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quinta-feira, 1 de Setembro de 2005

A punição que os bons sofrem, quando se recusam a O início de Setembro tem sempre este sabor de fim de
agir, é viver sob o governo dos maus férias e, ao mesmo tempo, de re-início de trabalho. Re-
Platão iniciar não é tornar a fazer tudo tal qual sempre fizémos.
O Jornal das Boas Notícias
É mesmo começar de novo.
Ideias para um país desenvolvido ............................................................................ 1 Tal como no primeiro dia de cada ano, é tempo de bons
Lições ............................................................................................................................. 2 propósitos e de entusiasmo com a novidade do tempo que
As lojas da cidade........................................................................................................ 2 aí vem. O clima da “silly season” e o estado de ânimo do
Prisioneiros do futuro................................................................................................ 3
Contra as ideias............................................................................................................ 3 nosso país não são especialmente estimulantes. Teremos
Quotidiano "Versus" Novidades............................................................................ 4 que procurar o ânimo noutro lado. Porque não procurá-lo
A televisão e os pirómanos ....................................................................................... 5 em nós mesmos? “O Homem moderno precisa do nosso
Vítimas .......................................................................................................................... 6
O privilégio de ser estudante.................................................................................... 6 testemunho” diz Henrique Barrilaro Ruas (p.16) numa
Mais dinheiro para a Educação? .............................................................................. 7 excelente conferência de 1947 que descobri por acaso e
Mais Dinheiro para a Educação?............................................................................. 8 que me pareceu muito actual. Mais do que opiniões
O fenómeno brigantino............................................................................................. 9
Sinal dos Tempos ....................................................................................................... 9 superficiais ou ideias geniais, o mundo de hoje precisa
O imparável carrossel do divertimento................................................................10 que sejamos testemunhas, “não de uma história distante,
A crise do vazio .........................................................................................................11 de tempos passados, mas de uma presença” (p.25), como
As três peneiras..........................................................................................................12
nos disse o Papa Bento XVI em Colónia. A consciência
Quando o Telefone Toca .......................................................................................12
Só não temos democratas........................................................................................13 desta presença muda tudo, permite que realmente o re-
Dizer ao Mundo o Que Sabemos de Deus.........................................................14 início seja um novo início, torna claro o sentido de tudo o
Em defesa de Cândido.............................................................................................15 que acontece. Bono dos U2 (p.24) reconhece esta Graça
Alexandrina de Balasar - Santa para Portugal ....................................................16
Um Senhor Homem.................................................................................................17 que tudo recupera e nos salva das nossas fraquezas.
O cristão no mundo de hoje ..................................................................................17 Há pois, poderosas razões de esperança.
Bono dos U2 faz fortes afirmações sobre Cristo ..............................................25 Afinal o nosso tempo já foi salvo por uma mulher (p.32).
Confissões...................................................................................................................25
Esta não é uma história distante, de tempos passados. É uma Um bom novo início
presença..................................................................................................................26 Pedro Aguiar Pinto
O fogo de Colónia....................................................................................................28
Armadilha do moralismo antimoralista...............................................................29
A sociedade da ignorância.......................................................................................30 que (se) fecha deslocalizando-nos, a descoberta do
Encontrar um desígnio na Natureza ....................................................................30 envelhecimento (...). Enfim, a nossa vida e história
Fé e ciência perante a origem do homem ............................................................31 recente têm sido, sem grandes desvios, um pouco de
A estatização dos afectos.........................................................................................32
Um tempo salvo por uma mulher.........................................................................33 tudo isto”.
Dois provérbios e outras tantas lições. As notícias
todos os dias dizem que vêm aí tempos mais difíceis,
Ideias para um país desenvolvido em termos económicos, do que seria de esperar há
Dias Positivos
In: Correio do Vouga, 050726.
apenas uns meses. Um banqueiro chegou a afirmar
Esperança. Li num livro de que não sou capaz de há dias que a solução era cortar dez por cento em
identificar o autor ou sequer o título: Um judeu era todos os ordenados. E o índices económicos (PIB,
preso pelos nazis, depois de muito tempo em fuga poder de compra, exportações, competitividade...)
de terra em terra. Ao entrar na a prisão, exclama: pioram de dia para dia. A questão é: O que fazer?
“Pronto, acabou-se o medo. Começa a esperança”. Como sempre, há duas possibilidades (adapto um
Lembro-me frequentemente desta frase perante a provérbio que uns dizem ser chinês, outros hindu;
sucessão de más notícias com que somos atingidos. eu acho-o cristianíssimo): amaldiçoar as trevas
Os males que nos afligem. Há dias, no jornal Público (opção do insensato nos tempos difíceis) ou acender
(15 de Julho), o sociólogo Jorge Gomes fazia um uma luz. Ou então estas: esperar que os outros
diagnóstico certeiro do estado de alma português: façam uma estrada para eu avançar, ou arranjar um
“Homens que se sexualizam em meninos, meninas bom calçado que me permita percorrer os caminhos
atiradas a rios e a animais, mortes que são conside- inóspitos. É claro que as estradas (as boas
radas mais mortes do que outras, papéis assinados condições) têm de existir. Mas de pouco valem se os
em tempo (in)útil, a eterna invisibilidade do défice, a indivíduos não sabem para onde querem ir. Ora os
chuva que sói cai noutro sítio, os fogos que apare- que sabem, mesmo que os caminhos sejam maus,
cem sem convite, a vida dos deputados medida em não desistem.
anos, a segurança social e o seu prazo de validade, o O tripé da crise. A crise do desenvolvimento
travão na despesa, o acelerador nas exportações, o português, quando a mim, é uma crise dos
excesso de consumo e endividamento, a tecnologia portugueses. De cada um de nós. Individualmente. E
que não existe, a inovação sem mudança, a qualifica- isso nota-se em três aspectos: Não somos pontuais
ção sem valor acrescentado, a eterna formação longe (dizemos que não queremos ser escravos do relógio,
do real, o aumento do desemprego, o empresário quando estamos apenas a ser desleais para com os
outros). Não lemos jornais nem livros (porque nos
fazem pensar; a cultura custa). Não gostamos de lhador.
matemática (porque temos horror à exactidão e ao
exercício mental). O que é que isto tem a ver com o As lojas da cidade
desenvolvimento? Tem tudo. Não há nenhum povo João Morgado Fernandes
In: DN030506
que seja pontual, goste de matemática ou leia muitos A calculadora apareceu lá em casa como tantas
jornais que não seja desenvolvido. Os índices de outras coisas. Sorriu para nós da prateleira de um
leitura, desempenho matemático e pontualidade são hiper, agarrada a um pacote de chocolates. Tentem
directamente proporcionais ao desenvolvimento resistir ao sorriso enigmático de quinze teclas, boli-
(como é que alguém pouco pontual e pouco dado a nhas de cores garridas! 'Tá bem. Levamos duas.
contas poderá cumprir os défices?). Uns dirão que Quando a pilha acabar, acaba-se a calculadora.
são consequência. Mas há mais quem defenda que Talvez querendo fintar o destino, as maquinetas
são causas. São daquelas relações mágicas que nos esmeraram-se. E duraram, duraram... Ao longo de
fazem pensar (como aquela que constitui a melhor anos, ajudaram no IRS e em contas mais honestas.
defesa do sistema democrático: apesar das suas Foi com elas que os miúdos aprenderam a fazer
muitas falhas, nunca duas democracias andaram em contas, para desgosto dos pedagogos encartados.
guerra uma contra a outra). Dois mais três? Não sabes? Olha... são cinco.
Queremos ser desenvolvidos, estar preparados para Resistiram a tudo. Aos maus tratos dos miúdos e à
a globalização, enfrentar melhor o futuro? Leiamos chegada triunfal dos telemóveis, que, de uma assen-
jornais (não necessariamente o CV), sejamos tada, substituiram telefones, relógios e... calculado-
pontuais e aprendamos a gostar de matemática. ras.
Há uns meses, porém, as máquinas cansaram-se. Em
Lições sintonia, para que não tivéssemos dúvidas de que
Francisco Sarsfield Cabral
In: DN 030501 não era obra do acaso.
Relata o último Expresso que a Autoeuropa baixou E ali estávamos nós, a olhar para aquelas duas ex-
o nível de absentismo dos seus trabalhadores de 5,5 calculadoras... Anos e anos de afeição tinham que
por cento em Julho de 2001 para menos de 2 por dar nisto _ uma segunda oportunidade.
cento, agora. A fábrica de Palmela é, hoje, um Empreendemos, então, uma estranha peregrinação
exemplo no grupo Volkswagen, o maior fabricante pelas catedrais do consumo em busca da pilha per-
europeu de automóveis. A Autoeuropa introduziu, dida. Nada. Uma atrás de outra, todas as raparigui-
também, um «banco de tempo», permitindo gerir os nhas do shopping nos deram a mesma resposta.
horários de trabalho segundo as flutuações da procu- Tinham pilhas, sim senhor, de muitos e variados
ra de carros. Recorde-se que a VW conseguira na tamanhos, Para relógios, máquinos fotográfica e até
Alemanha um acordo com os trabalhadores, que calculadoras. Mas nada daquilo que lhes pedíamos.
aceitaram restrições salariais e flexibilidade de horá- Era o diámetro e era a voltagem. Nada condizia.
rios para manterem os postos de trabalho. Desistimos. Afinal, o destino das máquinas estava
Último grande investimento estrangeiro em Portu- ligado, desde a primeira hora, à resistência das pilhas.
gal, a Autoeuropa desencadeou um notável desen- Foi então que nos lembrámos. Uma daquelas lojas
volvimento em dezenas de empresas nacionais for- das Portas de Santo Antão haveria de salvar as mori-
necedoras de peças e acessórios para automóveis. bundas calculadoras.
Apoiadas numa estratégia de promoção seguida Logo à primeira, uma idosa e atenciosa senhora pega
pelas autoridades portuguesas, muitas dessas empre- na pilha e, para nosso espanto, puxa de uma lupa,
sas exportam, hoje, para todo o mundo ultrapas- verifica o número de código, puxa de umas caixas da
sando, já, as exportações têxteis. Uma oportunidade prateleira, volta a verificar com a lupa e, para nosso
bem aproveitada, evidenciando não estarmos conde- ainda maior espanto, coloca em cima do balcão duas
nados às exportações assentes na mão-de-obra bara- pilhas novas em folha. Um euro e 30 cada. Barato.
ta e às decorrentes deslocalizações de empresas. Baratíssimo, se tivermos em conta a raridade do
A lição da Autoueropa não é, apenas, a de que preci- produto.
samos de mais investimento estrangeiro de qualida- Um dos encantos de Lisboa é a resistência destas
de. É, também, mostrar uma via importante para a velhas lojas, especializadíssimas. Conheço uma que
nossa modernização: copiar, com inteligência e as ainda vende agulhas para gira-discos (!), outra onde
necessárias adaptações, o que os outros fazem de há de tudo para a barbearia tradicional. Lojas que
melhor. Eis um desafio para a Associação para a resistem ao tal franchising que torna iguais todas as
Inovação em boa hora lançada pelo Presidente da cidades do mundo. Que as torna muito cosmopoli-
República. Nem sempre é preciso inventar a pólvo- tas, mas lhes rouba o encanto e a alma.
ra. Necessário é estar atento e ter vontade de mudar. Como já passámos o tempo dos subsídios, lojas
E muito há a mudar num país onde, segundo o destas deviam ter medalha à porta.
director de recursos humanos da Autoeuropa, é mais
fácil fechar uma empresa do que despedir um traba-

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O JORNAL DAS BOAS NOTÍCIAS 1 de Setembro de 2005
que na nossa sociedade adquiriu a ocorrer, tenha por vezes de ser pro-
Prisioneiros do futuro noção de destino e toda uma indústria movida pela antecipação de um desti-
Miguel Poiares Maduro
In: DN, 050817
de previsões do futuro. Não existindo no diferente. Essa é também uma
Há dias foi anunciado que Portugal um futuro pre-determinado, acreditar razão para o recurso aos astros e a
apenas atingirá o nível económico no destino é acreditar naqueles que outras "ordens do futuro": procurar
médio europeu dentro de 110 anos… nos lêem o destino (escrito nos astros, uma responsabilização alternativa ("os
Não sei qual é a base para uma tal nas cartas ou até nas borras de astros são quem mais ordena"). Mas
previsão mas anunciada assim parece café…). essa é apenas uma outra forma de
ridícula. Em 110 anos, o mundo e Ao acreditarmos nessas previsões perder a liberdade.
Portugal podem sofrer as maiores ficamos prisioneiros de quem as faz. Em Portugal, o futuro é mais irrever-
transformações pelo que sabemos, até Tornamo-nos os seus executantes. sível do que a História. Perante a His-
podemos ser invadidos por extrater- Nunca demonstraremos que são falsas tória adoptamos muitas mais liberda-
restres que percebam de economia ou porque nós mesmos garantimos, atra- des. Paradoxalmente, achamo-nos
vir a ter uma geração clonada a partir vés da nossa obediência, a sua concre- donos da História e escravos do desti-
de uma qualquer célula do António tização. no. Mu- damos a História de acordo
Dâmaso! As circunstâncias que Admito, por exemplo, que a colocação com a nossa necessidade de justificar
podem afectar o crescimento econó- dos astros quando nascemos até possa ou legitimar diferentes opiniões ou
mico da Europa e de Portugal são determinar alguns tratos da nossa sentimentos. É que a História, ao
tantas que uma previsão deste tipo e a personalidade (há tantas coisas que contrário do futuro, não é vista como
tal distância não faz sentido (é prová- podem influenciar o que somos, desde sendo da nossa responsabilidade e até
vel até que o estudo assente na pre- os genes que temos à cara da enfer- serve para nos demitir de responsabi-
sunção de que "tudo se manterá como meira que vimos quando nasce- lidades ("foi sempre assim").
está" e, nessa medida, a sua conclusão mos…). Mas não consigo compreen- Frequentemente, a História muda não
é apenas uma análise crítica do nosso der como se passa da influência dos porque muda o nosso conhecimento
actual modelo de crescimento econó- astros na nossa personalidade à previ- dela mas sim porque mudam as nossas
mico). são de acontecimentos específicos. necessidades quanto ao que concluir
Sempre me impressionou esta impor- Será que de uma concentração de com base nela. É curioso como em
tância que atribuímos à previsão do "Balanças" se deve esperar uma grave Portugal uma pessoa teimosa, ortodo-
futuro. Queremos antecipar o nosso perturbação pública ou que o facto de xa, fundamentalista, passa, após a
destino. Só que conhecer o que o o Sporting ter 11 Capricórnios a jogar morte, a ser definida como coerente,
destino nos reserva pressupõe que o garante a vitória no campeonato íntegra, corajosa. Não há nada como a
nosso destino já está reservado. E é nacional? Por que motivo hão-de os morte para mudar a história de uma
aqui que está o problema querer astros permitir prever certos aconte- vida. A História não muda, mas o que
conhecer o futuro é negar que somos cimentos? Não será que a nossa ansie- muda é a nossa história da História.
nós que o determinamos. É deixar-se dade em saber o que o futuro nos Exercemos a nossa liberdade na forma
conduzir em vez de tentar conduzir reserva é antes um escape para o que como contamos diferentes Histórias
um pouco. Como é que se pode pre- sentimos ser a nossa impotência em da nossa História. É que a História é
ver a nossa evolução económica para lidar com ele? uma construção da memória e, como
os próximos 110 anos? A nossa descrença num futuro aberto tal, sugestionável. É mais fácil reescre-
Só presumindo que somos prisionei- resulta da nossa dificuldade em saber ver a História do que escrever o futu-
ros de nós próprios e que não pode- o que fazer com esse futuro. Não é ro. E quanto mais distante a História
mos mudar. Isto é a negação da nossa que nos falte vontade de ter a liberda- mais fácil é de nos apropriarmos dela.
própria humanidade e da liberdade de de determinar o futuro. Falta-nos é Ninguém pode lá voltar para controlar
que lhe é inerente. Mesmo para quem a vontade de escolher o que essa liber- a nossa versão.
não é católico, o episódio do pecado dade implica. É que o insucesso resul- Não temos medo de manipular a His-
original é belíssimo a esse respeito. tante da não decisão pode ser atribuí- tória mas temos um enorme receio de
Porque teria Deus permitido a Adão e do ao destino ao que nos aconteceu tomar conta do destino. Exercemos a
Eva que pecassem e porque teriam ou estava reservado. O insucesso nossa liberdade para justificar onde
eles vontade de pecar estando no resultante de uma nossa decisão é estamos mas não para determinar
paraíso? Só encontro uma explicação antes visto como sendo da nossa res- onde vamos. E, no entanto, só há uma
o acto de rebeldia permitido por Deus ponsabilidade: "foste tu que fizeste coisa certa no nosso destino a morte.
é o reconhecimento da liberdade isso a ti próprio!". Daqui resulta uma E mesmo essa, se puder, evito-a.
Miguel Poiares Maduro
humana. Mas ao libertarem-se, Adão e enorme tendência para imobilidade miguel.maduro@curia.eu.int

Eva deixam de estar protegidos no perante a vida e o destino.


paraíso e passam a ser responsáveis Quem nada faz e é infeliz tem a pena Contra as ideias
pelo seu destino. São eles e não Deus de todos era esse o seu destino. Quem Pedro Lomba
In: DN040525
que o determina. Deus pode julgar tenta mudar o seu destino é um aven- Não sei quantas vezes já ouvi este
mas não escolhe. tureiro. Socialmente, somos induzidos apelo: a política precisa de mais ideias.
Sendo assim, é absurda a importância à inércia. Daí que até a mudança, para Mas sei que foram muitas e com
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variantes que passo a enumerar. Uns empíreo intelectual à realidade do dade ultrapassa as ideias. Somos mar-
defendem uma política das ideias em tempo e da experiência. Tal como a cados por inúmeros conflitos de
vez de uma política das pessoas, como esquerda, a direita portuguesa nunca visões, mundividências, projectos
se em política as pessoas não fossem, deixou de ser académica e platónica, o pessoais, idiossincrasias. Governar os
provavelmente, o mais importante. resultado de toda uma herança filosó- outros não é fácil. Mais difícil, e mais
Outros afirmam a superioridade natu- fica que carregamos às costas: intelec- importante, é governarmo-nos a nós
ral das ideias sobre os saberes meno- tual, racionalista, apriorística, ideológi- próprios. Montaigne sugeria que
res, da técnica às finanças. Outros ca. Infelizmente, Portugal foi gover- puséssemos a nossa vida antes da
ainda, sobretudo na esquerda, querem nado por ideias e intelectuais, e apenas «vida de César». Mas nem aí as ideias
tanto levar a «inteligência ao poder» por ideias e intelectuais, durante nos salvam.
que, sempre que a «inteligência» lá demasiado tempo.
chega, o poder torna-se aborrecida- Esta política de cátedra ou de santuá- Quotidiano "Versus" Novidades
mente mais burro. Outros, por fim, rio deixa-me frio. Porque antes da EDUARDO CINTRA TORRES
In: Público, Segunda-feira, 21 de Junho de 2004
querem uma política com cultura e cátedra e do santuário, antes das espe- Sobre o Iraque os noticiários televisi-
«sensibilidade cultural», como se um culações da direita tradicional ou da vos quase só mostram a carnificina
governante precisasse de conhecer o esquerda tradicional, existe uma coisa contra iraquianos junto aos portões de
cânone literário para ser bem sucedido infinitamente mais importante: a expe- recrutamento de soldados. Só o que
e como se ficasse mais «sensível» por riência. A experiência política e não- choca é notícia. Só o que rompe o
isso. política. A experiência linear e contra- quotidiano merece tempo de antena.
Na realidade, o valor das ideias para a ditória. A experiência colectiva e indi- É da natureza do jornalismo sublinhar
política é muito sobrevalorizado. vidual. Diante desse território proteico a novidade, e os ataques suicidas
Alguns dos mais notáveis estadistas que é a experiência humana, pouco enquadram-se por isso na actividade
que este mundo conheceu não tinham importa a chusma de conceitos e teo- básica de informar e ser informado,
muitas ideias mas tinham qualidades rias com que alguns pensam em essencial na vida contemporânea. Mas,
políticas mais decisivas, como o carác- governar-nos; só as posições que transformada em única, esta atitude
ter e a clarividência. Eu, confesso, sou assumimos em face de problemas jornalística deixa de ser um ponto de
um céptico em relação ao poder das concretos. Quase toda a nossa refle- vista privilegiado (o "vantage point"
ideias. As ideias são a antecâmara das xão política, nada abstracta e ideológi- de que falam os manuais) para ser, se
ideologias, das utopias, de leis históri- ca, nasce de problemas concretos, de não uma mentira, pelo menos uns
cas, de projectos políticos absolutistas. questões concretas. A precedência das antolhos que não deixam ver mais
E sou ainda mais céptico em relação ideias sobre a experiência nunca é boa nada.
aos simplórios que, com duas ideias e conselheira. Por isso, devemos aceitar Tendendo a simplificar, a informação
dois parágrafos na cabeça, aspiram a ir a finitude e limitação da acção política. televisiva mostra o sangue na estrada,
por aí ensinar aos outros como é que A experiência deve ser o seu fim e o mostra como se vai morrendo e omite
eles devem viver. Quando vejo uma seu limite. É mais importante resolver como se vai vivendo, o que se vai
criatura babar demasiadas certezas, problemas do que aplicar teorias; é construindo, a difícil soma dos mil
desconfio. Quando vejo alguém dis- mais importante o que conseguimos actos de cada dia. A BBC fez uma
posto a transformar o mundo a partir fazer sem o poder do que o que con- reportagem há meses que contrariava
da sua cabeça, temo o pior. Não pre- seguimos fazer com ele. Voltarei em a imagem catastrofista dos noticiários
tendo afirmar a inutilidade das ideias, breve a este assunto. do costume. A SIC reproduziu essa
ou o fim da História, ou uma qualquer Até a nossa própria experiência ultra- reportagem, a mesma SIC para a qual
era do consenso e da conformidade. passa, fatalmente, tudo o que pensa- os incidentes provocados pelo clérigo
Não quero dizer que as ideias se tor- mos. As ideias que temos são contin- Al-Sadr representavam "a guerra sem
naram fúteis ou que as escolhas políti- gentes e falíveis. Não há unidade pos- fim". A repórter da TVI Carmen San-
cas se cingem a questões meramente sível. Não há coerência possível. Um tos fez várias vezes tentativas de sair
técnicas ou funcionais. O que quero cristão apanha-se frequentemente em do cerco da ideologia dominante dos
dizer é que as ideias não são assim tão contradição com o seu credo, um noticiários, mas as ideias feitas hege-
importantes na política; em excesso, socialista não é socialista todas as mónicas no universo jornalístico não a
podem ser mesmo nocivas. horas do dia, um conservador cede ajudaram, quando tinha de dialogar
A esquerda e a direita, em Portugal, muitas vezes ao liberalismo. A expe- com o estúdio: os apresentadores o
sempre se apegaram às ideias e às riência mostra--nos que a diversidade que queriam era o sangue na estrada.
autodefinições. Sempre demarcaram o e o pluralismo são forças irresistíveis; Este quadro informativo distorce a
seu campo, excluindo toda a diferen- e que essa diversidade e esse pluralis- representação que o espectador possa
ça, encerrando o país nos seus pró- mo, antes de estarem nos outros, fazer da realidade iraquiana. Quem
prios sistemas. A nossa esquerda é ela encontram-se em nós. No exacto não dê atenção a outros meios de
própria uma ideia, abstracta e imprati- instante em que esperamos viver de informação será tentando a análises
cável. Mas também a nossa direita, uma maneira, estamos a viver de apocalípticas, como as de Miguel Sou-
que tinha mais obrigação em andar outra. Ao mesmo tempo que pomos sa Tavares. Baseando-se habitualmen-
com os pés na terra, preferiu sempre o as ideias à frente da realidade, a reali- te na superficialidade analítica, ele
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recorre ao seu estilo alternadamente Wenders, é o som da cidade por essa todos os outros. O casamento serve
gongórico, impressionista, expressio- câmara guardado. ao cineasta para nos fazer regressar à
nista ou surrealista para apresentar o Realizado o folhetim em Fevereiro, o casa de Abbas, onde, ao raiar a
Iraque e o mundo à beira das catástro- realizador promete voltar em 2005 madrugada, quando as crianças ainda
fes que a sua voz oracular anuncia, para filmar de novo a família e saber dormem, o casal aproveita para con-
por escrito ou em directo, e só ela se a sua situação melhorou ou piorou. versar. Introduzindo uma volta na
permitirá evitar. A "telenovela de realidade" foi mon- narrativa, o realizador deixou para o
O Arte passou de terça a sexta os tada em episódios centrados em per- final do folhetim esse momento mati-
quatro episódios de um folhetim sonagens. Primeiro Abbas, o que tem nal em que Abbas diz à mulher que
documental que mostrava a vida de mais dúvidas sobre a nova situação. vai deixar o seu trabalho actual. Terá
uma família de Bagdad. Chamava-se Ele e os outros falam sobre as vanta- sido por ter visto a prosperidade dos
"Bagdad Quotidiano Bagdad". O seu gens e desvantagens da liberdade, outros no casamento? A novela ter-
realizador, Romain Goupil, é um quando a situação securitária não está mina com Abbas saindo e fechando a
cineasta militante com origem no garantida. Tendo perdido o emprego e porta de casa.
