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Nossa viagem parecia não ter fim, sentia que estava dentro do carro há dias. Nada
de interessante para se olhar, apenas uma vasta, escura e extremamente calma estrada vazia.
Quebrávamos o silêncio absoluto da estrada com músicas que tocavam em nosso toca fitas.
Uma mistura de músicas caóticas e românticas que ouvimos com frequência quando
estamos juntos. Escutamos um pouco de tudo, mas nossos preferidos são Françoise Hardy e
The Doors — "Break on Through" jamais parou de tocar em nosso carro desde quando nos
conhecemos. Faço esse trajeto, no mínimo, seis vezes ao ano, mas não entendi por que hoje
estamos demorando tanto.
— Olhos na rua, meu amor. E coloque o cinto de segurança, por favor. — Virei seu
rosto com delicadeza usando apenas o indicador. — Estamos bem! Ficaremos melhor e mais
tranquilos se você prestar atenção na rua! — Sorri.
— Sei! — Respirei fundo e bati com a mão no painel do carro. — E já ouvi esse mesmo
argumento milhões de vezes, mas não vou deixar de ter meu filho próximo dos meus pais
por causa do seu medo de arriscar. Eles nos ajudaram muito em momentos de necessidade,
já esqueceu? E você sabe que eles não podem viajar. Depois que nosso filho nascer, eu também
não pretendo sair de casa nem tão cedo. Logo, como já havia conversado contigo…
— Não, Pierre! Que coisa! — Precisei interrompê-lo. Não gosto de subir meu tom de
voz, mas foi necessário. — Agora não vai mudar nada você querer insistir neste tópico. Já
estamos no meio do caminho, praticamente. Saímos de nossos empregos, as nossas coisas vão
chegar da mudança logo e… — Reparei no silêncio e na seriedade de Pierre dirigindo e
acariciei sua perna. Não gosto de vê-lo chateado. — Desculpe por ter gritado. Vai dar tudo
certo. Temos dinheiro suficiente para viver meses sem trabalhar. E você, meu amor, possui
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um ótimo histórico profissional. Seu chefe até fez uma recomendação sua. Você vai arrumar
um emprego novo logo.
— Você sempre faz isso! — Bateu, se contendo para não usar muita força, incontáveis
vezes com as mãos no volante. Em um ritmo totalmente desregulado e frenético, esfregou a
barba com força e então virou-se com olhar agitado fixo aos meus. — Primeiro, corrigindo
você, nosso filho. Você sempre me interrompe! Você sempre grita! Você sempre reclama de
alguma coisa! Tudo tem que ser do seu jeito e isso não muda nunca! Poderia me ouvir apenas
uma única vez. Não estou pedindo para fazer do meu jeito, apenas para ouvir minha opinião
sobre as decisões que você toma em nossas vidas. Você esquece que eu também sou parte do
“nós”! Sempre vindo com…
Em algum momento do discurso enfurecido, tudo o que Pierre dizia parecia não ter
som. Eu conseguia ver o movimento de seus lábios e a saliva disparando de sua boca, mas
não ouvia áudio algum, apenas a música ao fundo. Tudo o que ele poderia falar agora não
mudaria nossa conversa de meses, nem o que estávamos fazendo no momento. Nunca o vi
desse jeito. Após muito tempo apenas movendo a cabeça e fingindo ouvir o que Pierre falava,
eu revirei os olhos e voltei meu olhar para a estrada.
— Pierre! — Gritei enquanto meus olhos fixavam em uma pessoa que apareceu no
meio do caminho.
Quando Pierre direcionou o foco para a estrada novamente, ele já estava muito
próximo. A pessoa não se moveu a tempo. Em uma tentativa desesperada de desviar, Pierre
jogou a direção inteira para a esquerda. Eu não conseguia parar de gritar. Abracei minha
barriga e me encolhi do jeito que era possível, meu filho era tudo que estava na minha cabeça
nesse momento. E tudo à minha volta se apagou.
Minha cabeça não parava de latejar. Sentia dores nos meus braços e pernas, não sabia
dizer se seria capaz de me levantar. Levei minha mão à testa enquanto abria os olhos com
cuidado porque a claridade do local agredia minha vista.
— Não, senhora Bernard. Meu nome é Lilian. — Minha vista se ajustou e consegui
ouvir melhor. Era uma enfermeira.
— O que… Aconteceu? — Quase não consegui formular a frase. Meu rosto ainda
estava muito dolorido. Coloquei as mãos na minha barriga e olhei novamente para a
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enfermeira. Não conseguia pensar em nada, me sentia totalmente desnorteada. Minha cabeça
estava muito pesada e mal conseguia manter meus olhos abertos.
— Senhora Bernard, que bom que já está acordada! Sou a doutora Hans. Estou
responsável pela sua saúde e do seu bebê. Você está no Hospital Durant. — Ela olhou para a
enfermeira e fez um gesto sutil com a cabeça. A enfermeira se despediu e saiu da sala.
— O que… Houve? — Meu rosto doía muito e eu sentia minha cabeça inteira latejar.
Não conseguia fazer minha mão parar de tremer. Levei a mão ao queixo e notei ataduras em
meu braço. — Meu filho! Como ele está?
— Fique tranquila, senhora Bernard. Seu filho está bem! O nosso obstetra ficará de
olho nele. Você sofreu apenas escoriações. Terá dificuldades para andar, mas nada grave,
Você deve sentir dores no corpo, mas ficará melhor em alguns dias! Vamos monitorar sua
recuperação de perto.
Sonhei que estava em meu carro. Minha visão estava bastante turva e meu olho
queimava tanto que mal conseguia mantê-lo aberto. Olhei para minha barriga, me pareceu
estar tudo bem com meu filho. Não vi Pierre ao volante. Foi quando minha visão começou
a melhorar. Continuava embaçada, mas já conseguia perceber que esse era o momento do
acidente. Batemos em um poste, que me parecia prestes a cair, e os vidros do carro não
resistiram ao impacto. Se não fosse pelo cinto de segurança, eu poderia ter morrido.
Procurei por meu marido e tentei gritar seu nome algumas vezes, mas não obtive
nenhuma resposta. Tentei sair do carro, mas senti meu corpo preso a cadeira sem motivo
aparente. Na esperança de enxergar melhor, eu não parava de esfregar os olhos. Algo no lado
direito me chamou atenção. Havia uma silhueta muito escura e completamente imóvel a
cerca de oito metros de distância do carro. Parecia olhar diretamente para mim. Tentei
chamar por Pierre, mas, novamente, não tive sucesso. Senti um frio em minha pele e uma
dor absurdamente aguda na parte de trás da cabeça. Coloquei a mão sob meus olhos e me
esforcei para manter a calma enquanto esperava a dor sumir.
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Fui acordada pelo sol intenso que atravessava a janela e corria de encontro ao meu
rosto. Chamei a enfermeira às pressas e, em pouco tempo, ela apareceu. Antes que eu
conseguisse pedir, correu em direção à janela e fechou as cortinas a fim de reduzir a luz. A
enfermeira é muito baixa, magra e aparenta ser extremamente jovem para a profissão. Seu
cabelo é bem escuro e curto.
Não demorou muito após a saída da enfermeira e logo a doutora apareceu em meu
quarto.
— Senhora Bernard, boa tarde! Como se sente hoje? — A médica usava grandes
brincos, que pareciam de madeira, e tinha cabelos bem escuros e escorridos. Sua pele era
muito bem cuidada.
— Sinto dores pelo corpo e atrás da cabeça. Às vezes, sinto um estranho formigamento
na mão, mas já consigo falar direito. — Apoiei a mão sobre a minha barriga e comecei a
rodar a aliança no dedo. — Meu bebê realmente está bem?
— Seu bebê está ótimo! Já estava bem quando chegaram aqui depois do acidente. A
senhora foi muito sortuda. Ficou apenas com escoriações pelo corpo. Nada permanente, mas
recomendo que fique aqui por alguns dias para garantir sua saúde. Temos um obstetra ótimo
que vai cuidar da senhora.
— Ótimo! Claro que fico! Não saio daqui sem saber do meu filho e do meu marido.
Sabe me informar sobre o Pierre? Ele estava dirigindo o nosso carro e não veio me visitar
ainda.
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cabeça em sua mão e a olhei em busca de algum conforto, mas, infelizmente, nada poderia
me confortar.
— Não posso confirmar. Tudo depende do seu marido. Agora faremos o máximo
para ajudá-lo nessa luta. Diferente da sua situação, seu marido não usava cinto e o impacto
da batida foi concentrado no assento do motorista. Acredito que ele tenha tentado evitar que
a senhora e seu filho se machucassem mais.
Nossa última conversa antes do acidente me veio à cabeça e não pude deixar de me
sentir extremamente culpada pelo ocorrido. Pensei em tantas coisas que poderia ter feito ao
invés de ter gritado com ele. Se eu tivesse apenas ignorado, ou só concordado para agradar.
— Tudo bem — Fez um pequeno movimento com a cabeça. — Eu estava dizendo que
você foi encontrada e trazida até aqui por um policial da delegacia local que estava de
passagem. Ele gostaria de fazer algumas perguntas quando a senhora estiver se sentindo bem.
— Sobre uma batida de carro? — Consegui controlar o choro e falei com mais calma.
— Por quê?
— Sim, exatamente! Ele apenas me informou que gostaria de conversar com você, mas
me pediu para ligar somente quando a senhora estivesse se sentindo melhor. Ele já está a par
da sua situação e do seu marido. — Ela, novamente, levou a mão até meu ombro. — Mas isso
só se a senhora estiver bem para conversar sobre.
— Não, não. — Fechei os olhos e respirei fundo. — Eu falo com ele, pode deixar! —
Respondi. — Pode ligar e pedir para vir? Caso eu esteja dormindo, vocês podem me acordar!
— Sim, prefiro. Melhor do que ficar aqui sozinha com meus pensamentos negativos.
Vamos ouvi-lo, por que não? Por favor, ligue para o policial.
— Claro! Farei a ligação agora! — A doutora assentiu com a cabeça e olhou para mim
antes de sair. — Se precisar de alguma coisa, não pense duas vezes, aperte o botão. — Deu um
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leve sorriso. Ela não parecia saber sorrir de maneira forçada, o que me proporcionou uma
breve risada, junto a uma sensação de desconforto.
— Obrigada, doutora.
Passei o resto do dia comendo e assistindo filmes e novelas. Não sei como as pessoas
conseguem assistir isso, odeio ver TV. Não me arrisco a ligar o rádio por medo de ouvir algo
que me deixe para baixo. A enfermeira me ajudou bastante durante o dia. Fico com pena dela
por ter sido designada para cuidar de mim. Vejo a dificuldade e a força que ela precisa aplicar
para me ajudar. Nossa diferença de altura é grande, sempre me chamavam de “Emma Girafa”
na época da escola.
A comida do hospital não era ruim, mas não estávamos em um hospital ruim. Até
esqueci de perguntar que hospital é esse. Não o conheço de nome e nunca procurei nada
sobre essa cidade. Nunca precisei parar durante o trajeto para fazer nada, não faço ideia da
distância que estamos de Rouen. Passei o resto da noite tentando lutar contra o sono, mas
ainda me sentia esgotada e acabei cedendo.
Acordei com alguém chamando meu nome, junto com o sol da janela direto em meu
rosto novamente. Forcei a vista para tentar ver através da luz. As cortinas fecharam
rapidamente e minha visão se ajustou. Era a enfermeira que me chamava com bastante
cuidado para não me assustar.
— Sem problemas. — Fiz um pequeno gesto com a mão, sem me mexer muito. —
Poderia me ajudar a sentar, por favor? Me sinto um pouco fraca… —Pedi enquanto tentava
me ajeitar. A enfermeira apenas concordou e foi ao meu encontro. Senti menos dores do que
imaginei, bem que a doutora Hans havia avisado. Graças a Deus meu bebê está ótimo.
— Por favor. — Mostrei uma cadeira para o policial que estava na porta. Olhei para
a enfermeira e agradeci. Logo ela saiu da sala, cumprimentando o policial no caminho.
— Bom dia, senhora Bernard. Sou o investigador Treux. Como está se sentindo? — O
policial tinha uma voz grave e tranquila. Era de estatura baixa e traços rústicos.
— Bom dia. Estou tentando melhorar. Sinto muita dor, física e psicológica. —
Encostei minha mão em meus olhos.
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— É uma hora ruim? Posso retornar depois. — O policial estava quase levantando
quando o interrompi com um gesto.
— Não, por favor. Pode ficar, eu prefiro. Estou muito triste com o ocorrido, mas farei
o possível para ajudar. Como posso ser útil?
