Você está na página 1de 917

BRASÍLIA 2020

VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA


E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

1
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

2
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação


em Arquitetura e Urbanismo (2021 : Brasília, DF).

Programação do Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e


Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, 1 a 5 de outubro –
Brasília: FAU-UnB, 2021.

ISSN 2358-6214

1. Arquitetura. 2. Urbanismo. 3. Arquitetura e Urbanismo


– Congressos.
I. Título. II. Faculdade de Arquitetura.
III. Universidade de Brasília.

3
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

COMISSÃO ORGANIZADORA

C O O RD E NAÇÃO GE R AL

SYLVIA FICHER, PRESIDENTE DE HONRA, PPG-FAU/UNB


RICARDO TREVISAN, PRESIDENTE, PPG-FAU/UNB
PEDRO PAULO PALAZZO DE ALMEIDA, PPG-FAU/UNB
CAROLINA PESCATORI CANDIDO DA SILVA, PPG-FAU/UNB

C O O RD E NAÇÕE S AD JUNTAS

ANA ELISABETE DE ALMEIDA MEDEIROS, PPG-FAU/UNB


ELANE RIBEIRO PEIXOTO, PPG-FAU/UNB
GABRIELA DE SOUZA TENORIO, PPG-FAU/UNB
CARLOS EDUARDO LUNA DE MELO, PPG-FAU/UNB
FERNANDO ANTONIO OLIVEIRA MELLO, FAV/UFG

C O O RD E NAÇÃO CI E N TÍFICA & R EL AÇÕ ES INTER NAC ION AIS

ANA PAULA CAMPOS GURGEL, FAU/UNB


BENNY SCHVARSBERG, PPG-FAU/UNB
CLÁUDIA NAVES DAVID AMORIM, PPG-FAU/UNB
ERICA MITIE UMAKOSHI KUNIOCHI, FAU/UNB
JOÁRA CRONEMBERGER RIBEIRO SILVA, PPG-FAU/UNB
LEANDRO DE SOUSA CRUZ, FAU/UNB
MARIA FERNANDA DERNTL, PPG-FAU/UNB
VANDA ALICE GARCIA ZANONI, FAU/UNB
MILENA D’AYALA VALVA, TECCER/UEG

C O O RD E NAÇÃO F I NANCEIR A

JOSÉ MANOEL MORALES SÁNCHEZ, FAU/UNB


MARIBEL DEL CARMEN ALIAGA FUENTES, FAU/UNB

4
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CAIO FREDERICO E SILVA, PPG-FAU/UNB


CRISTIANE GUINANCIO, PPG-FAU/UNB
LIZA MARIA SOUZA DE ANDRADE, PPG-FAU/UNB
LUDMILA DE ARAUJO CORREIA, UNICEUB
NATÁLIA DA SILVA LEMOS, FAU/UNB
VÂNIA RAQUEL TELES LOUREIRO, FAU/UNB

C O O RD E NAÇÃO DE PR O DUÇÃO G R Á FICA

MARIA CLÁUDIA CANDEIA DE SOUZA, FAU/UNB


LIA CAMPELO LIMA TOSTES, FAU/UNB

C O O RD E NAÇÃO DE PR O DUÇÃO

CARLOS HENRIQUE MAGALHÃES DE LIMA, PPG-FAU/UNB


PAOLA CALIARI FERRARI MARTINS, FAU/UNB
ANIE CAROLINE AFONSO FIGUEIRA, ARQUITETA E URBANISTA
THAY LIMEIRA, PRODUTORA E CURADORA

C O O RD E NAÇÃO DE PR EMIAÇÃO & CO NCUR S O

FLAVIANA BARRETO LIRA, PPG-FAU/UNB


LUCIANA SABOIA FONSECA CRUZ, PPG-FAU/UNB

C I NE MA U RBANA

LIZ SANDOVAL, FAU/UNB


ANDRÉ GONÇALVES DA COSTA, FAU/UNB

T ÉC NI COS AD MI NI STR ATIVO S

DANILO DOS SANTOS DOS SANTOS MAIA JR., PPG-FAU/UNB


DIEGO LOPES LUNA SOUSA, PPG-FAU/UNB
FRANCISCO NETO DA SILVA JR., PPG-FAU/UNB

5
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

SOEMES BARBOSA DE SOUSA, FAU/UNB


VALMOR CERQUEIRA PAZOS, FAU/UNB

D I S C ENTES

AMANDA MENDONÇA GOMES NOGUEIRA BENTO, FAU/UNB


AMORA DE ANDRADE MACHADO, FAU/UNB
CAMILA BATISTA REIS, FAU/UNB
IRINA ALENCAR DE OLIVEIRA, FAU/UNB
ISADORA BANDUCCI AMIZO, FAU/UNB
JESSICA SOUSA DUARTE, FAU/UNB
JOÃO VÍTOR LOPES LIMA FARIAS, FAU/UNB
JÚLIA SANTOS GOLLINO, FAU/UNB
LEONARDO NÓBREGA QUEIROZ DE PAIVA, FAU/UNB
LUCAS FELÍCIO COSTA, FAU/UNB
MARINA NASCIMENTO REBELO, FAU/UNB
RAQUEL DE ARAÚJO FREIRE, FAU/UNB
RICHARDSON THOMAS DA SILVA MORAES, FAU/UNB
SIMONE BUIATE BRANDÃO, FAU/UNB
TALITA ROCHA REIS, FAU/UNB
VÍTOR SILVÉRIO PRADO, FAU/UNB

PARC EI RO S

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de


Brasília (PPG-FAU/UnB)

Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Territórios e Expressões Culturais


no Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (TECCER/UEG)

Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade da Faculdade de Artes Visuais


da Universidade Federal de Goiás (PPG Projeto e Cidade – FAV/UFG)

Centro Universitário de Brasília (UniCEUB)

6
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos - FINATEC


Cinema Urbana

APOIO

Instituto de Arquitetos do Brasil - IAB-DF


SEDUH
IPHAN-Nacional
FUNDATHOS
Portal Vitruvius

7
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

DIRETORIA DA ANPARQ
Gestão 2019-2020

P R E SI DE NT E
ANGELA MARIA GORDILHO DE SOUZA (UFBA)

MARCIO COTRIM CUNHA (UFPB)

T ES OU RE I R A
NAIA ALBAN SUÁREZ (UFBA)

D I R E TORE S
RICARDO TREVISAN (UNB)
MARTA SILVEIRA PEIXOTO (UFRGS)
MARIA DE LOURDES ZUQUIM (FAUUSP)
SUPLENTE: ANDRÉA DE LACERDA PESSÔA BORDE (UFRJ)

C O NSE L H O F I SCAL
CARLOS EDUARDO DIAS COMAS (UFRGS)
MARIA ANGELA DIAS (UFRJ)
CARLOS ALBERTO FERREIRA MARTINS (IAU-USP-S.CARLOS)
SUPLENTE: ANA CLÁUDIA DUARTE CARDOSO (UFPA)

DIRETORIA DA ANPARQ
Gestão 2021-2022

P R E SI DE NT E
RICARDO TREVISAN (FAU-UNB)

RITA DE CÁSSIA LUCENA VELLOSO (UFMG)

8
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

T ES OU RE I R A
LUCIANA SABOIA FONSECA CRUZ (FAU-UNB)

D I R E TORE S
ANA CLÁUDIA DUARTE CARDOSO (UFPA)
ETHEL PINHEIRO SANTANA (PROARQ-UFRJ)
MIGUEL ANTONIO BUZZAR (IAU-USP)
SUPLENTE: ANA GABRIELA GODINHO LIMA (UPM)

C O NSE L H O F I SCAL
ANGELA MARIA GORDILHO SOUZA (FAUFBA)
MARGARETH APARECIDA CAMPOS DA SILVA PEREIRA (PROURB-UFRJ)
SERGIO MOACIR MARQUES (PROPAR-UFRGS)
SUPLENTE: GEORGE ALEXANDRE FERREIRA DANTAS (UFRN)

9
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

R E I TO R A
MÁRCIA ABRAHÃO MOURA

V I C E-RE I TOR
ENRIQUE HUELVA

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO (FAU-UNB)

D I R E TOR
MARCOS THADEU QUEIROZ MAGALHÃES

V I C E-RE I TOR A
CLÁUDIA DA CONCEIÇÃO GARCIA

C O O RDENADOR A DO PPG-FAU-UNB
LUCIANA SABOIA FONSECA CRUZ

C O O RDENADOR ADJ UNTO DO PPG-FAU-UNB


CAIO FREDERICO E SILVA

P R O GR AMAÇÃO V I SUA L DO S ITE E DA MA R CA DO E VEN TO


LIA TOSTES
MARIA CLÁUDIA CANDEIA

P R O J E TO GR ÁF I CO E EDITO R AÇÃO
ANDRÉ VICTOR E GABRIEL ALMA

10
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

VI ENANPARQ
Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo

01.MARÇO.2021

Boa tarde a todas e todos!


Em nome da magnífica Reitora da Universidade de Brasília, profa. Márcia Abrahão
Moura, da presidente de honra do VI ENANPARQ, prof. emérita Sylvia Ficher, e da presi-
dente da ANPARQ na gestão 2019-2020, profa. Angela Gordilho, saúdo a todas e todos os
presentes nessa Mesa de Abertura, bem como aos participantes inscritos e àqueles que
nos acompanham pelo YouTube.
Como atual Presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo, a ANPARQ, é uma honra estar na abertura do VI ENANPARQ &
Diálogos Internacionais, e poder confirmar a solidez desta Associação que agrega atual-
mente 32 programas afiliados e 135 sócios individuais. Associação que na última década
se fortaleceu pelas cinco edições do ENANPARQ – desde a memorável primeira edição
no edifício do MEC no Rio de Janeiro à calorosa quinta edição na FAUFBA, em Salvador,
em 2018. Uma década de produções, apresentações, debates, premiações e publicações
(incluindo a revista Thésis) retratam o universo de conhecimento construído no âmbito
da Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo por pesquisadores, professores, alunos
de pós-graduação e graduação e profissionais.
Nesta sexta edição, a ANPARQ em parceria com a Comissão Organizadora local – a
equipe de professores, alunos e técnicos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de Brasília, nossa querida FAU-UnB –, juntamente com os programas de
pós-graduação parceiros da UFG, UEG e UniCEUB, ao proporcionar mais um ENANPARQ
consolida sua importância ao mesmo tempo que evidencia a necessidade de dar conti-
nuidade a este evento, sobretudo em cenário tão adverso pelo qual passamos.
De um lado, a Pandemia de COVID-19, que há exatos 1 ano ultrapassava nossas
fronteiras e aportava em solo nacional. Um ano depois, com mais de 250 mil mortos,
enfrentamos a sua pior fase, com novo lockdown por diversas cidades do país, incluindo
Brasília. A ANPARQ, ao se solidarizar com aqueles que perderam familiares e colegas,

11
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

vítimas de COVID-19, vem destacar a responsabilidade de pesquisadores, professores e


profissionais de Arquitetura e Urbanismo em encontrar saídas e soluções para as rea-
lidades postas. Nos limiares possíveis talvez possamos encontrar respostas às mazelas
sociais escancaradas por tal Pandemia.
De outro lado, não bastasse esta guerra contra o vírus, nos deparamos com um
governo negligente e opressor. Um governo que tem por política a redução e cortes sis-
temáticos à Educação e à Pesquisa. Um governo que mina nosso emocional com ações
constantes de desmontes à Pesquisa, ao Ensino e à Extensão. Um governo que potencializa
a política burocrática de avaliação de Programas de Pós-Graduação (relatório Sucupira),
o qual nos engessa, neutraliza e sufoca, colocando-nos, por vezes, um contra os outros
a fim de tirar nosso foco das reais batalhas que devamos enfrentar. Enfim, um período
adverso, de muita resistência e persistência na continuidade de nossas atividades como
pesquisadores, professores e alunos.
Pandemia e desgoverno, é neste cenário contraproducente que o VI ENANPARQ
se coloca. Frente a este cenário hostil, produzimos, e como produzimos! Com mais de
850 trabalhos, reunidos em 44 Mesas Temáticas, 70 Sessões Livres, 20 Oficinas, 9 Mesas
Especiais, 7 Palestras, 5 Reuniões Temáticas, 24 Lançamentos, 2 Exposições, 4 Sessões de
Cinema, Premiações, perfazendo mais de 8 mil páginas de Anais e 120 vídeos a serem
publicizados e gratuitamente disponibilizados na rede, mostramos que não estamos
paralisados e improdutivos. Pelo contrário, mostramos e demonstramos como a Academia
pode dar respostas aos dilemas enfrentados pela sociedade. São produções dos últimos
dois anos desenvolvidas por pesquisadores em Programas de Pós-Graduação no país e
no exterior. Uma produção robusta que precisa sair dos limites universitários e adentrar
no cotidiano de nossas cidades, nossos campos, nossas comunidades.
Nesse sentido, a ANPARQ tem a responsabilidade e o dever de garantir isso. Ao bus-
car relações com outras Instituições, como: IAB, CAU, FNA, ABEA, ICOMOS, DOCOMOMO,
UIA e demais Associações da área de Arquitetura e Urbanismo, nosso intuito é fortalecer
a atuação de Arquitetas, Arquitetos e Urbanistas como: pesquisadores, professores e
profissionais responsáveis por um futuro mais igualitário, includente e democrático
de nossos edifícios e de nossas cidades.
Nos próximos cinco dias teremos a oportunidade de verificar nos interstícios,
encontrados por centenas de pesquisadores aqui presentes, miríades de possibilidades
para um futuro melhor.
Vamos em frente, sigamos juntos e protegidos.
Obrigado,
Ricardo Trevisan

12
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

APRESENTAÇÃO E BREVE HISTÓRICO

O VI Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura


e Urbanismo (VI ENANPARQ) é um encontro bianual realizado por professores, pesqui-
sadores e discentes de pós-graduação e graduação que atuam na área de Arquitetura
e Urbanismo. Objetiva contribuir no incentivo a atividades inerentes à formação, à
pesquisa, à extensão, à cultura e ao desenvolvimento cultural e tecnológico dessa área,
assim como busca revelar a produção acadêmico-científica e profissional gerada nesse
interstício temporal. A exposição, a divulgação e o intercâmbio de informações cons-
tituem os meios e as práticas em voga durante tal evento. Nessa edição, em particular,
foram incorporados Diálogos Internacionais a fim de substanciar o tema “Limiaridade:
processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo”, trazendo ao encontro a troca de ações
e experiências estrangeiras, especialmente latino-americanas.
O ENANPARQ é um encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação
em Arquitetura e Urbanismo, a ANPARQ, fundada em 12 de outubro de 2004, e consti-
tui-se numa entidade jurídica (CNPJ 10.701.535/0001-43) de direito privado, sem fins
econômicos, com autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com duração
por tempo indeterminado, com foro na cidade de Porto Alegre, com sede na Faculdade
de Arquitetura da UFRGS, na rua professor Sarmento Leite, 320, Centro, estado do Rio
Grande do Sul, Brasil, podendo constituir sedes de representação em outras unidades
da Federação, com atuação em âmbito nacional. Congrega programas de pós-graduação,
entidades e pesquisadores individuais que desenvolvam atividades de ensino de pós-gra-
duação, pesquisa e/ou extensão de forma regular e sistemática na área de Arquitetura e
Urbanismo no Brasil. (fonte: https://www.anparq.org.br/Estatuto.php)
Historicamente, entre 2010 e 2018 foram cinco os encontros realizados. O I
ENANPARQ ocorreu no Rio de Janeiro (RJ), entre 29 de novembro e 3 de dezembro de 2010.
Foi organizado pelos Programas de Pós-Graduação PROURB e PROARQ da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, em parceria com PPGAU/UFF da Universidade Federal Flumi-
nense, em Niterói, sob a temática “Arquitetura, Cidade, Paisagem e Território: percursos
e perspectivas”, com patrocínio da Capes e CNPq. O II ENANPARQ foi realizado em Natal
(RN), entre 18 e 21 de setembro de 2012, com o tema “Teorias e Práticas na Arquitetura e
Cidade Contemporâneas”, sendo organizado pelo PPGAU-UFRN da Universidade Federal
de Rio Grande do Norte, em parceria com o PPGAU/UFP da Universidade Federal da Paraíba
e do MDU/UFPe, da Universidade Federal de Pernambuco, com patrocínio: CAPES, CNPq e

13
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FAPERN. O III ENANPARQ ocorreu em São Paulo (SP), entre 20 e 24 de outubro de 2014, com
o tema “Arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva”, sendo organizado pelo
PPGAU da Universidade Presbiteriana Mackenzie e POSUR/PUC-Campinas da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, com a colaboração de todos os Programas de Pós-
Graduação em Arquitetura e Urbanismo do estado de São Paulo, com patrocínio Mack
Pesquisa; FAPESP, CNPq, CAPES e PUC-Campinas. O IV ENANPARQ ocorreu em Porto Alegre
(RS), entre 25 e 29 de julho de 2016, com o tema “O Estado da Arte”, sendo organizado
pelo PROPAR da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com apoio do PROPUR-UFRS
e do PPGAU-Mestrado Associado UniRitter/Mackenzie, com patrocínio: CAPES, CNPq e
FAPERGS. O V ENANPARQ foi realizado em Salvador (BA), entre 13 e 19 de outubro de 2018,
com o tema “Arquitetura e Urbanismo no Brasil atual: crises, impasses e desafios”, sendo
organizado pelo PPGAU/UFBA (Mestrado e Doutorado, Mestrado Profissional - CECRE e
Residência Profissional AU+E/UFBA) da Universidade Federal da Bahia, com patrocínio
CAPES e CNPq.
O VI ENANPARQ seria realizado na cidade de Brasília (DF), entre os dias 12 e 16 de
outubro de 2020. Contudo, devido à pandemia de COVID-19 e consecutivas medidas res-
tritivas e cenários incertos atuais, a organização do evento em conjunto com a direção
da ANPARQ decidiu pelo adiamento do evento para 1º a 5 de março de 2021 (formato
100% virtual), com oferta de evento preparatório, o “Seminário Virtual – Limiaridade:
processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo” realizado entre 13 e 16 de outubro de
2020 (formato virtual). É organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo – PPG-FAU/UnB, com a colaboração de outras instituições de ensino superior
da região: Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), Universidade Estadual de Goiás
(UEG) e Universidade Federal de Goiás (UFG), e vem dar continuidade aos encontros nacio-
nais homônimos. Complementarmente, atividades de extensão – oficinas e práticas
urbanas – ocorrerão tendo diferentes áreas da Região Metropolitana de Brasília como
campo de trabalho, promovendo interação entre participantes e a comunidade; assim
como exposições de projetos de arquitetura e urbanismo – concurso.

14
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

SÍNTESE DO SEMINÁRIO VIRTUAL – 13 A 16 DE


OUTUBRO DE 2020
O Seminário Virtual “Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo”,
evento preparatório ao VI ENANPARQ, ocorreu ao longo dos últimos 3 dias, com Mesa de
Abertura e 3 Mesas Temáticas: 1 – Brasília aos 60: leituras contemporâneas; 2 – BrCidades,
novo projeto para cidades brasileiras: táticas e experimentações cidadãs; e 3 – Ensino,
Pesquisa e Extensão: questões estruturantes para Arquitetura e Urbanismo.
O Seminário Virtual foi organizado pela FAU-UnB em parceria com a ANPARQ e
FINATEC. Teve apoio da UnBTV e do UniCEUB. Contou com 12 palestrantes de diferentes
IES do país e da América Latina, além de 3 mediadores e 3 debatedores. Tivemos, até
o momento, 289 inscritos (pagaram taxa de inscrição para obtenção de certificado –
emitiremos em breve e encaminharemos por email). Foram 181 alunos inscritos e 108
profissionais. As mesas temáticas atraíram um público considerável, tendo até o presente
momento 2.829 visualizações (sendo 518 pessoas ao vivo). Como produto obtido, foram
7h30 de gravações das 3 mesas, que ao serem processadas, serão disponibilizadas nos
canais Academia Finatec e ENANPARQ no YouTube.
Ademais, para além dos resultados obtidos, esta oportunidade foi essencial para
melhor compreendermos o funcionamento, a dinâmica e a operacionalidade de um
evento 100% virtual. Experiência que levamos para o VI ENANPARQ.

15
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

`TEMAS & EIXOS DO VI ENANPARQ

O tema escolhido para o VI ENANPARQ e Diálogos Internacionais é Limiaridade:


processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo. Limiar é um começo, uma circuns-
tância de limites ou fronteiras. Limiaridade é transição, deslocamento, movimento.
Limiaridade é uma demarcação – real, imaginária ou provisória – que possibilita pensar
sobre cada um dos lados e, também, o que está entre eles. Limiaridade é um termo opor-
tuno para instigar reflexões sobre processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo nas
circunstâncias contemporâneas, quando objetos, valores e categorias estão postos em
xeque. Quando é cada vez mais difícil encontrar certezas, quando nada mais se parece
com o que era antes.
Tomar o tempo presente parece não ser tarefa simples. Em tempos de instabilidade
de parâmetros e crises de paradigmas (incluindo aqueles causados pela Pandemia de
COVID-19), os deslocamentos, as transições, as permutas podem e devem ser explorados.
Neste transe, tudo parece instável. As zonas limítrofes, as zonas de passagem, as zonas
intermediárias são umbrais, são limiares que podem ser tensionados por forças, inten-
sidades, experimentações de distintas gradações. As alterações se dão em diferentes
tempos e espaços mediante uso dos mais diversos meios – narrativas, documentações,
diálogos, tecnologias, encontros etc. Travessias. Na voracidade da comunicação e do
império dos algoritmos, a passagem entre o local, o regional, o nacional, o transnacio-
nal e o internacional se relativiza. Nesses interstícios, nesses “nem lá, nem cá”, miríades
de possibilidades estão abertas para abordar processos e práticas na arquitetura e no
urbanismo.
Pesquisar, projetar, planejar e intervir são ações intrínsecas à Arquitetura e ao
Urbanismo. Pesquisar, projetar, planejar e intervir também são ações de transformação,
de especulação e de produção de conhecimento. A pesquisa, o projeto, o planejamento e
a intervenção detêm potencial crítico sobre o ambiente natural e/ou construído e seus
usos e apropriações, diante das múltiplas dimensões da espacialidade da paisagem, do
território, da cidade, do edifício e de seu interior. A pesquisa, o projeto, o planejamento
e a intervenção são parte dos processos sociais, históricos e culturais de que participam
diversos agentes e instituições em constantes intercâmbios e por distintos meios.
O VI ENANPARQ e Diálogos Internacionais almejam perpassar as abrangentes
escalas da Arquitetura e do Urbanismo para instigar reflexões, a partir de limiares,

16
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

travessias, transições, deslocamentos e permutas, de um campo disciplinar autônomo


e consolidado, tendo contextos nacionais e estrangeiros como suporte, especialmente
os latino-americanos. O edifício, o urbano, o rural, o território ou a paisagem podem ser
tomados como objetos e/ou suportes para interlocuções de saberes, meios, usos, práticas
e técnicas nos intercâmbios com Engenharia, Arte, História, Sociologia, Antropologia,
Psicologia, Filosofia, Geografia, Economia, Direito, Comunicação.
Para tanto, foram estabelecidos cinco Eixos Temáticos:

EIXO TEMÁTICO 1: PROJETO, POLÍTICAS E PRÁTICAS

A esse Eixo interessa a diversidade de projetos e práticas socioculturais nos terri-


tórios urbanos e rurais. Concepções teóricas emergentes, experimentações projetuais,
novas formas de urbanismo coletivo, assessorias e assistência técnicas, autogestão e
ativismo são assuntos oportunos a serem articulados com abordagens já consolida-
das sobre teorias e práticas de projeto. A correlação entre o campo político e o projeto,
incluindo políticas do comum na cidade, cartografias do afeto, performances no espaço
urbano e na produção projetual, além dos desafios das identidades de gênero e raça,
são questões a se problematizar. Fortalecer o debate sobre procedimentos de ensino
e pesquisa em atelier e em práticas extensionistas, por meio de maquetes, desenhos e
técnicas digitais de representação, bem como tradicionais e novos processos e técnicas
de ensino/aprendizagem do projetar, a partir de práticas metodológicas correlatas aos
seus diferentes saberes, podem revigorar sentidos contemporâneos da inserção profis-
sional nos limiares atelier/sociedade, campo político/projeto.

EIXO TEMÁTICO 2: PROJETO, TECNOLOGIA, INFRAESTRUTURA E QUESTÕES


SOCIOAMBIENTAIS

A esse Eixo correspondem trabalhos que envolvam as dimensões ambientais e


sociais das tensões e conflitos urbanos e rurais relacionados às mudanças climáticas
no antropoceno. São favorecidos estudos que exploram as associações entre o projeto,
como prática prospectiva na cidade e no campo, seus nexos com as ciências vinculadas
ao território, bem como as relações críticas no debate contemporâneo sobre as relações
entre natureza e cultura. Do projeto ao concreto, o poder transformativo é determinado
pelo conhecimento e pela política para explorar a relação do plano, do projeto com as
infraestruturas sociais e seus mediadores: tecnologia e técnica. Demandas por estratégias
de sobrevivência, por um habitat saudável e sensível à água, por uma infraestrutura eco-

17
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

lógica. Igualmente, trabalhos que exploram questões relacionadas ao conforto ambiental,


à eficiência energética, à qualidade ambiental, ao uso racional de recursos, ao ciclo de
vida de materiais, assim como às inovações em projetos e sistemas construtivos. Podem
ser contempladas questões relacionadas ao ensino de projeto e à formação continuada
de profissionais frente aos novos desafios ambientais e complexidades crescentes, risco,
vulnerabilidade e pobreza urbana e rural, assim como a integração de conhecimentos
projetuais e tecnológicos multidisciplinares visando à resolução de problemas ambientais,
equipamentos comunitários e serviços, programas habitacionais, mobilidade e logística.

EIXO TEMÁTICO 3: HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA

Cabe nesse Eixo explorar a história do ambiente construído como operação crítica.
A pesquisa histórica vem transitando para abordagens não lineares, diante dos limiares
da decolonialidade e do reconhecimento do papel das redes na produção do espaço.
Atentamos para novas possibilidades de construção de narrativas que, perante obras de
caráter canônico, sejam voltadas para a revisão de periodizações, de enquadramentos
conceituais, de delimitações geográficas e de trocas culturais, de modo a rever a tempo-
ralidade e historização de teorias e manifestos e garantir a inclusão de grupos sociais e
objetos marginalizados. Busca-se estimular a exploração de questões de caráter teórico,
tecnológico ou operativo atinentes à documentação da cultura material, às fontes docu-
mentais e iconográficas e aos acervos patrimoniais. Pelo viés da escrita, cabe considerar
ainda os aspectos científicos, literários e políticos do discurso da história dos territórios,
das cidades e das edificações.

EIXO TEMÁTICO 4: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

Nesse Eixo incluem-se trabalhos afeitos às questões acerca do patrimônio cultu-


ral, abrangendo suas mais diversas escalas, processos e temporalidades, no âmbito da
teoria, prática, ensino, aprendizagem, técnica e crítica. O objetivo é fomentar o debate
das limiaridades que o patrimônio cultural manifesta. Busca-se contemplar discussões
sobre os conceitos centrais ao campo, bem como os desafios postos à sua operacionaliza-
ção nos processos de identificação, intervenção e gestão da conservação do patrimônio
cultural. Entre as questões conceituais de interesses estão: convergências e dissonâncias
entre as teorias da conservação clássica e contemporânea; o lugar de memória enquanto
categoria patrimonial; a construção da significância cultural e seu papel na gestão da
conservação; desafios e instrumentos da salvaguarda do patrimônio imaterial. Entre os
pontos de interesse aplicado estão: linguagens e tecnologias para a preservação; noções

18
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de integridade e autenticidade, destruição e reconstrução pós-catástrofe, conservação


preventiva e sistemas de prevenção de risco; instrumentos da conservação do patrimô-
nio urbano e das paisagens culturais; preservação de conjuntos industriais; valoração
e restauro da arquitetura moderna e contemporânea.

EIXO TEMÁTICO 5: INTERCÂMBIOS CULTURAIS, INTERLOCUÇÕES E REDES

Para esse Eixo é privilegiado o debate sobre transições e trocas inerentes aos proces-
sos sociais, por meio de pesquisas, experiências e eventos. Tais transições, deslocamentos
e permutas ocorrem em diferentes tempos e espaços mediante uso dos mais diversos
meios, tensionando as escalas local, regional, nacional, transnacional e internacional,
criando interlocuções e redes. As inúmeras possibilidades de interação, bem como os
ambientes em que elas transcorrem, podem ser exploradas para conhecer e reconhecer o
protagonismo de agentes e entidades em constante contato, por entre múltiplas limiari-
dades. Cabem trabalhos que explorem as relações que se estabelecem entre instituições
de ensino, grupos de pesquisa, setor público e iniciativa privada, associações de classe,
representações da sociedade civil e organizações não-governamentais; a contribuição
de agentes que se destacam por meio de sua atuação e expertise; as interações em expo-
sições, feiras, bienais, congressos e outros eventos; as conexões com suportes artísticos,
cinematográficos ou multimidiáticos e as novas fronteiras das tecnologias digitais.
Além disso, tivemos um eixo dedicado a trabalhos sobre a Pandemia de SARS-Cov
19 que assola o mundo desde 2020; Sessõe livres, Mesas Especiais e Oficinas.

19
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

COMISSÃO CIENTÍFICA

ADILSON COSTA MACEDO, USJT


ADRIANA MARA VAZ DE OLIVEIRA, UFG
ANA CAROLINA SANTOS PELLEGRINI, UFRGS
ANA GABRIELA GODINHO LIMA, UPM
ANA KLAUDIA DE ALMEIDA VIANA PERDIGÃO, UFPA
ANA MARIA REIS DE GOES MONTEIRO, UNICAMP
ANA PAULA BALTAZAR DOS SANTOS, UFMG
ANA PAULA KOURY, USJT
ANA PAULA RABELLO LYRA, SEDES/UVV
ANDRÉA DE LACERDA PESSÔA BORDE, PROURB/UFRJ
ANDREA DE OLIVEIRA TOURINHO, USJT
ANDRÉA QUADRADO MUSSI, IMED
ANDRESSA CARMO PENA MARTINEZ, UFV
BEATRIZ FLEURY E SILVA, UEM/UEL
BRUNO MASSARA ROCHA, UFES
CALIANE CHRISTIE O. DE ALMEIDA SILVA, IMED
CÉLIA HELENA CASTRO GONSALES, UFPEL
CELINA FERNANDES ALMEIDA MANSO, UEG (PARCEIRO ENANPARQ)
CELMA DE NAZARÉ C. DE SOUZA PONT VIDAL, UFPA
CHRISTINE RAMOS MAHLER, UFG
CLÁUDIA CARVALHO LEME NÓBREGA, PROURB/UFRJ
CLÁUDIA DOS REIS E CUNHA, UFU
CLÁUDIA PIANTÁ COSTA CABRAL, PROPAR/UFRGS
CRISTIANE ROSE DE SIQUEIRA DUARTE, PROARQ/UFRJ
DANIEL RIBEIRO CARDOSO, UFC
DÉBORA DE BARROS CAVALCANTI FONSECA, UFAL
DIRCEU PICCINATO JUNIOR, IMED

20
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EDUARDO GRALA DA CUNHA, UFU


EDUARDO ROCHA, UFPEL
ELIETE DE PINHO ARAÚJO, UNICEUB (PARCEIRO ENANPARQ)
ELINE MARIA MORA PEREIRA CAIXETA, UFG
EUGENIO FERNANDES QUEIROGA, FAU/USP
EUNICE HELENA SGUIZZARDI ABASCAL, UPM
FÁBIO LOPES DE SOUZA SANTOS, IAU/USP
FELIPE DE SOUZA NOTO, ESCOLA DA CIDADE
FERNANDO DINIZ MOREIRA, UFPE
FERNANDO ESPÓSITO GALARCE, PUC-RIO
FERNANDO TADEU DE ARAÚJO LIMA, UFJF
FREDERICO BRAIDA RODRIGUES DE PAULA, UFJF
FREDERICO ROSA BORGES DE HOLANDA, UNB
GABRIELA LEANDRO PEREIRA, UFBA
GIOVANILTON ANDRÉ CARRETTA FERREIRA, UFBA
GISELA CUNHA VIANA LEONELLI, UNICAMP
GISLAINE ELIZETE BELOTO, UEM/UEL
HEITOR DE ANDRADE E SILVA, UFRN
HELENA APARECIDA AYOUB SILVA, FAU/USP
ÍTALO ITAMAR CAIXEIRO STEPHAN, UFV
JEFFERSON OLIVEIRA GOULART, UNESP
JONATHAS MAGALHÃES PEREIRA DA SILVA, PUC-CAMPINAS
JOSÉ ALMIR FARIAS FILHO, UFC
LEONARDO MARQUES DE MESENTIER, UFF
LEONARDO PINTO OLIVEIRA, UNICEUB (PARCEIRO ENANPARQ)
LEOPOLDO EURICO GONÇALVES BASTOS, PROARQ/UFRJ
LÚCIA LEITÃO SANTOS, UFPE
LÚCIA MARIA CAPANEMA ÁLVARES, UFF

21
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

LUIZ CARLOS DE LAURENTIZ, UFU


LUIZ MANUEL DO EIRADO AMORIM, UFPE
MAIRA MACHADO MARTINS, PUC-RIO
MAÍRA TEIXEIRA PEREIRA, UEG (PARCEIRO ENANPARQ)
MÁRCIA GENÉSIA DE SANT’ANNA, UFBA
MARCIO COTRIM CUNHA, UFBA – UFPB
MARIA CRISTINA DA SILVA SCHICCHI, PUC-CAMPINAS
MARIA PAULA G. LYSANDRO DE ALBERNAZ, PROURB/UFRJ
MARIANNA RAMOS BOGHOSIAN AL ASSAL, ESCOLA DA CIDADE
MARTA MARIA LAGRECA DE SALES, ESCOLA DA CIDADE
MARTA SILVEIRA PEIXOTO, UFRGS
MARTHA MACHADO CAMPOS, UFES
MAURÍCIO HIDEMI AZUMA, UEM/UEL
MELISSA RAMOS DA SILVA OLIVEIRA, SEDES/UVV
MIGUEL ANTONIO BUZZAR, IAU/USP
MILENA D’AYALA VALVA, TECCER/UEG (PARCEIRO ENANPARQ)
NATALIA MIRANDA VIEIRA-DE-ARAÚJO, UFRN
NORMA REGINA TRUPPEL CONSTANTINO, UNESP
PAOLA BERENSTEIN JACQUES, UFBA
PATRICIA RODRIGUES SAMORA, PUC-CAMPINAS
PAULA FREIRE SANTORO, FAU/USP
RENATA HERMANNY DE ALMEIDA, UFES
RICARDO VICTOR RODRIGUES BARBOSA, UFAL
RITA DE CÁSSIA LUCENA VELLOSO, UFMG
RODRIGO CURY PARAIZO, PROURB/UFRJ
ROMEU DUARTE JUNIOR, UFC
ROSELINE VANESSA SANTOS OLIVEIRA, UFAL
ROSIO FERNANDEZ BACA SALCEDO, UNESP

22
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

SÁVIO TADEU GUIMARÃES, UNICEUB (PARCEIRO ENANPARQ)


SIMONE BARBOSA VILLA, UFU
TOMÁS ANTONIO MOREIRA, IAU/USP
VANESSA GOMES DA SILVA, UNICAMP
WELLINGTON CANÇADO COELHO, UFMG

ANDERSON KAZUO NAKANO, UNIFESP


AKEMI INO, USP
AMADJA HENRIQUE BORGES, UFRN
ARIADNE MORAES SILVA, UFBA
CAIO SANTO AMORE DE CARVALHO, USP
CÉLINE FELÍCIO VERÍSSIMO, UNILA
CLARA LUIZA MIRANDA, UFES
CLARICE MISOCZKY OLIVEIRA, UFRGS
GISELLE MEGUMI MARTINO TANAKA, UFRJ
HELIANA METTIG FARIA ROCHA, UFBA
JUNIA MARIA FERRARI DE LIMA, UFMG
KARINA OLIVEIRA LEITÃO, USP
LAURA BUENO, PUC-CAMPINAS
LEONARDO NAME, UNILA
LIZETE MARIA RUBANO, MACKENZIE
LÍVIA IZABEL BEZERRA DE MIRANDA, UFCG
LUCIANA TRAVASSOS, UFABC
MARCELA SILVIANO BRANDÃO LOPES, UFMG
MARIA INÊS SUGAI, UFSC
NIRCE SAFFER MEDVEDOVSKI, UFPELOTAS
PAULO DIMAS ROCHA DE MENEZES, UFSB

23
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LUIS RENATO BEZERRA PEQUENO, UFCG


RICARDO DE SOUSA MORETTI, UFABC
THAIS TROCON ROSA, UFBA

FOTOGRAFIAS
A R Q UI VO P Ú BL I CO DO DISTRITO FEDER A L

ANDRÉ COSTA
ARQUIVO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL
AYA VILLENA
BRASÍLIA RETROFUTURISTA / THIAGO FREITAS

CALCIFER ZECAIÊ
DIEGO BRESANI
ELAINE SOARES
GABRIEL LYON

JOANA FRANÇA
JOSÉ ROBERTO BASSUL
LEONARDO WEN
LUISA ZUCCHI
MARCEL GAUTHEROT / INSTITUTO MOREIRA SALLES
PETER SCHEIER / INSTITUTO MOREIRA SALLES
THOMAZ FARKAS / INSTITUTO MOREIRA SALLES

24
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO 4

PATRIMÔNIO,
ESCALAS E
PROCESSOS

FOTO: LEONARDO WEN

25
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO 4

Cabe nesse Eixo explorar a história do ambiente construído como ope-


ração crítica. A pesquisa histórica vem transitando para abordagens não
lineares, diante dos limiares da decolonialidade e do reconhecimento do
papel das redes na produção do espaço. Atentamos para novas pos-
sibilidades de construção de narrativas que, perante obras de caráter
canônico, sejam voltadas para a revisão de periodizações, de enquadra-

modo a rever a temporalidade e historização de teorias e manifestos e


garantir a inclusão de grupos sociais e objetos marginalizados. Busca-se
estimular a exploração de questões de caráter teórico, tecnológico ou
operativo atinentes à documentação da cultura material, às fontes docu-

26
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

27
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

SUMÁRIO
38 APROPRIAÇÕES COLETIVAS DE ESPAÇOS
PÚBLICOS: UM ENFOQUE NO PATRIMÔNIO
CULTURAL (CIDADE DE GOIÁS COMO ESTUDO DE
CASO)
OLIVEIRA, Irina

55 ARTE E CIDADE NAS ESCOLAS DO DISTRITO


FEDERAL
SOLÉ, Julia Mazzutti Bastian

77 O BANCO HIPOTECÁRIO LAR BRASILEIRO


E SUAS URBANIZAÇÕES EM SÃO PAULO.
CONTRIBUIÇÕES PARA A HISTÓRIA DA
ARQUITETURA E DO URBANISMO.
BEDOLINI, Alessandra

95 BENTO RODRIGUES/MG: UM LUGAR DE MEMÓRIA


AZEVEDO, Paula Pinto Huhn de
PESSOTTI, Luciene

111 O CALÇADÃO DE COPACABANA COMO


PATRIMÔNIO URBANO

PARAIZO, Rodrigo Cury

28
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

126 CASA DA FORÇA E LUZ: ASPECTOS HISTÓRICOS


E ARQUITETÔNICOS DA PRIMEIRA EDIFICAÇÃO
TOMBADA EM RIO DO SUL, SC

DETZEL, Carolina
TONDELO, Patrícia Geittenes

146 CENARIZAÇÃO DE SÍTIOS HISTÓRICOS:


REVERBERAÇÕES DO “ESTILO PATRIMÔNIO” EM
MUCUGÊ
AMARAL, Fellipe Decrescenzo Andrade

166 A CIDADE, O PATRIMÔNIO E SEU ENTORNO:


DIÁLOGOS E DESAFIOS NAS POLÍTICAS
URBANAS

181 O CONCEITO DE INTEGRIDADE NA


CONSERVAÇÃO DA ARQUITETURA MODERNA

MELO, Carlos Eduardo Luna de

196 CONSERVAÇÃO PREVENTIVA: ESTUDO DE CASO


DO MUSEU INTERNACIONAL DE ARTE NAIF DO
BRASIL
SENNA, Clarissa de Paula

29
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

216 A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL COMO


INSTRUMENTO DE CONSERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO URBANO E DA PAISAGEM

PEDAGÓGICA DESENVOLVIDA NO CURSO DE


ARQUITETURA E URBANISMO - UFRN

NASCIMENTO, José Clewton do


CAVALCANTI, Emanuel Ramos

236 EMBATES E DIÁLOGOS NA PRESERVAÇÃO


PATRIMONIAL DA ÁREA CENTRAL DO RIO DE
JANEIRO (1938-1964)
MATTOS, Guilherme Meirelles Mesquita de

253 ENTRE CONSERVAÇÃO E PROJETO DO NOVO:


LUCIO COSTA, ERNESTO NATHAN ROGERS E
LINA BO BARDI. O CONCEITO DE CONTINUIDADE
CALABRESE, Federico

273 ENTRE LAGOA, MORROS E RIOS, UM OLHAR


PARA A FAVELA DE RIO DA PEDRAS E SUA
PAISAGEM

ALVES, Ana Beatriz Jardim


CORTEZ, Vanessa Carla Sayão

30
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

292 FAZENDA SÃO JOÃO DO TIBIRIÇÁ: ABORDAGENS


ACERCA DE UM PATRIMÔNIO RURAL PAULISTA
SILVA FILHO, Adenir Gomes da
HIRAO, Hélio

314 FRONTEIRAS E LIMIARES SOB WALTER


BENJAMIN: UMA ALTERNATIVA PARA A
LEITURA DA FORMA URBANA

332 INSERÇÕES: REABILITAÇÃO E CENOGRAFIA NA


OBRA DE JOÃO MENDES RIBEIRO
DURAN, Nathalia Valença

351 INTERVENÇÃO COMO MEIO DE CONSERVAÇÃO E


VISIBILIDADE DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO
DAS RUÍNAS SETECENTISTAS DA SERRA DA
CALÇADA, MINAS GERAIS, BRASIL
ARAGÃO NETO, Félix Corrêa
TOFANI, Frederico de Paula

372 INTERVENÇÃO NO CENTRO HISTÓRICO: ENTRE


PALAVRAS E DESENHOS
CONSTANTI, Andressa

31
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

390 INTERVIR NO PATRIMÔNIO: SOBRE “FALSO


HISTÓRICO”, PRINCÍPIO DA DIFERENCIAÇÃO DAS
PARTES NOVAS E QUESTÕES ASSOCIADAS
LUCCAS, Luís Henrique Haas

410 O IPHAN E O PROCESSO DE PATRIMONIALIZAÇÃO


GERIBELLO, Denise Fernandes

424 JUSTAPOSIÇÕES CONTRASTANTES EM


MEIO A PROCEDIMENTOS ANALÓGICOS COM
O PASSADO: UM OLHAR PANORÂMICO NAS
INTERVENÇÕES DE LINA BO BARDI SOBRE O
CONSTRUÍDO
WINTER, Jordana Cristine
BAHIMA, Carlos Fernando

446 KM3:EDIFÍCIO DE HABITAÇÃO COLETIVA E O

PANTALEÃO, Sandra Catharinne

471 LE HAVRE: DE CIDADE RECONSTRUÍDA A


PATRIMÔNIO MODERNO
SILVA, Jéssica

32
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

490 LOS INICIOS DE LA RESTAURACIÓN DE


MONUMENTOS EN CUBA. LA RESTAURACIÓN
DEL PALACIO DE LOS CAPITANES GENERALES
EN 1930.
HERNÁNDEZ, Maite
VIEIRA-DE-ARAUJO, Natália Miranda

508 MECANISMOS DE SALVAGUARDA DO


PATRIMÔNIO RURAL: VALORIZAÇÃO E
RESTAURO DA FAZENDA SALTINHO
ANTUNES, Beatriz Leite
SALCEDO, Rosio Fernández Baca

525 MODELAGEM DA INFORMAÇÃO DA CONSTRUÇÃO


APLICADA À PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

PARA A ESTAÇÃO FERROVIÁRIA DE PATOS,


PARAÍBA, BRASIL
LUCENA, Pedro Gomes de

545 MODOS DE SIGNIFICAR O PATRIMÔNIO: AMEAÇA


À PERMANÊNCIA OPERÁRIA NO RIO DE JANEIRO
(1970-1990)
CRUVINEL, Aline Cristina Fortunato

33
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

560 O NEOCOLONIAL RELIGIOSO NO INTERIOR


DO ESTADO DE SÃO PAULO E AÇÕES DE
PRESERVAÇÃO
TREFT, Renan Alex
PINHEIRO, Maria Lucia Bressan

579
SOBRE PATRIMÔNIO CULTURAL E APROPRIAÇÃO
SILVA, Ana

592 PAISAGEM CULTURAL E ECONOMIA CRIATIVA:


CAMINHOS E DESAFIOS PARA A PRESERVAÇÃO
DO PATRIMÔNIO NO CENTRO HISTÓRICO DE
BELÉM
TAVARES, Ana Carolina Miranda
CAVALCANTE, Acilon Himercírio Baptista
LIMA, José Julio Ferreira

614 PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO AFRO-


BRASILEIRO: OS PROCESSOS DE
CONSTRUÇÃO DAS ARQUITETURAS DOS
TERREIROS DE CANDOMBLÉ DA NAÇÃO NAGÔ-
VODUM

634 PATRIMÔNIO CULTURAL EM TERRITÓRIOS


METROPOLITANOS: NOVOS APORTES PARA SUA
COMPREENSÃO

34
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

654 O PATRIMÔNIO INDUSTRIAL NA ÁREA


PORTUÁRIA DO RIO DE JANEIRO: UMA
PROPOSTA DE CONSERVAÇÃO E REUSO

MESENTIER, Leonardo Marques de

673
EM BELO HORIZONTE/MG: OS INTERESSES
MERCADOLÓGICOS QUE INCIDEM SOBRE A
REGIÃO E A SUA IMPORTÂNCIA ENQUANTO
LUGAR DE MEMÓRIA
BERNARDES, Brenda Melo
GONÇALVES, Raquel Garcia

695 SUPERQUADRA 108 SUL: SESSENTA ANOS


DEPOIS
PALHAS, Ana Cristina Menezes

713 TEMPORALIDADES E INTERVENÇÕES EM


CENTROS HISTÓRICOS: CONTRASTE ENTRE
PRAÇAS E RUAS DO BAIRRO CENTRO EM
MACEIÓ-AL
Miranda Vasconcelos Viana, Manuela

35
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

734 A TERCEIRA PAISAGEM NO PROCESSO DE


CONSTRUÇÃO DE UMA OUTRA CULTURA DA
PAISAGEM URBANA

749 O TERRITÓRIO (E SUA MEMÓRIA) PELO OLHAR


DOS MORADORES A PARTIR DE DOCUMENTOS
CONSTRUÍDOS POR ELES: OS ALMANAQUES DE
PATROCÍNIO PAULISTA.

CUNHA, Claudia dos Reis e

774 A TRANSFERÊNCIA DO DIREITO DE CONSTRUIR


COMO INSTRUMENTO DE PROTEÇÃO DO
PATRIMÔNIO HISTÓRICO BELORIZONTINO: O
CASO DA AVENIDA AFONSO PENA
ALMEIDA, Reginaldo Magalhães de
Fernandes, Lucas Isaac
ALMEIDA, Julia Malard

792 A TRANSFORMAÇÃO DA PAISAGEM URBANA

BRASILEIRO: O CASO DE UM ANTIGO CAMINHO

VASCONCELOS, Ana Cecilia Serpa Braga

36
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

811 TRILHOS PELO NORDESTE: CONJUNTO


ARQUITETÔNICO FERROVIÁRIO DE PATOS / PB

PEREGRINO DE ALBUQUERQUE, Mariana


GOMES, Raisa

829 O VALOR AFETIVO NA PERSPECTIVA DO


PATRIMÔNIO CULTURAL: UM ESTUDO SOBRE AS
FESTAS DE AGOSTO DE MONTES CLAROS (MG)
SOUZA, Luis F. Dias

847 O VAZIO PLANEJADO DAS CIDADES MODERNAS:


O CASO DE BRASÍLIA

862 OS VAZIOS URBANOS COMO LUGAR DO


POSSÍVEL: UMA NOVA PERSPECTIVA DE
DESENVOLVIMENTO URBANO
SILVA, Yanna Karla Garcia

879 ZONEAMENTO CULTURAL COMO INSTRUMENTO


DE PRESERVAÇÃO E DESENVOLVIMENTO: OS
CASOS DE PARANAPIACABA E CAMPINAS
FIGUEIREDO, Vanessa Gayego Bello

37
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

APROPRIAÇÕES COLETIVAS
DE ESPAÇOS PÚBLICOS: UM
ENFOQUE NO PATRIMÔNIO
CULTURAL (CIDADE DE
GOIÁS COMO ESTUDO DE
CASO)
COLLECTIVE APPROPRIATIONS OF PUBLIC
SPACES: A FOCUS ON CULTURAL HERITAGE
(TOWN OF GOIÁS AS A CASE STUDY)

APROPIACIONES COLECTIVAS DE ESPACIOS


PÚBLICOS: UN ENFOQUE EN EL PATRIMONIO
CULTURAL (CIUDAD DE GOIÁS COMO ESTUDIO DE
CASO)
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

OLIVEIRA, Irina
Doutoranda; Programa de Pós-Graduação -
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília
irinaoliveira@gmail.com

38
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Essa pesquisa toma o núcleo histórico da cidade de Goiás, Patrimônio da Humanidade desde
2001, como estudo de caso e volta o olhar para as apropriações coletivas observáveis em âmbito
urbano pela comunidade local, com destaque para os espaços públicos patrimonializados. Para
analisar esses elementos, adota-se conceitos como espaço, lugar e práticas sociais cotidianas,
assim como, as relações que estabelecem entre si a partir da perspectiva de autores como Henri
Lefèbvre, Michel de Certeau, David Harvey, etc. Em apoio a esse aporte teórico, utiliza-se diversos
tipos de imagens da cidade, que vão de mapas do século XVIII a fotografias de época, especial-
mente, do século passado até a atualidade, por apresentarem maior quantidade e diversidade.
Conclui-se destacando a importância dos diferentes modos de apropriações coletivas na cidade
e sua perpetuação para as próximas gerações, de modo a permitir a construção de uma con-
sistente preservação do patrimônio cultural, ainda que se verifiquem constantes e complexos
conflitos entre os diversos atores nesse cenário.

PALAVRAS-CHAVE: apropriações coletivas. espaços públicos. patrimônio cultural. cidade de Goiás.

ABSTRACT

This research takes the historical center of the Town of Goiás, a World Heritage Site since 2001,
as a case study and focus on the collective appropriations observed in the urban environment by
the local community, especially on historical public spaces. To analyze these elements, concepts
like space, place and daily social practices are used, as well as the relationships they establish
between themselves from the perspective of authors: Henri Lefèbvre, Michel de Certeau, David
Harvey, etc. Supporting this theoretical contribution, different types of images of the city are
analyzed, from 18th century maps to last century and recent photographs, as per their quantity
and diversity. Ending with the emphasis on the importance of the different modes of collective
appropriation in the city and its perpetuation for the next generation, allowing a consistent
preservation of the cultural heritage, despite the constant and complex conflicts between the
different actors in this case.

KEYWORDS: collective appropriations. public spaces. cultural heritage. Town of Goiás.

RESUMEN
Esta investigación toma el núcleo histórico de la ciudad de Goiás, Patrimonio de la Humanidad
desde 2001, como un estudio de caso y analiza las apropiaciones colectivas que la comunidad
local logre hacer con la ciudad, con énfasis en los espacios públicos patrimoniales. Para ana-
lizar estos elementos, se utilizan conceptos como espacio, lugar y prácticas sociales cotidianas,

39
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

así como las relaciones que establecen entre ellos desde la perspectiva de autores como Henri
Lefèbvre, Michel de Certeau, David Harvey, etc. Juntamente con esa contribución teórica, se
utilizan diferentes tipos de imágenes de la ciudad, que van desde mapas del siglo XVIII hasta
fotografías de época, especialmente desde el siglo XX hasta el presente, ya que presentan una
mayor cantidad y diversidad. Concluye destacando la importancia de los diferentes modos
de apropiación colectiva urbana y su perpetuación para las próximas generaciones, a fin de
permitir la construcción de una preservación constante del patrimonio cultural, aunque hay
conflictos constantes y complejos entre los diferentes actores en este escenario.

PALABRAS-CLAVE: apropiaciones colectivas. espacios publicos. patrimonio cultural. ciudad


de Goiás.

40
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

Goiás, minha cidade...


Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras. (...)
(CORALINA, 1989, p. 17)
Inicia-se o texto com o poema “Minha Cidade” de Cora Coralina, que apresenta com
clareza a forte vinculação afetiva que a poetisa mantinha com a cidade de Goiás (antiga
Villa Boa dos Goiazes), onde nasceu e morreu, característica refletida em diversos outros
artistas e habitantes locais. Assim, o presente artigo toma essa cidade como estudo de
caso e resulta da fase inicial de uma pesquisa de Doutorado em curso. Enfoca na análise
de práticas sociais e apropriações coletivas de espaços públicos patrimonializados[1] pro-
movidas pela comunidade local, articulando-as com diversos conceitos discutidos por
autores como Henri Lefèbvre, Michel de Certeau, David Harvey, etc., sob a guia da História
Cultural. As investigações concentram-se no século XX devido à maior disponibilidade
de fontes de pesquisa, sendo utilizados: obras de arte, artesanato, literatura e diversas
imagens, como mapas antigos e fotografias atuais e de época.
O recorte espacial adotado engloba pontos focais selecionados em um eixo que
liga os largos do Rosário e do Chafariz, contando com três diferentes vias sequenciais,
que abrigam lugares com destacadas e específicas características (Figuras 1, 2 e 3): Rio
Vermelho (origem da cidade e marcante elemento de sua paisagem cultural), Largo da
Praça do Coreto (centro do núcleo antigo que recebe a Igreja Matriz de Santana e o Museu
de Arte Sacra da Boa Morte), Largo da Igreja Nossa Senhora do Rosário (espaço de grande
importância simbólica local, contando com um templo neogótico da década de 1930) e
Largo do Chafariz (maior espaço livre da região central, implantado em 1739, após a vila
tornar-se capital, para abrigar a Casa de Câmara e Cadeia e o desaparecido Pelourinho).

[1] Torna-se Patrimônio Mundial em 2001, tendo alguns monumentos e edifícios tombados
isoladamente pelo IPHAN na década de 1950 e seu conjunto arquitetônico e urbanístico, em 1978.

41
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Planta de Vila Boa, 1782. Fonte: Acervo de Nestor Goulart.


Figura 2: Vista do alto a partir do Largo do Rosário, com Museu de Arte Sacra da Boa Morte à
frente, Igreja Matriz de Santana à direita e Museu das Bandeiras ao fundo. Fonte: Jesimar Ferreira.

Figura 3: Imagem aérea localizando os lugares e os bens patrimoniais analisados, 2019. Fonte:
Google Maps.

42
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PRÁTICAS SOCIAIS E APROPRIAÇÕES

Após a contextualização inicial, introduz-se a afirmação de Henri Léfèbvre (2008, p.


86-87) de que a leitura dos espaços urbanos “não se faz somente sobre mapas”, pois esta
é “sintomal por excelência, e não literal”. Ela permite chegar a uma definição geral desse
espaço, através das contradições e negações que apresenta imbricadas, constituindo-se
um tempo-espaço diferencial no qual redes e fluxos muito diferentes superpõem-se e
se fundem, na qual a centralidade tem importância fundamental. Assim, o autor ques-
tiona análises racionais e uniformizantes sobre o urbano (que considera superadas),
destacando suas diferenças e buscando evitar a consolidação de segregações de ele-
mentos e aspectos das práticas sociais, que estariam submetidos a reagrupações “por
decisão política no seio de um espaço homogêneo” (Léfèbvre, 2008, p. 88). Justifica-se,
então, a opção pelo enfoque nos aspectos mais abstratos dos espaços urbanos adotada
nesse texto, a exemplo das representações sociais e dos imaginários coletivos, os quais
permitem melhor compreender as diversas relações estabelecidas entre a comunidade
e o lugar ao longo do tempo.
A partir desse viés inter-relacional, Michel de Certeau (1998, p. 212) propõe a ideia
de região como “um espaço criado por interação”, explicando por que um mesmo lugar
pode conter várias regiões, conforme o número de interações ou séries de práticas coti-
dianas pelas quais esse local é apropriado. Ele diferencia lugar de espaço, considerando o
primeiro como uma ordem qualquer “segundo a qual distribuem elementos nas relações
de coexistência”, de modo que duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar ao mesmo
tempo, e constituindo, assim, “uma configuração instantânea de posições” que implicam
estabilidade (Certeau, 1998, p. 201). Já o espaço é entendido como um “cruzamento de
móveis”, que deve considerar vetores de direção, quantidades de velocidade e a variável
tempo, resultando do “efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam,
o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas conflituais
ou de proximidades contratuais” (Certeau, 1998, p. 202), não necessitando de univocidade
e estabilidade. Trata-se, enfim, de “um lugar praticado”, tornando-se, portanto, o conceito
mais adequado às análises aqui estabelecidas.
Considerando o enfoque nos usos comunitários locais, observa-se que, à exceção
do Rio Vermelho, os demais locais destacados acima são chamados pelos habitantes por
nomes bastante pragmáticos, que aludem a elementos característicos de cada um. Ainda
que durante sua história tenha se tentado substituí-los formalmente por homenagens
a figuras eminentes, a comunidade permanece designando-os por suas antigas nomen-
claturas, indicando a força que ainda apresentam no imaginário coletivo. Menciona-se
como exemplos a tradicional Rua Direita do Comércio, herança do fazer cidades portu-

43
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

guês no Brasil, que passa a ser inexpressivamente endereçada como Rua Moretti Foggia;
a Praça do Coreto, atualmente nomeada como Praça Dr. Tasso de Camargo; e o largo do
Chafariz, transformado em Praça Brasil Caiado.
Acerca do tema, Certeau (1998, p. 185) considera a toponímia como uma forma de
apropriação, pois os nomes próprios têm seu valor original desgastado com o tempo,
mantendo ainda sua “capacidade de significar”. Assim, abrem-se a polissemias atribuídas
por seus usuários, que os descolam de seus locais físicos e passam a abranger “encontros
imaginários para viagens que, mudadas em metáforas, determinam por razões estra-
nhas ao seu valor original mas razões sabidas/não sabidas dos passantes”, de modo que
pairam sobre a cidade como uma nuvem de sentidos latentes e também de memórias.
O autor afirma ainda que, nesses espaços vazios “ocupáveis”, surgem três diferen-
tes dispositivos simbólicos indicadores das relações entre práticas espaciais e práticas
significantes: o crível, o memorável e o primitivo, que se articulam entre si. Tais práticas
representariam aquilo que viabiliza as apropriações espaciais, o que se repete e se recorda
de uma “memória silenciosa e fechada” (Certeau, 1998, p. 186) e o que ali se estrutura e
permanece marcado por suas origens primárias. Esses três elementos organizam os
lugares-comuns dos discursos sobre/da cidade (lendas, lembranças e sonhos), sendo
reconhecíveis na própria função dos nomes de tornar “habitáveis” ou “críveis” esses
locais, e impõe uma história vinda do outro, alterando sua identidade funcionalista.
O historiador define também as chamadas formas ou artes de fazer[2] como “mil
práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado”, de modo a burlar
o que entende por uma “rede de vigilância” [3] que está por toda parte. Utiliza para tanto
procedimentos populares “minúsculos” e “cotidianos” que “jogam com os mecanismos
da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los” (Certeau, 1998, p.
41). Refuta, assim, a teoria de passividade e disciplina dos consumidores culturais e a
massificação dos comportamentos, defendendo a necessidade de se parar de interpretar
as práticas como “fundo noturno da atividade social” (Certeau, 1998, p. 37).
Certeau desenvolve, então, a teoria das práticas cotidianas, afim de estudar as “for-
mas de fazer”, consideradas majoritárias na vida social, às quais surgem, geralmente,
apenas como resistências nas técnicas de produção sociocultural. Complementa que os

[2] Podem ser atos como caminhar, cozinhar, falar, etc., sendo uma de suas principais caracte-
rísticas a apropriação, destacada enquanto “a cultura comum e cotidiana” (Certeau, 1998, p. 13).

[3] Para Michel Foucault, as instituições que exercem o poder sobre a sociedade estariam
sendo “vampirizadas”, de modo que o funcionamento desse poder estaria sendo “reorganizado
clandestinamente” através de seus detalhes em uma “microfísica do poder” (Certeau, 1998, p. 41).

44
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

mecanismos de tais resistências são os mesmos de uma época para outra e de uma ordem
para outra, pois a distribuição desigual de forças permanece vigorando. Desse modo,
semelhantes formas de resistir ou “processos de desvio servem ao fraco como últimos
recursos, como outras tantas escapatórias e astucias, vindas de ‘imemoriais inteligências’,
enraizadas no passado da espécie, nas ‘distâncias remotas dos viventes’, na história das
plantas ou dos animais” (Certeau, 1998, p. 19), conforme exemplos indicados a seguir.

ARTICULAÇÕES COM O URBANO

Ao lançar essa perspectiva sobre as cidades, Certeau (1998, p. 172) defini-as como
uma “vista perspectiva e vista prospectiva (que) constituem a dupla projeção de um
passado opaco e de um futuro incerto numa superfície tratável” e aberta à observação.
Através delas, busca analisar as “práticas microbianas” existentes no sistema urbano, as
quais este deveria “administrar ou suprimir”, mas que “sobrevivem a seu perecimento”.
Observa, ainda, os procedimentos que organizam a cidade (os quais considera deterio-
rados como a própria está) e que
se reforçam em uma proliferação ilegitimada, desenvolvidos e insinua-
dos nas redes de vigilância, combinados segundo táticas ilegíveis mas
estáveis a tal ponto que constituem regulações cotidianas e criativida-
des sub-reptícias que se ocultam somente graças aos dispositivos e aos
discursos, hoje atravancados, da organização observadora. (Certeau,
1998, p. 175)
Trata-se, em suma, de distinguir essas operações que se “proliferam” dentro das
estruturas tecnocráticas e “alteram seu funcionamento por uma multiplicidade de
‘táticas’ articuladas sobre os ‘detalhes’ do cotidiano”, buscando resgatar formas ocultas
criadas pelos indivíduos ou grupos presos nessas “redes de vigilância” e consideradas
como “criatividade dispersa, tática e bricoladora” (Certeau, 1998, p. 41). Na cidade de Goiás,
poderiam ser vistos como exemplos os vendedores informais de produtos rurais, que se
espalhavam por alguns pontos da cidade como a Praça do Coreto, conforme indicado
na Figura 5.
Já Lefèbvre (2008, p. 87) defende que o urbano não se restringe à morfologia mate-
rial, sendo também “uma forma mental e social, a forma da simultaneidade, da reunião,
da convergência, do encontro”. Ele configura um campo de relação entre espaço (iso-
topias-heterotopias) e tempo (ritmos cíclicos e durações lineares) estabelecido através
dos usuários, indivíduos e grupos em uma organização socioeconômica, sempre consi-
derando a crescente complexidade e diversidade das sociedades contemporâneas. Em

45
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

consonância com Certeau, conclui que “a cidade não é apenas uma linguagem, mas uma
prática” (Lefèbvre, 2008, p. 101), por poder se encarregar da junção do que está disperso,
dissociado e separado. Defende, por fim, que “as qualidades humanas da cidade emergem
de nossas práticas nos diversos espaços da cidade, mesmo que eles sejam passíveis de
cercamento, controle social e apropriação, tanto pelos interesses privados como pelos
público-estatais” (Lefèbvre, 2014, p. 143), concluindo que ela representa uma “modalidade
superior da liberdade” (Lefèbvre, 1999, p. 131).
Retorna-se a Certeau (1998, p. 179) com a definição de uso como um “fenômeno
social pelo qual um sistema de comunicação se manifesta de fato”, remetendo a deter-
minadas normas. O cruzamento do uso com o estilo gera uma maneira de fazer e de ser,
compreendendo-se o primeiro como “tratamento singular do simbólico” e o segundo
como “elemento de um código”. A partir do que denomina de “retórica habitante”, busca
modelos e hipóteses para analisar diferentes formas de apropriação dos lugares. Utiliza
relatos temáticos, considerando-os como práticas e percursos do espaço que “atravessam
e organizam lugares”, selecionando-os e reunindo-os em um único conjunto, de modo
que se tornam “frases e itinerários” (Certeau, 1998, p. 199-200). Em última instância, são
“em seu grau mínimo uma língua falada, isto é, um sistema linguístico distributivo de
lugares sendo ao mesmo tempo articulado por uma ‘focalização enunciadora’, por um
ato que o pratica” (Certeau, 1998, p. 217).
Sendo a fala um importante exemplar das práticas sociais, destaca-se que, na Lin-
guística, esse ato (como uma performance) não se resume ao simples conhecimento da
língua como enunciação. Ela apresenta as seguintes características: opera no campo
linguístico; apresenta uma apropriação ou reapropriação da língua pelos interlocuto-
res; instaura o presente, relativo a um momento e lugar; estabelece um contrato com
o outro (interlocutor) em uma rede de lugares e relações. Em uma perspectiva mais
ampla, compreende a fala do homem ordinário como uma espécie de “murmúrio das
sociedades” (Certeau, 1998, p. 57), já que provérbios e discursos afins são marcados por
usos, o que permite a análise dos vestígios de seus atos ou processos, ou seja, configuram
rastros de sua historicidade social. No caso de Goiás, os diversos “causos” contados pelos
sertanejos locais podem ilustrar essa prática, apresentando históricas fantásticas e,
muitas vezes, cômicas, a exemplo do fantasma da lendária Maria Grampinho (Figuras 4),
amiga e moradora do porão da casa de Cora Coralina, ainda hoje usado para repreender
crianças indisciplinadas.

46
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5: Vendedor informal de produtos agrícolas e carro-de-boi na Praça do Coreto entre 1906
e 1908. Fonte: Cidinha Coutinho.

Acerca dos percursos no espaço, Certeau (1998, p. 177) designa o caminhar como
uma apropriação do sistema topográfico pelo pedestre e como uma realização espacial
do lugar que “implica relações entre posições diferenciadas” (ou “contratos pragmáticos”
como movimentos). Explica que cada passo é qualitativo e um “inumerável de singula-
ridades”, tornando-se “um estilo de apreensão tátil de apropriação cinésica”, cujos jogos
moldam os espaços e tecem os lugares. Sendo assim, os passos podem ser definidos como
uma “série de deslocamentos e de efeitos entre os estratos partilhados que o compõem”
e um “jogar com essas espessuras em movimentos”. Extrapolando-se o âmbito material,
seriam “histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados à legibilidade por
outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes como histó-
rias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas, enfim simbolizações
enquistadas na dor ou no prazer do corpo” (Certeau, 1998, p. 189). Enfim, o movimento
dos pedestres, “praticantes ordinários da cidade” (Certeau, 1998, p. 171), forma sistemas
reais cuja existência constrói efetivamente a cidade, transcrevendo traços e trajetórias.
Assim, a localização implicada pelo andar indica uma “apropriação presente do
espaço”, instaurando uma paradoxal “articulação conjuntiva e disjuntiva de lugares”,
reunindo-os e separando-os ao mesmo tempo (Certeau, 1998, p. 178). Em uma analogia
com a fala, a partir da enunciação dos pedestres, pode-se analisar “os tipos de relação que
mantém com os percursos”, atribuindo-lhes valores de verdade, cognitivo e um dever-fa-
zer relativo ao obrigatório, proibido, permitido, etc. (Certeau, 1998, p. 179), possibilitando,
então, a criação de vínculos afetivos ou não com os lugares.

47
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Em sua pesquisa sobre apropriação de espaços públicos, Débora Garreto Borges


(2017, p. 43) defende que se trata de “uma condição necessária à vida”, sendo importante
ressaltar que ela extrapola o simples uso, também entendido como “prática”. Ressalta
que essas apropriações são “processos nos quais as pessoas estabelecem relações com
o espaço público, nas práticas e por meio delas; onde há identificação, apoderamento,
ligação à memória como parte da experiência e história individual e coletiva”. Na cidade
de Goiás podem ser percebidas, principalmente, nas caminhadas cotidianas por seus
logradouros (Figura 6), e nas festividades populares, a exemplo do Carnaval e das pro-
cissões religiosas de tradição secular (como os santos padroeiros, o Fogaréu e as antigas
Cavalhadas, não mais praticadas) (Figuras 7 a 9).

Figura 6: Apropriações e usos cotidianos da Praça do Coreto pela comunidade local em meados
do século XX. Fonte: Maria Dulce Loyola.
Figura 7: Ilustração de uma procissão no antigo Largo da Matriz (atual Praça da Coreto), 1743.
Fonte: Francis de Castelnau.

Com um olhar marxista, David Harvey (2014, p. 197) trata a apropriação de forma
mais politizada, como uma espécie de direito a usos diversos (espaciais, culturais, etc.)
ao qual o corpo social deveria ter acesso, mas que pode ser controlado ou tolhido pelo
capitalismo. É observável em várias modalidades como as presenças políticas nas cida-
des e os chamados “comuns culturais” (Harvey, 2014, p. 206), traduzidos em costumes e
tradições culturais locais sob domínio comunitário, por exemplo. Apresenta também
alguns tipos de ocupações como forma de resistência, ilustrando-as com o movimento
“Occupy Wall Street”, no qual espaços públicos centrais (parques ou praças próximos a
“alavancas do poder”) são ocupados por pessoas para “transformar o espaço público em
comuns políticos - um lugar para debates e discussões abertas sobre o que esse poder
está fazendo e qual seria a melhor maneira de se opor a ele” (Harvey, 2014, p. 280).
Em ambos os olhares, verifica-se uma clara vinculação com o conceito de “direito
à cidade” de Lefèbvre (2001, p. 134), que se desdobra nos direitos a liberdade, individu-
alização na socialização, habitat e habitar, dando também ao usuário acesso “à obra (à

48
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade)


”. Dessa forma, o cidadão poderia usufruir de uma vida urbana, uma centralidade reno-
vada, locais de encontro e trocas, “ritmos de vida e empregos do tempo que permitem
o uso pleno e inteiro desses momentos e locais, etc” (Lefèbvre, 2001, p. 139). Isso pode
ser verificado nas possibilidades de encontro e apropriação coletiva que a rua propicia,
com suas plenas funções informativas, simbólicas e lúdicas (Lefèbvre, 1999, p. 30). Esse
direito, enfim, implica e aplica a consciência da produção do espaço, vendo-o como uma
atividade social, inserindo o conjunto da sociedade nos processos de reflexão arquite-
tônica e urbanística, o que legaria ao conceito um ar utópico na atualidade (Lefèbvre,
1976, p. 20-21). Na cidade de Goiás, um longo histórico de efetiva atuação da Educação
Patrimonial permite um vislumbre das possibilidades observáveis pelo estímulo à
participação comunitária.

Figura 8: Celebração comunitária nas ruas do Dia do Vizinho, idealizado por Cora Coralina, 1982.
Fonte: Cidinha Coutinho.
Figura 9: Exemplo de apropriação coletiva em festa popular na Praça do Coreto, 2015. Fonte:
Ines Santos.

Ressalta-se que esse urbano está constantemente submetido a coações e encontra-se


corroído e esvaziado de sentido, perdendo seus traços e suas características de obra e
apropriação, como um todo do qual se faz parte e se contribui para a permanente cons-
trução. Lefèbvre (2001, p. 83) atribui esse fato aos efeitos da comunicação em massa e do
uso do automóvel e da mobilidade, que dissolveriam a vizinhança e o bairro através da
separação dos indivíduos e dos grupos de seus lugares e territórios de origem ou vin-
culação. Converte-se, assim, em lócus de uma vida cotidiana fragmentada em trabalho,
transporte, vida privada e lazeres, estando repleta de indivíduos dissociados, deslocados
e afastados de uma “apropriação da materialidade” (Lefèbvre, 2001, p. 100) e de uma
prática cotidiana efetiva, como visto no passado. Certeau (1998, p. 174-5) corrobora essa
teoria, afirmando que “talvez as cidades se estejam deteriorando ao mesmo tempo que

49
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

os procedimentos que as organizaram”, de modo que busca outro caminho de análise


sobre elas ao debruçar-se sobre “as práticas microbianas, singulares e plurais, que um
sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento”.
Nesse cenário, Lefèbvre (2000, p. 234-5) discorre sobre a reapropriação de espaços
que se encontrem sem utilização ou com sua finalidade inicial desviada, podendo ser
retomados, ressignificados e ter seus usos alterados para incentivar sua ocupação pela
comunidade. Sugere que esse processo sirva de ensinamento para a produção de novos
espaços, levando sempre em consideração suas devidas adequações morfológicas a
outros usuários. Assim como Harvey, por fim, questiona a necessidade do surgimento
de movimentos bruscos, como revoluções (exemplifica com os movimentos estudantis
franceses em 1968), para gerar mudanças no espaço existente, na forma de um destruir
para construir, que acabaria minimizando “as contradições da sociedade e do espaço
existentes” (Lefèbvre, 2000, p. 89).
Destaca-se, agora, o papel da arte nesse contexto e sua capacidade de restituir o
“sentido da obra” por conter em si própria esse mesmo sentido, oferecendo “múltiplas
figuras de tempos e de espaços apropriados”, a exemplo da apropriação espacial provo-
cada pela pintura e escultura (Lefèbvre, 2001, p. 123). No caso da cidade de Goiás, as telas
de artistas plásticos como Goiandira do Couto (Figura 10) e Di Magalhães e as poesias de
Cora Coralina podem ser exemplos dessa questão.
Lefèbvre (2001, p. 124) concebe a arte como “capacidade de transformar a realidade,
de apropriar ao nível mais elevado os dados da ‘vivência’, do tempo, do espaço, do corpo
e do desejo”. Traz, então, o conceito de “centralidade lúdica” como meio de “restituir o
sentido da obra trazido pela arte e pela filosofia”, atualmente perdido, dando ao tempo
prioridade sobre o espaço, ainda que um se aproprie do outro. Sugere que se estimule
a existência de espaços lúdicos em quantidade e qualidade, “superando (ao reunir) uso
e troca” (Lefèbvre, 2001, p. 132), de modo a gerar para as pessoas da cidade movimento,
imprevisto e encontros. Enfim, na forma do patrimônio cultural, por exemplo, “os tem-
pos-espaços tornam-se obra de arte e que a arte passada é reconsiderada como fonte e
modelo de apropriação do espaço e do tempo”, como “qualidades temporais inscritas
em espaços” (Lefèbvre, 2001, p. 134).

50
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 10: Artista plástica Goiandira do Couto retratando a cidade. Fonte: Cidinha Couti-
nho.

Monseratt Vellasco e Cidinha Coutinho, respectivam.

Nesse contexto em que a arte é vista como forma de apropriação, retoma-se Certeau,
que apresenta a cultura e a literatura populares como outros exemplos de práticas/artes
cotidianas, entendendo-as como “consumos combinatórios e utilitários”, maneiras de
pensar aplicadas ao agir, enfim, uma “arte de combinar indissociável de uma arte de
utilizar” (Certeau, 1998, p. 42). Em oposição à cultura erudita, que articula conflitos e
“legitima, desloca ou controla a razão do mais forte”, as manifestações culturais popu-
lares buscam um equilíbrio simbólico em meio às tensões e à violência corrente, através
de uma “politização das práticas cotidianas” (Certeau, 1998, p. 45). A extensa produção
de artesanato em cerâmica, retratando temáticas relativas ao patrimônio cultural e às
tradições locais na cidade de Goiás (como as lavadeiras no Rio Vermelho e os antigos
tropeiros desfilando pelas tortuosas ruas locais com seus cavalos e mulas), destinada
ao consumo turístico, ilustram bem o conteúdo dos imaginários urbanos observados
na região (Figuras 11 e 12).

O FATOR PATRIMÔNIO CULTURAL

Aproxima-se, por fim, da questão patrimonial a partir da tese de João Villaschi,


que define as apropriações como exercícios da cidadania, destacando a necessidade de
uma problematização mais aprofundada desta categoria de análise, vista aqui simplifi-
cadamente como um maior acesso e possibilidade de fruição por parte da população de
Ouro Preto-MG (seu objeto de estudo) de seus espaços patrimonializados. Adverte para as
dificuldades trazidas pela “refuncionalização progressiva das cidades remanescentes do
passado colonial brasileiro” (Villaschi, 2014, p. 29), que alterou e reduziu as possibilidades

51
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de apropriação comunitária de seus centros históricos e práticas socioculturais em seus


territórios. Isso se agrava com a tutela exclusiva do patrimônio pelo poder público, que
não oferece meios de participação ou estímulos efetivos a essas apropriações, gerando
o que Castriota (2009) denomina de “ensimesmamento” da sociedade. Em um contexto
ampliado, Lefèbvre (1999, p. 165) chama esse fenômeno de passividade ou “silêncio dos
usuários”, tema aprofundado por Certeau e Foucault, conforme verificado acima.
Ampliando a noção de apropriação do patrimônio, Villaschi explicita suas diferentes
formas, sempre vinculadas à “compreensão básica da simbologia impressa no espaço
e da atitude social para com o território e o legado cultural”, de modo que, quando se
efetivam, podem ser bastante inclusivas para a comunidade afastada desses direitos à
cidade patrimonializada. Toma-se como exemplo as festas urbanas tradicionais, como
a procissão do Fogaréu ocorrida na cidade de Goiás, na qual a comunidade e visitantes
percorrem as ruas do centro histórico seguindo os farricocos com suas tochas de fogo
na Semana Santa. Para Lefèbvre (1999, p. 31), ainda pode haver uma “aparência caricata
de apropriação” nesses processos, já que o poder que gere as cidades as “autoriza” como
licenças livres de uso dos espaços públicos, sem que se constituam “verdadeira apropria-
ção”. Villaschi (2014, p. 115) aponta também formas de apropriação espacial cotidiana,
que vêm se perdendo com o tempo e a modernidade, como as brincadeiras de rua.

Figura 13: Tradicional Procissão do Fogaréu pelas ruas da cidade de Goiás, 2015. Fonte: Jornal
Populacional.
Figura 14: Registro das extintas Cavalhadas na cidade de Goiás, 1913 . Fonte: Cidinha Coutinho.

Castro (2012, p. 39) introduz a questão conflituosa das diferentes formas de apro-
priação dos bens culturais pelas populações locais, gestores e consumidores, sobretudo,
em locais com forte caráter turístico e segregacionista, remetendo aos enfretamentos
e disputas em relação aos usos dos espaços sociais e culturais trazidos por Lefèbvre e
Harvey. Além dos estranhamentos e não reconhecimentos de parte da sociedade local
acerca do patrimônio que a cerca, no que Villaschi (2014, p. 161) chama de “descolamento”
da comunidade de suas raízes, “sobretudo quando a história de vida da população atual

52
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

se diferencia da história do lugar onde vive”, sem o estabelecimento de apropriações


simbólicas, fundamentais para a criação de vínculos afetivos e identitários.
Conclui-se destacando a importância das apropriações coletivas dos espaços públi-
cos patrimonializados e de seu estímulo e perpetuação para alcançar as próximas
gerações, de modo a consolidar uma preservação do patrimônio histórico e cultural
consistente. Como visto, a cidade de Goiás ainda apresenta muitas dessas apropriações
vivas e persistentes, além de fortes vínculos afetivos da comunidade com o seu lugar,
contando com sua participação efetiva e engajada em iniciativas de proteção do centro
antigo, ainda que se verifiquem constantes e complexos conflitos entre os diversos atores
nesse cenário. Assim, ela torna-se um destacado exemplar para análise mais aprofundada
desses processos, visando a compreensão de suas formas de funcionamento e estrutu-
ração, e em busca de registrá-los e tentar, com isso, perpetuá-los no tempo, também com
o objetivo de contribuir para a salvaguarda do patrimônio local.

53
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

CASTRIOTA, Leonardo Barci. Patrimônio cultural: conceitos, políticas,


instrumentos. São Paulo: Annablume, Belo Horizonte: IEDS, 2009.

BORGES, Debora Garreto. Vivências e sentido de lugar:


apropriações no espaço livre público. Tese (Doutorado – Programa de Pós-
Graduação em Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2017, 262 p.

CASTRO, Bernadete. Patrimônio cultural plural e singular: a dupla face da mesma


moeda. In: COSTA, E. B. da; BRUSADIN, L. B.; PIRES, M. C. Valor patrimonial e
turismo: limiar entre história, território e poder. São Paulo: Outras Expressões,
2012, p. 37-45.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano


1998.

CORALINA, Cora. Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. São Paulo: Círculo
do Livro, 1989.

Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São


Paulo: Martins Fontes, 2014.

A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.

____. A produção do espaço


Éditions Anthropos, 2000.

____. O direito à cidade. Trad. de Jeferson Camargo. São Paulo: Centauro, 2001.

____. Espaço e Política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.

Hermenêutica do patrimônio e apropriação do


território em Ouro Preto - MG. Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação

Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014.

54
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ARTE E CIDADE NAS


ESCOLAS DO DISTRITO
FEDERAL
ART AND CITY IN THE SCHOOLS OF THE FEDERAL
DISTRICT

ARTE Y CIUDAD EN ESCUELAS DEL DISTRITO


FEDERAL
EIXO TEMÁTICO: Patrimônio, escalas e processos

SOLÉ, Julia Mazzutti Bastian


Mestranda em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo no Programa de Pós-
-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília
julia.mazzuttimbs@gmail.com

PEIXOTO, Elane Ribeiro


Doutora; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília
elane26rp@gmail.com

55
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Este artigo busca a abordar de maneira breve o enfrentamento de questões metodológicas do
ensino artístico na educação básica no Distrito Federal, pensando a partir da perspectiva da
localidade e da inserção da história e vivência urbanas. Diante da questão da central da pesquisa,
que consiste em buscar conhecer meios, linguagens e processos que tornem a educação artística
interesse para os alunos do ensino básico brasileiro. A presente investigação é elaborada a partir
de uma análise do projeto educacional de Brasília de Anísio Teixeira, olhando também para
as diretrizes curriculares e outros documentos oficiais que pautam os conteúdos e atividades
ministrados nas disciplinas de artes, de forma a identificar como o ensino artístico tem sido
tem sido tratado, da década de 1950 aos dias de hoje. Somado a isso, apresenta-se a trabalho de
campo realizado pela pesquisadora em uma escola de ensino fundamental em Ceilândia. Essa
experiência constitui fonte de pesquisa uma vez que permite avaliar como o plano de Anísio
Teixeira evoluiu ao longo do tempo e alcançar criticamente proposições e verificações de resulta-
dos de materiais didáticos e atividades elaborados visando a história e a vivência urbana local.

PALAVRAS-CHAVE: Arte e Educação. Experiência. Ceilândia. História Urbana. Metrópole Brasília.

A BSTRACT
This article seeks to discuss the confrontation of methodological questions of artistic
education in basic education in the Federal District, thinking from the perspective
of locality and the insertion of urban history and experience. Based on the central
question of the research that consists in seeking to know the means, languages and
processes that make artistic education an interest for Brazilian elementary school
students. The present research is based on an analysis of the educational project of
Brasília by Anísio Teixeira, also looking at the curricular guidelines and other official
documents that guide the contents and activities taught in the arts disciplines, in order
to identify how artistic education has been treated, from the 1950s to the present
day. In addition to this, a fieldwork conducted by the researcher at a primary school
in Ceilândia is presented. This experience is a source of research since it allows us to
evaluate how Anísio Teixeira’s plan evolved over time and critically reach propositions
and verifications of results of didactic materials and activities elaborated considering
the local history and urban experience.

KEYWORDS: Artistic education. Experience. Ceilândia. Urban History. Metropolitan


Brasília.

56
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
A partir de esta página, Este artículo busca abordar brevemente la confrontación de los pro-
blemas metodológicos de la educación artística en la educación básica en el Distrito Federal,
pensando desde la perspectiva de la localidad y la inserción de la historia y la experiencia
urbana. Frente a la pregunta del centro de investigación, que consiste en buscar conocer los
medios, los lenguajes y los procesos que hacen que la educación artística sea de interés para
los estudiantes de educación básica brasileña. La presente investigación se basa en un aná-
lisis del proyecto educativo en Brasilia por parte de Anísio Teixeira, que también analiza las
pautas curriculares y otros documentos oficiales que guían los contenidos y actividades que
se enseñan en las disciplinas artísticas, con el fin de identificar cómo la enseñanza artística
ha sido tratado, desde la década de 1950 hasta la actualidad. Además de esto, se presenta con
el trabajo de campo realizado por el investigador en una escuela primaria en Ceilândia. Esta
experiencia constituye una fuente de investigación, ya que nos permite evaluar cómo el plan
de Anísio Teixeira ha evolucionado con el tiempo y alcanzar propuestas críticas y verificar los
resultados de los materiales didácticos y las actividades diseñadas con vistas a la historia local
y la experiencia urbana.

PALABRAS-CLAVE: Arte y educación. Experiencia. Ceilândia. Historia urbana. Metrópolis Brasília.

INTRODUÇÃO

Este artigo busca a abordar de maneira breve o enfrentamento de questões meto-


dológicas - instrumentais e de conteúdo - do ensino artístico na educação básica do
Distrito Federal, pensando a partir da perspectiva da localidade e da inserção da história
e vivência urbanas.
O trabalho é elaborado em um recorte da proposta prévia de estruturação da
dissertação de mestrado em curso. A proposta sustenta-se na questão central de buscar
conhecer meios, linguagens e processos que tornem a educação artística interessante
para os alunos do ensino básico brasileiro[1]. Ressalta-se que a pesquisa se apoia na
premissa de que a formação tradicional da educação artística, respaldada na história

[1] O sistema educacional brasileiro é dividido em Educação Básica e Ensino Superior. A


Educação Básica, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - 9.394/96), passou
a ser estruturada por etapas e modalidades de ensino, englobando a Educação Infantil, o
Ensino Fundamental obrigatório de nove anos e o Ensino Médio. (Secretaria da Educação do
Paraná, 2018.)

57
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

das artes de movimentos e referências individuais, deve ser questionada a partir do


lugar de vivência e fala desses estudantes, e referenciada no histórico e nos processos
urbanos contemporâneos das cidades nas quais as escolas estão inseridas. Como nos
ensina o poeta:

Da minha aldeia, vejo quanto da terra se pode ver do Universo...


Por isso minha aldeia é tão grande como outra qualquer,
Porque eu sou do tamanho do que vejo
E não do tamanho da minha altura...
Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos
A presente investigação foi feita a partir de uma análise do plano educacional de
Brasília elaborado por Anísio Teixeira, olhando também para as diretrizes curriculares
e outros documentos oficiais que pautam os conteúdos e atividades ministrados nas
disciplinas de artes, de forma a identificar como o ensino artístico tem sido tem sido
tratado, da década de 1950 aos dias de hoje. Somado a isso, apresenta-se o trabalho de
campo realizado pelas pesquisadoras em uma escola de ensino fundamental em Ceilân-
dia. Essa experiência constitui fonte de pesquisa uma vez que permite avaliar como o
Plano de Anísio Teixeira foi aplicado e modificado ao longo do tempo, e também alcançar
criticamente proposições e verificações de resultados de materiais didáticos e atividades
elaborados visando a história e a vivência urbana local.

Brasília foi concebida como uma cidade modernista, reunindo em seu plano uma
ruptura na forma das cidades tradicionais como resposta aos problemas de circulação e
organização espacial que os novos sistemas econômico, social e político impunham. As
soluções surpreendentes de seus edifícios e eixos consolidava-se em meio à um projeto
otimista de modernização. Esse espírito inovador mostrava-se nos diversos planos de
seus idealizadores, entre eles o plano educacional, visto como “(...) a oportunidade, a
esperança de uma educação mais democrática e coerente com nossas necessidades e
com as ideias de uma “educação criadora[2].” (DUARTE, 2011, p.22)

[2] Educação criadora: termo utilizado por Maria de Souza Duarte em seu livro A Educação
pela Arte – O caso de Brasília. Designa um conceito de educação onde a escolarização iria além
das atividades curriculares tradicionais, sendo complementada com atividades socializantes,
recreativas e artísticas. Nota da autora.

58
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A partir do final da década de 1950, formulam-se inúmeras discussões sobre a


educação brasileira, “que tinham continuidade em questionamentos sobre a ideologia,
conteúdos e métodos que alimentavam o sistema de educação que nos foi legado pelos
jesuítas.” (DUARTE, 2011, p.21). Essas conversas possuem alguns pontos em comum,
como o ideal de desenvolvimento da consciência social de cada um e a compreensão de
pertencimento social; e a crença de que essa “educação criadora” possibilitaria melhor
raciocínio, formulação de conceitos, desenvolvimento de ideias abstratas, ordenação de
experiências, estímulo à criatividade, motivação para a participação social consciente.
Partindo desses ideais e das mudanças na sociedade decorrentes de relações econômi-
cas, sociais, culturais e pedagógicas que interferem na educação, temos um interesse de
mudança no qual alguns educadores propuseram, segundo Mosaner e Store :
Uma escola pública, laica e gratuita como meio de combater ou mini-
mizar as desigualdades sociais, divulgam o Manifesto da Escola Nova,
em 1932. Entre os assinantes desse documento encontramos educadores
importantes como Anísio Teixeira (1900-1971), Fernando de Azevedo
(1894-1974) e Cecília Meirelles (1901-1964). (MOSANER & STORE, 2007,
p. 147)
No Distrito Federal, esses debates educacionais dos ‘novos tempos’ se materializam
no Plano Educacional de Anísio Teixeira, de 1956. O Plano para a nova capital federal
considera as transformações do momento e entende a educação como articulador entre
sociedade, cultura e desenvolvimento em uma realidade concreta e contemporânea que
se concretizava em Brasília. Dessa forma, é possível perceber nesse momento em Brasília,
a cidade como recurso educacional, considerado e incluso em atividades socializantes
e artísticas.
Sob os preceitos do movimento da Escola Nova e embasado em experiências em
educação que realizou em cargos públicos na Bahia e no Rio de Janeiro, o professor
Anísio Teixeira elabora na década de 1950, de forma articulada ao plano urbanístico da
cidade, o Plano Educacional de Brasília, ou Plano das Construções Escolares de Brasília.
O projeto para a educação na nova capital tinha sua concepção pedagógica composta
por Escola Parque e Escola-Classe, conforme modelo já praticado por Anísio Teixeira na
Bahia, e “atendia a demanda de preparar a criança para a vida moderna e, sobretudo,
para uma sociedade em mudança.” (TEIXEIRA, 1956). Previa atendimento escolar em
diferentes níveis: elementar, médio e superior, para funcionarem de forma integrada.
Segundo Teixeira,
O plano de construções escolares para Brasília obedeceu ao propó-
sito de abrir oportunidade para a Capital do país oferecer à nação um

59
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

conjunto de escolas que pudessem constituir exemplo e demonstração


para o sistema educacional do país. Indo desde o primário até o nível
superior o plano consiste... num conjunto de edifícios, com funções
diversas e considerável variedade de formas e de objetivos, a fim de
atender a necessidades específicas de ensino e educação e, além disso, à
necessidade de vida e convívio social. (TEIXEIRA, 1960, p.2)
Era um modelo de educação que seguia as teorias educacionais modernas, que
embasavam o currículo escolar, composto por diferentes áreas do conhecimento, como
leitura, aritmética, escrita, ciências físicas e sociais, artes industriais, desenho, música,
dança e educação física, visando a formação do indivíduo para a civilização técnica e
industrial.” (Museu da Educação do Distrito Federal, 2018). Propunha uma educação que
priorizasse o raciocínio, o fazer, a autonomia de pensar e agir, a experimentação. Duas
premissas distinguiam a escola pensada por Anísio Teixeira das escolas tradicionais: a
necessidade de o homem indagar e resolver por si os seus problemas e que se reconhe-
cesse como integrante de um mundo em transformação.
As diretrizes elaboradas por Anísio Teixeira apontam para um sistema educacional
igualitário oferecido em escolas públicas que visassem estabelecer um vínculo indissoci-
ável entre ensino e realidade social e econômica, substituindo uma educação “verbalista”
e “artificial”. (Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, 1932) Portanto, esta educação
pensada para ser integral prepararia os jovens para o mundo produtivo e para os desafios
da vida. A proposta para a educação das crianças da nova capital integrou-se muito bem à
própria estrutura espacial da cidade, ao conceito de unidade de vizinhança formulado por
Clarence Perry e que determinava os ritmos da vida cotidiana. A unidade de vizinhança
é em síntese um módulo espacial urbano composto por habitações, comércio vicinal e
oferta de equipamentos necessários a vida do dia a dia. Entre esses equipamentos, as
escolas de ensino infantil, fundamental e médio ajustavam-se em termos de distância
de tal forma que seus estudantes tivessem autonomia no seu ir e vir. Essas distâncias e
o tamanho das escolas eram determinados pelo grau de maturidade das crianças, indo
das escolas menores mais próximas às unidades habitacionais, destinadas aos pequenos,
aos maiores, com escolas cujo número de vagas abrangia a população jovem de uma
unidade de vizinhança inteira. A escola significava uma mudança de orientação e con-
ceito pedagógicos, e tinha continuidade na proposição de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro
para a Universidade de Brasília. A concepção de estudos conjuntos nos anos iniciais das
formações profissionais era um esforço para romper as amarras disciplinares e oferecer
aos estudantes uma formação mais abrangente e humanística.

60
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O Plano de Anísio Teixeira foi implantado na capital federal e sofreu inúmeras


modificações e adaptações ao longo dos anos. O aumento populacional, novas teorias
e demandas impõem-se, mas não são capazes de ignorar a marca intelectual e espacial
da educação no projeto da capital, com superquadras e novos bairros que se estrutu-
ram a partir de uma escola. A estrutura escolar da Brasília atual, composta por regiões
administrativas e territorialidades que ultrapassam o Plano Piloto de Lucio Costa em
todos os sentidos, demonstram que o Plano das Construções Escolares de Anísio Teixeira
permanece no conjunto Distrito Federal como uma estrutura física e de categorização -
escola-parque, escola-classe, por exemplo - mais do que como um conjunto de construções
aliados a um projeto pedagógico, como concebido por Anísio Teixeira na década de 1960.
Isto posto, pesquisar e analisar a educação, sobretudo a educação artística no Dis-
trito Federal de hoje, demanda a compreensão das intenções que permearam o plano
educacional desde a concepção da capital, mas também o entendimento das mudanças
morfológicas, sociais e urbanas que se desenvolveram nos últimos cinquenta anos ao
lado das escolas que se expandiram em novos territórios e conformações sociais de uma
Brasília metrópole. Diante de novas configurações, necessita-se de novas formulações e
instrumentos capazes de pensar as premissas de reconhecimento e integração propos-
tos por Anísio Teixeira de maneira atualizada, retomando a cidade (ou aS cidadeS que
formam a Brasília atual) enquanto recurso educacional.

AS DIRETRIZES PARA ENSINO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO BÁSICA

(...) Descentralização administrativa e autonomia (da escola e de seus


agentes); o reconhecimento do educando (pela percepção de que o pro-
cesso educativo é, também, um processo individual); o conhecimento
da cultura regional (que se insere na própria identidade da escola); e, a
atenção para a fase de desenvolvimento em que se encontrava a cultura
nacional. (XAVIER, 2000, p. 45.)
Os Parâmetros Curriculares Nacionais indicam como objetivos do ensino
fundamental que os alunos sejam capazes de (...) conhecer e valorizar
a pluralidade do patrimônio sociocultural brasileiro; (...) utilizar as
diferentes linguagens — verbal, musical, matemática, gráfica, plástica e
corporal — como meio para produzir, expressar e comunicar suas ideias,
interpretar e usufruir das produções culturais, em contextos públicos e
privados, atendendo a diferentes intenções e situações de comunicação;
perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente,
identificando seus elementos e as interações entre eles. (MEC, 1998, p.7)

61
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O primeiro trecho destaca algumas das ideias centrais que sintetizam a atuação na
educação nacional e no Distrito Federal de Anísio Teixeira nas décadas de 1950 e 1960. O
segundo coloca parte dos objetivos dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Arte
no Ensino Fundamental, as quais regulam o ensino básico brasileiro atualmente. O
texto de Anísio Teixeira demonstra caráter inovador no sentido de ampliação do acesso
à educação e discussão de temas até então incomuns aos conteúdos básicos do ensino
básico. As diretrizes de 1998 reafirma em âmbito nacional uma série de formulações de
pluralidade cultural (MEC, 1998, p.9) e práticas pedagógicas que envolvem novos temas
e maneiras de abordagem. Educação ambiental, consciência política, regras de trânsito,
entre outros. Muitos desses temas originaram pesquisas e experiências práticas que
conduzem de forma cada vez mais embasada o despertar da conscientização, seguida de
ações e mudanças de mentalidade. A educação artística entra igualmente nesse campo de
explorações práticas e intelectuais recentes, indo desde pesquisas e desenvolvimento de
teorias, materiais didáticos e reflexões mais aprofundadas e integradas com a realidade
social circundante, até atividades e programas escolares.
Contudo, é preciso entender o histórico da arte e educação no Brasil no período
analisado, assim como as legislações que regem o ensino artístico atual de forma a
ultrapassar as formulações conceituais em direção às aplicações práticas. Isso porque,
apesar de aparente relevância nas políticas públicas, a educação artística entendida, de
modo geral, como uma prática com potencial emancipatório para a vida cultural e social,
enfrenta grandes desafios. Ações recentes como a reforma nacional do ensino médio[3] e
a militarização das escolas públicas no Distrito Federal[4] impõem uma condição em que
a formação técnica parece sobrepor-se à humanística, com um ensino exclusivamente

[3] Reforma do Ensino Médio: Lei 13.415/2017 – “Altera as Leis nºs 9.394, de 20 de dezembro
de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho
2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de

[4] O atual governador do Distrito Federal anunciou um plano de militarização das escolas
públicas do DF. Quatro escolas foram selecionadas para que suas gestões sejam compartilhadas
por militares. Como esclarece Max Maciel, consultor da rede Urbana de Ações Socioculturais, a
opção pela militarização das escolas é veiculada de forma a sugerir que elas seriam equipará-
veis aos colégios militares, prestando-se a supor uma melhoria de qualidade do ensino. Mas,
isto não se dá no real. As escolas militares contam com orçamento superior ao das escolas

submeter-se a um rigoroso exame, para o qual os adolescentes se preparam por quase todo um

de educação e não da polícia militar. (RIBEIRO, 2019)

62
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

técnico e consequente amputação de parte da dimensão humana. Frente a isso, ressal-


ta-se a imprescindibilidade de pensar este tipo de formação. Em um momento nacional
de intensas modificações e pressões políticas, a educação deve agir pela consciência de
desejos e direitos, de forma a superar a pedagogia das certezas e a lógica da exclusão.
A arte e educação começa a ser discutida como termo e conceito a partir de 1930 na
Inglaterra, com as ideias da Pedagogia Libertária proposta pelo filósofo Herbert Read.
No Brasil, a discussão ganha força principalmente a partir de 1980, e é consolidada em
termos legais e conceituais no Brasil a partir das formulações da arte-educadora Ana
Mae Barbosa, que propõe a Abordagem Triangular[5] e formaliza o termo Arte-Educação.
De acordo com Read, a arte deveria ser a base de toda a educação. Considerando o foco
da pesquisa de entendimento e aplicação nas práticas educacionais do Distrito Federal,
as quais são regulamentadas a nível federal, traça-se um breve histórico da educação
artística no país a partir de 1950.
No início do século XX, surge o ideário da Escola Nova, influenciado por Dewey,
Decroly e Claparède. A inclusão da arte na escola primária foi discutida de maneira
acirrada, não como disciplina a ser ensinada, mas como forma de expressão, contando
com proposições como o ensino regular de música nas escolas. As décadas de 1940 e 1950
marcam o surgimento do Movimento das Escolinhas de Arte na cidade de São Paulo,
baseado nas propostas de uma Educação pela Arte de Herbert Read e Viktor Lowenfeld,
com o objetivo desenvolver a capacidade criadora da criança, visando ao seu desenvol-
vimento estético.
A década de 1960 foi marcada pelo imaginário da modernização do país: a inaugu-
ração de Brasília e os planos modernistas que iam do urbanismo ao ensino provocaram
transformações significativas no país. Foram feitas mudanças no currículo em relação
ao ensino de arte com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira n. 4024 de 20 de
dezembro de 1961, segundo Ferraz e Fusari (2009, p. 50) “a arte deixa de ser compreendida
como um campo preferencial de saberes sistematizado e, como as demais, tornam-se uma
prática para aprimorar a personalidade e hábitos adolescentes”. Dez anos depois veio à
lei, LDB nº 5692/71 com ela o ensino das outras linguagens da arte, como as disciplinas de
música, artes plásticas, artes cênicas e desenho, é excluído e o ensino de arte passa a ser
nomeado como Educação Artística, sendo obrigatória no currículo escolar do 1º e 2º grau.

[5] Proposta Triangular ou Abordagem Triangular, desenvolvida em 1987. Consiste em três


abordagens para se construir conhecimentos em arte: a contextualização histórica; o fazer
artístico; e a apreciação artística. Segue até os dias atuais como base da maioria dos progra-
mas em arte-educação no Brasil, principalmente depois de ter sido referência nos Parâmetros
curriculares nacionais de Arte dos Ensinos Fundamental e Médio brasileiros.

63
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Embora a citada lei enfatizasse o processo expressivo e criativo dos alunos, em si


ela tornou–se mais tecnicista. Os programas eram inadequados e quase sempre enfa-
tizavam o uso da técnica pela técnica, sequer percebendo a dimensão própria da arte.
Em consequência desse período entre pedagogia novista e tecnicista, no final da década
iniciada em 1970 surgiu o movimento de Arte–Educação, com o objetivo de repensar a
função da arte na escola e na vida das pessoas. (ELLWANGER, 2011, p.11). Novas discussões,
estudos, pesquisas e ações uniam-se no sentido de uma consciência mais reflexiva sobre
o encaminhamento filosófico e metodológico para o ensino de Arte. (MOMOLI, 2018.)
Em 1980, as associações de professores em vários estados brasileiros estrutura-
ram–se, criando a Federação das Associações de Arte–Educadores do Brasil–FAEB -,
movimento que formulava discussões sobre o ensino artístico no Brasil, paralelo à
legislação oficial. Em 1988, a Constituição da Nova República menciona cinco vezes as
artes no que se refere a proteção de obras, liberdade de expressão e identidade nacional.
Na Seção sobre educação, artigo 206, inciso II, determina: “O ensino tomará lugar sobre os
seguintes princípios (...). II — Liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e disseminar
pensamento, arte e conhecimento.”
A partir da década de 1990, as discussões sobre o ensino das artes nas escolas,
assim como a preocupação em incluir outras narrativas que não as canônicas nesses
conteúdos tomam forma e vão sendo incluídas nos documentos federais e locais que
estabelecem as diretrizes curriculares. Nesse momento surgem leis que fomentam uma
melhoria para o ensino de arte. Uma delas é a Diretrizes e Bases da Educação Nacional
Lei nº 9.394 (Brasil, 1996) e novas abordagens pedagógicas, como a Proposta Triangular,
surgem voltados para uma educação em arte mais atualizada. (NEVES & SILVA, 2009, p.2)
As atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Básico, definidas pelo
Ministério da Educação em 2013, estabelecem a Educação Artística como componente
curricular obrigatório e afirmam como um dos norteadores de suas ações pedagógicas “os
Princípios Estéticos da Sensibilidade, da Criatividade, e da Diversidade de Manifestações
Artísticas e Culturais” (MEC, 2013, p.35). Essa regulamentação demonstra, entre outras
coisas, os entendimentos sobre a educação artística nas escolas.
Paralelamente a toda essa questão, houve avanços em termos teóricos–metodo-
lógicos em se tratando do ensino de Arte. Cursos em nível de pós-graduação crescem
no Brasil, com um número maior de pessoas refletindo sobre a Arte e seu ensino. Duas
grandes tendências, não excludentes, têm sido motivo de reflexões e geradoras de bons
resultados: de um lado, uma que trata de estética do cotidiano, como forma de melhor
apreensão da realidade por meio da alfabetização estática; de outro lado, uma postura
pedagógica cultural, na qual a leitura, a produção artística e a contextualização são

64
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

áreas de conhecimento que fundamentam a compreensão histórico-cultural dos alunos.


(ARTE EM ESTUDO, 2019.)
A preocupação atual em incluir narrativas plurais na educação e a importân-
cia da educação artística manifestam-se também em órgãos públicos e privados que
demonstram o interesse em ações nesse sentido, como se constata na Portaria n. 137,
2016 do IPHAN, que consolida as diretrizes da educação patrimonial; museus; centros
culturais e ações educativas promovidas por empresas, tais como o Banco do Brasil e o
Banco Itaú. Para o IPHAN, essas ações educativas são “prática transversal aos processos
de preservação e valorização do patrimônio cultural. ” (IPHAN, 2016, p.2) Entre eles está
a diretriz que afirma: “os processos educativos deverão primar pelo diálogo permanente
entre os agentes sociais e pela participação efetiva das comunidades. ” (IPHAN, 2016, p.3).
No Distrito Federal, o sistema educacional surge junto à nova capital em 1960. O
Plano de Anísio Teixeira permitiu que a configuração educacional de Brasília incluísse
atividades e conteúdos focados nas questões identitárias e sociais, com grande foco na
arte e nas formulações criativas e críticas por ela promovidas. A construção das esco-
las – escola-classe, escola parque, centro de ensino médio, foi consolidada e configura
o sistema atual de ensino na cidade, em especial no Plano Piloto e em algumas regiões
administrativas. Contudo, em especial a partir de 1964, as diretrizes para a educação
básica no Distrito Federal seguem as regulamentações a nível nacional. Atualmente, a
Secretarias Regional de Educação do Distrito Federal apresenta a Base Nacional Comum
Curricular como “documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e
progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo
das etapas e modalidades da Educação Básica. ” (SEDF, 2019.) Somado a esse documento
base, a Secretaria elabora continuamente, junto às Coordenações Regionais de Ensino,
cadernos, guias, diretrizes e materiais pedagógicos de acordo com a região administrativa
na qual a escola está inserida.
A inclusão dos saberes artísticos e culturais a partir das perspectivas urbanas
mostra-se atual e necessária. Em Brasília - entendida aqui como metrópole, englobando
Plano Piloto e todas as regiões administrativas - essa afirmação ganha ainda mais força
diante do histórico da educação na capital, com um plano educacional inovador e feito
em conjunto com as formulações urbanísticas da cidade. A elaboração desta pesquisa
objetivando o olhar sobre o desenvolvimento do processo educacional no Distrito Federal,
referenciado nos conceitos de arte participativa e educação criadora, possibilita análi-
ses e futuras compreensões para a incorporação entusiástica do saber local e urbano,
em uma sequência de escolhas de conteúdo, exposição e intersecção que demonstrem
e reforcem as conexões afetivas e a consciência sobre a importância do lugar e de suas

65
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

expressões. A produção e o desenvolvimento criativos demandam uma base identitária


reconhecida e reconhecível. A investigação teórica e prática sobre o ensino artístico no
Distrito Federal torna-se assim possibilitador de análises e futuras compreensões para
a incorporação entusiástica do saber local, em uma sequência de escolhas de conteúdo,
exposição e intersecção que demonstrem e reforcem as conexões afetivas e a consciência
sobre a importância do lugar e de suas expressões.

PENSANDO O ENSINO DAS ARTES A PARTIR DA MINHA CIDADE

O Plano Piloto de Brasília reúne desde a sua concepção um importante legado


das primeiras horas da construção da cidade, incluído nesse um acervo que contempla
parcela significativa da história da arte brasileira da segunda metade do século XX. A
ambição do movimento moderno de integração de todas as artes congregou pintores,
escultores e arquitetos trabalhando conjuntamente, legando à cidade obras integradas
aos edifícios, obras autônomas, mobiliários, jardins. Este conjunto artístico nos edifícios
monumentais da cidade ou nos prédios de habitação tornam Brasília um verdadeiro
museu urbano, um campo privilegiado para o estudo das artes. (RIBEIRO, 2018.)
Segundo Pereira e Rocha (2011, p. 32), para Anísio Teixeira, tudo se constituía em
um cenário favorável e as condições eram propícias para a implantação de um “sistema
de educação modular”. Na nova capital havia disponibilidade plena de espaços físicos
para a edificação dos complexos conjuntos escolares propostos pelo educador. (SOUZA,
2012, p.41) Contudo, a Brasília de hoje, metrópole em seus inúmeros e diversos territó-
rios, requer um olhar que extrapola o Plano Piloto, percebendo como outras regiões
administrativas firmaram-se em termos culturais e identitários ao longo dos últimos 40
anos, e constituem igualmente fonte de aprendizado em termos de expressões artísticas
locais. O sistema de educação modular idealizado à época da construção da cidade pode
foi aplicado em outros planos urbanísticos de cidades satélites que foram elaborados
logo em seguida, como é o caso de Ceilândia e Sobradinho. Nesses dois casos, a unidade
de vizinhança permanece como referencial conceitual e morfológico, sendo a unidade
articulada a partir do edifício escolar. No entanto, ao confrontarmos os planos político-
-pedagógicos das escolas do Distrito Federal de 2018 com o plano de Anísio Teixeira de
1956, percebe-se a replicação modular apenas em termos formais (físicos/estruturais)
e não pedagógicos.
Diante do contexto de formação da cidade de Brasília, assim como das características
urbanas expostas acima, olhar para a realidade educacional do Distrito Federal passa ine-
vitavelmente pelo projeto do Plano Piloto, em toda a sua amplitude, e pelas experiências
artísticas e educacionais empreendidas nesse território ao longo dos anos. No entanto,

66
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

a contemporaneidade desses temas implica avanços e transformações, morfológicas,


sociais e teóricas, as quais ultrapassam os limites de planos de Lucio e Anísio. No âmbito
da pesquisa e da realidade de ocupações das escolas, interessa entender o viver na cidade
fragmentada e poli nucleada, constituída no caso de Brasília, pelo Plano Piloto, e suas
muitas regiões administrativas (cidades satélites). Entre as atuais 31 cidades-satélites
do DF, o caso de Ceilândia é expressivo em relação à importância histórica e atual dos
núcleos escolares, assim como das expressões artísticas locais. Esta cidade-satélite foi
construída nos anos 1970, quando a capital contava com 10 anos de existência. Seu apa-
recimento deveu-se à Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), promovida durante
o governo de Hélio Prates. A intenção era remover da proximidade do Plano Piloto de
Brasília as ocupações informais instaladas durante sua construção. A população resi-
dente nessas ocupações compunha-se de trabalhadores e de migrantes que se dirigiram
à nova cidade em busca de melhores oportunidades. Para garantir a integridade do plano
urbanístico de Lucio Costa, o governador Prates, com a colaboração de uma equipe de
assistentes sociais e técnicos, transferiu uma população de cerca de 80.000 pessoas para
a nova cidade satélite distante 30 quilômetros da sede governamental. (RIBEIRO, 2018.)
O plano urbanístico de Ceilândia é inspirado no Plano Piloto de Lucio Costa, com
dois eixos orientados nos sentidos Norte-Sul e Leste-Oeste, ao longo dos quais se orga-
nizam unidades de vizinhança, cada uma dotada de escolas, comércio vicinal e templos
religiosos. (RIBEIRO, 2018.) Nas primeiras fotografias da cidade, observa-se o desenho de
vias e os edifícios escolares, solitárias presenças no meio de um esboço de cidade ainda
não saturada pelo tempo. Em boleias de caminhão, as famílias foram transferidas para
Ceilândia, devendo se responsabilizar pelas construções de suas moradias, na sua maio-
ria, realizadas com a madeira de suas antigas casas. A despeito da falta de estrutura, os
ceilandenses resistiram e construíram sobre a primeira cidade erguida de forma precária,
outra, em sólidos tijolos. Ao longo dos seus 47 anos, a cidade desenvolveu-se, tornando-se
aquela que concentra a maior parte da população do DF.
Ainda que recente, Ceilândia simboliza e encena as inúmeras histórias e territórios
que compõe a Brasília de hoje. A cidade é feita de muitas camadas de tempo e se oferece
à leitura. A encenação e compreensão desses códigos passam pela arte. Ao longo da his-
tória da arte a cidade sempre esteve presente, enquanto conteúdo ou mesmo suporte de
representação das obras e manifestações culturais. Como visto anteriormente, as legis-
lações e conteúdos programáticos que regem a educação artística nas escolas apoiam-se
em narrativa (s) histórica (s) para transmitir o conhecimento a seus alunos. Porém, em
meio a histórias parciais que são institucionalmente consolidadas, a parte do ensino
artístico que envolve a vivência, e consequentemente a cidade que só pode e deve ser

67
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

entendida em suas localidades e experiências dinâmicas e constantes, são esquecidas em


uma lacuna formada pela distância entre o que ensinado e o que é vivido pelos alunos
enquanto arte e cultura. Nesse sentido, a própria cidade torna-se conteúdo e prática
no ensino artístico de forma a tornar esse ensino mais eficaz e aplicado ao cotidiano.
Para isso, considerando a perspectiva histórica da arte e educação, assim como do
caso da educação em Brasília, parte-se do pressuposto do conceito participativo da arte,
ou seja, o entendimento da arte no sentido de que essa existe a partir e com a experiência
do expectador-participante, e é também entendida por meio da vivência diária e das
experiências compartilhadas entre professores, alunos e cidade.
Diante da dificuldade de envolvimento de crianças e jovens na educação básica,
em especial nos anos finais do ensino fundamental, e dos entendimentos prévios de
arte e educação criadoras e colaborativas, formula-se a pergunta: Como envolver esses
jovens de forma mais comprometida com a escola? Uma possível resposta expressa-se
na confiança de que o conhecimento se constrói a partir de vivências, sendo o lugar dos
sujeitos o ponto de partida para a exploração do mundo; acredita-se ainda que para
o envolvimento dos jovens com a escola, é imprescindível que os recursos e métodos
pedagógicos lancem mão de instrumentos e linguagens que lhes sejam contemporâneos,
tais como os meios audiovisuais, o acesso às redes de informação que lhes permitem a
ampliação de suas circunstâncias.
Ao considerar como referência o lugar dos estudantes, abrem-se possibilidades
para a discussão da cidade em seus aspectos históricos, nos seus acervos artísticos, na
constituição, defesa e transmissão de seu patrimônio cultural, na medida em que se
afirmam os laços afetivos e de pertencimento.
Nessa perspectiva, é possível congregar à essa ideia formulações como as utilizadas
no programa educativo do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMA) para pensar a
elaboração dessas atividades. O contato com a cidade apresenta “desafios significativos no
que diz respeito ao desenvolvimento tanto da percepção quanto da linguagem. ” (MoMA,
2019). Ao invés de simplesmente receber informação, os estudantes são encorajados
a se concentrar, olhar de perto e apresentar uma descrição colaborativa daquilo que
estão vendo. Por meio desse contato, os alunos são começam a desenvolver habilidades
relacionais; e a “criar a partir das observações, formulando questões e caminhando no
sentido de desenvolver suas próprias hipóteses ou interpretações a respeito da obra,
com base nas evidências que reúnem olhando bem de perto. Esse tipo de habilidade
é essencial para todos os alunos, tanto na escola quanto na vida. Atividades também
facilitam a aprendizagem entre pares. “ (MoMA, 2019)

68
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Para a formulação prática das considerações aqui apresentadas, assim como para a
formação das linhas e fontes de pesquisa da dissertação de mestrado em desenvolvimento,
considerou-se uma experiência prévia realizada no Centro de Ensino Fundamental 19 (CEF
19), situado na cidade-satélite de Ceilândia, desenvolvida durante o ano letivo de 2018.
Nos primeiros momentos da pesquisa, dedicou-se a entender melhor a cidade, seu
projeto, sua história e suas dinâmicas atuais. Isso foi feito através de um mapeamento
da cidade, seguido da identificação das escolas de ensino fundamental e suas respectivas
caracterizações (número de estudantes, performance escolar, relação residência e local
de estudo, etc). Optou-se por trabalhar com estudantes na faixa etária de 14 a 16 anos,
uma vez que esses possuíam autonomia para circular no espaço urbano.
Isso feito, a pesquisa seguiu na elaboração em conjunto com a professora de artes de
um programa para a disciplina que contemplasse os conteúdos exigidos pela Secretaria
de Educação do Distrito Federal em convergência com as orientações do Plano Político
Pedagógico da escola. O programa proposto alicerçou-se na crença de que o conheci-
mento se constrói a partir de vivências sendo o lugar dos sujeitos o ponto de partida
para a exploração do mundo; na preocupação de buscar um envolvimento dos jovens
com a escola, lançando mão de recursos e métodos pedagógicos utilizando instrumen-
tos e linguagens contemporâneos. A formulação do plano de curso buscou acrescer aos
conteúdos previstos a dimensão da experiência urbana dos estudantes, contemplando
Ceilândia e o Plano Piloto de Brasília. “Tornando Ceilândia o ponto central, vislumbra-se
abolir a clássica antinomia entre centro-periferia. ” (RIBEIRO, 2018.)
Com isso em mente, buscou-se a elaboração de atividades capazes de unir conhe-
cimentos e práticas artísticas no sentido expandido do conceito, englobando conteúdo
programático da disciplina, visando o patrimônio cultural e a história urbana. Um
programa capaz de estimular o engajamento e o pensamento crítico a respeito da arte,
em um movimento onde os alunos constroem o conhecimento artístico e de outras
disciplinas estabelecendo conexões entre a obra de arte e a vida de deles.
Essas formulações teóricas e práticas foram construídas a partir do referencial
teórico proposto pela pesquisadora Elane Ribeiro, o qual contava com as formulações
de Aldo Rossi e Michel de Certeau para a ‘exploração’ da cidade.
Intercalando aulas expositivas e atividades práticas, elaboramos maquetes, diários
de visita, visitas guiadas à Ceilândia e ao Plano Piloto, redações, tudo isso de forma a
entender melhor a cidade quanto de sua gente, atividades, manifestações, temporalidades,
memórias, espaços e volumetrias. Para melhor compreensão e desenvolvimento dessas
atividades, foram elaborados materiais didáticos como guias das visitas, mapas, textos
e aulas que também podem ser utilizados posteriormente para aplicação do projeto em

69
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

outras turmas. Atividades práticas relacionadas com os temas abordados, capturadas e


narradas pelos estudantes em registros fotográficos, fílmicos, desenhos e textos. Por meio
dessas colaborações, foi possível perceber e estimular a sistematização das informações
colhidas nos passeios e aulas, assim como desenvolvimento da sensibilidade artística,
habilidades manuais e cognitivas.
As aulas e atividades elaboradas objetivavam compreender Brasília em sua tota-
lidade, desde os seus conceitos históricos de cidade modernista até a sua configuração
atual de cidade metrópole, com ênfase em Ceilândia, reconhecendo seus habitantes,
lugares e expressões culturais, seus monumentos, tendo em vista reconhecer-se nela.
Essa experiência agiu e pretende firmar-se como um projeto continuado que, um
pouco como no Plano Piloto de Lucio Costa, busca “organizar um espaço para represen-
tar o Brasil articulando índices espaciais, imagens, cores e texturas, num procedimento
eminentemente moderno, porque relacional, mas seguramente transgressor. ” (ROSSETTI,
2006). São articulações multiculturais que passam pela arte participativa de Hélio Oiticica
e pela utopia urbana de Lucio Costa:
Ambos voltam a dialogar ao operarem com valores culturais popula-
res e massivos mesmo com configurações próprias, as forças do ato de
experimentar o espaço, a experiência espacial do sujeito, as relações
entre sujeito/imagem/país, as relações espaço/matéria e, sobretudo as
relações espaço/percepção, coincidem e novamente os aproxima. Nestas
tensões de proximidade e afastamento Lucio Costa e Hélio Oiticica (...)
(ROSSETTI, 2006, p. 45)
Esta vivência em uma escola pública de educação básica do Distrito Federal e essa
abordagem específica estabelecem um outro nível do recorte espacial e base para ava-
liação da experiência prática. Dentro das configurações sociais e educacionais da Bra-
sília de hoje, esse grupo amostral de estudantes simboliza/reflete a situação de muitas
escolas do Distrito Federal, em especial nas regiões administrativas e compõe um ponto
de apreciação a ser verificado em dois aspectos: a aplicação do Plano de Anísio Teixeira
(diferenças e semelhanças entre o plano original e o que é feito nas escolas do DF hoje);
a aplicação prática do que é proposto nos documentos oficiais; e a viabilidade e efetivi-
dade de conteúdos e atividades complementares elaborados com foco na cultura local.
Essas verificações serão aprofundadas ao longo da pesquisa de mestrado. Contudo,
é possível apontar nesse momento que, apesar da arquitetura pavilhonar, com ausên-
cia de conforto ambiental e cercada por grades e muros, o empenho dos professores e
coordenadores e o envolvimento dos alunos em Ceilândia permitiu compreender que a
escola não é formada apenas pelo seu espaço construído, as pessoas são fundamentais

70
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

para torná-la um lugar de ideias, criatividade e consciência política, contextualizando


as proposições de Anísio Teixeira à Brasília metrópole de 2019.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se bem compreender que modificações deverão ser introduzidas


na arquitetura escolar para atender a um programa dessa natureza.
Já não se trata de escolas e salas de aula, mas de todo um conjunto de
locais, em que as crianças se distribuem, entregues às atividades de
“estudo”, de “trabalho”, de “recreação”, de “reunião”, de “administração”,
de “decisão” e de vida e convívio no mais amplo sentido desse termo. A
arquitetura escolar deve assim combinar aspectos da “escola tradicio-
nal” com os da “oficina”, do “clube” de esportes e de recreio, da “casa”,
do “comércio”, do “restaurante”, do “teatro”, compreendendo, talvez, o
programa mais complexo e mais diversificado de todas as arquiteturas
especiais. (TEIXEIRA, 1956, p.196)
Retomando o trecho acima, o Plano de Anísio Teixeira previa uma arquitetura esco-
lar condizente com as novas formulações pedagógicas. No entanto, o que percebemos
no CEF19 e nas escolas públicas de ensino básico do DF hoje é uma arquitetura pavilho-
nar, com telhas de fibrocimento e salas de aula retangulares com poucas e pequenas
aberturas. Esse conjunto de fácil replicação resulta em um ambiente escolar com pouca
iluminação e ventilação, onde a ausência de conforto térmico das salas se une à escassez
de espaços verdes ao ar livre. (RIBEIRO, 2018, p.6). Como é possível ensinar e aprender em
meio à tanto desconforto?
As utopias que marcaram a construção da nova Capital esbarraram com uma
estrutura social hierárquica e patrimonialista, gerando conflitos inscritos tanto nos seus
espaços físicos quanto nos seus espaços simbólicos. A fragmentação social que caracte-
riza a sociedade brasileira perpetuou-se apesar das apostas feitas em uma nova cidade
e em novos modelos educacionais. Decepções a parte, projeto utópicos e ingenuidades
duvidosas, a história da cidade é uma fonte rica e sua materialidade é passível de ser
transformada num documento inesgotável de aprendizado para seus jovens habitantes.
Todavia para que eles a tomarem como tal, torna-se necessário que ela seja incluída no
âmbito da escola, que ruas, monumentos, edifícios, cidades satélites, grafites e outras
expressões de sua rica cultura popular façam parte de suas vivências. Acredita-se que a
cidade-documento possibilite a formulação de propostas pedagógicas capazes de envol-
ver os adolescentes de forma mais sedutora e, por conseguinte, mais comprometida.
(RIBEIRO, 2018). O trabalho de campo realizado no Centro de Ensino Fundamental 19

71
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de Ceilândia exemplifica um passo inicial na direção de uma educação artística mais


participativa e localmente referenciada. A cidade torna-se documentos e seus jovens
moradores, pesquisadores de sua história, de seus acervos artísticos.
Nesse sentido, o breve panorama apresentado no trabalho permite igualmente
compreender e analisar o processo de mudança no contexto educacional em todas suas
instâncias no que se refere ao conteúdo de arte, sendo importante para chegar ao ensino
de arte na contemporaneidade. A história da arte tradicional é essencial e de suma impor-
tância para a compreensão dos movimentos artísticos, assim como de suas expressões
locais, intelectuais e históricas. No entanto, é igualmente necessário que esse convencio-
nal panorama que rege os currículos de ensino das artes seja permeado e referenciado
pelos quadros sociais onde se realizam. Por isso, é imprescindível associar ao estudo das
artes o da história para esclarecer o universo simbólico que o fundamenta, indo além
dos valores universais que, em geral, são materializados nos patrimônios tombados e
nas pinturas e artistas legitimados pelos profissionais. A produção e o desenvolvimento
criativos demandam uma base identitária reconhecida e reconhecível.
Por meio da articulação entre história urbana e artes, entrevê-se a possibilidade
de uma formação humanística, ampla e complexa, abrangendo os campos do pensar e
do sentir, passíveis de fomentar a melhor compreensão de outros campos disciplinares.
Perguntas relacionadas à obra de arte e com o mundo se tornam enigmas, provocações
que fomentam de maneira construtiva e em conexão com o real esses campos em suas
capacidades cognitivas, criativas e sociais. O saber local soma-se a essa extensão cognitiva
em prol de um entendimento do mundo do micro ao macro, com referências afetivas e
identitárias capazes de aprimorar a apreensão do conhecimento em variadas instâncias
e de afinar as posições políticas no campo dos conflitos sociais.
É importante que esses influxos sejam feitos por meio de objetos e atividades que
considerem e encorajem a subjetivação, a diferenciação, a corporificação, a imaginação
e a singularização; aspectos inerentes à produção e compreensão da arte. Tudo isso per-
meado por “uma constante e envolvente conexão entre a cultura, o lugar e as produções
narrativas. ” (VIVEIROS, 2015).
Corrobora esta intenção, o que se observou durante a colaboração com o CEF 19,
percebeu-se a ignorância dos estudantes em relação a Ceilândia, prova disto é o desco-
nhecimento do fato de que a Caixa d’Água da cidade é símbolo das lutas dos pioneiros
ceilandenses, sendo um patrimônio protegido a nível distrital. É certo que há entre
esses jovens e seus avós distância geracional e a evocação Maurice Halbwachs poderia
explicar este esquecimento, quando o autor tratou das memórias coletivas, esclarecendo
sua multiplicidade e a forma de sua geração, absolutamente dependente de grupos que

72
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

partilharam histórias comuns. (RIBEIRO, 2018). Todavia, é preciso também alertar sobre
os efeitos deletérios desses tipos de esquecimentos que amputam a dimensão política,
capaz de fazer valer as demandas por justiça social e o cuidado com a própria cidade,
pois cuida-se do que se estima.
As atividades desenvolvidas com o CEF 19 e o estudo dos referenciais teóricos aqui
utilizados e das formulações de Anísio Teixeira para Brasília, permitem perceber como
a cidade, em especial Brasília enquanto cidade modernista com suas obras de arte inte-
gradas, podem ser ferramentas de ensino preciosas, porque existem no mesmo espaço
físico que nós. “Não são específicas de um grupo etário ou audiência e, ao contrário
da palavra escrita, nos convidam a usar todo os sentidos. Uma boa arte-atividade vai
encorajar os alunos a se envolver diretamente com a obra de arte e fazer interpretações
e hipóteses com base em evidências sensoriais. ” (MoMA, 2019.) Conexões entre obras e
atividades, sob temas como Identidade, Espaços & Lugares, Sociedade & Política ou Nar-
rativa & Arte “suporta múltiplos resultados e colabora no objetivo de formar cidadãos
mais críticos e articulados.
A vivência em Ceilândia estabeleceu uma troca ainda em andamento entre pes-
quisadores, professores e estudantes. Novas cidades foram descobertas no caminho,
e nos levaram a pensar nessa ação com o CEF19 como um projeto a ser continuado. A
possibilidade que consideramos agora, após uma revisão crítica das atividades realiza-
das, é de que a disciplina de artes e história incorporem as aulas sobre história urbana,
e que outras como Língua Portuguesa utilizem a temática em atividades de produção de
texto. Assim, o projeto segue sendo ampliado em ações conjuntas, que articulam conte-
údo e atividades que subvertem o ambiente da sala de aula, como a proposta para que
os alunos elaborem um guia da cidade com os locais de interesse e representatividade
para eles. O patrimônio e a história urbana são colocados em foco por meio da vivência
e das narrativas dos alunos que são parte integrante e transformadora desse espaço.
Os jovens participantes se tornam agentes na construção de seus caminhos e expe-
riências urbanas; não somente interagem com a cidade; produzem-na e aprendem com
e a partir dela. O alcance desses resultados para alunos e pesquisadores, assim como a
descoberta constante de novas cidades a partir de vivências e histórias, nos convoca a
perceber este como um projeto a ser continuado - na dissertação de mestrado, no CEF 19,
em outras escolas do Distrito Federal e sobretudo nos estudantes capazes de reconhecer
e representar a cidade, seus monumentos, suas expressões culturais de forma a debater
e agir sobre a ideia de patrimônio cultural e suas implicações.

73
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Referências

BARBOSA, A. M. Arte-Educação no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 2002.

Sobre a arte brasileira – da pré-história aos


anos 1960. São Paulo: Edições SESC – Martins Fontes, 2014.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais:


arte / Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC / SEF, 1998.

BRASIL. Lei Darcy Ribeiro (1996). LDB: Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
Lei 9394, de 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional; e
legislação correlata. 2. Ed. – Brasília: Câmara dos Deputados. Coordenação de
Publicações, 2001.

Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão; Secretaria de

Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica. Brasília:


MEC; SEB; DICEI, 2013. Disponível em: mec.gov.br

Base Nacional
Comum Curricular. Brasília: MEC; CONSED; UNDIME, 2018. Disponível em: http://
basenacionalcomum.mec.gov.br

CIDADES Educadoras. Cidade Escola Aprendiz. Desenvolvido pelo Governo do


Estado de São Paulo. Disponível em: <https://cidadeseducadoras.org.br/>. Acesso
em: 22 jul. 2019.

DUARTE, Maria de Souza. A educação pela arte – o caso Brasília. Brasília: Editora
Universidade de Brasília, 2011.

ECO, Umberto. Rio de Janeiro: Record, 2016.

EISNER, E. The arts the creation of mind.

FERRAZ, M. H. T. e SIQUEIRA, P. I. Arte-Educação: vivência, experimentação ou livro


didático? São Paulo: Edições Loyola, 1987.

IPHAN. Portaria n. 137, 2016. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/.

Imagining Classrooms: Stories of children, teaching and


ethnography. Sidney: Mattering Press, 2016.

74
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

MUSEU DA EDUCAÇÃO DO DISTRITO FEDERAL. Disponível em: http://www.museu-


daeducacao.com.br
NEVES, Marcos Cesar Danhoni & SILVA, Josie Agatha Parrilha. O ensino da arte na
educação fundamental no final do século XX: questões sobre a legislação brasileira.
Maringá: Editora UEM, 2008.
NOGUEIRA, Pedro Ribeiro. 2016. Entrevista com Ana Mae Barbosa. Disponível em:
https://portal.aprendiz.uol.com.br/2016/08/12/pioneira-da-arte-educacao-ana-mae-bar-
bosa-reforca-todo-artista-tem-o-que-ensinar/
PARSONS, M. J. Compreender a Arte: uma abordagem à experiência estética do ponto
de vista do desenvolvimento cognitivo. Lisboa: Presença, 1992.
PEIXOTO, Ribeiro Elane. Arte e Cidade nos anos finais do Ensino Fundamental. In:
Projeto de Pesquisa - Anos Finais do Ensino Fundamental: Adolescências, Qualidade e
Equidade na Escola Pública (Fundação Carlos Chagas e Itaú Social). Brasília, 2018.
PEIXOTO, Ribeiro Elane & SOLÉ, Julia Mazzutti Bastian. Plano de Curso para a Disci-
plina de Artes do CEF 19 de Ceilândia. Brasília, 2018.
PEIXOTO, Ribeiro Elane & SOLÉ, Julia Mazzutti Bastian. Um portão aberto. Brasília,
2018
PEREIRA, Eva Waisros (org.). Nas asas de Brasília: Memórias de uma utopia educativa
(1956-1964). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2011.
PILLAR, A. D. (Org.). A Educação do Olhar no ensino das artes. Porto Alegre: Mediação,
2001.
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Riposatevi, a Tropicália de Lucio Costa: o Brasil na XIII
Trienal de Milão. Vitruvius, 2006. Acesso em junho de 2019, disponível em: http://www.
vitruvius.com.br/revistas/read/
arquitextos/06.068/388?fbclid=IwAR2lryr8GwaOuwq8XhvROn45gTUaiHJzs75ufKJu-
fBjoSCEP4Wfd5k4TJA0
SALOMÃO, Wally. Hélio Oiticica: Qual é o Parangolé? São Paulo: Companhia das
Letras, 2015.
TEIXEIRA, Anísio. “Plano de construções escolares de Brasília”. Revista Brasileira
de Estudos Pedagógicos. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, v.35, n.81, jan./mar. 1961. p.195-199.
TESSLER, Elida Starosta. “O museu é o mundo – arte e vida cotidiana na experiência
de Hélio Oiticica”. Ciclo de Palestras sobre Hélio Oiticica, Mestrado em Artes Visuais – IA/
UFRGS. Porto Alegre: Editora UFRGS, v.4, n.7, jul. 1993, p. 5-19.

75
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

TOLSTÓI, Leon. O que é arte? A polêmica visão do autor de Guerra e Paz. São Paulo:
Nova Fronteira, 2016.
TRISTÃO, Marta. “Educação Ambiental e a descolonização do pensamento”. Revista
Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre: Editora UFRGS, v.22, n.25, jan. 2016, p. 12-19.
WAISMAN, Marina. O interior da história – Historiografia Arquitetônica para uso
de latino-americanos. São Paulo: Perspectiva, 2013.

76
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O BANCO HIPOTECÁRIO
LAR BRASILEIRO E SUAS
URBANIZAÇÕES EM SÃO

BANCO HIPOTECÁRIO LAR BRASILEIRO AND HIS


URBANIZATIONS IN SÃO PAULO. CONTRIBUTIONS
TO ARCHITECTURE AND URBANISM HISTORY.

EL BANCO HIPOTECÁRIO LAR BRASILEIRO

CONTRIBUCIONES A LA HISTORIADE LA
ARCHITECTURA Y EL URBANISMO.
EIXO TEMÁTICO: HISTÓRIA, HISTORIOGRAFIA E CRÍTICA.

BEDOLINI, Alessandra
Doutora; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
albedolini@gmail.com

77
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A experiência do Banco Hipotecário Lar Brasileiro (1925 – 1965) como produtor de moradias
coincide com um período da história nacional em que se registrou um grande aquecimento
em termos de políticas habitacionais, implementadas por iniciativas tanto públicas quanto
privadas. A lógica financeira praticada pelo Banco, especializado em empréstimos hipotecários,
e a liquidez de dinheiro propiciada pelos depósitos dos correntistas fizeram com que muitos dos
conjuntos por ele realizados, apesar de destinados às classes de média e baixa renda, apresen-
tassem uma surpreendente qualidade tanto em termos de proposta arquitetônica, aprazível
do ponto de vista formal e construtivo, quanto em relação à concepção urbanística. Principal
objetivo deste artigo será, justamente, ilustrar os méritos do Banco no que diz respeito a esta
dúplice vertente. Portanto, após repercorrer as principais etapas que marcaram a trajetória do
BHLB, o artigo apresentará dois casos de urbanizações realizadas pela instituição na Capital
paulista ao longo da década de 1950: o conjunto residencial Parque Lar Brasileiro em Perdizes
e o conjunto residencial Jardim Ana Rosa.

PALAVRAS-CHAVE: Banco Hipotecário Lar Brasileiro. Conjuntos habitacionais. Arquitetura


Moderna.

A BSTRACT
The experience of Banco Hipotecário Lar Brasileiro (1925 - 1965) as a housing producer coinci-
des with a period of national history in which there was a great increase in terms of housing
policies, implemented by both public and private initiatives. The financial logic practiced by
the Bank, which specializes in mortgage loans, and the liquidity of money provided by depo-
sits made by account holders, meant that many of the sets made by it, although destined for
the middle and low income classes, showed surprising quality both in terms of architectural
proposal, pleasant from the formal and constructive point of view, as in relation to the urban
design. The main objective of this article will be, precisely, to illustrate the merits of the Bank
with respect to this double aspect. Therefore, after reviewing the main stages that marked the
BHLB’s trajectory, the article will present two cases of urbanization carried out by the institu-
tion in the São Paulo capital during the 1950s: the Parque Lar Brasileiro residential complex
in Perdizes and the Jardim Ana Rosa residential complex.

KEYWORDS: Banco Hipotecário Lar Brasileiro. Housing estates. Modern Architecture.

78
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
La experiencia del Banco Hipotecário Lar Brasileiro (1925 - 1965) como productor de vivienda
coincide con un período de historia nacional en el que hubo un gran aumento en términos de
políticas de vivienda, implementadas tanto por iniciativas públicas como privadas. La lógica
financiera practicada por el Banco, que se especializa en préstamos hipotecarios, y la liquidez
del dinero proporcionado por los depósitos realizados por los titulares de cuentas, significaron
que muchos de los conjuntos que realizó, aunque destinados a las clases de ingresos medios y
bajos, mostraron una calidad sorprendente tanto en términos de propuesta arquitectónica,
agradable desde el punto de vista formal y constructivo, en relación con el diseño urbano. El
objetivo principal de este artículo será, precisamente, ilustrar los méritos del Banco con respecto
a este doble aspecto. Por lo tanto, después de revisar las etapas principales que marcaron la
trayectoria de BHLB, el artículo presentará dos casos de urbanización llevada a cabo por la
institución en la capital de São Paulo durante la década de 1950: el complejo residencial Parque
Lar Brasileiro en Perdizes y el complejo residencial Jardim Ana Rosa.

PALABRAS-CLAVE: Banco Hipotecário Lar Brasileiro. Urbanizaciones. Arquitectura moderna.

O Banco Hipotecário Lar Brasileiro.

No Brasil dos anos 40 e 50, ao lado dos órgãos governamentais que, já a partir da
década de 1930, empenhavam-se na implementação de políticas habitacionais, obser-
vava-se também uma presença maciça da iniciativa privada investindo no segmento
residencial. Entre as mais prolíficas e reconhecidas instituições ativas na época, podem
ser citados a Casa Bancária A. E. Carvalho (Banco E. E. Carvalho após 1954), a Sulacap, a
Ítalo-brasileira de Seguros Gerais, a Prudência Capitalizações e o Banco Hipotecário Lar
Brasileiro (BHLB). A intensa atividade de financiador de moradias do BHLB, ativo a partir
da metade da década de 1920, chegou ao fim em meados dos anos 60. O BHLB representava
uma verdadeira potência no ramo do crédito imobiliário e seu alcance estendeu-se a
quase todas as maiores cidades do território nacional, tendo tido grande relevância na
promoção da política da casa própria.
O Banco Hipotecário Lar Brasileiro foi fundado em 19 de agosto de 1925. Segundo
Watanabe (1981), sua atividade básica era o financiamento de empreendimentos habi-
tacionais. Seus objetivos, em acordo com os debates que estavam no auge naqueles anos,
eram “contribuir para a solução do problema da casa própria” e “estimular o espírito
de providência” (ACRÓPOLE 1951, n°158, p. 49). O BHLB se especializou em empréstimos
hipotecários, bastante raros naquele período, possibilitando a oferta de um capital de
empréstimos e de crédito ao setor imobiliário em todo País (BOTELHO 2007). Em 1961 o

79
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Governo brasileiro, presidido por Jânio Quadros, aconselhou o banco norte americano
Chase Manhattan de abrir as negociações com o Grupo Sul América para a compra do
BHLB. Até então, a família Larragoiti detinha 98% do capital acionário. As negociações,
concluídas em 1962, resultaram na passagem de 51% das ações para o Chase Manhat-
tan Bank: a partir daquele momento começou uma progressiva conversão do Banco, de
Hipotecário para comercial.
Apesar deste processo gradual de mudança estrutural, o Banco continuou finan-
ciando moradias durante mais alguns anos. O que decretou o término definitivo das
atividades dos bancos hipotecários foi a reforma bancária de 1964, que promulgou sua
exclusão do setor imobiliário. As Caixas Econômicas Estaduais, principalmente a Caixa
de São Paulo e a Caixa do Rio de Janeiro, passaram a ter exclusividade no ramo da cons-
trução de imóveis. Em seguida o setor se tornou de competência do BNH (Banco Nacional
de Habitação), fundado através da Lei n° 4.380/64. Finalmente, em 1986, esta alçada foi
atribuída à Caixa Econômica Federal.
A conversão do BHLB em banco comercial se tornou definitiva em 1965. Nas realiza-
ções posteriores a esta data, ao item “proprietário” corresponde o nome “Banco Lar Brasi-
leiro S.A.”: tendo sido o termo “Hipotecário” removido da razão social, que foi modificada
para ter a sigla própria das Sociedades Anônimas com capital social dividido em ações.

FINANCIAMENTO DE CONJUNTOS RESIDENCIAIS EM SÃO PAULO

Em São Paulo Capital, ao longo da década de 50, o BHLB financiou a construção de


dois empreendimentos que, devido às suas grandes dimensões e à complexidade de suas
implantações, representam experiências exemplares das atividades da instituição numa
escala que, indo além da contribuição arquitetônica isolada, repercutia-se também na
estrutura da configuração urbana. As características dos dois empreendimentos aqui
apresentados reflete as considerações externadas por Nabil Bonduki (2002, p. 143) a
respeito da qualidade das realizações implementadas, na época, pela iniciativa privada:
É preciso citar ainda, além da produção realizada pelos IAPs e outros
órgãos governamentais, uma grande produção privada de habita-
ção destinada predominantemente para a classe média, fortemente
influenciada pelo movimento moderno. Projetados por arquitetos como
Niemeyer, Abelardo de Souza, MM Roberto[1] e outros, estes empreendi-

[1] Todos colaboradores, em tempos diversos, do BHLB, juntamente a outros nomes significa-
tivos dentro do panorama arquitetônico brasileiro da época, como Eduardo Kneese de Mello,
Salvador Cândia, Plínio Croce, Hélio Duarte, Roberto Aflalo,Jacques Pilon, José Bina Foyant.

80
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

mentos adotam os mesmos princípios modernos que orientam a pro-


dução social, como economia, racionalidade, valorização do espaço
publico, incorporação de equipamentos coletivos e estandardização,
gerando edifícios – verdadeiros unités d’ habitation – que pouco se
diferenciam, como soluções arquitetônicas, dos projetos de habitação
social (BONDUKI 2002, p. 143).
Os dois conjuntos, cuja gênese e características serão apresentadas a seguir de
maneira pormenorizada, situam-se respectivamente nos bairros Perdizes e Ana Rosa,
e são caracterizados pela articulação, sobre amplos terrenos, de diversos blocos para
habitação coletiva. Diferentemente da concepção adotada na criação de conjuntos de
residências unifamiliares, presentes em quase todos os Estados onde o BHLB atuara e
caracterizados pela fragmentação sistemática dos quarteirões em pequenas propriedades
particulares, os conjuntos Perdizes e Ana Rosa foram concebidos recusando a lógica da
urbanização lote-por-lote.

Conjunto Residencial em Perdizes “Parque Lar Brasileiro” (1952-1960)

O conjunto localizado em Perdizes, na zona oeste, foi implantado em um grande


quarteirão próximo ao histórico complexo do Colégio Batista e delimitado pelas Ruas João
Ramalho, Ministro Godoy, Dr. Homem de Mello e Dr. Franco da Rocha. Desde sua primeira
fase de estudo, o empreendimento financiado pelo BHLB foi concebido como um conjunto
de edifícios altos e isolados, que se destacaria em relação às quadras adjacentes, loteadas
e ocupadas por edificações de pequeno porte e gabarito baixo. O conjunto, portanto,
trazia inovação também no que diz respeito à questão da propriedade, pois focava-se
na implantação de condomínios para habitação coletiva, em substituição aos agrupa-
mentos de pequenas propriedades particulares tão frequentes em São Paulo na época.
O processo que levou à realização dos edifícios atualmente implantados na qua-
dra se desenvolveu ao longo de quase uma década e é resultado de uma elaboração em
quatro fases (Figura 1).
Fase 1 – O primeiro estudo (1952-53) foi realizado pelo arquiteto Abelardo de Souza,
já colaborador do BHLB há alguns anos; previa a implantação de cinco edifícios em
lâmina, sendo quatro simples e um duplicado, distribuídos na quadra de maneira a
aproveitar ao máximo a insolação natural. Três lâminas simples foram alinhadas com
o eixo leste-oeste, tendo suas fachadas principais viradas para o norte e os locais de ser-
viço direcionados para o sul. A outra lâmina simples e a lâmina dupla foram alinhadas
com o eixo norte-sul: no caso da lâmina simples, a fachada principal receberia o sol

81
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

da manhã e a fachada dos fundos se beneficiaria do sol da tarde, enquanto no caso da


lâmina dupla, um bloco receberia o sol em sua fachada principal no período da manhã
e o mesmo aconteceria, à tarde, na fachada nobre do outro bloco. O estudo previa que
o conjunto fosse complementado por um volume cilíndrico, ocupado por 250 vagas
de estacionamento e organizado através de rampas helicoidais alternadas, situado na
cota mais alta da quadra (778,4m) e próximo ao cruzamento entre a Rua João Ramalho
e a Rua Ministro Godoy. Haveria também um pequeno edifício em “L” para comércio,
acompanhando a esquina entre a Rua Ministro Godoy e a Rua Dr. Homem de Mello. O
empreendimento apresentaria, desta maneira, um programa misto, conjugando funções
residenciais e comerciais. As áreas intersticiais seriam ocupadas por jardins, uma piscina
e um local cercado, destinado à recreação infantil.

Figura 1: Sucessivas etapas de elaboração do Conjunto Residencial em Perdizes. Fonte: BEDO-


LINI (2014, p. 47).

82
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Uma das características mais marcantes do projeto é disposição das lâminas, que
surgem desalinhadas em relação às ruas, criando um rico jogo de recortes no nível térreo
e proporcionando a abertura de amplas nesgas. Outro traço característico é a intenção
de deixar a quadra acessível por todo o seu perímetro: a circulação propiciada pelos
pilotis presentes nos níveis térreos dos blocos seria estendida por meio de marquises,
conectando os diversos edifícios. Todavia, a vontade de criar um quarteirãopermeável
foi logo abandonada. Desta primeira proposta, realizaram-se apenas dois edifícios:
o Ed. Ministro Godoy (Figura 2) e o Ed. Franco da Rocha (Figura 3). De fato, os prédios
efetivamente implantados nesta fase e nas versões sucessivas nunca funcionaram em
conjunto, mas sempre como condomínios independentes.

Figura 2: Edifício Minístro Godoy. Autoria: Alessandra Bedolini (2013).


Figura 3: Edifício Franco da Rocha. Autoria: Alessandra Bedolini (2013).

Fase 2 – A segunda versão (1954-56) foi elaborada por Salvador Cândia, Roberto
Aflalo e Plínio Croce, e teve que levar em consideração os dois volumes já existentes
na quadra. Esta solução manteve o partido dos blocos em lâmina e dos alinhamentos
norte-sul/leste-oeste, mas visou otimizar o aproveitamento do terreno aumentando
o gabarito dos edifícios, que passaram dos 14 pavimentos do Ed. Ministro Godoy (13
no Ed. Franco da Rocha) aos 16 dos novos prédios. Seriam implantadas uma lâmina
simples, com dois blocos de circulação vertical, e duas lâminas duplicadas, com quatro
blocos de elevadores e escadas, reduzindo assim a sensação de fragmentação dentro
da quadra. Nesta segunda proposta, as 250 vagas de estacionamento seriam inseridas
criando um “conjunto de planos horizontais” (SAMPAIO in SAMPAIO 2002, p. 209), aloca-
dos aproveitando o desnível natural do terreno: quase 20 metros entre a cota mais alta,

83
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

situada na esquina entre as Ruas João Ramalho e Ministro Godoy, e a cota mais baixa,
em correspondência da esquina entre as Ruas João Ramalho e Dr. Franco da Rocha. De
acordo com o Memorial Descritivo do projeto, os veículos deveriam ter “fácil e própria
maneabilidade, com saídas e entradas localizadas em ruas e níveis diversos permitindo
assim um tráfego fácil” (SAMPAIO in SAMPAIO 2002, p. 209 apud Memorial Descritivo do
projeto, 26/07/1956 – Arquivo Salvador Cândia). Outro elemento retomado da primeira
versão era o bloco comercial, desta vez, constituído por um tímido volume em forma
de hexágono alongado, com seis lojas dispostas paralelamente à Rua Ministro Godoy. O
projeto não previa a implantação de equipamentos condominiais, como a piscina e a área
fechada para a recreação das crianças ideadas por Abelardo de Souza. Todo o pavimento
térreo do empreendimento apresentaria total permeabilidade e seria coberto por jardins,
que se estenderiam acima das lajes de estacionamento configurando um grande terraço.
O único edifício realizado desta segunda proposta foi a lâmina mais simples, que
recebeu o nome de Edifício João Ramalho (Figura 4), próxima à esquina entre as Ruas
João Ramalho e Ministro Godoy. O jardim ao nível da rua, que recebeu um tratamento
paisagístico de autoria de Waldemar Cordeiro, apresenta uma alternância de trechos
pavimentados e gramados, com presença de espécies vegetais variadas, canteiros de
concreto e bancos de madeira.

Figura 4: Edifício João Ramalho. Autoria: Alessandra Bedolini (2013).


Figura 5: Edifícios Barão de Laguna e Barão de Ladário. Autoria: Alessandra Bedolini (2013).

84
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Fase 3 – Entre 1959 e 1960 Salvador Cândia, Roberto Aflalo e Plínio Croce elabora-
ram uma terceira versão do projeto. O partido dos edifícios em lâmina foi abandonado,
optando-se pela implantação de quatro torres com base quadrada, sendo duas delas
localizadas próximo da esquina entre as Ruas Ministro Godoy e Dr. Homem de Mello,
e outras duas situadas no canto oposto da quadra. Cada par de torres desfrutaria de
equipamentos coletivos no nível térreo e de subsolos para estacionamento de automó-
veis. Esta proposta, além de aumentar consideravelmente a densidade do quarteirão
(cada torre contava com 16 pavimento, tendo 4 apartamentos por andar), abandonou
o conceito de permeabilidade da quadra, proporcionando uma mais fácil segregação
entre os diversos blocos.
Foram construídas apenas duas das torres, que atualmente constituem um con-
domínio único: os Edifícios Barão de Laguna e Barão de Ladário (Figura 5). O fato de
se articularem em quatro apartamentos por andar prejudicou o aproveitamento da
iluminação natural, pois existem fachadas inteiramente viradas ao sul. O desejo de
aumentar a densidade habitacional do empreendimento acabou afetando parcialmente
a qualidade destes edifícios mais tardios.
Completamento da quadra – A porção de quarteirão que havia permanecido livre foi
preenchida em seguida, por iniciativa de outros empreendedores. Foram realizadas três
torres caracterizadas por uma excelente qualidade arquitetônica e formal, complemen-
tadas por equipamentos de lazer e jardins no nível do térreo e estacionamentos cobertos
que se acomodam em acordo com o desnível natural do terreno. Próximo à esquina
entre as Ruas João Ramalho e Dr. Franco da Rocha, também aproveitando o desnível do
terreno, foi implantado um estabelecimento comercial (um pequeno supermercado)
que atende os edifícios da quadra e os arredores.

Conjunto residencial Jardim Ana Rosa (1950-1960)

No final da década de 1940 existia, entre os já consolidados bairros do Paraíso e


da Vila Mariana, uma vasta área conotada por um tecido urbano esparso e rarefeito.
Em parte desta área funcionava, desde 1875, o Instituto Ana Rosa, voltado ao ensino
para as crianças carentes e fundado pelo Barão de Sousa Queiroz em cumprimento
do Testamento de Dona Ana Rosa P. Galvão, antiga proprietária destas terras. Em 1948
o BHLB adquiriu do Instituto uma gleba de 51.673,70m2, à qual foi adicionado, dois
anos mais tarde, um terreno de 3.575m2, vendido por um particular, o Sr. Silvio Nicola
Paulo Grimaldi. Logo em seguida, em 1950, o Banco promovera o desenvolvimento de
um projeto de urbanização para o terreno, que se situava em uma posição estratégica
entre o importante eixo da Rua Vergueiro, correspondente à cota de nível mais alta, e

85
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

o Jardim Aclimação, acomodado no fundo do vale. A gleba, que media 55.248,70m2, era
caracterizada por um desnível natural de mais de 25m, muito acentuado. Os objetivos
primários do primeiro estudo foram a definição do novo traçado viário e a implantação
de residências de diversas tipologias, destinadas à classe média e formuladas de acordo
com a linguagem preconizada pelo Movimento Moderno.
...foi estabelecida ligação entre o Largo Dona Ana Rosa e a Rua Paulo
Ney, por uma rua [Rua n.1, em seguida nomeada Avenida Lar Brasileiro e
atual Rua Dr. José de Queirós Aranha] de 16m de largura, e prolongadas
as Ruas Gregório Serrão e Gaspar Lourenço até essa principal. Além
disso, conforme recomendado pela Prefeitura na planta das diretrizes,
foi estabelecida boa ligação entre a via principal e a Rua Dr. Nicolau
de Souza Queiroz, pela Rua n.2 [atual Rua Alceu Wamosy] de 12m de
largura (BARBARA, 2004, p. 80 apud Memorial Descritivo contido no
Processo n.0.162.277-9).

Figura 6: As etapas de elaboração do Conjunto Residencial Jardim Ana Rosa. Fonte: BEDOLINI
(2014, p. 50).

86
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A Rua n.3, atual Rua Barão de Anhumas, de 9m de largura, foi traçada para unir as
ruas n.1 e n.2 e assim articular de maneira mais eficiente a circulação local. As obras de
implantação das infraestruturas foram consistentes[2] e definiram o arranjo definitivo
do bairro, até hoje tão peculiar.
O fato de o projeto não revelar uma distinção precisa dos seus limites
de intervenção, reforça nossa hipótese de que se trata de um padrão de
ocupação, carregado, portanto, de uma proposta de urbanização, de
algo que poderia ser um embrião de bairro, e não simplesmente o que
se chamou um «conjunto residencial» (BARBARA, 2004, p. 80).
Os espaços foram ocupados por edifícios residenciais variados, projetados ao longo
de quase uma década em três versões sucessivas. O arranjo final do conjunto Ana Rosa foi
aprovado só em 1960, tratando-se, portanto, de uma experiência de longo prazo (Figura 6).
Fase 1 – Abelardo de Souza elaborou o primeiro estudo em 1950. Além de definir
o desenho do viário, o arquiteto propôs a implantação de alguns blocos destinados à
habitação coletiva (Conjunto Rodrigues Alves, Figura 7), caracterizados por um programa
misto e situados nas cotas de nível mais altas do terreno. Os edifícios alinhados com a
Rua Vergueiro - um dos mais importantes eixos de circulação da cidade - e com a Rua n.1
teriam seus pavimentos térreos ocupados por comércio, enquanto nos dois pavimentos
acima haveria residências. Nesta fase também foram projetados os edifícios Vergueiro
(Figura 8) e Biacá (Figura 9), projetos estritamente residenciais, respectivamente de
Abelardo de Souza e de Plínio Croce com Roberto Aflalo, e o Edifício Aruan (Figura 10),
de autoria desconhecida, caracterizado por um programa misto. Todos os edifícios
mencionados apresentam gabarito baixo e feições modernas.
O resto da gleba, nas quadras mais internas e nas bordas do empreendimento, seria
ocupada por residências unifamiliares, projetadas pelos arquitetos Nelson Pedalini e
Walter Kneese (Figura 11), por um total de 55 casas isoladas e 80 sobrados geminados.
Talvez devido à densidade demasiado reduzida, incompatível com o patamar mer-
cadológico desejado, foram realizadas apenas as residências situadas às margens do
conjunto. Algumas das casas projetadas por Pedalini e Kneese permanecem até hoje no

[2] Além de providenciar as infraestruturas necessárias para a implantação do bairro, o BHLB


investiria cerca de 10 milhões de cruzeiros para realização de melhorias de pública utilidade,
como áreas de lazer e parques infantis. “O programa traçado compreende a construção de 558
metros de galerias de águas pluviais, de 1.040 metros de rede de esgotos, e 971,80 metros para
o prolongamento de água potável, prevê também a pavimentação de 9.200 metros quadrados
a asfalto e a paralelepípedos” (Acrópole n°158, 1951, p. 56).

87
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

lugar, junto com outros exemplares de autoria de Plínio Croce, Roberto Aflalo, Salvador
Cândia e Walter Russo.

Figura 7: Conjunto Rodrigues Alves. Autoria: Alessandra Bedolini (2013).

Figura 8: Edifício Vergueiro.


Autoria: Alessandra Bedolini (2013).
Figura 9: Edifício Biacá.
Autoria: Alessandra Bedolini (2013)

88
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 10: Edifício Aruan.


Autoria: Alessandra Bedolini (2013).
Figura 11: Residências unifamiliares.
Autoria: Alessandra Bedolini (2013).

Fase 2 – A segunda proposta, elaborada por Eduardo Kneese de Mello em 1952,


previa a ocupação do miolo do conjunto: uma quadra alongada situada entre as ruas
Alceu Wamosy, Barão de Anhumas e Dr. José de Queirós Aranha. O projeto articulava uma
série de cinco edifícios (mais um bloco menor inserido na ponta inferior da quadra), com
gabarito baixo, paralelos entre si e constituídos por apartamentos duplex modulares,
acessíveis através de rampas para melhor aproveitar os desníveis. Os espaços entre os
blocos, soltos na quadra para melhor aproveitar as condições de insolação, seriam ocu-
pados por jardins e vagas de estacionamento. A quadra se manteria permeável e aberta
para a cidade, proporcionando uma qualidade urbana na escala do bairro. Todavia, a
proposta em sua inteireza foi abandonada: apenas dois dos seis blocos, os edifícios
Guapira e Hicatú (Figura 12), foram construídos.

89
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 12: Edifícios Guapira e Hicatú. Autoria: Alessandra Bedolini (2013).

Fase 3 – A terceira versão concluiu o preenchimento dos espaços ainda não edifi-
cados. As quadras centrais do empreendimento foram ocupadas por diversos prédios,
projetados por profissionais ligados à Faculdade de Arquitetura da Universidade Presbite-
riana Mackenzie. Nesta fase foram realizados o Conjunto Umary (Figura 13) e o Conjunto
Urahy (Figura 14),ambos articulados em três blocos, e os Edifícios Gregório Serrão e Gaspar
Lourenço (Figura 15). Todos os blocos, com exceção do Ed. Gaspar Lourenço, apresentam
vagas de estacionamento no pavimento térreo. Os espaços livres são ocupados por áreas
ajardinadas extremamente aprazíveis, que ainda hoje proporcionam massas arbóreas
de grande valorização ambiental.

Figura 13: Conjunto Umary.


Autoria: Alessandra Bedolini (2013)
Figura 14: Conjunto Urahy.
Autoria: Alessandra Bedolini (2013)

90
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 15: Edifícios Gregório Serrão e Gaspar Lourenço. Autoria: Alessandra Bedolini (2013).

A experiência da concepção e realização do Jardim Ana Rosa se destaca no pano-


rama da produção de habitações destinadas à classe média em São Paulo na época. Em
primeiro lugar, pela decisão de elaborar um traçado viário sinuoso, adaptado à topo-
grafia específica do local, diferentemente da malha urbana tradicional daquela região,
constituída por cruzamentos ortogonais. Esta característica gerou um tipo de ocupação
diferenciado, que propiciou a inserção de volumes construídos harmonizando-se com a
situação orográfica e com as melhores condições de insolação e ventilação. Do ponto de
vista da linguagem arquitetônica prevalente, o conjunto é testemunha da afirmação da
arquitetura moderna destinada à classe média. Mesmo em sua diversidade tipológica,
as residências unifamiliares, assim como os diversos prédios para habitação coletiva,
apresentam as características peculiares, modalidades construtivas e materiais preco-
nizados pelo Movimento Moderno: temos lajes planas, elementos vazados, sistemas de
quebra-luz, pilotis, áreas coletivas enriquecidas pela bela vegetação tropical e fachadas
cujas composições desvelam as funções dos ambientes internos. A circulação interna
é racionalizada, o programa das moradias é enxuto, em parte do empreendimento é
contemplado o uso misto. No uso dos materiais observam-se elementos de concreto
aparente, rebocos lisos, revestimentos de pastilhas coloridas, grandes janelas envidra-
çadas, ausência de ornamentação.
Os edifícios de apartamentos oferecem todo um leque de soluções em termos
formais, de gabarito e de implantação: cada um dos blocos possui sua própria individu-
alidade. O conjunto foi concebido com o objetivo de harmonizar os edifícios entre si e
com o contexto que os circundava; infelizmente, onde no passado havia apenas blocos

91
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

envoltos pela vegetação, hoje se observa um espaço minuciosamente fragmentado pela


presença obsessiva das grades condominiais. De qualquer forma as características em
destaque, como a localização privilegiada, a boa qualidade arquitetônica e construtiva,
acostadas aos elementos próprios de uma arquitetura econômica, como a ausência de
subsolos, de portarias, de elevadores - propiciada pelos gabaritos baixos – e, em alguns
casos, de garagens, faz com que o Jardim Ana Rosa se torne um exemplo excepcional de
habitação destinada, sim, à classe média, mas inegavelmente apetecível em termos de
mercado imobiliário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pretensão de atribuir uma significação cultural aos conjuntos de residências finan-


ciados e construídos pelo BHLB – não apenas aos dois aqui apresentados, mas também
aos numerosos outros realizados ao longo de sua trajetória – deve-se à convicção de que
as instâncias testemunhais a eles ligadas abrangem um leque de âmbitos amplo e variado.
Em primeiro lugar, permite investigar e registrar a história de uma instituição tão
importante no panorama financeiro, político e edilício do País; uma instituição cuja
memória, todavia, tendo transcorridas mais de cinco décadas do encerramento das
atividades, começou inexoravelmente a ser apagada.
Em segundo lugar, a possibilidade de aprofundar o conhecimento das trajetórias
individuais dos arquitetos que protagonizaram a cena arquitetônica do período em
exame, pois o BHLB costumava escolher criteriosamente os profissionais aos quais enco-
mendava os projetos de seus empreendimentos. A possibilidade de oferecer arquiteturas
de autoria e de qualidade constituía mais um atrativo para o mercado imobiliário. Em
numerosos casos se trata de profissionais cujas contribuições, teóricas e práticas, impul-
sionaram o debate e a definição de uma arquitetura brasileira de qualidade. A questão
da autoria se configura, portanto, como um dos elementos passíveis de atribuição de
valor e significância cultural aos casos estudados.
Outras importantes instâncias testemunhais devem ser atribuídas ao registro de
questões de cunho mais técnico, como o conhecimento que deriva da análise da mate-
rialidade das obras, importante ferramenta de investigação das técnicas construtivas
adotadas e dos materiais de construção empregados na época, ora importados, ora
produzidos pela indústria nacional.
A análise das plantas dos imóveis, a disposição e o dimensionamento dos diver-
sos cômodos, por outro lado, podem revelar-se úteis no entendimento das questões
antropológicas que emergem do modus habitandi da sociedade brasileira da época. À

92
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

luz das ferramentas próprias da historiografia da arquitetura, as atividades do BHLB


enquadram-se no período em que, no Brasil, assistia-se à progressiva assimilação dos
lemas do Movimento Moderno à arquitetura nacional. Essa tendência determinou uma
evolução não apenas na linguagem formal das realizações e em uma maior racionali-
zação - apoiada por uma indústria mais diversificada e desenvolvida - das obras, mas
também em uma transformação do conceito de propriedade mediante a adoção em
larga escala da modalidade “condomínio”: o lugar do habitar coletivo.

93
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BEDOLINI, Alessandra. Banco Hipotecário Lar Brasileiro. Análise das realizações


no Estado de São Paulo (1941 – 1965). Dissertação de Mestrado. FAU-USP. São
Paulo, 2014

BARBARA, Fernanda. Duas tipologias habitacionais: o conjunto Ana Rosa e o


Edifício Copan. Contexto e análise de dois projetos realizados em São Paulo na

BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. Arquitetura moderna, lei


do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação Liberdade, 2002

BOTELHO, Adriano. O urbano em fragmentos. A produção do espaço de moradia


pelas práticas do setor imobiliário. São Paulo: Anna Blume, 2007

de 19/04/1951

FERRAZ, Geraldo. “Abelardo de Souza. Novos valores na arquitetura brasileira”.


Habitat n° 39, fevereiro de 1957, p. 2-21

FERRONI, Eduardo Rocha. Aproximações sobre a obra de Salvador Cândia.


Dissertação de Mestrado, FAU-USP, São Paulo 2008

FLORES, Jorge Oscar de Mello. Jorge Oscar de Mello Flores II (depoimento,


1996/1997). Rio de Janeiro: CPDOC, 1998

S/A. “Banco Hipotecário Lar Brasileiro. 26 anos servindo o público”. Acrópole.


Junho 1951, n°158, p. 49-59

SAMPAIO, Maria Ruth do Amaral (org.) A promoção privada de habitação


econômica e a arquitetura moderna São Carlos: RiMa, 2002

Balanço Financeiro. 31 de
dezembro de 1981, p. 9

94
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BENTO RODRIGUES/MG: UM
LUGAR DE MEMÓRIA
BENTO RODRIGUES/MG: A PLACE OF MEMORY

BENTO RODIGUES/MG: UN LUGAR DE MEMORIA


EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

AZEVEDO, Paula Pinto Huhn de


Graduanda do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo (DAU) da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES)
paulahuhn.arq@gmail.com

PESSOTTI, Luciene
Doutora em Arquitetura e Urbanismo; Professora do Curso de Graduação em Arquite-
tura e Urbanismo/Departamento de Arquitetura e Urbanismo (DAU) da Universidade
Federal do Espírito Santo (UFES)
luciene.pessotti@terra.com.br

95
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Este artigo aborda o contexto do crime ambiental de Bento Rodrigue, distrito de Mariana/MG.
O rompimento da Barragem de Rejeitos de Fundão, ocorrido em 5 de novembro de 2015, tem
forte vinculação com a formação do povo brasileiro, cujos fundamentos estão na relação de
subserviência com o mercado externo em detrimento do valor de seus recursos naturais, direitos
cíveis e valoração do patrimônio cultural. O atual modelo político-econômico, de viés necroca-
pitalista e neoliberofascista, nega as relações das populações mais frágeis com seu território.
Reflete-se sobre a proteção legal de Bento Rodrigues, considerado Sítio de Memória Sensível e
Sítio de Consciência, que suscita reflexões sobre a memória coletiva. Aborda-se a manifestação
dos atingidos, através do jornal A Sirene, sobre a reestruturação do sítio destruído pelo mar de
lama tóxica que expõe seus sofrimentos e lutas pela sobrevivência pós-catástrofe.

PALAVRAS-CHAVE: crime ambiental. necropolítica. sítio de memória sensível. sítio de consciência.

A BSTRACT
This article addresses the context of environmental crime in Bento Rodrigue, Mariana / MG dis-
trict. The breach of the Fundão Tailings Dam, which took place on November 5, 2015, is strongly
linked to the formation of the Brazilian people, whose fundamentals are in the relationship of
subservience with the foreign market to the detriment of the value of their natural resources,
civil rights and valuation of cultural heritage. The current political-economic model, with a
necrocapitalist and neoliberal-fascist bias, denies the relationships of the most fragile popula-
tions with their territory. It reflects on the legal protection of Bento Rodrigues, considered Site
of Sensitive Memory and Site of Conscience, which raises reflections on collective memory. The
manifestation of those affected is addressed, through the newspaper A Sirene, on the restruc-
turing of the site destroyed by the sea of toxic mud that exposes their sufferings and struggles
for post-catastrophe survival.

KEYWORDS: environmental crime. necropolitics. sensitive memory site. consciousness site.

RESUMEN
Este artículo aborda el contexto del delito ambiental en Bento Rodrigue, distrito de Mariana
/ MG. La violación de la presa de relaves de Fundão, que tuvo lugar el 5 de noviembre de 2015,
está fuertemente vinculada a la formación del pueblo brasileño, cuyos fundamentos están en
la relación de subordinación con el mercado extranjero en detrimento del valor de sus recursos
naturales, derechos civiles y valoración del patrimonio cultural. El modelo político-económico

96
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

actual, con un sesgo necrocapitalista y neoliberal-fascista, niega las relaciones de las pobla-
ciones más frágiles con su territorio. Reflexiona sobre la protección legal de Bento Rodrigues,
considerado Sitio de Memoria Sensible y Sitio de Conciencia, que plantea reflexiones sobre
la memoria colectiva. La manifestación de los afectados se aborda, a través del periódico A
Sirene, sobre la reestructuración del sitio destruido por el mar de lodo tóxico que expone sus
sufrimientos y luchas por la supervivencia posterior a la catástrofe.

PALABRAS-CLAVE: crimen ambiental. necropolítica sitio de memoria sensible. sitio de conciencia.

INTRODUÇÃO

Este artigo apresenta os recentes resultados da pesquisa de Projeto de Graduação


II (PGII) em fase de conclusão no curso de Arquitetura e Urbanismo da UFES. O trabalho
tem como estudo de caso as consequências do crime ambiental de Bento Rodrigues. O
crime caracteriza-se pelo rompimento da Barragem de Rejeitos de Fundão, distrito de
Mariana/MG, ocorrido em 5 de novembro de 2015, onde um mar de lama tóxica desin-
tegrou as referências socioespaciais de comunidades e arruinou a paisagem por onde
passou. Destaca-se a importância de reconhecer a necessidade de preservação das relações
territoriais vigentes. A narrativa da população sobre o crime permite avaliar as ações
de preservação do patrimônio cultural e suas dificuldades para superar a violação dos
seus direitos.
Aborda-se criticamente a história da formação do povo brasileiro e sua relação
com questões mercadológicas externas em detrimento do seu território, de seus recur-
sos naturais, e de seus direitos cíveis. Esse fardo herdado acarreta a desintegração dos
bens culturais e patrimoniais nacionais. Considerando a perspectiva necrocapitalista
e neoliberofascista, como apontado pelos autores Mbembe (2016) e Ribeiro (2017), faz-se
uma análise da conjuntura atual no âmbito de nosso objeto de estudo.

UMA ANÁLISE HISTÓRICO-CRÍTICA: SUBSERVIÊNCIA E DEGRADO DAS


RELAÇÕES TERRITORIAIS BRASILEIRAS

A relação de subserviência ao mercado externo do povo brasileiro é legado do seu


processo de formação. Este processo esteve atrelado a formação do país na condição
de colônia de exploração portuguesa. Mediante a essa afirmativa faremos uma breve
análise crítica de tais processos almejando evidenciar os possíveis agentes causadores
do empenho ao projeto externo. Caio Prado Júnior explicita sobre essa afirmativa, i.e.,
afirma que a sociedade e a economia brasileira se organizaram em torno do objetivo

97
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

externo de produção de bens que suprissem os interesses do mercado internacional,


sendo tal caráter perpetuado ao longo dos séculos nas feições e na vida do país (2012).
De acordo com Darcy Ribeiro (1995), a relação de exploração entre os primeiros
habitantes das terras tupiniquins e os europeus se deu antes mesmo do reconhecimento
oficial do Brasil como colônia portuguesa. A essa relação, o autor nomeou cunhadismo,
velho costume indígena de incorporar estranhos à comunidade, através de laços matri-
moniais. Com esses novos familiares, o forasteiro estabelecia uma relação de caráter
exploratório, visando ter na mão-de-obra indígena a base para os trabalhos pesados
demandados pelo Mercantilismo vigente. Deu-se início, assim, a extração abusiva dos
recursos naturais brasileiros em prol do abastecimento externo.
Em 1500, com o “descobrimento” oficial do Brasil pela Cora Portuguesa, o cunha-
dismo passa a ser combatido, pois, se torna uma ameaça a posse de suas terras além-mar.
Para tal combate institui o regime das Donatarias. Ribeiro (1995, p.76) explica que “[...]
quase todos os contemplados vieram tomar posse com a função de povoá-las e fazê-las
produzir, elevando a economia colonial a um novo patamar”.
Nessa nova configuração socioeconômica o papel indígena se transforma, assu-
mindo sua face abusiva, pois nesse contexto “[...]o índio já não era um parente, mas
mão-de-obra recrutável como escrava” (RIBEIRO, 1995, p.77).
O sistema das Donatarias não logrou sucesso, em muito, creditado a hostilidade
indígena. Frente ao fracasso a Coroa impõe ao sistema de Donatarias um Governo Geral,
com um comando central. Alterou-se novamente a dinâmica passando de um regime
semelhante ao feudal europeu para a “[...] formação de vilas, com pelourinho, contin-
gentes militares armados e fortificados, trazendo ao Brasil numerosos povoadores”
(RIBEIRO, 1995, p.79).
O quadro se agrava ao entrarmos na era do açúcar no nordeste. O número de escra-
vos africanos aumenta consideravelmente dando origem a uma nova formação de
brasileiros. Esses novos mestiços encontravam-se em uma estrutura de especialização
subalterna como gente de serviço, provedora de gêneros e pescadores. Encontravam-se
em um sistema de família patriarcal que era rodeado por um número exorbitante de
serviçais (RIBEIRO, 1995).
Quando a Cora Portuguesa se retira de solo brasileiro, uma classe dominante passa a
administrar essa sociedade com a mesma, ou quiçá, com maior empenho na extração de
recursos naturais e exploração do povo em benefício da continuidade de seus privilégios
sociais e econômicos. Essa atitude desumana por parte da classe dominante brasileira,
foi explicada por Ribeiro (1995), quando descreve uma síntese comportamental dessa

98
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

nova gente que ainda se encontra em seu processo de formação enquanto povo levando
a herança do torturador, na qual “[...] incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade bra-
sileira predisposta a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos”
(RIBEIRO, 1995, p.108).
O desejo de riqueza da classe dominante, segundo Ribeiro (1995), está pautado na
exploração dos recursos naturais do território de forma predatória e perpassa o período
colonial chegando à atualidade. Essa assertiva é observada por Bosi (1992), quando destaca
a continuidade dessa relação nas décadas que sucederam os anos de 1990:
A barbarização ecológica e populacional acompanhou as marchas
colonizadoras entre nós, tanto na zona canavieira quanto no sertão
bandeirante; daí as queimadas, a morte ou a preação dos nativos. Diz
Gilberto Freyre, insuspeito no caso porque apologista da colonização
portuguesa no Brasil e no mundo: ‘o açúcar eliminou o índio’. Hoje
poderíamos dizer: o gado expulsa o posseiro; a soja, o sitiante; a cana, o
morador. O projeto expansionista dos anos 70 e 80 foi e continua sendo
uma reatualização em nada menos cruenta do que foram as incursões
militares dos tempos coloniais (BOSI, 1992, p.21) (grifo nosso).
Em contrapartida, ao exposto, o Brasil se encontra em uma posição de destaque
no quadro de leis ambientais rígidas. No entanto, o problema da preservação ambiental
encontra-se na fiscalização altamente ineficiente que acaba por gerar perdas do acervo
natural e socioeconômicas sistêmicas ao território. A exemplo temos o estudo de caso
desse trabalho, no qual os autores Espíndola e Guerra (2017), atribuem a essa fiscalização
deficitária a responsabilidade do crime ambiental ocorrido em Mariana (Figura 1), com
o rompimento da Barragem de Rejeitos de Fundão, quando afirmam que a SAMARCO
contava com a leniência da fiscalização por parte dos órgãos responsáveis (Fundação
Estadual do Meio Ambiente - MG e Departamento Estadual da Produção Mineral) tratando
com descaso os sinais de problemas já detectados.
Cita-se como exemplo a mineração, forma de exploração dos recursos minerais
no Brasil, que ocorre desde o período colonial. As relações de trabalho desta atividade
são promiscuas, e ressalta-se, que mão de obra e território sempre se encontraram em
uma posição de degrado. Na atualidade, se percebe o mesmo tipo de tratamento dado
a ambos, reforçando a ideia de que tragédias como a de Bento Rodrigues/MG é cíclica
na história brasileira.

99
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Imagens captadas por satélite do antes (à esquerda) e o depois (à direita) do rompi-
mento da Barragem de Fundão, Bento Rodrigues. Fonte: G1 Minas Gerais 2015

Podemos, então, perceber que tanto o contexto de exploração irresponsável dos


recursos naturais brasileiros, quanto a exploração do povo, ainda se mostram em vigor.
Os agentes de exploração foram alterados, porém, o sistema abusivo se perpetua.
A velha classe dominante está hoje representada nas novas elites que constitui na
contemporaneidade “[...]o corpo gerencial das multinacionais. Os mesmos tecnocratas
ainda meninos, mas já aconselhando governos, se afundam ainda mais no espontaneis-
mos do mercado e na irresponsabilidade social do neoliberalismo” (RIBEIRO, 1995, p.225).
Mediante ao exposto, percebe-se que no Brasil sempre houve sistemas socioeco-
nômicos que favoreceram a exploração do território e do povo de forma predatória
e irresponsável, evidenciando uma identidade forjada na subserviência ao mercado
externo advindo desses sistemas abusivos.

SUBSERVIÊNCIA E NECROPOLÍTICA

O neoliberalismo se encontra em voga no mundo contemporâneo e com ele uma


forma de soberania exercido pela necropolítica, que é pautada:
[...] no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve mor-
rer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania,
seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle
sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação
de poder. (MBEMBE, 2016, p.123) (grifo nosso).

100
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

As políticas neoliberais são políticas de morte, baseadas não na morte direta, mas
nas ações indiretas, através de políticas de austeridade e de exclusão, que provocam a
morte dos corpos tidos como não rentáveis para a economia neoliberal (VALVERDE, 2017).
Segundo Mbembe (2016), a necropolítica e o necropoder estão associadas as formas
de subjugações contemporâneas relacionadas ao poder da vida e da morte. Segundo o
autor na contemporaneidade existem os chamados “mundos de morte” que conferem
um status de mortos vivos a população tida como corpos não rentáveis ao sistema.
A partir da análise histórica crítica da formação da identidade forjada na subservi-
ência ao mercado externo e da apresentação das noções de necropolítica e necropoder,
podemos inferir que este mesmo “mundo de morte” e “status de mortos vivos” é conferido
à população brasileira, conforme é colocado pelo autor Ribeiro, quando afirma que:
[...] o Estado brasileiro e o capital neoliberal a ele inerente estão engen-
drando tarefa amparada pelos setores ou organizações mais reacioná-
rios da sociedade: a de implantar no Brasil um ciclo histórico necroca-
pitalista e neoliberofascista. (RIBEIRO, 2017, p.8)
O caso de Bento Rodrigues exemplifica de forma singular a dinâmica da necro-
política, no qual, claramente, as perdas ambientais, territoriais e das vidas no curso da
lama tóxica, foi considerada mais lucrativa do que medidas preventivas para se evitar
tamanha destruição natural, territorial e humana por quem detém o poder.
Concluindo esse tópico trataremos do território e das suas perdas frente a crimes
ambientais como o de Bento Rodrigues. O território, segundo Claude Rafestin (1993,
p.73), se,
[...] forma a partir do espaço, e o espaço, é resultado de uma ação con-
duzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em
qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente
(por exemplo, plena representação), o ator ‘territorializa’ o espaço.
Essa territorialização é comprometida no cenário da necropolítica. A economia
nacional se abre ao capital estrangeiro permitindo que as corporações internacionais
utilizem de medidas atrozes contra o território e a população. Esse infortúnio é bem
expressivo no campo da extração mineral no Brasil. Os impactos gerados pela atividade
mineira são uma,
[...] questão de injustiça ambiental: geralmente, são mais atingidas
aquelas populações que já são historicamente excluídas e desprotegi-
das... as que têm menos acesso ao capital econômico, menos atenção e
influência sobre os processos de decisão política, que moram em zonas

101
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

consideradas de sacrifício, que ganham menos visibilidade na mídia


etc. (GIFFONI; COELHO; MAIA, 2019, p.24)
Os impactos aos territórios pela mineração são irreversíveis. O setor da mineração
no Brasil detém muita influência nas decisões políticas, pois fornecem grandes subsídios
as campanhas eleitorais. Todo esse cenário de horror beneficia somente aos cofres do
governo e das empresas, em sua maioria estrangeiras, enquanto a parcela da sociedade
que se encontra as margens do sistema capitalista neoliberal, como os quilombolas,
indígenas e comunidades tradicionais, ficam com os impactos socioeconômicos e
ambientais, quando não são retirados da equação do lucro por serem menos rentáveis
(GIFFONI; COELHO; MAIA, 2019).

Nessa linha ideológica autoritária possibilitada por esses sistemas econômicos


abusivos e neoliberofascistas, a história contada é a dos vencedores, moldando a memória
coletiva brasileira de acordo com os interesses da classe dominante, e assim, possibili-
tando sua manutenção e perpetuação. Aborda-se o estudo de caso alinhado a história
dos vencidos.
Essa visão da história dos vencidos é proveniente da Nova História nascida com a
fundação da revista Annales coordenada por Marc Bloch e Lucien Febvre (LE GOFF, 1994).
A Nova História rejeita ter como única fonte os documentos tidos como oficiais. Dessa
maneira gera uma forma de registro histórico que foge de uma manipulação dada por
meio da oficialização de fatos que favoreçam interesses daqueles que detém o poder e
da ocultação de outros que os desfavorecem. Por conseguinte, a memória coletiva criada
a partir da história oficial, é uma memória manipulada. Fato que explica a desmemori-
zação da população brasileira frente as perdas de seu patrimônio cultural, com ênfase
nos crimes causados pela ação da necropolítica.
O estudo de caso desta pesquisa é decorrente da história da mineração brasileira.
Estabelecendo uma cronologia de 2002 até o ano de 2019[1], tem-se uma soma conside-
rável de crimes relacionados a devastação socioambiental e territorial, com destaque
aos anos de 2015 em Mariana-MG (Figuras 2 e 3) e, 2019 em Brumadinho-MG, que pro-
moveram a contaminação das bacias hidrográficas do Rio Doce e do Rio Paraopeba,
consecutivamente, além da morte de membros das comunidades locais e trabalhadores

[1] Linha cronológica de “acidentes” decorrentes da mineração elaborado pela apostila A


mineração vem ai.... E agora? Um guia prático em defesa dos territórios, no tópico: Quantos
“acidentes” precisam acontecer para que se entenda que não é acidente?

102
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

das empresas. Mesmo havendo uma ocorrência sistêmica e gerando grandes catástrofes
socioambientais, esses crimes caem no esquecimento. Em grande parte, esse esqueci-
mento se dá ao esforço conjunto do poder público brasileiro e das empresas em apagar
os acontecimentos promovendo a manutenção do sistema de subserviência engendrado
na identidade do povo brasileiro, conforme exposto anteriormente.

Figura 2: Sequência de fotos Ensaio “Mariana” e “Lágrimas do Rio Doce”. Fonte: KINCH, 2017.

Figura 3: Sequência de fotos Ensaio “Mariana” e “Lágrimas do Rio Doce”. Fonte: KINCH, 2017.

103
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BENTO RODRIGUES/MG: SÍTIO DE MEMÓRIA SENSÍVEL

Entendendo as noções de Lugar de Memória e Meio de Memória por meio das defi-
nições de Pierre Nora (1984), o qual conceitua Meio de Memória como sendo um local
onde a vida social existe garantida por uma existência espacial e temporal. Portanto, um
local em que a memória se cria e se afirma constantemente. E Lugar de Memória, quando
um sítio abriga somente fragmentos circunstanciais de uma vida social arruinada. A
importância do Lugar de Memória é descrita por Nora, quando afirma que:
Nosso interesse no lugar de memória onde a memória se cristaliza
e se secreta ocorre em um momento histórico particular, um ponto
de inflexão em que a consciência de uma ruptura com o passado está
ligada ao sentimento de que a memória foi rompida – mas rompida
de tal maneira que coloca o problema da incorporação da memória em
certos locais onde persiste um sentido de continuidade histórica. Há
lugares de memória, sítios de memória, porque não há mais meios de
memória, ambientes reais de memória (NORA, 1984, p. 7) (grifo nosso).
Mediante ao exposto reiteramos a importância do papel da Nova História, assim
como, da preservação dos Lugares de Memória e dos Meios de Memória que dão base para
a criação de uma memória coletiva democrática. Desta forma, entendemos a importân-
cia de se preservar o sítio de Bento Rodrigues - MG como um Lugar de Memória, afim de
ancorar fisicamente a memorarão das relações territoriais rompidas pelo crime ambien-
tal, marcando-as na história e na memória coletiva. Tal anseio é suscitado no Dossiê
de Tombamento do Sítio de Bento Rodrigues coordenado pelo Prof. Dr. Leonardo Barci
Castriota, docente da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e membro do ICOMOS.
Com receio de que a tragédia de proporção nacional e as perdas territoriais dos
moradores daquele sítio fossem esquecidas uma medida de proteção provisória de
tombamento de remanescentes de Bento Rodrigues foi adotado pelo COMPAT - Conselho
Municipal do Patrimônio Cultural de Mariana, que acionou o ICOMOS - Comitê Brasileiro
do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios para realizar a proteção definitiva,
culminando na elaboração do Dossiê de Tombamento e suas diretrizes (CASTRIOTA, 2019).
A proteção de Bento Rodrigues se fundamenta na conservação baseada em valores,
onde, o primeiro paradigma da conservação foi:
[...] a referência vai ser, por um lado, construção e subjetividade, que,
no entanto, só poderá ser construída por diversos indivíduos, grupos e
intérpretes, porque esses encontram no objeto ou sítio em questão um
índice, um sinal. (CASTRIOTA, 2019, p. xiii).

104
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Para subsidiar o processo adotaram-se os preceitos da Carta de Burra, que possui


como um dos conceitos centrais a ideia de significância cultural, na qual a mesma é
definida como sendo “[...] o conjunto dos ‘valores estético, histórico, científico, social ou
espiritual para as gerações passadas, presentes ou futuras’” (CASTRIOTA, 2019, p. xv). O
atributo da significância cultural segundo Castriota (2019, p. xv) está “[...] ‘incorporada
no próprio sítio, sua estrutura, ambiente, usos, associações, significados, registros e diz
respeito a lugares e objetos’”. Através dessa ideia consegue-se atribuir a importância de
um local ou de um objeto na totalidade por meio da análise dos valores atribuídos a ele.
Partindo desse conceito fez-se necessário determinar a significância cultural de
Bento Rodrigues. Para tal um inventário realizado em estreito contato com os atingidos foi
feito em 2016, objetivando identificar os diversos atores envolvidos e os valores atribuídos
ao sítio de Bento Rodrigues, culminando na elaboração da Declaração de Significância.
Tem-se a adoção da designação de Sítio de Memória para Bento Rodrigues, como
conclusão do processo de tombamento. A definição de Sítio de Memória foi proposta a
partir do documento preparado para a International Coalition of Sites of Conscience
por uma equipe de especialistas contratada pelo World Heritage Center, assim, exposto:
Sítios de memória para os propósitos deste relatório são lugares que
estão revestidos com significado histórico, social ou cultural por causa do
que aconteceu ali no passado. Tais lugares podem ser de significado par-
ticular, dado o seu papel na formação da identidade de uma comunidade
ou nação (WHC,2018, p.11 apud CASTRIOTA, 2019, p. xviii) (grifo nosso).
A equipe coordenada por Castriota (2019) propôs também a instalação de um
Museu de Território em Bento Rodrigues. A proposta prevê que após a proteção pelo
tombamento, Bento Rodrigues enquanto Sítio de Memória Sensível, se transformasse
num Sítio de Consciência. O objetivo é confrontar a tragédia socioambiental para aju-
dar a superar o trauma e estimular, simultaneamente, reflexão ativa sobre as questões
suscitadas pelo crime ambiental.
Território, comunidade e patrimônio são as referências para um Museu de Território.
A gestão de Bento Rodrigues deve “[...] articular os dois níveis de atores ali envolvidos: os
moradores, atingidos pela tragédia, e a sociedade brasileira, para a qual aquela localidade
passou a representar uma referência cultural inescapável” (CASTRIOTA, 2019, p. xxii).

105
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A NARRATIVA DOS ATINGIDOS

Os trechos das reportagens a seguir foram selecionados de maneira a expor uma


breve abordagem a respeito da situação na qual se encontram os atingidos[2] e de seus
impasses com a Fundação Renova e a Samarco. Objetiva-se demonstrar a contrapartida
do que é midiatizado por ambas instituições na voz de quem vivenciou o crime ambien-
tal. Essa contrapartida será abordada por meio depoimentos de moradores de Bento
Rodrigues ao Jornal A Sirene. Esse periódico é mantido através de um acordo firmado
entre os atingidos, o Ministério Público e a Arquidiocese de Mariana. A Sirene começou
suas publicações em fevereiro do ano de 2016 e mantem edições mensais. Estas relatam
as dificuldades enfrentadas pelos atingidos, assim como, denúncias contra a empresa
Samarco e suas terceirizadas. Prestam esclarecimentos às comunidades atingidas e se
põe como um meio para trocas de experiências entre os antigos vizinhos.
A edição do periódico dos atingidos datado de julho de 2018 traz na reportagem:
Projeto dos arquitetos ou das famílias? os impasses travados com as intransigentes deter-
minações da Fundação Renova para com o projeto das casas no Novo Bento. A matéria
foi escrita por Antônio Geraldo, Genival Pascoal e Marcos Muniz, com o apoio de Flávio
Ribeiro e Assessoria Técnica da Cáritas, Organismo da Conferência Nacional dos Bispos
do Brasil (CNBB). A reportagem aponta uma preocupação por parte da comunidade e
da Assessoria Técnica dos atingidos. A Fundação Renova/Samarco poderia se utilizar da
angústia da espera de 2 anos e 8 meses (até o momento da edição) para fazer com que
suas propostas prevaleçam frente a dos atingidos. Genival Pascoal, morador de Bento
Rodrigues, diz que:
[...] a comunidade também reivindicou informações sobre como serão
tratados os casos específicos, como aqueles que envolvem herança, divór-
cio, formação de novos núcleos familiares, construção de casas em lotes
diferentes, mas de uma mesma família, entre outros (A SIRENE, 2016, p.4).
Sobre os próximos passos adotados pela Renova/Samarco a matéria destaca:
Os apontamentos realizados pela comunidade e Assessoria foram apre-
sentados em reunião no dia 12 de junho, com a presença da Renova/
Samarco e da Secir (Secretaria de Cidade e de Integração Regional). A

[2] Segundo o Prof. Willian Menezes do Departamento de Letras – UFOP, o conceito de atingido
é o “[...] sujeito de direitos- um cidadão- que sofreu perda (material, psicológica, simbólica,
ambiental etc.) em decorrência de um fenômeno externo e cujo responsável é um outro sujeito
(no caso a Mineradora) ” (A SIRENE, 2016, p.8).

106
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

fundação/empresa não concordou com todos os pontos, evitando falar,


por exemplo, sobre quando e como as famílias poderão visitar seus lotes.
Os (As) atingidos (as) também exigem o direito de poderem revisar seus
projetos, caso não esteja de acordo com sua vontade, sem que isso seja
usado como argumento nos atrasos do processo (A SIRENE, 2016, p.4).
Mediante ao exposto percebemos a manipulação da fundação/empresa sobre os
rumos da construção do novo assentamento que influenciará diretamente na qualidade
de vida dessa população devastada pelos interesses financeiros e políticos do mercado.
A proposta da construção do Dique S4 por parte da Samarco foi dada pela justifi-
cativa de conter os rejeitos que ainda permaneceram na barragem visto que o período
de chuvas se aproximava. Contudo, no ponto de vista dos atingidos de Bento Rodrigues
o local de construção do dique se difere veemente quanto a justificativa dada pela
empresa. Na edição de outubro de 2016 do jornal A Sirene por meio da matéria, Nem na
minha casa eu mando mais, escrita por Antônio Santos, aborda o posicionamento de um
atingido de Bento Rodrigues dado antes da autorização do governo para desapropriação
dos terrenos em prol da construção do dique. Antônio Santos relata que:
Nos tornamos um empecilho para as empresas, que só não encontraram
uma maneira de comprar a vida das pessoas, pessoas simples, mas com
raízes profundas. Um povo que amava seu cantinho e sua história, que
contava no começo de Minas Gerais e mostrava que não havia dinheiro
que valesse a liberdade e o orgulho. Surgiu, então, a oportunidade: a
barragem de Fundão estava instável, corria riscos de romper. O que fazer?
Resolver o problema da barragem ou tomar posse do Bento? Sabemos
as respostas (A SIRENE, 2016, p.16).
A fala do atingido Antônio só reforça a ideia defendida anteriormente, do domínio
exercido no bojo da necropolítica, na qual temos a priorização dos números financeiros
em relação à demanda humana. Os trechos das entrevistas ajudam na compreensão da
atual situação dos atingidos mediante a diversas dificuldades. As falas explanam o posi-
cionamento nefasto da fundação/empresa para com os atingidos, indo na contramão
do que é divulgado por ambas à sociedade.

107
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONCLUSÃO

Podemos concluir, a partir do Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues, que o


espaço físico, com seu suporte material, assim como, os remanescentes do antigo povo-
ado foram considerados elementos essenciais para a formação e transmissão de uma
memória coletiva. Esta memória coletiva, enquanto patrimônio imaterial, é que dará
suporte à criação do Museu de Território. Bento Rodrigues enquanto Sítio de Memória
Sensível e Sítio de Consciência permitirá a reflexão sobre a tragédia de Mariana. No
que tange as estratégias para sua preservação será preciso ainda, neste novo ambiente
pós-catástrofe, fruto do crime ambiental, se construir processos participativos de gestão
do patrimônio cultural da área atingida. No âmbito da necropolítica e do necropoder
podemos refletir sobre os interesses globais que vão na contramão dos novos conceitos
de identidade ou memória nacional.
O ciclo necrocapitalista e neoliberofascista promove a desterritorialização à custa
de impactos que causam nas populações de baixa renda, nas comunidades tradicionais,
àqueles que vivem à margem dos lucros, perdas irreparáveis. Somente a realização de
um acordo por uma coletividade global, mediante comunicação e reconhecimento, nos
distanciará do atual estado de guerra mal sublimada.
A narrativa dos atingidos expõe a lógica desta guerra mal sublimada imposta pelo
sistema neoliberofacista. Corpos humanos podem ser destruídos. Comunidades humanas
são consideradas descartáveis e supérfluas. Não há histórias ou memórias relevantes. O
meio ambiente pode ser destruído. Paisagens podem ser devastadas. A atuação da Samarco
S.A. e suas terceirizadas, com a subserviência do poder público brasileiro, faz surgir no
nosso contexto pós-colonial os representantes do sujeito supérfluo, portador de uma
vida matável. A Samarco S.A. vem demonstrando no Brasil que pode ditar: quem pode
viver e quem deve morrer. Parafraseando Achille Mbembe, com a tragédia de Mariana,
vemos que a era do humanismo está terminando.

108
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

CASTRIOTA Leonardo Barci (Coord.). Dossiê de Tombamento de Bento Rodrigues.


Belo Horizonte: ICOMOS/BRASIL; IEDS (Instituto de Estudos do Desenvolvimento
Sustentável); PPACPS (Programa de Pós-Graduação em Ambiente Construído e
Patrimônio Sustentável) /Universidade Federal De Minas Gerais, 2019.

ESPÍNDOLA, Haruf Salmen; GUERRA, Cláudio Bueno. “Desastre da Samarco: uma


Revista do Lhiste. Porto Alegre: Laboratório de
Ensino de História e Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
vol.4, N.6, pp.221-235.

Área conhecida como Lavoura deverá abrigar o novo distrito. Comunidade foi
destruída pelo rompimento da barragem da Samarco. G1: Minas Gerais. Minas
Gerais, 7 maio 2016. Disponível em: http://glo.bo/1UIe130. Acessado em: 30 de
Agosto de 2019.

Disponível em: https://issuu.com/jornalasirene/docs/julho_2018_issuu. Acessado


em: 30 de agosto de 2019.

GIFFONI, Raquel; COELHO, Tadzio; MAIA, Maiana. A Mineração vem aí... E agora?
Um guia prático em defesa dos territórios. Rio de Janeiro: FASE - POEMAS,2019.

Narrativa Fotojornalísticas da tragédia de Mariana – MG e


intervenções socioambientais

LE GOFF, Jacques . História e Memória. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1994.

MBEMBE, Achille. “Biopoder Soberania Estado de Exceção Política da Morte”. Arte


& Ensaios. Rido de Janeiro:

Disponível em: https://issuu.com/jornalasirene/docs/asirene_ed5_agosto_issuu.


Acessado em: 30 de agosto de 2019.

109
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

NORA (org). Les lieux de mémoire

PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. 43. ed. São Paulo: Ed.
Brasiliense, 2012.

RAFFESTIN, Claude. São Paulo: Editora Ática S.A, 1993.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: A formação e o sentido de Brasil. 2ª ed. São


Paulo: Companhia das Letras, 1995.

RIBEIRO, L. L.. Necropolítica do Capital: crítica da economia política e seus


arroubos parasitários e teológicos no Brasil do século XXI. 1. ed. Fortaleza, 2017.

SANTOS. Antônio.” Nem na minha casa eu mando mais”. A Sirene. N.7, pp.16.
Disponível em: https://issuu.com/jornalasirene/docs/sireneoutubro_issu.
Acessado em: 30 de agosto de 2019.

que não são rentáveis”. El Diário. Publicado em 11 de julho de 2017. Disponível


em: http://www.eldiario.es/catalunyaplural/neoliberalismo-aplica-necropolitica-
personas-rentables_0_479803014.html. Acessado em: 15 de janeiro de 2020.

110
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO: Patrimônio, escalas e processos

YLLANA, Teba Silva


Doutora em Urbanismo; DAU/CTU/UEL
teba@uel.br

PARAIZO, Rodrigo Cury


Doutor em Urbanismo; LAURD/PROURB/FAU/UFRJ
rparaizo@fau.ufrj.br

111
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O artigo busca explicitar os valores patrimoniais do calçadão de Copacabana, entendido a partir
da noção de objeto patrimonial urbano dentro de uma paisagem cultural específica. Trata-se
de um caso excepcional de associação entre qualidades urbano-paisagísticas com uso intenso,
constituído a partir de uma base material relativamente simples e, por isso mesmo, de conser-
vação e apropriação bastante delicadas. O exame histórico da constituição do bem patrimonial
serve para apontar como seus valores de interpretação se construíram ao longo do tempo.

PALAVRAS-CHAVE: Copacabana. Burle Marx. século XX. cultura de praia. valores patrimoniais.

A BSTRACT
The article seeks to explain the heritage values of the Copacabana boardwalk as an urban
heritage object within a specific cultural landscape. It is an exceptional case of association
between urbanistic and landscape qualities with intense use, constituted from a relatively simple
material base – and, for this very reason, of very delicate conservation and appropriation. The
historical examination of how this heritage object was constituted serves to point out how its
key interpretation values were built over time.

KEYWORDS: Copacabana. Burle Marx. 20th century. beach culture. heritage values.

RESUMEN
El artículo busca explicar los valores patrimoniales del paseo marítimo de Copacabana, enten-
dido desde la noción de objeto de patrimonio urbano dentro de un paisaje cultural específico. Es
un caso excepcional de asociación entre cualidades de paisaje urbano con uso intenso, constituido
a partir de una base material relativamente simple y, por esta misma razón, de muy delicada
conservación y apropiación. El examen histórico de la constitución del bien patrimonial sirve
para señalar cómo se construyeron sus valores de interpretación a lo largo del tiempo.

PALABRAS-CLAVE: Copacabana. Burle Marx. siglo XX. cultura de la playa. valores patrimoniales.

112
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

O calçadão de Copacabana é um caso excepcional de associação entre qualidades


urbano-paisagísticas com uso intenso. O objetivo deste artigo é explicitar os valores
patrimoniais do calçadão, ajudando a aprimorar as diretrizes de conservação desse
bem patrimonial.
O suporte material do calçadão, por assim dizer, é constituído pelo mosaico em
pedra portuguesa e pela vegetação. O desenho do calçadão, em especial o motivo das
ondas, é uma presença forte no imaginário mundial a representar tanto a cidade do Rio
de Janeiro quanto o próprio Brasil. A vegetação, por outro lado, sendo elemento essencial
do projeto de 1971 feito por Burle Marx, contribui sobremaneira para dar suporte às
atividades que conferem ao espaço a sua dinâmica característica.
A questão sobre a qual nos debruçamos é justamente como preservar a força desses
elementos face a essa dinâmica, ao longo do tempo. Até que ponto o desenho do piso pode
ser alterado sem perder sua identidade? Até que ponto essa identidade, infinitamente
repetida na economia simbólica do turismo, ainda se comunica com o objeto real, ou
lhe transcende? Como preservar a paisagem simbólica, em especial de um símbolo que
tem na dinâmica cotidiana humana da paisagem um de seus grandes valores, com uso
intenso, contínuo e múltiplo? Nesse sentido, o calçadão oferece uma série de elementos
fundamentais para a reflexão.
Na primeira parte, iremos estabelecer a abordagem patrimonial pretendida, enten-
dendo o patrimônio como a gestão e transmissão dos objetos do passado e de seus
valores. Em seguida, será discutida a questão da paisagem cultural e sua tutela patrimo-
nial; finalmente, esses conceitos serão estudados a partir do calçadão de Copacabana,
entendido como objeto patrimonial urbano dentro de uma paisagem cultural específica.
Este artigo foi escrito a partir da tese de doutorado em Urbanismo chamada “Rochas,
desenhos e desígnios: o Calçadão de Copacabana”, defendida em 2019 por Teba Silva
Yllana no PROURB/FAU/UFRJ.

PATRIMÔNIO URBANO, PRESERVAÇÃO E PAISAGEM CULTURAL

A palavra “patrimônio” está espalhada em diversos domínios e seu significado, em


cada um deles, ecoa nos outros: em Direito, por exemplo, temos a noção de um objeto
passado de uma geração a outra e as possibilidades implícitas de usufruto presente
desse objeto; em Genética, a passagem de um legado familiar é atualizada no momento
mesmo da concepção, na combinação das contribuições genéticas dos pais e na atua-

113
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ção posterior do ambiente sobre essa preconfiguração de elementos. Para aqueles que
lidam com edificações e documentos históricos, o patrimônio, entendido como uma das
maneiras de lidar com o passado, um modo diretamente disponível aos sentidos, como
nota Lowenthal (2005, p. 245), refere-se à utilização, gerenciamento e transmissão social
de objetos selecionados desse passado, incluindo a sua interpretação social segundo
os valores do presente. O patrimônio cultural concentra-se na transmissão de valores
sociais, visando à coesão da coletividade e ao estabelecimento de identidades, ainda que,
segundo Lynch (1972, p. 53), inclua as interpretações conflitantes.
O patrimônio é um desenvolvimento moderno do conceito de monumento (CHOAY,
2001). Enquanto o monumento pode ser visto como uma invariante cultural, em especial
na forma de marcos físicos fúnebres, mas em ambos será difícil encontrar sociedade
humana sem algum tipo de mecanismo de produção monumental – o patrimônio é
um tipo de objeto cultural bastante mais específico e localizado no tempo e no espaço.
O patrimônio é fruto das Revoluções Francesa e Industrial – podemos traçar suas ori-
gens na França, em 1837, com a Primeira Comissão dos Monumentos Históricos (CHOAY,
2001) – quando as mudanças na sociedade ocidental criaram uma ruptura na percepção
temporal cotidiana e na própria hierarquia de valores sociais.
Gonçalves (1996, p.89) considera a retórica da perda como estratégia discursiva
essencial para a constituição de uma cultura nacional, em especial a partir do patrimô-
nio. Mais do que implicar que só pode existir a perda uma vez constituído o patrimônio,
é preciso reconhecer que a iminência da perda faz parte de sua essência. Freire (1997, p.
101) considera mesmo que a visibilidade do monumento aumenta – ou só é possível –
com seu desaparecimento.
Se, de acordo com Fonseca (2005, p.25), a noção de patrimônio artístico e histórico
emergiu no contexto da formação dos estados-nações e da ideologia do nacionalismo, o
patrimônio cultural responde simultaneamente a organizações internacionais e comu-
nidades locais. Ele provê elementos para a comunicação simbólica entre os membros da
coletividade, uma base comum pela qual ela própria pode se identificar, e criando um
sentido de estabilidade (LYNCH, 1972, p.40).
Em 1903, Alois Riegl apresentou “O Culto Moderno dos Monumentos” (Der moderne
Denkmalkultus), uma sistematização da classificação de monumentos a partir de suas
reflexões como historiador da arte. Nessa obra, Riegl (1993) discorre sobre valores que
atribuímos aos monumentos, que se tornam portadores, mais do que de informação, de
significados. Os monumentos têm um poder de comunicação que precede suas eventuais
atribuições, e é relativamente independente da formação cultural do observador: eles
transmitem o senso de passado, ou, na descrição de Riegl, o valor de antiguidade (1993,

114
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

p.46); ou, nas palavras de Lowenthal, sobre os objetos sagrados: “Para a maioria das pessoas,
as relíquias tornam o passado mais importante, mas não mais conhecido ” (2005, p.249).
Quando o aparato da designação é posto em movimento ou simplesmente quando
há uma necessidade afetiva de nomeá-lo e de lhe conferir uma narrativa, ainda que
imaginada, esses objetos se tornam recipientes de versões qualificadas do passado. De
acordo com Riegl (1993), esses valores são de duas ordens: valores de rememoração, que
incluem os valores de antiguidade, de rememoração intencional e histórico-documental;
e valores de atualidade, compreendendo os valores de uso e de arte, este último ainda se
subdividi em valores de novidade e de obra de arte relativa. Esses objetos patrimoniais
não possuem significados fixos, sendo seus sentidos atribuídos pelas diferentes socie-
dades que entram em contato com eles.
Após a Segunda Guerra Mundial, de acordo com Figueiredo (2014, p.417), a noção
de monumento foi ampliada para conjuntos urbanos, levando em conta diversas carac-
terísticas morfológicas, históricas e funcionais, possibilitando à criação e proteção dos
centros históricos. Essa mudança acarretou a necessidade de se incluir as políticas patri-
moniais no planejamento urbano dos municípios, como explicita Castriota (2007), sem
o que tais políticas estarão sujeitas a interrupções ou mesmo a nem serem aplicadas.
Em 1975, a Declaração de Amsterdã definiu o conceito de reabilitação ou revitali-
zação. As principais inovações desse documento estão relacionadas com a explicitação
da necessidade de evitar alterar a composição social dos habitantes dos bairros antigos,
assegurando que todas as camadas da sociedade se beneficiem das operações financia-
das por fundos públicos – o que inclui ainda a ajuda financeira direta ou por renúncia
fiscal aos proprietários de imóveis nesses locais (IPHAN, 1975). Na conclusão, a Declaração
aponta para a necessidade de preservação dos conjuntos edificados: “cidades históri-
cas, os bairros urbanos antigos e aldeias tradicionais, aí incluídos os parques e jardins
históricos”, entendendo que são as áreas e seus moradores, que devem ser preservadas,
tanto ou mais do que os objetos isoladamente.
No que se refere à paisagem, segundo Cauquelin (2007, p.35-36), alguns autores
creditam a origem do termo ao poeta Francisco Petrarca que, em 1336, ao subir o Monte
Ventoux, na Provence, haveria se entregado ao prazer do olhar contemplativo. Outros
situam o conceito por volta de 1415, com o aparecimento do manuscrito Horas de Turim,
atribuído a Hubert van Eyck, na Holanda. Seja como for, temos o surgimento de um con-
ceito de paisagem entre os séculos XIV e XV, em um contexto renascentista, relacionado
ao prazer da contemplação e à fruição da natureza, como um exercício estético a partir
do olhar humano.