Maio de 68. Desta vez preferiu que o sem receber qualquer pensão, Abbas
seu "vantage point" fosse o de obser- faz entregas erráticas de electrodomés- A televisão e os pirómanos
vador do dia-a-dia de uma família ticos pela cidade, vendo os outros Pedro Afonso, 050829

iraquiana. melhorar a vida e saudar para a câma- Neste verão arderam mais de 180 000
Esta "telenovela de realidade" mostra ra de Goupil o fim da tirania. hectares de terreno por todo o país.
os pequenos-almoços da família pobre O segundo episódio centra-se em As várias televisões noticiaram a tra-
de Abbas, ele, a mulher e as quatro Yasmine, a mulher, centro do quoti- gédia em longas horas de emissões.
crianças; a ida para a escola; o difícil diano. Se Abbas nos levou às ruas, ela Para além dos excepcionais factores
pão de cada dia para Abbas depois de leva-nos a outras famílias. Narmine, a climatéricos, a falta de limpeza das
23 anos no exército de Saddam; os sua irmã, esperou durante dez anos o matas, etc., parece existir um certo
trabalhos de casa; as falhas de electri- regresso do marido desaparecido; só consenso que muitos dos incêndios
cidade; as discussões sobre o destino a em 2003 soube que ele tinha sido tiveram “mão criminosa”.
dar ao pouco dinheiro; a vida nas ruas assassinado há oito anos na prisão Constata-se que tem havido frequen-
e estradas da capital. pelo regime de Saddam; nunca lhe temente uma abordagem sensaciona-
Mostra também outros membros da disseram. A outra irmã, Nahla, que lista deste fenómeno por parte de
família: um deles meteu-se na cons- não usa véu e pinta o cabelo de louro, alguma comunicação social, por
trução e está a caminho de prosperar é casada com o jornalista Hilmi, cen- exemplo, com jornalistas a colocarem
com a nova situação. O cunhado de tro do terceiro episódio. em risco (a meu ver desnecessaria-
Abbas é jornalista e dá aulas de Fran- Num certo momento, ouve-se a voz mente) a sua própria vida ─ com
cês. A mulher trabalha. Vivem num de um homem dizer, quando o cineas- fagulhas acesas por todo o lado, a
apartamento muito acima da média: ta lhe perguntou em inglês se ele gos- tossirem em directo para os microfo-
saem à noite para comer fora e para tava de Saddam, que sim. Não é que nes intoxicados pelo fumo ─ , ou
comprar roupa. Numa reunião de gostasse, pelo contrário, apenas se apresentando com dramatismo algu-
família conhecemos o avô, vestido nas irrita por dizer mal de um iraquiano, mas vítimas desta calamidade.
roupas tradicionais. Ele é o que mesmo sendo Saddam, a um estran- É sabido que actualmente a luta pelas
denuncia com mais veemência o "tira- geiro. Esta voz que se ouve enquanto audiências conduz a um tipo de jorna-
no de Tikrit" e a sua "ditadura fascis- o carro circula numa estrada de Bag- lismo que não relata somente a tragé-
ta" e agradece "60 mil vezes" aos ame- dad sobrepõe representações e indica dia, como também procura expor
ricanos. Na reunião de família há suni- como é difícil o acesso à "realidade": o (muitas vezes até à “náusea”) as reac-
tas e xiitas. homem representou para o cineasta ções emocionais das vítimas dessa
O realizador intervém como "came- quando a câmara não estava ligada, mesma fatalidade, criando deste modo
raman" e como montador das ima- voltou a representar para ele, sem uma espécie de “dupla notícia”.
gens. Não é pouco. Faz o mesmo que saber, enquanto falava em iraquiano, Não pretendo defender qualquer tipo
os repórteres do sangue na estrada, dizendo o contrário sobre Saddam; e de censura, mas antes reflectir sobre a
mas muda radicalmente o conceito. A o cineasta representa a cena para nós forma como a cobertura jornalística
notícia procura por norma a alteração na linguagem do cinema, a linguagem desta catástrofe, poderá ela própria
violenta do quotidiano. E "Quotidia- artística que, dizem tantos, é a que estar a contribuir (involuntariamente)
no Bagdad Quotidiano" é um filme de mais se aproxima da "verdade". Cada para aumentá-la.
autor que pretende mostrar o dia-a-dia espectador acrescenta depois a sua Certamente, que para além de alguns
sem interrupções de uma família vul- interpretação ao que vê. interesses económicos que estarão por
gar. Goupil não procurou nem pediu O último episódio mostra a reunião detrás de alguns fogos, e de outras
nada aos personagens do seu docu- de família e o casamento de uma motivações psicopáticas, muitos deles
mentário. Seguiu-os com uma peque- sobrinha, vestindo os noivos como os serão obra de pirómanos.
na câmara digital. A banda sonora, ocidentais e cantando e dançando Sabemos que há situações especiais
como em "Lisbon Story", de Wim todos um pop iraquiano parecido com cujo tratamento jornalístico deverá
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obedecer a determinados critérios. modo a não amplificar o próprio tações sexuais. Como posso resistir?»
Um dos exemplos clássicos é o suicí- fenómeno piromaníaco. Em resultado exigia 100 biliões destas
dio. Após a notícia de um suicídio, Ao contrário do que acontece com as grandes empresas.
surgem frequentemente fenómenos de bruxas, no caso dos pirómanos é pre- Eram comuns as queixas contra os
imitação, com a ocorrência de vários ciso acreditar neles, porque existem de media por ataques à família e ao
suicídios em cadeia. Por isso, este é facto! pudor, mas ninguém ligava por o
Pedro Afonso
um assunto que deve ser tratado com pedromafonso@netcabo.pt casamento e a castidade serem consi-
a maior delicadeza e ponderação uma derados coisas antiquadas. Só que o
vez que pode colocar em risco pessoas Vítimas litígio de um assumido promíscuo teve
que se encontram numa situação de João César das Neves um impacto enorme. Até porque na
In: DN040802
grande fragilidade, necessitando ape- Tudo começou de forma simples. A altura saiu o best-seller do Prof. James
nas de um pretexto para porem termo 14 de Julho de 2000 um júri de Miami Wentz.
à vida. Um dos famosos exemplos foi condenou as grandes empresas taba- No livro A Força do Sexo de Março
dado por Goethe, através da publica- queiras a pagar 145 biliões (mil de 2008, o sociólogo defendia a tese
ção do seu livro Os sofrimentos do milhões) de dólares a milhares de de que a libido era a energia mais
jovem Werther (1774). O sucesso fumadores da Florida para indemnizar poderosa da sociedade. No ponto
deste romance trouxe consigo uma os efeitos na saúde ligados ao fumo. mais controverso, o cientista afirmava
série de graves problemas, já que Já em Novembro de 1998, seis estados que os hábitos sociais, limites éticos e
influenciados pelo seu romantismo, norte-americanos tinham feito um tabus comportamentais que as civili-
jovens leitores por toda a Europa, acordo de 246 biliões de dólares com zações adoptaram ao longo de milé-
lançaram-se nas suas paixões e toma- essas empresas, anulando assim os nios eram formas indispensáveis de
dos por um sentimento de liberdade processos pendentes em tribunal. controlar e orientar esse poder.
acabaram por se suicidar em larga Estes não acabaram e logo em 1999 o Nem sempre o faziam da forma mais
escala. Governo federal lançou o seu, pedin- sensata, mas costumes desses eram
Um pirómano tem um comportamen- do 280 biliões. úteis e necessários. Segundo ele, a
to incendiário deliberado, repetitivo e Em Maio de 2003 a Organização sociedade moderna ao pretender eli-
que não visa o lucro, sabotagem, reta- Mundial da Saúde fez o primeiro tra- minar «tabus e inibições» libertara o
liação ou qualquer forma de expressão tado internacional da sua história. furor que a estava a destruir. A coisa
política. O acto incendiário é normal- Finalidade: colocar etiquetas alarmis- só não era mais grave porque, feliz-
mente precedido de um aumento de tas nos pacotes de tabaco. mente, no quotidiano os velhos usos
tensão ou activação afectiva. Estes A coisa não ia acabar por aqui. Em permaneciam. Mas a atitude libertina
indivíduos experimentam um prazer Julho de 2002 um operário de Nova dos media e meios intelectuais era
intenso, uma gratificação e alívio da Iorque pôs uma acção contra McDo- muito negativa e devia ser combatida.
tensão quando ateiam incêndios. nald's, Wendy's, Kentucky Fried Chic- O resultado combinado dos dois efei-
Podem ser indiferentes às consequên- ken e Burger King por o terem feito tos foi esmagador. Os processos mul-
cias dos fogos ou sentirem mesmo gordo. Começaram os processos dos tiplicaram-se e também a regulamen-
uma satisfação pela perda de bens e obesos contra as empresas de comida tação. Surgiram limites legais férreos à
haveres. São frequentemente especta- rápida. Em 2004, no premiado docu- pornografia e à publicação de imagens
dores do incêndio, mostrando interes- mentário «Super Size Me», o realiza- com nudez e textos com sugestões
se nos vários aspectos relacionados dor Morgan Spurlock filmava-se a si sexuais.
com o fogo, podendo inclusivamente mesmo comendo à bruta um mês no A OMS tornou aí obrigatórias etique-
participarem na sua extinção. Deste McDonalds, aumentando 11 kg e 65 tas em cassetes e revistas com mensa-
modo, existe por parte do indivíduo, pontos no colesterol. gens: «Pratique sexo com moderação»,
uma fascinação, atracção e curiosidade A evolução era clara. Mas ninguém «Copular demais mata», «O sexo é a
pelo incêndio e seu contexto situacio- esperava o golpe de teatro de Steven principal causa de gravidez indeseja-
nal. Walters. Em Setembro de 2007 este da».
Em suma, o pirómano não pode ter jovem da Califórnia com 27 anos pôs A coisa ameaçava explodir, mas a
maior prazer do que assistir a uma um processo multimilionário contra as atenção foi desviada. Em 2011 Jenny
reportagem televisiva pormenorizada grandes cadeias de televisão, empresas Stevens pôs a sua célebre acção contra
da sua “obra”: o fogo. publicitárias, produtoras de filmes e as empresas funerárias por lucrarem
Estou convicto que este verão assisti- editoras gráficas, por se dizer viciado com a morte alheia.
mos pela televisão a um concurso em... sexo.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
nacional de pirómanos! Imagino-os Com dois divórcios e um filho ilegíti-
colados ao ecrã do televisor tentando O privilégio de ser estudante
mo, Steven dizia que a sua vida fora Fernando Branco
perceber qual deles é que conseguiu arruinada pela compulsão sexual. E In: DN030131
atear o maior incêndio! Por isso, há esta, segundo ele, advinha das imagens Há alguns anos um eminente profes-
que repensar no futuro sobre a forma sugestivas com que filmes, programas, sor de economia, Jacques Drèze, dis-
como deve ser feita a reportagem anúncios e até noticiários o bombar- tinguido ontem com um doutoramen-
jornalística deste tipo de catástrofe, de deavam: «Estou mergulhado em ten- to honoris causa pela Universidade
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O JORNAL DAS BOAS NOTÍCIAS 1 de Setembro de 2005
Católica Portuguesa, despediu-se da dos problemas actuais da educação este resultado encobre a péssima qua-
carreira docente com um discurso dos jovens é que, para a grande maio- lidade dos alunos que conseguem
surpreendente. Este professor é um ria, os métodos de ensino têm que se passar, chegam à Universidade quase
dos economistas europeus que mais revestir de formas lúdicas, a aprendi- analfabetos e saem de lá pouco
contribuíram para o desenvolvimento zagem tem que se fazer através de melhor do que entraram. Há 25 anos
da ciência económica e um dos nomes jogos e, sobretudo, os jovens não que sou professora de História na
que todos os anos integram as listas devem ser violentados com métodos Faculdade de Ciências Sociais e
de candidatos ao Prémio Nobel da de estudo que os obriguem a um Humanas da Universidade Nova de
Economia. esforço demasiado grande. Assim, Lisboa. Há 25 anos que observo, de
Jacques Drèze, no mesmo tom sim- crescendo nesta cultura de facilitismo, ano para ano, a degradação da quali-
ples com que apresentava os teoremas os alunos entram na universidade e dade dos estudantes, e há 25 anos que
mais complicados, explicou aos alunos exigem que sejam os professores a vão sendo piores as notas que me vejo
do seu último curso de Equilíbrio cativá-los. obrigada a dar, apesar de a minha
Geral que, apesar de ter tido a opor- Não é por isso de espantar que uma complacência e tolerância terem
tunidade de estudar com os melhores das maiores críticas de que os profes- aumentado com a idade e a sensata
professores do mundo, a pessoa com sores são alvo por parte dos alunos tendência para a acomodação que ela
quem mais tinha aprendido, na reali- seja a fraca capacidade de motivação. gera.
dade, tinha sido com um homem mui- O que parece acontecer frequente- Convenci-me ultimamente de que o
to simples, um sindicalista que pouco mente é que quem está desmotivado panorama não melhoraria significati-
mais tinha do que o nível de educação para estudar são os alunos. E isto vamente nem que os programas e os
básica. E pediu aos alunos para nunca porque o jogo da concorrência pela professores fossem todos excelentes.
esquecerem que eram privilegiados atenção dos alunos é hoje muito dese- Não há assunto nem eloquência capa-
por terem tido acesso à educação e, quilibrada: como pode uma aula sobre zes de obrar o milagre de despertar a
por disso, deveriam ter uma atitude de o cálculo integral concorrer com a atenção e a curiosidade de uma massa
humildade face aos outros que não navegação na Internet? estudantil inteiramente desinteressada
tinham tido essa oportunidade. Há por isso que reequacionar os valo- em aprender e unicamente apostada
Nunca esqueci estas palavras e, numa res que estão em causa. É necessário em "passar". A grande maioria dos
ou noutra situação, já tive a oportuni- que os nossos jovens compreendam alunos limita-se a tirar apontamentos
dade de as transmitir aos meus pró- que para aprender é preciso trabalho e nas aulas de forma totalmente acéfala,
prios alunos. A arrogância, muitas esforço e que a educação deles conti- e os disparates que escrevem nos tes-
vezes confundida com autoconfiança, nua a ser um privilégio pois para isso tes revelam uma total incompreensão
caracteriza a atitude de muitos dos são empenhados muitos recursos da das matérias mais simples e uma total
alunos das nossas universidades. sociedade. incapacidade de exporem com
A massificação do ensino universitário sequência e clareza as ideias mais ele-
poderá ter contribuído para uma alte- Mais dinheiro para a Educação? mentares ou de narrarem com nexo os
ração da atitude dos alunos face à Por M. FÁTIMA BONIFÁCIO
Público, Domingo, 15 de Agosto de 2004
factos mais básicos. Não percebem o
educação. Os alunos, na sua maioria, O engº. Sócrates renovou recente- que ouvem e menos ainda o que lêem.
não sentem que é um privilégio terem mente, à laia de manifesto da sua can- De resto, salvo uma ou outra excep-
acesso a um nível de educação supe- didatura, a promessa de que com ele o ção honrosa, lêem pouco ou mesmo
rior mas sim um direito que podem país investirá a fundo na Educação (a nada. Como suponho que fazem tam-
exercer. Na maior parte dos casos isto se resumia o essencial da mensa- bém os meus colegas, trato de me
consideram que, salvo algumas excep- gem). Uma promessa que em Portugal ajustar à circunstância. Isto significa
ções, as aulas são uma seca e por isso tem sido feita, com intermitências, de baixar o nível das aulas até ao ponto
perfeitamente dispensáveis. há perto de duzentos anos a esta parte em que poderíamos estar numa qual-
Actualmente são os professores que e que Guterres tentou erigir em desíg- quer turma do secundário.
devem empreender múltiplos esforços nio digno de concitar uma "paixão" Não sei que "competências" estes
para tornar as aulas motivadoras e nacional. Injectou-se mais dinheiro no alunos adquiriram no liceu, mas sei
fazer com que elas agradem aos seus "sistema", promoveu-se a moderniza- que não adquiriram o mínimo de
exigentes alunos. ção pedagógica, reformularam-se os conhecimentos que lhes permitiriam
Mas, infelizmente, o que estes alunos programas e refizeram-se os manuais. ascender a um patamar de aprendiza-
exigem não é necessariamente rigor Reformas e dinheiro de nada serviram. gem superior. Ensinar História na
no tratamento das matérias e conhe- De há anos a esta parte, com assinalá- Universidade tornou-se quase impos-
cimentos sólidos por parte dos seus vel regularidade, o país toma conhe- sível, porque em vez disso é necessá-
mestres. Hoje o que os alunos querem cimento de números que revelam o rio familiarizar os alunos com as maté-
é ser entretidos e, se o professor não clamoroso fracasso da Escola. Ainda rias, os factos, os nomes, as datas e as
conseguir transformar as matérias agora fomos escandalizados pela notí- noções ou conceitos a partir dos quais
difíceis em histórias divertidas, pode cia de que metade dos alunos do poderiam então começar a aprender
ter a certeza que não vai ter audiência. secundário chumba nos exames nacio- História e a discernir entre as várias
Alguém dizia recentemente que um nais do 12º ano. Desgraçadamente, maneiras de a escrever. Acresce que
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não sabem português: o vocabulário saltar à corda nos intervalos. Chegadas da criança é sagrada e todo o respeito
de que dispõem é de uma pobreza ao Liceu, deparam com a mesma filo- por ela é pouco.
confrangedora, e os erros de ortogra- sofia pedagógica. As matérias têm que Depois do jardim-escola, onde as
fia e gramática são de molde a arre- ser interessantes, apelativas, divertidas, educadoras de infância as ajudam a
piar. Sendo a história uma disciplina ensinadas de maneira que se não dê brincar, chegam ao primeiro ciclo do
literária, não admira que o desastre por ela e aprendidas de maneira que Básico, onde os professores se esfor-
seja quase geral, como aconteceria ao não dê trabalho. As aulas têm que ser çam por que as aulas se pareçam o
engenheiro que pretendesse construir animadas, participadas, de modo que a mais possível com recreios. Segue-se o
uma ponte ou um prédio sem saber atenção se prenda sem esforço. As antigo liceu. Pela primeira vez vislum-
física ou matemática. avaliações não podem ser traumati- bram - mas não mais do que vislum-
Confrontados com a sua ignorância, zantes: são sempre imperfeitas e, por- bram - a necessidade de refrearem os
poderíamos supor que os alunos, che- tanto, muito, muito relativas, tão rela- seus ímpetos e de se conformarem
gados à Universidade, se esforçassem tivas que até mesmo um péssimo alu- com um mínimo de disciplina e apli-
por supri-la através da aplicação redo- no pode sempre ser desculpado. Em cação. Os trabalhos de casa são vistos,
brada ao trabalho. Não espanta que tal suma: as crianças, os adolescentes e os pelos alunos e por muitos pais, como
não aconteça: não têm curiosidade jovens adultos não podem ser maça- um fardo cruel para crianças ou ado-
intelectual e por isso não têm interesse dos e qualquer embate com as duras lescentes que já passaram várias horas
em aprender; e o liceu não lhes incul- realidades da vida lhes deve ser pou- na escola sujeitos a constrangimentos
cou hábitos de disciplina nem de pado. "stressantes". É tarde para se habitua-
esforço. De facto, tudo começa com a cultura rem. Trabalhar é a última das priori-
O estudante universitário - como o do de adulação da criança que domina a dades para adolescentes confrontados
liceu - tem antes de mais direito ao seu sociedade ocidental contemporânea e com mil e uma solicitações divertidas
lazer. Estudará, ou não, no tempo que que não passa, como tantas outras que os distraem das suas obrigações, a
sobrar. Pela Universidade arrasta-se características dela, da degradante e que não dão importância.
hoje uma preguiça generalizada que ridícula pieguice em que culminou a Portugal é o país europeu com mais
torna a docência um exercício frus- "Sensibilidade" descoberta na segunda alunos com dificuldade em aguentar o
trante e deprimente. Invejo colegas metade do século XVIII. Tudo o que alegado "stress" escolar. O esforço de
que têm prazer em declamar perante diz respeito às crianças - o seu bem- estudar é demasiado duro; a concen-
auditórios que não estão interessados estar, a sua saúde, a sua protecção, o tração que se exige é esgotante...
no que dizem nem captam metade do seu lazer - suscita imediatamente a Quando chegam ao 12º ano, metade
que ouvem; que raramente levantam atenção desvelada de um público adul- dos alunos chumba. A metade que
uma dúvida pertinente; que quase to que erigiu as crianças no centro do consegue passar, chega à Universidade
nunca suscitam um problema interes- mundo e entende, pelo menos "teori- e não é capaz de ler um livro do prin-
sante. A docilidade dos estudantes de camente", que tudo se deve subordi- cípio ao fim. Grande parte desiste dos
hoje só espanta quem não saiba que nar aos seus interesses e às suas pre- cursos depois de se ter arrastado anos
ela é a máscara de uma apatia e igno- sumidas necessidades. (Felizmente já pelo bar, pelos corredores e pelas
rância que não lhes permitem interro- temos um ministério da Criança.) salas. Quase todos os que chegam ao
gar e muito menos debater. Em tem- Nas famílias, as crianças tornaram-se fim saem da Universidade tão igno-
pos tive alunos que são hoje meus geralmente pequenos déspotas intei- rantes como lá entraram. Continuam a
colegas e académicos brilhantes. Essa ramente desprovidos de quaisquer não escrever português e sem conse-
raça desapareceu. hábitos de obediência ou elementar guir interpretar um texto. Mas são os
Não se pense que exagero. Os estu- respeito pelos pais e os mais velhos, senhores doutores de que sairão os
dantes chegam hoje em dia à Univer- que no entanto tudo fazem e sacrifi- quadros do país e os futuros professo-
sidade sem quaisquer hábitos de disci- cam para que os rebentos possam res do liceu. Não há dinheiro que
plina e de trabalho. A simples ideia de gozar de condições ideais para desen- resolva o problema. Historiadora
que aprender custa esforço e sacrifí- volverem livremente as suas promis-
cio, de que fazer um curso superior é soras personalidades. De tão mimadas, Mais Dinheiro para a Educação?
algo que absorve e ocupa a tempo as crianças crescem, desde o berço, Fernando Adão da Fonseca
In: Público, Sexta-feira, 27 de Agosto de 2004
inteiro, é impensável. Neste aspecto, com a justificada sensação de que na O excelente artigo de Fátima Bonifá-
como noutros, a Universidade é um vida só há brincadeira e direitos e de cio, publicado no PÚBLICO do dia
mero prolongamento do Secundário: que tudo lhes é devido. Se por acaso 15 de Agosto passado, e os comentá-
o prolongamento de um imenso algumas revelam um temperamento rios que gerou são um sinal de espe-
recreio que, por seu turno, já prolon- mais difícil, não se aplicam os bárba- rança de que a grave "doença" de que
gava o jardim infantil em que se con- ros remédios clássicos. Arranja-se-lhes padece o nosso sistema de ensino
verteu o Ensino Básico. Desde a mais acompanhamento psicológico a fim comece finalmente a ser encarada sem
tenra idade, as crianças são educadas e de tentar, sem traumas nem violências, preconceitos e com realismo. É que
formadas na noção errónea, e nefasta, torná-las mais cordatas sem contudo curar uma doença exige, em primeiro
de que aprender pode e deve ser tão prejudicar nem levemente o seu "cres- lugar, um diagnóstico correcto dos
lúdico como jogar à bola na praia ou cimento natural". A "personalidade" sintomas; e só a partir de um diagnós-
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tico correcto é possível determinar a - Para os pais, o Estado incentiva a tudo que diga respeito a instrução,
terapêutica que pode levar à cura. desresponsabilização ao dizer-lhes escolaridade, êxito escolar ou cultura,
Mostra o artigo de Fátima Bonifácio "para entregarem os filhos àquela geral e específica.
que os sintomas são bem conhecidos escola, gostem ou não dela, pois não Então, em matéria de Matemática, é
de todos. O problema é que o diag- poderão escolher outra". É urgente aquilo que a gente sabe. A própria
nóstico é frequentemente errado e a "obrigar" os pais e os alunos a esco- classe docente já deve ter aceitado
terapêutica acaba por nada resolver ou lherem a escola ou até a optarem por como inevitável que os portugueses
até piorar a doença. Fátima Bonifácio uma nova escola de raiz quando a nem de contas de cabeça são capazes.
tem razão quando diz que o funda- oferta existente não servir, sem prejuí- Assim, quando 14 alunos de uma
mental do problema não está na falta zo da necessária prioridade aos alunos escola de Bragança fizeram o exame
de recursos económicos na educação. da vizinhança e aos irmãos. de Matemática do 12.o ano da 1ª. fase
O fundamental - como apontam - Para os professores, as ausências de de acesso ao ensino superior e não
diversos comentários feitos ao artigo - uma autonomia digna desse nome cumpriram a sua obrigação, patriótica
está na falta de empenho dos alunos, (pedagógica, curricular e de gestão), de e estatística, de se "esticarem", os
na desresponsabilização dos pais e no uma avaliação das escolas focalizada professores encarregados da correcção
desânimo dos professores. nos "outputs" e não nos "inputs", e de das provas não acreditaram. Notas de
É evidente que o comportamento de liberdade de os professores poderem 18 e 20? E logo no longínquo Nordes-
qualquer pessoa depende essencial- apresentar ofertas educativas alternati- te? Impensável! A explicação só podia
mente das suas motivações e incenti- vas, são verdadeiros atestados de ser uma "copianço".
vos ou falta deles, ou seja, em sentido menoridade passados pelo Estado. Foi pedida a intervenção, não da Judi-
figurativo, da existência do "pau e da Por outras palavras e em resumo: a ciária, mas da Inspecção-Geral de
cenoura". Por isso, a pergunta relevan- terapêutica correcta é introduzir a Educação. Fez-se um inquérito rigo-
te que nos permite determinar a tera- concorrência (real e potencial) entre as roso e, para espanto de muitos, con-
pêutica correcta é a seguinte: o que é escolas, obviamente debaixo da fun- cluiu-se que, pelo menos em Bragan-
que leva os alunos a não terem empe- ção reguladora do Estado. É que, ça, há perto de 14 alunos capazes de
nho e motivação para estudar, os pais quando estão em jogo recursos eco- contribuir para que, no próximo estu-
a desresponsabilizarem-se pela educa- nómicos, não há liberdade sem con- do feito pela Europa acerca da nossa
ção dos filhos e os professores a senti- corrência, nem concorrência sem formação escolar, Portugal possa subir
rem-se frustrados e progressivamente liberdade, como tão bem explicava pelo menos uma décimas.
desinteressados? Mário Pinto no seu artigo "Mercado, Infelizmente, o caso de Bragança
Note-se que há muitos incentivos (ou Sim; Mercado, Não", publicado no parece ser a excepção à regra. Esta (e
falta deles) exógenos às escolas que PÚBLICO desse mesmo dia 16 de volto ao concurso da RTP) é concor-
contribuem para a sua fraca qualidade, Agosto último. Tem sido este o com- rentes não saberem se quem demitiu o
mas o que nos interessa referir neste bate civilizacional do Fórum para a Marquês de Pombal foi um soberano
momento são os que se relacionam Liberdade de Educação, por vezes do séc. XVIII, se do séc. XIV, se do
directamente com o sistema educativo ainda mal percebido, convidando-o a séc. XX.
propriamente dito. Feito o diagnósti- visitar www.liberdade-educacao.org.
co, a terapêutica torna-se, então, evi- Fernando Adão da Fonseca
Presidente do Fórum para a Liberdade de Educação Sinal dos Tempos
dente, se não estivermos sujeitos a Por HELENA MATOS
In: Público, Sábado, 07 de Agosto de 2004
preconceitos ou indisponíveis para O fenómeno brigantino A história não passa aparentemente de
aceitarmos a lógica da realidade. A SÉRGIO DE ANDRADE
um desses episódios destinados a
IN: JN050816
saber: Quando, entre 40 e algumas pessoas, encher as colunas de pequenas notí-
- Para os alunos, com especial evidên- mais de 30 mostram ignorar que o cias: um grupo de jovens finlandeses
cia no 3º ciclo e no secundário, há plural de couve-flor é couves-flores, o foi dispensado de cumprir o serviço
uma enorme inadequação entre o caso ainda não parece muito grave. militar, invocando a sua dependência
ensino ministrado e as suas necessida- Afinal, quem é que usa essa palavra no da Internet. "Para quem joga toda a
des e desejos. O caso mais grave do plural?! Mais estranho é que alguém noite na Internet e não tem amigos,
que é uma política altamente prejudi- tenha de desembolsar (isto é, deixe de não tem interesses, chegar ao Exército
cial para o nosso futuro pessoal e ganhar) mais de mil contos por não é um choque muito grande", explicou
colectivo é o dos apoios financeiros saber se um barco rabelo transporta o comandante Jyrki Kivela. "Alguns
ao alargamento dos cursos nas escolas pipas de Vinho do Porto, se especia- recrutas vão ao médico e dizem que
secundárias (onde o abandono escolar rias orientais, se artesanato chinês. não conseguem estar aqui. Algumas
é assustador), ao mesmo tempo que se O concurso que dá na RTP demonstra vezes, os médicos declaram que eles
amordaçam as escolas profissionais com frequência que, em matéria de sofrem de dependência da Internet."