— Claro que não! Ainda não entendo como posso ajudar, já que tudo aconteceu muito
rápido, mas farei o possível.
— Então vamos começar. A princípio, por que estavam na estrada naquela hora? —
Ele tirou um bloco de notas e uma caneta do bolso lateral de sua calça.
— Estávamos a caminho da nossa nova casa, que fica próxima dos meus pais, em
Rouen. Quero que meu filho cresça ao lado dos avós, sabe? Eles nos ajudaram muito quando
estávamos no início da relação. Sobre o horário… Naquela hora não tem muito trânsito e eu
queria chegar lá o quanto antes.
Sem expressar nada, o policial fez algumas anotações no bloco. — Qual o motivo da
urgência?
— Entendo. — Escreveu em seu bloco. Desta vez, por um período mais longo. — Pode
me dizer o que você lembra até o momento do acidente?
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— Eu vou continuar. — Olhei à minha volta e mexi no meu cabelo para tentar relaxar.
— Tivemos uma briga e ele olhou para mim, e é tudo o que me lembro. Acordei aqui.
O policial me olhava atentamente. Parecia procurar algo em meu rosto. Poderia jurar
que ele não acreditava no que eu estava dizendo.
— Não posso dar todos os detalhes, mas procuro um homem que é suspeito de
assassinato. No dia em que eu estava próximo de pegá-lo, encontrei vocês feridos e prestei
socorro.
— Então o homem fugiu? — Senti algo preso em minha garganta e uma sensação que
não conseguiria descrever exatamente como era, mas, sem dúvidas, muito inquietante.
— Eu já o havia perdido de vista e preferi ajudar vocês, já que uma equipe também
procurava por ele.
— Agradeço a preocupação e toda ajuda. Vamos ficar bem. Deus está conosco.
O policial levantou e me agradeceu. Quando ele já estava para sair da sala, me lembrei
do sonho que tive. — Policial, posso fazer uma pergunta?
— Foi exatamente o que informei à senhora. Ele estava fugindo para a mesma direção
onde os encontrei, apenas isso. Algumas pessoas me disseram para não vir, mas preciso
perguntar do que tirar minhas próprias conclusões. Os outros policiais já estão quase se
aposentando, não querem mais saber de trabalho. Sempre acabo fazendo tudo sozinho.
— Comecei há quase um ano. Dei sorte de entrar logo depois de terminar os estudos.
— Meus parabéns! — Sorri. — Lamento não ter ajudado, mas agora tenho seu contato.
Se eu lembrar de algo, te ligo. Obrigada por ajudar minha família.
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— Sem problemas. Esse é o nosso trabalho. Novamente, melhoras para vocês.
O policial foi embora. Aproveitei para pedir algo para comer. Não tinha conseguido
tomar um café sequer, pulei imediatamente para o almoço. A refeição desse hospital é muito
acima do que eu esperava. Para um hospital de cidade pequena do interior, a qualidade dele
é algo que me deixa impressionada.
A conversa com o policial se repetia em minha cabeça. Um assassino passou por nosso
carro. Poderíamos ter morrido se o policial não estivesse perto. Um homem tão jovem já
envolvido com problemas de tamanha seriedade. Por culpa de uma briga, corremos o risco
de perder nossa família. O que seria dos meus pais?
— Gostaria de ver meu marido. Eu sei que ele não está consciente, mas preciso vê-lo.
Já me sinto melhor para andar.
— Vou informar a doutora Hans. Peço que aguarde um momento, por favor. —A
enfermeira saiu da sala. Senti um pouco de repreensão ao meu pedido, mas ela hesitou por
pouco tempo. Talvez seja pelo meu estado físico.
Com cuidado, sentei na cama. Meus pés tocaram o chão gelado do hospital.
Normalmente, não gosto de sentir nada frio encostando em minha pele, mas minha
motivação para sair da cama me fez ignorar a sensação. Olhei o quarto, que é bem espaçoso,
e ainda fico encantada com a limpeza e o cuidado desse hospital.
— Senhora Bernard, comece devagar. Ajude, por favor. — Disse a doutora para a
enfermeira.
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Caminhamos quase seis minutos, com as duas me vigiando para garantir que eu não
caísse, mas eu já não sentia tanta dor para andar. Apenas um desconforto ao dobrar os
joelhos, o que era justo, dadas as escoriações que eles tinham. Me sentia uma múmia com
tantas ataduras espalhadas pelo corpo.
A enfermeira segurou a porta e tentou me ajudar a entrar, mas eu disse que não era
necessário. Já sentia que poderia fazer isso sozinha. A cama estava coberta por cortinas que
iam até o teto. A outra médica se aproximou.
— Você é a esposa do senhor Bernard, correto? — Disse. Era ela quem estava
responsável por Pierre. — Eu sou a doutora Roche. Estou cuidando, junto a minha equipe,
para que seu marido consiga melhorar.
— Muito obrigada. Posso vê-lo agora? — Respondi enquanto olhava fixamente para
a cortina.
— Senhora, antes de abrir essa cortina, preciso que mantenha a calma. A cena pode
ser um pouco pesada.
A doutora abriu a cortina e lá estava meu marido, com gessos nas pernas e nos braços.
Se não fosse pelo cabelo e pela barba ruiva, eu não diria que era ele. Estava irreconhecível
com todos esses ferimentos. Meu peito apertou e comecei a chorar. A enfermeira veio ao
meu suporte porque soltei a muleta e caí de joelhos. Fiquei fraca demais para gritar. Senti
uma grande dificuldade para respirar e uma série de pontadas no peito. Me ajudaram a sentar
em uma cadeira próxima a cama do meu marido. A enfermeira voltou com um copo de água.
Sem dizer nada, ela me convenceu a beber a água e simbolizou para que eu respirasse
fundo repetidamente. Eu estava muito nervosa, mas consegui me acalmar um pouco com sua
ajuda.
— Cabe ao seu marido agora, senhora Bernard. Estamos fazendo tudo ao nosso
alcance para ajudá-lo.
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— Seja sincera, pelo amor de Deus! — Me exaltei. — Eu entendo que ele precisa
resistir, mas, no estado em que ele se encontra, quais são as chances?
— É claro que ele possui chances! — Disse enquanto se aproximava. — Já tive pacientes
em condições piores que se recuperaram, mas não posso prometer nada. Continue orando...
Ou torcendo por seu marido. — Seu olhar me transmitia sinceridade e compaixão.
— Sim, sempre oro por ele antes de dormir. — A doutora Hans aparentava
desconforto com toda a situação. Notei que ela não queria olhar diretamente para mim. —
Poderiam me dar um tempo a sós com meu marido, por favor?
Novamente a doutora Hans parecia não concordar, porém, no final, todas saíram.
Aproximei a cadeira da cama do meu marido e segurei sua mão gentilmente.
— Meu amor. — Tentei encostar em Pierre, mas não sabia se poderia machucá-lo. —
Lamento que tenha passado por isso tudo para proteger nosso filho e a mim. Quero que saiba
que estamos ótimos e vamos esperar a sua melhora para sairmos todos juntos. — Respirei
fundo e enxuguei as lágrimas do rosto. — Um policial veio conversar comigo. Ele disse que
vai nos dar uma carona porque nosso carro ficou muito danificado com o impacto. Mas,
como você sempre diz, o que importa é ter saúde, não é? — Dei uma pequena risada e acabei
balançando demais o seu braço. — Desculpa, meu amor! Não era a intenção. Você me fez rir.
Respirei fundo e mantive a cabeça baixa por alguns instantes. Não sei dizer por
quanto tempo fiquei assim. A sala começou a esfriar, minha pele arrepiou Senti a presença
de alguém na porta. Percebi uma sombra muito turva me observando através do vidro.
Pisquei os olhos e os fechei por alguns segundos. Balancei a cabeça e, quando os abri
novamente, vi a doutora Hans acenando.
— Senhora Bernard, você precisa se alimentar e descansar. Vamos para sua sala.
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Eu levantei e peguei minha muleta. Avisei, novamente, que não havia necessidade de
me carregarem até a sala. Caminhei devagar ao lado da doutora Hans, que me observava
inquietamente.
— Claro! Apenas informe, antecipadamente, a enfermeira para que ela possa avisar a
doutora Roche. — A enfermeira chegou e se aproximou da minha cama. — Bom, deixo aos
seus cuidados. Por favor, alimente-se. Já passou do horário de almoço. Antes de ver seu
marido amanhã, peço que respeite os horários das refeições. A senhora precisa se alimentar,
faz parte da recuperação. Sua e do bebê.
— Podemos fazer deste jeito, muito obrigada. Só lembre de informar a doutora Roche,
por favor.
A enfermeira tinha um olhar mais sério e, apesar de quieta, posso dizer que é uma
ótima profissional. Almocei muito tarde por conta dos eventos do dia. Trocamos meus
curativos e vi que as feridas já estavam praticamente fechadas. A recuperação está realmente
sendo rápida. Cada dia que passa, eu me preocupo menos com a possibilidade do acidente
ter afetado a saúde do meu bebê, mas, sempre que posso, peço para verificarem seu estado.
Horas passaram, já era tarde da noite. Após os resultados dos exames, fiquei feliz em
saber que meu filho está bem. Me informaram que ele não possui nenhum tipo de problema
e que pode vir a qualquer momento.
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Estávamos em nossa casa nova. Não era grande como a antiga casa, mas agora
morávamos próximo dos meus pais. Eu estava na cozinha. Tirei a torta de limão do forno e
a apoiei na bancada.
— Isso está com um cheiro muito bom! — Pierre apareceu com um sorriso enorme.
— Você sempre com muita fome! — O beijei no rosto. Ele beijou minha barriga.
Tentou colocar um de seus dedos na torta, mas consegui impedir sua mão com um
tapa.
— Ainda não!
Pierre interrompeu e me puxou pelo braço. Desisti de fazer o que devia e fui na frente.
Subimos até o quarto do nosso filho e Pierre tampou meus olhos com as mãos.
— Pronta?
— Sim, me deixa ver! — Tirei suas mãos e vi um quarto apenas com um berço no
meio. Havia um cheiro muito forte de mofo. Entrei no quarto e senti meus pés grudarem no
chão engordurado.
Parei no meio do quarto e olhei em volta. Vi algo na parede se mover. Era uma
pequena elevação, pouco maior que um dedo.
— Pierre! Me ajude!
— Não posso.
— Como assim não pode? — Gritei enquanto tentava soltar meus pés.
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— Não posso me mover, esqueceu? — Com o canto da boca, Pierre deu um sorriso
peculiar.
— Emma, filha! — Escutei a voz do meu pai saindo da parede à minha frente.
— Pai?!
Acordei aos gritos e assustei a doutora Hans, que estava na sala, próxima a minha
cama. Ela se afastou um pouco e arrumou o cabelo.
— Aconteceu algo com eles!? — Levantei rápido, quase não senti dor para me mover.
A médica ficou surpresa com minha movimentação.
— Vim informar que seus pais pediram para lhe acordar. Lamento o incômodo, mas
eles ainda estão aguardando na linha.
Caminhamos até o único telefone, que fica na recepção do meu andar. Consigo me
mover mais rápido que ontem e sinto menos dores ainda. A médica fez um gesto para a
recepcionista, que me entregou o telefone.
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— Alô? — Disse sem saber quem iria me responder.
— Emma?! — Disse minha mãe, com uma voz que misturava alívio e horror. Poderia
jurar que ela havia passado horas chorando. — Filha, o que aconteceu? Você e o bebê estão
bem?
— Mãe, fique calma, estamos bem! Vamos melhorar totalmente logo, mãe. Pode ficar
tranquila — Tentei demonstrar o máximo de animação para tranquilizá-la.
— Que ótimo, minha filha. Que ótimo. Que susto você nos deu! Seu pai quase morreu
do coração quando conseguiu entrar em contato. Se ele pudesse, já estaria aí. Estamos
tentando ligar desde ontem quando recebemos a mensagem!
— Claro! Eu estou tentando desde ontem. Praticamente não dormi. Apenas insisti e
tirei breves cochilos na poltrona da sala. — A sua voz parecia estar mais calma. — Quando
vocês vêm pra casa?
— Não sei ao certo, mãe. — Olhei em volta e procurei a médica, porém ela não estava
mais lá. — O Pierre teve sérios danos...
— Filha? Fale comigo! — Escutei meu pai falar ao fundo e o telefone fez alguns sons
estranhos. Meu pai assumiu a ligação.
— Emma, minha princesa, o que aconteceu? — Disse. Não sei explicar como, mas algo
em sua voz sabia me tranquilizar.