115
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

No início do século XX, a American Society of Landscape Architecture (ASLA), pri-


meira entidade corporativa de paisagistas, definia Arquitetura Paisagística como a “Arte
de adequar a terra para uso e deleite humanos”. A partir da década de 1950, a instituição
começou a refletir sobre a dimensão ecológica da paisagem, aprimorando esta definição
de forma a incorporar as complexidades que essa prática foi adquirindo.
Embora o termo “paisagem cultural” tenha se originado na Geografia, com Carl
Ortwin Sauer, na obra “A Morfologia da Paisagem” (1925) e, posteriormente, tenha sido
expandido por Denis Cosgrove, seu discípulo, ambos foram fortemente influenciados
pelos estudos de paisagem de John Ruskin, no século XIX, que preconizavam aliar a
experiência da paisagem à ciência, de modo a entender como se estabelecem seus signi-
ficados (CORREA, 2011, p. 11). Na década de 1970, os Estados Unidos consolidaram essas
transformações epistemológicas, teóricas e metodológicas da disciplina, de maneira
bastante profunda. De acordo com Correa (2011, p. 12-13), Cosgrove vê na paisagem um
meio de expressão da vida e valores humanos, de caráter multidimensional, igualmente
responsável por formar a cultura daqueles que habitam essa paisagem.
Dentro do Urbanismo, essa mudança de pensamento começou a se manifestar,
de forma mais expressiva, a partir de 1990 em teóricos como James Corner que, a par-
tir de Cosgrove e da Geografia Cultural, constataram que as cidades não poderiam ser
reduzidas a infraestruturas como os sistemas de esgotos ou de transportes, tampouco
pautadas apenas por medidas de conservação ambiental desvinculadas dos espaços
urbanos e de seus habitantes. Com isso, os espaços de lazer e convívio passaram a ter
maior importância no desenvolvimento das cidades, sedimentando a importância de
entender a paisagem enquanto um produto da relação entre vida humana e natureza.
Corner (1999, p.2-5) defende que a paisagem “é um meio contínuo de trocas, embe-
bido e envolvido pelas práticas imaginativas e materiais de diferentes sociedades, nos
diferentes tempos”, construído a partir das ações e visões individuais. A partir deste
ponto, compreendeu-se que as interações sociais também produzem conteúdos no espaço
urbano que “extrapolam a visibilidade e se fazem sensíveis também por meio de relações
intangíveis de significações, práticas e referências culturais.” (CRESTANI; KLEIN, 2016,
p.141). Vemos, então, que a Paisagem Cultural, desde sua origem, está intrinsecamente
ligada à imagem construída sobre o lugar, não apenas explicando seu caráter imaterial,
mas vinculando os indivíduos aos seus espaços naturais.
A cidade, entendida como artefato cultural, é constituída por camadas de relações
sociais que são configuradas e reconfiguradas indefinidamente através das gerações, e
apenas o que tem valor é conservado, considerando não apenas sua materialidade, mas
sua imagem, seus fazeres e apropriações, fixando-as numa memória coletiva (CORNER,

116
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

1999). Desta forma, Corner retoma a Teoria dos Fatos Urbanos de Aldo Rossi (1995, p.17-19),
que compreende a cidade como artefato coletivo no tempo, antes de tudo, uma imagem
de elementos permanentes, fatos urbanos constituídos a partir da individualidade, do
lócus, da memória e do desenho da cidade. Nesses fatos urbanos, de acordo com Rossi,
estaria contida a “alma da cidade”.
No Brasil, depois da instituição da chamada “Chancela da Paisagem Cultural Brasi-
leira”, em 2009, quase todas as cidades estão revendo suas legislações urbanas com vistas
a estabelecerem algum tipo de política patrimonial. Assim, segundo Figueiredo (2014,
p.13), encontramos três tipos de gestão adotados pelas administrações públicas: “uma
referenciada na concepção de monumento, outra, na de patrimônio cultural e a terceira
na de paisagem cultural”, ainda que esta última mais indique um caminho de valori-
zação do patrimônio imaterial do que uma gestão pública mais específica (2014, p.429).
Constatamos que a evolução dos conceitos ainda não está acompanhada pelas
políticas de gestão patrimonial que, em sua maioria, seguem presas ao conceito tradicio-
nal de monumento, numa relação direta entre preservação e tombamento (CASTRIOTA,
2007, p.13). Nesse sentido, o conceito contemporâneo de Patrimônio Ambiental Urbano,
desenvolvido em meados do século XX, foi fundamental para a prática do Patrimônio,
pois ampliou o conceito tradicional de monumento isolado, alcançando as paisagens
urbanas como um todo, inclusive com seus espaços públicos, até então desconsiderados,
passando da preservação à conservação. No dizer de Castriota (2007, p.17), “pensar a cidade
como um ‘patrimônio ambiental’ é pensar, inicialmente, no sentido histórico e cultural
que tem a paisagem urbana em seu conjunto, valorizando não apenas monumentos
‘excepcionais’, mas o próprio processo vital que informa a cidade.”
Essa ampliação no conceito, que passa a incluir o ambiente, seja o entorno urbano,
seja a natureza, gera uma importante mudança de postura na salvaguarda, até então
matéria exclusiva do Poder Público. Quando falamos em ambiente, é preciso entender
que se trata não de um objeto isolado, mas de um conjunto espacial vivo, que, devido à
sua complexidade, necessita tanto de conservação contínua como da inclusão de atores
provenientes das mais diversas áreas. É interessante perceber ainda que, no que se refere
aos atores envolvidos, como no modelo da conservação, o Estado continua sendo o pro-
tagonista, apesar de já se perceber a necessidade de participação das comunidades e da
iniciativa privada. A ação estatal, no entanto, vai ser diferente, deixando de ser apenas
uma reação especial a casos excepcionais e passa a ser uma ação contínua, parte integral
de um processo de planejamento urbano (CASTRIOTA, 2007, p.19).

117
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

UM BREVE HISTÓRICO DO CALÇADÃO DE COPACABANA

A configuração geológica da região da praia de Copacabana, “cercada por vários


morros em forma de anfiteatro, do Morro dos Cabritos até a Pedra do Leme, passando
pela Pedra da Babilônia e pelo Morro de São João, que espremem uma tímida planície
marinha” (MOTTA, 2017, p.171), confere-lhe uma forma harmônica tendo o mar como
palco e a ocupação humana conformada pelo arco rochoso. A harmonia do conjunto
encontra registro desde os primeiros visitantes da região, como o inglês Daniel Parish
Kidder, que deslumbrado com o barulho do mar, sugeria: “Quem quisesse se deliciar
ouvindo o murmúrio surdo das ondas que vêm do Atlântico não poderá escolher ponto
mais conveniente” (O’DONNELL, 2014, p.29).
A ocupação de Copacabana começou em meados do século XIX, mas se consolidou
de fato no início do século seguinte, como parte do movimento de expansão do Rio de
Janeiro para o sul ao longo das praias, estimulado pelo Prefeito Pereira Passos (ANDRE-
ATTA CHIAVARI e REGO, 2009, p.09).
A curva da Av. Atlântica, por sua vez, começou a ser fixada, tal como a conhecemos
hoje, nos PAs - Projetos de Alinhamento de 1905, mas a sua construção se iniciaria de
fato somente por volta de 1909, ajudando a estruturar o que viria a ser uma das paisa-
gens mais icônicas da cidade. É notável que a geometrização ganhou prioridade sobre
o distanciamento da praia, por exemplo, não considerando as curvas topográficas,
tampouco a cota de alagamento, avançando em direção ao mar em diversos pontos ao
longo da avenida. As constantes ressacas causavam a frequente destruição de trechos da
avenida, que ganhou uma muralha de proteção na reconstrução quase total que sofreu
em 1919, mas apenas com o alargamento da Avenida, em 1969, é que se chegou a uma
solução mais duradoura e resistente.
A Avenida, paralela ao mar, teve também como característica mudar a orientação
da ocupação do bairro, que tinha até então na Rua Tonelero, transversal à praia, o maior
foco de atração de novos moradores. Em 1920, a avenida Atlântica já estava totalmente
urbanizada, com elegância e sofisticação, exibindo um dos primeiros calçamentos em
pedra portuguesa do Brasil, pista dupla e iluminação. À época, predominavam nela os
“palacetes” e “vilas”, assim chamados devido ao porte, luxo e ostentação, conferindo um
ar europeu a essa paisagem tropical marítima.
No primeiro calçamento da avenida Atlântica executado pelos portugueses, o
padrão chamado “mar largo”, com as ondas bicolores, característico do Largo do Rossio,
em Lisboa, foi executado perpendicular às ondas do mar (CARDOSO et al, 1986; TEIXEIRA,
2005; LISBOA, 2011). No entanto, pelo menos a partir de 1925, com as constantes reconstru-

118
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ções do calçadão devido às ressacas, a orientação do desenho progressivamente mudou,


deixando as ondas paralelas ao mar, com ligeira alteração no desenho, resultando em
uma onda mais alta e encorpada que na versão portuguesa original, um desenho que
aqui chamamos de “onda copacabanense”.
Fotografias da época sugerem que esse desenho também foi executado em ladri-
lho hidráulico, até ser definido em pedras portuguesas. Apesar do padrão paralelo ter
sido utilizado, em variados pontos do calçadão, foi apenas em 1969, com as obras de
implementação do novo projeto paisagístico da orla, que a “onda copacabanense” foi
executada em toda a extensão do calçadão.
Em 1964, após estudos de saneamento iniciados em 1958, motivados pelo vertigi-
noso crescimento de Copacabana, a Prefeitura decidiu executar obras de alargamento
da av. Atlântica, com a contratação do LINEC - Laboratório Nacional de Engenharia Civil
de Lisboa, que definiu o alargamento do areal da praia em 80m, iniciando os trabalhos
que, além do aterramento, incluíram a construção de um interceptor oceânico e uma
série de levantamentos e estudos demográficos sobre o bairro.
Nessa obra a calçada da orla passou de 3m para 10m de largura, tornando-se efe-
tivamente um Calçadão e a aplicação da onda foi feita por meio de uma ampliação que
também alterou a natureza do desenho, mudando a combinação de curvas elípticas
para circulares. Apesar da autoria do projeto paisagístico da orla executado entre 1970
e 1971 ser de Burle Marx, as evidências indicam que a adoção da “onda copacabanense”
para toda a orla já teria sido decidida pela SURSAN - Superintendência de Urbanização
e Saneamento do Estado da Guanabara, antes do contato com o paisagista. De fato, os
desenhos de Burle Marx para o projeto incluem apenas a faixa central e a faixa junto aos
edifícios, e nunca a faixa da orla; por outro lado, o projeto de Burle Marx para o MAM, de
1960, já tinha uma ampliação da onda, com pedras vermelhas e brancas. De qualquer
modo, a onda com o tamanho original foi incorporada, à composição do piso criado
por Burle Marx em Copacabana, sendo o único tema que se repete ao longo dos seus
4,5km de extensão.

PROTEÇÃO E VALORES PATRIMONIAIS

O calçadão de Copacabana possui um tombamento municipal e outro estadual;


além disso, está protegido pelo título conferido pela Unesco ao Rio de Janeiro, na cate-
goria paisagem cultural. O tombamento estadual (E-18/000.030/91), apesar de se referir
ao “conjunto urbano-paisagístico nas praias do Leme, Copacabana, Ipanema e Leblon”,
versa quase que inteiramente sobre Copacabana e o Calçadão, trazendo também um

119
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

importante levantamento das espécies arbóreas usadas por Burle Marx para compor
aquela paisagem.
O Decreto Municipal nº 30.936, de 4 de agosto de 2009, homenageia o centenário
de nascimento de Burle Marx, e, com apenas 7 páginas, busca a salvaguarda provisória
de todas as obras paisagísticas do artista na cidade do Rio de Janeiro, essencialmente
estabelecendo que alterações nessas obras devem ser previamente submetidas aos órgãos
de tutela. O Calçadão aparece como uma das 84 obras listadas, descrito brevemente
como “Paisagismo do calçadão da Praia de Copacabana, localizado na Avenida Atlântica”.
O título de Patrimônio Mundial da Unesco foi obtido pela cidade do Rio de Janeiro
em 2012, na categoria paisagem cultural, apresentando três setores da cidade com
características que justificam o título. A orla de Copacabana é mencionada tanto como
exemplo de “Paisagem desenhada intencionalmente” quanto de “Paisagem associativa”,
neste último caso sendo destacado o paisagismo realizado por Burle Marx na Praia de
Copacabana e no Parque do Flamengo. Esta categoria é especialmente importante por-
que envolve áreas de mar e montanha que “fazem parte do imaginário social sobre a
paisagem da cidade em representações literárias e pictóricas realizadas por brasileiros
e estrangeiros” (LODI, 2011, p. 9). Ressalte-se que a chancela da Unesco não implicou no
tombamento nacional, de maneira que o IPHAN não tem responsabilidade sobre o sítio.
De acordo com o IPHAN, a primeira tentativa de candidatura ao título, formalizada
entre 2001 e 2003 incluiu três áreas: o Parque Nacional da Tijuca, o Jardim Botânico e
os morros Pão de Açúcar, Urca e Cara de Cão, apresentado na categoria “sítio misto”. A
segunda tentativa, entre 2004 e 2005, embora tenha sido acrescentado um plano de
gestão e conservação, não foi apresentada à UNESCO por decisão do Ministério das
Relações Exteriores e da Presidência devido a conflitos sociais e ambientais de um lado
e interesses financeiro-especulativos de outro.
Na terceira e última tentativa, entre 2008 e 2012, houve uma considerável mudança
de postura, onde, apesar das áreas escolhidas continuarem “elegíveis”, elas tiveram seus
elementos permanentes ressaltados. Assim, a estátua do Cristo Redentor, no Corcovado,
e o Jardim Botânico se destacaram como pontos relevantes na área do Parque Nacional
da Tijuca, além de terem sido incluídas a enseada de Botafogo, a praia de Copacabana e
o Parque do Flamengo, transformando aquele “sítio misto” em “sítio cultural” e, assim,
passando a concorrer na categoria “paisagem cultural” em plena sintonia com a iden-
tidade nacional. Há que se ressaltar o momento favorável do Brasil na UNESCO e o
empenho do poder público na aquisição do título, divulgando amplamente as paisagens
inscritas, além de promover várias melhorias urbanas e sociais nessas áreas. Inúmeros
instrumentos legais foram desenvolvidos e inclusos na revisão do Plano Diretor com

120
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

intuito de conferir à cidade um caráter ambiental e sustentável, alinhando-a ao conceito


de paisagem da UNESCO.
A proteção e preservação do patrimônio estão entre os cursos de ação mais utili-
zados em relação aos objetos patrimoniais atualmente. A proteção ganhou mais força
ao ser associada a uma visão ecológica relacionada com a sustentabilidade e com pro-
ver às gerações futuras um leque de escolhas amplo. A apresentação do patrimônio
cultural leva em conta que o valor dos objetos patrimoniais deriva da informação que
associamos a eles, tanto em quantidade quanto em qualidade. Essa informação é prin-
cipalmente histórica e contextual, mas poderia incluir dados quantitativos como custos,
dimensões, quantidade de visitantes e, fundamentalmente, estar associada a ações
específicas, desenvolvidas pelos órgãos públicos responsáveis por sua manutenção. Em
outras palavras, objetos patrimoniais devem estar associados a informações históricas
e contextuais de forma a potencializar seus valores na economia simbólica em que
vivemos, aprimorando sua gestão. Nesse espírito, chama atenção, por exemplo, o fato
do Rio de Janeiro ser a cidade com mais calçadas em pedra portuguesa do mundo, mas
não possuir “calceteiros” (pedreiros especializados nesse material) nos seus quadros de
funções do poder público, colocando em risco uma tradição herdada dos portugueses e
que se tornou uma identidade paisagística brasileira.
A constatação dessa identidade fica clara com o processo de obtenção do título
de Patrimônio Mundial, onde houve a necessidade de se tornarem explícitos os valores
de uma “Paisagem desenhada intencionalmente” que reforça a “identidade nacional”
através de seu aspecto cultural em plena sintonia com o ambiente. Esses valores foram
percebidos desde cedo pelos “cilenses” (termo derivado da sigla CIL - Copacabana-Ipa-
nema-Leme/Leblon), primeiros moradores de Copacabana que proclamavam viver “no
éden da salubridade”, em completo “desfrute hedonístico”, conforme as descrições dos
jornais copacabanenses, como “Copacabana – O Novo Rio”, de 1907, e o “Beira-Mar”, de 1922.
Esses periódicos referiam-se a um modo de vida europeu idealizado para obter
aprovação dos novos e ousados hábitos que nasciam a todo instante, lançando modis-
mos como a pele bronzeada e as últimas tendências em vestimentas de banho. Afinal,
no início do século XX, ainda não havia um código social comum sobre como se vestir
para usufruir das águas salgadas, ou como se comportar nas areias. Mas mais do que
isso, nesse momento, era forjado em Copacabana o elo urbano-natureza, expressado
nos valores de sua paisagem e do seu modo de viver, posteriormente incorporado como
representativo da paisagem da própria cidade, tornando-se a primeira praia do Brasil
a unir natureza e cidade, tendo o lazer no foco de sua urbanidade e realizando aqueles
ideais civilizatórios.

121
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Esses valores encontram ressonância até os dias de hoje, entre os mais distintos
grupos de usuários do espaço, como corroborado pela pesquisa de campo. O contato com
moradores, turistas, ambulantes e donos de estabelecimentos da Avenida Atlântica nos
indicou que, se por um lado, há tensão entre a apropriação e a proteção do Calçadão,
por outro, os valores a ele associados estão bastante internalizados na comunidade, e de
forma razoavelmente homogênea e atenta. De forma geral, moradores e comerciantes não
apenas ressaltaram os elementos de iconicidade do calçadão, como souberam identificar
os pontos deficitários em sua manutenção, salientando, principalmente, o descaso com
a execução dos reparos nas pedras portuguesas por parte do poder público e o declínio
da qualidade dos serviços relacionados ao paisagismo, antigamente, concentrados na
Fundação Parques e Jardins e hoje, por razões políticas, fragmentado em vários órgãos, de
forma desarticulada, gerando, em muitos casos, retrabalho às expensas do setor privado.
Curiosamente, no entanto, uma das questões que notamos diz respeito ao pró-
prio reconhecimento do objeto protegido: a maior parte das pessoas reconhece como
“Calçadão de Copacabana” apenas o trecho junto ao mar, sem levar em conta o trabalho
de Burle Marx nos outros dois trechos (canteiro central e junto às edificações). Alguns
dos entrevistados do setor de hotelaria reconhecem as três faixas como patrimônio,
mas entendem a faixa das ondas como sendo mais significativa, e de maior procura e
reconhecimento pelos turistas. Nem sempre os mistérios da Arte e da Estética são ime-
diatamente visíveis aos olhos da maioria.

CONCLUSÕES

Houve, nesse percurso de formação do bem patrimonial, um amadurecimento


social, político, econômico e ambiental, que levou os atores da cidade a solucionarem
os problemas que impactavam sua paisagem num projeto integrado. Contudo, o poder
público está diante de uma tarefa árdua, devendo se mobilizar constantemente, se não
no âmbito legislativo, ao menos na gestão do objeto patrimoniado, com a implementação
de políticas de gestão específicas para o calçadão de Copacabana, onde a fiscalização é
essencial para a garantia de suas características identitárias.
A simplicidade de base da constituição do calçadão, o desenho do piso e a vegetação,
não tornam mais simples os seus cuidados, como atestam os atuais estados de conservação
dos dois elementos. Também não evidenciam o papel social desempenhado pelo espaço
por eles compostos, ou sua cultura de vivência à beira-mar, que constitui uma grande
força na identidade do próprio bairro e que, mesmo com as radicais transformações em
suas edificações, mantem seus valores inalterados.

122
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Por outo lado, a população mostrou reconhecer sua paisagem como um valor a ser
protegido e usufrui ativamente desse bem numa dinâmica paradoxal que ao mesmo
tempo que garante sua vitalidade o expõe a constantes modificações.
O desafio que se apresenta agora vem a ser: como se preservar essas paisagens
culturais e, ao mesmo tempo, satisfazer as pressões especulativas? Eis uma tarefa que
envolve não apenas o caráter estético, mas ambiental, econômico e social dessas paisa-
gens, responsáveis por estabelecer os vínculos afetivos que as tornaram culturais. Essa
responsabilidade resulta em ações contínuas e permanentes, onde a construção das
políticas públicas de proteção deve estar diretamente ligada à maneira como a paisa-
gem e o espaço público são tratados e como os usos e tradições são a eles incorporados,
respeitados e potencializados.
Bem precioso na urbanidade contemporânea, o espaço público deve ser preservado
na integridade de seu tecido urbano, repudiando toda ação especulativa e gentrificadora
em prol das comunidades e de suas dinâmicas cotidianas que mantêm a vitalidade e
garantem sua existência.

123
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

projetos e identidade carioca. Coleção Estudos Cariocas, n. 9, p. 1–18, dez. 2009.

CARDOSO, E. D. et al. História dos bairros: memoria urbana - Copacabana. Rio de


Janeiro: Joao Fortes Engenharia/Index, 1986.

CASTRIOTA, L. B. Intervenções sobre o patrimônio urbano: modelos e


perspectivas. Revista Fórum Patrimônio: ambiente, construção e patrimônio
sustentável, v. 1, p. 9–31, dez. 2007.

CAUQUELIN, A. A Invenção da Paisagem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001.

CORNER, J. Recovering Landscape: Essays in Contemporary Landscape


Architecture

Espaço e Cultura, v.
0, n. 29, p. 7–21, 1 jun. 2011.

Declaração de Amsterdã. Congresso de Amsterdã, 25 out. 1975. Disponível em:

DONNELL, J. A invenção de Copacabana: Culturas urbanas e estilos de vida no Rio


de Janeiro. Edição: 1 ed. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 2013.

Da tutela dos monumentos à gestão sustentável das


paisagens culturais complexas: inspirações à política de preservação cultural no
Brasil. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional)—[s.l.] Universidade
de São Paulo, 30 maio 2014.

FONSECA, M. C. L. O patrimônio em processo. Rio de Janeiro: UFRJ / MinC-Iphan,


2005.

FREIRE, C. Além dos mapas: os monumentos no imaginário urbano


contemporâneo. São Paulo: SESC / Annablume, 1997.

A retórica da perda: os discursos do patrimônio cultural


no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

124
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

LISBOA, C. T. DE. Mosaico Português: 100 anos na paisagem urbana de Campinas.


Dissertação (Mestrado em Engenharia Civil) —Campinas: Unicamp, 2011.

Dossiê de Candidatura do Rio de Janeiro – Paisagens Cariocas


entre a Montanha e o Mar IPHAN/PCRJ/Governo do Estado do Rio de Janeiro, 28

Acesso em: 26 abr. 2020

The Past is a Foreign Country. Cambridge: Cambridge University


Press, 2005.

What time is this place? Cambridge, Massachusetts: MIT Press, 1972.

MOTTA, M. Sobre Rochas Rio de Janeiro


2017.

RIEGL, A. Le culte moderne des monuments: son essence et sa genèse. Paris:


Éditions du Seuil, 1984.

RIO DE JANEIRO (cidade). Decreto Municipal no 9779 de 12 de novembro de 1990.


Declara Área de Proteção Ambiental o Conjunto Natural constituído pelo Morro
do Leme (ou Pedra do Leme), Morro do Urubu, Pedra do Anel, Praia do Anel e
Ilha da Cotunduba, situados nos bairros da Urca e do Leme.
Município do Rio de Janeiro, 14 nov. 1990.

ROSSI, A. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

SAUER, C. O. A morfologia da paisagem. In: CORREA, R.; ROSENDAHL, Z. (Eds.).


Paisagem Tempo E Cultura. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998. p. 12–74.

Copacabana. Jornal Copacabana Zona Sul, 2005.

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Urbanismo,


da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, em abril de 2019.

ZAIATZ CRESTANI, A. M.; DE ARAÚJO KLEIN, R. M. M. Espacio, imagen y memoria:


consolidación de los contenidos colectivos a la materialidad de la ciudad.
Territorios, n. 36, 30 jan. 2017.

125
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CASA DA FORÇA E LUZ:


ASPECTOS HISTÓRICOS
E ARQUITETÔNICOS DA
PRIMEIRA EDIFICAÇÃO
TOMBADA EM RIO DO SUL,
SC
CASA DA FORÇA E LUZ: HISTORICAL AND
ARCHITECTURAL ASPECTS OF THE FIRST
BUILDING OVERTURNED IN RIO DO SUL, SC

CASA DA FORÇA E LUZ: ASPECTOS HISTÓRICOS


Y ARQUITECTÓNICOS DEL PRIMER EDIFICIO
TOMBADO EN RIO DO SUL, SC
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

126
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RAMOS, Annelise Silveira


Acadêmica da nona fase de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário para o
Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí.
annelisesr@unidavi.edu.br

DETZEL, Carolina
Acadêmica da nona fase de Arquitetura e Urbanismo no Centro Universitário para o
Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí.
carolinadetzel@unidavi.edu.br

TONDELO, Patrícia Geittenes


Mestre em Arquitetura e Urbanismo e Professora no Centro Universitário para o Desen-
volvimento do Alto Vale do Itajaí.
ptondelo@unidavi.edu.br

127
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A cidade de Rio do Sul originou-se da expansão da Colônia Blumenau por meio de filhos de
imigrantes alemães e italianos. Em 1930, o distrito de Bela Alliança, foi desmembrado de Blu-
menau, tornando-se sede do município de Rio do Sul. Neste local está localizada a Casa da Força
e Luz, construída em 1946, também conhecida como Casa do Transformador, com o propósito de
potencializar a distribuição de energia elétrica em Rio do Sul e região. O objetivo deste artigo
é analisar aspectos arquitetônicos, históricos e também não históricos da primeira edificação
tombada em Rio do Sul. Para tanto foram realizadas pesquisas bibliográficas em acervos his-
tóricos, visitas in loco, levantamentos fotográficos e entrevistas com pessoas envolvidas. Com
relação aos aspectos históricos, constatou-se que a significância da edificação está vinculada
a fatos históricos que refletem a memória coletiva da população de Rio do Sul como o Ciclo da
Madeira e o Ato de Tombamento em 2004. Quanto aos aspectos arquitetônicos, pode-se afir-
mar que a edificação em estilo Art Déco se encontra mal conservada com danos que interferem
na leitura e composição arquitetônica, levando a concluir que ao longo do tempo não houve
tratamento compatível com o valor da edificação.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio arquitetônico. memória coletiva. tombamento. Alto Vale do Itajaí.

A BSTRACT
The city of Rio do Sul originated from the expansion of Blumenau Colony through the chil-
dren of German and Italian immigrants. In 1930, the Bela Alliança district was dismembered
from Blumenau, becoming the headquarters of the municipality of Rio do Sul. In this place is
located the Casa da Força e Luz, built-in 1946, also known as Casa do Transformador, with the
purpose to enhance the distribution of electricity in Rio do Sul and the region. The aim of this
article is to analyze architectural, historical and also non-historical aspects of the first listed
building in Rio do Sul. For this purpose, bibliographic research was conducted on historical
collections, on-site visits, photographic surveys and interviews with people involved. Regarding
historical aspects, it was found that the significance of the building is linked to historical facts
that reflect the collective memory of the population of Rio do Sul, such as the Madeira Cycle
and the Tombing Act in 2004. As for the architectural aspects, it can be affirmed that Art Deco
style building is poorly maintained with damages that interfere in reading and architectural
composition, leading to the conclusion that over time there was no treatment compatible with
the value of the building.

KEYWORDS: architectural heritage. collective memory. tipping. Alto Vale do Itajaí.

128
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
La ciudad de Rio do Sul se originó a partir de la expansión de Colônia Blumenau a través de los
hijos de inmigrantes alemanes e italianos. En 1930, el distrito de Bela Alliança fue desmembrado
de Blumenau, convirtiéndose en la sede del municipio de Rio do Sul. En este lugar se encuentra la
Casa da Força e Luz, construida en 1946, también conocida como Casa do Transformador, con el
propósito de para mejorar la distribución de electricidad en Rio do Sul y la región. El propósito
de este artículo es analizar aspectos arquitectónicos, históricos y también no históricos del
primer edificio catalogado en Rio do Sul. Para este propósito, se llevó a cabo una investigación
bibliográfica sobre colecciones históricas, visitas in situ, encuestas fotográficas y entrevistas con
personas involucradas. Con respecto a los aspectos históricos, se descubrió que la importancia
del edificio está vinculada a hechos históricos que reflejan la memoria colectiva de la población
de Rio do Sul, como el Ciclo de Madeira y la Ley de Tumbas en 2004. En cuanto a los aspectos
arquitectónicos, si se afirma que el edificio de estilo Art Deco está mal conservado con daños
que interfieren con la lectura y la composición arquitectónica, lo que lleva a la conclusión de
que con el tiempo no hubo un tratamiento compatible con el valor del edificio.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio arquitectónico. memoria colectiva. tumble. Alto Vale do Itajaí.

INTRODUÇÃO

A cidade de Rio do Sul originou-se da expansão da Colônia Blumenau, criada no ano


de 1850 pelo alemão Dr. Hermann Bruno Otto Blumenau com auxílio de mais dezessete
imigrantes alemães (CABRAL, 1970). A partir de 1893, colonos descendentes de imigrantes
transferiram-se da Colônia Blumenau, rio acima, para a localidade conhecida por Sudarm
(Braço do Sul). De acordo com Klug e Dirksen (1999), a localidade foi elevada à categoria de
vila em 1912 pela lei Municipal n° 61, constituído no 5º distrito de Blumenau, recebendo
o nome de Bela Alliança em alusão ao “Encontro dos Rios” Itajaí do Oeste e Itajaí do Sul
no entorno próximo do vilarejo. Em 1930, o distrito foi desmembrado de Blumenau,
tornando-se sede do município de Rio do Sul. Nesta várzea onde os rios se encontram
para formar o Rio Itajaí-Açú ocorreram fatos históricos significativos para a cidade Rio
do Sul, uma vez que antes da colonização, o espaço era usado para ritos indígenas, e após
ela serviu de espaço para primeiro cemitério e serraria da região.
Neste local denominado “Bela Aliança do Encontro dos Rios” também está locali-
zada a Casa da Força e Luz, também conhecida como Casa do Transformador. O edifício
é considerado um referencial de memória da população do Alto do Itajaí, por ter estado
diretamente ligado ao Ciclo da Madeira, que alavancou o poderio econômico regional nas
décadas de 40 e 50. De a acordo com Castello (2007), um lugar de memória representa

129
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tanto o patrimônio construído com sua importância histórica e arquitetônica, como


também as memórias que as pessoas têm pela vivência no local. O lugar de memória
é consagrado pela vivência comunitária e pelo acumular de memórias sobrepostas de
experiências individuais e compartilhadas.
Os lugares que resistiram ao longo do tempo possuem papel significativo para a
sociedade, pois fazem parte da memória coletiva, bem como trazem à tona lembranças
do passado e remetem à identidade do local. No caso da Casa da Força e Luz, além da
significância histórica do edifício que comportou o equipamento de distribuição regio-
nal de energia, criou-se um amplo debate na cidade quando se iniciou a sua demolição,
que culminou com o seu tombamento em 2004. Neste contexto, o objetivo deste artigo é
analisar os aspectos arquitetônicos, históricos e também os não históricos da primeira
edificação tombada em Rio do Sul, a Casa da Força e Luz.

LUGAR DE MEMÓRIA COLETIVA

Para analisar este processo, se assumiu como instrumentos imprescindíveis os


conceitos de lugar, memória e coletivo de acordo com o Dicionário Michaelis, onde lugar
significa espaço, independentemente do que possa conter; memória, ato de lembrar e
conservar ideias, imagens, impressões, conhecimentos e experiências adquiridos no
passado e habilidade de acessar essas informações na mente e; coletivo, que é intrínseco
à natureza de um grupo, que é inerente ou pertence a um povo, uma classe, etc.
Do encontro destes dois conceitos (lugar e memória), nasce um outro tempo que é
o “lugar de memória”. O termo criado pelo historiador francês Pierre Nora, trata-se de um
monumento, de uma personagem, de uma estátua ou pintura, de um museu, de arquivos,
bem como de um símbolo, de um evento ou de uma instituição. Porém, nem tudo se
caracteriza como lugar de memória; para isso o documento, o evento, o monumento etc.,
deve possuir uma „vontade de memória“, deve ter na sua origem uma intenção memo-
rista que garante sua identidade (NORA 1993,). Corroborando com a definição de Nora,
Castello (2007) afirma que o lugar de memória é consagrado pela vivência comunitária e
pelo acumular de memórias sobrepostas de experiências individuais e compartilhadas.
Um espaço se torna lugar pelas multiplicidades das experiências que ali ocorrem
e essas são determinantes para o relacionamento do sujeito com o mundo. Os atos e
acontecimentos têm lugar, que não são lugares estáticos fechados em si mesmos, mas
sim lugares em constante mutação que lhe é assegurada pelo caráter vivo que a memória
possui. Assim, serão lugares de transição porque estão predispostos a uma constante
mutação. Torna-se evidente que os lugares de memória surgem para dar resposta ao

130
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

sentimento de descontinuidade entre o tempo presente e o tempo passado que surge


na sequência das rápidas transformações da sociedade.
Analogamente, a memória coletiva, propriamente dita, é o trabalho que um deter-
minado grupo social realiza, articulando e localizando as lembranças em quadros sociais
comuns. O resultado deste trabalho é uma espécie de acervo de lembranças comparti-
lhadas que são o conteúdo da memória coletiva. Trata-se da memória de um grupo de
pessoas transmitidas ao longo das gerações. A mesma ideia filia-se Pierre Nora (1993), ao
definir a memória coletiva como o conjunto de memórias mais ou menos conscientes
de uma experiência vivida ou mitificada por uma comunidade, cuja identidade é parte
integrante do sentimento do passado.
É por meio da memória que se torna possível reter e relembrar o passado. Toda-
via, há a possibilidade da memória deixar de transmitir referências que permitem ao
indivíduo sentir-se integrado na dinâmica da sua sociedade. Nora concebe os lugares
de memória em três dimensões, que permitem fixar um estado de coisas e tem como
finalidade bloquear o trabalho de esquecimento, o principal objetivo dos lugares de
memória (NORA, 1993).

ASPECTOS HISTÓRICOS

A região na qual a Casa da Força e Luz está instalada é uma área privilegiada sob
aspectos históricos e espaciais, por se tratar do local onde surgiram os primeiros núcleos
urbanos, sendo hoje o centro da cidade de Rio do Sul (Figura 1). A edificação está loca-
lizada em área denominada “Encontro dos Rios”, Itajaí do Sul e Itajaí do Oeste, onde se
forma o Rio Itajaí- Açú. Este rio possui grande importância histórica, econômica, social e
ambiental para todo o Vale do Itajaí, por atravessar várias cidades até chegar a sua foz no
Oceano Atlântico, na cidade de Itajaí. O mesmo rio também é conhecido nacionalmente
pelos desastres naturais vinculados às enchentes, e também por comportar o segundo
maior Porto em movimentação de containers do Brasil.
A colonização agrícola adotada em Rio do Sul nos primeiros anos de colônia teve
êxito efêmero, apenas o tempo suficiente para que os imigrantes arrecadassem algum
capital. Porém, segundo Hering (1987), a agricultura compreendeu grande importância
por anteceder e preparar a industrialização e se manteve presente como fator decisivo nas
etapas posteriores do desenvolvimento econômico municipal. Com o enfraquecimento
da agricultura, as atividades mercantis ganharam força, conduzindo o comércio para
importação/exportação, que deram origem a indústria. Com o aumento da demanda

131
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

industrial, aumentou, consequentemente, a necessidade de energia elétrica, que no setor


agrícola não era tão urgente, dando origem a Casa de Luz e Força.

Figura 1: Localização da Casa de Luz e Força junto ao encontro dos rios Itajaí do Sul e Itajaí do
Oeste. Fonte: Adaptado pelas autoras de Mapa Cadastral de Rio do Sul (2013).

Nessa época, a relação colono e comércio era desvantajosa e exploratória para o


colono, onde o comércio era fonte de acumulação de capital, apropriando-se da pou-
pança dos colonos, cuja única posse resumia-se na propriedade do lote colonial. O lote
colonial, por sua vez, era cedido ao colono com a condição do comprador explorar ao
máximo o lote como formar de pagamento, caso contrário, o colono deveria devolver o
lote para a colonizadora. Os comerciantes também estimulavam este tipo de conduta,
o que na canalização do capital manipulado por estes para investimentos no ramo da
produção industrial e exportação de mercadorias (HERING, 1987).
A ocupação do Vale do Itajaí foi marcada pela extração de madeira das florestas
de Mata Atlântica da região. De acordo com Odebrecht e Odebrecht (2013), “quando os
pioneiros chegaram dependeram das árvores para construir as suas casas e utensílios.
Estas práticas foram necessárias para a sobrevivência dos colonos, que aos poucos
deram lugar para o comércio da madeira”. Felácio Júnior (2017) afirma que a expressiva
variedade de espécies de árvores favoreceu a extração de madeira, que ocupava parcela
significativa da economia municipal, surgindo muitas serrarias e estabelecimentos
que fabricavam e vendiam móveis. De acordo com Klug e Dirksen (1999), por volta da
década de 1940, a indústria madeireira atingiu o seu apogeu, existindo em Rio do Sul
140 serrarias, 13 fábricas de confecção de móveis. Para estes autores, o Ciclo da Madeira
e o transporte ferroviário alavancaram a economia de todo o interior do Vale do Itajaí.

132
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Rio do Sul, a principal centralidade, desenvolveu-se como tal e ficou conhecida como
capital do Alto Vale do Itajaí após o período áureo da extração madeireira entre as
décadas de 1940 e 1950.
O Ciclo da Madeira modificou o estilo e as necessidades de vida da comunidade
presente, trazendo uma demanda de fornecimento de energia elétrica, que se iniciou
antes mesmo da construção da Casa do Transformador, mais precisamente no ano de
1923, na serraria do colonizador Rudolfo Odebrechdt, na proximidade do encontro dos
rios e onde atualmente é o Parque Universitário Norberto Frahm - PUNF (Figura 2). De
acordo com Alves (2004), o Ciclo da Madeira marcou da pujança industrial com a insta-
lação de uma potente máquina a vapor na confluência dos rios Itajaí do Sul e Itajaí do
Oeste, na serraria do senhor Rudolfo Odebrechdt. A máquina funcionava 24 horas por
dia, servindo de dia à indústria e à noite acionando o dínamo que iluminava a cidade. Em
1930, esse sistema de iluminação foi assumido pela Empresa Força e Luz de Blumenau,
mais tarde encampada pelas Centrais Elétricas de Santa Catarina - CELESC.

Figura 2: Adensamento urbano na proximidade da Ponte Curt Hering na década de 1940 – a

de Força e Luz.
Fonte: Arquivo Histórico de Rio do Sul.

133
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

No ano de 1946 foi construída a Casa de Luz e Força com a finalidade de abrigar uma
nova fonte de energia, o transformador e o capacitor da empresa Força e Luz, que seria
responsável por fornecer mais energia à cidade, bem como uma área para os funcioná-
rios realizarem plantões (Figura 3). Segundo Dagnoni (2000), “a Casa do Transformador
está representada como exemplo de um momento histórico que reflete a organização
social, política e econômica da sociedade. Trata-se do marco inicial da energia elétrica
em Rio do Sul, um símbolo da vida cultural da cidade”.
A região do Alto Vale do Itajaí dependia exclusivamente de energia elétrica produzida
pela usina de Salto Weissbach de Blumenau, sendo destinada até a Casa do Transformador,
que retransmitia a energia para outros distritos próximos. Segundo Arlindo Sumariva[1]
(2017), o equipamento era importado, possuía grandes dimensões, cerca de 3 metros
de largura e 2,80 metros de altura, alto valor comercial na época e exigia mão de obra
qualificada para operar e fazer as manutenções necessárias. Isto fez com que Rio do Sul
vivenciasse um novo patamar de desenvolvimento e progresso (FELÁCIO JÚNIOR, 2017).

Figura 3: Ponte Curt Hering em construção e aos fundo a Casa de Força e Luz. Fonte: Acervo
Bolinha.

[1] Informação de Arlindo Sumariva (funcionário da empresa Força e Luz) concedida em


entrevista à Jonas Felácio Júnior para o seu livro História e Memória de Rio do Sul em cinco

134
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O local funcionou por cerca de 20 anos, até o momento em que a empresa Força
e Luz foi adquirida pela empresa Centrais Elétricas de Santa Catarina, que optou pelo
desligamento do capacitor que funcionava no espaço da Casa de Luz e Força. Em 1964 o
capacitor foi desativado, suspendendo o uso do espaço, a partir deste momento o imóvel
foi leiloado e passou a ser utilizado como estabelecimento comercial (Figura 4). Poste-
riormente o capacitor foi transportado para Trombudo Central, devido à insuficiência
energética no município (FELÁCIO JÚNIOR, 2017).

Figura 4: Rua Carlos Gomes na década de 1950 com a Casa de Força e Luz aos fundos.
Fonte: Acervo Bolinha.

Em 1982, Ana Merini, proprietária no período do tombamento, adquiriu o edifício


e o alugou para fins comerciais. No mesmo ano, Ana e o marido, já falecido, cederam
um dos subsolos para um casal usar como residência. Anos mais tarde, os proprietários
abriram a Casa da Lã no pavimento térreo com espaços para cursos no outro subsolo
e no pavimento superior (informação verbal) ². No ano de 2002, o ato de tombamento
aconteceu com a ajuda da arquiteta Maristela Macedo Poleza, que ingressou com o pedido
na Prefeitura Municipal de Rio do Sul (FELÁCIO JÚNIOR, 2017).
Durante os 33 anos que a edificação pertenceu a Ana Merini foi feita uma proposta
de reforma dirigida pelo arquiteto Antônio Botelho, porém não executada. Em 2015,
quando a edificação foi leiloada, o atual proprietário permitiu que o casal que reside
num dos subsolos da edificação fizesse ampliações, aterros e a demolição de parte da

135
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

escadaria externa. A estimativa é que a ampliação começou a ser feita em 2017, no entanto
em 2019 foi possível encontrar a estrutura de tijolos ampliada abandonada no local
(informação verbal) [2]. A estrutura referenciada pela antiga proprietária é composta
por dois cômodos no mesmo nível do subsolo que funciona como residência (Figura 5).

Fonte: As autoras, 2019.

Até o ano de 2019, o edifício estava sem uso e servia de abrigo para sujeitos que
comercializam produtos ilícitos, o que tornava o ambiente perigoso para o meio urbano.
“O puxadinho permite que as pessoas se escondam da polícia, já que bloqueia a visão
para a parte de baixo do PUNF” (informação verbal)[3]. Atualmente o pavimento térreo
do edifício foi alugado para funcionar com um centro de beleza. A Figura 6 apresenta

[2] Informação verbal de Antônio De Campos concedida a Annelise Silveira Ramos, 09 de


out. 2019.

[3] Informação verbal de Antônio De Campos concedida a Annelise Silveira Ramos. 09 de


out. 2019.

136
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

uma síntese da história da edificação desde sua construção até a atualidade incluindo
os principais acontecimentos e seus respectivos proprietários.

A Casa do Transformador teve seu uso destinado a empresa Força e Luz durante três
décadas. Após esse período, o edifício pertenceu a CELESC e mais recentemente a outras
pessoas que a utilizaram para fins comerciais. O grande marco da edificação histórica
ocorreu no ano de 2002, quando foi iniciado o processo de tombamento com intuito de
frear a demolição do imóvel, como é possível observar na Figura 7, para “criação” de um
acesso alternativo ao Parque Universitário Norberto Frahm, uma vez que este já possui
um acesso pela rua Marconi “[...] no momento “as pessoas” pensavam em abrir um novo
acesso que passaria a partir deste local” (FELÁCIO JÚNIOR, 2017, grifo nosso). “Até o tom-
bamento da Casa de Luz e Força, não havia uma “política” que auxiliasse a preservar as
edificações antigas das cidades, assim como não havia nenhuma edificação tombada
em Rio do Sul (informação verbal)[4].

[4] Informação verbal de Maristela Macedo Poleza concedida a Jéssica Odorizzi, 10 de out. 2019.

137
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 7: Casa do Transformador em processo de demolição no ano de 2002. Fonte: AMAVI.

Na época havia um Conselho Municipal de Cultura (CMC) em Rio do Sul composto


por seis entidades representantes, que se reuniam mensalmente para debater aspectos
culturais e patrimoniais do município, dentre elas Ordem dos Advogados (OAB), Asso-
ciação de Moradores, Conselho de Engenharia e Arquitetura (CREA) e Artistas plásticos.
Em 2002, José Carlos Goedert, participante do CMC representando a OAB, entrou com um
pedido para paralisação imediata do processo de demolição iniciado e avisou aos outros
membros do CMC, que o apoiaram e pediram o tombamento do edifício. Na época, o
prefeito Jaison Lima da Silva solicitou estudos que pudessem comprovar a historicidade
do prédio (informação verbal)[5].

138
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Com o intuito de provar a historicidade do edifício, eu, a arquiteta Mariel Tambosi,


a historiadora Neide Areco e amparadas pelo CMC, realizamos um levantamento arqui-
tetônico e histórico da edificação, chegando à conclusão que a edificação fazia parte de
um projeto nacional de ampliação do sistema de eletrificação rural. O modelo veio de
Brasília e foi colocado em todos as cidades do interior que necessitavam de incrementos
elétricos, e por isso só já era considerado um equipamento histórico. Além disso, sua
forma arquitetônica embasada na Art Déco, as linhas retas e limpas, remetem a história
da americanização da arquitetura. A documentação foi foram enviada ao prefeito, que
por sua vez acatou as razões apresentada e iniciou o processo de tombamento. (infor-
mação verbal)[6].
No mesmo ano, deu-se início ao processo de tombamento, que ocorreu dois anos
mais tarde – em 2004. Como meio de preservar a importância da edificação para a cidade
de Rio do Sul, a edificação foi tombada através do Decreto nº 036, de 10 de fevereiro de
2004 e inscrito no livro Tombo Histórico da Fundação Cultural de Rio do Sul, tornando-
-se a primeira edificação a ser tombada na cidade de Rio do Sul (FELÁCIO JÚNIOR, 2017).
O rompimento com as características arquitetônicas e com os aspectos originais da
edificação ainda acontecem, apesar do tombamento. Porém, atualmente a população,
em especial arquitetos e estudantes de arquitetura, buscam disseminar a importância
da edificação para a cidade de Rio do Sul, a fim de gerar usos adequados e valorizar seus
traços e sua história.

ASPECTOS ARQUITETÔNICOS DA CASA DE LUZ E FORÇA

O entorno da edificação apresenta predomínio do uso comercial e misto, assim


como alguns pontos institucionais, tais como a Casa Odebrecht e o Parque Universitário
Norberto Frahm - PUNF, que funciona como extensão da Universidade para o Desenvol-
vimento do Alto Vale do Itajaí - área histórica que abrange o “triângulo” formado pelo
encontro dos rios. O gabarito das edificações do entorno varia entre um e nove pavimen-
tos. Observa-se que a edificação multifamiliar de nove pavimentos construída em 2014
gera grande impacto visual no contexto do entorno (Figura 8), suprimindo a edificação
histórica, bem como é uma postura que deveria ser evitada conforme a Recomendação
de Nairobi (1976):
“Deverá ser regulada e fiscalizada a execução de construções novas para assegurar
que a sua arquitetura se adapte harmoniosamente às estruturas espaciais e ao ambiente
dos conjuntos históricos. Com esse propósito, uma análise do contexto urbano deverá

139
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

preceder qualquer novo projeto de construção, não só para definir o carácter geral do
conjunto, mas também para se apurar as suas dominantes: harmonia das alturas, cores,
materiais e formas, constantes na composição das fachadas e dos telhados, relações dos
volumes construídos e dos espaços, bem como as suas proporções médias e a implantação
dos edifícios. Deverá prestar-se uma especial atenção à dimensão dos lotes individuais,
pois qualquer alteração sem critério pode ter um efeito de massa prejudicial à homo-
geneidade do conjunto (UNESCO, 1976, grifo nosso). ”

Luz e Força. Fonte: Vasselai Imóveis.

A edificação da Casa da Força e Luz é composta por volume único que respeita
a composição clássica: embasamento, corpo principal e coroamento. A edificação em
estilo Art Déco é formada por planos geométricos fortemente marcada por linhas orto-
gonais que sugerem que o estilo sofreu influências do cubismo (Figura 9). A edificação
apresenta sistemas construtivos da arquitetura tradicional brasileira, tais como fun-

140
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

dação em pedras, paredes autoportantes de tijolo maciço e telhado de duas águas com
platibanda (Figura 10).

Figura 9: Linhas ortogonais marcando a fachada frontal. Fonte: As autoras.


Figura 10: Fundação em pedras. Fonte: As autoras.

Segundo Frank Dieter[7], na parte superior do imóvel, em um dos lados não foi
colocada janela, por causa da questão dos cabos e da finalidade de funcionamento. As
aberturas mesclam vidro e madeira pintados. As janelas são folhas duplas com vene-
zianas no pavimento superior e madeira e vidro no térreo. A porta principal possui
três folhas de madeira e vidro, sendo uma fixa e duas de abrir. Nos primeiros anos de
funcionamento, a Casa do Transformador não contava com uma escada com degraus,
apenas uma escada de ferro na parede, utilizada para chegar ao pavimento superior.
Posteriormente modificada para uma escada com degraus, o que possibilitou a implan-
tação de um escritório para atender aos clientes no piso superior. O assoalho do edifício
se manteve original em tábuas de madeira, enquanto que o forro do pavimento térreo
e superior foi revestido com PVC. A escada atual em madeira maciça é estreita e possui
0,92 metros de largura (FELÁCIO JÚNIOR, 2017).
Por um período de 33 anos não foram feitas modificações relevantes na parte
arquitetônica. No entanto, nos últimos anos, a edificação passou por algumas mudan-
ças em suas fachadas, que prejudicaram sua composição estética e descaracterizaram a

preservadas. 26 de jul. de 2017.

141
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

arquitetura e a historicidade do edifício, bem como geram danos a estrutura das vedações.
(Figura 11 e 12). De acordo com a carta de Atenas de 1931, recomenda-se “sobretudo a
supressão de toda a publicidade, de toda a presença abusiva de postes ou fios telefônicos,
de toda a indústria ruidosa, incluindo as chaminés altas, na vizinhança dos monumentos
artísticos ou históricos. ” (ESCRITÓRIO INTERNACIONAL DOS MUSEUS E DAS NAÇÕES, 1931).
Dentre os principais danos destacam-se o toldo na fachada principal em desacordo com
as normativas do Iphan, a estrutura metálica que serve como suporte para publicidade
na fachada noroeste, os fios telegráficos, assim como outros elementos metálicos que
descaracterizam visualmente a fachada. Soma-se a isso as ampliações de dois ambientes
de tijolo ao nível do subsolo.

Figura 11: Placas de publicidade e toldo na fachada. Fonte: As autoras

No que tange a paleta de cores, observa-se que esta também foi alvo de modifica-
ções ao longo dos anos. Até o ano de 2002 apenas duas cores predominam, branco na
edificação e cinza claro para as esquadrias. Em 2002 as cores foram modificadas para
um tom rosa pastel no corpo do edifício e marrom escuro nos detalhes e esquadrias.
Em 2011, o corpo da edificação passou a ser bege e os detalhes e as esquadrias perma-
neceram em marrom. Em 2014 a edificação passou pela sua última alteração de cores,
sendo a que a que permanece até o momento, bege no corpo da edificação e azul nas
esquadrias e detalhes (Figura 13). Com a realização da prospecção estratigráfica, obser-

142
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

vou-se que tonalidades bastante claras predominam na cor original da edificação. No


entanto para uma melhor definição, deve-se proceder com uma análise laboratorial do
reboco primitivos das partes mais protegidas da edificação, tais como beirais e outros
locais mais preservados.

CONCLUSÕES

O fornecimento de energia em Rio do Sul teve início no ano de 1923, e em 1930, com
o Ciclo da Madeira despontando, gerou-se maior demanda de fornecimento de energia
elétrica. Com esse aumento na demanda, em 1946 foi construída a Casa da Força e Luz,
abrigando uma nova fonte de energia, o transformador e o capacitor da empresa Força
e Luz, que permitiu a região maior produção industrial. O fato de Rio de o Sul ter sido
contemplado com esta unidade geradora de energia atesta a importância do Ciclo da
Madeira e firma a cidade como uma grande praça de negócios na década de 40.
Anos mais tarde, outra questão importante envolveu a edificação, a tentativa de
demolição seguida do seu tombamento. Neste caso específico, um pequeno grupo formado
pelo um Conselho Municipal de Cultura levou a questão da demolição para discussões no
mais diversos setores da cidade, o que resultou em um decreto que protege legalmente
a deificação. Neste com contexto, a significância da Casa de Luz e Força A significância
da edificação está vinculada a dois fatos históricos que refletem a memória coletiva da
população de Rio do Sul: Ciclo da Madeira, pois se trata de um marco inicial da distri-
buição da energia elétrica na cidade, e o Ato de Tombamento da primeira edificação na
cidade, devido à tentativa de demolição em 2002.

143
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

No entanto, observa-se que falta de valorização dos edifícios históricos é algo comum
em Rio do Sul, tanto por falta de conhecimento e incentivos, como pela crescente espe-
culação imobiliária. Esta falta de incentivo em preservação das edificações históricas
em Rio do Sul também é evidenciada no atual estado de conservação da Casa da Força
e Luz, no qual as fachadas apresentam diversos danos, tais como estruturas metálicas
ancoradas nas alvenarias, os fios telegráficos e um toldo em desacordo com a norma
poluindo visualmente a fachada principal, assim como uso de cores em desacordo com
as cores primitivas. No que tange o entorno, observou-se que escada lateral está cedendo
e que a edificação possui anexos inacabados em alvenaria de bloco cerâmico que a des-
caracterizam. Outro ponto observado, diz respeito ao gabarito do entorno, uma vez que
a edificação histórica é suprimida por um edifício multifamiliar de nove pavimentos.
Neste sentido, este artigo em especial, demostra a grande dificuldade vivida em
cidades do interior do país, para tratar da preservação do patrimônio histórico e arqui-
tetônico. Conforme citado no decorrer deste texto, todos esses pontos vão contra as
políticas internacionais de preservação do patrimônio histórico e arquitetônico, bem
como refletem a falta de conhecimento e incentivo por parte da população em preservar
a história e a memória coletiva da cidade de Rio do Sul.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a atenção e disponibilidade de tempo de Maristela Macedo Poleza


durante o desenvolvimento deste artigo.

144
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

Caráter multifuncional da agricultura: um estudo de caso no município de Rio do

CABRAL, Oswaldo R. Brusque; subsídios para a história de uma colônia nos


tempos do Império. Brusque: Sociedade amigos de Brusque, 1960.

CASTELLO, Lineu. A percepção de lugar: repensando o conceito de lugar em


Arquitetura-Urbanismo. Porto Alegre: PROPAR-UFRGS, 2007.

DAGNONI, Cátia. Primeiros Núcleos de Povoamento. Revista Rio do Sul: nossa


história em revista, Rio do Sul, v. 2, n. 6, p. 07-11, dezembro 2000.

ESCRITÓRIO INTERNACIONAL DOS MUSEUS E DAS NAÇÕES. Carta de Atenas de 1931:


Outubro de 1931.

FELÁCIO JÚNIOR, Jonas.


preservadas. Palmas: Kaygangue, 2017.

HERING, Maria Luiza Renaux. Colonização e Indústria no Alto Vale do Itajaí: o


Modelo Catarinense de Desenvolvimento. Blumenau: Ed. da FURB, 1987.

Rio do Sul: uma história. Rio do Sul: Ed. da UFSC,

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. São Paulo:
Projeto História, n. 10, 1993.

ODEBRECHT, Rolf e S. ODEBRECHT, Renate. Capítulos da História de Rio do Sul.


Blumenau: Nova Letra, 2013. - 248 p. -.

TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia no Brasil. 2ª ed. Rio de


Janeiro: editora Clube de Engenharia, 1987.

UNESCO. Recomendação de Nairobi: Novembro de 1976.

145
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CENARIZAÇÃO DE SÍTIOS
HISTÓRICOS:
REVERBERAÇÕES DO
“ESTILO PATRIMÔNIO” EM
MUCUGÊ
SCENARIZATION OF HISTORICAL SITES:
REVERBERATIONS OF THE “HERITAGE STYLE” IN
MUCUGÊ

ESCENARIZACIÓN DE SITIOS HISTÓRICOS:


REVERBERACIONES DEL “ESTILO PATRIMONIO”
EN MUCUGÊ
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

AMARAL, Fellipe Decrescenzo Andrade


Mestrando do PPG-AU/UFBA; membro do GP Arquitetura Popular: espaços e saberes
f.decrescenzo@live.com

146
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Idealizadas por importantes personagens do movimento moderno brasileiro, as ações de seleção,
conservação e restauração durante a “fase heroica” do SPHAN, de modo geral, encaravam a cidade
em si como uma obra de arte, negligenciando seu crescimento e pautando as decisões sob um viés
estético-estilístico. Na ausência de regulações específicas e com a contradição entre o discurso
e a prática, sedimentou-se uma prática de preservação que, por vezes, ocasionou a criação de
uma arquitetura artificiosa, pautada nas expressões arquitetônicas do período colonial. Esta
prática, interligada à falta de valorização das pessoas e seus modos tradicionais de produção
do espaço, reflete na cenarização vista em muitos sítios históricos brasileiros, especialmente
naqueles formados, inteiramente ou em grande parte, por uma arquitetura essencialmente
vernacular. Desta forma, este trabalho se propõe a verificar e analisar as reverberações desta
prática de preservação em intervenções no conjunto edificado de Mucugê.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio. arquitetura brasileira. mucugê. “estilo patrimônio”.

A BSTRACT
Idealized by important characters of the Brazilian modern movement, the actions of selection,
conservation and restoration during SPHAN´s “heroic phase”, in general, dealt with the city
itself as a work of art, neglecting its growth and guiding decisions under an aesthetic-stylistic
approach. In the absence of specific regulations and with the contradiction between discourse
and practice, a preservation practice was established, which sometimes led to the creation of
artificial architecture, based on architectural expressions of the colonial period. This practice,
linked to the lack of appreciation of people and their traditional ways of producing space,
reflects the scenarization seen in many Brazilian historical sites, especially those formed,
entirely or in large part, by an essentially vernacular and trivial architecture. Thus, this work
aims to verify and analyze the reverberations of this preservation practice in interventions in
Mucugê´s built ensemble.

KEYWORDS: heritage. brazilian architecture. mucugê. “heritage style”.

RESUMEN
Idealizadas por personajes importantes del movimiento moderno brasileño, las acciones de
selección, conservación y restauración durante la “fase heroica” de SPHAN, en general, vieron
a la ciudad como una obra de arte, descuidando su crecimiento y orientando las decisiones
bajo un sesgo estético-estilista. En ausencia de regulaciones específicas y con la contradicción

147
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

entre el discurso y la práctica, se estableció una práctica de preservación, que a veces condujo
a la creación de una arquitectura artificial, basada en las expresiones arquitectónicas del
período colonial. Esta práctica, vinculada a la falta de apreciación de las personas y sus formas
tradicionales de producir espacio, se refleja en los escenarios vistos en muchos sitios históricos
brasileños, especialmente aquellos formados, en su totalidad o en gran parte, por una arqui-
tectura esencialmente vernácula, del cotidiano. Por lo tanto, este trabajo tiene como objetivo
verificar y analizar las reverberaciones de esta práctica de preservación en intervenciones en
el conjunto construido de Mucugê.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio. arquitectura brasileña. mucugê. “estilo patrimonio”.

INTRODUÇÃO

À frente da renovação modernista e também do Patrimônio na primeira metade do


século XX, assumindo importantíssimo papel no tocante à preservação do patrimônio
nacional, foram os mesmos personagens que, especialmente durante a “fase heroica”
do SPHAN, dominaram o discurso sobre a arquitetura brasileira e que estabeleceram a
prática de preservação nacional, definindo, a partir de seus próprios valores, as ações de
seleção, conservação e restauração. Apoiada em uma visão engendrada e, na maioria das
vezes, contraditória acerca das intervenções nos sítios tombados, aliada à inviabilidade
de se analisar cada caso individualmente, surgiram normas e diretrizes generalizadas,
cuja sedimentação deu origem ao chamado “estilo patrimônio”, verificado por Lia Motta
em Ouro Preto como uma prática ainda recorrente na década de 1980.
Compreendendo a importância de uma nova abordagem acerca da preservação
de arquiteturas vernaculares como a de Mucugê – edificada pelas mãos dos garimpei-
ros, viajantes e pessoas escravizadas que lá primeiro chegaram –, valorada e alçada a
patrimônio nacional, em 1980, após a ampliação conceitual da década precedente, e a
importância de se evitar a cenarização de sítios históricos, cujos interesses atendem em
grande parte a agentes externos às comunidades, o presente trabalho busca analisar os
possíveis rebatimentos e reverberações desta prática sedimentada através de interven-
ções em “estilo patrimônio” em Mucugê.

148
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

OS PRIMÓRDIOS DO SÍTIO MUCUGEENSE

Quando, em 1844, Cazuza do Prado promove uma expedição secreta malsucedida


em busca de diamantes às margens do rio Cumbuca, a notícia se espalha e não tarda
para que aquelas terras sejam ocupadas. Milhares de pessoas – estima-se entre cerca de
vinte e trinta mil – partiram para aquela região central da Bahia, mais tarde conhecida
como Lavras Diamantinas, iniciando um novo capítulo em suas vidas e ressignificando
a paisagem daquele vale rodeado de morros rochosos. Teodoro Sampaio descreveu a
então Vila de Santa Isabel do Paraguaçu, ao visita-la em 1880, como um pouso de garim-
peiros à beira das lavras (SAMPAIO, 2002, p. 242). Muito antes de serem considerados um
bem coletivo, patrimônio de uma determinada sociedade, muitos edifícios e cidades já
estiveram na ponta do lápis daqueles escritores que se dedicaram a escrever a literatura
das cidades. Mucugê não. A literatura edificada mucugeense foi escrita pelas mãos dos
garimpeiros e viajantes que lá primeiro chegaram – entendendo também a importância
da mão de obra escravizada. A população local, embebida pelos saberes transmitidos
por seus ancestrais, utilizava os materiais que esta terra melhor lhes proporcionava – a
pedra e o barro.
Os primeiros abrigos, de caráter temporário, eram simples construções em alvenaria
de pedra que se aproveitavam das grutas naturais como cobertura ou eram cobertas de
palha – conhecidas como “locas” ou “tocas”. Estas construções foram aos poucos dando
lugar a casas de pedra e/ou adobe, que obedeciam desde os primeiros anos de fundação
da então vila às normas expressas no Código de Posturas da cidade. Neste documento
havia diretrizes para a altura das portas e janelas, proibição de coberturas de palha no
perímetro urbano e alinhamento das ruas. A arquitetura que se fazia nas cidades de
maior porte, especialmente na segunda metade dos oitocentos, já não seguia mais os
padrões coloniais. Assistia-se nas grandes áreas urbanas do final do século XIX o surgi-
mento do ecletismo e suas novas formas de implantação. Todavia, entendemos que as
construções de Mucugê surgiram embebidas dos antigos padrões coloniais que conti-
nuaram ecoando durante todo aquele século e início do século XX por vários recantos
do Brasil[1], como um reflexo dos saberes tradicionais que, no caso mucugeense, foram
trazidos pelos garimpeiros, especialmente aqueles oriundos de Minas Gerais (Figura 1).

[1] Sobre as expressões do patrimônio arquitetônico de Mucugê, ver Nery e Amaral (2020).

149
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Casario da rua Direita do Comércio em Mucugê, Bahia, 1978. Fonte: Acervo Digital do
IPHAN[2].

Paulo Ormindo Azevedo (In: BAHIA, 1980, p.20) destaca, no Inventário de Proteção do
Acervo Cultural da Bahia, a semelhança com o padrão arquitetônico mineiro, através da
prevalência dos vazios sobre os cheios, da sua trama irregular e da estrutura em madeira
com vedação em pau-a-pique ou adobe. As edificações possuem outros traços comuns
aos encontrados nas cidades mineradoras precedentes, característicos da arquitetura
brasileira do período colonial segundo Lemos (1979, p. 11), como residências construí-
das sobre o limite das vias e laterais dos terrenos, salas voltadas para frente e locais de
permanência das mulheres e das pessoas que foram escravizadas para o fundo, telhado
em duas águas, cumeeira paralela à rua e paredes grossas de pedra e cal, ou terra.
Relevante palco da sociedade baiana do diamante, no século XIX, a cidade de Mucugê
adquire enorme valor principalmente pela associação do seu conjunto edificado com
o meio natural em que é inserido. Esta adequação ao meio se dá não somente pela sua
implantação, se acomodando suavemente àquela topografia acidentada ao ponto de
parecer brotar da terra, mas também pelo uso de materiais disponíveis na região. Evi-

[2] Disponível em: <http://acervodigital.iphan.gov.br>. Acesso em fev. 2020.

150
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

dentemente havia uma enorme dificuldade de acesso aos materiais dos grandes centros
urbanos, mas a boa qualidade dos materiais locais fez destes os principais promotores
da simbiose entre o conjunto e o ambiente rochoso, além da harmonia entre cada nova
edificação que surgia e as preexistentes, característica apontada por Lemos (1979, p. 10)
como uma tradição vernácula de construir harmonizando-se.

A CONSTRUÇÃO DO PATRIMÔNIO E A SEDIMENTAÇÃO DO “ESTILO COLONIAL”

O anteprojeto de Mário de Andrade para a criação de um serviço em favor da proteção


dos monumentos nacionais, que mais tarde viria a ser o Serviço do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional – SPHAN, incluía um conceito mais amplo de patrimônio – diferente
do texto aprovado do Decreto-Lei nº 25, de 30/11/1937. Esta preterição propiciou um
trabalho de caráter mais elitista realizado pela instituição em suas primeiras décadas,
como entendido por alguns autores a partir da década de 1970. Soma-se a isso o fato de
que a arquitetura popular, ou vernacular, permaneceu por muito tempo distante dos
olhos da academia devido a uma certa frieza pelo tema – sendo entendida como um
objeto de relevância secundária.
Não obstante, em texto publicado no primeiro volume da Revista do SPHAN, em
1937, apesar de Lucio Costa reconhecer que a verdadeira tradição da arquitetura brasi-
leira residia nas habitações populares do período colonial, naquela que seria a primeira
publicação do SPHAN, aparenta-se não ter havido verbalização ou ação da instituição no
sentido de salvaguardar também os recursos, técnicas, processos e saberes originadores
desta produção – apesar do fato de que, como destaca Chuva (2009, p. 343), artífices e
artesãos eram constantemente “descobertos” no interior e incorporados às obras de
restauração. Mesmo assim, refutando o ecletismo e o neocolonial, os modernistas ten-
tavam estabelecer uma conexão entre a arquitetura brasileira do período colonial e a
arquitetura moderna, buscando validar a nova produção como uma continuidade da
“boa tradição”, como o faz Costa (1937, p. 34) ao comparar as técnicas construtivas, afir-
mando que “o engenhoso processo de que são feitas – barro armado com madeira – tem
qualquer coisa do nosso concreto-armado”, sustentando, assim, o ideário e os valores
modernistas. Desta forma, os modernistas passam a dominar tanto o discurso sobre o
Patrimônio, quanto o crescente debate sobre a arquitetura brasileira.
Idealizadas por importantes personagens do movimento moderno brasileiro,
as ações de seleção, conservação e restauração do SPHAN, de modo geral, encaravam a
cidade em si como uma obra de arte, negligenciando de certo modo seu crescimento
e pautando as decisões sob um viés estético-estilístico. Os arquitetos modernistas pos-
suíam enorme zelo pelo patrimônio brasileiro, tanto que conduziram este processo de

151
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

criação de uma política nacional de preservação, contudo, a abordagem que entenderam


como a correta para o momento ocasionou consequências que hoje entendemos como
negativas. A partir de suas concepções sobre modernização e tradição, sobre seus valores
acerca da “boa arquitetura”, os modernistas ditavam as regras do jogo, muitas vezes de
forma controversa, e esculpiam o patrimônio histórico e artístico nacional da forma
que achavam mais pertinente ao seu discurso, buscando, através do reconhecimento
da arquitetura do período colonial como uma produção autenticamente nacional, a
valorização da produção moderna. Rodrigo M. F. de Andrade[3] já sugeria, em 1938, que as
intervenções dentro das cidades, responsáveis por preencher alguma lacuna no tecido
urbano, deveriam conceber edificações feitas no mesmo “espírito” das antigas (SANT’ANNA,
2014), e Lucio Costa, em seus pareceres, identificava as características a serem valoriza-
das no patrimônio através de uma incessante busca pelo colonial (CHUVA, 2009, p. 378).
Lia Motta (1987), ao tratar da atuação do SPHAN em Ouro Preto, enfatiza que esse tipo
de intervenção era visto como um retoque, devendo a edificação se diluir no contexto
antigo. Já as edificações de maior porte, mais afastadas do núcleo histórico, tinham mais
liberdade projetual, desde que modernas e de “boa arquitetura”, como o Grande Hotel de
Ouro Preto – um exemplo da influência modernista dentro do SPHAN, mostrando, como
aponta Chuva (2009, p. 376), que “com os mesmos critérios, se chegava à solução oposta”.
[…] a preservação parece ter se reduzido, no fundo, à aplicação de uma
única solução: eliminar o que não fosse colonial e acrescentar somente
o que fosse moderno ou de “linguagem colonial”. O dispositivo de patri-
mônio agenciado pelos modernistas estruturava-se discursivamente em
torno de enunciados de nacionalidade, qualidade artística, originalidade
e autenticidade que, por sua vez, legitimavam a seleção do que deveria
permanecer e, ao mesmo tempo, informavam a decisão do que deveria
ser eliminado ou, simplesmente, poderia ser destruído. (SANT’ANNA,
2014, p. 200)
De início, até houve uma certa predisposição dos técnicos em evitar imitações de
elementos arquitetônicos do período colonial, através da simplificação das linhas e da
análise da relação com a vizinhança, contudo, Motta (1987) aponta que, em Ouro Preto,
com o crescimento da cidade e a consequente dificuldade em se analisar individualmente

[3] Rodrigo Melo Franco de Andrade comandou o SPHAN entre 1937 e 1967, quando se apo-
sentou. Rodrigo contou com intenso apoio do Ministro Gustavo Capanema, congregando um

“fase heroica” da instituição, quando se consolidou a prática de preservação no Brasil. Ver


Sant’Anna (2014, p. 149-202).

152
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

os casos, surgiram as primeiras normas generalizadas. Elementos como beirais em


cachorro, vãos em caixões externos, folhas em rótulas, calhas ou guilhotinas, e telhado
em duas águas com telha capa/canal passaram a ser exigidos, e tais normas passaram
a ser utilizadas mesmo em áreas de ocupação mais recente, evidenciando uma atenção
especial para as fachadas, inclusive com a retirada de frontões e platibandas. Como um
reflexo da adoção de tais medidas e da recusa de projetos que não as atendessem, os
novos projetos, legalizados ou não, passaram a adotar de antemão as recomendações,
ocasionando o que a autora aponta como uma “continuidade espontânea das caracte-
rísticas das construções”, difundindo uma certa imagem tradicional para além de Ouro
Preto. Desta forma, a imposição destas normas e/ou sua apropriação pela população deu
origem ao que os moradores locais chamaram de “estilo patrimônio”.
Neste período, o parcelamento da terra apresentava uma nova dinâmica, e diferente
também se tornou a implantação das edificações e suas disposições internas, contudo,
como mostra Motta (1987) em Ouro Preto, os pareceres de aprovação dos projetos se
tornaram uma espécie de cartilha que foi sendo repetida ao longo de anos. Mesmo uma
crescente revisão de conceitos, a partir do final da década de 1960, e as mudanças trazidas
anos depois na gestão de Aloísio Magalhães, realçando a natureza documental das cida-
des históricas, não são capazes de levar a instituição a novas práticas, “perpetuando-se
assim um processo compulsivo de conservação de um objeto irreal e idealizado” (MOTTA,
1987, p. 120). A ausência de regras preestabelecidas baseada numa análise sobre as inter-
venções que compreendia cada uma como um caso específico, embora revelasse a boa
intenção de proteger tais conjuntos, promoveu uma prática de preservação, difundida
pelos arquitetos modernistas do SPHAN durante a fase heroica, que foi responsável direta
pela criação de uma arquitetura artificiosa, que, em muitos casos, prejudica a leitura e
apreensão dos conjuntos preexistentes e tem reverberações até hoje.

A FALTA DE UMA ABORDAGEM INTEGRADA NA PRESERVAÇÃO DA

153
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ARQUITETURA VERNACULAR E A CONSEQUENTE CENARIZAÇÃO DOS SÍTIOS


HISTÓRICOS

No Brasil, o reconhecimento como patrimônio de sítios compostos por uma arqui-


tetura “modesta”, diferentes dos grandes conjuntos tombados com suas igrejas barrocas
e monumental arquitetura civil – quando comparada ao casario predominantemente
térreo destes sítios –, somente foi impulsionado de forma mais vigorosa pela ação de
importantes atores do campo da preservação a partir da década de 1970[4], refletindo,
de certa forma, a ampliação conceitual possibilitada pela Carta de Veneza e calcado no
conceito antropológico de cultura, o qual enfatiza seu caráter processual e é guiado por
um olhar sobre o cotidiano (CHUVA, 2009, p. 39).
Como destaca Sant’Anna (2011), o campo da preservação do patrimônio ocidental
experimentaria uma grande expansão em meados do séc. XX, manifestada na Carta de
Veneza, de 1964, ao incorporar sítios urbanos e rurais à noção de monumento histórico,
e ao defender que esta noção “estende-se não só às grandes criações, mas também às
obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural”. Este
novo entendimento, aliado às perspectivas progressistas trazidas para o campo da pre-
servação por Aloísio Magalhães e seus colaboradores do Centro Nacional de Referência
Cultural – CNRC, ampliando o sentido da expressão bem cultural, abrem caminho para a
patrimonialização de conjuntos formados, inteiramente ou em grande parte, por uma
arquitetura essencialmente vernacular, do cotidiano – como, por exemplo, o tombamento
do conjunto arquitetônico e paisagístico de Mucugê, na Chapada Diamantina, em 1980.
A partir do entendimento de que os valores identitários e memoriais são atribui-
ções dos sujeitos envolvidos no processo de patrimonialização e não intrínsecos ao
bem, as pessoas foram trazidas para o centro do discurso patrimonial e seus modos de
vida, processos produtivos – como as técnicas construtivas tradicionais – e as mani-
festações populares, passaram também a poder serem reconhecidas como patrimônio
cultural brasileiro[5], democratizando-se mais o processo de patrimonialização. Como

[4] Caminhando numa direção mais próxima do projeto de Mário de Andrade, não imple-
mentado na década de 1930, a criação do Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC, em
1975, incorporado mais tarde ao IPHAN, presidido por Aloísio Magalhães entre 1979 e 1981 – ano
de sua morte –, e a criação da Fundação Nacional Pró-Memória – FNPM, possibilitaram que o

preservação. A esse respeito, ver Sant’Anna (2014, p. 261-266).

[5] Após a Constituição de 1988 estabelecer como patrimônio cultural brasileiro não somente
os bens de natureza material, mas também imaterial, relativos aos “diferentes grupos formadores

154
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

entendido por parte da própria instituição, as políticas de salvaguarda do patrimônio


imaterial ‘oxigenaram’ a atuação do IPHAN e a própria prática de preservação brasileira,
reconhecendo a dinamicidade do nosso patrimônio cultural e buscando documentar e
registrar suas diversas manifestações.
Entretanto, um diálogo institucional fluido e efetivo entre os departamentos que
tratam das dimensões material e imaterial do patrimônio cultural ainda caminha a
passos lentos no sentido de gerar bons frutos a respeito da preservação de produções
arquitetônicas populares/vernaculares – quantitativa e qualitativamente. Como apontam
Tofani e Brusadin (2020), estas questões relativas ao acautelamento refletem diretamente
na continuidade ou não destas manifestações, a partir do impacto que causam no seu
valor de uso e de troca, e, principalmente, na produção e reprodução do espaço, podendo
ocasionar a perda de suas técnicas e processos tradicionais, e gerar intervenções incom-
patíveis com a natureza desta produção.
Sem uma interlocução eficaz, a preservação de conjuntos edificados continua
se dando de uma maneira distante da compreensão dos desejos da população e da
valorização das pessoas e seus modos tradicionais e dinâmicos de produção do espaço.
Mesmo com as disposições das Cartas de Fortaleza, que preconizam uma abordagem
global da preservação do patrimônio cultural, entendendo que as dimensões materiais
e imateriais do patrimônio têm origem comum e devem ser alvos de programas e ações
integradas, as práticas institucionais de preservação permanecem quase inalteradas, com
a obrigatoriedade de apresentação de projetos técnicos nas solicitações para intervir e,
por vezes, até com uma interferência exagerada da instituição sobre estas intervenções.
Desta forma, estas práticas podem alterar as lógicas de produção que deram origem
à estas arquiteturas e ampliar a criação de cenários urbanos, acarretando na perda de
valores e tradições culturais locais representativos da formação de uma dada sociedade.
Para além de alterar os processos de produção e reprodução dos espaços produzidos
pelas práticas vernaculares, e como consequência da já citada falta de valorização das
pessoas e seus modos de produção do espaço, esta cenarização vista em muitos sítios
históricos brasileiros visa a atender, muitas vezes, a interesses externos às comunidades.
Em decorrência disso, muitos habitantes locais não conseguem resistir às pressões da
especulação imobiliária e ao aumento no custo de vida destas áreas, como tem ocorrido em
Mucugê, a partir do seu reconhecimento e valoração como patrimônio nacional em 1980.

da sociedade brasileira”, o Decreto 3.551, de 04/08/2000, institui o Registro de Bens Culturais de


Natureza Imaterial, possibilitando a preservação e a continuidade de saberes, modos de fazer,
rituais e manifestações das mais diversas, relacionadas à práticas sociais e culturais coletivas.

155
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

AS REVERBERAÇÕES DO “ESTILO PATRIMÔNIO” EM MUCUGÊ

Durante as primeiras décadas de atuação do SPHAN, período de consolidação da


própria instituição e da prática de preservação no Brasil, vários conjuntos urbanos
originados no período colonial brasileiro foram tombados a partir da leitura predomi-
nantemente estética ditada pelos modernistas brasileiros – sustentados mais por seus
valores artísticos que pelos históricos –, contudo, mesmo não sendo por vezes reconhe-
cidos como tal, grande parte destes sítios tinham, ao menos, sua arquitetura residencial
feita sob os cânones da arquitetura popular/vernacular, com uso de materiais locais e
de saberes construtivos tradicionais, transmitidos entre gerações.
Perceptível e clara é a noção, entre os interlocutores do processo de tombamento,
de que a beleza em Mucugê reside na simplicidade da tradição construtiva popular e na
singeleza obtida através da relação entre o conjunto oitocentista e a geografia do lugar.
Paulo Ormindo Azevedo, por exemplo, afirma, ao longo das correspondências arroladas
ao referido processo, que “não se encontram aí as grandes igrejas barrocas das Minas
Gerais, senão um conjunto muito harmonioso de arquitetura espontânea em que o
homem apenas completa a obra da natureza” (PT Nº 974-T/78). Em 1980, já sob a gestão
de Aloísio Magalhães, que se iniciara em 1979, o “Conjunto Arquitetônico e Paisagístico,
especialmente o cemitério, da Cidade de Mucugê” é inscrito no Livro do Tombo Arqueo-
lógico, Etnográfico e Paisagístico.
A partir da década de 1980, também se percebe uma alteração profunda nas dinâmi-
cas sociais e econômicas da cidade, com o desenvolvimento do turismo cultural, ecológico
e da agroindústria. De um lado, é criado o Parque Nacional da Chapada Diamantina -
PNCD, em 1985, do outro, assiste-se à implantação de amplos polos agroindustriais entre
os municípios de Mucugê e Barra da Estiva. De fato, decorridos quase quarenta anos
da oficialização da proteção do conjunto, a cidade – que sofreu uma grande evasão
populacional durante o séc. XX – foi reabitada, tem um centro histórico vivo, pulsante
e é palco de vários eventos culturais.
Na contramão da compreensão das dinâmicas do bem cultural e da sustenta-
ção do que lhe dá “vida”, a prática tradicional de preservação tem ocasionado muitas
vezes o “congelamento” das edificações e dos conjuntos, buscando assim preservar uma
determinada configuração do patrimônio edificado ou contribuir para o fomento do
turismo, atendendo na maioria das vezes a interesses externos. Devido à ausência de
diretrizes e critérios específicos, os pareceres acerca das intervenções ficam a cargo da
convicção dos técnicos do IPHAN, através das práticas instituídas durantes estes anos de
atuação. Mais de 30 anos se passaram desde que Lia Motta (1987) chamou atenção para
a sedimentação de uma prática responsável por emular edificações antigas, contudo,

156
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

esta ainda é uma conduta recorrente. A linha de ação notada nas intervenções sugere,
mesmo que por ventura não se comprove em alguns casos direta influência da institui-
ção, pelo menos a apropriação de tais normas e critérios pela população, até mesmo em
áreas de ocupação mais recente, talvez entendida como a forma mais apropriada de se
construir em sítios desta natureza.
Como apontado por Motta (1987), o IPHAN atribuía maior importância para as
fachadas das edificações, na maioria das vezes sequer exigindo desenhos das laterais
ou do fundo para aprovação. Ao analisar as fotografias dos anos precedentes ao tomba-
mento, podemos notar algumas destas controversas intervenções. A edificação n. 59 da
rua Dr. Rodrigues Lima, por exemplo, possuía uma outra lógica de implantação, recuada
em relação à testada do lote, sendo a casa antecedida por um pequeno jardim. Poste-
riormente a edificação passou por uma reforma, buscando retomar a continuidade das
fachadas e dos beirais, mas remetendo a um passado que não mais existe, se mostrando
aos transeuntes como um exemplar de um tempo que não testemunhou. (Figuras 2-4).

autor, 2019 (3) e 2020 (4).

157
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Não sabemos ao certo quando a edificação foi construída de forma recuada em rela-
ção às outras, porém nota-se com a reforma, realizada já após o tombamento da cidade, o
intuito de conferi-la feições características às edificações mais antigas, frequentemente
citada em processos como o “estilo colonial da região”, de modo que esta edificação possa
se adequar ao conjunto. Entretanto, fica evidente para quem tem o olhar mais apurado
a desarmonia com as edificações vizinhas. Mesmo com a tentativa de adequação com o
uso da janela em guilhotina, os vãos das janelas são desproporcionais quanto à largura
da casa, não seguem o mesmo ritmo equilibrado das outras, e, para além disso, também
contrasta sua moldura mais grossa na parte superior e o uso de cimalha ao invés do beiral
em cachorro – mais comum nas edificações térreas. Ademais, embora se tenha implan-
tado a edificação rente à testada do lote, a altura do beiral, situada entre a dos beirais
vizinhos, e a inclinação mais suave do telhado impedem a continuidade das coberturas.
No caso do sobrado n. 45, sede do antigo Snooker Bar, localizado na praça Coronel
Propércio, profundas alterações foram feitas em seu anexo, que se encontrava em péssimo
estado de conservação. Embora já compusesse uma relação nada usual com a edifica-
ção principal, o anexo teve sua cobertura profundamente alterada para se adequar a
este estilo descrito em diversos processos como “tradicional da região”. Também foram
modificados o tipo de verga das portas e da janela, abertos novos vãos e instaladas novas
janelas, todas no característico estilo em guilhotina, além de novos basculantes ao fundo
(Figuras 5-8). O resultado foi qualquer coisa próxima à arquitetura híbrida verificada
por Motta (1987) em Ouro Preto, utilizando-se os mesmos elementos para abertura de
novos vãos sem o ritmo e o equilíbrio de composição usual.

Figuras 5, 6, 7 e 8: Sobrado nº 45 da praça Coronel Propércio. Fonte: Acervo Digital do IPHAN (5),

158
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A fachada principal do sobrado, todavia, também não escapou de sofrer acrésci-


mos e modificações nesta reforma empreendida pelo Instituto do Patrimônio Artístico
e Cultural – IPAC-BA, com o intuito de instalar um restaurante no pavimento inferior
e um centro cultural no superior (IT nº 318/94). Embora a entendamos menos como
uma intervenção ou apropriação do “estilo patrimônio” do que como apenas infeliz e
equivocada, a intervenção na fachada principal inseriu sete novos balcões voltados para
a praça e suprimiu o friso horizontal entre os pavimentos, prejudicando a composição
e a leitura da edificação.
Em Mucugê, a reverberação mais comum do “estilo patrimônio” é a instalação de
janelas em guilhotina, tanto em edificações que já possuíam as folhas das janelas com
outra configuração, como as que passam a ganhar novas aberturas. Além disso, como
mencionado, é comum encontrarmos recomendações nos pareceres técnicos da institui-
ção, especialmente nas décadas de 1980 e 1990, no sentido de que as novas construções e
reformas respeitem um certo “estilo arquitetônico” da cidade. No processo nº 48/96-36,
cujo interessado solicitava autorização para realizar modificações em fachada de feições
ecléticas, é prontamente aceita a remoção da platibanda, dos ornatos e a reconstrução
do beiral, sugerindo-se ainda que este seja em “cachorro”, assim como nas edificações
antigas da cidade.
Este também é o caso da controversa implantação do Banco do Brasil. A ameaça
de demolição de duas edificações por parte do banco para construção da nova sede,
sendo uma delas um dos mais imponentes sobrados do conjunto, motivou o pedido de
tombamento da cidade.

159
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

do autor, 2019.

O sobrado, que estava em péssimo estado de conservação naquele momento, ficava


ao lado da edificação alugada na qual a agência já funcionava – e funciona até hoje
(Figuras 9 e 10). Porém, Brito (2013) aponta que, enquanto em algumas cidades a popu-
lação e a administração local eram ferrenhas defensoras das ações de preservação, em
Mucugê aconteceu o oposto, pois os moradores e o prefeito entendiam que o tombamento
retardaria o processo de desenvolvimento retomado nas últimas duas décadas. Sendo
assim, a desapropriação das edificações, que significou para os locais uma possível saída
do banco da cidade, motivou a demolição das mesmas pelas mãos da própria população,
cuja lacuna deixada até hoje causa grande impacto na percepção da paisagem urbana
mucugeense.
Dentre as possibilidades existentes após a demolição estavam a construção de
uma nova edificação em outra área, mas a então SPHAN/FNPM se posicionou de forma

160
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

contrária, relembrando o convênio firmado para o aproveitamento de edificações em


cidades históricas e até sugerindo a “reconstrução do sobrado” no mesmo terreno onde
este ficava. De fato, o banco produziu um anteprojeto para a nova edificação, aprovado em
1988 pelo SPHAN/FNPM (IT nº 118/88), não concretizado, todavia, por algum motivo que
ainda não nos é familiar. Neste anteprojeto mantiveram-se telhado e volume similares
ao da antiga edificação, e as aberturas, embora em menor número, possuíam aparen-
temente um desenho mais contemporâneo. Entretanto, o banco ainda permanece na
mesma edificação, à qual promoveu uma ampla reforma pautada nas mesmas práticas
abordadas anteriormente (Figura 11). A intervenção realizada modificou todas os vãos
do prédio, removendo as portas e janelas existentes para instalar janelas em guilhotina,
mais largas que o usual, ocasionando uma relação desequilibrada entre cheios e vazios
na fachada frontal, e também a platibanda foi removida, construindo-se em seu lugar
um telhado em telha capa/canal, similar ao do antigo sobrado vizinho – do qual hoje só
restam as fotografias. Ademais, para além da entrada do banco, a ausência de aberturas
no pavimento inferior da fachada lateral e a ausência de portas na edificação ao lado,
incorporada ao banco, denunciam a sua condição de falso histórico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As intervenções observadas a partir da comparação entre as fotografias, que possuem


um distanciamento entre si de mais de 40 anos, evidenciam uma prática institucional
e/ou social que vem causando sérias interferências na percepção do conjunto arquite-
tônico e paisagístico de Mucugê. Além das intervenções de ordem cromática, comum em
vários centros históricos – especialmente no Nordeste – e responsáveis por modificar as
percepções de profundidade, agrupamento, separação visual e continuidade, não trata-
das aqui e que merecem atenção especial, as intervenções de ordem estético-estilísticas
podem perpetuar a reprodução de simulacros do passado, falsos históricos, concebendo
edificações que não correspondem ao momento construtivo do seu período, ludibriando,
assim, moradores e visitantes. Entendemos estas intervenções como reverberações da
mesma busca de adequação através do “colonial”, característica das intervenções na
“fase heroica” da instituição e que ocasionou as controvérsias verificadas por Lia Motta
na década de 1980, em Ouro Preto.
Para além disso, chamamos atenção para os possíveis impactos desta produção em
um sítio histórico desta natureza, construído originalmente nas chaves da arquitetura
vernacular, muito mais uma expressão coletiva do que uma produção concebida por
arquitetos eruditos, mas que recentemente passa a abrigar edificações construídas sob
uma outra lógica, através da elaboração de projetos técnicos, porém, se apropriando por

161
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

vezes de feições e elementos construtivos tradicionais – o que, para nós, não é uma con-
tinuação do vernáculo, visto que as intervenções são patrocinadas em grande parte por
novos personagens da cidade, sejam novos moradores ou aqueles que adquirem as resi-
dências para fins de veraneio, e capitaneadas por arquitetos e/ou técnicos da instituição.
Tal atuação engessada acaba, na maioria das vezes, afastando dos sítios históricos
uma arquitetura honesta em seus princípios, uma vez que respeitosa para com a pree-
xistente, que harmonizaria, desta forma, com muito mais propriedade com a antiga. A
partir da compreensão destes conjuntos como uma fonte documental das sociedades
que os originaram, acreditamos não nos caber mais uma atuação engendrada a fim de
imitar determinadas feições ou estilos do passado, mas sim uma atitude que possibilite
o surgimento de novas manifestações arquitetônicas, sejam a partir de técnicas con-
temporâneas ou de técnicas tradicionais e produções populares, tanto para reinserir os
objetos em outra temporalidade quanto para conceber novos espaços e edifícios próprios
do nosso tempo – desde que em harmonia com o que herdamos. Dada a complexidade
do tema, acreditamos que seria presunçosa quaisquer diretrizes e soluções por ventura
sugeridas aqui. A definição de normas e critérios de intervenção, que promovessem
maior coordenação e integração entre normas e projetos na escala arquitetônica e na
escala urbana, a partir do entendimento de todos os objetos como conjunto, seria um
bom e possível caminho. O que nos fica latente a partir desta investigação, contudo, é a
necessidade de revisitarmos e renovarmos a nossa prática de preservação, muitas vezes
em descompasso conceitual com a contemporaneidade, em vistas de evitar a frequente
cenarização dos nossos sítios históricos.

162
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

Praça Coronel
Propércio nº 88 (175.400-4772):

Praça Coronel
Propércio nº 100 (175.340-4824):

Processo nº
48/96-36:

de Tombamento. Processo nº 974-T/78: Conjunto Arquitetônico e Paisagístico,

Inventário de proteção do
acervo cultural: monumentos e sítios da Serra Geral e Chapada Diamantina.
Salvador, 1980.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:


<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>.
Acesso em: 13 set. 2019.

BRASIL. Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do


patrimônio histórico e artístico nacional. Disponível em: <http://www.planalto.
gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del0025.htm>. Acesso: 13 set. 2019.

BRASIL. Decreto-Lei n° 3.551, de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens


Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro,

Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/


d3551.htm>. Acesso: 16 set. 2019.

BRITO, Carolino Marcelo de Sousa. Ruínas sobre a Serra do Sincorá: a

Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal.

163
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Os arquitetos da memória:
preservação do patrimônio cultural do Brasil 1930 a 1940. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2009.

COSTA, Lucio. Documentação necessária. In: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E SAÚDE.


Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro,
1937. p. 31-39.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política


federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.

LEMOS, Carlos. Arquitetura brasileira. São Paulo: Melhoramentos: Ed. da


Universidade de São Paulo, 1979.

Bahia. Cadernos de memória 4. Salvador: Halley, 2017.

Revista
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 22, p. 108-122, 1987.

2º Seminário Arquitetura Vernácula, 2020, Belo Horizonte. Anais eletrônicos...


Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG, 2020. Disponível em: <https://
even3.blob.core.windows.net/anais/191201.pdf>. Acesso em: 30/01/2020.

PINA, Maria Cristina Dantas. Santa Isabel do Paraguassú: cidade, garimpo e

Bahia, Salvador. 2000.

SALES, Fernando. Memória de Mucugê

SAMPAIO, Teodoro. O rio São Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo:


Companhia das Letras, 2002.

SANT’ANNA, Marcia. Patrimônio material e imaterial: dimensões de uma mesma

Reconceituações contemporâneas do patrimônio. Salvador: Edufba, 2011. p. 193-


198.

164
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Da cidade-monumento à cidade-documento: a norma de


preservação de áreas urbanas no Brasil 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2014.

TOFANI, Frederico de Paula; BRUSADIN, Leandro Benedini. A arquitetura vernácula


enquanto patrimônio cultural: contribuições para sua preservação e uso
sustentável. In: 2º Seminário Arquitetura Vernácula, 2020, Belo Horizonte. Anais
eletrônicos... Belo Horizonte: Escola de Arquitetura da UFMG, 2020. Disponível em:
<https://www.even3.com.br/anais/2arqvernacula/>. Acesso em: 30/01/2020.

165
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A CIDADE, O PATRIMÔNIO E
SEU ENTORNO: DIÁLOGOS E
DESAFIOS NAS POLÍTICAS
URBANAS
THE CITY, THE HERITAGE AND ITS
SURROUNDINGS: DIALOGUES AND CHALLENGES
IN URBAN POLICIES

LA CIUDAD, EL PATRIMONIO Y SU ENTORNO:


DIÁLOGOS Y DESAFÍOS EN LAS POLÍTICAS
URBANAS
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

NITO, Mariana Kimie da Silva


Mestre em Preservação do Patrimônio Cultural; Universidade de São Paulo
mknito@usp.br; marykn@gmail.com

166
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A discussão sobre a relação entre cidade preexistente e preservação aparece desde os primeiros
textos sobre valor histórico e cultural de bens materiais, tendo recebido diferentes enfoques de
acordo com sua trajetória conceitual. Entre as abordagens há a figura do “entorno” ou “vizi-
nhança” como um instrumento de restrição de uso para a preservação de bens tombados. Amplia-
ram-se significativamente as potencialidades e significações do entorno como instrumento de
preservação urbana, ganhando jurisprudência e importância nas políticas empreendidas pelo
Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan). Este artigo tem como objetivo
refletir sobre a história das políticas de entorno de bens tombados pelo Iphan junto à história
das cidades brasileiras e suas relações na atualidade. Pretende-se contribuir ao entendimento
da política de patrimônio brasileira nas cidades como parte da política urbana.

PALAVRAS-CHAVE: Entorno de bens tombados. urbanismo. lphan.

A BSTRACT
The discussion about the relation between the preexisting city and conservation appears since the
early writings of the historical and cultural value of buildings, with different foci according to
its conceptual trajectory. Among the usual approaches, there is the figure of the “surroundings”,
“neighborhood” or “buffer zone” as an instrument of usage restriction for the preservation of
listed buildings and spaces. The potentialities and meanings of the surroundings widened
significantly as an instrument of urban preservation, gaining jurisprudence and importance
in policies enacted by the Institute of Historic and Artistic Heritage (Iphan). This paper aims
to reflect on the history of policies surroundings of listed buildings by Iphan along with the
history of brazilian cities and their relations today. We aim to contribute to the understanding
of brazillian heritage policy in cities as part of urban policy.

KEYWORDS: Surroundings of listed buildings. urbanism. Iphan. Brazil.

RESUMEN
La discusión sobre la relación entre la ciudad preexistente y la preservación aparece desde los
primeros textos sobre el valor histórico y cultural de los bienes materiales, habiendo recibido
diferentes enfoques según su trayectoria conceptual. Las potencialidades y significados del
entorno se han ampliado significativamente como un instrumento de preservación urbana,
ganando jurisprudencia e importancia en las políticas emprendidas por el Instituto Nacional
del Patrimonio Histórico y Artístico (Iphan). Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre

167
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

la historia de las políticas que rodean los bienes enumerados por Iphan junto con la historia
de las ciudades brasileñas y sus relaciones actuales. Su objetivo es contribuir a la comprensión
de la política patrimonial brasileña en las ciudades como parte de la política urbana.

PALABRAS-CLAVE: Entorno de los bienes inmuebles de interes cultural. urbanismo. Iphan. Brasil.

INTRODUÇÃO

Discussões sobre a proteção às áreas urbanas estiveram presentes no Brasil mesmo


antes do início das políticas de preservação do patrimônio, no final dos anos 1930. Entorno,
vizinhança, área envoltória ou de tutela são algumas das denominações empregadas
por órgãos de preservação, legislações e cartas patrimoniais para formular um conceito
que se refere à área que circunda o bem tombado, sujeita a restrições de uso e ocupação,
efetivando a conservação pela relação do bem com seu espaço imediato. A menção ao
entorno já estava presente nas propostas que antecederam o Decreto-Lei nº25/1937, que
cria o instituto do tombamento e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacio-
nal (Iphan), sendo, por fim, incorporado pelo Artigo 18 desta lei. Codificada legalmente
como área de possível perturbação de visibilidade do patrimônio, significados e valores
do entorno variaram ao longo do tempo e da jurisprudência adquirida, passando a ser
conceituado como área na qual a ambiência deve ser mantida. Apesar de definido na
legislação desde 1937 e do desenvolvimento conceitual existente, o entorno é um assunto
que não está plenamente resolvido nos órgãos de preservação, pois não há consenso
quanto à sua interpretação, à forma de demarcação de perímetro e, ainda, às normas
incidentes (Motta; Thompson, 2010; Meneses, 2006; Nito, 2015).
A complexidade do tema do entorno de bens tombados se dá por sua natureza
dual, ou mesmo ambígua, dada sua significância tanto para o bem quanto para a cidade.
Em termos gerais, é um instrumento para a preservação de bens tombados que possi-
bilita diferentes leituras dos mesmos no tempo e no espaço, ampliando o potencial de
proteção do patrimônio junto ao meio cultural em que está inserido. Nas palavras de
Meneses (2006) o valor do entorno é adjetivo, um espaço qualificador do bem tombado,
trata-se de um invólucro espacial que compõe seu valor. O entorno afirma a relação do
bem tombado com a cidade, onde ele participa da composição do espaço de diversas
maneiras (morfológicas, sociais e econômicas) que dizem respeito à preservação (Rabello,
2009). Portanto, o entorno está em função do bem cultural, mas também é imagem de sua
relação com a cidade (Nito, 2015), ao mesmo tempo em que pode desempenhar diversos
papéis relevantes para a dinâmica urbana.

168
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A partir da década de 1970, os debates sobre a preservação do patrimônio em


cidades se tornam ainda mais intensos em consequência não apenas da valorização do
solo urbano e da verticalização das cidades, como da participação da sociedade civil na
decisão sobre os projetos para a cidade, promovida pelo processo de redemocratização
do país. O campo do patrimônio reivindica, então, pautas urbanas para articular pre-
servação e desenvolvimento das cidades, além da adoção de parâmetros urbanísticos
para a preservação. O entorno era entendido não como um instrumento que restringe
a expansão urbana da cidade, mas como indutor de sua ordenação e de uma gestão do
patrimônio integrada ao planejamento urbano (Motta e Thompson 2010, p. 75).
Por excelência, o entorno apresenta-se como um campo de acomodação de tensões,
pois envolve diferentes atores sociais e diferentes interesses. Contradições e fronteiras
surgem no diálogo entre preservação e ordenação urbana, de maneira que a conservação
será pouco efetiva se ocorrer de forma independente. Neste artigo iremos refletir sobre
como a história implementação das políticas de entorno pelo Iphan se articularam a
história do planejamento urbano e a condução da política urbana, problematizando
também as relações entre patrimônio e urbanismo na atualidade. Tal análise é fruto
das primeiras investigações de pesquisa de doutorado em andamento da autora e que
possui financiamento do CNPq.

PATRIMÔNIO E SEU ENTORNO EM ÁREAS URBANAS

Entre os elementos que direcionaram as primeiras reflexões de interesse à preserva-


ção de cidades estão o processo de industrialização e o adensamento urbano em diversas
cidades, sobretudo europeias, no século XIX, cujos registros de intelectuais como John
Ruskin e William Morris, ou ainda Charles-Pierre Baudelaire, manifestam as mudanças
físicas e sociais ocorridas em detrimento da cidade velha. A questão da cidade como bem
cultural e a reflexão de alternativas às práticas de intervenção urbana são levantadas
pelos teóricos da estética urbana, a exemplo de Camillo Sitte, Charles Buls, Max Dvořák e
Gustavo Giovannoni (Rufinoni, 2013; Cabral, 2013). Surgem, então, críticas à preservação
isolada, pautando a arquitetura cotidiana e não monumentais.
Renata Cabral (2013) destaca que as contribuições teóricas e empíricas de Gio-
vannoni sobre a noção de ambiente foram fundamentais ao entendimento da relação
entre desenho, planejamento e conservação urbana. Os discursos desenvolvidos não se
relacionavam diretamente a preservação de determinado tecido urbano, mas estavam
preocupados com questões políticas muito mais amplas, como outro tipo de vida e
outro modo de produção urbana contrária aos urbanistas e higienistas do século XIX
(Choay, 2001).

169
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Nas discussões internacionais, referências à vizinhança e à ambiência de monu-


mentos estão presentes nas duas Cartas de Atenas de 1931 e de 1933. Ambas as cartas,
mesmo com nuances diferentes, influenciaram o Iphan desde seu início como evidente
na inclusão dos termos vizinhança e visibilidade no Artigo 18 do Decreto-Lei nº25/37 e
na atuação dos profissionais ligados ao movimento modernista brasileiro, que estavam
à frente da instituição: “sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que
lhe impeça ou reduza a visibilidade […]” (BRASIL, 1937).
Debates e enfrentamentos jurídicos pela aplicabilidade do Decreto-Lei nº 25/37
fortaleceram a noção de entorno e ganharam jurisprudência no seu entendimento mais
amplo. A história das políticas de entorno de bens tombados no Brasil, no panorama da
atuação do Iphan, foi sintetizada por Motta e Thompson (2010), que em pesquisa nos
arquivos institucionais propuseram a periodização a seguir:

Quadro 1: Periodização do entorno no Iphan com base nos estudos de Motta e Thompson (2010).
O primeiro período, com nomenclatura de “memoráveis batalhas judiciais”,expressão
cunhada por Márcia Sant’Anna, é caracterizado pelo cenário de maior intervenção do
Estado, das ideologias no planejamento urbano e de novas formas de organização social
que promovem outras formas de organização do espaço (Feldman, 2001). As práticas de
preservação do patrimônio na cidade, na aplicação de sua política e de seus conceitos,
entram na concorrência na produção do urbano. Às cidades é atribuído um valor de
uso mais expressivo, no qual a verticalização assume sentido e se revela a potência do
binômio urbanização e industrialização (Somekh, 1996; Souza, 1994).
Caso emblemático do primeiro período do Quadro 1 foi o entorno do Outeiro da
Glória no Rio de Janeiro/RJ que se prolongou de 1949 a 1965, acumulando processos judi-
ciais, com sentença final favorável ao Iphan. Um dos processos resultou na demolição
de quatro andares de um edifício que comprometeria a apreensão topográfica da área,
baseado no conceito de visibilidade não limitada a relação física (Motta; Thompson,
2010). Para Nascimento, não conseguindo impedir as modificações urbanas e a vertica-

170
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

lização, o patrimônio tornou-se fonte de acordos na cidade, tendo o Iphan como “ente
de negociação entre os vestígios do Rio de Janeiro colonial e imperial e a transformação
da cidade no século XX” (2018a, p. 304).
Nas décadas de 1960 a 1980, as práticas de preservação por meio do entorno se
relacionaram com o alargamento do conceito de patrimônio, devido ao “monumento ser
inseparável da história e do meio em que se situa”, como postulado na Carta de Veneza,
de 1964 do Icomos. A preocupação com a proteção por meio de outros critérios para além
da monumentalidade era evidente. Essa perspectiva foi potencializada no Brasil ao se
agravarem as críticas sobre os efeitos do tombamento aplicado a conjuntos urbanos
(Sant’Anna, 2015. p. 288). Dessa forma o Iphan, mesmo não sistematicamente, procurou
articular suas políticas de preservação com as novas questões urbanas e os desafios que
as cidades impõem ao patrimônio.
A questão urbana torna-se primordial nessa época em decorrência da industriali-
zação e do intenso fluxo migratório campo-cidade. Segundo Rolnik (2000), os dados do
IBGE apontam que a população urbana em 1960 era de 44,7% e dez anos depois passa a
ser 55,9% da população brasileira. Para Milton Santos (2018), o processo de urbanização
que ocorre a partir de 1970, alcança outro patamar com o aumento do número de cidades,
principalmente as médias, e da metropolização. O aumento dos índices de urbanização
e da escala urbana é acompanhado por uma disparidade em relação aos instrumentos
e métodos de intervenção pública sobre o espaço urbano, que estavam em seu auge de
criação[1], indicando um processo de urbanização excludente (Rolnik, 1997; Villaça, 2001).
O processo de redemocratização do país nos anos 1980 acarretou na organização
de segmentos da classe média urbana para reivindicação aos setores públicos de ações
que visassem melhor qualidade de vida urbana pelo patrimônio. Essa mobilização
ocorreu em contraposição ao crescimento e à verticalização excessiva das cidades,
decorrentes da valorização do solo urbano (Fonseca, 1996. p.158). A política de entorno
era visto como uma alternativa de preservação junto à gestão urbana e pautado como
uma política urbana que ainda estava se formulando. O entorno era entendido não
como um instrumento que restringe a expansão urbana da cidade, mas como indutor

pelo Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU) (Cymbalista; Santoro, 2009). Feldman
(2005) questiona os tratamentos simplistas geralmente atribuído a esses planos e instrumentos
apontados como tecnocráticos. A autora revela que eles precisam ser mais estudados, como
exemplo, Nascimento (2018b) destaca como o Plano Urbanístico Básico da Cidade do Rio de
Janeiro de 1976 era sensível às preexistências urbanas da cidade e seu valor a qualidade urbana.

171
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de sua ordenação e de uma gestão do patrimônio integrada ao planejamento urbano


(Motta e Thompson 2010, p. 75).
O entorno foi tratado como “uma proposta de preservação sem tombamento”
(Arnaut, 1984), ou seja, houve uma preferência pela utilização do entorno para a pro-
teção de áreas urbanas sem o uso do tombamento para toda a região. Como exemplos,
temos os processos de regulamentação do entorno da Igreja N. S. do Desterro e do Morro
da Conceição, no Rio de Janeiro/RJ e Igreja do Carmo de Goiás/GO. Por outro lado, houve
casos em que alguns bens foram tombados para assegurar o entorno qualificador de
um bem previamente acautelado. É o caso dos tombamentos Conjuntos arquitetônicos
à Avenida Nazareh e Avenida Governador José Malcher, ambos em Belém/PA e da Área
Central da Praça XV e imediações, no Rio de Janeiro/RJ.
O terceiro período estabelecido por Motta e Thompson (2010) esteve marcado por
investimentos internos do Iphan na reflexão sobre os processos feitos até então. Houve a
discussão teórica por meio de dois seminários internos e da formulação de um método
para atuação em 1983, e a criação de procedimentos administrativos específicos (Portarias
nº 10 e 11, de 1986) para tornar os processos mais claros e transparentes, apropriados
ao momento de redemocratização do país. As discussões institucionais se apressaram e
intensificaram devido ao processo de redemocratização, principalmente, para debater
“a extensão do poder discricionário da SPHAN e sua competência legal para intervir no
controle do uso do solo urbano” (Sant’Anna, 2015, p.293).
Entre os procedimentos administrativos, foi instituída a abertura de Processos de
Entorno para estudos específicos que seriam feitos separados e/ou abertos paralelamente
ao de tombamento. A diferença para com o de tombamento decorria da definição de
parâmetros de ordenação urbana, dentro dos quais as alterações não dependeriam de
aprovação do Iphan (Motta e Thompson, 2010 p.85). Outra ideia que estava em pauta,
mas que não chegou a ser efetivada, era a criação de um Livro de Entorno de registro das
áreas aprovadas pelo Conselho Consultivo, assim como ocorre com os bens tombados.
Devido à extensão burocrática, além de terem sido pouco utilizados, os processos
específicos para as áreas entorno caíram em desuso, sendo o entorno regulamentado
de outras formas de acordo com a necessidade de cada região. Uma maior concentra-
ção de estudos de entorno se deu no Rio de Janeiro, local que concentrava o grupo de
técnicos defensores de sua utilização. Tais ações de preservação e discussões normati-
vas demonstram a preocupação dos técnicos e dirigentes do Iphan em regulamentar
os procedimentos sobre as áreas de entorno na década de 1980. A regulamentação do
entorno contribuiu para manter a relevância do Artigo 18 do Decreto-Lei nº27/1937. Para

172
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Sant’Anna (2015, p. 294 e 295), isso corroborou com o poder discricionário de atuação do
Iphan, que manteve sua atuação em áreas urbanas.
No final da década de 1980, a adoção de novos instrumentos legais para promoção
do desenvolvimento urbano que contemple a preservação só seria possível a partir de
outro regime jurídico da propriedade urbana. A política urbana só é concretizada nos
Artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988. Da mesma forma, é a Carta Magna
que dá alicerces às práticas ampliadas de preservação, pelos Artigos 215 e 216, reconhe-
cendo o patrimônio imaterial e o papel fundamental da sociedade civil na proteção do
patrimônio cultural.
Porém, segundo Sant’Anna (2015), na década de 1990, a adoção de novos instrumentos
e políticas de desenvolvimento urbano que contemplem a preservação não registraram
nenhum avanço. De acordo com a autora, apesar do avanço das discussões conceituais, a
preservação do patrimônio nas cidades se voltou para investimentos grandes e pontuais,
voltadas apenas à restauração de imóveis. Para Scifoni (2017) a realidade do patrimônio
na gestão urbana no Brasil é marcada por constantes demolições e pela degradação de
edificações que são pensadas como atrativos para projetos de revalorização imobiliária.
Isso ocorreu devido ao modelo neoliberal que se configurou no final do século XX, no
qual o padrão urbano de segregação socioespacial transforma as cidades em locus de
exploração intensiva do capital, em geral favorecendo as classes sociais dominantes.
(Deák, 1991; Maricato, 1997).
Já em âmbito internacional, o destaque ao entorno é firmado com especificidades
ampliadas como fator integrador dos aspectos materiais e imateriais contribuintes de
significado e caráter ao bem tombado, conforme a Convenção do Patrimônio Imaterial
de 2003, da Unesco, e a Declaração de Xi’An[2], específica sobre entornos, de 2005, do Ico-
mos. Junto à percepção visual e aos aspectos paisagísticos e formais da cidade, também
destacam-se as dimensões sociais e econômicas, como elementos importantes para a
preservação. Ao englobar mais condicionantes na preservação por meio do entorno, tra-
ta-se de um conjunto de ações presentes no espaço urbano que ganha outro sentido se
somado ao desenvolvimento das políticas urbanas brasileiras. Esses avanços nas políticas
urbanas ocorrem com a aprovação do Estatuto da Cidade, Lei Federal 10.257/01; a criação
do Ministério das Cidades em 2004; e a retomada de investimentos federais em larga
escala (como o Programa de Aceleração do Crescimento). Sant’Anna (2015 [1995] e Meneses

[2] A Declaração de Xi’An é elaborada a partir de discussões as transformações urbanas


ocorridas em cidades de países em desenvolvimento, em particular no continente Asiático
(Icomos, 2005).

173
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

(2006) tratam as contradições e as fronteiras entre preservação e ordenação urbana em


entornos de bens tombados, ressaltando sua potente figura como instrumento de política
urbana. Rabello (2010) introduz tais discussões com base em interpretações dos dispostos
pelo Estatuto da Cidade. A autora reconhece ser indispensável investigações sobre as
práticas de sua aplicação junto a outros instrumentos em vigor, como o tombamento.
Devido ao alto grau de complexidade da regulamentação jurídica e urbana, a ques-
tão do entorno tem sido pesquisada em associação ao instituto do tombamento e ao
direito urbanístico (Rabello, 2009; Miranda, 2014), bem como em sua evolução conceitual
na jurisprudência e no direito comparado (Santos, 2002; Cureau, 2009; Marchesan, 2010
e 2013; Tiago et al., 2016). Ressaltamos que, nessa bibliografia, há o entendimento de que
as restrições no entorno do bem tombado são fundamentais para sua visibilidade e
compreensão no espaço urbano, e sua existência é um dos efeitos do ato administrativo
do tombamento. Nesse sentido, existem estudos sobre formas de delimitar e gerir as
áreas de entorno, a partir do estudo de casos europeus e brasileiros (Ruiz, 1997; Andrade,
2009; Prata, 2009).
Segundo Carina Mendes Melo (2016), a partir de 2007 o Iphan ressaltou a importância
de regulamentação das áreas tuteladas, em especial as áreas de entorno, sendo criado um
caderno de orientações e diretrizes aos estudos (Iphan, 2010). A preocupação do Iphan
decorreu do grande passivo de bens protegidos para os quais as áreas de entorno nunca
foram oficializadas. As problemáticas também são evidentes em artigos produzidos
por técnicos do Iphan que apresentam reflexões sobre a prática de preservação (Leal e
Freitas, 2008; Balthazar, Nito e Oliveira, 2015; Nascimento et al., 2013; Melo, 2016). A impor-
tância do instrumento também é visível pela demanda de estudos sobre entorno feitas
nas superintendências estaduais como atividade a ser desenvolvida pelos bolsistas do
Mestrado Profissional do Iphan[3].
Aprofundar questões e interpretações sobre como articular as competências, princi-
palmente no que diz respeito à relação de tutela indireta pelo entorno se faz necessário.
Casos recentes evidenciam que, na prática, ainda não há consenso quanto à regula-
mentação do entorno. Além disso, ainda persistem os conflitos com o planejamento da
cidade e o controle de uso do solo. Para os órgãos de preservação, o entorno acaba sendo
apenas um processo de licenciamento e fiscalização de aspectos formais que, por vezes,
discorda ou concorda com a legislação local. Como exemplos, podemos citar as obras no

[3] Existem 8 dissertações de mestrado desenvolvidas sobre a temática de entorno que


estão disponíveis online pelo site do mestrado do Iphan: http://portal.iphan.gov.br/pagina/
detalhes/308. Acesso em: fev. 2020.

174
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

terreno do Grupo Silvio Santos, no caso do Teatro Oficina, em São Paulo/SP (Baratto, 2007;
Cury, 2017; Nito, 2019); e as obras do edifício La Vue, vinculadas ao ministro Geddel Vieira
Lima, no entorno do forte e farol de Santo Antônio da Barra, do forte de Santa Maria,
e o conjunto arquitetônico e paisagístico da Igreja de Santo Antônio, em Salvador/BA
(Simono, 2016; Fisherman, 2016).
O patrimônio tombado dos exemplos citados possuem localizações estratégicas
de acesso aos centros urbanos, onde o zoneamento incentiva a verticalização da área,
sem apresentar diálogo com os bens tombados e ignorando suas áreas de entorno como
parte da historicidade desses. Para Meneses (2006, p. 41), se por um lado é constatada a
dificuldade de incorporar as dimensões sociais da cidade nas práticas de preservação,
por outro, políticas urbanas se distanciam de questões patrimoniais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência institucional do patrimônio brasileiro (federal, estadual ou muni-


cipal) nos delegou em sua maioria um conjunto coeso e homogêneo de bens culturais,
em sua maioria formada por bens excepcionais artísticos ou históricos representantes
da elite e pouco representativa da diversidade cultural brasileira, advindos até o século
XVIII, frutos da sociedade branca, masculina e católica (Fonseca, 2005; Rubino, 1996). Esses
bens quando estão em cidades, geralmente se localizam em áreas centrais ou em regiões
historicamente ocupadas pelas classes dominantes. Se os municípios brasileiros possuem
como regra a regulamentação dos espaços centrais e ocupados pela população de alta
renda, em detrimento de outras regiões (Rolnik, 1997). Essa lógica de produção do espaço
urbano pelo estado brasileiro faz com que exista uma oferta de melhor infraestrutura
em um território do que em outro, que associada a outros fatores físicos determina o
valor do solo urbano (Villaça, 2001; Ferreira, 2010). Então, a área de entorno entra em
uma arena que pode confrontar ou favorecer disputas e interesses locais, de forma que
o patrimônio entra na disputa econômica, política e simbólica da cidade.
O que a pesquisa de doutorado em andamento pretende é a ampliação e aprofunda-
mento da abordagem do entorno de forma a compreender seu papel como instrumento
de preservação por meio da análise do impacto e da relação dessa política na gestão
e no planejamento das cidades. Trata-se de um olhar para os efeitos do tombamento
de bens, pelo instrumento de entorno, voltado para as influências na vida e no tecido
urbano, considerando as políticas públicas em sua historicidade, estabelecendo relações
entre leis e práticas urbanísticas sob a perspectiva do patrimônio. Ainda que a análise
esteja apoiada na atuação do Iphan, o que buscamos é investigar a forma de pensar e

175
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

fazer a política de patrimônio brasileira em sua relação com a política urbana e com as
demandas da sociedade civil.

REFERÊNCIAS

Dimensão Ambiental: o impacto do entorno em jardins


de interesse histórico. Tese (Doutorado em Arquitetura) – Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2009.

preservação sem tombamento. Revista do Patrimônio, Rio de Janeiro: SPHAN, n.


19, 1984.

sobre as Normas de Preservação do Patrimônio Cultural.Seminário Internacional


Anais... Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,
2015. p. 540-552.

instituições divulgam nota de apoio ao teatro. ArchDaily Brasil, 03 nov 2017.

BRASIL. SPHAN. Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a


proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.

CABRAL, Renata C. A Noção de “ambiente” em Gustavo Giovannoni e as Leis de


Tutela do Patrimônio Cultural na Itália. Tese (Doutorado). Instituto de Arquitetura
e Urbanismo, USP, São Carlos, 2013.

Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2001.

Anais… Ouro Preto, 2009.

Estadão, 23 out 2017.

Planos diretores: processos e


aprendizados. São Paulo Instituto Pólis, 2009.

DEÁK, Csaba. Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos 80. Espaço &
Debates, São Paulo, v.11, n.32, p.32-46, 1991.

176
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

órgãos de planejamento/empresas de engenharia consultiva. In: Encontro


Anais… Salvador:ANPUR/UFBA, 2005.

Estudos
urbanos e regionais

democratização das cidades no Brasil e os riscos de um “urbanismo às avessas”.


Hegemonia às avessas. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2010.

Jornalistas Livres, 29 nov 2016.

FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política


federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: UFRJ/MinC/IPHAN, 2005.

______. Da modernização à participação: A política federal de preservação nos


anos 70 e 80. Revista do Patrimônio, Rio de Janeiro: SPHAN, n. 24, 1996.

ICOMOS.
Áreas Do Patrimônio Cultural
ICOMOS/BRASIL, mar. 2006.

IPHAN. Normatização de cidades históricas: orientações para a elaboração de


diretrizes e normas de preservação para áreas urbanas tombadas. Brasília:
IPHAN, 2010.

LEAL, Thalianne de Andrade; FREITAS, Marcelo de Brito Albuquerque Pontes.


Revisão do polígono de entorno dos monumentos tombados pelo IPHAN nos

Salvador. Anais… Salvador: IAB, UFBA, PPG-AU/ UFBA, 2008. 1 CD-ROM.

ALFOSIN, Betânia (Coord.). Revisitando o instituto do tombamento. Belo


Horizonte: Fórum, 2010. p. 99 a 127.

______. O entorno dos bens tombados na legislação brasileira. MPMG Jurídico,


Belo Horizonte, edição especial, p.43-55, 2013.

177
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

MARICATO, E. Habitação e cidade. São Paulo: Atual, 1997.

MELO, Carina Mendes dos Santos. Novos conceitos, velhas práticas na proteção
de áreas de entorno de bens federais. In: Encontro da Associação Nacional de

Anais… Porto Alegre: PROPAR/UFRGS, 2016.

MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A cidade como bem cultural. Áreas envoltórias
e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental
urbano. In: Patrimônio: Atualizando o Debate. São Paulo: IPHAN, 2006.

MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do tombamento comentada: Decreto-Lei n.

Rey, 2014.

MOTTA, Lia; THOMPSON, Analucia. Entorno de bens tombados. Rio de Janeiro:


IPHAN, 2010.

cultural: história e materialidade em disputa. Revista Do Arquivo Geral Da Cidade


Do Rio De Janeiro, v. 14, p. 297-324, 2018a.

______. Corredor Cultural do Rio de Janeiro: debates e combates pelo patrimônio


cultural urbano nos anos 1970. Patrimônio E Memória (UNESP), v. 14, p. 117-139,
2018b.

Histórico De Natal. In: ARQUIMEMÓRIA, 4., 2013, Salvador. Anais… Salvador: IAB,
UFBA, PPG-AU/ UFBA, 2013.

Revista arq.urb (USJT), n. 26, p. 138-157,


2019.

______. Heurística para Entornos de Bens de Interesse Cultural baseada na


Ambiência:

Cultural, Rio de Janeiro, 2015.

178
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PRATA, Juliana Mendes. Patrimônio cultural e cidade: práticas de preservação em


São Paulo. 2009. Tese (Doutorado em Arquitetura e do Urbanismo), Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2009.

Revisitando o instituto do
tombamento. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. p. 37 a 49

______. O Estado na preservação de bens culturais. Rio de Janeiro: Iphan, 2009.

modelo em construção.
e Habitação de Interesse Social, PUCCAMP, 2000.

______. A cidade e a lei. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp, 1997.

RUBINO, Silvana. O mapa do Brasil passado. Revista do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional

RUFINONI, Manoela R. : intervenções em sítios


históricos industriais. São Paulo: Fap-Unifesp/ Edusp, 2013.

RUIZ, Jose Castillo. El entorno de los bienes inmuebles de interes cultural.


Concepto, legislacion y metodologias para su delimitacion. Evolucion historica

y Letras, Universidad de Granada e Instituto Andaluz del Patrimonio Histórico,


Granada, Espanha, 1997.

SANT’ANNA, Márcia. Da cidade-monumento à cidade-documento: norma de


preservação de áreas urbanas no Brasil 1937-1990. Salvador: Oiti Editora, 2015.

SANTOS, Antônio Silveira Ribeiro dos. Área de entorno do imóvel tombado. In:
Gazeta Mercantil (Legal & Juris.); Correio Brasiliense (Direito & Justiça); Tribuna
do Direito, 2002.

SANTOS, Milton. . São Paulo: Edusp, 2018.

SCIFONI, Simone. A natureza desigual do patrimônio cultural. In: Maria


Tereza Duarte Paes; Marcelo Sotrati. (Org.).
cultural: identidades, usos e ideologias. 1ed.São Paulo: Annablume/Imprensa
Universidade de Coimbra (PT), 2017.

179
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BBC News Brasil, 28 nov 2016.

SOMEKH, N. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. São Paulo: Studio


Nobel/Fapesp, 1996.

SOUZA, M. A. A identidade da metrópole. São Paulo: Editora Hucitec/Edusp, 1994.

Crystianne da Silva. O entorno de bem imóvel tombado no direito brasileiro.


Revista Idea, Uberlândia, MG, v.7, n.2, jul-dez, 2016.

Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel/Fapesp/


LILP, 2001.

180
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O CONCEITO DE
INTEGRIDADE NA
CONSERVAÇÃO DA
ARQUITETURA MODERNA
THE CONCEPT OF INTEGRITY IN THE
CONSERVATION OF MODERN ARCHITECTURE

EL CONCEPTO DE INTEGRIDAD EN LA
CONSERVACIÓN DE LA ARQUITECTURA MODERNA
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

PEIXOTO, Allana de Deus


Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de Brasília
allanaddp@hotmail.com

MELO, Carlos Eduardo Luna de


Doutor em Estruturas e Construção Civil; Universidade de Brasília
carlosluna@unb.br

LIRA, Flaviana Barreto


Doutora em Desenvolvimento Urbano; Universidade de Brasília

181
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A conservação do patrimônio arquitetônico envolve um processo de análise do bem no decorrer
do tempo e tem como objetivo a manutenção do seu valor patrimonial. Os conceitos contem-
porâneos de significância cultural, autenticidade e integridade têm atuado como aspectos
balizadores das ações de conservação sobre o patrimônio. Dentro desse contexto, percebe-se
que algumas obras da arquitetura moderna têm apresentado problemas que impactam dire-
tamente a significância, a integridade, a autenticidade e, consequentemente, a manutenção das
suas características às quais valores patrimoniais são atribuídos. Observa-se, muitas vezes, a
existência de conflitos entre as condições de degradação do bem e a manutenção do seu valor
patrimonial, indicando dificuldades quanto à proposição de ações conservativas que possam
gerar um menor impacto possível sobre tais valores. Apesar da importância do conceito de
integridade no processo de conservação do patrimônio, ainda não há um consenso claro quanto
ao sentido exato de sua aplicação ou ao estabelecimento de parâmetros específicos que possam
guiar a sua avaliação na prática. O objetivo do presente trabalho é apresentar a importância
do conceito de integridade dentro do contexto das ações de conservação e intervenção sobre os
edifícios da arquitetura moderna e os principais desafios inerentes à sua aplicação prática no
processo de conservação. Conclui-se que a integridade deve ser operacionalizada como aspecto
central do processo de conservação do patrimônio moderno, podendo apontar a necessidade
de realização de intervenções e ações de manutenção em momento anterior à necessidade
realização de intervenções de maior impacto, quando já se observa um avançado processo de
degradação sobre o bem.

PALAVRAS-CHAVE: integridade. arquitetura moderna. conservação. patrimônio.

A BSTRACT
The conservation of architectural heritage involves a process of analyzing the property over
time and aims to maintain its heritage value. Contemporary concepts of cultural significance,
authenticity and integrity have acted as guiding elements of conservation actions on heritage.
Within this context, it can be seen that some examples of modern architecture have presented
problems that directly impact significance, integrity, authenticity and, consequently, the
maintenance of their patrimonial value characteristics. It is often observed the existence of
conflicts between the degradation conditions of the buildings and the maintenance of its
patrimonial value, indicating difficulties regarding the proposition of conservative actions
that can generate the least possible impact on such values. Despite the importance of the
concept of integrity in the heritage conservation process, there is still no clear consensus on
the exact meaning of its application or the establishment of specific parameters that can

182
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

guide its assessment in practice. The objective of this work is to present the importance of the
concept of integrity within the context of conservation and intervention actions on buildings
of modern architecture and the main challenges inherent to their practical application in the
conservation process. It is concluded that integrity must be operationalized as a central point
in the process of conservation of modern heritage, and may point to the need for interventions
and maintenance actions prior to the need for interventions of greater impact, where there is
already an advanced degradation process.

KEYWORDS: integrity. modern architecture. conservation. heritage.

RESUMEN
La conservación del patrimonio arquitectónico implica un proceso de análisis de la propiedad
a lo largo del tiempo y tiene como objetivo mantener su valor patrimonial. Los conceptos con-
temporáneos de importancia cultural, autenticidad e integridad han actuado como elementos
guía de las acciones de conservación del patrimonio. Dentro de este contexto, se puede ver que
algunas obras de arquitectura moderna han presentado problemas que afectan directamente
la importancia cultural, la integridad, la autenticidad y, en consecuencia, el mantenimiento de
sus características de valor patrimonial. A menudo se observa la existencia de conflictos entre
las condiciones de degradación de la propiedad y el mantenimiento de su valor patrimonial,
lo que indica dificultades con respecto a la proposición de acciones conservadoras que pueden
generar el menor impacto posible sobre dichos valores. A pesar de la importancia del concepto
de integridad en el proceso de conservación del patrimonio, todavía no existe un consenso claro
sobre el significado exacto de su aplicación o el establecimiento de parámetros específicos que
puedan guiar su evaluación en la práctica. El objetivo de este trabajo es presentar la importancia
del concepto de integridad dentro del contexto de las acciones de conservación e intervención en
edificios de arquitectura moderna y los principales desafíos inherentes a su aplicación práctica
en el proceso de conservación. Se concluye que la integridad debe operacionalizarse como un
punto central en el proceso de conservación del patrimonio moderno, y puede señalar la nece-
sidad de intervenciones y acciones de mantenimiento antes de la necesidad de intervenciones
de mayor impacto, donde ya existe un avance proceso de degradación en la obra.

PALABRAS-CLAVE: integridad. arquitectura moderna. conservación. patrimonio.

183
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

A conservação do patrimônio deve ser encarada como um processo que envolve a


análise do bem no decorrer do tempo, em seus aspectos estéticos e históricos, devendo
possuir como objetivo prioritário a manutenção do seu valor patrimonial, enquanto
objeto de memória e de representação de um povo.
Esse processo deve considerar a existência do edifício no passado, analisando os
processos valorativos do bem desde a sua existência original, o que permanece de valor
do bem no presente, considerando que os valores percebidos pela sociedade podem se
modificar com a passagem do tempo, e a sua existência no futuro.
O caminho para o estabelecimento de parâmetros específicos de conservação que
ajudem a direcionar as decisões de intervenção para a manutenção do valor patrimo-
nial de uma obra, considerando a passagem do tempo sobre esta, passa pela avaliação
da significância cultural do bem e de suas condições de autenticidade e integridade.
Autores como Silva (2012), Loreto (2016) e Lira (2018) apontam para a importância do
entendimento da relação entre os conceitos de significância, autenticidade e integridade.
Tais conceitos devem atuar como balizadores das ações de conservação sobre o bem e
guiar a intervenção para a manutenção o máxima possível do seu valor patrimonial.
A análise de autores como Stovel (2007), Zancheti e Hidaka (2010) e Silva (2012)
aponta para o entendimento da integridade, por exemplo, no sentido de completude e
caráter intacto da obra. Ou seja, quanto a obra representa de forma completa e intacta
a significância e seu o valor enquanto patrimônio.
Se a integridade da obra é perdida, consequentemente, há grande risco de perda da
significância e da autenticidade desta, pois não existiria reminiscência física suficiente e
completa para expressar materialmente o valor desta como patrimônio e, muito menos,
para continuar sendo representada de forma autêntica e verídica no sentido material.
Observa-se que algumas das obras com estrutura em concreto armado da arquite-
tura moderna, por exemplo, têm apresentado problemas que impactam diretamente a
sua integridade ligados à consistência física, à materialidade da obra e à manutenção
das características originais do material.
Nesse caso, observa-se um conflito entre a necessidade de restabelecimento do
desempenho da estrutura e a manutenção de suas características físicas originais, conflito
esse que se rebate na proposição de ações conservativas sobre tais bens que considerem
os possíveis impactos negativos sobre a sua significância cultural.

184
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

As estratégias de conservação devem, portanto, considerar aspectos de desempenho,


durabilidade e manutenção dos atributos patrimoniais, para auxiliar no julgamento das
ações de intervenção sobre o patrimônio moderno, guiados pela operacionalização da
avaliação da integridade, da significância cultural e da autenticidade.
O objetivo do presente trabalho é, portanto, apresentar a importância do conceito
de integridade e sua operacionalização como aspecto essencial para a prática das ações
de conservação e intervenção nos edifícios arquitetura moderna e analisar os desafios
de sua aplicação prática no processo de conservação.

O CONCEITO DE INTEGRIDADE NA CONSERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO

A noção de integridade e o estabelecimento da importância desse conceito no


campo da preservação do patrimônio vem se tornando cada mais evidente ao longo dos
últimos anos. A institucionalização da noção de integridade no campo da conservação
do patrimônio é estabelecida a partir dos anos 2000, levando essa noção a compor os
critérios de avaliação do patrimônio cultural para inscrição na Lista do Patrimônio
Mundial, juntamente com a noção de autenticidade e a de valor universal excepcional
(Outstanding Universal Value).
Apesar da importância do conceito de integridade no processo de conservação do
patrimônio, ainda não há um consenso claro quanto ao sentido exato de sua aplicação
e ao estabelecimento de parâmetros específicos que possam guiar a sua avaliação na
prática. É preciso buscar compreender os fundamentos que caracterizam esse conceito,
para estabelecer parâmetros que possam auxiliar sua avaliação na prática da conservação.
A seguir, faz-se uma breve análise quanto aos aspectos ligados à noção de integridade
em um momento anterior e posterior ao estabelecimento de seu conceito formal através
do Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention (2005).

Anteriormente à adoção do critério de integridade pelo Operational Guidelines for


the Implementation of the World Heritage Convention (2005), embora não houvesse ainda
o entendimento exato do conceito, observa-se, nos escritos de teóricos do século XIX e
XX, elementos que estabelecem fundamentos que podem ajudar no entendimento da
noção de integridade e sua avaliação na prática da conservação.
A interpretação da obra de autores como John Ruskin (2008), Eugène Emannuel
Viollet-le-Duc (2000), Camilo Boito (2002) e Cesare Brandi (2004) mostra que suas teorias a

185
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

respeito do restauro, embora sob abordagens diversas, apresentam elementos ligados à


noção de integridade, principalmente no que diz respeito à materialidade do patrimônio.
Pode-se interpretar o sentido de integridade em Ruskin (2008) em relação à capaci-
dade de expressão histórica do edifício como testemunho da passagem do tempo, fazendo
deste um instrumento de memória. O grau de completude e a integridade que o edifício
deve possuir é marcado por seu tempo de existência e pelo seu acúmulo de significados.
Dessa forma, mesmo que o edifício pareça incompleto no sentido material, pela
existência de lacunas em seu aspecto visual, ou mesmo em processe de arruinamento,
ainda assim deveria ser considerado íntegro se tais lacunas representassem a expres-
são temporal que atesta sua idade legítima. O sentido de completude ligado à obra traz
consigo uma noção de integridade atrelada à passagem natural do tempo.
Ao interpretar Viollet-le-Duc (2000), a integridade de um edifício poderia estar
relacionada à sua compatibilidade como modelo ideal de concepção e projeto, ou seja,
o tempo, para ele, não seria necessariamente determinante como referência a ser utili-
zada para avaliar a completude da obra, mas, sim, se as intervenções feitas sobre a obra
buscavam uma manifestação do estilo arquitetônico ideal de referência.
A noção de perda de integridade, nesse caso, se relacionaria com a incompletude
do objeto em relação a um modelo ideal de referência e poderia ser restabelecida caso
o objeto fosse reconstruído em um estado idealizado, um modelo ideal, mesmo que tal
reconstrução não representasse a passagem verdadeira do tempo sobre a obra.
A noção de integridade pode ainda ser interpretada na obra de Brandi (2004),
estando, nesse caso, diretamente relacionada com as instâncias estética, ao destacar a
importância da materialidade do bem enquanto obra de arte, e histórica, ao evidenciar
cada objeto como resultado de um momento específico no tempo, devendo essa condição
ser respeitada de forma a evitar a criação de falsos históricos.
O autor analisa o sentido da obra de arte por inteiro ou se esta pode ser entendida
como tal a partir de suas partes, apresentando o que define como unidade potencial da
obra de arte. Tal conceito mostra que as partes de uma obra, quando desprovidas do con-
texto que dá sentido e valor ao todo como unidade, não carregam sozinhas esse mesmo
valor de obra de arte, gerando um sentido de perda de unidade. Nesse ponto, a obra de
arte não pode ser entendida como um total, mas, sim, como um inteiro, pois embora
pudesse possuir as mesmas partes constituintes, desalinhadas do sentido original, não
formariam o mesmo inteiro que constitui o valor da obra de arte.
Segundo o conceito de unidade potencial, a obra de arte não representa seu valor por
partes e, ainda que seja constituída por partes, deve subsistir como um todo em cada um

186
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de seus pedaços, ou seja, cada um de seus fragmentos deve possuir uma conexão direta
com os traços formais remanescentes da obra de arte original. A intervenção que busca
resgatar a unidade potencial originária deve fazê-la a partir da unidade potencial dos
fragmentos do todo, ou seja, das sugestões implícitas nos fragmentos remanescentes,
testemunhos autênticos do estado original da obra.
Dessa forma, a integridade poderia ser entendida, buscando como referência as
instâncias estética e histórica do bem, de forma que a consistência física e material do
bem possa expressar a imagem como um inteiro diante da percepção dos sujeitos que
atribuem valor a ele. Se esse inteiro passa a ser representado de forma incompleta nos
sentidos estético e histórico inerentes à valoração do bem diante da passagem do tempo
e da análise atribuída pelos sujeitos que a percebem enquanto obra de arte, haveria perda
de integridade do bem por quebra do sentido de sua unidade potencial.
Considera-se que os escritos mencionados já apontam questões essenciais para
a avaliação contemporânea da integridade, tais como o entendimento do que seria a
completude da obra, o entendimento da obra enquanto unidade com valoração histórica
e estética e a importância da passagem do tempo no processo de valoração, podendo ser
reinterpretada diversas vezes pelos sujeitos fruidores do bem.

Segundo o Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Con-
vention (2005), portanto, “a integridade é uma apreciação da completude e do caráter
intacto do patrimônio e de seus atributos”. Avaliar a integridade de um bem significa,
portanto, avaliar até que ponto ele possui os elementos necessários para expressar o
seu Valor Universal Extraordinário (Outstanding Universal Value) e se esses elementos
possuem dimensão suficiente para expressar a significância. (STOVEL, 2007; SILVA, 2012).
Stovel (2007) aponta que, para avaliar o grau de integridade de um edifício, é preciso
observar se os atributos que se relacionam com a significância do edifício permanecem
existindo de forma completa (completude), se possuem condições de continuar a existir
(caráter intacto) e se podem ser compreendidos em seu contexto (continuidade do cenário).
Dessa forma, a avaliação da integridade possui relação direta com a identificação
dos atributos do bem e da análise destes quanto às suas condições de existência diante
da passagem do tempo, considerando se estes representam a significância do bem de
forma completa e se possuem meios de permanecer representando esse valor ao longo
do tempo e diante de novos contextos e eventuais ameaças.

187
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Embora, no sentido teórico, o conceito de integridade tenha sido estabelecido como


elemento de grande importância no processo de conservação, na prática, a aplicação deste
não se torna clara. Diante da complexidade de aplicação e avaliação do conceito, autores
como Zancheti e Hidaka (2010), Silva (2012) e Loreto (2016) destacam a importância da
aplicação prática do conceito de integridade no processo de conservação do patrimônio.
Loreto (2016) ressalta que, no sentido metodológico, o conceito de integridade não
possui um sentido claro de operacionalização e aplicação, o que dificulta a realização das
ações de conservação, embora já exista um entendimento consolidado da importância
da avaliação da integridade com um dos aspectos essenciais das ações de conservação
sobre o patrimônio.
De acordo com Lira (2020), embora tais conceitos venham sendo apresentados
de forma isolada no sentido teórico, na prática da conservação e da intervenção sobre
o patrimônio, tal separação não se mostra pertinente, pois há uma influência direta
de um conceito sobre o outro, o que não permite que sejam vistos separadamente em
termos práticos.
Além disso, ressalta que, mesmo que a noção de integridade, assim como de autenti-
cidade e significância cultural venham ganhando visibilidade na gestão da conservação
do patrimônio, ainda há dificuldades no que diz respeito à operacionalização dessas
noções no campo prático.
Lira (2020) aponta como caminho metodológico para a integração entre autenti-
cidade, integridade e significância: considerar que a significância deve ser estabelecida,
através da definição de atributos e valores a eles atribuídos, determinada por especialistas
e validada pelos atores sociais envolvidos, enquanto a integridade e a autenticidade,
devido à sua complexidade, devem ser avaliadas por especialistas.
Como a integridade tem relação com a permanência material dos atributos que
mantêm a valoração do bem de forma completa, o impacto de sua perda pode trazer
como consequência a perda dos valores do bem, inclusive daqueles mais relevantes,
por conta dos processos de degradação inerentes à passagem do tempo sobre o objeto.
A avaliação da integridade na prática, portanto, é essencial para a decisão das ações de
intervenção sobre o patrimônio.
Entende-se, portanto, que a integridade tem uma relação direta com o sentido de
completude do objeto e que tal completude deve ser avaliada a partir de um ponto de
referência específico para cada caso avaliado, considerando as condições históricas e
artísticas inerentes a cada objeto.

188
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A busca pelo restabelecimento da integridade deve estar relacionada à manuten-


ção do sentido de unidade do bem em sua consistência física. Os fragmentos e lacunas
que afetam os atributos que carregam os valores da obra e que passam a fazer parte da
matéria, podem desconstruir o sentido de unidade desta e contribuir para a perda de
integridade e de significância do bem.

DESAFIOS DA AVALIAÇÃO DA INTEGRIDADE NA CONSERVAÇÃO DA


ARQUITETURA MODERNA

O processo de degradação da matéria contribui para a perda de integridade, pois


gera perdas materiais que, muitas vezes, afetam diretamente a unidade potencial da obra
de arte. No caso dos edifícios da arquitetura moderna, a importância da avaliação da
integridade se torna mais evidente, considerando que muitos desses edifícios se encon-
tram em constante processo de degradação diante da utilização de técnicas e materiais
cuja durabilidade tem se mostrado fortemente impactada pela passagem do tempo.
Um dos problemas da conservação desses edifícios é que grande parte de sua
superfície é constituída de concreto armado aparente, ficando diretamente exposta
aos agentes que causam degradação e, por isso, chegam aos dias atuais com constantes
manifestações patológicas ocasionadas pela ação de intempéries e outros fatores.
Quando tais edifícios não possuem ações de manutenção frequentes, aumenta
a possibilidade de evolução dessa degradação, podendo levar à perda de elementos e
materiais originais e à sua consequente descaracterização.
Dessa forma, por conta da necessidade de desaceleração desse processo de degra-
dação, leva-se o bem a um novo estado de completude, ou seja, restabelece-se a sua inte-
gridade em detrimento de uma possível perda de autenticidade e significância através
da complementação dos fragmentos perdidos da obra.
Os desafios da conservação da arquitetura moderna relacionam-se ao uso dos mate-
riais e da tecnologia e têm uma relação muito significativa com o caráter inovador e o
alto grau de experimentação da época de construção dos edifícios, além do aparecimento
de novos materiais e do uso de materiais tradicionais de formas ainda não testadas.
De acordo com Macdonald (2003), foi o que aconteceu com o uso do concreto apa-
rente, dos perfis metálicos, dos grandes painéis de vidro, dos plásticos, das telhas de
alumínio, do amianto, do cobogó e dos elementos em fibras de vidro. A consequência foi
a constatação de edificações com vida útil reduzida e com falta de manutenções adequa-
das, necessitando de reparos significativos em prazos muito menores que o esperado.

189
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Analisando o contexto das obras do patrimônio moderno, percebe-se que diversas


intervenções realizadas sobre tais obras tiveram, muitas vezes, que lidar com decisões
que buscaram priorizar a integridade ou a autenticidade, escolhendo, em alguns casos,
uma em detrimento da outra pela impossibilidade de manutenção da completude e da
veracidade material do bem de forma simultânea.
Um exemplo de intervenção conservativa em obras da arquitetura moderna é
a do edifício Crown Hall (1950-1956) (Figura 1) em Chicago, do arquiteto Mies van der
Rohe. De acordo com Prudon (2008), nas regiões litorâneas, principalmente, o desgaste
das esquadrias atingiu uma condição irreversível e muitas foram as razões para a sua
substituição, até mesmo por conta da exigência de novas legislações, onde o tipo de vidro
utilizado na nova especificação não se adequava ao detalhamento existente no edifício.
Em busca da restituição da integridade do edifício e da desaceleração de seu processo
de degradação, priorizou-se a substituição de materiais em detrimento da manutenção
da autenticidade dos materiais originais das esquadrias. Dessa forma, priorizou-se a
completude da obra em seu sentido estético e visual, ao invés de manter o material
original de valor histórico e historiográfico, degradado pela ação do tempo no objeto.

Figura 1 – Crown Hall em Chicago, de Mies Van der Rohe.


Fonte: (GADELHA, 2013).

No caso do Finlândia Hall (1967-1971) em Helsinki, de Alvar Aalto (Figura 2), com
seis anos de sua construção, os painéis de mármore carrara que revestiam as fachadas
passaram a apresentar deformações por conta de fatores como a fina espessura do
material, a poluição da cidade e o sistema de ancoragem ineficiente, além da escolha
inapropriada do material.
A intervenção optou por substituir os painéis existentes através da utilização de
um mesmo tipo de mármore, entendendo que a aparência do edifício possuía uma
importância significativa para a significância e para a memória do público. Dessa forma,
a significância estaria mais relacionada ao aspecto externo do material do que com o pró-
prio material, mantendo a significância e a integridade em detrimento da autenticidade.

190
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Fonte: (SILVA, 2012).

Macdonald (1996) aponta outro exemplo de intervenção em um exemplar da arqui-


tetura moderna, em que os blocos de concreto e os elementos vazados da Igreja de Notre
Dame du Raincy (1922-1923) (Figura 3), de Auguste Perret, tiveram que ser substituídos
gradualmente por conta do aparecimento de fissuras e de instabilidade da estrutura.
Nesse caso, novamente optou-se pela manutenção da integridade em detrimento da
perda de autenticidade do material original.

191
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3 – Igreja Notre Dame du Raincy (1922-1923), de Auguste Perret.


Fonte: (SILVA, 2012).

Quando a materialidade e a integridade são alteradas, percebe-se que há um grande


risco de se impactar negativamente sobre a manutenção do valor do bem, o que deve
ser evitado ao máximo pelo processo de conservação, como é o caso das intervenções
apresentadas, em que optou-se pela substituição de materiais originais, buscando-se
resgatar um sentido de completude ligado à aparência física do bem enquanto elemento
valorativo de memória que representava, naquele momento da intervenção, a signifi-
cância da obra enquanto patrimônio.
De acordo com Lira (2018), embora os conceitos de integridade, significância e
autenticidade venham sendo apresentados de forma isolada no sentido teórico, na
prática da conservação e da intervenção sobre o patrimônio, tal separação não se mos-
tra pertinente, pois há uma influência direta de um conceito sobre o outro, o que não
permite que sejam vistos separadamente em termos práticos. Juntos, tais conceitos têm
guiado a gestão da conservação na contemporaneidade.
A análise da relação entre os conceitos de significância, integridade e autenticidade
dentro do processo de conservação do bem mostra, dessa forma, que é importante buscar
a sua operacionalização prática destes nos processos de intervenção sobre o patrimônio,
de modo a evitar o máximo possível que haja perdas de valor patrimonial, sejam elas
em caráter material ou imaterial.

192
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Percebe-se que a autenticidade, quando se relaciona com a sobrevivência dos mate-


riais originais, muitas vezes, não pode ser restaurada ou ampliada devido à aceleração do
processo de degradação do material com a passagem do tempo. No caso da conservação do
patrimônio moderno, muitas vezes, é necessário priorizar os aspectos da materialidade,
pois, sem o caráter íntegro do bem, a significância também pode ficar comprometida.
Além disso, quanto mais impactantes forem as intervenções necessárias diante de
um acelerado processo de degradação do material, maior será a perda de autenticidade
como consequência imediata, pois mais materialidade original pode vir a ter que ser
substituída para resgatar a existência física e a integridade do bem. Com a perda da
autenticidade, uma parte da significância ligada à originalidade do material também
pode ser perdida por consequência.
Em casos de extrema deterioração, por exemplo, para restituir o sentido de unidade
potencial, seria necessário, muitas vezes, reconstruir grande parte do bem, conferindo-lhe
uma nova unidade potencial, o que poderia comprometer a significância no sentido
de uma perda considerável de sua autenticidade gerada pela completa substituição de
materiais.
Considera-se, dessa forma, que a operacionalização do conceito de integridade é
um ponto de grande importância para a conservação do patrimônio, pois sua avaliação
permite equilibrar a completude da obra no sentido material e auxiliar nas decisões de
intervenção do ponto de vista da manutenção do valor patrimonial.
A avaliação da integridade pode servir como parâmetro essencial nas decisões
de intervenção sobre o patrimônio, à medida em que seu nível de perda pode indicar
a necessidade de intervenções em um momento anterior a um estado emergencial de
degradação, o que poderia evitar intervenções em caráter de urgência que possam gerar
descaracterizações e perdas a nível de significância e também de autenticidade do bem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conceito de integridade ainda possui um sentido de aplicação relativamente


recente no campo da preservação e conservação do patrimônio e também ainda apresenta
dificuldades no sentido de operacionalização na prática diante de sua complexidade
de aplicação e avaliação.
Se a consistência física da obra passa a ser afetada, os aspectos de significância
e autenticidade também passam a ser ameaçados, pois a perda material pode levar
à necessidade de intervenções cada vez mais impactantes no intuito de minimizar o
processo de degradação ou de restabelecer a durabilidade e o desempenho perdido

193
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

pela ação da passagem do tempo, o que pode afetar sua autenticidade e a forma como
se valora o bem em questão.
Entende-se que a integridade deve ser considerada em conjunto com os conceitos
de significância cultural e autenticidade, mas deve ser operacionalizada como ponto
central do processo de conservação do patrimônio moderno, pois pode apontar a neces-
sidade de intervenções e ações de manutenção que possam restabelecer a integridade
do bem em momento anterior à necessidade de intervenções emergenciais que exijam
ações de maior impacto sobre a significância e a autenticidade do bem, como é o caso
da substituição de materiais originais degradados pela ação do tempo.

194
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BOITO, Camilo. Os Restauradores

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração

cultural na contemporaneidade. Patrimônio e Memória. São Paulo: UNESP, v. 14, p.


272-298, 2018.

LORETO, Rosane. . Tese


(Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2016.

MACDONALD, Susan. Reconciling Authenticity and Repair in the Conservation


of Modern Architecture. Journal of Architectural Conservation. Journal of
Architectural Conservation, v. 2, n.1, p.36-54, 1996.

MACDONALD,Susan. 20th Century Heritage: Recognition Protection and Practical


ICOMOS World Report 2002-2003 on
Monuments and Sites in Danger, Paris, 2003. pp. 1-14.

PRUDON, T. H.M. Preservation of Modern Architecture.


Sons, Inc. 2008.

RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória

Conservar, uma Questão de Decisão. O Julgamento na Conservação


da Arquitetura Moderna. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco, 2012.

Operational Guidelines for the Implementation


of the World Heritage Convention. Paris, 2008.

Restauração

ZANCHETI, Silvio; HIDAKA, Lúcia.


: Teoria e Estrutura. Indicadores de
Conservação e Sustentabilidade na Cidade Patrimonial. Olinda: CECI, 2010.

195
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONSERVAÇÃO
PREVENTIVA: ESTUDO
DE CASO DO MUSEU
INTERNACIONAL DE ARTE
NAIF DO BRASIL
PREVENTIVE CONSERVATION: CASE STUDY OF
THE INTERNATIONAL MUSEUM OF ART NAIF OF
BRAZIL

CONSERVATIÓN PREVENTIVA: ESTUDIO DE CASO


DEL MUSEO INTERNACIONAL DE ARTE NAIF DE

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCCESSOS

SENNA, Clarissa de Paula


-
nio -PROARQ/UFRJ
cladrums_arq@ymail.com

196
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O trabalho em questão trata do tema conservação preventiva, e sua relevância para a salva-
guarda de um bem patrimonial. Evidencia-se através do estudo de caso do Museu Internacional
de Arte Naif do Brasil (MIAN), a importância da construção de um diagnóstico específico sobre
a edificação, com o intuito de identificar, tratar e eliminar os riscos iminentes e os que possam
vir a degradar o bem, a curto, médio e longo prazos. Para situar o leitor na temática, foram rea-
lizadas vistorias no local e análises em documentos e registros, a fim de serem apresentadas as
características gerais da edificação, a nível histórico, legislativo e físico (sistemas construtivos);
bem como seu estado de conservação atual, apontando as principais patologias observadas.
Como forma de aplicação da teoria na prática, foram utilizados um manual de conservação
preventiva e um roteiro de avaliação e diagnóstico em conservação, relacionando-os com as
patologias e materiais encontrados no MIAN, e atentando para os danos e riscos que cercam a
edificação analisada. A simulação do plano de ações de conservação preventiva foi realizada
somente para algumas esquadrias do bem, elementos mais degradados, a título de exemplo
e com o intuito de tornar possível uma compreensão clara de como lidar com os problemas
advindos da falta de conservação. De forma conclusiva, diante das análises realizadas, cons-
tata-se que fator determinante para a perpetuação de um bem na sociedade está na existência
de uma educação patrimonial, em que faça parte do cotidiano, um plano de gerenciamento
de conservação preventiva, visando a preservação da edificação, e evitando que se chegue ao
estágio da restauração, de natureza tão invasiva ao patrimônio.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio cultural. conservação preventiva. preservação. patologias.

A BSTRACT
The work in question deals with the preventive conservation theme, and its relevance for the
safeguarding of a patrimonial asset. It is evidenced through the case study of the International
Museum of Naif Art of Brazil (MIAN), the importance of building a specific diagnosis about
the building, in order to identify, treat and eliminate the imminent risks and those that may
degrade the good, in the short, medium and long terms. In order to situate the reader on the
theme, on-the-spot inspections and analysis of documents and records were carried out to
present the general characteristics of the building, at the historical, legislative and physical
level (construction systems); as well as its current state of conservation, pointing out the main
pathologies observed. As a way of applying the theory in practice, a preventive conservation
manual and a conservation assessment and diagnosis script were used, relating them to the
pathologies and materials found in the MIAN, and paying attention to the damages and risks
that surround the analyzed building. The simulation of the preventive conservation action

197
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

plan was performed only for some doors, the most degraded elements, as an example and in
order to make possible a clear understanding of how to deal with the problems arising from
the lack of conservation. In a conclusive way, in view of the analyzes carried out, it is found
that a determining factor for the perpetuation of a good in society is the existence of heritage
education, in which a preventive conservation management plan is part of everyday life, aiming
at the preservation of the building , and avoiding reaching the stage of restoration, which is
so invasive of heritage.

KEYWORDS: cultural heritage. preventive conservation. preservation. pathologies.

RESUMEN
El trabajo en cuestión aborda el tema de la conservación preventiva, y su relevancia para la pro-
tección de un bien patrimonial. Se evidencia a través del estudio de caso del Museo Internacional
de Arte Naif de Brasil (MIAN), la importancia de construir un diagnóstico específico sobre el
edificio, a fin de identificar, tratar y eliminar los riesgos inminentes y los que pueden degradar
lo bueno, a corto, mediano y largo plazo. Para ubicar al lector sobre el tema, se llevaron a cabo
inspecciones in situ y análisis de documentos y registros para presentar las características
generales del edificio, a nivel histórico, legislativo y físico (sistemas de construcción); así como
su estado actual de conservación, señalando las principales patologías observadas. Como una
forma de aplicar la teoría en la práctica, se utilizó un manual de conservación preventiva y
un guión de evaluación y diagnóstico de conservación, relacionándolos con las patologías y
materiales encontrados en el MIAN, y prestando atención a los daños y riesgos que rodean el
edificio analizado. La simulación del plan de acción de conservación preventiva se llevó a cabo
solo para algunas puertas del edificio, elementos más degradados, como un ejemplo y para
hacer posible una comprensión clara de cómo abordar los problemas derivados de la falta
de conservación. En conclusión, en vista de los análisis realizados, está claro que un factor
determinante para la perpetuación de un bien en la sociedad es la existencia de educación
patrimonial, en la cual un plan de gestión de conservación preventiva es parte de la vida coti-
diana, con el objetivo de preservar el edificio. y evitando alcanzar la etapa de restauración, que
es tan invasiva por naturaleza.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio cultural. conservación preventiva. preservación. patologías.

198
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

Os bens culturais estão sujeitos ao modo como uma sociedade e seus governantes
o enxergam, ficando a cargo de um olhar mais atento, que em grande parte das vezes,
quando acontece, é em momentos em que o patrimônio tem algo a perder. Enquanto
memórias vivas da história da sociedade, e no papel de formadores de uma identidade,
tais bens deveriam ser compreendidos e estudados em sua magnitude, para que per-
manecessem na função de relatores para as gerações futuras da forma mais íntegra e
verdadeira possível.
O presente trabalho tem como intuito apresentar uma análise acerca da importância
da conservação preventiva em edificações de valor patrimonial, com o estudo de caso do
Museu Internacional de Arte Naif[1] do Brasil, representativo de um bem que caminha
para o descaso por questões legislativas, econômicas, dentre outras. Pretende-se que
sejam evidenciadas, através da criação de um diagnóstico para o caso específico e atual
do MIAN[2], a necessidade de ações prévias de avaliação e gerenciamento de edificações
para a salvaguarda do bem; assim como as vantagens que a compreensão dos aspectos
gerais e específicos de uma edificação e seu entorno representam para a adoção de solu-
ções mais eficazes, garantindo a existência da mesma, e a permanência de seus valores.
Atualmente, no Brasil e em tantos outros locais onde a educação patrimonial
ainda é precária, a atenção só é voltada para o bem quando o mesmo atinge um estágio
de comprometimento avançado, em que há a necessidade de intervenções sob ações
visíveis aos olhos da sociedade, que não atenta para a importância que a manutenção
e a conservação representam para a permanência da unidade potencial da edificação,
sente-se beneficiada por tal feito. As ações de conservação promovem a preservação,
prevenindo as edificações das intervenções mais invasivas advindas da restauração,
que em muitos casos, se não fundamentadas e analisadas caso a caso, podem provocar
danos irreparáveis ao patrimônio.
O artigo será desenvolvido através de pesquisas bibliográficas em livros, trabalhos
acadêmicos, artigos e sites oficiais pertinentes ao tema, bem como por visitas ao local;
de forma a reunir as informações necessárias para um diagnóstico geral do bem, e o
reconhecimento das dificuldades e deficiências relacionadas à edificação. Serão levan-

[1] Arte da espontaneidade, da criatividade autêntica, do fazer artístico sem escola nem
orientação, portanto é instintiva, e onde o artista expande seu universo particular.

[2] Museu Internacional de Arte Naif do Brasil, fundado pelo francês Lucien Finkelstein em
1995 no bairro de Cosme Velho - RJ. O local encontra-se fechado desde 2016.

199
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tados os aspectos históricos e legislativos; a relação da edificação com o contexto urbano


e social contemporâneo; bem como seu estado de conservação, a fim de estabelecer um
embasamento claro sobre as razões e consequências da falta de conservação do edifício,
e compreender os tipos de danos e métodos de tratamento indicados para a preserva-
ção do bem. Será dada atenção especial às esquadrias, elementos mais degradados do
patrimônio em questão.

O MUSEU INTERNACIONAL DE ARTE NAIF DO BRASIL

Edificação de estilo eclético, datada do final do século XIX, a antiga sede do Museu
Internacional de arte Naif do Brasil - MIAN, trata-se de um dos casarões remanescentes
do bairro de Cosme Velho, no Rio de Janeiro; que desde 1991 apresenta-se como um bem
preservado pela APAC[3] Cosme Velho e parte de Laranjeiras. Localizado na rua Cosme
Velho, 561, o objeto de estudo está inserido em uma região de vocações turística, comercial,
residencial e institucional; rodeado pela bela paisagem da Mata Atlântica, e a menos de
100 metros da estação de trem que leva os turistas ao Corcovado.
Com as características predominantemente residenciais do bairro, o casarão foi
destinado inicialmente ao uso residencial; posteriormente, após um acréscimo de área
a sua direita, assumiu a função de ateliê de artes; e mais tarde, com as mudanças de
necessidades da contemporaneidade, foi consolidado como um museu.
O MIAN teve origem em 1995, quando o francês Lucien Finkelstein[4], residente no
Rio de Janeiro e portador da maior coleção da arte referida em todo o mundo, optou por
compartilhá-la com a sociedade. Em 1988, Finkelstein realizou uma exposição denomi-
nada “O mundo fascinante dos pintores Naifs”, que anos depois resultaria na abertura do
museu. O casarão cumpriu fielmente sua função até 2016, quando foi fechado por falta
de verbas e pela impossibilidade de uma expansão que gerasse um suporte de renda.
Atualmente, a edificação, portadora dos valores histórico, estético e funcional, sofre
por consequência de uma legislação engessada no que diz respeito ao uso e ocupação
do solo, permitindo apenas o uso residencial unifamiliar para o local; fato que por ser
inviável, poderá ocasionar no aumento gradativo das patologias por falta de manuten-
ção, conservação e de uso.

[3] Área de proteção do ambiente cultural, instituída pelo Plano Diretor Decenal, Lei Comple-
mentar 16/1992. Trata-se de um instrumento utilizado para a proteção do ambiente construído.

[4] Joalheiro e colecionador francês, fundador do Museu de Arte Naif no Rio de Janeiro, Brasil.

200
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A sede do museu é composta pelo casarão e seu anexo, localizado na parte pos-
terior do terreno e conectado diretamente à edificação principal pelo andar superior.
Através de visitas ao local, foi possível observar alguns materiais e sistemas construtivos
presentes nas edificações, que servirão de base para o entendimento das patologias, o
futuro diagnóstico e o plano de ações de reparos, reforços e conservação preventiva. Para
a melhor compreensão dos materiais e sistemas construtivos, optou-se por dividi-los
nos subitens: coberturas, sistema estrutural, vedações verticais, vedações horizontais,
esquadrias e escadas.
a) Coberturas: ambas as edificações possuem sistema tradicional de telhado con-
feccionado com estrutura de madeira, contendo tesouras, caibros e ripas. O tipo de
fechamento se diferencia, sendo utilizadas telhas francesas com arremate em cimalha
de alvenaria para o volume do casarão (Figura 1) e telhas portuguesas com beiral em seu
anexo. As coberturas apresentam sinais de degradação como algumas telhas quebradas,
ocasionando manchas de umidade no interior da edificação, e excrementos de pombos
nas calhas (Figura 2).

Figura 1: Telhado do MIAN com telhas francesas. Fonte: Clarissa Senna, 2019.

201
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Clarissa Senna, 2019.

b) Sistema estrutural: formado por tijolos maciços (Figura 3) confeccionando uma


alvenaria de espessura constante e elevada, o que sugere que atuem como alvenaria
autoportante. Não foi possível a constatação da estrutura dos pavimentos, contudo, a
exemplo da edificação vizinha, construída na mesma época, e sendo possível a visuali-
zação de suas técnicas construtivas, devido ao seu estado gradativo de arruinamento,
acredita-se que tenha sido adotado o mesmo sistema de estrutura em madeira (Figura 4).

202
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3: Parede de tijolos maciços com perda de argamassa - MIAN. Fonte: Clarissa Senna, 2019.

203
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

c) Vedações verticais: são configuradas pelo mesmo tijolo maciço observado nas
paredes externas. As paredes internas e externas são revestidas de argamassa com pintura
branca lisa na parte interna, e azul e branca lisa na parte externa. No embasamento da
fachada frontal é observado o uso de cantaria (Figura 5). As degradações mais observadas
nas vedações verticais são a perda de argamassa, deixando à mostra os fechamentos em
osso, contudo não há vestígios de umidade ascendente na edificação.

Figura 5: Embasamento em cantaria na fachada frontal - MIAN. Fonte: Clarissa Senna, 2019.

d) Vedações horizontais: a pavimentação interna é em grande parte feita com piso


de mármore, sendo diferenciada apenas nas áreas molhadas, onde foram utilizadas
cerâmicas; e na área da varanda, com a adoção de revestimento em ladrilho hidráulico
(Figura 6). No teto são observados rebaixos em placas de gesso acartonado e PVC. Os
pontos de degradação resumem-se ao mau uso da edificação, como peças quebradas e
com perdas superficiais.

204
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6: Piso da varanda em ladrilho hidráulico com peças quebradas - MIAN. Fonte: Clarissa
Senna, 2019.

e) Esquadrias: todas de madeira, são originalmente da cor azul (Figura 7), tratan-
do-se dos elementos mais degradados na edificação. As esquadrias apresentam desde
pequenas perdas volumétricas até a degradação do material.

205
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 7: Esquadria da fachada lateral esquerda com elementos faltantes e perda da argamassa
da moldura.
Fonte: Clarissa Senna, 2019.

e) Escadas: constituídas de estrutura de ferro com pisos em mármore. Todos os


guarda-corpos são de ferro, com acabamento em madeira na parte superior somente
na escada interna. A escada interna encontra-se em bom estado, enquanto a externa,
apresenta oxidação de suas ferragens e degradação parcial de seu guarda-corpo.

CONSERVAÇÃO PREVENTIVA

O tema conservação preventiva tem sido bastante discutido e desenvolvido, assu-


mindo várias definições com vertentes complementares entre si; podendo ser entendida
suscintamente como “[...] ações indiretas para retardar a deterioração e prevenir danos
através da criação das condições ideais para a preservação do bem cultural de acordo
com a compatibilidade de seu uso social. ” (ECCO, 2002, p.2, tradução nossa). Tal definição
é de suma importância ao deixar explícito a importância que o uso assume perante a
definição de medidas de proteção ao patrimônio, pois bem como já dizia Viollet-le-duc
“[...] o melhor meio para conservar um edifício é encontrar para ele uma destinação. É

206
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

satisfazer tão bem todas as necessidades que exige essa destinação, que não haja modo
de fazer modificações.” (VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 65)
Sob outra perspectiva, de acordo com a Fundação Casa de Rui Barbosa:
A conservação preventiva pode ser definida como um conjunto de ações
para mitigar as forças responsáveis pela deterioração e pela perda de
significância dos bens culturais, e a formulação de um plano de conser-
vação preventiva é a concepção, coordenação e execução de um conjunto
de estratégias sistemáticas organizadas no tempo e espaço, desenvolvidas
por uma equipe interdisciplinar com o consenso da comunidade a fim
de preservar, resguardar e difundir a memória coletiva no presente e
projetá-la para o futuro para reforçar a sua identidade cultural e elevar
a qualidade de vida. (FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA, c2019)
Tal preocupação com a significância da edificação, atenta para a diferença entre
um plano de conservação comum, e o relacionado com o patrimônio, em que além de
questões materiais e funcionais, preza-se também pelos valores que a edificação possui.
A habilidade de previsão de futuros problemas, mencionada, é também de suma impor-
tância para a salvaguarda de uma edificação, ao se pensar nas consequências catastró-
ficas que a ausência de preservação, conjugada com uma restauração mal elaborada, e
de natureza mais invasiva, podem representar.
Com base nessas definições, entende-se que o ato de proteção ao patrimônio tem
como premissa a perpetuação de uma memória da forma mais verdadeira possível para
as gerações futuras, prezando pelos valores atribuídos a ela pela sociedade contempo-
rânea. Visa-se um resultado advindo de uma reorganização de prioridades, em que a
conservação seja a diretriz de um plano cujo objetivo seja a preservação; e que somente
em último caso se aplique a restauração, que quando necessária deve ser cuidadosa-
mente fundamentada.
De acordo com Froner (2008) apud Machado (2015), ao se tentar definir um plano
de conservação, é fundamental que a ciência da conservação não se limite apenas a
questões técnicas, é necessário tratá-la como um conhecimento estruturado, fomentado
a partir de um desenvolvimento histórico e intelectual. Tal premissa carrega consigo
a necessidade de compreender o edifício para que seja possível desenvolver métodos
para o tratamento de suas patologias através de um plano específico de conservação
para o mesmo.
Acerca do desenvolvimento de um plano estratégico de conservação, o manual de
conservação preventiva para edificações, de Klueppel (1999), considera que os bens devem

207
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

sempre seguir um roteiro de inspeção, analisando inicialmente: os agentes externos,


antes e após o período sazonal de chuvas; e o edifício propriamente dito, considerando
sua cobertura, paredes, pisos, forros de madeira e vãos e esquadrias.
E ainda, segundo Froner (2008), tais bens devem seguir fases específicas para a
realização de um diagnóstico de conservação eficiente, sendo elas:
Primeira fase - preparação: informações (missão da instituição, dados sobre o
edifício, coleções, funcionários e atividades), definição de metas, problemas específicos
a serem resolvidos, prioridades institucionais, e o destino das informações resultantes
do diagnóstico, para a concentração nas áreas-chave;
Segunda fase - coleta de informações: análise de aspectos ligados ao meio ambiente
da edificação (observações e entrevistas no local, levantamento das condições existentes,
identificação das áreas de risco atual e potencial para o edifício e seu acervo). Categorias:
1- O Macro Ambiente do museu, 2- O edifício (caracterização); 3- O meio ambiente das
coleções;
Terceira fase - análise conjunta e estratégias: revisão das áreas-chave, diagnóstico
das causas prováveis das problemáticas atuais ou potenciais, determinação dos possíveis
inter-relacionamentos entre o edifício e sua organização para a definição de estratégias
adequadas para a instituição. Substituição das abordagens existentes insuficientes para
criar condições ambientais seguras. Identificação das estratégias de gestão ambiental
considerando as limitações impostas pelo clima, edifício e recursos institucionais. Planos
de implementação de melhorias para o comportamento do edifício e suas condições e
ameaças ambientais;
Quarta fase - relatório do diagnóstico: três seções principais: 1- dados e análises;
2- estratégias recomendadas; 3- fases sugeridas para a implementação.

Metodologia

Uma vez apresentadas as informações sobre a edificação, o plano estratégico de


conservação preventiva para o MIAN será ensaiado de acordo com a estratégia de Froner
(2008), mencionada anteriormente, assumindo todas as fases para a formação de um
diagnóstico da edificação, aliada às premissas do manual de conservação preventiva
para edificações, de Klueppel (1999).
De acordo com o levantamento do bem, previamente realizado, observa-se que
a maior parte das patologias estão restritas às áreas - chave: coberturas, esquadrias,
paredes externas, pisos e forros, com base nas quais será desenvolvido o diagnóstico

208
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

para o futuro plano de conservação preventiva da edificação. Como resultado final do


diagnóstico, será realizado o estudo de intervenções somente para algumas esquadrias,
elementos mais degradados, com o intuito de exemplificar e simular possíveis ações em
prol da preservação do bem.

Resultados

O bem encontra-se em um estágio de degradação médio, que poderia ter sido facil-
mente evitado com medidas básicas de manutenção e conservação; sendo os principais
danos, observados exatamente nos elementos expostos às intempéries.
Os agentes externos atuantes na edificação são: tubulações expostas apresentando
rupturas nas conexões; excremento de pássaros na parte alta das paredes, nas calhas e
nos beirais; e as intempéries, comuns a todas as edificações.
Na edificação são encontrados danos como: telhas e peças de pisos quebradas e
danificadas, rejuntamento danificado, apodrecimento de peças de esquadrias devido à
umidade, esquadrias empenadas, ferragens danificadas, dentre outros.
Seguindo as fases específicas para a realização do diagnóstico básico de conservação
para o MIAN, tem-se as seguintes informações:
Primeira fase - preparação: Museu Internacional de Arte Naif do Brasil com acervo
com mais de mais de oito mil obras de cerca de 1.500 artistas, de mais de 130 países,
incluindo em sua maioria obras brasileiras; cuja meta é ser requalificado para o uso
através de condições funcionais mais adequadas e salubres;
Segunda fase - coletas de informações: a edificação encontra-se em estado degradado
em maior parte pelas ações das intempéries e da falta de conservação advinda da falta
de uso ao qual está submetida; sendo destaques em termos de elementos deteriorados, a
cobertura, as esquadrias, as paredes externas, os pisos e os forros, conforme a descrição do
edifício anteriormente mencionada. As condições internas para o acervo são favoráveis;
Terceira fase - análise conjunta e estratégias: As condições de deterioração das
áreas-chave mencionadas são em geral causadas por obras malfeitas aliadas à ação do
tempo, intempéries e a falta de conservação, facilmente resolvida com uma rotina de
manutenção adequada e bem elaborada, bem como pelo tratamento e impermeabilização
de elementos da cobertura e esquadrias;
Quarta fase - elaboração do relatório do diagnóstico: serão utilizadas as esqua-
drias como exemplo para a aplicação de estratégias de conservação recomenda-
das.

209
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

1- Dados e análises (Figura 8): as esquadrias contêm basicamente danos ocasionados


pelo uso contínuo e falta de manutenção, como sujidade advinda de gordura de mãos,
ferragens faltantes e danificadas, pintura degradada, vidro quebrado, manchas de umi-
dade, pequenas perdas volumétricas, e madeira degradada pelo efeito das intempéries.
Há, porém, um dano proposital com a abertura de uma lacuna para alocar a mangueira
de escoamento da água do ar condicionado, representando uma instalação inadequada
na volumetria da esquadria.

Figura 8: Mapeamento de danos das esquadrias localizadas na fachada frontal do MIAN. Fonte:
Clarissa Senna, 2019.

2- Estratégias (Figura 9): Com o intuito de preservar a edificação enquanto um


patrimônio, serão adotadas medidas que prezem pela edificação em sua materialidade
e valor atribuído.

210
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 9: Estratégias para o tratamento dos danos das esquadrias localizadas na fachada
frontal do MIAN.
Fonte: Clarissa Senna, 2019.

a) Para as ferragens danificadas e faltantes: substituição das mesmas por novas


peças similares e comerciais, de forma a devolver a funcionalidade e caracterizar a inter-
venção por meio de peças possíveis de serem identificadas como novas a curta distância,
e imperceptíveis de longe, como já afirmava Viollet-le-Duc:
Nas restaurações, há uma condição dominante que se deve ter sempre
em mente. É a de substituir toda parte retirada somente por materiais
melhores e por meios mais eficazes ou mais perfeitos. É necessário que
o edifício restaurado tenha no futuro, em consequência da operação
a qual foi submetido, uma fruição mais longa do que a já decorrida.
(VIOLLET-LE-DUC, 2000, p. 54)
b) Para as patologias das peças de madeira: tratando-se de um conjunto de perdas
volumétricas por causas naturais e intervenções humanas, degradações na pintura
advindas da umidade e dilatação térmica, e sujidades (gordura e poeira) pelo uso contínuo
anterior, as diretrizes seriam a limpeza geral, aplicação de cupinicida e verniz marítimo
incolor, para uma impermeabilização mais eficaz. Em relação à pintura, foi observado
que a coloração oficial das esquadrias ao longo dos anos, era em um tom de azul, de fato
ainda presente em todas as esquadrias, exceto nas da fachada frontal e varanda lateral,
que foram modificadas em uma intervenção ocorrida em 2014 por apoio dos moradores
do bairro. Dessa forma, acredita-se que o mais adequado seria o retorno à cor original

211
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

para a melhor harmonia do edifício, e o reconhecimento da obra de arte como tal foi
documentada e assimilada pela população.
c) Para os vidros: de natureza opaca, decorados com desenhos geométricos, os vidros
da fachada frontal e alguns das laterais encontram-se quebrados, de forma que uma
possível opção seria a substituição das peças danificadas por novos vidros laminados
com película interna opaca leitosa clara com proteção de raios UV. A reprodução da
decoração poderia ser realizada em coloração diferenciada para que fosse facilmente
identificada de perto e discreta de longe, não sobressaindo no objeto e mantendo sua
unidade potencial pautada no conceito de Brandi que diz que:
A integração deverá ser sempre e facilmente reconhecível; mas sem que
por isso se venha a infringir a própria unidade que se visa a reconstruir
[...], a integração deverá ser invisível à distância de que a obra de arte
deve ser observada, mas reconhecível de imediato, e sem necessidade de
instrumentos especiais, quando se chega a uma visão mais aproximada.
(BRANDI, 2004, p.47)
O intuito, de fato, é evidenciar sua natureza e manter a linguagem das demais
fachadas, promovendo e agregando valor no que diz respeito ao conforto térmico.
d) Manutenção: segundo o manual de conservação preventiva para edificações,
devem ser realizados periodicamente os seguintes procedimentos de manutenção:
Para evitar ataques de cupins - observar todo o terreno, cuidadosamente a cada 6
meses, procurando panelas de cupim; observar árvores que se encontram no terreno.
Se encontrar cupim tratar de eliminar o ninho e efetuar podas e cortes dos ramos de
árvore; instruir as pessoas que trabalham na limpeza e manutenção diária do imóvel,
que ao encontrarem pó branco, bolinhas de cor marrom, asas de inseto ou furos nas
peças avisem imediatamente, etc.;
Roteiro de limpeza: a limpeza das esquadrias deve ser realizada a cada 7 dias, sendo
no caso das folhas de madeira, retirado ao máximo a poeira e sujidade. Recomenda-se que
a cada dois anos a esquadria seja repintada ou envernizada. Para os vidros, é necessária
a limpeza com esponja macia embebida em água e sabão neutro ou produtos específicos
para limpeza de vidro existentes no comércio. Para as ferragens deve ser utilizado um
pano seco e periodicamente lubrificar com grafite as dobradiças e fechaduras. No caso
dos peitoris de madeira, devem ser adotados os mesmos procedimentos utilizados para
as folhas de madeira, além de realizar a desobstrução das pingadeiras. Para os peitoris
de mármore, a limpeza deverá ser feita com um pano ou esponja macia embebidos em
água e sabão neutro, enxaguando depois com água limpa e secando imediatamente após.

212
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

3- Fases sugeridas para a implementação: dado o estado de degradação atual das


esquadrias, devem ser iniciados os procedimentos de limpeza das peças, seguidos pela
reconstituição das partes faltantes e aplicação de devida proteção com cupinicida e
impermeabilizante nas peças em madeira. Em um segundo momento, deverão ser
feitos os procedimentos de pintura para posteriormente serem adicionadas as novas
ferragens e vidros.
Durante a utilização da edificação, deverão ser adotados os procedimentos de
manutenção mencionados, seguindo as recomendações para evitar ataques de cupins
e conservação da limpeza; respeitando a periodicidade sugerida.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma, a necessidade de preservação de uma edificação de interesse patrimo-


nial carrega consigo uma variável primordial comparada a uma edificação comum. Em
planos de conservação preventiva relacionadas a um bem cultural, as estratégias são
baseadas em questões que vão além da materialidade e funcionalidade, comuns aos
edifícios no geral, ganhando também visibilidade as questões dos valores agregados
ao bem pela sociedade contemporânea. Tais valores devem fazer parte das diretrizes de
intervenções a serem adotadas em prol da permanência da significância do edifício. Ao
lidar com uma edificação de interesse de preservação, é sugerido que se conheça o bem
em suas variadas vertentes, significações e valores: da história ao seu estado degrada-
tivo no momento presente; do que se pretende ao que impede que o edifício atinja seu
objetivo enquanto construtor de uma memória; de forma que o mesmo sobreviva para
relatar para as gerações futuras. Esse entendimento multidisciplinar da edificação é que
traz bagagem para a formação de um diagnóstico real, e o posterior desenvolvimento
de medidas primordiais para a preservação do bem, entendida tanto no sentido de
mantê-lo em boas condições de uso, como no sentido de prolongar seu tempo de vida
útil com mais qualidade, garantindo a permanência de seus valores históricos, estéticos
e funcionais, no caso do MIAN.
Para a garantia de que o patrimônio receba o olhar devido, com o zelo adequado
para a permanência de seus valores, é necessário que haja uma reorganização de prio-
ridades embasadas por uma educação patrimonial, ainda inconsistente na sociedade
atual. É primordial a formação de uma sociedade em que se preze pela real permanência
dos aspectos da edificação, ao invés de deixá-las ruir ou intervir somente quando sejam
necessárias intervenções de restauro, muitas vezes expressas e realizadas com o intuito
maior de significar um espetáculo de “boas ações” aos olhos de expectadores; utilizando-se
a desculpa do interesse patrimonial para envaidecer na verdade uma pessoa física, ou

213
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

um conjunto delas. A conscientização, quanto à política de conservação preventiva, é


vital para a salvaguarda dos bens culturais, à medida em que o interesse é direcionado
para o bem acima de qualquer outra razão.

214
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BRANDI, C. Teoria da restauração


2004.

ECCO. E.C.C.O. Professional Guidelines (I): The Profession. Bruxelas: ECCO,

professional_guidelines_I.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2019.

FINKELSTEIN, L. Brasil Naif - arte Naif: Testemunho e patrimônio da humanidade.


Rio de Janeiro: Novas Direções, 2001.

Roteiro de avaliação e diagnóstico de conservação preventiva.


Belo Horizonte: UFMG, 2008. Disponível em: <https://www.sisemsp.org.br/

FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA. O que é conservação preventiva. Rio de


Janeiro, c2019. Disponível em: <http://www.casaruibarbosa.gov.br/interna.
php?ID_S=218&ID_M=528>. Acesso em: 16 dez. 2019.

KLUEPPEL, G. P., SANTANA M. C. Manual de conservação preventiva para


. Brasília: MINC/IPHAN-MONUMENTA, 1999. Disponível em: <http://
ipurb.bentogoncalves.rs.gov.br/uploads/downloads/IPHAN_Manual_de_
conservao_preventiva.pdf >. Acesso em: 15 dez. 2019.

MACHADO, B. P. A importância do diagnóstico de conservação para nortear


as ações de preservação em arquivos, bibliotecas e museus. Brasília: UnB,
2015. Disponível em: <http://bdm.unb.br/bitstream/10483/11204/1/2015_
BrunaPereiraMachado.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2019.

Restauração
Ediorial, 2000.

215
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

DESENVOLVIDA NO CURSO
DE ARQUITETURA E

216
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO ESCALAS E PROCESSOS

ALBUQUERQUE, Glauce Lilian Alves de


Doutora; Departamento de Arquitetura - DARQ/UFRN; Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura, Projeto e Meio Ambiente - UFRN
glauce.lilian@gmail.com

NASCIMENTO, José Clewton do


Doutor; Departamento de Arquitetura – DARQ/UFRN; Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo; Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Projeto e Meio
Ambiente – UFRN
jotaclewton@gmail.com

CAVALCANTI, Emanuel Ramos


Doutor; Departamento de Arquitetura DARQ/UFRN
emanuel.cavalcanti.au@gmail.com

217
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O artigo apresenta uma experiência didático-pedagógica relacionada à leitura e à análise do
patrimônio urbano e da paisagem cultural, aplicadas junto aos alunos do 3º período, semes-
tre 2019.2, do Curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. A experiência didático-pedagógica se deu através da integração entre os
componentes curriculares, História e Teoria da Arquitetura e do Urbanismo 01, Planejamento
e Projeto Urbano e Regional 01 e Comunicação Visual, e teve por temática a cidade colonial, em
especial a cidade barroca brasileira, pautada em uma viagem de estudos realizada na cidade
de Olinda, Pernambuco. Os discentes deveriam confecção de material didático destinado aos
jovens entre 13 e 18 anos, abrangendo o tema da educação patrimonial, visando ensinar, de
forma lúdica, a relevância desses conjuntos urbanos e destacar suas características, relacio-
nando-as com o período em que foram implantados, bem como atentar para a necessidade da
preservação do patrimônio cultural das cidades. A atividade in loco objetivou construir quadros
de memória durante a estadia em Olinda com a utilização de um diário de viagem com todas
as informações apreendidas durante o “estar no lugar”, para posterior produção de material
didático a ser usado em educação patrimonial. Neste sentido, esse artigo se baseia no conceito
de lugar e memória, fundamentais para uma maior aproximação com o universo de estudo e
da educação patrimonial. Ao final, os discentes desenvolvem os produtos a partir do que regis-
traram, servindo então, os cadernos como memórias coletivas da visita. Para o desenvolvimento
dos produtos, além da visita, dos registros feitos nos cadernos, do levantamento de dados
sobre a cidade, os discentes participaram de mesa redonda sobre Educação Patrimonial com
uma pedagoga especialista em atividades com adolescentes, e se apropriaram dos conteúdos
apresentados e discutidos anteriormente nas disciplinas envolvidas na atividade integrada.
A turma apresentou um número total de cinco propostas, com produtos diversificados, que
contemplaram adequadamente o que foi solicitado.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio urbano. ensino. cidade colonial brasileira. educação patrimo-


nial. Paisagem cuktural

A BSTRACT
The article presents a didactic-pedagogical experience related to reading and analyzing urban
heritage and cultural landscape, applied to students in the 3rd semester of 2019.2, from the
Undergraduate Course in Architecture and Urbanism at UFRN. The didactic-pedagogical expe-
rience took place through the integration between the curricular components, History and
Theory of Architecture and Urbanism 01, Urban and Regional Planning and Design 01 and
Visual Communication, and had as its theme the colonial city, especially the Brazilian Baroque

218
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

city, based on a study trip held in the city of Olinda, Pernambuco. Students were asked to make
didactic material for young people between 13 and 18 years old, covering the theme of heritage
education, aiming to teach, in a playful way, the relevance of these urban groups and highlight
their characteristics, relating them to the period in which were implemented, as well as paying
attention to the need to preserve the cultural heritage of these cities. The ‘in loco’ activity aimed
to build memory tables during the stay in Olinda with the use of a travel diary with all the
information learned during “being in place”, for later production of didactic material to be used
in heritage education. In this sense, this article is based on the concept of place and memory,
fundamental to a closer relationship with the universe of study and heritage education. At
the end, when returning to UFRN, the students develop the products based on what they have
registered, then serving the notebooks as collective memories of the visit. For the development
of the products, in addition to the visit, the records made in the notebooks, the collection of
data about the city, the students participated in a round table on Heritage Education with a
pedagogue specialized in activities with adolescents, as well as, they appropriated the contents
presented and discussed previously in the disciplines involved in the integrative activity. The
class presented a total number of five proposals, with diversified products, which adequately
contemplated what was requested.

KEYWORDS: patrimonial heritage. teaching. brazilian colonial city. patrimonial education.


cultural landscape

RESUMEN
El artículo presenta una experiencia didáctico-pedagógica relacionada con la lectura y el
análisis del patrimonio urbano y el paisaje cultural, aplicado a los estudiantes en el tercer
semestre de 2019.2, del Curso de Licenciatura en Arquitectura y Urbanismo en la UFRN. La
experiencia didáctico-pedagógica tuvo lugar através de la integración entre los componentes
curriculares, Historia y Teoría de la Arquitectura y el Urbanismo 01, Planificación y Diseño
Urbano y Regional 01 y Comunicación Visual. La experiência, y tuvo como tema la ciudad
colonial, especialmente la ciudad barroca brasileña, basada en un viaje de estudios realizado
en la ciudad de Olinda, Pernambuco. Se pidió a los estudiantes que hicieran material didác-
tico para jóvenes entre 13 y 18 años, que cubriera el tema de la educación patrimonial, con el
objetivo de enseñar, de manera lúdica, la relevancia de estos grupos urbanos y resaltar sus
características, relacionándolos con el período en el que se implementaron, además de prestar
atención a la necesidad de preservar el patrimonio cultural de las ciudades. La actividad en el
sitio tenía como objetivo construir tablas de memoria durante la estadía en Olinda, utilizando
un cuaderno de viaje con toda la información aprendida durante “estar en su lugar”, para la

219
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

producción posterior de material didáctico para ser utilizado en la educacion del patrimonio.
En este sentido, este artículo se basa en el concepto de lugar y memoria, fundamental para una
relación más cercana con el universo de estudio y educación patrimonial. Al final, al regresar
a UFRN, los estudiantes desarrollan los productos en función de lo que han registrado, y luego
los cuadernos sirven como recuerdos colectivos de la visita. Para el desarrollo de los productos,
además de la visita, los registros realizados en los cuadernos, la recopilación de datos sobre
la ciudad, los estudiantes participaron en una mesa redonda sobre Educación del Patrimonio
con un pedagogo especializado en actividades con adolescentes, y se apropriaron de los con-
tenidos presentados y discutidos previamente en las disciplinas involucradas en la actividad
integradora. La clase presentó un total de cinco propuestas, con productos diversificados, que
contemplaban adecuadamente lo solicitado.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio urbano. enseñanza. ciudad colonial brasileña. educación patri-


monial. paisaje cultural

INTRODUÇÃO

A atividade aqui apresentada faz parte da experiência didático-pedagógica rela-


cionada à leitura e análise da paisagem urbana, aplicadas junto aos alunos do 3º perí-
odo do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, através da promoção da integração entre os componentes curriculares, História
e Teoria da Arquitetura e do Urbanismo 01, Planejamento e Projeto Urbano e Regional
01 e Comunicação Visual. A referida atividade disciplinar integrada teve por temática
a cidade colonial, em especial a cidade barroca brasileira, pautada em uma viagem de
estudos realizada na cidade de Olinda/PE, o que tem como foco a leitura visual da cidade
colonial e do barroco brasileiro. As atividades foram aplicadas junto aos alunos, que
desenvolveram produtos através de um trabalho integrado que envolveu conteúdos
ministrados nos três componentes curriculares.
Embora a atividade esteja em sua décima primeira edição, é a quarta vez que foi
desenvolvida neste formato com adoção dos cadernos de viagem, e a primeira voltada
para Educação Patrimonial. A primeira edição teve como universo de estudo os sítios
históricos de João Pessoa (PB) e Olinda (PE), e foi realizada no final do semestre 2014.2.
Reiteramos que a metodologia utilizada enfatiza e reforça a importância das atividades
de observação e registro, como aspectos fundamentais para a formação do arquiteto e
urbanista.
A experiência objetivou aperfeiçoar os conhecimentos aplicados nos componentes,
promovendo o ensino de forma criativa, dinâmica, inovadora e motivadora, contribuindo

220
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

para uma melhor qualificação dos discentes e melhorando a qualidade do ensino do


curso, onde o aluno constrói seu próprio saber, através de ações que promovem reflexão.
Seguindo esta linha de raciocínio, a construção do conhecimento no campo da arquitetura
e do urbanismo, está intimamente ligada à compreensão dos elementos marcantes na
paisagem urbana e de valor histórico, além dos elementos voltados à comunicação visual,
que possibilitam a compreensão e a leitura da paisagem. Tal processo de ensino-apren-
dizagem permite ao aluno explorar a linguagem e usos de materiais, exercitando sua
percepção criativa, tanto na investigação, quanto na análise do espaço e dos elementos
que o compõem, passando pela busca por aspectos que possam embasar a proposição
de projetos com foco na programação visual.
Além disso, a experiência está voltada para a vivência de uma realidade diferente
da diária dos discentes, a partir da iniciativa do “estar no lugar”, a partir da construção
de um quadro de memórias, através da construção de um diário de viagem, contendo
os registros da apreensão espacial em diversos formatos (fotos, desenhos, colagens,
mapas, anotações textuais), com o intuito de contribuir para metodologias ativas de
análise da cidade.
No intuito de embasar o processo reflexivo e criativo, a abordagem metodológica
foi pautada em aulas teóricas e debates, leitura de referências bibliográficas, viagem de
formação, percursos, registros, observação, percepção e análise da cidade visitada, além
das aulas de assessoria ao trabalho integrado, ministradas em conjunto pelos professores.
Como resultados, temos a produção de uma diversidade de propostas gráficas, audiovi-
suais, lúdicas associadas às novas tecnologias e mídias digitais, voltadas para a educa-
ção patrimonial de jovens adolescentes. Trabalhando dentro de uma visão pedagógica
sócio-construtivista, durante a atividade descrita por este artigo, os professores atuaram
sempre como mediadores, “construindo” o trabalho conjuntamente com os alunos.
As propostas foram elaboradas a partir da definição de conceitos e da pesquisa
em registros bibliográficos, adotando uma metodologia de Educação Patrimonial cons-
tituída de 04 (quatro) etapas: observação, pesquisa-exploração, registro e apropriação
(MIRANDA, 2016).
O artigo está dividido em 03 (três) partes: a primeira promove uma reflexão sobre
ações integradas de ensino, voltadas para o patrimônio urbano e para a proteção da
paisagem cultural, a segunda explica detalhadamente como a atividade foi planejada
e executada por todos os envolvidos, e a terceira e última parte mostra os resultados, no
caso os produtos desenvolvidos pelos discentes.

221
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A INTEGRAÇÃO COMO PRINCÍPIO BÁSICO DA ESTRUTURA CURRICULAR

Partindo de questionamentos acerca do ensino dos componentes tidos como


teóricos e de grande importância e rebatimento em componentes de caráter prático,
possibilitar o desenvolvimento de atividades em que os estudantes possam ver-viven-
ciar-pensar-fazer-refletir-decidir é algo que tem trazido grandes ganhos para a promoção
da integração buscada e proposta pelo Projeto Pedagógico do curso de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Convém ressaltar que a
adoção de um trabalho que integraliza conteúdos de três ou mais disciplinas, faz parte
da proposta seguida pelo Projeto Pedagógico do curso de Arquitetura e Urbanismo da
UFRN, desde a implantação do Currículo A3 no ano de 1990, curso na vanguarda em
relação aos componentes curriculares ministrados de maneira integrada. Antes de
discorrermos sobre a análise da experiência propriamente dita, é preciso ressaltar dois
aspectos básicos e norteadores dos objetivos e da metodologia da referida atividade:
a integração como princípio norteador do projeto pedagógico do curso e o incentivo
a práticas pedagógicas ativas desenvolvidas nas atividades elaboradas pelos discentes.
Conforme o texto elaborado para a implantação do Projeto Pedagógico A5, vigente,
este eixo:
[...] representou um significativo salto qualitativo para o Curso de
Arquitetura e Urbanismo, resultando na melhoria da qualidade dos
trabalhos desenvolvidos pelos alunos e, obviamente, pelo profissional
aqui formado. Até hoje, o seu currículo integrado é indicado como refe-
rência nacional. (PP A5, p. 7).
O princípio básico da integração continua mantido no currículo vigente, o A5
(também é base para o novo currículo A6 em fase de implantação em 2020.2), levando-se
em consideração a necessidade de se respeitar aspectos como o enfoque, o universo de
estudo, o conteúdo de cada unidade das diversas disciplinas, entre outros, para cada
semestre letivo. No caso deste artigo especificamente, quanto à integração, é desenvolver
uma atividade que exercite o olhar dos alunos para a cidade a partir de três enfoques
distintos, mas complementares. O objeto é a cidade colonial brasileira. Nesta atividade
integrada temos por resultado a produção de uma diversidade de propostas gráficas,
audiovisuais, lúdicas associadas às novas tecnologias e mídias digitais. Trabalhando
dentro de uma visão sóciopedagógica construtivista, professores atuam sempre como
mediadores, “construindo” o trabalho conjuntamente com os alunos.
No caso da experiência relatada, o componente curricular “História e Teoria da
Arquitetura e Urbanismo 01 (HTAU 01)” tem um papel fundamental na condução da

222
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

atividade, pois ele aborda a produção e a transformação da arquitetura e das cidades do


século XIV ao século XVIII, incorporando os estudos relacionados à produção territorial
brasileira, relacionada ao período colonial (urbano e arquitetura), e a natureza barroca
desses núcleos urbanos, e procura, além da utilização da metodologia “tradicional”,
acrescentando atividades que trabalhem com interfaces entre campos disciplinares
e que estimulem o processo criativo e a prática da observação, análise e registro como
processo construtivo de memória(s), e que possibilita a utilização de diversas formas de
linguagem no processo de elaboração dos trabalhos.
O segundo componente curricular desta integração, trabalha elementos de comu-
nicação visual (também o nome do componente: Comunicação Visual) que possibilitam
a compreensão e a leitura da paisagem e exploram a linguagem e os usos dos materiais
que propiciam uma melhor comunicação. Em “Comunicação Visual” é um componente
curricular que em que se exercita a percepção criativa dos discentes quanto à investigação
e à análise do espaço e dos elementos que o compõem, como também, busca embasar
uma possível proposição de projetos que trabalhem a programação visual.
Como parte da experiência integrada, o terceiro componente curricular, “Planeja-
mento e Projeto Urbano e Regional 01 (PPUR 01)” teve o papel de capacitar o aluno na
compreensão da realidade social e ambiental das cidades. A princípio, discute-se o que
é cidade, para ampliar o conhecimento acerca do conceito, para depois, abordar o pla-
nejamento urbano e sua relação com as cidades nas últimas décadas no Brasil. Por fim,
trata-se dos agentes produtores do espaço urbano e dos processos decorrentes de suas
ações na cidade contemporânea, com destaque para estudo de um caso específico, uma
cidade - ou centro histórico - com relevância patrimonial. Nesse semestre, este compo-
nente trabalhou a cidade de Olinda/PE, mais especificamente do seu Centro Histórico,

A atividade integrada iniciou-se com o começo da viagem à cidade colonial, que


tem duração de três dias. Essa viagem promove uma grande aula de campo, que é depois
complementada por várias assessorias ministradas conjuntamente por todos os docentes.
Como procedimentos metodológicos optou-se pela realização de percursos no Cen-
tro Histórico da cidade de Olinda, organizados da seguinte forma: foram realizados dois
percursos diferentes com toda a turma e docentes, acontecendo na manhã do sábado
(19 de outubro de 2019), outro percurso na tarde do mesmo dia e um terceiro percurso
realizado apenas pelos grupos de alunos.

223
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Em aula que antecede a visita, os alunos são orientados a montar seu caderno de
viagem – adquirido ou confeccionado pelo próprio discente – e a começar a organizá-lo
a partir do material disponibilizado pelos professores (mapas e textos, por exemplo).
Nesta aula também são apresentadas as três questões norteadoras que deverão ser
observadas pelos alunos em suas anotações:
1. Podemos identificar, na atualidade, a presença da cidade barroca no quadro
urbano da cidade de Olinda?
2. A sinalização turística auxilia na compreensão/identificação desta cidade
barroca?
3. Como se configura, na atualidade, essa cidade barroca?
Como atividade precedente à viagem solicita-se aos discentes que organizem em
síntese as leituras das obras adotadas como referencial teórico-conceitual, utilizadas
nas unidades anteriores. Durante a viagem utiliza-se a metodologia da análise serial
(CULLEN, 1996), através de percursos, e apropriando-se das surpresas, próprias da cidade
barroca (BAETA, 2010). (Figura 1)

Figura 1: Viagem: aula de campo in loco. Fonte: Autores (2019).

Após a realização da viagem, a turma passa a ser subdividida em cinco grupos,


contendo 04 (quatro) componentes cada uma deles. Observou-se que este número per-
mite uma maior discussão entre eles e uma melhor distribuição do trabalho em equipe.
Desta forma, os alunos puderam construir seu material/produto, estudá-lo, apresentá-lo,
defendê-lo e avaliá-lo. Ao longo de várias repetições desta atividade, constatou-se que
sempre os alunos se envolvem bastante com a atividade, fato que não impõem aos pro-
fessores o papel exclusivo de avaliadores.
Destaca-se a importância da utilização do percurso como orientador do processo de
observação/apreensão do espaço, uma vez que a partir destas foram ressaltados o desenho
da cidade colonial e do barroco brasileiro. No entanto, para a realização de cada percurso,

224
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

solicitou-se que cada aluno fizesse o registro detalhado de tudo que foi observado em
cada rota percorrida a partir do que foi estabelecido como “questões principais”. Estes
registros, que poderiam ser fotografias, desenhos, relatos, vídeos, etc., compuseram o que
chamamos de “diário de viagem” (um caderno de anotações e de registro) preparado por
pelos próprios alunos, e se tornou o primeiro produto da atividade.
Por se tratar de uma atividade que prioriza pela integração e a apropriação percep-
tiva e visual da cidade e sua paisagem cultural, utilizamos como suporte teórico-concei-
tual, o livro Desenho Urbano e Morfologia da Cidade (LAMAS, 2010), particularmente com
relação à definição de forma urbana como sendo o conjunto de formas arquitectónicas
ligadas entre si por relações espaciais, e complementada pela definição dos elemen-
tos morfológicos como “as unidades ou partes físicas que, associadas e estruturadas,
constituem a forma” (LAMAS, 2010, p.38). Na análise das cidades coloniais brasileiras
identificamos, sob o ponto de vista morfológico, a existência de um sistema aberto e arti-
culado entre exemplares de arquitetura religiosa, como focos, ou pontos fixos, a irradiar/
propagar/transbordar seu poder por suas imediações. Corroborando com Baeta (2002),
atestamos o caráter relacional dessa condição, na qual a cidade, enquanto apreensão
artística se conforma como uma unidade indivisível, definida a partir da relação entre
todo e partes (traçado, monumentos, espaços públicos, preexistência natural e arquite-
tônica). A temática da arquitetura colonial é abordada do ponto de vista da arquitetura
e dos elementos urbanos considerados pioneiros nesse estilo arquitetônico, dessa vez,
rebatendo a caracterização do estilo artístico nas edificações, o sistema viário e o cenário
das cidades. Neste sentido, torna-se fundamental a apresentação e discussão acerca da
identificação dos elementos caracterizadores do sistema articulado barroco (percursos
e focos; visão panorâmica; visão localizada), bem como da relação entre os elementos
que compõem a morfologia urbana do núcleo (traçado viário, monumentos, espaços
públicos, espaços construídos).
No final da viagem é, então, apresentado aos alunos o que deve ser o produto final
e o acompanhamento por parte dos docentes. A partir da experiência da viagem eles
deveriam entregar o caderno da viagem no primeiro momento de orientação com os
docentes (Figura 2). Estes deveriam ser elaborados de forma individual. Como produto
final, as equipes deveriam produzir um material voltado à educação patrimonial acerca
do sítio histórico de Olinda/PE.

225
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2: Cadernos de Viagens dos Alunos. Fonte: Autores (2019).

A partir das questões principais levantadas no início da viagem, da leitura biblio-


gráfica referencial teórico-conceitual, bem como da solicitação do produto criado por
cada grupo com intuito de demostrar o nível de leitura e compreensão das cidades, a
partir dos percursos realizados, cada grupo foi acompanhado diversas vezes com os pro-
fessores simultaneamente, que puderam acompanhar a concepção, fazer considerações
e delimitações, indicar o público alvo, alcance do produto proposto e sua relação com o
conteúdo ministrado pelas disciplinas. (Figura 3)

226
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3: Orientações conjuntas com os professores. Fonte: Autores (2019).

Na experiência relatada neste artigo, solicitou-se aos discentes a confecção de


material didático destinado a crianças e jovens entre 13 e 18 anos, abrangendo o tema da
educação patrimonial, visando ensinar, de forma lúdica, a relevância desses conjuntos
urbanos ao destacar suas características, relacionando-as com o período em que foram
implantados, atentando para a necessidade da preservação do patrimônio cultural de
Olinda/PE. A turma apresentou um total de cinco propostas, com produtos diversificados,
que contemplaram adequadamente o que foi solicitado.
Convém salientar que a ideia norteadora do produto final, além de visar à articu-
lação entre as atividades das disciplinas envolvidas, em uma atividade integrada, busca
também inserir a temática da educação patrimonial, agregando conhecimento adicional
ao conteúdo programático de cada uma das disciplinas.
Para o desenvolvimento dos produtos, além da visita, dos registros feitos nos
cadernos, no levantamento dos dados sobre a cidade, os discentes participaram de mesa
redonda sobre Educação Patrimonial com a Pedagoga Anízia Maria Fonseca Soares,
especialista em atividades em trabalhos didáticos com adolescentes. Esse momento foi
bastante importante para a toda turma, que passou a conhecer mais profundamente
quais as principais características do público alvo e quais as melhores estratégias pode-
riam ser adotadas (Figura 4). Uma dessas estratégias é utilizar-se de meios comunicativos
e de temáticas com fundo alusivo ao mundo dos jovens, tornando o produto atrativo e
instigante, cuja material desperte a curiosidade por parte dos adolescentes, lhes inse-
rindo na temática da preservação patrimonial.

227
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Mesa redonda com a Pedagoga Anízia Soares. Fonte: Autores (2019).

OS RESULTADOS OBTIDOS - OS PRODUTOS APRESENTADOS PELA TURMA

A inserção da educação patrimonial no currículo escolar tem sua relevância e


urgência uma vez que garantir a conscientização e o espírito de valorização da herança
arquitetônica é priorizar a continuidade das manifestações culturais de um povo, assim
como buscar pela cidadania e o direito à cultura. Contudo, para que seja posta em prá-
tica, o ensino da valorização histórica deve seguir uma metodologia própria para esse
fim. Miranda (2016) estabelece que a metodologia voltada para a educação patrimonial
deve seguir 04 (quatro) etapas balizadoras das atividades desenvolvidas. Entende-se
essa sistematização (Figura 5) como sendo uma sequência lógica que auxilia e otimiza
a compreensão e as ações realizadas dentro da temática. Na visita ao Centro Histórico
de Olinda/PE, observa-se que todos esses passos foram seguidos pelos alunos através
dos percursos realizados. No caso da educação patrimonial, pano de fundo da atividade
integrada, o primeiro passo e talvez o principal passo dado nesse processo de apreensão
espacial, é a observação. Através dela, é possível entender todos os contextos em que o
patrimônio se enquadra, qual a sua constituição, as suas formas, quais as suas funções,

228
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

como se localiza e como se relaciona o contexto contemporâneo. A partir deste, todos os


passos seguintes são consequências do processo de apreensão e valorização do espaço
urbano de valor histórico e da paisagem cultural.

Figura 5. Metodologia de Educação Patrimonial. Fonte: Produzido pelos Autores, baseado na


metodologia de MIRANDA (2016)

Diante do desafio de criar um conteúdo que fosse utilizado paro o ensino de estu-
dantes cuja faixa etária estivesse compreendida entre 13 e 18 anos, a turma foi motivada
e produzir material que pudesse articular os assuntos ministrados de cada uma das
disciplinas envolvidas na atividade integrada, buscando a inserção da temática educação
patrimonial, em um único produto.
O material produzido pela turma incorporou os desenhos, os registros fotográficos
e informações colhidas pelos alunos durante a viagem extraídos de seus cadernos grá-
ficos. Os produtos produzidos pelos discentes de Arquitetura e Urbanismo retrataram
fielmente as impressões obtidas ao observar a cidade visitada, seu casario e os elementos
que compõem a paisagem. Os produtos também continham dicas acerca de características
culturais e locais das cidades visitadas. Tal fato extrapolou os limites da compreensão dos
aspectos inerentes a uma cidade colonial barroca, mas igualmente importantes para os
visitantes, sob o ponto de vista turístico e sob o ponto de vista do patrimônio imaterial.
Ressalta-se que os produtos apresentados por todas as equipes foram propos-
tas interativas voltadas para as mídias digitais e o uso materiais gráficos. A turma foi

229
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

dividida em 05 (cinco) equipes com 04 (quatro) componentes cada uma. Os trabalhos


foram desenvolvidos em ateliê em sala de aula e em atividades extraclasse. Os produtos
seguiram duas prioridades de formatos, a saber: 1. Produtos “interativos” (aplicativos e
revista digital); 2. Produtos “lúdicos” (jogos).

Parte das equipes apresentaram material digital informativo, que continha aspec-
tos gerais, históricos, da configuração urbana e arquitetônica da cidade de Olinda, com
sugestão de percursos, constando exatamente dos trajetos realizados pela turma durante
a viagem de campo.
Observa-se que os conteúdos ministrados pelos componentes curriculares ao longo
do semestre se encontram contemplados nas “abas” dos aplicativos propostos, sobretudo
os aspectos concernentes às temáticas trabalhadas na atividade. Nos produtos criados
por essa parte da turma, também é possível identificar a inserção de dicas acerca da
cidade, que extrapolam a temática do barroco, mas que são importantes para quem vai
usufruir da cidade, sob o ponto de vista turístico.
Cerca de três grupos optaram por trabalhar usando os recursos tecnológicos. Um
deles criou um aplicativo nominado por “Quatro Cantos”, que estaria conectado às
escolas da rede pública do Estado de Pernambuco, e a partir dessa parceria, poderiam
promover gincanas em que os alunos usariam o celular como fonte de informações
sobre a atividade e as informações relativas ao patrimônio histórico de Olinda. Outro
grupo criou seu produto voltado para uma revista eletrônica chamada “Redescobrir”
baseada no Plano Diretor de Olinda, que pudesse ter vários quadros de passatempos e
curiosidades, e atrelada a esta, um aplicativo que conduz o usuário a um jogo. O terceiro
grupo propôs um produto interativo que buscou unir um jogo denominado “Ctrl + H;
Resgatando a História” a um aplicativo de perguntas e respostas sobre o acervo histórico
e patrimonial de Olinda. (Figuras 6 e 7)

230
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6: Apresentação dos trabalhos: equipes com produtos interativos. Fonte: Autores (2019).

