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Fantasia e crítica no fetichismo


Marilia Mello Pisani (docente da UFABC)

Introdução
O objetivo desta comunicação é problematizar o conceito de fetichismo à luz de
duas perspectivas teóricas diferenciadas. Em uma delas, a autora tenta apreender o
significado simbólico do objeto fetiche ‘pulseira de escrava’, utilizada por uma mulher
no século XIX, enquanto na outra o autor antropólogo busca apresentar uma nova
metodologia para dar conta dos fetichismos visuais disseminados nas imagens digitais
da metrópole contemporânea. Por meio destas duas perspectivas pretende-se mostrar
que o conceito de fetichismo guarda uma ambiguidade que pode ser o ponto de partida
para uma contribuição a teoria crítica.

A pulseira de escrava de Hannah Cullwich e a ambiguidade do objeto fetiche


No artigo Couro Imperial: raça, travestismo e o culto da domesticidade 1, Anne
McClintock realiza uma análise de uma relação sadomasoquista de um casal vitoriano
inglês, Hannah Cullwich (1833-1909) e Arthur Munby (1828-1910). Porém, seu
enfoque é diferente dos que normalmente são dados ao amplo material deixado por eles,
como fotografias e diários. Apoiando-se em Foucault, McClintock propõe pensar que o
sadomasoquismo é uma “subcultura ritual altamente organizada, surgida na segunda
metade do século XIX e formada em torno do exercício ritual do risco social e da
transformação social, que reverte e transforma significados sociais” 2.
Assim, se a leitura tradicional coloca Arthur como o centro da cena, como o
Mestre, a da autora propõe uma inversão de perspectiva que, apoiada em Foucault, olha
para os jogos e rituais fetichistas encenados por Arthur e Hannah – como travestismo,
acorrentamento, rituais de lavagem, infantilismo, voyerismo, fetichismo entre outros – a
partir do significado social envolvido no objeto fetiche: a pulseira/coleira de escrava
utilizada por Hannah. Por meio de uma interpretação do significado desta pulseira/
coleira a autora procura mostrar que o objeto fetiche carrega uma experiência de busca
de reconhecimento em contextos de crise social e anomia.

Filha de uma criada e um seleiro, Hannah nasceu na Inglaterra na primeira


metade do século XIX, em plena transição do período imperial para o capitalismo
industrial. Seus pais serviam ao mundo da antiga nobreza em extinção. Com a morte de
da mãe – fato traumático que marcaria toda a vida de Hannah, ela se viu obrigada a
trabalhar como empregada e faxineira nas cozinhas das propriedades rurais senhoriais,
nas casas da classe da burguesia industrial em ascensão, nas estalagens, como
encarregada dos urinóis, e em berçários. De modo que a vida de Hannah “atravessou
uma das mais profundas fissuras da era vitoriana”: ela viveu na passagem do império e
do mundo decadente da nobreza para o capitalismo industrial e o mundo ascendente da
2

manufatura industrial. Nesse novo contexto, os códigos sociais se transformaram e a


dinâmica do dinheiro passou a gerir de novo modo a relação entre a classe trabalhadora
e os novos senhores.
Em 1854 Hannah conheceu seu futuro marido em um encontro casual nas ruas
de Londres, o advogado Arthur Munby, membro da alta burguesia. Com esse casamento
abriu-se a possibilidade para que Hannah mudasse de posição social, ‘entrando na
sociedade’; porém, preferindo viver como criada em meio à sua nova classe, ela
continuou a trabalhar como empregada e faxineira nas casas, ganhando seu próprio
dinheiro. Por isso, passava pouco tempo com seu marido; insistia que este a pagasse um
salário pelos trabalhos da casa; não teve filhos; alfabetizou-se e escreveu dezessete
diários nos quais conta em detalhes íntimos sua lida diária doméstica. No apogeu da
“mulher desocupada” burguesa, ela se tornou musculosa com o trabalho braçal, uma
“estranha camponesa nas enormes casas da elite vitoriana decadente”. Numa época em
que o serviço das mulheres não tinha mais valor econômico, a sua vida narrada nos
diários oferece o testemunho da última geração de mulheres que fizeram o trabalho
braçal pesado. O que contam estes diários?
A “vida de fetichismo doméstico e racial” de Cullwick e Munby, que encheram
suas vidas de “parafernálias teatrais sado-masoquistas” como botas, correntes, cadeados,
couro, vendas, correias, criando roteiros que eram, então, fotografados. Nesses roteiros
e cenas teatrais apareciam jogos de fantasias que articulavam os elementos simbólicos
relacionados às principais transformações do imperialismo ao capitalismo industrial:
classe (criada → senhora); raça (mulher branca → escrava negra); gênero (homem →
mulher); economia (terra → cidade); idade (adulto → bebe).