A linha ficou em silêncio por alguns segundos. Escutei meu pai respirar fundo.
— Filha, mantenha a fé. Seu marido não vai te abandonar. Muito menos em um
momento desse. Seu filho precisa de vocês dois. Ele é uma pessoa forte e vai conseguir.
— O que aconteceu? — escutei minha mãe perguntar. Meu pai contou para ela, que
chorou ainda mais.
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— Quer que mande alguém buscar vocês? Posso levar o Pierre para um hospital bem
mais equipado.
— Não, pai. Agradeço muito, mas aqui, por incrível que pareça, é um ótimo hospital.
Temos salas privadas e uma equipe à nossa disposição de forma quase exclusiva. Tenho até
uma televisão no meu quarto!
— Como se você ligasse para televisões! Como você pretende fazer então?
— Não, amor. Ela quer ficar com o Pierre até ele melhorar. — Ele respondeu.
— Então, minha filha, se precisar de alguma coisa, você sabe que é só pedir. — A
respiração do meu pai estava bem alta. Fiquei ligeiramente preocupada e lembrei do meu
pesadelo terrível.
— Claro que sei, pai. Vou só aguardar o Pierre. Ainda temos tempo de sobra, vamos
chegar a tempo, fique tranquilo. O policial responsável por me resgatar se ofereceu para nos
levar até a casa de vocês.
— Muito generoso da parte dele, mas peça e eu enviarei alguém de confiança. Prefiro
que você esteja com alguém que eu possa confiar.
— Tudo bem. Aqui é difícil fazer ligações, mas, sempre que possível, ligarei para
vocês.
— Eu também te amo, filha. — Minha mãe gritou ao fundo. Ela é muito à flor da pele.
— Eu também te amo, mãe. — Meu pai passou a minha mensagem para ela.
— Tchau, pai.
— Tchau, princesa.
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Desliguei o telefone e entreguei para a recepcionista. Essa ligação me ajudou
psicologicamente. Conversar com meu pai sempre me animou muito. Retornei para o meu
quarto e a enfermeira estava na porta me aguardando.
Olhei para a janela e reparei como o céu estava bonito. Bastante convidativo para
uma caminhada.
— Podemos sair? O hospital tem alguma área aberta para que eu possa ver um pouco
do céu?
— Possuímos um enorme pátio. Ele fica do lado oposto de onde estamos, é possível
ver uma pequena parte dele da sua janela.
— Claro, senhora Bernard. Peço apenas que se alimente antes. É preciso que eu
acompanhe a senhora, ordens médicas.
Pela primeira vez desde que cheguei a este hospital, eu estava animada. Andar um
pouco, ver o céu e respirar um ar puro sem ser do hospital. Por mais que este seja um lugar
muito bem cuidado, me sinto mal de estar na minha sala o tempo inteiro.
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— Devo dizer que é bastante reconfortante. Ótimo trabalho.
— Na verdade, dizem que essa fonte de pedra sempre esteve aí. A ideia do pátio deve
ter sido para aproveitá-la. — Respondeu.
— Esse hospital é muito antigo, senhora Bernard. Me contaram que ele foi criado por
soldados alguns anos após a derrota contra a Prússia. Algumas pessoas precisavam muito de
cuidados por aqui e um antigo médico do exército construiu esse local para ajudar o máximo
de sobreviventes.
— Sério? Que grande iniciativa. Aquela guerra foi triste. Ai Napoleão III.
— Desculpa, senhora Bernard, mas o jeito que falou “Ai, Napoleão III”...
Olhei para ela e, sem explicar, ri junto. — Mas é, ele foi capturado e tudo na batalha
de Sedan.
— Não lembro bem. História nunca foi minha matéria favorita. — A enfermeira
respondeu.
— Entendo, mas você é uma ótima enfermeira! Sua família deve estar muito
orgulhosa. Vocês moram perto do hospital? Não vi casas por aqui.
— Minha família não é desta cidade, desculpe. As casas ficam mais para o outro lado,
existem poucas próximas do hospital.
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— Nossa, é muito estranho o único hospital da cidade ser tão afastado do centro. Vai
entender. — Olhei para a fonte de pedra e fiquei encantada com a quantidade de detalhes
esculpidos nela e como era bem preservada. Se não tivesse me informado, eu juraria que ela
tem apenas algumas décadas.
— Essa fonte, ela tem alguma história em especial? — Apontei enquanto observava
com mais cuidado. Sentia que existia algo não contada sobre ela.
— Não sei informar, senhora Bernard. Nunca me contaram nada sobre essa fonte.
Ficamos olhando a fonte sem dizer nada até que dois enfermeiros passaram em nossa
frente fumando seus cigarros fedorentos e carregando o jornal local debaixo do braço.
O enfermeiro me entregou o jornal. Senti uma leve hesitação, como se ele não quisesse
me emprestar, mas acabou fazendo por delicadeza. Acredito que seja receio de negar o desejo
de uma mulher grávida.
Abri o papel e vi que era um jornal pequeno, com notícias locais, mas iria servir para
matar o tempo. Na primeira página, algumas informações sobre as eleições e os dramas por
trás dos políticos corruptos que nunca são presos. Nada que me interesse, já que nunca voto.
Na segunda, me deparei com um texto inquietante.
Uma jovem gestante foi morta esfaqueada na noite deste sábado, dia 16, em uma das
estradas que ligam La Voie Vert a Rouen. A polícia foi notificada e prestou socorro à vítima,
que não resistiu aos ferimentos. O suspeito é o chamado "Precursor de La Voie Vert”,
também acusado de uma série de assassinatos nas últimas semanas.
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De acordo com o investigador Treux, responsável pelo caso, o suspeito costuma
marcar suas vítimas com um símbolo em espiral e tem como alvo mulheres grávidas, sem
faixa etária específica. Ainda não há maiores informações sobre a identidade do acusado.
— Aqui, perdão. — Entreguei o jornal em sua mão. — Você sabia desse assassino em
série?
— Não, senhora Bernard, isto é tão novo pra mim quanto para a senhora. — Ela
respondeu.
— Mas essa moça que foi assassinada recentemente veio para cá?
Desisti das notícias negativas do jornal, não estava com cabeça para isso. Observei
novamente a paisagem em volta. Vi alguns pássaros sobrevoando o local, cantarolei umas
músicas relaxantes, escutei a conversa das outras pessoas e notei um gato que estava
caminhando em minha direção. Ele era lindo. Tinha olhos claros e bastante pelos. Se
aproximava despreocupado, até que seus olhos me encontraram. O gato fez uma pausa e
balançou o rabo com rapidez. Suas pupilas retraídas me encaravam fixamente. Não entendia
o motivo deste gato reagir assim. Verifiquei meu estado e senti, novamente, uma dor aguda
na parte de trás da cabeça, seguida de formigamento nas mãos e um forte enjoo.
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— Senhora Bernard? — A enfermeira apareceu. — Peço desculpas pela minha ausência.
— Sim. — Olhei na direção do gato, mas ele já não estava mais lá. — Vamos embora?
Estou com fome e quero ver meu marido.
Fomos para o quarto onde apenas tomei banho e examinaram a saúde do meu filho.
Fazemos essa checagem com frequência. Fico feliz que tenham acatado minhas necessidades.
Almocei muito bem. O menu é o mesmo, mas sempre parece ter sido feito na hora. Não
consigo explicar com exatidão, mas era uma boa comida.
Andamos até a sala onde Pierre estava. Falei com a doutora Roche, responsável por
seu estado, mas, infelizmente, soube que o quadro não havia mudado. Pedi um tempo a sós
com ele. Agora me foi permitido sem nenhum questionamento. A sala era bem silenciosa e
arejada.
— Hoje foi o primeiro dia que pisei fora deste hospital. Foi no pátio, mas conta, né?
— Soltei uma leve risada. — Você precisa ver o jardim! A organização, tudo projetado do
zero. Esse hospital é muito bonito, por mais que atenda toda a cidade, não parece faltar nada
no nosso tratamento.
Levantei e arrumei seu cabelo. A barba começava a ficar feia de tão grande.
— Você precisa arrumar isso, sério! — Vou ver se alguém pode aparar isso pra você,
amor. — Cocei sua barba devagar, do jeito que costumo fazer. — Que saudade disso. Espero
que você retorne logo. Estamos te esperando, nosso bebê está esperando o pai dele. Preciso
que você volte logo, meu amor.
Tento conter as lágrimas, mas sou péssima nesse quesito. Encostei a cabeça na cama
e continuei chorando por algum tempo, até que as lágrimas cessaram.
Mantive a cabeça abaixada e acariciei sua mão. — Tudo isso acontecendo com a
gente… Viver sabendo que quase matei nós três está sendo péssimo, me desculpa. — Chorei,
tentando me acalmar para que ninguém escutasse.
24
deixava uma das mãos sob a barriga. — Só nós três? Vai ser bom por um momento. — Fechei
os olhos por alguns minutos. Sabia que meu marido não iria me responder, mas conversava
como se ele estivesse ouvindo tudo com atenção.
Me senti incrivelmente relaxada. Pierre tinha esse efeito mesmo inconsciente. Ele
sempre foi a pessoa que pensa em todas as situações possíveis as quais podemos nos meter,
sempre preocupado com tudo. Perdi a noção do tempo. Acredito ter cochilado.
O formigamento e a dor aguda atrás da cabeça voltaram. Odeio quando isso acontece
depois que acordo. Procurei algum relógio, já era tarde. Fiquei quase quatro horas aqui e
ninguém me interrompeu.
— Amor, vou voltar para minha sala, ok? Estou ficando com fome e com dor de
cabeça. Amanhã eu volto, com toda certeza, tá bom? — Beijei seu rosto com cuidado. — Eu
te amo muito.
Fechei a porta. Olhei para a doutora Roche, que estava do lado de fora da sala, e
acenei em despedida. Caminhei em direção ao meu cômodo enquanto ela entrava no quarto
de Pierre.
— Espere. Eu abro pra você. — Abri a porta para que ela pudesse entrar sem
problemas.
— Não, muito obrigada. Estou ótima. — Sentei na cama e coloquei a comida na minha
frente. — Pode me chamar de Emma. Senhora Bernard é muito extenso e me faz sentir que
sou muito, mas muito velha.
— Certo. — Respondeu.
25
— Melhor assim, você se acostuma. Acho que nunca me disse seu nome, disse?
— Sempre, Emma. — Dessa vez seu sorriso foi menos forçado. — Deseja mais alguma
coisa?
— Não, muito obrigada. Acho que vou comer um pouco e dormir. Estou me sentindo
drenada. Acho que é por causa da caminhada, não sei.
— Muito obrigada.
Apesar da forte dor de cabeça e do enjoo, comi mais do que esperava. Minha fome
me surpreendeu, sem dúvidas. Passei algum tempo sentada esperando a comida ser digerida,
mas acabei caindo no sono do mesmo jeito.
Acordei, antes da enfermeira chegar, graças ao sol em meu rosto mais uma vez. Às
vezes, sinto vontade de alterar a posição dos móveis. Parece que, pela primeira vez desde o
acidente, estou totalmente relaxada. A noite de sono foi revigorante, não consigo lembrar se
sonhei com algo.
Levantei da cama e fui até a janela. A vista do meu quarto não era nada de excepcional,
pelo contrário, era até muito simples. Só conseguia ver uma pequena parte do pátio. Fechei
as cortinas e, quando afastei minhas mãos, notei sangue no tecido. Olhei para as mãos e elas
estavam completamente ensanguentadas. Fui até a pia, que ficava próxima da minha cama, e
comecei a lavá-las. O sangue saiu, deixando apenas uma ferida que formava um símbolo em
espiral. O mesmo símbolo do assassino do jornal.
— Eu fui marcada?
— Doutora — Olhei para as minhas mãos e o símbolo havia desaparecido. Olhei para
a médica sem entender muito o que acontecera. Passei os dedos na palma da mão em uma
tentativa de sentir o símbolo.
26
— Senhora Bernard, está tudo bem? Aconteceu algo com a sua mão? A senhora parece
agitada.
A médica se aproximou para analisar minhas mãos. Antes que pudesse tocá-las, eu
me afastei e sentei na cama. Algo no olhar dela me deixava apreensiva. Mesmo que ela tenha
cuidado muito bem de mim, a doutora Hans carregava uma atmosfera fúnebre.
— Está tudo bem, de verdade. Só estou com muita coisa na cabeça. — Respirei fundo
e me levantei. — Onde está Lilian? Gostaria de tomar meu café e ir ao pátio novamente.
