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O Jogo do Rei: Em Busca da Coroa

Reyves L. B.
Ao meu grande amigo de aventuras, Flávio D’Angelo, que não pôde
mais me acompanhar nessa jornada da vida. Você faz falta, meu irmão,
obrigado por tudo.
Capítulo 1: Aniversário
Rubyo abriu os olhos e sentiu o vento frio da manhã de outono
atravessando a rachadura da janela de madeira. Se fosse um dia qualquer,
teria resmungado e acordado com o mau-humor de um lobo faminto, afinal,
odiava o frio tanto quanto odiava orcs. Mas, nessa manhã, a empolgação
pelo seu aniversário deixou qualquer reclamação passar, dando lugar à
ansiedade em vestir logo suas roupas e descer para a sala do casebre em que
vivia com o tio.
O pequeno Rubyo não tinha muitas escolhas do que vestir. O estreito
baú aos pés de sua cama guardava apenas duas camisas, uma branca e uma
verde, ambas bem surradas e desbotadas. O que faltavam-lhe em botões,
sobrava em remendos. Embaixo delas, existia apenas uma calça marrom
cheia de retalhos, que fora de seu tio até semanas atrás. Optando pela camisa
branca, vestiu-a, seguida pela única calça e, por fim, calçou um par de botas
antigas feitas com o couro de algum animal que já nem era mais distinguível
pelo estado deplorável do calçado. Quem via a pobreza daquele garoto
jamais acreditaria que seu pai já fora um dos homens mais ricos e poderosos
do mundo.
Rubyo era alto para uma criança de doze anos, mas o que mais chamava
a atenção, à primeira vista, eram seus cabelos vermelhos como fogo, que
desciam até os ombros, amarrados num rabo de cavalo, além de seus olhos
profundamente negros que contrastavam com a pele clara, repleta de
pequenas sardas.
Ainda amarrando a camisa enquanto descia a escada, ao chegar no
térreo, não teve tempo de se esquivar de um soco vindo de algum lugar à
direita do corrimão, que o acertou em cheio no rosto e o jogou contra o chão.
— Bom dia, aniversariante! Dormiu bem? — perguntou Argus, tio de
Rubyo, esticando a mão para ajudá-lo a se levantar.
— Que merda, tio! Achei que daria uma folga hoje... é meu aniversário!
— reclamou Rubyo, alcançando o braço de Argus.
— E seus inimigos te darão folga algum dia? Não seja um bebê chorão,
hoje você está fazendo doze anos! Sabe o que eu já fazia com doze anos?!
— Surrava covardemente crianças menores? — provocou Rubyo,
enquanto se levantava com a ajuda de seu tio.
— Não, mas eu já sabia que não deveria confiar em ninguém! —
respondeu Argus, puxando a mão de Rubyo para perto de si e girando no ar
o corpo do sobrinho, jogando-o novamente contra o chão. — E já está na
hora de você aprender isso também.
Rubyo segurou o choro, mais de raiva do que de dor, enquanto via seu
tio se afastar e caminhar em direção à cozinha. A pequena casa onde
moravam parecia um celeiro improvisado; a parte de cima do estreito
sobrado era apenas um mezanino que dividiam como um quarto, com apenas
duas camas e seus respectivos baús, separados por uma mesinha. Uma
escada levava até o andar inferior, onde a sala e a cozinha não se separavam
fisicamente, contendo apenas duas poltronas perto da lareira e da porta
principal. A cozinha tinha um largo e baixo armário de madeira, ladeado por
dois barris, dividindo espaço com uma mesa feita de madeira envelhecida,
onde quatro tocos largos de pinheiro eram usados como bancos. Uma outra
porta na cozinha dava acesso à parte dos fundos da casa, de onde se via a
floresta que cercava a vila onde viviam, e outro barril com a tampa aberta
para captar água da chuva.
Argus ainda ria ao ver seu sobrinho se levantar com o rosto
avermelhado no local onde fora golpeado, enquanto ele tirava do armário
duas canecas de madeira e uma concha, que utilizou para encher as canecas
com vinho de um dos barris.
— E aí? Vai ficar chorando emburrado ou vai realizar seu desejo de
tomar vinho pela primeira vez na vida? Agora você tem doze anos, então eu
te permito beber comigo! — perguntou o tio, enquanto se sentava num dos
bancos improvisados à mesa.
Argus vestia uma calça preta curta, que ia apenas até suas canelas, e
calçava uma sandália simples de tiras de couro, ideal para secar mais
facilmente os pés durante seu trabalho como pescador. Sua camisa era
marrom, não podendo se diferenciar o que era tinta e o que era barro dos
mangues em que trabalhava. Sua pele bronzeada contrastava com seus
cabelos loiros escuros e olhos azuis, que somados ao queixo quadrado e
expressão austera, davam a ele o ar da nobreza na qual nasceu e viveu por
quase toda a vida. Ele não era muito alto e nem muito forte, mas não se
percebia nenhuma grama de gordura em seu corpo.
— Eu não estou chorando! — respondeu Rubyo, tentando segurar sua
raiva. — Quero beber, sim, mas não foi esse o nosso combinado sobre o meu
aniversário!
— Ah, é mesmo? E o que combinamos? — perguntou Argus,
empurrando a caneca na direção de Rubyo, do outro lado da mesa, com um
sorriso irônico.
— Combinamos que eu começaria a treinar com espadas de verdade!
As de madeira são para crianças, e eu agora já tenho doze anos! —
respondeu Rubyo, orgulhoso, aparando a caneca que deslizava em sua
direção.
— Hum... Acho que me lembro de algo sobre isso... Mas me diga,
amado sobrinho, o que acabei de te falar sobre confiar em...
— Não, eu não confiei em você. — interrompeu Rubyo, levantando a
caneca com vinho à sua frente. — Por isso que eu não cumpri nossa parte no
acordo, e venho bebendo desse seu vinho horrível há semanas!
Rubyo terminou a frase e tomou todo o vinho em poucos goles, batendo
a caneca vazia na mesa em seguida, enquanto disfarçava a careta pelo gosto
azedo do álcool que queimava sua garganta. Argus, tentando não parecer
surpreso e até um pouco orgulhoso do sobrinho, disse-lhe:
— Pelas tetas de Selline! Parece que o garoto realmente já é um
homem! Que bom então! Já que não é mais criança, não precisarei mais
pegar leve com você nos treinamentos da Eddor.
— Então vou poder usar uma espada de verdade?! — perguntou Rubyo,
sem tentar disfarçar a empolgação.
— Oh, sim! E acredite: você vai precisar. Agora vá passar um pano
nesses dentes e esfregar hortelã na língua para tirar o cheiro de vinho, pois o
velho Ollaff já está te esperando para as aulas de hoje. Nos veremos mais
tarde, quando eu voltar do trabalho.

***

Antes de sair de casa, Rubyo pegou seu casaco para ajudar a enfrentar o
odioso frio que o aguardava do lado de fora. Seu casaco azul destoava do
resto de suas roupas pelo aspecto de quase novo, num tom marinho muito
bonito, ornado por um pequeno sol vermelho em cada ombro — símbolo da
Casa de Edmund, a realeza do reino de Minalkar. As mangas já estavam
curtas e não escondiam mais a marca que o garoto tinha na pele de seu
punho direito, feita com ferro queimado em formato de sol, assim como
todos os minalkarianos que viviam no reino de Alferius.
Rubyo respirou fundo e saiu de casa, grato pelo vinho que tomara há
pouco e que esquentava seu corpo. O dia estava bonito, com um sol forte
brilhando logo cedo, abrandando o frio daquela manhã de outono. Os raios
de sol brigavam para passar entre a folhagem densa das árvores que
cercavam o vilarejo e seguravam a névoa baixa, que atrapalhava a visão ao
cobrir a região. A vila onde vivia ficava numa região pantanosa, cercada
parte por floresta e parte pelos muros e portões da cidade de Nenáreah,
capital do reino de Alferius.
Rubyo rumou para a cidade cruzando as humildes casas da vizinhança,
pulando sobre poças de água e sobre fezes de cavalos, que puxavam as
carroças indo e voltando da cidade.
Ao passar perto da casa de Gary, seu melhor amigo, Rubyo sentiu o
doce cheiro de torta de amoras se espalhar pela chaminé. Ele sabia que a
senhora Bortolly deveria estar cozinhando logo cedo para os filhos, e o
coração de Rubyo se entristeceu, como todas as manhãs, por saber que nunca
teve e nem teria a oportunidade de viver aquele momento tão lindo entre
mãe e filho.
Gary viu, pela janela, Rubyo parado na esquina, farejando e salivando,
e o convidou para o desjejum. Porém, o amigo agradeceu com um aceno e
seguiu seu caminho, pois já estava atrasado para a aula e não queria chatear
o mestre Ollaff.
Chegando ao fortemente armado portão oeste de Nenáreah, Rubyo
contemplou, entre os prédios, a silhueta do imponente castelo de Alferius,
que ficava bem no centro da cidade, ostentando suas oito torres; o sol se
escondia atrás delas, dando a impressão de que eram ainda mais altas,
estampando as gigantescas bandeiras com o polvo cinzento tremeluzindo.
Um gelo correu por toda a espinha de Rubyo e, instintivamente, o jovem
esfregou a marca de ferro queimada em seu punho direito. Emergindo de
seus pensamentos e temores, Rubyo retomou a caminhada.
Usando de alguns atalhos que conhecia, o jovem seguiu desviando de
várias pessoas, animais e carroças, enquanto cruzava as enlameadas e
congestionadas ruas de Nenáreah. A capital de Alferius era a maior cidade
do continente, repleta de prédios altos e mal alinhados, com os mais diversos
tipos de comércio que se pode imaginar. Por ser o maior porto do continente
de Cehvambar, a cidade atraía pessoas do mundo inteiro que estivessem
interessadas em escambo, comércio ou em busca de ingredientes raros que
só poderiam ser encontrados ali. Era muito comum encontrar pessoas de
diversas raças trafegando pela cidade, e as mais estranhas línguas se
misturavam ao idioma comum, trazendo uma sonoridade caótica para quem
estivesse mergulhado naquele mar de gente. Estar no centro de Nenáreah era
como estar no centro do mundo todo, mas de uma maneira claustrofóbica.
Após cruzar uma praça suja, cheia de refugiados que ali viviam em
extrema pobreza, Rubyo viu dois guardas abordando um mendigo de idade
já avançada, e, após analisarem seu punho, começaram a espancá-lo e a
ofendê-lo. Rubyo desejava ajudar, pois bem sabia o porquê aquele senhor
estava sendo agredido, mas o que poderia fazer sozinho contra dois guardas,
sendo apenas uma criança?
O jovem já conhecia aquele sentimento de impotência, então guardou
seu pequeno punhal de volta na bainha secreta que trazia na cintura, engoliu
em seco, e deixou a triste cena para trás, dobrando a esquina para finalmente
chegar ao seu destino. Rubyo parou em frente a um prédio estreito, com
telhados angulados e feitos de madeira, com uma placa na porta que brilhava
e se podia ler: “Baú de Conhecimentos do Mestre Morrenn”.
Entrando sem bater na pequena loja, Rubyo rapidamente conferiu, mais
uma vez, seu hálito para ver se o cheiro de vinho havia passado, mas apenas
o perfume da hortelã apalpou suas narinas. A loja tinha centenas de livros
espalhados por suas estantes, além de pergaminhos, poções, criaturas
empalhadas, ingredientes engarrafados e belos quadros nas paredes.
Repetindo o caminho que fazia quase diariamente, atravessou a recepção da
loja, cumprimentou o jovem Norm, que lia algo debruçado no balcão, e,
cruzando uma das portas entre as estantes, chegou à sala dos fundos, onde
Ollaff já o aguardava com um enorme livro sobre a mesa.
— Está atrasado, Jovem Rei. Você sabe muito bem que o atraso não
condiz com o comportamento de um nobre. — disse-lhe o ancião, de
maneira educada, mas firme.
Ollaff era alto, magro e um pouco corcunda, provavelmente pela idade,
que já aparentava estar além dos setenta anos. Tinha a pele negra, olhos
verdes brilhantes e uma enorme barba cinzenta que ia até quase o umbigo —
o que compensava sua total falta de cabelo. Vestia um robe roxo-escuro com
um cordão branco na cintura, e deixava o capuz caído em seus ombros.
— Me perdoe, mestre Ollaff, mas meu tio quis fazer um café da manhã
especial hoje e, por isso, me atrasei. Prometo que não acontecerá de novo...
— Justificou Rubyo, sentando-se ao lado de Ollaff no longo banco que
margeava a mesa comprida onde o enorme livro repousava.
— Um homem, seja rei ou camponês, não deve prometer aquilo que
não é capaz de cumprir, meu jovem senhor. — respondeu Ollaff num tom
polido, mas crítico.
— O senhor não precisa se preocupar com isso, mestre, pois estou
muito longe de ser um rei para fazer promessas importantes, e pobre demais
para ser um camponês que tenha algo para cumprir. São apenas palavras,
modo de falar...
— E o Jovem Rei acha que palavras não são nada de mais? —
perguntou Ollaff, com um forçado tom de surpresa.
— Acho que palavras são apenas palavras, e nada mais. Por exemplo,
não importa quantas vezes o senhor me chame de “rei”, isso não me fará ser
rei de lugar nenhum
Ollaff abriu a boca para responder rapidamente, mas conteve-se e ficou
pensativo por alguns segundos, vendo Rubyo se deliciar com uma pequena
vitória no diálogo. Ollaff olhou para o candelabro que estava sobre a mesa,
próximo ao livro, com três pequenas velas apagadas, e perguntou a Rubyo:
— Se palavras não são nada de mais, creio que nada ocorrerá a essa
vela apagada se eu a mandar acender, certo?
Rubyo levantou uma das sobrancelhas, surpreso pela pergunta aleatória
de seu mestre, e respondeu em tom debochado:
— Creio que não acontecerá absolutamente nada, a vela não pode te
ouvir...
— Flaminus! — gritou Ollaff, com sua voz grossa e rouca, fazendo
todas as velas daquela sala se acenderem.
Rubyo já havia escutado seu tio comentar que o velho mestre era
letrado também em magia, mas nunca havia visto um feitiço de perto. O
jovem ficou encantado com a cena, e seu coração se acelerou ao chegar perto
do candelabro e ver que o fogo nas velas era real, passando sua mão bem
próximo à chama.
— Toda palavra tem poder, meu Jovem Rei. Nem sempre importa o que
você quis dizer, mas sim, como ou quem vai escutar. A vela realmente não
me escuta, mas o fogo, sim, me ouve. E pode te ouvir também se você
souber como falar.
— Flaminus! — gritou Rubyo, na esperança de também produzir fogo,
como fizera seu mestre, mas nada aconteceu.
— Bela tentativa, meu jovem, mas você ainda tem muito o que
aprender. Não se pode correr sem antes aprender a andar, assim como não se
é capaz de andar sem que antes seus pés toquem o chão... e pelo seu olhar
perdido, creio que você mal sabe onde está pisando, Jovem Rei. — disse
Ollaff, olhando no fundo dos olhos de seu aprendiz.
Rubyo desviou o olhar, abaixou a cabeça e cruzou os braços. Ele se
irritava quando sentia que Ollaff podia ouvir seus pensamentos.
— Odeio quando me chamam de “Rei”, mestre, sinto que zombam de
mim. Por isso, procuro não me ater em palavras, e focar mais em atitudes.
— E o que o senhor quer dizer com “atitudes”? Disputa de força com
seus amigos? Pregar peças em bêbados, junto ao menino Bortolly? Praticar
Eddor com seu tio? Pois saiba, meu jovem, que as palavras, quando bem
usadas, podem machucar muito mais que uma espada afiada ou curar muito
mais que um potente remédio. Seu pai e seu avô sabiam disso, e por isso
foram grandes reis.
— Eu sei da história, mestre. Já ouvi meu tio, bêbado, tocando as
canções sobre a tragédia da casa do meu pai. Pela letra da música, meu pai
não parecia ter sido tão sábio ou um grande manipulador de palavras, pois se
assim o fosse, não teria sido traído pelo Rei Louis e nem pelo Líder dos
orcs...
— Seu pai não errou com eles, meu jovem. Ele foi honrado, e defendeu
seu nome e sua palavra até o fim. Não se pode culpar um homem por ser
vítima de falsas promessas ou traições. Por isso é totalmente imprudente e
desonroso nosso futuro rei fazer promessas que não pode cumprir, ou usar
palavras de maneira tola. A história de Minalkar começou com uma
enganação e terminou em traição. E essa é a história que corre em suas veias,
meu Jovem Rei.
— Rei? Rei do quê, mestre?! — Explodiu Rubyo com um ar de rebeldia
juvenil, potencializado pelo álcool do vinho. — Olhe para mim! Olhe
minhas roupas, meu cabelo, minha pobreza! Nem se eu morasse em um
chiqueiro, e olha que moro ao lado de um, eu seria o rei dos porcos, vá dizer
de Minalkar!
— E você acha que toda a dinastia de Edmund teve uma vida abastada e
tranquila, meu senhor? — perguntou Ollaff calmamente, contrastando com a
ira do jovem. — Então está na hora de conhecer mais suas raízes para
entender de onde veio, e talvez assim conseguir decidir para onde você está
indo.
Ollaff aproveitou o momento dramático e abriu o enorme livro sobre a
mesa, com a capa escrita numa linda caligrafia: “Uma Breve História de
Minalkar”. Rubyo se debruçou sobre a mesa e escondeu o rosto entre seus
braços. O velho mestre pigarreou levemente e começou a leitura, em voz
alta, forçando um tom professoral e erudito, em postura ereta, demonstrando
total respeito pelo livro que lia.
— “Com o falecimento do rei Edmund I, cavaleiro do dragão de
madeira e fundador de Minalkar, seu único filho, Edmund II, ascendeu ao
trono e resolveu fazer importantes mudanças em toda a estrutura geográfica,
política e econômica do reino. Edmund II, chamado depois de O Sábio, era
um leitor assíduo desde alfabetizado, e enquanto príncipe, lutara em várias
batalhas em nome de seu pai. Unindo seu conhecimento teórico e
experiência militar, Edmund II sabia que as guerras jamais acabariam, e por
isso, entendeu que seria mais inteligente investir os recursos no preparo
mental e físico de seu povo e de seu exército, do que simplesmente aumentar
o número de soldados. Entre as diversas medidas que tomou em suas
reformas, o rei elegeu como Artesão Real o senhor Carlo Ishmiter, que
armou seu exército com os melhores equipamentos existentes na época e
forjou, para Edmund, a espada Sabedoria. Escolheu como Engenheiro e
Construtor Real, o famoso Naenuo Augow, vindo das terras quentes do
Sudeste com a missão de construir as muralhas de Minalkar, assim como
passagens secretas que permitissem maior segurança para a família real.
Escolheu, como Mestre das Ciências, o jovem mago Ollaff Morrenn,
formado na academia de Magos de Michello, para conduzir experimentos,
estudar modernidades e lecionar para a corte. Nomeou como Mestre de
Caça…”
— Pera aí, mestre... — interrompeu Rubyo, surpreso. — O senhor
estava na corte desde os tempos de Edmund II?
— Sim, meu senhor. — respondeu Ollaff, com um riso discreto. — Eu
certamente não aparento ser jovem, mas também não demonstro toda a idade
que tenho. Alguns dizem que, por minha pele ser negra, eu demoro mais
para aparentar a idade... Já outros afirmam que minha longa barba ajuda a
esconder e distrair as profundas rugas do meu rosto. Mas, na verdade, minha
aparência é fruto de diversas magias e poções de rejuvenescimento de corpo,
alma e mente, pois preciso estar apto para ensinar ao meu último rei.
— Último rei? Quer dizer, eu? — perguntou Rubyo, apontando com o
polegar para si. — Então, depois de mim...
— Sim, meu rei. Depois de te ensinar tudo o que precisa saber para ser
coroado, terei cumprido minha promessa ao rei Edmund II e poderei me
aposentar das obrigações reais. Quando me formei em Michello, há pouco
mais de duzentos verões, jurei dedicar minha vida ao estudo, ao ensino e às
artes, pois fiquei viúvo logo cedo e nada mais na vida me trazia sentido além
da ciência. Me senti muito honrado com o convite do rei de Minalkar, pois
eu ainda era muito jovem e vivia o luto por minha esposa. Essa nova missão
me salvou das trevas em que vivia. Como gratidão ao seu antepassado, jurei
condicionar minha promessa de ensino para todo fruto da casa de Edmund,
que acabou em você.
— Acabou em meu pai, mestre. Não tenho o nome Edmund. Sou Hant,
assim como minha mãe. — respondeu Rubyo, com um tom de pesar na voz.
— Achei que as palavras não te importavam tanto, meu rei, então por
que nomes importariam? Você é filho de Edmund VI, tem o sangue real,
assim como as atitudes inquisidoras e teimosas de seus familiares... e olha
que o sei bem, pois já convivi com mais Edmunds do que gostaria.
Ollaff esboçou uma gargalhada contida, que rapidamente se
transformou numa tosse seca. Aproveitou que Rubyo parecia envolto em
pensamentos e pulou algumas páginas do livro; mas ao retomar a leitura, foi
interrompido pelo jovem Norm, que trabalhava como atendente em sua loja:
— Senhor Ollaff, perdoe a intromissão, mas tem um senhor aqui
querendo raízes de Barba de Fantasma, que já acabou há dias. Sabe quando
chega mais? — perguntou Norm, com apenas a cabeça apontando na porta
por onde Rubyo entrara mais cedo.
— Diga a ele que retorne na outra semana, Norm. Explique para ele que
o barco que traz nossos suprimentos de Fallemyr foi afundado por serpannas
mês passado, mas até o fim dessa semana deve chegar mais. — respondeu
Ollaff. — Agora, feche a porta, por favor.
— Barba de Fantasma? — perguntou Rubyo, curioso, enquanto Norm
saía da sala.
— É apenas uma planta que nasce em outros continentes, meu jovem.
Obviamente, não se pode extrair barbas de um fantasma. — explicou Ollaff,
enquanto procurava no livro o ponto onde parou a leitura.
— Isso quer dizer que fantasmas realmente existem? — perguntou
Rubyo, surpreso.
— Meu jovem, preocupe-se nesse momento apenas com os fantasmas
do seu passado. Retomando a leitura: “Aos setenta e seis anos, morre o rei
Edmund II, o Sábio, deixando três filhos homens. Seu primogênito e
herdeiro direto, Edmund III, estava prestes a assumir o trono, mas, na
véspera de sua coroação, foi convencido pelos irmãos mais novos de que um
rei realmente forte deveria lutar pelo seu trono, e assim ter o respeito de seu
povo. Edmund III, por puro orgulho, aceitou o desafio e acordaram um duelo
entre os três na Arena de Minalkar. Todos teriam algumas semanas para se
preparar, e o último que ficasse em pé durante o torneio seria o novo rei.
Logo no primeiro dia de treinamento, Edmund III sofreu uma importante
torção no tornozelo, o impedindo de treinar, condenando-o, assim, a uma
derrota certa, fato esse, que quebraria a tradição natural de sucessão e traria
instabilidade à realeza frente à corte. Em seu desespero, Edmund buscou a
ajuda de generais, mestres de guerra, cavaleiros famosos e até mesmo
artesãos que pudessem dar a ele alguma vantagem na competição, porém,
ninguém queria se associar a um provável perdedor, temendo retaliações do
futuro rei. Certo dia, Edmund foi abordado por um mascate proveniente das
montanhas frias do oriente, que prometeu ensiná-lo uma milenar arte de luta
de sua terra, a qual Edmund, mesmo machucado, poderia utilizar da força de
seus adversários para vencê-los. Em troca, caso vencesse, o mascate pediu
metade do tesouro do reino. Edmund, em desespero, prontamente aceitou e
treinou todos os dias restantes com o mascate anônimo. No dia do grande
torneio pelo trono, foi capaz de matar seus irmãos com movimentos de
contra-ataque tão rápidos e brutais que chocou a quem assistia, pois ele mais
parecia um animal bestial brincando com sua presa que um príncipe
lutando...”
— Essa é a origem da Eddor, mestre? — perguntou Rubyo.
— Sim, meu senhor. Edmund III aprimorou tudo o que lhe foi ensinado
pelo mascate e criou a Eddor, fazendo com que todos os seus generais a
aprendessem e, posteriormente, treinassem seus exércitos com as técnicas,
criando soldados extremamente mortais. Essa foi a linha de defesa mais
importante de Minalkar desde então.
— Meu tio tem me ensinado a Eddor desde meus três anos, e mal
consigo acertar os movimentos e passos certos ainda... não sei como
Edmund III conseguiu aprender tão rápido!
Ollaff desviou o olhar de Rubyo, voltando sua atenção para o livro e
passando algumas páginas. Após alguns segundos, respondeu:
— Nunca subestime o desejo de um homem por coroa, tesouro ou por
mulheres. Alguns são capazes de secar um rio, derrubar uma montanha com
as mãos ou, até mesmo, aprender uma arte complexa como a Eddor em
poucos dias, só para satisfazer seu desejo de poder... ainda que use alguns
subterfúgios para isso. Mas, enfim, Edmund III já tinha o direito natural ao
trono, mas aceitou lutar com seus irmãos para ganhar não só o reino, mas
também o temor de seu povo, pois ele sabia que haveria comparações, e ele
jamais seria um rei tão bom quanto seu pai e seu avô foram antes dele.
— A Eddor é realmente incrível, não é? Meu tio disse que já lutou
sozinho contra cinco homens de uma só vez, mesmo desarmado, e matou
todos os inimigos sem se ferir!
— Eu não duvido, meu jovem, e te digo que, provavelmente, esse ainda
não foi o maior feito de seu tio. Nunca houve em nosso reino um guerreiro
como Argus, nem mesmo Edmund III. Seu tio aprendeu a Eddor ainda
criança com os generais do seu avô, Rubyo, e aperfeiçoou a técnica pelos
livros antigos escritos pelo próprio Edmund III, que ficavam guardados em
minha biblioteca lá em Minalkar. Desde então, a Eddor é a vida dele. Seu tio
é, na verdade, um grande sacerdote que nunca pensou em se casar, pois se
sente casado com a Eddor, e já tem você como filho.
— Filho?! Ele não me trata como um filho! Às vezes odeio meu tio por
ser tão duro comigo, e até mesmo sinto que ele nem me quer por perto... —
confessou Rubyo, cabisbaixo.
— Jamais diga uma besteira dessas, meu senhor! Seu tio é um militar,
um guerreiro, e te traz uma disciplina rígida, pois sabe que você precisa estar
forte para o porvir. Você carrega o fardo que deveria ser dele. Perdoe pelas
duras palavras, meu jovem, mas você é o filho bastardo de um rei morto que
tem um irmão vivo na linha de sucessão. Seu tio abdicou ao trono antes da
tragédia toda de seu pai acontecer, desejando seguir com uma vida de
torneios e batalhas, viajando o mundo regado a sangue, vinho e mulheres...
se você não tivesse nascido, a coroa seria dele após a morte de seu pai,
mesmo que ele nunca desejasse isso.
— Mas se meu tio é tão bom guerreiro, por que não salvou meu pai?
Ele estava na capital quando Minalkar foi cercada pelos orcs...
— No dia trinta e nove do cerco dos orcs, Rubyo... — disse uma voz
feminina e rouca vinda de uma sala ao lado, que dava acesso à entrada dos
fundos da loja. — Seu pai percebeu que não conseguiria mais resistir às
tropas de Inak e que, realmente, o socorro não viria de Alferius. Ele mandou
que buscasse Argus, que lutava na linha de frente da resistência nos portões,
e o incumbiu de liderar todo o seu povo pelas cavernas do Caminho
Segundo, em direção ao Rio Miriba. Seu tio recusou a princípio, mas mudou
de ideia justamente quando você foi entregue em seus braços e sorriu para
ele.
— Senhora Rosalind, não sabia que viria tão cedo! — disse o velho
mestre, surpreso, enquanto saía do caminho para a passagem do apressado
jovem Rubyo, que correu em direção à velha senhora. — Você quase me
mata de susto quando fica ouvindo nossas aulas, ao pé da porta.
— Senhora Rose, que bom te ver! — gritou Rubyo, enquanto tentava
abraçar a robusta senhora com seus braços curtos.
— Desculpe Ollaff. — disse Rosalind, olhando para o ancião, enquanto
bagunçava o cabelo de Rubyo num cafuné. — Resolvi vir mais cedo para
não deixar esse reizinho com fome, mas não quis atrapalhar a aula. Rubyo,
trouxe uma torta de maçã nessa cesta, e amanhã deixarei na sua casa um
novo casaco com as cores de Minalkar, pois pelo que vejo, o que te dei ano
passado já está bem curto, não é?
Rubyo tentou puxar as mangas para disfarçar, mas realmente, sobrava
braço para pouco tecido.
— Obrigado, senhora Rose! Os seus presentes são sempre os melhores!
— disse Rubyo, abraçando novamente o corpo roliço de Rosalind.
— Não diga isso sobre os presentes da Rose perto do seu tio, Rubyo,
ainda mais com o presente que ele vai lhe dar hoje... — disse Ollaff,
enquanto partia um pedaço da torta, ainda quente, que pegara na cesta de
Rosalind.
— Presente? — perguntou Rubyo, surpreso. — Meu tio nunca me dá
presentes! Se ele te disse algo, mestre, deve estar apenas brincado com o
senhor.
— Você sabe qual é esse misterioso presente, Ollaff? — perguntou
Rosalind, curiosa, tomando de Ollaff o primeiro pedaço da torta e comendo-
a.
— Esqueçam sobre isso, já falei demais! — disse Ollaff, rindo de canto
da boca pelo mistério que deixara no ar, enquanto partia outro pedaço de
torta para si.
— Se não vai satisfazer minha curiosidade, então já vou voltar para o
castelo antes que a rainha note a minha ausência em seu desjejum. — disse
Rosalind, acabando de engolir o pedaço de torta. — Feliz aniversário, Jovem
Rei! Que a idade lhe traga força, sabedoria e juízo, pois nosso povo conta
com o senhor!
Capítulo 2: O Presente
Ollaff limpou as mãos engorduradas em sua própria roupa e, quão logo
engoliu o último pedaço, já retomou a leitura do gigantesco livro à sua
frente.
— “Devido ao enorme rombo no tesouro real, cuja metade foi levada
pelo mascate misterioso, Edmund III não teve outra opção a não ser
aumentar os impostos que praticava ao povo e à corte para reequilibrar as
finanças. Custava caro manter o enorme exército que ele montava e treinava
para fazer frente à constante ameaça dos orcs do Oeste, e com isso, precisou
fazer cortes nos serviços públicos que oferecia aos seus súditos. A pressão
social devido ao descontentamento com o rei estava crescendo rapidamente,
e nem mesmo o temor que o povo tinha de Edmund III era capaz de conter
as rebeliões que se formavam. Numa medida impensada frente ao forte
inverno daquele ano, Edmund não cedeu ao povo os grãos da reserva real
para saciar a fome, o que resultou em revoltas sangrentas que levaram ao
início de uma guerra civil, causando massacres no povo minalkariano pelas
mãos do próprio exército real. Cansado de ver seus familiares e amigos
sofrendo, Jeremy Cowa, copeiro do castelo, resolveu envenenar o rei
Edmund, trazendo sua morte prematura aos trinta e seis anos. Jeremy foi
considerado herói por parte do povo, mas foi exemplarmente torturado pelos
membros da corte real, em praça pública. O regicida, assim como o restante
da família Cowa, foram condenados a servir para sempre à realeza,
instituindo a Lei do Primeiro Pedaço. À família real, restou apenas aguardar
o único filho do rei, Edmund IV, atingir a idade e o conhecimento necessário
para assumir o trono, ficando como seu tutor e regente o barão Korreyn
Kalmarson."
— Cowa? — perguntou Rubyo, surpreso. — Então esse tal Jeremy era
parente da senhora Rose?
— Sim, era avô dela. Mas ninguém da família Cowa tem orgulho do
que aconteceu e mal falam do tal Jeremy... A única herança que ele deixou
para toda a família foi essa dívida eterna de serviço para a Casa de Edmund
e a Lei do Primeiro Pedaço também. Por isso, a senhora Rosalind era a
copeira do seu pai.
— Nunca ouvi falar disso, mestre. — respondeu Rubyo
— Você notou que a senhora Rosalind não me deixou comer o primeiro
pedaço da torta? É um costume arraigado na família dela, devido a essa lei.
Os Cowa devem sempre comer o primeiro pedaço de qualquer coisa que
ofereçam a alguém para provar que não está envenenado. Por comer tanto
assim, a senhora Rose ficou corpulenta daquele jeito.
— Pelas tetas de Selline! Sempre achei que ela era gulosa! Coitada... e
ainda é neta de um regicida...
— Cuidado com seu linguajar, meu senhor. Da boca de um rei devem
fluir apenas palavras virtuosas e verdadeiras, e não termos sujos como esse!
Uma mesma fonte não jorra duas águas diferentes. — repreendeu Ollaff.
— Desculpe mestre, são só palav…— Rubyo olhou rapidamente para
Ollaff, notando o erro que cometeria novamente. — Quer dizer, me
desculpe, mestre. Prometo que... digo, tentarei ser melhor.
— Isso sim é o comportamento de um grande rei: aprende com seus
erros e assimila suas lições! — aplaudiu Ollaff. — Creio que isso mostre que
já chega de aulas por hoje, meu jovem, afinal, é seu aniversário e precisa ter
tempo para comemorar. Volte amanhã bem cedo e traga seu alaúde, pois
vamos iniciar as aulas de magia e dar seguimento às escalas musicais com
instrumentos de corda...
— Aulas de magia? — perguntou Rubyo, com os olhos brilhando. —
Vou aprender a falar com o fogo, como o senhor?
— O fogo já te ouve, meu jovem, mas ainda não entende o que você
fala. Vou te ensinar a cantar para ele até que vocês se entendam. — disse o
velho mestre, enquanto se afastava da mesa. — Mas, espere um momento.
Ollaff arrastou a pesada cadeira de madeira em que estava sentado,
bateu em sua barba para tirar os farelos da torta e foi até uma prateleira no
canto da sala, onde repousava uma caixinha prateada. O ancião levou o
objeto até Rubyo, que seguia sentado observando atentamente à cena. Ao
abrir a caixinha, o aniversariante encontrou um colar feito de um cordão
trançado com um pingente de cristal.
— Amanhã te ensinarei tudo o que precisa saber sobre esse colar. Por
hora, apenas se lembre de nunca tirá-lo, e procure sempre escondê-lo de
olhares curiosos. Nunca se sabe quando precisará dele. — Ollaff se abaixou
e abraçou seu pupilo. — Feliz aniversário, meu senhor! Que os Três possam
te abençoar em sua jornada!
Ainda sem entender muito bem, Rubyo devolveu o abraço para Ollaff,
levantou-se e vestiu seu novo colar. Com uma singela reverência, agradeceu
pelo tempo e pelo presente de seu mestre, deixando o local rumo às agitadas
ruas de Nenáreah.
O sol estava a pino, e a lama fina que cobria as ruas já estava mais seca,
facilitando o caminhar. Apesar de ter comido há pouco a torta que Rosalind
lhe dera, um cheiro inebriante de javali assado exalava da Taverna Sol
Vermelho, que ficava perto dali, enchendo a boca do jovem de saliva.
Rubyo gostava de ir até essa taverna, pois seus donos eram um casal da
antiga nobreza de Minalkar, que, por não terem filhos, conseguiram levar
vários de seus tesouros pessoais consigo na fuga para Alferius, durante a
guerra contra os orcs. O senhor Bower Bianco — dono da taverna —,
sempre que tinha tempo, contava para Rubyo diversas histórias sobre sua
terra e sobre a família real, e vez ou outra dava algumas guloseimas para
agradar seu soberano. Mas, infelizmente, não eram todos que tratavam
Rubyo com essa mesma cordialidade.
Diversos refugiados de Minalkar que viviam em Nenáreah, tratavam
Rubyo com certo desprezo e deboche. Para eles, o filho bastardo e único
herdeiro do amado rei Edmund VI, era a representação da lembrança de suas
tragédias e a personificação da frustração de seus sonhos de, quem sabe, um
dia, deixar a vida miserável que levavam em Alferius e retornar para sua
casa. Já para a maioria, o príncipe herdeiro representava a esperança de que,
de alguma maneira miraculosa, veriam a restauração do glorioso reino de
Minalkar.
Rubyo sentia na pele essa divisão entre os refugiados e compreendia o
comportamento que tinham para com ele, ainda que nunca tivesse desejado
estar naquela posição incômoda de herdar, não um reino, mas uma espécie
de dívida. Mas, naquele momento, a única preocupação de Rubyo era com
seu estômago, então rumou para a taverna.
Na frente da Sol Vermelho existia um enorme quadro de avisos com
diversas propostas de trabalho, caças, pedidos de socorro, textos racistas
contra os minalkarianos e, destacando-se entre eles, um papel de alta
qualidade com o selo real informando sobre um torneio chamado de:
“Perdão dos Deuses”, onde prisioneiros de todo o reino lutariam até a morte
por sua liberdade. Rubyo gostaria de assistir à competição que ocorria
somente a cada dez anos, mas sabia que seu tio não teria dinheiro para
comprar os caros ingressos do coliseu.
Ao entrar na taverna e perceber o quão cheio estava o local, o jovem
desanimou, pois sabia que não teria a atenção de seu anfitrião e nem sua
cortesia, pois o mesmo deveria, junto à sua esposa, estar cozinhando e
servindo as mesas. A taverna era composta de dois andares, sendo o superior
destinado para quem quisesse dormir em seus humildes quartos. O piso
inferior era um enorme salão, todo feito de madeira e pedras, com mesas
compridas espalhadas em torno de uma lareira central, que era utilizada para
assar o animal do dia.
O aroma que exalava do javali sendo preparado ao molho de frutas
cítricas se misturava com o cheiro de cerveja e de pão fresco assado, fazendo
o coração de Rubyo até acelerar de tanta fome que sentia, como se não
comesse há dias. A música estava alta, sendo tocada por um famoso grupo
de bardos no canto do salão. Rubyo tentava não reparar, mas criticava
mentalmente cada nota errada ou confusão na letra cantada pelo grupo, tendo
certeza de que faria melhor do que qualquer um deles.
Ao passar pela multidão, viu de relance a senhora Marilyn, esposa de
Bower, que sorriu para Rubyo e fez um respeitoso aceno com a cabeça ao
jovem rei, enquanto carregava incontáveis canecas sujas de cerveja e saliva
de volta à cozinha. Rubyo olhou em todas as direções tentando encontrar o
senhor Bower, mas não conseguiu. Ao olhar para cima, Rubyo reconheceu
seu amigo, Gary, que estava na escada que dava acesso ao segundo andar,
olhando para baixo como uma ave de rapina em busca de presas.
Gary, ao ver seu amigo, abriu um sorriso e o chamou para subir e
sentar-se ao seu lado, alcançando o mezanino com suas pernas, balançando
para a queda, enquanto apoiava seu tronco numa das ripas de madeira do
guarda-corpo. Gary era três anos mais velho que Rubyo, mas tinha
exatamente a mesma altura, apesar de ser mais magro e ter braços mais
compridos.
O jovem Bortolly tinha seu corpo todo angulado, com pontas de ossos
proeminentes em sua coluna, cotovelo, joelhos e até mesmo em seu rosto,
apresentando um nariz longo e fino, além de um queixo proeminente. Seus
cabelos pretos ficavam sempre envoltos por uma bandana cinza, que
combinava com suas roupas um pouco largas e escuras, e contrastava com
seus olhos muito azuis.
— Já almoçou, Rubyo? — perguntou Gary.
— Mais ou menos… comi um pedaço de torta agora há pouco, mas eu
comeria de novo, com certeza! — respondeu Rubyo, olhando fixamente para
o javali sendo assado na lareira central
— Então vamos comer uma carne assada, por minha conta! É seu
aniversário hoje, não é?
— Sim, estou fazendo doze anos! — respondeu Rubyo, orgulhoso.
— Então esse será meu presente! Afinal, um rei deve comer como um
rei, certo? — disse Gary, num tom debochado, rindo para seu amigo.
— Você não é de Minalkar para me ter por seu rei. — respondeu Rubyo
de modo ríspido, claramente irritado com a provocação. — Além disso, não
dá para você ficar me oferecendo coisas que você não tem! Sejamos
sinceros, Gary: você é tão pobre quanto eu... as únicas duas coisas que você
tem, e que eu não tenho, é uma mãe e essa sua cara de fuinha!
— Hahaha, essa foi boa, Rubyo! — disse Gary, gargalhando. — Mas
você se esqueceu que tenho mais algumas coisas do que você... Sou mais
habilidoso, mais rápido, e com certeza tenho muito mais “sorte” em
encontrar dinheiro que está sobrando nos bolsos alheios. Observe e aprenda,
pois vou providenciar comida para nós.
Gary saltou do mezanino onde estavam e pousou como um gato sobre
uma mesa desocupada que estava abaixo deles. O jovem ladino avistou de
longe um homem visivelmente bêbado, que ia se levantando do balcão, com
a barba suja de cerveja, cambaleando em direção aos fundos da taverna,
provavelmente para usar a latrina que ficava do lado de fora. Como um
predador, Gary o alcançou em poucos passos, tornando-se um apoio para o
boêmio, que mal pode notar quando sua bolsa de moedas foi surrupiada por
aquele bondoso jovem que o ajudara a não cair no chão; a bolsa deslizou
sobre a longa manga da camisa preta desbotada.
Girando contra o próprio corpo, Gary parecia bailar enquanto seguia de
volta para a escada na direção de Rubyo, com mãos ágeis enquanto se
embrenhava no meio do povo, conseguindo roubar mais duas ou três bolsas
de moedas de consumidores da taverna que estavam distraídos, rindo,
comendo, bebendo e dançando ao som dos bardos. Ao sentar-se ao lado de
Rubyo, Gary jogou uma das bolsas de moeda em seu colo, com um sorriso
orgulhoso no rosto, e disse-lhe:
— Não sei te ensinar a lutar como seu tio, e muito menos a falar bonito
como aquele velhote barbudo, mas posso te ensinar o mais importante: não
morrer de fome, onde quer que esteja. — disse Gary, passando uma das
moedas de ouro surrupiadas entre seus dedos, de um lado para o outro,
demonstrando habilidade.
— Roubar é errado, Gary. — disse Rubyo de maneira quase mecânica,
parecendo tentar convencer mais a si mesmo do que ao seu amigo, olhando
para a bolsa de moedas e, em seguida, para o javali sendo assado.
— E o que é certo nessa droga de vida, Rubyo? Certo é ver os guardas
espancando os velhos da nossa vila que não conseguem pagar os impostos?
Certo é ficarmos aqui, vendo esses homens com as bolsas cheias de dinheiro,
gastando com putas e cerveja enquanto morremos de fome?! — perguntou
Gary, irritado com a crítica de seu amigo.
— Não sei, Gary..., mas deve existir algum jeito das coisas se
equilibrarem sem prejudicarmos ninguém. Meu povo vive aqui na miséria,
mas todos sempre buscam uma maneira honesta de viver.
— Seu povo? — gargalhou Gary. — Acho que seu tio e o velhote
careca estão mesmo te convencendo sobre essa história de ser rei...
— Não sou rei de nada, mas sou um príncipe, sim... ainda que não
tenha reino algum. — argumentou Rubyo, envergonhado.
Gary se sentou novamente ao lado do amigo, e disse-lhe:
— Você sabe que vários dos refugiados riem de você, não é?! Falam
que você não passa de um mendigo de sangue real... Mas fique tranquilo,
pois eu me vingo de cada um deles por você, meu amigo! E o prejuízo deles
é a alegria da minha mãe e da minha irmã, que hoje vão dormir com a
barriga cheia de novo! — disse Gary, sorrindo com satisfação.
— Obrigado Gary, mas não precisa de...
— Já chega, Rubyo! Chega de discussão, hoje é seu aniversário! Vamos
comemorar com um pedaço daquele javali bem gordo!