Figura 7: Apresentação dos trabalhos: equipes com produtos interativos. Fonte: Autores (2019).

Produtos “lúdicos”

Dois grupos optaram por criar um material mais lúdico, através da proposição de
jogos físicos. O primeiro grupo propôs um jogo de tabuleiro com perguntas e possíveis
percursos, que foi “testado” pela própria turma, convidada a jogá-lo durante a apresen-
tação da equipe.
O jogo denominado “Olinda Descoberta” se utiliza da estratégia do percurso, condi-
zente com o universo de estudo, faz uso também dos referenciais teóricos trabalhados na
disciplina, tanto no estabelecimento das paradas durante o percurso, como nas questões
elaboradas, a serem respondidas durante o referido percurso. Chamamos atenção tam-
bém para a maneira criativa como se inseriu as dicas acerca da cidade, que extrapolam
a temática do barroco, mas que são importantes para quem vai usufruir da cidade, sob
o ponto de vista turístico. (Figura 8)

231
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 8: Apresentação dos trabalhos: Equipe do Jogo Olinda Descoberta. Fonte: Autores (2019).

O último grupo optou por trabalhar para um público ainda mais seleto e com
necessidades especiais: jovens entre 13 e 18 anos autistas. Dessa forma, o grupo propôs
uma caixa com vários jogos físicos, chamada “Espectro Jogos Educativos”. Pensando
nos níveis de autismo, indo do mais leve ao mais severo, as componentes deste grupo
criaram 04 tipos de jogos diferentes.
Para os níveis mais brandos e médios do autismo, elas propuseram um jogo de
memórias e também um quebra-cabeça feito em relevo, contemplando as fachadas das
principais igrejas do Centro histórico de Olinda. Para os jovens com um nível mais de
autismo, a proposta consistiu em um jogo de percursos com pequenas maquetes de papel
das principais obras religiosas de Olinda e um jogo de tabuleiro. (Figura 9)

Figura 9: Apresentação dos trabalhos: Equipe do Espectro Jogos Educativos. Fonte: Autores (2019).

232
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Para a finalização da atividade, observa-se que a possibilidade de se trabalhar em


conjunto com outras interfaces, contribuiu bastante no processo criativo dos produtos
elaborados pela turma. A contribuição advinda da literatura barroca (consultada pelos
alunos durante o semestre) e também a contribuição oriunda da música, apontam para
outros caminhos buscados na integração interdisciplinar, objetivo sempre buscado na
proposta pedagógica do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. A contribuição de ambos os campos do saber sobre o barroco, permitem
aos alunos uma maior compreensão do conteúdo dado e explorado na atividade. Desta
forma, com o intuito de reforçar a participação dessas interfaces, ao final da apresenta-
ção dos trabalhos das equipes, como encerramento do semestre, os musicistas Leixon
Rodrigues e Diego Paixão, com um Duo de Cordas, contemplaram alunos e professores
com um número de música barroca. (Figura 10)

Figura 10: Apresentação de música barroca ao término do semestre. Fonte: Autores (2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nota-se que a avaliação feita por meio de uma única atividade envolvendo pro-
cesso criativo é algo positivo e que contribuiu para nível de aprendizado excelente por
parte dos alunos envolvidos na atividade integrada. Assim como, adotar uma atividade
permita ao aluno trabalhar a observação, reflexão e análise e exercitar seu senso crítico
corroboram para uma melhor compreensão da importância em preservar o patrimônio
e paisagem cultural das cidades com valor histórico. Nesse sentido, as viagens de campo
reforçam a possibilidade essa condição de observador in loco.
Por outro lado, incentivar à criatividade e a adoção de recursos de uso contempo-
râneos acabam por trazer atrativos ao processo pedagógico. Em relação aos alunos da
graduação, acaba sendo um meio mais dinâmico e motivador para o processo ensino-
-aprendizagem vivenciado por eles. Por parte dos adolescentes, a quem os produtos se
destinariam, também se oferece ferramentas interativas e mais fácies de compreensão
por parte desse público específico. No que se refere às disciplinas voltadas para o patrimô-
nio histórico, essa possibilidade estimula mais ainda e dinamiza o processo de ensino/

233
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

aprendizagem. Neste caso especificamente, esta possibilidade de unir metodologias e


os desenhos dos cadernos gráficos e lúdicos a recursos tecnológicos atuais, refletiram
nas propostas dos alunos.
Sob o ponto de vista dos docentes, afirma-se que a experiência realizada neste
semestre reforçou a constatação que o incentivo às atividades integradoras e à utili-
zação de metodologias ativas, prima pelo estímulo à criatividade, gerando processos e
produtos mais condizentes com o que se espera na formação de profissionais de futuros
profissionais de Arquitetura e Urbanismo.
Sob o ponto de vista dos discentes, foi possível observar ao longo das orientações
e pelas apresentações finais, que ter a oportunidade/experiência de realizar o trabalho
integrado permitiu às equipes, não somente entender toda a configuração histórico-es-
pacial das cidades coloniais brasileiras, mas também perceber que relação existe entre
o passado e o presente nestes espaços e qual a nossa responsabilidade dentro deste
processo. Esta experiência os auxiliou no desenvolvimento de um olhar mais atento
com relação à nossa herança cultural e o quanto é fundamental preservá-la. Além disso,
buscar meios de transmitir todo o conhecimento adquirido ao público-alvo, se colocando
no papel de educador, reafirmou aos alunos, a urgente importância em se trabalhar com
a educação patrimonial entre os mais jovens.

234
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BAETA, Rodrigo. O Barroco, a Arquitetura e a Cidade nos Séculos XVII e XVIII.


Salvador: EDUFBA, 2010.

CORRÊA, Roberto Lobato.

CULLEN, Gorden. São Paulo: Edições Setenta, 1996.

DARQ/UFRN. Projeto Político Pedagógico. Currículo A5. Natal, 2006.

São Paulo: Pini, 1990.

EMBRATUR; IPHAN; DENATRAN. Guia Brasileiro de Sinalização Turística. Brasília:


2001. 163 p.

HORTA, Maria de Lourdes P.; GRUNBERG Evelina; MONTEIRO, Adriana Q. Guia


Básico da Educação Patrimonial.
1999. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/uploads/temp/guia_educacao_
patrimonial.pdf>. Acesso em: 21 fev. 2019

Morfologia urbana e desenho da


cidade.

A imagem da Cidade. Lisboa: Martins Fontes, 1988 (Coleção Artes e


Comunicação).

preservando a cultura e arte no Brejo Paraibano. Guarabira: Moderna, 2016.

PEDROSA, Patrícia Coelho.


do Patrimônio Mundial. Dissertação de Mestrado: MDU/UFPE, 2011.

Design para quem não é designer: noções básicas de


planejamento visual. 5. ed. São Paulo: Callis, 1995. 144p.

235
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EMBATES E DIÁLOGOS

CENTRAL DO RIO DE

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

MATTOS, Guilherme Meirelles Mesquita de


Doutor em Urbanismo (PROURB-UFRJ);
Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graudação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU)
da UFF.
guilemmm@hotmail.com

236
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O campo de disputas entre a preservação patrimonial e a renovação urbana tem na Cidade do
Rio de Janeiro um excepcional laboratório de estudos. Capital nacional entre os anos de 1763 e
1960, sua Área Urbana Central destaca-se pela sua riqueza e pluralidade arquitetônica, sendo
constituída a partir de fragmentos heterogêneos de diversas propostas urbanísticas em sua
história. Neste trabalho, focamos nos embates e diálogos entre as ações de proteção patrimonial
do SPHAN e os anseios transformadores da Prefeitura do Distrito Federal na Área Central da
Cidade do Rio de Janeiro, entre os anos 1938 e 1964, tomando a Av. Presidente Vargas como eixo
condutor da análise que procura explicitar os efeitos desses conflitos no seu tecido urbano.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio. história urbana. Rio de Janeiro. Av. Presidente Vargas.

A BSTRACT
The field of disputes between heritage conservation and urban renewal has an exceptional
laboratory for studies in the city of Rio de Janeiro. National capital between the years of 1763
and 1960, its urban city center stands out for its architectural richness and diversity, made up
of heterogenous fragments of the many urban projects in its history. In this paper, we focus on
the conflicts and dialogues amid the heritage protection initiatives of SPHAN and the Federal
District Municipal Government’s yearning for transformation in Rio de Janeiro’s city center,
between the years of 1938 and 1964, using Presidente Vargas Avenue as a common thread of
análisis that seeks to highlight the effects that these conflicts have in its urban fabric.

PALAVRAS-CHAVE: heritage. urban history. Rio de Janeiro. Av. Presidente Vargas.

RESUMEN
El campo de disputa entre la preservación del patrimonio y la renovación urbana tiene en Río de
Janeiro un laboratorio de estudio excepcional. Capital nacional entre los años 1763 y 1960, su
Área Urbana Central destaca por su riqueza y pluralidad arquitectónica, formándose a partir
de fragmentos heterogéneos de diversas propuestas urbanísticas en su historia. En este artículo,
nos enfocamos en los enfrentamientos y diálogos entre las acciones de protección patrimonial
de SPHAN y las aspiraciones transformadoras del Ayuntamiento del Distrito Federal en el
Área Central de Río de Janeiro, entre 1938 y 1964, tomando a Av. Presidente Vargas como su eje
conductor del análisis que intenta explicar los efectos de estos conflictos en su tejido urbano.

PALAVRAS-CHAVE: patrimonio. história urbana. Rio de Janeiro. Av. Presidente Vargas.

237
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

O campo de disputas entre a preservação patrimonial e a renovação urbana tem


na Cidade do Rio de Janeiro um excepcional laboratório de estudos. Capital nacional
entre os anos de 1763 e 1960, sua Área Urbana Central comporta além do seu núcleo
histórico, um centro de negócios que foi alvo, ao longo dos últimos dois séculos, dos
anseios transformadores compartilhados pelos grupos políticos em posição de poder
e dos empreendedores imobiliários. Seu tecido urbano, por sua vez, destaca-se pela sua
riqueza e pluralidade arquitetônica, sendo constituído a partir de fragmentos hetero-
gêneos de diversas propostas urbanísticas ao longo dos seus quase 500 anos de história.
Dentre estes fragmentos encontra-se a Avenida Presidente Vargas, cujo projeto, de 1938,
é concomitante ao início da atuação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – SPHAN (atual IPHAN) na proteção de bens edificados notáveis, não só na
cidade do Rio de Janeiro, como em todo o território brasileiro.
Apesar de coetâneos, estes projetos traziam consigo duas visões de futuro distintas
para a Área Central da Cidade do Rio de Janeiro. De um lado, protegiam-se, com tomba-
mento, os vestígios edificados monumentais da sua história urbana. De outro, previa-se
a abertura de um grande eixo viário que colocava em ameaça alguns destes imóveis,
recém tombados pelo órgão de salvaguarda. Neste trabalho [1], focamos os embates e
diálogos entre o SPHAN e a Prefeitura do Distrito Federal, entre os anos 1938 e 1964, na
Área Central da Cidade do Rio de Janeiro, tomando o entorno da Av. Presidente Vargas
como eixo condutor da análise que procura explicitar os efeitos dessas disputas no seu
tecido urbano.

ANTECEDENTES DA PRESERVAÇÃO

Falar do patrimônio da Área Central da Cidade do Rio de Janeiro, e do início da sua


institucionalização pelo órgão de tutela federal, o então SPHAN na década de 1930, seria
impossível sem recorrer às transformações urbanísticas e produções arquitetônicas que
precederam a iniciativa.
Fundada em 1565, como um ato de defesa em meio ao combate à ocupação da França
Antártica na Baía de Guanabara, o núcleo original no sopé do Morro Cara da Cão fora
transferido para o alto do Morro do Castelo, dois anos mais tarde. Nos séculos seguintes

[1] Este trabalho compõe parte de capítulo da tese de doutorado “Leituras de um passado,

de Janeiro”, defendida em novembro de 2018, no PROURB-UFRJ.

238
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

registra-se a presença religiosa nos morros adjacentes, e a progressiva ocupação das


áreas da várzea entre os promontórios, dando origem a um pequeno núcleo urbano, no
qual destrinchavam-se vias estreitas, com lotes de exíguas testadas ocupados por casas
predominantemente térreas.
À época da transferência da coroa portuguesa para o Brasil, em 1808, e a instalação
da sua corte na cidade, o território do Rio de Janeiro contava com um modesto núcleo
urbano crescia em direção a área do atual Campo de Santana, que no início do século
XIX representa o limite urbano ocidental da cidade. Para além do Campo de Santana,
já no período imperial, a área do Mangal de São Diogo seria drenado por iniciativa do
empreendedor Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, no ano de 1857. Em meio
aos eixos dos prolongamentos da Rua do Sabão e de São Pedro surge então o Canal do
Mangue, e nas décadas seguintes os terrenos outrora alagados do mangal dão forma ao
Aterrado da Cidade Nova. Nesta região, as vias estreitas de 30 palmos do núcleo primitivo
dão lugar a ruas mais largas, de 60 palmos embora ainda perpetuassem a estrutura dos
estreitos lotes da cidade velha. (Figura 1)

Figura 1: Planta da Cidade do Rio de Janeiro, em 1866. Fonte da Base: GOTTO, 1871. Disponível
na BN Digital.

239
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Os novos ideais da República proclamada em 1889 encontram suas materiali-


zações na sua cidade capital. A elite republicana associada à oligarquia cafeeira, que
dominava a economia brasileira do período, elegeu em 1902, Rodrigues Alves à presidên-
cia da República. Este nomeou o engenheiro Pereira Passos como prefeito do Distrito
Federal, com mandato entre os anos de 1902 a 1906. Nestes curtos, porém produtivos
quatro anos, o Governo Federal e o Distrito Federal realizaram uma série de reformas
de melhoramentos urbanos, dentre elas: o novo Porto da Cidade do Rio de Janeiro, e a
suntuosa Avenida Central. Nesta última, no lugar das construções de matriz colonial
surgiam novas fachadas, seguindo à moda do academicismo beaux-arts francês com
ornamentações de estilo eclético.
O embelezamento alcançado era uma máscara que buscava ocultar as problemá-
ticas urbanas da cidade, entre elas questões de saneamento e adensamento do velho
centro. A crise habitacional se agravava, e a Cidade Nova, outrora bairro da classe média,
passa a concentrar uma camada de nível aquisitivo menor, enquanto os mais pobres
adensam-se em casas de cômodo e cortiços ou passam a ocupar os altos dos morros
próximos como a Providência, o Santo Antônio e o Castelo. Este último morro seria alvo
do engenheiro Carlos Sampaio, nomeado prefeito do Distrito Federal em 1920, levando
a cabo sua demolição. Um dos pretextos para a execução da obra era a necessidade de
terras para construção de um aterro para sediar a Exposição Internacional do Centená-
rio da Independência, em 1922. As obras de Sampaio produziram dois grandes vazios
urbanos na velha cidade: o vazio do antigo Morro do Castelo, e o aterro esvaziado com a
demolição dos pavilhões temporários da Exposição de 1922.
Coube ao urbanista francês Alfred Agache, convidado pelo então prefeito Antônio
Prado Júnior, entre os anos de 1927 e 1930, realizar um novo plano urbanístico para a
cidade, que contemplou em especial essas áreas esvaziadas. Nas proximidades da Igreja
da Candelária, Agache propôs a substituição dos antigos sobrados de matriz colonial por
novos quarteirões de edifícios verticalizados, destinados ao uso bancário. A Igreja, que
embora de dimensões monumentais estava encrustada no denso tecido de vias estreitas,
ganharia posição de destaque no eixo proposto para a Avenida do Mangue. Esta correria
pelo trajeto das ruas General Câmara e Rua de São Pedro, removendo a sequência de
quarteirões contida entre as duas vias para dar lugar a sua caixa de rolamento (Figura
2). Com relação às propostas ocupacionais, o projeto recorre aos quarteirões fechados
com vazios internos, característicos das intervenções urbanísticas de de Cerdà para
Barcelona, na segunda metade do século XIX. Os edifícios constituiriam cortinas de
fachadas contínuas ao longo dos quarteirões, margeadas por galerias de pedestres no
térreo e sobreloja das construções lindeiras a vias arteriais.

240
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2: Plano Agache: Planta de Remodelação, 1930. Fonte da Base: AGACHE, 1930.

O plano foi arquivado na administração de Pedro Ernesto, em decorrência da Revo-


lução de 1930, que pôs fim a política da Primeira República e a influência da oligarquia
cafeeira. Mas suas propostas são retomadas durante o Estado Novo, no governo autoritário
de Getúlio Vargas. Na interventoria municipal de Henrique Dodsworth (1937-1943), foi
estabelecido o Serviço Técnico do Plano da Cidade, formado por arquitetos e engenheiros
do quadro de funcionários da prefeitura, com objetivo de suas revisar as propostas do
urbanista francês para cidade. Um dos projetos recuperados pela equipe seria o da Ave-
nida do Mangue, que daria forma a atual Av. Presidente Vargas, cuja abertura e embates
com o SPHAN são alvo de nossa discussão.

OS TOMBAMENTOS DO SPHAN E O PROJETO DA AV. PRESIDENTE VARGAS

O ano de 1938 representa um momento de contradições para a cidade do Rio de


Janeiro. Enquanto propostas de renovação urbanística são retomadas pelos órgãos téc-
nicos da Prefeitura do Distrito Federal, o serviço de salvaguarda federal - SPHAN, cujas
atividades se iniciaram nos anos anteriores, finalmente atribui valor patrimonial legal
a uma série de bens edificados em todo o território brasileiro, tendo na então capital
federal a sua maior concentração (88 dentre os 293 bens nacionais). Munidos do instru-
mento do tombamento, os agentes de tutela protegeram prioritariamente imóveis de
arquitetura religiosa, com linguagem colonial e estilo barroco. Dos 88 bens tombados
na Cidade do Rio de Janeiro no ano de 1938, 43 estavam localizados na sua Área Central,

241
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

que corresponde aos núcleos urbanos do século XIX: a cidade colonial, que se estendia
até o Campo de Santana, e a Cidade Nova, construída sobre o terreno conquistado com
o aterro do Mangal de São Diogo. Nessa primeira leva de tombamentos, foram prote-
gidas bens como a Igreja da Candelária, o Paço Imperial, e edifícios do século XIX em
estilo neoclássico, como a Praça do Comércio, a Casa da Moeda, e o Palácio do Itamarati.
Figuram-se também os conjuntos paisagísticos, como o Passeio Público; os Jardins do
Valongo, e seu conjunto arquitetônico e o Campo de Santana.
Essas ações de preservação passariam por momentos turbulentos quando con-
frontadas com os afãs transformadores da Prefeitura e do Governo Federal em imprimir
as marcas do regime autoritário do Estado Novo na forma urbana carioca. Na XI Feira
Internacional de Amostras, realizada na cidade, em dezembro de 1938, meses após as
homologações dos primeiros tombamentos do SPHAN [2], as propostas urbanísticas
apresentadas pelo “Serviço Técnico” na “Exposição Novo Brazil” desconsideravam as
proteções do órgão de tutela, como pode ser visto no projeto apresentado em maquete
para a Avenida 10 de Novembro, que retoma as ideias de Agache da Avenida do Mangue.
Com mais de 80 metros de largura, e quatro quilômetros de extensão, a 10 de Novem-
bro teria seu início no Cais dos Mineiros, próximo à Igreja da Candelária, integrada ao
projeto no meio da caixa de rolamento da avenida (Figura 3). No seu eixo seriam arrasa-
dos os quarteirões entre as ruas General Câmara e São Pedro, até a Praça Onze de Junho,
que seria igualmente demolida e substituída por um grande obelisco. No cruzamento
com as principais artérias viárias existentes, como a Av. Rio Branco, o trânsito segue em
níveis separados, com o fluxo de automóveis da avenida passando por baixo do eixo das
vias transversais através de mergulhões.
Com relação às propostas arquitetônicas, os quarteirões adjacentes à nova avenida
dariam lugar a lotes urbanizados. O trecho entre o Cais do Mineiros e o Campo de San-
tana seguiria o padrão agachiano das quadras fechadas, com vazios internos, e galerias
de pedestres contornado o térreo das fachadas. No trecho seguinte, até o seu fim nas
proximidades da Praça da Bandeira, a implantação dos edifícios seria semelhante às
propostas do urbanismo modernista, com quarteirões em redent.
O presidente Getúlio Vargas, ao ver a maquete para a avenida cujo nome era uma
alusão à data do golpe do Estado Novo, supostamente teria dito ao então prefeito da
cidade, Henrique Dodsworth, a seguinte frase: “Vamos fazê-la”. A proposta, com nome

[2] As homologações de tombamento desses primeiros bens protegidos pelo SPHAN na cidade
do Rio de Janeiro foram realizadas entre os meses de março e julho de 1938, antecedendo,
portanto, o PAA nº 3022 e a XI Feira Internacional de Amostras da Cidade do Rio de Janeiro.

242
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de Avenida do Mangue, já estava desenhada no projeto de alinhamento[3] (PAA) nº 3022,


aprovado por Dodwsorth em setembro de 1938, representando o trecho da avenida que
ia da Candelária ao Campo de Santana. Este último, um bem tombado, seria parcialmente
arrasado com a abertura da avenida, mas ainda manteria a maior parte do seu desenho,
fruto da reforma empreendida na década de 1880 pelo paisagista francês Auguste Marie
Glaziou. O mesmo não poderia ser dito das duas igrejas tombadas nos quarteirões entre
a General Câmara e Rua de São Pedro: as Igrejas de São Pedro dos Clérigos e Bom Jesus do
Calvário. A primeira, um símbolo da arquitetura barroca colonial, com planta elíptica
e fachada curva, seria o pomo da discórdia no embate entre o SPHAN e a PDF nos anos
seguintes. Outros imóveis relevantes também seriam arruinados, como: o Palácio da
Prefeitura com projeto de Pereira Passos; a Igreja de São Domingos, no largo de mesmo
nome; e o edifício neoclássico da Escola Benjamin Constant. E no rastro da destruição,
também seria destruída a Praça do Comércio de Grandjean de Montigny, para dar lugar
aos canteiros ajardinados da ligação da avenida com outro eixo viário - a via elevada
da Perimetral. (Figura 4)

Figura 3: Estudo da Av. Presidente Vargas. À esquerda, a sequência de quarteirões entre as


Ruas General Câmara e São Pedro. À direita, a proposta da Avenida Presidente Vargas, com
suas quadras fechadas com vazios internos. A Igreja da Candelária, em destaque, preservada
em meio ao eixo da avenida. Fonte: BUENO & TAITELBAUM, 2010.

[3] O Projeto Aprovado de Alinhamento (PAA) é um instrumento urbanístico municipal que

outros bens públicos. Já o Projeto Aprovado de Loteamento (PAL) é o instrumento que consiste
no projeto de parcelamento da terra por meio de loteamento, ou de desmembramento e/ou
remembramento dos de lotes já existentes.

243
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Igreja de São Pedro dos Clérigos, Igreja do Bom Jesus do Calvário e Palácio da Prefei-
tura. Fonte: BN Digital.

Em 1940, é publicado o PAA nº 3481/PAL nº 5972, que reforça o alinhamento pre-


visto pelo projeto de 1938, estendendo o até a Praça Onze de Junho, e apresentando as
propostas de loteamento para as novas quadras urbanizadas ao longo da avenida, que
ganha seu nome definitivo de Presidente Vargas. As obras de demolição dos quarteirões
compreendidos entre a Praça Onze e o Campo de Santana, e da Rua Visconde de Itaboraí
até a Av. Rio Branco foram iniciadas no ano de 1941, e segundo Dodsworth praticamente
se autofinanciaram[4], uma vez que o retorno da venda dos lotes vagos propostos nos
PAA/PAL de 1940 seria utilizado para pagar as desapropriações e custear os trabalhos de
arrasamento do antigo tecido colonial. Os custos também foram reduzidos em relação
à proposta original, uma vez que os mergulhões nos cruzamentos da avenida com as
principais vias do tecido existente não constam no projeto de alinhamento em questão.
A Igreja da Candelária, outrora rodeada por pequenos sobrados, via-se livre de inter-
ferências e circundada pela área que hoje ganha o nome de Praça Pio X, mantendo sua
monumentalidade com a alteração do gabarito proposto no seu entorno. Enquanto os
demais quarteirões da Presidente Vargas seriam revestidos por uma cortina de fachada
com 22 pavimentos, com térreo e sobreloja ladeado por galeria de pedestres, os edifícios
circundantes à igreja atingiram o limite de 15 pavimentos (acrescidos de mais dois
pavimentos recuados), conforme registrado na prancha anexa ao Decreto nº 6897 de
1940, que aprovou o PAA nº 3481. (Figura 5)

[4] BUENO & TAITELBAUM, 2010, p. 118.

244
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5: Gabarito proposto no entorno da Igreja da Candelária, 1940. Prancha Anexa ao Decreto
nº 6897 de 1940. Fonte: RME.

A proposta seria revisada, em 1944 com os PAA nº 3923/PAL nº 8837, e PAA nº 3924/
PAL nº 8838 referentes ao loteamento das quadras 5 e 6 do projeto de urbanização da
avenida, limitando o gabarito no entorno da Igreja da Candelária a 12 pavimentos, e
garantindo a dominância vertical do bem tombado.
Essa sensibilidade à patrimônio, contudo, não foi rebatida para as demais igrejas
tombadas localizadas no eixo da avenida. No processo[5] instaurado para a proteção
da Igreja de São Pedro dos Clérigos documenta-se o debate pela preservação desses
bens tombados, sugerindo o então diretor do SPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade,
a possibilidade de uma inflexão no caminho da avenida. Em estudo submetido por
intermédio do engenheiro José de Oliveira Reis, chefe da Comissão do Plano da Cidade,
à Edison Passos, Secretário Geral de Viação e Obras Pública da municipalidade, o SPHAN
propõe que a nova avenida siga o eixo da Av. Marechal Floriano (Figura 6). No ofício
enviado por Andrade, em setembro de 1940, o diretor busca a proteção do Campo de
Santana, cujo “traçado tradicional” seria alterado pela avenida, e aponta a preciosidade
dos monumentos de arquitetura religiosa, cuja perda seria “um atentado irreparável ao
patrimônio histórico-artístico da cidade”, com especial atenção à Igreja de São Pedro,
obra de significação para a arquitetura nacional. No mês seguinte o Dr. Rodrigo envia
ofício ao Ministro Capanema, pedindo que este pleiteie pelo SPHAN ao presidente Getú-
lio Vargas que as obras de execução da avenida não fossem autorizadas “sem a prévia
audiência desta repartição”.

[5] IPHAN, Processo nº 017-T-38, 1938.

245
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6: Mapa registrando o desvio do eixo da Avenida Presidente Vargas, proposto por Rodrigo
Melo Franco de Andrade à PDF em 1940. Fonte da Base: Planta da Cidade do Rio de Janeiro (1935).

Em 1941, Hermínio de Andrade e Silva, membro da Comissão do Plano da Cidade


envia parecer para apreciação da Secretaria de Viação, com relação às solicitações do
SPHAN. No referente às igrejas tombadas, o engenheiro indica o valor secundário da
Bom Jesus do Calvário, mas sugere que a de São Pedro dos Clérigos, com sua “planta de
traçado curvelínio”, seja reconstruída em outro local com suas principais características,
e reprodução fiel de seus ornatos internos.
A situação é menos favorável para o edifício neoclássico da Praça do Comércio, que
não mereceria nem ser considerada, “por ter sido o projeto de Grandjean Montegny [sic]
alterado na sua essência por um arquiteto português, e constitui hoje apenas um velho
casarão imprestável”. Edison Passos, em mensagem ao prefeito Dodsworth em maio de
1941, conclui que as propostas do SPHAN para reorientação do traçado da avenida, não
apresentam “vantagem alguma de ordem técnica, urbanística ou econômica”.
A luta de Rodrigo Melo Franco de Andrade persiste com novo ofício dirigido à Capa-
nema, datado de setembro de 1941, condenando as soluções previstas pela prefeitura
de demolição total dos imóveis tombados e sua reconstrução em outros locais, pois não
há “como comparar os monumentos (...) que são exemplares originais de excepcional
importância artística e histórica, com a reprodução de suas formas e linhas arquitetônicas
em construções nos nossos dias”. Suas tentativas, contudo, são sem sucesso, e Dodsworth
encaminha à Vargas, em dezembro de 1942, um ofício solicitando cancelar do tomba-
mento das igrejas de São Pedro e Bom Jesus, assim como do Campo de Santana, citando o
exposto no Decreto-Lei nº 3866, de 29 de novembro de 1941, que estabeleceu a prática do
destombamento. Resignado à situação, o diretor do SPHAN solicita ao Ministro Capanema

246
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

que o presidente, ao decretar o cancelamento da proteção dos bens tombados, estabeleça


“a obrigação assumida pela Prefeitura Municipal de executar a expensas suas as obras
de reconstrução dos monumentos (...) sob o projeto e orientação” do órgão de tutela.
Através de despacho presidencial, em 1943, Vargas cancela o tombamento das
duas igrejas e do Campo de Santana, mas as alternativas de salvaguarda persistem.
Agache, em entrevista de junho de 1943 à revista literária Dom Casmurro, apresenta
um projeto de “avenida parque” que incorpora amplos canteiros ajardinados ao eixo
da Presidente Vargas, no trecho entre a Av. Rio Branco e a Rua Uruguaiana, conservando
na sua integralidade a Igreja de São Pedro dos Clérigos, e preservando a fachada e torre
sineira da Igreja do Bom Jesus do Calvário (Figura 7). No mês seguinte, em reportagem
do Jornal Diário de Notícias , discute-se o deslocamento integral das duas igrejas para as
margens da Avenida, que seriam possíveis através do “transporte monolítico” sugerido
pela empresa “Estacas Franki Ltd”. As ideias de Agache foram desconsideradas, e o alto
custo do trabalho para deslocamento dos bens tombados inviabilizou a sugestão pro-
posta pela Estacas Franki, sendo finalmente demolidas as igrejas no ano de 1944, data
de inauguração da Avenida Presidente Vargas.

Figura 7: Propostas de Agache para preservação das igrejas de São Pedro dos Clérigos e Bom
Jesus do Calvário. Fonte: IPHAN, Processo nº 017-T-38, 1938.

A Praça do Comércio, embora “um velho casarão imprestável”, sobrevive à abertura


da Presidente Vargas, mas as propostas por sua demolição persistem devido à construção
da Avenida Perimetral, sendo o imóvel finalmente incorporado ao projeto de ligação
entre os dois eixos viários exposto no PAA nº 6489 de 1955.
Antes disso, todavia, o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Jayme de Barros Câmara,
em virtude da realização do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional a ser realizado
no ano de 1995, solicitou à prefeitura que o imóvel fosse demolido, pois o mesmo atrapa-
lharia uma procissão noturna vinda de Niterói por embarcações que desembocariam no
cais do início da Presidente Vargas. No parecer do órgão de tutela federal, renomeado de

247
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

DPHAN - Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico e Nacional em 1946, Rodrigo Melo


Franco de Andrade recusa o pedido do Cardeal Câmara, afirmando o valor histórico do
edifício, que recentemente vinha passando por obras de reparo. O mesmo insinua no
documento que o Cardeal não devia estar ciente do tombamento do imóvel, pois caso
estivesse “sem dúvida não teriam pleiteado de modo algum a demolição”, uma vez que
esta teria “o objetivo apenas de tornar mais vistoso o desembarque de uma procissão
noturna”, e termina seu texto reiterando que “a proteção aos bens que constituem o
patrimônio histórico e artístico nacional, não pode ser indiferente a sua Eminência,
nem a Ilma. Comissão encarregada do programa do Congresso Eucarístico”.[6]
Ao longo da década de 1950 (Figura 8), o impulso pela ocupação da Av. Presidente
Vargas diminui com direcionamento dos investimentos imobiliários para o bairro de
Copacabana. Da Rua da Uruguaiana até a Praça da Bandeira, o grande eixo viário encon-
trava-se ainda ladeado pelo casario tradicional dos pequenos sobrados, pontualmente
rompido por arranha-céus com galerias de pedestres nas suas fachadas térreas, como
no caso do conjunto de edifícios Paulo de Frontin, Maipu e Onze de Junho. O conjunto
que popularmente ganhou o nome de “Balança-Mas-Não Cai” foi um dos poucos regis-
tros concretizados para a Presidente Vargas com o uso habitacional multi-familiar, em
oposição ao uso comercial e bancário do trecho inicial nas proximidades da Candelária

-
TELBAUM, 2010.

[6] IPHAN, Processo nº 101-T-38, 1938, Vol. 2.

248
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O TOMBAMENTO DA CASA DE DEODORO

É nas cercanias do “Balança-Mas-Não-Cai” que nessa mesma década a DPHAN realiza


o tombamento de um imóvel que sobreviveu à destruição graças ao declínio de interesse
pela construção na Avenida Presidente Vargas. De frente para o Campo de Santana, e
ao lado do imóvel da Casa da Moeda, a Casa de Deodoro, sobrado colonial e histórica
residência do Marechal Deodoro da Fonseca, primeiro presidente da República, estava
ameaçado pela renovação prevista para a Quadra 17-A do PAA nº 7215/PAL nº 21892 de
1957, que revisa as propostas dos projetos de alinhamento da década de 1940 (Figura 9).

Figura 9: Parte do PAA nº 7215/PAL nº 21892 de 1957. Fonte da Base: SMU-PCRJ.

O imóvel de propriedade da União, e sob jurisdição do Ministério da Guerra, vinha


desde 1941 sendo alvo de um processo de cessão para a Prefeitura do Distrito Federal,
para que essa pudesse vender o lote para urbanização da área. O processo de transfe-
rência arrastou-se por mais de uma década, ganhando força em 1956, com a Prefeitura
mencionando em ofícios a necessidade da sua demolição imediata.
Em ofício do Diretor do Patrimônio do Exército, de maio de 1957, o processo de
transferência é interrompido, sendo recusada a demolição do imóvel devido ao seu
valor histórico. Seria deste sobrado que o Marechal Deodoro teria saído, “e assumindo o
comando da tropa, selou com à sua presença a Proclamação da República”, tratando-se,
portanto, de um imóvel atrelado a “fato marcante da história nacional, e mais ainda da
história do Exército” [7]. Foi com esse pretexto, que no ano seguinte, o Chefe do Gabinete
do Ministério da Guerra envia ofício à DPHAN, solicitando o tombamento voluntário
do sobrado, unanimemente aprovado pelo Conselho Consultivo do órgão de tutela em
junho de 1958.

249
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A inscrição da Casa de Deodoro no Livro do Tombo Histórico, em 1958, teve impacto


indireto no processo de urbanização da Av. Presidente Vargas. Embora seu tombamento
não inviabilize a proposta geral de ocupação, ela interfere pontualmente nos lotes pre-
vistos para a Quadra 17-A dos PAA e PAL vigentes para área. Estes foram modificados
para incorporar o imóvel, agora protegido das renovações, conforme registrado no PAA
nº 8052 de 1963/PAL nº 24410 (Figura 10), prevendo uma praça arborizada[8] no entorno
do sobrado tombado - uma solução próxima das idealizações da Carta de Atenas do
CIAM, de 1933, que recomendava o isolamento dos monumentos históricos, tal como
empregada com a Igreja de Candelária.

Figura 10: Parte do PAA nº 8052/PAL nº 24410 de 1963. Proposta revisada para a Quadra 17-A.
Fonte: SMU-PCRJ.

[8] Conforme apresentam Motta & Thompson (2010, pp. 85-90), a proposta da praça arbori-
zada foi questionada, e o SPHAN, na década de 1980, recomendou a reconstituição da volu-
metria original do entorno da Casa de Deodoro, com objetivo recontextualizar historicamente
o imóvel. Nenhuma das duas alternativas foi implementada, continuando o entorno do bem

por estacionamentos.

250
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Av. Presidente Vargas foi, contudo, apenas umas das propostas que compôs a
complexa trama de projetos urbanísticos previstos pela Prefeitura do Distrito Federal
para a área central da cidade do Rio de Janeiro. Sua conjuntura atual é o resultado da
articulação de seu projeto original com outras propostas renovadoras que a intercep-
tavam, tais como as Avenidas Diagonal e Norte-Sul, executadas de forma fragmentária e
pontual, e produzidas com distintas, e muitas vezes divergentes, idealizações de futuro
para a cidade.
Na década de 1960, uma nova conjuntura administrativa e política dá nova forma
à cidade do Rio de Janeiro, que perde sua condição de capital, transferida para Brasília,
sendo o antigo Distrito Federal reconfigurado no Estado da Guanabara. Tal como 1938
fora decisivo no projeto de futuro da cidade, igualmente seria o ano de 1964. Em âmbito
nacional, o ano marca o início de uma mancha na democracia brasileira, com a deflagra-
ção do golpe do dia 31 de março, que instaurou no país o regime de ditadura militar que
perduraria por duas décadas. No contexto local, o governador Carlos Lacerda contratou o
escritório do arquiteto grego Constantino Doxiadis para realizar um novo plano diretor
o Estado da Guanabara, em substituição às revisões malsucedidas do Plano Agache em
fins da década de 1930.
No campo da preservação, o patrimônio tombado em esfera federal no Estado da
Guanabara ganha um novo aliado no seu reconhecimento legal pelo aparato estatal,
com o surgimento da DPHA, a Divisão do Patrimônio Histórico e Artístico da Secretaria
de Estado da Educação e Cultura da Guanabara, primeiro órgão de salvaguarda em esfera
estadual no país, e precursor do atual INEPAC (Instituto do Estadual do Patrimônio Cul-
tural). Com demandas diferenciadas da DPHAN, suas iniciativas juntamente ao órgão de
esfera federal iriam mais uma vez contra os anseios renovadores, confirmando a relação
dialética entre a preservação e a transformação que configura o rico tecido urbano da
Área Central Carioca.

251
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

AGACHE, A. H. D. Cidade do Rio de Janeiro. Extensão, Remodelação e

BUENO, Eduardo; TAIBTELBAUM, Paula. Avenida Presidente Vargas


pela história do Brasil. Rio de Janeiro: Arco, 2010.

IPHAN. Processo nº 0017-T-38. Tombamento da Igreja de São Pedro. Rio de


Janeiro, RJ. 1938.

IPHAN. Processo nº 0101-T-38

IPHAN. Processo nº 0572-T-58. Casa: República (Praça), 197. Onde residiu o


Marechal Deodoro da Fonseca. Rio de Janeiro, RJ. 1938.

MOTTA, Lia; THOMPSON, Analucia. Entorno de bens tombados. Rio de Janeiro:


COPEDOC/IPHAN, 2010.

252
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ENTRE CONSERVAÇÃO
E PROJETO DO NOVO:
LUCIO COSTA, ERNESTO
NATHAN ROGERS E LINA
BO BARDI. O CONCEITO DE
CONTINUIDADE

ENTRE CONSERVACIÓN Y PROYECTO DEL NUEVO:

EIXO TEMÁTICO: patrimônio, escalas e processos

CALABRESE, Federico
Doutor em Arquitetura e Urbanismo, Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal
da Bahia- FAUFBA
fedecal@hotmail.com

253
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O presente artigo é parte de uma pesquisa mais abrangente que visa investigar a fronteira
sutil que divide ou une, o projeto do novo e a conservação do existente. Investiga-se as questões
teóricas que esse dualismo traz, que podem ser consideradas como palavras-chave: tradição,
continuidade, história e que se condensam na prática projetual através do modus operandi
do construir no construído. Isso é feito a partir da experiência projetual e da especulação
teórica de três mestres do século passado, que representam, em primeiro lugar, as duas áreas
geográficas da pesquisa, que são a Itália e o brasil, com três protagonistas: Lucio costa para
o brasil, Ernesto Nathan Rogers para a Itália e Lina Bo Bardi como ponte entre os dois países.
Nas páginas a seguir será aprofundado o conceito chave de tradição.

PALAVRAS-CHAVE: continuidade. projeto. teoria. prática.

A BSTRACT
The present article is part of a more comprehensive research that investigates the subtle frontier
that divides or unites, the project of the new one and the conservation of the existing one. We
investigate the theoretical questions that this dualism brings, which can be considered as key
words: tradition, continuity, history and that are condensed in the design practice through
the modus operandi of building in the constructed. This is done from the projectual experience
and theoretical speculation of three masters of the last century, which represent, firstly, the
two geographic areas of research, which are Italy and Brazil, with three protagonists: Lucio
Costa for Brazil , Ernesto Nathan Rogers for Italy and Lina Bo Bardi as bridge between the two
countries. In the following pages the key concept of tradition will be deepened

KEYWORDS: continuity. proyect. theory. practice.

RESUMEN
Este artículo es parte de una investigación más completa que tiene como objetivo investigar el
límite sutil que divide o une, el proyecto de lo nuevo y la conservación de lo existente. Se inves-
tigan las preguntas teóricas que trae este dualismo, que se pueden considerar como palabras
clave: tradición, continuidad, historia y que se condensan en la práctica del proyecto a través
del modus operandi de construir en lo construido. Esto se realiza en base a la experiencia de
proyecto y la especulación teórica de tres maestros del siglo pasado, que representan, en primer
lugar, las dos áreas geográficas de investigación, que son Italia y Brasil, con tres protagonistas:
Lucio costa para Brasil , Ernesto Nathan Rogers para Italia y Lina Bo Bardi como puente entre

254
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

los dos países. En las siguientes páginas, se profundizará el concepto clave de la tradición.

PALABRAS-CLAVE: continuidad. proyecto. teoría. practica

INTRODUÇÃO

Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a delicada relação entre o
projeto do novo e a conservação do existente e entre a teoria e a prática projetual. Esta
pesquisa abrange dois países: Itália e Brasil. Alguns arquitetos e estudiosos, em geral,
mais do que outros, ajudaram a fomentar o debate entre o projeto do novo e a conser-
vação do existente, que, começa a ocorrer e tornar-se necessário após a Segunda Guerra
Mundial, particularmente na Itália, mas também em outros países.
Alguns desses arquitetos podem ser considerados mestres, pois formaram e influen-
ciaram muitas gerações de arquitetos até a atualidade.
Os três mestres da arquitetura do século XX escolhidos pertencem às duas áreas
geográficas da pesquisa (Brasil e Itália): Lucio Costa (Toulouse, 1902 - Rio de Janeiro, 1998),
arquiteto brasileiro e urbanista; Ernesto Nathan Rogers (Trieste, 1909 - Gardone Riviera,
1969), arquiteto italiano, urbanista, escritor e educador; Lina Bo Bardi (Roma, 1914 - São
Paulo, 1992), arquiteta nascida e formada na Itália, que se transfere para o Brasil, e cria
um elo cultural muito importante entre os dois países.
São mestres do século passado que estudaram e se identificaram com as obras dos
grandes mestres do Moderno e que, de maneiras diferentes, tentaram superá-los, mas
sem nunca perdê-los de vista.
De modos diferentes, os três mestres sempre trabalharam estabelecendo uma
relação entre a prática arquitetônica e o pensamento teórico. Essa relação é talvez mais
evidente nas obras de Lina e Rogers, e, no caso do último, deve-se muito à sua conexão
com o filósofo Enzo Paci. Ambos possuem uma grande produção, tanto de projetos arqui-
tetônicos como de obras construídas, além de escritos que, em alguns casos, tornaram-se
verdadeiras teorias (como no caso das preexistências ambientais de Rogers). O último
também foi professor universitário durante anos.
Costa, mesmo tendo um número mais limitado de obras arquitetônicas, deixou,
com seus poucos projetos, um legado muito significativo, que contribuiu para a cons-
trução de um pensamento forte ao redor da arquitetura moderna brasileira, mediante
a sua importante participação no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Sphan), que, seguramente, trouxe uma contribuição fundamental sobre como valorar

255
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e atuar nas preexistências arquitetônicas de valor histórico, mesmo que tenha recebido
críticas pelas suas escolhas.
É necessário compreender o desenvolvimento histórico das reflexões realizadas
pelos três mestres, e colocá- los em relação com seus contextos. É importante, antes de
considerar seus pensamentos, entender os climas culturais nos quais estão inseridos,
que é aquele pós-bélico, compartilhado por Rogers e Lina, mesmo que a última tenha
decidido emigrar para o Brasil, com um clima cultural que permeia o Brasil de Costa,
nos mesmos anos.
Transcorrem os anos 1950, logo após as grandes devastações da guerra, nos quais
se desenvolve o debate, por vezes duro, mas sempre intelectualmente honesto, sobre as
preexistências ambientais e sobre como atuar nos contextos históricos destruídos pelas
bombas. Tal debate envolve muitos intelectuais, não apenas arquitetos e especialistas
da conservação, que se posicionam em lados opostos.
Lina deixa a Itália em 1946 e, portanto, vive o início desse debate, e deixa os escom-
bros da Itália para redescobrir valores novos e renovados na terra brasileira. O contexto
cultural brasileiro nesses anos foi de efervescência e modernização, com grandes trans-
formações urbanas consolidadas nos anos seguintes. Forma-se uma sociedade mais
urbana e industrial, sustentada por uma política de desenvolvimento, com um novo
estilo de vida difundido por revistas e especialmente pelo cinema norte-americano.
É claro que, por razões óbvias, que não existe no Brasil daqueles anos um debate
semelhante ao italiano, mas são os anos nos quais, após um início incerto, o arquiteto
Costa se comprometeu a construir uma reflexão teórica que une a tradição popular com
a sobriedade da arquitetura internacional moderna (WISNIK, 2004).
Se, no início, Costa se liga culturalmente às figuras conservadoras como José Mariano
Filho, defensor da arquitetura neocolonial, posteriormente, sua trajetória se conecta com
a de intelectuais modernos, como Mário de Andrade, mas que elegem as manifestações
culturais populares, coletivas, rurais e anônimas como ponto de partida para a criação
de uma cultura brasileira moderna e erudita. Mesmo Lina, que chegou ao Brasil e se
instalou em São Paulo, olha esse tipo de manifestação cultural com grande interesse,
estudando- o profundamente e apropriando-se de muitas das suas características.

256
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ENTRE CONSERVAÇÃO E PROJETO DO NOVO: LUCIO COSTA, ERNESTO


NATHAN ROGERS E LINA BO BARDI. O CONCEITO DE CONTINUIDADE.

Um dos temas centrais nas reflexões de Rogers é aquele da continuidade. A ideia


de continuidade de Rogers está inspirada do princípio de continuidade da experiência
desenvolvido pelo filósofo e educador americano John Dewey[1]. A figura de Dewey e o seu
pensamento tiveram importante influência sobre Rogers. Continuidade e experiência
são duas palavras-chave para a sua construção teórica.
Não é por acaso que o seu livro mais importante e volumoso, que reúne editoriais,
ensaios e transcrições de conferências, tenha como título A Experiência da Arquitetura.
Na introdução à primeira edição, datada de 1958, Rogers escreve:
Não sou um filósofo, não sou um literato, mas sou um arquiteto que lê
os textos (e poesias), escreve, mas essencialmente projeta e se verifica no
canteiro de obra. Todas as experiências tentei traduzir em arquitetura,
como a parte mais intrínseca da minha existência (ROGERS, 1997, p. 9).

-
tituem. A experiência é o lugar desse encontro, onde a dimensão lógica se funde com aquela
prática. O instrumentalismo gnosiológico sustentado por Dewey nega o caráter puramente
passivo do processo cognitivo, sublinhando, pelo contrário, como o último seja já, em si, uma

situações e individualizar soluções a problemas de caráter prático. É possível esclarecer o pro-


cesso de pensamento e aquisição de conhecimento observando o modo como se apresentam

tarefa de reorganizar incessantemente a experiência, e a educação desenvolve a mesma função


na sucessão das gerações, consentindo, assim, a continuidade, ou a mudança. De fato, para
-
cado e aumenta a habilidade de dirigir a própria experiência. Nenhum modelo determinado

todas as suas obras pedagógicas, Dewey critica a escola dogmática, verbal, livresca e repetitiva,

257
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

É importante esclarecer o conceito de experiência exposto, que Dewey introduz no


campo da pedagogia, para entender a sua tradução no campo da arquitetura.
O princípio da continuidade na experiência, segundo Dewey (2014), significa que
cada experiência recebe algo daquela que a precedeu e modifica, de qualquer modo, a
qualidade daquela que a seguirá.
Ter experiência deriva do latim experior, que significa passar através. Trata-se de
um momento dialético, não estático. Esperire é descobrir a não verdade daquilo que se
retém como verdade. Uma experiência revela uma nova verdade que é a superação da
simples opinião; é uma descoberta de uma nova verdade que destrói a verdade inicial.
Mas também há uma mudança completa da nossa consciência, porque ter experiência
quer dizer não ser o mesmo que antes. A consciência reencontra-se diversa diante da
nova realidade, na nova verdade, que antes parecia estranha, diferente de si: esse é o
momento dialético da experiência. (DEWEY, 2014, p.56)
Em Costa (1980), o conceito de continuidade na experiência também está presente,
mesmo sendo diverso, dependendo dos lugares de onde provém e onde se insere. De certo
modo, faz com que tudo se entrose no senso de continuidade: das ocas indígenas à casa
transmontana portuguesa; da casa bandeirante, aos primeiros exploradores portugueses
e brasileiros, às casas de fazenda, às casas rurais até a casa urbana do fim do século XIX.[2]
Segundo Costa, foram os mestres de obras e carpinteiros portugueses que troux-
eram experiências das suas diversas províncias de proveniência, a partir das quais
desenvolveram diversas técnicas construtivas que, adaptadas às várias peculiaridades
locais, determinaram diferentes arquiteturas.
Para Lina (BO BARDI apud FERRAZ,1993), é a continuidade da sábia experiência
do homem simples do sertão, que alimenta a arquitetura contemporânea deste país. O
conceito de continuidade na experiência exprime um processo dinâmico e dialético.
Não se trata de um fato estático limitado a si próprio, como frequentemente é enten-
dido no campo educacional. Ter experiência não é um ato circunscrito ao momento
contingente, mas um percurso dialético de desenvolvimento da personalidade e das
potencialidades humanas.
A ideia de processo dinâmico e síntese dialética é recorrente no pensamento de
Rogers, mas também de Bardi e Costa, e não apenas no que diz respeito à continuidade
e à experiência, mas também ao conceito de tradição.

[2] COSTA, Lúcio. Tradição local. In: COSTA, Lúcio. Arquitetura. Rio de Janeiro: José Olympio, 2002.

258
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Em 1995, Costa lança o seu testamento autobiográfico intitulado Registro de uma


Vivência, que, análogo ao livro de Rogers, se configura como uma coletânea de escritos,
desenhos e cartas: um registro da sua trajetória profissional. O tema da vivência/expe-
riência é importante e recorrente para Costa.
No post scriptum de 1991 do seu texto mais conhecido, Razões da Nova Arquitetura,
de 1934, incluído em Registros de uma Vivência, Costa afirma que “depois de uma coisa,
vem outra”, sublinhando uma ação de movimento sequencial e que coloca o conceito
de continuidade no centro do seu pensamento.
No decorrer de todo o texto Costa faz referência à tradição e à continuidade da nova
arquitetura, com relação àquela passada e às novas verdades desconhecidas, mas em
continuidade com as verdades precedentes, apesar do momento de confusão e transição:
Mas, apesar do ambiente confuso, o novo ritmo vai, aos poucos, marcando
e acentuando a sua cadência, e o velho espírito – transfigurado - desco-
bre na mesma natureza e nas verdades de sempre, encanto imprevisto,
desconhecido sabor, resultando daí formas novas de expressão. Mais
um horizonte então surge, na caminhada sem fim (COSTA,1991, p. 108).
O conceito de continuidade subentende uma ideia de dinâmica e dialética. A cami-
nhada sem fim sobre a qual fala Costa e que indica um movimento perpétuo, é análoga
ao longo percurso que é necessário empreender com cautela, similar aos passos de um
alpinista caminhando em grupo, sempre atento ao quem o precede, mas também a quem
o sucede, ou seja, em movimento, mas dialogando com quem está atrás e com quem está
adiante, tal como fala Rogers (1955, p.4 ), que adiciona:
O problema da continuidade histórica (isto é, da consciência histori-
cizante dos fenômenos modernos com respeito àqueles do passado e
ainda permanentes na nossa vida) é uma aquisição bastante recente
do pensamento arquitetônico. (ROGERS, 1955, p.4)
Lina (BO BARDI, 1958) sublinha a importância da continuidade, também relacio-
nando-a com a experiência, que, para ela, se identifica com a consciência histórica no
sentido mais amplo da cultura:
Digamos subitamente [...] que somos pela cultura, pela posição intelec-
tual ao máximo, pela consciência histórica, por aquela que se diz hoje a
“continuidade”, mas a nossa experiência pessoal [...] dizem da extrema
delicadeza da posição [...] entre problemas que tocam conjuntamente a

259
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

estética e a filosofia e [...] acumulam dúvidas que, não resolvidas podem


conduzir às piores confusões.[3]
Rogers (1954a) compara o conceito de continuidade com a alternância entre a sís-
tole e a diástole, necessárias para irrigar o nosso coração. Momentos necessários para o
progresso: as arquiteturas dos mestres com aquelas menos maduras, menos seguras e
apenas indicativas dos jovens. (ROGERS, 1954a, p.3)
Afirma-se outra declinação do conceito de continuidade que se conecta com a
experiência anterior, que necessariamente modifica, ou pelo menos influencia, aquela
que vem a seguir: a reciprocidade.
A continuidade assim entendida manifesta-se tanto no tempo quanto no espaço
e representa a universalidade da cultura. Continuidade no sentido de incorporação
do passado, usando uma linguagem capaz de dar resposta aos interrogantes do tempo
presente, inserindo a vida na cultura e vice-versa.
Essa condição de reciprocidade é fundamental. Segundo Rogers (1955), uma obra
verdadeiramente moderna finca suas raízes na tradição, assim como, por outro lado, as
obras antigas têm um significado para nós, se são capazes de ressoar para nós. Lina (BO
BARDI, 1958) exemplifica a condição de reciprocidade de uma obra com a experiência
realizada no MASP e afirma:
Podem ser de grande utilidade as experiências feitas nesse campo, por
exemplo, o Museu de Arte de São Paulo. De fato, qual a significação de uma
peça isolada, uma obra de arte, mesmo se exposta com a mais perfeita
técnica museográfica, se esta obra é “fim em si mesma”, isolada no tempo
e no espaço, sem nenhuma ligação com o nosso tempo, sem continuidade
histórica? Os visitantes, especialmente os jovens, olharão, superficial-
mente os objetos, sem conseguir compreender a sua significação, a sua
lição histórica, fornecedora dos meios para compreender o presente. [4]
Lina, como Rogers, considera que o tempo presente deve ser compreendido dentro
da continuidade histórica, porque é o seu produto. O passado traz consigo uma lição
histórica que oferece os instrumentos para a compreensão do presente que, por sua vez,
deve andar ao encontro do passado, estabelecendo uma relação profícua e recíproca. O

[3] BARDI, Lina Bo. Sem título. Primeira conferência na EBA. Salvador, 17 abr. 1958. Texto não
publicado.

[4] BARDI, Lina Bo. Sem título. Primeira conferência na EBA. 17 abr. 1958. Texto não publicado.

260
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

passado é capaz de iluminar o presente, dando as chaves para a sua leitura e o presente
é capaz de iluminar o passado.
Costa move-se também no sulco já escavado pelos grandes mestres, sobretudo por
Le Corbusier, conseguindo usar as margens de manobra deixadas pela teoria do mestre,
fazendo uma releitura da arquitetura colonial de Minas Gerais a partir da sua essência,
das lógicas intrínsecas subjacentes às suas construções, das relações funcionais entre
os seus elementos (COSTA, 2011, p.105).[5]
Costa constrói uma linguagem que é capaz de integrar o passado com uma perspec-
tiva voltada ao futuro, por meio da consciência de que existem coisas que permanecem e
podem ser transportadas, no sentido da continuidade, de um período a outro, dando-lhe
a certeza de aceitar novas situações (COSTA, 2010, p. 230).
Torna-se necessário tecer um fio que integre o sentido da continuidade na realidade
contemporânea, complexa e variada, com o imenso patrimônio da experiência herdada.
Não existe uma fratura entre o velho e o novo, pelo contrário, é necessário compreender
a continuidade histórica dentro do âmbito da cultura, através de um processo que é de
pesquisa incessante e continuação dinâmica e não uma simples cópia passiva: não um
axioma a seguir, mas uma exploração sempre nova e livre que, produzida de maneira
sistemática, torna-se um método. Evidenciam-se outros dois aspectos que a continuidade
mostra e que são comuns aos três arquitetos: a firme rejeição da arquitetura falsa, da
cópia passiva; e a necessidade de construir um modus operandi, um método.
Lina (BO BARDI, 1957, p. 39), em sua tese apresentada em 1957, para um concurso
para docência na Universidade de São Paulo (USP), sublinha a importância da continui-
dade como consciência crítica que serve para dar respostas a instâncias do presente,
descrevendo um método a ser seguido:
A tarefa do professor deveria ser a de despertar a consciência crítica,
dando ao estudante o sentido da continuidade da história, não como
elegância cultural, mas como fonte viva de contribuições reais. O jovem
arquiteto não encontrará destarte, sua segurança em noções aparente-
mente certas e provadas, mas, em sua incerteza, [...] encontrará, naque-
les princípios, a força para se orientar, a lucidez crítica necessária ao
profissional de hoje, consciente de que não lhe é lícito abandonar-se

[5] Lucio Costa sobre Aleijadinho. In: NOBRE, Ana Luiza (Org.). Encontros/Lucio Costa. Rio de

Ronaldo Brito e Carlos Zilio. Original publicado Revista Gávea, em 1984.

261
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

a orgias exibicionistas, devendo antes encontrar, em sua responsável


humanidade, o único prêmio de seu esforço.[6]
Costa gasta muita energia para tecer a trama que servirá para traçar a linha evo-
lutiva da arquitetura brasileira. O faz por meio do órgão para a proteção do patrimônio
histórico e artístico nacional, o antigo Sphan, e através das suas obras que, por vezes,
não são compreendidas a fundo e taxadas de nostálgicas.
Ao mesmo tempo, faz uma crítica acirrada contra a falsa arquitetura, vazia de
significados.
A continuidade entre a nova arquitetura e a arquitetura mais pura do eixo ideal
por ele traçado, que denomina mesopotâmica-mediterrânea, descrita em conjunto
com o eixo nórdico-oriental no seu texto Tradição Ocidental, acontece porque as razões
são as mesmas: “aquela mesma razão dos gregos e latinos, que procurou renascer no
Quattrocento” (COSTA, 1995, p. 116) e que foi afastada com o academicismo, agora está
retornando com vigor renovado.
Costa, no texto Tradição Ocidental, tece o fio de continuidade em uma longa genea-
logia. Essa parte da matriz da arquitetura, inicialmente grega, depois romana, passando
pelo gótico, renascimento e barroco, e é exatamente nesse ciclo que se insere “a nossa
arte colonial”.
Nas suas Anotações ao Correr da Lembrança, enumera algumas das “preciosidades
arquitetônicas” dispersas no Brasil. Sempre dentro de um ciclo genealógico, descreve
detalhadamente os diversos processos construtivos e os seus desenvolvimentos no
tempo. Em Intermezzo, depois de fazer referência ao seu projeto para um povoado jesuíta
no sul do país, aquele de São Miguel, faz constatações de ordem geral sobre o tema da
continuidade com relação à tipologia da igreja, que, segundo Costa (1980, p. 80), mesmo
tendo um programa funcional simples, composto de nave, altar e sacristia, evolui e se
transforma no tempo na ordem da continuidade:
[...] desde as primeiras, ainda inspiradas nas antigas basílicas, seguidas
das inovadoras cúpulas bizantinas, das severas naves românicas, dos
luminosos transeptos góticos, da volta à clareza geométrica renascen-

[6] BO BARDI, Lina. Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura. Tese


(Concurso da Cadeira de Teoria da Arquitetura) - Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 1957.

262
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tista e do desabafo barroco, até chegar à comovente capela de Ronchamp,


na França, e à bela estrutura da catedral de Brasília.[7]
Constrói a sua continuidade com um passado que seja idôneo para alinhar-se com
o futuro, mas, segundo alguns, o faz de modo parcial, reapropriando-se da arquitetura
colonial para construir uma arquitetura nacional, mas estabelece e mostra um verda-
deiro método (NOBRE, 2004).[8]
Rogers (1955) esclarece que quem apela à cultura nacional (não reacionária e nem
com inclinações ao folclore ou aos estilos acadêmicos), deve compreender necessaria-
mente as raízes às quais, nos estratos profundos da tradição, a arquitetura se apega para
se alimentar e se qualificar.[9]
As raízes às quais deve se agarrar a arquitetura, segundo Costa, para criar a sua
genealogia, são aquelas das construções coloniais e barrocas. A pesquisa dessas raízes
liga continuidade e experiência através das viagens.
É a redescoberta do passado, depois da viagem realizada nos anos 20 a Minas Gerais,
e sucessivamente confirmada nas viagens a Portugal, em 1948 e 1952, segundo José
Pessoa (1999, p. 14), “que converte o profissional acadêmico de sucesso num militante
da nova arquitetura”.
A linha evolutiva é já anunciada: o barroco, com o seu vigor, é escolhido para com-
bater o academicismo dos estilos, ainda sem a descoberta da retomada moderna, como
explica José Pessoa.(PESSOA, 1995, p.14)
Em 1930, ano posterior à elaboração de um texto quase depreciativo sobre o artista
mineiro, com o título Aleijadinho e a Arquitetura Tradicional, de 1929, é convidado para
dirigir a Escola de Belas Artes, quando chamará, como um forte sinal de ruptura com
o academicismo vigente, como professores, os arquitetos modernos Warchavchik e
Buddeüs. A linha de continuidade da arquitetura brasileira é traçada da arquitetura
popular portuguesa, ao barroco mineiro até “encontrar a sua continuidade traduzida
no programa manifesto Razões da Nova Arquitetura” (PESSOA,1999, p.14).

[7] COSTA, Lúcio. Intermezzo. Catas Altas do Mato Dentro. In: COSTA, Lúcio. Arquitetura. Rio
de Janeiro: José Olympio, 2002.

[8] NOBRE, Ana Luiza. Fontes e colunas: em vista do patrimônio de Lúcio Costa. In: NOBRE,
Ana Luiza; KAMITA, João Masao; LEONÍDIO, Otávio; CONDURU Roberto (Org.). Lúcio Costa, Um
modo de ser moderno. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2004.

[9] ROGERS, Ernesto Nathan. Le preesistenze ambientali e i temi pratici contemporanei, 1955. In:

263
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Para Costa, a linha traçada da continuidade parece ser linear, e as coisas se sucedem
uma depois das outras, como ele mesmo afirma. Para Lina isso não é verdade. A linha
do tempo para ela não é linear, é um grande emaranhado do qual podem ser escolhidos
eventos em qualquer momento, se uma necessária dependência cronológica: é uma
linha descontínua.
Lina (BO BARDI APUD FERRAZ, 1993, p. 66) tem uma visão mais ampla, em contradição
com o Sphan, e dessa forma, com Costa, quando afirma:
A arquitetura contemporânea brasileira não provém dos jesuítas, mas
do pau-a-pique, do homem solitário. [...] Provém da casa do seringueiro.
[...] Possui em sua resolução furiosa de fazer, uma sabedoria e uma poesia
do homem do sertão que não conhece as grandes cidades da civilização
e os museus [...] mas suas realizações [...] fazem deter o homem que vem
de países de cultura antiga. [...] Essa falta de polidez, esta rudeza, este
tomar e transformar sem preocupações, é a força da arquitetura con-
temporânea brasileira.
Não são apenas as igrejas coloniais e barrocas e as grandes casas portuguesas,
segundo a versão da historiografia hegemônica, mas existem as pequenas capelas
construídas e dispersas por todo o território, as pequenas casas coloridas, os edifícios
e os bairros operários. O Brasil, para Lina (BIERRENBACH, 2001), compõe-se de um rico
mosaico multicolor de experiências arquitetônicas que são frequentemente anônimas
e coletivas.[10]
Continuidade é o nome que escolhe Rogers para anexar ao título da revista Casabella,
que dirigirá entre 1953 e 1965, após a direção de Eduardo Persico e Giuseppe Pagano,
além dos anos escuros da guerra. Rogers recolhe os frutos da revista de Pagano e Persico,
afirmando a própria originalidade e coerência com os tempos, como tinham feito seus
predecessores.
Continuidade refere-se, embora não exclusivamente, ao título da nova revista que
quer dizer consciência histórica. Continuidade como a verdadeira essência da tradição,
que, já para seus predecessores, e agora para ele, significa aceitar uma tendência que se
concretiza na eterna variedade do espírito avessa a todo formalismo passado e presente
(ROGERS,1954a, p.2).

[10] BIERRENBACH, Ana Carolina de Souza. Os restauros de Lina Bo Bardi e as interpretações


da história. Dissertação (Mestrado)- PPG-AU, FAU-FBA, Salvador, 2001.

264
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Rogers em 1958, no texto Il mestiere dell’architetto assinala que a arquitetura italiana


do pós-guerra e a atual são a direta evolução daquela do passado, com os erros, perdas,
mas com exemplos válidos e soluções de continuidade.(ROGERS, 1958. p. 22)
Dentro desse movimento contínuo, Rogers valoriza os trabalhos de determinados
arquitetos que, usando a experiência de outros mais dotados, a inserem em sua própria
para contribuir para a difusão de uma linguagem, contribuindo assim para a definição
de costumes que se relacionam com a permanência de certos valores indispensáveis
para a evolução democrática.
Tomar esse percurso é, para Rogers, um ato de criação, mas não por isso um ato
gratuito. Enquanto os mestres do Movimento Moderno se consideravam quase primor-
diais, agora os arquitetos sabem operar no sulco de um caminho já começado, fato de
longas genealogias e percursos.
O presente alimenta o passado e vice-versa, parece dizer Rogers.
Operar na continuidade quer dizer conjugar o ato intuitivo da criação com a inter-
pretação de dados objetivos. Procurando interpretar o caráter e as exigências práticas,
se construímos em uma paisagem natural ou se, pelo contrário, construímos em uma
paisagem urbana, devemos ser inspirados pelos mesmos princípios. Para atender aos
novos sentimentos, não será suficiente nem a cópia das formas tradicionais, nem o
desenho abstrato que satisfaça o gosto e as condições das técnicas contemporâneas.
Para Lina (BO BARDI, 1957, p. 51), é necessário agregar um justo equilíbrio:
nem o “dogmatismo” nem o “impressionismo”, mas uma espécie de
medida, naturalmente crítica que, levando em consideração a história
como herança e continuidade, abra as mais amplas liberdades às pos-
sibilidades do arquiteto, hoje mais do que nunca mediador responsável
pelo “modo de viver” dos homens.[11]
Lina (BO BARDI, 1957, p. 57) esclarece que o ato criativo, que ela chama de liberdade
projetual, passa por uma certa independência com relação à natural influência das
obras já realizadas e herdadas, não obstante seja necessário “superar a fratura histórica
de um conflito entre o antigo e o moderno, procurando esclarecer e compreender a
continuidade da história”.

[11] BO BARDI, Lina. Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura. Tese


(Concurso da Cadeira de Teoria da Arquitetura)- Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
Universidade de São Paulo (FAU-USP), São Paulo, 1957.

265
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A continuidade é também uma das premissas da preservação do patrimônio exis-


tente, porque não é pensável atuar em uma realidade que não se coloque como fenômeno
de desenvolvimento histórico, que perderia o seu significado se deixasse o passado
isolado da vida, que nos seus aspectos culturais e econômicos alimenta os conjuntos
das antigas estruturas, que sem isso murchariam (ROGERS,1955, p.3).
Lina, nos seus primeiros anos no Brasil, ainda estava em débito com a nova arqui-
tetura que chama de pós-racionalista, e de maneira clara indica sua total adesão aos
preceitos do Movimento Moderno.
Afirma, como apontado anteriormente, a importância da continuidade histórica
e segue afirmando isso nos anos sucessivos, nos quais suas posições com relação ao
Movimento Moderno são mais diluídas e críticas:
O passado não volta. Importantes são a continuidade e o perfeito conhe-
cimento de sua história. A defesa do patrimônio cultural não pode
ter fraturas. As fraturas culturais, a indiferença e o esquecimento são
próprios das classes médias e altas – o povo não esquece – é o único
capaz de constituir-se numa continuidade histórica sem fraturas (BO
BARDI, 1994, p. 76).[12]
Desse modo, Lina sublinha que a continuidade é indispensável para a preservação
do patrimônio cultural através da consciência da história, pensamento que divide com
Costa e Rogers; mas o faz colocando no centro da sua reflexão o homem, dando centra-
lidade à questão ética.
Rogers (1955) também acredita no ciclo fecundo homem-arquitetura-homem e na
vontade de representar o seu dramático progresso feito de poucas certezas, de crises e
muitas e necessárias dúvidas para afrontar a cada dia a renovação, refutando cômodas
posições já adquiridas.
Rogers, de um lado, se sente em débito com os mestres do moderno e, de outro,
tem a obrigação de redefinir os temas da tradição, da história, do estilo, para que sejam
conciliáveis com o método que, por princípio, negava essas ideias. Sente-se no dever de
citar os quatro mestres que retém como estrelas de primeira grandeza: F. L. Wright; W.
Gropius; L. M. van der Rohe; Le Corbusier; mas o discurso em torno dos predecessores
serve para esclarecer que o débito de continuidade com relação a eles não fecha nenhum

[12] BO BARDI, Lina Bo. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Instituto Lina
Bo e Pietro Maria Bardi, 1994.

266
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ciclo, mas abre outro, que se soma ao precedente com autonomia, mas sem negá-lo.
(ROGERS,1956, p.4)
É necessário percorrer a estrada da continuidade no caminho traçado, mas com
plena autonomia, tendo aprendido a essência do ensinamento que é, sobretudo, de
liberdade. Para não cair na armadilha da imitação passiva, é necessário, segundo Rogers
(1997, p.43), historicizar as obras do passado recente com o devido afastamento, para ser
verdadeiramente autônomo e para continuar a desenvolver alguns princípios ainda
válidos, afastar aqueles que já estão exauridos e descobrir outros. Rogers está falando
da importância do ato criativo, daquela liberdade descrita anteriormente por Lina.
Rogers (1956) refere-se aos mestres usando a expressão estrelas, esclarecendo que
poderia ter usado a palavra planetas, já que as suas luzes eram em parte devidas ao reflexo
de outros astros que tinham anteriormente iluminado o céu, como aqueles luminosís-
simos de Sullivan; Van de Velde; e Perret. Referências muito importantes para Wright;
Gropius; e Le Corbusier, em ordem cronológica. Na base do nosso edifício cultural, estão
esses quatro arquitetos, mestres diretamente conectados com a geração dos arquitetos
formados em torno dos anos 1930.
Falando sobre o legado fundamental deixado por esses grandes mestres, Rogers
(1956) os descreve como lutadores intrépidos, cujas metas ultrapassam as da arte pela
arte e se tornam uma regra de vida. De maneiras diversas, os modos de vida desses arqui-
tetos foram transferidos nas suas arquiteturas, que tendem a uma igual moralidade.
Reunir o exemplo de luta iniciada pelos mestres em nome dessa humanidade teorizada
é a tarefa das novas gerações. É necessário prosseguir a batalha sobre o mesmo campo,
mas se a bandeira erguida pelos predecessores se chamava Vanguarda, aquela pela qual
é necessário lutar agora é a da Continuidade.
A continuidade será concretizada na boa administração do legado dos mestres e
no prosseguimento do sentido das suas mensagens e, dessa forma, em dar uma estru-
tura sempre mais real à cultura arquitetônica. Ao explorar simultaneamente o sentido
profundo da tradição e do futuro, as visões do presente serão esclarecidas em benefício
sempre mais amplo dos contemporâneos. Impossível fechar os balanços ou encerrar as
contas quando ainda há muito o que fazer (ROGERS,1956, p.5).
Para examinar o fenômeno arquitetônico além das convenções, da cronologia ou
do idealismo abstrato, é necessário superar o academicismo, da nostalgia e do folclore
demagógico para acolher uma linguagem verdadeiramente internacional e contempo-
rânea, em que possam convergir as diversas contribuições culturais características das
diferentes áreas geográficas, de certa forma antecipando o conceito de regionalismo crí-
tico. Uma linguagem da continuidade, feita de mútuas compreensões (ROGERS,1954a, p.3).

267
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Costa (1995, p. 116) o faz sublinhando que a arquitetura moderna, “tanto aqui como
alhures, resultou de um processo com raízes profundas legítimas e, portanto, nada tem
a ver com certas obras de feição afetadas e vazias – essas sim modernistas” e com a
finalidade de estabelecer uma continuidade bem precisa e funcional para a construção
de uma arquitetura nacional.
Para Lina (BO BARDI, 1957, p. 69) é de fundamental importância fazer uma revisão
crítica da herança deixada pelos mestres do moderno quando afirma:
Para se eliminar a cisão entre o presente e o passado, necessária se torna
a consideração histórica do resultado arquitetônico ao qual chegamos
hoje. Desenvolvimento histórico não significa conciliação, e sim exame
crítico profundo.
Nessa pesquisa contínua, reconhecem-se as obras completadas pelos grandes
mestres seguidos como exemplos, mas sem renunciar à ruptura necessária dos precon-
ceitos cristalizados, que representam novos brotos, desejos e esperanças (ROGERS,1954a).
Rogers (1957b) introduz o conceito oposto ao de continuidade, que é o da ruptura
ou crise. Pergunta-se se há continuidade ou crise. Partindo do conceito de história refe-
rido por Enzo Paci, para quem a história é um processo dinâmico, chega à conclusão
de que esse movimento é de continuidade ou crise, segundo a intenção de marcar as
permanências ou as emergências.
A continuidade, para Rogers, é um fenômeno ligado à tradição, que implica uma
mutação na sua ordem; a crise, pelo contrário, implica um momento de ruptura ou des-
continuidade para a chegada de novos elementos que tendem a revolucionar o status
quo. Novos fatores que não estão presentes em momentos precedentes, que nascem por
oposição e procuram novidade.
Em Razões de uma Nova Arquitetura, Costa explica quais são tais razões, em um
momento histórico que ele define de transição e no qual o advento de novas tecnologias
está produzindo, também, uma revolução arquitetônica. Costa esclarece que esse cenário
não é novo, mas é algo que já se repetiu no curso da evolução da arquitetura.
Descreve a introdução do neoclassicismo, com a chegada da Missão Francesa no
Rio de Janeiro, como uma dessas rupturas, especificamente em uma época que “esse
barroquismo todo estava nas últimas”, mas pouco depois, segundo Costa (1934), acontece
uma pacificação e conciliação entre as duas tradições, até outra ruptura provocada pelo
ecletismo, para depois chegar à revolução do Movimento Moderno, em grande parte
devida à introdução de novas tecnologias.
Também Lina (BO BARDI, 1974, p. 260) usa palavras análogas. Não acredita

268
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

que tenha acontecido um completo ato de ruptura com o Movimento Mod-


erno, mas sim um ato de violenta revolução sem prescindir daquilo que veio
anteriormente.
Um ato destrutivo de “zeragem” cultural (parcialmente invariante)
não pode prescindir do material básico pré-existente. Lançar ao mar
em nome do moderno pelo moderno é inútil. Uma nova, e também
novíssima arquitetura terá necessidade, para ser realizada dos velhos
tijolos-madeira-ferro-cimento-plástico (em sentido figurado, é claro).
Nada nasce do nada. A zeragem cultural verdadeira não será certamente
realizada, é impossível com a tábula rasa das estruturas tradicionais
de um momento para o outro. (...) Os espíritos autenticamente criativos
jamais zeraram, mas revolucionaram violentamente, e revolução é
violenta [eversão] do positivo existente + o futuro.[13]
Assim, não existe mais razão para sustentar a polêmica entre tradicionalistas e
vanguardistas. Cai a razão dos precursores, que justificavam suas próprias ações con-
tra o ambiente que os circundava, considerado passado, muitas vezes empreendendo
verdadeiras cruzadas.
Para a geração de Rogers (1997), a questão não é ser moderno: para eles, isso é um
fato natural.[14]
Considerando-se o Movimento Moderno segundo as expressões de um método
e não segundo expressões figurativas, pode-se compreendê-lo dentro de um processo
histórico, sempre aberto, que buscou estabelecer uma relação entre os conteúdos e as
formas (ROGERS, 1997, p.155).
A ampliação e o aprofundamento da experiência arquitetônica, sem a negação dos
fundamentos do método, deve-se constituir como uma natural evolução dessa experi-
ência, independentemente dos resultados obtidos, sejam eles próximos ou distantes
dos exemplos anteriores.
Um ciclo ainda em curso: do gótico ao renascimento, que se torna barroco, e etc.
E também o Movimento Moderno poderia ser superado por outro movimento. Assim,

[13] BO BARDI, Lina. Lina Bo Bardi sulla linguistica architettonica. In: L’Architettura, n. 04, p.
259- 261. Roma, 1974.

[14]ROGERS, Ernesto Nathan. Presentazione ai progetti di laurea di BBPR,luglio 1932. 1957. In:
MOLINARI, Luca (a cura di). Ernesto Nathan Rogers, esperienza dell’architettura. Milão: Skira, 1997.

269
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

para Rogers (1955), quando se coloca o problema do ponto de vista do método, não se
pode dizer que tenha acontecido uma crise.
Como visto, também sobre o tema da tradição e da história dos três mestres, se cruza,
em alguns pontos coincide, e em outros diverge, e é possível extrair desse emaranhado
alguns pontos comuns: a importância da experiência, o tema da reciprocidade, a clara
recusa da cópia a favor da criação de uma linguagem autônoma e contemporânea que
pode ser alcançada através do uso de um método.

270
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS:

BARDI, Lina Bo. Contribuição propedêutica ao ensino da teoria da arquitetura.


São Paulo: Istituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2002.

. Ao limite da casa popular. Mirante das Artes, n. 02, São Paulo, 1967.

. arquitetura ou Arquitetura. Diário de Notícias, Salvador, 1958.

. Tempos de grossura: o design no impasse. São Paulo: Istituto Lina Bo e


Pietro Maria Bardi, 1994.

. Lina Bo Bardi sulla linguistica architettonica. L’Architettura, n. 04, Roma,


1974.

. Polytheama: uma restauração mais do que necessária. Projeto, n.118,


São Paulo, 1989.

BIERRENBACH, Ana Carolina de Souza. Os restauros de Lina Bo Bardi e as


interpretações da história. Dissertação (Mestrado)- Salvador: PPG-AU, FAU-FBA,
2001.

. Quando o Brasil era moderno: guia de arquitetura 1928-1960. Rio de


Janeiro: Aeroplano, 2001.

. Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura


(1930-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

COSTA, Lucio. Arquitetura

. Documentação necessária. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e


Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 1, 1937, p. 31-40.

. Notas sobre a evolução do mobiliário luso-brasileiro. Revista do


Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 3, 1939, p.
149-162.

. A arquitetura jesuítica no Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 5, 1941, p. 9-104.

; COSTA, Maria Elisa (Org.). Lúcio Costa


Paulo: Brasília: Empresa das Artes: UnB, 1995.

271
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Lúcio Costa: documentos de trabalho. Rio

medida. , São Paulo, n. 48, jun./jul. 1993, p. 69-80. DE FUSCO, Renato. Storia
dell’architettura contemporanea. Roma: Laterza, 1988.

ELIOT, S. Tomas. Tradição e Talento Individual. In: Ensaios. São Paulo: Art Editora,
1989. p. 37-48

. Restauro. Verum factum dell’architettura italiana. Roma: Carrocci


editore, 2013. FERRAZ, Marcelo (Org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Istituto Lina Bo e
P. M. Bardi, 1993.

Caramelo (3): s/p. São Paulo:


FAU-USP, out. 1991. LEMOS, Carlos A.C. Arquitetura brasileira. São Paulo:
Melhoramentos: Edusp, 1979.

Cidadela da
Liberdade. São Paulo: Sesc/Instituto Lina Bo e Pietro Maria Bardi, 1999, p 105.

MOLINARI, Luca (a cura di). Ernesto Nathan Rogers, esperienza dell’architettura.


Encontros/Lucio Costa. Rio de Janeiro:
Beco do Azougue, 2010. 259 p.

; KAMITA, Masão João; LEONÍDIO, Otavio; CONDURU Roberto (Org.). Lúcio


Costa, um modo de ser moderno. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2003.

ROGERS, Ernesto Nathan. La formazione dell’architetto. Quadrante, n. 6, out., 1931.

. Architettura, misura dell’uomo. Domus, n. 260, Milano, jul./ago.1951.

. La tradizione dell’architettura moderna italiana. Casabella-continuità,


n. 206, jul./ago. Milão, 1955.

. Un monumento da rispettare. Casabella-continuità, n. 212, set./out.


Milão, 1956.

272
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ENTRE LAGOA, MORROS E


RIOS, UM OLHAR PARA A
FAVELA DE RIO DA PEDRAS
E SUA PAISAGEM
BETWEEN LAGOON, HILLS AND RIVERS, A
LOOK AT THE RIO DAS PEDRAS SLUM AND ITS
LANDSCAPE

ENTRE POND, COLINAS Y RÍOS, UNA MIRADA AL

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

OLIVEIRA, José Roberto de


Doutorando; Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro.
prof.jose.roberto@soulasalle.com.br

ALVES, Ana Beatriz Jardim


Arquiteta e Urbanista; Universidade Estácio de Sá
biajardim.arq@gmail.com

CORTEZ, Vanessa Carla Sayão


Graduanda; Universidade Estácio de Sá
vanessacortez178@gmail.com

273
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O trabalho apresenta os principais aspectos da paisagem da favela de Rio das Pedras, localizada
no Rio de Janeiro. É reconhecida como a segunda maior favela do Estado do Rio de Janeiro e
pela sua grande diversidade comercial. Em seu entorno uma paisagem natural sofre com as
intervenções espontâneas e desenfreadas, que ocorrem principalmente no entorno da Lagoa
da Tijuca, Floresta Nacional da Tijuca e Pedra da Panela - bem natural tombado. Para o desen-
volvimento deste trabalho foi preciso analisar os dados do local, como a legislação e processo
de formação, contemplando os aspectos que tratam da relevância para o ambiente natural.
Objetiva-se compreender como esta paisagem foi conformada e qual cenário atual, apresentando
a relação com os bens naturais existentes próximo ao local e as consequências derivadas da
falta de fiscalização e ações de órgãos responsáveis pela preservação desses bens. Nesse sentido,
almeja-se ampliar o debate sobre a atuação do poder público frente a Rio das Pedras, tratando
das problemáticas urbanas e do ambiente natural, compreendendo a importância de preservar
tais áreas e resguardar a qualidade de vida dos moradores.

PALAVRAS-CHAVE: Rio das Pedras. paisagem. favela. meio ambiente. bens naturais.

A BSTRACT
The work presents the main aspects of the landscape of the Rio das Pedras slum, located in Rio
de Janeiro. It is recognized as the second largest slum in the State of Rio de Janeiro and for it is a
great commercial diversity. In it is surroundings a natural landscape suffers from spontaneous
and unrestrained interventions, which occur mainly in the surroundings of Lagoa da Tijuca,
Tijuca National Forest and Pedra da Panela - a natural heritage site. For the development of
this work it was necessary to analyze the local data, such as the legislation and the training
process, contemplating the aspects that deal with the relevance to the natural environment.
The objective is to understand how this landscape was shaped and what the current scenario is,
presenting the relationship with the existing natural assets near the site and the consequences
derived from the lack of inspection and actions by agencies responsible for the preservation
of these assets. In this sense, the aim is to expand the discussion on the performance of the
public authorities in relation to Rio das Pedras, dealing with urban problems and the natural
environment, understanding the importance of preserving such areas and safeguarding the
quality of life of residents.

KEYWORDS: Rio das Pedras. landscape. shanty town. environment. natural goods.

274
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
El trabajo presenta los aspectos principales del paisaje del barrio marginal Rio das Pedras,
ubicado en Río de Janeiro. Es reconocido como el segundo barrio marginal más grande del
Estado de Río de Janeiro y por su gran diversidad comercial. En sus alrededores, un paisaje
natural sufre intervenciones espontáneas y sin restricciones, que ocurren principalmente en
los alrededores de Lagoa da Tijuca, Bosque Nacional de Tijuca y Pedra da Panela, un sitio de
patrimonio natural. Para el desarrollo de este trabajo fue necesario analizar los datos locales,
como la legislación y el proceso de capacitación, contemplando los aspectos relacionados con
la relevancia para el entorno natural. El objetivo es comprender cómo se formó este paisaje y
cuál es el escenario actual, presentando la relación con los activos naturales existentes cerca del
sitio y las consecuencias derivadas de la falta de inspección y acciones por parte de las agencias
responsables de la preservación de estos activos. En este sentido, el objetivo es ampliar el debate
sobre el desempeño de las autoridades públicas en relación con Rio das Pedras, abordando los
problemas urbanos y el entorno natural, entendiendo la importancia de preservar dichas áreas
y salvaguardar la calidad de vida de los residentes.

PALABRAS-CLAVE: Rio das Pedras. paisaje barrio pobre medio ambiente. bienes naturales

INTRODUÇÃO

A favela de Rio das Pedras localiza-se na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Em
seu entorno observa-se a paisagem natural que é marcada pelas cadeias de montanhas,
compostas pelos maciços da Tijuca e pela Pedra da Panela[1] – bem tombado natural com
processo de tombamento correspondente ao número 03/300.021/69,Dec.”E”2715 (Figura 1).
Quanto a Barra da Tijuca, percebe-se a ligação em função da proximidade física e visual,
sendo uma paisagem da desigualdade social em função da priorização que a área tem
em função da favela. Essa área antigamente não era vista como forte potencial devido
as suas barreiras naturais no decorrer do processo de expansão desenfreada da cidade.
Todavia, a ocupação ocorreu e agora é preciso pensar como estruturá-la em meio as
barreiras e paisagem natural.

[1] A pedra da Panela possui não somente importância como bem natural – o que por si só
já lhe garantia a devida e real necessidade de tombamento – mas, esse bem natural serviu
como referência para que Lucio Costa, ao desenvolver o Plano Piloto para Barra da Tijuca e

275
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Localização dos principais bens naturais próximo a Rio das Pedras, com delimitação
do zoneamento da Pedra da Panela e indicação da localização próxima da Floresta Nacional
da Tijuca sobre ortofoto de 2013. Fonte: Os autores, 2020.

A fragmentação urbana é uma das peculiaridades da cidade contemporânea, sendo


o somatório de várias cidades que possuem o sentimento de comunidade e que também
podem ser pertencentes a uma mesma figura administrativa, mas sem o sentimento de
pertencimento e representatividade dessa administração (PINTO, 2008, p. 14). Em relação
a situação de Rio das Pedras, a fragmentação está relacionada com a falta de gestão de
políticas públicas contínuas na favela. No ano de 1995 houve o projeto do Programa
Favela-Bairro, que foi implementado parcialmente e apenas em alguns trechos e a
falta de continuidade das políticas em função das trocas de governantes, de controle e
fiscalização quanto às ocupações irregulares foram crescendo ao decorrer do tempo de
forma desordenada.
Pode-se relacionar que a paisagem tem sua própria história com um conjunto de
idades distintas, tempos históricos diferentes que representam como produzir coisas,
construir o espaço (SANTOS, 1988, p. 24). A inovação traz a paisagem mudanças, nas quais

276
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

adiciona ou subtrai-se elementos de forma recorrente e seguida. Pode-se relacionar com a


paisagem natural da favela, que sempre aparece uma nova alteração no seu ambiente, seja
por novas ocupações, ou por desastres naturais ou falta de uma infraestrutura adequada.
Pode -se empregar em relação a paisagem o conceito de rugosidade (SANTOS, 1996,
p. 25) que compreende-se como o acúmulo das marcas do tempo que permaneceram
na paisagem, mostrando sua história, e que algum elemento existia ali antigamente
e atualmente não existe mais ou foi substituída por outro elemento. Observa-se, na
morfologia de Rio das Pedras, estes diferentes tempos de ocupações. Estão, marcados
de forma indelével de como esse território se organizou. Seja de forma mais racional e
pragmática – com lotes regulares – ou de forma mais orgânica. Em ambas situações
foram resultado de tempo, organizações, lutas e realidades espaciais diferenciadas,
conformando a atual morfologia desse assentamento informal. Segundo Corboz (apud
SECCHI, 2006, p.15), o território é um palimpsesto, ou seja, passa por diversas mudanças
e as várias gerações escrevem, apagam e acrescentam.
“Nesse imenso arquivo de signos, podemos igualmente apreender um
vasto conjunto de intenções, de projetos, bem como ações concretas das
pessoas, de pequenos grupos ou mesmo de sociedades inteiras, estrati-
ficando-se, sobrepondo-se, deformando-se, e às vezes, contradizendo-se,
essas ações não raro, levaram a resultados surpreendentes para os
próprios autores, e de difícil interpretação.” (SECCHI, 2006, p. 15)
Analisando este conceito, pode-se empregar esse termo na situação atual de Rio
das Pedras, pois muito do seu entorno foi “apagado”, pois sofreu diversas alterações na
sua área ao longo dos anos, que são graves tanto para o meio ambiente quanto para os
moradores e cabe agora corrigir tais problemáticas.
Nesse sentido destaca-se a importância de entender o passado e a formação das
ocupações, levando em consideração além da paisagem natural, as marcas do local, como
seus moradores e a própria morfologia urbana local. Para Hersen (2019, p.3) as favelas
cariocas possuem “percursos rizomáticos” que são parte integrante de seu traçado tortu-
oso, não seguindo a ortogonalidade da cidade dita “formal”. Estes não apresentam certa
estabilidade, tendo uma dinâmica própria e não apresentando limites físicos definidos,
se espalhando entre cidade e florestas ao mesmo tempo. Percebe-se a necessidade de
projetos e planos que considerem as transitoriedades rizomáticas para melhor qualidade
de vida da população local, tratando das interlocuções entre tal traçado e o ambiente
natural, propiciando um mutualismo entre ambos.
Objetiva-se, por fim, observar os aspectos que conformam a fragmentação, as
rupturas e as relações que influenciam na paisagem urbana de Rio das Pedras, relacio-

277
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

nando-a com o histórico do seu desenvolvimento e as interferências dos bens naturais.


A dinâmica e paisagem na favela a cada visada contrasta com os bairros vizinhos de
alto padrão - a Barra da Tijuca e Itanhangá - com seus inúmeros condomínios fechados
e espaços urbanos que tem como agente responsável e fiscalizador o poder público
municipal. Todavia na favela o mesmo não ocorre e assim a expansão acontece sem
maiores intervenções e vigilâncias.

METODOLOGIA

A metodologia de desenvolvimento deste trabalho pautou-se em segmentar a


história da favela de Rio das Pedras, os momentos atuais e aspectos relevantes da pai-
sagem do local. Nesse sentido, ao observar os marcos históricos e a situação presente,
buscou-se elencar o modo como tais fatos portaram-se quanto ao ambiente natural.
Objetiva-se entender o processo de ocupação, as práticas públicas e interferências na
área. Além disso, apresentar os bens ambientais existentes no local contemplando a
relação paisagem x ocupações.

HISTÓRICO

A comunidade encontra-se inserida próxima à Barra da Tijuca, contudo, esta surgiu


antes do desenvolvimento do bairro na década de 1970 através do Plano Piloto de Lucio
Costa. Acerca do Plano, não percebem-se considerações quanto ao moradores ou com a
área da favela (Figura 2). Como proposta para limitar o gabarito na área projetada, Lucio
Costa utilizou a Pedra da Panela bem natural vizinho à favela como um limitante para
a altura dos edifícios (Figura 3). Tal aspecto, vinculado a paisagem não foi empregado
nem na Barra da Tijuca e nem na favela.

278
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2 e 3: Plano Piloto da Barra da Tijuca. Fonte: Coordenadoria Geral dos Programas de
Interesse Social/ Pousos, 2013

Sua ocupação aconteceu inicialmente de forma espontânea na área atualmente


conhecida como “Pinheiros” e posteriormente as demais subáreas foram se formando
e em algumas, o traçado mais racional deve-se ao fato de orientações – informais – de
técnicos da prefeitura para a Associação, segundo relatos de antigos moradores. Burgos
(2002, p.36) aponta para uma delimita seis subáreas em Rio das Pedras, cada uma delas
ligadas a um processo diferente de expansão e ocupação (Figura 4).

279
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Delimitação da subárea criadas pelos moradores de Rio das Pedras. Fonte: Pesquisa
de doutorado 2018-2020, sob base vetorial do IPP (2013), 2018-2020.

A subárea “Pinheiros” é o núcleo original com uma formação mais espontânea, que
consolidou-se na década de 1970 com a desapropriação do terreno junto ao governador
Negrão de Lima. Este decretou que a área seria de utilidade pública voltada para fins de
colônia agrícola e integração com a reserva biológica de Jacarepaguá (Mendes, 2006, p.
165-166). Todavia nesta área de grandes lotes os moradores iam dividindo-os e repassando
essas parcelas (Burgos, 2002,p. 36), tais aspectos em meio a uma política habitacional de
remoções na cidade tornava a área mais atrativa para morar por tratar-se de um terreno

280
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

público, além da abertura de vias na década de 1970 com a expansão da Barra da Tijuca
(Mendes, 2006, p. 166).
Posteriormente, a subárea intitulada Vila Darcy/ Vila dos Caranguejos veio a ser
ocupada em 1983, sendo esta a primeira ocupação com orientação das dimensões do lote.
Todavia, o proprietário da área veio a requerer seus direitos sobre o terreno e a ocupação
acabou por ser limitada a uma faixa de recuo com 20 metros.
Já a subárea chamada de Areal I é origina-se da doação de um terreno de 400 mil m²
da Prefeitura para a Associação no ano de 1988. Neste trecho foram respeitados os parâ-
metros sugeridos por profissionais da Prefeitura, com lotes de 50 m² e vias de 5 metros de
testada a testada. Subsequentemente, o grupo Delfim que construía um condomínio de
classe média na área requereu parte desta área doada. Após negociações ficou decidido
que metade da área ficaria para a Associação e metade para o grupo. Contudo, tal ques-
tão não foi respeitada e os moradores invadiram os edifícios em construção em 1990.
Nesse cenário o poder público interviu e afirmou que construiria um conjunto
habitacional para estes moradores que participaram do ato de protesto e também ficam
salvaguardadas as subáreas Areal 2, Areinha e Curva do Pinheiro. Os participantes fica-
ram alojados na subárea Areal 2, em caráter provisório. Entretanto, esta situação acabou
tornando-se uma definitiva. A terra conquistas foi chamada de Areinha e possui uma
morfologia parecida com a da Areal I, ambas apresentam os mesmos critérios com a
delimitação das vias e lotes. Em paralelo a ocupação da Areinha, ocorre a da Curva do
Pinheiros entre 1991 e 1993 que foi negociada com a Secretaria de Habitação durante
o governo Brizola.
No que refere aos serviços básicos, durante o governo Brizola (1983-1986) realizou-se
o programa “Cada família um lote” da Cehab-RJ, no qual foi feito um aterro hidráulico em
parte da área em função de enchentes. Em 1986, o programa Proface da Cedae implantou
um sistema de esgotamento sanitário e uma elevatória. Em relação a água foi inserida
uma adutora e uma derivação. Posteriormente, os moradores substituíram o sistema de
esgoto e distribuíram internamente a água, ambos os processos sem supervisão técnica
(Mendes, 2006, p. 167).
Outro marco no processo de formação de Rio das Pedras foi o Favela - Bairro (2002)
que tinha 5 objetivos principais: abrir vias, instalar infraestruturas, implantar creches,
áreas de lazer e novas residências. No tocante a do ambiente natural o projeto contem-
plava a canalização dos rios e reflorestamentos da vegetação próxima a lagoa, além da
arborização de vias internas da comunidade, a fim de melhorar as condições de conforto.

281
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5: Trecho do projeto do Programa Favela-Bairro. Fonte: Atelier Rio Metropolitano, 2019.

O projeto era ambicioso contemplando ambas as subáreas com espaços públicos


e praças comunitárias (Figura 5). Destaca-se também no núcleo central a construção de
unidades habitacionais e uma quadra de esportes. Em Vila Caranguejo, Areal I e Areinha
buscou-se definir bem um limite visual através do estabelecimento de um waterfront
e nas últimas subáreas ocorreriam algumas desapropriações a fim de preservar a área.
Em Areal II seria construído um conjunto de prédios de uso misto (comercial + habita-
cional) voltados para a Estrada Engenheiro Souza Filho, na qual também foi pensado
um nó de integração da comunidade. Nesta mesma subárea existiria também uma base
institucional com casa de parto, guardeira e um Companhia Municipal de Limpeza.
Todavia, de todo o projeto realizou-se somente um trecho no núcleo original no
qual atualmente a praça apresenta diversas construções e torna difícil a leitura do pro-
jeto original. Assim, percebe-se a necessidade de uma reurbanização, tendo em vista aos
demais subáreas esquecidas, bem como os aspectos referentes à natureza. Além disso,
deve-se levar em consideração ao propor qualquer intervenção na área o crescimento,
verticalização, péssima qualidade da infraestrutura urbanas, avanço maior sob as áreas
de proteção e de entorno de bens e dados referentes à população.

282
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BENS NATURAIS

Durante o desenvolvimento do Plano Piloto de Lúcio Costa, o arquiteto destacava


a importância de proteger os sítios naturais para valorizar as condições paisagísticas
da área. Foram identificados os monumentos naturais e tombados a partir do antigo
Estado da Guanabara. Um tempo depois, essa proteção foi ratificada e passou a fazer
parte da lista de tombamentos pelo Inepac a partir de 1980. Posteriormente, os monu-
mentos naturais foram sendo desfigurados e havendo até projetos paisagísticos para
recuperação do ecossistema da região da planície costeira de Jacarepaguá para tentar
resgatar o que foi perdido. Alguns desses bens naturais são: Pedra da Panela e Floresta
Nacional da Tijuca.
A Pedra da Panela (Figura 6) teve seu tombamento realizado pelo Inepac em 1969
e na época do tombamento era alvo de ameaça por empresas de exploração mineral.
Destaca-se pelo formato que parece uma panela emborcada, sendo uma grande refe-
rência paisagística que está sendo desvalorizada, devido às ocupações irregulares que
frequentemente ocorrem em seu entorno. No local existe uma Área de Preservação
Ambiental (APA), da propriedade da Construtora Carvalho Hosken (MENDES, 2006), na
qual não deveria ter habitações, porém há de forma irregular.

Figura 6: Pedra da Panela. Fonte: Os autores, 2018.


Figura 7: Morro Dois Irmãos. Fonte: Os autores, 2018.

A Floresta Nacional da Tijuca (Figura 8) é tombada desde 1966 pelo Patrimônio


Histórico e Artístico Nacional e desde 1991, como Patrimônio da Humanidade e Reserva
da Biosfera pela Unesco. Conhecido pela sua beleza natural e suas trilhas é um ponto
turístico próximo da região de Rio das Pedras, destacando sua relevância paisagística.
A partir de Rio das Pedras é possível ser avistada e nela há parte da Mata Atlântica que
se contrasta com o meio urbano.
A Lagoa da Tijuca (Figura 9) faz fronteira direta com Rio das Pedras, sendo parte do
complexo lagunar da Barra da TIjuca. Ela apresenta vegetação de mangue, o que leva a

283
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

movimentações de terra e as edificações de baixa qualidade estrutural a rachar, tombar


e colocar em risco o bem estar da população. Encontra-se poluída juntamente com as
demais lagoas e corpos hídricos do entorno. A fim de conter o processo de poluição,
busca-se através da implantação de ecobarreiras retirar o lixo despejado irregularmente
para evitar a proliferação de gigogas, na esperança de recuperar as lagoas. É uma medida
que tem resolvido parcialmente, mas não é suficiente para despoluir a lagoa, sendo
necessário medidas mais assertivas. Há bastante ocupação das áreas de amortecimento
da lagoa e inclusive não são fiscalizados, tanto na Barra da Tijuca quanto na favela.

Figura 8: Ocupações próximas ao limite da Floresta Nacional da Tijuca. Fonte: Os autores, 2019.
Figura 9:Lagoa da Tijuca e Barra da Tijuca ao fundo. Fonte: Os autores, 2019.

Segundo um Relatório GEO-Rio (2011, apud Diagnóstico Urbanístico e Ambiental


de Rio das Pedras 2013, p.22) a área compreendida pela Vila Pinheiro, apresenta baixo
risco geotécnico, uma função do solo em praticamente quase toda sua extensão, sendo
destacada uma faixa onde o risco geológico alto, onde há ocupações irregulares com risco
de deslizamento, pois localizam-se em encostas de morro (Figura 10). O Estado doou
estas terras, contudo não fiscalizou os limites e, devido a isso, as pessoas continuam cada
vez mais ocupando uma área de risco, sendo um problema tanto para o meio ambiente
quanto para o homem.

284
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 10: Localização das áreas de riscos de escorregamento. Em verde apresenta-se onde
há menor risco enquanto o vermelho apresenta-se o maior risco, bem na encosta do morro.
Fonte: Prefeitura do Rio de Janeiro, 2013.

Necessita-se uma regularização e fiscalização quanto a conservação desses bens


naturais, em função de trazerem um valor paisagístico para a cidade e também para Rio
das Pedras. São elementos que fazem parte do processo histórico da formação de Rio das
Pedras e suas conservações têm importância para o meio ambiente, são reservas naturais
raras inclusas no meio urbano consolidado. Os elementos de delimitação e afastamentos
são necessários para que haja ordenação quanto à ocupação e essas delimitações são
significativas para evitar que ocorram intervenções massivas e forma desenfreada das
quais não possa mais recorrer.

285
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CENÁRIO ATUAL

Figura 11: O cenário atual de Rio das Pedras. Fonte: Os autores, 2019.

Nas proximidades da Pedra da Panela e da Lagoa da Tijuca existem muitos ocupações


irregulares, não havendo fiscalização. A segurança é comprometida devido a localização
dessas habitações em terreno instável, próximo de mangue. Diversas edificações que
estão implantadas nessas áreas possuem sistemas estruturais inadequados, propiciando
rachaduras e inclinações nos edifícios, que podem levar ao colapso dos mesmos. Devido
a essas questões, deveria se pensar numa faixa de proteção e afastamentos adequados,
realocando quem estivessem posteriormente a esses limites.
Numa entrevista informal realizada com Jorge Mário Jáuregui, um dos arquitetos
responsáveis pelo programa Favela Bairro, o mesmo comentou que somente parte do
Programa do Favela-Bairro foi realizado e um trecho que para ele era de suma importância
era a delimitação entre a Lagoa da Tijuca e a favela. O arquiteto entendia que era preciso
estabelecer elementos visualmente marcantes a fim de preservar essas limitações, toda-
via tal trecho do projeto não veio a ser executada. É necessário que tais aspectos sejam
contemplados para que seja possível a recuperação desses bens naturais e para que não
comprometa as estruturas das edificações, havendo uma ordenação e regulamentação
para construções seguras, o que não acontece atualmente.
Atualmente está em processo de aprovação o projeto de lei Nº 1418/2019, no qual
propõe novas modificações nas AEIS. Contudo, a descrição do projeto leva a entender
que é uma forma de executar a legislação urbanística geral em alguns terrenos da Zona
Oeste sem cumprir as regras básicas do Plano Diretor. Em Rio das Pedras, a lei altera
boa parte da área da favela que é declarada como área de interesse social há 21 anos e
durante esse tempo, a favela cresceu exponencialmente e não foi feita nenhuma ação
efetiva dos governantes para melhorias habitacionais e de melhoria de qualidade de
vida da população local. Com isso, o poder público quer fazer mudança dos índices
urbanísticos para somente aplicá-los naquelas áreas e lotes sem consultar o Conselho
de Políticas Públicas (COMPUR), sem participação da sociedade e sem a realização de
audiências públicas sobre o assunto.

286
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O Plano de Urbanização de cada AEIS não está cumprindo com as exigências do


Plano Diretor, havendo somente mudança de parâmetros urbanísticos e de gabarito
nos terrenos dos polígonos selecionados no projeto de lei e nas áreas não ocupadas pela
favela, porém os grandes lotes pertencem a alguns proprietários privados interessados
no local (Figura 12). O prefeito declara que essas AEIS seriam para beneficiar professores
e servidores municipais, com famílias de renda familiar igual ou inferior a seis salários
mínimos. Além disso questiona-se o porquê serem destinados especificamente para
professores e servidores públicos e a faixa salarial.

Figura 12: Apresentação das novas áreas AEIS anexada ao projeto de lei. Os polígonos são a
localização das novas AEIS.

Devido ao descaso, pode-se deteriorar e destruir tais bens naturais e paisagísticos


importantes para o ecossistema. Se as organizações competentes junto ao governo não
tomarem devidas providências pode ser tarde demais para recuperá-los. Tais intervenções
nessas área podem levar também a interferências na vida humana, como constantes
enchentes que propiciam um ambiente insalubre; queda ou tombamento de edificações
em função da ocupação irregular com estruturas precárias em solo com baixa resistência,
entre outros malefícios. Entende-se a necessidade de resguardar o ambiente natural e
as vidas. Bem como, tomar medidas que dialoguem com todos os setores da sociedade.

287
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao observar o histórico de Rio das Pedras, identifica-se uma área de pouca atrati-
vidade para o mercado imobiliário dos anos 1950 e 1960 devido a suas barreiras físicas,
porém isso não impediu que a área se tornasse “casa” para populações carentes. A favela
inicialmente expandiu seus limites horizontalmente balizada pelos morros, pelo rios e
limites naturais que a circundam. E quando achava-se que não era mais possível expan-
dir-se, bem como as grandes cidades, se elevou verticalizando-se e chegando a ter prédios
com mais de 7 pavimentos. Todavia as barreiras naturais a cada dia são reduzidas, a beira
do rio ocupada por uma nova edificação, o mesmo acontece próximo a mata, a lagoa e
a Pedra da Panela. Esta deveria servir de limitante para os gabaritos da Barra da Tijuca,
o que não veio a acontecer, inclusive na favela.
A ocupação ocorre, expandindo-se a cada dia e uma nova área de entorno de um
bem natural é ocupada. Para mudar isso é preciso resgatar alguns aspectos que já pas-
saram por Rio das Pedras durante o projeto do Favela-Bairro. No programa buscava-se
reflorestar trechos realizando mínimas remoções, intervir no rio canalizando-o e definir
limites claros nas áreas de borda. Esses trechos deveriam ter uma grande importância
no projeto em função de resguardar áreas para o futuro. Além de uma reurbanização
e reflorestamento, deve-se trazer para a favela uma redefinição dos balizadores para
ocupação, assegurando novas bordas através de instrumentos de projeto como espaços
públicos, uma orla de lagoa que contemple aspectos visualmente marcantes para que
futuras ocupações não ocorram.
Ressalta-se a urgência de fiscalização das condições estruturais das edificações
pelo poder público. As diversas ocupações irregulares e próximas aos corpos d’água tem
resultados como movimentações no solo com baixa resistência do entorno da lagoa. Tal
problemática leva a afundamentos e inclinações das edificações existentes, frequentes
enchentes e um cenário insalubre propiciado pela falta de uma infraestrutura voltada
para o saneamento ambiental. Outra questão está ligada a redução das áreas de mata
e avanço sobre a lagoa. Isso implica na qualidade de vida, do ar, qualidade hídrica e
também na paisagem local.
É preciso uma atuação contínua do poder público tratando de problemas urbanos
e da paisagem natural. Nessa intervenção deve-se aprender com os erros do Programa
Favela - Bairro no qual apenas trechos foram executados. Outro aspecto importante é a
presença e contínuo diálogo com a Associação de moradores em função de estabelecer
medidas, limites mais claros, fiscalização e uma atuação duradoura que perpassa as fases
de projeto e entrega da obra. Por fim entende-se a importância de resgatar a presença e
atuação do poder público, nesse sentido os POUSOS - Postos de Orientação Urbanística

288
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e Social - foram uma solução anteriormente aplicada que tratava desta questão. Através
dessa iniciativa poderia-se auxiliar tecnicamente, fiscalizar e também funcionar como
ATHIS - Assessoria Técnica em Habitação de Interesse Social. Para implementação o custo
é relativamente baixo, inclusive pois existia na favela um edificacao anteriormente
usada para tal, que atualmente encontra-se fechada. Além disso, o local seria um posto
avançado do poder público para auxílio aos assentamento informais.

289
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BURGOS, Marcelo. A utopia da comunidade: Rio das Pedras, uma favela carioca.
2a edição.Rio de Janeiro: Loyola, 2002.

Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.

MARICATO, Ermínia. Reforma Urbana: limites e possibilidades – uma trajetória


incompleta. In: [Luís Ribeiro]; Orlando Júnior. Globalização, Fragmentação e
Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1994.

MENDES, Izabel Cristina Reis. Programa Favela-Bairro: uma inovação estratégica?

do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado - PPGAU USP - Programa de Pós-


Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo,
2006.

A nova classe média: um estudo de caso sobre os impactos


na produção de moradia em assentamentos informais. Pesquisa de Tese de
Doutorado - PPGAU- UFF/EAU - UFF - Escola de Arquitetura e Urbanismo - UFF -
EAUD - Escola de Arq. Urb. Design - Universidade Estácio de Sá. Niterói, 2019.

Parque Nacional da Tijuca completa 56 anos com muita natureza e cultura.


Amigos do Parque, Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2017. Disponível em?<https://
amigosdoparque.org.br/parque-nacional-da-tijuca-completa-56-anos-com-
muita-natureza-e-cultura/> Acesso em: 28 mar 2020.

Pedra da Panela. INEPAC, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://www.inepac.


rj.gov.br/index.php/bens_tombados/detalhar/364> Acesso em: 28 mar 2020.

Projeto de Lei Nº 1418/2019. Altera a delimitação da área denominada Rio

Poder Executivo, 11 de março de 2020. Disponível em: <https://mail.camara.


rj.gov.br/APL/Legislativos/scpro1720.nsf/0cfaa89fb497093603257735005eb2bc/
de21953931b8d4ea8325845400669ec6?OpenDocument> .Acesso em: 28 mar 2020.

a legislação urbanística: o caso da pseudo AIES de Rio das Pedras”. Sonia Rabello
- A Sociedade em Pauta, 2020. Disponível em: <http://www.soniarabello.com.

290
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

br/o-coronavirus-cronico-na-camara-de-vereadores-do-rio-infecta-a-legislacao-
urbanistica-o-caso-da-pseudo-aies-de-rio-das-pedras/>. Acesso em: 29 mar
2020.

Rio de Janeiro - Pedra da Panela. Ipatrimônio, Rio de Janeiro. Disponível


em: <http://www.ipatrimonio.org/rio-de-janeiro-pedra-da-panela/#!/
map=38329&loc=-22.969657,-43.343613999999995,17> .Acesso em 28 mar 2020.

Cidades faveladas: repensando o urbanismo subalterno. Rio de


Janeiro: E-metropolis/ Revista eletrônica de estudos urbanos e regionais, ano 8,
n.31, p. 6 – 21, 2017.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: tempo e técnica. Razão e emoção. 4a


edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado. fundamentos teórico e


Hucitec. São Paulo, 1988.

SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

291
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FAZENDA SÃO JOÃO DO


TIBIRIÇÁ: ABORDAGENS
ACERCA DE UM PATRIMÔNIO
RURAL PAULISTA
ABOUT A RURAL HERITAGE IN SÃO PAULO STATE

SOBRE UN PATRIMONIO RURAL EN EL ESTADO DE


SÃO PAULO
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

SILVA FILHO, Adenir Gomes da


Graduando em Arquitetura e Urbanismo; UNESP

HIRAO, Hélio
helio.hirao@unesp.br

292
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O cultivo do café no território paulista, estruturada no modelo agrícola voltada à exporta-
ção, impulsionou São Paulo ao patamar econômico nacional, fez surgir cidades, interligou o
estado por ferrovias e estruturou a sociedade da época. Nesse cenário, as fazendas cafeeiras
desempenharam um importante papel: era onde se realizava todo o cultivo e beneficiamento
do grão, como também, se desenvolvia a vida social. Essa próspera economia atraiu para a
região da Alta Paulista, a implantação de um empreendimento de capital estrangeiro, a Com-
panhia Agrícola Rio Tibiriçá. A propriedade, especializada na produção de café, possuiu em seu
auge mais de dois milhões de cafeeiros e contava com uma completa infraestrutura tanto no
amparo da produção, quanto para o convívio e lazer dos moradores. A Companhia findada em
1956, vendeu suas terras em pequenas propriedades e seus edifícios foram aos poucos sendo
desmatelados ou arruinados. Atualmente, localizada na zona rural de Gália-SP, a propriedade
ainda concentra alguns poucos edifícios remanescentes, testemunhos materiais de um período
de extrema importancia na história do estado de São Paulo. O artigo tem como objetivo fazer o
reconhecimento desse patrimônio rural arruinado e discutir sua preservação, tocando em temas
como a inventariação, a educação patrimonial e o turismo rural. O procedimento metodológico
baseou-se em levantamento bibliográfico, fotográfico e visita de campo. Aponta que a preserva-
ção de patrimônios rurais pode ser potencializada através de projetos que integrem medidas
tanto de educação patrimonial quanto aquelas que visam o turismo rural, reconhecendo as
especificidades locais e regionais com seu contexto espacial, político e cultural.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio rural. fazendas cafeeiras. preservação. educação patrimonial.


turismo rural.

A BSTRACT
The cultivation of coffee in the territory of São Paulo, structured in the agricultural model aimed
at export, boosted São Paulo to the national economic level, gave rise to cities, connected the
state by railways and structured the society of the time. In this scenario, coffee farms played an
important role: it was where all the cultivation and processing of the grain was carried out,
as well as social life. This prosperous economy attracted the implantation of a foreign capital
venture, Companhia Agrícola Rio Tibiriçá, to the Alta Paulista region. The property, specialized
in coffee production, had at its peak more than two million coffee trees and had a complete
infrastructure both in terms of production, as well as for living and leisure for residents. The
Company ended in 1956, sold its land on small properties and its buildings were gradually
being deforested or ruined. Currently, located in the rural area of Gália-SP, the property still
concentrates a few remaining buildings, material testimonies of a period of extreme importance

293
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

in the history of São Paulo state. The article aims to recognize this ruined rural heritage and
discuss its preservation, touching on topics such as inventory, heritage education and rural
tourism. The methodological procedure was based on a bibliographic, photographic survey
and field visit. It points out that the preservation of rural heritage can be enhanced through
projects that integrate measures of both heritage education and those aimed at rural tourism,
recognizing local and regional specificities with their spatial, political and cultural context.

KEYWORDS: rural heritage. coffee farms. preservation. heritage education. rural tourism.

RESUMEN
El cultivo de café en el territorio de São Paulo, estructurado en el modelo agrícola orientado
a la exportación, impulsó a São Paulo al nivel económico nacional, dio origen a las ciudades,
conectó el estado por ferrocarril y estructuró la sociedad de la época. En este escenario, las
fincas cafeteras desempeñaron un papel importante: era donde se realizaba todo el cultivo y
procesamiento del grano, así como la vida social. Esta economía próspera atrajo la implan-
tación de una empresa de capital extranjero, Companhia Agrícola Rio Tibiriçá, en la región de
Alta Paulista. La propiedad, especializada en la producción de café, tenía en su apogeo más de
dos millones de cafetos y tenía una infraestructura completa tanto en términos de producción
como de vida y ocio para los residentes. La Compañía terminó en 1956, vendió sus terrenos en
pequeñas propiedades y sus edificios fueron gradualmente deforestados o en ruinas. Actualmente,
ubicada en la zona rural de Gália-SP, la propiedad aún concentra algunos edificios restantes,
testimonios materiales de un período de extrema importancia en la historia del estado de São
Paulo. El artículo tiene como objetivo reconocer este patrimonio rural en ruinas y discutir su
preservación, tocando temas como el inventario, la educación del patrimonio y el turismo rural.
El procedimiento metodológico se basó en una encuesta bibliográfica, fotográfica y visita de
campo. Señala que la preservación del patrimonio rural se puede mejorar a través de proyectos
que integren medidas tanto de educación patrimonial como de turismo rural, reconociendo las
especificidades locales y regionales con su contexto espacial, político y cultural.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio rural. cafetales. Preservación. educación patrimonial. turismo


rural.

294
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

É inegável a importância que o cultivo do café teve para o desenvolvimento do estado


de São Paulo. Nas palavras de Fernandes (1959, p. 435), o café pode ser representado “como
um ‘fator’ de povoamento, de enriquecimento e de progresso”. O avanço do cafeeiro pelo
território paulista, iniciado no Vale do Paraíba, atingiu a região de Campinas e fez das
ferrovias o principal meio de conquista do território, adentrando as regiões Mogiana,
Paulista, Araraquarense, Sorocabana até atingir, no período pré crise cafeeira, o extremo
oeste do estado de São Paulo. A itinerância da rubiácea fez surgir inúmeras proprieda-
des voltadas à produção do café: as fazendas cafeeiras; elas foram palco da exploração
escravista no trabalho agrícola, do traçado das ferrovias pelo estado, do grande fluxo
migratório de estrangeiros, do regime de colonato, dentre outros acontecimentos que
marcaram profundamente a sociedade paulista. Segundo Olavo Baptista Filho, “podemos
mesmo falar da civilização do café, pois ele criou hábitos, fixou aspectos, determinou
destinos, moldou consciências, interferindo, em última análise, de forma decisiva, na
estruturação da sociedade paulista contemporânea” (BAPTISTA FILHO, 1952, p. 5 apud
MATOS, 1974. p. 46).
A fazenda cafeeira, produto de um ciclo econômico essencialmente voltado à
produção em massa para exportação, refletiu em sua configuração arquitetônica toda
infraestrutura necessária para o cultivo e beneficiamento do grão, bem como os edifícios
e instalações que davam suporte para o convívio e manutenção da vida social. Embora
categoricamente descritas por apresentarem casarão, terreiros, tulhas, casa de máquinas,
senzalas e colônias, as fazendas cafeeiras paulistas apresentavam diferenças umas das
outras, de acordo com a região e período no qual surgiram.
Fazendo um recorte temporal e territorial nessa história, traz-se como exemplo
a Companhia Agrícola Rio Tibiriçá, iniciativa da Brazilian Warrant Co., implantada na
zona rural de Gália-SP. A propriedade agrícola ficou popularmente conhecida pelos
moradores locais como “Companhia Inglesa”, pois era produto de capital inglês e a
administração local era feita por três representantes ingleses. Iniciada no ano de 1928
e tendo o café como carro chefe das atividades produtivas, a Companhia tornou-se um
verdadeiro empreendimento, acumulando em sua sede, a fazenda São João do Tibiriçá,
um conjunto arquitetônico que incluía os edificios voltados à produção, como terreiros,
tulhas, casa de máquinas, fábrica de seda, fábrica de farinha de mandioca, alambique,
garagens; bem como as intalações para a manutenção da vida social dos moradores, como
as colônias, as casas dos administradores, escritório, escola, cinema, teatro, comércio e
capela (UZAI, 1996; GOMES, 1997).

295
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A queda na economia cafeeira pós década de 1930, decorrente da quebra da bolsa


de valores de Nova Iorque, fez com que os lucros da Companhia despencassem, embora
apoiada em outras atividades produtivas, o negócio já não era tão atrativo, o que fez com
que os investidores, no ano de 1956, dividissem a propriedade para a venda em fazendas
e sítios menores. A Fazenda São João do Tibiriçá, adquirida por um empresário local
com o intuito de reativar a produção, acabou caindo em decadência, seus edifícios aos
poucos tiveram seus usos alterados ou desmantelados para a venda de seus materiais
de construção. Após o falecimento do proprietário, no início dos anos 1990, a fazenda
entrou em completo abandono e esquecimento. Atualmente, com a degradação gra-
dual de suas benfeitorias, possuí apenas alguns edifícios remanescentes, fragmentos
materiais da memória de um período da produção cafeeira no interior paulista (UZAI,
1996; GOMES, 1997).
Essas fazendas são hoje, registros materiais desse período da história do estado de
São Paulo, assim sendo, a discussão recorrente nos estudos de patrimônios rurais enfo-
cam a necessidade da preservação desses bens, aventando possibilidades que garanta
sua salvaguarda. Para Nakagawa, Costa e Scarpeline (2010, p. 38) as fazendas históricas
paulistas compreendem um “universo” de possibilidades inesgotáveis, onde encontra-se
um território promissor com múltiplas possibilidades de descoberta e que revelam a
grande diversidade de bens patrimoniais raros e de valor inestimável, do ponto de vista
do patrimônio histórico, cultural e natural. É importante ressaltar ainda a sua impor-
tância como elemento de formação da identidade, da cidadania e do pertencimento a
um determinado contexto espaço-temporal.
O artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica financiada pela FAPESP, Pro-
cesso número 2019/07342-0, intitulada “Capela da Fazenda São João do Tibiriçá: Memórias,
identificação, reconhecimento e a preservação de um patrimônio rural”, cujo objetivo
principal é a identificação e registro através da inventariação e o reconhecimento do valor
patrimonial de um monumento inserido na zona rural de Gália, a Capela de São João.
Visa assim, reconhecer essa propriedade agrícola como fragmento de um patrimônio
rural, entender seu contexto de formação, vinculado a um ciclo econômico: o cafeeiro e
refletir sobre a sua preservação no contexto contemporâneo, cingindo os conceitos de
inventariação, educação patrimonial e turismo rural.
Os procedimentos metodológicos basearam-se em revisão bibliográfica, levanta-
mento fotográfico e visita de campo. O artigo estrutura-se em três principais tópicos, no
qual aborda inicialmente uma breve descrição do ciclo cafeeiro no estado de São Paulo
e as fazendas que surgiram com a itinerância desse produto pelo território; em segundo

296
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

momento apresenta a Fazenda de São João, caracterizando os aspectos arquitetônicos da


propriedade, para então, no terceiro tópico, discutir a potencialidade de sua preservação.

O CAFÉ E AS FAZENDAS PAULISTAS

De acordo com Monbeig (1984, p. 95), “o movimento no qual lançou os plantadores


de café em direção aos planaltos ocidentais não foi brusco, nem brutal”. Na verdade,
representou uma progressão da atividade produtiva que ocorria em terras fluminenses,
continuando no lado paulista do Vale do Paraíba e chegando até Campinas, substituindo
lenta e continuamente as culturas de cana-de-açúcar. Desde 1856 muitos engenhos já
tinham cessado seus trabalhos e a cultura do café se mostrava promissora, outrora
cultivada nas terras cansadas do Rio de Janeiro, encontra os férteis solos da região de
Bananal, Areias, Lorena, Guaratinguetá e Taubaté que corresponderam, até 1880 como a
maior produtora do grão em terras paulistas.
Após ocupar o Vale do Paraíba o café encontra as terras de Santana de Parnaíba,
às margens do Tietê e avança em direção a Itu e Jundiaí, chegando até Campinas. Nessa
região, a Central, os solos férteis garantiam boa produção e os fazendeiros, preocupados
em salvar seus cafeeiros das geadas brancas comum nessa região, procuravam os pontos
mais elevados para implantar suas fazendas. Essa necessidade de conquistar solos cada
vez mais longes do litoral, aliado à crescente demanda pelo café brasileiro no mercado
internacional culminaram na evolução do sistema de transporte para escoar as safras
que batiam recordes (BENINCASA, 2007, p. 113-114).
Já cogitada por volta de 1835, porém não realizada devido à falta de garantias do
Governo Imperial aos investidores; só em 1855, no governo do Conselheiro José Antônio
Saraiva, retomou-se o propósito da construção da ferrovia e em 1860, a partir da socie-
dade constituída entre o Marques de Monte Alegre, Pimenta Bueno e o Barão de Mauá,
deu início a construção da ferrovia que ligaria Santos a Jundiaí, a São Paulo Railway
inaugurada em 1866 (MATOS, 1974).
Matos (1974, p. 14) relata que ao contrário do que se passou em todo o processo de
desenvolvimento de redes ferroviárias no mundo, as nossas estradas de ferro, em especial
as paulistas, não abriram novas fronteiras, mas, pelo contrário, acompanharam aquelas
que iam sendo desbravadas e se constituíram em “frentes pioneiras”, na expansão colo-
nizadora desencadeada pelo café, o famoso binômio CAFÉ + FERROVIA.
Ocorre então, a partir da década de 1870, a crescente abertura de estradas de ferro
paulistas. De acordo com Matos (1974), em 12 de maio de 1873, a Companhia Paulista
assinava com o governo da província contrato para a construção, custeio e uso do pro-

297
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

longamento da São Paulo Railway. Em 17 de abril de 1873 era a Ituana inaugurada, esten-
dendo os trilhos de Jundiaí a Itu. Movimento semelhante ao ocorrido em Itu ocorrera em
Sorocaba com a inauguração da Sorocabana em 1875. O ano de 1872 assistiu à fundação
da terceira ferrovia paulista desta fase inicial da expansão: a Mogiana, fundada em
Campinas. As ferrovias paulistas configuraram-se como verdadiras estradas “cata-café”
segundo Matos (1974, p. 77).
Nem sempre, no sistema ferroviário paulista, se atendeu a um plano,
facilmente criticável hoje, foi o responsável pelo ‘envelhecimento’ relati-
vamente rápido das estradas de ferro, que, muitas vezes, perderam a sua
função tornando-se obsoletas, pela simples itinerância do café, uma vez
que a maior parte delas foi construída para atender às necessidades do
desenvolvimento da cultura cafeeira (MATOS, 1974, p. 59).
A expansão das fazendas cafeeiras impulsionadas agora à oeste do estado devido
o transporte ferroviário fez com que se demandasse por mão de obra para a lavoura,
tendo em vista que o tráfico negreiro fora proibido em 1850, os fazendeiros experientes
já previam a falta de trabalhadores para o cultivo do grão, recorrendo assim à mão de
obra imigrante. Dessa forma, as ferrovias que levavam à Campinas, Itu, e Moji-mirim e
a crescente produção cafeeira nessa região direcionou a imigração para essas fazendas,
sendo que, a partir da década de 1880 esse fluxo de imigrantes – a maioria italianos - só
viera a aumentar.
Segundo Matos (1974, p. 42), “de 1886, ao final do século assistimos, ainda, o incentivo
da substituição do escravo pelo braço assalariado, o que permitiu que São Paulo sofresse
menos que as outras províncias do Brasil a crise provocada pela abolição da escravidão
em 1888”. No entanto, na região do Vale do Paraíba, os fazendeiros não souberam lidar
com a mão de obra livre e as terras já cansadas fizeram declinar a produção cafeeira
dessa região.
No final do século XIX, a economia cafeeira paulista apresentava bons números e
representava todo um progresso relacionado à ampliação das linhas férreas e o surgi-
mento de novas cidades.
Seguindo esse forte movimento de interiorização, novos ramais das
ferrovias – como a Estrada de Ferro Araraquarense, Estrada de Ferro
Douradense, a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, além de novos ramais
da Companhia Paulista e da Sorocabana – iniciaram seu avanço para
essas regiões, onde o início do cultivo do café se deu entre fins do século
XIX e início do século XX, e, ao contrário das zonas Mogiana e Paulista,
foi acompanhado pela estrada de ferro, quase nunca a precedendo.

298
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Nessas regiões, a cafeicultura atinge seu maior pico de produção entre


1934 e 1935, em plena crise dessa lavoura. Essa altíssima produção
fora incentivada pelos altos preços de 1928, às vésperas da quebra da
economia mundial (BENINCASA, 2007, p. 465).
Assim, com a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929, a economia
cafeeira sofreu um grande golpe. A partir da década de 1940 o ciclo do café que outrora
representou o apogeu do estado de São Paulo no cenário nacional e mundial vai aos
poucos perdendo sua expressividade, tendo suas terras ocupadas por outras culturas
como o algodão, a laranja e a cana-de-açúcar e as ferrovias desativadas.

A FAZENDA SÃO JOÃO DO TIBIRIÇÁ

Chega-se à fazenda através de uma estrada em terra batida, acessada por uma estrada
vicinal que liga os municípios de Garça e Gália. Conforme a implantação da Figura 1, o
Rio Tibiriçá corta a propriedade e na vertente norte localiza-se remanescente ainda hoje
a Capela de São João e era também onde localizava-se no passado a escola, o cinema, o
teatro, o campo de futebol e os conjuntos de colônias. Na vertente sul localizavam-se os
demais edifícios: casarão; as casas do fiscal, administrador, agrônomo e encarregado;
as casas dos funcionários do escritório, farmacêutico e professores da escola; escritório;
fábrica de seda; almoxarifado; garagem; casa de torrefação do café; tanque de combustível;
balança; casa de farinha; alambique; tulha; casa de máquinas; terreiros para secagem do
café; pocilga dentre outras pequenas instalações.

299
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1- Localização e implantação da Fazenda São João do Tibiriçá em 2002. Fonte: Base

pelo autor, 2019.

A implantação da sede, conforme preconizavam os manuais agrícolas deu-se pró-


ximo ao curso d’água, indispensável para o beneficiamento do café. No entanto, diferen-
cia-se daquela tão difundida disposição dos edifícios em quadra ao redor do terreiro. Na
Fazenda São João do Tibiriçá o casarão ocupa a área mais ao topo da encosta, afastado
dos demais edifícios. Ao redor dos terreiros localizavam-se os edifícios e instalações
responsáveis pelo beneficiamento e armazenamento do café; acima do terreiro a casa
do fiscal; ao lado do terreiro, o escritório e as casas do administrador e do agrônomo;
mais abaixo, a casa do encarregado e dos demais funcionários administrativos ou com
certa especialização.

300
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Capela de São João

De acordo com Pontes e Barnezi (2001, p. 200) a inauguração da Capela da Companhia


Agrícola Rio Tibiriçá ocorrera em 1935, pelo Cardeal de São Paulo, que rezou a primeira
missa. De estilo neogótico inglês em alvenaria de tijolo aparente, a Capela de São João
(Figura 2) possuí nave única arrematada por uma ábside onde se localiza o altar-mor,
ladeado pela sacristia e o santíssimo; na entrada, possuí batistério e coro. Tem em sua
fachada a presença dos arcos em ogiva, uma pequena rosácea e vitrais coloridos nas
aberturas laterais; a fachada é ainda coroada por uma única torre sineira com cobertura
em agulha.

Figura 2- Capela de São João atualmente. Fonte: acervo do autor, 2019.

Grupo Escolar

Ao lado da Capela de São João, localizava-se o Grupo Escolar da Companhia Agrí-


cola Rio Tibiriçá (Figura 3), inexistente atualmente. De acordo com Benincasa (2007, p.
530) o edifício foi construído entre o final da década de 1930 e o início dos anos 1940. O
projeto aproxima-se das escolas estaduais paulistas da época, inclusive pela presença de
um pequeno frontão em estilo neocolonial na porta de entrada. De planta retangular,
construída em tijolos aparentes, era coberta por uma cobertura em quatro águas em
telha cerâmica francesa e contava com um programa de quatro salas de aula, salas de
professores, diretoria, copa, banheiro e possivelmente contava também com almoxari-
fado e depósito.

301
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3- Grupo Escolar da Companhia Agrícola Rio Tibiriçá na década de 1990. Fonte: Biblioteca
Municipal de Gália, 2019.

Cinema, Teatro e Bar

O conjunto que abrigava o cinema, teatro e salão de bailes (Figura 4) localizava-se


mais abaixo da Capela, em direção ao fundo do vale. Possivelmente construído por volta
dos últimos anos de 1920, o edifício luxuoso como é frequentemente descrito, recebeu
estreladas produções cinematográficas, renomadas companhias de teatro e shows de can-
tores e corais famosos da época. Os filmes que seriam exibidos no cinema da Companhia
eram divulgados nos jornais “A cidade de Gália” e no “A Província de Gália”. É possível ter
uma ideia da sintonia com que a Companhia tinha com a produção cultural mundial
pelo fato de que “o filme ‘King Kong’, grande sucesso de bilheterias nos Estados Unidos
da década de 1930, é lançado no Brasil em 1931 e no mesmo ano chega até o cinema da
Companhia” (UZAI, 1996, p. 26-27).

302
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4- Vista parcial do conjunto dos edifícios que abrigavam o cinema e teatro, década de
1990. Fonte: Biblioteca Municipal de Gália, 2019.

Colônias

As colônias eram as habitações destinadas aos demais trabalhadores, tais como


motoristas, carroceiros, funções na serraria, na olaria, e até mesmo na área rural. Ine-
xistentes nos dias atuais, pode-se perceber dois modelos dessa habitação (Figura 5):
uma em que o estilo não variou do tradicional modelo de casa de colônia das demais
fazendas cafeeiras; geminadas, dispostas em renque, com cobertura em duas águas
em telhas cerâmicas do tipo capa e canal caindo à frente e aos fundos. O outro modelo,
aparentemente geminada, possuía cobertura em quatro águas em telhas cerâmicas do
tipo francesa e um pequeno alpendre com cobertura independente na fachada frontal.
As colônias da Companhia eram melhores que das demais propriedades pois contavam
com abastecimento de água encanada, incomuns em construções desse tipo.

303
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5- Colônias geminadas em renque e colônias alpendradas. Fonte: Biblioteca Municipal


de Gália, 2019.

Embora a Companhia possuísse uma grande variedade de culturas e atividades


econômicas, o café era a principal mercadoria a ser produzida. De acordo com Benincasa
(2007, p. 534) fazia parte do complexo para o trato do café e demais atividades produtivas
(Figura 6): o almoxarifado central, a casa de torrefação do café e bomba de combustível,
abrigo para tratores e caminhões, a casa de farinha, o alambique, a balança, as oficinas
mecânicas, as tulhas, a grande casa de máquinas, os terreiros, os lavadores, o despolpador,
a casa de expurgo, pocilga, estábulos, cocheiras, currais e a fábrica de seda.

Figura 6- Vista parcial dos terreiros com as tulhas ao fundo, Casa de torrefação de café e Vista
parcial das tulhas. Fonte: Biblioteca Municipal de Gália, 2019.

304
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Destacam-se no conjunto das edificações as moradias destinadas aos ingleses


que possuíam cargos importantes dentro da Companhia. Essas residências (Figura 7) se
diferiam das demais pelo tamanho, acabamento e ornamentação. Tais moradias foram
construídas entre os últimos anos de 1930 e o início da década de 1940, de acordo com a
datação nas fachadas. Externamente as residências possuem bom acabamento, construí-
das sobre porões em embasamento de pedra e alvenaria em tijolos; apresentam telhados
com diversas águas e em diferentes planos, cobertas por telhas francesas. As janelas são
guilhotinas envidraçadas na parte interna com folhas venezianas em madeira na parte
externa; apresentam também esquadrias metálicas envidraçadas. É comum o alpendre
frontal com cobertura independente, assim como a incorporação da garagem ao corpo
da residência. O estilo das habitações “está vinculada à arquitetura dos bangalôs térreos
já difundidos no Brasil, principalmente, pelos ingleses das ferrovias, e popularizados
pela Companhia City, também inglesa” (BENINCASA, 2007, p. 548).

Figura 7- Casas: 1. Encarregado geral; 2. Administrador; 3. Agrônomo; 4. Fiscal. Fonte: 1. e 2. Acervo


do autor, 2019; 3. Benincasa (2007, p. 538); 4. Biblioteca Municipal de Gália, 2019.

305
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Casa principal

Segundo Pontes e Barnezi (2001, p. 52) a maior das casas, com vinte e oito cômodos
serviu de residência ao gerente geral, Mr. Fraser (Figura 8). Localiza-se na parte mais alta
da vertente, afastada das demais edificações. Cercada, conta com piscina no quintal e um
enorme gramado para a prática de golfe e outros esportes britânicos. Apresenta planta
em “U”, cobertura por vários planos em telha francesa com a presença da chaminé na
fachada frontal. Difere das demais residências pela dimensão e por ser a única embasada
em porão utilizável. Erguida em alvenaria de tijolos, possui amplo alpendre contínuo
em toda face da fachada principal e as tradicionais “bay windows” inglesas. O alpendre
é revestido com ladrilho hidráulico em mosaico, forrado por madeira trabalhada em
refinada carpintaria e acessado por uma pequena escadaria, resultante da elevação da
residência devido o porão utilizável.

Figura 8- Casa principal. Fonte: Biblioteca Municipal de Gália, 2019.

306
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Estado atual do conjunto

Atualmente, do antigo complexo arquitetônico, existe na propriedade sete edifi-


cações: a Capela de São João, uma Casa de funcionários do escritório, a Casa do encar-
regado geral, a Casa do gerente, a Casa Principal, a Casa de torrefação de café e parte da
Garagem (Figura 9). As demais edificações ou ruíram com o passar do tempo e a falta de
manutenção ou foram desmanteladas, tendo seus materiais construtivos como tijolos,
telhas e madeiras vendidos.

Earth, 2019; Elaborado pelo autor, 2019.

307
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O PATRIMÔNIO RURAL: PROSPECÇÕES ACERCA DA PRESERVAÇÃO


CONTEMPORÂNEA

Atualmente, essas fazendas que nasceram com a ascenção de um ciclo econômico,


seja ele o cafeeiro (como o estudo de caso), ou aquelas provenientes do ciclo do açucar,
sucumbiram com o término da atividade produtiva ao qual serviram. Hoje, essas proprie-
dades encontram muita dificuldade em auto-sustentar-se, principalmente pela ameaça
do agronegócio contemporâneo, vinculado com a mecanização da atividade produtiva.
Quando não garantem uma excepcionalidade como patrimonio rural, a ponto de se
tornar um hotel fazenda ou estar inserida em um roteiro de turismo rural, resta a essas
fazendas o abandono e a ruína.
No caso da Fazenda São João do Tibiriçá, as práticas capitalistas pautadas no valor
de troca fizeram com que os testemunhos materiais fossem desmantelados, arruinados
ou abandonados, fazendo com que hoje, tudo aquilo que representava uma fazenda cafe-
eira e garantia a transmissão da historicidade, dos métodos de cultivo, processamento,
do labor com o cultivo do café, das festividades e práticas sociais fossem perdidos, des-
virtuando o que poderíamos chamar do patrimônio intangível e do que realmente era
a “Companhia Agrícola Rio Tibiriçá”. Contudo, ressalta-se a importancia em preservar
a memória do que foi a Companhia Inglesa, o que ela representou como pertencente à
um ciclo econômico que fez parte da história do estado de São Paulo, a importancia que
exerceu para o município de Gália, dentre outros aspectos que podem ser transmitidos
através da educação patrimonial.
De acordo com o IPHAN, a educação patrimonial:
[...] constitui-se de todos os processos educativos formais e não formais
que têm como foco o Patrimônio Cultural, apropriado socialmente como
recurso para a compreensão sócio-histórica das referências culturais em
todas as suas manifestações, a fim de colaborar para seu reconhecimento,
sua valorização e preservação (IPHAN, 2014, p. 19).
Segundo Horta, Grunberg e Monteiro (1999, p. 4) a experiência e o contato direto
com as evidências e manifestações da cultura são os meios pelo qual se exprime o
conhecimento, apropriação e valorização; ressaltam que esse é um processo permanente
e sistemático no qual o Patrimônio Cultural é a fonte primária de conhecimento e enri-
quecimento pessoal e coletivo.
A transmissão de conhecimento é uma das premissas da educação patrimonial.
Um instrumento que merece destaque, cujo objetivo é o registro e documentação do
patrimônio é a inventariação. De acordo com Motta e Rezende (2016) deve-se valorizar o

308
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

potencial dos inventários como um meio de produção e acesso à informação, que funda-
mentam e viabilizam as novas concepções de bens culturais como patrimônio, baseado
em “critérios e procedimentos que permitam compartilhar o saber, refletindo o movi-
mento da sociedade e fidelidade ao texto constitucional em prol da democratização dos
processos de seleção e construção do patrimônio cultural” (MOTTA; REZENDE, 2016, p. 33).
A ativação do patrimônio através da potencialização de práticas existentes é uma
metodologia eficaz na preservação patrimonial pelo fato de ser sensível o bastante para
reconhecer aspectos e usos do espaço promovidos por quem o utiliza. Trazendo como
exemplo a Capela de São João, que hoje encontra-se em um estado de arruinamento;
parte destelhada, com as peças de madeira apodrecendo, vatrais quebrados, rachaduras
em algumas paredes, remetendo a um contexto de completo abandono. Duas aferições
é possível estabelecer pela análise de seu estado atual: o sentimento de pertencimento
e expressão de um significado é ausente por parte dos moradores da fazenda, pelo fato
de não existir qualquer evidência de que tem-se um cuidado com aquele edifício; outra
aferição é de que hoje o edifício foi transformado em um cenário, fotógrafos realizam
books e ensaios naquele edifício, igualmente se tornou um cenário por despertar a
curiosidade dos moradores da região que a visitam pelo aspecto misterioso daquela
arquitetura isolada na zona rural.
Emerge nesse discurso o papel do turismo rural na preservação desse bem. Para
Dias (2006) o turismo cultural apresenta um duplo aspecto: pode ser um meio pelo
qual se obtem fundos à preservação cultural ou como “ferrementa para proporcionar o
desenvolvimento econômico local, regional e até mesmo nacional” (DIAS, 2006, p. 36). No
entanto o autor pondera que se o bem não for atrativo aos visitantes é possível que “o
recurso sofra uma transformação a fim de tornar-se um produto turístico de qualidade
para ser ofertado ao mercado” (DIAS, 2006, p. 36); e é esse fator que mais ameaça a exis-
tência do patrimônio rural, pois é necessário um caráter de excepcionalidade que faça
com que os visitantes sintam-se atraídos a visita-los, e isto acaba por vezes alienando o
patrimônio à mercadoria, atribuindo-lhe aspectos que destitui de seu caráter original.
O turismo rural deve ser pensado como uma política de baixo para cima, conside-
rando as características locais e regionais para estabelecer os parâmetros e abrangências
desse recurso, além disso, considerar os impactos e os interesses sobre o patrimônio:
Afinal – já não é novidade – o património, entendido enquanto recurso
turístico serve os propósitos do desenvolvimento local e sustentável,
constituindo ao mesmo tempo a memória colectiva da população e um
potencial recurso para o seu futuro. Porém, só quando devidamente
planeada e inserida em estratégias integradas de desenvolvimento

309
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

regional e rural, é que a valorização do património poderá gerar frutos


que ultrapassem o mero interesse contemplativo e nostálgico de que o
mesmo, apesar de tudo, continua a ser alvo, de uma forma reducionista,
escondendo outras virtualidades. Convém ressalvar que tanto o patrimó-
nio rural, como o turismo – cultural e rural – não podem, não devem,
ser interpretados como as tábuas de salvação do mundo rural, ou por
outras palavras, não devem constituir a panaceia para os problemas
rurais. (ALVES, 2004, p. 48).
Ribeiro, Souto e Santos (2012) ao estudar as propriedades rurais do Rio Grande do
Sul destacam a integração das práticas de educação patrimonial com as de turismo
rural para a valorização do patrimônio cultural material e imaterial inseridos na zona
rural gaúcha:
No caso das propriedades rurais analisadas, a educação patrimonial é
utilizada como uma ferramenta. [...] Desta forma, a educação patrimo-
nial atua como um complemento à visita destas propriedades, tendo
em vista que a prática desenvolvida é sistemática e está incluída como
um turismo cultural rural (RIBEIRO, SOUTO, SANTOS, 2012, p. 267).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O município de Gália-SP, no qual pertence a Fazenda São João do Tibiriçá, vem


movimentando esforços para a criação de uma Lei Orgânica que faria o tombamento
pela chancela municipal da Capela de São João, o edifício religioso da antiga “Companhia
Inglesa”. A finalidade do projeto de lei é garantir também a arrecadação de fundos para o
restauro da Capela. É importante ressaltar a preocupação com esse tipo de intervenção,
tendo em vista que a preservação vai muito além da manutenção dos materiais, ademais,
os significados daquele local perdeu-se na passagem do tempo; com o abandono dos
moradores perdeu-se todo um modo de vida, costumes e celebrações características que
são rememoradas por alguns poucos ex-moradores que hoje habitam as cidades vizinhas.
Portanto, é necessário um cuidado desse projeto de restauro, que não imprima um falso
histórico sobre o bem, tampouco lhe atribua significados que nunca se fizeram presentes.
Outra preocupação acerca do restauro é o anseio apenas pela manutenção da forma,
desconsiderando um importante aspecto no âmbito da preservação patrimonial que é
o reconhecimento do patrimônio como patrimônio, conforme preconizado por Brandi
(2004, p. 28). É essencial que se faça a pergunta: “Restaurá-la para quem?” “Restaurá-la para
os moradores locais?” “Restaurá-la para os moradores da cidade?” Essa é uma questão que

310
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

merece uma reflexão cuidadosa: se por um lado, nos parece mais coerente preserva-la
para os moradores da zona rural, do entorno próximo na qual se implanta, é preciso ter
consciência sobre qual a relação daquelas pessoas com o espaço: “Elas utilizam aquela
Capela?”; tendo em vista que a maioria das pessoas que vivenciaram aquela fazenda,
hoje não habitam mais aquele espaço. Outro ponto, “Restaurar-se-á a Capela para per-
manecer como um edifício ao culto religioso para os moradores locais?” Essa questão é
igualmente polêmica, tendo em conta que o edifício era destinado ao catolicismo e em
nossa sociedade contemporânea há uma diversidade religiosa muito grande. Por outro
lado, a restauração que visa atrair as pessoas da cidade para a zona rural, com o intuíto de
visitação, pode ser danoso ao patrimônio ao passo que o alienará a um objeto de turismo,
museificando um tempo e podendo desprender a Capela de sua significação original.
Ressalta-se portanto a fragilidade que os métodos institucionais de salvaguarda,
baseados no tombamento e restauro, podem expor ao patrimonio rural, principalmente
os arruinados. Ademais, vislumbra-se essencial a integração com as práticas baseadas
na educação patrimonial, visando a aproximação e a criação de vínculos das pessoas
com aquele patrimônio, aliando às politicas de turismo rural pensado na escala local e
regional e integrando projetos de criação de uma agenda cultural municipal voltadas
à conscientização e valorização daquele patrimônio rural.

311
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

de um conceito. Cidades - Comunidades e Territórios. 2004, N. 8, pp. 35-52.


Disponível em: < https://revistas.rcaap.pt/cct/issue/view/586>. Acesso em: 08
abr. 2020.

Fazendas Paulistas
II. 2007. 667f. Tese (Doutorado-Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo) - Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo,
São Carlos, 2007.

BRANDI, Cesari. O conceito de restauração. In: BRANDI, Cesari. Teoria da


restauração. Tradução Beatriz Mugayar Kuhl; apresentação Giovanni Carbonara;

33.

Turismo e patrimônio
cultural: recursos que acompanham o crescimento das cidades. São Paulo:
Saraiva, 2006. pp. 35-66.

Revista de História,
São Paulo, v. 19, n. 40, p. 435-438, dez. 1959. Disponível em: <http://www.revistas.
usp.br/revhistoria/article/view/119804>. Acesso em: 18 fev. 2020.

GOMES, Alessandro. Sete seções, uma saudade... a história da Companhia


Agrícola Rio Tibiriçá – a Londrina que não deu certo. 1997. 80 f. Trabalho de
Conclusão de Curso (Bacharelado em Comunicação Social – Jornalismo) –
Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Câmpus de Bauru,
Bauru, 1997.

HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane


Queiroz. Guia básico da educação patrimonial. Brasília: IPHAN, Museu Imperial,
1999.

IPHAN. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília: Instituto


doPatrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2014.

MATOS, Odilon Nogueira de. Café e Ferrovias. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1974.
139p.

312
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

MONBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. Pierre Monbeig; tradução


Ary França e Raul de Andrade e Silva. São Paulo: Hucitec: Polis, 1984. 392p.

Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural.


2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016. ISBN 978-
857334-299-4.

inventariar bens patrimoniais. Resgate


53. Disponível em:< https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/resgate/
article/view/8645690/12990>. Acesso em: 04 dez. 2019.

Doces lembranças de
outrora
Joarte, 2001.

RIBEIRO, Marcelo; SOUTO, Claudia Buzatti; SANTOS, Eurico de Oliveira. A


valorização da memória e do patrimônio cultural como atrativos turísticos em
oropriedades rurais do Rio Grande do Sul. Revista Rosa dos Ventos. 2012, N. 4(II),
pp. 263-275.

UZAI, Marcelo Nivaldo. O fascínio do sonho inglês nos trópicos: Memórias sobre

(bacharelado) – FFC/ UNESP, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita


Filho”, Marília, 1996.

313
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

PIMENTEL, Letícia von Krüger


Arquiteta, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan
Doutoranda, Programa de Pós-Graduação em Urbanismo – Prourb/FAU/UFRJ
leticiavkp@gmail.com

314
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O presente artigo, originado das reflexões encaminhadas no ambito da pesquisa de doutoramento
em urbanismo, tem o objetivo principal de debruçar-se sobre o tema dos limiares e fronteiras
segundo as noções benjaminianas, contando com o auxílio de alguns de seus comentadores,
tradutores fundamentais para a compreensão do contexto de vida e do método de trabalho,
e construção do conhecimento do filósofo. O esforço é, portanto, o caminho de uma reflexão
sobre os conceitos que, transpostos para a cidade, deverão conduzir a leitura da morfologia das
áreas de estudo elencadas, as quais se localizam no encontro entre tecidos tradicionais e áreas
que passaram por grandes operações urbanas. Fixamos a atenção tanto sobre as “sobras” do
tecido urbano tradicional, fraturado pelos grandes projetos urbanos, quanto sobre as “sobras”
do novo projeto idealizado que não se constituiu por completo, em um jogo de forças e tensões
que se alonga pelo tempo e resulta em descontinuidades no tecido urbano.

PALAVRAS-CHAVE: Walter Benjamim. fronteira. limiar. morfologia urbana. preservação.

A BSTRACT
The present article rose from the reflections carried out in the scope of the doctoral research
in urbanism. Its main objective is to address the theme of thresholds and borders according
to Benjamin’s concepts, with the help of some of its commentators, important translators for
understanding the context of life and work methods, and the structure of the philosopher’s
knowledge. The effort is, therefore, the way to reflect on the concepts that, transposed to the
city, should lead the reading of the morphology of the listed study areas, which are located in
the meeting between traditional fabrics and areas that have undergone great urban renewing
interventions. We focus our attention both on the “leftovers” of the traditional urban fabric,
fractured by the great urban projects, and on the “leftovers” of the new idealized project that
was not fully constituted, in a game of forces and tensions that stretches over time and results
in discontinuities in the urban fabric.

KEYWORDS: Walter Benjamim. border. treshold. urban morphology. conservation.

RESUMEN
Este artículo, resultante de las reflexiones realizadas en el ámbito de la investigación doctoral
en urbanismo, tiene como objetivo principal abordar el tema de los umbrales y las fronteras, de
acuerdo con las nociones de Benjamin. Contamos con la ayuda de algunos de sus comentaristas,
traductores fundamentales para la comprensión del contexto de la vida y el método del filósofo

315
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de trabajar y construir conocimiento. El esfuerzo es, por lo tanto, la forma de una reflexión sobre
los conceptos que, transpuestos a la ciudad, deberían conducir a la lectura de la morfología de
las áreas de estudio enumeradas, ubicadas en la reunión entre tejidos urbanos tradicionales y
áreas que han sufrido grande renovación urbana. Centramos nuestra atención en los “restos”
del tejido urbano tradicional, fracturado por grandes proyectos urbanos, y en los “restos” del
nuevo proyecto idealizado que no estaba completamente constituido, en un juego de fuerzas y
tensiones que se extiende con el tiempo, y da como resultado discontinuidades en el tejido urbano.

PALABRAS-CLAVE: Walter Benjamim. frontera. umbral. morfología urbana. conservación.

INTRODUÇÃO

O presente artigo vincula-se à pesquisa de doutoramento desenvolvida no campo


do urbanismo desde 2017. Propõe-se verificar, sob o ponto de vista da morfologia urbana,
a constituição de fronteiras e/ou limiares refletidos na construção da cidade a partir da
atuação dos agentes do campo da preservação.
A percepção de que, apesar dos discursos e diretrizes adotadas no campo da pre-
servação desde a década de 1970, em posição consagrada pela Declaração de Amsterdã,
de 1975, e pela Carta de Washington de 1986, de que a preservação deva estar integrada
ao planejamento urbano, na prática, com poucas exceções, isso não aconteceu. Não
aconteceu em razão de que, quando atuando sobre a cidade, a exemplo do que ocorre
nas ações voltadas para a proteção dos objetos isolados, os agentes do campo da preser-
vação acabam circunscrevendo sua ação efetiva ao universo das práticas e valorações
dos objetos sob sua própria proteção.
Essas tensões acabam ficando mais evidentes em áreas de ruptura, nos limites de
perdas de molduras morfológicas (Larkham, 1996), nas margens de contextos onde se
manifestam os princípios do que Choay (2003 [1965]) categorizou por urbanismo progres-
sista e urbanismo culturalista. Fronteiras entre os sistemas de valor artístico e os sistemas
urbanos de caráter tecnicista (Sitte, 1889 apud Rossi, 1995 [1966], pp. 23). Lugares onde
não se percebe mais “a persistência do plano” (Rossi, idem, pp. 38). Ou seja, o que tenho
chamado de ambientes não controlados do ponto de vista da sua configuração urbana
física em contraposição aos ambientes de molduras morfológicas mais coesas. É desse
embate, inclusive, que surgiu, em grande parte, a ação de proteção de áreas históricas: da
ruptura que distingue a cidade tradicional da cidade moderna, reflexo do capitalismo
industrial que se instalou a partir de meados do século XIX, transformando as cidades,
as relações entre as pessoas, e dessas com o ambiente urbano.

316
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

No Brasil, grandes projetos de remodelação urbana empreendidos durante o Séc.


XX, em especial, na cidade do Rio de Janeiro, muitas vezes, configuraram e reforçaram
essas fronteiras na medida em que desconsideraram as pré-existências, seu ambiente, seu
contexto e, até mesmo, sua reintegração à cidade na costura com o novo tecido proposto.
Para além, alguns desses grandes projetos chegaram ao ponto de sugerir o descarte ou
a mutilação de objetos que seriam, mais tarde, reconhecidos como patrimônio ou a,
efetivamente, descartar bens patrimoniais já previamente protegidos.
Seguidamente, os projetos de remodelação que, muitas vezes, acabaram por pro-
mover a descontextualização de bens de valor patrimonial, geraram áreas de vazio que
permaneceram sem ocupação ao longo dos anos. Nesse sentido, cabe investigar, na
contramão, em que medida tais projetos de remodelação, por sua vez, tiveram dificul-
dades de se implementar por completo porque foram submetidos aos parâmetros de
proteção dos bens patrimoniais remanescentes ou, mesmo, à falta de tais parâmetros,
o que Borde (2006) denomina de vazio normativo[1] (resultante de uma ação ou de uma
omissão do Estado). Alguns desses projetos não puderam ser executados integralmente,
conforme previsto no seu ideário original, quando confrontados com um elemento
urbano a ser preservado.
Diante de tais observações, uma inquietação surgiu acerca dos resultados efetivos
originados nessas tensões e contra tensões estabelecidas no processo de fazer a cidade. O
que ocorre entre esses dois fragmentos? É possível que o contraste seja ameno? É possível
que os fragmentos estabeleçam algum tipo de continuidade?
Nesse sentido, o contato com a obra de Walter Benjamin acendeu um interesse pela
busca das experiências limiares, aquelas que se vinculam a dois campos diferentes e que
os conectam em alguma medida, permitindo uma transição mais suave entre um e outro.
Uma experiência mais lenta. Um movimento que permita apreender e compreender a
transformação e que parece muito bem se aplicar à experiência urbana sentida a partir
da forma como se confugiram seus espaços físicos.
Portanto, neste trabalho, pretende-se mergulhar sobre o tema dos limiares e fron-
teiras segundo as noções benjaminianas, contando com o auxílio de alguns de seus
comentadores, tradutores fundamentais para a compreensão do contexto de vida e do
método de trabalho e construção do conhecimento do filósofo. O esforço é, portanto,

[1] Importante destacar que, para a autora, a regulamentação de área pode, também, gerar
vazios normativos quando essa mesma regulamentação não responde à vocação do lugar,
como no caso dos Planos de Alinhamento vigentes na cidade do Rio de Janeiro a partir de

317
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

o caminho de uma reflexão sobre as noções de fronteiras e limiares, sendo esses os


princípios que vão conduzir, na pesquisa, a leitura da morfologia das áreas de estudo
na busca da compreensão sobre a manutenção das fronteiras ou sobre a constituição
de limiares a partir da atuação nos diferentes campos disciplinares.
Nesse sentido, admite-se a possibilidade de transformar fronteiras em limiares
(ou margens), e rupturas em espaços de transição a partir da atuação dos agentes, e de
maneira a mediar os interesses que constroem a cidade.

Ao observar a cidade moderna do início do século XX, com um especial interesse


pela compreensão do capitalismo e da velocidade com que as novidades se estabelecem,
é na expressão surrealista que Benjamin reconhece “as energias revolucionárias que trans-
parecem no ‘antiquado’ [...] nos objetos que começam a extinguir-se [...] nos locais mundanos
quando a moda começa a abandoná-los” (Benjamin, 1996, pp. 25).
Benjamin se afeta pela lógica do novo favorecida pela economia industrial e a
sociedade a ela vinculada, a qual busca incessantemente uma espécie de “prazer sádico
pelo novo” (OTTE et all, 2010), uma eterna repetição de experiências sob a capa da novi-
dade. Para Benjamin, a substituição veloz, a transição rápida entre um elemento e outro,
a obsolescência rápida do que ontem era novidade, resulta no fato de que acabamos
nos tornando “muito pobres em experiências limiares”. Sob a égide da sociedade moderna,
“[...] as experiências devem ser encurtadas ao máximo para não se perder tempo.” (GAGNEBIN,
2010, pp. 15).
A questão dos limiares figura na obra benjaminiana desde o texto Infância em Berlim
em 1900, da década de 1920, até o trabalho das Passagens[2], que o acompanhou até sua
morte em 1940. Os rituais de transformação da infância para a vida adulta ocupam lugar
nas reflexões sobre as transições de um ponto a outro, de um estágio a outro. Otte et all
(2010, pp. 7) destaca que o limiar agrega características de limite e passagem. Quando
passagem, “aponta para um deslocamento não apenas no espaço, mas também no tempo. Os
ritos de passagem consagram a superação de barreiras no tempo, representadas por obstáculos
no espaço” (GAGNEBIN, idem, pp. 13).

[2] Passagens é uma obra inacabada constituída de um conjunto de textos, comentários,


citações e fragmentos manuscritos encontrada após a Segunda Guerra na Biblioteca Nacional
de Paris. Tais fragmentos, só publicados em 1982, na edição de Tiedemann, foram coletados,
selecionados e produzidos por Benjamin entre os anos de 1927 e 1940, e seu volume V objeti-
vava subsidiar o projeto do livro sobre a cidade de Paris no século XIX.

318
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Os limiares benjaminianos se manifestam, também, em uma reflexão sobre a


necessidade de aplicação, no mundo concreto, cotidiano, da teoria surrealista do sonho,
que, para ele, também pode ser experienciada pelo ópio e pela embriaguez.
“Em todos os seus livros e iniciativas, a proposta surrealista tende ao
mesmo fim: mobilizar para a revolução as energias da embriaguez.
Podemos dizer que essa é sua tarefa mais autêntica. Sabemos que um
elemento de embriaguez está vivo em cada ato revolucionário, mas isso
não basta. Esse elemento é de caráter anárquico. Privilegiá-lo, exclu-
sivamente, seria sacrificar a preparação metódica e disciplinada da
revolução a uma práxis que oscila entre o exercício e a véspera da festa.
A isso se acrescenta uma concepção estreita e não dialética da essência
da embriaguez. [...] De nada nos serve a tentativa patética ou fanática
de apontar no enigmático o seu lado enigmático; só devassamos o mis-
tério na medida em que o encontramos no cotidiano, graças a uma ótica
dialética que vê o cotidiano como impenetrável e o impenetrável como
cotidiano. [...] a investigação mais apaixonada da embriagues produzida
pelo haxixe nos ensina menos sobre o pensamento (que é um narcótico
eminente) que a iluminação profana do pensamento pode ensinar-nos
sobre a embriagues do haxixe [...]” (Benjamin, 1994, pp. 32-33, grifo meu)
Segundo Tiedemann (2006 [1982]), os pólos da “armadura teórica de Benjamin” estão
caucados na teoria surrealista do sonho e na concepção do concreto. Para o autor, “no
campo e forças entre concreção e sonho, ocorre o primeiro esboço das Passagens” (TIEDEMANN,
2006 [1982], pp. 17). É, também, nessa transição entre o sonho e o despertar que Benjamin
situa o limiar.
“[...] – O limiar (Schwelle) deve ser rigorosamente diferenciado da fron-
teira (Grenze). O limiar é uma zona. Mudança, transição, fluxo estão
contidos na palavra schwellen [inchar, intumescer], e a etimologia não
deve negligenciar estes significados. [...]” (BENJAMIN apud GAGNEBIN,
2010, pp. 12)
O conceito de grenze remete a contextos jurídicos de delimitação territorial e deriva
dos termos limes, limits, ou seja, “caminho que borda um domínio” Schwellen, por sua vez,
vem de limen, liminis, linteau, ou seja, “viga ou lintel que sustenta as paredes da porta”
(GAGNEBIN, 2010, pp.14).
Para posicionar a discussão etimológica proposta por Benjamin, Gagnebin (2010,
pp. 13) circula pelas ideias de diversos pensadores que tratam o conceito de fronteiras
como contenção, evitando o transbordar de algo, sempre em contraposição a um infinito

319
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

incontrolável, desde Anaximandro – evitar que algo se derrame em direção a um infi-


nito onipotente –, passando por Platão – infinito informe, vago, até Hegel – um “mau
infinito”. A fronteira define limites “não só como contornos de um território, mas também
como limitações do seu domínio” (idem). A autora registra que, para Kant, é tarefa do pen-
samento estabelecer fronteiras, exercitar limitações e proibir ultrapassagens perigosas
ou falsas transcendências entre as áreas de conhecimento. (GAGNEBIN, 2010, pp. 13). Já
os limiares “tematizam a delimitação dos espaços e a questionam” (OTTE et all, 2010, pp. 7).
Ainda Gagnebin (idem, pp. 16), citando Van Gennep, aponta para a caracterização
de três tipos de ritos de passagem: separação (funerários), agregação (casamentos) e os
RITOS de MARGEM, que se assemelha à ideia de limiar.
“[...] Esses ritos designam rituais ligados a períodos marginais em rela-
ção aos estados mais longos, mas, simultaneamente, essenciais, porque
permitem atravessar um limiar, deixar um território estável e penetrar
num outro; são ligados à puberdade e, segundo Benjamin, também ao
nascer e ao morrer.” (grifo meu)
É essa noção de margem que vai ser apropriada por pesquisadores que estudam as
cidades e as relações estabelecidas nesses campos de tensão, onde os contrastes afetam
as partes simultaneamente. Essa alternativa de penetração mútua, de fluxos e contra
fluxos, nos leva à reflexão sobre as possibilidades de conciliação dos interesses que cons-
tituem o cotidiano das cidades, diferindo das práticas estabelecidas pelos embates que,
justamente, constituíram os contrastes que hoje observamos nessas mesmas margens.

De que forma as noções de fronteira e, especialmente, de limiar podem ser trans-


postas para a cidade? Fronteiras, limites e limiares são metáforas espaciais.
Por definição estrito senso, fronteira é uma “parte que corresponde ao limite extremo
de uma terra, área, região etc.” e, por extensão, é o “espaço contíguo a esse limite extremo”[3].
Para Zill, (2007 apud GAGNEBIN, 2010, pp. 13), “[...] designa a linha, cujo traço e cuja espessura
podem variar, que não pode ser transposta impunemente. Sua transposição sem acordo prévio
ou sem controle regrado significa uma transgressão, interpretada no mais das vezes como uma
agressão potencial”. (grifo meu)
Sobre o limiar, Gagnebin acrescenta:

[3] Dicionário Michaelis On Line, disponível em http://michaelis.uol.com.br/moderno-por-


tugues/busca/portugues-brasileiro/fronteira, acesso em 18/07/2018.

320
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

“[...] Na arquitetura, o limiar deve preencher justamente a função de


transição, isto é, permitir ao andarilho ou também ao morador que
possa transitar, sem maior dificuldade, de um lugar determinado a outro,
diferente, às vezes oposto. [...] o limiar não faz só separar dois territórios
(como a fronteira), mas permite a transição, de duração variável entre
esses dois territórios.” (2010, pp. 14)
Os casos que pretendemos observar entremeiam-se por vazios resultantes de espaços
residuais e conformados por restos de terreno oriundos de traçados desviados ou tra-
mas descontinuadas, denominados por Borde (2006) de vazios intersticiais. Apresentam
configurações diversas, mas, como limiares, podem ter extensões distintas.
As áreas de estudo demarcam o confronto dos fragmentos de ocupações urbanas
diferentes que, para Secchi (2006 [2000], pp. 117-118), são entendidos “como ruptura, como
aquilo que sobra de um todo precedente”. Nesse sentido, nos debruçamos tanto sobre as
“sobras” do tecido urbano tradicional (Figura 1), desprezado e fraturado pelos grandes
projetos urbanos, quanto sobre as sobras do novo projeto idealizado que não se consti-
tuiu por completo (Figura 2), em um jogo de forças e tensões que se alonga pelo tempo
e resulta em descontinuidades no tecido urbano. Tratamos das margens que, segundo
Rosa (2018, pp. 186) “não são inertes, as margens são instituintes de formas alternativas de
ação política”.

Figura 01 – trecho de prolongamento da avenida do Mangue até o Campo de Santana – con-


trastes entre o tecido tradicional remanescente no primeiro momento da demolição e a nova
via de escala monumental. Acervo: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Foto Uriel Malta
- 10/11/1941

NG.2030.6827.jpg, acesso em 04/08/2018

321
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 02 – Plano Aprovado de Loteamento – PAL nº 40.256, de 1985. Uma das inúmeras modi-

de mesmo nome, com o intuito de adequar os parâmetros urbanísticos à proteção do conjunto


arquitetônico tombado. Acervo: Secretaria Municipal de Urbanismo/PCRJ.
Disponível em http://www2.rio.rj.gov.br/smu/acervoimagens/GEP/6/25/PAL/04001.jpg, acesso
em 10/08/2019

Para além da fronteira de natureza física, agregamos, também, a noção de fronteira


paradigmática. Nesse sentido, reportamos a Sampaio (2016, pp. 208), em seu artigo que
analisa situações de conflito entre propostas de urbanização / preservação que tomaram
lugar nos arredores da Avenida Presidente Vargas na capital do Rio de Janeiro ao longo
de sua existência:
“Os casos examinados sintetizam o deslocamento conceitual dos modelos
de urbanismo e da noção de patrimônio cultural vigente ao longo do
processo histórico da cidade do Rio de Janeiro e, analogamente, do país.
O que esteve – e está − em jogo é a execução de projetos de cidade, sendo
proeminente, no período estudado, o projeto de cidade moderna, à custa
da renovação da cidade existente.”
Os vazios que se configuram entre os dois pólos se apresentam como áreas de pos-
sibilidades de transição entre uma configuração e outra. Entretanto, ainda se verifica
a permanência dos vazios e, logo, das disputas que se refletem na manutenção de tal
forma urbana. Trata-se daquilo que se situa “entre” duas categorias.
“[...] Designa essa zona intermediária à qual a filosofia ocidental opõe
tanta resistência, assim como o chamado senso comum também, pois na

322
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

maioria das vezes, preferem-se as oposições demarcadas e claras (mas-


culino/feminino, público/privado, sagrado/profano, etc.), mesmo que se
tente, mais tarde, dialetizar tais dicotomias.” (GAGNEBIN, 2010, pp. 15)
O que se pretende é verificar até que ponto tais dicotomias perseveram e em que
medida as ações dos agentes de preservação sobre a cidade estão tratando a ideia de
conciliação, seja no campo da forma, seja no campo do discurso que embasa suas deci-
sões. A cidade é, também, o lugar da disputa e do conflito, mas a noção de limiar permite
promover, se não a conciliação absoluta, ao menos, um equilíbrio de forças entre os
diversos interesses. Nesse sentido, Rizek (2012, pp. 34) aponta para uma “zona cinzenta
que funde categorias e mistura oposições” um lugar, como dito, de fluxos e contra fluxos.
Relativamente à morfologia urbana, a partir de sua compreensão como uma inten-
ção imprensa no território, essa poderá ser apreendida, tanto nos fundamentos que
embasam as decisões de ocupar ou não um determinado local no território, quanto no
resultado formal de tais decisões, e como se relacionam com a vida cotidiana da cidade.
Diante disso, para as análises a serem empreendidas no âmbito da tese, essas
noções deverão ser rebatidas em critérios de análise da morfologia da cidade, conforme
estabelecido pelos princípios norteadores do International Seminar on Urban Form – ISUF,
que representa um esforço iniciado a partir da segunda metade da década de 1990 para
propor a delimitação de um campo de estudo que considere a abordagem da forma da
cidade a partir da compreensão das ações dos agentes que sobre ela atuam. Nesse sentido,
Moudon (2015 [1997], pp. 45) localiza a morfologia urbana para além do estudo da forma,
propondo que a leitura da cidade seja baseada em três componentes fundamentais:
“i. A forma urbana é definida por três elementos físicos fundamentais:
edifícios e os espaços abertos relacionados com estes, parcelas ou lotes,
e ruas.
ii. A forma urbana pode ser compreendida em diferentes níveis de reso-
lução. Normalmente, reconhecem-se quatro níveis, que correspondem
ao edifício/parcela, à rua/quarteirão, à cidade, e à região.
iii. A forma urbana só pode ser compreendida na sua dimensão histórica
uma vez que os elementos que ela compreende sofrem uma contínua
transformação e substituição.”
Pretende-se, portanto, aliar os conceitos benjaminianos em seu potencial de metá-
fora espacial, ao método de leitura morfológica nas áreas de margens entre tecidos urba-
nos, a partir da compreensão da ação dos agentes do campo da preservação. As observações
serão empreendidas em zonas da área central surgidas e conformadas segundo os ideias

323
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de renovação urbana vigentes na primeira metade do século XX: Esplanadas do Castelo


(Figuras 3 e 4) e Santo Antônio (Figuras 5 a 8), e Avenida Presidente Vargas (Figuras 9 e
10), cujas configurações oferecem inúmeras possibilidades de análise.

Figura 3 – Esplanada do Castelo inserida na malha urbana atual. Em amarelo, marcação apro-
ximada do perímetro do antigo Morro do Castelo evidenciando as áreas de fronteiras criadas
entre a ocupação tradicional e a nova urbanização.
Fonte: Google Earth, Mar/2020. Tratamento sobre imagem: Letícia von Krüger Pimentel

Figura 4 – Esplanada do Castelo poucos anos após o desmonte do Morro, por volta de 1930.
Acervo: Biblioteca Nacional.

icon855564.html, acesso em 11/08/2015

324
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5 – Esplanada de Santo Antônio inserida na malha urbana atual. Em amarelo, marcação
aproximada do perímetro do antigo Morro de Santo Antônio evidenciando as áreas de fronteiras
criadas entre a ocupação tradicional e a nova urbanização.
Fonte: Google Earth, Jul/2019. Tratamento sobre imagem: Letícia von Krüger Pimentel

Figura 6 – Aspecto geral dos remanescentes do Morro de Santo Antônio e a urbanização que
o rodeia nos dias atuais, destacando-se os jardins de Burle Marx ocupando a área entre o
Convento e o BNDES.
Fonte: Google Earth, acesso em Jul/2019

325
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figuras 7 e 8 – Aspecto do tratamento paisagístico dos remanescentes do Morro de Santo


Antônio, aos fundos do conjunto arquitetônico tombado, onde se situa o terreno em análise.
Fonte: Google Earth, acesso em Jul/2019

Figura 9 – Tecido urbano tradicional nas imediações da Igreja da Candelária com demarcação,
em vermelho, do trecho previsto para demolição para abertura da Avenida Presidente Vargas.
Acervo: Biblioteca Nacional.

icon855564.html, acesso em 11/08/2015

326
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 10 – Panorama do Centro do Rio de Janeiro tendo por foco a área de demolição para
a abertura da Avenida Presidente Vargas com a Igreja da Candelária em destaque à frente.
Acervo: Museu Aeroespacial
Disponível em http://multirio.rio.rj.gov.br/index.php/estude/historia-do-brasil/rio-de-janei-
ro/66-o-rio-de-janeiro-como-distrito-federal-vitrine-cartao-postal-e-palco-da-politica-nacio-
nal/2920-as-realizacoes-de-pedro-ernesto-e-de-outras-administracoes, acesso em Abr/2019.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fronteira, limite, margem, limiar. Gagnebin (2010, pp. 14) pontua que todos aludem
à separação entre dois domínios do real. Entretanto, “esquece-se facilmente que o limiar não
significa somente separação, mas também aponta para um lugar e um tempo intermediários
e, nesse sentido, indeterminados [...]” (idem, pp. 14-15).
Os tecidos separados sobre os quais nos debruçamos, surgidos de um embate de
visões de mundo opostas, em um período que refletia, ainda, a vigência das dicotomias,
das especialidades, quando se buscava a delimitação assertiva de fronteiras e campos
de conhecimento, acabaram por justificar práticas que favoreceram a permanência dos
fragmentos contrastantes na área central do Rio de Janeiro.
Entretanto, considerando que já nos afastamos o suficiente no tempo para superar
os confrontos e a negação que tais disputas representaram no momento de sua enun-
ciação, não há porque não considerar as possibilidades de tais vazios configurarem

327
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

limiares. Ou seja, de conformarem, potencialmente, uma transição, uma costura que


possa dotar de coesão o tecido fragmentário desses locais.
Calcada nas experiências limiares de Benjamin, nos tempos lentos de transição
suave entre polos opostos, busca-se analisar e, quem sabe, qualificar a experiência urbana
promovida pela junção e fusão do tecido patrimonial protegido à permanente e cons-
tante dinâmica urbana.

328
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – WALTER BENJAMIN

Passagens

________ Rua de Mão Única. Obras escolhidas, volume II, 2ª edição, São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987;

In
Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas, volume I, 7ª edição, São Paulo:
Editora Brasiliense, 1994;

das Passagens”. , (3),

view/64749/67366, acesso em Fev/2020;

GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Entre a vida e a morte”. In


Sabrina & CORNELSEN, Elcio (org.)]. Limiares e Passagens em Walter Benjamin.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, pp. 12-26;

& CORNELSEN, Elcio (org.)]. Limiares e Passagens em Walter Benjamin. Belo


Horizonte: Editora UFMG, 2010, pp. 27-75;

Limiares e
Passagens em Walter Benjamin. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010;

Revista Redobra,

redobra.ufba.br/wp-content/uploads/Redobra_10.pdf, acesso em mar/2019;

ROSA, Thais Trocon. Pensar por margens. In [JACQES, Paola Berenstein & PEREIRA,
Margareth] : tomo I – modos de pensar.
Salvador: EDUFBA, 2018, pp. 176-204

TIEDEMANN, Rolf. Introdução à edição alemã. Tradução: Irene Aron. In [BENJAMIN,


Passagens

13-33;

329
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS – OUTRAS

Vazios urbanos: perspectivas


contemporâneas. 226f. Tese de doutorado – Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo – UFRJ. Rio de Janeiro, 2006. 2006.

O urbanismo
Paulo: Editora Perspectiva, 2003 [1965];

Cartas Patrimoniais. 3ª ed. rev. aum. – Rio de Janeiro: Iphan,


2004;

FRONTEIRA, in Dicionário Michaelis On Line. Disponível em http://michaelis.uol.


com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/fronteira, acesso em
jul/2018;

LARKHAM, Peter. Conservation and the city. 1ª ed. Londres: Routledge, 1996;

LUNGO, Mario. “Grandes Proyectos Urbanos: desafíos para las ciudades latino-
americanas”.

index, acesso em Jun/2018;

emergente” , 2015 [1997]. Disponível em https://pnum.fe.up.pt/pt-pt/


assets/pdf/rmu/rmu-3-1_moudon.pdf, acesso em jan/2019;

PANERAI, Philippe. Tradução Francisco Leão. Brasília: Editora


Universidade de Brasília, 2006;

ROSSI, Aldo. A Arquitetura da cidade. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo:


Martins Fontes, 1998 [1966].

SAMPAIO, Andrea da Rosa. “Um olhar sobre a história do urbanismo da Área


Central do Rio de Janeiro: entre a renovação e a conservação”. Revista do Arquivo
Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Disponível em http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj, acesso em ago/ 2018

SECCHI, Bernardo. Primeira lição de urbanismo. Tradução: Marisa Barda e Pedro


M. R. Sales. São Paulo: Perspectiva, 2006 [2000];

________ A cidade do século XXI. Tradução: Marisa Barda. São Paulo: Perspectiva,
2016 [2005];

330
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

SITTE, Camilo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos [1ª
edição austríaca: 1889]. Tradução Ricardo Ferreira Henrique. São Paulo: Ática,
1992.

331
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INSERÇÕES: REABILITAÇÃO
E CENOGRAFIA NA OBRA DE
JOÃO MENDES RIBEIRO
INSERTIONS: REHABILITATION AND CENOGRAPHY

INSERCIONES: REHABILITACIÓN Y CENOGRAFÍA

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

DURAN, Nathalia Valença


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
Mestrado; professora orientadora Dra. Marta Bogéa
bolsista FAPESP e CAPES (número do processo 2018/12100-3)
nathalia.vduran@gmail.com

332
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A reabilitação, enquanto prática arquitetônica, ocorre a partir da leitura atenta e do reconhe-
cimento da preexistência, entendida aqui como o pressuposto e a premissa do projeto. Este
ensaio pretende analisar, a partir do projeto de João Mendes Ribeiro (Coimbra, 1960), como
o arquiteto reconhece o edifício e estabelece diretrizes, com base na relação entre arquitetura
e cenografia. Busca-se, dessa forma, investigar como é possível, com base no questionamento
do espaço previamente dado, lidar com tempos sobrepostos. Para tanto, foi escolhida a obra
Centro de Artes Visuais (1997-2003, Coimbra), projeto de intervenção que enfrenta essa ques-
tão, mantendo reconhecível a preexistência. A análise se dá atenta à repercussão do raciocínio
empregado na cenografia sobre a materialidade do projeto de arquitetura, tendo em vista as
estratégias que distingue as ações desta intervenção. Nesse contexto, o ensaio busca tatear e
compreender os recursos teóricos e metodológicos que possibilitaram a relação e influências
recíprocas entre esses campos – restauro, arquitetura e cenografia. Recorrendo aos escritos de
João Mendes Ribeiro (2008, 2018), bem como a autores que analisam essa intervenção, Manuel
Graça Dias e Susana Ventura (2003) e Désirée Pedro (2011), busca-se reconstituir o percurso de
elaboração do projeto, reconhecendo a estratégia que reinterpreta o que está previamente dado.

PALAVRAS-CHAVE: arquitetura contemporânea portuguesa. intervenção em preexistência. João


Mendes Ribeiro. interdisciplinaridade.

A BSTRACT
Rehabilitation, as an architectural practice, occurs through careful reading and the recognition
of pre-existence, understood here as the project’s premise and premise. This essay intends to
analyze, based on João Mendes Ribeiro’s project (Coimbra, 1960), how the architect recognizes
the building and establishes guidelines, based on the relationship between architecture and
scenography. In this way, we seek to investigate how it is possible, based on the questioning
of the space previously given, to deal with overlapping times. To this end, the work Centro de
Artes Visuais (1997-2003, Coimbra) was chosen, an intervention project that addresses this
issue, keeping the pre-existence recognizable. The analysis is attentive to the repercussion of
the reasoning used in the scenography on the materiality of the architectural project, conside-
ring the strategies that distinguish the actions of this intervention. In this context, the essay
seeks to grasp and understand the theoretical and methodological resources that enabled
the relationship and reciprocal influences between these fields - restoration, architecture and
scenography. Using the writings of João Mendes Ribeiro (2008, 2018), as well as authors who
analyze this intervention, Manuel Graça Dias and Susana Ventura (2003) and Désirée Pedro
(2011), we seek to reconstruct the project’s development path, recognizing the strategy that

333
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

reinterprets what is previously given.

KEYWORDS: portuguese contemporary architecture. pre-existing intervention. João Mendes


Ribeiro. interdisciplinarity.

RESUMEN
La rehabilitación, como práctica arquitectónica, ocurre a través de la lectura cuidadosa y del
reconocimiento de la preexistencia, entendida aquí como la premisa y premisa del proyecto.
Este ensayo pretende analizar, basándose en el proyecto de João Mendes Ribeiro (Coimbra,
1960), cómo el arquitecto reconoce el edificio y establece pautas, basadas en la relación entre
arquitectura y escenografía. De esta forma, buscamos investigar cómo es posible, a partir del
cuestionamiento del espacio dado anteriormente, lidiar con tiempos superpuestos. Con este fin,
se eligió el trabajo Centro de Artes Visuais (1997-2003, Coimbra), un proyecto de intervención
que aborda este tema, manteniendo reconocible la preexistencia. El análisis está atento a la
repercusión del razonamiento utilizado en la escenografía sobre la materialidad del proyecto
arquitectónico, considerando las estrategias que distinguen las acciones de esta intervención.

En este contexto, el ensayo busca comprender y comprender los recursos teóricos y metodológi-
cos que permitieron la relación y las influencias recíprocas entre estos campos: restauración,
arquitectura y escenografía. Utilizando los escritos de João Mendes Ribeiro (2008, 2018), así
como los autores que analizan esta intervención, Manuel Graça Dias y Susana Ventura (2003) y
Désirée Pedro (2011), buscamos reconstruir el camino de desarrollo del proyecto, reconociendo
La estrategia que reinterpreta lo que se ha dado previamente.

PALABRAS-CLAVE: arquitectura contemporánea portuguesa. intervención preexistente. João


Mendes Ribeiro. interdisciplinariedad.

INTRODUÇÃO

A prática arquitetônica lida constantemente com contextos previamente dados e


será estudada aqui a partir da reabilitação do Centro de Artes Visuais de Coimbra (1997-
2003), cujo projeto é do arquiteto português João Mendes Ribeiro[1] (Coimbra, 1960). A

[1] O seu trabalho foi reconhecido e premiado em diversas instâncias, entre as quais se
destacam: AR awards for emerging architecture, 2000 (Londres); Prêmio Diogo de Castilho
2003, 2007, 2011 e 2017 (Coimbra); Prêmio FAD 2004 na categoria Interiorismo e Prêmio FAD

International Exhibition of Scenography and Theatre Architecture – Prague Quadrennial 2007

334
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ação em preexistência pressupõe um processo de reconhecimento, reposicionamento


e convivência. Nesse sentido, o foco deste ensaio é a intersecção entre a arquitetura, a
cenografia e suas recorrências, buscando analisar como cada uma delas interfere sobre
as estratégias de projeto do arquiteto.
João Mendes Ribeiro (JMR) tem atuação relevante tanto no campo da reabilitação,
da arquitetura, quanto da cenografia, áreas que mantém em paralelo desde o início
de sua atividade profissional. Mendes Ribeiro graduou-se, em 1986, pela Faculdade de
Arquitectura da Universidade do Porto (FAUP) e, em 2008, obteve seu doutorado em Arqui-
tetura na Universidade de Coimbra, onde leciona desde 1991. O conjunto de suas obras
está intimamente ligado à interdisciplinaridade e encontra-se, sobretudo, na região de
Coimbra, onde estabeleceu seu atelier. Na produção arquitetônica de JMR, a reabilitação
é significativa, representa 90% do trabalho do atelier, o que torna a preexistência deter-
minante, enquanto matéria do próprio projeto (RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.53).
O projeto do Centro de Artes Visuais (1997-2003, Coimbra)[2] é uma obra exemplar no
contexto das obras de Mendes Ribeiro, que lida com o restauro a partir de intervenções
pontuais que trazem implícitas premissas e estratégias da cenografia. Busca-se, dessa
forma, compreender os estímulos e os recursos metodológicos que impulsionaram
o reconhecimento e a subsequente ressignificação do que estava previamente dado.

(Praga); Prêmio BIAU – Bienal Ibero Americana de Arquitectura e Urbanismo - 2012 (Cádiz)
e 2016 (São Paulo); RIBA Award for International Excellence 2016 (Londres); foi selecionado
no European Union Prize for Contemporary Architecture – Mies Van Der Rohe Award 2001 e
2015 (Barcelona); recebeu, em 2007, o prêmio AICA da Associação Internacional de Críticos de
Arte/Ministério da Cultura, atribuído pelo conjunto da sua obra. Foi também objeto de várias

Projectos 1996/03” (ASA, 2003), “Stop and Start Again” (XM, 2003), “JMR 92/02, Arquitectura e

Mendes Ribeiro”, colecção “Arquitectos Portugueses” (Quidnovi, 2011), “João Mendes Ribeiro,

2016). Informações retiradas do currículo online, disponível em <https://www.dgartes.gov.pt/


qp07/dossier_de_artista_jmr.pdf> Acesso em 12 de junho de 2017.

[2] Este projeto recebeu diversos prêmios e distinções: Prêmio Municipal de Arquitectura Diogo
de Castilho, edição 2003, Coimbra; Primeiro Prêmio FAD d’Arquitectura i Interiorisme (Barcelona,
2004); Finalista da IV Bienal Iberoamericana de Arquitectura e Enxeñería Civil, Lima (Peru, 2004);
Nomeado para o European Union Prize for Contemporary Architecture – Mies Van Der Rohe

htm>. Acessado em 14 de julho de 2017.

335
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Investiga-se, assim, as possíveis relações entre o projeto de reabilitação e a cenografia,


como possíveis respostas ao edifício existente e a adaptação ao novo uso.

CENTRO DE ARTES VISUAIS

Projeto (1997-2003) de requalificação do antigo Colégio das Artes e as sucessivas


modificações sofridas ao longo do tempo. Foi decorrente de um concurso público pro-
movido pela Câmara Municipal de Coimbra, cuja proposta selecionada foi a de JMR e sua
equipe, em 1997 (VETRONE, 2016, p.38). O programa de intervenção a que se insere este
projeto pressupunha a reabilitação da ala oeste deste edifício, além de abarcar, numa
escala mais urbana, a recuperação do espaço público das áreas envolventes ao Colégio
das Artes (FIGUEIRA, 2003, p.1).
O edifício, localizado na parte baixa de Coimbra, junto ao Pátio da Inquisição,
apresenta diversas camadas temporais, por ter sido progressivamente modificado, em
resposta a diferentes programas ao longo de sua história (RIBEIRO, 2008, p. 186). Segundo
Désirée Pedro (2011, p. 31), o edifício foi construído em 1548, em plena reforma renas-
centista da Universidade de Coimbra, a partir da reformulação do Colégio de Todos os
Santos e do Colégio de São Miguel, com projeto de Diogo de Castillo[3], para funcionar
como Colégio das Artes. Esse, em 1566, foi transferido definitivamente para a Alta de
Coimbra, deixando o edifício e passando a ocupar o prédio onde atualmente se encontra
o Departamento de Arquitetura da Universidade de Coimbra (DIAS, 2008, p.212). Nessa
ocasião, o edifício construído para abrigar o Colégio das Artes foi ocupado pelo Tribunal
do Santo Ofício até sua extinção, em 1821, decorrente da Revolução Liberal. Este período
em que o edifício foi ocupado pelo Tribunal foi marcado por sucessivas modificações,
devido à ampliação de suas instalações e à construção de cárceres, celas, salas de tortura
e tribunais (VETRONE, 2016, p.30).
Ao longo dos séculos XIX e XX, o edifício foi ocupado pela Guarda Nacional Repu-
blicana, por diversos serviços públicos, e alguns de seus espaços foram convertidos em

[3] Existem divergências sobre a história e o projeto original do Colégio das Artes. Supõe-se
que o primeiro projeto tenha sido executado por João de Ruão, a pedido do erudito André de
Gouveia (DIAS, 2008, p.212), mas que o mesmo tenha sido negado pelos arquitetos da Corte
e a obra entregue ao arquiteto Diogo de Castilho, a quem se atribui a autoria das arcadas
(VETRONE, 2018, p.40) e das colunatas de ordem jônica. Segundo Maria de Lurdes Craveiro
(2006, p.53), parece haver evidências, a partir de coleta documental, de que o projeto de João
de Ruão tenha sido em grande parte seguido por Diogo de Castilho.

336
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

habitações por particulares (RIBEIRO, 2008, p. 186). Em 1935, parte do imóvel foi recuperado
para instalação da Casa dos Pobres, que aí permaneceu até final do século XX, quando o
piso térreo passou a funcionar como estacionamento e garagem.
Nesse sentido, pode-se perceber que a preexistência se caracteriza como um palimp-
sesto, cuja história é fragmentada e difusa e da qual a nova intervenção de JMR faz parte,
a partir de diversas alterações que foram ocorrendo ao longo do tempo para atender às
demandas de cada período e aos programas que o edifício incorporou.
Em 1996, JMR teve seu primeiro contato com o edifício, na ocasião de uma insta-
lação nas Celas do Pátio da Inquisição para a exposição “Céu e Inferno” de Joel-Peter
Witkin, no âmbito dos Encontros de Fotografia de Coimbra (PEDRO, 2011, p. 32), insta-
lação que se relacionava diretamente com as descobertas arqueológicas e vestígios do
período em que o Tribunal da Inquisição ocupou o edifício. Nessa ocasião, o arquiteto
projetou um plano com gradil, permeável e leve, que permitia a visualização das áreas
de escavações, pavimento em que se encontravam as fotografias do artista em questão
(VETRONE, 2016, p.34).
Em 1997, a Câmara Municipal de Coimbra propôs o concurso para a reabilitação
do edifício do Colégio das Artes, com um programa que se limitava ao piso térreo e
abarcava usos ligados ao Centro de Artes Visuais e à Companhia de Teatro Escola da
Noite (VETRONE, 2018, p.35). Diante disso, Mendes Ribeiro e sua equipe identificaram que
o programa e os objetivos da intervenção pedida não eram compatíveis com o espaço
físico preexistente (RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.56-57), constatação que partiu do
levantamento físico e histórico da edificação. E, como consequência dessa releitura,
definiram as estratégias e propuseram uma readequação do programa: o alargamento
das áreas do CAV, que passaria a ocupar o piso térreo e também o superior, e a sugestão
de transferência do programa da Companhia de Teatro Escola da Noite[4] para outro
local (VETRONE, 2018, p.35).
Posição de interpretação e questionamento sobre a correspondência do programa
pedido ao edifício que evidencia o papel do antigo edifício e de suas características físicas

[4] A companhia de Teatro Escola da Noite, criada em 1992, foi transferida para o Teatro da
Cerca de São Bernardo, em setembro de 2008, depois de ter adaptado a antiga garagem do
Pátio da Inquisição, durante o processo de projeto e obra do CAV (onde permaneceu entre

Luís Durão, é, atualmente, sede da companhia. (fonte: http://www.aescoladanoite.pt/paginas/


030-QUEMSOMOS.html acessado em 23 de novembro de 2018)

337
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

(RIBEIRO, 2018, entrevista in DURAN, 2020, p.56-57), ajuste e adequação que tem síntese
e distinção típica recomendada pelos pensadores de patrimônio, tais como explicita
Beatriz Kühl, para quem:
Deveriam, pois, ser analisadas as características da obra a serem respei-
tadas e conservadas, para, depois, definir funções e programas compa-
tíveis com elas, e não o contrário, adaptar um dado edifício a um novo
uso preestabelecido ou submetê-lo a transformações massificadas,
na maioria das vezes em desacordo com suas particularidades, cuja
implementação será feita em prejuízo do próprio monumento histórico
(KÜHL, 2007, p.204).
Essa reinterpretação do programa permitiu uma releitura dos espaços do antigo
edifício e a inclusão de outros usos pertinentes. A intervenção procura, dessa forma,
rever a linguagem e a escala das construções anteriores, reconhecendo seus valores
intrínsecos, no contexto de uma ação contemporânea (Figuras 01 e 02). O novo programa
é composto por uma galeria para exposições temporárias, sala para projetos em vídeo,
biblioteca, reservas para a coleção, laboratório digital, laboratórios de fotografia, salas
de formação, escritórios, ocupando uma área de 1500 m2 no total[5].
A adequação do edifício ao novo programa museológico ocorre mediante a operação
de inserção, estratégias ligadas a flexibilidade e um volume cuja presença é, simultane-
amente, plástica e funcional (RIBEIRO, 2008, p.195).

[5] Descrição disponível em: http://cav-ef.net/cav_sobre%20nos_cav_centro%20artes%20


visuais.htm acessado em 23 de novembro de 2018

338
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Planta térreo Centro de Artes Visuais, Coimbra. Fonte: João Mendes Ribeiro, 2018.

Figura 2: Planta primeiro pavimento Centro de Artes Visuais, Coimbra. Fonte: João Mendes
Ribeiro, 2018.

339
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Aqui, quatro subcasos elucidam a transferência da lógica teatral e metodologia


empregada na cenografia para o espaço da arquitetura e do edifício (TÉRCIO, 2007 in
RIBEIRO, 2007, p.45): as paredes pivotantes (Figura 03), que funcionam simultaneamente
como divisórias e expositores e que possibilitam mutações do espaço; o piso de madeira,
organizado em quarteladas[6], como o piso de um palco; a passarela metálica projetada
na estrutura do telhado, e, finalmente, os elementos autônomos do primeiro andar.
Os painéis pivotantes projetados no térreo, associados à estrutura de pilares fun-
didos preexistentes, têm um papel fundamental na concepção espacial, por permitirem
flexibilidade e dinâmica, propícias a uma área expositiva. Essas paredes têm escala
condizente ao edifício, projetadas com a altura do pé direito do pavimento em que se
insere, podem criar uma sequência de pequenas salas, dois longos corredores ou um
espaço resultante da variação dessas possibilidades, dando a cada exposição um caráter
diferente de acordo com as necessidades. Estes painéis móveis têm uma estrutura em
metal e compensado, de maneira a garantir a resistência necessária à função expositiva,
e são forrados com gesso cartonado para ocultar as juntas, pela facilidade na montagem
e desmontagem, para furar e corrigir os furos (FILIPE, 2005, p.16).

Figura 3: Painéis pivotantes, térreo. Fonte: Nathalia Duran, 2018.

[6] Quarteladas são os tampos de madeira que compõe o piso de um palco, permitindo que
se possa abrir para dar acesso a alçapões. Fonte: <http://www.ctac.gov.br/teatro/sosgloss.htm>
Acesso em 15 de julho de 2018.

340
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O sistema de quarteladas no piso térreo permite, em alguns pontos, o acesso às


antigas celas do Tribunal do Santo Ofício e aos vestígios arqueológicos encontrados
durante as escavações efetuadas no início da década de 90. O projeto deste piso foi pen-
sado para possibilitar a fácil desmontagem, por meio de uma estrutura de encaixes, que
não toca o piso original.
A passarela metálica tem destaque por sua implantação, que traz uma nova visão
à estrutura da cobertura de duas águas do edifício, formada por tesouras e terças que
ficaram descobertas depois da intervenção do arquiteto. O material empregado aqui
e também na escada de acesso ao primeiro pavimento, grade metálica, é relevante por
permitir a permeabilidade visual e da luz.
No primeiro pavimento, as estratégias perpassam por objetos inéditos inseridos
que reorganizam o espaço dado: um volume autônomo de madeira que contém os labo-
ratórios de fotografia, arquivo e sala de montagem em contraposição a uma sequência
de espaços separados por estantes (RIBEIRO, 2008, p.190), que se conformam em áreas de
trabalho, biblioteca e espaços expositivos. Esta divisão entre duas áreas parte da opção
por manter o eixo estabelecido por uma parede estrutural: de um lado, a caixa abstrata
que contém os laboratórios, como um elemento inerte – seguindo as condições técnicas
apropriadas - e do outro, a sequência de estantes destacadas do edifício por frestas de
cerca de 30cm, que conectam os espaços entre si. A partir das espessuras obtidas, essas
estantes vão ganhando corpo (RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.59), e respondem à escala
do edifício conforme se colocam no espaço de maneira ritmada.
Neste pavimento, outro elemento merece destaque: um lanternim (Figura 04),
releitura dos dois outros já existentes, encontrados durante o processo de reabilitação
(RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.59). É interessante observar o desenvolvimento deste
objeto (Figura 05), que se configura também como mobiliário: uma pequena prateleira,
um banco – criado a fim de aumentar a base e estabilizar a estrutura do objeto – e um
armário, em que se localizam áreas técnicas do edifício. JMR explica esse processo:
Na altura, havia aqui um corredor sem luz natural, percebia-se que
havia aqui o vidro, mas não se entendia o que era, devido a uma camada
de sujeira que não deixava luz nenhuma passar. Eram dois lanternins
que nós descobrimos quando tiramos o teto [...] Uma das alterações
propostas foi retirar o teto e deixar tudo a vista e a outra foi fazer uma
réplica do lanternim aqui, existia já um lanternim, mas não tinha esse
desenho, porque existia aqui um teto falso. [...] Esta peça foi redesenhada
em função desses lanternins, ao retirar o teto fiz essa caixa autônoma.

341
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

As descobertas em obra fazem retomar as coisas, dar outro sentido às


coisas. (RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.59)
Este elemento foi criado para trazer iluminação natural para a área de circulação
vertical proposta, com escada projetada em grade metálica, que permite que a luz alcance
o térreo, onde se encontra a área da recepção. Decorrente desse intuito o acabamento
em seu interior é branco e liso, a fim de garantir a reflexão da luz, o que contrasta com o
exterior, em que a estrutura de madeira é aparente (RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.58).

antigos lanternins em primeiro plano, à esquerda. Fonte: Nathalia Duran, 2018.

342
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

C R OS S -S E C T ION OF T HE S T A IR WE L L / S K Y L IG HT A ND A C C E S S T O T HE T E C HNIC A L G A L L E R Y

0 1 2m

Figura 5: Corte transversal, com os desenhos do elemento autônomo do lanternim. Fonte: João
Mendes Ribeiro, 2018.

Este projeto realiza a reconversão por meio de novos aparatos (Figura 06), que
são próximos da ideia de mobiliários. Dispositivos autônomos, considerados, aqui,
elementos independentes, volumes quase que autossuficientes que, quando colocados
em um determinado contexto, articulam os espaços e os usos, reinventando a potência
desses espaços previamente dados e que, por outro lado, deixam claras as relações com
a reversibilidade. Essa ressignificação decorrente da inserção desses elementos, cria
uma nova relação possível com a preexistência, matéria para releitura e cruzamentos.
A unidade deste projeto é alcançada mediante uma linguagem que se constitui pelo
conjunto desses novos elementos.
Esses elementos podem ser considerados uma matriz comum à concepção ceno-
gráfica e arquitetônica deste arquiteto (PEDRO, 2011, p. 21), determinada pela escala e
inserção. Na concepção desses objetos e dispositivos cênicos, JMR visa uma coerência
e busca uma forma elementar, partindo de uma linguagem abstrata (TÉRCIO, 2007 in
RIBEIRO, 2007, p.47), volumes prismáticos que se desdobram e que tangenciam a escala
do mobiliário, marcados sempre pela autonomia. Aparentemente removíveis, estes novos

343
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

objetos destacam-se das preexistências, enfatizando o contraste entre o novo e o antigo,


a fim de serem também suporte de modificações apropriadas.

Figura 6: Perspectiva isométrica do projeto do Centro de Artes Visuais. Fonte: (RIBEIRO, 2008,
p.687)

INTERSECÇÕES ENTRE REABILITAÇÃO, ARQUITETURA E CENOGRAFIA

As estratégias projetuais empregadas no Centro de Artes Visuais visam a coexis-


tência de materialidades e de tempos diversos, estabelecida como premissa de projeto, e
refletem uma patente intersecção entre arquitetura e cenografia, enquanto ação possível
frente ao espaço preexistente. Interessa, aqui, como a relação entre a proposta, tendo em
vista a relação do arquiteto com a cenografia, e o contexto em que se insere reflete na
lógica espacial e na materialidade dessa nova proposta, numa perturbação recíproca.
Partindo da concepção do restauro, como uma ação arquitetônica, pautada na
releitura e no reconhecimento[7], é possível identificar, nesta obra de JMR, diretrizes vindas

[7] Reconhecimento tratado aqui a partir da noção de Cesare Brandi (2004), tratada por Beatriz
Kühl (2017, p.23). O reconhecimento tem papel fundamental na teoria brandiana e deve ser
fundamentado em análises e leituras críticas sobre a obra arquitetônica previamente dada, em
seus aspectos formais, históricos, simbólicos, memoriais e culturais, levando em consideração

344
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

do Restauro Crítico[8] e da teoria proposta por Cesare Brandi (2004), ao estabelecer uma
relação dialética com o edifício dado. Os princípios da reversibilidade e da distinguibi-
lidade permeiam o raciocínio deste projeto, em que a intervenção transforma o novo
espaço, com a possibilidade de retorno ao contexto inicial. Preceitos configurados pela
escolha de materiais que destacam a nova intervenção, pela configuração de frestas, que
descolam a nova arquitetura da antiga e pela inserção de elementos autônomos, que
tangenciam a escala de mobiliário e que podem eventualmente ser retirados. A interven-
ção contemporânea aparece com uma nítida legibilidade. Além da opção do arquiteto
por uma metodologia científica embasada numa análise crítica e histórica do edifício.
Acredita-se que antes de qualquer proposição, são essenciais a análise crítica e o
domínio sobre as partes – física e imaterial, como defendido pelo próprio arquiteto
(RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.55); só a partir do entendimento é possível intervir sobre
a preexistência e abranger possibilidades outras suscitadas pela própria obra (KÜHL, 2017,
p. 24). Dessa forma, a ação arquitetônica que decide lidar com a preexistência assume
o desvelar de significados já presentes de modo latente, ressignificando-os a partir da
leitura e subsequente intervenção, como é o caso deste projeto. Pode-se verificar essa
tendência na proposta do novo lanternim, redesenhado no contexto da intervenção a
partir de dois preexistentes encontrados durante a obra.
Olhar e perceber o espaço é importante para determinar a relação com o novo pro-
grama e a resposta às novas necessidades. Este projeto reconhece os valores intrínsecos,
materiais e imateriais, do edifício e a leitura do mesmo interfere sobre a materialidade
da proposta, como aponta JMR:
[...] no Centro de Artes Visuais, utiliza-se a preexistência como matéria
de projeto, valorizando a leitura do edifício no seu todo, incluindo a
nova intervenção e clarificando a sua evolução histórica. As diferentes
camadas que compõem a sua história ficam visíveis e o ambiente resulta

a imagem e a transformação ao longo do tempo (BRANDI, 2004). Considera-se, aqui, a restaura-


ção como “o momento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência
física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão ao futuro.”
(BRANDI, 2004, p.30).

[8] O Restauro Crítico foi fundamentado, nos anos 40, pelos autores Roberto Pane e Renato
Bonelli, partindo da noção de que o restauro é considerado um ato crítico perante a preexis-

mas deve ser reinventado com originalidade, de vez em vez, caso a caso, em seus critérios e
métodos” (CARBONARA, 1997, p.285).

345
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

numa simultaneidade de tempos que se justapõem e desenham um todo


único (RIBEIRO, 2008, p.189).
Partindo desses conceitos, podemos dizer que a análise crítica, o diálogo e a coe-
xistência são pontos essenciais para a reabilitação e para a arquitetura que opta por
essa convivência de distintos tempos. A intervenção, aqui, ocorre a partir da inserção. E
esse método interdisciplinar, patente na obra de JMR, pode se conformar como ponto
de partida para as reflexões implícitas na linguagem ligada ao patrimônio.
O projeto dos elementos autônomos inseridos decorre da relação pretendida com
o contexto, a escala e o volume são determinados a partir dessa relação, numa atenta
releitura e interpretação do espaço dado e dos aspectos que se pretende manter para
a caracterização da preexistência. Esse modo de operar, propondo elementos externos,
inéditos e inseridos no contexto previamente dado, é considerado pelo arquiteto como
uma espécie de microarquitetura (RIBEIRO, 2018 in DURAN, 2020, p.57), que responde a
essas novas necessidades técnicas e funcionais e que mantêm o diálogo como premissa.
O diálogo presente aqui resulta, fundamentalmente, da transposição de conceitos
da cenografia para a intervenção arquitetônica, concebida por meio da inserção de ele-
mentos autônomos e com vocação de mobiliário, ou seja, com potência transitória, no
espaço previamente dado. Relação endossada na descrição de JMR:
Este projeto de reabilitação assenta, sobretudo, na construção de obje-
tos de aparência etérea e transitória em confronto com uma estrutura
patrimonial permanente. Tal como acontece no teatro, onde se explora
a contradição fundamental entre o espaço permanente da arquitetura
e o espaço efêmero do espetáculo, deparamo-nos neste projeto com um
confronto entre a perenidade do contentor (o edifício preexistente)
e a ligeireza dos objetos autônomos criados para responder a novos
requisitos funcionais. Este confronto resulta, fundamentalmente, da
transposição do conceito de instalação para a intervenção arquitetônica,
concebida como uma montagem de objetos contemporâneos num espaço
antigo, clarificado pelo restauro. (RIBEIRO, 2008, p. 186)
Método que pode ser encarado como transversal à arquitetura e à cenografia no
conjunto de obras do arquiteto. Este projeto de Mendes Ribeiro, seja no propósito do
restauro, do mobiliário ou da cenografia, desvela como a arquitetura pode incorporar
aspectos apreendidos e vivenciados no âmbito da cenografia e como a preexistência
interfere sobre a materialidade da nova proposta, numa ação nitidamente interdisci-
plinar. O arquiteto trabalha nas artes cênicas e contagia os projetos arquitetônicos com
qualidades próprias da cenografia e vice-versa.

346
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Mendes Ribeiro, valendo-se de recursos próprios da cenografia revela novas experi-


mentações e possibilidades numa produção intersticial entre arquitetura e cenografia,
produz “o espaço e as múltiplas formas de o representar e habitar” (RIBEIRO, 2008, p. 371).
Repensar os limites e a interseção é uma maneira de rever o potencial da arquitetura, da
reabilitação e da cenografia como métodos de reestruturar o espaço.

347
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

ALHO, C. (ed.). João Mendes Ribeiro, Projetos. ArchiNews, n. 34. Lisboa:

ALMEIDA, Eneida de. Arquitetura e Memória. Pós. Revista do Programa de


. São Paulo, n. p. 58-77, 2015.
ISSN 2317-2762 Disponível em <https://www.revistas.usp.br/posfau/article/
view/112352/110317> Acesso em 12 de junho de 2018.

Bloco (10). 1 ed. Novo Hamburgo: Feevale, 2014,


v. 1, p. 102-110.

BRANDI, C. Teoria do Restauro


Editorial, Coleção Artes & Ofícios, 2004.

CARBONARA, G. Brandi e a Restauração Arquitetônica Hoje, Desígnio, 2006, n. 6,


pp. 35-47

baixaFcdAnexo. do?id=236 . Acesso em: 27 out. 2014

2017.

Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Setembro de 2006. p. 46-53.

JMR 92.02 – João Mendes Ribeiro Arquitectura e

João Mendes Ribeiro: intersecções entre arquitetura e


Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Arquitetura eUrbanismo
da Universidade de São Paulo. Área deconcentração: Projeto da Arquitetura.

348
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

. Revista
Tectónica: Rehabilitación (I) Estructuras. Madrid: A.T.C. Ediciones, p. 48- 61,
jan/2005

FIGUEIRA, Jorge. Coimbra sem retórica. Jornal Público de 15 de Fevereiro de 2003.

Arquitecturas, n.5.Coimbra. Outubro, 2015.

Relatório Final de Trabalhos Arqueológicos. Gabinete para o


Centro Histórico da Câmara Municipal de Coimbra: 2011

KÜHL, B. M. Cesare Brandi e a teoria da restauração. Pós: Revista do programa de


, n. 21, pp. 198-211, 2007.

Históricos, Revista CPC, 2005, v. 1., n. 1. Disponível em: <www.usp/cpc/v1>. Acesso


em: 20 nov. 2017.