Durante anos Hannah utilizou uma pulseira de escrava de couro, muito suja, e
uma corrente de cadeado em volta de seu pescoço. Ela dizia que era um signo de seu
amor e servidão a Munby: “o signo de que sou serviçal e pertenço ao Mestre”. Uma vez,
durante um jantar na casa de uma família burguesa, pediram a Hannah que retirasse sua
pulseira de escrava e a corrente que ela portava, enquanto servia à mesa. Recusando-se,
perdeu o emprego. Surge então a pergunta “como entender essa pulseira de escrava que
faz parte de sua zona de fetiches?”
Segundo McClintock, analisando o significado social do objeto fetiche: “No
fetiche da pulseira de escrava, raça, gênero e classe se sobrepõem e se contradizem: a
pulseira de escrava é sobreterminada”, é o “signo proibido do trabalho da mulher”. Ao
recusar tirar a pulseira durante o jantar Hannah estava recusando a abjecção (supressão)
social de seu trabalho e da sujeira doméstica. Sua ação e recusa representa um desejo de
reconhecimento do seu valor social em uma experiência marcada pela memória
traumática da desigualdade, da violência e da crise social. O fetiche-pulseira de escrava
encena a história do capital industrial assombrada pela traumática escravidão imperial,
3

fazendo da “memória um objeto repetível”. Nesse sentido, a autora propõe que Hannah
“se adornou com seus próprios grilhões simbólicos”.
Desta perspectiva, o sadomasoquismo seria a representação performática de uma
memória de violência, mobilizando elementos da cultura cotidiana do poder, porém
subvertendo-os em roteiros e rituais. Esses rituais encenados numa cena sadomasoquista
3
seriam uma forma de “organização teatral do risco social” na qual a encenação das
fantasias masoquistas revelaria a memória de violações do eu. Nesse “teatro de signos”
haveria uma ritualização repetitiva e compulsiva, a memória de um trauma ao mesmo
tempo individual e social; como “teatro de conversão”, “ele faz o mundo andar para trás
exibindo o primitivo como um personagem do tempo histórico da modernidade”, uma
performance teatral comunitária no seio da razão ocidental.

O fetichismo visual na antropologia contemporânea de Massimo Canevacci


Porque agora eu também sou parte do objeto de estudo. 4

Originária da língua portuguesa feitiço no século XVI, a palavra fetiche apareceu