***

Gary e Rubyo deixaram a taverna limpando as mãos engorduradas em


suas roupas maltrapilhas e rumaram para o vilarejo onde moravam, que
ficava pouco além do portão oeste da capital. A pequena vila não tinha
nome, mas o movimento de carroças era constante devido à proximidade do
portão oeste com o porto da cidade. A região da vila era pantanosa, com um
cheiro rançoso de enxofre que pairava constantemente no ar e que, embora
discreto, era o suficiente para manter os preços das terras e das casas bem
baixos naquele lugar.
Rubyo se despediu do amigo em frente à casa dele e cumprimentou de
longe a senhora Bortolly e a irmã caçula de Gary, que se escondia atrás do
vestido da mãe. Ao chegar em sua casa, Rubyo pretendia descansar nas
poucas horas que lhe restavam até a aula de Eddor, que teria no fim da tarde,
quando seu tio chegasse do trabalho. Argus trabalhava na Companhia Real
de Pesca, que era, basicamente, uma associação de pescadores que
forneciam peixes e frutos-do-mar para o Castelo de Alferius. Argus se
destacava devido à extrema agilidade e destreza, sendo uma referência para
seus colegas pescadores. Rubyo achava estranho e se perguntava se a rainha
Lucrécia sabia que seu ex-cunhado, a quem ela tanto odiava, era quem
fornecia os peixes que comia diariamente.
Alferius, que no idioma antigo significava “Terra Alagada”, era um
reino muito rico e próspero por diversos fatores. Do ponto de vista histórico,
o reino de Alferius se beneficiava de uma aliança quase milenar entre Elfos e
Humanos que, juntos, venceram e afugentaram as criaturas e raças mais
fracas que ali viviam, antes que Ottonni Lurullo liderasse os exércitos
aliados e conquistasse a região. Geograficamente, Alferius gozava de uma
proteção a oeste pelas Montanhas Geladas, que cercavam todo o reino; ao
norte pelo desfiladeiro do rio Parny; e toda sua costa leste e nordeste pelo
famigerado Rio Dourado, cujas águas cortavam todo o continente de
Cehvambar, desembocando no Mar do Sul, exatamente no porto de
Nenáreah.
A capital, por ficar bem no delta do Rio Dourado, era palco de todo o
tipo de comércio das mercadorias que rodavam o continente, bem como o
que saía e o que chegava em Cehvambar, tornando-se, assim, uma das
cidades mais ricas do mundo. Para quem morava em Nenáreah, o comércio e
a pesca eram as principais atividades econômicas, e empregos não faltavam.
Por isso, a maioria dos refugiados de Minalkar acabaram abraçando a capital
como sua segunda casa, ainda que sujeitos a empregos quase a níveis de
escravidão e sofrendo toda a sorte de preconceitos, marcados em suas almas
e em seus punhos.
Rubyo deitou-se em sua cama, ainda empanturrado pelo tanto que
comera. Na pobreza em que vivia com seu tio, qualquer oportunidade de
comer, ainda que não precisasse, não podia ser desperdiçada. Olhando para o
teto de madeira mofada de sua casa, Rubyo passou a digerir não só a
refeição, mas também as coisas que vivera naquele dia. Pensava nas lutas de
seus antepassados, na glória e na queda de Minalkar, na filosofia de vida que
Gary levava para justificar seus atos e, principalmente, pensava nas palavras
de Rosalind: “O nosso povo conta com o senhor”.
Apesar de conhecer bem a história de sua família e entender sua
posição de príncipe bastardo e herdeiro de um reino caído, Rubyo nunca
havia parado para pensar, até aquele momento, no que de fato o povo
minalkariano esperava dele. As saudações cerimoniais, o carinho, e claro, as
críticas e deboches que recebia do povo, não eram simplesmente pelo título
que ostentava por sua descendência. Na verdade, eram um pedido de
socorro... um clamor por alguma atitude da única pessoa que poderia lutar
por eles, ainda que essa pessoa fosse um jovem franzino de doze anos, que
sofria ao ver aquele povo chorar por saudades de sua casa, e pelos tempos
áureos da gloriosa Minalkar.
E foi ali, naquele momento, com a barriga cheia de javali assado e com
a mente repleta de pensamentos, que Rubyo percebeu que jamais teria uma
verdadeira paz enquanto não aprendesse a lidar com aquela responsabilidade
e, quem sabe, cumprir com as expectativas que tinham sobre ele. Não era
justo, afinal, ele nunca desejara nada daquilo, porém o que era justo em sua
vida?
Mas o que ele poderia fazer, sendo tão fraco, tão pobre e tão impotente?
Se nem seu pai, um rei sábio e virtuoso, ou seu tio, o maior guerreiro do
continente, conseguiram impedir a tragédia de Minalkar, o que poderia ser
feito por ele?
As dúvidas brotavam na cabeça de Rubyo como o mofo brotava na
madeira do telhado, e o frio da incerteza percorria todo o seu corpo. Ele
precisava reconquistar as terras de um reino para seu povo, mas morava num
pequeno casebre em que mal tinha comida. Precisava espantar um exército
de orcs que dominaram Minalkar, mas mal acertava os golpes que seu tio o
ensinava.
Naquele momento, as palavras de Gary faziam mais sentido do que
nunca. Talvez, para vencer alguns jogos, seria necessário deixar de lado o
que é certo e burlar algumas regras... ou simplesmente não jogar. Talvez
devesse apenas fugir, desaparecer, e tentar a sorte de uma outra vida onde
ninguém o reconhecesse, sem que houvesse preocupação alguma além de
apenas sobreviver às suas próprias mazelas, afinal, seu tio fizera algo
parecido abandonando sua posição real para viver a vida de lutador...
Enquanto sua mente travava batalhas intermináveis de dúvidas e
incertezas, regado a um forte senso de responsabilidade que não o deixava
em paz, um ensinamento de Ollaff surgiu na mente do jovem: “Se você pode
resolver o problema, então não tem com o que se preocupar. Mas se você
não pode resolver o problema, do que adianta a sua preocupação? Consumir
tempo demais pensando nos problemas só os tornará maiores, não os
tornarão resolvidos”.
Rubyo nem se deu conta que cochilara enquanto tentava juntar as peças
daquele quebra-cabeças que era a sua vida, mas foi abruptamente desperto
por seus ouvidos aguçados, ao perceber um discreto som de madeira
rangendo ao seu lado direito. Por puro reflexo, Rubyo girou seu corpo para a
esquerda, já alcançando o punhal que sempre mantinha debaixo do
travesseiro de feno, caindo de joelhos ao lado da sua cama, enquanto um
vulto errava o golpe contra ele e acertava o leito onde estava. Com um
impulso de seus tornozelos e pés, Rubyo mergulhou seu corpo contra o
agressor, caindo sobre ele e levando o punhal à garganta do inimigo.
— Muito bem, Vermelhinho! Parece que a idade está mesmo lhe
trazendo força e destreza! — disse Argus, afastando calmamente a mão de
Rubyo com o punhal de seu pescoço.
— Que merda, tio, eu poderia ter te matado! — gritou Rubyo, com os
dentes rangendo e o coração disparado, enquanto largava o punhal.
— Não poderia não, garoto, nem mesmo se você quisesse. Mas
realmente me deixa orgulhoso ver como seus instintos e reflexos têm ficado
mais apurados com o tempo! A Eddor está te fazendo muito bem! Agora vá
limpar essa cara cheia de gordura e venha para a sala, está na hora do seu
presente.
Ainda tremendo pelo susto, Rubyo desceu rapidamente até o térreo,
atravessou a cozinha e foi até o quintal para usar o barril cheio de água fria
da chuva e se lavar. Ainda molhado, e claramente ansioso, Rubyo voltou
para a sala e sentou-se em uma das poltronas velhas perto da lareira, onde
seu tio estava arrumando a lenha para afugentar o frio da tarde de outono que
caía.
— Como foi de aniversário, Vermelhinho? — perguntou Argus,
enquanto ajeitava cuidadosamente as lenhas.
— Foi muito bom, tio. A senhora Rose fez uma torta para mim, o Gary
me pagou um almoço e o mestre Ollaff me ensinou mais sobre a história da
nossa família. — respondeu Rubyo, satisfeito.
— Ou o seu dia foi bom, ou você aprendeu errado sobre a história da
nossa família, pois as duas coisas não têm como. A história da casa de
Edmund é uma tragédia seguida da outra. — disse Argus, com um tom seco
e crítico em sua voz.
— Uma história não precisa de final feliz para ser bela, tio. —
argumentou Rubyo.
Argus olhou surpreso para Rubyo, abriu um sorriso e disse-lhe:
— Seu pai me dizia a mesma coisa! Por um momento, senti como se
estivesse conversando com ele... isso se, é claro, ele estivesse com o cabelo
enferrujando e ficando ainda mais ingênuo do que já era! — Argus deu um
discreto sorriso de canto ao perceber a careta do sobrinho. — Sabe, Rubyo,
você tem bem mais do seu pai do que imagina. Ele também sempre ficava
perdido em pensamentos, olhando com cara de bobo para o nada, remoendo
as lições do velho Ollaff, enquanto tentava chegar em conclusões sobre a
vida e o futuro do reino. Nosso pai sempre admirou isso nele, enquanto me
via apenas como um cão de caça que estava sendo preparado para liderar a
matilha de seu exército.
Rubyo percebeu a oscilação de humor do tio, que partiu de um tom
nostálgico quanto ao irmão, e mudou para algo ácido ao falar do próprio pai.
Com cuidado, mas curioso, Rubyo perguntou:
— E você odiava seu pai por isso, tio? Por pegar pesado com você?
— Na época, talvez… assim como você deve me odiar às vezes. —
respondeu Argus com um sorriso de canto de boca. — Mas hoje entendo que
seu avô já sabia os passos que seus filhos iriam dar. Ele não precisava de
esforço para manter a inclinação acadêmica que o seu pai tinha e o seu senso
de nobreza, assim como não conseguiria me privar dos meus instintos mais
selvagens, potencializados pela paixão que sempre tive pela Eddor. Sei que
meu velho pai fez o que pôde enquanto teve saúde para cuidar de nós e do
reino.
Argus abaixou novamente e bateu duas pedras de faísca, uma contra a
outra, até produzir chamas na palha colocada embaixo das lenhas. Em
seguida, levantou-se e sentou-se ao lado de Rubyo, na outra poltrona,
olhando as lenhas estalarem com o calor. Os dois ficaram em silêncio por
alguns momentos. Rubyo tentava disfarçar sua ansiedade e curiosidade pelo
tal presente e, olhando para o tio, não conseguia diferenciar se ele estava
envolto em pensamentos ou se estava apenas apreciando o suspense que
criara na cabeça do aniversariante. De repente, Argus retomou a conversa:
— Rubyo, quero que você saiba que seu pai teria muito orgulho do
homem que você está se tornando. Para ser sincero, quando eu te recebi em
meus braços, eu não tinha nem ideia do que fazer com aquele pequeno
pacote de gente, com um cheiro forte de merda, que me foi entregue. Mesmo
assim, segui cegamente a ordem do meu irmão e guiei nosso povo para a
fuga, principalmente para salvar você e o futuro da nossa família, ainda que
meu desejo fosse, na verdade, ficar lutando ao lado do seu pai até o último
orc, ou até o último suspiro de vida. Nem sempre devemos seguir nossos
desejos, mas sim, o nosso dever, e isso diferencia um homem de um menino.
Eu e seu pai fizemos o que deveríamos para salvar a casa de Edmund, pois
ela não pode acabar... ela deve retomar Minalkar e devolver os dias de glória
ao nosso povo.
Rubyo ficou emocionado com as palavras de seu tio que,
surpreendentemente, estava com os olhos marejados enquanto falava.
Conforme sua empolgação se abrandava, um certo temor tomou conta de
Rubyo, que perguntou:
— Mas tio, como faremos isso?
— Como faremos o quê? — repetiu Argus, fingindo surpresa. — “Nós”
não faremos nada. Isso é com você, o príncipe herdeiro. Sou apenas o
príncipe maluco que abriu mão de tudo para viver uma vida de boemia e
violência... não é isso o que dizem de mim?
Rubyo fez um grande esforço para não deixar seu semblante mudar,
como confirmação ao que o tio dissera, mas o desespero tomava conta de sua
ansiedade juvenil frente àquelas palavras, que apenas aumentavam todas as
dúvidas que ele tinha sobre seu futuro e seu dever.
— Mas tio, eu não sei o que fazer e nem por onde começar... eu preciso
que você, Rosalind, o barão Bower, o mestre Ollaff, ou sei lá, qualquer
pessoa me diga como retomar as terras de Minalkar, e eu juro que me
esforçarei para conseguir, com todas as minhas forças! — disse Rubyo,
desesperado.
Argus ponderou por alguns segundos, levantou-se e deixou qualquer
tom sarcástico para trás em seu tom de voz.
— O problema, Rubyo, é que eu realmente não sei. Nossa situação é
bastante delicada há anos. Mas como diria o seu pai, qualquer decisão em
tempos difíceis deve ser tomada com um pouco de sabedoria e muita
calma... e já está na hora de você assumir a sua sabedoria.
O aniversariante ficou em silêncio tentando entender as palavras do tio,
que caminhou lentamente até a lareira e agachou-se novamente. Mas, dessa
vez, ao invés de ajeitar a lenha, Argus enfiou seu braço na chaminé, puxando
algum tipo de pacote comprido. Enquanto desembrulhava a tapeçaria, Rubyo
notou que o embrulho era uma bandeira antiga de Minalkar, com o azul-
marinho de fundo, adornado por um enorme sol vermelho estampado.
Dentro da bandeira existia um tecido nobre, de cor verde-musgo, envolvendo
um objeto, que refletia a luz vinda da lareira num brilho metálico de uma
linda espada.
— Essa espada foi criada para Edmund II pelo melhor ferreiro que esse
continente já viu, e ela passa, desde então, de geração em geração, para
todos os reis da nossa família. — disse Argus, brandindo a espada com a
ponta virada para o teto.
A espada era comprida, e não muito grossa, com dois gumes claramente
afiados. Pelo tamanho de seu cabo, poderia ser usada com uma ou duas
mãos. A lâmina tinha um metal escurecido, quase azulado, muito diferente
de qualquer outro metal que Rubyo já havia visto antes. O cabo era envolto
em madeira enegrecida, trabalhada nos detalhes em ranhuras — o que não
trazia necessidade de couro em sua empunhadura para não deslizar. Um
lindo pomo dourado contrastava com a cor escura do cabo e da lâmina,
brilhando o ouro puro do qual era feito. No guarda mão, dois enormes rubis,
um de cada lado, faziam brilhar ainda mais o aço azulado que, entre os
gumes, podia-se ler, de baixo para cima, a palavra "SABEDORIA" esculpida
num desnível perfeito, em caligrafia minalkariana.
— A partir de hoje, Rubyo, essa espada será sua, e você jamais deverá
deixar outra pessoa empunhá-la. É uma relíquia da casa de Edmund e deve
ser usada apenas por seus reis. Espero que a partir de agora, nos momentos
difíceis, você consiga resolver seus conflitos com sabedoria... se é que me
entende. — disse Argus, com um sorriso irônico.
Capítulo 3: Eddor
Já era fim de tarde quando Argus chegou na pequena clareira em que
lecionava a Eddor para Rubyo, em algum lugar no meio da floresta
pantanosa que circundava a vila em que moravam. Passando silenciosamente
pelos arbustos, encontrou seu sobrinho ainda tentando equilibrar seus passos
e movimentos com a espada que acabara de ganhar. Apesar de a Sabedoria
não ser uma espada tão grande, era mais pesada do que um jovem de doze
anos poderia manejar facilmente.
Enquanto assistia Rubyo repassando o aquecimento e os movimentos
básicos, Argus não conseguia deixar de notar a enorme semelhança que seu
sobrinho tinha com seu irmão, Edmund VI. Seu semblante sério enquanto
treinava reforçava uma postura altiva e, ao mesmo tempo, retraída, como se
pudesse dar um bote a qualquer momento, usando aquela espada como
ferrão. Ver aquela semelhança toda e se lembrar dos incontáveis dias em que
treinava com seu irmão fazia com que ensinar para o sobrinho fosse doloroso
demais, mas era extremamente necessário, afinal, a Eddor era a arma mais
poderosa do exército minalkariano que, naquele momento, contava apenas
com Argus e Rubyo.
A Eddor era uma arte complexa, algo entre uma luta e uma dança. Era
fundamental que seu praticante ficasse o tempo todo concentrado, atendo-se
a cada detalhe do ambiente e da movimentação do inimigo, afinal, o
principal trunfo da Eddor era o contra-ataque. Para tal, seu usuário deveria
manter sempre a postura correta, respiração controlada e um adequado
movimento de pernas, braços e tronco, permitindo ser tocado pelo inimigo
apenas se isso trouxer alguma vantagem na batalha. De todas as artes
marciais existentes, nada se comparava a Eddor. Praticá-la exigia um
sacerdócio do corpo e da mente.
Apesar de ter chegado até Minalkar nos tempos de Edmund III por um
misterioso comerciante, a Eddor foi inspirada em uma arte milenar fundada
nas montanhas de Niihu, no extremo nordeste do continente de Cehvambar.
A arte foi difundida por seus praticamente que, por características raciais e
geográficas, tinham geralmente o corpo franzino e esguio — o que justifica
terem desenvolvido uma luta em que não se exigia muita força física.
Por decreto real, desde Edmund III, era proibido que a Eddor fosse
ensinada para qualquer outro povo ou para qualquer civil, sendo seus
segredos guardados a sete chaves pelo exército minalkariano, o que trazia
uma enorme vantagem militar. Dizia-se que, graças a Eddor, cada soldado
minalkariano era capaz de vencer três ou quatro inimigos no campo de
batalha. Com a queda de Minalkar pelas mãos do exército dos orcs, que
eram em número muito superior, o segredo da Eddor foi enterrado junto com
as tropas reais, ficando vivo, provavelmente, apenas Argus para ensinar a
quem julgasse digno e necessário.
Utilizando seus conhecimentos ímpares da Eddor, o príncipe Argus III
ficou famoso por todo o mundo, vencendo os principais torneios e criando
um ilibado renome entre seus soldados, um terrível temor em seus inimigos
e uma lendária paixão entre as mulheres. Contrariando seu pai, Argus jamais
teve interesse em se aprofundar nos conhecimentos científicos e políticos
como seu irmão mais velho, abrindo mão da posição na fila do trono e
recebendo o título de general do exército minalkariano. Apesar de ser o
comandante mais jovem da história, todos os inimigos temiam o nome de
Argus e admiravam a maneira bestial como lutava, a qual, não demonstrava
nenhuma misericórdia, movido por um desejo inato de vencer, sempre.
Enquanto corrigia um erro ou outro de Rubyo, que se esforçava para
acertar os movimentos e não deixar a espada cair, Argus se recordava dos
doze anos que se passaram desde o feliz nascimento de seu sobrinho e toda a
tragédia que se sucedeu desde então. Seu irmão, Edmund VI, apesar de toda
a nobreza e fibra moral, tinha apenas uma fraqueza: a jovem camponesa de
cabelos vermelhos, Elysa Hant. Edmund e Elysa namoraram a vida toda,
mesmo ela não sendo uma nobre, pois era filha do mestre de caça do reino.
Como Minalkar passava por uma situação financeira complexa na época em
que Edmund VI foi coroado, membros do conselho real foram em busca de
um casamento que pudesse fortalecer o reino, chegando ao nome da princesa
Lucrécia, filha do rei Louis Lurullo do reino de Alferius.
Edmund não tinha olhos para nenhuma outra mulher além da bela
Elysa, mas aceitou casar-se com Lucrécia para formalizar um pacto de
proteção com Alferius, o reino mais rico do continente, frente à ameaça dos
orcs à oeste que crescia cada dia mais. Logo após o casamento, Elysa
revelou estar grávida de Edmund, o que gerou uma crise enorme no
relacionamento dos recém-casados rei e rainha.
Lucrécia revelou ao pai a traição do rei e marido, o que fez com que
Alferius recuasse no acordo de proteção a Minalkar até que Lucrécia parisse
um herdeiro, pois o rei Louis se recusava a proteger um reino que tivesse,
como único herdeiro, um bastardo. Ciente do risco que corria e desejando
ganhar tempo, Edmund ofereceu um acordo de paz ao rei e líder dos orcs,
Inak Trodar. O tratado foi aceito através de diversos tributos de Minalkar, e
isso garantiria a Edmund o tempo que precisava para engravidar Lucrécia,
porém, sua rainha se recusava a deitar-se com ele.
Enquanto o tempo passava, os orcs iam se fortalecendo; Lucrécia não
engravidava, e Alferius seguia sem proteger Minalkar, tendo recolhido todas
as suas tropas. Rubyo nasceu no outono seguinte, tendo sido entregue ao seu
pai pelo avô materno, que informou sobre a morte de Elysa poucos dias após
o parto. Logo após o nascimento do príncipe bastardo, o exército de Rurkuk,
liderado por Inak Trodar, invadiu Minalkar deixando um rastro de destruição
que não pôde ser contido pelo escasso exército minalkariano. Seguindo seu
avanço mortal, as tropas de Inak cercaram a capital de Minalkar, Mundy,
deixando a cidade isolada do resto do mundo, com seu rei lá dentro.
Edmund sabia que não haveria negociação com os Orcs, uma vez que já
haviam traído seu acordo de paz, então resolveu usar Lucrécia como refém e
ameaçou entregá-la aos orcs caso Alferius não viesse ao seu socorro. Através
de cartas trocadas por corvos, Louis fez uma proposta para Edmund: ele
receberia em seu reino todos os minalkarianos que chegassem vivos,
inclusive o príncipe bastardo, e lá encontrariam refúgio e proteção, desde
que Lucrécia chegasse a salvo também. Sendo essa a única opção para salvar
o que restava de seu reino, Edmund pediu a Argus, seu irmão e general das
tropas, que conduzisse os civis que ainda estavam vivos, junto à rainha
Lucrécia e seu filho, Rubyo, até a capital de Alferius, Nenáreah.
Cumprido as ordens de seu irmão e rei, ainda que contrariado, Argus
guiou as centenas de refugiados pelo chamado Caminho Segundo, um
complexo jogo de túneis secretos que ligava os subsolos da capital até o Rio
Miriba, longe da ira dos orcs contra o povo de Minalkar. Edmund resolveu
ficar e encarar Inak junto com o que restava das tropas, para ganhar tempo e
distrair os inimigos enquanto seu povo era salvo.
Olhando para as tochas que iluminavam a clareira onde treinava com
Rubyo, Argus se lembrou da fumaça que cobria a linda cidade de Mundy ao
avistar, de longe, o incêndio que destruía seu lar. Segurando o choro, Argus
liderou o povo até a cidade de Vertiga, onde conseguiu barcos que levassem
a todos rio abaixo, até Nenáreah. Foram pouco mais de quinhentas pessoas
que conseguiram fugir de Minalkar sob a liderança de Argus. Alguns
decidiram partir para outras cidades, onde tinham amigos ou familiares, mas
a grande maioria seguiu o que restava da família real até a capital de
Alferius, onde tinham refúgio garantido pelo rei Louis.
Lucrécia nem se despediu do povo ao chegar no conforto de seu lar,
desejando tudo de pior para o povo minalkariano. Argus, utilizando do
pouco tesouro real que trouxera, juntando com as economias que o povo de
Minalkar conseguiram trazer em seu êxodo, compraram uma pequena porção
de terra próximo a Nenáreah, que batizaram como Iktar — Esperança, no
antigo idioma —, local esse que serviu de lar e comunidade para os
refugiados por alguns anos.
Com a morte do rei Louis, oito anos após a chegada dos refugiados,
Lucrécia assumiu o trono de Alferius através de uma complexa trama
política, conseguindo aplicar um golpe contra seu irmão. Uma vez no poder,
Lucrécia resolveu utilizar da coroa para se vingar do povo minalkariano, o
qual ela odiava por representarem a vergonha de sua traição. Porém, como o
acordo que seu pai fizera com Edmund era de conhecimento público e
registrado por escrito frente ao Conselho dos Três Reinos, o risco era grande
demais para ela caso agisse de maneira não pensada.
Lucrécia sabia da fragilidade de sua posição: havia ascendido ao trono
após um golpe, era a primeira mulher a governar em toda a história do
mundo e não tinha muito da simpatia do povo, que a via como uma pessoa
amarga e impulsiva. Para ela, era claro que, se entrasse em uma guerra
desnecessária ou se descumprisse as promessas de seu pai, que fora um rei
muito amado e respeitado pelo povo, ela poderia ser facilmente deposta
pelos seus súditos e pela corte, a favor do irmão. Frente ao medo de perder a
coroa, Lucrécia preferiu não agir diretamente contra os minalkarianos,
buscando brechas no acordo entre os dois reinos para punir o povo.
A fazenda Iktar foi destruída pelas tropas de Alferius a mando de
Lucrécia, pois apesar de os minalkarianos serem “bem-vindos” em Alferius,
não poderiam criar nenhuma comunidade no território; assim, tiraram o
sustento e a moradia de centenas de pessoas que viviam ali. Buscando
segregar ainda mais o povo, Lucrécia ordenou que todos os minalkarianos
tivessem seus punhos marcados com o sol vermelho — símbolo da casa de
Edmund —, com ferro quente, para diferenciá-los dos verdadeiros cidadãos
de Alferius, desde os mais velhos, até os seus descendentes.
Ciente da miséria em que colocara os refugiados, Lucrécia se satisfez
em imaginar a vida de pobreza que Rubyo levaria sob seus domínios. Dessa
maneira, a rainha concluiu que o sofrimento dele seria muito maior assim do
que se simplesmente o matasse, até porque não seria bem-visto, por ninguém
de seu próprio povo, o assassinato de uma criança.
Argus sabia disso tudo e se compadecia de seus irmãos que, sem a
fazenda, tiveram que mendigar, aceitar empregos vexaminosos ou, até
mesmo, se prostituir para ter algo para comer e onde viver. Conforme a fome
do povo aumentava, a confiança na família real foi se esvaindo, até que
muitos dos refugiados simplesmente aceitaram a condição miserável da sua
nova realidade, à espera de um milagre que os levaria de volta aos seus
verdadeiros lares.
Sem dinheiro, sem nome e com uma criança em sua guarda, Argus
contava com Ollaff e com Rosalind, antiga serva da família, para cuidar de
Rubyo enquanto trabalhava e juntava dinheiro suficiente para comprar a
pequena casa onde viviam desde então. Frente a tanto sofrimento e
dificuldades, era um sentimento de tremendo orgulho para Argus ver seu
sobrinho tão forte e saudável, praticando a arte da Eddor — ainda que com
diversos erros.
— Rubyo, já disse que seus joelhos estão ficando retos demais! Se eu
trombar em você, te derrubo facilmente... isso, assim, ajeite essa postura,
mantenha a ponta da espada para cima!
— Tio, esse é meu jeito de lutar a Eddor! — respondeu Rubyo, irritado
pelas constantes críticas. — Estou adaptando-a ao meu estilo, assim como
Edmund III fez.
— Ah, é mesmo, sabichão? E como você pretende adaptar algo que
você nem mesmo sabe como fazer direito?
— Eu simplesmente me adapto. O mestre Ollaff sempre diz que um
bom rei é como a água e deve ser capaz de se moldar às diversas situações.
— Oh, sim... então adapte-se a receber pedradas a cada movimento
errado que fizer!
Argus coletou algumas pedras próximas de onde estava e começou a
atirá-las em Rubyo quando julgava que seu sobrinho havia cometido algum
erro. Tentando se concentrar mais na espada do que na esquiva, o jovem era
constantemente alvejado pelas pedras. Por volta da décima pedrada, Rubyo
irou-se e gritou:
— Você é muito corajoso com essas pedras aí na mão, não é?! Quero
ver se tem coragem de largá-las e vir me enfrentar, agora que tenho minha
espada!
O semblante de Argus, que até aquele momento parecia divertir-se ao
lançar pedras contra o sobrinho, fechou-se na hora e, em poucos segundos, já
estava a pequenos passos do seu aprendiz. Rubyo notou que seu tio parecia
mais alto do que geralmente era, pela postura agressiva que adotara contra
ele.
— Seu merdinha, você acha que portar uma espada de metal te faz um
guerreiro melhor do que era com uma de madeira?
— Não é uma espada normal, é a Sabedoria! É a lendária arma de
Edmund II, e eu acabo com qualquer um utilizando essa espada! — disse
Rubyo, confiante, vendo o brilho das tochas refletindo na lâmina enquanto a
girava no ar.
— Pois bem, meu “rei guerreiro”. Se conseguir me tocar com essa
espada velha, eu comprarei para você as tortas de amora que a senhora
Bortolly faz, todos os dias, até o seu próximo aniversário. Mas caso não me
acerte, terá que lavar meus pés todos os dias e massageá-los quando eu
chegar da pescaria. Aceita o desafio?
— Desafio aceito, tio! Só espero que o Gary não se chateie comigo por
ficar sem as tortas da mãe dele.
— Oh, não se preocupe com seu amigo. Se depender de você, Gary vai
continuar comendo as tortas da mãe dele, até ficar gordo o bastante para não
conseguir mais roubar os bêbados estúpidos da cidade.
Argus tirou sua camisa fedendo peixe e jogou as duas espadas curtas
que carregava , uma de cada lado na cintura, ao chão. Em seguida, foi até um
arbusto próximo e pegou um longo e fino galho de árvore. Rubyo olhou
surpreso para a cena e não conteve a curiosidade.
— Você não vai usar suas espadas, tio?
— Não. A minha arma sou eu mesmo. Nenhum guerreiro da Eddor
deve depender de sua arma, pois o que vive pela espada, morrerá por ela. —
respondeu Argus, caminhando ao centro da clareira e fazendo uma saudação
de duelo para o sobrinho.
Rubyo respondeu ao gesto e, tentando disfarçar algum desconforto pelo
peso da espada, colocou-se em posição de luta. O jovem, incrédulo, não
entendia como seu tio, praticamente desarmado, nem ao menos se colocava
em posição de defesa, mantendo-se estático onde estava, com os braços
abaixados e joelhos semiflexionados, segurando o fino galho na mão direita.
Ele girou a espada no ar e partiu para cima de seu tio, tentando um corte
em arco, de cima para baixo. Argus fez um giro rápido para a direita,
desviando do ataque no último segundo, mas não sem antes ferir Rubyo com
um belo golpe nas costas. O galho que utilizava, por ser fino e maleável,
funcionou como um chicote, abrindo um corte na camisa e nas costas do
sobrinho, fazendo o sangue escorrer.
Ao sentir a dor, o garoto encheu-se de ira e perdeu toda a concentração.
Após alguns passos para a frente, conseguiu se reequilibrar e, rapidamente,
voltou na direção de seu tio com um outro golpe, cortando da direita para a
esquerda com a espada, contra a cabeça do oponente. Argus deu apenas um
passo para trás, calculando exatamente a distância onde a espada passaria de
seu rosto, e aproveitou a proximidade de Rubyo, com a guarda aberta, para
desferir um chute na boca do estômago.
Rubyo caiu com a dor, mas para a surpresa de Argus, ele não soltou a
espada. O jovem utilizou sua arma como uma muleta para ficar em pé,
cravando-a no chão. Ao se levantar, segurando agora com as duas mãos a
sua espada, Rubyo partiu em estocada contra seu tio. Argus, como se
dançasse, ergueu os braços e fez um meio giro de novo para a direita,
esperando o contato com Rubyo, que nada pôde fazer para desviar do soco
vindo de cima para baixo na direção de seu rosto, enquanto com a outra mão,
o desarmava e o jogava violentamente no chão.
— Parece que você não aprendeu nada mesmo, meu nobre burro. Já
falei mil vezes que a Eddor é uma luta de defesa, e não de ataque! — disse
Argus, jogando a espada de Rubyo ao lado dele, no chão.
— Mas você me pediu para te atacar! — gritou Rubyo, enraivecido,
com o nariz sangrando e com os olhos cheios de lágrimas.
— E se eu te pedisse para lamber o rabo de um grifo, você o faria?!
Não tente me culpar por sua burrice! Você subestimou um adversário
desarmado, teve uma postura colérica, superestimou a arma em suas mãos e
agiu sem pensar em todos os seus golpes. Eu poderia ter te matado em
segundos, e acredite, seus inimigos o fariam sem pensar. — respondeu
Argus, duramente.
Rubyo não disse mais nada. Apesar da dor e da raiva que sentia, sabia
que seu tio tinha razão. Levantando-se com o pouco da dignidade que lhe
restava, Rubyo pegou sua espada inútil e partiu para casa, arrastando a
lâmina no chão. O jovem estava frustrado, afinal, apesar dos presentes, não
era o aniversário que esperava. E para piorar, ainda teria que aquecer a água
para lavar e massagear os pés do seu tio ainda naquela noite.
Capítulo 4: Olhos e Ouvidos
Lucrécia entrou na sala do conselho real e sentou-se na cadeira que ficava à
ponta da longa mesa. Todos os demais membros já se encontravam lá, mas
levantaram-se em respeito e aguardaram até que a rainha se sentasse.
— Boa noite, senhores! Sejamos breves em nossa reunião, pois estou
com muita dor de cabeça, então só discutiremos o que for de suma
importância.
— Pois não, vossa majestade! — disse o arauto, que presidia a reunião.
— O senhor Chefe da Guarda do Coliseu, capitão Derrick, deseja tomar a
palavra.
Lucrécia consentiu com a cabeça.
— Vossa majestade, venho do Coliseu de Ottoni com boas notícias. —
disse o capitão, levantando-se novamente e fazendo uma saudação militar.
— Tudo já está preparado para o torneio entre os presos, e nossos tesoureiros
afirmam que quase todos os ingressos já foram vendidos. A receita será
quase o dobro do arrecadado há dez anos, pois creio que todos desejam ver a
homenagem que será feita ao seu falecido pai.
— Que excelente notícia, capitão! Esse será o primeiro torneio que vou
presidir, então quero que tudo esteja nos mais perfeitos conformes, para ser
um verdadeiro espetáculo! — disse Lucrécia.
— Com certeza, minha rainha! O senhor Ishmiter garantiu que trará as
melhores armas para a batalha, e o chefe dos carcereiros me assegurou que
teremos grandes competidores neste ano. Creio que teremos uma luta
fabulosa, digna de seu grande nome, minha rainha, e da memória de seu
saudoso pai.
— Que assim seja, capitão... O que mais temos para hoje, Raonni? —
perguntou Lucrécia ao seu arauto.
— O senhor Mallory, Mestre do Comércio, deseja a palavra, minha
senhora.
Lucrécia concordou, levantando uma das mãos.
— Rainha Lucrécia, senhora do Rio Dourado, peço humildemente que
anistie os impostos dos comerciantes alferianos, durante esse mês... — disse
Mallory, transpirando profusamente, sem coragem de olhar diretamente para
Lucrécia.
A rainha levantou uma das sobrancelhas, surpresa com o pedido do
robusto aristocrata. Massageando as têmporas pela dor de cabeça, ela
perguntou:
— E por qual razão eu faria isso, mestre Mallory?
— Porque nossas rotas marinhas intercontinentais têm sido vítimas de
diversos ataques, minha senhora. Perdemos quase dez navios somente nesse
mês e, com eles, incontáveis e inestimáveis mercadorias.
— Foram piratas? Cavaleiros Marrons? — perguntou Lucrécia,
tentando disfarçar o susto e, até mesmo, um certo medo.
— Não, Vossa Majestade. Os relatos dos sobreviventes afirmam que
foram monstros. Serpannas e outras criaturas marinhas, provavelmente.
Nosso contingente de soldados para defesa dos navios mercantes segue
muito baixo, minha senhora. Talvez, se vossa majestade pudesse pedir
reforços para a fortaleza de...
— Está bem, eles terão o perdão dos impostos nesse mês, mas que não
se cogite pedir reforços para lugar nenhum novamente, estamos entendidos?!
— disse a rainha, em tom agressivo.
— Sim, Vossa Majestade! Transmitirei aos comerciantes as notícias de
sua benignidade, e com certeza ficarão tão gratos quanto eu! Que os Três lhe
abençoem! — respondeu Mallory, desabando na cadeira e secando a testa
com o lenço amarrotado que trazia em seu bolso.
— Marghan, você consegue lidar com esse assunto dos monstros? —
perguntou Lucrécia à maga sentada à sua direita, a qual, tinha uma imensa
tatuagem de serpente no rosto.
— Não tenho muito conhecimento sobre monstros marinhos, minha
senhora, mas verei o que posso fazer. — respondeu Marghan,
respeitosamente.
— Verá o que pode fazer?! Não quero saber o que você “pode” fazer,
eu quero saber o que você VAI fazer, entendeu?! Ou então, talvez fosse
melhor eu procurar um outro mago para ocupar seu lugar. Sei de um mais
experiente que vive em minha cidade... — respondeu Lucrécia,
rispidamente.
— Não será necessário, Majestade. Resolverei essa questão, fique
tranquila. — afirmou Marghan, falando firmemente para convencer a todos
os membros do Conselho.
— Melhor assim. Mais alguma coisa para hoje, Raonni?
— Desse Conselho não, minha senhora..., mas aquela pessoa deseja
falar-lhe, em particular.
Lucrécia arregalou os olhos ao entender o sinal de seu arauto e
dispensou todos os membros do Conselho. Assim que deixaram o salão, a
rainha fez um sinal para Raonni deixar a tal pessoa entrar.
— Minha rainha, saudações! Vim trazer-lhe notícias do pântano.
— Muito bem, então, desembuche logo.
— Creio que a primeira etapa do plano de Argus está se iniciando. Não
sei se a senhora se lembra, mas, na semana passada, foi o aniversário do
Rubyo e, de presente, ele ganhou a espada de Edmund.
— Mas que ousadia! Dar uma arma daquelas na mão de um fedelho?!
Acha que um dia ele pode ousar levantá-la contra mim?
— Creio que não, minha rainha. Ele não parece ter nada contra a
senhora. Mas a senhora me pediu para trazer-lhe qualquer notícia sobre os
acontecimentos da vila pantanosa, então quis deixá-la informada.
— Ele não “parece” ter nada contra mim, assim como você não
“parece” que vive me trazendo informações sobre o fedelho. Não quero
saber dos seus achismos, quero saber de informações.
— A senhora pretende fazer algo contra ele, minha rainha? Saiba que
não desejo mal nenhum para Rubyo, eu só aceitei...
— Você aceitou espioná-lo para mim porque EU sou a porra da rainha
desse lugar! — gritou Lucrécia, irritada. — Me traga qualquer novidade
sobre esse maldito bastardo, imediatamente! Entendido?
— Sim, Vossa Majestade, entendido.
Capítulo 5: O Anel
Apesar da lição traumática naquele aniversário de doze anos, o desafio
proposto por Argus a Rubyo tornou-se uma tradição para a família real.
Todos os anos, a mesma aposta: se Rubyo tocasse Argus com a espada, ele
receberia as tortas — mas caso não o fizesse, teria que lavar o pé fedendo a
peixe de seu tio. Mesmo com a morte da senhora Bortolly, dois anos depois
daquele dia, Argus e Rubyo mantinham a tradição por puro esporte, fingindo
que as tortas estariam disponíveis, caso algum dia o jovem rei vencesse seu
tio... o que nunca aconteceu.
Em seu décimo sexto aniversário, Rubyo já apresentava um porte físico
muito diferente daquele jovem franzino de anos atrás. A rotina de exercícios
e trabalho na pesca, junto ao seu tio, garantia a Rubyo uma musculatura
robusta para um jovem de sua idade. Ele já era um palmo mais alto que
Argus e pesava quase o dobro de seu amigo Gary. Seus cabelos não
perderam o tom avermelhado, mas agora já passavam dos ombros, seguindo
quase sempre presos nas laterais por um coque, enquanto o restante escorria
por suas costas até a altura das escápulas. A pele bronzeada pelos dias de sol
no trabalho camuflava as sardas de seu rosto, mas a roupa maltrapilha
escondia o tronco sempre pálido de sua pele branca.
Rubyo estranhou quando seu tio lhe dissera que teria o dia de folga do
trabalho e dos treinamentos por ser seu aniversário, então aproveitou para se
encontrar com Gary no grande lago de Delfus, local onde o Rio Dourado se
encontrava com o Mar do Sul, formando o famoso delta, próximo ao porto
de Nenáreah. Nessa época, era comum a prática de um esporte que estava
caindo nas graças da mocidade de Alferius: o Cavalo Marinho.
O objetivo era simples: um membro da dupla deveria montar um cavalo
atravessando o lago pelas áreas mais rasas dos mangues, enquanto puxava,
por uma corda, o segundo participante, que deslizava por sobre as águas
utilizando uma placa fina de madeira sob seus pés. Entre as duplas, quem
conseguisse deslizar por um trecho maior sem cair ganhava a bolsa de
moedas com a aposta que todos os participantes depositavam antes da
competição. A princípio, era um esporte simples e inofensivo — se não fosse
o risco de serem devorados por crockos a qualquer momento.
Crockos eram criaturas reptilianas que viviam nos rios de Cehvambar,
tendo um aspecto de lagarto, mas muito maiores, chegando a medir mais de
quinze passos élficos de comprimento e três de altura. Eram extremamente
agressivos e perigosos, com dentes chegando a ser maiores que uma cabeça
humana. O exército de Alferius se gabava pela proeza desenvolvida em
domesticar alguns desses animais, usados como armas e montarias para os
membros da realeza e pelo alto escalão militar.
Rubyo era muito bom na arte de deslizar, graças ao equilíbrio e força
trazidos pela prática da Eddor, enquanto Gary, especialista em fugir dos
guardas, era um excelente cavaleiro. Quase sempre a dupla ganhava a bolada
das apostas dos outros competidores, o que lhes garantia uma refeição
decente na Taverna Sol Vermelho. Além dos lucros, as vitórias constantes
também chamavam a atenção das garotas da cidade — o que, por muitas
vezes, para os dois, era mais importante do que o dinheiro.
Naquele dia, o resultado da competição não foi diferente. Rubyo, com
seus joelhos fletidos e reflexos rápidos, conseguiu desviar facilmente dos
galhos e pedras dos mangues enquanto deslizava sobre as águas, e
demonstrou extrema agilidade em evitar as investidas dos crockos que
tentavam devorá-lo. Toda a habilidade da dupla era ainda potencializada
graças ao cavalo de Gary, um jovem animal chamado Bokko, que trotava
rápido demais mesmo num terreno tão irregular.
Gary havia comprado Bokko com doações não-espontâneas de clientes
bêbados das tavernas e bordéis da cidade, mantendo sempre parte desse
lucro guardado como uma reserva financeira para sua irmã, o que fazia
desde que sua mãe falecera. Bokko era um cavalo baixo, mas muito forte e
veloz; sempre manso e simpático com todos que chegavam próximos a ele.
Sua coloração acastanhada, interrompida por grandes manchas brancas,
trazia um ar de nobreza ao cavalo, apesar de seu baixo preço por ser de raças
misturadas.
Após o pequeno torneio daquela manhã, enquanto recolhiam seu
prêmio, Rubyo e Gary foram ameaçados por alguns dos perdedores:
— Finalmente o reizinho vai colocar a mão em algum tesouro, né?! —
disse um dos jovens, em tom agressivo, com um tronco na mão.
— Espero que esteja guardando esse dinheiro para comprar de volta a
casa do meu pai em Minalkar, seu merda! — disse outro, um pouco mais
velho, cuspindo em Rubyo.
Gary fez menção de se levantar para enfrentar o grupo de cinco jovens
que os cercavam, mas o jovem rei segurou seu amigo pelo braço, fazendo
um sinal de negativo com a cabeça, enquanto o cuspe escorria em seu rosto.
Rubyo sabia que derrotaria aquele grupo inteiro sem nenhuma dificuldade,
mas não era correto usar a Eddor contra minalkarianos por algo tão banal. O
jovem foi prudente, recolheu seu prêmio e abriu caminho entre os
agressores.
Enquanto se afastavam, Rubyo ouviu um dos jovens gritar:
— Isso mesmo, vá embora, covarde! O reizinho deve ter puxado a
covardia do tio dele, que fugiu da guerra e deixou o idiota do irmão como
isca para orcs!
Nesse momento, Rubyo não conseguiu segurar sua ira, largando a bolsa
de moedas no chão e partindo para cima dos provocadores. Gary,
percebendo que aquele caminho não teria volta, nem tentou segurar seu
amigo, apenas se abaixou para coletar algumas pedras. Rubyo alcançou o
grupo rapidamente, chegando, sem cerimônias, com uma joelhada direta no
rosto do maior entre os cinco garotos, que não teve como se defender da
força e da velocidade do herdeiro de Minalkar. Aquele que estava com o
tronco nas mãos levantou a arma contra Rubyo, mas antes que concluísse o
ataque, foi surpreendido por uma pedrada na testa, perdendo todas as forças
ao ver o sangue escorrer nos olhos.
Rubyo aproveitou que os demais inimigos se distraíram com o grito de
dor que a pedrada causou e, com mais alguns socos e chutes, derrotou a
todos sem nem mesmo ser tocado. Alguns outros participantes da
competição, ao ver a cena da briga, correram na direção dos vencedores, mas
Rubyo e Gary já estavam satisfeitos, coletando novamente a bolsa de
moedas e correndo para a cidade.
Já longe dali, Gary disse ao amigo:
— Na próxima, vê se deixa pelo menos mais um para mim, né?!
— Não pode ter próxima, Gary... Se meu tio ficar sabendo, ele me
mata! Fora o mestre Ollaff, que sempre diz que “Um rei que não controla
sua ira, há de padecer com seu ódio”.
— Mas eles jamais vão ficar sabendo, Rubyo! Você acha mesmo que
aqueles idiotas vão contar para alguém que os cinco apanharam para nós
dois?
— Mesmo que meu tio não fique sabendo, o mestre Ollaff sempre diz
que “O nosso caráter é representado por aquilo que somos e pelo que
fazemos justamente quando não há ninguém por perto para nos julgar”. Sei
que não foi certo, mas não consegui me segurar.
Gary respirou fundo e fez uma cara de tédio, seguindo em silêncio ao
lado de Rubyo até chegar na Taverna Sol Vermelho. Os dois convidaram
duas amigas da vila, que encontraram no caminho, para almoçar com eles.
Gary era apaixonado por uma delas, Vallery, e nunca fez questão de
esconder. Rubyo achava engraçado como o comportamento do amigo
mudava perto dela, apesar de Vallery sempre deixar claro que jamais se
casaria com alguém pobre. Gary não se importava, pois tinha certeza de que
um dia seria muito rico e que assim, conquistaria sua jovem paixão.
Após o almoço, os quatro voltaram para o vilarejo onde moravam.
Rubyo se despediu dos vizinhos e foi para sua casa com a intenção de
descansar e aproveitar o resto da folga. Ao chegar em casa, o jovem
estranhou ao encontrar, na sala, o mestre Ollaff e seu tio, fumando longos
cachimbos perto da lareira. O cheiro da lenha se misturava com a fumaça
adocicada dos cachimbos, que exalavam um forte perfume de canela, bem
típica das ervas élficas de Vastako.
— Bom dia, Jovem Rei! É uma honra poder ver mais um outono em
sua vida! — disse Ollaff, levantando-se e fazendo uma pomposa saudação
enquanto segurava o cachimbo.
— Obrigado, mestre! A honra é minha por sempre poder aprender mais
com o senhor! — respondeu Rubyo, olhando ansioso para Argus,
escondendo as mãos sujas de sangue nos bolsos. — Tio, eu fiz algo de
errado?
Argus riu ao perceber a preocupação do sobrinho com um possível
castigo por algo inexistente. Segurando o suspense, deu uma longa tragada
em seu cachimbo para só depois responder:
— Não, vermelhinho. Surpreendentemente, dessa vez, você não fez
nada... pelo menos não que eu saiba. Mas o que foi? Eu e o mestre Ollaff não
podemos aproveitar a mesma folga que você?
— Claro que podem ter folga, tio, eu só...
— Pois você está errado, não estamos de folga. Precisamos conversar.
— disse Argus, mudando a feição para algo mais sério, enquanto empurrava,
com o pé, um banquinho de tronco de madeira para o sobrinho.
Rubyo tirou seu casaco, pendurou perto da lareira e sentou-se no banco
com um olhar atento para ambos, que seguiam sentados nas poltronas.
— Meu sobrinho, é tradição em nosso reino que, na ausência do rei, os
príncipes sejam coroados com dezesseis anos, ou quando seus tutores e
regentes julguem que o mesmo já esteja capacitado. No último ano, tenho
conversado constantemente com o mestre Ollaff sobre sua evolução na
Eddor... e digo que, da minha parte, não há mais nada para te ensinar. Você,
sem dúvidas, ainda tem muito a aprender, mas é um caminho no qual eu não
preciso guiá-lo. — disse Argus, com uma seriedade que Rubyo jamais notara
em seu tio.
— Eu também confirmei, para o príncipe Argus, que seu conhecimento
acadêmico e das artes místicas já estão num patamar suficiente para trilhar
seu próprio caminho, meu senhor. As lições que você ainda tem a aprender
só a vida pode ensinar.
— Além disso, a maioria dos minalkarianos deseja novamente ter um
rei para servir, e ser protegido por ele. É muito importante que exista um
farol para o povo, nesse momento de tanta escuridão que eles têm vivido... e
ninguém melhor que seu rei por direito para ser essa luz. Sua hora chegou,
Vermelhinho. — disse Argus, ainda sério, apesar de utilizar o apelido que
Rubyo odiava.
O jovem tentou disfarçar a surpresa, mas o suor escorrendo em seu
rosto e o coração disparado não conseguiam esconder a mistura de
sentimentos que Rubyo sentia. Uma excitação misturada com um medo que
jamais sentira antes, deixou as mãos do jovem trêmulas, e a voz faltou em
sua garganta. Argus, vendo a reação de Rubyo, disse:
— Confesso que esperava que você fosse ficar mais animado com a
notícia, Rubyo, afinal, estamos declarando que você já é homem o suficiente
para assumir seu lugar por direito.
— Não, tio... Eu... Sim, estou muito animado, mas eu... Eu sabia que
esse dia chegaria, só não esperava que fosse hoje... assim, tão rápido... quer
dizer, há algumas horas eu estava jogando com meus amigos, almoçando
com algumas garotas e... agora vocês me dizem que já estou pronto para ser
um rei? Isso é... estranho. Não sei se estou pronto...
— Na verdade, você nunca estará realmente pronto para ser um rei,
meu jovem. Ninguém nunca está preparado para o desconhecido, pois se
estivesse, conhecido seria. Mas você tem o sangue, o dever e a
responsabilidade inata com teu povo, e foi preparado para esse dia desde os
seus primeiros passos. — disse Ollaff com seu tradicional tom de professor.
— Eu aceito e quero carregar meu fardo, mestre. Me preparei a vida
toda para isso, mas eu não sei como fazer... como me “tornar” um rei.
— É o povo que te torna um rei, meu senhor, você não se faz um. Tolos
são os que acreditam que um rei é a quem as pessoas servem, quando, na
verdade, um rei é por quem as pessoas dão a vida. E as pessoas só farão isso
por você se sentirem que você também faria o mesmo por elas. — respondeu
Ollaff.
— E nosso povo, apesar dessa situação de merda em que vivem, segue
fiel ao juramento de servir a descendência de Edmund I, o que foi prometido
a ele quando conquistou as terras de Minalkar, vencendo os Antigos
Homens. Um rei precisa do seu povo, assim como o povo precisa de um rei,
mas não há coroa ou sangue que vá te garantir isso. — afirmou Argus.
— Que bom que não preciso de uma coroa, afinal não veio nenhuma de
Minalkar com o senhor... não é mesmo, tio? — perguntou Rubyo, com um
fio de esperança que não gostaria de admitir.
— Não. A única coroa que existia em Minalkar ficou na cabeça do seu
pai quando eu o vi pela última vez no dia da nossa partida. Ela agora deve
estar decorando a sala de troféus daquele orc maldito. — respondeu Argus,
amargamente.
— Mesmo sem uma coroa, tradições devem ser respeitadas. E segundo
a tradição, você deve usar um anel real para reivindicar sua posição. —
explicou Ollaff.
— Um anel?! E nós lá temos algum dinheiro para comprar um anel? —
disse Rubyo, achando graça.
— Não é qualquer anel, Rubyo, é um anel real. Desde o primeiro
reinado, todo herdeiro do trono recebe um anel em seu primeiro ano de vida,
o que simboliza o anel forjado para Edmund I e que foi beijado por todo o
povo como prova da sua fidelidade. Sem um anel desses, você não pode ser
coroado, e não poderá contar com a lealdade do povo e a legitimidade da sua
posição.
— Mas tio, mesmo sem o anel, todos sabem quem eu sou: o bastardo do
rei Edmund VI.
— Sim, meu jovem, mas o povo te respeita pelo simbolismo que seu
sangue representa, só que ninguém o seguirá se você não respeitar a tradição.
A história, a cultura e os costumes de um povo são os únicos bens que ladrão
algum pode roubar... e temo dizer que foram as únicas coisas que restaram
de Minalkar. — explicou Ollaff, enquanto tragava profundamente seu
cachimbo.
Rubyo se calou por alguns segundos. De repente, um brilho em seu
olhar representou uma ideia vinda à mente do jovem:
— Tio, se todo herdeiro recebia um anel, você também ganhou um!
Não posso utilizar o seu? Eu lembro de ver você usando um anel de
esmeralda quando eu era criança...
— Você está sentado nesse anel, Rubyo. Estamos dentro desse anel. Na
verdade, nós já comemos e já cagamos o meu anel real. Eu usei o dinheiro
que consegui com a venda dele para comprar essa casa e nos mantermos por
algum tempo até conseguir o emprego na pesca. Eu o vendi para um
comerciante há vários anos, não temos chance de recuperá-lo.
— Onde, então, conseguirei um anel desses? — perguntou Rubyo,
impaciente.
— No único lugar onde ele era feito: em Mundy. — respondeu Ollaff,
olhando diretamente para Rubyo, observando sua reação.
Aquelas palavras vieram como lanças frias na espinha do jovem, que
congelou pela simples ideia de ir até Minalkar — lugar esse que, em sua
mente, era um cemitério em ruínas de toda a sua família.
— Não creio ser uma boa ideia... com certeza os orcs saquearam tudo o
que tinha na capital e nas outras cidades do reino, por diversas vezes. —
argumentou Rubyo, tentando forçar um tom sóbrio de sabedoria.
— Concordo. Não há mais nada nas cidades além de lembranças e
ruínas. — respondeu Ollaff, entre uma tragada e outra. — Porém, há um
lugar em Minalkar que nem mesmo os orcs se atreveram a entrar...
— Nas catacumbas dos reis. — completou Argus, num tom sombrio.
Rubyo parou de tremer e de se chacoalhar no banco de madeira que
estava sentado, abrindo um sorriso irônico:
— Ah, não, tio... vai me dizer que os orcs têm medo de gente morta?
Por que não saqueariam os sarcófagos de Minalkar?!
— Não só os orcs, mas todos aqueles que não são tolos devem temer as
catacumbas dos reis. Dizem que o espírito de Edmund III vaga pelas
sombras, tentando se vingar dos vivos, em busca de almas para retornar à
vida. — disse Ollaff num tom de voz sinistro, enquanto soltava uma enorme
quantidade de fumaça pelo nariz e pela boca, formando magicamente a
figura de uma caveira.
— E vocês também acreditam em histórias de fantasmas?! —
perguntou Rubyo, dessa vez, claramente gargalhando. — Agora entendi!
Toda essa história de coroação, anel e fantasmas não passam de algum tipo
de brincadeira comigo pelo meu aniversário... e eu aqui, como um bobo,
acreditando em vocês! Falando sério agora, que horas a senhora Rose chega
com minha torta?
— Na verdade, eu já estou aqui! — disse Rosalind, com sua voz fraca e
rouca, vinda da cozinha, por onde entrou sem que percebessem. — E aqui
está sua torta, meu Rei. Por favor, não reparem, já comi um pedacinho dela.
Rosalind deixou a cesta com a torta em cima da mesa, além de uma
pesada sacola, e foi se aconchegar perto deles junto à lareira. Argus se
levantou e cedeu o lugar para a robusta senhora, que se sentou, esticou as
mãos tortuosas devido à artrite perto da fogueira, e começou a falar, olhando
para Rubyo:
— Ainda que muito pequena, me lembro que meu avô nunca mais teve
paz desde que ele envenenou o rei. Ele passava noites inteiras sem dormir,
andando para todos os lados, bebendo vários chás que minha avó fazia para
acalmá-lo, mas nada fazia efeito. Ele dizia que a imagem do rei se
engasgando com o veneno, seus olhos se revirando e a baba escorrendo por
seus lábios azulados não saíam de sua cabeça. Uma noite, após semanas sem
dormir, meu avô resolveu descer ao túmulo do rei nas catacumbas para rezar
por sua alma e buscar o perdão. Algumas horas depois que ele desceu, os
guardas ouviram um enorme grito horrorizado vindo de lá. Depois daquela
noite, ele nunca mais foi visto.
— Os guardas que desceram para procurá-lo, e outras pessoas da corte,
que visitavam túmulos, alegaram ter visto o fantasma de Edmund III
vagando pelas catacumbas... e a história foi passando e aumentando com o
tempo. Sendo verdade ou não, ninguém mais se atreveu a entrar nos
sarcófagos, que foram lacrados e, desde então, os membros da corte e da
família real passaram a ser cremados. — explicou Ollaff.
Rubyo não conseguiu segurar o peso do seu queixo enquanto ouvia
aqueles relatos, faltando-lhe palavras para fazer quaisquer piadas com
fantasmas que vinham à sua cabeça. Assim como fora ensinado a ele, Rubyo
respirou fundo, controlou os batimentos cardíacos e retomou a calma, para
só então perguntar:
— Então, só para que não restem dúvidas: para que eu assuma meu
trono, o qual nem existe mais, eu devo voltar ao local onde meus pais
morreram, saquear o túmulo de um fantasma vingativo em busca de um anel,
sair de lá vivo sem chamar a atenção dos orcs... e se, somente se, eu chegar
inteiro em casa, preciso contar com o amor do nosso povo e fidelidade à
tradição, para me aceitarem como rei?!
— Exatamente isso, meu sobrinho! Feliz aniversário! — respondeu
Argus, num sorriso nervoso e debochado enquanto apagava seu cachimbo.
Ollaff se levantou e foi para a cozinha, seguido de Argus, em direção à
cesta que Rosalind trouxera. A velha senhora também se levantou, mas
chamou Rubyo até seu quarto para mostrar-lhe algo. Enquanto Rubyo subia
as escadas, Rosalind foi até a cozinha e pegou o pacote que deixara ao lado
da cesta. Ao chegar no quarto, o viu sentado sobre o baú, que tinha aos pés
da cama, com os braços cruzados e pensativo.
— O mestre Ollaff me contou sobre esse plano há algumas semanas,
meu Jovem Rei... e acredite, foi o menos ruim que eles me contaram. O bom
é que me deu tempo de fazer algo especial para você. — disse Rosalind,
enquanto tirava uma vestimenta do embrulho. — Te fiz essa armadura para
ajudar em sua jornada, meu senhor. Ela está longe de ser as pomposas
armaduras de metal que seu pai e seu avô utilizavam de maneira tão
elegante, mas é algo que vai te proteger.
Rubyo se aproximou e tocou o tecido e as placas que, unidas, faziam
aquela armadura ser a roupa mais perfeita que o jovem já sonhou em ter um
dia.
— Ela é feita em tecido cru e revestida por placas de madeiras e couro.
— explicou Rosalind, orgulhosa, apontando cada detalhe. — O lado de fora
é feito com couro de zebu, e por dentro, coloquei lã nova e macia para deixar
mais confortável e menos frio. Espero que goste... E claro, que te sirva, meu
senhor.
— Senhora Rose... — Rubyo nem sabia o que dizer, pois nunca havia
recebido um presente como aquele. — E ainda é todo feito em azul e
vermelho, as cores da casa do meu pai!... É a roupa mais linda que eu já vi!
Muito, mas muito obrigado mesmo, senhora Rose!
Rubyo abraçou a robusta senhora com tanta força que temeu, por alguns
momentos, quebrar as costelas da idosa, pois seus braços longos e fortes
quase conseguiam envolver o roliço corpo de Rosalind.
— Eu preciso ir, meu senhor, pois a rainha não pode notar a minha
ausência. — disse Rosalind, soltando-se do abraço de urso. — Que toda a
força, sorte e sabedoria o acompanhem, meu Jovem Rei. Você sairá daqui
um menino, e se retornar, será um homem!
Rosalind deu um beijo na testa de Rubyo, que se abaixou para recebê-
lo, e em lágrimas, deixou o aniversariante sozinho em seu quarto. Rubyo
ouviu a porta de sua casa bater com a saída de Rose, mas seus olhos não
desgrudavam da nova roupa, exposta sobre a cama. Quando percebeu, já
estava experimentando aquela leve armadura, que servia perfeitamente em
seu corpo. Era incrível como Rosalind era capaz de saber suas medidas
exatas só de olhar para ele.
Enquanto tirava a roupa e guardava com cuidado em seu baú, Rubyo
ouviu o doce som de uma flauta, acompanhado de um alaúde bem afinado,
vindos da sala. Sem pensar em mais nada, pegou seu próprio alaúde, no
canto do quarto, e desceu para se juntar a Argus e Ollaff, que tocavam
canções de Minalkar, enquanto a tarde caía e o vinho descia:

Oh, Minalkar, oh Minalkar… Que saudades de viver,


Viver seu campo florido, seu trigo crescido, ver teu rio a correr.
Oh, Minalkar, oh Minalkar… que saudades de morrer,
Morrer minha fome em teu gado, matar minha sede em teu regado, ver
teu rio a correr.
Oh, Minalkar, oh Minalkar, que sentimento ruim,
Deixar minha casa, deixar minha esperança…
Oh, Minalkar, que saudade sem fim.

Enquanto Ollaff fazia o solo de flauta que fechava a canção Saudades


de Minalkar, pela primeira vez em toda sua vida, Rubyo viu seu tio
chorando, tentando esconder o rosto, abaixado, concentrando-se nas
complexas notas do alaúde. Rubyo sabia que a ideia de retornar a Minalkar
era assustadora, mas não conseguia nem imaginar como Argus se sentiria em
voltar para lá e reviver todo o drama de sua família.
No fim da canção, Rubyo quis surpreender seus companheiros e exibir
seus dotes musicais com uma composição própria. Seus dedos percorriam
todo o braço do alaúde, em notas complexas e pouco usuais, fazendo um
som triste e lindo, enquanto as cordas ficavam discretamente púrpuras,
emitindo luzes que, aos poucos, foram ficando mais e mais nítidas,
sobrevoando onde estavam.
De repente, imagens foram se formando numa névoa púrpura
translúcida, onde podia se ver um anel negro com uma cortina de fogo ao
fim de um túnel, transformando-se numa torta, de onde saía uma serpente. A
serpente congelava e se despedaçava em flocos de neve, que cobriram um
unicórnio que pastava perto de um deserto. O chifre do unicórnio se
transformou em um punhal que estava sendo erguido sobre uma criança, que
enfim se transformou num lobo sentado sobre um trono. Um coração de
pedra amarela caiu sobre ele e se partiu — e uma mulher ruiva começou a
chorar enquanto era envolta por chamas vindas de um dragão, cuja garganta
foi estrangulada por um polvo gigante, que desapareceu no ar ao fim da
música.
Ollaff não comentou nada enquanto Rubyo tocava aquela canção
magnífica que havia sido escrita pelo jovem, mas quão logo acabou,
perguntou ao seu pupilo:
— Meu senhor, fico satisfeito em ver a sua evolução na arte da música
e da ilusão. É incrível o quão rápido você aprendeu a fazer o vento te ouvir e
a dominá-lo..., mas as imagens que você criou, de onde elas surgiram? Não
lembro delas em nenhum livro.
— Não sei, mestre, mas sempre que toco essa música, essas imagens
aparecem. — respondeu Rubyo.
Ollaff franziu sua testa e, por um momento, se arrependeu de ter
apagado seu cachimbo. Respirando fundo,falou preocupado:

— Então tome cuidados com as notas dessa música, meu senhor. A


ilusão é uma magia para criar imagens... e se você não as está criando,
talvez essas imagens sejam reais.
— Mas eu nunca vi nada disso, mestre. — argumentou Rubyo,
colocando o alaúde em pé ao seu lado.
— Não é porque você nunca viu algo que essa coisa não exista. Nunca
se sabe de onde o vento vem e para onde o vento vai, e talvez, o vento esteja
te contando sobre coisas que você ainda verá. — afirmou Ollaff, percebendo
o olhar confuso de Rubyo.
Argus pareceu um pouco surpreso ao ouvir aquela conversa, mas seu
desinteresse era maior. Ele nunca havia dedicado seu tempo com a música
para criar magias, afinal, ele sempre entendeu a magia como um recurso de
homens fracos.
— Está na hora de descansarmos, senhores. Amanhã partiremos bem
cedo rumo a Minalkar, e não teremos carona rio acima. — disse Argus,
levantando-se e tomando o resto do vinho que tinha em sua caneca.
— Partiremos? Você vai comigo, tio? — perguntou Rubyo, animado.
— Não só ele, meu senhor, eu também vou! — afirmou Ollaff, para a
agradável surpresa do jovem rei.
— Mestre, tem certeza de que aguenta a viagem? — indagou Argus,
preocupado.
— Está me chamando de velho, meu príncipe? — perguntou Ollaff num
tom sério, porém abrindo um sorriso logo em seguida. — Se estiver, saiba
que está certo! Mas pode ser que eu ainda consiga te impressionar com
minha força... e que talvez eu tenha um ou dois truques guardados em minha
manga.
Capítulo 6: O Caminho para Minalkar
Rubyo gostaria de dizer que acordou bem cedo para sua jornada, mas a
verdade é que nem dormira. Na noite anterior, depois que Ollaff foi embora
e seu tio se deitou, o jovem resolveu adiantar os preparativos da viagem,
afinal, a ansiedade tomava o lugar de seu sono.
Pensando no que poderiam utilizar em seu caminho, Rubyo preparou,
para si e para o tio, duas mochilas com um pouco de pão e frutas secas,
cantis com água limpa do poço, materiais para acampamento — e claro, seus
alaúdes. Frente ao peso de todo aquele material, fora ainda sua armadura e
sua espada, Rubyo se perguntava se não havia errado no inventário, pois
seria bastante pesado para levar na caminhada. Mas como poderia saber o
correto? Era a primeira vez que o jovem sairia dos arredores de Nenáreah,
então não sabia como planejar suas provisões. Se era muita coisa ou não, era
difícil decidir, mas, com certeza, seria muito útil se tivesse um cavalo para
carregá-las. E por sorte, Rubyo sabia bem onde conseguir um.
Quando Rubyo bateu à porta de Gary já era tarde da noite, mas seu
amigo ainda não estava dormindo; Gary estava ao fogão de lenha, fervendo
alguns líquidos coloridos e depositando em pequenos frascos de vidro que
ficavam sobre a mesa, ladeados por livros de poções, medicina e culinária. O
primogênito da família Bortolly aprendera a ler e a cozinhar com a mãe, mas
seu interesse foi muito além da comida, tendo aprendido sozinho a fazer
bombas e poções para suas atividades ilícitas. Além de um excelente
aspirante a alquimista, Rubyo admirava a técnica e a agilidade de seu amigo,
bem como a sua incrível mira ao arremessar adagas. Gary dizia que,
enquanto pudesse manter seus inimigos à distância, seu corpo magricelo não
sofreria dor.
Rubyo explicou sobre sua missão suicida e pediu emprestado o cavalo
do amigo para auxiliar na viagem — o que Gary prontamente aceitou, com
duas condições:
— Quando você virar rei, quero ser o ladrão oficial do reino! — disse
Gary, virando uma panela velha de ferro para despejar o líquido esverdeado
num frasco.
— Não seja idiota, Gary. Reinos não tem ladrões em seu corpo de
oficiais. — respondeu Rubyo, achando graça.
— Mas e os homens que vestem as cores e o brasão do reino para
coletar impostos em nome do rei? Eles são o quê, então? Cobrar imposto é
roubar do trabalho do povo! E se alguém tem que cuidar desse dinheiro, que
seja eu, então, para trazer coisas boas a quem precisa! Quero ser o ladrão
oficial!
— O que você quer, na verdade, é a posição de Mestre da Moeda, pois
é quem gerencia todo o tesouro em nome do rei. Eu até aceito, meu amigo,
mas meu reinado não tem trono e nem coroa, vá dizer tesouros...
— Se eu for o ladrão oficial, te garanto que em pouco tempo teremos
mais ouro que a rainha Lucrécia. Além disso, se não for assim, não vou te
emprestar o Bokko.
— Tudo bem, Gary, eu prometo. — assentiu Rubyo, rindo de seu
amigo.
— Obrigado pela honra. Então, agora que sou parte oficial de seu
governo, da sua corte, e como ladrão oficial... digo, como “Mestre da
Moeda” de Minalkar, declaro formalmente à coroa que vou junto com vocês
amanhã. — afirmou Gary, cheio de pompa, enquanto limpava as mãos em
seu avental.
— Você só pode estar maluco, Gary! — exclamou Rubyo, já sem
nenhum ar de humor. — Eu acabei de te explicar que o que faremos é
loucura, que temos grandes chances de não voltar com vida... e você me fala
que quer ir junto?!
— Calma, eu sei, eu sei! É por isso mesmo que quero ir junto! Você
deve achar que temo perder a minha vida, mas, afinal, o que é viver, Rubyo?
É ter casa, comida, roupa, pagar impostos, me casar e ter filhos? Ou seria
viajar, se aventurar, matar, comer, cagar e voltar para casa? — Rubyo fez
menção de dizer algo, mas Gary não deixou se interromper. — Eu não sei o
que é viver porque eu apenas sobrevivo... Ir com vocês me dará uma chance
de viver de verdade, ou de pelo menos morrer tentando. — explicou Gary,
visivelmente emocionado e animado.
— Odeio quando você usa de filosofias profundas para me convencer a
seguir suas ideias, Gary. Odeio ainda mais quando você parece ter razão.
Mas e sua irmã? Ela precisa de você! — argumentou Rubyo.
— Ela pode ficar na casa da minha tia, lá na cidade. Aquela velha vai
topar facilmente ficar com minha irmã quando ver quanto dinheiro juntei
para ela, e aposto que vai até torcer para que eu morra na viagem... Vai ser
bom pra minha irmã, ela precisa de alguém melhor que eu, cuidando dela.
Mal sei cuidar de mim, vá dizer de uma criança de treze anos.
Rubyo parou para ponderar por alguns momentos, enquanto caminhava
pela cozinha de Gary, vendo os frascos de vidro com líquidos coloridos e
borbulhantes. O jovem não conseguia negar para si mesmo o quanto ficaria
feliz em ter seu amigo junto a ele nessa jornada.
— Nós estamos indo roubar um túmulo... seria mesmo interessante ter
um ladrão conosco. — disse Rubyo, estendendo a mão para o amigo.
— Ainda mais quando esse ladrão tem um cavalo tão rápido! —
completou Gary, apertando a mão de Rubyo.
— Se tem algo para preparar, que o faça agora, Gary. Te espero
amanhã, no primeiro canto do galo.
— Estarei pronto, com minhas adagas amoladas e com meus frascos
cheios! — respondeu Gary, firmemente ao amigo.

***

Rubyo acordou com a primeira nota do canto do galo do vizinho. O


jovem percebeu que seu tio já não estava mais na cama, apesar de ter
acordado tão cedo. Rubyo tirou sua nova armadura do baú, vestindo-a e, em
seguida, percebendo a sensação incrível que era usar algo que lhe vestia tão
bem. Amarrou bem as botas, pegou sua espada e colocou-a com a bainha em
suas costas, sobre o ombro direito, assim como seu alaúde, que pendurou ao
lado. Sobre suas vestes e sua arma, Rubyo cobriu-se com a velha capa
marrom com alguns remendos.
Ao encontrar com Argus na cozinha, surpreendeu-se ao ver seu tio com
uma armadura quase completa, feita de aço leve, com o sol vermelho de
Minalkar cravado em seu peito, ostentando o ar de general que já fora um
dia. Rubyo deduziu que aquela armadura deveria estar guardada no baú de
Argus, o qual Rubyo era proibido de mexer, há anos.
Ao notar a presença do sobrinho ao pé da escada, Argus engoliu um
pedaço do peixe seco que comia, e disse:
— Nada mal essa sua fantasia de guerreiro, garoto. Espero que seja útil,
além de bonita. — disse Argus, vestindo um blusão cinzento sobre o corpo,
cobrindo a armadura.
— E eu espero que essa sua armadura enferrujada não te deixe ainda
mais lento, velhote. Já basta o mestre Ollaff para reclamar de dores nos
joelhos e nas costas, durante nossa jornada.
Argus riu de canto de boca e foi até a lareira. Repetindo o gesto de anos
atrás, enfiou o braço dentro da chaminé e puxou um pacote muito parecido
com o que embalava a Sabedoria, quando presenteou Rubyo. Mas, desse
pacote, tirou duas espadas curtas com lâminas discretamente anguladas e
claramente afiadas, com pomos em formato de sol em seus cabos, além do
brasão de Minalkar no guarda mão. Ele girou as lâminas no ar com extrema
habilidade, guardando-as nas bainhas da cintura, uma de cada lado, no meio
do giro. Para Rubyo, era uma visão emocionante ver, ao vivo, um príncipe
guerreiro de Minalkar em todo seu esplendor.
Ao ouvir a batida na porta, Rubyo agilmente se aproximou e a abriu,
encontrando-se com Ollaff e com os primeiros raios de sol da manhã que,
timidamente, lutavam contra a neblina para iluminar a vila. Seu mestre
vestia seu tradicional manto púrpura escuro, com um cordão branco na
cintura, onde dois pequenos sacos de couro estavam pendurados. Não era
possível distinguir qual sapato utilizava, pois os pés estavam cobertos pelo
longo manto. O gorro da vestimenta cobria a cabeça de Ollaff, deixando
ainda mais proeminente a sua longa barba acinzentada. Na mão direita,
Ollaff segurava um longo cajado de carvalho, da altura de Rubyo, com um
cristal transparente na ponta, do tamanho de uma mão humana fechada.
— Bom dia, meu senhor. Espero que esteja tão animado quanto o jovem
Bortolly, que parece pretender ir conosco... Tem certeza disso, meu Rei? —
perguntou Ollaff.
— Sim, mestre. Preciso dele e de seu cavalo em nossa empreitada...
— Ah, ótimo! — exclamou Argus, ironicamente. — Mais uma criança
em nossa equipe! Seria mais fácil simplesmente nos banharmos no mar para
já chegarmos salgados e temperados para o banquete que os orcs farão com
os nossos corpos!
Sem dar ouvidos ao tio, e certo de sua decisão, Rubyo abriu caminho ao
lado de Ollaff e fez um longo assovio, sinalizando para que Gary se
aproximasse com Bokko. Tudo o que não precisavam levar à mão — como
suas armas e alaúdes —, foi amarrado e guardado nos alforjes que o cavalo
carregava. Enquanto ajeitava a carga, Rubyo percebeu que Ollaff não
carregava bagagem alguma.
— Tudo o que preciso está nessa pequena bolsa em minha cintura, fique
tranquilo. — afirmou Ollaff, ao perceber a estranheza no olhar dos jovens.
Rubyo assentiu com a cabeça, apesar de seu olhar claramente discordar
de seu mestre, afinal, como poderia estar sem nenhum suprimento para uma
viagem de vários dias rio acima? Com tudo pronto, o jovem fez um sinal
para seu tio, que seguiu caminhando à frente do grupo, andando em fila.
Alguns passos élficos à frente, Rubyo deu uma última olhada para sua
casa e para a pequena vila de onde nunca saíra, em direção ao seu passado e
seu futuro. O jovem não poderia estar mais animado... e apavorado.
Ollaff orientou Argus que seria mais prudente se contornassem as
muralhas por fora até chegar ao portão norte, onde encontrariam a estrada
real. Esse desvio tomaria mais horas de caminhada, porém seria mais seguro
manter-se longe de olhares curiosos de dentro da cidade. O grupo cruzou a
floresta pantanosa que circundava a vila, mantendo sempre as muralhas
como referência à sua direita.
Após umas duas horas de caminhada com a lama já cobrindo todo o
tornozelo, a comitiva chegou até o portão norte, onde se misturaram com a
massa de gente que entrava e saía pelo principal portão da capital. O grupo
tentava não chamar a atenção dos guardas que vestiam os mantos cinza-
azulados com o brasão de Alferius, representado por um polvo coroado.
Cada tentáculo do polvo representava um dos oito filhos de Ottonni Lurullo,
fundador de Alferius que, juntos, construíram as principais cidades do reino.
Seguindo por algumas horas pela estrada real sentido norte, o grupo
chegou até uma bifurcação. O sol já estava a pino, mas devido ao fim do
outono, eles não sofriam com o calor, pois o sol forte era um alívio ao vento
frio que vinha do Oeste. O céu estava claro, sem nenhuma nuvem no céu, e
provavelmente teriam uma noite clara e estrelada.
— Pessoal, quando vamos parar para comer? Sei que sou magro, mas
não quer dizer que eu coma pouco... — reclamou Gary, do final da fila,
tomando um pouco da água de seu cantil, enquanto puxava a rédea de
Bokko, que caminhava lentamente e satisfeito ao lado de seu dono
— Só vamos parar quando chegarmos na Floresta dos Amantes, Gary.
— disse Argus, enquanto colhia o fruto de uma macieira ao seu lado.
— Acho que deveríamos votar sobre essa questão, senhor Argus. Quem
vota por comermos agora, que levante a mão!
Argus levantou a mão, mas era apenas para arremessar uma maçã
contra Gary. Surpreendentemente, o jovem foi capaz de aparar a fruta no ar e
pareceu contente com o agrado feito pelo líder do grupo. Rubyo e Ollaff
também se sentiam famintos, mas preferiram manter o silêncio para evitar
serem alvejados pelo mau humor de Argus.
Um pouco mais adiante, Ollaff sugeriu que saíssem da estrada principal
que levava à Floresta dos Amantes, pois ela parecia mais movimentada do
que gostariam. Desceram o barranco que margeava a estrada e seguiram por
uma trilha bem na borda do Rio Dourado. O caminho era bem lamacento e
pedregoso, cheio de raízes onde era fácil enroscar o pé, mas a vista que
tinham do enorme rio à leste era esplendorosa.
O Rio Dourado era o maior rio do continente, sendo formado pela união
de dois outros rios, dividindo o continente em três grandes porções de terra
que separavam os reinos de Cehvambar. Toda a mercadoria que não era
transportada por cavalos ou carroças era carregada através dos rios e, por
isso, invariavelmente, uma hora cairiam no Rio Dourado. Os viajantes
perderam a conta de quantas embarcações passaram por eles sentido ao porto
de Nenáreah e para o Mar do Sul.
Ao norte, a única coisa que podia ser vista do vale onde estavam era uma
enorme muralha verde, que seguia desde o Rio Dourado até onde se
enxergava a oeste. A muralha era formada por árvores gigantescas e
corpulentas, com galhos longos e grossos, emaranhados por cipós, que
formavam uma vista magnífica — era a Floresta dos Amantes.
Já estava no meio da tarde quando alcançaram a enorme floresta, e quão
logo pisaram nela, Gary já foi desembrulhando um dos pacotes do alforje,
onde guardava um pedaço de torta que trouxera para a viagem.
— Guarde isso, meu jovem... Nossos suprimentos são para
emergências, não devemos desperdiçá-los. — advertiu Ollaff, calmamente.
— Mas, meu senhor, minha fome é uma emergência! Preciso comer
algo, já estou até tonto... — argumentou Gary, fazendo uma atuação
chinfrim, como se estivesse com vertigem.
— Pois então, trate de procurar comida. Estamos em uma floresta
repleta de caça e de frutas ao redor, basta procurar! Deixe nossos
suprimentos para quando não tivermos o que comer. Tudo o que sobra num
dia pode faltar no outro, senhor Bortolly. — respondeu o velho sábio.
Contrariado, Gary guardou o pedaço da torta de volta no alforje de
Bokko, quase chorando ao sentir o cheiro doce de maçã e canela que exalava
do embrulho. Rubyo gritou para Gary que o ajudaria a buscar comida, quão
logo terminasse de urinar atrás de um arbusto ali perto. Argus e Ollaff
acharam uma clareira um pouco mais à frente e utilizaram galhos folhosos
para limpar o chão e montar o acampamento.
Os dois jovens partiram em busca de comida e, sem dificuldades,
encontraram algumas peras, framboesas e cogumelos que, pela cor e
formato, deveriam ser comestíveis. Realmente, plantas e frutos não faltavam,
mas os dois amigos estranharam não encontrar nenhum animal na floresta,
parecendo que alguma coisa os afugentara.
A Floresta dos Amantes era a segunda maior floresta do continente,
perdendo apenas para a Floresta dos Elfos, que circundavam a cidade-estado
de Vastako. Era formada por inúmeras árvores altas como torres e velhas
como a vida. Seus galhos tortuosos se uniam nos topos e nas copas,
formando pontes naturais e quase um telhado, que obrigava a luz do sol a
trilhar caminhos estreitos entre a vegetação densa para iluminar o interior da
floresta, formando um jogo de luzes que traziam um ar romântico e
sobrenatural para o local. Musgos e cipós escorriam dos galhos altos,
adornados por flores de diversas cores, deixando o caminho
maravilhosamente lindo e confuso.
Conforme adentravam mais no coração da floresta, Rubyo e Gary
ouviam diversas vozes vindas ao longe, ficando cada vez mais altas, como
uma multidão que se seguia à frente de onde estavam. Os jovens sentiram,
de longe, um cheiro de fumaça vindo do mesmo lugar que as vozes, e
resolveram investigar o que estava acontecendo.
Ao se aproximarem da enorme clareira de onde vinha o barulho e a
fumaça, se depararam com a organização do que mais parecia ser uma festa.
Diversas mesas improvisadas em troncos de árvores caídas eram cercadas de
bancos esculpidos em madeira, com flores coloridas e velas enfeitando todo
o local. O perímetro era envolto por tochas que estavam sendo acesas uma
por uma, por alguém de pequena estatura. Dois enormes cervos estavam
sendo assados em uma grande fogueira, enquanto jogavam sobre ele algum
tipo de molho que, pela cor, parecia ser de ervas. Perto dali uma carroça
estava até torta pelo enorme peso dos grandes tonéis que transportavam, com
vinho transbordando de suas tampas. Rubyo rapidamente reconheceu que era
um grande grupo de anões que organizavam aquele evento.
— Gary, acho que estamos numa festa que não fomos convidados... —
sussurrou Rubyo, escondido atrás dum arbusto.
— E desde quando somos convidados para alguma festa, Rubyo? Mas
isso nunca nos impediu de participar do banquete, né? — respondeu Gary,
com um sorriso malicioso.
— Pois se é por falta de convite, sejam muito bem-vindos! — disse
uma voz grossa e rouca vinda de trás deles.
Ao se virarem assustados, viram um anão carregando um enorme
tronco de madeira em seu ombro direito, enquanto repousava um machado
de duas lâminas no outro ombro. Rubyo aprendera, nos livros, que os anões
pareciam mais jovens do que realmente eram, mas o cabelo e barba grisalhas
daquele senhor não escondiam sua idade avançada. Era velho. Velho e rico.
Não dava para deixar de notar — e de se impressionar — com as enormes
pedras preciosas que ostentava em seu pescoço, pulseiras e anéis, presas a
correntes de ouro.
— O que foi?! Vão ficar com essa cara de bobo ao serem convidados
para um grande casamento, e nem vão ajudar o anfitrião a carregar essa
madeira? — disse o velho anão, sorrindo.
— Desculpe, senhor, não queríamos interromper nada, só estamos de
passagem... — disse Rubyo, afastando lentamente a mão do cabo de sua
espada, enquanto tentava cobrir, com o gorro, o cabo de sua arma e a mão de
seu alaúde.
— Sim, nos perdoe, somos só viajantes. Mas se pudermos jantar com
vocês, aqueles lindos cervos, podemos ficar... eu adoro casamentos e até
choro em alguns! É alecrim que estão usando no molho? — perguntou Gary
com um sorriso simpático.
— Espero que sim, meu jovem, eu adoro alecrim! Também gosto muito
de boa música... seria um prazer ter um bardo junto a nós nessa noite para
tocar na cerimônia! — disse o anão, reparando no alaúde nas costas de
Rubyo. — Infelizmente, o grupo que contratamos para tocar foi devorado
por um grifo, no norte, e estamos sem ninguém para substituir. Podemos
trocar seu serviço por comida, senhor bardo.
— Se o senhor aceitar que eu traga mais dois músicos comigo, além
desse meu assistente, podemos fechar o negócio, senhor...?
— Anno, Anno Harglan, ao seu dispor. — respondeu o anão, soltando o
pesado tronco de madeira e oferecendo a mão direita em cumprimento aos
jovens. — E o nome dos senhores?
— Sou Rubyo Hant, o bardo. Esse é Gary Bortolly, meu sempre
faminto assistente. — respondeu Rubyo, apertando a mão do anão, sem
perceber o sorriso orgulhoso de Gary, ao notar seu amigo utilizando da
persuasão que lhe ensinara.
— Pois então, temos um acordo, senhor Hant! Sou o pai da noiva, e
devemos começar a cerimônia logo após o pôr do sol. Minha filha quer
vaga-lumes iluminando seu cabelo, então teremos que esperar escurecer...
Aguardaremos vocês, com o cervo assado e com as canecas cheias!
Anno, sorrindo, apertou também a mão de Gary e, com a ajuda dos
jovens, colocou novamente o tronco em seu ombro, seguindo para a clareira
logo à frente. Era impressionante ver uma pessoa daquela idade e daquele
tamanho ter uma força tão bruta. Rapidamente, Rubyo e Gary correram de
volta até o local do acampamento, carregando, num pequeno balaio, as frutas
e cogumelos coletados.
Quão logo chegaram e contaram sobre a novidade aos seus
companheiros, foram desanimados por Argus, que não gostou da ideia e da
exposição, porém Ollaff ficou ao lado dos jovens e, dessa vez, o próprio
mestre sugeriu uma votação para decidirem se iriam ou não. Gary disse que
votaria por Bokko, e logo seu voto valeria por dois. Sem chances de vitória,
Argus aceitou, desde que não abusassem do álcool, afinal, teriam uma longa
jornada no dia seguinte.
— Mestre Ollaff, mas como o senhor tocará conosco se não trouxe sua
flauta? — perguntou Argus, começando a afinar seu alaúde.
— Fique tranquilo, meu senhor, pois eu trouxe a minha velha flauta de
três baixos. — afirmou Ollaff, dando duas batidinhas na pequena bolsa em
sua cintura. — Rubyo, acenda a fogueira onde posicionamos a lenha,
enquanto Gary prepara os nossos sacos de dormir. Não precisaremos de
cobertura em nosso acampamento essa noite, pois o céu está aberto e não
choverá. É a primeira noite de lua cheia.
Rubyo olhou para cima, assim como Ollaff estava fazendo, tentando
enxergar o que seu mestre via, mas nada enxergava além das cores
alaranjadas se fundindo com o azul no pôr do sol. Deixando de lado, Rubyo
foi até as lenhas, estendeu sua mão direita e disse em voz baixa: Flaminus!
Pequenas línguas de fogo saíram da mão do jovem e tocaram a lenha,
criando uma fogueira instantaneamente. Gary, que estava próximo ajustando
o local onde dormiriam, quase caiu para trás de susto, pois não sabia que
Rubyo era capaz de realizar magias — e nem imaginava como aquilo era
possível.
— A magia existe antes de todos os seres vivos, Gary. — disse Ollaff,
se aproximando do jovem com a mão em seu ombro, como se lesse seus
pensamentos. — Ela equilibra o mundo, dá e tira a vida através dos quatro
elementos: terra, água, fogo e vento. Assim como nos molhamos com a
água, ou nos esquentamos no fogo, os elementos também se comunicam
conosco e são capazes de nos ouvir, caso você saiba como falar. Essas forças
da natureza são poderosas e generosas, realizando o desejo inato do nosso
coração, de controlar tudo ao nosso redor.
— Mas Rubyo não é um feiticeiro, mestre. — respondeu Gary, confuso.
— Não, ele não é. Porém, ele aprendeu a controlar os elementos com
cristais mágicos, assim como um mago. Nunca reparou no colar que ele
utiliza desde criança? — respondeu Ollaff, enquanto Rubyo colocava o colar
para fora da camisa, exibindo-o para Gary.
— Então eu também posso usar magia, se tiver uma pedra dessas?
— Sim, mas não é porque você pode fazer algo que você deve fazê-lo.
Não basta simplesmente ter uma pedra mágica ou um cristal, é necessário
também muito estudo para saber como controlar os elementos.
— Não é só saber a palavra mágica e pronto?
— Quem dera fosse tão fácil, jovem Bortolly. Do mesmo jeito que os
elementos nos ouvem, eles falam de volta ao nosso coração e podem, assim,
dominar o corpo e a mente de quem não estiver preparado para ouvi-los.
— Quer dizer que se eu conjurar uma magia, o fogo pode me controlar
ao invés de eu controlá-lo? — perguntou Gary, um pouco assustado.
— Exatamente... e não só controlar você, mas também te consumir. Nós
não controlamos de verdade os elementos, apenas os canalizamos. Quanto
maior a pedra mágica de ligação, maior o poder que pode ser canalizado
dela... e se a forçarmos demais, ela pode se romper e explodir. — disse
Ollaff de modo sombrio. — Por isso, meu jovem, ainda que encontre uma
pedra mágica, não tente conjurar magias sem que saiba o que está fazendo.
Pode ser a primeira e a única vez.
Enquanto ouvia a breve aula, Rubyo seguia espetando os cogumelos em
varetas para assar no fogo. Mesmo sabendo do banquete porvir, a fome era
demais para esperar. Argus, após afinar o alaúde, se aconchegou perto da
fogueira, ao lado de Rubyo, tirando as botas e colocando seus pés próximos
às brasas, limpando-os do suor e da lama. Ollaff sentou-se ao lado dos dois e
começou a sugerir as músicas que tocariam na cerimônia. Para eles, não era
nenhum desafio tocar juntos, pois desde sempre se sentavam em roda para
tocar algumas canções; fora o fato de que tanto Argus, quanto Rubyo, foram
ensinados a tocar pelo velho mestre.
Uma vez descansados e com o sol repousando, os membros do grupo se
arrumaram da melhor maneira possível para disfarçar a imagem maltrapilha
de quem caminhou o dia todo. Antes de deixarem o acampamento, Ollaff
tocou a ponta de seu cajado no chão e sussurrou algumas palavras baixinho.
Gary reparou que o cristal que o mestre carregava na ponta da arma passou a
brilhar uma luz púrpura por alguns segundos e depois se apagou, deixando o
acampamento todo invisível — exceto Bokko, que pastava amarrado perto
dali.
— Pronto, nossos bens estão seguros. — afirmou Ollaff, satisfeito com
sua ilusão.
— Isso é incrível, mestre! Mas eu não entendo... não vejo nenhum dos
elementos nessa sua magia. — disse Gary, confuso.
— É porque você está pensando de maneira limitada, Gary. —
respondeu Rubyo. — Você não precisa usar somente um dos elementos ao
conjurar magias. Para ilusão, por exemplo, usamos a água e o vento para
criar uma névoa mágica, que muda a percepção do que se vê.
— Exatamente, meu senhor. A percepção dos quatro elementos é
somente o início de tudo o que envolve a magia. — disse Ollaff, seguindo
Argus que já puxava a marcha, sentido ao local da cerimônia.
Ainda sem entender muito, Gary desistiu de buscar explicações e achou
melhor se concentrar no banquete que viria. O grupo seguiu caminhando
floresta adentro, sendo guiados por vaga-lumes e pela luz das várias tochas
que já estavam acesas para o casamento. A luz ficou mais evidente assim
que a noite caiu de vez, mergulhando a floresta em trevas que eram
desafiadas pelas luzes bruxuleantes das chamas, criando sombras
fantasmagóricas nas árvores ao redor.
— Não entendo por que alguém gostaria de se casar no meio do mato,
ao invés de utilizar um templo. Em Alferius existe templos dos três deuses,
para que se casar aqui? — resmungou Argus, enquanto se esgueirava entre
algumas árvores da trilha.
— É exatamente por isso que essa é a “Floresta dos Amantes”, príncipe
Argus. As pessoas que não possuem devoção por nenhum membro da
Trindade optam em se casar aqui, longe de templos e de olhares curiosos. —
respondeu Ollaff.
Ao ouvir sobre a Trindade, Rubyo se lembrou das aulas de religião do
mestre Ollaff. O velho mestre ensinara que, antes de tudo, havia o nada. E o
nada, do nada, se transformou em tudo. O “tudo” era chamado de Emmanajj,
que era a consciência de tudo aquilo o que havia de bom e belo na
existência, detentor de todo o poder. Emmanajj decidiu criar seres que
pudessem dividir com ele a beleza da existência pura e simples, mas para
isso precisava criar um local onde elas pudessem viver.
Com uma palavra de ordem, Emmanajj criou os quatro elementos e,
misturando todos, fez surgir uma esfera girando no vazio. Dela, fez erguer a
terra, separando-a da água, criando os quatro continentes, onde desejava que
suas criaturas vivessem. Para proteger o mundo que criara, Emmanajj fez um
guardião: Harddam, responsável por tudo o que nela habitasse. Em seguida,
todas as raças foram criadas por Emmanajj, além de todos os animais,
plantas e frutos, trazendo o calor da vida para todos os seres através da
criação do seu guardião da vida, Calavann.
Emmanajj desejava que seus dois filhos trabalhassem juntos, guardando
a vida e a morte de todas as criaturas, trazendo um ciclo sem fim para toda a
sua criação.
Mesmo vivas, as criaturas não traziam alegria para Emmanajj, pois algo
faltava para elas: os sentimentos, sem os quais a existência de nada serviria.
Para resolver esse problema, Emmanajj criou Selline, a guardiã dos
sentimentos, trazendo o amor para ser o grande guia da existência.
Após tudo feito — e esgotado por todo seu trabalho —, Emmanajj
resolveu descansar e deixar tudo a cargo de seus guardiões, iniciando seu
sono eterno, enquanto se regozijava orgulhoso de sua criação. Mas,
infelizmente, a harmonia entre os três guardiões se quebrou quando
Harddam e Calavann se apaixonaram perdidamente por Selline.
Frente à escolha que deveria fazer entre os dois pretendentes, Selline se
apaixonou por toda a vida que existia em Calavann, jurando para ele o seu
amor por toda a eternidade. Harddam, protetor do mundo, não aceitou a
rejeição e resolveu punir o casal, expulsando-os e condenando-os a um
tormento perpétuo.
Lançado no vazio, Calavann se transformou no sol, para manter sua luz
garantindo vida à toda criação, enquanto Selline transformou-se na lua,
inspirando sempre o amor de quem a admirasse no céu. Separando-os no dia
e na noite, Harddam conseguiu impedi-los de ficarem juntos para sempre.
Envolta na escuridão da noite e da solidão, cada lágrima de Selline se
transforma em uma estrela, que são incontáveis, assim como a tristeza da
deusa.
Harddam, eternamente humilhado pelo casal e vendo o amor que a
criação nutria por eles, resolveu deixar os povos à sua própria sorte,
alimentando-se da tristeza e dos dissabores vividos pela criação de
Emmanajj. Já que não poderia contar com o amor deles, decidiu julgar cada
alma após a morte, decidindo se elas mereciam o descanso eterno com o
criador ou o tormento de mil anos em sua morada debaixo da terra.
Abandonando a proteção do mundo, Harddam atreveu-se a criar
monstros e demônios para destruir a vida, concedida por Calavann, através
de guerras, além de minar a paz e o amor entre os povos, bloqueando o
poder de Selline.
Por puro sadismo, Harddam até hoje permite que Selline e Calavann se
vejam de longe, no pôr do sol, mas jamais se tocarão novamente.
Capítulo 7: Desejos
— Vossa Majestade, o General Gorggi está aqui, conforme solicitado
pela senhora. — disse Raonni, o arauto da rainha, da porta do grande salão
do trono.
— Pois mande-o entrar, Raonni. Todos os demais, fora da sala do trono!
Quero falar em particular com o general! — respondeu Lucrécia, sentada em
seu trono, dispensando toda a corte.
O grande salão do trono do castelo de Nenáreah era todo suportado por
colunas em forma de tentáculos, sustentando um lindo teto abobadado, de
onde um gigantesco lustre, com espaço para oito velas enormes, descia. Os
funcionários do castelo diziam que cada vela daquelas durava mais de trinta
dias acesa. Por dentro, o salão era todo preto, assim como o resto do castelo,
formado de belíssimos encaixes de blocos de ônix, sustentados por vigas de
ébano brilhante.
Gorggi entrou pelo salão desfilando sua lustrada armadura negra e
carregando o capacete em forma de cabeça de polvo colado ao peito,
enquanto sua longa capa dourada esvoaçava. Seus cabelos eram loiros e
curtos, cortados de maneira tão reta que dava a impressão de sua cabeça ser
quadrada.
— Eis-me aqui, minha rainha! — disse Gorggi, fazendo uma reverência
e, em seguida, olhando para os lados, notando que mais ninguém estava no
salão. — Imaginei que a senhora gostaria de manter nossos segredos em
vosso quarto, minha senhora, mas se quiser se divertir no seu trono, não
posso dizer que nunca pensei nisso...
— Não seja idiota, Gorggi! Não foi para isso que te chamei aqui! Você
é o general do meu reino, e temos assuntos a discutir!
— Perdão, minha senhora... Julguei mal sua decisão em ficar a sós
comigo. — respondeu Gorggi, com um sorriso maroto.
— Tire esse sorrisinho da cara, ou mesmo vou arrancar com minha
espada! — respondeu Lucrécia, rispidamente. — Temos assuntos militares a
tratar, não faça com que eu me arrependa de tê-lo nomeado general.
— Jamais, Vossa Majestade! Estou à sua disposição... para o que a
senhora precisar. — disse Gorggi, se aproximando e dando um beijo
demorado na mão da rainha.
Lucrécia tentou disfarçar o arrepio que sentiu, mas foi em vão. Ainda se
contorcendo, começou a falar:
— General, fui informada que aquele maldito bastardo partiria nessa
manhã rumo à Minalkar, para tentar recuperar o anel de sua família. Com
essa joia em mãos, ele poderá ser coroado pelo povo dele. Você entende a
importância disso para nós?
— Entendo, sim, minha rainha. Mas o que ele poderá fazer contra a
senhora? Um bastardo pobretão, liderando camponeses refugiados... que
risco oferecem para nossas tropas?
— Risco? Não, você não entendeu... Eu não temo aquele fedelho, e
muito menos os ratos imundos que abrigamos aqui. O que eu quero é apenas
um motivo para enforcar aquele pescocinho vermelho, e assim que ele enfiar
uma coroa na cabeça, eu o terei!
— Então você quer que ele seja coroado?! — perguntou Gorggi.
— É claro! Somente assim posso justificar a quebra do pacto de refúgio
que meu pai assinou com Minalkar. — respondeu Lucrécia, com um sorriso
frio.
— Belíssimo plano, minha rainha! — aplaudiu Gorggi. — Mas ainda
não entendi o que deseja de mim...
— Quero nossas tropas a postos, general. Quão logo ele voltar, minha
fonte me informará imediatamente... e precisamos estar prontos para agir
rápido. Esperei mais de dezesseis anos por esse momento, e não quero
esperar nem um dia a mais.
— Assim será, minha rainha. Já deixarei ordem a todos os capitães, e
estaremos prontos para “conter essa rebelião”. — afirmou o general. — Era
só isso mesmo que desejava, minha rainha?
— Nesse momento sim..., mas pode ser que, mais tarde, eu deseje algo
mais. Te aguardo em meus aposentos nessa noite, general. — respondeu a
rainha, com um sorriso de canto.
— E eu aguardo ansiosamente pelo anoitecer, minha senhora.
Capítulo 8: O Casamento
Assim que chegaram ao local do casamento, tudo já se encontrava
maravilhosamente pronto. Mesas e bancos haviam sido esculpidos em
troncos iguais aos que Anno carregava há algumas horas, sendo
suficientemente altos para os convidados que, em sua grande maioria, eram
anões. Flores de diversas cores ornamentavam as mesas e os corredores,
reunidas em belíssimos arranjos, dignos de um casamento da realeza. O
brilho das tochas criava um ambiente convidativo e romântico, iluminando o
caminho de pétalas que levava até o altar. Era a cena mais linda que Rubyo
já vira em toda sua vida, mas para Gary, o que importava mesmo era o
perfume maravilhoso dos cervos assados perto dali.
Após as apresentações formais de Ollaff e Argus a Anno, os três
músicos foram direcionados até um pequeno palco que ficava ao lado do
altar. Gary sentou-se na mesa mais próxima ao pequeno palco, um pouco
incomodado por não conhecer nenhum dos outros convidados e por não estar
bem-vestido como todos ali. O jovem usava uma calça e camisa cinzas, com
um longo colete preto que ia até quase seus joelhos — o que destoava dos
convidados com belíssimas camisas e vestidos com fios de ouro, pedras
preciosas por todos os lados e alta alfaiataria, bem reguladas aos seus corpos.
Impressionado e distraído com tamanha riqueza, Gary quase caiu para trás
quando percebeu um enorme urso pardo passando atrás dele, cruzando o
corredor na direção dos músicos. O grande animal passou pelo grupo,
desejou boa noite, e subiu ao altar.
— Pelas tetas de Selline, Rubyo! Acho que erramos nas cores dos
cogumelos que comemos hoje! Eu poderia jurar que ouvi esse urso falar!
— Eu também, eu também! — respondeu Rubyo com os olhos
arregalados pelo susto, mas aliviado por não ter delirado sozinho.
Argus e Ollaff caíram na gargalhada, mas interromperam sobriamente o
riso ao notarem os noivos se aproximando do corredor, o que indicava o
início da cerimônia. Ollaff tirou da pequena sacola de tecido e couro, que
levava na cintura, sua grande flauta de três baixos e começou as primeiras
notas da tradicional canção matrimonial de Cehvambar, seguido por Argus,
que emendou a melodia no alaúde, enquanto Rubyo aguardava a segunda
estrofe da canção para começar com os arranjos.
Nas cerimônias de casamentos enânicos, noivo e noiva entravam lado a
lado, carregando uma enorme corrente, cada um deles. Os dois carregaram
tal corrente até o altar e apresentaram ao enorme urso, que seguia em pé na
frente de ambos.
— É de todo o coração de vocês que desejam fundir o ferro do seu
sangue, um com o outro, para sempre? — perguntou o urso.
— Sim! — responderam, noivo e noiva, de modo uníssono.
— É de todo o coração que aceitam trancar seus corações e dividir
apenas uma chave, um com o outro, até o fim dos tempos?
— Sim! — responderam novamente os noivos.
— Então se esse é o desejo dos vossos corações, que sejam unidas suas
vidas para sempre!
Ao dizer isso, o enorme urso levantou os braços, indicando que os pais
dos noivos deveriam entrar. Anno adentrou no corredor ao lado de outro
anão, tão bem-vestido quanto ele, mas com bem menos cabelo e com a barba
toda trançada. Juntos carregavam um enorme cadeado, que foi levado até o
altar. Enquanto caminhavam, o urso deu um sinal para Ollaff, indicando que
deveriam tocar uma canção durante a entrada dos pais dos noivos. O velho
mestre bateu seu pé três vezes, indicando o ritmo para o início da canção.
Rubyo tinha combinado que não tocaria a música “Ode ao Amor”, pois,
como teria que cantar a letra, achou melhor se concentrar apenas na voz. O
jovem estava nervoso por ser sua primeira apresentação e não queria
cometer nenhum erro. O fato de não conhecer ninguém ali — e pela noiva
ser o centro das atenções —, fez com que Rubyo relaxasse e conseguisse se
concentrar para cantar lindamente a canção, enquanto Ollaff e Argus
dedilhavam as notas que faziam parte daquela complexa música. Rubyo
reparou que os pais dos noivos juntaram as correntes que seus filhos
trouxeram até o altar e uniram os elos com o enorme cadeado. O urso
esperou a música acabar e falou:
— Com esse cadeado, unimos a vida de vocês. Esses elos representam
suas famílias, cuja união forte os trouxeram até aqui, se transformando, a
partir de hoje, numa só corrente, numa só família, numa só vida. Que a união
de vocês seja tão forte quanto esse aço; não enferruje com o tempo e não se
quebre jamais, pois não há elo mais forte que o amor verdadeiro.
Os recém-casados se beijaram e, imediatamente, o grupo começou uma
outra canção clássica para abrilhantar aquele momento de emoção. Os
noivos saíram pelo corredor de pétalas, carregando orgulhosamente seu
cadeado e sua corrente, enquanto os pais esticavam os elos atrás deles.
Rubyo nunca havia visto duas pessoas tão felizes e tão apaixonadas e pensou
que, talvez, o amor não fosse algo tão ruim assim.
Era difícil para ele entender o tal “amor”, afinal, nunca havia se
apaixonado. Seu tio sempre dizia que o irmão, Edmund VI, amava Elysa
mais do que tudo no mundo…, mas se a amava tanto assim, por que aceitou
se casar com Lucrécia? Seria seu pai alguém interesseiro ou ganancioso a
ponto de trocar um amor de infância por um lucro material? Rubyo divagava
em seus pensamentos, dedilhando mecanicamente seu alaúde, mas a emoção
toda passou abruptamente ao ver aquele urso pardo em pé, parado bem na
sua frente. Com o susto, Rubyo errou a nota do retorno ao refrão, o que lhe
rendeu um olhar de reprovação de Argus e Ollaff.
Ainda tentando voltar para a canção, Rubyo viu o enorme urso se
desfigurar e reduzir de tamanho, transformando-se num elfo de pele clara,
orelhas agudamente pontudas e longos cabelos negros, usando um chapéu de
galhos secos e adornos de cipó, combinando com o robe marrom que
utilizava. Rubyo olhou rapidamente para Gary, que, boquiaberto, jurava por
todos os deuses que nunca mais comeria cogumelos.
Ao encerrar a canção, Ollaff cumprimentou o homem-urso, explicando
aos jovens que aquele era um druida e, como tal, tinha o poder de se
transformar em animais.
— Espero que não tenha assustado vocês e a nenhum dos convidados...
É difícil falar com aquela enorme boca de urso, mas foi o desejo dos noivos,
o que posso fazer?! — disse o elfo, sorrindo.
— Sua transformação é impecável, senhor druida! Nem seus olhos te
traíram, eram exatamente iguais aos de um urso pardo! — disse Argus,
visivelmente impressionado.
— Obrigado, meu jovem. Apesar de ser, sim, um druida, eu
naturalmente tenho um nome. Me chamam de Hamun, senhor da Floresta
dos Amantes. Sintam-se à vontade em minha casa!
— Agradecemos sua hospitalidade, senhor Hamun, mas somos apenas
viajantes de passagem e, em breve, deixaremos os seus domínios. Amanhã,
bem cedo, retomaremos nossa jornada. — respondeu Argus.
— Ora, não tenham pressa, aqui estão em casa! Vocês são muito bem-
vindos aqui, ainda mais se souberem tocar O Choro da Lua.
Por uma enorme coincidência, essa era uma das músicas favoritas de
Rubyo. Sem pestanejar, o jovem começou o dedilhar das primeiras notas,
que eram difíceis até para o mestre Ollaff, criando a harmonia, que foi
acompanhada por seus companheiros logo em seguida. Os convidados, que
já estavam comendo e bebendo, ficaram em silêncio para ouvir aquela
magnífica canção sendo tão bem executada e cantada pelo bardo de cabelos
vermelhos:

Vejam como ela vem, vestida de prata, um brilho dourado,


iluminando a escuridão.
Ela não veio para iluminar. Ela veio guiar o dono do seu coração.
Vejam como ela vai, com um choro sentido, coração partido, com o
dia a raiar.
Ela não vai desistir. Ao anoitecer, ela já vai voltar.
Oh, Harddam, tão cruel!
Que nos faz passar fome, viver guerras tão vazias e ver crianças a
morrer:
Por que é que não deixa esse amor para sempre viver?
O choro da lua, com dor continua, até o sol amanhecer...