— A Lilian vem apenas no turno da noite, mas não se preocupe. Estou aqui para
ajudá-la. Já trouxe até seu café. — Ela pegou o carrinho do lado de fora com o café da manhã
e colocou na minha mesa. — Aqui está, senhora Bernard. — Sentou ao lado da cama. — Como
vocês estão se sentindo hoje?
— Sim, estou muito ansiosa para que ele chegue. Estamos planejando ter um bebê há
anos. — Não conseguia parar de sorrir para a minha barriga. — Só conseguimos arrumar
nossas vidas agora, mas tivemos esse imprevisto. Não sei como vou fazer sem ele. — Não
consigo segurar o choro quando penso em Pierre. — O que eu vou fazer se ele não voltar,
Dra?
— Não, está tudo bem. Como eu disse, estou aqui para ajudar. — Ela levantou e tirou
a bandeja do café. — Gostaria de ver seu marido? Ficar ao lado dele pode ajudar. Depois
vamos ao pátio.
— Vamos.
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Entramos no quarto onde estava Pierre. A doutora puxou a cadeira próxima da cama
para eu sentar.
— Por favor, fale baixo. — A doutora Roche soltou um leve sorriso com o canto da
boca. Desta vez, ela parecia contente de verdade. — O seu marido acordou.
— Isso é sério? — Olhei para ele, que estava do mesmo jeito. — Ele está dormindo
agora, é isso? — Antes que a doutora Roche respondesse, comecei a chorar e me aproximei
ainda mais do Pierre.
— Sim, ele acordou durante a madrugada. As enfermeiras afirmaram, mas agora ele
está descansando de novo. Ele vai dormir bastante durante esses dias, mas devo informar que
ainda não está cem por cento bem, senhora Bernard. Ele ainda não conseguiu dizer nada,
apenas abriu os olhos.
— Com licença. — Seu rosto me deu uma sensação estranha, mas não era o que
importava agora.
— Retornando. — A doutora Roche tocou em meu ombro. — Seu marido teve sérios
danos no crânio, não podemos garantir que ele vai retornar totalmente, ou que está curado
e pronto para ir para casa. Ele precisa ficar aqui por um tempo e, depois, caso queira, a
senhora pode transferi-lo para um hospital mais próximo de sua casa.
— Não precisa me agradecer. Preciso apenas que volte mais tarde, ou talvez amanhã.
Pode ser que o encontre acordado. Vamos deixar ele descansar.
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Retornei diretamente pro meu quarto e encontrei a doutora Hans saindo dele com
uma expressão aborrecida. Preferi dar um tempo e esperar ela sair completamente do meu
campo de visão para entrar no quarto.
Fechei a porta ao entrar. Infelizmente, não posso trancá-la por dentro, mas resolvi
ser rápida e olhar em volta do cômodo. Vasculhei todas as coisas. Olhei as cortinas, as janelas,
a TV e me encontrei no centro do quarto. Parei para pensar no que estava fazendo, respirei
fundo e comecei a rir. Saí do quarto e andei até a recepção.
— Claro. Se importa de dar a volta e entrar no balcão? Sente-se aqui, senhora Bernard.
— Disse a recepcionista enquanto puxava uma cadeira.
Esperei ao lado das enfermeiras até que pudesse fazer a ligação e disquei o número
dos meus pais.
— Emma, minha filha. — Ela abafou o telefone com a mão. — É a Emma! Venha aqui!
— Só estamos muito preocupados com você. Seu pai chegou a adoecer de tanto aperto
que sentiu por não poder ir ao hospital.
— Mas, mãe, ele mal consegue andar atualmente. Fala com ele. — Respondi.
— Você conhece seu pai, não conhece? Tem que ser do jeito dele. Ele se sente muito
impotente de não poder estar aí.
— Sobre isso que liguei, mãe. — Respirei fundo e sorri. — Pierre acordou! Ele está
melhorando.
— Ótimo! Quando vocês pretendem voltar? Seu pai já separou o motorista. Como
são algumas horas...
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— Sobre isso, mãe. Ainda não conversei com a médica. Apenas liguei para informar
vocês sobre a situação de Pierre. Assim que tiver uma data, vou avisar a senhora.
— Que ótima notícia, minha filha! Vou procurar algum hospital para que você possa
transferi-lo.
— Vamos sempre ajudar você, meu amor. Mesmo distante. — Escutei meu pai ao
fundo gritando a mesma coisa.
— Mande um beijo para meu pai. Amo muito vocês. Vou descansar e comer algo..
— Nós também amamos você, minha filha. Ligue assim que puder, estamos morando
debaixo do telefone! — Rimos juntos.
Finalizei meu almoço, que estava extremamente delicioso, como sempre. Chamei a
médica, mas, após quase meia hora, desisti de esperar por ela. Levantei sozinha e caminhei
até o pátio. Já não usava mais as muletas, apenas andava um pouco devagar, mas sem dor.
Cheguei ao pátio e, desta vez, ele estava pouco movimentado. Consegui contar quatro
médicos que conversavam entre si enquanto degustavam de seus cigarros imundos. Agradeço
por estarem longe fumando isso.
Observei o céu claro e azulado desta cidade. Parecia ser mais azul que o céu de onde
eu morava, e que o de onde meus pais moram. A paisagem é muito linda, não posso negar.
O vento estava sutil e fresco, uma ótima sensação ao tocar a pele. Cheguei a fechar meus
olhos e relaxar um pouco no banco onde sentava.
Escutei um miado próximo e, quando olhei para baixo, vi o gato do outro dia. Quase
não tive tempo de afastar minha perna. Ele me arranhou com uma pata e errou os outros
dois ataques. Levantei o mais rápido possível e me afastei do animal, mas ele continuou
miando. Me encarava como se estivesse prestes a atacar novamente, quando a doutora Hans
apareceu jogando o jornal em sua direção, o espantando.
— Sai daqui! Ela não te fez nada! — Ela olhou para a minha perna. — Precisamos
limpar essa ferida, Senhora Bernard. Por favor, me acompanhe.
Voltamos para o meu quarto. A doutora analisou a ferida e cuidou do arranhão. Foi
algo rápido, mas ela insistiu que era necessário.
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— Jamais. Estava de olhos fechados, nem o vi se aproximar.
— Que absurdo! Aqui no pátio costumam entrar alguns gatos, mas logo espantamos
eles. Depois de muita briga, eles acabam desistindo. Lamento que tenha passado por isso.
— Pode ser que seja isso mesmo! Dizem que os gatos escolhem as pessoas e que são
animais muito temperamentais. — Sorriu.
— Não sei informar, senhora Bernard, mas em breve ela estará aqui. — Respondeu,
mas seus olhos me entregaram que ela deixou algo de lado. — Pronto. Agora, por favor,
cuidado com os gatos! — Ela realmente não sabe sorrir. Acredito que seja necessário praticar
mais algumas vezes. Seu sorriso não me transmitia sinceridade.
— Claro. — Odeio esse tipo de piada. Me esforcei para fingir um sorriso e não virar
os olhos até a nuca.
— Fique à vontade, senhora Bernard. Qualquer coisa me chame, mas talvez eu demore
um pouco mais que o normal.
— Boa noite senhora... Emma! — Ela apoiou a bandeja com a comida na mesa. —
Desculpe. Como você está?
— Ótimas notícias.
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— Já possui datas?
— Ótima notícia, Emma. Espero que consigam ir logo. Amanhã posso acordá-la cedo
para ver essa questão com a doutora Roche.
Estava em um lugar estranho. Uma sala branca, sem mobília, sem nada. Escutei
batidas na porta e virei para atendê-la. Ao abri-la, eu estava, novamente, sentada em meu
carro. Provavelmente, segundos depois da batida. Desta vez, consegui sair do banco do
carona. Olhei à minha volta e não enxerguei muita coisa no escuro em que estávamos.
Acredito que a única iluminação que havia ali vinha do poste que tínhamos terminado de
quebrar.
Procurei por Pierre e encontrei seu corpo totalmente ferido a metros de distância do
carro. Corri até ele, mas, ao me aproximar, seu corpo foi arrastado com muita velocidade
para dentro de uma pequena mata seguindo a calçada.
Gritei por seu nome algumas vezes até que o mato começou a se mexer. De dentro
dele, saiu uma pessoa encapuzada que parou exatamente onde Pierre estava. Ela me encarou
em silêncio e completamente imóvel, até que perguntei onde estava meu marido.
Percebi que a figura se aproximava cada vez mais. A sensação de formigamento, falta
de ar e de estar extremamente fraca era horrível, mas não desisti de tentar me soltar.
32
Senhora Bernard. — Fui acordada pela doutora Hans. Ela se afastou bastante de mim.
— Desculpe-me te acordar assim, mas já está na hora do seu almoço.
— Senhora, tentei acordá-la mais cedo, mas acabei não conseguindo na primeira
tentativa e optei por tentar novamente depois de resolver algumas questões. A Lilian só vai
chegar à noite e as outras médicas estão ocupadas. Peço desculpas. — Suas unhas estavam
sujas e ela parecia muito indisposta.
A doutora. Hans me serviu. Hoje, em especial, a comida estava muito ruim, quase
intragável. Não comi tudo por medo de prejudicar meu filho.
Decidi caminhar pelo pátio. O local estava completamente vazio. Nem o senhor que
faz a limpeza estava lá. Olhei para o banco que costumo sentar e me afastei dele rapidamente.
Fiquei com medo daquele gato maluco. Desta vez, eu tenho certeza que a doutora Hans não
vai aparecer para me socorrer.
Me aproximei da fonte. Gosto de como ela é bela e conservada, por mais que seja
muito velha. Ao fundo, à minha direita, um caminho desconhecido me chamou atenção. Não
havia reparado nele até então.
Meus pés estavam me matando, então resolvi sentar um pouco em um banco que
estava mais inteiro. Me certifiquei de que era seguro e sentei. Observei o tempo passar. O
céu desta cidade é lindo, muito limpo e azulado. Fechei os olhos, respirei fundo e me permiti
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descansar por um tempo. O vento em minha pele e o aroma das plantas me trazem uma
sensação de paz e sossego. Meu corpo estava cada vez mais relaxado.
Senti o meu filho chutar. Levei minha mão até a barriga e toquei onde ele havia
chutado. Minutos depois, mais um chute. Preenchi meu rosto com um sorriso que esquentava
minhas bochechas, não conseguia tirá-lo do rosto. Gostaria que Pierre estivesse aqui para
compartilhar esse momento. Algum tempo se passou e senti outro chute. Dessa vez, mais
forte e desconfortante, mas tentei não me deixar abalar. Outro chute, muito mais intenso,
gerando um incômodo seguido de uma grande dor que levou consigo a sensação de
relaxamento em meu corpo. Me inclinei para frente, abri meus olhos e me encontrei, de pé,
em frente ao banco que estava sentada. Tentei entender o que havia acabado de acontecer.
Levei a mão à cabeça e caminhei em direção ao banco. Tive a impressão de alguém passando
por trás de mim. Virei o mais rápido que pude, mas não havia nada. Apoiei a mão na barriga,
onde doía, e saí do local.
Retornei ao pátio novo com passos lentos. Meus pés e minha coluna estavam
extremamente cansados. Com a soma da dor que sentia na barriga, tudo o que eu mais
desejava era deitar em minha cama e chamar a doutora Hans para verificar o ocorrido.
Chegando próximo da fonte, tive o pressentimento de que alguém estava atrás dela.
Eu precisava atravessá-la para chegar no hospital. Parei e olhei, com cuidado, em uma
tentativa falha de conferir se realmente existia alguém ali. Arrumei o cabelo, ajeitei a roupa
e comecei a esfregar o dedo na minha aliança.
Escutei o barulho da cerca, como se estivessem pisando em cima dela, que estava bem
próxima a mim. O nervosismo não me permitiu parar e raciocinar. Apenas corri o máximo
que pude e, ao chegar perto da fonte, cerrei o punho da mão esquerda e protegi meu filho
com a direita.
Não havia nada atrás da fonte. Quando cheguei na porta do hospital, virei novamente
para olhar. Mesmo que eu não tenha visto ninguém, continuei com a sensação de estar sendo
vigiada, como se um olhar malicioso pairasse sob meu filho e eu.
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— Emma… — Disse rapidamente, mas conseguia sentir a forma amigável. — Peço
apenas alguns minutos, por favor.
Entrei e fechei a porta. Deitei e cobri todo meu corpo, sem tirar os olhos da porta.
Lembrei-me novamente da história contada pelo policial. Essa situação me preocupa mais
do que deveria.
— Eu acredito que você tenha cochilado, mas, como está na hora da sua janta, eu
preferi chamá-la. Não pode pular as refeições.