(onde o abandono é diminuto) e não cultura geral, os portugueses andam Poucos episódios serão tão sintomáti-
lhes ser dado um estatuto de "serviço muito por baixo. Aliás, volta que não cos do nosso estado de espírito neste
público de educação" exactamente volta, lá vêm os homens da estatísticas início do século XXI. Em primeiro
igual às escolas secundárias, com os informar-nos de que, na União Euro- lugar, temos o recurso à doença,
apoios correspondentes. peia, estamos no fundo da tabela em sobretudo quando falamos de doenças
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dificilmente aferíveis, como uma for- futebol provenham de meios sociais etremendas injustiças, como acontece
ma de dirimir os conflitos. Estes desfavorecidos: o estímulo do sucesso em Portugal. Este mesmo país onde
jovens podiam ter-se declarado objec- leva os filhos dos pobres a suportarem foi declarada inconstitucional a defini-
tores de consciência, podiam ter con- a disciplina exigida aos jogadores. ção dos 25 anos como idade mínima
testado os regulamentos... mas não, Infelizmente, os mesmos jovens não para se receber o Rendimento Mínimo
correram ao gabinete médico, invoca- só não esperam nada da escola como de Inserção. Contudo, neste mesmo
ram uma situação cujo diagnóstico é rapidamente aprendem que fazerem- país que dá RMI a jovens saudáveis de
mais que discutível e tranquilamente se de coitadinhos é fácil, é rápido e 20 anos, há trabalhadores que esperam
foram mandados para casa. Não rende passagens quase administrativas. exactamente 20 anos para receberam
inventaram nada. Limitaram-se a usar Exemplares desta mesma dicotomia os salários a que tinham direito num
em proveito próprio uma tendência entre os filhos dos pobres e daqueles processo de falência da empresa em
actualíssima que nos transforma de que ou nunca o foram ou já não se que trabalhavam.
cidadãos responsáveis pelos nossos assumem enquanto tal são as reporta- O Estado-providência diluiu as res-
actos e opiniões em doentes e vítimas. gens sobre as intervenções militares, ponsabilidades, transformou vítimas e
Andamos há décadas com o divã da nomeadamente no Iraque. Por exem- criminosos em simples joguetes das
psicanálise atrás e nos momentos em plo, aquelas que dão conta do regresso circunstâncias e não raramente perdeu
que temos de tomar posição, em que de tropas portuguesas daquele país. a noção da medida e da realidade. Só
temos de assumir... descobrimo-nos Os jornalistas que muito particular- assim se explica que, neste mesmo ano
vítimas. Do pai, da mãe, da tia, da avó, mente no caso da SIC-Notícias osten- de 2004 em que tanto em Espanha,
da escola, da vizinhança... mas sempre tam apelidos que dão para fazer a como em Inglaterra e no próprio
vítimas no momento de sermos julga- história de várias famílias políticas Conselho da Europa se propõem
dos. Nos outros momentos, aqueles influentes em Portugal, inebriados punir todo e qualquer castigo corporal
em que somos confrontados com a com a decisão de Zapatero de retirar às crianças (mesmo a mais brincalho-
urgência de enfrentarmos o que quer do Iraque, procuravam a todo o custo na palmada num rabo almofadado de
que seja, adoecemos. As baixas por declarações que condenassem a coli- fraldas corre o risco de ser entendida
doença ocupam hoje um espaço que já gação. Frases modernas, no ar do como uma agressão intolerável), exista
foi de greves e conflitos. Todas as tempo, até transformáveis em SMS se também quem proponha, em nome da
semanas uma nova doença abre um preciso for. Mas os soldados da GNR, multiculturalidade, como aconteceu
novo campo de fuga para o que não com filhos ao colo e a família a filmar em Itália, realizar excisões do clitóris
se quer ou não se tem coragem de a chegada num ambiente de piqueni- em hospitais públicos.
fazer. cão, iam dizendo, tal como os pais A desresponsabilização tornou-nos
Mas suponhamos que estes jovens em deles disseram anos antes quando autistas profundos. Não causa, assim,
vez do Exército integravam uma equi- chegavam de África, que a presença espanto que um mundo ocidental que
pa de futebol. Aceitar-se-ia com igual das tropas naquele território lhes pare- considera normal que grupos de auto-
ligeireza que invocassem uma depen- cia essencial. Para sossego nosso e denominados defensores dos animais
dência da Internet para não se treina- deles, até agora nenhum destes solda- ataquem e ameacem de morte os cien-
rem? Claro que não. Não deixa, aliás, dos descobriu, nos calores iraquianos, tistas que recorrem a animais nas suas
de ser curiosa a referência do coman- uma dependência da Internet. Mas, investigações, um mundo que consi-
dante Jyrki Kivela ao choque que eles caso tal aconteça, a vítima desta etérea dera até um sinal de progresso que
pudessem sofrer quando fossem para e moderna maleita tem garantido à gente conotada com as boas causas,
o quartel. A este título convém que se partida um auspicioso futuro mediáti- como o cantor Peter Gabriel, propo-
recordem as inúmeras reportagens co: "Quer jogar e não pode? Como vai nha que se reconheçam direitos cons-
efectuadas em Portugal, durante o ser superar esse trauma?"... titucionais aos macacos, trema de
Euro 2004, sobre o jovem Cristiano Entretanto, proponho que um grupo medo e susto porque na última reu-
Ronaldo e a sua vinda da Madeira para de sábios acompanhe estes jovens nião da Organização Mundial do
um clube do continente. Imagine-se finlandeses nos próximos anos. Algo Comércio se acordou abrir os merca-
que Ronaldo não tinha vindo jogar me diz que esta dependência da Inter- dos da UE e dos EUA aos têxteis e
futebol, mas sim integrar um grupo de net que lhes foi diagnosticada pelos aos produtos agrícolas provenientes
adolescentes especialmente dotados médicos militares é o seu seguro de de África, da Ásia e da América Lati-
para a Matemática. Pois é, seria uma vida. Como poderão eles trabalhar na. Jornalista.
violência, um trauma irreversível ficar sofrendo de tão premente mal? E se
longe da família... Estudar, sobretudo maltratarem os filhos que entretanto O imparável carrossel do diverti-
se se tratar de Matemática, Física ou consigam arranjar, no meio de um mento
Latim, tal como cumprir o serviço "download", como poderão eles ser João César das Neves
In: DN050822
militar, não está na moda, faz parte responsabilizados?... O Estado- Consumimos quantidades industriais
das agressões do mundo externo aos providência esqueceu a sua função de divertimento. O tempo que passa-
infantes, adormentados na cultura do social. Transformou os cidadãos em mos a distrair-nos é hoje muito supe-
trauma e da vitimização. Não deixa de pacientes, gerando comportamentos rior ao dos nossos antepassados. A
ser sintomático que os jogadores de irresponsáveis, como os destes jovens, novidade é que a maior parte da nossa
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distracção não é executada, mas com- dabout de Eric Thompson estreou em os jornais não têm assunto e desespe-
prada. Cada vez se passa menos tem- 1965 e manteve-se na BBC até 1977. ram para encher o espaço. Já notaram
po a conversar, jogar, passear, praticar Portugal também se divertiu com que, apesar de nestes dias não haver
desporto, tocar música. Cada vez se alguns dos 441 episódios de cinco notícias, não diminui o tempo dos
passa mais tempo a ver filmes, espec- minutos do Franjinhas, Ambrósio e telejornais nem as páginas dos perió-
táculos, televisão, a escutar rádio, Saltitão. Agora, celebrando o 40.º dicos? A crise é, pois, grave!
assistir a desporto, a ouvir música. aniversário da estreia, a francesa Pathé É nas dificuldades que o engenho dos
Adquirimos quantidades industriais de traz-nos o filme Franjinhas e o Car- agentes económicos se excede.
divertimento. Não admira que exista rossel Mágico (The Magic Rounda- Todos os Verões assistimos a assom-
uma enorme indústria que move bout, de Dave Borthwick e Jean bros de criatividade para nos levar a
milhões só para satisfazer essa neces- Duval, 2005), mais um caso de reci- consumir notícias quando não há
sidade. Apesar da crise, as actividades clagem de velhos êxitos. novidades.
de lazer prosperam. Mas quando as crianças que há déca- Este ano foi um prodígio de especula-
O entretenimento é, porém, um pro- das se deliciaram com a série original ção jornalística à volta do roubo de
duto muito frágil e delicado. Exige um acompanharem hoje os seus netos ao umas cassetes que um jornalista não
equilíbrio meticuloso entre novidade e cinema vão ficar espantadas. As suas podia ter gravado, que um jornal não
familiaridade, originalidade e reconhe- personagens favoritas vêem-se agora devia ter publicado e que não diziam
cimento. Vibramos com a surpresa, envolvidas numa aventura em busca nada de útil. O supra-sumo da notícia
mas ela só nos satisfaz se for mantida de diamantes mágicos, cópia d'O fabricada!
dentro dos limites do conforto. A Senhor dos Anéis, onde não falta um Por vezes, porém, a realidade parece
piada é um pequeno fio entre o aber- feiticeiro malvado, esqueletos assassi- dar uma ajudinha: desta vez foi a subi-
rante e o aborrecido. nos e a montanha-russa de Indiana da do preço do petróleo, que atinge
Esta exigência manifesta-se claramen- Jones. máximos históricos. Esses barris chei-
te em vários fenómenos. Por exemplo, Não há qualquer semelhança entre as ram sempre a crise verdadeira.
no crescente expediente cinematográ- histórias singelas e humor subtil dos Os jornalistas andam num corrupio a
fico de adaptar antigos enredos, reto- antigos episódios e a brutalidade do analisar consequências de todos os
mar velhas personagens, reciclar temas filme actual. Essa perplexidade mani- tipos. Com cara de caso, soam o alar-
arcaicos, de forma a criar filmes origi- festa-se também na estranha classifi- me e declaram o estado de calamida-
nais. Isso explica também casos como cação portuguesa "para maiores de 4 de: a economia está comprometida.
o de Herman José, que foi um dos anos" é um compromisso incómodo Prevê-se o pior!
nossos cómicos mais divertidos e entre os "maiores de 12 anos" exigi- Há só um pequeno detalhe. Os jorna-
inesperados, mas há anos repete ape- dos pelo enredo e o "para todos" listas sabem o que é a inflação. Eles,
nas a mesma imagem reconhecível e, recomendado pelas personagens. aliás, até a usaram em tempos para
apesar disso, goza de grande populari- No entanto, não se trata de uma tenta- soar o alarme e declarar estado de
dade. tiva de trazer as aventuras mirabolan- calamidade. Ora a inflação, como eles
A procura explosiva de divertimento tes à primeira infância. É só uma toli- sabem bem, faz com que 100 pagos
dos nossos dias cria uma pressão cres- ce. As criancinhas mais pequenas, que hoje possam ser mais baratos que 20
cente sobre a oferta. É quase palpável podem interessar-se pelo filme, ainda há uns tempos. Toda a gente sabe isto!
a ânsia asfixiante na busca de novas não estão corrompidas pela dieta de O que implica que os «máximos histó-
ideias para alimentar a galopante adrenalina, violência e medo dos seus ricos» do preço do petróleo não signi-
indústria do recreio. Essa aflição tem irmãos mais velhos. Por isso a película ficam literalmente coisa nenhuma.
de cair, fatalmente, na tolice. Mesmo não convence. Mas revela bem o Há 20 anos, por exemplo, o barril de
com realizadores famosos. Oliver desespero a que leva a pressão de petróleo andava pelos 30 dólares e
Stone trouxe-nos recentemente um inovar. esse valor equivaleria agora para Por-
imperador Alexandre Magno homos- O fenómeno não é novo. São famosos tugal a mais de 67 dólares. Mas os
sexual (Alexander, 2004) e, pior, os exageros das orgias romanas na mais negros cenários futuros falam de
Ridley Scott fez questão de contar a queda do império e o paroxismo da 50. Mesmo que o barril atinja uns
história de um cruzado sem fé (King- elegância na corte de Maria Antonieta. astronómicos 75 dólares ainda esta-
dom of Heaven, 2005), o que é tão Ele advém do fastio dos sultões ocio- ríamos abaixo dos picos de inícios dos
estúpido como um alpinista com ver- sos de todos os tempos que, na socie- anos 1980. Os custos do choque são
tigens. Talvez o caso mais extremo dade do divertimento, começa a tor- estimados em milhares de milhões.
seja o que acaba de chegar. Apesar de nar-se generalizado. Mas o significado disso só poderia ser
pueril, ele revela bem os limites de naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt avaliado se comparado com muitas
delírio que a busca de originalidade outras coisas que acontecem todos os
pode atingir. A crise do vazio dias, e que também valem muitos
João César das Neves
Um dos maiores êxitos da televisão In: DN040827 milhões.
infantil de todos os tempo foi O Car- As crises são cíclicas, toda a gente Isto não quer dizer que esta subida do
rossel Mágico. Adaptação britânica de sabe. Há uma, por exemplo, que se petróleo não tenha efeitos ou não nos
um original francês, The Magic Roun- repete todos os anos por esta altura: deva preocupar. O que quer dizer é
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que o pânico que se cria não se justifi- ainda, pela terceira peneira: a da transposição tecnológica do provérbio
ca e os «máximos históricos» estão NECESSIDADE. que garante que a voz do povo é a voz
longe de o ser. Inconscientemente, as Convém contar? Resolve alguma coi- de Deus.
próprias notícias alarmistas dão sinais sa? Ajuda a comunidade à nossa volta? De Deus não sei se será, do povo não
disto. É normal ouvir nas entrevistas Pode melhorar o mundo? é certamente. É sobretudo a voz dum
de rua: «Nós, sem dar por isso, esta- Em jeito de conclusão, Sócrates acres- estado de espírito. Cada problema em
mos mesmo a pagar mais!» centa: análise, seja ele os animais de estima-
O ponto significativo aqui é que não Se tiver passado pelas três peneiras, ção, a insegurança ou as listas de espe-
estejam a dar por isso, porque o que então conta. Todos iremos beneficiar ra para uma operação às cataratas, é
conta na economia é o que os consu- do que disseres. inevitavelmente apresentado como o
midores sentem. Se não sentem nada, Caso contrário, esquece e enterra sinal exterior duma conspiração que,
o efeito não existe. O entrevistado tudo. Será menos uma contribuição por sua vez, se integra num enorme
está a dizer algo como: «As coisas para envenenar o ambiente e fomentar conglomerado que, a seu modo, con-
estão na mesma, mas como me chama a discórdia entre irmãos e colegas do trola ou tenta controlar o mundo.
a atenção fico alertado.» A sensibilida- planeta. Mudam-se os governos e os assuntos,
de natural do consumidor é que conta, mas o mote destes fóruns televisivos e
não o alarme causado pelos cálculos Quando o Telefone Toca radiofónicos é sempre o mesmo: isto
errados do jornalista. HELENA MATOS
In: Público, Sábado, 24 de Abril de 2004
vai de mal a pior; o mundo está rigo-
Esta coisa não passaria de um engra- "Maria de Lurdes, diga-nos então a sua rosamente à beira do colapso e o
çado percalço estival, se não tivesse opinião." "caro participante do fórum" é o
consequências graves na evolução "Em primeiro lugar, quero agradecer detentor da verdade óbvia dos factos,
económica. A histeria causada pela má ao fórum por me ter dado esta opor- verdade essa que a conspiração subja-
interpretação dos valores pode gerar tunidade de exprimir aquilo que pen- cente à realidade impede que seja
efeitos realmente recessivos. Um ata- so. Nem sempre é possível exprimir- conhecida.
que terrorista não seria, objectivamen- mos a nossa opinião, porque há quem O monólogo é o estilo por excelência
te, tão devastador para as empresas não esteja interessado nisso. Custa destes fóruns e a celebridade de que
como a aparente seriedade destas dizê-lo, mas os políticos não querem gozam, enquanto trai o nosso gosto
notícias. O preço do petróleo prejudi- que estas coisas se digam. Mas é muito por nos ouvirmos falar, confirma o
ca muito menos a produção nacional fácil de perceber o que é que se passa. desconforto nacional perante as situa-
que o clima de pânico criado pela Só quem não quer é que não vê. Os ções de debate, de diálogo portanto.
insistência obsessiva nessa subida. nossos governantes estão convencidos Não é por acaso que o programa
Uma boa forma de encher jornais é que nós somos ceguinhos, mas nós Quando o Telefona Toca foi um dos
anunciar tempos maus. O nervosismo vemos muito bem o que se passa. A maiores sucessos radiofónicos nacio-
pode gerar uma crise a sério. E isso razão disto tudo é a corrupção e a nais. Hoje, tal como ontem, nós gos-
acabaria de vez com a crise do vazio. ganância dos políticos. E não estou tamos é de perguntar gaiteiramente
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
aqui a referir-me especialmente ao "Posso dizer a frase?" e dizer a frase
partido A ou ao partido B. Porque o que, tal como no velho Quando o
As três peneiras
problema disto é o sistema e eles Telefona Toca, é expectável que se
Um dia, um rapaz foi procurar Sócra- diga.
fazem parte dessa máquina."
tes e disse-lhe que tinha algo para lhe Por isso fazemos equivaler a diferença
"Obrigada, Maria de Lurdes, pela sua
contar. de opiniões a uma espécie de vírus
participação. Passo agora para uma
Sócrates perguntou-lhe: larvar da democracia e não a uma das
chamada de Cedofeita de Cima. Está a
- O que queres contar já passou pelas condições da sua génese. Aplaudimos
ouvir-nos? Como se chama?"
três peneiras? tudo aquilo que se nos apresenta
De manhã, à tarde e à noite, nas
- Três peneiras? como causas transversais - sejam essas
rádios e nas televisões, os fóruns mul-
- Sim. A primeira peneira é a da causas Timor ou o pirilampo mágico -
tiplicam-se, multiplicação essa a que
VERDADE. e atiramos as polémicas para debaixo
não será alheio o seu baixo custo e a
O que me queres contar é um facto? do tapete. Desprezamos a política e os
ilusão de ritmo criada pelas sucessivas
Se tiveres ouvido contar, se for um partidos. Desconfiamos de quem se
intervenções dos espectado-
mero boato, a coisa deve morrer por candidata a exercer o poder. Menos-
res/ouvintes. A SIC e a TSF são quem
aí mesmo. prezamos aquele que, por excelência,
tem tirado maior partido deste modelo
Suponhamos que é verdade. devia ser o local do debate, o Parla-
em Portugal - chegando a TSF ao
Deve passar, então pela segunda mento. Antes, pelo contrário, o que
ponto de dividir os fóruns em géne-
peneira: a da BONDADE. politicamente ainda nos empolga são
ros, criando para o efeito um bizarro
O que vais contar é coisa boa? Ajuda a as diferentes hipóteses de nomes para
fórum mulher em que os homens
construir ou a destruir a reputação, o o cargo em que menos se debate e
estão impedidos de participar - e apre-
caminho, a fama de alguém? mais se fala ao país, ou seja, a Presi-
sentam-nos quase como referendos à
Se, o que queres contar é verdade, se é dência da República.
opinião pública, uma espécie de linha
também uma coisa boa, deverá passar, Curiosamente, ao mesmo tempo que
directa com o povo. Enfim, uma
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se deprecia o discurso que se baseia argumento ou que sobretudo à falta regime político se fez com dificuldade.
no debate, na capacidade de ouvir, de coragem para afirmar que se defen- Mesmo porque não havia referências.
aprender, responder... maior disponi- dem caudilhos ou soluções ditatoriais, As pessoas de direita mais politizadas
bilidade e reverência se revela perante mesmo que travestizadas sob o eufe- - e democratas - não encontravam
quem monologa. Atente-se, por mismo de "utopia nunca concretiza- grande lastro nacional, sendo por isso
exemplo, nos considerandos produzi- da", se conclua que "eles são todos empurradas para o universo anglo-
dos pelos júris de alguns concursos iguais"... americano.
televisivos. O insulto, essa espécie de Trinta anos depois do 25 de Abril, Mas se a democracia política entrou a
monólogo levado ao extremo, é o seu convém não esquecer que realmente custo, a democracia comum, por
discurso e contra ele não se revoltam as democracias não são iguais aos maioria de razão, não chegou à nossa
os concorrentes, ou seja, esses mes- outros regimes. São superiores, mas direita. Existem ideias e grupos especí-
mos jovens que não valorizaram o falta-lhes inegavelmente o lado da ficos que são pura e simplesmente
discurso da escola, que em alguns paixão que as ditaduras e os líderes demonizados. Já nem me refiro aos
casos nem reconhecem autoridade aos populistas são exímios em explorar. «comunistas» (noção bastante abran-
professores, mas que se põem de gatas gente para um direitista). Os «homos-
nas praxes e para serem famosos. Só não temos democratas sexuais», as «abortadeiras», mesmo os
Compare-se também a atitude dos Pedro Mexia
In: DN040810
«intelectuais» são sempre tidos como
jornalistas quando fazem entrevistas a Portugal é uma democracia sem gente pestífera, que uma providencial
dirigentes desportivos com aquela que democratas. Não me interpretem mal: desratização eliminaria. A direita tem,
adoptam quando entrevistam líderes com certeza que a maioria dos portu- por isso, a maior dificuldade em lidar
políticos. Qual líder partidário é que gueses defende o regime democrático, com o mundo das artes (que considera
beneficia da reverência com que se a soberania do povo, o voto, a um manicómio vermelho) ou com a
entrevista, por exemplo, Pinto da imprensa plural, os direitos, liberdades imprensa (que acha um palco de abu-
Costa? Quem além dos jogadores de e garantias. Mas isso, que é muito, é sos e uma coutada esquerdista). Não
futebol e de alguns artistas é recebido muito pouco. me ponho de fora: muitas vezes entro
nos aeroportos com os olhos rasos de Um democrata não é apenas uma nesta cartilha, intelectualmente básica
água? De quem mais se faz por tornar pessoa que apoia determinado modelo e politicamente cansativa. Nunca se
menos aberrantes exigências absurdas de organização política, mas sobretu- escapa completamente ao meio em
- dezenas de lençóis disto e daquilo, do alguém que se comporta como um que se nasceu.
limusines de cores improváveis?... democrata. Que aceita uma sociedade A esquerda não é melhor. Boa parte
Mesmo quando acusados de crimes democrática. Que aceita a diversidade da esquerda tem uma história de com-
graves, como a violação ou assassínio, de opiniões e comportamentos. E que bate pela democracia. E a nossa
a forma como a opinião pública reage aceita essa diversidade de modo natu- democracia nasceu à esquerda. Assim,
é diferente, caso os responsáveis ral, com boa cara, sabendo que mes- a nossa esquerda vê-se como proprie-
sejam protagonistas deste mundo. mo as aberrações de uma sociedade tária da democracia. Daí nasce uma
A desvalorização do discurso político livre são preferíveis aos desmandos da relutância brutal face à mera existência
não é de modo algum um estigma falta de liberdade. da direita. A direita é, no máximo,
português. Mas trinta anos após o 25 Sei isto muito bem, dada a minha tolerada. E quando se porta bem,
de Abril é urgente que a democracia dupla condição biográfica. Conhecen- recebe torrões de açúcar, como os
portuguesa perceba que tem de defen- do bem a direita, sei como a direita cavalos. Mas o normal é a esquerda
der os seus valores. Criar os seus não é democrata. Sendo de direita, sei manifestar a sua repugnância visceral
rituais. Faz, por exemplo, algum sen- como a esquerda não é democrata. pela direita. Ouço a malta de esquerda
tido que sejam os estádios os raros Repito: não me refiro tanto ao regime, dizer «a direita» fazendo os mais
locais em que os portugueses cantam mas ao modo de aceitar o outro. Ou, espantosos esgares, como se se refe-
o hino nacional sem complexos? se quiserem: o adversário. Nesse risse a oficiais da Gestapo. É a retóri-
Trinta anos depois do 25 de Abril, aspecto, dificilmente se topa com um ca conhecida: a direita é toda «fascis-
convém não esquecer que qualquer democrata no rectângulo. A direita ta». Não deve haver uma única pessoa
ditador, qualquer caudilho, qualquer portuguesa não é democrata por afirmativamente de direita a quem não
dirigente que enquadre o seu monólo- razões conhecidas. Razões que, no tinha sido alguma vez atribuído o
go com laivos de populismo ou de caso, são também de regime, e não epíteto de «fascista». A democratiza-
superioridade terá sempre muito mais apenas de mentalidade. Se não há ção dessa etiqueta é mesmo uma das
pessoas dispostas a evocarem-no, tradição democrática no nosso país, doenças infantis do esquerdismo.