Enquanto tocava e cantava a canção, Rubyo lançou de seu alaúde um


feitiço de ilusão que criou imagens no alto da clareira onde ocorria o evento,
projetando, na névoa mágica, diversas figuras que tantas vezes tinha visto
em seus livros de religião. Projetava a deusa Selline, nua, com algumas
nuvens cobrindo suas vergonhas e seus longos cabelos prateados cobrindo os
seios. Ela voava em direção ao horizonte, onde encontrava com Calavann,
um homem forte de armadura dourada, agarrado a uma lança envolta em
fogo. Quando iam se beijar, o dia amanhecia e Selline desaparecia no ar.
Os convidados aplaudiram e se emocionaram com o espetáculo de luzes
e de música que vivenciavam naquele momento. Anno, orgulhoso e
satisfeito pelo acordo com o grupo, levantou uma caneca e pediu um minuto
de silêncio para discursar e agradecer, mas quando foi começar a falar, um
grito de horror veio da entrada do corredor. Todos olharam para trás e
testemunharam uma jovem anã sendo transpassada por uma longa espada,
empunhada por um homem mascarado, seguido de outros vinte como ele.
— Boa noite, senhores! Todos permaneçam em silêncio, queremos a
atenção de vocês e não desejamos matar ninguém! — disse o bandido, ainda
segurando a espada atravessada no corpo da jovem, que seguia pendurada
pela lâmina enquanto agonizava. — Digo, não queremos matar mais
ninguém.
O grupo todo de bandidos riu da piada e, em seguida, outro começou a
falar:
— Sabemos que, na cultura dos anões, ninguém pode vir armado para
um casamento, então vamos poupar lágrimas, suor e sangue com lutas
desnecessárias que vocês não conseguirão vencer. Queremos todas as suas
joias, e queremos agora!
Rubyo mal percebeu quando Gary desapareceu calmamente na sombra
das árvores que existiam ao seu lado, ficando praticamente invisível na
penumbra. Anno, ainda de pé, bateu a caneca com raiva na mesa, pegando,
em seguida, seu machado que estava debaixo da mesa onde se sentava.
Subindo na mesa com o machado em mãos, o anfitrião gritou:
— Para o azar de vocês, aqui existe um anão que não se importa com
essa tradição idiota! E esse anão é o pai da noiva que vocês estragaram o
casamento! Sumam daqui antes que eu corte suas cabeças como lenha, seus
malditos!
Argus lentamente colocou o alaúde de lado e jogou para trás o manto,
acessando o cabo das espadas na cintura, sem movimentos bruscos. Rubyo
notou Ollaff guardando a flauta no saco mágico em sua cintura e, em
seguida, atraiu magicamente o cajado para sua mão. O coração de Rubyo
disparou quando ele também colocou seu alaúde no chão e tocou o cabo de
sua espada no ombro, percebendo que aquela luta seria pra valer. Qualquer
euforia deu lugar à tristeza ao entender que, talvez, teria que realmente matar
uma pessoa.
— Você é somente um contra nós, que somos mais de vinte! Guarde sua
arma, velhote! — gritou um dos bandidos para Anno, sem perceber o
movimento dos bardos próximos ao altar.
— Um não, ele é meio! — provocou outro bandido, puxando os risos de
seu bando.
— Pois eu prefiro ter metade da altura de um homem, do que ter toda a
nojeira de um bandido maldito que rouba pessoas num casamento! Você está
morto, cria de Harddam!
Anno correu sobre a longa mesa em que estava em pé, chutando
canecas e jarros pelo caminho, com o machado levantado e pronto para
golpear. Ao perceber a investida do anão, alguns bandidos que estavam na
linha de frente abriram caminho para outro logo atrás, que estava com um
arco na mão, pronto para atirar. A flecha foi lançada contra Anno, que jamais
teria como se defender daquele projétil vindo diretamente em sua direção.
O anão fechou os olhos para não ver onde a flecha o acertaria, mas
continuou correndo bravamente. Por estar de olhos fechados, Anno não viu a
espada curta de Argus acertar, com destreza inigualável, a flecha que vinha
em sua direção, desviando a trajetória do projétil. Rubyo surpreendeu-se ao
ver a velocidade com que seu tio havia sacado a espada e sua incrível mira,
para acertar uma flecha mesmo naquela distância de quase quinze passos
élficos. Argus, empunhando a outra espada, também correu na direção dos
bandidos, gritando como uma fera. Pela primeira vez, Rubyo viu aquele
temível guerreiro que as pessoas comentavam e os livros contavam — qual
seu tio costumava ser.
Argus alcançou Anno em poucos passos e ambos atingiram a linha de
frente dos bandidos quase simultaneamente, enquanto os convidados se
escondiam embaixo das mesas ou corriam para as sombras da floresta. Argus
habilmente matou o primeiro bandido com um só golpe de espada,
certeiramente no pescoço, enquanto girava o corpo para adentrar no meio do
grupo de inimigos. Anno saltou da mesa com o machado levantado e cravou
na testa de um dos bandidos, que inocentemente acreditou que o escudo fino
de madeira conseguiria segurar o ataque.
Ollaff lançou uma enorme bola de fogo contra o bando, derrubando
dois dos bandidos e iniciando um incêndio na roupa de outros dois que
estavam próximos. Vendo seu mestre agir, Rubyo finalmente juntou a
coragem necessária; sacou sua espada e correu na direção dos inimigos,
gritando bem alto na intenção de afugentar os agressores... ou quem sabe,
seus próprios medos.
Ao se aproximar, viu que Anno estava sendo cercado por alguns dos
inimigos, mas não se deixava abalar, girando sem parar o machado para se
manter afastado. Rubyo chegou na distância correta do inimigo, que estava
de costas, e hesitou com a espada em mãos, faltando-lhe coragem de atacar
um outro homem, ainda mais covardemente pelas costas. O brilho de uma
adaga de arremesso veio da escuridão, direto na nuca do inimigo, que caiu
quase em cima de Anno, chamando a atenção dos inimigos para Rubyo.
A espada de um dos inimigos veio cortando o ar para cima de Rubyo,
que instintivamente deu um passo para trás, deixando o golpe passar bem
perto de seu rosto, enquanto girava sua própria arma, cravando-a na axila do
inimigo que tentara lhe acertar. Rubyo jamais se esqueceria da sensação
estranha de sua lâmina atravessando o corpo de uma pessoa, bem como a
resistência da carne, ossos e o pulmão da vítima contra o metal; muito menos
do grito de dor daquele homem ao ver sua vida se esvair pelo golpe do
jovem. Sem tempo de pensar, Rubyo fletiu os joelhos, jogando a cabeça para
o lado para desviar de outro golpe, o qual contra-atacou, girando a espada
como uma hélice, cortando o braço do inimigo. Aproveitando o movimento,
girou seu próprio corpo carregando a espada, cortando em seguida a cabeça
do malfeitor.
Enquanto Rubyo chafurdava no sangue de sua primeira batalha, Argus
seguia no meio de seus inimigos, girando seu corpo como numa dança,
desviando de todos os golpes e fazendo com que seus inimigos acertassem
uns aos outros, enquanto aproveitava breves momentos de distração para
passar sua espada em braços, virilhas e pescoços. Anno seguia rodando seu
machado, mantendo os inimigos afastados e atacando quando via
oportunidades. Para o anão, ver a postura de defesa padrão dos humanos era
algo vantajoso, pois, instintivamente, os homens protegem os seus órgãos
vitais e sexuais com escudos, mas nunca suas pernas.
Após cortar a cabeça de seu primeiro inimigo, Rubyo empurrou o corpo
do bandido, girando a espada em arco contra outro bandido, levando mais
uma cabeça — e outra, e mais outra. A lâmina da “Sabedoria” não
encontrava nenhum obstáculo que não pudesse cortar, fatiando gargantas
como se cortasse água. Entre um golpe e outro, Rubyo notava adagas de
Gary sendo lançadas certeiramente contra inimigos, enquanto o cheiro de
carne queimada no ar, pela magia de Ollaff, era mais forte do que a do cervo
que há horas assava.
A luta durou menos de cinco minutos entre o pedido de silêncio feito
por Anno até o som de desespero do último bandido sendo devorado pelo
druida, em forma de urso, ecoar pela clareira. Apesar da vitória, era
desolador olhar em volta e ver aquela linda cerimônia toda destruída e
transformada num campo de batalha, com pedaços de homens por todos os
lados, escorrendo sangue. Seguro do fim da batalha, Anno largou seu
machado e correu na direção da filha, que se escondia debaixo de uma das
mesas junto ao marido. Argus passou a mão ensanguentada na cabeça de
Rubyo em sinal de aprovação pelo desempenho do sobrinho, seguindo até
próximo das mesas para recolher sua espada lançada contra a flecha.
Gary reapareceu do meio das sombras e sentou-se na mesa onde estava
no início da celebração, virando, de uma vez, uma caneca de vinho que
estava ali, enquanto olhava para o nada, com os olhos vidrados. Ollaff se
aproximou de alguns convidados que estavam machucados e realizou
algumas magias de cura, enquanto Rubyo, ainda tremendo, limpou a espada
cheia de sangue e colocou-a de volta em sua bainha. Sem saber o porquê,
Rubyo se aproximou de Anno e disse:
— Senhor Harglan, eu sinto muito... É muito triste ver algo tão lindo
acabar assim.
— Eu só tenho a te agradecer, meu jovem. Bendita foi a hora que nos
encontramos e firmamos nosso acordo! Se não fosse por vocês, o casamento
da minha filha teria sido também o velório dela.
— Nós fizemos o que podíamos, senhor. Eu... eu sinto muito... — disse
Rubyo, olhando nervosamente para suas mãos sujas de sangue.
— Vocês nos salvaram nessa noite. Primeiro com suas belas canções e,
em seguida, com suas armas afiadas. Não tenho como lhe pagar da maneira
que você merece, mas se um dia passar por Khardem, não deixe de me
visitar, para que eu possa recompensá-lo adequadamente. Por favor, levem
toda a comida e bebida que desejarem, e boa sorte em sua jornada!
— Obrigado, senhor Harglan. — disse Argus, se aproximando de
Rubyo. — Espero que sua família possa guardar apenas as boas lembranças
dessa noite.
Argus puxou levemente o ombro de Rubyo, caminhando juntos até o
altar, onde Ollaff estava com os alaúdes em mãos. Em silêncio, os quatro
atravessaram o caminho dos convidados, que retornavam das árvores para a
clareira, em direção ao acampamento.
Ao chegar de volta em sua base provisória, Gary tomou mais um pouco
do vinho que despejara em seu cantil e foi escovar o pelo de Bokko, que
seguia ainda pastando. Era estranho ver Gary em silêncio, mas era
providencial frente ao momento traumático que vivenciaram. Argus se
voluntariou para ficar de guarda no primeiro turno, que seria dividido entre
os três mais jovens do grupo. Apesar de chateado com o desfecho da noite, o
general minalkariano sentia-se revigorado por ter outra chance de se colocar
à prova numa batalha, e de poder exercer sua Eddor com excelência, não
tendo sido nem ao menos tocado por seus inimigos.
Ollaff enfiou quase metade de seu braço dentro da sacola mágica e
puxou de lá seu longo cachimbo, preparando para si um fumo ao lado da
fogueira. Rubyo foi até um riacho perto dali e começou a lavar as mãos e
roupas para tentar tirar o sangue, mas as manchas eram mais difíceis do que
pensava. Retornando, encontrou Gary deitado em seu saco de dormir ao lado
de Ollaff, que seguia pitando, enquanto observavam a lenha queimar. Ao ver
Rubyo se aproximar, Gary perguntou:
— E aí, Rubyo, qual é a sensação?
— Do quê, Gary? — perguntou Rubyo, enquanto ajeitava o seu saco de
dormir.
— Você sabe... de matar alguém com suas próprias mãos... É mesmo
parecido com matar um porco?
— Eu... eu não sei. Nunca tinha machucado ninguém de verdade em
toda minha vida, mas sinto que foi o correto a ser feito...
— Se não tivesse feito o que fez, mais inocentes teriam perdido a vida,
meu senhor. — afirmou Ollaff, entre uma tragada e outra, olhando para a
fogueira.
— Eu também achei estranho... nunca tinha lançado minhas adagas
para matar alguém. Vim preparado para lutar contra orcs e monstros nessa
nossa missão, mas matar outros homens? Não esperava passar por isso... —
confessou Gary.
— E qual a diferença entre Orcs e Humanos, senhor Bortolly?
— Orcs são monstros! Criaturas asquerosas, não merecem nossa
misericórdia! — respondeu Rubyo, agressivamente, não dando chances para
Gary responder ao ancião.
— Pois saiba, Jovem Rei, que Orcs, Humanos, Elfos, Anões e todas as
demais raças foram criadas com igual valor por Emmanajj, nos fazendo ser,
em essência, raças irmãs. — afirmou Ollaff, em tom professoral.
Rubyo irou-se com as palavras de seu mestre, mas estava cansado
demais para discutir ou argumentar. Limitou-se apenas a bufar bem alto para
que fosse ouvido, e deitou-se em seu saco de dormir, admirando a lua cheia
que brilhava lá no céu. Enquanto pegava no sono, ouvia Gary e Ollaff
conversando sobre algumas outras raças, como centauros, vampiros e
também lobisomens, que pareciam homens normais, mas se transformavam
em monstros em noites de lua cheia como aquela. Ollaff ensinou para Gary
que só havia uma maneira de matar um lobisomem, mas Rubyo adormeceu
antes de escutar a resposta.
Argus acordou Rubyo após algumas horas, mas para o jovem, ele havia
apenas piscado os olhos. Ainda era madrugada, e estava na hora de Rubyo
ficar de guarda. A floresta parecia muito agitada com os acontecimentos
daquela noite. Ventos fortes sopravam agressivamente as folhas, formando
pequenos redemoinhos, enquanto quebravam galhos de árvores mais velhas.
Corvos e corujas gritavam para a noite clara do alto das copas, enquanto
sapos-bois e grilos cantavam para completar aquela canção noturna. A
escuridão era abrandada pela forte luz da lua, que lutava contra a penumbra
dos galhos altos. O som das águas do Rio Dourado, que corria ali bem
próximo, era quase hipnotizante, aumentando ainda mais o sono do vigia.
Quase cochilando sentado, Rubyo percebeu uma movimentação abrupta
num arbusto próximo ao acampamento e, rapidamente, deixou de lado o
sono e sacou sua espada. Com a mão esquerda, Rubyo preparou uma
pequena bola de fogo, que iluminou o caminho à frente como um farol.
— Fique calmo, senhor bardo, não há nada a temer! Sou eu, Hamun! —
disse o enorme urso de voz doce, saindo das trevas da floresta e se
aproximando de Rubyo. — Desculpe te assustar, mas acho que gostei dessa
forma de urso. Os pelos afastam o frio da noite melhor do que qualquer
cobertor... Bom, vim apenas conferir se estavam bem, depois de tudo o que
aconteceu.
— Estamos bem, senhor Hamun, obrigado pela preocupação. —
respondeu Rubyo, desfazendo a chama de sua mão e guardando a espada. —
Quão logo o sol raiar, seguiremos viagem e deixaremos esse triste
acontecimento para trás.
— Vocês seguirão para Vertiga e, em seguida, para Minalkar, certo?
— Não, senhor... nós... nós estamos seguindo para o norte em busca de
trabalho para nossa trupe. — disfarçou Rubyo, surpreso com a percepção de
Hamun.
— Não precisa mentir para mim, meu jovem. Você fica ainda mais
vermelho quando profere palavras falsas. Logo que eu te vi, já sabia quem
você é... só não esperava que você fosse tentar reconquistar as terras de seu
pai com um exército tão pequeno.
Rubyo tentou sustentar a mentira por mais alguns segundos, mas a
curiosidade falou mais alto que seu bom senso.
— Como sabe quem eu sou, senhor druida?
— Eu conhecia bem seu avô. Não o rei, é claro, mas seu avô materno, o
mestre Eric. — respondeu Hamun em forma de urso, sentando-se numa
pedra alta, ao lado da que Rubyo estava sentado durante a guarda. — Esses
seus cabelos vermelhos e olhos escuros como a noite só poderiam ser da raiz
da família Hant.
Apesar da grande estranheza gerada pelo fato de estar conversando com
um urso, Rubyo deixou de lado qualquer distração para tentar extrair o
máximo de informação possível sobre sua família materna.
— Eu não conheci meu avô. Ele morreu durante a invasão dos orcs a
Minalkar, enquanto lutava como voluntário ao lado do exército. Meu tio me
contou que viu o corpo dele pouco antes de fugirmos da capital... só sei que
ele era um grande caçador e o Mestre de Caça do nosso reino.
— Sim, ele era um excelente caçador, mas era ainda melhor como
pessoa! Ele vinha muito aqui caçar javalis brancos, pois sua carne era o prato
favorito da sua avó, a rainha Vickyr. E como esses javalis só se encontram
aqui, acabamos nos conhecendo.
— E você o deixava caçar aqui livremente? Pensei que era a sua função
defender essa floresta e todos os seres que vivem nela... — perguntou
Rubyo, surpreso.
— Sim, essa é minha função, e eu os protejo com a minha vida. Mas
isso não quer dizer que não devo deixar a natureza seguir o seu caminho. A
grama cresce, o javali engorda comendo-a, o homem come o javali e, às
vezes, é comido pelo urso. — disse Hamun, tentando sorrir com seu focinho,
criando uma careta horrenda. — No fim das contas, todos morremos e
viramos adubo para fazer a grama crescer de novo e recomeçar esse ciclo.
— É o ciclo da vida, não é? O mestre Ollaff já me ensinou sobre isso,
só não achava que os druidas compartilhavam da mesma opinião.
— Compartilhamos, sim, dessa visão de mundo. E seu avô também via
as coisas assim. Certa vez, um grupo de caçadores vindos de Grassy
atravessaram o rio em busca das valiosas peles dos coelhos goldizyr que
vivem aqui... aqueles de pele dourada, já viu?
— Não! E nem sabia que existia, desculpe... — disse Rubyo, um pouco
envergonhado.
— Pois se ver um, saberá do que estou falando. Os caçadores chegaram
matando todos os que encontravam pela frente, inclusive filhotes e fêmeas
grávidas, acumulando muito mais do que precisavam para sua jornada.
— Que tipo de monstro ataca uma fêmea grávida?! — perguntou
Rubyo, horrorizado.
— Esses de Grassy faziam isso. Para tentar conter a matança, me
transformei num lobo gigante e parti para cima deles. Eu era jovem e, como
tal, era tolo. Por um descuido meu, fui atingido por algumas flechas e estava
prestes a ser morto, quando seu avô apareceu e viu aqueles sete homens
quase matando um raro Lobo de Inhorshiri, e resolveu defender o pobre
animal... que no caso, era eu. Portando apenas uma tocha e um machado, ele
lutou sozinho contra os caçadores, matando alguns e afugentando outros.
Seu avô salvou a minha vida e a vida de diversas famílias de coelhos
goldizyr naquele dia, sem esperar nada em troca, apenas porque era o certo a
se fazer.
Os olhos de Rubyo brilharam ao escutar a história sobre seu avô e
sentiu seu coração se aquecer pela primeira vez desde que matou seu
primeiro inimigo no casamento.
— Eu não sabia que ele era altruísta e corajoso assim... eu achava que,
como Mestre de Caça, a única preocupação dele era trazer a carne para a
Corte.
— E você acha que essa é uma preocupação menos nobre do que
comandar um reino? O homem que provê o alimento ao seu povo ou à sua
família é sempre o mais honrado dentre seus pares. Seu avô não era um
homem ganancioso, e isso ficou claro quando ele soltou os filhotes de
coelhos capturados, ao invés de levá-los para vender.
— É estranho pensar que ele matou homens para salvar animais, sendo
que a função da vida dele era matar animais para servir aos homens... não
faz muito sentido para mim. — respondeu Rubyo, erguendo seus ombros e
suas mãos, em sinal de confusão.
— Pois esse é o sentido do mundo em que vivemos, meu jovem: não
devemos tirar uma vida sem que exista uma necessidade; mas quando ela
existe, também não devemos hesitar. Foi isso que seu avô fez quando atacou
aqueles caçadores, e foi exatamente isso que você fez hoje, quando lutou
com aqueles bandidos. O velho Eric Hant ficaria orgulhoso de você, Rubyo.
Se antes seu coração já estava aquecido, agora Rubyo sentia ele bater
novamente. As palavras de Hamun entraram na alma do jovem, acalmando
qualquer sentimento de culpa pelo que fizera há algumas horas. Logo em
seguida, sentiu como se tirassem o peso do mundo de suas costas.
— Obrigado, mestre druida. Eu precisava ouvir isso, você não sabe o
quanto... — respondeu Rubyo, com os olhos marejados.
— Eu sei, sim, meu jovem, eu também já passei por tudo isso. — disse
Hamun, se transformando novamente em elfo, ainda sentado sobre a grande
pedra. — Mas é como dizem né?! A sabedoria entra pelo rabo... Eu
aguardei a visita de seu avô anos atrás para presenteá-lo, como forma de
agradecimento por salvar minha vida, mas ele faleceu antes. Nunca consegui
pagar minha dívida com ele, então quero fazer isso através de você.
Hamun começou a fuçar na bolsa de couro que carregava atravessada
em seu dorso e, de lá, tirou uma caixinha de madeira, toda feita de cipós
fortemente trançados, que pareciam mais duros do que metal, apesar de
infinitamente mais leve. O druida abriu a caixa diante de Rubyo, mostrando
o brilho vermelho e alaranjado que emanava de dentro dela.
— São ovos de fênix, jovem Hant. — disse Hamun, com um sorriso
orgulhoso. — E são os últimos três que me sobraram. Eles agora são seus, e
minha dívida está paga.
— Mas, senhor Hamun... — disse Rubyo, lisonjeado, mas curioso. —
Eu... eu não posso aceitar... nem sei para que serve isso, mas deve ser algo
muito valioso!
— Valioso e raro, meu jovem. Só existirão novos ovos desses no mundo
daqui a uns duzentos anos, na época de reprodução das fênix. Não há nada
no mundo que possua um poder curativo e restaurador igual. Quando estiver
muito machucado, você deve mastigar esse ovo enquanto ainda te restar
vida, e seu corpo terá toda a vitalidade de volta, como uma fênix renascendo.
Rubyo ficou surpreso em saber da qualidade daquele presente e nem
tentou mais devolver. O jovem fechou a caixinha e colocou num de seus
bolsos internos. Logo em seguida, Rubyo abraçou o druida como forma de
agradecimento.
— Espero que estas relíquias possam te devolver a vida quando
precisar, Rubyo, assim como espero que você consiga devolver a Minalkar a
glória que aquele reino merece. Agora, vá descansar. Eu ficarei de guarda
para vocês até que o dia amanheça.
Hamun deu um beijo na testa de Rubyo, caminhou alguns passos para a
frente e bateu palmas com os braços esticados sobre sua cabeça,
transformando-se numa belíssima e imponente coruja. O druida voou até o
alto de uma das copas das árvores que circundavam a clareira do
acampamento, e, lá de cima, ficou observando os quatro viajantes tendo seu
merecido sono.
Capítulo 9: O Plano de Argus
Logo que os primeiros raios de sol o despertaram, Ollaff se levantou e
chamou Argus, que dormia pesadamente enrolado numa coberta velha para
fugir do frio da manhã, que fazia na floresta. Ao acordar, Argus colocou dois
dedos na boca e assobiou bem alto para acordar os jovens, mas Gary já
estava de pé, em volta da fogueira, fazendo um chá para os companheiros.
Rubyo se levantou e olhou para cima, mas não viu mais a coruja que
guardou o seu sono. A floresta estava envolta numa névoa fina que pairava
até meia altura das árvores, atrapalhando a visão do que se via à frente.
Apesar da baixa visibilidade, era fácil manter a rota para o norte, sempre
deixando o Rio Dourado correr à direita dos viajantes.
O chá que Gary havia feito com folhas refrescantes foi muito bem-
vindo por seus amigos, que comeram alguns pedaços de torta para contrastar
com o amargo da bebida. Todos permaneciam em silêncio, ainda cansados e
chateados pelos eventos da noite anterior. Argus era o que menos se
mostrava abalado, e ciente de seu papel de líder, tratou de acelerar a
retomada da jornada.
Seguiram rumo ao norte na floresta enquanto o sol ia aquecendo aos
poucos aquela manhã fria de outono. Após algumas horas de caminhada por
trilhas existentes, chegaram na saída da floresta quase no fim da tarde. Era
difícil saber se a floresta era realmente grande ou se haviam andado algumas
horas em círculo, pois a paisagem da floresta confundia demais quem não
conhecia aquelas trilhas.
Ao deixarem a floresta, avistaram um pequeno vilarejo que margeava a
mata. O vilarejo era cercado de fazendas, e campos de trigo e milho se
espalhavam pelo horizonte até se misturar com as famosas Colinas de Kedir,
ao norte. Já cansados da árdua caminhada pelos caminhos tortuosos da
floresta, decidiram descansar por ali mesmo e só retomar a viagem no dia
seguinte. Curiosamente, o vilarejo não tinha nenhuma taverna, o que frustrou
o desejo dos viajantes de ter uma cama confortável para dormir naquela
noite.
Enquanto passavam pelas ruas estreitas de terra batida do vilarejo, a
atenção estava toda voltada para eles. Parecia que aquele lugar não recebia
muitos visitantes. Na direção deles, vinha um homem baixo e roliço, bem-
vestido com roupas velhas e uma cartola, acendendo as tochas que
margeavam a rua como uma espécie de iluminação pública.Ao passar pelo
grupo, o homem desejou boa noite. Todos responderam, mas alguns passos
depois, o homem parou. Ao notar o movimento suspeito, Argus já se virou
com as espadas em mãos, pronto para o ataque. O homem, assustado, soltou
sua tocha e levantou as duas mãos em sinal de paz:
— Calma, senhor! Não os farei mal nenhum! Eu só achei que te
reconhecia de algum lugar! — disse o acendedor de tochas, ainda com as
mãos levantadas.
— Pois saiba que se enganou; eu nunca andei por esses lados, meu
senhor. Tenha uma ótima noite. — respondeu Argus, guardando suas espadas
e virando-se novamente para o norte.
— Eu achei que te conhecia, mas ao ver essas espadas, eu tive certeza!
Eu te conheço, sim, você é o príncipe Argus, campeão da Arena de Ottoni!
Ao dizer alto essas palavras, o homem acabou chamando a atenção de
diversos moradores que passavam ali por perto, mas, logo em seguida, todos
retomaram seu rumo sem demonstrar muita importância. Argus, surpreso,
tentou, mas não conseguiu negar quem era.
— Eu te conheço, meu senhor? — perguntou Argus, colocando o capuz
para cobrir seu rosto.
— Não, mas eu te conheço! Eu estava lá quando vi o senhor derrotar
aquele enorme centauro na arena! Que luta foi aquela, hein?! Você parecia
um animal enquanto degolava aquele monstro! Se eu tivesse duas fileiras
mais para frente na plateia, eu teria sido banhado pelo sangue da fera!
Rubyo e Gary olharam surpresos para Argus, com uma ponta de
orgulho. O general não conseguiu segurar o sorriso ao ouvir aquilo tudo, mas
tentou encerrar a conversa antes de atrair mais atenção indesejada.
— Obrigado, senhor. É sempre um prazer conhecer um fã, mas
precisamos retomar nosso caminho e encontrar um lugar para dormir.
— Pois saiba que o senhor acabou de encontrar: vão dormir na minha
casa! Não tenho quartos para vocês, mas meu celeiro é bem limpo e tem
poucos ratos. Com certeza, é melhor do que dormir no sereno!
Argus olhou para Ollaff, que parecia consentir com a ideia.
— Tem certeza de que não vamos incomodar? — perguntou Argus.
— De maneira nenhuma! Talvez eu que te incomode com algumas
perguntas. Por favor, sigam até o final da vila; minha casa é a primeira logo
depois da árvore seca. Fale pra minha esposa que pedi para arrumar o celeiro
para vocês, e eu os encontrarei em breve... preciso acabar de acender as
tochas do vilarejo.
O homem roliço seguiu seu caminho ao sul, acendendo as tochas na
frente de todas as casas pelo caminho, assobiando um som alegre de
satisfação. Argus retomou o caminho sem falar mais nada, mas Rubyo
cutucou:
— Tio, achei que você tinha me dito para não confiar em ninguém.
— Se tivesse me ouvido, não teria ido dormir ontem deixando a guarda
para um druida, que mal conhecia.
Rubyo ficou sem graça e desmanchou o riso sarcástico que trazia,
seguindo o caminho ao lado de Gary, que trazia Bokko por uma corda. Após
uma curta caminhada, chegaram até um grande carvalho, que estava rachado
ao meio, partido provavelmente por um raio, não ostentando folha alguma,
totalmente seco e morto apesar de suas raízes ainda o sustentarem em pé. Ao
passar por ele, bateram na primeira casa de madeira, que tinha um celeiro ao
lado, e contaram a história para a gentil senhora que os atendeu.
Os homens foram bem recebidos pela mulher, que serviu a eles espigas
de milho cozidas enquanto limpava um pequeno espaço do celeiro para que
passassem a noite. Enquanto comiam, seu anfitrião chegou, sentou-se ao
lado de Argus e inundou o general com perguntas sobre sua carreira, sem se
importar em falar seu nome ou de sua esposa. Argus parecia orgulhoso e
contava com detalhes seus lendários combates. Rubyo não se lembrava de já
tê-lo visto tão feliz daquele jeito, relembrando de suas gloriosas lutas. Ao
fim do jantar, a comitiva se juntou a Bokko que já estava no celeiro,
comendo parte do feno que seria a cama do resto do grupo.
Apesar do cheiro forte vindo das cabras que estavam ali perto, o celeiro
estava relativamente limpo e, realmente, tinham poucos ratos. O grupo
dormiu rapidamente, aproveitando o aconchego do teto para ter uma noite
melhor e mais quente do que a anterior.
No dia seguinte, agradeceram ao gentil casal e seguiram rumo ao norte,
revezando a montaria no simpático Bokko, sempre dando preferência e mais
tempo para Ollaff, que aceitava de bom grado aquela regalia. Seguiam
admirando a linda cadeia de montanhas vista ao norte e noroeste,
contrastando com os campos por onde passavam. A nordeste, já podia se ver
de longe, ainda que de costas, o enorme Farol de Alferius, nas margens altas
do Rio Dourado. O farol era feito de uma gigantesca estátua do rei Ottonni,
fundador de Alferius, segurando com uma mão o cabo de um enorme
martelo de guerra que repousava aos seus pés, enquanto, com a outra,
sustentava uma tocha magicamente encandecida que nunca se apagava,
mostrando aos navegantes que estavam entrando em seus domínios.
Pelo caminho, aproveitaram para caçar alguns coelhos que bobeavam
por perto da antiga estrada que percorriam, entre as plantações. Mesmo já
com a fome apertando, decidiram adiar o almoço para chegar mais rápido
aos pés das montanhas, onde precisariam encontrar um local para passar a
noite.
Já estava no meio da tarde quando chegaram às Colinas de Kedir, local
conhecido por suas exuberantes paisagens e por conter um dos mirantes mais
famosos do continente, chamado de Meio do Mundo. As lendas contavam
que, lá de cima, era possível ver tanto o castelo de Minalkar ao norte, quanto
o castelo de Alferius ao sul, e até mesmo o pico do monte Vistareh, se a luz
do dia estivesse boa.
Chegaram aos pés das montanhas no fim da tarde. Apesar de avistarem
diversas cavernas por perto, Ollaff não se sentiu muito confiante em passar a
noite em uma delas:
— Melhor evitarmos as cavernas, senhores. Do mesmo jeito que
buscamos refúgio, todos os animais e monstros aqui por perto podem ter a
mesma ideia.
— “Tão difícil quanto encontrar uma donzela no bordel, é encontrar
uma caverna sem um animal que seja seu dono”. — disse Argus, enquanto
desmontava de Bokko.
Todos seus amigos riram, e Argus pareceu surpreso em ter arrancado
gargalhadas ao simplesmente reproduzir uma frase que ouvira quando
criança. Seguiram caminhando margeando as montanhas até encontrarem
um pequeno lago com algumas árvores próximas, onde decidiram montar o
acampamento.
— Se pretendem se banhar, que o façam agora, pois essa noite será bem
fria. — disse Ollaff, olhando para as cores douradas do pôr do sol.
— Bendito seja o outono e seu frio de doer as bolas! — exclamou Gary.
— Como mal suei nesse dia gelado, não pretendo tomar banho não! Se meu
cheiro incomodar, peço que me avisem, e eu solenemente vou ignorar e
continuar sem banho!
— Então ao menos tenha a decência de colocar para assar os coelhos
que pegamos, enquanto eu me lavo para o jantar. Rubyo, venha comigo, seu
cheiro de gambá morto já está batendo de longe! — disse Argus,
caminhando na direção do lago, em meio ao terreno acidentado.
Rubyo acompanhou o tio, enquanto Gary tirava as peles dos coelhos e
Ollaff alimentava e escovava Bokko, que quase cochilava e murchava as
orelhas com o carinho do ancião. Argus ficou apenas com a roupa de baixo
para entrar no lago, e apesar da temperatura da água, entrou sem hesitar,
fingindo não se importar com a água gelada. Seu sobrinho o seguiu, tentando
disfarçar o incômodo, mas quando a água fria atingiu as partes íntimas, ficou
difícil conter um grito discreto de quase dor.
— O que tem achado de nossa jornada até aqui, Rubyo? O mundo é
tudo aquilo que você esperava? — perguntou Argus, com a água cobrindo
até seu pescoço.
— É mais lindo do que nos livros, e um pouco mais brutal do que eu
esperava. — respondeu Rubyo, caminhando lentamente para a parte mais
profunda do lago, com os braços cruzados. — Eu me senti muito mal depois
do que aconteceu no casamento, mas entendo que foi necessário.
— Sim, vermelhinho, as coisas são como são, e pouco podemos fazer
para melhorar o mundo. Mas, acredite, com uma coroa na cabeça, as coisas
ficam mais fáceis de serem mudadas.
— Eu espero que sim, tio.
— Eu também... e é justamente sobre isso que quero falar com você.
Rubyo, tem algo que você precisa saber: caso nossa expedição dê certo e
você consiga mesmo ser coroado, precisaremos deixar Alferius com
urgência. — disse Argus, sem nenhum traço de seu costumeiro ar sarcástico.
Rubyo parou de caminhar e abaixou-se de uma vez na água, surpreso.
Seus lábios estavam roxos pelo frio, mas aquela notícia amorteceu seu corpo
muito mais que a água fria.
— Mas tio, eu não entendo... por que eu deixaria meu povo para trás
após ser coroado como rei deles?
— Os minalkarianos vão sofrer com a tua presença, Rubyo. Entenda
que, desde que chegamos em Alferius, a Lucrécia espera apenas um motivo
para pedir as nossas cabeças.
— Mas eu não pretendo tomar a coroa dela, tio! Quero apenas assumir
o que é meu por direito e ajudar o nosso povo!
— Eu acredito nisso, mas ela não vai e não quer acreditar. Além disso,
a quem o povo servirá? O rei juramentado deles ou a rainha da terra onde
vivem? Um homem não pode servir a dois senhores diferentes, Rubyo. Você
será julgado como traidor do reino de Alferius, e antes de se acostumar com
a coroa, sua cabeça estará pendurada em uma das oito torres. E aqueles que
te seguirem serão condenados também.
— Então, como serei coroado?! — perguntou Rubyo, com franca
preocupação.
— Deverá ser em segredo. A Lucrécia nem deverá saber sobre sua
coroação, por isso faremos uma cerimônia fechada, apenas para
minalkarianos, que deverão guardar o segredo até sua partida.
— E para onde vamos, tio? Ainda que eu consiga a coroa, não terei as
nossas terras de volta!
Argus jogou o pescoço para trás e esfregou bastante seus cabelos para
lavá-los do suor. Em seguida, mergulhou o rosto na água fria, bochechou um
pouco de água e cuspiu para o lado, falando em seguida.
— Você deverá ir até Rurkuk e desafiar Inak para um duelo, valendo as
terras de Minalkar. — Rubyo abriu a boca para protestar, mas Argus não deu
chance para que falasse. — Inak não é conhecido por cumprir suas
promessas, mas é um orc orgulhoso... e é provável que valorize mais o preço
de uma aposta do que a assinatura de um tratado, como aquele que fez com
seu pai.
— E você acha que estou pronto para desafiá-lo, tio? — perguntou
Rubyo, sentindo seu corpo tremer, mas sem saber se era pelo frio.
— Até o ocorrido no casamento, eu não tinha certeza. Mas você lutou
com excelência contra aqueles bandidos, utilizando a Eddor de maneira
exemplar... Eles nem te tocaram! — respondeu Argus, orgulhoso do trabalho
que fizera com seu sobrinho.
— Mas se ele é o Rei dos Orcs, Inak deve ser um guerreiro bem melhor
que aqueles malditos bandidos que enfrentamos no casamento... —
respondeu Rubyo, constrangido com o raro elogio vindo do tio.
— Sim, ele é um guerreiro excelente! Não pense que será uma luta
fácil. Eu já vi Inak matar vários dos nossos melhores guerreiros, pois sua
força e brutalidade são tão grandes quanto a sua feiura! Até eu teria trabalho
para matá-lo, mas acho que você dará conta dele. Na verdade, Rubyo, creio
que seu maior desafio será outro...
— Outro? Mais difícil que matar o Inak? — perguntou Rubyo, ansioso.
— Sim... o desafio será não matá-lo.
Rubyo ficou em silêncio por alguns segundos, tentando assimilar o que
seu tio dissera, mas não conseguia entender.
— E por que eu não mataria aquele demônio que acabou com nosso
reino e nossa família?!
— Porque se você o matar, quem cumprirá a promessa da aposta?
Entenda, Rubyo, que lidaremos com orcs, não com humanos... e a estrutura
social deles é algo bem diferente da nossa. Quão logo Inak morrer, um outro
chefe da tribo assumirá o seu lugar como rei de Rurkuk, e o que ele decidir
sobre o futuro de Minalkar, assim o será. Ele não precisará cumprir a
promessa que Inak tiver feito.
Rubyo virou-se e saiu do lago por onde entrou, sem dizer nada. Se
aproximou das roupas que estavam estendidas num tronco ali perto, mas
antes de vestir, olhou para seu tio e respondeu amargamente:
— Eu achava que, como rei, poderia tomar minhas próprias decisões, e
não que seria um mandado de seus planos com o mestre Ollaff!
— Quem vai trilhar esse caminho será você, Rubyo. Eu, Ollaff e Rose,
estamos apenas tentando te mostrar qual deles será o menos doloroso para
você e para nosso povo. Estamos planejando isso tudo há anos, desde que
Lucrécia acabou com a fazenda Iktar. Mas se você acha que tem um plano
melhor, ou que o prazer da vingança será maior que a satisfação de salvar o
seu povo, fique à vontade. Talvez a única sabedoria que você tenha na vida
seja mesmo essa espada idiota.
Capítulo 10: O Topo do Mundo
Rubyo ficou olhando para o nada, controlando sua raiva, enquanto o tio
voltava para o acampamento. Ele sabia que Argus tinha razão em suas
palavras, mas a ideia de demonstrar misericórdia para qualquer orc nem
passava pela mente de Rubyo, ainda mais se esse orc fosse o grande autor da
desgraça de sua vida. Maior que o desejo de ajudar seu povo, era o desejo de
que todos os orcs fossem exterminados, para que nunca mais nenhuma
família no mundo passasse o que a dele passou.
Quando Rubyo voltou ao acampamento, já estava quase escuro. O
cheiro de coelho assado enchia a boca de saliva mesmo de longe. O jovem
foi direto para perto do fogo para secar melhor seus longos cabelos,
sentando-se, a contragosto, ao lado de Argus. Gary e Ollaff notaram um
clima pesado no ar e respeitaram o silêncio estabelecido pelos dois enquanto
comiam a carne assada, contemplando a bela noite de lua cheia.
Ao raiar do dia seguinte, Gary fez uma sopa com os ossos do coelho
que sobraram da noite anterior e serviu aos companheiros como desjejum,
acompanhando o resto das tortas e das frutas secas que ainda tinham. Era
preciso mais suprimentos para seguir a viagem e, por sorte, estavam quase
chegando em uma cidade grande.
Conforme subiam as colinas pelas trilhas abandonadas que
serpenteavam o caminho, sentiam o vento ficar mais frio e cortar suas
bochechas e orelhas. A sensação de extremo frio era compensada pela
paisagem incrível que tinham do alto das montanhas, que subiam e desciam
pelos caminhos. Ao subir na montanha mais alta da cordilheira, chegaram ao
mirante do Meio do Mundo, que era uma larga plataforma de madeira e
rochas construída no cume da montanha, aonde as pessoas iam para apreciar
a inesquecível vista.
Rubyo sentiu que estava realmente no topo do mundo, afinal, nunca
estivera num local tão alto, apesar de perceber que as montanhas do oeste
eram bem mais altas do que onde estava. Ao sul, era mesmo possível ver, ao
longe no horizonte, o topo do castelo de Alferius, com suas oito imponentes
torres. A oeste, a visão da muralha das Montanhas Frias era esplendorosa
naquela hora do dia; o sol lutava contra o gelo eterno daquele lugar, que ia
de uma ponta a outra no campo de visão.
— E aí, será que dá pra ver nossa casa daqui? — brincou Gary,
cutucando o amigo, enquanto acalmava Bokko, que parecia incomodado
com a altura.
Rubyo forçou um sorriso para o amigo, mas sua atenção estava focada
para o norte, onde conseguia ver, lá no horizonte, um castelo com torres
azuladas que reconhecia dos incontáveis livros de sua infância: era o castelo
de Minalkar.
— Aqui, nas Colinas de Kedir, é o único local de onde podemos
enxergar claramente a união dos rios Parny e Miriba, formando o Rio
Dourado bem em frente a cidade de Vertiga. — disse Ollaff, apontando para
uma grande cidade que ficava a nordeste de onde estavam, logo após o rio.
— Vertiga é uma cidade mercadora, assim como Nenáreah, porém ela não
está no domínio de nenhum reino, sendo chamada de uma Cidade Estado,
assim como Vastako. As leis ali podem ser um pouco diferentes, então vocês
devem estar bem atentos, pois passaremos essa noite lá.
— Passando Vertiga, seguiremos rumo a nordeste, margeando o Rio
Miriba, onde encontraremos a entrada do Caminho Segundo, por onde
entraremos na capital de Minalkar, Mundy. — completou Argus, apontando
para o castelo em que Rubyo olhava fixamente.
— Se tudo der certo, conseguiremos evitar os orcs até chegar na
cidadela da capital. Mas uma vez lá dentro, não há como saber o que esperar.
Temos que conseguir entrar no castelo, atravessar a sala do trono, chegar até
a antessala do tesouro real e descermos até as catacumbas. Devemos chegar
ao nosso destino daqui a duas noites. — terminou o mestre Ollaff.
— Desculpe a ignorância, mestre, mas se estamos indo para catacumbas
amaldiçoadas, não seria mais inteligente fazermos isso de dia? É de
conhecimento de todos dois fatos sobre fantasmas: eles não podem puxar seu
pé se estiver coberto na cama; e eles preferem as noites para assombrar... —
disse Gary, sem questão nenhuma de disfarçar um tom de medo em sua voz,
enquanto fechava seu colete para afugentar o frio.
— Para onde vamos, jovem Bortolly, não há dia e nem noite. As
catacumbas sempre estão envoltas em trevas, pois ficam embaixo do castelo,
onde a luz não entra e pouca coisa sai com vida. — respondeu Ollaff, de
maneira sombria.
Rubyo, sem dizer nada, pegou as rédeas de Bokko e começou a puxar o
cavalo colina abaixo, em direção à cidade de Vertiga. Percebendo que seu
grupo não o acompanhou, o jovem olhou para trás e disse:
— O que estão esperando? Vamos logo! Se temos mesmo um encontro
com a morte, eu não quero me atrasar.
Argus não percebeu nenhum medo na voz de seu sobrinho enquanto
ouvia aquelas palavras, e ficou sem entender se aquilo tudo era coragem ou
apenas a ira falando mais alto. Ollaff também percebeu a amargura do
jovem, e seu coração se encheu de tristeza ao lembrar do quão rápido aquele
garoto teve que amadurecer para suportar o peso de seu fardo, mas sabia que
nele repousava a esperança de milhares de pessoas, e por isso essa
maturidade era extremamente necessária.
O grupo todo retomou a viagem, descendo da colina mais alta e subindo
colinas menores pelo caminho, enquanto se aproximavam de um enorme
precipício que ia de ponta a ponta no horizonte. Lá de cima do mirante, não
era possível perceber o quão baixo corria o rio Parny, criando um enorme
cânion de centenas de passos élficos de altura. Da beira onde estavam, só
conseguiram enxergar uma ponte perto dali, mostrando ser o único caminho
possível para se atravessar até a outra borda do rio, onde começava o reino
de Minalkar.
Enquanto margeavam o precipício na direção da ponte, Bokko
encontrava-se inquieto, arrepiando os pelos castanhos de sua crina a cada
passo que dava perto do penhasco, não parando de bufar, com as orelhas
dobradas. Quando finalmente alcançaram a ponte, uma grande preocupação
surgiu no grupo: ela era toda feita de tábuas de madeira, sustentada por
cordas por toda sua extensão de aproximadamente quarenta passos élficos,
cruzando por cima do rio Parny, que corria lá no fundo do abismo.
— Será que é mesmo seguro atravessarmos por aqui? Essas madeiras
estão mais velhas que o mestre Ollaff! — disse Gary, olhando com cuidado
para o rio lá embaixo.
Argus colocou a mão em uma das cordas que sustentavam a ponte e
puxou com força, chacoalhando em seguida. A ponte toda serpenteou, até a
outra borda, onde rochas escondiam o caminho à frente. O general sentiu
firmeza na estrutura, mas assustou-se ao ver o quanto a ponte se mexia
apenas com a força do seu braço.
Ollaff parou em frente a ponte, pegou seu cachimbo da manga e
começou a tragar calmamente, analisando cada parte daquela passagem, com
os olhos semicerrados, como se resolvesse um mistério. Apesar da aparente
fragilidade da estrutura, alguma outra coisa fazia Ollaff sentir que aquele
caminho tinha algo de ruim. De repente, Ollaff girou seu cajado e disparou
uma bola de fogo para a frente, como se quisesse surpreender um inimigo
invisível, mas não acertou em nada, vendo seu projetil mágico atravessar
para a outra borda, até desaparecer no horizonte
— Eu vou na frente, seus medrosos. — disse Rubyo, entregando as
rédeas de Bokko para Gary.
— Um pouco de mel e um pouco de prudência nunca fizeram mal a
ninguém, Jovem Rei. A cautela é melhor que o remédio. — respondeu
Ollaff. — Se eu tivesse certeza da segurança dessa travessia, eu já estaria do
outro lado, limpando o caminho para você, meu senhor.
Contrariado, Rubyo sentou-se numa rocha ali perto, enquanto
aguardava a decisão de Ollaff. Argus se aproximou do ancião e perguntou:
— O que acha, mestre? Sinto que tem algo de errado com essa ponte.
As cordas são novas para madeiras tão velhas, e quase ninguém deve usar
esse caminho.
— Sem dúvidas, existe algo de errado no caminho à frente, posso sentir
isso. Mas receio que não temos escolha a não ser enfrentar essa dúvida, pois
não temos outra opção. Levaríamos semanas para darmos a volta.
— Então, eu voto para que o mais leve de nós vá na frente. — disse
Argus, olhando para Gary.
— Epa, epa, peraí um momento! Não faz nenhum sentido! Se eu for na
frente e passar, não quer dizer que a ponte aguenta o peso de vocês! É
melhor que o mais pesado vá primeiro, pois se passar, sabemos que a ponte é
segura para todos!
— Já chega! — disse Rubyo, indo em direção à ponte. — Eu
atravessarei e vocês que me sigam, se tiverem coragem.
Rubyo entendeu que o silêncio de seus companheiros era uma forma de
consentimento, mas quando foi dar o primeiro passo, sentiu a mão forte e
pesada de Argus sobre seu ombro, impedindo-o de avançar.
— Eu vou, Rubyo. — afirmou Argus, firmemente. — Se algo der
errado e você cair nesse abismo, nossa esperança morre com você. Se eu
morrer, sou só mais um.
Antes que Rubyo pudesse protestar, Argus agilmente saiu correndo pela
ponte, saltando de tábua em tábua, esforçando-se para não olhar para baixo e
encarar o abismo que separava a ponte da morte certa. Apesar do balanço,
Argus conseguiu chegar à outra margem sem dificuldades. Já confiante,
retornou lentamente até a metade da ponte, aguardando o restante do grupo,
aliviado.
Gary veio à frente, puxando o medroso Bokko com dificuldade,
enquanto Rubyo seguia atrás do animal tentando acalmá-lo, com Ollaff por
último. Uniram-se a Argus no meio do caminho e, ao seguir adiante na
travessia, bem no meio da ponte, notaram a forma de um enorme troll surgir
de trás de uma das rochas que estavam na margem de destino.
O troll tinha pouco mais de três passos élficos de altura, com a largura
de uma carroça, apresentando uma coloração estranhamente azulada, que
contrastava com um couro reptiliano espesso e acinzentado nas costas,
simulando rochas. A criatura portava um enorme machado de duas mãos, o
qual levantou na direção da principal corda de sustentação da ponte. Com
uma voz grotesca, o monstro gritou para o grupo:
— Dar cavalo troll. Troll não cortar corda.
Todos os membros da comitiva se olharam entre si e sentiram o sangue
congelar. Gary não quis entender o que o troll dizia, enquanto todos olhavam
para os lados em busca de uma solução. Argus, que estava mais a frente, fez
menção de correr até o outro lado, mas a criatura percebeu e aproximou mais
o machado da corda, ameaçando cortar. Ollaff até cogitou lançar alguma
magia contra o inimigo, mas na posição onde o troll se encontrava, o
machado facilmente cairia sobre a corda de sustentação, matando a todos na
queda de mais de quatrocentos passos élficos de altura até o rio Parny.
— Troll fome. Dar cavalo, homem passar. Correr homem morre. Atacar
homem morre! — gritou o troll, impaciente.
— Senhor Troll, nós temos comida em nossas coisas! Deixe que
levaremos até você! — Argumentou Gary, apontando para os alforjes em
Bokko, que, na verdade, já se encontravam vazios de comida.
— Troll gostar cavalo, carne boa! Dar cavalo, troll não cortar corda! —
respondeu a criatura, falando mais alto, demonstrando irritação.
— Mestre, existe alguma magia de levitação que possa nos salvar? —
perguntou Rubyo, em voz baixa para Ollaff.
— Não, meu rei, isso seria polimorfia, é magia obscura. Não a
praticamos em Michello... — respondeu Ollaff, lamentando.
O jovem rei olhou para seu tio na esperança de algum plano, porém
Argus seguia olhando fixamente para o troll, com as mãos tremendo sobre as
espadas, sem coragem de tocá-las. Rubyo percebeu quando as mãos de seu
tio pararam de tremer e se fecharam fortemente, afastando-se de suas armas.
Argus virou para Gary, e disse:
— Gary, entregue o cavalo.
— NÃO, Argus! Bokko é meu amigo! Não vou entregar ele! — disse
Gary, com os olhos cheios de lágrimas, abraçando o pescoço do cavalo.
Rubyo não conseguia dizer uma só palavra diante daquela situação,
sentindo um nó quase sufocante na garganta, além das pernas tremendo, não
sabendo diferenciar se era pelo nervosismo ou pelo balançar da ponte. O
jovem rei olhou para trás em busca de alguma esperança, mas viu Ollaff
cabisbaixo, apertando com força o seu cajado, enquanto se esforçava para
pensar em algo que os tirasse daquela armadilha.
— Não temos outra opção, Gary! Eu sei bem como é ter que sacrificar
algo que amamos para que outros possam viver, mas não temos outra opção!
O Bokko já está morto, mas nós não precisamos morrer com ele! Entregue
logo o cavalo!
Argus falava firmemente com Gary, mas não conseguia esconder as
lágrimas enquanto dizia aquilo para seu jovem companheiro. Rubyo sempre
soube que seu tio tinha um bom coração, mas também sabia o quanto ele era
pragmático, e era difícil discordar dele naquela situação. Ao colocar a mão
sobre o ombro de Gary, os dois amigos não conseguiram conter o choro,
enquanto Gary apertava com ainda mais força o pescoço do animal, num
abraço desesperado.
Bokko demonstrava um olhar assustado, bufando pesadamente, como
se soubesse o que estava acontecendo, ou apenas por sentir o balançar da
ponte com o vento forte, que também bagunçava os pelos de sua crina e seu
longo rabo negro. Gary reparou que sua pelagem nunca parecia brilhar tanto
quanto naquele momento, refletindo lindamente a luz do sol, que secava as
lágrimas do jovem ladino no pescoço do animal.
— Senhor Argus... — disse Gary, numa voz fraca e baixa. — Por favor,
leve ele... Eu... Eu não consigo...
Gary deu um beijo na testa de Bokko e fez um leve carinho no queixo
do animal, que apesar de assustado, relaxou a cabeça na mão do amigo para
aproveitar a carícia. Em seguida, Gary entregou as rédeas para Argus, com a
mão tremendo. O general puxou o cavalo e o colocou à sua frente, dando em
seguida um forte tapa em seu lombo, fazendo-o disparar até a outra margem,
no rumo do inimigo. Quão logo chegou perto, o troll girou seu machado,
afastando-o da corda, cortando a cabeça de Bokko num golpe certeiro,
partindo em dois o pobre cavalo.
Os quatro companheiros aproveitaram a oportunidade e correram até a
outra margem, mas ao chegar, só puderam testemunhar o enorme troll já
longe na trilha, descendo a encosta da montanha com os dois pedaços de
Bokko sendo carregados nos ombros. Gary caiu de joelhos ao lado da poça
de sangue de seu amigo e começou a chorar desesperadamente, de maneira
inconsolável. Rubyo se agachou, abraçou o amigo e dividiu com ele o luto e
as lágrimas. Argus olhava fixamente para a poça de sangue, com os olhos
marejados e o queixo tremendo, fazendo um esforço sobre-humano para não
chorar também. Rubyo reparou que Ollaff apresentava uma expressão facial
que jamais havia visto, demonstrando uma mistura de falha e de impotência,
enquanto se perguntava se realmente aquela era a única saída possível.
— Quando eu virar seu Mestre da Moeda, Rubyo, eu terei a cabeça
desse troll pendurado na minha parede, para poder lançar minhas adagas
contra ela todos os dias. — disse Gary, expressando sua raiva entre lágrimas
e soluços, enquanto abraçava o amigo.
Capítulo 11: O Encontro dos Rios
O grupo todo permaneceu em silêncio por alguns minutos, sob a sombra da
rocha onde o troll estava escondido, juntando forças e coragem para dar
seguimento à viagem. Os outros três já estavam prontos para ir, mas
decidiram esperar Gary se levantar e dar o primeiro passo. O jovem ladino se
levantou, bateu a terra de suas calças, lavou o rosto com um pouco da água
de seu cantil e fez um sinal de afirmativo para o grupo, demonstrando que
estava pronto para seguir.
Ainda em silêncio, começaram a descer pela trilha da colina, sendo esse
o mesmo caminho que o troll fizera momentos antes. Da altura onde
estavam, eram capazes de enxergar a cidade de Vertiga logo após a floresta
que se iniciava no fim da trilha onde estavam. O sol já se deitava a oeste e a
luz ia se extinguindo, então, Argus acendeu uma tocha e seguiu novamente à
frente do grupo, lamentando mentalmente por ter deixado seu alaúde na
carga de Bokko. Ollaff não gostava da ideia de viajarem no escuro, mas
precisavam seguir com o plano de chegar a Vertiga ainda naquela noite.
Logo quando entraram na floresta, a noite caiu de vez, e pouca coisa se
via além daquilo que a tocha iluminava. Após algumas horas de caminhada
floresta adentro, escutaram sons estranhos e graves vindos a oeste de onde
estavam. Argus reconheceu o som e, instantaneamente, olhou para Ollaff,
que arregalou os olhos e balançou levemente a cabeça em negativa para o
general, mas a comunicação não-verbal de ambos foi o suficiente para Gary
entender o recado: era o som de trolls.
Num bote, Gary tomou a tocha da mão de Argus e saiu correndo pela
floresta, na direção de onde vinha o som. Rubyo seguiu o amigo em
disparada, já com o cabo de sua espada em mãos. Os dois jovens corriam e
tropeçavam enquanto seguiam na direção do som dos trolls, deixando Argus
e Ollaff para trás, sedentos por vingança. Quando chegaram a uma pequena
clareira ao lado de uma caverna, viram a luz de uma fogueira e se
esconderam atrás dos arbustos para analisar a cena.
Gary e Rubyo encontraram o troll que matou Bokko deliciando-se com
a carne do amigo, mas não sem antes dividi-la com um outro troll, que
apresentava características estranhamente femininas e outros dois trolls
filhotes, que brincavam em volta da fogueira. Rubyo percebeu que Gary
chorava em silêncio enquanto observava a cena, sem nenhuma menção de
interrompê-la em busca de vingança. Ele não sabia o que se passava na
cabeça de Gary, mas sentia que, certamente, Gary se comparava com aquele
monstro nas inúmeras vezes em que precisou roubar pessoas inocentes para
trazer o sustento para sua casa. O jovem rei já não era mais capaz de odiar
aquele troll, mas estava decidido que, se Gary optasse pela vingança, ele
estaria ao seu lado.
— Vamos embora, Rubyo... — sussurrou Gary. — Eu jurei que a
cabeça dele estará em minha parede quando você se tornar rei, mas não
preciso matá-lo hoje.
Gary sentiu seu corpo inteiro arrepiado ao ouvir o som daquelas
criaturas mastigando a carne do seu amigo, então partiu de seu esconderijo,
seguido por Rubyo, tão rápido quanto chegaram. Em pouco tempo,
encontraram Ollaff e Argus na trilha de volta, que preferiram não perguntar
o que aconteceu, tendo bastado o alívio de encontrar os jovens vivos e em
segurança.
O grupo retomou o caminho pela trilha principal e, em poucas horas,
chegaram ao fim da floresta e, consequentemente, aos portões de Vertiga.
Diferente de Nenáreah, que tinha o porto cercado por gigantescas muralhas
erguidas no mar, o porto de Vertiga ficava na parte externa da cidade, ao lado
dos portões sul por onde entraram. Apesar de já ser por volta de meia-noite,
o porto da cidade não parava, e viam-se diversos mercadores e pescadores
transportando caixas, baús, pescados e outras mercadorias que saíam dos
barcos para a periferia da cidade, e vice-versa.
Cansados, entraram na primeira estalagem que encontraram fora do
distrito portuário. Argus se preocupou em cobrir o rosto de maneira mais
segura dessa vez, para evitar que fosse novamente reconhecido. Por algumas
moedas de ouro, financiadas por Ollaff, conseguiram um quarto com quatro
camas, com direito a café da manhã no dia seguinte. Apesar do péssimo dia
que tiveram, era extremamente reconfortante dormir novamente numa cama,
por mais dura e simples que fosse, longe do sereno do outono.
Rubyo foi o primeiro a acordar na manhã seguinte. Ele não conseguiu
dormir muito bem, pois teve vários pesadelos com Bokko durante a noite, e
sua ansiedade em chegar logo a Minalkar afastava o sono de suas pálpebras.
O jovem levantou-se em silêncio, pegou sua arma, e desceu ao salão comum
da estalagem para comer alguma coisa. Enquanto descia as escadas, o cheiro
de pão assado quase o fez chorar de tanta fome que sentia naquele momento.
Quase todas as mesas estavam livres, então Rubyo escolheu uma perto da
janela, para observar a cidade enquanto aguardava para ser atendido.
Vertiga era uma cidade bem menor que a capital de Alferius, mas nem
por isso era menos movimentada. Quase não se viam casas no centro da
cidade, sendo essas distribuídas nas periferias próximas às muralhas. Onde
estavam, no centro, só se viam armazéns, lojas e comerciantes ambulantes
vendendo as mais diversas quinquilharias e armas. Apesar de seu tamanho,
Vertiga era certamente mais bem estruturada do que Nenáreah. As ruas eram
calçadas por pedras bem encaixadas — o que favorecia o movimento de
carroças por todos os lados.
Grandes armazéns dividiam espaço com prédios de dois e até três
andares, sem nenhum respeito à harmonia arquitetônica que Ollaff havia
ensinado a Rubyo, demonstrando que a cidade havia sido construída por
pessoas com pouca formação, mas, sem dúvidas, hábeis comerciantes.
Vertiga foi fundada por mercadores de todo o continente, que aproveitaram a
localização estratégica do local para erguer um porto que, aos poucos, se
transformou numa pequena cidade.
Apesar de estar geograficamente no reino de Minalkar, as terras de
Vertiga foram cedidas pelo rei Edmund IV aos seus fundadores, que estariam
livres de vassalagem em tempos de guerra, mas não livres de impostos. Com
a queda de Minalkar, a cidade não tinha mais a quem pagar os tributos,
podendo investir em sua própria infraestrutura e tornando-se uma das
maiores cidades do continente.
No meio de toda confusão daquele mar de gente que observava pela
janela, Rubyo notou alguém se aproximando da entrada da estalagem onde
estava. Era uma figura humanoide, um pouco mais alta que ele, com pele
esverdeada e traços bestiais em sua face, ostentando presas ao invés dos
dentes da frente, tão pontiagudas quanto suas orelhas. Curiosamente, tinha
uma mancha vermelha na testa que seguia até seu olho direito, contrastando
com sua cor natural. As roupas de couro curtido com lascas de madeira,
amarradas por ossos, era cultural de seu povo. Rubyo não tinha dúvidas: era
um maldito orc.
O jovem herdeiro de Minalkar agradeceu aos deuses, pois havia pegado
sua espada antes de sair do quarto. Antes que o orc entrasse, sacou sua
espada e colocou-a no colo, esperando que a criatura se aproximasse do
balcão, para atacá-lo pelas costas. Assim que Rubyo teve a oportunidade e se
levantou para golpear o inimigo, seu tio apareceu em sua frente.
— Bom dia, amado sobrinho! Você vai querer ovos fritos ou cozidos
para o seu desjejum? — disse Argus em tom irônico, olhando para a espada
de Rubyo, que seguia no colo.
— Saia da minha frente, tio, eu vou matar esse maldito! — respondeu
Rubyo, acompanhando o orc com seu olhar.
— Não, Rubyo, não vou sair, porque você não deve fazer nada contra
ele.
— E por que não? Ele é um orc, tio! E nós temos que exterminar essa
maldita raça do nosso continente, para que ninguém mais sofra o que nossa
família sofreu!
— Esse orc não fez nada contra nós, Rubyo, ele não deve responder
pelos crimes do seu povo!
— Mas não é exatamente essa a história da minha vida? Eu sou punido
todos os dias pelas escolhas do meu pai, que me fez um nobre bastardo de
Minalkar! — gritou Rubyo, irritado.
Os poucos clientes que estavam no salão comum da estalagem olharam
para Rubyo, assustados pelos gritos entre os dois homens que discutiam na
mesa perto da janela e, entre eles, o orc foi quem pareceu mais interessado
na conversa, sentando-se numa mesa bem próxima para assistir atentamente
à cena. Argus notou a movimentação, empurrou Rubyo para que se sentasse
e disse em voz baixa:
— Se você não consegue nem mesmo se controlar contra um orc que
nada fez contra você, como vai se controlar contra Inak?
O orc seguia vendo a cena com atenção e um olhar desconfiado para os
dois. Rubyo permaneceu em silêncio, olhando com todo o ódio do mundo
para o orc, que, ao notar o fim da conversa, levantou-se e caminhou na
direção dos dois, com seu porrete de madeira bruta ao alcance da mão,
pendurado na cintura.
— Vocês são minalkarianos, não são? — perguntou o orc ao se
aproximar, esforçando-se para falar no idioma comum.
Argus virou-se e percebeu que o orc já estava a menos de duas braçadas
de distância, com a mão sobre a arma. Rubyo tentou se levantar, mas a mão
de Argus ainda pesava sobre seu ombro, mantendo-o sentado.
— Acho que ouviu errado, senhor. Somos mercadores e estamos apenas
de passagem. — respondeu Argus, num tom sereno e sorriso amigável.
— Mercadores? Mercadores do quê? Acha que sou idiota?! Eu ouvi o
cabeça de fogo aí falar de Minalkar, e aqui ninguém fala sobre esse reino
caído.
— Não sei nada sobre isso, senhor, pois como disse, nós somos
mercadores. Já vendemos nossa mercadoria e estamos voltando para Flarys.
Não queremos confusão. — disse Argus, apertando com ainda mais força o
ombro de Rubyo, que seguia tentando se levantar.
— Acho bom que seja verdade, porque esse território todo segue em
paz graças à ordem que nosso senhor Inak trouxe para a região.
Minalkarianos não são bem-vindos, são jantar! — disse o orc em tom
ameaçador, colocando a mão sobre sua arma na intenção de sacá-la.
— E se você quer continuar respirando para apreciar essa paz, é melhor
se virar, sair por aquela porta e só olhar para trás depois de contar duzentos
passos. — disse Gary, que silenciosamente chegou por trás do inimigo,
posicionando um punhal no pescoço do orc.
— Achei que vocês não quisessem confusão... — argumentou o orc,
levantando suas mãos e jogando o pescoço para trás para evitar a lâmina de
Gary.
— E não queremos. Veja que o fato de pouparmos sua vida é uma prova
da nossa pacificidade. Já estamos de partida, de volta a Flarys, e não nos
verá mais aqui. Agora suma desse lugar e nos deixe desjejuar em paz. —
disse Argus, sinalizando para Gary soltar o inimigo.
O orc caminhou lentamente para trás, ainda com as mãos levantadas,
sem perder de vista o punhal de Gary. Ao chegar na porta, o orc saiu
correndo e disparou no meio da multidão. Rubyo socou com raiva a mesa e
disse:
— Não devíamos ter poupado esse maldito! Ele vai voltar com outros
seres nojentos como ele, e vão tentar nos matar!
— Sim, ele vai voltar, e devemos isso à sua boca grande e insolente!
Você já pode ter alguns pelos na cara, mas insiste em agir como uma criança,
e isso é lamentável! Eu esperava mais de você, Rubyo. Seu pai deu a vida
por você, e está na hora de você valorizar isso! Você não tem que ser um
maldito caçador de orcs, mas sim o rei sábio que o seu povo precisa!
Argus soltou o ombro de Rubyo, deixando-o na mesa. Deu dois
tapinhas de leve no ombro de Gary como agradecimento, e foi até o balcão
para se desculpar e pegar alguns suprimentos para a viagem. Rubyo olhou
para cima e viu que o mestre Ollaff observava toda a cena do mezanino,
enquanto tragava seu cachimbo. Gary, desconfortável por ter presenciado a
discussão dos dois, tentou consolar o amigo.
— Eu não te culpo por querer matar aquele bicho nojento, Rubyo. A
minha mão estava até coçando para degolar aquele maldito.
— Obrigado, Gary, mas não precisa disso. — respondeu Rubyo, com a
cabeça baixa.
— Não preciso do quê?
— Não precisa concordar comigo em tudo para ser meu amigo.
Obrigado por ter nos ajudado. Meu tio tem razão, matar aquele orc só iria
atrair mais atenção indesejada para nós.
Rubyo levantou-se envergonhado, e foi em direção às escadas para
retornar ao quarto. Ollaff esperava por Rubyo sentado em uma das camas,
ainda fumando. Rubyo sentou-se na cama em frente, sem conseguir olhar
para seu mestre, dizendo:
— Mestre, eu não estou pronto... vocês estavam errados, eu não estou
pronto. Eu queria ser melhor. Queria ser mais manso, mais sábio, mais digno
de tudo o que meu pai e vocês fizeram por mim, mas eu não consigo... não
consigo ser quem eu queria ser!
— Você jamais vai ser quem você queria ser, Rubyo. A maturidade nos
faz perceber que não temos que ser aquilo que queremos, mas sim, o melhor
que conseguimos. O seu nascimento movimentou várias peças do jogo
político que Minalkar estava envolvida, e isso culminou na queda do reino
do seu pai. Mas isso não quer dizer que o jogo acabou. Agora é a sua vez de
jogar... e ficar de autocomiseração não vai te tornar um jogador melhor.
— Eu sinto que ainda tenho muito o que aprender... ainda não estou
pronto...
— E quando você acha que estará? Ninguém nunca está pronto o
bastante para o que o destino tem para nós, mas você pode fazer o melhor
que conseguir com aquilo que você tem. E você tem a nós e um povo que
conta com você.
— O senhor acha mesmo que o povo me ama ou confia em mim? Eles
confiavam na figura do meu pai e do meu avô, mas não em mim, um
bastardinho que nem mesmo tem o nome da família real.
— E o que você fez até hoje por eles para que te amassem ou
confiassem em ti? Absolutamente nada! Mas você está fazendo isso agora,
meu senhor, arriscando sua vida para assumir a responsabilidade que está no
seu sangue. Eles vão reconhecer isso, pode ter certeza. Agora enxugue suas
lágrimas, engula seu orgulho, guarde sua ira e concentre-se no que viemos
fazer aqui: te tornar o melhor que você pode ser.
Argus e Gary entraram pela porta do quarto, trazendo comida embalada
em sacos de pano, e amarraram em mochilas improvisadas com tecido. Os
quatro saíram da estalagem atentos e preocupados em encontrar um grupo de
orcs à espreita, mas nada viram além daquela multidão de mercadores
carregando suas caixas de um lado para outro, e crianças sujas correndo
pelas ruas.
Rumaram para o portão norte da cidade, levando mais de uma hora para
atravessar a cidade toda, passando por lojas e barracas de todos os tipos,
namorando armas, relíquias e acessórios que jamais teriam dinheiro para
comprar. Ao passarem pelo portão, chegaram a uma estrada com uma placa
velha, indicando o rumo para Mundy, capital de Minalkar, para à esquerda
na bifurcação, porém Argus guiou o grupo à direita, rumando para o
nordeste, aproximando-se da margem do Rio Miriba.
A floresta nos arredores de Vertiga não era nada parecida com a
Floresta dos Amantes. As árvores eram mais baixas, com cores mais escuras,
contendo trilhas abandonadas e escondidas por arbustos e mato, que iam até
a altura dos joelhos. O silêncio na floresta chamava a atenção, como se
quase não houvesse vida ali. Atravessaram a floresta que seguia adiante sem
encontrar ninguém, demonstrando o quanto essas rotas estavam abandonadas
desde que o comércio naval ganhou mais força no continente.
Ao fim da floresta, chegaram em antigas fazendas abandonadas, perto
de onde se formavam algumas colinas e montanhas que, juntas, compunham
uma cordilheira rumo ao norte. Argus contou que essa região era cheia de
criadores de gado, mas que, provavelmente, foram destruídas pelos orcs que
dominaram a região após a queda do reino. Os campos ainda pareciam
produtivos, pelas flores e árvores frutíferas que cresciam por ali, mas as
ossadas humanas penduradas pelo pescoço ao longo da estrada deixavam
claro que viajantes não eram bem-vindos naquela região.
Argus manteve o grupo em direção ao norte por um caminho que ia se
afunilando entre o rio e as colinas cada vez mais, chegando a formar apenas
uma passarela de pedra na encosta das montanhas. Após algumas horas de
caminhada, chegaram a uma espécie de gruta, com uma entrada pequena e
com várias samambaias gigantes e cipós escondendo seu interior,
dificultando a visão do que se via à frente. Apesar do cenário selvagem e da
impressão intransponível do local, Argus e Ollaff sabiam muito bem onde
estavam. O general virou-se para o grupo, que se seguia logo atrás dele e,
com um sorriso, disse para seus companheiros:
— Senhores, apresento-lhes o famoso Caminho Segundo. Estamos
quase em casa!
Capítulo 12: O Caminho Segundo
A comitiva resolveu parar na entrada da caverna para, enfim, comer o que
trouxeram da estalagem. Por todo o caminho, preocuparam-se em estar
sendo seguidos por aquele orc, mas, no silêncio daquele lugar ermo,
sentiram-se seguros.
Rubyo desembrulhou um dos pacotes com pão e, antes de comer,
ofereceu para seu tio, em sinal de paz. Argus aceitou de bom grado,
demonstrando não querer levar a briga entre os dois adiante. Comeram
rapidamente e em silêncio, pois estavam ansiosos pelo caminho que iriam
percorrer entre as cavernas.
Argus explicou que, daquela entrada até os subterrâneos da cidade,
seria aproximadamente um dia inteiro de caminhada se não encontrassem
nenhum obstáculo no caminho, devendo chegar, ao seu destino, no fim da
tarde do dia seguinte. O general acendeu a última tocha que carregava
pendurada em sua cintura e seguiu à frente, guiando o grupo montanha
adentro.
— Como você consegue se localizar aqui com tão pouca luz, tio? Esse
lugar parece um labirinto! — perguntou Rubyo, após algumas horas de
caminhada entre os túneis úmidos e pedregosos.
— Eu percorria todas essas cavernas quando era criança, de uma ponta
a outra, enquanto seu pai aprendia sobre elas através de mapas nas aulas
chatas de história. — disse Argus, instantaneamente se envergonhando ao
lembrar que quem ministrava as aulas era Ollaff. — Desculpe mestre, suas
aulas eram boas... eu que sempre fui um péssimo aluno e não sabia valorizar.
— Discordo de você, caro general. — disse Ollaff, sorrindo. — A
experiência vale mais do que a ciência, na maioria das vezes! Fico feliz que
tenha aprendido sobre as terras de seu pai, não importa a maneira.
O Caminho Segundo era um labirinto de túneis escavados por baixo da
cordilheira de Minalkar, que seguia do Rio Miriba até uma passagem secreta
nos calabouços do castelo de Mundy. Eram túneis baixos, de no máximo
dois passos élficos de altura, nos pontos mais altos, sustentados por colunas
de pedras e esculpidas em rochas. As raízes das árvores atravessavam as
paredes, lutando por espaço entre as pedras. O clima era frio e úmido, sem
nenhum ponto de luz, exceto o que a tocha iluminava. O chão era pedregoso
e escorregadio, com muito limo por todo o caminho, fazendo o cheiro de
mofo e enxofre dominar o local.
O grupo seguiu em caminhada, enfrentando passagens estreitas,
estalactites e montanhas de fezes de morcegos; desviavam de pequenos
riachos que brotavam pelas paredes e encontravam insetos maiores do que
cabeças humanas. O ar ficava mais difícil de respirar conforme avançavam
caverna adentro, e apesar do breu e do clima de solidão, diversos barulhos
impossíveis de serem distinguidos, o cercavam. Torciam para que fossem
apenas animais. Mas a escuridão ao redor parecia encará-los agressivamente.
Não era possível saber se era noite ou se era dia, nem saber o quanto já
andaram. A sensação de agonia e claustrofobia lutava contra a sanidade a
todo momento. Pararam para descansar algumas vezes e beberam das fontes
de água natural que havia em todo o lugar. Gary capturou algumas rãs e fez
assado para seus amigos, e apesar do forte gosto de terra da carne do animal,
revigorou os ânimos dos viajantes.
A tocha de Argus já estava se apagando quando se aproximaram de um
local mais amplo, como se fosse um grande salão no subterrâneo. Ollaff
explicou que aquele local era onde ficava o acampamento de Naenuo
Augow, enquanto o famoso engenheiro comandava a construção da
passagem; e se já estavam ali, não faltaria muito para seu destino. Enquanto
explicava, a tocha finalmente se esgotou, mergulhando o grupo na escuridão
que os cercava. Mesmo no breu total onde estavam, Gary conseguiu achar,
em sua mochila, a sua última tocha, e a entregou, no completo escuro, para
Ollaff, que estava logo à sua frente.
— Flaminus — sussurrou Ollaff para a tocha.
Quando a luz das chamas iluminou novamente os arredores, Argus
olhou rapidamente em volta e conseguiu contar pelo menos trinta goblins em
volta deles, surgidos das sombras, com várias flechas apontadas para o
grupo. As criaturas eram do tamanho de meio homem, com braços e pernas
finas, mas dentes afiados, ornando com suas orelhas pontudas. Sua pele
acinzentada era coberta em parte por armaduras de bronze e retalhos de
couro. Os que não estavam com arcos portavam lanças rudimentares ou
espadas curtas enferrujadas.
— Ollaff! — gritou Argus, ao notar o perigo ao redor.
Rapidamente, o velho mestre sussurrou algo e soltou a tocha ao chão,
fazendo-a se apagar instantaneamente quando tocou na poça de água sob
seus pés. Ouviram o som das cordas disparando as flechas negras contra
eles, mas antes de serem atingidos, uma luz dourada emanou do cristal do
cajado de Ollaff e envolveu o grupo, formando um domo de proteção. Todos
os projéteis lançados ricochetearam na barreira mágica, acertando de volta
alguns dos arqueiros monstruosos.
— Como foi que não notamos a presença deles, mestre? — perguntou
Argus, sacando suas espadas e colocando-se em posição de combate,
inconformado com a armadilha em que caíram.
— Esse caminho já foi dos minalkarianos, mas hoje é o lar deles.
Ninguém conhece melhor sua casa do que o dono. Precisamos de um plano,
essa barreira não vai durar para sempre!
— Eu tenho um, mas precisam confiar em mim. Mestre, quando eu
disser, derrube a barreira mágica e todos cubram seus olhos! — disse Rubyo,
colocando para fora da camisa o seu colar de cristal.
— Tá maluco? Acha que vou fechar meus olhos com um monte de
flechas mirando em mim? Você precisa pensar num...
— Agora! — gritou Rubyo. — Lumina!
Ollaff desligou a barreira assim que Rubyo deu o sinal, e todos
instintivamente cobriram seus rostos. Do colar de Rubyo, um forte clarão
emergiu, seguido de uma explosão de luz que cegou todos os goblins que os
rodeavam. O ancião fez o mesmo e iluminou o cristal de seu cajado,
emitindo uma luz mais branda, mas contínua, como uma tocha mágica. Por
puro reflexo, alguns arqueiros Goblins soltaram as flechas que estavam com
a corda puxada. Argus rebateu duas delas com suas espadas curtas. Gary viu
uma das flechas passar bem perto de seu rosto e regozijou-se da sorte que
tivera. A última delas acertou o cajado de Ollaff, mas a ponta de bronze
negro não era forte o suficiente para atravessar a grossa madeira de carvalho.
Argus partiu para cima do grupo de goblins que estavam em sua frente,
cortando todos os braços, pernas e cabeças que conseguia alcançar com suas
lâminas. Rubyo sacou sua espada, que repousava nas costas, e com um
ataque frontal, atravessou dois goblins em estocada. Gary ficou encostado
costas com costas a Ollaff, sabendo não ser uma opção se esconder nas
sombras, pois os goblins com certeza enxergavam melhor nas trevas do que
ele. O velho mestre cravou seu cajado no chão e esfregou as mãos,
sussurrando algumas palavras, fazendo com que a água da poça ao redor
deles se levantasse e gerasse estacas de gelo flutuantes, as quais lançava
magicamente contra seus inimigos, intercalando com as adagas que Gary
arremessava.
Quando os inimigos recuperaram a visão, o grupo ainda não tinha
vencido nem metade deles, e parecia que mais goblins surgiam da escuridão.
Um grupo de inimigos cercou Rubyo com seus escudos de madeira
levantados, impedindo o movimento do jovem rei, que segurava sua espada
levantada com as duas mãos, esperando o momento de contra-atacar. Argus
seguia decepando e fatiando goblins sem muita dificuldade, matando cada
inimigo com apenas um golpe. Era incrível ver seu tio lutar e, por um
momento de distração, ao assistir aos movimentos de Argus, Rubyo não
notou um goblin saltar por cima da parede de escudos, e rasgar o seu braço
esquerdo, do ombro até perto do cotovelo, com um punhal.
Rubyo gritou com a dor de sua carne sendo rasgada, e Ollaff
imediatamente guiou algumas de suas estacas de gelo em direção ao goblin,
que seguia pendurado no punhal cravado em Rubyo. As três estacas
atravessaram a barriga e o peito da criatura, cravando na cabeça de outro
goblin que estava logo atrás. Tentando evitar pensar na dor, Rubyo reagiu,
girou sua espada no ar e cravou-a no chão, gritando:
— Dimithér!
Um enorme pulso de energia saiu do colar de Rubyo, sendo conduzido
pela espada até o chão como uma onda, atingindo todos os inimigos que
estavam num raio de até três passos élficos de distância de Rubyo,
arremessando-os para longe e sumindo-os na escuridão. O poder da magia
criou um pequeno tremor, que gerou um deslizamento de pedras vindas do
teto, que aumentou gradativamente, até evoluir para uma espécie de
terremoto.
— Corram e sigam-me! — gritou Argus, enquanto degolava um goblin
que segurava pela orelha no ar.
O general foi abrindo caminho pelos goblins com suas espadas
pingando sangue roxo, em direção ao fundo daquele salão, de onde emanava
um fraco fio de luz. Ollaff e Gary correram atrás de Argus, deixando Rubyo
para trás no meio da confusão. O jovem caminhava lentamente, tentando
tirar o punhal de seu braço, enquanto desviava das pedras que caiam do teto
devido aos tremores.
Gary, notando a ausência de Rubyo, olhou para trás e viu o amigo
desaparecendo em meio ao pó e às trevas. Próximo a ele, três goblins
arqueiros miravam uma nova onda de flechas, uma vez que recuperaram a
visão, e Rubyo seria uma presa fácil. Rapidamente, Gary puxou, de seu
longo colete, um pequeno frasco acinzentado e lançou na direção de Rubyo.
Por pura sorte — ou por extrema destreza do jovem ladino —, o frasco se
chocou contra uma das pedras que estava em queda ao lado de Rubyo,
liberando uma espessa nuvem de fumaça que envolveu o jovem rei e o seu
arredor, tirando a mira dos inimigos. Segundos depois, Rubyo surgiu
correndo do meio da fumaça com o braço sangrando, indo na direção de seus
amigos, que o aguardavam perto de uma porta de pedra, com Ollaff
iluminando o caminho como um farol.
Ao atravessar a passagem, chegaram a um corredor longo e comprido,
onde Ollaff girou seu cajado e criou uma esfera branca de energia, lançando-
a contra o teto da entrada por onde passaram. A explosão causou outro
pequeno desmoronamento, selando a passagem atrás deles.
Rubyo caiu alguns passos depois, gritando de dor enquanto tentava
conter o sangramento em seu braço rasgado. Argus e Gary o ajudaram a se
sentar, com as costas apoiada contra a parede de pedras irregulares daquele
corredor. O jovem sentia que centenas de abelhas ferroavam o seu braço ao
mesmo tempo, e sem parar. Gary mexeu novamente em seus bolsos e tirou
uma poção vermelha, fazendo Rubyo beber, com a promessa de que se
sentiria melhor. Ollaff se aproximou e estendeu o cajado e a mão livre sobre
o ferimento, proferindo algumas palavras de ordem, o que fez com que as
bordas da lesão se unissem, reduzindo o sangramento.
— Você sabe que tem veneno nas armas dos goblins, não é, garoto? —
perguntou Argus, guardando uma das espadas na bainha e limpando a outra
em sua roupa.
— Sim, eu sei. — respondeu Rubyo, fazendo uma careta pelo gosto
amargo da poção. — Ande logo com isso, tio!
Gary, a princípio, ficou sem entender, mas logo compreendeu quando
viu Ollaff passar a mão pela lâmina da espada de Argus, sussurrando algo e
deixando-a em chamas. Sem cerimônias, Argus pressionou a espada
flamejante contra a lesão de Rubyo, que gritou desesperadamente diante da
dor da cauterização.
— Infelizmente, o veneno deles só se dissipa com o calor, Gary. —
explicou Ollaff. — Sua poção vai ajudá-lo no controle da dor e numa
recuperação mais rápida... obrigado meu jovem.
Rubyo tentou se levantar após as chamas se apagarem, mas caiu sobre
um dos joelhos e vomitou. Seu tio ofereceu-lhe a mão para se levantar, mas
o jovem rei deu de ombros, pegou a espada no chão e guardou-a na bainha
em suas costas.
— Eu me distraí vendo você lutar. — disse Rubyo, envergonhado por
ter sido atingido.
— A culpa não é sua, eu causo mesmo esse efeito nas pessoas... —
respondeu Argus em tom irônico.
— E de todas as magias que você conhece, foi resolver usar justo uma
que causaria um terremoto? — criticou Ollaff.
— Desculpe, mestre, mas foi o mais rápido que pensei na hora. —
explicou Rubyo, enquanto conferia a cicatriz enorme que se formou de seu
ombro até o meio do braço esquerdo.
— Por isso que não uso magias. Essa coisa de magiquinha é para quem
não se garante no braço! Mais cinco minutos ali dentro e eu teria acabado
com todos aqueles demônios, e ainda poderíamos saqueá-los! — respondeu
Argus, chacoalhando a espada no ar para esfriar a lâmina.
— Você não usa magias porque não quer, meu príncipe. Eu te ensinei
direitinho como usá-las. — argumentou o ancião.
— Eu sei, mestre, mas não é para mim. Tenho medo da magia me
dominar e me consumir, enquanto, na Eddor, sou eu que domino totalmente
a minha mente e meu corpo. Rubyo, espero que já esteja bem para irmos,
estamos quase chegando.
Argus retomou a frente do grupo, tendo seu caminho adiante iluminado
pelo cajado de Ollaff, que seguia logo atrás, também pela fraca luz
alaranjada que se via ao fim daquela passagem. Caminharam lentamente em
respeito a Rubyo, que seguia pálido e fraco, tentando não resmungar pela dor
que sentia. Após mais uma ou duas horas, perceberam que a luz ficava cada
vez mais forte, até que a saída finalmente pôde ser contemplada.
Saíram por uma porta de pedra destruída e chegaram num enorme
salão, iluminado pela luz do sol alaranjado do fim de tarde que entrava pelo
teto desmoronado. O salão tinha diversas celas espalhadas pelos dois lados
do corredor que se seguia adiante, e Argus pela primeira vez percebeu o
quão estúpido era ter um túnel de fuga que se ligava justamente ao
calabouço do castelo, o que facilitaria a fuga de qualquer preso. Algumas das
celas ainda se encontravam íntegras, com diversas ossadas dentro,
provavelmente de pessoas esquecidas em seu confinamento após a invasão
orc, dezesseis anos atrás.
Argus guiou o grupo até o fim do corredor, onde uma escada em espiral
levava até a superfície e revelava uma grande porta de ferro que estava
arrombada, e que dava acesso a um grande pátio. Orgulhoso, o general
encheu o peito, saindo do caminho para dar passagem aos amigos, dizendo
em seguida:
— Senhores, bem-vindos ao nosso lar... bem-vindos a Minalkar!
Capítulo 13: A Primeira Glória
Minalkar era o menor e mais novo dos três reinos que formavam o
continente de Cehvambar. Geograficamente, era cercada ao norte pelo mar,
ao leste pelo Rio Miriba, ao sul pelo Rio Parny e, a oeste, por um pequeno
riacho que separava o reino dos homens dos domínios dos orcs.
Conta a lenda que, durante a expansão do Império Marrom pelo reino
de Laghuna, centenas de refugiados resolveram enfrentar as perigosas águas
do Rio Miriba para tentarem a sorte nas terras férteis que existiam na outra
margem, buscando um refúgio longe dos Cavaleiros de Harddam. A
travessia não foi fácil, mas todos chegaram vivos à outra margem, graças à
engenhosidade de um jovem construtor chamado Edmund Aureus, que
projetara os barcos que usaram na viagem.
Ao chegar do outro lado, foram surpreendidos pela presença de Antigos
Homens, que dominavam o local. Os Antigos Homens eram criaturas
semelhantes a uma bizarra mistura entre homens, orcs e elfos; mas eram
mais altos, mais fortes, mais estúpidos e ignorantes. Devido seu baixo
intelecto, utilizavam apenas armas e instrumentos rudimentares, porém sua
extrema força física fazia deles adversários difíceis de derrotar. Diante desse
novo desafio, os refugiados elegeram o jovem Edmund para liderá-los na
batalha de conquista daquela terra.
Edmund sabia que não seriam páreo para as criaturas que ali habitavam
e, por isso, bolou um plano engenhoso, contando com a superstição
primordial de seus inimigos. Mesmo correndo o risco de não ter como voltar
caso o plano não funcionasse, Edmund fez com que todos os barcos fossem
desmontados, e com as madeiras extraídas deles, construíram um gigantesco
dragão de madeira que andava sobre rodas rudimentares de pedra, enquanto
balançava suas asas por um mecanismo de cordas.
Uma vez pronto, o dragão de madeira foi levado até o topo da colina
mais alta daquelas terras. Sincronizado exatamente com o nascimento do sol,
ergueram a cabeça articulada do dragão para parecer que o sol era uma bola
de fogo em sua boca. Em seguida, soltaram o dragão sobre rodas, com o
próprio Edmund montado em suas costas, e o exército civil correndo logo
atrás para afugentar os inimigos. Deu certo. Os Antigos Homens tinham
dragões como representação de deuses e, ao ver um “deus” sendo
comandado por um homem, fugiram e espalharam a notícias por todas as
suas tribos, criando um dos maiores êxodos da história. Os últimos Antigos
Homens foram avistados atravessando as montanhas frias do Oeste e nunca
mais voltaram.
Graças a essa miraculosa vitória, Edmund foi aclamado rei e protetor
daquelas terras pelos seus pares, e nela fizeram seu novo lar. Sabendo do
sucesso daquele grupo de refugiados, muitos outros vieram de Laghuna e de
outros lugares do mundo, fazendo com que Minalkar — “Primeira Glória”,
na língua antiga — se tornasse rapidamente um reino próspero, onde as
pessoas encontravam não somente terras férteis, mas também um lugar para
recomeçar. Na colina onde montaram o dragão de madeira, foi levantada
uma gigantesca estátua de pedra no formato da montaria de Edmund,
simbolizando o feito do novo rei.
Em pouco tempo, Minalkar se tornou um reino rico, atraindo outros
refugiados e uma grande comitiva de magos, que desejavam um local para
criar uma escola de magia e ciências para difundir seus conhecimentos e
descobertas. Conforme crescia, o reino chamou a atenção das tribos de orcs
que viviam a oeste, chamadas de Rurkuk ("Nossa Terra", no idioma
órquico), as quais sempre desejaram aquelas terras, mas nunca conseguiram
tomá-las dos Antigos Homens. Já contra os humanos, as coisas pareciam
mais fáceis. Desde então, homens e orcs se enfrentaram na floresta do riacho
que separava os dois reinos, lutando guerras sangrentas pela soberania das
terras do norte.