no momento de espanto do colonizador português frente ao encontro com um modo de
vida diferente do seu, na África e posteriormente nas Américas 5. Mas apenas na França
do século XVII que a palavra fetichismo seria definitivamente inventada por Charles De
Brosses, que, influenciado pelas descrições dos viajantes sobre os povos ‘bárbaros e
primitivos’ e imbuído de um espírito iluminista, sugere, em Do culto dos deuses fetiches
(1760), a primeira definição de fetichismo dentro de um quadro geral de classificação
das formas de crença religiosa: o fetiche seria “o primeiro objeto material que atrai cada
nação ou cada particular a escolher e consagrar em cerimônia seus sacerdotes: é uma
árvore, uma montanha, o mar, um pedaço de madeira, o rabo de leão, uma pedra, um
peixe, uma planta, um animal” 6. O tom etnocêntrico dará a base do evolucionismo
antropológico no século XIX e será criticado posteriormente por Marcel Mauss, para
quem o fetichismo não passara de um “mal-entendido” etnocêntrico. Um segundo
registro do conceito levará à obra de Marx que, inspirado pelo conceito etnológico de
fetichismo, transformou-o em “operador crítico da modernidade capitalista” 7, do
mesmo modo que fará Freud posteriormente.
Porém, nos interessa nesta comunicação pensar o modo como o conceito, que
vem da antropologia, será relido por esta área do conhecimento, pensando para isso na
antropologia visual contemporânea do antropólogo italiano Massimo Canevacci. Para
Canevacci, as três versões do fetichismo colonial, marxista, freudiana teriam
permanecido, de algum modo, presos a certa herança colonial e sua taxonomia 8. Sendo
um conceito nasce no sentido de inferiorizar o outro, para ele seria necessário rever a
história do fetichismo para que ele não seja, mais uma vez, assumido de forma acrítica.
Assim, o recurso à antropologia, ao permitir rememorar essa matriz de fetichismo,
revelaria que o conceito não é neutro, mas sim “a peça chave na gestão política do outro
a partir de seu domínio epistemológico e político de nomear, organizar linguisticamente
e logicamente as categorias de uma ordem hierárquica” 9.
De modo que o antropólogo propõe então uma revisão das teorias críticas do
fetichismo. Para ele, apesar de Marx ter sido o primeiro a autonomizar a categoria em
relação à matriz africana, descolonizando-a e tratando-a como peça chave para entender
as relações de poder no interior da produção industrial de mercadorias, e de Freud
contribuir com sua teoria do inquietante (Unheimlich) 10, eles teriam permanecido “em
plena taxonomia e epistemologia colonial” 11. Marx por estar demasiadamente ligado a
uma certa dialética do progresso e ratio iluminista 12 e Freud por manter a perspectiva
do ‘patológico’ e da ‘perversão’ sexual fetichista, que pode conduzir a leituras
4

moralizantes e normativas. Por isso, a proposta do autor é inverter a antropologia, que


nasceu para classificar o outro, contra o próprio civilizado, aplicando os conceitos
clássicos ao contexto moderno, ‘civilizado’, metropolitano e tecnológico.
O livro de Canevacci apresenta o resultado de uma longa pesquisa sobre
surgimento dos crescentes e novos fetichismos visuais, aos quais “não seria mais
possível aplicar os tradicionais esquemas teóricos” 13. Nela o antropólogo articula fotos
publicitárias, artísticas e outros elementos presentes no corpo da metrópole e
configurados pela tecnologia digital. Esses novos fetichismos visuais conteriam um
hibridismo que desafiaria toda tentativa de defini-lo e domesticá-lo em um único eixo
teórico. Por causa da ambiguidade interna ao fetichismo, ao mesmo tempo alienação e
identificação, perversão e normalização, é que a crítica deveria “arriscar a ser
igualmente ambígua”. Por isso, psicanálise, antropologia, marxismo mesclam-se em
suas análises, deixando o objeto livre, pois “o fetichismo não merece somente ser
estigmatizado como um atraso religioso, uma perversão confessada ou uma moda cada
vez mais difundida” 14 Um dos primeiros casos trabalhados por Canevacci apresenta a
metamorfoses de uma collage fotográfica surrealista dos anos 20, Blanche e Noir, de
Man Ray, em duas fotos publicitárias de perfumes da Jean Paul Gautier.

Esse primeiro exemplo mostraria o modo como o hibridismo se revela no fetish


(a variação inglesa da palavra teria como objetivo associar novos elementos),
articulando a inquietante relação entre o inorgânico e o orgânico, vivo-morto a partir da
máscara. Enquanto a primeira montagem exibe a atração de opostos nas máscaras
fetiche, entre eu e outro, primitivo e civilizado, denunciando o poder classificatório de
tais termos, na segunda montagem esses elementos se hibridizam, perdendo “o seu
poder evocador mágico. Agora o que era magia jaz sobre as formas fetichizadas de um
frasco de corpo cortado” 15. Essa disseminação do fetiche pelo politeísmo publicitário
teria como consequência, por outro lado, a difusão de elementos sagrados e profanos.
Assim, se parte do fetichismo clássico, é apenas para, interiorizando-o, ultrapassá-lo.
Muitos outros exemplos seguem-se nessa etnografia dos fetichismos visuais.
Como exemplo, ele cita o movimento jovem Modern Primitivism (Califórnia) surgido
no ambiente contracultural e analógico dos anos 60-80 que vai transfigurar-se nos anos
90 com a cultura digital e se revelar em novas performances rituais individuais como os
cuttings, os transpiercings, a body art, as novas cirurgias estéticas e genéticas de
transformação de corpos, nos corpos tornados código de barras em tatuagens, nos
objetos tornados sexuados, como a “Bolsa-vulva”, os transsexualismos da Gay Pride de
Berlin com suas fantasias de sombras sexuada, que apagam as fronteiras entre os sexos
e sua dualidade binária, ou ainda os cenários perversos sadomasoquistas normalizados
pela publicidade em fotos publicitárias, enfim, experiências que revelam como os
corpos absorvem a anomia, vivida agora de forma individualizada. Mas é na etnografia
5