— São sete e quarenta e duas da noite, Emma. — Ela apontou para um relógio que
fica em uma mesinha de canto.
— Aqui está. — Lilian colocou a minha janta em uma bandeja. — Por favor, coma.
Logo a doutora Hans apareceu junto de Lilian. A médica parecia nervosa, seus olhos
não paravam.
— Boa noite, senhora Bernard. Como posso ajudar? — Ela tentou falar em um tom
mais amigável, mas seu sorriso sempre acabava transmitindo a impressão oposta.
— Boa noite, doutora, mais cedo meu filho chutou algumas vezes e seu último chute
me fez sentir uma dor horrível.
— Senhora Bernard, os chutes dos bebês são necessários. Ele precisa se esticar e se
mover para ter um desenvolvimento adequado.
— Mas doeu bastante. Estou acostumada com os chutes, mas esse foi… diferente! —
respondi.
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— Bom. — Ela colocou as mãos no bolso do jaleco. — Amanhã cedo vou levar a
senhora para verificar. Foi apenas uma vez?
— Sim. Hoje não é possível? — Apoiei a mão sob minha barriga. — Estou preocupada.
— Devido ao horário, não. O profissional responsável já saiu, mas vou falar com ele
assim que chegar. — Ela removeu a mão do bolso e retirou um papel e caneta. — Vou deixar
um bilhete em sua sala para que ele venha verificar.
— Tudo bem então, obrigada. — Respirei fundo para não continuar a reclamar. —
Então é só isso mesmo. Vou comer e dormir.
— Não hesite em chamar a enfermeira Lilian, caso precise de ajuda. — Ela apoiou a
mão nas costas de Lilian e ambas saíram da sala. — Boa noite, senhora Bernard.
Estava no antigo pátio de frente ao banco que costumava sentar. Com a escuridão,
quase não consegui ver por onde andava. Quando comecei a me mover, escutei o som de
passos junto aos meus. Fiquei imovél por um tempo e não ouvi mais nada. Dei mais dois
passos e o som continuou. Novamente, parei de caminhar e virei meu ouvido na direção do
som. Meu coração acelerou gradualmente e tentei expirar pela boca, a fim de normalizar
minha frequência cardíaca.
Retomei o controle e olhei para o banco à minha frente. Forcei a vista e percebi que
havia alguém atrás dele. Não consegui dizer quem era, mas vi uma silhueta escura. Ela tinha
uma presença forte e emanava uma atmosfera extremamente hostil. Antes que eu pudesse
reagir, a sombra disparou em minha direção, mas meus reflexos me permitiram correr quase
ao mesmo tempo.
Não considerei olhar para trás para não correr o risco de cair. Atravessei todo o pátio
e só parei ao chegar no meu quarto.
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Acordei extremamente cansada e encharcada de tanto suor. Respirei fundo e fui em
direção a minha garrafa d'água. Lilian logo entrou e trouxe o café da manhã. Me levantei e,
sem dizer nada, fui até o quarto de Pierre.
A doutora Roche estava na sala quando entrei. Ela me encarou de cima a baixo com
um olhar de julgamento. Pierre estava com os olhos em minha direção. Seus olhos encheram
de água. Antes que a doutora pudesse iniciar qualquer coisa que havia planejado, eu a
interrompi.
— Pode me dar alguns minutos a sós com meu marido? Preciso conversar com ele.
Me aproximei da cama de Pierre e sentei ao seu lado. Apoiei a minha mão em seus
dedos, já que era a única parte que não estava enfaixada. A doutora Roche saiu da sala e, se
disse algo, não fui capaz de me importar naquele momento.
— Amor, como você está? Eu estou muito preocupada com você. Sei que você não
pode falar, mas esses dias estão sendo bem cansativos e você costuma dizer coisas que me
colocam no lugar. — Comecei a chorar. Apoiei minha cabeça em sua cama, seus dedos
acariciaram meu rosto. Mesmo com pouca movimentação e muito esforço, eu conseguia
sentir sua preocupação comigo.
— Nosso filho está ótimo. — Mostrei minha barriga. — Todos dizem que você optou
por bater com o seu lado do carro para que eu e nosso filho não sofrêssemos muito. — Beijei
seus dedos. — Saiba que a culpa não foi sua, meu amor. Peço desculpas por estar assim. —
Seu olhar me dizia tudo, limpei as lágrimas e sorri. — Meus pais ligaram, disseram que, assim
que possível, vamos transferir você para um hospital mais próximo de casa, então trate de se
recuperar rápido! Preciso de você inteiro!
Continuei o meu monólogo com Pierre contando todos os dias que já passei aqui,
Desde a coisa mais simples até a mais importante, como a história do policial e do precursor
de La Voie Vert, o que me levou para outros assuntos.
—Vai parecer bobeira, mas estou tendo sonhos, séries de pesadelos que estão me
incomodando demais. Eles mexem com a minha cabeça e me fazem desconfiar de pessoas e
coisas, sabe? Como se eu estivesse acordada.
Pierre fechou os olhos por um tempo e, logo em seguida, forçou um sorriso da melhor
maneira que podia. Na atual situação, não achei que ele conseguiria se mover assim.
37
Voltei a conversar com Pierre sobre outras coisas, tentei animá-lo com assuntos de
fora do hospital. Queria deixá-lo o mais relaxado possível. Conversamos por muito tempo
até que a doutora Roche, a doutora Hans e Lilian entraram na sala.
— Amor, essas são as duas pessoas responsáveis por mim: Enfermeira Lilian e doutora
Hans. — Lilian acenou para Pierre. A doutora Hans parecia perdida em seus pensamentos,
mas logo voltou a si e o olhou.
— Bom dia, Senhor Bernard. Vim verificar como estamos hoje. Senhora Bernard,
acredito que teve tempo suficiente. Preciso fazer meu trabalho.
— Ja... — Pierre tentou dizer algo, mas mal conseguia. Quase não conseguia entender.
Me aproximei para que pudesse ouvir. — Ja...
— Amor, o que houve? — Me aproximei mais, mas fui afastada pela doutora Roche.
— Emma... — Enquanto Lilian falava, vi a doutora Hans saindo do meu quarto. Ela
parecia muito nervosa. Coçava a cabeça e olhava para os lados. Ela direcionou o olhar em
minha direção, mas fingi estar conversando com Lilian. — E por isso, pense no seu filho.
Entrei no quarto e aguardei Lilian, que não demorou muito para aparecer com meu
almoço. Não conseguia sentir o gosto da comida, mas Lilian tem razão, eu preciso me
alimentar pelo bem do meu filho.
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— Por favor, vamos.
Chegamos no obstetra. Como de costume, ele foi bem educado e sucinto, sempre com
bastante paciência. Analisamos as condições do meu filho e não demorou muito para que ele
terminasse os exames.
— Sim, exatamente. — Por um breve momento, Lilian tocou a minha barriga e sorriu
para mim. Ela tem um sorriso lindo.
Me levantei e notei que a doutora Hans me encarava pela janela. Seu olhar era fixo
nos meus. Parecia querer desviar o olhar, porém algo a repelia. Agradeci ao obstetra e
retornei à sala do meu marido.
Um gosto amargo se instalou em minha boca e senti minha pele arrepiar. Na porta
do quarto, estavam duas enfermeiras e a doutora Roche.
Sem dizer nada, entrei na sala de Pierre. Não fui impedida. Seu rosto estava coberto.
Tirei o lençol da sua cara e a visão foi tudo o que eu não esperava. Pierre tinha uma expressão
perturbadora em seu rosto. Seu corpo estava contraído e rígido.
Sentei na cadeira ao lado da cama e levei as mãos à boca. A médica disse alguma coisa
e saiu da sala. Mantive o silêncio, conseguia ouvir meu coração acelerado. Tampei meus olhos
e tentei respirar fundo para me acalmar. Girei a aliança no meu dedo. Após alguns minutos
de silêncio, consegui me controlar e parei de chorar.
Olhei para Pierre de novo. Toda minha concentração e vontade de chorar haviam
retornado. Seus olhos estavam fixos na minha direção. Me aproximei da cama e os fechei
com a mão. Deslizei minha mão até sua mão e não era possível mudar sua posição. Notei
que a aliança faltava em seu dedo.
39
Como desconfiava, ela estava na porta me aguardando. Entrou prontamente
acompanhada de duas enfermeiras.
— Senhora Bernard, lamento, mas, agora que tocou no assunto, acho que nunca vi
uma em seu dedo.
— O que? — Levantei e a segurei pelos braços. — Você está querendo dizer o que com
isso?
— Nada, senhora Bernard. Infelizmente, não sei dizer o que aconteceu com a aliança
do seu marido, mas, caso esteja nesse hospital, nós vamos encontrá-la, Não se preocupe com
isso. Agora, por favor, peço que se retire para que possamos fazer nosso trabalho.
Saí da sala e segui para meu quarto. Deitei na cama e encarei o teto. Tentava pensar
no que iria fazer com a minha vida agora, no que dizer aos meus pais… Peguei minha garrafa
de água e a bebi por completo. Deitei novamente e fechei os olhos. As lágrimas continuavam
a cair, mas respirei fundo e me empenhei para esquecer o que estava acontecendo.
— Emma... Emma...
O som ficou cada vez mais próximo, até que o escutei ao pé do meu ouvido. Levantei
para o lado oposto, ficando de frente para a cama. Olhei para o meu quarto e não havia
ninguém além de mim. O silêncio sufocante retornou, me permitindo ouvir apenas minha
respiração. Me afastei mais da cama e encostei na janela.
Um grito vindo de todos os lados se iniciou. Apertei meus olhos e tapei os ouvidos,
mas o som só aumentava. Vi os móveis trepidando com o barulho, ouvi o ruído da janela,
como se estivesse prestes a quebrar. Meu corpo cedia aos poucos. Tentei caminhar para fora
do quarto, mas caí com um joelho no chão. Senti o sangue escorrer pelos meus ouvidos. Caí
ao lado da cama e, quando estava quase apagando, eu o vi. O símbolo do precursor de La
Voie Vert.
40
— Emma, Emma — Abri meus olhos e estava de frente a Lilian.
— Ainda estamos no hospital, apenas mudamos de quarto. A doutora Hans disse que
seria melhor se você ficasse nesse por um tempo.
— Agradeço a doutora, mas não pretendo mais permanecer neste hospital. Vou
telefonar para meu pai e informar que quero ir embora. Obrigado pela ajuda, Lilian.
Saí do quarto e vi Lilian deixá-lo também. Fui até a recepção para utilizar o telefone.
Por sorte, só havia uma recepcionista, que parecia bem atarefada.
— Sim, correto.
— Por favor, fique à vontade. — Ela apontou para a cadeira próxima do telefone.
Liguei para meus pais, mas ninguém atendia. Tentei mais uma vez e a chamada não
completou. Um flash veio a minha mente no momento que estava para desmaiar e lembrei
do símbolo. Sem hesitar, liguei para o policial Treux.
— Diga a ele que... — Avistei a doutora Hans me olhando intensamente sem piscar.
Seu cabelo parecia imundo, por algum tempo sem cuidar, e seus lábios estavam ressecados.
— Eu vi o símbolo. Ela está aqui.
Desliguei o telefone e fui até o quarto. Passando pela doutora Hans, senti seus olhos
me atravessarem. Um olhar fulminante que me oprimia de forma hostil. Apertei o passo até
o meu novo quarto e fechei a porta. Fiquei em pé de frente para ela, esperando que a doutora
aparecesse.
41
Horas se passaram, não conseguia dormir. Puxei uma cadeira e fiquei de frente para
a janela olhando o pátio. Estava muito escuro, mas a iluminação era boa. A brisa estava
agradável, porém uma inquietação em meu corpo me fazia bater os pés no chão com
frequência enquanto eu girava a aliança em meu dedo.
Senti meu filho chutar com bastante força. Olhei para minha barriga e vi que ela se
movia bastante. Esses movimentos doíam demais, parecia que minha costela iria quebrar.
Sentia todo meu corpo sendo esmagado por dentro, não conseguia me mover tamanha
agonia.
As dores chegaram a um fim e apoiei minha mão na barriga. Olhei para o pátio e
percebi que havia alguém sentado no banco. O banco que eu costumava sentar. Essa pessoa
se levantou e ficou de frente para a minha janela. Tinha algo de diferente nela. Senti uma
mudança na atmosfera do local. O vento ficou mais forte e abafado. Um som estranho,
próximo a um grunhido, porém grave, começou a ecoar. A pessoa caminhou em direção a
entrada do hospital e, ao passar debaixo de um dos postes sem luz, ela sumiu. No lugar dela,
surgiu uma criatura enorme, com chifres, um único olho que emitia luz própria, membros
alongados e uma grande juba. A criatura disparou para dentro do hospital, correndo em uma
velocidade muito além da normal.