***

Argus explicou que aquele enorme pátio que viam, ao sair do


calabouço, era uma das principais praças de comércio da cidade de Mundy;
que era repleta de comerciantes, grupos de artistas, camponeses que
visitavam a cidade, e de crianças correndo. Era triste ver o bizarro contraste
da história com a realidade atual, pois, naquele momento, só enxergavam
ossadas, restos de corpos pendurados, ruínas, escombros e entulhos. Mas
pelo menos não enxergavam orcs.
Mesmo em escombros, Mundy era linda. Quase todos os prédios que
seguiam em pé estampavam bandeiras com o brasão de Minalkar, formado
de um enorme sol vermelho representando a bola de fogo do dragão, num
fundo azul que representava as águas do rio que os refugiados atravessaram
até Minalkar. A cidade toda era colorida pelo vermelho e pelo azul, com
construções bem torneadas e arquitetura delicada, diferente dos prédios
multiformes que se viam em outras grandes cidades.
O sol já estava quase desaparecendo quando chegaram nos arredores do
castelo. Passaram por um enorme portão, que estava caído entre as muralhas
internas e, de onde estava, Rubyo finalmente pode contemplar, de perto, as
maravilhosas e imponentes torres azuis do castelo de Minalkar, refletindo o
sol alaranjado que se deitava a oeste. Rubyo não conseguiu conter as
lágrimas ao ver a enorme bandeira que descia do alto de uma das torres, a
qual, não foi queimada pelos orcs, ostentando aquele enorme sol vermelho
da casa de Edmund — exatamente como o que estava estampado, a ferro
quente, em seu punho. Estar ali era como viver uma das histórias de aventura
que lia em sua infância.
Subiram as escadas do pátio do castelo, atravessando as enormes portas
de madeira ornamentada que, um dia, já foram a segurança daquele lugar. A
sensação de destruição era lastimável e provocava em Rubyo uma sensação
estranha de nostalgia de algo que nunca viveu. Argus liderava o grupo
explicando, em voz baixa, cada detalhe do castelo, enquanto Ollaff contava
histórias e curiosidades da nobreza que viveu ali por gerações.
Após atravessar dois salões pequenos, finalmente chegaram à sala do
trono. O enorme salão era sustentado por colunas bem altas, dando um ar
colossal para o local. Os vitrais estavam todos quebrados, deixando o vento
frio do outono entrar e soprar um som fantasmagórico. As paredes internas,
apesar de manchadas de sangue, ainda eram ilustradas com pinturas
magníficas da história do povo minalkariano, desde a fuga de Laghuna até o
avanço do dragão de madeira. Argus não conseguiu conter as lágrimas
quando avistou o trono, que surpreendentemente ainda estava inteiro. Argus
e Ollaff se curvaram ao chegar em frente ao trono, enquanto Rubyo e Gary,
após se entreolharem rapidamente, imitaram o gesto.
— O trono foi construído com as madeiras usadas por Edmund I para
construir os barcos e o dragão. — disse Ollaff, levantando-se apoiado no
cajado.
— Todos os anos, meu pai mandava reformar esse velho trono para que
nunca estragasse a madeira... — disse o general, com a voz embargada de
saudade.
Argus levantou-se e fez mais uma reverência, gesto que foi copiado
pelo resto do grupo.
— Se seguirmos por essa porta à esquerda do trono, iremos em direção
à antessala do trono, onde encontraremos a passagem até as criptas. Mas,
antes... quero matar a saudade de casa. Vamos até a área dos quartos, preciso
ver como ficaram as coisas por lá.
Argus rumou pela porta à direita do trono, desviando das ossadas de
guardas e orcs, que o tempo ainda não havia levado de volta para os braços
de Harddam, orientando-se pela luz que emanava do cajado de Ollaff. A
porta deu acesso a um corredor, que os levou até uma escada em espiral na
direção do interior da torre leste, onde ficavam os quartos da realeza. O local
era composto de um pequeno espaço comum, onde Rubyo contou cinco
portas na parte mais alta.
— Esse era um quarto de hóspedes, onde ficavam pessoas muito
importantes que vinham visitar o nosso reino. Sempre fazíamos questão de
fazê-los se sentir como parte da nossa família. — disse Argus, apontando
para a primeira porta. — Essa porta a seguir era o seu quarto, Rubyo.
O general abriu a porta, mas Rubyo não sabia se entrava ou se ficava ali
fora. Era difícil encarar a vida que poderia ter tido e, por isso, precisou fazer
uma força descomunal para movimentar suas pernas e entrar no quarto.
Assim que entrou, Argus acendeu uma das tochas que havia no quarto e
puderam ver vários pedaços de madeiras entulhadas, que já formaram
móveis um dia, além de uma enorme pintura na parede principal. Nela, um
homem alto, forte, de cabelos castanhos e queixo quadrado — como o de
Argus — vestia uma túnica azul-marinho com o sol vermelho estampado,
cobrindo parte de sua brilhante armadura de aço, onde a bainha de espada
estava pendurada na cintura, escondendo a lâmina, mas não o cabo da
Sabedoria. O homem usava uma majestosa coroa de ouro e rubis, mas pelo
olhar retratado na pintura, todo seu orgulho não estava em suas vestes e nem
em suas posses, mas sim, no pequeno bebê de cabelos vermelhos que
segurava em seus braços, enrolado num tecido branco esvoaçante. Era a
primeira vez que Rubyo via uma imagem de seu pai, e fez tremer ainda mais
suas pernas.
— Seu pai mandou reformar esse quarto e prepará-lo para você assim
que soube que Elysa estava grávida. Ele queria que ela morasse aqui com
você, mas sua mãe, apesar de amar meu irmão, não aceitou ser uma espécie
de amante do rei, e recusou o convite. Depois que ela morreu, você foi
trazido para cá, mas nunca nem chegou a dormir nesse quarto. Seu pai o
levava para dormir junto com ele e com Lucrécia todas as noites, o que a
deixava irritada a ponto de manter três aias em pé, ao lado da cama, a noite
inteira, para te pegar ao menor sinal de choro. — disse Argus.
Rubyo era incapaz de dizer coisa alguma, apenas olhava fixamente para
o retrato de seu pai, que pairava pendurado na parede. Aquela situação era
uma mistura complexa de sensações, envolvendo vários sentimentos, de
perda, raiva, tristeza; mas, ao mesmo tempo, saber daquela história e ver o
retrato de seu pai com ele no colo fez com que Rubyo se sentisse mais
amado do que nunca. Com a voz embargada, o jovem de cabelos vermelhos
pediu para ver os outros quartos.
O grupo voltou para o saguão e Argus abriu outra das portas,
explicando que aquele era seu próprio quarto. Tudo estava revirado; restos
de roupas espalhadas, madeiras quebradas, até mesmo era possível ver um
pequeno foco de incêndio antigo. Argus sentiu uma enorme tristeza ao ver
que todos os seus troféus haviam sido roubados, assim como a pintura que
retratava sua vitória no grande torneio do Coliseu de Ottoni, há quase vinte
anos.
De volta ao saguão, Argus fez menção de ir para outra porta, mas Ollaff
se adiantou e pediu para que ele mesmo abrisse a porta de seu quarto. O
ancião enfiou quase o braço inteiro dentro da sacola mágica, revirando algo
ali dentro, até finalmente retirar uma chave brilhante. Ollaff girou a chave na
fechadura da porta e a abriu, revelando um cômodo totalmente impecável, o
qual nada foi revirado.
— Caso você abrisse essa porta sem passar a chave mágica antes, teria
visto apenas um quarto vazio. Fiz esse encanto antes de partirmos para
Alferius, no dia de nossa fuga, e aparentemente funcionou muito bem. —
explicou Ollaff, orgulhoso, enquanto acendia magicamente todas as velas e
tochas do cômodo com sua voz.
O quarto de Ollaff parecia uma versão melhorada, mas menor, de sua
pequena loja de livros no centro de Nenáreah. Estantes de madeira seguiam
até o teto, de uma parede a outra, exibindo incontáveis livros, relíquias,
animais empalhados e outras quinquilharias. Em uma das paredes existia um
enorme mapa do mundo mostrando os quatro continentes, com uma luz
mágica emanando da região ao norte de Minalkar, onde ficava a Academia
de Magos de Michello. Em uma outra parede, um grande quadro estampava
o lindo sorriso de uma mulher morena, de longos cabelos negros e
encaracolados, com um colar de esmeralda repousado em seu decote.
A mesa no centro do quarto era muito comprida e podia-se encontrar
diversos instrumentos curiosos, mapas estelares, anotações em outras
línguas, cálculos, destiladores, livros de magia, e, bem na ponta, uma fonte
mágica de água que não parava de jorrar.
— Bebam dessa água. Ela jorra água vinda diretamente dos poços
encantados de Michello, e vão saciar nossa fome, curar nossas feridas e tirar
nosso cansaço. — explicou Ollaff, pegando uma caneca de pedra ali perto
para beber. — Mas não tentem encher seus cantis com ela, pois essa água
vira areia depois de alguns segundos se não for consumida.
Todos beberam da fonte e, restaurados, sentaram-se na beira da enorme
janela de vidro que existia do outro lado do quarto. De lá, podiam ver toda a
cidade sendo iluminada apenas pelo brilho da lua cheia, sendo, em alguns
momentos, ofuscada por densas nuvens que se formavam naquela noite. Lá
de cima também podiam contemplar o quão grande era a cidade de Mundy e
o quão triste era perceber um lugar tão incrível ser transformado num
gigantesco cemitério a céu aberto. Não observaram nenhum sinal de vida na
cidade, o que lhes dava a impressão de estarem sozinhos naquele lugar.
Durante o silêncio contemplativo, Ollaff respirou fundo e disse:
— Rubyo, meu Jovem Rei, tem algo que preciso te contar. O anel que
estamos atrás é o anel real de Edmund III, mas infelizmente... esse não é um
anel real comum.
— Como assim? — perguntaram Rubyo e Gary, uníssonos.
— É um anel mágico. — respondeu Ollaff, olhando fixamente para o
horizonte escuro.
— Não, mestre, não é verdade. Eu sei o que o senhor vai dizer, e isso
não passa de uma lenda! — confrontou Argus.
— Infelizmente, meu príncipe, não é uma lenda, é a verdade. O anel é
mágico, sim, e eu mesmo o forjei.
O grupo todo olhou com surpresa para Ollaff, que tinha uma estranha
feição de pesar, deixando seu olhar longe dos outros olhares.
— Eu temi que Edmund III não fosse capaz de vencer seus dois irmãos
no torneio, e isso traria consequências graves para a política do reino e bem-
estar social, então troquei o anel real dele por um anel mágico que eu mesmo
forjei, na intenção de ajudá-lo.
— E que tipos de poder tem esse anel, mestre? — perguntou Rubyo.
— Edmund precisava se recuperar rapidamente para lutar... precisaria
de força, agilidade e sabedoria para seus treinamentos da Eddor, pois só
assim poderia vencer seus irmãos e garantir sua coroa. Eu, em minha
juventude e arrogância, forjei um anel que potencializava todos os atributos
e virtudes de quem o usa, lançando mão de magia obscura proibida em
Michello para fazê-lo. E foi graças a isso que ele aprendeu tão rápido a lutar
e venceu o torneio. Eu só não esperava que ele mataria seus irmãos por conta
disso.
Argus, sem dúvidas, era o mais surpreso dos três. Jamais imaginou que
tivesse algo sobre a Eddor que ainda não soubesse, pois tinha certeza de ter
lido todos os livros sobre o assunto, por mais de uma dezena de vezes.
— O que você quer dizer com potencializa, mestre? — perguntou Gary,
curioso.
— Se você é forte, fica mais forte ainda. Se você é rápido, seus
músculos respondem com ainda mais velocidade. Sua magia fica mais
poderosa. Melhora sua visão, seus ouvidos, seu intelecto... não é nada sobre-
humano, mas traz uma enorme vantagem em qualquer combate.
— Mas também potencializa o que há de pior em você, certo, Ollaff?
— perguntou Argus, secamente.
— Sim, meu senhor, infelizmente... — respondeu o ancião, que seguia
cabisbaixo. — Se você irar-se utilizando esse anel, sua ira se torna maior.
Seu ódio fica incontrolável. A maldade, que todo homem carrega em seu
coração e vive lutando contra, pode se tornar maior que suas virtudes e cegá-
lo... Foi isso que fez com que Edmund III matasse seus irmãos no torneio,
mesmo após já tê-los vencido. E creio que foi pela magia desse anel que
Edmund conseguiu encontrar uma maneira de manter sua alma vagando
entre os vivos, mesmo após sua morte.
Todos ficaram em silêncio. Argus olhava fixamente para a cidade lá
embaixo, sem intenção alguma de encarar Ollaff.
— Bom, mas o que está feito, está feito, e nada pode se fazer para
consertar o passado! — disse Ollaff, finalmente tomando coragem de olhar
para seus amigos. — O que podemos fazer é tentar construir um futuro
melhor, e é para isso que viemos até aqui. Só peço, Jovem Rei, que o senhor
controle ao máximo seus sentimentos e desejos enquanto estiver utilizando
aquele anel, para que seus pensamentos não se transformem em impulsos
incontroláveis.
Argus respirou fundo, levantou-se, e se aproximou de Ollaff,
estendendo a mão para ajudá-lo a se levantar.
— Sei que o senhor fez o que achava certo na época, mestre. O fato de
até alguém sábio como o senhor cometer erros é apenas um refrigério para
nós, pois nos torna menos estúpidos. — disse Argus, com um sorriso de
canto de boca. — Venham conhecer o quarto do meu irmão, e então
podemos ir buscar esse maldito anel.
Ollaff aceitou a ajuda de Argus para se colocar em pé, sentindo que se
levantava sem um enorme peso nas costas.
— Infelizmente, ninguém é sábio o tempo todo. — respondeu Ollaff ao
se levantar.
O grupo deixou o quarto e aguardou enquanto o Mestre trancava
novamente a porta com a chave mágica, guardando-a em sua bolsa. Argus
seguiu em frente até o fim do corredor e empurrou o que sobrou da porta de
madeira e ferro do quarto do rei, que estava despedaçada por golpes de
machado.
O quarto era, pelo menos, três vezes maior que os demais quartos. Ao
centro dele, existiam as ruínas da maior cama que Gary ou Rubyo jamais
haviam visto. Acima da cabeceira, estava uma pintura de Edmund VI
brandindo sua espada Sabedoria ao lado de Lucrécia, que, mesmo com o
toque artístico do pintor, não parecia uma mulher muito feliz, apesar de bela.
Entre a cama e a parede interna da torre, existia uma enorme banheira
de pedra, revestida por madeira que, por algum motivo, nem fora tocada
pelos saqueadores. Próximo à janela, do outro lado do quarto, encontrava-se
uma escrivaninha em ruínas, com diversos papéis e livros velhos espalhados
pelo chão.
— Foi exatamente aqui que vi seu pai pela última vez, Rubyo. Ele
mandou me chamar e disse que todos os civis sobreviventes já estavam nos
corredores do calabouço, esperando por mim para guiá-los até Alferius. Seu
pai resolveu ficar porque sabia que Inak não pararia enquanto não o matasse,
então ele mandou que levasse você e Lucrécia embora o mais rápido
possível, enquanto ele distrairia os orcs. Você estava bem aqui, no colo da
senhora Rose, quando ele te beijou e te colocou em meus braços. — disse
Argus, chorando francamente.
Rubyo também começou a chorar, mas tentou disfarçar, andando até a
escrivaninha e examinando os papéis no meio do entulho. Debaixo de um
pedaço de gaveta, Rubyo encontrou um pequeno livro com capa de couro
amarrado com um laço; ao abrir, percebeu que era um diário de seu pai.
Folheando rapidamente, leu várias citações sobre Elysa, sua família, sobre as
aulas de Ollaff... e na última página, havia um texto escrito em péssima
caligrafia, com o título: Ao meu filho, Rubyo.