Anais do Museu Paulista, , vol.18, no.2,


p.287-320, dez. 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0101-47142010000200008&lng=pt&nrm=isso>. Acesso em: 20 nov.
2017.

João Mendes Ribeiro: 2003-2016


2016.

João Mendes Ribeiro. colecção

RIBEIRO, J. M. Arquitecturas em Palco/Architectures on Stage. Edição Almedina.

_________. Arquitectura e Espaço Cénico:


Tese (Doutorado em Arquitetura). Universidade de Coimbra, Coimbra, 2008.

RIBEIRO, J.M, FEIJÃO, A.M. O tempo do paradoxo: a inovação pela reabilitação.

, n.4. Rio de Janeiro, Outubro, 2018. p. 100-115.


Disponível em: http://periodicos.puc-rio.br/index.php/revistaprumo/issue/

349
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Da organização do Espaço. 3ª edição. Porto: Escola Superior


de Belas-Artes do Porto, 1982.

TOSTÕES, Ana. João Mendes Ribeiro: obras e projectos, 1996-2003. 1ª ed. Porto:
Asa, 2003. ISBN 972-41-3631-0

Diálogos com a Preexistência: Leitura crítica de projetos de


.
Dissertação (Mestrado em Reabilitação de Edifícios). Orientação Professor Dr.
António Alberto de Faria Bettencourt. Coimbra, 2018.

LISTA DE IMAGENS

Figura 1
Ribeiro, 2018. Desenho concedido pelo arquiteto para a pesquisa de mestrado
realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo. © João Mendes Ribeiro.

Figura 2
Mendes Ribeiro, 2018. Desenho concedido pelo arquiteto para a pesquisa de
mestrado realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
São Paulo. © João Mendes Ribeiro.

Figura 3

Figura 4
com um dos antigos lanternins em primeiro plano. Fonte: DURAN, 2020, p.215.

Figura 5: Corte transversal, com os desenhos do elemento autônomo do


lanternim. Fonte: João Mendes Ribeiro, 2018. Desenho concedido pelo arquiteto
para a pesquisa de mestrado realizada na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade de São Paulo. © João Mendes Ribeiro.

Figura 6
RIBEIRO, 2008, p.687.

350
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO: Patrimônio, Escalas e Processos

ARAGÃO NETO, Félix Corrêa


Mestrando; Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
felixaragaoneto@gmail.com

TOFANI, Frederico de Paula


Professor Doutor; Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
fptofani@ufmg.br

351
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Res umo

O presente artigo trata do estudo de caso das ruínas setecentistas da Serra da Calçada, Minas
Gerais, Brasil tombadas como conjunto paisagístico em 2008 pelo Instituto Estadual do Patri-
mônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (IEPHA-MG), desconhecidas para grande parte
do povo mineiro, remanescentes do maior complexo de exploração de ouro do século XVIII no
Brasil. O estudo busca entender o porquê da desvalorização desse patrimônio, como também os
conceitos, as análises e as formas de revalorização do mesmo, entendendo a intervenção como
meio de conservação e visibilidade das ruínas. Busca-se uma reinterpretação do discurso his-
tórico, revisitando vestígios do passado e entendendo este em constante movimento. Fundado
em exemplos de intervenção arquitetônica em sítios arqueológicos, como o do Forte Fuentes, em
Lecco, Itália e do Castelo de São Jorge, em Lisboa, Portugal sugerem-se ações contemporâneas
intencionando a reinserção das ruínas na vida atual.

Palavras-Chave: Patrimônio edificado. Projeto de intervenção. Ruínas. Serra da Calçada

This article deals with the case study of the eighteenth century ruins of the Serra da Calçada,
listed as a landscape in 2008 by the State Institute of Historical and Artistic Heritage of Minas
Gerais (IEPHA-MG), unknown to most of the people from Minas Gerais, remanants of the largest
gold exploration complex of the 18th century on Brazil. The study seeks to understand why the
devaluation of this heritage, as well as concepts, analyzes and ways of revaluing it, understanding
the intervention as a means of conservation and visibility of the ruins. An interpretation of the
historical discourse is sought, revisiting vestiges of the past and understanding it in constant
motion. Based on examples of architectural intervention in archaeological sites, such as Fort
Fuentes, Lecco, Italy and São Jorge Castle, contemporary actions are suggested aiming at the
reinsertion of the ruins in current life.

Key words:Built heritage. Intervention design. Ruins. Serra da Calçada

Res umen

Este artículo aborda el estudio de caso de las ruinas de la Serra da Calçada del siglo XVIII, cata-

352
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

logadas como paisaje en 2008 por el Instituto Estatal de Patrimonio Histórico y Artístico de
Minas Gerais (IEPHA-MG), desconocido para gran parte de las personas en Minas Gerais, restos
del mayor complejo de exploración de oro del siglo XVIII em Brasil. El estudio busca comprender
por qué la devaluación de este patrimonio, así como los conceptos, las análisis y las formas de
revalorizarlo, entendiendo la intervención como un medio de conservación y visibilidad de las
ruinas. Se busca una interpretación del discurso histórico, revisando vestigios del pasado y
entendiéndolo en constante movimiento. Basado en ejemplos de intervención arquitectónica en
sitios arqueológicos, como Fort Fuentes, Lecco, Italia y el Castillo de San Jorge, Lisboa, Portugal
se sugieren acciones contemporáneas para reintegrar las ruinas a la vida actual.

Palabras clave: Patrimonio construído. Diseño de intervención. Ruinas. Serra da da Calçada

Introdução

No Estado de Minas Gerais, Brasil, dentre suas diversas ruínas testemunhas dos remo-
tos processos de formação e de organização dos primeiros núcleos urbanos, encontram-se
também as ruínas da chamada Serra da Calçada. As ruínas setecentistas remanescentes
da exploração de ouro em mina a céu aberto, estão localizadas na região metropolitana
de Belo Horizonte, entre os munícipios de Brumadinho e Nova Lima.

Conhecida pela paisagem do encontro entre os biomas cerrado e campo rupestre


ferruginoso, a Serra da Calçada reúne ruínas que são polarizadas pelo chamado Forte
de Brumadinho ou Casa de Pedras, além de outras em seu entorno, já bastante desca-
racterizadas, que faziam parte da atividade mineradora no século XVII e XVIII. Trilhas
calçadas, canais de abdução de água, plataformas arrimadas, muros de pedra, tanques e
mundéus encontravam-se conectados ao talho esculpido a céu aberto pela mão de obra
escravizada, em favor da produção da riqueza do cobiçado minério (GUIMARÃES, 2002).

353
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1 Visada da Serra da Calçada a partir do mirante para a cava a céu aberto e as ruínas
do complexo aurífero Forte de Brumadinho.
Fonte: Arquivo Pessoal, 2018.

Figura 2 Mapa esquemático com vista superior do complexo aurífero Forte de Brumadinho, com
suas ruínas em pedras formadas pelas trilhas calçadas, Forte, tanques, plataformas arrimadas,
mundéus e estruturas para canais. Ao centro, o talho aberto (cor ocre) resultado do método
de escavação para exploração dos veios auríferos através do desmonte da rocha com o uso
da água que era captada pelo córrego Bernardino (acima, cor azul).
Fonte: Adaptado do GOOGLE Earth (20°07’05”S 43°59’37”W), em 29 de setembro de 2020.

354
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Nessa perspectiva, os vestígios arqueológicos e arquitetônicos da Serra da Calçada


demostram a associação daquela paisagem à atividade mineradora e agropecuária - em
menor escala - desenvolvida em Minas Gerais, durante o século XVIII. Despertam possibi-
lidades de estudos para a compreensão de como funcionaria uma “empresa” mineradora
nos setecentos, suas tecnologias e quais aparatos necessários para a extração do ouro.
Como também, elucida quais populações autóctones habitaram a região em tempos
anteriores, uma vez que deixaram vários indícios, como artefatos descobertos, através
de prospecções arqueológicas, que evidencia o negro de forma enfática na sociedade
mineira (GUIMARÃES, 2002).
A atribuição do valor dado àquela região vai além das edificações testemunhas do
complexo aurífero da qual faziam parte. Tal valoração mudou com o tempo, indo muito
além das figuras monumentais que encontramos como o Forte de Brumadinho/Casa de
Pedras com suas ruínas que faziam parte da dinâmica de exploração do ouro.
Esse quadro muda substancialmente no final do século XX, com a introdução de
novos agentes no campo do patrimônio e com a crescente ênfase que se dá aos aspectos
intangíveis dos bens culturais, fatores que também tornam cada vez mais necessário se
explicar a operação de atribuições de valores sempre subjacente no campo do patrimônio
(CASTRIOTA; 2009, p. 101).
Entretanto, as ruínas permanecem invisíveis. Invisíveis do ponto de vista do conhe-
cimento a quem elas são caras, o povo mineiro. A região tem sido objeto de estudo de
grupos de pesquisa tanto da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas
Gerais – EAUFMG, quanto de outras escolas como as de Arqueologia e de Biologia, nos
últimos dez anos (TOFANI, 2016). Entretanto, a negligência com que este patrimônio
cultural vem sendo tratado pelos seus proprietários, leia-se VALE S.A., tem aumentado
gradativamente.
Tombado a nível estadual como Conjunto Arquitetônico e Paisagístico em 30 de
julho de 2008, o chamado Conjunto Histórico e Paisagístico Serra da Calçada (IEPHA-MG)
e a nível federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em
02 de dezembro de 2004, junto ao Cadastro Nacional de Sítio Arqueológico (CSN), como
Sítio Arqueológico Forte Brumadinho, vem passando por modificações, como a erosão
do meio ambiente e a degradação das ruínas setecentistas pela ação humana (GUIMA-
RÃES, 2002). Do seu tombamento e delimitação do perímetro em 2008 até 2015, o sítio
encontrava-se aberto à ação do homem de forma irresponsável. O uso de motocicletas
e jeeps como prática de esporte era constante até o Ministério Público de Minas Gerais
interferir de forma rigorosa em 2015(MP-MG, 2015).

355
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Hoje, seja por pichações, deslocamento das pedras, formação de fogueiras, depreda-
ções pela ação humana no uso pelos seus frequentadores, as ruínas da Serra da Calçada
estão ameaçadas. Não se encontra naquela região nem fiscalização, nem acautelamento
efetivo, nem intervenção para que aquele lugar, através de ações que indiquem e valo-
rizem o que ele significa, se estabeleça de forma potente.
Aberto a prática de esportes de baixo impacto, como caminhadas contemplativas,
yoga, e ciclismo, o sítio da Serra da Calçada tem entre seus usuários um público inte-
ressado em ecoturismo, como também em turismo contemplativo, sem tanta ênfase
quanto ao turismo cultural.
Entendendo seu desconhecimento, sua desvalorização, é preciso pensar em novas
abordagens críticas para as ruínas da Serra da Calçada, pensando em intervenções através
de ações conjuntas com aqueles envolvidos no sítio, definindo métodos de inserção do
novo e de reinserção das ruínas na vida atual, situando-as da dimensão potencial em
uma condição real.

Ruínas que contam

A ruína é figura insubstituível da cultura humana (BAGNATO, 2017). Seria seu valor
apenas estético ou se reconhecem outros valores intrínsecos a ela? Situados, geralmente,
em sítios arqueológicos, estão em lugares com configuração particular carregados de
elementos com diferenças tipológicas, culturais e cronológicas.

356
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6: Detalhe fachada principal do Forte de Brumadinho/Casa de Pedras, ruína polarizadora


do conjunto que se encontra em degradação na Serra da Calçada, em Brumadinho-MG.
Fonte: Arquivo Pessoal, 2018.

A região em análise faz parte do tempo em que os bandeirantes, incentivados pela


Coroa portuguesa na última década do século XVII e nos primeiros anos do século XVIII,
adentraram o país colônia em busca de riquezas minerais, como o ouro e diamantes, sob
as bases do Mercantilismo. Iniciou-se, assim, o processo de povoamento em Minas Gerais
tendo como atividade protagonista a mineração, apoiada na agricultura e pecuária.

Nos primeiros anos de exploração, duas técnicas de mineração foram definidas


de acordo com o tipo das jazidas: a mineração de cascalho (aluvional) e a mineração de
morro (desmonte). A primeira era esgotada rapidamente quando da ocupação devassada
e ocupada de forma desordenada do território, o que levava a exploração da segunda
técnica em busca do ouro de veio nas formações rochosas e encostas. Esta técnica era
bastante trabalhosa aos inexperientes bandeirantes paulistas, o que incentivou a intro-
dução de novas técnicas, como também, o tráfico de negros escravizados vindos do
sudoeste da África, ou da denominada Costa da Mina, com experiência e conhecimento
sobre mineração de encostas (ANTONIL, 1982).
Os chamados negros de mina-jeje, advindos do grupo étnico e linguístico Akan (DE
CASTRO, 2002), que habitavam a África Ocidental, de Cabo Verde ao Gabão, e possuíam
grande domínio das técnicas de mineração, metalurgia e siderurgia, além de exercerem o

357
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

comércio de ouro e moedas na região. A presença da mão de obra escrava maciça naquele
lugar traz a figura do negro em relevância como parte presente da nossa história que
precisa ser rememorada.
Apenas para citar algumas estimativas quanto ao número de cativos importados
durante o Ciclo das Minas, Maurício Goulart (1949), por exemplo, calcula que, entre 1725
e 1727 dos 5.700 que entraram anualmente pelo porto do Rio de Janeiro, 2.300 foram
transferidos para as zonas de mineração, e, durante o século XVIII, 350 mil oeste-africanos
foram desembarcados no Brasil, a maioria enviada para Minas Gerais, cuja população,
em 1786, constava de 274.135 negros entre os seus 352.847 habitantes (DE CASTRO, 2002).
As relações que se dão naquele lugar não são apenas materiais, mas também filo-
sóficas, históricas, mágicas. Além da paisagem testemunha das rotas dos primeiros
povoamentos de Minas Gerais, o sítio da Serra da Calçada com seu patrimônio arquite-
tônico não envolve apenas a materialidade de suas ruínas, mas também aqueles que
fizeram parte da sua construção, daquele modo de viver, de trabalhar que se encontra
testemunha na paisagem. Elas configuram testemunhas de um tempo, de um sentimento
do distanciamento de um passado, porém ainda presente na profundidade temporal
do mineiro hoje.

Figura 7: Vestígios arqueológicos encontrados no Forte Brumadinho/Casa de Pedras. Dentre os


quais: fragmentos de cachimbo cerâmico e bojos de cerâmicas com incisões que relembram
antigas civilizações.
Fonte: BRANDT (FAFICH-UFMG), 2016.

358
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Fazer relembrar a vida e a participação do negro naquele lugar, na produção daquele


lugar e de suas riquezas contribui para promover uma sociedade mais pacífica e inclusiva,
promovendo os direitos humanos e o bem-estar na ética das relações humanas. Estimula
a mudança de um sentido ideológico, a decolonização[1] compensando equívocos do
passado ainda existentes no presente.
Promove-se, dessa forma, um desenvolvimento sustentável através de ações que
visem a justiça social alinhadas com o os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS),
como princípios da Agenda 2030 ONU-UNESCO, plano de ação da ONU para as pessoas, o
planeta e a prosperidade que busca fortalecer a paz universal.

Neste estudo será analisada a intervenção em ruínas, situadas em sítios arqueoló-


gicos, como forma de sua conservação e valoração cultural. Abordar essas histórias gera
dualidade, a exploração de minérios se confunde com a história de Minas Gerais. Gera
riquezas, mas tem deixado sequelas. A região em análise, por sinal, está situada sob a
denominada região do Quadrilátero Ferrífero, onde há altos índices de concentração
de minério de ferro.
Torna-se, assim, imprescindível sua conservação. Conservar no sentido de trazer
seu conhecimento, sua valoração. Não apenas valores estéticos e históricos, mas também
sociais e científicos. Conservar não apenas para os acadêmicos, mas para todos, já que é
um patrimônio de Minas Gerais, do povo mineiro e do povo brasileiro.
A abordagem principal perante as ruínas tem sido puramente visual, nos últimos
tempos. Uma visão de artefatos arqueológicos que produziram simples contemplação,
proibindo o fazer naqueles lugares por medo de deteriorá-los, com base em princípios
de preservação estética carentes de reflexão ética e social. Teria sido essa uma das prin-

[1] O termo decolonização designa aspectos insurgentes que resistem, questionam e buscam
mudar padrões coloniais do ser, do saber e do poder (Maldonado-Torres, 2007). Fanon conclama
que se leve a sério o papel que o colonialismo e o racismo antinegro têm desempenhado
na formação da subjetividade moderna (Maldonado-Torres, 2015). Consideramos que – diz
Fanon – diante da convivência das raças branca e negra, pensamos que existe uma assunção
em massa de um complexo psicoexistencial. Ao analisá-lo, visamos sua destruição [...]. As a
tudes que pretendo descrever são verdadeiras. Eu as encontrei um número incalculável de
vezes (Fanon, 2009: 45).

359
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

cipais razões que levaram sítios arqueológicos a cair em condições muito graves de
abandono e decadência.
Interessa refletir sobre a diversidade dos modos de intervenção em ruínas situadas
em sítios arqueológicos, com seus significados enquanto forma de conservação e valo-
ração da materialidade, como também, da imaterialidade da memória do patrimônio
construído.
Não se discute aqui em reconstruir a ruína. Reitera-se o que Brandi (2004), defende
em sua Teoria ao entender que seria uma ilusão “poder fazer a ruína retomar a forma”
e que devemo-nos limitar a aceitar na ruína o resíduo de um momento histórico ou
artístico que só pode permanecer aquilo que é, caso em que a restauração não poderá
consistir de outra coisa a não ser sua conservação, com os procedimentos técnico que
exige (BRANDI, 2004). Vale salientar que a restauração não seria o único modo de intervir
no corpo de uma ruína. Assim como, constatamos intervenções que criam novas obras a
partir dos antigos fragmentos arquitetônicos, escavações que colocam a mostra ruínas
perdidas e reconfiguram lugares (BAETA, 2017).
A intervenção arquitetônica faz-se necessária, sendo a importância da
transformação elemento de preservação. Essencial pensar que a gestão
dessa transformação esteja em sintonia e respeitosamente à preexis-
tência e não esvazie nem rompa a continuidade de seus significados
(CARSALADE, 2009, p.489)

E o por que não resgatar essa memória, proporcionar visibilidade? É a memória


que toca pela emoção, seja ela qual for, individual ou coletiva. É a história que carrega a
representação do passado. Memória e história palavras desvalorizadas em tempos que
clamam pelo novo, pela novidade, como expressa Nora:

Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde


subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama,
porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer
a noção. O que secreta, veste, estabelece, constrói, decreta, mantém pelo
artifício e pela vontade uma coletividade fundamentalmente envolvida
em sua transformação e sua renovação. Valorizando, por natureza,
mais novo do que antigo, mais o jovem do que o velho, mais futuro do
que passado (NORA, 1993).

360
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Esse poder de fazer interagir esses dois fatores (memória individual e memória
coletiva), a ponto de chegarem a sua “sobredeterminação recíproca”, repousa na estrutura
complexa dos lugares de memória que acumulam os três sentidos da palavra: mate-
rial, simbólico e funcional. O primeiro fixa os lugares de memória em realidades que
consideraríamos inteiramente dadas e manejáveis; o segundo é obra de imaginação e
garante a cristalização das lembranças e sua transmissão; o terceiro leva o ritual, que
no entanto, a história tende a destituir, como se vê com os acontecimentos fundadores
ou com os acontecimentos espetáculos, e com os lugares refúgios e outros santuários
(RICOEUR, 2007)
Para Huyssen (2014, p.96), o interesse pelas ruínas no Século XXI já está distanciado
do que chamou de “[...] ruínas autênticas” nas quais “[...] o componente de decadência,
erosão e retorno à natureza, tão central nas ruínas setecentistas e em seu atrativo nos-
tálgico” foi eliminado na transformação das ruínas em commodities pelo capitalismo
avançado. Essa transformação para ele se evidencia quando a capacidade de relembrar
“[...] o presente de sua transitoriedade” é perdida através da eliminação da condição de
decadência e erosão da matéria capaz de “[...] rememo rar algo que não mais o é”.

Sendo a intervenção um potencial para a conservação, valoração do patrimônio


arquitetônico arqueológico, associado ao seu caráter ético e de diálogo, assim como, em
sua capacidade de recuperar valores significativo e estético das ruínas, quais seriam os
caminhos dessa ação interpretativa?
Destaca-se aqui duas problemáticas que a intervenção em sítios arqueológicos
enfrentará em um primeiro momento, do ponto de vista projetual. O primeiro diz res-
peito à relação da “perda” e limite. A partir de um desenho, de um projeto que limite o
espaço/ tempo entre o sítio arqueológico e o contexto urbano, a partir de materiais e
sistemas construtivos específicos, o projeto de intervenção em patrimônio pode valo-
rizar o significado estético das ruínas e configurar sua dimensão ética relacionada a
paisagem cultural.
O segundo problema diz respeito à relação entre a escavação e a intervenção, da
qual dependem as relações físico-espaciais (com impacto na configuração da paisagem
após a intervenção), bem como as estratégias de programa (com consequentes questões
ligadas aos métodos e uso do espaço no futuro). Em que momento e que tipo de aborda-
gem para intervir em sítios arqueológicos?

361
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Nessa perspectiva, o projeto de intervenção constrói um diálogo com o contexto


por meios de relações diacrônicas e sincrônicas entre espaços e limites das diferentes
unidades históricas e arquitetônicas: um sistema de ações capazes de prever as decisões
sobre forma e dimensão das escavações arqueológicas comunicando-se com o projeto.
Diante do contexto exposto, há aqui dois exemplos, em diferentes níveis de inter-
venção no patrimônio arqueológico, analisados em suas diferentes abordagens inter-
pretativas do problema do relacionamento entre a estética e a ética do design da ruína,
onde pontuo estratégias e poéticas de duas estratégias plausíveis existentes na literatura:
O primeiro exemplo é o Forte Fuentes em Lecco, por Marco Dezzi Bardeschi. Aqui a
intenção arquitetônica está na preservação do monumento como uma ruína, buscando
garantir algumas partes e intervir em outras com obras limitadas de restauração. O
Forte é um monumento raro de arquitetura militar do século XVII, que foi bombardeado
por Napoleão, onde se perdeu por completo telhado, pavimentos e partes da alvenaria.
Entretanto, algumas partes permaneceram de pé, mesmo com as intempéries do
tempo, graças a uma hera que cercava o forte. Com isso, pensar na consolidação da
ruína foi primordial, tendo como objetivo o aumento da segurança das estruturas, sem
alterar a condição de ruína, presente como testemunha do fracasso militar do século
XVII. Tendo como princípio orientador a leveza, a intervenção de consolidação consistiu
na colocação de alças em fio de aço inoxidável, pós tensionadas, atuando para bloquear
as potenciais oscilações da alvenaria (JURINA, 2012).

362
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 8: Forte Fuentes, em Lecco. No sentido horário, a ruína antes da intervenção arquitetônica

das lacunas.
Fonte: JURINA, 2012.

Quanto à recuperação parcial da alvenaria, pensou-se em processos para conter


a degradação, além de eliminar algumas raízes profundamente enraizadas entre as
paredes. Quanto à integração das lacunas, Bardeschi optou por serem feitas com tijolos
de barro, declarando sua contemporaneidade sem prejudicar a leitura existente. Vale
lembrar, que elementos estruturais de tijolos eram presentes na estrutura, assim como,
nas abóbadas e arquitraves presentes no passado (JURINA, 2012).

363
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Na escolha da tecnologia, a adoção dos tijolos com características quanto à forma,


cor e textura deixam em destaque o novo, sendo o novo aqui como um sinal positivo de
que não se apaga os sinais da história. Foi excluída a utilização de novos pisos em madeira
o que transformaria a imagem arquitetônica, ofuscando a ideia de transparência que
o princípio tem como objetivo de fruição das ruínas. O projeto baseado no princípio
da intervenção mínima envolveu o uso de materiais compatíveis, distinguíveis, capaz
de destacar-se como contemporâneos, ao mesmo tempo que permite fazer a leitura do
original, sem sobreposições (JURINA, 2012).
O segundo exemplo é a praça nova do Castelo de São Jorge, por João Luis Carrilho
da Graça, cujo projeto contempla a intervenção e a musealização das ruínas a partir da
escavação arqueológica aberta do sítio. O lugar trata-se do primeiro sítio de ocupação
humana em Portugal, tendo seu território interior dado origem à cidade de Lisboa e
possui vestígios de sucessivos períodos de ocupação, como o da Idade do Ferro, habita-
ções muçulmanas medievais pelos mouros e um palácio mais recente do século XV (DE
ALMEIDA, 2012).
O projeto é resolvido a partir da definição de um perímetro da área das escavações.
Um conjunto de muros de contenção revestidos de aço corten define todo o interior, a
uma cota mais baixa, sendo as escavações e ruínas postas a descoberto. Esta delimitação
do sítio arqueológico permite o acesso e uma leitura panorâmica do sítio, já que do lado
externo, a uma cota mais alta, os muros de aço corten definem um percurso periférico,
pavimentado por pedras de basalto que circunda todo o conjunto arqueológico promo-
vendo acessos e estabelecendo relação com as muralhas, igreja, a cidade e o rio.

364
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 9: Castelo de São Jorge, Lisboa. Intervenção buscando a musealização das ruínas internas
do Castelo, marcando os três diferentes momentos de sua ocupação ao longo dos séculos.
Fonte: Carrilo da Graça, 2010.

Internamente, novamente a figura do percurso, mantido original e sem revestimen-


tos, apenas cobertos com terra (saibro). Já na superfície escavada, ao primeiro nível espacial
e último de ocupação, encontram-se os vestígios do pavimento de um palácio do século
XV. Para estes pavimentos, elevados relativamente ao nível do percurso de aproximação,
propôs-se um teto levemente inclinado em tela tencionada preta, brilhante, espelhada,
cujo reflexo proporciona uma outra forma de olhar ao visitante (DE ALMEIDA, 2012).
Avançando no espaço, encontram-se os restos de paredes e pavimentos de dias
casas islâmicas do século XI e os afrescos que sobre elas subsistem. Tais estruturas foram
tomadas como oportunidade para reproduzir a sequência espacial anteriormente exis-
tente. Um volume branco suspenso sobre as escavações, que toca as ruínas de pedra em
apenas seis pontos, permite trazer a percepção das várias áreas, organizadas em torno
de pátios, que introduziam a luz e ventilação nas casas geminadas, fechadas para o
exterior (DE ALMEIDA, 2012).
As paredes brancas reproduzem a espacialidade doméstica das habitações escava-
das, tendo o mesmo traçado das antigas reproduzindo fielmente ângulos e inclinações,
mantendo os pátios descobertos. Entende-se assim a distribuição espacial das casas,
com escalas e divisões de uma maneira diferente, a partir de uma interpretação do
lugar pelo arquiteto.
Já as estruturas habitacionais da Idade do Ferro, localizadas numa cota mais baixa
ao nível de circulação, foram protegidas por um volume fechado sobre si mesmo. Possui

365
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

caráter massivo, dramático e se desenvolve a partir dos muros de aço corten, em conti-
nuidade, como um espiral, sugerindo movimento de circulação em seu entorno. Possui
um rasgo horizontal ao longo de sua superfície que convida o visitante a apreciar os
vestígios abrigados em seu interior. A escolha dos materiais buscou o contraste e a
contemporaneidade dos elementos utilizados, assim como o uso de tecnologia. Cita-se
o uso do aço corten, as placas brancas de aglomerado de cimento e madeira, estruturas
em treliça de aço (DE ALMEIDA, 2012).

Calçada

Relacionando os exemplos supracitados ao estudo de caso das ruínas da Serra da


Calçada, reflete-se de forma análoga sobre a realidade de como o sítio se encontra atual-
mente e como poderia sofrer intervenções dentro da sua condição contextual buscando
sua conservação, sua revalorização.
Em um primeiro momento, como recurso para escolha da forma de consolidação
das ruínas que se encontram ameaçadas causadas pelas intempéries, pela ação antrópica
e pela forma simbiótica com que a vegetação evoluiu, comprometendo não apenas a
estética, mas também a segurança do lugar.

366
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

total do telhado, deslocamento de pedras e a presença abundante de vegetação.


Fonte: Arquivo Pessoal, 2018.

Em um segundo momento, analisa-se a ideia de percursos conectando os diversos


vestígios de ruínas já estudados através de prospecções arqueológicas. Considera-se
também o uso de novos materiais que se diferenciem e distinguem, sejam reversíveis e
que permitam fazer a leitura histórica sem apagar as marcas do passado, na intervenção
em possíveis alvenarias que foram identificadas através de prospecções arqueológicas
em plataformas de ruínas junto às paredes da edificação do Forte de Brumadinho/ Casa
de Pedras.

367
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 11: Planta do Forte de Brumadinho/ Casa de Pedras com localização das sondagens

estruturas de ruínas localizadas ao fundo do Forte, como também duas plataformas de pedra
localizadas em cada lateral interna.
Fonte: BRANDT (FAFICH-UFMG), 2016.

A ideia de percurso é reveladora e promissora ao pensar as ruínas no entorno do


Forte Brumadinho, formadas pelas trilhas calçadas, canais de abdução de água, platafor-
mas arrimadas, muros de pedra, tanques, mundéus e a própria cava talhada a céu aberto
no centro polarizador desse complexo, como forma de uma articulação, permitindo fazer
a leitura conectada da paisagem.

368
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Considerações Finais

Em face do exposto, torna-se propício aprofundar o estudo do objeto, fazendo uma


análise interpretativa do passado, já que este não é estático encontrando-se em movi-
mento (JENKINS, 2007). Percebe-se ser necessário pensar em processos que estimulem
e promovam não apenas a história e a arquitetura, mas também o social, agregando
interesses que as decisões possam ser capazes ou incapazes de produzir.
Pensar em intervenção como forma de conservação ao intervir na Serra da Cal-
çada e suas ruínas não apenas de forma contemplativa, mas crítica dialogando com
a sociedade. Entendendo que a ideia puramente visual de se manter a ruína, tem sido
uma das principais razões que levaram sítios arqueológicos ao colapso de condições de
abandono, degradação e decadência.
Pensar em mudança de sentido ideológico, em um discurso afro-centrado ao valo-
rizar a figura humana do negro como parte inerente àquela paisagem, revalorizando
a imaterialidade do lugar. Pensar em um turismo não apenas voltado a apreciação de
cenários, que reconheça seu patrimônio material como imaterial, que contribua para a
cultura e formação ética, cidadã e igualitária, com base em programas como o difundido
pela UNESCO-ONU através do Projeto Rota dos Escravos, que visa aumentar a conscien-
tização sobre a escravidão e suas consequências.
Promover uma sociedade verdadeiramente sustentável ao pensar em ações que
busquem a justiça social, a luta pela dignidade e o cuidado para com a pré-existência
a partir de uma abordagem fenomenológica. Esta abordagem abre um campo de ricas
possibilidades, permitindo superar contradições e paradoxos que vieram a ser criados
pelos métodos tradicionalmente utilizados e que repensa, renova, revaloriza os vestígios
e os discursos que trazem legitimidade ao tempo.

369
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Cultura e Opulência do Brasil. 3ed. Belo Horizonte: Itatiaia/


EDUSP, 1982.

Aesthetics of ruins of architectural design: new


interventions on archaeological heritage. Sevilha: IDA: Advanced Doctoral
Research in Architecture-Universidad de Sevilla, 2017.

BRANDT Meio Ambiente. Patrimônio natural-cultural e zoneamento ecológico-


econômico da Serra da Moeda. Belo Horizonte: FIEMG; Sindiextra, 2008.

BRANDT Meio Ambiente. Projeto Forte Brumadinho: pesquisa interventiva para


avaliação de potencial arqueológico (no interior e entorno do Forte). Belo
Horizonte: FAFICH-UFMG, 2016.

BRASIL. Decreto Lei 25, de 30 de novembro de 1937, Organiza a proteção do


patrimônio histórico e artístico nacional
do Brasil: Rio de Janeiro, 1937.

CARSALADE, Flávio de Lemos. A Pedra e o Tempo: arquitetura como patrimônio


cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

CAMPOS, Luana Cristina da Silva Campos. Sítio Arqueológico. In: GRIECO, Bettina;
Dicionário IPHAN de Patrimônio
Cultural. 2. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2018.
(verbete). ISBN 978-85-7334-299-4.

Intervenção contemporânea nos castelos


de Portugal. Dois casos de estudos, S. Jorge e Pombal. Dissertação (Mestrado

e Tecnologia Universidade de Coimbra, 2012.

A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro


Preto do século XVIII. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 2002.

FANON, Frantz. Piel negra, máscaras blancas.

GUIMARÃES, C. M. Arqueologia da Mineração Colonial


2005.

370
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

. Culturas do passado-presente. Rio de Janeiro: Editora


Contraponto, 2014.

INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE MINAS GERAIS.


Dossiê de Tombamento do Conjunto Histórico e Paisagístico da Serra da Calçada.
Belo Horizonte: IEPHA/MG, 2008.

JENKINS, Keith. A história repensada. São Paulo: Contexto, 2007.

JURINA, Lorenzo. . Milão:


Structural ed. De Lettera, 2013.

MALDONADO-TORRES, Nelson. Rousseau and Fanon on inequality and the human


sciences.

NORA, Pierre. Entre Memórias e História: a problemática dos lugares, In: Projeto
História. São Paulo: PUC, n.10, dez.1993, p.07-28.

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Editora


UNICAMP, 2007.

RUGENDAS, Johann Moritz. Rugendas e o Brasil. Rio de Janeiro: Editora Capivara,


2012.

TOFANI, Frederico de Paula. Projeto Patrimônio Cultural e natural na Serra da


Moeda, Minas Gerais: Intervenções arquitetônicas para a preservação e uso
sustentável das ruínas do Forte Brumadinho. Belo Horizonte: UFMG, 2016.

TOFANI, Frederico de Paula.; Tofani, Márcia. C. M. As Ruínas do Complexo de


Exploração Aurífera do Forte de Brumadinho, na Serra da Moeda, Minas Gerais,
Brasil:
Congresso Internacional de História da Construção Luso-Brasileira, Universidade
Federal da Bahia, 2019.

371
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTERVENÇÃO NO CENTRO
HISTÓRICO: ENTRE
PALAVRAS E DESENHOS
INTERVENTION IN THE HISTORICAL CENTER:
BETWEEN WORDS AND DRAWINGS

INTERVENCIÓN EN EL CENTRO HISTÓRICO:

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

CONSTANTI, Andressa
Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade de Brasília
andressaconstanti@hotmail.com

372
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O objetivo desse artigo é analisar o discurso, as ideias projetuais desenhadas e a interven-
ção concretizada para a Ladeira da Misericórdia em Salvador, pela arquiteta Lina Bo Bardi
e colaboradores. Trata-se de uma tentativa de interligar os escritos da arquiteta com seus
desenhos arquitetônicos, realizados para uma intervenção no Centro Histórico da primeira
capital brasileira, entre os anos de 1987 e 1991. Ao analisar o caso da Ladeira da Misericórdia
se revelam abordagens sobre contrapontos e inovações que essa intervenção estabeleceu para
a salvaguarda do patrimônio cultural. A arquiteta descreve e justifica suas ações e intenções
projetuais referente a Ladeira da Misericórdia em duas obras escritas e em seus desenhos dis-
ponibilizados pelo Instituto Bardi. Assim, este estudo, permite a construção de um panorama
no qual a teoria, o processo criativo e o projeto interventivo compõem uma intricada rede
atrelados à questão patrimonial.

PALAVRAS-CHAVE: Ladeira da Misericórdia de Salvador. patrimônio. Lina Bo Bardi. Centro


Histórico. processo criativo.

A BSTRACT
The purpose of this article is to analyze the discourse, the design ideas designed and the inter-
vention carried out for Ladeira da Misericórdia in Salvador, by architect Lina Bo Bardi and
collaborators. It is an attempt to link the architect’s writings with her architectural drawings,
carried out for an intervention in the Historic Center of the first Brazilian capital, between 1987
and 1991. When analyzing the case of Ladeira da Misericórdia, approaches on counterpoints
are revealed and innovations that this intervention has established to safeguard cultural heri-
tage. The architect describes and justifies her actions and design intentions regarding Ladeira
da Misericórdia in two written works and in drawings made available by the Bardi Institute.
Thus, this study allows the construction of a panorama in which the theory, the creative process
and the interventional project compose an intricate network linked to the patrimonial issue.

KEYWORDS: Ladeira da Misericórdia of Salvador. patrimony. Lina Bo Bardi. Historic center.


creative process.

RESUMEN
El propósito de este artículo es analizar el discurso, las ideas de diseño diseñadas y la interven-
ción llevada a cabo para Ladeira da Misericórdia en Salvador, por la arquitecta Lina Bo Bardi
y sus colaboradores. Es un intento de vincular los escritos de la arquitecta con sus dibujos

373
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

arquitectónicos, realizados para una intervención en el Centro Histórico de la primera capital


brasileña, entre 1987 y 1991. Al analizar el caso de Ladeira da Misericórdia, se revelan enfoques
sobre contrapuntos e innovaciones que esta intervención ha establecido para salvaguardar el
patrimonio cultural. La arquitecta describe y justifica sus acciones e intenciones de diseño con
respecto a Ladeira da Misericórdia en dos obras escritas y en dibujos puestos a disposición por
el Instituto Bardi. Así, este estudio permite la construcción de un panorama en el que la teoría,
el proceso creativo y el proyecto de intervención componen una red intrincada vinculada al
tema patrimonial.

PALABRAS-CLAVE: Ladeira da Misericórdia de Salvador. herencia Lina Bo Bardi. Centro histórico.


proceso creativo.

374
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem a proposta de apresentar e analisar, de uma maneira qualitativa


e crítica, uma intervenção inserida em um patrimônio antigo, na Ladeira da Misericór-
dia em Salvador, integrante do Plano de Recuperação do Centro Histórico da cidade de
Salvador da década de 1980, realizado pela arquiteta Lina Bo Bardi. Busca-se revelar e
associar palavras e imagens de uma arquitetura concretizada no centro antigo de Salva-
dor, reclinando o olhar para os escritos e desenhos da arquiteta Lina Bo Bardi referentes
ao projeto-piloto para a Ladeira da Misericórdia.
No ano de 1986, o projeto- piloto da Ladeira da Misericórdia foi um partido estu-
dado e empreendido para testar a exequibilidade da solução no trecho específico, com
a intenção de ser reproduzida em massa para o Centro Histórico de Salvador. Existente
desde o século XVI, a Ladeira da Misericórdia era um dos caminhos históricos entre a
Cidade Alta e a Cidade Baixa de Salvador. Se estabelece no núcleo primitivo da cidade,
começa na esquina da Santa Casa da Misericórdia, na rua da Misericórdia, e culmina na
ladeira da Montanha.
O Centro Antigo da cidade de Salvador se estabeleceu na Cidade Alta, a qual, a
partir do final dos anos 1970 sofreu uma descentralização, em resposta a decisões polí-
ticas decorrentes da transferência das atividades de gestão e administrativas, como a
implantação do Centro Administrativo da Bahia, CAB[1], em 1972 às margens da Avenida
Paralela, a cerca de quinze quilômetros do centro da cidade. . Assim, o centro primitivo,
em virtude da renúncia das edificações por parte das camadas de alta renda como local
de moradia, trabalho, lazer, comércio e moradia e tomada pelas classes populares, iniciou
a se deteriorar. (VILLAÇA, 1998, p.283)
Por conseguinte, em 1986 Lina Bo Bardi, a convite do prefeito Mário Kertész, elabora
junto aos seus colaboradores o Plano de Recuperação para o Centro Histórico da Bahia. A
arquiteta se depara com o centro histórico com áreas degradadas em sua materialidade
e em decadência social (Figura 1) para a arquiteta havia ocorrido um “terremoto voluntá-
rio”. ( FERRAZ, 2008) A intenção do partido, então, era o de implementar uma intervenção
em larga escala, como o realizado em uma reconstrução de uma cidade bombardeada
após uma guerra, aspecto que Lina Bo Bardi comparava ao do centro histórico na época.
(CHAGAS, 2002, p.167)

[1] O CAB é um complexo público no qual está incorpora boa parte das secretarias e órgãos
do Governo do estado da Bahia. (Assembleia Legislativa, TRE-BA, Tribunal de Justiça do Estado
da Bahia e Secretaria de Turismo)

375
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Trata-se de um projeto que foi denominado por Maurício Chagas como sendo
“um experimento concretamente realizado, que teve por objetivo testar a viabilidade
técnica da proposta para a posterior definição de um partido de intervenção de maior
amplitude”(CHAGAS, 2002, p.13), sendo “tão ou mais polêmico que a sua autora”. (CHAGAS,
2002, p.14) Dantes, a Ladeira da Misericórdia, à vista disso, já era uma rua composta por
“casas assobradadas que vieram a desabar em consequência de fortes chuvas”. (BAHIA-
TURSA, 1992,s.p.)

Figura 1 - “Aspectos de ruína e destruição do Centro Histórico” de Salvador desenhado pela


Lina Bo Bardi. Fonte: Ferraz (1993. p.271)

Figura 2 - Desenho Livre de Lina Bo Bardi: Vista panorâmica da ladeira a partir de montagem

376
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O desenho acima (Figura2), mostra como a Ladeira da Misericórdia (LdM) se apre-


sentava em 1987, como foi encontrada pela arquiteta Lina Bo Bardi. A LdM apresentava
apenas três casas com suas fachadas em pé, uma parede em ruínas com três arcos, a
vegetação circundante e a árvore que posteriormente será uma das protagonistas da
arquitetura inserida. O projeto da arquiteta e de seus colaboradores para a Ladeira da
Misericórdia consiste na restauração de três habitações, a inserção de um restaurante
e de um bar no conjunto a ser edificado e/ou consolidado, trabalhando a questão da
relação entre comércio e habitação, inseridos no centro histórico. (CHAGAS, 2002, p.26)
A autora do projeto, a arquiteta Lina Bo Bardi, não realizou e idealizou tudo sozi-
nha, ela tinha uma equipe de colaboradores, os arquitetos Marcelo Ferraz e Marcelo
Suzuki, além disso, o objeto de estudo e outros de Salvador tiveram a participação de
João Filgueiras Lima (Lelé). Ferraz narrava sua genuína dedicação ao trabalho, a qual
não procurava resposta fáceis: “Sem tréguas! Sem afrouxar os cintos! Sem preguiça! Sem
soluções imediatas e fáceis!” . Um fato irrecusável e difícil de se passar despercebido em
seus projetos e desenhos era o cuidado em cada detalhe.
Dessa forma, a ação de laborar a arquitetura com palavras esteve constantemente
presente na carreira de Lina Bo Bardi, ela produziu mais de 400 textos ao longo de sua
vida, desde a Itália[2], escreve para jornais, revistas, livros, catálogos e editoriais, sendo
que dois terços foram produzidos no Brasil. Seus artigos sempre acompanharam seus
desenhos e indicam sua percepção do espaço construído em seus mínimos detalhes,
descrevendo desde sistemas construtivos à tecidos e equipamentos domésticos, o que
enfatiza sua importância para os usos dos espaços. A escrita acompanha o desenho e
vice-versa, assim como Grinover comenta: “Há um diálogo entre o texto e os desenhos,
sendo um o complemento, parênteses, epígrafe do outro.” (GRINOVER, 2010, p.116).
O desenho para Lina Bo Bardi não se limita a uma mera representação, ele faz parte
do processo de criação do projeto, é “a linguagem direcionada para o fazer, para o onde
e como” (GRINOVER, 2010, p.158). Os projetos de Lina Bo Bardi são repletos de desenhos

[2] Lina Bo Bardi nasceu em Roma, em 1914, formou-se em 1939 como arquiteta na Faculdade
de Arquitetura Roma. Em 1940, se muda para Milão onde trabalha com Giò Ponti na revista
Lo Stile até 1943 com seus escritos, suas diagramações e suas ilustrações. Em Milão também
abre o estúdio “Bo e Pagani”, em parceria com o arquiteto Carlo Pagani, o qual teve sua sede

sua inclinação ao Partido Comunista Italiano, no qual conheceu seu marido, o crítico de arte

de 1946. (INSTITUTO BARDI, 2018.)

377
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

em aquarela que parecem contar uma história, uma narrativa minuciosa. Seus croquis
representavam suas reflexões e intenções projetuais e, aliados a eles, uma característica
peculiar: seus escritos minuciosos.
A interpretação da confluência entre o projeto e ideias de Lina Bo Bardi, presente em
suas perspectivas a mão livre e escritos, abrem um leque de possibilidades analíticas ou
especulativas, que farão parte desse trabalho. Além de facilitar a sua visualização, serve
como um registro documental. O processo criativo do projeto é baseada em um fluxo
contínuo entre e abstração presente na mente do profissional (ideia) e a representação
gráfica (desenho), um constante exercício de representar no papel a imaginação do
arquiteto. (BORGES, NAVEIRO, 2001, p. 19-23)
O projeto-piloto para a Ladeira da Misericórdia em Salvador espelha a consolidação
de um discurso que privilegiava: a preservação de uma totalidade urbana em detrimento
de apenas um fragmento isolado; um serviço público e social ao propor uma solução
utilitária voltada para as classes de baixa renda; a mútua influência entre o macro e
micro na composição do projeto; e a utilização de tecnologia inovadora que possibili-
tasse utilizar as mesmas estruturas pré-fabricadas na composição de variadas funções,
como vedação, sustentação e laje.
Além de analisar a intervenção do ponto de vista dos seus resultados físicos e
aspectos conceituais, pretende-se avaliar também a contribuição do projeto-piloto para
a preservação dos núcleos históricos. Assim, ao realizar essa associação entre a pensa-
mentos e desenhos, o caso da Ladeira da Misericórdia (Figura 3) possibilita a construção
de um panorama sobre seu discurso acerca de projetos interventivos para a salvaguarda
do patrimônio edificado brasileiro.

Figura 3 - Ladeira da Misericórdia. Fonte: UFBA. Ladeira da Misericórdia Fonte: Foto disponível
em:_https://ladeiradamisericordia.ufba.br/it. Acesso: jan. De 2020.

378
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PRESERVAÇÃO DE UMA TOTALIDADE URBANA

A intenção do partido era o de implementar uma intervenção em larga escala, como


o realizado em uma reconstrução de uma cidade bombardeada após uma guerra, aspecto
que Lina Bo Bardi comparava ao do centro histórico na época. Para desenvolver este
plano, Lina Bo Bardi contará com a colaboração dos arquitetos Marcelo Carvalho Ferraz
e Marcelo Suzuki, além da parceria com o arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, e suas
experimentações construtivas em argamassa armada.(CHAGAS, 2002, p.167) O arquiteto
já trabalhava com o material e desenvolvia na Fábrica de Equipamentos Comunitários
(FAEC), da Prefeitura de Salvador.
O projeto objetivava alcançar a vida das pessoas, fomentar a preservação de uma
dinâmica cultural popular, ou seja, objetivava fomentar uma dinâmica de fluxos de
pessoas nas vias pertencentes ao centro histórico, na tentativa de perpetuar o presente
histórico, enfatizando a permanência dos moradores locais. Em relação a isso, Ferraz
comenta sobre o descarte do termo “revitalização” pois a “vida ali não faltava”, e acres-
centa com a fala de Lina Bo Bardi: “prostituição, bebida, drogas e crime, quer coisa mais
viva?”. (FERRAZ, 1993, p.270).
Assim, possui um caráter singular, uma vez que se trata de um Plano que abrange
pontos estratégicos da cidade distintos, não na intenção de restaurar monumentos,
mas de preservar a “alma popular” soteropolitana, evitando um centro histórico à guisa
de cenário. Assim como afirma Ferraz: “Para Lina Bo Bardi seria fundamental tratar o
centro histórico como um lugar pulsante, pleno de vivacidade, mas não como uma pai-
sagem artificial, como um cenário para mero deleite.”(FERRAZ, 1993, p.270). Destaca-se
que em meio à lógica urbanística do planejamento, serão desenvolvidos os seguintes
projetos (Figura 4):

379
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4 - Planta geral das intervenções propostas para o Centro Histórico de Salvador. Fonte:
FERRAZ,1993 (Adaptado pela autora).

Essa proposta urbana não se concretizou em sua totalidade pois não saiu do papel
a nova sede da Fundação Pierre Verger, a Casa de Cuba da Bahia, além os projetos desen-
volvidos paralelamente da Casa da Bahia, no Benin, e da Casa da Bahia em Cuba que
não se realizaram. Por conseguinte, esse projeto engloba e une edifícios e suas variadas
funções institucionais, culturais, habitacionais e comerciais. Se distingue, também, ao
se colocar contra um projeto com propósitos majoritariamente voltados ao turismo
e visa sobretudo uma reconstituição da primitiva função do centro : “um ponto de
encontro, trabalho, moradia e lazer da população”. (OLIVEIRA, 2014, p.142). Assim como
escrito pela arquiteta:
Não é um trabalho turístico, feito com a intenção de transformar o
Pelourinho numa cidade sorvete. (...) O “caso” do Centro Histórico da
Bahia é: não a preservação de arquiteturas importantes, (como seria em
Minas) mas a preservação da Alma Popular da Cidade. (...) Para evitar
isso estamos procurando juntar o trabalho à habitação (é a... Idade
Média ao contrário) e a um pequeno comércio: uma espécie de economia
subterrânea. (BARDI, apud FERRAZ, 1993, p.270)
A intenção era conectar pontos estratégicos internos do centro histórico para que
fosse possível a reconexão com o tecido urbano restante de Salvador, a viabilização das
diversas escalas dos edifícios e seus diferentes usos estarem em “vida”, ou seja, estarem
presentes no cotidiano dos soteropolitanos, em dinamismo de usos. (BIERRENBACH,

380
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ROSSETTI, 2004, p.2) Este plano apresenta uma complexidade social e econômica, Ferraz
diz que se se tratava de uma sucessão de projetos-pilotos que atraíram uma “recuperação
rápida, econômica e de qualidade”. “Rápida” pela tecnologia da estrutura pré-fabricada
utilizada; “econômica” pela produção em massa das peças que constitui a configuração
construtiva; e a “qualidade” pela precisão no planejamento e efetivação construtiva.
(FERRAZ, 2008)

Figura 5 - Desenhos do projeto para a Ladeira da Misericórdia. Fonte:INSTITUTO LINA BO E P.


M. BARDI, 2019.

Observando-se a figura acima (Figura 5), se é revelado que o processo criativo pro-
jetual persiste em torno de uma relação contínua entre o macro e micro, que é refletida
nos desenhos de Lina Bo Bardi, quando apreende o desenho geométrico dos telhados
(grifo amarelo e vermelho), do escalonamento ocasionado pelo desnível do terreno
(grifo roxo), das curvas geradas ao ligar os pontos dos escalonamentos. Apreende tam-
bém a irregularidade das alturas e das aberturas, dos cheios e vazios. Assim, ao visitar a
Fábrica de Equipamentos Comunitários (FAEC), da Prefeitura de Salvador, e observar os
projetos de componentes construtivos realizados e desenvolvidos em argamassa armada
pelo arquiteto João Filgueiras Lima, o Lelé, a arquiteta sugere um desenho geométrico
apreendido dos telhados (grifo amarelo), o zig-zag . Os painéis em argamassa plissada
possibilitaram construir edifícios cilíndricos e retangulares, dentre outros.

381
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A TÉCNICA

A solução adotada no projeto-piloto que buscava uma intervenção em larga escala


foi idealizada quando a arquiteta Lina Bo Bardi visitou a Fábrica de Equipamentos
Comunitários (FAEC), da Prefeitura de Salvador, e observou os projetos de componentes
construtivos realizados e desenvolvidos em argamassa armada pelo arquiteto João Fil-
gueiras Lima, o Lelé. Ela idealizava uma forma estrutural singular que se destacar-se da
arquitetura já existente, como relata:
Será um sistema de pré-moldados, perfeitamente distinto da parte his-
tórica, que será denunciado pela sua estrutura e pelo tempo atual.
Não vamos mexer em nada, mas vamos mexer em tudo (BARDI, apud
FERRAZ, 1993, p. 292).
Essa técnica construtiva possibilita uma intervenção de grande dimensão, pois
as soluções construtivas eram as mesmas para edifícios variáveis, destacando a efeti-
vidade da técnica seriada e pré-fabricada da argamassa armada. Pela sua versatilidade
de adaptação, a proposta era ideal e viável para uma área urbana e arquitetônica tão
heterogênea como o centro histórico de Salvador. A intervenção distribuía de forma
controlada os usos e as atividades, os quais deveriam impulsionar o dinamismo dos
espaços em redor, ativando todas as áreas urbanas do centro histórico, seja com o uso
habitacional, comercial, institucional ou cultural. (BIERRENBACH, ROSSETTI, 2014, p.5)
O material em questão, a argamassa armada, começou a ser pesquisada e utilizada
no Brasil a partir da década de 1950 por um grupo de professores da Escola de Engenha-
ria de São Carlos da Universidade de São Paulo. É uma tecnologia que se originou de
uma adaptação brasileira do ferro cimento, utilizado pelo Nervi. É o meio termo entre
o ferro cimento e concreto armado, pois possui uma quantidade intermediária de ferro
quando comparada a esses materiais. Ao longo dos anos um expoente na utilização e
divulgação dessa tecnologia foi o arquiteto João Filgueiras Lima, mais conhecido como
Lelé. Ele já havia empregado argamassa armada em seus projetos de uma larga forma e,
através de inovações tecnológicas e pela qualidade arquitetônica, originou o conceito de
pré-fabricação em argamassa armada, aplicando em seus projetos: “Fábrica de Escolas”;
“Fábrica de Canais da Cedae”, no Rio de Janeiro e o desenvolvimento e construção da
Rede Sarah de hospitais. (HANAI, 2012, p.132) Assim como é relatado de forma resumida
pelas palavras de Lina Bo Bardi:
Nós utilizamos, em colaboração com o arquiteto João Filgueiras Lima,
o “Lelé”, a argamassa armada, um sistema derivado do famoso ferro-

382
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

-cimentado do engenheiro italiano Pier Luigi Nervi, que o registrou em


1937 (BO BARDI, 1993, p. 295).
Os sistemas construtivos modulares simplificam a racionalização de suas peças
e são capazes de simplificar a elaboração do projeto e a execução da obra. Esse sistema
de pré-fabricação tem como vantagem a redução de perdas e consequente redução do
consumo de matérias primas. A argamassa armada é uma variação do concreto armado,
constituída por redes de aço com dimensão limitada, inseridas em um molde de arga-
massa estrutural, apresentando geralmente como característica a pouca espessura.
(HANAI, 2012, p.17)
Por conseguinte, essa técnica construtiva em Argamassa Armada também se caracte-
riza pela produção de peças de pequena espessura, esbeltas, as quais, consequentemente,
compõem um sistema construtivo mais leve, sua leveza também facilita seu transporte
e implantação no local[3], como os desenhos e fotos da figura abaixo (Figura 6). A escala
industrial e serial era uma característica do erudito que a arquiteta queria transformar
em algo utilizado pela população inteira, sem distinção, contrariando a estética da
pobreza e o encantamento pela miséria.

Figura 6 - Contrafortes, paredes plissadas e escadarias de argamassa armada (desenhos de


Lelé). Fonte: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 2000, p.151

[3] Pois não eram necessárias as práticas de remoção e reassentamento compulsório.

383
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

As peças pré-fabricadas para o projeto-piloto da Ladeira da Misericórdia consti-


tuem-se, basicamente, de componentes estruturais verticais na construção de paredes
de vedação, estabilização e contenção, e de componentes estruturais horizontais na
construção das lajes isostáticas e placas nervuradas. Essas duas tipologias estruturais
permitem inúmeras aplicações e soluções às heterogêneas tipologias e contextos, se
tornando uma opção desejada, assim, tanto a forma em caixotes adotada no Bar dos Três
Arcos, quanto a cilíndrica adotada no restaurante Coaty. (CHAGAS,2002, p.167) Como peças
de “Lego” que poderiam ser utilizadas de diversas maneiras na construção de formas
variadas. Essas peças conectam os edifícios preexistentes e remanescentes, e evidenciam
as intervenções. Maurício Chagas lista os componentes do sistema estrutural de pré-fa-
bricados utilizados no Projeto-Piloto da Ladeira da Misericórdia:
• módulos de lajes isostáticas de 65x65 cm, tipo caixão perdido com 20, 30 e 40
cm de espessura, armadas nas duas direções e vencendo vãos de até 6m; 168
• placas divisórias planas para as divisões internas;
• placas plissadas (com duas, três e quatro ondas) e altura máxima de três metros,
usadas nos contrafortes e nas contenções, e
• escadarias ajustáveis no local. (CHAGAS,2002, p.167, 168)

UM SERVIÇO PÚBLICO E SOCIAL

O projeto-piloto foi constituído a fim de ofertar habitação popular com uma inter-
venção em edifícios antigos aplicando uma novidade técnica em grande escala, seme-
lhante à reconstrução após uma destruição em massa. (CHAGAS,2002, p.161) A arquiteta,
aliada aos seus colaboradores e ao Lelé, trouxeram ao projeto uma industrialização
erudita para atender as classes menos favorecidas, transformando algo considerado
exclusivo em algo popular, na tentativa de resolver um problema, além dos imóveis em
ruínas, detectado pela Lina Bo Bardi:
“(...) outro problema muito sério, talvez mais importante do que a própria
restauração arquitetônica, é o problema social. Em geral, as pessoas são
tiradas das habitações, são providenciados outros abrigos na periferia
das cidades.” (BO BARDI, 1990. p.50)
A arquiteta tinha o cuidado de realizar desenhos explicativos do uso de cada espaço
como na, além de pensar em cada detalhe no projeto de interiores, como observado
abaixo (Figura 7), na qual ela separa um espaço para costura.. Os três antigos casarões
agora abrigam 9 apartamentos e 3 áreas de comércio no térreo. Os arquitetos também

384
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

planejaram o mobiliário interno, separando às vezes uma de trabalho dentro da residên-


cia imitando o que já era comum nas casas do Centro Histórico de Salvador. O projeto
busca se adequar à cultura local, ou seja, ao que já é comum para a população residente,
assim comentado pela arquiteta:
A idéia geral é de se fazer, embaixo, comércio de subsistência, ‘sub’áquea’,
isto é, produção de comidas, pequenos trabalhos, recuperação, res-
tauração, consertos de coisas. E, em cima, habitação. Aquilo que existe
atualmente na Bahia é justamente este tipo de coisa. Esta é a idéia que
acompanha a restauração arquitetônica do Centro Histórico de Salvador.
(BO BARDI, 1993, p. 295).

Figura 7 - Casa nº 07: Corte indicando usos e planta com indicação das divisórias pré-fabricadas.
Fonte: ILBPMB,2019

O projeto combina uma solução que engloba o serviço público e social com preser-
vação do patrimônio histórico. Dessa maneira, propõem uma solução utilitária voltada
para as classes de baixa renda, agregado ao seu valor histórico e cultural. Até porque
para Lina Bo Bardi o valor do patrimônio histórico está em ser utilitário para as classe
populares, permitindo sua ressignificação, recuperação de sua materialidade, assim

385
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

como Argan posteriormente defende a importância de permitir a “comunidade urbana”


a “reavaliar” e “reinterpretar” os monumento históricos, mais do que serem valorados
pelos especialistas.(ARGAN, 1995, p.220). Quanto a isso, a arquiteta comenta:
“Agora, a idéia principal de recuperação em Salvador é justamente a de
manter a população que mora nas cidades que precisam ser restauradas
e recuperadas” (BARDI, apud FERRAZ, 1993, p. 292).
Além disso, havia um valor social agregado na destinação dos edifícios finaliza-
dos a favor da habitação econômica para a população local, devolvendo o patrimônio
aos próprios moradores, na tentativa de requalificar a vivência cotidiana e a chamada
cultura popular. Como já falado, o projeto-piloto para a Ladeira da Misericórdia era
somente uma referência, a ponta do estopim que se alastraria para todo o ambiente
urbano se fosse viável.

CONCLUSÃO

O Centro Histórico de Salvador em sua gênese era o núcleo central da cidade con-
siderado um lugar nobre, porém com o passar dos anos se transforma em uma área
periférica, habitada pela classe menos favorecida. Agora, como Patrimônio Cultural, o
projeto interventivo prevê utilizar um sistema construtivo considerado nobre e tecno-
lógico para a construção de habitações sociais em escala serial.
A proposta de Lina Bo Bardi para a Ladeira da Misericórdia apresenta para a época
um princípio inovador relacionado a proporção almejada. A ambição era produzir um
sistema de elementos pré-fabricados industriais a fim de efetivar uma intervenção não
apenas pontual, mas na totalidade do Centro Histórico. Além disso, havia um valor social
agregado na destinação dos edifícios finalizados a favor da habitação econômica para
a população local, devolvendo o patrimônio aos próprios moradores, na tentativa de
requalificar a vivência cotidiana e a chamada cultura popular.
A tecnologia de ponta é utilizada como um recurso a favor de benefícios sociais, na
tentativa de suprir as necessidades da massa populacional. Os arquitetos colaboradores,
Lina Bo Bardi e Lelé, reconhecem a industrialização, a economia e os recursos naturais
como instrumentos de mediação na busca de uma arquitetura inclusiva. trouxeram ao
projeto uma industrialização erudita para atender as classes menos favorecidas, trans-
formando algo considerado exclusivo em algo popular.
Essa inovação estrutural acarretou um ceticismo quanto a fragilidade estrutural
do sistema construtivo proposto. Mesmo com todos os anos de abandono, a estrutura
em teste não foi a causa do fracasso, como os céticos acreditavam. Contudo, a inefici-

386
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ência do projeto se deu por razões políticas, pois sua continuidade era dependente do
poder administrativo local. Assim, em 1989, com a posse do novo presidente eleito, é
encerrado o auxílio à efetivação dos planejamentos associados ao governo anterior.
(CHAGAS,2002, p.161)
As maiores contribuições do projeto-piloto se baseiam em um pensamento que
almeja uma abrangência maior que um único monumento, uma única função ou utili-
dade. Primeiro, pelo pensamento de que aquela área fazia parte de um contextualizado
centro histórico com uma dinâmica de fluxos. Onde poderia ser implantado uma dinâ-
mica nova ao inserir no final da ladeira um Restaurante e um Bar, além de comércios
locais no térreo de cada edifício. Segundo, pela inovadora tecnologia em que possibilitava
utilizar as mesmas estruturas pré-fabricadas na composição de variadas funções, como
vedação, sustentação e laje, além de compor variadas formas arquitetônicas como as
paredes escalonadas do Bar dos Três Arcos e os cilindros do Restaurante Coaty. Terceiro,
pelo serviço público e social que almeja alcançar em favor da massa populacional menos
favorecidas.

387
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

ARGAN, Giulio Carlo História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.

SalvadorBahia, Terra da Felicidade. Unidade da Biblioteca, 1992.

BIERRENBACH, A. C. S ; ROSSETTI, E. P. . Lina Bo Bardi reloaded: vestígios,

line) , v. 2, p. 74-86, 2014.

BARDI, Lina Bo. Ladeira da Misericórdia: Plano piloto. Revista Projeto, São Paulo,
n. 133, 1990.

BARDI, Lina Bo. Ladeira da Misericórdia. Jornal da Bahia, Salvador, 25 abr. 1991.

Goldberger), 2ª edição. São Paulo: Perspectiva, 1981.

das formas tradicionais e recursos computacionais para a representação do


projeto. Rem: Rev. Esc. Minas [online]. 2001, vol.54, n.1, pp.19-23.

CHAGAS, Maurício de Almeida. Modernismo e tradição: Lina Bo Bardi na Bahia.


Dissertação de mestrado. Orientador Antonio Heliodório Lima Sampaio. Salvador,
FAUFBA, 2002.

FERRAZ, Marcelo (org.). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi,
1993.

FERRAZ, Marcelo Carvalho (coord). Lina Bo Bardi. São Paulo: Instituto Lina Bo

experiencia-com-lina/. Acesso: dezembro, 2019.

Dissertação Mestrado - Área de Concentração: História e Fundamentos da


Arquitetura e Urbanismo - FAUUSP. São Paulo, 2010.

HANAI, J. B. Construções de Argamassa armada: fundamentos tecnológicos para


projeto e execução. São Paulo: PINI. 2012.

388
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

br/?page_id=87 .Acesso em dez de 2018.

Blau, 2000.

JORGE, Luís Antônio. “As lições da arquitetura brasileira de Lina Bo Bardi” in


Revista Projeto, edição 212, pág.105, 1997.

br//tde_busca/ arquivo.php?codArquivo=2775.

Universidade de São Paulo, 2011.

da Misericórdia. Disponível em: https://ladeiradamisericordia.ufba.br/sites/

da_misericordia_dossie.pdf. Acesso: dez, 2019.

1998.

Nelson Kon. Editora Gustavo Gili Brasil, 2014.

389
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTERVENTING IN HERITAGE: THE “HISTORICAL


FAUX”, THE PRINCIPLE OF DIFFERENTIATION OF
NEW PARTS AND RELATED ISSUES

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

LUCCAS, Luís Henrique Haas


Doutor em Arquitetura; PROPAR-UFRGS
luis.luccas@ufrgs.br

390
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Res umo
O texto apresenta um conjunto de notas sobre intervenções em patrimônios construídos frente
aos princípios estabelecidos por Cesare Brandi na teoria do restauro. São examinados impasses
e controvérsias presentes nestas operações, que se concentram nas dimensões do tempo e da
materialidade. A recente ampliação do conceito de patrimônio determinou o crescimento acen-
tuado do acervo protegido, que passou a incluir bens com reduzido valor histórico-artístico (e
arqueológico), na categoria dos “lugares de memória”: além dos parâmetros técnicos e eruditos
rigorosos, começaram a ser utilizados critérios subjetivos, contribuindo para a relativização
da hierarquia patrimonial e a valorização indiscriminada da materialidade dos bens. Neste
contexto é superestimado o risco de incidência do “falso histórico”, ocasionando a utilização
acrítica do “princípio da diferenciação das partes novas”, aplicado indistintamente à ampliações
e reparos de todas as categorias e dimensões; um recurso que recebe a atribuição questionável
de datar a intervenção, o que deriva claramente do vício moderno presente na interpretação
dos princípios que norteiam a atividade, como também se busca demonstrar.

PALAVRAS-CHAVE: intervenção patrimonial, restauro, Cesare Brandi, falso histórico

A BSTRACT
This paper presents a set of notes on interventions in built heritage, before the principles esta-
blished by Cesare Brandi in his theory of restoration. It discusses impasses and controversies
present in these operations, focusing on the dimensions of time and materiality. The recent
expansion of the concept of heritage leaded to a substantial growth of the collection of works
to be protected, in order to include items of small historical-artistic (and archaeological) value,
in the category of “places of memory”. In addition to strict technical and academic parameters,
subjective criteria also started to be used, contributing to the relativization of the patrimonial
hierarchy and to an indiscriminate overestimation of the material aspects of a piece of work.
In this context, the risk of incidence of the “historical faux” (il falso storico) is inflated, which
may imply the acritical use of the “principle of differentiation of new parts”, when indistinctly
applied to additions and repairs of all kind and length. Consequently, this resource is misun-
derstood as a demand for dating the intervention, which clearly derives from a modern bias
attached to the interpretation of the principles that guide the activity.

KEY WORDS: heritage intervention, restoration, Cesare Brandi, historical faux

391
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Resu men
El texto presenta un conjunto de anotaciones sobre intervenciones en patrimonios construi-
dos frente los principios establecidos por Cesare Brandi en la teoría del restauro. Se examinan
impases y controversias presentes en esas operaciones, que se concentran en las dimensiones
del tiempo y de la materialidad. La reciente ampliación del concepto de patrimonio determinó
el crecimiento acentuado del acervo protegido, que pasó a incluir bienes con reducido valor
histórico-artístico (y arqueológico), en la categoría de los “lugares de memoria”: además de
los parámetros técnicos y eruditos rigurosos, comenzaran a ser utilizados criterios subjetivos,
contribuyendo para la relativización del rango patrimonial y la valorización indiscriminada
de la materialidad de los bienes. En ese contexto es sobrestimado el riesgo de incidencia de lo
“falso histórico”, ocasionando la utilización acrítica de lo “principio de diferenciación de las
partes nuevas”, aplicado indistintamente a ampliaciones y arreglos de todas las categorías e
dimensiones; un recurso que recibe la atribución cuestionable de datar la intervención, lo que
deriva claramente del vicio moderno presente en la interpretación de los principios que nortean
la actividad, como también se busca demonstrar.

PALABRAS-CLAVE: intervención patrimonial, restauración, Cesare Brandi, falso histórico

Introdução

A ampliação do conceito de patrimônio ocorrida nas últimas décadas ocasionou


o aumento acentuado de bens preservados no Brasil, seguindo a tendência global. E
isto configurou uma reação proporcional à destruição e descaracterização crescente do
patrimônio na escala da edificação e da paisagem, seja ela urbana, rural ou a própria
natureza com a marca humana. Os acervos protegidos municipais, estaduais e federal
passaram gradativamente a incluir exemplares da arquitetura moderna – com linhagem
das vanguardas construtivas europeias e do chamado art-déco redimido recentemente – e
mesmo contemporânea com valor histórico-artístico[1] reconhecido; mas, sobretudo, bens
carentes destes atributos protegidos de modo crescente pela importância identitária, que
integram a categoria dos “lugares de memória”.[2] Esta modalidade constitui grande parte

[1] Vale lembrar que o valor “histórico-artístico” surge da associação dos termos atribuída
a Riegl (2014) em “O Culto Moderno dos Monumentos” (1903). É utilizado aqui para apartar o

representativo do bem.

[2] O desaparecimento da memória nos termos da sociedade pré-industrial e a “aceleração


da história” estão na origem do conceito formulado por Pierre Nora; são festas, comemorações,

392
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

do acervo preservado de modo recente e volta-se à proteção de conjuntos – ou “paisagens


culturais” –, como seria natural. Mas também abrange obras isoladas que caracterizam
contextos, com destaque para as chamadas “peças urbanas”[3], como o caso do Hospital
de Clínicas de Porto Alegre, cujas versões sucessivas do projeto empobreceram a proposta
inicial (1942) de Jorge Machado Moreira; sem a exemplaridade que justifica o tomba-
mento, o bloco laminar moderno foi protegido pelo município como “Bem Inventariado
de Estruturação”, por caracterizar seu entorno: diferente do tombamento, o inventário
busca preservar características externas de conjuntos ou edificações consideradas de
interesse sociocultural, para a preservação de espaços referenciais de memória coletiva,
estruturadores da paisagem e da ambiência urbana e rural do Município.
A Constituição Federal brasileira de 1988 ampliou corretamente a definição de
monumento patrimonial através de seu Artigo 216, substituindo a denominação “patri-
mônio histórico-artístico” pelo termo mais abrangente “patrimônio cultural”. O Decre-
to-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, definia como patrimônio “o conjunto de bens
móveis e imóveis existentes no País e cuja conservação seja de interesse público, quer
por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional
valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico”. Já a Constituição recente
estabeleceu como patrimônio cultural os bens “de natureza material e imaterial, toma-
dos individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à
memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, confirmando o
sentido atual representativo e democrático do conceito. Esta redefinição permitiu a sal-
vaguarda de exemplares sem valor histórico-artístico nos moldes convencionais, o que
não pode ser relativizado; a seleção de bens culturais passou a incluir outros critérios,
além dos parâmetros técnico e eruditos com maior rigor utilizados até então. Contudo,
não é possível afirmar inexistência de valor histórico-artístico nessa classe de monu-
mentos culturais, já que na acepção atual sempre há algum grau de historicidade, seja
na escala da micro-história, da história antropológica, dos costumes e da vida privada,
entre outras, além do conceito de “lugar de memória” citado e da correspondente escolha
de bens elevados a monumentos. É válida a mesma cautela para designar casos sem pro-
teção legal, tratáveis como “bens com valor material predominante”, evitando equívocos.

monumentos, e outros “sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade


que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos” (NORA, 1993, p. 13): o meio se torna
suporte para formação da memória coletiva através dos espaços construídos.

[3] Piéce urbaine foi o termo cunhado nos anos setenta por arquitetos franceses, destaca-

da conformação de lugares.

393
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Este conjunto de notas analisa impasses presentes na intervenção em patrimô-


nios culturais, buscando contribuir para a superação dos mesmos. Propõe não haver
precisamente convergências e confrontos entre teorias de conservação ditas “clássica” e
“contemporânea”, mas interpretações subjetivas de uma única teoria acabada – e passível
de falhas – que fundamenta hegemonicamente as intervenções atuais de conservação e
transformadoras: a teoria do restauro de Cesare Brandi e a continuidade “crítico-conserva-
tiva” de Giovanni Carbonara. Teoria Contemporânea do Restauro é o livro publicado por
Salvador Muñoz Viñas, antes que uma teoria com a necessária coesão; constituindo uma
alternativa à hegemonia italiana, o espanhol reconhece o “estado difuso” (MUÑOZ VIÑAS,
2003, p.13) deste conjunto conveniente de críticas e revisões aos princípios patrimoniais
vigentes predominantemente brandianos. A abordagem de intervenção proposta por
Carbonara apresenta uma posição intermediária às outras duas “escolas de restauro”
destacáveis – e divergentes entre si –, representadas por Marco Dezzi Bardeschi e Paolo
Marconi, o qual possui posições polêmicas, especialmente no que diz respeito ao “falso
histórico”, ao considerar hoje viável e adequado o completamento de obras antigas com
técnicas e materiais originais. Simona Salvo expõe as divergências que transpõem o
grupo restrito, ao qualificar como repristino intervenções com a chancela do Docomomo
em obras modernas, como será exposto. De fato, há uma crítica crescente às bases de
conservação instituídas, buscando possíveis fissuras no corpo teórico vigente; o que
reafirma sua consistência, se não comprova falhas.

Publicada pela primeira vez em 1963, a teoria do restauro de Brandi é mantida


vigente pelo rigor resultante “da experiência crítica pessoal do autor [em conservação],
bem como de suas elaborações e pesquisas no campo filosófico e estético”, como Car-
bonara testemunha na apresentação da versão brasileira (In Brandi, 2004, p. 9). Brandi
alinha arquitetura com arte ao estabelecer seus princípios de intervenção fundados em
reflexão dialética, permitindo que os mesmos critérios estabelecidos para interferir em
um documento, uma pintura ou uma escultura possam ser transpostos para a arquite-
tura. Segundo Carbonara,
Brandi busca as pedras angulares sobre as quais fundar a própria
teoria em outra sede, fora do campo próprio à conservação, fora de seu
âmbito especulativo e de sua atormentada vicissitude histórica; prefere
remeter-se, por princípio e por via dedutiva, diretamente à estética e à
filosofia da arte, investigada por ele de modo paralelo à restauração.
(In Brandi, 2004, p. 14)

394
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Entretanto, parece supérfluo lembrar que sua teoria do restauro é a revisão e com-
pletamento do conjunto de princípios que vinha sendo constituído de modo teórico-
-prático pelos envolvidos nesse campo desde Camilo Boito, cujas eventuais contradições
de sua obra não diminuem a importância de seu legado, ao estabelecer de forma pre-
cursora princípios instituídos pela disciplina, como a ênfase no valor documental dos
monumentos, o respeito pela pátina e sinais da passagem do tempo, a minimização de
intervenções e o princípio da distinguibilidade, que juntos delineavam o princípio da
reversibilidade (Beatriz Kühl in BOITO, 2014, p. 27). Ao que se poderiam somar outros
aportes mencionados por Carbonara (In Brandi: 2004, p. 9), como a “dívida implícita
no que concerne à contribuição teórica de Alois Riegl”, a definição de restauro como
“ato de cultura”, efetuada por Renato Bonelli, e a afirmação do “restauro crítico” deste e
Roberto Pane.
Como é conhecido, Carbonara se destaca no cenário atual estabelecendo a referida
continuidade com a teoria brandiana através do “restauro crítico-conservativo”, no qual
defende que cada intervenção é um caso específico, incapaz de ser enquadrado em
classes e, como consequência, ser submetido a regras pré-estabelecidas: a conservação
e intervenção devem ser solucionadas caso a caso pelo restaurador, através do “juízo
crítico”. A posição de Bardeschi é radical em defesa da conservação integral – a “pura
conservazione” – com a manutenção de todas as estratificações da obra, mesmo que isso
resulte numa leitura fragmentada: a decisão do que deve permanecer e ser removido não
pode apoiar-se em “juízo crítico” por sua relatividade, mas na história. Há, entretanto,
a corrente de preservação representada por Marconi, a “manutenzione-ripristino”, que
diferencia réplica de falsificação, defendendo a reconstrução de monumentos desapare-
cidos de modo traumático (figura 1). E isto diverge da hegemonia instituída pela teoria
de Brandi, cujos princípios são interpretados de modo equivocado com frequência; o
que parece estar na raiz da valorização indiscriminada da materialidade das obras, tra-
tada como documento sem distinção de classe patrimonial, causando o uso acrítico do
“princípio da diferenciação das partes novas” em diferentes categorias de ampliações,
reparos e até conservação, sob o argumento de evitar o “falso histórico”. Vale destacar a
superação do conceito de Restauro restrito a obras de arte, como defende Muñoz Viñas e
o próprio texto mostra; e que revisões necessárias vêm sendo efetuadas na continuidade
estabelecida por Carbonara.

395
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: A Ponte Pietra de Verona, destruída na Segunda Guerra, cujo repristino foi defendido
por Marconi. Fonte: autor, 2015.

Ter-se-á, portanto, uma restauração relativa aos manufatos industriais


e uma restauração relativa às obras de arte: mas, se a primeira acabará
por tornar-se sinônimo de reparação ou de restituição de um estado
anterior, a segunda disso se diferenciará, não só pela diversidade das
operações a serem efetuadas. (BRANDI, 2004, p. 26)
O restauro é uma modalidade de intervenção patrimonial definida precisamente por
Brandi em sua teoria. Entretanto, o próprio sentido corrente da palavra é conflitante com
a definição brandiana, ao significar um ato que “repara”, “recupera”, “conserta” uma obra
de arte; ou um “trabalho feito em obra de arte ou construção, visando restabelecer-lhes as
partes destruídas ou desgastadas”, a “volta a um estado anterior” (Houaiss, 2001, p. 2442).
A interpretação literal do problema constrange qualquer ato de intervenção, por mais
sutil que seja, por alterar a situação presente do bem – sua situação temporal, segundo
Brandi – e o curso natural, “falseando” o tempo presente do “documento”.

396
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Concentram-se nas dimensões do tempo e da materialidade os impasses e contro-


vérsias detectáveis na preservação de bens construídos e respectivas operações diversifi-
cadas que prolongam, restabelecem ou alteram seu uso. É atribuído um papel cronológico
incômodo às partes novas das intervenções, como se pretende demonstrar, que parece
derivar da interpretação distorcida dos princípios patrimoniais instituídos, como se a
função estivesse implícita. Também parece ter origem interpretativa o valor documental
dúbio imposto à materialidade das obras, irrestrito e central, contestável especialmente
nas classes citadas sem valor arquitetônico relevante e histórico-artístico consequente;
e isto superdimensiona o risco de incidência do “falso histórico”, estendendo o princípio
da diferenciação das partes novas indistintamente à ampliações e reparos de todos os
tipos e extensões: há necessidade de se definirem limites entre a conservação e o res-
tauro reparador – que abrangem recomposição de elementos comuns e substituição de
componentes industrializados sem importância arqueológica[4] – e a intervenção trans-
formadora com usuais acréscimos e supressões que demandam clareza. A preferência
atual pela complementação diferenciada das obras tenta ignorar o princípio proposto:
O primeiro [princípio] é que a integração deverá ser sempre e facilmente
reconhecível; mas sem que por isso se venha infringir a própria unidade
que se visa a reconstruir. Desse modo, a integração deverá ser invisível
à distância de que a obra de arte deve ser observada, mas reconhecível
de imediato, e sem necessidade de instrumentos especiais, quando se
chega a uma visão mais aproximada. (BRANDI, 2004, p. 47)
Quanto ao valor arquitetônico mencionado, aqui se defende que a correta avaliação
“artística” da arquitetura requer erudição na área, mais que formação específica, pela
plasticidade ser indissociável de configuração espacial e funcionalidade conexa, a partir
da modernidade, bem como da materialidade e respectivas qualidades técnico-constru-
tivas; e isto diverge da posição transcrita abaixo. É válido advertir que arquitetura não
é exatamente arte, mas concepção de bens predominantemente utilitários que requer
sensibilidade artística.
[...] mesmo que entre as obras de arte haja algumas que possuam estru-
turalmente um objetivo funcional, como as obras de arquitetura e, em
geral, os objetos da chamada arte aplicada, claro estará que o resta-
belecimento da funcionalidade, se entrar na intervenção de restauro,
representará, definitivamente, só um lado secundário ou concomitante,

[4] É bom lembrar que os materiais possuem valor arqueológico quando apresentam excep-
cionalidade, auxiliando o estudo das diferentes culturas através do tempo.

397
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e jamais primário e fundamental que se refere à obra de arte como obra


de arte. (BRANDI, 2004, p. 26)
Deste modo, parece não serem necessários exatamente especialistas nas intervenções
transformadoras em patrimônios, mas arquitetos qualificados e com a sensibilidade
necessária para a prática ampla do ofício, na falta de profissionais com maestria demons-
trada também em intervenções notáveis, como Carlo Scarpa, Ludovico Quaroni, Lina
Bo Bardi e Paulo Mendes da Rocha. E isto é defendido por serem tratados problemas de
arquitetura, acima de tudo. Comas (2011, p. 58) propõe que “o restauro ortodoxo se declara
disciplina com metodologia, princípios teóricos e procedimentos técnico-operacionais
que lhe são próprios, e nada pode ter a ver com a fantasia e invenção insubstituíveis
na arquitetura”. Ou seja, a obra heterocrônica resultante (pertencente à duas épocas)
necessita da sensibilidade artística própria da arquitetura para manter-se patrimônio
ou mesmo ascender à condição, como ocorreu com a velha fábrica que Lina transformou
no SESC Pompéia (1977-1982). E preservação implica manter o uso e, como consequência,
atualizar de modo estático, técnico, funcional e nos demais âmbitos.
Decorrentes do crescimento recente desta modalidade de projeto, as polêmicas
ampliadas de modo proporcional ganharam visibilidade através de publicações em
anais de eventos e periódicos científicos, entre outras mídias, expondo divergências
entre aqueles arraigados aos princípios patrimoniais instituídos e respectivas legislações
– expertos em preservação e restauro que representam órgãos patrimoniais de modo
predominante –, e aqueles que reclamam maior liberdade projetual, arquitetos respon-
sáveis pelas obras comumente voltados à prática ampla. Os primeiros devem possuir
erudição em história da arte e da arquitetura e domínio técnico em preservação e restauro,
apresentando qualificação para definir a proteção de bens, diretrizes de intervenção e
seu exercício. Os últimos desenvolvem habitualmente essa prática de modo empírico,
tendo contato com princípios de preservação e legislações que delimitam as intervenções
principalmente através das diretrizes emitidas pelos corpos técnicos dos respectivos
órgãos de salvaguarda – e isso não significa que conhecimento técnico e erudição não
ocorram. Reivindicam maior autonomia nas interferências, o que é justo em parte, desde
que isso não seja pretexto para encobrir abordagens equivocadas causadas por narci-
sismo projetual, desconhecimento do tema ou predomínio de motivações econômicas.
E a matéria complexa também desperta o interesse de acadêmicos de modo crescente.

398
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Materialidade como documento

Dos órgãos de defesa patrimonial e restauradores de ofício, predominantemente,


partem firmes defesas dos princípios de preservação instituídos e sérias críticas à arbitra-
riedade. O destaque cabe à recente preservação de patrimônios modernos com a chancela
do Docomomo, sobre a qual pesam acusações da prática de reconstrução ou repristinação;
e isso incidiria na questão temporal produzindo o chamado “falso histórico”.
O refazimento [...] pretende replasmar a obra, intervir no processo cria-
tivo de maneira análoga ao modo como se desenrolou o processo criativo
originário, refundir o velho e o novo de modo a não distingui-los e a
abolir ou reduzir ao mínimo o intervalo de tempo que aparta os dois
momentos. (BRANDI, 2004, p. 73)
Simona Salvo denuncia que a recuperação da arquitetura moderna não é feita
da forma correta como são tratadas arquiteturas anteriores, o que provém da ideia de
que ela “não seja restaurável segundo os preceitos da disciplina do restauro – por sua
particular consistência, a rebelar-se contra qualquer forma de conservação, e por sua
figuratividade, impossível de ser transmitida, se privada de sua integridade e perfeição”
(SALVO, 2008, p. 200). E acentua que é negada “a incidência daquele breve, mas densís-
simo, lapso de tempo transcorrido entre a criação da obra moderna e sua recepção no
presente”. Segundo ela,
Quando, entre 1988 e 1989, um grupo de arquitetos pertencentes à Tec-
nische Universiteit Delft (Universidade Técnica de Delft) funda o Interna-
tional Working Party for Documentation and Conservation of Buildings,
Neighbourhoods and Sites of the Modern Movement (DOCOMOMO), já
existem todas as premissas para a difusão e o radicar-se de uma aborda-
gem retrospectiva e tecnicista. Alheios a qualquer formação no campo do
restauro, mas firmes no princípio que a tutela da arquitetura moderna
deva ser uma experiência autônoma em relação à aproximação tradicio-
nal ao restauro, considerado de modo apodítico como inadequado para
resolver as questões técnicas e operacionais, os membros da associação
seguem a via da repristinação. (Salvo, 2008, p. 201)
Deve-se considerar que ainda não estava tão presente a necessidade de interven-
ções em edificações modernas em meados do século XX, quando era formulada a teoria
do restauro, com a análise de questões relativas aos materiais industrializados. Brandi
defendeu a necessidade de registro da passagem do tempo através da pátina, também
tratada antes por Riegl, fonte visível de sua reflexão:

399
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Mas devemos prospectar também o caso das obras de arte para as quais
o artista não tenha necessariamente previsto o envelhecimento como
um modo de concluir-se no tempo da sua obra, um completamento à
distância. (Brandi, 2004, p. 72)
A afirmação parece remeter à síntese formulada por Riegl exatas seis décadas antes
da teoria, em “O culto moderno dos monumentos” (1903), ao abordar a relação dos valores
de memória envolvidos. Segundo ele, “a antiguidade de um monumento apresenta-se,
a um primeiro olhar, pelo seu aspecto inatual”, o que não se deve tanto “ao estilo fora
de moda”, mas à incompletude do bem, “à falta de coerência, por certa tendência à
dissolução da forma e da cor, que constituem características claramente opostas às do
objeto moderno, ou seja, criações recentes” (Riegl: 2014, p.50). E conclui que isso torna
o “valor de antiguidade” de fácil reconhecimento, acessível às massas, prescindindo do
conhecimento de história da arte necessário à identificação do “valor histórico”. Por fim,
lembra que, a partir do momento que o objeto elaborado pelo homem ou natureza é
formado, passa a sofrer a destruição das forças da natureza: “a antiguidade se exprime
mais pelo efeito óptico da decomposição da superfície – influência do tempo, pátina
–, do desgaste de ângulos e cantos, que revela, portanto, a inexorável e implacável ação
de dissolução provocada pela natureza”. Opostamente, o “querer da arte moderno” não
admite sinais de degradação, constituindo o “valor de novidade”:
[...] uma casa recém-construída, com o revestimento desmoronando
ou oxidando, perturba o observador, que exige de uma casa nova uma
perfeição no acabamento da forma e da policromia. Naquilo que foi
criado novo, os sinais de ruína não agem de forma expressiva, mas de
forma irritante. (Riegl, 2014, p. 50)
É consensual que a arquitetura moderna “envelhece mal”, o que aqui não se refere
à qualidade construtiva, mas ao efeito que lhe causam “os sinais de ruína” e a pátina que
testemunha o tempo transcorrido, sendo esta admitida apenas de modo sutil. É fato que
construções com a linhagem das vanguardas construtivas europeias se demonstram mais
vulneráveis ao deterioro, tanto em extensão de casos quanto rapidez do revés, mas isso
não constitui uma regra: há edifícios modernos “bem construídos”. Entretanto, o que
está se examinando neste momento é seu difícil convívio com a avaria que “perturba o
observador”: a recepção da obra desgastada pelo público é negativa, e isso define o valor
de novidade estabelecido por Riegl, mas não explica o fenômeno. As obras modernas
necessitam manter-se “jovens”, admitindo limitados sinais do tempo (figura 2), diferen-
temente das construções antigas de cidades como Roma, onde o desgaste das formas e
da pintura das edificações pode acentuar sua beleza: é realçado o “valor de antiguidade”

400
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

riegliano, que dispensa erudição para ser usufruído, o que o torna acessível ao público
mais amplo (figura 3).

Figura 2: Obras modernas como a Vila Savoye admitem uma margem muito baixa de sinais do
tempo. Fonte: autor, 2014.

Figura 3: O desgaste dos velhos edifícios na Via dei Coronari, em Roma, complementa o cenário
pitoresco. Fonte: autor, 2017.

401
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O problema é mais complexo, mas cabe destacar que as arquiteturas recentes


apresentam, além de materialidade e aparência diversas das construções tradicionais,
elementos industrializados e acabamentos precisos que não admitem desgaste, neces-
sitando substituição de componentes e manutenção das superfícies; o que não ocorre
com as obras modernas ditas brutalistas, que rompem com o aspecto ligeiro estandar-
dizado e assimilam o deterioro de modo satisfatório. Entretanto, o restauro recente do
apartamento de Le Corbusier no Edifício Porte Molitor demonstra ser possível manter
determinada margem das marcas da idade – pelo menos em interiores –, como ocorreu
através da preservação do piso desgastado e dos equipamentos restaurados com menor
acuidade, o que não parece ter decorrido apenas de fatores econômicos (figura 4).

Figura 4: O restauro recente da Penthouse Le Corbusier manteve a idade legível nos elementos
desgastados. Fonte: autor, 2018.

Deste modo, a conservação de edificações utilitárias contendo artefatos industria-


lizados é outro tema com controvérsias que necessitam reflexão, considerando que a
utilização demanda contínua manutenção e substituição de elementos. A assimetria
entre a pouca importância documental/arqueológica de componentes construtivos
recentes, similares aos atuais, e a materialidade de bens antigos, também não pode ser
relativizada. É verdade que existe uma hierarquia entre as diferentes partes das obras,

402
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

como instalações, revestimentos e paredes; de qualquer maneira, parece mais difícil


precisar onde termina a conservação e começa o repristino nestes casos.

Tempo e cronologia

Patricia Nahas afirma “que ainda é muito incipiente no Brasil a compreensão dos
princípios basilares do restauro por parte dos arquitetos” (2017, p. 73), ao examinar a
experiência empreendida no país entre 1980 e 2010. Em seu recorte de obras significativas
realizadas durante três décadas, detecta oito tendências de intervenção representativas:
Autonomia, Diferenciação, Repristino, Reinterpretação, Apropriação, Completamento,
Conservação e Reintegração. Conclui que “a maior parte dessa produção se afasta dos
critérios prescritos pelo campo disciplinar do restauro, onde a prática dá lugar ao arbítrio
e experimentação sem o rigor e juízo crítico pautado na significação da obra preexistente”.
A autora adverte que sua análise interpreta o pensamento de Brandi e Carbonara, sendo
um dos casos examinados o Completamento da Catedral da Sé, em São Paulo, onde foram
concluídos os torreões e agulhas não executados durante a obra, cinquenta anos antes:
O arquiteto Paulo Bastos havia apresentado uma proposta, em 2000, de
construir os torreões e agulhas na mesma posição prevista no projeto
original, mas com técnicas e materiais modernos, utilizando uma del-
gada estrutura metálica e fechamentos em vidro. Dessa forma, ele criaria
a volumetria almejada, mas com um olhar contemporâneo, promoveria
a releitura e a reinterpretação do projeto inacabado. Todavia, essa pro-
posta não foi aceita pelo cliente que queria “terminar” a construção 50
anos depois através de seu completamento. (Nahas, 2017, p. 71)
Considerando o tempo prolongado de construção das igrejas e que as práticas cons-
trutivas evoluíram no Brasil nos últimos cinquenta anos, mas as técnicas tradicionais
continuam vigentes, é questionável opor-se à conclusão do projeto original qualificando
a ação como “falso histórico”. É indefensável que as obras tenham tempo predeterminado
para conclusão ou que o projeto possua “prazo de validade”: o juízo de que a arquitetura
corresponde a momentos específicos e deve utilizar “formas representativas” destes não
resiste à apreciação com o necessário rigor, é uma interpretação do problema com vício
moderno, pela expectativa de contínua superação formal. E o mesmo ocorre quando
se atribui às partes novas a função de datar a intervenção, estabelecendo uma escala
cronológica incompatível com períodos breves, como se a arquitetura permitisse pre-
cisá-los com exatidão.

403
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Importante mencionar que nem todos os exemplos analisados haviam sido reco-
nhecidos como patrimônio até a data da intervenção; o que não significa compactuar
com a desfiguração de uma obra com qualidade arquitetônica e autoria a respeitar: bens
exemplares sem salvaguarda também merecem interferências criteriosas com devida
excelência arquitetônica. E deve ser considerada a possibilidade de intervenções atuarem
no sentido oposto, transformando obras comuns em patrimônio, como ocorreu com os
galpões que originaram o SESC Pompéia a partir da intervenção de Lina mencionada.
Portanto, é contestável a ideia de que “o novo deve ser colocado a serviço do antigo, como
continuidade de sua história, para valorizar e explicar o monumento, e não o contrário”
(Nahas, 2017, p. 74). As partes novas não parecem destinadas a assumir protagonismo
ou subordinar-se, mas adotar postura adequada a cada caso, apresentando padrão
correspondente aos patrimônios. Como defendia Lucio Costa, “a boa arquitetura de um
período vai sempre bem com a de qualquer período anterior, o que não combina com
coisa alguma é a falta de arquitetura”.[5]

Profissional reverenciado da intervenção recente em patrimônios culturais, Scarpa


propôs conversões célebres como o Museu Castelvecchio (1959-1973), em Verona, e a
Fundação Querini-Stampalia (1959-1963), em Veneza (figuras 5 e 6): anteriores à institu-
cionalização da teoria brandiana, são obras respeitadas apesar de não seguirem literal-
mente a interpretação dominante dos princípios estabelecidos. O arquiteto veneziano
com origem na arte e design moderno de vidros de Murano, nos anos vinte, constitui
um caso excepcional pelas condições que permitiram-lhe atingir tamanha autonomia
na intervenção patrimonial, inserindo acréscimos bem-sucedidos com marca autoral.
Seu trabalho em arquitetura iniciou pelo design interior de stands e lojas, em torno de
1930, ampliando-se gradualmente para a escala do edifício e o patrimônio. Salvo engano,
estreou no restauro em sua primeira intervenção na Ca’Foscari (1935-37), em Veneza, no
projeto de linhas modernas da Aula Magna (figura 7). Certamente este percurso gradual
iniciado cedo seja a explicação para ter atingido a maestria reconhecida e consequente
autoridade na intervenção patrimonial, permitindo-lhe utilizar crescente desenvoltura
nas obras. E a análise de Solà-Morales (2006) a respeito é conveniente:
...mediante um desenvolvimento narrativo e fragmentário, a intervenção
scarpiana introduz figuras historicistas na historicidade do edifício
existente. Através de uma exposição de tipo cinematográfico o percurso

[5] Em conhecido memorando do IPHAN de 1939.

404
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

vai acumulando imagens redesenhadas de arquiteturas do passado, do


passado medieval ou de outros passados talvez de origem remotamente
medieval, mas referíveis a experiências europeias mais próximas, como
podem ser as de fim de século em Glasgow ou em Viena.
Aqui o procedimento analógico não se baseia na simultaneidade visível
de ordens formais interdependentes, senão nas associações que o espec-
tador estabelece ao longo do tempo e mediante as quais se produzem
situações de afinidade pelas que, mediante a capacidade conotativa
das linguagens evocadas na intervenção, se estabelecem conexões ou
enlaces entre edifício histórico – real e/ou imaginário – e os elementos
de desenho que servem para acondicionar eficazmente o edifício.

Figura 5: O Museu Castelvechio com a intervenção de Scarpa. Fonte: Autor, 2015.

De fato, a arquitetura que Scarpa introduziu nas preexistências não representou


o momento nem o lugar da intervenção, mesclando referências detectáveis de Charles
Rennie Mackintosh e dos secessionistas austríacos, entre outros, como alertou Solà-Morales.
E isso contraria o consenso estabelecido de que as partes novas devem representar o
momento da obra (e local), acima de diferenciar-se do existente, como os casos cotidianos
demonstram; uma prescrição visivelmente instituída a partir da suposta interpretação
de princípios que embasam o chamado restauro patrimonial.

405
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6: Escada da Fundação Querini-Stampalia, com o recobrimento expondo os degraus


originais. Fonte: autor, 2015

Figura 7: Primeira intervenção de Scarpa na Ca’Foscari, a Aula Magna, 1935. Fonte: Università

album-72157712601067816/

406
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O patrimônio cultural teve sua heterogeneidade acentuada nas últimas décadas,


passando a abranger desde os bens consagrados da pré-história e antiguidade, aos casos
com reduzido valor histórico-artístico que configuram “lugares de memória”, incorporados
de modo recente. Decorrente do alargamento do conceito de patrimônio, a relativiza-
ção da importância histórico-artística na definição dos monumentos não proscreve a
avaliação de bens culturais e hierarquização correspondente, atingida através do rigor
de critérios técnicos e erudição em história da arte; e o mesmo compete aos atributos
arqueológicos. A gradação de categorias patrimoniais e as características específicas de
cada caso compõem o problema a ser interpretado para definir intervenções apropria-
das, que abrangem desde conservação e restauro imperceptível de obras relevantes, até
transformações extensas e profundas compatíveis com bens cuja importância objetiva
rivaliza com a representativa, como aqueles que compõem conjuntos cuja identidade
se preserva. Nestes casos prevalece o valor prático, como demonstra a tarefa complexa,
mas possível, de comparar elementos sem dimensões precisas empregando bom senso.
Antes de ser convertido em monumento, um edifício, conjunto ou espaço cons-
truído possui valor prático, representativo e artístico eventual, o que desaconselha a
imobilização de obras funcionais. Essencial para a permanência de bens, a utilização
ampara a adaptação de edificações às necessidades atuais de uso ou reuso, que têm
respaldo na salvaguarda crescente de exemplares e devida sustentação da atividade.
Portanto, parecem pertinentes intervenções com grau de transformação inversamente
proporcional à hierarquia patrimonial dos bens, especialmente quando compõem as
“paisagens culturais” em pauta; e esta atividade mantém a vitalidade necessária do tecido.
Nas intervenções transformadoras é perceptível a substituição frequente do “juízo
crítico” por “regras pré-estabelecidas”, simplificadoras no pior sentido. O princípio da
diferenciação das partes novas tem uso adequado em ampliações, de modo genérico;
mas é contestável quando transposto para o restauro reparador, especialmente de obras
hierárquicas, como alertaram especulações pretensamente artísticas para Notre Dame
após o sinistro recente: no caso, definiu-se possível e acertado recuperar as feições ori-
ginais, pela existência de registro detalhado das formas permitindo recompor paredes
e outros elementos que ruíram, sendo reservada a diferenciação ao detalhe artístico
desaparecido, como defendeu Boito de modo precursor. Convém preservar a unidade
potencial da obra e correspondente identidade daquela área de Paris, acima do capri-
cho documental, afastando igualmente o risco de complementos com marca autoral e
prováveis danos à paisagem cultural. No caso das ampliações, também não é aceitável
abrir mão de arquitetura qualificada, de modo similar ao uso da técnica “tinta neutra”

407
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

abolida na pintura, sob risco de lesar o bem patrimonial; o que exclui igualmente “mar-
cas autorais” e “narcisismos” do extremo oposto. E, conforme defendido aqui, as “partes
novas” também recebem a atribuição equivocada de datar a intervenção, como se cada
breve período tivesse uma arquitetura correspondente; e esta é uma “regra” subjacente
instituída pela “livre interpretação” – equivocada, diga-se – da teoria brandiana, expondo
a crença moderna na superação plástica contínua, de genética formalista.
De fato, a teoria do restauro segue demonstrando o rigor e vigência das ideias e
princípios ali propostos. Na verdade, o que merece cautela são suas interpretações, pelo
risco que oferecem: o uso acrítico do princípio de diferenciação das partes, por exemplo,
traz a ameaça de intervenções espetaculosas próprias do personalismo midiático que
assola nossos tempos.

408
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Referências

BOITO, Camillo. Os Restauradores (Tradução e Apresentação: Beatriz Mugayar

BRANDI, Cesare. Teoria da Restauração (Tradução: Beatriz Mugayar Kühl;

COMAS, Carlos E. D. Ruminações recentes: reforma/reciclagem/restauro. Buenos

Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

Editorial Sintesis, 2003.

56-79.

NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto


História. São Paulo: PUC-SP. N° 10, 1993.

São Paulo: Perspectiva, 2014.

contemporânea como tema emergente do restauro. São Paulo, Revista Pós


FAUUSP n.23, junho de 2008, p.199-211.

SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Del contraste a la analogía. Transformaciones en la


concepción de la intervención arquitectónica. Em: Intervenciones. Barcelona:
Gustavo Gili, 2006, p. 33-50.

409
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

GERIBELLO, Denise Fernandes


Profa. Dra.; Universidade Federal de Uberlândia
z.geribello@gmail.com

410
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Almejando compreender como se dá o processo de patrimonialização de bens arquitetônicos
levado a cabo pelo órgão federal de preservação do patrimônio cultural, este artigo analisa as
normas jurídicas que amparam a atuação do IPHAN. Buscou-se, dessa forma, identificar como,
por quem e a partir de quais critérios se dá a construção do patrimônio cultural preservado em
esfera federal. O estudo foi realizado a partir do levantamento e análise da legislação vigente,
bem como de documentos internacionais como cartas patrimoniais, convenções, declarações e
recomendações que dialogam com referido repertório jurídico. A fim de aprofundar a reflexão,
buscou-se não apenas elencar as normas existentes, mas estabelacer relações entre os diferentes
dispositivos surgidos ao longo do tempo.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio cultural. Tombamento. Legislação. Iphan.

A BSTRACT
This article analyses the laws that base Iphan´s actions. It aims to understand how the herita-
gization process of architectural structures is conducted by the federal preservation organ. It
investigates how, by whom, and with which criteria the federal heritage list is constructed. The
reflection was developed through the current legislation assessment and analysis, as well as
with international charters, conventions, declarations and recommendations. In order to set a
wider framework, the study did not only list the existing norms but it also stablished relations
between the different laws created over time.

KEYWORDS: cultural heritage. listing process. Legislation. Iphan.

RESUMEN
Con el objetivo de comprender el proceso de patrimonialización de bienes arquitectónicos
ejecutado por la organización federal de preservación del patrimonio cultural, esto artículo
analiza las normas jurídicas que respaldan el desempeño de IPHAN. De esta manera, buscamos
identificar cómo, por quién y apartir de cuales criterios se produce la construcción del patrimonio
cultural preservado en la esfera federal. El estudio se realizó a partir de la investigación y del
análisis de la legislación vigente, así como de documentos internacionales como cartas patri-
moniales, convenciones, declaraciones y recomendaciones que dialogan con dicho repertorio
jurídico. Para profundizar la reflexión, se buscó no solo enumerar las normas existentes, sino
también establecer relaciones entre los diferentes dispositivos que surgieron con el tiempo.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio cultural. declaratorias patrimoniales. legislación. Iphan.

411
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

Por muito tempo, a condição de patrimônio foi entendida como um atributo


intrínseco de determinados bens, passível de ser revelada exclusivamente por experts,
ou, conforme coloca Smith, (2006) revelada pelo Authorized Heritage Discourse. Trata-se
de um discurso dominante, imposto por profissionais do campo da arquitetura e da
arqueologia, para endossar a seleção de determinados bens como patrimônio com base no
reconhecimento de valores inerentes aos objetos e reconhecidos, sobretudo, pelos olhos
dos especialistas (SMITH, 2006, p.11). Nesse cenário, o discurso autorizado do especialista
é cristalizado por meio de chancelas oficiais de salvaguarda do patrimônio cultural.
Apesar dessa compreensão, em alguma medida, se estender até os dias de hoje no
âmbito da prática patrimonial, desde meados do século XIX, é possível identificar que
a ideia de patrimônio já vinha sendo abordada a partir de outra perspectiva, quando
Ruskin inscreve a questão da restauração em um universo mais abrangente (Choay, 2015,
p. 156). No início do século XX, Riegl considera a recepção, percepção e fruição dos bens
a partir de diferentes categorias de valores. Sua discussão lança as bases para a Teoria
da Restauração brandiana, na qual Brandi reforça a definição da preservação como ato
de cultura e constrói sua teoria com base na compreensão do restauro como processo
histórico-crítico. A partir de Brandi e da Carta de Veneza, documento internacional que
tem grande influência do pensamento brandiano, a questão da percepção do patrimônio
como construção a partir da atribuição de valores ganha destaque cada vez maior nos
debates do campo. Tal ampliação recebe novo impulso com a aproximação da antropolo-
gia nas discussões patrimoniais. Nesse sentido, como sintetiza Meneses, entende-se que
os objetos materiais só dispõem de propriedades imanentes de natureza
físico-química: matéria-prima, peso, densidade, textura, sabor, opacidade,
forma geométrica, etc.etc.etc. Todos os demais atributos são aplicados
às coisas. Em outras palavras: sentidos e valores (cognitivos, afetivos,
estéticos e pragmáticos) não são sentidos e valores das coisas, mas da
sociedade que os produz, armazena, faz circular e consumir, recicla e
descarta, mobilizando tal ou qual atributo físico (naturalmente, segundo
padrões históricos, sujeitos a permanente transformação) (1994, p. 27).
Essa abordagem implica na percepção de que as chancelas oficiais deixam de ser
condição sine qua non para determinação do patrimônio. Ainda assim, o reconhecimento
institucional desempenha um importante papel na legitimação do patrimônio cultural
e em sua preservação. Ele impõe uma nova camada de significação, que influi nos sig-
nificados pré-existentes e sofre influência de outros níveis de significação; trata-se de
uma relação dinâmica de troca em ambos os sentidos (Arantes, 2019).

412
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Considerando a relevância das chancelas oficiais de preservação e buscando com-


preender como se dá o processo de patrimonialização levado a cabo pelo órgão federal de
salvaguarda, este artigo analisa as normas jurídicas que amparam a atuação do IPHAN.
Pretende-se identificar como, por quem e a partir de quais critérios se dá a construção
do patrimônio cultural preservado em esfera federal. Por integrar a pesquisa de pós
doutorado “Patrimônio Cultural: a construção de uma prática crítica”[1], cujo objeto de
estudo é a Casa de Chico Mendes, esta reflexão tem como foco bens arquitetônicos, toma-
dos de maneira isolada, isso é, não necessariamente integrantes de conjuntos urbanos
preservados ou paisagens culturais. O estudo foi realizado a partir do levantamento e
análise da legislação vigente[2], bem como de documentos internacionais como cartas
patrimoniais, convenções e recomendações que dialogam com tal repertório jurídico.
A fim de aprofundar a reflexão, buscou-se não apenas elencar as normas existentes,
mas estabelacer relações entre os diferentes dispositivos surgidos ao longo do tempo.

A legislação federal vigente relativa à preservação do patrimônio cultural e o con-


junto das cartas patrimoniais e convenções internacionais sobre o tema são constitu-
ídos por documentos de diferentes períodos. A legislação federal atravessa um recorte
temporal extenso. Tem início com o Decreto nº 22.928/1933, que erige a cidade de Outro
Preto como Monumento Nacional e é finalizada pela Portaria nº 375/2018, que institui a
Política de Patrimônio Cultural Material do Iphan. Dessa forma, começa em um período
anterior à constituição do órgão de preservação e atravessa toda sua trajetória, marcada
por significativas transformações ao longo do tempo. Tendo em vista as modificações no
campo da preservação nos últimos 80 anos, um primeiro ponto de reflexão é a compati-
bilização tanto entre os instrumentos disponibilizados pela legislação e sua aplicação
no presente, quanto entre os diferentes instrumentos, uma vez que são oriundos de
diversos períodos.
A identificação e o enfrentamento dessa problemática transparecem na legisla-
ção recente. O Plano Nacional de Cultural, Lei nº 12.343/2010, em seu Anexo “Diretrizes,
Estratégias e Ações”, aponta a necessidade de “Fortalecer e aprimorar os mecanismos
regulatórios e legislativos de proteção e gestão do patrimônio cultural, histórico e artís-

[1] Pesquisa em desenvolvimento na FAU-USP, sob supervisão da Profa. Dra. Beatriz Mugayar
Kühl, processo nº 2017/24504-9, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

[2] Pesquisa realizada em agosto de 2019 na base de pesquisa de legislação disponível no


portal do Iphan.

413
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tico e dos museus brasileiros”. Considerando o Plano, é promulgada a Portaria Iphan no.
375/2018, que institui a Política de Patrimônio Cultural Material do Iphan (PPCM). Nela,
é possível identificar um esforço de integração e revisão dos documentos que balizam
as políticas de preservação.
A PPCM têm como fundamento a abordagem constitucional de patrimônio cultu-
ral, que enfatiza o compromisso com a diversidade e pluralidade e caminha pari passu
com o princípio de integração de atores diversos nas ações do Iphan, abarcando desde a
articulação entre entes federados e demais órgãos do Estado, até a participação ativa da
sociedade em diversas etapas do processo – da elaboração de estratégias de preservação
ao direito ao controle social. A ideia contemporânea de bem cultural foi progressiva-
mente formulada a partir da atualização e ampliação da noção de patrimônio histórico
e artístico inicial do Iphan. Essas transformações, todavia, não se restringem ao contexto
brasileiro, elas amadureceram no País em diálogo com as discussões internacionais.
Em 1964, a Carta de Veneza já sinalizava a ampliação da noção de monumento histó-
rico para além das obras monumentais e excepcionais. Na década de 1970, a prática
internacional se materializou em cartas e convenções que firmaram “os conceitos de
patrimônio cultural, bens culturais e naturais” (FREITAS, 1999, p. 84). A ampliação desse
debate confere destaque à expressão da diversidade e da multiplicidade, transparecendo
em documentos como a Convention on the Protection and Promotion of the Diversity
of Cultural Expressions (2005), ratificada pelo Brasil em 2007 e as declarações on the
Responsibilities of the Present Generations Towards Future Generations (1997) e on the
Rights of Indigenous Peoples (2007).
Com base nessa noção de patrimônio, a PPCM apresenta as ações de patrimonializa-
ção de bens culturais materiais: identificação, reconhecimento e proteção. A identificação
é compreendida pelo documento como ato de “localizar, conhecer e caracterizar os bens
culturais”, conforme aponta seu Artigo 11. Essa ação tem por finalidade identificar a pre-
sença de bens significativos para grupos da sociedade brasileira, produzir conhecimento
sobre eles e seu contexto sociocultural, bem como subsidiar sua gestão e as políticas
de preservação e pode ser desenvolvida por meio dos seguintes instrumentos: estudos
temáticos ou técnicos, dossiês de candidatura, pesquisas arqueológicas, cadastro de
bens arqueológicos e inventários de conhecimento. É apontada, ainda, a possibilidade
de utilização de outros instrumentos, quando for mais adequado.
Enquanto os inventários de conhecimento, regulamentados pela Portaria Iphan
n º 160/2016, são mobilizados para compor o conjunto de instrumentos nas ações de
identificação, a metodologia de inventários participativos desenvolvida pelo IPHAN
(2016) é inserida na PPCM exclusivamente como ferramenta de educação patrimonial.

414
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Segundo a PPCM, as ações de educação patrimonial devem colaborar com os processos


de identificação, entretanto, os inventários participativos, apesar de inseridos como
instrumento de educação patrimonial, apresentam uma ressalva em seu Manual de
Aplicação que os afasta das ações de identificação.
(...) esta iniciativa [a metodologia dos inventários participativos] não tem
a pretensão de servir de instrumento de identificação e reconhecimento
oficial de patrimônio, nem substituir as atuais ferramentas utilizadas
nos processos de proteção dos órgãos de preservação do patrimônio de
qualquer esfera de governo. Apresenta-se, de preferência, como um exer-
cício de cidadania e participação social, onde os seus resultados possam
contribuir para o aprimoramento do papel do Estado na preservação e
valorização das referências culturais brasileiras, assim como servir de
fonte de estudos e experiências no contínuo processo de aprendizado.
(IPHAN, 2016, p. 7)
O excerto acima indica a possibilidade de contribuição dos inventários participa-
tivos na preservação das referências culturais brasileiras, sem, todavia, compreende-los
como instrumentos de identificação ou reconhecimento per se. Cabe considerar que a
participação popular é fundamental e deve ocorrer de maneira transversal ao processo
de patrimonialização. Entretanto, ela deve se dar de maneira mediada, construída com
bases metodológicas sólidas. Conforme Sampaio, “vontade popular não é uma vontade
empírica, aferível em pesquisa de opinião, sem uma discussão aprofundada e séria sobre
seu conteúdo, nem uma vontade despótica ou tirânica (como se o povo pudesse tudo)”
(2015, p.46). É preciso ter clareza a respeito da pluralidade da população e de seus conflitos
subjacentes. Sem o respeito à integridade e expressão do outro, nenhuma vontade pode
ser legitimada (SAMPAIO, 2015, p.46).
Ainda que sejam compreensíveis os limites dos inventários participativos como
instrumentos de identificação completos e a necessidade de trabalhos aprofundados
para a incorporação da participação popular ao processo de identificação, nota-se uma
lacuna com relação às ações nesse sentido. Apesar da PPCM ter como princípio a par-
ticipação ativa da sociedade, conforme aponta seu Artigo 2º, não é explicitado como,
especificamente, os instrumentos de educação patrimonial podem ser articulados aos
instrumentos do processo de identificação ou reconhecimento, por exemplo.
As discussões sobre participação social remontam à década 1970, momento em
que as políticas públicas federais deixaram de se orientar para a instrução do público e
passaram a ter como foco a participação das comunidades no processo de construção e
gerenciamento da produção cultural brasileira, na qual se incluía o patrimônio cultural

415
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

(FONSECA, 2005, p.157). Nesse período, a questão da participação popular nas políticas
culturais figurava também no cenário internacional. A Recommendation on participa-
tion by the people at large in cultural life and their contribution to it (UNESCO, 1976)
considera que a participação do maior número possível de associações e pessoas – de
diferentes idades e classes sociais – em atividades culturais de sua própria escolha é
fundamental para o desenvolvimento de valores humanos e que a criação de condições
sociais e econômicas é a única maneira de garantir o acesso de “people at large” aos valores
culturais e a um papel ativo na vida cultural, bem como no processo de desenvolvimento
cultural (UNESCO, 1976). Assim, a abordagem antes centrada na figura do arquiteto como
mediador exclusivo se ampliou para a inserção da sociedade e de outros profissionais,
como os cientistas sociais, o que levou à inclusão de novas culturas locais e comunitárias
no quadro da preservação. A diversificação dos mediadores implicou na atualização da
composição do patrimônio, antes limitado a uma vertente formadora da nacionalidade.
Essa diversificação tomou corpo na atuação do Centro Nacional de Referência Cultural
(CNRC), que surgiu em 1975 ligado ao Ministério da Indústria e do Comércio (MIC) e,
posteriormente, se expande no órgão de preservação, porém, como visto acima, ainda é
uma questão que demanda reflexões mais aprofundadas.
A Portaria Iphan n º 375/2018 não é o primeiro documento a explicitar a ação de
identificação como etapa do processo de patrimonialização. Esse processo já estava
presente no Artigo 7º da Portaria Iphan n º 200/2016, que dispõe sobre a regulamentação
do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI). Antes mesmo da regulamentação
desse programa, a questão da identificação de referências culturais já figurava em um dos
principais instrumentos que viria integrar o PNPI, o Inventário Nacional de Referências
Culturais (INRC) (IPHAN, 2000). Esse instrumento, tratado no Artigo 8º, Parágrafo 1º, Inciso
II da Portaria Iphan no. 200/2016, aborda tanto a identificação de bens imateriais como
de edificações e lugares. O INRC apresenta, inclusive, metodologias para a identificação
dessas tipologias em sua especificidade. Sobre as peculiaridades das edificações, o Manual
de Aplicação do INRC aponta que
As edificações serão identificadas por uma combinação de duas técni-
cas básicas. Como bens arquitetônicos, elas serão analisadas por um
arquiteto, seguindo as solicitações do campo do questionário dedicado
à “descrição arquitetônica”; as representações sociais e usos associados
serão investigados por este ou outro pesquisador, que utilizará os mes-
mos procedimentos criados para os demais itens. (IPHAN, 2000, p.59).
Tal abordagem dirige esforços no sentido de viabilizar a integração entre o patri-
mônio de natureza material e imaterial. Conforme Meneses, “se todo patrimônio mate-

416
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

rial tem uma dimensão imaterial de significado e valor, por sua vez todo patrimônio
imaterial tem uma dimensão material que lhe permite realizar-se” (Meneses, 2012, p.31).
Enquanto no campo teórico há, cada vez mais, uma abordagem conjunta dessas duas
naturezas de bens, nota-se uma cisão entre elas nos textos legais, ainda que recentes.
Mesmo considerando em sua metodologia os bens arquitetônicos, o INRC não é mencio-
nado dentre os possíveis instrumentos de identificação ou reconhecimento na PPCM.
A segunda etapa do processo de patrimonialização é o reconhecimento, que tem
como objetivo “explicitar os valores e a significação cultural atribuído aos bens mate-
riais”, conforme Artigo 19 da PPCM. Esse processo decorre da identificação e orienta a
compreensão de bens como referenciais às comunidades locais. É uma etapa crucial do
processo de patrimonialização, pois é nesse momento que devem ser trazidos à tona e
analisados os valores atribuídos ao bem pela sociedade, levando em conta sua hetero-
geneidade e a consequente divergência de percepções. A construção da declaração de
valores, inclusive, extrapola os limites das ações de reconhecimento. Ela possui papel
determinante na seleção dos instrumentos protetivos, no estabelecimento da chancela
oficial, bem como na formulação de diretrizes específicas para a preservação de um bem,
se inserindo, assim, nas ações de proteção e normatização.
Cinco instrumentos de reconhecimento são indicados na PPCM: (1) o tombamento,
aplicável a qualquer bem de natureza material, (2) o cadastro de bens arqueológicos, (3)
a valoração de bens ferroviários da antiga Rede Ferroviária Federal SA, (4) a chancela da
paisagem cultural e (5) a declaração de lugares de memória. Em função do recorte esta-
belecido, cabem algumas considerações sobre o tombamento e a valoração.
A regulamentação do tombamento não especifica as ações relacionadas ao processo
de reconhecimento. O Decreto Lei nº 25/1937, que institui esse instrumento, aponta os
critérios para a definição do patrimônio histórico e artístico nacional, porém não aborda
como se dá o reconhecimento dessas características. Analisando a trajetória do Iphan,
nota-se que, inicialmente, o discurso autorizado dos técnicos, em sua maioria arquitetos,
constituía o elemento de validação da importância de um bem. Durante as três primei-
ras décadas de atuação do órgão, os referenciais selecionados, majoritariamente bens
arquitetônicos, remetiam a narrativas sobre construção da nação, elegendo o barroco
como tradição cultural brasileira.
Posteriormente, a Portaria Iphan nº 11/1986 normatiza os procedimentos para os
processos de tombamento e aponta, em seu Artigo 4º, a apreciação do mérito do valor
cultural como parte do estudo, introduzindo, assim, a necessidade de explicitação dos
valores que amparam a preservação do bem. Interessante notar que essa norma se insere
em um período de atuação do Iphan caracterizado pela diversificação dos bens protegidos

417
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e pela ampliação da participação popular, questão tratada pela Ordem de Serviço Iphan
nº 2/2002, que estabelece instruções complementares à Portaria nº 11/1986. O documento
recomenda, em seu Artigo 4º, “o compartilhamento da instrução processual com quantas
instituições e pessoas sejam interessantes para melhor avaliação do bem cultural”. O
Artigo 5º da norma aprofunda os direcionamentos com relação ao processo de atribuição
de valor lançados pela portaria de 1986 ao colocar que os dados técnicos devem se basear
no estudo tanto da constituição quanto da inserção cultural do bem, ou seja, em suas
relações com a sociedade. Nesse sentido, a ampliação do enfoque destinado ao processo
de reconhecimento na PPCM pode ser entendida como mais um avanço na esteira das
transformações já em curso nas normas anteriores. Cabe aqui notar que a PPCM, em
suas Disposições Finais, estabelece, no prazo de três meses, a publicação da revisão da
Portaria Iphan nº 11/1986, que, todavia, não foi localizada no levantamento realizado.
Com relação ao instrumento de valoração, a explicitação dos atributos que justi-
ficam a compreensão de bens como portadores de valor cultural permeia a norma que
dispõe sobre o estabelecimento de parâmetros e procedimentos de inscrição na Lista
do Patrimônio Cultural Ferroviário, a Portaria nº 407/2010. Nas considerações iniciais,
esse documento aponta a necessidade de criação de um cadastro contendo, entre outros
itens, a “indicação da espécie de atributo” para possibilitar o controle e gerenciamento
dos bens ferroviários de valor cultural, enquadrados no Artigo 9º da Lei n.º 11.483/07.
A mesma portaria, em seu Artigo 5º, define que no processo de listagem deve constar
parecer técnico que aponte “conclusivamente se a instância local recomenda ou não a
inclusão do(s) bem(ns) na Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, especificando qual
(is) inciso (s) do artigo 4º justifica (m) a inclusão”. Assim, essa norma coloca a necessidade
da formulação dos valores atribuídos ao bem, partindo de critérios que serão mencio-
nados à frente, bem como trabalha em diálogo com diferentes esferas governamentais,
oportunizando maior capilaridade e aproximação com a sociedade. A necessidade de
ação supletiva dos Estados e Municípios à atuação em esfera federal na preservação já
estava presente no Compromisso de Brasília (IPHAN, 1970).
A busca pela integração das diferentes esferas governamentais e de sujeitos diversos
também permeia a PPMC, sobretudo nos processos de reconhecimento e proteção, ao
longo dos quais é recomendada a elaboração de um Pacto de Preservação. Desse docu-
mento devem decorrer os princípios para balizar a elaboração ou atualização de instru-
mentos de atuação, os papéis dos diversos sujeitos envolvidos na gestão compartilhada
e as diretrizes que subsidiem as ações de normatização e conservação, que integram o
processo de vigilância do patrimônio cultural. Cabe reforçar que o pacto não é colocado
como uma exigência, mas algo cuja construção deve ser buscada.

418
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A possibilidade de utilização do Pacto de Preservação como mecanismo de “atu-


alização de instrumentos de atuação” sinaliza um olhar para o caráter dinâmico dos
valores atribuídos ao patrimônio. Considerando que, ao longo do tempo, as percepções
com relação a um bem salvaguardado podem se transformar, assim como os propósitos
e desafios de sua preservação, a existência de mecanismos para revisitar a implementa-
ção dos instrumentos é fundamental. Essa mesma questão já transparecia na legislação
referente ao patrimônio cultural de natureza imaterial, na qual, é prevista uma reava-
liação dos bens culturais registrados, pelo menos a cada dez anos, conforme consta no
Artigo 7º do Decreto nº 3551/2000.
Analisando os instrumentos de tombamento e valoração, além da própria PPMC,
que os articula e apresenta o Pacto de Preservação, é possível notar como as ações de reco-
nhecimento permeiam a legislação vigente. Apesar do caminho já percorrido, acredita-se
que o processo de formulação de valores, sobretudo no que diz respeito à participação
de atores diversos e dos conflitos decorrentes da heterogeneidade de pontos de vista,
necessita de maior amadurecimento teórico-metodológico.
A última ação do processo de patrimonialização é a proteção, que, conforme consta
no Artigo 28 da PPCM, tem a finalidade de “(1) evitar a descaracterização, deterioração
ou destruição de bens; (2) impedir a evasão de bens móveis e (3) Garantir à sociedade o
direito de conhecer, interpretar e interagir com os bens”. Os itens 1 e 2 já estavam con-
templados no Decreto-Lei de 1937. Todavia, a garantia de acesso ao bem, tanto do ponto
de vista material quanto imaterial, é uma preocupação que transparece em um segundo
momento. No cenário internacional, a recomendação da Carta de Veneza (ICOMOS, 1964)
de destinação do patrimônio a uma “função útil à sociedade”, desde que compatível com
a conservação, dá pistas de aproximação entre os bens e o público. A Convenção para a
proteção do patrimônio mundial, cultural e natural (UNESCO, 1972), ratificada pelo Brasil
pelo decreto nº 80.978/1977, aponta que “uma valorização tão activa quanto possível do
património cultural e natural” deve ser assegurada. Em âmbito nacional, a Constituição
Federal aponta que o poder público em colaboração com a comunidade deve promover
o patrimônio cultural. De modo mais específico, a questão do acesso aos bens é tratada
na legislação relativa à Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário, que, em seu Artigo 5º,
impõem necessidade de “parecer técnico que ateste as reais condições de apropriação
social do bem, em especial quanto a sua segurança, conservação e uso compatível com
a preservação da Memória Ferroviária”. É possível identificar, portanto, mais um aspecto
que aponta um movimento no sentido de aproximação entre o patrimônio cultural e
a sociedade.

419
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A ação de proteção faz uso, praticamente, dos mesmos instrumentos mobilizados nas
ações de reconhecimento, a não ser pela chancela e a declaração de lugares de memória,
que correspondem apenas a instrumentos de valoração e não de preservação. Na seção
da PPCM referente à proteção, são tecidas considerações a respeito do tombamento,
normatizado. É interessante notar que na seção anterior, dedicada ao reconhecimento,
o instrumento do tombamento também é mencionado, porém sem nenhuma ressalva
a seu respeito.
O Decreto-Lei nº 25/37 remonta a um período institucional, no qual o conceito
de patrimônio estava ligado à construção da identidade nacional. Eram considerados
patrimônio bens vinculados a fatos memoráveis da história do Brasil ou de excepcional
valor arqueológico, etnográfico, bibliográfico ou artístico. A definição de patrimônio
histórico e artístico nacional, inclusive, se dava somente a partir da inscrição nos Livros
do Tombo, conforme consta em seu Artigo1º, Parágrafo 1º. Apesar de incorporar em seus
instrumentos o Decreto-Lei no. 25/37, a noção de patrimônio cultural adotada na PPCM
tem suas bases no conceito apresentado pela Constituição Federal de 1988.
Têm-se, então, um ponto de tensão entre essas duas abordagens. Buscando atualizar
a definição trazida pela norma de 1937, a PPCM, em seu Artigo 29, menciona que serão
salvaguardados os bens previstos no Decreto-Lei nº 25/1937, “desde que possuidores de
representatividade, significação ou importância nacional; e resultantes de processos
culturais”. No Artigo seguinte, aponta que deve ser evitada a preservação (1) de bens mão
passiveis de fruição cultural, (2) de conjuntos completos de obras de arquitetos ou artis-
tas e (3) de bens relacionados à memória ou vida de personalidades, não relacionados
a processos sociais de interesse coletivo. A ampliação dada ao escopo do Decreto-Lei 25,
bem como as restrições apontadas em seguida, buscam compatibilizar o instrumento
do tombamento com a noção dada pela Carta Magna, estabelecendo uma base contem-
porânea para sua aplicação.
O instrumento de valoração, regulamentado pela Portaria no 407/2010, identifica
os valores que determinam a inscrição de bens na Lista do Patrimônio Ferroviário e
aponta a exigência de parecer técnico que especifique os valores identificados e justi-
fique a inclusão do bem na lista. Dessa forma, opera na mesma lógica da PPCM, na qual
a explicitação de valores e a seleção a partir de critérios bem definidos constitui uma
ação fundamental do processo de patrimonialização.
Para além dos critérios apontados na legislação específica de cada um dos instru-
mentos de preservação, a PPCM aponta que as atividades de proteção devem atender
ao menos um dos oito critérios de seleção por ela apontados, todos eles diretamente
relacionados com a abordagem constitucional do patrimônio cultural.

420
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Entende-se, então, que a efetivação do instrumento protetivo decorre do cotejo


entre os valores explicitados na etapa de reconhecimento e os critérios colocados tanto
pelo instrumento adotado em cada caso específico, como pela própria PPCM. Os critérios,
entretanto, não devem ser entendidos de maneira fechada, como categorias fixas de valor,
mas como bases para reflexão e balizas, levando em conta as especificidades de cada caso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em 1937, é criado o instrumento do tombamento, que, juntamente com o Decreto-Lei


no. 3.866/1941, que dispõe sobre o cancelamento de tombamento de bens do patrimônio
histórico e artístico nacional, e a Portaria Iphan no. 11/1986, que trata da instauração
do Processo de Tombamento, estabelecem as bases para a preservação do patrimônio
cultural arquitetônico e vêm sendo utilizados até os dias de hoje. A Lei no. 3.924/1961,
cria o Cadastro dos monumentos arqueológicos do Brasil, instrumento de preservação
de bens monumentos arqueológicos e pré-históricos também em uso até o presente.
A partir da ampliação do conceito de patrimônio cultural afirmada pela constituição
de 1988, em consonância com as transformações do campo no debate internacional, novos
instrumentos vão sendo incorporados aos processos de preservação do Iphan. O registro
de bens culturais de natureza imaterial foi instituído em 2000 e teve seus processos nor-
matizados pela Resolução no. 001/2006 e pela Portaria IPHAN no. 200/2016. A Chancela
da Paisagem Cultural foi instituída em 2009, porém até os dias de hoje não foi de fato
aplicada. No ano seguinte foi normatizada a Lista do Patrimônio Cultural Ferroviário.
Inicialmente tratados de maneira independente, o tombamento, o cadastro, a
chancela e a valoração são articulados por meio da PPCM, criada em 2018. Essa Política
propõe medidas para compatibilização desses instrumentos com a compreensão con-
temporânea de patrimônio cultural e os insere em um processo de patrimonialização
mais extenso. Ainda que tais proposições representem um grande avanço no sentido
de uma percepção mais abrangente e criteriosa do patrimônio cultural, a ausência da
articulação explicita de ferramentas de mediação com a sociedade aponta a necessidade
de maior amadurecimento teórico-metodológico da legislação.

421
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

Safeguarding of Intangible Cultural Heritage. Vibrant


v. 16, 2019.

BRASIL. Decreto nº 22.928, de 12 de julho de 1933.

__________.Decreto nº 24.735, de 14 de julho de 1934.

__________. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937.

__________. Decreto-Lei nº 3.866, de 29 de novembro de 1941.

__________. Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961.

_________. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.


Brasília: Senado, 1988.

_________. Decreto nº 3551, de 4 de agosto de 2000.

_________. Lei nº 11.483, de 31 de maio de 2007.

__________.Lei nº. 12.343, de 02 de dezembro de 2010

As questões do patrimônio: antologia para um debate. Lisboa: Edições


70, 2015.

FONSECA, M. C. L. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de


preservação no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Minc-Iphan, 2005.

FREITAS, M. B. A. P. Mário de Andrade e Aloísio Magalhães: dois personagens e a


questão do patrimônio cultural brasileiro. Revista Pós. São Paulo: FAU/USP. N°07,
set. 1999. p.71 - 93.

ICOMOS. Charte internationale sur la conservation et la restauration des


monuments et des sites

INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Compromisso de


Brasília, de 5 de dezembro de 1970.

__________.Portaria Iphan nº 11, de 11 de setembro de 1986.

__________. Inventário nacional de referências culturais: manual de aplicação.


Brasília: IPHAN, 2000.

422
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

__________. Ordem de Serviço nº 2, de 2002.

__________. Parecer nº 02 MTDR/GPROT/DEPAM/IPHAN, de 10 de julho de 2006.

__________. Resolução nº 001, de 3 de agosto de 2006.

__________. Portaria nº 407, de 21 de dezembro de 2010

__________. Educação patrimonial: inventários participativos. Manual de


aplicação. IPHAN, 2016.

__________. Portaria nº 160, de 11 de maio de 2016.

__________.Portaria nº 200, de 18 de maio de 2016

__________. Portaria nº 375, de 19 de setembro de 2018.

MENESES, U. T. B. Do teatro da memória ao laboratório da história. Museu


Paulista: história e cultura material,v. 2 jan/dez, 1994. SP: editora da USP, 1994.

__________. O campo do Patrimônio Cultural: uma revisão de premissas. In:


IPHAN. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, Ouro Preto/MG, 2009. Anais.
Brasília: IPHAN, 2012. p. 25-39.

CUREAU, Sandra. Bens culturais e direitos humanos. São Paulo: Edições SESC,
2015.

SMITH, L. Uses of heritage. London: Routledge, 2006.

UNESCO. Convenção para a proteção do patrimônio mundial, cultural e natural,


1972.

__________. Recommendation on Participation by the People at Large in Cultural


Life and their Contribution to It, 1976.

423
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

JUSTAPOSIÇÕES
CONTRASTANTES EM
MEIO A PROCEDIMENTOS
ANALÓGICOS COM O
PASSADO: UM OLHAR
PANORÂMICO NAS
INTERVENÇÕES DE
LINA BO BARDI SOBRE O
CONSTRUÍDO
ANALOGICAL PROCEDURES WITH THE PAST:
A PANORAMIC LOOK AT LINA BO BARDI›S
INTERVENTIONS IN OLD BUILDINGS

YUXTAPOSICIONES CONTRASTANTES EN MEDIO


DE PROCEDIMIENTOS ANALÓGICOS CON EL
PASADO: UNA MIRADA PANORÁMICA A LAS
INTERVENCIONES DE LINA BO BARDI EN LO
CONSTRUIDO

424
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

WINTER, Jordana Cristine


Mestranda em Arquitetura PROPAR/ UFRGS
jordanawinter.arq@gmail.com

BAHIMA, Carlos Fernando


Doutor em Arquitetura; Universidade Federal do Rio Grande do Sul –PROPAR / UFRGS
cfbahima@hotmail.com

425
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Lina Bo Bardi, arquiteta italiana de origem e formação, dispensa maiores apresentações. O seu
envolvimento com o restauro e a reciclagem de velhos edifícios tem reconhecida contribuição no
contexto da arquitetura brasileira. Entretanto, a falta de estudos analíticos que sistematizem
esse inegável legado talvez se explique pela relativa recente atenção dispensada ao construir no
construído: uma ação modificadora que vem carregada de critérios que relacionam a arquite-
tura existente, com seus significados atribuídos ao longo da história, e nova intervenção, com
suas interpretações sobre esse material histórico. Esse artigo tem como objetivo identificar os
principais procedimentos de projeto que embasaram as intervenções de Lina sobre o construído,
considerando o recorte daqueles projetos que efetivamente se edificaram. A pesquisa identifica
dois grupos dentro dessas operações: Solar do Unhão (1968), a Fábrica SESC (1974), a Ladeira
da Misericórdia (1987), e a Casa do Benin (1987) pertencem ao tipo que obedece a um conjunto
de edifícios - em que o todo edificado é elemento-chave da intervenção; Teatro Oficina (1982-
93), Teatro Gregório de Mattos (1986-87), e Casa do Olodum (1988) compõem outro polo - em
que a intervenção se restringe ao interior da caixa murada. Um olhar panorâmico sobre essas
operações de restauro e reciclagem evidencia uma postura interpretativa da arquiteta italiana,
focando-se muito mais nos problemas de arquitetura, ou seja, no conhecimento da lógica for-
mal e física do edifício. Através do procedimento analógico, Lina Bo Bardi ultrapassa a postura
exclusivamente preservacionista das Cartas de Conservação em geral restrita ao contraste entre
o existente e o novo. Nos edifícios restaurados, há justaposições contrastantes entre partes velhas
e novas, como convém às preocupações de Camillo Boito e Gustavo Giovannoni, mas também ao
modernismo que ela própria subscreve, quer pela noção avant-garde da colagem cubista, quer
por encontros de feições quase surrealistas entre componentes construtivos. Nesse conjunto
de obras urbanas com diversidade de programa e sítio, o olhar abrangente nas composições
revela sempre dois elementos-chave: parede estrutural e estrutura independente; telhado de
palha e telhado plano; paredes de pedra ou barro e paredes de concreto armado; o erudito e o
primitivo; o evolucionário da recuperação e o radicalismo das novas inserções. Entretanto, esse
jogo de dualidades não é antitético à operação analógica. Ao contrário, relações entre seme-
lhanças e diversidades se reforçam e se complementam face à interpretação das características
essenciais do edifício antigo.

PALAVRAS-CHAVE: restauro e reciclagem de antigos edifícios. Lina Bo Bardi. arquitetura moderna


brasileira.

A BSTRACT
Lina Bo Bardi, architect, born and trained in Italy, needs no further introduction. His involvement

426
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

with the restoration and recycling of old buildings has been recognized as a contribution in the
context of Brazilian architecture. However, the lack of analytical studies that systematize this
undeniable legacy may be explained by the relative recent attention paid to the intervention
in buildings: a modifying action that comes loaded with criteria that relate to the existing
architecture, with its meanings attributed throughout history, and a new intervention, with its
interpretations of this historical matter. This article aims to identify the main design procedures
that supported Lina›s interventions in old building, considering the outline of those projects
that were actually built. The research identifies two groups within these operations: Solar do
Unhão (1968), Fábrica SESC (1974), Ladeira da Misericórdia (1987) and Casa do Benin (1987)
belong to the type that obey a set of buildings - in that the whole is a key element of the interven-
tion; Teatro Oficina (1982-93), Teatro Gregório de Mattos (1986-87), and Casa do Olodum (1988)
pertain to another pole - where the intervention is restricted to the interior of the walled box. A
panoramic look at these restoration and recycling operations shows an interpretive posture by
the Italian architect, focusing much more on architectural problems, that is, on the knowledge
of the building›s formal and physical logic. Through the analogical procedure, Lina Bo Bardi
goes beyond the exclusively preservationist stance of the Conservation Laws in general restricted
to the contrast between the existing and the new. However, in the restored buildings, there are
contrasting juxtapositions between old and new parts, as befits the concerns of Camillo Boito
and Gustavo Giovannoni, but also to the modernism that she subscribes to, either due to the
avant-garde notion of the cubist collage, or by meetings of features almost surrealistic between
constructive components. In this set of urban works with a diversity of program and site, the
transversal look in the compositions always reveals two key elements: structural wall and
independent structure; thatched roof and flat roof; stone or clay walls and reinforced concrete
walls; the erudite and the primitive; the evolution of the recovery and the radicalism of the new
insertions. However, this game of dualities is not antithetical to analogical operation. On the
contrary, relationships between similarities and diversities are reinforced and complemented
by the interpretation of the essential characteristics of the old building.

KEYWORDS: restoration and recycling of old buildings. Lina Bo Bardi. Brazilian modern archi-
tecture.

RESUMEN
Lina Bo Bardi, arquitecta italiana de origen y formación, no necesita más presentación. Su
participación en la restauración y reciclaje de edificios antiguos ha sido reconocida como una
contribución en el contexto de la arquitectura brasileña. Sin embargo, la falta de estudios ana-
líticos que sistematicen este legado innegable puede explicarse por la atención reciente que se

427
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

le prestó a la construcción en el edificio: una acción de modificación cargada de criterios que


relacionan la arquitectura existente, con sus significados atribuidos a lo largo de la historia,
y nuevos intervención, con sus interpretaciones de este material histórico. Este artículo tiene
como objetivo identificar los principales procedimientos de diseño que respaldaron las inter-
venciones de Lina en la construcción, considerando el esquema de los proyectos que realmente
se construyeron. La investigación identifica dos grupos dentro de estas operaciones: Solar do
Unhão (1968), Fábrica SESC (1974), Ladeira da Misericórdia (1987) y Casa do Benin (1987) perte-
necen al tipo que obedece a un conjunto de edificios: en el que el todo construido es un elemento
clave de la intervención; Teatro Oficina (1982-93), Teatro Gregório de Mattos (1986-87) y Casa
do Olodum (1988) componen otro poste, donde la intervención se limita al interior de la caja
amurallada. Una mirada panorâmica a estas operaciones de restauración y reciclaje muestra
una postura interpretativa del arquitecto italiano, centrándose mucho más en los problemas
arquitectónicos, es decir, en el conocimiento de la lógica formal y física del edificio. A través del
procedimiento analógico, Lina Bo Bardi va más allá de la postura exclusivamente conservacio-
nista de las Cartas de Conservación en general restringidas al contraste entre lo existente y lo
nuevo. Sin embargo, en los edificios restaurados, hay yuxtaposiciones contrastantes entre partes
viejas y nuevas, como corresponde a las preocupaciones de Camillo Boito y Gustavo Giovannoni,
pero también al modernismo al que se suscribe, ya sea por la noción vanguardista del collage
cubista o por encuentros de características casi surrealista entre componentes constructivos.
En este conjunto de obras urbanas con una diversidad de programas y sitios, la mirada trans-
versal en las composiciones siempre revela dos elementos clave: muro estructural y estructura
independiente; techo de paja y techo plano; muros de piedra o arcilla y muros de hormigón
armado; el erudito y lo primitivo; el evolutivo de la recuperación y el radicalismo de las nuevas
inserciones. Sin embargo, este juego de dualidades no es antitético al funcionamiento analógico.
Por el contrario, las relaciones entre similitudes y diversidades se refuerzan y complementan
con la interpretación de las características esenciales del antiguo edificio.

PALABRAS CLAVE: restauración y reciclaje de edificios antiguos. Lina Bo Bardi. Arquitectura


moderna brasileña.

428
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

Lina Bo Bardi, arquiteta italiana de origem e formação, dispensa maiores apre-


sentações. O seu envolvimento com o restauro e a reciclagem de velhos edifícios tem
reconhecida contribuição no contexto da arquitetura brasileira. Entretanto, a falta de
estudos analíticos que sistematizem esse inegável legado talvez se explique pela relativa
recente atenção dispensada ao construir no construído: uma ação modificadora que vem
carregada de critérios que relacionam a arquitetura existente, com seus significados
atribuídos ao longo da história, e nova intervenção, com suas interpretações sobre esse
material histórico.
Esse artigo tem como objetivo identificar os principais procedimentos de projeto
que embasaram as intervenções de Lina sobre o construído, considerando o recorte
daqueles projetos que efetivamente se edificaram. A pesquisa identifica dois grupos
dentro dessas operações: Solar do Unhão (1968), a Fábrica SESC (1974), a Ladeira da Mise-
ricórdia (1987), e a Casa do Benin (1987) pertencem ao tipo que obedece a um conjunto
de edifícios - em que o todo edificado é elemento-chave da intervenção; Teatro Oficina
(1982-93), Teatro Gregório de Mattos (1986-87), e Casa do Olodum (1988) compõem outro
polo - em que a intervenção se restringe ao interior da caixa murada.

UM OLHAR PANORÂMICO SOBRE AS INTERVENÇÕES DE LINA

Na arquitetura moderna brasileira, muitos edifícios feitos juntos por Oscar Nie-
meyer e Lúcio Costa conformam séries (COMAS, 2009, p.179). No primeiro, o conjunto da
Pampulha, conforme reiterado por Carlos Eduardo Comas em diversos escritos, é formado
por uma sucessão de edifícios laicos com estrutura independente como elemento de
caracterização, contraposto à capela resolvida com abóbadas que singularizam o pro-
grama religioso. Com o segundo, o projeto da Universidade do Brasil é rico de conjuntos:
o grande Auditório, Planetário, Teatro e Sala de Música de Câmera formam uma série de
caráter especial e de construção excepcional na composição, os demais edifícios formam
um amplo e variado catálogo formado pela construção generalizada. Museu e Clube
formam um par de edifícios especiais e opostos: o primeiro é centroidal, subtrativo; o
segundo, linear, aditivo. (BAHIMA, 2015, pp. 85-86). Nesse sentido a obra de Lina pode
ser vista sob esse ponto de vista. Os conjuntos edificados e as intervenções intramuros
formam séries que permitem uma observação geral e abrangente dos elementos e das
estratégias empregados pela arquiteta italiana.

429
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Entre as obras analisadas, a Ladeira da Misericórdia, a Casa do Benin, Teatro Gregório


de Mattos e a Casa do Olodum foram executadas como parte de um plano de recuperação
do recém tombado Centro Histórico de Salvador, em 1986.
Lina propõe um modelo piloto de preservação deste patrimônio, considerando
a necessidade de um sistema de baixo custo e rápido, além de ser capaz de estabilizar,
renovar e transformar as edificações. Para isso, trabalhou junto com arquiteto João Fil-
gueiras Lima que já vinha desenvolvendo pesquisas de novos sistemas para instalações
comunitárias (LIMA, 2013, p.190).
Trata-se de um sistema de painéis pré-fabricados e elementos em ferro. Os painéis
com aparência de telha formam as paredes estruturais que são preenchidos com con-
creto. Foram desenvolvidas também peças como escadas, lajes e divisórias leves para
espaços menores (LIMA, 2013, p.193).

O SOLAR, A FÁBRICA, A LADEIRA E A CASA: CONJUNTOS EDIFICADOS

Nas intervenções sobre o construído na obra de Lina Bo Bardi, se aceitarmos a clas-


sificação proposta por Francisco de Gracia sobre princípios de composição e desenho,
reconhecemos em meio às três categorias, quais sejam, intersecção, exclusão e inclusão
(DE GRACIA, 1992, p.187), pelo menos as duas primeiras nos conjuntos edificados em que
o todo é elemento-chave. É também possível identificar além dessas duas operações, a
busca de correspondências métricas, geométricas e de proporção dos novos elementos
adicionados em relação à edificação preexistente, assim como a remoção de adendos
que dificultem essas “congruências gestálticas” (DE GRACIA, 1992, p.188).

O SOLAR

O conjunto do Solar do Unhão, construído no século XVI na Baía de Todos os Santos,


em Salvador-BA, passou por diversos usos e transformações ao longo dos anos, chegando
às ruínas quando tombado em 1940 pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (OLIVEIRA, 2018, p.80).
O projeto de intervenção desenvolvido em 1963, foi encomendado após a desapro-
priação do conjunto, a partir de conversas diretas da arquiteta Lina Bo Bardi com Godo-
fredo Filho, chefe do 2º distrito de SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional), com o objetivo de abrigar um programa educativo do Museu de Arte Moderna
(CERÁVOLO, 2010, pp. 216-217).

430
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Algumas estratégias deste projeto só foram compreendidas a partir da interpretação


das correspondências entre os órgãos de preservação e o museu, situação que reflete a
polêmica envolvendo as decisões de Lina e as recomendações estabelecidas pelas enti-
dades de patrimônio histórico. A documentação gráfica e os textos não são suficientes
para explicar as diversas fases de evolução da intervenção e as intenções de projeto.
Lina Bo Bardi produz um memorial descritivo do início das obras no texto “Critérios
propostos para a recuperação do Solar do Unhão”. Nele, a arquiteta italiana traça um
percurso pelos métodos de restauração, como o “método romântico” de “recomposição”
por Viollet-le-Duc e o método de “restauração científica”. Também faz uma seleção quanto
as edificações a serem preservadas e demolidas por dificultarem a leitura do conjunto
(Figuras 1 e 2), identificando as duas praças configuradas pelo solar e capela. Praças que
ela descreve como “uma interna, fechada, e outra aberta, à beira mar” (Figura 3). Identi-
fica o conjunto como identidade da cidade e, mesmo edificações menos interessantes
arquitetonicamente, são mantidas pela imagem do conjunto na paisagem como “massa
de telhados”. Ficam até então indefinidas as cores das fachadas e caixilhos a serem acor-
dadas conforme o órgão do patrimônio (FERRAZ, 2015, pp. 14-17).
Também a estrutura interna preservada do Solar foi interpretada pela arquiteta
como “belíssimo exemplo de arquitetura naval” e nesta, em uma nova localização elimi-
nando a anterior, foi inserida uma escada com sistema de encaixes dos antigos carros
de boi. Descreve as janelas para o mar, a estrutura do telhado e os arcos do subsolo como
elementos de caráter “marinho” (FERRAZ, 2015, pp. 14-17).
A partir do parecer escrito por Paulo de Azevedo em outubro de 1962 é possível
identificar mais algumas decisões, como a demolição dos galpões e telheiros das áreas
entre as edificações e acréscimos da capela. Este também desaconselha a demolição do
muro em local onde posteriormente Lina constrói um deque. O parecer indica o ajuste
na altura das divisórias internas com fechamento superior em vidro, já que até o teto
prejudicariam a iluminação natural (CERÁVOLO, 2010, pp. 229-232). No pavilhão anexo
ao Solar, a arquiteta italiana intervém na altura do telhado, e na quantidade, ritmo e
desenho das dez novas aberturas na fachada voltada à orla (Figura 4).

431
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figuras 1 e 2: Implantação do conjunto, em amarelo a demolir, praças em vermelho (esquerda) e


vista antes da obra (direita). Fontes: Acervo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi Desenho 049ARQd0059
(alterado pela autora) e FERRAZ (1996, p.152).

Figuras 3 e 4: vista do conjunto (esquerda) e vista do mar ao Solar e novas aberturas da fachada
(direita). Fontes: OLIVEIRA (2018, p.81) e FERRAZ (2015, p.27).

A FÁBRICA

Para o projeto do complexo de esportes e lazer Sesc Fábrica da Pompéia (1977), em


São Paulo, Lina é contratada a partir de argumentos de economia e agilidade a partir
da preservação dos pavilhões industriais (Figuras 5), contrapondo a proposta do arqui-
teto Júlio Neves que considerava a demolição de todas as edificações existentes no lote
(PELLEGRINI, 2017, pp. 87-88).
O projeto executado permite identificar as operações de exclusão e inclusão, com
a adição de elementos na caixa murada, como o teatro. Foram propostas intervenções
sutis reconhecendo o conjunto industrial e a estrutura de concreto tipo Hennebique.
Descasca e recupera os tijolos dos muros do envoltório dos pavilhões, expondo o sistema
construtivo e substitui as esquadrias de vidro por “tijolo-de-galinheiro” (BECHARA, 2015,
p.76). Dentro dos muros, a grelha modular da estrutura independente preexistente
organiza os usos e as adições: as meias paredes, o mezanino em concreto aparente e o

432
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

laguinho que serpenteia os vãos. A estrutura do telhado é recuperada e algumas faixas


de telhas são substituídas por telhas de vidro (Figuras 6, 7).
O teatro é espaço de maior intervenção no interior fabril. Diante da necessidade de
combate a cargas laterais decorrente da inserção de novos pavimentos, Lina acrescenta
pilares-parede que envelopam parcialmente os pilares da estrutura tipo Hennebique.
O capitel em mísula é deixado à vista como testemunho do sistema estrutural preexis-
tente (Figura 8). No foyer, os grandes volumes em concreto adicionados contrastam com
as paredes de tijolos e a estrutura do telhado, destacados pela iluminação através das
telhas de vidros (Figura 9).
Na área remanescente do lote, Lina é desafiada pela faixa não edificante do ter-
reno: o córrego. Localizado perpendicularmente à rua interna, foi solucionado com um
deque e este passa a ser mais um espaço de convívio numa proposta de prainha para
a cidade (Figura 7). O programa esportivo é então distribuído em dois volumes que se
complementam e conectam por meio de passarelas em concreto armado.
O bloco esportivo adicionado ao conjunto pré-existente replica a grelha horizontal
ao plano vertical organizando as perfurações da fachada estrutural no edifício das quadras
esportivas e piscina. O bloco adjacente interligado por passarelas parece desconstruir
essa grelha através da assimetria das aberturas (COMAS, 2009, p.170).

433
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

vista interna pavilhão de lazer laguinho (esquerda abaixo) e vista do deque, preexistência
e blocos esportivos (direita). Fonte: OLIVEIRA (2018, p.114 - alterado pela autora, p.132 e p.117).

Figuras 8 e 9: Vista do teatro com os pilares ao fundo (esquerda) e vista foyer do teatro (direita).
Fontes: OLIVEIRA (2018, p.130) e FERRAZ (2015, p.38).

434
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A LADEIRA

A Ladeira da Misericórdia (1987) faz parte do plano de recuperação do Centro Histó-


rico de Salvador. Este projeto contempla um conjunto de quatro residências em ruínas
e a nova edificação para o Restaurante Coati (Figura 10). Assim como as outras interven-
ções do projeto piloto, o envoltório e telhado de três casas é preservado (Figura 11) e os
acréscimos executados no mesmo sistema pré-fabricado em concreto e divisórias leves.
Já a ruína da fachada do século XVIII, projetada para abrigar o bar dos três arcos, foi
mantida pela arquiteta, expondo o primitivismo e evidenciando a intervenção por meio
das paredes estruturais em concreto. Nesta edificação as adições aparecem na fachada,
porém em um plano recuado que se relaciona com as edificações lindeiras através do
escalonamento da altura.
No restaurante, são propostos volumes circulares que se justapõem à preexistên-
cia por meio de um muro que encaminha o acesso ao restaurante e se comunica com a
edificação existente contrastando a materialidade. Toda a edificação foi executada com
o mesmo sistema pré-fabricado de concreto e cobertura plana. As aberturas remetem
às formas irregulares executadas no SESC Pompéia e as venezianas como as aplicadas
no Solar do Unhão.

Figuras 10 e 11: Fachada do Conjunto da Ladeira da Misericórdia (esquerda) e Planta baixa, em

P. M. Bardi Desenho 129ARQd0112 (alterado pela autora).

435
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A CASA

A Casa do Benin (1987) foi idealizada pelo etnólogo Pierre Verger para promover
um espaço de trocas e encontros, que mantivesse a memória e tradições da origem da
maioria dos escravos que entraram na Bahia (OLIVEIRA, 2018, p.160). Trata-se de uma
importante esquina do centro histórico de Salvador. A construção datada do século XIX
foi quase inteiramente destruída por um incêndio em 1973. O sítio da casa do Benin é
composto por dois lotes; o de esquina com preexistência em todo o perímetro de fachada
e lote adjacente com apenas a fachada no alinhamento da rua (Figuras 12, 13).
Quando Lina Bo Bardi recebe o casarão, já havia sido executada uma intervenção
pela administração municipal: a substituição da estrutura anterior em madeira pela
atual de concreto armado (OLIVEIRA, 2018, p.160). O que justificaria a proximidade e o
número de pilares, adequados à madeira, mas notadamente excessivos às características
do concreto armado (FERRAZ, 1996, p. 282). Lina se depara com essa construção antece-
dente: uma linha de pilares complementa o suporte de lajes e vigas em concreto armado
à vista. O recuo dos pilares em relação ao muro periférico é favorável a permitir que os
pavimentos superiores se apoiem no balanço, sem amálgama com a parede em ruína
preexistente e permite a arquiteta a realocação das escadas nessa faixa entre muro e
suporte. A escada, que comunica os pavimentos de exposições, conferências e hospedaria
para estudantes e pesquisadores africanos, é executada em estrutura independente em
concreto e tem apoio nos patamares intermediários de cada pavimento (Figura 14). O
acesso ao terceiro e último pavimento é por meio de uma escada metálica. Os andares
foram unidos do térreo ao sótão pelo recorte nas lajes.
Lina propõe para a segunda intervenção da edificação de esquina, o centro de
estudos e intercâmbio cultural, o descascamento do “muro” de pedras e terra, deixando
exposto o primitivismo da construção. Na “tira” de céu (FERRAZ, 1996, p.282) entre a parede
histórica e a estrutura preexistente, é aplicado um fechamento em vidro que protege e
evidencia a intervenção (Figura 14). Os pilares circulares de concreto foram revestidos
com palmas de coqueiro remetendo aos trabalhos africanos (LIMA, 2013, p.196).

436
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

437
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figuras 12 e 13: Planta baixa do conjunto, em vermelho a adição (esquerda) e vista fachada
Casa do Benin (direita). Fontes: Acervo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi Desenho 128ARQd0186
(alterado pela autora), Instituto Lina Bo e P.M. Bardi Foto 128ARQd0134 e OLIVEIRA (2018, p.161).

Na nova edificação que requadra o pátio interno, a arquiteta faz uso dos elemen-
tos pré-fabricados em concreto armado utilizado nas demais intervenções no centro
histórico. Ali, a Casa do Representante do Benin da Bahia é projetada com o uso de
paredes estruturais curvas em concreto (Figura 15). No conjunto, as fachadas históricas
foram restauradas e os acessos da menor fachada foram descascados e sua estrutura
exposta (Figura 13). No miolo de quadra resultante é executado o restaurante (Figura
16): uma edificação elíptica em alvenaria de barro e cobertura de palha remetendo aos
sistemas tradicionais africanos (OLIVEIRA, 2018, p.160) e apresenta certa semelhança
com a cobertura da varanda da Casa Valéria Cirell (Figura 17) e a casa do Chame-Chame,
ambas projetadas por Lina em 1958.

438
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figuras 14 e 15: Vista da escada inserida no vão de pilares e detalhe da “tira” de céu (esquerda)

Figuras 16 e 17: Vista do pátio e restaurante do Benin (esquerda) e vista da Casa Valéria Cirell
(direita). Fonte: FERRAZ (1996, p.287 e p.117).

O Teatro Oficina (1982-93), Teatro Gregório de Mattos (1986-87) e a Casa do Olodum


(1988-89) se encaixam no terceiro item da classificação proposta por Francisco de Gracia: a
inclusão é uma intervenção formalmente autônoma em relação à envoltória (DE GRACIA,
1992, p.181) tanto quanto diversas intervenções realizadas no século XX e - em sentido
inverso, as primeiras operações em torno de uma envolvente preexistente realizadas
por Alberti em Rimini na Igreja de São Francisco, (1450-1466) e Palladio na basílica de
Vicenza, a partir de 1546.

439
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O TEATRO OFICINA

O projeto do Teatro Oficina (1982-93) em São Paulo foi desenvolvido com o arquiteto
Edson Elito para uma edificação de meio de quadra, construída em 1920, ocupada pela
companhia em 1961 e incendiada em 1966. Em 1981, a construção é tombada pelo Con-
dephaap (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico)
por seu valor histórico para o teatro brasileiro (Figura 18). Lina Bo Bardi é apresentada
ao diretor José Celso Martinez Corrêa e, juntamente com o arquiteto Elito (FERRAZ, 2015,
pp. 8-10), propõe um espaço de teatro ainda menos convencional que a Fábrica SESC.
Entretanto, tanto quanto na Fábrica, os rebocos das paredes são removidos, expondo
a textura e fábrica da caixa murada. Esta recebe reforço estrutural e um importante vão
de iluminação é aberto na lateral. Todas as adições foram executadas com elementos
metálicos, oferecendo a reversibilidade como qualidade adicional à intervenção (Figura
19). As galerias longitudinais são desmontáveis e a abóboda de cobertura deslizante
permite que o teatro se abra para o céu (FERRAZ, 2015, pp. 12-16).

Fontes: OLIVEIRA (2018, p.185) e ©Leonardo Finotti.

TEATRO GREGÓRIO DE MATTOS

O Teatro Gregório de Mattos (1986-87) localiza-se no Centro Histórico de Salvador


e ao lado da Igreja da Barroquinha. A edificação já era conhecida como um espaço de
espetáculo, pois sediava um clube noturno na boemia baiana. No projeto, toda a estru-
tura envoltória do prédio é mantida e, considerando o desabamento das estruturas
originais do telhado, este é refeito em treliças de madeira com telhas cerâmicas. Foi
incluída uma nova estrutura independente, adaptando a edificação aos novos usos. O
pavimento térreo destinado a exposições é estruturalmente dividido em três setores.

440
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

No vazio deixado pelo entrepiso de um dos módulos, a escada helicoidal é elemento


escultórico em torno de pilar de seção quadrada que a apoia (Figura 20). No pavimento
superior, com piso de madeira, está o espaço aberto para espetáculos, sem um palco
convencional ou arquibancada. Neste espaço a principal intervenção foi a abertura de
uma “janela-buraco” (LIMA, 2013, p.188) que ecoa as janelas do Bloco Esportivo da fábrica
paulistana (Figura 21).

Figuras 20 e 21: Escada do teatro (esquerda) e abertura criada no teatro (direita). Fonte: OLIVEIRA
(2018, p.146 e p.149).

CASA DO OLODUM

Localizada no Centro Histórico de Salvador, esta casa é sede do bloco carnavalesco


afro-brasileiro e grupo cultural Olodum (Figura 22). Projeto de 1988, este reforça as estra-
tégias de projeto do plano de recuperação da área. Lina Bo Bardi restaura a envolvente
murada do edifício, removendo as partições internas. O espaço resultante do salão tem
acréscimo de parede nova que é elemento estrutural e estruturante (Figura 23), porque
é tanto apoio em concreto pré-fabricado da estrutura do telhado, como também é ele-
mento-chave na configuração do interior da casa, posicionada na diagonal do espaço,
ecoando a geometria do mezanino da casa Valéria Cirell (Figuras 24, 25).

441
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figuras 22 e 23: Fachada Casa do Olodum (esquerda) e interior do terceiro pavimento da casa
do Olodum (direita). Fonte: OLIVEIRA (2018, p.173 e p.175).

Figuras 24 e 25: Planta baixa terceiro pavimento da Casa do Olodum (esquerda) e Planta baixa
mezanino Casa Valéria Cirell (direita). Fonte: OLIVEIRA (2018, p.174 e p.44).

RECONHECENDO ESTRUTURAS SIGNIFICATIVAS DO MATERIAL HISTÓRICO

Em Intervenciones, Ignasi Solà-Morales argumenta em favor de uma postura inter-


pretativa perante o material histórico fornecido pelo edifício antigo. Ou seja, defende o
procedimento analógico, como método de projeto capaz de contrapor ações mínimas
como queriam John Ruskin e Renato Bonelli. Se intervir é modificar, conforme assinala
Francisco de Gracia, essa ação modificadora tem inevitável carga interpretativa que
não se justifica apenas pela obediência às leis de mínima intervenção e contraste entre
o antigo e o novo, presentes nas Cartas de Preservação. O conhecimento da lógica for-
mal e física do edifício, segundo Solà-Morales permite evitar certos riscos de figuração
que a intervenção introduz (SOLÀ-MORALES, 2006, p.48). Nesse sentido, o projeto que
Erik Gunnar Asplund elabora para o edifício anexo ao tribunal de Gotemburgo (1913-
1937) parece escapar da simples noção de nova envoltória contrastante com a fábrica

442
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

murada pré-existente. Ao contrário, segundo Solà-Morales, a organização em planta,


que se estende através das relações entre os pátios existentes e os novos, se reflete nas
fachadas - uma controlada dose de relações entre semelhanças e diversidades próprias
de uma operação analógica. Nesse sentido, Lina segue a mesma estratégia de Asplund.
As novas aberturas do pavilhão adjunto ao Solar do Unhão ecoam a mesma atitude de
Gotemburgo. Desenho, quantidade e ritmo das dez novas aberturas (Figura 4) não dei-
xam dúvidas da hierarquia entre um anexo e seu bloco principal. Da mesma maneira,
Carlo Scarpa na restauração de Castelvechio para Museu de Verona (1957-1967), segundo
Francisco de Gracia, encontra uma chave metodológica para esse nível de intervenção.
Ainda que considerada uma “modificação circunscrita” (DE GRACIA, 1992, p.189), Scarpa
reorganiza os fluxos do castelo, enfatizando o papel urbano da antiga muralha romana
como elemento estruturador da composição do conjunto edificado; uma hábil síntese
entre reconstrução com fidelidade histórica e inserção de novos elementos de presença
formal abstrata. Não há amálgama entre fábrica original da ruína e efeitos tácteis do
conteúdo adicionado (DE GRACIA, 1992, pp.191-192).

UM OLHAR PANORÂMICO: JOGOS DE DUALIDADES

Desde Gotemburgo a Verona, a chave metodológica para organizar as intervenções


é a própria arquitetura do edifício existente. Solá-Morales fala em correção do idealismo
de Viollet-le -Duc – “que buscava no edifício a ideia como pauta para a intervenção”
(SOLÁ-MORALES, 2006, p.45). Scarpa, assim como Lina, transforma idealismo em realismo
informado pela materialidade espacial, física e geográfica sobre o construído. O olhar
panorâmico sobre as operações de restauro e reciclagem evidencia essa postura inter-
pretativa da arquiteta italiana, focando-se muito mais nos problemas de arquitetura,
ou seja, no conhecimento da lógica formal e física do edifício. Através do procedimento
analógico, Lina Bo Bardi ultrapassa a postura exclusivamente preservacionista das Cartas
de Conservação em geral restrita ao contraste entre o existente e o novo. Nas palavras de
Carlos Eduardo Comas, “a abordagem de Lina não carece de ambiguidades” (COMAS, 2009,
p.150). Nos edifícios restaurados há justaposições contrastantes entre partes velhas e
novas, como convém às preocupações de Camillo Boito e Gustavo Giovannoni, mas tam-
bém ao modernismo que ela própria subscreve, quer pela noção avant-garde da colagem
cubista, quer por encontros de feições quase surrealistas entre componentes construtivos.
Nesse conjunto de obras urbanas com diversidade de programa e sítio, o olhar
abrangente nas composições revela sempre dois elementos-chave. Parede estrutural e
estrutura independente; telhado de palha e telhado plano; paredes de pedra ou barro e
paredes de concreto armado; o erudito e o primitivo; o evolucionário da recuperação e

443
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

o radicalismo das novas inserções. Entretanto, esse jogo de dualidades não é antitético
à operação analógica. Ao contrário, relações entre semelhanças e diversidades se refor-
çam e se complementam face à interpretação das características essenciais do edifício
antigo. Conforme Comas corrobora, é provável que uma melhor apreciação de sua obra
construída do zero seja dependente do entendimento desses encontros, muitas vezes
inusitados, emprestados pelo restauro e reciclagem de velhos edifícios.

444
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS:

Construir en lo construido: la arquitectura como


. Editorial Nerea, 1992.

BAHIMA, Carlos Fernando Silva. De placa e grelha: transformações dominoicas em


terra brasileira. Tese de Doutorado - PROPAR/UFRGS, Porto Alegre, 2015.

A Atuação de Lina Bo Bardi na criação do SESC


Pompeia (1977-1986). 2017. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo. São
Carlos, 2017.

Interpretações do patrimônio: arquitetura e urbanismo


moderno na constituição de uma cultura de intervenção no Brasil, anos 1930-60.
2010. Tese (Doutorado em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo) -
Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo. São Carlos, 2010.

COMAS, Carlos Eduardo Dias. “Lina 3x2”. ARQTEXTO, v. 14, pp. 146-189, 2009.

FERRAZ, Marcelo C. Lina Bo Bardi. 2.ed. São Paulo: Instituto Lina Bo Bardi e Pietro
M. Bardi, 1996.

FERRAZ, Marcelo Carvalho (org.). Sesc Fábrica da Pompeia. São Paulo, Sesc/
IPHAN, 2015.

___________________________. . São Paulo, Sesc/IPHAN, 2015.

___________________________. Solar do unhão. São Paulo, Sesc/IPHAN, 2015.

Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. São Paulo. Acervo online disponível em: http://
www.institutobardi.com.br/busca_banco.asp.

LIMA, Zeuler R. M. De A. Lina Bo Bardi

Lina Bo Bardi: obra construída. São Paulo: Gustavo Gili, 2018.

In: 5° Seminário Docomomo São Paulo, 2017, São Paulo. Arquiteturas do


Patrimônio Moderno Paulista: reconhecimento, intervenção, gestão. São Paulo:

SOLÀ-MORALES Ignasi de. Intervenciones. Barcelona: Gustavo Gilli, 2006.

445
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

KM3:EDIFÍCIO DE
HABITAÇÃO COLETIVA E
O CONTEXTO URBANO NA
CONTEMPORANEIDADE
KM3: HOUSING BUILDING AND CONTEMPORARY
URBAN CONTEXT

KM3: EDIFICIO DE VIVIENDAS COLETIVAS Y EL


CONTEXTO URBANO CONTEMPORÁNEO

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

PANTALEÃO, Sandra Catharinne


Doutora; Pontifícia Universidade Católica de Goiás
pantascp@gmail.com

446
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A habitação tem sido um tema de destaque no debate do campo disciplinar, não apenas esta-
belecendo a prática profissional do arquiteto e urbanas, mas sobretudo por ter sido tema
central de manifestos modernos e objeto de experimentação. Repensar o modo de compreender
sua inserção na cidade como elemento morfológico e participe da paisagem urbana é um dos
alicerces da contemporaneidade à medida que, superada a crise do Movimento Moderno, tem-se
a sobreposição de escalas e processos diagramáticos como critérios projetivos. Notadamente,
observa-se, num primeiro momento, as propostas utópicas dos edifícios em altura, nominados
arranha-céus e, mais recentemente, as discussões relativas à integração edifício e cidade. Este
artigo aponta as mudanças na relação do edifício de habitação coletiva e a cidade, a partir da
análise de momentos chaves da história recente do campo disciplinar. Como ponto de partida,
é apresentada a ideia do Movimento Moderno: a habitação como máquina de morar, relatada
nos debates dos quatro primeiros Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM)
(1928-33) e forte presença de Corbusier. No entanto, a crise do Movimento Moderno perpassa por
novos apontamentos acerca do edifício de habitação coletiva e o sentido de habitat, demarcando
o período pós II Guerra Mundial. Entre 1947 e 1959, tem-se mudanças de posturas nos CIAM
em que a participação do Team X ao destacar como tema o Habitat e a noção de pertencimento,
adotando-se a escala humana em contraponto ao edifício monumental e isolado. Desdobram-se
desta postura as discussões do grupo holandês MVRDV a partir de seus textos sobre adensamento,
o edifício de habitação coletiva é tratado como espaço tridimensional, se relacionando com a
cidade e incorporando seus espaços. Ao longo do século XX, o tema habitação é fundamental
para compreender as práticas projetuais e os processos de constituição do espaço urbano,
levando a formação de edifícios híbridos, ou seja, a articulação de diversos usos com espaços
complementares à unidade habitacional.

PALAVRAS-CHAVE: habitação coletiva. arquitetura contemporânea. cidade tridimensional.


MVRDV.

A BSTRACT
Housing has been a prominent topic in the debate in the architecture disciplinary field, not
only establishing the professional practice, but above all it has been a central theme of modern
manifests and an object of experimentation. Rethinking the way of understanding the inser-
tion the housing as a morphological element and participating in the urban landscape is one
of the foundations of contemporary architectural practice, when overcoming the crisis of the
Modern Movement, schematic scales and processes overlap as design criteria. In particular,
at first, the utopian proposals for tall buildings, called skyscrapers, and, more recently, the

447
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

discussions on the integration of the building and the city are observed. This article points out
the changes in the relationship between the collective housing building and the city, based on
the analysis of key moments in the recent history of the disciplinary field. As a starting point,
the idea of the Modern Movement is presented: housing as a machine, informed in the debates
of the first four International Congresses of Modern Architecture (CIAM) (1928-33) and the
presence of Corbusier. However, the crisis of the Modern Movement permeates new notes on
the construction of collective houses and the sense of habitat, demarcating the period after the
Second World War. Between 1947 and 1959, there were changes in positions at CIAM in which
the participation of Team X in highlighting Habitat and the notion of belonging as a theme,
adopted the human scale instead of the monumental and isolated building. The discussions
of the Dutch group MVRDV are developed from this position based on their texts on density,
the collective housing building is treated as a three-dimensional space, related to the city and
incorporating its spaces. Throughout the 20th century, the topic of housing is fundamental to
understanding design practices and the processes of constitution of urban space, which leads
to the formation of hybrid buildings, that is, the articulation of different uses with comple-
mentary spaces to the housing unit.

KEYWORDS: collective housing building. contemporary architecture. three-dimensional city.


MVRDV.

RESUMEN
La vivienda ha sido un tema destacado en el debate en el campo disciplinario, no solo estab-
leciendo la práctica profesional del arquitecto, sino sobre todo ha sido un tema central de los
manifiestos modernos y objeto de experimentación. Repensar la forma de entender su inserción
en la ciudad como un elemento morfológico y participar en el paisaje urbano es uno de los
fundamentos de la contemporaneidad ya que, al superar la crisis del Movimiento Moderno,
se superponen escalas y procesos esquemáticos como criterios de diseño. En particular, se
observa, al principio, las propuestas utópicas de edificios en altura, llamados rascacielos y,
más recientemente, las discusiones sobre la integración del edificio y la ciudad. corte y su posi-
ble densificación. Este artículo señala los cambios en la relación entre el edificio de viviendas
colectivas y la ciudad, basado en el análisis de momentos clave en la historia reciente del campo
disciplinario. Como punto de partida, se presenta la idea del Movimiento Moderno: la vivienda
como máquina, informada en los debates de los primeros cuatro Congresos Internacionales de
Arquitectura Moderna (CIAM) (1928-33) y una fuerte presencia de Corbusier. Sin embargo, la crisis
del Movimiento Moderno impregna nuevas notas sobre la construcción de viviendas colectivas
y el sentido del hábitat, demarcando el período posterior a la Segunda Guerra Mundial. Entre

448
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

1947 y 1959, hubo cambios en las posturas en el CIAM en las que la participación del Team X
al destacar a Hábitat y la noción de pertenencia como tema, adoptó la escala humana en lugar
del edificio monumental y aislado. Las discusiones del grupo holandés MVRDV se desarrollan a
partir de esta postura basada en sus textos sobre densidad, el edificio de viviendas colectivas se
trata como un espacio tridimensional, relacionado con la ciudad e incorporando sus espacios.
A lo largo del siglo XX, el tema de la vivienda es fundamental para comprender las prácticas
de diseño y los procesos de constitución del espacio urbano, lo que lleva a la formación de
edificios híbridos, es decir, la articulación de diferentes usos con espacios complementarios a
la unidad de vivienda.

PALABRAS-CLAVE: vivienda colectiva. arquitectura contemporânea. ciudad tridimensional.


MVRDV.

INTRODUÇÃO

De acordo com Mies Van der Rohe, “[...] a habitação de nosso tempo não existe. Con-
tudo, a transformação do modo de vida exige sua realização”[1]. Na abertura da Exposição
da Construção (Berlim, 1930), o arquiteto sugere que a habitação é algo que deve estar
em constante discussão, desenvolvimento e elaboração, visto que é um relevante tema
da prática profissional da arquitetura, além de permitir acompanhar as constantes
mudanças socioculturais. Destaca-se que sua fala demonstrava as reflexões dos arqui-
tetos modernas e as necessidades de mudança do campo disciplinar, principalmente
pela defesa dos arranha-céus ou edifícios em alturas. A questão da habitação coletiva e
sua inserção na cidade foi amplamente discutida durante o Movimento Moderno. Entre
os arquitetos modernos, o papel de Le Corbusier é destacado, dada sua proposta para o
plano da Ville Radieuse (1935).
Em confrontação ao domínio de Le Corbusier, Cohen (2012) descreve a posição dos
urbanistas alemães que viam nos arranha-céus americanos a expressão e referência
para as modernizações da cidade. Um novo modelo de cidade emergia fora dos limites
europeus – a cidade vertical. Zucconi (2009) comenta que as relações entre volume e
superfície apontam tipos urbanos distintos que conformam a paisagem das metrópo-
les norte-americanas: habitações isoladas nos subúrbios e os arranha-céus no centro.
A função das áreas de baixa densidade destinava-se à habitação e era favorecida pelos
meios de transporte, corroborando para o espraiamento das metrópoles; os arranha-céus

[1] Publicado em Die Form nº 7, junho de 1931 apud SILVA e VILA, 2005, p. 240.

449
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

destinavam-se aos escritórios e outras instituições como bancos, financeiras, sedes de


empresas, entre outros, caracterizando o “bairro de negócios”.
Ao descrever a paisagem urbana das áreas centrais norte-americanas, Zucconi (2009)
assinala a alternância entre arranha-céus e edifícios de altura média, mas a prevalência
do primeiro como símbolo do século vindouro. A fisionomia dos arranha-céus constituiu
uma das principais mudanças na paisagem urbana, reafirmando a modernidade e os
novos sistemas e materiais construtivos. A paisagem da cidade moderna caracterizava-se,
desse modo, de um lado pela verticalidade das áreas centrais e, de outro, pela expansão
horizontal das áreas periféricas.
O interesse pelos arranha-céus ocorreu tanto em Le Corbusier quanto em Ludwing
Hilberseimer e, depois, foi retomado pelas propostas denominadas por Choay (1965) de
tecnotopia. A cidade vertical poderia conter a expansão horizontal, colocando-se como
imagem de progresso. No entanto, ameaçaria a configuração espacial salubre, definida
matematicamente pela relação entre altura e espaçamento entre os edifícios. Essa
mudança de gabarito e escala condizia à dissociação entre arquitetura e urbanismo e
a mudança de escalas.
Após a Segunda Guerra Mundial, a organização do CIAM foi alterada, o que contri-
buiu para a dispersão dos discursos com a adoção de subcomitês temáticos, levando a
novas abordagens. Foi nesse contexto que os membros do TEAM X puderam se manifes-
tar e questionar o enunciado da cidade funcionalista. Para além dessa abordagem, os
arquitetos mais jovens passaram a oferecer outras de acordo com o interesse de cada
grupo. Os discursos dominantes (materialismo experimentalista alemão e a abstração
funcionalista francesa) do entreguerras foram substituídos, repercutindo nos discursos
de crítica e revisão ao modelo funcionalista corbusiano. De acordo com Barone (2002), o
tema fundamental do grupo era questionar a validade dos princípios universais aponta-
dos no Movimento Moderno, visando oferecer proposições em que fossem estimulados
os vínculos entre espaço e cultura.
Posteriormente a essa revisão, tem-se as experimentações dos anos 1960-70, dentre
elas as propostas utópicas do Archigram, inspirados nas ideias de vanguardas futurísticas
do início do século XX e as mudanças promovidas pelos avanços tecnológicos, além das
associações entre cultura e consumo de massa. Aceitavam a artificialidade promovida
por essas mudanças, interpelando a metáfora arquitetura como máquina de morar e
reformulando polissemias por meio de projetos experimentais, considerados radicais.
Posteriormente a essa visão, em que a cidade vertical e seu aparato tecnológico e ima-
gético, mais recentemente, tem-se o grupo de arquitetos holandeses MVRDV. Eles discu-

450
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tem a cidade 3D: uma cidade vista como espaço tridimensional, que está em constante
desenvolvimento, construção e adensamento.
Diante disso, este artigo tem como objetivo geral estudar e analisar as soluções
para habitação coletiva e sua relação com a cidade a partir do final da década de 1980,
a fim de compreender e refletir sobre as contribuições que essas soluções e perpassam
novos processos projetivos ao debruçarem nas dinâmicas de transformação do mundo
contemporâneo.

1910-1955 - MÁQUINA DE MORAR E CIDADE DO FUTURO

O processo de industrialização se encontra fortemente associado à concentração


da população em pólos industriais e ao surgimento de um modo de vida metropolitano.
A partir da Revolução Industrial são significativas as mudanças nos modos de vida, dada
a migração e a concentração populacional em centros urbanos. As cidades passaram
por um processo de crescimento acelerado. Por exemplo, cidades como Londres que,
em meados do século XVIII, contava com 1.400.000 habitantes, em 1901 atingiu a cifra
de 4.200.000, conforme relata Zucconi (2009).
A partir da concentração de pessoas nas áreas urbanas, a demanda por moradia
cresceu consideravelmente, gerando déficit habitacional. A problemática da habitação
passou a ser intensamente discutida, pois acreditava-se que os problemas da cidade
seriam resolvidos a partir da habitação ou da ideia de unidade mínima.
Sanar e corrigir os problemas das cidades tornavam-se desafios para o urbanismo,
sendo dominantes no debate modelos utópicos para a cidade do futuro. Os projetos de
habitações e de edifícios eram determinados por estratégias de ventilação e iluminação
naturais, bem como a aplicação de materiais mais duráveis e de fácil limpeza a fim de
garantir a higiene da cidade. Ademais, a abordagem da prática urbanística passou a
considerar, além do projeto físico, fatores tais como dados estatísticos e planejamento
público com o propósito de regulamentar e controlar o crescimento urbano (CHOAY,
1965; CALABI, 2008). Nesse período, apareceram as primeiras revistas especializadas:
Der Städtebau (fundada em Berlim, em 1904) e The Town-Planning Review (fundada em
Londres, em 1909), além de manuais prescritivos como os de Josef Stubben e Raymond
Unwin e os escritos de Le Corbusier, como Vers un architecture (1923), Urbanisme (1925).
O controle do espaço edificado passava por soluções que visavam concentrar pessoas
e ampliar a área ocupada. Para tanto, o urbanismo apoiou-se em regras de organização
do espaço edificado, ora com ênfase na dimensão física, propriamente dita, ora relacio-
nada aos discursos sociais e econômicos definidos e redefinidos entre a segunda metade

451
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

do século XIX e os primeiros anos do século XX. Para Calabi (2008), por volta de 1910, o
urbanismo foi institucionalizado como campo profissional de atuação.
Os modelos utópicos organizaram as cidades entre a segunda metade do século XIX
e início do século XX (CHOAY, 1965). Até os CIAMs, os enunciados visavam definir a cidade
ideal para o futuro, capaz de corrigir os males provocados pelo crescimento desenfreado
e modelar o comportamento social. Os CIAMs propunham-se a regulamentar e delimitar
as premissas do Movimento Moderno tanto em arquitetura quanto na prática urbanís-
tica, consolidando-se como formação teórica e prática dos modelos utópicos, seja para
a implantação de áreas habitacionais, cidades-satélites ou cidades novas.
O principal objetivo dos CIAMs era reunir pensadores cuja missão em comum era
definir os fundamentos da arquitetura moderna, tendo por referência a cidade do futuro.
Os idealizadores dos CIAMs intencionavam persuadir o público a respeito de uma lingua-
gem artística conforme as mudanças do século XX. Por essa razão buscavam estratégias
formais e técnicas para a elaboração de um programa coletivo de transformação social
por meio da arquitetura, vinculado ao planejamento urbano regional. Para eles, a forma
de tornar reais suas intenções era o envolvimento e adesão das instituições e adminis-
trações públicas, possibilitando a propagação internacional do ideário modernista.
Em síntese, os quatro primeiros CIAMs foram marcados pelo embate entre alemães
e franceses, prevalecendo o pensamento de Le Corbusier. Esses encontros permitiram
difundir e consolidar o Movimento Moderno, apresentando à sociedade a estética da
máquina e a cidade do futuro. Os principais manifestos do período são: a Declaração
de La Sarraz (1928) e as publicações de Le Corbusier – La Ville Radieuse (1935) e La Charte
d’Athènes (1943).
Le Corbusier apresenta a divisão da cidade por zonas, onde o centro, tanto comercial
quanto residencial, seria composto por edifícios altos e de alta densidade, enquanto que
a área residencial, que constitui o cinturão verde, as cidades-jardim, teria predominância
residencial com a inserção de atividades comerciais e de serviço locais, a fim de suprir
a necessidade de seus moradores.
Além da presença de Le Corbusier, o grupo alemão trouxe diversas questões ao
debate. Gropius (1997) acenou para as mudanças na estrutura familiar, que se tornava
cada vez menor devido ao controle de natalidade, fator que, consequentemente, reduziria
as dimensões da moradia. Além disso, Gropius ressaltava que, através da industrialização,
seria possível a produção em série e a padronização de elementos construtivos, dimi-
nuindo o custo das construções. Para ele, a solução para o urbanismo se baseava numa
habitação mínima e econômica; na verticalização que proporcionava maior acesso à ilu-
minação e à ventilação e nos subúrbios horizontais, mais adequados à escala do homem.

452
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Em La Sarraz, conforme discorre Benévolo (2001), discutiu-se a utilização de métodos


universais para a construção em série, além de debater a ideia de um modelo de urba-
nização funcional, através da redistribuição da terra de maneira justa. No congresso de
Frankfurt, foram discutidas as habitações mínimas, cujas caraterísticas foram estabe-
lecidas de acordo com a sociedade da época, que se baseava em observações estatísticas
e em teorias evolucionistas.
O II CIAM (1929, Frankfurt) buscou estabelecer a “unidade mínima”, a habitação e,
a partir dela, a organização dos demais elementos urbanos. É marcado por propostas
arquitetônicas para a habitação e uma “solução científica” mínima e ideal, tornando-a
economicamente viável para a produção em série e em conformidade com a demanda
crescente das cidades. Implicava também regulamentações urbanísticas que promovessem
requerimentos sociais e salubres associados aos requisitos de modelos gerais e universais
padronizados. Prevaleciam as funções mínimas e necessárias para as habitações como
discurso efetivo de uma arquitetura moderna respaldada cientificamente por preceitos
biológicos e o emprego do concreto, que atenderia às exigências do modelo Dominó.
O III CIAM (1930, Bruxelas) começou a estabelecer relações entre habitação e cidade
ao abordar o problema do bairro e ao estabelecimento de critérios para a inserção dos
blocos de habitação na estrutura de parcelamento do solo. Segundo Benévolo (2001), foi
observado que os edifícios de habitação coletiva apresentavam uma solução melhor ao
problema da habitação do que as casas individuais, visto a alta densidade e a ocupação
de uma pequena parcela do solo, potencializando a redução do déficit habitacional. Le
Corbusier discorreu sobre a Ville Radieuse[2] (Figuras 1 e 2) e defendeu a demolição das
cidades existentes, propondo sua reconstrução com edifícios altos e com densidade de
250 a 500 habitantes por acre.

[2] A Ville Radieuse incorpora princípios da Ville Contemporaine e do Plan Voisin. No entanto,

Arturo Sorio y Mata.

453
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1 - Ville Radieuse (1930). Fonte: FUNDAÇÃO LE CORBUSIER


Figura 2- Unidade Habitacional da Ville Radieuse (1930). Densidade das habitações. Fonte:
FUNDAÇÃO LE CORBUSIER

Le Corbusier, considerando o taylorismo, propunha pequenos trajetos entre os


blocos de edifícios, além de áreas de lazer, reforçando as concepções de cidade parque
(MUMFORD, 2002). O uso racional do solo urbano promoveria possíveis ganhos e o bara-
teamento de custos de implantação do sistema proposto. O investimento na construção
civil, por parte das administrações públicas, contribuiu para dinamizar as economias,
dada a expansão das cidades e áreas periféricas para a habitação coletiva. Os discur-
sos sobre a cidade industrial difundiram-se por meio das exposições promovidas nos
encontros; em específico, no III CIAM com a publicação Rationalle Bebauungsweisen, em
que se destaca a uniformidade dada às 56 propostas, desconsiderando-se o arquiteto e
o contexto local, dando-lhes aparência uniforme como amostras do organismo urbano,
dotadas de caráter científico.
O ápice da consolidação do Movimento Moderno ocorreu no IV CIAM (1933, Atenas),
com o tema Functional City. O objetivo era elaborar um documento-síntese capaz de pôr
diretrizes e normas à cidade do futuro. Para Mumford (2002), o caráter funcionalista
abordado pelos primeiros CIAMs confunde-se, por vezes, com o próprio discurso do
Movimento Moderno. O V CIAM, (Paris em 1937), dedicou-se ao tema moradia e lazer. O
encontro ocorreu sob o domínio de Le Corbusier e dedicou-se ao estudo das novas áreas
residenciais, que eram constituídas por habitações e serviços comuns, complementando
as discussões realizadas no IV CIAM.
A Ville Radieuse, plano que melhor exemplifica o ideal urbanístico proposto pelas
discussões levantadas na época. Podemos afirmar que este modelo sintetiza as discus-
sões das duas primeiras fases dos CIAM, pois baseia-se nas quatro funções da Carta de
Atenas, além de possuir características ligadas às discussões feitas nos congressos como

454
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

a ocupação do solo e a importância do edifício de habitação no contexto urbano. No


entanto, em confrontação ao domínio de Le Corbusier, Cohen (2012) descreve a posição
dos urbanistas alemães que viam nos arranha-céus americanos a expressão e referência
para as modernizações da cidade. Um novo modelo de cidade emergia fora dos limites
europeus – a cidade vertical.
Segundo Barone (2002), os modernistas acreditavam que as configurações da cidade,
a máquina de morar e a habitação mínima eram teorias que propiciariam um mundo
mais igualitário. Com isso, a estrutura urbana poderia ser organizada funcionalmente
proporcionando bem-estar social. Porém, a produção da habitação em série para um
usuário genérico, que não levava em consideração a identidade do morador e as especifi-
cidades culturais e do lugar, levou à formulação crítica em que os modelos utópicos foram
refutados em prol de propostas que se contrapunham com esses ideais. Tais questões
foram discutidas pelos arquitetos mais jovem nos CIAM seguintes que compreenderam
a terceira e última fase dos congressos.
Após a Segunda Guerra Mundial, a organização do CIAM foi alterada, o que con-
tribuiu para a dispersão dos discursos com a adoção de subcomitês temáticos, levando
a novas abordagens. Para além dessa abordagem, os arquitetos mais jovens passaram
a oferecer outras de acordo com o interesse de cada grupo. Os discursos dominantes
(materialismo experimentalista alemão e a abstração funcionalista francesa) do entre-
guerras foram substituídos, repercutindo nos discursos de crítica e revisão ao modelo
funcionalista corbusiano.
Os primeiros abalos às proposições modernistas ocorreram entre o 6º e 7º CIAMs
(1947, 1949). A revisão da Carta de Atenas era o tema central desses congressos associada
às propostas utópicas de cidade do futuro. Duas posturas desdobraram-se entre jovens
arquitetos participantes do TEAM X. De um lado, em vez de atuar como o “médico-herói”,
os arquitetos e urbanistas deveriam recuperar o Zeitgeist, sendo a pesquisa tecnológica
o argumento central daqueles que defendiam esta posição; de outro, havia um grupo de
arquitetos engajados numa arquitetura mais humanizada, visando à reconciliação entre
homem e arquitetura à medida que a escala humana e os espaços públicos pudessem
fortalecer o sentido de comunidade. Os 8º, 9º e 10º CIAMs (1951, 1953 e 1956) buscaram
novos caminhos no interior da disciplina, levando à dissolução dos encontros.
Como reconstruir a Europa? O desafio da prática urbanística não estava somente
sobre construir no ex nihilo, mas considerar os princípios para a relação entre o antigo
e o novo. A destruição da guerra corroborou para as mudanças enunciativas dos CIAMs
e o tema da cidade tornou-se mais complexo. Não bastava apenas delimitar a cidade do
futuro, era urgente considerar as cidades existentes para a atuação e reestruturação do

455
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

espaço edificado. Os encontros abordaram a temática urbana não mais pela arquitetura
a ser proposta, mas pelas condições entre permanências e rupturas necessárias para o
desenvolvimento das cidades. As inter-relações dos espaços e as condições do vivido
passaram a ser objeto de discussão.

1950-1980 - A TEORIA DO HABITAT

Calabi (2008) considera que o período de reconstrução da Europa, entre 1944 e


1970, ofereceu novos campos de atuação para o arquiteto e urbanista. Apresentam-se
três temas fundamentais para a reconstrução – planejamento territorial, fundação de
cidades novas e políticas habitacionais –, aliados às influências do pensamento nor-
te-americano, em diversas dimensões. O New Deal, o pensamento dos sociológicos da
Escola de Chicago e o modelo da unidade de vizinhança do subúrbio serviram de bases
para revalidar a postura política da prática urbanística. As políticas públicas de plane-
jamento urbano e territorial e as intervenções são partes da reestruturação econômica,
contribuindo para a dinamização e reinvenção do capitalismo. A expressão dessa dinâ-
mica dá-se pela suburbanização e pela descentralização das cidades, cooperando para
a reavaliação do núcleo urbano, tema destacado no VIII CIAM, intitulado “O Coração da
Cidade” (1951, Hoddesdon).
De acordo com Frampton (2008), pode-se considerar que o VIII CIAM constituiu
o ponto de inflexão entre as teorias levantadas pelas primeira e segunda gerações de
arquitetos. Este CIAM foi organizado pelo grupo inglês MARS e, segundo Montaner (2001),
nele entendeu-se que o coração da cidade se comportava como o centro cívico e repre-
sentativo da cidade moderna, onde cada área ou bairro necessita de um núcleo. E cada
cidade deveria possuir seu “coração”, onde a população poderia desenvolver atividades
e intercâmbios culturais e comerciais. Neste contexto, a cidade passou a ser valorizada
como preexistência, e houve uma inversão de escala, onde os estudos urbanos passaram
da dimensão macro do planejamento para a dimensão micro, voltando-se para as partes,
reconhecendo-se o valor simbólico de diferentes tipos históricos.
Diante das discussões do VIII CIAM, Aldo Rossi apresenta a questão da memória,
em que “[...] a arquitetura também se transforma em experiência autobiográfica; lugares
e coisas mudam com a sobreposição de novos significados. [...]” (NESBITT, 2006, p. 380). A
partir das discussões de Rossi, os estudos morfológicos consideravam que em uma cidade
sempre haveria estruturas permanentes como a casa, o monumento e os elementos pri-
mários, que não tratavam apenas de funções, mas sim de elementos urbanos dotados de
significado. Para Rossi, o monumento seria o elemento que remeteria à memória de uma
cidade, por serem os elementos primários, fixos e característicos do ambiente urbano.

456
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O VIII CIAM consolidou as fissuras dos dois encontros anteriores, ao propor a ava-
liação do núcleo urbano dotado de significados e que expressa fisicamente o senso de
comunidade em oposição à visão científica defendida nos quatro primeiros congressos.
Abarcava desde os interesses de pedestrializar os centros das novas cidades holandesas,
suecas e britânicas até projetos urbanos para o Peru e a Colômbia, além de satisfazer o
grupo italiano que se interessava pelos centros históricos. A discussão desse encontro
legitimou as posturas divergentes dos arquitetos participantes dos CIAMs, distancian-
do-os de Le Corbusier. Com isso, a partir de 1951 instala-se uma crise disciplinar, que
culmina com a dissolução do CIAMs em 1956 e a consolidação do historicismo como
aporte teórico para a arquitetura e o urbanismo.
Essa discussão está fortemente ligada à ideia do genius loci, o espírito do lugar, de
Norberg-Schulz. Segundo Nesbitt (2006), Norberg-Schulz discorre sobre como o homem
moderno viveu, durante muito tempo, sob uma crença ilusória de que a ciência e a
tecnologia o haviam libertado da dependência direta dos lugares. “Habitar” passaria a
designar a relação entre o homem e o lugar. Segundo o arquiteto, a liberdade pressupõe um
sentimento de pertencer, e o “habitar” confere esse sentimento ao homem, pois quando
o homem habita um determinado local, ele passa a pertencer a um ambiente concreto.
As discussões de Norberg-Schulz referentes ao habitar, tem forte relação com o tema
do X CIAM (1956) que se dedicou à discussão do “Habitat Humano” e foi de responsabi-
lidade do grupo denominado por a nova geração. Segundo Montaner (2001), nos dois
últimos CIAM houve o princípio da sua ruptura, uma vez que surgiu um grupo, o Team
X, que apresentava características muito diferentes.
O Team X surgiu a partir do X CIAM e de 1959 e 1962 e “[...] buscava resgatar a força
moral heroica do modernismo do passado, e ao mesmo tempo canalizá-la em formas
relevantes a um mundo profundamente transformado [...]” (Curtis, 2008, p. 442). O tema
do Habitat, discutido nos dois últimos CIAM, foi fundamental para a consolidação do
grupo, pois foi a partir dos debates levantados naquele momento que foram revelados
os interesses dos vários membros do grupo em se discutir uma arquitetura baseada
nas inter-relações humanas no espaço. Dessas inter-relações, surgiu a importância de
se incorporar os espaços complementares e áreas comuns às unidades residenciais,
uma vez que se ressaltou a importância da uma socialização entre os usuários e para a
manutenção de seus valores culturais.
Segundo Frampton (2008), o Team X retomava a questão de múltiplas escalas de
intervenção da arquitetura e do urbanismo que era constituída pela casa, seguida pela
rua, pelo bairro e, finalmente, pela cidade. A rua ou o espaço, entre as formas construídas,
eram os elementos geradores da segunda escala, a partir das relações entre os moradores

457
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e o espaço urbano. O bairro constituía uma terceira escala, esta por sua vez se compor-
tava como escala intermediária entre a arquitetura e o urbanismo. Para os membros do
Team X, essa sucessão de escalas preenchia o vazio deixado pelas teorias propostas pelo
Movimento Moderno relativas à relação entre a arquitetura e urbanismo funcionais.
Segundo Montaner (2001), a partir desse momento começaram a surgir novas
teorias que iam contra os ideais propostos pelo Movimento Moderno, denominadas
pós-modernas. Segundo o autor, essas novas teorias pensavam em projetar a cidade em
escala macro, cujas soluções eram elaboradas a partir de um todo e não por partes frag-
mentadas como era feito anteriormente no modernismo. Nesse período destacaram-se o
Archigram, os metabolistas japoneses, o populismo de Robert Venturi e o racionalismo.
Ao suplantar seus ideais nos avanços tecnológicos, o Archigram propôs uma arqui-
tetura descartável, substituível, um objeto de consumo. Com isso, o mundo artificial e a
ainda incipiente tecnologia informacional (computadores e naves espaciais) imperavam
no imaginário do grupo, expresso em projetos radicais de inovação tecnológica, com-
preendendo desde pequenas células às cidades no espaço. Ao contrário de Le Corbusier,
o Archigram não buscava uma relação entre homem, natureza e máquina. O aparato
tecnológico associado à capacidade comunicativa da cultura de massa serviu de pano
de fundo para a elaboração de suas propostas.
Plugin City (1964), cidade conectável (Figura 3), de Peter Cook, representa o paradigma
formal da cidade imaginável no espaço, descolada de quaisquer paisagens preexistentes.
Como afirma Montaner (2001, p. 115), a arquitetura deveria abandonar suas aspirações
artísticas, artesanais e históricas para assumir-se como produto da era industrial. Segui-
ram-se outras propostas do grupo Walking City (1963-1964) e Instant City (1968-1970)
(Figura 4).
A cidade do futuro e seu modelo utópico foram paulatinamente rejeitados à medida
que posturas mais radicais possibilitaram a renovação das ideias modernistas e também
com a valorização da história, do lugar e da memória, visto que a cidade histórica existente
possibilitaria a revisão e crítica ao Movimento Moderno de modo mais contundente.

458
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Houve o deslocamento de interesse, antes centrado no objeto arquitetônico iso-


lado, para investigações sobre paisagem urbana, conjunto de edifícios, espaços públicos,
unidades de vizinhança, entre outros elementos que alteram a configuração territorial.
Consideram-se também a sociedade e suas manifestações culturais como mediadoras e/
ou articuladoras na (re)constituição das cidades e suas partes. A proposta de Aldo Rossi
foi importante para a renovação dos métodos de leitura e análise das cidades, confe-
rindo-lhe, como reporta Vázquez (2004), uma continuidade aos discursos culturalistas
(CHOAY, 1965) e foi bastante disseminada ao longo dos anos 1970 e 1980 como estratégias
de intervenção, principalmente em áreas preexistentes e em tecidos urbanos consolidados.

459
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

No final da década de 1970, foram retomados os debates realizados nos últimos


CIAM bem como as teorias de Rossi, Norberg-Schulz e do Team X, tendo em vista a Expo-
sição Internacional da Construção (IBA). Iniciada em 1977, na Alemanha, a IBA tinha
como finalidade “[...] realizar um programa ambicioso de construção e recuperação que
envolvesse toda a cidade [...]” (GHIRARDO, 2002, p. 124). A exposição propôs que as constru-
ções residenciais deveriam integrar-se à cidade existente, de forma que envolvessem o
tecido histórico da cidade de Berlim, seus problemas sociais e as exigências econômicas
de áreas decadentes.
Os organizadores previram um tecido urbano composto por edificações novas e
antigas onde ocorreriam transformações funcionais a partir de redes de ruas reconceitu-
adas, redefinidas e reorganizadas. Dessa forma, os edifícios não deveriam ser levados aos
subúrbios; eles deveriam se integrar com a cidade existente, estabelecendo uma relação
positiva entre o novo e o velho, relembrando as discussões do VIII CIAM. Os edifícios de
habitação coletiva se relacionam de formas distintas quando inseridos em cidades já
existentes conforme as especificidades das configurações espaciais. Mais recentemente,
a leitura dessas espacialidades, permite identificar a relação que ocorre entre o edifício
e os diferentes contextos urbanos nas cidades contemporâneas.

1980/1990-2010 - A CIDADE TRIDIMENSIONAL

Na arquitetura contemporânea, o debate holandês (BENEVOLO, 2007) retoma e


mescla as posturas do Movimento Moderno e o período de crise e revisão crítica, pois
busca responder aos modos de vida e aos anseios da sociedade e, ao mesmo tempo,
amplia as soluções tecnológicas ao articular o edifício à cidade, considerando-o como
parte da forma urbana.
A complexidade da contemporaneidade é discutida pelo grupo MVRDV, atentando-se
para as características das cidades atuais: o desafio ambiental e a constatação de que sua
forma é menos rígida que a cidade da era da máquina: ela apresenta espacialidades dis-
tintas que se caracterizam de acordo com seu contexto, adquirindo diferentes fisionomias.
Dessa forma, o edifício de habitação ao ser inserido na cidade contemporânea,
considera como condicionante as características do contexto urbano, diferente das
edificações residenciais do Movimento Moderno, que eram inseridas isoladamente.
De acordo com Falagán; Montaner e Muxí (2011), o edifício de habitação coletiva
deve ter a capacidade de proporcionar um impacto positivo na estrutura urbana na
qual ele está implantado, pois através da inserção de novos usos, em conjunto com sua
função residencial, é possível fazer uma ligação entre a habitação e o espaço público.

460
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Essa inserção de novos usos e diversidade de usuários são características do edi-


fício de habitação coletiva na contemporaneidade. Segundo MVRDV (2005), um edifício
residencial voltado somente para a habitação se torna monótono no contexto urbano,
visto que o mesmo é destinado a apenas um grupo restrito de usuários. Além de reforçar
o zoneamento funcional modernista, cujas atividades eram extremamente setorizadas
e localizadas.
De acordo com MVRDV (2005), atualmente, o usuário não habita apenas a sua
moradia, ele também habita vários outros espaços inseridos no contexto urbano. Dessa
forma, o edifício de habitação coletiva na contemporaneidade deve ser pensado como
esse espaço tridimensional que abriga várias funções, onde a edificação é a própria
cidade e a própria cidade é complementar à unidade residencial, ou seja, a inserção de
usos diversos e de espaços comuns que proporcionam convívio e encontro dinamizam
a função residencial do edifício a partir da criação de áreas comuns e coletivas que
também servem como espaços destinados à habitação.
O edifício se relaciona com a cidade e sociedade contemporânea como um todo: ele
não se torna um objeto isolado no contexto urbano, ao contrário das edificações na cidade
funcional do Movimento Moderno, que, segundo Montaner (2009), apenas se relacionava
com seu entorno imediato e com os espaços públicos que existiam entre um edifício
e outro. Desse modo, o edifício residencial passa a ser, muitas vezes, a própria cidade.
Diante disso, podemos concluir que o edifício de habitação coletiva na contempo-
raneidade se traduz nas edificações compostas por diversos usos que são classificados
como híbridos. De acordo com Arpa; Fernández Per e Mozas (2011) edificações híbridas
se caracterizam por apresentarem usos diversos incluindo o residencial, por se inserir
no espaço urbano integrando-se a ele e pelo uso público.
Pensando nisso, a partir da década de 1990, MVRDV (2005) discute a proposta da
cidade 3D: uma cidade vista como espaço tridimensional, que está em constante desen-
volvimento, construção e adensamento. A teoria da cidade tridimensional ganha força a
partir da criação de um protótipo, o cubo. O cubo, segundo MVRDV (2005), é a representação
da cidade em três dimensões, onde o programa da cidade bidimensional é inserido em
um volume tridimensional e assim km² se transformam em km³ e cria-se uma cidade
compacta e densa, que tem todas as suas funções inseridas num mesmo espaço que
apresenta largura, altura e profundidade. Nesse sentido, a proposta do MVRDV se apro-
xima das discussões contemporâneas em que os dados da realidade são transformados
em informações que sintetizadas tornam-se objetos arquitetônicos.
O cubo apresentado pelo MVRDV é um protótipo do edifício híbrido que pode ser a
solução para as diversas espacialidades urbanas que foram levantadas anteriormente.

461
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Ele se insere em contextos urbanos distintos de forma adequada, pois é flexível e agrega
as características e funções da cidade já existente, em que as informações da realidade
colaboram para a integração com o entorno e com o contexto urbano. Segundo Montaner
(2009), MVRDV se caracteriza por projetar através de uma ousada pesquisa formal, onde
é feita uma busca que leva ao extremo da fragmentação e da disjunção e que explora
sem barreiras todos os tipos de mecanismos:
O grupo desenvolveu uma tipologia de edificações que são relacionadas à soma
de fragmentos na vertical, em uma espécie de edifício massa que se converte em um
arranha-céu, dando a ele dois aspectos simultâneos: o da verticalidade e o da diversi-
dade. Tal diversidade pode ser observada através da configuração de cada planta e da
disposição das várias funções dentro do edifício de acordo com suas características e os
condicionantes do local em que está inserido. Nesse sentido, afasta-se das proposições
modernistas de buscar um protótipo e aproxima-se da ideia de habitat dos anos 1960.
A disposição das funções e usos dentro da edificação, juntamente com os jogos for-
mais propostos pelo grupo, são feitos através de mecanismos racionais e sistematizados
como o programa de computador “Functionmixer”. Para esse grupo de arquitetos, os dados
de determinado local e edifício são lançados no programa e, a partir das informações
fornecidas, são geradas diferentes propostas de implantação e organização espacial do
edifício. O “Functionmixer” tem como objetivo auxiliar no processo de projeto do edifício,
e a partir da geração de várias possibilidades, chegar à solução otimizada para a confi-
guração da edificação, partindo de módulos tridimensionais..
Segundo Montaner (2009, p. 165), o edifício Silodam (1995-2002) é “[...] o exemplo
mais brilhante do mecanismo de somar módulos em três dimensões” utilizado pelo
MVRDV. A edificação localiza-se em Amsterdã, Holanda e consiste em um complexo de
157 unidades habitacionais que se comporta como uma interpretação pós-moderna
da Unidade de Habitação de Marselha de Le Corbusier. Para o autor, a rua-corredor de
Le Corbusier é convertida em um “labirinto de elevadores, escadas e corredores”, além
de apresentar unidades de vizinhança menores a partir do agrupamento de vizinhos
propostos, que são expostos na fachada com o emprego de diferentes materiais na
fachada (Figuras 5, 6, 7, 8, 9 e 10).

462
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6 – Silodam – diagrama da melhor disposição e dimen-


Figura 5 – Silodam – esquema do empilhamento e soma de são das unidades residenciais. Fonte: Montaner, 2009
módulos. Fonte: El croquis (2001).

Figura 7 – Silodam – Planta do 5º pavimento e as diferentes circulações propostas, articuladas a espaços públicos. Fonte:
www.aplust.net/

Figura 8 – Silodam – esquema do posicionamento das unidades residenciais no volume do edifício. Montaner, 2009.

Figura 9 – Silodam – Esquema da composição da fachada oeste. Fonte: www.aplust.net/

463
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 10 – Silodam – Planta do terceiro pavimento composto por diferentes tipos de unidades habitacionais. Fon
aplust.net/
De acordo com Montaner (2009, p. 165), “essa ênfase radical na individuali-
dade dos usuários expressa-se ainda nos distintos espaços destinados ao uso
coletivo presente em cada uma das quatro partes do edifício”. A sobreposi-
ção de fragmentos é denominada, pelo autor, como um megaobjeto, confi-
gurando uma cidade vertical, à medida que proporciona relações urbanas a
cada pavimento, distintos entre si.

O edifício Celosia (2009) foi pensado como um bairro poroso, onde o bloco
é definido como um tecido tridimensional e intertravado – espaços públicos
e privados, com áreas abertas e estruturas construídas diversas (figuras 11 e
12).

