, 2007).
Além disso, foram estabelecidos critérios no âmbito internacional que asseguram o
status de refugiado, os quais se definem em cinco: raça, nacionalidade, religião, opinião
política e pertencimento a um grupo social. O status de refugiado tem o objetivo de preservar
todos os direitos do indivíduo que se encontre nessa situação de vulnerabilidade, assim, são
utilizados critérios objetivos e subjetivos para que haja a concessão do status. O critério
objetivo baseia-se no contexto que se encontra o Estado de origem, de forma que se
demonstre a justificativa da solicitação do status de refúgio. Já o critério subjetivo, pode ser
identificado com base no temor que o indivíduo tem de perseguição por causa de um ou mais
dos cinco fatores citados anteriormente (JUBILUT, 2007).
Para mais, de acordo com a Convenção de 1951, uma série de direitos são garantidos
aos refugiados. Esses indivíduos têm o direito a um lugar seguro de refúgio, como também
têm o direito a não discriminação quanto a raça, religião ou Estado de origem, a liberdade
religiosa, como também todos os direitos que são resguardados a estrangeiros que residem
naquele Estado. Para mais, eles possuem direitos econômicos, sociais, educacionais e de
saúde, como qualquer outro indivíduo (ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS
PARA REFUGIADOS, 20--b).
Em dezembro de 1950 foi criado o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR), órgão que tem como objetivo e responsabilidade a manutenção da
proteção internacional dos refugiados. Esse, a priori, atuou com base na Convenção de 1951 e
iniciou suas atividades nesse mesmo ano. Ademais, o ACNUR foi instituído como um órgão
temporário, com mandato inicial de três anos que precisava ser renovado a cada término, ele
foi criado especificamente para lidar com o grande número de europeus deslocados depois da
Segunda Guerra Mundial. Entretanto, houve a reformulação da Convenção de 1951 pelo
Protocolo de 1967, que promoveu algumas alterações na Convenção, como a extensão da
atuação do ACNUR para além do amparo das vítimas de guerra e para além dos Estados
europeus. Somente no ano de 2003 foi anulada a cláusula que determinava a renovação da
atuação do órgão de três em três anos, o que permitiu que ele se tornasse permanente (ALTO
COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, 20--c).
31
É necessário pontuar que o ACNUR não tem como objetivo substituir o papel
desempenhado pelos Estados, pelo contrário, ele tem como objetivo conscientizá-los de suas
obrigações com os refugiados. Entretanto, quando os Estados não assumem as suas
responsabilidades no que tange a recursos governamentais como a garantia alimentar,
moradia, subsídios financeiros e infraestrutura básica, organizações como o ACNUR atuam
de maneira incisiva na assistência das pessoas que vivem em um contexto de refúgio. Além
disso, o ACNUR busca promover a autossuficiência dos refugiados através de atividades que
auxiliam na geração de renda e programas que visam a capacitação profissional (ALTO
COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS, 20--b).
Nesse sentido, apesar do ACNUR promover diversas atividades e atuar na proteção
dos refugiados, é notório que o mesmo muitas vezes não dispõe de princípios basilares como
o direito de viver em segurança e com dignidade, principais pontos estabelecidos pela
Segurança Humana. Essa, foi conceituada em 1994 pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) com base em quatro características essenciais, são elas: que a
Segurança Humana é uma preocupação universal, em que é de extrema importância para
nações desenvolvidas e em desenvolvimento; os componentes da Segurança Humana, tais
como a fome, terrorismo, doenças, poluição, tráfico de drogas, disputas étnicas e a
desintegração social, são interdependentes, uma vez que se a segurança das pessoas em um
determinado lugar está em perigo, todas as nações estão envolvidas; é recomendado para a
garantia da Segurança Humana que sejam adotados mecanismos de prevenção precoce, visto
que há uma maior dificuldade na inserção da mesma se estabelecida posteriormente; por fim,
e mais crucial, a Segurança Humana é focada nas pessoas. Logo, ela “Preocupa-se com a
forma como as pessoas vivem e respiram em uma sociedade, com que liberdade exercem suas
escolhas, quanto acesso têm ao mercado e às oportunidades sociais e se vivem em conflito ou
em paz.” (HUMAN DEVELOPMENT REPORT, 1994, p. 23, tradução nossa)17.
Ademais, se faz necessário pontuar que princípios da Segurança Humana não são
estabelecidos também às mulheres refugiadas, que muitas vezes carecem de maneira mais
intensa da segurança e da dignidade do que outros refugiados. Isso porque essas mulheres
enfrentam dificuldades diferentes do que os demais refugiados, a discriminação de gênero,
por exemplo, é um dos fatores que causam e geram consequências para o deslocamento de
mulheres e meninas.
17
It is concerned with how people live and breathe in a society, how freely they exercise their many choices, how
much access they have to market and social opportunities and whether they live in conflict or in peace.
32
18
There is still a conspiracy of silence surrounding the true extent of the problem, and until it is fully
acknowledged women will not receive the services they deserve.
34
3 CAMPOS DE REFUGIADOS
19
As long as there are political borders constructing separate states and creating clear definitions of insiders and
outsiders, there will be refugees.
35
refugiados ocorria nos mais diversos lugares. À exemplo disso, na Antiguidade Clássica, as
pessoas perseguidas por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um
determinado grupo social ou opinião política, careciam de um lugar seguro para se
protegerem e residirem, uma vez que não podiam retornar para o local de origem. Logo, elas
recorriam a templos religiosos, bosques, casas de governantes e outros inúmeros tipos de
abrigo (PEREIRA, 2009). Com o passar dos anos e do aumento do fluxo de refugiados devido
às duas grandes Guerras Mundiais, a sociedade internacional percebeu a existência de uma
obrigação moral em receber esses indivíduos como também de permitir que eles gozem,
mesmo que de maneira limitada, dos direitos estabelecidos por suas políticas domésticas
(HADDAD, 2008).
Os Estados, juntamente com inúmeras Organizações Internacionais, acreditavam que o
“problema dos refugiados” seria resolvido com o pós-guerra, uma vez que, de acordo com
suas concepções, os refugiados estariam livres para retornar a seu Estado de origem na
medida que os fatores que os fizeram fugir haviam sido erradicados (HADDAD, 2008).
Porém, devido ao grande número de refugiados neste período, especialmente judeus, foi visto
que o “problema dos refugiados” não seria cessado somente com o fim da guerra (HADDAD,
2008). A partir desse momento, a questão dos refugiados que já eram tidos como um impasse
por parte dos Estados, passa a ser regulamentada. Foi somente no período entreguerras de
1918 a 1939, que o regime de proteção internacional de refugiados começou a ser elaborado, e
como pontuado no capítulo um, pela autora Liliana Jubilut (2007), apenas a partir da
Convenção de 1951 junto ao Protocolo de 1967, o status de refugiado foi constituído e com
ele, o reconhecimento internacional dessas pessoas (JUBILUT, 2007).
Diante desse cenário, inúmeras instituições foram criadas com o intuito de auxiliar
esses refugiados e garantir que eles tivessem um local seguro para residirem, entre elas o
Comitê Intergovernamental para Refugiados (CIR) em 1938, a Administração das Nações
Unidas para Assistência e Reabilitação (United Nations Relief and Rehabilitation
Administration - UNRRA) em 1943, e a Organização Internacional para Refugiados (OIR) em
1946. No que tange a essa última, seu objetivo era repatriar, proteger e assentar os refugiados
em algum lugar seguro para que posteriormente, eles fossem realocados para seus Estados de
origem. Ademais, é necessário pontuar que cada uma dessas organizações foi criada como
sucessora daquelas que tinham seu mandato vencido (HADDAD, 2008).