Amado Filho,
Escrevo essa carta enquanto você está sendo levado por seu tio
para um local seguro, longe da ira dos orcs sanguinários que desejam
nossas terras desde os tempos de seus antepassados. Queria eu ter o
privilégio de te ver crescer, te ensinar nossa história, nossa luta, mas
essa honra ficará com meu irmão, e sei que ele o fará muito bem.
Quero que saiba que, desde que sua mãe me contou que estava
grávida de você, eu já te amei. Te amei, assim como amarei para
sempre sua mãe, a mulher mais linda e doce que já viveu. Talvez você
se pergunte por que não me casei com ela ao invés de Lucrécia, mas
espero que um dia tenha maturidade para entender que homens em
nossa posição precisam abrir mão de várias coisas pelo bem do reino e
do povo, ainda que essa “coisa” seja o grande amor da sua vida.
A dor de te ver partir só se compara com a que senti quando
soube que sua mãe faleceu, poucos dias após seu parto; quando me
contaram, ela já havia sido cremada. Espero que nunca sinta dor
parecida com essa, pois é como se meu coração tivesse sido arrancado
para fora do peito…, mas ele foi colocado no lugar de novo quando vi
seu sorriso pela primeira vez, meu filho.
Você terá que ser forte. Crescerá num reino estranho, com outra
cultura, sob as asas de uma mulher que te odeia por me odiar antes.
Mas, infelizmente, não temos outra opção. Seu tio está levando a
espada da nossa família e, um dia ela, será sua. Espero que faça
melhor proveito dela, do que fiz.
Rogo aos deuses que possa me perdoar por tanta dor que seu
sangue lhe trará, pois, apesar de não ter o meu nome, você é meu
herdeiro, minha semente, parte de mim, e tudo o que tenho será seu um
dia... ou pelo menos, o que sobrar daqui.
Não sei se algum dia, pela misericórdia de Selline, essa carta
chegará até você, mas, se chegar, quero que saiba que te amo com cada
pedaço meu, e que apesar de não estar fisicamente com você, sempre
estarei te observando e tentando te guiar, seja lá onde eu estiver, pois
não há barreiras físicas ou espirituais capazes de manter meu amor
afastado de ti, meu filho.
Com todo o amor de seu pai,
Edmund Aureus VI
Capítulo 14: As Catacumbas dos
Reis
Assim que acabou de ler a carta de seu pai, Rubyo fechou o diário e o
abraçou com tanta força que era como se abraçasse o próprio pai. Argus se
aproximou e abraçou o sobrinho, chorando também.
— Venha, Rubyo, está na hora de lutar com seu passado e assumir o
que é seu por direito. — disse Argus, com a voz embargada.
Rubyo guardou o diário em um bolso interno de sua roupa, próximo aos
ovos de fênix, e seguiu o restante do grupo que já caminhava na direção da
escada em espiral. Voltando à sala do trono, entraram pela porta que haviam
visto mais cedo, à esquerda do trono centenário. Ao passar por ela, chegaram
a um corredor que dava acesso a jardins abandonados, com esculturas
destruídas entre grandes árvores e com extensos matagais que cobriam
alguns corpos espalhados.
Um pouco mais adiante, encontraram uma grande porta dupla de
madeira, toda destruída por machadadas e pelo fogo, dando passagem a uma
antessala, que Argus explicou ser o cômodo que guardava a sala do tesouro.
No local, encontravam-se mais entulhos e móveis destruídos, esculturas de
pedra que viraram pó e até antigos altares de exposição de artes, já vazios;
mas algumas pinturas ainda estavam intactas na parede. Podia-se ver uma
representação de Edmund I montado no dragão, uma outra de Edmund III
matando seus irmãos no torneio, e até mesmo uma do Mestre Ollaff, bem
mais jovem, ensinando jovens nobres num pequeno auditório. No centro da
sala, uma grande estátua da deusa Selline estava sobre um altar, totalmente
vandalizada. A parede do fundo dessa sala continha uma enorme porta de
ferro fundido e pedras rústicas, que também estavam destruídas.
Argus, por pura curiosidade, atravessou essa porta e chegou até a sala
do tesouro, que obviamente se encontrava vazia. Apenas alguns papéis
antigos estavam ali jogados pelo chão, indicando posses de terra para alguns
membros da nobreza.
Ollaff se aproximou da estátua da deusa, que ficava ao centro da sala.
Selline era representada como uma linda mulher nua, com seu corpo curvado
como uma lua minguante, esticando seus braços para tentar alcançar o sol,
enquanto seus longos cabelos cobriam as partes íntimas. Ollaff apalpou algo
debaixo do altar e um alçapão se abriu ao lado, dando acesso a uma escada
em espiral para o subterrâneo do castelo. O mestre sussurrou algo e um
domo de energia se formou em volta dos quatro, de cor acinzentada,
diferente dos tons de dourado daquela barreira de proteção erguida contra os
goblins.
— Nossas vozes estão seguras aqui dentro, ninguém pode ouvir nada do
que conversamos nesse domo. — disse o mestre Ollaff. — Não sabemos ao
certo o que encontraremos lá embaixo, mas tenho certeza de que não será
nada igual ao que já vimos antes em nossas vidas.
— Os livros contam que seres mortos-vivos tem a habilidade de nos
confundir, criar ilusões e falar coisas diretamente aos nossos corações para
causar medo. Sejam fortes e não se desviem do nosso objetivo: pegar o anel
e sair vivos. — reforçou Argus, como se instruísse seu exército.
Rubyo olhou para Gary, que tentava disfarçar seu medo com um rosto
endurecido, porém não conseguia segurar o tremor em suas pernas.
— Gary, você sabe que não precisa entrar, né? Você já fez muito mais
do que eu poderia esperar de um amigo, e sacrificou um dos seus bens mais
valiosos para nos trazer até aqui. Não posso pedir mais nada de você, além
de sua eterna amizade. — disse Rubyo, colocando a mão sobre o ombro do
amigo.
— Tá brincando, né, Rubyo? Eu não vim até aqui para perder a
oportunidade de matar um fantasma! Vou ser uma lenda em nosso vilarejo e
os bardos farão canções sobre mim! Além do mais, se você não conseguir
esse anel, eu não terei meu emprego de Mestre da Moeda, e eu estou
contando muito com esse salário. — disse Gary, esforçando-se para sorrir.
— Disse muito bem, jovem Bortolly; provavelmente mataremos um
fantasma e, como sabemos, eles não podem ser tocados por lâminas, apenas
por magia, o que impede que você e Argus o ataque. Porém, eu tenho a
solução bem aqui.
Ollaff tirou de sua bolsa mágica quatro pequenos frascos de vidro
arredondados, com um líquido magenta espumoso, entregando um para cada
e pendurando o último na corda em sua cintura.
— Essa poção cria um campo mágico em volta dos nossos inimigos
etéreos, fazendo com que fiquem vulneráveis a ataques físicos. — disse
Ollaff, orgulhoso ao ver a surpresa do jovem ladino. — O que foi, Gary?
Achou que só você sabia fazer poções? Não esqueça que boa parte dos livros
que você tem em sua casa foram roubados da minha biblioteca.
— Senhor Ollaff, me perdoe! Eu juro que pretendia devolver, só não
sabia como... — disse Gary, visivelmente envergonhado.
— Fique tranquilo, meu jovem, são seus agora. De que serve o
conhecimento, se não for compartilhado? Fico feliz que tenha feito bom uso
deles! — respondeu Ollaff, com um sorriso doce para Gary. — Agora, todos
vocês fiquem atentos... o efeito da poção é temporário, e temos apenas esses
quatro frascos, pois eu não tinha mais essência de salamandra para fazer
outros.
Todos assentiram com a cabeça, guardaram seus frascos, e seguiram
para a escada das catacumbas, enquanto o domo se dissipava. Dessa vez,
Ollaff foi guiando o caminho, iluminando tudo com seu cajado. Ao chegar
no fim da escada, deram de frente com um portão de ferro, selado com uma
runa brilhante emanando das grades. O velho mestre pegou seu cachimbo na
manga, deu algumas tragadas e soprou a fumaça na runa. O selo mágico
projetou algumas linhas e símbolos no ar, que não eram estranhos para
Rubyo. Ollaff, em seguida, pegou sua flauta e tocou uma canção
representada por aqueles símbolos que flutuavam no ar, como se fossem uma
partitura. Ao fim da música, a runa começou a girar e a porta se abriu,
soprando um vento mórbido na direção dos aventureiros, com um
desagradável cheiro de podridão e morte.
Dentro das catacumbas, ouvia-se apenas o som de gotas que pingavam
do alto, caindo ao chão. Estranharam o fato de nem mesmo morcegos ou
ratos estarem ali, apenas algumas larvas se esgueiravam pelas paredes de
pedra. O local ficava mais claro e fácil de enxergar conforme Argus, que
seguia logo atrás de Ollaff, acendia as tochas fixadas nas enormes colunas
que seguravam o teto, utilizando suas pedras de faísca.
O chão era todo de pedra bruta, o que tornava o clima muito mais frio
do que deveria ser, com uma fina camada de água que cobria todo o piso,
vinda das gotas que caíam constantemente do teto, minando de raízes, como
numa gruta. As paredes eram esculpidas e cavadas, se transformando em
camas de pedra, onde repousavam vários cadáveres decompostos e
mumificados, ostentando armas enferrujadas sobre seus corpos. Abaixo dos
mortos, placas de ouro indicavam os nomes e os feitos daqueles nobres. Era
insano imaginar que, a qualquer momento, um daqueles mortos poderia se
levantar para atacar os forasteiros.
Conforme desciam alguns degraus de pedra para níveis ainda mais
baixos, se depararam com o vulto de uma enorme criatura ao fundo da sala.
Todos sacaram instantaneamente suas armas, mas ao se aproximarem um
pouco mais, viram que, na verdade, era apenas uma estátua de dragão que
existia sobre o túmulo de Edmund I.
— “Rei Edmund I, fundador de Minalkar. Herói de guerra, conquistou o
reino sem derramar uma gota de sangue. Marceneiro, construtor, pai, amigo,
mas sobretudo, grande Rei.” — leu Gary, sussurrando para todos. — Sua
família parece ter uma história incrível, Rubyo. Já eu, venho de uma família
tradicional de bastardos. Meu pai nos abandonou, pois foi abandonado pelo
pai dele também, que foi abandonado pelo pai dele... Não vejo a hora de ter
um filho com a Vallery! — disse Gary, rindo de sua própria piada.
— Suas raízes mostram de onde você veio, meu jovem, mas é para
onde o vento sopra suas folhas que realmente importa. — sussurrou Ollaff,
retomando a caminhada logo em seguida, deixando Gary com seus
pensamentos.
Um pouco mais à frente, encontraram diversos sarcófagos e urnas
funerárias com os sobrenomes de diversas famílias tradicionais de Minalkar.
Algumas possuíam lápides simples, apenas com o nome, enquanto outras
ostentavam títulos, bustos e estátuas sobre seus túmulos. Na sala seguinte,
uma nova sombra assustou o grupo, mas dessa vez, era da estátua de um
homem em pé, com uma espada numa mão e um martelo de construção na
outra, representando Edmund II, O Sábio.
— Mestre, por que não posso pegar o anel desse corpo para irmos
embora daqui? — perguntou Rubyo, sussurrando, apontando para o
sarcófago do seu antepassado.
— Infelizmente, Edmund II usava o anel que era de seu pai, e
presenteou o construtor Naenuo com esse anel, uma recompensa pela criação
do Caminho Segundo. E, como depois de Edmund III todos os reis foram
cremados, o único anel que temos acesso é o que viemos buscar.
Rubyo pareceu um pouco frustrado, mas seguiu a exploração com o
grupo. Conforme avançavam, sentiram o cheiro de podridão piorar, assim
como a quantidade de água sob seus pés, que agora já cobriam quase o pé
inteiro. Seguiram caminhando, sendo observados por gárgulas esculpidas nas
colunas do salão, com sorrisos macabros e cheios de dentes.
— Se isso aqui fosse uma história de terror, essas gárgulas se tornariam
vivas e nos devoraria. — disse Gary, em voz baixa, seguida por um riso
nervoso.
— Existem coisas piores aqui embaixo, meu jovem, fique atento. —
respondeu Ollaff, rispidamente, encarando a escuridão.
Após um corredor estreito, chegaram até um pequeno salão com
diversos túmulos adornados com ouro e pedras preciosas. Gary pensou em
pegar alguma como recordação, mas Ollaff parecia ter ouvido seu
pensamento e olhou com desaprovação para o jovem, que desistiu de seu
prêmio. Passado esse local, chegaram a um novo lugar, mais amplo e alto
que os demais, parecendo não ter sido acabado e não mostrando nenhuma
outra saída além de por onde vieram. No final dele, um sarcófago estava
fechado sob a estátua de um rei empunhando uma representação de pedra da
espada Sabedoria.
Ollaff se aproximou com o cajado iluminando o local, projetando uma
enorme sombra atrás dessa estátua, e chegou perto do sarcófago para ler:
— “Rei Edmund III, temido pelos inimigos, odiado pelo povo...” — leu
Ollaff, em voz alta. — Chegamos ao nosso destino, senhores.
Enquanto Argus acendia as tochas do local, Rubyo olhava fixamente
para a estátua e respirava aliviado pelo caminho ter sido mais fácil do que
esperava, porém, o jovem teve a impressão de que a sombra começava a se
mover de uma maneira não natural. Quando ia comentar sobre o fenômeno
com o resto do grupo, uma voz vinda de trás chamou a atenção:
— Vieram incomodar o nosso Rei? Não sei o que desejam buscar aqui,
mas encontrarão apenas a morte.
O grupo todo olhou para trás, pelo corredor de onde vieram, assustados
e aterrorizados por aquela voz fantasmagórica. Viram dois jovens em pé,
cabisbaixos, com roupas nobres em farrapos, cobertas por armaduras
enferrujadas. Seus corpos tinham sinais de decomposição avançada, sendo
possível avistar vermes saindo dos orifícios de suas faces, além de
fragmentos de ossos por trás da pele dilacerada.
— Argus?! — perguntou Ollaff.
— O que foi, mestre? — disse o general, já com suas espadas curtas em
mãos.
— Não, não você... o outro Argus... esse é Argus I, irmão de Edmund
III, que foi morto no torneio pelo trono! — respondeu Ollaff. — Meu jovem,
por que o seu espírito e de seu irmão ainda vagam pelo mundo dos vivos?
— Ele não nos deixa partir... Quer que o sirvamos por toda a eternidade
como castigo por nossa insolência em desafiá-lo. — respondeu o outro
jovem, com longos cabelos loiros, ao lado de Argus I.
— Mestre Ollaff... você está muito velho... — disse Argus I, levantando
o rosto e revelando seu olhar esbranquiçado, com um enorme afundamento
em sua face, além de dentes apodrecidos. — É uma pena ter que te matar...
Pettruck nunca gostou de você, mas eu gostava...
— Esse velho maldito ajudou Edmund a nos matar! Não terei remorso
algum em mandar esse traidor para a morada de Harddam! — disse Pettruck,
levantando seu rosto e evidenciando um rasgo enorme em seu pescoço.
Os dois mortos-vivos, de maneira mecanizada e coordenada, sacaram
suas espadas enferrujadas. Ollaff deu um passo à frente e tentou dizer algo,
mas, nesse momento, Pettruck lançou contra ele uma enorme rajada de
energia negra, saindo de seus olhos e acertando em cheio o peito do ancião,
que caiu vários passos élficos para trás.
Argus — o III — correu com suas espadas em direção de Pettruck, que
também tentou lançar sua energia contra ele, mas o general habilmente
deslizou de joelhos no chão molhado, jogando o corpo para trás e desviando
da magia do inimigo, que passou por cima de sua cabeça e levou parte de sua
franja.
Rubyo correu ao socorro de Ollaff, que seguia caído pelo golpe sofrido,
enquanto Gary tentava se esconder nas sombras projetadas por uma das altas
colunas que sustentavam o salão. Argus I percebeu o movimento do jovem
ladino e avançou contra ele, empunhando uma enorme espada de duas mãos.
Gary abaixou-se para desviar do golpe, perdendo apenas a sua bandana, que
ficou presa entre a lâmina e a pilastra.
Enquanto isso, Pettruck aproveitava a curta distância do general,
tentando estocar o pescoço do oponente com sua espada, porém Argus III
era mais rápido e habilidoso, conseguindo desviar a lâmina do inimigo com
uma das espadas, enquanto com a outra golpeava o abdômen da criatura.
Apesar do movimento perfeito de perfurar e girar com a lâmina na barriga da
criatura, Argus III sentiu que golpeara um saco de areia, não percebendo
qualquer sinal de dor pelo golpe recebido, na expressão do inimigo.
Perto dali, Gary notou que a grande espada de seu inimigo ficara presa
na pilastra, após o golpe que levou sua bandana. Aproveitando a distração de
Argus I, o ladino sacou um punhal com cada mão e passou a esfaquear o
peito do oponente nos pontos em que a armadura enferrujada não protegia,
porém a criatura também não aparentava sentir os golpes sofridos contra seu
corpo putrefato.
Ollaff finalmente acordou, após Rubyo jogar um pouco da água do chão
contra o seu rosto, e, assustado, viu a cena em que seus companheiros
tentavam, em vão, golpear os inimigos. Pettruck aproveitou a curta distância
que Argus III estava e lançou outra de suas rajadas de energia pelos olhos,
mas o general, mesmo sem condições de se esquivar, fez um X com suas
espadas na frente do corpo, conseguindo desviar a energia graças às runas
mágicas que brilharam em suas lâminas.
Argus I deu um grito fantasmagórico e conseguiu, finalmente, arrancar
a espada cravada na pilastra. Com o cabo da arma, golpeou o rosto de Gary,
que ainda estava tentando esfaqueá-lo com toda a raiva e desespero de seu
coração. Com a pancada, Gary caiu e rolou alguns passos élficos para a
direita, tentando se esquivar de possíveis ataques vindos de cima.
Rubyo, já ciente do bom estado de Ollaff, finalmente sacou sua espada
e correu para socorrer Gary, chegando bem a tempo de aparar um golpe de
espada que vinha de cima para baixo, como uma guilhotina, contra o
pescoço de seu amigo. Rubyo aproveitou o desequilíbrio do morto vivo ao
golpear com a enorme espada e, com a mão livre, lançou uma potente bola
de fogo contra o peito de Argus I, que voou para trás, chocando-se contra a
parede.
O barulho da pancada e as chamas da magia de Rubyo chamaram a
atenção de Pettruck, que olhou para o jovem e viu a espada Sabedoria em
suas mãos, refletindo a luz das tochas em sua lâmina. Enquanto a criatura
olhava com curiosidade para a espada, Argus III aproveitou a situação e,
utilizando suas duas espadas como uma enorme tesoura, cortou o braço de
Pettruck que segurava a espada. O membro caiu no chão, e quão logo tocou
o solo, se transformou num punhado de cinzas enegrecidas, assim como sua
arma.
Pettruck pareceu nem sentir o corte do seu braço. Ignorando a presença
do general ao seu lado, o morto vivo caminhou lentamente na direção de
Rubyo... e se ajoelhou. Argus I, assim que se levantou, com o peito
esfumaçante, deixou a enorme espada no chão e se juntou ao irmão,
lançando-se de joelhos aos pés de Rubyo.
— Por favor, nosso Rei, tenha piedade... Não use mais essa espada
contra nós! — disseram as duas criaturas em sincronia.
Rubyo ficou estático, com a espada em mãos, tentando entender aquela
situação. De repente, um enorme vento frio correu por toda a sala, apagando
a maioria das tochas que iluminavam o ambiente. A sombra que se formava
atrás da estátua de Edmund III foi crescendo cada vez mais, até se
desprender da parede e sair voando pelos ares na forma de um espectro, que
atravessou a cabeça dos dois mortos-vivos ajoelhados, explodindo-os
instantaneamente.
— Quem é que ousa atrapalhar o meu descanso e usurpar minha coroa
com a minha própria espada?! — ouviu-se uma voz alta, grave e
fantasmagórica ecoando, sabe-se lá de onde.
Rubyo, ainda com a Sabedoria em mãos, respondeu a plenos pulmões:
— Sou Rubyo Hant, filho do Rei Edmund VI, herdeiro do reino de
Minalkar!
— Hant? Herdeiro? Um bastardo de cabelos vermelhos, herdeiro do
meu trono?! — perguntou a misteriosa voz, enquanto a sombra que pairava
na frente de Rubyo ia se condensando, assumindo a forma do mesmo
homem que a estátua representava.
Edmund III apresentava-se como uma criatura etérea, num tom azulado
e semitransparente, utilizando suas túnicas reais e ostentando sua coroa e
armadura completa de metal translúcido, com o sol de Minalkar estampado
no peito. Em sua mão direita usava um anel negro, mão essa em que
empunhava uma espada idêntica à Sabedoria. Seu rosto tinha os olhos
saltados para fora, bizarramente arregalados e que não piscavam, com
detalhes arroxeados perto das pálpebras e bochechas, além de uma baba
espessa que escorria no canto direito da boca, manchando sua longa barba
que ia até o peito.
— Sim, eu sou seu herdeiro, e vim reivindicar o meu direito! —
afirmou Rubyo, apertando ainda mais o cabo de sua espada com as duas
mãos, olhando no fundo dos olhos da morte.
— Edmund, meu senhor, viemos aqui para buscar o anel que há muito
tempo eu lhe dera, para que sua semente possa permanecer no trono, vingar
seus inimigos e cuidar do seu povo! — disse Ollaff, finalmente se
levantando, apoiado em seu cajado
Edmund, que olhava curiosamente para Rubyo, virou-se para trás na
direção de Ollaff, e disse:
— Meu povo? O mesmo povo que me odiou a ponto de me envenenar?!
Que Harddam devore suas malditas almas e que se afundem em miséria! Eu
não estou pronto para entregar meu trono... não enquanto os que me traíram
ainda respirarem!
— Você matou o senhor Cowa quando ele veio clamar por seu perdão,
se lembra? Sua vingança já se concluiu! — argumentou Ollaff.
— Cowa? Oh, sim... Jeremy... maldito seja aquele lavador de pratos!
Devorei sua alma imunda aqui mesmo nessa sala. Mas não descansarei
enquanto houver um Cowa vivo! Malditas serpentes! Ele foi tolo de vir até
aqui, assim como você, mestre... ou acha que não sei que conspirou com o
velho para me matar?! Aquele veneno, sim... o veneno que ele usou só
poderia ter vindo das suas mãos! Sua hora também chegou, velho maldito!
Edmund III terminou seu discurso e, com uma das mãos, ergueu Ollaff
em telecinesia e o arremessou contra o sarcófago. Rubyo, pronto para atacar,
notou, em seu campo de visão, a figura de seu tio com o frasco dado por
Ollaff em mãos.
— AGORA! — gritou Argus III, lançando o frasco contra as costas do
fantasma.
Com a explosão, a cor azulada da criatura desapareceu, formando-se
várias runas ao seu redor no chão coberto pela água. O corpo de Edmund,
em questão de instantes, foi recuperando a cor humana. Um humano morto,
pálido como uma manhã de inverno, mas sim, um humano. Suas vestes se
mostravam em retalhos, com as cores de Minalkar desbotadas, e todo seu
corpo estava íntegro, sem sinais de putrefação. Tudo era real, inclusive a
espada que carregava em mãos, com a palavra “sabedoria” gravada na
lâmina.
Rubyo rapidamente desferiu um golpe contra Edmund, mas a criatura,
numa velocidade sobre-humana, virou-se e aparou o ataque.
— Isso são modos de tratar seu avô, bastardo maldito? Acha que pode
usar minha espada contra mim?! — gritou Edmund, com uma voz quase
humana, contra-atacando.
Rubyo tentou girar seu corpo para fugir do golpe, mas já era tarde.
Edmund conhecia a Eddor melhor do que ele, e soube exatamente o
movimento que o jovem faria. A espada de Edmund entrou, em estocada, no
ombro esquerdo de Rubyo, que ainda se recuperava do veneno goblin,
causando uma dor lancinante que fez o jovem rei derrubar sua própria arma
e cair no chão enquanto gritava.
De repente, outra explosão ardida rompeu nas costas de Edmund. Ao se
virar, viu Ollaff lançando bolas de fogo, que queimaram sua roupa e sua
pele, deixando um cheiro de carne podre e queimada se espalhar por toda a
sala. Do meio da fumaça levantada, surgiu Argus, saltando com as duas
espadas como punhais na direção do peito de Edmund, que rapidamente
soltou Rubyo para se esquivar do ataque, mas sem sucesso. Argus foi rápido,
mas a armadura que o antigo rei usava em seu peito repeliu o ataque do
general. Com a mão esquerda, Edmund pegou Argus pelo colarinho e
começou a dar golpes com o cabo de sua espada no rosto do bisneto.
Outra explosão irrompeu na nuca de Edmund, dessa vez causada por
um dos frascos que Gary lançara de seu colete. A criatura não sentiu seu
corpo queimar e nem mudar de forma, como nas explosões anteriores, mas
percebeu que seus movimentos foram ficando cada vez mais lentificados,
como se uma gosma invisível envolvesse seu corpo todo. Gary, satisfeito
com sua granada de lentidão, lançou diversas adagas contra o inimigo, que
lentamente levantou seus braços revestidos pela armadura para aparar os
projéteis, soltando Argus no chão, ao lado de Rubyo.
Ao cair no chão, Argus, com o nariz quebrado e supercílio rasgado, viu
seu sobrinho já se levantando, erguendo-se bravamente com a espada na mão
direita, enquanto o ombro esquerdo seguia pendurado. Aproveitando a
distração criada por Gary, Rubyo girou seu corpo com toda sua força para
um ataque em arco, de cima para baixo, contra o pescoço de Edmund.
O jovem estava certo do sucesso de seu ataque, mas enquanto a lâmina
descia no movimento, notou que as runas em volta de Edmund
desapareciam, e o corpo de seu inimigo retomava o tom azulado original e o
aspecto semitransparente, pois o efeito da poção de Ollaff havia passado. A
espada de Rubyo atravessou o pescoço translúcido da criatura como se
cortasse o vento, sem causar dano nenhum ao inimigo. Rindo malignamente,
o espectro de Edmund flutuou em direção ao teto e desapareceu na
escuridão.
Ollaff girou o cajado e lançou um enorme clarão para cima, na
esperança de enxergar seu inimigo que se escondia nas trevas, porém, nada
conseguiram enxergar além das gárgulas esculpidas no topo das colunas e as
raízes de árvores que brotavam no teto, e minavam água sobre suas cabeças.
Gary correu até Argus, ajudando-o a se levantar e entregando uma de
suas poções vermelhas. Rubyo segurava a espada apenas com a mão direita,
olhando com atenção ao redor, tentando esquecer da dor e do formigamento
em seu ombro esquerdo, que seguia pendurado de forma não anatômica.
Subitamente, o jovem sentiu um movimento vindo por trás e girou a espada
já em contra-ataque, mas, outra vez, sua lâmina atravessou o fantasma de
Edmund como se fosse nada. Edmund, invulnerável ao ataque, colocou suas
duas mãos frias sobrepostas no peito de Rubyo e lançou uma espiral de fogo,
que arremessou o jovem para o outro lado da sala, chocando-o gravemente
contra a parede e fazendo-o desmaiar longe de sua espada.
Gary levantou-se assustado, pegando a poção de Ollaff em seu colete o
mais rápido possível, porém Edmund percebeu o movimento do jovem. O
antigo rei levantou suas mãos, erguendo à distância o corpo de Gary, em
telecinesia, cada vez mais alto, na intenção de derrubá-lo do teto. Argus,
ainda tonto pelas pancadas em sua cabeça, olhou para trás e viu Ollaff cravar
o cajado no chão, enquanto girava suas mãos uma sobre a outra, formando
uma imensa esfera de energia, que foi lançada contra o espectro, atingindo-o
em cheio.
Com o golpe, Edmund largou o controle de Gary que, naquele
momento, encontrava-se a pouco mais de quatro passos élficos de altura. O
jovem ladino caiu sem defesa nenhuma, quebrando a perna esquerda
instantaneamente, sentindo todos os frascos em seu colete e mochila se
quebrarem contra seu corpo, criando uma fumaça multiforme e colorida em
volta dele.
Argus, sentindo que a poção de Gary já melhorava seus ferimentos,
pegou suas espadas no chão e gritou para Ollaff lançar a poção de
salamandra contra Edmund, mas Ollaff seguia descarregando a enorme carga
de energia contra o fantasma, que agora seguia ajoelhado, tentando se
proteger da forte magia de seu antigo mestre.
O general lembrou-se, então, da poção de salamandra que Rubyo ainda
portava e correu desesperadamente na direção de seu sobrinho, que seguia
desacordado. Ao se aproximar, notou que o imenso clarão vindo da magia de
Ollaff se apagou e, quando olhou para trás, viu o ancião exaurido de suas
forças, apoiando-se no cajado para não cair.
Quão logo o ataque de Ollaff parou, Edmund se levantou e lançou uma
enorme estaca de gelo no alto da pilastra próxima a Argus e Rubyo,
causando um desabamento de pedras que soterrou o corpo do jovem. Argus
saltou para o outro lado, fugindo do desabamento, mudando sua estratégia
para correr na direção de Ollaff em busca da poção. O ancião entendeu o
plano de Argus e, com a pouca força que lhe restava, lançou a poção na
direção do general. Habilmente, Argus pegou o frasco no ar, girou o corpo e
lançou-o contra Edmund, que, apesar de aparar o objeto, não conseguiu
impedir a explosão. O chão em volta do fantasma voltou a brilhar num tom
púrpura, ressurgindo as runas e, com elas, o corpo humano do morto-vivo.
Edmund, ciente de sua vulnerabilidade, sacou sua espada e foi até o
centro do salão, fazendo uma saudação de cortesia e convidando Argus para
um duelo. Seu bisneto cuspiu alguns cacos de dente que se soltaram na boca
e limpou com o punho o sangue que escorria de seu nariz, para logo em
seguida girar suas espadas no ar e caminhar também para o corredor central
do salão, repetindo o gesto do inimigo e aceitando o desafio.
Era realmente uma pena que não houvesse ninguém ali para assistir a
formidável luta entre os dois maiores mestres da Eddor que o mundo já viu.
Parecia uma enorme dança, toda coreografada, onde as espadas se chocavam
a todo momento e criavam fagulhas no ar. Os giros se ornavam a desvios,
esquivas, passos e aparos de golpes, criando um espetáculo inigualável.
Ambos sabiam que bastava um passo em falso, apenas um erro, para que a
luta terminasse.
Ao errar uma de suas estocadas, Argus aproveitou o balanço do seu
corpo para frente e usou as duas mãos para apoiar o corpo contra o chão,
lançando seu peso para realizar duas piruetas no ar, afastando-se de seu
inimigo. Ele sabia que o efeito da poção passaria em breve, então resolveu
arriscar tudo num último ataque, apostando tudo no golpe que era
considerado o movimento mais difícil e mortal da Eddor, cujo livros
contavam que teria sido realizado com sucesso por apenas um único homem:
Edmund III.
Percebendo a distância que Argus estava e o posicionamento do corpo
do inimigo, o morto-vivo perguntou:
— Você não vai tentar o Chaki contra mim, não é, garoto? Será menos
doloroso se você apenas se ajoelhar e deixar que eu te dê uma morte digna
do nosso sangue!
Argus, sem se abalar, correu com as espadas em mãos, com seus braços
esticados para baixo, abrindo totalmente a guarda para seu adversário, como
uma isca. Edmund preparou a espada para girar no ar de cima para baixo
enquanto via o bisneto se aproximando. Argus, na distância correta, fez um
salto, jogando seus pés para o ar e ficando de ponta cabeça durante a
cambalhota. Logo após, girou seu corpo em parafuso para a esquerda,
enquanto desviava por fios de cabelo de distância do ataque de Edmund, que
mal pôde acreditar que Argus acertara o movimento. Quão logo pousou nas
costas do inimigo, Argus girou as duas espadas como hélices, cortando, num
só golpe, os dois braços de Edmund, na altura dos ombros.
O antigo rei virou-se para Argus com um olhar atônito e incrédulo de
sua derrota, ajoelhando-se aos pés do bisneto e fechando seus olhos. Argus
colocou as duas lâminas no pescoço do inimigo para utilizar as armas como
uma tesoura gigante. Edmund suspirou com alívio, sentindo que, de uma
forma ou de outra, finalmente teria paz em sua morte, porém, ao abrir os
olhos, viu que as espadas de Argus passaram por seu pescoço sem causar
nenhuma lesão, pois seu corpo já estava novamente na forma etérea.
— Fique tranquilo, garoto. Se um dia alguém perguntar, eu direi que
você venceu esse nosso duelo. É uma pena que nem sempre quem ganha é o
verdadeiro vencedor. — disse Edmund, lançando Argus agressivamente na
direção de Ollaff, que foi atingido pelo corpo do general enquanto tentava se
levantar.
Capítulo 15: Raios e Trovões
Rubyo despertou devido a um alto som fantasmagórico que ecoava ao seu
redor. Percebeu que seu pé esquerdo estava embaixo de uma grande pedra e
que, por sorte, não teve seu corpo todo soterrado pelos escombros que se
empilharam sobre sua cabeça. Ao puxar a perna para fora, percebeu que
estava quebrada, além do fato de já não sentir mais o ombro esquerdo. Sua
cabeça sangrava por um corte na nuca e, estranhamente, um pouco de sangue
escorria de seus ouvidos. O ar entrava com dificuldade em seus pulmões,
parecendo rasgar o peito a cada inspiração entre as inúmeras costelas
quebradas. Com dificuldade, Rubyo caçou por entre seus bolsos a resistente
caixinha de madeira que recebera do druida, pegando de dentro dela um dos
três ovos de fênix.
Ao colocar na boca, mastigou com dificuldade, tanto pelo gosto
horrível de ovo podre, quanto pela dor de seus dentes quebrados, que só
pioraram pelos fragmentos da casca que lhe cortavam as gengivas.
Incrivelmente, em questão de segundos, sentiu um calor enorme se
espalhando por todo o corpo, enquanto o coração disparava. Sua perna
voltou a se movimentar e o ombro passou a ser sentido novamente, mas
agora sem dor alguma. O ar voltou a fluir levemente por seus pulmões, seus
ossos se corrigiram e sua força foi restaurada. A sensação revitalizante era
maravilhosa.
Rubyo se arrastou para fora dos escombros e, olhando na direção do
sarcófago, viu o corpo de seus três amigos flutuando a uns dois passos
élficos de altura, girando lentamente no ar em volta de Edmund III, que
estava ajoelhado em frente a sua tumba, realizando algum tipo de ritual que
fazia emanar uma forte luz azulada por toda a sala, enquanto emitia sons
grotescos e horrendos que se espalhavam em todas as direções.
O jovem silenciosamente se moveu para trás da pilastra derrubada pela
estaca de gelo e, escondido, analisou a situação. Rubyo sabia que, daquela
distância, provavelmente não acertaria a poção de Ollaff em Edmund; e
ainda que acertasse, sua espada estava longe demais para utilizar. O
desespero quase tomou conta de sua mente, mas seguindo os ensinamentos
de Argus, o jovem respirou fundo e controlou seus batimentos cardíacos
enquanto pensava no que fazer.
Observando o ambiente, percebeu que a luz azul em toda a sala agora se
reunia em círculos que orbitavam os corpos flutuantes de seus amigos.
Aquela cena fez com que Rubyo se lembrasse dos livros de magia proibida
que leu escondido de Ollaff, em sua biblioteca, e graças a isso, Rubyo
entendeu do que se tratava aquele ritual: Edmund pretendia sugar os
espíritos de seus amigos para, talvez assim, retornar à vida. Apesar da cena
maligna, o jovem regozijou-se, pois, se seus amigos ainda tinham almas para
serem devoradas, é porque ainda estavam vivos.
Escondido atrás da pilastra, Rubyo olhou para os céus em busca de uma
orientação, e por coincidência — ou benção de algum deus —, entendeu
exatamente o que precisava fazer. Desde que entraram naquela cripta,
sempre estiveram envoltos num ambiente molhado, pois a água minava do
teto formando poças gigantescas de água, especialmente naquela sala, que
ficava no nível mais baixo das catacumbas.
Como seus amigos estavam flutuando, não teria risco de afetá-los com
sua magia, então, na pior das hipóteses, Rubyo morreria com Edmund, mas
seus amigos estariam a salvo. Não havia mais nada a perder. Apesar de
conhecer o encantamento, Rubyo precisaria de uma fonte de energia maior
do que o pequeno cristal em seu colar — por sorte, sabia bem onde
encontrar.
Subindo na pilastra caída para se afastar da poça de água, Rubyo
esticou seus dois braços para a frente, na direção de Edmund, assobiando
para chamar sua atenção. A criatura, ao notar sua presença, virou-se sorrindo
em deboche para Rubyo, dando uma piscadela para provocar, enquanto
ficava em pé para ver do que seu herdeiro era capaz. De sua mão esquerda,
Rubyo lançou uma pequena bola de fogo, que acertou o peito de Edmund
sem causar quase nada de efeito.
— Isso é tudo o que tem para mim? Realmente, você não passa de um
bastardo fraco, e não é digno da minha coroa.
— Sim, isso é tudo o que tenho para você, vovô..., mas o mestre Ollaff
tem muito mais!
Edmund, em sua arrogância, não percebeu que, da mão direita de
Rubyo, se formavam algumas fagulhas douradas, enquanto a mão esquerda
produzia a fraca bola de fogo apenas para distraí-lo. As fagulhas douradas
atraíram, em telecinesia, o cajado de Ollaff para a mão de Rubyo, que
habilmente girou o cajado de seu mestre com as duas mãos, cravando-o no
chão inundado abaixo da pilastra, gritando a plenos pulmões: Fulgur!
Em questão de frações de segundos, as raízes úmidas de árvore, que
apontavam no teto, foram criando faíscas azuladas, como se conduzissem
energia vinda da superfície para dentro da cripta, formando um gigantesco
raio, que caiu sobre o cristal do cajado, irradiando a onda de energia elétrica
por toda a catacumba e eletrocutando Edmund, que estava com os pés
fantasmagóricos cobertos por água. Seu corpo espectral se desintegrou no ar
entre as fagulhas de eletricidade num grito de desespero e dor. As luzes do
ritual se apagaram e os sons cessaram, sendo o silêncio interrompido pelo
barulho dos três corpos caindo no chão.
Com a explosão, Rubyo foi lançado para longe, sendo arremessado no
corredor por onde entraram. Seu peito ficou ardendo em chamas elétricas,
que criaram cicatrizes espessas que jamais desapareceriam. Após alguns
momentos e inspirações profundas, Rubyo conseguiu se sentar, enquanto a
consciência voltava e sua vista se acostumava novamente com a escuridão.
Seus olhos ardiam e seu coração batia de maneira descompassada. O jovem
cogitou comer outro ovo de fênix, mas sentia que aquele mal-estar era
momentâneo, e não queria desperdiçar outro daquele item milagroso sem
que houvesse real necessidade.
Passados alguns minutos, respirou fundo e conseguiu se levantar. Seu
coração já se acalmava e, aos poucos, seus pés e mãos paravam de tremer. O
peito ainda ardia, mas era uma dor suportável.
— Flaminus! — gritou Rubyo para a escuridão, notando que apenas
algumas das tochas se acenderam, demonstrando que sua magia ainda estava
muito fraca devido ao desgaste físico.
Com luz o suficiente para enxergar, o jovem correu na direção de seus
amigos o mais rápido que seu corpo permitia, enquanto eles despertavam de
um sono profundo. Rubyo abraçou cada um deles como se não os visse há
vários anos, agradecendo aos deuses por estarem vivos. Ollaff levantou-se
com a ajuda de seu pupilo e procurou seu cajado, mas pouco restara dele
após aquele enorme trovão. Argus levantou-se, guardou suas espadas e
afagou o cabelo do sobrinho, com os olhos marejados de gratidão e orgulho.
Gary tentou se levantar, mas sua perna quebrada latejava de dor, não sendo
possível andar por conta própria.
Rubyo caminhou até a estátua de Edmund, que ficava em cima do
sarcófago e, com um só golpe de sua espada, destruiu a escultura. Em
seguida, o jovem empurrou a pesada tampa do sarcófago com a ajuda de
Argus, liberando uma grande nuvem de poeira e cheiro podre de um corpo
em decomposição há dezenas de anos. Dentro do caixão, jazia os ossos de
Edmund III, vestindo apenas um enorme colar de ouro e rubi, com um anel
dourado ornado por uma pedra negra em sua mão direita.
Rubyo pegou o anel e, quando ia colocá-lo no dedo, Ollaff o impediu,
advertindo-o:
— Meu jovem, não se esqueça do que te falei sobre esse artefato. Ele
vai amplificar tudo o que há de bom e de ruim em você... cuide de seus
pensamentos, sempre!
Assentindo com a cabeça, Rubyo colocou o anel no dedo indicador da
mão direita, pois temia que, se o colocasse na esquerda, poderia atrapalhar o
toque do alaúde, mesmo seu instrumento tendo se reduzido a fragmentos
após o choque de Rubyo contra a parede. Ao encaixar o anel, vislumbrou um
pequeno brilho avermelhado no interior da pedra negra que adornava a joia,
sentindo um estranho arrepio envolver todo o seu corpo. Sentiu sua língua
com um gosto estranho. Seus ouvidos se aguçaram e seus olhos doeram,
mesmo com a pouca claridade vinda das tochas. Rubyo sentiu seus músculos
mais fortes e seus ossos mais endurecidos, como se estivesse pronto para
enfrentar qualquer coisa. A pele em seu peito ainda queimava em dor, mas o
desconforto se tornou mais brando, sentindo as fibras musculares se unirem
com força, acelerando sua recuperação.
Argus recolheu o colar que a ossada de Edmund III ostentava no
sarcófago, guardando em seu bolso e, em seguida, disse com desdém:
— Fique tranquilo vovô, se alguém me perguntar, eu direi que você
lutou bem... para alguém da sua idade.
O general cuspiu na ossada e fechou novamente o sarcófago. Argus
caminhou na direção de Gary, depositando o pesado colar de ouro no bolso
de seu companheiro, dando dois tapinhas no ombro, como se tratasse de um
presente. Gary imaginou que ficaria mais animado com aquele presente, pois
nunca tivera tanto dinheiro em sua posse, mas a forte dor em sua perna o
impedia de esboçar qualquer sorriso. Ollaff buscou o que sobrou de seu
antigo cajado e utilizou a madeira para fazer uma tala para Gary.
— Mestre, você não tem nenhuma magia que possa me ajudar?
Qualquer uma cairia bem... perdi todas as minhas poções na queda, e tenho
cacos de vidro espalhados nas minhas costas e na minha bunda.
Ollaff enfiou o braço em sua bolsa mágica e retirou de lá uma vareta de
madeira enegrecida e bem-acabada, com uns dois palmos humanos de
extensão, atarracada a um pequeno cristal na ponta.
— Gary, estou fraco, e essa varinha mágica não tem o mesmo poder do
meu velho cajado, mas creio que será suficiente para sanar sua dor... o osso,
porém, vai levar alguns dias para colar novamente.
Ollaff virou Gary de bruços e desnudou suas costas, podendo visualizar
centenas de cacos de vidro encravados por todo o dorso e lombar, que
sangravam abundantemente. Ollaff sussurrou algumas palavras e fez alguns
movimentos, emitindo uma luz dourada da varinha mágica, lançando ondas
de energia no corpo de Gary, que sentia a dor reduzindo enquanto os cacos
de vidro subiam flutuando para deixar a pele cicatrizar.
Rubyo ajudou Gary a se levantar, firmando a perna quebrada graças à
tala improvisada. Argus já estava na porta para saída, como um batedor
procurando possíveis perigos, mas nada ouviu além do silêncio mórbido da
cripta e da água que seguia pingando do teto.
O general foi à frente com uma tocha em mãos, seguido por Rubyo, que
vinha logo em seguida servindo de muleta para Gary, e por fim Ollaff,
conjurando magias de cura para o grupo com sua varinha mágica. Ao chegar
no portão de ferro da entrada, Rubyo teve a impressão de ouvir algo acima
das escadas que levavam de volta à antessala do tesouro, mas como ninguém
além dele afirmou ter ouvido algo, não deram atenção. Argus já estava no pé
da escada, mas Rubyo insistiu em ter algo acima, passando o apoio de Gary
para Ollaff, correndo em seguida para alcançar o tio.
Atravessando quase que simultaneamente o alçapão, Rubyo congelou
ao ver a cena e Argus fechou rapidamente a portinhola que dava acesso à
escada abaixo deles, mantendo Gary e Ollaff escondidos lá embaixo. Os dois
nobres de Minalkar estavam cercados por dezenas de orcs, liderados por uma
espécie de capitão do bando; além do orc com a mancha vermelha na testa
que encontraram em Vertiga.
— Quando conversamos na estalagem, vocês me disseram que não
queriam confusão, minalkarianos... — disse o orc de rosto familiar e sotaque
estranho.
— Aí que está o problema, seu merda. Nós conversamos, mas com orc
não se fala; com orc se luta!
Rubyo terminou a frase e tentou desferir um soco no orc de rosto
manchado, mas foi atingido antes por uma pancada na nuca e caiu de
joelhos. Seu tio foi colocado de joelhos ao seu lado, enquanto as mãos de
ambos eram amarradas e suas armas recolhidas com as bainhas.
— Onde está aquele maldito ladino que viaja com vocês?
— Ele morreu. Foi devorado pelo fantasma do rei Edmund III, que jaz
nas profundezas dessas catacumbas amaldiçoadas. — afirmou Argus, sem
hesitar, gritando alto para que Gary e Ollaff entendessem o que estava
acontecendo.
— Eu acho que você está mentindo, humano... — disse o Capitão Orc,
aproximando de Argus o rosto verde acinzentado, cheio de argolas
encravadas e pústulas nojentas.
— Então fique à vontade para entrar lá e procurar, mas pode ir
tranquilo, porque ouvi dizer que esse fantasma não come qualquer coisa. —
respondeu Argus, com um sorriso debochado.
O capitão caiu na provocação e desferiu uma cabeçada no rosto já
fraturado de Argus que, exaurido de forças, desmaiou. Rubyo tentou ficar
em pé para reagir, mas sofreu um outro golpe na nuca, que o jogou com o
rosto no chão.
— A sorte de vocês é que a nossa ordem é para levá-los com vida até a
presença do nosso senhor, Inak... caso contrário, já estariam nas pontas de
nossas lanças. Mas vivos não quer dizer inteiros... — disse o orc de Vertiga
e, em seguida, chutou com força o rosto de Rubyo, fazendo-o desmaiar.
Capítulo 16: Inak Trodar
Rubyo despertou sem saber onde estava, e olhar ao redor não ajudou em
nada. Estava dentro de uma construção rústica com paredes de barro e
pedras escoradas por madeiras. O telhado era feito de palha seca amarrada e
galhos de árvores, e a luz do sol conseguia atravessar o frágil teto. Seu tio
estava amarrado ao seu lado e, assim como ele, com os braços suspensos por
uma corda, presos numa das vigas que sustentava o telhado. Ambos estavam
amarrados a mais de um palmo humano do chão. Rubyo notou que, de seus
pertences, haviam levado apenas sua espada, e por isso agradeceu aos deuses
por não terem levado os ovos de fênix e nem o diário de seu pai, ambos
escondidos em bolsos internos da roupa.
Perto de onde estava, existia uma enorme mancha de sangue fresco no
chão, seguido de um rastro sangrento que ia até a porta de madeira. Era
difícil dizer com certeza, mas não parecia ser seu ou de seu tio, ao avaliar os
ferimentos. Rubyo balançou seu corpo como um pêndulo e conseguiu
alcançar Argus com um chute, acordando-o prontamente.
— Tio, acorde... Fomos pegos pelos orcs. — sussurrou Rubyo.
— Merda, não era para ser assim... — disse Argus, despertando. —
Rubyo, preste atenção, pois não temos muito tempo. Em breve, nos
encontraremos com Inak. Não fale nada, não expresse nenhuma reação e
controle sua ira! Deixe-me falar com ele, para que você não coloque nosso
plano a perder. Concentre-se na luta que está por vir e não esqueça que você
não pode mat…
Argus interrompeu a frase quando aquele mesmo orc — que lhe deu
uma cabeçada — entrou no lugar onde estavam. Junto a ele, outros oito orcs
fortemente armados entraram, segurando lanças e maças. Rubyo percebeu
que um deles estava com a mão envolta em várias ataduras manchadas por
sangue fresco, e imaginou que a poça de sangue no chão fosse daquele orc.
— Bom dia, vermes! Espero que tenham dormido bem, afinal,
gostamos de deixar a carne descansar antes do churrasco. — todos os orcs
riram da piada, junto ao seu capitão. — Vamos levá-los à presença do nosso
senhor, Inak, então comportem-se ou morrerão mais cedo e de maneira mais
dolorosa.
Argus olhou para Rubyo e fez um olhar de pacificação. Eles foram
colocados no chão, mas seguiram com suas mãos amarradas para trás e com
seus pés sendo acorrentados um ao outro. Os dois nobres foram levados para
fora da edificação onde estavam escoltados pela tropa orc, ouvindo-os falar
em seu dialeto próprio, que era bem parecido com o idioma comum, mas
cheio de estalos de língua e entonações estranhas. Do lado de fora, avistaram
um enorme pátio de terra batida, com várias construções parecidas com as
quais estavam antes, dispostas em forma de círculopara cercar o lugar. No
centro do pátio, existia uma construção parecida com as demais, porém bem
maior e mais bem acabada, com telhado feito de barro e ângulos agudos, que
expressavam uma certa beleza rústica; e foi justamente para lá que foram
encaminhados.
Durante o caminho, perceberam que era difícil contar quantas daquelas
cabanas existiam; e mais difícil ainda era contar a quantidade de orcs que
habitavam as redondezas, mas seguramente eram mais de cem. As criaturas
seguiam divididas em pequenos grupos, realizando ações militares,
treinamentos, bebendo, brigando e comendo alguns coelhos que assavam
numa fogueira, perto do centro do pátio. Próximo à fogueira, um grande
buraco envolto numa baixa mureta de pedras mostrava um balde amarrado
na beira, sugerindo que fosse um poço de água.
O prédio central tinha uma curta escada de madeira na frente, de quatro
degraus, mostrando a importância do edifício, que ficava mais alto que os
demais. Antes da porta principal, uma pequena varanda coberta já estava
decorada com grandes cabeças de animais e monstros, que ornamentavam o
local. Logo na primeira sala, uma grande mesa de madeira mal-acabada
servia como apoio para um grande mapa do continente de Cehvambar,
curiosamente mostrando Rurkuk e Minalkar como se fossem apenas uma
região, sob o domínio dos orcs. Apenas Michello era apontada como uma
região não-conquistada, no norte e noroeste do mapa.
Foram levados para uma porta ao fim dessa sala, onde se abriu um salão
repleto de adereços e itens pendurados nas paredes entre as janelas de
madeira e, ao fundo, uma espécie de trono, feito de ossos colados e
amarrados, sustentava um enorme orc sentado nele.
Mesmo sentado, era possível perceber que ele era maior do que os
demais orcs que viram pelo acampamento — o que fazia com que ele
tivesse, pelo menos, dois passos élficos de altura. Sua cabeça calva ainda
mostrava alguns fios de cabelos brancos apontando. Tinha presas como de
javalis, mas eram quatro, duas apontado para cada direção vertical, mesmo
com a boca fechada. Seus ombros eram quase tão largos quanto a porta por
onde entraram, e seus braços tinham a largura das coxas de Rubyo. Vestia
um traje feito de couro e madeira, assim como os demais membros daquele
exército, mas sua armadura era melhor trabalhada, com ossos polidos
travando as amarrações e com detalhes púrpuras garantindo um certo ar de
realeza ao enorme orc. Ao vê-los entrar na sala, Inak disse, com sua voz
grossa e rouca, enquanto as argolas de seu rosto se mexiam:
— General Argus! Que enorme prazer te receber em meus humildes
domínios! Nós não nos encontramos desde quando mesmo? Ah, sim... acho
que foi quando eu estava comendo suas primas no castelo do seu irmão! —
disse o orc, gargalhando.
— Grandioso Inak! Você não mudou absolutamente nada! É um prazer
estarmos aqui nesse chiqueiro que você chama de lar! Pela falta de comida,
cheiro de orc azedo e cabanas militares caindo aos pedaços, creio que
estamos em Hothum, certo? — disse Argus, com um sorriso amistoso no
rosto.
— Devo admitir que o que lhe falta em tamanho, te sobra em bolas e
ousadia. Sim, estão em Hothum, base do meu exército, que comanda as duas
ilhas que fazem parte do meu reino! Ouviu bem? Duas! — disse o orc,
sorrindo de volta.
— Mérito seu, Inak, devo admitir! Sua estratégia em atacar Minalkar
em nosso momento de vulnerabilidade foi algo digno de um verdadeiro
mestre militar.
— Não me venha com bajulações, seu verme! — gritou Inak, mudando
totalmente o tom amigável e provocativo. — Acha que não sei que veio até
aqui para se vingar de mim?!
— Me vingar? — gargalhou Argus de forma tão natural que quase
enganou até seu sobrinho. — Eu não tenho nenhuma pretensão de enfrentá-
lo, até porque estou certo de que jamais venceria o lendário rei dos orcs...,
mas esse rapaz aqui do meu lado facilmente te faria cuspir essas bolas
verdes!
Inak foi pego de surpresa com aquela afirmação, fechando a cara ao
olhar para Rubyo. O enorme orc levantou-se de seu trono e caminhou
lentamente na direção dos dois minalkarianos, que foram colocados de
joelhos no chão de madeira pela tropa que os escoltava.
— Esse seu olhar altivo, nariz fino e empinado... bochechas rosadas...
queixo quadrado... você me faz lembrar da família Edmund. Mas esses
cabelos vermelhos são diferentes de qualquer outro rei nojento de Minalkar.
Me disseram que você carregava aquela espada em sua bainha, não é? —
Inak apontou para uma mesa ao lado, onde estava a Sabedoria. — Essa arma
é uma relíquia real... deixe-me entender, você é o bastardinho, não é? E
como seu tio só quis saber de mulheres e bebidas, caiu no seu colo a missão
de se vingar de mim?! — Inak começou a gargalhar compulsivamente,
apontando para Rubyo.
O jovem fez menção de dizer algo, mas foi rapidamente interrompido
por Argus.
— Que bom que você já entendeu tudo e nos poupou horas de conversa,
Inak. Viemos aqui para negociar, mas seus soldados nos emboscaram pelo
caminho. — disse Argus.
— Negociar?! Acha mesmo que estão em posição de negociar alguma
coisa?! — gritou Inak, irritado, mantendo suas bizarras variações de humor.
— Sim, Inak. Veja bem, nós dois somos os últimos herdeiros de
Minalkar, que você vergonhosamente deixou escapar em sua incursão.
Minalkar jamais será sua de verdade enquanto estivermos vivos, e você sabe
disso.
— Ora, mas isso é muito fácil de resolver! — disse Inak, sacando o
enorme machado que levava na cintura.
— Exatamente, nos matar agora seria algo muito simples..., mas onde
ficaria a honra do lendário guerreiro Inak Trodar, Chefe das tribos e Rei de
Rurkuk? Se você simplesmente nos executar, sem chance de defesa, vai dar
a impressão aos demais líderes que você está ficando velho e fraco... e você
sabe melhor do que eu o que seu povo faz com líderes fracos... — disse
Argus, de modo condescendente.
— Acha mesmo que sou tolo a ponto de cair nessa sua conversinha,
Argus?! Todos aqui sabem que eu mataria vocês facilmente numa luta, mas
não vejo motivos para...
— Não, não, caro Inak... Você está entendendo errado! Repito: Eu não
vim para lutar. A luta seria entre você e meu sobrinho. Eu só vim para
assistir ele quebrando a sua cara. — afirmou Argus, interrompendo o rei orc.
— Ou vai dizer que está com medo de enfrentar um humano de dezesseis
anos que tem a metade do seu peso?
— Medo? MEDO?! Eu sou Inak Trodar, Rei de Rurkuk e de Minalkar,
e não tenho medo de NADA! — gritou o enorme orc, cuspindo incontáveis
perdigotos no rosto dos humanos.
— Foi o que pensei... e é o que seus oficiais também pensam... eu acho.
— disse Argus, apontando com a cabeça para a tropa de orcs que os
escoltava.
Inak virou-se de costas e começou a caminhar de um lado para o outro,
pensativo.
— E qual é o interesse de vocês nisso? Apenas vingança? — perguntou
o Rei dos Orcs, curioso.
— Vingança não enche barriga de ninguém, Inak. Nossa proposta é
simples: se você vencer meu sobrinho, nós dois seremos executados por
você diante de todo o seu exército, garantindo a você toda a honra, glória e
os direitos legítimos sobre Minalkar, além de te garantir mais anos de paz
como Rei de Rurkuk, sem que ninguém te desafie.
— Me parece interessante, de fato... mas, caso ocorra o impossível, e eu
perca a luta para esse franguinho, o que aconteceria?
— Você seguiria Rei de Rurkuk, mas nos devolveria Minalkar,
garantindo dez anos de paz, sem saques ou ataques.
— E por que eu faria isso? Acha que sou burro assim?! Minalkar já é
minha!
— Não seria burrice. Seria a atitude mais sensata possível para um líder
na sua posição. Seu povo passa fome, Inak. Vocês sempre se alimentaram de
nossas fazendas e, esporadicamente, do nosso povo. Mas e agora? Vocês não
têm mais nossos grãos e nem nossas carnes! Seu povo tem se alimentado do
quê? Coelhos? Aves? Não vai me dizer que estão pensando em pescar, não
é?! — disse Argus com tom irônico. — Quanto tempo mais para que esses
recursos se acabem de vez em suas ilhas? E depois, o que você vai fazer?
Atacará Alferius com esses orcs magricelos?
Rubyo olhou admirado para seu tio, compreendendo a engenhosidade
de seu plano. Inak viu que as palavras de Argus trouxeram dúvidas no olhar
de seus homens, e resolveu sentar-se novamente no trono de ossos para
ponderar.
— Dez anos… hummm… levariam dez anos para reerguerem as
fazendas, as cidades e produzir bastante comida de novo... E é claro, um
novo exército, não é?!
— Inak, nós já reconhecemos nossa derrota! Minalkar não é páreo para
Rurkuk! Nosso povo está espalhado por todo o continente. Não temos
comida, posses, terras... Nenhum minalkariano desperdiçaria a chance de
retornar para seu lar pensando em guerras! Queremos apenas sobreviver, e
vocês precisam de nós para sobreviverem também.
— Hum... mas isso só aconteceria se eu perdesse para esse fracote.
Torkag, coloque-o em pé!
O capitão dos orcs, que dera a cabeçada em Argus, respondeu ao
comando do Rei e soltou a corrente dos pés de Rubyo, colocando-o em pé,
mas ainda com as mãos amarradas. Inak levantou-se novamente e caminhou
na direção de Rubyo, analisando-o dos pés à cabeça.
— Você concorda com os termos da nossa aposta, garoto?
— Sim, eu concordo. — disse Rubyo, sem hesitar.
— Hum… vejo que você é muito corajoso para se colocar em risco por
todo o seu povo... você realmente deve ter um coração muito bom. — disse
Inak, parando em frente a Rubyo, olhando em seus olhos com um sorriso. —
E espero que seja tão bom quanto o do seu pai, pois o coração dele foi
delicioso!
Rubyo sentiu todo o seu corpo arder de raiva e tentou soltar as cordas
que prendiam suas mãos, mas Argus gritou seu nome para acalmá-lo.
— Veja só, parece que o filhote já tem garras! — ironizou Inak,
gargalhando. — Deixe-me te mostrar algumas coisas que tenho aqui na
minha sala de troféus, para que você conheça bem quem vai te matar!
Inak caminhou para uma das paredes, onde vários objetos se
encontravam pendurados. Apontando para um deles, o orc disse:
— Essa é a cabeça de um Antigo Homem, um líder tribal que ousou
atravessar as montanhas frias e entrar nas nossas terras. Ele tinha a altura de
uma árvore e arrastava um tronco como arma e, mesmo assim, não teve
chances contra o meu machado. Esse enorme cristal vermelho que emana
calor, — disse Inak, apontando para uma pedra de poder do tamanho de uma
melancia. — Eu roubei de uma caravana que seguiria para Michello e, para
isso, tive que enfrentar um poderoso mago, a quem, é claro, não só matei,
como jantei em seguida. Ah, falando nisso... Argus, por onde anda aquele
velho barbudo que sua família tinha de estimação? Preciso dele para me
ensinar a usar esse troço mágico.
— Infelizmente, o mestre Ollaff já não se encontra mais entre nós. —
simulou Argus, baixando sua cabeça com pesar.
— Tanto faz também, foda-se essa magia. É uma bela decoração em
minha parede. — disse Inak, seguindo apontando para outros troféus. —
Esse arco élfico feito de ébano veio de um comandante da fortaleza de
Assylan, que pensou ser uma boa ideia atravessar o rio Parny para
treinamentos militares... preciso dizer o que aconteceu? E essa coroa aqui,
reconhece? Ela estava na cabeça do seu pai quando a encontrei...
Inak seguiu explicando alguns outros objetos, enquanto caminhava na
direção da mesa onde estava a espada de Rubyo.
— Entre tantas relíquias, a minha mais nova é essa belíssima espada,
que não pendurei em minha parede porque ainda não matei o dono dela... E
também porque não sou idiota de colocar minha mão em seu cabo, assim
como fez o meu sobrinho, que perdeu os dedos por não saber que essa
maldita espada mágica arranca os dedos de quem não tem o sangue de
Edmund. Mas eu sei, porque não sou burro! — disse Inak, olhando com
desagrado para o orc com a mão enfaixada.
Rubyo não conseguiu disfarçar a cara de surpresa ao descobrir aquilo
sobre sua espada; e para tentar disfarçar seu espanto, resolveu falar:
— Você acha que demonstrando essas velharias vai conseguir me
assustar? Eu não preciso nem dessa espada para arrancar esses dentes
amarelados que não cabem em sua boca!
Inak virou-se surpreso para Rubyo, mas instigado pela provocação.
— Pois, que assim seja. Que todas as tribos tenham ciência do meu
acordo com a família real de Minalkar, e esse tratado durará enquanto eu
respirar! — disse Inak, em alto tom de voz para que todos os orcs ouvissem,
em especial os que espiavam pelas janelas, do lado de fora. — Agora,
desamarrem esses idiotas. O cabeça de fogo deve ser levado para o pátio, e o
general vai assistir aqui, da minha varanda, o seu sobrinho ser destroçado
pelo meu machado!
— Espere, Inak... não vai dar nenhuma arma para ele? — perguntou
Argus, preocupado.
— Claro que não! Ele acabou de dizer que não precisa nem da espada
dele para me vencer, então por que precisaria de uma espada minha?
Capítulo 17: O Duelo
Rubyo foi levado amarrado para o centro do pátio, próximo de onde se
encontrava a grande fogueira e o poço que viram antes. Ao olhar para trás,
viu seu tio em pé na varanda do prédio onde estava, ladeado por um soldado
orc, tentando disfarçar a cara de preocupação.
Os orcs jogaram Rubyo no chão de terra e desamarraram suas mãos. O
jovem, instintivamente, procurou sua espada nas costas, mas obviamente não
encontrou nada. Ao conferir seu pescoço, Rubyo notou que não haviam
retirado seu colar mágico, porém achou melhor não utilizar magia contra
Inak, pois isso poderia desfazer o trato. Ele estava sem armas e sem poder
usar magia, mas o anel negro que carregava na mão direita não o fazia se
sentir tão indefeso.
O sol do meio-dia queimava a nuca de Rubyo, que torcia para que as
densas nuvens que estavam no céu cobrissem logo a luz solar para apaziguar
o calor que fazia naquele pátio. De repente, Rubyo notou que vários
soldados abriram uma enorme roda em volta deles, abrangendo a sala de
troféus, a fogueira e o poço, para garantir que Rubyo não fugisse. Os orcs
começaram a tocar os tambores que carregavam em seu colo, criando uma
marcha infernal enquanto Inak caminhava, do prédio onde estavam, em sua
direção. O enorme orc havia marcado seu rosto com tinta vermelha e verde,
fazendo uma horrenda pintura de guerra. Em suas mãos, carregava seu
enorme machado na direita e um outro menor, de apenas um gume, na
esquerda.
O coração de Rubyo batia forte, no mesmo ritmo que os tambores dos
orcs, que faziam o chão e a perna do jovem tremer. Suas mãos transpiravam
a ponto de pingar, contrastando com a boca extremamente seca, enquanto
sua respiração ficava mais curta e acelerada. Ao se aproximar, Inak olhou
para Rubyo, deu um sorriso confiante e um grito bem alto para intimidar o
jovem. Rubyo olhava fixamente para orc; e ao pensar em tudo o que aquele
maldito fez com sua família, o ódio do jovem rei de Minalkar falou mais alto
que qualquer medo, trazendo uma estranha paz para seu coração. Um som
estridente de uma corneta tocou e os tambores pararam, indicando o início
do duelo.
Rubyo tirou a capa que cobria sua armadura pela primeira vez desde
que saiu de casa, mostrando orgulhosamente as cores de Minalkar. Um fino
sereno começou a molhar seu corpo, fazendo as cores brilharem levemente.
Inak fez o primeiro movimento, girando o grande machado de cima para
baixo na direção de Rubyo que, calculadamente, deu um pequeno passo para
trás, deixando a lâmina atingir secamente o chão, como uma guilhotina.
Aproveitando o movimento, Rubyo abaixou-se, apoiou a mão esquerda no
cabo de madeira do machado preso ao chão e acertou um chute alto, de
baixo para cima, como um coice no rosto de Inak, que largou a arma e deu
um passo para trás, com o lábio cortado pela própria presa.
Inak aproveitou o passo para trás e usou o impulso para avançar contra
Rubyo, usando seu machado menor para cortar o ar em várias direções, mas
o jovem continuava esquivando-se, dando passos para trás e para o lado,
girando o corpo em movimentos perfeitamente coordenados. O orc percebeu
que não acertaria facilmente seu inimigo, então fingiu desistir do ataque com
a arma e preparou um soco com a mão livre, de maneira coreografada.
Rubyo se concentrou no soco que estava por vir, caindo na armadilha de
Inak e esquecendo-se por apenas um segundo da machadinha, sendo tempo
suficiente para Inak acertá-lo com um corte na diagonal, fazendo um talho
em seu peito e estilhaçando a armadura de madeira e couro feita por
Rosalind.
O Rei de Rurkuk percebeu que Rubyo se assustara com o golpe que
havia sofrido, e aproveitou a distração do jovem para acertá-lo com um
chute na boca do estômago, arremessando-o contra o chão, alguns passos
élficos para trás, onde ficou se retorcendo de dor. Inak, certo da vitória,
voltou para buscar seu grande machado que estava preso ao chão, mas sem
tirar os olhos de seu inimigo que seguia caído. Quão logo pegou sua arma,
Inak correu em disparada para cima de Rubyo que, ao notar a aproximação,
já estava com as mãos cheias de terra. Quando o orc tentou novamente
acertá-lo com o grande machado, Rubyo rolou para o lado para desviar e
levantou-se rapidamente, jogando terra nos olhos do grandalhão.
Inak gritou de dor e de ódio, girando as armas no ar sem enxergar nada.
Rubyo fazia barulhos e pisava pesadamente no chão para atrair o inimigo
pelo som, fazendo Inak correr atrás dele enfurecidamente, mesmo sem ver
nada. O jovem correu na direção da fogueira, com o inimigo em seu encalço
e, ao se aproximar, saltou a enorme fogueira como um gato, e só esperou
para que Inak atravessasse as chamas sem enxergá-las. O plano era
excelente, porém os soldados orcs gritaram e alertaram seu líder sobre o
perigo, fazendo-o parar de correr a menos de um passo élfico das chamas.
Com seu plano frustrado, Rubyo correu dando a volta na fogueira e
disparou uma voadora nas costas de Inak, para tentar empurrá-lo sobre as
brasas, mas o experiente guerreiro orc percebeu o movimento do jovem,
aparando seu ataque no último segundo, utilizando seu enorme antebraço
para arremessar Rubyo para longe.
Inak aproveitou a distância do adversário e limpou seus olhos, voltando
a enxergar quase perfeitamente. Ao recuperar a visão, viu Rubyo em pé, a
uns dez passos élficos de onde estava, parado em posição de defesa,
esperando o movimento adversário. Cada vez mais enfurecido, Inak correu
na direção de seu inimigo, mas resolveu surpreendê-lo com um ataque
duplo, lançando seu machado menor contra o jovem, enquanto usava o
maior para golpeá-lo de perto. Rubyo conseguiu desviar do projétil,
deixando a machadinha cair ao lado do poço, atrás dele, mas seu movimento
custou segundos preciosos para que pudesse se desviar de Inak que, embora
tenha errado o golpe com o grande machado, conseguiu acertar uma forte
cotovelada no rosto de Rubyo, jogando-o também para perto do poço.
O jovem sentiu seu rosto inchar na mesma hora, enquanto a sobrancelha
direita pesava sobre seu olho e o gosto de sangue invadia a boca. Tentando
se levantar, Rubyo viu Inak caminhando lentamente em sua direção,
respirando fundo para recuperar o fôlego após a corrida. O Rei dos Orcs
carregava o imenso machado com as duas mãos, confiante de que o jovem
humano não se levantaria depois da cotovelada. Porém, Rubyo não só se
levantou, mas também se armou com a machadinha caída ao seu lado, e
partiu para cima de Inak.
Nesse exato momento, começou a chover pesado e um enorme trovão
calou a plateia, que gritava o nome do Rei dos Orcs sem parar. Inak distraiu-
se com o barulho estrondoso e com a forte luz do raio que caiu na floresta ali
perto, não tendo tempo para defender-se do ataque de Rubyo, que cravou a
machadinha em seu ombro direito, fazendo com que o orc largasse o grande
machado no chão.
Apesar da dor em seu ombro, Inak aproveitou a curta distância de
Rubyo e acertou uma cabeçada no jovem, que, mesmo tonto pela pancada,
girou o corpo no ar com uma cambalhota, apoiando as mãos no chão, e
contra golpeou o orc com as duas pernas, novamente como se fosse um
coice, empurrando Inak para trás. Aproveitando o movimento, Rubyo deu
uma cambalhota na direção contrária e girou seu corpo no próprio eixo,
virando-se novamente de frente para o inimigo, de joelhos no chão.
O Rei dos Orcs, surpreendido pelo movimento do humano,
desequilibrou-se e tropeçou numa pedra atrás de seu pé, caindo sem defesa
para trás. Rubyo tentou se levantar para aproveitar o momento de
vulnerabilidade do oponente, mas sentiu uma forte tontura pela cabeçada que
sofrera. Sua visão ficou avermelhada e ele percebeu um corte na testa que
fazia o sangue escorrer sobre seus olhos.
Inak levantou-se o mais rápido que pôde e viu Rubyo agachado,
tentando limpar o sangue com terra de seus olhos. O orc então arrancou a
machadinha que estava encravada em seu ombro, partindo para cima de seu
inimigo. Rubyo, com a visão parcialmente melhor, esperou até o último
segundo do movimento de Inak para usar as suas pernas fletidas e realizar
um grande salto, fazendo com que Inak passasse por baixo de si e golpeasse
o ar com o machado na altura da cintura, perdendo novamente o equilíbrio
ao não encontrar Rubyo. A velocidade do orc era tanta que não conseguiu
conter suas pernas, tropeçando novamente e batendo a cabeça pesadamente
contra o muro de pedra do poço.
Rubyo pousou de seu salto, girou sobre os calcanhares e pegou o
machado grande de Inak, que estava caído ali perto. O jovem correu o mais
rápido que pôde com aquele machado pesado em mãos e se aproximou de
Inak, já chutando a nuca do orc, que tentava se levantar após a cabeçada que
dera nas pedras. Pelo chute na nuca, Inak deu outra cabeçada na mureta,
quebrando duas de suas presas, ficando semi-inconsciente pela dor
lancinante que sentia. Rubyo não poupou o inimigo caído e tampouco parou
de chutar a cabeça e as costelas do orc que, à essa altura, já tinha perdido as
últimas presas e todas as argolas antes penduradas em seu rosto, piorando
ainda mais os rasgos e o sangramento.
— Chega... — tentou dizer Inak, entre um chute e outro. — Já chega!
O jovem, ensandecido, não parava de chutar a cabeça do inimigo
indefeso, mas Argus gritou seu nome e o jovem parou imediatamente. A
multidão de soldados orcs permanecia muda, descrente do que seus olhos
viam. Inak seguia no chão, com a cabeça afundada entre os pedaços de pedra
da mureta, tentando se levantar, enquanto Rubyo, com o grande machado
nas mãos e o rosto sangrando, olhava fixamente para ele.
— Já chega, garoto, você venceu! Maldito seja, Argus! Não me disse
que seu sobrinho era um demônio! — gritou Inak, com raiva, respirando
com dificuldade e tentando não se engasgar com o próprio sangue. — É
aquela maldita terra que você quer? Pois a pegue, então! É sua por dez anos,
eu prometo!
Inak conseguiu virar seu corpo para a frente e apoiou as costas na
mureta do poço, sem forças para se levantar. Rubyo limpou mais um pouco
do sangue escorrendo de sua testa e, com a boca inchada, tentou sorrir para
seu tio, que estava sendo solto pelo orc ao seu lado.
— Você é realmente um rei guerreiro, garoto... e todo rei merece uma
coroa. Acho que você gostaria que seu pai lhe entregasse sua coroa, certo?
— Inak cuspiu mais um dente e olhou para Rubyo. — Tenho uma surpresa
para você. Seu pai está aqui conosco, e ele mesmo vai te entregar a coroa de
Minalkar, você merece! Torkag, traga o rei Edmund VI para entregar a coroa
ao seu filho!
Rubyo não conseguiu conter a emoção e começou a chorar com a
simples ideia de ver seu pai saindo da porta atrás de seu tio, da sala de