Corri o máximo que pude para fora do meu quarto. Não havia quase nenhuma pessoa
nos corredores, atravessei por algumas e empurrei outras. Passei pelo meu antigo quarto e,
quando cogitei entrar, vi uma silhueta perto da porta. Continuei a fuga por outro local. O
hospital parecia um labirinto.
Entrei em várias portas e corredores, mas não encontrei nenhuma escada para descer. Avistei
Lilian saindo de uma sala com bolsas e roupas casuais.
Levantei e continuei correndo para fora do prédio. Escutei diversos gritos de pessoas,
vi algumas correndo, outras só abriam a porta para na tentativa de compreender a origem
do barulho. Cheguei no pátio. O caos estava instalado no hospital. Muitas pessoas corriam
apenas do grunhido atormentador desta coisa. Olhei em volta e finalmente encontrei a
entrada principal, que estava bem distante. Meus pés e minha coluna estavam me matando.
No hospital, em meu antigo quarto, uma pessoa pulou da janela, atingindo o solo de cabeça.
O mesmo grunhido de antes atravessava a janela do quarto, me ensurdecendo. Na janela, vi
uma pessoa virada em minha direção. Mesmo a uma certa distância, consegui sentir sua sede
por sangue.
42
Sem olhar para cima, corri para a entrada principal. No caminho, desviei dos corpos
enquanto escutava a sinfonía fúnebre composta pelo grunhido desta besta, pelos gritos
desesperadores, pedidos de ajuda e sons de outras pessoas pulando das janelas.
Chegando na estrada, corri em direção a Rouen. Pouco tempo depois, senti tontura e
fraqueza nas pernas. Deitei a beira da estrada, me sentindo extremamente exausta e com sede.
Um carro ao som de uma música familiar, não consegui identificar qual, parou na
minha frente. O farol não me deixou ver quem estava saindo do veículo. Desfaleci antes que
pudesse saber quem era. Dentro do carro, que já estava parando, vi Lilian no banco do
motorista.
— Depois que a vi correndo no hospital, além dos diversos gritos dentro dele, eu
peguei meu carro e saí. Encontrar você foi... — ela sorriu. — do destino.
Lilian me ajudou a entrar em sua casa. Um lar bem humilde, pequeno e com pouca
mobília. A mais chamativa era um crucifixo gigantesco, que parecia ser de prata. Ela retornou
com um copo de água e algumas frutas. Comi sem pensar muito.
— Liguei do hospital, mas não tive tempo de falar com os policiais. Acredito que a
gritaria vai levá-los ao hospital. Precisamos ficar aqui.
— Sim, Lilian eu.. — Senti algo quente escorrer pelas minhas pernas. Olhei para baixo
e vi um líquido muito escuro.
— Emma, sua bolsa estourou! — Lilian derrubou o copo e correu em minha direção.
— A hora dele está chegando!
— Mas ainda faltavam alguns meses. — Respondi. — Meu Deus, esse líquido escuro
não é boa coisa. O único hospital que existe está sob ataque de algo que não sabemos nem o
que é. — Comecei a chorar. — Meu filho, o que vai ser dele, Lilian?
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— Fique calma. — Ela sorriu. — Ele vai ficar bem. Estou aqui e já realizei alguns
partos antes. Não sou a melhor pessoa, mas vou fazer o possível.
— Não temos onde, Emma. Confie em nós, vamos fazer isso certo.
As contrações só pioravam. Tudo o que eu li parecia estar errado. Nunca achei que
sentiria tanta dor. Lilian trouxe uma bolsa, colocou do seu lado e começou a me analisar. Ela
parecia mais confiante do que nervosa.
— Sua dilatação está ótima, estamos prontas. — Ela sorriu novamente. — Esperei
tanto por esse momento.
— Quê? — As dores ficaram mais intensas. Por vezes, achei que iria desmaiar, mas me
forcei a resistir. — O que quis dizer com isso?
Continuei a fazer força, é difícil me manter forte enquanto sinto essas dores terríveis.
— Ele se comunicou comigo desde o dia que toquei sua barriga pela primeira vez. —
Ela direcionou seus olhos para mim e consigo dizer que ela não estava mentindo. — Depois
vieram aqueles sonhos lindos e todos os seus significados. — Ela apontou para cruz. — Orei
para Deus para que seu filho ficasse bem. Mal podia esperar. Este era um sinal de Deus. Eu
devo cuidar dessa criança.
— Como assim? Sonhos? Mensagens... Você está louca? — Fiz uma pausa para respirar.
— Eu entendo que você não é uma pessoa que crê de verdade, por isso. — Ela olhou.
— Ele está a caminho.
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— Por isso que essa criança vai ser minha. — Ela puxou um bisturi. — Lamento,
Emma, mas você não é digna de carregar essa criança.
— O QUE? — Antes que eu conseguisse reagir, Lilian me algemou à cama. Olhei para
as algemas que pareciam já estar lá há tempos. — O que está acontecendo aqui? LILIAN!
— Acalme-se, Emma. Ninguém vai ouvir você agora. Apenas faça força e me dê essa
criança.
— Nunca! — Me debatí.
— Tem certeza que quer deixar seu filho morrer por isso?
— Ele não vai ficar com você, sua maluca! — Cuspi em seu rosto.
— Emma, Emma. — Lilian desferiu socos em meu rosto. — Você não compreende? —
Ela se afastou. — Esta criança é algo além da sua compreensão. Você não recebeu as
mensagens. Eu recebi. Você não é digna, como o seu marido e a doutora Hans.
— Eu planejei, mas não tive esse trabalho. Já a doutora Hans... — Ela apontou com a
cabeça para um báu. — Ela me deu um trabalho, mas já estava muito fora de si. Precisei até
me ausentar para planejar algumas coisas.
— Ela também foi convocada pelo seu filho, mas não foi capaz de assimilar tamanha
grandeza. A pobre coitada estava ficando louca. Quando ela comentou sobre acabar com
você eu tive que agir.
Dei mais um grito e continuei fazendo força. Lilian sentou-se de frente para mim,
aguardando a chegada do meu filho. Após muito esforço, o silêncio tomou conta do local.
Meu corpo só queria desligar, mas resisti. O rosto de Lilian era de nojo. Ela estava com a
mão nos cabelos, olhando para o chão. Depois olhou para mim.
— O que é isso? — Ela afastou-se da cama. — Isso não é um anjo, muito menos um
ser enviado de Deus. Isso é muito longe de ser humano!
— Você jogou meu filho no chão? — Forcei a algema, que torceu um pouco a madeira
da cama. — Deixe-me ver meu filho!
— Isso não é uma criança. — Ela pegou um jarro de vidro e atirou contra meu bebê.
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— Não! NÃO! DEIXE ELE EM PAZ! DEIXE ELE EM PAZ! — Em conjunto com a
minha voz, um grunhido parecia vir em todos os cantos da casa.
Através de um buraco na parede, surge uma silhueta enorme, comprida, com chifres
e um olho brilhante vindo em nossa direção. Quando a luz tocou a pele da criatura, ela
tomou a forma de alguém familiar.
— Senhora Bernard, Lilian. — Ele a agarrou pelo pescoço e a jogou ao meu lado.
Aproximou-se de onde estava meu filho, envolvendo-o em um pano enquanto o segurava no
colo.
— Você é o obstetra? Deixe-me ver meu filho. Ele é meu filho, não me tire isso.
— Pelo contrário, senhora Bernard. Estou aqui para mantê-lo seguro. — Ele se
aproximou de mim e de Lilian, que não se movia. — Preciso levá-lo comigo, vou cuidar dele.
Gostaria de vir, senhora Bernard?
— Vocês não vão a lugar nenhum. — Lilian tirou de sua cintura uma pequena arma e
atirou algumas vezes contra Eric. Pulei na direção dela, mordendo suas pernas e fazendo com
que caísse no chão. Bati sua cabeça no solo diversas vezes enquanto gritava.
— NÃO TOQUE NO MEU FILHO! — Seu sangue espirrava em meu rosto. Senti a
mão de Eric tocar meu ombro.
— Chega, senhora Bernard. A senhora já provou seu valor. — Eric me colocou sentada
no sofá e voltou em direção ao meu filho.
— Sim e não, sou apenas um... olheiro, digamos assim. E você foi selecionada. Para
uma causa maior. Você é a primeira a ter a honra de poder cuidar de um ser único e especial.
— Ele ficou de joelhos e esticou meu filho até mim. — Seja comigo a primeira a ter esse
privilégio e cuide dele até a hora chegar.
— Eu sou metade de nada, sou incompleto. Somos apenas uma pequena peça nesse
grande percurso. Seu filho é algo muito maior, muito além da nossa compreensão.
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Tirei os panos que cobriam meu filho e, finalmente, aqui estava ele. Sua pele tinha
uma textura diferente, com membros mais compridos e seus olhos emitiam um brilho único
em uma coloração linda. Fiquei admirando, Eric se aproximou e apoiou novamente a mão
em meu ombro. Em seu dedo estava a aliança que antes pertenceu a Pierre.
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Chegando à delegacia, caminhei até a minha mesa, mas tive a infelicidade de
encontrar o capitão sentado em minha cadeira.
Ele levantou-se enfurecido, ficava vermelho com muita facilidade. Chegamos até sua
sala, onde fechou todas as persianas. Apontou para que eu sentasse na cadeira enquanto
pegava sua garrafa de whisky barata. Serviu dois copos e me entregou um, porém coloquei
na mesa e não bebi.
— Treux, você não está entendendo. — Ele tomou o copo inteiro e pegou o meu. —
Preciso de informações, o que você está fazendo aqui se não tem a porra de uma resposta?
— Capitão, voltarei ao campo onde o encontrei amanhã cedo para tentar coletar mais
alguma coisa, mas não há muito o que fazer, não temos nenhuma pista.
— Vá até a cidade e procure por alguma mulher grávida, não sei! — Ele retornou a
sua bebida. — Elas são o alvo dele. Ache alguma e, nem que a faça de isca, pegue esse merda!
O prefeito está louco pra me enforcar! Se mais alguém morrer, acho que a maioria aqui vai
acabar perdendo o emprego.
Tudo o que não precisava era estar com o capitão, ele deixou de ser um policial de
verdade há anos. Infelizmente, tornou-se alguém desesperado por dinheiro e poder.
Cheguei até a minha mesa, peguei os documentos sobre o caso e li todos eles mais
uma vez. Em seguida, andei até a sala de arquivos, onde fica a única pessoa que trabalha de
verdade.
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— Senhorita Cleo, como vai você?
— O que nunca descansa… Boa noite. — Ela sorriu. — Qual arquivo procura?
— Na verdade, vim apenas trazer esses. — Entreguei os documentos para ela. — Não
há mais nada que eu possa ler para me ajudar.
— Desistiu do caso? Você precisa dos arquivos!
— Eu já os memorizei, fique tranquila. Prefiro que fiquem seguros aqui. Se necessário,
volto a falar com você.
— Claro. Sem ideias? — Ela me perguntava enquanto arrumava os arquivos.
— Acredito ter feito tudo, mas algo deve ter passado despercebido.
— Se eu fosse você... — Ela se aproximou e olhou para os lados. — Eu voltaria a
investigar onde você o perdeu. Sei que está de noite... — Sussurrou.
— Mas Lucque e seu grupo investigaram o local. — Respondi.
— Por isso mesmo! Lucque e seus fiéis companheiros investigaram. Eles não gostam
de trabalhar e — Ela levantou o dedo, sabendo que eu ia interrompê-la. — São péssimos
quando trabalham. Lembra do caso de roubo no mercado?
— É... — Tentei pensar em uma outra resposta. — Tem razão. Pode ser que eles não
tenham visto algo.
— Justamente. Você não ficou pra investigar com eles...
— Obrigado pelas dicas, senhorita Cleo.
— Não me agradeça, me compre uma torta! — Ela sorriu. — Agora vá porque vou
visitar minha irmã no hospital.
— Sim. — Esbocei um pequeno sorriso. — Obrigado.
Estava a caminho da saída quando fui parado por uma colega de trabalho na recepção.
— Treux, tem uma pessoa no telefone querendo falar com você.
— Sabe dizer quem é? — Perguntei.
— Ela não me disse o nome. — Deu de ombros.
— Você anota o recado, por favor? Estou de saída.
— Claro que sim. Vou deixar na sua mesa.
Peguei minha viatura e dirigi até a casa da última vítima. Desci do carro e não pude
deixar de sentir os olhares negativos e de desgosto sobre minha presença. Vi algumas pessoas
voltando para casa e outras com olhares bem hostis.