Todo esse contexto, juntamente com a instituição da Declaração Universal dos
Direitos do Homem em 1948, foi relevante para reconhecer os refugiados como indivíduos
que precisam de proteção dentro de um Estado. Essa nova compreensão foi de extrema
36
relevância para definir o futuro das pessoas consideradas deslocadas ou refugiadas, uma vez
que as pessoas deslocadas eram reinseridas em seus Estados de origem e aqueles considerados
refugiados, tinham o direito de se estabelecerem em um terceiro Estado (HADDAD, 2008).
Nesse sentido, a UNRRA, juntamente com a OIR, exerceu um papel de extrema
importância no que tange à repatriação e a realocação das milhares de pessoas deslocadas.
Estima-se que foram mais de 704.000 mil pessoas sob cuidados desses órgãos na Alemanha,
Áustria, Itália como também nas regiões da Europa Oriental e Central. Ambos órgãos
auxiliaram na criação de campos de deslocados para realocar essas pessoas (PAIVA, 20--). A
priori, alguns desses campos eram antigos campos militares alemães e foram designados para
realocarem os milhares de judeus no pós-guerra (UNITED STATES HOLOCAUST
MEMORIAL MUSEUM, 20--). Com o estabelecimento da ONU em 1945, viu-se com
urgência a necessidade de estabelecer um órgão específico para os refugiados, uma vez que o
CIR havia encerrado suas atividades e a OIR, estava com seu mandato limitado e duraria até o
ano de 1950. Como resultado, a ONU instituiu o ACNUR, que ficou responsável pela
proteção internacional dos refugiados e pelo gerenciamento de campos de refugiados sob a
tutela da ONU com intuito de salvaguardar a segurança dessas pessoas (PEREIRA, 2009).
Desta forma, de acordo com o ACNUR:
20
Refugee camps are temporary facilities built to provide immediate protection and assistance to people who
have been forced to flee their homes due to war, persecution or violence. While camps are not established to
provide permanent solutions, they offer a safe haven for refugees and meet their most basic needs - such as food,
water, shelter, medical treatment and other basic services - during emergencies.
37
receber todos os indivíduos que são alocados neles. Assim, é uma realidade nestes locais, a
escassez e restrição alimentar, segurança insuficiente, moradias inadequadas, a superlotação,
falta de saneamento básico e falta de acesso à educação. Assim, os casos que são considerados
graves passam a ser normais e cotidianos (PAREKH, 2020).
Para mais, os abrigos que em sua grande maioria são feitos com tendas de plástico, são
muito precários e devem alocar o máximo de pessoas possível. Em muitos casos, os
refugiados não podem trabalhar nem exercer nenhuma atividade que os possibilita obter
renda, o que os torna mais dependentes de ajudas de Organizações Internacionais (OI’S) e
Organizações Não Governamentais (ONG’s). Logo, eles se encontram em uma situação de
espera e inatividade, estando localizados, de acordo com Agier (2011), à margem do mundo e
sem percepção de um futuro fora do campo. Portanto, os refugiados se encontram em uma
situação ainda mais complicada quando o abrigo que deveria ser temporário, se torna
permanente (AGIER, 2011).
Entre os campos oficiais mais antigos, está o campo de refugiados de Zarqa,
localizado na Jordânia. Ele foi criado em 1949 pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha21,
para acomodar os refugiados palestinos que em decorrência da guerra Árabe-israelense,
tiveram que deixar seu território. O campo inicialmente foi montado com tendas, que
posteriormente foram substituídas por instalações de concreto. Com a chegada de mais
refugiados no decorrer dos anos, ele foi se ampliando e adquirindo mais alojamentos, e,
atualmente, se assemelha a bairros urbanos da cidade de Zarqa. É importante mencionar que
um dos maiores problemas enfrentados dentro do campo é a pobreza (ZOCHROT, 2014).
Mesmo com essas condições, o deslocamento de muitos refugiados para os campos
ainda é considerado como um dos melhores caminhos para fugir do perigo do seu Estado de
origem, uma vez que esses locais foram instituídos com o intuito de serem seguros. De acordo
com Parekh (2020), os campos de refugiados são afastados das principais cidades, e estão
localizados em sua maioria em Estados do sul global, principalmente em regiões mais
carentes. Um dos motivos para isso acontecer é para evitar a competição pelos meios de
sobrevivência já escassos, como recursos financeiros, empregos, acesso à educação e saúde,
visto que muitos desses Estados não dispõe de condições abundantes e passam por muitas
dificuldades por estarem em desenvolvimento (PAREKH, 2020).
21
O Comitê Internacional da Cruz Vermelha é uma organização independente de cunho imparcial, que auxilia e
presta assistência às milhões de vítimas de conflitos armados e de outras violências (COMITÊ
INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2021a).
38
22
Sigla em inglês: United Nations Relief and Works Agency for Palestine Refugees in the Near East.
40
Em decorrência disso, vê-se que inúmeros campos de refugiados estão situados nesse
hemisfério, mais especificamente na região da África e do Oriente Médio, de forma de
atender tamanha demanda. Desta forma, grande parte dos campos de refugiados atualmente,
são construídos e administrados pela ONU, por governos, por Organizações Internacionais
(OI's) e Organizações não governamentais (ONG’s), sendo essa administração total ou parcial,
além disso, existem alguns campos em que há uma autoadministração. Para mais, há os
campos não oficiais, isto é, aqueles que não tem o apoio de nenhum governo ou OI. A ONU
presta assistência em diferentes frentes nos campos, sendo o ACNUR um dos principais
administradores. O órgão é subsidiado com apenas 1% do orçamento da ONU, e tem como
principal fonte de financiamento as contribuições de caráter voluntário. Essas, são advindas
de governos e organizações como a União Europeia (UE), que representam 85% do seu
orçamento, como também de Organizações Intergovernamentais (OGI) e financiamentos
conjuntos com 3%, por fim têm-se o setor privado (público, empresa e fundações) com 11%
(UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2021c).
Esse orçamento do ACNUR é direcionado para as diversas atuações sendo em
operações contínuas e programas que atendem a emergência. Vale ressaltar que o ACNUR no
início de sua atuação, em 1950, tinha um orçamento anual de US $300.000 (UNITED
NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2021c). Mas como o seu trabalho foi
mais necessário e presente, os seus custos também aumentaram, e em agosto de 2021, esse
orçamento chegou a US $9,248 bilhões de dólares. Além disso, é necessário pontuar que cerca
de 91% da equipe do ACNUR exercem suas funções em campos de refugiados (UNITED
NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2021c).
41
Além do ACNUR, a ONU tem outros órgãos que atuam na proteção dos refugiados,
como por exemplo, a Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina
(UNRWA)23, em que seu principal financiamento provém dos Estados-membros da ONU e da
UE. O UNRWA conta também com a contribuição da iniciativa privada e de projetos, além
disso, trabalha em conjunto com pequenas organizações regionais, da comunidade e com
ONG 's internacionais (UNITED NATIONS RELIEF AND WORKS AGENCY FOR
PALESTINE REFUGEES, 2021a). No âmbito das Organizações Internacionais, O Comitê
Internacional da Cruz Vermelha (CICV)24 exerce grande papel nos campos de refugiados, seu
financiamento provém de forma voluntária, de Estados-Parte das Convenções de Genebra, por
organizações supranacionais e por doadores de caráter público e privado (COMITÊ
INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2021a).