troféus. Argus olhou para trás, incrédulo, vendo Torkag saindo dela e,
seguido dele, um orc carregando uma vara longa de madeira, onde um
esqueleto estava pendurado, com os ossos anatomicamente amarrados,
usando a coroa de Minalkar no crânio, mostrando os ossos de suas costelas
triturados na parte da frente, onde, um dia, bateu o coração do último rei de
Minalkar.
— O que foi garoto? Não vai correr para abraçar seu papai? —
gargalhou Inak, com o pouco ar que ainda entrava em seus pulmões.
Rubyo sentiu um forte formigamento na mão direita, onde usava o anel
negro, e seu corpo todo passou a tremer e ferver com uma raiva que jamais
sentira antes. Seu coração disparou e começou a bater na garganta. A boca,
mesmo cheia de sangue, parecia seca. Suas mãos sujas de terra, sangue e
suor, pressionavam o cabo do enorme machado como se fosse parti-lo. Sua
respiração ficou pesada e seu campo de visão foi se escurecendo nas bordas,
enxergando apenas, no centro dela, o riso debochado de Inak.
Argus gritou para seu sobrinho se acalmar, mas, dessa vez, Rubyo não
ouviu, ou simplesmente não conseguiu se segurar. Quando percebeu, Rubyo
já havia cravado o machado no meio da testa de Inak, partindo sua cabeça
em duas partes, como um melão maduro.
O silêncio que os soldados de Rurkuk faziam — que, incrédulos,
assistiam a cena — foi interrompido por gritos de ódio e de luta entre eles.
Rubyo se lembrou das palavras de Argus, que havia lhe explicado que, assim
que um líder orc morre, os aspirantes já iniciam lutas entre si para ver quem
será o novo rei. Ciente do erro que cometera, e já sem forças, Rubyo limitou-
se a sentar na borda do poço, ao lado do corpo inerte de Inak. Ao procurar
seu tio, viu Argus correndo para dentro do prédio e sair pouco depois com
uma das cortinas da sala de troféus, envolvendo alguma coisa, além de trazer
a Sabedoria em mãos. O general pegou a coroa caída ao lado da ossada de
Edmund VI e correu na direção de Rubyo.
Assim que Argus chegou ao lado do sobrinho, os gritos entre os orcs se
calaram e, mecanicamente, abriram caminho na multidão para que passasse
seu novo líder, Torkag, o ex-capitão de Inak. Antes que Argus pudesse dizer
algo, os orcs correram e cercaram os dois no poço, com lanças e espadas. O
novo líder pediu silêncio e disse para os minalkarianos:
— O acordo era bem claro, seus idiotas, e teria validade enquanto Inak
respirasse! E ele parece já não respirar mais... — disse Torkag, sorrindo. —
Eu não sou tão orgulhoso quanto ele, então foda-se o acordo que tinham.
Convido vocês apenas para o jantar. Ou no caso, para ser o nosso jantar.
Todos os orcs caíram na gargalhada. Eram mais de uma centena deles,
fortemente armados com lanças, arcos e maças,não teria como apenas os
dois lutar contra todos. Argus colocou a Sabedoria no colo de Rubyo, que
seguia sentado na borda, esbaforido, e, em seguida, entregou-lhe a coroa.
Olhando nos olhos de Rubyo, sem se importar com os inimigos em volta, o
general disse:
— Ah, meu tolo e amado sobrinho... sangue do meu sangue e semente
de meu irmão. Obrigado por me fazer ser uma pessoa melhor, para que você
fosse o melhor possível. Não me decepcione, tome de volta o que é seu!
Rubyo olhou para seu tio com uma estranha sensação de adeus, sem
entender o que estava acontecendo, ainda exaurido pela luta. Argus jogou
para cima o tecido que levava em seu braço, revelando, debaixo dele, o
enorme cristal vermelho que estava na parede de Inak. Os orcs correram para
cima dele com as armas em punho, mas não havia mais tempo.
Argus empurrou Rubyo para dentro do abismo do poço, levantou o
cristal e gritou com todas as suas forças: Flaminus!
Capítulo 18: O Caminho de Volta
— Rubyo?!... Rubyo, você está bem?
Uma voz chamava, de longe, o nome de Rubyo; aos poucos, ela o
despertava de um sono profundo. Seu corpo inteiro doía como se tivesse sido
pisoteado por uma manada de centauros. O frio em que estava envolto só
fazia a dor piorar, mantendo a musculatura tensa, tanto pela inflamação,
quanto pelos tremores. Alguns fragmentos de lembranças se juntavam em
memórias recentes e confusas, quase sem sentido. Ao abrir os olhos, Rubyo
viu uma forte luz vinda do fim do túnel que existia no céu escuro, e ele
perguntou a si mesmo se havia morrido. Outra vez, a voz chamou-lhe — e
no fim do túnel, reconheceu um rosto familiar... era a cara de fuinha de Gary.
Com dificuldade, Rubyo levantou-se e olhou ao redor; estava em uma
caverna úmida e mal iluminada, caído na margem de um rio subterrâneo, que
corria lentamente de uma escuridão para outra, formando um enorme lago.
Havia pouca luz, vinda exclusivamente da abertura no teto, de onde Gary o
chamava. Estava sozinho e confuso, com sua espada e coroa caídas ali perto.
Levou alguns minutos para sua cabeça parar de girar e conseguir se
lembrar, ainda que em partes, do que aconteceu. Lembrava-se de Argus
empurrando-o para dentro do poço e, enquanto caía, enxergou uma enorme
onda de fogo cobrir os céus, até que afundou em águas escuras e frias.
Mais uma vez, a voz de Gary o chamou do topo do poço e, em seguida,
uma corda desceu, seguida da ordem de se segurar nela. Rubyo percebeu a
falta de sua capa enquanto apalpava o corpo para conferir se havia quebrado
algum osso. Guardou sua espada, encaixou a coroa em seu braço e agarrou-
se na corda, sendo içado para cima. Ao chegar no topo, viu que as bordas de
pedra do poço já não existiam mais, assim como as casas ao redor do pátio.
Hothum havia sido transformado num enorme deserto de cinzas.
Gary e Ollaff respiravam fundo, cansados pelo esforço de subir Rubyo
pela corda, mas, ainda ofegantes, abraçaram, com todas as suas forças, o
jovem que milagrosamente estava vivo. Rubyo permitiu ser abraçado, apesar
da dor em seu corpo, olhando incrédulo para o cenário de destruição ao seu
redor. Não existia nenhum sinal de vida, apenas cinzas misturadas com a
terra vermelha, enlameada pela forte chuva que caía.
— Mestre... onde está meu tio? — perguntou Rubyo com a voz
embargada, pois já sabia a resposta.
— Eu sinto muito, meu senhor. Ele se sacrificou para derrotar todos
aqueles orcs... Nós estávamos escondidos na floresta, observando seu duelo
com Inak, e testemunhamos quando Argus te jogou no poço e explodiu
aquele enorme cristal de fogo, com magia.
— Mas, eu não entendo... meu tio não sabia usar magia... não pode ser,
mestre... — disse Rubyo, já com os olhos cheios de lágrimas.
— Sim, meu Rei, ele sabia sim. Apesar de nunca usar, ele foi letrado
em magia durante a infância, assim como o senhor. Ninguém suportaria o
poder daquele cristal sozinho, e ele sabia disso quando se sacrificou por
você.
Rubyo se levantou e, chorando desesperadamente, começou a procurar,
em volta, algum vestígio ou fragmento do corpo de Argus ou da ossada de
seu pai, mas não via nada além de cinzas. Poucos corpos carbonizados ainda
ardiam em brasas, mas todos mais distantes do epicentro da explosão, e pelas
características dos crânios, eram claramente de orcs.
— Não tenho nem mesmo uma parte deles para sepultar e dar o fim
digno que eles mereciam! — disse Rubyo, entre um soluço e outro, caindo
de joelhos no chão.
— Não existe fim mais digno do que eles tiveram, meu senhor. Eles
deram a vida por seu povo e por sua família e, assim, viveram e morreram
por Minalkar! Não existe nada mais nobre do que dar a sua vida por quem
se ama! — respondeu Ollaff, ajoelhando-se ao lado de Rubyo e abraçando-o
novamente.
Gary, nervoso com a situação e sem saber como agir, enrolou a corda
que usaram e entregou de volta para Ollaff, que guardou em sua bolsa
mágica ao se levantar. O mago estendeu o braço para Rubyo e disse:
— Sei de sua dor, meu Rei, mas temos que deixar nosso luto para mais
tarde. Em breve, algumas hordas de orcs chegarão de Lukum para investigar
a explosão... e temos que estar bem longe daqui.
Rubyo aceitou a mão de seu mestre e colocou-se em pé. Entregou a
coroa para Ollaff, que também guardou em sua bolsa mágica, trocando com
o jovem por uma poção avermelhada que trazia em seu inventário. Gary deu
um abraço sem jeito em Rubyo, que aproveitou o gesto para dar apoio ao
amigo, que seguia caminhando com muita dificuldade devido à perna
quebrada.
— Em breve vai anoitecer, Rubyo, e orcs enxergam melhor à noite do
que nós. Vamos voltar para a floresta e lá decidimos o que fazer.
Os três seguiram em silêncio até a floresta a leste de onde estavam,
caminhando o mais rápido que a perna de Gary permitia. Rubyo olhou uma
vez mais para trás e, em pensamento, agradeceu ao seu tio e ao seu pai pelo
sacrifício de ambos, jurando, para si, mesmo que não seria em vão.
Chegaram na floresta ainda com o restinho da luz do dia, enquanto as
últimas gotas de chuva lavavam o céu. A floresta que separava os reinos de
Rurkuk e de Minalkar era bastante densa e fechada, cheia de morros e
árvores caídas que atrapalhavam a passagem e deixava o caminho mais
confuso; Ollaff o iluminava com sua varinha mágica, porém sua luz nem se
comparava à luminosidade de uma tocha ou de seu antigo cajado. Após
algumas horas, chegaram ao rio que cortava a floresta no meio, e Gary
reparou que as águas estavam bem mais altas e agitadas do que quando
passaram por ali mais cedo, provavelmente pela forte chuva que caiu.
Ollaff explicou que, mais ao sul, existia uma ponte que cruzava o rio,
mas que com certeza estaria sob o domínio de orcs. Rubyo resolveu
atravessar por ali mesmo, nadando até o outro lado enquanto carregava a
corda de seu mestre. Com ela, o jovem ajudou seus dois amigos a
atravessarem o rio sem serem levados pela correnteza. Com o cansaço da
caminhada e da travessia, Gary pediu para que se sentassem e descansassem
um pouco, o que foi aceito pelos amigos. Ollaff orientou que se afastassem
um pouco mais do rio para montar o acampamento, pelo risco de as águas
subirem ainda mais.
Rubyo acendeu uma pequena fogueira e todos beberam bastante água,
na intenção de tapear a fome que fazia seus estômagos roncarem bem alto. A
noite estava muito escura e o extremo cansaço não permitia que caçassem
nada para o jantar.
— Eu nunca senti tanta saudade do Bokko quanto agora... não só pela
companhia do meu velho amigo, mas também pelos nossos equipamentos
que ele levava; e por essa minha maldita perna que não para de doer a cada
passo... — lamentou Gary, abraçando a si mesmo pelo frio, enquanto olhava
as chamas da fogueira.
Rubyo seguia em silêncio, quebrando alguns gravetos finos e jogando-
os nas brasas. Ollaff percebeu o clima de desânimo dos jovens, tendo o luto
agravado pelo frio e pela fome, então tentou trazer de volta o foco para a
equipe.
— Precisamos traçar um plano de como voltaremos para casa, da
maneira mais rápida e segura possível. — afirmou o ancião.
— Se vocês desejam ir mais rapidamente, é melhor me deixar por aqui
e seguirem sem mim, pois não consigo andar mais rápido do que...
— Ninguém mais fica para trás! — disse Rubyo, rispidamente,
voltando a chorar. — Nós perdemos coisas demais nessa viagem, já chega!
Ollaff puxou um mapa de sua bolsa mágica e, ao abri-lo, Gary percebeu
que nele brilhava um pequeno ponto azulado no meio da floresta de
Minalkar.
— Esse mapa mágico mostra exatamente onde estamos, em qualquer
lugar que estivermos, e como podem ver, estamos bem aqui, nesse ponto
azul. — explicou Ollaff, mostrando o mapa à luz da fogueira. — Se
caminharmos em linha reta, cruzando as antigas fazendas e campos de
Minalkar, chegaremos em Vertiga em pouco mais de dois dias, nessa
velocidade.
Gary tentou recolher um pouco a perna, pela vergonha, mas a dor e a
tala impediam que ele a mexesse.
— Cruzando os campos ficaremos expostos, mestre. E se formos por
dentro da floresta, margeando o Rio Parny? — perguntou Rubyo, enxugando
as lágrimas e o nariz em sua roupa.
— Por dentro da floresta não há como saber. O caminho parece
acidentado, acredito que levaríamos por volta de quatro dias, mas estaríamos
mais seguros.
Rubyo notou o olhar de preocupação de Gary ao ouvir a possibilidade
de continuar caminhando naquela difícil floresta, estando com a perna
naquelas condições, e tomou uma decisão:
— Vamos pelas fazendas. Talvez encontremos comida e refúgio no
caminho.
Sem discutir, Gary e Ollaff concordaram. O mestre guardou seu mapa e
se ofereceu para ficar de vigia no primeiro turno da noite, mas Rubyo
insistiu que ficaria a noite toda de guarda, pois não conseguiria mesmo
dormir. O jovem rei de Minalkar passou a noite toda alimentando a fogueira,
com a espada em seu colo, olhando para o breu da noite sem luar e sem
estrelas.
No início da manhã, Rubyo improvisou uma lança utilizando um galho
comprido e, com ele, conseguiu capturar algumas trutas no rio, que já
apaziguava suas águas. Os peixes no desjejum levantaram a moral da equipe,
uma vez que estavam novamente secos e alimentados. Retomaram a jornada
sentido sudeste, fugindo das áreas de mata fechada da floresta de Minalkar,
alcançando, em poucas horas, os antigos campos das fazendas.
O cenário era lamentável. Rubyo lembrava-se de ver ilustrações sobre
os belíssimos campos de cultivo e de criação de gado de Minalkar, mas em
nada se parecia com aquelas planícies secas e ruínas de antigas fazendas e
moinhos abandonados. Quem não conhecia a história daquele lugar jamais
imaginaria que, um dia, aqueles campos já foram considerados o celeiro do
continente.
Seguiram seu rumo pelas antigas estradas abandonadas, encontrando
pelo caminho apenas destruição e lembranças. Viam restos de pessoas
enforcadas e diversas gaiolas com corpos decompostos dentro, esquecidos
pelos orcs e pelo tempo. O caminho era repleto de pequenas construções em
ruínas, destruídas e queimadas pela fúria da marcha de Inak. Um alto capim
crescia nas terras férteis, onde milho e trigo já foram cultivados ao extremo.
Algumas pás de moinhos ainda tentavam girar com o vento, mas os rasgos
não permitiam força o suficiente.
Perto de uma das pequenas vilas e fazendas que atravessavam,
enxergaram uma pequena tropa de orcs vindo na direção deles,
provavelmente com destino a Hothum. A mão de Rubyo coçou sobre o cabo
da espada para sacá-la e enfrentar as criaturas, e percebeu que sua sede de
vingança não havia sido saciada com a morte de Inak, porém, a preocupação
com a vulnerabilidade de Gary falou mais alto. Os três amigos se
esconderam num curral abandonado, repleto de moscas, fezes e mortos,
enquanto a horda passava.
O sol já estava a pino quando, do alto de uma colina, Gary avistou, de
longe, um cervo macho que ostentava enormes chifres enquanto xeretava o
solo batido em busca de alguma pastagem boa. Ao sinalizar a presa para os
amigos, eles decidiram que caçar não era mais uma questão de escolha, mas
de sobrevivência.
— Mestre, consegue prendê-lo no chão? — perguntou Rubyo,
apontando para o animal que estava a uns cem passos élficos de distância.
Ollaff respondeu já sussurrando algumas palavras mágicas, enquanto se
ajoelhava e colocava uma das mãos no chão, fazendo com que galhos e cipós
surgissem da terra e prendessem os pés do cervo, imobilizando o animal.
Rubyo correu para reduzir a distância, enquanto dizia algumas palavras que
fizeram com que pedaços de terra flutuassem ao redor dele e se unissem
numa lança mágica de terra, a qual arremessou contra o animal indefeso.
Com o projétil prestes a acertar o animal, uma forte rajada de vento
afastou a lança, fazendo com que o jovem errasse o golpe. O grito irado de
Rubyo por errar foi suprimido por um som alto e agudo vindo de cima, por
entre as densas nuvens de chuva. Olhando contra o sol do dia nublado,
enxergaram a silhueta de um enorme grifo, que batera suas asas para desviar
a lança mágica de Rubyo. A fera gritou novamente com sua enorme cabeça
de águia, descendo para agarrar o cervo com suas patas dianteiras, e levando
o animal para longe, rompendo as amarras naturais de Ollaff. Rubyo não se
sentia forte o bastante para enfrentar uma criatura daquelas — sentimento
que, pelo olhar dos amigos, era compartilhado por eles.
De repente, três flechas cruzaram o céu e acertaram em cheio o grifo
que, ao sentir os projéteis, soltou o cervo do alto. Ao ouvir o som do corpo
do animal se chocando contra o chão, Gary lembrou-se de sua própria queda
e a perna pareceu doer ainda mais. Ainda no alto, o grifo fez um giro em seu
voo, rumando para a colina ao lado de onde Rubyo e seus amigos estavam,
sendo aquele, o local de onde partiram as flechas. A criatura alada desceu
em rasante, fazendo com que as cinco pessoas que se escondiam lá
corressem em direção ao grupo de Rubyo, para fugir da investida do
monstro.
Percebendo que tinham um inimigo em comum, Rubyo se animou e
novamente levantou suas mãos com as palmas para cima, enquanto
sussurrava algumas palavras, criando outras três lanças mágicas de terra ao
seu redor, disparando-as contra o grifo. Gary, mesmo com a perna ruim,
habilmente subiu na copa da árvore mais próxima, escondendo-se do campo
de visão da criatura e, também, daquelas pessoas desconhecidas. Rubyo,
desconcentrado, errou todos os seus ataques, mas Ollaff não cometeu o
mesmo erro, arremessando uma potente bola de fogo contra o peito da fera.
Ao perceberem o sucesso do ataque de Ollaff, os três arqueiros que
faziam parte daquele grupo pararam de modo sincronizado, dobraram um de
seus joelhos, e dispararam outra rajada de flechas contra o grifo, que, dessa
vez, utilizou seu rabo de leão para rebater os projéteis, mesmo sentindo as
penas de seu peito arderem em chamas. Rubyo, cansado, mas sem desistir,
lançou mais uma lança mágica, que finalmente acertou e atravessou uma das
asas do inimigo, derrubando a criatura no chão.
Os outros dois membros do grupo de desconhecidos portavam,
respectivamente, um enorme martelo de guerra e, o outro, uma longa espada
de duas mãos. Ambos correram na direção do grifo que, ao perceber a
movimentação, deu um agudo grito de águia na direção deles, que nada
puderam fazer além de soltar suas armas para cobrir seus ouvidos com as
mãos.
Ollaff novamente se abaixou, dessa vez com as duas mãos no chão,
enquanto conjurava sua magia. Da terra, criaram-se cipós ao lado do grifo,
que teve seu bico envolto pelas amarras, impedindo-o de gritar. Quão logo o
monstro foi silenciado, o menor entre aqueles guerreiros levantou-se
empunhando o martelo e, com um salto, desceu um pesado golpe contra a
testa do animal. Em seguida, seu companheiro desferiu um corte preciso
contra o pescoço da criatura, utilizando sua longa espada para decapitar a
fera.
Com a criatura morta, a atenção dos grupos se voltou um para o outro.
Rubyo e Ollaff ainda estavam com suas mãos e olhos brilhando, mostrando a
magia emanando de seus corpos, como forma de intimidação, enquanto
Gary, de cima da árvore, se equilibrava com apenas uma das mãos, pois,
com a outra, segurava suas últimas três adagas de arremesso. Um dos três
arqueiros, notando a postura defensiva dos desconhecidos, colocou o arco no
chão e levantou as mãos em sinal de paz, enquanto se aproximava do grupo
de Rubyo:
— Boa tarde, amigos, obrigado pela ajuda inesperada! Estamos
caçando esse grifo há dias, desde que ele matou um grupo de bardos nos
campos de Flarys. Meu nome é Odyno, sou o líder da Guilda dos Caçadores
de Cehvambar. Vocês têm talento para a caça, deveriam cogitar seguir
carreira conosco! — disse o caçador, olhando subitamente para Ollaff, com
um sorriso simpático. — Nunca é tarde para se tornar um caçador.
Odyno era um homem de média estatura, mas bem forte. Seus braços
pareciam desejar um machado ou uma espada, mas jamais um arco como o
que usava. Tinha uma longa barba castanha clara que ia quase até a altura do
peito, mesma cor de seu cabelo engordurado, penteado para a direita. Seu
rosto era quadrado, margeado por grossas sobrancelhas, que se uniam no
meio do caminho e se tornavam uma só. Vestia um casaco cinza com o
capuz abaixado, cobrindo suas roupas de couro curtido, e ornando
braçadeiras e caneleiras de madeira, sendo vestimentas muito parecidas com
as que os demais caçadores usavam; todos ostentavam o brasão de um
tridente virado para baixo, atravessando uma caveira.
— Boa tarde, senhores, é um prazer conhecer membros dessa distinta
guilda. Sou Oseah, professor aposentado de magia! — disse Ollaff, sem
titubear, enquanto baixava sua varinha. — Esse é meu neto, John, o qual
venho ensinando as artes mágicas. Aquele jovem escondido na árvore é
Gary, seu melhor amigo.
— Foi uma benção encontrá-los em tão boa hora, meu senhor! É
sempre um prazer conhecer um adepto da magia. Temos uma maga que viaja
conosco, mas ela preferiu ficar no acampamento nesta manhã. É uma pena
que tenham se desencontrado. Essa é Indyra, minha esposa e mestre de caça.
— Odyno apontou para uma mulher loira e magra ao seu lado, que estava
guardando o arco em seu dorso. — Esse elfo com arco longo é nosso amigo
Gill, aquele baixinho com o martelo é Tinno, e aquele grandalhão limpando
a espada é Karl.
— É vergonhoso dizer, mas acho que, sem a ajuda de vocês, não
teríamos vencido o monstro. Muito obrigada! — disse Indyra, com sua pele
clara, mas bronzeada, enquanto reforçava as tranças em seu cabelo.
— Foi um prazer ajudá-los, mas a verdade é que nossa intenção era
almoçarmos aquele cervo. — confessou Rubyo, apontando para o animal
que agonizava com seus ossos quebrados pela queda.
— Cervo? Oh não, meu jovem, hoje você vai comer carne de grifo! É
uma especialidade nossa em Fwarden! — disse o guerreiro do martelo de
guerra.
Tinno tinha ombros muito largos, mãos pequenas, mas bem gordas,
uma longa barba negra trançada até a cintura, e era mais baixo que um
homem comum. Sua voz grossa combinava com seu porte físico, e não
escondia a cabeça raspada, que estampava algumas runas enânicas tatuadas.
— Fwarden? Pensei que apenas anões eram permitidos de entrar lá. —
disse Rubyo.
— Sim, e meu pai sabia disso. Por isso que ele, um humano, teve que
engravidar minha mãe, anã, no meio da floresta do grande lago de Laghuna!
— disse Tinno, rindo com as mãos na barriga volumosa. — Minha mãe dizia
que meus olhos são azuis de tanto ela admirar o lago enquanto meu pai
montava nela!
Rubyo e Ollaff ficaram sem graça de rir da história do meio anão, mas,
percebendo que todo o seu grupo gargalhava, sentiram-se confortáveis em rir
também. Karl se aproximou deles com a cabeça ensanguentada do grifo,
colocando-a num enorme saco de estopa.
— Espero que não se oponham, mas precisamos ficar com a cabeça
para a recompensa. — disse o enorme homem, que vestia uma armadura de
metal parecida com a que Argus usava, mas um pouco mais simples e com
vários riscos, marcas de ferro queimado e tinta velha disfarçando algum
brasão que existia no peito.
— Karl, isso são modos?! — censurou Odyno. — Matamos o monstro
juntos, então os espólios precisam ser divididos de modo igualitário, pelas
leis de Robbery!
— Leis de Robbery? — perguntou Rubyo.
— Sim, meu amado neto. — disse Ollaff. — Pelas leis centenárias de
Robbery, quando um grupo vence uma batalha, cada um dos vencedores tem
direito a escolher um dos espólios inimigos por vez, até que tudo o que for
interessante seja recolhido e dividido de maneira justa. E, pela lei de
Robbery, caro Odyno, o senhor Karl tem direito a escolher o primeiro
tesouro, afinal, foi ele quem deu o golpe fatal no grifo.
— Fico agradecido e encantado por conhecer tão bem as leis, meu
nobre mago! — disse Odyno, satisfeito. — O mundo não estaria essa
bagunça que está se todos conhecessem as antigas leis e tradições! Venham,
vamos limpar esses animais e levá-los para nosso acampamento... Não é
longe daqui. E vocês, hoje, são os convidados de honra para nosso jantar!
Capítulo 19: A Guilda
Rubyo contou com a ajuda de Karl para carregar Gary numa espécie de
maca improvisada, feita com o couro do cervo morto pelo grifo, e amarrado
em dois longos galhos. Os demais membros do grupo seguiam na frente,
acompanhados de Ollaff, rumando à uma vila abandonada onde a guilda
montara seu acampamento.
— Golens? — perguntou Gary, segurando-se no balanço da maca.
— Sim, um de pedra e um de terra. — respondeu Karl, com sua voz
grave.
— Centauros? — perguntou novamente Gary.
— Sim, matei um, mas o outro fugiu. Correm rápidos, aqueles
demônios! — disse Karl, orgulhoso.
— Balrogs?
— Balrogs?! — gargalhou Karl. — Não seja tolo, não existem balrogs,
são apenas histórias de terror para crianças! Mas Elementais, sim, existem.
Foi um de fogo, inclusive, que queimou minha cabeça e me deixou careca
desse jeito.
— E dragões? Já matou algum? — seguiu Gary com seu interrogatório,
empolgado por conhecer um caçador tão experiente.
Karl era o humano mais alto que Gary já vira. Rubyo notou que ele
tinha a mesma altura de Inak, com ombros um pouco mais estreitos, mas,
ainda assim, mais largos que a maioria dos humanos. Seus braços eram
compridos e bem torneados, cobertos por longas mangas de tecido velho e
cota de malha, sobrepostos por uma leve armadura de metal com um brasão
no peito irreconhecível, pelo estado deplorável. O caçador tinha a pele muito
branca, olhos caramelo-claros e várias cicatrizes em seu rosto, que quase
passavam imperceptíveis ao se notar a queimadura grotesca que tinha por
todo o seu couro cabeludo.
— Dragões?! Que tipo de idiota se meteria com um dragão? Meu
jovem, com a perna boa ou ruim, se você avistar um dragão, corra como se
não houvesse amanhã! Porque se não fizer isso, realmente não haverá!
Rubyo seguia em silêncio, ouvindo a conversa dos dois. Esforçou-se
bastante para subir a colina adiante, pois já estava cansado da caminhada e
por estar carregando a maca de Gary; além disso, a noite anterior, que
passara em claro, começou a cobrar seu preço. Ao chegarem no cume,
reuniram-se com o resto do grupo, que admirava a bela paisagem natural à
frente, cercando a linda vila de Abnerdy, na baixada do pequeno vale.
Abnerdy era uma vila antiga e famosa, pois era onde morava a grande
maioria dos ricos comerciantes de grãos dos tempos áureos de Minalkar. A
vila tinha uma arquitetura que remetia muito às construções élficas, com
madeiras em ângulos bem abertos, cores vivas e encaixes bem trabalhados
em pedras. Rubyo se lembrava dos livros que contavam sobre Abnerdy,
local onde o povo de Minalkar se encontrava com os elfos vindos de Vastako
para realizar comércio, festas de colheita, festivais, e para degustar das
famosas ervas com aroma de canela. Boa parte da cultura ali se misturava,
assim como o povo, que se miscigenava graças à paixão trazida pelo vinho e
pela música. Era triste ver aquele lugar, outrora tão belo, agora jazendo em
ruínas, tomado por matagais, prédios caídos e incendiados.
O grupo desceu a colina rumo ao vale onde estava Abnerdy, que se
encontrava a apenas algumas horas de caminhada à frente. Rubyo notou
Ollaff conversando bastante com Odyno e, curiosamente, alguma coisa que o
chefe da guilda disse ao mestre o deixou bastante desconcertado e agitado.
Rubyo nem imaginava o que seria, mas era preocupante ver seu mestre
nervoso daquela maneira.
Ao entrar pelas muralhas de madeira que envolviam a vila — ou, pelo
menos, do que restou dela —, puderam sentir o cheiro de lenha queimando,
misturado ao perfume de algo bom sendo cozido em algum lugar por ali. O
bom cheiro da comida se misturava com um odor rançoso de carne podre,
vindo de diversos cadáveres pendurados em gaiolas e enforcados ao longo
da cidade.
Odyno guiou o grupo para um pequeno prédio bem no centro da vila,
que ainda estava em surpreendentes boas condições. Após duas portas,
chegaram ao salão principal do prédio, onde existia uma grande mesa de
mais ou menos vinte lugares, que ficava no centro do cômodo, feito com
madeiras claras e adornadas no estilo élfico clássico. Sobre o móvel, uma
enorme bandeira de Minalkar cobria a mesa, ornando com uma linda
tapeçaria que cobria boa parte da parede do fundo, ilustrando algum antigo
rei brandindo a espada Sabedoria numa batalha contra orcs.
O cheiro da fumaça guiou o olhar de Rubyo, que viu, no canto direito
do salão, todo o material de acampamento da guilda, além de duas pessoas
encapuzadas com a mesma capa que seus novos amigos caçadores usavam.
Uma delas estava sentada sobre um tapete velho, com as pernas cruzadas,
lendo um enorme livro; enquanto a outra mexia um grande caldeirão, que
fervia pendurado sobre a fogueira, de onde borbulhava um líquido
acastanhado, repleto de vegetais boiando.
Ollaff, quão logo entrou, viu a cena, virou de costas e saiu
apressadamente do prédio, passando ao lado de Rubyo sem dizer nada.
Parecia que algo o assustara, e isso deixou seu pupilo em alerta. O jovem rei
seguiu até próximo da fogueira, ainda carregando a liteira com a ajuda de
Karl, deixando Gary próximo às chamas para se esquentar.
— Sejam bem-vindos à nossa casa! — disse Odyno. — Ou, pelo
menos, é como a consideramos desde ontem... e somente será até amanhã.
Caçadores não possuem domicílio, pois estamos sempre nos mudando em
busca de nossas presas.
— Lar é qualquer lugar onde estivermos juntos, meu amor. — disse
Indyra, dando um beijo em Odyno, que ruborizou na hora.
— Sim, meu amor, nada é mais importante do que estarmos juntos. —
disse, sorrindo, o bruto caçador. — Gary, John, venham conhecer o restante
do nosso grupo!
Gary, com a ajuda de Karl, levantou-se da maca, enquanto Rubyo
seguia olhando para a porta de entrada, perguntando-se o que houve com seu
mestre.
— John, me ajude por favor. — disse Gary para Rubyo, que não
percebia que estava sendo chamado por seu nome fictício. — John!
Pelo grito de Gary, Rubyo lembrou-se do disfarce e ajudou o amigo a se
aproximar das duas figuras encapuzadas ali perto. Perceberam que quem
cozinhava era uma mulher alta, magra, com cabelos castanho-escuros
trançados, que iam até a cintura. A bela mulher olhou para os dois com um
sorriso amistoso, e jogou para trás seu capuz, revelando as orelhas pontudas.
— Pathar, esses são nossos novos amigos, John e Gary. Eles nos
ajudaram a matar o maldito grifo! Seu marido está lá fora, lavando a carne, e
já vai trazê-la para assarmos!
— Muito prazer, meus jovens, sejam bem-vindos! O ensopado estará
pronto em alguns minutos, espero que gostem de coelho cozido.
— Eu amo coelhos! — disse Gary, sem cerimônias, com os olhos
marejados de fome.
— Obrigado, senhora elfa, será um prazer. E sua amiga, quem é? —
perguntou Rubyo, olhando para a mulher de cabelos negros que seguia
cabisbaixa, concentrada em seu grande livro.
— Jessi, venha cumprimentar nossos convidados, Gary e John. — disse
Pathar, tirando uma longa colher de pau do caldeirão para experimentar o
caldo.
Jessi levantou sua cabeça, mostrando um lindo e estranhamente familiar
sorriso para os dois jovens. Sua pele era parda e perfeitamente lisa. Seus
olhos acastanhados brilhavam com a luz da fogueira ali perto, trazendo uma
sensação quase hipnotizante. Ao jogar o capuz para trás, revelou seus longos
cabelos negros e encaracolados, sustentando a franja com uma tiara em
forma de coroa fina, adornada com um cristal muito semelhante ao do colar
de Rubyo. Sobre seus fartos seios, num decote ousado, um colar repousava,
feito de ouro com um medalhão de esmeralda.
— Boa tarde, senhores, muito prazer! — disse a bela mulher, deixando
o livro no chão ao se levantar. — Meu nome é Jessyann, mas podem me
chamar de Jessi. Perdoem minha desatenção, mas estou há mais de cem anos
procurando uma versão desse livro de herbologia élfica e, por sorte,
encontrei um exemplar perdido nas ruínas dessa vila!
— Cem anos?! Não me leve a mal, minha senhora, mas você mal
aparenta ter quarenta! — confessou Gary.
— Obrigada, meu jovem, mas não deixe minha aparência te enganar...
Já tenho mais de trezentos anos, mas parei de contar há muito tempo. Sou
uma maga formada na Academia de Michello, já ouviu falar?
— Se já ouvi?! Tenho um amigo de lá, inclusive ele está... — Gary
percebeu que estava falando demais ao notar o olhar furioso de Rubyo para
ele.
— Está onde, meu jovem? Talvez eu o conheça.
— Ele está em Alferius, vendendo livros na capital. Acho que você não
o conhece, ele deixou Michello há muitos anos, para servir o rei de Minalkar.
— disse Rubyo, tentando disfarçar.
— Ollaff está vivo?! — perguntou ansiosamente a mulher, quase
gritando.
Rubyo e Gary se entreolharam em silêncio e com surpresa, não sabendo
mais o que responder sem estragar o disfarce. Jessyann se aproximou de
Rubyo, colocou as duas mãos sobre seus ombros e, olhando no fundo dos
olhos do jovem, perguntou:
— Pelo amor de Selline à Calavann, me responda, John: Ollaff está
vivo? Está mesmo em Nenáreah? Por favor, não minta para mim e nem me
dê falsas esperanças!
Rubyo, sentindo a angústia daquela mulher, resolveu falar a verdade.
— Sim, minha senhora. Ollaff está vivo, mas não está em Nenáreah.
Ele está ali fora, sabem os deuses fazendo o quê.
Jessyann largou Rubyo e correu para o lado de fora do prédio onde
estavam. O jovem olhou ao redor e percebeu Odyno, Indyra e Karl olhando
para eles de uma maneira estranha ao perceberem a mentira contada por
Ollaff.
— Temo que nossa amizade tenha começado de uma maneira um pouco
conturbada por mentiras, meu rapaz. Talvez fosse melhor nos falar a
verdade, para que possamos nos sentar à mesa como amigos. — disse
Odyno, tentando manter um tom amigável.
— Pois bem, senhor Odyno. — disse Rubyo, levando a mão direita ao
cabo da espada em seu ombro. — Sou Rubyo Hant, herdeiro do trono de
Minalkar e filho bastardo de Edmund VI. Aquele senhor lá fora é Ollaff
Morrenn, Mestre das Ciências de Minalkar e formado em Michello, assim
como a amiga de vocês...
— E eu sou Gary mesmo, meus senhores... não que isso tenha alguma
importância. — disse Gary, interrompendo seu amigo, buscando no colete
suas adagas.
— Mas é claro que tem importância, meu jovem! Aqui não ligamos
para sobrenomes ou títulos; o que nos importa é a amizade e a sinceridade,
pois nossa confiança, uns nos outros, é tudo o que temos! — disse Odyno,
andando lentamente na direção dos dois, com as mãos levantadas em sinal
de paz. — Rei Rubyo, permita-me te dar um abraço... não como seu súdito,
mas como seu parente. Sou Odyno Hant, seu primo, sabem os deuses como!
Odyno aproximou-se de Rubyo e deu um forte e caloroso abraço no
jovem, que ficou estático pela surpresa, conseguindo apenas soltar o cabo de
sua arma, na emoção de conhecer algum familiar vivo.
— Eu pensava que toda a família de minha mãe havia morrido... jamais
esperei conhecer um outro Hant! — desabafou Rubyo, finalmente
devolvendo o abraço.
— Eu também não esperava por essa linda surpresa... Selline é sempre
boa demais comigo! Meus pais se mudaram de Minalkar para Flarys quando
eu ainda era uma criança, pois meu pai foi contratado para ser um dos líderes
da recém-formada Guilda dos Caçadores de Laghuna, criada pelo Império
Marrom. Meu pai sempre dizia que quase tudo o que ele sabia sobre caça
aprendeu com o primo Eric. Era seu avô, não era? — perguntou Odyno.
— Sim, Eric Hant era o pai da minha mãe. Ele faleceu no cerco de
Minalkar e, segundo me foi contado, minha mãe morreu dias depois que
nasci, pela febre do parto.
Indyra caminhou na direção de Rubyo e também o abraçou. Nesse
momento, Tinno entrou pela porta, carregando o pernil do grifo totalmente
limpo, pronto para ser assado. Em silêncio, e percebendo que interrompeu
alguma coisa, entregou a carne para Pathar e ficou na ponta dos pés para dar
um beijo na esposa, que se inclinou para corresponder ao marido, afinal, a
elfa era quase três palmos mais alta do que ele.
Rubyo abriu a boca para dizer algo a Odyno, mas, neste momento,
Ollaff e Jessyann entraram no salão.
— Jessi, veja só que mundo pequeno! Esse jovem na verdade é meu
primo, Rubyo Hant! — disse Odyno, orgulhoso.
— Que bom te conhecer de verdade, meu jovem. — disse Jessyann,
com um enorme sorriso para Rubyo. — Quero aproveitar esse momento de
reencontros e apresentar a vocês Ollaff Morrenn, meu marido.
Capítulo 20: Reencontros
Gary cuspiu a água que estava bebendo de seu cantil ao ouvir o que
Jessyann dissera sobre Ollaff. Todos olharam surpresos para o casal, mas a
atenção se desviou para Gary, que molhara toda sua roupa com o engasgo da
água.
— Mestre Ollaff, o senhor é casado?! Pensei que fosse viúvo! —
perguntou Rubyo, sem esconder a surpresa.
— Pois é, meu senhor, eu também pensei, mas graças aos deuses, eu
estava errado! — disse Ollaff, de mãos dadas com Jessyann, sentando lado a
lado na enorme mesa do salão.
— Nos casamos logo após nossa formatura e decidimos seguir em
Michello para lecionarmos. — contou Jessyann, enquanto Ollaff retirava o
cachimbo da manga. — E lá vivemos por vários anos, até que houve a guerra
civil em Hannambar. Eles precisavam de magos para ajudar no equilíbrio
político e tentar apaziguar as coisas, e como eu era de lá, decidi voltar para
ajudar minha terra.
— Eu também sou de lá,— emendou Ollaff, preparando seu fumo. —
De uma pequena vila ao sul do continente, que foi escravizada por um
terrível feiticeiro chamado Fawarlokh. Ele utilizava magia obscura para
comandar o nosso povo, abusar das mulheres, e utilizava nossas crianças em
rituais macabros. Quando a atenção dele se voltou para minha mãe, meu pai
tentou defendê-la, mas foi morto por ele. Minha mãe se sujeitou aos prazeres
daquele maldito enquanto procurava alguma fraqueza nele, algo que me
ajudasse a fugir de lá. Com o tempo, ela conseguiu roubar três grandes
esmeraldas do tesouro pessoal dele, e me deu para que eu utilizasse em
minha fuga. O primeiro, troquei por uma passagem para Cehvambar,
enquanto o segundo custeou meus estudos em Michello...
— E o terceiro? — perguntou Gary, curioso.
Jessi levantou a corrente, mostrando o medalhão que carregava em seu
pescoço, ornado por uma bela esmeralda.
— Meus pais eram membros da corte de Couriénn e queriam que eu me
casasse com algum nobre, mas recusei a proposta de todos. Como minha
mãe temia que eu acabasse me casando com algum plebeu qualquer,
resolveu me mandar para Michello, pois preferia que eu dedicasse minha
vida à magia. Conheci Ollaff no navio, vindo para cá.
— E o que ela temia aconteceu, minha amada: você se casou mesmo
com um plebeu. — disse Ollaff, dando um beijo carinhoso na mão de
Jessyann, que a segurava como um tesouro.
Causava uma certa estranheza ver um homem de aparência tão mais
velha estar com uma mulher muito mais jovem e bela do que ele. Ollaff
aparentava ter por volta de setenta anos — o que não era nada mal para
alguém que já beirava os quatrocentos —, mas nem se comparava à beleza
que os feitiços de rejuvenescimento garantiam à Jessi. Apesar da aparência,
o olhar apaixonado que trocavam deixava de lado qualquer preconceito.
— Quando houve a necessidade de voltar para Hannambar por conta da
guerra, Ollaff foi contra, pois não queria mais pisar naquele lugar onde tanto
sofreu. Ele sabia que sua mãe já teria morrido, e vingança alguma contra
Fawarlokh traria de volta sua família. Mas, quanto a mim, estava morrendo
de saudades dos meus pais depois de vinte anos e não tinha notícias deles
desde o início da guerra.
— Eu realmente deveria ter ido com você, Jessi, me perdoe, mas,
naquele momento, julguei que seria mais útil utilizar a ciência e a magia para
construir um mundo melhor através dos alunos, do que enfrentar meu
passado numa guerra sem sentido. Quando se passaram mais de dois anos e
você não voltou, imaginei que tivesse morrido ou decidido ficar com sua
família. Procurei notícias suas com alguns conhecidos da universidade de
Kanonder, mas fui informado, através de corvos, que você havia sido morta,
coincidentemente, na minha antiga vila. Algumas semanas depois, Edmund
II me fez o convite para ser o mago de seu reino, e aceitei o desafio para
esquecer a dor de te perder.
— Não se culpe, meu amor. Eu tinha prometido voltar em um ano,
ainda que não conseguisse cumprir meu objetivo de ajudar nas negociações
de paz, mas fui impedida por uma força bem maior. Durante as minhas
investigações sobre a causa do conflito, descobri que Fawarlokh estava
plantando hostilidade entre os reis de Couriénn e Nettiel, que eram, antes de
reis, irmãos. Fawarlokh esperava que os exércitos se enfraquecessem com o
conflito entre eles, para que pudesse, de uma vez só, tomar o continente
inteiro com seu poder.
— Demônio maldito! Eu deveria ter ido com você! — lamentou Ollaff,
enquanto todos ao redor seguiam em silêncio para ouvir a história.
— Você realmente fez falta, Ollaff, mas fico feliz que não tenha ido. Eu
me juntei com outros feiticeiros e fomos até a fortaleza de Fawarlokh para
derrubá-lo, mas ele, de alguma forma, utilizou uma magia antiga e se
transformou num dragão negro. Não tivemos nenhuma chance contra ele.
Todos os meus companheiros foram mortos, e eu fui aprisionada em seu
calabouço.
— Por que ele não te matou? — perguntou Karl, mais rápido que Gary,
que pretendia fazer a mesma pergunta. — As magias dos dragões são
poderosas, afinal, eles são formados dos próprios elementos.
— De alguma maneira, esse colar me protegeu de todos os ataques que
ele usava contra mim. Essa esmeralda deve ter alguma relação com o poder
dele. Como ele não conseguia me matar, me aprisionou em sua fortaleza por
quase trezentos anos...
— E como você se libertou? — perguntou Gary, mais rápido dessa vez.
— Gostaria de dizer que foi por mérito próprio, mas não foi. Eu
sobrevivi esse tempo todo no cativeiro me alimentando de pequenos animais
perdidos na escuridão, de cogumelos que cresciam por ali, e bebendo da
minha pequena fonte mágica de água. Achei que nunca mais sairia dali, e me
envergonho em dizer que, por vezes, pensei em tirar minha própria vida.
Mas um dia, por volta de vinte anos atrás, ouvi sons de uma batalha
ocorrendo em algum lugar da fortaleza, seguido de um grito estrondoso de
dor vindo do dragão.
— Então... ele está morto? — perguntou Ollaff, visivelmente abalado
ao ouvir o relato de sua amada.
— Sim, meu amor. Ele foi morto por um jovem herói, Rodrick
Dellanor, um paladino que havia jurado derrotar o Dragão Negro e livrar o
continente dessa constante ameaça; e assim ele fez, me libertando de
Fawarlokh. Fui levada de volta para Couriénn, onde fiquei alguns anos me
recuperando de tanto tempo presa. Quão logo tive forças, retornei para
Michello, mas me contaram que você havia sido morto num cerco à capital
de Minalkar, alguns anos antes. — contou Jessi, deitando a cabeça no ombro
de Ollaff. — Meu coração ficou em pedaços pela ironia do tempo, pois, por
questão de poucos anos, eu não pude te reencontrar com vida. Vivendo meu
luto, resolvi seguir no colégio e viver o nosso sonho... por nós dois.
— Nós encontramos a Jessi perto da ponte de Flarys, durante uma de
nossas missões há alguns anos. Essa maluca estava caçando, sozinha, uma
horda de orcs. — disse Indyra, do outro lado da mesa, segurando firme a
mão de Odyno, como se temesse perdê-lo.
— Sim, eu estava em busca dos assassinos de Kallann. Ele foi
emboscado e morto por orcs enquanto voltava de Vertiga para Michello.
— Kallann está morto?! — o semblante de Ollaff entristeceu-se
imediatamente. — Ele foi um grande amigo e o maior reitor que Michello já
teve.
— Sim, meu amor, foi uma perda inestimável. Ele foi atacado enquanto
retornava com um enorme e raro cristal de fogo, que havia conseguido
comprar com um comerciante de Vertiga. Aquela é uma arma terrível para se
cair em mãos erradas.
— Não precisa mais se preocupar com isso, minha senhora. O cristal
caiu nas mãos certas e foi destruído. Eu vi com meus próprios olhos.
Rubyo terminou a frase e se levantou para que ninguém o visse
chorando. O jovem caminhou até a fogueira e serviu um pouco do ensopado
de coelho, torcendo para que o calor da fogueira secasse suas lágrimas.
— Que bom que aqueles malditos orcs não estão mais com o cristal. —
afirmou Jessyann. — Eu pedi a ajuda da Guilda para lutar contra aquela
horda, mas fui convencida por eles que aquilo seria suicídio. Para me
acalmar, resolvi aceitar o convite deles para jantar e fui ficando mais uma
noite, e outra mais... e lá se foram alguns anos junto à minha nova família.
Afastei-me do meu cargo em Michello e vivo como uma caçadora desde
então.
— No nosso caminho para cá, Odyno me contou que a maga do grupo
tinha o mesmo nome que o seu, e isso me deixou transtornado. A mínima
esperança de te encontrar viva depois de tantos anos quase surtou essa
cabeça velha. Vergonhosamente, quando entrei aqui e te vi, meu primeiro
instinto foi de fugir, pois nem sabia o que falar. — confessou Ollaff,
envergonhado.
— Ainda bem que as mulheres são mais corajosas que nós, ou o senhor
já estaria em Vastako de tanto correr! — disse Tinno, fazendo todos
gargalharem.
— Que dia maravilhoso, meus amigos! — disse Odyno, batendo palmas
de satisfação. — Estamos todos em família, vamos celebrar!
Pathar levantou-se e serviu o ensopado para todos, enquanto Tinno
colocou a carne do grifo para assar. Após a refeição, Ollaff pegou sua flauta
e começou a tocar as canções favoritas de Jessi, que chorava de emoção a
cada nota de seu marido. Tinno e Pathar, assim como Odyno e Indyra,
dançavam abraçados ao som da melodia do ancião, celebrando o amor que
pairava no ar naquele momento, regado a um bom vinho de Flarys. Gill
permanecia em silêncio, quase desaparecendo na escuridão, por sua pele
negra, mantendo-se de guarda na porta, enquanto Gary cochilava perto da
fogueira, com a barriga cheia.
Rubyo caminhou até a tapeçaria que existia no fundo do salão, para
admirar mais de perto o rei minalkariano ilustrado nela. Karl se aproximou
de Rubyo e perguntou:
— A espada que carrega em suas costas é a mesma dessa pintura, não
é?
— Sim, é a Sabedoria.
— Que nome horrível para uma espada, não é?! — perguntou o
grandalhão, criando mais rugas em sua cabeça deformada enquanto ria.
— Eu pensei nisso quando a recebi de presente, mas achei melhor não
comentar. — respondeu Rubyo, com um sorriso discreto, lembrando-se de
quando a recebera de Argus.
— Posso vê-la?
— Claro, mas não pode empunhá-la. Um orc tentou e perdeu alguns
dedos.
Rubyo sacou a espada e a girou no ar, apoiando a lâmina com a outra
mão para exibi-la ao guerreiro.
— É ainda mais linda do que eu imaginava! — disse Karl. — Sem
dúvidas, é a espada digna de um rei. Espero que saiba usar isso aí, garoto, e
quem sabe um dia possamos colocar nossas habilidades à prova.
— Seria um prazer, Karl, mas agora preciso descansar. Como vocês
dividem o turno de guarda?
— Turno? — gargalhou Karl. — Acho que você não ouviu o Odyno;
ele vai festejar essa noite e beber até amanhã! Durma em paz, meu jovem, eu
te acordo quando o pernil estiver pronto.
Rubyo deitou-se próximo a Gary e adormeceu. Apesar do enorme
cansaço, era difícil relaxar enquanto seus sonhos e suas lembranças se
misturavam. Ele estava novamente caindo daquele poço, com a espada e a
coroa em queda ao seu lado, enquanto a boca do poço era coberta por
labaredas. Abaixo dele, a escuridão do poço se transformou num céu azul e,
lá embaixo, enxergou o castelo de Minalkar. Rubyo estava em queda livre na
direção do castelo. Conforme se aproximava, viu que toda a capital estava
em chamas. Seu pai e seu tio lutavam lado a lado contra hordas de orcs para
defender o berço onde um bebê ruivo chorava. O jovem tentava alcançar a
coroa e a espada, mas elas estavam cada vez mais longes, enquanto o chão
cada vez mais perto. Rubyo tentou gritar, mas a voz não saía para conjurar
magias. O berço foi ficando mais próximo a cada segundo, até que,
finalmente, ele caiu em cima do bebê.... e despertou com a pancada.
O jovem estava todo suado, não sabendo se a transpiração era fruto do
pesadelo ou da proximidade da fogueira. Percebeu que já era tarde da noite,
pois a grande fogueira do caldeirão já estava no fim das brasas e todas as
tochas estavam acesas, iluminando o ambiente escuro daquele salão. Pouco
restara do pernil do grifo e, apesar de não o ter comido, Rubyo não sentia
fome. Todos ao redor estavam dormindo, então o jovem levantou-se
silenciosamente, tomou um pouco de vinho que restara em uma taça, e foi
até o lado de fora do prédio.
A noite estava fria e clara, mas a lua cheia já começava a diminuir de
tamanho, minguando-se mais a cada noite. Rubyo notou que o prédio
demolido, ao lado de onde estava, formava uma espécie de plataforma bem
alta entre os entulhos e escombros, onde poderia facilmente subir para
observar ao redor. Ao chegar no topo, através de uma rampa acidental, notou
que o breu envolvia a região. Minalkar era um deserto onde não se sentia a
presença de ninguém, não se ouvia vozes, e não se via nada além do que
estava iluminado pela luz de Selline. Nada, exceto uma luz fraca brilhando
ao norte, como um pequeno farol, vindo da penumbra de uma torre.
Rubyo tentou se lembrar se haviam apagado as tochas que acenderam
nos quartos do castelo, mas não conseguia ter certeza. Independentemente de
como elas estivessem acesas, a chama daquelas tochas eram um bastião de
luz lutando contra as trevas em que Minalkar estava mergulhada,
representando a esperança que aquela terra tanto precisava.
— Pelo jeito esquecemos as luzes acesas, meu senhor. — disse Ollaff,
surgindo na escuridão ao lado de Rubyo, que tentou não fingir surpresa.
— Te acordei, mestre?
— Não, meu senhor, eu não consegui dormir. Acho que meu velho
coração não consegue se acalmar desde que vi Jessyann novamente. Percebi
o senhor saindo do salão como uma sombra, e vim ver se estava bem.
— Estou bem, mestre, obrigado pela preocupação. Que bom que o
senhor está aqui, precisamos conversar.
— Pois não, meu Rei. — disse Ollaff, virando-se para Rubyo.
— O senhor está livre dos seus deveres comigo e com minha família. É
um homem livre de seu juramento, o qual cumpriu da maneira mais honrada
possível. Quero que saiba que não precisa mais se preocupar com meus
problemas e deve viver sua vida com sua esposa, como bem desejar. — disse
Rubyo, colocando a mão sobre o ombro de seu mestre.
— Obrigado, meu senhor, mas sou um homem livre do meu juramento
há anos. Eu jurei ensinar e proteger a casa de Edmund, e o senhor é um
Hant, como você mesmo já me disse centenas de vezes. Minha promessa foi
cumprida com a morte de seu pai.
— Então por que o senhor ficou e fez tudo o que fez por mim? Por que
ainda está aqui? — perguntou Rubyo, enquanto Ollaff acendia seu
cachimbo.
— O senhor já ouviu falar que os pais, quando são frustrados em seus
desejos na vida, projetam nos filhos os seus sonhos? Pois bem, saiba que
você é um filho para mim.
— E o senhor é como um pai para mim, mestre.
— Eu sinto isso, meu jovem, e me alegra a reciprocidade. E eu,
frustrado com a vingança que nunca tive contra o algoz da minha família,
projetei em você o meu desejo de fazer o que não fiz. Eu não tive coragem
de voltar para Hannambar e lutar contra Fawarlokh, mas sabia que o senhor,
um dia, teria a força e a coragem de enfrentar aquele que acabou com a vida
da sua família. E eu, graças aos Três, estava certo. Você não sabe o orgulho
que tenho do senhor!
— E você não sabe a gratidão que tenho por ter me trazido até aqui,
mestre. Se não fosse pelo senhor, por meu tio e pela Rose, eu nem vivo
estaria, quanto mais teria tido a chance de vencer Inak. Eu só queria ter tido
mais forças para segurar minha ira e não ter matado aquele maldito... talvez
meu tio...
— Não viva de conjecturas, meu senhor. Inak provavelmente não
deixaria que vocês saíssem de lá com vida depois de ter sido humilhado, e
seu tio sempre soube disso. Essa sempre foi a parte mais arriscada do nosso
plano, mas não tínhamos outra opção. Acredite, meu jovem... as coisas
sempre acontecem como têm que acontecer.
— Se as coisas são assim, de que servem nossas escolhas, mestre? —
perguntou Rubyo, se debruçando em uma espécie de parapeito formado
pelas ruínas, enquanto admirava a escuridão do horizonte.
— Pense na loucura que é a vida, meu Rei: se não tivéssemos perdido o
Bokko na ponte, talvez teríamos acampado na floresta e não teríamos
encontrado aquele orc de mancha vermelha. Se tivéssemos ido diretamente
para os sarcófagos, ao invés de visitar os quartos, talvez teríamos saído das
catacumbas antes que os orcs chegassem. Se não tivéssemos atrasado nossa
partida de manhã, para comer aquelas trutas, eu jamais teria reencontrado a
minha Jessi. As coisas acontecem como têm que acontecer, pois se
tivéssemos dado um único passo diferente em nossa jornada, não estaríamos
conversando aqui, agora.
— Achei que Emmanajj tivesse nos dado o livre arbítrio... —
resmungou Rubyo, ponderando as palavras de Ollaff.
— A vida é como uma enorme canção que todos os seres vivos tocam
juntos, cada um o seu instrumento. Às vezes, acreditamos que estamos
fazendo um solo, mas nossa vida nada mais é que notas perdidas no meio
dessa melodia; e não importa o arpejo que esteja fazendo, a canção segue
tocando conforme o maestro ordena.
Rubyo ficou confuso com as palavras de seu mestre e julgou que,
talvez, ainda não tivesse maturidade para entendê-las. Por isso, ao invés de
prolongar aquela lição, preferiu apenas abraçar seu amigo.
— Muito obrigado por tudo, mestre. Espero que seja muito feliz em sua
nova vida.
— Eu vou te coroar, meu jovem, e só então Jessi e eu resolveremos o
que fazer. Amanhã vamos rumo ao seu dia de glória... e que seja longa a vida
do nosso Rei!
Capítulo 21: No Mesmo Barco
Os dois amigos retornaram ao salão logo após o nascer do sol, que
assistiram do alto do prédio em ruínas. Todos seguiam dormindo, exceto
Jessyann, que estava ao lado das brasas, fazendo a fogueira se reavivar com
um pouco de lenha.
— Um segundo que fecho meus olhos, e você some de novo, meu
amor? — perguntou Jessyann, em tom de brincadeira.
Ollaff abriu um sorriso bobo e sentou-se perto de sua amada. Gill
acordou logo em seguida e, com chutes, despertou seus amigos. Somente
naquele momento, Rubyo reparou que em momento nenhum havia ouvido a
voz do elfo, mas achou indelicado perguntar o porquê ele não falava. Em
poucos minutos — e com um padrão quase militar —, todo o grupo já estava
em pé e com suas coisas organizadas, prontos para a viagem de volta.
Gary seguia massageando um pouco a perna perto da fogueira antes de
recolocar sua bota. Rubyo se aproximou do amigo para ajudá-lo e percebeu
o enorme hematoma que se formava desde o joelho até o tornozelo de Gary,
com algumas lesões bolhosas e avermelhadas de dor, mas, pelo menos, não
sentiam o cheiro podre de uma infecção, o que já era um ótimo sinal. O
jovem ladino se levantou com a ajuda do amigo, mas se recusou a retornar à
maca, dizendo que já se sentia bem para andar. Jessi deu um frasco de poção
para Gary, que tomou num gole só, sem se importar com o gosto amargo.
Tinno pegou a cabeça do grifo que deixaram secando próximo à
entrada, prendeu num gancho e pendurou na ponta de seu martelo de guerra,
para carregar em seu ombro. Todos o seguiram, caminhando lentamente e
em silêncio, tanto para acompanhar a marcha de Gary, quanto pela ressaca
da noite anterior. Rumaram para leste, com o sol nascente resplandecendo
em seus rostos, enquanto margeavam a floresta de Minalkar. Algumas horas
de caminhada adiante, chegaram a uma bifurcação, que separava os
caminhos entre a estrada real, que levava a Vertiga, e as trilhas comerciais,
que rumavam para o norte do reino.
— Rubyo, meu parente, temo em dizer que nos separaremos aqui. —
disse Odyno, com sincero pesar em sua voz.
— Não pode ir até Nenáreah conosco? Serei coroado nos próximos
dias, e ficaria muito feliz em ter vocês junto comigo.
— Infelizmente, não podemos. Precisamos entregar a cabeça desse
grifo aos nossos contratantes para garantir a recompensa e manter nossa
reputação ilibada. Mas sinto que, algum dia... alguma caçada fará nossos
caminhos se cruzarem outra vez. — respondeu o líder dos caçadores, com
um sorriso doce.
— Odyno, eu... — disse Jessyann.
— Não precisa me dizer nada, Jessi. Eu nunca te vi tão feliz nesse
tempo todo em que estivemos juntos, e não ousaria pedir para que
continuasse conosco. Nós, caçadores, amamos o que fazemos, pois temos
prazer em sempre estar em busca de algo. E pelo seu sorriso, você já
encontrou tudo o que queria.
Odyno deu um longo abraço em Jessi, seguido pelos demais membros
da guilda. Indyra estava em lágrimas, mas desejou toda a sorte de alegrias
para sua amiga. Em seguida, os caçadores também se despediram dos
membros do grupo de Rubyo, tomando cuidado para não machucar Gary
com o abraço. Rubyo foi o último a ser abraçado por Odyno, que colou sua
testa com a do jovem, para olhar no fundo dos seus olhos e dizer:
— Rubyo, se precisar de mim algum dia, envie um corvo para a sede da
Guilda dos Caçadores de Flarys, escrito apenas o sobrenome da nossa
família. Não importa onde eu esteja, prometo que em três dias eu te
encontrarei em Abnerdy. E se eu não chegar, é porque estou morto. Saiba
que, enquanto eu viver, você nunca estará sozinho.
O jovem rei abraçou forte seu primo, agradecendo pelas palavras de
Odyno. Guiando seu grupo, Rubyo tomou o caminho que seguia para o sul,
floresta adentro. Após mais algumas horas lentas de caminhada,
principalmente pela dificuldade de Gary andar na mata, chegaram aos
portões de Vertiga, quase no fim da tarde. Atravessaram a cidade o mais
rápido que podiam, na direção do porto da cidade, em busca de algum barco
que zarpasse ainda naquele dia, rumo ao sul.
Ollaff facilmente descobriu uma embarcação que pudesse levá-los e
pagou com o resto das moedas de ouro que tinha em sua bolsa. Rubyo,
envergonhado, jurou que, um dia, pagaria de volta aquele empréstimo. Os
quatro subiram no grande navio mercante, e procuraram algum lugar para se
sentar entre as caixas fortemente amarradas no convés.
Rubyo ficou admirado ao ver os marinheiros tão habilmente içando
velas, puxando cordas de maneira coordenada e fazendo nós com uma
facilidade ímpar, tanto que imaginou que poderia ter sido um marinheiro tão
bom quanto aqueles homens. Porém, seu estômago não compartilhava dessa
opinião, fazendo-o vomitar de enjoo pelo balanço do barco antes mesmo de
partirem. Gary deitou-se no chão, esticou seu corpo, e jurou só se levantar
quando chegassem em Nenáreah. Ollaff e Jessyann foram até a proa e
aguardaram ali a partida da embarcação, enquanto admiravam as cores do
pôr do sol.
Depois de alguns minutos, já estavam em movimento, rumo ao sul. A
embarcação, apesar de seu tamanho, era bem rápida — o que era bom para
garantir uma viagem breve, mas, por outro lado, sua velocidade só
aumentava as náuseas de Rubyo. Após quase uma hora rio abaixo, os
marinheiros abaixaram as velas para aproveitar a forte correnteza que se
formava à frente, na junção dos dois rios. Ollaff chamou Rubyo e Gary para
a proa, para que pudessem ver a bela junção das águas dos rios Parny e
Miriba formando o Rio Dourado.
— Obrigado, mestre, mas eu já vi coisas demais desse mundo em nossa
viagem... — respondeu Gary, deitado, massageando a perna.
Rubyo se aproximou do casal bem a tempo de ver as cristalinas águas
azuis do Rio Miriba se encontrarem com as águas negras do Rio Parny,
criando um espetáculo natural, onde uma linha estreita separava os rios,
correndo lado a lado por vários passos élficos, até enfim se juntarem para
formar o Rio Dourado.
— Rubyo, atente-se bem para o que a natureza nos ensina. A luz e as
trevas parecem que não se unem, assim como as águas desses rios, mas se
você deixar ambos seguirem o mesmo rumo, com a mesma força em sua
vida, uma hora você já estará com ambos misturados para sempre em seu
coração, e nunca mais conseguirá separá-los novamente.
O jovem manteve o silêncio, admirando o lindo caminho iluminado
pelas cores alaranjadas do pôr do sol, enquanto fazia um enorme esforço
para não vomitar mais. Passadas algumas horas rio abaixo, a escuridão cedeu
lugar para um enorme clarão adiante, onde podia-se admirar, à direita, a
gigantesca silhueta do farol de Alferius, com a estátua de Ottonni segurando
sua tocha mágica, enquanto iluminava a noite como uma segunda lua.
Gary, que seguia cochilando no chão da proa, abriu os olhos no exato
momento em que passavam ao lado do farol e tomou um enorme susto ao
ver aquele colosso de pedra olhando para ele. Era uma vista magnífica e, ao
mesmo tempo, amedrontadora. Rubyo reconheceu que a vista do farol, pela
perspectiva do rio, era muito mais imponente do que a vista de suas costas,
tal qual contemplaram das colinas de Kedir, dias antes.
Chegaram ao porto de Nenáreah junto com os primeiros raios de sol da
manhã. Rubyo ajudou Gary a descer da embarcação e rumaram lentamente
para a vila onde moravam. Ollaff recomendou que fossem por fora,
margeando as muralhas, e prometeu encontrar com Rubyo em sua casa na
manhã seguinte. Gary aceitou o convite de Rubyo para ficar em sua casa,
afinal, agora tinha uma cama sobrando. Os dois se despediram dos magos,
que seguiram para a cidade, e rumaram para a vila pantanosa.
Rubyo seguia apoiando Gary como se fosse sua muleta, enquanto
cruzavam a vila cumprimentando os vizinhos que, curiosos, assistiam a cena
dos dois jovens sujos, emagrecidos, descabelados e com uma aparência
cansada como nunca se viu. Sem tentar dar explicações, Rubyo ignorou os
olhares curiosos e chegou em sua casa. O jovem estranhou ao perceber que a
porta estava entreaberta e, por garantia, deixou Gary sentado no batente e
sacou a espada. Um barulho veio da cozinha e, em poucos passos largos,
Rubyo chegou silenciosamente girando a espada no ar.
— Rubyo, calma, sou eu! — disse Rosalind, com as mãos levantadas.
— Senhora Rose, me desculpe! — disse Rubyo, derrubando a espada
no chão e abraçando a roliça senhora.
— Tudo bem, você também me assustou, meu jovem! — respondeu
Rose, claramente surpresa. — Eu não esperava ver vocês de novo por aqui.
Tenho vindo todos os dias à sua casa para cuidar das coisas e ver se vocês
regressavam, mas já estava perdendo as esperanças. Onde está seu tio?
Rubyo encerrou o abraço, cabisbaixo, virou-se e pegou a espada no
chão, guardando-a na bainha.
— Ele se sacrificou por mim em Hothum. Matamos Inak e mais uma
centena de orcs, mas isso custou a vida dele. — respondeu Rubyo, com os
olhos marejados.
— Hothum? Mas o plano não era buscar o anel real em Mundy?! Como
foi que vocês... — Rosalind interrompeu o discurso ao perceber a joia no
dedo de Rubyo. — Pelas tetas de Selline, você realmente conseguiu!
— Sim, senhora Rose, conseguimos! Não só o anel, mas também a
coroa. Ela estava com Inak esse tempo todo. Deixei-a com Ollaff, que ficou
de organizar minha coroação amanhã, num evento secreto só para
minalkarianos. A rainha não pode saber de nosso êxito!
Rosalind ficou visivelmente surpresa e, de alguma maneira, triste pela
notícia.
— Que notícia excelente, meu senhor! Preciso, então, encontrar Ollaff
na cidade para ajudá-lo! Que bom que te ver de novo e com vida, meu
jovem, mas preciso mesmo ir... Nos vemos em breve, Rubyo, e quero que
saiba que eu sinto muito... muito mesmo.
Rosalind deu um beijo na bochecha de Rubyo e saiu apressada da casa,
quase pulando por cima de Gary, que seguia sentado na porta, com a perna
esticada. Rubyo achou estranho, mas, com certeza, era muita novidade para
assimilar.
— Essa sua tia tá esquisita, hein Rubyo? — disse Gary, levantando-se
apoiado no batente.
— Acho que ela não reagiu bem à notícia da morte do meu tio. Ela o
viu nascer, era parte da família. — justificou Rubyo.
Os dois jovens comeram alguns peixes secos que defumavam
pendurados sobre a lareira da sala e resolveram acender a lenha para relaxar.
Rubyo acendeu o fogo e ficou vendo a madeira queimar, assim como fazia o
seu tio, deixando seu coração transbordar de saudade e escorrer lágrimas.
Gary seguia sentado no banco do lado, pensando em algo para dizer e
consolar o amigo, mas nada de bom vinha à sua mente, então preferiu
manter o silêncio. Ficaram ali por algumas horas, vendo a madeira se
transformar em brasas e depois em cinzas, lembrando da jornada intensa que
tiveram nos últimos dias.
— E então, Gary, o que você achou do mundo lá fora? Valeu a pena ter
ido? — perguntou Rubyo, quebrando o silêncio ao parar de chorar.
— Apesar da perda do Bokko, e do fato de que nunca mais vou andar
como antes, valeu muito a pena, sim. — disse Gary, sem hesitar.
— Sério? — perguntou Rubyo, surpreso, olhando para a perna
quebrada. — Já está pronto para outra, então?
— De jeito nenhum! Para mim, essa jornada toda serviu apenas para me
fazer valorizar o meu lar! Eu não o porquê minha mãe nunca havia saído
desse lugar. Ela era uma cozinheira tão boa, e eu sempre soube que ela
conseguiria emprego em qualquer castelo, mas acho que agora eu a
entendo... Esse era o lar dela, e é o meu também.
— Achou Minalkar tão ruim assim?
— Claro que não, é um lugar lindo e bem mais bonito que essa
espelunca onde a gente mora. Mas essa é a minha espelunca, é o meu lar... e
quero viver aqui. A gente quase morreu, Rubyo, aquele seu avô por pouco...
deixa pra lá, não quero nem pensar. Quero valorizar mais a minha vida.
Amanhã vou buscar minha irmã e pretendo começar, em breve, um negócio
honesto. É claro, se você me permitir.
— Eu? Permitir? Eu não tenho que te deixar fazer nada, Gary.
— Tem sim, pois estou oficialmente pedindo demissão do meu cargo de
Mestre da Moeda. Além disso, preciso de um empréstimo alto para iniciar
meu negócio.
— Eu, com pesar, aceito sua demissão, meu amigo. — disse Rubyo,
rindo. — Mas você sabe que, mesmo coroado, eu não tenho tesouros nem
para mim, quanto menos para te emprestar.
— Na verdade, você tem sim. — disse Gary, retirando de seu bolso o
enorme medalhão de ouro e rubi que Argus pegara do corpo de Edmund III.
— Pelas tetas de Selline, eu nem me lembrava disso!
— Depois de tudo o que passamos, imaginei que você nem se lembraria
do colar, mas nem por isso ele deixa de ser seu. É o único tesouro do seu
reino, meu amigo.
— Não, Gary, não é meu. Lembra-se das leis de Robbery? Eu dei o
golpe final em Edmund, e peguei o primeiro tesouro. — disse Rubyo,
apontando para o anel em sua mão direita. — Os demais tesouros são
divididos de maneira igual entre os vitoriosos.
— Mas não é justo, seu tio e o mestre Ollaff não ficaram com nada...
— Tenho certeza de que ouro nenhum compra a alegria que Ollaff está
sentindo, com o tesouro que ele trouxe de volta nessa viagem. Já meu tio...
— disse Rubyo, esforçando-se para não chorar de novo. — Meu tio não vai
precisar mais de ouro algum. O medalhão é seu. Ele te deu, e espero que faça
bom proveito dele, meu amigo.
Gary agradeceu e colocou de volta o medalhão no seu bolso mais
seguro. Apesar de ainda estar no meio da tarde, ele e Rubyo decidiram que
deveriam dormir para tentar colocar o sono em dia e descansar de forma
decente depois de tanto esforço. Rubyo subiu primeiro para arrumar a cama
que outrora era de seu tio, enquanto Gary subia lentamente as escadas. Em
seguida, Rubyo tirou sua armadura e colocou-a no chão ao lado da cama,
junto à sua espada. Deitando-se em sua própria cama, certificou-se que o
punhal estava embaixo do travesseiro, e ficou olhando para o teto de madeira
mofada.
Apesar do cansaço extremo que seu corpo sentia, o sono simplesmente
não vinha, e ele só conseguia pensar... lembrar... temer; a ansiedade e a
preocupação dominavam seu corpo a ponto de quase fazê-lo tremer. A todo
momento se lembrava de Argus orientando que ele deixasse Alferius após
ser coroado, mas para onde ir? Gary, mesmo cansado e com dor, percebeu a
agitação de seu amigo na outra cama, e perguntou:
— Está nervoso para amanhã, Rubyo?
— Muito! — respondeu o jovem de cabelos ruivos, instantaneamente.
— Enquanto aquela coroa não estiver na minha cabeça, o meu título de Rei é
apenas uma promessa. E depois de coroado, a verdade é que eu não tenho
nem ideia do que fazer pelo meu povo.
— Você já pensou que, talvez, eles não esperam de fato que você
resolva os problemas deles? perguntou Gary, mais secamente do que
gostaria.
Rubyo ia responder algo, mas hesitou e preferiu entender melhor o que
Gary quis dizer.
— Pense bem, Rubyo. O povo de Minalkar já está fora de casa há quase
dezessete anos. Alguns poucos trabalham no castelo, outros são
comerciantes, construtores, camponeses... existem sim, vários na miséria,
mas são tão pobres quanto você. Não acho que, para eles, você seja uma
“resolução dos problemas”, mas uma esperança de dias melhores que
possam vir, afinal, se um garoto pobre como você pode virar um rei, eles
também podem sonhar com uma vida melhor.
— Sim, Gary, eu concordo. Mas esses dias melhores só vão realmente
acontecer se eu conseguir levá-los de volta para casa. Mesmo os que
conseguiram prosperar aqui, como o senhor Bower, não tem prazer nenhum
em ver seus filhos terem seus braços marcados com ferro quente ao nascer.
— E como vai fazer isso? — perguntou Gary.
— Não sei. Os orcs estão, sim, enfraquecidos pelo duro golpe que
sofreram do meu tio, mas se nosso povo voltar hoje para Minalkar, em
poucos meses a fúria de Rurkuk recairá sobre nós. Não estamos prontos para
nos defender.
— Não estão prontos hoje, mas você pode liderar esses preparativos! —
disse Gary, empolgado. — Pense comigo, Rubyo! Os minalkarianos tem
vários filhos com mais ou menos a nossa idade, e a grande maioria deles já
pode pegar uma espada para lutar. Fora que você tem seu primo, que é líder
de uma guilda cheia de guerreiros experientes! Ainda tem aquele druida
maluco que ficou seu amigo... aposto que ele convenceria grande parte dos
animais de Minalkar a lutar em seu nome.
Gary reparou que Rubyo parecia considerar sua ideia, e continuou:
— Sabe por que eu fui com você nessa missão suicida? Porque não
aguentava mais essa vida tediosa e precisava conhecer mais do que isso que
eu vivia aqui! Assim como eu, tem centenas de jovens aqui em Alferius que
estão apenas esperando um chamado às armas, para tentar descobrir algum
significado em sua vida de pobreza. Tenho certeza de que eles topariam
entrar numa guerra, com sua promessa de terras e riquezas.
Rubyo sentou-se na cama boquiaberto, como se tivesse ouvido a ideia
mais genial do mundo.
— E eu poderia ensiná-los a Eddor. Em poucos meses, estaríamos
prontos para retomar Minalkar e defendê-la daqueles orcs magricelos, afinal,
eles já não são mais a potência militar que eram na época que tomaram o
reino do meu pai.
Gary também se sentou na cama, admirado por sua própria inteligência.