elogiarem-no... do que qualquer líder muito menos existe essa tradição na Basta correr a notícia que um fulano é
democrático pelo menos enquanto direita. A 24 de Abril de 1974 não «de direita» para que fique condenado
vivo. Assim se explica que nas litanias havia mais de umas centenas de direi- a transportar essa marca, como a letra
que preencheram um dos muitos tistas democratas, geralmente monár- escarlate de Hawthorne. Ora, metade
fóruns radiofónicos desta semana se quicos ou liberais. E 1974 foi apenas da população lusa é de direita, a Eco-
tenha relacionado democracia com há trinta anos. No caso da direita, a nomist e o Figaro são de direita, Ray-
corrupção. Que à falta de melhor própria aceitação da democracia como mond Aron estava à direita, Churchill
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era de direita, como pertencem à direi- «Igreja pós-cristã», «algo de desossifi- Prado Coelho («não há espírito trági-
ta uma dezena de Governos europeus. cado, que releva de um certo cálculo co, porque não há dúvida nem ago-
Em resumo: numa democracia, ser de pragmático...»; a uma «religião por nia»), é vivida dentro da Igreja a legí-
direita é uma trivialidade. Uma trivia- ementa, numa espécie de "bricolage", tima preocupação pelo nosso tempo.
lidade democrática. Exactamente igual em que cada um pega no que lhe serve Esta preocupação integra, por um
a ser de esquerda. melhor, mas ninguém arrisca por lado, uma consciência trágica de peca-
Há pessoas de esquerda e pessoas de inteiro». do (não esquecer os pedidos de per-
direita, há mesmo (imaginem) pessoas Aqui está uma crítica que não é recu- dão do Papa e os seus apelos à con-
que escapam a essa dicotomia. Pode- sável, embora valha apenas em termos versão); mas, por outro lado, integra
mos discordar veementemente de de generalidade sociológica. Com uma esperança de renovação e levan-
algumas ideias, mas é estúpido demo- efeito, não faltam exemplos, como tamento, contrária à dúvida, contra
nizar o outro. E é ainda mais estúpido Madre Teresa de Calcutá ou o Padre toda a desesperança. «Ao largo!», é o
recusar a certas ideias foros de cida- Pio, que, no nosso tempo e à nossa lema do Papa na encíclica que dedicou
dania. Sou favorável a um máximo de vista, «arriscaram por inteiro». O sécu- ao advento do terceiro milénio.
pluralismo opinativo, nomeadamente lo XX foi um século de milhões de «Levantai-vos! Vamos!», é o título que
nos media, e isso inclui a expressão mártires do catolicismo, como está dá ao recente segundo volume da sua
pública de opiniões que detesto. Mas indiscutivelmente documentado e biografia, tirado do Evangelho segun-
que, numa sociedade democrática, têm publicado em livros vendidos aos do S. Marcos (Mc 14,42). Não integra,
o mesmíssimo direito de se fazerem milhões por todo o mundo. Estes isso não, porque seria contrário ao
ouvir. Uma pessoa com ideias diferen- mártires «arriscaram por inteiro». O já Espírito que integrasse, dúvida nem
tes das nossas é, simplesmente, uma referido «renovamento», na Igreja do agonia (desespero).
pessoa com ideias diferentes das nos- Vaticano II, é um dos mais espantosos Toda aquela preocupação exprime-se
sas. Apenas isso. Não um crápula. de toda a história pós-constantiniana. na urgência da «nova evangelização» -
Não um criminoso. Enquanto for Nunca, em todo o mundo, um Papa expressão de João Paulo II, que ficará
preciso escrever isto como se não teve tão grande influência estritamente entre as maiores profecias do seu
fosse óbvio, continuaremos uma espiritual e moral como João Paulo II. pontificado. «Nova evangelização»
democracia sem democratas. Para além de muitos outros indicado- primeiramente dos próprios evangeli-
res, os encontros inter-religiosos de zadores. Para responder às necessida-
Dizer ao Mundo o Que Sabemos Assis foram a prova desse grande des da Igreja e do mundo de hoje,
de Deus prestígio mundial, reconhecido prati- torna-se prioritária uma «segunda
Por MÁRIO PINTO
In: Público, Segunda-feira, 30 de Agosto de 2004
camente por todas as grandes reli- conversão» dos baptizados, na linha
1. É frequente, nos países tradicio- giões, reunidas numa ONU espiritual da mais genuína tradição da espiritua-
nalmente cristãos, invocar-se uma que já está na história e aprovou um lidade católica. E, para não ser apenas
perda do sentido religioso; um divór- compromisso para a paz. mais do mesmo, a «nova evangeliza-
cio, se não mesmo um conflito, entre Contudo é verdade que a larga man- ção» terá de ser mais carismática, mis-
a crescente mentalidade laicista e a cha daquele catolicismo «bricolage», tagógica e testemunhal, e menos sim-
Igreja Católica. Apesar do irradiante como lhe chamou Prado Coelho, ou plesmente institucional e social (socio-
carisma apostólico do Papa João Pau- catolicismo «patchwork», como lhe lógica).
lo II, o homem mais querido e admi- chamou o Cardeal de Viena numa 3. Tal exigência é para todos; mas
rado no mundo inteiro, e apesar da recente conferência entre nós, não sobrecarrega especialmente os pasto-
indiscutível renovação que se tem interpela as mentalidades típicas desta res, curas de almas. A este propósito,
verificado no seio da Igreja, designa- nossa civilização do consumismo, da há um problema que alguns levantam
damente em múltiplos novos movi- sensualidade e da gratificação imedia- e não deve ser escondido por falsa
mentos e novas comunidades, conti- ta, que não gosta de limites, de sacrifí- submissão. Dou um exemplo. Há
nua a verificar-se uma distanciação cios, nem de questionamentos norma- cerca de dez anos, dirigindo-se aos
entre tendências comportamentais tivos. Não deixa de ser impressionante bispos de França, num livro intitulado
dominantes e as verdades pregadas (embora seja insatisfatório enquanto «Le parti de Dieu, Lettre aux évê-
pela Igreja Católica. análise social de fenómenos que trans- ques», André Frossard, membro da
A este propósito, faz-se correntemen- cendem a realidade socialmente verifi- Academia Francesa e grande persona-
te uma pública acusação de incoerên- cável) afirmar que: «os inquéritos lidade da cultura e do jornalismo,
cia aos católicos: a uns, porque são sociológicos sobre os valores e as escreveu:
católicos «não praticantes»; e a outros, crenças dos europeus dizem-nos que «Bispos de França, vós só tendes um
porque são «praticantes» incoerentes se continua a acreditar em Deus, mas partido a tomar, o partido de Deus.
que dão contratestemunho. Na recen- cada vez menos como pessoa e cada Vós dais-nos, desde há algum tempo,
te troca de cartas entre o Cardeal vez mais como abstracção» (Prado um cristianismo desvitalizado, despo-
Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, Coelho). Não sabemos se no passado jado dos seus mistérios e dos seus
e o Prof. Prado Coelho, no Diário de foi muito diferente; mas era menos milagres, reduzido à sociologia e à
Notícias, uma das primeiras críticas de aparente ou socialmente consciente. história, e que está, para a religião,
Prado Coelho foi precisamente a essa 2. Porém, ao contrário do que escreve assim como o centrismo está para a
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política. Vós multiplicais as conces- mestre Pangloss para quem todas as pessimismo é hoje dominante na arte
sões à moda intelectual e os compro- desgraças aconteciam para seu bem, e até na filosofia. Será porque real-
missos com o mundo; ora, o mundo Voltaire criticava o naturalismo opti- mente o mundo nos dá hoje mais
que vive na angústia e na penúria espi- mista da condição humana da filosofia razões para sermos pessimistas? O
ritual, o mundo que teve esperanças e do seu tempo. Esse optimismo cego e pessimismo é consequência do mundo
não tem senão desilusões, espera de atávico corre o risco de nos tornar ou de nós? Adorno escreveu que
vós as razões de acreditar, enquanto a passivos perante a vida, aceitando depois do Holocausto já ninguém
vossa timidez não lhe fornece senão todas as adversidades sem as comba- conseguia escrever poemas. Neste
razões de duvidar. Vós falais cada vez ter e sem tentarmos melhorar a nossa caso, a arte apenas exprime o mal do
menos como S. Paulo e cada vez mais existência. Mas Voltaire enganou-se ao mundo. Mas será que o mundo se tem
como um senador centrista. Pelo que confundir Cândido com Pangloss e tornado pior? É que me parece que a
o Autor, que passou a sua vida a optimismo com resignação. O opti- arte se tem tornado mais pessimista.
defender a Igreja, tem algumas obser- mismo de Cândido é positivo, o que é Muitos dramas clássicos exprimiam
vações a fazer-vos». «Reverendíssimos negativo é o transformar esse opti- um optimismo triste na tragédia final
Padres: nunca o mundo esteve mais mismo numa filosofia passiva e acríti- estava sempre ínsita uma possibilidade
perturbado nos seus fundamentos, ca da vida como a de Pangloss. de redenção humana. É importante
mais desordenado nos seus pensa- Na verdade, uma filosofia pessimista não confundir optimismo com comé-
mentos, mais incerto nos seus cami- conduz ainda mais seguramente a um dia e pessimismo com drama. Há
nhos e mais vazio de sentido. Peço- cepticismo imobilista. Para os pessi- tragédias optimistas porque acreditam
vos que ultrapasseis a estranha timidez mistas, mesmo o que a vida nos pode na natureza humana. Mesmo Romeu e
que vos paralisa e digais ao mundo dar de bom é seguramente transfor- Julieta é uma peça optimista, ao
aquilo que sabeis de Deus». mado em mau pela natureza humana. demonstrar que o amor é possível
4. O ABORTO ESTRANGEIRO. O que identifica um pessimista é o seu entre duas pessoas de famílias que se
Um certo progressismo português cepticismo face à natureza humana. combatem. Shakespeare exprime
grita que o barco do aborto não viola Normalmente, isso esconde-se por algum pessimismo quanto ao contexto
a lei portuguesa. Como se lhe desse detrás de uma concepção cínica do social que impede esse amor mas é
cuidado essa violação! E aplaude que que se passa à sua volta que facilmente optimista quanto à natureza humana
um barco estrangeiro venha recrutar se transforma numa visão conspirativa que o concretiza. No lado oposto, o
clientes portugueses para os levar para do mundo. Para um pessimista há fantástico filme de S. Kubrick Dr.
o mar alto e aí os tratar de acordo sempre alguma outra coisa por detrás Strangelove é uma comédia que expri-
com a lei da bandeira do barco. Pense- de um gesto simpático, há sempre me um enorme cepticismo quanto à
se no que isso pode dar com outros uma mentira escondida numa promes- natureza humana.
barcos para outros negócios - por sa, há sempre uma desilusão a seguir a Da mesma forma, não se deve con-
exemplo: exploração infantil, explora- uma ilusão. Da vida, dos outros e, por fundir um optimista com alguém feliz.
ção sexual, droga, manipulações gené- vezes, até de si próprios nada pode- Ser optimista pode é ser a melhor
ticas, comércio de órgãos humanos, mos esperar de bom. Na dúvida, deve- forma de reagir à infelicidade. Nem se
ou simples mão-de-obra barata. Não se presumir o pior! Só que isto conduz confunda pessimismo ou optimismo
hão-de faltar bandeiras para todos os a negar qualquer capacidade transfor- com vontade de morrer. Será que um
barcos. Quem brinca com as frontei- madora na nossa condição humana. optimista é alguém deprimido que não
ras portuguesas contra o crime de Não podemos melhorar-nos nem se suicida ou, pelo contrário, ele não
aborto não poderá depois defender o tentar melhorar os outros. A nossa se suicida porque é tão pessimista que
contrário para outros crimes. Leis relação com os outros só pode ser acredita que o que o espera na morte
portuguesas são leis portuguesas; não vista como estratégia a bondade não ainda é pior?... O pessimismo a que
são ao gosto de cada um. Mas que convence, apenas o engano vence. me refiro aqui é uma filosofia da vida
precedente! Claro que o cinismo inerente a uma assente num profundo cepticismo
E ver como tantos média «embandei- filosofia pessimista nos dá uma posi- quanto à natureza humana.
ram em arco»! Quarto poder. Inde- ção confortável perante a vida. Pode- Há uma forte tendência na arte actual
pendente. mos olhar o mundo de cima para para exprimir este enorme cepticismo.
Professor da Universidade Católica
baixo e ser sarcásticos com o "enga- O que aconteceu? Onde foram parar
no" dos outros. Talvez seja por isso todos os optimistas? Há duas explica-
Em defesa de Cândido
Miguel Poiares Maduro
que hoje em dia se encontrem muitos ções possíveis. A primeira é que o
In: DN, 050707 mais cínicos que optimistas. É bem crescente pessimismo é uma reacção
Acredita num final feliz? Eu sempre mais fácil ter piada sendo cínico do aos limites da razão a crença absoluta
preferi acreditar. É por isso que sem- que positivo. Sempre me diverti com a na razão do período iluminista reve-
pre simpatizei com o Cândido, eterno escrita de Vasco Pulido Valente, mas lou-se excessiva enquanto instrumento
optimista vítima do sarcasmo de Vol- sempre me perguntei como se sairia de promoção do desenvolvimento
taire. Na personagem de Cândido, que ele se lhe pedissem para escrever algo humano e pessoal e isso traduziu-se
permanecia optimista face às maiores positivo durante algumas semanas… num enorme cepticismo face à natu-
desgraças, seguindo a filosofia do seu Diz-se que a arte reflecte a vida e o reza humana. O pessimismo anteci-
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pou, neste caso, a crítica pós-moderna vontade dos profetas. da vida humana e cristã da Venerável
à razão. Necessitamos de optimistas, embora Alexandrina, tornou-se o “segredo” e
A segunda explicação é mais banal. É eu esteja algo pessimista quanto à a coragem para a fidelidade em todos
simplesmente mais fácil ser pessimista. possibilidade de os encontrarmos… os momentos e horas. Ela conseguiu
Miguel PoiaresMaduro
Havia um tempo em que a arte media- miguel.maduro@curia.eu.int “eucaristizar” a sua vida.
tizava a vida, exaltando-a ou permitin- No meio de tantas iniciativas e activi-
do-nos esquecê-la. Os seus tempos Alexandrina de Balasar - Santa dades que a pastoral hodierna reclama,
eram lentos, pois lenta era a forma de para Portugal teremos de redescobrir a centralidade
viver a vida. Hoje a arte tem de ser D. Jorge Ortiga da Eucaristia. Trata-se de ultrapassar a
In: Ecclesia, 040427
mais rápida que a vida para poder ser Ninguém ignora a vocação universal à norma da obrigatoriedade dum precei-
consumida ao ritmo desta. Neste con- santidade como caminho para a Igreja. to e fazer com que tudo nasça desta
texto, o cinismo é a forma mais rápida Por outro lado, todos reconhecem que ânsia interior de encontro com o divi-
de fazer arte. É hoje mais fácil matar os Santos não se limitam aos procla- no. Ela, na celebração e na comunhão,
um personagem do que encontrar mados, solenemente, como tais. terá de dizer mais Deus. E sabemos,
umarazão para o fazer viver. Não se Acontece, porém, que a canonização por experiência, que não é suficiente o
enganem, eu também não resisto ao ou beatificação dum membro da Igre- rubricismo escrupuloso. Urge maior
gosto da tirada rápida e espontânea, ja não é um mero elencar de mais um preparação e vivência a envolver toda
da arte por instinto, do cinismo bem nome no catálogo. Com elas são a comunidade para que a presença de
dirigido. Mas custa-me ver a arte redu- anunciados diversos valores e dimen- Cristo não se reduza à Eucarística mas
zida a uma mera expressão do nosso sões que a Igreja Universal deve aco- aconteça no encontro de “dois ou
pessimismo existencial. lher. mais”. A Eucaristia terá de dar um
Na vida passa-se o mesmo. Ser opti- Que terá Alexandrina Maria da Costa sentido mais profundo e um valor
mista dá mais trabalho. Significa reco- a dizer à Igreja em Portugal? mais consistente a Jesus no meio de
nhecer que temos algum controlo Sem pretender ser completo, sublinho “dois ou mais” que se amam. Só assim
sobre a vida e exige que estejamos três aspectos de grande utilidade. a Eucaristia se torna alimento para a
dispostos a investir na nossa capaci- 1. Ela foi uma cristã simples e humil- Igreja e para o mundo moderno reple-
dade de nos transformamos e a trans- de. Na verdade, não chegou a concluir to de dores e sofrimentos. Ele preten-
formarmos. Mas isso co- os estudos primários e “obrigatórios” de serenidade e calma e só a presença
responsabiliza-nos. Somos co-autores naquela época. de Cristo na comunidade é uma res-
da vida e não apenas os seus destina- Esta “limitação” de conhecimentos, posta permanente. Depois, a presença
tários. É mais fácil ser pessimista e humanos e cristãos, não a impedirem eucarística provocará outra incidência
escondermo-nos no cinismo. de ser uma verdadeira evangelizadora. na vida real das pessoas.
Em Portugal, uma sondagem recente Fê-lo através dos seus escritos, que 3. Se uma vida eucaristizada, tornada
indicava que mais de 70% dos portu- necessitam dum estudo teológico mais experiência no encontro verdadeiro da
gueses estavam pessimistas. Seria consistente e que nos obrigam a pen- comunidade, foi a coragem para os
importante clarificar bem o que isto sar em congressos, e, particularmente, sofrimentos e as dores que a Venerá-
quer dizer. Estar pessimista e ser pes- da palavra oportuna e serena que ofe- vel Alexandrina experimentou, num
simista são coisas diferentes. Até um recia a quem a procurava. cuidado e acompanhamento mais
optimista pode por vezes estar pessi- Não pretendo desconsiderar a impor- técnico e competente aos doentes, a
mista… Mas o optimista acha que tância da reflexão teológica e da for- Igreja em Portugal terá de redescobrir
pode fazer algo para vencer o pessi- mação permanente dos nossos cris- modos e meios de se fazer presente
mismo e assume essa responsabilida- tãos. Creio que esta necessita duma no concreto da dor e do sofrimento.
de. O importante é que os portugue- “alma” como experiência mística e de São muitos aqueles que lutam sozi-
ses parem de agir como pessimistas, união com Deus. Trata-se de subli- nhos e não bastam as estruturas e
cínicos e conspirativos perante tudo o nhar a prioridade da dimensão con- instituições que cuidam dos doentes.
que se passa à sua volta, descrentes da templativa para que a palavra e o Eles necessitam da presença e do
natureza dos outros e, dessa forma, anúncio adquiram consistência. carinho que só uma doação e entrega
desculpando a sua própria natureza Será ousadia reconhecer que a Igreja a esta causa pode oferecer.
também. Um livro recente de Helmut em Portugal, para além dum empenho Há momentos históricos que exigem
Gaus faz corresponder as fases de mais sólido no aprofundamento da respostas novas. A evolução técnica
desenvolvimento económico com os mensagem cristã tem necessidade de ainda não eliminou nem iluminará, o
anseios e receios psicológicos colecti- “ver”, também, as doutrinas a partir rosto da dor. Se a medicina oferece
vos. De acordo com esta tese, somos, do “mistério” o que só se consegue muito, a presença, como sinal dum
em larga medida, os executores da através duma consideração, teórica e amor cristão, é a mais valia que se
nossos próprios receios… prática, do valor da intimidade com pode oferecer.
Com o pessimismo acontece o mesmo Deus? Só a contemplação alicerça o A Beatificação de Alexandrina Maria
que com as profecias se as aceitamos, anúncio da Palavra. da Costa deve questionar a Igreja em
elas realizam-se, pois somos nós mes- 2. Nesta prioridade pela Evangeliza- Portugal tornando-a mais evangeliza-
mos que nos tornamos nos agentes da ção, a Eucaristia, alimento consistente dora através do testemunho, da euca-
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ristia como fonte de vida nova e da mente há aqui a passagem brusca das mais variadas religiões o têm acompa-
atenção concreta ao mundo que sofre. realidades substanciais: «No princípio nhado, e são tantos os cultos e tantos
+ Jorge Ortiga, A. P. era o Verbo» - para as realidades aci- os deuses quanto é grande a fantasia
dentais; do Necessário - para o Con- humana e forte a sugestão da Nature-
Um Senhor Homem tingente; do Absoluto - para o Relati- za. O Paganismo decadente dizia aos
Um homem de idade já bem avança- vo; da Eternidade - para a História : homens: «Adorai este homem! - é o
da veio à Clínica onde trabalho, para «Nada daquilo que foi criado foi cria- Imperador». Só o Cristianismo lhe diz:
fazer um curativo na mão ferida. do sem Ele». Esta é a história maravi- «Adorai este Homem! - é Deus». O
Estava apressado, dizendo-se atrasado lhosa que nos conta S. JOÃO, depois Paganismo punha acima do divino
para um compromisso, e enquanto o do Génesis. Aí começa a nossa histó- Imperador os deuses celestes, e acima
tratava perguntei-lhe sobre qual o ria. O mistério das origens é de si destes o Destino. Só o Cristianismo
motivo da pressa. mesmo incompreensível ao homem, nada sobrepõe ao Homem-Deus.
Ele disse-me que precisava de ir a um por isso que é das origens. O começo «Todo o homem - segundo a palavra
asilo de anciãos para, como sempre, absoluto transcende todas as concep- de Aristóteles - deseja naturalmente
tomar o café da manhã com sua ções científicas. E, no entanto, só por saber». O Cristianismo vem ao encon-
mulher que estava lá internada. ele se explicam todas as concepções tro deste desejo, desvendando o Des-
Disse-me que ela já estava há algum científicas. Aqui encontramos o gér- conhecido, fazendo do mistério - o
tempo nesse lugar porque tinha um men de todas as coisas. Aqui desco- Dogma.
Alzheimer bastante avançado. brimos o laço causal que une o Cria- Um cristão do nosso tempo, Jacques
Enquanto acabava de fazer o curativo, dor à criatura. Lembrando que o pro- Rivière, pôs em singular relevo este
perguntei-lhe se ela não se alarmaria fundo sentido de Poesia é Criação, papel gnoseológico do Cristianismo,
pelo facto de ele chegar mais tarde. digamos que este é o Poema das Ori- em páginas de admirável profundeza,
- Não, disse ele. Ela já não sabe quem gens. das quais saliento uma passagem: «. ..o
eu sou. Faz quase cinco anos que Para saber donde vem o Cristianismo, mistério aparecerá como uma localiza-
não me reconhece. temos de ler o princípio do 4º Evan- ção do inexplicável, espalhado e laten-
Estranhando, perguntei-lhe: gelho. S. João, propondo-se contar a te nas coisas. Mas, em vez de ter uma
- Mas se ela já não sabe quem o vida de Jesus, viu, divinamente inspi- localização no princípio, como fazem
senhor é, porque essa necessidade de rado, que devia começar pelo Verbo, a Ciência e a Filosofia, é uma localiza-
estar com ela todas as manhãs? que existia antes de todas as coisas. A ção no próprio seio das coisas, nos
Ele sorriu e dando-me uma palmadi- História do Cristianismo é uma histó- próprios sítios onde se encontram os
nha na mão, disse: ria que começa com o acto criador. pontos obscuros; é a determinação,
- É. Ela não sabe quem eu sou, mas eu Daí todo o seu carácter transcendente tão exacta e literal quanto possível, da
contudo sei muito bem quem é ela. e todo o seu carácter imanente. O sua posição. Nada de redução, de
Cristianismo é a história de Cristo. escamoteamento por substituição, de
O cristão no mundo de hoje Mas Cristo é Deus e Homem; é uma deslocamento e de remeter à origem,
Henrique Barrilaro Ruas
(Conferência feita na sede da Acção Católica em Lisboa, em Fevereiro
Pessoa em que duas naturezas se asso- como a Matemática ensina às outras
de 1947) ciam: a divina e a humana. À primeira, ciências a fazer. Mas uma condensa-
No Princípio, para além de todos os chamamos nós sobre-natureza, num ção que permite simplesmente ver
começos, antes do encadear dos critério, é bem de ver, puramente claro ali. O desconhecido fixado: para
fenómenos pelo vínculo da causalida- humano, pois guardamos o nome de evitar que ele espalhe o seu carácter
de, era a imutável Inteligência, donde natureza para aquela só com que nas- vago sobre todo o resto, para que se
toda a Inteligibilidade dimanaria. cemos. saiba onde é que está a coisa que não
O Mistério não se abriu como um Transcendência do Cristianismo: ele é se pode saber como as outras, e para
teorema: revelou-se como um Ser. O alguma coisa de estranho em relação que assim, em vez de lhe ficar a dever
Verbo não era um princípio abstracto: ao Homem; uma espécie de invasão e somente incerteza, dele provenha o
estava em Deus. E, no seio de Deus, de conquista; uma Palavra que subi- poder explicativo»[iii].
era Deus Ele próprio. tamente rompe o silêncio; uma espada Dá, por outro lado, o Cristianismo, ao
Desde todo o sempre, na permanência que rasga a carne bem tratada; um conjunto de todas as verdades, um
do Ser sem mistura de não-ser, o vento impetuoso que varre a face da sentido humano, um valor vital, que o
Logos era Inteligência, sede das ideias, Terra: um convite subtilmente e ins- mesmo pensador francês expressava
e Pessoa, sede e fonte de valores[ii]. tantemente murmurado para um Ban- nestas sugestivas palavras: «Logo que
Essa fonte ia correr abundantemente... quete invisível; um Modelo de perfei- se consideram em relação e coesão
Nunca nenhum homem compreende- ção que habita numa luz inacessível; com todo o resto, quer dizer: desde
rá o tremendo mistério do acto cria- um fermento que entra dentro de nós que se mergulham de novo na expe-
dor. O Mistério não é um teorema: é e se propõe assimilar-nos, transfor- riência, eles actuam como um fermen-
uma realidade. «Todas as coisas foram mando-nos. to que faz levedar toda a massa. Dão
criadas por Ele» - assim nos fala o Imanência do Cristianismo: Nada vida a tudo o que nos parecia classifi-
Autor inspirado, como quem conta mais natural ao homem do que ele! cado e finito»[iv]. E todo esse fermen-
um caso que se passou. E efectiva- Todo o homem nasce religioso. As to, que dá vida ao que parecia inerte, e
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transforma e constrói e parece querer emocionado, a maravilhosa realidade. de dizer que não, a um ser que tem de
fundar um Reino novo, torna-se bem Por isso, o Cristianismo é transcen- comum com Deus (como ensina São
nosso, bem próximo dos corações dos dente e imanente: é a entrega de Deus Boaventura) a liberdade de escolha,
homens, quando ouvimos a palavra à Humanidade. E o salto brusco, o que o Verbo Redentor se dirigiu. Não
do Senhor: «O Reino de Deus está facto irreversível, o acontecimento foi pedir ao Imperador de Roma que
dentro de VÓS». que para sempre exclui a hipótese declarasse passar o seu Império a ser
Imanente quanto ao Homem, o Cris- cíclica do Eterno Retorno, é a Revela- cristão: veio pedir a cada um dos súb-
tianismo é, pois, uma realidade terre- ção, facto central da História, que a ela ditos do Imperador de Roma, aqueles
na. vai buscar o seu verdadeiro sentido. Se que de rastos o serviam e de joelhos o
Mas que nada nos faça reduzir à ima- o Tempo é, por si mesmo, a medida adoravam, que aceitasse o testemunho
nência o carácter do Cristianismo. Se é do relativo, a marca do imperfeito, a do Seu Sangue e bebesse esse Sangue
realidade terrena, é porque é realidade Revelação o sagrou. Deus escolheu em sinal de Novo e Eterno Testamen-
entregue aos homens, revelada. Sem a um momento, para que, como Luz, to.