Ademais, a Organização Médico sem Fronteiras (MSF)25, também é um agente
importante no que tange ao estabelecimento de cuidados à saúde dos refugiados. Atuando em
mais de 70 países em todas as regiões do mundo, o MSF atua fora e dentro de inúmeros
campos de refugiados, oferecendo ajuda médica como consultas médicas, vacinas, cirurgias,
distribuição de kits de ajuda com suprimentos e medicamentos, como também no apoio na
saúde mental, sexual e reprodutiva dos milhões de refugiados, incluindo crianças. Além disso,
eles possuem algumas clínicas médicas móveis dentro de alguns campos como o de Moria, na
ilha grega de Lesbos e também auxiliam na instalação de chuveiros e abrigos, distribuição de
alimentos, água e saneamento dos campos (MÉDICOS SEM FRONTEIRAS, 2015).
Diante de toda essa discussão, é de grande relevância realizar o mapeamento de alguns
dos principais campos de refugiados existentes na atualidade, para que seja possível
compreender de forma mais específica como funciona a estrutura de cada um deles, junto a
realidade vivenciada pelos refugiados. A priori, pode-se pontuar a existência do maior campo
de refugiados do mundo, o campo de Kutupalong-Balukhali localizado no distrito de Cox 's
Bazar em Bangladesh. Devido a chegada massiva de refugiados na região, houve uma
superlotação do campo, ocasionando na escassez dos serviços básicos oferecidos. Como
resultado, os refugiados procuraram abrigo nos arredores do Kutupalong e em todo o distrito
23
Devido ao conflito árabe-israelense (1948), a UNRWA iniciou suas operações no dia 1 de maio de 1950, ela
foi instituída a fim de amparar e desenvolver trabalhos específicos aos refugiados palestinos (UNITED
NATIONS RELIEF AND WORKS AGENCY FOR PALESTINE REFUGEES, 2021b).
24
A CICV é uma organização independente, que tem como objetivo dar assistência às vítimas de conflitos
armados ou de outras situações que são sujeitas a violência, desta forma, buscam assegurar a proteção
humanitária das vítimas (COMITÊ INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2021b).
25
O Médico sem Fronteiras é uma organização humanitária independente e imparcial criada em 1971, que atua
levando ajuda médica e inúmeros outros serviços emergenciais a regiões assoladas por conflitos armados,
epidemias, desastres naturais entre outros (MÉDICOS SEM FRONTEIRAS, 2021).
42
de Cox 's Bazar. Atualmente, o distrito conta com aproximadamente mais de 20 campos,
incluindo o Kutupalong (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES,
2021d).
Na imagem abaixo é possível observar todo o Distrito de Cox 's Bazar e como sua
infraestrutura agrupa os mais de 20 campos, ainda, percebe-se que as estradas não possuem
pavimentação, o que torna difícil o deslocamento dos indivíduos nesta região.
Com cerca de 700.000 refugiados Rohingya26 que fugiram das violências do governo
de Mianmar no período de 2017 a 2018, o distrito de Cox 's Bazar é administrado pelo
ACNUR juntamente ao governo de Bangladesh. Ambos atuam de maneira conjunta para
estabelecer garantias para que a segurança, saúde e os direitos de todos os refugiados sejam
instituídos (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER REFUGEE, 2021d). A região de
Cox 's Bazar é conhecida pelas suas condições climáticas rigorosas, em que há monções
praticamente o ano inteiro. No período de março a outubro chove 80% do estimado para todo
o ano, causando enchentes e desabamentos que geram grandes consequências para os abrigos
e para o sistema de saneamento. Os últimos meses do ano são marcados pelos fortes ventos
que aumentam a possibilidade de incêndios, o que dificulta ainda mais a vida dos refugiados
(PERÍODO…, 2021).
26
Os Rohingya são uma minoria islâmica que não são reconhecidos pelo governo de Mianmar, logo, são
considerados apátridas. O não reconhecimento dessa população está atrelada a questões étnicas, o que faz que
essas pessoas sejam impedidas de exercerem seus direitos. A população ainda é recorrentemente atacada pelo
governo, o que resulta em um cenário de grande deslocamento para fora das fronteiras de seu Estado (JONES,
2017).
43
Nesse sentido, é necessário pontuar que o tipo de moradia no campo vai desde tendas
e barracas disponibilizadas pelo ACNUR, a abrigos feitos com bambu, corda e lona.
Estima-se que desde o início da crise dos refugiados em Mianmar, mais de 50.000 abrigos
foram construídos e 75% destes, são compartilhados com outras famílias (UNITED
NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2018).
Para além do Kutupalong, existem dez principais campos de refugiados gerenciados
pelo ACNUR. Quatro deles estão localizados no Quênia, um na Jordânia, um no Sudão do
Sul, dois na Tanzânia, um na Etiópia e um no Paquistão (UNITED NATIONS HIGH
COMMISSIONER FOR REFUGEES, 20--c).
No que tange ao Quênia, pode-se pontuar o campo de Kakuma, juntamente ao
complexo de campos de refugiados de Dadaab, que são os principais campos gerenciados pelo
ACNUR e, por muitos anos, foram considerados os maiores campos do mundo. O complexo
de Dadaab é constituído por três campos, sendo eles o de Dagahaley, Ifo e Hagadera. O
primeiro deles surgiu por volta de 1990, devido a Guerra Civil na Somália, Estado vizinho do
Quênia. Além do conflito armado, a fome e a seca assolavam os somalis, o que gerou um
grande fluxo para fora da fronteira. Apesar do primeiro campo do complexo ter sido criado
em meados de 1990, os três foram reconhecidos oficialmente somente em 1992. O complexo,
em julho de 2020, tinha uma população de refugiados registrados e requerentes de asilo de
218.873 mil pessoas (CLOSING…, 2021).
No que tange ao Campo de Kakuma, ele foi criado na mesma época que o complexo,
em 1992, quando os “Garotos Perdidos do Sudão"27 buscaram refúgio no Quênia. Além disso,
Kakuma recebeu muitos refugiados etíopes28, que após a queda do governo deixaram o seu
Estado. Esse campo é um assentamento extenso e árido localizado no leste do Quênia. É
importante ressaltar que o complexo de Dadaab, juntamente ao Campo de Kakuma, abrigam
mais de 400.000 refugiados e requerentes de asilo, sendo essas pessoas originárias de mais de
dez Estados (CLOSING…, 2021). Na imagem a seguir, é possível identificar a grande
extensão e estrutura que o campo de Kakuma apresenta. Nela, é visível que o campo se
27
A Segunda Guerra Civil Sudanesa deu-se início em 1983 e geral milhares de pessoas deslocadas, muitas delas
eram crianças. Em 1987 houve um grande fluxo de fuga de meninos sudaneses, em que cerca de 20.000 crianças,
com maioria de apenas seis a sete anos, deixaram suas famílias para fugirem da morte ou para não serem
recrutados pelo exército do norte. Esses, ficaram conhecidos como Garotos Perdidos do Sudão. A caminhada
deles era muito distante, e para chegar até o campo, precisavam andar por mais de 1.600 quilômetros. Cerca da
metade dessas crianças não conseguiram chegar até o campo e morreram no caminho (THE …, 2014).