— Exatamente, Rubyo! E você agora tem dois magos poderosos para te
ajudar! A nossa vitória é certa!
— Nossa? — ironizou Rubyo. — Achei que tinha se demitido do seu
cargo de Mestre da Moeda de Minalkar.
— E me demiti mesmo, mas aceito o cargo de Conselheiro Militar. Eu
preciso mesmo de bastante dinheiro para abrir meu negócio. Agora, vamos
dar um jeito de dormir, Rubyo, pois o primeiro passo do nosso plano de
retomar Minalkar começa com o dia de glória da sua coroação... e afinal, o
que poderia dar errado amanhã?
Capítulo 22: A Coroa
Rubyo acordou com alguém batendo pesadamente à porta. Olhou ao redor e
viu que já havia amanhecido, e ficou surpreso com o tanto que dormira.
Gary seguia dormindo na cama ao lado, que era de Argus, não demonstrando
nenhum incômodo com o barulho. Rubyo pegou sua espada e desceu as
escadas, ainda descalço, em direção à porta da frente. Ao abri-la, encontrou
Ollaff e Jessyann.
— Bom dia, meu Jovem Rei! Achei que não escutaria as batidas.
Espero que tenha tido um sono revigorante. — disse Ollaff, com um sorriso
animado.
— Bom dia, mestre! Por favor, entrem, está frio! — respondeu Rubyo,
escondendo a espada atrás da porta.
O casal entrou na casa, trazendo com eles uma pequena cesta com um
cheiro maravilhoso de pão fresco. Quão logo entraram, Gary despontou na
escada, quase enfeitiçado pelo perfume da massa assada.
— Eu trouxe para vocês, Rubyo. Duvido que tenham feito uma refeição
decente ontem. — disse Jessyann, docemente, entregando a cesta para o
anfitrião.
— Obrigado, senhora Jessi, estamos mesmo muito famintos! — gritou
Gary, descendo as escadas o mais rápido que sua perna lhe permitia.
Os quatro se sentaram à mesa. Rubyo levantou-se e pegou um pedaço
de queijo que tinha na dispensa e serviu o horrível vinho de Argus para seus
convidados. Ollaff propôs um brinde em memória de Argus e de Bokko, e
todos bateram suas canecas de madeira ao centro da mesa, bebendo em
silêncio. Sem mais cerimônias, Rubyo e Gary atacaram os pães que estavam
na cesta. Enquanto comiam, Ollaff disse:
— Meu senhor, venho com boas notícias. Ontem, quando chegamos,
fomos até a taverna Sol Vermelho e contei para o barão sobre as nossas
novidades. Ele ficou extremamente feliz com a notícia, assim como todos os
minalkarianos que estavam no local, além de surpresos por suas conquistas.
Todos entenderam a urgência da questão e a necessidade de manter o
segredo de Lucrécia, então ficaram de repassar para suas famílias e amigos
minalkarianos os acontecimentos, sem grandes alardes, para não chamar a
atenção.
— Mas não é arriscado fazermos a cerimônia na taverna, mestre? Por
mais que eu confie em nossos irmãos, celebrarmos bem no meio da cidade é
loucura... — disse Rubyo, com a boca cheia.
— Sim, meu Rei, e é por isso que decidimos realizar a cerimônia na
fazenda Iktar, mantendo os olhares curiosos longe do nosso povo. Hoje
encontrei alguns minalkarianos no caminho até sua casa, e nunca os vi tão
animados e felizes, desde que nos mudamos para cá.
Rubyo ficou com seus olhos marejados de emoção, pois temia que a
notícia de sua coroação não fosse bem recebida pelo povo. Gary aproveitou
a deixa e, orgulhoso, começou a contar sobre o plano para a retomada de
Minalkar, que desenvolveram na noite anterior. Ao ouvi-lo, Jessyann olhou
para Ollaff de maneira estranha. O ancião pareceu dividido sobre o que
responder diante da empolgação dos jovens.
— Sinceramente, me parece um excelente plano, jovem Bortolly, e não
consigo pensar em um melhor nesse momento! Temo apenas que, talvez, não
poderemos ajudá-los dessa vez... Jessi e eu ainda estamos decidindo o que
faremos daqui para frente, mas, sem dúvidas, uma guerra não está em nossos
planos.
Gary pareceu um pouco desanimado e frustrado com a resposta de
Ollaff, mas Rubyo seguiu confiante.
— Eu entendo, mestre, e sei que não poderia lhe pedir mais nada, além
de tudo o que já fez por mim. Gostaria apenas, se possível, que ajudassem a
me encontrar com a liderança de Michello. Após minha coroação, vou direto
para lá, para discutir a participação deles na retomada de Minalkar. Sei que
eles prezam pela imparcialidade política, mas como também estão sendo
alvos dos orcs, creio que uma aliança seja algo produtivo.
Ollaff ficou surpreso com o pedido, mas muito orgulhoso da perspicácia
e sabedoria que Rubyo vinha demonstrando.
— Com certeza, meu senhor, isso será providenciado! Mas deixemos
para amanhã as preocupações de amanhã, pois hoje é um dia de festa! Sua
coroação será no fim da tarde, não esqueça de levar o anel e a espada... e
vista a melhor roupa que puder!
Rubyo concordou, apesar de sentir vergonha em confessar que aquelas
vestes que usava já era sua melhor roupa.
— Espero que a senhora Rose consiga uma folga no castelo para ir à
coroação, ela saiu apressada daqui ontem. Você também a achou um pouco
estranha, mestre?
— Rosalind? Não a vi ontem, meu senhor. Talvez tenhamos nos
desencontrado, mas se você já contou a ela sobre nosso sucesso, ela com
certeza dará um jeito de estar na coroação. Agora, peço que me perdoe, mas
precisamos ir, temos muito o que preparar para sua cerimônia!
Ollaff e Jessyann se despediram, prometendo encontrá-los no fim da
tarde. Gary aproveitou a deixa e foi embora, agradecendo ao amigo pela
hospedagem e pela oportunidade daquela viagem. Ao fechar a porta, Rubyo
sentiu uma solidão enorme invadir seu corpo. Seria a primeira vez que
estaria sozinho em casa, sem a esperança de que seu tio chegaria a qualquer
momento. Para não ser envolto pela tristeza, começou a arrumar a cozinha
com um sentimento estranho de que, se deixasse bagunçado, Argus se
zangaria pela desorganização. Rubyo assobiava alguma de suas canções
favoritas para tentar afastar aquele incômodo silêncio que pairava no ar,
lamentando por não ter mais nenhum instrumento musical em casa.
Com a cozinha arrumada, subiu novamente as escadas, abriu a janela do
quarto e arrumou as camas. Rubyo percebeu que, no canto do quarto, estava
o baú que seu tio sempre deixava fechado, o qual era proibido de mexer.
Porém, agora não haveria mais castigo por sua desobediência, então o jovem
pegou o punhal debaixo de seu travesseiro e passou a cutucar a fechadura do
baú, assim como Gary ensinara-lhe, até ouvir um clique da abertura do
mecanismo.
Ao abrir o baú, percebeu que tinha pouca coisa lá. Encontrou apenas
um saco de estopa com algumas roupas dentro e um livro com capa de
couro, idêntico ao diário de seu pai. Rubyo tirou tudo do baú e colocou em
cima da cama, abrindo o livro com pressa, para se surpreender com o fato de
que, assim como seu pai, Argus também mantinha um diário. O jovem nunca
havia visto seu tio escrevendo nele, mas, realmente, as páginas estavam
quase completas, contando vários acontecimentos, desde os tempos em que
Argus se tornara general, até a véspera da saída deles em busca do anel de
Edmund.
Deitando-se na cama, Rubyo passou a ler desesperadamente o diário de
seu tio, aprendendo um pouco mais sobre ele, sobre seu pai e sobre a história
de sua família. Era reconfortante e, ao mesmo tempo, doloroso, perceber a
cada página que seu tio era ainda mais honrado e nobre do que ele já sabia;
fora o carinho e o amor com que seu tio o retratava nas páginas,
evidenciando o quanto Rubyo era amado por ele.
Em uma das passagens, datada de quase um ano antes, Argus detalhava
o plano que fizera com Ollaff e Rose sobre o anel e, curiosamente, Rosalind
se recusava a fazer uma túnica real para Rubyo utilizar, se um dia fosse
coroado. Argus suspeitava que Rosalind, com seu perfeccionismo, se
preocupasse em fazer a roupa antes, sem previsão de quando usaria e, por
isso, poderia não servir no jovem rei, que crescia rapidamente. Porém, Argus
parecia confiante com o plano, então contratou um alfaiate com suas poucas
economias, encomendando uma túnica que pudesse ser ajustada a qualquer
tamanho, através de um sistema de cordas em suas bordas. Rubyo lamentou
que jamais veria aquela roupa... ou não. Ao olhar para o saco de estopa sobre
a cama, seu coração disparou.
Rubyo retirou a túnica do pacote e, sem dúvidas, era a roupa mais linda
que já vira em toda sua vida. A túnica era idêntica à que seu pai utilizava nas
pinturas que viu em Minalkar, toda azul marinho, com um enorme sol
vermelho estampado na frente e nas costas, com uma capa branca que descia
dos ombros até os joelhos, presa por uma corrente dourada cruzando o peito
e por um pingente de dragão, idêntico ao dragão de madeira de Edmund I.
O jovem rei não teve coragem de vestir aquela roupa nas péssimas
condições de higiene em que estava, então desceu para a parte de trás da
cozinha, para se lavar no enorme barril em que captavam água de chuva. Ao
tirar as roupas que vestia, Rubyo jogou fora o que restara de sua armadura de
couro e madeira, toda destruída pela luta com Inak e pela queda no poço.
Despido, o jovem tocou com cuidado na cicatriz em seu ombro e na
queimadura elétrica em seu peito, mas não doíam mais. Após se lavar na
água fria, o jovem pegou uma tesoura na cozinha e, utilizando a água do
barril como reflexo, acertou o corte de seu cabelo. Uma barba rala já crescia
em seu rosto, principalmente no bigode, mas preferiu tirá-la, usando a
lâmina de seu punhal.
Rubyo andava de um lado para o outro, esperando as horas passarem,
mas parecia que o sol não queria se deitar naquela tarde. Cansado de esperar,
Rubyo resolveu adiantar sua ida para a cerimônia e aguardar lá mesmo o
início. Vestiu sua túnica, ajustou seu tamanho com o mecanismo de cordas,
pendurou a capa, pegou um velho cinto de seu tio e o fechou na cintura. Não
tinha nada de bom para os pés, então teve que se contentar com um velho
sapato de couro que tinha no fundo de seu baú, que apesar de apertado, era o
que estava menos surrado. Guardou os ovos de fênix e os diários de volta no
baú, trancando-o novamente. Rubyo pendurou a Sabedoria em sua cintura,
penteou os cabelos para trás num rabo de cavalo e seguiu caminhando sem
pressa, para não chegar tão cedo na festa.
O jovem rumou sentido sudoeste, pela estrada lamacenta que cortava
sua vila, em direção contrária à cidade, tomando todo o cuidado do mundo
para não sujar suas vestes. Ao ver a condição da estrada, Rubyo preocupou-
se em como Gary seguiria por aquele caminho acidentado. Ao longo do
percurso, Rubyo encontrou dezenas de minalkarianos que foram
acompanhando o jovem, perguntando se os boatos sobre seus feitos eram
verdade. Era uma bela novidade ver todo mundo tão amistoso assim com ele,
e era uma sensação maravilhosa. Rubyo não se lembrava de ter sido tão feliz
na vida.
Chegando na fazenda, no início do pôr do sol, uma multidão já estava
formada, ficando ainda maior ao se unir com o grupo que acompanhou
Rubyo pelo caminho. Mecanicamente, todos abriam caminho para a
passagem do jovem, realizando grande reverência. Rubyo percebeu, com
surpresa, que mesmo aqueles jovens minalkarianos que tanto zombavam
dele, olhavam-no com orgulho e esperança. O caminho se abriu até o centro
do evento, bem em frente à antiga sede da fazenda, onde um pequeno
palanque de madeira havia sido construído de maneira improvisada. Uma
cadeira de madeira bem trabalhada estava sobre o palanque, com alguns
ramos de flores aos pés, e um sol vermelho pintado em suas costas.
Ollaff estava em pé ao lado dessa cadeira, vestindo um robe azul escuro
com vários sóis vermelhos estampados. Um chapéu branco e pontudo cobria
sua careca, indicando a formalidade daquele evento. Rubyo notou que Ollaff
já estava com um novo cajado, idêntico ao que fora destruído nas
catacumbas. Perto dele estava Jessyann, ainda mais linda, com seus longos
cabelos negros presos numa trança encaracolada repousando em seu ombro,
usando um vestido púrpura que quase brilhava, assim como o cristal de sua
tiara.
No pé da escada do palanque, o casal Bianco estava visivelmente
emocionado, puxando calorosos aplausos para Rubyo, que seguiu
caminhando lentamente em direção ao trono. Ao subir os degraus, o jovem
olhou para a multidão que o admirava, procurando entre eles os rostos de
Rosalind e de Gary, e talvez o olhar de seu tio. Ollaff se aproximou dele em
cima do palanque, batendo o cajado no chão e pedindo silêncio. A plateia
respeitou, calando-se uniformemente.
— Amados irmãos minalkarianos, eis diante de vós a presença de seu
príncipe, Rubyo Hant, filho único do nosso amado rei Edmund VI! Nosso
príncipe se apresenta a vocês utilizando o Anel de Edmund, símbolo do
juramento de seus antepassados à família real!
Ollaff pegou a mão direita de Rubyo e a levantou, expondo o anel para
a multidão.
— Nosso bravo príncipe desceu até às catacumbas do reino, enfrentou
os fantasmas de seu passado e venceu seus inimigos usando a Sabedoria de
sua família!
Instintivamente, Rubyo sacou sua espada e brandiu-a ao alto, levando a
multidão à loucura. Era incrível ver aquele espírito patriota nos refugiados.
— Por fim, esse destemido guerreiro entrou na cidade militar dos orcs,
desafiou Inak e o enviou para as trevas eternas de Harddam, recuperando a
coroa do nosso povo! — gritou Ollaff para a multidão, levantando a coroa de
Minalkar para que todos vissem a relíquia. — Eu lhes pergunto, povo de
Minalkar, quem poderá nos levar de volta à nossa terra?
— Rubyo! — gritou a multidão, uníssona.
— Quem poderá desafiar o exército de orcs e expulsá-los de nossos
lares?!
— Rubyo! — respondeu novamente o povo, aos gritos.
— Quem poderá restaurar toda a glória de nossa amada Minalkar?! —
gritou Ollaff, inflamando a multidão.
— Rubyo! Rubyo! Rubyo! — a multidão irrompeu em aclamação.
Ollaff, mais uma vez, bateu seu cajado no chão, pedindo silêncio. Ao
consegui-lo, conduziu Rubyo até o trono e o sentou com a espada no colo,
enquanto Jessyann ajeitava, com cuidado, a capa do jovem. Ollaff entregou o
cajado para sua esposa e posicionou-se atrás do trono improvisado,
levantando a coroa acima da cabeça do príncipe.
— Rubyo Hant, filho de Edmund Aureus VI, herdeiro legítimo e
incontestável do trono de Minalkar, você aceita o fardo de carregar as dores
de seu povo? Aceita a sorte de dividir com eles as suas glórias? Aceita
sacrificar seus desejos, e até mesmo sua vida, em prol de seu povo?
— Sim, eu aceito. — respondeu Rubyo, firmemente.
— Então eu, Ollaff Morrenn, ungido Mestre da Ciência e guardião da
história de nosso reino, nomeio você como rei e protetor de Minalkar.
Levante-se, Rei Rubyo Hant I!
Rubyo sentiu o peso da coroa em sua cabeça pela primeira vez e
levantou-se devagar, com medo de que ela caísse. Mas não caiu. A coroa
encaixava perfeitamente em sua cabeça. O Rei de Minalkar levantou a
Sabedoria e brandiu novamente para o alto, fazendo a multidão irromper em
aplausos. Rubyo virou sua espada com a ponta para baixo e cravou-a no
chão, colocando seu punho direito na frente da testa, expondo, com orgulho,
o sol de Minalkar queimado em sua pele. O povo todo repetiu o mesmo
gesto, exibindo as marcas feitas à mando de Lucrécia para segregá-los.
Rubyo virou-se e abraçou Ollaff, que estava em lágrimas de emoção pela
conquista do jovem.
De repente, uma corneta ressoou no ar, vinda da direção da capital,
seguida do som de incontáveis passos pesados, marchando e fazendo o chão
tremer um pouco. A multidão foi cercada por vários soldados, que usavam o
manto negro e ostentavam escudos com o polvo cinzento estampado, não
permitindo que ninguém fugisse. Rubyo percebeu que algo maior se movia
entre as árvores que os cercavam, vindo em sua direção, mas não conseguia
entender o que era. Os guardas começaram a abrir caminho, até que a figura
oculta de um enorme crocko se revelou — e sobre seu lombo, Lucrécia
estava montada em uma sela.
Ao ver Rubyo, a rainha gritou:
— Vida longa ao Rei Rubyo, o bastardo de Minalkar!
Capítulo 23: Lucrécia
Lucrécia Wanda Lurullo era a filha mais velha do rei Louis de Alferius,
descendente direto do segundo filho de Ottonni, pai dos oito fundadores do
reino. A rainha tinha uma beleza exótica que conseguiu resistir à idade, mas
nem seus traços finos e delicados conseguiam quebrar a imagem fria e
amarga de seu rosto. Era uma mulher alta e esguia, com um nariz pontudo e
perfeitamente arrebitado, combinando com seu queixo proeminente que
sustentava lábios finos, guardiões de dentes perfeitamente brancos e
alinhados. Sua tez clara combinava com os cabelos loiros e lisos, presos num
coque alto, contrastando com as vestes negras que utilizava, e ostentando o
brasão de sua família com o polvo cinzento em prata e dourado.
Quando Lucrécia viu Rubyo no alto daquele palanque, com a coroa de
Minalkar e as mesmas vestes de seu finado marido, não conseguiu impedir
sua mente de retornar às lembranças de sua juventude e a todo o drama do
seu falido casamento.
Lucrécia era uma jovem linda e doce, muito orgulhosa do nome de sua
família e do prestígio que vinha dele. Mas, com o nascimento de seu irmão,
Adonnis, Lucrécia, por ser mulher, perdeu o direito ao trono de seu pai, e
sempre deixou clara a sua insatisfação. Desde criança, ela ouvia sua mãe
reclamar da vida figurativa que vivia sendo uma rainha, mas sem poder
nenhum, presa num casamento arranjado com o rei e reduzida a um objeto
utilizado para o prazer e para reprodução dos herdeiros de Louis. Lucrécia
não queria aquela vida; ela desejava tomar as rédeas de seu destino e assumir
o poder enraizado em seu sangue.
Vendo a relação conflitante entre seus filhos, Louis sabia que a
transição de seu trono não seria algo simples, pois, conforme cresciam, a
corte se dividia no apoio entre eles. Adonnis não fazia questão de esconder
sua preferência pela companhia de outros homens, e aquele fato colocava em
xeque o apoio da nobreza à sua reivindicação ao trono. Por outro lado,
Lucrécia se demonstrava uma sábia administradora, auxiliando seu pai em
decisões importantes no reino, o que aumentava seu prestígio político frente
à corte.
Apesar da transição natural do trono ao primogênito garantir o direito à
Lucrécia, Alferius nunca havia tido uma rainha antes, e isso preocupava
Louis. Mesmo desejando que a filha assumisse seu trono, o rei sabia que
aquele apoio velado da corte poderia ser apenas uma forma de seus primos
tentarem usurpar a coroa após sua morte, justificando a ilegalidade de uma
mulher no trono, portanto, era melhor que Adonnis assumisse o seu lugar,
apesar de não ser o príncipe mais querido do mundo.
Para tentar resolver esse conflito, Louis resolveu casar sua filha com o
rei de Minalkar, Edmund VI, que buscava uma aliança com Alferius através
do casamento. Lucrécia não queria se casar e muito menos deixar Alferius,
mas, ao conhecer seu pretendente, tudo mudou. Apesar de ver os
minalkarianos como um povo menos importante e forte do que os alferianos,
Lucrécia não conseguiu lutar contra seus sentimentos ao conhecer Edmund,
apaixonando-se à primeira vista. A princesa encantou-se com a beleza do rei
de Minalkar, por seu tom de voz sempre comedido, por sua postura, e até
mesmo por seus cabelos perfeitamente bagunçados pela coroa.
Em poucas semanas, a princesa se mudou para Minalkar com uma
pequena comitiva de membros da corte de Alferius, para preparar o
casamento. Separada de Edmund apenas por algumas portas na torre de
Minalkar, Lucrécia desejava ceder à luxúria enquanto esperava os dias até a
cerimônia, mas Edmund a recusava em sua cama, dizendo que deveriam
esperar o casamento para a consumação. A noiva ficava ainda mais
apaixonada a cada dia e admirada pela nobreza de seu marido e fidelidade
aos antigos costumes, enquanto seu corpo ardia de desejo pelo futuro
marido. Porém, o amor e a admiração caminham numa linha muito tênue
entre o ódio e a repulsa — e qualquer sentimento bom que Lucrécia nutria
pelo rei transformou-se no mais profundo e amargo ressentimento ao
descobrir sobre Elysa.
Poucos dias após seu casamento, Lucrécia descobriu que seu marido
teria um filho bastardo de uma antiga namorada plebeia. A rainha entendeu
que Edmund a recusava em sua cama antes do casamento não por sua honra,
mas porque Elysa ocupava a cama do rei. Mais difícil ainda era saber que
essa devassidão geraria um fruto que, um dia, disputaria poder com ela,
assim como sofrera com seu irmão, Adonnis.
O povo nas ruas de Mundy riam de Lucrécia, com piadas baixas sobre a
traição que sofrera, sendo alvo até mesmo de peças de teatro que a
colocavam como uma jovem tola que atravessou o continente para ser traída.
Sua situação em Minalkar estava insustentável, mas, para Lucrécia, era tarde
demais, pois já estava casada com Edmund, e as leis matrimoniais sagradas
da Trindade não permitiam que houvesse uma separação.
Lamentando para seu pai sobre o ocorrido e sobre a vergonha que
aquela traição traria para o reino de Alferius, Lucrécia convenceu o rei Louis
a quebrar o pacto militar que assinara com Edmund, por pura vingança
contra Minalkar. Para justificar a quebra do acordo frente ao Conselho dos
Três Reinos, composto por Alferius, Minalkar e Laghuna, Louis justificou
que não protegeria um reino onde um bastardo fosse o herdeiro, mas que
voltaria atrás na proteção caso Lucrécia gerasse um filho homem do rei, ou
se Edmund renegasse seu filho.
Edmund VI, ciente do risco que seu reino corria, tentou
desesperadamente reconquistar Lucrécia e gerar nela um filho, mas a rainha
não aceitava se deitar com o rei, deixando Minalkar vulnerável ao ataque dos
orcs. Edmund aceitou o risco, e decidiu que assumiria seu filho,
independente do impacto político de sua ação.
Com o iminente cerco de Mundy pelas tropas de Inak, Lucrécia tentou
deixar Minalkar, mas foi impedida por Edmund, que deseja utilizá-la como
moeda de troca e forçar Alferius a vir defender suas muralhas. Apesar do
plano de Edmund VI não sair como desejava, Lucrécia intermediou um novo
acordo entre seu marido e seu pai, que garantiria refúgio aos minalkarianos
caso ela chegasse viva em Alferius.
De volta à sua casa e já viúva, Lucrécia viu-se livre das amarras do
casamento e poderia, novamente, disputar o reino de Alferius. Depois de
tudo o que sua filha passou, Louis não teve coragem de forçá-la num novo
casamento, voltando ao impasse sobre a sucessão. Lucrécia, ao descobrir
sobre o relacionamento que seu irmão mantinha com o general das tropas
reais, convenceu ambos a deixarem Nenáreah para viverem juntos como
comandantes da Fortaleza de Assylan, ameaçando revelar a todos o que
acontecia no quarto do príncipe caso não aceitassem.
Com o caminho livre para o trono de Alferius, Lucrécia esperou a
morte de seu pai para ascender como a primeira rainha da história, gerando
uma divisão no povo que ainda preferia Adonnis no trono por não se
conformar com essa mudança tão grande na tradição. Porém, através do
apoio da nobreza, conseguiu se manter no poder.
Nutrindo um enorme ressentimento pelo povo de Minalkar, quão logo
assumiu o trono, Lucrécia resolveu se vingar. Utilizando alguns espiões que
mantinha entre o povo, descobriu que Argus III, seu ex-cunhado, havia
conseguido comprar uma porção de terra perto da cidade, onde centenas de
refugiados formavam uma espécie de vila comunitária em forma de fazenda,
conseguindo, assim, prosperar e ter uma vida digna em solo alferiano.
A rainha sabia que não podia quebrar o pacto que seu pai fizera diante
do Conselho dos Três Reinos sem uma justificativa, com risco de iniciar uma
guerra contra Laghuna, então procurou brechas no acordo. Ao perceber que
os minalkarianos não poderiam formar comunidades ou embaixadas em
Alferius sem a aprovação da coroa, Lucrécia mandou destruir a fazenda Iktar
e determinou que todo minalkariano deveria ser marcado no punho direito à
ferro quente, para não se misturar com os alferianos.
A decisão da rainha não foi bem-vista por seu próprio povo e pela corte,
o que a impediu de seguir adiante em sua vingança, pois temia perder seu
apoio, e com ele, o trono para o irmão. Apesar de suas atitudes não
estancarem as mágoas que tinha de Minalkar, saber que o bastardo de seu
marido estaria para sempre na miséria abrandou o ódio da rainha.
Com o trono em suas mãos e com sua vingança parcialmente realizada,
só restou a Lucrécia seguir sua vida como rainha, aguardando pacientemente
o dia em que os minalkarianos dessem um passo em falso para que ela
pudesse legalmente agir contra eles e terminar de vez com o que restou
daquele reino caído do norte.
Capítulo 24: Sacrifícios
— Vida longa ao Rei Rubyo, o bastardo de Minalkar!
Lucrécia, de cima de seu crocko, aplaudiu ironicamente ao olhar para
Rubyo, coroado, em cima daquele palanque. A multidão estava num silêncio
sepulcral, olhando atônitos para a rainha, que parou de aplaudir e olhou para
eles, gritando:
— Então é assim, Minalkar, que vocês agradecem por minha
hospitalidade? Se ajoelham a um outro rei? Preferem um maldito bastardo,
que não tem nem o que comer, do que a mim, sua benevolente salvadora?!
A multidão seguia emudecida. O barão Bower Bianco, aos pés do
palanque, tentou falar algo para a rainha, mas quão logo abriu a boca, foi
golpeado no estômago por um soldado, que o jogou no chão. Ao ver a cena,
Rubyo sentiu sua mão direita começar a formigar e tremer, irradiando um
calor do anel para todo o seu corpo, aumentando ainda mais sua ira, quase a
ponto de não conseguir se controlar e partir para cima daquele exército,
ainda que sozinho. Ollaff notou a agitação de seu rei, assim como percebeu a
luz fria que emanava da pedra negra do anel de Edmund, e resolveu agir
antes que Rubyo perdesse o controle.
— Vossa Majestade, nossa amada rainha, peço que nos perdoe por esse
enorme mal-entendido! — disse Ollaff, fazendo uma enorme reverência e se
prostrando de onde estava. — Não entenda isso como uma traição, minha
senhora, é apenas a celebração de uma tradi…
— Calado, sua serpente velha! Não me venha com seus truques e jogos
de palavras, pois conheço bem o que é capaz de fazer com sua fala! Eu não
confio em você, assim como não confio nesse bastardo ou em qualquer outro
maldito minalkariano! Exceto por uma pessoa. Obrigada, Rosalind, por
cumprir seu juramento real e defender sua rainha!
Alguns guardas que cercavam a multidão abriram uma passagem e,
dela, surgiu Rosalind, caminhando lentamente e cabisbaixa, enrolando
nervosamente os dedos em sua roupa, como se sua mão não parasse de
transpirar e precisasse secá-la a cada momento. Rubyo, ao ver sua velha
amiga, tentou não entender o que havia acontecido, olhando diretamente
para aquela senhora que tanto amava, mas seu olhar não era correspondido,
assim como, provavelmente, o seu amor.
— Me perdoe, Rubyo, mas minha família não poderia ter seu nome
manchado novamente, com outra traição ao rei que serve... — disse
Rosalind, em voz alta, olhando para seus pés.
— Maldito sejam os Cowas! Traidores imundos! — gritou Marilyn
Bianco, que estava abaixada ajudando seu marido, mas foi surpreendida por
um chute em seu rosto, caindo ao lado de Bower, com a boca cortada e
sangrando.
Rubyo seguia em silêncio, incrédulo e tremendo. Ele temia que se
movimentasse um só músculo de seu corpo, perderia totalmente o controle
de suas ações, como foi contra Inak. Toda a raiva que sentia até aquele
momento se transformou num sentimento de tristeza e de luto, pois era como
se a doce senhora Rose, a quem ele tinha como uma mãe, estivesse acabado
de morrer diante de seus olhos. Ele até tentou falar algo, mas a voz
simplesmente não saiu.
— Não façamos disso um drama desnecessário. — disse Lucrécia, em
voz alta. — Rosalind jurou servir à casa de Lurullo quando veio para nosso
castelo, e assim o fez, ficando de olho nos passos dos verdadeiros traidores
de nosso reino: esses malditos conspiradores de Minalkar! Sei que almejam
minha coroa, e por isso, Rosalind...
— Eu nunca quis e nunca vou querer sua coroa, velha maluca! Você é
suja, mesquinha e vil, deixando nosso povo apenas com migalhas, enquanto
arrota benevolência! Mesmo aqueles que se deram bem em Alferius, só têm
o que comer porque pagam impostos caríssimos para bancar a vida luxuosa
que você leva em seu castelo! — desabafou Rubyo.
— Como ousa falar assim comigo, seu mendigo bastardo?! — gritou
Lucrécia. — Acha mesmo que é um rei de verdade, a ponto de falar em tom
de igualdade comigo? Cadê seu exército? Cadê o seu reino?! Você não tem
nem mesmo um trono, apenas essa cadeira ridícula que montaram para te
agradar! Você pode ter toda a arrogância de seu pai, mas não é nada do que
ele era, e não tem nada do que ele tinha! E mesmo que tivesse, olhe onde ele
acabou…
— Meu pai salvou sua vida, velha ingrata! — gritou Rubyo, no mesmo
tom de voz que Lucrécia, para desespero de Ollaff. — E vendo quem você é,
não me surpreende que ele tenha preferido uma plebeia como minha mãe, ao
invés do poço de fel que transborda de você!
Lucrécia não conseguiu disfarçar o quanto as palavras de Rubyo a
afetaram, respondendo ao insulto apenas com um grito de ódio que mais
parecia de dor. A rainha, então, fez um gesto com sua mão esquerda, fazendo
com que alguns guardas subissem ao palanque onde Rubyo estava. O rei de
Minalkar, que já estava armado com sua espada, girou a lâmina no ar e
colocou-se em posição de ataque, sedento pelo sangue daqueles soldados,
porém Ollaff deteve sua mão.
— Meu Rei, isso vai virar um mar de corpos e vamos nos afogar no
próprio sangue de Minalkar! — disse Ollaff, desesperado, segurando a mão
direita de Rubyo, que emanava uma luz ainda mais forte do anel negro.
Tremendo e fazendo uma força descomunal, Rubyo conseguiu baixar
sua espada, deixando os guardas se aproximarem. O primeiro deu-lhe um
chute na boca do estômago, deixando-o de joelhos. O segundo sacou um
punhal da cintura e colocou no pescoço de Rubyo, segurando sua cabeça
para trás, fazendo-o olhar para a multidão que, ao ver seu rei em perigo,
começou a gritar e empurrar os soldados que os cercavam, recebendo chutes
e socos como resposta.
— Calados! Calados! — gritava Lucrécia, mas sem sucesso.
Logo atrás de Lucrécia, outros dois crockos estavam sendo montados
em selas parecidas como a sua. Em um deles, um homem fortemente
armado, com armadura negra lustrada, ostentava sua capa dourada de
general das forças de Alferius, com seu rosto coberto pelo elmo em forma de
polvo. No outro crocko, uma mulher muito branca, com cabelos negros
assim como seu vestido, estava montada no réptil gigante, segurando as
rédeas com uma mão, enquanto, na outra, carregava um cajado parecido com
o de Ollaff. Em seu rosto, uma tatuagem de serpente escorria de sua têmpora
até o pescoço. Lucrécia fez um gesto e a maga sussurrou algo, mirando para
cima seu cajado e causando um enorme som de trovão, que calou a multidão
novamente. Aproveitando o silêncio, Lucrécia falou:
— Rubyo, serei extremamente pragmática com você, e olha que isso é
muito mais do que você merece. Seu povo cometeu um crime de alta traição
contra o meu reino quando decidiu se ajoelhar a outro rei dentro de meus
domínios. A sentença é a morte, de todos. Mas, diante da minha exemplar e
famosa benevolência, eu aceito que você pague com sua vida o perdão ao
seu povo.
Todos os presentes olharam instantaneamente para Rubyo, que seguia
ajoelhado, com seus braços presos por dois guardas, enquanto o terceiro
segurava o punhal em seu pescoço. Rubyo, que até aquele momento estava
dominado pelo ódio, respirou fundo ao ouvir aquela proposta e passou a
controlar seus batimentos e sua mente, para analisar melhor toda aquela
situação. O rei fechou seus olhos, abaixou a cabeça o máximo que a lâmina
em seu pescoço permitia, e começou a ponderar sobre a proposta.
Rubyo sabia que o plano que desenvolvera com Gary, apesar de
plausível, seria extremamente difícil de ser executado, e que provavelmente
não teriam sucesso, fazendo com que todo o esforço e sacrifício de seu pai e
seu tio tivessem sido em vão. Seu pai e seu tio... ambos se sacrificaram pelo
povo de Minalkar. Seria essa a sina dos reis do Norte? O desejo de Rubyo
sempre foi devolver ao povo o seu lar, mas, talvez... apenas talvez... Gary
estivesse certo, e Alferius já fosse o lar em definitivo daqueles refugiados.
Sentindo uma estranha paz em seu coração, Rubyo entendeu que sua função
não era devolver a terra para seu povo, mas sim, a paz e a liberdade,
indepente do preço. O rei de Minalkar então levantou sua cabeça, olhou para
Lucrécia e disse:
— Perdão ao meu povo? Não há o que perdoar, pois não cometeram
nenhum crime. Porém, eu aceito os seus termos, desde que prometa devolver
a eles essa fazenda, comprada honestamente pelo meu tio. E que o povo de
Minalkar tenha os mesmos direitos civis que os alferianos. Eles merecem
viver uma vida digna, com impostos justos, e não serem marcados como
gado! Se você estiver de acordo, com prazer, me ofereço como sacrifício
para que meu povo tenha paz, aqui em Alferius.
Lucrécia não conseguiu esconder sua surpresa e ponderou por alguns
momentos antes de responder:
— Você é mesmo tão arrogante quanto seu pai! Mesmo rendido e com
uma lâmina em seu pescoço, ainda acha que está em posição de negociar... é
inacreditável! Mas diante de minha histórica misericórdia, e em memória do
meu benevolente pai, eu aceito suas condições.
Lucrécia fez um novo gesto para sua maga, que desceu da montaria,
caminhou até o lado da rainha, e estendeu o seu cajado com o cristal
próximo a ela, amplificando sua voz:
— Que todo o reino de Alferius ouça o que sua rainha tem a dizer: o
povo de Minalkar, a partir de hoje, será reconhecido como legítimos
cidadãos alferianos e, portanto, terão os mesmos direitos e o mesmo julgo
que qualquer cidadão nativo! Declaro, ainda, o retorno da posse da
Fazenda... qual é o nome da fazenda mesmo? — perguntou Lucrécia para um
soldado próximo, com certo desprezo.
— Iktar, minha senhora, significa esp…
— Declaro ainda que a posse da Fazenda Iktar retorna aos refugiados
de Minalkar, ficando sob a tutela de quem eles elegerem como responsável.
Para tanto, sentencio o seu rei, o bastardo Rubyo, à morte!
Os guardas que cercavam o povo sistematicamente abaixaram seus
escudos e permitiram que quem quisesse, pudesse deixar aquele lugar.
Porém, ninguém ousou sair. O povo de Minalkar seguia olhando atônito para
seu rei, que aceitara dar a vida por eles. Rubyo foi colocado em pé, e o
guarda que segurava o punhal deitou o trono improvisado, utilizando as
pernas da cadeira como suporte para o tronco do rei, debruçando-o sobre a
madeira e deixando sua nuca exposta. O terceiro guarda decidiu, por puro
sadismo, utilizar a própria espada de Rubyo para decapitá-lo, mas assim que
tocou o cabo da Sabedoria, as letras inscritas na lâmina brilharam em
vermelho, liberando um pulso mágico no cabo e decepando todos os dedos
de sua mão.
Ninguém que assistia a cena ousou esboçar alguma reação, exceto a
rainha que, gargalhando, desceu habilmente de seu crocko e caminhou na
direção do palanque, enquanto a multidão abria o caminho.
— Parece que os deuses desejam que eu mesma te execute, bastardinho,
então que assim seja. — disse a rainha, colocando a mão na cintura, sobre o
cabo de sua espada.
Rubyo seguia imobilizado, com seu corpo arqueado sobre o trono
tombado, com a cabeça ainda coroada inclinada para baixo, esperando sua
sentença. O rei olhava fixamente para seu mestre, com um olhar
apaziguador, demonstrando certeza e confiança em sua decisão.
Ollaff tentava desviar sua atenção do olhar de Rubyo, mas estava quase
hipnotizado por aquela cena. O velho mestre tentava pensar em milhares de
desfechos possíveis para aquela situação, e até mesmo cogitou o uso de
magia obscura, mas sabia que qualquer atitude que tomasse resultaria ou na
morte de Rubyo, ou na de Jessyann, ou na de milhares de pessoas que estava
ali. Jessi, apavorada com a situação, sussurrou ao ouvido de seu marido:
— Ollaff, pelo amor de Selline, não faça nenhuma maluquice! Eu não
posso te perder de novo! Você não pode salvar o menino dessa vez, você é
apenas um conselheiro... e eles são dois reis, sacramentados pelas leis
antigas, eles que se resolvam! Por favor, não se meta!
Dois reis... de repente, para Ollaff, o tempo desacelerou enquanto a
rainha subia os degraus do palanque, sacando sua fina espada da cintura,
curvada como o tentáculo de um polvo. Dois reis... leis antigas... O coração
de Ollaff disparou, enquanto as palavras de Jessi se encaixavam, criando
uma resolução lógica para aquela situação.
— Minha rainha, permita-me lembrá-la de uma Lei Antiga do Conselho
dos Três Reinos! “Nenhum rei poderá ser executado em terra estrangeira
por leis que não são consideradas crimes em seus domínios”. A senhora
sabe bem que são as Leis Antigas que regem a paz em nosso continente. E
em Minalkar, ninguém é executado por se ajoelhar perante seu rei natural!
— Não venha usar as leis de meus antepassados contra mim, serpente
velha! Seu bastardo consentiu com a execução, eu não vou voltar atrás! —
disse Lucrécia, chegando ao topo do palanque, olhando no fundo dos olhos
de Ollaff, com a espada em mãos.
— Exatamente, minha senhora... essa lei foi proposta justamente pela
sua família, no segundo conclave entre as três coroas, para se protegerem
dos Cavaleiros de Harddam! Pense no quanto essa execução pode abrir
brechas para que eles quebrem outras leis, Vossa Majestade, prejudicando o
seu povo, sua coroa, e até mesmo sua vida! A senhora bem sabe que o
Império Marrom sempre teve olhos gananciosos voltados para as terras de
Alferius...
Lucrécia pensou em uma resposta rápida para Ollaff, na intenção de não
demonstrar fraqueza, mas, infelizmente, havia sentido nas palavras do mago.
Ainda que o Império Marrom, que domina Laghuna há séculos, não
estivesse disposto a entrar numa guerra aberta contra Alferius, a quebra da
harmonia no Conselho dos Três Reinos poderia implicar em perdas de rotas
comerciais, de terras, e até mesmo do domínio sobre o Rio Dourado. O preço
pelo pescoço de Rubyo era alto demais.
— Pois bem, seu velho maldito... — disse Lucrécia, com os dentes
cerrados e a mão direita pressionando com força o cabo de sua espada. —
Qual seu plano, então? Acha que vou simplesmente deixar esse fedelho
partir? Não posso voltar atrás nas promessas que fiz aos malditos
minalkarianos!
— Não, Vossa Majestade, a senhora cumpriu sua parte no acordo, e
somos muitos gratos por sua infinita misericórdia! Apenas estou alertando
Vossa Graça, senhora do Rio Dourado, de que não precisa tirar a vida do rei
de Minalkar para tornar o acordo justo. Creio que, exilá-lo, já seria o
suficiente.
Lucrécia ponderou as palavras de Ollaff e olhou para a multidão ao
redor. Todos estavam em silêncio; povo, soldados e até os pássaros da
floresta ao redor pareciam se calar, esperando a decisão da rainha. O único
som que se ouvia era do guarda que perdeu seus dedos, gemendo de dor,
enquanto era socorrido por seus colegas. De repente, a rainha olhou
novamente para Ollaff, deu um sorriso de canto de boca e disse em voz
baixa:
— Entenda uma coisa, Ollaff, o bastardo não sairá daqui com vida. Mas
não preciso matá-lo para tirar a vida dele.
A rainha voltou-se novamente de frente para a multidão, abriu um
sorriso delicado e guardou a espada. Em seguida, Lucrécia caminhou na
direção de Rubyo, agachou-se e fez um carinho no rosto do jovem,
colocando-o em pé.
— Meu amado povo de Alferius. Nesse momento, me dirijo a todos
vocês como apenas um. Todos viram que, de maneira justa, esse jovem
consentiu em abrir mão de sua vida pela liberdade de seu povo, porém, não
quero fazer do usurpador um mártir. Esse maldito bastardo não conhecerá a
morte por minhas mãos, contudo, não posso deixar minha misericórdia
transpassar meu senso de justiça e ordem, em respeito às leis da minha
família! Sendo assim, te condeno, Rei Rubyo de Minalkar, à prisão perpétua
em nosso calabouço, não sendo permitido contato com nenhum homem
livre, para que não conspire novamente contra mim. Guardas, levem esse
criminoso para a prisão!
A multidão agitou-se novamente, mas, dessa vez, estava dividida.
Algumas pessoas ainda vaiavam e ofendiam a rainha, mas a maioria aplaudia
e ovacionava sua decisão. Lucrécia fazia reverências ao povo, satisfeita com
a repercussão daquela cena toda, e certa de que conquistara um prestígio
político e popularidade que, talvez, nem seu pai já tivera um dia.
Rubyo, olhando para baixo e sem forças para reagir, viu por entre as
tábuas do assoalho, a figura de Gary, que estava logo abaixo dele no fosso do
palanque, fazendo gestos, indicando sua coroa e seu colar. Assim que os
guardas começaram a conduzi-lo em direção às escadas, Rubyo fingiu um
tropeço e jogou seu corpo para fora do palanque, sendo amparado pela
multidão abaixo. No meio de tantos braços e pernas, Rubyo sentiu-se
tranquilo ao perceber a presença de Gary tomando sua coroa e seu colar
mágico, desaparecendo em seguida no meio da multidão. Quando os guardas
alcançaram Rubyo, o rei não demonstrou nenhum tipo de resistência,
pedindo apenas que se dirigisse à rainha, que descia do palanque, seguida de
Ollaff e Jessyann. A maga, esposa de Ollaff, trazia a Sabedoria em suas
mãos, carregando pela lâmina.
— Rainha Lucrécia, obrigado. Eu prometo que não tentarei fugir ou
agir contra suas leis. Eu aceito, de bom grado, o meu dever para com meu
povo e com sua sentença.
— Espero que sim, bastardo. Saiba que, se um dia você fugir, o acordo
estará desfeito, e seu povo vai sofrer em minha mão como você nunca nem
imaginou!
Rubyo consentiu em silêncio, olhando em seguida para Ollaff, que não
parava de chorar. Estendendo sua mão direita, Rubyo disse ao mago:
— Não vai nem ao menos se despedir de seu rei? — Rubyo deu uma
piscadela para Ollaff, olhando em seguida para o anel real.
Ollaff, sem nada dizer, segurou apressado com as duas mãos a mão
direita de Rubyo, dando um demorado beijo na mão de seu soberano,
enquanto, habilmente, retirava o anel sem que ninguém percebesse.
— Guardas, retirem essas vestes do bastardo! Ele é um condenado e
não um rei! Largue-as no chão, para que sejam saqueadas por seu próprio
povo, assim como fizeram com sua coroa! — disse Lucrécia, sorrindo.
— Não permitirá que seus amigos a guardem, Vossa Majestade? —
perguntou um dos soldados.
— Não, ele nunca mais vestirá nada além de suas roupas de prisioneiro.
Que fiquem com a maldita espada, para que se lembrem de seu fracasso, se
quiserem. Agora, levem-no para sua nova e última casa, pois a maior glória
que esse bastardo merece, é a cela fria da minha prisão!
Capítulo 25: Os Calabouços
Rubyo foi conduzido seminu até os portões do castelo de Alferius,
caminhando cabisbaixo diante de tamanha humilhação. Chegando diante das
Oito Torres Negras, o prisioneiro lamentou que sua primeira oportunidade de
admirar de perto aquela fascinante construção, seria numa situação tão
deprimente e constrangedora. Os seis guardas que escoltavam Rubyo
seguiam levando-o pacificamente, conduzindo-o para a parte de trás do
castelo, enquanto margeavam a muralha que o separava da cidade, até chegar
no cemitério.
O castelo era todo feito de pedras negras e adornado por diversas
estruturas de ébano, mantendo o tom negro por toda aquela construção
colossal. Rubyo estimou que, provavelmente, aquele castelo era duas vezes
maior que o de Minalkar, porém, patriotismo à parte, sua beleza não chegava
nem perto da morada da casa de Edmund.
No centro do cemitério, existia uma pequena edificação feita de pedras
largas e ferro, fechada por uma pesada porta de aço, que se abriu ao sinal dos
soldados que escoltavam o prisioneiro. Lá dentro, outros quatro guardas
aguardavam Rubyo, fazendo-o se despir totalmente e, em seguida,
examinando vexatoriamente cada pequeno espaço de seu corpo, onde
poderia estar carregando alguma coisa escondida. Logo após, fizeram-no
vestir uma túnica bem rústica, acinzentada, mais parecendo um saco de pano
com abertura apenas para a cabeça e os braços, que cobria o corpo do jovem
até os joelhos.
Rubyo foi conduzido por uma escada em espiral até a parte inferior do
calabouço, que ficava abaixo do cemitério. Um dos guardas mais velhos,
parecendo orgulhoso de sua profissão, disse que, em Alferius, até os mortos
são mais importantes do que os prisioneiros. As paredes entre as celas eram
bem grossas, justamente para não permitir a interação entre os presos, mas
mal se podia enxergar lá embaixo, pois apenas algumas das tochas do
corredor estavam acesas, criando um clima de total abandono. O rei de
Minalkar foi jogado na oitava cela, pois todas as anteriores já se
encontravam ocupadas. O jovem não ofereceu resistência ao empurrão,
deixando seu corpo cair no chão, onde ficou largado por algumas horas em
posição fetal. A mente de Rubyo estava absolutamente acelerada, mas seu
corpo parecia pesado e sem forças desde que Ollaff retirara o anel de seu
dedo.
Após algumas horas no chão frio, Rubyo juntou forças e se levantou
para conhecer sua nova moradia. Checou primeiramente as grades, que eram
feitas de ferro grosso fundido e altamente resistente, trancadas por um
enorme cadeado fixado à tranca, para o lado de fora. Do corredor, podia-se
ouvir, de longe, a voz de alguns outros presos, sendo possível distinguir
apenas algumas palavras sobre o novato ser muito jovem para estar preso.
Voltando-se para sua cela, Rubyo percebeu que as paredes dos dois lados
eram todas feitas de pedra, assim como o teto e o fundo da cela, onde existia
uma pequena janela quadrada, do tamanho de dois palmos humanos,
travadas com o mesmo ferro da porta. Da janela, via-se um estreito túnel que
levava até a superfície do cemitério, por onde entrava ar, luz do sol e,
provavelmente, água da chuva — visto a poça que existia ali perto —,
servindo como bebedouro para um rato surpreendentemente grande que não
parecia se importar com a presença de seu novo companheiro de cela.
Da parede do lado esquerdo, emanava um forte odor azedo, por uma
mistura de fezes e urina; local esse que, provavelmente, antigos moradores
daquela cela usavam como banheiro. Dessa parede até a outra, onde existia
um pouco de palha seca, Rubyo contou oito passos. O jovem juntou a palha,
improvisou uma cama bem fina, deitou-se sobre ela e começou a chorar
desesperadamente.
Conforme o tempo passava, Rubyo ia anotando, com um pequeno
fragmento de pedra, a quantidade de dias naquele lugar, riscando um
pequeno espaço na parede que ainda não havia sido rabiscado por antigos
presos. A alimentação era sempre da mesma forma: duas vezes por dia, os
guardas traziam algum tipo de mingau frio, pão endurecido — às vezes, sem
bolor — e, nos dias festivos, restos de comida do castelo, misturados como
uma lavagem para porcos. A água era escassa, vinda pela manhã num
pequeno balde de madeira, sendo necessário racionar para se higienizar,
lavar o banheiro improvisado e, ainda, se sobrasse um pouco e a sede
apertasse, beber aquela água com forte odor de cavalo, pois, provavelmente,
ela era retirada das cocheiras do estábulo real, que ficava ali perto.
Depois de vários riscos na parede, Rubyo resolveu parar de marcar os
dias que iam passando, pois isso só aumentava sua tristeza e revolta. Seus
pensamentos estavam cada vez mais confusos e suas lembranças pareciam
atrapalhadas. Ele tentava evitar pensar em tudo o que viveu e que o levou até
ali, mas o que mais ele poderia fazer naquele lugar senão pensar?
Sua mente, ainda que contra sua vontade, arquitetava planos de fuga
daquele lugar. Ele já era capaz de detalhar os períodos das trocas de guarda,
os costumes de cada soldado, as rotas de patrulha, e, principalmente, os
guardas mais preguiçosos e desatentos, que poderiam cometer pequenos
erros para ajudá-lo a sair dali. Por outro lado, as palavras de Lucrécia
ecoavam em sua mente, lembrando-o do sofrimento que seu povo teria caso
ele fugisse.
Apesar de sentir-se orgulhoso por sua decisão, Rubyo quase se
arrependia de seu sacrifício a todo momento. Com vergonha de si mesmo,
ele confessava para as paredes que, se soubesse o sofrimento que viria, não
teria firmado o acordo com a rainha. Ele sabia que não era justo ter que
pagar por tudo aquilo que herdou, das más escolhas de seu pai, do plano
frustrado de Argus e Ollaff..., mas, por outro lado, seria justo seguir seu
desejo egoísta de fugir, mesmo que isso lançasse centenas de crianças e
idosos numa vida de sofrimento? Era difícil saber o que lhe trazia mais ódio:
o sentimento de injustiça ou saber o quanto Lucrécia se regozijava na vitória
que teve contra ele e sua família.
Será que Argus teria permitido que aquilo tudo acontecesse? E se
Rubyo não tivesse matado Inak, assim como seu tio ordenou? As conjecturas
se ligavam a lembranças, tristezas, lágrimas e ira. Rubyo já não conseguia
mais se reconhecer, tanto fisicamente, quanto em seus pensamentos. O
inverno já deveria estar quase no fim, mas parecia que cada dia era mais frio
que o outro; e quanto mais frio ficava, mais o jovem odiava sua vida. Rubyo
tremia de frio sentado no meio da cela, não se incomodando com o enorme
rato que sempre o visitava e que, desde alguns dias, se aconchegava perto
dele para dividir o calor corporal.
Nos momentos de desespero, Rubyo perdia suas unhas tentando cavar
as paredes, em busca de quem sabe algum cristal mágico que pudesse estar
incrustado nas pedras que o cercavam. Às vezes, encontrava algum
fragmento de pedra um pouco mais brilhante e, em posse delas, Rubyo
tentava falar com todos os elementos, mas nenhum deles o respondia. Ele
daria sua vida por uma pequena fogueira que pudesse espantar o fantasma
gélido do inverno e esquentar um pouco de comida, que pudesse trazer
prazer ao seu estômago.
Numa dessas noites de inverno, a neve escorria do túnel de sua janela,
trazendo com ela o maior frio que Rubyo jamais sentira. Seus lábios estavam
rachados e sangravam. Suas nádegas e testículos doíam de tanto se contrair
pelo contato com o chão frio, abrandado discretamente pelas palhas secas
que os guardas traziam uma vez por semana. Nessa noite, em especial,
Rubyo sentia tanta dor em seu corpo, que sua mente, em desespero, puxou
na memória alguns rituais de magia obscura que lera nos livros proibidos de
Ollaff. As magias negras não necessitavam de nenhum tipo de cristal ou
artefato mágico para serem realizadas, bastava apenas saber os gestos, os
rituais ou as palavras corretas para realizá-las, porém apenas magos muito
experientes ou pessoas sem amor à vida se atreviam a realizá-las, pois,
quando conjuradas, alguma entidade das trevas poderia dominar a mente e o
corpo de quem estivesse realizando, tornando seu usuário um eterno escravo
daquele ser, e se rendendo à loucura.
Sentindo não ter mais nada a perder, Rubyo se concentrou e lembrou-se
do passo a passo do ritual da invocação de fogo amaldiçoado, que era um
tipo de chama que não se apagava com água, apenas com outro feitiço. O
jovem lembrou-se das palavras, doss gestos, e da parte principal do ritual:
precisava de sangue inocente para realizá-lo. No desespero, Rubyo agarrou
seu vizinho rato, fazendo o roedor gritar e tentar mordê-lo. O prisioneiro já
estava com uma lasca de pedra bem amolada para usar como faca, e com a
mão tremendo, aproximou a lâmina improvisada da barriga do pobre animal,
para derramar seu sangue e executar o ritual. Mas, no último momento,
Rubyo olhou no fundo dos olhos de seu companheiro de cela e desistiu,
soltando o roedor, que correu para fora da cela.
Rubyo começou a chorar numa mistura de arrependimento e desespero,
apesar de aliviado por ter resistido àquela tentação, restando a ele apenas
torcer para que seu amigo roedor o perdoasse e retornasse em breve para
visitá-lo. No fim das contas, pelo menos o medo que sentira fez seu coração
disparar, abrandando um pouco o frio.
Mais alguns dias se passaram, sabem os deuses quantos e, numa noite
qualquer, Rubyo foi acordado por uma voz familiar:
— Ei, Rubyo! — disse a voz sussurrante, vinda da direção da porta da
cela.
O prisioneiro, deitado em posição fetal e abraçado com seus joelhos,
virou-se para as barras de ferro da porta da cela e viu uma figura conhecida.
Era Gary. Como já não confiava mais em sua mente, o rei de Minalkar
apenas se virou para o outro lado e tentou dormir.
— Ei, Rubyo, acorde! Sou eu, Gary, e não tenho muito tempo! —
insistiu a voz, sussurrando da porta.
— Gary? É você mesmo? — perguntou Rubyo, descrente.
— Sim, sou eu! Venha aqui perto da porta para conversarmos... e por
favor, feche essas pernas, pois dá pra ver todas as suas vergonhas daqui!
Rubyo, ainda desconfiado, aproximou-se lentamente da porta,
abaixando a túnica para esconder suas intimidades. Gary tentou abraçar o
amigo pelas barras de ferro, mas ele seguia distante, em atitude defensiva.
— Se você é mesmo o Gary, qual era o nome do seu cavalo?
— Rubyo, sou eu mesmo, Gary Bortolly, seu amigo de infância,
vizinho, antigo Mestre da Moeda de Minalkar e seu Conselheiro Militar!
Meu cavalo se chamava Bokko, com dois Kás, mas um maldito troll partiu
ele no meio, então deve estar se chamando apenas Bok, hoje em dia... —
sussurrou Gary, com seu tradicional sorriso sarcástico.
— Pelas tetas de Selline, não acredito que é você mesmo, Gary! —
gritou Rubyo, em prantos como uma criança.
Gary não conseguiu conter as lágrimas ao ver a emoção de seu amigo
por encontrar um rosto familiar, mas, mesmo assim, o repreendeu pelo
barulho que fazia.
— Rubyo, eu não posso demorar... Coloquei os guardas lá de cima para
dormir, e vim ver como você está. Você faz muita falta, meu amigo, e
estamos todos preocupados com você...
— “Estamos”? Quem?! Já estou aqui há uns cinquenta dias e ninguém
veio me visitar antes! — disse Rubyo, com seu humor variando rapidamente
para a ira.
— Cinquenta dias? Meu amigo, na verdade, você já está aqui há mais
de seis meses! Não viemos antes, pois a rainha o proibiu de receber visitas, e
ela fortaleceu a guarnição dos calabouços justamente para impedir que
alguém fizesse o que estou fazendo agora. Precisávamos esperar a poeira
baixar, ou então, que Ollaff conseguisse convencer a Lucrécia de que seria,
de alguma maneira, bom para ela se você recebesse visitas.
— E ele conseguiu? — perguntou Rubyo, surpreso.
— Não, pelo contrário, ele foi proibido de chegar próximo ao castelo
para não importunar mais a rainha. Jessyann me contou que nem mesmo a
velha Rosalind conseguiu dissuadir a megera da Lucrécia.
— Rosalind?! — aquele nome soou estranho para Rubyo, como se sua
mente tivesse apagado a lembrança da senhora Rose de sua memória para
poupá-lo do sofrimento causado pela traição daquela mulher. — Você esteve
com ela?
— Oh, sim, muitas vezes na verdade! Ela vinha sempre até sua casa,
depois que você foi preso. Eu a via chegando até a porta e chorando
copiosamente ao ver a casa vazia. Um dia, eu a convidei para entrar em
minha casa para conversarmos, e isso se repetiu por diversas vezes depois.
Ela realmente parecia arrependida, Rubyo, e repetia que só tinha feito o
juramento para a rainha, porque jamais imaginou que você conseguiria
voltar de Minalkar com o anel para ser coroado.
— E você fez amizade com aquela maldita velha traidora?! —
perguntou Rubyo, grudando as grades com sua ira.
— Sim, fiquei amigo dela! Ela me contava histórias e me ensinava
receitas, enquanto desfrutava da minha presença para suprir a falta que você
fazia na vida dela. Como ela cozinhava bem, né? Melhorei muito nas minhas
receitas graças às dicas que ela me deu. Assei várias tortas para ela como
agradecimento, até que um dia consegui fazer uma receita, daquelas de
matar! — respondeu Gary, sorrindo maliciosamente.
— Vá se foder, Gary! Você espera esse tempo todo para vir me visitar
só para me contar que... — Rubyo pausou sua frase irada, entendendo as
entrelinhas do que Gary quis dizer. — Espere aí, Gary... você literalmente
matou a senhora Rose?
— Claro que não! Quem matou ela foi a morte. Eu só fiz a ponte para
que as duas se conhecessem. — respondeu Gary, orgulhoso. — Eu jamais
perdoaria aquela velha maldita pelo que ela fez com você, Rubyo. Fui
ganhando a confiança dela na intenção de que ela levasse alguma receita
especial minha para a rainha, fingindo que eu queria um emprego na cozinha
do castelo. Mas, aparentemente, ela comeu um pedaço antes da Lucrécia e
caiu durinha na frente da corte toda. Até rolou uma investigação, mas se
convenceram que ela se suicidou pela culpa.
Rubyo foi inundado por um misto de emoções. Há muito tempo ele não
sentia nada além de fome, frio e ódio, mas, naquele momento, vivenciou a
dor do luto por alguém que amava e, ao mesmo tempo, não se lembrava
como era ser amado por alguém, pois seu amigo o vingara de quem o lançou
ali.
— Obrigado, Gary. É reconfortante saber que ainda tenho amigos,
mesmo estando nessa latrina. Meu tio sempre me disse para nunca confiar
em ninguém, e ele tinha razão, se pensar no que Rosalind fez comigo. Mas
sei que, com você, eu posso contar.
— Fico feliz, Rubyo, mas não posso deixar de reforçar também a
amizade do mestre Ollaff e da senhora Jessi. Desde o dia da sua prisão, eles
buscam incessantemente alguma brecha em antigos tratados, Leis Antigas do
tal Conselho dos Três Reinos, e tentaram diversos acordos para te libertar...
mas agora, a Lucrécia já nem os recebe mais. Eu achava que eles iriam
embora depois da sua prisão, mas não, eles ficaram e estão ajudando o povo
a se reerguer na sua ausência.
— A rainha realmente devolveu a fazenda para os minalkarianos?
— Sim! O senhor Bianco vendeu a taverna e investiu o dinheiro em
casas e plantações para o povo, que o elegeram como administrador da
fazenda. Ollaff me contou isso tudo ontem à noite, e me pediu que te
contasse também. Ele, inclusive, disse para você ficar tranquilo, pois todas
as suas coisas estão guardadas em um quarto secreto na livraria.
Ao se lembrar de seus tesouros, o coração de Rubyo se apertou, pois
não conseguia imaginar um futuro em que ele pudesse usá-los novamente.
Mas o simples fato de saber que estavam bem guardados por Ollaff já era
reconfortante. Rubyo permaneceu em silêncio por alguns segundos,
assimilando as informações recebidas, e Gary aguardou o tempo de seu
amigo, esperando que ele fizesse mais perguntas.
— Caso esteja curioso, — sussurrou Gary, quebrando o silêncio. —
Coloquei os guardas lá em cima para dormir através de alguns pães especiais
que fiz para eles, como sinal de agradecimento pelo bom serviço prestado.
Eu mesmo fiz o sonífero. O mestre Ollaff me presenteou com dezenas de
livros de alquimia, e estou usando esse conhecimento e o dinheiro do colar
que você me deu para abrir uma loja de poções. Fique tranquilo, assim que
eu recuperar o dinheiro, vou te pagar o valor do colar.
Rubyo se alegrou pelo amigo, mas não conseguiu deixar de
transparecer sua tristeza:
— Que notícia maravilhosa, Gary, parabéns! Espero que os deuses
abençoem seu negócio. Mas quanto ao pagamento, não se preocupe, pois
creio que nunca mais precisarei de ouro na minha vida... Só de ter sua visita
aqui, para me devolver a sanidade, já vale muito mais que qualquer dinheiro.
Gary sentiu seu coração se apertar ao ver o amigo naquela situação.
Rubyo estava malcheiroso, com os cabelos engordurados e armados de
sujeira, usando uma barba rala, que estava suja de mingau seco. Seu amigo
estava emagrecido e pálido, tendo perdido seus músculos e porte atlético,
que foram trocados por braços e pernas finas, somente pele e osso. Ele
tentou se segurar, mas não conteve a curiosidade:
— Você não pensa em fugir daqui, Rubyo? — perguntou Gary, olhando
para os dois lados. — Sabe que não seria difícil, né?
— Penso sim, meu amigo. Absolutamente todos os dias. Mas ao pensar
no que a rainha faria com meu povo ao saber da fuga, eu acabo desistindo.
Estou a cada dia mais convencido de que esse é meu destino, Gary, e não há
nada que possamos fazer para mudar isso... pelo menos enquanto a Lucrécia
viver ou governar.
— Creio que Ollaff já tenha cogitado isso também. Ouvi ele e a esposa
falando algo sobre assassinar a rainha, mas concluíram que isso não faria
diferença nesse momento. A Lucrécia ganhou muita popularidade depois que
te poupou e integrou os refugiados ao povo de Alferius, e qualquer pessoa
que assumisse o trono no lugar dela, com certeza manteria os decretos, para
manter o mesmo prestígio.
— Sim, eu imaginei... na verdade, já estou me conformando com essa
realidade. É uma merda viver aqui e sentir que estou pagando por erros que
não cometi, mas, por outro lado, o sentimento de dever cumprido, e de ter
honrado meu pai e meu tio, me trazem um certo conforto e paz. —
respondeu Rubyo, com um sorriso forçado, tentando convencer seu amigo
— Eu espero que sim, Rubyo, quero te ver bem. Prometo vir te visitar
todos os meses e sempre que tiver novidades. Já descobri como passar pelos
guardas, então ficará mais fácil vir aqui a partir de agora. Continue firme
assim, meu amigo. Você é, sem dúvidas, a pessoa mais forte que já conheci,
e o rei que todo o povo merecia ter!
Rubyo esticou seus braços e abraçou seu amigo através das grades, que
tentou disfarçar a careta pelo cheiro forte vindo do prisioneiro. Antes de
partir, Gary tirou de seu colete uma bolsa de pano idêntica à que Ollaff
utilizara na jornada até Minalkar, e entregou para Rubyo.
— O mestre me pediu para te entregar, e disse que, talvez, aí tenha tudo
o que você precisa.
Ao entregar a bolsa, Gary entrou na escuridão do corredor mal
iluminado e desapareceu facilmente. Rubyo abraçou a bolsa como se fosse o
próprio mestre Ollaff, e chorou copiosamente, colocando para fora toda a
tristeza que não quisera demonstrar ao seu visitante.
Capítulo 26: Hannambar
Algumas horas depois da saída de Gary, Rubyo conseguiu finalmente parar
de chorar e se recompor, acalmando-se para ver as surpresas que aquela
bolsa mágica continha. Ao enfiar o braço no artefato, Rubyo sentiu sua mão
formigar e esfriar instantaneamente, como se estivesse atravessando um
portal mágico. Sentiu diversos objetos lá dentro e foi retirando um por um.
Primeiro, o jovem encontrou seu colar de cristal, o qual colocou
apressadamente em seu pescoço, respirando com um enorme alívio por ter
sua magia de volta. Com cuidado, escondeu a pedra debaixo da túnica que
usava. Em seguida, Rubyo retirou várias frutas frescas, algumas secas,
pedaços de queijo, de bolo e, até mesmo uma pequena ave assada. O cheiro
da comida começou a se espalhar pelo local, agitando os presos das celas
mais próximas, então Rubyo deu algumas mordidas desesperadas na comida
e guardou de volta na bolsa.
Fuçando mais a fundo, encontrou dezenas de livros lá dentro. Eram
sobre diversos temas: História, Geografia, contos, romances, e inclusive
livros de magia e sobre a Eddor. Dentre eles, o que mais alegrou o jovem foi
reencontrar os diários de seu pai e seu tio. Rubyo notou que Ollaff sabia bem
as provações que ele deveria estar passando, então se preocupou em
alimentar não só o corpo de Rubyo, mas também sua mente e sua alma.
Ainda revirando as últimas porções da bolsa, encontrou um cantil cheio
de água limpa, do qual bebeu incansavelmente. De maneira curiosa, parecia
que, por mais que bebesse, a água simplesmente não acabava, assim como a
fonte mágica que Ollaff tinha em seu quarto de Minalkar. Por fim, Rubyo
encontrou seu anel mágico, porém achou melhor não colocar, para não
potencializar seus sentimentos ruins ou seu desejo de fugir.
O prisioneiro não se lembrava há quanto tempo não se sentia tão bem
animado como naquela noite. Era difícil dizer se sua melhora foi devido a
presença de seu amigo, se foi pela comida ou pela água fresca abundante,
mas, sem dúvidas, ele se sentia vivo novamente.
Os dias foram passando, o clima esquentando e a neve virou água,
dando espaço para um leve perfume de flores que vinha da pequena janela
de sua cela. Os livros já haviam sido todos lidos, mas Gary, conforme
prometido, retornava todos os meses com um novo pacote, trazendo mais
livros e mais comida para o amigo. Sentindo-se mais forte, Rubyo voltou a
praticar a Eddor e a se exercitar, recuperando, depois de alguns meses, seu
antigo condicionamento físico, ficando ainda mais forte, graças ao
desenvolvimento natural de seu corpo. De tempos em tempos, Rubyo
encontrava cartas de Ollaff entre as páginas dos livros, contando para o
jovem notícias e desejando forças para o cativo, prometendo que, um dia, o
tiraria dali.
Com o tempo, as visitas de Gary já não foram sendo tão constantes. Os
dois amigos passaram a parecer estranhos um para o outro, pois havia pouco
assunto, já que Gary não levava uma vida tão excitante atrás do balcão de
uma loja, enquanto seu amigo só tinha, de novidades, o que lia em seus
livros. Rubyo já não sabia mais quanto tempo se passava entre as — agora
— raras visitas de Gary, então passou a racionar o alimento que recebia para
não passar fome de novo.
Apesar dos livros, da comida, da bebida e de, até mesmo uma pesada
coberta que Ollaff, de alguma maneira, conseguiu enviar dentro da sacola
mágica, tinham dias em que Rubyo entrava em desespero e passava o dia
inteiro chorando e esbravejando, para a solidão de sua cela, sobre a vida
miserável que levava.
Durante as noites dos invernos seguintes, Rubyo utilizava seu cristal
para fazer pequenas fogueiras com a palha seca — o que fez com que seu
velho amigo roedor voltasse a visitá-lo. Apesar de já não ter noção de quanto
tempo havia se passado desde seu cárcere, Rubyo estimava já ter passado,
pelo menos, quatro invernos na prisão. Seu corpo já não era de um jovem,
mas de um homem. A boa alimentação, associado à rotina de atividades
físicas intensas, criou em Rubyo músculos que ele nem sabia que existiam
em seus braços, tronco e coxas, sustentando seus quase dois passos élficos
de altura. Ainda estava longe de ser grande como Inak, mas, com certeza, já
era muito mais forte do que seu tio um dia já sonhou ser. Seu cabelo
vermelho margeava a cintura quando molhado, e sua barba descia até o
peito. Estava pálido como uma manhã de outono, com a pele bem clara pela
falta de sol, diferente de seus dentes amarelados, que só não estavam piores
graças ao extrato de hortelã que, vez ou outra, Ollaff mandava em suas
encomendas, para a higiene bucal.
Após alguns meses sem a visita de Gary, a comida já havia acabado, e
Rubyo precisou voltar a comer o nojento mingau servido pelos guardas. Os
livros já haviam sido lidos e relidos algumas vezes, a ponto de até decorar
vários trechos deles.
Numa noite quente de verão, Rubyo transpirava muito pelo abafamento
de sua cela mal ventilada, o que o fez acordar para jogar um pouco de água
no corpo. Ao pegar o balde, ouviu alguém chamá-lo na porta, fazendo-o
derrubar o objeto pelo susto.
— Mestre Ollaff? — perguntou Rubyo, assustado, olhando para a
figura do ancião parado na porta de sua cela.
Ollaff vestia uma longa túnica negra, com um capuz escondendo parte
de seu rosto, mas não a barba, que agora estava bem curta. O velho mestre
sussurrou algumas palavras e tocou seu cajado na cela, abrindo o cadeado e a
porta. Rubyo correu e abraçou seu velho amigo, que correspondeu ao abraço,
apesar do forte cheiro que emanava do corpo do prisioneiro.
— Meu senhor, que homem você se tornou! — disse Ollaff, em voz
baixa, mas visivelmente alegre em ver Rubyo.
— E o senhor não mudou absolutamente nada! Exceto sua barba,
mestre, por que cortou? — perguntou Rubyo, animado.
— Nem tudo são flores no matrimônio, meu senhor... minha mulher
pediu. — respondeu Ollaff, com um sorriso amarelado.
— Não acredito nisso, mestre! — disse Rubyo, gargalhando. — Mas a
barba curta ficou bem no senhor, e nem parece que envelheceu nesses
últimos... quatro anos?
— Foram cinco anos, meu senhor. Cinco anos, seis meses e dezessete
dias. E não teve uma noite sequer em que dormi em paz, pensando no que o
senhor estava passando aqui!
Rubyo não conseguiu disfarçar a surpresa ao saber há quanto tempo
estava preso. Se Ollaff estivesse certo, ele já estaria agora com mais de vinte
e um anos, sendo que, quase um quarto da sua vida, fora naquela prisão.
— Mais de cinco anos, e o senhor nunca veio me visitar... Eu não te
culpo mestre, e nem culpo Gary por estar vindo tão pouco, pois sei que deve
ser uma cena lamentável me ver nessas condições. Eu só não consigo conter
a curiosidade em saber o porquê o senhor resolveu, do nada, aparecer aqui.
— Eu não tenho nem palavras para me desculpar por minha covardia,
meu Rei. Jessi me cobrava quase diariamente para vir te visitar, mas eu havia
prometido para mim mesmo que não viria até aqui enquanto não tivesse uma
solução para o seu problema. E o senhor sabe, só devemos...
— Só devemos prometer aquilo que podemos cumprir. Sim, eu me
lembro de suas lições, mestre. — completou Rubyo, interrompendo Ollaff,
enquanto olhava para o corredor através da porta aberta da cela, preocupado
com os guardas.
— Que bom que prestava atenção às minhas aulas, meu senhor. Quanto
aos guardas, fique tranquilo, pois eles beberam de uma safra de vinhos
especiais nesta noite, cortesia da Loja de Poções Bortolly e Bortolly, e estão
dormindo como bebês! — disse Ollaff, com um sorriso de canto.
Rubyo voltou para o centro da cela e sentiu-se estranhamente
desconfortável por haver outra pessoa lá dentro com ele. Não havia
protocolo social em ser um preso e receber visitas dentro de uma cela que
fedia, sem lugar algum para se sentar. Ollaff notou o desconforto de seu rei e
foi direto ao assunto:
— Meu senhor, não temos muito tempo, então preste muita atenção.
Encontrei uma maneira do senhor retomar Minalkar. É um plano arriscado,
complexo, mas, qual não seria, quando o prêmio é um reino inteiro? Ou
quem sabe, até dois...
— Mestre, se um dia eu realmente puder sair daqui e tiver condições de
fazer algo pelo meu povo, minha intenção é retomar as terras de Minalkar,
simplesmente. Não pretendo nunca nem tentar tomar as terras de Alferius.
— Mas não é do reino de Alferius que estou falando, Vossa Majestade.
— Outro reino, além de Minalkar, que não é Alferius? Quem, em sã
consciência, desafiaria o Império Marrom dos Cavaleiros de Harddam para
tomar Laghuna?!
— Também não estou falando de Laghuna, meu senhor. — disse Ollaff,
tirando um pergaminho de sua manga e entregando-o para Rubyo.
O pergaminho tinha um aspecto de novo, mas estava amassado em
várias partes, com marcas de oito dobras de papel. Rubyo notou uma
caligrafia diferente do que estava acostumado, mas escrito na língua comum,
com um selo real de cera ao final do texto, moldando um brasão
desconhecido:

