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Ottessa Moshfegh
1964
Sexta-feira
Sábado
Domingo
Segunda-feira
Terça-feira
Quarta-feira
Véspera de Natal
Fim
Autora
Créditos
Eu parecia aquele tipo de garota que a gente costuma ver no ônibus lendo
um livro emprestado da biblioteca com encadernação de tecido sobre
plantas ou geografia, talvez usando uma redinha por cima do cabelo
castanho-claro. Alguém poderia me confundir com uma estudante de
enfermagem ou uma datilógrafa, reparando nas mãos nervosas, um pé
batendo no chão, o lábio mordido. Eu não tinha nada de especial. É fácil
para mim imaginar essa garota, uma versão estranha, jovem e acanhada de
mim, carregando uma bolsa de couro anônima ou comendo um pacotinho
de amendoins, rolando cada um deles entre os dedos enluvados, sugando as
bochechas, olhando cheia de ansiedade através da janela. O sol da manhã
iluminava a penugem rala do meu rosto, que eu tentava cobrir com pó
compacto rosado demais para o meu tom de pele pálido. Eu era magra; meu
perfil, sinuoso; meus movimentos, bruscos e hesitantes; minha postura,
rígida. A superfície da minha pele era carregada de marcas de espinha
suaves e estrondosas que distorciam qualquer camada de deleite ou loucura
que pudesse existir por baixo daquele exterior frio e mortal típico da Nova
Inglaterra. Se eu usasse óculos, poderia passar por inteligente, mas eu era
impaciente demais para ser inteligente de verdade. Seria de esperar que eu
fosse do tipo que aprecia a imobilidade de quartos fechados, que me
reconfortasse no silêncio enfadonho, com os olhos passando devagar por
papel, paredes, cortinas pesadas, os pensamentos fixos naquilo que meus
olhos identificassem — livro, escrivaninha, árvore, pessoa. Mas eu
desprezava o silêncio. Eu desprezava a imobilidade. Eu detestava quase
tudo. Eu me sentia infeliz e irritada o tempo todo. Tentava me controlar, e
isso só fazia com que me sentisse mais inadequada, mais infeliz e mais
irritada. Eu era parecida com Joana d'Arc, ou com Hamlet, mas nascida na
Naquela tarde, preparei certas frases e respostas para usar com Rebecca. Eu
estava terrivelmente consumida pelo desejo de que ela me levasse em
consideração, de que compreendesse que eu não era a tonta provinciana que
eu temia parecer ser. Claro que ela sabia que eu era uma tonta provinciana
— eu era isso mesmo —, mas achei na época que a tinha enganado com
algum tipo de ponto de vista radical, nosso desgosto mútuo por peitos
grandes, a sabedoria fria do meu olhar, minha atitude em geral. Eu não era
radical, de jeito nenhum. Eu simplesmente era infeliz. Então me sentei à
minha mesa e treinei minha máscara mortuária: rosto em perfeita
indiferença, nenhum músculo em movimento, olhos vazios, imóveis, testa
ligeiramente franzida. Eu tinha uma ideia infantil de que, ao lidar com uma
amiga nova, o melhor a fazer era guardar todas as suas opiniões para si até
que a outra apresentasse as suas primeiro. Hoje talvez chamemos essa
atitude de blasé. É uma postura peculiar de pessoas inseguras. Elas se
sentem mais à vontade ao negar qualquer perspectiva em vez de proclamar
qualquer lealdade ou filosofia e correr o risco da rejeição e do julgamento.