Revelação é impossível compreender resplandecesse nas trevas. Deus Desde então, as almas foram ouvindo,
o Cristianismo. - «A luz resplandeceu entrou na História. Pode-se, desde ou no esplendor dos palácios, ou na
nas trevas». - Há aqui um transpor de então, falar de valores cronológicos. majestade dos templos, ou na miséria
abismos insondáveis. Uma descida do Começou o extraordinário drama da dos ergástulos, ou na degradação dos
Céu à Terra. Homens despertados por Redenção do Homem, que decaíra da prostíbulos, o mesmo apelo divino. E
um som desconhecido começaram a primitiva dignidade, como a Escritura o drama da Redenção é sempre idênti-
ouvir vozes celestiais. O fenómeno ensina e todas as velhas tradições da co, no essencial: Deus a pedir, o
repetiu-se inúmeras vezes no decorrer Humanidade referem ou postulam. homem a aceitar ou a negar. O drama
de quarenta séculos. Os homens iam Muito se tem negado nos tempos da Redenção é um drama pessoal;
registando e transmitindo. Pareciam modernos o grande dogma cristão passa-se entre personagens; não entre
coisas dispersas... Mas o Céu conti- que, para Pascal, encerrava, juntamen- símbolos; não entre potências.
nuava a falar. Pouco a pouco, aproxi- te com a existência de Deus, todo o Mas eis que o drama se complica:
mando-se umas das outras, as palavras Cristianismo[v]. Hoje, por loucos perscrutando a realidade, não nos
iam formando conjuntos definidos. desvios, novamente é aceite a realida- encontramos, afinal, com uma cena
Era (parafraseando Chesterton) uma de. O Comunismo, por exemplo, sempre por igual repetida: o Verbo,
espécie de romance da Eternidade, ou, assenta numa concepção pessimista como Palavra de Deus, e cada alma
talvez melhor, um Drama em muitos do estado actual do homem, como isolada. É isto o essencial, o indispen-
quadros, compreendendo, com o lucidamente expõe Berdiaev: «...ele sável. Mas há, em regra, homens que
mesmo à-vontade, cenas do Passado, contém no seu fundamento a ideia do intervêm. Logo o Evangelista nos
do Presente e do Futuro. E o ponto pecado original. Um pecado original conta: «Houve um homem que foi
central que se foi destacando como que alastra sobre a História Universal, mandado por Deus, cujo nome era
um núcleo, ou como um fruto que sobre todas as classes da sociedade, João, o qual veio como testemunha,
pouco a pouco se vai avolumando, era que contamina todas as crenças e para dar testemunho da Luz, afim de
como uma promessa de casamento. todas as ideologias humanas»[vi]. que, por ele, todos acreditassem.» Foi
Do fundo das eras longínquas, que- O Homem precisava de redenção. aquele que a si mesmo se definiu
brando todas as resistências, rompen- Passados tantos séculos de Cristianis- como uma voz, tanto a consciência da
do a condensação das trevas, dissol- mo, o Homem precisa ainda de reden- sua missão o penetrava. E a voz era
vendo a camada dos preconceitos e ção. O Verbo podia ter-se dirigido ao esta: «Preparai os caminhos do
dos vícios, uma estranha promessa era homem-multidão, à Sociedade, alar- Senhor.»[vii]
segredada a almas de eleição, e delas gando a todos os povos, como tais, o Aqui nos surge a ideia - ou melhor: o
ecoava, a ponto de um povo inteiro conceito de Povo Escolhido. Mas facto - de uma propedêutica ao Cris-
concentrar nela toda a sua razão de onde está uma das grandes caracterís- tianismo. O facto é este: houve um
ser, todo o sentido da sua História. ticas do Cristianismo é precisamente homem encarregado de preparar a
Havia a promessa formal duma Alian- no facto de isso não se ter dado: o visita do Senhor a outros homens.
ça perfeita: um dia, tudo quanto fora Verbo dirigiu-se a cada um, ao Seria este um caso acidental? Ou
revelado à cerca do Passado, do Pre- homem-pessoa. Ora a pessoa define- manifestaria uma lei? E esta seria de
sente e do Futuro, tudo se condensa- se, exactamente, por ter em suas mãos tipo estatístico, ou de tipo normativo ?
ria numa realidade viva e actuante, a chave do seu destino. Por outras palavras: a propedêutica ao
num ser sensível ao coração e aos Por mais que filósofos e cientistas Cristianismo será necessária? E em
olhos dos homens: toda a Revelação digam ao homem, em todos os tons - que sentido se deve fazer?
se concretizaria num Homem. Essa e, no nosso tempo, com singular tei- O problema não é dos puramente
era a estranha promessa que o Povo mosia -, que não é livre, ele, mesmo especulativos: tem interesse prático, e
Escolhido foi ouvindo e guardando: a aceitando o esquema mental para actual. Um dos seus aspectos é o
natureza divina e a natureza humana cómodo repouso, vive como livre e é seguinte: Milhões de homens, disper-
unir-se-iam em consórcio admirável. como livre que aceita o determinismo. sos pelo mundo, não contando já com
E o Cântico dos Cânticos pressente, Foi a um ser capaz de dizer que sim e a crise trazida pela guerra, vivem em
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nível económico inferior ao que a por Cristo, em todas aquelas palavras, É às pessoas que Cristo Se dirige, para
dignidade humana exige. Segundo as tão claras, tão definidas, que, espalha- as redimir uma por uma. Mas, que-
palavras claras de Pio XI: «Bem se das embora pelo Evangelho, consti- rendo associar os homens à Sua obra,
pode dizer que tais são hoje as condi- tuem o diploma da fundação da Igreja: fez deles uma Sociedade nova. E é na
ções da vida social e económica, que «lde e ensinai todas as gentes» ; «Apas- medida em que participam dessa
se torna muito difícil a uma grande centa os Meus cordeiros» ; «Aqueles a Sociedade, que os homens participam
multidão de homens ganhar o único quem perdoardes os pecados ser-lhes- na acção redentora. O poder de remir
necessário que é a salvação eter- ão perdoados» ; «Fazei isto em memó- é um poder sagrado. Ora «Poder
na»[viii]. De acordo com aquilo de S. ria de Mim.»[xii]. Sagrado» é, exactamente, a definição
Tomás que Leão XIII recorda: o uso O Homem foi pois associado à etimológica de «Hierarquia». Daí a
dos bens exteriores é reclamado para Redenção. Eis como o Drama se mul- Hierarquia Eclesiástica, toda ela repas-
exercício da virtude.[ix] tiplica, movimentando, numa pujança sada da Majestade divina, toda ela a
Pergunta-se: o Pão deve ir à frente do de incontáveis atitudes, num alvoroço irradiar os esplendores celestes. E
Evangelho? ou o Evangelho antes do de surpresa alegre e comunicativa, o todo o homem que queira tomar parte
Pão? «Pregar Moral a estômagos mundo das almas de boa vontade. nesta obra por excelência cultural[xvi]
vazios» será de todo inoperante? Tan- Quando a grande Promessa se cum- que é a difusão dos valores divinos -
to vale perguntar se, na ordem crono- priu e o Verbo feito carne entrou na todo o homem que à missão redento-
lógica, e para a classe proletária, o cena do Mundo, a Sua presença per- ra pense consagrar a vida, tem de
primado pertence ao económico, ou turbou os homens: os pastores de sagrá-la, submetendo-se à Hierarquia
ao espiritual. Belém foram acordados do seu sono; da Igreja.
Foi no proletariado do Império roma- os Magos percorreram as montanhas e Aqui recordo a paixão e o respeito
no que o Cristianismo encontrou os desertos; Maria e José foram perse- com que Dionísio Areopagita (ou
melhor aceitação. E para isso não foi guidos; os doutores da Lei sentiram quem lhe tenha usurpado o venerando
preciso que os Apóstolos propagas- vacilar a sua dialéctica; João cansou o nome...) se entregou à contemplação
sem o espírito de revolta entre os braço de tanto baptizar; os pescadores da Hierarquia Eclesiástica[xvii]. E, por
escravos. Pelo contrário: « Servos! largaram as redes; o recebedor de contraste, dolorosamente considero o
sede submissos aos vossos senho- impostos abandonou a banca; os mer- desdenhoso à-vontade com que mui-
res!»[x]. Mas é certo que, por outro cadores foram expulsos do Templo... tos cristãos, nestes dias que vão cor-
lado, desde logo a Igreja nascente se E ainda era apenas o princípio, o prin- rendo, encaram a sublime realidade
preocupou com melhorar a situação cípio de uma época em que os que é, no mundo decaído, expressão
económica dos pobres, encarregando homens como que saem dum sonho divina que Deus empresta para
os diáconos de ministrar-Ihes as oriental e começam a agitar-se, a expressão humana.
esmolas recolhidas por toda a parte. ganhar novo interesse pela vida, a De certo: a Hierarquia não existe para
Tão elevada era esta função, que, nos percorrer a Terra... Parecia, já então, objecto histórico, arredado da vida; e,
primeiros séculos os Bispos de Roma que todos exclamavam - uns, com os hoje, está feito o apelo aos cristãos de
saíam, em geral, da ordem dos diáco- olhos a brilhar de alegria; outros, a boa vontade, para tomarem sobre si,
nos[xi]. escorrer sombras de revolta: «Vimos o conscientemente, organicamente, o
No nosso tempo, florescem na Cris- Senhor»![xiii]... Houve tempo em que Poder Sagrado que hierarquiza a Igre-
tandade as admiráveis Conferências de o Senhor do Mundo passava pelas ja. Mas a vasta organização da Acção
S. Vicente de Paulo, que levam a estradas da Galileia e entrava nas casas Católica, correspondendo às profun-
esmola, não para resolver o problema de Jerusalém. Então tudo se alvoroça- das necessidades da Sociedade actual,
económico das famílias visitadas, mas va, como se nascesse um sol novo no exige, para ser eficaz, uma tomada de
como pobre sinal sensível de uma horizonte. E esse alvoroço comunica- consciência, também profunda e tam-
Caridade toda bebida em Deus. A tivo, esse gosto tão humano de dar bém actual (no sentido aristotélico),
esmola é um símbolo; liturgicamente, aos vizinhos «a última novidade», era da dignidade altíssima da Hierarquia,
diríamos: é um «sacramental». uma forma elementar, rude mas boa, de que dimana. E não se vá confundir
E as encíclicas sociais constantemente de os homens tomarem parte na a «Acção Católica» com Acção Social
insistem na necessidade de resolver o Redenção. ou Acção Cultural dos católicos,
Problema Económico com espírito de Tudo, porém, seria efémero e tumul- mesmo quando a esta presidam os
Caridade e palavras de Fé e Esperan- tuoso, se Cristo não tivesse escolhido, princípios estabelecidos nas Encíclicas
ça. dentre a multidão sobressaltada, doze papais. Como membros da A. C., o
Ou seja: não parece que se deva falar homens para o seguirem mais de per- que nos é dado é um mandato expres-
de primazia de um desses problemas to; se não tivesse prometido (e as Suas so da Hierarquia para irmos até onde
sobre o outro, na ordem cronológica palavras são certas como as realidades) ela não pode estender, por força dos
da acção. O bem está na simultanei- que seriam os apóstolos os julgadores males modernos, a sua acção apostóli-
dade. Seja como for, é este apenas um do Mundo[xiv]; se não tivesse dito ao ca. Mandato é direito que se atribui e é
caso particular na colaboração do rude pescador que se chamou Simão dever que se impõe. Os sucessores
homem com o Redentor. E essa cola- :«Tu és Pedro; e sobre esta pedra edi- dos Apóstolos dizem-nos as mesmas
boração foi manifestamente exigida ficarei a Minha Igreja»[xv]. palavras que Cristo lhes dissera: «Ide e
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ensinai todas as gentes...»[xviii]; «Eu de Antioquia, aquilo a que chamou damente se enraíza na natureza huma-
vos envio como a cordeiros para meio «um pensamento capaz de fascinar até na – é o que, entre outros, nos ensi-
de lobos»[xix]. E que vamos ensinar, os espíritos modernos»: «0 Cristianis- nou Alexis Carrel, com positiva certe-
com a mansidão do cordeiro, a pru- mo, quando é objecto do ódio do za, no seu formosíssimo livrinho
dência da serpente e a simplicidade da mundo, - não é questão de palavras sobre A Oração. — Duas palavras,
pomba[xx] - «Ide e contai o que vistes: persuasivas, mas de grandeza»[xxviii]. que são dois traços luminosos: «É
os cegos vêem (...), os pobres são E Pio XII comentava: «Verdadeira- vergonhoso orar» escrevia Nietzsche.
evangelizados»[xxi]. Tratava-se de mente, na crise religiosa dos nossos Não é mais vergonhoso orar do que
saber se era o Messias aquele homem dias - a mais grave, talvez, por que beber ou respirar. O homem tem
que os judeus cercavam, curiosos. passou a Humanidade desde as ori- necessidade de Deus como de água e
Ainda hoje, com sinceridade ou com gens do Cristianismo - a exposição de oxigénio”. E não apenas o homem
hipocrisia, é isso o que os homens científica e racional das verdades da vulgar, nivelado aos olhos do mundo:
perguntam uns aos outros. Tudo lhes fé, por muito eficaz que seja, na reali- é precisamente o homem superior —
serve para duvidar. Nada lhes basta dade, não basta por si só». E logo, nota o filósofo alemão contemporâ-
para acreditar. A estes tais chamava rompendo caminho, prosseguia o neo Hessen — o que mais sente a
Bourget «ces grands docteurs», sorrin- Santo Padre: «nem sequer bastaria necessidade da oração. Dele extraio a
do do embaraço definitivo de Renan uma dose tão escassa de vida cristã, pérola desta oração de Miguel Ângelo:
diante de dificuldades filológi- feita de costume convencional, como “Nada há mais miserável, nada mais
cas...[xxii].«És tu aquele que há-de se vê com demasiada frequência. Hoje vil sobre a terra do que eu próprio,
vir?»[xxiii]. Cristo não respondeu, é necessária a grandeza dum Cristia- quando me sinto sem Ti. Como é
como de outras vezes: «Eu o nismo vivido na sua plenitude, com grande o meu anseio de Infinito e
sou»[xxiv]. Respondeu, designando-os constância perseverante». Assim o como é pequena a força de que dispo-
testemunhas: «contai o que vistes». Papa nos indica o verdadeiro ideal dos nho para o atingir — que se vê obri-
O cristão é uma testemunha. E o nossos dias: viver em plenitude pes- gada a implorar misericórdia. Deixa-
mundo moderno precisa de testemu- soal a plenitude do Cristianismo. me alcançar, Senhor, a ponta daquela
nhas. Andam os homens cansados de E, já agora, recordando de novo o cadeia que liga a Ti todos os dons do
princípios vagos, de ideias mais ou mesmo Santo Inácio de Antioquia, Céu: a fé, que eu apeteço e que por
menos filosóficas, de mitos disformes. que aquele seu pensamento forte nos minha própria culpa não posso pos-
O homem moderno precisa de teste- introduza no âmago da nossa missão: suir inteiramente.
munhas: contemos-lhe o que vimos. vou ser triturado pelos dentes das “Sem esse dom-dos-dons, o maior e o
Gosto de ler em Jacques Rivière[xxv] feras... Assim me farei trigo de Jesus mais raro, não pode haver paz nem
esta fórmula expressiva, que aliás deve Cristo[xxix]. Este era o caso-extremo satisfação no mundo!”[xxx]. E Pierre
tomar-se como fórmula que é: os da regra que a todo o cristão se impõe: Loti, visitando, descrente mas com
mistérios «são factos, e não ideias». fazer oblação de si mesmo ao Criador, profunda ansiedade, os Lugares San-
Alargando o conceito, diríamos que o para assim se unir à obra redentora. tos, murmurava: “On prie comme on
Cristianismo todo consiste em reali- Tanto vale dizer que a vida cristã tem peut, et moi je ne peux pas mieux”. O
dades ontológicas, pois as ideias que um alto sentido litúrgico: é um culto. próprio Cristo se retirava para o
levanta e defende estão, com o Verbo, No fundo, ser cristão é viver liturgi- deserto ou para a montanha, e aí orava
em Deus. São ideias imutáveis, porque camente; e participar na Redenção é ao Pai; e na Última Ceia rezou a longa
pertencem ao Imutável, como os fac- participar, em plenitude de alma, do «Oração Sacerdotal» que o Discípulo
tos que o Cristianismo narra. É por Santo Sacrifício. É oferecer-se a Deus Amado nos transmite[xxxi].
serem imutáveis que são susceptíveis como Pão consagrado. «Toda a acção Só vivendo assim, integralmente, uma
de Fé. Encontramos, deste modo, feita para Deus sobe para Ele como vida de pleno sentido hierárquico e
duas características no nosso testemu- homenagem» diz o Padre Plus. E litúrgico, o cristão será digno do apelo
nho: prestado com Fé, acerca de reali- acrescenta: “Ela constitui uma «eleva- da Igreja para que crie, como disse Pio
dades. Enviado para o meio de inimi- ção» do nosso ser para a Sua majesta- XII, “uma Cristandade modelo e guia
gos, o ideal do cristão é ser confessor de suprema, um reconhecimento nem para este mundo profundamente
da Fé. Isto, com toda a personalidade sempre expresso, mas muito real, do enfermo”. Com efeito, só, se pode
e não apenas à superfície, onde as Seu soberano direito, o gesto filial da fazer muita Cristandade (como queria
palavras tinem como «bronze que criatura que oferece tudo ao seu Cria- D. Sebastião) — com Cristo. E, se
soa»[xxvi]. A sua vida deve ter um real dor e seu Pai”. Assim se pode cumprir hão-de ser os homens a fazer Cristan-
sentido hierárquico: «Assim brilhe a aquele ideal que se afigura ser um dade, só hão-de fazê-la na medida em
vossa luz diante dos homens: que eles limite-matemático: “permanecer sem- que se fizerem, como S. Paulo, imita-
vejam as vossas boas obras e glorifi- pre em oração”. O mesmo ilustre dores de Cristo[xxxii]. N’Ele está o
quem vosso Pai que está nos jesuíta nos recorda a palavra de S. único modelo perfeito, o tipo do cris-
Céus»[xxvii]. Boaventura: “Não cessa de orar quem tão. É filho de Deus. E o Símbolo dos
Ainda não há muito, o Santo Padre não cessa de bem-fazer”. E que este Apóstolos ensina-nos que é Filho
felizmente reinante recordava, das sentido litúrgico da vida cristã, longe Unigénito. Mas logo S. Paulo vem
Cartas tão pouco lidas de Santo Inácio de ser imposição arbitrária, profun- dizer-nos que Jesus Cristo se quis
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fazer «o Primogénito dentre muitos que sobre elas pesa inevitavelmente”. soa como se fosse um princípio? O
irmãos.» A Teologia esclarece: em São hoje bem diferentes as circuns- que o cristão sabe é que o facto de o
sentido próprio, natural, só Cristo é tâncias. Para além de muita cobardia e Cristianismo ser, essencialmente, a
Filho de Deus. Mas todo o homem é de muita insensatez, os cristãos vão Pessoa de Jesus Cristo, lhe traz, ao
chamado a receber de Deus uma compreendendo a verdade profunda lado de transcendentes vantagens,
paternidade de adopção. da palavra santa: “a vida do homem é tremendas responsabilidades. Se o
Na nossa época, há tendência para uma milícia”, e vão compreendendo centro do Cristianismo fosse uma
desprezar o que não se apresenta logo que foi sobretudo para eles que o ideia platónica ou hegeliana; se fosse
manifesto. Porventura parecerá falho escritor sagrado a escreveu. Um sopro um princípio matemático ou uma lei
de interesse isso de ser filho adoptivo de heroísmo percorre as almas que da Natureza (como o Fatum dos
de Deus... Ora não se trata de uma mais perto vivem de Deus e do pró- Romanos) — nenhum inconveniente
adopção puramente à maneira legal, ximo. Uma atitude metafísica opõe-se havia em o abandonar, ao menos tem-
como se Deus declarasse (e já não era à atitude fenomenista que invadira o porariamente. É este o caso dos racio-
pouco...) que, para todos os efeitos, nosso campo. Como queria Platão, de nalistas modernos, que andam de deus
tudo se passava como se nós fôsse- novo se vai à Verdade com toda a em deus como quem se cansa de
mos Seus filhos. Não conheço mais alma[xxxvi]. E o que parecia um teo- ideias-feitas ou lugares-comuns. O
sugestiva e intensa exposição da real rema frio, próprio para a razão espe- cristão, que procura realizar-se como
transformação que o Cristianismo nos cular em horas de ócio, hoje aparece sede e fonte de valores, isto é, como
propõe, que a feita por um inglês - com a palpitação e a fremência, o pessoa, sabe que o seu Deus é uma
laico e anglicano - num pequeno interesse e a graça dum ser-vivo. Pessoa que, no princípio, era já ple-
volume: Para além da Personalida- Falar de uma verdade que salva é cer- namente realizada. Olha para o seu
de[xxxiii]. Nada de novo ele ensina — tamente, regra geral, loucura. Porque a Deus como quem tem diante de si um
e é esse um dos seus méritos. O outro verdade é qualquer coisa de formal: ser que o compreende; que lhe ouve
é usar de uma linguagem clara, suges- um acordo entre o que é e o que se as orações, que o chama quando ele se
tiva e pitoresca. Nessa linguagem, pensa; ou é então, num sentido onto- distrai demasiado a olhar a paisagem,
pode o homem do nosso tempo, con- lógico, qualquer dos seres ou dos que lhe faz promessas de extraordiná-
vencido de que a teologia é. ..chinês, factos que enchem o Universo. E rio encanto, que o ameaça com a per-
verificar facilmente que o Cristianismo como que se ia perdendo a certeza de da dos talentos se não os fizer render,
lhe propõe o real cumprimento daque- que há efectivamente uma excepção que ele sabe que está sempre pronto a
la norma evangélica: “Sede perfeitos àquela regra: há uma verdade que aturar-lhe as criancices e, até, a per-
como o vosso Pai Celeste é perfei- salva, precisamente porque se trata de doar-lhe os maiores crimes; e, sobre-
to.”[xxxiv] uma Verdade viva, com inteligência e tudo, que lhe dá um amor total e em
Trata-se, efectivamente, de sermos vontade e, para mais, com Carne e troca lhe pede um amor total. Viu-O
filhos de Deus. Para isso entra nas Sangue. Cristo é essa verdade. chorar com ele e alegrar-Se com ele. E
nossas almas a Graça divina; para isso Ora a Religião, para o ser, deve apre- percebeu que foi também à sua alma
contribui toda a nossa vida, se a inten- sentar aos homens uma Verdade sal- que foi feita a estranha promessa de
ção for pura e as acções perfeitas. vadora. E isso é privilégio do Cristia- casamento que o Antigo Testamento
Foi por se ter perdido na massa dos nismo. Demonstra-me o Cristianismo estava constantemente a renovar. (O
cristãos este sentido real da palavra da — pede o racionalista ao cristão. E a Cristianismo é, com efeito, uma espé-
Escritura “Sois deuses” [xxxv] - que o melhor resposta do cristão é certa- cie de Matrimónio; ou o Matrimónio
Cristianismo pareceu a alguns ser mais mente aquela que está implícita no uma espécie de Cristianismo...) Assim
um cadáver sobre a face da Terra. Em extraordinário livro de Chesterton — unida à Pessoa Divina, a pessoa
1936, Nicolau Berdiaev formulava esta Ortodoxia —: Aqui o tens. O Cristia- humana (ou melhor: o Homem) sen-
acusação dolorosa: nismo não se demonstra. Está nisso a te-se como o aventureiro no País da
“Deve-se acrescentar, desgraçadamen- sua grandeza. «Ecce Homo!»; “Ide e Autoridade, de que nos falou Chester-
te, que o período burguês da história contai o que vistes”. E – a história do ton: “O homem não pode esperar
cristã suscitou bem menos energia e que nós vimos — é certo que nada a quaisquer aventuras na terra da anar-
espírito de sacrifício que, hoje, o explica, mas ela explica tudo. Toda a quia, mas pode esperar toda a sorte de
Comunismo. É um longo período luz reflectida e refractada se vai expli- aventuras quando viaja no país da
desprovido de heroísmo, esse que a cando encadeadamente. Mas há um autoridade”. O cristão encontra-se,
sociedade cristã acaba de atravessar; momento em que atinge o Sol. Que efectivamente, sujeito a uma autorida-
um período de decadência, que prepa- outra luz o explica? — Ele é que de; e a uma autoridade divina. E o
rou os caminhos ao êxito do Comu- explica a luz… (A imagem é de Riviè- mais importante é que essa autoridade
nismo.” E ainda : “Sob a sua forma re). não se limita a ser divina: faz leis tam-
pior e mais ímpia, o Comunismo sur- O centro do Cristianismo é a Pessoa bém divinas. E o homem, que, procu-
ge como o termo fatal da evolução das divina de Jesus, na qual hipostatica- rando ser humano, constantemente se
sociedades chamadas «cristãs»; ele mente se reúnem as duas naturezas. sente fraco demais para si próprio
encarna o juízo severo que eles não Como pode o racionalista pretender (todos poderíamos dizer: “não sou
quiseram lançar sobre si mesmas mas que o cristão lhe demonstre uma pes- homem para mim...”), o homem, soli-
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citado, seduzido pela terra e a carne, basta sem o Verbo iluminador. Por- tomam na mão a lanterna de Diógenes
ao procurar as leis que a autoridade que: não se hasta sem Religião; as e percorrem os espaços à procura
terá feito para o ajudar a ser homem, únicas Religiões que lhe podem expli- dum Absoluto. O imanente em busca
soletra sem compreender: “Sois deu- car a aspiração ao Absoluto, o arre- do transcendente...
ses”; “Sede perfeitos como o Pai pendimento, todo o vínculo moral — Tanto assim é, que as correntes racio-
Celeste”. E um clarão de Eternidade são as transcendentes; as únicas ade- nalistas que floresceram no chamado
cega-lhe os olhos que queriam ver. quadas às suas qualidades sensíveis e Deísmo, à míngua de doutrina viva,
(Foi assim que aconteceu a Paulo, ao próprio sentido interior do seu humana, que almas entendessem, que
com a agravante de que ele não ia destino natural — são as imanentes; e, tivesse alguma coisa que ver com os
pedir a lei para ser melhor, mas perse- entre todas as Religiões, só o Cristia- homens — vieram a entronizar uma
guir os que procuravam sê-lo). Estra- nismo consegue, pela união hipostáti- mulher no Altar de Deus. O transcen-
nho significado, o do Cristianismo! ca das duas naturezas na Pessoa do dente em busca do imanente...