Figura 12 – Celosia – Edifício Celosia - Madrid. Fon


Figura 11 – Celosia – Processo da concepção do edifício. archdaily.com
Fonte: www.aplust.net/
O edifício localiza-se em Madrid, Espanha e conta com um total de 136 uni-
dades habitacionais, as quais podem ser de um, dois ou três quartos, além
de possuir garagem com 165 vagas. O pavimento térreo é composto por doze
salas comerciais e um jardim comunitário que liga o interior do edifício ao
exterior, e pode ser acessado por qualquer usuário, não apenas por aqueles
que habitam a edificação (figura 13).

464
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 13 – Celosia – Planta do Pavimento Térreo. Fonte: FERRE; SALIJ, 2009.


De acordo com Ferre e Salij (2009), a edificação é um bloco aberto que per-
mite a entrada de luz e de ventilação, além disso oferece vistas e espaços
abertos que contrastam com seu entorno. O volume do bloco residencial é
composto por trinta blocos fragmentados de apartamentos. Cada volume
menor é deslocado para o lado e colocado em cima do outro. A articulação
desses blocos proporciona espaços abertos destinados às áreas comuns do
edifício, resultando numa relação entre cheios e vazios (figura 14).

Da mesma maneira que ocorre no Silodam, neste edifício, a sobreposição dos


eixos de circulação vertical estabelece a articulação entre os pavimentos (fi-
gura 15). Além de assumir as relações formais, esse jogo volumétrico, possi-
bilita melhor ventilação e iluminação das unidades e espaços de convivência.

A volumetria é definhada por três tipos de blocos correspondendo a quan-


tidade unidades e, estas, por sua vez, definidas pela quantidade de quartos:
o bloco pequeno, composto por dois apartamentos de três quartos; o bloco
médio, composto por três apartamentos de dois quartos; o bloco grande,
composto por dois apartamento de três quartos e um apartamento de um
quarto. Desse modo, além de buscar articular as relações urbanas no edifício,
a organização espacial se vincula ao programa e soluções técnico-construti-
vas (figura 16).

465
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 15 – Celosia – Diagrama deslocame


Figura 14 – Celosia – Corte longitudinal, deslocamento dos blocos, es- blocos. Fonte: Ribeiro, 2017.
paços vazios (área comum) e eixo de circulação vertical. Fonte: www.
archiweb.cz. com modificações Ribeiro, 2017.

Figura 16 – Celosia – Diagrama de organização espacial – espaços


públicos, relação cheios e vazios e blocos.

Fonte: www.aplust.net/ modificado Ribeiro, 2017.


Os exemplos apresentados ilustram o processo diagramático do MVRDV para
projetar seus edifícios, além de se enquadrar nas características dos edifícios
de habitação coletiva na arquitetura contemporânea, visto que se relacionam
com a cidade; possuem usos além do residencial, pois apresentam áreas co-
muns e espaços destinados a usos públicos e se adequam às novas configu-
rações familiares da sociedade contemporânea e aos seus novos modos de
vida, apresentando individualidade, que já havia sido pensada pelo Team X e
que se opõe ao protótipo ideal modernista. Assim, podemos dizer que os três
edifícios são híbridos, pois apresentam flexibilidade e variações no programa.

466
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Frente a esses projetos e às teorias do grupo holandês, pode-se concluir que


o edifício de habitação coletiva, que na contemporaneidade se configura
como um edifício híbrido, condensa as duas ideias discutidas anteriormente,
a de habitação do Movimento Moderno e de Habitat discutida na terceira
fase dos CIAM e pelo grupo Team X, visto que o edifício atende a uma grande
diversidade de usuários, através de apartamentos com organizações espa-
ciais diversas e possui espaços de uso comum, os quais são destinados ao
convívio, ao encontro e à realização de atividades complementares àquelas
realizadas na unidade habitacional.

O edifício residencial em si se comporta como cidade e possui espaços habi-


táveis que vão além da unidade residencial e ainda apresenta elementos que
tem como papel integrar a edificação com a cidade e atrair diversos tipos de
usuários, se tornando um equipamento que é capaz de gerar vitalidade e de
agregar as características do seu contexto urbano.

Diante disso, pode-se concluir, que a discussão da habitação na contempora-


neidade se aproxima mais daquelas que foram feitas nos últimos CIAM e pelo
Team X, do que aos debates propostos pelo Movimento Moderno, visto que
a relação com a cidade não se dá de forma isolada, pelo contrário, o edifício
se integra ao contexto urbano e a relação existente entre ambos é valorizada,
pensando sempre no edifício e na cidade como o habitat do homem, pois o
usuário não habita apenas o edifício, mas todo o contexto urbano.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio desse estudo, foi possível compreender como a habitação e a cidade
foram tratadas ao longo do século XX aos dias atuais. O edifício de habitação coletiva
no Movimento Moderno foi tratado como objeto isolado, que era disposto em faixas
lineares contínuas e só se relacionava com seu entorno imediato. Era tido como peça
fundamental na organização da cidade funcional, proposta pela Carta de Atenas, que
apresentava quatro funções: habitação, trabalho, lazer e circulação.
Resultada em uma organização racionalista, devido zoneamento funcional que
pode ser observado no plano da Ville Radieuse de Le Corbusier. Além disso, os arquitetos
modernistas acreditavam que a habitação mínima, a produção em série a generalização
do usuário seriam a solução para a problemática da habitação. Dessa forma, a Unidade
de Habitação de Marselha, projetada por Le Corbusier é vista como protótipo do edifício
de habitação coletiva, onde a edificação poderia ser inserida indiscriminadamente em
qualquer contexto urbano e poderia ser destinada a qualquer usuário.

467
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Posterior à segunda Guerra Mundial, os arquitetos declinaram de pensar a cidade


como uma organização de zonas. A noção do habitat, proposta pelos membros do Team
X, era sustentada em um conceito de que não apenas a unidade residencial permitia a
existência de uma vida coletiva no âmbito da moradia, mas também a presença de espaços
públicos e de convívio. O grupo acreditava que não havia um modelo universal e genérico
de habitação, mas que ela deveria constituir-se historicamente. Em complementação,
para Team X, o edifício de habitação coletiva se relacionava com a cidade por meio de
uma sucessão de escalas: casa, seguida pela rua, pelo bairro e, finalmente, pela cidade.
O edifício de habitação coletiva apresenta diversas configurações espaciais de
unidades habitacionais, proporcionando uma grande diversidade de usuários e se ade-
quando à sociedade contemporânea que é cada vez mais heterogênea. Pode-se concluir
que a discussão do MVRDV, acerca da cidade tridimensional e da adoção do cubo como
premissas projetuais, leva a um novo protótipo do edifício de habitação coletiva, diferente
daquele elaborado pelo Movimento Moderno. São propostas de alternativas flexíveis e,
por vezes, híbridas que agrega as características e condicionantes do contexto urbano,
muitas vezes, incorporando a própria cidade.

468
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

ARPA, Javier; FERNÁNDEZ PER, Aurora; MOZAS, Javier. Density is Home.


Gasteiz: A+T Architecture Publishers, 2011a.

______. This is Hybrid.

BARONE, Ana Carolina Castilho. Team 10: Arquitetura como crítica. São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2002.

História da Arquitetura Moderna. São Paulo: Editora


Perspectiva, 2001.

______. Arquitetura do novo milênio. São Paulo: Edições Loyola, 2007.

O urbanismo. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. p. 61-129.


(Coleção Estudos).

COHEN, Jean-Louis. O futuro da arquitetura desde 1889: uma história mundial.


São Paulo: Cosac & Naif, 2012.

Arquitetura Moderna desde 1900.


Companhia Editora, 2008.

Tools for Inhabiting the


Present: Housing in the 21st Century. Barcelona: Actar, 2011.

FERRE, Albert; SALIJ, Tihamer. Total Housing: alternatives to urban sprawl. Nova

FRAMPTON, Keneth. História crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins


Fontes, 2008.

MUMFORD, Eric. . London: MIT Press,


2002.

MONTANER, Josep Maria. Depois do Movimento Moderno. Barcelona: Editorial


Gustavo Gili, 2001.

______. Sistemas arquitetônicos contemporâneos. Barcelona: Editorial Gustavo


Gili, 2009.

. Farmax: excursions on density. Rotterdam: 010 Publishers, 1999.

______. KM3 Excursions on Capacities. Barcelona: Actar, 2005.

469
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Arquitetura moderna para habitação popular:a


apropriação dos espaços no Conjunto Residencial Mendes de
Moraes(Pedregulho). Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2006.

.
In: Seminário Mato-grossense De Habitação De Interesse Social, 2005, Cuiabá.
Disponível em:
Acessado em: 21/04/2018.

ZUCCONI, Guido. A cidade do século XIX. São Paulo: Editora Perspectiva, 2009.

470
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

LE HAVRE: DE CIDADE
RECONSTRUÍDA A
PATRIMÔNIO MODERNO
LE HAVRE: FROM REBUILT CITY TO MODERN
HERITAGE

LE HAVRE: DE LA CIUDAD RECONSTRUIDA AL


PATRIMONIO MODERNO
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

SILVA, Jéssica
Doutoranda; Universidade de Brasília
jessica.arq3@gmail.com

471
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A cidade francesa de Le Havre, hoje Patrimônio Cultural da Humanidade reconhecido pela
UNESCO no ano de 2005, teve o seu centro urbano praticamente todo reconstruído após os
bombardeios da Segunda Guerra Mundial. O longo processo que separa essas duas datas, de
1944, ano da destruição, até 2005, data do reconhecimento, foi marcado por inúmeras ações,
discussões e agentes que envolveram a sua patrimonialização. Este artigo aborda esse percurso,
lançando luz sobre a Le Havre do passado que foi reconstruída até a cidade listada na UNESCO,
mantendo o foco no campo do patrimônio e da preservação.

PALAVRAS-CHAVE: Le Havre. reconstrução. patrimônio. preservação. reconhecimento.

A BSTRACT
The French city of Le Havre, today a World Heritage Site recognized by UNESCO in 2005, had
its urban center practically rebuilt after the bombings of World War II. The long process that
separates these two dates, from 1944, the year of destruction, until 2005, the date of recognition,
was marked by countless actions, discussions and agents that involved its patrimonialization.
This article addresses that path, shedding light on Le Havre from the past, which was rebuilt to
the city listed on UNESCO, keeping the focus on the field of heritage and preservation.

KEYWORDS: Le Havre. rebuilding. heritage. preservation. recognition.

RESUMEN
La ciudad francesa de Le Havre, hoy Patrimonio de la Humanidad reconocido por la UNESCO
en 2005, tuvo su centro urbano prácticamente reconstruido después de los bombardeos de la
Segunda Guerra Mundial. El largo proceso que separa estas dos fechas, desde 1944, el año de la
destrucción, hasta 2005, la fecha de reconocimiento, estuvo marcado por innumerables acciones,
debates y agentes que involucraron su patrimonialización. Este artículo aborda exactamente
ese camino, arrojando luz sobre Le Havre del pasado, que fue reconstruido en la ciudad incluida
en la lista de la UNESCO, manteniendo el foco en el campo del patrimonio y la preservación.

PALABRAS-CLAVE: Le Havre. reconstrucción. patrimonio. preservación. reconocimiento.

472
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO[1]

Le Havre, a cidade francesa comumente conhecida pela sua reconstrução após a


Segunda Guerra Mundial, é hoje uma das três cidades modernas listadas como Patrimô-
nio Cultural da Humanidade perante a UNESCO (Organização da Nações Unidas para a
Educação, a Ciência e a Cultura), juntamente com Brasília e Tel-Aviv, em Israel. Le Havre
guarda em sua história um passado que remete às suas origens no século XVI, passando
pelo trauma da destruição no ano de 1944, na Segunda Guerra Mundial, e o momento
posterior de sua reconstrução baseada nos princípios modernos. A cidade francesa,
reconhecida no ano de 2001 como a cidade da arte e da história, recebeu o título de
patrimônio da humanidade em 2005.
O processo de candidatura de Le Havre a patrimônio teve seus aportes iniciais ainda
na década de 1980, quando se discutia a necessidade de preservação da sua arquitetura
moderna. Ao mesmo tempo, houve a preocupação em se buscar medidas que favoreces-
sem uma efetiva apropriação da cidade por parte da população local. Essas duas ques-
tões representam temáticas caras ao campo da preservação de cidades modernas, uma
diz respeito ao reconhecimento de que esses centros urbanos e sua arquitetura estão
envelhecendo e necessitam de um tratamento adequado; outra correponde à aceitação
e à compreensão por parte de seus habitantes de como lidar com essa modernidade.
Outra problemática levantada no caso de Le Havre diz respeito à sua condição de
cidade reconstruída no pós-guerra e como isso implicou em ações urgentes para reergué-la
e acolher a população desabrigada. Cabe destacar, nesse caso, que a cidade passou por
uma reconstrução, não com o intuito de restaurá-la tal como antes, mas com a intenção
de propor um novo modo de vida, associado aos ideais da arquitetura e do urbanismo
modernos. É necessário, desse modo, observar como isso se reverteu para a candidatura
à UNESCO, nos anos 2000, tendo sido um diferencial em relação às de Brasília e Tel-Aviv.
Tanto no momento da reconstrução, quanto no da candidatura, os governos local e
nacional tiveram papéis essenciais.
A identificação das circunstâncias em que Le Havre foi reconstruída e quando se
tornou patrimônio levam aos objetivos deste artigo. Assim, busca-se revisitar o percurso
que transformou a cidade destruída em um conjunto urbano preservado. Há a intenção
de discutir os pressupostos gerais que tornaram esse movimento possível, atentando já
de início que essa discussão não se limita a observar os dois momentos, cabendo análises

[1] Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento junto à linha de pesquisa
Patrimônio e Preservação, área de Teoria, História e Crítica do Programa de Pós-graduação da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.

473
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

mais específicas e detalhadas em outros debates. Pode-se citar como exemplo a questão
pós-reconhecimento pela UNESCO e os cuidados de cada gestão para manter suas cidades.
A discussão da preservação de cidades modernas, sobretudo Brasília, parte do
contexto brasileiro, se faz presente hoje nas mesas de discussões. Porém, verifica-se a
necessidade de ampliar esse debate, ao introduzir outras cidades modernas que também
são reconhecidas pela UNESCO. Além de Brasília (1987), Tel-Aviv (2003) e Le Havre (2005).
No presente artigo pretende-se olhar especificamente para Le Havre, lançando luz sobre
essa cidade, sem a intenção de excluir Brasília e Tel-Aviv que aparecem em determinadas
discussões. Os aportes necessários para dar suporte às intenções deste artigo provêm
sobretudo de livros e escritos que abordam especificamente Le Havre.
Em suma, pretende-se responder à seguinte questão: como o processo de reconstru-
ção de Le Havre auxiliou para que a cidade se tornasse Patrimônio Cultural da Humani-
dade como um sítio moderno? Sendo assim, a abordagem aqui pretendida diz respeito
a uma parte do processo, certamente possuindo outras possibilidades de discussão. A
partir dessa proposta, o artigo se estrutura em duas partes: uma discussão inicial sobre
o período de reconstrução e o debate relativo ao momento de candidatura perante a
UNESCO, encerrando com algumas considerações finais.

DA DESTRUIÇÃO À RECONSTRUÇÃO

O dia 5 de setembro de 1944 marcou a história da cidade francesa de Le Havre como


a data do início dos bombardeios que a arruinaram durante a Segunda Guerra Mundial.
A destruição de grande parte do seu centro, fundado ainda no século XVI, trouxe a neces-
sidade de reconstrução urgente de sua área urbana para abrigar cerca de 80.000 pessoas
desalojadas após a guerra. A força-tarefa deslocada para o seu reerguimento fez com o que
o governo local, apoiado pelo governo nacional, realizasse seus primeiros movimentos
já em 1945, assim buscando um plano para a reconstrução que fosse suficientemente
rápido e eficiente para reerguer a cidade destruída.
O processo de reconstrução teve seus movimentos iniciais associados ao Minis-
tério da Reconstução e do Urbanismo (MRU), chefiado pelo ministro Raoul Dautry. Esse
ministério teve a função de organizar as etapas necessárias para reerguer a cidade,
definindo os papéis de cada agente. Segundo Claire Étienne-Steiner (2017), a área de
urbanismo seria responsável pelo plano de reconstrução e de urbanismo; os arquitetos
cuidariam da “ordem arquitetônica”; e por fim o grupo responsável pela distribuição e
parcelamento dos lotes.

474
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Esse modelo de organização distinguiu os papéis de Auguste Perret, nomeado em


1945 arquiteto chefe da reconstrução de Le Havre, que acabou por ser responsável por
toda a parte central da cidade (Figura 1), deixando a periferia aos cuidados de Félix Bru-
nau, arquiteto local. O arquiteto responsável pelo parcelamento foi Jacques Tournant,
aluno de Perret. Além desses nomes principais, identificam-se duas “cooperativas de
desastres”: François 1er e Agir. Cada uma delas possuía seus arquitetos e mestres de
obras e cuidava de uma área específica da cidade. Além das cooperativas, o Estado ficou
responsável por reeguer os imóveis sem uso individual (ISAI), o que se entende como as
edificações coletivas para habitação. (ETIENNE-STEINER, 2017)

Essa distribuição de tarefas identificadas por Étienne-Steiner (2017), traz um pano-


rama mais geral de como funcionaria na prática essa organização pretendida. Evidente-
mente o foco parecia estar na população desalojada, que ocupava instalações provisórias
distribuídas pela cidade. Dessa forma, já no começo de 1946 as construções dos imóveis
sem uso individual foram iniciadas pelo governo local (Figura 2). A ideia para essas
habitações era de uma abordagem funcional, no sentido de buscar o conforto da casa.
(UNESCO, 2003) Seguindo essa visão funcionalista, foram realizados estudos buscando

475
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

as melhores condições de insolação e ventilação para as edificações de habitação cole-


tivas. Em 1950 começaram a ser entregues as primeiras unidades para a população. A
discussão envolvendo o acolhimento dessas pessoas em relação ao projeto de Le Havre
será ampliada na segunda parte deste artigo, ao enfatizar os argumentos para o seu
processo de patrimonialização.

Figura 2 - Vista dos Imóveis sem uso individual (ISAI). Fonte: Etienne-steiner (1999, p. 19).

Seguindo brevemente a cronologia da reconstrução da cidade, após os momentos


iniciais em que foram decididos os planos urbanos e arquitetônios entre 1945 e 1946,
Le Havre se tornou um grande canteiro de obras, com frentes de trabalho ocorrendo
paralelamente. A partir de 1950 pôde se ver edificações e ruas concluídas, também
trabalhos de restauração e reconstrução dos principais monumentos, como a Igreja de
Saint-Joseph, obra de Auguste Perret e marco arquitetônico da cidade. Em 1954, com o
falecimento do arquiteto, o restante da obra foi assumida pelo seu assistente, Jacques
Poirrier. Assim, até 1964 toda a população já havia sido realojada e até 1982 os últimos
edifícios públicos entregues. (UNESCO, 2005)
Foram quase quarenta anos desde o primeiro movimento para reerguer a cidade e
boa parte do que foi edificado segue diretrizes da arquitetura moderna. Auguste Perret
trouxe oito princípios que seriam aplicados na reconstrução, assim descritos:

476
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

1. As grandes vias subsistentes, que criam com o Bassin du Commerce dois eixos
ortogonais, servirão de base à trama geral;
2. A trama será constituída de duas grelhas perpendiculares de circulação prin-
cipal formando malhas quadradas com 100 m de lado;
3. Cada malha poderá ser recortada por uma rede de circulação secundária;
4. O traçado das vias, a largura, as dimensões das ilhas e dos imóveis serão ins-
critos em uma trama geral invisível, tendo um módulo base de 6,24m;
5. A disposição dos volumes construídos em relação à rua deverá garantir a
todos os apartamentos a insolação máxima, amplas visuais e proteção contra
os ventos dominantes;
6. A disposição dos edifícios, uns em relação aos outros, dentro de uma mesma
ilha, deverá considerar os mesmos imperativos;
7. A altura das edificações não será uniforme, sendo definidas localmente em
função das condições particulares enunciadas nos itens 5 e 6;
8. Considerando a proximidade com o lençol freático, será desejável elevar a rede
de vias de circulação. (ETIENNE-STEINER, 1999, p.11, tradução nossa)[2]
Esses princípios apresentados por Perret trouxeram diretrizes básicas para a recons-
trução de Le Havre, mencionando soluções para o urbanismo e para a arquitetura. Além
disso, houve a preocupação em seguir certos princípios de cidades modernas, como o
higienismo, a relação com o meio ambiente, a interação entre veículos e pedestres e a
organização do espaço urbano. Sem esquecer dos aspectos sociais e econômico como
soluções para a situação no pós-guerra. (PANTET; ELETA-DEFILIPPIS; SOLIGNAC, 2019)
Essa visão elencada pelos autores permite observar referências à Carta de Atenas de 1933,

[2] No original: “1– Les grandes voies subsistantes qui créent avec le bassin du Commerce
deux axes orthogonaux serviront de base à la trame générale. 2 – La trame sera constituée de
deux réseaux perpendiculaires de circulation principale formant des mailles carrées de 100 m
de côté. 3 – Chaque maille pourra être recoupée d’un réseau de circulation secondaire. 4- Le
trace des voies, leur largeur, les dimensions des îlots et des immeubles s’inscriront dans une
trame générale invisible dont le module de base est de 6,24 m. 5- La disposition des volumes
bâtis par rapport à la rue devra assurer à tous les appartements un ensoleillement maximum,
des vues dégagées et une protection contre les vents dominants. 6- La disposition des bâtiments
les uns par rapport aux autres dans un même îlot devra tenir compte des mêmes impératifs.

condictions particulières énoncées en 5 et 6”.

477
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

principalmente ao destacar a busca por uma qualidade de vida associada à necessidade


de insolação, contato com o verde e a organização da circulação.
Outros aspectos destacados por Perret também se remetem ao funcionalismo apre-
goado pela arquitetura moderna, como a ideia de propor um módulo de 6,24 m, segundo
o qual se organizaria a malha urbana; também a divisão em ilhas predeterminadas com
100 m de lado. Adicionalmente ao modelo de habitação coletiva que levava em consi-
deração a questão do conforto de seus habitantes, havia a preocupação com a relação
entre os edifícios, suas alturas e a interação com a cidade. Nessa discussão é possível
referenciar Brasília em alguns aspectos, o primeiro deles remete à própria edição dos
princípios propostos por Perret que também aparecem na capital brasileira através do
Memorial do Plano Piloto escrito por Lucio Costa. Cabe destacar que no caso brasileiro
o memorial traz mais detalhes sobre o que seria erguido, em grande parte por ter sido
integrante de um concurso para o desenho da nova capital, em 1957. Em contrapartida,
Perret lista alguns princípios mais básicos como um norte para a reconstrução de Le Havre.

Brasília, Tel-Aviv e Le Havre são referências claras ao movimento moderno, e por isso
é natural que sejam estabelecidas comparações entre elas, através de suas edificações ou
do desenho urbano, ou simplemente no uso dos materiais. Se existiram conexões entre
as cidades no momento de seus projetos, ou mesmo de construção, não há uma resposta
até o momento. Tendo como foco o processo de candidatura, Brasília foi a primeira em
1987, seguida de Tel-Aviv em 2003, e Le Havre em 2005. De certa forma, como parte de um
pré-requisito da UNESCO para a candidatura, as cidades posteriores foram brevemente
comparas às suas antecessoras, principalmente como uma forma de validação do pro-
cesso de reconhecimento como cidades modernas patrimônio cultural da humanidade.
Além desses aspectos já citados que são caros aos representantes da arquitetura
moderna, a reconstrução de Le Havre perpassa uma noção inicial de que o ponto de par-
tida seria uma tábula rasa, ideia que no campo da arquitetura é comumente associada
a uma condição do projeto em que se parte do zero. Na cidade francesa essa noção diz
respeito aos 150 hectares destruídos pelas bombas da guerra (Figura 3). Essa visão foi
reforçada no seu Dossiê de candidatura perante à UNESCO, quando afirmou:
A cidade reconstruída é, portanto, sobreposta à cidade destruída de
acordo com dois modos simultâneos, virtual e concreto, que constroem,
além da tábula rasa, sua real profundidade histórica. A Le Havre nova
também cobre a Le Havre antiga a partir de um aterro de um metro de

478
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

altura feito de entulho nivelado dos prédios bombardeados. (UNESCO,


2003, p. 63, tradução nossa)[3]

Figura 3 - Le Havre após os bombardeios de 1944. Fonte: Étienne-Steiner (2017, p. 178).

Apesar do Dossiê assumir essa noção, Perret buscou na cidade antiga referências ao
seu traçado original como é explicitado em Le Havre – Auguste Perret et la reconstruction:
“[...] a tábula rasa é um efeito ilusório e Perret [...]teve pelo menos que restituir o traçado
das vias principais, o “Triangle D’Or”, e reestabelecer a beira-mar para conter os ventos”.

[3] No original: “La ville reconstruite se superpose donc à la ville détruite selon deux modes
simultanés, virtuel et concret, qui construisent, par-delà la table rase, sa réelle profondeur his-
torique. Le Havre neuf recouvre également Le Havre ancien (d’une manière très émouvante) sur
un remblai d’un mètre d’épaisseur constitué des décombres nivelés des bâtiments bombardés”.

479
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

(ETIENNE-STEINER, 1999, p.7, tradução nossa)[4] Também contrapõe a ideia da tábula rasa
algumas edificações que permaneceram, exemplos como a Catedral de Notre-Dame, a
Maison de l’armateur, o Hôtel Dubocage de Bléville e o Museu de História Natural. Todas
passaram por restauros após a guerra, mas, de diferentes formas, se mantiveram de pé.
Um caso particular que envolveu a reconstrução de Le Havre pode ser visto no
Quartier Saint-François, um bairro que não seguiu o planejamento de Auguste Perret,
sendo reerguido com base em sua concepção original do século XVI (Figura 4). O local
recebeu o projeto de arquitetos locais seguindo a justificativa de que se encontravam ali
monumentos dos mais importantes da cidade, alguns classificados como monumentos
históricos pela França. (DOCOMOMO, 2002) Além de contar hoje com uma aparência dife-
rente do centro moderno de Le Havre, Saint-François é cercado pelos Bassin de la Barre e
Bassin du Commerce, trazendo um ambiente particular, onde o traçado e as edificações
lembram a Le Havre do passado.

Figura 4 - Quartier Saint-François atualmente - Fonte: da autora, 2019.

[4] No original: “[...] la table rase s’est en effet avérée illusoire et Perret [...] il a fallu au moins

les vents du large”.

480
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A Le Havre do século XVI está presente não apenas no Quartier Saint-François,


mas também nos bairros adjacentes à área central, principalmente por contarem com
o trabalho dos arquitetos locais que conheciam bem a realidade anterior. Essa infor-
mação leva a compreensão de que a cidade hoje mistura elementos de seu passado e
de sua modernidade erguida no pós-guerra. A sua reconstrução, liderada por Auguste
Perret e sua equipe, trouxe para o conjunto urbano não só um novo modo de vida, como
também outros olhares sobre a nova realidade. Essa nova Le Havre despertou o interesse
externo pela sua reconstrução, pela sua modernidade e pelo que a cidade se tornou. A
partir dessa visão será discutida a seguir como ocorreu a transposição de uma cidade
moderna reconstruída no pós-guerra para uma cidade reconhecida como Patrimônio
Cultural da Humanidade pela UNESCO em 2005.

DE CIDADE MODERNA A PATRIMÔNIO

Cerca de duas décadas separam o término da reconstrução de Le Havre e seu título


de patrimônio da humanidade. Em vinte anos a cidade se reconstruíu, sua população
preencheu e se apropriou dos espaços, a arquitetura ganhou utilidade e o meio urbano
se transformou. Normalmente os ambientes urbanos se constroem ao longo de muitas
décadas e até séculos, mas, no caso de Le Havre, o seu renascimento começou entre os
anos de 1945 e 1946 e pode se dizer que teve seus resultados finais por volta de 1982.
Estamos cientes que uma cidade não é passível de estar simplesmente “completa” em
um dado momento, mas essas datas são valiosas para compreender o processo de can-
didatura da cidade.
Antes de chegar ao momento da candidatura, convém destacar o processo de
patrimonialização iniciado antes do ano de 2005, quando Le Havre recebeu o título de
patrimônio. Em se tratando de arquitetura, a primeira edificação classificada como
monumento histórico após a guerra foi a Igreja de Saint-Joseph, em 1965, obra de Auguste
Perret. Após esse começo, Maria Gravari-Barbas (2004) destaca a década de 1970 a 1980
como um momento de desindustrialização e crescente desemprego, não propiciando
as bases necessárias para início de um processo de patrimonialização da cidade. Já a
década seguinte, entre 1980 e 1990, trouxe um ambiente em que se pôde ver as primeiras
iniciativas de valorização de Le Havre com foco maior em um contexto patrimonial.
A participação do governo local foi fundamental para essa iniciativa, principalmente
ao identificar duas questões essenciais a serem debatidas. A primeira delas diz respeito
ao entendimento de que a população deveria se reconciliar com a cidade reconstruída;
e a segunda se amparava em questões técnicas, pois já indentificavam-se marcas de
envelhecimento em sua arquitetura moderna. (GRAVARI-BARBAS, 2004)

481
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Voltando à primeira questão, segundo Gravari-Barbas (2004, p. 597, tradução nossa)[5],


havia a necessidade de “criar um sentimento de pertencimento e de identidade local, de
desenvolver as ligações “afetivas” entre os habitantes e a reconstrução”. A autora ainda
afirma que demoraram cerca de duas décadas para que a população aprovasse a cidade,
e a justificativa dessa demora estava atrelada a um passado nostálgico em que se exal-
tavam a arquitetura e o urbanismo anteriores, associada a uma falta de compreensão e
pertencimento à nova cidade com princípios modernos. (GRAVARI-BARBAS, 2004)
Ainda mencionando o papel da população nesse enredo, boa parte das pessoas
que habitavam o centro de Le Havre antes da sua destruição foram realojadas em outras
partes do centro urbano, isso é justificado no Dossiê de candidatura à UNESCO como
“reequilíbrio de densidades”. (UNESCO, 2003) Nesse sentido, vê-se a necessidade de reapro-
ximar a população de sua cidade, uma vez que foram excluídas em boa parte do processo.
A segunda questão levantada pelo governo diz respeito aos cuidados necessários
a uma cidade que já envelhecia. Le Havre teve o seu centro reconstruído segundo os
princípios modernos e mais especificamente utilizando a técnica do concreto armado,
uma marca de Auguste Perret. A cidade, que foi a primeira do mundo construída com
esse material, se tornou um canteiro experimental, onde ao mesmo tempo foram pri-
vilegiadas a técnica construtiva e a estética. Isso foi possível através da pré-fabricação e
dos estudos realizados pela equipe de Perret sobre o material, como destaca o artigo Le
chantier de la reconstruction de la ville du Havre. (PANTET et al., 2017)
A necessidade de manutenção e restauro das edificações, além de iniciativas de
intervenção por parte dos próprios moradores, levaram à criação da Zona de Proteção
do Patrimônio Arquitetônico, Urbano e Paisagístico (ZPPAUP) em 1995, conferindo um
perímetro de preservação para Le Havre (Figura 5). Gravari-Barbas (2004) argumenta que
um dos objetivos da criação dessa zona era mostrar para a população que havia uma
proteção oficial por parte do governo local e ainda o ponto de partida havia sido a busca
por criar uma “identidade cultural” local. Entende-se com isso que a criação da ZPPAUP
inicialmente lidava com as duas questões que mais se destacavam naquele momento,
resolver os problemas decorrentes do envelhecimento da arquitetura, impondo um
padrão para as intervenções e restauros, e ainda buscar o suporte da população através
do incentivo à noção de pertencimento à cidade.

[5] No original: “créer un sentimento d’appartenance et d’identité locale, de développer des


liens “affectifs” entre les habitants et la reconstruction”.

482
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5 - Perímetro da Zona de Proteção do Patrimônio Arquitetônico, Urbano e Paisagístico.


Fonte: UNESCO (2003, p. 174).

O primeiro passo oficial para tornar Le Havre um patrimônio foi através da cria-
ção dessa ZPPAUP, significando que o governo local, com o apoio do nacional, estavam
à frente desse processo. Em seguida a cidade foi inscrita na lista de bens franceses para
submissão à UNESCO em 2001. Também foi nesse mesmo ano que o Ministério da Cultura
da França concedeu a Le Havre o título de “cidade da Arte e da História”. Através dessa
iniciativa a cidade recebeu exposições e eventos com objetivo de divulgá-la não só para
os locais, mas também para o restante da França e outras partes do mundo. A associação
dessa ação com o turismo favoreceu um aporte para que diferentes olhares se voltassem
para Le Havre. A condição de cidade portuária, somada à de “cidade da Arte e da História”
deram uma significância diferente ao centro reconstruído, atraindo investimentos e
criando um circuito turístico em que se destacavam o urbanismo e a arquitetura de Perret.
Auguste Perret não apenas teve o papel de projetar a reconstrução da cidade, o
arquiteto “transformou Le Havre em uma cidade-monumento, com espaços icônicos,
capazes de serem comparados à grandiosa metrópole parisiense, tornando-a a porta

483
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de entrada para o oceano”. (GARGIANI, apud GRAVARI-BARBAS; RENARD, 2010, tradução


nossa)[6] A ideia de ver essa parte moderna central como algo monumental é reportada
no Dossiê de candidatura à UNESCO da seguinte maneira: “Embora se trate de um bem
cultural recente, é conveniente levar em consideração as recomendações do Comitê
Intergovernamental de antigos centros históricos cuja densidade e qualidade monumen-
tais revelam um conjunto de grande interesse”. (UNESCO, 2003, p. 19, tradução nossa)[7]
Essa abordagem do Dossiê levanta duas questões essenciais, a primeira delas é a
busca por situar Le Havre em comparação com centros históricos antigos, na tentativa
de atribuir-lhe um valor de monumento histórico. Essa mesma estratégia já havia sido
utilizada em Brasília ao justificar a sua candidatura colocando-a em comparação com
cidades antigas, situação identificada por Silva (2019) ao analisar o Dossiê da capital.
Brasília teve o seu reconhecimento no ano de 1987, e na década de 1980 muito se discutia
a preservação da arquitetura moderna, ainda mais considerando que a capital brasileira
foi a primeira. Porém, se identificam ainda hoje dificuldades em lidar com essa expressão
moderna, o que talvez justifique a necessidade de Le Havre, reconhecida em 2005, ter
recorrido a esse recurso comparativo com cidades antigas.
Há um outra discussão que envolve ver a cidade como um monumento. Esse debate
pode ser acompanhado em A Alegoria do Patrimônio de Françoise Choay, que lançou luz
sobre o processo de reconhecimento do ambiente urbano como algo monumental e
consequentemente digno de preservação. Segundo a autora:
A noção de patrimônio urbano histórico constituiu-se na contramão
do processo de urbanização dominante. Ela é o resultado de uma dialé-
tica da história e da historicidade que se processa entre três figuras
(ou abordagens) sucessivas da cidade antiga. Chamarei essas figuras
respectivamente de memorial, histórica e historial. (CHOAY, 2001, p.180)
A autora acrescenta que essa figura memorial seria exatamente “A cidade antiga
considerada como um todo que parece, pois, desempenhar, no caso, o papel de monu-
mento histórico”. (CHOAY, 2001, p.180) Entende-se assim a necessidade de confirmar Le
Havre como um monumento para então poder alçá-la a patrimônio. Dessa forma, ao
conferir valor de memória, não só entendendo o centro urbano como algo monumen-

de se mesurer à la grandiose métropole parisienne dont elle est devenue la porte sur l’océan”.

[7] No original: “Bien qu’il s’agisse d’un bien culturel récent, il convient de tenir compte des
recommandations du Comité intergouvernemental relatives aux centres historiques anciens
dont la densité et la qualité monumentales révèlent un ensemble d’intérêt majeur”.

484
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tal, mas também ao evocar o passado vivido durante a guerra, poderia ser legitimada a
candidatura à UNESCO.
Após a inscrição na lista de bens franceses para submissão à UNESCO em 2001, já
em 2002 encontram-se registros das primeiras versões do dossiê de candidatura de Le
Havre. Esse documento, intitulado Le Havre: a cidade reconstruída por Auguste Perret, além
de preencher os requisitos obrigatórios que constam na ficha de inscrição, traz um deta-
lhado panorama da história da cidade, incluindo seus históricos no pré e pós-guerra. Tudo
isso serviu como um reforço para a sua inscrição na lista de bens da UNESCO segundo os
critérios II e IV. Também no dossiê houve a tentativa de inscrição sob o critério I. Segundo
consta na descrição da própria entidade os critérios correspondem a:
i. representar uma obra-prima do gênio criativo humano, ou
ii. ser a manifestação de um intercâmbio considerável de valores huma-
nos durante um determinado período ou em uma área cultural espe-
cífica, no desenvolvimento da arquitetura, das artes monumentais, de
planejamento urbano ou de paisagismo, ou [...]
iv. ser um exemplo excepcional de um tipo de edifício ou de conjunto
arquitetônico ou tecnológico, ou de paisagem que ilustre uma ou várias
etapas significativas da história da humanidade, ou [...]. (UNESCO, 2018)
A justificativa para a tentativa de inclusão do critério I faz referência ao trabalho
de Auguste Perret e sua expressão com o concreto armado. Porém, segundo o ICOMOS
(Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), esse critério foi recusado pelos seguin-
tes motivos:
Critério i: O centro da cidade reconstruído de Le Havre é caracterizado
- mais do que por sua estética - pelo uso em larga escala de técnicas
inovadoras de construção baseadas em concreto armado e um projeto
modular. Embora reconheça a importância disso, o ICOMOS considera
que, no caso de Le Havre, esses temas são cobertos de forma mais ade-
quada pelos critérios ii e iv. (UNESCO, 2003, p. 116, tradução nossa)[8]

[8] No original: “Criterion i: The reconstructed city centre of Le Havre is characterised – more
than by its aesthetics - by the largescale use of innovative building techniques based on rein-
forced concrete and a systematic modular design. While recognising the importance of this,
ICOMOS considers however that, in the case of Le Havre, these themes are more appropriately
covered by the criterion ii and iv”.

485
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Essa é uma descrição um tanto quanto genérica e apenas descarta o critério sem
maiores explicações. A Cidade Branca de Tel-Aviv também está inscrita sob os mesmos
critérios de Le Havre, II e IV. Já Brasília foi listada pelos critérios I e IV, tendo como justifi-
cativa os trabalhos de Lucio Costa com o urbanismo e Oscar Niemeyer com a arquitetura.
A discussão envolvendo a valoração de cada cidade poderia entrar em outro debate
mais específico. Aqui cabe destacar que Le Havre foi reconhecida por trazer aportes da
arquitetura moderna e ao mesmo tempo referências à arquitetura do século XVI, tam-
bém a questão da reconstrução no pós-guerra e seus métodos construtivos inovadores
e eficientes para aquela situação. (UNESCO, 2003)
Assim, no ano de 2005 Le Havre se tornou a terceira cidade moderna a ser reconhe-
cida pela UNESCO como Patrimônio Cultural da Humanidade. Se considerar a década de
1980 como os momentos finais de sua reconstrução, cerca de 20 anos separam essas duas
datas, o que significa ver na cidade um percurso para a sua valorização e reconhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória de Le Havre, desde uma cidade destruída após a Segunda Guerra Mundial,
até o momento de seu reconhecimento como patrimônio, implicou uma longa jornada
de reconstrução e construção de edificações e de significados. Já nos primeiros momen-
tos para reerguer a cidade, os governos local e nacional tiveram papéis essenciais ao
organizar a situação e criar diretrizes claras para uma obra de tamanho porte. Ademais,
foi necessário lidar com uma população desabrigada e em choque pelos anos de guerra.
Além do apoio e incentivo do governo, Le Havre teve como arquiteto escolhido
Auguste Perret, responsável pelo planejamento do centro urbano e de algumas edifica-
ções mais importantes. O arquiteto, seguindo um estilo próprio, agregou a sua estética
do concreto armado à arquitetura moderna pretendida para a cidade. Assim, houve uma
associação de funcionalidade e estética, criando uma Le Havre única. A monumentali-
dade hoje vista no conjunto urbano, e que certamente foi uma das justificativas para a
sua patrimonialização, já estava presente nos planos iniciais de Perret. Como discutido
anteriormente, o seu planejamento trazia vias largas, edificações pensadas para o conforto
e a salubridade, além da intenção de valorização da sua condição de cidade portuária e,
mais recentemente, o papel do turismo como forma de divulgação.
Assim como Brasília e Tel-Aviv, Le Havre já nasce com princípios e diretrizes que a
tornaram um centro urbano diferente. Sua arquitetura moderna ao mesmo tempo traz
semelhanças com essas cidades, e também apresenta traços únicos, por infinitos fato-
res. A partir dessa constatação, outras discussões podem ainda ser tecidas sobres essas

486
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

cidades, de forma comparativa ou não, o que significa ver que não se encerra aqui esse
debate acerca da preservação de cidades modernas que são patrimônio e especialmente
o caso de reconstrução.

487
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

A Alegoria do Patrimônio
São Paulo: Editora UNESP, 2001.

CIAM. Carta de Atenas. Atenas: Assembleia do CIAM, 1933. Disponível em: < http://

pdf> Acesso em: 8 fev. 2019.

DOCOMOMO FRANCE. Quartier Saint-François. 2002. Disponível em: <http://www.

20 jan. 2020.

ETIENNE-STEINER, Claire. La demeure urbaine (1517-2017). Le Havre: Lieux dits,


2017.

ETIENNE-STEINER, Claire. Le Havre. Auguste Perret et la reconstruction. Collection

1999.

appropriation? Le cas de l’architecture de la reconstruction au Havre.

jan. 2020.

centreville du Havre. Rapports entre le jeu des acteurs et la production de


l’espace.

PANTET, Anne. et al. Le chantier de la reconstruction de la ville du Havre.

PANTET, Anne; ELETA-DEFILIPPIS, Roxana; SOLIGNAC, Philippe. Le Havre, habiter et

CEREMA, 2019.

O GT-Brasília na trajetória de patrimonialização da


capital. 2019. 246 f., il. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) —
Universidade de Brasília, Brasília, 2019.

488
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

UNESCO. Le Havre, La ville reconstruite par Auguste Perret. Proposition


d’Inscription du Centre Reconstruit du Havre sur la liste du patrimoine mondial.
2003. Disponível em: <https://whc.unesco.org/uploads/nominations/1181.pdf>
Acesso em: 12 jan. 2020.

UNESCO. Le Havre, Patrimoine Mondial, 2005. Lés étapes de la reconstruction.


Disponível em: <http://unesco.lehavre.fr/fr/comprendre/les-etapes-de-la-
reconstruction. > Acesso em: 20 jan. 2020.

UNESCO. Representação da UNESCO no Brasil. O patrimônio: legado do passado


ao futuro. 2018. Disponível em: <http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/
world-heritage/heritage-legacy-from-past-to-the-future/>. Acesso em: 02 fev.
2020.

489
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

LOS INICIOS DE LA
RESTAURACIÓN DE
MONUMENTOS EN CUBA.
LA RESTAURACIÓN
DEL PALACIO DE LOS
CAPITANES GENERALES EN
1930.

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS.

HERNÁNDEZ, Maite
Mestra em Desenvolvimento Urbano pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvol-
vimento Urbano da UFPE. Laboratório de Urbanismo e Patrimônio Cultural da UFPE –
LUP-UFPE.
maitehernandezalfonso@gmail.com

VIEIRA-DE-ARAUJO, Natália Miranda


Doutora em Desenvolvimento Urbano; Departamento de Arquitetura e Urbanismo da
UFPE. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da UFPE. Programa
de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFRN. Laboratório de Urbanismo e
Patrimônio Cultural da UFPE – LUP-UFPE.
vieira.m.natalia@gmail.com

490
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
El presente artículo aborda el estudio de los inicios de la restauración de monumentos en Cuba
a partir del análisis del trabajo de los arquitectos cubanos Evelio Govantes y Félix Cabarrocas en
el Palacio de los Capitanes Generales. En la actualidad, estos trabajos constituyen una referencia
relevante al ser las primeras labores de su tipo en la isla y permitir la conservación de uno de
los edificios coloniales más importantes de la Plaza de Armas; una de las más importantes del
Centro Histórico de La Habana. Entre 1920 y 1950 se sentaron las bases del proceso de forma-
ción de una concepción de restauración en Cuba. Para el estudio de dicho proceso se tuvo en
cuenta el contexto cultural en el que se desenvolvieron estos trabajos, así como la formación,
las referencias y el pensamiento de los arquitectos en materia de restauración. El análisis
detallado de estas intervenciones permitió identificar algunos de los principales preceptos de
restauración empleados, un punto de partida para dilucidar la idea que sobre esta disciplina
se tenía en Cuba por aquellos años.

PALABRAS-CLAVE: Palacio de los Capitanes Generales. Patrimonio. Restauración. Habana.

INTRODUCCION[1]

A inicios del siglo XX existían en Cuba un significativo número de edificios con


valores patrimoniales desconocidos por la falta de conciencia sobre la importancia de la
conservación de monumentos. El pasado colonial era aún muy reciente y, para muchos,
aquella época representaba un episodio de explotación y atraso en comparación con los
tiempos de “modernidad” propuestos por la nueva forma de gobierno. A este contexto, se
le sumó cierto “complejo de inferioridad” en la apreciación de los monumentos cubanos
que, en comparación con las grandes obras europeas o con el patrimonio de países como
México, no parecían presentar valores dignos de preservar. Este pensamiento unido a las
grandes transformaciones emprendidas en centros históricos de otros países de América
Latina, llevaron a algunos arquitectos a proponer planes de transformación de la ciudad
antigua que respondían a crecientes necesidades y las corrientes contemporáneas en

[1] Este trabajo constituye parte de los resultados obtenidos en la disertación de maestría “La
formación de una concepción de restauración en La Habana, Cuba, de 1920 a 1950. La obra de los
arquitectos Evelio Govantes y Félix Cabarrocas”, defendida en junio de 2020 dentro del Programa
de Pos-graduación y Pesquisa en Desarrollo Urbano de la Universidad Federal de Pernambuco;
con autoría de Maite Hernández Alfonso bajo tutoría de Natalia Miranda Vieira-de-Araujo.

491
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

materia de rehabilitación urbana (RIGOL y ROJAS, 2012, p.73). De esta forma, se dio inicio
a una misión “modernizadora” que transformaría varios sectores de la vida en la isla.
Entre otros aspectos, este empeño puso énfasis en la organización y reestructuración
de la educación, muy abandonada dadas las circunstancias de la guerra de independencia
librada contra España. Fue así que se llevó a cabo una Reforma de la Enseñanza y, como
parte de las reformas en la enseñanza superior, el 30 de junio de 1900 se dictó la Orden
Nro. 266 que anunciaba la creación de la Escuela de Ingenieros, Electricistas y Arquitectos
de la Universidad de La Habana; institución que sentó las pautas en la formación de los
profesionales de la construcción que modelarían el futuro inmediato de la arquitectura
en Cuba (ROSADO, 2009, p. 228).
Durante los primeros cincuenta años de creada esta escuela, la necesidad de alcanzar
una madurez y estabilidad en la formación de los arquitectos cubanos marcó las pautas
principales de los planes de estudio. Desde sus inicios, la formación fue estrictamente
academicista sin margen a reflexiones que rebasaran la enseñanza de presupuestos
técnicos y artísticos para la realización de proyectos. Durante esta etapa, los cambios
más significativos introducidos en la enseñanza de la arquitectura correspondieron
al momento en el que se voltearon las miradas al estudio de la arquitectura colonial
cubana; un movimiento que fue novedoso no solo para el contexto cubano, sino también
para las naciones latinoamericanas en plena definición de su identidad. Cabe recordar
que lo que estaba naciendo como patrimonio arquitectónico cubano era parte de una
historia reciente, permeada por un contexto de “modernización” y actualización a la
usanza europea o norteamericana. Con todo esto era de esperar que, cuanto más, se
comenzaran a estudiar las características de dicho patrimonio colonial antes de pensar
siquiera en intervenirlo.
Aun cuando la historia de la arquitectura colonial cubana comenzaba a tener un
peso fuerte en la formación universitaria de los arquitectos a partir de un nuevo plan
de estudios aprobado en 1925, algunos profesores y otros profesionales (historiadores,
escritores, intelectuales, etc.) iniciaron el camino hacia el reconocimiento de sus valo-
res patrimoniales. Algunas de las figuras destacadas en la defensa y el estudio, no sin
tropiezos, del patrimonio colonial cubano fueron Alberto Camacho (1900-1929), Joaquín
Weiss (1894-1968), Pedro Martínez Inclán (1883-1957), Evelio Govantes (1886-1981), Luis
Bay Sevilla (¿?) , José María Bens Arrate (¿?) y Emilio Roig de Leuchserning (1889-1964). El
trabajo de estos arquitectos e historiadores se vio impulsado por la labor de promoción
de las publicaciones especializadas y las organizaciones profesionales como la Sociedad
de Ingenieros y Arquitectos (1907) y el Colegio de Arquitectos de La Habana (1916).

492
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

En 1909 comienza a publicarse la Revista de la Sociedad Cubana de Ingenieros


y especialmente en 1917 apareció la revista Arquitectura. Con todo esto, en las postri-
merías de los años veinte, convivían en La Habana dos revistas de alto nivel cultural:
Colegio de Arquitectos de La Habana y El Arquitecto, esta última realizada por Luis Bay
Sevilla (SEGRE, 2003, p.83). Por estos medios, fueron ampliamente difundidos los trabajos
de estos arquitectos así como sus reflexiones en torno a los monumentos cubanos. El
debate en torno a estos temas aumentó específicamente a partir de 1926, fecha en la que
los arquitectos Evelio Govantes y Félix Cabarrocas iniciaron los primeros trabajos de
restauración en La Habana. Cuando no existía en Cuba ningún referente, mucho menos
formación, en materia de intervención y restauración en edificaciones históricas, las
reflexiones publicadas sobre los trabajos realizados así como los artículos de figuras
nacionales e internacionales sobre estos temas, fueron de vital importancia para el
debate de estas materias.

LA VALORACIÓN DE LA ARQUITECTURA COLONIAL CUBANA.

Entre 1923 y 1933 surgieron en Cuba expresiones literarias, musicales y pictóricas


propias de la cultura popular y nacional que rescataban una serie de valores tradiciona-
les a partir de una visión progresista de los problemas sociales de la época. Expresiones
artísticas del momento asimilaron los aportes de las vanguardias internacionales para
interpretar los modos de sentir del pueblo y sus tradiciones culturales. Estas indaga-
ciones en Cuba no estaban distanciadas de lo que sucedía en América Latina. Aunque
los antecedentes del debate sobre la nacionalidad en la isla debían buscarse en el siglo
XVIII, numerosos historiadores cubanos profundizaron en estos temas a partir del siglo
XX; una etapa definitoria en la afirmación de la nacionalidad cubana (CARDENAS, 2015).
Según Eliana Cárdenas (1991 Apud OTERO, 2002, p.85), la arquitectura cubana se
mantuvo al margen de este proceso renovador y no fue hasta los años treinta que comenzó
a mostrarse interés por la etapa colonial, como una forma de aproximación a las raí-
ces de la arquitectura producida en el país, rompiendo con los valores asentados del
eclecticismo europeizante. De forma consciente, efectivamente, no fue hasta pasada la
década del treinta que los arquitectos cubanos comenzaron a asumir e interpretar los
elementos de la arquitectura colonial cubana como un nuevo lenguaje, a partir del cual
podrían llegar a constituir un estilo propio o “nacional”. Sin embargo, la fascinación y
el interés por la arquitectura colonial en Cuba habían comenzado a gestarse desde la
primera mitad de los años veinte. Sobre esto, José María Bens Arrate en su artículo El
carácter de La Habana Antigua, publicado en 1941, contaba que:

493
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Algún erudito o investigador acucioso pudiera decirnos que el período


en que se empieza a revalorar la arquitectura de La Habana antigua,
y que fue seguido por la otra etapa de su restauración y conservación,
dio comienzo a raíz de aquella Feria celebrada en el vetusto Convento de
Santa Clara, cuando [...] abiertos por primera vez al público sus claustros
e interiores, se conocieron entonces las más viejas construcciones que
aún guarda la ciudad (BENS, 1941, p. 167).
Se refería Bens Arrate a la Exposición Nacional de Higiene y de la Industria y Comer-
cio celebrada en 1922 en el Convento de Santa Clara, el primer monasterio de monjas
construido en Cuba en el siglo XVII. En aquella ocasión, los elementos arquitectónicos
coloniales en esta obra constituyeron una “revelación” y un descubrimiento para los
asistentes (RIGOL y ROJAS, 2012, p.95).
En su artículo Las tapias austeras y la musa del cambio (2006), la Dra. Alicia García
Santana expone más detalles sobre este particular suceso y la importancia de la aper-
tura del Convento de Santa Clara en la valorización de la arquitectura colonial cubana.
La apertura del convento al público conmovió a la ciudadanía [...] Santa
Clara fue asumido como un legado cultural, como lo que realmente es,
un edificio símbolo de la nación, de su pasado [...]
Bien puede afirmarse que el impacto causado por sus claustros, techos
y patios fue uno de los motivos que dieron inicio al redescubrimiento
sistemático de nuestro pasado colonial, tendencia general de una época
que se interesó por desentrañar los fundamentos de la cultura nacional
en términos de la antropología, la arqueología, la etnología, la lingüís-
tica y la historia (GARCÍA Apud HERRERA, 2006, p. 11-12).
Especialmente sobre la repercusión de dicha exposición, el arquitecto Evelio Govan-
tes en 1928 expresó: “Aquella exposición significó un esfuerzo sin precedentes, que no
ha tenido continuadores. Despertó gran entusiasmo por el pasado y hasta las clases
más reacias a estas aficiones, no fueron ajenas al influjo de aquel pobre pedazo de La
Habana” (GOVANTES, 1928, p.132).
Con esto, resulta evidente que mucho antes de entrada la década del treinta fue
considerable la atención prestada a la arquitectura colonial cubana. Según Bens Arrate, la
fascinación provocada por los elementos arquitectónicos de edificios como el Convento
de Santa Clara y la consiguiente valoración de la arquitectura colonial cubana llevaron
a ejecutar los primeros trabajos de restauración en La Habana (BENS, 1941, p. 167). No
obstante, desde el punto de vista arquitectónico y urbanístico en esta época también

494
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

se inició un debate, de la mano de Pedro Martínez Inclán, que podría decirse también
constituyó caldo de cultivo para estas iniciativas restauradoras.
En 1926, Martínez Inclán había hablado sobre la necesidad de reivindicar la imagen
de La Habana y potenciar su “singularidad” (SEGRE y SAMBRICIO, 2000, p.3). Con ello, se
refería Martínez Inclán a la necesidad de rescatar la singularidad arquitectónica de la
ciudad colonial en la cual el estilo español de sus calles y plazas se correspondía con
el de sus edificios barrocos. Para él, el barroco hispanoamericano tenía ese carácter
completamente individual,
[...] por ser la arquitectura tradicional de América Latina; por ser capaz
de producir bellos y originales monumentos, tratados por artistas
como verdadera inspiración; porque es el que mejor conserva nuestra
apariencia de pueblo latino [...] (MARTINEZ, 1926, p. 17-18).
Así, en medio de la fascinación por los elementos de la arquitectura colonial, los
estudios en la Universidad de La Habana y las batallas en favor del rescate de construc-
ciones coloniales se inició lo que Carlos Sambricio (2000) denominara como “el primer
debate teórico en la historia de la arquitectura cubana”: la necesidad de definir un “estilo
nacional”. Como referencia principal para este “estilo nacional” se adoptó el barroco
que, en el caso de Cuba, encontraba sus más importantes ejemplares en la arquitectura
barroca del siglo XVIII (SEGRE y SAMBRICIO, 2000).
Al parecer, esta era una idea consensuada entre los arquitectos, historiadores e
intelectuales volcados al estudio de la arquitectura colonial cubana. La Dra. Alicia García
Santana (2011) en su texto El neocolonial a lo cubano de Govantes y Cabarrocas, expone
cómo varios autores también consideraban el barroco como la expresión “cubana” por
excelencia. En ese sentido, sobresalían los palacios del Segundo Cabo y de los Capitanes
Generales como exponentes de un barroco tardío, según sus palabras “con permanente
influencia sobre la conciencia cultural acerca de lo cubano” (GARCIA, 2011, p. 10).
A esta tradición se le sumó el empleo de “lo colonial” amparado en el debate que,
por aquellos años, tenía lugar en Estados Unidos y en otros países de Latinoamérica
que comenzaban a tomar la arquitectura colonial como símbolo de identidad. En este
punto es necesario recordar que numerosos arquitectos cubanos se formaban en Uni-
versidades norteamericanas y llegaban a la isla cargados con aquellas referencias (SEGRE
y SAMBRICIO, 2000).
El contexto de valorización de la arquitectura colonial cubana contribuyó al auge
del estilo neocolonial en el escenario arquitectónico de la isla. No obstante, cabe acotar
que este contexto también propició la realización de las primeras obras de restauración

495
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

en La Habana: la restauración de los edificios circundantes de la Plaza de Armas entre


los que se encontraba el Palacio Municipal o Palacio de los Capitanes Generales. En 1926,
el Alcalde de La Habana, Dr. Miguel Mariano Gómez, encomendó la realización de estos
trabajos al jefe del Departamento de Fomento Municipal, el arquitecto Evelio Govantes,
quien llamó a su colega Félix Cabarrocas para emprender dichos trabajos.

LAS PRIMERAS OBRAS DE RESTAURACIÓN EN LA HABANA. PALACIO


MUNICIPAL O DE LOS CAPITANES GENERALES (1776-1791)

Refiere el historiador Emilio Roig de Leuchserning (2017) que en los primeros días
de la villa de La Habana los señores capitulares no tenían donde reunirse y celebrar sus
sesiones, por lo que utilizaban los bohíos en los que residía el gobernador. Después de
un largo período de peregrinar por diferentes locales, hacia 1768 se decidió construir
un edificio para el Ayuntamiento (ROIG, 2017, p.187). La autoría del proyecto definitivo
correspondió a Antonio Fernández de Trevejos, y su ejecución correspondió al arquitecto
Pedro de Medina. Las obras comenzaron en 1776, y hacia 1790 ya se había instalado en el
palacio, aun inacabado, el Capitán General Don Luis de las Casas. Sin embargo, el edificio
no se consideró terminado sino hasta 1834. Cada una de las salas del palacio a lo largo
de su historia albergó diferentes funciones, manteniendo siempre en el piso superior,
hacia la fachada principal, las habitaciones de la Capitanía General (ROIG, 2017).
En 1863, en el Diccionario Geográfico, Estadístico, Histórico de la Isla de Cuba, el
historiador Jacobo de la Pezuela así lo describió:
El edificio es un cuadrilátero de 80 varas exteriores por cada uno de
sus lados, todo de zócalos graníticos, y en su mayor parte de gruesa y
solidísima mampostería [...] El frente de la Plaza de Armas, cuenta 9
elegantes huecos, de los cuales son miradores los dos más inmediatos
a los ángulos; y por el piso inferior presenta una galería o portal de 10
columnas de piedra bien labradas [...] Pasada esta entrada, se encuentra
una vasta galería de arcos y columnas [...] A la izquierda de esta galería,
desde su entrada abre entre columnas una espaciosa escalera [...] que
conduce a los entresuelos ocupados por la secretaría militar, y más arriba
al piso principal todo cerrado en lo interior, por una simétrica galería
cuadrilonga que mira al vasto patio interior [...] (PEZUELA, 1863, p. 151).
Según esta descripción, podría considerarse la hipótesis de que dicho edificio
en 1863 no tenía revoco. Pezuela (1863) hace énfasis en su “aspecto granítico”, en la
gruesa y solidísima mampostería, así como en el labrado de las piedras. En 1935, Emilio
Roig reseñó varias de las transformaciones que sufrió el edificio en los primeros años

496
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

del siglo XX. Sus salones fueron despojados de los cuadros, las estatuas y los muebles.
Según palabras del historiador, “fueron realizadas por los sucesivos presidentes diversas
antiartísticas modificaciones, como cielos rasos y zócalos de yeso y horribles pinturas
de colores chillones con el fin de modernizar el edificio” (ROIG, 2017, p.193).
Desde su construcción, el palacio de los Capitanes Generales ha sido considerado
uno de los edificios más importantes en La Habana Vieja. Los arquitectos Maria Elena
Martín y Eduardo Luis Rodríguez (1998) alegan que dicha construcción es reconocida
de manera unánime como “el máximo exponente de la arquitectura cubana del siglo
XVIII, solo comparable en interés con la fachada de la Catedral”. El estilo barroco que
ostenta es bastante sobrio, mayormente apreciable en los detalles de las molduras en
las ventanas, en los arcos del portal y del patio interior, y en las columnas adosadas a la
fachada de la planta alta (MARTÍN y RODRÍGUEZ, 1998, p.75) (Figura 1).

Figura 1. Palacio de los Capitanes Generales en 1909.


Fuente: Fototeca Histórica Colegio Universitario San Gerónimo de La Habana (FH-CSG).

En 1925, el arquitecto Pedro Martínez Inclán comentaba que este palacio era el
mejor edificio que había legado la colonia y que sería el que representara a la ciudad
“por razones de antigüedad e historia” (MARTÍNEZ, 1925, p. 91). Con todo esto, una vez
realizado el encargo, la restauración de las obras comenzó en 1927.
En un artículo publicado por esta fecha en la revista El Arquitecto, Evelio Govantes
dio a conocer los objetivos y algunas de las obras que se llevarían a cabo en el palacio,
basado en una profunda investigación histórica y en la consulta de los planos de las
intervenciones y testimonios sobre las características del mismo. Así comentó:

497
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Se trata [...] de un soberbio edificio de típica construcción colonial, que


conviene conservar con toda su belleza, con toda su característica arqui-
tectónica [...] y en éste se puede hacer idéntico trabajo hermoseando las
fachadas con el descubrimiento de la sillería primitiva y desapareciendo
el pegote inadmisible de sucesivas pinturas (Figura 2).
Como se observa contraste entre el pulido nuevo en la piedra y el efecto
natural que el transcurso de los años hace en la fachada, se recurre a un
procedimiento adecuado para darle a la sillería el patinado necesario
que le da vetustez y belleza arquitectónica.
[...]
Se demolerá todo los construido de madera o mampostería en la azotea,
por constituir una adición que desnaturaliza la construcción típica
colonial, y porque en la actualidad [...] está todo en ruinas.
[...] espera también convertir el hoy feo patio de Colón, típico de estas
construcciones coloniales, en algo que realce de manera notable la bel-
leza del Palacio Municipal (GOVANTES, 1927, p. 45-46) (Figura 3, 4 y 5).

Figura 2. Vista exterior del palacio, sin revoco, después de la restauración.


Fuente: FH-CSG

498
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3. Vistas de la escalera principal, antes y después de la restauración.


Fuente: FH-CSG.
Figura 4. Vista del patio a inicios de 1899.
Fuente: FH-CSG.

Figura 5. Vista del patio en la década de 1930, después de la restauración.


Fuente: FH-CSG.

499
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ENTENDIENDO LAS RESTAURACIONES

A partir de lo que hasta el momento se ha podido compilar sobre estas restauracio-


nes el interés por parte de los profesionales de la época era el de devolver “la originalidad”
a esta obra. Estas ideas remiten a aquella individualidad de La Habana defendida por
Pedro Martínez Inclán en 1926, determinada por elementos propios del barroco hispa-
noamericano. Con todo esto, así como el neocolonial buscó reproducir los elementos
formales de la arquitectura colonial en las nuevas construcciones, la restauración de
monumentos también parecía asociar desde el punto de vista formal la piedra conchí-
fera primitiva, la herrería colonial, la carpintería de persianas francesa y lo arcos como
elementos que acentuaban el carácter español de estas construcciones. Vale recordar
que, dada la formación de estos profesionales, existía una fuerte influencia de los refe-
rentes europeos en estas y otras labores. Sin embargo, sobre este tema Martínez Inclán
había comentado:
Hablar de conservar monumentos antiguos en La Habana por imitar lo
que se hace en Europa es simplemente ridículo. ¿Qué hay en La Habana
que merezca conservarse? Este argumento demuestra la ignorancia más
supina de quien lo emplea, y la falta más absoluta de amor patrio y de
amor ciudadano cuando no de ambas cosas a la vez. Indudablemente
no poseemos monumentos arquitectónicos ni históricos de interés
universal, pero sí los tenemos de interés local y deben ser tan queridos

500
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

para las personas cultas como lo son para los moradores los de otras
ciudades [...] (MARTINEZ, 1925, p. 241).
Una vez más, Inclán hace referencia a lo que los arquitectos cubanos consideraban
que debía ser restaurado y los valores de los edificios, no obstante, poco a nada comenta
Martínez Inclán sobre la forma de intervenir sobre estas construcciones. La importan-
cia de estos edificios así como los valores históricos que serían revelados o rescatados
con estas restauraciones parecían ser el motivo de atención principal para cualquier
reflexión. Hacia finales de los años veinte los arquitectos estaban más preocupados en
promover el por qué y el para qué de la restauración de monumentos, que en discutir
el cómo restaurar e intervenir los mismos.
En su artículo La tradición en el Ornato y la arquitectura Urbana, publicado por la
revista Colegio de Arquitectos, Govantes realiza una completa y muy particular diser-
tación sobre los valores de la arquitectura colonial cubana, destacando sobre todo la
necesidad de preservar la tradición, así como los edificios y plazas más importantes
de la ciudad (GOVANTES, 1929). Ahora bien ¿qué era la tradición según Evelio Govantes?
Para Govantes la tradición era la herencia manifestada en la forma de construir y en la
historia de los monumentos. En este artículo, se hace evidente la importancia que, para
él, tenía la historia de una calle, un balaustre de madrera o una portada de mármol. Tales
aspectos, sin dudas, no eran apreciables en una sola obra o en un monumento aislado. De
esta reflexión partió entonces para denotar el valor de la arquitectura colonial cubana
en su conjunto (GOVANTES, 1929).
Con esto, parece claro que existía un consenso general entre los arquitectos e his-
toriadores de la época en relación a la necesidad de conservar y proteger el patrimonio
cubano como conjunto, sus valores y elementos tradicionales. Ahora bien, la forma, el
modus operandi mediante el cual debían ser restaurados e intervenidos estos edificios
aún constituía, como veremos a continuación, un tema plagado de no pocas incerti-
dumbres y contradicciones. Por las reflexiones que hace y cita Martínez Inclán en su
texto La Habana Actual de 1925, es de suponer que también eran conocidas en Cuba las
discusiones que se daban Europa sobre la restauración de monumentos.
[...]
El autor ha leído quejas muy amargas de Victor Hugo contra los restau-
radores franceses aunque se hayan llamado Violet le Duc. Victor Hugo
ha tenido después muchos imitadores entre ellos, Anatole France. Sin
negarles razón algunas veces, el autor entiende que no siempre la han
tenido (MARTINEZ, 1925, p. 244).

501
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

En Europa, específicamente en países como España, autores como Ignacio Gon-


zález-Varas (1996) comentan que desde finales del siglo XIX cuando se introdujo y se
consolidó la doctrina restauradora francesa –de orientación violletiana-, se alzaron
numerosas voces contra los “abusos” de un tipo de intervención “correctora en exceso”
(GONZÁLEZ-VARAS, 1996). En este contexto, Leopoldo Torres Balbás fue una de las figuras
que con mayor rigor orientó, a inicios del siglo XX, la crítica al racionalismo arqueológico
de Viollet-le-Duc.
Al parecer, tales conflictos eran conocidos entre los arquitectos cubanos. En relación
a esto, Inclán se posiciona claramente alegando que: “¡“Ay”! del arquitecto que quiera
restaurar el monumento dejándolo en su estado primitivo! Todos los insultos serían
pocos para censurar su obra” (MARTINEZ, 1925, p. 244). Cabría entender con estas pala-
bras que Martínez Inclán era de los arquitectos que se oponían a las reconstrucciones,
completamientos y sustituciones de las piedras antiguas de algunos monumentos. No
obstante más adelante en el mismo texto argumentaba que:
[...]
En lo único que están de acuerdo siempre arqueólogos y anticuarios es
en censurar a los arquitectos.
Dejemos que se diviertan. Mientras tanto el autor entiende que uno de
los edificios que debe ser cuidadosamente y sabiamente restaurado en La
Habana es el palacio Municipal [palacio de los Capitanes Generales n.a]
[...] en la parte que ha sido alterada. Destruidas las obras provisionales
de su azotea, debe procederse a restaurar enseguida la balaustrada de
piedra de jaimanita que terminaba el segundo piso [...] Si no pudiese
debe hacerse nueva la balaustrada sin temor a imitar demasiado o no
a los escultores habaneros del siglo XVIII. Esto siempre es mejor que
dejarlos como están. Debe procurarse además dejar descubiertos los
sillares de sus fachadas quitando todos los revoques si es que fue esa
forma de construcción la primitiva. Hacer un decorado interior que
armonice con las fachadas y amueblar el edificio de acuerdo con su
estilo (MARTINEZ, 1925, p. 246).
Efectivamente, contrario a lo expresado por él mismo con anterioridad, Inclán se
develaba como partidario de la reconstrucción y del completamiento del edificio justi-
ficándose en la forma de construcción primitiva. Finalmente, fue de esa forma que se
restauró el Palacio de los Capitanes Generales. A partir de todo esto, cabe entender que
los arquitectos cubanos abrazaron preceptos restaurativos en función de una unidad

502
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

estilística, aun cuando conocían las referencias y las polémicas suscitadas en Europa
entorno a este tema.
Como se ha podido apreciar, las concepciones restauradoras en Cuba hacia finales
de los años veinte reprodujeron prácticas y criterios empleados en países de Europa
como España. Sin embargo, llama la atención que aun cuando ya existían, y eran cono-
cidas en la isla, las críticas y polémicas suscitadas entorno a muchas de estas prácticas,
la reconstrucción, sustitución y la búsqueda de una “unidad de estilo” fueron asumidas
conscientemente en las restauraciones cubanas. Así, Cuba estaba en sintonía con algunas
de las prácticas restaurativas empleadas durante los años veinte en países como Estados
Unidos o Argentina[2]. El propio Evelio Govantes, en más de una ocasión, citó las obras de
restauración realizadas en Fairmount Park, Filadelfia. Tales experiencias probablemente
hayan sido legitimadoras para las acciones llevadas a cabo por los profesionales cubanos.
Ya en el contexto cubano, es válido destacar que al terminar las obras de restaura-
ción en estos edificios, hacia 1930, numerosos profesionales elogiaron dichos trabajos
y hasta consideraban loable el hecho de que los edificios fueran “liberados” de las capas
de repellos y pinturas que cubrían sus paredes. Tales trabajos fueron premiados en el
IV Congreso Panamericano de Arquitectos, celebrado en Rio de Janeiro; en el cual le fue
otorgada la Medalla de Oro a Evelio Govantes y Félix Cabarrocas, y la Medalla de Plata al
entonces Alcalde de La Habana, Dr. Miguel Mariano Gómez y al Municipio de La Habana
por el Plan de Obras Públicas Municipales que desarrollaron, el cual contempló dichas
obras de restauración (CRÓNICA, 1930, p. 28).
Aun cuando era claro el entusiasmo que despertaron dichas labores entre los
profesionales interesados por la historia y el desarrollo de la ciudad, a partir de lo ana-
lizado hasta el momento es apreciable que no existía en Cuba claridad sobre la forma de
intervención en las construcciones antiguas. Ni siquiera había surgido una discusión
teórica o polémica al respecto. La preocupación con una forma, un modus operandi o
una metodología de restauración en Cuba llegarían con posterioridad, al calor de la
creación de nuevas instituciones reguladoras y protectoras del patrimonio cubano.
Sin embargo, el análisis de estos trabajos en medio de aquel contexto permite
apreciarlos también como una conquista, “un triunfo alcanzado por un intenso movi-
miento intelectual que, desde los inicios de la República, comenzó a perfilarse en pro de
la conservación y estudio del pasado” (GARCÍA, 2011, p.9). Con estos trabajos aumentaron

[2] En países como Brasil, durante estos años, también existía una postura restaurativa basada
en la unidad estilística, no obstante para esta investigación nos concentramos en los países

503
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

las exigencias para la protección de los monumentos. A partir de ellos surgieron las
primeras entidades encargadas del estudio del patrimonio y las primeras declaratorias
de Monumentos (Plaza de Armas y la de la Catedral, declaradas como tal en 1934). Con el
reconocimiento del carácter patrimonial de estos lugares se le dió un nuevo sentido a
la restauración de los edificios en la plaza de Armas lo cual propició la creación, el 24 de
julio de 1928, de la primera ley que autorizaba al presidente de la República para hacer
declaratorias de Monumentos Nacionales.
En la actualidad, la restauración en función de una unidad de estilo parece una
práctica pretérita por lo que, visto a la luz de nuestros días, las formas de restauración
en Cuba durante aquellos años suscitan diversas críticas basadas, esencialmente, en el
respeto a la verdad histórica y a las marcas del tiempo en los edificios; algo que defen-
dieran teóricos como John Ruskin desde el siglo XIX. Igualmente, algunos arquitectos
restauradores cubanos también señalan las dificultades generadas en la conservación
exterior de las construcciones a las cuales se les retiró el repello, dejándosele la piedra
conchífera y porosa expuesta a las inclemencias del tiempo.
Aunque la imagen de dichos edificios cambió de forma reconocible, arquitectos
como el Dr. Orestes del Castillo señalan que dichas modificaciones no desvirtuaron la
digna apariencia “original” de los edificios ni alteraron la composición arquitectónica en
forma lesiva[3]. Otros autores como la Dra. Isabel Rigol destacan, como otro de sus valores,
la magistral ejecución de dichas obras de restauración (RIGOL y ROJAS, 2012, p.96); algo
que también destacó el actual Historiador de la ciudad de La Habana, Dr. Eusebio Leal
Spengler, quien a finales de la década de 1960 realizó nuevos trabajos de restauración
en el Palacio de los Capitanes Generales.
Al ser cuestionado sobre las críticas realizadas en la actualidad a las restauraciones
realizadas por Govantes y Cabarrocas, Leal Spengler respondió:
Polémicas siempre existirán, pero los cánones empleados en la restau-
ración llevada a cabo por la firma de arquitectos en el Palacio de los
Capitanes Generales y Segundo Cabo se atuvieron a los conceptos de
aquella época, no obstante se descubre en la ejecución de los trabajos
la mano delicada de quienes poseían una cultura medular.
Cuando pregunté a Govantes sobre pinturas murales cuyo vestigio
hallé en una de las salas de los Capitanes Generales, o de las cerámicas
mayólicas encontradas en las excavaciones, se sorprendió muchísimo,
y esto no resulta extraño, ambas relevaciones pertenecen por completo

[3] Entrevista realizada 25 de marzo de 2020. Vía e-mail.

504
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

a nuestro tiempo y han contribuido a una visión de la restauración


en la ciudad histórica, sin que ello reste mérito alguno a aquellos dos
maestros[4].
Así como cada edificio se erige como testigo del devenir histórico de una ciudad,
así las acciones de restauración que fueron ejecutadas en cada uno de ellos ayudan a
dilucidar el pensamiento de los hombres de aquellos tiempos y contribuyen a comple-
tar la visión de la restauración a lo largo de la historia de una ciudad. A partir de esta
idea cabe entender que aun cuando no es posible hablar de la consolidación de una
concepción de restauración en Cuba entre 1920 y 1950, dadas las incipientes reflexiones
y contradicciones que se comenzaban a generar al respecto, sí fueron consolidados fun-
damentos de restauración y preceptos con base en la tradición, en los valores culturales
de la arquitectura colonial cubana y en el estudio e investigación de la historia nacional.
Con ello se inició el camino, con ello se sentaron las bases del proceso de formación de
una concepción de restauración en Cuba.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[4] Testimonio ofrecido por el Historiador de la Ciudad de La Habana, Eusebio Leal Spengler

505
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

“El Arquitecto Evelio Govantes y sus nobles propósitos de embellecer la Habana”.


El Arquitecto. La Habana, Nro. 13 y 14, 1927, pp. 45-46.

CÁRDENAS, Eliana. En la búsqueda de una arquitectura nacional. En Otero,


Concepción (compiladora): Arquitectura Cubana. Metamorfosis, pensamiento y
crítica. Selección de textos. La Habana: Artecubano Ediciones, 2002.

CÁRDENAS, Eliana. Historiografía e identidad en la arquitectura cubana. La


Habana: Ediciones Unión, 2015.

28

Cuba, Tomo III. Madrid: Imprenta del establecimiento de Mellado, 1863, p. 154

GARCÍA, Alicia: “El Neocolonial “a lo cubano” de Govantes y Cabarrocas: El

GARCÍA, A. Las tapias austeras y la musa del cambio. En HERRERA, P. A. El

2006, p.8-13.

Su papel en la arquitectura. Tesis de graduación. Universidad de la Habana. La


Habana, 2011.

MARTÍN, María E; RODRÍGUEZ, Eduardo L. Guía de Arquitectura. La Habana. La


Habana- Sevilla: Junta de Andalucía, 1998

MARTÍNEZ, Pedro. La Habana Actual. La Habana: Imprenta. P. Fernández y Cía. Pi y


Margal, 1925.

506
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

MARTINEZ, Pedro. Discurso de ingreso como miembro de número de la Sección de


Arquitectura de la Academia Nacional de Artes y Letras el 23 de enero de 1626, en

RIGOL, Isabel; ROJAS, Angela. Conservación patrimonial: teoría y crítica. La


Habana: Editorial UH, 2012.

ROIG DE LEUCHSENRING, Emilio. Cuadernos de historia habanera. La Habana:

2009.

SEGRE, Roberto; SAMBRICIO, Carlos. Arquitectura en la ciudad de La Habana.


Primera Modernidad. Asturias, Castilla y León Este, Galicia y León: Sociedad

507
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PARA UM CONCEITO DE
ESTILO PATRIMÔNIO NA
ARQUITETURA BRASILEIRA
FOR A CONCEPT OF HERITAGE STYLE IN
BRAZILIAN ARCHITECTURE

POR UN CONCEPTO DE ESTILO PATRIMONIAL EN


LA ARQUITECTURA BRASILEÑA

DIAS, Diego Nogueira

508
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Na construção de referenciais identitários nacionais, alguns órgãos foram criados e mobilizados
na consolidação do ideário de nação almejado pelas políticas públicas brasileiras da primeira
metade do século vinte. Na busca pela compressão da efetiva ação de um destes órgãos no for-
talecimento do imaginário arquitetônico, este artigo se debruça sobre a ação do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) na cidade de São João del-Rei, Minas Gerais.
Entendendo, pois, a prevalência do gosto pessoal dos arquitetos à frente do órgão de preserva-
ção sobre os aspectos arquitetônicos do centro histórico da cidade, esta pesquisa também visa
entender os atravessamentos ideológicos na desvalorização da arquitetura eclética, alvo maior
na transformação dos núcleos setecentistas após seu tombamento federal. Nas intervenções
em São João del-Rei as platibandas eram as maiores inimigas dos agentes do IPHAN, e o beiral,
endeusado, significava o ‘retorno ao estado original’ da edificação, ou a consolidação de uma
feição idealizada pelos modernistas. Assim consolidou-se o estilo patrimônio: primeiro com
modificações nas edificações ecléticas pré-existentes, em prol de dar-lhes o aspecto ‘colonioso’;
depois adotando as características da arquitetura residencial setecentista como pré-requisito
para novas obras e intervenções no núcleo tombado. A partir do levantamento e identificação
das edificações analisadas nos arquivos do IPHAN, o cruzamento dos dados possibilitou traçar
o panorama das modificações realizadas na criação da ‘cidade-cenário’ atualmente existente.
Tais critérios, empregados até hoje, agora pelo Conselho Municipal de Patrimônio, além de con-
figurar um perfil urbano excludente e sem pluralidade, ocasiona a perda do fazer arquitetônico
contemporâneo (plástico, tecnológico e estrutural), nessa busca equivocada pela preservação.

PALAVRAS-CHAVE: estilo patrimônio. IPHAN. São João del-Rei. cidades-cenário

A BSTRACT
In the construction of national identity references, some organs were created and mobilized
in the consolidation of the ideals of the nation aimed by Brazilian public policies of the first
half of the twentieth century. In an attempt to compress the effective action of one of these
organs in strengthening the architectural imaginary, this article focuses on the action of the
National Institute of Historical and Artistic Heritage (IPHAN) in the city of São João del-Rei,
Minas Gerais. Understanding, therefore, the prevalence of the personal taste of architects at the
head of the preservation organ over the architectural aspects of the historical center of the city,
this research also aims to understand the ideological crossings in the devaluation of eclectic
architecture, the major target in the transformation of the eighteenth century centers after its
federal tipping. In interventions in São João del-Rei platbands were the greatest enemies of
IPHAN’s agents, and the eave, deified, meant the ‘return to the original state’ of the building,

509
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

or the consolidation of a feature idealized by the modernists. By this way the heritage style was
consolidated: first with modifications in the pre-existing eclectic buildings, in order to give
them the ‘colonial’ aspect; later adopting the characteristics of eighteenth-century residential
architecture as a prerequisite for new works and interventions in the historic center. From the
survey and identification of the buildings analyzed in the IPHAN’s archives, the crossing of
the data made it possible to trace the panorama of the modifications made in the creation of
the currently existing ‘city scenery’. These criteria, employed until today, now by the Municipal
Heritage Council, besides configuring an exclusionary urban profile without plurality, cause
the loss of contemporary architectural practice (plastic, technological and structural), in this
mistaken search for preservation.

KEYWORDS: heritage style. IPHAN. São João del-Rei. Scenery cities.

RESUMEN
En la construcción de referencias de identidad nacional, se crearon y movilizaron algunos
organismos para consolidar el ideal de nación buscado por las políticas públicas brasileñas de
la primera mitad del siglo XX. En la búsqueda de comprimir la acción efectiva de uno de estos
cuerpos para fortalecer las imágenes arquitectónicas, este artículo se centra en la acción del
Instituto Nacional del Patrimonio Histórico y Artístico (IPHAN) en la ciudad de São João del-Rei,
Minas Gerais. Entendiendo, por lo tanto, la prevalencia del gusto personal de los arquitectos
al frente del cuerpo de preservación sobre los aspectos arquitectónicos del centro histórico de
la ciudad, esta investigación también tiene como objetivo comprender los cruces ideológicos
en la devaluación de la arquitectura ecléctica, un objetivo importante en la transformación de
los núcleos del siglo XVIII después de su propinas federales. En las intervenciones en São João
del-Rei, las plataformas eran los mayores enemigos de los agentes de IPHAN, y el alero, deificado,
significaba el “retorno al estado original” del edificio, o la consolidación de una característica
idealizada por los modernistas. Así, el estilo patrimonial se consolidó: primero con cambios en
los edificios eclécticos preexistentes, para darles el aspecto ‘colonial’; luego, adoptar las caracte-
rísticas de la arquitectura residencial del siglo XVIII como requisito previo para nuevas obras e
intervenciones en el núcleo mencionado. A partir de la encuesta e identificación de los edificios
analizados en los archivos de IPHAN, el cruce de los datos permitió rastrear el panorama de los
cambios realizados en la creación de la ‘escena de la ciudad’ actualmente existente. Tales criterios,
utilizados hasta hoy, ahora por el Consejo del Patrimonio Municipal, además de configurar un
perfil urbano exclusivo y sin pluralidad, provocan la pérdida de obras arquitectónicas contem-
poráneas (plásticas, tecnológicas y estructurales), en esta búsqueda errónea de preservación.

PALABRAS-CLAVE: estilo patrimonial. IPHAN. São João del-Rei. ciudades de paisajes.

510
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INTRODUÇÃO

“Fazer arquitetura significa visualizar o genius loci[1]: o papel do arquiteto é criar


lugares signicativos para ajudar o homem a habitá-los” (BARDA, 2009, p. 35). Ao partir
do conceitode preservação de monumentos à sionomia da cidade como um todo, sendo
a forma urbana a descoberta dos “signicados potencialmente presentes no ambiente
considerado” (BARDA, 2009, p. 35), Marisa Barda deixa claro que essa forma é passível de
mudanças. Entretanto, mesmo necessárias para sobrevivência das cidades, tais mudanças
não devem signicar a modicação ou perda do seu espírito.
O espírito da cidade está em sua essência: aquilo que a diferencia das demais, suas
peculiaridades, enraizadas desde sua formação e consolidadas ao longo dos anos. Assim
encontrava-se São João del-Rei, em Minas Geras, nas primeiras décadas do século vinte.
De formação colonial, absorveu bem os rebatimentos tardios da Revolução Industrial
no nal do século dezenove, com a instalação da estrada de ferro, expandindo-se para
além do centro setecentista. Em um movimento de revalorização do nacional e ‘genu-
íno’, a cidade foi a primeira entre as selecionadas pelo recém-criado IPHAN, em 1937, a
ser inscrita nos livros do tombo, objetivando-se resguardar o núcleo urbano primitivo.
Entretanto, ao analisarem o conjunto construído de São João del-Rei, o grupo de intelec-
tuais modernistas considerou-o já bastante ‘descaracterizado’, tendo incorporado à sua
arquitetura elementos do ecletismo, ao qual o IPHAN, na pessoa de Lucio Costa, repudiava.
Se num primeiro momento os olhares da preservação no Brasil voltavam-se à arqui-
tetura monumental – leia-se igrejas e edifícios públicos –, a arquitetura ordinária (casas
e demais edicações cotidianas) viu-se deslocada a um segundo plano. As preocupações
iniciais do IPHAN, além de catalogar esses ‘ícones da Arquitetura brasileira’, atinham-se
em consolidar a visão do órgão em meio à sociedade, através de sua Revista. Em São
João del-Rei não foi diferente. Apenas em meados da década de 1940, pressionado pela
população, o órgão federal passa a atuar de forma mais recorrente no núcleo histórico
em sua totalidade. Nesse período o IPHAN viu-se obrigado a estudar e estabelecer um
perímetro de tombamento em São João, devido ao descontentamento dos diversos setores
da sociedade por estar a cidade como um todo tombada. Ao fim do longo processo que
consolidou a marcação da área a ser protegida – a primeira das delimitações de área
feitas pelo órgão federal –, em 1947, e da vasta documentação elaborada, entre mapas e
levantamentos fotográficos, iniciou-se o que aqui chamaremos de projeto de homogenei-

[1] O genius loci, ou espírito do lugar, segundo Marisa Barda (2009), é um conceito romano,
existente desde a Antiguidade. Cada ser possui seu genius, como um espírito guardião, que
determina seu caráter ou essência.

511
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

zação estilística de São João del-Rei. Essencial nesse projeto foram os estudos do técnico do
IPHAN Arthur Arcuri, em especial o mapa que elaborou objetivando explicitar as “casas
novas e reformadas (modernizadas)”[2] dentro do perímetro sugerido inicialmente por
Alcides da Rocha Miranda (também técnico do órgão) para o centro histórico.
Arcuri foi enfático na tentativa de comprovar que o núcleo tombado de São João
del-Rei estava por demais ‘descaracterizado’, isto é, sem a configuração de conjunto
harmônico, homogeneamente colonial, reverenciado pelos modernistas na afirmação
da eleita arquitetura
genuinamente nacional. Das edificações identificadas nesta pesquisa[3], que apresen-
tam algum grau de modificação em seu aspecto eclético, mais de dezoito foram marcadas
por Arcuri em seu mapa, de meados de 1946. Classificadas como descaracterizadoras do
conjunto, elas comprovam a atuação constante do IPHAN em prol da modificação da pai-
sagem heterogênea encontrada pelo órgão quando voltou seus olhos à cidade mineira. O
levantamento e identificação das edificações analisadas se deu, num primeiro momento,
a partir da observação de fotografias antigas da área central de São João del-Rei e sua
comparação com o aspecto atual do núcleo urbano. Em seguida buscou-se respaldo na
documentação técnica do IPHAN: no Museu Regional, em São João del-Rei; no Centro de
Informação e Documentação (CDII/BH), em Belo Horizonte; e no Arquivo Central (ACI/
RJ), no Rio de Janeiro, de modo a comprovar a interferência dos agentes do órgão nas
intervenções, assim como deliberar sobre os critérios que adotavam. Esses documentos
são de acesso livre e encontram-se disponíveis nos arquivos das instituições citadas.
O cruzamento dos dados, fragmentados entre os diversos acervos, possibilitou traçar
o panorama das modificações realizadas na criação do cenário em estilo patrimônio
(DIAS, 2019) atualmente encontrado na cidade. Além disso, foram elaborados arranjos
documentais com fins de pesquisa.

[2] Essa citação está escrita na legenda do mapa citado. Mapa São João del-Rei Área tombada
- 1:2000. ACI/RJ - Caixa 0283, Pasta 0812.

[3] Pesquisa desenvolvida com bolsa concedida inicialmente pela Coordenação de Aperfei-
çoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e posteriormente pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

512
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

AS INTERVENÇÕES IPHANIANAS EM SÃO JOÃO DEL-REI

Em Ouro Preto, após elucidar como deveriam ocorrer as obras de ‘reintegração’ da


fachada do Liceu de Artes e Ofícios à paisagem local, em uma intervenção[4] que se tornou
referência para os técnicos do IPHAN Brasil afora, Lucio Costa categorizou os tipos de
ações a serem feitas naquela cidade:
[...] sou de parecer que – em seguida à etapa inicial proposta pelo chefe
do 3º distrito (pontes, chafarizes, etc.), e das indispensáveis providên-
cias no sentido de se corrigirem umas tantas deficiências facilmente
localizáveis e particularmente chocantes para o turista qualificado
–, deveriam ser atacadas obras de maior vulto relacionadas com a
restauração da cidade propriamente dita. Obras de natureza diversa
tais como: 1º demolição; 2º recomposição; 3º restauro; 4º remoção
ou transferência.[5]
Comprovando que não existem “maiores referências a um debate conceitual e das
teorias da Restauração nas práticas preservacionistas implementadas no Brasil neste
momento” (CUNHA, 2010, p. 83), os critérios adotados por Costa nos pareceres e indicações
quase sempre prevaleciam (mesmo após sua aposentadoria). “Sua inabalável autoridade
não abria o mínimo espaço para debates com os técnicos do IPHAN, que acatavam sem
questionamentos suas determinações” (BRENDLE, 2017, p. 6). A despeito do que versavam
as normativas internacionais sobre a temática, o gosto pessoal do arquiteto superava
o valor intrínseco ao bem, consolidando nas intervenções seu ponto de vista, como
absoluto e indiscutível. Não pode-se supor que Costa não tinha conhecimento acerca
das discussões sobre Restauração no cenário internacional, tendo em vista que, como ele
mesmo afirmou, era o “arquiteto incumbido pelos CIAM de organizar o grupo do Rio”[6].

[4] Para mais informações a respeito da intervenção de Lucio Costa no Liceu de Artes e Ofícios
de Ouro Preto, conferir DIAS, 2019.

[5] COSTA, Lucio. Informação nº. 46. Rio de Janeiro, 27 de março de 1958. Plano Especial de
Ouro Preto. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0203, Pasta 0885.2.

[6] COSTA, Lucio. Carta a Rodrigo Melo Franco de Andrade. Assunto: Grande Hotel de Ouro Preto.
Rio de Janeiro, s/d. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0226, Pasta 0980. Mesmo estando o documento
sem data, sabe-se que os trâmites em torno do Grande Hotel acontecerem entre 1938 e 1944,
e como é neste documento que Costa sugere a Andrade a escolha do projeto de Niemeyer,
supõe-se aqui que foi escrito entre 1938 e 1940.

513
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Foram estes também os critérios aplicados em prol do conjunto arquitetônico


tombado de São João del-Rei. Sendo diversas as modificações ocorridas, e em variados
graus de intensidade, as edificações identificadas foram categorizadas em três fases
principais. Cabe ressaltar o quão nítida é a astúcia dos agentes no avançar das inter-
venções: de modificações pontuais, discretas, sem causar grande descontentamento
aos proprietários dos imóveis, passando por remodelações de fachadas, culminando
em demolições por completo, ato este não permitido pelo Decreto-Lei nº 25/37 (mas
sugerido por Lucio Costa). As duas primeiras fases abarcam o período entre 1954 e 1979.
A terceira, num desdobramento das anteriores, em caso singular, sem atuação direta do
IPHAN, mas como um desdobramento do preconizado pelo órgão ao longo do século
vinte, ocorreu em 2002[7]. As fases foram divididas prioritariamente em função do tipo de
intervenção realizada, e não de forma cronológica, tendo em vista o quão entrelaçadas
se apresentam. A Figura 1 apresenta o organograma das intervenções, em suas fases e
subcategorias, que serão detalhadas a seguir.

Figura 1: Organograma das intervenções do IPHAN na consolidação do estilo patrimônio em


São João del-Rei. Fonte: Elaborado pelo autor, 2018.
Lucio Costa fez escola. Suas intervenções em Ouro Preto serviram de modelo àquelas
executadas nas outras cidades mineiras tombadas. Sylvio de Vasconcellos, arquiteto e
professor da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, ao participar

[7] Para mais informações a esse respeito, conferir DIAS, 2019, Capítulo 3.

514
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

das obras em Ouro Preto, colocava-se a par de quais critérios adotar nas intervenções
pelo estado. E logo tratou de aplicá-los em São João del-Rei.
À frente do cargo de superintendente do IPHAN em Minas, Vasconcellos se fez
presente nas duas primeiras fases, aprovando projetos, ditando pareceres e sugerindo
reformulações tanto em prol da limpeza daquilo que considerava “espúrio” ao ambiente
colonial, quanto na implementação de um modelo de construção desprovido do fazer
arquitetônico (plástico, tecnológico e estrutural) de seu tempo. Aplicando o preconizado
pelos modernistas (se obra grande, de destaque, arquitetura modernista; se obra ordiná-
ria, sem vulto, intervenção que integre ou camufle a edificação no ambiente predomi-
nantemente colonial), e voltando sua atenção ao entorno imediato dos bens tombados
individualmente, o arquiteto deu prioridade às intervenções nas imediações da Igreja
do Carmo, da Matriz de Nossa Senhora do Pilar, do sobrado à rua Marechal Deodoro nº.
12 e da Igreja de São Francisco, conformando três grandes perímetros, conforme a Figura
2. Do conjunto arquitetônico e urbanístico aos bens tombados individualmente, todos
foram inscritos no livro do Tombo e Belas Artes, sendo apenas as Igrejas do Carmo e
de São Francisco e o sobrado à rua Marechal Deodoro nº. 12 inscritos também no livro
Histórico. Enfatizando mais uma vez o caráter prevalente da obra de arte na justificativa
de preservação, é exatamente no entorno desses bens que as intervenções homogenei-
zadoras tomam lugar, objetivando a constituição da cidade-cenário colonial.

515
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2: Planta do perímetro de tombamento, destacando-se o entorno dos bens tombados

Estabelecidos os limites da área de atuação do IPHAN em São João del-Rei, a partir


da delimitação de tombamento em acordo com a Prefeitura e empresariado local, o
órgão federal passa a se fazer mais presente. Arthur Arcuri consolida-se como a face da
instituição junto aos são-joanenses. O mapa identificando todas edificações e logradou-
ros dentro da área delimitada tornou-se peça-chave no atendimento de solicitações de
reformas e reparos em edificações e demais bens.
Ao priorizar obras nas edificações de vulto, seguidas por aquelas ‘descaracterizado-
ras’, foram identificadas nesta pesquisa oito edificações onde os elementos ecléticos de
composição e de arquitetura presentes nas fachadas foram removidos, oito edificações
onde as fachadas ecléticas foram completamente reformulas à feição colonial, nove
edificações ecléticas que foram demolidas, sendo substituídas por edificações em estilo
patrimônio e quatro solicitações não executadas, que visavam alterações nas três ins-
tâncias anteriores, conformando as quatro categorias dessa primeira fase de atuação.
Já das novas edificações em estilo patrimônio foram identificadas 10 construções que
colaboram para a consolidação de uma paisagem homogênea e falsa.

516
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Da mesma forma que em Ouro Preto, nas intervenções em São João del-Rei as plati-
bandas eram as maiores inimigas dos agentes do IPHAN, e o beiral, endeusado, significava
o “retorno ao estado original” da edificação, ou a consolidação de uma feição idealizada
pelos modernistas. No processo histórico da Arquitetura brasileira, tanto a beira-se-
veira[8] quanto a platibanda, cada uma em sua época, remetiam ao status financeiro do
proprietário do imóvel. No século dezoito, a quantidade e elaboração das beiras-seveiras
se relacionava às posses dos moradores; já entre a segunda metade do século dezenove
e a primeira metade do século vinte a condição financeira do proprietário era exposta
a partir da presença de platibanda à frente do telhado, acrescida de ornamentação. A
seguir serão explicitados alguns casos referentes às categorias 1 e 3 da primeira fase
elencada nesta pesquisa, de modo a elucidar o estilo patrimônio e a transformação de
São João del-Rei, de cidade histórica a cidade-cenário.

PRIMEIRA FASE - CATEGORIA 1 - Alterações em elementos de composição e


de arquitetura

Na análise dos documentos do arquivo do IPHAN, na Série Obras, a grande maioria


das solicitações para reformas relacionam-se à remoção de elementos de composição
presentes nas edificações. Incentivados pelos agentes do órgão federal, e seguindo o
padrão adotado por estes nas intervenções, os proprietários suprimem platibandas,
ornatos em estuque e outros detalhes que demandavam mão-de-obra especializada
para manutenção.
Arthur Arcuri, em seu levantamento fotográfico, quando do estudo para delimita-
ção de tombamento (1947), ao registrar o núcleo central, assim escreveu sobre a casa de
número 28 da rua Marechal Deodoro: “já danificada, com uma platibanda, conservam-se
os portais de madeira em arco, com moldura por cima da massa”[9] (Figura 3). Soma-se a
isso a demarcação de tal edificação no mapa do arquiteto com as “casas novas e refor-
madas (modernizadas)”[10], ressaltando sua “descaracterização”.

[8] Beira-seveira: rendilhado em estuque ou argamassa em formado de meio arco sob a


linha do beiral.

de tombamento. Arquivo do Museu Regional de São João del-Rei.

[10] ARCURI, Arthur. Planta “São João del-Rei, área tombada”, Meados de 1946. ACI/RJ - Caixa
0283, Pasta 0812.

517
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Anos mais tarde, em abril de 1960, a proprietária da residência encaminha carta ao


presidente do IPHAN Rodrigo Melo Franco de Andrade solicitando reparos no telhado
da moradia. Alega que o desabamento de parte do sobrado vizinho – o sobrado à rua
Marechal Deodoro número 12, tombado pelo IPHAN – teria causados os danos ao imó-
vel[11]. Ao ser informado, Sylvio de Vasconcellos solicita a Geraldo Rodrigues Ferreira, o
“quebra-galho” do IPHAN em São João, que verificasse o caso pessoalmente, atentando
ao alegado pela proprietária[12]. Ao que parece nada foi feito, e a proprietária entra em
contato novamente com o IPHAN, agora na pessoa de Sylvio de Vasconcellos, solicitando
a execução das obras[13]. Em quatro de junho iniciam-se as obras, aproveitando-se a
oportunidade para demolição da platibanda, expondo o beiral.
A fachada, após as obras, adquiriu certo desequilíbrio entre cheios e vazios (Figura
4), porém a sequência de vãos manteve um perfil característico ao do imóvel vizinho, de
propriedade do IPHAN. Os anos passam e a edificação número 28, já camuflada com a
pátina do tempo e sem os ‘artifícios do ecletismo’, contribui para um ambiente homo-
gêneo. Em dezesseis de fevereiro de 1967 Augusto da Silva Telles solicita o tombamento
do imóvel, juntamente com diversos outros, e justifica que
Essas edificações, mesmo as que não apresentam características invul-
gares, no sentido do panorama nacional, sua preservação rigorosa é
indispensável, para garantir ao acervo urbano, já bastante compro-
metido em muitos lugares, algum sentido de unidade e do caráter que
devemos proteger.[14]
Lucio Costa prontamente reporta seu “de acordo”[15]. Um imóvel modificado e false-
ado em prol de sua integração a um ambiente estava sendo tombado. Em comparação, a
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar, na mesma cidade, quando tombada, foi inscrita

[11] ROSSITO, Maria P. Carta a Rodrigo Melo Franco de Andrade. São João del-Rei, 3 de abril
de 1960. CDII/BH - Assunto: São João del-Rei, Pasta Relatórios 1946-1958.

[12] VASCONCELLOS, Sylvio de. Ofício nº. 262 a Geraldo Rodrigues Ferreira. Belo Horizonte, 13
de abril de 1960. CDII/BH - Assunto: São João del-Rei, Pasta Relatórios 1946-1958.

[13] ROSSITO, Maria P. Carta a Sylvio de Vasconcellos. São João del-Rei, 6 de setembro de 1960.
CDII/BH - Assunto: São João del-Rei, Pasta Relatórios 1946-1958.

[14] TELLES, Augusto Carlos da Silva. Informação nº. 64. Assunto: área tombada da cidade
de São João del-Rei - MG. Belo Horizonte, de 16 de fevereiro de 1967. CDII/BH, Pasta Cidade de
São João del-Rei.

[15] Ibid.

518
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

apenas no livro do Tombo de Belas Artes (em oposição às outras igrejas, que também
foram inscritas no livro do Tombo Histórico). A negativa da inscrição da igreja no livro
do Tombo Histórico talvez possa ser justificada pelas diversas transformações pelas
quais passou sua fachada ao longo dos anos, assim como a fachada da igreja do Rosário,
que não possuía torres e as recebeu no início do século vinte, fato que talvez tenha a
contribuído para que não fosse nem cogitado seu tombamento. Uma atitude que coloca
em dúvida as reais intenções do IPHAN nas décadas iniciais de atuação: tombar pra
preservar a história ou selecionar a história a ser preservada?

Arthur Arcuri (AA186), em 29 de julho de 1949; e atualmente. Fontes: ACI/RJ - Série Obras, Caixa
0294, Pasta 1240; Foto do autor, 2019.

Os títulos PRIMEIRA FASE - CATEGORIA 3 - Demolição de eclético e


construção em estilo patrimônio

Na rua Getúlio Vargas, uma das principais ruas da cidade, antiga rua Direita, onde
figuram três das principais igrejas setecentistas, a edificação de número 170 possui his-
tória peculiar. A proprietária do imóvel, eclético (Figura 5) entrou com requerimento para
modificação da fachada[16] em treze de março de 1960. Sylvio de Vasconcellos prontamente
acatou o pedido, listando no despacho as características que deveriam figurar no projeto:
A DPHAN nada tem a opôr, desde que seja observado o seguinte:
a) telhado com contrafeito e cobertura em telhas tipo colonial;
b) beiral em cachorros de madeira;

[16] PERRILI, Regina Anhel. Requerimento s/nº. a Sylvio de Vasconcellos. São João del-Rei, 13
de março de 1960. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0799.

519
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

c) marcos das portas e janelas de caixão inteiro;


d) fôlhas da porta de calha e das janelas de guilhotina ou calha;
e) pintura nas paredes externas a cal branca;
f) óleo colorido nas madeiras aparentes;
g) não deverá ser dado barrado na fachada principal.
Em 18 de abril de 1960.
Sylvio de Vasconcellos
Chefe do 3º Distrito[17]
Ao ter o pedido encaminhado a José de Souza Reis, técnico do Escritório Central do
IPHAN no Rio de Janeiro, este solicita a redução do pé-direito da edificação, “a fim de pro-
porcionála melhor”[18]. Com o “de acordo”[19] de Renato Soeiro, da Divisão de Conservação e
Restauração (DCR), e de Rodrigo Melo Franco de Andrade, Sylvio de Vasconcellos informa
que as proporções da residência haviam sido respeitadas, por tratar-se de reforma de
prédio já existente[20], enviando fotografia do mesmo. Ao ser informado, Reis relata não
ter reparado “que se tratava apenas de modificação de fachada de prédio existente. Mas
assim mesmo dá vontade de seguir o abaixamento das vêrgas, caso isso não traga mais des-
pesa”[21]. A fala de Reis, além de explicitar o consentimento do IPHAN para com alterações
em edificações de caráter eclético, demonstra a preocupação de manter as proporções na
nova fachada ‘colonial’, de modo a não obter os arremedos desproporcionais verificados
nos casos anteriores. O desenho técnico da fachada aprovada apresenta-se na Figura 6.
As obras foram realizadas sem o rebaixamento das vergas, conforme solicitado,
conformando um espaço demasiado grande entre o novo beiral com cachorros em

[17] Despacho de Sylvio de Vasconcellos listando as características a serem adotadas no


projeto. Fonte: ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0799.

[18] REIS, José de Souza. Informação nº. 143. Rio de Janeiro, 28 de abril de 1960. ACI/RJ, Série
Obras, Caixa ____, Pasta 1235.

[19] SOEIRO, Renato. Parecer à Informação nº. 143 de José de Souza Reis. Rio de Janeiro, 28
de abril de1960. ACI/RJ, Série Obras, Caixa ____, Pasta 1235.

[20] VASCONCELLOS, Sylvio de. Ofício nº. 312 a Rodrigo Melo Franco de Andrade. Belo Horizonte,
9 de maio de 1960. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0799.

[21] REIS, José de Souza. Resposta ao Ofício nº. 312 de Sylvio de Vasconcellos. Rio de Janeiro,
18 de maio de 1960. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0799.

520
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

madeira e a parte superior dos vãos das janelas, agora em guilhotina. Este caso, sendo
a própria moradora a solicitante das alterações de fachada, exemplifica as primeiras
repercussões a partir das intervenções iniciadas pelo IPHAN. O projeto apresentado foi
aprovado rapidamente, em pouco mais de um mês, por centrar-se no objetivo principal
do órgão federal para com o conjunto urbano são-joanense naquele momento. A Figura
7 exemplifica o resultado após as obras.

aprovadaspelo IPHAN. Fontes: ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0799; Foto do autor, 2019.

De volta às imediações da Igreja de Nossa Senhora do Carmo, o proprietário da


edificação número 56 da rua Resende Costa envia pedido de obras com fotografia do
imóvel e croqui da fachada pretendida para o IPHAN em nove de novembro de 1964, como
mostram as Figuras 8 e 9. Antonio Velloso, técnico do IPHAN, encaminha o pedido[22] à
sede no Rio de Janeiro. José de Souza Reis, preocupado com a altimetria das edificações
da área, em maioria térreas, sugere[23] que Arthur Arcuri verifique o caso in loco.

à rua Resende Costa nº. 56, em São João del-Rei. São João del-Rei, 9 de novembro de 1964. ACI/
RJ – Série Obras, Caixa 0282, Pasta 0806.

[23] REIS, José de Souza. Informação nº. 212. Rio de Janeiro, 13 de novembro de 1964. ACI/
RJ - Série
Obras, Caixa 0280, Pasta 0797.

521
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

do projeto aprovado para a reforma da fachada, com vito de Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Fontes: ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0282, Pasta 0806.
Arcuri, após visitar a cidade e fotografar a edificação e o entorno, constata que “a
casa existente é térrea e está confinada por outras duas idênticas, números 64 e 50, tam-
bém térreas e naquela rua os prédios são todos térreos”[24]. Esta edificação também é uma
das marcadas pelo arquiteto em seu mapa como descaracterizadora do núcleo central.
Ainda no Rio, Silva Telles informa, em quatorze de janeiro de 1965:
1 - Apesar de como informa o arquiteto José de Souza Reis e confirma o
arq. Arthur Arcuri, a rua ser composta de casas térreas, essas construções
com exceção de muito poucas acham-se completamente deturpadas por
reformas sucessivas a que foram submetidas, inclusive a casa existente
na área em questão.
2 - Por sua vez, a rua Rezende Costa que sai da praça onde se encontra
a Igreja da Ordem 3ª do Carmo não é rua eixo da área tombada, e sim,
lateral, de menor importância, e a casa de esquina da praça com esta
rua é assobrada. Por estas razões, julgo, salvo melhor juízo, não haver
motivo de relevância para impedirmos essa edificação. Será, isto sim,
indispensável uma fiscalização ativa por parte do Sr. Geraldo Rodrigues
Ferreira, para que o projeto apresentado seja rigorosamente seguido,
com os detalhamentos certos.

[24] ARCURI, Arthur. Ofício s/nº. Juiz de Fora, 11 de dezembro de 1964. ACI/RJ - Série Obras,
Caixa 0280, Pasta 0797.

522
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

- telhado com telha canal, com contrafeito e beiral com cachorros de


madeira e guarda-pós de tabuado.
- guarnições de vãos em tábuas de vista mínima de 12 cm.
- folhas de guilhotina com divisões dos vidros tiras finas, conforme os
modelos antigos.
- porta de calha, formada por 4 pranchões ao alto.
- alvenaria com revestimento liso, para caiação, sem barras de áspero.
- peças de madeira pintadas à óleo com cor a ser determinada.[25]
Aprovado por Renato Soeiro[26] e por Rodrigo Melo Franco de Andrade[27], iniciam-se
as obras. Geraldo Rodrigues Ferreira remete carta[28] em dez de outubro de 1965, com
fotografia do andamento da construção. Neste caso fica explícito a solução encontrada
pelo IPHAN para permitir o adensamento da área central de São João del-Rei, que havia
se tornado questão importante em meio ao desenvolvimento acelerado que a cidade
apresentava. Os arquitetos do órgão aprovavam projetos em dois pavimentos, possibi-
litando o aumento da área construída das edificações antes térreas, mas controlavam
o aspecto das construções a partir dos padrões característicos das construções setecen-
tistas – como explicitam as Figuras 10 e 11. E quando as solicitações de construções em
dois pavimentos fossem em edificações de estilo eclético, aumentava-se o empenho para
que as modificações ocorressem, mesmo que prejudicasse em parte a visão do conjunto,
como o foi neste caso, onde a adição de um pavimento comprometeu o entorno, tendo
em vista que todas casas do mesmo lado da rua eram térreas.

[25] TELLES, Augusto Carlos da Silva. Informação nº. 8. Rio de Janeiro, 14 de janeiro de 1965.
ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0797.

[26] SOEIRO, Renato. De acordo com o despacho de Augusto Carlos da Silva Telles. Rio de
Janeiro, 18 de janeiro de 1965. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0797.

[27] ANDRADE, Rodrigo Melo Franco de. De acordo com o despacho de Augusto Carlos da
Silva Telles. Rio de Janeiro, 28 de abril de 1965. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0797.

[28] FERREIRA, Geraldo Rodrigues. Carta nº. 42 a Rodrigo Melo Franco de Andrade. São João
del-Rei, 10 de outubro de 1965. ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0280, Pasta 0797.

523
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de intervenção guiadas pelo IPHAN. Ressalta-se a quebra com a linearidade antes existente no
conjunto da rua. Fontes: ACI/RJ - Série Obras, Caixa 0282, p. 0806; Foto do autor, 2019.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É importante ressaltar como a delimitação da área de tombamento de São João


del-Rei pelo IPHAN influenciou nas modificações em edificações ecléticas que encontra-
vam-se dentro do conjunto a ser preservado, em vias de justificar um perímetro íntegro,
colonial, e livre da “arquitetura bastarda”. As intervenções de ‘reintegração’ em diversos
casos não se baseavam na iconografia existente, levando em conta apenas os relatos orais,
muitas vezes fantasiosos e passíveis de variadas interpretações. Os achismos recorrentes
em pareceres e comunicações internas corroboram a ação dos agentes do Patrimônio
em prol do conjunto repleto de beirais e singeleza, dignos de poesia. Na grande maioria
das edificações aqui identificadas não há como comprovar a presença do beiral em fase
anterior ao caráter eclético dos imóveis, o que torna as intervenções executadas baseadas
na ‘possibilidade de ter sido’, aos moldes de Viollet-le-Du.
As intervenções em São João del-Rei, como visto, centraram-se no entorno imediato
dos bens tombados individualmente, monumentos de destaque do século dezoito. Os
três grandes perímetros foco da atuação do IPHAN identificados nesta pesquisa exem-
plificam, com essa adoração ao monumento, a tentativa de estabelecer um conjunto
‘íntegro’ e falso com as edificações em estilo patrimônio. A paisagem a ser vista em
volta do monumento eleito foi privilegiada nas solicitações de intervenções e obras, na
manipulação de seu aspecto, como destacado no mapa da Figura 2. Nesse sentido, esta
pesquisa evidencia a ação humana, social e historicamente determinada, na delimitação
do patrimônio digno de ser inserido na memória nacional e, consequentemente tudo
aquilo que deve ser fadado ao esquecimento. Considera-se, assim, que a ação do órgão
federal de proteção ao patrimônio legitima algo inventado.

524
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Além de configurar um perfil urbano excludente e sem pluralidade, o fazer arquite-


tônico contemporâneo (plástico, tecnológico e estrutural) se perde nessa busca equivocada
pela preservação. Arquitetos privam outros arquitetos de projetar de acordo com seu
tempo. Já está mais do que comprovado que arquiteturas de tempos diferentes podem
coexistir no mesmo ambiente, aliás, é apenas essa coexistência que explicita e enfatiza a
história e as transformações de uma sociedade. Uma obra de arte sendo copiada, em dias
que correm, significa desvalorização, desmoralização e má fé. Quem constrói hoje não
está imbuído do espírito e sentimento dos mestres de obras e construtores dos séculos
passados. Essa reprodução desenfreada e baseada em ideais ultrapassados da arquite-
tura setecentista representa a arte da porcaria do gosto, e mecanismos e diretrizes que
barrem sua disseminação devem ser estimulados para que no futuro, as cidades sejam
mais fiéis a sua real história.

525
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS ARQUIVÍSTICAS E BIBLIOGRÁFICAS

Arquivo do Centro de Documentação e Informação do IPHAN (CDII/BH) em Belo


Horizonte. Pastas relativas à cidade de São João del-Rei.

BIBLIOGRAFIA

BARDA, Marisa. Espaço (meta)vernacular na cidade contemporânea. São Paulo:


Perspectiva, 2009.

Sylvio de Vasconcellos

Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2008.

Laranjeiras (SE). In: Anais do V Encontro Internacional sobre Preservação do


. Salvador: IAB-BA; UFBA, 2017.

de abril de 2020.

CUNHA, Claudia dos Reis e. Restauração: diálogos entre a teoria e prática no

– Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo. São Paulo,


2010.

DIAS, Diego Nogueira. ‘Estilo’ Patrimônio: formação e consolidação de uma


identidade nacional em São João del-Rei, Minas Gerais. Dissertação (Mestrado em

Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2019.

FERREIRA, Camila Corsi. Interlocuções entre a prática de restauração de Luís Saia


e as teorias de restauro: São Paulo, 1937-1975. Tese (Doutorado em Arquitetura e
Urbanismo) – Instituto de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo.
São Carlos, 2015.

Restauração. Trad. Beatriz Mugayar Kühl. São

526
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

MECANISMOS DE
SALVAGUARDA DO
PATRIMÔNIO RURAL:
VALORIZAÇÃO E RESTAURO
DA FAZENDA SALTINHO
SAFEGUARD MECHANISMS OF RURAL HERITAGE:
VALUATION AND RESTORATION OF THE SALTINHO
FARM

MECANISMOS DE SALVAGUARDIA DEL


PATRIMONIO RURAL: VALORACIÓN Y
RESTAURACIÓN DE LA HACIENDA SALTINHO
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

ANTUNES, Beatriz Leite


Mestranda; Progrma de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo UNESP
beatriz.leite@unesp.br

SALCEDO, Rosio Fernández Baca


Professora Doutora; Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo UNESP
rosio.fb.salcedo@unesp.br

527
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Os monumentos históricos são reveladores de valores artísticos, históricos e simbólicos, pois
constituem a essência e identidade humana, são expressões das manifestações da sociedade ao
longo da história. O restauro, quando realizado, pode contribuir ou prejudicar a salvaguarda
desses valores. A Fazenda Saltinho, localizada no município de São Manuel (SP), é uma das
expressões acerca do estilo eclético durante a economia cafeeira, constituindo em um exemplar
relevante para o patrimônio histórico/rural do interior de São Paulo. Recentemente, a Fazenda
passou por um processo de restauro e reabilitação de sua casa-sede. Esse estudo pretende avaliar
se o restauro realizado na Fazenda Saltinho corroborou para a preservação de seus valores.
A análise será realizada comparando o cronotopo original da fazenda com a restauração
efetuada, tendo como base as teorias e princípios da restauração de Ruskin, Le Duc, Beltrami,
Giovannoni, Boito e Brandi. As informações serão coletadas em fontes iconográficas e levanta-
mentos fotográficos realizados em visitas “in loco”. Os resultados apontam que poucos valores
se mantiveram ao decorrer dos cronotopos, após o restauro, contatou-se que o valor simbólico
não foi considerado, o que promove a falta de identidade da população local com o bem.

PALAVRAS-CHAVE: Restauro. Valores históricos. Valores artísticos. Valores simbólicos. Patri-


mônio.

A BSTRACT
Historical monuments reveal artistic, historical and symbolic values, as they constitute the
essence and human identity, they are expressions of the manifestations of society throughout
history. Restoration, when carried out, may contribute or hinder the safeguarding of these
values. Saltinho’s Farm, located in the city of São Manuel (SP), is one of the expressions about
the eclectic style during the coffee economy, constituting a relevant example for the historical
/ rural heritage of the interior of São Paulo. Recently, the farm underwent a process of restora-
tion and rehabilitation of its headquarters. This study aims to assess whether the restoration
carried out at Saltinho’s Farm corroborated the preservation of its values. The analysis will be
carried out comparing the farm’s original chronotope with the restoration carried out, based
on the theories and principles of restoration by Ruskin, Le Duc, Beltrami, Giovannoni, Boito and
Brandi. The information will be collected from iconographic sources and photographic surveys
carried out during visits “in loco”. The results show that few values were maintained during the
chronotopes, after the restoration, it was found that the symbolic value was not considered,
which promotes the lack of identity of the local population with the property.

KEYWORDS: restoration. historical values. Artistic values. Symbolic values. patrimony.

528
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
Los monumentos históricos revelan valores artísticos, históricos y simbólicos, ya que consti-
tuyen la esencia y la identidad humana, son expresiones de las manifestaciones de la sociedad
a lo largo de la historia. La restauración, cuando se realiza, puede contribuir o dificultar la
protección de estos valores. Fazenda Saltinho, ubicada en la ciudad de São Manuel (SP), es una
de las expresiones sobre el estilo ecléctico durante la economía del café, y constituye un ejemplo
relevante para el patrimonio histórico / rural del interior de São Paulo. Recientemente, la granja
se sometió a un proceso de restauración y rehabilitación de su sede. Este estudio tiene como
objetivo evaluar si la restauración realizada en Fazenda Saltinho corroboró la preservación
de sus valores. El análisis se realizará comparando el cronotopo original de la granja con la
restauración realizada, en base a las teorías y principios de restauración de Ruskin, Le Duc,
Beltrami, Giovannoni, Boito y Brandi. La información se recopilará de fuentes iconográficas y
encuestas fotográficas realizadas durante las visitas “in loco”. Los resultados muestran que se
mantuvieron pocos valores durante los cronotopos, después de la restauración, se descubrió
que no se consideraba el valor simbólico, lo que promueve la falta de identidad de la población
local con la propiedad.

PALABRAS-CLAVE: restauración valores históricos Valores artísticos. Valores simbólicos. patri-


monio

INTRODUÇÃO

Os seres humanos buscam constantemente o sentimento de pertencimento à um


lugar, é indispensável encontrar vínculos que nos ligam ao destino de outrem, com os
quais compartilhamos a mesma cultura (CURY, 2004, p. 324-325 apud CONE SUL, 1995).
Os monumentos e as cidades históricas, são marcos que assumem a sua temporalidade
e constroem a identidade humana, patrimônios arquitetônicos e urbanos que caracte-
rizaram o modo como a sociedade assumiu sua relação entre a arquitetura, o lugar e a
sua identidade.
O patrimônio é um registro edificado dos valores reverberados por uma sociedade,
sejam eles históricos, artísticos ou de uso, como afirmava Riegl (2014) ou valores simbó-
licos, como pontua Zárate (2014) acerca da relevância da interação sujeito, memória e
arquitetura. Com intuito de perpetuar os produtos arquitetônicos e os valores passados, o
restauro surge como manobra de conservação da arquitetura em detrimento da passagem
dos anos. Estudos teóricos avançam acerca dos princípios restauradores, entre os mais
conservadores até uma visão científica sobre o patrimônio, serão analisados Ruskin, Le

529
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Duc, Boito, Beltrami, Giovannoni e Brandi. Entretanto, as práticas de restauro, levaram a


indústria do patrimônio cultural: a valorização comercial do produto histórico, tendo em
vista seu consumo e excluindo, por muitas vezes as populações ou atividades tradicionais.
Em São Manuel, interior de São Paulo, as atividades sucroalcooleiras invadiram as
zonas rurais do município, deixando as antigas estruturas cafeeiras como verdadeiros
monumentos históricos na paisagem. Afastada no núcleo da cidade, a Fazenda Saltinho,
é um patrimônio histórico, artístisco e cultural acerca do estilo eclético, da organização
e funcionamento das fazendas cafeeiras e do requinte social atingido pelas famílias
produtoras que representou a sua ascensão no período republicano, e que ainda assim
fica totalmente escondido dos olhares urbanos. A arquitetura imponente de seu casa-
rão-sede não passou desapercebida porém de incentivos privados, que ao notarem seu
potencial comercial, investiram em um processo de restauro que iniciou-se por volta de
2014 e teve seu novo espaço reabilitado inaugurado no final de 2018.
Esse estudo pretende avaliar o restauro realizado na Fazenda Saltinho (SP) de
acordo com as teorias e princípios da restauração, traçando um comparativo entre o
cronotopo original, a passagem do tempo, o abandono, e o restauro. Busca-se averiguar
a preservação dos valores, de acordo com a teoria de Riegl, bem como a ressignificação
simbólica que a reabilitação conferiu ao edifício, verificando se o monumento perpetuou
sua identidade com o lugar e seus usuários.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

O termo monumento vem do latim, monumentum, que significa advertir, lembrar;


aquilo que traz à lembrança de alguma coisa. Nomina-se monumento, tudo que foi edi-
ficado por uma sociedade para expressar sua cultura (crenças, ritos, sacrifícios, aconte-
cimentos), deixando como testemunha para que outras gerações as relembre. Portanto,
preservar um monumento e preservar a memória e a identidade de uma comunidade
étnica, religiosa, familiar ou nacional (CHOAY, 2001, p. 17).
Os edifícios históricos são portares de ma mensagem ou argumento, cuja validade
está ligada ao conceito de autenticidade. Pode-se dizer que um bem só é autêntico quando
há correspondência entre o objeto material e o seu signficiado, cuja compreensão e acei-
tação derivam de seus usuários que são os responsáveis por convertê-lo em patrimônio.
Como forma de conservar a memória e a identidade sobre esses edifícios ao longo do
tempo, o restauro surge como instrumento de sua preservação.

530
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O monumento histórico é um marco arquitetônico da sociedade moderna que


registra um evento localizado no tempo e no espaço (RIEGL, 2014, p. 49). Para Riegl, os
monumentos se baseiam na teoria dos valores relativos, conflitantes entre si, são eles
os valores de rememoração e os valores de contemporaneidade. Dentre os valores de
rememoração destacaremos o valor histórico, e entre os valores de contemporaneidade
os valores artísticos e de uso. Este trabalho também visa contribuir através do acrés-
cimo do valor simbólico à teoria de Riegl, uma proposta de Marcelo Zárate que analisa
a importância indenitária do patrimônio histórico.
Os valores históricos supõe que um determinado monumento representa ume
stado particular e única do desenvolvimento de um domínio da criação humana (RIEGL,
2014, p. 73). Os valores artísticos, ou valor de arte relativo, refere-se à capacidade que o
monumento antigo mantém de sensibilizar o homem moderno, ou seja, ainda que
tenham sido criados por uma kunstwollen (vontade artística) radicalmente diferente da
atual, alguma característica de concepção, forma, ou cor específica desse monumento,
a despeito de sua aparência não moderna, torna-o capaz de satisfazer a kunstwollen
moderna (CUNHA, 2006, p. 13). O valor de uso, por sua vez, considera que o monumento
deve atendar às necessidades materiais do homem, é um fator inerente a todos os monu-
mentos históricos que tenham conservado seu papel memorial original ou adquirido
um novo uso (CHOAY, 2001, p. 169).
Por fim, os valores simbólicos são indispensáveis para compreender a arquitetura
de forma mais humana e social. O valor simbólico, agrega à teoria proposta por Marcelo
Zárate em aprofundar os estudos urbanos através do Urbanismo ambiental Hermenêu-
tico. Para Zárate (2010, p.30), o urbanismo encontrava-se em uma visão muito externa,
que levava em consideração apenas padrões físicos e estéticos do território sintetizados
na paisagem. Para ele, o valor simbólico são as expressões verbais e escritas, construções
de valores, representações sociais, aquilo que se interpreta do que se interpreta do lugar,
sua gênese (ZÁRATE, 2014, p. 14).

O restauro é baseado no reconhecimento da ora de arte como tal, enquanto docu-


mento histórico, e portanto, como dado cultural, fundamentando-se no “reconhecimento
da teoria brandiana” (KUHL, 2015, p.22). Um ato crítico que, alicerçado no reconhecimento
da obra e de seu transformar no decorrer do tempo, insere-se no tempo presente, sem
recorrer ao seu momento de criação, com vistas à sua transmissão para as próximas

531
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

gerações. É um ato de respeito pelo passado, interpretado no presente e voltado para o


futuro, para que os bens culturais possam continuar a ser efeitos e fidedgnos à memória
coletiva (KUHL, 2015, p. 45).
De acordo com a Carta de Veneza (ICOMOS, 1964), é uma operação que deve ter
caráter excepcional. Seu objetivo é conservar e revelar os valores estéticos e históricos
do monumento, fundamentando-se no respeito ao material original e aos documentos
autênticos. Termina onde começa a hipótese, todo trabalho complementar deve se destacar
da composição arquitetônica, tendo a marca de nosso tempo. A restauração sempre será
precedida de estudos e documentações científicas (CURY, 2004, p.92 apud ICOMOS, 1964).

Teorias e Princípios da Restauração

Como reação à destruição da herança artística ocorrida durante a revolução Fran-


cesa, sucederam-se experiências acerca da restauração enquanto campo disciplinar. A rica
experiência resultou em importantes bases teóricas para a fundamentação do restauro,
tal qual é conhecido atualmente. A seguir, serão abordados os principais estudiosos
acerca do tema, e que contribuiram para o referencial crítico do trabalho.
John Ruskin, precursor da Restauração Conservadora, considera o envelhecimento
do espaço um princípio de verdade, e, ao referir-se aos materiais, acata a degradação
natural da matéria (SALCEDO, 2015, p. 10 apud AMARAL, 2011, p. 55). Na prática, portanto,
segundo Ruskin, os materiais degradados deveriam ser substituídos por similares em
idade e aparência.
A Restauração Estilística, de Viollet Le Duc, leva esse nome graças ao principal
conceito propagado: A Unidade Estilística, isto é, integrar a obra segundo o seu estilo
orignal. Para Le Duc, a restauração leva a seguir o estilo do edifício, em aparência e
estrutura, baseado na interpretação científica e no conhecimento de história da arte
(SALCEDO, 2015, p. 31).
A Restauração Moderna, de Camilo Boito, consiste na recuperação do edifício de
uma cultura anterior para cumprir uma necessidade contemporânea, em uma restitui-
ção histórica, estética, e material do edifício (SALCEDO, 2015, p.33 apud BLANCO, 2008).
Na prática, segundo Boito, deveria ficar evidente a diferença entre a nova intervenção e
o aspecto original do edifício, a supressão de ornatos em elementos à serem substitui-
dos, a impreterível presença da data em que foi realizado o restauro e a exposição de
elementos antigos.
Luca Beltrami possui uma visão que se difere muito das práticas aprovadas pelos
conselhos patrimoniais atualmente. Segundo a Restauração Histórica, trata-se de reali-

532
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

zar deliberadamente uma cópia exata sem a menor alteração, com iguais significados
simbólicos, artísticos e urbanos, com os materiais mais parecidos que pudessem encon-
trar, com iguais ornatos (BLANCO, 2008, p. 156 apud SALCEDO, 2015, p. 35). Apesar disso,
Beltrami busca enfatizar a ideia de que reconstituições e intervenções seguindo o estilo
original da obra, somente seriam realizadas com base em documentos.
Giovanoni, através do Restauro Científico, é o primeiro teórico a abordar contribui-
ções relacionadas diretamente a conservação do patrimônio urbano. Reconhece a dúbia
visão patrimonial: o monumento enquanto documento histórico e obra de arte. Segundo
o restauro científico, o restauro defenderia as ideias de consolidação, recomposição,
liberação, complementação e inovação. Na prática, é a favor da mínima intervenção e
do mínimo acréscimo e aborda em seus estudos a questão da Anatilose.
Césare Brandi, é o responsável pela visão teória do restauro que traçamos atualmente,
propagada na Carta de Veneza, seus princípios eternizaram-se nas recomendações e no
trato com o patrimônio. Em termos efetivos, o Restauro Crítico, deverá ser facilmente
reconhecível, mas sem infringir a própria unidade que se visa reconstruir. Desse modo, a
integração deverá ser invisível à distância de que a obra de arte deve ser observada, mas
reconhecível de imediato, e sem necessidade de instrumentos especiais (BRANDI, 2004, p.
47-48). Parte imporante de sua teoria, Brandi alega haver duas instâncias de análisa da
obra: histórica e estética. Em síntese, destacam-se os princípios de fácil reconhecimento,
fácil remoção, visando futuras intervenções.

A conservação de um monumento está vinculado, além do restauro, à reintegração


do edifício anteriormente desativado a um uso normal. Como citaram Riegl e Giovannoni,
dar ao patrimônio uma nova destinação é uma operação difícil e complexa, que não deve
se basear apenas em uma homologia com sua destinação original. Ela deve, antes de mais
nada, levar em conta o estado material do edifício, o que requer uma avaliação do fluxo
dos usuários potenciais (CHOAY, 2001, p. 219). A fim de poupar o monuento histórico aos
riscos do desuso, através da reutilização, são expostos ao desgaste e usurpações do uso.
Da restauração à reutilização, passando pela mise en scene e animação cultural, a
valorização do patrimônio histórico apresenta múltiplas formas, de contornos impre-
cisos, que quase sempre se confundem ou se associam (CHOAY, 2001, p. 213). A cultura
perde seu caráter de realização pessoal, torna-se empresa e logo indústria [...] Por sua
vez, os monumentos e o patrimônio adquirem dupla função – obras que propiciam
saber e prazer, postas à disposição de todos; mas também produtos culturais, fabricados,

533
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

empacotados e distribuídos para serem consumidos. A metamorfose de seu valor de


uso em valor econômico ocorre graças à “engenharia cultural”, vasto empreendimento
público e privado, a serviço do qual trabalham grande número de animadores culturais,
profissionais da comunicação, agentes de desenvolvimento, engenheiros, mediadores
culturais. Sua tarefa consiste em explorar os monumentos por todos os meios, a fim de
multiplicar indefinidamente o número de visitantes (CHOAY, 2001, p. 211).
A embalagem que se dá ao patrimônio histórico urbano tendo em vista seu con-
sumo cultural, assim como o fato de ser alvo de investimentos do mercado imobiliário de
prestígio, tende a excluir dele as populações locais ou não privilegiadas e com elas suas
atividades tradicionais e modestamente cotidianas. Criou-se um mercado internacional
dos centros e bairros antigos (CHOAY, 2001, p. 225-226).

OBJETIVO

Avaliar o restauro realizado na Fazenda Saltinho (SP) de acordo com as teorias e


princípios da restauração. Busca-se averiguar se a prática do restauro colaborou para
a preservação de seus valores históricos, artísticos e de identidade observados em seu
cronotópo original.

METODOLOGIA

A pesquisa foi realizada em 4 etapas. A primeira, reconhecer o cronotopo original


da fazenda, com auxílio de representações iconográficas. A segunda busca caracterizar
a Fazenda Saltinho no período que antecedeu seu restauro identificando os valores his-
tóricos, artísticos, de uso e simbólicos tendo como base a tese de Doutorado “Fazendas
Paulistas: arquitetura rural no ciclo cafeeiro” (BENINCASA, 2008). A terceira, realizar uma
análise acerca do restauro ocorrido a partir de 2012, baseada nos teóricos da linha a partir
de visitas inloco e levantamento fotográfico realizado. Por fim, avaliar se a restauração
realizada colaborou com a preservação dos valores históricos, artísticos e de identidade
da fazenda de acordo com as propostas de Riegl e Zárate.

RESULTADOS

No interior de São Paulo, a cidade de São Manuel destacou-se no período da econo-


mia cafeeira e por essa razão o município detém diversas propriedades rurais da época.
Situada nas proximidades do Ribeirão Paraíso e da estação ferroviária Rodrigues Alves,
encontra-se a propriedade da família Simões: a fazenda Saltinho, também conhecida
pelo nome da fazenda Simões. Atualmente, as terras foram arrendadas e, estão ocupa-

534
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

das por famílias e trabalhadores rurais; o casarão foi vendido para iniciativa privada e
desde 2007 encontra-se em estudo de tombamento (Processo 00966/2007) pelo Conselho
de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (CONDEPHAAT).
A partir da aquisição, a família de empresários passou a restaurar o casarão a fim de
reabilitá-lo como um espaço de eventos.

Cronotopo Original

Em seu auge, foi uma das maiores produtoras de café do município, com 275 alquei-
res de terra roxa e 54 mil arrobas do grão. Era reconhecida pelas modernas infraestrutu-
ras que possuía como: Luz elétrica, água encanada, aparelhamento sanitário, telefone,
torrador mecânico de café, moinho hidráulico de fubá, etc. (CALDEIRA, 1928, p. 153). De
acordo com Caldeira (1928, p. 153): “O interior era de tamanha magnitude, que ali haviam
recursos desejados em uma vivenda fidalga”.
Bem avaliando o concurso eficiente que os colos prestam para a pros-
peridade da fazenda, os srs. Viúva Simões, Filhos & Cia, não deixam de
procurar oferecer toda a comodidade possível a esses humildades e
devotados cooperadores de sua grandiosa obra, pelo que funcionam na
fazenda um bem sortido armazém, excelente pharmacia e estando ali
domiciliado distinto clínico. Nem os filhos dos colonos foram esquecidos.
Conseguida a creação de escola estadual mista, foi oferecido gratui-
tamente o prédio em que a mesma funciona (CALDEIRA, 1928, p. 153)
Destaca-se da citação alguns edifícios que compõe a implantação da fazenda: Arma-
zém, Farmácia, Capela, Escola, Casa dos Colonos e Casa-Sede, além dos equipamentos que
estão vinculados a produção do café.
A casa-sede, construído em 1872, foi implantado sob a enconsta, possuia os jardins
afrancesados sob platôs que recortam o declive original da fazenda. A implantação segue
o costume da época, e separa o espaço aristocrático do espaço do trabalhador, arrimando
a casa em um denso muro de pedra, interrompido apenas pela escadaria que leva ao
platô do jardim. A técnica tijoleira, típicamente introduzida nos palacetes republicanos,
será aplicado nesse casarão; vidro e ferro também farão parte dos materiais utilizados.
A fachada é dotada de ornamentos neoclássicos, combinados simetricamente com as
aberturas em madeira e vidro, por sua vez repletas de almofadas decoradas.

535
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Caracterização original da fazenda Saltinho. Fonte: CALDEIRA (1928, p. 28).

A planta se desenvolve em U (figura 2), e abriga 11 cômodos em um só pavimento.


O interior da residência é composto por uma variedade de pisos cerâmicos, assoalhos
de madeira com composições geométricas, pinturas diversas e florões de gesso que
demarcam os lustres de ferro.

536
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2: Planta pavimento principal da Casa-sede Fazenda Saltinho. Fonte: ANTUNES (2017)

Originalmente, a obra detinha o valor de arte relativo, pois satistazia a vontade de


seus proprietários, ao encomendarem uma fachada com esses desenhos. O valor sim-
bólico presente no cronotopo inicial representava a ascensão social dos fazendeiros e
seu desejo em representar uma cultura europeia através da arquitetura, abandonando
aspectos simplórios do morador do campo. Apesar de abandonado, o complexo da
fazenda somente perdurou ao longo de mais de um século graças ao simbolismo e a
memória coletiva associadas aos edifícios sobre os áureos tempos do café e da história
de diversas famílias que começaram uma história graças à economia cafeeira e que
continuaram utilizando do espaço.
Com a crise cafeeira, a edificação passa pelo abandono e desuso (figura 3). Sem a
devida valorização, acrescido ao apelo arquitetônico do patrimônio urbano e a relativa
distância entre ambos, a arquitetura sofre com a ausência de manutenção (BENINCASA,
2018, p. 40). As pinturas externas apresentam desgaste e alteração da cor original, adqui-
rindo o aspecto vestuto e, por consequência o valor de rememoração e antiguidade de Riegl,
visto que esses traços levam a crer que de fato o edifício pertence à uma época anterior.

537
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3: Aspectos externos da casa-sede antes e após o restauro. Fonte: BENINCASA (2008, p.
271) e ANTUNES (2017).

A figura 4 revela que o espaço interno, apesar de degradado, resguardou alguns ele-
mentos característicos, como as portas e suas respectivas bandeiras. A escada helicoidal
de madeira, o fogão a lenha e os revestimentos originais, supõe-se que tais permanências
também estejam ligadas asos aspectos simbólicos de modo de vida rural. A manutenção
da residência despertou atenção da iniciativa privada, devido ao grande impacto de seu
valor de uso, que poderia ser adquirido com base no restauro e reabilitação do edifício.

538
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Detalhes da casa sede antes e após o restauro respectivamente. Fonte: BENINCASA
(2008, p. 271) e ANTUNES (2017).

Análise do Restauro

No restauro realizado na Fazenda Saltinho prevalecem os princípios adotados por


Beltrami (restauro histórico): as paredes receberam repinturas e tintas novas (figura 3),
os pisos faltantes foram completados ou substituídos por similares, as madeiras enver-
nizadas, e os elementos de ferro substituídos por elementos idênticos aos originais.
Trata-se de uma cópia exata para retransmitir os significados históricos e culturais
vistos originalmente.
A porta que dá acesso à residência (figura 4), apresentava alto grau de degradação
e pela impossibilidade de se recuperar o seu aspecto original, no restauro foi adotada a
supressão de ornatos, a semelhança dos princípios de Boito. Internamente, após inter-
venção, o vestíbulo recebeu pinturas parentais, como era costume nos grandes palacetes
urbanos, apresentando uma unidade estilística com o ecletismo paulista à semelhança
dos princípios de Viollet Le Duc.
Além disso, a reutilização do bem como espaço de eventos, fez com que ele fosse
inserido no “pacote” que revestem os monumentos históricos conforme os princípios
de Choay (2001): Os holofotes foram posicionados criando um “Mies en Scene” um ar
tetratral ao edifício (figura 5) que à luz doa dia não recupera semelhantes característi-
cas. Medidas foram tomadas para maximizar o lucro, retirando uma das características
mais presentes nas fazendas: o fogão a lenha. Além disso, a figura 5 deixa evidente a
modernização dos espaços seguindo tendências contemporâneas de locais semelhantes.

539
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

com/Fazenda-Saltinho-S%C3%A3o-Manuel-433164947261526/.

A restauração realizada na Fazenda Saltinho não revela a verdadeira idade e a


memória do edifício. Por fim, o restauro produziu um aspecto artístico, no qual mesmo
após alterações ainda é possível compreender as belezas de um monumento histórico,
“o caráter concluído do novo, que se exprime da mais simples maneira por uma forma
conservada em sua integridade e uma policromia intacta pode ser apreciado por todo
indivíduo, mesmo por aquele desprovido de cultura” (RIEGL, 1903, p. 98).

Como se mantiveram os adornos e as cores da fachada, considera-se que o valor


artístico do cronotpo original ainda se sustento, visto que o patrimônio passa a ser
reconhecido até por alguém desprovis de cultura. As figuras 3 e 4 revelam, o restauro
da Casa-sede (interna e externamente) fez com que o casarão perdesse seu aspecto ves-
tuto, mas ainda assim permaneceu seu valor histórico, visto que através dos elementos
restantes, ainda revlam vestígios sobre a passagem do Ecletismo no município de São
Manuel já a um século. A edificação também adquire o valor de contemporaneidade,
pois toma o monumento histórico como uma criação moderna recente, dá impressão
de uma perfeita integridade, inatacada pela ação destrutiva da natureza.
Os valores simbólicos responsáveis pela manutenção do casarão ao longo dos anos
foram os mais negligenciados. O valor simbólico vinculado a população local e daqueles
que usufruem das edificações da fazenda não foram considerados na elaboração do

540
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

projeto de reabilitação e restauro. A cozinha, área onde boa parte das relações sociais se
desenvolviam, foi severamente alterada: com o acréscimo de porcelanato na cozinha e
da supressão do fogão a lenha, para maximizar as funções do espaço, perde-se a conexão
histórica do edifício e se adentra ao ambiente totalmente modificado. O que aumentou
ainda mais as divisas com a memória daqueles que realmente detém a história desse
espaço. O simbolismo do casarão, com relação ao proprietário foi alterado, visto que a
relação cultural antes estabelecida era reflexo de um contexto sócio-econômico hoje
inexistente, este porém não está associado ao restauro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após análise, podemos considerar que prevalecem as ideias de Beltrami sob outras
intervenções realizadas com base nos teóricos. Tais medidas não condizem com as
recomendações atuais da UNESCO que mais se assemelham aos princípios de Brandi,
que visa proteger a intergridade e autenticidade do bem, tendo em vista a conservação
do bem às futuras gerações.
O casarão sofre com os efeitos perversos descritos pela Choay. Um feito da indústria
patrimonial, produto cultural que passa a ser consumido não mais pela sua população
local e suas atividades tradicionais, mas sim por pessoas privilegiadas e dissociadas de
sua memória original. Os valores artísticos e de uso mantiveram-se ao longo das inter-
venções, e o valor histórico, apesar de ter seu aspecto vestuto reduzido ainda é capaz de
ser observado pela tipologia arquitetônica conservada na fachada. Já o valor simbólico,
foi totalmente descaracterizado, criando assim um cenário de consumo e sem identidade.
É preciso considerar que não somente o patrimônio edificado compõe a identidade
de um local, e por essa razão, caso o usuário não se reconheça no restauro, não será ele um
agente motivado a consrevar as estruturas da edificação posteriormente. Respeitando
os valores históricos, artísticos e simbólicos o projeto poderia também ter agregado as
expectativas de todos os usuários envolvidos nesse processo, sem falsear uma percepção
do espaço e daquilo que ele significou. Fica claro a necessidade de embasamento e de
reconhecimento de um contexto, antes de serem realizadas obras de intervenções patri-
moniais, nenhum projeto acontece como ponto isolado, mas compõe parte de relações
sociais, culturais, históricas, econômicas e urbanas.

541
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

Fazendas Paulistas: arquitetura rural no ciclo cafeeiro. Tese


(Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - EESC-USP. São Carlos, 2007

Teoria do Restauro
Editorial, Coleção Artes & Ofícios, 2004.

CALDEIRA, João Netto. As nossas riquezas - Município de São Manuel. Edição


da empresa comercial e de propaganda Brasil original de 1928. São Manuel:
Prefeitura Municipal, 1928.

Alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP,


2001, P. 125-143.

CUNHA, Claudia dos Reis e. Alois Riegl e o culto moderno dos monumentos. In:
Vitruvius, ano 05, n. 054.02. São Paulo: 2006 Disponível em: https://www.vitruvius.
com.br/revistas/read/resenhasonline/05.054/3138. Acesso em: 23/04/2020.

Cartas Patrimoniais. Rio de Janeiro: IPHAN, 2004.

ICOMOS. Carta de Veneza – Carta Internacional sobre a conservação e restauração

KUHL, Beatriz. Algumas questões relativas ao patrimônio industrial e à sua


preservação. IPHAN, 2015. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/
publicacao/ algumas_questoes_relativas_ao_patrimonio.pdf. Acesso em:
23/04/2020

Arquitetura, urbanismo e paisagismo:


Renata Cardoso Maganin, Rosio Fernandez Baca Salcedo, Norma R. Truppel

RIEGL, Alois. O culto moderno dos monumentos

urbanismo. In Revista Arquitectonic: Mind, land & Society, n. 19-20, Edicions: UPC,
2010, p. 26-63.

ZÁRATE, Marcelo.

542
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Barcelona, 2014.

543
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

MODELAGEM DA
INFORMAÇÃO DA
CONSTRUÇÃO APLICADA
À PRESERVAÇÃO
DO PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO: UMA
PRIMEIRA EXPERIÊNCIA
PARA A ESTAÇÃO
FERROVIÁRIA DE PATOS,
PARAÍBA, BRASIL
MODELING OF CONSTRUCTION INFORMATION
APPLIED TO THE PRESERVATION OF
ARCHITECTURAL HERITAGE: A FIRST
EXPERIENCE FOR THE PATOS RAILWAY STATION,
PARAÍBA, BRAZIL

544
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BRASIL
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

LUCENA, Pedro Gomes de


Arquiteto e Urbanista; UFPB
pedroglucena@gmail.com

545
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Atualmente o campo da preservação do patrimônio conta com um grande número de tecnologias
capazes de garantir o levantamento, documentação, gestão e conservação do legado histórico
das cidades. Dentro dessa perspectiva, pode-se destacar o Building Information Modeling
(BIM), uma importante plataforma capaz de auxiliar arquitetos em todo o ciclo de vida de uma
edificação. Assim, levando em consideração o panorama da preservação com todos os desafios
a vencer e consonante com as afirmações que apresentam as tecnologias digitais como ferra-
mentas importantes para os processos de manutenção e salvaguarda do legado patrimonial
das cidades, a presente pesquisa teve como objetivo geral o desenvolvimento da modelagem
BIM da Estação Ferroviária de Patos/PB e explorar as potencialidades dessa tecnologia para a
preservação do patrimônio arquitetônico. A partir desse experimento foi possível enxergar a
capacidade que essa tecnologia tem de aperfeiçoar e tornar mais eficaz os processos de docu-
mentação, conservação e difusão dos edifícios históricos.

PALAVRAS-CHAVE: BIM, Modelagem Digital, Patrimônio Arquitetônico.

A BSTRACT
Currently, the field of heritage preservation has a large number of technologies capable of gua-
ranteeing the research, documentation, management and conservation of the cities’ historical
legacy. Within this perspective, we can highlight BIM (Building Information Modeling), an
important platform capable of assisting architects throughout the life cycle of a building. Thus,
considering the panorama of preservation with all the challenges to be overcome and aligned
with the statements that present digital technologies as important tools for the processes of
maintenance and safeguarding the historical heritage of cities, the present research had the
general objective of developing BIM modeling from the Patos / PB Railway Station and explore
the potential of this technology for the preservation of the architectural heritage. From this
experiment, it was possible to perceive the capacity of this technology to improve and make the
processes of documentation, conservation and diffusion of historic buildings more efficient.

KEYWORDS: BIM, Digital Modeling, Architectural Heritage.

RESUMEN
Actualmente, el campo de la preservación del patrimonio tiene una gran cantidad de tecnologías
capaces de garantizar la encuesta, documentación, gestión y conservación del legado histórico
de las ciudades. Dentro de esta perspectiva, podemos destacar el Building Information Modeling

546
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

(BIM), una plataforma importante capaz de ayudar a los arquitectos a lo largo del ciclo de vida
de un edificio. Así, teniendo en cuenta el panorama de preservación con todos los desafíos a
superar y en línea con las declaraciones que presentan las tecnologías digitales como herra-
mientas importantes para los procesos de mantenimiento y salvaguarda del patrimonio de las
ciudades, la presente investigación tuvo como objetivo general el desarrollo El modelado BIM
de la estación de tren Patos / PB y explorar el potencial de esta tecnología para la preservación
del patrimonio arquitectónico. A partir de este experimento, fue posible ver la capacidad que
tiene esta tecnología para mejorar y hacer que los procesos de documentación, conservación y
difusión de edificios históricos sean más eficientes.

PALABRAS-CLAVE: BIM, modelado digital, patrimonio arquitectónico.

INTRODUÇÃO

Os bens patrimoniais possuem valor de identidade e assim constituem-se repre-


sentativos para a diversidade social de uma região, desse modo, são fundamentais para
evidenciar o desenvolvimento e as transformações nas civilizações ao longo do tempo.
Assim, o desafio sempre constante quando se trata dessa temática é o de garantir, por
meio da preservação do patrimônio, a transmissão do conhecimento cultural e histórico
que esses legados contêm (CHECA, 2014).
Conforme Cardenas et al (2014) os espaços de significação cultural enriquecem a
existência dos povos e proporcionam mais profundidade e sentido para as suas memórias
sociais, através da possibilidade que esses têm de evocar e evidenciar valores históricos,
estéticos, científicos e espirituais, portanto, é indispensável discutir ações que garantam
a manutenção e continuidade desses edifícios remanescentes pois “o patrimônio é um
recurso não renovável em relação ao seu passado e é por isso que se manifesta como um
recurso intocável e insubstituível de um povo” (CARDENAS ET AL, p.147, 2014).
De acordo com Abdelmonem (2017) atualmente o patrimônio cultural está cada vez
mais ameaçado por agentes diversos, como: as alterações climáticas, conflitos sociais,
comercialização e exploração excessiva do turismo. A esses problemas somam-se a falta
de investimento, planejamento e manutenção que provocam danos irreversíveis aos
monumentos representantes de tradições culturais.
Consonante a essas ideias Amorim (2008) afirma que além da degradação e acidentes
de todo tipo, o acervo patrimonial das cidades brasileiras está sob ameaças constantes
por causa de fatores relativos ao crescimento urbano desordenado, a especulação imo-
biliária e as intensas mudanças socioculturais que acabam ressignificando valores.

547
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

As ameaças ao legado patrimonial ganham ainda mais intensidade em cidades


como Patos na Paraíba, que por não possuir uma cultura de preservação da malha
histórica de seu núcleo urbano e não contar com estratégias e ações de salvaguarda
das edificações históricas, sofre com processos urbanos que provocam a destruição de
exemplares arquitetônicos que são dotados de significância e valores históricos, sociais
e/ou estéticos (LUCENA et al, 2016).
Assim, a modelagem tridimensional com foco na preservação digital tornou-se
uma prioridade internacional pois contribui para a criação de um novo momento nos
estudos sobre patrimônio cultural estando esses assentes nas reconstruções fotorrea-
listas dos bens históricos, que são meios eficazes de remediar possíveis perdas coletivas
de tesouros patrimoniais (DENKER, 2016).
Nos últimos anos, a documentação das edificações que portam considerável valor
patrimonial tem sido observada à luz das abordagens de métodos sofisticados que fazem
uso de tecnologias para investigar e garantir o registro e consequente salvaguarda desses
bens, com efeito, se tornou cada vez mais frequente a implementação e consequente
consolidação de plataformas a exemplos do BIM e da Realidade Virtual que têm colabo-
rado com a descrição gráfica desse legado (BRAGA ET AL, 2017).
Nessa perspectiva, Araújo (2018) afirma que, dentro da dimensão das tecnologias
aplicadas às questões de salvaguarda do patrimônio, é buscado o estabelecimento de
princípios e métodos eficazes para uma documentação digital que possibilite mais
transparência e compartilhamento de informações, assim a autora afirma que os avanços
relativos a esses estudos têm possibilitado novos meios de coletar, analisar, apresentar
e disseminar o conhecimento sobre edificações históricas.
Portanto, levando em consideração o panorama da preservação com todos os desa-
fios a vencer e consonante com as afirmações que apresentam as tecnologias digitais
como ferramentas importantes para auxiliar nos processos de manutenção e salvaguarda
do legado patrimonial das cidades, a presente pesquisa buscou explorar e entender
como a modelagem digital pode contribuir para a preservação de edificações históricas.
Assim, trabalho tem como objetivo geral desenvolver a modelagem de uma edifica-
ção histórica através da plataforma BIM e explorar as potencialidades dessa tecnologia
para a preservação do patrimônio arquitetônico, e como objetivos específicos:
a) discutir as potencialidades da adoção do BIM como instrumento que visa a
preservação do patrimônio arquitetônico;
b) realizar a prototipagem digital através do programa Revit Architecture 2020
(versão estudantil);

548
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

c) analisar os conteúdos digitais produzidos e apontar quais as informações


deverão ser incorporadas no modelo para que seja possível ter uma base de dados eficaz
no auxílio de atividades preservacionistas.
Como objeto de estudo é apresentado o processo de modelagem da Estação Fer-
roviária da cidade de Patos, Paraíba (Figura 01). Construída na década quarenta, com
sua inauguração no ano de 1944, essa edificação apresenta linhas gerais em estilo art
déco, e constitui-se como símbolo de um importante momento da evolução urbana do
município que foi a sua ligação a outros Estados do Nordeste o que possibilitou uma
maior expansão do escoamento de mercadorias da produção local, contribuindo para
o aumento da expansão comercial que o município vivenciava na época. Além disso, de
acordo com Lucena e Lira (2018), é o único bem patrimonial tombado do município, e
conta com proteção em nível estadual e nacional.

Figura 01: Estação Ferroviária de Patos, Paraíba. Fonte: LUCENA (2018)

A metodologia utilizada no trabalho contou com a utilização de diferentes procedi-


mentos, tais como: Pesquisa bibliográfica e documental para apreensão do estado da arte
relacionado a aplicação do BIM na preservação patrimonial, além de captação de dados
e informações para auxiliar em outra etapa metodológica, que é relativa ao estudo de
caso, ou seja, a prototipagem digital da Estação Ferroviária através da ferramenta Revit
Architecture 2020 (versão educacional). Por fim, foi realizada a sistematização e análise
do material produzido para observação das questões centrais da pesquisa.

549
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PRESERVAÇÃO DIGITAL DO PATRIMÔNIO

Amorim (2017) expõe que na atualidade o uso das novas tecnologias tem se difun-
dido devido as suas características relativas ao acesso fácil e velocidade na coleta e no
tratamento dos dados, além dos custos baixos na divulgação e distribuição das informa-
ções, dessa maneira, essas inovações têm colaborado com as mais diversas atividades de
registro, restauro, preservação e gestão do patrimônio arquitetônico.
Ao longo das últimas duas décadas foram realizadas diversas experiências que bus-
cam estudar e propor metodologias que garantam a utilização de softwares e hardwares
nas atividades de documentação, conservação e disseminação do patrimônio cultural.
Iniciativas como a do projeto Syrian Heritage Archive Project surgem como soluções
propostas para documentar através da modelagem virtual os monumentos históricos
destruídos ou ameaçados por guerras e eventos naturais, dessa maneira é possível através
reconstruções digitais contribuir com a preservação da herança cultural e ter a dispo-
sição materiais de alta qualidade que poderão auxiliar em atividades de restauração e
intervenção (CANUTO, 2017).
Além dessa experiência pode-se destacar também as experiências do departamento
de Arquitetura do MIT, com o projeto que visa a documentação digital do santuário
histórico de Machu Picchu, através de elaboração de mapeamento 3D e integração com
a realidade virtual e aumentada visando a disseminação do sítio histórico através da
internet facilitando o seu reconhecimento.
No Brasil pode-se destacar as pesquisas que são desenvolvidas pelo Laboratório de
estudo avançados em cidade, Arquitetura e tecnologias Digitais (LCAD) da FAUFBA, cujos
trabalhos desenvolvidos visam o desenvolvimento e apropriação do uso de tecnologias
digitais no aprimoramento e agilização do registro documental de bens integrados
(TOLENTINO, 2018).

O BIM ASSOCIADO AO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO

O Building Information Modeling é atualmente um dos mais avançados sistemas


para processamento e catalogação de dados voltado para a representação virtual das
especificidades físicas e funcionais dos edifícios, assim, através dessa tecnologia é possível
criar modelos que contenham além das características geométricas, as informações e
dados relativos às propriedades dos materiais e os elementos técnicos que constituem
os bens edificados (PICONE; VERONESE, 2019).

550
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Atualmente pode-se observar o aumento do uso do BIM na captura da realidade do


patrimônio edificado, através da documentação orientada à sua análise e interpretação,
alteando o potencial dessa plataforma na investigação diagnóstica e na conservação de
edifícios históricos, além disso, é destacada a possibilidade da integração com platafor-
mas de realidade virtual e aumentada objetivando a difusão e realização de atividades
de educação patrimonial (CANUTO; MOURA; SALGADO,2017).
Dentro dessa perspectiva, Picone e Veronese (2019) afirmam que na última década
a modelagem da informação da construção tem experimentado um crescente desenvol-
vimento no campo da documentação do legado cultural, graças aos trabalhos de muitos
profissionais que vem dedicando-se à exploração das potencialidades dessa ferramenta
na geração de banco de dados orientados à gestão de um monumento histórico, tais
iniciativas têm aberto caminhos e orientado para futuros possíveis dessas metodologias
(PICONE; VERONESE, 2019).
O uso de tal tecnologia torna possível elaborar modelos virtuais com alta fideli-
dade visual, além de precisão métrica e integração de vários tipos de mídias, portanto
a documentação do patrimônio mudou, passando a constitui-se em bases de dados
inteligentes, isso foi possível graças ao reconhecimento do BIM como uma ferramenta
multidisciplinar que atende a todo o ciclo de vida da edificação e como uma importante
metodologia facilitadora da junção dos aspectos tangíveis e intangíveis da herança
patrimonia (FAI ET AL, 2011)
Consonante com essas ideias Pereira (2015) classifica a prototipagem em BIM como
sendo um dossiê eletrônico de dados e que a adoção desse tipo de metodologia é capaz
garantir a modelagem de artefatos arquitetônicos capaz de abarcar tanto os dados
geométricos como os não geométricos, o que será útil para facilitar a gestão integrada
desses objetos históricos.
Desse modo, Jesus (2018) expõe que o desafio da preservação do patrimônio arqui-
tetônico está em salvar as camadas de informações sobre o passado que ele contém,
assim, a autora afirma que o BIM apresenta-se como vital na buscar por soluções para
essa questão, pois é uma ferramenta capaz de armazenar em um banco de dados cen-
tral os dados de construção que foram perdidos ou nunca foram registrados. E dessa
maneira, essa documentação tem a capacidade de auxiliar na qualidade e eficiência de
processos de gestão e conservação, apresentando-se como um método importante uma
vez que as instituições que lidam com a preservação desse legado histórico pertencem
ao setor público e tem que administrar bem os recursos e orçamentos limitados, o que
evidencia o potencial da sua aplicação nesse setor:

551
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Applying BIM to the heritage sector has enormous potential: it will


ensure that complex programmes of improvements, repairs and main-
tenance are delivered effectively and efficiently, and it will help preserve
the layers of information and the ‘living history’ of our much-loved
heritage buildings. (JESUS, s.p., 2018)
Nos processos ligados à preservação do patrimônio construído, as tomadas de
decisão e realização de operações são assincrônicas e demandam muito tempo de inves-
tigação por profissionais diversos para que seja possível conseguir um nível adequado de
documentação de toda a estrutura da edificação, assim, ao ser observada a multidiscipli-
naridade nas ações operações sobre as edificações históricas percebe-se a indispensável
adoção de uma plataforma colaborativa capaz de conter todas as informações e dados
necessários aos processos de documentação, e que além disso, seja possível manipular
essas informações ao longo do tempo na medida em que novas informações são obtidas
(PEREIRA, p.35, 2015).
Ainda segundo o mesmo autor, adotar o BIM no campo do patrimônio construído
garante a gestão da informação coletada, modelada, utilizada e partilhada por diferen-
tes profissionais e campos disciplinares envolvidos nos processos de investigação e
conservação, o que reflete-se numa melhor acessibilidade ao conhecimento histórico e
técnico sobre edificações históricas, desse modo, através da democratização do acesso
e possibilidade de operacionalização multidisciplinar na metodologia de documenta-
ção, há uma ampliação nos fluxos de trabalho que visam a monitoração, investigação e
intervenção sobre o legado patrimonial.
Portanto, através da utilização do BIM (Building Information Modeling) como
tecnologia que possibilita a elaboração de modelos paramétricos com a finalidade de
documentar e intervir no patrimônio é possível, além da reconstrução virtual, a exploração
e gestão da informação, o que faz desses protótipos fontes de estudo que auxiliarão em
diversas atividades de ensino, pesquisa e extensão, constituindo-se como uma poderosa
fonte de registro (PAIVA; DIÓGENES; CARDOSO, 2015).

Patos é um município sertanejo com inquestionável influência econômica, his-


tórica sociocultural para o Estado da Paraíba, está localizado (Figura 2) na mesorregião
do sertão paraibano, distante 310 km da capital João Pessoa. A cidade vem sofrendo ao
longo dos anos, um processo de descaracterização da sua memória urbana, enxergado
no contínuo mecanismo de destruições de edificações dotadas de significância para a

552
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

história social e evolução urbana do município, sendo possível constatar com frequ-
ência nas áreas centrais da cidade, edificações de diferentes tipologias e estilos serem
demolidas e nos seus lugares serem construídas novas, geralmente para suprirem as
demandas do setor comercial dessa localidade.

Figura 02: Mapa de localização de Patos, Paraíba. Fonte: LUCENA (2018)

Conforme Silva et al (2016) o processo de modernização experimentado pela cidade,


estimulado pelo aquecimento da economia local, provocou um contínuo fluxo de altera-
ção da paisagem arquitetônica de sua área central onde foi possível observar através do
estudo realizado pelos autores que esse cenário é relativo à modificações ou substituições
de corpos edilícios históricos por outros com programas e estruturas adaptadas para os
serviços comerciais, assim, percebeu-se a falta de preocupação da sociedade local quanto
a preservação do seu patrimônio.
Uma outra pesquisa realizada por Lucena (2018), evidencia a falta de atuação do
poder público municipal na regulamentação de entidades e atividades de promoção da
salvaguarda da malha arquitetônica histórica do município, à essa questão é somada

553
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ainda a insuficiente participação de órgãos estaduais que tratam da manutenção de


bens patrimoniais.
O autor demonstra ainda que existem atualmente um pequeno acervo remanescente
de edificações dotadas de significância patrimonial, porém encontram-se em avançado
grau de modificação de suas características arquitetônicas originais, cuja a maioria dos
bens identificados não estão inscritos sob algum tipo de instrumento legal de proteção.
De todos os bens que são apresentados na pesquisa, apenas a Estação Ferroviária – objeto
de estudo deste trabalho -, é protegida através de legislações nacional (portaria 407/2010)
e estadual (decreto 22.082/2001), justificadas por tombamentos temáticos nessas duas
instâncias com o objetivo de proteger o legado ferroviário patrimonial.
Tal edificação, com geometria simples e linhas gerais assentes no estilo art déco,
constitui-se como um marco importante para o processo de evolução urbana de Patos,
pois, a sua implementação contribuiu para a conexão da região a polos comerciais pelo
nordeste, o que colaborou para a ascensão econômica da cidade.
Dessa maneira fica exposta a sua importância, que extrapola os limites da sua
municipalidade, apresentando-se como bem de inquestionável valor e significância
para a história da ferrovia brasileira. Apesar de sua relevância cultural e simbólica, o bem
encontra-se em um estado precário de conservação, sendo possível identificar “desgaste
e fissuras na alvenaria e esquadrias em decorrência da ação do tempo” (LUCENA, 2018),
fato que amplia a necessidade de implementação de metodologias para documentação
precisa que possam auxiliar em processos de salvaguarda dessa herança.

A metodologia empregada no desenvolvimento dessa pesquisa apresenta caráter


exploratório e está fundamentada pela investigação e pela abordagem qualitativa, para
tanto está sistematizada a partir da elaboração das seguintes etapas:
• Pesquisa bibliográfica e documental: com o objetivo de observar e destacar
as abordagens mais relevantes e atuais acerca do uso da plataforma BIM na
preservação do patrimônio arquitetônico (ABDELMONEM, 2017, DENKER, 2016;
CANUTO, 2017; PICONE e VERONESE, 2019; AMORIM, 2017; TOLENTINO, 2018),
além disso, foi realizada a busca por fontes primarias de dados técnicos e
históricos sobre a Estação Ferroviária de Patos (LUCENA, 2018; GRASSI, 2018).
• Modelagem BIM do objeto de estudo: prototipagem digital da Estação Ferro-
viária através do software Revit Architecture 2020 (licença educacional) com
base nos dados obtidos na pesquisa documental, tal procedimento buscou

554
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

observar as potencialidades da ferramenta no auxílio aos processos de gestão,


conservação e disseminação do patrimônio arquitetônico.
• Análise dos dados obtidos: observando de que modo deve ser a documentação
virtual para que se tenha um banco de dados eficaz e auxiliador nas atividades
e processos que visem a manutenção da herança patrimonial das cidades.

O PROCESSO DE MODELAGEM BIM DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA

Com o intuito de contribuir com a efetivação de pesquisas e ampliação de campos


educacionais que busquem ações para preservação do patrimônio arquitetônico da
cidade de Patos, foi escolhido um exemplar remanescente para modelagem BIM – a
Estação Ferroviária. Pretendeu-se a partir do estabelecimento desse método, observar
as potencialidades que o Building Information Modeling pode ofertar para o processo
de salvaguarda da herança patrimonial dessa localidade.
Para o processo de elaboração do produto digital foram utilizados como base de
dados o levantamento e os desenhos técnicos bidimensionais (plantas, cortes, fachadas)
em plataforma CAD, produzidos por Grassi (2018) elaborados durante a realização do
seu trabalho de conclusão de curso intitulado “Museu do Sertão: Projeto de intervenção
para a Estação Ferroviária de Patos/PB.
O processo de modelagem foi iniciando a partir da importação dos arquivos .dwg
no software Revit Architecture, a partir de então foi respeitada a seguinte sequência:
• Definição do piso: foi atentado para o nível da estação em relação ao terreno,
como também foram observados os seus limites, a partir disso, foram elabo-
radas as estruturas externas e externas do referido elemento, utilizando os
comandos piso para superfícies aterradas e de acabamento, e parede para as
estruturas do entorno da calçada circundante;
• Lançamento de paredes: através do comando parede foram criadas famílias
carregadas com informações relativas a espessuras e camadas compositivas,
o que resultou na criação de dois tipos básicos, as paredes internas e externas.
• Elementos das fachadas externas: utilizando o comando parede foram criadas
famílias, com diferentes tamanhos de espessura e com camada compositiva
em reboco, destinadas à construção dos adornos decorativos em alto-relevo
presentes nas fachadas externas do edifício.

555
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

• Esquadrias: foram totalmente modeladas a partir dos templates de famílias de


portas e janelas presentes no software utilizado, com base nos levantamentos
realizados por Grassi (2018).
• Telhados: utilizando o comando telhado, e respeitando o nível da coberta, a
estrutura do telhado foi elaborada de maneira esquemática, a partir de famílias
de montantes paredes cortina e famílias de telhado vidraça inclinada onde
esquematizou-se os elementos coloniais em madeira e as telhas cerâmicas.
Durante essa etapa do experimento pretendeu-se realizar a prototipagem obser-
vando, de acordo com os documentos disponíveis e partir de análises in loco, todos os
aspectos físicos da edificação, atentando para níveis, materiais utilizados, características
dos sistemas construtivos e estruturas de vedação.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS

A realização da presente experiência evidenciou a contribuição positiva da tecno-


logia BIM em atividades inerentes à preservação do patrimônio arquitetônico. Viu-se
através desse método que é possível a elaboração de uma base de dados digital com
conteúdos gráficos (figura 03) eficazes para a documentação efetiva e fidedigna das
edificações históricas.

Pode-se perceber que esse tipo de plataforma é adequada para a modelagem (figura
04) da tipologia estudada, projetada com programa simples e linhas gerais da geometria
em estilo art déco, assim foi possível desenvolver um fluxo de trabalho coerente, sem
retrabalhos ou necessidade de recorrer a outros métodos para elaboração do protótipo,

556
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

além disso, foi possível observar que esse produto mostra-se eficaz para a ampliação de
estudos e ensaios em processos de intervenção e restauro.

Figura 04: perspectiva da modelagem BIM. Fonte: elaborado pelo autor


O experimento demonstrou a capacidade que o software tem de possibilitar a
especificação de todas as características arquitetônicas do edifício, incluindo as geome-
trias e formas presentes em portas e janelas (figura 05), evidenciando o seu potencial
em representar de forma fidedigna e com elevado nível de detalhamento e precisão, tal
fator pode refletir-se positivamente na academia ao permitir que estudantes tenham
um maior contato e uma melhor observação dos sistemas construtivos e formas estéti-
cas de estilos passados, unindo em uma mesma disciplina o estudo histórico em uma
análise projetual.

Figura 05: detalhamento de esquadrias. Fonte: elaborado pelo autor

557
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A elaboração de tabelas de quantitativo (figura 05) é outra potencialidade que a


ferramenta pode oferecer, para tanto é indispensável a configuração de todas as entida-
des do projeto através da especificação de todos os materiais construtivos presentes na
edificação. Desse modo o documento gerado será eficaz às atividades de conservação e
restauro possibilitando de maneira mais clara a elaboração de orçamentos, o que é de
extrema necessidade para as entidades que lidam com a gestão do patrimônio arqui-
tetônico das cidades.

Figura 05: tabela de quantitativos. Fonte: elaborado pelo autor

Além disso, através da configuração de templates, o software é capaz de receber e


armazenar arquivos documentais como fotos e textos o que é extremamente eficaz para
as atividades de preservação visto que elas exigem a catalogação de dados históricos
ou de levantamentos dos estados de conservação das edificações protegidas. Tal fator
evidencia a capacidade dessa aplicação de gerar inventários digitais, onde o arquivo
central com todas as informações acerca do bem, comporta-se como uma ficha eletrô-
nica do patrimônio.

558
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 06: registro imagético e textual. Fonte: elaborado pelo autor

Os desafios e trabalhos futuros a serem desenvolvidos são relativos à definição de


tipo de LOD adequado à necessidade do edifício existente e a utilização da plataforma
BIM pra gerar geometrias mais complexas. Além disso, um possível desdobramento da
pesquisa é relacionado à elaboração de modelo 4D assente nas tecnologias de Realidade
Aumentada resultando em interfaces gráficas compatíveis com sistemas web e disposi-
tivos que garantem uma maior interação com esse tipo de mídia digital, contribuindo
assim para a utilização desse conteúdo em atividades educativas e de disseminação do
patrimônio o que pode contribuir de maneira efetiva para aumentar a valorização e
reconhecimento da herança cultural.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa pesquisa explorou as potencialidades da plataforma BIM para a preservação do


patrimônio, onde foi possível observar inicialmente através de pesquisas bibliográficas
um aumento contínuo de trabalhos tratando sobre a questão da salvaguarda dos bens
históricos através de técnicas de modelagem tridimensional, com o objetivo de garantir
a proteção desse legado contra ameaças diversas.
Através do experimento, procedimento que realizou a modelagem BIM da Estação
Ferroviária de Patos, foi possível enxergar a capacidade que essa tecnologia tem de aper-
feiçoar e tornar mais eficaz os processos de documentação, conservação e difusão dos

559
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

edifícios históricos. Assim, o estudo possibilitou chegar às seguintes observações sobre


futuros possíveis para a adoção do BIM na salvaguarda do patrimônio arquitetônico:
1. Elaboração de inventários digitais, que contenham dados tangíveis e intan-
gíveis de modo que contribua para a documentação eficaz;
2. Análises de desempenho e orçamentárias, através da investigação dos materiais
e da extração automática de quantitativos, o que auxiliará em atividades de
conservação e intervenção;
3. Difusão da herança patrimonial através da integração com tecnologias 4D, o
que garantirá uma maior acessibilidade aos bens históricos, que poderá ser
visitado virtualmente por estudantes e outras pessoas interessadas;
Portanto, pode-se observar de maneira geral que a adoção das tecnologias na preser-
vação do patrimônio arquitetônico é uma estratégia necessária por garantir o aumento
da eficiência nos trabalhos de manutenção dos edifícios construídos.

560
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

International
Journal of Architectural Research: ArchNet-IJAR, [s.l.], v. 11, n. 3, p.28-41, 22 nov.
2017. Emerald. http://dx.doi.org/10.26687/archnet-ijar.v11i3.1404. Disponível em:
<https://archnet.org/collections/34>. Acesso em: 14 fev. 2020.

AMORIM, Arivaldo Leão de. DOCUMENTAÇÃO DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO


DO ESTADO DA BAHIA COM TECNOLOGIAS DIGITAIS.In:
Pesquisas e Projetos Rumo à Educação Patrimonial, São Paulo, Anais…. 04 nov.
2008. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/275967781_
DOCUMENTACAO_DO_PATRIMONIO_ARQUITETONICO_DO_ESTADO_DA_BAHIA_COM_
TECNOLOGIAS_DIGITAIS>. Acesso em: 15 fev. 2020.

ARAUJO, Ana Paula Ribeiro de. DIGITAL HERITAGE: A APLICAÇÃO DAS TECNOLOGIAS
DIGITAIS DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO – TICS PARA A DOCUMENTAÇÃO DO

, Anais…
Belo Horizonte (MG) UFMG, 2018. Disponível em: <https//www.even3.com.
br/anais/arqdoc/71648-DIGITAL-HERITAGE--A-APLICACAO-DAS-TECNOLOGIAS-
DIGITAIS-DE-INFORMACAO-E-COMUNICACAO--TICS-PARA-A-DOCUMENTACAO-
DO-P>. Acesso em: 14/02/2020.

Ibero-americano Arquitetura e Documentação, Anais... Belo Horizonte(MG)


UFMG, 2017. Disponível em: <https//www.even3.com.br/anais/arqdoc/70935-

ARQUITETO-1962-1985>. Acesso em: 16 fev. 2020.

CANUTO, Cristiane; SALGADO, Monica. MODELAGEM DA INFORMAÇÃO DA

NACIONAL DE TECNOLOGIA DO AMBIENTE CONSTRUÍDO, Anais… 16, 2016, São Paulo.


Anais...São Paulo: Usp, 2016. p. 4864 - 4875 .

CANUTO, Cristiane Lopes; MOURA, Larissa Ribeiro de; SALGADO, Mônica Santos.

Parc Pesquisa em Arquitetura e Construção, Rio de


Janeiro, v. 7, n. 4, p.252-264, 31 dez. 2016. Universidade Estadual de Campinas.

561
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Disponível em: <https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/parc/article/


view/8647456>. Acesso em: 19 fev. 2020.

CHECA, Zaira Joanna Peinado.

). 2014. 291 f. Tese (Doutorado) - Curso

CÁRDENAS, María Isabel Zapata et al. GENERACIÓN DE CONTENIDOS DIGITALES

Anagramas:
Rumbos y Sentidos de la Comunicación, Medellín, v. 13, n. 13, p.145-166, dez. 2014.
Semestral. Disponível em: <http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=491548259009>
Acesso em: 14 fev. 2020.

“THE BRIDE OF THE DESERT”. In: PROCEEDINGS OF 8 INTERNATIONAL CONGRESS

Anais...
320. Disponível em: <http://ocs.editorial.upv.es/index.php/arqueologica20/
arqueologica8/paper/view/3540>. Acesso em: 14 fev. 2020.

GRASSI, Matheus Dantas. Museu do Sertão: Projeto de intervenção para a estação


ferroviária de Patos/PB. 2018. 1 v. TCC (Graduação) - Curso de Arquitetura e
Urbanismo, Centro Universitário de Patos, Patos, 2018.

The Riba Journal. Reino Unido,


6 jun. 2018. [s.p]. Disponível em: <https://www.ribaj.com/intelligence/historic-
buildings-bim-building-modelling-information-bim-4-heritage>. Acesso em: 17
fev. 2020.

LUCENA, Pedro Gomes de.


. 2018. 1 v. TCC (Graduação) -
Curso de Arquitetura e Urbanismo, Centro Universitário de Patos, Patos, 2018.

DO PATRIMÔNIO ARQUITETÔNICO DE PATOS, PARAÍBA. In: ENCONTRO DA


ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA
E URBANISMO, 5, 2018, Salvador. Anais.…Salvador: UFBA, 2018. p. 6160 - 6184.

562
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Disponível em: <https://www.enanparq2018.com/copia-resultados>. Acesso em:


14 fev. 2020.

LUCENA, et al. MEMÓRIA E CIDADE: dinâmicas urbanas e o processo de destruição


do patrimônio arquitetônico do Centro de Patos – PB. In: Simpósio Nacional
sobre Pequenas Cidades, 5, 2016, Ituiutaba. Anais.… Ituiutaba: UFU, 2016. p. 1210 -
1229. Disponível em: <https://www.sinapeq.com.br/ >. Acesso em: 14 fev. 2020.

e Documentação Digital da Arquitetura Moderna em Fortaleza. In: ENCONTRO


BRASILEIRO DE TECNOLOGIA DE INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO NA CONSTRUÇÃO,
7., 2015, Recife. Anais... Porto Alegre: ANTAC, 2015.

IN NAPLES. Isprs - International Archives Of The Photogrammetry, Remote


Sensing And Spatial Information Sciences, [s.l.], v. -2/11, p.961-968, 5 maio 2019.
Copernicus GmbH. http://dx.doi.org/10.5194/isprs-archives-xlii-2-w11-961-2019 .

563
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

MODOS DE SIGNIFICAR O
PATRIMÔNIO: AMEAÇA À
PERMANÊNCIA OPERÁRIA

1990)

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

CRUVINEL, Aline Cristina Fortunato


Mestranda em Urbanismo; PROURB/UFRJ
e-mail: aline.cruvinel@hotmail.com

564
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Com o objetivo de apresentar novos caminhos para a formulação de um patrimônio operário,
o artigo em questão traz narrativas presentes na memória operária do Rio de Janeiro que indi-
cam como a classe trabalhadora atribui significados ao espaço urbano de modo atrelado à sua
luta pela permanência na cidade. Investigadas em pesquisas acadêmicas ou reconstituídas a
partir de documentos históricos e/ou em jornais da época, as narrativas trazem a experiência
dos operários da América Fabril nas unidades de Magé, de Vila Isabel e do Jardim Botânico,
especialmente na década de 1980, período de encerramento das atividades da companhia. Além
delas, são relembradas outras experiências de trabalhadores na cidade, como a demolição em
1973 da Vila Rui Barbosa, no centro, e a demolição parcial do bairro do Catumbi, em 1980. Tais
experiências, conduzidas a partir da metodologia adotada pelo materialismo histórico, cons-
tituem uma leitura integrada do processo de ocupação do Rio de Janeiro ao logo do século XX,
demonstrando que existe uma memória da classe trabalhadora que ultrapassa os limites até
então definidos pelo patrimônio industrial.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio operário. patrimônio industrial. memória operária. classe


trabalhadora.

A BSTRACT
In order to present new paths for the formulation of a working-class heritage, this article brings
narratives from the working-class memory of Rio de Janeiro that indicate how workers attribute
meanings to the urban space in a way linked to its struggle for staying in the city. Investigated
in academic research or reconstructed from historical documents and/or old newspapers, the
narratives bring the experience of the workers of América Fabril units located in Magé, Vila
Isabel, especially in the 1980s, when the company was closed. Besides them, other experiences
of workers in the city are recalled, such as the demolition in 1973 of Vila Rui Barbosa, in the city
center, and the partial demolition of the neighborhood of Catumbi, in 1980. Such experiences,
conducted from the methodology adopted by historical materialism, constitute an integrated
reading of the occupation process in Rio de Janeiro throughout the 20th century. It demonstrates
a working-class memory that goes beyond the limits previously defined by industrial heritage.

KEYWORDS: working-class heritage. Industrial heritage. working-class memory. working class.

RESUMEN
Con el objetivo de presentar nuevos caminos en la formulación de un patrimonio obrero, el

565
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

artículo en cuestión trae narraciones presentes en la memoria obrera de Rio de Janeiro que
indican como la clase trabajadora atribuye significados al espacio urbano, de una manera
vinculada a su lucha por la permanencia en la ciudad. Buscadas en investigaciones académicas
o reconstruidas a partir de documentos históricos y/o periódicos de la época, las narrativas
traen la experiencia de los operarios de América Fabril en las unidades de Magé, Vila Isabel y
Jardim Botânico, especialmente en la década de 1980, periodo del cierre de las actividades de
la compañía. Además de ellas, son recordadas otras experiencias de trabajadores en la ciudad,
como la demolición en 1973 de la Vila Rui Barbosa en el centro, y la demolición parcial del barrio
Catumbi, en 1980. Tales experiencias conducidas a partir de la metodología adoptada por el
materialismo histórico, constituyen una lectura integrada del proceso de ocupación de Rio de
Janeiro a lo largo del siglo XX, lo que demuestra que existe una memoria de la clase trabajadora
que supera los límites hasta entonces definidos por el patrimonio industrial.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio obrero. patrimonio industrial. memoria obrera. clase trabajadora.

INTRODUÇÃO

As décadas que separam o operário têxtil do final do século XIX e o trabalhador do


século XXI são atravessadas por um emaranhado de acontecimentos que, vistos superfi-
cialmente, podem parecer desconexos e pontuais: a crescente construção de conjuntos
habitacionais na zona oeste do Rio de Janeiro a partir de 1940, a demolição da Fábrica
Carioca na zona sul da cidade durante a década de 60, a destruição de parte de um bairro
central, o Catumbi, nos anos 80, o possível despejo em uma vila operária no bairro do
Jardim Botânico na mesma década, dentre outros. Tais acontecimentos, no entanto,
quando examinados conjuntamente, indicam padrões do processo de gestão do Rio de
Janeiro que definem e, por vezes abalam, as condições de vida do trabalhador e o modo
como este atribui significados ao espaço. Assim, em uma busca pela formulação de um
patrimônio operário que não esteja via de regra voltado para a preservação de conjuntos
industriais destinados à instalação de shoppings e hipermercados, ou à manutenção
de chaminés em bairros arrasados, este artigo examina cenários da memória operária
que demonstram como o espaço é motivo de luta e, ao mesmo tempo, instrumento de
resistência da classe trabalhadora, adquirindo sentidos que vão além de sua arquitetura.
Esses cenários, por sua vez, são encontrados em documentos históricos disponibilizados
pelo Arquivo Nacional, em jornais da época e em pesquisas desenvolvidas nas últimas
décadas em instituições de ensino do Rio de Janeiro, e são aqui situados conforme o
processo de urbanização da cidade.

566
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

De modo geral, o esforço acadêmico dos pesquisadores citados – bem como de


outros não inclusos neste artigo – que permitiu criar um expressivo arcabouço de
registros e reflexões sobre a memória de uma classe, também demonstrou que, em vez
de uma narrativa única, finita e exaurível, a experiência do trabalhador no espaço insere
cada vez mais simbologias que traduzem as próprias condições de vida e trabalho às
quais está submetido.
Foi, por exemplo, diante de um trabalho coletivo regrado, de intenso convívio, com
moradia e, por vezes, infraestrutura fornecida pelo patrão – como era possível observar
nas atividades das fábricas têxteis fluminenses do início do século XX – que se estabe-
leceu um cenário propício para a popularização do futebol[1]. Do mesmo modo, foi em
um período em que o Estado tomou para si o projeto de desenvolvimento econômico
nacional, com bases na industrialização, no planejamento e na expansão urbana, que
novas formas de morar foram oferecidas aos trabalhadores, materializadas nos conjuntos
habitacionais dos Institutos de Aposentadoria e Pensões[2]. É, por sua vez, em um contexto
de estímulo ao consumo, especialmente de produtos de redes estrangeiras, aumento da
violência urbana – e do medo de circular nas cidades – e da consequente privatização de
espaços públicos que o Shopping Center hoje aparece como uma alternativa de descanso
e lazer aos olhos do trabalhador, sendo um dos usos mais frequentes adotados para as
antigas fábricas tombadas como patrimônio industrial[3]. Nos três casos, e em outros

[1] A atividade fabril, de modo geral, foi decisiva para a popularização do futebol no Brasil, uma
vez que diversos times do país foram originados por grupos de operários, não raro estimulados
pelos patrões. O Bangu Atlético Clube, por exemplo, foi fundado através da Fábrica de Bangu,
assim como o America Football Clube, na Grande Tijuca, onde havia grande concentração de
fábricas e operários. Há também casos de clubes já extintos nessa mesma localidade, como

Jorge dos. Um “clube da fábrica” e um “clube de fábrica”: o futebol nos arrabaldes de Bangu
e Andaraí (1910). Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte – v.12, n. 12, 2013, p. 100-117.

[2] A partir da década de 1940 a produção de moradia operária no Rio de Janeiro, até então
explorada pela iniciativa privada, passa a ganhar destaque nas políticas governamentais, dando
início a um período de intensa produção de conjuntos habitacionais através dos Institutos
de Aposentadoria e Pensões, especialmente nos subúrbios da cidade, e de modo vinculado
ao processo de remoção de favelas. Para saber mais: BOTAS, Nilce Cristina Aravecchia. Entre o
progresso técnico e a ordem política: arquitetura e urbanismo na ação habitacional do IAPI.
Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) – FAUUSP. São Paulo. 2011.

[3] No Rio de Janeiro, por exemplo, as antigas fábricas Bangu e Nova América foram trans-
formadas em shopping

567
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tantos que o capitalismo é capaz de projetar, as referências de memória e os recursos


disponíveis na cidade, mesmo que entregues de modo precarizado e em escassez, não
raro retirados à força pela iniciativa privada ou pelo Estado, como veremos mais à frente,
ainda são os meios de sobrevivência e os espaços simbólicos da classe trabalhadora.

De modo geral, a tentativa de definição de uma memória operária carioca cos-


tumeiramente acompanha a história do desenvolvimento da indústria têxtil em solo
fluminense, por isso é por ela que esta narrativa começa. Os primeiros tombamentos
relacionados à memória operária no estado do Rio de Janeiro, com processos iniciados
na década de 80[4], se referem a fábricas que tiveram, em grande parte, suas instalações
inauguradas ainda no século XIX ou nas primeiras décadas do século XX, como, por
exemplo: a Fábrica de Bangu, com processo de tombamento iniciado em 1983; o Conjunto
Fabril da Companhia Têxtil Brasil-Industrial, em Paracambi, com processo de 1985; a
Chácara do Algodão, tombada em 1987; dentre outros.
De fato, sendo na bibliografia consultada os mais recordados exemplos de memória
operária do Rio de Janeiro, esses complexos fabris, construídos no final do século XIX,
apresentam lógicas de implantação e de ação como vetores de urbanização similares,
tendo sido propulsores da formação de núcleos de trabalhadores ainda naquele século.
O seu registro, que elucida um momento de importante transição social e espacial,
em que a abolição da escravidão e o parcelamento de terras inserem novas dinâmicas
de trabalho e de uso da terra, constrói o que hoje mais simbolicamente é tido como a
memória operária fluminense. São fábricas em sua maioria iniciadas em pontos isolados,
próximos a encostas e com acesso à água, responsáveis pelo desenvolvimento de núcleos
urbanos inteiros.
Na cidade do Rio de Janeiro, a formação do bairro de Bangu (Figura 1) se mostraria
como um dos casos mais expressivos de desenvolvimento urbano diretamente atre-
lado à atividade fabril, seguindo a mesma dinâmica apresentada nos exemplos
anteriores, em que todo um conjunto de elementos que abarcam diferentes

comum para o patrimônio industrial.

[4] Cabe destacar que o início de tombamentos de conjuntos fabris no estado do Rio de
Janeiro é anterior aos anos 2000, período em que o patrimônio industrial passa a ser difundido
como categoria para valoração cultural de bens.

568
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

aspectos do cotidiano – moradia, educação, religiosidade, consumo, lazer,


etc. – passa a garantir a reprodução social dos trabalhadores.

Vista de Bangu, em 18-12-1940. Fonte: Escola de Aeronáutica do Exército, disponível no Acervo

brasiliana/handle/20.500.12156.1/7463>

No entanto, lembrada como um saudoso tempo que não volta mais, o período de
influência das companhias na vida do trabalhador e na gestão do espaço urbano não
remonta apenas às primeiras décadas do século XX ou ao auge de suas atividades, mas
se faz presente quase um século depois, mesmo após o fechamento de seus fábricas. É o
caso da América Fabril, responsável por fábricas instaladas em Magé, como a Fábrica Pau
Grande e a Fábrica Sant’Anna, e no Rio de Janeiro, como: a Fábrica Cruzeiro, no Andaraí;
a Carioca, no Jardim Botânico; a Mavilis, no Caju; e a Deodoro, em bairro homônimo.
A década de 1980 – momento em que a Companhia encerra definitivamente suas
atividades, depois de ter demolido a Fábrica Carioca, em 1962 – elucida essa influên-
cia. Com efeito, como demonstram os documentos de negociação de encerramento da
Companhia[5], após nove anos de atividades fabris custeadas através de financiamento

[5] Dados obtidos na “Proposta de encerramento das atividades da Companhia America Fabril”,
produzido em 1981 pelo Banco Central do Brasil (BACEN). Para mais informações, consultar:

569
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

público não pago, e conforme determinações da Comissão Especial de Desestatização[6],


foi determinada a venda das propriedades pertencentes à empresa, impactando direta-
mente na vida de seus operários. No caso de Pau Grande, os documentos apontam uma
“carência absoluta de alternativas de emprego em uma comunidade de mais de 6.000
pessoas vivendo na dependência exclusiva da fábrica ali situada”[7].

Um operário retira parte do volume de tecidos destinado aos trabalhadores da América Fabril,

a anotação: “Fechada a América Fabril, coube a cada operário, com salário em atraso, essa
montanha de tecidos de pano que eles teceram até longas noites de serão.”. Fonte: Arquivo
Nacional [ Código de Referência: BR_RJANRIO_PH_0_FOT_04469_008]

ARQUIVO NACIONAL (BRASIL). Serviço Nacional de Informações. Proposta de encerramento


das atividades da Companhia America Fabril. BR DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.81020298. Rio de
Janeiro, 01-10-1981.

[6] A Comissão Especial de Desestatização foi criada a partir do Decreto nº 86.215 de 15/07/1981,
com o intuito de estabelecer “o fortalecimento do sistema de livre empresa, a consolidação da
grande empresa privada nacional, a contenção da criação indiscriminada de empresas estatais
e, quando recomendável, a transferência do seu controle para o setor privado”, conforme texto
-
zação (PND), em 1990, e o consequente processo de privatização desenvolvido nessa década.

[7] ARQUIVO NACIONAL (BRASIL). Serviço Nacional de Informações. Proposta de encerramento


das atividades da Companhia America Fabril. BR DFANBSB V8.MIC, GNC.AAA.81020298. Rio de
Janeiro: 01-10-1981, p. 13.

570
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A Fábrica Cruzeiro, por sua vez, localizada na Rua Barão de Mesquita e parcialmente
desativada em 1965[8], teve seu terreno colocado à venda logo após a divulgação da lista de
empresas sob controle estatal que poderiam ser privatizadas. Dessa forma, o emprego e a
moradia de operários eram colocados em risco, em um plano traçado pelos proprietários
da companhia e interpretado pelo Banco Central como uma tentativa de “desativação
paulatina”. Ainda sobre esse último caso, em esclarecimento sobre o destino das casas
do Andaraí, o Banco Central define como estratégia “a preferência aos empregados para
a aquisição das vilas operárias em que residem mediante transação dos seus direitos, inde-
nizáveis” (ARQUIVO NACIONAL, 1981, p. 68, grifo nosso). Na década de 80, seria inaugurado
em parte dos terrenos da fábrica adquiridos pelo Estado um conjunto habitacional des-
tinado a famílias de classe média, popularmente conhecido como Tijolinho, em alusão
à fachada de tijolos aparentes de seus edifícios que remeteria à arquitetura fabril, ainda
que, das construções da Fábrica Cruzeiro, só tenha restado a chaminé.
Além disso, o fechamento da Companhia reacenderia também outra discussão: a
posse da Chácara do Algodão. Após recorrer judicialmente à decisão federal de desapro-
priar[9] em 1964 a antiga vila pertencente à América Fabril em prol de seus moradores,
ex-operários da Fábrica Carioca, a Companhia ganha a causa em 1986. De fato, no momento
de seu fechamento, uma das pendências citadas no relatório se refere à posse da área
conhecida como Chácara do Algodão, no Jardim Botânico, adquirida em 1920, onde de
1886 a 1962 a Fábrica Carioca esteve em atividade. Na verdade, em 1986 o que estava
em disputa era o que havia restado de todo o complexo fabril ali presente até o início
dos anos 60, demolido sob as ordens da própria Companhia, e que deu lugar a novos
empreendimentos, como os estúdios da Rede Globo. O antigo operário Dorival Malagrice,
em entrevista cedida em 1990 a Claudio Antonio S. L. Carlos, arquiteto do Departamento
Geral do Patrimônio Cultural da Cidade do Rio de Janeiro que participou do processo
de tombamento da vila operária, relata a transformação do local onde antes ficava o
Clube Musical da fábrica:
Aquilo, quando começaram a lotear os terrenos ali, o clube já estava
todo estragado, não existia mais quem cuidasse daquilo, nem diretoria,

[8] Ainda segundo o documento, a fábrica teve o setor de tecelagem desativado em 1964-65,
estando o setor de bordados ainda em atividade em 1981, com 84 operários, ocupando aproxi-
madamente 3000 m² dos 12380 m² disponíveis (ARQUIVO NACIONAL, 1981, p. 23).

[9] A desapropriação se deve à mobilização dos moradores, que resultou na Lei Federal 4106
e no Decreto 53.977/64, que garantiram a posse aos operários até 1986, momento em que, após
o ganho da causa pela Companhia, a disputa foi retomada.

571
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

roubaram tudo, rapaz! Quando começaram a demolir a fábrica aquilo


ficou jogado pra lá. Depois derrubaram tudo e foi loteado.
E a TV Globo tomou conta daquilo.[10]
Em 1986, então, o mecanismo utilizado pela Associação de Moradores e Amigos da
Chácara do Algodão para reivindicar a permanência dos antigos operários e familiares
no local foi o pedido de tombamento da vila operária, que resultaria na proteção das 46
casas restantes, dentre as 132 unidades que um dia ali existiram (CARLOS, 1992, p. 57). O
tombamento, registrado no processo nº 12/1351/86, se respaldou sobretudo na tipologia
arquitetônica e no fato de os moradores da vila, em sua maioria, serem idosos e ex-ope-
rários, entrando em choque com os objetivos da Companhia, que pretendia negociar o
terreno com o capital imobiliário (CARLOS, 1992, p. 70). Em documento enviado à Secre-
taria Municipal de Cultura em 1987, a Companhia pede, então, o destombamento da
vila, usando como justificativa a descaracterização dos imóveis e supostas ilegalidades
no processo. Como destaca Carlos, em resposta à Companhia, em 02-10-87, a diretoria
do Departamento Geral de Patrimônio Cultural (DGPC) reitera o tombamento, alegando
que “[…] não só de Napoleão e as pirâmides se faz a História – a vida cotidiana, as lutas
aparentemente inglórias de alguns teimosos pela liberdade de pensamento e melho-
res condições de vida fazem o mundo avançar mais, às vezes, do que os atos de grande
impacto”(DGPC apud CARLOS, 1992, p. 71).
Assim, o DGPC ainda que fundamentado nas características técnicas de uma arqui-
tetura que remonta à passagem do século XX para o XXI, mais especificamente de uma
vila projetada e construída pela antiga Companhia de Saneamento, passa também a
contemplar a memória operária em seu discurso. Mas, se não fosse a tipologia arquitetô-
nica de suas residências, será que os trabalhadores teriam sua permanência garantida?
Como já é sabido, não é de hoje que a parceria entre o Estado e a iniciativa privada
interfere diretamente nos meios e modos de permanência do trabalhador no espaço
urbano, mantendo-o onde convém, e até quando necessário, à produção capitalista. As
casas remanescentes no Jardim Botânico são um exemplo disso. Elas se originam da
Vila Arthur Sauer, construída em 1891 com 89 casas para operários e 22 cômodos para
solteiros (CARLOS, 1992, p. 57) e das unidades construídas nas décadas seguintes pela

[10] Trecho da entrevista de Dorival Malagrice, morador da vila operária desde seu nascimento
e ex-operário da Fábrica Carioca, onde começou a trabalhar aos 9 anos. Disponível em: CAR-
LOS, Claudio A. S. L. Chácara do Algodão – A Permanência da Vila. In: Cadernos de Patrimônio
Cultural/Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral do Patrimônio Cultural, Rio de
Janeiro: SMCT, 1992, v. 1, n. 1, pp. 55-76.

572
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

fábrica. Assim como a vila do Jardim Botânico, a Companhia de Saneamento construiu:


no centro, a Vila Rui Barbosa; em Vila Isabel, a Vila Maxwell e a Vila Senador Soares; e
no Méier, a Vila Sampaio. Também pretendia construir vilas em Botafogo, no Morro de
Santo Antônio, na Mangueira, em São Francisco Xavier, em Rocha e no Engenho Novo,
projetos que não foram concretizados devido à rescisão do contrato com o governo, em
1895 (GENNARI, 2017, p. 147).
De fato, a construção de moradias pela iniciativa privada no final do século XIX,
apesar de muitas vezes interpretada como uma benevolência por parte de seus proprie-
tários, em especial quando estes eram donos de fábricas e aquelas eram destinadas a
seus operários, resulta de uma série de incentivos governamentais que, de modo geral,
visavam a modernização, “o combate à tipologia do cortiço e a restrição da construção
de casas populares ou para trabalhadores em determinadas áreas na cidade” (GENNARI,
2017, p. 139). Tais incentivos, que compreendiam desde a isenção de impostos para
importação de materiais até a concessão com o benefício da cobrança de aluguéis, esti-
mularam uma dinâmica de produção habitacional para a classe trabalhadora que só se
centralizaria no Estado a partir da década de 1940, com os Institutos de Aposentadoria,
mantendo, ainda, um procedimento segregador, segundo os novos limites da periferia
urbana. Tal dinâmica, disseminada “por um grupo que via nesse sistema de concessões
a possibilidade de ter acesso a terras valorizadas e o direito de explorá-las garantido
por lei” (GENNARI, 2017, p. 148), quase um século depois permitiria colocar em questão
o direito de posse de ao menos cinco gerações, dentre operários e familiares, como
aconteceu na Chácara do Algodão.
Se, nesse caso, Seu Dorival pôde, com mais 34 habitantes da vila, adquirir da Com-
panhia seu direito de posse no final da década de 80, assim como posteriormente outros
moradores conquistaram coletivamente o usucapião de seus imóveis (CARLOS, 1992, p.
73), alguns grupos que residiam na zona sul, ou mesmo em outras áreas da cidade, não
tiveram a mesma “sorte”.

A REMOÇÃO DE TRABALHADORES NA ZONA SUL E NO CENTRO DA CIDADE

O despejo de antigos trabalhadores, então residentes de áreas em valorização, ape-


sar de ter sido evitado na Chácara do Algodão durante a década de 1960, não conseguiu
ser freado na Vila Rui Barbosa. Localizadas entre as ruas do Senado, dos Inválidos e a
Avenida Henrique Valadares, as 500 casas da vila foram demolidas pela SURSAN em 1973
para a construção de um conjunto de edifícios, o conjunto Adolfo Basbaum, com blocos
que teriam até 18 andares, como indicam os jornais da época. A proposta de verticaliza-
ção, supostamente sustentada pelo governo com base no crescimento demográfico da

573
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

cidade, seria colocada em prática pela Construtora Erg Ltda. e financiada pela COPEG[11].
A despeito desse projeto, entretanto, no terreno da antiga vila encontra-se atualmente
o Centro Empresarial Senado, composto por duas torres envidraçadas, interligadas
por passarelas. Antes da sua construção, em 2011, a área passou anos como um amplo
terreno baldio no centro da cidade[12], o que então seria usado como justificativa para o
empreendimento, uma vez que, segundo o arquiteto Edo Rocha, autor do projeto, “uma
das preocupações foi a transformação daquela área totalmente decadente, que em tese
não tinha um futuro em termos de urbanismo”[13] (grifo nosso).
Em relação às favelas da zona sul, se nas décadas de 60 e 70 seria colocado em prá-
tica de forma sistêmica o objetivo de remover os trabalhadores das áreas valorizadas da
cidade, deslocando-os para áreas distantes do centro, dos locais em que haviam traçado
sua trajetória de vida até então e onde muitas vezes continuavam a trabalhar, as décadas
antecedentes teriam sido tão ou mais penosas. Dessa maneira, a favela, solução habi-
tacional tida como provisória, mas que se perpetuou ao longo do século XX diante das
condições da exploração do trabalhador, assim como a luta deste para sua permanência
no espaço urbano, configura-se também como parte da memória da classe trabalhadora.
O projeto que propunha a mudança de favelados para alojamentos provisórios, os
chamados Parques Proletários Provisórios, e posteriormente para conjuntos habitacio-
nais nos subúrbios cariocas, foi encaminhado em 1940, durante a gestão de Henrique
Dodsworth, pelo médico Victor Tavares de Moura, intitulado como “Esboço de um plano
de estudo e solução do problema das favelas do Rio de Janeiro”. Em 1970, 160 famílias
do Parque Proletário nº1, inaugurado em 1942 na Gávea, seriam transferidas para um
conjunto habitacional na Penha. Antes de serem transferidos para o Parque Proletário
da Gávea, seus primeiros moradores residiam nas favelas da Olaria, do Capinzal e do

[11] As informações foram obtidas no Jornal do Brasil que, além de dar detalhes do empre-
endimento que seria construído, traz relatos do cotidiano da vila segundo seus moradores.
Publicações consultadas: Centro perde vila bucólica e ganha prédios modernos. Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 12 jun. 1972, 1º Caderno, p. 5. Ou: Os últimos dias da vida quieta em casas de
vila. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 1º jul. 1973, 1º Caderno, p. 20.

[12] Isso pode ser constatado pelas imagens de satélite antigas do Google Maps, com registros
a partir de 2001, que demonstram o desuso do terreno até 2011, quando o centro empresarial
começa a ser construído.

[13] A fala do arquiteto foi consultada em matéria publicada na Revista Finestra, em 2013, que
descreve o projeto. GELINSKI, Gilmara. Átrio une torres e cria prisma de vidro. Revista FINESTRA,
2013, v. 79, mar-abr., pp. 34-45.

574
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Largo da Memória – esta última, parte da Praia do Pinto (BITTENCOURT, 2012, p. 27). Não
apenas esta remoção, que tinha como justificativa a construção do Planetário da Cidade
em área ocupada por habitações do Parque, mas também outras foram realizadas na
zona sul da cidade nesse mesmo período.

Mudança de residentes do Parque Proletário da Gávea. Fonte: Fotógrafo Paulo Fonseca, em


07-04-1970, para o Jornal Correio da Manhã. Disponível no Arquivo Nacional [Código de Refe-
rência: BR RJANRIO PH.0.FOT.3536].

Por último, vale lembrar que na área central da cidade, que já havia sido palco de
reformas urbanas nas primeiras décadas do século XXI, também aconteceria ao longo dos
anos 70 a implementação de parte do Plano Doxiadis, resultando na demolição parcial
do bairro do Catumbi para a construção da Linha Lilás, que, por sua vez, conectaria o
centro e a zona sul através do Túnel Santa Bárbara. A obra, mais uma vez alicerçada em
um projeto de modernização que declarava trazer benefícios à população, seria, então,
responsável pelo desaparecimento de quadras inteiras de um bairro operário constru-
ído em área valorizada e que, a despeito do que era alegado entre as justificativas para
a renovação urbana, apresentava dinâmica e identidade locais consolidadas.

575
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Por isso, e como demonstra o estudo desenvolvido por Carlos N. F. Dos Santos e Arno
Vogel em 1980, não foi sem a resistência dos moradores, centralizada na Associação de
Assistência e Orientação aos Moradores do Catumbi, que o projeto se concretizou. Em meio
ao levantamento etnográfico e ao caráter descritivo por vezes bucólico resultantes desse
estudo, o impulso da resistência – que encontra sua razão de ser no cotidiano registrado
pelos pesquisadores através das categorias elaboradas em torno da casa e da rua – se
deve à busca por uma permanência que só poderia ser concretizada espacialmente.

Faixas de protesto no Catumbi. Fonte: Fotógrafo França para o Correio da Manhã, em 28-01-
1967, disponível no Arquivo Nacional. [Código de referência: BR_RJANRIO_PH_0_FOT_00127_
d0059de0105-1]

576
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar a memória operária e o patrimônio para além dos limites que costumei-

577
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Proposta de
encerramento das atividades da Companhia America Fabril
GNC.AAA.81020298. Rio de Janeiro: 01-10-1981.

BITTENCOURT, Danielle L.“O morro é do povo“:


mobilização em favelas cariocas. Dissertação (Mestrado em História Social) – UFF.
Niterói. 2012.

BOTAS, Nilce Cristina Aravecchia. Entre o progresso técnico e a ordem política:


arquitetura e urbanismo na ação habitacional do IAPI. Tese (Doutorado em
Planejamento Urbano e Regional) – FAUUSP. São Paulo. 2011.

CARLOS, Claudio A. S. L. Chácara do Algodão In:


Cadernos de Patrimônio Cultural/Secretaria Municipal de Cultura, Departamento
Geral do Patrimônio Cultural, Rio de Janeiro: SMCT, 1992, v. 1, n. 1

GELINSKI, Gilmara. Átrio une torres e cria prisma de vidro. Revista FINESTRA, 2013,
v. 79, mar-abr., pp. 34-45.

GENNARI, Luciana A. Considerações sobre o papel da produção habitacional


privada para trabalhadores na estruturação da área urbana do Rio de Janeiro
O Rio de Janeiro e seu
desenvolvimento urbano: o papel do setor municipal do urbanismo. Rio De
Janeiro: Letra Capital, 2017.

SANTOS JUNIOR, Nei Jorge dos. Um “clube da fábrica” e um “clube de fábrica”: o


futebol nos arrabaldes de Bangu e Andaraí (1910). Revista Mackenzie de Educação
Física e Esporte – v.12, n. 12, 2013, p. 100-117.

Notícias de Jornais:

Jornal do Brasil, Rio de

Os últimos dias da vida quieta em casas de vila. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro,

578
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

TREFT, Renan Alex


Mestrando; Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU USP)
renan.treft@usp.br

PINHEIRO, Maria Lucia Bressan


Livre docente;Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU USP)
mlbp@usp.b

579
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Este trabalho aborda as intervenções realizadas em duas igrejas católicas localizadas no interior
do estado de São Paulo (Brasil), construídas em estilo neocolonial: a Catedral Nossa Senhora
das Dores de Limeira e a Igreja Santa Gertrudes de Cosmópolis. A versão atual de ambos os
edifícios é de autoria do arquiteto Mario Penteado e data da década de 1950, culminando uma
trajetória construtiva conturbada, marcada pela constante escassez de recursos. Trata-se de
elementos fundamentais da história urbana regional, além de contribuir para a compreensão
da produção arquitetônica de meados do século XIX até meados do século XX no Brasil em
geral, e no estado de São Paulo em particular. Ações de embelezamento, reformas aleatórias e
a mudança nos espaços sagrados determinadas pelo Concilio Ecumênico Vaticano II (1964),
fizeram com que esses espaços sofressem, ao longo do tempo, mudanças substanciais em suas
estruturas e seus acabamentos. Nestes processos destacam-se ausência de estudos e políticas
públicas voltadas à preservação e à conservação do arcabouço construído. Ainda, nota-se o não
reconhecimento do bem como patrimônio, documento importante da história das respectivas
cidades, tanto por parte dos próprios cidadãos, como dos próprios profissionais arquitetos-ur-
banistas. A presente comunicação pretende contribuir para inserir esses edifícios em políticas
preservacionistas adequadas, capazes de reconhecer a sua importância material e simbólica
para suas respectivas cidades e seus habitantes.

PALAVRAS-CHAVE: arquitetura religiosa. neocolonial. preservação. cidades paulistas

A BSTRACT
This article comprehends the two interventions made in two catholic churchs placed in São
Paulo (Brazil), built in neocolonial style: the Cathedral of Nossa Senhora das Dores de Limeira
and the Church of Santa Gertrudes de Cosmópolis. The actual project of both buldings belongs
to the architect Mario Penteado and were finished around the 50th decade, mainly characterised
by the lack of resourses. These churches represent fundamental elements of the urban history;
moreover, they contribute to the comprehension of the architecture production developed
from the midlle of the nineteenth century until the midlle of the twentyth centuty, especially
in São Paulo. Actions of embellishment, random renovations and the change in sacred spaces
determined by the II Vatican Ecumenic Counsil (1964), resulted in substancial changes in those
structures and workmanships. About this process, we can emphasise the lack of studies and
public politics directed to the preservation and conservation of the buildings. Furthermore, we
can also highlight theier exclusion as a heritage and an important document of the cities history,
promoted by the citzens and architects. The present communication intends to contribute for
the insertion of those buindings in suitable preservation politics, capable of recognize theier

580
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

material and symbolic importance to the cities and citzens.