da boneca-fetiche que Canevacci encontra o exemplo privilegiado de tua proposta de


aplicar a polifonia ao objeto fetiche, dedicando ao seu estudo todo um capítulo.
Nesta interpretação estupefata, Canevacci articula a forma antropológica as
conceituações gerais sobre a boneca-fetiche tiradas da etnografia clássica com da teoria
do inquietante do Freud para então acompanhar a metamorfose da boneca-fetiche, desde
Olympia a boneca do conto fantástico de Hoffmann, O homem da areia, do começo do
século XIX, passando pelas bonecas dom poeta Reiner Maria Rilke e do artista plástico
Hans Bellmer na primeira metade do século XX, e por fim às bonecas do artista plástico
japonês contemporâneo, Simon Yotsuya, na Tokyo do século XXI. A conclusão da
pesquisa indica que o fetish na boneca exprime a “ânsia de fazer-se-coisa”, “apaziguar a
relação filial e dissolver a angústia”: “ela apazigua, vivifica e imobiliza” (Idem, p. 142-
3).

(Simon Yotsuya)

Em virtude da polifonia do objeto fetiche, ainda mais aquele difundido pela


tecnologia digital, seria necessária uma nova metodologia, que ele chama de
metodologia fetichista ou eróptica, surgida da crítica das teorias do fetichismo clássicas
e modernas e da apropriação do “diálogo polifônico” entre Theodor Adorno e Walter
Benjamin a propósito do método utilizado por este último na sua obra Passagen, escrito
sob a influência da crítica do fetichismo da mercadoria e da alienação de Marx.
Canevacci desenvolve toda uma rede de conceitos apresentada o primeiro
capítulo, porém, é no ultimo que ele apresenta os dois conceitos centrais da proposta
metodológica que ele chama de metodologia fetichista ou eróptica, aplicada aos
fetichismos visuais. Um desses conceitos é o de facticidade estupefata, expressão
utilizada por Adorno em uma troca de cartas com Benjamin no final do ano de 1938, e
que dá a base de sua proposta de sua proposta, o estupor metodológico.
Nesta longa carta-ensaio de Adorno, que escreve de Nova York em novembro,
ele levanta duras críticas a Benjamin, que se encontra em Paris nesse momento. Quase
um mês depois, em nove de dezembro, Benjamin “propõe uma resposta memorável” 16,
segundo Canevacci, que seria “um dos pontos mais altos do século XX e antecipa novos
métodos para uma etnografia dissolutiva da reificação e para um método que não esteja
enrijecido na negação, nem consolado pela mediação” 17. Por meio desse diálogo
polifônico18 eles fornecem uma contribuição original para lidar com a nova forma-
mercadoria, que estaria prenhe de “potência crítica”.
Adorno afirma em sua crítica que o trabalho de Benjamin sobre as passagens se
detém em uma “narração empírica meramente elencadora (calças sujas, privadas,
iluminação a gás e encanamentos)” 19, demonstrando ausência de mediação. Esse seria
um obstáculo decisivo, na medida em que danificaria o conceito dialético de mediação e
impediria a apreensão da relação dialética entre os elementos singulares e a produção
6

social global 20. Na ausência da relação entre as partes e o todo, os fragmentos de