Achei que devia morder a língua e parecer o mais alheia possível até que
Não era que não me importasse nem um pouco com os meninos. Era só que
eu era jovem e triste e não tinha como ajudar. Na verdade, eu me sentia
como se fosse um deles. Não era nem pior, nem melhor. Eu só era seis anos
mais velha do que os meninos mais velhos que estavam ali. Alguns deles já
pareciam homens — altos, esbeltos, com barba e bigode crescendo e mãos
grandes e grossas, voz grave. Eram, na maior parte, de famílias de
operários, mas havia alguns meninos negros também. Aqueles eram os que
eu mais gostava. Sentia que eles compreendiam algo que os outros não
entendiam. Eles pareciam mais relaxados, pareciam ter a respiração
levemente mais profunda, estampavam no rosto máscaras mortuárias
perfeitas enquanto os outros meninos faziam careta e franziam a testa e
cuspiam e provocavam uns aos outros feito criancinhas, pirralhos em um
pátio de escola. Eu sempre ficava imaginando o que todos eles pensavam de
mim quando me viam parada do lado de fora da porta durante o horário de
visitas, se chegavam a reparar em mim. Eles raramente olhavam para o meu
lado, nunca, jamais erguiam os olhos vermelhos, quentes e lerdos na direção
A casa estava trancada. Através das janelas, enxerguei meu pai adormecido
em sua poltrona na cozinha, a porta da geladeira escancarada. Às vezes ele
a deixava assim quando o calor do fogão e do forno o faziam suar. E, nos
pés do meu pai, sapatos. À exceção dos domingos, quando ele era vigiado
de perto pela irmã para ir e voltar da igreja, se meu pai estivesse calçando
sapatos, significava que haveria confusão. Ele não era uma ameaça violenta,
mas quando saía de casa, fazia coisas que o diretor da prisão chamaria de
ofensivas do ponto de vista moral: cair no sono no gramado de alguém,
dobrar ao meio os cartões-postais na farmácia, derrubar uma máquina
distribuidora de chicletes. Entre suas indiscrições mais agressivas estavam
mijar no tanque de areia do parquinho infantil, berrar para os carros na rua
principal, jogar pedras em cachorros. Cada vez que ele saía de casa, a
polícia o encontrava e o trazia de volta. Como eu estremecia ao som
daquela campainha quando um policial da Cidadezinha X se postava na
frente da varanda com meu pai, bêbado e repuxando o queixo, os olhos
vesgos. O policial tirava o quepe quando eu abria a porta, falava em
sussurros enquanto meu pai irrompia pela casa em busca de bebida. E se
ele, em vez disso, preferisse ficar e participar da conversa, havia apertos de
mão e tapinhas no ombro, o fingimento respeitoso de amor e lealdade.
“Visita de rotina, senhor”, o policial dizia. Se um policial tentasse expressar
a menor preocupação que fosse, meu pai puxava o sujeito de lado e
começava a discorrer sobre os arruaceiros, a máfia, os barulhos estranhos na
casa. Ele reclamava da saúde ruim, de problemas no coração, de dor nas
costas, e de como eu, sua filha, era negligente, de como eu abusava dele, de
como eu só estava atrás de todo o seu dinheiro. “Será que alguém pode
dizer a ela para, por favor, devolver os meus sapatos? Ela não tem esse
De volta a casa, meu pai parecia estar dormindo quando coloquei a garrafa
na mesa da cozinha, mas, antes que eu pudesse sair, ele se ergueu
subitamente da poltrona reclinável. Sua mão disparou e agarrou meu pulso.
“Leonard, você disse? Leonard do quê?”, ele perguntou.
“Polk”, respondi, bem estúpida.
“Polk”, ele repetiu. Deu para ver suas engrenagens enferrujadas girando.
Ele sacudiu a cabeça. “Eu conheço esse menino?”
“Duvido muito”, respondi, me desvencilhei do agarrão dele e subi a
escada correndo. Fiquei aliviada quando ouvi a garrafa de gim sendo aberta.
Imagino que ele tenha apagado qualquer lembrança desse diálogo
imediatamente. Ele nunca mais voltou a mencionar o nome Polk, apesar de
a minha esperança ser de que ele tenha pensado se tratar de uma pista que
ele não conseguiu seguir quando desapareci. “Eu deveria saber que ela
estava encrencada”, imaginei que ele diria.