“A quem possa interessar,

A Vossa Majestade Real, grande Rei Draco Maximiliano IX, senhor


de Nettiel, convoca os grandes guerreiros e os mais corajosos
aventureiros do mundo para participar do seu maior e derradeiro
torneio, valendo todo o seu reino e a mão de sua única filha, como
recompensa ao vencedor.

Requisitos para inscrição: Ser do sexo masculino e em idade fértil,


estar saudável, ser solteiro ou viúvo, e não ter apego à sua vida.

Todos os interessados deverão estar presentes na Grande Festa da


Colheita das Uvas de Outono, em Dracônia, onde serão instruídos
sobre o torneio.

Com todo o prazer da escrita, e em nome de meu Rei,


Gerald Engwo, arauto do Rei Draco IX.”

— Um torneio valendo um reino inteiro?! — perguntou Rubyo,


surpreso, após ler o pergaminho em voz baixa.
— Sim, Rubyo, e eu creio que você será capaz de vencer essa
competição e se tornar o próximo rei de Nettiel. Se vencer, terá o controle do
exército e dos ricos cofres daquele lugar, e terá tudo o que precisa para
reconquistar Minalkar, ou quem sabe, até levar todo o seu povo para esse
novo reino, dando uma vida digna a eles! — respondeu Ollaff, animado.
Rubyo ficou fortemente tentado a deixar sua imaginação criar situações
que corroboravam com o plano de Ollaff, mas seu pessimismo excessivo,
ocasionado pela tristeza em que vivera mergulhado nos últimos anos, não
permitia que ele se animasse.
— Não creio estar em forma para lutar um torneio, mestre... há quanto
tempo eu nem empunho uma espada? Como serei capaz de lutar contra os
melhores guerreiros do mundo? Mesmo estando em forma, não sou mais
aquele guerreiro de antes. Meus reflexos estão lentos, meus pensamentos
bagunçados...
— Pelo que Jessi apurou, com alguns conhecidos dela da corte de
Nettiel, esse torneio não será baseado em combates, meu senhor, mas uma
caça ao tesouro, organizada pelo Rei Draco. Eu conheci alguns dos
antepassados dele, e a família sempre fora fissurada por jogos e apostas!
— Mas esse reino fica em outro continente, não é?
— Sim, meu senhor, em Hannambar. Na verdade, a vila onde nasci
fazia parte do reino de Nettiel antes de ser tomada por Fawarlokh. Dizem
que o rei não nos enviou ajuda justamente por ter perdido uma aposta para o
mago negro em um jogo, permitindo, assim, que ele tomasse nossas terras e
construísse ali sua fortaleza.
— Hannambar?! Pelas tetas de Selline, mestre, eu não conheço nada
daquele lugar! Como vou caçar um tesouro, lá?! — perguntou Rubyo,
mostrando um grande temor com o desconhecido.
— Pois o senhor ainda terá um tempo para aprender tudo o que precisa
sobre a história e a geografia do local, meu Rei. — disse Ollaff,
desamarrando uma bolsa mágica de sua cintura, repleta de livros antigos
sobre Hannambar.
Rubyo pegou alguns daqueles livros e começou a folheá-los, sentindo
um forte cheiro de pó, típico de livros que há muito tempo não eram abertos.
Os livros continham diversas ilustrações, histórias e um grande mapa, que
dava a impressão de que Hannambar era, pelo menos, duas vezes maior que
todo o continente de Cehvambar, onde estavam.
— Mas, mestre, cogitando que eu aceite ir, imagino que a passagem
para lá deva ser absurdamente cara. Lembro que o senhor contou que trocou
uma esmeralda pela passagem de lá para cá, e isso há trezentos anos! Não
tem como eu pagar por isso!
— O senhor não vai pagar nada pela passagem, meu rei, pois, na
verdade, ela já está comprada!
Rubyo não conseguiu conter a surpresa.
— O quê? Como conseguiram pagar uma viagem tão cara quanto essa?
— Foi uma pequena fortuna, sim, meu senhor, e mais algumas horas
para convencer o capitão que arrumei para levá-lo. Apenas um ou dois
navios fazem essa viagem por mês, pois ela é longa e cheia de perigos. Você
deverá estar nesse navio no último dia do próximo mês, ou partirão sem
você. Quanto ao pagamento, o povo de Minalkar uniu suas economias e
pagaram a viagem para o senhor, pois estão contando com sua vitória, meu
Rei, e eu também. Vencendo esse torneio, o senhor será meu Rei, tanto por
título quanto por minhas raízes, já que sou de Nettiel. Tenho plena convicção
que não existe ninguém melhor que o senhor para assumir aquele trono.
Rubyo ficou visivelmente emocionado com as palavras de seu mestre, e
por saber do sacrifício que seu povo fizera por ele, mas ainda se atinha mais
aos obstáculos do que aos sonhos.
— Tudo bem, mestre, o senhor já me convenceu a ir... até porque não
tem nada que eu queira mais do que sair desse chiqueiro. Mas ainda estamos
esquecendo do mais importante... como é que…
— Como é que o senhor vai sair daqui sem quebrar o acordo com
Lucrécia? — completou Ollaff, adiantando a dúvida de seu rei. — Aí que
está a beleza do nosso plano: você não vai fugir. Você será libertado!
— Libertado?! Por Lucrécia?! O senhor só pode estar delirando,
mestre! Parece que perdeu o juízo, além da barba! Lucrécia jamais me daria
a liberdade de novo...
— Com todo o respeito, meu senhor, mas acha que eu apareceria aqui,
com toda a minha vergonha de não ter vindo antes, sem ter pensado em cada
detalhe desse plano? — disse Ollaff, de maneira altiva e professoral,
retomando a postura de quando lecionava para Rubyo. — Confie em mim: a
rainha não poderá recusar sua liberdade se você a conquistar diante dos
olhos do povo e dos deuses!
Rubyo fez menção de argumentar algo, mas Ollaff levantou sua mão e
fez um sinal para que não fosse interrompido:
— Creio que o senhor não se lembre, mas existe uma tradição em
Alferius que, a cada dez anos, o rei, ou no caso, a rainha, organize uma
competição entre todos os presos que aceitarem lutar na arena real pela sua
liberdade. Todos os condenados de Alferius podem participar se assim
quiserem, e o último a ficar de pé será o escolhido dos deuses para ser
liberto, pagando sua pena com o sangue de seus adversários.
Ollaff fez uma breve pausa, esperando que Rubyo fosse interrompê-lo,
mas seu rei estava surpreso demais para argumentar.
— Semanas atrás, a rainha confirmou que realizará esse torneio no fim
do próximo mês. O senhor precisará vencê-lo para ser livre novamente e, em
seguida, embarcar para Nettiel.
— Mas, mestre, o senhor acha que Lucrécia me deixará participar? —
perguntou Rubyo.
— Tenho certeza que sim, meu senhor. É a chance que ela tem de vê-lo
ser executado, sem que nenhuma culpa caia sobre ela. A rainha poderia ter
facilmente mandado alguém vir matá-lo na prisão, mas as Leis Antigas
culpam os reis se algo acontece com seus cativos, então ela não pode fazer
nada contra o senhor aqui dentro. Mas, no torneio, você estará lá por vontade
própria, e quando o senhor vencer, ela não poderá negar sua liberdade diante
das milhares de pessoas que estarão assistindo.
Rubyo sentiu seu coração disparando como se, finalmente, alguma
esperança voltasse a correr em suas veias. Suas pernas até tremeram frente
ao plano completo de Ollaff, fazendo com que o jovem se sentasse no chão e
encostasse na parede, o que deixou suas partes à mostra naquela túnica curta.
Fugindo do campo de visão desagradável, Ollaff sentou-se ao seu lado,
no chão, e disse:
— Sua vida e seu futuro dependerão desses jogos, meu Rei, e em
nenhum deles será permitido perder. O senhor terá que enfrentar um coliseu
repleto de assassinos e ladrões, que lutarão pela própria vida e, em seguida,
viajará para uma terra nova, onde não conhece nada e nem ninguém,
precisando vencer o continente inteiro para conquistar um reino. Sei que o
plano é falho, e que dificilmente tudo sairá como planejamos, porém, é sua
única e chance... a não ser, é claro, que o senhor tenha se conformado com
essa vida aqui, pois, nesse caso, eu continuarei enviando frutas e livros.
Rubyo levantou a cabeça, respirou fundo e olhou para Ollaff,
perguntando:
— O senhor acha mesmo que eu sou capaz de vencer isso tudo, Ollaff?
— Rubyo, você é o último mestre da Eddor. Possui sangue real
correndo em suas veias, assim como o de grandes guerreiros e de caçadores.
Matou o Rei dos Orcs com suas próprias mãos, e lançou de volta para as
trevas um fantasma poderosíssimo, fazendo tudo isso sozinho. Se o senhor
não for capaz, meu Rei, quem será?
Capítulo 27: O Coliseu
Rubyo passou os dias seguintes se exercitando, treinando e estudando como
nunca. Alguns guardas passaram por sua cela, perguntando se ele desejava
participar do torneio que eles chamaram de “Perdão dos deuses”, e Rubyo
aceitou na hora, precisando assinar um documento onde isentava a rainha de
sua provável morte. Ao assinar, foi informado que, no dia seguinte, eles
partiriam logo cedo para o Coliseu de Ottoni.
O jovem rei tentava ler os livros que Ollaff trouxera sobre Hannambar e
o reino de Nettiel, mas era difícil se concentrar no porvir quando, antes, teria
que enfrentar um coliseu cheio de inimigos. Pensando em estratégias, Rubyo
encheu o balde com a água pura do cantil mágico e levou para o pequeno
feixe de luz do sol vindo da janela, utilizando a água como espelho. Ao notar
sua aparência, quase não se reconheceu ao ver seu rosto pela primeira vez
depois de anos. Como sabia da brutalidade da luta que enfrentaria, achou
melhor retirar toda a barba e seu cabelo, para que não atrapalhasse na
batalha. Utilizando um punhal e uma tesoura que Ollaff mandara-lhe, retirou
todos os pelos de seu rosto e deixou seu cabelo bem curto, quase na pele,
cheio de falhas.
Na manhã seguinte, Rubyo acordou bem cedo e escondeu sua bolsa
mágica num dos cantos da cela, mas não, sem antes, colocar de volta seu
anel mágico, sentindo a maravilhosa sensação de todo seu corpo se fortalecer
e todos os seus sentidos se amplificarem. A pouca comida que sobrara, ele
deixou num outro canto, escondido sob a palha, para que Ruppert — nome
que batizou seu amigo roedor — comesse mais tarde, após sua partida.
Depois de algumas horas, um grupo de aproximadamente vinte soldados
fortemente armados vieram buscá-lo em sua cela, colocando-o em fila com
alguns outros presos que também aceitaram o desafio.
Seguiram em fila pela escada em espiral, chegando até a parte de fora
do cemitério, que ficava, até então, sobre suas cabeças. Rubyo teve a
sensação de quase ficar cego pela luz do sol, e o perfume das flores de
primavera, misturado ao ar puro, até fizeram-no tossir, enquanto seus
pulmões se expandiam como há muito tempo não faziam. Apesar do
estranhamento do ambiente, ao olhar para o céu, Rubyo sentiu como se
pudesse voar.
Todos os presos foram escoltados, ainda acorrentados, até três carroças,
que puxavam um vagão com jaulas, onde cabiam quatro pessoas em cada.
Rubyo reparou que os presos e até os guardas olhavam-no com surpresa,
pois seu porte físico destoava muito dos demais condenados, todos fracos e
desnutridos, diferente do rei de Minalkar, que nunca estivera tão forte na
vida.
O comboio seguiu rumo aos portões ao norte da cidade, passando pelo
centro da capital. Rubyo cumprimentou o mestre Ollaff e Jessyann, que
estavam na porta da livraria, esperando para se despedir do jovem. Perto
dali, passaram em frente à antiga taverna Sol Vermelho, que agora se
chamava “Flor Vermelha”, com várias mulheres seminuas em sua porta,
despedindo-se dos clientes que passaram a noite lá. Rubyo também notou,
no caminho, uma pequena loja de poções que não existia antes; e que, pelos
dois "B" desenhados na fachada, provavelmente era a loja de Gary com sua
irmã.
Atravessando os portões Norte, Rubyo foi inundado de lembranças e
nostalgia da viagem que fizera há quase seis anos com Gary, Ollaff e Argus,
passando por aquele mesmo caminho, com destino à Minalkar. O comboio
seguia cercado de vários soldados escoltando os presos, fortemente armados,
para evitar possíveis resgates. Ao chegar no entroncamento, seguiram à
esquerda, deixando para trás a estrada que levava à Floresta dos Amantes.
Após mais algumas horas de viagem, já tendo passado do meio do dia,
o sol forte incomodava a pele de Rubyo, que ardia após tanto tempo sem
contato com a luz solar. O calor era insuportável, e nem água era oferecida
para eles. Rubyo estava na terceira carroça e, após uma nova encruzilhada,
olhou para trás e viu outros os comboios que os seguiam de longe, trazendo
presos de outras cidades do reino. Sem dúvidas, eram mais presos do que
Rubyo imaginava. Apesar do senso de dever e de autopreservação, ele não se
sentia nem um pouco confortável ao pensar que teria que matar aquelas
pessoas que nunca lhe fizeram mal algum.
A estrada que levava ao Coliseu trazia, ironicamente, uma estranha
sensação de paz. Era uma das estradas reais de Alferius e, como tal, era
margeada de árvores altas e algumas frutíferas, feitas com um bom
calçamento e com as margens bem limpas de mato, evitando possíveis
emboscadas. Um pouco mais à frente já era possível avistar, de longe, o
imponente Coliseu de Ottonni.
O dia já estava acabando, e com ele, a desagradável viagem até a arena.
Rubyo notou que, em momento nenhum, os presos conversaram entre si,
seguindo em silêncio por toda a viagem. Parecia que, talvez, todos
compartilhavam da mesma insatisfação em matar seus pares, e que por isso
era melhor evitar qualquer conversa que pudesse fazê-los conhecer melhor a
sua possível vítima.
Visto de fora, o Coliseu se mostrava como uma enorme arena
retangular, com oito bandeiras hasteadas na coluna mais alta — todas, é
claro, ostentando o brasão da família Lurullo. O prédio era todo feito de
areia petrificada, sustentado por enormes blocos de pedras rústicas e barras
de ferro, que suportavam aquela estrutura gigantesca sem muito esforço.
O comboio, que agora já contava com mais de dez carroças trazendo
presos, atravessou o portão principal, e Rubyo notou que enormes corredores
cortavam por baixo do prédio, provavelmente, para dar acesso às
arquibancadas. Havia um enorme portão de madeira maciça e barras de ferro
à frente, que estava fechado, mas, com certeza, levava até a arena central.
Ao chegar numa área mais ampla, o comboio parou, e os guardas
fizeram com que os presos descessem. Uma porta grande se abriu ao lado
deles, conduzindo-os até um outro salão, onde várias cadeiras estavam
dispostas em fileiras, de frente a um pequeno palco. Rubyo, que tinha a
mania de exercitar sua matemática desde criança, rapidamente contou cinco
fileiras com dez cadeiras, entendendo que teriam até cinquenta competidores
ali — fato esse que o surpreendeu, pois não esperava tantos adversários
assim.
Quase todas as cadeiras foram ocupadas pelos presos, tendo suas
algemas e correntes soltas. Qualquer um deles que cogitasse fugir ou se
rebelar, era rapidamente dissuadido pela visão das tropas fortemente
armadas que circundavam o salão. Uma vez sentados, os presos viram um
dos capitães da tropa se colocar à frente, subindo o pequeno palco. Lá em
cima, o capitão retirou seu elmo em forma de cabeça de polvo, e começou a
falar:
— Boa noite, senhores. Sou o capitão Derrick, chefe da guarda do
Coliseu. Não direi que é um prazer conhecê-los, pois amanhã, à essa hora,
todos já estarão mortos, então, para mim, vocês já são cadáveres. Quero
lembrá-los que estão aqui por vontade própria, então, ordeno que se calem e
caso tenham dúvidas, guardem para vocês. Amanhã, ao meio-dia, serão
levados até a arena; e o último que ficar vivo receberá o perdão da rainha, e
sairá daqui um homem livre. Serão permitidos quaisquer tipos de armas,
técnicas, golpes baixos, ou seja lá como desejarem matar seus inimigos,
porém, não toleraremos o uso de magias. Logo, se houver algum bruxo entre
nós, que enfie a magia no rabo e aprenda a lutar como um homem! —
Derrick cuspiu no chão, com desprezo. — Hoje, porém, conforme manda
nossa lei, vocês terão direito a um último banquete e um último banho
quente, para que cheguem menos sujos na morada de Harddam. Mas não se
esqueçam: a luta é só amanhã! Não serão aceitos conflitos até lá, sob pena de
morte a quem se envolver em alguma briga.
Derrick assoviou com dois dedos na boca e a larga porta atrás dele se
abriu, dando acesso a uma escada em espiral que levava a um andar
subterrâneo. Ao descerem, os presos encontraram um enorme salão
sustentado por pilares de pedra bem altos, e com tochas acesas que
iluminavam o ambiente. Apesar da meia luz, era possível ver uma grande
piscina de pedra, que emanava vapor de suas águas termais, e ao lado dela,
quatro grandes mesas suportavam toda a sorte de comidas; pães, bolos,
bebidas, frutas e carnes assadas.
Alguns dos presos não conseguiram se conter e correram para a mesa,
desesperados por ver aquela fartura de comida. Rubyo, que não
compartilhava daquela mesma fome, ficou mais tentado pelo banho naquelas
águas, que pareciam maravilhosamente bem aquecidas, mas se preocupou
em tirar sua túnica e expor seu colar de cristal, então preferiu apenas se
sentar num canto e observar a multidão de inimigos, que se esbaldava com
aquele raro luxo.
Com sua visão aguçada pelo anel, mesmo naquele ambiente escuro,
Rubyo passou a procurar, dentre os demais presos, aqueles que poderiam
oferecer-lhe maior risco. Rapidamente notou que por volta de dez deles
apresentavam uma compleição física fora do padrão humano comum. Um
deles claramente era anão, com seus braços curtos, porém, muito
musculosos. Outros quatro eram elfos, ou meio-elfos, sendo mais altos que
os demais, porém sempre fortes, apesar de esguios, e com orelhas pontudas
aparecendo por trás de seus cabelos. Três eram orcs, com suas peles rugosas
de tom verde acinzentado, cuja visão causou em Rubyo uma vontade enorme
de atacá-los ali mesmo. Os últimos dois eram definitivamente humanos,
porém, bem altos e fortes. Um ostentava longos cabelos trançados e bem
pretos, que iam até suas costas largas. Já o outro, mesmo de longe, dava para
ver que tinha seu couro cabeludo cheio de cicatrizes, deformado pelo fogo...
analisando melhor aquele último, Rubyo teve a impressão de ser alguém
familiar.
Ao se aproximar da figura, a suspeita foi confirmada: sim, era Karl!
Rubyo o chamou pelo nome e o grandalhão olhou para ele, surpreso com o
fato de alguém saber seu nome. Karl cerrou seus olhos para tentar enxergar
melhor naquele ambiente de penumbra, e demorou alguns segundos para
reconhecer quem era a pessoa que o chamara:
— Rubyo?! É você mesmo?
— Sim, Karl! Há quanto tempo!
O primeiro impulso de ambos foi de se abraçarem, porém, o instinto fez
com que parassem no meio do gesto ao lembrar que, se estavam ali juntos
naquela noite, provavelmente estariam se matando amanhã. Karl disfarçou,
fingindo que se espreguiçava, enquanto Rubyo, meio debilmente, só
chacoalhou os braços no ar.
— Como você cresceu, meu jovem! Onde conseguiu uns braços desse
tamanho?! Tá quase tão forte quanto eu! Mal te reconheci sem o seu cabelo!
— Pois é, eu achei melhor cortá-lo para amanhã... sabe como é, né?
Tentar minimizar qualquer vantagem que se possa dar ao inimigo.
Karl fez um olhar de tristeza enquanto olhava para Rubyo, percebendo
que um dos inimigos a quem o jovem se referia era ele mesmo. Para quebrar
o clima, resolveu mudar totalmente de assunto:
— E seu primo Odyno, tem visto aquele lobo velho?
— Não, Karl. Desde aquele dia em que nos despedimos perto de
Vertiga, eu não vi mais ninguém da guilda. Fui preso dois dias depois, por
alta traição à coroa de Alferius, e estive cativo até hoje de manhã.
— Mas que merda! Foi há quanto tempo isso? Uns cinco anos?!
— Quase seis... — disse Rubyo, sentindo uma estranha vergonha.
— Pelas tetas de Selline! Eu estou preso há quase dois e já estava
enlouquecendo! Eu tive uma discussão de bar com um comandante do
Império Marrom, e fui condenado à morte por desacato. Consegui fugir e
atravessei o Rio Dourado numa balsa improvisada, porém, ao pisar em
Alferius, fui pego por uma patrulha de guardas, que me prenderam ao ver
minha armadura.
— Mas o que sua armadura tem a ver com sua prisão? — perguntou
Rubyo.
— Eu devia ter me livrado dessa velharia há anos, mas eu quis mantê-la
por nunca ter conseguido uma melhor. Eu até risquei e queimei o sol
vermelho que tinha no peito dela, mas, ainda assim, os soldados de Alferius
conseguiram reconhecer a origem e me prenderam como se eu fosse um
espião. Assim como você, também fui condenado por traição... me
prometeram vinte anos enjaulado como um animal. Para quem é honesto, um
só dia preso é uma vida inteira, vá dizer vinte anos. Preferi me arriscar aqui a
viver preso.
— Sei bem como é... eu prefiro a liberdade da morte do que mais um
dia vivo na prisão. — desabafou Rubyo. — Mas eu não entendi uma coisa...
por que você vestia uma armadura de Minalkar?
— Eu servi ao lado do seu tio, Rubyo. Fui um capitão do exército de
Minalkar durante a guerra contra os orcs, mas, vergonhosamente, desertei
para Flarys quando percebi que não venceríamos. Mas não pense que eu vá
me ajoelhar para você e clamar por perdão, pois não me arrependo do que fiz
para me manter vivo.
— Não tenho o que perdoar, Karl. Creio que, se tivesse ficado, as coisas
não teriam sido muito diferentes. Mas enfim, vamos nos ater ao nosso
presente, afinal, viemos para cá na intenção de também sobrevivermos.
— Exatamente! E é por isso mesmo que não devemos nos envergonhar,
caso amanhã nós precisarmos nos matar naquela arena. Faremos um favor
para o outro, já que preferimos a morte à prisão, combinado? — disse Karl,
estendendo a mão para Rubyo.
— Sim, combinado! — respondeu o rei de Minalkar, apertando a mão
do grandalhão.
Por estarem concentrados em sua conversa, os dois minalkarianos não
perceberam que os outros presos prestavam atenção nas vozes baixas que os
dois usavam, selando a conversa com um aperto de mão. Seus oponentes
tiveram a impressão de que eles estivessem forjando alguma aliança para
amanhã, fato que preocupou a todos, afinal, eram dois dos competidores
mais fortes que estavam ali. Instintivamente, os demais presos forjaram
alianças em pequenos grupos, combinando matar os dois antes de se
matarem.
Passadas algumas horas, a porta de cima da escada se abriu, e os presos
foram levados para as celas individuais onde passaram a noite. De sua cela,
Rubyo podia ouvir claramente o som de alguns presos chorando, outros
roncando alto pelo vinho, e outros até rezando. Apesar do barulho, Rubyo se
concentrava apenas em conter seus batimentos cardíacos, para segurar a
ansiedade de enfrentar os desafios que o sol o traria.
Na manhã seguinte, um som bem alto de cornetas acordou aqueles
poucos presos que conseguiram dormir. As celas foram abertas, mas foram
orientados a permanecer lá dentro. Cada um recebeu uma armadura leve de
couro, com algumas ripas de madeira amarradas nos antebraços e canelas.
As armaduras eram porcamente tingidas de preto, com o desenho de um
polvo nas costas.
Junto com as armaduras, os guardas distribuíram um balde para cada
preso e ofereceram pétalas de ópio como recompensa para aqueles que
conseguissem evacuar naquela manhã, pois, segundo os guardas, os nobres
odiavam o cheiro de fezes que se espalhava pela arena quando as tripas dos
competidores eram rasgadas pelos adversários. Surpreendentemente, vários
conseguiram trocar os baldes cheios por ópio, mastigando a pétala para
minimizar a dor que sentiriam em breve. Rubyo até tentou, mas não
conseguiu, pois não havia comido nada desde o desjejum do dia anterior.
De dentro das celas, os presos podiam ouvir a multidão que ia
ocupando as arquibancadas acima de suas cabeças. O som dos passos fazia o
coração dos competidores bater mais forte e acelerado, aumentando ainda
mais o nervosismo. Nenhum deles ainda tinha visto a arena, mas pelo
barulho que vinha de lá, o público deveria ser enorme.
Um a um, os presos eram levados para uma sala no fim do corredor, de
onde, após alguns minutos, saiam portando algum tipo de arma. Rubyo viu
seus inimigos armados com espadas, manguais, alabardas, sabres, machados,
porretes, maças e toda a sorte de equipamentos letais. Quando chegou a sua
vez, Rubyo deu de frente com Karl, que saía da sala de armas com uma
longa espada de duas mãos, muito parecida com a que ele usou para cortar a
cabeça do grifo que mataram. Ao ver Rubyo, Karl desviou o olhar, como se
estivesse envergonhado.
Rubyo entrou na sala e viu o extenso arsenal que lá existia, com uma
enorme quantidade de armas penduradas na parede e guardadas em grandes
baús, que seguiam abertos. Existiam dois guardas em cada canto do arsenal
e, atrás do balcão, estava uma mulher em pé, lustrando um elmo e
aguardando o próximo competidor.
— Bom dia, prisioneiro Vinte e Dois. Meu nome é Ellie Ishmiter, e vou
providenciar a arma que usará hoje. Tem alguma preferência?
Ellie era uma mulher que não deveria ter muito mais que quarenta anos.
Tinha uma pele bem clara, com sardas nas bochechas e olhos escuros. Era
alta e magra, mas seus braços pareciam fortes, provavelmente pelo seu
trabalho na forja. Seus cabelos estavam escondidos sobre um grande lenço
que utilizava para prendê-los, como uma enorme bandana. As mãos que
poliam o elmo estavam cheias de cicatrizes e marcas de queimadura até os
punhos, mas ela não parecia se importar com a aparência. Rubyo olhou para
ela e deu um sorriso amigável, tentando não parecer um preso perigoso que
pudesse oferecer risco.
— Bom dia! Eu sou um adepto do uso de espadas.
Ao ouvir o tom amigável de Rubyo, Ellie olhou para ele com um olhar
meigo, como se compadecesse de sua situação.
— Espadas, é? Eu deveria ter adivinhado, por seus braços compridos e
postura das pernas. Alguma em especial? Longas, curtas, mão e meia…?
— Posso escolher até quantas, senhorita?
— Senhorita? — gargalhou Ellie. — Olha, meu jovem, já faz anos que
ninguém me chama assim! Agradeço seus modos, mas sou uma senhora
casada há vários anos e com filhos. Quanto às armas, pode levar uma em
cada mão.
Ellie olhava com curiosidade para as falhas do cabelo de Rubyo,
tentando entender o que achava de tão curioso naquele jovem.
— Pois, então, levarei uma espada curta e uma longa, mas de uma mão.
— disse Rubyo, decidido.
— Tem certeza, meu jovem? Se me permite dizer, acho que deveria se
preocupar em usar um escudo. Pelo seu porte físico, você será um dos
primeiros alvos na arena... e às vezes, a defesa pode ser o melhor ataque.
Rubyo ponderou e concordou com o conselho da doce mulher que o
advertia.
— A senhora tem razão. Mantenho a espada longa, mas troco a curta
por um escudo.
— É uma sábia decisão, meu jovem. Venha, vou te mostrar os escudos.
A ferreira levou Rubyo para perto de uma parede com diversos escudos,
alguns arredondados, outros em forma de losango, e até mesmo alguns
enormes, estilo torre. Rubyo optou por um ovalado, para que não
atrapalhasse seus movimentos e que pudesse ser arremessado se necessário.
Em seguida, Ellie se aproximou de um baú com várias espadas e foi tirando
uma por uma, como se procurasse alguma em especial. Ao encontrar o que
buscava, a ferreira ofereceu a arma para Rubyo.
— Pegue, meu jovem, experimente essa.
Rubyo pegou a espada e sentiu-a extremamente familiar, como se
empunhasse a própria Sabedoria, pois, apesar de ser uma espada de aspecto
muito mais simples, tinha a mesma angulação nos dois gumes e o mesmo
tipo de empunhadura. Rubyo girou-a no ar e experimentou alguns cortes e
estocadas, deixando os guardas da sala em alerta. Ao perceber a agitação dos
soldados, Rubyo abaixou lentamente a espada, em sinal de paz.
— Ela é perfeita, senhora Ellie!
— Sim, é uma das minhas espadas favoritas! Foi feita com uma receita
centenária da família do meu finado marido. E essa, em especial, foi feita
pelo meu sogro, que já foi um mestre de armas real.
— E eu posso mesmo ficar com ela? — perguntou Rubyo, um pouco
sem graça.
— Sim, é claro! Depois que... depois que tudo acabar, eu passo
recolhendo todas as armas de volta. Essa espada nunca foi usada em
batalhas, deve estar sedenta por uma boa luta. — disse Ellie, da maneira
mais simpática possível, olhando para Rubyo com compaixão.
— Muito obrigado, minha senhora! Espero devolvê-la pessoalmente
para você! — Rubyo estendeu a mão direita para Ellie, em agradecimento.
Ellie olhou para a mão do prisioneiro à sua frente, e o anel que existia
nela chamou sua atenção.
— Esse anel... onde você conseguiu esse anel, meu jovem? —
perguntou Ellie, com certa ansiedade em sua voz.
Rubyo foi pego desprevenido pela pergunta e tentou criar alguma
resposta rápida em sua cabeça. Ele já sabia que teria um alvo em suas costas
e não pretendia que mais ninguém soubesse que ele era um rei.
— Eu peguei do corpo de alguns orcs que tive que matar, minha
senhora.
Ellie pareceu um pouco decepcionada, mas pegou a mão de Rubyo e
aproximou do rosto dos dois.
— Você sabia que esse é um Anel Real de Minalkar, meu jovem?
Apenas os reis daquele lugar podiam utilizar um anel desses. Esse sol
vermelho simboliza...
— Simboliza o sol nascendo atrás do dragão de Edmund.
— Exatamente isso! Mas, espere... como você sabe sobre...
— Senhora Ishmiter, — disse o guarda na porta. — O tempo desse
condenado escolher já acabou. Que ele saia e entre o próximo!
Rubyo apertou a mão da ferreira e agradeceu, virando-se para a porta,
em direção ao corredor. Pouco antes de sair, ouviu a doce senhora o chamar:
— Prisioneiro Vinte e Dois, eu também espero que você me devolva
essa espada pessoalmente. Boa sorte!
O jovem assentiu com um sorriso determinado e seguiu de volta para
sua cela, carregando a espada e o escudo. Rubyo tinha pouca afinidade com
escudos, afinal, uma das bases da Eddor era não deixar ser tocado pelo
inimigo e, sendo assim, os escudos eram praticamente dispensáveis. Porém,
dada aquela circunstância, Rubyo achou melhor treinar alguns movimentos
com o escudo acoplado em seu braço esquerdo, pois dificilmente conseguiria
se esquivar dos golpes de quase cinquenta inimigos tentando matá-lo.
Após quase uma hora treinando e se aquecendo, Rubyo resolveu parar e
descansar. Sentou-se no canto da cela, fechou os olhos, encostou a cabeça na
parede e começou a repassar toda sua trajetória até ali. Todos os seus
treinamentos com seu tio, todas as técnicas aprendidas, posições, esquivas,
contra-ataques... seu coração já estava se acalmando e seus pensamentos
ficando mais claros e ordenados, quando, de repente, uma nova corneta
ressoou no ar, indicando o início do torneio.
Capítulo 28: O Perdão dos Deuses
Os presos foram retirados de suas celas e colocados em fila num extenso
corredor que ligava o arsenal até uma enorme porta de madeira e ferro.
Rubyo percebeu que alguns de seus inimigos estavam literalmente tremendo
de medo e de nervosismo. Um forte odor de urina vinha de algum deles que,
provavelmente, não conseguiu segurar a tensão.
O corredor que levava das celas para a arena era todo adornado com
pinturas nas paredes, representando grandes competições que já ocorreram
naquele coliseu. Dentre tantas ilustrações, Rubyo reconheceu uma grande
pintura de seu tio, Argus, decapitando um enorme centauro, enquanto a
multidão aplaudia em pé.
Mais uma vez a corneta foi tocada, e a enorme porta de madeira maciça
se abriu à frente deles. A luz do sol do meio-dia cegou momentaneamente os
competidores, que foram conduzidos para o interior da arena. O sol estava
muito forte, e mesmo a brisa fria que vinha das Montanhas Geladas não era
o suficiente para abrandar aquele calor que refletia na areia do chão da arena.
Enquanto eram colocados em forma de círculo no centro do coliseu,
Rubyo pôde notar que a multidão não parecia se incomodar com o calor do
sol sobre suas cabeças, mantendo a empolgação pela batalha que assistiriam
a seguir. As arquibancadas estavam lotadas de fora a fora, pois ninguém
queria perder aquele evento tão grandioso. Idosos, adultos e até mesmo
crianças compartilhavam da mesma sede de assistir a brutalidade que viria.
Rubyo tentou encontrar algum rosto conhecido na multidão, mas era muito
difícil reconhecer alguém no meio de tanta gente.
Na parte mais baixa e central da arquibancada, Lucrécia seguia sentada
num trono pomposo, cercada de membros da nobreza, sob a sombra do único
local coberto da arquibancada. Em pé, ao lado dela, estava sua maga
conselheira, com a tatuagem de serpente no rosto e, do outro, o general de
suas tropas, ostentando orgulhoso sua armadura de polvo com a capa
dourada. Lucrécia estava sorridente, acenando para o povo, com um vestido
todo vermelho, exibindo polvos negros estampados nas mangas curtas no
seu ombro.
Os guardas, após posicionarem os competidores numa enorme roda, se
afastaram deles e deixaram a arena pela mesma porta por onde entraram,
fechando-a a seguir. Rubyo notou que, além daquela porta, existiam outras
três iguais, também de madeira maciça, e apenas uma outra feita de grades
de ferro, ao sul, levando direto para o lado de fora da arena, em direção à
estrada. A arena era bem maior do que Rubyo imaginava; sua forma era
retangular e arredondada, cercada por paredes de pelo menos quatro passos
élficos de altura, que separavam os lutadores das arquibancadas. Sua
extensão deveria ser de, ao menos, cem passos élficos por cinquenta, o que
dava a impressão de ter até poucos competidores para aquele espaço todo.
Com o ambiente reconhecido, Rubyo passou a reparar novamente em
seus adversários. Ele evitava olhar para Karl e, assim, pôde perceber
pequenos grupos de inimigos se entreolhando e balançando a cabeça em
afirmativo, como se estivessem prestes a colocar um plano em ação. Antes
que Rubyo entendesse o que aquilo significava, um enorme gongo foi
tocado, permitindo que a luta começasse.
O gongo ainda soava quando Rubyo viu três inimigos correndo em sua
direção, enquanto os dois que o ladeavam na roda seguraram seus braços,
tentando imobilizá-lo. O primeiro dos três agressores arremessou um pesado
machado contra Rubyo, que juntou toda a força possível para unir, à sua
frente, os dois inimigos magros que seguravam seus braços, fazendo deles
um escudo humano para aparar o golpe do machado. Rubyo rolou para trás,
levantando-se já com o escudo erguido em seu braço esquerdo, para aparar o
golpe de espada que vinha de outro adversário, contra sua cabeça. Usando
suas pernas como uma mola, Rubyo saltou, brandindo sua espada e
estocando o inimigo à sua frente, como se seu corpo fosse uma enorme
flecha atravessando o peito do condenado.
Rubyo caiu logo após o corpo inerte do inimigo, deixando sua espada
cravada no peito do adversário sem tempo de retirá-la, pois o terceiro
inimigo já o alcançava com uma lança. Mesmo sem confiança no escudo,
Rubyo só teve tempo de levantá-lo para aparar o golpe, desviando a lança
para deslizar ao lado de seu corpo. Com o portador da lança bem ao lado,
Rubyo aproveitou seu braço direito livre e deu um golpe contra o pescoço do
malfeitor, travando a garganta com seu antebraço, como uma gravata,
enquanto, com o escudo preso no braço esquerdo, golpeou a cabeça do
inimigo até quebrar o pescoço.
Com a visão periférica, Rubyo notou que o primeiro inimigo já
recuperara o machado e preparava um novo golpe contra ele. O rei de
Minalkar girou seu corpo, ainda segurando o corpo da vítima com o pescoço
quebrado, soltando-o no ar e afastando o cadáver, utilizando os dois pés para
chutar seu peito e lançá-lo contra o golpe do machado. Aproveitando o
impulso, Rubyo deu uma cambalhota para trás, parando ao lado de sua
espada, que seguia cravada no peito do outro inimigo que agonizava. O
prisioneiro com o machado mal teve tempo de desviar do corpo lançado
contra ele, pois, quando percebeu, Rubyo já estava saltando ao seu lado e
gritando como um animal, girando a espada no ar e cortando profundamente
sua garganta.
A multidão ficou em polvorosa com a manobra acrobática de Rubyo, o
que fez com que seus inimigos hesitassem em atacá-lo por alguns instantes.
O rei de Minalkar olhou em volta, viu alguns outros inimigos se digladiando
e notou que, assim como acontecera com ele, um outro grupo estava
atacando covardemente Karl, que mal conseguia se equilibrar, enquanto
aparava os golpes com sua longa espada de duas mãos. Rubyo girou a
espada no ar e correu na direção de seu antigo aliado, percorrendo os quase
vinte passos élficos que os separavam em questão de segundos, esquivando-
se de ataques inimigos e desferindo golpes mortais pelo caminho, enquanto
braços, cabeças e sangue voavam em todas as direções.
Ao chegar até Karl, Rubyo saltou nas costas do forte anão que estava
prestes a acertá-lo com um grande martelo de guerra, atravessando a nuca e
fazendo a ponta da espada sair pela boca do pequeno guerreiro. O restante do
grupo, surpreso pelo golpe de Rubyo, deixaram de atacar Karl e focaram
seus esforços no rei de Minalkar, que habilmente aparava todos os ataques
que não era capaz de se esquivar. Karl, ainda um pouco tonto pela supressão
que sofria até então, conseguiu se levantar e aproveitou que os inimigos
estavam de costas para eles e os fatiou facilmente com sua longa espada.
Com a situação resolvida — e um pouco desconfiado —, Rubyo ofereceu a
mão para Karl e disse:
— Mesmo que amigos precisem lutar entre si, é melhor que os inimigos
estejam derrotados antes, certo?
— Que assim seja! — gritou Karl, apertando a mão de Rubyo.
Os dois aliados se colocaram costas com costas para se defender,
aguardando o ataque de vários inimigos que vinham em suas direções. Um a
um, os demais competidores iam caindo frente aos ataques e contra-ataques
certeiros da dupla, que se mostravam exímios lutadores, num nível muito
acima daqueles ladrões, assassinos, estupradores e devedores de impostos.
No calor da batalha, Rubyo avistou os três orcs lutando juntos contra os
demais inimigos, próximo à parede abaixo do camarote de Lucrécia; e antes
que pudesse perceber, abandonou seu posto junto a Karl e correu na direção
daquelas criaturas que tanto odiava.
Rubyo saltou contra o maior deles, que carregava um escudo em forma
de torre e, na outra mão, uma alabarda, encaixada sobre a margem superior,
como se fosse um animal se defendendo com seu ferrão. Desviando do
ataque da lâmina, Rubyo usou o escudo como uma plataforma de salto,
pulando nas costas dos orcs e cortando habilmente o pescoço de um deles,
que nada pôde fazer para se defender. O mais magro e mais ágil dos orcs, ao
notar o movimento do humano, girou seu corpo já com a maça cortando o ar,
acertando o flanco direito do inimigo, que ainda se reequilibrava após pousar
de seu salto. Rubyo sentiu, pelo menos, duas costelas serem quebradas com
o impacto, e caiu para o lado esquerdo sem conseguir respirar.
Antes que retomasse o ar, Rubyo viu a mesma maça vindo na direção
de sua cabeça e, instintivamente, rolou dolorosamente para a direita, sobre as
costelas fraturadas, para salvar sua vida. Olhando novamente para cima, viu
a alabarda do orc maior, que também vinha como uma guilhotina contra seu
rosto, fazendo-o rolar o mais rápido que podia para a esquerda, desviando do
ataque. A arma acertou com força a areia, bem próximo à sua orelha,
fazendo escorrer um fio de sangue. Mesmo com a insuportável dor em seu
tórax, Rubyo soltou sua espada e se apoiou no cabo das duas armas que
margeavam sua cabeça, seguradas pelos orcs e encravadas no chão, para usar
como apoio. Com toda a força que a dor lhe permitia, Rubyo jogou as pernas
para trás e se levantou numa acrobacia.
Os orcs conseguiram tirar suas armas do chão, mas Rubyo foi mais
rápido, soltando o escudo de seu braço esquerdo e lançando contra o pescoço
do orc maior, quebrando-o instantaneamente. Com a força e o giro que fazia,
o escudo ricocheteou, voando na cabeça do orc menor, tonteando a criatura
tempo suficiente para Rubyo recuperar sua espada e cravá-la,
prazerosamente, no coração da criatura.
Recuperando o fôlego com dificuldade, o jovem rei olhou ao redor e
viu que menos de dez competidores ainda seguiam em pé — e entre eles,
Karl. Rubyo correu na direção de um deles, deslizando de joelhos na areia
para desviar do golpe de espada que tentava arrancar sua cabeça, enfiando a
lâmina da espada na axila do elfo, fazendo-o cair gritando e sangrando como
um porco sendo abatido.
A cada golpe e a cada morte, a multidão ia mais ao delírio. Notando
isso, Karl cortou a cabeça de um inimigo morto e jogou na arquibancada,
fazendo a torcida aplaudi-lo calorosamente. Rubyo irava-se por fazer parte
daquele espetáculo, onde a plateia se deliciava do sangue daqueles infelizes
desesperados pela própria vida, mas sabia que não era hora de rebelar-se,
mas de vencer aquela competição. Canalizando sua raiva, o jovem atacou e
matou outro inimigo, e mais outro, fazendo toda a multidão se calar. Ao
olhar em volta, entendeu o motivo do silêncio repentino, pois somente dois
competidores seguiam em pé: Rubyo e Karl.
Lucrécia aproveitou o silêncio dramático da multidão e fez um sinal
para que tocassem o gongo, parando a luta. Rubyo aproveitou a pausa e se
abaixou, apoiando-se num dos joelhos, enquanto apalpava as costelas
direitas quebradas, tentando respirar da forma mais profunda e menos
dolorosa possível. Karl, visivelmente cansado, cravou a espada no chão e
sentou-se com as pernas cruzadas, retirando os destroços das armaduras de
seus braços. A multidão seguia olhando para a rainha, que gritou de seu
camarote:
— Ei, você, com a cabeça queimada! Qual seu nome?
— É Karl Tallory, minha senhora, a seu serviço. — gritou Karl, ainda
sentado.
— Vamos ver se está mesmo ao meu serviço. Se você matar esse
bastardo, além de sua liberdade, te farei um Cavaleiro de Alferius, e poderá
escolher a mão de qualquer uma das damas da corte! Ainda te darei uma das
melhores moradias de Nenáreah, pela cabeça desse traidor!
Karl ficou surpreso, mas não conseguiu esconder a satisfação por sua
proposta. O grandalhão esfregou as mãos, levantou-se, esticou o corpo como
num alongamento e retirou a espada do chão, segurando-a firmemente com
as duas mãos. Antes que Rubyo se levantasse, Lucrécia fez outro sinal para
que o gongo fosse tocado novamente.
— Então é isso, não é, Karl? Parece que vamos mesmo ter que nos
matar... — disse Rubyo, tentando não demonstrar dificuldade para se
levantar.
— Desculpe, meu jovem, você sabe que não é pessoal. Sei que fiquei te
devendo uma por ter me salvado agora há pouco, então deixarei você dar o
primeiro ataque. Sugiro fortemente que acerte e me mate, pois será a sua
única chance.
Rubyo não gostou nada da insinuação de Karl, de que, talvez, o rei não
fosse páreo para o desertor, e isso o deixou bastante irritado. O jovem estava
muito confiante em suas habilidades, pois sentia-se mais forte do que nunca
e, apesar das costelas quebradas, Rubyo sabia que, com o uso da Eddor,
derrotaria facilmente o seu oponente em um duelo.
Karl levantou os braços e pediu o apoio da torcida, que passou a gritar
seu nome, abrandando um pouco a confiança do jovem rei, que olhava para a
multidão e só via pessoas torcendo para que fosse morto. Rubyo olhou para
Lucrécia, que respondeu ao seu olhar com um sorriso debochado, e aquilo
foi uma fagulha para o jovem, que explodiu de ódio, preparando-se para
atacar Karl e acabar logo com aquilo.
Karl aguardou Rubyo se aproximar, em posição de defesa, olhando com
curiosidade para seu jovem inimigo, que corria em sua direção com a espada
apontando para baixo e com o braço esticado, totalmente com a defesa
aberta. Rubyo, cego por sua raiva e confiante em sua habilidade e força,
tentou usar a técnica Chaki contra Karl, desejando acabar logo com aquele
espetáculo num só golpe. Ao chegar perto do adversário, Rubyo saltou bem
alto, jogando as pernas para o ar enquanto girava em parafuso, de ponta
cabeça, usando sua espada para afastar a arma de Karl de seu rosto,
pousando perfeitamente nas costas de seu inimigo, assim como seu tio o
ensinara. Mas, de alguma maneira, Karl parecia conhecer a técnica,
conseguindo habilmente dar um passo para a frente antes que Rubyo tentasse
cortar seu braço na altura do ombro. O grandalhão virou-se rapidamente,
girando sua arma e lançando a espada do jovem para longe.
Rubyo, surpreso e desarmado, conseguiu se esquivar do contra-ataque
mortal de Karl com sua longa espada, mas não foi rápido o bastante para
fugir do soco do grandalhão, amassando o nariz de Rubyo e jogando-o para
trás. Aproveitando a energia do golpe, Rubyo rolou várias vezes para trás,
para fugir de novos golpes em sequência.
Vendo Rubyo se levantar, com o nariz sangrando e o lábio inchado,
Karl disse ao jovem, que o olhava assustado:
— O que foi, Rubyo? Achou mesmo que eu cairia na Chaki? Pensou
que só você conhecia essa técnica? Eu te disse que fui capitão da guarda do
seu pai... e quem me treinou na Eddor foi o próprio general Argus. —
afirmou Karl, fazendo um gesto de saudação típica de um duelo da Eddor.
Rubyo sentiu-se um tolo por não ter feito essa conexão lógica antes. Era
óbvio demais para ele não ter percebido e, mentalmente, culpava o Anel
Real por tê-lo feito se concentrar apenas na agressividade dos ataques e não
na base da Eddor, que era a defesa. Toda a confiança do rei se desfez ao
entender que enfrentaria alguém que também foi treinado por seu mestre, e
que possuía uma experiência muito maior que a dele em batalhas. Somado a
isso, Karl tinha toda a torcida da multidão, que seguia gritando seu nome.
Ao olhar para a torcida, sentindo-se diminuído, Rubyo notou, lá no
topo, na arquibancada mais alta, uma bandeira se levantar, não com o polvo
negro de Alferius, mas com o sol vermelho de Minalkar, num fundo azul
marinho, representando a casa de Edmund. Em seguida, perto dali outra se
levantou — e mais outra, e outra mais. Não era, nem de longe, algo que se
equiparava à torcida de Karl, mas só de saber que alguém ali ainda desejava
vê-lo sair vitorioso daquele combate encheu o coração de Rubyo de força e
renovou sua confiança.
O rei de Minalkar retirou a camisa estampada com o polvo de Alferius,
jogou a armadura de madeira no chão e ficou apenas com a calça cinza
surrada, amarrada por uma corda na cintura, além das sandálias de couro
desgastado nos pés. Rubyo beijou a marca queimada em seu punho, com o
sol de Minalkar, e colocou seu antebraço na testa. Ao expor orgulhosamente
sua cicatriz, os minalkarianos da torcida foram ao delírio. O rei, então, pegou
sua espada que estava caída perto dali e respondeu à reverência de Karl,
simbolizando o aceite ao duelo.
Capítulo 29: Por Cima do meu
Cadáver
— Fiz minha parte e te dei o benefício do primeiro ataque, Rubyo. Não
te devo mais nada, então vamos acabar logo com isso! — gritou Karl,
correndo na direção de Rubyo com sua longa espada nas mãos.
Rubyo esperou o contato, mantendo-se com a base da posição de defesa
pronta e usando os joelhos levemente fletidos, enquanto sustentava a espada
erguida em frente ao corpo, à meia altura, firmemente segurada por suas
duas mãos. Karl avançou como um touro feroz, com a longa espada
levantada sobre a cabeça, simulando o chifre de um unicórnio, descendo a
lâmina contra Rubyo apenas quando chegou na distância correta. O jovem
conseguiu aparar o golpe da espada, mas o movimento causou uma forte
fisgada em seu tórax fraturado, fazendo-o perder um segundo precioso,
ficando vulnerável à ombrada de Karl, que o jogou novamente para trás, no
chão.
Como costumava fazer quando arremessado para trás, Rubyo deu uma
cambalhota e usou seus pés e pernas fletidas, além da mão esquerda, para
frear seu corpo, que deslizava na areia. Karl continuava investindo contra ele
ferozmente, com golpes de espada vindas de cima para baixo, que Rubyo
habilmente se esquivava, aguardando o momento certo de contra-atacar.
Assim que Karl lentificou seus ataques por cansaço, Rubyo respondeu
os golpes com a mesma agressividade, fazendo as espadas se chocarem,
espalhando fagulhas no ar, enquanto as vibrações das lâminas faziam os
braços dos esgrimistas tremerem de dor. Depois de alguns choques violentos,
a espada de Rubyo se partiu no meio, deixando o jovem incrédulo, pois lutar
com aquela espada era algo tão natural para ele quanto lutar com a
Sabedoria, porém, claramente não era uma espada de tamanha qualidade,
tanto que seu metal não suportou o peso da longa espada inimiga.
Rapidamente, Rubyo olhou ao redor e avistou os corpos dos orcs que
matara, caídos próximo à parede dos camarotes. Desviando de mais um
golpe, o jovem rei correu na direção das armas caídas junto aos corpos,
enquanto Karl corria atrás dele. Era impressionante como um homem
daquele tamanho era tão rápido, mesmo carregando uma espada pesada
como aquela... ou será que Rubyo que estava mais lento do que esperava?
Independente do motivo, o jovem não se atreveu a olhar para trás, chegando
até a alabarda caída. Rubyo fez um giro em estrela, apoiando as mãos no
chão, usando uma delas para pegar a arma, completando a acrobacia e
seguindo com sua corrida sem parar em direção à parede logo à frente.
Com Karl quase o alcançando, Rubyo usou o cabo da alabarda como
apoio e correu na parede, perpendicularmente na vertical, chegando a
alcançar a mureta do camarote de Lucrécia. Os guardas mal tiveram tempo
de ameaçar Rubyo, que aproveitou seu movimento e jogou o corpo para trás
numa cambalhota, voltando para a arena. Ainda no ar, Rubyo girou a
alabarda, descendo com sua parte cortante contra a cabeça de Karl, que
passava, nesse momento, logo abaixo dele. O grandalhão, mesmo já estando
de costas para seu inimigo, levantou instintivamente a espada na direção do
próprio pescoço, conseguindo desviar a lâmina de Rubyo de sua cabeça para
o ombro, que sofreu um corte profundo.
Rubyo, pousando de seu salto, puxou a alabarda para trás e, utilizando a
ponta da arma, estocou as costas de Karl. Por falta de prática do jovem — ou
por uma enorme sorte do grandalhão —, a placa de madeira da armadura
envolta em couro aparou o golpe do braço cansado de Rubyo. Karl não
sofreu dano algum, girando sobre seus calcanhares para executar habilmente
uma manobra com sua espada, utilizando apenas uma das mãos na direção
do rosto de Rubyo.
Por reflexo, o jovem rei deu um passo para trás e deitou a cabeça sobre
sua nuca, sentindo a lâmina cortar o ar bem próximo das narinas, deixando a
ponta da alabarda cair ao chão, bem na frente de Karl. Rubyo tentou recolher
a arma para si, mas o desertor foi mais rápido, pisando com força sobre a
parte de metal da alabarda no chão, enquanto, com a outra perna, chutou o
cabo de madeira, partindo a arma de Rubyo no meio.
Mais uma vez desarmado, Rubyo lançou o que sobrou da madeira na
direção de Karl como uma lança, mas seu inimigo facilmente repeliu o
projétil com sua espada. Utilizando aquilo apenas como uma distração,
Rubyo correu para a parte central da arena, onde jaziam os corpos das
primeiras vítimas da competição. O rei buscava alguma arma, qualquer uma,
que pudesse garantir um mínimo de defesa. Entre os corpos, Rubyo
encontrou uma espada curta, similar às que seu tio utilizava, além de um
machado de cabo médio com apenas um gume, cravado num crânio que
ainda agonizava.
Rubyo pegou as armas, segurando o machado com sua mão esquerda e
a espada com a direita, mas de modo invertido, como se fosse um enorme
punhal. Ao olhar para trás, viu Karl já se aproximando, ainda correndo,
segurando sua longa espada com apenas a mão direita, enquanto seu ombro
esquerdo derramava um vigoroso sangramento pelo corte que a alabarda
fizera.
Tentando imitar o mesmo truque que Inak usara contra ele, Rubyo girou
as duas armas no ar, sem dar pistas de com qual das duas atacaria. Ao girar
seu corpo num salto em parafuso, sem sair do lugar, Rubyo lançou o
machado contra seu inimigo, que ainda estava confuso sobre qual ataque
sofreria, parou sua corrida e esperouo projétil de Rubyo. Karl fez apenas um
meio giro para o lado, desviando facilmente do machado arremessado, mas
quando retomou sua atenção para o inimigo, viu Rubyo já ao seu alcance,
realizando outro golpe contra seu ombro esquerdo, usando a espada curta.
Karl gritou gravemente, mas canalizou sua dor e sua ira para novamente
tentar acertar Rubyo com a longa espada. O jovem desviou do ataque, mas a
envergadura de Karl era tamanha que conseguiu girar seu corpo e, ainda
assim, acertar um pontapé no peito de Rubyo, que rolou para trás, sem
fôlego para gritar. O grandalhão quis aproveitar a vulnerabilidade de seu
inimigo para encerrar logo aquela luta, mas a dor lancinante em seu ombro o
impediu, fazendo-o soltar a espada para tentar estancar o sangramento com a
mão direita.
Rubyo, caído ao chão, tentava puxar o ar, mas a cada golpe que sofria
no tórax, mais difícil ficava de respirar. Ainda em vertigem, sentindo o ar
lutar por cada pequeno espaço em seu pulmão, Rubyo levantou a cabeça e
viu Karl pegando, entre os corpos, uma espada de tamanho médio, a qual
poderia manejar mais facilmente com o braço bom que restara. Armado,
Karl, avançou contra o jovem rei, que seguia caído. Rubyo juntou forças —
sabem os deuses de onde —, e colocou-se de cócoras. Quando seu inimigo
se aproximou, Rubyo usou as pernas como molas, dando um giro de lado
para desviar do ataque, parando já em pé, com a espada curta em mãos, na
posição de defesa.
O grandalhão continuava embebido em dor, ódio e sangue, atacando
ferozmente seu rival, que aparava, com habilidade, quase todos os ataques.
A plateia seguia ensandecida ao ver a luta daqueles dois formidáveis
lutadores, mas já não gritavam mais o nome de Karl, reconhecendo a
habilidade, força e determinação do jovem rei de Minalkar.
Rubyo mantinha-se na defensiva, apenas desviando e aparando,
planejando manter a luta assim até que Karl se cansasse. Porém, o jovem já
parecia mais cansado do que ele, devido sua dificuldade em respirar com as
costelas quebradas. Era frustrante ver Karl cometer tantos erros em seus
golpes furiosos e ele não ter forças para contra-atacar, então o rei seguia
concentrando o que restava de sua energia apenas para se defender.
Após um pequeno erro de Rubyo, causado pelo cansaço extremo, Karl
conseguiu fazer um corte no dorso de sua mão, fazendo-o derrubar a espada
e ficar totalmente desarmado a uma curta distância do grandalhão. Rubyo
teve que pensar rápido, pois se tentasse correr, Karl aproveitaria a
oportunidade para atacá-lo pelas costas sem defesa nenhuma, porém, ficar
desarmado, naquela distância, frente à espada de seu inimigo, era pedir para
mostrar suas tripas à plateia.
Sem opções, Rubyo seguia desviando-se como podia dos ataques,
sofrendo diversos cortes superficiais em todo seu corpo. Após uma esquiva
perfeita, Rubyo aproveitou a guarda de Karl aberta, esticou os dedos de sua
mão direita e enfiou na ferida do ombro de seu inimigo, abrindo a mão lá
dentro e arrebentando o que restava do ligamento que sustentava o braço
esquerdo de Karl, que parou de atacar e caiu sobre um dos joelhos, gritando
de dor. Rubyo, sem muito pensar, deu uma cabeçada com força no nariz de
Karl, que caiu para trás com o rosto sangrando.
Apesar de ter conseguido derrubar Karl, a cabeçada também teve um
alto preço para Rubyo, deixando-o com a visão totalmente turva, que foi se
transformando numa tontura incontrolável. O jovem girou seu corpo na
direção do único ponto de referência distinguível por sua visão embaçada,
que era o camarote real, e correu para lá. Karl levantou a cabeça assustado,
preocupando-se com a possibilidade de Rubyo estar armando um golpe fatal
contra ele enquanto estava vulnerável pela cabeçada. Mas, ao olhar em volta,
pôde ver seu inimigo cambaleando, tropeçando e arfando, enquanto tentava
correr para a parede do camarote.
Karl levantou-se com dificuldade com apenas um dos braços, evitando
olhar para a abertura pavorosa em seu ombro, que sustentava o braço
esquerdo apenas pelo osso. Com surpresa e alegria, o antigo caçador viu
Rubyo caindo perto do corpo dos orcs, local onde seu ombro foi rasgado
anteriormente pela alabarda. A multidão gritou em delírio ao notarem que
Rubyo não demonstrava sinais de vida, com seu rosto caído no chão e
totalmente vulnerável ao oponente. Com toda sua experiência, Karl achou
melhor conferir de perto e, se necessário, dar o golpe de misericórdia em seu
inimigo.
O homem da cabeça queimada, ainda cambaleante, pegou uma
cimitarra caída ali perto e foi calmamente andando na direção do corpo de
Rubyo, que seguia caído de bruços e sem se mexer, parecendo nem respirar.
Karl, com a pouca força que restava, bradava para a multidão, que respondia
aos seus pedidos e gritava seu nome. Lucrécia aplaudia de pé, gritando o
nome do guerreiro, junto à torcida.
Andando sem pressa e girando a espada no ar, como numa fanfarra, ele
seguiu se aproximando de Rubyo. Distraído pela claque, que gritava seu
nome e lançava flores na arena, Karl não teve tempo o bastante para
perceber Rubyo virando seu corpo no chão, segurando a ponta da alabarda
quebrada nas mãos, lançando-a contra ele. Em frações de momentos, Karl
entendeu que Rubyo não caíra, mas sim, jogara seu corpo sobre a arma para
escondê-la, enquanto aguardava o momento exato do bote. Porém, para o
desertor, já era tarde demais.
Sem chance de defesa, o projétil de Rubyo atingiu em cheio o pescoço
de Karl, que estava com a guarda inteira aberta enquanto girava a espada no
ar para a torcida. Desacreditado, Karl largou a cimitarra e tentou estabilizar a
lança da alabarda atravessada em sua garganta, desejando segurar a vida que
escorria por entre seus dedos através de uma hemorragia interminável. A
multidão calou-se como num velório, enquanto assistia Karl agonizar com
um olhar perdido.
Rubyo levantou-se, limpando o sangue que cobria seu rosto, ainda
tonto, e caminhou na direção contrária do camarote, para que tivesse um
ângulo para avistar Lucrécia, que caiu sentada no trono ao ver seu inimigo
em pé. O rei de Minalkar, com osuas parcas forças, curvou-se numa
pomposa reverência à rainha, como se estivesse encerrando uma peça de
teatro. A plateia rompeu em aplausos e saudações, gritando uníssona o nome
de Rubyo.
Lucrécia, atônita, forçava um sorriso simpático para o vencedor,
dividida entre o desejo de vê-lo morto e o de manter sua amada popularidade
entre o povo. Toda a guarda real olhava para a rainha, assim como seu
general e sua maga conselheira, aguardando suas ordens. Lucrécia levantou-
se novamente, sussurrou algo para Gorggi, e caminhou até a beirada de seu
camarote, olhando para Rubyo. A rainha levantou seus braços e pediu
silêncio para as arquibancadas, que obedeceram.
— Amado povo de Alferius, vocês são testemunhas: a escolha dos
deuses foi feita, e eu vou acatá-la! A nossa sede por alegria,diversão e justiça
foi sanada, e serei grata por isso! Hoje, bastardo Rei de Minalkar, eu
concedo sua liberdade! Que se faça saber que Rubyo Hant é, a partir de hoje,
um homem livre em Alferius!
A multidão rompeu novamente em aplausos, ovacionando o nome da
rainha e do vencedor da competição. Rubyo mal podia acreditar no que
ouvia enquanto assistia o discurso da rainha, que mal conseguia sustentar o
amarelo sorriso de descontentamento. Lucrécia fez um gesto com a mão
direita, apontando para o enorme portão sul da arena, que começou a ser
aberto através de um complexo mecanismo, dando acesso para o exterior do
coliseu.
Por algum motivo, Rubyo ainda sentia que aquilo não tinha acabado,
então quis sair dali o mais rápido possível. Exercendo sua diplomacia como
era possível, o rei de Minalkar fez uma nova saudação aos nobres no
camarote, e virou-se em direção ao portão do outro lado da arena,
caminhando o mais rápido que podia para cruzar os quase cem passos élficos
que o separavam de sua liberdade. Enquanto caminhava apressado e
respirando com dificuldade, Rubyo olhava para a multidão em busca de
rostos familiares que pudessem dividir com ele sua vitória, e talvez fosse
apenas sua imaginação, mas teve a impressão de ver Ollaff e Jessi em algum
lugar. No meio da multidão, Rubyo claramente viu a senhora Ellie, que
parecia muito surpresa e emocionada com a vitória do jovem, acenando
vigorosamente para que o jovem se aproximasse dela, mas Rubyo tinha
outros planos, seguindo diretamente para o portão aberto, a fim de não
passar nem mais um minuto naquele abatedouro.
Já na metade do caminho, Rubyo percebeu que a multidão
repentinamente se calou, e ao olhar para trás, viu Lucrécia novamente com
os braços levantados, pedindo silêncio.
— Povo de Alferius, ouçam o que diz sua rainha: Alguns refugiados
rebeldes de Minalkar parecem não terem ficado gratos com o
reconhecimento que lhes dei como cidadãos alferianos, e hoje, no coliseu de
meus antepassados, demonstram um enorme desrespeito, levantando
bandeiras de outro reino! — Rubyo, imaginando onde aquele discurso
levaria, já voltou a caminhar apressado até o portão, virando as costas para a
rainha. — Seu Rei deve pagar por essa traição! Mas a mesma lei que
protegeu Rubyo de ser executado anos atrás ainda o protege, por ser um rei
estrangeiro em meus domínios. Porém, essa lei possui apenas uma exceção:
Em tempos de guerra, as Leis Antigas não se aplicam!
Rubyo mudou sua marcha rapidamente para uma corrida desesperada
ao ouvir aquelas palavras, vendo o portão começar a se fechar através de um
mecanismo de pesos e contrapesos.
— Eu, Lucrécia Wanda Lurullo, rainha de Alferius, declaro, neste
momento, oficialmente guerra contra Minalkar! Homens, matem o rei
bastardo!
A multidão seguiu calada ao ouvir o discurso da rainha, assistindo
atentamente o desespero de Rubyo, que tentava chegar até o portão antes
dele se fechar. Diversos arqueiros, com o uniforme real de Alferius, se
levantaram nas muralhas, mirando para o vencedor do torneio, que não
parou de correr mesmo diante de tantas flechas apontadas para ele. Ao ouvir
a ordem do capitão para dispararem, Rubyo só fechou os olhos, ainda
correndo, lamentando que a morte, ironicamente, viria para ele num
momento tão perto da liberdade.
Quando a nota musical das cordas dos arcos ressoou no ar ao disparar
as flechas, Rubyo já esperava sentir o metal das ponteiras atravessar seu
corpo e rasgar sua carne, mas, antes disso, ouviu uma voz alta e familiar,
vinda de algum lugar da arquibancada, gritar tão alto que ecoou por toda a
arena: Wailasure!
Um vendaval se formou ao redor de Rubyo, como um pequeno furacão,
desviando todas as flechas e levantando uma enorme cortina de pó e areia
perto do portão, tirando a visão de todos. Passados alguns segundos, a
nuvem de poeira se dissipou, mostrando o portão de ferro já fechado.
Rubyo, no entanto, não estava mais na arena.
Capítulo 30: Os Retalhos da
Redenção
Rubyo se escondeu atrás de um dos pilares que sustentavam as
arquibancadas pelo lado de fora do coliseu, enquanto retirava a areia e o
sangue dos seus olhos para voltar a enxergar nitidamente. Quão logo
recuperou o fôlego, ainda que parcialmente, correu na direção da floresta
que existia ao sul do coliseu, ciente da necessidade de chegar na cidade de
Uthen em, no máximo, dois dias, pois não poderia perder seu navio.
Enquanto corria para a floresta, sentiu um inesperado frio vindo do
Sudeste, mesmo estando quase no verão, trazendo com ele o arrependimento
por ter tirado a camisa na luta, além de lamentar a perda de sua sandália
durante a corrida. Rubyo vestia apenas a calça amarrada por uma corda, com
o tronco desnudo, sem armas e descalço. Pelo menos seu colar ainda poderia
prover alguma proteção, apesar de não se sentir forte o suficiente para
conjurar nenhuma magia. Ele torcia para que não precisasse nem tentar.
A cada passo, Rubyo sentia mais dores por todo o corpo, vindo de suas
ardidas feridas abertas, pelo trauma que latejava em seu rosto e,
principalmente, pela dor ao respirar, vinda de suas costelas quebradas. Dava
para perceber que algo estava muito errado com seus pulmões.
Apesar da dor no peito e das respirações curtas, era um alívio ouvir,
cada vez mais longe, os gritos da multidão na arena, que já estavam quase
inaudíveis de dentro da mata, dando espaço ao canto de pássaros e ao sopro
do vento. De repente, o som natural da floresta foi incomodado pelo trote de
um cavalo, seguido pelo barulho de uma carroça rangendo. Instintivamente,
Rubyo se escondeu atrás de um arbusto próximo à margem da estrada,
torcendo para que a carroça passasse batido, mas ela não passou.
— Rubyo, você está por aí? — gritou uma voz conhecida, vinda da
estrada.
— Gary?! — perguntou Rubyo, notando incrédulo a voz do amigo.
— Aí está você, meu guerreiro! — disse Gary, sorrindo ao ver Rubyo
sair do esconderijo. — Rápido, suba! Vamos logo, antes que os guardas do
coliseu te encontrem!
Com a ajuda de Gary, Rubyo subiu na carroça e deitou-se no chão de
madeira, exausto de tudo o que vivera nas últimas horas e, também, nos
últimos anos. Apesar de respirar a brisa fresca da liberdade, o ar seguia
entrando em seus pulmões com uma enorme dificuldade, deixando-o com
seus lábios quase azulados. Gary percebeu que parte do tórax de seu amigo
estava afundado e que não se mexia quando Rubyo respirava, o que o fez
lembrar dos livros de anatomia e de medicina que ganhara de Ollaff quando
abriu a loja, os quais estudou profundamente para aperfeiçoar suas receitas
de poções.
Fazendo um sinal sonoro para que o cavalo seguisse o caminho, Gary
procurou, numa das sacolas de pano que havia na carroça, até encontrar uma
seringa de vidro com uma grande agulha, a qual utilizava para extrair seiva
de algumas plantas para suas receitas. Com todo o cuidado que o remelexo
da carroça permitia, Gary contou as costelas da direita de Rubyo, de cima
para baixo, e entre a sexta e a sétima, enfiou a agulha até o fim, puxando
sangue de dentro da cavidade torácica por várias e várias vezes, esvaziando
aquela hemorragia interna que não deixava os pulmões se expandirem
direito.
Respirando melhor e sentindo um enorme alívio, Rubyo agradeceu seu
amigo, que fazia um curativo no local das punções e o forçava a tomar
algumas poções vermelhas e azedas. Gary, em seguida, ofereceu comida e
água para Rubyo, mexendo em algumas outras sacolas da carroça. O jovem
rei aceitou de bom grado, enrolando-se numa coberta enquanto saciava a
fome e sede com dificuldade, pela forte dor que sentia na boca e nos dentes
lascados. O cansaço era tanto que ele mal sentia o ardor do líquido alcoólico
que Gary jogava em seus ferimentos, limpando as feridas antes que
infeccionassem. Uma vez alimentado e limpo, Rubyo deitou-se novamente e
adormeceu, enquanto Gary retomava o controle da carroça, mantendo o
rumo para o sul.
Após algumas horas, Rubyo abriu os olhos e seguiu deitado em
silêncio, contemplando todas as cores daquele pôr do sol, que podia ver entre
as últimas árvores da floresta de pinheiros que atravessavam. Conseguindo
finalmente colocar a cabeça no lugar, Rubyo alegrou-se, pois, finalmente,
era um homem livre de novo. Por vergonha de Gary, o rei fez um esforço
descomunal para não chorar de emoção, mas foi em vão, pois irrompeu em
lágrimas e soluços como uma criança, apenas pelo fato de ver uma revoada
de pássaros cruzar o céu sobre sua cabeça. Gary, tentando não constranger
seu amigo deitado na carroça, seguia guiando em silêncio, olhando
fixamente para o horizonte.
Rubyo conseguiu, após um tempo, se recompor, e ainda enrolado na
coberta, sentou-se ao lado de Gary no banco da frente da cocheira.
— Qual é o nome do seu cavalo? — perguntou Rubyo.
— Achei melhor não batizar esse. Da última vez, deu azar para o
animal, se lembra? — respondeu Gary, com um sorriso debochado. — Como
você está se sentindo, Rubyo?
— Melhor do que já estive nos últimos anos. Muito obrigado, Gary, eu
fico te devendo mais uma. Nem sei como te agradecer por tanto...
— Rubyo, você faria o mesmo por mim, não faria?
— Com toda a certeza, Gary! — disse Rubyo, com firmeza.
— Então não precisa me agradecer, amigos são para isso mesmo! —
respondeu Gary, sorrindo, olhando novamente para a frente.
— Pois eu agradeço, sim, mais uma vez. Que os deuses lhe deem em
dobro tudo aquilo que já fez por mim! — disse Rubyo, abraçando seu amigo.
— Mas, me conte, como foi que me encontrou?
— Ollaff, a senhora Jessi e eu, já havíamos esquematizado tudo para
quando você vencesse e, por isso, essa carroça já estava equipada e
escondida perto do coliseu, para possíveis emergências ou para,
simplesmente, te buscar. Eu sabia que você venceria, só estava esperando
que saísse em paz, pela porta da frente.
— Pois é, eu também esperava... — confessou Rubyo, apalpando com
cuidado a região mais dolorida do tórax. — Mas dada as circunstâncias, só
de eu ter saído de lá com vida já está bom demais!
— Sem dúvidas! E é muito bom te ver de novo, meu amigo, e melhor
ainda é te ver livre... era de partir o coração te ver naquele lugar...
— Eu sei, Gary, e entendo seus motivos por não ter ido mais me
visitar...
— Peço que me perdoe, Rubyo, eu sei que é totalmente egoísta, mas...
era insuportável te ver sofrendo daquela maneira e não poder fazer nada. Era
como se você estivesse morrendo a cada dia naquele lugar, e toda vez que eu
saía de lá, me sentia culpado por estar vivendo uma vida tão boa enquanto
você ficava naquele chiqueiro.
— Eu entendo... e acredite, não há nada o que perdoar, fique tranquilo.
— respondeu Rubyo, com um sorriso doce para seu amigo.
O rei enrolou-se mais firmemente na coberta para tapar o vento frio que
vinha com a noite. A floresta já havia ficado para trás; eles viajavam agora
em campo aberto, cruzando algumas colinas rumo ao sul. Gary pediu para
Rubyo segurar as rédeas enquanto pegava, na parte de trás da carroça, uma
garrafa de hidromel. Habilmente, Gary sacou a rolha com a boca, cuspiu-a
para fora e deu uma bela golada na bebida, passando, em seguida, a garrafa
para Rubyo. Apesar da pouca luz, ele conseguiu distinguir um rótulo na
garrafa com o mesmo símbolo dos dois “B” que vira na loja de Nenáreah,
escrito embaixo: “Irmãos Bortolly Destilaria”.
— Então, agora além de poções, também produzem bebidas? —
perguntou Rubyo, dando uma golada em seguida.
— Exatamente! Minha irmã ficou cuidando das coisas enquanto eu
vinha te ajudar, mas agora temos até funcionários. Lembra do Norm? Ele
trabalha conosco agora, o mestre Ollaff o dispensou ao fechar a livraria!
— Que notícia excelente, Gary, parabéns! Mas, por que bebidas? As
poções não vendem bem?
— As poções são para pessoas que querem se curar, enquanto o álcool é
para aqueles que querem apenas esquecer as suas mazelas. E o que você
acha que vende mais? Não tem nada mais lucrativo do que tirar
temporariamente a dor da alma de um homem, pois, no dia seguinte, doerá
de novo!
— Apesar de tudo, fico muito orgulhoso de ver você trabalhando
honestamente e prosperando com seu negócio, meu amigo, sem precisar
roubar mais.
— Você tá brincando comigo? Já viu o preço das minhas poções?!
Aquilo é um assalto! — disse Gary, gargalhando.
A noite envolveu de vez os campos em que estavam, e Gary acendeu
uma lamparina que ficava no suporte de ferro ao lado da cocheira. Rubyo foi
informado pelo amigo que viajariam a noite toda, então pediu licença e
deitou-se novamente para dormir, combinando que Gary o acordaria quando
estivesse cansado demais para guiar.
Após algumas horas, o rei de Minalkar acordou confuso, com o som de
gaivotas gritando do alto. Levantou-se assustado ao perceber que já era de
dia, e seu amigo não havia o chamado para revezar. Gary estava tomando as
últimas gotas da garrafa que abriram na noite anterior, com os olhos
semicerrados de sono e as bochechas ebriamente avermelhadas, que se
abriram num sorriso ao ver que Rubyo despertara.
— Estamos quase chegando! O mestre Ollaff ficará orgulhoso de mim,
não vai? Eu te trouxe em segurança, como prometi a eles... — disse Gary,
com a voz amolecida pela bebida.
Rubyo concordou, assumindo as rédeas para parar a carroça. Com
relutância, colocou Gary para dormir e aproveitou a pausa para urinar perto
da estrada. Ao retomar a viagem, já era possível ver, lá embaixo das colinas,
a pequena cidade de Uthen, aonde chegaram após algumas horas, logo no
início da manhã.
Gary acordou com os sinos dos navios que partiam do porto da cidade,
e sentou-se ao lado de Rubyo, pedindo para reassumir as rédeas.
— Você sabe qual é o meu barco, Gary? — perguntou Rubyo, olhando
para os vários navios flutuando perto do porto.
— Calma Rubyo, já está tão ansioso assim para se livrar de mim? —
brincou Gary, enquanto massageava as têmporas para afastar a dor de
cabeça. — Seu barco só partirá amanhã, e devemos esperar a chegada do
mestre Ollaff hoje à noite, com sua passagem. Vamos para a estalagem, você
precisa de um banho.
Rubyo sentiu-se dividido ao saber que partiria no dia seguinte. Por um
lado, era bom saber que ainda teria mais um dia na companhia de seus
amigos, mas, mesmo não querendo admitir para si, sentia um frio na espinha
ao pensar que Lucrécia poderia capturá-lo e trazer de volta seu pesadelo no
cárcere.
Ao atravessarem os portões da pequena cidade portuária, famosa por
sua atividade de pesca de baleias, perceberam o quão simples era aquele
lugar. Existiam poucos prédios de dois andares, e as muralhas eram de
paliçada. As casas eram quase todas feitas exclusivamente de madeira,
apresentando chaminés fumegantes que derretiam a neve dos telhados. A
proximidade das Montanhas Geladas trazia um clima de inverno o ano todo
para aquele lugar. Nos portões não havia guardas, e pelo estado da estrutura,
há muito tempo a segurança não era uma preocupação para aqueles cidadãos.
Gary, assim como Rubyo, não conhecia aquele local, então perguntou
onde ficava a estalagem para algumas crianças que brincavam na rua,
tentando fazer um horrendo boneco de neve com aquela massa de gelo, barro
e lama, que se juntava nas ruas. Seguiram por alguns minutos, conforme a
instrução que receberam, e chegaram finalmente à estalagem. O prédio era
um dos poucos da cidade que tinham dois andares, sendo o primeiro todo
feito de pedra, enquanto o superior apenas de madeira. Na frente da porta,
uma placa estava pendurada por correntes, onde se lia: “Taverna Baleia
Azul”.
Os dois amigos desceram da carroça, e Gary foi até o balcão, enquanto
Rubyo usou discretamente sua magia de fogo para descongelar a água do
cocho, soltando o cavalo da carroça para se hidratar. Enquanto Gary
caminhava para o interior da estalagem, Rubyo reparou que seu amigo ainda
mancava bastante, provavelmente por nunca ter se recuperado direito
daquela fratura em sua perna. Gary retornou fazendo um sinal de
confirmação para Rubyo e, junto com ele, desceram as sacolas de pano e
estopa que estavam na carroça, carregando-as para um dos quartos com duas
camas que alugaram no segundo andar. Após se instalarem, Gary apontou
para uma das sacolas e disse para seu amigo:
— Não sei se você vai querer vestir isso aí, mas essa roupa foi
encomendada por aquela víbora velha que te traiu. Alguns meses depois que
ela partiu para o colo de Harddam, um alfaiate foi até minha casa com esse
embrulho, dizendo que tinha uma encomenda para você a mando dela,
porém, não te encontrava. Contei para ele que você estava... digo, da sua
situação, e ele deixou comigo para te entregar quando fosse possível.
Rubyo abriu a sacola de pano e encontrou lá uma roupa. Ao tirá-la, um
bilhete caiu junto, escrito com uma letra que Rubyo reconheceu como de
Rosalind, assim como nas cartas que ela deixava junto aos seus presentes de
aniversário.

“Meu jovem senhor e REI, Rubyo,


Não espero que um dia vá me perdoar, ou até mesmo entender
minha decisão ou minhas atitudes, mas espero que saiba que,
independentemente do que eu fizesse, por minha posição, eu mancharia
o nome da minha família mais uma vez. Fiquei dividida entre servir a
rainha que me alimenta ou o rei que eu amo, e envergonhada, confesso
que a fome falou mais alto que o amor.
O senhor, mais do que ninguém, sabe o que é carregar uma culpa e
um fardo pelo seu sobrenome, ainda que não tenha feito nada para
merecer isso. Nós, Cowas, carregamos a eterna fama de traidores,
mesmo minha família tendo sido quase toda morta enquanto lutava
lado a lado de seu pai, durante o cerco de Mundy.
Mas é incrível, não é? Você leva uma vida inteira de boas ações
para criar um bom nome e sustentar sua honra, mas basta uma decisão
errada para te jogar no mais profundo limbo que a desonra pode
trazer. Minha família serviu e alimentou a casa de Edmund por
gerações, mas bastou a traição de um único antepassado, para que
nenhum Cowa mais prestasse aos olhos da sociedade minalkariana.
Creio que conseguirei convencer os guardas a te entregar essa
carta com essas vestes, ou então, elas estarão te esperando em sua
casa, quando o senhor retornar, e poderei te falar isso tudo
pessoalmente. Espero que essa roupa te ajude a enfrentar as noites
frias que deve estar vivendo, mas sinto que não serão muitas, pois sei
que, em breve, o senhor dará um jeito de sair dessa prisão. Você não foi
feito para viver preso, pois tem um espírito livre, de um verdadeiro rei!
E é nesse sentimento de liberdade que o povo de Minalkar acredita
quando se prostram diante do senhor.
Espero, de todo o meu coração, que possa um dia me perdoar, e que
possamos rir disso tudo comendo uma deliciosa torta no fim de uma
tarde fria.

Com amor,
Rosalind Cowa.”

Rubyo amassou a carta e, em lágrimas, a jogou perto da lareira do


quarto. Depois de respirar fundo e se controlar, pegou de volta a carta,
segundos antes que ela fosse consumida pelas chamas. Ao abri-la e ler
novamente, Rubyo dobrou-a, retirando os amassados, e colocou sobre a
cama, assim como fizera com a roupa que vinha com o bilhete.
Um cabide sustentava a vestimenta, que tinha cheiro de pó e mofo por
estar há muito tempo guardada. Uma camisa longa de linho, seda e algodão
estava pendurada, com uma divisão no meio através de uma linha vertical,
mostrando a metade da direita, azul marinho, e a metade da esquerda,
vermelho. No meio dela, um sol idêntico ao do brasão minalkariano, mas em
branco, pintado em tamanho grande, tanto na frente quanto nas costas. Um
cinto preto, com fechamento dourado, estava preso na cintura, com alguns
pequenos ganchos, onde poderia ser pendurado diversas coisas. Duas
ombreiras, de madeira e couro, protegiam os ombros, com um pequeno sol
de cada lado, adornados em bronze. Da abertura embaixo da camisa, uma
calça de couro grosso descia do cabide, com pequenas cordas para ajuste de
tamanho, assim como a túnica real que Rubyo usara em sua coroação.
A roupa era linda, mas um pouco mais pesada do que Rubyo esperava.
Ele notou que, costurado na parte interna da camisa, existia uma fina, mas
incrivelmente resistente camada de cota de malha, habilmente instalada a
fim de não demonstrar sua existência. No fundo da sacola, Rubyo ainda
encontrou duas braçadeiras feitas com madeira leve, envolta num couro
grosso — provavelmente de crockos —, além de caneleiras e um par de
botas feitas com o mesmo material, todas tingidas em preto, assim como sua
calça.
Rubyo mentalmente agradeceu Rosalind e liberou seu perdão. Em
seguida, deixou o quarto e foi até a sala de banho, onde se lavou antes de
vestir o presente póstumo da senhora Rose. Gary ajudou Rubyo com o
sistema de cordas e regularam as vestimentas para o tamanho exato do rei de
Minalkar, que estava claramente impressionado com o quão leve e resistente
era aquela armadura, resistindo até mesmo a um golpe da adaga de Gary.
Os dois amigos desceram até o andar inferior, onde comeram e
colocaram o assunto em dia, além de relembrar de diversas histórias que
vivenciaram juntos em sua infância. Para a surpresa de Rubyo, Gary contou
que estava noivo de Vallery, o que realizaria o sonho de ambos: ele se
casaria com seu amor de infância, e ela com um homem rico. Após a
refeição, resolveram explorar a cidade, caminhando sempre lentamente para
respeitar a marcha de Gary.
Os dois visitaram as poucas lojas da cidade, onde Gary fez questão de
comprar algumas plantas e frutas regionais, na intenção de descobrir novos
sabores e ingredientes para seus negócios, mas sua maior compra, sem
dúvidas, foi uma longa capa azul marinho com gorro, a qual usou para
presentear Rubyo, incentivando o amigo a usá-la para esconder suas vestes e
seu rosto, evitando sempre atenção indesejada.
Com o cair da noite e o início de uma chuva fria, voltaram para a
estalagem e descansaram no salão principal, enquanto esperavam a chegada
de Ollaff. Rubyo pediu emprestado ao taverneiro o alaúde velho que existia
pendurado atrás do balcão, afinando o instrumento em alguns segundos e já
tocando as primeiras notas em seguida. O jovem se surpreendeu e respirou
aliviado ao ver que, mesmo depois daquele tempo todo, seus dedos ainda
tinham afinidade com as cordas.
Enquanto Rubyo tocava A marcha dos Antigos Homens, uma forte
chuva caía lá fora, não sendo possível enxergar nada através dos vitrais das
janelas. De repente, ouviu-se um som forte da porta batendo ao ser aberta,
com a silhueta de uma pessoa encapuzada e encharcada entrando no local,
portando um longo cajado. Mas para a surpresa dos dois amigos, tranças
negras escorriam nos ombros do rosto coberto, repousando sobre um grande
decote, adornado com um colar de esmeralda: sem dúvidas, era Jessyann.
Rubyo correu para abraçar sua amiga, mas sentiu um gelo na espinha ao ver
que, atrás dela, não havia mais ninguém.
— Jessi, onde está Ollaff?! — perguntou Rubyo, sem qualquer
cerimônia.
— Eu sinto muito, Rubyo... — disse Jessyann, com os olhos vermelhos
por horas de choro. — Ollaff não virá nessa noite, e nem nunca mais.
Capítulo 31: Em busca do Reino
Jessi caiu aos prantos nos braços de Rubyo, que amparou a maga. O jovem
tentou não entender o que ouvira, mas a tristeza franca e exacerbada de
Jessyann era clara e suficiente para demonstrar que seu amigo e mestre havia
partido. Gary pediu que o taverneiro trouxesse chá quente para a viajante,
que estava encharcada, e ajudou a recolher a bolsa de viagem que ela trazia
em suas costas.
Os três sentaram-se próximos à lareira, aproveitando do fato de não ter
mais ninguém no salão enquanto o chá era servido. Jessyann, percebendo os
dois jovens também em lágrimas, se recompôs o mais rápido que conseguiu
e sussurrou um feitiço para se secar instantaneamente. Após um gole no
doce chá, a maga começou a falar:
— Eu sinto muito, meus jovens, pois sei que amavam Ollaff tanto
quanto eu... e agradeço por terem cuidado dele durante parte do tempo em
que eu não pude. Podem ter certeza de que ele também os amava, e tinha
muito orgulho dos homens que vocês se tornaram.
Jessyann deu mais uma golada em seu chá, enxugando mais algumas
lágrimas na manga de seu longo vestido lilás. Rubyo fez menção de
perguntar algo, mas a maga já retomou sua fala:
— Ontem, quando você estava cercado por arqueiros, Rubyo, Ollaff
utilizou uma magia de vento para afastar de você as flechas inimigas, porém
isso revelou às tropas alferianas o local onde estávamos na arquibancada. Foi
tudo uma armação de Lucrécia, pois eram os próprios soldados dela que
levantaram as bandeiras de Minalkar... um seguro que ela tinha para poder te
matar caso você vencesse. Como nós te ajudamos a fugir, fomos presos e
rapidamente julgados como traidores; e pelo decreto de guerra, condenados à
morte... a própria rainha proferiu a sentença, com aquele prazer doentio em
seu olhar... — disse Jessyann, voltando a chorar.
— Mas como a senhora conseguiu escapar, senhora Jessi? — perguntou
Gary, com a voz embargada.
— Ollaff prometeu não oferecer resistência, desde que eu fosse
libertada. Caso contrário, ele jurou levar mais da metade do coliseu com ele.
Não sei se Ollaff tinha mesmo esse poder todo, mas aquela maga que
aconselha a rainha foi aluna de Ollaff em Michello, e por isso sempre temeu
meu marido, apesar de ter aquela aparência sinistra. Marghan convenceu a
rainha que ele não estava blefando e, por isso, resolveram me libertar.
Jessyann tomou mais um gole do chá para tentar se acalmar, mas os
soluços e o desespero tomaram conta da maga.
— Os malditos guardas me deram apenas dois minutos para me
despedir dele... dois minutos que eu não queria que acabassem jamais... em
seguida, fui jogada para fora do coliseu. E do lado de fora, pude ver o corpo
de Ollaff enforcado no alto de uma das torres, pendurado junto aos mastros
das bandeiras de Alferius, lá no alto da arena...
— Tem certeza de que era mesmo ele, minha senhora? — perguntou
Rubyo, com a voz embargada, ainda negando para si mesmo que aquilo era
verdade.
— Sim, meu jovem... era Ollaff... meu amado marido e melhor amigo...
era ele mesmo, pendurado pelo pescoço, no alto daquele mastro...
Rubyo socou a mesa de centro, que estava à frente deles, com força,
partindo suas pernas de madeira e derrubando todo o chá. Gary rapidamente
fez um sinal para o taverneiro, que estava claramente assustado, e pediu
desculpas, prometendo pagar pelo prejuízo.
— Eu vou matar aquela rainha maldita com as minhas próprias mãos,
nem que seja a última coisa que eu faça! — gritou Rubyo, chutando o que
restou da mesa para dentro da lareira.
— Não fale algo assim em voz alta, jovem tolo! — disse Jessyann,
levantando-se para censurar Rubyo. — Apesar de estarmos longe de
Nenáreah, ainda estamos no reino de Alferius, e uma afirmação dessas pode
te jogar de novo dentro das grades ou te pendurar ao lado do seu mestre! É
isso o que você quer?!
Rubyo respirou fundo, tentando se acalmar, e sentou-se novamente na
cadeira, chorando compulsivamente. Ao levar suas mãos ao rosto, Rubyo
lembrou do efeito de seu anel, retirando-o para amenizar a raiva e a tristeza
que sentia, mas mesmo sem ele, aquele sentimento de dor e de luto não foi
abrandado. O jovem rei sentia como se alguém tivesse retirado seu coração e
colocado um punhado de neve no lugar.
— E o que você pretende fazer agora, minha senhora? — perguntou
Gary, delicadamente, tentando acalmar os ânimos.
— Eu ainda não sei, meu jovem... Talvez eu volte para Michello, ou
quem sabe volte para a guilda. Mas, primeiro, eu precisava cumprir minha
última promessa ao meu marido.
Jessyann movimentou seus dedos e trouxe, magicamente, a sacola de
viagem para perto de si. Dela, retirou a coroa de Minalkar, a caixinha de
madeira com os ovos de fênix e a espada Sabedoria, entregando tudo ao seu
verdadeiro dono.
— Ollaff me pediu para te devolver esses tesouros, para que use em sua
viagem, além de, é claro, a sua passagem. — Jessi retirou um envelope de
papel de seu decote, e entregou para Rubyo.
— Eu agradeço, mas não vou mais, minha senhora. — respondeu
Rubyo. — Voltarei para Nenáreah e desafiarei Lucrécia, ou encontrarei uma
outra maneira de matá-la.
— E você acha que ela é uma selvagem tola, assim como Inak? Não se
iluda, meu jovem, se você pisar em Nenáreah estará morto! Não existe outra
solução para você e para seu povo, a não ser voltar para as terras de seu pai;
e não existe outra maneira de reconquistá-la, sem o exército de Nettiel.
Ollaff deu sua vida por isso, e você deverá honrá-lo, não vingá-lo!
Rubyo afundou ainda mais na cadeira ao ouvir aquelas duras palavras.
— A senhora é de lá, não é mesmo? — perguntou Gary, tentando aliviar
a tensão.
— Sim, e não. Sou de Hannambar, mas minha família era do reino rival
a Nettiel. As coisas são um pouco diferentes naquele continente, pois apenas
pouco mais da metade dele é dominado por raças civilizadas, divididas entre
dois reinos, que eram da mesma família, mas foram separados pela guerra
civil. O resto do continente é quase selvagem, cheio de perigos para quem
não o conhece.
— E a senhora acha mesmo que esse tal Rei Draco vai cumprir sua
palavra e ceder o reino e a mão de sua filha para quem vencer o torneio? —
perguntou Rubyo.
— Estou certa de que sim. O Rei Draco tem diversos e famosos
defeitos, mas é um homem respeitado, antes de tudo, por sua palavra. Mas,
ainda que não fosse, qual opção você teria, Rubyo? Nesse momento, você é
a pessoa mais procurada de Cehvambar. — sussurrou Jessi, olhando para os
lados. — A rainha colocou uma gorda recompensa por seu pescoço.
Rubyo abaixou sua cabeça e ponderou por alguns momentos, olhando o
resto da mesinha queimar no fogo da lareira.
— A senhora tem razão. Amanhã eu partirei rumo a Hannambar, e só
retornarei de lá com um vasto exército para retomar as terras de meu pai.
— Agora sim, Rubyo, você está falando como o forte e destemido rei
guerreiro que Ollaff sempre me disse que você seria! — disse Jessi, com um
doce sorriso, o primeiro desde que chegara na taverna. — E eu tenho mais
algumas coisas para você.
Ainda mexendo na sacola que trouxera, Jessyann retirou um papel
enrolado e escurecido, abrindo-o para revelar o mapa mágico que Ollaff
utilizara na viagem para Minalkar.
— Esse mapa sempre mostra a localização de onde você está, não
importa onde for. Ollaff esperava que isso te ajudasse a não se perder nas
terras desconhecidas, bem como encontrar um caminho para voltar para
casa.
Jessyann enrolou o mapa e entregou para Rubyo. Em seguida, a maga
pediu a espada Sabedoria, a qual o rei desembainhou e entregou a ela pela
lâmina, para evitar que o mecanismo de defesa machucasse sua amiga. Jessi
pegou a espada, desrosqueou o pomo do cabo com cuidado, e revelou um
pequeno compartimento secreto que havia ali, onde instalou um cristal
mágico igual ao do pescoço de Rubyo, travando o pomo novamente antes de
devolver a arma ao seu dono.
— Essa espada foi projetada para ser uma arma mágica, porém Ollaff
retirou o cristal dela antes que fosse entregue para Edmund III, pois temia o
estrago que ele poderia fazer em posse dela.
Rubyo pegou sua espada e sussurrou a palavra Flaminus próximo à
lâmina, fazendo sua arma entrar em chamas numa língua de fogo. Em
seguida, Rubyo soprou e o fogo desapareceu, deixando a palavra Sabedoria,
cravejada no metal, ainda mais vermelha. Por fim, o jovem girou a espada no
ar para esfriar e guardou em sua bainha. Ao se sentar novamente, Rubyo
perguntou:
— Senhora Jessi, meu povo estará seguro em Alferius? A rainha
declarou guerra contra Minalkar.
— Fique tranquilo, eles estarão seguros. Quando você foi preso, todos
os minalkarianos receberam a cidadania de Alferius, então, a menos que
declarem ser puramente de Minalkar, nada acontecerá com eles.
Rubyo suspirou aliviado e, ao respirar fundo, pensou estar delirando ao
sentir o cheiro das ervas de fumo de Ollaff, mas, ao olhar para o lado, viu
que Gary acendia um longo cachimbo, idêntico ao que seu mestre e seu tio
fumavam. Jessyann também reparou no cheiro, mas fechou os olhos e
aproveitou as memórias que o perfume de canela e tabaco traziam de seu
marido. Após alguns segundos, a maga disse:
— Meu jovem, tem algumas coisas sobre Hannambar que você precisa
saber; a mágica existente naquele continente é muito maior do que aqui. Lá,
os cristais mágicos não são raros como em Cehvambar, então existem bem
mais praticantes de magias, isso sem contar o apreço que muitas pessoas têm
pelas magias das trevas. Além disso, por conta de sua geografia, existem
criaturas que você nunca ouviu falar, e com elas, perigos que você nem pode
sonhar, por isso, tome muito cuidado, sempre.
Rubyo olhou para sua mão e, sorrindo, brincou de criar chamas nas
pontas de seus dedos, como se fossem velas, indicando confiança na magia
que praticava.
— Não menospreze jamais seus adversários ou as criaturas que existem
lá, pois o local é mais selvagem e com magia muito mais viva do que aqui.
Espero que Ollaff tenha o ensinado bem a diferença entre magos, bruxos e
feiticeiros, pois lá, certamente, encontrará os três. Não se esqueça, Rubyo:
você estará sozinho num local desconhecido e sem nenhum suporte. Busque
fazer aliados, pois nem sempre conseguirá resolver as coisas apenas com a
força de seu braço ou de sua mágica. Você é um rei aqui, mas lá será apenas
um forasteiro e um foragido.
— “Boi em curral alheio, muge igual vaca” — disse Gary. — Assim
dizia minha mãe, quando a gente ia brincar na casa dos meus primos.
Jessi e Rubyo riram da espontaneidade de Gary, que finalmente
quebrou o clima tenso que estava no ar. Jessyann bocejou, demonstrando
cansaço pela viagem, além do esgotamento emocional. Rubyo se ofereceu
para acompanhá-la até seu quarto, pegando no chão a bolsa com o resto da
bagagem. A maga desejou boa noite a Gary e ao taverneiro, seguindo o
jovem rei escada acima. Ao chegar na porta do quarto, Jessi o abraçou e
chorou novamente.
— Rubyo, você precisa fazer valer o sacrifício de Ollaff... Esses
últimos seis anos foram os mais felizes da minha vida, mas sei que para ele,
a alegria foi sempre minada por saber que você estava preso. Ele não
descansou enquanto não encontrou uma maneira de te tirar de lá, então não
se esqueça, nunca, o quanto ele te amava e o quanto ele queria que você
cumprisse sua missão! E agora, é tudo o que eu quero também! Estarei o
esperando voltar, preparando canções sobre sua história de glória.
Jessi beijou a testa do jovem, que também já estava novamente em
lágrimas, e fechou a porta entre eles. Rubyo enxugou o rosto, respirou fundo
e desceu novamente ao encontro de Gary, que seguia fumando em frente à
lareira. O rei de Minalkar desabou seu corpo na cadeira ao lado do amigo,
olhando a lenha queimar.
— Eu sinto muito, Rubyo. — disse Gary, com pesar.
— Obrigado, Gary. Eu também sinto muito por você, pois sei da
afeição que tinha pelo mestre Ollaff.
— Sim... aquele velhote vivia pegando no meu pé, mas eu não seria
quem sou hoje se não fosse por ele.
— Nenhum de nós seríamos, com certeza. — afirmou Rubyo.
Ambos ficaram em silêncio, observando a lareira estalar, enquanto o
céu lá fora seguia aos prantos. Gary, que desde sempre se incomodava com
silêncios constrangedores, puxou assunto novamente:
— Rubyo, você está com medo?
— Claro que estou! — desabafou o rei. — Mas qual outra opção eu
tenho?
— Acho que, dessa vez, nenhuma. Mas como seu Conselheiro Militar,
te digo: você é bem treinado, forte e estará bem equipado, tenho certeza de
que vai se sair bem. Inclusive... — disse Gary, enquanto puxava o chique
colete que usava para trás, retirando uma bolsa de couro da cintura. — Eu já
ia me esquecendo de te dar isso aí.
Antes mesmo de abrir, Rubyo já sabia que se tratava de uma das bolsas
mágicas de Ollaff.
— Aí tem algumas poções, vidros explosivos e algumas peças de ouro
para sua viagem. Não sei qual moeda eles usam lá aonde você vai, mas creio
que não sejam Tentáculos Alferianos... é melhor levar ouro mesmo. — disse
Gary, enquanto Rubyo conferia o conteúdo da bolsa.
— Tem certeza de que não te fará falta, Gary?
— Tenho sim, você fará melhor proveito do que eu. Essa é uma bolsa
para aventureiros, e eu sinto que já tive minha dose de aventuras o
suficiente. A única jornada que quero, nesse momento, é me tornar um pai
de família, acredita?
— Não, não acredito. — disse Rubyo, gargalhando.
— Poxa, Rubyo, é sério! — respondeu Gary, também sem conseguir
segurar a risada. — Inclusive, também quero que leve isso.
Gary tirou de sua cintura uma grande adaga, com o cabo adornado na
forma de cabeça de serpente esculpida em chifre de Minotauro, e presa à
uma lâmina mortalmente tortuosa. Rubyo agradeceu e a pendurou,
embainhada, em sua cintura.
— Queria que você fosse comigo, Gary.
— E te atrasar enquanto você conquista um reino?! De maneira
nenhuma. Eu já não sou ágil como antes, dificilmente te ajudaria mais do
que atrapalharia. Estou muito feliz com minha vida Rubyo, e não posso
colocar tudo a perder, espero que entenda. Mesmo longe, saiba que pode
contar comigo sempre, meu Rei.
Rubyo cogitou reclamar da zombaria de Gary, mas viu que seu amigo
falava sério e com respeito ao seu título. Agradecido, Rubyo levantou-se, fez
uma pomposa saudação para seu amigo, e subiu para dormir, deixando Gary
sozinho com seus pensamentos e seu fumo.
Na manhã seguinte, Rubyo acordou com os sinos de alguns barcos
pesqueiros que partiam pouco antes do raiar do sol para a captura de baleias.
Num pulo, o rei de Minalkar levantou-se e começou os preparativos. Vestiu
sua armadura, amarrou a bainha da espada nas costas, guardou a caixinha de
madeira num bolso interno de sua roupa e pendurou, em sua cintura, a adaga
e a bolsa mágica, guardando sua coroa lá dentro. Por fim, calçou as botas de
couro e cobriu-se com a capa azul marinho, escondendo o cabo de sua
espada no gorro.
Ao descer as escadas, viu que Gary e Jessyann já o aguardavam para o
desjejum. Rubyo agradeceu, mas achou melhor não comer, afinal, já sabia
que seu estômago não era muito fã de barcos. Saíram os três naquela manhã
fria, com uma névoa cobrindo quase tudo o que se via à frente, caminhando
pelas ruas lamacentas sob um fino e gelado sereno. Apesar do tempo
cinzento, o fato de não estar ventando trouxe alívio para Rubyo, que torcia
para que o mar estivesse calmo, diferente dele.
Chegando na região portuária, foram em busca do píer de número sete,
conforme indicava na passagem de Rubyo. Lá, encontraram um homem
corpulento, de barba longa e grisalha, toda trançada assim como seu cabelo,
conferindo a condição externa da embarcação, chutando-a com sua perna de
pau. Ao notar a presença dos forasteiros, o homem perguntou:
— Bom dia, meus jovens! Algum de vocês é o John, neto do senhor
Oseah?
Rubyo rapidamente se lembrou dos nomes idiotas que Ollaff inventara
para eles e, rindo, consentiu que era o tal John.
— Pois seja bem-vindo, mestre John! Acredito que esteja com o recibo
que seu tio levou quando me pagou pela viagem, certo?
— Sim, senhor, aqui está! — disse Rubyo, entregando a passagem para
o marinheiro.
O velho pegou a passagem e trouxe para perto de seu rosto, levantando
o tapa olho que usava na direita para enxergar melhor o desenho no bilhete
do jovem.
— Muito obrigado, mestre John. Fique atento, pois já estamos quase
partindo!
— Obrigado, meu senhor, mas não sou nenhum mestre. — respondeu
Rubyo, de maneira simpática.
— Ah, meu jovem, nós aqui no Princesinha do Mar somos todos
velhos lobos marinhos, sem estudo algum ou qualquer outro conhecimento
que não envolva barcos e baleias. Qualquer pessoa que saiba ler e escrever
seu próprio nome, para nós, já é um mestre!
Rubyo e Jessi conseguiram conter o riso, mas Gary não foi capaz.
— Princesinha do Mar? — gargalhou Gary, repetindo lentamente o
nome da embarcação. — Me desculpe, meu senhor, mas não é um nome que
eu esperava para um barco desses!
— Nem eu, meu jovem! — gargalhou de volta o velho barbudo. — Caí
na besteira de deixar minha filha escolher o nome desse barco quando o
comprei trinta anos atrás, e ela escolheu esse nome ridículo! Fique atento,
mestre John, pois a primeira regra do mar é: Jamais deixe sua filha pequena
escolher o nome de seu navio!. Ah, e falando em nomes... peço perdão, mas
esqueci de me apresentar: sou o capitão Bergan, dono e proprietário dessa
embarcação.
Bergan cumprimentou um a um dos forasteiros, alertando novamente a
Rubyo que partiriam em breve. O jovem, com pesar, respirou fundo e virou-
se para se despedir de seus amigos.
— Gary, eu jamais poderia pedir aos deuses um amigo melhor do que
você foi para mim durante todos esses anos. Você é um irmão, e eu espero,
um dia, poder te compensar por tudo o que fez por mim.
— Me traga um livro de poções lá do outro lado do mar e já ficarei
satisfeito, meu amigo. Vá em paz... e por favor, volte rico. Não aguento mais
só ter amigos pobres!
— Mas eu sou o único amigo que você tem... — argumentou Rubyo, já
rindo.
— Exatamente! — respondeu Gary, gargalhando.
Rubyo virou-se para Jessyann, que parecia estar inspecionando de longe
as condições da embarcação, e disse:
— Senhora Jessi, mais uma vez, quero que saiba que sinto muito, por
tudo. Espero poder honrar os sacrifícios que fizeram por mim.
— Eu tenho certeza de que vai, John. — disse Jessyann, enfatizando o
nome falso de Rubyo. — Não tinha ninguém em quem Ollaff confiasse mais
do que em você, e como metade de mim é a memória e o amor dele, você
também tem todo meu amor e confiança, e sei que vai retornar com a vitória
em suas mãos. Que os deuses te acompanhem na ida... e que sua ira te traga
de volta, para o desespero de seus inimigos!
Jessyann beijou a testa de Rubyo, agarrando, em seguida, o braço de
Gary, puxando-o para voltarem até a estalagem e encerrando abruptamente
aquela despedida, afinal, já estava esgotada de despedidas dolorosas nos
últimos dias.
Rubyo viu seus amigos desaparecerem no meio da névoa, respirou
fundo e entrou na embarcação. O Princesinha do Mar era um barco
pesqueiro grande, de mais ou menos quarenta passos élficos de comprimento
e uns doze de largura, dividindo-se em três mastros altos com velas
penduradas. Por ironia do destino, as velas tinham enormes coroas
estampadas. Rubyo seguiu até a proa, cumprimentando alguns marinheiros
no caminho, que mal o deram atenção, pois estavam concentrados em seus
afazeres para zarpar.
Em poucos minutos, o sino do capitão tocou apenas uma vez,
sinalizando que estavam para partir. As velas foram baixadas e amarradas,
fazendo com que a embarcação entrasse em movimento, seguindo para
sudeste, ao sabor do vento vindo das Montanhas Geladas. Rubyo sentia suas
pernas tremendo, talvez pelo frio, e seu estômago embrulhar, talvez pelo
mar; mas seguia fixamente olhando para o horizonte. Rubyo nada enxergava
além de água, deixando o mar e o céu se misturarem, assim como se
misturava, em sua cabeça, o medo e o sonho de atravessar aquele deserto de
águas, para retornar com uma nova coroa, e assim retomar o reino de seu
pai.
Agradecimentos
Agradeço primeiramente a Deus, pelo dom da escrita e pela benção da
jornada da vida. Agradeço à minha esposa, pela paciência nas minhas horas
intermináveis frente ao teclado. Obrigado aos meus amigos e leitores beta,
em especial ao Thiago Magliano, que leu, sugeriu e apontou o que poderia
melhorar. Sem vocês esse livro seria apenas um emaranhado de palavras.
Agradeço aos meus grupos de RPG, desde o primeiro, com dez anos de
idade, até meus companheiros de faculdade, que sempre fizeram florescer a
imaginação de mundos fantásticos através de nossas inesquecíveis
campanhas e aventuras. Espero que apreciem as homenagens. Obrigado ao
meu mentor, Thiago Cabello, sempre com apontamentos certeiros e críticas
construtivas.
Obrigado, minha mãe, por sempre me incentivar à leitura, enchendo
minha estante de livros clássicos desde a infância.
Sou totalmente grato, aos grandes autores que inspiraram a fantasia
literária e toda sua simbologia, nas figuras de Tolkien e C.S. Lewis, grandes
referências para mim, como escritores, como pessoas e como cristãos.
E agradeço, principalmente, a você leitor, que dedicou horas tão
preciosas da sua vida para ler sobre a história de Rubyo e seus amigos. Há
muito mais por vir, e espero vê-los novamente em breve. É um prazer para
mim dividir a jornada de Rubyo com você, e gostaria muito de saber o que
você achou da história até aqui. Por favor, me dê sua opinião pelo Instagram,
ou pelo e-mail: livro.ojogodorei@gmail.com

Flaminus!

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