Benjamin acabariam se tornando “reféns da fantasmagoria que ele mesmo procurava
criticar”, “como olhar de Medusa que petrifica o elemento empírico”, “como prisioneiro
de um mito que se converteu em apologia imobilizadora” 21. No ponto mais alto da
crítica, Adorno acusa Benjamin de renunciar à teoria em prol de uma empiria imediata,
transformando-a em uma “representação estupefata da pura facticidade” 22, “uma
facticidade estupefata” 23.
Em sua resposta, Benjamin entende que a crítica do amigo lhe pareceria
paradoxal, uma vez que a intenção desse método e forma de representação da
facticidade estupefata seria justamente o de “liquidar a aliança entre magia e
positivismo, entre ratio e mito” por desenvolver uma “filologia [como] inspeção de um
texto que procede atendo-se aos particulares, que fixa magicamente o leitor sobre ele”
24
, sem deter-se nesse momento. Esta escrita construtiva teria como resultado “sacudir a
interpretação”, dissolvendo os componentes reificados da obra, “desfolhando-os” 25. A
teoria crítica lançaria dessa perspectiva um “raio luminoso” inteiramente dentro do
percurso do texto, dentro da coisa, “uma coisa que palpita como o fetiche e não petrifica
como o mito” 26 – “ao invés de petrificador, o seu olhar é incandescente, envolve,
inflamado, a facticidade” 27.
O que faria “evanescer a facticidade” seria para Benjamin menos a “perspectiva
histórica” do que uma “filologia co-naturada no interior da composição da
interpretação” 28. Enquanto Benjamin articula os momentos positivos, “colhendo os
fragmentos emergentes dos novos panoramas visuais”, Adorno “desloca a si mesmo e às
obras sobre o plano negativo” 29. Não haveria dialética ou síntese nessa controvérsia
entre os dois amigos: ambos permaneceriam bloqueados e esse “bloqueio não revela um
empate ou uma imobilidade, mas [a] impossibilidade de concluir” 30.
Assim, para o antropólogo italiano, a contribuição de Benjamin teria sido
desenvolver uma alternativa para uma crítica dos fetichismos visuais contemporâneos a
partir de um método que permita liberar os objetos marcados pela “servidão da
utilidade”, que se cola a seres humanos, seres-viventes, seres-coisas, seres-mercadorias
31
. Os fragmentos benjaminianos fixariam as imagens das Passagens e iluminariam
aquele instante em que “o sujeito explicita sua identificação e empatia pela mercadoria
agora expostas como nouveuté em grandes magazines” e nas Exposições Universais da
metrópole comunicacional. E essas passagens incorporariam uma fantasmagoria
própria, imprevista pela crítica, “e esses valores são a trama dos fetiches
comunicacionais”. E esse método conseguiria penetrar nas coisas reificadas, rompendo
com a alienação no interior da própria alienação 32.
Por isso, a forma de abordar o novo fetiche disseminado pela comunicação
visual e tecnologias digitais seria incorporar uma polifonia de abordagens, de modo a
revelar as diversas facetas do objeto, “somando a sacralidade do deus-objeto, o
estranhamento da mercadoria-valor, e a perversão do corpo sexuado” 33. Esses objetos
(entendidos por ele como sujeitos, como “olho”) são compostos de fragmentos de
modalidades coloniais e primitivistas, mercadorias, perversões, e nessa mistura corre-se
o risco de perder aquilo que há de potencia crítica, disrruptiva, eróptica, no fetiche caso
nos mantenhamos presos a apenas uma daquelas modalidades de crítica do fetichismo:
“por essas pupilas porosas se acede às visões erópticas” 34. É dentro deste contexto que
Canevacci sugere retomar as intuições de Marcuse acerca de um “narcisismo erotizador
da natureza externa”, articulando-a com o segundo conceito central de sua proposta
metodológica, o benjaminiano sex appeal do inorgânico: “rasgar as possibilidades de
uma sublimação que produza cultura não mais desviando a pulsão de sua meta, mas
7

investindo-a e, diria, mesmo revirando com ela a sociedade sexo-repressiva”. Esse é o


desafio que oferece a “sexualidade marcuseana não repressiva” (Idem, p. 259).
Essa metodologia surgida “do entrelaçamento de filosofia e pesquisa no social”
35
se ofereceria como uma alternativa à teoria crítica, paralisada diante de contextos
sociais marcados por ‘estruturas de caráter’ ou ‘personalidades’ fetichistas nas quais o
conflito aparece bloqueado. Parece abrir-se aí uma via a ser investigada; porém,
pensamos que apenas na medida em que não abandone e não deixe de voltar às
contribuições originais das duas teorias críticas do fetichismo de Marx e Freud, com seu
diagnóstico de uma determinada ‘razão colonizadora’ que “coloca o Outro como má
diferença” 36.