KEYWORDS: religious architecture. neocolonial. preservation. paulistas’ cities

RESUMEN
Este trabajo aborda las intervenciones realizadas en dos iglesias católicas, que se encuentran
ubicadas en el interior del estado de São Paulo (Brasil), construidas en estilo neocolonial: la
Catedral Nossa Senhora das Dores de Limeira y la Iglesia Santa Gertrudes de Cosmópolis. La
versión actual de ambos los edificios, es de autoría del arquitecto Mario Penteado y fecha de la
década de 1950, que culminó con una trayectoria constructiva problemática, que se caracteriza
por la constante escasez de recursos. Se Trata de los elementos esenciales de la historia urbana
regional, además de contribuir a la comprensión de la producción arquitectonica de mediados
del siglo XIX hasta mediados del siglo XX en Brasil en general, en el estado de São Paulo en par-
ticular. Acciones de embellecimiento, reformas aleatorias y el cambio en los espacios sagrados,
determinado por el Concilio Ecuménico Vaticano II (1964) han hecho con que estes espacios
sufrieran, al largo del tiempo, cambios sustanciales en sus estructuras y en sus acabados. En
estos procesos, se destacan la falta de estudios y políticas públicas orientadas a la conservación
y al mantenimiento de un marco construido. Todavía, se nota que el no reconocimiento de un
bien como patrimonio, un documento importante para la historia de las respectivas ciudades,
tanto por parte de los propios ciudadanos, como de los propios profesionales arquitectos-ur-
banistas. El objetivo de esta comunicación es contribuir a insertar estes edifícios en políticas
preservacionistas adecuadas, capaces de reconocer la importancia material y simbólica para
sus respectivas ciudades y a sus habitantes.

PALABRAS-CLAVE: arquitectura religiosa. Neocolonial. Conservacíon. ciudades paulistas

INTRODUÇÃO

No Brasil, o século XX é marcado por grandes transformações sociais, que resultarão


em mudanças paradigmáticas na arquitetura e no urbanismo. Na passagem do século XIX
para o XX irão ocorrer mudanças radicais e estruturais nas cidades e em seus edifícios,
devido ao rápido crescimento urbano, ao advento de novas tecnologias e ao emprego de
novos conceitos e estilos arquitetônicos. Destaca-se neste período o processo de demolição
e reconstrução de boa parte das igrejas das capitais do Estados, em particular a cidade
de São Paulo, devido à remodelação urbana e à construção de novos templos em estilos
mais condizentes com os novos padrões de modernidade e desenvolvimento.

581
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Dentre os novos estilos empregados, cabe destacar o Neocolonial, que teve sua
origem no Brasil a partir do movimento iniciado pelo engenheiro português Ricardo
Severo, que, na palestra intitulada “A arte tradicional no Brasileira” proferida em 20 de
julho de 1914, propôs a valorização do passado arquitetônico brasileiro. Permeada por
um viés arqueológico, sua leitura da arquitetura colonial brasileira - por ele denomi-
nada “arte tradicional” – enfatizava sua capacidade de adequação ao meio, bem como
a natureza dos materiais e da técnica construtiva empregada, gerando uma produção
arquitetônica nova e peculiar, que alcançou grande popularidade durante boa parte da
primeira metade do século XX (PINHEIRO, 2011, p. 78).
Adotado por diversos arquitetos e engenheiros, o neocolonial foi utilizado em
construções das mais variadas tipologias arquitetônicas e para os mais diversos progra-
mas. Essa arquitetura ornamentada, com forte apelo em valores identitários, foi muito
bem aceita na construção de edifícios religiosos, e seu emprego foi preconizado em
ofício circular aos bispos brasileiros datado de 1924 por Dom Sebastião Leme, eminente
arcebispo do Rio de Janeiro, capital do país à época (PINHEIRO, 2011, p.255).
Muitas cidades do interior do Estado de São Paulo também passaram por transfor-
mações urbanas e arquitetônicas de monta, análogas àquelas da cidade de São Paulo,
porém posteriores. Aqui, é importante lembrar que a gênese da maior parte das cidades
brasileiras está vinculada à ereção do primeiro templo católico, dada a intrínseca relação
estado-igreja vigente no Brasil até o período imperial. As questões referentes à doação
do patrimônio religioso, ao pagamento do foro anual e à construção do templo – e suas
respectivas ações de embelezamento - colocaram a Igreja em situação central, espacial e
administrativamente, transformando assim o edifício em elemento fundamental para
a compreensão da cidade e sua história, e essencial para a manutenção da identidade
daquela urbe, o que justifica – em parte – as sucessivas ações de construção, reconstrução
e embelezamento deste signo local.
As cidades analisadas neste estudo estão situadas na região de Campinas, no Estado
de São Paulo, distantes da capital aproximadamente 144 km. A cidade de Limeira remonta
ao período de doação e concessão de sesmarias no interior, quando o Capitão Luiz Manoel
da Cunha Bastos adquire o Engenho do Tatu naquela região, no início do século XVI.
Em 1826, Cunha Bastos realiza a doação do patrimônio religioso para a construção da
Capela de Nossa Senhora das Dores, que em 1832 é elevada ao grau de freguesia. Com
o estabelecimento da paróquia, o patrimônio passou a ser arruado, loteado e aforado
para a população que desejava se estabelecer neste sitio. O aumento populacional e a
relevância da produção agrícola das propriedades vizinhas fizeram com que a freguesia
fosse elevada ao grau de vila em 1844.

582
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Já a cidade de Cosmópolis nasce da iniciativa privada, após inúmeras iniciativas


públicas e particulares para o desenvolvimento e ocupação do interior do país, na região
da antiga Fazenda Funil. Esta fazenda foi adquirida pela família Nogueira em 1898 e
se tornaria a sede do grande empreendimento açucareiro conhecido por Usina Ester,
fundada em 1907. A fertilidade das terras, a implantação da Ferrovia Funilense a partir
de 1890, e, em 1897, a concessão de terras para a implantação do Núcleo Colonial Cam-
pos Salles - ação voltada ao acolhimento de imigrantes e fornecimento de mão de obra
para as lavouras das grandes propriedades -, foram fatores que ensejaram o loteamento
realizado pela Usina Ester em 1901, que veio a dar origem à cidade de Cosmópolis.

A CONSTRUÇÃO DAS CAPELAS

Capela Nossa Senhora das Dores

A origem da Capela de Nossa Senhora das Dores de Limeira remonta ao ano de


1826, quando o proprietário do Engenho do Tatu faz a doação de terras como patrimônio
religioso para construção de uma igreja. Pouco se sabe sobre a primitiva capela, além de
sua localização no Largo da Matriz, no centro do quadrilátero de terras doado.
O desenvolvimento da região com a implementação de estradas para escoamento da
produção agrícola, o aumento populacional e a consolidação do núcleo urbano fizeram
com que, em 1831, a capela fosse elevada a paróquia, sendo então instalada a Freguesia
de Nossa Senhora das Dores do Tatuibi.
Em 1844, quando a freguesia foi elevada a vila, o edifício da primitiva capela, que
ainda mantinha sua feição original, passou a incomodar a edilidade pública e a popula-
ção, que solicitou recursos junto ao governo provincial para a a reforma da Igreja Matriz.
Entretanto, tais pedidos resultaram apenas em obras corriqueiras de manutenção.
Assim, com o passar dos anos e após inúmeras recusas de verbas para reformas no
edifício, a Matriz de Limeira encontrava-se em mau estado de conservação e de tamanho
insuficiente para cumprir seu papel de Matriz da grande vila que Limeira estava se tor-
nando. Em 1867, a conclusão da construção de uma segunda igreja no núcleo urbano - a
Capela de Nossa Senhora da Boa Morte, construída a expensas de proprietários abastados
da região - gerou mal-estar entre a população, diante do contraste entre a nova capela
- construída em taipa de pilão, técnica muito mais duradoura - e a matriz, que “[...]era
uma igreja tosca e de madeira barroteada. Era chocante então ver a Igreja Matriz, a que
deveria ser a primeira em arte e beleza, muito inferior a filial! ” (LIVRO TOMBO II apud
CARITÁ, 1999 p.106, grifo nosso)

583
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Cinco anos depois, em 7 de abril de 1872, após muitas discussões e audiências na


Câmara Municipal, foi celebrada a missa para a colocação da pedra fundamental de uma
nova Igreja Matriz, projetada pelo arquiteto Aurélio Civatti. O novo edifício (Figura 1)
seria construído em tijolos – técnica avançada à época - e teria fachada de duas torres,
com frontão triangular sobre uma galilé com três grandes arcos, correspondentes às
três portas de entrada. Sua planta era de três naves, separadas por colunatas, sendo a
Capela Mor e seu presbitério ladeados por duas capelas destinadas a devoções populares.
As dimensões do novo prédio agradaram à população, que preparou grandes festejos
para sua inauguração, em 1876.

Figura 1: A nova Matriz de Limeira. Fonte: Acervo Catedral Nossa Senhora das Dores

Curiosamente, em 1880, apenas 4 anos após a inauguração da nova Matriz, o arqui-


teto Francisco de Paula Ramos de Azevedo – que viria a tornar-se diretor de um dos mais
importantes escritórios de arquitetura de São Paulo– realizou projetos para a remode-
lação das fachadas das duas igrejas de Limeira: a nova Matriz e (Figura 2) a Capela de
Nossa Senhora da Boa Morte – sua rival, por assim dizer. Entretanto, ambos os projetos
- que previam a construção de uma única torre central e o encamisamento de tijolos na
estrutura existente - não foram executados.

584
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2: Projeto de Ramos de Azevedo para a Fachada da Matriz de Limeira. Fonte: Biblioteca
da FAU USP

Até o ano de 1920, os dados registrados apontam apenas a realização de ações


corriqueiras de manutenção na igreja Matriz e algumas melhorias, como sua ligação à
rede de fornecimento de energia elétrica, em 1911. Assim, após o transcurso de quarenta
anos, questões referentes à conservação e à beleza do edifício, que tinham sido moti-
vos de grandes embates no passado, voltaram a preocupar e a gerar discussões entre a
população, o pároco e a edilidade pública. Em 1928 foi chamado o arquiteto Agostinho
Balmes Odisio para estudar melhorias para o edifício, que completava 52 anos de exis-
tência (ROSADA, 2010, p.234). O novo projeto, aprovado em julho de 1929, propunha uma
renovação geral nos acabamentos do edifício, porém sem alterações significativas em
sua planta, apenas o acréscimo de duas capelas ladeando a capela mor.
A execução do projeto começou pela reforma da capela-mor e construção das duas
novas capelas laterais, que foram concluídas em 1930. Porém, os massivos investimen-
tos realizados nesta primeira etapa fizeram com que os recursos ficassem escassos
para a reforma do restante do edifício. Em 1936, o trecho que havia sido reformado é
entregue a população totalmente terminado, com a substituição dos antigos retábulos
de madeira por peças de cimento e mármore e uma profusa ornamentação na capela
destinada ao sacrário.

585
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Capela Santa Gertrudes

A capela de Santa Gertrudes, na cidade de Cosmópolis, foi construída a expensas


da Família Nogueira, proprietária das terras onde hoje se localiza a referida cidade e da
Usina Ester, importante empreendimento açucareiro implantado na virada do século.
O projeto da igreja foi realizado pelo arquiteto Ramos de Azevedo – que, como vimos,
havia apresentado, sem sucesso, projetos para as igrejas da cidade de Limeira, na mesma
região. Ramos de Azevedo também realizou outros projetos para os Nogueira, como a
residência sede da fazenda e os edifícios fabris da Usina Ester.
O edifício de estilo eclético começou a ser construído em 1901 e passou a ser utilizado
já em 1902, ainda inacabado. Em 1909, o bispo da diocese de Campinas, à qual pertencia a
cidade de Cosmópolis, fez uma visita de inspeção à capela, recomendando a construção
de uma casa paroquial e melhorias para adequá-la ao culto litúrgico, como a construção
de anexos para servir de sacristia e capela lateral na parte posterior do templo(LIVRO
DE TOMBO I, p. 1). A inserção dos dois novos volumes nas laterais do edifício, um de cada
lado, promoveram significativa alteração na configuração da capela, que, de edifício de
corpo único longitudinal, passou a apresentar uma planta em forma de T.
A conclusão da construção se deu no ano de 1915 com a doação oficial do terreno
pela Usina Ester em 31 de agosto, seguida da instalação da Paróquia de Santa Gertrudes e
da inauguração oficial da respectiva Igreja Matriz. A solenidade de inauguração do tem-
plo foi realizada em 17 de setembro de 1915 e contou com a presença de diversas figuras
políticas.O edifício (Figura 3), apesar de ser bem construído, tinha as proporções de uma
pequena capela, comportando 125 pessoas sentadas. A mistura de elementos oriundos
de diversos estilos caracterizava a arquitetura eclética realizada por Ramos de Azevedo.

586
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3: A primeira Matriz de Cosmopólis. Fonte: Acervo da Paróquia de Santa Gertrudes

O lento desenvolvimento da cidade de Cosmópolis e, consequentemente, da Paróquia


Santa Gertrudes, estiveram sempre associados aos interesses da Usina Ester. Os primeiros
registros a respeito de ações de reparo e conservação na igreja - como a substituição das
antigas calhas, a limpeza dos telhados e uma nova pintura interna e externa – datam
de 1933, o que indica as dificuldades de caixa enfrentadas pela paróquia, que dependia
do apoio financeiro da Usina Ester.
Em 1940, o tamanho e a simplicidade da Igreja começaram a incomodar ao pároco
e aos munícipes, por sua impossibilidade de acomodar condignamente a população
católica de Cosmópolis nas celebrações religiosas. O relato da visita pastoral realizada
pelo bispo de Campinas em 1943 menciona uma igreja muito organizada e adequada
ao culto litúrgico, porém muito pequena para acomodação dos fiéis e o tamanho da
cidade (LIVRO TOMBO, p.120). No mesmo ano de 1943 foi lançada uma campanha pela
reforma total da Igreja, para a qual, mais uma vez, o vigário recorreu à Usina Ester, cujos
proprietários acabaram por concordar em financiar a reforma, doando materiais e ope-
rários para sua realização (LIVRO TOMBO, p.103). Dois anos depois, a Igreja Matriz passou
novamente por alterações para melhor conforto e embelezamento.

587
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

AS NOVAS MATRIZES NEOCOLONIAIS

Catedral Nossa Senhora das Dores

Como a reforma da Matriz de Limeira, aprovada em 1929, não fora finalizada, a


parte do antigo edificio que ainda não havia sofrido qualquer intervenção despertava
a atenção e a preocupação dos responsavéis, que, em 1940, resolvem contratar um novo
projeto. Foi então contratado o arquiteto Mario Penteado, que, mantendo a estrutura
primitiva e as alterações recentemente realizadas, desenvolveu uma proposta de linhas
neogóticas.
No ano de 1948, o arquiteto foi novamente chamado a Limeira para analisar o estado
de conservação do templo e revisar seu próprio projeto de reforma, que não chegara
a ser executado. Neste momento, Penteado mantém o estilo neogótico que propusera
anteriormente, porém enfatizando fortemente sua ornamentação, através do acréscimo
de duas altas torres com pináculos, além de inúmeras agulhas. Foi prevista uma grande
rosácea no centro da fachada principal, e as portas passaram a ser encimadas por arcos
concêntricos ornados com esculturas de figuras bíblicas; além disso, as paredes do pres-
bitério foram reforçadas com a colocação de grandes arcos botantes e contrafortes – que
eram puramente estéticos e não tinham nenhuma função estrutural, já que se tratava
de uma construção autoportante de tijolos.
Quando se iniciaram as obras desta nova reforma da Matriz, o arquiteto Mario
Penteado constatou que até mesmo a parte que havia sido reformada em 1930 encontra-
va-se comprometida estruturalmente. Tal constatação coincide com um momento em
que, devido à expansão da cidade de Limeira, o poder eclesiástico estudava um possível
desmembramento territorial na região, criando então uma nova diocese. Sendo assim,
tanto o pároco como a população, antecipando-se à decisão da Igreja, resolveram demo-
lir toda a antiga Matriz para edificar um templo maior, com projeto do mesmo Mário
Penteado, que, desta feita, optou por um projeto em estilo neocolonial. O novo projeto
era significativamente maior, além de abrigar um centro pastoral e administrativo, e a
construção foi iniciada em 1952, após a total demolição do antigo edifício.
O projeto neocolonial de Penteado (Figura 4) agradou a população local, uma vez
que a nova igreja tinha características adequadas para sede de uma futura igreja cate-
dral. Sua volumetria, suas aberturas e entalhes, bem como a presença de largos beirais
e de falsos balcões com balaústres no andar superior, revelam o cuidado e o estudo do
arquiteto na elaboração do novo projeto, cuja arquitetura se enquadra no estilo neoco-
lonial misões. (ATIQUE, 2010, p.266).

588
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Fachada do projeto Neocolonial de Mario Penteado para Limeira. Fonte: CAD PUC
Campinas

A nova Igreja Matriz de Limeira foi inaugurada em 1970 (Figura 5), sem os acaba-
mentos externos, sendo que a Diocese de Limeira foi criada apenas em 1976. Na fachada
principal, os dois grandes lampiões e a imagem da Virgem das Dores não foram colocados.
Nas portas é possível identificar a ausência de elementos decorativos, principalmente
nas laterais. No interior a construção só foi completada em 1990, porém nem tudo
foi executado conforme o projeto original, devido às mudanças no espaço litúrgico
promulgadas pelo Concilio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), principalmente no que
diz respeito à posição do altar principal com a nova de acordo liturgia. O altar passou a
assumir a posição central da capela-mor, e concomitante a isso, a grade de comunhão e
os altares laterais foram suprimidos.

589
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5: Catedral Diocesana de Limeira em 1980. Fonte: Acervo da Catedral Diocesana

A atual Catedral recebeu ainda inúmeras intervenções posteriores, como a instalação


de vedações no campanário, novas pinturas figurativas e principalmente a reforma do
presbitério e a construção da cripta na Capela São José (2005-2006), reformas realizadas
para adequação do templo a elementos característicos de uma Igreja Catedral. Tais
reformas desfiguraram em parte o projeto original e o estilo arquitetônico. Em 2017
foram realizadas novas intervenções no interior (Figura 6) e no exterior do edifício,
completando-se partes do projeto que ainda não tinham sido executadas. A Catedral
Diocesana não foi até os dias atuais objeto de nenhuma ação de tombamento junto aos
órgãos competentes e segue sendo modificada, recebendo novas intervenções que não
respeitam as características do edifício neocolonial da década de 50.

590
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6: Interior da Catedral Diocesana em 2017. Fonte: Acervo do autor

Igreja Matriz Santa Gertrudes

As primeiras manifestações da intenção de construir uma nova Igreja Matriz, com


porte adequado ao crescimento da população da cidade de Cosmópolis, e ao melhor
desempenho das atividades religiosas, decorreram da constante necessidade de refor-
mas e adequações no templo original, além do incômodo gerado pelo seu tamanho
insuficiente para acomodar os fiéis cosmopolenses. No ano de 1949, o pároco, apresenta
a comunidade o projeto de um novo templo, cuja construção a Usina Ester havia nova-
mente se comprometido ajudar financeiramente.
O projeto foi entregue aos cuidados do arquiteto Mário Penteado e submetido à
aprovação da Cúria Diocesana, e enquanto não se tinha o aval necessário, a Comissão
Pró Obras trabalhava para levantar fundos para o início do empreendimento. Em 15
de maio de 1950, durante a visita pastoral do Bispo Diocesano, a comunidade recebeu
autorização para a construção de sua nova Matriz:
“...Aprovamos e abençoamos de todo o coração o projeto de construção
de uma nova Matriz, mais ampla e provida de todas as dependências
necessárias aos trabalhos paroquiais. A planta, que já aprovamos, de

591
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

autoria do respeitado arquiteto campineiro: Dr. Mario Penteado, cor-


responde a essas necessidades...” (LIVRO TOMBO III, p.29v)
Mais uma vez Penteado optou pelo estilo neocolonial para a nova igreja (Figura 7),
que demorou um ano para começar a ser construída, já que somente no dia 27 de maio
de 1951 foi celebrada a missa para a colocação da sua pedra fundamental. A construção
iniciou-se sem demolir o antigo templo, sendo construído o novo ao redor do velho. As
grandes paredes da nova Matriz neocolonial logo esconderam a velha igrejinha eclética
de 1901.

Figura 7: Fachada da nova Matriz de Cosmopólis. Fonte: CAD PUC Campinas

Apesar do prometido apoio financeiro da Usina Ester, as obras foram paralisadas


diversas vezes por falta de recursos. Mesmo assim, a Igreja foi aos poucos tomando forma
e em 1958 se encontrava totalmente coberta, passando a ser utilizada ainda inacabada.
Na visita pastoral de 1960, o Bispo diocesano exortou o pároco e o povo a retomarem as
obras para a conclusão da Igreja Matriz. Esta missão ficou a cargo do Monsenhor João
Batista Rigotti, que assumiu a liderança da paróquia em 20 de outubro do mesmo ano.
Uma Igreja sólida, grande – mas não muito, devia ser maior, pelo futuro da paró-
quia – estilo colonial, portas muito sólidas e artísticas... (LIVRO TOMBO III, p.55) são as
descrições realizadas pelo recém empossado pároco referente à inacabada igreja matriz
neocolonial. Os trabalhos da nova gestão se concentraram em reestruturar a comissão

592
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

responsável pelas obras e levantar fundos para sua conclusão. Foram realizados os aca-
bamentos internos e externos, como a colocação de elementos decorativos nas janelas,
colunas, na porta principal e na torre. O acabamento interno da Igreja se deu no ano de
1967 com o auxílio financeiro da Prefeitura Municipal de Cosmópolis.
Em março de 1970 foram iniciados os trabalhos para o acabamento da fachada da
Matriz, novamente com a colaboração da prefeitura municipal. É interessante notar o
paulatino distanciamento da iniciativa privada e a gradativa aproximação da iniciativa
pública no financiamento desta obra religiosa. A Igreja não foi totalmente concluída
segundo o projeto original (Figura 8), sendo suprimidos inúmeros detalhes da orna-
mentação proposta pelo arquiteto. O interior da Igreja nunca foi totalmente concluído
e os espaços que se tornaram ociosos devido às mudanças litúrgicas receberam outras
funções. Novos elementos foram incorporados à decoração ao longo do tempo, como a
construção de um grande baldaquino no presbitério.
No ano de 2015, todo o mobiliário do presbitério foi refeito em mármore para a
comemoração do centenário da Paróquia e uma nova Capela do Santíssimo foi reinau-
gurada, sendo todas as novas peças de caráter moderno. Um novo sistema de iluminação
substituiu o antigo, e uma nova paleta de cores foi introduzida na pintura interna das
paredes e elementos decorativos. Os espaços obsoletos, como os vãos para a instalação
dos confessionários na nave principal e a antiga Capela do Batismo, foram objeto de
novas intervenções e completamentos, sem muito critério.

593
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 8: Igreja Santa Gertrudes em 2019. Fonte: Acervo do autor

O caso das duas igrejas em questão apresenta alguns pontos em comum, como o
período em que foram construídas e as interferências exercidas por fatores externos
durante os processos decisórios relativos aos respectivos, e sucessivos, processos de
construção, reforma e reconstrução. Ressalta inicialmente a coincidência de autoria e
de estilo arquitetônico na última versão de ambas as igrejas: o neocolonial adotado por
Mário Penteado – que, tendo seu período áureo nos anos 1920, estava ainda em voga no
interior do Estado de São Paulo em data tão tardia como a década de 1950. Esse neocolo-
nial tardio sofre as consequências de recorrentes dificuldades financeiras ao longo da
construção dos templos, que atrasam a conclusão das obras possibilitando alterações
de todo tipo nos projetos originais – desde a eliminação de ornatos para barateamento
dos custos até mudanças programáticas impostas pela mudança na liturgia católica.
Tais aspectos dificultam o reconhecimento destes bens como documentos impor-
tantes da história local, capazes de transmitir conhecimentos de natureza multidiscipli-

594
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

nar para o futuro, além de seu caráter simbólico para a cidade e seus habitantes. Sendo
assim, apontadas as questões que levaram ao cenário atual, pretendemos contribuir
para a inserção desses edifícios em políticas preservacionistas capazes de tratar esses
edifícios com a sua devida importância.

A PRESERVAÇÃO

O problemático processo de construção e reconstrução das Igrejas em questão - seja


pela escassez de recursos para sua conclusão, pelas mudanças litúrgicas que acarretaram
mudanças significativas nos programas religiosos, eliminando espaços e equipamentos
utilizados nos ritos anteriores, ou ainda por mudanças no gosto arquitetônico predo-
minante -, fizeram com que estes edifícios fossem sendo objeto de constantes obras de
completamento e refazimento tardios, abrindo precedentes para questionamento acerca
da pertinência de sua preservação. No entanto, tais bens, consideravelmente recentes,
constituem importantes testemunhos para a história local e fonte de conhecimento
sobre a produção do meio urbano da região e sua arquitetura.
Os motivos que explicam as vicissitudes da trajetória construtiva desses edifícios
são muitos, e perpassam o amplo panorama histórico-social brasileiro e paulista naquele
momento. Assim, trataremos aqui apenas de algumas questões ligadas ao campo da
arquitetura. A difusão do ideário modernista em meados do século XX no Brasil – cujo
grande marco é a construção de Brasília –, juntamente com as dificuldades financei-
ras vivenciadas pelos promotores da construção das igrejas em estudo, contribuem
para justificar um maior despojamento ornamental de sua arquitetura, reforçando a
decisão dos párocos de abrir mão de vários elementos decorativos. Os novos métodos
construtivos então introduzidos no canteiro de obras, inclusive a pré-fabricação de
componentes arquitetônicos, também pode ter contribuído para a simplificação das
formas arquitetônicas, acarretando o paulatino desaparecimento de artífices e artesãos
e tornando a execução dos ornamentos característicos do estilo neocolonial cada vez
mais dificultosos e caros.
A importância simbólica destes edifícios fez com que os mesmos fossem recebendo
ao longo tempo camadas de acréscimos que, com o intuito de embelezá-los, por vezes
causavam o efeito contrário. Intervenções não criteriosas, realizadas ao gosto do pároco
responsável, foram muitas vezes realizadas sem questionamento, devido à ausência de
políticas de preservação a respeito. As dificuldades de reconhecimento do neocolonial
como patrimônio arquitetônico, ainda mais em versões tardias, é uma herança deixada
pelos adeptos do modernismo brasileiro que ainda repercute nos dias atuais; a própria

595
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

escassez de estudos referentes a essa produção arquitetônica e à sua difusão no território


paulista evidencia tal preconceito.
Entretanto, consideramos que o caso das Igrejas analisadas pode evidenciar a impor-
tância de sua preservação, já que, apesar da pouca idade, os edifícios já se consolidaram
no tempo, desenhando a paisagem e sendo palco de diversas atividades importantes
para a história local. Na verdade, até mesmo as lacunas e as partes inacabadas destes
edifícios trazem elementos importantes para a compreensão da história e da produ-
ção da arquitetura. Nesse sentido, todo edifício é um documento capaz de transmitir
conhecimentos a gerações futuras (DVORAK, p.80). Alterações aleatórias e desmedidas e
comprometem o futuro destes bens, e, associadas ao cenário não preservacionista em
que estão inseridos podem acarretar a sua destruição parcial ou total ao longo do tempo.
Tais fatos convergem para o cenário pessimista que vemos em relação ao futuro
desses bens. Através da presente comunicação, esperamos chamar a atenção para a
importância dessas igrejas e sua arquitetura, somando esforços com outras iniciativas
análogas para sensibilizar os órgãos de preservação a esse respeito.

596
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

ATIQUE, Fernando. Arquitetando “A boa vizinhança”: arquitetura, cidade e cultura


São Paulo: Pontes Editora,
Fapesp, 2010.

BUSCH, Reynaldo Kuntz. História de Limeira. 3 ed. Limeira: Sociedade Pró-


Memória, 2007.

A Igreja Nossa Senhora das Dores de Limeira. Limeira:


Sociedade Pró Memoria de Limeira, 1998.

CATEDRAL, Nossa Senhora das Dores. Livro Tombo II (1870-1903), Livro Tombo III
(1905 – 1914), Livro Tombo IV (1914 -1921), Livro Tombo V (1921 – 1949), Livro Tombo
VI (1949 -). Limeira

Catecismo da preservação de monumentos.


Editorial, 2008.

FERREIRA, Luiz Carlos Fromber. (Org.) Cosmópolis: de fazenda Funil à cidade


universo. São Paulo: Pancrom, 2011.

PARÓQUIA, Santa Gertrudes. Livro Tombo I (1909-1926). Livro Tombo II (1926-1945).


Livro Tombo III (1945-atual). Cosmópolis.

PENTEADO, Mario. Carta ao Bispo Diocesano de Campinas. Campinas: Cúria


Diocesana, 1952.

PINHEIRO, Maria Lúcia Bressan. Neocolonial, Modernismo e Preservação do


Patrimônio no Debate cultural dos Anos 1920 no Brasil. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, Fapesp, 2001.

ROSADA, Mateus. Sob o signo da cruz: Igreja, Estado e secularização (Campinas


e Limeira 1774 – 1939). Dissertação de Mestrado - Escola de Engenharia de São
Carlos, Universidade de São Paulo. São Carlos, 2010.

1898-

TREFT, Renan Alex; SALGADO, Ivone. Construção da Igreja Matriz Nossa


Senhora das Dores e da Capela Nossa Senhora da Boa Morte de Limeira. In:
[CONSTANTINO, Norma Regina Truppel, MAGAGNIN, Renata Cardoso, BENINI,
Sandra Medina. (Org.)] Cidade, História e Patrimônio. Tupã: ANAP, 2019, pp. 143-
162.

597
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CULTURAL HERITAGE AND APPROPRIATION

REFLEXIÓN SOBRE PATRIMONIO CULTURAL Y


APROPIACIÓN
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

SILVA, Ana
Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; Universidade Federal da Bahia.
Analuizats.arq@gmail.com

598
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Esse artigo pretende tensionar uma reflexão sobre patrimônio cultural e apropriação. O con-
teúdo faz parte de um processo de dissertação de mestrado com a proposta de abordar como
movimentos sociais e associações de moradores, que lutam por permanência no Centro His-
tórico de Salvador (CHS) e ocupam edificações de valor patrimonial, lidam com a questão do
espaço, problematizando as condições das edificações que habitam, bem como, enfatizando as
práticas construtivas de adaptação, de manejo e salvaguarda dessas edificações. O material
exposto no presente artigo é um recorte de um referencial teórico-metodológico que alimenta
a pesquisa. Incialmente, é discutido sobre a apropriação social do patrimônio cultural, como
também, da possibilidade dessa apropriação proporcionar a emersão das bases da construção
do comum. Em seguida, é apresentado uma série de autores e estudos na pretensão de criar um
método análitico das apropriações e intervenções realizadas. O estudo pretende ampliar os
estudos de habitações populares na preexistência de valor patrimonial, contribuindo assim na
compreensão das atribuições de valores, das formas de apropriação, adaptação, substituição
e manutenção realizadas pelos moradores das edificações ocupadas.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio cultural. apropriação. ocupações. Centro Histórico de Salvador.

A BSTRACT
This article intends to tension a reflection on cultural heritage and appropriation. The content
is part of a master’s thesis process with the proposal of addressing how social movements and
residents’ associations, which fight for permanence in the Historic Center of Salvador (CHS)
and occupy buildings of patrimonial value, deal with the issue of space, problematizing the
conditions of the buildings they inhabit, as well as, emphasizing the constructive practices of
adaptation, management and safeguarding of these buildings. The material exposed in this
article is an excerpt from a theoretical-methodological framework that feeds the research.
Initially, it is discussed about the social appropriation of cultural heritage, as well as the pos-
sibility of this appropriation providing the emergence of the bases of the construction of the
common. Then, a series of authors and studies are presented in order to create an analytical
method of the appropriations and interventions carried out. The study intends to expand the
studies of popular housing in the pre-existence of patrimonial value, thus contributing to the
understanding of the attribution of values, the forms of appropriation, adaptation, replacement
and maintenance carried out by the inhabitants of occupied buildings.

KEYWORDS: cultural heritage. appropriation. occupations.

599
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
Este artículo pretende tensar una reflexión sobre el patrimonio cultural y la apropiación.
El contenido es parte del proceso de tesis de maestría con la propuesta de abordar cómo los
movimientos sociales y las asociaciones de residentes, que luchan por la permanencia en el
Centro Histórico de Salvador (CHS) y ocupan edificios de valor patrimonial, abordan el tema
del espacio, problematizando las condiciones de los edificios que habitan, así como enfatizando
las prácticas constructivas de adaptación, gestión y protección de estos edificios. El material
expuesto en este artículo es un extracto de un marco teórico-metodológico que alimenta la
investigación. Inicialmente, se discute sobre la apropiación social del patrimonio cultural,
así como la posibilidad de que esta apropiación proporcione el surgimiento de las bases de la
construcción de lo común. Luego, se presentan una serie de autores y estudios para crear un
método analítico de las apropiaciones e intervenciones realizadas. El estudio pretende expandir
los estudios de vivienda popular en la preexistencia de valor patrimonial, contribuyendo así a
la comprensión de la atribución de valores, las formas de apropiación, adaptación, reemplazo
y mantenimiento que realizan los habitantes de los edificios ocupados.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio cultural. apropiación ocupaciones Centro Histórico de Salvador.

INTRODUÇÃO

Tomando como temática a preservação do patrimônio cultural em face aos pro-


cessos de produção e transformação do espaço em andamento nas cidades, esse artigo
pretende tensionar uma reflexão sobre patrimônio cultural e apropriação. O conteúdo
faz parte de um processo de dissertação de mestrado com a proposta de abordar como
movimentos sociais e associações de moradores, que lutam por permanência no Cen-
tro Histórico de Salvador (CHS) e ocupam edificações de valor patrimonial, lidam com
a questão do espaço, problematizando as condições das edificações que habitam, bem
como, enfatizando as práticas construtivas de adaptação, de manejo e salvaguarda
dessas edificações.
O material exposto no presente artigo é um recorte de um referencial teórico-me-
todológico que alimenta a pesquisa. Este se fez oportuno prosseguir a partir de algumas
questões: (i) Como a criação do espaço popular tem sido tratada na literatura especializada,
sobretudo, quando se trata de apropriação de edifícios antigos? (ii) Quais os impactos
das intervenções/adaptações/apropriações realizadas pela população residente em edi-
ficações ocupadas e consideradas de valor patrimonial, em relação à norma (ou prática)
de preservação e salvaguarda do patrimônio edificado, englobando aspectos relativos
a memória, simbologias, significância, valores atrabuídos, entre outros? (iii) Como os

600
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

grupos sociais alteram as espacializações internas, fachadas, cobertas, componentes


construtivos, entre outros aspectos relativos à materialidade do bem edificado? (iv) As
adaptações feitas interferem nas relações do edifício com o conjunto urbano? (v) Como
os processos de produção e transformação do CHS - já ocorridos ou em andamento -
impactam as ocupações?
Com isso, foram selecionadas leituras que amparassem uma reflexão metodológica,
a qual será exposta adiante.

APROPRIAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E A CONSTRUÇÃO DO COMUM

Levando-se em conta o perfil da maioria da população que de fato habita os cen-


tros antigos em várias cidades do Brasil, ou seja, moradores que fazem parte da classe
média baixa e classe baixa, é possível afirmar que são locais com características popu-
lares (GOTTSCHAL; SANTANA; ROCHA, 2006), (VILHAÇA, 1999), (MARICATO, 2008). Segundo
Ermínia Maricato (2008, p.138), “do ponto de vista da acessibilidade, os centros são, em
geral, as áreas mais bem servidas de transportes públicos. São locais de acesso mais
democrático do que quaisquer outros”. Morar no centro, por mais que seja em habitações
precárias, permite uma maior facilidade em relação à mobilidade urbana e busca por
trabalhos e serviços, o que acarreta, geralmente, uma enorme resistência em relação ao
realojamento para bairros distantes.
Desde o final do século XX, acompanhando uma tendência internacional, o Brasil
apresenta diversos indicadores de um processo de ‘volta ao centro’. Projetos de interven-
ções foram implementados em cidades como Salvador, São Luís, Recife, Porto Alegre, São
Paulo, Rio de Janeiro, entre outras (MARICATO, 2008). Conforme afirma Maricato (2008,
p.20), “[...] as atratividades do centro são muitas apesar do descompasso tecnológico
dos edifícios e do sistema viário. A principal vantagem está no diferencial do preço dos
imóveis, o que abre perspectivas de ganhos extraordinários”. Esses projetos frequente-
mente contrariam o interesse das comunidades locais, gerando uma grande valorização
imobiliária e produzindo, como consequência, uma série de remoções da população
local, seja através da expulsão forçada ou devido ao aumento do custo de vida do local.
Apesar das expulsões e dos reassentamentos mal realizados, o número de asso-
ciações, movimentos sociais e membros de comunidades da sociedade civil, que lutam
por direitos e pela participação nas propostas de reformas urbanas em áreas centrais,
cresceram, principalmente, a partir dos anos 2000. Nessa época, aconteceu uma altera-
ção no cenário político brasileiro devido ascensão de forças políticas de esquerda ou
centro-esquerda, favorecendo a interação entre atores políticos-institucionais e atores

601
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

sociais. Isso contribuiu para o aumento da participação política em diferentes modali-


dades (institucionalmente ou a partir de diferentes tipos ação direta) (TATAGIBA, 2010).
Esses atores sociais reivindicam com mais força o direito à moradia, reafirmando
o centro como seu lugar de origem. Dessa forma, os movimentos sociais tomam inicia-
tivas de mobilização popular no sentido de ocupar edificações e terrenos ociosos que
não cumprissem a função social da propriedade, conforme estabelecida no Estatuto da
Cidade (2001). Como é observado na cidade de Salvador (BA):
Uma mudança importante que vem se verificando desde o começo dos
anos 2000. [...] Um conjunto expressivo de associações e movimentos
sociais, que lutam por permanência na área central tem atuado nos
últimos anos e, com o apoio de organizações de assessoria técnica e
jurídica, tem constituído uma forte resistência popular às ameaças de
expulsão e gentrificação. Esses movimentos têm se colocado como pedras
difíceis de contornar no caminho desses projetos, devendo-se esperar, no
momento atual, no mínimo, a judicialização e a dificuldade de execução
de projetos e planos que trilhem esse caminho (SANT’ANNA, 2017, p. 427).
As ocupações passam a ser um recurso para um conjunto de pessoas que estão
incapacitadas de pagar aluguel ou de adquirir uma habitação própria. E, diante do grande
número de imóveis vazios ou subutilizados em uma área da cidade com boa infraestru-
tura e com oportunidades de trabalho, decidem neles se instalar, transformando-os em
moradia. Dessa forma, além de um teto para morar, as ocupações funcionam como um
instrumento de luta, pressionando o poder público a elaborar propostas para enfrentar
o crítico problema habitacional da população mais pobre da cidade (MONTOYA URIARTE,
2019). Essas ocupações revelam a capacidade de os ocupantes criarem um espaço habi-
tável, mesmo em condições de precariedade, indefinição e instabilidade.
As ocupações vivem sob o paradoxo do provisório-permanente que
impele melhorias contingenciais, apropriações parciais, enraizamentos
passageiros, soluções caracterizadas pelo efêmero, temporário, improvi-
sado. Vivem-se anos a fio na precariedade, mediante táticas, arramedos,
cacarecos, ‘gambiarras’ ou ‘armengues’ [...]. Mas a resiliência é capaz de
criar ordem na indefinição e o homem habita até na indeterminação das
ocupações. Esse espaço é tornado habitável: reuniões, relações, estar-com
e enraizamentos são construídos [...] O espaço abandonado se torna
espaço habitado mediante a limpeza, a repartição de fragmentos, as
divisórias que separam as unidades familiares diferentes e que, mesmo
minimamente, garantem certa privacidade [...]. Mas é preciso frisar que

602
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

se trata de uma experiência muito difícil ou ‘subumana’ ” (MONTOYA


URIARTE, 2019, p. 307).
Na escassez são criadas soluções mais propensas e insurgentes, podendo propor-
cionar a emersão das bases de construção do comum. Segundo Hardt e Negri (2016), o
conceito de comum “centra-se, antes, nas práticas de interação, cuidado e coabitação num
mundo comum, promovendo as formas benéficas do comum e limitando as prejudi-
ciais. [...] focando a atenção em nossas capacidades de produção coletiva e autogoverno
e tratando de expandi-las” (HARDT, NEGRI, 2016, p. 8-13). Para Dardot e Laval (2017), o
princípio do comum que emerge dentro dos movimentos sociais deve tornar possível a
articulação de não se opor ao público, mas não se define em temos de ‘propriedade’. Ou
seja, o comum irá reter, no que é público, o que destaca a destinação social e não apenas
a forma jurídica de propriedade, “em outras palavras, o comum pode ser definido como
o público não-estatal, que garanta o acesso universal através da participação direta dos
usuários na administração dos serviços” (DARDOT, LAVAL, 2017, p. 219).
É preciso por um lado evitar entender o comum no sentido restrito de
bens comuns e, por outro, desenvolver um direito do comum como um
novo tipo de direito de uso, onde apropriações se distinguem dos usos
proprietários e levem a criação de instituições do comum. Essas, por sua
vez podem romper com sistemas políticos oligárquicos interligados a
interesses econômicos dominantes, em suma, promover uma revolução
no sentido de ‘reinstituição da sociedade’ (DARDOT, LAVAL, 2017, p.225).
[...] longe de se confundir com um objeto de propriedade, o comum
exprime acima de tudo a dimensão do indisponível e do inapropriável.
[...] ‘comum’ é, na verdade, o novo nome de um sistema de práticas e de
lutas (DARDOT, LAVAL, 2015, p.270-271).
Assim, através da autogestão, da participação direta dos usuários na administração
dos serviços, nas deliberações e decisões concernentes a eles próprios, os ocupantes se
apropriam das edificações dos centros antigos e recriam o significado e valores do patri-
mônio material e imaterial. O verbo apropriar, ainda segundo Dardot e Laval (2015), tem
dois sentidos que pode – ou não – serem combinados. No primeiro, significa “apropriar
de uma coisa para um determinado fim, ou seja, para torná-la própria para realizar sua
finalidade. [...] o que é importante nessa perspectiva é o uso que se faz de alguma coisa”. Já
o outro sentido, se apropriar de algo é “[...] fazer algo a sua propriedade ou sua posse, seja
essa coisa propriedade de uma ou de diversas outras pessoas ou, não sendo propriedade
de ninguém, esteja vaga e disponível (DARDOT, LAVAL, 2015, p.268 e 269).

603
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Ao adicionar o nome social, a apropriação irá qualificar em nome do seu interesse


coletivo, “ela é, nesse sentido, ‘social’ ou ‘coletiva’ na medida em que permite apropriar
algo à sua destinação e fazendo com que a sociedade se beneficie”, em que o essencial está
na destinação e nos limites que ela irá impor a toda forma de propriedade, seja ‘coletiva’
ou ‘social’ (DARDOT, LAVAL, 2015, p.269). Dessa forma, “as práticas sociais e somente elas
que decidem sobre o caráter ‘comum’ de uma coisa ou de um conjunto de coisas” em que
“o essencial reside na coprodução de regras de direito por um coletivo” (LAVAL, DARDOT,
2015, p.271). É observado nessas ocupações que a (re)existência abre possibilidade para
criação e, na vivência da coletividade, o comum é partilhado na prática.

O ESPAÇO E SUAS FORMAS DE APROPRIAÇÃO

A leitura das apropriações e condições das edificações ocupadas passa pelo enten-
dimento destas frente ao processo de produção do espaço e do seu processo histórico,
assim como, do contexto socioeconômico e das práticas e formas de habitar o espaço por
seus usuários. Esse contexto se desenvolve numa dimensão local e em outra global, como
aborda Milton Santos (1997;2002), “a relação social, por mais parcial ou mais pequena que
pareça, contém parte das relações que são globais [...] A história da produção de um fato
desencadeia um processo bem mais abrangente, que insere o fenômeno em contextos
cada vez mais amplos” (SANTOS, 1997, p.57). Esse condicionamento entre uma realidade
localizada e outra mais abrangente é apresentado através de uma categoria analítica
do espaço, baseada no conceito de totalidade.
Segundo o autor, a definição de espaço é indissociável dos fatores políticos e sociais,
assim como, dos sistemas de objetos e ações, já que “cada pessoa, cada objeto, cada relação
é um produto histórico” (SANTOS, 1997, p.58). A totalidade não é vista apenas como uma
soma das partes para se ter o entendimento do total, ao contrário, é a totalidade que
explica todas as partes, sendo uma noção fundamental para o conhecimento e análise
da realidade em sua integridade. Sendo a totalidade uma “realidade fugaz”, que está
em constante mutação, desfazendo-se, renovando-se e transformando-se numa nova
realidade, seu processo de apreensão pressupõe sua divisão, a sua cissiparidade e esfa-
celamento. O movimento irá transformá-la em multiplicidade e, por meio das formas,
ela se individualiza. Então, os fragmentos, por mais que se tornem objetivos, ocupando
objetos com sua essência e atividade, continuam a integrar a totalidade (SANTOS, 2002).
Então, a totalidade se realiza por impactos seletivos, nos quais algumas das possibi-
lidades tornam-se realidade. Os lugares são definidos e particularizados em consequência
dos impactos que acolhem, a seletividade acontece tanto no nível das formas, como no
nível do conteúdo. É esse o próprio princípio da diferenciação entre lugares, produzindo

604
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

combinações específicas em que as variáveis do todo se encontram de forma particular.


Dessa forma, quando o espaço é formado (forma-conteúdo) torna-se uma preexistência,
ou seja, um condicionante para as próximas transformações.
Tornada forma-conteúdo pela presença da ação, a forma torna-se capaz
de influenciar, de volta, o desenvolvimento da totalidade, participando,
assim, de pleno direito, da dialética social. [...] Essa visão renovada da
dialética concreta abre novos caminhos para o entendimento do espaço,
já que, desse modo, estaremos atribuindo um novo estatuto aos objetos
geográficos, às paisagens, às configurações geográficas, à materiali-
dade. Fica mais claro, desse modo, porque o espaço não é apenas um
receptáculo da história, mas condição de sua realização qualificada
(SANTOS, 2002, p.81-82).
Compreendendo o conceito de totalidade, pode-se afirmar que as edificações ocu-
padas – inseridas no centro antigo, que por sua vez, está inserido em um contexto mais
amplo, o da cidade, e esta, está relacionada a uma estrutura no âmbito socioeconômico,
cultural e político em nível mundial – são influenciadas por uma lógica global e outra
local. Logo a materialização da realidade local, nesse caso, das formas de apropriação/
intervenção dos espaços, é indissociável do contexto de produção do espaço urbano, da
condição do patrimônio urbano e das políticas de preservação vigentes (ordem univer-
sal). Com isso, essa pesquisa tem o desafio de apreender a situação real, percebendo essa
mútua relação das diferentes conjunturas que formam o espaço.
Evidentemente, a discussão sobre o conceito de espaço é complexa e diversificada,
dependendo da abordagem e do estudo que o esteja tomando como objeto. Na pesquisa,
trataremos do espaço construído e do espaço vivido pelos usuários. O primeiro dentro
do campo acadêmico da arquitetura é conhecido como espaço arquitetônico, é diferente
do segundo, que só é apreendido com as suas formas de uso e apropriações na vida
cotidiana, entendendo que apropriação e uso são termos interdependes (ARAUJO, 1990).
Nas edificações ocupadas, “o espaço construído (...) se articula de diversas formas
com a particular situação econômica de seus moradores, suas heranças culturais, ciclos
familiares, trajetórias residenciais, situação jurídica do solo e políticas públicas nas áreas
onde se situam” (MONTOYA URIARTE, 2019, p.17). O uso e apropriação acabam sendo deter-
minado pelas práticas cotidianas dos seus usuários, passando a ser o lugar de expressão
de sistemas sociais diferentes, não podendo ser compreendido isoladamente, mas sim
em relação ao modo de vida de seus usuários.
Das maneiras de olhar a questão das moradias populares, o enfoque
sociológico é o que deve merecer a nossa melhor atenção de planejado-

605
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

res, por englobar a maior soma de dados ainda não bem interpretados
ou compreendidos, além daqueles com certeza ainda desconhecidos e
nebulosamente suspeitados; o que não acontece com o enfoque técni-
co-construtivo, que nos dá um quadro claro da situação presente das
possibilidades materiais de concretização de planos em geral (LEMOS,
1978, p.11).
Quanto ao comportamento do operário dentro de casa [...] Tal compor-
tamento evidentemente é responsável por certas soluções de composição
arquitetônica e, também, é acomodado a certas contingências econô-
micas e moldado ou adaptado à precariedade ou exiguidade do espaço
abrigado (LEMOS, 1978, p.13).
Carlos Lemos (1978), sem seu livro “Cozinhas, etc.”, traça um importante estudo
da evolução histórica da moradia popular no Brasil. O autor buscou definir o que seria
efetivamente uma casa popular, entendendo-a como aquela em que acontece uma
“superposição de quase todas as funções habitacionais, sendo constante a superposição
da zona de serviço com a zona de estar” (LEMOS, 1978, p.16).
Os cortiços instalados nos palacetes antigos certamente compõem amon-
toados de moradias populares, onde, necessariamente, houve processos
de adaptação. Esses processos chegam a recorrer inclusive, a reformas
decorrentes de desvirtuamentos de funções, de troca de atividades dentro
das acomodações: salas se fragmentam em alcovas, vestiários e salas
de banho transformam-se em cozinhas, os corredores em verdadeiras
vias públicas, os jardins em coradouros de roupa lavada, as garagens
em oficinas (LEMOS, 1978, p.15).
Nesse sentido, a apreensão do estado de conservação da materialidade, passa,
também, por uma observação das transposições e substituições realizadas no espaço (ou
edificação) pela ação dos atores sociais no processo de apropriação. Logo, a morfologia
espacial e os processos de uso e ocupação do espaço têm uma relação indissociável,
inviabilizando a análise em separado (ALBANO, WERNECK, 1988 apud ARAUJO, 1990).
Carlos Nelson Santos (1985), em “Quando a Rua vira Casa”, afirma que para compre-
ender as formas de apropriação de espaço - de uso coletivo, no caso de seu estudo - deve-se
entender os processos de desenvolvimento da cidade. E, para além da materialidade dos
espaços e dos processos que neles se desenvolvem, apreender as dimensões simbólicas
existentes. Estas dimensões apresentam a percepção que “em qualquer sociedade há
códigos culturais que viabilizam a leitura, apropriação e aproveitamento dos lugares” e

606
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

que “as noções de localização, de territorialidade e do que lhes seja pertinente e adequado
são constituídas através do recurso a estes códigos” (SANTOS, 1985, p.13).
Enrico Guidoni (1980), em “L’architettura Popolare Italiana”, investiga a arquitetura
popular a partir dos aportes culturais específicos de povos e comunidades, compreen-
dendo a casa popular como um produto cultural vinculado à história, portanto, não é
apenas um resultado de processos de adaptação ao ambiente ou a modelos externos
dominantes. A “arquitetura popular” seria então, um conjunto de “manifestações – refe-
rentes a grupos e comunidades organizadas (principalmente rurais ou artesanais) que
desenvolvem atividades produtivas em condições de relativa autonomia cultural com
relação à sociedade urbana e aos órgãos do Estado – inerentes à construção, à transfor-
mação e ao uso do espaço habitado, à interpretação abrangente do mundo físico local e
da paisagem, ao usufruto do território e à sua reapropriação ritual” (GUIDONI, 1980, p. 3-4).
Contudo, as apropriações e intervenções realizadas, além de estarem relacionadas
às práticas cotidianas referentes à cultura e ao modo de vida dos moradores, também
estão totalmente atreladas à condição de vulnerabilidade socioeconômica e ao processo
de produção da cidade, como já mencionado. Logo, as observações e leituras da situação
tem abordagens quantitativas, no que se refere às condições físicas internas e externas do
espaço habitado, como também abordagens qualitativas, já que é necessário apreender
os fatos humanos e sua significação, através de relatos que identifiquem os costumes,
comportamentos, relações e o que isso implica na configuração espacial.
Entretanto, carecem de estudos suficientes e sistemáticos sobre esses tipos de apro-
priações em edificações de valor patrimonial, que possibilitem a compreensão entre o
espaço construído (a preexistência) e o espaço vivido pelos habitantes das ocupações.
Em Salvador (BA), são conhecidas duas grandes contribuições: a dissertação de Anete
Araújo (1989), cujo a pesquisa é o uso e a apropriação do espaço em três sobrados com
função habitacional pluridomiciliar no Pelourinho; e o livro de Urpi Montoya Uriarte
“Entra em beco, sai em beco” (2019), cujo objetivo é a apreensão etnográfica das formas
de habitar que se desenvolvem no centro das cidades de Salvador e Lisboa. A autora
descreve e analisa alguns tipos habitacionais específicos – fileiras de casas em becos,
casas ao redor de um pátio, cortiços, habitações em casarões ocupados – e as formas
como neles se habita.
Posto isto, a dissertação pretende analisar as apropriações das edificações ocupa-
das e como essas rebatem no espaço, através do reconhecimento das práticas na vida
cotidiana das pessoas que as habitam e as utilizam, da sistematização de um material
sobre a condição física existente associada à pesquisa documental (levantamentos
arquitetônicos e fotográficos, coleta de dados em arquivos públicos e privados e coleta

607
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

legislação existente). Entendendo que essa leitura do espaço faz parte de um contexto
que extrapola a edificação, envolvendo conjunturas urbanas, políticas e econômicas.
Conta-se com a colaboração de dois movimentos sociais, o Movimento em Defesa
da Moradia e do Trabalho (MDMT) e Movimento dos Sem Teto da Bahia (MSTB). Ambos
realizam ou realizaram ocupações em edifícios localizados no Centro Histórico, consi-
derados de valor patrimonial, tanto em razão do sítio urbano em que estão inseridos,
como pelas características da própria edificação. O fase atual da pesquisa seria de coleta
de dados em campo, infelizmente, interrompida provisoriamente devido pandemia
do COVID-19, uma doença respiratória aguda causada pelo coronavírus da síndrome
respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As apropriações populares e a autoconstrução nos espaços preexistentes ainda são


pouco contempladas dentro do universo de pesquisa do patrimônio cultural, apesar de
ser uma realidade muito comum em várias cidades brasileiras. Essa contradição reflete
nas políticas públicas para preservação do patrimônio urbano no Brasil, não englobando
os atuais paradigmas das teorias da preservação e restauro contemporâneas, como
também, as perspectivas das populações que se relacionam com esses lugares, sejam
como moradores, usuários do cotidiano. Ao passo que os órgãos públicos e técnicos da
área de patrimônio ainda possuem uma visão muito especializada em detrimento das
relações estabelecidas entre usuários diretos dos bens e estes bens, cria-se uma distância
da forma como se lida com o patrimônio e a realidade social (AZEVEDO, 1988) (ANDRADE
JUNIOR, 2013) (RIBEIRO, SIMÃO, 2014).
Portanto, ampliar os estudos de habitações populares na preexistência de valor
patrimonial é necessário. Ao contribuir na compreensão das atribuições de valores, das
formas de apropriação, adaptação, substituição e manutenção realizadas pelos moradores
das edificações, estaremos debatendo os possíveis caminhos a serem traçados na conser-
vação e intervenção do patrimônio edificado presente nos centros antigos das cidades.

608
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Nivaldo. “Novas” questões na teoria da restauração do patrimônio


urbano: identidades culturais, função social e participação dos usuários. PARC
Pesquisa em Arquitetura e Construção. São Paulo: v. 4, n. 1, p. 63-79.

Revista de
. Salvador: v. 1, n. 2, p. 35-51 .

ARAUJO, Anete R.. Apropriação do espaço:


Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de
Arquitetura, Salvador, 1989.

Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI.


São Paulo: Boitempo, 2017.

comum. Tempo Social. São Paulo: v. 27, n. 1, p. 261-273.

GOTTSCHALL, Carlota; SANTANA, Mariely; ROCHA, Ana.


Centro tradicional de Salvador à Luz do Censo 2000. Salvador: EDUFBA/SEI, 2006.

GUIDONI, Enrico. L’architettura popolare italiana. Roma: Editori Laterza, 1980.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Bem Estar Comum. Rio de Janeiro: Record, 2016.

LEMOS, Carlos. Cozinhas, etc. São Paulo: Editora Perspectiva, 1978.

MARICATO, Ermínia. Habitação social em áreas centrais. Óculum Ensaios. São


Paulo: n. 1, p. 13-24.

MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis:

Entra em beco, sai em beco – formas de habitar o centro:


Salvador e Lisboa. Salvador: EDUFBA, 2019.

RIBEIRO, Cláudio; SIMÃO, Maria.. Relações e contradições: direito à cidade e


patrimônio urbano. III Encontro da Associação Nacional e Pós-graduação em
, p. 1-12,
2014.

SANT ’ANNA, Márcia: “El centro histórico de Salvador de Bahía: paisaje, espacio
urbano y patrimonio”. In: CARRIÓN, Fernando (ed). Centros Históricos de America

609
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Latina y el Caribe. Quito: UNESCO/BID/Ministerio de Cultura y Comunicación de


Francia/FLACSO, 2001, p. 177-197.

SANT ’ANNA, Márcia. A cidade-atração: a norma de preservação de áreas centrais


no Brasil dos anos 1990. Salvador: EDUUFBA-PPG-AU FAUFBA, 2017.

SANTOS, Carlos. Quando a rua vira casa: apropriação de espaços de uso coletivo
em um centro de bairro. São Paulo, SP: Projeto, 1985.

SANTOS, Milton. Metamorfoses do espaço habitado: fundamentos teoricos e

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo: razão e emoção. São


Paulo: EDUSP, 2002.

políticas: O caso do movimento de moradia da cidade de São Paulo – Primeiras


Colombia Internacional. Bogotá: n. 71, p. 63-83.

Metrópole e Globalização. São Paulo: Cedesp, 1999, p.


221.

610
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PAISAGEM CULTURAL
E ECONOMIA CRIATIVA:
CAMINHOS E DESAFIOS
PARA A PRESERVAÇÃO DO
PATRIMÔNIO NO CENTRO
HISTÓRICO DE BELÉM
CULTURAL LANDSCAPE AND CRIATIVE ECONOMY:
PATHS AND CHALLENGES TO THE PRESERVATION
OF THE HISTORICAL HERITAGE IN THE
HISTORICAL CENTER OF BELÉM

CAMINOS Y DESAFÍOS PARA LA CONSERVACIÓN


DEL PATRIMONIO HISTÓRICO EN EL CENTRO
HISTÓRICO DE BELÉM
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

611
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

TAVARES, Ana Carolina Miranda


Graduação em Arquitetura e Urbanismo; Mestranda PPGAU UFPA
anacmiranda2@gmail.com

CAVALCANTE, Acilon Himercírio Baptista


Mestre em Artes Visuais;Professor Associado UFPA
acilon@baptistas.com.br

LIMA, José Julio Ferreira


PhD em Arquitetura; Professor Titular UFPA
jjlimaufpa@gmail.com

612
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Na segunda metade dos anos 1990, os governos Municipal e Estadual de Belém travaram um
embate de duas visões diferentes para renovações urbanas, algumas delas no Centro Histórico
de Belém. Por um lado, as iniciativas do município buscaram nas raízes caboclas símbolos
para as intervenções no patrimônio, dentre as quais a mais emblemática foi a do Complexo do
Ver-o-Peso. Já a gestão estadual promoveu a concepção de uma paisagem cultural baseada na
herança do Ciclo da Borracha, sendo o projeto Estação das Docas o principal destaque. Passa-
dos 20 anos, é percebida uma terceira paisagem cultural ligada a relação entre preservação e
economia criativa, emergente da interação entre a população e o legado das ações pregressas
de renovação urbana. O presente artigo busca explorar os elementos que compõem esta “nova”
paisagem cultural em Belém, discutindo as alterações nas relações entre sociedade e patrimô-
nio neste contexto. Para tanto, foram identificadas regiões associadas à paisagem cultural a
partir do mapeamento de projetos para renovação de edificações históricas e suas correlações
com iniciativas de economia criativa. Os resultados apontam a presença de empreendimentos
de economia criativa que usam o simbolismo do ambiente local como valor agregado às suas
atividades, e indicadores de mudanças nas relações espaciais que podem ser um caminho para
a preservação do Centro Histórico de Belém.

PALAVRAS-CHAVE: Centro Histórico de Belém. Economia Criativa. Preservação. Paisagem Cultural.

A BSTRACT
The Brazilian Amazonian city named Belém lived a conflict between the Municipality and the
State governments in the second half of the 1990s. On the one hand, the municipality’s urban
interventions were inspired by the forest roots and Its most emblematic project was the Ver-o-
-Peso Complex renovation. In contrast, the State of Pará government promoted the conception
of a cultural landscape based on the inheritance of the Rubber Cycle, where the Estação das
Docas project was the highlight. After 20 years, a third cultural landscape is emerging from the
interaction between the population and the legacy of previous actions of urban renewal relating
preservation with creative economy initiatives. This article seeks to explore the elements that
make up this “new” cultural landscape in Belém, discussing the changes in the relationship
between society and historical heritage in this context. In order to achieve it, regions associated
with the cultural landscape were identified from the mapping of architectural projects for the
renovation of historical buildings and their correlations with creative economy initiatives.
The results point to the presence of creative economy enterprises that use the symbolism of the
local environment as an added value to their activities, and indicators of changes in spatial
relations that may be a way to preserve the Historical Center of Belém.

KEYWORDS: Historic Center of Belem. Creative Economy. Preservation. Cultural Landscape


613
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
La ciudad amazónica brasileña llamada Belém vivió un conflicto entre el municipio y los
gobiernos estatales en la segunda mitad de la década de 1990. Por un lado, las intervenciones
urbanas del municipio se inspiraron en las raíces del bosque y su proyecto más emblemático
fue la renovación del Complejo del Ver-o-Peso. En contraste, el gobierno del Estado de Pará pro-
movió la concepción de un paisaje cultural basado en la herencia del Ciclo del Caucho, donde el
proyecto Estação das Docas supuestamente fue lo más destacado. Después de 20 años, un tercer
paisaje cultural está emergiendo de la interacción entre la población y el legado de acciones
previas de renovación urbana. Este artículo busca explorar los elementos que componen este
“nuevo” paisaje cultural en Belém, discutiendo los cambios en la relación entre la sociedad y el
patrimonio en este contexto. Para lograrlo, se identificaron regiones asociadas con el paisaje
cultural a partir del mapeo de proyectos arquitectónicos para la renovación de edificios históricos
y sus correlaciones con iniciativas de economía creativa. Los resultados apuntan a la presencia
de empresas de economía creativa que utilizan el simbolismo del medio ambiente local como
un valor agregado a sus actividades, e indicadores de cambios en las relaciones espaciales que
pueden ser una forma de preservar el Centro Histórico de Belém.

PALABRAS-CLAVE: Centro Histórico de Belem. Economía creativa. Preservación. Paisaje cultural

INTRODUÇÃO

O Centro Histórico de Belém foi objeto de políticas públicas e intervenções de


renovação urbana em suas dinâmicas de preservação e formas de exploração econô-
mica a partir da segunda metade da década de 1990, com o início da gestão de Almir
Gabriel, eleito para o Governo do Estado pelo PSDB, em 1995, e com a gestão do prefeito
Edmilson Rodrigues, mandatário do PT, a partir de 1997. A eleição desses dois gestores
deu início a um embate entre duas visões diferentes para a cidade, traduzidas em obras
e políticas culturais que deixaram um legado de preservação do patrimônio material e
imaterial, trabalhadas sob um viés econômico a partir de obras de renovação urbana,
infraestrutura e produção cultural sentidas até os dias atuais. Sugere-se que tais práticas
estão associadas a técnicas de empresariamento de ações públicas, conforme definidas
por Harvey (1996), que consistem em atribuir funções empresariais à gestão do espaço
público, com parcerias entre poder estatal e iniciativa privada.
Tais ações atuaram na construção de uma proposta de paisagem cultural para a
cidade de Belém. Paisagem Cultural é definida pela UNESCO, desde 1993, como

614
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

“ilustrativa da evolução da sociedade e dos assentamentos humanos ao


longo do tempo, sob a influência das determinantes físicas e/ou oportu-
nidades apresentadas por seu ambiente natural e das sucessivas forças
sociais, econômicas e culturais,” (UNESCO apud CASTRIOTA, 2010, p. 19).
A ideia de Paisagem Cultural a ser valorizada em Belém divergia nos entendimentos
entre Prefeitura e Governo do Estado. Pelo lado do poder estadual, a política cultural
sob a titularidade do Secretário de Cultura Paulo Chaves, buscou referências na herança
patrimonial deixada pelo ciclo econômico da Borracha (1870-1910) utilizando-se de ele-
mentos simbólicos e imagéticos para a composição da sua proposta. O ciclo da Borracha
foi caracterizado por edificações de inspiração na Belle Époque francesa, com boulevares,
casario e equipamentos urbanos que visavam a modernização[1] de Belém na virada do
Século XIX para o Século XX. Parte do legado arquitetônico desta época havia passado
por um processo de degradação já a partir das décadas seguintes à 1910, em virtude da
profunda crise econômica após ciclo da borracha. Esta mesma estagnação, no entanto,
permitiu que o conjunto de casarões, palacetes e equipamentos públicos perseverassem
ao invés de darem lugar à empreendimentos imobiliários voltados para classes de alta
renda. Desta forma, na gestão iniciada em 1995, deu-se início à uma série de empreendi-
mentos de renovação urbana, dentre os quais destacam-se o complexo Feliz Lusitânia[2] e
a Estação das Docas (LIMA; TEIXEIRA, 2006). Foi também o momento de promover eventos
internacionais, com destaque ao Festival de Ópera, o Festival Internacional de Dança da
Amazônia, além da operação das companhias da Orquestra Sinfônica do Theatro da Paz
e a Amazônia Jazz Band.
Em grande parte, os equipamentos e ações culturais criados na gestão Almir Gabriel
persistem até os dias de hoje e a continuidade de suas ações contribuíram para a conso-
lidação da paisagem cultural proposta por aquela gestão. Houve, no entanto, um choque

[1] O termo modernização empregado no texto, refere-se às transformações urbanas sentidas


na Europa na segunda metade do Século XIX, interpretadas por Walter Benjamin (BOLLE, 2000)
como o Moderno. Essas transformações implicavam nos impactos culturais da reforma urbana
de Haussmann sobre Paris em meados do Século XIX, que ao abrir bulevares e priorizar espaços
abertos ao consumo cultural e da paisagem, também criaram novos padrões de comportamento

[2] Mesmo sendo uma área muito anterior à Belle Époque paraense, pois remete à primeira
colonização da cidade (PENTEADO, 1973), o Feliz Lusitânia é uma das iniciativas mais impor-
tantes de renovação urbana, pois possui o marco de fundação da cidade (Forte do Presépio),
e prédios de clara herança da arquitetura portuguesa que foram foco das intervenções do
governo estadual.

615
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

cultural com as ações promovidas pela prefeitura, detentora de outra visão para a cidade,
mais alinhada com simbolismo e imagens de inspiração indígena e cabocla. A cerâmica
marajoara, por exemplo, inspirou a padronização visual dos ônibus que compunham o
transporte coletivo. Praças e equipamentos públicos, como bancos e pontos de ônibus,
passaram a ter o design também compatível com esta identidade. A área de entorno do
Centro Histórico de Belém recebeu em uma antiga edificação de traços ecléticos o Memo-
rial dos Povos, que valorizava todas as raízes da população da Amazônia e não apenas
a europeia. A cidade também recebeu um concurso público nacional para a renovação
do Complexo Ver-o-Peso, com o qual a feira e os mercados sofreram marcantes inter-
venções infraestruturais e de grande apelo estético. Ao contrário das ações estaduais,
em boa parte das ações de iniciativa do Município havia a preocupação de manter uma
gestão participativa: seja pela promoção de cursos de capacitação para trabalhadores
dos espaços criados, fóruns para eleição de prioridades e de orçamento participativo.
Apesar das diferenças, ambas propostas de paisagem cultural foram determinantes
para tornar o Centro Histórico de Belém (CHB) mais dinâmico, de tal forma que outras
ondas de renovação urbana colaborassem para a emergência de uma terceira paisagem
cultural a partir da interação entre a sociedade e aquelas duas primeiras. Nos anos
recentes no CHB, há uma paisagem cultural emergente com o surgimento de diversos
empreendimentos culturais que abrigam no simbolismo do centro histórico elementos
que agregam valores às suas atividades econômicas. Mais recentemente, a área recebeu
estabelecimentos como estúdios de design, moda, joalheria, etc., empreendimentos que
são denominados pelo Ministério da Cultura como “Economia Criativa”, e que crescem
mundialmente na forma das “cidades criativas” (MIRSHAWKA, 2017).
Do exposto, o presente artigo analisa os elementos do que pode ser considerada
a mais recente paisagem cultural e que contribuem para um ambiente de empreende-
dorismo que se apresenta, buscando discutir de que forma a dinâmica resultante desta
relação se relaciona com a preservação do patrimônio histórico. É importante ressaltar
que há tanto impactos positivos, como a restauração de imóveis por parte da iniciativa
privada, como negativos, como a elitização de algumas atividades e espaços que antes
eram considerados populares e agora passam por um processo de estratificação social,
por vezes tornando o espaço e serviços inacessíveis a camadas da população que por
séculos usaram o CHB para fins de moradia e geração de renda.
A primeira sessão do artigo busca contextualizar o que é o empresariamento urbano
e como este se relaciona com a produção artística e cultural, uma vez que esta é capaz
de agregar capital simbólico aos espaços que passam por processos de renovação. Já
a segunda sessão explana sobre o CHB, explorando a sua formação e o histórico das

616
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

intervenções de renovação urbana pelos quais a área passou desde a década de 1990,
que até então eram alinhadas com práticas internacionais de empresariamento (HAR-
VEY, 1996). Em boa parte das chamadas “cidades criativas” essas práticas deram lugar a
novos métodos de interação e renovação urbana, o que inicia a terceira parte do artigo,
na qual se analisa de que forma as iniciativas de empresariamento contribuíram para
a formação de uma nova paisagem cultural no CHB. Por fim, o artigo busca apontar
caminhos possíveis para o Centro Histórico de Belém, diante de práticas que geraram
impactos relevantes na preservação e na dinâmica econômica, com o estímulo à pro-
dução e valorização da cultura local.

1. EMPRESARIAMENTO URBANO E CAPITAL SIMBÓLICO

A partir da década de 1960, a economia de cidades industrializadas e portuárias


passou por mudanças significativas devido a alterações estruturais na divisão social do
trabalho no mundo capitalista. Tais alterações residiam principalmente em dois pontos.
O primeiro foi a obsolescência das estruturas de retroportos, que cederam lugar aos hub
ports, operando com maior capacidade e situados em locais afastados de centros urbanos
de forma a dar vazão aos procedimentos logísticos alinhados com a produção industrial
descentralizada. O segundo ponto foi a desindustrialização dos países centrais do capi-
talismo, com boa parte da produção migrando para países do hemisfério sul, onde havia
mão-de-obra mais barata e incentivos fiscais para a implantação de plantas industriais.
A produção automatizada e segmentada por etapas em países diferentes mostrou-se uma
estratégia eficiente para o capital, mas legou às antigas cidades industriais, normalmente
conectadas aos retroportos situados em localidades próximas, um vácuo econômico.
Diante desse panorama, surgiu a necessidade de governos locais proporem novos
usos e estabelecerem processos que promovessem outra dinâmica de aproveitamento
do espaço urbano para fins de serviços. Uma das principais estratégias para promover
novas dinâmicas espaciais é o que Harvey (1996) chama de empresariamento urbano.
Trata-se da produção de uma série de empreendimentos para atrair empresas do setor
de serviços, conectadas com a economia que avança sobre os aparatos da Sociedade de
Informação, empregando parcerias público-privadas de forma a requalificar edificações
e áreas abandonadas ou em processo de degradação. Para Harvey:
Em primeiro lugar, o novo empresariamento tem como característica
central a noção de “parceria público-privada” na qual as tradicionais
reivindicações locais estão integradas com a utilização dos poderes
públicos locais para tentar atrair fontes externas de financiamento,

617
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

novos investimentos diretos ou novas fontes geradoras de emprego.


(HARVEY, 1996, p. 52).
A partir da década de 1980, a intenção das administrações urbanas ligadas ao
empresariamento foi a de “prover um ‘bom clima de negócios’ e oferecer todos os tipos
de atrativos para atrair capitais para a cidade” (HARVEY, 1996, p. 57), o que de fato teve
resultados nas cidades que aplicaram essa prática, sobretudo no setor do turismo. Essa
ideia de revitalizar antigas estruturas físicas para adaptá-las a novas relações de espaço
ligadas a serviços e consumo é bastante característica do período pós-moderno, no qual
a gestão das cidades se torna muito mais flexível e passível de alterações contínuas como
forma de atender às mudanças na forma de circulação do capital.
As iniciativas de revitalização frequentemente buscam criar uma certa “imagem
urbana” que seja vendável a nível internacional e que colabore para tornar uma deter-
minada região competitiva na economia global, atraindo capital móvel para a escala
local. Dessa forma, a criação e a venda de uma certa “imagem” do lugar são aspectos
importantes para o funcionamento dessa competição, fazendo uso, para tanto, de certas
diferenças geográficas que são aguçadas e utilizadas como atrativo para criar poder de
monopólio espacial. A potencialização de diferenças entre as regiões envolve diversas
estratégias por parte do poder local, incluindo a construção de grandes estruturas e a
renovação de espaços anteriormente degradados, além do incentivo a festivais artísti-
cos e culturais, em um momento no qual a arte e cultura são fomentadas para fins de
consumo individualizado (HARVEY, 2011).
Nesse sentido, Harvey (2011) também aponta que uma característica importante da
produção cultural e artística no pós-modernismo é a tentativa de explorar novas mídias
e arenas culturais que sejam abertas ao grande público, buscando integrar os artefatos
culturais a questões da vida cotidiana. Esse processo de tornar a arte mais acessível
à população pode ser positivo na medida em que a produção cultural se torna mais
democrática e passível de ser realizada por diversos atores ligados ou não à indústria
criativa, e não apenas por poucas autoridades intelectuais, como era comum até a década
de 1960. Por outro lado, a ascensão da cultura pop colabora para que a arte tenha um
cunho mais efêmero e mercadológico, se tornando um objeto de consumo inserido na
lógica capitalista. Assim, é bastante sintomático, por exemplo, que a produção artística
ao longo dos últimos anos seja financiada por grandes corporações, pois elas podem
assim pautar seus interesses e propagar ideologias corporativas por meio de uma arte
de fácil consumo, firmando a condição da cultura enquanto mercadoria e fortalecendo
a indústria criativa (MIRSHAWKA, 2017).

618
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O estabelecimento da arte e da cultura como objetos de consumo também se rela-


ciona com a busca de certos grupos por um capital simbólico capaz de corroborar a sua
identidade social. Formado por um proletariado jovem ligados aos setores de serviços,
de finanças e da indústria criativa, essas camadas sociais geram uma forte demanda por
“novas formas culturais baseadas na moda, na nostalgia, no pastiche e no kitsch” (HAR-
VEY, 2011, p. 312). Este é um dos principais públicos que se busca alcançar a partir das
iniciativas de revitalização urbana ligadas ao empresariamento, pois há a tentativa de
criar uma “cidade-como-palco” (HALL, 2016, p. 506), produzindo espaços saneados, salubres
e seguros que transmitam a sensação de qualidade de vida, ao mesmo tempo em que
possibilitem o desenvolvimento de atividades culturais, artísticas e de entretenimento.
Nos anos recentes, ocorre uma nova “onda” de iniciativas, agora voltadas a coletivos que
buscam por meio de uma nova forma de organização, em grande medida baseadas nas
mídias sociais, interagir com os espaços urbanos, ressignificando-os e propondo novas
utilizações por meio do empreendedorismo, seja com espaços de coworking ou mesmo
movimentos reinvidicatórios por políticas públicas na sequência das manifestações
urbanas de 2016.
Esse panorama geral se relaciona com as dinâmicas em curso no CHB, que ao longo
das últimas décadas recebeu diversos projetos de revitalização parcialmente alinhados
às premissas do empresariamento urbano, sendo executados por meio de parcerias
público-privadas e objetivando valorizar os espaços às margens dos rios. Tal processo
tem relação com a emergência de uma paisagem cultural que vem sendo construída
mais recentemente, ligada ao surgimento de atividades e estabelecimentos artísticos
e culturais empreendimentos por grupos locais, que por sua vez simbolizam novos
caminhos para a preservação do patrimônio em Belém.

2. O CENTRO HISTÓRICO DE BELÉM

O CHB desempenhou um papel essencial na estruturação da cidade: por conta de


sua posição estratégica (na confluência da Baía do Guajará com o Rio Guamá), convergiam
para a área os principais fluxos de pessoas e de comércio, contribuindo para que ele se
consolidasse como um ponto importante para a administração pública (PENTEADO,
1973). Apesar disso, o CHB passou por processos de estagnação similares aos observados
em grande parte dos centros históricos das cidades brasileiras, o que pôde ser observado
principalmente a partir do fim do ciclo econômico da borracha, em 1910, quando houve
a redução no volume de investimentos públicos e privados na cidade e nos movimentos
dos portos de Belém (TOURINHO; LIMA, 2015; PENTEADO, 1973).

619
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Com o passar das décadas, houve um processo de saída da população do centro


histórico, principalmente do bairro da Campina, que perdeu o contingente populacional
formado pela população mais rica, o que resultou na subutilização de diversos imóveis.
Muitas outras edificações viriam a ser utilizados para fins comerciais, principalmente
para o mercado popular, o que gerou, em muitos casos, uma descaracterização das
construções históricas. Essas dinâmicas tiveram consequências diretas na configuração
socioespacial do centro histórico, uma vez que em muitos momentos a salvaguarda
do seu patrimônio não foi tida como uma prioridade. A ausência de uma legislação
que regulasse o uso e a ocupação do solo no CHB também contribuiu para que antigas
edificações fossem substituídas por edifícios que alteraram a morfologia e a paisagem.
Lima e Teixeira (2009) apontam como exemplo os prédios da Receita Federal e do Banco
Central, os quais apresentam características arquitetônicas que pouco “conversam” com
seu entorno, formado por um conjunto de casarios históricos que datam do século XIX,
localizados na Av. Boulevard Castilhos França.

Figura 01: Conjunto de casarões históricos e edifício do Banco Central ao fundo, na Av. Bou-
levard Casti
lhos França. Fonte: Google Street View, 2019.

620
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Apenas em 1994 o CHB veio a ser tombado pelo poder público municipal, por
meio da Lei n° 7.709/1994. No entanto, anteriormente a essa data, alguns conjuntos
arquitetônicos isolados já vinham sido tombados. Em 1964, por exemplo, o Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tombou o Conjunto Arquitetônico e
Paisagístico da Praça Frei Caetano Brandão, área que remete a formação de Belém e que
inclui em seu perímetro a Igreja da Sé, a Igreja de Santo Alexandre, o Forte do Castelo e o
Hospital Militar (atual Casa das 11 Janelas). Seguiu-se o tombamento do Conjunto Arqui-
tetônico e Paisagístico Mercado Ver-o-Peso e suas áreas adjacentes em 1969, incluindo
a Praça Pedro II e Boulevard Castilhos França, o Mercado de Carne e o Mercado Bolonha
de Peixe (GODINHO, 2017).
A partir da década de 1990, como parte dos processos que marcaram anos depois
as iniciativas de intervenções do Governo do Estado e da Prefeitura, passou a se mani-
festar em Belém um discurso acerca da necessidade de abrir “janelas para o rio”, ou seja,
espaços de lazer e contemplação às margens da Baía do Guajará e do Rio Guamá. Essas
discussões acompanhavam um movimento internacional que se manifestou em diver-
sas cidades ao redor do mundo, onde as zonas portuárias passaram por um processo de
obsolescência decorrentes da promoção de novos meios de transporte e de mudanças
técnicas no sistema portuário (BONDUKI, 2010). Dentro desse contexto, o Plano Diretor
de Belém de 1993 propunha a implantação de projetos voltados para o desenvolvimento
turístico na orla da cidade, podendo, para isso, fazer uso de instrumentos como zonea-
mentos especiais, IPTU progressivo no tempo e operações urbanas consorciadas (LIMA;
TEIXEIRA, 2009). Datam dessa época algumas das principais intervenções que ocorreram
na orla de Belém, como a criação do Espaço Feliz Lusitânia e da Estação das Docas e a
requalificação do Ver-o-Peso.
A Estação das Docas, inaugurada em 2000, é um dos exemplos mais representativos
das intervenções realizada nesse período. De iniciativa do Governo do Estado, o projeto
utilizou-se de três armazéns cedidos pela Companhia das Docas do Pará, abrangendo
uma área de 32.000 m² que foi utilizada para a instalação de restaurantes voltados para
a gastronomia regional e internacional, comércio, exposições de arte, um teatro de 400
lugares e espaço para eventos como feiras e exposições. O espaço faz uso de sua proximi-
dade com a Baía do Guajará para criar uma paisagem passível de contemplação e que,
ao mesmo tempo, tenta se mostrar atraente para o clima de negócios e investimentos
econômicos, especialmente no setor de turismo (TRINDADE JR; AMARAL, 2011).
O projeto para a Estação das Docas teve grande apelo para atrair o setor privado desde
o início, quando o governo estadual investiu 19 milhões de reais e a iniciativa privada,
5 milhões. Esperava-se que o empreendimento fosse capaz de se auto sustentar um ano

621
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

após sua inauguração, no entanto, passados alguns anos, o projeto não teve o retorno
econômico que se esperava e apresentou um alto índice de inadimplência condominial,
de modo que o governo precisou injetar recursos mensais para manter o funcionamento
pelo menos até o ano de 2010 (LIMA; TEIXEIRA, 2009). Apenas em 2018 o déficit com as
despesas de energia elétrica e ar-condicionado pôde ser resolvido após a implantação do
parque de energia solar no estacionamento do Hangar Centro de Convenções, o qual é
operado pela mesma Organização Social que gere a Estação das Docas, a Pará 2000 (FLEXA,
2018). Hoje em dia, o complexo turístico abriga 13 empreendimentos de gastronomia, 14
empreendimentos de economia criativa e mais 4 de serviços turísticos.
O Complexo do Ver-o-Peso também é um importante “cartão postal” de Belém que
passou por intervenções empreendidas pela prefeitura ao longo das últimas décadas,
tendo sido a primeira delas em 1985, quando houve a requalificação da feira, com padro-
nização das barracas e nova iluminação, mas três anos depois de concluído já apresentava
sinais de descaracterização (FORTE; SANJAD, 2016). Após um período de abandono, foi
convocado um concurso público nacional para uma nova requalificação do complexo,
sendo o projeto vencedor de autoria de arquitetos cariocas. A execução foi iniciada em
2001 e contou com forte participação popular, ocorrendo em diferentes etapas, pois a
prefeitura não dispunha da totalidade dos recursos necessários. Foram realizadas a
requalificação das barracas, que passaram a contar com coberturas em lona tensionada,
um novo sistema de iluminação e captação de águas pluviais, além de obras de restauro
no Mercado da Carne e no Solar da Beira.
Além da intervenção no Complexo do Ver-o-Peso, a prefeitura também buscou rees-
truturar a Rua João Alfredo, um importante eixo comercial no CHB. Foram implantadas
novas redes de infraestrutura, o cabeamento elétrico passou a ser subterrâneo, as calça-
das foram alargadas para permitir a permanência dos ambulantes e foram instalados
trilhos para a circulação de bondinho. Em contrapartida, os proprietários dos imóveis se
comprometeram a restaurar as fachadas das edificações e a retirar as placas que contri-
buem para a poluição visual, o que não chegou a ocorrer de fato e, como consequência,
o projeto acabou sendo descaracterizado (LIMA; TEIXEIRA, 2009).
Por sua vez, o Espaço Feliz Lusitânia foi o último projeto de iniciativa do governo
estadual que teve como foco a revitalização de uma área de 50.000 m² onde se deu a
fundação da cidade de Belém. A intervenção, finalizada em 2002, incluiu o restauro
da Igreja de Santo Alexandre e do Palácio Episcopal, onde passou a funcionar o Museu
de Arte Sacra do Pará; a revitalização de oito edificações na Rua Padre Champagnat; a
revitalização do Forte do Presépio, que passou a incluir um museu; e, em um último
momento, o restauro da Casa das Onze Janelas, onde atualmente funciona o Museu de

622
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Arte Moderna (TRINDADE JR.; AMARAL, 2011). Assim como a Estação das Docas, o Espaço
Feliz Lusitânia também se localiza em uma área circundada pelos rios e a intervenção
teve como um dos principais objetivos o fomento a economia e ao turismo, sendo o
próprio espaço um objeto de consumo que busca se mostrar moderno e competitivo.

Assim, o período entre o fim dos anos 1990 e início dos anos 2000, pode ser con-
siderado como uma época de grandes intervenções urbanas na cidade, sobretudo na
revalorização do CHB, com vistas ao seu desempenho econômico e preservação de seu
patrimônio. Após essa fase, um marco importante é a revisão do Plano Diretor ocor-
rida em 2008, que trouxe diretrizes que incluíam a requalificação do centro histórico,
o estímulo ao uso habitacional e à atividades de lazer e turismo e a reabilitação das
condições de mobilidade na área. No entanto, pouco do que foi previsto teve alguma
efetivação, merecendo destaque o fato de que diversos imóveis no CHB permanecem
subutilizados sem ter havido alguma regulamentação que pudesse mudar esse quadro
(TOURINHO; LIMA, 2015).
Atualmente, as iniciativas do poder público no CHB são pontuais e voltadas para a
recuperação de alguns imóveis de valor histórico, sendo, em geral, financiadas pelo PAC
Cidades Históricas, que, até o momento, abrange 15 obras em Belém, sendo algumas das
mais relevantes o restauro do Mercado do Peixe e da Igreja do Carmo. Ademais, percebe-se
algum volume de eventos realizados no CHB que buscam valorizar a cultura alimentar,
o que passou a ocorrer principalmente após Belém ser escolhida como Cidade Criativa

623
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

pela Unesco em 2015, tendo como foco a cultura alimentar e suas variações, como a
gastronomia. É importante notar que muitos desses eventos ocorrem nos espaços que
receberam requalificações por parte do poder público, como o Festival Fartura, que ocorre
em janeiro na Estação das Docas; o Festival Ver-o-Peso da Cozinha Paraense, que ocorre
na feira homônima; e Circuito Gastronômico de Belém, que ocorreu pela primeira vez
em novembro de 2018 no Espaço Feliz Lusitânia. Esse movimento dá sinais de um novo
momento no CHB, no qual o fomento a economia se dá muito mais através de incenti-
vos a eventos e setores culturais específicos (principalmente a gastronomia) do que por
meio de grandes obras.
O panorama geral de intervenções realizadas no CHB a partir da década de 1990
mostra que, apesar de acompanharem um movimento internacional de requalificação
de zonas portuárias que seguem uma lógica de empresariamento das cidades, elas tam-
bém foram capazes de fomentar atividades econômicas e culturais do centro histórico,
apesar de não terem sido capazes de alterar profundamente o comércio popular bem
como o perfil socioeconômico do CHB (TOURINHO; LIMA, 2015), que ainda possui no
comércio a principal atividade econômica. Atualmente, o centro histórico permanece
tendo vitalidade, abrigando as sedes de instituições importantes (como a da Prefeitura
de Belém e a da Assembléia Legislativa), apresentando um intenso fluxo de atividades
comerciais e mantendo um número considerável de imóveis com uso residencial. No
entanto, também é possível notar um movimento crescente de produção cultural no CHB,
distinto do que terias sido as intenções das intervenç ões do estado e da prefeitura. Suge-
re-se que as iniciativas agora apresentam novas possibilidades para o encaminhamento
de políticas de preservação enquanto valores sociais que hoje são compartilhados por
iniciativas operadas pelo setor público e privado na área.

URBANA DO CHB

O histórico de intervenções no CHB possui características diferentes das iniciativas


promovidas em cidades com um histórico industrial, o que se deve primeiramente ao
fato de Belém nunca ter sido de fato uma cidade com economia pautada pela indústria.
A presença de um retroporto, considerado moderno à época de sua construção, deu-se
por conta de haver na cidade uma commodity internacional que necessitava de um
equipamento de logística desse porte, a borracha. Outra diferença é quanto ao tempo de
estagnação econômica vivido pela cidade em relação às outras tomadas por referência
nas práticas de empresariamento. Até pelo menos a década de 1980, a cidade não teve um

624
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

crescimento econômico expressivo, o que de certa forma contribuiu para a manutenção


do patrimônio arquitetônico existente no seu Centro Histórico.
A partir da década de 1990, iniciaram-se uma série de intervenções no patrimônio,
que foram representativas do embate travado entre PSDB e PT, principais rivais do período
da Nova República desde os anos 1990 até as eleições de 2014, a partir do entendimento
diverso que cada gestão tinha de Paisagem Cultural. Este termo, apesar de ser um conceito
em construção, para a Unesco, pode ser entendida como:
Ilustrativas da evolução da sociedade humana e seus assentamen-
tos ao longo do tempo, sob a influência de contingências físicas e/ou
oportunidades apresentadas pelo ambiente natural, bem como pelas
sucessivas forças sociais, econômicas e culturais que nelas interferem.
(RIBEIRO, 2011, p. 37).
Em tais parâmetros, a Secretaria Estadual de Cultura e a Prefeitura de Belém ado-
taram referências diferentes no que se refere à Paisagem Cultural da cidade: enquanto
a primeira baseou suas ações tomando como referência o período da economia da bor-
racha (entre o fim do século XIX e início do século XX), a segunda baseou suas iniciativas
nas raízes amazônidas e caboclas. No entanto, usavam referências internacionais para
promover suas visões de renovação.
Segundo Harvey (1996), as iniciativas de empresariamento podem ser agrupadas
em três tipos: as cidades voltadas à produção tecnológica, as ligadas à produção cultural
e por fim, as que atuam no mercado financeiro. Belém criou uma série de equipamentos
que a mantinham enquanto proposta de cidade cultural e passou a adotar um calendário
oficial de eventos culturais, se aproximando das práticas de empresariamento praticadas
em outros centros internacionais:
Festivais e eventos culturais também se tornam o foco de investimentos.
‘As artes criam um clima de otimismo: a cultura do ‘tudo pode ser feito’.
essencial para o desenvolvimento de empreendimentos culturais’, diz
a introdução de um relatório sobre uma recente conferência de Artes
na Grã-Bretanha, acrescentando que as atividades culturais e as artes
podem reverter a espiral descendente de estagnação econômica em
cidades interioranas e também ajudar as pessoas “a acreditar nelas
mesmas e na sua comunidade. (HARVEY, 1996, p. 55).
Ademais, Belém é uma cidade com tradição na produção de eventos, sendo o exem-
plo mais significativo o Círio de Nazaré, procissão que ocorre todo segundo domingo
de outubro e que reúne milhões de pessoas nas ruas de Belém. A ocupação das ruas que

625
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

compõem o trajeto do Círio de Nazaré é um indicativo da cultura local, pois inclui alguns
dos elementos mais relevantes da paisagem cultural da cidade: a Avenida Nazaré por
exemplo, abriga algumas das edificações mais emblemáticas, como a sede social dos dois
principais times de futebol da cidade (Clube do Remo e Paysandu Sport Club); instituições
de ensino tradicionais; órgãos estaduais e municipais, e algumas das principais igrejas
da cidade. A procissão segue pela Avenida Presidente Vargas, chegando à Estação das
Docas, ao Ver-o-Peso e, por fim, à Igreja da Sé. É um trajeto “cenográfico” e em boa parte
inserido no Centro Histórico.
A presença dos equipamentos urbanos voltados à cultura, associados à um calen-
dário de uso desses espaços, tornou-se um campo fértil para o surgimento de outras
manifestações, como o Arrastão do Arraial do Pavulagem, que ocorre semanalmente no
mês de junho; o Auto do Círio, que ocorre anualmente na sexta-feira anterior à procis-
são do Círio de Nazaré; o Projeto Circular Campina-Cidade Velha, que abraça uma série
de ações culturais em estabelecimentos localizados no CHB; além de ações singulares
e eventos promovidos por grupos artísticos independentes. É o caso do grupo musical
e folclórico Arraial do Pavulagem, cuja sede se situa em um dos casarões históricos da
Avenida Marechal Hermes, o qual anualmente promove o arrastão do Boi Pavulagem,
que conta com centenas de pessoas no trajeto entre a Avenida Marechal Hermes no porto
e a Praça da República, principal espaço público do centro de Belém. Ao lado da sede
do Arraial, fica o Point do Açaí, restaurante baseado na culinária local que igualmente
ocupa outro casarão histórico. Restaurantes como o Rubão e a Portinha se situam no
CHB há mais de 20 anos, fomentando a cultura alimentar e promovendo eventos ligados
à agenda cultural da cidade.
Esse calendário de eventos tem repercussões sobre o setor de turismo em Belém.
Dados da Secretaria de Turismo (SETUR)[3] apontam que entre 2000 e 2010, a rede hoteleira
duplicou o número de leitos na cidade, alcançando em torno de 8 mil leitos com taxa
média de ocupação de 50%, não apenas no período do Círio de Nazaré, momento em que
há maior fluxo de pessoas de fora na cidade. O próprio Círio teve uma grande alteração
no perfil do público: até o ano 2000, a maior parte das pessoas que vinham para Belém
por conta do Círio de Nazaré possuíam algum vínculo com alguém da cidade, mas a
partir desse ano o número de turistas aumentou consideravelmente, repercutindo no
aumento de leitos nos hotéis.

[3] http://para2030.com.br/wp-content/uploads/2017/08/Turismo-e-Gastronomia.pdf última


visita em 07 de março de 2020.

626
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Entre os elementos preponderantes deste setor de Belém, o cenário criativo é o


que alcança maior destaque midiático e a economia criativa exerce papel relevante
para que isso ocorra, com especial destaque à produção cultural e à gastronomia. “Eco-
nomia Criativa” é um conceito em evolução, mas uma definição bem aceita é a de ser
qualquer atividade cultural que agregue valor econômico (SANTOS-DUISENBERG, 2008).
Desta forma, vários dos empreendimentos que surgiram nos últimos 20 anos no CHB
agregam valores imagéticos do espaço cultural em que estão inseridos como valores
econômicos e, portanto, usam o fato de estarem no CHB, ou ocupando edificações com
valores histórico-artísticos-culturais como diferencial. Vide as localizações dos pontos de
referência para os encontros do Arraial do Pavulagem, Point do açaí, Teatro Cuíra, Teatro
Casa do Fauno, entre outros no Infográfico 02, que além de revitalizarem os imóveis que
ocupam, buscam no cenário do Centro Histórico valores simbólicos para suas atividades
artístico-culturais. Há, no entanto, uma série de outros empreendimentos ligados ao setor
criativo que não chegam a alcançar êxito, isto porque a ideia de “prover um ambiente
de negócios” é uma parte do empresariamento que não foi completamente aplicada
em Belém. Ao estudar exemplos de outras cidades, inclusive brasileiras, observa-se que
elementos básicos como saneamento, limpeza urbana, mobilidade e acessibilidade não
são contemplados na cidade inteira, o que incorre em alguns obstáculos.

627
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Um dos maiores problemas relacionados à inclusão da Economia Criativa na pai-


sagem cultural do CHB é a possível elitização de objetos tradicionalmente populares, de
modo que serviços antes corriqueiros passem a ter um valor excludente e, assim, sejam
segmentados apenas para as classes de maior renda. Como já apontado por Harvey (2011),
a busca pela criação de um determinado capital simbólico ligado à arte e à cultura por
parte das iniciativas de empresariamento tem como um de seus principais públicos o
proletariado jovem, que detém um alto poder de consumo, o que pode levar a mudan-
ças no perfil da população que vive e circula por tais espaços. Tal efeito é verificado em
vários Centros Históricos da América Latina como política de Estado para atrair capital
e fornecer serviços turísticos (HOLLMAN, 2016).
Os serviços alimentares são dos que mais se evidenciam nessa estratificação de
renda no CHB. Enquanto a Estação das Docas abriga 13 restaurantes voltados à classe
média/alta, o Ver-o-Peso possui uma área de alimentação que inicialmente foi criada
para atender aos próprios feirantes, mas que hoje recebe de turistas à clientes com
renda maior. O problema da elitização dos serviços está na exclusão de pessoas que
por séculos usaram a área do CHB como meio de vida, exclusão esta que se dá pela ele-
vação dos preços ou pela imposição de símbolos e elementos visuais desagregados da
paisagem cultural à qual essa população está habituada. Tal fenômeno já é percebido
nos boxes (espaços delimitados para comercialização na feira do Ver-0-Peso) voltados
a alimentação, para onde há grande procura de turistas o que tem colaborado para o
aumento no preço das refeições.
A estratificação social dos usos das edificações nos centros históricos também é
uma característica que pode ser percebida no CHB, pois as comunidades estabelecidas na
área estão distribuídas principalmente entre as de trabalhadores do comércio popular,
situados no bairro da Campina, e as de moradores do bairro da Cidade Velha, configu-
rando relações espaciais bem diferentes entre uma região e outra. O primeiro bairro
citado apresenta usos predominantemente comerciais voltados para o mercado popular
e atendendo grande variedade de público, no entanto também uma área onde se observa
grande degradação do patrimônio. Lima e Teixeira (2006) apontam que o projeto Via dos
Mercadores, uma proposta de intervenção na principal avenida o Centro Comercial, a
Rua João Alfredo, buscou requalificar calçadas e renovar as fachadas dos casarões de
interesse histórico, mas não houve vontade política para que o projeto seguisse adiante.
Assim, hoje em dia grande parte dos casarões históricos voltados para usos comerciais
no CHB passam por um quadro de descaracterização.
Outro elemento que contribui para a atual configuração da região é a falta de
diversidade nos usos, pois por se tratar de um bairro predominantemente comercial,

628
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

após o horário de funcionamento dos estabelecimentos há uma redução drástica do


movimento nas vias, o que contribui para um clima de insegurança na área. Um dos
resultados disso é que 20 anos após a proposição do projeto Via dos Mercadores, esta
região concentra a maior parte de prédios abandonados e degradados. Para que ocorra
efetiva utilização, é necessário um amplo incentivo à diversificação dos usos, a partir
do qual os edifícios sem uso possam ser reabilitados para atender a funções sociais,
principalmente para a habitação popular.

CONCLUSÕES

Independente da visão de política pública do Estado ou do Município, a paisagem


cultural não é algo dado, mas uma construção feita da interação entre as pessoas e o
lugar, envolvendo sua história e todos os aspectos relativos ao seu desenvolvimento. No
CHB esta relação mantém-se ativa há quatro séculos, resultando em regiões distintas que
denotam determinados períodos da história da cidade, e trabalhando usos econômicos
característicos daquela área. Logo, ainda que a cidade tenha vivido períodos longos de
estagnação econômica, seu Centro Histórico sempre foi o espaço para as trocas entre a
cidade e floresta, além de manifestações culturais, contendo inclusive algumas frentes
imobiliárias na sua história recente, sentidas sobretudo ao longo da Avenida Presidente
Vargas nos anos 1960 e no Bairro do Reduto, um bairro industrial adjacente ao CHB, nos
anos 1990. Portanto, é fato que o CHB nunca foi uma área simplesmente degradada e
abandonada, mas uma região muito importante para a vida social, cultural e econômica.
As intervenções realizadas pelas esferas de poder público a partir da segunda metade da
década de 1990 tiveram importância macro na relação espacial da cidade com o Centro
Histórico, ainda que não tenham sido responsáveis por mudanças na matriz econômica
de toda a região, há novas iniciativas que merecem atenção.
O ambiente cultural criado a partir das propostas de empresariamento da década de
1990, promoveu um campo fértil à produção artística, o que resultou em uma paisagem
cultural própria, propícia à empreendimentos de economia. Este aspecto possui impactos
positivos sobretudo pela necessidade da economia criativa de buscar no simbolismo do
ambiente, valores de troca para sua produção, ou seja, o Centro Histórico, com edifica-
ções de épocas distintas da história da cidade, com eventos e manifestações culturais,
torna-se um catalisador de empreendimentos culturais com resultados já observados
na economia através dos setores de serviços e turismo.
Já o impacto negativo está justamente na elitização deste processo, uma vez que
se trata de um atrativo de capital e a estrutura econômica do país é promotora da desi-
gualdade e concentração de renda, a tendência de elitização dos serviços e gentrificação

629
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

é uma ameaça considerável, que ainda não se consolidou devido à regulação que impos-
sibilita frentes imobiliárias de destruição criativa, mecanismos de controle social que
impediram projetos indesejados, como a transformação do Ver-o-Peso em um grande
mercado em 2016, e o processo de empresariamento ter ocorrido de forma incompleta,
sem fornecer por exemplos serviços de limpeza pública e mobilidade urbana.
Muito embora o uso da Economia Criativa seja um caminho promissor para o
desenvolvimento urbano sustentável da região, é notório que não existe nenhuma
política realmente ligada ao assunto e, portanto, o estímulo à essa atividade baseia-se
na conjuntura global das tecnologias de informação, no espírito empreendedor dos
produtores culturais de Belém e no legado deixado pelos equipamentos culturais das
gestões públicas desde a década de 1990. Nos anos 2000 o governo federal chegou a
implantar uma Incubadora de Economia Criativa na cidade, mas este empreendimento
não logrou resultados por conta de atropelos institucionais do Ministério da Cultura, que
acabava por não repassar suas cotas à Incubadora e consequente abandono do projeto.
Mais recente, uma parceria entre o Chef Alex Atala e a SECULT tencionou a criação de um
polo gastronômico no Feliz Lusitânia, que não foi adiante por ignorar a classe artística
local e destes terem feitos uso de articulações políticas para impedir mais uma iniciativa
top-down[4] no Centro Histórico.
Hoje, a economia criativa é amplamente discutida no meio acadêmico, mas muito
pouco é trabalhado para tornar o conhecimento intelectual em ações de desenvolvimento
e preservação da área. Há iniciativas como o Circular Campina-Cidade, que movimenta a
cidade em torno dos empreendimentos culturais do CHB, mas é uma política de governo e
não de Estado, que precisa ser usado com mais cuidado em eventuais mudanças de gestão.
Portanto, apesar de Belém possuir várias prerrogativas para torna-se uma cidade
criativa, ela esbarra no sentido da tolerância e democracia espacial, ao criar uma cidade
justa para todos. Assim, é importante que as iniciativas geradas para a preservação do
Centro Histórico através do viés econômico explorem o lado humano e justo das políti-
cas públicas, pois o peixe frito e o gourmet, pelo menos neste momento, encontram-se
em extremos muito distantes, apesar de compartilharem o mesmo Centro Histórico.

[4] Termo empregado para gestão pública feita de cima para baixo, sem levar em consideração
a comunidade impactada pelo projeto.

630
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BONDUKI, Nabil. Intervenções urbanas na recuperação de centros históricos.


Brasília: Iphan, 2010.

Fisiognomia da metrópole moderna: representação da história em


Walter Benjamin. São Paulo: EDUSP, 2000.

perspectivas. Anais do 1º Colóquio Ibero-americano Paisagem Cultural,


Patrimônio e Projeto. Brasília, DF: IPHAN; Belo Horizonte, MG: IEDS. p. 17-28. 2017

Hangar terá maior central de energia fotovoltaica da Amazônia.

FORTE, Márcia Teixeira Filgueira; SANJAD, Thais Bastos Caminha. Intervenções

PARC Pesquisa em Arquitetura e Construção, Campinas: Editora Unicamp, v. 6, n.


3, p. 188-204, 2016.

PA: aspectos institucionais. São


Paulo: Anpur, 2017.

HALL, Peter. Cidades do Amanhã: uma história intelectual do planejamento e do


projeto urbano no século XX. São Paulo: Perspectiva. 2016.

administração urbana no capitalismo tardio. São Paulo:


EDUSP, v. 16, n. 39, p.48-64, 1996.

HOLLMAN, Carolina.
Long-Term Investment And Community Interests Align. Master in City Planning &
Master of Science in Real Estate Development – MIT. Massachusetts, 2016.

Luiza Howard (Orgs.).


resultados. – 2 ed. Barueri: Manole, p. 199 – 232, 2009.

Cidades Criativas: Talentos, tecnologia, tesouros, tolerância.

631
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PENTEADO, Antonio Rocha. O sistema portuário de Belém.

.
Anais do 1º Colóquio Ibero-americano Paisagem Cultural, Patrimônio e Projeto, p.
29-49. Brasília: IPHAN; Belo Horizonte: IEDS, 2017

SANTOS-DUISENBERG, Edna. A Economia Criativa: Uma Opção de


Economia Criativa
como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento.
São Paulo: Garimpo Soluções. p. 52-73. 2008.

TOURINHO, Helena Lúcia Zagury; LIMA, Davina Bernadete Oliveira. Planos


, Belo
Horizonte: Editora PUC Minas. v. 22, n. 30, p. 46-63, 2015.

TRINDADE JR, Saint-Clair Cordeiro; AMARAL, Márcio Douglas Brito. Reabilitação

urbanas emergentes. Revista Paranaense de Desenvolvimento-RPD, Curitiba:


IPARDES, n. 111, p. 73-103, 2011.

632
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PATRIMÔNIO
ARQUITETÔNICO

OS PROCESSOS DE
CONSTRUÇÃO DAS

EIXO TEMÁTICO 4: patrimônio, escalas e processos

633
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO:
O presente artigo trata da natureza da arquitetura dos terreiros de Candomblé, que se caracte-
rizam pela eterna transformação, movimento e devir, regidos pelo sistema dinâmico do Axé e o
tempo espiralado - Tempo-Okotó - de Exu, o senhor de todo o movimento, que tem nas árvores
sagradas que furam barracões, Ilê Orixás, e Casas de Caboclos, nos terreiros da Nação Nagô-
-Vodum da Bahia, o seu elemento de permanência (através do valor de culto, ancestralidade e
parentesco), constituindo o elemento geratriz dessa arquitetura a partir da qual toda arquitetura
se movimenta, seguindo o ritmo do Xirê, dos atabaques, e das cantigas do quebrado, fazendo
desses templos arquiteturas em transe.

PALAVRAS-CHAVE: Arquiteturas Afro-Brasileiras, Candomblé, Axé, Cidade, Negritude.

A BSTRACT:
The present article deals with the nature of the architecture of the Candomblé terreiros, cha-
racterized by the eternal transformation, movement and becoming, governed by the dynamic
system of Axé and the spiral time - Tempo-Okotó - of Exu, the lord of the whole movement, who
has in the sacred trees that sticks sheds, Ilê Orixás, and Casas de Caboclos, in the terrariums of
the Nagô-Vodum Nation of Bahia, its element of permanence (through the value of worship,
ancestry and kinship), constituting the generative element of this architecture from which all
architecture moves, following the rhythm of the Xirê, the atabaques, and the cantigas of the
broken, making these temples architectures in trance.

KEYWORDS: Afro-Brazilian Architectures, Candomblé, Ax, City, Negritude.

RESUMEN :
El presente artículo trata de la naturaleza de la arquitectura de los terreros de Candomblé,
que se caracterizan por la eterna transformación, movimiento y devenir, regidos por el sistema
dinámico del Axé y el tiempo espiral - Tiempo-Okotó - de Exu, el señor de todo el movimiento, que
en los terrazos de la Nación Nagô-Vodum de Bahía, su elemento de permanencia (a través del
valor de culto, ancestralidad y parentesco), constituyendo el elemento generatriz de esa arqui-
tectura a través de los árboles sagrados que perforan barracones, Ilê Orixás, y Casas de Caboclos,
desde la cual toda la arquitectura se mueve, siguiendo el ritmo del Xirê, de los atabaques, y de
las cantigas del quebrado, haciendo de esos templos arquitecturas en trance.

PALABRAS-CLAVE: Arquiteturas Afro-Brasileñas, Candomblé, Axé, Ciudade, Negritude.

634
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Exu nos conduz até a Rua Três Riachos, próximo da atual delegacia municipal, lugar
por excelência de sua morada, uma encruzilhada. Encruzilhadas da vida que Exu abre
ou fecha, guardião dos caminhos, geralmente tortuosos, de vidas desafortunadas que
ele ajuda e acolhe desde que não esqueçam dele. Nessa encruzilhada ele nos apresenta
uma casa, morada de uma velha senhora que teve muitos filhos biológicos e tantos
outros adotivos, cuja vida esteve em muitas encruzilhadas, mas que com o auxílio de
Exu conseguiu cruzá-las a contento, ele nos diz que estamos no Ilê Axé Itaylé, a ‘’Casa de
Mãe Filhinha’’. O Ilê Axé Itaylé (ver Fig. 01), da nação Nagô-Vodum, foi fundado por Mãe
Filhinha[1] , com a ajuda de seu pai-de-santo do Terreiro do Lama, em 1935. Tem como
Orixá regente, Iemanjá Ogunté, e o Orixá patrono Ogum. Presença que acontece nas
cores das construções do templo, assim como em suas bandeirolas, em azul e branco, em
homenagem a Iemanjá e Ogum. Localiza-se na Rua da Delegacia em Cachoeira. Uma casa
composta por uma varanda, uma sala, dois quartos, e uma cozinha, seguida lateralmente
e ao fundo por um estreito e comprido quintal. A casa foi comprada por Mãe Filhinha
em 1928. Depois de sete anos fazendo caridade na casa, obteve a permissão de Iemanjá
Ogunté para começar a trabalhar no Candomblé, fundar seu terreiro e fazer trabalhos
e serviços espirituais, tornando-se a médica dos desvalidos.

[1] Nadir Santos da Conceição, conhecida como Mãe Filhinha é a Ialorixás do Ilê Axé Itaylé.
Mãe Filhinha nasceu em Conceição de Feira, povoado de Feira de Santana, e foi para Cachoeira
ainda na condição de criança de colo. Foi iniciada, ainda na adolescência, nos segredos do
axé no Terreiro do Lama, da nação Nagô-Vodum no município de São Gonçalo, no Recôncavo

a casa no ciclo das festas do calendário litúrgico. Filha de Iemanjá Ogunté, Mãe Filhinha, é uma
mulher guerreira, forte, determinada, teve uma vida de muito trabalho. Começou a trabalhar,
ainda criança, pegando no cabo da enxada nas roças de mandioca da região, e fazendo farinha
para venda na feira da cidade. Em seguida, foi trabalhar fazendo utensílios de cerâmica: potes,
gamelas, jarros, panelas, telhas. Depois trabalhou nas fábricas de fumo da região, fazendo

do porto, fazendo cigarretes de fumo.

635
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Fig.01: Fachada do Ilê Axé Itaylé A casa de Mãe Filhinha, com um nicho com a imagem de Nossa
Senhora Conceição. Data: 2009.

O primeiro movimento, a primeira transformação da arquitetura sob o tempo


espiralado de Exu, o Tempo-Okotó, aconteceu depois de sete anos da compra da casa, em
1935, quando a casa foi transformada em terreiro de Candomblé, quando a casa passa
a ser, também, um templo através do rito de cosmonização do espaço: o plantio do axé
do templo. Quando o sistema dinâmico do axé se estabelece, cria o habitat dos deuses
(Orixá, Vodum, Inquice), e a abertura e conexão do Orum com o Aiê. A partir de então cada
espaço sagrado e membro do terreiro irá receber o axé da casa, guardá-lo, alimentá-lo,
potencializá-lo para ser, posteriormente, distribuído. A partir de 1935 começam as festas,
os Xirês do terreiro, se estabelece então um calendário de festividades[2]. E, com as festivi-
dades inaugura-se o barracão do terreiro no quintal lateral da casa de Mãe Filhinha (ver
Fig.02). Entretanto, o barracão era construído com madeira e palha de palmeira, tinha a
forma de um salão circular de piso em terra batida, fechada lateralmente à meia altura

[2] Ilê Axé Itaylé obedece ao seguinte calendário: janeiro ocorre às festas de todos os Orixá,

têm a festa dos Cablocos, principalmente, a festa de Pixixi, no dia de 02 de julho; e, a festa a
Iemanjá Ogunté, no dia de aniversário de Mãe Filhinha, com missa pela manhã na igreja do
Monte, seguida, à noite, por um cortejo com a imagem de Nossa Senhora da Conceição pelas

636
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

com hastes da palha de palmeira, e coberto, também, com folhas de palmeira, tendo
todo o seu perímetro protegido pelo Mariô, feito com o ‘’olho’’ do dendê, protegendo o
espaço dos maus espíritos.

Fig.02: Ilê Axé Itaylê:1-varanda, 2-sala, 3-quarto de Mãe Filhinha, 4-corredor, 5-quarto dos orixás,
6-cozinha, 7-barracão de palha, 8-mata sagrada, 20-Obaluaiê, 21-caboclo Taquara. Data: 2010.

Tornou-se um abrigo temporário dos deuses e Caboclos que durava apenas o tempo
das festas, ou seja, apenas, em dois momentos do ano: o primeiro, no ciclo de festas do
mês de janeiro em dedicação aos Orixás, e o segundo ciclo, em julho, em homenagem
aos Caboclos, na ocasião das comemorações da Independência da Bahia. Constituía uma
arquitetura transitória, efêmera, montável e desmontável, feita especialmente para a
festa, para a dança do Quebrado dos Orixás e Vodum, uma indumentária de palha, que
cobria o corpo do povo-de-santo do Ilê Axé Itaylé, da mesma forma que a veste de palha
do Orixá Obaluaiê cobre o corpo de seus filhos, palhas em movimento.
Nessa arquitetura transitória se potencializa o sistema dinâmico do axé, na medida
em que a comunidade terreiro passa a ter um espaço para a realização de suas festas, o
seu Xirê, que durante o mês de janeiro batem os atabaques para todos os Orixá da casa,
alimentando-os através das obrigações, oferendas de comidas e sacrifícios de animais
votivos. Tem na festa o seu ápice, onde e quando – espaço-movimento – vêm ao encontro
dos mortais em transe. O barracão de palha dá um abrigo à dança dos filhos-de-santo
em êxtase, possibilita o habitat, a instauração de uma instância e circunstância da qua-
dratura: deuses, egbé, Orum e o Aiê.
Nesse primeiro movimento da arquitetura ocorreram, também, as alterações na
casa de Mãe Filhinha, onde os espaços foram adaptados para abrigar algumas atividades
essenciais do culto. Uma alcova foi transformada em quarto dos Orixás, todos reunidos
num mesmo recinto, tendo como destaque o assento de Iemanjá Ogunté que além do
seu otá Orixá, quartinhas para o ossé e o assento de seu Exu, há, também, um pequeno
nicho nas cores azul e branco, com a imagem de Nossa Senhora da Conceição, que no
dia do aniversário de Mãe Filhinha sai em um cortejo pelas ruas do bairro. Na sala de

637
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

visitas foi instalado um oratório católico, com jarros para flores e diversas imagens de
santos católicos, tendo ao centro, também, a imagem de Nossa Senhora da Conceição,
evidenciando o paralelismo afro-católico no templo, onde cada um têm o seu lugar,
‘’cada qual’’ em seu ‘’cada qual’’, porque as duas imagens diferenciam-se. Nossa Senhora
da Conceição, no quarto dos Orixás, é na realidade Iemanjá Ogunté. E, é essa imagem, e
não a imagem católica, que desfila pelas ruas do bairro em homenagem, louvor e come-
moração a Mãe Filhinha, no dia do seu aniversário.
Nesse movimento da arquitetura, foi construído, ainda, junto ao corpo arquitetô-
nico inicial, a Casa de Mãe Filhinha, um quarto do Orixá Ogum, porque Mãe Filhinha é de
Iemanjá com Ogum na frente, Iemanjá Ogunté, onde foi posto seu pepelê e seu assento,
tendo como ante-sala um espaço com imagens de santos católicos (estatuária, fotos,
quadros, pinturas, cruzifixos, etc...), e imagens de Caboclos; e, de um roncó para o recolhi-
mento dos iniciados, que começavam a ser então cada vez mais numerosos (ver Fig. 03).

Fig. 03: Ilê Axé Itaylê:1-varanda, 2-sala, 3-quarto de Mãe Filhinha, 4-corredor, 5-quarto dos orixás,
6-cozinha, 7-barracão de palha, 8-mata sagrada, 9-quarto de Ogum, 10-ronco, 20-Obaluaiê,
21-caboclo Taquara. Data: 2010.

Transformações que vêm ao encontro do pleno desenvolvimento do axé. Torna-se


necessário construir os quartos dos Orixás: o quarto da regente, a Orixá Iemanjá, e do
patrono, o Orixá Ogum, para que possam alimentar o axé dessas duas divindades, e desen-
volver o axé da casa. E, o roncó, onde serão iniciados os filhos da casa para a construção
da egbé, da comunidade terreiro de Mãe Filhinha, para ocupar os cargos da casa e realizar
as obrigações, para cuidar e zelar pelo sistema dinâmico do fluxo de axé. A construção do
templo vem ao encontro da construção da egbé, da comunidade terreiro, que por sua vez
se tece para alimentar, desenvolver e compartilhar o axé da casa. O segundo movimento
da arquitetura, sua segunda transformação, no tempo espiralado de Exu, ocorreu com
o aumento da freguesia, em busca de curas medicinais para suas enfermidades e/ou
trabalhos espirituais, assim como, a consolidação da egbé do templo, com o aumento
dos filhos-de-santo, que também, em sua maioria, são filhos biológicos, e que habitam,
ainda hoje, ao redor do terreiro. Surgiu a necessidade da construção do barracão da casa

638
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

para acolhê-los nas grandes festas, em substituição ao barracão de palha de palmeira,


temporário, efêmero, transitório. Todavia, constitui o mesmo barracão, que permanece
na transformação. Permanece como lugar da festa, do Xirê (ver Fig. 04).

Fig. 04: Ilê Axé Itaylê:1-varanda, 2-sala, 3-quarto de Mãe Filhinha, 4-corredor, 5-quarto dos
orixás, 6-cozinha, 8-mata sagrada, 9-quarto de Ogum, 10-ronco, 11-barracão, 20-Obaluaiê,
21-cabloco Taquara.
Data: 2010.

O barracão de tijolos e telhas artesanais feitas pela própria Mãe Filhinha foi cons-
truído paralelo à sua casa. O barracão apresenta agora a forma retangular, aberta a meia
altura, para a melhor apreciação das assistências que ficam do lado de fora, num ‘’bar-
racão ampliado’’, e, também, para uma melhor ventilação dos que ficam dentro durante
as festas. O barracão apresenta em seu interior duas árvores sagradas que ‘’furam’’ o
telhado, a primeira é o assento do Caboclo Taquara, e a segunda, é o assento do Orixá
Obaluaiê. O barracão é todo pintado em azul claro e branco (em homenagem a Iemanjá
Ogunté), e essas, também são as cores das bandeirolas que enfeitam o barracão. Iemanjá
se faz presente, além da cor que compõe o ambiente, em duas imagens: uma imagem
de Iemanjá na forma latinizada de uma sereia; e, na imagem de Iemanjá na Umbanda
ressignificada no universo do Candomblé.
A assistência encontra-se no fundo do barracão, em uma arquibancada que chega
muito próximo ao telhado. Diferencia-se dos terreiros Ketu e Jêje, em que os homens
sentam a direita e as mulheres à esquerda, sentando todos juntos como no Candomblé
de Angola, Congo e Candomblé de Caboclo. O barracão foi feito em mutirão pelos filhos
da casa, teve seu telhado fabricado artesanalmente pelas mãos de Mãe Filhinha, que
usou suas coxas como molde para as telhas, aproveitando sua experiência de trabalho
em olarias da região. O terceiro movimento da arquitetura do templo, outra transfor-
mação, regido pelo tempo espiralado de Exu, ocorreu pouco tempo após a finalização
do barracão. Foi construído nos fundos do barracão uma cozinha ritual, um quarto de
Exu, e um cercado para proteger o Inquice Tempo, que se encontra no início da mata
sagrada assentado numa jovem gameleira (ver Fig. 05).

639
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Fig.05: Ilê Axé Itaylê:1-varanda, 2-sala, 3-quarto de Mãe Filhinha, 4-corredor, 5-quarto dos orixás,
6-cozinha, 7-sanitário, 8-mata sagrada, 9-quarto de Ogum, 10-ronco, 11-barracão, 12-cozinha
ritual, 13-quarto de Exu, 14-despensa, 15-Tempo, 20-Obaluaiê, 21-caboclo Taquara. Data: 2010.

Transformações que vêm responder a conservação do sistema dinâmico do axé com


a construção do quarto de Exu (elemento primordial do sistema), o zelador do Ilê Axé
Itaylé, que até o momento não possuía sua morada; com o plantio da árvore sagrada do
Inquice Tempo na entrada da pequena mata sagrada do terreiro localizada no quintal; e,
com a construção da cozinha ritual, que até então funcionava precariamente na cozinha
doméstica da casa de Mãe Filhinha, sendo, portanto, fundamental para o desenvolvimento
das obrigações, rituais, oferendas e festas promovidas, agora, por uma egbé estruturada
e organizada. O quarto movimento da arquitetura, mais uma de suas transformações, no
Tempo-Okotó, foi à construção dos aposentos para os filhos-de-santo da casa que vão se
hospedar durante os ciclos das festas para cumprirem suas obrigações, para alimenta-
rem o axé da casa. São feitos dois quartos coletivos, um para os homens e outro para as
mulheres e, uma casa, para as pessoas mais velhas e que ocupam cargos mais elevados
no templo. Assim, como constroem um galinheiro na mata (quintal), para os rituais de
matança e subsistência na esfera do cotidiano (ver Fig.06).

Fig.06: Ilê Axé Itaylê:1-varanda, 2-sala, 3-quarto de Mãe Filhinha, 4-corredor, 5-quarto dos orixás,
6-cozinha, 7-sanitário, 8-mata sagrada, 9-quarto de Ogum, 10-ronco, 11-barracão, 12-cozinha
ritual, 13-quarto de Exu, 14-despensa, 15-Tempo, 16-quarto, 17-casa, 18-galinheiro, 20-Obaluaiê,
21-caboclo Taquara. Data: 2010.

640
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Esses quartos não sendo suficientes, em função do aumento considerável de visi-


tas e iniciados do templo oriundos, agora, de outras cidades do Recôncavo e, também,
de Salvador e Região Metropolitana fez-se necessário a construção de uma casa ao lado
da casa de Mãe Filhinha, imprimindo o quinto espaço-movimento à arquitetura, mais
uma transformação, construção essa composta, basicamente, por três quartos, tendo
ainda uma varanda, tal como a casa de Mãe Filhinha. Também foi ampliada a casa de
Mãe Filhinha com a construção de mais um quarto conjugado em sua lateral (ver Fig.07).

Fig.07: Ilê Axé Itaylê:1-varanda, 2-sala, 3-quarto de Mãe Filhinha, 4-corredor, 5-quarto dos orixás,
6-cozinha, 7-sanitário, 8-mata sagrada, 9-quarto de Ogum, 10-ronco, 11-barracão, 12-cozinha
ritual, 13-quarto de Exu, 14-despensa, 15-Tempo, 16-quarto, 17-casa, 18-galinheiro, 20-Obaluaiê,
21-cabloco Taquara. Data: 2010.

Transformações que criam as condições para a estadia da egbé, para a morada


temporária no mês de janeiro dos filhos-de-santo, ogãs e equedis da casa que cuidam
do axé de seus corpos, de seus ori (cabeças), com banho de folhas, e com os cumprimen-
tos dos tabus alimentares e sexuais, equilibrando suas energias, preparando-se para as
obrigações, rituais e oferendas às divindades. Com suas energias puras e em equilíbrio,
para em comunhão, potencializar o axé do templo. Trabalhando coletivamente para
alimentar e potencializar o axé da casa, através da manutenção do seu sistema dinâmico,
conforme a tradição dos rituais e obrigações do Nagô-Vodum. E, o sexto movimento,
a transformação atual, por enquanto, foi edificado no fundo do terreiro, no início do
que restou da mata sagrada, um barracão, específico para os Caboclos (ver Fig. 08), cujo
telhado é delicadamente decorado com bandeirolas nas cores verde e amarelo (cores
da bandeira do Brasil), em homenagem a importância do Caboclo na guerra de inde-
pendência da Bahia. Esse barracão, quadrado, também é aberto na lateral para maior
visibilidade dos participantes que estão de fora, e conforto ambiental dos que estão
dentro. Agora se separa as festas e os espaços, temos: um barracão para festa de Orixá; e
um outro barracão, para a festa dos Caboclos, principalmente do Caboclo Pixixi, ‘’cada
qual em seu cada qual’’. Cada um com seu espaço ritual, com seus festejos.

641
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Isso ocorre, porque, na tradição do Nagô-Vodum, como foi dito anteriormente ao


tratar do Lobanekum Filho, os Caboclos assumem uma dupla função, que convivem,
complementam-se. O Caboclo é ao mesmo tempo um ancestral (indígena), como ocorre
nos terreiros Iorubás (Ketu, Ixejá, Nagô), e, também, de ancestral indígena divinizado, com
o status de ‘’divindade’’, como ocorre nos terreiros de Caboclo e Bantus (Congo e Angola).
E, a esses dois, soma-se um terceiro aspecto, fundamental do Recôncavo, o Caboclo
é um patrimônio de família, que só manifesta-se naquela família, e que em função de
seus poderes de realização imprime à comunidade terreiro um teor de prestígio, distin-
guindo-a das demais.
Logo, por serem considerados um ancestral da casa, da família, de grande prestígio
dentro da comunidade terreiro, por serem considerados ancestrais indígenas divinizados
tornando-se um patrimônio da egbé, merecem ser tratados como tal, e ter seu próprio
espaço de festas, seu lugar para dançar, brincar e aconselhar os filhos-de-santo nessa
jornada de infortúnios e fortunas que é a vida. Espaços-movimentos da arquitetura
que em sua abertura, em seu devir, em suas transformações continuas atendem para
conservar o sistema dinâmico do axé, conservam a partir da alteridade o axé da casa.
Arquiteturas que têm no movimento, no dinamismo o meio, caminho e o instrumento
para a conservação do Candomblé. Iroco com seus galhos – a permanência - mostra
como o fluxo de axé se conserva pela transformação.

Fig.08: Ilê Axé Itaylê:1-varanda, 2-sala, 3-quarto de Mãe Filhinha, 4-corredor, 5-quarto dos orixás,
6-cozinha, 7-sanitário, 8-mata sagrada, 9-quarto de Ogum, 10-ronco, 11-barracão, 12-cozinha
ritual, 13-quarto de Exu, 14-despensa, 15-Tempo, 16-quarto, 17-casa, 18-galinheiro, 19-barracão
de Caboclo, 20-Obaluaiê, 21-cabloco Taquara. Data: 2010.

642
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Exu nos indica os lugares peculiares e singulares da permanência no Ilê Axé Itaylê,
a brincar, com a permissão de Iroco entre as árvores sagradas que nascem dentro do
barracão furando o telhado e a pular entre as estrelas do chão. O barracão apresenta algo
inusitado: duas árvores frondosas furam e rompem o telhado, imprimindo a sensação de
que o telhado é sustentado por elas, pelas árvores da vida sob o zelo de Iemanjá Ogunté,
que acolhe e conforta a todos os seus filhos, nas mazelas e infortúnios da vida, em sua
mão-barracão (Fig. 09):

Fig. 09: Árvore sagrada, assento de Obaluaiê, abraçado pelo


Barracão. Data: 2009.

As árvores sagradas já existiam antes da construção do barracão. Elas existiam


antes, inclusive, do primeiro movimento, e da fundação do terreiro, quando aconteceu
a sacralização da casa em templo, a abertura do Orum no Aiê. A primeira árvore, como
dito em outra ocasião, é o assento do Caboclo Jaiça Taquara, chamado, comumente de
Tuma Juçara; e, a segunda árvore é o assento do Orixá Obaluaiê. Essas árvores sagradas
destacam-se das demais árvores de culto do templo, tornando-se as mais importantes,

643
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

porque foi em volta delas que se organizaram o culto, era o local onde os membros do
povo-de-santo realizavam obrigações anuais a Obaluaiê e aos Caboclos, foi ao seu redor
que se estruturou a egbé, a comunidade terreiro do Ilê Axé Itaylé, sob a liderança de Mãe
Filhinha. Essas árvores sagradas foram os elementos de escolha do sítio de edificação do
templo, de construção do terreiro e gerador da arquitetura do Ilê Axé Itaylé. As árvores
sagradas de Obaluaiê e do Caboclo Taquara, com a realização das suas respectivas obri-
gações anuais - fundam o lugar - a partir do qual se territorializa a comunidade terreiro
com a posterior edificação do templo que ocorre a partir do plantio do axé do terreiro.
São os elementos simbólicos sagrados que originam o terreiro, a egbé (comunidade
terreiro), o templo e a sua arquitetura. Em frente a essas duas árvores, após a fundação
do terreiro, era montado durante as festas dos Orixás em janeiro, e nas dos Caboclos
em julho, o barracão de palha de palmeira. Barracão temporário, efêmero, todavia, que
instaurava uma instância e circunstância a quadratura, ao jogo em espelho do mundo,
entre os Orixás, os filhos-de-santo, o Aiê e o Orum, fortalecendo ali, o lugar. Lugar cujo
simbolismo é fortalecido, agora, pelas festas, o Xirê, dos Orixás, Vodum e Caboclos que
convidam os mortais em transe a compartilharem com os seus deuses as dádivas do Orum.
No segundo movimento da arquitetura foi edificado o barracão de tijolo cozido e
telha cerâmica artesanal. Entretanto, ao construí-lo a comunidade terreiro não optou
em fazê-lo no quintal do fundo onde até hoje há a mata sagrada do templo; nem na
outra lateral da casa de Mãe Filhinha, área que foi doada por ela aos filhos-de-santo do
templo para construírem suas casas que hoje constitui um correio de casas, uma vila,
voltadas para a rua; e, nem na área do terreiro em que hoje há uma casa de hospedagem
dos filhos-de-santo voltada para a rua principal ao lado da casa de Mãe Filhinha. Todas
elas constituíam áreas amplas, espaçosas, propícias a construção de um barracão que
comportasse as festas e seus filhos. Entretanto, apesar da existência de áreas mais gene-
rosas para edificação do barracão Mãe Filhinha e a egbé do Ilê Axé Itaylê optaram em
edificá-lo no mesmo lugar onde se levantava o barracão de palha, aos pés das árvores
sagradas, aos pés de Obaluaiê e do Caboclo Taquara, no lugar da quadratura, do encontro
dos deuses e mortais, do Orum com o Aiê, o lugar de origem do terreiro, e atual lugar da
festa. O barracão, logo, é o mesmo, ele permanece como lugar, enquanto espaço simbólico.
A festa, o Xirê, fortalece e alimenta o simbolismo do lugar, onde e quando o sistema dinâ-
mico do axé atinge seu ápice. Os deuses a dançar envolta do Itoto (ver Fig. 10), do templo
composto por duas estrelas: a estrela de Salomão (cinco pontas), simbolizando Iemanjá
(regente), e a de Davi (seis pontas), simbolizando a presença de Ogum (patrono), no Ilê
Axé Itaylê; sob o ritmo do Quebrado ao som do Nagô-Vodum, manifestados nos corpos
dos filhos-de-santo em transe, edificam uma arquitetura, um lugar singular, próprio,
peculiar, onde as árvores nascem de dentro da construção e irrompem seus telhados.

644
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O Xirê, aos pés das árvores sagradas, ao edificar o lugar cria uma relação própria que
diferencia os terreiros da nação Nagô-Vodum.

Fig. 10: Itoto, simbolizado pelas estrelas de Davi (seis pontas), Ogum; e de Salomão (cinco
pontas), Iemanjá, Cachoeira, Bahia.
Data: 2009.

Ali está o encontro do Orum com o Aiê, das estrelas do céu com as estrelas do chão
do barracão, as estrelas dos deuses e as estrelas dos homens, onde a arquitetura e a natu-
reza não constituem dois predicados opostos, polares, binários. Naquele lugar não há
dicotomia entre natural x artifício, natureza x homem, mas uma imbricação no sagrado.
A árvore sagrada torna-se arquitetura, natureza que compõe e cria uma arquitetura afro-
-brasileira particular, e a arquitetura do barracão torna-se natureza sacralizada, fazendo
parte da mata ritual. O sagrado e o profano combinam-se, interpenetram-se, tornando-se
uma coisa só. Estando, as duas árvores ali, sempre a abrir e fechar as festas no Xirê.
O barracão, ao ser feito, abraçou as árvores sagradas, como se fosse um grande ojá.
O abraço do barracão convida, terminantemente, os deuses a se abrigarem ali, a estarem
ali acolhidos constituindo a arquitetura, sendo a própria arquitetura. O lugar perma-
nece, transformando-se, do barracão de palha ao barracão de tijolos e telhas, mas sendo

645
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

o mesmo barracão, porque ali se dá a aparição dos deuses, ali eles dançam, envolta das
estrelas aos pés das árvores sagradas de Obaluaiê e do Caboclo Taquara. Lugar peculiar,
singular que permanece na transformação porque a comunidade terreiro do Ilê Axé
Itaylê lhe atribui os valores de culto, ancestralidade e parentesco que possuem na festa de
aniversário de Mãe Filhinha o seu ponto máximo. A festa de aniversário de Mãe Filhinha
comemorado no dia 25 de outubro constitui, também, uma comemoração para Nossa
Senhora da Conceição e, sobretudo, para Iemanjá Ogunté, nesse dia reverencia-se a ances-
tral viva, a divindade católica e a africana no espaço do terreiro. Segundo Mãe Filhinha
e Dona Lúcia, Mãe Pequena do terreiro, os preparativos começam na véspera, no dia 24
de outubro, ocasião em que os filhos-de-santo da casa realizam a limpeza do templo.[3]
Prepara-se a sala de visita de Mãe Filhinha onde fica o oratório católico com a ima-
gem de Nossa Senhora da Conceição retirando o pano de renda do oratório, descobrindo
todos os santos católicos, lavam os jarros, os castiçais e ascendem as velas; no barracão
são dispostas as bandeirolas nas cores azul e branca de Iemanjá Ogunté, e os mariô nas
aberturas; e, por fim, preparam a imagem de Iemanjá Ogunté que está no quarto dos
Orixás na casa de Mãe Filhinha para o cortejo do dia seguinte.
No dia da festa, logo cedo, por volta das 7:00hs da manhã são realizadas preces e
orações católicas, assim como louvores a Nossa Senhora da Conceição, em frente a imagem
da santa que se encontra cercada pelas imagens dos demais santos católicos no oratório
da sala de visitas de Mãe Filhinha. As pessoas presentes enchem a sala, e dispõem-se nas
portas e na varanda da casa. Às 9:00hs, ao fim das orações, todos dirigem-se para tomar o
café da manhã no barracão onde encontram uma mesa com diversas iguarias da região.
Ainda durante a manhã, os filhos-de-santo realizam a obrigação de Iemanjá Ogunté com
o sacrifício de animais votivos a ela consagrada, e mais tarde a oferenda das comidas
sagradas da divindade em seu assento no quarto dos Orixás. Após o almoço, no início da
tarde, os homens trabalham nos preparativos do cortejo, e as mulheres trabalham nos
preparativos da missa em homenagem a Mãe Filhinha na Capela da Irmandade da Boa
Morte. As 17:00hs é realizada a missa católica encomendada pelo povo-de-santo do Ilê Axé
Itaylé em homenagem a Mãe Filhinha, com a presença das mulheres da Irmandade da
Boa Morte. Com o termino da missa Mãe Filhinha juntamente com suas filhas-de-santo
e com o corpo das mulheres da Irmandade da Boa Morte retornam para o terreiro Ilê
Axé Itaylé onde estão dezenas de pessoas na porta, a espera do início do cortejo. Com
a presença de Mãe Filhinha tem início o cortejo que sai do barracão e toma as ruas de
Cachoeira. O cortejo têm a frente a Filarmônica Minerva entoando a música em louvor

[3]Ver, também, a programação da festa no Programa Alzira Costa da jornalista Alzira Costa da
rádio Paraguaçu FM, em www.paraguassufm.com.br , em 26/10/2011.

646
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

a Nossa Senhora da Conceição, seguida dos Ogãs que carregam a imagem de Iemanjá
Ogunté retirada do quarto dos Orixá, logo após vêm Mãe Filhinha em volta das mulheres
da Irmandade da Boa Morte em seus trajes característicos, e, finalmente, a comunidade
terreiro do Ilê Axé Itaylé e pessoas do bairro.
Ao som de fogos de artifícios, foguetes, aplausos e cânticos católicos em louvor a
Nossa Senhora da Conceição e de cânticos do Candomblé em homenagem a Iemanjá
Ogunté o cortejo desenvolve-se pela Rua da Delegacia, Rua Três Riachos e no largo dos
Três Riachos decorada com bandeirolas branca e azul em frente ao terreiro. Ao voltar ao
templo à imagem de Iemanjá Ogunté é posta no barracão, a esquerda dos alabés, e têm
início a festa de Iemanjá Ogunté, a Orixá de Mãe Filhinha e dona do terreiro. Os filhos e
filhas-de-santo recolhem-se para trocar de roupa, colocam suas saias rodadas e regres-
sam para o barracão para o Xirê ao som do Nagô-Vodum, e no ritmo do Quebrado, ao
entrarem reverenciam as árvores sagradas do barracão, batem cabeça no Itoto reveren-
ciando as estrelas e compõe a roda para a realização do Xirê. Até a chegada de Iemanjá
Ogunté que dança lentamente ao redor das estrelas sob a saudação de seus filhos. A
festa de aniversário de Mãe Filhinha com rituais católicos em louvor a Nossa Senhora
da Conceição, e rituais afro-brasileiros com as obrigações a Iemanjá Ogunté no espaço
singular do barracão com as duas estrelas do Itoto, e as duas árvores sagradas que furam
o telhado condensam os valores de culto, ancestralidade e parentesco da comunidade
terreiro do Ilê Axé Itaylé.
O valor de culto no barracão desvela-se com a presença e a relação das árvores de
Obaluaiê e do Caboclo Taquara com o Itoto, com suas estrelas, moradas de Iemanjá e
Ogum, os Orixá regente e patrono respectivamente. Divindades que são os pares indis-
sociáveis do terreiro, que possuem cada um o seu quarto de santo no templo: Ogum em
seu quarto em frente ao barracão; e, Iemanjá a reinar no espaço do seu quarto dentro da
Casa de Mãe Filhinha, cercada pelos assentos dos demais Orixás. Terreiro de Iemanjá com
Ogum na frente, templo de Iemanjá Ogunté, cuja presença guia os mortais a dançarem
ao redor das estrelas e em frente às árvores. O Itoto do Ilê Axé Itaylé, com o conjunto
de suas estrelas cria simbolicamente, durante a temporalidade do Xirê, o axi mundi, o
opô-orum aiê, o eixo de ligação entre o Orum e o Aiê. Durante o Xirê, dançando o Que-
brado, os mortais saúdam os deuses e caboclos, batendo, inicialmente, a cabeça no chão
em frente às árvores sagradas, em sua reverência e respeito; depois, antes de entrar na
roda dirigem-se ao Itoto, nas duas estrelas e, também, batem a cabeça, reverenciando
as divindades da casa. Estabelece-se aí a relação Itoto (estrelas), árvores sagradas (atis-
sás), deuses e mortais unidos pelas festas: movimentos dos corpos em transe; músicas
e cânticos do Nagô-Vodum. A festa, o Xirê, ao estabelecer a conexão e relação entre os

647
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

elementos da quadratura fortalece o lugar, cria uma relação originária. Essas relações
constroem e conservam a singularidade do lugar, da relação indissociável, formada por:
elementos temporais, Xirê; e, espaciais, o Itoto: estrelas de Iemanjá (Salomão), de Ogum
(Davi), e, árvores sagradas (atissás): Obaluaiê e Caboclo Taquara; possibilitam a parição
única de uma coisa distante, os deuses. Itoto com suas estrelas em relação com as árvo-
res sagradas, na temporalidade das festas do Nagô-Vodum em seu Quebrado, constitui
algo único, irreprodutível, autêntico, concebido como o aqui e o agora da obra de arte na
esfera do sagrado. Sua existência única no lugar onde ela se encontra, constituem-se no
sentido de tudo o que foi transmitido pela tradição. Permanece, nesse lugar, composta
por essas relações, o sistema dinâmico do axé.
O valor de ancestralidade emerge da presença simbólica de Mãe Filhinha, fun-
dadora e zeladora do terreiro, que passa suas tardes no barracão aos pés das árvores
sagradas (atissás), envolta das estrelas fazendo seus chalés de renda. Ancestral vivo, cuja
idade avançada (a atual Juíza Perpétua da Irmandade da Boa Morte), conhecedora de
muitos feitiços e, sobretudo, de diversos remédios que curaram muitos desvalidos, lhe
conferiu prestígio entre o povo-de-santo do Candomblé cachoeirano. Ela impõe com sua
disciplina, autoridade, carisma e gentileza à conservação da tradição do Nagô-Vodum.
Tradição caracterizada pela forma de dançar durante o Xirê, reverenciando as árvores
sagradas batendo a cabeça, e no rodopio lento dos corpos em transe em volta das estre-
las de Iemanjá e Ogum do Itoto no ritmo do Quebrado do Nagô-Vodum de Cachoeira,
seguida a risca pelos filhos-de-santo do templo, sob o olhar atento de Mãe Filhinha. Ao
se conservarem o rito, através da forma de dança singular, e sua relação com o lugar
particular do Xirê compostas pelas duas estrelas e as duas árvores sagradas (atissás), e
da maneira de realizar as obrigações da casa, se conserva o lugar e a memória da casa, a
tradição, legada por Mãe Filhinha. Conservar a tradição do Nagô-Vodum, os ensinamen-
tos de Mãe Filhinha, é conservar, também, o teor de respeito, prestígio e legitimidade
da comunidade terreiro do Ilê Axé Itaylé entre os demais terreiros de Cachoeira e São
Félix que acompanham e atestam o rigor das obrigações ensinadas por Mãe Filhinha.
O termo ‘’Casa de Mãe Filhinha’’, extrapola a espacialidade e materialidade do terreiro,
subjuga o nome do templo - Ilê Axé Itaylé - e passa ser o próprio Candomblé. A egbé tem
no cuidado aos rituais ensinados por Mãe Filhinha, a maneira de fazer de Mãe Filhinha,
a manutenção do sistema dinâmico do fluxo de axé do templo, a conservação da tradição
do Nagô-Vodum do Ilê Axé Itaylé.
O valor de parentesco emerge do compromisso e comunhão dos filhos-de-santo do
terreiro que moram em outras cidades do Recôncavo, Salvador e Região Metropolitana,
que em sua maioria, também são membros da família biológica de Mãe Filhinha. Filhos

648
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de Filhinha que se juntam para a realização das obrigações com os Orixás e Caboclos
durante o ciclo das festas, notadamente, nos meses de janeiro, julho e no aniversário
da fundadora, quando passam a habitar no Ilê Axé Itaylé, e aqueles que moram em sua
volta, nas circunvizinhanças, passando a frequentá-lo diariamente, e a dormir dentro
do terreiro, em certos rituais. Durante esse período a egbé junta esforços financeiros e
materiais, mantendo as relações de ajuda mútua, e os laços de cooperação tanto para
as obras de conservação e ampliação do templo, em suas transformações contínuas, no
tempo espiralado, quanto para a conservação da tradição da casa, dos rituais e obrigações.
Festas que tecem, tal como Mãe Filhinha tece suas rendas, as relações de parentesco: de
sangue e de santo. E, tem no lugar singular da festa no Itoto, com suas estrelas envoltas
das árvores sagradas o lugar de aglutinação da família, o lugar da tessitura da família do
Ilê Axé Itaylé. O lugar da festa, da relação originária, cria na temporalidade do Xirê o ápice
da tessitura familiar, que possibilita o pleno desenvolvimento do sistema dinâmico de
axé. Essa peculiaridade em que as árvores sagradas que são moradas de Orixás, Vodum,
Inquices e Caboclos constituindo lugares onde se realizavam obrigações e rituais anu-
ais, e em torno dos quais se organizaram os cultos afro-brasileiros no recôncavo baiano
dando origem a egbés, aos terreiros e suas arquiteturas criando a relação singular entre
as estrelas do Itoto com essas árvores sagradas (atissás), que nascem do chão e furam os
telhados dos barracões, compondo o espaço da festa, do Xirê, acontece, além do Ilê Axé
Itaylé, também, em outros terreiros de Candomblé de Cachoeira e São Félix, como: Raiz
de Airá; Capivari-Pé da Cajá, ambas da nação Nagô-Vodum (ver Fig. 11 e 12):

Fig. 11: Árvores sagradas, assentos de Obaluaiê furando o telhado do barracão do Capivari, São
Félix. Data: 2011.

649
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Fig. 12: Árvores sagradas, assentos de Obaluaiê furando o telhado do barracão do Raiz de Airá,
São Félix. Data: 2011.

Em Cachoeira e São Félix, as árvores sagradas (assentos de Orixá e Caboclos), tam-


bém furam os telhados dos Ilê Orixás (templos dos Orixá), e os telhados das casas dos
Caboclos, tal como acontece nos barracões. Isso, como vimos no Ilê Axé Itaylé, Capivari-Pé
da Cajá, e Raiz de Airá, não ocorre por causa da falta de espaço físico, mas sim por que
eram lugares sagrados onde realizavam-se rituais nos espaços livres dessas cidades,
anteriores a existência dos terreiros, e a partir dos quais organizaram-se esses templos.
As árvores sagradas (atissás) tornam-se os elementos geratrizes das arquiteturas dos
terreiros da região.
Em Cachoeira e São Félix os pepelês com os assentos dos deuses relacionam-se com
as árvores sagradas (atissás), edificando a morada peculiar dos deuses, criando uma rela-

650
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ção própria, uma relação indissociável, onde o pepelê e a árvore sagrada são uma coisa
só. As árvores sagradas (atissás) podem emergir tanto de um pepelê circular que abraça
e envolve as árvores sagradas com os diversos elementos simbólicos característicos do
assento da divindade, como ocorre nos terreiros do Capivari-Pé da Cajá, Raiz de Airá e o
próprio Ilê Axé Itaylé da nação Nagô-Vodum, quanto, as árvores sagradas podem emer-
gir, também, em frente aos pepelês dentro dos Ilê Orixá e Casas de Caboclos, rasgando,
também, seus telhados, como acontece nos terreiros: Raiz de Airá, Lobanekum, da nação
Nagô-Vodum; e, o Rosarinho, Ilê Axé Ogunjá, da nação Ketu. Essas duas situações na reali-
dade são manifestações de uma mesma e peculiar relação entre assentos de divindades
nos pepelês e assentos de divindades nas árvores sagradas (atissás), que podem estar
juntos, concomitantes, inter-relacionados, criando uma relação, construindo um lugar
próprio, através de uma particular instância da quadratura, uma morada peculiar dos
Orixás, filhos-de-santo, Orum e Aiê.
No Lobanekum, na Terra Vermelha, localidade rural de Cachoeira o assento de
Ogum e seu respectivo pepelê no Ilê Orixá de Ogum cuja árvore sagrada furava o telhado,
foram, recentemente, transferidos para quarto dos Orixás dentro do templo, onde estão
reunidos todos os assentos dos Orixás, porque, segunda a Ialorixá do Lobanekum, Mãe
Maria Lúcia Barreto dos Santos, foi construído ao lado do templo de Ogum a Casa de Exu,
e segundo a tradição desse templo, o Ilê Orixá de Exu têm que ficar sozinho, isolado no
espaço do terreiro. Existe hoje em dia apenas as ruínas das fundações da Casa de Ogum.
Os terreiros de Cachoeira e São Félix, principalmente, os da nação Nagô-Vodum têm
nas árvores sagradas (atissás) que furam os telhados dos barracões, Ilê Orixá e Casa de
Caboclos um aspecto espacial simbólico que os diferenciam, que lhes atribui particula-
ridade, peculiaridade, singularidade, que lhes é próprio, o elemento de ‘’permanência’’ da
arquitetura dos terreiros, e a partir dos quais toda a arquitetura se movimenta, cresce e
transforma-se regida pelo sistema dinâmico do fluxo de Axé, pelas festas e ritos, e pelo
tempo espiralado de Exu, tornando-se arquiteturas em eterno movimento e devir, em
arquiteturas de árvores e árvores arquitetônicas, em atissás arquitetônicos.

651
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Gaiaku Luiza e a Trajetória do Jeje-Mahi


na Bahia.
A Invenção da Família Afro-Americana:
Família, Parentesco, e Domesticidade entre os Negros do
Recôncavo da Bahia, Brasil. Tese de Doutorado em Antropologia
Antropologia Social

Bitedô onde moram os Nagôs.

__________. Terra de Macumbeiros – Redes de Sociabilidades


Africanas na Formação
do Candomblé Jeje-Nagô em Cachoeira e São Félix – Bahia.

_________.Presença do Candomblé na Irmandade da Boa Morte:


interação, resistência e suicídio cultural.

O dono da terra: a presença do


caboclo nos candomblés baianos.

O poder dos Candomblés – Perseguição


e Resistência no Recôncavo da Bahia.
Nagô: A nação de ancestrais itinerantes.

652
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PATRIMÔNIO CULTURAL
EM TERRITÓRIOS
METROPOLITANOS: NOVOS
APORTES PARA SUA
COMPREENSÃO
CULTURAL HERITAGE IN METROPOLITAN
TERRITORIES: NEW CONTRIBUTIONS FOR YOUR
UNDERSTANDING

PATRIMONIO CULTURAL EN TERRITORIOS


METROPOLITANOS: NUEVOS APORTES PARA SU
COMPRENSIÓN
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

SCHICCHI, Maria Cristina da Silva


Doutora; PosUrb-Arq – Pontifícia Universidade Católica de Campinas
cristina.schicchi@puc-campinas.edu.br

653
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A Região Metropolitana de Campinas (RMC), cuja sede é Campinas, é formada por um conjunto
de cidades médias e pequenas, onde as relações de identidade e pertencimento não mais se
estabelecem dentro de divisas municipais, ressaltando-se a ocorrência de uma rede de relações
sociais em estreita vinculação com a especialização/concentração de atividades no território.
Há uma semelhança nos processos de constituição física, do tecido social e da dinâmica atual
das cidades que entrelaçam, de forma complexa e diacrônica, uma variedade de referências
culturais (materiais e imateriais). Disso decorreu a hipótese de que a compreensão de um
conjunto de cidades alinhadas por vetores de crescimento e expansão da região, historicamente
constituídos, possibilitariam novas perspectivas para a discussão do patrimônio cultural. Os
métodos são o histórico-cultural, o empírico e o analítico de conteúdos e de discursos. Nesse
artigo são apresentados os resultados do estudo de um dos sete vetores, onde foi possível revelar
uma nova estruturação baseada nas relações de identidade e pertencimento e suas referências
culturais associadas.

PALAVRAS-CHAVE: identidade, pertencimento, patrimônio, urbanização, território metro-


politano

A BSTRACT
The Metropolitan Region of Campinas (RMC), whose main city is Campinas, is formed by a group
of medium and small cities, where the relations of identity and belonging are no longer esta-
blished within municipal boundaries, with emphasis on the occurrence of a network of social
relations closely connected to the specialization / concentration of activities in the territory.
There is a similarity in the processes of physical constitution, the social fabric and the current
dynamics of cities that interweave, in a complex and diachronic way, a variety of cultural refe-
rences (material and immaterial). This led to the hypothesis that the understanding of a set of
cities aligned by vectors of growth and expansion in the region, historically constituted, would
enable new perspectives for the discussion of cultural heritage. The methods are historical-cul-
tural, empirical and analytical content and discourse. In this article, the results of the study of
one of the seven vectors are presented, where it was possible to reveal a new structure based on
the relations of identity and belonging and their associated cultural references.

KEYWORDS: identity, belonging, heritage, urbanization, metropolitan territory.

654
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
La Región Metropolitana de Campinas (RMC), cuya sede es Campinas, está formada por un
grupo de ciudades medianas y pequeñas, donde las relaciones de identidad y pertenencia ya
no se establecen dentro de los límites municipales, dónde ocurre una red de relaciones sociales
en estrecha relación con la especialización / concentración de actividades en el territorio. Hay
una similitud en los procesos de constitución física, el tejido social y la dinámica actual de las
ciudades que entrelazan, de manera compleja y diacrónica, una variedad de referencias cultu-
rales (materiales e inmateriales). Esto llevó a la hipótesis de que la comprensión de un conjunto
de ciudades alineadas con vectores de crecimiento y expansión en la región, históricamente
constituidas, podría ofrecer nuevas perspectivas para la discusión del patrimonio cultural.
Los métodos son los de la historia cultural, el método empírico y el analítico de contenidos y
discursos. En este artículo, se presentan los resultados del estudio de uno de los siete vectores,
donde fue posible revelar una nueva estructura basada en las relaciones de identidad y perte-
nencia y sus referencias culturales asociadas.

PALABRAS-CLAVE: identidad, pertenencia, patrimonio, urbanización, territorio metropolitano.

INTRODUÇÃO

Essa expansão patrimonial ilimitada obriga que se coloque a questão


sobre o que será necessário destruir um dia: “Começa-se então a compre-
ender que uma sociedade que se recusa a levar em conta as destruições
necessárias à sua evolução é uma sociedade morta... Aprender a destruir,
determinar com a máxima sensibilidade o que é preciso ‘destruir’, no
sentido de não levá-lo em consideração como referência, será o ensina-
mento de base que os arquitetos deverão receber em suas escolas”... Como
fazer da destruição um ato que não seja negativo, uma vez que a lógica
patrimonial já é em si um empreendimento de destruição? (PARENT,
1987 apud JEUDY, 2005, p. 69-70)
Essa pesquisa se propôs a avançar, sob o ponto de vista teórico e metodológico, a
reflexão e reavaliação das formas de reconhecimento do território metropolitano em
função da componente cultural que, em geral, subjaz aos processos de transformação
e quase nunca é objeto de ponderação no planejamento, a despeito de ser essencial
para a discussão da preservação das paisagens formadas e identificação de referências
culturais relevantes em nível local.

655
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Neste caso, partiu-se do reconhecimento das singularidades no território metro-


politano da Região Metropolitana de Campinas (RMC), encontradas em seus sete vetores
de crescimento, que também são interpretados como eixos de conexão e como âmbitos
em que convergem desde os processos de formação até os problemas urbanos de vários
municípios. Isso permitiu a identificação de conformações periféricas, mas que numa
análise mais detida revelam contornos próprios e territórios distintos: o periurbano e
o suburbano. Nesses, entrelaçam-se novas e tradicionais práticas sociais, que implicam
diretamente as relações de identidade e pertencimento e, consequentemente, a identi-
ficação e valorização dos remanescentes históricos e culturais.
Essa condição ficou evidente principalmente ao analisar os casos dos territórios
ao longo do vetor 2, formado pelas cidades de Americana, Santa Bárbara D’Oeste, Nova
Odessa e Sumaré e Hortolândia, sendo as três primeiras tratadas neste artigo. As refe-
rências culturais estão dispersas no espaço entre cidades, precursoras muitas vezes dos
próprios núcleos urbanos, onde ainda conservam características relacionadas ao modo
de vida rural.
Definiu-se, entretanto, desde o início, que urbano, suburbano ou periurbano não
seriam concebidos como recortes ecológicos que moldam comportamentos humanos
ou de grupos. Para o entendimento destes comportamentos, valores, modos de vida, foi
necessário considerar outras explicações, tais como as características relacionadas às
classes sociais e ao ciclo de vida destas (GANS, 1962, p.639 apud BOLÁN, 2001).
É uma pesquisa qualitativa. Os métodos são o histórico-cultural, o empírico e o
analítico de conteúdos e de discursos.
O artigo está dividido em duas partes: uma apresentação da formação do território
e o entrelaçamento dos aspectos culturais e patrimoniais, resultado da pesquisa históri-
co-cultural, onde serão discutidas três cidades pertencentes ao vetor 2: Americana, Santa
Bárbara d’Oeste e Nova Odessa; e, uma discussão sobre questões relevantes relacionadas ao
modo de vida e às possibilidades de reconhecimento das referências culturais (LONDRES,
2000) a partir das comunidades a elas relacionadas, resultado da análise de conteúdos e
discursos, com um viés para a interpretação da relação território e patrimônio.

656
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ENTRE TRÊS CIDADES: TERRITÓRIO E PATRIMÔNIOS DISPERSOS

Iniciar a descrição da formação do território por Santa Barbara d’Oeste pode ser
ilustrativo da forma de ocupação das primeiras comunidades na região: negros, ame-
ricanos, russos, italianos.
Margarida da Graça Martins (1782 - 1864), veio para o local entre a Vila de São Carlos
(atual Campinas) e Vila Nova da Constituição (atual Piracicaba) no ano de 1818 para a
sua sesmaria (SILVA, 2004). Sendo devota de Santa Bárbara, Margarida doou terras para
a construção de uma capela em homenagem à santa. Isso explica o nome da cidade,
que pertencia inicialmente ao território da cidade de Porto Feliz. Somente quando
Piracicaba emancipou-se de Itú é que a Vila passa a pertencer à área de Piracicaba. Com
a vinda dos primeiros imigrantes americanos em 1886, a cidade passa a ser chamada
Vila de Santa Bárbara.
A história dos americanos em Santa Barbara D’Oeste iniciou-se na Fazenda Macha-
dinho, adquirida pelo Coronel William Hutchinson Norris, que pertencia a Vila Nova
da Constituição (Piracicaba). Com a chegada de novas famílias, 26 ao todo, formou-se o
primeiro núcleo de imigrantes norte-americanos. Vindos, em sua grande maioria, em
decorrência do fim da Guerra Civil Americana, os sulistas/confederados haviam per-
dido grande parte de suas propriedades (GONÇALVES E RAMOS, 2008). Para tal, enviavam
mensageiros pagos para o Brasil e outros países como observadores, os quais, ao retor-
narem aos EUA, publicavam relatos detalhados das formas de vida local, dos recursos
disponíveis para o cultivo, para o trabalho. Havia escritórios do Brasil em alguns estados
norte-americanos. Muitos destes mensageiros eram pastores, como o reverendo J. C. B,
que escreveu o livro “Brazil and the brazilians”, publicado e republicado, respectivamente,
em 1866, 1867 e 1868 (BRYAN, 1967).
Com o crescimento do núcleo criaram-se escolas e igrejas. O Coronel Asa Thompson
Oliver, com a morte de sua esposa sem ter na época um cemitério destinado aos batistas,
enterrou-a no quintal de sua fazenda. Outros colonos solicitaram ao Coronel a permissão
para que enterrassem seus entes em sua fazenda. Assim surgiu o Cemitério do Campo
(fig2), que conta também com uma capela batista (ANDRADE, 2002), cujo conjunto, mais
tarde, tornou-se um dos principais patrimônios dos descendentes dos imigrantes ame-
ricanos que ajudaram a fundar Americana e Santa Bárbara D’Oeste.
Para sua administração foi criada a “Fraternidade Descendência Americana”, uma
associação filantrópica destinada a preservar os interesses do patrimônio do Cemitério

657
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e da comunidade (A HOPEWELL CHURCH, 1957). A associação promove no cemitério


uma das festas anuais mais importantes de famílias dos descendentes, a Festa dos
Confederados, que oferece comidas típicas e apresentação de bandas musicais. Alguns
dos membros comparecem vestidos com roupas tradicionais da sociedade americana
sulista do século XIX.
Um ano mais tarde, chegaram os primeiros imigrantes italianos, em 1887, também
atraídos pelos baixos preços das terras. Ao todo, 28 famílias chegaram para trabalhar na
Fazenda Salto Grande, hoje no território pertencente a Americana, sob a liderança de
Joaquin Boer, para substituírem o trabalho escravo. Uma grande parcela dos imigrantes
vindos da Itália era de regiões têxteis e foram trazidos para trabalhar na Carioba - fábrica
têxtil de Americana. Mais tarde os trabalhadores da Fazenda Salto Grande se juntariam
a esses. A construção da Igreja Católica de Santo Antônio na Vila Americana em 1897 é
um dos marcos desta imigração na cidade (A COMUNIDADE ITALIANA, 1997), além da
presença do “Circolo Italiano”, criado em 1997 (CIRCOLO ITALIANO, s/d).
Dois bairros rurais criados neste período preservam ainda hoje características
rurais típicas. Sapezeiro (antigo Invernada), criado pela família de Antônio Francisco
de Godoy, em 1900. O nome Santo Antônio do Sapezeiro (Fig.1) veio com a construção
da capela de Santo Antônio, em 1905 (SANTO ANTONIO DO SAPEZEIRO, 2000). Hoje, duas
das principais atrações turísticas do bairro são a linguiça caseira que é produzida ali e a
festa da Capela de Santo Antônio, realizada desde 1934, que atraem habitantes da região
metropolitana para o bairro nos finais de semana. Outro bairro rural importante para a
comunidade italiana, o Caiubi, teve como um de seus fundadores Antônio Angolini, vindo
da Itália para trabalhar na lavoura em Campinas (DA ITALIA PARA O BRASIL, 1996). Em
Caiubi, o potencial turístico começa a se delinear a partir da instalação de restaurantes,
chácaras e casas de veraneio

658
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1. Santa Bárbara D’Oeste. À direita, o Cemitério do Campo (1867-71); à esquerda, Capela de
Santo Antônio de Sapezeiro, no bairro rural de Sapezeiro (1922). Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

Santa Bárbara D’Oeste, contou com quatro importantes usinas, Usina Cillos (1903),
Usina Furlan, Usina Azanha (1935) e Usina Santa Bárbara (1914) (Cillos e Azanha, 2011,
p.14). Estas usinas cederam terras para a construção da Estrada de Ferro, para que pudes-
sem escoar suas produções (USINAS E IMIGRANTES, 1997). Uma das mais importantes, a
Usina Santa Bárbara, criou a Companhia de Estrada de Ferro e Agrícola de Santa Bárbara
para a construção de um ramal para o escoamento de sua produção (SILVA, 2004). A
área da usina e seu entorno era um importante lugar de vida social neste período, pois
possuía escola, igreja e vila operária, além de edifícios administrativos, que ainda estão
preservados. A Usina está desativada e, mesmo em mau estado de conservação, celebra
anualmente, em suas dependências, a Festa da Negadinha, organizada e frequentada
por ex-moradores e ex-funcionários.

Americana

Americana fazia parte do território de Santa Bárbara, que, por sua vez pertenceu ao
município de Nova Constituição (hoje Piracicaba) e também ao de São Carlos (hoje, Cam-
pinas). Isso demonstra como as histórias dos territórios hoje pertencentes a diferentes
municípios estão entrelaçadas, sendo importante o conhecimento e interpretação destes
para além das divisas municipais (Fig.2). Sua origem está relacionada à implantação de
três principais fazendas: Salto Grande, Machadinho e Palmeiras, a partir da Sesmaria de
Domingos da Costa Machado I, no século XVI.

659
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2. Mapeamento das referências culturais entre os municípios de Santa Bárbara D’Oeste
e Americana. Fonte: Acervo da pesquisa, 2020.

A Fazenda Machadinho, já demolida, localizava-se na atual Praça Basílio Rangel. A


Fazenda Palmeiras constituiu-se em terreno particular, hoje incorporado à Fazenda do
Estado – Instituto de Zootecnia, uma das principais instituições da região. A Fazenda
Salto Grande, produzia cana e algodão e sua sede foi localizada no encontro dos rios
Atibaia e Jaguari, onde nasce o rio Piracicaba. Ela guarda a origem da história dos negros
em Americana.
Um fato marcante é a vinda de negros trazidos da região de Minas Gerais pelo
proprietário Manoel Teixeira Vilela em 1799, assim que adquire as terras da Fazenda e
começa a construir a casa sede. Segundo Ramos (2007), sabe-se que, após a abolição, os
ex escravizados, abandonados à própria sorte, dividiram-se. Muitos conseguiram ficar
ligados à terra, seja trabalhando como assalariados nas fazendas, seja ocupando terras
devolutas e praticando lavouras de subsistência.
Portanto, a história da comunidade negra permeia todos os momentos de trans-
formação econômica e social de Americana e região, porém, é pouco conhecida e não faz
parte das referências culturais locais. Essa invisibilidade se explica, além do preconceito

660
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ainda presente, pela vulnerabilidade das marcas conservadas no território. A Fazenda


Salto Grande chegou a abrigar 223 negros escravizados. Porém, os negros não moraram
nas senzalas adjacentes à casa sede, que foram destinadas aos imigrantes. Havia cho-
ças de pau a pique que lhes serviram de moradias e ficavam mais distantes da senzala
(RIBEIRO, 2005).
Outro fator evidente na formação do território de Americana - que, desde sua
origem, já se mesclava aos territórios hoje pertencentes a Campinas e Santa Bárbara
D’Oeste, é a toponímia, marcada pela influência indígena nos nomes de municípios e
distritos que permeiam o Rio Piracicaba. O tupi está na origem de nomes de bairros como
Caubi, Carioba, Piracicaba e Tupi e de rios como o Jaguari e o Atibaia, os quais atestam
a importância dos moradores originais dessa região, mais do que os que sobrevieram
no final do século XIX, como os estadunidenses, conforme já apontado anteriormente
(AGUIAR, 2009).
Em 1875, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro inaugurou a Estação de Santa
Bárbara (depois Estação de Villa Americana, nome utilizado nos relatórios da Cia já em
1900; depois Estação Americana). A inauguração da ferrovia deslocou o crescimento das
vilas e núcleos coloniais, até então mais dispersos, para o entorno das estações. Datam
de 1882 os primeiros loteamentos na área central de Americana. Também favoreceu a
instalação das primeiras fábricas na região, como a Fábrica de Tecidos Carioba, inaugurada
pela empresa “Souza Queiróz, Ralston & Cia”, que começou com 28 teares, 34 operários
(alemães, estadunidenses e escravos) (CARDOSO, 2004).
A Fábrica Carioba foi comprada pela empresa “Clement Wilmot & Cia”, que deu
início à construção da vila operária. Porém, três anos mais tarde (1885) a fábrica entrou
em falência e foi confiscada pela Caixa.[1]
Em 1901, o alemão Franz Müller adquiriu a fábrica em leilão, com apoio de seu
irmão e do engenheiro inglês Rawlinson, criando a firma “Rawlinson, Müller & Cia. Em
1911, com o crescimento da vila, construiu uma barragem no rio Atibaia, produzindo e
fornecendo energia elétrica para a fábrica e a vila Carioba, Villa Americana, Santa Bár-
bara, Cosmópolis e outras cidades vizinhas. Iniciava-se o processo de desenvolvimento
conjunto da região, que mais tarde uniria as cidades ao longo do caminho que hoje
corresponde ao vetor 2 (Fig.3).
Há registros de algumas famílias negras escravizadas que trabalhavam na indústria
de Carioba, na época em que pertencia aos Wilmot, em 1887. Segundo Ribeiro (2005), mora-

[1] Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueologico, Artístico e Turistico do Estado


de São Paulo.

661
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

dores afirmaram que havia negros que trabalhavam principalmente em Salto Grande.
Quando os irmãos Wilmot eram seus proprietários, os negros saíam da fazenda e iam
até a fábrica conversar com os empregados. Porém, quando a família Müller assumiu
o controle da fábrica, os negros já não a frequentavam mais. Muitos deles procuraram
outros centros urbanos para manter sua subsistência após a abolição.
O auge da Fábrica Carioba foi na década de 1930, quando a vila, de mesmo nome,
já possuía inúmeras residências operárias e patronais e vários equipamentos institu-
cionais, sociais e esportivos. Ou seja, tornou-se um núcleo autônomo, onde inclusive a
população de outras cidades podia encontrar recreação.
O declínio da produção da fábrica se deveu ao início da produção dos tecidos de
fibra sintética (rayon), consideravelmente mais baratos no mercado nacional. Já nos
últimos anos da década de 1930, começou a surgir em Villa Americana a “indústria têxtil
façonista”. Formou-se a partir da união de famílias tecelãs de Carioba, que adquiriam
teares antigos de empresas maiores e passaram a produzir tecidos em suas residências
(COLLI, 1997). Esse processo de produção façonista, que tem suas raízes nos diversos
ciclos de crise da tecnologia de produção das indústrias têxteis da região, não marcou
somente o território de Americana, mas também o de Santa Bárbara e Nova Odessa, com
a formação de bairros suburbanos onde se dispersou esta produção doméstica, que até
os dias atuais abrigam micro empresas de produção à fação.

Figura 3. Vetor 2, Americana. Remanescentes da Fábrica de Tecidos Carioba. Fonte: Acervo da


pesquisa, 2018.

662
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Nos anos 1960-70, Americana passou por um grande desenvolvimento industrial,


urbano e crescimento demográfico, tornando-se centro regional. Grandes empresas e
multinacionais se instalaram na cidade, provocando intenso fluxo migratório interesta-
dual e surgimento de problemas urbanos, como a transformação dos bairros das outras
duas cidades estudadas, Nova Odessa e Santa Bárbara d’Oeste, em subúrbios dormitórios
(PASQUOTTO et al., 2014)
No final da década de 1970 e início dos anos 1980, a vila de Carioba foi sendo demo-
lida aos poucos, com forte resistência da população, ocupações e criação de movimentos,
como o Comitê Pró-Carioba (STOCK, 2009). Em 1983, a Carioba passou para as mãos da
Prefeitura.
Na residência remanescente dos antigos proprietários da fábrica Carioba, funcio-
nou a Casa de Cultura “Hermann Müller” e o casarão da Fazenda Salto Grande abrigava,
até recentemente, o Museu Histórico Pedagógico Municipal Doutor João da Silva Carrão,
dois dos principais patrimônios da cidade, que mesmo antes da pandemia de COVID 19,
já estavam fechados por questões sanitárias.
Houve várias tentativas de tombamento do conjunto pelo Condephaat[2], nos anos
1980. Posteriormente, os galpões da fábrica foram subdivididos internamente e alu-
gados para várias tecelagens (façonistas). Em 2013, foi tombada pelo órgão estadual
(Resolução 21 de 09/05/2013) Recentemente, em 2015, com apoio do Condepham, órgão
de preservação municipal, houve tentativas de criar uma associação pela Memória de
Carioba. Contudo, em setembro de 2020, os galpões remanescentes da antiga fábrica
foram atingidos por um incêndio que destruiu parte das construções onde se locali-
zavam algumas das empresas de produção à fação. Ou seja, a despeito de ser tombada
como patrimônio cultural municipal, o conjunto não era conservado e sempre houve
muitos obstáculos para sua reabilitação.

O povoamento da região do Quilombo, hoje dentro dos limites da cidade de Nova


Odessa, também teve início no século XVIII, com a concessão de sesmarias pelo governo
colonial a interessados em se fixar na região. Um dos mais importantes foi José Teixeira
Nogueira (1798), cujos descendentes colonizaram grande parte da região (NOVA ODESSA,
s/d).

[2] Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueologico, Artístico e Turistico do Estado


de São Paulo.

663
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Augusto Ramos (funcionário da Secretaria da Agricultura) foi um dos principais


articuladores para a vinda de imigrantes para o núcleo de Nova Odessa em 1905 (BOL-
DRINI, 1989). Entre os anos de 1909 a 1911, outras fazendas foram compradas para com-
por a colônia, sendo que algumas hoje fazem parte de outro município, o de Sumaré. O
território das fazendas Pinheiro, Paraiso e Sertãozinho, comporiam as seis seções (Nova
Odessa, Fazenda Velha, Engenho Velho, Sertãozinho, Paraizo e Pinheiros) do Núcleo
colonial de Nova Odessa (Fig.4).

Figura 4. Nova Odessa. À esquerda, planta original do Núcleo Colonial Nova Odessa; à direita,
mapa de abairramento do Município de Nova Odessa com sobreposição da planta do Núcleo
Colonial, onde foi possível constatar que tanto os nomes quanto as divisas dos bairros atuais
ainda guardam relação com as sessões do núcleo original. Fonte: Acervo da equipe, 2019.

A vinda de letos está relacionada à crise gerada pela longa dominação russa na
Letônia, que teve seu ápice na Revolução de 1905. Com a ajuda de Carlos Botelho, então
secretário da Agricultura, deu-se início à imigração para o Brasil. Parte do interesse dos
letos em relação ao Brasil se deu por influência de uma publicação no diário “Baltijas
Wehstnesis” (o mensageiro báltico) em 1889, e um pequeno livro editado em Riga (Letô-
nia) no início de 1890 denominado “Brasilija” (Brasil). As publicações tratavam da “[...]
fertilidade da terra brasileira, flora e fauna, as facilidades dadas pelo governo para a
vinda do imigrante, assim como o incentivo à formação de aglomerados de imigrantes
de mesma nacionalidade, para evitar a nostalgia, e os problemas culturais” (HISTÓRIA
DE NOVA ODESSA, s/d)
Carlos Botelho também dá início ao primeiro traçado da cidade, bem como à ins-
talação da estação ferroviária, que passava pela Fazenda Velha, implementando-o nos
mesmos nos moldes urbanísticos que a cidade de Odessa na Ucrânia.
O núcleo colonial instalado em Nova Odessa já era composto, em pontos distintos,
por portugueses e italianos, que se encontravam em sua maioria na Fazenda Pombal e
Fazenda Velha (bairros Cachoeirinha e Filipada) (LIMA, 1999).

664
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A primeira Igreja Batista foi erguida em 1906 no bairro chamado Fazenda Velha, e é
uma das principais referências culturais da comunidade. Um templo maior inaugurado
em 1918, é utilizado até os dias de hoje, em local que ainda conta com amplo refeitório,
churrasqueiras, edifício de educação religiosa, casa residencial, quiosque, prédio com
classes infantis e um palco para shows musicais (PETERLEVITZ, s/d). A terceira Igreja
Batista foi construída para as celebrações em português para os novos imigrantes. Como
não havia na cidade um cemitério batista, muitos letos foram enterrados nas cidades
vizinhas como Santa Bárbara e Americana (NOVA ODESSA, 1977).
A ferrovia, que fazia o trajeto de Campinas a Rio Claro, em 1873, foi a primeira a
atravessar o município de Nova Odessa, porém não havia uma parada no local. Com o
crescimento da população que se formou na região e para atender as necessidades do
núcleo colonial foi necessária a instalação de uma linha telegráfica, em 1905, denomi-
nada Posto Telegráfico de Pombal. Dois anos mais tarde, esse posto tornava-se a Estação
de Nova Odessa. A primeira parada, Recanto, foi inaugurada em 1907, próxima à Vila
Americana. No ano de 1948 foram implantadas várias tecelagens na cidade, como a
Indústria Têxtil Cooperativa Nova Odessa. Em 1939 tornou-se distrito de Americana e
em 1958 é elevada a Município (LIMA, 1999).
As duas principais festas típicas da cidade de Nova Odessa, consideradas patrimô-
nios turísticos culturais são a “Feira das Nações”, na qual se reúnem várias barracas com
comidas típicas de vários países e a Festa do Ligo, que é organizada pela comunidade dos
descendentes da Letônia e tem como objetivo resgatar a cultura do país do leste euro-
peu, celebrando o solstício de verão. Durante a festa são feitas apresentações de danças,
músicas e armadas barracas com comidas típicas (DESCENDENTES DA LETÔNIA, 2017).

TERRITÓRIO

No vetor 2, conforme foi possível compreender, os núcleos coloniais, primeiros


assentamentos permanentes na região, se formaram a partir da imigração, comunida-
des que criaram marcos que ainda hoje conservam, de certa forma, o caráter rural ou
suburbano. As histórias desses grupos se entrelaçam, portanto, no território constituído
entre os três núcleos principais analisados.
Uma questão relevante, já apontada por Queiroz (1978), ao estudar os bairros rurais
paulistas é que a dispersão (característica também dos territórios metropolitanos) cria
outros vetores de leitura. O território está conectado por múltiplas inter-relações sociais
e cotidianas, mas essa teia não coincide com as formas materializadas por ele.

665
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O estudo do “espaço-tempo vivido”, a partir de levantamentos de campo, de conversas


com moradores, líderes de comunidades rurais, de comunidades culturais diversas, além
de visitas aos espaços públicos, privados e referências construídas, revelou um território
múltiplo, diverso e complexo, que “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da
dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva
e/ou ‘cultural-simbólica”. A noção de pluralidade do território, de “multiterritorialidade”
ou de “um entrecruzamento de diferentes” territórios (HAESBAERT, 2007, p.34) foi a que
mais se aproximou, de fato, de como se poderia definir o vetor analisado, o que exigiu
uma série de leituras, releituras e sobreposições para a sua compreensão (POULOT, 2009).
A despeito dos limites municipais, formam um território contínuo entre o modo de vida
rural e urbano, que acabou por tornar-se um potencial turístico para uma região, com
presença de segundas residências instaladas em condomínios de classe média e alta.
Esses territórios demandam questões muito distintas das áreas urbanas das cidades.
Em muitos casos, são setores em que as relações de identidade e pertencimento se tornam
inconstantes, como é o caso dos bairros que se situam nas divisas entre Santa Bárbara
d’Oeste, Americana e Limeira. Nesses, a toponímia é marcada por antigas estratégias de
deslocamento na região, como é o caso da Estrada da Balsa, que ligava Santa Bárbara a
Limeira, onde, até 1925, quando foi construída a ponte Funil, os moradores faziam a tra-
vessia do rio Piracicaba. Essa estrada corresponde hoje à Avenida da Amizade, próxima
aos bairros Vila Dainese e Jardim Europa, essencialmente formados por operários, que
tem esse nome como forma de celebrar a amizade entre os moradores das duas cidades
que já viveram muitos conflitos em relação às divisas.
Em outro exemplo, no bairro Jardim Mollon, um bairro pendular à Avenida Santa
Bárbara, que liga o núcleo homônimo com o de Americana, é possível verificar que em
várias ruas, as calçadas recebem mosaicos com as iniciais de cada município gravadas,
uma espécie de selo de pertencimento que delimita fronteiras e se concretiza no espaço
público (Fig.5).

666
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5. Bairro Jardim Mollon. Imagens dos mosaicos das calçadas das ruas do bairro: à esquerda,
o símbolo de Americana e à direita, o símbolo de Santa Bárbara. Fonte: Acervo da pesquisa, 2019.

Esse aspecto se reflete na gestão desses territórios, a tal ponto que gerou duas
propostas específicas no Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado da Região Metro-
politana de Campinas, que está sendo elaborado pela AGEMCAMP, as propostas nº 47
e 48, dentro dos aspectos relacionados à “Governança e Identidade Metropolitana”. A
primeira, cujo título é “Ajustes nos limites municipais” e a segunda, com o título “Gestão
de áreas conurbadas”, que propõe “Equacionamento dos problemas das áreas conurbadas,
articulando políticas integradas entre os municípios”. Entretanto, o problema foi registrado
apenas sob o viés administrativo pois ambas as propostas ignoraram outros níveis
de abordagem demandados por essa discussão como, por exemplo, os de identidade e
pertencimento no contínuo rural-urbano já tratado (PDUI, CADERNO DE PROPOSTAS DA
SOCIEDADE CIVIL, 2018).
Há, por outro lado, um consenso entre planejadores de que a urbanidade é um valor
a ser considerado na medida do desenvolvimento social das cidades, porém, isso não é
tão notável no caso da ruralidade, quase sempre associada à precariedade de condições
de vida, decorrente de certo desconhecimento, segundo Abramovay (2000, p.25-26), para
quem a “A ruralidade não é uma etapa do desenvolvimento social a ser superada com
o avanço do progresso e da urbanização. Ela será cada vez mais um valor para as socie-
dades contemporâneas”.
Ambos os contextos apresentam valores e formas de vida de distintos grupos sociais
que implicam a identificação e seleção dos objetos e práticas locais. Contudo, como esta-
belecer um nivelamento valorativo entre diferentes populações, com distintos interesses?
Segundo Poulot (2009, p.229-230), instituições internacionais como a Unesco, Ico-
mos e Getty Conservation Institute admitem que para a gestão do patrimônio a partir
da noção de significação cultural é necessário que o valor de determinado patrimônio
seja estabelecido por suas “comunidades de interpretação”:

667
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O desafio consiste, desde então, em saber, quem, na comunidade, decide


o que deve ser protegido e como legitimar as escolhas adotadas. Desse
modo, voltam a ser formuladas as questões clássicas da sociologia
política em relação aos poderes de nomear ou à capacidade de fabricar
a coletividade, seja ela formada por famílias, grupos étnicos, regiões
ou nações.
As cidades do vetor 2 da Região Metropolitana de Campinas apresentam uma grande
quantidade de associações que representam pequenas comunidades seletivas, formadas
a partir da origem comum de seus membros, conforme apontado.
O papel destas associações será sempre muito importante em relação à transmissão
da memória dos grupos e na identificação dos lugares e objetos de signifcado cultural
(Carta de Burra, 1979). Porém, não se pode ignorar as relações de disputa e poder que se
estabelecem sobre o território, conforme aponta Geary (1996, p. 31apud CANDAU, 2019):
[...] longe de ser o compartilhamento espontâneo de uma experiência
viva e transmitida, a memória coletiva foi também orquestrada, não
menos que a memória histórica, como uma estratégia favorecendo a
solidariedade e mobilização de um grupo através de um processo per-
manente de eliminação e escolha.
Um fato simbólico, que ilustra essa afirmação, em relação ao casarão da Fazenda
Salto Grande, por exemplo, é que apesar de nele ter funcionado um Museu, sendo, portanto,
um patrimônio “oficial” da cidade, o local teve que ser reivindicado pelo movimento UNE-
GRO[3] de Americana para realização de encontros da comunidade. Um desses encontros,
denominado “O negro na história de Americana”[4], foi realizado no edifício interditado,
em agosto de 2019. O evento contou com café comunitário, palestras, rodas de conversa e
atividades culturais. As falas das diversas lideranças negras da região, reafirmaram que
o casarão representa uma prova material da existência dos negros na cidade, um espaço
de memória dos antepassados, cuja trajetória, segundo os organizadores, é negada e
silenciada pela história oficial da cidade.
Na sociedade contemporânea, o desvanecimento das grandes memórias organi-
zadoras - as unificadoras dos princípios de vida, calcadas no imaginário sobre coloni-
zadores, heróis e mártires - faz com que cada indivíduo siga seu próprio caminho, o que

[3] UNEGRO: União de negros e Negras pela Igualdade.

[4] JORNAL O LIBERAL, 23/ago/2019. Disponível em: https://liberal.com.br/cultura/participa-


cao-de-negros-na-historia-de-americana-e-tema-de-debate-1063498/ Acesso em 30/abril/2020.

668
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

resulta em memórias fragmentadas e, ao mesmo tempo, faz com que nenhum grupo
tenha a possibilidade de construir essa unificação, posto que encerrado em sua esfera
de especialização (HERVIEU-LÉGER, 1993 apud CANDAU p. 184).
Formas de abordagem do patrimônio - paisagem, itinerários, redes culturais e inven-
tários participativos - em simultâneo ou em associação, e seus respectivos instrumentos
de preservação, indicam um caminho para se pensar uma estratégia de preservação dos
remanescentes da RMC, que configuram-se como um patrimônio regional, metropolitano,
cuja escala transcende a atuação de órgãos municipais de preservação. Porém,
[...] aceitar ter que fazer escolhas em nossas heranças, reconhecer que
a totalidade das memórias nos é inacessível, admitir nossa radical
individualidade e a impossibilidade definitiva de um compartilha-
mento absoluto com o Outro é, talvez, a única maneira de reconstruir
as memórias que não serão mais hegemônicas, mas pelo menos sólidas
e organizadoras de um laço social em condições de repudiar toda ideia
de submissão (CANDAU, 2019, p. 195).

Faz-se com essa citação uma conclusão, com a qual é importante retornar à epígrafe
inicial, que enuncia a ideia de que no futuro será necessário saber o que destruir e que o
próprio ato de preservar, não atento a essas mudanças na forma de definição de valores
a partir das transformações nas formas de vida e nas formas de apreensão, transmissão
e salvaguarda das memórias, pode ser um ato de destruir.

AGRADECIMENTOS

À FAPESP, pelo financiamento desta pesquisa através do Auxílio nº 2018/00743-7;


ao CNPQ pela bolsa Produtividade em Pesquisa (proc. 307827/2017-8). Às bolsistas Treina-
mento Técnico FAPESP: Camila Campoy, Heloisa Padula, Julhia Bernardo e Mirian Senna.

669
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

A comunidade Italiana em Santa Bárbara. In Jornal Gazeta Metropolitana –


Suplemento A história de Santa Bárbara. A chegada dos Italianos, n.8, s.d, s.n., 20
nov. 1997.

A Hopwell Church, marco histórico da civilização americana do norte em nosso


município. In Jornal D’Oeste. Santa Bárbara D’Oeste, 13 jan. 1957. FUNDAÇÃO ROMI.

contemporâneo. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Texto para

AGUIAR, Letícia. Imigrantes norte-americanos no Brasil: mito e realidade, o caso


de Santa Bárbara. Dissertação (Mestrado).IE/Unicamp, Campinas, 2009.

Variações sobre o tema: a sociedade auxiliadora

1850). Dissertação (Mestrado em História Econômica) – Instituto de economia,


UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, 2002. Disponível em:<
http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/285874/1/Andrade_
AndreLuizAlipiode_M.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2019.

BOLÁN, Eduardo Nivón. Las contradicciones de la ciudad difusa. Revista


ALTERIDADES 13
2003. Págs. 15-33.

BOLDRINI, Maria I. A migração leta


(Mestrado em História) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 1989, 132 p.

Americana, sua história, s.l., 1967.

CANDAU, Jöel. Memória e Identidade. Tradução maria Letícia Ferreira. 1ª ed. 5ª


reimpressão. São Paulo: Contexto, 2019.

Família de cidades
entorno. Dissertação (Mestrado). IG/Unicamp, Campinas, 2004.

Circolo Italiano será formado ainda esse ano na cidade. s.n, Santa Bárbara
d’Oeste: FUNDAÇÃO ROMI, s.d.

670
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

COLLI, Juliana Marília. O façonismo pelo avesso: um estudo das formas de

Americana – SP. Dissertação (Mestrado). UNICAMP, Campinas, 1997.

Da Itália para o Brasil. 100 anos de imigração da família Angolini. Jornal Diário de
Santa Bárbara, Santa Bárbara D’Oeste. 15 dez. 1996.

Descendentes da Letônia fazem festa típica em Nova Odessa. S.n., Portal G1, 23
jun 2017. Disponível em:<https://g1.globo.com/sp/piracicaba-regiao/noticia/
descendentes-da-letonia-fazem-festa-tipica-em-nova-odessa.ghtml> >.Acesso: 27
fev. 2019.

(ed.). Human Behavior and Social Processes. London: Routledge and Kegan Paul,
1962.

Informações econômicas,
São Paulo, v.38, n.2, fev. 2008. Disponivel em:< http://www.iea.sp.gov.br/ftpiea/
ie/2008/tec3-0208.pdf>. Acesso em: 14 fev. 2019.

Revista
GEOgraphia º 17, 2007.

Revue Française de Science


Politique. Paris: Le Cerf, 1993, 274p.

Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.

A revitalização do centro de Nova Odessa. Nova


Odessa: [s.n.] 1999, p.1-68.

patrimônio. In Inventário Nacional de Referências Culturais. Manual de Aplicação.

arquivos/Edital_de_Chamamento_Publico_Congadas_de_Sao_Paulo-Anexo4.pdf>
Acesso em 30/abr/2020.

671
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Biblioteca do Instituto Brasileira de


. Disponivel em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/dtbs/saopaulo/novaodessa.pdf>. Acesso em: 19 fev. 2019.

Americana e a questão regional. Revista Rua


Nov. 2014.

PDUI. Plano de Desenvolvimento Urbano Integrado. Região Metropolitana de

<https://www.pdui.sp.gov.br/rmc/?tag=governanca>, Acesso: 01/março/2019.

br/igreja/a-pibno/>. Acesso: 26 fev. 2019.

POULOT, Dominique.
Do monumento aos valores. Tradução João de Freitas Teixeira. São Paulo: Estação
Liberdade, 2009.

QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de. Bairros rurais paulistas. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1978.

RAMOS, Cláudia Monteiro da Rocha. Os negros na História de Americana. In

abril/2020.

Memória, Imigração e Educação – Fábrica


de Tecidos Carioba
(Doutorado). UNICAMP. Campinas, 2005.

O Liberal, Suplemento Santa Bárbara D’Oeste 186


anos. Santa Bárbara D’Oeste, 04 dez. de 2004, p.3.

Benamata: um lugar, uma herança. Tese


(Doutorado) FE/Unicamp, Campinas, 2009.

Usinas e Imigrantes consolidam economia. Jornal Gazeta Metropolitana –


Suplemento A História de Santa Bárbara 4 – 1930 a 1970. A consolidação da
economia, Santa Bárbara d’Oeste, s.n.., 23 out. 1997. p.3.

672
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

DOCKLANDS AREA: A PROPOSAL FOR


CONSERVATION AND REUSE

PATRIMONIO INDUSTRIAL EN EL PUERTO

CONSERVACIÓN Y REUTILIZACIÓN
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

LIMA, Evelyn Furquim Werneck.


Pós-Doutor (Paris X); Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/ CNPq
evelyn.lima@unirio.br

MESENTIER, Leonardo Marques de


Doutor (IPPUR/IPUR); Universidade Federal Fluminense/IPHAN
lmesentier@id.uff.br

673
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Interessa discutir neste artigo a conservação das estruturas industriais de enormes dimensões
que estão desocupadas ou subocupadas na área portuária do Rio de Janeiro e que constituem
exemplares de grande valor cultural, não só pelo sistema construtivo e qualidade estética, mas
pela própria construção da significância cultural na história urbana da cidade. Defende-se
que os galpões portuários desativados podem vir a representar relevante papel na gestão da
conservação do patrimônio industrial carioca. Investigando experiências bem-sucedidas no
Brasil e no exterior, a pesquisa examina a proposta de ocupação de antigos prédios indus-
triais com base nas teorias de Henri Lefebvre e Michel de Certeau sobre o “lugar praticado”,
adotando, paralelamente, os conceitos de Beatriz Kühl sobre a restauração e a reutilização do
patrimônio industrial. A proposta de uso é que tais galpões sejam recuperados e ocupados por
grupos artísticos que se formem nas adjacências e que sejam verdadeiramente apropriados
pela população local.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio industrial. Galpões portuários. Conservação. Limiaridades.


Práticas artísticas.

A BSTRACT
This paper aims to discuss the conservation of huge industrial structures that are unoccupied
or under-occupied in the Docklands Area of Rio de Janeiro and that constitute examples of
great cultural value, not only for their building system and aesthetic qualities but for the very
construction of cultural significance in the urban history of the city. We sustain as the main
argument that deactivated warehouses may play an important role in the management of
the conservation of Rio’s industrial heritage. Investigating successful experiences in Brazil
and abroad, the research examines the possible occupation of old industrial buildings in the
Docklands Area based on the theories of Henri Lefebvre and Michel de Certeau on the ‘practiced
place’, adopting, in parallel, the concepts of Beatriz Kühl on the restoration and reuse of indus-
trial heritage. The proposal is that such warehouses should be rehabilitated and occupied by
artistic groups formed in the neighborhoods so that they become truly appropriated by the
local population.

KEYWORDS: Industrial Heritage. Docklands Warehouses. Heritage Conservation. Thresholds.


Artistics Practices.

674
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
Es interesante discutir en este artículo la conservación de estructuras industriales de enormes
dimensiones que están desocupadas o poco ocupadas en el área portuaria de Río de Janeiro
y que constituyen ejemplos de gran valor cultural, no solo por el sistema de construcción y la
calidad estética, sino por la construcción misma de importancia cultural en historia urbana
de la ciudad. Se argumenta que los almacenes portuarios desactivados pueden desempeñar un
papel importante en la gestión de la conservación del patrimonio industrial de Río. Investi-
gando experiencias exitosas en Brasil y en el extranjero, la investigación examina la ocupación
propuesta de edificios industriales antiguos basada en las teorías de Henri Lefebvre y Michel
de Certeau sobre el “lugar practicado”, adoptando, en paralelo, los conceptos de Beatriz Kühl
sobre La restauración y reutilización del patrimonio industrial. El uso propuesto es que dichos
almacenes son recuperados y ocupados por grupos artísticos que se forman en las cercanías y
que son realmente apropiados para la población local.

PALABRAS-CLAVE: Patrimonio industrial. Almacenes portuarios. Conservación del patrimonio.


Limites. Prácticas artísticas.

INTRODUÇÃO

No livro ‘Espaços de Esperança’, o geógrafo inglês David Harvey (2004) enfoca as


profundas contradições existentes no espaço urbano, no qual as políticas públicas ado-
tadas para beneficiar a iniciativa privada produzem espaços destinados a reprodução
do capital em detrimento do uso pela população menos favorecida que, em geral, tem
que ceder espaço aos grandes empreendimentos. É quase sempre a opção que fazem os
governos quando se trata de incentivar a renovação urbana em busca de, supostamente,
criar maior competitividade econômica das metrópoles que administram, esquecendo-se
sempre das populações locais e das heranças imateriais e materiais de cada patrimônio.
Para o geógrafo brasileiro Milton Santos, o espaço seria o conjunto indissociável
de sistemas de objetos, naturais ou fabricados, e de sistemas de ações, deliberadas ou
não, sendo os objetos produtos da ação humana por meio do trabalho, e seu valor no
modelo contemporâneo está na sua eficácia, na sua contribuição para a produtividade
(SANTOS, 2000, p. 46). Nessa pesquisa, entende-se que a materialidade das estruturas
industriais que tiveram um significado intenso para o mundo do trabalho por meio de
ações humanas contemporâneas, deverão ser reativadas e reocupadas pelas atividades
artístico-culturais, resultando em benefício para a memória e para o patrimônio carioca,
tanto material quanto imaterial.

675
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Recentemente, a área portuária do Rio de Janeiro transformou-se numa área “pseu-


do-luminosa”, em que prevalecem as ações que demandam elevados investimentos e
que teriam por objetivo intensificar os fluxos de capitais e consumidores, de serviços
e de mercadorias. Entretanto, as ocupações artísticas de longa duração envolvendo
as populações locais são ainda muito tímidas. Considera-se que o conceito de “área
luminosa” formulado por Santos (2006, p. 221) se aplique aos espaços beneficiados por
investimentos que visam ou ao lucro ou à afirmação do poderio político e econômico.
Estas áreas se inserem na categoria da “representação do espaço”, tal como conceituada
por Lefebvre, ou seja, áreas concebidas e relacionadas à instituição da ordem, intelec-
tualmente, e, portanto, ligadas a códigos preestabelecidos que ignoram o desejo dos
habitantes (LEFEBVRE, 1974).
Na visão de Harvey, o direito à cidade seria “o poder coletivo de remodelar os pro-
cessos de urbanização” por meio da promoção de novos estilos de vida e novos laços
sociais entre os cidadãos (Dessa forma, para Harvey, “o direito à cidade não é apenas o
direito de desfrutar o que está na cidade, mas também o direito de a transformar em algo
completamente diferente” (HARVEY, 2004, p. 218). É fato que o Boulevard do Porto na área
portuária é atualmente um ponto turístico, em que muitos investimentos foram feitos
para valorizar a imagem da cidade, mas as inúmeras estruturas industriais em desuso
poderiam abrigar grupos de artistas da própria região ou de outros bairros, preservando
a arquitetura e devolvendo os vazios urbanos à população carioca.
Com exceção de alguns tombamentos pontuais, os processos de identificação do
patrimônio cultural edificado na área portuária do Rio de Janeiro datam da década de
1980, quando foi estabelecida uma limiaridade entre a área que se considera mais cul-
turalista - ocupada pelas habitações e pelo pequeno comércio nas cotas um pouco mais
altas - e a área mais funcionalista, recuperada ao mar por meio de aterros e, portanto,
nas áreas de cota mais baixa dos três bairros sobre as quais se edificaram os dezoito
galpões lindeiros ao cais entre outros entrepostos industriais que apresentam grandes
estruturas em ferro e tijolo aparente. Com ativa participação da comunidade e dos
movimentos sociais, a delimitação da área de proteção dos três antigos bairros da Saúde,
Gamboa e Santo Cristo foi sacramentada em decreto municipal após o desenvolvimento
do Projeto SAGAS em 1988.[1]Entretanto, na parte baixa aterrada, os galpões portuários
situados na avenida Rodrigues Alves mais próximos da Praça Mauá (de números 1 a 7)
foram tombados definitivamente pela municipalidade em 2000 e o galpão das Docas D.

[1] Decreto nº 7.351, de 14 de fevereiro de 1988, que estabeleceu a APA do SAGAS (transformada
em APAC pelo Plano Diretor de 1992).

676
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Pedro II situado na rua Barão de Teffé, foi tombado provisoriamente pelo IPHAN em 2012,
existindo também um processo sendo analisado para tombar o galpão pelo município.
Interessa discutir neste artigo, especificamente, a conservação das estruturas indus-
triais de enormes dimensões que estão desocupadas ou subocupadas na área portuária
do Rio de Janeiro e que constituem exemplares de grande valor cultural, não só pelo
sistema construtivo e qualidade estética, mas pela própria construção da significância
cultural na história urbana da cidade. Defende-se que os galpões portuários podem vir a
representar relevante papel na gestão da conservação do patrimônio industrial carioca.
Mas sabe-se que sem uso, as edificações perdem suas características e se deterioram. A
proposta é que tais galpões sejam recuperados e ocupados por grupos artísticos que se
formem nas adjacências e que sejam verdadeiramente apropriados pela população local.

A PRODUÇÃO HISTÓRICA DO ESPAÇO PORTUÁRIO DO RIO

A produção histórica do espaço portuário da cidade do Rio de Janeiro tem sido


objeto de inúmeros estudos tanto no urbanismo, quanto na geografia e na antropologia.
Entre muitas obras, destacam-se as de Cardoso et al (1987), Rahba (2006) e Gianella (2013).
No final do século XIX, a região portuária já abrigava o terminal ferroviário, o porto
e as instalações mercantis da cidade, e os extratos mais altos da população aos poucos
foram buscando novas localidades para moradia em bairros mais amenos, distantes do
centro, à medida em que a população pobre permanecia nas áreas centrais, consideradas
degradadas e insalubres. O Porto do Rio de Janeiro foi inaugurado oficialmente em 1910,
depois de sete anos de obras que tornaram a costa mais retilínea, aterrando uma área
de 175.000m2 com entulho proveniente do arrasamento do morro do Senado
O projeto original - concebido pelo engenheiro André Rebouças - previa um cais de
810m e construção de cinco molhes perpendiculares de 480m por 50m de largura e era
ainda inédito em 1867, ocasião em que foi idealizado, mas seria utilizado no cais de Nova
York três anos depois. Somente em setembro de 1903, seria aprovado o projeto definitivo
do Porto, elaborado por outros engenheiros nacionais, entre os quais Francisco Bicalho.
As obras incluíam o aparelhamento do cais com guindastes e linhas férreas, o calçamento
da Avenida do Porto, as obras do Canal do Mangue e a abertura de outra avenida.
No período do Estado Novo (1930-1945) foi construída a segunda expansão do
Porto, ampliando o cais do Canal do Mangue até a Ponta do Caju, fato que teve grande
impacto na economia da cidade. Com a progressiva desativação das atividades portu-
árias no Píer Mauá e no Cais da Gamboa e com o início do funcionamento do Porto de
Itaguaí em 1982, a obsolescência da área acentuou-se. As principais atividades portuárias

677
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

foram transferidas, provocando maior êxodo populacional, tendo como consequência


muitas edificações vazias, em especial os grandes galpões industriais lindeiros ao mar
e inúmeros sobrados, ampliando os problemas sociais já existentes na área, ocupada
principalmente pela classe trabalhadora[2](Figura 1).

globo.com/rio/os-armazens-da-zona-portuaria.html

Nesse sentido, com o advento de novas tecnologias e o deslocamento das atividades


portuárias e industriais, parte da população residente vem se deslocando para as novas
centralidades criadas em bairros e, como consequência, muitos sobrados e enormes
estruturas industriais ficaram sem nenhum uso, gerando perda do valor imobiliário,
porém ainda constituem a história viva do Porto desde as obras realizadas na gestão
do prefeito Pereira Passos (1903-1906). A prefeitura é ainda hoje proprietária de muitos
imóveis que retornaram ao seu domínio, mas que permanecem desocupados, assim
como as Docas do Porto do Rio de Janeiro, que mantém inúmeros galpões desativados.

[2] Segundo o Censo do IBGE de 2010, a renda domiciliar per capita nas áreas do Porto e Caju
era de R$ 506,00, enquanto no município do Rio era de R$ 1.414,00.

678
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Reconhecendo o valor e o significado dessas estruturas industriais, a municipalidade


tombou os imóveis da Avenida Rodrigues Alves nº 303/331 e Avenida Rodrigues Alves s/
nº armazéns nº 01, 02, 03, 04, 05, 06 e 07, além dos imóveis da Praça Mauá n. 2 e n. 10. [3]

TIPOLOGIAS DOS GALPÕES: UM PATRIMÔNIO INDUSTRIAL A CONSERVAR

O patrimônio industrial foi reconhecido institucionalmente em 1978, após a


criação do Comitê Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (TICCHI),
durante o III Congresso Internacional para a Conservação de Monumentos Industriais
em Estocolmo. Trata-se de um tema multidisciplinar, abrangendo questões técnicas,
sociológicas, geográficas, antropológicas, entre outras.
Remanescente vivo da era da industrialização, o patrimônio industrial inclui
edifícios e máquinas, oficinas, fábricas e armazéns, entre outros, além de locais onde
ocorreram atividades sociais relacionadas ao setor. Entende-se que a área portuária do
Rio de Janeiro - local por onde entraram no Brasil milhares de africanos escravizados -, e
cujos galpões desativados participaram intensamente da vida econômica da nação, seja
um lugar de memória ainda vivo. Apesar de esses galpões já terem sido identificados e
preservados, necessitam urgentemente de conservação e de novos usos.
Como forma de gestão da conservação deste significativo patrimônio industrial
em desuso e em busca da diversidade social e da mistura entre diferentes culturas em
uma das regiões mais antigas do Rio de Janeiro, este paper objetiva evidenciar a impor-
tância da ocupação de imóveis preexistentes para a produção artístico-cultural, visando
integrar diferentes camadas sociais, em atividades artísticas produzidas por grupos de
artistas dos bairros da Gamboa, Saúde e Santo Cristo que apresentem fortes vínculos de
identidade com o lugar. O objetivo principal foi examinar a disponibilidade desse patri-
mônio industrial na área em questão, promover a reabilitação e sugerir usos artísticos,
devolvendo essas estruturas abandonadas à população (Figura 2).

[3] Ver Decreto nº 19.002 de 5 de outubro de 2000.

679
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2 - A tipologia dos galpões ao longo da costa. Foto Natalia Gadiolli, 2019.

A maior parte dos galpões erguidos na área portuária apresenta estrutura de ferro
e paredes em alvenaria de tijolo deixada aparente. Internamente, duas linhas de colunas
de ferro auxiliam a estrutura externa a suportar três séries de tesouras de ferro, que
dispõem de lanternins, armados lateralmente com venezianas fixas de vidro, de modo a
garantir ventilação e iluminação naturais ao amplo interior dos armazéns. Os telhados
sobre as estruturas são de telhas francesas. As alvenarias e os pilares se apoiam em fun-
dações de concreto armado e o piso original era de paralelepípedos de pedra, assentado
a 0,90m acima do capeamento do cais para facilitar o movimento de carga e descarga.
Um dos mais representativos galpões ainda existentes situava-se nas antigas Docas
Pedro II, naquela ocasião, beirando o mar. Construído em 1875, ao longo do que na época
era o litoral do bairro da Saúde entre a Pedra do Sal e a Praça Municipal, com projeto
de André Rebouças[4], este grande armazém de três pavimentos, com área de 4.650m²,
recentemente tombado pelo IPHAN, era inicialmente um empório de café, sendo mais

[4] As Docas dispunham de cais de 160m de extensão com profundidade para 3m e duas
pontes de madeira de 110m por 12,5m para 6m de profundidade média.

680
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

tarde utilizado como depósito de alfafa e produtos agrícolas, nacionais e estrangeiros [5].
(Figura 3). Mas este patrimônio já está sendo estudado pelo governo municipal.

-
tente entre o tecido anterior ao aterramento do porto. (Mapeamento constante do Processo
02.000.542/2017). Cortesia do IRPH)

Infelizmente, o atual projeto de requalificação da área portuária do Rio de Janeiro,


intitulado projeto Porto Maravilha, obedece ao ideário neoliberal de ordenamento das
cidades a partir do incentivo à iniciativa privada e à estetização do espaço, restringindo-se
às melhorias dos logradouros e implementando museus de grande impacto nacional e
internacional, esquecendo-se dos anseios da população residente e de que o rico patri-
mônio edificado na área também é dos moradores e merece ser recuperado.

pelo Betinho e está atualmente desativada.

681
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

As iniciativas de transformar a área em polo de gastronomia, de desfiles de moda


e de parque de diversão, ou seja, em espaço de consumismo e de indústria cultural,
não foram contempladas neste estudo, entendendo-se o conceito de indústria cultural
formulado por Theodor Adorno em Dialética do Esclarecimento, escrita em parceira com
Max Horkheimer (1985 [1947][6]. A indústria cultural, segundo Adorno e Horkheimer,
possui padrões que se repetem com a intenção de formar uma estética ou percepção
comum voltada ao consumismo. Estes autores sugerem fontes alternativas de arte e
de produção cultural, que, ainda que sejam utilizadas pela indústria, promovam um
mínimo de conscientização possível.
Como tática para enfrentar a nefasta estratégia da sociedade do espetáculo, mais
recentemente, estão sendo privilegiadas as “ações culturais” – iniciativas de caráter con-
tra hegemônico, calcadas em manifestações artístico-culturais diversas tais como teatro,
cinema, dança, música e artesanato, entre outras, e implementadas em áreas periféricas
do Rio de Janeiro, resultando em uma “preocupação maior com o desenvolvimento social
em escala local.[...] Tais processos de resistência por meio da cultura têm se verificado na
busca pelo sentimento pleno de pertencimento à cidade”, como afirma Claudia Seldin
(2017, p.16). Após as pesquisas sobre o patrimônio disponível nos bairros delimitados,
recomendou-se o restauro de alguns galpões industriais desativados, propondo seu
aproveitamento com atividades artísticas e culturais menos espetaculares que devolvam
esses equipamentos às populações locais, colaborando assim para a diversidade cultural
da região, ocupada em diferentes temporalidades por afrodescendentes[7], portugueses,
e imigrantes de distintas procedências
É fato que equipamentos culturais criados para a indústria do entretenimento e
para fortalecer a imagem do poder contribuem para aumentar os processos de segrega-
ção, exclusão social, política, espacial e territorial. Apesar da diminuição das fronteiras
da modernidade líquida identificada por Zygmunt Bauman (2001), criam-se barreiras
invisíveis para as camadas de menor renda que dificilmente conseguem usufruir de
tais equipamentos. Museus e centros culturais projetados por arquitetos do star-system
têm sido implantados em bairros ou centros urbanos do Rio de Janeiro como uma das
expressões do City Marketing, adotado pelo capitalismo tardio, sem quaisquer consultas

[6] Ocupações que se abrem ao grande público, mas não se destinam à população local, tais
como os eventos esporádicos do Salão da Gastronomia, que tem ocupado os galpões 3 e 4

implementou sua 6ª edição nos galpões 2,3 e 4, não interessam a esta pesquisa.

[7] Segundo dados do SEBRAE (2016), 55% da população na Área Portuária é afrodescendente.