28
A Guerra Civil da Etiópia teve como início uma série de movimentos sociais no qual a população pegou em
armas para iniciar uma luta armada. Esses movimentos tinham como intuito destituir o governo da época de
Haile Selassie, que implementou o regime feudal opressivo (NEGASH, 1997)
44
Mesmo com a extensão do campo de Kakuma, já em 2012, ele havia ultrapassado sua
capacidade máxima do período, que era de 100 mil pessoas, isso ocorreu devido à chegada
massiva de refugiados nos dois anos anteriores. Esse cenário fez com que o campo tivesse que
encontrar maneiras de expandir e desenvolver formas de aumentar o abastecimento de água
potável, que era restrita no local. O complexo de Dadaab e o campo de Kakuma são centros
comerciais e econômicos, uma vez que os refugiados estão ativamente envolvidos na
economia local. No que tange ao campo de Kakuma às movimentações econômicas
apresentam grande fluxo. Nesse sentido, os refugiados deixaram de ser consumidores
passivos, e passaram a ser empreendedores, e importantes agentes para o crescimento da
economia do campo. Desta forma, existindo mais de 2 mil negócios no campo e mais de 200
lojas na cidade de Kakuma em que os refugiados estão envolvidos. No que tange ao complexo
de Dadaab, os três campos que ainda estão em funcionamento têm um próprio mercado com
suas particularidades, logo, quando analisado os três juntos há uma grande diversidade, tanto
no que tange a bens de consumo quanto a serviços prestados (CLOSING…, 2021).
Para além dos campos supracitados, é de grande relevância para essa pesquisa trazer
informações sobre outro campo de refugiados que se localize em uma região que enfrenta um
45
cenário de conflitos armados, e que também seja considerado um dos maiores campos de
refugiados do mundo, o Al Zaatari, localizado no Oriente Médio. Criado em 2012 pela
Diretoria de Assuntos de Refugiados da Síria junto ao ACNUR, o campo tem o intuito de
oferecer proteção aos milhares de refugiados provindos da Guerra Civil da Síria. Até o final
do ano de 2013, o campo Zaatari recebeu cerca de 200 mil refugiados, devido ao enorme
fluxo de pessoas fugindo da guerra (LEDWITH, 2014). Em dias atuais, o campo conta com
cerca de 80.000 refugiados e mais da metade dessas pessoas são crianças. Como estrutura, ele
possui cerca de 32 escolas, 8 clínicas médicas e 58 centros comunitários (UNITED NATIONS
HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2021e). Outro fator importante é que ele recebe
financiamento e doações de inúmeras organizações internacionais como a própria ACNUR,
no que tange a assistência médica como também em inúmeros outros setores. Além do
ACNUR, o Fundo das Nações Unidas Para a Infância (UNICEF) também auxilia na educação
das crianças no campo (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES,
2021e).
campo relataram preocupação no que tange a saúde mental dos refugiados. O nível de
violência dentro do campo é alto, muitos refugiados se rebelam contra a polícia e os atacam
usando pedras (LEDWITH, 2014).
Ademais, as mulheres encontram uma realidade ainda mais difícil, além de
enfrentarem todas as dificuldades dentro do campo, elas ainda estão expostas à violência
baseada em gênero. À exemplo disso pode-se pontuar o estupro coletivo de uma gang de
sírios contra uma menina de 14 anos dentro do campo, além de outros casos de violência
doméstica e estupro por parte de familiares. Sabendo da importância em se compreender a
realidade das mulheres refugiadas, serão discutidos na próxima seção a vivência delas em um
contexto de refúgio (LEDWITH, 2014).
Para além dos campos supracitados, tem-se o campo de Moria, localizado na ilha
grega Lesbos, que é considerado o pior campo de refugiados do mundo. As condições
climáticas da ilha agravam o cenário de refúgio, o clima quente e úmido do verão e o clima
chuvoso e frio do inverno, juntamente ao fato deles viverem em tendas de plástico abafadas,
faz com que a vivência dentro do campo seja muito dificultada. Com uma capacidade inicial
para 2.800 pessoas, o campo possuía até o ano de 2019, mais de 15.000 refugiados,
representando assim o maior campo de refugiados da Europa. Além disso, o campo é
composto em sua grande maioria de tendas e barracas, e dispõe de apenas um chuveiro para
cada 506 pessoas como também um banheiro para cada 210 pessoas. Dentro do campo as
condições são precárias, os refugiados têm somente uma estrutura para diversas finalidades,
por exemplo, no mesmo local em que eles realizam sua higiene pessoal como escovar os
dentes, é onde eles lavam os pratos, os pés e realizam outras atividades. O acesso à educação
no campo é muito restrito, e as poucas crianças que estudam vão para escolas criadas por
ONG’S (ROSILLO, 2019).
Imagem 4: O campo de Moria
47
campos, uma vez que ela é uma das únicas saídas para que as mulheres refugiadas consigam
obter alimentos e dinheiro (ONUSIDA,1997). Ela está completamente relacionada a
objetificação do corpo feminino, que como foi debatido no primeiro capítulo, possui relação
ao estabelecimento do contrato sexual, em que a venda dos serviços sexuais femininos
corrobora para a perpetuação da estrutura patriarcal. Portanto, é visto como essa estrutura se
faz presente nos campos. Além disso, cada vez mais cedo as crianças dentro dos campos têm
contato com a prostituição e atividades de cunho sexual (ONUSIDA, 1997).
Para mais, é necessário levar em consideração que as mulheres enfrentam um outro
problema complexo. A saúde sexual e reprodutiva (SSR), apesar de ser um direito básico a
todos, em muitos casos não é a realidade, principalmente quando refere-se a mulheres em um
contexto de refúgio residente em um campo de refugiados. A SSR implica nos cuidados a
vida sexual satisfatória e segura das pessoas, logo, a saúde reprodutiva consiste em “amplo
espectro de cuidados, incluindo cuidados maternos e neonatais, acesso a anticoncepcionais e a
prevenção e tratamento do HIV ou outras infecções sexualmente transmissíveis” (UNITED
NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2021f).
Mas, para mulheres e meninas refugiadas, esse direito não prevalece, e o cuidado
direcionado a essa área é limitado. Assim, os riscos que essas mulheres e meninas enfrentam
aumentam consideravelmente, sendo mais possível a ocorrência, por exemplo, de gravidez
indesejada, doenças, complicações durante o período gestacional e morte (WOMEN 'S
REFUGEE COMMISSION, 2021a). Ademais, inúmeras grávidas relatam que dormem sob
uma lona no chão e que não há acesso a nenhum serviço ou cuidado médico, como o pré-natal
(TAGARIS; REUTERS, 2018). Diante desse cenário, o ACNUR e outras organizações, como
a Comissão de Mulheres Refugiadas29, buscam desenvolver mecanismos como forma de
minimizar esse grande problema e possibilitar que as refugiadas tenham acesso a SSR. O
ACNUR desenvolveu estratégias que priorizam o atendimento materno e neonatal, e visam
amparar as mulheres durante e após o trabalho de parto, visto que é o momento em que mais
ocorrem mortes. Além disso, o ACNUR visa implementar “acesso e cuidados pré e pós-natal,
manejo clínico de sobreviventes de estupro e violência por parceiro íntimo, tratamento de
complicações relacionadas ao aborto” (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR
REFUGEES, 2021f) entre outros tratamentos e cuidados.
29
Criada em 1989, a Comissão de Mulheres Refugiadas tem o objetivo de ajudar as milhões de mulheres e
crianças refugiadas a terem acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva (WOMEN 'S REFUGEE
COMMISSION, 2021b).
49
não possuem trancas nem eletricidade, e que enquanto estavam tomando banho outros homens
entraram dentro do banheiro (TAGARIS; REUTERS, 2018).
Sabendo de tamanha dificuldade vivida pelas refugiadas, foi desenvolvida a iniciativa
Shower for Sisters (banheiro para irmãs), formada por inúmeras voluntárias de todo o mundo.