A ambiguidade presente no fetichismo à luz de Freud


Os dois modos de abordagem do fetichismo parecem indicar para uma
perspectiva mais ‘positiva’ do fetichismo. No entanto, a própria oposição entre o
positivo e o negativo não faz sentido quando se trata de fetichismo, uma vez que, como
veremos, esta noção se caracteriza justamente por essa tensão. Para apresentar essa ideia
vamos nos apoiar na interpretação metapsicológica realizada por Freud de casos clínicos
de fetichismo e sua relação com o modo específico de negação ou medo de castração, o
desmentido (Verleugung).
Freud apresenta a relação entre fetichismo e Verleugung já nas suas primeiras
reflexões dos anos de 1910-1914, enquanto estudava casos de veneração fetichista por
pés, juntamente com Abraham, mas desenvolverá essas ideias em dois textos centrais,
Fetichismo, de 1927, e A cisão do eu e os processos de defesa, de 1938. 37 A
Verleugung seria, de modo geral, uma ação defensiva a uma realidade aflitiva que o
sujeito não consegue alterar. Na impossibilidade de mudar o real, ele cria uma saída
substitutiva que, no caso de fetichismo, passa pela re-negação da situação e como
consequência ocorre uma cisão do próprio Eu (Ichspaltung)
A interpretação de casos clínicos conduziu Freud a afirmar que haveria no
fetichismo a uma cisão entre duas correntes, permitindo aos fetichistas terem uma
atitude cindida em dois 38, o que será conhecido como Ichspaltung, uma cisão dentro do
próprio Eu: uma que aceita a realidade e outra que se apega ao desejo por meio da
subversão da realidade na fantasia. Vê-se aparecer aqui o que Deleuze chamará de dupla
dimensão do fetiche e a dupla suspensão que lhe corresponde: uma parte do sujeito
conhece a realidade, mas deixa em suspenso esse conhecimento, enquanto a outra parte
deixa a si mesma em suspenso no Ideal.
Dentro desta perspectiva, o objeto fetiche realizaria a “dupla costura” de ideias
contrárias, que apareceria no modo como cada fetichista lida com o seu fetiche, com
ternura ou com hostilidade e “que correspondem à renegação e à aceitação do
reconhecimento da castração” 39; por isso podemos afirmar com Freud que o fetiche
seria “um objeto misto, comprometido entre o recalcamento e a idealização”. 40
Deleuze 41 reconheceu as importantes implicações da análise do fetichismo em
Freud e encerramos com duas importantes citações sobre a articulação entre fetichismo
e fantasia que esperamos poder elucidar porque as duas abordagens apresentadas podem
ser importantes para desdobrar a dimensão crítica do fetichismo.
Talvez deva se compreender a denegação como um ponto de partida de uma
operação que não consiste em negar nem em destruir, mas, sobretudo, em
contestar a fundamentação do que é, em afetar o que é com uma espécie de
suspensão e neutralização capazes de nos abrir, para além do que é dado, a uma
nova perspectiva não dada. O melhor exemplo evocado por Freud é o do
fetichismo. (Deleuze, 2009, p. 32)
8

Não se trata de acreditar que o mundo é perfeito, mas pelo contrário, trata-se de
‘criar asas’ e escapar do mundo pelo sonho. Não se trata de negar o mundo ou
destruí-lo, tampouco de idealizá-lo; trata-se de denegá-lo, de deixá-lo em
suspenso pela denegação, para se abrir a um ideal, por sua vez suspenso na
fantasia. Contesta-se a fundamentação do real para fazer surgir um puro
fundamento ideal. (op. cit, p. 35)