682
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

às populações residentes e cada vez mais a serviço da gentrificação de certos territórios.


Esses equipamentos culturais de grande impacto, em geral, não estimulam a participação
da população, visto que se destinam explicitamente às elites. E a simples transformação
de um patrimônio cultural em museu não garante seu uso pelos residentes, além de
ser muito onerosa, argumento que sempre defendemos há várias décadas (Lima, 2004).
Como forma de resistência e alternativa à mercantilização da cultura, alguns grupos
teatrais e seus diretores visionários têm buscado ocupar os vazios urbanos num esforço
de exercer a cidadania. Muitas vezes, aquelas áreas ditas “opacas” e periféricas produzem
uma cultura espontânea envolvendo as comunidades nos projetos, evitando a segrega-
ção[8], conforme intensamente enfatizado por Santos (2006 [1999], p. 221).

O PATRIMÔNIO INDUSTRIAL: PONTOS DE VISTA TEÓRICO-METODOLÓGICOS

No Brasil, são poucos os pesquisadores que se dedicam ao estudo aprofundado do


patrimônio industrial, mas destacam-se como exceções Beatriz Kühl, Angela Rodrigues e
Andrea Sampaio, entre alguns outros. No texto “Patrimônio industrial: algumas questões
em aberto”, Beatriz Kühl (2002) aborda as definições relativas à arqueologia industrial e
ao patrimônio industrial e suas implicações do ponto de vista teórico-metodológico na
conformação de um campo temático interdisciplinar. Kühl pesquisou a preservação e o
restauro do patrimônio industrial, enfatizando os conjuntos de interesse arquitetônico
e documental, situados, em sua maioria, nas zonas centrais da cidade de São Paulo. A
autora aponta a difícil dicotomia na escolha das prioridades: por um lado, as questões
práticas (como as que são referentes à transformação de usos desses edifícios) e por
outro, as questões econômicas (ditadas pelas pressões do mercado imobiliário) que
acabam por retirar o conteúdo importante para a memória do trabalhador urbano. Essa
lacuna de ordem conceitual parece preenchida mediante definição ampliada do termo
patrimônio industrial oferecida pelo Princípio de Dublin (ICOMOS, 2011) ao reconhecer
a importância de conservar o legado material associado à sua dimensão intangível.
Kühl enfatiza o acúmulo quantitativo de experiências no campo dos estudos sobre
o patrimônio industrial, sem haver “um proporcional salto qualitativo no debate e na
compreensão do tema”, um dos motivos que originou esta pesquisa. Nesse sentido, além
desta problemática, buscou-se investigar neste estudo a inserção desses bens patrimo-
niais do período da industrialização no espaço, ao longo do tempo, e suas relações com
a estruturação da cidade ou do território, sua articulação com aspectos sociais, econô-
micos, culturais e políticos.

[8]

683
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Duas outras pesquisas consistentes sobre o patrimônio industrial são a disserta-


ção de Angela Rodrigues, sobre o patrimônio industrial de uso fabril na cidade de São
Paulo (2011), com foco em três estudos de caso e nas diferenças de juízo de valor entre
proprietários e órgãos do patrimônio, e o texto de Andrea Sampaio da UFF que discute
o patrimônio industrial carioca primordialmente à luz da legislação urbanística (2012,
p. 142-165). Nenhum desses estudos se debruçou sobre a apropriação do patrimônio
industrial a ser reutilizado com atividades artístico-culturais, tal como já ocorre com
a cessão de uso do Galpão da Utopia para o grupo teatral Companhia Ensaio Aberto[9].

Considera-se que a ocupação dos imóveis de grandes proporções com atividades


socioculturais seja adequada, na medida que responda aos anseios das comunidades
que habitam e frequentam as áreas adjacentes aos imóveis objeto da regeneração tal
como ocorreu na reocupação bem-sucedida da Custard Factory[10] (Fábrica de Pudim)
que é hoje o quarteirão mais criativo de Birmingham. Construída há mais de 100 anos
ao longo do rio Rea, a fábrica chegou a ter mais de mil pessoas trabalhando, mas por
volta dos anos 1980 já havia perdido a importância econômica, iniciando-se o processo
de degradação. A partir de 1989, um empreendedor privado - movido por ideais sociais
- montou o Custard Factory Quarter dando início ao processo de regeneração que se
estendeu até 2011 (Figura 4).

[9] A história deste grupo teatral e de como foi proveitosa a cessão de uso do Armazém da
Utopia para o teatro e para a ocupação do patrimônio industrial está sendo investigada pela
bolsista IC/FAPERJ Natália Gadiolli.

[10] Ver o depoimento do empreendedor Billie Gray. Disponível em http://www.englishheritage.

684
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura Custard Factory - A fábrica original construída pelo empresário Bird e recentemente

Birmingham.JPG

Após as obras de conservação em parte dos imóveis, o empreendedor anunciou


que alugaria estúdios para os jovens talentos de Birmingham que ali quisessem se
instalar. Atualmente, cerca de 500 pessoas trabalham na antiga fábrica, na qual artistas
plásticos e empresas de informática se estabeleceram. O local também abriga um teatro,
cafés, espaços para eventos, galerias de arte e muitos espaços públicos abertos, além de
uma arena com capacidade para 5.000 espectadores. Pode-se afirmar que a ocupação
por atividades artístico-culturais, aliada aos baixos aluguéis, garantiu a regeneração da
área e empregos para a população do local.
No Rio de Janeiro, no bairro de Santo Cristo, a antiga Fábrica de Chocolates Bhe-
ring há cerca de quinze anos abriga um conjunto de ateliês de artistas plásticos, entre
outros usos. Devido às dívidas do proprietário com a União, o imóvel foi leiloado e os
artistas inquilinos receberam ordem de despejo. Entretanto, em 2010, estes locatários
se organizaram em uma associação, fato que os auxiliou a vencerem a luta para não
deixarem o espaço que ocupam há mais de uma década. Reconhecendo a relevância da
ocupação criativa do imóvel desativado, o poder público municipal tombou a edificação
e desapropriou a antiga fábrica, no intuito de garantir a permanência dos ateliês que
passaram a fazer parte do mapa cultural da cidade. O processo de desapropriação do

685
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

imóvel[11] poderá demorar a ser concluído e o tombamento de usos é, em geral, de difícil


cumprimento, porém, o exemplo da Fábrica Bhering traduz um processo de revitaliza-
ção induzido pela própria comunidade que conquistou a gestão e responsabilidade do
espaço, demonstrando que a cidadania pode realmente ser exercida, quando indivíduos
se unem e se organizam. Identifica-se nas práticas sócio antropológicas deste exemplo,
as resistências que, como diz De Certeau (1994 [1980]), criaram um “lugar praticado” por
meio de táticas, combatendo as estratégias de poder, traduzidas pelo leilão do imóvel
e a ação de despejo, felizmente interrompida. Assim como propõe Lefebvre (1974), a
comunidade de artistas plásticos e artesãos conseguiu defender um espaço de sua pró-
pria representação, lutando para evitar que a antiga fábrica laboriosamente ocupada
de acordo com as necessidades e usos atuais se transformasse em mera “representação
do espaço” ditada pelo poder econômico (Figura 5)

Figura 4 - Fábrica de Chocolates Bhering – estado atual do imóvel ocupada por artistas plásticos
e segmentos da indústria criativa que resistiram à expulsão. Foto Evelyn Lima, 2012,

[11] Ver decreto de desapropriação – Decreto n. 36015 de 30/07/2012.

686
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Outro exemplo bem-sucedido de ocupação de antiga edificação industrial no centro


do Rio de Janeiro é o Galpão da Gamboa, arrendado por Marcos Nanini, que ali instalou
um teatro e um centro de aulas de arte e de esportes para atender à população local.
Todavia, o projeto-exemplo para a utilização dos galpões restaurados com práticas
artísticas cênicas ou visuais, é o Armazém da Utopia (Galpão 6), ocupado pela Companhia
Ensaio Aberto, tanto na questão da conservação quanto do uso adotado e processos para
conseguir a ocupação.
No entanto, o projeto que deverá ser servir como projeto-piloto para a utilização de
galpões restaurados com práticas artísticas ou visuais, é o Armazém da Utopia (Galpão
6), ocupado pela Companhia Ensaio Aberto, tanto na questão da conservação do patri-
mônio, quanto no processo para obter a cessão de uso junto aos órgãos responsáveis.
Com foco na realidade política e econômica brasileira, o grupo atrai um público que não
frequenta teatro. Juntamente com intelectuais e frequentadores habituais, sindicalistas
e estudantes de escolas públicas sempre se juntam às produções encenadas pelo grupo,
desenvolvendo uma visão politizada e crítica para discutir a realidade do povo brasileiro.
Fundamentada nas teorias brechtianas, a empresa estabeleceu uma nova relação palco-
-público e abandonou o estágio ilusionista italiano para promover o reconhecimento
do poder transformador das massas.
Para implementar seu projeto de referência internacional, após anos de luta e
resistência, a empresa ocupou em 2016 o Galpão n. 6 e seu anexo pertencente à Com-
panhia das Docas do Rio de Janeiro e denominou-o Armazém da Utopia. Essa estrutura
industrial é atualmente a sede da Companhia Ensaio Aberto, embora o grupo mude
constantemente os diferentes espaços dentro do enorme galpão para montar suas peças.
O uso dos extensos espaços do galpão portuário n. 6 é voltado para a comunidade por
meio de cursos, palestras entre outras atividades, que a transformaram em um ponto
para discutir teatro com escolas de ensino fundamental, sindicatos instalados na área
portuária e teatro sem cobrança de ingresso em diferentes temporadas, ampliando
plateias e dando pleno uso à antiga estrutura desativada (Figura 5)

687
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 5 - Armazém da Utopia. Foto Natália Gadiolli, 2019.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Entende-se que atividades artísticas desenvolvidas nos vazios urbanos permitem


ampliar o alcance do teatro, da dança e das artes visuais por diferentes camadas da
população, beneficiando também os próprios artistas. Os diretores e performers - que
em anos recentes abandonaram os imponentes teatros – ajudam a reforçar a dinâmica
entre o teatro e a cidade. Muitos desses grupos de atores e artistas plásticos desenvolvem
um trabalho site-specific que é criticamente antenado com questões de espaço e lugar,
buscando espaços alternativos para fazer arte. A questão de eliminar o ilusionismo e
colocar em discussão na cena - com intensa participação dos espectadores - as contradi-
ções econômicas, dramas sociais e opressões típicas de uma sociedade estruturada pela
luta de classes data já do teatro moderno proposta por Bertolt Brecht, mas na contem-
poraneidade, outros espaços da cidade assumiram papel fundamental para garantir a
interrelação palco-plateia e a fruição de obras de arte em geral.
Para enfrentar a fragmentação da vida em comunidade na qual existe hoje a neces-
sidade de autoafirmação do indivíduo em detrimento do coletivo em um mundo cada vez
mais voltado para o consumo, acredita-se que a arte venha a ser uma das possibilidades
de exercer a cidadania. Paralelamente, o teatro e a performance têm se mostrado um

688
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

meio eficaz neste diálogo com a cidade. O desafio para aqueles que estão preocupados
com um teatro socialmente engajado é abrir o caminho entre os impasses do capita-
lismo contemporâneo por meio de práticas culturais no espaço da cidade de maneira
a garantir o exercício pleno de nossa cidadania.
A pesquisa apontou as seguintes estruturas industriais em desuso para proceder aos
trabalhos de conservação dos imóveis e possíveis aproveitamentos por grupos teatrais
dos bairros adjacentes: Galpões da Avenida Rodrigues Alves números 303, 241 e 509, rua
Santo Cristo 70/74, Rua Santo Cristo 148 e rua da Gamboa 120, sugerindo ampla consulta
às populações locais para a ocupação do patrimônio industrial desativado por coletivos
e grupos teatrais ou por grupos de artistas visuais.

689
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

Dialética do Esclarecimento.

BAUMAN, Zigmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CARDOSO, Elizabeth Dezouzart et al. História dos Bairros: Saúde, Gamboa e


Santo Cristo. Rio de Janeiro: Index, 1987.

DE CERTEAU, Michel. A Invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer/ Petrópolis, RJ:

GIANELLA, Letícia de Carvalho. A produção histórica do espaço portuário da


cidade do Rio de Janeiro

e o projeto Porto Maravilha, Espaço e Economia


Econômica. Ano II, N. 3, 2013.

Espaços de esperança. 3ª Edição. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Preservação do patrimônio arquitetônico da


industrialização
p. 40-2.

KÜHL, Beatriz Mugayar. Patrimônio industrial: algumas questões em aberto. Arq.

Dos trapiches ao Porto. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca:


Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, 1991.

La production de l’espace. Paris: Anthropos. 1974.

Arquitextos 046.03, ano 04, 2004.

Restauro e Reciclagem do complexo industrial Bhering.

690
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RAHBA, Nina. Centro do Rio: Perdas e ganhos na história carioca, Tese (doutorado

RODRIGUES, Angela. Estudo sobre o patrimônio industrial de uso fabril na cidade


de São Paulo. Dissertação de Mestrado. / FAU-USP, 2011.

In: Andrea Borde (org.)


, Rio de Janeiro: UFRJ, 2012, 142-165.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização:


universal. São Paulo: Record, 2000

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço:


São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.

SELDIN, Claudia. Imagens urbanas e resistências: das capitais de cultura às

691
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

QUE INCIDEM SOBRE A

THE LAGOINHA NEIGHBORHOOD IN BELO


HORIZONTE, MINAS GERAIS, BRAZIL: THE

IMPORTANCE AS A MEMORY PLACE

REGIÓN Y SU IMPORTANCIA COMO UN LUGAR DE


MEMORIA
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

692
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BERNARDES, Brenda Melo


Doutoranda e Mestre em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura da UFMG;
UFMG
brenda.mbernardes@gmail.com

GONÇALVES, Raquel Garcia


Doutora em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pesquisa e Planejamen-
to Urbano e Regional - IPPUR/UFRJ; UFMG
raquelgargon@hotmail.com

693
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A cidade de Belo Horizonte/MG tem lidado, frequentemente, com propostas de parcerias estabe-
lecidas entre o poder público e investidores privados que, em geral, privilegiam a condução de
intervenções subordinadas à lógica de mercado. Nesse cenário, os lugares vem se transformando
em produtos, de tal modo que prevalecem as relações de consumo ao invés da importância
na constituição de memórias afetivas ou de relações sociais. O Bairro Lagoinha, um dos mais
antigos da capital e que concentra relevante patrimônio cultural, a partir do ano de 2014, tem
sido foco de pesquisas conduzidas pelo poder público culminando na divergência de interesses
de renovação e recuperação urbana do bairro: de um lado representado pela proposta da Ope-
ração Urbana Consorciada Antônio Carlos/Pedro I – Leste-Oeste (OUC ACLO) e, do outro, pelo
interesse na manutenção da sua importância patrimonial por meio da instituição do Conjunto
Urbano Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates (Deliberação Nº 193/2016). Diante disso, o objetivo
desse artigo[1] é de compreender os desafios na condução de diretrizes para o desenvolvimento
urbano do Bairro Lagoinha, considerando a Operação Urbana Consorciada proposta em 2014
em contraponto à recente política de proteção patrimonial.

PALAVRAS-CHAVE: operação urbana consorciada. conjuntos urbanos tombados. áreas de


diretrizes especiais. Bairro Lagoinha.

A BSTRACT
The city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil MG has often dealt with proposals for partner-
ships between the government and private investors that usually favor urban interventions
aligned with the market. In this instance, places have been transformed into products, in such
a way that consumer relations prevail instead of the construction of affective memories or
social relationships. The Lagoinha Neighborhood is one of the oldest in the city and which has
many relevant cultural heritage. As of 2014, it has been the focus of research conducted by the
government in which culminated in the divergence of interests in urban renewal and recovery
of the neighborhood: on the one hand represented for the proposal of the Urban Consortium
Operation Antônio Carlos/Pedro I – Leste-Oeste (OUC ACLO) and, on the other, for the interest
in maintaining its patrimonial importance through the institution of the Urban Complex
Lagoinha, Bonfim and Carlos Prates (Deliberation Nº 193 / 2016). Therefore, the objective of this
article is to understand the challenges in conducting guidelines for the urban development of

[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001 e conta com o apoio
do CNPQ e da FAPEMIG.

694
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

the Lagoinha neighborhood, considering the Urban Consortium Operation proposed in 2014
as a counterpoint to the recent property protection policy.

KEYWORDS: urban consortium operation. protected urban complexes. special guidelines zones.
Lagoinha neighborhood.

RESUMEN
La ciudad de Belo Horizonte / MG ha tratado, a menudo, de propuestas de asociaciones estable-
cidas entre autoridades públicas e inversores privados que, en general, favorecen la realización
de intervenciones subordinadas a la lógica del mercado. En este escenario, los lugares se han
transformado en productos, de tal manera que prevalecen las relaciones con los consumidores
en lugar de la importancia en la constitución de recuerdos afectivos o relaciones sociales. El
Barrio Lagoinha, uno de los más antiguos de la capital y que concentra el patrimonio cultural
relevante, a partir de 2014, ha sido el foco de la investigación realizada por las autoridades
públicas que culminó en la divergencia de intereses en la renovación urbana y la recuperación
del barrio: por un lado representado por la propuesta del Operación Urbana Consorciada
Antônio Carlos / Pedro I - Leste-Oeste (OUC ACLO) y, por el otro, por el interés en mantener su
importancia patrimonial a través de la institución del Conjunto Urbano Lagoinha, Bonfim y
Carlos Prates (Deliberación Nº 193 / 2016) Dado esto, el objetivo de este artículo es comprender
los desafíos en la conducción de pautas para el desarrollo urbano de Barrio Lagoinha, conside-
rando la Operación Urbana Consorciada propuesta en 2014 como un contrapunto a la reciente
política de protección del patrimonio.

PALABRAS-CLAVE: operación urbana consorciada. conjuntos urbanos protegidos. áreas de


directrices especiales. Barrio Lagoinha.

INTRODUÇÃO

Tendo em seu cerne conceitos oriundos do setor empresarial, o planejamento


estratégico consolida-se no Brasil como modelo diante da possibilidade de tornar as
cidades mais atrativas para investimentos externos, para o consumo e para o entreteni-
mento, inseridas em um cenário de competitividade interurbana (VAINER, 2000). Nessa
perspectiva, as ideias neoliberais passam a ser vistas como possibilidade de impulsionar
o desenvolvimento urbano.
Em Belo Horizonte, como exemplo de aplicação de conceitos neoliberais no planeja-
mento, tem sido frequente a predominância de interesses mercadológicos na condução
de intervenções urbanas, de modo que setores específicos da cidade têm se beneficiado

695
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de investimentos utilizando como mecanismo principal as parcerias público-privadas.


Nesse contexto, as políticas públicas, por vezes excludentes, são subordinadas à lógica
de mercado em detrimento ao atendimento dos anseios da sociedade de modo geral e,
segundo Harvey (2006), os grupos dominantes, que apresentam maior poder político
e/ou econômico, passam a influenciar no direcionamento do desenvolvimento local
para fins privados.
A região da Lagoinha tem sido alvo de propostas de intervenção, recentemente,
ancoradas nas ideias neoliberais. O bairro originou-se juntamente com o processo de
urbanização de Belo Horizonte e caracterizou-se por abrigar, inicialmente, grande contin-
gente populacional, sendo marcante a presença de operários imigrantes que ajudaram
no processo de construção da região. Assim, é notório nesse cenário uma diversidade
social e cultural material e imaterial que faz com que ele se destaque como importante
referência para a constituição do patrimônio municipal.
Historicamente, o bairro tem passado por uma série de obras viárias por situar-se
estrategicamente adjacente à área central, sendo importante ligação entre bairros vizi-
nhos e municípios situados no Vetor Norte de desenvolvimento da Região Metropolitana
de Belo Horizonte. Tais intervenções tem influenciado negativamente na qualidade de
seus espaços públicos para apropriação pela população residente.
Como propostas mais recentes direcionadas para o bairro pelo poder público
salienta-se a Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos/Pedro I – Leste-Oeste (2014)
que visa, entre outras questões, ao processo de adensamento dos eixos viários prioritá-
rios representados pela Avenida Antônio Carlos e Pedro II, que demarcam os limites da
Lagoinha, e de instituição de um Corredor Cultural diante da sua relevância histórica.
Não obstante, em 2016 foi efetivado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural
do Município de Belo Horizonte o tombamento do Conjunto Urbano Lagoinha, Bonfim,
Carlos Prates, o que afirma a importância cultural do bairro.
Assim, pretende-se por meio desse artigo compreender os desafios na condução de
diretrizes para o desenvolvimento urbano do Bairro Lagoinha, considerando a Operação
Urbana Consorciada proposta em 2014 em contraponto à recente política de proteção
patrimonial.
A pesquisa[2], de base qualitativa, utiliza como métodos as visitas de campo, consultas
a fontes primárias como o Diário Oficial do Município e legislação urbanística, e dados

[2] A pesquisa resulta da dissertação: BERNARDES, Brenda Melo. Memória, cotidiano e as


propostas institucionalizadas direcionadas ao Bairro Lagoinha em Belo Horizonte/MG: múltiplas
visões de um mesmo lugar. 2016. 165f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) –

696
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

secundários como livros, teses, dissertações e artigos para análise das transformações
urbanas presenciadas na região e das propostas institucionalizadas que têm sido dire-
cionadas para o bairro.

AS TRANSFORMAÇÕES URBANAS E OS INTERESSES MERCADOLÓGICOS QUE


INCIDEM SOBRE O BAIRRO LAGOINHA

Historicamente, a Região Pericentral de Belo Horizonte, antiga zona suburbana, inse-


ria-se entre a zona urbana e a zona rural. Apesar das intenções da Comissão Construtora
da Nova Capital de povoamento no sentido centro-periferia, a área central, delimitada pela
Avenida do Contorno, que era denominada de zona urbana, teve inicialmente ocupação
rarefeita quando comparado ao crescimento acelerado da zona suburbana (VILLAÇA,
2001). Tal situação pode ser atribuída à legislação mais branda na zona suburbana, no
que tange aos critérios de uso e ocupação do solo, quando comparado ao rígido controle
da área central (MORAES; GOULART, 2002).
Assim, como área integrante da antiga Zona Suburbana, hoje denominada de Região
Pericentral de Belo Horizonte, o Bairro Lagoinha consolidou-se em função, sobretudo, da
presença de imigrantes italianos, portugueses, sírios, libaneses, judeus que, atraídos por
oportunidades de trabalho vinculados à construção da nova Capital, estabeleceram raízes
no local, influenciando na diversidade sociocultural, na vocação comercial (SILVEIRA,
2005) e nas singularidades na paisagem construída da Lagoinha (Figura 1).

Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Escola de Arquitetura da Universidade


Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016; e de estudos conduzidos atualmente sobre Con-
juntos Urbanos, no doutorado em Arquitetura e Urbanismo, na Escola de Arquitetura da UFMG.

697
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Contextualização do Bairro Lagoinha. Mapa-base: Google Earth, 2011. Montagem pro-
duzida por Brenda Melo Bernardes.

Ainda sobre a origem do bairro, é importante destacar que a região remonta ao


antigo arraial do Curral del Rey e recebeu essa denominação por ter abrigado uma lagoa,
que foi extinta entre 1894-1897 (BARRETO, 1996), assim como os vestígios do arraial fun-
dado no século XVIII, para a construção de Belo Horizonte. Ademais, a região, que desde o
início da sua ocupação recebeu grande contingente populacional, sofria periodicamente
com enchentes por ocupar a área de várzea do Ribeirão Arrudas e por estar inserida sobre
os córregos da Lagoinha e do Pastinho (BERNARDES; BORSAGLI, 2014). Logo, as ações de
canalização do córrego da Lagoinha possibilitaram, não só o processo de urbanização
e de saneamento da região, como também a implantação da Avenida Antônio Carlos na
década de 1940 (inicialmente denominada Pedro I), o que influenciou no reconhecimento
da importância dessa área para interligação dos bairros situados na região Norte, como
Venda Nova e Pampulha (BELO HORIZONTE, 1937).
Posteriormente, as inúmeras intervenções viárias realizadas pelo poder público
na Lagoinha, ao longo de décadas, iriam evidenciar sua importância no contexto metro-
politano, pela conexão estabelecida da Grande BH com o Vetor Norte de expansão. Vale
destacar que esse eixo incorpora equipamentos urbanos relevantes como o Aeroporto
Internacional Tancredo Neves e a Cidade Administrativa, assim como concentra inves-

698
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

timentos imobiliários que têm impulsionado a ocupação de municípios adjacentes à


BH como Confins, Lagoa Santa, Vespasiano e Santa Luiza.
Além disso, as múltiplas intervenções urbanas que foram realizadas na Lagoinha
(Figura 2), como o constante aumento da capacidade viária da Avenida Antônio Carlos,
por meio de obras que induziram o alargamento de sua caixa, bem como, a inserção das
numerosas alças do Complexo Viário, ao mesmo tempo em que aumentaram o fluxo
exponencial de veículos nesse bairro, contribuiram também, negativamente, para a
perda da qualidade sociocultural dos seus espaços urbanos, que foram reduzidos à áreas
residuais dos viadutos. Assim, a prioridade atribuída ao transporte individual motori-
zado nas intervenções realizadas pelo poder público resultaram na transformação da
paisagem, que antes marcada pela diversidade social, de apropriações e pelo caráter
boêmio de seus espaços públicos, passa a ser reconhecida pela população, de modo geral,
como local de passagem e degradado (BERNARDES, 2016).

Figura 2: Linha do tempo retratando algumas intervenções urbanas conduzidas no Bairro


Lagoinha. Montagem produzida por Brenda Melo Bernardes.

Há alguns anos presenciamos, além das obras viárias de duplicação da Pedro II e


da Avenida Antônio Carlos para passagem de BRT no trecho que compreende o Bairro
Lagoinha, a proposta de instituição da Operação Urbana Consorciada, que teve como
objetivo principal[3] promover o adensamento de eixos prioritários de desenvolvimento de

-
ponde à otimização da infraestrutura existente em corredores viários considerados prioritários

699
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Belo Horizonte e a requalificação de áreas carentes de infraestrutura urbana por meio de


parcerias estabelecidas entre o poder público e investidores privados (BELO HORIZONTE,
2015). Inicialmente denominada de Nova BH (2013), o projeto foi embargado devido à
denúncias de irregularidades no processo participativo da operação junto ao Ministé-
rio Público. Assim, diante das diretrizes expressas no Estatuto da Cidade (Lei Federal
10.257/01) e em leis municipais da necessidade de transparência e de incorporação da
participação da sociedade civil na gestão democrática das cidades, foi instituída uma
nova proposta que passou a ser denominada Operação Urbana Consorciada Antônio
Carlos/Pedro I - Leste-Oeste (OUC ACLO) (BERNARDES, 2016).
Ademais, como consequência da pressão popular para instituição dos mecanismos
participativos na OUC ACLO, presencia-se com o novo plano da operação mudanças
quanto ao sistema de gestão por meio da realização de audiências públicas regionais
para conhecimento das propostas pela população residente nas áreas que seriam afe-
tadas, na maior aceitabilidade de sugestões e críticas apresentadas pela sociedade civil
sobre as estratégias preconizadas para cada região, na formação de grupos de trabalho
com lideranças dos bairros contemplados na operação que participaram ativamente
na elaboração das diretrizes da operação (BERNARDES, 2016).
Ainda sobre a OUC ACLO, ressalta-se que o Bairro Lagoinha está sendo contemplado
na operação tendo em vista a importância de conectividade da região com o Vetor
Norte a partir da Avenida Antônio Carlos e do seu potencial para adensamento, diante
da existência de áreas vazias e subutilizadas próximo aos principais corredores viários
(Figura 3). Esses vazios urbanos resultam das obras realizadas na região com o intuito de
aumentar sua capacidade viária, em detrimento à qualidade dos espaços públicos para
a população residente. Ainda, o interesse de investimento nessa área estaria associado
à importância de resgate e de valorização do patrimônio material e imaterial da região,
que configura uma das mais antigas de Belo Horizonte (BERNARDES, 2016).
De modo geral, foram definidas como diretrizes para o Bairro Lagoinha o interesse
de consolidação de um corredor cultural que incorporasse, não somente o bairro, mas
também suas adjacências. Destacam-se como intervenções a requalificação de vias para
melhoria de mobilidade para o pedestre, a implantação de equipamentos culturais e
restauro de imóveis de interesse patrimonial que se encontram em degradação (BELO
HORIZONTE, 2015).

(Via Expressa, Avenida do Contorno, Avenida dos Andradas e Avenida Tereza Cristina), em vias
prioritárias para o transporte coletivo (Pedro I e Antônio Carlos) e no entorno das estações

700
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3: Área contemplada na OUC ACLO. Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte. Plano urbanístico
e Estudo de Impacto de Vizinhança. COMPUR, 2015 – Adaptado por Brenda Melo Bernardes.

Apesar das propostas da OUC ACLO preconizadas para a Lagoinha manifestarem


interesse no resgate da história, valores culturais e de melhoria da qualidade urbana da
região, é necessário destacar que um dos riscos da implementação da Operação Urbana
Consorciada é de que ocorra a gentrificação da área, que poderá resultar na expulsão
da população que reside no bairro atualmente. Nesse contexto o bairro pode ser trans-
formado em local de consumo cultural e entretenimento, diante do potencial turístico
existente pela manutenção da paisagem urbana e por abrigar edificações históricas.
Concomitante, o interesse de adensamento das quadras adjacentes ao principais eixos
viários que articulam a região, representados pelas Avenidas Antônio Carlos e Pedro II,
poderia ocasionar a necessidade de implantação de equipamentos públicos e de habi-
tação de interesse social, o que resultaria na demanda por desapropriações no bairro
para melhoria da infraestrutura (BERNARDES, 2016).

701
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Não obstante, verifica-se o interesse da população residente, representada a partir


das lideranças de bairro e moradores mais engajados socialmente, em participar na
elaboração e efetivação de diretrizes voltadas à melhoria das condições socioculturais
e econômicas da região (BERNARDES, 2016). Assim, entende-se que é fundamental a
legitimação pela população residente das propostas institucionalizadas direcionadas
para a Lagoinha por meio do atendimento dos seus anseios relacionados com as inter-
venções urbanas. Nesse contexto, vale destacar que as mutilações urbanas realizadas no
bairro nas últimas décadas não só extinguiram espaços públicos importantes, como o
caso da Praça Vaz de Melo que era considerada reduto da boemia e porta de entrada da
região (SILVEIRA, 2005), como também sacrificaram os hábitos cotidianos, as tradições e
os valores materiais e imateriais da Lagoinha que integram o seu patrimônio cultural.

O BAIRRO LAGOINHA ENQUANTO LUGAR DE MEMÓRIA E AS AÇÕES


VOLTADAS À SUA PROTEÇÃO CULTURAL

A preservação de bens patrimoniais no Brasil é prática consolidada desde a insti-


tuição do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), em 1937, bem
como, da promulgação do Decreto n° 25, de 30 de novembro de 1937, que organiza a
proteção do patrimônio histórico e artístico nacional (BRASIL, 1937). Todavia, apesar
da diversidade cultural que compõe o patrimônio brasileiro, nas ações pioneiras de
preservação em instância nacional somente os bens dotados de valor excepcional, com
importância material e símbólica para a história oficial do país, recebiam proteção
por meio do processo do tombamento. Assim, ao longo do seu histórico de atuação, o
SPHAN, atualmente denominado como Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), foi gradativamente ampliando seus critérios de reconhecimento de
bens patrimoniais passíveis de proteção.
Choay (2001) destaca que o alargamento do quadro cronológico, das áreas geográ-
ficas e a inclusão de novas tipologias tiveram repercussão a partir da década de 1960,
quando as práticas de conservação ganharam importância em cenário mundial. Não
obstante, a promulgação de cartas patrimoniais nesse período como a Recomendação
de Paris em 1962, a Carta de Veneza em 1964 e as Normas de Quito em 1967 revelaram o
interesse na implementação de diretrizes voltadas à conservação de conjuntos urbanos,
sítios de relevância histórica ou natural, como forma de se garantir a proteção tanto
de bens isolados, como também na condução de ações de preservação que tenham
influência em escala macro, por meio da consolidação de medidas de salvaguarda para
paisagens culturais.

702
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Ademais, entende-se que a noção de patrimônio não deve ser vinculada ao obje-
tivo de se garantir a conservação de modo intransigente – como forma de preservar
somente os atributos físicos de objetos, edificações ou de se congelar paisagens, mas se
atentando para a necessidade de sua inserção na dinâmica urbana (CHOAY, 2001), bem
como, para sua capacidade de despertar valor afetivo ou como formador da memória
coletiva, o que engloba o seu reconhecimento e a participação da sociedade no processo
de legitimação enquanto produto social. Assim, atualmente o conceito de patrimônio
cultural abrange tanto bens materiais quanto imateriais, em suas diversas categorias, que
sejam representativos da riqueza social e cultural de um lugar, verificando-se, inclusive,
em uma abordagem mais ampla, a articulação de políticas de âmbito urbano com as
políticas de interesse patrimonial (CUNHA, 2010), sobretudo vinculado ao interesse de
proteção de paisagens culturais.
Logo, em relação aos mecanismos que tem sido adotados como meio de proteção de
paisagens culturais, presencia-se em Belo Horizonte, cidade foco de estudo desse artigo,
além da identificação e proteção de bens isolados como formadores do patrimônio cultu-
ral, o tombamento de Conjuntos Urbanos representativos da história da capital. As ações
pioneiras ocorreram em 1994, onde foram reconhecidos 10 conjuntos inseridos na área
central de Belo Horizonte (CUNHA, 1997). Segundo a Diretoria de Patrimônio Cultural de
Belo Horizonte, conceitualmente entende-se como Conjunto Urbano as: ‘‘[...] áreas definidas
com o objetivo de se proteger lugares representativos da cidade, denominados espaços
polarizadores, onde são encontradas ambiências, edificações ou mesmo conjuntos de
edificações que apresentam expressivo significado histórico e cultura’’(BRANDÃO; SOA-
RES, 2017, p. 3). Nesse sentido, os Conjuntos Urbanos constituem áreas com complexos
valores culturais, históricos, simbólicos e funcionais que estruturam o espaço urbano.
Em relação aos Conjuntos Urbanos reconhecidos em Belo Horizonte, um dos que se
destacam é o Conjunto Urbano Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates (Figura 4), que teve seu
tombamento efetuado pelo Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município
de Belo Horizonte (CDPCM-BH), por meio da Deliberação Nº 193/2016, bem como, sua
inscrição nos livros do Tombo Histórico e no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico
e Paisagístico (BELO HORIZONTE, 2016). Situados fora dos limites da Avenida do Con-
torno, os bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates apresentam processos de ocupação
vinculados ao período de construção de Belo Horizonte, o que define aspectos peculiares
em relação ao traçado urbano e na constituição de referências simbólicas e edificações
representativas do patrimônio municipal.

703
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Assim, os bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates, em função da localização estra-


tégica próximos à área central (Figura 5) e pela ausência de controle rígido de ocupação,
tiveram rápido processo de povoamento e atualmente são reconhecidos como Conjun-
tos Urbanos de importância patrimonial devido a suas características morfológicas e
histórico-culturais. Como critérios para demarcação desse perímetro de proteção foram
considerados, entre outros fatores, a homogeneidade no processo de ocupação, a intera-
ção e coesão da população residente com o meio e os valores socioculturais imbricados
no espaço urbano que contribuem para a manutenção de uma identidade local (BELO
HORIZONTE, 2016).

704
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

-
-base: Google Earth, 2020. Adaptado por Brenda Melo Bernardes.

Não obstante, nas ações voltadas a preservação e valorização sociocultural desses


bairros foram instituídas como diretrizes principais o processo de inventário e tom-
bamento de 12 bens culturais, a indicação ao processo de tombamento de outros 374
bens culturais, o registro documental de 65 edificações e a determinação de restrições
de limite de altimetria em áreas específicas visando a preservação de visadas para a
Serra do Curral, valorização de pontos focais e manutenção de ambiências existentes
(BELO HORIZONTE, 2016).
Entretanto, é importante ressaltar que somente o processo de tombamento dos
Conjuntos Urbanos não é suficiente para assegurar a integridade física dos bens cultu-
rais ou a manutenção de práticas culturais e de modos de vida enraizados no cotidiano
desses locais. Tendo em vista que o processo de tombamento é um mecanismo rígido
que institui restrições quanto às intervenções realizadas nos bens culturais protegidos,
torna-se necessário, antes da sua instituição, o envolvimento das comunidades, por
meio de mecanismos participativos, para compreensão da importância cultural desses
conjuntos e para a constatação de demandas da população residente relacionadas

705
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

com a política patrimonial. Assim, torna-se fundamental entender se os moradores da


região em que se pretende instituir o processo de tombamento apoiam essas ações ou,
caso apresentem opiniões desfavoráveis ao processo, compreender em função de quais
fatores elas se fundamentam.
Além disso, é importante a promoção de ações de educação patrimonial, bem
como, a concessão de incentivos financeiros para manutenção preventiva de imóveis
tombados, para ações emergenciais de restauro e para estímulo à difusão de tradições,
saberes e práticas socioculturais que representam valores imateriais da região. Nesse
sentido, torna-se conflituosa a imposição de mecanismos de proteção de bens culturais
sem o envolvimento e legitimação dessas ações pelos proprietários de bens tombados
ou comunidades afetadas.
Tratando especificamente da Região da Lagoinha, sobre a instituição do Conjunto
Urbano pelo CDPCM-BH, tendo como referência a reportagem publicada pelo Jornal
Hoje em Dia, em dezembro de 2016, verifica-se que os moradores do bairro apresentam
opiniões divergentes quanto ao interesse de proteção da região por meio do tomba-
mento. Para uma parcela da comunidade é uma medida necessária, tendo em vista a
importância histórica da região e as ações de revitalização que poderiam resultar de tal
iniciativa, enquanto que, para outros, a falta de conhecimento pelos moradores e pelos
proprietários de bens tombados sobre as restrições vinculadas à instituição do Conjunto
Urbano resultam no sentimento de receio e de resistência quanto à possibilidade de
congelamento da paisagem e na impossibilidade de realização de alterações nos bens
tombados (GALDINO, 2016). Assim, reafirma-se a necessidade de diálogo e de participação
dos moradores na instituição de ações de proteção cultural do bairro.
Ademais, além da instituição do Conjunto Urbano, no Bairro Lagoinha é delimitado
também o perímetro de proteção por meio da Área de Diretrizes Especiais (ADE). Tanto
as orientações voltadas à preservação de Conjuntos Urbanos quanto os parâmetros para
delimitação das ADEs foram estabelecidos por meio da promulgação da Lei n.° 7165/96,
que institui o Plano Diretor do Município de Belo Horizonte[4] (BELO HORIZONTE, 1996).
Deste modo, além dos critérios definidos pela Lei Municipal relativos aos interesses de
adensamento ou controle de ocupação de zonas específicas de Belo Horizonte, a demar-
cação de manchas de proteção por meio das ADEs constituíram um mecanismo para

[4] O instrumento de Área de Diretrizes Especiais foi instituído por meio do Plano Diretor de
Belo Horizonte, Lei nº 7165 de 27 de agosto de 1996, revisada em 2010. Recentemente foi apro-
vado novo Plano Diretor (Lei n° 11181/2019) que dá continuidade à utilização desse instrumento
como forma de proteção de áreas de interesse ambiental, histórico ou cultural.

706
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

resguardar as características históricas, ambientais ou culturais de áreas que demandam


parâmetros mais restritivos quanto ao controle de uso do solo.
A ADE da Região da Lagoinha, instituída pela Lei nº 7.166/96 e alterada pela Lei nº
9.959/10, previa como diretrizes, de modo geral, a conciliação das ações de proteção do
patrimônio cultural por meio da definição de parâmetros restritivos de ocupação com
as demandas de recuperação das áreas degradadas e estagnadas economicamente, por
meio do incentivo à atividades econômicas compatíveis com as já existentes no local e
da possibilidade de uso do instrumento de operação urbana. Inicialmente, o perímetro
demarcado pela ADE compreendia somente o Bairro Lagoinha, contudo, a partir das
deliberações provenientes da IV Conferência de Política Urbana, realizada em 2015, foi
revisado o seu limite resultando na incorporação do Bairro Bonfim à ADE da Região da
Lagoinha(CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA, 2015). Com a sua regulamen-
tação, a partir do Novo Plano Diretor de Belo Horizonte (Lei n° 11181/2019), é reconhecida
a importância de definição dessa mancha maior de proteção como forma de resguardar
aspectos peculiares dessa paisagem e a memória coletiva que se faz presente nesses dois
bairros em função de seu acervo patrimonial, tradições e modos de vida específicos.
Assim, como parte do acervo patrimonial que constitui o Bairro Lagoinha desta-
cam-se antigas residências construídas, em grande parte, por imigrantes que residiram
no bairro, com a predominância tipológica de edificações em estilo Art - Decó, Moderno
e Eclético e de configuração de quintais compartilhados entre edificações pertencentes
à uma mesma família, o que expressa modos de vida coletivos específicos da área. Além
disso, a presença marcante de antiquários evidencia o interesse de perpetuação da
história da região representada, nessa situação, por móveis e adornos que constituem
recordações do passado (BERNARDES, 2016).
Em relação à cultura manifestada na Lagoinha verifica-se, sobretudo, sua vocação
musical expressa nas serestas, nas rodas e Escolas de samba tradicionais na região, nas
festividades religiosas realizadas no Santuário Nossa Senhora da Conceição e na pre-
sença de ofícios de produção e conserto de instrumentos, que remete historicamente
aos populares acordeons que eram confeccionados pelos Scarpelli, uma das famílias de
imigrantes que se estabeleceu inicialmente no bairro (BERNARDES, 2016).
Assim, essas singularidades do patrimônio material e imaterial da Lagoinha, de
procedência histórica, representadas por suas edificações de valor patrimonial, por sua
vocação boêmia e musical e pelos costumes que caracterizam sua diversidade social,
fazem com que a memória coletiva[5] e o cotidiano se mesclem na construção do ima-

[5]

707
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ginário do bairro, evocando a nostalgia e o interesse de resgate e perpetuação de seus


valores socioculturais pela população residente.
Ademais, apesar da divergência de interesses para a região da Lagoinha represen-
tada, de um lado, pela proposta de renovação urbana e adensamento com a operação
urbana e, do outro, pelas políticas de preservação da paisagem urbana do bairro, tendo
em vista seu valor para o patrimônio histórico-cultural de Belo Horizonte, pode-se dizer
que o tombamento do Conjunto Urbano constituiu um avanço para a preservação da
memória e do patrimônio cultural da região. Não obstante, testemunhamos, nos últi-
mos anos, maior engajamento da população residente no bairro e de moradores de Belo
Horizonte, de modo geral, nas ações de fortalecimento da importância cultural do bairro
constatadas por meio do resgate das tradições carnavalescas, da promoção de eventos
de artistas locais que revigoram seus tempos de boemia e suas tradições musicais. Tais
manifestações mostram que mesmo com as mutilações urbanas sofridas ao longo de
décadas e com a progressiva perda da qualidade de seus espaços públicos para apropria-
ções socioculturais, a Lagoinha de antigamente ainda permanece viva no imaginário
coletivo construído sobre o lugar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De ocupação pericentral, fragmentado fisicamente da área central pela Linha Fér-


rea, pelo Ribeirão Arrudas e por vias de tráfego intenso, o Bairro Lagoinha, desde o início
do seu processo de urbanização, careceu de investimentos por parte do poder público
voltados à melhoria de infraestrutura e da qualidade de seus espaços públicos para a
população residente. Assim, o efervecente bairro consolidou-se, sobretudo, em função
da presença de operários imigrantes que ergueram suas residências e comércios e que
influenciaram na diversidade social, de costumes e de modos de viver que definiram
singularidades ao bairro.
Reconhecido como reduto da boemia, o bairro presenciou, ao longo de décadas, um
decréscimo populacional e a extinção de espaços públicos que eram frequentemente
apropriados por transeuntes, pelo baixo meretricio e pelos seus moradores, de modo
geral, em função da constante necessidade de alargamento de avenidas e de abertura de

valores que são constituídos pela memória coletiva, a partir dos laços sociais que

lembrança coletiva se extingue completamente, já que ela pode ser constantemente

marcas do passado.

708
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

viadutos para atendimento de demandas viárias no âmbito metropolitano. Juntamente


com a aniquilação desses lugares, presenciou-se também a perda progressiva de seu
patrimônio material e imaterial diante das desapropriações realizadas para alarga-
mento de vias e para implantação de alças do Complexo Viário da Lagoinha, bem como,
pela falta de incentivos públicos voltados à manutenção e difusão da importância de
preservação de seus bens patrimoniais.
Como reflexos da crescente importância da região da Lagoinha como local estra-
tégico de conexão com o Vetor Norte da RMBH, bem como, das demandas da área por
equipamentos urbanos, por melhoria das condições de mobilidade e de requalificação
de seus espaços públicos, o bairro passa a ser contemplado como uma das áreas priori-
tárias para intervenção a partir da Operação Urbana Consorciada Antônio Carlos/Pedro
I – Leste-Oeste. Contudo, ressalta-se que, caso não haja o envolvimento da população
residente ou de seus representantes, por meio das associações de bairro, na condução
das intervenções preconizadas para a Lagoinha, essas ações poderão trazer maior visibi-
lidade para o potencial da região para o turismo, entretenimento e consumo, tendo em
vista o interesse de instituição de um Corredor Cultural a partir do Plano Urbanístico
apresentado pela operação, em detrimento ao atendimento das demandas para o lugar
manifestadas pela população residente. Nesse contexto, o valor de troca pode sobrepor
o valor de uso e induzir ao processo de gentrificação da área.
Em contraponto à essa estratégia, como forma de resguardar os resquícios patri-
moniais da região diante do interesse de renovação urbana manifestado com o plano
urbanístico da operação urbana, foi efetivado, em 2016, o tombamento do Conjunto
Urbano Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates. Entretanto, apesar dessa iniciativa representar
um avanço da política de preservação municipal no reconhecimento do valor patrimonial
de áreas que não apresentavam tanta visibilidade por estarem inseridas fora do limite
da área central, ressalta-se a importância de instituição de mecanismos participativos,
antes da efetivação do processo de tombamento do Conjunto Urbano em questão, para
conhecimento do valor patrimonial da área e para compreensão das demandas vincu-
ladas à política patrimonial, apresentadas pela população residente nas áreas que serão
afetadas com a proposta. É essencial também como parte desse processo, a concessão de
incentivos fiscais e o esclarecimento das restrições que recaem sobre os bens tombados.
Essas ações de educação patrimonial são primordiais para legitimação das propostas
institucionalizadas e para atuação conjunta da equipe técnica do conselho patrimonial,
lideranças de associação de bairro, proprietários de bens tombados e de moradores, de
modo geral, que tenham interesse em fortalecer a importância cultural dessa região.

709
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Ademais, o engajamento social que tem sido evidenciado especificamente no Bairro


Lagoinha, por meio de participação ativa da população em tradições carnavalescas e na
promoção de eventos que resgatam a vocação artística da região, revela a importância
de incoporação da participação popular e de construção coletiva das ações de recupe-
ração da região.

710
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

BARRETO, Abílio. Belo Horizonte: memória histórica e descritiva – história antiga e


história média. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos
e Culturais, v.2, 1996.

BELO HORIZONTE. Prefeitura Municipal. Relatório apresentado pelo prefeito Octací-


lio Negrão de Lima ao Governador Benedicto Valladares Ribeiro em 1935-1936. Belo
Horizonte: Imprensa Official do Estado, 1937.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal. Lei nº 7165 de 27 de agosto de 1996. Instituí


o Plano Diretor do Município de Belo Horizonte. Belo Horizonte, Câmara Municipal,
1996, 48 p. Disponível em: <http://www.cmbh.mg.gov.br/leis/legislacao>. Acesso
em: 09 abr. 2020.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal. Lei nº 9959 de 20 de julho de 2010. Altera


as leis n° 7.165/96 - que institui o Plano Diretor do Município de Belo Horizonte - e
n° 7.166/96 - que estabelece normas e condições para parcelamento, ocupação e
uso do solo urbano no Município -, estabelece normas e condições para a urbaniza-
ção e a regularização fundiária das Zonas de Especial Interesse Social, dispõe sobre
parcelamento, ocupação e uso do solo nas Áreas de Especial Interesse Social, e dá
outras providências. Belo Horizonte, Câmara Municipal, 2010, 120 p. Disponível em:
<http://www.cmbh.mg.gov.br/leis/legislacao>. Acesso em: 09 abr. 2020.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal. Operação urbana consorciada Antônio Car-


los/Pedro I – Leste-Oeste: Plano Urbanístico e Estudo de Impacto de Vizinhança,
2015. Belo Horizonte: PBH, 25 Out. 2015. Disponível em: < www.pbh.gov.br/ouc>
Acesso em: 09 abr. 2020.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal. Secretaria Municipal de Governo - CDPCM.


Ata sessão extraordinária realizada em 14 de dezembro de 2016. Número 5193, 13 p.
(Reunião do Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Ho-
rizont). Belo Horizonte, Diário Oficial [do Município]. Disponível em: <http://portal6.
pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1173076>.Acessoem:
08 abr. 2020.

BELO HORIZONTE, Prefeitura Municipal. Lei n° 11181/2019. Aprova o Plano Diretor


do Município de Belo Horizonte e dá outras providências. Belo Horizonte, Câmara

711
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Municipal, 2019, 97 p. Disponível em: <https://www.cmbh.mg.gov.br/atividade-le-


gislativa/pesquisar-legislacao/lei/11181/2019>. Acesso em: 08 abr. 2020.

BERNARDES, Brenda Melo. Memória, cotidiano e as propostas institucionalizadas


direcionadas ao Bairro Lagoinha em Belo Horizonte/MG: múltiplas visões de um
mesmo lugar. 2016. 165f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Pro-
grama de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Escola de Arquitetura da Uni-
versidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2016.

BERNARDES, Brenda Melo; BORSAGLI, Alessandro. A metamorfose de uma paisa-


gem: a construção, o apogeu e o processo de descaracterização do bairro Lagoinha.
Revista Eletrônica do Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte (REAPCBH). Belo
Horizonte: Prefeitura de Belo Horizonte, 2014, N. 1, p.45-65.

BRANDÃO, Mariana Guimarães; SOARES, Carolina Pereira. A política de proteção


do patrimônio cultural em Belo Horizonte. In: Simpósio Científico ICOMOS Brasil, I,
2017, Belo Horizonte. Anais...Belo Horizonte: Conselho Internacional de Monumen-
tos e Sítios, 2017, p. 1-20.

BRASIL. Decreto-Lei nº25, de 30 de novembro de 1937 – Organiza a proteção do


patrimônio histórico e artístico nacional. República Federativa, 1937. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0025.htm> Acesso em: 22
abr. 2020.

BRASIL. Lei nº 10.257 de 10 de julho de 2001. Regulamenta os artigos 182 e 183 da


Constituição Federal, estabelece diretrizes da política urbana e dá outras providên-
cias. Brasília, República Federativa, 2001, 17 p. Disponível em: <http://www2.cama-
ra.leg.br/legin/fed/lei/2001/lei-10257-10-julho-2001-327901-normaatualizada-pl.
pdf>. Acesso em: 22 abr. 2020.

CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Unesp, 2001.

CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE POLÍTICA URBANA, IV, 2015. Secretaria Municipal Ad-


junta de Planejamento Urbano (Belo Horizonte). Relatório-síntese da Reunião do
Grupo Técnico de Discussão de Instrumentos de Gestão da Operação Urbana Consor-
ciada Antônio Carlos/Pedro I – Leste-Oeste. Prefeitura Municipal de Belo Horizonte,
3 p.

712
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CUNHA, Claudia dos Reis e. Restauração: diálogos entre teoria e prática no Brasil nas
experiências do IPHAN. Tese (Doutorado em direito do Estado ) – Universidade de
São Paulo. São Paulo, 2010. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponi-
veis/16/16133/tde-26052010-090302/pt-br.php >.Acesso em: 26 mar. 2020.

CUNHA, Flávio Saliba. Patrimônio Cultural e Gestão Democrática em Belo Horizonte.


Varia Historia. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, 1997, N.18,
p.83-98.

GALDINO, Renata. Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates são tombados. Jornal Hoje em
Dia, Belo Horizonte, 16 dez. 2016. Disponível em: <https://www.hojeemdia.com.
br/horizontes/lagoinha-bonfim-e-carlos-prates-s%C3%A3o-tombados-1.434601>.
Acesso em: 19 abr. 2020.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Laurent Léon Schaffter. São


Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990, 133 p. Título original: La mémoire collec-
tive.

HARVEY, David. Do Administrativismo ao Empreendedorismo: a transformação da


governança urbana no capitalismo tardio. In: HARVEY, D. A produção capitalista do
espaço. São Paulo: Annablume Editora, 2006 (2a edição). p. 163- 190.

MORAES, Fernanda; GOULART, Maurício. As dinâmicas da reabilitação urbana: im-


pactos do Projeto Lagoinha. Cadernos de Arquitetura e Urbanismo. Belo Horizonte:
PUC Minas, 2002, v. 9, n. 10, p. 51-71.

SILVEIRA, Brenda. Lagoinha a cidade encantada. Belo Horizonte: Edição da autora,


2005. 160p.

VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do


Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília, VAINER, Carlos, MARICATO,
Ermínia. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000. p. 75-103.

VILLAÇA, Flávio. Espaço intra–urbano no Brasil. 2. ed. São Paulo: Studio Nobel/
FAPESP; Lincoln Institute, 2001. 373p.

713
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

PALHAS, Ana Cristina Menezes


Mestranda do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da UnB
(PPG-FAU-UnB)
anapalhas@gmail.com

BERDET, Marc Pierre Olivier


-
ça.
marcberdet@gmx.com

MEDEIROS, Ana Elisabete de


Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (2002)
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília -
THA/FAU-UnB
ana@unb.br

714
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Este artigo propõe uma breve reflexão sobre o habitar da superquadra brasiliense na contem-
poraneidade. O enfoque de estudo foi dado à SQS 108, a primeira superquadra a ser concluída
em Brasília, cujos onze blocos residenciais, de autoria de Oscar Niemeyer, propunham ser um
modelo para a habitação na cidade. A partir da leitura prévia de textos sobre a superquadra,
de Costa, Serapião, Cavalcanti, Guimaraens e Holston, produziu-se uma crônica não fictícia
a partir da observação dos usos e espaços da SQS 108 em 2019, sessenta anos depois de sua
inauguração. As observações foram feitas durante diferentes dias da semana e em horários
variados, em busca de uma descrição que pudesse parcialmente responder como se dá a apro-
priação do modelo. A análise não se limitou aos blocos de apartamentos, também foi abarcada
sua relação com os equipamentos como escolas, comércio local, igreja e clube, que compõem
as dinâmicas sociais em torno da superquadra. O retrato obtido, apesar de limitado, tanto em
tempo de análise quanto de aprofundamento teórico, descreve uma realidade multifacetada,
complexa e, por vezes, contraditória e inesperada.

PALAVRAS-CHAVE: superquadra. crônica. SQS 108. arquitetura moderna.

E X TRACT
This study is a brief reflection on how people live and occupy Brasilia’s superquadra in con-
temporary times. The model chosen for analysis was SQS 108, the first superquadra to be fully
completed in Brasília, whose eleven residential blocks, designed by Oscar Niemeyer, intended
to be a housing model for the the rest of the city. Based on previous readings of texts about the
superquadra, written by Costa, Serapião, Cavalcanti, Guimaraens and Holston, and also on the
observation of the uses and spaces of SQS 108 in 2019, a non-fictional chronicle was produced
sixty years after its inauguration. The observations were made on different week days and
at different hours, in search of a description that could partially answer how the model was
appropriated. The analysis was not limited to the apartment blocks, but it also included the
relation with equipments such as schools, local shops, church and club, which are important
elements to build the social dynamics around the superquadra. The portrait of SQS 108 obtained,
although limited, both in time of analysis and theoretical support, describes a multifaceted,
complex and, at times, contradictory and unexpected reality.

KEYWORDS: superquadra.chronicle.SQS 108. modern architecture.

715
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
Este trabajo pretende investigar cómo las personas viven y ocupan la superquadra de Brasilia
en los tiempos contemporáneos. El modelo elegido para el análisis fue SQS 108, la primera
superquadra que se completó en Brasilia, cuyos once bloques residenciales, diseñados por Oscar
Niemeyer, pretendían ser un modelo de vivienda para el resto de la ciudad. Basado en lecturas
previas de textos sobre la superquadra, escritos por Costa, Serapião, Cavalcanti, Guimaraens y
Holston, y también en la observación de los usos y espacios de SQS 108 en 2019, se produjo una
crónica no ficticia sesenta años después de su inauguración. Las observaciones se realizaron
en diferentes días de la semana y en diferentes horas, en busca de una descripción que pudiera
responder parcialmente cómo se apropió el modelo propuesto. El análisis no se limitó a los
bloques de apartamentos, sino que también incluyó su relación con edificios como escuelas,
tiendas, iglesia y clube, elementos esenciales para la dinámica social en torno a la superquadra.
El retrato de SQS 108 obtenido, aunque limitado, tanto en tiempo de análisis como de soporte
teórico, describe una realidad multifacética, compleja y, a veces, contradictoria e inesperada.

PALABRAS-CLAVE: superquadra. crónica.SQS 108. arquitectura moderna.

ARGUMENTO

O urbanista Lucio Costa, ao conceber o plano para a cidade de Brasília, define que
um de seus eixos principais, o residencial, seria configurado por meio da organização de
uma célula de 300 metros de lado: a superquadra. A lógica do lote desapareceria, o chão
seria público e de livre circulação. Cerca de onze blocos de, no máximo seis pavimentos,
estariam emoldurados por densa massa arbórea e, assim, amortecidos pela paisagem.
(COSTA, 2018, pág. 292) [1]
A concepção da superquadra é parte do modelo de Unidade de Vizinhança proposto
pelo urbanista e objetivava promover o convívio social a partir de relações de proximi-
dade física. Costa propunha que cada Unidade de Vizinhança, a ser configurada por um
conjunto de quatro superquadras, fosse dotada de certa autonomia, com a presença
de clube, igreja, escola, cinema e comércio local variado. Seus habitantes resolveriam
as principais necessidades da vida cotidiana a uma distância acessível ao pedestre,
dar-se-ia a interação e coexistência entre habitantes de diferentes níveis econômicos
e propunha-se, inclusive, o controle do poder público para impedir o surgimento de

[1] A referência diz respeito ao texto de Costa de 1957, aqui consultada em edição de 2018
de “Registro de uma Vivência”

716
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

favelas na nova cidade. As diferenças de padrão de habitação seriam neutralizadas pelo


urbanismo proposto. (COSTA, 2018, pág. 293)
A SQS 108 foi a primeira superquadra a ser concluída em Brasília. Sua construção
teve início em 1957 e sua inauguração se deu em fevereiro de 1960 (FERREIRA e GOROVITZ,
2007, pág. 160). A arquitetura de seus onze blocos residenciais, de seis pavimentos sobre
pilotis, é de autoria de Oscar Niemeyer e propunha ser um modelo para a habitação social
na cidade, com apartamentos destinados a moradores de diferentes níveis econômicos.
(NIEMEYER, 1959, pág. 13)
Os blocos de Niemeyer da SQS 108 totalizam 456 apartamentos desenvolvidos para
o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários - IAPB para abrigar os funcionários
vindos para a nova capital. São lâminas horizontais de grande pureza formal, sendo
as fachadas laterais cegas, a fachada de serviços em elementos vazados - cobogós- e as
fachadas principais constituídas, a depender da orientação, ou por brises em concreto
armado ou por panos envidraçados inteiramente transparentes. Os pilotis originais
eram livres em sua quase totalidade, apresentando sequência de robustos pilares de
geometria trapezoidal escuros, que reforçavam plasticamente a suspensão das lâminas
(Figura 1). O traçado urbano da superquadra foi detalhado pelo arquiteto Nauro Esteves
e propunha caminhos sinuosos, com certa continuidade entre calçadas e pilotis como
um convite aos passeios, aos trajetos livres e à vida pública.

Figura 1: Bloco de apartamentos da SQS 108 em seus anos de construção. Fonte: Autor desco-
nhecido, Arquivo Público do DF.

717
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

No tocante à sua proposta de organização social, o crítico de arquitetura Fernando


Serapião aponta uma contradição já estabelecida no projeto mesmo das superquadras.
Se o urbanismo foi progressista ao definir um térreo público, a arquitetura brasiliense
foi reacionária ao desenhar apartamentos convencionais, com setorização rígida e a
atávica presença de dormitório e banheiro de empregada (SERAPIÃO,[2] 2010). De fato, ao
se considerar a divisão espacial homóloga à organização social, a planta dos apartamen-
tos modernos de dois a três dormitórios da SQS 108 (Figura 2) pode ser entendida como
conservadora, uma vez que segue ainda a lógica tripartida presente tradicionalmente na
arquitetura da casa brasileira, com três setores claramente identificáveis: social, íntimo
e de serviço (CAVALCANTI e GUIMARAENS, 1984, pág. 12).

Figura 2: Planta tipo de bloco de apartamentos dois dormitórios da SQS 108. Fonte: FERREIRA
e GOROVITZ (2007, p.145)

Tal esquema de setorização seria consequência da nítida divisão de classes no Bra-


sil, em que a família ocupa as áreas sociais e íntimas do apartamento e os empregados
domésticos, a área de serviços, sendo sua presença tolerada nos demais cômodos da
casa para limpeza e organização. No caso de edifícios, esta separação se dá usualmente
já ao nível do acesso, com a distinção entre entradas e elevadores de serviço e sociais. A
portaria dos prédios, adquire assim, a importância de evidenciar o status social de seus
moradores, servindo de espécie de “vitrine” reveladora do padrão econômico do edifício.
Segundo os autores, não raro investe-se em materiais de construção mais caros e em
melhores acabamentos na portaria em relação a outras áreas do edifício, ou mesmo em
relação ao interior dos lares.

[2] A referência não traz indicação de páginas por se tratar de artigo de jornal, publicado
posteriormente na internet: SERAPIÃO, Fernando. Consequências de uma utopia residencial.

com.br/revistas/read/minhacidade/10.117/3418

718
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

De acordo com SERAPIÃO[3] (2010), há dificuldade de assimilação do modelo estético


moderno pelos habitantes das superquadras. Os volumes puros, a neutralidade dos reves-
timentos e coletivização dos edifícios que nos sugere a arquitetura dos blocos do início
da cidade sofrem resistência por parte dos moradores, que buscam a individualização de
seus edifícios através da personalização das fachadas, troca de revestimentos e reformas
nas portarias e pilotis. Sob óptica semelhante, o antropólogo HOLSTON (1989, págs. 182
e 183) afirma que uma das críticas mais recorrentes que os moradores de superquadra
fazem seria à monotonia e padronização da arquitetura residencial da cidade, que nega-
ria a individualidade e o status social de seus habitantes. Ele faz ainda uma análise das
fachadas limpas e transparentes adotadas. Segundo o autor, para além das questões de
desenvolvimento tecnológico e de salubridade, a transparência do movimento moderno
seria uma escolha ideológica, com o objetivo de exposição da vida privada ao escrutí-
nio público, em oposição crítica ao interior burguês resguardado por densas paredes
ornamentadas. Os brasilienses reagiriam radicalmente contra tal exposição, criando as
mais variadas formas de barreiras visuais à transparência. (HOLSTON, 1989, pág. 184)
CAVALCANTI e GUIMARAENS (1984, pág. 11) colocam que no Brasil, tradicionalmente,
são bem demarcados e opostos os limites entre o espaço da casa, domínio da pessoa e
da segurança, e o da rua, domínio do anônimo e do perigo. Tradição que vai de encontro
aos preceitos do Movimento Moderno, que proponha uma diluição das fronteiras entre
público e privado.
Com base nas hipóteses supracitadas, foram observados usos e espaços da SQS
108 sessenta anos depois de sua inauguração, durante diferentes dias da semana e em
horários variados, em busca de uma descrição que, embora bastante pessoal, pudesse
parcialmente responder como se dá a apropriação do utópico modelo proposto em
projeto por Costa, Niemeyer e Esteves e sua organização social hoje. Para tanto, não se
limitou a análise apenas aos onze blocos de apartamentos, mas também foi abarcada sua
relação com os equipamentos como escolas, comércio local, igreja e clube, que compõem
as dinâmicas sociais em torno da superquadra.
Além de abordar os temas já mencionados, como relações de transparência, seto-
rização da morada brasileira, fronteiras entre espaço público e privado e descompasso
entre estética moderna e gosto dos moradores, novas questões surgiram, de forma mais

[3] A referência não traz indicação de páginas por se tratar de artigo de jornal, publicado
posteriormente na internet: SERAPIÃO, Fernando. Consequências de uma utopia residencial.

com.br/revistas/read/minhacidade/10.117/3418

719
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

espontânea, a partir da observação, e passaram a compor outros temas de interesse a


serem retratados. São elas: o envelhecimento da população da superquadra; o esvazia-
mento dos espaços públicos, identificado pela subutilização das áreas de convívio, tais
como pilotis e parquinhos infantis; a preocupação constante com a segurança, que se
faz presente na hipervigilância das câmeras; a economia informal dos serviços que
abastecem a comunidade imediata, com barraquinhas de comida, vendedores ambu-
lantes e limpadores de automóveis; a presença de moradores de rua que ocupam hoje a
marquise da Igrejinha e espaços livres adjacentes; as crianças das cidades satélites que
são majoritariamente os alunos da escola classe e jardim-de-infância; os turistas que
circulam dentro do perímetro da Unidade de Vizinhança e a presença de novas tecno-
logias na dinâmica da vida cotidiana, tais como entregadores de aplicativos patinetes
motorizados e ainda fotografias em celular.

SUPERQUADRA 108 SUL: SESSENTA ANOS DEPOIS

15.05.19, quarta-feira

19:33 Estaciono o carro logo em frente à generosa escada de acesso à Igreja Nossa
Senhora de Fátima. Uma missa é celebrada. O vigia de carros me pede um trocado. Não
tenho. O homem curva-se ao chão agarrando o tornozelo e pergunta se não posso com-
prar-lhe um “Dorflex”, no cartão. Seu corpo todo dói. Ao lado esquerdo, próximo à Igreja, há
uma pequena barraca de comida, Shawarma´s do Habib: comida árabe e mexicana. Senta-
dos em cadeiras de plástico, um casal conversa, enquanto um dos funcionários descansa
e o outro assa a carne. Em frente à Igrejinha, esparramados no banco longo e sinuoso
estão seis guardadores de carros. São cinco homens e uma mulher. Fumam, gargalham
e gesticulam. Uma velha cadeira de rodas está encostada ao lado deles. Ao pé da escada-
ria, duas amigas conversam. Uma apresenta algo à outra na tela de seu telefone. Poucas
crianças, acompanhadas dos pais e em uniformes de escolas particulares, atravessam as
calçadas. Meia dúzia de patinetes motorizados estão à disposição para serem alugados
mediante aplicativo de celular, me explica um rapaz em roupa esportiva. Vejo ao longe
um pai e uma menina dividindo o mesmo pequeno veículo. Eles riem.
Subo as escadas em direção à igreja. Estou embaixo da grande cobertura curva e
branca. A iluminação vinda do alto é forte e quase ofuscante. Duas crianças brincam,
rodopiando repetidamente embaixo da marquise e logo se despedem. A missa acabou.
Poucas pessoas, não mais de meia dúzia, seguem conversando embaixo da cobertura de
acesso. Dois homens de jeans desfazem a dobradura em sanfona da grande porta em
madeira treliçada pintada de branco. A igreja se fecha. Apaga-se a luz. Circundo a parede

720
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

curva recoberta por azulejos de pássaros que encerra o espaço de culto. Encontro ainda
na lateral da igreja uma seteira vertical e alongada, ainda aberta e iluminada. Espio e vejo
enquadrada, ao fundo, a escultura de um santo segurando uma criança. Abruptamente,
a pequena janela se fecha. Sigo o movimento curvo da parede. Atrás da igreja, ao abrigo
da marquise, há alguns colchões velhos e papelões estendidos, um velho carrinho de
supermercados cheio de cobertores, caixas de pizza abertas e vazias. Atirada à grama, uma
garrafa plástica cujo rótulo com ilustração erótica diz: “Catuaba Selvagem”. Vejo uma
peça de roupa íntima feminina jogada. Está escuro, mas algo brilha na grama: pedaços
de papel prateado. Do lado direito da igreja, alguns homens desmontam a estrutura
metálica de uma grande festa, a Quermesse de Nossa Senhora de Fátima, festa popular
que durou mais de dez dias. Leio alguns dos dizeres nas barracas que estão sendo des-
montadas: “artigos religiosos”, “canjica de milho e derivados”.
Volto para a escadaria de acesso - dois homens fotografam, quase que simulta-
neamente, a fachada principal da igreja. O primeiro usa um aparelho grande e outro
enquadra o edifício na tela do celular. Desço os degraus. De novo, sou abordada por uma
vigia de carros. Ela me pede dinheiro. Estou fazendo um trabalho para a faculdade, digo.
“Aqui a gente trabalha com Deus”, ela me responde.
19:58 Ao pé da escada, um grupo de moças bem vestidas come cachorro-quente. O
Raimundo Hot Dog, o dog da Igrejinha, está bastante movimentado e instalado à direita
e abaixo do templo, perto da calçada. Há homens de gravata e camisa social sentados nas
mesinhas de plástico ou aguardando os pedidos. O movimento dos cozinheiros é ágil e
coreografado. Ouço o ritmo quase regular da espátula arranhando a chapa. A produção
é organizada. Os funcionários utilizam toucas nos cabelos, máscara protetora na boca
e nariz e luvas plásticas ao manipular a comida. Eles gritam os pedidos uns aos outros:
“completo com bastante bacon! Completo na 25!” Na parte do caixa, há fichas, um laptop
e máquinas de cartão.
20:00 Entro na 108 sul, a quadra está silenciosa. Escuto apenas o ruído dos meus
passos que amassam as folhas secas das árvores. Um automóvel circula tranquilamente.
Ouço o bater das portas dos carros. Uma mãe e duas crianças carregando mochilas
escolares entram na portaria do bloco D. Alguns suaves latidos de cães ao fundo. Um
casal de namorados passa. À noite, os caminhos de pedestre e os jardins da quadra são
escuros. Enxerga-se a rua suavemente iluminada, a luz vinda dos apartamentos e pilotis.
À noite, a fachada de cobogós revela a silhueta de algumas pessoas circulando e bicicletas
encostadas no interior do edifício.
20:11 O silêncio é interrompido pelos chinelos arrastados no chão por um adoles-
cente. Vestido com o uniforme de uma escola particular, o jovem canta alto a letra de um

721
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

rap em inglês, que escuta em seus headphones. Ouço o barulho de uma motocicleta. É
uma entrega da empresa Uber Eats. Uma mulher sozinha passeia tranqüila com o seu
cachorro.
A placa abstrata, retangular e vertical, que traz as letras F e G juntas a uma seta
apontando para o alto, e as letras H, I, J e K acompanhadas de seta voltada para a esquerda
é elegante, mas me provoca certa desorientação.
Chego ao pilotis recém reformado do bloco G, que ganhou novo projeto de ilu-
minação e revestimentos. A luz é clara e quase ofuscante, os pontos de iluminação são
refletidos no piso de granito preto, tão bem polido a ponto de parecer um espelho. Nas
prumadas de acesso, azulejos decorados e um painel de mármore branco em relevo exi-
bem motivos geométricos. Foram instalados grandes espelhos. Dentro de um aquário
envidraçado, o porteiro vestido de calça preta, camisa social e gravata, assiste à novela
em uma diminuta tela, enquanto batuca dedilhando no balcão de sua guarita. Uma
moradora chega do trabalho: “boa noite, seu Cláudio!”,“boa noite!”
20:30 Aproximo-me da fachada de cobogós, para a qual está voltada a zona de
serviço dos apartamentos . Ouço o barulho agudo de pratos e talheres. É hora do jantar.
Vejo passar, através dos cobogós, uma mulher de véu cobrindo os cabelos. Ela entra em
um dos apartamentos.
Em frente, está o Jardim de Infância da 108 sul, uma construção baixa, cercada
por um muro não muito alto com arames farpados. Na entrada, no toldo azul em que
algumas partes do letreiro estão faltando, leio: “ardi de Infância”.
20:45 Caminho por entre os blocos. À noite, é possível ver através das janelas, seus
interiores iluminados. Sentados ao sofá, os rostos de um casal se iluminam e apagam
conforme mudam os quadros do programa da televisão. Em outro apartamento, é pos-
sível enxergar na sala, as poltronas de aço cromado e linhas puras da Bauhaus, junto a
um quadro de São Francisco de Assis. Em um cômodo quase vazio, um cachorro da raça
Shitsu parece me observar da janela.

16.05.19, quinta-feira

9:00 Duas imensas árvores unidas em suas copas criam uma espécie de portal para
a Banca Cultural da 108, com os dizeres: “Brasília começou aqui”. Vejo passar atrás das
árvores duas senhoras de idade, levando nas mãos uma Bíblia e uma rosa vermelha. Em
mesas de plástico perto da banca, um pai toma água de coco com a filha.

722
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Olho para o pilotis do bloco A, vejo apenas as pernas do porteiro sentado, cujo
tronco está oculto pela sequência de pilares trapezoidais. Em seguida, uma senhora
idosa caminha ao lado de sua cuidadora, vestida de branco.
9:20 A grande área do parquinho em frente ao bloco B está desértica. Não há nin-
guém. Há alguns solitários balanços e um brinquedo de escalada, com um pequeno
escorregador. A área da praça apresenta um canteiro de contornos sinuosos coberto de
grama, onde um dia houve uma pequena piscina para as crianças (Figura 3). Logo ao
lado, um pequeno púlpito inteiramente recoberto de tinta branca, sem nenhuma placa
comemorativa ou dizer. Qualquer que fosse a informação que trazia, já não está mais
ali. Um grande mastro de bandeira, na mesma área, está vazio. Um funcionário retoca a
pintura branca da pequena mureta, agora cercada, que hoje fecha um dos lados do parque.

Figura 3: Parque infantil da SQS 108 sul em seus primeiros anos. Fonte: Autor desconhecido
em KIM e WESELY.

723
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Olho para a grande fachada transparente do bloco B, em que janelas de vidro ocu-
pam toda a extensão dos quartos e sala, de parede a teto. Alguns apartamentos estão
cobertos por cortinas de tecidos pesados, outros por leves tecidos de voal ou persianas.
O tratamento dado aos grandes panos de esquadrias é o mais variado possível. Há
janelas inteiramente tapadas com papel pardo, outras em que se criou, internamente,
meia parede de madeirite, deixando a porção superior livre. Em algumas, a aplicação
de películas de diferentes tonalidades resguarda um pouco do seu interior. Em alguns,
é possível enxergar absolutamente tudo.
Em um apartamento do sexto andar do bloco H, a funcionária doméstica, espre-
mida entre cama de casal e o exterior, esfrega com vigor um pano úmido ao vidro. Em
outro, pode-se ver um varal de roupas aberto ao lado do sofá na sala de estar. Uma moça
trabalha concentrada em frente ao computador, cuja mesa está encostada à janela.
Embaixo do bloco, dois funcionários caminham com grandes rodos de limpeza,
puxando a água acumulada nos pilotis. O porteiro espera em sua guarita, onde um
grande relógio redondo, de aparência antiga, com moldura de madeira envernizada e
algarismos romanos, está parado na hora sete.
No bloco D, vejo outra funcionária doméstica com o corpo inclinado para fora da
janela do quarto andar, limpando com um rodo as janelas do apartamento.
Uma moça bem vestida carrega no colo um cachorro de pelo impecavelmente branco,
enquanto leva um segundo animal caminhando na coleira. A seu lado, a babá vestida de
branco empurra um carrinho com uma criança. As duas conversam.

20.05.2019, segunda-feira

17:00 Uma menina negra, de não mais de seis anos, corre descalça e livremente, de
um lado para o outro, entre os pilotis dos blocos A e B e o estacionamento que os separa.
Uma moradora idosa no pilotis do bloco A para e brinca com a menina. Pergunta se
não é perigoso que ela brinque sozinha por aí. O porteiro responde que não. A menina
é esperta, filha de funcionária do bloco B e todos os porteiros a conhecem.
Um casal de namorados ocupa o banco de madeira na calçada em frente ao bloco D.
No pátio externo da escola Classe 108 sul, duas professoras ensaiam com seus
alunos uma coreografia de festa junina. O pequeno edifício está cercado por um portão
de grades coloridas com algumas pequenas aberturas que são atravessadas por árvores
que resolveram crescer para além dos limites dos portões. As árvores estão cercadas por
pavimentação. Toda a área da escola está hoje cimentada. Mesmo que esteja dentro de

724
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

uma cidade-parque, na área interna aos seus limites, não há mais um centímetro de
grama. Ali perto, sentadas em um banco embaixo de uma árvore, duas moças conversam.
No Bloco J, contei dezesseis câmeras de segurança instaladas no pilotis. Há um
salão de festas fechado e vazio. Leio a placa: “Para a segurança de todos, este local está
sendo filmado.”
Estacionados na quadra, alguns ônibus e muitas vans escolares esperam as crian-
ças na saída da escola classe. No vidro traseiro dos veículos, pode-se conhecer alguns de
seus destinos: Jardins Mangueiral, Paranoá, Itapoã, Condomínio ESAF e São Sebastião.

17.05.2019, sexta-feira

18:30 O portão da escola se abre, as crianças atravessam afoitas a faixa de pedestres.


Os silenciosos pilotis do bloco H são então invadidos momentaneamente pelos ruídos dos
alunos que os atravessam com suas mochilas de rodinhas. Algumas crianças cruzam a
quadra em direção à parada de ônibus e a estação de metrô. Outras estão acompanhadas
de seus pais, que seguem com elas até seus carros.
18:45 O trânsito é intenso na comercial da 108/107 sul, há congestionamento de
carros na descida da tesourinha, provocado pelo grande números de pessoas que voltam
do trabalho. O comércio instalado na entrequadra é bastante variado. Há restaurantes,
uma escola de balé, lojas de roupas, cabeleireiro, pizzaria, pet shop, padaria, farmácia, mer-
cearia, casa de ferragens, casa lotérica, açougue, agência de turismo e sede do jornal local.

11:49 Estaciono novamente meu carro em frente à Igrejinha. As barracas de comida


da noite deram lugar a um mercado de frutas e verduras e a um vendedor de castanhas e
temperos. Moradores passam com carrinhos de compras. Um homem brinca com o seu
cachorro. Subo as escadas da Igreja, que hoje está aberta. Um menino corre, pega impulso
e tentar escalar a rampa do pilar curvo e escultórico da entrada. Embaixo da marquise,
uma menina amassa com os pés um tubo de papelão vazio, destes que soltam papéis
coloridos. No interior do edifício, turistas comentam a pintura nas paredes. Observo agora
mais atentamente a imagem que vi rapidamente, pelo exterior da igreja, dias antes: o
santo , de pé, carrega no braço esquerdo um menino e uma cesta de pães, enquanto
oferece , com a mão direita, o alimento a um miserável ajoelhado. Olho de dentro para
fora, através da seteira aberta: dois moradores de rua dormem em velhos colchões, sob
o abrigo da marquise. Saio da igreja. À esquerda do edifício, três outros homens dormem
ao ar livre, em colchões embaixo das árvores do bloco B da 308 sul, quadra modelo de

725
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Brasília. Junto deles, uma cadeira de rodas e várias sacolas amontoadas. Sentado em um
banco logo ao lado, um homem observa tranquilamente a tela do celular.
Três rapazes jovens cruzam, em bicicletas a grande velocidade, a praça da Igreji-
nha. Ao fundo, ouvem-se os gritos animados de crianças e adolescentes na quadra de
esportes da Escola Parque.
A fumaça com cheiro de churrasco vinda dos restaurantes da comercial invade a
praça de acesso à Igrejinha. A rua está movimentada neste final da manhã de sábado.
Na entrada da superquadra, um automóvel pequeno, com porta-malas aberto,
anuncia: “Lava Jato Superbrilho”.
Caminho ao longo do desértico pilotis do bloco C, sinto o cheiro da comida que é
preparada em um dos apartamentos. Na faixa arborizada entre os blocos residenciais e os
edifícios de comércio, um bar estende mesas, cadeiras e toldo para a área gramada. Alguns
grupos de amigos conversam enquanto na parede lateral do bar um grande telão exibe
uma partida de futebol. Na marquise de ligação entre dois blocos comerciais, noto um
burburinho: trata-se de uma feira de doação de cães e gatos que acontece aquele sábado.
Um grupo de empregadas domésticas conversa embaixo do bloco B. Um bebê dorme
no carrinho. Uma menina pergunta à babá se podem ir brincar no parquinho em frente
ao bloco. A babá desconversa, diz que a mãe da criança não quer que ela brinque lá.
Um casal de idosos no estacionamento do bloco J descarrega as compras do por-
ta-malas do carro em um carrinho de supermercados. O pilotis do bloco K está vazio.
Nele, uma grande área foi gradeada, onde estão guardadas as bicicletas, triciclos e motos
infantis. Uma pequena placa grudada à grade informa: monitoramento por câmera de
segurança. Mais adiante, uma mesa e quatro cadeiras de ferro muito ornamentadas e
pintadas de branco esperam ser ocupadas (Figura 4). Folhetos de propaganda de uma
clínica estética foram deixados sobre os móveis.

726
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Pilotis do bloco K. Autora: Ana Palhas, 2019.

Caminho ao lado da superquadra em direção ao Eixo Rodoviário, escuto o barulho


dos tênis e da bola que quica contra o piso de madeira do ginásio do Clube de Vizinhança.
Há música animada ao fundo. Em seguida, pedala pela calçada, um homem de meia-idade
em uma bicicleta do Uber Eats.
Aqui, já se ouve, de forma bastante intensa, o barulho constante dos carros que
circulam em velocidade no Eixo Rodoviário. Uma faixa de cerca-viva fecha o estaciona-
mento entre os blocos J e K, onde um homem trabalha lavando carros.
13:20 Volto à Igrejinha. Jovens tiram retratos no celular com o painel de Athos
Bulcão ao fundo. Eles checam o resultado e refazem a foto inúmeras vezes, em poses
diferentes. Uma van em frente à Igreja descarrega cadeiras e mesas de plástico brancas,
que são organizadas ao lado do templo. Pergunto a razão de estarem ali. Uma jovem me
explica que as mesas e cadeiras são para o almoço da equipe de um filme publicitário
para o BRB, o Banco de Brasília. O Dog da Igrejinha será utilizado como cenário para a
peça de publicidade. A produtora me explica que entrou em contato com o Raimundo,
dono da loja de cochorro-quentes para autorização da filmagem e que ele viria, logo
mais, montar a sua estrutura.

727
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

14.06.2019, sexta-feira

9:20 Quatro homens de terno e gravata, entre eles o porteiro, gargalham próximos
à guarita do bloco F. Dois estão sentados relaxadamente em um banco de madeira.
Quando pergunto se todos trabalham naquele edifício, um deles, prontamente me res-
ponde: “este edifício é demais, aqui tem porteiro, zelador, motorista e segurança”. E, em
resposta à minha expressão de surpresa, ouço: “é que aqui mora autoridade, doutora!”
11:00 Avisto um grupo de quinze jovens sentados em roda nos pilotis do bloco A.
Dois professores, com desenhos da quadra nas mãos, explicam aos alunos o conceito de
Unidade de Vizinhança, proposto para a área residencial de Brasília. Pergunto se são da
cidade. Não. Trata-se de um grupo de estudantes de uma escola parque, privada e situada
na Gávea, bairro nobre da zona sul do Rio de Janeiro. Fazem uma viagem de estudos para
conhecer Brasília. Não podiam, é claro, deixar a 108 de fora.

CONCLUSÃO

A apreensão que se fez dos temas de análise propostos na parte introdutória deste
trabalho é carregada de contradições. O retrato da SQS 108 obtido descreve uma realidade
multifacetada, complexa e, por vezes, contraditória e inesperada.
Constatou-se que os generosos espaços e equipamentos públicos concebidos como
extensão natural das unidades dos apartamentos são frequentemente subutilizados.
Ainda assim, apesar da observação da monotonia quase que constante nas áreas dos
pilotis, parques infantis e caminhos internos à quadra residencial, a vida urbana se faz
intensa em alguns momentos, especialmente na área da praça da Igrejinha e adjacências.
É o caso da Quermesse de Nossa Senhora de Fátima, do burburinho próximo às barracas
de comida, do movimento dos restaurantes e bares aos finais de semana, da circulação
dos ciclistas e mesmo das crianças que, em massa, invadem a quadra ao final das aulas.
A atmosfera silenciosa no interior da superquadra é vizinha dos ruídos do movimento
constante dos carros no Eixo Rodoviário e dos engarrafamentos de carros particulares
que tomam a rua comercial nos horários de pico.
Apesar da intenção explicitada por NIEMEYER (1959, pág. 13) de que os blocos
atendessem a níveis econômicos variados, a SQS 108 é majoritariamente ocupada pelas
classes média e alta. A interação com outros níveis sócio-econômicos se dá pelas relações
entre moradores e prestadores de serviços, como funcionários domésticos, porteiros,
zeladores e pequenos comerciantes.

728
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Em contraste com a lógica peatonal e de senso comunitário do conceito de Unidade


de Vizinhança proposto, crianças das cidades satélites deslocam-se cotidianamente,
por quilômetros, para freqüentarem a escola classe e o jardim-de-infância públicos.
Sua presença, como a de vans e ônibus escolares, gera conflitos com os moradores, que
frequentemente se incomodam com os estacionamentos ocupados por tais veículos,
com seus ruídos e com a permanência de um público externo ao dos habitantes dali.
Já as crianças moradoras da SQS 108 estudam, majoritariamente, em escolas e creches
particulares distantes, dependendo de automóveis para seus deslocamentos diários.
A rua entendida como lugar do perigo pelas classes média e alta brasileiras, da qual
a casa deve estar separada e protegida, apontada por CAVALCANTI e GUIMARAENS (1984,
págs. 11 e 12) é confirmada pela presença extensiva de camêras de segurança nas áreas
dos pilotis e halls de elevadores, pelos gradeamentos incorporados aos brises de concreto
e aos panos de vidro. Em oposição, está a aparente tranquilidade com que moradores
circulam à noite sozinhos pelos caminhos pouco iluminados das calçadas internas.
As inscrições com citações eloquentes e épicas nas placas comemorativas da inau-
guração dos blocos (figura 5), ao mesmo tempo em que evocam monumentalidade,
contrastam com a natureza prosaica das cenas observadas nos pilotis, da conversa
corriqueira entre empregadas domésticas, dos moradores que descarregam compras
de supermercado enquanto interagem longamente com o porteiro.

Figura 5: Foto de placa comemorativa pela inauguração no pilotis do bloco K da SQS 108.
Autora: Ana Palhas, 2019.

729
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O projeto de térreos públicos, percursos de pedestres desimpedidos e errantes pelo


interior da SQS 108 propostos por Costa e Esteves, não logrou concretização total, ao
se confrontar com uma comunidade habituada a organizações espaciais com limites
público-privados bem demarcados. A resistência dos moradores a alguns dos ideais de
projeto foram confirmadas pelas sucessivas intervenções realizadas, que modificaram
e privatizaram espaços dos pilotis, criaram cercamentos e definiram barreiras para os
caminhos de pedestres. A valorização da portaria enquanto vitrine de status e individu-
alidade dos moradores (CAVALCANTI e GUIMARAENS, 1984, pág. 12) e (SERAPIÃO, 2010) é
identificada de forma bastante evidente na substituição dos modestos materiais originais
por um grande mostruário de revestimentos mais nobres e ainda pelos maneirismos
adotados para o novo desenho das portarias e forros de gesso. Pôde-se perceber ainda
o apagamento de parte da história do conjunto da SQS 108, como na inscrição que se
perdeu na placa comemorativa do parque infantil.
A dura resistência à transparência da fachada modernista atribuída aos moradores
da superquadra (HOLSTON, 1989, pág. 184) talvez não possa ser generealizada, uma vez
que foram identificados, a partir da fachada, diferentes graus de desconforto ou mesmo
naturalidade em relação à exposição pública da vida cotidiana.
Os apontamentos aqui descritos não deixam de representar sucessivas camadas
de construção e reconstrução da história desta quadra de sessenta anos. E, embora
algumas das mudanças em relação ao projeto original sejam bastante questionáveis
do ponto de vista preservacionista da arquitetura moderna, também evidenciam que
a superquadra é um modelo em constante transformação e, naturalmente, incorpora
à vida cotidiana elementos absolutamente contemporâneos, como a revolução tecno-
lógica dos smartphones, do turismo, da publicidade e das novas formas de trabalho e
mobilidade urbanos. Lucio Costa (COSTA, 1987) defendia liberdade para a arquitetura
residencial das superquadras e que a cidade devesse ser encarada como um ente vivo
e aberto a novas experiências. Muito embora o projeto original seja constantemente
confrontado e modificado em algumas de suas proposições centrais, não deixa de haver
certo reconhecimento e orgulho comunitário, por parte dos moradores, de pertencimento
à primeira superquadra da cidade planejada. Afinal, como anuncia a propaganda da
banca de revistas na entrada da quadra: “Brasília começou aqui.”

730
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

CAVALCANTI, Lauro; GUIMARAENS, Dinah. Morar a casa brasileira. Riode Janeiro:


Avenir Editora, 1984.

COSTA, Lucio. Brasília revisitada 1985/87: Anexo I do Decreto nº 10.829 de 14 de


outubro de 1987. In:Diário Oficial do Distrito Federal

COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Edições SESC, 2018

FERREIRA, Marcílio Mendes; GOROVITZ, Matheus. A invenção da superquadra: o


conceito de unidade de vizinhança em Brasília. Brasília: Iphan/ Superintendência do
Iphan no Distrito Federal, 2007.

HOLSTON, James. The Modernist city: an anthropological critique of Brasilia. Chica-


go, University Of Chicago Press, 1989.

KIM, Lina; WESELY, Michael. Arquivo Brasília. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

NIEMEYER, Oscar. “IAPB em Brasília”. Revista Módulo. Rio de Janeiro, vol. n° 12,
fevereiro de 1959, pp. 12-19

SERAPIÃO, Fernando. Consequências de uma utopia residencial. Artigo publicado no


Jornal Folha de São Paulo, abril de 2010 e acessado em: http://www.vitruvius.com.
br/revistas/read/minhacidade/10.117/3418

WEN, Leonardo. Apto: a moradia moderna de Brasília. Fortaleza: Ed. Tempo de Ima-
gem, 2011.

731
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

TEMPORALIDADES E
INTERVENÇÕES EM
CENTROS HISTÓRICOS:
CONTRASTE ENTRE
PRAÇAS E RUAS DO BAIRRO

TEMPORALIDADES Y INTERVENCIONES EN
CENTROS HISTÓRICOS: CONTRASTE ENTRE
PLAZAS Y CALLES DEL BAIRRO CENTRO EN

PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

732
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Miranda Vasconcelos Viana, Manuela


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; PPGAU UFAL
manuelamviana@gmail.com

Monteiro de Carvalho, Tuanne


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; PPGAU UFAL
tuannemdc@gmail.com

Lopes Barbosa Ivo, Jackueline


Aluna Especial de Mestrado; PPGAU UFAL
jackueline@gmail.com

733
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O crescimento das cidades alia-se a uma dinâmica de expansão da malha urbana, exploram
outras áreas e desenvolvem novos núcleos. Sendo assim, os centros considerados históricos que
possuem uma parcela da memória daquele lugar, perdem espaço e são desvalorizados. Diante
desse fato, o artigo tem como objetivo registrar as análises, discussões e proposições acerca de um
sítio histórico na cidade de Maceió, o bairro do Centro, e pretende englobar a comparação entre
como os espaços públicos são habitados atualmente e a apresentação de possíveis intervenções
urbanísticas para a área. Desse modo, o estudo foi realizado com base na metodologia SWOT,
um sistema utilizado para elaborar o planejamento de ações estratégicas através da análise
de fatores positivo-negativos sobre a temática abordada em diversas escalas, com a intenção
de propor melhorias para a mesma. Constataram-se alguns resultados, tais como: problemas
relacionados à infraestrutura, um número significativo de imóveis abandonados/subutilizados,
esvaziamento de moradores, sinalizado pela diminuição do número de residências e o evidente
contraste entre as praças e as ruas do bairro. Portanto, essa pesquisa visou contribuir para
a reflexão acerca dos centros históricos voltados a diferentes usos e apropriações, admitindo
a habitação no bairro do Centro como princípio norteador das propostas, com a intenção de
ativar diferentes usos nas praças.

PALAVRAS-CHAVE: Centro de Maceió. espaços públicos. Intervenções urbanas.

A BSTRACT
The growth of cities is combined with a dynamic expansion of the urban network, exploring other
areas and developing new centers. Thus, the areas considered historic which have a portion of the
memory of that place, lose space and are devalued. Given this fact, the article aims to record the
analyzes and discussions about a historic site in the city of Maceió, the neighborhood of Centro,
and intends to encompass the comparison between how public spaces are currently inhabited
and presentation of possible urban interventions. In this way, the study was carried out based
on the SWOT methodology, a system used to elaborate the planning of strategic actions through
the analysis of factors on the theme addressed at different scales, with the intention of propo-
sing improvements to it. Some results were found, such as: problems related to infrastructure,
a significant number of abandoned /underutilized properties, emptying of residents, signaled
by the decrease in the number of homes and the evident contrast between squares and streets
in the neighborhood. Therefore, this research aimed to contribute to the reflection about the
historic centers aimed at different uses and appropriations, admitting housing in the Centro
neighborhood as the guiding principle of the proposals, with the intention of activating dif-
ferent uses in the squares.

KEYWORDS: Centro district of Maceió-AL. public spaces. urban interventions.


734
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
El crecimiento de las ciudades se combina con una expansión dinámica de la red urbana, explo-
rando otras áreas y desarrollando nuevos centros. Así, los centros considerados históricos que
tienen una parte de la memoria de ese lugar pierden espacio y se devalúan. Dado este hecho, el
artículo tiene como objetivo registrar los análisis, las discusiones y las propuestas sobre un
sitio histórico en la ciudad de Maceió, el barrio del Centro, y pretende abarcar la comparación
entre cómo los espacios públicos están habitados actualmente y la presentación de posibles
intervenciones planificación urbana de la zona. De esta forma, el estudio se realizó en base
a la metodología FODA, un sistema utilizado para elaborar la planificación de acciones a
través del análisis de factores sobre el tema abordado a diferentes escalas, con la intención de
proponerle mejoras. Se encontraron algunos resultados, tales como: problemas relacionados
con la infraestructura, un número significativo de propiedades abandonadas, el vaciado de
residentes, señalado por la disminución en el número de viviendas y el evidente contraste entre
plazas y calles. Por lo tanto, esta investigación tuvo como objetivo contribuir a la reflexión sobre
los centros históricos destinados a diferentes usos y apropiaciones, admitiendo la vivienda
en el barrio del Centro como el principio rector de las propuestas, con la intención de activar
diferentes usos en las plazas.

PALABRAS-CLAVE: barrio Centro en Maceió-AL. espacios públicos. intervenciones urbanas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho, intitulado “Temporalidades e Intervenções em Centros His-


tóricos: contrastes entre ruas e praças do bairro Centro, Maceió-AL”, tem como objetivo
registrar as análises e discussões acerca de um sítio histórico na cidade de Maceió, que
pretende englobar a comparação entre como as áreas livres urbanas de uso público são
habitadas atualmente, quais as marcas do tempo na história, assim como, reflexões acerca
de possíveis intervenções urbanísticas. O objeto de estudo deste trabalho compreende
o bairro Centro, que se configura como um dos primeiros núcleos de povoamento da
cidade de Maceió, e desta maneira, como um lugar de suma importância para a história
e memória da capital Alagoana (Figura 1).

735
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Planta da cidade de Maceió por Américo László (1932), adaptada por Andrade Lima
(2004). Fonte: Maceió 200 anos.

Data-se que por volta do início do século XVIII, o povoado tenha surgiu no pátio de
um engenho de açúcar (COSTA, 1981), nos arredores de onde hoje se encontram a Praça
Dom Pedro II e a Catedral Metropolitana de Maceió. Por estar situado em uma rota de
escoamento de produtos agrícolas o, então, povoado passou a progredir e a se desenvol-
ver, marcado por uma forte dinâmica mercantil. Consequentemente, tornou-se Vila em
1815 e posteriormente capital do estado de Alagoas em 1839. De fato, a história da cidade
de Maceió está intrinsecamente ligada à história do bairro Centro, o qual foi cenário
para diversos acontecimentos históricos e determinantes para o desenvolvimento da
cidade (Figura 2).
Atualmente, o bairro Centro ainda se conforma como um lugar de suma impor-
tância no âmbito municipal e estadual, pois, articula diversos atores e atividades, abriga
uma importante área comercial, de serviços e de órgãos institucionais, como a sede do
governo estadual, diversas secretarias estaduais e municipais, assim como, equipamentos
de saúde, de educação e de cultura. A área em estudo é definida como Zona de Especial
de Preservação (ZEP) 2 no plano Plano Diretor Municipal (2005) do município e apresenta
27 Unidades de Especiais de Preservação (UEPs).
Algumas edificações do bairro Centro também são tombadas pelo estado, com as
Igrejas de Nossa Senhora do Livramento, de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Bom
Jesus dos Martírios, a Catedral Metropolitana, o Instituto Histórico e Geográfico de Ala-
goas, o Sobrado dos Irmãos Brêda, o Museu Théo Brandão, o Tribunal de Justiça do Estado

736
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

de Alagoas, o Palácio do Trabalhador, Academia Alagoana de Letras, a Casa de Jorge de


Lima e o Arcebispado de Maceió. Assim como, a Praça Marechal Floriano Peixoto (Praça
dos Martírios) é tombada como conjunto urbano.

Figura 2: Centro de Maceió em meados da década de 1920. Fonte: www.historiadealagoas.com.


br, acesso em janeiro de 2020

O caráter comercial, marca da história do bairro, reverbera até os dias atuais, sendo
um dos principais pólos comerciais do estado, conta com cerca de 600 estabelecimentos
comerciais, dentre os quais empregam direta e indiretamente aproximadamente 7.000
pessoas. A área em estudo apresenta um vasto número de comerciantes informais, como
ambulantes e feirantes, distribuídos regular ou irregularmente entre nas ruas de maior
tráfego de pessoas e veículo e na área do atual Calçadão.
Ademais, o número de moradores do bairro Centro é bastante resumido se com-
parado com outras regiões da Cidade, alcançando um valor inferior a 0,5% do total de
habitantes do município de Maceió (IBGE, 2010). Consequentemente, as dinâmicas terri-
toriais do bairro, assim como o uso e proveito dos seus espaços públicos livres, estejam
atrelados estritamente ao funcionamento comercial e de serviços, apresentando um
fluxo sazonal de pessoas e atividades, fazendo que as praças do Centro se configuram
como locais de passagem.
É interessante observar que os distritos que apresentam os maiores
percentuais de redução no número de moradores são aqueles que con-

737
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

centram o maior número de prédios de escritórios da cidade [...]. São


distritos onde o aproveitamento do solo urbano é intenso por causa
da grande concentração de edifícios verticais que se misturam com
inúmeros estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços de
diferentes tipos e tamanhos. (NAKANO, 2012, p. 54)
É nesse contexto que se encontram os questionamentos que orientaram a constru-
ção desse trabalho, a atual dinâmica do bairro Centro apresenta um contraste entre o uso
dos espaços públicos, onde as ruas (leito carroçável e calçadas) apresentam uma grande
quantidade de pessoas e mobiliários urbanos e, por outro lado, as praças apresentam
pouco ou quase nenhuma dinâmica de uso.

METODOLOGIA

Os passos metodológicos adotados para a concepção desse trabalho, partiram do


conteúdo compreendido e compartilhado por meio de referências bibliograficas, de
aulas elucidativas e de debates coletivos acerca da temática abordada pela disciplina
“Temporalidade e Intervenções em Centros Históricos”, do Programa de Pós Graduação da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, da Universidade Federal de Alagoas, ministrada
pelas Professoras Doutoras Gabriella Restaino e Josemary Omena P. Ferrare, no semestre
de 2019.2. Os procedimentos adotados para realizar e alcançar o objetivo dessa pesquisa
foi efetuado por meio de visitas de campo, que permitiram compreender o que foi
explicitado em sala de aula e explorar outras formas de análise e discussão sobre áreas
centrais e sítios históricos. (Figura 3)

738
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3: Mapa do percurso realizado pela equipe durante as visitas de campo. Fonte: Acervo
da equipe, 2019.

Como eixo norteador do processo da coleta de dados e parte essencial para o desen-
volvimento do estudo, as visitas de campo ocorreram em grupo em diferentes dias e
horários. Auxiliaram, entre outras coisas, no desenvolvimento de questões pertinentes
sobre a área em estudo, entre elas: a grande quantidade de prédios abandonados e em
estado depreciativo, a situação das calçadas, o grande potencial do sítio e principalmente,
a notoriedade dos contrastes entre ruas e praças no centro da cidade, que norteou a
proposta do trabalho. Para a análise dos fatores levantados nas visitas a campo foi
utilizado o método SWOT.
O método SWOT (Strengths,Weakness,Opportunities,Threats) é um sistema que
pode ser utilizado para elaborar o planejamento de ações estratégicas É uma sigla
oriunda do inglês e é um acrônimo de forças, fraquezas, oportunidades e ameaças. Este
procedimento torna-se uma ferramenta ideal no processo de gestão e monitoramento
de uma determinada localidade, pois possibilita obter um diagnóstico mais preciso
da realidade através da análise dos fatores positivo-negativos e das perspectivas dos
fatores externo-internos, visto que propicia a contextualização da temática abordada
em diversas escalas. (DANTAS E MELO, 2008).

739
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Os fatores referentes ao método SWOT foram adaptados para estabelecer propostas


de Intervenção na área histórica escolhida. Assim, os fatores positivos (Forças e Opor-
tunidades) foram substituídos por Recursos e Potencialidades e os fatores negativos
(Fraquezas e Ameaças) substituídos por Criticidade e Riscos. Após isso, foram produ-
zidas tabelas de análise (Figura 4) que interligam todos os fatores acima citados com
características pertencentes à cidade (Praças, Ruas, Calçadas, Calçadão, Edificações,
Igrejas, Praias e Rios) possibilitando uma análise situação do lugar e sugerir propostas
de melhorias. Foram construídas tabelas para cada uma das seis praças definidas no
percurso das visitas de campo.

Figura 4: Exemplo da tabela de análise da Praça Sinimbú. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

ANÁLISE DAS PRAÇAS E PROPOSTAS

Esta etapa do trabalho visa apresentar cada uma das seis praças analisadas ao
longo do percurso estudado, demonstrar as criticidades, os riscos e as potencialidades. De
maneira geral, apresenta-se nessa etapa uma síntese dos conteúdos analisados durante
as visitas a campo e das discussões acerca da situação atual das praças. Para demonstrar
as potencialidades, foram concebidas sínteses gráficas com propostas norteadoras dentro
das áreas de infraestrutura, moradia, comércio e serviços, uso misto, turismo, hotelaria
e educação. De forma geral, essas propostas têm como objetivo ativar os usos das praças
do Centro de acordo com suas as características históricas, geográficas e ambientais.

740
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Para o entorno de todas a praças foi proposta a inserção de moradia, a qualificação da


infraestrutura e a recuperação paisagística.

A Praça Sinimbú surgiu de um lago existente logo após a travessia do Riacho Maceió,
atual Riacho Salgadinho. O lugar passou por diversas mudanças de forma e de nome, até
que em 1910, após uma grande reforma, recebeu um monumento em homenagem ao
Visconde de Sinimbú, que passou a nomear a Praça. Nos anos de 1960, a Praça Sinimbú
sofreu intervenções marcantes do Prefeito Sandoval Caju, como a implantação painel
de Jorge de Lima e da icônica estátua do “Mijãozinho”.
Durante as visitas a Praça Sinimbú, dentre as criticidades e os riscos verificou-se um
aspecto de abandono na praça e seu entorno, apesar de que no decorrer da construção
deste trabalho deu-se início a uma obra de reforma na praça. Observou-se também que
bancos, estátuas e demais mobiliários, apresentam-se danificados (Figura 5) e algumas
edificações próximas encontram-se fechados. A praça é bastante arborizada, se com-
parada às demais praças do Centro (Figura 6), ainda assim, quase não foi visto o uso de
pessoas tomando proveito de seu sombreamento. Além disso, notou-se que um trecho
da praça é usado como estacionamento de veículos motorizados.

Figura 5: Aspecto de abandono da Praça Sinimbú, subutilização e famoso painel do Mijãozinho

Figura 4: Praça Sinimbú arborizada, mas pouco frequentada. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

Por outro lado, o entorno da Praça Sinimbú é repleto de importantes edificações


históricas e culturais, como o Museu Théo Brandão, os edifícios modernistas da Pinacoteca
e da antiga Residência Universitária e a Casa Jorge de Lima. O caráter cultural da Praça
Sinimbú, assim como a sua proximidade com o mar e com a rodovia de acesso à AL 101 Sul,
formam potencialidades relevantes para estabelecê-la como um polo turístico, por meio

741
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

da inserção de hotéis, feiras de artesanato, restaurantes locais, assim como, da ativação


de usos dos equipamentos culturais e da recuperação de elementos simbólicos. (Figura 7)

Figura 7: Proposta de intervenção na Praça Sinimbú. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

Praça Dom Pedro II

A praça D. Pedro II tem um caráter histórico e político relevante, pois localiza-se


no núcleo da da primeira povoação de Maceió e por ter sido palco de acontecimentos
importantes da história de Alagoas. Em seu entorno encontram-se a Catedral Metropo-
litana de Maceió, a Assembleia Legislativa, o Ministério da Fazenda, a Biblioteca Pública,
além de comércios e serviços variados e o edifício do antigo Parque Hotel, da arquiteta
alagoana Zélia Maia Nobre.
Nas visitas, a praça encontrou-se em situação de reforma, contudo, a obra não
apresentava sinalização e isolamento adequado, possibilitando risco de ocasionar aci-
dentes aos transeuntes. Além disso, parte da praça é subutilizada por estacionamento
da Assembleia Legislativa de Alagoas (Figura 8) e a outra parte da praça estava sendo
utilizada por pessoas em situação de rua (Figura 9).

742
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 8: Subutilização de parte da praça Dom Pedro II com estacionamento da Assembleia


Legislativa de Alagoas. Fonte: Acervo da equipe, 2019.
Figura 9: Pessoas em situação de rua na praça Dom Pedro II. Fonte: Acervo da equipe, 2019.

De forma geral, os usos no entorno da Praça D. Pedro II são diversificados e permi-


tem um grande fluxo de pessoas. A praça também tem um potencial turístico devido à
proximidade com a Catedral, com a escadaria ‘Todos pela Cidade’ e com o Mirante São
Gonçalo. Devido à essas características, a proposta inclui a inserção de moradia e a
reativação do Parque Hotel (Figura 10).

Figura 10: Proposta de intervenção na Praça D. Pedro II. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

743
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Praça dos Martírios

Desde 1820, o largo descampado que originou a Praça dos Martírios tinha uma
importância estratégica nas rotas comerciais que ligavam a Estrada de Bebedouro à
Enseada de Jaraguá. Em 1836, foi construída a Capela do Bom Jesus dos Martírios e o
largo passou a ser conhecido como Largo dos Martírios. Em 1880, a Capela deu lugar à
atual Igreja dos Martírios e a partir daí o Largo passou a ocupar as festividades relacio-
nadas à Igreja. Várias edificações importantes foram sendo construídas no entorno da
Praça, como o Palácio Marechal Floriano Peixoto, o Museu Pierre Chalita e a Intendência
Municipal, evidenciando o seu caráter político e histórico.
Atualmente, a falta de manutenção da praça é bastante marcante (Figura 11).
Durante as visitas de campo foram encontradas valas abertas e parte do piso quebrado,
contribuindo com o risco de acidentes. Além disso, percebeu-se poucos mobiliários
urbanos, como bancos para permanência ou contemplação, muitas edificações histó-
ricas fechadas e abandonadas no entorno e diversas pessoas utilizando colchões para
dormir na praça (Figura 12).

-
ras, 2019.

744
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 52: Pessoas dormindo e revestimento quebrado na Praça dos Martírios. Fonte: Acervo
das autoras, 2019.

Desse modo, o principal aspecto levantado na visita à Praça dos Martírios foi a
presença de muitos moradores de rua ao mesmo tempo em que há muitos edifícios sem
uso, inclusive alguns notificados pela Prefeitura. Então, as ideias propostas para essa
praça seriam transformar as edificações abandonadas em moradia social. Além disso,
notou-se que muitos carrinhos de feira ocupam as calçadas da Rua do Sol e do comércio,
dificultando a circulação de pedestres, por isso, propõe-se a realocação desse comércio
informal para a Praça dos Martírios, como uma forma de trazer usos na praça. (Figura 13)

Figura 13: Proposta de intervenção na Praça dos Martírios. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

745
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Praça Deodoro

O lugar onde hoje é a Praça Deodoro já foi um terreno circundado por casebres onde
havia um lago chamado Cotinguiba. Alguns anos depois, a área passou a ser chamada de
Largo das Princesas e após a Proclamação da República, passou a homenagear o Marechal
Deodoro da Fonseca. Em 1990, a Praça foi reurbanizada com projeto do artista plástico
alagoano Rosalvo Ribeiro e ganhou elementos neogóticos.
Embora esteja localizada em uma área de muito movimento comercial, atual-
mente, a Praça Deodoro também apresentou um reduzido número de transeuntes e
pessoas utilizando-a de maneira geral. Suas árvores apresentaram falhas nas copas e,
consequentemente, pouco sombreamento (Figura 14). Como visto anteriormente em
outras praças, esta também dispõe em seus arredores de edificações fechadas e/ou
abandonadas (Figura 15).

Figura 14: Árvores mal cuidadas e pouca circulação de pessoas na Praça Deodoro. Fonte: Acervo
das autoras, 2019.

Por outro lado, no entorno da Praça Deodoro, encontram-se dois edifícios de grande
relevância cultural, o Teatro Deodoro e a Academia Alagoana de Letras. Além disso, há o
edifício do Tribunal de Justiça e a Câmara Municipal de Maceió. O entorno da praça tem
um comércio diurno ativo e diversificado, gerando um grande fluxo de pessoas. Para
essa praça, propõem-se a implantação de moradia em alguns edifícios abandonados
do seu entorno, a utilização da travessa Dias Cabral para uma feira livre e o incentivo à
comércios noturnos que se integrem com as atividades do teatro, como cafés, livrarias
e galerias de arte (Figura 20).

746
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 16: Proposta de intervenção na Praça Deodoro. Fonte: Acervo das autoras, 2019

Praça Montepio dos Artistas

A Praça Bráulio Cavalcante, conhecida como Praça Montepio, foi fundada pela
Sociedade Montepio dos Artistas, primeiro Clube Republicano, localizado no entorno
da Praça. O edifício do Montepio dos Artistas, mantém-se preservado, além dele, há no
entorno outras edificações importantes, como o antigo Hotel Lopes, a antiga Faculdade
de Direito e o Edifício Brêda.
Durante as visitas, notou-se que a praça sequer parecia ser notada pelos transeuntes,
completamente abandonada e pouco convidativa. Entre as criticidades e riscos apontou-se
a ausência de paisagismo para promoção de sombreamento e/ou contemplação, assim
como, de mobiliário para descanso e/ou lazer (Figura 17). Além disso, em seu entorno
percebeu-se várias edificações históricas fechadas ou utilizadas como depósitos de lojas.

747
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 17: Situação da Praça Montepio dos artistas. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

Devido a relação da praça com o Edifício Montepio dos Artistas, a ideia proposta
baseia-se em reativá-lo como equipamento cultural, uma galeria de artes ou um centro
de exposições. Propõem-se também recuperar e reativar o antigo Hotel Lopes e inserir
moradia nas áreas de estacionamento do entorno. Além disso, no estacionamento ao
lado da Praça, sugere-se a implantação de uma área de lazer que atenda às novas mora-
dias (Figura 18).

Figura 18: Proposta de intervenção na Montepio dos Artistas. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

748
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Praça dos Palmares

A Praça dos Palmares tem uma localização privilegiada devido à proximidade com
a estação ferroviária e desde o século XIX configura-se como um dos principais pontos
de acesso à cidade. Algumas edificações do seu entorno são icônicas para a cidade de
Maceió, como o Edifício Palmares, o antigo Bella Vista Palace Hotel e o Arcebispado.
Diferentemente das demais, a praça Palmares é bastante frequentada em um
devido à existência um ponto de ônibus e uma de suas faces, o que juntamente com a
sua dimensão um pouco menor acaba ocasionando uma aglomeração de pessoas que
os esperam o transporte coletivo e comerciantes (Figura 19). Apesar disso, a praça está
com seus mobiliários em situação precária, com necessidade urgente de recuperação e
manutenção. Dispõe de uma boa localização como continuidade do comércio, e além
dos ônibus que passam por ali, existe uma estação do VLT nas proximidades. Assim como
as demais praças, existem muitas edificações em situação de depredação e abandono
em seu perímetro.

depredadas. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

Dentre as propostas para a praça, priorizou-se a requalificação dos edifícios que se


encontram abandonados para a inserção de moradia e implantação de uma escola que
atenda à nova demanda de moradia do bairro Centro. Além disso, propõe-se a realocação
dos ambulantes para um local específico e a transformação do edifício Delmiro Gouveia
em uso misto para ativação de sua fachada. (Figura 20)

749
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 20: Proposta de intervenção na Praça dos Palmares. Fonte: Acervo das autoras, 2019.

CONCLUSÃO

A partir do desenvolvimento deste trabalho, foi possível constatar que o esva-


ziamento de moradores no bairro Centro, sinalizado pela diminuição do número de
residências e habitantes, é um dos principais fatores que ocasionam a ausência de usu-
ários nas praças. Apesar das ruas do Centro serem ativas e diversificadas em comércio e
serviços, suas praças são carentes de usos principalmente em decorrência da escassez de
habitação, de pessoas que se apropriem desses espaços de diferentes formas e horários.
Muito provavelmente, a maciça oferta de habitações em outras regiões da cidade, aliada
à especulação imobiliária nas áreas centrais, praticamente deslocou o uso habitacional
para fora do bairro do Centro.
Por meio das visitas de campo, foi possível perceber alguns problemas de infraes-
trutura na área de estudo, principalmente no que diz respeito à qualidade dos espaços
públicos, como pisos e mobiliários urbanos desgastados, calçadas mal dimensionadas,
falta de arborização e uma grande quantidade de arranjos publicitários desordenados
nas fachadas das edificações. Quanto ao uso e ocupação do território, foi identificado

750
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

um número significativo de imóveis fechados, abandonados e/ou subutilizados como


estacionamentos privativos, depósitos de mercadorias, entre outros. Ao mesmo tempo,
um expressivo comércio informal não tem um lugar adequado para realizar suas ati-
vidades, o que evidentemente vem a ser um conflito no bairro. Constatou-se, ainda,
o esvaziamento de moradores no bairro, sinalizado pela diminuição do número de
residências e habitantes.
Diante do que foi percebido por meio das visitas, a habitação no Centro foi o prin-
cípio norteador das propostas, como forma de ativar diferentes usos nas praças, de
acordo com as potencialidades de cada uma. Assim, esse estudo em muito contribuiu
para a reflexão acerca de como intervenções em centros históricos voltadas à diferentes
usos e apropriações podem contribuir significativamente com a dinâmica da cidade
como um todo.

751
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

COSTA, João Craveiro. Maceió. Maceió: Sergasa, 1981.

promover o diagnóstico turístico de um local: o caso do município de Itabaiana/

Disponível em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/dtbs/alagoas/maceio.


pdf> Acesso em: 04 mai. 2017.

NAKANO, Kazuo. As Áreas Centrais no Planejamento Urbano da Cidade de São


Paulo. In: BAPTISTA, Dulce Maria Tourinho; GAGLIARDI, Clarissa Maria Rosa; RICCI,
Manuela (Orgs). Intervenções urbanas em centros históricos: Brasil e Itália em
discussão. São Paulo: EDUC, 2012.

MACEIÓ. Lei Municipal no. 5.486 de 30/12/2005. Plano Diretor do Município de


Maceió. Maceió, 2005.

752
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

THE THIRD LANDSCAPE IN THE PROCESS OF


BUILDING OF ANOTHER URBAN LANDSCAPE
CULTURE

EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

MARICATTO, Isabella Khauam


Mestranda ; UFPel
Isa.maricatto@gmail.com

753
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O conceito apresentado por Gilles Clément em seu manifesto da Terceira paisagem(2004), tenta
construir uma cultura da paisagem que busca a preservação e o respeito à diversidade. O autor
é um dos nomes mais proeminentes do paisagismo contemporâneo, tanto por sua atividade
profissional quanto por suas reflexões teóricas acerca da transformação das paisagens, questio-
nando sobre o desenvolvimento da cidade contemporânea para além dos limites e delineamentos
do patrimônio cultural. A partir da revisão na literatura, objetiva-se ampliar as abordagens
do estudo da Terceira paisagem em relação à paisagem cultural brasileira e criar instrumentos
teóricos que auxiliem na construção de uma outra cultura da paisagem. A Terceira paisagem
vem como uma provocação aos sistemas de patrimonialização, com o intuito de contribuir
acerca de novas possibilidades e estratégias de preservação da paisagem cultural a partir de
estratégias que valorizem a memória social presente na cidade contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: paisagem urbana. terceira paisagem. memória. paisagem cultural. patri-


mônio cultural.

A BSTRACT
The concept presented by Gilles Clément in his manifesto of the Third Landscape (2004), tries to
build a landscape culture that seeks preservation and respect for diversity. The author is one
of the most prominent names in contemporary landscaping, both for his professional activity
and for his theoretical reflections on the transformation of landscapes, questioning about
the development of the contemporary city beyond the limits and outlines of cultural heritage.
From the literature review, broaden the approaches of the study of the Third Landscape in
relation to the Brazilian cultural landscape and create theoretical instruments that help in
the construction of another landscape culture. The Third landscape comes as a provocation to
patrimonialization systems, in order to contribute about new possibilities and strategies of
preservation of the cultural landscape from strategies that value the social memory present
in the contemporary city.

KEYWORDS: urban landscape. third landscape. memory. cultural landscape. cultural heritage

RESUMEN
El concepto presentado por Gilles Clément en su manifiesto del Tercer Paisaje (2004), trata
de construir une cultura del paisaje que busque la preservación y el respeto de la diversidad.
El autor es uno de los nombres más destacados del paisajismo contemporáneo, tanto por su

754
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

actividad profesional como por sus reflexiones teóricas sobre la transformación de los paisajes,
cuestionando el desarrollo de la ciudad contemporánea más allá de los límites y esquemas del
patrimonio cultural. A partir de la revisión de la literatura, ampliar los enfoques del estudio
del Tercer Paisaje en relación con el paisaje cultural brasileño y crear instrumentos teóricos que
ayuden a la construcción de otra cultura del paisaje. El Tercer Paisaje viene como una provoca-
ción a los sistemas de patrimonialización, con la intención de aportar nuevas posibilidades y
estrategias de preservación del paisaje cultural a partir de estrategias que valoren la memoria
social presente en la ciudad contemporánea.

PALABRAS-CLAVE: paisaje urbano. tercer paisaje. memoria. paisaje cultural. patrimonio cultural.

INTRODUÇÃO

Em 2019, o Iphan abriu consulta pública para o delineamento da normativa que


trata de paisagens culturais para o estabelecimento de marcos legais que estavam sob
elaboração para o auxílio na concessão de chancelas. A estratégia confere o título de
paisagens culturais, espaços de integração incomparável entre os aspectos cultural e
do ambiente natural, para a preservação de bens culturais e promove o princípio de
desenvolvimento sustentável considerando o plano de gestão como uma das principais
ferramentas de proteção dessas áreas.
O conceito de paisagem cultural vem para oportunizar a discussão em relação a
patrimonialização e a cultura da paisagem urbana contemporânea por abrir a possi-
bilidade do diálogo e de construção com o outro. Os diferentes processos que ativam a
dinâmica da paisagem, tais como o abandono, transformação em paisagem agradável,
patrimonialização, entre outros, são apresentados em um contexto geográfico relati-
vamente homogêneo tanto sobre o plano físico como sobre o plano cultural. Por esse
motivo, convêm analisar os efeitos desses processos sobre contextos em que a restauração,
requalificação e revitalização podem também ser abordada em uma perspectiva social
e cultural pesquisando os fatores que condicionam sua acessibilidade social.
Nesse caso, considera-se como relevante a atribuição de valor que é socialmente
construída em vez da existência de um objeto em si que gera valor para um grupo social.
Por esse motivo, antes da elaboração de planos que visem a preservação de algo deve-se
compreender o que de fato tem valor na construção da memória social. A tendência
do poder público em suas diferentes esferas de justificar a transformação de uso de
um espaço gentrificador configurando-os como “abandonados e degradados” deve ser
discutida. Nessa perspectiva, questiona-se sobre a memória desses lugares que normal-

755
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

mente são vistos a partir de uma perspectiva negativa e também sobre como facilitar a
integração de espaços urbanos em direção a uma cidade mais durável.
A dinâmica urbana resulta da multiplicidade de processos que problematizam
o pensamento arquitetônico sobre a cidade e a compreensão de uma construção da
memória a partir do presente, essa premissa implica em assumir que o passado não
se conserva nem mesmo ressurge de maneira idêntica. A complexidade da sociedade
contemporânea e os conflitos potenciais de interesses de diferentes grupos sociais e
econômicos exige um outro posicionamento de proteção e preservação, visto que esses
aspectos se tornam menos eficazes se sustentados apenas por dispositivos legais e
administrativos. Da mesmo maneira, um posicionamento meramente restritivo pode
gerar obstáculos que conduzem a fortes pressões econômicas e sociais, as quais áreas
de grande interesse cultural e natural estão sujeitas.
As experiências de políticas de planejamento urbano que foram destinadas a recon-
figuração dos espaços patrimoniais são estabelecidas a partir de uma padronização da
paisagem, bem como dos usos, possibilitando a seleção de quais grupos devem ou não
frequentar certos locais e restringindo o acesso da herança social para as futuras gera-
ções. O artigo se direciona para a relevância e urgência da discussão referente a paisagem
cultural reconhecendo as dificuldades enfrentadas pelos profissionais em compreender
e intervir na cidade a partir de projetos que dão espaço para a construção heterogênea.
As tendências urbanas atreladas a políticas de preservação patrimoniais vistas
por uma perspectiva gentrificadora, manifestam sintomas que resultam em paisagens
urbanas cada vez mais homogêneas. Nesse contexto, o conceito da Terceira paisagem[1],
desenvolvido por Gilles Clément[2], aparece como possibilidade de reflexão acerca dos
direcionamentos da nova proposta de paisagem cultural. É fundamental repensar o
papel das políticas patrimoniais considerando as necessidades atuais a fim de construir
uma outra cultura da paisagem. Objetiva-se fomentar a discussão a respeito do termo
“paisagem cultural” para a elaboração de estratégias de gestão baseadas em perspec-
tivas mais amplas e integradoras, em que os processos de construção são estudados e
acompanhados a longo prazo.

[1] Reconhece os espaços abandonados e negligenciados como fragmentos de uma mesma


paisagem.

[2] Gilles Clément é considerado um dos nomes mais proeminentes do paisagismo con-
temporâneo.

756
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

AS AUSÊNCIAS NA CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA

De acordo com Frehse, a memória e o espaço possuem uma relação direta que é
nutrida através do passado e também dos espaços múltiplos. Dentro destes, os físicos
podem ser caracterizados por não trazem “em si” a memória. Nessa perspectiva, como
a “realidade urbana de materialidade física periodicamente cambiante interfere na
memória que a seu respeito é socialmente produzida?” (2017, p.241)
A autora Tali Hatuka explica que “a memória é uma questão de como as mentes fun-
cionam juntas em sociedade” (2017, p. 49). Visto isso, nota-se que o significado da memória
vai além dos espaços criados para a preservação histórica, se preocupando sobretudo
em manter vivas manifestações culturais e tradições de grupos sociais. Entretanto, a
manutenção depende das motivações ou intenções do que se é construído a cada dia, já
que os significados simbólicos e manifestações físicas se encontram no tempo presente.
A partir da década de 70, o conceito de patrimônio cultural passou a ser mais amplo,
de “uma apreciação existencial de artefatos materiais para um complexo processo mul-
tidimensional de produção de valor a partir tanto de edifícios tangíveis como de formas
culturais intangíveis” (Zukin, 2017, p.25). A autora também aponta que, atualmente, o
patrimônio é construído através de valorização cultural que é formada por ciclos de
investimentos e destruição.
No âmbito da cidade, considera-se a memória cultural como um dos aspectos mais
decisivos no momento da escolha de um lugar verdadeiramente notável (Bruno, 2010).
Diante disso, observamos a importância da memória social para o reconhecimento
dos patrimônios históricos. Nas relações entre o ser humano e os objetos, ou ainda, ser
humano e ambiente construído, a memória que gera a apropriação do espaço pode ser
modificada de acordo com o tipo, “se individual, a apropriação será privada; se social,
pública; se compartilhada, semipública ou semiprivada” (Bruno, 2010). Quando essa
memória não gera a apropriação, há o reconhecimento de um conflito ocasionado por
fenômenos urbanos ou intervenções, que são reconhecidas como tragédias ou traumas
de acordo com Hatuka:
Se o trauma é percebido como ausência, a urbanidade torna-se um pro-
blema sociopolítico, uma busca interminável pelos habitantes por um
retorno a um senso de unidade tanto do lugar como da comunidade. Essa
situação trivializa ou até mesmo elimina as práticas cotidianas no local
do trauma e, portanto, simplifica a história passada e em andamento
do lugar. Essa eliminação suspende o presente (práticas cotidianas)
e o futuro (intervenções ou planos para modificar o lugar), fundindo

757
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

o momento (do trauma) com o significado do lugar. Essa suspensão é


uma Ausência Urbana. (2017, p.56)
Considerando o espaço urbanizado passível de gentrificação, existem alguns cri-
térios que estabelecem os discursos referentes às práticas e ideias reproduzidas pela
sociedade. Desse modo, o do abandono e o da necessidade de fruição cultural são dois
exemplos reproduzidos no cotidiano dos usuários da cidade. A partir da verificação dos
processos presentes nas sociabilidades urbanas observa-se dinâmicas diversificadas
ocasionadas pela desocupação e reocupação constante das áreas que sofreram algum
tipo de intervenção. Entretanto, o poder público em suas diferentes esferas, costumam
justificar a transformação de uso de um espaço gentrificador, configurando-os como
abandonados e degradados.
A partir disso, as relações político-econômicas se esbarram nas políticas dedicadas à
preservação do patrimônio cultural e estas acabam servindo para outros fins, marcadas
através dos novos usos estabelecidos por meio das revitalizações urbanas. A higienização
das áreas de patrimônio cultural, imposto sobre os espaços públicos, acaba por ocasionar
conflitos sociais, visto que, a manutenção das pessoas que frequentam esses locais nem
sempre é o principal objetivo (ZUKIN, 2017).
Mesmo quando os agentes abastados dessa estruturação não desejam
expulsar os moradores pobres do local, o enobrecimento é um processo
que resulta num mercado imobiliário em torno do lugar de diversidade
social e cultural criado por artistas, intelectuais e classe trabalhadora.
Numa paisagem cada vez mais homogênea, a diversidade tem valor de
mercado. (ZUKIN, 2000, p.108 apud CARDOSO, 2017)
Tal fenômeno urbano caracteriza o processo de gentrificação, elevando-se o custo de
vida da população de modo a reincorporar a lógica de consumo nesses espaços enobre-
cidos. Logo, tem-se a transformação dos hábitos e valores culturais e simbólicos de uma
sociedade que está constantemente em construção (CARDOSO, 2017). A mercantilização
da cidade abre brecha para a competitividade e, pensando na lógica de preservação dos
patrimônios culturais, os modelos ou formas construídas são padronizados e reprodu-
zidos de acordo com a economia global do marketing urbano (ZUKIN, 2017).
O conceito de marketing urbano pode-se resumir às “práticas que compreendem
um conjunto de intervenções urbanas voltadas à transformação de sítios históricos
degradados em áreas de entretenimento urbano e consumo cultural” (Leite, 2008, p. 36
apud Braga, 2016). Utilizando o patrimônio como estratégia para torná-lo mercadoria
cultural, ou ainda, um lugar de consumo onde só se é possível a apropriação por meio
do capital.

758
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Podemos observar algumas contradições ou impasses referentes às leis que prote-


gem os edifícios históricos, por mais que atuem nos âmbitos supranacionais, nacionais
ou mesmo locais, não existem nenhuma questão referente a manutenção dos usuários
locais nesses locais. Desta maneira, mesmo que indiretamente, grupos sociais locais são
abalados ao sofrer interferências em seus ecossistemas culturais. Visto isso, percebe-se
que o patrimônio cultural imaterial não é levado em consideração na maioria dos casos
onde há o processo de patrimonialização dos edifícios históricos (Zukin, 2017).
Mesmo na dimensão urbana, as condições das leis de preservação acabam abrindo
uma brecha para a gentrificação, quando um patrimônio cultural é institucionalizado,
tal processo acarreta em uma transformação social e econômica que tem como conse-
quência na desigualdade de acesso aos espaços para diferentes grupos sociais. A nova
imagem desses espaços passam a ser representada pelo alto valor econômico, afetando
diretamente o público e restringindo os grupos de usuários do local (ZUKIN,2017).
Segundo Zukin, o patrimônio cultural das cidades passa a existir em função dos
mercados artísticos, turísticos e principalmente imobiliário. Ainda assim, percebe-se a
ausência de certos grupos nessa maneira unilateral de ver a cidade. A ressignificação
seletiva da memória da cidade para alguns grupos consequentemente impedem outros
de viver e construir uma memória social no presente. Esses conflitos de interesses impac-
tam a maneira de viver a cidade que de fato é complexa e diversa.

PATRIMÔNIO COMO ESPAÇO DO COTIDIANO

A Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 216, ampliou o conceito de patrimônio


substituindo o termo Patrimônio Histórico e Artístico por Patrimônio Cultural Brasileiro,
a partir de então incorporou o conceito de referência cultural e a definição dos bens
passíveis de reconhecimento, incluindo os de caráter imaterial. Define-se Patrimônio
cultural como sendo os bens “de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira”(VASCONCELOS, 2011, p. 67).
Além disso, a Constituição apesar de manter a gestão do patrimônio e da docu-
mentação relativa aos bens sob responsabilidade da administração pública, estabelece
a parceria entre o poder público e as comunidades para a promoção e proteção do
Patrimônio Cultural Brasileiro (IPHAN, 2018).
Visto isso, o envolvimento da população nos processos de reconhecimento patri-
monial é de extrema importância, uma vez que o valor cultural não é dado apenas pelos
critérios técnicos dos profissionais especializados, mas “principalmente pelo valor de

759
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

testemunho histórico e de concentração de significados atribuídos pelo grupo social


ao bem tombado”(CANANI, 2005).
De acordo com Braga, as experiências de políticas de planejamento urbano que
foram destinadas a reconfiguração dos espaços patrimoniais, são estabelecidas a partir
de uma padronização da paisagem, bem como dos usos, possibilitando a seleção de quais
grupos devem ou não frequentar tais lugares (2016). Entretanto,
A cidade é fruto do trabalho coletivo de uma sociedade. Nela está mate-
rializada a história do seu povo, suas relações sociais, políticas, econô-
micas e religiosas. Sua existência ao longo do tempo é determinada pela
necessidade humana de agregar-se, de interrelacionar-se, de organizar-se
ao redor do bem-estar comum, de produzir e de intercambiar bens e
serviços, de criar cultura e arte, de manifestar sentimentos e desejos
que só se concretizam na diversidade que a vida urbana proporciona.
Todos buscamos uma cidade mais justa e mais democrática, que possa
de algum modo responder a realização de nossos sonhos. (ESTATUTO
DA CIDADE, 2002, p.9)

A PAISAGEM CULTURAL NA CIDADE CONTEMPORÂNEA

Segundo Ribeiro (2007), é a partir do entendimento da paisagem como fruto do


trabalho coletivo ao longo do tempo que esta passa a ser considerada como um bem de
valor. Nessa perspectiva, a legislação de tombamento apresenta limitações “ao contemplar
apenas bens considerados excepcionais”, o que nos conduz a noção de paisagem ligada
ao cotidiano e a não-monumentalidade, e, em vista disso, “não passível de tombamento
dentro do universo do patrimonializável até então” (COSTA, 2018, p. 144).
A partir desse contexto é criada a chancela de Paisagem Cultural Brasileira como
tipologia independente de patrimônio cultural. De acordo com o artigo primeiro da
Portaria nº 127/2009: “Paisagem Cultural Brasileira é uma porção peculiar do território
nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual
a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores” (BRASIL, 2009).
Compreende-se que para que um conjunto paisagístico possa se tornar uma paisagem
cultural demarcada é necessário passar pela demonstração de peculiaridade, de distin-
tividade de um determinado território (VASCONCELOS, 2005).
A chancela funcionaria como “um selo de reconhecimento e legitimação” de valor
de patrimônio nacional, há como consequência, o incentivo ao “turismo, a manifestação
de culturas locais, o artesanato, o cultivo da terra de forma tradicional, entre outras ativi-

760
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

dades que preservem os valores culturais e ambientais chancelados” (VASCONCELOS, 2005,


p. 62). Desse modo, Canani (2005) indica que a Portaria nº 127/2009 poderia contribuir
com a preservação da biodiversidade, de ecossistemas e os modos tradicionais de vida
em conjunto com a legislação ambiental brasileira. Contudo, para que essa contribuição
de fato aconteça, há a “necessidade de um plano de manejo e a gestão compartilhada da
paisagem, pois esta seria dinâmica, em constante mutação” (IPHAN, 2006a apud COSTA,
2018, p. 149).
O amplo caráter da compreensão de paisagem cultural brasileira, reconhecido por
Costa desde sua introdução no debate para enquadramento patrimonial, se manteria
ao considerar a paisagem cultural como “uma soma de todas as formas legais de prote-
ção”. Para tanto, não seria mais necessário a elaboração de novas leis, mas “apenas fazer
cumprir as leis”. Dessa maneira, vê-se “a necessidade de um plano que estabelecesse as
bases de uso, ocupação e manejo, tanto do ponto de vista edificado, como dos recursos
naturais e atividades de valor cultural” já que a criação de um novo título em si não é
suficiente para que a questão seja resolvida. A solução estaria na gestão e “na possibilidade
de construção de consenso entre todos os envolvidos sobre a forma como determinada
área deve ser preservada” (IPHAN, 2006a apud COSTA, 2018, p. 149).
Entretanto, a implementação do enquadramento urbano como paisagem cultural
tanto no IPHAN quanto na UNESCO ainda é um elemento de difícil aceitação. Existem
ainda questionamentos como os apresentados por Sant’Anna em relação a classificação
dessa tipologia em áreas urbanas e locais onde a natureza é quase invisível, ou ainda, se
a ideia de paisagem estaria ligada apenas a contextos nos quais a presença da natureza
fosse muito marcante. Desse modo, percebe-se a partir da análise na Lista do Patrimônio
Mundial e nos estudos de Paisagem Cultural Brasileira “que o urbano não é diretamente
contemplado nesta tipologia de bem patrimonial” (COSTA, 2018).
A dinamicidade dos referentes de paisagem como patrimônio se apresenta pela
complexidade do instrumento de gestão que deve ser adotado, constituído pelo pacto
de gestão compartilhada. Portanto, questiona-se sobre “o lugar do cotidiano e do traba-
lho nos bens patrimoniais”, tanto material quanto imaterial, já que “não deveríamos
entender o patrimônio como um subconjunto separado da nossa existência normal,
pois com isso estaríamos marginalizando o restante, que é essencial à vida” (MENESES,
2002 apud COSTA, 2018, P.150).

761
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A presença da Terceira Paisagem na cidade contemporânea

Gilles Clément, um dos nomes mais proeminentes do paisagismo contemporâneo,


apresenta o Manifesto da Terceira Paisagem (2004) em busca da construção de uma outra
cultura da paisagem, considerando o desenvolvimento da cidade contemporânea para
além dos limites e delineamentos das políticas patrimoniais. Considerada como frag-
mento da política territorial denominada Jardim Planetário, tem o intuito de repensar
o ar, o solo e a água com base no respeito à diversidade (ANDRADE, 2019).
O conceito da Terceira é de origem francesa e surgiu a partir de um olhar de Clé-
ment para a paisagem de Vassivière, França, em 2002. A proposta de análise realizada
reconhece as áreas florestais manejadas e as represadas por uma hidrelétrica mediante
o caráter artificial de uma paisagem configurada “naturalmente” por um conjunto
organizado, levando em consideração as curvas do relevo, as exposições e a facilidade
de acesso (CLÉMENT, 2014).
Constituída de maneira fragmentada está presente na paisagem urbana e rural
e se compõe a partir de espaços residuais, reservas e conjuntos primários. O espaço
residual é considerado como o resultado do abandono de um terreno anteriormente
explorado, esses territórios despovoados de funções se estendem a lugares como mar-
gens de estradas, margens de rios, terrenos baldios e outras áreas que podem ter origem
agrícola, industrial, urbana, turística, entre outras. As reservas são consideradas lugares
não explorados, seja pela dificuldade de acesso ou exploração inviável por ser de alto
custo, esses territórios surgem a partir da subtração de territórios antropizados. Existem
também as reservas que podem ser consideradas como conjuntos primários, que existem
e continuam existindo por decisão administrativa (CLÉMENT, 2014).
Na teoria proposta por Clément, a Terceira existe ao incluir os processos naturais
biológicos na formação da paisagem, busca a compreensão dos processos que são desen-
cadeados após o abandono e propõe que esses territórios possam ser considerados como
futuros locais de refúgio para biodiversidade (SILVA, T. B., 2016). É para essas reservas
ecológicas que ele chama a atenção dos cidadãos comuns, mas também dos profissionais
responsáveis pelas questões de urbanismo, a fim de garantir a preservação dessas áreas
e fazer delas ação e pensamento para futuras sociedades.
Desse modo, abre possibilidades de novas interpretações para novos momentos
da urbanidade, repensar o olhar sobre a Terceira estimula novas maneiras de tratar este
tipo de problemática. Apresenta uma dimensão ecológica e ecossistêmica, que abrange
a dimensão política e examina o sistema coerente que se forma na relação entre o ser
humano e o ambiente. É nos espaços de fragmentos da paisagem que se entende sobre

762
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

como preservar as espécies e de que maneira manter a diversidade. Esse conceito exige,
portanto, “um posicionamento entre o homem sensível e o prático perante a natureza”
(APPEL, 2018, p. 2484).
Compreendendo as dificuldades enfrentadas pelos profissionais do planejamento
em intervir a partir de projetos que dão espaço para a heterogeneidade e a multiplicidade
presente nos modos de vida urbanos da contemporaneidade, tem-se a necessidade de
repensar outros modelos de planejamento que possam operar gestões de ambiências
vistas a apenas a partir de uma perspectiva normalmente negativa (GARCÍA-ODIAGA, 2016).
Apesar do conceito da Terceira paisagem não pensar na patrimonialização como
local de preservação da memória, essa maneira de apreensão da paisagem pode ser
considerada como instrumento para ampliar a compreensão da paisagem e apresentar
outros caminhos alternativos quando nos referimos ao termo sustentabilidade, ou ainda,
na cidade que queremos para o futuro. Contudo, para que isso seja possível, a leitura da
paisagem urbana contemporânea deve ser transformada de maneira prática.
Na cidade de Montpellier - França, a potencialidade da Terceira foi utilizada para
investigar e definir possibilidades que aparecem como suporte do desenvolvimento e
da biodiversidade na região, por meio do Estudo Estratégico para a Gestão dos Terrenos
Abandonados. Nesse caso, as questões apresentadas são consideradas de âmbito ecológico,
urbanístico e da propriedade, e os espaços são organizados por tipologias, verificando
o papel de cada uma no sistema urbano. Posteriormente, as considerações em relação
à manutenção dos parques e jardins da cidade se conectam com a rede de vegetação
espontânea e os terrenos abandonados e negligenciados da cidade (MARTINS, 2010).
A partir da compreensão do sistema urbano em conjunto são desenvolvidas pistas
para intervenções concretas com o objetivo de definir o caráter e a capacidade de evolução
destes terrenos e estabelecer conexões entre eles. Desse modo, tem-se a possibilidade dos
territórios se articularem a partir de “uma malha favorável à manutenção e à recepção
da diversidade animal e vegetal” (MARTINS, 2010, p. 83).
Para que essa estratégia de gestão funcione a longo prazo é fundamental a coope-
ração entre os atores institucionais e profissionais. Além disso, o engajamento da popu-
lação é considerado uma condição prevista e desejada, tendo como parte do processo
sessões de trocas e esclarecimentos que auxiliam na manutenção do projeto a partir da
construção social (MARTINS, 2010).

763
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A tensão existente entre a recusa de se estabelecer fronteiras bem definidas aos


delineamentos do termo paisagem cultural e o interesse em diferenciá-lo evidencia
os dilemas internos desse conceito. As oportunidades de construir reflexões acerca
de estratégias e planejamento de gestão em busca de uma outra cultura da paisagem
podem se perder ao reduzi-lo sem levar em consideração as necessidades presentes e a
sustentabilidade nas permanências.
O posicionamento crítico perante o termo paisagem cultural traz questionamentos
acerca das permanências baseadas em narrativas pautadas por discursos hegemônicos.
Tais narrativas fazem parte de uma estrutura social construída historicamente. Desse
modo, as paisagens urbanas manifestam sintomas de gentrificação e perpetuam os
traumas urbanos da cidade contemporânea.
Desenvolver um outro olhar sobre a paisagem cultural é romper o ciclo de perma-
nência como finalidade, assumindo os inúmeros contrastes e pontos de divergência
presentes na paisagem urbana. Um plano comum com o conceito da Terceira paisagem é
estabelecido com a intenção de preservar a memória “viva” sustentada pela continuação
e manutenção das ações humanas. Abrem-se possibilidades para novas interpretação
do território através de uma abordagem prática e sensível, considerando a necessidade
de apropriação territorial e identitária para a construção social da memória.
Entretanto, para que a comunidade seja guardiã de seu próprio patrimônio é
necessário motivação, engajamento e troca de saberes. Existe a necessidade de refletir
sobre os novos desdobramentos que a proposta de engajamento em troca de saberes
pode alcançar. Além disso, fomentar discussões a respeito das políticas patrimoniais
abrangendo o contexto da paisagem através de experiências cotidianas.
É fundamental pensar em gestões que garantam o diálogo e asseguram a memória
social construída a partir do cotidiano de grupos heterogêneos para que novas propo-
sições sejam articuladas. Nesse sentido, considerando a complexidade das diferentes
temporalidades que coexistem no presente por meio de um processo gradual.
A ressignificação da memória envolve assegurar a permanência do lugar de memória
a partir dos meios de memória, direcionando-se para uma nova proposta de leitura da
paisagem cultural. A construção de uma outra cultura da paisagem se desenvolve por
meio dos apontamentos baseados em tendências urbanas e pela urgência em se discutir
a sustentabilidade nas permanências.
A implementação do conceito da Terceira nas reflexões referentes a paisagem
cultural pode contribuir para o desenvolvimento de gestões que possibilitem a com-

764
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

preensão de paisagens inseridas em sistemas de redes. Uma outra cultura da paisagem


parte de um pensamento local que reconhece as potencialidades e limitações de gestão
e caminha para a construção de alternativas sistêmicas que são condizentes com as
necessidades e demandas atuais.

765
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

APPEL, Janice Martins Sitya. O jardim como desenvolvimento de um processo

para a construção de uma crítica da paisagem. In Anais do 27o Encontro da


Anpap. São Paulo: Universidade Estadual Paulista (UNESP), Instituto de Artes,
2018. p.2475-2486.

Americano: paisagem cultural, patrimônio e projeto. Belo Horizonte(MG)


Universidade Federal de Minas Gerais, 2019.

lugar do consumo. Dissertação (Mestrado em Memória Social e Patrimônio


Cultural) - Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural,
Universidade Federal de Pelotas. Pelotas. 2010.

THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário IPHAN de Patrimônio Cultural. 2. ed. rev. e


ampl. Rio de Janeiro, Brasília: IPHAN/DAF/Copedoc, 2016.

diferentes categorias do patrimônio histórico e cultural no Brasil. Horiz. antropol.


2005, vol.11, n.23, pp.163-175.

CARDOSO, Renata Carrero. A produção do espaço e a criatividade econômica do

Paulo, 2017.

gestão de uma nova categoria de bem patrimonial. Tese (Doutorado). Programa


de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural. Universidade
Federal de Pelotas. Pelotas, 2018.

2004.

Landscape Architecture). Edição do Kindle. University of Pennsylvania Press


Philadelphia

766
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Consulta Pública IPHAN. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/


noticia/2019-07/iphan-abre-consulta-publica-sobre-paisagens-culturais>

ESTATUTO DA CIDADE. Guia para implementação pelos municípios e cidadãos. São


Paulo: Instituto Pólis, 2002.

et al. (Org.). Patrimônio cultural: memória e intervenções urbanas. São Paulo:


Annablume, 2017.

us.es/index.php/ppa/article/view/2693>

HATUKA, Tali. A obsessão com a memória: O que isso faz conosco e com as

cultural: memória e intervenções urbanas. São Paulo: Annablume, 2017.

MARTINS, SARA C. L.. Paisagens Urbanas: imaginários e dinâmicas na arquitetura


da paisagem contemporânea. Dissertação de mestrado em Arquitetura Paisagista.

Porto Alegre, 2016. p. 199-231

chancela da paisagem cultural brasileira. Revista CPC. São Paulo, n.13, p. 51-73,
nov. 2011/ abr. 2012.

ambiental sobre projetos que visam recuperação de territórios degradados.

ZUKIN, Sharon. Patrimônio de quem? Cidade de quem? Dilemas sociais do

R. et al. (Org.). Patrimônio cultural: memória e intervenções urbanas. São Paulo:


Annablume, 2017.

767
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O TERRITÓRIO (E SUA
MEMÓRIA) PELO OLHAR
DOS MORADORES A
PARTIR DE DOCUMENTOS
CONSTRUÍDOS POR ELES:
OS ALMANAQUES DE
PATROCÍNIO PAULISTA.
THE TERRITORY (AND ITS MEMORY) THROUGH

BUILT BY THEM: THE ALMANACS OF PATROCÍNIO


PAULISTA.

DE LOS RESIDENTES A TRAVÉS DE DOCUMENTOS

PATROCÍNIO PAULISTA.
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

768
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ROCHA, Beatriz Alves Goulart


Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia (PPGAU-UFU.
beatrizgoulartr@outlook.com

CUNHA, Claudia dos Reis e


Professora doutora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal
de Uberlândia (FAUeD-UFU).
claudiareis@ufu.br

769
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
Este artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado em desenvolvimento que busca ressaltar a
importância da participação da população na preservação do patrimônio em cidades pequenas.
Ainda pouco abordadas, estas cidades sofrem com carências específicas, como ocorre também
quando se trata da falta de fontes documentais que revelem sua história a partir de uma abor-
dagem especializada. Dessa forma, reconhece-se nos Almanaques Históricos, geralmente escritos
por pessoas que tenham alguma relação com o local, um instrumento que permite analisar a
construção de uma memória da cidade, feita em grande parte pelos próprios moradores, e assim,
reconhecer a ocupação do território a partir de seus relatos. Para isso, toma-se como estudo a
cidade de Patrocínio Paulista, interior de São Paulo, que conta com dois Almanaques e que os
têm como principal referência documental.

PALAVRAS-CHAVE: almanaque histórico. história da cidade. memória. identidade.

AB STR ACT
This article is part of a master’s research in development that seeks to highlight the importance
of population participation in preserving heritage in small cities. Still little approached, these
cities suffer from specific needs, as also occurs when it comes to the lack of documentary sources
that reveal its history from a specialized approach. Thus, it is recognized in the Historical Alma-
nacs, usually written by people who have some relationship with the place, an instrument that
allows analyzing the construction of a memory of the city, made in large part by the residents
themselves, and thus, recognizing the occupation of the city territory from their reports. For
this, the city of Patrocínio Paulista, in the interior of São Paulo, is taken as a study, which has
two Almanacs and which have them as the main documentary reference.

KEYWORDS: historical almanac. city history. memory. identity.

RESUME N

Este artículo es parte de una investigación de maestría en desarrollo que busca resaltar la
importancia de la participación de la población en la preservación del patrimonio en las
ciudades pequeñas. Aún poco tratada, estas ciudades sufren de deficiencias específicas, como
también ocurre cuando se trata de la falta de fuentes documentales que revelen su historia de
un enfoque especializado. Así, se reconoce en los Almanaques Históricos, generalmente escritos
por personas que tienen alguna relación con el lugar, un instrumento que permite analizar la

770
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

construcción de una memoria de la ciudad, realizada en gran parte por los propios residentes,
y así, reconocer la ocupación del território de sus informes. Para esto, se toma como estudio la
ciudad de Patrocínio Paulista, en el interior de São Paulo, que cuenta con dos Almanaques y
que los tienen como referencia documental principal.

PALABRAS CLAVE: almanaque histórico. historia de la ciudad memoria. identidad.

INTRODUÇÃO

Este artigo faz parte do desenvolvimento de uma pesquisa de mestrado em


andamento, que busca ressaltar a importância da participação da população na
preservação do patrimônio cultural, memória e história em cidades de pequeno
porte (com menos de 20.000 habitantes) e com fundação mais recente. Diante das
diversas dificuldades relacionadas à salvaguarda do patrimônio (encontradas em
cidades de todos os tamanhos), as pequenas cidades sofrem com carências especí-
ficas, como as dificuldades de manutenção de um arquivo público para documen-
tações, e muitas vezes ficam à margem de uma preservação institucionalizada.
Assim acontece com Patrocínio Paulista, cidade utilizada como exemplo de estudo.
Com o intuito de compreender o que os próprios moradores da
cidade consideram importante para a sua memória, sentiu-se a necessi-
dade de, em um primeiro momento, estudar os seus Almanaques Históricos
. Isso porque, eles foram escritos por cidadãos que de alguma forma tinham relação com
o local, ou seja, eram moradores, trabalhavam ali, tinham familiares de lá, etc.
Vale ressaltar que frequentemente as pequenas cidades não contam com publi-
cações dedicadas à história do local exclusivamente feitas por especialistas, como his-
toriadores profissionais. Por isso, muitas vezes os Almanaques são as únicas fontes de
informação compilada em uma obra, que aborda diversos temas pertinentes à história
urbana, mostrando-se importantes na construção histórica dessas cidades, assim como
em Patrocínio Paulista.
A cidade tem, no total, dois Almanaques Históricos, sendo o primeiro bem minu-
cioso, escrito em 1985 e publicado em 1986, em comemoração ao centenário de eman-
cipação política do município, e o segundo, publicado em 2012 como uma atualização
mais objetiva e simplificada para celebrar os seus 127 anos. Considera-se então para esse
trabalho, a possibilidade de leitura e ocupação do território, bem como os fragmentos
que fazem parte de sua identidade e memória a partir do que é contado há 35 anos pela

771
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e para a comunidade nessas publicações, como: os trajetos, acontecimentos, instituições


e pessoas importantes para o local até aquela data.

A CIDADE DE ESTUDO: PATROCÍNIO PAULISTA

O município de Patrocínio Paulista situa-se no nordeste do Estado de São Paulo, e


apesar de ter uma área de unidade territorial relativamente grande (602,848 km²), pode
ser considerada uma cidade de pequeno porte, já que no último censo do IBGE de 2010,
contava com 13.000 habitantes, sendo 10.499 na área urbana e 2.501 na rural. A estimativa
para o ano de 2019 foi de 14.670 pessoas.
Além de municípios paulistas como Itirapuã, Franca, Batatais e Altinópolis, faz divisa
com o Estado de Minas Gerais a partir das cidades de Capetinga, São Tomás de Aquino e
Ibiraci. “Dos fazendeiros atuais e das famílias mais gradas da cidade, a maior parte são de
descendência mineiras, como atestam até hoje as múltiplas relações de parentesco com
os moradores de Minas Gerais.” (GOETTERSDORFER, 1905 apud MATOS; COSTA, 1986, p. 15)
A área, inicialmente habitada pelos índios caiapós (FÉLIX, 2012, p. 07), teve sua
maior ocupação no entorno dos rios Santa Bárbara e Sapucaizinho, estimulada pelo
declínio dos garimpos em Minas Gerais. Inicialmente, às margens do Santa Bárbara, o
povoado estabelecido pelos garimpeiros foi elevado à freguesia em 1833, denominado
Nossa Senhora do Patrocínio de Santa Bárbara das Macaúbas, mas com o descontenta-
mento dos fazendeiros da região pela ocupação de suas terras, extinguiu-se à força na
década de 1850.
Com isso, alguns quilômetros acima do antigo, um novo povoado começou a se
formar nas margens do Rio Sapucaizinho, principalmente nas áreas do Barro Preto,
ou na fazenda do Turvo. Além de ser local de sede das atividades de garimpo, passava
por ali uma estrada importante de acesso a municípios mineiros, como o de Santa Rita
de Cássia. Dessa forma, em 1874 foi nessa área fundada a freguesia de Nossa Senhora
do Patrocínio do Sapucaí (nome originado de “sapucaia-hy”, ou seja, rio das sapucaias,
árvores frequentemente encontradas nas margens de seu curso). (GOETTERSDORFER,
1905 apud MATOS; COSTA, 1986, p. 10)
Esta freguesia foi possível pela doação de terras para a construção da Igreja Matriz,
que começa a ser erguida em 1875 com a ajuda dos garimpeiros, e nessas décadas já poder-
-se-ia notar algumas construções regulares em seu entorno. Frisa-se então, a relação da
origem da cidade com dois elementos principais: o rio (atividades do garimpo) e a religião,
materializada pela Igreja. Em 10 de março de 1885, Patrocínio do Sapucahy, foi elevada
à Vila (por isso se comemora seu aniversário nesta data), e em 1892, à Comarca e Cidade.

772
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Tratando-se da relação dos moradores com a cidade e o que eles próprios definem
como parte de sua memória e história – a partir da relação de sua origem territorial
com a água e a religião –, Patrocínio Paulista é descrita (afetivamente) dessa forma no
primeiro Almanaque:
E, terminando este singelo e despretensioso esboço sobre as origens
de nossa cidade e de nossa gente, é com certeza que reafirmamos que o
chão de estrelas do nosso saudoso e querido Pai continua pelos leitos
dos rios e córregos, nas “grupiaras e manchões”, à espera de quem queira
desvirginá-los e catar as gemas, dádivas do céu que nossa terra guarda
com tanto carinho para aqueles que, como os garimpeiros, sonham e
crêem que um sonho pode se tornar realidade. E foi o que aconteceu com
uma menininha caipira e mal vestida, que nasceu às margens do Rio
Sapucaizinho, fruto do sonho colorido de um punhado de garimpeiros.
Com o correr do tempo ela foi crescendo, tomou corpo, enfeitou-se com as
jóias e riquezas que Deus lhe deu, tornou-se linda e admirada e passou
a ser chamada Cidade Presépio, a nossa querida Patrocínio Paulista.
(ANDRADE, 1986, p. 172)

773
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: Mapa do perímetro urbano atual de Patrocínio Paulista com destaque a ser detalhado

Patrocínio Paulista (2020)

774
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

OS ALMANAQUES HISTÓRICOS DE PATROCÍNIO PAULISTA

O primeiro Almanaque Histórico da cidade foi organizado em 1985 pelo juiz da


comarca naquele período, Dr. Carlos Alberto Bastos de Mattos, e um professor do curso de
História da UNESP de Franca, o Prof. Alfredo Henrique Costa, para marcar a comemoração
dos 100 anos do município. Teve seus capítulos (que abordam questões diferentes entre
si, como era típico nesse tipo de publicação) escritos pelos próprios moradores da cidade
ou por pessoas que tivessem alguma relação com ela, e por isso se vê a importância de
consultá-lo minuciosamente.
Os organizadores expressam as causas da iniciativa, que já naquela época se deu
pela falta de outras publicações sobre a história da cidade, e mesmo pelo “total desco-
nhecimento sobre as fontes preservadas”, e que pelas dificuldades, contou com a boa
vontade da comunidade para se realizar.
Reuniões gostosamente tumultuadas passaram a ser realizadas nas
tardes de sábado. Dividiram-se tarefas, incumbindo-se cada qual de
pesquisar um tema, de percorrer a cidade em busca de informes ou de
fotografias, de revolver os arquivos dos órgãos públicos, de localizar
as atas e documentos das entidades. E no sábado seguinte, os dados
obtidos eram confrontados entre todos, e novas fontes indicadas por um
e por outro. Um esforço verdadeiramente comovente. (COSTA; MATOS;
1986, p. 08)
Desde a etapa de organização do documento, ele era tido como importante para
“preservar a memória” local. Isso pode ser visto também em seu início, a partir das sau-
dações escritas pelo então Governador do Estado de São Paulo, Franco Montoro, pelo
exemplo de “guardar o patrimônio” pela própria cidade.
A memória de um povo se perde se aqueles que têm condições de teste-
munhar não preservam seus registros. Muito da história nacional tem
sido preservada graças a iniciativas dedicadas das cidades. Patrocínio
Paulista é uma delas, que dá um exemplo de consciência do patrimônio
comum. Porque a história é justamente esse registro da passagem na
terra, deixada como legado para os que nos sucedem. Somente podemos
ser absolutamente contemporâneos se incorporarmos a experiência e o
acumulado de saber que nos precedem. A escolha do formato “Almanaque
Histórico” foi extremamente feliz. Quanto devemos da história brasileira
a essa antiquíssima tradição que se perde nos tempos.” (MONTORO,
1986, p.05)

775
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Deve-se atentar ao fato, de que como foi escrito por pessoas que não necessaria-
mente eram especialistas nos assuntos relatados, alguns deles são abordados de maneira
subjetiva e, em alguns casos, apresentam imprecisões nos dados. Além disso, por ser um
compilado de vários artigos, eles não possuem uma ordem claramente definida, e alguns
são revisões ou transcrições de textos escritos em épocas diferentes, ainda que, em sua
grande maioria, tenham sido elaborados para o próprio almanaque.
Essas questões são sabidas, mas o documento não deixa de ser muito relevante
para a história da cidade (mesmo que não seja precisamente técnico), pois apresenta a
mentalidade e o conhecimento das pessoas sobre o lugar e seus componentes, como é
característico dessa tipologia de publicação, que são os Almanaques Históricos de cidades.
Tais publicações, em especial, possuem uma estrutura bem diversificada,
abordando desde os calendários, dias de santos, dicas para o dia a dia,
literatura e biografias até dados estatísticos, históricos e geográficos
da cidade que representam. À época de sua disseminação eram, muitas
vezes, a única fonte de informações que a população tinha a respeito
da localidade que habitava. (CARVALHO; GRAZZIOTIN, 2018, p. 183)
Mais do que analisar os temas abordados a partir dos artigos, é possível reconhecer
quem foram os responsáveis por escrevê-los – portanto, importantes na construção dessa
memória- e quais as relações dessas pessoas com a cidade. Todos os textos possuem em
sua estrutura um título e, logo abaixo, o nome de quem o escreveu vinculado a uma nota
de rodapé com uma pequena biografia. Por exemplo, alguns foram escritos por profes-
sores que marcaram gerações locais, como a “Dona Izar” (Izar Garcia de Andrade, autora
dos capítulos “O cinema e seus administradores” e “Clubes Recreativos”), estudantes de
História, Direito e Geografia, também por parentes de pessoas importantes na história
da cidade, ou por pessoas que trabalhassem nos setores que seriam descritos, etc.
Sendo assim, o primeiro texto é uma revisão feita pelos organizadores sobre o que
um padre austríaco, primeiro vigário da paróquia, lançou no livro do Tombo da Igreja
Matriz na primeira década do século XX, abordando questões relacionadas ao “nome,
posição geográfica, orografia, hidrografia; divisas; população; desenvolvimento histó-
rico da comarca; fazendas mais antigas; fundação da paróquia; Igreja Matriz; Capelas,
cemitérios; vigários, coadjutores, fabriqueiros; irmandades; visitas pastorais, missões, e
outras notícias” (GOETTERSDORFER, 1905 apud MATOS; COSTA, 1986, p. 10)
Nota-se desde o início, tanto no texto supracitado (contemporâneo às primeiras
décadas de fundação de Patrocínio Paulista), quanto nos outros textos contidos no
Almanaque, a forte relação até então da Zona Rural com o município. O primeiro, des-
creve as fazendas mais antigas, suas datas, se possuía ermida, seus sucessivos donos,

776
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

etc., sendo que na maioria dos casos, os nomes das famílias ou pessoas mais influentes
eram acompanhados dos nomes das fazendas pertencentes a eles.
A maior parte dos assuntos abordados, como: escolas, principais famílias do local,
comércios, indústrias, dentre outros, não se restringe à zona urbana. Além disso, pelo
capítulo “Dados atuais”, percebe-se que a população urbana e rural era bem equilibrada
nos anos 1985, sendo que no total de 9.013 habitantes, 4.928 concentravam-se nas cidades
e 4.085 distribuíam-se no campo.
É claro que essa questão está muito presente nos textos sobre a origem do povoado,
que se distribuem aleatoriamente no compilado de artigos. Diferentes abordagens, prin-
cipalmente vinculadas às atividades do garimpo, relacionam os elementos geográficos
e hidrográficos com as origens da ocupação. Alguns textos são bastante técnicos, como
o de Neuza Machado Vieira intitulado “O Meio Ambiente do Município de Patrocínio
Paulista”, que dentre aspectos geomorfológicos, aponta os locais de exploração de dia-
mante no município, com suas respectivas técnicas (Figura 2):

Figura 2: Mapa encontrado no artigo citado. Fonte: VIEIRA (1986, p. 161).

777
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Já outro, escrito pela historiadora patrocinense, Palmira Luiza Novato Falleiros,


“Dispersão do Arraial de Santa Bárbara das Macaúbas”, aborda historicamente a ocu-
pação do território a partir de conflitos entre os fazendeiros que já estavam alocados e
garimpeiros que dispunham de ranchos nas encostas dos rios.
Ao passo que se encontram presentes também descrições feitas de maneira mais
afetiva, como no capítulo “Terra virgem” transcrito de “Meio Século do Distrito de Itirapuã”,
homenagem feita aos cinquenta anos de Itirapuã (cidade que já foi distrito de Patrocínio
do Sapucaí e hoje faz parte de sua comarca) por Carmelino Corrêa Júnior em 1950, em
que se encontram trechos como: “Terras ubérrimas das melhores, elas constituem os
patrimônios de Itirapuã e Patrocínio Paulista; no dizer caboclo – “Deus fê-las e perdeu
a receita”. (CORRÊA JÚNIOR, 1950 apud MATOS; COSTA, 1986, p. 82)
É possível notar, ainda, que tanto como os nomes das pessoas aparecem acompa-
nhados aos de suas fazendas, muitas áreas, incluindo serras, são chamadas pelos nomes
ou sobrenomes das famílias proprietárias de terras da região:
Quem do alto da serra de Franca, em sua vertente oriental, estende a
vista por sobre imensos paramos, vê uma enorme depressão de terras a
se alongarem até as divisas de Minas Gerais. Limitam-na a referida serra
com seus contrafortes, a do Campestre ou a dos Monteiros, o Cabecinho
ou Morro Redondo do Pontal (Itirapuã), o morro selado, a serra do Major
Claudiano, ou da Vanglória e uma elevação isolada, como que fechando
este imenso boqueirão e denominada Serra dos Figueiredos”. (CORRÊA
JÚNIOR, 1950 apud MATOS; COSTA, 1986, p. 80, grifo nosso.)
Frequentemente se encontra no interior dos textos alguns nomes que ainda se
fazem presentes na atualidade a partir da denominação de ruas, como: “Coronel Estevam
Marcolino, Major Álvaro, Capitão João Novato, Capitão Firmino Rocha”, e que retratam a
influência de determinadas pessoas ou famílias na área, sendo geralmente precedidos
de patentes, e na maioria das vezes, relacionados à política local.
Além disso, outros nomes que de certa forma marcaram a memória da população
até aquele momento aparecem a partir de capítulos como o dos “Tipos populares”
(relembrando as “figuras pitorescas”), “Apelidos patrocinenses” (com nomes que fazem
parte do cotidiano e memória local), “Artes” (com os nomes dos artistas locais), dentre
outros que apresentam nomes dos garimpeiros, de pessoas que participaram da Revo-
lução Constitucionalista, da Segunda Guerra Mundial, etc.
Voltando-se para o incentivo ao desenvolvimento da cidade, além de políticos,
o Almanaque de 1985/1986 apresenta a influência de religiosos, como o Monsenhor

778
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Cândido Rosa (que ajudou a angariar terras para a freguesia), e também, o Cônego Pere-
grino (Cônego Pe. Ernesto Augusto Peregrino Ferreira), angrense que tomou posse da
paróquia em 1891 e até a sua morte em 1899 foi responsável pela construção da Igreja
Matriz (anteriormente havia apenas uma simples capela de adobe e cobertura de palha
datada entre 1872 a 1875) e da casa paroquial.
Além disso, fundou a conferência de São Vicente e a confraria do Rosário e, conforme
os transcritos de Goettersdorfer: “finalmente achou o seu jazigo terrestre no centro da
Matriz que ele construíra, sendo talvez o único sacerdote Paulista que fez a si mesmo
um tão grandioso mausoléu. A sua sepultura é até hoje religiosamente venerada e é
um fato que ninguém pisa na campa que cobre seus restos mortais” (GOETTERSDORFER,
1905 apud MATOS; COSTA, 1986, p. 28). Atualmente essa prática já não é um fato, mas em
uma das laterais da igreja, encontra-se uma estátua do Cônego Peregrino, ainda hoje
muito recordado.
Assim como descrito no histórico da cidade, a construção da Igreja também foi
responsável por impulsionar as primeiras construções residenciais ao seu entorno,
formando assim o núcleo urbano em continuidade ao que vinha se desenvolvendo no
entorno do rio Sapucaizinho por conta das atividades do garimpo. É possível entrar em
contato, a partir de um dos capítulos, denominado “Dura Lex” (escrito pelo juiz Carlos
Alberto Bastos de Matos, organizador do Almanaque) com a análise de um “Código de
Posturas Municipaes de Patrocínio do Sapucahy” elaborado em 1921, quando o prefeito
municipal era Antônio Joaquim de Alvarenga.
A partir da descrição feita sobre ele, pode-se compreender o perímetro urbano
nos anos 1920, que limitava-se às primeiras quadras adjacentes ao quarteirão da Igreja
Matriz e da praça em sua frente, fazendo apenas um adendo à Praça do Centenário, já que
por ali passava a Avenida Guarany (denominação feita na época do Código de Posturas,
atualmente Avenida Carlos Gomes) que convergia da estrada na qual as comitivas de
boiadeiros cruzavam o município, conhecida como “Rua da porteira” (Atual Quintino
Bocaiúva).
O perímetro urbano era diminuto (circunscrito pela “rua do Commercio,
Avenida Guarany, rua Cel. João Vilella, travessa José de Alencar e tra-
vessa Major Goulart”) [...]. E a cada vez que os carros de boi “com rodas
chapeadas de menos de 6 centímetros” cortassem a cidade, pagariam
uma taxa de 3$000. (MATOS, 1986, p. 186)
Foi possível identificar esse perímetro destacado em Marrom no Mapa (Figura 3)
a partir de um capítulo (“História das vias públicas patrocinenses”) que com uma breve
descrição, permitiu comparar os nomes antigos que aparecem no Código de Posturas com

779
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

os atuais. Duas ruas apareceram como antiga “Rua do Commercio”, porém, acredita-se
que na descrição do perímetro, trata-se da atual Rua Pio Avelino. Já a Avenida Guarany
corresponde à Avenida Carlos Gomes; a travessa José de Alencar à Rua Voluntários pau-
listas; e as ruas Cel. João Vilella e Major Goulart que continuam assim denominadas.
O autor do texto, ao analisar o documento do Código de Posturas de 1921, que tra-
tava sobre diversos aspectos sanitários, de segurança, de “normas fiscais e urbanísticas”
(MATOS, 1986, p. 186), considera-o severo, por isso, intitulando seu artigo como “Dura Lex”.
“Assim, num só Código, há curiosos preceitos da mais variada ordem, tratando de matéria
constitucional, administrativa, processual, tributária e, mesmo, penal (!).” (MATOS, 1986,
p. 187). E em relação às questões urbanas:
Já as moradias (obrigatoriamente cobertas de telhas ou de outro material
incombustível) deveriam obedecer ao alinhamento, à exceção das “casas
boas ou chalets, os quais deverão ficar 3 metros pelo menos para dentro
da linha travessa ou praça”. De qualquer forma, para “aformoseamento”
da cidade, todos os proprietários eram compelidos a “mandar caiar e
pintar as suas casas, pelo menos de 2 em 2 anos, e bem assim os muros”.
(MATOS, 1986, p. 187).
O Capítulo “História das vias públicas patrocinenses” também permite compreen-
der o aumento do perímetro urbano de 1921 até o ano de 1985 (do desenvolvimento do
primeiro Almanaque), visto que aborda todas as ruas da cidade no período (destacadas
em cinza na Figura 3).
Mais uma vez, nota-se a partir da morfologia urbana a relação entre a ocupação no
território, o Rio Sapucaizinho (pela proximidade dos bairros já consolidados em relação
às suas margens), as rotas principais (ex: “Rua da Porteira”), e os marcos religiosos. Em
relação aos marcos religiosos, há um destaque para a Capela da Santa Cruz, que teve sua
construção começada em 1889 e aparentemente, importante também para solidificar a
aglomeração e criação do Bairro Santa Cruz.
Nota-se a predominância da religião católica até o período em que o primeiro
Almanaque foi escrito, mas há um pequeno trecho tratando-se Congregação Cristã no
Brasil, que teve início em Patrocínio Paulista em 1934 em uma sala de oração construída
próxima ao perímetro urbano, e que desde 1969 encontra-se em uma construção na
área urbana próxima ao rio (Rua Treze de Maio, Bairro Tabatinga), e da Igreja Evangélica
Assembleia de Deus que começou em 1974 em uma residência no Bairro Santa Cruz, e em
1975 passou para a Rua Expedicionários Sapucaienses, Bairro da Porteira.

780
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Há também um capítulo para a “Igreja e suas festas religiosas”, que conta sobre
tradições que mesmo um pouco modificadas, ainda se mantém até os dias atuais, como
as procissões e quermesses. Relatam-se algumas características das quermesses realiza-
das pela Igreja e pela comunidade (geralmente na rua Major Goulart, atrás da Matriz).
Como muito frisado, o objetivo deste Almanaque, era principalmente “preservar a
memória do local”, então, além das tradições e dos nomes importantes na cidade, nota-se
a atenção de registrar também o que fez parte de seu cotidiano, apontando construções
que ainda existem ou que já existiram e foram de certa forma marcantes, tanto ante-
riormente à data de sua publicação, quanto contemporaneamente.
Dessa forma, há Capítulos com suas especificidades (considerados importantes para
o desenvolvimento do Almanaque, e portanto, expressavam significado para a comuni-
dade) que podem ser encontrados no índice como: “O cinema e seus administradores”,
“Correios e telégrafos”, “Clube Hípico”, “Centro de Saúde de Patrocínio Paulista”, “Clubes
Recreativos”, “Santa Casa de Misericórdia de Patrocínio Paulista”, “Empresa Telefônica”,
“As Cooperativas patrocinenses” (muito fortes no local, principalmente as que envolviam
laticínios e café), “Casas Comerciais”, “Indústrias”, “Bancos e Casas Bancárias”, etc.
Além da abordagem histórica sobre como esses equipamentos se originaram na
cidade, percebe-se que há também um anseio por apontar a maneira como eles se desen-
volveram, atingindo certo “progresso”. Mostravam uma dinâmica tipicamente urbana,
presente mesmo em um pequeno povoado, que se espelhava nos grandes centros.
Sob termos como “progresso” e “moderno”, os almanaques expressam
visões de mundo e sensibilidades de sujeitos seduzidos pelos encantos
do que intitulo de modernidade, movimento que não se faz sem a relação
com o sistema capitalista. (VIEIRA, 2011, p. 03)
Deve-se observar que muitas vezes o que é citado relaciona-se ao uso do edifício
no momento, e não à construção em si. Porém, considera-se que sua localização no
espaço urbano também faça parte da dinâmica do cotidiano, e por isso são representa-
dos através do mapa. Além disso, ressalta-se que muitos locais destacados não existem
mais, e como forma de mapeá-los, muito se contou com a colaboração de alguns idosos,
principalmente de Maria Aparecida Martins Alves, de 88 anos, que mora na cidade desde
que nasceu e é avó de uma das autoras.
Observa-se também que principalmente em relação ao artigo das “Casas Comer-
ciais”, foram encontradas dificuldades de mapeamento, visto que ou o endereço descrito
divergia do que os colaboradores (deste artigo) se lembravam, ou eles eram anteriores
ao seu nascimento.

781
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO
Observa-se também que principalmente em relação ao artigo das “Casas Comerciais”, foram
encontradas dificuldades de mapeamento, visto que ou o endereço descrito divergia do que os
Entendendo a importância
colaboradores (deste desses espaços
artigo) se lembravam, descritos/apresentados
ou eles eram no Almanaque
anteriores ao seu nascimento.
como representante/reflexo do que era Patrocínio Paulista por uma parcela da comunidade
Entendendo a importância desses espaços descritos/apresentados no Almanaque como
naquele momento, busca-se
representante/reflexo apresentar
do que graficamente,
era Patrocínio Paulista porauma
partir de interferências
parcela da comunidadenos mapas da
naquele
cidade,momento,
a localização dos
busca-se principais
apresentar pontos citados
graficamente, a partirno
de Almanaque, de forma
interferências nos a documentar
mapas da cidade, a a
localização dos principais pontos citados no Almanaque, de forma a documentar a ocupação do
ocupação do território,
território, e adomemória
e a memória do3)local. (Figura 3)
local. (Figura

Figura 3: Mapa com pontos indicados pelos Almanaques (Recorte do perímetro urbano atual mostrado na Figura 1)
Fonte: Adaptado do mapa base da Prefeitura Municipal de Patrocínio Paulista (2020) e Almanaques Históricos.
Figura 3: Mapa com pontos indicados pelos Almanaques (Recorte do perímetro urbano atual
mostrado na Figura 1) Limiaridade: processos e práticas em Arquitetura e Urbanismo

Fonte: Adaptado do mapa base da Prefeitura Municipal de Patrocínio Paulista (2020) e Alma-
naques Históricos.

782
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Legenda de pontos citados no Primeiro Almanaque (1985/1986):

1. Igreja Matriz (“Nova”) Nossa Senhora do Patrocínio (1896)


2. Jardim da Praça Nossa Senhora do Patrocínio, Jardim da Luz (1914), Jardim
Coronel Batista da Luz (1915), demarcado junto com o antigo Largo da Matriz,
Praça Coronel Estevam Marcolino (1921)
3. Antiga Residência do Capitão Firmino Rocha (início séc. XX), Banco Cruzeiro
do Sul (Déc. 50/60), Atual Agência dos Correios (1977)
4. Primeiro Cinema “Sete de Setembro” (1913), Cine “Paratodos”, Cine “São Paulo”,
Cineteatro “Continental” (até 1955)
5. Padaria São Jorge, Padaria Supimpa (Família Magrin)
6. Agência da Caixa Econômica Federal, atual Banco do Brasil
7. Residência Major Álvaro
8. Escola Municipal da Profa. Maria Venância Falleiros (Inaugurada em 1907)
9. Casa Paroquial (1891/1954 – demolida) (1955 - atual)
10. Casa Goulart
11. Colégio de Freiras “Jesus, Maria, José” (1913 – demolido em 1945), Clube 15
(1936 no prédio demolido e 1947 no prédio novo), Salão Santo Agostinho (1961)
12. “Salão do Cabrinha” em um antigo salão do colégio de freiras (1947/48 - demo-
lido), CRAPA
13. Banco Higino Caleiro (Déc. 1950/1960) (Farmácia Flávio)
14. Bar e Sorveteria Sapucaiense (Mário Ferrari) (1950)
15. Bar Cruzeiro (1950)
16. Secos e Molhados
17. Posto Atlantic (1951)
18. Loja Sensação (1975)
19. Primeiro Banco do Brasil (1982), atual Bradesco
20. Casa Carraro (1950)
21. Snooker (1950)
22. Cine “Flórida”
23. Bar Central (1950)

783
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

24. Lapidação de diamantes de Goulart & Viana (1947/50)


25. Agência da Caixa Econômica Estadual
26. Bazar das Novidades (Loja Sebastião Fernandes) (1937)
27. Secos, Molhados e Armarinhos “Casa Firmino Rocha” (1904), Banco Comércio
e Indústria de São Paulo– COMIND (Déc. 50/60)
28. Secos, Molhados e Armarinhos “Casa Firmino Rocha” (1904), Banco Comércio
e Indústria de São Paulo – COMIND (Déc. 50/60)
29. Casa Bandeirante (1950)
30. Praça Carlos Gomes, Praça do Centenário (1922)
31. Casa Brasil (1937), Supermercado Bem-te-vi (1958)
32. Selaria (1950)
33. Igreja Evangélica Assembleia de Deus (1974/1975)
34. Safari
35. Fábrica de Salames “Santa Thereza” (1937), COONAI
36. Mercearia Joaquim Pedro (1920), depois Mercearia de uma família de turcos.
37. “Casa de Câmara e Cadeia” no “Largo da Cadeia” (1902), Fórum de 1902 a 1971,
e atual delegacia na Praça da Bandeira
38. Rodoviária
39. Escola Estadual de 1º Grau (AGRUPADA) (1962), Escola Municipal de Ensino
Fundamental Professor Luis Andrade de Freitas
40. Mercearia do Sebastião Azevedo (1968)
41. Vidraçaria de Joaquim dos Santos (1968)
42. Escola Estadual Jorge Faleiros (1974)
43. Cemitério Municipal
44. Esporte Clube Meia-noite (1959)
45. Praça Nossa Senhora do Patrocínio (1956), “Novo” Fórum (1976)
46. Praça Nossa Senhora do Patrocínio (1956), “Nova” Câmara dos Vereadores e
prefeitura municipal
47. Primeiro prédio construído para a Escola Jorge Falleiros (1957), Prefeitura
Municipal e Auditório Municipal

784
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

48. Novo clube 15 (1963), Sociedade Recreativa X de Março (1972 – ampliação para
área com piscinas)
49. Santa Casa de Misericórdia de Patrocínio Paulista (1957)
50. Clube 60 (1960)
51. Primeira Santa Casa de Misericórdia de Patrocínio Paulista (1908), Hotel São
José (1970)
52. Primeiro Lar de Idosos “Conferência do Sagrado Coração de Jesus da Sociedade
de São Vicente de Paulo” (déc. 1920), Prefeitura Municipal, “Orfanato” “Associação
Patrocinense de Assistência Social- APAS” (déc. 1960), Creche Municipal (1984)
53. Possível Casa Novato (1915)
54. Oficina de Conserto de Automóveis do Ismael Chimelo (1968)
55. Casa São Cristóvão (1929)
56. Segundo prédio dos Correios (1913), Postal telefônica/Telegráfica (1939 e 1953),
Dr. Carlos Dentista
57. Primeira Empresa/ Centro telefônico (1904)
58. Primeiro Posto de Assistência Médico-Sanitária – PAMS (1950)
59. Confeitaria do “Chefe” (1915)
60. Primeira edificação da Câmara dos vereadores/ Casa de Câmara e Cadeia (1892
-demolida em 1927) no “Largo Municipal”, Praça Ruy Barbosa, Praça São Paulo
(1956), hoje Praça do Garimpeiro (1976).
61. Máquina de Beneficiar café (1951)
62. Fábrica de móveis (1951)
63. Serraria
64. Empório Santa Rita (1953)
65. Grupo Escolar “Irmãos Mattos” (1922)
66. Casa Nogueira (1937)
67. Primeiro Prédio dos Correios (1884/1913)
68. Pensão de Pedro Martins Ribeiro “Perico” (1950)
69. Oficina Mecânica Everardo de Andrade & Cia (1950)
70. Casa São José (1950), Bar São Vitor

785
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

71. Centro Comunitário Maria do Rosário


72. Praça Prefeito José Barcellos (1982)
73. Capela Santa Cruz
74. FRIPAL (Frigorífico Industrial Paulista)
75. Pensão da Boiada
76. COPAL (Curtume)
77. Serralheria de Josafá Lopes (1950)
78. Ponte
79. Botequim Santa Rita (1958)
80. Praça Altino Arantes
81. Congregação Cristã no Brasil – Patrocínio Paulista (1934 Zona Rural e 1969
Área demarcada)
82. Cooperativa de Crédito de Patrocínio Paulista (1956, Banco do estado de São
Paulo – BANESPA (1977)
83. Lar de Idosos “Instituição Assistencial Frederico Ozanan” (1973)
84. Clube Hípico (1979 local demarcado)
85. Rio Sapucaizinho
86. Zona Rural (Fazendas, Escolas, Indústrias, Rios e córregos, garimpos)
87. Venda Manoel Fernandes

786
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A .Loja do Akira
B. CREDICOONAI (onde se localizava quando foi escrito o Almanaque)
C. Sindicato Rural de Patrocínio Paulista
D. Prédio do SAEPP (Serviço de Água e Esgoto de Patrocínio Paulista)
E. Árvore Sapucaia em frente ao Fórum (origem do nome do rio Sapucaizinho e
da cidade)
F. Centro de Referência de Assistência Social – CRAS
G. Centro Espírita Cristo Consolador
H. Escola Municipal de Ensino Infantil Gercyra de Andrade
I. Escola Estadual Juca de Andrade (APAE)
J. Comunidade Evangélica Adonai
K. Rede Mário Roberto
L. J.A. Saúde Animal
M. Igreja do Evangelho Quadrangular
N. Fábrica Queijos Mama
O. Restaurante Rancho JP
P. Usina de Laticínios Jussara
Q. Loja Maçônica Fênix
R. Estátua garimpeiro
S. Sindicato dos Trabalhadores Rurais
T. Zona Rural (Premix, Usina CEVASA,Cachaçaria Santa Elisa, etc.)

Passando à análise do segundo almanaque, publicado em 2012, percebe-se que


muitos pontos citados, e até mesmo alguns artigos são iguais aos do primeiro, mas de
forma bem mais simplificada e objetiva. Todos os textos relacionados à origem da cidade
que se encontram em várias partes distintas no primeiro almanaque, estão condensados
no segundo.
É possível encontrar uma organização (feita por Sandra Regina Félix) parecida em
relação ao primeiro, já que também é uma coletânea de textos produzidos por diferentes

787
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

pessoas relacionadas à Patrocínio Paulista. Apesar de os nomes não estarem mais logo
após o título do artigo, a maioria deles (não mais todos) tem sua autoria explicitada no
final de cada um. Deve-se observar que não mais existem as notas com a biografia sobre
cada autor, o que foi considerado interessante no primeiro, justamente para conhecer
melhor quem estava escrevendo sobre a cidade.
Interessante também notar a importância dada à publicação do documento, assim
como no de 1985/86, como uma forma de “preservar a memória” do local:
Por acreditar que um povo sem história é um povo sem cultura, louvo o
resgate e a reconstrução da identidade pessoal e cultural do nosso povo,
feitos por meio deste projeto educacional. Este livro deixará registrado
nosso passado e nosso presente, para que a atual população patroci-
nense e as futuras gerações conheçam e respeitem suas origens. Este é
mais um passo que Patrocínio Paulista dá em busca do registro de sua
história e da preservação da nossa memória, construindo, assim, o que
queremos para nós, para nossos filhos e descendentes, que é um futuro
honroso, altaneiro e brilhante. (BARCELLOS, 2012, p. 4)
A especificação de casas comerciais, nomes das ruas, famílias, dentre outros assuntos,
é bem menos detalhada, e isso se percebe também no tamanho e formato da publicação.
Porém, nota-se certa atualização em relação ao lançado em 1986, com adição de outros
pontos considerados importantes quase duas décadas depois. A diferenciação no mapa
(Figura 3) se dá pela legenda, na qual tudo que foi citado no primeiro almanaque está
em ordem numérica e o que foi adicionado no segundo, em ordem alfabética.
Além de construções, casas comerciais, indústrias, dentre outros usos, são desta-
cadas algumas festas folclóricas que são consideradas parte da conformação da cidade
e de sua memória, como: “Folia de Reis (desde 1989), Congada (desde 1995), e o Grupo de
Catira “Sola de Ouro”, e também alguns eventos, como as celebrações do aniversário da
cidade, a Festa do Peão, as corridas hípicas, o show “Sonho de Criança”, o Torneio Municipal
de Futsal e o Torneio Leiteiro. Atualmente muitos deixaram de acontecer, ou mudaram
muito, porém, reconhece-se que grande parte da população ainda mantém lembranças
e afetividade para com eles.
Mesmo que nessa segunda publicação não haja um capítulo para explicar o nome
das ruas, ou mesmo citá-las, é possível, a partir dos novos pontos que apareceram, ter
uma ideia dos novos bairros que foram surgindo, e assim traçar uma perspectiva do
desenvolvimento territorial de 1985/86 até 2012 pela comparação entre os dois Alma-
naques. Assim, constrói-se uma representação do espaço e seu desenvolvimento a partir

788
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

da narrativa e considerações feitas pela população em épocas distintas, e traduzidas em


mapas. (Figura 4)

Figura 4: Mapa da área urbana de Patrocínio Paulista com destaque para os bairros que com-
preendem pontos citados.
Fonte: Adaptado do mapa base da Prefeitura Municipal de Patrocínio Paulista (2020) e Alma-
naques Históricos.

789
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONCLUSÃO

Através dos discursos contidos nos almanaques, é possível perceber as


relações do sujeito que escreve com a cidade que lhe é objeto, relações
estas, atravessadas por racionalidades, mas também por sensibilidades;
conscientes e não conscientes; todas evidentemente forjadas dentro das
relações sociais – portanto, coletivas –, no tempo e no espaço ou como
preferirem, no seu contexto. (VIEIRA, 2011, p. 2)
Percebe-se que já na elaboração e discussão dos assuntos que seriam (ou não) abor-
dados no Almanaque, as seleções são inevitáveis e o resultado é uma visão de mundo
daqueles envolvidos com a empreitada, sendo, portanto, um constructo da memória
que se objetiva guardar. Então, a partir da leitura desses pontos escolhidos, foi possível
compreender o desenvolvimento territorial da cidade, como marcas de sua história
narrada e repercutida até hoje a partir das visões de mundo de um determinado grupo
de cidadãos.
Percebe-se pela última figura (Figura 4), os eixos de crescimento do perímetro
urbano a partir das datas das publicações, porém ressalta-se que foram destacados nos
mapas os bairros que compreendiam algum ponto citado nos Almanaques, não sendo
necessariamente apenas eles os existentes.
Quanto às fontes documentais, que tinham como intenção inicial a formação de
um “arquivo para a memória”, é importante notar que o primeiro Almanaque teve sua
edição lançada na data citada, sendo poucos os seus exemplares ainda existentes, e por
isso, há certa dificuldade em consultá-los. Dessa forma, questiona-se também o acesso
da população a essas fontes documentais de extrema importância para a compreensão
da história urbana.
Já o segundo Almanaque, tem seu acesso facilitado, porque além de ter sido publi-
cado como livro, também se encontra disponível em meio digital no site da prefeitura,
mas por ser uma atualização do anterior, não aborda pontos que ainda fazem parte da
memória de uma porção da população (bastante significativa, pois a diferença entre
os anos de publicação não chega a duas décadas), como os cinemas, os clubes de dança,
dentre outros.
Reconhece-se, que após 35 anos do lançamento do primeiro Almanaque, as moti-
vações para o desenvolvimento dessa pesquisa são muito parecidas, pois partem da
carência da continuidade de ações que possam guardar a história local - nesse caso a
partir do patrimônio cultural -, e vendo na comunidade e em suas ações, o potencial de
construção da memória e preservação da identidade do território.

790
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS:

Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo Henrique (org.). Almanaque Histórico de


Patrocínio Paulista: 1885-1985. Patrocínio Paulista: Edição da Prefeitura Municipal,
1986., pp. 168-172.

In: Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 70, jul./ago. 2018, p. 179-195.
Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/er/v34n70/0104-4060-er-34-70-179.pdf.
Acesso em: 05 mar. 2020.

Paulista. In: MATOS, Carlos Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo Henrique (org.).
Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista: 1885-1985. Patrocínio Paulista: Edição
da Prefeitura Municipal, 1986., pp. 80-92.

Almanaque
Histórico de Patrocínio Paulista: 127 anos de história. Patrocínio Paulista:

FALLEIROS, Palmira Luiza Novato. Dispersão do Arraial de Santa Bárbara das


Macaúbas. In: MATOS, Carlos Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo Henrique (org.).
Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista: 1885-1985. Patrocínio Paulista: Edição
da Prefeitura Municipal, 1986., pp. 67-71.

Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista: 127

O almanaque, a locomotiva da cidade


moderna

Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/


REPOSIP/280473>. Acesso em: 24 jul. 2018.

GOETTERSDORFER, Heriberto Antônio. Apontamentos Histórico-Geographicos


sobre Patrocinio de Sapucahy. In: MATOS, Carlos Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo
Henrique (org.). Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista: 1885-1985. Patrocínio
Paulista: Edição da Prefeitura Municipal, 1986., pp. 10-32.

791
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Patrocínio Paulista (SP).


Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/sp/patrocinio-paulista/
panorama, Acesso em: 14 fev. 2020

MATOS, Carlos Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo Henrique (org.). Almanaque
Histórico de Patrocínio Paulista: 1885-1985. Patrocínio Paulista: Edição da
Prefeitura Municipal, 1986. 304 pp.

MATOS, Carlos Alberto Bastos. Dura Lex. In: MATOS, Carlos Alberto Bastos de;
COSTA, Alfredo Henrique (org.). Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista: 1885-
1985. Patrocínio Paulista: Edição da Prefeitura Municipal, 1986., pp. 186-188.

MATOS, Gabriel da Silveira; MATOS, Rafael da Silveira, MATOS, Miguel da Silveira.


Dados atuais. In: MATOS, Carlos Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo Henrique (org.).
Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista: 1885-1985. Patrocínio Paulista: Edição
da Prefeitura Municipal, 1986., pp. 93-94.

de; COSTA, Alfredo Henrique (org.). Almanaque Histórico de Patrocínio Paulista:


1885-1985. Patrocínio Paulista: Edição da Prefeitura Municipal, 1986., pp. 05-06.

modelos de gestão do patrimônio: a importância da participação comunitária


para as cidades de pequeno porte e com exemplares arquitetônicos modestos”.
, v. 14, p. 8-36, 2019. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/
cpc/article/view/156189, Acesso em: 13 fev. 2020.

In: MATOS, Carlos Alberto Bastos de; COSTA, Alfredo Henrique (org.). Almanaque
Histórico de Patrocínio Paulista: 1885-1985. Patrocínio Paulista: Edição da
Prefeitura Municipal, 1986., pp. 141- 16.

como documentos portadores de memórias e histórias, educação e barbárie,


In: , São Paulo, julho
2011, p. 1-10. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/

792
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

THE TRANSFER OF THE RIGHT TO BUILD AS


AN INSTRUMENT FOR THE PROTECTION OF

CASE OF AVENIDA AFONSO PENA

LA TRANSFERENCIA DEL DERECHO DE


CONSTRUIR COMO INSTRUMENTO PARA LA
PROTECCIÓN DEL PATRIMONIO HISTÓRICO DE
BELORIZONTINO: EL CASO DE AVENIDA AFONSO
PENA
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

793
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ALMEIDA, Reginaldo Magalhães de


Doutor; Universidade FUMEC
ralmeida@fumec.br

Fernandes, Lucas Isaac


Arquiteto; Universidade FUMEC
lucasif2212@gmail.com

ALMEIDA, Julia Malard


Graduanda em Direito; UFMG
ju.malard@gmail.com

794
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A Lei denominada Estatuto da Cidade procurou, dentre outros, regulamentar instrumentos
jurídicos e urbanísticos que estimulassem a preservação do patrimônio histórico brasileiro.
Destaca-se para esse fim a Transferência do Direito de Construir. Em Belo Horizonte, as edi-
ficações históricas, dentro da região central de importantes avenidas, constituem um bem
precioso e, como tal, necessitam de mecanismos que desestimulem sua descaracterização ou
demolição devido à ação do mercado imobiliário. Este artigo pretende avaliar a eficácia da
Transferência do Direito de Construir como instrumento na proteção de imóveis tombados em
Belo Horizonte, tomando como base de estudo o significativo conjunto urbano e arquitetônico
da Avenida Afonso Pena. Conclui-se, dentre outros, a efetividade do instrumento na preservação
de edificações onde os valores imobiliários são maiores, a necessidade de seu aperfeiçoamento
e de tornar o processo menos burocrático e mais acessível.

PALAVRAS-CHAVE: Transferência do Direito de Construir. Belo Horizonte. Patrimônio histórico


urbano e arquitetônico.

A BSTRACT
The Law called the City Statute sought, among others, to regulate legal and urbanistic instru-
ments that encourage the preservation of the Brazilian historical heritage. To this end, the
Transfer of the Right to Build stands out. In Belo Horizonte, historic buildings, within the central
region of important avenues, constitute a precious asset and, as such, need mechanisms that
discourage their mischaracterization or demolition due to the action of the real estate market.
This article intends to evaluate the effectiveness of the Transfer of the Right to Build as an ins-
trument in the protection of properties listed in Belo Horizonte, based on the significant urban
and architectural complex of Avenida Afonso Pena. It concludes, among others, the effectiveness
of the instrument in preserving buildings where real estate values are higher, the need for its
improvement and making the process less bureaucratic and more accessible.

KEYWORDS: Transfer of the Right to Build. Belo Horizonte. Historic and urban architectural
heritage.

795
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
La Ley denominada Estatuto de la Ciudad buscaba, entre otros, regular los instrumentos
legales y urbanísticos que fomentan la preservación del patrimonio histórico brasileño. Para
ello, destaca la Cesión del Derecho a la Edificación. En Belo Horizonte, los edificios históricos,
dentro de la región central de importantes avenidas, son un bien preciado y, como tales, nece-
sitan mecanismos que desalienten su caracterización errónea o demolición por la acción del
mercado inmobiliario. Este artículo pretende evaluar la efectividad de la Cesión del Derecho a la
Edificación como instrumento de protección de las propiedades catalogadas en Belo Horizonte,
con base en el significativo conjunto urbanístico y arquitectónico de la Avenida Afonso Pena.
Se concluye, entre otros, la efectividad del instrumento en la preservación de edificios donde
los valores inmobiliarios son más altos, la necesidad de su mejora y hacer el proceso menos
burocrático y más accesible.

PALABRAS-CLAVE: Transferencia del derecho a construir. Belo Horizonte. Patrimonio histórico


urbano y arquitectónico.

INTRODUÇÃO

A preservação do patrimônio histórico de um município constitui uma importante


medida para garantir à sociedade a criação da identidade espacial, o reconhecimento
afetivo pelo espaço urbano e para o registro dos acontecimentos da história de um
determinado lugar. As políticas voltadas para essa preservação são de grande relevância
para as gerações presente e futura, como acervo expressivo da forma de usar e ocupar
o espaço em um determinado tempo, ampliando a compreensão do processo evolutivo
da sociedade e, consequentemente, a análise de seu desenvolvimento.
Dentre as legislações brasileiras que procuram garantir o patrimônio histórico,
destaca-se o Estatuto da Cidade, Lei 10.257/01. Dos instrumentos previstos no Estatuto
da Cidade relacionados com a preservação e conservação do patrimônio arquitetônico,
evidenciam-se a isenção do imposto territorial urbano (IPTU) e a Transferência do
Direito de Construir (TDC). Este instrumento garante ao proprietário do imóvel tombado
a possibilidade de transferir para outro imóvel o potencial construtivo não utilizado,
minimizando, assim, suas perdas financeiras, em detrimento das restrições construtivas
impostas pela preservação histórica, ambiental e paisagística.
Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, apresenta inúmeras edificações históri-
cas que remontam a época de construção da cidade e de seu desenvolvimento. Muitas

796
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

dessas edificações estão tombadas pelo patrimônio histórico municipal e fazem parte
de grandes conjuntos urbanos e arquitetônicos.
Considerando a importância da preservação como uma política pública, este artigo
objetiva verificar a efetividade da utilização da TDC na preservação do patrimônio tom-
bado em Belo Horizonte. Para tanto, pretende-se analisar imóveis individuais e coletivos
tombados na Avenida Afonso Pena que utilizaram esse instrumento. Essa avenida possui
significativos conjuntos urbanos e arquitetônicos e constitui um dos principais eixos
viários da cidade, possuindo forte referência simbólica para sua população, devido, dentre
outros, ao seu traçado urbano e características geométricas, por conter um expressivo
conjunto de edificações que datam do final do Século XIX, bem como, em razão da sua
posição central na cidade, o que a torna muito valorizada pelo mercado imobiliário para
a viabilização de grandes empreendimentos.
Como embasamento teórico para este artigo, realizou-se uma ampla pesquisa
bibliográfica e documental em publicações de livros, teses, artigos, periódicos, legislações
informações jornalísticas e entrevistas em órgãos técnicos responsáveis. Procurou-se,
além de identificar nos registros públicos os imóveis individuais e coletivos tombados
na Avenida Afonso Pena que utilizaram a TDC como instrumento urbanístico de pre-
servação, selecionar um que poderia ser utilizado como estudo de caso neste artigo.
O artigo faz parte de uma pesquisa realizada desde 2017, sobre “Os des(caminhos) da
Outorga Onerosa e da Transferência do Direito de Construir como instrumento jurídico e
urbanístico de indução do desenvolvimento urbano belorizontino”, que objetiva verificar
as possibilidades da utilização dos instrumentos frente à indução do desenvolvimento
urbano socialmente incluso em Belo Horizonte. Essa pesquisa é financiada pelo ProPic/
FUMEC, CNPQ e Fapemig. Os pesquisadores são professores e alunos dos cursos de Arqui-
tetura e Urbanismo e do Direito das Universidades UFMG e FUMEC.

O CONJUNTO URBANO E ARQUITETÔNICO DA AVENIDA AFONSO PENA

Belo Horizonte possui atualmente um rico patrimônio constituído por edificações


com estilos que percorrem o Art Nouveau, o Art Decó e o Modernismo brasileiro. Recen-
temente, o Conjunto Urbano e Arquitetônico da Lagoa da Pampulha, constituído por
obras representativas do modernismo brasileiro e mundial do arquiteto Oscar Niemeyer,
tornou-se Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco.
Por sua vez, os conjuntos urbanos e arquitetônicos de Belo Horizonte são áreas,
assim denominadas pela Lei Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural da Cidade, Lei
nº 3.802 de 1984, que devem ser protegidas pelo poder público (BELO HORIZONTE, 1984).

797
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A deliberação municipal nº 01/2005, que discorre sobre os fundamentos da política de


proteção do patrimônio histórico em Belo Horizonte determinado pelo Conselho Deli-
berativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte – CDPCM-BH (2005),
prescreve as diretrizes de proteção e o mapeamento cultural dos conjuntos urbanos a
serem protegidos. A deliberação define os conjuntos urbanos como:
[...] são áreas definidas com o objetivo de se proteger lugares repre-
sentativos da cidade, denominados espaços polarizadores, onde são
encontradas ambiências, edificações ou mesmo conjunto de edificações
que apresentam expressivo significado histórico e cultural. Os espaços
polarizadores dos conjuntos urbanos destacam-se por desempenharem
uma função estratégica e simbólica na estruturação e compreensão
urbana. Visando a proteção dessas áreas, foram estabelecidos os critérios
e diretrizes de preservação. CDPCM-BH (2005)
Esses espaços apresentam grande importância simbólica para a cidade, tanto por
seu valor histórico-urbanístico, associado ao planejamento inicial da capital, quanto
por seus espaços edificados que foram sendo construídos com o passar dos anos, incor-
porando no imaginário coletivo da população uma memória afetiva e um sentimento
de pertencimento. Segundo Choay (2001), “o domínio do patrimonial não se limita
mais aos edifícios individuais; ele agora compreende os aglomerados de edificações e
a malha urbana (...)”.
A definição do perímetro do conjunto urbano, que pode envolver inúmeras edifi-
cações, é estabelecida pela concordância dos espaços de valor urbanístico, delimitados
pelas edificações que apresentam valor histórico e cultural. As edificações demarcadas
em um conjunto tombado passam a exercer um notável valor histórico-urbanístico
para a cidade (CHOAY, 2001).
A proteção de cada conjunto urbano é referendada pelo Conselho Deliberativo do
Patrimônio Cultural de Belo Horizonte (CDPCM-BH), que através de estudos técnicos,
embasamentos arquitetônicos, antropológicos e históricos estabelece, conjuntamente
com a Diretoria de Patrimônio (DPAM), o que deve e como deve ser preservado. Atualmente,
a capital mineira conta com 23 conjuntos urbanos protegidos, segundo a Diretoria de
Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte (DIPC-BH,
2018). Quatro desses conjuntos localizam-se na Avenida Afonso Pena.
Para garantir a proteção e a preservação da ambiência dentro dos conjuntos urbanos,
são estabelecidas normas e diretrizes que disciplinam os atos de construção, acréscimo,
decréscimo e posturas a serem adotadas dentro do perímetro protegido. As diretrizes
são específicas para cada grau de proteção estabelecido pelo CDPC-BH (2005), podendo

798
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ser de interesse cultural ou de valor especial, caracterizadas pelo Registro Documental


que representam as edificações que isoladamente não apresentam valor histórico que
justifique um tombamento; no entanto, se analisadas juntamente com seu entorno,
representam uma fase de ocupação da cidade.
As edificações com grau de proteção tombado, o que ocorre no município tanto
dentro dos conjuntos ou até mesmo fora (tombamentos isolados), possuem muitas
vezes diretrizes mais restritivas; no entanto, esses bens possuem políticas específicas de
incentivo à sua proteção, com ações como isenção de IPTU e geração TDC para bens que
apresentem bom estado de conservação e programas como “Adote um Bem” e o Fundo
de Proteção de Patrimônio Cultural, que visam promover melhorias em imóveis que
estão em mau estado de conservação (CDPCM-BH, 2005).
Um dos grandes acervos históricos do patrimônio belorizontino é formado pelos
Conjuntos Arquitetônicos da Avenida Afonso Pena, que retratam, com fidelidade, muito
da forma do processo de ocupação e desenvolvimento da cidade com o passar dos anos,
desde o princípio de sua formação no final do Século XIX. Segundo o projeto original da
capital, a avenida seria tão importante para o desenvolvimento da capital, que foi proje-
tada com um dimensionamento superior às outras avenidas, sendo a mais extensa, com
quase 3,5 Km, e larga via da cidade, com 50 metros de largura, já que as demais avenidas
teriam apenas 35m e as ruas 20m (CDPCM-BH, 2005 e FREITAS, 2006) (Figura 01).

Figura 1: Vista atual da Avenida Afonso Pena. Fonte: CDPCM-BH, 2018.

799
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Junto com a própria cidade de Belo Horizonte, a Avenida Afonso Pena promoveu
o papel indutor de desenvolvimento já previsto em sua implementação. Já em 1910,
apresentava grande diversidade de estabelecimentos comerciais e prestação de serviços
como lojas, bares, cafés e cinemas, e, em seus entornos, edificações de um pavimento
eram destinadas a moradias (ARREGUY; RIBEIRO, 2008). Tais estabelecimentos passaram
a ser pontos de referência e de encontro da população da nova capital, intensificando-se,
assim, a movimentação na avenida (CAMPOS, 2008 e ALMEIDA, 2017).
A partir de 1930, edificações construídas no surgimento da cidade foram demolidas
dando lugar a diversos prédios modernos, o que se sucederia também nas próximas
décadas. Já na década de 40, no final da Avenida Afonso Pena, nas proximidades da
Praça Rio Branco, o Terminal Rodoviário Governador Israel Pinheiro passa a funcionar
nos fundos do terreno da Feira de Amostras, elevando a região para uma importância
metropolitana (FREITAS, 2006).
Nas décadas de 1940 e 1950, com o estímulo do governo brasileiro, incentivou-se a
prática da industrialização e a implantação de projetos de grande porte, permitindo a
verticalização e a construção de edifícios e arranha-céus que remetiam às metrópoles
industriais (ALMEIDA; NIZZA; MONTEIRO JUNIOR, 2017).
Palco de diversas transformações espaciais com o passar de mais de 120 anos, a
Avenida Afonso Pena ainda apresenta diversos edifícios históricos e conjuntos urbanos.
Para manter a identidade e a integridade dos imóveis históricos sob a compilação das
diretrizes de proteção dos conjuntos urbanos, estabelecidos pela deliberação Nº 01/2005,
determina-se que os volumes das edificações históricas existentes devem ser preservados
e qualquer alteração de elementos construtivos e decorativos deverá ser submetido e
aprovado pelo CDPCM-BH.
Segundo dados do CDPCM-BH (2018), atualmente, dos aproximados 450 imóveis
localizados em toda extensão da Avenida Afonso Pena, cerca de 70 estão tombados pelo
patrimônio municipal e mais de 10 estão em processo de tombamento compulsório.
Dos tombados, existem edificações com estilos diversos, passando do Art Decó ao moder-
nismo da década de 1950. Devido à forte valorização dos terrenos da avenida, parte des-
ses imóveis vem passando por um processo de descaracterização, uma vez que o valor
financeiro torna-se prioridade em relação à importância da preservação, fazendo com
que os proprietários modifiquem os imóveis visando maior valorização no mercado.