A iniciativa tem o intuito de oferecer o uso de chuveiros privados para mulheres e crianças
nos campos de refugiados de Lesbos, na Grécia. Além do banho seguro, também são
disponibilizados sabonetes líquidos, toalhas e lenços, que auxiliam na higiene feminina e
devolvem às mulheres a autoestima e a esperança de dias melhores (SHOWER FOR
SISTERS, 2021). Apesar de ser uma iniciativa de grande relevância, pode ser considerada
uma exceção dentre tantos campos de refugiados no mundo.
Também há inúmeros relatos em campos no Oriente Médio e na África que
exemplificam a realidade das mulheres refugiadas, deixando explícito os inúmeros assédios,
violências e situações machistas a que elas estão expostas. Segundo reportagem publicada
pela emissora de notícias britânicas, British Broadcasting Corporation (BBC), diversos relatos
revelam que comida e carona são ofertados às mulheres refugiadas sírias por troca de sexo.
Muitas mulheres disseram que preferem não ir ao centro de distribuição de suprimentos, pois
temem que as pessoas suponham que estão indo oferecer o seu próprio corpo. Muitos dos
relatos afirmam que membros e capacetes azuis30, representantes da ONU e de outras
organizações internacionais estão envolvidos com o abuso sexual de mulheres, explorando-as
sexualmente em troca de ajuda humanitária (O’DOWD, 2018).
Diante disso, faz-se necessário trazer informação sobre a resposta do próprio conselho
executivo do ACNUR sobre todas essas violações, em 1993, que designou que:
Em muitas situações de refugiados, particularmente aquelas envolvendo o
confinamento de refugiados em campos fechados, as normas tradicionais de
comportamento e restrições são quebradas. Em tais circunstâncias, mulheres e
meninas refugiadas podem ser estupradas por outros refugiados, agindo
individualmente ou em gangues, e líderes autoproclamados podem frustrar as
tentativas de punir os infratores. Em certas situações de campo, sabe-se que
mulheres e meninas desacompanhadas entram nos chamados “casamentos de
proteção” para evitar a agressão sexual. A frustração da vida no acampamento
também pode levar à violência, incluindo abuso sexual, dentro da família.
(EXECUTIVE COMMITTEE OF THE HIGH COMMISSIONER'S
PROGRAMME, 1993, p. 8, tradução nossa).
Todavia, sabendo que tais violações advém não só de refugiados dentro dos campos
como também dos próprios seguranças e de agentes de organizações como a ONU, o ACNUR
lançou em 2008 o Manual para Proteção de Mulheres e Meninas no qual reafirma a urgente
30
Militares membros dos exércitos nacionais de seus próprios Estados que são designados para trabalhar sob o
comando da ONU, assim, são conhecidos como capacetes azuis (UNITED NATIONS PEACEKEEPING, 20--).
51
Assim como falado anteriormente pelas autoras Elisabeth Rehn e Ellen J. Sirleaf
(2002), as mulheres enfrentam situações de violência onde quer que estejam, logo, quando
analisamos dentro do campo de refugiados, vemos que essa afirmação condiz com a realidade.
Ainda, pelo fato dos homens se imporem historicamente sobre as mulheres e analisando todos
os relatos trazidos nesta seção, evidencia-se que o contexto de dominação masculina advindo
da estrutura patriarcal, se faz presente dentro dos campos. Além disso, a precariedade dos
campos torna as mulheres ainda mais vulneráveis, uma vez que a falta de estrutura que atenda
suas necessidades, as coloca em situações de desconforto, vulnerabilidade e insegurança.
Levando em consideração o principal objetivo dessa pesquisa e tudo que foi abordado
anteriormente, esse capítulo procurará analisar de forma específica a vivência das mulheres
refugiadas dentro dos campos, adotando como estudo de caso o complexo de campos de
refugiados de Dadaab no Quênia. Para isso, será pontuado a história do complexo, juntamente
com o conflito da Somália, buscando analisar como esse foi um dos principais motivos que
levou à criação do complexo. Além disso, será caracterizado os campos que compunham o
complexo a fim de entender suas especificidades como também os motivos de somente três
dos cinco campos se manterem em funcionamento atualmente. Ainda, serão analisados os
motivos pelos quais dois campos foram fechados e os outros se encontram ameaçados, e
como o complexo se encontra na atualidade. Por fim, na última seção serão levantados dados
acerca das vivências das mulheres refugiadas no complexo de Dadaab, e como a cultura e
outros fatores influenciam e agravam a realidade das mulheres.
31
O Ifo 2 ficava localizado entre o Ifo 1 e Dagahaley. Enquanto o Câmbios ficava localizado no Fafi, ao sul do
campo Hagadera.
54
estima-se que metade do acampamento tem riscos de inundação. Uma parte do acampamento
encontra-se em uma situação de grande pobreza e algumas estruturas e alojamentos não foram
substituídos desde a criação do campo. Além disso, em função da proibição do governo do
Quênia sobre a construção de mais abrigos definitivos, novos abrigos temporários foram
criados (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2015b).
Os refugiados vivem em um cenário de grande insegurança, visto que a segurança
desse campo é muito precária. Devido a isso, já foram registrados ataques de granadas,
explosivos improvisados, assassinatos, roubos e entre outros. Nesse sentido, existe um abrigo
temporário para famílias que foram ameaçadas diretamente. Além disso, há também um
ambiente de proteção para mulheres e crianças que enfrentam situações de risco de vida.
Esses acolhimentos são temporários até que uma medida mais definitiva seja tomada
(UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2015b).
No âmbito educacional as coisas também se desdobram de forma precária, no campo
há oito escolas primárias e duas secundárias, além disso, há dois centros, um voltado para a
alfabetização de adultos e o que se desempenha como um centro vocacional para jovens.
Entretanto, as escolas são poucos frequentadas visto a falta de infraestrutura, material e de
professores. O campo dispõe de serviços que auxiliam crianças com necessidades especiais,
entretanto é bem limitado. Ainda, há o programa de lar adotivo para crianças vulneráveis e
existe o Espaço Amigos das Crianças. No que tange à esfera da saúde, o campo dispõe de seis
postos de saúde, o que está muito abaixo do que atenderia as pessoas que vivem dentro dele,
uma vez que eles vivem superlotados, o que diminui a eficiência do atendimento. Há também,
um hospital em que são realizadas cirurgias e tratamento para HIV. Além disso, são oferecidos
alguns serviços pré-natais e há atendimentos obstétricos de emergência 24 horas, como
também há o encaminhamento de crianças com casos graves de desnutrição para o centro de
estabilização. Diante desses fatos, percebe-se que apesar do campo dispor de alguns serviços
básicos, ele ainda possui uma estrutura restrita, uma vez que não consegue fornecer um acesso
de saúde digna para todos (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES,
2015b).
A estrutura da comunidade é autossuficiente no que tange a governabilidade e
organização do campo, ele possui dois presidentes, além dos líderes das seções e líderes dos
blocos. Desta forma, é decidido por meios coletivos os presidentes gerais, ainda, é importante
ressaltar que a maior parte das decisões são tomadas pelos homens, assim, as mulheres não
têm uma participação muito ativa neste campo. Além disso, os jovens têm grupos que atuam
em diversos setores, como em direitos humanos, empoderamento feminino e prevenção da
56
Para além do campo Ifo, o campo de Dagahaley foi criado em março de 1992 e é
dividido por seções e dentro das seções há blocos. De acordo com o banco de dados do
ACNUR, entre os anos de 2006 e 2011 o campo recebeu muitos refugiados, que acabaram se
58
32
Cinco das escolas primárias são abastecidas com base em energia solar instituída pelo Ministério da Educação
do governo do Quênia (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2015c).