Peguei um monte de panos de limpeza de debaixo da pia do banheiro e
voltei para o carro e fiz o vômito escorregar do assento do passageiro para a
neve. Foi impressionante como removi facilmente a poça toda de uma vez
só, mas ficou uma mancha. Salpiquei detergente em pó de lavar louça por
cima e cobri com uma toalha. Tenho certeza de que tive ânsia de vômito e
engulhos o tempo todo, ainda que, na verdade, eu só me lembre de correr
para o chuveiro depois. Me esfreguei novamente com vigor — uma
Suponho que tenha sido uma manhã típica em Moorehead, mas, cada passo
que eu ouvia, e cada vez que a porta se abria para deixar entrar uma rajada
de vento, eu primeiro me encolhia — a dor de cabeça da minha ressaca era
igual a um golpe no cérebro — e depois erguia os olhos, cheia de maldade e
animação para ver Rebecca entrar, mas ela não apareceu. Eu estava ansiosa
para voltar a vê-la, reafirmar o que tinha sentido na noite anterior. Eu era
capaz de sentir o cheiro da minha animação saltando do meu corpo como o
choque pungente de enxofre queimado quando se risca um fósforo. Como é
que eu poderia ir embora da Cidadezinha X agora que Rebecca estava ali
Saí de Moorehead pela última vez naquela tarde, mas eu não teria como
saber disso. Deixei minha mesa uma bagunça. O vermute e os chocolates
ficaram no meu armário, um livro da biblioteca, na minha gaveta. Não me
lembro dos meus últimos momentos naquela prisão, e de vez em quando
pensava sobre o que aconteceu com os meus pertences, ou no que as
senhoras do escritório ficaram falando sobre mim quando não apareci para
trabalhar depois das festas de fim de ano. A sra. Stephens provavelmente
voltou a ser responsável pela visitação, a sra. Murray, pela admissão.
Duvido que tenham feito muito caso. Se Rebecca voltou lá, talvez tenha
tentado me acobertar. “Ela foi visitar parentes”, pode ter mentido. Para
mim, tanto faz. Eu não perdi nenhum sono pensando no que deixei para trás
em Moorehead.
Eu estava exausta no caminho de casa naquela noite e já sofria da dor
forte e torturante que costumava acompanhar minha menstruação no
terceiro dia. Estava cansada demais para passar na Lardner's a caminho de
casa. Se meu pai precisasse de algo, o problema era dele. Ele não morreria
se tomasse um copo de leite, se passasse uma única noite sóbrio, pensei.
Ou, talvez, morreria de fato. De todo modo, eu não me importava. Suponho
Minha mãe nunca preparava lanche para eu levar para a escola quando eu
era pequena. Eu ficava sentada olhando para os joelhos enquanto as outras
crianças comiam seus sanduíches, meu estômago vazio e roncando. Logo
que eu chegava em casa, à tarde, enchia a barriga de pão e manteiga, a
única coisa que conseguia encontrar na cozinha bagunçada da minha mãe.
Quando eu era criança, os jantares ao redor da mesa da cozinha dos Dunlop
não eram exatamente nutritivos. As refeições eram breves e sem jeito. Meus
pais só brigavam na minha frente e de Joanie, como se precisassem da
nossa plateia para discutir seus assuntos pessoais. Nossa mãe choramingava
e nosso pai resmungava, jogava o garfo para o outro lado da mesa e olhava
para sua Smith & Wesson, que ficava ao lado do prato. Se Joanie ou eu nos
queixássemos, minha mãe batia um pano no chão para fazer um barulho de
estalo, repentino e ruidoso, feito um raio, feito um rojão. Não me lembro do
que eles sempre discutiam. Eu só mastigava a comida rápido e levava o
prato para a pia e corria escada acima. Além do mais, as refeições que
minha mãe preparava eram horríveis. Nunca comi bem até o meu segundo
marido. Ele explicou que bife não era um pedaço de músculo igual a couro
queimado em uma frigideira, mas algo espesso, cheiroso, delicioso, e que o
melhor deles poderia ser comido com uma colher cega. Engordei cinco
quilos, acho, no primeiro mês em que ficamos juntos. De volta à
Cidadezinha X, os jantares dos Dunlop tinham sido, na melhor das
hipóteses, frango seco, purê de batata saído de uma caixa, feijão enlatado,
bacon molenga. O Natal era um pouco diferente. Pão de ló comprado
pronto é a única coisa que me lembro de saborear ano após ano. Os Dunlop
nunca foram muito de comer.
CDD 813
Este livro traz seis ensaios que inovam a maneira como discutimos — ou
evitamos discutir — a ética e as políticas relativas ao sexo. Apesar de ser
um ato privado, o sexo é carregado de sentido público. Para compreender o
sexo na sua complexidade — suas profundas ambivalências, sua relação
com gênero, classe, raça e poder — é preciso pensar muito além do sim e
do não, do desejado e do indesejado. É o que faz a jovem e brilhante
filósofa Amia Srinivasan nesta obra.
Um texto épico e lírico, realista e mágico que revela, para além de sua
trama, um poderoso elemento de insubordinação social.