O Homem, num primeiro movimen- Verbo, conciliar, harmonizar e afinal Neste capítulo, creio bem que o vício
to, cai desiludido. Mas a essência do aperfeiçoar os dois princípios de do nosso tempo é o Imanentismo. “O
Cristianismo não é uma Ideia, é uma transcendência e de imanência que o Reino de Deus está dentro de vós” —
Pessoa. E, da pessoa, tudo se pode perfeito Humanismo deve conter. disse o Senhor. E Santo Agostinho,
esperar quanto esteja dentro duma “Achamo-nos colocados — escreve contando o drama da sua vida, repre-
harmonia fecunda. A Pessoa que está Von Hildehrand — num mundo que, senta-se a percorrer todas as estradas,
no centro do Cristianismo, depois de a cada passo, nos aponta mais para a bater a todas as portas, interrogar
ter dado a lei, olhou penetrantemente além dele. A solene majestade de um todos os sinais, e tendo dentro de si
para os olhos do homem, e disse-lhe: glorioso pôr do sol, tanto como a aquele Deus a quem buscava. Atrás da
“Eu sou o Caminho, a Verdade e a beleza moral dum acto de perdão ou palavra do Senhor e do exemplo do
Vida”; “Ninguém pode ir ao Pai senão dum amor puro e sem limites, falam- seu Bispo, formou-se afinal o cortejo
por Mim”; “Eu sou o Pão da nos claramente dum mundo diferente dos medíocres, dos que estão sempre
Vida”[xxxvii]. e superior, de que eles são o reflexo. à espera de uma ocasião para se insta-
Acreditar ou não acreditar nestas pala- Eles reflectem, de facto, uma luz que, larem comodamente no meio fofo dos
vras, e agir em conformidade — é o em si mesma, está mais para além dos seus próprios erros, com o ar de quem
problema cuja gravidade infinita faz o nossos olhos — luz que não é deste — graças a Deus! ... — encontrou
sentido trágico da vida. Para o que mundo, mas pela qual ele é ilumina- maneira de os justificar a todos. E o
acreditar, a solução está dada, embora do”. Aqui, o transcendente. imanentismo, próprio das épocas de
toda a vida neste mundo haja de ser, “Há horas de contemplação silenciosa decadência, é o fundo da heresia
em grande parte, " um perpétuo rea- — diz-nos Hessen — em que nos modernista, que Roma condenou[xl].
firmar e um perpétuo recomeçar. Que, sentimos mais perto da essência da “De todas as religiões horríveis —
para o descrente, a solução lógica não realidade e em que o mistério do seu exclamava Chesterton —, a mais hor-
é o afastamento e a indiferença, foi o profundo sentido se nos revela mais rível é a adoração do deus interior.
que Pascal, depois de outros, demons- claro do que no meio do tumultuar Bem sabemos quais são os resultados
trou no célebre argumento da Apos- das horas vulgares da existência. E dessa adoração. O facto de João dever
ta[xxxviii]. Bem sabemos que são então escutaremos aí uma voz que nos adorar a Deus que tem dentro de si
poucos os que seguem a conclusão diz: passou ultimamente a significar que
pragmática do filósofo. “sê e faze-te a ti mesmo o que tu és”; João deve adorar João».
Mas a Pessoa de Cristo é que nem por procura ser homem e realizar todas as Deus está, sem dúvida, dentro de nós:
isso deixa de iluminar “todo o aspirações generosas do bem e da primeiro, porque está em toda a parte
homem que vem a este mundo”. Ilu- virtude que se albergam no teu pei- como Criador, que mantém os seres
mina o descrente como luz a incidir to[xxxix] — Eis o imanente. na existência; segundo, porque nos fez
sobre os olhos de alguém adormecido: Mas é Schopenhauer que nos diz: “a “à sua imagem e semelhança”. Mas,
graça de Deus sempre à espera do bondade da alma é uma qualidade como Deus não se substitui à perso-
homem transviado. Mas ilumina-o Transcendente, e pertence a uma nalidade humana, a “voz da consciên-
também, segundo, ao menos, a inter- ordem de coisas mais para além desta cia” não é, directamente, a voz de
pretação de Santo Agostinho, na vida, que é incomensurável com todas Deus, mas sim a voz de Deus inter-
medida em que, como Verbo que as outras perfeições que nela encon- pretada por nós.
tudo criou, o faz participar na Inteli- tramos”. E, nestas palavras do filósofo Há muito a reformar, neste sentido,
gência de tudo o que foi criado. Mes- do pessimismo, podemos reconhecer inclusivamente em concepções literá-
mo não aceitando esta teoria, vemos a um esboço de síntese, que nos faz ver rias.
Luz verdadeira, que todas as outras como o imanente e o transcendente Por detrás do erro imanentista, o Cris-
exclui como falsas, dar aos cristãos devem entrelaçar-se no Humanismo. tianismo continua a sustentar o prin-
uma Teoria do Homem, ou seja um Tanto assim é, que as correntes filosó- cípio do imanente. Mas associa-o com
Humanismo, que em muito ultrapassa ficas, nascidas da concepção dos valo- o transcendente.
as outras concepções. Por isso se res, quando não culminam na visão Daí deriva a sua extraordinária fecun-
pode afirmar que o homem não se teológica própria do Cristianismo, didade pelo que diz respeito ao
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Humanismo. Porque nenhum huma- também um ideal que a inteligência ceu, como Chesterton dizia que tinha
nismo, como é evidente; pode dispen- procura. Logo: o Homem tende ao acontecido às verdades cristãs espa-
sar-se de encarar o destino do Absoluto; tem tendências de ordem lhadas pelo mundo…)
Homem, e também nenhum pode metafísica. Mas não se limita a isto a fecundidade
furtar-se a afirmar que o destino pri- E é este o lado transcendente do da Síntese cristã pelo que diz respeito
mário do Homem é realizar-se plena- Humanismo: porque o Homem só se ao Humanismo. Pode-se dizer que
mente como tal. (Até aqui, o imanen- realiza plenamente quando se ultra- qualquer outro Humanismo, que não
te). Mas intervêm agora duas ordens passa. seja cristão, ou mutila o Homem, ou
de factos: por um lado, a Sociedade Ora o Cristianismo, lançando-nos nega o que está para além dele. Efec-
embaraça o livre desenvolvimento do uma ponte pessoal entre o Absoluto e tivamente, tendo escolhido um Ideal
indivíduo, e este não poderá resultar o relativo, vem impedir o Humanismo para lhe dar aquilo a que Max Scheller
pessoa humana, antes que um critério de se precipitar num Trans- chamava “uma estima axiológica espe-
valorativo independente pronuncie Personalismo de tipo idolátrico, ou cial”, os humanistas têm uma preocu-
esta sentença que nada tem de espon- seja: em qualquer das inúmeras formas pação única, própria, aliás, de adora-
tâneo e fácil: “a Sociedade é menor do Paganismo. Dizia Chesterton que dor: sacrificar-Ihe tudo quanto seja
em dignidade que cada um dos seus mais valia ao homem adorar o Sol ou sacrificável. E acontece, ao cabo de
membros como sujeito de direitos e, um crocodilo, que adorar-se a si mes- pouco tempo, que o deus assenta
deveres eternos”. Podia-se dizer que mo. Mas logo acrescentava: “A única soberanamente sobre ruínas. Seja o
este juízo é que estava a inverter a objecção à religião natural é que, de Humanismo económico, ou Comu-
realidade; mas então, se o homem a qualquer forma, ela se torna sempre nismo. Dum golpe, aceitou como
realizar plenamente fosse a Sociedade, anti-natural. Um homem ama a Natu- dogma o Materialismo dialéctico,
que sentido teriam as aspirações de reza de manhã devido à sua pureza e hipótese vestida à pressa de lei… O
cada homem a libertar-se em parte do benignidade, e, ao cair da noite, devi- homem, embora dotado de vontade
vínculo social? E como se compreen- do à sua escuridão e crueldade. Ao livre, — submetido totalmente à lei
deria que só as consciências indivi- despertar da manhã, lava-se nas águas dialéctica da Matéria. A pessoa huma-
duais exprimissem a “consciência claras como o Homem Sábio dos na negada, em teoria, e, na prática,
colectiva”? estóicos, embora, ao escurecer, se vá aniquilada pelo mecanismo brutal da
Isto por um lado. Por outro lado, as banhar no sangue quente dum touro, luta de classes.
tendências do Homem não são apenas como fazia Juliano Apóstata”. Seja o Humanismo a que podemos
para se realizar: são para se ultrapas- No fundo, toda a questão está no chamar antropológico: o que importa
sar. “O Homem ultrapassa em muito seguinte: importa que o Trans- é que cada homem descubra, dentro
o homem” dizia Pascal. E ele sabia Personalismo não seja um Anti- de si e nos outros, todos os valores
disso profundamente… Aliás, todos o Personalismo. Ora o Trans- humanos. Para além de todas as dife-
temos experimentado, com mais ou Personalismo será anti-personalista, renças de condições, de opinião, de
menos intensidade. Com que direito o desde que aponte para um Deus que Pátria e de Credo, muitos criaram o
homem dirá ao Homem: “daqui não não tenha, em grau infinito, as perfei- mito de que existe um plano superior
passas”? Em nome de que princípio? ções que a pessoa humana há-de con- a todos esses, e que é bom abdicar
Como pode discernir-se o que trans- quistar. Quer dizer: o homem só pode cada um do que pensa, sacudir o pó
cende a natureza, daquilo que lhe é adorar dignamente um Deus pessoal. das sandálias, para entrar no grande
próprio, se se começa por negar o — Para que a Religião seja verdadei- Templo da Humanidade.
transcendente? Se nada há de trans- ramente um diálogo vivo, e não a É possível, natural e justo que os
cendente, qual o sentido (não digo já recitação das fórmulas de latria diante homens se sintam solidários por-de-
ontológico mas meramente psicológi- dum teorema ou em honra dum Céu cima das condições sociais, opiniões
co) das tendências a que se proíbe a estrelado. O teorema agrada à inteli- políticas e mesmo nacionalidades. Mas
realização? E por que se proíbem, se gência, abre-lhe talvez horizontes já não é natural nem justo considerar
não porque se consideram transcen- largos, encanta-a porque vai ao encon- mais forte que a Fé e a Caridade o
dentes ao homem? tro da sua tendência para o abstracto e simples laço de filantropia. O Huma-
Mas terá o homem, em boa verdade, o genérico; o Céu estrelado agrada à nismo Cristão reconhece esse laço
esses anseios de ordem metafísica, vista e faz a imaginação compor mun- natural e, como a tudo em que toca,
para além do império dos fenómenos dos de maravilha. Mas nem o teorema eleva-o a um sentido superior de fra-
ou das coisas relativas? — A prova nem o Firmamento podem amar o ternidade. Só o que não se pode, den-
mais palpável de que tem é que fala de Homem que os adore. E, se adorar é tro do Humanismo cristão, é inverter
coisas relativas... Trata-se dum pen- amar em extremo, é eminentemente a ordem das coisas, atribuindo à filan-
samento bipolar. Não se quer provar digno do Homem dar um extremo tropia o papel de princípio hierárquico
aqui que o absoluto existe, mas sim amor a um Deus que o ame. (Creio integrador. Semelhante reconhecimen-
que o Homem pensa nele, o que quer ser este o problema fulcral para o to é impossível no Humanismo antro-
dizer que o tem por objecto da sua homem contemporâneo: saber a quem pológico, uma vez que, nele, o princi-
inteligência. E, já que o Absoluto não deve dar o seu amor. Porque o cora- pal lugar pertence à solidariedade
lhe entra pelos sentidos, esse objecto é ção do homem moderno enlouque- natural entre os homens, e é impossí-
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vel conceber o transcendente que o Está há muito definida a solução do Igreja”.
Cristianismo encerra, incluído num problema religioso, e isso por dois Não é isolada essa voz. Antero de
Humanismo imanentista. motivos: em primeiro lugar, porque o Quental, numa das suas admiráveis
Na realidade, só o Humanismo cristão religioso, quando transcendente, é por cartas, afirmava, corrigindo Renan,
é verdadeiramente hierárquico, ou si mesmo imutável; em segundo lugar, que não era o sábio mas o santo quem
seja: só ele integra numa harmonia porque foi fundada uma Sociedade caminhava “à frente da procissão da
todos os elementos dos vários planos perfeita, com uma Hierarquia perfeita, Humanidade”.
do Homem. Colocando a suprema para renovar, na História, a perfeita Não sejamos injustos para com o
sede de valores no Deus criador e solução daquele. nosso tempo, que de algum modo tem
autónomo, seria estultícia negar ou Ao contrário, o problema político renovado, em milhares de mártires, a
reduzir a ruína uma parte da Criação. (note-se que este termo é aqui tomado tradição primitiva. Mas os homens
Toda a obra de Deus tem o selo de numa acepção muito lata) e o proble- continuam a exigir Santos, como
Deus e, por si mesma, não tem pro- ma económico não têm uma solução quem quer exemplos e expiadores
porção com o Absoluto. Nas outras da qual se possa dizer: “é isto o que para que o mundo se purifique.
concepções, como que se temem os quer o Humanismo cristão”. Isto, …”Veio para o Mundo e o Mundo,
ciúmes do Valor supremo… Aqui, pelas razões inversas das anteriores: embora houvesse sido criado por Ele,
não há sombra de motivo para este falta-lhes a imutabilidade e falta-lhes a não O conheceu”.
receio caricato. Hierarquia. Aquele que fundou uma É de algum modo misterioso o senti-
Que o homem actual, que tanto fala Hierarquia Eclesiástica não fundou do desta palavra no Novo Testamen-
dos seus problemas e tanto apregoa o uma Hierarquia política nem uma to. Este Mundo que foi criado por
seu Humanismo, se convença de que Hierarquia económica. Pertence aos Deus será o mesmo do qual disse
só há um Humanismo perfeito: aquele homens a solução destes problemas Jesus que não era por ele que rogava
que, recebendo de toda a parte a naturais. — Mas tendo diante dos ao Pai? De que nos fala S. João? Do
matéria, do Cristianismo recebe a olhos as palavras de S. Paulo: “Todo o mundo material, berço do homem?
forma. Poder vem de Deus”; e respeitando Do mundo pelo qual nem vale a pena
E o Humanismo cristão, contendo sempre a regra essencial, a lei orgânica pedir? Do mundo formado pelos
todos os problemas, que soluções lhes do Humanismo cristão: que nenhum homens em sociedade? — Não se vai
dá? Neste ponto, é necessário que o valor político, que nenhum valor eco- entrar aqui no problema, embora a
homem moderno, que odeia as distin- nómico — vá ferir um valor religioso. última pareça a melhor hipótese. O
ções escolásticas, consinta em distin- Creio que é isto o que se contém nes- que importa é ter em vista a existência
guir... O Humanismo cristão, como tas passagens da Quadragesimo Anno: de um mundo sem remissão, a viver
bom Humanismo que é, encerra os “Por sua parte a lei moral manda-nos connosco.
três problemas fundamentais do perseguir tanto o fim supremo e últi- A liturgia do Baptismo fala-nos de
homem; o problema religioso (no qual mo em todo o exercício da nossa acti- Satanás e das suas pompas. Pompas,
o Homem se relaciona com Deus), o vidade, como, nos diferentes domí- não as tem ele no abismo. Mas há
problema político (que enlaça os nios por onde ela se reparte, os fins qualquer coisa... há muitas coisas jun-
homens entre si) e o problema eco- particulares impostos pela natureza, to de nós que são como que o manto
nómico (o Homem e a Terra). Ora o ou, melhor, por Deus, autor da mes- luminoso que Lúcifer perdeu ao pre-
Humanismo cristão, por mais que o ma, subordinando sempre estes fins cipitar-se no Inferno. Quantas vezes
adjectivo pareça reduzi-Ilo ao puro àquele, como pede a boa ordem. Se sentimos a presença invisível de uma
âmbito do problema religioso, fez-se seguirmos fielmente esta regra, suce- espécie de luz tenebrosa, luz geradora
para resolver os três problemas. E as derá que os fins particulares da eco- de trevas pela sua oposição à Luz! É o
soluções serão necessariamente har- nomia, individuais ou sociais, se inse- esplendor fugitivo das potências angé-
monizáveis umas com as outras. O rirão facilmente na ordem geral dos licas saídas da Hierarquia Celeste; esse
que vale dizer que a solução cristã do fins, e nós subindo por eles, como por esplendor de que Cristo disse não
problema religioso há-de ser o padrão uma escada, chegaremos ao fim últi- esperássemos ver revestido o Reino de
em frente do qual, como dum juiz mo de todos os seres, que é Deus”. Deus que vem ao encontro de
incorrupto, hão-de passar as soluções Só assim, efectivamente, será possível nós[xli].
dadas aos outros problemas. Não que que o mundo se povoe de Santos Mas, em contra-partida, S. João acaba
os princípios religiosos vão definir segundo aquele modelo que reclamava o seu Prólogo, falando-nos de uma
atitudes ou posições económicas. Os Rademacher: “tipo de homem que espécie de apoteose do Filho de Deus:
planos são distintos. Mas a pedra-de- saiba reunir e harmonizar em si todos “Nós vimos a Sua Glória, glória pró-
toque do Humanismo é a harmonia os diferentes lados nobres do ser pria do Filho Unigénito do Pai, cheio
hierárquica. Quer dizer: nenhum humano, mas conservando-lhes a sua de Graça e de Verdade”.
valor-político pode contrariar, dentro respectiva altura em dignidade e Este é o esplendor sagrado que reves-
do Humanismo cristão, um valor- sabendo conciliar tudo isso com uma te todo o Poder Sagrado, mostrando
religioso. E o mesmo se diga do eco- crença religiosa viva, um forte amor às almas a luz que elas não podem,
nómico em face do religioso e do de Deus e um espontâneo e feliz espí- ainda, encarar de frente.
político. rito de integração dentro da vida da Participando do Poder Sagrado, parti-
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cipemos no esplendor litúrgico da Bono dos U2 faz fortes afirmações muitos maus lençóis se o Karma fos-
Igreja, para que assim possamos entrar sobre Cristo se, em última análise, o meu juíz...
em contacto quase sensível com a In: EWTNews Não elimina os meus erros, mas eu
3-Aug-2005 -- N
grande Realidade que o Cristianismo NEW YORK, USA, 3 de Agosto conto com a Graça. Conto com o
oferece no seu centro; para que viva- (CNA) – Durante anos, a natureza facto de que Jesus carregou os meus
mos o diálogo entre Pessoas que é a exacta das convicções religiosas de pecados na Cruz, porque eu sei quem
nossa Religião; para que aprendamos Bono, leader e autor das letras da sou, e espero não ter que depender da
todas as verdades e vejamos todas as banda U2, escaparam aos fãs e peritos minha própria religiosidade”.
obras do Senhor; para que possamos musicais. Mas agora, numa entrevista Mais tarde na entrevista, o músico
“dar testemunho da Luz”. publicada no novo livro Conversa parece referir uma página de C. S.
O Homem moderno precisa do nosso com Bono de Michka Assayas, o Lewis, o famoso autor e teólogo bri-
testemunho. superstar irlandês faz afirmações for- tânico que escreveu o famoso discurso
----------------------------------------------- tes sobre Cristo, a graça e a natureza “Cristo, mentiroso ou lunático”.
[i] Tomei por base, em lugar de um esquema logica- “Olhe, a resposta secular à história de
mente desenrolado, um texto que a Liturgia diaria- da salvação.
mente propõe aos fiéis: texto que encerra a essência Apesar de professar ser cristão, e ape- Cristo é sempre assim: Ele era um
do Cristianismo, a relação deste com o Homem de
sar de muitas das letras das suas can- grande profeta, obviamente um tipo
sempre e o sentido dramático do Tempo; texto que muito interessante, disse muitas coisas
nos aponta, em palavras incisivas, o dever que nesta ções o reflectirem, muitos dizem que
hora temos como cristãos. Refiro-me ao Prólogo do algumas das suas acções do tipo “rock na linha de outros grandes profetas,
Quarto Evangelho.
star” e várias afirmações contradizem como Elias, Maomé, Buda ou Confú-
[ii] Cfr. Miranda Barbosa, A Organização Hierárqui-
ca da Sociedade Cristã. isto cio”.
[iii] A la Trace de Dieu, pág. 42. A entrevista, porém, introduz alguma “Mas realmente Cristo não permite
[iv] Ibid. pág. 43. isso. Ele não permite ser descartado
[v] De Deus e do Homem, texto ed. pelo Pe. Diniz luz na fé do músico que cresceu ven-
da Luz na Livr. Bertrand; págs. 192-3. do em primeira mão a batalha san- dessa maneira”.
[vi] Nicolau Berdiaev, Problème du Communisme,
grenta entre Católicos e Protestantes Bono continua, “ Cristo diz, não, Eu
pág. 24 não estou a dizer que sou um mestre,
[vii] S. Marcos, I, 3; S. Lucas, III, 4. que assolou a Irlanda do Norte duran-
[viii] Quadragesimo Anno, In A Igreja e a Questão te anos. Bono cresceu em Dublin com não me chamem mestre. Eu não estou
Social (U. Gráfica ), pág. 127 da 2ª ed.
uma mãe protestante e um pai católi- a dizer que sou um profeta, não me
[ix] Cf. Rerum Novarum, ib., pág. 59 id.
[x] S. Paulo, Aos Efésios VI, 5. co. chamem profeta. Eu estou a dizer ‘Eu
[xi] Cf., p. ex., Fliche-Martin, Histoire Générale de Talvez por cauda disto, Assayas per- sou o Messias’, Eu estou a dizer “Eu
l’Église, t. 2º. pág. 417 e t. 3º, pág. 235. sou Deus incarnado’. Por isso, aquilo
[xii] S. Mateus, XXVIII, 19; S. Marcos, XVI, 15; cf. gunta a Bono se ele pensa que “coisas
S. Lucas, XXIV, 47 e 48, e S. João, XX, 21; S. João, horríveis” acontecem quando as pes- com que você fica é que ou Cristo é
XXI, 15 e 16; S. João, XX,23; S. Lucas, XXII, 19.
soas se tornam religiosas. O cantor quem Ele diz que é – o Messias – ou
[xiii] Cfr. S. João, I, 41 e XX, 16. então é um completo maluco....
[xiv] S. Mateus, XXI, 27 responde mostrando como uma pro-
[xv] S. Mateus, XVI, 23. funda relação pessoal com a fé cristã A ideia que o curso da civilização para
[xvi] Cfr. Miranda Barbosa, op. cit., pág. 117.
chama os crentes para Deus, em vez metade do globo possa ter tido seu
[xvii] Cfr. De Hierarchia Eclesiastica, sobretudo o
Cap. I. de incutir os extremismos violentos destino mudado e revirado por um
[xviii] S. Mateus, cap. XXIII, 18. que o entrevistador parece implicar. maluco, para mim está totalmente fora
[xix] S. Lucas, X, 3; cfr. S. Mateus, X, 16 de causa.”
[xx] S. Mateus, X, 16. Num ponto chave da entrevista, Bono
[xxi] S. Lucas, VII. 22. fala da diferença entre Karma e Graça, Recentemente, logo após a morte do
[xxii] Paul Bourget, Sociologie et Littérature, pág.
uma diferença que ele diz ser “um Papa João Paulo II, o cantor pendu-
364. rou o rosário que usa à volta do pes-
[xxiii] S. Lucas, loc. cit. conceito de rebentar a cabeça... que
[xxiv] S. Marcos, XIV, 62; cfr. S. Lucas, XXII, 70 me faz ajoelhar.” coço – um presente do falecido Papa -
[xxv] Op. cit., pág. 40.
“No centro de todas as religiões” diz no seu microfone durante um concer-
[xxvi] S. Paulo, Aos Corintios.