59
tem o foco em crianças, e em casos de desnutrição severa elas são internadas no hospital do
campo. Para além das questões de saúde, é necessário analisar outro fator que também torna a
estrutura ainda mais limitada, a disponibilidade de água potável. O campo dispõe de sete
poços artesianos, entretanto, o equipamento não tem um bom funcionamento e possui baixo
rendimento para suprir toda a população (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER
FOR REFUGEES, 2015c). Para um melhor entendimento da disposição das estruturas
tratadas acima, a seguir está posto o mapeamento da estrutura do campo de Dagahaley.
60
em casas/alojamentos. São muitos os relatos de casos de mortes por complicações nos partos
a domicílio, sendo a estimativa de que 12% das crianças podem nascer sem vida (UNITED
NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEES, 2015d). Diante de tudo que foi
exposto, a seguir é possível visualizar o mapeamento do campo Hagadera, para que seja
possível uma melhor visualização do campo e de como o mesmo é estruturado.
Agora que pontuado a estrutura dos campos do complexo, se faz necessário abordar
como este se encontra na atualidade e sobre fluxo de refugiados atual. No decorrer dos anos,
foram vistos deslocamentos massivos de refugiados para o Quênia, principalmente para o
complexo de Dadaab, o que resultou em uma superlotação do complexo. Durante o período de
2011, foram vistos mais de mil refugiados se estabelecendo em Dadaab todos os dias,
63
Como resultado o ACNUR soltou uma nota oficial através da ONU, fazendo um apelo
ao governo queniano para que ele reconsiderasse tal medida de fechamento, uma vez que,
essa traria incontáveis consequências humanitárias para a região, já que os refugiados não têm
para onde ir (ACNUR…,2015). Agindo nesse sentido, o governo queniano viola o princípio
de non refoulement, estabelecido no Artigo 33 da Convenção de 1951 no qual estabelece que:
33
Entende-se como poligamia as relações afetivas e sexuais de um homem com mais de uma mulher
(CERQUEIRA, 2020).
66
homens (LEWIS, 1993). Em 1975 foi criada a Lei da Família, em que afirma que as mulheres
teriam o mesmo direito de herança que o homem, entretanto a aplicabilidade da lei é
questionável. Na cultura somali, é nítido como a estrutura prevalece da superioridade
masculina sobre a feminina. Práticas como o fato de os homens andarem à frente das
mulheres, como também na divisão sexual do trabalho, no qual as mulheres ficam
responsáveis por atividades menos renomadas como por exemplo, cuidar de animais de
pequeno porte, enquanto o homem, de animais de grande porte, corroboram para que o
cenário de vulnerabilidade e castidade feminina seja perpetuado e reforçado (LEWIS, 1993).
Outras práticas como o casamento arranjado e a mutilação da genitália feminina são habituais
na cultura somali.
Desta forma, a estrutura patriarcal juntamente com fatores culturais e históricos
somalis designa o formato de relações entre homens e mulheres vigente no Estado e esse
formato se estende para o campo de refugiados. Ainda no que tange a esses aspectos, e
retomando o que foi pontuado no primeiro capítulo pela autora Ortner (1979), é notório que a
grande maioria das culturas tem base patriarcal, podendo variar os tipos de relações que são
estabelecidas e o grau de violências vivenciadas em cada uma. Devido a isso, nem todas as
mulheres vivem um cenário de opressão nas mesmas condições, logo, o fator cultural faz com
que as condições de algumas mulheres sejam mais agravadas do que outras. Nesse sentido, as
pessoas refugiadas que chegam até os campos carregam consigo um arcabouço cultural de
suas sociedades de origem, e devido a isso, elas passam a reproduzir suas práticas culturais
dentro destes locais, influenciando na dinâmica dos campos de refugiados. Logo, quando
analisado o Complexo de Dadaab, e tendo em vista que a grande maioria da população é
proveniente da Somália, é perceptível que a cultura somali é predominante no complexo, o
que leva a população a reproduzir as práticas culturais. Desta forma, as opressões e
subordinações vividas pelas mulheres em seus Estados de origem se estendem para os
campos, tanto no que tange aos aspectos de gênero, como em relação ao cenário de refúgio e
as dificuldades encontradas dentro dos campos.
Fugindo da insegurança de seu e Estado de origem, que como já foi pontuado, está em
Guerra Civil, as mulheres somalis juntamente com milhares de refugiados se deslocam em
direção ao complexo de Dadaab, uma vez que esse é geograficamente próximo à fronteira
com a Somália, tornando o acesso mais fácil (RAWLENCE, 2016). Esse deslocamento é
caracterizado como spill over que, assim como foi analisado no primeiro capítulo, é uma das
consequências do cenário da Guerra Civil. São encontradas adversidades antes mesmo de
chegarem ao complexo. A priori, o início desse deslocamento começa com o transporte, que
67
na região possui um valor elevado, ainda mais com alta demanda. Logo, aqueles que não
possuem condições financeiras para isso, vão caminhando até o complexo, que fica a cerca de
713 km de distância de Mogadíscio, capital da Somália. Além disso, há milícias em toda a
região da fronteira, que atacam um a cada três veículos, multando os refugiados e em muitos
casos assediando as mulheres (RAWLENCE, 2016).
Dentro do campo, a realidade das mulheres refugiadas é árdua. De acordo com o
Documento de Emergência de 2011, que realizou uma avaliação sobre a situação vivida pelas
mulheres e meninas no complexo de Dadaab, foi concluído que o nível de violência se
encontra inaceitável, as refugiadas passam por violência sexual desde a jornada para os
campos, logo, elas vivem essa realidade de forma intensa desde o caminho e dentro do
acampamento, correndo o risco de sofrerem algum tipo de violência baseada em gênero
(REFUGEE CONSORTIUM OF KENYA, 2012). Como já foi pontuado no primeiro capítulo,
a VBG abrange atos de agressão que gerem algum tipo de dano à mulher, seja ele físico ou
psicológico (INSTITUTO IGARAPÉ, 2018).
Levando em consideração o que foi caracterizado no segundo capítulo, percebe-se que
as condições encontradas nos campos são precárias, o que dificulta a vivência das refugiadas.
No que concerne ao Complexo de Dadaab, atividades simples que exigem sair do
acampamento, como buscar lenha ou água colocam as mulheres em perigo. É importante
ressaltar que os banheiros dos acampamentos são compartilhados, e não há banheiros
separados pelas sensibilidades de gêneros dentro e ao redor dos acampamentos. Desta forma,
ao ir ao banheiro as mulheres e meninas estão sendo expostas. De acordo com a pesquisa34
35
realizada pelo Consórcio de Refugiados do Quênia (CRQ) , sobre os acampamentos do
complexo, os entrevistados alegaram que o perigo é constante. Nas entrevistas realizadas em
2011, 14% dos entrevistados afirmaram terem sido vítimas de alguma forma de VBG e 31%
afirmaram que conheciam pessoas que já haviam passado por VBG (REFUGEE
CONSORTIUM OF KENYA, 2012).
Praticamente um terço das mulheres que residem no campo de Dagahaley
compartilharam que foram vítimas de VBG. Elas afirmaram que esse problema é recorrente
desde que algumas chegaram em 1991, de forma que com o passar dos anos as
recém-chegadas são ainda mais expostas. Isso está completamente relacionado com a
34
A pesquisa foi realizada em junho de 2012 pelo CRQ, e financiada pelo Conselho Dinamarquês para
Refugiados (RDC). Esta foi feita através do estudo de caso e revisão documental de documentos jurídicos e
políticos (REFUGEE CONSORTIUM OF KENYA, 2012).