Caminhei até a casa da última vítima, que ainda possuía o selo de investigação
policial. Rompi o lacre e entrei na casa. O local parecia intocado desde o dia em que
vasculhamos, os móveis estavam jogados e havia sangue no piso de madeira. Nada naquela
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casa poderia me ajudar com o caso, então saí, inseri um novo selo e voltei para a viatura.
Antes de entrar no carro, olhei para o caminho feito pelo suspeito. Dirigi até onde o perdi,
demorei um pouco mais porque resolvi ir pela estrada.
Cheguei até o ponto em que ele havia sumido, antes do poste onde o casal sofreu
acidente. Deixei o farol ligado para me auxiliar com uma iluminação extra e examinei o local.
Comecei por onde o suspeito havia corrido e observei com cuidado o solo à minha volta.
Não demorou e logo encontrei gotas de sangue em algumas folhas.
— Parece que vou ter que comprar uma torta.
Recolhi as evidências e continuei a analisar o local próximo das marcas, mas não
obtive mais nada. Olhei para o outro lado da rua, onde ocorreu o acidente do casal, e
manobrei o carro para utilizar o farol como suporte novamente.
Repeti o processo para procurar qualquer evidência que me fizesse avançar. Escolhi
um lado e caminhei em direção a ele. Retornei de mãos vazias alguns minutos depois. Fiz o
mesmo procedimento no lado oposto, também não tive sucesso.
A única direção que me faltava era pra frente. Não sabia se iria conseguir encontrar
algo àquela hora, mas tive que tentar. Puxei o carro o mais próximo possível e observei o
terreno à minha frente. Havia um certo declive que não permitia que o carro iluminasse
direito.
Apenas utilizando a lanterna e a pouca iluminação que conseguia aproveitar da
viatura, comecei a explorar a área minuciosamente. Percebi que fiquei tempo suficiente para
não encontrar nada. A sensação de frustração e impotência era implacável.
Voltando para o veículo, caí em um desnível e minha lanterna correu para dentro do
mato. Acompanhei a luz para buscá-la e, ao me aproximar, encontrei uma pelagem estranha,
densa e com um odor quase imperceptível de sangue.
Tentei imaginar, rapidamente, de que espécie esse tipo de pelagem poderia pertencer.
Não lembro de nada parecido na descrição do suspeito, mas decidi recolher aquela esquisita
evidência da mesma maneira.
Retornando à viatura, reclinei o banco, levei as mãos ao rosto e revi todo o caso em
minha mente. Não consegui parar de me perguntar o que eu havia deixado passar, onde eu
ainda tinha explorado.
— Dane-se isso. — Esfreguei a mão nos olhos e senti o cansaço em meu corpo. Já havia
algum tempo desde a última vez que dormi por mais de três horas. — Amanhã eu volto aqui.
— Meus olhos começaram a pesar. Arrumei o banco do carro e, ao manobrar, bati com a
viatura no poste.
— Senhor... — Suspirei. — Não acredito que fiz isso.
Saí da viatura e saquei a lanterna. Antes de chegar na parte traseira, escutei o som de
algo se rompendo. Iluminei um pouco mais acima e era o poste que estava prestes a cair.
— Não, não, não, não... — Sussurrei enquanto o assistia desabar lentamente.
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O poste caiu e o seu som ecoou. Acredito que pessoas na cidade conseguiram ouvir.
Fechei meus olhos e respirei fundo.
— Bem, ia cair em algum momento. Bom que o prefeito troca. — Me aproximei e
acabei pisando em algo que emitia um som pastoso.
Iluminei meu pé e notei uma substância escura. Limpei meu sapato e recolhi uma
quantidade razoável para análise. Não conseguia decifrar o que era, mas tinha uma
consistência pastosa e total ausência de odor.
— Será que ninguém percebeu isso?
Continuei a analisar o poste e, em sua extremidade, havia algo atípico.
— O que é isso? — Passei a mão com o cuidado no local. Não pude acreditar no que
estava vendo. Era como se, na parte mais alta, houvesse um amassado. Parecia ter sido
esmagado por uma mão, mas essa mão definitivamente não era humana.
— Não, com toda certeza não pode ser uma mão. — Balancei a cabeça desacreditado.
Escutei um barulho ao fundo, similar ao de uma explosão. Me virei em direção ao som e
lembrei o que poderia ter causado ele.
Corri para a viatura, liguei as sirenes e dirigi o mais rápido que pude rumo ao
hospital. Durante o caminho, o rádio da viatura tocou.
Acelerei o mais rápido que o carro poderia aguentar. Já conseguia ver o hospital, que
estava com todo o segundo andar em chamas, e ouvia os gritos desesperados.
Parei a viatura de qualquer jeito quando cheguei. Saí do carro e rapidamente uma
médica veio em minha direção.
— Policial, que bom que chegou. Sou a doutora Roche, uma das responsáveis pelo
hospital.
— Inspetor Treux. — Mostrei o distintivo. — O que pode me contar?
— Não sei ao certo, estava em minha sala e vi algumas chamas. Depois o caos se
instalou. Os bombeiros estão tentando conter o fogo e eu estou auxiliando alguns pacientes
daqui.
— Obrigado. Continue o bom trabalho, doutora.
Cheguei até um dos bombeiros. Conhecia o comandante deles há um tempo, ele era
amigo do meu pai.
— Jean. — Toquei seu ombro enquanto ele gritava ordens ao pelotão.
— Pequenino, quero dizer, investigador Treux! Que bom que veio! Estamos contendo
o fogo, parece que algo explodiu no primeiro andar. Vai ser possível entrar em breve, estamos
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resgatando todas as pessoas que podemos. Ainda não investigamos a causa, mas já vencemos
essa luta. Acredito que, em poucos minutos, vamos conseguir entrar para verificar a situação.
— Não sabe dizer nada mesmo do que aconteceu? — Perguntei.
— Foi um monstro! — Olhei para a moça, que gritou sentada em uma ambulância
enquanto era tratada por uma enfermeira.
— O que quer dizer com isso, senhorita? — Mostrei meu distintivo. — Poderia me
explicar melhor?
— Eu conheço você. — Ela parecia inquieta. Não conseguia parar de olhar para os
lados, como se estivesse sendo vigiada. — Foi um monstro!
— Monstro? Como assim? Você quer dizer que foi alguma pessoa que estava no
hospital? — Vi a mulher concordar com a cabeça e, logo em seguida, discordar.
— Foi alguém que estava no hospital, mas não foi uma pessoa. — Quando coloquei
as mãos no bolso, ela me puxou pela gola. — Foi um demônio! — Ela sussurrou. — Ele tinha
chifres e gritava como um animal enfurecido.
— Senhorita, por favor, acalme-se. — Juntamente com a enfermeira, auxiliei a moça
a se sentar. — Poderia nos dar um tempo, por favor? — Olhei para enfermeira, que
imediatamente se afastou para cuidar de outra pessoa. — Pronto, estamos sozinhos. Se acalme
e me conte tudo.
— Era um demônio, eu vi, juro! Vi sua sombra e tudo que pude fazer foi me encolher
na recepção. Por sorte, não morri como os outros!
— Tiveram outros que foram mortos por esse… Monstro? — Perguntei enquanto
analisava a expressão corporal da mulher, mas seu estado de choque não me permitiu uma
boa avaliação.
— Sim, é o que estou falando. Ele matava tudo que parava em sua frente, como se
estivesse caçando alguém dentro do hospital. Nós fomos apenas um pequeno obstáculo em
seu caminho. — Respondeu, com a respiração acelerada. — Inúmeras pessoas mortas por essa
criatura e depois veio a explosão… Não sei dizer como cheguei aqui com vida. Você precisa
ver.
— Para onde ele foi? Qual lembrança você tem de antes do acontecimento? — Peguei
meu bloco e anotei algumas de suas palavras, por mais estranhas que soassem.
— Nada demais, hoje era pra ser um turno tranquilo. Algumas visitas de parentes de
alguns pacientes e mais nada.
— Cleo! — Olhei para a multidão deitada do lado de fora do hospital. Não consegui
encontrá-la. — Senhorita, muito obrigado por suas informações. Eu já volto.
Corri até Jean e o puxei pelos ombros.
— Cleo! Você a viu? — perguntei.
— Sim, ela está desacordada. Algumas escoriações, mas está bem. — Ele passou a mão
na barba e tirou o capacete. — A irmã dela, por outro lado, não conseguiu.
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— Ela já sabe? — Os olhos de Jean me deram a resposta. — Onde ela está? — Jean
apontou para onde a haviam deixado e fui até o local.
Encontrei Cleo, já estável, com bastante arranhões pelo corpo. Nada grave. Não
consegui relaxar ao saber que alguém deveria contar sobre sua irmã. Ela a amava muito e
sempre a visitava no tempo vago.
Outras viaturas chegaram, eram Lucque e sua equipe. Ao me ver, Lucque acenou, me
convocando. Os policiais da sua equipe ficaram parados atrás dele quando me aproximei.
— O que você tem, Treux? — Ele perguntou, sempre bem direto.
— Explosão. Ninguém sabe o motivo até o momento. Os bombeiros já conseguiram
conter o fogo, mas ainda temos que esperar para entrar. Algumas pessoas alegam que foi um
monstro, mas ninguém sabe descrever exatamente o que ou quem era.
— Monstro? — Ele soltou uma risada que atraiu alguns olhares. — Bom, equipe,
procurem por pistas. Perguntem a todos que conseguem responder e retornem com algo.
Quem é o responsável por isso aqui?
— Doutora Roche. — Apontei para ela. — É uma das médicas responsáveis pelo
hospital.
— Verdade, odeio essa médica. — Ele coçou o nariz e esfregou o rosto. — Ela é sempre
muito ríspida.
Conversar com o Lucque me cansa um pouco, não sei o que ele está fazendo aqui.
Virei e vi a senhorita que trabalhava na recepção mancar lentamente em minha direção. Me
aproximei para poupá-la do esforço.
— Senhorita, você deveria estar andando?
— Lembrei de algo que gostaria de te contar. — Ela parecia mais calma. — Hoje, um
pouco antes de tudo acontecer, uma das pacientes pediu para usar o telefone. A ouvi dizer
algo sobre uma marca e de que alguém estava lá. Não sei dizer para quem ligou, mas ela me
parecia apavorada.
— Nossa, isso é um ótimo lugar para começar. Como era o nome da paciente? Sabe
dizer?
— Ela era nova, mas, como ficou com salas exclusivas, é difícil esquecer. Emma
Bernard, ela e seu esposo sofreram um acidente enquanto estavam de passagem pela cidade.
— Senhora Bernard! — Então, como um flash de luz, a minha memória me trouxe
algo. — Muito obrigado, essa informação pode nos levar a quem precisamos encontrar. É
melhor descansar. E muito obrigado, novamente.
— Não foi nada. Confie em mim, não foi uma pessoa que fez isso.
— Certo. Vou considerar essa informação, pode ter certeza.
Corri até Simon, que ajudava alguns pacientes. Nas horas vagas, ela sempre trabalhava
como voluntária no hospital.
— Simon, desculpe incomodar você.
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— Diga, Treux. Me ajude aqui.
— Claro! — Ajudei da maneira que ela havia pedido. — Pode me dizer o que te
falaram no telefone?
— Sim. Era uma moça, parecia jovem. Disse coisas sem sentido e desligou.
— Mas que coisas? — perguntei
— Algo sobre marca e sobre alguém estar aqui. Acredito ter dito que era uma mulher.
— Certo... — Parei para pensar um pouco enquanto terminava de ajudar. — Obrigado,
Simon.
Olhei para Lucque, que estava a discutir com o Jean sobre não poder entrar devido
ao perigo. Aproveitei a confusão e dei a volta no hospital. Algumas pessoas me viram, mas
imaginei que não iriam dizer nada.
Entrei no hospital por uma das outras entradas disponíveis. Estava trancada, mas
arrombei. Ninguém vai reparar ou se importar com o barulho ou com um pequeno estrago
a mais.
Caminhei em direção ao segundo andar, onde Emma ficava. Me escondi algumas
vezes dos bombeiros que trafegavam dentro do hospital. Ainda era difícil respirar enquanto
estava lá, então precisei ser ágil.
Subindo as escadas, consegui ver rastros de sangue espalhados pelo local. Corpos
desmembrados por todos os lados, pedaços espalhados a metros de distância, outros
apresentavam algumas queimaduras. O cheiro pingente de sangue junto ao de queimado era
altamente enjoativo. Eu estava surpreso demais para vomitar com aquela cena. Começo a
sentir que a senhorita da recepção não estava errada.