Referencias bibliográficas
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De Brosses, Charles, Du culte des dieus fetiches ou Parallèle de l’ancienne religion de
l’Egypte avec La religion actuelle de Nigretie (Paris, Fayard, 1988).
Deleuze, Gilles, Sacher-Masoch: o frio e o cruel (Rio de Janeiro, Zahar, 2009).
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lobos”: além do princípio de prazer (1917-1920). (Trad. Paulo César de Souza,
Companhia das Letras, 2010c).
____________, “Neurose e psicose”, “A negativa”, “Fetichismo”, “A cisão do eu no
processo de defesa”, em Escritos de psicologia do inconsciente (Trad. Luiz Alberto
Hanns, volume III: 1923-1940, Rio de Janeiro, Imago, 2007).
McClintock, Anne, “Couro Imperial: raça, travestismo e o culto da domesticidade”. In
Cadernos Pagu (Rio Grande do Sul, n° 20, 2003).
Monzani, Luis Roberto, Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora
Unicamp, 1989.
Pietz, Wiliam, Le Fetiche. Genéalogie d’un próbleme (Paris, Kargo & L’Éclat, 2005).
Safatle, Vladimir, O fetichismo: colonizar o Outro (Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2010).
Stallybrass, Peter, O casaco de Marx: roupas, memória, dor. (Trad. Tomaz Tadeu, Belo
Horizonte, Autêntica Editora, 2008).
Stoller, Robert, Observando a imaginação erótica (Rio de Janeiro, Imago, 1998).

1
McClintock , Anne, “Couro Imperial: raça, travestismo e o culto da domesticidade”. In Cadernos Pagu,
20, 2003. Anne McClintock é uma intelectual e escritora feminista nascida em Harare no Zimbabue, que
trabalha com sexualidade e gênero nos EUA.
2
Idem.
3
Cf. Stoller, Observando a imaginação erótica, 1998.
4 M. Taussig citado por Massimo Canevacci, Fetichismos visuais: corpos erópticos e metrópole
comunicacional, 2008, p. 235.
5
Cf. Wiliam Pietz, Le Fetiche. Genéalogie d’un próbleme, 2005.
6 De Brosses, 1988, p. 52.
7
Assoun, Le fètichisme, 1994, p. 36.
8 Canevacci, op. cit., p. 241.
9 Canevacci, op. cit., p. 241.
10 Sigmund Freud, “O inquietante [1919]”, em História de uma neurose infantil, Além do princípio de
prazer e outros texto (1917-1920), 2010, p. 348.
11 Idem, p. 247.
12 Essa mesma crítica nós encontramos em Stallybrass, para quem, apesar da brilhante análise sobre o
funcionamento do capitalismo e a forma mágica da mercadoria, Marx “apagou a verdadeira mágica pela
qual outras tribos (e quem sabe, até mesmo nós próprios), habitam e são habitados por aquilo que elas
9

tocam e amam. Para dizer de outra forma, amar coisa é, para nós, algo constrangedor (...). É porque as
coisas não são fetichizadas que elas continuam sem vida” (Stallybrass, 2008, p. 15).
13
Canevacci, op. cit., p. 14.
14 Canevacci, op. cit., p. 303.
15
Idem, p. 51.
16 Idem, p. 267.
17 Idem, p. 277.
18 Idem, p. 269.
19 Idem, p. 272.
20 Idem, p. 272.
21 Idem, p. 273.
22 Adorno citado por Idem, p. 275.
23 Idem, p. 275.
24 Benjamin, citado por Idem, p. 280.
25 Canevacci, op. cit., p. 280.
26 Ibidem.
27 Ibidem.
28 Citado por Idem, p. 281.
29 Canevacci, op. cit., p. 282 e 286.
30 Idem, p. 282.
31 Idem, p. 292.
32 Idem, p. 295.
33Canevacci, op. cit., p. 279.
34 Idem, p. 253.
35 Idem, p. 266.
36 “O que faz da civilização ocidental etnocida? Tal é a verdadeira questão. A análise do etnocídio
implica, para além da denuncia dos fatos, uma interrogação sobre a natureza, historicamente determinada,
do nosso mundo cultural”. Pierre Clastres, “Do etnocídio” em Arqueologia da violência: pesquisas de
antropologia política (São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 86 e 91).
37
Freud, “Neurose e psicose”, “A negativa”, “Fetichismo”, “A cisão do eu no processo de defesa”, em
Escritos de psicologia do inconsciente, 1923-1940, 2007.
38
Freud, 2007, p. 165.
39
Idem.
40 Freud op. cit., p. 74.
41
Deleuze, Gilles, Sacher-Masoch: o frio e o cruel, 2009.

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