35
O Consórcio de Refugiados do Quênia é uma das principais organizações não governamentais que fornecem
assistência jurídica e aconselhamento psicossocial, atuando na proteção e garantia dos direitos dos refugiados no
Quênia (REFUGEE CONSORTIUM OF KENYA, 2019).
68
superlotação dos campos, uma vez que ao chegar no acampamento elas não encontram
alojamento no interior do complexo, fazendo com que elas fiquem alocadas nas áreas
periféricas do mesmo. Essas áreas não dispõem de segurança ou estrutura capaz de garantir o
bem-estar dessas refugiadas. Muitas delas foram realocadas para os acampamentos Ifo 2 e
Câmbios, criados para suprir essa superlotação. Ademais, esses campos por serem novos, não
dispunham de uma estrutura consolidada. Isso fazia com que os serviços nos acampamentos -
Ifo 2 e Câmbios - ainda fossem muito limitados, diante disso as mulheres que foram
transferidas para o Câmbios tinham que buscar materiais básicos de subsistência, como
comida e água no campo Hagadera (REFUGEE CONSORTIUM OF KENYA, 2012).
Os novos campos não tinham nenhum tipo de segurança, desta forma haviam muitas
ocorrências de VBG, principalmente a violência sexual. Elas relatam que os abusos
acontecem pela população dos acampamentos e pela comunidade anfitriã, e as noites são
ainda mais perigosas dentro dos campos. Fora deles, as refugiadas relataram que é muito
frequente a violência sexual por bandidos armados. Além disso, foi pontuado que muitas
vezes as vítimas reconhecem e reencontram seus abusadores e têm que viver com isso
(REFUGEE CONSORTIUM OF KENYA, 2012).
Através da pesquisa realizada pelo Consórcio de Refugiados do Quênia, entende-se
que mulheres solteiras ou que chefiam famílias também passam por uma discriminação
intensificada, visto que é uma condição que foge dos padrões sociais estabelecidos pela
estrutura patriarcal e dessa forma, não é bem vista na sociedade. Logo, para além de passarem
pelas condições de serem mulheres e refugiadas, elas enfrentam todas essas condições sem
nenhum aparato familiar. A pesquisa ainda aponta que diversos relatos sobre o abandono
familiar e, como neste contexto, o número de divórcios tem um grande aumento. Isso faz com
que haja muitas famílias monoparentais36 lideradas por mulheres nos campos, o que aumenta
a discriminação sofrida por elas (REFUGEE CONSORTIUM OF KENYA, 2012).
Porém, de acordo com o especialista em estudos africanos da Universidade de
Birmingham na Inglaterra, Jeff Crisp (1999), houve uma alteração nos papéis sociais que
estruturalmente são designados para os homens e mulheres quando analisado o contexto de
refúgio. Os homens, que historicamente são os provedores do lar e que designam sua posição
de poder sobre as mulheres, se veem ameaçados em um contexto de refúgio, uma vez que eles
perderam o foco central de serem os únicos garantidores do sustento da família (CRISP,
1999).
36
Classifica-se como família monoparental aquela formada apenas por um genitor, ou seja, por somente um
responsável (MADALENO, 2018).
69
Logo, de acordo com o que foi discutido anteriormente através de Pateman (1993), em
que os homens tinham total autonomia tanto na esfera pública quanto privada, em um cenário
de refúgio, os mesmos perdem a dominação instituída na área econômica, no qual é um fator
relevante para sua autoridade e liderança frente às mulheres. No entanto, as mulheres
passaram a atuar com grande frequência dentro dos campos, sendo aquelas encarregadas de
cuidar dos filhos e do preparo da alimentação, que inclui a busca perigosa de lenha. Ademais,
esse cenário também acontece quando analisamos o contexto de conflitos armados pois assim
como foi pontuado no primeiro capítulo, os companheiros das mulheres se tornam
combatentes, deixando toda a responsabilidade familiar sobre elas. Logo, a redução do papel
masculino trouxe à tona a necessidade dos homens de reiterarem sua autoridade frente às
mulheres, o que resulta nos inúmeros casos de violência doméstica e sexual dentro do
complexo (CRISP, 1999).
De acordo com o relatório do ACNUR sobre as violências de gênero dentro do
complexo de Dadaab, no ano de 2014 cerca de 623 casos foram relatados. Já em 2015, foram
533 casos, nos quais 96,2% das vítimas são mulheres, contra 3,7% de homens. Deste total,
8,6% são crianças. Como resposta, a organização enviou uma equipe de 2164 pessoas
especializadas em violência de gênero para o complexo, 228 foram direcionadas para o campo
Ifo, 113 para o Ifo 2, 662 para Dagahaley, e 401 para os campos Hagadera e Câmbios
(UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR REFUGEE, 2015e). Há fatores que
conduzem as refugiadas de Dadaab a não relatarem nenhum tipo de violência, como o medo
de seus companheiros a abandonarem e não proverem nenhum tipo de suporte financeiro,
como também o não reconhecimento desses com seus filhos e de não conseguirem se casar no
futuro (WHAT WORKS, 2018). Esses fatores estão completamente relacionados à condição
de subordinação das mulheres aos homens estabelecida pela estrutura patriarcal, que de
acordo com Beauvoir (1989), faz com que o homem seja pensado sem a mulher, mas a mulher
não sem o homem (BEAUVOIR, 1989).
De acordo com Ben Rawlence (2016), os casos de estupro aumentaram um terço no
decorrer dos anos, além disso, uma a cada três mulheres dentro do complexo de Dadaab já
foram atacadas. Ele pontua os relatos de Selma, uma refugiada somali que foi estuprada e
meses depois levada ao hospital do complexo, quando descobriu que estava grávida de seu
estuprador. Devido às condutas religiosas de seus familiares ela foi obrigada a se casar com
ele (RAWLENCE, 2016). Para mais, no campo de Hagadera, foi relatado que uma criança de
apenas dez anos foi estuprada durante a tarde quando cuidava de cabras nos arredores do
acampamento. A família da menina recorreu ao ACNUR e às ONG 's e também à polícia do
70
campo, entretanto, não houve medidas rápidas e o abusador acabou fugindo (REFUGEE
CONSORTIUM OF KENYA, 2012).
Em adição a isso, a coordenadora do Centro de Vítimas de Tortura em Dadaab, Sarah
Farah, relata que estava trabalhando no escritório da ONU dentro do complexo quando
conheceu uma menina de 16 a 18 anos que tinha dois filhos. Ainda que não havia contado o
motivo de ter ido até lá, a coordenadora acredita que ela estava procurando proteção da ONU
contra casamentos forçados, uma vez que inúmeras meninas menores de 16 anos recorrem ao
centro para buscar proteção contra o casamento infantil. Ela ainda relata que o número de
meninas matriculadas em escolas dentro do complexo é baixo devido ao medo que os
responsáveis têm de suas filhas serem abusadas sexualmente dentro das escolas ou no
caminho de ida e de volta (FARAH, 2016). Isso pode ser visto mais nitidamente quando
analisamos o que foi pontuado na seção anterior, quando analisamos que em um dos campos
do complexo, a porcentagem de meninas nas escolas era de 21%, enquanto os meninos
representavam a maioria, com 79% (UNITED NATIONS HIGH COMMISSIONER FOR
REFUGEES, 2015c). Devido a isso, e também ao fator cultural e religioso estar muito
presente no complexo, inúmeros pais e responsáveis acreditam que casando suas filhas a
partir dos 10 anos irão protegê-las dos abusadores (FARAH, 2016).