Cheguei até a sala da Senhora Bernard. A porta e parte da parede estavam
completamente destruídas. Ao entrar na sala, não encontrei sangue, apenas as grandes marcas
similares a uma mão, como a do poste. Revirei o local, mas havia pouco com o que trabalhar,
tudo estava danificado demais.
Olhei para a cama e arranquei o colchão, mas não tinha nada aparente. Levei a mão
ao rosto e observei o quarto. Abaixei para olhar a base da cama e lá estava, finalmente. Meus
olhos quase não acreditaram. A marca do precursor foi feita com um tipo de tinta de caneta,
possivelmente. Saquei minha faca e descasquei para recolher.
Andei em direção ao corredor, mas o trajeto de morte e sangue terminava por ali.
Seja lá o que fosse, parecia estar conectado à Senhora Bernard. Entrei no quarto novamente
e caminhei até a janela. Na beirada, percebi um pequeno pedaço da mesma pelugem que
encontrei no mato.
Voltei às escadas correndo. Passei pelos bombeiros, mostrando meu distintivo, e
cheguei até debaixo da janela onde fica a sala de Emma. Vi marcas estranhas no chão,
pareciam pegadas, porém quadradas. Um formato que não havia visto antes.
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Um dos policiais de Lucque aproximou-se de mim comendo algum tipo de doce. Fiz
um gesto com a mão para que ele mantivesse distância.
— Você estava dentro do hospital, Treux? — Perguntou com a boca cheia.
— Sim, estava. — Olhei para ele. — Agora estou aqui, tentando entender o que é isso.
— Bom, pela profundidade que isso está marcado no chão, eu diria que algo caiu das
janelas até aqui.
— Obrigado pela assistência, informe ao Lucque, por favor?
— Claro. Vou chamá-lo.
Ele andava tranquilamente enquanto comia. Isso só me confirmava o que a Cleo
dissera. Olhei para a marca no chão e as palavras da enfermeira ecoaram em minha mente.
Voltei até os bombeiros e perguntei sobre a senhora Bernard, mas ninguém havia encontrado
ela até o momento.
Andei até a doutora Roche, que estava tão atarefada que quase não pôde me dar
atenção, mas consegui fazer com que parasse.
— Poderia me informar se a senhora Bernard foi encontrada? — Perguntei.
— Não a vi. Na verdade, quase ninguém do lado dessa ala apareceu ainda. Não sei
explicar o motivo, disseram que houve um massacre. Os que foram encontrados mal
conseguem falar. Outros só dizem ter ouvido gritos.
— E onde estão as responsáveis por ela?
— A doutora Hans e a enfermeira Lilian ainda não apareceram. Lilian sairia mais
cedo hoje, não sei se fez. Ela sempre ficava mais tempo para ajudar a senhora Bernard. Agora,
a doutora Hans... Não consigo dizer o que estava acontecendo com ela. — Ela parou o que
estava fazendo e me puxou para um canto mais reservado. — De fato, ela estava muito
estranha. Achei que pudesse ser algo com a senhora Bernard, já que ela não era uma paciente
fácil de lidar, mas quando ofereci transferi-la para outra pessoa ela não aceitou. Disse que
precisava mantê-la segura. Nunca a vi assim, ela sempre foi uma jovem focada no trabalho.
Também era muito vaidosa, andava impecável, mas mudou tanto nos últimos dias.
— Pode me dizer onde a doutora Hans e a enfermeira moram?
— Se importa em dizer o motivo? — Perguntou a doutora.
— Ela pode saber onde a senhora Bernard está, não a encontrei no segundo andar.
A doutora Roche me passou o endereço, peguei minha viatura e tentei sair sem fazer
alarde. Tudo o que eu menos precisava era Lucque e sua equipe me vetando ou pedindo para
que eu ficasse para ajudar. Alguns minutos de carro e já estava do outro lado da cidade. Fiz
o percurso em metade do tempo de tanto que corri.
Chegando ao endereço, me deparei com uma rua totalmente deserta. Bati algumas
vezes na porta, mas não obtive resposta. Olhei pelas janelas, a rua estava deserta. Talvez pelo
horário, estava bem tarde. Bati na porta algumas vezes, mas sem resposta. Olhei as janelas e
não avistei ninguém.
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— Preciso entrar aqui. — Olhei novamente para a rua e tomei a decisão. — É por um
bom motivo.
Logo destranquei a porta e entrei na casa. Tudo estava extremamente desorganizado,
havia lixo por toda parte. Não acendi nenhuma luz para não chamar atenção. Na cozinha,
restos de comida estavam espalhados pelo chão. Um cheiro muito forte de carne estragada
impregnava o local. Chegando no quarto, uma grande penteadeira com uma variedade
enorme de cosméticos ocupava metade do espaço. Do outro lado, uma pequena mesa com
arquivos sobre Emma e Pierre Bernard. No final da ficha de Emma, encontrei algumas
anotações.
Primeiro sintoma registrado: Sinais ao dormir.
Segundo sintoma registrado: Vozes ainda acordada.
Terceiro sintoma registrado: Presença hostil - Sentir que está sendo perseguida.
Preciso acabar com isso. Possível solução: Matar a criança.
— Lilian!
Peguei os documentos e corri até a viatura. A movimentação abrupta chamou atenção
de alguns vizinhos que apareceram na janela, mas não estava com tempo para eles. Liguei a
sirene e disparei em direção ao endereço de Lilian.
Chegando próximo da sua casa, que ficava um pouco isolada das outras, vi alguns
vizinhos do lado de fora. Eles portavam armas enquanto olhavam em direção a casa. Parei a
viatura e me aproximei.
— O que está acontecendo? — Olhei para um senhor na faixa dos setenta anos.
— Policial, escutamos gritos e o som de algum animal. Ligamos para a polícia, mas
ninguém atendeu. Estamos de prontidão.
— Animal? Que tipo de animal?
— Caço há anos e nunca ouvi nada parecido. Um grupo de vizinhos visitou o local,
estavam armados. Fiquei para trás com alguns para manter a retaguarda.
— Certo, mantenham-se aí! Não deixe mais ninguém entrar lá.
Avancei até a casa de Lilian. Ao chegar no local, vi sangue na porta. Parei a viatura
de qualquer maneira, saquei minha arma e liguei a lanterna.
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A porta já estava aberta, então entrei com cautela. Logo me deparei com dois corpos,
provavelmente de vizinhos preocupados, da mesma maneira que os encontrados no hospital.
Não consigo imaginar o que pode ter acontecido.
O local estava destruído, é um milagre a casa ainda estar de pé. Na sala, havia mais
corpos espalhados. E sangue, muito sangue. No centro do cômodo, estava uma cama com
amarras.
Imagino que tenham sido usadas para prender alguém ao móvel. No chão, o mesmo líquido
escuro.
Escutei um carro ligando no fundo da casa. Corri em direção ao som e, chegando à
cozinha, que dava para a porta dos fundos, avistei um homem de pé. Apontei minha arma
para ele.
— Fique parado! Polícia! Identifique-se.
— Eu só quero que vá embora, senhor policial. Você não precisa morrer como eles —
Ele pegou uma faca sobre a bancada e arremessou em minha direção. Por reflexo, desviei e
disparei meu revólver.
Foi um tiro certeiro em sua testa. Vi seu corpo parado ereto, apenas sua cabeça se
moveu para trás.
— Você poderia ter corrido. — Ele moveu a cabeça como se nada tivesse acontecido.
Assisti a bala ser expelida de sua pele. — Mas é melhor um lugar sem testemunhas, correto?
Rapidamente, sua forma física começou a mudar, me arremessando. Atravessei
diversas paredes e caí a metros de distância.
Uma criatura muito grande surgiu quebrando o resto da casa. Ela tinha chifres
enormes e uma pelugem grande e densa por todo o corpo. Os braços e pernas eram
compridos, com patas quadradas e os olhos eram como se fossem um farol iluminando tudo
à sua frente.
Disparei algumas vezes, mas sem efeito. A criatura segurou meu corpo, sua mão era
enorme e afiada. Começou a me espremer, senti meu braço direito estalar e então ela me
arremessou novamente.
— Pare, Eric! — Emma apareceu com uma criança enrolada em um manto. — Você
não pode matá-lo. Esse homem me protegeu e me salvou no dia do acidente. Se não fosse
por ele, nossa criança não estaria aqui. Eu peço que conceda essa chance.
A criatura transformou-se novamente em homem. Se aproximou e me olhou com
muito desprezo.
— Da próxima vez, você morre. — Ele chutou meu rosto me deixando inconsciente.
Acordei em uma tenda enorme, com diversas pessoas deitadas. Me levantei com
cuidado e uma enfermeira apareceu junto à investigadora Simon.
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— Investigador Treux, boa tarde. — Disse Simon. — Estamos no meio da cidade, o
prefeito improvisou um local para atender as pessoas feridas nos atentados de ontem. Ainda
não temos nada, mas o capitão quer falar conosco. Precisamos ir à delegacia.
— Por favor, Investigador, tome cuidado ao andar. Você quebrou o braço e tem
escoriações pelo corpo, mas logo ficará bem. — Disse a enfermeira.
Sem dizer nada, acompanhei Simon até a delegacia. Chegamos até a porta onde havia
pessoas enfurecidas reclamando e disparando ofensas para qualquer policial que passava.
Entramos e encontramos o capitão sentado em uma mesa, Lucque em pé com uma cara triste
e o Prefeito da cidade com as mãos na cabeça.
— Prefeito, ele chegou — Disse o capitão enquanto se levantava.
— Perfeito, vamos começar. — Ele apontou para uma cadeira e me sentei.
— Senhores, infelizmente o trabalho de vocês foi deprimente. Para não dizer coisas
piores. Vocês investigaram por dias e não conseguiram nenhuma prova? Capitão, você acha
que tomaram as medidas certas?
— Senhor prefeito, deixamos o caso para...
— Você deixou o caso para um investigador com pouco tempo de profissão, quase
inexperiente. — Ele olhou em meus olhos. — E você, investigador Treux. — Ele bateu na
mesa. — Por onde começar? Onde estava? O que aconteceu naquela casa? Inúmeros corpos e
por que você aceitou o caso se não sabe de merda nenhuma?
Fiquei quieto olhando o prefeito nos olhos.
— Vamos, investigador! Diga alguma coisa! Defenda-se para seus colegas de trabalho.
— Você quer ouvir a minha versão? — Olhei para Lucque. Pensei nas coisas em minha
viatura. — Eu não preciso me defender aqui, senhor prefeito. Não vejo ninguém aqui com
mais experiência que eu. — Me levantei com muita dificuldade. — Tudo que vejo são pessoas
que querem receber para ficarem paradas. Aqui está meu distintivo, minha arma não faço
ideia onde esteja. Uma boa tarde a vocês.
Saí da sala ao som de gritos e ofensas. Andei até minha mesa e peguei o bilhete que
Simon havia deixado.
Esmaguei o papel com força e coloquei no bolso. Vi minha viatura parada, entrei nela
e peguei os arquivos e as evidências. Coloquei-os em um saco e caminhei até o mercado.
Comprei algumas coisas e, logo em seguida, fui até o hospital para visitar Cleo.
Ela ainda estava desacordada, mas entrei e deixei uma sacola com um bilhete.
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Espero que melhore logo, lamento por tudo que ocorreu. Comprei essa torta, espero
que goste, é a minha favorita. Deixei a polícia, mas meu caso ainda não terminou. Jamais
deixarei que algo assim aconteça novamente, não comigo por perto. Obrigado por tudo. Te
visitarei em breve.
-A. Treux.
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Atentado no Hospital Durant deixa dezenas de mortos
Episódio de horror atinge único centro médico de La Voie Vert. Causa ainda não
foi identificada.
Cerca de 38 pessoas morreram na noite desta quinta-feira (27) após uma explosão no
Hospital Durant, em La Voie Vert. Segundo a doutora Roche, médica responsável pelo
local, há centenas de feridos e desaparecidos, entre pacientes e funcionários do hospital.
De acordo com relatos de testemunhas, o atentado teria sido causado por uma
espécie de criatura não identificada, suspeito, também, pelas mortes e destruição do local.
Afirmam que, após a aparição da criatura, chamas atingiram todo o segundo andar.
Para as autoridades, ainda não é possível apontar o culpado ou dar maiores
informações. O investigador Treux, então encarregado do caso, prometeu que não irá
descansar enquanto não descobrir o responsável por essa onda de terror que afeta La Voie
Vert.
A prefeitura emitiu uma nota de pesar e irá prestar atendimento à população.
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