[xxvii] S. Mateus, V, 16. Bono ao seu céptico entrevistador, to, um tributo silencioso ao grande
[xxviii] Aos Romanos, 2-3; cit. por S. S. Pio XII num “está a ideia de Karma. Você sabe, o Papa.
discurso inserto in «Novidades», de 6-2-1947.
[xxix] Aos Romanos, IV, 1. que você faz volta para si: um olho
[xxx] In J. Hessen, Wertphilosophie, trad. port. – por um olho, um dente por um dente, Confissões
Filosofia dos Valores -por Cabral de Moncada, pág. João César das Neves
298.
ou na Física – nas leis da Física – toda In: DN 040906

[xxxi] S. João, XVII. a acção é confrontada com uma reac- Foi editado há pouco em França um
[xxxii] Cf. Aos Romanos, VI; Aos Colonossenses, II ção equivalente e oposta”. dos mais interpelantes momentos
e III.
[xxxiii] Lewis; trad. port. nas Ed. GAMA, Lisboa. “E contudo” diz Bono “aparece esta culturais recentes: a leitura que Gérard
[xxxiv] Mateus, V, 48. ideia chamada Graça que confunde Depardieu fez de trechos das Confis-
[xxxv] Mateus, V, 48. tudo isto.... O amor interrompe, se sões de Santo Agostinho, comentados
[xxxvi] Cit. por Leonel Franca, S. J., A psicologia da
Fé, ed. Pro Domo, Lisboa, 1945, pág. 65. quiser, as consequências das nossas pelo filósofo e hermeneuta André
[xxxvii] S. João, XIV, 6; Vi, 35 e 48. acções, o que no meu caso, é uma Mandouze (Approche et lectures de
[xxxviii] De Deus e do homem, págs. 167.175.
[xxxix] Op. cit., pág. 240.
muito boa notícia na verdade, porque Saint Augustin em livro na Desclée de
[xl] S. S. Pio X, Encíclica Pascendi. eu fiz muitas coisas estúpidas”. Brouwer e em vídeo secam na
[xli] S. Lucas, XVII, 20. Não querendo divulgar as “coisas” em CFRT/France 2).
questão, Bono admite “Eu estaria em O interesse do espectáculo é grande a
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vários títulos. Naturalmente que ver O seu interesse candente vem, não Israel tinham anunciado um Rei que
um dos maiores actores da actualidade dos actos e reflexões de um romano estaria em íntima harmonia com Deus
meditar sobre um clássico é algo que do século IV, mas das questões finais e que, em seu nome e da sua parte,
traz sempre grande notoriedade. que cada um de nós coloca no seu restabeleceria a ordem no mundo.
Depardieu fez questão de afirmar (por íntimo. As perguntas vitais e definiti- Tinham-se posto a caminho para
exemplo na entrevista que serve de vas, dúvidas flagrantes ou intuídas, encontrar este Rei; no mais profundo
introdução à cassete e que conta a que torturam ou nem chegam a ser do seu ser buscavam o direito, a justi-
interessante história desta iniciativa) formuladas, mas que ao ler são reco- ça que devia vir de Deus e queriam
que estes textos traduzem muito da nhecidas como certeiramente verda- servir esse Rei, prostrarem-se a seus
sua própria busca e evolução espiri- deiras e se vêem respondidas com pés e assim servir também eles à reno-
tual, que assim se revela aos fãs. uma argúcia e profundidade excelsa- vação do mundo. Eram dessas pes-
Além disso, as sessões públicas foram mente iluminantes. As Confissões não soas que «tem fome e sede de justiça»
muito escassas e por isso muito dispu- são a oração do romano Aurelius (Mt 5, 6). Uma fome e sede que os
tadas. Esta gravação, na catedral de Augustinus. São a minha. Nos últimos levou a empreenderem o caminho;
Estrasburgo a 6 de Dezembro de 1600 anos ninguém pode dizer que fizeram-se peregrinos para alcançar a
2003, é um de apenas quatro espectá- enfrentou seriamente a questão decisi- justiça que esperavam de Deus e para
culos apresentados durante o ano va da sua vida sem ter lido este livro. se porem ao seu serviço.
passado. A maravilha e interpelação que Ainda que outros tenham ficado em
Para além da relevância noticiosa, da Depardieu sentiu ao lê-lo são as mes- casa e os considerassem utópicos e
beleza estética e da profundidade mas que milhões sentiram ao longo sonhadores, na realidade, eram seres
emocional, o principal interesse do dos séculos, mas a que poucos se com os pés na terra e sabiam que para
acontecimento é de nos relembrar atreveram nas últimas décadas. Possa mudar o mundo falta dispor de poder.
essa obra única da literatura mundial este testemunho sincero de uma das Por isso, não podiam procurar o
que são as Confissões do grande personalidades mais mediáticas da menino da promessa senão no palácio
Agostinho. Isto é tanto mais oportuno actualidade ajudar a introduzir a nossa do Rei. Agora, porém, prostram-se
quanto Portugal tem desde há poucos geração a essa experiência espiritual diante de uma criatura de gente pobre,
anos, finalmente, uma excelente edi- única. e rapidamente se aperceberam que
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ção bilingue da obra, da responsabili- Herodes – o Rei com quem tinham
dade do Centro de Literatura e Cultu- falado – pretendia persegui-lo, de
ra Portuguesa e Brasileira da Universi- Esta não é uma história distante, modo que à família não restava outra
dade Católica e da Imprensa Nacio- de tempos passados. É uma pre- opção do que a fuga e o exílio. O
nal-Casa da Moeda (Lisboa 2000). sença. novo Rei era muito diferente do que
É um livro sublime, único, impossível In: Discurso do Papa Bento XVI na Vigília com os jovens, Ecclesia, esperavam. Deviam, pois, aprender
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de classificar. Uma história apaixonan- Queridos jovens: que Deus é diferente de como costu-
te de uma juventude turbulenta e Na nossa peregrinação com os miste- mamos imaginá-lo. Aqui começou o
aventurosa. Mas não é esse o seu prin- riosos Magos do Oriente chegamos ao seu caminho interior. Começou no
cipal interesse. Um inquérito rigoroso momento que S. Mateus descreve mesmo momento em que se prostra-
e envolvente das maiores escolas filo- assim no seu Evangelho: «Entraram ram diante deste Menino e o reconhe-
sóficas. Mas não está aí o seu valor na casa (sobre a qual tinha parado a ceram como o Rei prometido. Mas
superior. Estes elementos chegariam estrela), viram o menino com Maria, deviam ainda interiorizar estes gozo-
para fazer dele um texto memorável, sua Mãe, e prostrando-se diante d’Ele, sos gestos.
apesar de séculos de mal-entendidos, adoraram-no» (Mt 2, 11). O caminho Deviam mudar a sua ideia sobre o
que neste espectáculo são minorados exterior daqueles homens terminou. poder, sobre Deus e sobre o homem
pelos comentários lúcidos de Man- Chegaram à meta. Mas neste ponto e, com isso, mudar também eles pró-
douze, importante especialista do começa um novo caminho para eles, prios. Agora tinham visto: o poder de
texto agostiniano. uma peregrinação interior que muda Deus é diferente do poder dos gran-
Não se trata de memórias ou biogra- toda a sua vida. Porque certamente des do mundo. Seu modo de agir é
fia, não é um livro de devoção mística tinham imaginado este Rei recém- diferente de como imaginamos e de
ou reflexão filosófica. É tudo isto nascido de modo diferente. Pararam como o quiséramos impor também a
num grau supremo mas, sobretudo, precisamente em Jerusalém para obter Ele. Neste mundo, Deus não faz con-
trata-se de um relato na primeira pes- do Rei local informação sobre o Rei corrência às formas terrenas do poder.
soa da busca mais central e decisiva do prometido que tinha acabado de nas- Não contrapõe os seus exércitos a
ser humano: a procura do sentido da cer. Sabiam que o mundo estava outros exércitos. Quando Jesus estava
existência. Uma busca empreendida desordenado e, por isso, estavam no Horto das Oliveiras, Deus não lhe
por alguém que possui em altíssimo inquietos. Estavam convencidos de envia doze legiões de anjos para o
grau as qualidades indispensáveis: uma que Deus existia e que era um Deus ajudar (cf. Mt 26, 53). Ao poder estri-
honestidade incorruptível, uma pers- justo e bondoso. Talvez tivessem dente e pomposo deste mundo, Ele
picácia incomparável, uma elegância ouvido falar também das grandes contrapõe o poder desarmado do
expressiva inigualável. profecias nas quais os profetas de amor, que na Cruz – e depois sempre
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na história – sucumbe e, contudo, a Deus que está próximo de nós, seres nada de Deus, mas tomar totalmente
constitui a nova realidade divina, que humanos e que nos indica o caminho. nas próprias mãos a causa do mundo
se opõe à injustiça e instaura o Reino É a multidão dos santos – conhecidos para transformar as suas condições. E
de Deus. Deus é diferente; agora aper- ou desconhecidos – mediante os quais vimos que, deste modo, um ponto de
cebem-se disso. E isso significa que o Senhor nos abriu ao longo da histó- vista humano e parcial se tornou o
agora eles próprios têm que ser dife- ria o Evangelho, folheando as suas critério absoluto de orientação. A
rentes, têm que aprender o estilo de páginas; e continua a fazê-lo ainda. absolutização do que não é absoluto,
Deus. Nas suas vidas revela-se a riqueza do mas relativo, chama-se totalitarismo.
Tinham vindo para se colocarem ao Evangelho como num grande livro Não liberta o homem, mas priva-o da
serviço deste Rei, para modelar a sua ilustrado. São a estrela luminosa que sua dignidade e escraviza-o. Não são
majestade sobre a de Deus. Este era o Deus tem deixado no percurso da as ideologias que salvam o mundo,
sentido de seu gesto de reverência, de história e continua a deixar ainda. Meu mas somente dirigir o olhar ao Deus
sua adoração. Uma adoração que venerado predecessor, o Papa João vivo, que é nosso criador, a garantia
compreendia também os seus presen- Paulo II, beatificou e canonizou um da nossa liberdade, a garantia do que é
tes – ouro, incenso e mirra –, dons grande número de pessoas, tanto de realmente bom e autêntico. A verda-
que se faziam a um Rei considerado tempos recentes como distantes. Nes- deira revolução consiste unicamente
divino. A adoração tem um conteúdo tas figuras quis demonstrar-nos como em olhar para Deus, que é a medida
e comporta também uma doação. As se consegue ser cristão; como se con- do que é justo e, ao mesmo tempo, é
personagens que vinham do Oriente, segue levar uma vida do modo justo: a o amor eterno. E, o que pode nos
com o gesto de adoração, queriam viver à maneira de Deus. Os beatos e salvar senão o amor?
reconhecer este menino como seu Rei os santos foram pessoas que não pro- Queridos amigos, permiti-me que
e pôr ao seu serviço o próprio poder e curaram obstinadamente a própria acrescente só duas breves ideias. Mui-
as próprias possibilidades, seguindo felicidade, mas quiseram simplesmen- tos falam de Deus; em nome de Deus
um caminho justo. Servindo-o e te entregar-se, porque foram alcança- prega-se também o ódio e pratica-se a
seguindo-o, queriam servir com Ele a dos pela luz de Cristo. Deste modo, violência. Portanto, é importante des-
causa da justiça e do bem no mundo. eles indicam-nos o caminho para ser cobrir o verdadeiro rosto de Deus. Os
Nisto tinham razão. Mas agora apren- felizes e mostram-nos como se conse- Magos do Oriente encontraram-no
dem que isto não se pode fazer sim- gue ser pessoas verdadeiramente hu- quando se prostraram diante do meni-
plesmente através de ordens lançadas manas. Nas vicissitudes da história, no de Belém. «Quem me viu, viu o
do alto de um trono. Aprendem que foram os verdadeiros reformadores Pai», disse Jesus a Filipe (Jo 14,9). Em
devem entregar-se a si mesmos: um que tantas vezes retiraram a humani- Jesus Cristo, que por nós permitiu que
dom menor que este é pouco para este dade dos vales obscuros nos quais está o seu coração fosse trespassado, mani-
Rei. Aprendem que a sua vida deve sempre em perigo de se precipitar; festou-se o verdadeiro rosto de Deus.
acomodar-se a este modo divino de iluminaram-na sempre de novo, o Segui-lo-emos junto com a multidão
exercer o poder, a este modo de ser suficiente para dar a possibilidade de dos que nos precederam. Então ire-
do próprio Deus. Hão-de converter-se aceitar – talvez na dor – a palavra de mos pelo caminho certo.
em homens da verdade, do direito, da Deus ao concluir a obra da criação: «E Isto significa que não construímos um
bondade, do perdão, da misericórdia. era muito bom». Basta pensar em Deus particular, um Jesus particular,
Já não perguntarão: para que me serve figuras como S. Bento, S. Francisco de mas que cremos e nos prostramos
isto? Perguntarão antes: como posso Assis, S. Teresa de Ávila, S. Inácio de diante do Jesus que nos mostram as
servir para que Deus esteja presente Loyola, S. Carlos Borromeu, os fun- Sagradas Escrituras e que na grande
no mundo? Têm que aprender a per- dadores das ordens religiosas do sécu- comunidade de fiéis chamada Igreja se
derem-se a si mesmos e, precisamente lo XVIII, que animaram e orientaram manifesta vivo, sempre connosco e ao
assim, a encontrarem-se a si mesmos. o movimento social ou os santos do mesmo tempo sempre diante de nós.
Saindo de Jerusalém, permanecerão nosso tempo: Maximiliano Kolbe, Pode-se criticar muito a Igreja. Sabe-
seguindo as pegadas do verdadeiro Edith Stein, Madre Teresa, Padre Pio. mos, e o próprio Senhor nos disse: é
Rei, no seguimento de Jesus. Contemplando estas figuras com- uma rede com peixes bons e maus,
Queridos amigos, podemos perguntar- preendemos o que significa «adorar» e um campo com trigo e joio. O Papa
nos o que tudo isto significa para nós. o que quer dizer viver à medida do João Paulo II, que nos mostrou o
Pois o que acabamos de dizer sobre a Menino de Belém, à medida de Jesus verdadeiro rosto da Igreja nos nume-
natureza diferente de Deus, que há-de Cristo e do próprio Deus. rosos santos que proclamou, também
orientar as nossas vidas, soa bem, mas Os santos, dizíamos, são os verdadei- pediu perdão pelo mal causado no
fica um pouco vago e confuso. Por ros reformadores. Agora queria decorrer da história pelas palavras ou
isso, Deus deu-nos exemplos. Os exprimir de maneira ainda mais radi- os actos de homens da Igreja. Deste
Magos que vêm do Oriente são só os cal; só dos santos, só de Deus, pro- modo, também a nós nos fez ver a
primeiros de uma longa lista de vém a verdadeira revolução, a mudan- nossa verdadeira imagem, e nos exor-
homens e mulheres que na sua vida ça decisiva do mundo. No século tou a entrar, com todos os nossos
buscaram constantemente com os passado vivemos revoluções cujo defeitos e debilidades, na multidão dos
olhos a estrela de Deus, que buscaram programa comum foi não esperar santos que se começou a formar com
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os Magos do Oriente. No fundo, con- isentar o anterior Papa de uma parte a escolha seja a melhor. A obediência
sola que exista o joio na Igreja. Assim, substancial da responsabilidade no na Igreja nunca pode ser cega nem
não obstante todos nossos defeitos, alegado "retrocesso" em termos de acrítica.
podemos esperar estar ainda entre os doutrina e moral. À luz desse discernimento humano,
que seguem a Jesus, que chamou pre- A figura de "pastor-alemão", com cedo se ouviram as vozes dos que
cisamente os pecadores. A Igreja é toda a carga mais ou menos pejorativa diziam que Bento XVI era, como o
como uma família humana, mas é associada, servia-lhe, seguindo os seu antecessor, um homem de supe-
também, ao mesmo tempo, a grande vários critérios mediáticos, como uma rior inteligência e, tal como ele, um
família de Deus, mediante a qual Ele luva. No seu currículo ressaltava o homem de uma inquebrantável fé.
estabeleceu um espaço de comunhão cargo de prefeito para a doutrina da Capaz de debater a sua própria reli-
e unidade em todos os continentes, fé, que é como quem diz, o zelador gião com ousada abertura mas sem
culturas e nações. Por isso, nos ale- máximo da ortodoxia ou uma espécie subserviências intelectuais. Sobretudo,
gramos por pertencer a esta grande de "inquisidor" dos tempos moder- alertavam para o facto de o novo Papa
família; de ter irmãos e amigos em nos. Numa lógica humana, a figura de ser um "grande crente".
todo o mundo. Exactamente aqui, em número dois seria afastada com um Os últimos três dias foram o primeiro
Colónia, experimentamos a beleza de pragmático voto de louvor pelos bons grande teste. E, até os mais críticos
pertencer a uma família tão grande serviços prestados. começam a baixar a guarda perante
como o mundo, que compreende o A assembleia-geral passaria depois à uma apoteótica consagração pela ju-
céu e a terra, o passado, o presente e o busca da renovação da liderança, ventude. João Paulo II convocara os
futuro de todas as partes da terra. maximizando o potencial dos candida- jovens para Colónia e ao novo papa
Nesta grande comitiva de peregrinos, tos provenientes das zonas "em ex- restava o desafio de confirmar o con-
caminhamos juntos com Cristo, cami- pansão", capazes de desencadear vite ou optar pela desmobilização.
nhamos com a estrela que ilumina a estratégias conducentes a atrair cada Confirmou-o. Colónia viveu a grande
história. vez "mais clientes", capitalizando uma jornada de dois papas.
«Entraram na casa, viram o menino nova onda de simpatia mediática. A mais difícil. No coração da velha
com Maria, sua Mãe, e prostrando-se Surgiriam, então, os nomes dos car- Europa descristianizada, gélida e triste.
diante d’Ele, adoraram-no» (Mt 2, 11). deais africanos, da América Latina ou Ali, exactamente, no seio da Comuni-
Queridos amigos, esta não é uma asiáticos (para apanhar o ar dos tem- dade Católica mais "crítica" e dividida.
história distante, de tempos passados. pos das novas lideranças mundiais). Os que, como eu, viveram nos países
É uma presença. Aqui, na Hóstia con- Nem os católicos conseguiam fugir a do norte sabem bem o que isso signi-
sagrada. Ele está diante de nós e entre este tipo de análise "politica" na fase fica de desafio. Ali, até o abraço da
nós. Como então, oculta-se misterio- pré-conciliar. Paz se transforma num distante aperto
samente num santo silêncio e, como Não foi assim. Porque não é assim. de mão, numa respeitosa inclinação de
então, desvela precisamente assim o Mas se dúvidas existissem... aí estava a cabeça. É difícil entrar no coração dos
verdadeiro rosto de Deus. Por nós se confirmação! Imagino que para um nórdicos com o calor do sul. Os ale-
fez grão de trigo que cai na terra e não crente deve ser difícil aceitar a mães não são como os polacos. A
morre e dá fruto até o final do mundo participação do Espírito Santo. Sobre- simples noção de festa, tal como a
(cf. Jo 12, 24). Ele está presente, como tudo, tendo em conta a história da encaramos com naturalidade, parece-
então em Belém. E convida-nos a essa Igreja recheada de uma extensa e infe- lhes sinónimo de um desajustado
peregrinação interior que se chama liz sucessão de "erros" na escolha destempero. Não há comparação com
adoração. Ponhamo-nos agora a cami- papal. É difícil perceber que essa ins- a América ou com a vivência multicul-
nho para esta peregrinação do espírito piração divina não se sobrepõe à liber- tural de Paris. Colónia é Alemanha
e peçamos-Lhe que nos guie. Amén. dade individual dos cardeais eleitores. pura...
É, no entanto, essa a mais absoluta Afinal a festa foi tão grande que os
O fogo de Colónia prova da divindade de Deus. Nenhum jornais a compararam às digressões
Graça Franco
In:Público, 050822
de nós se "fosse Deus" admitiria uma dos Beatles e ao Woodstock. O que
Se a Igreja fosse uma multinacional, e Criação livre, com aquele chorrilho de não se perguntaram, os analistas que
a eleição papal correspondesse à esco- asneiras bem à vista no mundo actual, assim se precipitaram a explicar o
lha de um novo Chairman, Bento XVI resultante de múltiplas escolhas erra- fenómeno do ponto de vista socioló-
nunca teria sido Papa. Segundo os das. Nunca arriscaríamos o escrutínio gico, foi o porquê deste "ídolo" não
critérios de gestão puramente huma- livre das pobres criaturas. Haviam de corresponder ao ideal de identificação
nos ele seria provavelmente o último ser obrigadas a adorar-nos. Ponto dos próprios jovens. Bento XVI só
da lista dos candidatos à sucessão de final. canta na missa. Ninguém dorme a
João Paulo II. As suas intervenções, O Espírito Santo não decide "em vez sonhar que se fosse ele passeava de
enquanto braço-direito do anterior de...", e ao inspirar a escolha torna-se descapotável, ganharia milhões, e teria
pontífice, correspondiam à face mais dependente da rectidão de intenção todas as pequenas aos seus pés. Neste
"antipática" de um pontificado absolu- dos que participam na reunião. Eles festival não são as drogas, o sexo fácil,
tamente excepcional e podiam até ser são co-responsáveis. Deus conta com e os rios de cerveja a principal atrac-
vistas como tendo contribuído para o seu discernimento humano para que ção. Aqueles jovens estão ali para
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rezar. Passam noites a rezar pela Paz. ajudado a recuperar o sentido de festa pior ainda se a regra é tonta e arbitrá-
Dirão alguns que isso é apenas uma que é inerente à própria fé. Um mil- ria.
nova "liturgia" das velhas manifs pró- hão estava em Colónia. Muitos outros Nas questões religiosas é onde, nor-
Love... Erro fatal. milhões ficaram por aí. A Igreja pode malmente, o moralismo surge com
Oitocentos mil ou um milhão (mais continuar a ser merecidamente critica- maior intensidade. Cristo denunciou
do dobro dos inicialmente previstos...) da, mas é com inexplicável orgulho com clareza esse terrível defeito,
vieram de duzentos países. Conheço que a vemos não abdicar da liderança lutando incansavelmente contra o
alguns que trabalharam todo o ano no combate pelas boas causas. Nas moralismo dos fariseus. Mas hoje o
juntando dinheiro para estarem lá. suas redes - como reconheceu o Papa maior moralismo sente-se sobretudo
Outros que trocaram ofertas de visitas em Colónia - há peixes bons e peixes nos que se opõem às religiões. Ata-
a lugares de sonho para convergirem maus. Cristo já avisara os do seu tem- cando a fé por a considerarem mora-
para ali. Para ir ao encontro de um po, que nos seus campos e até ao fim lista, os laicistas não notam que são
Homem que os remete para Cristo e dos tempos Deus deixaria crescer, a eles mesmos a cair nesse abuso. A
lhes diz que é possível ser fiel à men- par e passo, o trigo e o joio. proibição do véu islâmico nas escolas
sagem de salvação, lançada há dois mil Há um novo fogo de esperança que francesas, por exemplo, é uma forma
anos, por um outro homem que aca- abrasou a gélida e velha Europa. Tal- de moralismo boçal que se julgava
bou crucificado por se dizer filho de vez possamos todos aprender com extinta há muito.
Deus. Por testemunhar teimosamente este milhão de jovens que é possível No entanto, surpreendentemente, é
que Ele existe e ama por igual os jus- salvar o mundo em que vivemos. Que fora dos temas religiosos que hoje se
tos e os pecadores. os confrontos (de religiões ou de civi- encontra o maior moralismo. Qual-
Não são umas velhinhas beatas, afo- lizações) não são inevitáveis nem quer defesa da família, da honra, da
gadas em negro, que o aclamam. Em fazem parte do pacote do futuro. A herança cultural é silenciada como
rigor, ninguém aclama este velho de Paz é possível Aquela Paz que os moralista. Mas moralismos de sinal
branco de quase 80 anos. Os que ali anjos prometeram numa noite em contrário prosperam um pouco por
estão não estão por ele. Tal como os Belém. Reservada aos homens de Boa toda a parte.
dois mil e quinhentos, jovens e crian- Vontade. Sejam eles crentes ou não. Muitos jovens, que tanto se queixam
ças, que acompanhavam a oração do João Paulo II gritou aos jovens: Le- do moralismo dos mais velhos, caem
irmão Roger (de 90 anos!) no momen- vantai-vos e vamos! Provando que eles no mesmo, ao desprezarem o
to em que foi assassinado, ainda há confiava neles. Bento XVI veio dizer- modo de vida de seus pais e tomarem
poucos dias, em Taizé. É essa a gran- lhes agora "Segui a Cristo custe o que o seu código de conduta, radical e
de diferença com as estrelas de rock. custar!" O martírio dos jovens padres descomprometido, como a única for-
Aqueles jovens estão ali para partilhar brasileiros assassinados nas últimas ma válida de viver. Muitos jovens hoje
a festa e responder presente ao desafio semanas dá uma pálida visão da di- desprezam a sociedade e o capitalis-
de testemunho que ele representa. Por mensão do sacrifício. Quem disse que mo, ralhando ao mundo com a severi-
que a sua figura de "avô capaz dos os jovens preferem o facilitismo? Jorna- dade de velhas resmungonas.
ouvir" remete para a figura um Pai lista O moralismo surge também nas mui-
capaz de os amar. E como o novo tas causas que se defendem com ar-
Papa ontem lembrava, o que pode Armadilha do moralismo antimo- dor. Grande parte dos movimentos
salvar-nos senão o Amor? Não um ralista radicais antiglobalização, de libertação
João César das Neves
amor qualquer. Não os vários amores. In: DN050829 sexual, ecologistas ou antiamericanos
O próprio Amor. Vivemos num tempo de liberdade e padecem desse mal. A intolerância
Agradeço a João Paulo II ter apareci- abertura que deplora o moralismo e o moralista chega até a extremos patéti-
do na minha vida no momento de reprime. À menor suspeita. Cada um cos no combate ao fumo e à obesida-
profunda solidão dos jovens crentes. faz consigo o que quer e ninguém tem de.