Ademais, há relatos de sequestros, estupros e outros tipos de violências principalmente
quando mulheres e meninas saem para pegar lenha nos arredores do complexo, por esse
motivo, elas preferem realizar essa atividade na parte da manhã, pois assim se sentem mais
seguras (WOMEN’S REFUGEE COMMISSION, 2016). Uma pesquisa realizada pelo
programa global What Works, que atua buscando prevenir a violência contra mulheres e
meninas, mostrou que dentro do complexo de Dadaab cerca de 61% das mulheres relataram
ter sofrido algum tipo de violência física ou sexual de seu parceiro ou familiar, enquanto 47%
delas relataram o mesmo tipo de violência em um período inferior a um ano (WHAT
WORKS, 2018).
Ainda, através das entrevistas realizadas pela pesquisa, foi visto que alguns dos
perpetradores de violências contra as mulheres e meninas refugiadas são os homens dentro do
complexo, sendo eles seus parceiros, familiares ou indivíduos que trabalham naquela região.
Em uma dessas entrevistas, uma sobrevivente de apenas vinte anos relatou que esses tipos de
violência são recorrentes e que provavelmente o índice de mulheres abusadas e estupradas
deve ser maior do que apontam as pesquisas, uma vez que muitos relatos não são feitos, como
já pontuado anteriormente. Outra sobrevivente afirmou que vive uma vida com insegurança e
medo, pois ela é provedora de seu lar e ainda deve cuidar de suas sete filhas. Ela expressa sua
71
preocupação com a segurança delas, pois sabe que estão recorrentemente em risco de serem
estupradas, abusadas e sequestradas (WHAT WORKS, 2018).
Diante do alto nível de estupro dentro do complexo, várias mulheres decidiram
deixá-lo e optaram por retornar para a Somália, afirmando que preferem “morrer com
dignidade” se referindo ao conflito que assola seu Estado de origem, do que viver com medo
de serem estupradas. Para mais, os atores que deveriam zelar e garantir a segurança dos
refugiados e dar todo suporte necessário para o seu bem-estar, são também alguns de seus
agressores, como os policiais e guardas quenianos que trabalham no complexo. Eles utilizam
de sua posição privilegiada para praticar incontáveis violências contra aqueles considerados
mais vulneráveis, como mulheres e meninas (RAWLENCE, 2016).
Outra prática que também é tida em alguma medida como comum no complexo, são
os casamentos precoces, em que na maioria dos casos acontecem em função de fatores
econômicos, uma vez que esses se tornam ainda mais difíceis devido ao contexto de refúgio.
Um mecanismo que algumas famílias encontram para manter sua sobrevivência é cobrar um
preço sobre a noiva, o que corrobora para um cenário de objetificação da mulher e faz com
que as meninas não tenham escolhas sobre a sua própria vida. É importante ressaltar que no
Quênia existe a Lei do Casamento, em que proíbe o casamento de pessoas abaixo dos 16 anos.
Todavia, a aplicabilidade da lei no complexo é muito baixa, principalmente porque grande
parte dos casamentos são realizados apenas por meio de cerimônias religiosas. Diante desse
cenário, alguns atores juntamente a algumas ONG’s, desenvolveram um projeto que tenta
fazer com que os responsáveis pelos menores de idade assinem um acordo em compromisso
que não casem os filhos até que eles completem dezoito anos (REFUGEE CONSORTIUM
OF KENYA, 2012).
É de grande relevância pontuar que os casamentos precoces ocorrem devido a fatores
estruturais como a cultura, religião juntamente ao medo que os pais e familiares têm de suas
filhas serem abusadas, e como discutido pela coordenadora do centro de vítimas de tortura em
Dadaab, Sarah Farah, os pais casam suas filhas precocemente como forma de proteção dos
abusadores presentes dentro do Complexo.
Outra violência contra mulher que está instituída de forma muito intensa na cultura da
região e que aflige diretamente na saúde das mulheres é a MGF. Na Somália, a mutilação
genitália feminina é praticada recorrentemente, sendo entendida como uma prática comum.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), no ano de 2005, cerca de 97,9% das
meninas somalis com idade de 15 anos já haviam sido submetidas a MGF (WORLD
HEALTH ORGANIZATION, 2009). A prática é reconhecida internacionalmente como uma
72
violação dos Direitos Humanos, dos Direitos das Crianças, à saúde e à integridade física. É
necessário pontuar que a Mutilação Genital Feminina já foi realizada em mais de 200 milhões
de meninas e mulheres em todo o mundo, na qual muitas vezes não possuem nem 15 anos de
idade. É uma prática realizada principalmente no continente africano e no Oriente Médio, com
maior prevalência na Somália (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2021b). Como a
prática é institucionalizada e está enraizada na cultura dos somalis, o processo de mudança é
para longo prazo, e de acordo com Organizações Internacionais e Regionais do Direito das
Mulheres, estima-se que será preciso pelo menos uma geração para o abandono da prática
(REFUGEE CONSORTIUM OF KENYA, 2012).
Esses fatores culturais são muito visíveis como pontuado pela autora Sherry B. Ortner
(1979), pois segundo sua lógica, as estruturas patriarcais estão difundidas em diversas
culturas, entretanto, a forma em que essa subordinação acontece varia com base na sociedade,
e os casos pontuados são exemplos práticos de como essa lógica é vigente na cultura somali.
Assim, como as culturas são extremamente enraizadas nas dinâmicas das relações sociais, e
estabelecem o papel social de cada indivíduo dentro da sociedade em questão, fica evidente
que as práticas que são reiteradas na cultura somali se estendem até o complexo de Dadaab,
uma vez que a maioria de seu contingente populacional é formado por somalis, tornando essa
cultura em específica predominante no complexo.
Levando em consideração tudo que foi pontuado no presente capítulo, viu-se como a
constituição do complexo de Dadaab foi importante para o acolhimento de milhares de
refugiados, principalmente somalis. Entretanto, o grande fluxo desses no decorrer dos anos,
principalmente em 2011, ocasionou em uma superlotação dos campos. Além disso, sob a
premissa do alto índice de violência nos campos, o governo queniano fechou dois campos do
complexo de Dadaab, e ameaça o fechamento dos três campos ainda vigentes nos próximos
anos. Ainda, foi possível observar que as mulheres em campos enfrentam questões diferentes
e mais graves por serem mulheres. É notório que existem muitas lacunas a serem resolvidas,
principalmente quando se trata dos Direitos das Mulheres, que historicamente vêm sendo
violadas desde de seu Estado de origem.
Foram vistos inúmeros relatos de VBG com meninas e mulheres que ocorrem com
muita frequência. Em contraponto, quando analisado o gênero masculino vê-se que os índices
são inferiores, uma vez que mesmo estando em um cenário de refúgio, ambos passam por
experiências diferentes, sendo as mulheres aquelas que são expostas a uma maior
vulnerabilidade. Elas correm risco de vida pelo simples fato de irem para a escola, irem
buscar lenha ou quando vão a banheiros. Para mais, a relação que se estabelece entre homens
73
e mulheres dentro do complexo possui raízes históricas com o Estado de origem, uma vez que
práticas culturais que são recorrentes na região, como casamentos forçados de meninas e
mulheres e a MGF, ocorrem dentro do complexo. Portanto, é notório que as experiências
vividas pelas mulheres em seus Estados de origem, juntamente com as práticas do patriarcado
particular de cada sociedade, são estendidas para os campos de refugiados. Como resultado,
há um cenário de maior vulnerabilidade para as mesmas, que sofrem por questões de gênero,
como também pelas situações vividas dentro dos campos.
74
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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