800
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A TDC COMO MECANISMO DE PROTEÇÃO E


PRESERVAÇÃO DE CONJUNTOS URBANOS

A lei federal denominada Estatuto da Cidade busca, através da sua implementa-


ção, adequar os instrumentos de política urbana e tributária visando, dentre outros, ao
objetivo da proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído,
do patrimônio cultural, histórico, artístico e paisagístico. Para tanto, a lei regulamenta e
estimula no seu inciso V do art. 4º, o uso de instrumentos, destacando-se a TDC (BRASIL,
2004).
De acordo com o Estatuto da Cidade, já na regulamentação da TDC, a lei munici-
pal consubstanciada pelo plano diretor poderá autorizar o proprietário de um imóvel
urbano, privado ou público, a exercer em outro local o direito de construir previsto no
plano diretor, quando o referido imóvel for considerado necessário para:
[...] fins de implantação de equipamentos urbanos e comunitários, preser-
vação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental,
paisagístico, social ou cultural e servir a programas de regularização
fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda
e habitação de interesse social (BRASIL, 2004)
Em Belo Horizonte, a TDC foi instituída através da Lei nº 5 de 1994, denominada
lei Orgânica Municipal (LOMBH), ou seja, sua instituição deu-se em momento anterior
à aprovação do Estatuto da Cidade. Entretanto, assim como na lei federal, a legislação
municipal já prescrevia que a utilização da TDC estava condicionada às diretrizes do Plano
Diretor, que estabeleceriam as áreas possíveis, onde o proprietário do imóvel tombado,
de interesse de preservação ambiental ou cultural, estaria apto a usar tal instrumento
jurídico. O Plano Diretor constitui-se em uma lei municipal que procura organizar o
desenvolvimento urbano da cidade, contendo objetivos, diretrizes e instrumentos jurí-
dicos urbanísticos para tal fim (BELO HORIZONTE, 1994).
Ainda de acordo com a LOMBH, o uso da TDC foi vinculado ao parâmetro do coe-
ficiente de aproveitamento do imóvel, determinado pela lei de uso e ocupação do solo,
podendo ser vendida ou transferida a porcentagem não utilizada pela edificação, con-
dicionando o saldo transferível de até cinquenta por cento do referido índice de apro-
veitamento. Já os imóveis receptores do instrumento poderiam aumentar o coeficiente
de aproveitamento local, permitindo-se, dessa forma, edificar-se além do permitido pelo
zoneamento (BELO HORIZONTE, 1994).
Anteriormente ao Estatuto da Cidade, a Lei 6706 de 1994 regulamentou a utilização
da TDC no município de Belo Horizonte para imóveis sujeitos à prevenção e preservação

801
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

histórica, cultural e ambiental, além de imóveis tombados que tiveram restrições do


uso de seu potencial construtivo. Em seu Artigo 1, definiu que a área a ser transferida
seria a “área resultante da aplicação do índice de aproveitamento para o imóvel a que se
refere o artigo, deduzida a área referente à parcela já utilizada do mesmo índice” (BELO
HORIZONTE, 1994). Entretanto, nenhum imóvel chegou a usar a TDC, devido à falta de
uma maior regulamentação dessa lei.
A regulamentação da TDC na cidade ocorreu com a Lei nº 9959 de 2010. Ela insti-
tuiu, em seu Artigo 14, a aplicação da TDC, estabelecendo as Unidades de Transferência
do Direito de Construir (UTDC), que poderiam ser transferidas do imóvel tombado. O
cálculo final das UTDC, de acordo com a lei, é determinado pelo saldo da área líquida
transferível, calculada com base no valor do CA básico, multiplicado pelo valor venal
correspondente do metro quadrado do terreno do imóvel gerador, dividido por uma
parcela fixa de mil reais (BELO HORIZONTE, 1996). O valor resultante seria o potencial
construtivo que poderia ser transferido por imóvel, ou seja, a UTDC. A lei estabeleceu
também um limite máximo de recepção da TDC de vinte por cento.
A partir da implementação da Lei nº 9959/2010, segundo o CDPCM-BH (2018), a TDC
passou a ser requerida pelos proprietários e a ser utilizada em Belo Horizonte em imó-
veis tombados. Atualmente, embora esteja regulamentada em Belo Horizonte, a TDC é
utilizada de forma restritiva, para apenas alguns dos imóveis tombados pelo patrimônio
histórico e cultural. Diversos proprietários, preocupados com a desvalorização financeira
e com restrições de uso e ocupação do bem tombado, preferem não utilizar a TDC, per-
manecendo os imóveis em processo de abandono, na esperança de poderem diminuir
o ônus do tombamento, descaracterizando-o ou mesmo demolindo-o (O TEMPO, 2018).
Nesse sentido, o setor imobiliário de Belo Horizonte, por meio de seus represen-
tantes, tem instigado maiores contrapartidas para os donos de imóveis tombados, visto
que os valores arrecadados pelo proprietário devido ao uso da TDC, segundo eles, não
seriam suficientes para a manutenção dos imóveis históricos tombados. Tão pouco,
ainda segundo o setor imobiliário, retribui-se o proprietário do imóvel pelo tombamento
com um valor justo ao preço de mercado do bem, pagando-se muitas vezes uma quan-
tia irrisória se comparada ao ganho que o proprietário teria, caso sua edificação fosse
demolida e construído ali um novo edifício (REVISTA ENCONTRO, 2018).

802
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A UTILIZAÇÃO DA TDC NO CONJUNTO ARQUITETÔNICO DA AVENIDA


AFONSO PENA

A TDC, prevista no Pano Diretor Municipal e nas leis de uso e ocupação do Solo e
Lei Orgânica do município, é bastante útil para a preservação dos bens tombados da
Avenida Afonso Pena. No entanto, seu uso se faz restrito aos imóveis que apresentam
bom estado de conservação, uma vez que os imóveis desgastados pelo tempo requerem
de seus proprietários reforma e regularização prévia, para só depois, serem passíveis de
uso da TDC, mediante solicitação aos órgãos responsáveis.
O parecer deliberativo para o uso da TDC, assim como todo o processo de vistoria
do bem tombado, podem demorar de 3 até 5 anos e, somente ao final desse processo,
está o proprietário apto a utilizar o instrumento e a negociar o potencial construtivo
não edificado (CDPCM-BH, 2018).
Tal processo administrativo é lento e bastante burocrático, o que induz a um gasto
elevado inicial por parte dos proprietários, que devem, primeiramente, adequar o imóvel
às características do bom estado de conservação. Assim, aqueles que não possuem tal
recurso financeiro para requalificação de suas edificações, são obrigados a buscarem
formas de financiamento prévio para viabilizar as obras de restauro. Outras vezes, por
desconhecerem o instrumento jurídico, acabam mantendo as edificações em caracte-
rísticas depredatórias.
Muitas empresas de construção civil belorizontina auxiliam os proprietários dos
imóveis tombados na obtenção do benefício da TDC, financiando previamente suas
reformas e assessorando tecnicamente na elaboração da documentação a ser apresentada
ao órgão legal. Posteriormente, quando o imóvel estiver apto a comercializar a TDC, tais
empresas serão reembolsadas com a transferência de até cinquenta por cento do índice
do coeficiente de aproveitamento do local, para outro imóvel a ser por ela construído,
capitalizando, dessa forma, os potenciais construtivos oriundos dos imóveis históricos.
O valor venal no mercado imobiliário do metro quadrado dos imóveis próximos à
Avenida Afonso é elevado, já que estes estão situados em área nobre de Belo Horizonte,
com fácil integração com a malha urbana e onde se concentram as principais atividades
comerciais e culturais da cidade. Em razão disso, tais imóveis geram elevadas quantias
de UTDC para a proteção e recuperação do meio ambiente construído e dos conjuntos
tombados, servindo, assim, de grande estímulo à preservação do patrimônio cultural,
histórico, artístico e paisagístico da própria avenida. A relação de preço das UTDC é
determinada exclusivamente pelo preço venal do mercado imobiliário, sem interação
dos órgãos municipais.

803
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Segundo dados do DIPCBH (2016), apesar de possuir um percentual de 10% de


edificações tombadas na Avenida Afonso Pena de um total de 450, um percentual de
65% das edificações tombadas já utilizou a TDC. Atualmente, outros 10 imóveis estão
em processo de requerimento do uso da TDC. Verifica-se, então, que, mesmo com todas
as dificuldades e demora para aprovação da TDC pelo poder público, os imóveis, depois
de tombados, foram restaurados e buscaram usufruir do benefício da TDC. Dentre eles,
por exemplo, tem-se o imóvel situado na confluência da Avenida Afonso Pena com a
Rua Santa Rita Durão (Figura 02).

Figura 2: Vista de parte do Conjunto Urbano e Arquitetônico da Avenida Afonso Pena, com
destaque para o imóvel que utilizou a TDC. Fonte:Os Autores, 2019.

A edificação central da Figura 02, que compõe o Conjunto Urbano da Avenida


Afonso Pena, representa o ecletismo característico das primeiras décadas de ocupação
da capital, com forte influência de construções tradicionais do norte da Itália, devido
ao fluxo imigratório de italianos para a construção da cidade e que acabaram por fixar
residência no local. Ela passou por diversas reformas; porém, essas reformas não foram
suficientes para descaracterizar as fachadas do imóvel, que permaneceram praticamente
como no projeto original. (DIPC, 2016, 2017)
Essa edificação é implantada afastada do alinhamento da Avenida Afonso Pena,
desenvolve-se em três pavimentos sobre porão alto e apresenta partido retangular, em
bloco único. A estrutura é formada por alvenaria de tijolos maciços, o piso em tabuado

804
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

assentado sobre barroteamento e o telhado em engradamento de madeira sobre o qual


foi instalada a cobertura em telhas francesas, dispostas em diversas águas. O imóvel em
questão encontrava-se em bom estado de conservação em 2015, quando requereu a TDC.
Atualmente, funciona no imóvel uma clínica médica.
Lado outro, contudo, em outras regiões da cidade, onde o preço venal do imóvel não
é tão elevado quanto o da Avenida Afonso Pena, a utilização da TDC para a recuperação
dos imóveis tombados, sejam eles individuais ou conjuntos urbanos, não se torna tão
eficaz para a preservação do patrimônio histórico. Nesses casos, os proprietários são mal
restituídos financeiramente com a geração das UTDC, inviabilizando, assim, os gastos
com o processo de restauração e utilização da TDC.
Tais imóveis, muitos deles localizados em outros conjuntos urbanos da cidade,
tão importantes para a contextualização do cenário belorizontino e para o seu entendi-
mento socioespacial, acabam não tendo estímulo financeiro para preservação, sofrendo,
consequentemente, desgastes e depredações com o passar dos anos. Alguns proprietá-
rios, inclusive, optaram pela demolição do bem para viabilizar a construção de novas
edificações, em vez de despenderem elevados gastos financeiros com a adequação dos
imóveis às diretrizes de preservação e tombamento.
Outro aspecto importante a ser analisado em relação aos imóveis históricos tom-
bados e a possível utilização da TDC na Avenida Afonso Pena é a adequabilidade da
edificação a ser preservada às normas e diretrizes contemporâneas, principalmente a
NBR 9050, que preconiza uma acessibilidade universal a toda edificação, bem como o uso
intenso dos automóveis na sociedade atual, que foram responsáveis por modificarem
significativamente a tipologia das edificações históricas, assim como seu uso, ocupação
e necessidade.
Tais modificações se fazem necessárias para atender às demandas da sociedade atual,
e suas interferências nas edificações históricas, muitas vezes, conflitam com a política
de preservação e recuperação dos imóveis históricos tombados, inviabilizando, assim,
o uso da TDC, uma vez que tais alterações comprometem as características originais das
edificações, competindo ao conselho deliberativo de patrimônio cultural uma análise
subjetiva. No caso do imóvel, a norma exige acessibilidade para cadeirante a todos os
pavimentos. Assim, foi necessário instalar na edificação da Figura 2, um elevador de
pequeno porte, mas que demandou diversos estudos para que sua implantação impac-
tasse o mínimo possível no interior da casa. O patrimônio municipal vetou qualquer
possibilidade de implantação rente à fachada.
A falta de flexibilidade entre as legislações atuais, dentre elas a NBR 9050, que
promove a acessibilidade universal, o Caderno de Edificações Municipal, que em con-

805
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

formidade com a mesma lei preconiza a acessibilidade universal nas edificações do


município, assim como as exigências de adequabilidade do Corpo de Bombeiros tanto
para acessibilidade, quanto para as normas de incêndio e evasão, é, em muitos casos,
conflituosa com as políticas de preservação do patrimônio e suas práticas de restaura-
ção, posto que impedem a alteração e a interferência nos elementos arquitetônicos e
culturais do bem tombado, seja de forma pontual ou volumétrica. Lado outro, enquanto
algumas legislações recomendam a modificação das escadas e a implantação de rampas
acessíveis nas edificações, o poder público municipal proíbe tal modificação, o que leva
o processo de adequação a um período longo e burocrático e acaba acarretando uma
demora maior do processo de obtenção da TDC.
Em janeiro de 2020, entrou em vigor em Belo Horizonte o novo Plano Diretor, Lei
11.181/19. Espera-se que as repercussões referentes à preservação que estão ocorrendo
em regiões como a do Conjunto Urbano da Avenida Afonso Pena possam ser estendidas
para outros espaços da cidade[1].

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A preservação do patrimônio histórico, artístico, arquitetônico e cultural de um


determinado local é uma importante ação pública para o registro e a perpetuação dos
acontecimentos da história de uma cidade. Entretanto, pode recair aos proprietários
dos imóveis o ônus da inflexibilidade de usos do seu bem, imposto pelo tombamento.
O instrumento urbanístico da TDC pode proporcionar benefícios para o proprietário
do imóvel tombado, para o imóvel receptor do potencial construtivo e para o município,
que, além da possibilidade de ter seus edifícios históricos preservados, poderá auferir
recursos para possibilitar a implantação, por exemplo, de equipamentos urbanos e
comunitários.
Em Belo Horizonte, as normas e diretrizes estabelecidas para a preservação do patri-
mônio histórico da Avenida Afonso Pena são disciplinadas pela Diretoria de Patrimônio
Cultural, que criteriosamente estabelece a forma de restaurar, bem como as maneiras de
intervir em cada edificação, tentando sempre manter a integridade da edificação original.
A Avenida Afonso Pena, importante via da cidade de Belo Horizonte, desde a sua
concepção no final do Século XIX até os dias atuais, além de sua concentração comercial

[1] Até a data de elaboração deste artigo, os processos públicos de aquisição e implemen-
tação da TDC foram todos baseados na Lei n° 9959/10. Os possíveis efeitos da Lei n° 11.181/19
estão sendo analisados na continuidade da pesquisa.

806
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e institucional, tem grande importância por ser palco de diversas atividades culturais
da cidade. Possui um rico acervo arquitetônico, constituído por edificações ecléticas,
representativas das diversas fases de construção da capital mineira. Apresenta, portanto,
em seu percurso, ambiências e edificações de relevante significado histórico e cultural,
que desempenharam uma função estratégica e simbólica na estruturação urbana da
cidade, devendo, por isso, ser protegidas, para que as gerações futuras possam também
usufruir desse cenário.
Apesar de todo um escopo legal, referendado pelo Estatuto da Cidade e pelas legis-
lações municipais, as políticas de preservação dos conjuntos urbanos e do patrimônio
arquitetônico tombado em Belo Horizonte têm sido eficazes apenas em algumas regiões
de Belo Horizonte, principalmente, no caso dos Conjuntos Urbanos da Avenida Afonso
Pena, onde o coeficiente de ocupação é alto. Em outras regiões, contudo, onde o potencial
construtivo é pequeno, o uso da TDC tem sido menor.
Em relação aos imóveis de características de tombamento específico da Avenida
Afonso Pena, com relevância e significado arquitetônico para a cidade, o uso da TDC
contribui para a manutenção e proteção do imóvel. O proprietário, com auxílio finan-
ceiro proveniente do uso de tal instrumento jurídico, consegue manter as características
originais da edificação, reintegrando o imóvel à paisagem urbana da avenida. Dessa
vez, sob os cuidados adequados de preservação, ressaltando-se a valorização dos seus
elementos arquitetônicos característicos para a compreensão da paisagem e ocupação
da cidade, bem como da trajetória histórica construtiva do imóvel.
A prática da TDC se faz bastante útil nos Conjuntos Urbanos da Avenida Afonso Pena
como estímulo para a preservação dos bens tombados da avenida, mesmo que aplicados
apenas àqueles em bom estado de conservação. O processo para utilização do instru-
mento jurídico e sua restituição financeira por parte do proprietário é lento e bastante
oneroso, acarretando ao proprietário do imóvel tombado elevados gastos iniciais para
reformas e adequações das edificações, a fim de tentar conseguir o benefício da TDC.
A prefeitura, como órgão fiscalizador, deveria criar um banco de reservas munici-
pais para o armazenamento da TDC, concedido pelos imóveis tombados, de forma que os
proprietários dos imóveis receptores pudessem negociar diretamente com a prefeitura
tal coeficiente de aproveitamento apto para a criação do solo criado. Os lucros, que por
hora são intermediados pelas empresas imobiliárias, seriam exclusivamente municipais
e poderiam ser destinados às práticas e políticas de preservação do patrimônio histórico
e cultural. O poder público municipal faria o controle de armazenamento, estocagem e
vendas da UTDC, não necessitando de serviços terceirizados.

807
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O benefício do uso do TDC poderia ser expandido também para os imóveis histó-
ricos que não estão em um bom estado de conservação. O recurso financeiro originado
com esse uso seria destinado à recuperação do bem tombado. Atualmente somente os
imóveis em bom estado de conservação ou recuperados podem pleitear o TDC. Muitas
vezes faltam recursos para reformas iniciais.
Por fim, por ser uma avenida influente no cenário belorizontino, com elevados
valores dos seus imóveis no mercado imobiliário, a utilização da TDC vem sendo favorável
à preservação dos imóveis tombados. Os proprietários conseguem ressarcir os gastos
com a restauração devido à utilização do TDC, o que não acontece em outras regiões da
cidade, menos valorizadas, que possuem conjuntos urbanos tombados, onde a restituição
financeira não é tão atraente.

808
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABNT NBR 9050. Associação Brasileira de Normas Técnicas. Norma Brasileira.

a partir de 11 de outubro de 2015. 2015.

ALMEIDA, Reginaldo Magalhães; NIZZA, Juliana Lamego Balbino; MONTEIRO


JUNIOR, Jorge E. Os (des)caminhos do poder público na gestão da cidade: o caso
.
ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 2017, São Paulo. Anais. São Paulo: ANPUR, 2017.

História de bairros de Belo Horizonte: Regional


Centro-Sul. APCBH; ACAP-BH. Belo Horizonte. 2008.

Política de Proteção ao
Patrimônio de Belo Horizonte. Belo Horizonte.1984.

Lei orgânica do município


de Belo Horizonte. Belo Horizonte.1994.

Regulamenta A
Transferência Do Direito De Construir No Município De Belo Horizonte e dá Outras
Providências. Belo Horizonte. 1994.

. Belo Horizonte. 1996.

. 2010.

BRASIL. Lei 10.257. Estatuto da Cidade e Legislação Correlata. Brasília: Senado

CAMPOS, L. C. M. (2008). Instantes como este serão seus para sempre: Práticas
. Dissertação de
(Mestrado), FAFICH/ UFMG, Belo Horizonte.

CDPCM-BH. Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de


Fundamentos da política de
proteção do patrimônio histórico em Belo Horizonte. Belo Horizonte. 2005.

CDPCM-BH. Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Belo


Horizonte. Dados gerais de Belo Horizonte. 2018.

809
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A alegoria do patrimônio
São Paulo: Estação Liberdade: Ed. UNESP, 2001.

.
2ª edição. Belo Horizonte. 2017.

DIPCBH. Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Relatório anual de


tombamento de imóveis em Belo Horizonte. Disponível em: ttps://prefeitura. pbh.

_27-11-2016_e_sujeita_a_atualizacao.pdf. Acesso: 13 de abril de 2018. 2016.

DIPC. Diretoria de Patrimônio Cultural de Belo Horizonte. Laudos Técnicos de


Tombamento. Belo Horizonte. 2016 e 2017.

DIPC-BH - Diretoria de Patrimônio Cultural da Fundação Municipal de Cultura de


Belo Horizonte. . Belo Horizonte. 2018.

FREITAS, D. M. Aproximações entre arquitetura e urbanismo nas intervenções


realizadas no hipercentro de Belo Horizonte. Dissertação (Mestrado) em
Arquitetura da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais.
Departamento de Urbanismo/ UFMG. Belo Horizonte. 2006.

IEPHA/MG. Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais.


Dossiê para tombamento do Edifício do antigo Banco Mineiro da Produção. Belo
Horizonte. 2016.

O TEMPO, cidades. Casarões são tombados em BH, mas não se livram do


abandono. Jornal O Tempo. Disponível em: http://www.otempo.com.br/cidades/

abandono-1.1346069. Acesso em: 16 de abril de 2018.

de cabeça aos proprietários. Revista Encontro. Disponível em: https://www.


revistaencontro.com.br/canal/revista/2018/02/imoveis-tombados-em-bh-estao-
dando-dor-de-cabeca-aos-proprietarios.html. Acesso em: 14 de dezembro de
2018.

810
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A TRANSFORMAÇÃO
DA PAISAGEM URBANA
TRADICIONAL
NO CONTEXTO
METROPOLITANO
BRASILEIRO: O CASO DE
UM ANTIGO CAMINHO DE
EXPANSÃO URBANA DE
FORTALEZA
THE TRANSFORMATION OF TRADITIONAL URBAN
LANDSCAPE IN A BRAZILIAN METROPOLITAN
CONTEXT: THE CASE OF AN OLD PATH OF URBAN
EXPANSION IN FORTALEZA

TRADICIONAL EN EL CONTEXTO METROPOLITANO


BRASILEÑO: EL CASO DE UN ANTIGUO CAMINO DE
EXPANSIÓN URBANA EN FORTALEZA
PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

811
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ALMEIDA, Isabelle de Lima


Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de Fortaleza (Unifor)
isabell.almeid@gmail.com

VASCONCELOS, Ana Cecilia Serpa Braga


Doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; Pro-
fessora da Universidade de Fortaleza (Unifor)
anaceciliavas@unifor.br

812
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O presente trabalho busca explorar a questão da permanência de núcleos urbanos tradicionais
frente o processo de transformação da paisagem urbana num contexto metropolitano brasileiro.
Para isso, utiliza-se como estudo de caso a Avenida Visconde do Rio Branco, localizada na área
central de Fortaleza. Originária de uma antiga estrada de ligação entre a capital cearense e o
interior do estado, a avenida caracteriza-se como um eixo histórico de expansão urbana, contando,
ainda hoje, com imóveis antigos. Apesar da resistência de sua arquitetura histórica, a Visconde
do Rio Branco não motivou políticas públicas de proteção de seu patrimônio cultural edificado.
Atualmente, a avenida encontra-se inserida em uma porção do território urbano definida pelo
Plano Diretor Participativo de Fortaleza como uma Zona de Ocupação Preferencial, o que atraiu
uma maior atuação do mercado imobiliário, bem como o avanço da demolição e do abandono
de imóveis antigos. Em vista disso, esta pesquisa propõe uma reflexão acerca do atual quadro
da política urbana de conservação do patrimônio cultural ao apontar um cenário de iminente
desaparecimento de exemplares arquitetônicos de interesse cultural na paisagem fortalezense.
Como resultado, estabelece-se um cenário local em que tradições urbanas não possuem lugar.

PALAVRAS-CHAVE: patrimônio cultural urbano. paisagem urbana. arquitetura residencial


histórica. política de conservação do patrimônio cultural.

A BSTRACT
The present work seeks to explore the question of the permanence of traditional urban nucleus
in the face of the transformation process of urban landscape in the great Brazilian metropolises.
For this purpose, the Visconde do Rio Branco Avenue, located in the central area of Fortaleza,
is used as a case study. Originating from an old road of connection between the capital of the
Ceará state and its interior, the avenue is characterized as a historic axis of urban expansion,
which still counts to this date with old buildings along its extension. Despite the resistance of its
historical architecture, the Avenue’s urban ensemble did not motivate public policies to protect
its built cultural heritage. Currently, the avenue is inserted in a portion of the urban territory
defined by the Participative Master Plan of Fortaleza as a Preferred Occupation Zone, which
has attracted a greater presence of the real estate market, as well as the onrush of demolition
and abandonment of old properties. In view of this, the present research proposes a reflection
on the current urban policy framework for the conservation of cultural heritage by pointing
out a scenario of imminent disappearance of architectural examples of cultural interest in
Fortaleza’s landscape. As a result, a local scenario in which urban traditions can take no place
is on the verge of being established.

813
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

KEYWORDS: urban cultural heritage. urban landscape. historic residential architecture. cultural
heritage conservation policy.

RESUMEN
El presente trabajo busca explorar la cuestión de la permanencia de los núcleos urbanos tra-
dicionales frente al proceso de transformación del paisaje urbano en las grandes metrópolis
brasileñas. Para este fin, se utiliza como caso de estudio la Avenida Visconde do Rio Branco,
ubicada en el área central de Fortaleza. Originada desde una antigua carretera de conexión
entre la capital del estado de Ceará y su interior, la avenida se caracteriza como un eje his-
tórico de expansión urbana, aun contando con edificios antiguos. A pesar de la resistencia
de su arquitectura histórica, el complejo urbano de la avenida no motivó políticas públicas
para proteger su patrimonio cultural construido. Actualmente, la avenida se inserta en una
parte del territorio urbano definido por el Plan Maestro Participativo de Fortaleza como una
Zona de Ocupación Preferida, lo que atrajo una mayor presencia del mercado inmobiliario, así
como el avance de la demolición y del abandono de propiedades antiguas. En vista de esto, la
presente investigación propone una reflexión sobre el marco actual de política urbana para
la conservación del patrimonio cultural al señalar un contexto de desaparición inminente de
ejemplos arquitectónicos de interés cultural en el paisaje urbano de Fortaleza. Como resultado,
se establece un escenario local en el cual las tradiciones urbanas no tienen lugar.

PALABRAS-CLAVE: patrimonio cultural urbano. paisaje urbano. arquitectura residencial his-


tórica. política de conservación del patrimonio cultural.

INTRODUÇÃO

Considerando o ambiente construído como a materialização espacial de processos


históricos, sociais, culturais, políticos e econômicos (LAMAS, 2004), entende-se que as
cidades contemporâneas apresentam resquícios “de materiais, de estilos e de escalas” de
caráter tradicional, referentes aos trechos de ocupação mais antiga da cidade (CULLEN,
2017, p. 13). Tais porções urbanas perpetuam-se como registros materiais do passado,
sendo, portanto, suportes da memória e da história de um lugar (CHOAY, 2001). No atual
cenário, no entanto, as cidades sofrem com diversas pressões de transformação e de pro-
dução do espaço urbano, impactando, assim, a paisagem e a malha dos núcleos urbanos
tradicionais. Dessa forma, as estruturas urbanas antigas tornam-se ameaçadas quanto
à sua permanência.

814
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

É sob esta perspectiva que o presente artigo tem como objeto de estudo o núcleo
urbano tradicional da Avenida Visconde do Rio Branco, localizado no setor centro-su-
deste da cidade de Fortaleza (Figura 1). Originária de uma histórica estrada de ligação
entre a capital cearense e o sertão, a avenida caracteriza-se como um eixo histórico de
expansão urbana, contando, ainda hoje, com exemplares arquitetônicos de interesse cul-
tural remanescentes da virado dos séculos XIX para o XX. Durante esse período histórico,
consolidava-se ao longo da Visconde do Rio Branco uma ocupação urbana linear, cujos
exemplares de arquitetura tanto erudita quanto popular espalhavam-se de um lado e do
outro dos trilhos da antiga linha de bonde do Calçamento de Messejana, denominação
pela qual a área era então conhecida. Constituía-se, assim, um contínuo casario de feições
ecléticas, que veio a tornar-se um bairro no imaginário da população.

Figura 1: Localização da Avenida Visconde do Rio Branco na área central de Fortaleza. Fonte:
Mapa elaborado pelas autoras (2019).

815
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Atualmente, o acervo construído da Avenida Visconde do Rio Branco encontra-se


inserido em meio a um processo dicotômico de transformação da paisagem urbana:
por um lado, destaca-se a ameaça representada pelo avanço da degradação urbana, com
demolição e abandono de imóveis antigos; por outro, acentua-se uma forte renovação
urbana, visto que a Visconde do Rio Branco encontra-se inserida uma porção do território
urbano definida pelo Plano Diretor Participativo de Fortaleza como uma Zona de Ocu-
pação Preferencial, o que atraiu uma maior atuação do mercado imobiliário (Figura 2).
Nesse contexto de transformação do ambiente construído, os exemplares de arquitetura
histórica, severamente ameaçados de desaparecimento, evidenciam-se como elementos
de grande importância da memória urbana, assim como o fragmento mais frágil frente
às dinâmicas de produção e transformação do solo urbano. Salienta-se, portanto, a emer-
gência da proteção do núcleo urbano tradicional da Avenida Visconde do Rio Branco.

Figura 2: Contraste entre casas antigas e torres de apartamentos na Avenida Visconde do Rio

Este artigo encontra-se estruturado em três grandes partes. A primeira delas apre-
senta o estudo acerca da formação histórica do núcleo urbano do Calçamento de Messe-
jana, que atraiu, ainda, a ocupação urbana de uma área conhecida como Piedade, histori-
camente marcada pelo contraste com o casario formado ao longo da antiga estrada que
deu origem à Avenida Visconde do Rio Branco. Logo em seguida, analisa-se a arquitetura
histórica produzida a partir do estabelecimento do Calçamento de Messejana como
um bairro, comparando-se, assim, um exemplar arquitetônico remanescente do antigo

816
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

casario da Visconde do Rio Branco com uma residência característica da Piedade. Por
fim, examina-se o processo de transformação da paisagem urbana da Avenida Visconde
do Rio Branco, investigando a produção de novos padrões arquitetônicos de ocupação
do solo em contraponto à tipologia habitacional tradicional da casa histórica.

A FORMAÇÃO DO NÚCLEO URBANO DO CALÇAMENTO DE MESSEJANA

A Vila do Forte, assentamento urbano que deu origem à atual Fortaleza, era descrita
até o século XVIII como apenas “um forte, um riacho e poucos moradores” (COSTA, 2014,
p. 44). Foi somente com a emancipação do Ceará em relação à capitania de Pernambuco,
em 1799, que Fortaleza tornou-se a capital da província, adquirindo, assim, o status e
as características de um centro urbano (COSTA, 2014). No entanto, “a vila não passava
de umas poucas ruas arenosas, formadas por um casario de baixa qualidade material,
ruas nascidas ao pé do Forte e cujo desenvolvimento acompanhava as curvas do Riacho
Pajeú”, com casas térreas justapostas umas às outras (CASTRO, 1994, p. 44).
No início do século XIX, Fortaleza estabelecia-se como um espaço geográfico pri-
vilegiado na jovem província do Ceará, tornando-se, dessa forma, um ponto de conver-
gência de diversas estradas que conectavam a capital ao sertão. A partir de Fortaleza, e
mais especificamente do Forte, saíam as estradas, “radiais nascidas no centro da cidade,
todas velhos caminhos de comunicação com o interior da Província” (CASTRO, 1994, p.
58). A “Planta da Villa de Fortaleza e seu porto” (Figura 3) ilustra algumas dessas vias de
saída da cidade.

Figura 3: Planta da Villa de Fortaleza e seu porto em 1818. Fonte: Biblioteca Nacional (2020)[1].

[1] CARTA da Provincia de Ceará. [18--]. 1 mapa ms, col., aquarelado, 27,7 x 27,7cm em f. 34 x

jpg. Acesso em: 11 fev. 2020.

817
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Havia, nesse contexto, a aspiração de ordenar a malha viária da capital, o que levou
à elaboração de sucessivos planos urbanos. A solução urbana adotada foi a imposição de
um traçado ortogonal, indo de encontro com o sentido natural do crescimento da vila,
“que tendia a acompanhar as tortuosidades do Pajeú. Daí em diante, as novas edificações
passaram a ser guiadas pelo traçado urbano de ruas paralelas” (COSTA, 2014, p. 93-94).
Posteriormente, o perímetro da cidade foi demarcado por um sistema de boulevards,
enquanto algumas das antigas estradas que partiam do Forte foram incorporadas ao
traçado urbano, conformando um sistema viário radial-perimetral. Os eixos radiais esta-
beleceram-se, assim, como caminhos de expansão urbana de crescimento linear. Nesse
cenário, persistia o “sistema de divisão fundiária caracterizado por lotes profundos e
estreitos, de velha herança colonial portuguesa”, que levou ao predomínio da ocupação
do solo urbano por meio da tipologia da casa-corredor, formando um casario contínuo
ao longo dos eixos viários de saída da cidade (CASTRO, 1994, p. 68).
Segundo Castro (2014, p. 50), “perto do fim do século, muitas famílias abandonam o
trecho compacto da Cidade”, buscando “viver em arrabaldes tranqüilos, onde pudessem
desfrutar das vantagens da vida urbana em meio às delícias do campo”. Nesse contexto
urbano, as famílias mais abastadas concentravam-se nos caminhos de saída do Centro
e nos bairros bucólicos e afastados — porém acessíveis por linhas de bonde, como o
Jacarecanga e o Benfica —, enquanto a população mais carente dependia da autocons-
trução de suas choupanas nos arredores da área central, mais urbanizada (COSTA, 2014).
Quanto ao caminho que seguia em direção à antiga vila de Messejana, a sua forma-
ção teve origem a partir da trama de veredas que conectavam o Forte à vila de Aquiraz
durante o período colonial. Em 1835, o antigo caminho era oficialmente transformado
em uma estrada, passando a receber melhorias viárias como retificação e implantação
de calçamento de pedra. No entanto, a ocupação ao longo do eixo viário viria a inten-
sificar-se apenas a partir da segunda metade do século XIX, quando a área passou a ser
contemplada com uma linha de bonde (RIBEIRO, 1982). Consolidava-se, ali, um casario
contínuo a partir do antigo Açude do Garrote — atual Parque da Liberdade —, que
dispersava-se aos poucos até atingir a área alagável do Riacho Tauape, onde hoje tem
início a BR-116. Assim, formou-se, nesse trecho, uma ocupação urbana linear popular-
mente conhecida como Calçamento de Messejana, que ganhava moldes de bairro e
tornava-se um intenso corredor comercial e residencial. Sampaio (2009, p. 3) descreve o
então bairro, “que não tinha tantos palacetes, mas sim uma uniformidade no casario,
residências simples, geminadas, que se espalhavam de um lado e do outro dos trilhos
da linha de bonde” (Figura 4). A área mostrava-se, portanto, mais procurada pela classe

818
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

média, “que não podia ocupar os lugares mais nobres da cidade, como Jacarecanga e
Benfica” (SAMPAIO, 2009, p. 4).
A leste do Calçamento de Messejana, surgiu ainda um outro núcleo urbano, conhe-
cido como Piedade (Figura 5). De acordo com a descrição de Magalhães (2009, p. 13), “por
trás do casario, a gente abaixo da linha da pobreza também começava a povoar as exten-
sões de terra, fincando na areia frouxa os seus barracos de taipa, cobertos com palhas de
carnaúba”. Essa descrição revela um forte contraste entre os núcleos do Calçamento de
Messejana e da Piedade: por um lado, o primeiro presenciava a formação de um contí-
nuo casario em alvenaria atraído pelas melhorias viárias da pavimentação e do bonde;
por outro, a Piedade, tão próxima, enfrentava dificuldades materiais e mazelas sociais.
Ao longo de sua formação como um núcleo urbano, o Calçamento de Messejana
contou com diversos espaços dedicados à arte e à cultura, como teatros, cinemas e biblio-
tecas. Dentre estes, destacavam-se o Grêmio Dramático Familiar do dramaturgo Carlos
Torres Câmara, o Teatro da Piedade, o Cine Atapu e a biblioteca do musicólogo Abraão de
Carvalho. Para além desses lugares, existiam no bairro diversas manifestações da cultura
popular que ganhavam o espaço público, como as procissões relacionadas às celebrações
da Igreja da Piedade, que percorriam as principais ruas do bairro com cânticos. Além
das festas religiosas, as ruas do bairro do Calçamento de Messejana viram nascer o pri-
meiro bloco de maracatu do carnaval de rua de Fortaleza com a fundação do Maracatu
Az de Ouro, em 1936. Outros blocos também surgiram no bairro, como o Maracatu Rei de
Paus, formado em 1954, e o Maracatu Vozes da África, fundado em 1980. Os três blocos
continuam a existir, ainda que apenas o último deles continue no bairro. Todos os anos,
os três grupos de maracatu desfilam no carnaval de rua da Avenida Domingos Olímpio,
que ocorre nas proximidades da Avenida Visconde do Rio Branco.

819
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Núcleo urbano do Calçamento de Messejana no início do século XX. Fonte: Arquivo
Nirez (2018).

Figura 5: Núcleo urbano da Piedade no início do século XX. Fonte: Arquivo IPHAN/CE (2019).
Já por volta da metade do século XX, iniciava-se, em Fortaleza, o processo de implan-
tação de um modelo rodoviarista de cidade, que teve grande impacto sobre os núcleos

820
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

urbanos tradicionais. Em 1947, os bondes deixavam de circular pela cidade, sendo subs-
tituídos por linhas de ônibus (SAMPAIO, 2009). No ano seguinte, o antigo Boulevard do
Visconde do Rio Branco era asfaltado, levando à intensificação da circulação de automóveis
por meio de seu eixo viário, transformado em uma rodovia. Já em 1972, surgia, paralela
à Visconde do Rio Branco, a Avenida Aguanambi, que canalizou o riacho homônimo. Em
1981, inaugurava-se a BR-116, que deu lugar à antiga estrada de ligação de Fortaleza com
Aquiraz, conectando-se à já existente Avenida Aguanambi. Como resultado, o Calçamento
de Messejana perdia a sua função como um eixo de ligação com o interior do estado, fator
que inconscientemente resguardou o antigo casario de maiores impactos decorrentes
do rodoviarismo. Não obstante, até por volta dos anos 1990 (NIREZ, 2001), a abertura e o
alargamento de avenidas resultou em novas demolições de pequenos trechos do casario
da Visconde do Rio Branco. Já neste século, os exemplares arquitetônicos de interesse
cultural que resistiram às mudanças viárias dos séculos XIX e XX passaram a sofrer
com maior intensidade as ameaças de descaracterização e de demolição decorrentes
das dinâmicas de valorização do solo urbano e de atuação do mercado imobiliário na
produção de novos prédios de apartamentos verticalizados.

A ARQUITETURA RESIDENCIAL HISTÓRICA DO CALÇAMENTO DE


MESSEJANA

Cidade e edifício encontram-se intrinsecamente relacionados por meio de um


estreito vínculo existente entre morfologia urbana e tipologia arquitetônica, uma
vez que uma é resultante e, ao mesmo tempo, geradora da outra (LAMAS, 2004). Como
resultado, as casas urbanas produzidas a partir de determinadas condições históricas e
fundiárias tendem a guardar forte semelhança entre si, já que “um traço característico
da arquitetura urbana é a relação que a prende ao tipo de lote em que está implantada”
(REIS FILHO, 2015, p. 16). Nesse sentido, apresenta-se, aqui, a análise de duas casas histó-
ricas distintas, produzidas a partir de condições urbanas e sociais contrastantes, porém
próximas. Estuda-se, assim, a arquitetura resultante das circunstâncias sociais e fundiá-
rias que surgiram a partir da ocupação urbana do Calçamento de Messejana: a primeira
casa, representante do núcleo urbano formado ao longo da Avenida Visconde do Rio
Branco, expressa o ecletismo cearense na arquitetura com a incorporação de soluções e
elementos arquitetônicos inovadores; já a segunda casa, de cunho colonial e vernacular,
representa a arquitetura residencial popular produzida “por trás do casario”, ocupação
que deu origem ao núcleo urbano da Piedade (MAGALHÃES, 2009, p. 13).
A primeira casa aqui analisada (Figura 6) destaca-se como um notável exemplar
arquitetônico remanescente do antigo casario do Calçamento de Messejana. A residência

821
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

em questão é produto de um momento em que ocorriam amplas transformações na


arquitetura das residências urbanas. Nesse contexto, o ecletismo arquitetônico atuava
como “um veículo estético eficiente para a assimilação de inovações tecnológicas” (REIS
FILHO, 2015, p. 169). Seguindo essa lógica, a importação de equipamentos industrializa-
dos, como calhas e condutores, possibilitou o desenvolvimento de inovadoras soluções
de coberta, levando, assim, ao surgimento de novos modelos de implantação no lote.
Um dos primeiros esforços nesse sentido consistiu “em recuar o edifício dos limites
laterais”, inicialmente em apenas um dos lados, “conservando-o frequentemente sobre
o alinhamento da via pública” (REIS FILHO, 2015, p. 44). Este é o caso da residência aqui
analisada, que encontra-se implantada em um amplo terreno, seguindo o alinhamento
da avenida, porém apresentando recuo em uma de suas laterais, que dá espaço ao jardim.
A casa conta, ainda, com a introdução de novos elementos formais, como a platibanda
e o porão alto. A utilização deste último recurso dá origem a uma nova tipologia arqui-
tetônica, que, segundo Reis Filho (2015, p. 40), representa “uma transição entre os velhos
sobrados e as casas térreas”. Na casa da Visconde do Rio Branco, a entrada ocorre por meio
de uma porta central, que dá acesso ao corredor a partir do qual articulam-se os cômodos
internos, realizando a ligação da rua com os ambientes de serviço localizados aos fundos
do lote. Já os cômodos de uso social encontram-se distribuídos na parte frontal da casa,
por vezes conectando-se à varanda lateral associada ao jardim. Quanto à fachada, esta
apresenta diversos elementos ornamentais de feições ecléticas, bem como a presença
de materiais importados, como os balcões em ferro.
Já a casa da Rua Henrique Rabelo (Figura 7), representante do núcleo urbano da
Piedade, encontra-se implantada em um terreno estreito e segue o alinhamento da via,
formando, junto das residências vizinhas, um casario contínuo. Aproxima-se, assim,
da tipologia arquitetônica da da casa de porta e janela, popularmente conhecida no
cenário local de Fortaleza como casa de duas portas (CASTRO, 2014). Presume-se que o
exemplar arquitetônico em questão apresenta um esquema de organização interna
dos cômodos bastante similar à tradicional planta da casa colonial. Sendo assim, a casa
provavelmente conta com uma sala frontal cujas aberturas encontram-se voltadas para
a rua, enquanto as áreas destinadas ao trabalho doméstico localizam-se aos fundos do
lote. Como resultado, as alcovas destinadas à permanência noturna situam-se entre as
duas extremidades da casa, não havendo, portanto, nenhuma abertura para o exterior.
Quanto à circulação interna, pressupõe-se que esta realiza-se por meio de um corredor
longitudinal apoiado a uma das paredes laterais, realizando a conexão entre a porta da
rua e os fundos da casa (REIS FILHO, 2015; WEIMER, 2005). Destaca-se, ainda, a economia de
elementos arquitetônicos em sua fachada, marcadamente pela ausência de platibanda
e de recursos ornamentais, contando apenas com cimalha e moldura nas esquadrias.

822
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 6: Exemplar remanescente de arquitetura erudita na Avenida Visconde do Rio Branco.

Figura 7: Exemplar remanescente de arquitetura vernacular na Rua Henrique Rabelo. Fonte:

Apesar de distintas, as duas casas analisadas contam com algumas semelhanças


entre si. Estas se dão, principalmente, a partir das técnicas construtivas adotadas, que reve-

823
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

lam a tradição própria do contexto da arquitetura residencial historicamente produzida


no Ceará. Nesse sentido, destaca-se o uso da carnaúba para as soluções de cobertas com
telhas cerâmicas, bem como o emprego da alvenaria de tijolo branco (CASTRO, 2014). Uma
outra semelhança pode ser apontada: ambas as casas aqui apresentadas encontram-se
ameaçadas quanto à sua permanência na paisagem urbana local, ainda que por motivos
distintos. A primeira casa, localizada na Avenida Visconde do Rio Branco, encontra-se
esvaziada e em vias de ser demolida, uma vez que seus antigos moradores faleceram e o
terreno foi vendido por seus herdeiros a uma imobiliária, que segue comprando terre-
nos na vizinhança, formando, assim, uma grande reserva fundiária para a produção de
formas contemporâneas de ocupação do solo. Já a residência da Rua Henrique Rabelo,
ainda habitada, tende a ser descaracterizada por meio de possíveis obras de adaptação
às eventuais novas necessidades da família moradora da casa. Assim, a casa passaria a
assemelhar-se às residências vizinhas, já bastante modificadas.

O PROCESSO DE TRANSFORMAÇÃO DA PAISAGEM URBANA TRADICIONAL


DA AVENIDA VISCONDE DO RIO BRANCO

A noção de cidade histórica constituiu-se em oposição ao “processo de urbanização


dominante”, que converteu os conjuntos urbanos antigos em obstáculos à renovação
urbana no contexto europeu do século XIX (CHOAY, 2001, p. 179-180). Já no contexto con-
temporâneo das grandes metrópoles brasileiras, a transformação do ambiente construído
encontra-se subordinada à urbanização corporativa da cidade econômica, que se opõe às
demandas da cidade social (SANTOS, 2005). No caso da Região Metropolitana de Fortaleza,
entende-se que ocorre uma produção do espaço urbano marcada pela segregação socio-
espacial e pela vulnerabilidade socioambiental. Este cenário relaciona-se diretamente à
produção habitacional, uma vez que o mercado imobiliário formal encontra-se voltado,
principalmente, às demandas das classes dominantes. Há, ainda, a questão das dinâmi-
cas de valorização do solo urbano atuantes nas áreas centrais urbanizadas e dotadas
de infraestrutura. Nesse processo, as porções consolidadas do território urbano são
majoritariamente apropriadas e produzidas pelo mercado imobiliário elitizado. Como
resultado, os núcleos urbanos tradicionais inseridos nesse contexto passam sofrer com
as pressões da valorização e da produção imobiliária, ameaçando, assim, a paisagem e
a malha urbana dos trechos históricos remanescentes.
Entende-se que a atuação do processo de urbanização hegemônico frente ao acervo
construído da Avenida Visconde do Rio Branco se dá por meio de uma transformação
dicotômica da paisagem urbana, que estimula, simultaneamente, a degradação urbana
— relacionada à demolição e à descaracterização de imóveis antigos — e a renovação

824
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

urbana — alusiva a uma grande atuação do mercado imobiliário na produção de torres


de apartamentos. Atualmente, uma expressiva quantidade de imóveis históricos encon-
tra-se à venda, enquanto diversas residências estão esvaziadas ou abandonadas (Figura
8). Além disso, a demolição de casas históricas também tem sido recorrente nos últimos
anos (Figura 9). Detecta-se, assim, um cenário em que as dinâmicas de valorização do
solo urbano promovem a deterioração e a fragmentação do acervo construído, levando
à formação de reservas fundiárias e à verticalização residencial.

Figura 9: O processo dicotômico de transformação da paisagem urbana manifesta-se por meio

realizada pelas autoras (2018).

825
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

(2018).

De forma geral, a legislação urbana vigente na Avenida Visconde do Rio Branco e


em seu entorno encontra-se dissociada tanto de sua realidade morfológica quanto de
sua estrutura fundiária. Atualmente, a área encontra-se delimitada pelo Plano Diretor
Participativo de Fortaleza como uma Zona de Ocupação Preferencial, contando, assim,
com índices e parâmetros urbanísticos que tendem a estimular a substituição das for-
mas históricas de ocupação do solo por novos modelos arquitetônicos. Em vista disso,
buscou-se investigar a morfologia do acervo construído da Avenida Visconde do Rio
Branco por meio do estudo volumétrico de algumas das suas formas de ocupação do solo
mais recorrentes (Figura 10). São estas: a casa térrea histórica, o edifício de quitinetes,
o edifício de apartamentos e a torre de apartamentos. A casa térrea, tipologia mais fre-
quente ao longo da Visconde do Rio Branco, insere-se no tradicional padrão fundiário do
lote estreito e comprido. Similarmente, o edifício de quitinetes geralmente encontra-se
implantado no padrão fundiário mais tradicional, indicado que tal forma arquitetônico
tende a substituir as casas históricas. Por outro lado, os outros dois padrões habitacionais
mais comuns exigem terrenos de maiores dimensões, que podem ser obtidos a partir
do remembramento de uma série de lotes vizinhos ou da apropriação de grandes lotes
vazios, como antigas indústrias ou áreas ambientalmente frágeis sem proteção. No caso da
torre de apartamentos, a sua reprodução através do território mostra-se menos provável,

826
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

uma vez que há uma reduzida disponibilidade de lotes vazios de grandes dimensões ao
longo da Visconde do Rio Branco. Ainda assim, os parâmetros urbanísticos ali vigentes
aproximam-se mais deste último modelo arquitetônico, incentivando, portanto, uma
produção imobiliária alinhada ao modelo da urbanização dominante, distanciando-se
tanto do contexto morfológico e fundiário local quanto da demanda habitacional exis-
tente no contexto metropolitano.

Elaborado pelas autoras (2019).

Sendo assim, mostra-se necessária a revisão do zoneamento e dos parâmetros


urbanísticos aplicados àquela porção da cidade, tendo em vista tanto a capacidade da
estrutura fundiária em receber novos edifícios quanto as características morfológicas
ali existentes. Nesse sentido, o núcleo urbano tradicional da Avenida Visconde do Rio
Branco poderia passar a ser protegido pelo instrumento da Zona Especial de Preser-
vação do Patrimônio Paisagístico, Histórico, Cultural e Arqueológico, instrumento de
zoneamento urbano previsto pelo Plano Diretor Participativo de Fortaleza desde 2009.
Defende-se, aqui, que a gestão do território em questão deveria ser guiada a partir de
uma política urbana de conservação do patrimônio cultural edificado, proporcionando,
assim, uma transformação positiva do ambiente construído por meio da promoção da
urbanidade e da qualidade ambiental, bem como uma produção habitacional pautada
pelas demandas sociais existentes na escala metropolitana. No entanto, alcançar tais
princípios de planejamento urbano mostra-se um desafio na conjuntura atual, uma
vez que a política urbana vigente em Fortaleza encontra-se diretamente associada aos
objetivos da urbanização dominante, opondo-se, assim, aos interesses social e cultural.

827
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CONCLUSÃO

A arquitetura histórica remanescente da Avenida Visconde do Rio Branco cum-


pre a função de um importante documento da formação e da expansão da cidade de
Fortaleza em direção aos seus arrabaldes. Atua, ainda, como o testemunho de um his-
tórico processo de urbanização marcado pela segregação socioespacial, revelando, em
sua materialidade, as raízes de um contínuo quadro de exclusão e desigualdade social
inerente ao contexto metropolitano brasileiro. Para além de seus aspectos materiais,
o território conta ainda com práticas sociais e espirituais bastante representativas da
cultura popular fortalezense, fator que constitui a importância daquele espaço como
patrimônio cultural urbano.
Apesar de sua relevância, as modestas casas históricas que conformam a paisagem
urbana tradicional da Avenida Visconde do Rio Branco encontram-se ameaçadas quanto
à sua permanência. No presente contexto, ocorre o avanço da demolição, da descarac-
terização e do abandono de uma expressiva quantidade de exemplares arquitetônicos
de interesse cultural, o que revela o contínuo aprofundamento de um quadro local de
degradação urbana. Tal processo mostra-se diretamente relacionado às dinâmicas espe-
culativas de valorização imobiliária atuantes naquela porção da cidade, que promovem
a renovação urbana por meio de uma produção habitacional restrita e elitizada. Con-
forma-se, assim, um cenário de acirramento de um dicotômico processo de produção
do espaço urbano, repleto de contrastes e contradições.
Assume-se, aqui, uma postura de que a transformação da paisagem urbana é tida
como inevitável e, desde que gerida a partir da ótica dos interesses social e cultural,
desejável. Sendo assim, a questão da permanência dos núcleos urbanos tradicionais deve
ser integrada a uma política urbana de conservação do patrimônio cultural edificado,
exigindo, portanto, a definição de princípios, métodos e instrumentos de planejamento
urbano. Tendo em vista o atual quadro do patrimônio cultural edificado e da política
urbana de Fortaleza, é com pesar, no entanto, que esta pesquisa aponta em direção a
um cenário tendencial de iminente desaparecimento de exemplares arquitetônicos de
interesse cultural na paisagem urbana fortalezense. Por meio desse processo, perde-se,
também, os valores memorial e documental do patrimônio cultural edificado. Estabe-
lece-se, portanto, um quadro de apagamento de referências culturais tanto construídas
quanto intangíveis por meio da conformação de um cenário local em que tradições
urbanas não possuem lugar.

828
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, v. 128, p. 9-68, 2014.

cidade de Fortaleza. Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, v. 108, p. 43-90, 1994.

A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade; Editora


UNESP, 2001.

Revista do Instituto do Ceará, Fortaleza, v.


128, p. 81-111, 2014.

CULLEN, Gordon. Paisagem urbana. Lisboa: Edições 70, 2017.

Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa:

MAGALHÃES, Zelito. Piedade


Editora, 2009.

NIREZ. Cronologia ilustrada de Fortaleza


2001.

REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo:


Perspectiva, 2015.

RIBEIRO, Esaú Costa. Memorial e história de Messejana. Fortaleza: Editora e

SAMPAIO, Jorge Henrique Maia. Onde o bonde faz a curva: o progresso chega aos
“arrabaldes”. In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE
HISTÓRIA, 25., 2009, Fortaleza. Anais... Fortaleza, 2009.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo: Edusp, 2005.

Arquitetura popular brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

829
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

TRILHOS PELO NORDESTE:

ARQUITECTÓNICO DE PATOS / PB
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

PEREGRINO DE ALBUQUERQUE, Umbelino


Especialista em Revitalização do Patrimônio Natural e Construído
umbelinoperegrino@gmail.com

PEREGRINO DE ALBUQUERQUE, Mariana


Mestranda em Conservação e Restauro; UFBA
marianaperegrino.arq@gmail.com

GOMES, Raisa
Especialista em Gestão e Prática de Obras de Conservação e Restauro do Patrimônio
Cultural
raisagomes96@gmail.com

830
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O Brasil vivenciava nas décadas de 1930 e 1940 avanços no campo da tecnologia, experimentou
com igual entusiasmo os trabalhos de ampliação na área de transporte de carga e de passageiros
através da expansão da malha ferroviária, tirando do isolamento localidades economicamente
potenciais da Região Nordeste do país. Essa força da interligação das linhas férreas contribuiram
substancialmente para a transformação do cenário das cidades brasileiras, entre elas a cidade
de Patos, na Paraíba, que nos últimos anos do primeiro período de governo de Getúlio Vargas
teve a implantação do complexo ferroviário (1944). Além de revolucionar a forma de integra-
ção socioeconômica, carrega a dimensão imaterial na memória fruto do imaginário coletivo,
patrimônio intangível. O artigo intensiona refletir sobre os processos históricos de surgimento
e decadência, assim como os impactos que o sistema ferroviário trouxe para município do sertão
paraibano. A análise dos aspectos arquitetônicos do patrimônio ferroviário, sublinhado pelo
Prédio da Estação, em relativo estado de conservação, oferece uma exemplificação de edificios
de conjuntos ferroviários pelo interior do pais.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio ferroviário. Arquitetura ferroviária. Complexo ferroviário de


Patos. ferrovia.

A BSTRACT
Brazil experienced in the 1930s and 1940s advances in the field of technology and, with equal
enthusiasm, experienced also the expansions of work in the cargo and passenger transportation
area through the expansion of the railway network, wich removed from isolation potential
economical localities from the Northeast region of the country. This strength of interconnec-
tion of the railway lines contributed substantially to the transformation of some Brazilian
cities, like Patos, in Paraíba that towards the end of Getulio Vargas first period of government,
was implemented with the railway. In addition to revolutionizing the form of socioeconomic
integration this intangible patrimony carries an imeasurable dimension in the memory of the
collective imagination. This article intends to reflect on the historical processes of decadence and
emergence, as well as the impacts that the rail system has brought to the municipality of the
interior of Paraíba. An analysis of the architectural aspects of the patrimonial railway systems,
highlighted by the Estação building, in a relative state of conservation, offers an example of
the joint railway buildings in the interior of the country.

KEYWORDS: Railway heritage. Railway architecture. Patos railway system. railroad.

831
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMEN
El Brasil experimentó en los decenios de 1930 y 1940 avances en el campo de la tecnología y, con
igual entusiasmo, experimentó también la expansión del trabajo en el área del transporte de
carga y de pasajeros mediante la ampliación de la red ferroviaria, que sacó del aislamiento a
posibles localidades económicas de la región nordeste del país. Esta fuerza de interconexión de
las líneas ferroviarias contribuyó sustancialmente a la transformación de algunas ciudades
brasileñas, como Patos, en Paraíba, que hacia el final del primer período de gobierno de Getu-
lio Vargas, se implementó con el ferrocarril. Además de revolucionar la forma de integración
socioeconómica, este patrimonio intangible tiene una dimensión inapreciable en la memoria
del imaginario colectivo. Este artículo pretende reflexionar sobre los procesos históricos de
decadencia y emergencia, así como sobre los impactos que el sistema ferroviario ha traído al
municipio del interior de Paraíba. El análisis de los aspectos arquitectónicos de los sistemas
ferroviarios patrimoniales, puestos de relieve por el edificio Estação, en un estado relativo de
conservación, ofrece un ejemplo de los edificios ferroviarios conjuntos del interior del país.

PALABRAS-CLAVE: Patrimonio ferroviario. Arquitectura ferroviaria. Complejo ferroviario de


Patos. ferrocarril.

INTRODUÇÃO

O presente estudo[1] faz parte de uma pesquisa maior desenvolvida com a finali-
dade de atender as medidas de regularização, mitigação e compensação relacionadas
a instalação de um empreendimento comercial, localizado no Município de Patos, no
Estado da Paraíba. O trabalho foi objeto de um termo de compromisso firmado no ano de
2014, entre o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN/PB, através
da Superintendência Regional do Estado da Paraíba e a parte empresarial envolvida.
No curso da análise do presente artigo foram avaliados, a partir dos eventos diagnos-
ticados, fatores que levaram a decadência das ferrovias, especialmente no Nordeste, e a
consequente degradação dos bens móveis e rodantes que formavam o acervo da empresa
ferroviária. Esse processo auxiliou a apreensão do conjunto arquitetônico ferroviário
de Patos, em específico o prédio da estação, único em melhor estado de conservação.

[1] O presente texto deriva do trabalho apresentado e arquivado ao Instituto do Patrimônio


Histórico e Artistico Nacional, superintendência da Paraíba no ano de 2014.

832
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Para identificar e avaliar o complexo da Ferrovia de Patos, foi necessária a fase de


levantamento histórico, arquitetônico, topográfico, urbanístico e fotográfico do conjunto,
sendo uma área de influência direta do empreendimento comercial citado anteriormente.
Para coligir subsídios acerca da implantação do ramal que contemplava a Cidade
de Patos como rota do transporte de cargas e passageiros, foram realizadas pesquisas em
bibliotecas e arquivos de instituições públicas e privadas, ligadas ao desenvolvimento
da Rede Ferroviária no Nordeste brasileiro, com foco nos trechos Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande do Norte e Ceará durante o período que corresponde ao final do século XIX
e todo o século XX.
São numerosos os estudos voltados para uma abordagem mais ampla do tema, que
trata do processo construtivo e a justificativa de implantação e expansão da Rede Ferro-
viária no Nordeste. No caso específico da estação de Patos, o estudo recorreu aos acervos
particulares e hemerotecas, a fim de compilar informações, muitas vezes, divergentes.
Os resultados aferidos na pesquisa histórica foram fundamentais para todo o
processo de levantamento realizado em campo. A realização concomitante desses dois
métodos de pesquisa possibilitou uma melhor compreensão, por um lado, das nomen-
claturas assumidas pela Rede durante sua atuação em Patos nestas mais de sete décadas
- funcionando em princípio como Rede de Viação Cearense a partir de seu ato inaugural
(1944 a 1958) passando para Rede Ferroviária do Nordeste (1958 a 1975) e por fim Compa-
nhia Ferroviária do Nordeste - CFN (1997 a 2005) – e por outro, das intervenções, desapro-
priações e demolições de imóveis do Complexo e das alterações profundas, perpetuadas
sobretudo durante as últimas décadas, na ambiência em questão.

O PATRIMÔNIO FERROVIÁRIO BRASILEIRO

No livro intitulado Preservação do Patrimônio Ferroviário: as estações de trem da


Paraíba, o autor Itapuan Targino cita Gilberto Freire quando se refere ao significado dos
caminhos de ferro pelo Brasil:
Outra marca dos caminhos de ferro sobre a paisagem brasileira, além
dos trilhos – trilhos de um brilho tão vivo sob o sol tropical -, foi a das
pontes – principalmente as de ferro - e dos viadutos. […], sabe-se que
a construção de estradas de ferro se assinalou por notáveis vitórias da
técnica sobre a natureza.
Ainda outra marca do complexo ferroviário sobre a face da paisagem
brasileira: a estação. Não só a estação metropolitana ou central mais
ou menos pretensiosa. Também a estaçãozinha quase perdida no mata-

833
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

gal, nos campos, em terras de engenhos e fazendas, perto de cidades do


interior. (FREIRE, 2000 apud TARGINO, 2001. p. 17)
A partir dessa citação pode-se mensurar a importância da rede ferroviária para o
desenvolvimento tecnológico e socioeconômico do Brasil. Durante mais de um século
de plena atuação, a rede ferroviária distribuiu modernidade, disseminando nos diversos
caminhos percorridos o rastro do progresso material, e no sentido mais amplo, alicerçou
na memória coletiva, principalmente nas comunidades diretamente assistidas pelas
estradas de ferro, novos costumes, e novas perspectivas de dinâmica urbana, democra-
tizando as relações, sobretudo, da cultura nacional.
A RFFSA - Rede Ferroviária Federal S/A, responsável pelo serviço ferroviário no
território nacional, criada em 1957, incorporou todas as estradas de ferro de proprie-
dade da União, tendo como subsidiaria a Rede Ferroviária do Nordeste, a Rede de Viação
Cearense, a Estrada de Ferro Mossoró – Sousa e a Estrada de Ferro Sampaio Correia.
(EDMUNDSON, 2016)
Após 50 anos de atuação, a RFFSA passa pelo processo de privatização e, em 22 de
janeiro de 2007 ela foi extinta mediante a Medida Provisória nº 353, de 22 de janeiro de
2007, estabelecida pelo Decreto Nº 6.018 de 22/01/2007, sancionado pela Lei Nº 11.483.
Legando os bens imóveis e sem uso para a União e os bens móveis e imóveis de valor
artístico, histórico e cultural passaram a ser responsabilidade do IPHAN, para a preser-
vação da memória ferroviária.
Com o desmonte da RFFSA, as incertezas da salvaguarda do acervo de bens móveis
e imóveis da antiga Rede ferroviária levantaram grande preocupação no meio cultural
brasileiro, principalmente junto aos organismos de preservação do patrimônio histórico.
Como aponta Edmundson (2016), esse processo de desarticulação da Rede Ferroviária
direcionava para uma possível destruição da importante página da história contempo-
rânea nacional. Nesse sentido, desde 2007, o Iphan realiza inventários de conhecimento
do patrimônio cultural ferroviário. Constatando que o estado de conservação dos con-
juntos são os mais diversos, muitos estão abandonados ou em condições precárias de
preservação (EDMUNDSON, 2016).
O Brasil vivenciou na década de 1930 fortes turbulências na política. Com o golpe
em 1937 o reflexo foi sensível em setores vitais da economia, com o incremento da indus-
trialização no meio rural e a modernização das cidades. Nesse cenário de mudanças,
fica clara a postura impositiva do governo em mostrar o progresso da e para a nação.
As tentativas de melhorias propagadas pelo Governo de Vargas foram evidentes em
diversos setores e nas políticas públicas do país, refletindo, sobremaneira, na construção

834
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

civil, nos serviços de infraestrutura urbana e no aparelhamento dos serviços públicos.


Portanto, era indispensável a eficácia de transporte, que reunisse a minimização do
tempo e a capacidade de volume de carga para escoamento da produção.
Nesse contexto, ocorre a consolidação da rede de integração nacional a partir da
ampliação da malha ferroviária, implementando importantes projetos de desdobramento
da linha férrea para atender regiões ainda isoladas que, particularmente no estado da
Paraíba, se materializaram com a iniciativa primordial para promover a integração do
Nordeste Ocidental ao Nordeste Oriental através da ligação Pombal – Patos – Campina
Grande (figura 1).

Figura 1: Marcação em vermelho das linhas Férreas na Paraíba, Ramal Campina Grande. Fonte:
Relatório do Inventário de Conhecimento do Patrimônio Ferroviário da Paraíba, 2009.

A ampliação da linha férrea proporcionou inquestionável evolução socioeconô-


mica para a Paraíba encurtando distâncias regionais, favorecendo o intercâmbio entre
importantes praças de comércio local e interestadual, e desenvolvendo uma rede sólida
de comércio com os estados vizinhos, e posteriormente, com o restante do país.
A chegada da estrutura ferroviária em qualquer localidade fosse em povoados,
vilas, pequenas ou grandes cidades, independente da capacidade da estrutura de uma
estação, trazia reflexos materiais e imateriais incalculáveis para a comunidade local. Era

835
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

o divisor de águas entre o pretérito, marcado pelo atraso e o futuro representado pelo
progresso, pela ideia de modernidade.

Parâmetros de proteção

As ferrovias no Brasil representaram mais um episódio importante na história do


país na medida em que revolucionaram a forma de comunicação, locomoção, comer-
cialização, socialização, dentre tantos outros benefícios que transcendem o campo da
materialidade, pois se imaterializam na memória, como legado de vivência, patrimônio
intangível fruto do imaginário coletivo onde reside a dimensão da identidade. Diante do
contexto que será apresentado e da importância que as ferrovias representaram, foram
realizadas discussões para constituir formas de proteção da memória desse patrimônio.
Entre elas destaca-se a Carta de Nizhny Tagil, de 2003, que enquadrou o Patrimônio
Cultural Ferroviário na categoria de Patrimônio Industrial, afirmando a necessidade da
preservação desses bens. Cartas anteriores como a de Veneza (1964) e a Carta de Burra
(1994), também auxiliam na ideia de preservação e manutenção da paisagem e do bem,
analisando de forma ampla o complexo ferroviário.
Em relação ao contexto nacional, existem ainda atribuições imbuídas ao Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Iphan pelo art. 9º da Lei nº 11.483/2007,
que dispõe sobre a revitalização do setor ferroviário. O referido artigo insere o Iphan
na administração, na guarda e manutenção dos bens móveis e imóveis, originários da
extinta Rede Ferroviária Federal S/A – RFFSA. Além disso, prevê a preservação e a difusão
da Memória Ferroviária, oferecendo propostas de reuso para os espaços.
Ainda no contexto de preservação, também se observam leis que determinam a
proteção de remanescentes do patrimônio ferroviário no Brasil. Está estabelecido no
parágrafo 1º do art. 5º da Portaria nº 407, de 21 de dezembro de 2010: “ateste as reais con-
dições de apropriação social do bem, em especial quanto a sua segurança, conservação
e uso compatível com a preservação da Memória Ferroviária”. Assim, a preservação do
Patrimônio Cultural Ferroviário deve levar em consideração o caráter de rede, malha e
conjunto.
Portanto, como medida cautelar para o patrimônio ferroviário na Paraíba, a ini-
ciativa do IPHAN, através da Sub Regional na Paraíba, conjuntamente com a instância
estadual de proteção, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba
– IPHAEP, a partir do ano 2000, iniciavam os estudos preliminares de identificação do
patrimônio ferroviário no âmbito do Estado com o objetivo de subsidiar o Conselho de

836
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Proteção aos Bens Históricos e Culturais – CONPEC, direcionando a um Tombamento


Temático das Estações Ferroviárias da Paraíba (TARGINO, 2001).
Após a instrução processual realizada pelo IPHAEP e seu consequente encami-
nhamento a superior avaliação do CONPEC, em reunião realizada em maio de 2001,
foi aprovada por unanimidade de votos a propositura de Tombamento Temático das
Estações Ferroviárias da Paraíba. A análise e parecer coube ao representante do IPHAN/
PB, e reforçam a necessidade de salvaguardar bens de referência, como segue em pontos
do relatório:
2 - A iniciativa tem como princípio proteger o acervo arquitetônico/
artístico da Rede Ferroviária Federal S/A – RFFESA frente ao processo
de privatização que aquela Empresa está sendo submetida, garantindo
à sociedade o resgate de importantes referências culturais que estão
sintetizadas através de seus bens imóveis (TARGINO, 2001, p. 78)
Assim, um dos pontos da análise determina o valor das ações do poder público
em auxiliar na salvaguarda do bem patrimonial, não só como referência material, mas,
também a importância imaterial que os espaços ferroviários cabem no imaginário da
comunidade.
5 - A ação do poder público de promover a proteção dos edifícios sig-
nificativos na vida cotidiana da sociedade não se restringe apenas a
preservação dos bens patrimoniais, moveis e imóveis, mas lato sensu
estão sendo resguardadas as bases de um patrimônio intangível, que
remetem ao imaginário coletivo o verdadeiro sentido de identidade. A
importância e a sua marcante presença na vida daquelas localidades
é refletida na poética dos versos “... O Trem que chega é o mesmo trem
da partida, a hora do encontro é também despedida... A plataforma da
estação é a vida desse meu lugar é a vida…”. É dessa apropriação remetida
pela memória subjetiva que ainda nos permite a “escutar” no silêncio
das antigas estações o apito do velho trem (TARGINO, 2001, p. 78)
Neste sentido, fica registrada com pioneirismo no estado, a ação administrativa do
Tombado Temático das Estações Ferroviárias da Paraíba pelo Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico do Estado da Paraíba, instruído conforme o processo 0092/2000/
IPHAEP e sancionado através do Decreto Estadual nº 22.082, de 03/08/2001, publicado
no Diário Oficial do Estado da Paraíba/DOE, 04/08/2001. O processo de tombamento pelo
Iphaep prevê o uso dos prédios das estações tombadas. A intenção seria transformar
esses lugares em bibliotecas, centros de formação, museus, arquivos, ou casa de cultura
(TARGINO, 2001).

837
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

AS ESTAÇÕES FERROVIÁRIAS ENQUANTO CONCEPÇÃO

O município de Patos, distante 310 km de João Pessoa, faz parte do centro comercial
da região sertaneja, em virtude da sua proximidade e das relações comerciais com os
estados do Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará, alcançou a condição de 3ª cidade
polo da Paraíba pela expressiva contribuição na balança econômica estadual. Como
demonstração dessa localização estratégica que Patos possuía no cenário comercial,
destaca-se a inauguração, em 19 de abril de 1944, da Estação Ferroviária do município,
resultado do prolongamento do ramal Paraíba, sob a administração da Rede de Viação
Cearense - CVR proveniente do estado do Ceará, além de entrar no programa da Inspetoria
Federal de Obras contra as secas do governo de Getúlio Vargas (TARGINO, 2001).

Figura 2: Mapa da Paraíba com destaque para o município de Patos. Fonte: Elaborado pelos
autores, 2016.

Salienta-se que os projetos de ferrovias tinham uma relativa padronização, eram


preconcebidos de forma a unificar uma linguagem padrão no país, impondo-lhes marca
indeléveis do segmento para o qual se destinava, assim foi com as Agencias de Correios,
Prédios do Banco do Brasil, Grupos Escolares e tantas outras intervenções a cargo do
Estado.
De acordo com Nestor Goulart Reis (1978), no livro Quadros da Arquitetura no Brasil:

838
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

As ferrovias traziam sobre seus trilhos, novos recursos de construção,


mas, sobretudo uma nova maneira de construir. De fato, os edifícios das
estações de estradas de ferro, fossem importados aqui construídas no
local, correspondiam sempre a novos modelos e apresentavam um aca-
bamento mais perfeito, que dependia do emprego de oficiais mecânicos
com preparo sistemático. Novas soluções arquitetônicas e construtivas
eram assim difundidas pelo interior, influindo sobre vários aspectos na
arquitetura. (REIS, 1978, p. 156.)
A preocupação com o aproveitamento racional dos espaços mostra-se evidente
no programa espacial dos edifícios que compõem as matrizes dos edifícios ferroviá-
rios. Esse programa foi orientado segundo alguns critérios construtivos, a exemplo da
funcionalidade, proporcionando o atendimento às necessidades variadas; a raciona-
lidade, construindo os edifícios para sua melhor higienização e de forma consoante
às condições climáticas da área; e, por fim, a viabilidade, empregando os materiais de
forma econômica[2] (REIS, 1978).
Dependendo da importância regional que assumia o município, a estrutura física
das estações se diferenciava tanto na escala do seu pátio e dimensionamento dos seus
espaços internos, quanto nos seus detalhes construtivos, mas sempre mantendo o mesmo
programa arquitetônico que atendia ao fluxograma organizacional de funcionalidade.
Assim, os edifícios anexos que compunham os complexos ferroviários, também pos-
suíam aspectos estéticos que determinavam o grau de importância. As características
funcionais e a disposição das edificações também estabeleciam uma setorização entre
áreas: os setores administrativos e técnicos, as áreas habitacionais e as de acesso ao
público. Portanto as unidades do conjunto dialogavam entre si, sem que perdessem a
proposta de coesão.
Targino (2001), no livro Preservação do Patrimônio Ferroviário - As Estações de trem
da Paraíba, quando se refere aos aspectos tipológicos das Estações Ferroviárias afirma:
Ocupando espaços restritos, a construção das estações ferroviárias do
Estado da Paraíba obedeceu a um estilo simples, sem qualquer sofistica-
ção, fruto, talvez, da rapidez exigida para a conclusão das obras, tendo
em vista a extrema necessidade do serviço. Os armazéns, os depósitos

[2] A preocupação com o emprego econômico dos materiais também se expressa na com-
posição estética e tipologia volumétrica. O detalhamento foi mantido de forma simples, elimi-
nando-se os adornos, mas não se descuidou do desenho geral da composição.

839
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e as casas de mestres de linha, quando existiam, acompanhavam os


mesmos traços do prédio central. (TARGINO, 2001, p.70)
A entrevista do arquiteto Ivan Cavalcanti Filho compilada por Targino (2001), ao
tratar sobre a tipologia das estações traz a seguinte análise:
Os edifícios das estações ferroviárias situadas no Estado da Paraíba
se caracterizam principalmente pela simplicidade de sua volumetria.
[...] a arquitetura dessas estações não teve maiores ambições plásticas,
contemplando, ao nível de organizações físicas, apenas as expansões
imprescindíveis para atender adequadamente os passageiros (CAVAL-
CANTI FILHO apud TARGINO, 2001, p. 71)
Nesse sentido, as estações na Paraíba podem ser divididas tipologicamente em
duas categorias:
[...] Excetuando-se as Estações de João Pessoa, e a nova de Campina
Grande, que são edificações de maior envergadura formal, projetadas
para uma demanda mais significativa e exigente dos usuários, as esta-
ções ferroviárias do Estado da Paraíba podem, pare efeito de estudo, ser
classificadas segundo duas categorias: a) aquelas de arquitetura mais
singelas, situadas na região do brejo, datadas do final do século XIX ou
início do século XX; e B) aquelas de linhas arquitetônicas mais apuradas,
situadas no sertão, e que datam da primeira metade do século passado
(CAVALCANTI FILHO apud TARGINO, 2001, p. 71)

O CONJUNTO ARQUITETÔNICO FERROVIÁRIO DE PATOS

Mesmo com todas as dificuldades de execução, como a carência de mão de obra


qualificada e o manejo de novos materiais – a exemplo do emprego do concreto armado,
do elemento vazado, das esquadrias de ferro pré-fabricadas e outros elementos de aca-
bamento -, o resultado obtido no conjunto ferroviário de Patos reflete a tentativa de
obter, como produto, edifícios que seguissem os princípios norteadores para a nova
arquitetura brasileira.
Assim, é razoável considerar que o complexo de Patos se classifica tipologicamente
como um conjunto de edificações que transita entre as características do art decó e proto-
modernismo, guardada as limitações e condições regionais, por meio de traços que mais
tarde se sedimentariam no país como uma nova produção aclimatada como arquitetura
moderna brasileira, voltada para uma linguagem característica da produção ferroviária.

840
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O Conjunto principal é formado pelo prédio da Estação e um pequeno imóvel


anexo, destinado para o escritório do Guarda Fios que se encontram guarnecidos pela
plataforma de embarque de passageiros elevada a 0,41 cm da cota do terreno, onde estão
locadas as linhas férreas.
Alguns espaços e edificações referenciais que faziam parte do conjunto ferroviário
foram modificados ou demolidos, e são apenas memórias lembradas em depoimentos
de antigos funcionários ou pessoas que vivenciaram o apogeu da ferrovia em Patos.
Por outro lado, elementos integrantes do Complexo ainda resistem com algumas
modificações. Nesse sentido, citamos o conjunto de residências que constituem a vila
Ferroviária, onde várias unidades foram adquiridas por antigos funcionários da Rede
Ferroviária junto ao Patrimônio da União durante o processo de sua liquidação, e o imó-
vel destinado a Casa do Mestre de Linha, próxima à Vila Ferroviária, que foi totalmente
reformada, mas manteve o uso residencial (Figura 3).
Assim, a partir das indicações, foi possível situar os antigos locais onde existiram
elementos que integravam o Complexo Ferroviário. É o caso da área reservada ao Curral
de Gado, localizado em terreno da Rede próximo à Estação em sua extremidade esquerda
e da Residência do Agente que foi demolida e que ficava voltada para o acesso principal
da Estação, na área onde hoje foi construído um posto de gasolina.

-
cações do Conjunto e dos principais pontos referenciais da área. Fonte: Elaborado pelos
autores, 2016.

841
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Além das edificações desaparecidas, também se destaca a situação precária de


conservação de todas as construções remanescentes do Complexo, com alguns setores
por ocupação irregular, como é o caso da área da caixa d’água e cisterna, também o local
onde se situava a primitiva garagem do alto de linhas.
A estrutura dos prédios que formavam o Complexo Ferroviário era portante e o seu
desenvolvimento ocorria a partir do emprego da alvenaria estrutural em tijolos maci-
ços sobre embasamento alicerçado em pedra. As paredes eram rebocadas com massa
única de cimento, areia e cal virgem, o acabamento final em pintura à base da cal, salvo
as pequenas variações registradas em alguns cômodos internos, e as áreas molhadas e
locais de intenso fluxo, quando se utilizou o azulejo branco nas dimensões tradicionais
de 15.5 x 15.5 cm à meia altura da parede.
Igual às demais edificações que compõem o complexo, as correspondentes a Garagem
e Ferramentaria, Depósito de Óleo e Fluídos, assim como o Depósito de armazenamento
de Combustível ficam no nível do terreno na cota 0,00 sob um singelo embasamento
sem as calçadas de contorno. Assim também se comporta o conjunto composto por 08
unidades residenciais que correspondem a casa do Mestre de linhas, o Depósito e “Casa
de Turma” seguida pelas demais unidades residenciais que formavam a antiga Vila
Ferroviária, localizada na frente do prédio principal da Estação e guarnecida por uma
generosa calçada elevada, em média 0,15 cm da cota do terreno.

Prédio da Estação

O prédio da Estação de Patos traz, em sua essência, a intenção de reproduzir uma


arquitetura desvinculada dos dogmas pretéritos assimilados durante o período da
velha República. A edificação tem como período de construção as primeiras décadas do
século XX, entre 1928 e 1932, aguardando a conclusão da linha férrea para que ocorresse
a inauguração completa em 1944. (Figura 4) (JORNAL A VOZ DO POVO, 1985; LUCENA, 2015)

842
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 4: Prédio da Estação Ferroviária de Patos em construção. Fonte: Inventário do Patrimônio


Ferroviário - IPHAN, s/d.

Exemplar do interesse arquitetônico de meados do século XX, a composição remete


a uma tipologia de característica do art decó evidenciadas principalmente, nos detalhes
de suas fachadas e tipologia de sua platibanda.
Nesse sentido, o Prédio da Estação de Patos é uma edificação de arquitetura singela,
em forma retangular com cobertura em quatro águas, com uma longa cumeeira paralela
as fachadas principais arrematadas por três águas nas extremidades longitudinais do
edifício.

Figura 5 e 6: Vista da fachada de acesso principal do prédio da Estação voltada para a plata-
forma de embarque e desembarque e Vista da fachada de acesso principal (Rua Peregrino de
Carvalho) do prédio da Estação, voltado para a Praça dos Pombos. Fonte: Daniella Lira, 2016

843
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A planta baixa da edificação demonstra simplicidade no programa de necessidade,


onde a partir de um hall único atende-se às dependências internas da Estação e onde a
plataforma de embarque e desembarque leva a saída da Estação. A edificação apresenta
onze vãos voltados para o exterior, enquanto os vãos das fachadas laterais, correspon-
dentes aos fossos de iluminação e ventilação dos galpões sugerindo um emparedado
ainda na época de seu funcionamento (figura 7).

Figura 7: Planta baixa do Prédio da Estação de Patos, localizado à Rua Frei Caneca nº 05, Centro
Patos/Paraíba. Fonte: Elaborado pelos autores, 2016.

A estrutura portante é executada em alvenaria de tijolo maciço com acabamento


de emboço/reboco de massa única (cimento, areia e cal) e com pintura em cal nas cores
características das obras da ferrovia. As aberturas externas são padronizadas e obede-
cem a um ritmo simétrico e harmônico, buscando um equilíbrio estético dos planos
de fachadas (cheios e vazios) marcados pelo arremate de massa cheia e compondo as
cercaduras de vão de portas e janelas. As esquadrias são executadas em madeira maciça
com bandeira fixa e acabamento de tinta a óleo, originalmente pintadas na cor marrom,
muito embora atualmente estejam na cor azul.
A cobertura é executada em telha cerâmica tipo canal de barro, guarnecida com
cobertura independente de telha francesa sobre estrutura de suporte em mão francesa
de ferro em toda extensão da plataforma de embarque e desembarque de passageiros.

844
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Percebe-se que a edificação está abandonada, muito embora esteja em estado regu-
lar de conservação, com problemas pontuais na cobertura, infiltrações, crescimento de
vegetação incrustada na alvenaria, mofo, sujidades e desprendimento do revestimento
de paredes e esquadrias, precariedade de conservação dos pisos e forros e precariedade
no sistema elétrico, hidráulico e sanitário. Portanto, ela necessita de urgente interven-
ção, a fim de garantir a integridade e a conservação de seus elementos arquitetônicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme os levantamentos realizados no local e outros estudos de pesquisa oral


e documental, constata-se a progressiva degradação do conjunto ferroviário de Patos.
Dentre a totalidade dos imóveis que fazem parte de sua implantação inicial - distribu-
ídos entre as áreas: administrativa, operacional e residencial - resistiram apenas em
regular o estado de preservação o Prédio da Estação e o Prédio do Guarda Fios. As demais
edificações – Garagem do Auto de Linha, Depósito de Óleo e o Depósito de Combustí-
veis -, por serem construções executadas sem maiores critérios técnicos, estão bastante
comprometidos. Atualmente alguns elementos foram incorporados em decorrência de
ocupações que se estabeleceram na área por volta do final da década 1990, interferindo
na leitura integral do complexo e, sobremaneira, na ambiência imediata.
Com auxílio dos relatos de moradores que vivenciaram o início da implantação
da Ferrovia, pôde-se confirmar a importância socioeconômica da Estação Ferroviária
para a Cidade de Patos.
Os imóveis residenciais implantados na área da Vila Ferroviária, estão atualmente
ocupados por ferroviários aposentados e familiares, muito embora bastante alterados
pelas sucessivas reformas e adaptações, ainda resguardam a fotografia da ambiência.
Cabe registrar que a antiga residência destinada ao Agente da Estação, que ficava a
poucos metros do prédio da Estação foi demolida e seu terreno vendido para a implan-
tação de um posto de gasolina.
A ausência dos limites físicos que definem a área de propriedade de domínio federal
traz vulnerabilidade não só ao Complexo. Portanto, a necessidade de requalificação do
Complexo Ferroviário de Patos, no sentido de prover melhorias estruturais na área, a
exemplo do que foi acima referenciado, é fundamental para a recuperação dos poucos
edifícios que resistem ao abandono. Tal iniciativa se justifica pelo valor histórico do
conjunto edificado, constituindo-se indubitavelmente como um marco na trajetória
do transporte ferroviário no estado, uma página indispensável para se compreender o
processo de integração econômica e social instituída em um momento histórico do país.

845
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

A Paraíba e seus problemas. 4ª ed. Brasília: Senado


Federal, 1994.

ARANHA, Gervácio Batista. O trem de ferro na Parayba do Norte. Campina Grande:


EduFCG, 2008.

ARANHA, Gervácio Batista. Trem, modernidade e imaginário na Paraíba e região:

2001.

CADIOU, François [et. al.]. Como se faz a história

A Centralidade da Cidade de Patos – PBC: Um

(Mestrado) UFPB, 2008.

A Gretoeste
Brazil. João Pessoa: Ideia, 2016.

GALIZA, Diana Soares de. Modernização sem desenvolvimento na Paraíba: 1890-


1930. João Pessoa: Ideia, 1993.

IPHAN. Inventário de Conhecimento do Patrimônio Ferroviário


2009.

Política e parentela na Paraíba. Record, 1993.

LUCENA, Damião. Patos de todos os tempos: a capital do sertão da Paraíba. João


Pessoa: A União, 2015.

MELO, Josemir Camilo de. Ferrovias Inglesas e mobilidade social no Nordeste.


Campina Grande: EDUFCG, 2007.

MELO, Martinho Ramalho. O Trem de Alagoa Grande


Ideia, 2005.

846
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PREFEITURA MUNICIPAL DE PATOS. História de Patos (PB). João Pessoa: NDIHR/


UFPB, 1985.

do moderno (1950 – 1960). In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA ORAL,


TESTEMUNHOS: HISTÓRIA E POLÍTICA, 10., 2010, Recife, anais...

TARGINO, Itapua Bôtto. Preservação do patrimônio ferroviário: as estações de


trem da Paraíba. – João Pessoa: Ideia, 2001.

ferroviária brasileira. In. Revista Brasileira de História & Ciências Sociais

847
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O VALOR AFETIVO
NA PERSPECTIVA DO
PATRIMÔNIO CULTURAL: UM
ESTUDO SOBRE AS FESTAS
DE AGOSTO DE MONTES
CLAROS (MG)
THE AFFECTIVE VALUE FROM THE CULTURAL
HERITAGE PERSPECTIVE: A STUDY ON THE
AUGUST PARTIES IN MONTES CLAROS (MG)

PATRIMONIO CULTURAL: UN ESTUDIO SOBRE LAS


PARTES DE AGOSTO EN MONTES CLAROS (MG)
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

SOUZA, Luis F. Dias


Mestrando; Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU)
Univesidade Federal de Uberlândia
luis.fellipe.dias@gmail.com

848
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
As Festas de Agosto são festividades populares, tradicionais e religiosas, constituintes do cenário
da Congada, que ocorrem na cidade de Montes Claros (MG), e que têm fortes raízes no catoli-
cismo popular. Apesar de não ser um bem registrado por órgão de preservação, a celebração,
enquanto manifestação cultural, apresenta aproximações com o diálogo de preservação do
patrimônio imaterial por meio de seus valores afetivos para a comunidade, valores estes que
abrangem aspectos históricos, sociais e arquitetônicos, uma vez que, anualmente, ao longo de
seus 180 anos de realização, as comemorações ocupam as ruas e espaços públicos da cidade,
atraindo atividades inusitadas para o lugar e, consequentemente, deixando um legado de
memória e identidade para a cidade através dos tempos. O objetivo desse estudo é estabelecer
um debate sobre valor afetivo, analisando-o como uma variante para consideração das Festas
de Agosto como patrimônio cultural da cidade de Montes Claros, identificando tais aspectos e
relacionando-os à discussão levantada em revisão bibliográfica.

PALAVRAS-CHAVE: valor afetivo. festas populares. Festas de Agosto. Montes Claros

A BSTRACT
The August Parties are popular, traditional and religious festivities, which are part of the Con-
gada scene, which take place in the city of Montes Claros (MG), and which have strong roots in
popular Catholicism. Despite not being a registered asset by a preservation agency, the celebra-
tion, as a cultural manifestation, presents approximations with the dialogue of preservation
of the intangible heritage through its affective values for the community, values that include
historical, social and architectural aspects, since, annually, throughout its 180 years of cele-
bration, the celebrations occupy the streets and public spaces of the city, attracting unusual
activities to the place and, consequently, leaving a legacy of memory and identity for the city
through the ages. The aim of this study is to establish a debate on affective value, analyzing it as
a variant for considering the Festas de Agosto as cultural heritage of the city of Montes Claros,
identifying such aspects and relating them to the discussion raised in the literature review.

KEYWORDS: affective value. intangible heritage. popular parties. August Parties. Montes Claros.

RESUMEN
Las Festas de Agosto son fiestas populares, tradicionales y religiosas, que forman parte de la
escena Congada, que tienen lugar en la ciudad de Montes Claros (MG), y que tienen fuertes raíces
en el catolicismo popular. A pesar de no ser un activo registrado por una agencia de preserva-

849
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ción, la celebración, como manifestación cultural, presenta aproximaciones con el diálogo de


preservación del patrimonio intangible a través de sus valores afectivos para la comunidad,
valores que incluyen aspectos históricos, sociales y arquitectónicos, dado que, anualmente,
durante sus 180 años de celebración, las celebraciones ocupan las calles y espacios públicos de
la ciudad, atrayendo actividades inusuales al lugar y, en consecuencia, dejando un legado de
memoria e identidad para la ciudad a través de los siglos. El objetivo de este estudio es establecer
un debate sobre el valor afectivo, analizándolo como una variante para considerar las Festas de
Agosto como patrimonio cultural de la ciudad de Montes Claros, identificando dichos aspectos
y relacionándolos con la discusión planteada en la revisión de la literatura.

PALABRAS-CLAVE: valor afectivo. fiestas populares. Fiestas de Agosto. Montes Claros.

INTRODUÇÃO

As festas populares religiosas podem ser entendidas como fenômenos culturais


geradores de imagens e signos da vida coletiva. As transformações – temporárias e
permanentes – trazidas pela festa deixam na cidade e na sociedade marcas, rastros e
sinais que contam uma história, muitas vezes não verbal, construída pelo tempo através
de imagens e vivências, e que têm como significado um conjunto de valores, hábitos e
crenças que se misturam através do tempo (SANTANA, 2009).
Para entendimento da valorização dessas manifestações culturais, é essencial
compreender o diálogo entre patrimônio cultural e festas populares, uma vez que tal
discussão está vinculada a um debate sobre valores, instrumentos e objetos no âmbito
patrimonial, que diz respeito a práticas que englobam desde o tombamento de espaços
ligados ao modo de vida e atividades relacionadas aos modos de fazer, ao registro de
práticas culturais tradicionais e a chancela de conjuntos que constituem paisagens
culturais. A ampliação e a inclusão de itens que vão além do material no universo do
patrimônio cultural, demonstra a presença de outros valores que vão além do excep-
cional e monumental, expandindo os critérios tradicionais que transitam pelos órgãos
de preservação.
Para compor e ilustrar esse debate, tem-se como objeto de estudo as Festas de Agosto
de Montes Claros (MG), um dos bens culturais mais expressivos e significativos não só da
cidade, como também da região do norte de Minas. Apesar de não ser um bem registrado,
a celebração, enquanto festa popular e manifestação cultural, apresenta aproximações
com o diálogo de preservação do patrimônio imaterial por meio de seus valores afetivos
para a comunidade, abrangendo aspectos históricos, sociais e arquitetônicos, uma vez
que, ao longo de seus 180 anos de realização, ocupam os espaços coletivos da cidade,

850
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

atraindo atividades inusitadas para o lugar e, consequentemente, construindo um


legado de memória e identidade para a população. O objetivo desse estudo é estabelecer
um debate sobre valor afetivo, analisando-o como uma variante para consideração das
Festas de Agosto como patrimônio cultural da cidade de Montes Claros, identificando
tais aspectos e relacionando-os à discussão levantada através de discussão teórica.

O VALOR AFETIVO NO ÂMBITO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

O amplo debate sobre novos valores, novos instrumentos e novos objetos no âmbito
do patrimônio cultural, que diz respeito a práticas que englobam o tombamento de
espaços ligados ao modo de vida, atividades relacionadas aos modos de fazer, o registro
de práticas culturais tradicionais, e a chancela de conjuntos que constituem paisagens
culturais, já não causa tanto estranhamento, apesar de ainda não ser tão comum quanto
a discussão sobre o tombamento de edificações. A inclusão de itens como esses no
universo do patrimônio cultural demonstra a presença de outros valores que vão além
do excepcional e monumental, expandindo os critérios tradicionais que circulam nos
órgãos de preservação.
Essa mudança no olhar sobre a valorização e a preservação está relacionada à tran-
sição do conceito de “bens culturais na cidade” para o de “a cidade como bem cultural”
(MAGNANI, 2018), cujo qual tem como ponto de partida o pensamento de Ulpiano Bezerra
de Meneses, ao considerar o patrimônio cultural como fato social. Conforme afirmado por
Bezerra de Meneses, o patrimônio é, antes de mais nada, um fato social: ou seja, em suma,
os valores culturais não são criados pelo poder público, e sim pela sociedade (MENESES,
2012). Seu argumento se constrói sob a perspectiva da cidade como um artefato, e este,
uma representação, dotado de sentido e inteligibilidade – feita, fabricada, porém não
num nível abstrato, e sim no interior de um campo de forças, o que supõe relações, trocas,
conflitos entre os atores sociais nos planos econômico, político, cultural. (MAGNANI, 2018).
Dessa maneira, Ulpiano (2012) retrata que a definição do valor cultural de um bem
(e seus componentes cognitivos, formais, afetivos, pragmáticos e éticos) não deve ser
definido pelo poder público, e sim pela sociedade. Tais elementos integrantes de uma
totalidade (o valor) não devem ser considerados fatos isolados pois coexistem entre si,
gerando combinações e sobreposição, apesar de, eventualmente, um aspecto se sobressair
dentre os demais – o chamado de valor dominante.
E dentre esses valores tem-se o valor afetivo, ao qual se direcionará um foco para
tratar sobre o objeto desse estudo. A importância do valor afetivo encontra-se difundida
e consolidada em nosso país enquanto um dos parâmetros a serem observados no que

851
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

diz respeito à elaboração e implementação das políticas públicas de preservação nas


diversas instâncias (tanto federal, quanto estadual ou municipal). (OLENDER, 2016)
A princípio, o estabelecimento dos “vínculos afetivos de pertencimento e solida-
riedade” é característica fundamental da memória social e deve ser valorizada como
constituinte do patrimônio cultural, segundo explicitado no próprio art. 216 da Cons-
tituição Federal de 1988.
(...) constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza mate-
rial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira (Iphan, 2008, p. 39).
Marcos Olender (2016) considera o valor afetivo como o principal indicador social
da relevância histórico cultural de um bem para a sua comunidade. De acordo com o
autor, “o valor afetivo encontra-se, portanto, incorporado e, mesmo, ressaltado, entre
os que devem ser levados em conta quando da eleição daqueles bens que mereçam
a proteção em alguma das esferas do poder público (federal, estadual e municipal).
(OLENDER, 2016, p. 322)
Segundo Ulpiano, o valor afetivo está diretamente relacionado à memória social
e à identidade de um grupo ou de uma cidade
“Não diz respeito propriamente a valores históricos, já que se trata
de identidade e projeção de uma autoimagem. (...) são afetivos, pois
constam de vinculações subjetivas que se estabelecem com certos bens.
Se se tratar de carga simbólica e de vínculos subjetivos, como o senti-
mento de pertença ou de identidade, o domínio é dos valores afetivos.”
(MENESES, 2012, p. 36)
No que diz respeito à memória social, esta não deve se confundir com a histó-
ria enquanto registro e processo cognitivo, uma vez que não se trata de uma simples
rememoração coletiva de fatos passados, mas de uma seleção das representações dos
mesmos, compartilhados de maneira a estabelecer vínculos afetivos de pertencimento e
solidariedade. (OLENDER, 2017, p. 323). Quanto à identidade cultural, que também possui
relação e desempenha papel importante dentro do campo dos valores afetivos, Stuart Hall
disserta sobre seu desdobramento na pós modernidade, diante de sua concepção social
e coletiva, e sobre sua contribuição quanto à atribuição de valores a objetos e lugares
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o
“interior” e o “exterior” – entre o mundo pessoal e o mundo público. O
fato de que projetamos a “nós mesmos” nessas identidades culturais,

852
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores,


tornando-os “parte de nós”, contribui para alinhas nossos sentimentos
subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e
cultural. A identidade, então, costura (ou, pra usar melhor uma metá-
fora médica, “sutura”) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos
quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos recipro-
camente mais unificados e predizíveis. (HALL, 2015, p. 11)
Diante disso, pode-se afirmar que a memória coletiva e a identidade cultural tam-
bém estão em sinergia junto ao aspecto afetivo na atribuição de valores e na definição
de elementos, práticas e conjuntos considerados como patrimônio cultural.

AS FESTAS DE AGOSTO COMO PATRIMÔNIO CULTURAL DE MONTES CLAROS


(MG)

Essa breve discussão anterior tem como intuito direcionar o olhar desse estudo para
a cidade de Montes Claros, localizada no norte de Minas Gerais (Figura 01). Considerada
polo regional e a quinta maior em número de habitantes no estado, foi fundada em 1707
como Fazenda Montes Claros e elevada à categoria de cidade em 1857. Em seus 162 anos
de história, Montes Claros tem acumulado um vasto patrimônio cultural, composto não
apenas de conjuntos edificados, mas também de objetos litúrgicos, acervos, sítios natu-
rais, celebrações e tradições que fazem parte da cultura popular – esta que foi mantida e
transmitida principalmente de forma oral por décadas. Tais elementos contribuíram (e
ainda contribuem) para o conhecimento da sociedade a cada época vivenciada, uma vez
que o processo o patrimônio cultural é um reflexo da expressão coletiva. (CANAN, 2006).

853
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 01: Localização da cidade de Montes Claros, MG. Fonte: Google Maps, adaptado pelo autor.

Sua história a fez ser reconhecida dentro de Minas Gerais como “cidade da arte e
da cultura”, não só pelos espaços culturais que a compõem, como o Museu Regional do
Norte de Minas, o Centro Cultural Hermes de Paula e o Armazém Montes Claros (antigo
Armazém de Cargas da Rede Ferroviária), com também pela série de eventos e manifes-
tações culturais que integram o calendário de festas da cidade ao longo do ano, como
a Folia de Reis, a Festa do Pequi, as Festas de Agosto e o Festival Folclórico, consideradas
atualmente as maiores e mais importantes festividades do município.
Contudo, faz parte do contexto da cidade não apenas a paisagem natu-
ral e edificada, as manifestações culturais também são produtos da
sociedade. Neste sentido, Montes Claros destaca-se por suas tradições
do folclore, festas religiosas e música, fato que a faz garantir o título
como “cidade da arte e da cultura”. Dentre as mais tradicionais estão as
festas de agosto que enchem as ruas da cidade de alegria e constituem
a maior manifestação cultural tradicional e popular do município.
(CANAN, p. 109)
Montes Claros abriga uma mistura de diversas culturas e, principalmente, de festas
populares, as quais antigamente eram caracterizadas por seu contexto rural, e se apre-
sentavam como palco de socialização e vivência religiosa (Costa, 1997). Contudo, já no

854
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

século XIX, a cidade torna-se ponto de intersecção de relações funcionais de outra espécie.
A vida urbana é cada vez mais mediada por “conexões sistêmicas não configuráveis” e
“as aglomerações urbanas emanciparam-se do velho conceito de cidade (Costa, 1997),
dando um outro olhar sobre essas manifestações culturais no espaço urbano, e trazendo
modernização junto a uma onda desenvolvimentista na cidade.
Dentre a rica cultura do popular montesclarense, as Festas de Agosto (Figura 02), uma
celebração de matriz africana e que faz parte do universo das Congadas – ocupam lugar
de principal manifestação cultural tradicional do município, e de maior engajamento
comunitário, sendo uma das mais antigas festividades na cidade. Nascida como uma
tradição religiosa – e que com o passar do tempo expandiu-se também para uma fes-
tividade “profana” – as Festas de Agosto constituem parte expressiva e significativa do
catolicismo popular da cidade de Montes Claros, em homenagem a Nossa Senhora do
Rosário, a São Benedito e ao Divino Espírito Santo, sendo um dos principais elementos
que contribuíram para o desenvolvimento urbano e cultural local, além de símbolo
representativo de identidade, memória coletiva, e do patrimônio cultural da cidade.

Figura 02 – As Festas de Agosto de Montes Claros (MG). Fonte: acervo do autor.

Constituinte do cenário da Congada (apesar de o tempo “Congado” não ser conhe-


cido e utilizado popularmente na manifestação na cidade), o evento é parte integrante

855
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

do calendário oficial de festas populares do município e atrai um grande número de


turistas da região do Norte de Minas Gerais e de demais estados do Brasil para prestigiar
e participar das festividades. A celebração (que geralmente acontece durante a segunda
semana do mês de agosto, entre os dias 15 e 20), surgiu por iniciativa popular é cons-
tituída por missas, bênçãos, levantamento de mastros, em homenagem às divindades
de Nossa Senhora do Rosário, São Benedito e ao Divino Espírito Santo, e da tríade de
apresentações folclóricas encenadas pelos grupos artísticos constituintes (os chamados
ternos: os Catopês, Marujos e Caboclinhos), que conduzem as bandeiras das divindades,
e trazem um pouco de sua cultura e costumes expressados por meio de danças típicas,
desfiles e performances.
A notícia mais antiga notícia sobre as Festas de Agosto estão datadas no dia 23 de
maio de 1839, quando Marcelino Alves requereu, junto à Câmara Municipal “licença para
tirar esmolas para as festas de Nossa Senhora do Rosário e do Divino Espírito Santo, que
pretendia fazer nesta freguesia”. Não constam nos registros as festas, mas quando se
comemorou a coroação de D. Pedro II em 1841, depois do cortejo ou passeata com a efígie
do imperador, foram permitidos vários divertimentos durante três dias. “Catopês, cava-
lhadas, volantins e quaisquer outros divertimentos que não ofendam a moral pública.”
A partir daí criaram raízes as Festas de Agosto, e hoje são parte integrante da memória,
da identidade e da cultura popular de Montes Claros.
Ao longo do tempo de sua realização, ao promover nas ruas do centro da cidade
práticas que representam resistência e a perpetuação de tradições e promoção da inte-
gração social, as Festas de Agosto se tornaram um verdadeiro símbolo cultural para a
cidade de Montes Claros, modificando temporariamente o espaço público do centro da
cidade através da ocupação e ornamentação das ruas, avenidas e praças onde a mesma se
ambienta (Figuras 03 e 04), com símbolos e representações de arte, memória, resistência
e devoção, além de permear a relação dos ocupantes momentâneos e dos moradores da
cidade com todo o contexto temporal, espacial e social.
O campo de constantes trocas, imposições e redefinições de valores
culturais distintos tem permeado o universo dos grupos que realizam
suas performances durante o evento, estabelecendo suas estruturações
atuais. Na contemporaneidade, essas manifestações se adequam às novas
perspectivas sociais, mas encontram as suas formas particulares de
preservar e manter os valores e significados de uma tradição que a cada
ano se renova, sem perder a essência de suas raízes histórico culturais
e seus traços identitários. (QUEIROZ, 2005, p. 46).

856
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figuras 03 e 04: Comparação de uma rua do centro da cidade antes (à esq.) e durante (à dir.)
as Festas de Agostos, em Montes Claros (MG). Fonte: Google Street View, 2018.

Atualmente, os percursos tomam as ruas centrais da cidade, onde também são


instaladas barracas com mostras e comércio de artesanato e comidas típicas (Figura
05), constituindo assim um incentivo para a disseminação da cultura e dos costumes da
região, tanto pela população local quanto pelos visitantes, evidenciando como presente
o sincretismo, é uma das fortes marcas da festa. Segundo Massimo Canevacci
O sincretismo refere-se – quer como processo, quer como resultado – a
todos os níveis dos sistemas socioculturais de tipo e coercitivo, explícito
e implítico, inovador e renovador. Ele diz respeito àqueles trânsitos ele
elementos culturais nativos e alheios que levam a modificações, justa-
posições e reinterpretações, que a cada vez podem incluir contradições,
anomalias, ambiguidades, paradoxos e erros. (CANEVACCI, 1942, p. 22)

857
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 05: Praça ocupada durante as Festas de Agosto. Fonte: PMMC, 2019

É importante ressaltar que, nas Festas de Agosto, o sincretismo se faz presente não
em seu sentido “pejorativo” de confusão e de uma mistura contraditória, ou até mesmo
como uma descaracterização da tradição nas Festas, mas sim, como destaca Ferretti,
O sincretismo pode ser visto como característica do fenômeno religioso.
Isto não implica em desmerecer nenhuma religião, mas em constatar
que, como os demais elementos de uma cultura, a religião constitui
uma síntese integradora englobando conteúdos de diversas origens. Tal
fato não diminui, mas engrandece o domínio da religião, como ponto
de encontro e de convergência entre tradições distintas (FERRETTI,
1997, p 01)
A performance dos ternos, somada ao festival que ocorre paralelamente, podem ser
vistas como um verdadeiro evento: com estrutura e características definidas pelos rituais
e adequadas aos espaços e contextos sociais que as acolhem. Essas práticas, sob a ótica da
manifestação cultural, se estabelecem a partir de diferentes processos que constituem
e vão se moldando em dimensões identitárias e “geradoras” de memória, tendo como
referências as perspectivas de época, lugar e momento em que ocorrem. (QUEIROZ, 2005).

858
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ASPECTOS DE VALOR AFETIVO NAS FESTAS DE AGOSTO

Diante disso, torna-se possível identificar alguns traços e elementos os quais seriam
considerados aspectos históricos, arquitetônicos e sociais que reforçariam uma justi-
ficativa das Festas de Agosto como uma referência afetiva para a população da cidade
de Montes Claros.

O engajamento popular

A participação popular não se restringe apenas aos espectadores e consumidores


das Festas. A organização dos cortejos é feita pelos próprios habitantes, os chamados
“Festeiros”, por exemplo, que são pessoas participantes das festas, ou adeptos das mesmas,
membros de famílias sorteadas anualmente, e que são responsáveis pela organização e
realização dos Reinados de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito, bem como do
Império do Divino Espírito Santo; e os Mordomos, que são os responsáveis pelos levan-
tamentos dos mastros dos respectivos santos homenageados.
A visibilidade social que a manifestação ganhou em Montes Claros, com o tempo,
também se tornou uma preocupação por parte dos grupos, de evidenciar aspectos que
constituem as suas características identitárias frente ao público. Nesse sentido, há
uma constante necessidade dos Ternos em organizar elementos que configuram a sua
performance de acordo com o que eles consideram importante para o grupo ser “bem
visto” pelos espectadores. A visão social está em constante diálogo com as definições
estruturais das performances (QUEIROZ, 2005).

A localização

Os cortejos percorrem as principais ruas do centro da cidade, contudo, o levan-


tamento dos mastros (que dá início às festividades) e a concentração dos percursos
acontecem na Praça Portugal, onde está localizada a Igreja do Rosário, ou popularmente
conhecida como “Igreja dos Catopês”.
A Igreja do Rosário teve em 1833, quando Montes Claros se emancipou, o pedido
oficial de construção, e foi edificada em 1839 (Figura 06). Entretanto, foi demolida em
1960, em virtude da modernização da cidade, pois segundo alguns registros, ocupava
um espaço indevido, atrapalhando a passagem de uma avenida. Em seu livro “O Patri-
mônio Histórico de Montes Claros”, Milene Antonieta Coutinho Maurício, traz o seguinte
comentário de Nelson Vianna, extraído do “Efemérides Montesclarenses”:

859
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Em 22 de maio de 1839, em resposta aos devotos de Nossa Senhora do


Rosário, que requeriam lugar para a edificação do templo, o Fiscal da
Câmara de Montes Claros de Formigas recomendou que se deferisse o
pedido, ficando a rua com 45 palmos de largura, devendo a nova via
ter, em sua entrada, nessa praça, uma direção reta. A igreja que se pre-
tendia construir era a do Rosário, que permaneceu, por mais de um
século, no início da atual avenida Cel. Prates, naquele tempo, rua do
Jatobá. Trazia indevidamente, na fachada, a data 1834 sobre a porta
principal. Foi condenada pela Prefeitura Municipal de Montes Claros,
que a demoliu em 1960.

Figuras 06 e 07: À esquerda, construção original da Igreja do Rosário. Á direita, o projeto de

Claros

O então Prefeito decidira pela demolição da Igrejinha do Rosário, porque ela, na


sua opinião, “atravessava” a hoje avenida. Assim edificou-se uma nova capela (Figura
07) no mesmo local – ou quase –, construída pelos próprios Catopês, com uma fachada
projetada em linhas modernas, inspirada nas barcas do grupo dos Marujos, – uma Nau
Catarineta. A ideia da edificação de uma Capela nos moldes de uma barca de Marujos foi
aceita pelo então prefeito, cuja construção teve as mãos motivadas e hábeis de membros
do 1° Grupo de Catopês de Nossa Senhora do Rosário. (MENDONÇA, 2017). O projeto foi
concebido no ano de 1962, pelo arquiteto Mércio Guimarães.
O Padre João Batista, que celebra tradicionalmente os ritos religiosos das festivida-
des há algum tempo, conta que logo que começou em Montes Claros a inspiração de se
homenagear a santa, o local da igreja servia de ponto de encontro. “Aquele recanto era só
uma roça, ninguém sonhava que tomaria a proporção que tem. Foi feita uma capelinha
para Nossa Senhora do Rosário e todas as comemorações, as missas, representações,
eram feitas lá”. (O NORTE, 2015)

860
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A praça existe ainda como um local sagrado e fundamental para a celebração da


festa. O lugar faz parte da festa e a festa é daquele lugar. Juntos, a Igreja do Rosário e
a praça constituem os espaços onde a memória se fixou e serviriam como uma nova
forma de apreender a memória, e podem ser considerados como os chamados “lugares
de memória” da cidade. Segundo Pierre Nora
O lugar de memória existiria onde o simples registro acaba. Ele seria
o registro e aquilo que o transcende, o sentido simbólico inscrito no
próprio registro (...) são, portanto, locais materiais e imateriais onde se
cristalizaram a memória de uma sociedade, locais onde grupos ou povos
se identificam ou se reconhecem, possibilitando existir um sentimento
de formação da identidade e de pertencimento. (NORA 1993, p. 13)

Um outro elemento que induz uma referência afetiva das Festas pela população
é a característica decoração dos espaços nas ruas do centro da cidade onda a mesma é
sediada. A cidade, nestes espaços, se enfeita com fitas, luminárias e gravuras inspiradas
nos representantes do Congado, isto é, os Caboclinhos, os Marujos e em especial os
Catopês (Figuras 08 e 09).

Figuras 08 e 09: ornamentação das ruas da cidade durante as Festas de Agosto. Fonte: acervo
do autor.

861
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

A ornamentação das Festas quebra o estado de normalidade dos espaços coletivos e


instauram o que Duvignaud chama de “subversão exaltante” (1983, p. 31), que desperta e
anima os sentidos. Na festa, o homem perde o domínio de sua racionalidade e alcança a
dimensão do imaginário. É remetido ao terreno das “dimensões ocultas”. Para Duvignaud
(1983, p. 55), são dimensões da existência que deixam de corresponder às conformações
estabelecidas no espaço cotidiano, contestam e destroem tais formas.

Apesar de não haver um dado que afirme com precisão a quantidade de pessoas
que viajam para Montes Claros, sejam nascidos na cidade, ou apenas como turistas, com
o intuito de prestigiar as Festas de Agosto, é notável a presença de pessoas que visitam
ou retornam ao município com esse objetivo. De acordo com Marques e Brandão (2015)
“é possível observar que em muitas comunidades o retorno dos ‘filhos da terra’ se dá,
sobretudo, em função da festa e que mesmo enraizados em outros espaços, estes indi-
víduos mantém vínculos afetivos nos seus lugares de origem, ou seja, no lugar da festa.”
(MARQUES; BRANDÃO, 2015, p. 23)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As práticas culturais sempre têm muito a falar da ambiência onde elas se manifes-
tam. Montes Claros é uma cidade que festeja tradições nas Festas de Agosto. Nas Festas
se estabelece o locus das práticas populares organizadas tradicionais de boa parte da
região norte do estado cuja principal manifestação está relacionada ao Congado.
Em 2019, as Festas de Agosto completaram 180 anos, segundo a Secretaria Municipal
de Cultura de Montes Claros (2018), responsável pela organização do evento, viabilizado
por meio da Lei Estadual de Incentivo à Cultura. Tradicionalmente, ela é uma celebração
de pertencimento à comunidade local e um campo onde se encenam relações sociais e
econômicas, atraindo cada vez mais visitantes regulares, comerciantes e investidores
para as principais atividades da festa.
As Festas de Agosto assumem, na contemporaneidade, uma posição de destaque e
são amplamente legitimadas e reconhecidas, constituindo um cenário a céu aberto das
manifestações do Congado no norte de Minas. (MALVEIRA, 2002) Os Catopês nas ruas se
“espetacularizam” e chamam a atenção de muitas pessoas que saem nas janelas, portas
e sacadas cantando e aplaudindo os ternos.
Atualmente, as festas ganharam visibilidade também pelo incentivo às políticas
públicas que permitiram que a população de Montes Claros percebesse a ressonância

862
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

dessas memórias. Pode-se dizer que as Festas se tornaram o locus de práticas populares
tradicionais organizadas de toda a região.
Alguns espaços da cidade de Montes Claros carregam rastros material e imate-
rialmente formados e representados para os sentidos afetivos, o que quer dizer que as
funções sociais dos espaços ocupados pela Festa, enquanto intervenção na ruptura do
cotidiano da vida urbana podem ser vivenciados e percebidas num âmbito temporal e
espacial, justificando assim os aspectos pelos quais as Festas podem serem consideradas
patrimônio da cidade. Segundo Mendonça (2017) as Festas de Agosto já tiveram, junto
ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), quando tinha como
superintendente o historiador montesclarense Fabiano Lopes de Paula, um pedido
para que que fossem registradas como “Bem Cultural Imaterial da União”. Entretanto,
o processo nunca se firmou.

863
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS

CANAN, L. F. Leitura da paisagem urbana da cidade de Montes Claros: análise


das transformações do “coração do núcleo urbano”. Orientador: Altino Barbosa

Horizonte, MG, 2014. Disponível em: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/


TratInfEspacial_CananLF_1.pdf. Acesso em: 7 set. 2019.

COSTA, J. B. de Almeida. Cultura, Natureza e Populações Tradicionais: O Norte de

Municipal de Montes Claros, dez/fev, 2005.

Festas e Civilizações. Tradução: L.F. Raposo Fontenelle.


Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará/Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1983.

antropol.
www.scielo.br/scielo
.php?script=sci_arttext&pid=S0104-71831998000100182&lng=en&nrm=iso>. Acesso

IPHAN. Ata da 56ª Reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural,


15/5/2008. Portal Iphan. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/

pagina=2. Acesso em: 07 set 2019.

MAGNANI, J. G. C. Patrimônio cultural urbano, ?de perto e de dentro?: uma


Revista do Patrimônio, Brasília, DF, n. 37, p. 307-329,
2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/revista_
patrimonio37.pdf. Acesso em: 7 set. 2019.

Os Catopê de São Benedito em Montes Claros: rastros de uma


ancestralidade mineira negra e festiva. Orientador: Lúcia Fernandes Lobato.

Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/9663. Acesso em: 7 set.


2019.

MARQUES, L.; BRANDÃO, C. As festas populares como objeto de estudo:

864
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

, v. 9, n. 3, p. 7-26, 1 abr 2015. Disponível em: <


https://revistas.ufg.br/atelie/article/view/33822
>. Acesso em: 07 set 2019

MAURICIO, M. A. C. O patrimônio histórico de Montes Claros. Belo Horizonte:


Unimontes, 2005. 151 p.

MENDONÇA, R. . In: ARTE E FATOS. A Igrejinha do Rosário ou dos Catopê. Montes


Claros, MG, 2017. Disponível em: https://patrimonioculturalmoc.blogspot.
com/2017/07/. Acesso em: 7 set. 2019.

MENESES, U. T. B. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. I


Fórum Nacional do Patrimônio Cultural: Sistema Nacional de Patrimônio Cultural :

Brasília, DF, v. 1, p. 25-39, 2012. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/


publicacao/Anais2_vol1
_ForumPatrimonio_m.pdf. Acesso em: 7 set. 2019.

Projeto História : Revista do Programa de Estudos


Pós-Graduados de História, [S.l.], v. 10, out. 2012. ISSN 2176-2767. Disponível em:
<https://revistas.pucsp.br/revph/
article/view/12101>. Acesso em: 07 set 2019.

O NORTE DE MINAS. Igreja Nossa Senhora do Rosário caminha para dois


séculos de história. Montes Claros, MG, 2015. Disponível em: https://onorte.net/

OLENDER, Marcos. O afeto efetivo: sobre afetos, movimentos sociais e


preservação do patrimônio. Revista do Patrimônio, Brasília, DF, n. 35, p. 321-341,
2017. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/revpat_35.
pdf. Acesso em: 7 set. 2019.

QUEIROZ, L. R. S. Performance musical nos Ternos de Catopês de Montes


Claros. Orientador: Ângela Elizabeth Lühning. 2005. 237 p. Tese (Doutorado em
Etnomusicologia) - UFBA, Salvador, BA, 2005. Disponível em: https://repositorio.
ufba.br/ri/handle/ri/9099. Acesso em: 7 set. 2019.

SANTANA, M. C. Alma e festa de uma cidade: devoção e construção da Colina do

865
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

CIDADES MODERNAS: O
CASO DE BRASÍLIA
THE PLANNED EMPTINES OF MODERN CITIES:

EL VACÍO PLANIFICADO DE LAS CIUDADES


MODERNAS: EL CASO DE BRASILIA
PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

GOMES, Beatriz de Oliveira Alcantara


Arquiteta e Urbanista; Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
beatriz.gomes@iphan.gov.br

866
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O presente artigo parte da análise dos anseios dos pioneiros do movimento moderno em incluir
na arquitetura e no urbanismo espaços livres, como soluções de fluidez, salubridade e bem estar
social. São trazidos para a discussão autores contemporâneos que fazem estudos sistemáticos
acerca do que passa a ser chamado “vazio planejado” e, a partir dessa conceituação, busca-se
entender a importância do termo para a construção da identidade da cidade moderna. Brasília
é tomada como arquétipo desta discussão, por ser cidade símbolo, modelo utópico do desejo
moderno, que permite a observação clara das intenções de seu projetista. Além disso, a capital
é também arquétipo de intervenções sugeridas às cidades modernas – cujas consequências,
não há ainda distância temporal que permita avaliar – como, por exemplo, os riscos de aden-
samento, verticalização e perda de sua estrutura baseada na predominância do vazio sobre o
cheio. Essas discussões levam à conclusão que preservar a identidade das cidades modernas
pressupõe preservar também o vazio e as configurações que dele se constituem.

PALAVRAS-CHAVE: vazio. Brasília. cidade moderna. preservação.

A BSTRACT
The present article is based on the analysis of the aspirations of pioneers of the modern movement
to include free flowing spaces as a solution of fluidity, wholesomeness and social well-being in
architecture and urbanism. Contemporary authors who make systematic studies about what is
called “planned emptiness” are brought to the discussion and, from this conceptualization, we
try to understand the importance of the term for the construction of the identity of the modern
city. Brasília is taken as the archetype of this discussion, because it is a symbolic city, an utopian
model of modern desire, which allows the clear observation of the intentions of its designer.
Moreover, the capital is also archetype of interventions suggested to modern cities - whose
consequences, there is not yet a temporal distance that allows evaluation - as, for example,
the risks of densification, verticalization and loss of its structure based on the predominance
of the void over the full. These discussions lead to the conclusion that preserving the identity
of modern cities presupposes preserving also the emptiness and the configurations that are
constituted from it.

KEYWORDS: void. Brasilia. modern city. preservation.

RESUMEN
Este artículo analiza las aspiraciones de los pioneros del movimiento moderno para incluir

867
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

espacios libres en la arquitectura y en el urbanismo como soluciones de fluidez, salubridad y bie-


nestar social. Los autores contemporáneos referidos en la discusión hacen estudios sistemáticos
sobre el término “vacío planificado”, concepto fundamental para comprender la construcción
de la identidad de la ciudad moderna. Símbolo de la arquitectura moderna, Brasilia es utilizada
como el arquetipo de esta discusión. Las intervenciones morfológicas y sociales en la capital de
Brasil son modelo para outras ciudades modernas. Densificación, verticalización y cambio de
su estructura predominantemente vacía son modificaciones recientes que todavía necesitan
tiempo para ser evaluadas. Estas discusiones llevan a la conclusión de que preservar la iden-
tidad de las ciudades modernas presupone también preservar el vacío y sus configuraciones.

PALABRAS-CLAVE: vacío. Brasília. ciudad moderna. preservación.

INTRODUÇÃO

Quando se trata de movimento moderno, é indispensável mencionar sua impor-


tância em âmbitos não apenas arquitetônicos, mas sua origem na busca por respostas
para questões sociais. A cidade moderna, aquela amplamente baseada no urbanismo
racionalista, vai além da proposta de um traçado, ela explora uma nova forma de viver e
conviver. A Carta de Atenas, manifesto resultado do IV Congresso Internacional de Arqui-
tetura Moderna (CIAM), teve sua versão final redigida em 1941 por Le Corbusier e trouxe
em listagem o que seria uma espécie de manual para a confecção da cidade moderna.
O documento se propõe a solucionar aflições urbanísticas de um mundo pós-guerra
onde se clamava por melhorias de qualidade de vida, modernização, funcionalidade e
respeito ao ser humano. (FRAMPTON, 2008).
Ao ler tal carta, chama atenção o trecho que coloca explicitamente o sol, a vegeta-
ção e o espaço como matérias primas do urbanismo funcional. Ao fazer essa definição,
Le Corbusier assume o desejo do movimento moderno por locais mais permeáveis,
fluidos e salubres. Essa vontade fundamentada no campo do bem estar social, e não na
estética formal, resultará em uma das principais características da cidade moderna: o
apreço pelos espaços livres, ou seja, o apreço pelo vazio. Apesar de tal palavra sugerir o
inexistente, o nulo, o descaso, seu significado leva a outra definição como explica Sabóia:
Diferentemente do significado mais geral de vazio urbano, definido por
espaços residuais, áreas intersticiais ou descontinuidades no território
metropolitano, o vazio moderno é o espaço planejado caracterizado por

868
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

extensas áreas entre edifícios isolados ou internamente por grandes


espaços projetados com o mínimo de elementos. (SABOIA, 2016, p. 51)
Mesmo que não possuíssem plena consciência da noção de vazio planejado nem
conhecessem a sua definição, os modernos já o utilizavam como parte essencial da identi-
dade do urbanismo funcional. O vazio permeia os mais diversos objetivos do movimento
moderno, seja no fluxo livre por meio da ausência do muro, seja na entrada do sol e na
ampla ventilação por meio da ausência da parede, seja na proposta de cidades jardins
e no desfrute dos benefícios da presença significativa de vegetação como consequência
da ausência de altas densidades urbanas.
Tais objetivos pontuados na Carta de Atenas representam uma vontade teórica,
inalcançável em sua totalidade quando colocada em prática. Ainda assim, essa ideia
de urbanismo fundamentou outras tantas que, mesmo preservando uma essência em
comum, deram origem à grande diversidade de cidades símbolos do movimento moderno
como, por exemplo, Brasília.
É notório que o caso da capital federal representa a tentativa de materialização da
utopia urbana moderna fundamentada nos ideais de Le Corbusier e no documento da
Carta de Atenas. Palazzo e Sabóia (2012) denunciam a ideia de Brasília como resultado
de um projeto puro, construída a partir do nada e executada pela vontade única de
Lucio Costa, Oscar Niemeyer e Juscelino Kubitschek. Outra crítica é quanto à tentativa
da preservação de uma cidade real com base exclusiva em um plano teórico, o que con-
sequentemente levaria ao seu engessamento. É nítida a importância de tais discussões,
mas é também fundamental o reconhecimento da profunda ligação entre a identidade
de Brasília e o plano de Lucio Costa.
É justamente nessa ligação que mora uma característica comum a todas as pro-
postas de urbanismo moderno: o vazio. Portanto, é fundamental para este trabalho
discuti-lo e reconhece-lo nas diretrizes do Plano Piloto como uma forma de evidenciar
sua importância para o traçado racionalista e entendê-lo como elo entre as cidades
simbólicas modernas.
Ao longo dessa discussão não será questionado como se deram as apropriações
dos vazios planejados posteriormente, se eles contribuíram positiva ou negativamente
para vivência da cidade. Ainda que seja reconhecida a extrema importância e necessi-
dade de tais discussões, esse artigo tem por objetivo procurar contribuir para o debate
acerca do vazio moderno por meio do reconhecimento da sua existência e da defesa de
sua preservação por ser ele essência daquilo que caracteriza Brasília e outras cidades
simbólicas modernas.

869
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1 - Presença do vazio na Escala Monumental. Fonte: Bento Viana/ MTur

Durante as décadas de 80 e 90, o mundo presenciou o surgimento de uma onda de


interesse de instituições na conservação do patrimônio moderno. São exemplos a criação
do DOCOMOMO (Documentation and Conservation of building, sites and neighborhoods
of the Modern Movement) e a preocupação do ICOMOS (International Council of Monu-
ments and Sites) com o tema. Dentre as várias discussões levantadas naquele momento,
estavam as dificuldades para identificar o patrimônio moderno e compreender suas
especificidades. Nesse contexto, acontece o tombamento e, em 1987, o reconhecimento,
pela UNESCO, de Brasília como patrimônio mundial.
Hoje, mais de três décadas após o tombamento da capital, a discussão em torno do
patrimônio moderno parece ter alcançado certa maturidade. Mesmo que se reconheça
o avanço do tema em termos teóricos, é notável que ainda exista um descompasso com
relação às medidas de conservação em um âmbito mais prático. Corroborando com essa
ideia, Susan Macdonald (2009) afirma:
A conservação do patrimônio do século 20 tem sido caracterizada pela
contínua revisão das questões filosóficas e a discussão parece mais
circular do que progressiva. Embora muito progresso tenha sido feito,

870
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

a conservação clara do moderno ainda não é predominante na maioria


dos lugares, no âmbito público ou profissional. (MACDONALD, 2009, p. 2)
Como consequência deste descompasso, atualmente, a capital federal, assim como
outras cidades modernas, tem recebido propostas de intervenções que possivelmente
levariam à sua verticalização e adensamento colocando em risco a essência de sua
identidade, centrada no vazio planejado. Portanto, este artigo se justifica na necessi-
dade de se aprimorar o debate acerca do conceito desse tipo de vazio, e de se aprofundar
no entendimento da sua função dentro de um traçado urbano moderno, para que dê
melhor contorno à necessidade de sua preservação para a manutenção da integridade
e autenticidade da cidade moderna.
Retomando o texto de MacDonald (2009), expõem-se aqui três dos diversos pontos
que a autora propõe para impulsionar o debate e colocar em prática a conservação do
patrimônio moderno, são eles:
1. Ampliar o escopo do patrimônio do século XX;
2. Integrar a identificação das conquistas do século XX em estudos regionais;
3. Desenvolver iniciativas de conscientização e participação popular
Tais pontos orientam estruturalmente este texto, que partirá de uma análise his-
tórica do surgimento do vazio como instrumento urbano. Em seguida, apresentará
o vazio como constituinte da identidade de Brasília e, posteriormente, adentrará na
questão fundamental referente ao reconhecimento da importância de se preservar o
vazio planejado na cidade moderna.

DA CARTA DE ATENAS AO PLANO PILOTO

A Carta de Atenas, como já mencionado, tornou-se síntese do ímpeto moderno. Seu


caráter acessível e explicativo possibilitou a difusão do modernismo e a consolidação de
um espírito arquitetônico e urbanístico global. Seu texto e suas propostas não focavam
em uma localidade específica, pelo contrário, partiram da premissa que os problemas
eram fundamentalmente os mesmos em todo o mundo e, consequentemente, as soluções
também seriam as mesmas.
Para os modernos, o grande problema a ser confrontado tinha raízes em questões
sociais, no adensamento desmedido, na falta de salubridade, nas relações entre espaços
públicos e privados e no sufocar dos espaços urbanos. Eles desacreditavam na estética
pela estética, a arquitetura deveria ter preocupações mais profundas que a forma. Seu

871
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

resultado plástico seria fundamentado em necessidades humanas básicas e o ornamento


não encontraria protagonismo facilmente. (MACDONAD, 2009)
Dessa maneira, a carta chegou ao seguinte postulado: “o sol, a vegetação e o espaço
são as três matérias primas do urbanismo”. Essa afirmação alertou para o interesse no
vazio planejado como ferramenta urbanística. A solução para a cidade do século XX passou
então pelo não ocupar, pela permissão ao vazio e pelo desfrute dos seus benefícios. Para
eles a ausência da matéria permitia o livre acesso do ar, da luz, da vegetação, das pessoas
e da vida. Dessa forma surgiram as propostas de redução da densidade juntamente com
a integração de amplas áreas verdes livres, pilotis que permitiam o fluxo desimpedido,
aberturas que propiciavam a ventilação e iluminação, substancialmente a prevalência
do vazio sobre o cheio não só na malha urbana, mas por todas as partes.
Os modernistas acreditavam que essas medidas levariam à arquitetura ideal, à
cidade ideal, à sociedade ideal, independentemente de em qual local seriam implantadas.
A utopia presente no espírito universalista moderno foi então levada e rapidamente
adotada em diferentes países. Enquanto na Europa o movimento brotou por meio da
elaboração da sua teoria e pela materialização dos primeiros e importantes projetos, no
mundo ele foi ramificado e diversificado alcançando diferentes características.
Nos países emergentes, que passavam por acelerado processo de desenvolvimento,
o modernismo encontrou o espaço fértil necessário para ir além das intervenções urba-
nas e da arquitetura. Foram nesses locais que os modernos encontraram área livre
suficiente, poucas críticas às suas intenções e predisposição governamental para altos
investimentos públicos em projetos monumentais que não só representassem o novo,
mas as conquistas dessas sociedades. Neles, foram possíveis as construções de cidades
simbólicas inteiramente baseadas em planos urbanísticos modernos a partir de grandes
terrenos livres, onde antes não existiam concentrações urbanas de tamanho significativo.
Por terem esse propósito ilusório de serem imaculadas, essas cidades puderam propor
de se voltar para o futuro, sem o peso do passado, se tornaram assim vitrine da urbe do
século XX, carregaram consigo as diretrizes da Carta de Atenas e romperam com o antigo,
abrigando a alma da arquitetura e do urbanismo moderno.
O Brasil, que na década de 50 do século passado era dirigido com base em um plano
de metas que prometia 50 anos de progresso em cinco anos de realizações, abraçou a
proposta modernista de Lucio Costa para a criação de uma nova capital federal que
estaria à altura do então acelerado desenvolvimento do país. Ao analisar “Registro de
uma Vivência”, autobiografia de Costa (2018), fica explícita a já sabida admiração do
urbanista brasileiro por Le Corbusier e a parceria que se deu entre eles no decorrer de
suas carreiras. É narrado em suas páginas, mais especificamente no texto “Razões da nova

872
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

arquitetura”, de 1934, a defesa pela ruptura com a velha arquitetura e o acolhimento do


modernismo, chamado no texto de nova arquitetura. No último paragrafo, o autor sinte-
tiza o comportamento universalista do modernismo e assume suas adaptações: “Porque,
se as formas variaram – o espírito ainda é o mesmo, e permanecem, fundamentais, as
mesmas leis.” (COSTA, 2018, p. 116)
Esse texto, escrito quase 30 anos antes da inauguração de Brasília, antecipa o pro-
pósito arquitetônico da capital federal. A cidade, que deveria ser a representação de um
período de progresso, deveria ser também a síntese do que se esperava do movimento
moderno brasileiro na arquitetura e no urbanismo. Portanto, seu plano piloto é de
espírito universal, mas sua forma é singular e nacional.
Mesmo idealizada em um segundo momento do movimento moderno - quando
o projeto arquitetônico se desvinculou do conteúdo social - Brasília foi resultado da
preocupação com o bem estar coletivo. Lucio Costa se aproximou de Le Corbusier e da
Carta de Atenas para propor uma cidade onde o vazio se sobrepunha ao cheio. Onde ele
acreditava que o urbanismo e a arquitetura guiariam o Brasil em direção ao progresso
não só econômico, mas também social. Hoje, por mais que sejam reconhecidas incon-
sistências no sonho da época, Brasília se mantém prova viva da utopia moderna por
meio de seus espaços constituídos.

SOBRE BRASÍLIA E SOBRE O VAZIO

Brasília é cidade viva em constante transformação. Sua existência começa antes do


traçado regulador e se estende muito além do que foi sonhado para ela. Contudo, parte
da sua identidade estará sempre enraizada na teoria do seu plano piloto e nas convicções
de Lucio Costa. Afinal, embora tenha alcançado vida além do projeto, sua concretização
inaugural, aquilo que ainda hoje é chamado de Plano Piloto, buscou seguir de forma fiel
e na medida do possível, o projeto vencedor do concurso da nova capital.
A proposta dessa cidade manteve a essência do modernismo ao se apropriar do
vazio para seu planejamento. A confirmação dessa apropriação pode ser centrada ini-
cialmente no tecido urbano que foi extensivamente criticado por Holston (1993) em
“Cidade modernista: uma crítica de Brasília”. O autor confirma o uso e predomínio do
vazio sobre o cheio urbano:
Na cidade pré-industrial, as ruas são lidas como vazios figurais e os
edifícios como um fundo contínuo. Na cidade modernista, as ruas apa-
recem como um vazio contínuo e os edifícios são figuras esculturais.
(HOLSTON, 1993, p. 130)

873
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O uso do espaço livre não esteve presente somente na inversão da ordem dos cheios
e vazios denunciada por Holston. Ao analisar o depoimento de Lucio Costa (2018) em
“Brasília Revisitada”, percebe-se nas recomendações do autor o esforço da manutenção
dos vazios planejados por meio da defesa a permanência da volumetria da cidade.
Nesse documento, além da reinvindicação da manutenção do sistema dos pilotis, dos
gabaritos e taxas de ocupação que favorecem o céu desimpedido e a predominância dos
espaços livres e permeáveis, o urbanista também defendeu a escala bucólica como forma
de manutenção do caráter de cidade-parque dado à capital. Tal escala será mais bem
discutida em parágrafos seguintes, mas, no momento, é importante entender que ela,
juntamente com os outros elementos descritos, é parte daquilo que constitui o conceito
do vazio planejado essencial à identidade da cidade.
Assim, conclui-se que Brasília sem o vazio de seu plano piloto, não é Brasília. A
manutenção desses espaços livres é o que confere ao plano piloto matéria prima para
a construção de sua identidade enquanto cidade de traçado moderno. É também por
meio do vazio que a cidade alcança a sua singularidade enquanto projeto urbanístico
de cidade-parque e sua monumentalidade enquanto capital.

O PATRIMÔNIO URBANO E A CIDADE MODERNA SÍMBOLO

Até meados do século XIX, a cidade era vista como o local de abrigo para monumentos
arquitetônicos. Somente a partir da revolução industrial e da transformação da cidade
antiga que se iniciou a proliferação do interesse pela investigação do traçado urbano
como patrimônio. Foi também nesse momento que surgiu o movimento moderno e sua
crítica às cidades históricas. Para os modernos a cidade antiga era obsoleta e, portanto
poderia abrir mão de sua existência para dar lugar a novas configurações urbanas e
arquitetônicas que, segundo eles, seriam periodicamente reinventadas e atualizadas, com
o olhar voltado para o futuro e para as necessidades humanas. Por meio dessa concepção,
a cidade moderna não só propôs resolver os problemas típicos das urbes realizadas até
então como também assumiu para si a característica da efemeridade. Entendeu que sua
existência e função seriam finitas assim como traçados anteriores foram. (CHOAY, 2017)
Parece, portanto, incoerente falar em preservação de uma tipologia de cidade que
foi fundamentada na crença da obsolescência e da superação como consequência do
transcorrer do tempo. Porém, essa pauta levantada pelos arquitetos e urbanistas moder-
nos ocorreu paralelamente, ainda que em sentindo contrário, às discussões acerca da
cidade como objeto ao qual é atribuído valores históricos, artísticos e educacionais, ou
seja, o reconhecimento do patrimônio urbano e a busca por sua conservação. O ama-
durecimento dessa temática proporcionou não somente a preservação das cidades

874
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

históricas tradicionais – ponto precursor dos debates acerca do tema – mas também
criou a base para a posterior inclusão dos recentes debates acerca da conservação das
cidades modernas. Essas, muitas vezes reconhecidas por simpatizarem com um espí-
rito efêmero, provam hoje que os valores atribuídos a um bem são mutáveis e tendem
a se transformar podendo dar nova significância a ele e, inclusive, contrariar a própria
proposta original do objeto. Assim, a cidade que antes era moderna e se propunha
momentânea, transforma-se e passa a ser reconhecida por valores que levam a vontade
de sua preservação para gerações futuras.

Figura 2 - Escala Bucólica permeando a Escala Residencial. Créditos: Bento Viana/ MTur

A herança moderna a ser transmitida pode variar de acordo com o bem. No caso
das suas cidades, os valores atribuídos atualmente são por vezes semelhantes àqueles
que antes eram reservados apenas às cidades anteriores ao século XX como, por exemplo,
Salamanca, Florença e Praga. Portanto, são valores ligados a transmissão da história, ao
modo de se habitar de um período e a necessidade de compreensão do contexto urbano
de sociedades anteriores. Dessa forma a vontade de preservação do patrimônio urbano
moderno começa a surgir e ser reivindicada, mas com um desafio singular: a curta dis-
tância temporal entre o período das suas construções e o período do seu reconhecimento
como bem patrimonial.

875
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Na tentativa de contribuição para o tema, sugere-se a seguinte analogia: o enten-


dimento das heranças patrimoniais funciona como um quadro impressionista onde a
distância do observador favorece o encaixe das partes e o significado total da pintura ali
contida. Nessa proposição o quadro é, enquanto tela, o elemento articulador das partes
da pintura e proporciona, quando olhado de uma distância correta, a compreensão da
composição. Enquanto moldura, o quadro é o elemento limitante da pintura, sem sua
existência e observação a definição da obra seria inviável. No caso do movimento moderno,
e mais especificamente das cidades modernas, esse distanciamento temporal necessário
à identificação da coisa ainda é curto e a compreensão das partes é pouco clara mesmo
que se saiba da existência e importância da obra. Não se sabe ao certo ainda até onde
modificações podem distorcer e/ou prejudicar a identidade da obra.
Quando se trata de cidades simbólicas tombadas, essa problemática é ainda mais
profunda devido à complexa e frágil dualidade entre funcionalidade e preservação dos
espaços. Nesses casos, o traçado moderno não só está presente na cidade como permeia
toda ela por meio do vazio planejado, ou seja, nesses casos o vazio ocupa o lugar do quadro
e é o elemento que, visto de certa distância, dará significado a obra e contorno ao espírito
da cidade moderna. Porém, as muitas e reais demandas da sociedade contemporânea
competem frequentemente com esse espírito modernista. Por um lado porque buscam
seu espaço para a atualização dessa identidade moderna. Por outro, porque não sabem
ao certo quando termina o moderno e quando se inicia o contemporâneo resultando
assim em grande dificuldade de definição e assimilação dos elementos que compõem
e dão significado ao bem patrimonial e, como consequência, dificulta o olhar preserva-
cionista uma vez que seus contornos não são bem definidos.
Em Brasília isso fica bem representado pela existência da chamada escala bucólica,
a qual muitas vezes é atribuída o caráter residual diante das quatro escalas – bucólica,
gregária, monumental e residencial – propostas por Lucio Costa. Essa escala é vista
equivocadamente como residual por permear as outras três, como se na falta de uma
atribuição específica a determinado espaço fosse proposto a ele a classificação bucólica,
coisa sem definição certa, menos prejudicada se modificada tendo em vista a sua falta de
clareza. Na realidade, o fato é que a escala bucólica possui função e é elemento fundamen-
tal, assim como outros aqui já citados, para a constituição do vazio planejado desejado
para Brasília. Voltando a comparação com o quadro, esses elementos estruturantes do
vazio são, enquanto molduras, os responsáveis pelos contornos dos monumentos arqui-
tetônicos e da própria cidade. Enquanto tela, eles são os responsáveis pela a articulação
entre as partes, pela manutenção da coesão do discurso da cidade. Isso significa que
preservar a autenticidade da arquitetura e do urbanismo contidos na cidade moderna

876
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

passa, obrigatoriamente, pela conservação do vazio planejado, ou seja, pela manutenção


dos gabaritos, da permeabilidade dos pilotis, da densidade proposta e da escala bucólica.

CONCLUSÃO

Hoje existe uma acalorada discussão quanto à funcionalidade do tombamento


de Brasília. É questionado, e por vezes afirmado, que a preservação do plano piloto tem
interferido no desenvolvimento da cidade, o que estaria levando ao engessamento urbano
devido à rigidez das medidas preservacionistas tomadas. Com base nesse argumento, as
recentes propostas de verticalização e adensamento da cidade podem parecer atrativas
e importantes para a funcionalidade da cidade contemporânea. O que é muitas vezes
esquecido, devido à já comentada proximidade temporal da criação da cidade com seu
reconhecimento como bem patrimonial, é justamente que além de cidade viva e mutá-
vel, Brasília é também essencialmente modernista e possui uma série de elementos
fundamentais à sua identidade que mesmo que não sejam completamente definidos
– e muitas vezes confundidos – são reconhecidos e devem ser tratados com atenção e
cautela para que futuramente, quando a distância do quadro permitir, sejam compre-
endidos seus significados e melhor fundamentadas intervenções em suas estruturas.
Lucio Costa, nesse sentido, defende a cidade ao comentar:
Brasília nunca será uma cidade ‘velha’, e sim, depois de completada e
com o correr dos anos, uma cidade antiga, o que é diferente, antiga, mas
permanentemente viva.
O Brasil é grande, não faltarão aos novos arquitetos e urbanistas opor-
tunidades de criar novas cidades
Deixem Brasília crescer como foi concebida, como deve ser – derramada,
serena, bela e única.(grifo do autor). (COSTA, 2018, p. 317)
Nesse trecho, o urbanista não só resguarda o partido modernista original da urbe
por meio da preservação de sua característica “derramada”, remetendo à baixa densidade
e a permeabilidade dos vazios, como explica que o extenso território brasileiro permite
o convívio das mais diferentes expressões sem que seja necessário prejudicar umas às
outras. Desse modo, fica claro que o adensamento e a verticalização da cidade, além
de possivelmente desnecessário, torna impossível a conservação do espírito moderno
da cidade e prejudica profundamente a sua autenticidade. Portanto, do ponto de vista
patrimonial, o que cabe hoje é preservar aquilo que é essencial à identidade do bem para
que gerações futuras tenham melhores condições de entender e lidar com as cidades
simbólicas modernas. Entende-se, portanto, manter não somente o que hoje já possui

877
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

contorno, mas também aquilo que guarda a essência do moderno ainda que hoje não
possamos defini-lo, apenas identifica-lo.

Figura 3 - Escala Bucólica permeando a Escala Residencial. Créditos: Bento Viana/ MTur

Na introdução deste artigo foram expostos três pontos propostos por Macdonald
(2009), que agora podem ser retomados e colocados em diálogo com o que foi discutido
até aqui:
1. Ampliar o escopo do patrimônio do século XX: ao mudar o foco do tradicional patri-
mônio arquitetônico para se apropriar do urbanismo do século 20, buscou-se diversificar
a retórica da conservação do patrimônio moderno provocando a reflexão de problemas
nem sempre existentes no campo da arquitetura.
2. Integrar a identificação das conquistas do século XX em estudos regionais: ao escolher
Brasília como estudo de caso, tentou-se escapar do eixo europeu já amplamente explo-
rado e divulgado para dar enfoque ao cenário local.
3. Desenvolver iniciativas de conscientização e participação popular: ao escolher um
tema próximo do cotidiano da população do Plano Piloto, julgou-se que o texto deveria
ser interessante não somente ao meio acadêmico, mas a todos aqueles que usufruem
da cidade.

878
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Tratar do vazio planejado foi a forma escolhida para se avançar no debate, sempre
atual, sobre a preservação de Brasília. Como o apontado por Macdonald (2009), o debate
acerca do moderno não deve permanecer cíclico, já que o esforço da identificação de
novas formas de avanço é intrínseco à sobrevivência da cidade moderna. Desse modo,
espera-se que as informações aqui colocadas sirvam ao fomento do tema e, principal-
mente, à ampliação da conscientização dos valores atribuídos ao Plano Piloto.
Além disto, foi proposto um olhar mais demorado sobre a ausência da matéria
e a beleza da sua função no cenário moderno. A cidade que hoje possui mais de três
décadas do seu reconhecimento como patrimônio mundial, compõe um cenário maior
e merece a perpetuação do seu espírito que, assim como seu vazio, não possui matéria,
mas é preenchido de significado.

879
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A alegoria do patrimônio
6 ed. São Paulo: Editora UNESP, 2017. 288 p.

COELHO, Ana Carolina Canuto. A Identidade do Eixo Monumental: 1957-2007–

Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade de Brasília,


Brasília, 2009.

CORBUSIER, Le. A carta de Atenas. Tradução de Rebeca Scherer. 1 ed. São Paulo:
HUCITEC, EDUSP, 1993. 95 p.

COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. 1 ed. São Paulo: Editora 34/ Edições Sesc
São Paulo, 2018. 656 p.

FRAMPTON, Kenneth. Storia dell’architettura moderna. Tradução de Silvia Milesi.


4 ed. Bologna: Zanichelli editore S.p.A, 2008. 510 p.

HOLSTON, James. Cidade modernista: uma crítica de Brasília e de sua utopia.


Tradução de Marcelo Coelho. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. 362 p.

MACDONALD, Susan. Materiality, monumentality and modernism: continuing


challenges in conserving twentieth-century places. (Un)Loved Modern.
Conservation of 20th Century Heritage Conference. Identify. Manage. Conserve.
Sidney, Austrália, 2009. Disponível em https://www.aicomos.com/wp-content/
uploads/2009_UnlovedModern_Macdonald_Susan_Materiality_Paper.pdf. Acesso
em junho de 2019.

Brasília. Traditional Dwellings and Settlements Review, v. 239, p. 23-38, 2012.

, n.
16, p. 51-62, 2016.

Ribeiro. (Orgs.). Arquitetura, Estética e Cidade: questões da modernidade. 1 ed.


Brasília: Editora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Unb, 2014. p. 222-234.

880
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

OS VAZIOS URBANOS COMO


LUGAR DO POSSÍVEL:
UMA NOVA PERSPECTIVA
DE DESENVOLVIMENTO
URBANO

UNA NUEVA PERSPECTIVA DEL DESARROLLO


URBANO
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

SILVA, Yanna Karla Garcia


Mestranda em Arquitetura e Urbanismo; PPGAU UFPB
yannagarcias@gmail.com

881
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
O modelo de desenvolvimento urbano atualmente empregado nas cidades resultou, devido a
ação de diversos agentes – sociais, econômicos e políticos, no surgimento dos vazios urbanos.
Os vazios urbanos figuram como espaços remanescentes da dinâmica urbana, podendo variar
entre a propriedade fundiária ou edificada, embora os espaços vazios sejam vistos ao longo de
toda cidade, sua maior concentração é vista nos centros antigos das urbes. As cidades brasileiras
passaram por um processo de expansão urbana em meados do século XX que resultou numa série
de obras urbanas influenciadas, dentre outros, pela industrialização tardia do país. Em João
Pessoa, capital paraibana, ocorreu um processo semelhante ao visto nacionalmente. Reformas
de infraestrutura urbana foram executadas nas primeiras décadas do século XX, o que permitiu
o avanço da cidade para eixos outrora não explorados, esse processo desencadeou a perda signi-
ficativa do contingente habitacional do centro da cidade o que, no decorrer dos anos, fez surgir e
consolidar os vazios urbanos nesse recorte. Embora os vazios urbanos centrais sejam comumente
tidos como indicadores negativos de urbanidade, há quem defenda que os vazios encontrados
em áreas consolidadas do espaço intraurbano, providas de infraestrutura urbana a exemplo dos
centros das cidades, sejam espaços com grande potencialidade de transformação urbana, isso se
dá devido a possibilidade de intervenção e mudança na dinâmica urbana já estabelecida. Esse
trabalho, portanto, busca refletir sobre como os vazios urbanos centrais são decisivos na reabi-
litação de áreas centrais, a partir de um novo modelo de desenvolvimento urbano, o sustentável.
PALAVRAS-CHAVE: vazio urbano, centro antigo, desenvolvimento urbano sustentável.

ABSTRACT
The currently urban development model’s employed in cities resulted, due to the action of
several agents - social, economic and political, in the emergence of urban voids. The urban
voids appear as spaces remaining from the urban dynamics, varying between the landed or
built property, although empty spaces are seen throughout the city, its greatest concentra-
tion is seen in downtown. Brazilian cities underwent a process of urban expansion in the
mid-20th century that resulted in a series of urban modifications influenced, among others,
by the country’s late industrialization. In João Pessoa, capital of Paraíba, a similar process
to that seen nationally took place. Urban infrastructure reforms were carried out in the first
decades of the twentieth century allowed the city advance to previously unexplored axes, this
process triggered the significant loss of the housing contingent of downtown which, over
the years, has led consolidate the urban voids in this area. Although the central urban voids
are commonly seen as negative indicators of urbanity, there are those who argue that the
voids found in consolidated areas of intra-urban space, provided with urban infrastructure

882
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

such as city centers, are spaces with great potential for urban transformation, due to the
possibility of intervention and change in the urban dynamics already established. This work,
therefore, seeks to reflect on how the central urban voids are decisive in the rehabilitation
of cities central areas, based on a new model of urban development, the sustainable one.
KEYWORDS: urban void, downtown area, sustainable urban development.

RESUMEN
El modelo de desarrollo urbano actualmente empleado en las ciudades resultó, debido a la
acción de varios agentes, sociales, económicos y políticos, en la aparición de vacíos urbanos.
Los vacíos urbanos aparecen como espacios que quedan de la dinámica urbana, variando
entre la propiedad de tierra o construida, aunque los espacios vacíos se ven en toda la ciudad,
su mayor concentración se observa en los centros antiguos de las ciudades. Las ciudades bra-
sileñas experimentaron un proceso de expansión urbana a mediados del siglo XX que resultó
en una serie de obras urbanas influenciadas, entre otras, por la industrialización tardía del
país. En João Pessoa, capital de Paraíba, tuvo lugar un proceso similar al visto a nivel nacio-
nal. Las reformas de la infraestructura urbana se llevaron a cabo en las primeras décadas del
siglo XX, lo que permitió que la ciudad avanzara a ejes previamente inexplorados, este proceso
desencadenó la pérdida significativa del contingente de viviendas en el centro de la ciudad
que, a lo largo de los años, ha llevado consolidar los vacíos urbanos en este corte. Aunque los
vacíos urbanos centrales se ven comúnmente como indicadores negativos de la urbanidad, hay
quienes sostienen que los vacíos encontrados en áreas consolidadas del espacio intraurbano,
provistos de infraestructura urbana como los centros de las ciudades, son espacios con un gran
potencial para la transformación urbana. debido a la posibilidad de intervención y cambio
en la dinámica urbana ya establecida. Este trabajo, por lo tanto, busca reflexionar sobre cómo
los vacíos urbanos centrales son decisivos en la rehabilitación de las áreas centrales, basado
en un nuevo modelo de desarrollo urbano, el sostenible.

PALABRAS-CLAVES: vacíos urbanos, centros antiguos, desarrollo urbano sostenible.

OS VAZIOS URBANOS CENTRAIS

No decorrer dos percursos diários realizados nas cidades, é comum nos depararmos
com espaços silenciosos. Esses espaços quietos que se encontram vazios, seja porque
não possuem nenhuma construção edificada ou porque apresentam edificações num
estado de obsolescência e abandono, são chamados de vazios urbanos. Os vazios urbanos

883
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

destoam da malha urbana pelas suas condições de uso e ocupação (BORDE, 2006) e são
produtos de uma série de fatores que tiveram papeis decisivos ao longo da formação
das cidades contemporâneas, que adotaram o modelo desenvolvimentista da lógica
capitalista do valor do solo urbano.
Os primeiros casos de análise desse fenômeno urbano têm origem na Europa, na
década de 1970, quando o advento da pós-industrialização resultou na migração de
parques fabris europeus para países subdesenvolvidos, terceirizando a produção. Esse
movimento de desfuncionalização industrial acarretou no abando de edifícios e zonas
industriais. Tais espaços fomentaram os primeiros estudos sobre os vazios urbanos.
Embora os vazios urbanos sejam um fenômeno urbano comum a qualquer cidade
como apontado por Rosa (2008), o contexto nacional de formação dos vazios urbanos
difere do que é visto na Europa, ao passo que esse processo acontece juntamente com a
industrialização das cidades brasileiras.
A industrialização das cidades brasileiras provocou uma expansão urbana acelerada,
e desnorteada, em meados do século XX, marcada por um padrão de ocupação periférico,
com crescimento no sentido centrífugo que apresentava baixa densidade habitacional e
pouca diversidade funcional, o que resultou na migração da população das áreas centrais
formadoras da cidade para as novas centralidades de desenvolvimento urbano (CLE-
MENTE, 2012). Esse processo de espraiamento urbano resultou em vazios em diferentes
porções da cidade, as áreas periféricas da cidade, com pouca ou nenhuma infraestrutura
urbana, sofreram com o surgimento de loteamentos “salteados”, resultando em áreas de
propriedades e tamanhos variados vazias (CLICHEVSKY, 2000), mas o centro antigo das
urbes foi o grande palco de atuação dessa problemática urbana, sofrendo uma perda
significativa de parte seu contingente habitacional, o que desencadeou, ao longo dos
anos, o abandono e a subutilização dessa área (VAZ e SILVEIRA, 2007).
É necessário destacar aqui, que embora haja vazios urbanos em diversas localida-
des da cidade, esse estudo evidenciará os vazios urbanos centrais. Para tanto, adota-se o
conceito de Fausto e Rábalo (2001) e Borde (2006) de vazios urbanos como espaços rema-
nescentes na dinâmica urbana, sendo aquelas terras urbanas que permaneceram vazias
ou subutilizadas, atendidas diretamente ou muito próximo à infraestrutura urbana já
instalada, e que devido seu estado de falta de uso contraria o princípio da função social
da propriedade, podendo variar entre a porção fundiária do lote e a edificação que se
encontra vazia, sem uso.
No contexto de João Pessoa, a narrativa do fenômeno vazio urbano ocorre seme-
lhante ao visto nacionalmente. Uma série de reformas urbanas iniciadas nas primeiras
décadas do século XX, promovidas pelo Estado e impulsionadas pelo capital financeiro,

884
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

acarretaram no processo de expansão da cidade, principalmente em relação ao eixo


leste – a orla marítima, e ao eixo sul, onde foram desenvolvidos programas habitacio-
nais da política do BNH (OLIVEIRA e SILVA, 2016). O aumento da malha urbana gerou
consequências para o núcleo de formação inicial da cidade.
Embora a capital paraibana tenha sua data de fundação em 1585, sendo a terceira
cidade mais antiga do Brasil, o seu processo de desenvolvimento foi lento e moroso ao
longo dos anos (figura 1). Foi somente nas derradeiras décadas do século XVIII, que a
primeira expressão de aumento da malha urbana se consolidou, resultando posterior-
mente nos bairros de Trincheiras e Tambiá (figura 2). O processo de expansão urbana
visto ao longo do século XX mostra como, em um curto período de tempo, a influência
de agentes como capital financeiro e o Estado podem mudar, drasticamente, o desenho
e a escala da cidade (figura 3).

885
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 1: “Frederica Civitas”, mapa da cidade de João Pessoa, a época Frederica, em 1647. Fonte:
<http://www.sudoestesp.com.br>, acesso em 27/010/2019 – Edição da autora.

886
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 2: Mapa da cidade da João Pessoa, a época, Parahyba em 1855. Fonte: OLIVEIRA, 2006.

Entretanto, Corrêa (2011) aponta que a produção do espaço não pode ser exclusiva-
mente creditada ao capital e ao Estado, sendo também consequência da ação de agentes
sociais concretos, históricos, que possuem interesses, estratégias e práticas espaciais
próprias, portadores de contradições e geradores de conflitos entre eles mesmos e outros
segmentos da sociedade.
É sabido que a área central da cidade desempenhava, predominantemente, o uso
residencial e que esse contexto foi mudando conforme foram sendo executadas as refor-
mas urbanas do século XX. Todavia, ainda nos dias atuais, (re)existem moradores nas
áreas centrais da cidade, embora seja um número menos expressivo do que era visto no

887
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

início do século passado, o que mudou foi a condição social e financeira do grupo que
continua habitando o centro resultando no estigma de que esse seria um espaço margi-
nalizado. Teriam então, os grupos sociais um papel importante na formação do vazios
urbanos centrais da cidade de João Pessoa? Poderiam os vazios urbanos serem espaços
de integração dos agentes sociais ao invés de um espaço de segregação socioespacial?

888
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Figura 3: A expansão urbana de João Pessoa, vista no espraia-


mento da cidade nos anos de 1923 (A), 1930 (B) e 1970 (C).
Fonte: OLIVEIRA, 2006.

889
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

OS AGENTES DO VAZIO URBANO

O surgimento dos vazios urbanos é, de uma forma mais pontual, o resultado da


atividade do mercado imobiliário, que figura como um dos principais articuladores
do espaço urbano contemporâneo, o mesmo também é denominado de “mercados de
terras” por Clichevsky (2000), a autora explica que esse mercado é regido por agentes de
diferentes domínios, os privados e os públicos, assim como diferentes escalas de atuação.
Ebner (1997) afirma que talvez a única forma de se explicar os vazios urbanos seja
devido a especulação imobiliária promovida pelo mercado imobiliário, uma vez que
essa estratégia motiva a manutenção de áreas passíveis de ocupação vazias, em ritmo
de espera, visando a valorização da terra urbana e dessa forma o aumento de seu valor
capital. Por conseguinte, quando Villaça (1998, p.48) afirma que “o espaço urbano é
produzido, não é um dom gratuito da natureza, é um trabalho social (...), assim o espaço
gerado tem valor, e seu preço, assim como o preço dos produtos em geral, é a expressão
monetária”, entende-se que a terra urbana deixa de ser algo imaterial e passa, através
da especulação de agentes públicos e privados, para algo valorável e de interesse do
capital, que a enxerga como alternativa de produção imobiliária, de acumulação e de
investimento (CORRÊA, 2011).
Em seu estudo, Fausto e Rábago (2001) caracterizam os agentes que atuam sobre o
espaço urbano contemporâneo como formais e informais, ilustrando-os através da dis-
paridade do poder econômico dos diferentes grupos sociais que atuam no meio urbano,
provocando, consequentemente, a polarização do espaço. Mas então quem seriam os
agentes, formais e informais, privados e públicos, que atuam na conformação da produ-
ção dos espaços em que vivem a maioria da população mundial? Esse questionamento é
abordado por Corrêa (2011, p. 44) que sintetiza os atores do meio urbano contemporâneo
como agentes sociais da produção do espaço, sendo esses os “proprietários dos meios de
produção, os proprietários fundiários, os promotores imobiliários, o Estado e os grupos
sociais excluídos. A partir de sua ação, o espaço é produzido”.
É possível enxergar, através da observação da dinâmica espacial urbana vista nas
cidades, o papel que cada um dos agentes sociais da produção do espaço desempenha
na promoção e consolidação dos vazios urbanos centrais. Os proprietários dos meios
de produção são detentores da maior parte do capital flutuante e são quem assinala
onde os investimentos privados, e até mesmo os públicos, serão dispostos na cidade. Em
sua maioria, as ações de investimento se concentram nas localidades mais abastadas
da cidade, onde a concentração de capital, bem como de bens e serviços, é mais predo-
minante. Tal processo desencadeia, ainda mais, o relego das áreas centrais, que sofrem
com a falta de investimentos. A informalidade do comércio e serviço, a subutilização do

890
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

espaço e a vitalidade vista apenas durante o horário comercial, são fatores que tornam
as áreas centrais da cidade marginalizada, causando o estranhamento dessas áreas em
parte da população, o que acarreta em negligência do espaço e, assim, nos vazios urbanos.
Os proprietários fundiários e os promotores imobiliários atuam através da especu-
lação imobiliária nessas áreas. A maioria dos vazios urbanos centrais, principalmente
aqueles edificados, são de domínio privado, de acordo com o levantamento desenvolvido
por Clemente (2012) 93,92% dos lotes que representam os vazios urbanos no cerco de
tombamento do IPHAN em João Pessoa – PB são de domínio privado, ou seja, o abando
é causado precisamente pelos proprietários da terra. Há de se convir que parte desses
exemplares sofrem em situações de litígio, quanto a heranças familiares, no entanto, a
porção mais significativa dos mesmos padecem com a falta de interesse na propriedade
e a especulação sobre o valor da terra urbana em si, resultando em descaso quanto a
conservação das vacâncias urbanas.
A relação dos grupos sociais excluídos com os vazios é, talvez, a mais pessoal pois
é uma relação de sobrevivência. O déficit habitacional nacional é de aproximadamente
6,18 milhões de habitações segundo o último censo do IBGE (2014), esse mesmo levan-
tamento apontou também a existência de cerca de 6,07 milhões de domicílios vacantes
no país – o que equivalia a aproximadamente 98,2% do déficit habitacional do país.
Atualmente estima-se que o número de domicílios vacantes no Brasil tenha superado
o número do déficit habitacional, ou seja, no país existe mais casa sem gente do que
gente sem casa. Ocupar as edificações vazias do centro é uma das principais alternativas
adota por quem sofre desse problema social, isso se dá devido ao fato de que o centro
possuí inúmeras qualidades de habitabilidade atrativas, a exemplo da proximidade de
locais de trabalho, boa conectividade do sistema viário e acesso a infraestrutura urbana.
É importante destacar que os vazios urbanos não desempenham a função social da
propriedade, prevista nos artigos 182 e 183 da Constituição Brasileira de 1988 (BORDE,
2006), sendo assim, a ocupação desses espaços, ainda que ilegal, é de certa forma legítima
pois os confere um direito constitucional (CLICHEVSKY, 2000). Para Corrêa (2011, p.47)
“A terra urbana e a habitação são objetos de interesse generalizado,
envolvendo agentes sociais com ou sem capital, formal ou informalmente
organizados. Estabelece-se uma tensão, ora mais, ora menos intensa,
porém permanente, em torno da terra urbana e da habitação. ”
Por fim, o Estado, agente que desempenha múltiplos papeis na dinâmica da pro-
dução do espaço urbano. Essa multiplicidade comportamental é proveniente do fato de
que o Estado atua como um palco onde diversos interesses que entram em conflito entre
si (CORRÊA, 2011). É inerente ao Estado o poder da implementação de políticas públicas

891
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

que deveriam atuar em benefício da população geral, entretanto essa participação se


mostra cada vez mais errática e decrescente, ao passo que o Estado vai perdendo sua auto-
ridade quanto a regulamentação da ocupação do espaço urbano, cada vez mais regulado
pelo mercado imobiliário (FAUSTO E RÁBAGO, 2001). Isso promove um descontrole com
relação a problemas urbanos, a exemplo dos vazios urbanos, já que, conforme aponta
Samson (1980, apud CORREA, 2011), é dever do Estado controlar o mercado fundiário, e até
mesmo se tornar promotor imobiliário através da aquisição de glebas urbanas, quando
o tratamento social igualitário da terra urbana não está sendo devidamente aplicado
por promotores particulares.
Dessa forma, o Estado, que tem a função de produzir imóveis urbanos para aqueles
que necessitam, poderia adotar nos vazios urbanos centrais a política de equidade da
terra urbana, passando a modificar a gestão desses vazios segundo os objetivos políticos
e participativos da população necessitada. Isso demanda um planejamento urbano
voltado para identificar as problemáticas e potencialidades da utilização, e reinserção,
dos vazios urbanos centrais na malha urbana. Sobre os benefícios da aplicação dessa
política, Clichevsky (2000, p.02) aponta que:
“No momento em que se repensa planejamento e gestão urbana, os
vazios urbanos poderiam assumir um papel importante para todos os
segmentos sociais, conforme as políticas que o Estado implemente. Para
os excluídos, um lugar onde viver; para os setores médios, possibilida-
des de áreas verdes, equipamento, recreação, etc; para os que investem
nas cidades, acesso à terra para novos usos emergentes; para o Estado
vendedor de terra, possibilidade de obter recursos num momento de
ajuste fiscal; para a cidade como um todo, reserva para assegurar sua
sustentabilidade e racionalidade do capital social incorporado não
utilizado. ”
Ademais a tudo que foi explanado, indaga-se se devido a consolidação da ocorrência
dos vazios urbanos em áreas centrais da cidade e os impactos que essa problemática
acarreta na dinâmica urbana como um indicador negativo de urbanidade, os próprios
vazios talvez tenham se tornados agentes na produção de novos vazios urbanos, como
um processo cíclico. O vazio urbano seria então um agente espacial na produção de
novos vazios urbanos ao passo que, ainda que em sua imobilidade de ações diretas sobre
a malha urbana diferente dos outros agentes citados anteriormente, os vazios urbanos
compõem um visual de abandono e degradação, que provoca sentimento de insegurança
e marginalidade em quem frequenta aquele espaço, por consequência, a população
remanescente iria perdendo continuamente o sentindo de pertencimento daquele local,

892
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

visto as condições de urbanidade apresentadas. Esse processo desencadearia na busca


por habitação em outras localidades resultando, mais uma vez, no enjeitamento de um
imóvel central que virá a se tornar um vazio urbano.

O VAZIO URBANO COMO LUGAR DO POSSÍVEL

Diante das características da realidade urbana contemporânea, influenciadas pelos


fatores econômicos, sociais e políticos, bem como mudanças tecnológicas que versam
acerca da produção da cidade, o tema dos vazios urbanos é, por muitas vezes, visto de
uma maneira negativa, quase como uma desagradável prova de que houve uma falha
no modelo urbano de desenvolvimento da cidade.
Entretanto, há quem defenda que as adversidades urbanas sejam parte de um
modelo interpretativo de um conceito cíclico para o desenvolvimento urbano. A tese da
desusrbanização, formulada por Van den Berg, Drewett, Klaasen, Rossi e Vijverberg (1982),
diz respeito ao ciclo de vida urbano e argumenta que as cidades passam por diferentes
fases, ao longo do tempo, sendo estas a urbanização, a suburbanização, a desurbanização
e a reurbanização. Assim, nessa teoria, os vazios urbanos centrais estariam no limiar
entre desurbanização e reurbanização.
A semântica da palavra vazio é heterogênea. Derivada do latim vagus, tem como
significado o que não contém nada ou em que não há ocupantes ou frequentadores,
vazio também pode ser cavidade, cavo, oco. Ao nos referirmos ao urbano, vazio é sinônimo
de desocupado, abandonado, ocioso, despovoado, desabitado, vago, devoluto, vacante,
baldio ou subutilizado. Expressões que conotam um ar negativo e adverso para o lugar
que se apresente nesse estado.
Foi só em 1996, durante um congresso internacional de arquitetura, que se abordou
uma nova ótica para os vazios urbanos. Solà-Morales (1996) definiu vazios urbanos através
da expressão francesa terrain vague, justificando sua escolha em virtude da multiplicidade
de significados que esta expressão permite designar os lugares, territórios e edifícios
que desfrutam de uma dupla condição. O autor defende que vague pode representar o
sentido de vago, vazio, livre de atividade, improdutiva e, em muitos casos, obsoleta. No
entanto, vague também pode representar o sentido de impreciso, indefinido, sem limites
determinados, com horizonte de futuro.
Na ambiguidade defendida pelo autor, terrain vague faz referência ao tempo histórico
e é resultante do encontro entre o passado e o presente, bem como da identidade e da
memória local (ROSA, 2008). Fialová (1996) compactua com o exposto por Solà-Morales e
afirma que os vazios urbanos são um fenômeno urbano que evidenciam a multiplicidade

893
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

e diversidade de um espaço então, para se entender o vazio é preciso entender o lugar


onde esse se encontra, sua especificidade cultural e sua história. A autora acrescenta
ainda que os vazios urbanos são resultantes do encontro entre o passado e o presente,
assim como da identidade e da memória local.
É possível observar, em ambos discursos supracitados, a importância do lugar no
entendimento dos vazios urbanos. Sobre lugar, Serpa (2011, p.99) o aponta que como
“lócus de reprodução da vida cotidiana, permeada por diferentes visões de mundo e
diferenciadas ideias de cultura”, ou seja, é um fenômeno da experiência humana, que
reflete o mundo no qual vivemos. Para o autor, as experiências vividas num lugar é que
vão definir a importância e o significado desse lugar, já que esse é “reflexo e condição
para a reprodução das relações sociais, políticas, culturais e econômicas nas mais
diversas escalas de análise, possibilitando sempre dialetizar a relação socioespacial”
(TUAN, 1983 apud SERPA 2011, p.100).
O lugar dos vazios urbanos em estudo é o Centro antigo da cidade de João Pessoa
– PB, esse centro, que não é o geográfico, é o local onde a cidade nasceu, se formou e
permaneceu por quase três séculos. A cidade se expandiu após uma série de reformas
urbanas que possibilitaram essa ocorrência, visto que a forma urbana possui caráter
acumulativo, ao passo que a cidade ia crescendo, foram surgindo novas centralidades.
“Essas centralidades são resultado de um processo lento e cotidiano de apropriação
espacial e se traduzem em formas urbanas com forte identificação com os habitantes
dos bairros populares” (SERPA 2011, p.103).
Serpa aponta que, embora novas centralidades possam surgir ao longo da cidade,
é importante que analisemos os espaços ocultos e residuais, quando afirma que “ é
preciso, pois, debruçar-se sobre essas centralidades nos espaços urbanos residuais e
intersticiais, nas ‘sobras’ e nos ‘restos’ de cidade não ‘aproveitados’ pelas estratégias dos
agentes hegemônicos de produção do espaço” (SERPA 2011, p.104).
Essa afirmação nos remonta, mais uma vez, ao conceito de terrian vague, o vazio
urbano como lugar do possível, lugar de encontro entre presente e passado, lugar capaz
de modificar e reurbanizar o espaço intraurbano consolidado. A abordagem de forma
positiva dessa problemática urbana possibilita a construção de um pensamento dife-
rente do que é observado nos agentes sociais que atuam na malha urbana. Os terrian
vague, ou vazios urbanos, passam de aspectos negativos de urbanidade para espaços com
potencial de reurbanização e de desenvolvimento urbano sustentável.
A respeito disso, Paiva (2011) afirma que o pensamento pelo desenvolvimento
urbano sustentável nasceu com a Carta de Aalborg (1994), que incentivava a urbanidade
pela interação de usos e pela valorização do patrimônio construído já existente, mas em

894
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

desuso. Segundo a autora, essa abordagem de desenvolvimento urbano deve ser a utilizada
pelo urbanismo contemporâneo, já que não se pode, nem se deve desperdiçar toda uma
rede de infraestrutura urbana já consolidada. É necessário que haja uma conscientiza-
ção de um novo modelo de produção urbana e o pensamento do novo através do reuso.
“Na discussão acerca da dispersão urbana, pergunta-se por que estender e cons-
truir a cidade em locais fora dela se existem vazios, ruínas e imóveis subutilizados nos
centros. ” (MASCARÓ, 2001 apud PAIVA 2011, p.6). Os vazios urbanos centrais se encaixam
perfeitamente nessa condição de desenvolvimento urbano sustentável por serem um
estoque de glebas que não desempenham função social, mas que ficam se localizam
em áreas que já possuem uma forte infraestrutura urbana e conectividade viária. É de
suma importância destacar que as áreas centrais urbanas são localidades complexas e
requerem intervenções com abordagens específicas e respeitosas. Todavia, é inegável
considerar a pertinência e a necessidade de repensar os vazios urbanos como lugar do
possível, levando em consideração que a reutilização de espaços do tecido urbano é a
suma interpretação de uma cidade mais igualitária e sustentável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os vazios urbanos centrais devem ser entendidos como espaços de possibilidade


de melhorias para a cidade. É necessário que se mude a narrativa do caráter negativo dos
vazios urbanos e se passe a interpretá-los como grandes potenciais de desenvolvimento
sustentável urbano. Para isso, todos os agentes que atuam diretamente na manutenção
e consolidação dessa problemática, recorrentemente vista nos centros urbanos, mudem
suas estratégias de ação e produção do espaço urbano.
O modelo capitalista de produção do espaço urbano se mostrou segregador, dis-
criminatório, elitista e hostil. As cidades são palco do registro da história da sociedade
urbana, é vital a cidade a pluralidade, em todos os aspectos, de sua população, só assim
o espaço urbano manterá a dinâmica necessária para que a cidade pulse, viva. Ela é de
todos e todos pertencem a ela, essa relação funciona de uma maneira intrínseca, por
isso o direito a cidade é comum a todos os seus habitantes.
O papel de regulador desse direito é do Estado e uma forma de regular é através da
intervenção nos vazios urbanos centrais, pois visto que os mesmos possuem o potencial
de desempenhar inúmeros usos na malha urbana, garantindo o acesso, igualitária, da
terra urbana a todos. Desse modo, áreas obsoletas da cidade poderão ser reabilitadas a
partir de seus vazios, não só devido ao fato de que desses serem espaços residuais, mas
porque são espaços qualificados para fazê-lo.

895
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORDE, A.P.L. Tese (Doutorado em


Urbanismo) - Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006.

BRASIL. Brasília, DF: Senado


Federal,1988.

CLEMENTE, Juliana Carvalho. Vazios urbanos e imóveis subutilizados no Centro


Histórico tombado da cidade de João Pessoa – PB. Dissertação (Mestrado em
Engenharia Urbana e Ambiental) – Universidade Federal da Paraíba, 2012.

2000. Disponível
em:<http://www.rio.rj.gov.br/smu.> Acesso em: 18 de novembro de 2019.

Correa, Roberto Lobato. Sobre agentes sociais, escala e produção do espaço.


In: Carlos, Ana Fani A; Souza, Marcelo Lopes & Sposito, Maria Encarnaçao B. A

Contexto, 2011, p. 41 - 52.

EBNER, Íris de Almeida Rezende.


construído. Dissertação (Mestrado em estruturas ambientais e urbanas).
Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. USP. São
Paulo, 1997.

FAUSTO, Adriana; RÁBAGO, Jesús. ¿Vacíos urbanos o vacíos de poder


metropolitano?
aq.upm.es/boletin/n21/aafau.htm> Acesso em: 20 de novembro de 2019.

Arquitectura en las ciudades. In: Congreso de la Unión Internacional de


Arquitectos, 1996, Barcelona. Anales. Barcelona: Collegi d’Arquitectes de
Catalunya/Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, 1996.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo 2010.


Disponível em <http://censo2010.ibge.gov.br/> Acesso em: 18 de novembro de
2019.

transportes e crescimento urbano: o caso de João Pessoa – PB. Dissertação


(Mestrado em Engenharia Urbana) – Universidade Federal da Paraíba, 2006.

896
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Pessoa. In: Encontro Nacional dos Geógrafos, 18, 2016, São Luís. 12f.

abordando a sustentabilidade. Oculum Ensaios, Campinas, v.14, p. 74-81, Julho/


Dezembro de 2011.

terras de Juquery. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e


Junho de 2008.

SANTOS, Milton. Espaço & método. São Paulo: Nobel, 1985.

Serpa, Ângelo. Lugar e centralidade em um contexto metropolitano. In: Carlos,


Ana Fani A; Souza, Marcelo Lopes & Sposito, Maria Encarnaçao B. A Produção do

2011, p. 97 - 108.

SOLÀ-MORALES, Ignasi de. Presente y futuros. La arquitectura en las ciudades.


In: Congreso de la Unión Internacional de Arquitectos, 1996, Barcelona. Anales.
Barcelona: Collegi d’Arquitectes de Catalunya/Centro de Cultura Contemporânea
de Barcelona, 1996.

Pergamon
Press.

Revista Território, 2007.

897
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

ZONEAMENTO CULTURAL
COMO INSTRUMENTO
DE PRESERVAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO:
OS CASOS DE
PARANAPIACABA E
CAMPINAS
CULTURAL ZONING AS AN INSTRUMENT OF
PRESERVATION AND DEVELOPMENT: THE
CASES OF PARANAPIACABA AND CAMPINAS

ZONING CULTURAL COMO INSTRUMENTO DE

DE PARANAPIACABA Y CAMPINAS
EIXO TEMÁTICO: PATRIMÔNIO, ESCALAS E PROCESSOS

FIGUEIREDO, Vanessa Gayego Bello


Profa.Dra.; FAU PUC-Campinas, ICOMOS Brasil

898
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

RESUMO
A prática da preservação de sítios histórico-culturais vem mostrando que o tombamento, embora
cumprindo seu papel essencial na outorga de valor, é um instrumento insuficiente diante das
necessidades de preservação sustentável do patrimônio compreendido como paisagem cultu-
ral. Conceito adotado pelo Comitê do Patrimônio Mundial da UNESCO (1992) e pelo Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (2009), as paisagens culturais vislumbram uma
abordagem integral e integrada dos patrimônios culturais (naturais, materiais e imateriais) no
território. Partindo da visão sistêmica e simbiótica proposta, tal abordagem considera essencial
a interdisciplinaridade, bem como a ação integrada do planejamento e gestão territoriais com
as políticas ambientais, socioeconômicas e culturais. A preocupação volta-se em conjugar a
política de preservação ao processo dinâmico de desenvolvimento das cidades, o que implica em
não impedir as mudanças, mas direcioná-las a favor dos patrimônios e, portanto, trabalhar na
perspectiva do desenvolvimento sustentável. Nesse sentido, a estratégia mais adequada baseou-
-se na utilização de instrumentos do planejamento urbano, como o zoneamento e os planos
diretores. Pretende-se, pois, debater as necessárias interfaces entre essas políticas a partir de
duas experiências distintas realizadas em Paranapiacaba, em Santo André – SP, entre 2005 e
2008, e durante a revisão do Plano Diretor e Lei de Uso e Ocupação do Solo de Campinas – SP,
entre 2014 e 2016.

PALAVRAS-CHAVE: zoneamento cultural. paisagens culturais. políticas territoriais integradas.


plano diretor.

A BSTRACT
The practice of preserving historical-cultural sites has shown that classification, while ful-
filling its essential role in granting value, is an insufficient instrument in view of the needs
of sustainable preservation of heritage understood as cultural landscape. A concept adopted
by the UNESCO World Heritage Committee (1992) and the National Institute of Historical and
Artistic Heritage (2009), cultural landscapes envision an integral and integrated approach to
cultural heritage (natural, materials and immaterials) in the territory. Based on the systemic
and symbiotic vision proposed, this approach considers interdisciplinarity essential, as well
as the integrated action of territorial planning and management with environmental, socio-
economic and cultural policies. The concern is focused on combining the preservation policy
with the dynamic process of development of cities, which implies not hindering changes, but
directing them in favor of heritages and, therefore, working from the perspective of development
Sustainable. In this sense, the most appropriate strategy was based on the use of urban planning
instruments, such as zoning and master plans. It is therefore intended to discuss the necessary

899
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

interfaces between these policies from two distinct experiences carried out in Paranapiacaba,
in Santo André - SP, between 2005 and 2008, and during the review of the Master Plan and Land
Use and Occupation Law of Campinas - SP, between 2014 and 2016.

KEYWORDS: cultural zoning. cultural landscapes. integrated territorial policies. master plan.

RESUMEN
La práctica de preservar los sitios histórico-culturales ha demostrado que la clasificación, si
bien cumple su papel esencial en la concesión de valor, es un instrumento insuficiente en vista
de las necesidades de preservación sostenible del patrimonio entendido como paisaje cultural.
Un concepto adoptado por el Comité del Patrimonio Mundial de la UNESCO (1992) y el Insti-
tuto Nacional del Patrimonio Histórico y Artístico (2009), los paisajes culturales prevén un
enfoque integral e integrado del patrimonio cultural (natural, materiales e inmateriales) en
el territorio. Sobre la base de la visión sistémica y simbiótica propuesta, este enfoque considera
esencial la interdisciplinariidad, así como la acción integrada de planificación y gestión ter-
ritorial con políticas ambientales, socioeconómicas y culturales. La preocupación se centra en
combinar la política de preservación con el proceso dinámico de desarrollo de las ciudades, lo
que implica no obstaculizar los cambios, sino orientarlas en favor de los patrimonios y, por lo
tanto, trabajar desde la perspectiva del desarrollo Sostenible. En este sentido, la estrategia más
adecuada se basó en el uso de instrumentos de planificación urbana, como la zonificación y los
planes maestros. Por lo tanto, se pretende discutir las interfaces necesarias entre estas políticas
a partir de dos experiencias distintas llevadas a cabo en Paranapiacaba, en Santo André - SP,
entre 2005 y 2008, y durante la revisión del Plan Maestro y la Ley de Uso y Ocupación de Las
Campinas - SP, entre 2014 y 2016.

PALABRAS-CLAVE: zonificación cultural. paisajes culturales. políticas territoriales integradas.


plan maestro.

INTRODUÇÃO

A prática da preservação de sítios histórico-culturais vem mostrando que o tomba-


mento, embora cumprindo seu papel essencial na outorga de valor, é um instrumento
insuficiente diante das necessidades de preservação sustentável do patrimônio com-
preendido como paisagem cultural. Conceito recentemente adotado pelo Comitê do
Patrimônio Mundial da UNESCO (1992) e pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico

900
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Nacional (IPHAN, 2007 e 2009), as paisagens culturais vislumbram uma abordagem integral
e integrada dos patrimônios culturais (naturais, materiais e imateriais) no território.
O progressivo alargamento daquilo que é considerado objeto de interesse para a
preservação, que passou do monumento, como elemento isolado e destacado (natural
ou construído), aos conjuntos arquitetônicos e urbanos, centros e cidades históricas
reconhecidos em seus valores estéticos e históricos – e, recentemente, aos patrimônios
imateriais e à paisagem em diversas escalas territoriais (unidades intraurbanas e siste-
mas regionais de paisagem), agregando outros valores (antropológicos e de uso) rumo
ao reconhecimento da diversidade cultural – cria novas questões e, portanto, novos
desafios ao reconhecimento e à gestão.
O conceito de paisagem cultural propõe congregar estes vários aspectos e abordagens
correntes no campo da preservação cultural, considerando sua interdisciplinaridade
e a necessidade de superação da fragmentação ainda praticada. Partindo-se de uma
concepção mais alargada e integradora entre a ação do homem e a natureza e entre os
patrimônios material e imaterial, adotar a paisagem como patrimônio promove, ao passo
que admite, o constante movimento e as relações inseparáveis e complementares entre
conceitos e abordagens de diversos campos do conhecimento – da história, da arqueo-
logia, da arte, da arquitetura, do urbanismo, do planejamento territorial, da sociologia,
da antropologia, da cultura, da geografia (RIBEIRO, 2007), da etnografia, da ecologia, da
biologia, do turismo, da ciência política – e suas correspondências no meio físico, seja
nos objetos móveis, na edificação ou no território – urbano, rural ou natural. Tal como
coloca a Recomendação R(95)9 do Conselho de Ministros da Europa (1995), deve pressupor
a ação integrada do planejamento e gestão territoriais com as políticas ambientais e
sociais, sobretudo em suas dimensões culturais e econômicas. Deve também conjugar
a política de preservação ao processo dinâmico de desenvolvimento das cidades, o que
implica necessariamente em não impedir as mudanças, mas em direcioná-las a favor dos
patrimônios e, portanto, trabalhar na perspectiva do planejamento e desenvolvimento
sustentáveis (FIGUEIREDO, 2014).
Partindo da visão sistêmica e simbiótica proposta por esta nova abordagem, con-
sidera-se essencial a visão e metodologias interdisciplinares. Nesse sentido, a estratégia
mais adequada baseou-se na utilização de instrumentos do planejamento urbano, como
o zoneamento e os planos diretores. Pretende-se, pois, debater estas necessárias interfaces
entre as políticas de planejamento territorial integrado, preservação cultural, ambiental
e participação social, a partir das experiências desenvolvidas em Paranapiacaba, em
Santo André – SP, entre 2005 e 2008, e durante a revisão do Plano Diretor e Lei de Uso e
Ocupação do Solo de Campinas – SP, entre 2014 e 2016.

901
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

PARANAPIACABA, DESENVOLVIMENTO LOCAL SUSTENTÁVEL E A ZEIPP

Paranapiacaba, “local de onde se vê o mar” na linguagem indígena, conserva um


significativo acervo tecnológico ligado à ferrovia e testemunhos de um padrão arqui-
tetônico e urbanístico bastante avançados para a época de sua implantação, em meio
às dificuldades impostas pela linda paisagem da serra e da mata atlântica. Essa vila
ferroviária nasceu e se desenvolveu a partir de 1860 com a implantação da Estrada de
Ferro Santos-Jundiaí, construída pela companhia inglesa São Paulo Railway. Em 1946,
a ferrovia e todo seu patrimônio foram incorporados ao Governo Federal e em 1957 a
Rede Ferroviária Federal S.A. passou a administrá-los. A partir dos anos 80 Paranapiacaba
passou por um intenso período de abandono e degradação, acompanhando o descaso dos
governos para com o transporte e o patrimônio ferroviário. Em 1987, teve seu patrimônio
reconhecido pelo CONDEPHAAT, em 2002 pelo IPHAN e em 2003 pelo órgão municipal.
Entre 2001 e 2008 foi criada uma Subprefeitura, responsável pela implementação do
Programa de Desenvolvimento Local Sustentável, integrando territorialmente políticas
públicas em sete áreas: turismo, preservação do patrimônio cultural, planejamento
urbano, conservação ambiental, desenvolvimento social, participação cidadã e gestão
administrativo-financeira dos imóveis públicos[1].

FIGURA 1. Vila Ferroviária de Paranapiacaba: a Vila Nova (em primeiro plano); o pátio ferroviário
(ao lado); a Vila Velha (ao fundo), 2006. Fonte: LUME FAU USP/PMSA.

[1] Informações mais completas sobre o programa ver FIGUEIREDO, 2014 e FIGUEIREDO&RO-
DRIGES, 2014, pois este artigo trata resumidamente apenas da experiência da Lei da ZEIPP.

902
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O caso de Paranapiacaba não se restringiu apenas ao planejamento territorial.


Em razão da existência de uma Subprefeitura, logrou-se sucesso na articulação do pla-
nejamento com as atividades e programas socioeconômicos, ambientais e culturais
desenvolvidos.
Em 2004 foi instituído pelo Plano Diretor Participativo de Santo André (Lei 8.696/04)
e regulamentado em 2007 pela Lei Específica 9.018/07 a ZEIPP – Zona Especial de Inte-
resse do Patrimônio de Paranapiacaba, instrumento considerado inovador pelo Minis-
tério das Cidades e IPHAN. Trata-se de uma simbiose entre um plano diretor local com
regramentos de uso e ocupação do solo, diretrizes de preservação cultural, ambiental
e turismo sustentável. Constitui-se no principal instrumento de orientação da política
de desenvolvimento urbano e gestão territorial da paisagem cultural de Paranapiacaba,
garantindo também a permanência e qualidade de vida do morador.
Conforme exigência do Estatuto da Cidade (lei federal 10.257/01), o processo de
elaboração do projeto de lei ocorreu de forma participativa, por meio da Comissão da
ZEIPP. Reunindo 34 membros, com 50% da representação para a comunidade local e as
outras vagas para representantes dos três órgãos de preservação do patrimônio (Nacio-
nal, Estadual e Municipal), do Conselho Municipal de Política Urbana, de universidades e
entidades de classe, a comissão garantiu a participação ativa e qualificada dos moradores,
que receberam capacitação especial para o processo. Os técnicos da prefeitura não tiveram
assento nesta comissão, atuavam como formuladores de estudos técnicos e mediadores
dos debates. Os técnicos dos órgãos de preservação participaram ativamente desempe-
nhando o papel de orientadores e debatedores das diretrizes e parâmetros formulados.
Inicialmente a lei pactua conceitos referentes à preservação, conservação, restau-
ração, reparação, manutenção, atualização tecnológica (retrofit) e adaptação (art.5º),
diferenciando estas terminologias e propondo uma hierarquização dos diversos tipos
de intervenção no patrimônio edificado, visando à desburocratização dos processos
de aprovação nos órgãos de preservação e o compartilhamento de papéis entre as ins-
tituições gestoras, institucionalizando uma prática já corrente entre a Subprefeitura e
os três órgãos de preservação do patrimônio.

903
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FIGURA 2. Paranapiacaba: Zoneamento.

A ZEIPP ratifica a divisão da Vila em quatro setores de planejamento urbano (Parte


Alta, Parte Baixa, Ferrovia e Rabique), reconhecendo as especificidades históricas, urba-
nas, paisagísticas e legais de cada uma de suas partes. Cria um zoneamento priorizando
o uso residencial e definindo áreas para o desenvolvimento das atividades comerciais
e turísticas, diminuindo assim os conflitos de vizinhança. Este zoneamento trabalha
com o controle de estoques para a regulação das predominâncias de usos, a exemplo da
APR – Área Predominantemente Residencial onde o uso de comércio e serviços (apenas
os de baixa incomodidade, como pousadas e restaurantes com funcionamento até às
22h) é permitido até atingir 20% dos lotes. Na APC – Área Predominantemente Comercial
são permitidos os usos não residenciais até 60%. Fixa também o estoque habitacional
em 50% dos imóveis públicos da Parte Baixa, ou seja, garante em lei a permanência da
moradia, evitando possíveis futuros desvios que possam transformar destinar os imó-
veis da Vila predominantemente para usos turísticos e casas de veraneio. Foram redefi-
nidos também os parâmetros de ocupação dos lotes (recuos) e seus limites, as taxas de
permeabilidade, os níveis de incomodidade por emissão sonora permitindo a mistura
de usos e as diretrizes para a preservação das edificações, dos espaços livres públicos e
hierarquização do sistema viário, com o objetivo de salvaguardar o conjunto edificado
e as relações urbanas que caracterizam a paisagem da Vila.
Já que Paranapiacaba conta com um conjunto de 334 casas somente na Parte
Baixa, foram selecionados em lei imóveis representativos de cada tipologia arquitetô-
nica, designados como “Exemplares de Tipologias Residenciais”. O objetivo foi destacar
o valor documental e cognitivo do projeto ou construção original, sem que fossem

904
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

modificados, permitindo assim que nos demais imóveis de uso residencial e comercial
fossem realizadas intervenções de adaptação. Vale destacar que o projeto original das
casas dispõe de sanitários externos à edificação. Na fase em que a Vila foi administrada
pela Rede Ferroviária Federal houve uma adaptação generalizada e centralizada dos
sanitários no interior dos imóveis em madeira. Estes são atualmente utilizados pelos
moradores e assim foram mantidos na lei, apenas com correções técnicas estabelecidas
nos manuais de arquitetura. Desta forma, superou-se a adoção dos tradicionais níveis de
tombamento, compreendidos como uma gradação hierárquica incoerente à concepção
de paisagem cultural.
Estes exemplares foram destinados à visitação pública e, por isso, passaram a abri-
gar os espaços expositivos que compõe o roteiro do Circuito Museológico, apresentando
o diversificado patrimônio de Paranapiacaba. Baseado na concepção de “museu a céu
aberto” ou ecomuseu, a casa de tipologia C, conhecida como “Castelinho” ou “Casa do
Engenheiro-Chefe”, abriga uma exposição sobre a história da Vila. O patrimônio natural
era exposto no Centro de Visitantes do Parque, um exemplar de Casa de Engenheiro.
O patrimônio humano estava na Casa da Memória, um exemplar da casa Tipo A (para
famílias pequenas de operários). Um conjunto de casas Tipo E (para operários menos
graduados) trata do patrimônio arquitetônico e urbanístico, cujo espaço denomina-se
CDARQ – Centro de Documentação de Arquitetura e Urbanismo. As Casas Tipo D inte-
gram o conjunto do Antigo Lyra da Serra, local onde funcionou o segundo cinema do
Brasil. Estes estavam em processo de restauro para abrigar novamente o cine-teatro
e um espaço para educação patrimonial, com brinquedoteca e desenvolvimento do
turismo pedagógico, mas a obra foi paralisada pelo governo subsequente em 2011. Este
projeto museológico, que articula espaços expositivos diversos ao percurso que envolve
a paisagem cultural local, foi premiado em maio de 2007 pelo IPHAN no “Concurso de
Modernização de Museus”.

905
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FIGURA 3. Paranapiacaba: Tipologias residenciais. Fonte: LIMA, 2008. Mapa: elaboração da autora.

Para os demais imóveis as ampliações funcionais são permitidas, entretanto devem


respeitar as relações entre espaços livres e edificados, configurados pelo padrão urba-
nístico da Vila, desde que esta não una o corpo principal do imóvel ao sanitário ao
fundo e não ocupe os recuos frontais e laterais. Ademais, foram criados e consolidados
instrumentos de incentivo à preservação e um novo e mais rigoroso sistema de fiscali-
zação e penalidades. Visando incentivar a conservação dos imóveis e ter controle sobre a
ação dos usuários, eram concedidos descontos na contraprestação aos permissionários
que investissem na manutenção ou reforma dos imóveis, desde que estas fossem rea-
lizadas com autorização e supervisão da Prefeitura, conjuntamente com os órgãos de
preservação. Este procedimento de aprovação conjunta, que já funcionava desde 2005,
foi institucionalizado pela lei.
A ZEIPP garantiu aos empreendedores um instrumento de posse menos precário
que a permissão de uso, criando, para os imóveis comerciais, a concessão de uso por 20
anos, renováveis por igual período.
A lei é, em sua maior parte, auto-aplicável. Apenas alguns artigos e instrumentos
necessitaram de regulamentação posterior, como o Fórum (regulamentado por decreto

906
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

municipal em 2008), ou instruções normativas e planos, detalhando informações téc-


nicas que não cabem ao disciplinamento de uma lei urbanística, como foi o caso dos
manuais de arquitetura e planos de saneamento, energia e iluminação pública, todos
finalizados em 2008.
Por outro lado, a Subprefeitura promoveu diversos projetos e ações visando à con-
servação do patrimônio de Paranapiacaba, articulando pesquisa científica, sistemas de
informação e documentação, educação e formação profissional, fiscalização e interven-
ções de manutenção, recuperação e restauro.
1. No período de 2004 a 2008, pesquisadores do Centro Universitário Fundação
Santo André, com financiamento da FAPESP – Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo e apoio da Prefeitura, desenvolveram uma pesquisa
intitulada “Diretrizes e Procedimentos para a Recuperação do Patrimônio
Habitacional em Madeira na Vila de Paranapiacaba”. Esta pesquisa articulou-
-se às necessidades das políticas públicas municipais e rendeu vários frutos,
como a criação de metodologia própria para a inventariação do patrimônio
industrial em madeira, a reativação da cooperativa de restauradores, a criação
do banco de materiais e a elaboração do “Manual de Conservação e Restauração
das Edificações em Madeira de Paranapiacaba”. Todos estes produtos foram
incorporados à lei da ZEIPP como diretrizes permanentes e através dos manu-
ais. O objetivo principal foi constituir documentos-padrão que orientassem
permanentemente os técnicos municipais e dos órgãos de preservação a
respeito dos procedimentos adequados para intervenções no patrimônio em
madeira. Vale ressaltar que este é um dos mais graves problemas enfrentados
pelos órgãos de preservação. A ausência de diretrizes e parâmetros pré-estabe-
lecidos capazes de orientar intervenções em bens tombados levam a decisões
particularizadas, demasiadamente discricionárias e, muitas vezes, antitéticas
entre os diferentes órgãos do patrimônio.
O inventário arquitetônico dos imóveis da Parte Baixa foi sistematizado em base
digital no “Banco de Dados de Gestão do Patrimônio de Paranapiacaba”, articulando as
informações arquitetônicas aos dados socioeconômicos e administrativos dos moradores.
Este inventário contém informações fotográficas, dados sobre a conservação dos imóveis
e levantamento planimétrico, com identificação das tipologias, de anexos existentes e
paredes ou materiais originais já retirados ou alterados dos imóveis.
A cooperativa de restauradores formou-se com moradores da Vila capacitados para
trabalhar especificamente com restauro e conservação em madeira. Até 2008 a coope-
rativa já havia restaurado um conjunto de quatro casas Tipo E, que abrigam o CDARQ;

907
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

uma casa de engenheiro incendiada que foi recomposta com o programa de biblioteca
pública; os cercamentos de um conjunto de quadras e a Antiga Padaria, finalizada em
2010. Em 2011 foram recontratados pela empresa que ganhou a licitação para a restau-
ração do Antigo Lyra da Serra, executada com financiamento do Ministério do Turismo
em 2008. Além disso, a cooperativa produzia elementos construtivos das casas, como
portas, janelas, mãos francesas, beirais e cercas, visando à constituição de um banco de
materiais centralizado para reposição adequada de elementos arquitetônicos degradados,
já cumprindo uma das diretrizes específicas de preservação constante na lei da ZEIPP.

Tipo E-CDARQ. Fonte: LIMA, 2008. Fotos: Gilson Lameira de Lima, 2007.

Entre 2006 e 2008 a Subprefeitura promoveu um curso para formação em educa-


ção patrimonial, cujo módulo básico era oferecido a todos os moradores e os demais
(intermediário e avançado) visavam formar monitores culturais. Buscando reverter o
processo de degradação sofrido no período administrado pela Rede Ferroviária Federal,
sobretudo nas décadas de 80 e 90, a Subprefeitura retirava os anexos precários e irregulares
dos imóveis. Num primeiro momento procedia-se a retirada quando os imóveis eram
devolvidos ou por meio de acordo com os moradores. Até 2008 foram retirados anexos
irregulares de 49 casas, 50% da demanda.
Por fim, no período de 2001 a 2008, foram investidos cerca de 4,5 milhões de dólares
em 27 obras de restauração do patrimônio edificado e espaços livres, além do investi-
mento anual de 82 mil dólares na conservação e manutenção contínua de Paranapiacaba.

908
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

O SISTEMA DE PAISAGENS CULTURAIS E AS ZEPPACS EM CAMPINAS

Esta experiência foi realizada quando da revisão da legislação urbanística de


Campinas, especialmente o Plano Diretor e a Lei de Uso e Ocupação, por equipe de con-
sultores da Fundação para a Pesquisa em Arquitetura e Ambiente (FUPAM FAU USP) junto
à Prefeitura de Campinas, entre 2014 e 2015.
O trabalho contou com a análise da configuração territorial da cidade envolvendo
a elaboração de cerca de 200 cartografias georreferenciadas inéditas, a partir dos seguin-
tes conjuntos de condicionantes: a inserção regional de Campinas na Macrometrópole
Paulista; os problemas urbano-ambientais e socioeconômicos e suas ocorrências ter-
ritoriais; as estruturas de mobilidade; os usos e centralidades; a legislação urbanística
vigente e as formas de ocupação do solo; os recursos urbanísticos e vocações; o sistema
de espaços livres e as paisagens culturais[2]. O que destacaremos aqui será a inserção
inovadora da cultura e dos patrimônios como integrantes dos sistemas estruturadores
do desenvolvimento territorial por meio do reconhecimento das paisagens culturais,
orientando a tomada de decisão sobre onde e como preservar e transformar na cidade.
Campinas ganhou um estudo inédito, com metodologia especificamente desen-
volvida para este trabalho, que identificou um sistema de quinze paisagens culturais, a
partir de leituras de conjunto que compreendem e valorizem de forma articulada os bens
naturais, culturais materiais e imateriais, oficialmente reconhecidos ou não. Áreas que
expressam as diversas fases da urbanização, o território usado, o caráter multicultural
da cidade, a cultura das comunidades, significados, celebrações, apropriações e práticas
culturais, seja nas áreas urbanas, rurais ou de preservação ambiental. Constituem um
sistema que revela e ressalta a diversidade e singularidades da cultura campineira, suas
conexões com a cultura regional e nacional, seus processos e distintos períodos históricos.
Dada a diversidade de paisagens, diversos métodos de identificação seriam apli-
cáveis. Entretanto, é imprescindível que os estudos resultem em leituras de conjunto a
partir de uma perspectiva pluridimensional, histórica e evolutiva. Para a identificação
do conjunto e sistema de paisagens culturais foram utilizadas diversas fontes de pes-
quisa e desenvolvido um método constituindo um banco de dados georreferenciados
e cartografias temáticas com mapeamento e análise: 1. do Substrato Ambiental, com o
Sistema de Espaços Livres, hipsometria, bacias hidrográficas, cursos d’água, fragmentos
de mata e patrimônios naturais; 2. do processo de urbanização (lido por períodos desde
o colonial, passando pelas 1ª e 2ª industrialização e a reesttururação produtiva); 3. dos
bens culturais e naturais tombados, em processo de tombamento e bens imateriais

[2] Para informações sobre a revisão da legislação de Campinas ver (JORGE et all, 2018).

909
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

reconhecidos; 4. dos bens materiais e imateriais de interesse cultural ainda não reco-
nhecidos, inclusive aqueles identificados pela população em processos participativos;
5. da legislação urbanística, ambiental e de preservação cultural vigentes; 6. da sobre-
posição cartográfica destas informações em sistema GIS, conforme ilustram algumas
imagens a seguir.

e hipsometria. Fonte: FUPAM FAU USP/PMC, 2015.

Livres e Patrimônios Naturais; Processo de urbanização. Fonte: FUPAM FAU USP/PMC, 2015.

910
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FIGURAS 10,11,12. Bens tombados (concentrados na área central); Patrimônio Imaterial: Folia de
Reis; Festa da Comunidade Alemã e Suiça do Friburgo e Fogueteiro. Fonte: FUPAM FAU USP/
PMC, 2015.

A partir destas informações foi possível a sistematização e análise temporal e


territorial dos patrimônios e paisagens, compreendendo suas interações no contexto
histórico da transformação do território, da urbanização da cidade e da apropriação, uso
e significação para a população. Campinas ainda mantém paisagens que remontam o
rural colonial do período cafeeiro, paisagens agrícolas ligadas às imigrações (sobretudo
alemâ, suiça, japonesa e italiana), paisagens urbanas e ferroviárias ligadas à primeira
industrialização, aquelas com atividade extrativista ou ceramista que transformaram
paisagens naturais, aqueles bairros com o desenho das cidades-jardins, aquela pai-
sagem palimpséstica onde o casario eclético convive com altos edifícios modernos
e pós-modernos, aquelas marcadas pela presença dos militares da escola de cadetes,
aquelas onde as celebrações e as diversidades culturais, étnicas e religiosas convivem
harmoniosamente, dentre outras.

911
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FIGURA 13. Sistema de paisagens culturais em Campinas. Fonte: FUPAM FAU USP/PMC, 2015.

São elas: 1. Paisagem Cultural Rural Colonial Cafeeria do Atibaia-Jaguari; 2. Paisagem


Cultural de Sousas e Joaquim Egídio; 3.Paisagem Cultural do Centro e Gênese Urbana; 4.
Paisagem Cultural da 1ª Industrialização; 5. Paisagem Cultural da Ferrovia Mogiana-A-
nhumas; 6. Paisagem Cultural Saudade-Proença-Derbi; 7. Paisagem Cultural do Cambuí;
8. Paisagem Cultural da Cidade-Jardim Castelo e Guanabara; 9. Paisagem Cultural do
Chapadão-Expecex-Santa Elisa; 10. Paisagem Cultural da Mineração – Pedreiras; 11.
Paisagem Cultural do Taquaral; 12. Paisagem Cultural de Barão Geraldo; 13. Paisagem
Cultural do Rio Capivari-Cerâmicas; 14.Paisagem Cultural Rural da Imigração Alemã e
Suíça – Friburgo e Fogueteiro; 15. Paisagem Cultural Agrícola da Imigração Japonesa e
Italiana – Pedra Branca.

912
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FIGURAS 14,15. Paisagens Culturais: Saudade-Proença-Derbi (Cemitério e Estádios da Ponte


Preta e Guarani da década de 1950); Escola de Cadetes do Exército (Foto: Eric Ferraz). Fonte:
FUPAM FAU USP/PMC, 2015.

Não será possível, no curto espaço deste artigo, caracterizar cada uma destas paisa-
gens, tampouco as diretrizes de preservação e gestão desenhadas para cada uma delas.
No entanto, destacaremos algumas diretrizes gerais propostas.

FIGURAS 16, 17. Paisagens culturais: Pátio Ferroviário da Fepasa, Centro e Vila Industrial; Estação
Fepasa.
Fonte: FUPAM FAU USP/PMC, 2015. Imagem aérea de Campinas em 1975. Fonte: MIS/PMC. Foto:
Leonel Albuquerque.

A identificação destas paisagens previamente à elaboração da proposta do plano


diretor e do zoneamento foi importante para orientar a tomada de decisão sobre as
áreas a preservar e a transformar, assim como para orientar os vetores de crescimento
e a aplicação dos novos parâmetros de desenho urbano. Especialmente, a organização
do macrozoneamento, dos Setores de Preservação e Transformação e do Zoneamento
Urbano se deram também em função da identificação destas paisagens culturais. Poste-
riormente, estas áreas foram incorporadas ao zoneamento extraordinário como ZEPPACs
– Zonas Especiais de Preservação da Paisagem Cultural, para as quais se definem objetivos e

913
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

diretrizes gerais e específicas, visando à preservação e valorização com desenvolvimento


compatível, articulados às demais políticas urbanas e às políticas de preservação cultural,
ambiental, economia criativa e turismo.

FIGURAS 18,19. Paisagens culturais: Maria-fumaça da ferrovia Mogiana na estação Anhumas,


2000. (Foto: Sergio Barral); Parque e Bairro cidade-jardim Taquaral, em 2007 (Foto: Arthur
Saraiva). Fonte: FUPAM FAU USP/PMC, 2015.

Nas ZEPPACs poderão ser demarcados “Conjuntos Urbanos de Interesse Arquitetônico


e Histórico da Paisagem Cultural”, identificados pela relevância da preservação de seus
atributos e significados arquitetônicos, técnicos e/ou históricos. Para estes conjuntos
urbanos, o proprietário poderá utilizar a Transferência de Potencial Construtivo (TPC),
calculada pela diferença entre o CA utilizado e o CA máximo permitido da zona de uso em
que se inserem. Dentro das ZEPPACs seria permitida a demarcação de ZEIS, assim como a
provisão de HIS – Habitação de Interesse Social e HMP – Habitação de Mercado Popular.
O EIV – Estudo de Impacto de Vizinhança seria exigido nas ZEPPACs para construções
acima de 2.500 m2, enquanto nas demais áreas da cidade apenas acima de 5.000 m2.

914
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

FIGURA 20. Zoneamento ordinário e a sobreposição do zoneamento cultural das ZEPPACs. Fonte:
FUPAM FAU USP/PMC, 2015.

Distintamente de Paranapiacaba, a prefeitura de Campinas ainda não estava prepa-


rada para a gestão mais complexa que exige a abordagem da paisagem cultural. Apesar
disto, este estudo logrou a demarcação de cinco das áreas identificadas nos estudos téc-
nicos que foram demarcadas como ZEPECs – Zonas Especiais de Preservação Cultural no
Plano Diretor aprovado em 2018 (Lei Complementar nº 189/18). Estas ZEPECs inspiram-se
mais no modelo paulista, onde podem ser demarcados bens isolados e lugares do patrimô-
nio imaterial. Funcionam “como instrumento urbanístico que visa identificar e fortalecer
tanto as porções do território destinadas à preservação, valorização e salvaguarda dos
bens e atividades culturais, quanto os espaços e estruturas que dão suporte a esses bens
e ao patrimônio imaterial” (Art.106, LC 189/18). Foram reconhecidas como ZEPECs Barão
Geraldo, o Centro, a Vila Industrial, a APA – Área de Proteção Ambiental de Campinas
(onde estão as paisagens culturais das fazendas cafeeiras, parte da ferrovia Mogiana,
Sousas e Joaquim Egídio) e a denominada John Boyd Dunlop, onde está a Comunidade
Afrodescendente da Fazenda Roseira, identificada nos estudos do patrimônio imaterial.

915
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

Em que pese os percalços das disputas políticas, das trocas de governo e das carências
e limitações da gestão pública no Brasil, as experiências aqui apresentadas contribuíram
para o debate e para a área de conhecimento da preservação cultural, do planejamento
territorial e da administração pública, na medida em que avançaram conceitualmente,
metodologicamente e no planejamento e gestão integrada e participativa. O que se
espera, como possibilidade de futuro, é que elas sejam capazes de inspirar outras ações
que busquem trilhar o caminho da sustentabilidade onde a cultura seja um dos pilares
fundamentais das políticas territoriais e socioeconômicas.

916
BRASÍLIA 2020
VI ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA
E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO

LIMIARIDADE
PROCESSOS E PRÁTICAS EM ARQUITETURA E URBANISMO

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

IPHAN (INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL). Carta de

______. Portaria 127 – Chancela da Paisagem Cultural Brasileira. Brasília: IPHAN,


2009.

Revista CPC, (18), 29-55. 2014. https://doi.


org/10.11606/issn.1980-4466.v0i18p29-55

humanidade. Marquise, São Paulo: Marquise, 2014.

FUPAM FAUUSP/PMC (Fundação para Pesquisa em Arquitetura e Ambiente


e Prefeitura Municipal de Campinas). Anexo 3. Preservação Cultural: estudo
preliminar das paisagens culturais de Campinas – Produto 3A. Análise e

Campinas. Campinas: s.n, 2015.

Arquitextos
abr. 2018 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.215/6959>.

Santo Andre: s.n., 2008.

COPEDOC, 2007.

917

Você também pode gostar