Éramos um bando de loucos a remar nada com isso. Sendo isto verdade, só Talvez o máximo do moralismo se
contra uma corrente que embarcara na o é em parte, porque vivemos também encontre, porém, nos partidos de
certeza absoluta da inexistência de num dos tempos mais moralistas de extrema esquerda. Julgando-se inova-
Deus. O yupismo dos anos oitenta foi sempre. Sem dar por isso, boa parte dores e revolucionários, eles estão de
apenas o mais rasteiro dos ateísmos- das pessoas que rejeitam o moralismo facto presos num juízo tacanho que os
materialistas. Não sei se é herético praticam-no habitualmente. fecha numa visão limitada e rígida.
afirmá-lo mas acho, tal como Bénard O moralismo é um vício terrível, que Aliás, no panorama português, co-
da Costa, que cada um de nós terá perverte a verdadeira moral e deve ser existem nessa área lado-a-lado os dois
vários papas ao longo da sua vida mas sempre condenado. Trata-se da impo- tipos mais marcante do género o
um deles acabará por ser o papa das sição, a si ou a outros, de uma regra "moralista triunfante" e o "moralista
nossas vidas! João Paulo II será pro- ética dura e abstracta num juízo exte- acossado".
vavelmente o meu. rior e artificial, com rigidez e sem ligar O Partido Comunista tem um código
Mas a Bento XVI posso já agradecer a a intenções, circunstâncias e enqua- férreo, global e totalitário de conside-
alegria de ter conseguido que esta dramento. Pior quando aquele que ração da realidade. Qualquer outra
juventude não se sinta só. Por ter julga não tem o direito de o fazer, e maneira de ver o mundo é burguesa,
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reaccionária, alienante. Deste modo, o que a acolhem e regulam. moral, mas apenas de biologia. Porque
marxismo nasceu como um dos mora- No último número, a revista SCIEN- é que estes e outros dados científicos
lismos mais asfixiantes de todos os CE propõe as 125 perguntas mais não foram tidos em conta ao legislar
tempos. Durante o século XX, ele importantes que ainda estão penden- sobre o matrimónio e adopção
considerou-se como a visão do futuro, tes no campo da ciência. homossexual?
o modelo definitivo, a verdade absolu- Lê-las traz dois sentimentos contradi- Sabemos que existem duas barreiras
ta. Era a fase do moralismo triunfante, tórios. Um é a ideia do avanço conse- de difícil superação para as aplicações
em que o fariseu confia arrogante- guido que permite formularmos tais terapêuticas de embriões humanos.
mente na imposição próxima do seu perguntas, mas a outra é o grande Uma é a reprodução descontrolada e,
sistema a todos. A partir de 1989 deu- vazio, o desconhecimento que se abre portanto, a geração de células cance-
se a derrocada. Hoje os comunistas a nossos pés. É bem certo que, quanto rosas. A outra é a rejeição imunológi-
continuam tão fiéis e dedicados como mais sabemos, mais constatamos a ca. Ao mesmo tempo cada vez exis-
sempre, mas sabem que são uma dimensão da nossa ignorância. tem mais aplicações com células-mãe
minoria em decadência. Continuam O universo em que vivemos, formado adultas que não apresentam nenhum
moralistas, condenando os que pen- por estrelas e planetas, e a matéria que destes dois problemas. Se isto é o que
sam de forma diferente. Mas estão conhecemos supõe-se ser apenas 1 dizem os factos científicos, porque é
orgulhosamente sós. É o moralismo por cento do total. Temos uma ideia que os meios de opinião, os governos
acossado. mais ou menos vaga de que existe e os profissionais da ciência, com
Quem ocupou o seu lugar na fase de outro tipo de matéria que denomina- poucos escrúpulos, continuam a insis-
moralismo triunfante foi o Bloco de mos obscura e que deve ser diferente tir em apresentar como uma possibili-
Esquerda. Trata-se, sem dúvida, do da que conhecemos, mas não sabemos dade maravilhosa algo que de momen-
movimento mais moralista da socie- em que é diferente. to é só um muro contra o qul nºao se
dade portuguesa contemporânea. Não Esta representa 30 por cento. Quase a pode avançar?
há assunto em que não tenha senten- totalidade dos 70 por cento restantes Pode-se afirmar que a ciência deve
ças para outorgar. E sempre de con- correspondem a uma força que quali- sempre procurar o outro lado do
denação. Os dirigentes do Bloco, ficam de misteriosa e a que chamam muro, porém quando existem outras
dizendo-se jovens, insolentes e atrevi- energia obscura. É evidente que com vias que permitem flanqueá-lo, porque
dos, têm perante a sociedade, o siste- esta fragilidade de conhecimento, a insistir em gastar inutilmente tanto
ma económico e, em geral, o mundo nossa atitude para explicar as grandes dinheiro?
moderno, uma atitude de comadre questões, Deus, por exemplo, deveria A clonagem, mal chamada terapêutica,
indignada, a quem nada satisfaz. Basta ser de uma humildade espantada, uma sobre a qual o Governo de Zapaero
verem um microfone para destilarem humildade de 99 por cento. legislará a favor, saltando à toureira os
nova censura. Sabemos que não sabemos o que é a critérios das Nações Unidas e promo-
O moralismo, caricatura da moral, é homossexualidade. A ideia dos nossos vendo um conflito moral de grandes
uma armadilha perigosa, que se insi- cientistas sobre a sua natureza não só dimensões, choca por sua vez com um
nua onde menos se espera. Por isso é muito indeterminada, como perfei- âmbito praticamente desconhecido, o
tantos caem nela sem reparar. Talvez tamente contraditória. Só conhecemos chamado programa epigenético encar-
até seja bom pedir desculpa, por este os seus efeitos. Nesta base como se regado de activar determinados genes,
artigo poder ser tomado como um pode legislar sobre uma instituição tão o que explica as diferenças entre
pouco moralista. fundamental como é o matrimónio gémeos. Os problemas da ovelha
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt para o modificar de uma maneira tão clonada Dolly forma devidos ao des-
radical como se fez em Espanha? conhecimento deste programa que
A sociedade da ignorância Pode ser sujeito de uma instituição afecta também as técnicas de reprodu-
In: Forum Libertas.com, 050706
social um comportamento, porque ção assistida.
O nosso tempo vive com a ideia de
isso é a única coisa que sabemos de Vamos jogar com a natureza humana
que a nossa sociedade se move sob
certo, cuja natureza é perfeitamente sem conhecer elementos fundamen-
parâmetros fundamentados na ciência.
desconhecida? A diferença entre tais da mesma. Com muito menos
Não é assim; e o pior é que aquela
homem e mulher é tão evidente que se motivos, há milhões de pessoas que se
pretensão é cada vez menos exacta.
diferencia inclusivamente sem neces- opõem aos tomates transgénicos.
Uma coisa é o conhecimento científi-
sidade de ver a imagem completa do
co e a sua aplicação em campos con-
sujeito em questão. Basta conhecer Encontrar um desígnio na Natu-
cretos: medicina informática, biologia,
coo se activa o seu cérebro para poder reza
etc.; e outra muito distinta, que os
identificar o seu sexo. Cardeal Christopher Schonborn
predicados científicos orientem o * Arcebispo de Viena
Sabemos que a oxitocina é uma hor- In: The New York Times, 050707
comportamento da sociedade e o seu Desde 1996, quando o Papa João
mona vinculada à relação de afecto,
Governo. Na realidade, o que sabe- Paulo II disse que a evolução (o termo
que é gerada em muito maior quanti-
mos deveria levar-nos a ser extrema- não o tinha definido naquela ocasião)
dade pela mulher e que alcança o seu
mente prudentes em todas aquelas era «mais do que uma mera hipótese»,
nível mais elevado depois do nasci-
actuações que incidem sobre a condi- os defensores do dogma neo-
mento de cada filho. Já não se trata de
ção humana e as instituições sociais
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darwinista afirmaram frequentemente aparece. Na realidade, isto equivale a Além disso, segundo a Comissão, «um
a suposta aceitação – ou pelo menos querer admitir a existência de efeitos processo de evolução não guiado –
um tácito consenso – da Igreja Católi- sem causa. Trata-se de um abdicar da totalmente estranho à acção da divina
ca Romana em defender a sua teoria inteligência humana, que renunciaria providência – simplesmente não pode
como, de qualquer modo, compatível assim a pensar, a procurar uma solu- existir».
com a fé cristã. ção para os seus problemas». Com efeito, na homilia pronunciada
Mas isto não é verdade. A Igreja Cató- É importante notar que nesta citação, na Missa inaugural do seu Pontificado,
lica, embora deixando à competência a palavra «finalismo» é um termo filo- há algumas semanas atrás, Bento XVI
da ciência muitos pormenores sobre a sófico sinónimo de causa final, fim, ou proclamou «Não somos o produto
história da vida na terra, proclama projecto. Um ano depois, numa outra casual e sem sentido da evolução.
que, graças à luz da razão, o intelecto audiência geral, João Paulo II conclui: Cada um de nós é o fruto de um pen-
humano pode discernir pronta e cla- «é claro que a verdade da fé sobre a samento de Deus. Cada um de nós é
ramente a existência de um fim e dum criação se opõe radicalmente às teorias querido, cada um de nós é amado,
projecto no mundo natural, inclusive da filosofia materialista. Estas vêem o cada um de nós é necessário».
no mundo dos seres vivos. A evolução cosmos como o resultado de uma Ao longo da história, a Igreja defen-
no sentido duma descendência evolução da matéria redutível ao puro deu as verdades da fé dadas por Jesus
comum pode ser verdade, mas a evo- acaso e necessidade». Cristo. Mas na era moderna, a Igreja
lução no sentido neo-darwinista – isto Obviamente, o Catecismo da Igreja Católica encontra-se na difícil posição
é, entendida como um processo de Católica, com a sua autoridade, con- de ter de defender firmemente tam-
variação casual e de selecção natural, corda: «Não há dúvida de que a inteli- bém a razão. No século XIX, o Concí-
sem um guia e um plano – não o é. gência humana é capaz de encontrar lio Vaticano I ensinou a um mundo
Qualquer sistema de pensamento que uma resposta para a questão das ori- fascinado há pouco com a “morte de
negue ou tente refutar a evidência gens. Com efeito, a existência de Deus Deus”, que pela luz da razão natural o
incontestável da existência de um Criador pode ser conhecida com cer- homem pode chegar a conhecer a
projecto biológico é ideologia, não é teza pelas suas obras, graças à luz da existência da Causa Incausada, o Pri-
ciência. razão humana». E acrescenta: «Acredi- meiro Motor, o Deus dos filósofos.
Tomemos em consideração o verda- tamos que Deus criou o mundo Ora, no início do século XXI, tendo
deiro ensino do nosso amado João segundo a sua sabedoria. O mundo de fazer frente a pretensões científicas
Paulo II. Enquanto que a sua carta de não é fruto duma qualquer necessida- como o neo-darwinismo e as diversas
1996 sobre a evolução, bastante gené- de, dum destino cego ou do acaso» . hipóteses de cosmologia inventadas
rica e não tão importante, é sempre Num novo infeliz retorcer-se desta para evitar a clara evidência de um fim
citada em toda a parte, não há nin- controvérsia, os neo-darwinistas pro- e de um projecto, presente na ciência
guém que discuta estes argumentos a curaram recentemente apresentar o moderna, a Igreja Católica tem de
partir da sua audiência geral de 10 de nosso novo Papa, Bento XVI, como defender novamente a razão humana,
Julho de 1985 que, pelo contrário, um evolucionista satisfeito. Citaram proclamando que o projecto imanente
contém o seu sólido ensinamento uma frase sobre a descendência evidente na natureza é real. As teorias
sobre a natureza: comum de um documento da Comis- científicas que procuram justificar a
«Todas as observações que dizem são Teológica Internacional de 2004, manifestação do projecto como o
respeito ao desenvolvimento da vida sublinhando que, naquela altura, Ben- resultado «do acaso e da necessidade»
conduzem a uma conclusão análoga: a to XVI era o chefe da Comissão e não são de modo algum científicas,
evolução dos seres vivos, da qual a concluíram que a Igreja Católica não mas tal como afirmou João Paulo II,
ciência procura determinar as etapas e tem problemas com a noção de “evo- são um abdicar da inteligência huma-
discernir o mecanismo, apresenta um lução” tal como é usada pelos mais na.
Christoph Schönborn, Cardeal da Igreja Católica, Arcebispo de Viena,
finalismo interno que suscita admira- cotados biólogos – ou seja, como foi o coordenador da versão oficial do Catecismo da Igreja Católica,
ção. Esta finalidade que orienta os sinónimo de neo-darwinismo. publicado em 1992.

seres numa direcção, da qual eles não O documento da Comissão reafirma,


são senhores nem responsáveis, obriga porém, o ensino perene da Igreja Fé e ciência perante a origem do
a supor a existência de um Espírito Católica sobre a existência de um homem
In: Zenit050828
que é o seu inventor, o Criador». projecto na natureza. Comentando o Entrevista com o bispo Raúl Berzosa
E continua: «A todas estas “indica- difundido mal-entendido da carta de OVIEDO, domingo, 28 de agosto de 2005
ções” sobre a existência de Deus cria- João Paulo II, de 1996, sobre a evolu- (ZENIT.org).- O jovem bispo espanhol
dor, alguns opõem a acção do acaso ção, a Comissão adverte que «a carta Raúl Berzosa (Aranda de Duero, 1957)
ou de mecanismos próprios da maté- não pode ser lida como uma aprova- considera que fé e ciência estão chamadas a
ria. Falar de acaso para um universo ção geral de todas as teorias da evolu- entender-se, e ilustra isso com um livro sobre
que apresenta uma organização assim ção, inclusive das de proveniência os sítios pré-históricos de Atapuerca.
tão complexa nos seus elementos e neo-darwinista que negam explicita- Este bispo auxiliar de Oviedo afirma a
um finalismo tão maravilhoso na vida, mente que a divina providência possa Zenit que «não estamos aqui por sorte
significa renunciar à procura de uma ser causa verdadeira do desenvolvi- ou casualidade. Este é nosso segredo e
explicação do mundo tal como ele nos mento da vida no Universo». aqui reside nossa grandeza e dignidade
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profundas». ser: o nível físico, o social, o estético, Na forma talvez me esforçasse, como
O livro, «Uma leitura crente de Ata- o ético e o religioso. tenho que fazer constantemente, em
puerca. A fé cristã ante as teorias da Por outro lado, para que a ciência seja divulgar ainda mais e tornar muito
evolução», está editado na Espanha verdadeira ciência, deve estar sempre mais acessível o que desejo comuni-
por «Desclée de Brouwer», e nele se aberta a perguntas para além dela car. Que não é nada meu, mas a fé
pergunta se é compatível a fé cristã na mesma. A ciência é sempre o penúlti- recebida da Igreja. Com uma convic-
criação com as últimas hipóteses físi- mo, costumavam afirmar Laín Entral- ção: só a verdade recebida nos faz
co-químicas, além de analisar a relação go, ou o próprio Ortega y Gasset. verdadeiramente livres e nos ajuda a
entre evolucionismo e a doutrina da Mas, por sua vez, a teologia e a fé, viver em plenitude. Expressou isso
Igreja. para serem autênticas e não meros belamente o Papa Bento XVI, quando
--Que luz trazem os sítios arqueológi- fideísmos, devem ter em conta os afirmou, na sua primeira homilia, que
cos de Atapuerca? dados das ciências. Ciência e fé, em somos seres queridos e amados por
--Berzosa: Por um lado, sem dúvida, o resumo, estão obrigadas a entende- Deus em Cristo. Não estamos aqui
registo fóssil humano mais importan- rem-se como boas companheiras de por sorte ou casualidade. Este é o
te, a nível mundial, do sucedido no viagem, não como estranhas ou inimi- nosso segredo e aqui reside a nossa
último milhão de anos de história da gas. grandeza e dignidade profundas.
humanidade. Ali se encontraram, até o --O senhor termina o livro com uma
momento, restos de mosnínido, homo espécie de decálogo no qual advoga A estatização dos afectos
antecessor, do homo heildelbergensis, por uma visão finalista da evolução, Manuel Brás
In: DN050526
e dos humanos homo neandertal e contra a crença na lei universal da As reacções violentas da APF ao
sapiens. Por este dado foi declarado casualidade biológica. Teve alguma escândalo nacional provocado pela
Patrimônio da Humanidade. resposta por parte da comunidade simples divulgação dos materiais com
Do ponto de vista paleontológico, científica? que o Ministério da Educação (ME)
descobriu-se a nova espécie homo --Berzosa: Sim, muito positivamente brinda os professores em matéria de
antecessor e, até agora, parece que se de parte de cientistas, não só cristãos “educação sexual”, por indicação des-
ratificava a tese de que o berço da ou crentes, que estão abertos à totali- sa mesma associação, resumem-se a
humanidade, toda ela, teve sua origem dade ou ao mistério das transcendên- este termo: a táctica da negação.
na África. cias. Recebi cartas e livros muito inte- Eles negam, mas está lá tudo. É só ver
--Que nos revela uma leitura crente de ressantes neste sentido, de pensadores manuais e bibliografia. Eles negam
Atapuerca? espanhóis. Alguns cientistas inclusive que textos, desenhos, propostas de
--Berzosa: Primeiro, que até agora citaram-me em diversos meios de actividades lá estejam, mas estão. E se
conhecemos só o «roteiro» de um comunicação. o que lá está não é para transmitir aos
filme já escrito, que se remonta, se se Os que seguem advogando o acaso ou alunos, então é para quê? Será que a
confirmam as teorias sobre o Big- as leis meramente naturais se dividi- APF, que assessora o ME, professo-
Bang, a uns 15 bilhões de anos. Dos ram em dois blocos: a maioria, o silên- res, políticos, nesta matéria, subita-
quais Atapuerca é quase o penúltimo cio; e, quando saíram à lide, algumas mente, já não tem nada a ver com
episódio. Mas não podemos ficar só vezes em tons muito ofensivos, em isto? Será que a APF já não é a APF?
no roteiro, maravilhoso, do já escrito. lugar de se dirigirem à minha pessoa, Onde estão os seus responsáveis?
Temos de perguntar-nos pelo autor fizeram-no em conferências e nos mass Onde estão os milhares de professores
ou escritor do roteiro e por que se media de uma determinada linha edito- formados pela APF para pôr em prá-
escreveu dessa maneira e não de outra. rial. tica tais conteúdos? Que andarão eles
Noutras palavras, não podemos ficar Em todo o caso, costumo afirmar que, a fazer por esse País fora? Como vai o
só em dados supostamente científicos sobre este tema de Atapuerca (que em Estado resolver (mais) este problema?
(inclusive a hipótese da evolução). definitivo é o do sentido da evolução), À táctica da negação segue-se o con-
Temos de fazer-nos perguntas de nem sou o melhor autor nem as trole da indignação.
maior abrangência, como, por exem- minhas obras seriam as mais comple- Qual a ideia de fundo que está por trás
plo, «por que existe algo e não o nada? tas. Correspondeu-me fazer um pouco deste conceito de “educação sexual”?
Ou por que o existente existe da for- de “cão de caça” que aponta onde está Nada de novo. As mesmas utopias de
ma concreta que existe e não de a peça, e que alerta até onde podem sempre.
outra?». chegar os cientistas que se introme- A crença no bom selvagem. É sim-
--Por que são necessárias fé e ciência? tem, desde uma ideologia materialista ples: a sociedade, com a sua moral e
--Berzosa: Por um lado, para respon- e biologicista, no campo da filosofia, instituições, puras construções sociais
der às perguntas que nos fazíamos na da ética e da religião. e históricas, contrárias e repressoras
questão anterior. A ciência tem um --Escreveu esta leitura crente quando da original bondade humana, impôs
campo determinado. Deve comple- ainda não era bispo. Desde que tem restrições, coarctou liberdades, desvir-
mentar-se com a filosofia e a teologia. esta nova responsabilidade pastoral, tuou o humano.
Na realidade que palpamos há níveis, mudaria algo em seu discurso sobre o É como se algo tivesse sucedido na
e todos são necessários para comple- diálogo fé e ciência? História que obscureceu a candura
mentar-se, e todos têm sua razão de --Berzosa: Nos conteúdos, em nada. primordial (a prisão espiritual da reli-
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gião, o dinheiro,...). Daí que seja preci- pseudociência, tem florescido uma notam que, se fosse assim, nunca
so resgatar o homem novo. Tarefa grande investigação à volta da figura teriam surgido Santa Joana d'Arc,
que um punhado de iluminados leva a de Santa Maria Madalena. Santa Catarina de Sena. Santa Brígida
cabo com galhardia desde há duas Claro que ela o merece, sendo uma e tantas outras.
centúrias para cá. É preciso descons- das maiores santas da História. Mas O mais aberrante é que o apelo à
truir todas as estruturas sociais, regras, esse movimento, com ligações ao grande Santa Maria Madalena como
tabus, para que os humanos possam feminismo radical, baseia- -se na tese figura feminina esquece que os cris-
voltar ao estado primordial e indígena. de que a Igreja Católica sempre foi tãos sempre veneraram uma mulher
Assim como outrora nos prometeram chauvinista e machista, quando no com mais amor do que qualquer culto
o paraíso na terra – a sociedade sem paganismo a mulher era tratada com pagão Maria, mãe de Jesus. Esquecem
classes – e o homem novo, através da respeito. Esta afirmação é um eviden- que o cristianismo é a única religião
luta de classes e do rumo para o socia- te disparate histórico. que afirma que é uma mulher o ser
lismo, hoje prometem-nos essas mes- O nosso tempo só admira e cultiva o mais próximo de Deus, acima dos
mas utopias pela via da “libertação paganismo porque não faz a menor anjos e dos santos. Mas, se lhes lem-
individual”, particularmente através do ideia do que ele fosse, conhecendo brarmos isso, eles respondem ela não
sexo. apenas as modernas imagens parolas. conta porque era virgem. Assim se vê
Desta forma, a educação sexual é o É horrível viver a vida com a omni- o busílis da questão.
veículo para libertar os indivíduos de presença de deuses, espíritos e demó- O que interessa ao culto actual de
milhares de anos de obscurantismo, nios, que dominam todos os elemen- Madalena é directamente a cópula.
de discriminação e desigualdade, de tos e se tornam vingativos se não Nossa Senhora é mulher, esposa, mãe.
sexo masculino e feminino, de gravi- forem alimentados por libações. Os Tem todos os elementos femininos,
dez e maternidade, de tabus e proibi- antigos sentiam permanentemente a mas é virgem. Isso mostra como
ções, enfim, o veículo para negar tudo opressão sobrenatural de um mundo vivemos num tempo obcecado pelo
o que nos trouxe até aqui. invisível, cruel, interesseiro e mesqui- aspecto sexual no seu sentido mais
Tendo por assente que todos os que nho, a quem se sacrificavam rebanhos, venéreo. Sem o coito uma mulher não
viveram antes de nós, exceptuando a colheitas e, por vezes, filhos. A prosti- é mulher.
recente casta de iluminados, são estú- tuição sagrada, bacanais e ritos Ao longo dos séculos, cada época viu
pidos e retrógrados, urge libertar os sexuais, de que hoje se fala como de Cristo e Maria à sua maneira. Ele foi o
jovens, vítimas de tão grandes atroci- filmes eróticos, eram infames explora- Bom Pastor nas catacumbas e o rei
dades da História. Para alcançar o ções da mulher. universal (Pantocrator) debaixo das
nirvana as pobres crianças têm que ser De tudo isto nos libertou Jesus Cristo. invasões bárbaras. Ela foi a Estrela do
purgadas mediante a exposição públi- Ele não só falou livre e amavelmente Mar para os navegantes e a Senhora
ca em sede de aula das suas intimida- com todos, prostitutas, adúlteras e das Dores nas guerras da Reforma.
des, que passam a assim a pertencer samaritanas, mas acima de tudo falou Foi preciso chegar à boçalidade con-
ao domínio público. Ou seja, deixam de Seu Pai, o único Deus, o Deus que temporânea para Ele ser visto como
de ter intimidade própria. Como as é bom e próximo e ama sobretudo os um filósofo oculto e a ela procurarem
“Linhas Orientadoras de Educação pobres. Assim desapareceu o terror ocultá-la.
Sexual em Meio Escolar” são da res- pânico da mitologia. Foi o cristianis- Hoje, 15 de Agosto, é festa da Assun-
ponsabilidade do ME que, supomos, mo que criou os fundamentos dos ção de Nossa Senhora. Proclamado
pertence ao Estado, aí temos nós a direitos humanos, da igualdade entre por Pio XII em 1950, este é o quarto
estatização dos afectos e da sexualida- todas as pessoas, da libertação da dogma mariano da história da Igreja,
de com honras de doutrina oficial. mulher. Os autores que depois os depois da Maternidade de Deus no
Como outrora se fez com bancos e formularam mais não fizeram do que concílio de Éfeso em 431, da Virgin-
empresas. repetir o que os Padres da Igreja dade Perpétua em 649 e da Imaculada
No reino da “educação sexual” pode- tinham ensinado. Alguns, poucos, Conceição de 1854. O nosso tempo
se tudo, menos aceitar registos obscu- reconhecem-no, como Lord Acton e paradoxal é também aquele que for-
rantistas como a gravidez e a materni- Friedrich Hayek identificando S. malizou solenemente metade das cer-
dade. Tomás de Aquino como o primeiro tezas sublimes que a Igreja sempre
liberal (whig). teve acerca de Nossa Senhora. É ela a
Um tempo salvo por uma mulher Entretanto, uma versão revisionista da nossa esperança.
naohaalmocosgratis@fcee.ucp.pt
João César das Neves
In: DN050815
História esforça-se por representar as
Neste tempo paradoxal acontecem as eras cristãs como séculos de obscuran-
coisas mais aberrantes. Por exemplo, tismo e barbárie, extrapolando para o
pode surgir um interesse avassalador todo de alguns casos aberrantes. Nem
por uma personagem histórica de que reparam que, para isso, teria sido pre-
pouco se sabe e que nunca teve res- ciso que todos os cristãos tivessem
ponsabilidades políticas ou sociais. feito continuamente o oposto do que
Nos triunfantes meios gnósticos, ali- o "doce rabi da Palestina" ensinou e
mentados por literatura fantástica e eles mesmos sempre pregaram. Nem
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