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Reyves L. B.
Ao meu grande amigo de aventuras, Flávio D’Angelo, que não pôde
mais me acompanhar nessa jornada da vida. Você faz falta, meu irmão,
obrigado por tudo.
Capítulo 1: Aniversário
Rubyo abriu os olhos e sentiu o vento frio da manhã de outono
atravessando a rachadura da janela de madeira. Se fosse um dia qualquer,
teria resmungado e acordado com o mau-humor de um lobo faminto, afinal,
odiava o frio tanto quanto odiava orcs. Mas, nessa manhã, a empolgação
pelo seu aniversário deixou qualquer reclamação passar, dando lugar à
ansiedade em vestir logo suas roupas e descer para a sala do casebre em que
vivia com o tio.
O pequeno Rubyo não tinha muitas escolhas do que vestir. O estreito
baú aos pés de sua cama guardava apenas duas camisas, uma branca e uma
verde, ambas bem surradas e desbotadas. O que faltavam-lhe em botões,
sobrava em remendos. Embaixo delas, existia apenas uma calça marrom
cheia de retalhos, que fora de seu tio até semanas atrás. Optando pela camisa
branca, vestiu-a, seguida pela única calça e, por fim, calçou um par de botas
antigas feitas com o couro de algum animal que já nem era mais distinguível
pelo estado deplorável do calçado. Quem via a pobreza daquele garoto
jamais acreditaria que seu pai já fora um dos homens mais ricos e poderosos
do mundo.
Rubyo era alto para uma criança de doze anos, mas o que mais chamava
a atenção, à primeira vista, eram seus cabelos vermelhos como fogo, que
desciam até os ombros, amarrados num rabo de cavalo, além de seus olhos
profundamente negros que contrastavam com a pele clara, repleta de
pequenas sardas.
Ainda amarrando a camisa enquanto descia a escada, ao chegar no
térreo, não teve tempo de se esquivar de um soco vindo de algum lugar à
direita do corrimão, que o acertou em cheio no rosto e o jogou contra o chão.
— Bom dia, aniversariante! Dormiu bem? — perguntou Argus, tio de
Rubyo, esticando a mão para ajudá-lo a se levantar.
— Que merda, tio! Achei que daria uma folga hoje... é meu aniversário!
— reclamou Rubyo, alcançando o braço de Argus.
— E seus inimigos te darão folga algum dia? Não seja um bebê chorão,
hoje você está fazendo doze anos! Sabe o que eu já fazia com doze anos?!
— Surrava covardemente crianças menores? — provocou Rubyo,
enquanto se levantava com a ajuda de seu tio.
— Não, mas eu já sabia que não deveria confiar em ninguém! —
respondeu Argus, puxando a mão de Rubyo para perto de si e girando no ar
o corpo do sobrinho, jogando-o novamente contra o chão. — E já está na
hora de você aprender isso também.
Rubyo segurou o choro, mais de raiva do que de dor, enquanto via seu
tio se afastar e caminhar em direção à cozinha. A pequena casa onde
moravam parecia um celeiro improvisado; a parte de cima do estreito
sobrado era apenas um mezanino que dividiam como um quarto, com apenas
duas camas e seus respectivos baús, separados por uma mesinha. Uma
escada levava até o andar inferior, onde a sala e a cozinha não se separavam
fisicamente, contendo apenas duas poltronas perto da lareira e da porta
principal. A cozinha tinha um largo e baixo armário de madeira, ladeado por
dois barris, dividindo espaço com uma mesa feita de madeira envelhecida,
onde quatro tocos largos de pinheiro eram usados como bancos. Uma outra
porta na cozinha dava acesso à parte dos fundos da casa, de onde se via a
floresta que cercava a vila onde viviam, e outro barril com a tampa aberta
para captar água da chuva.
Argus ainda ria ao ver seu sobrinho se levantar com o rosto
avermelhado no local onde fora golpeado, enquanto ele tirava do armário
duas canecas de madeira e uma concha, que utilizou para encher as canecas
com vinho de um dos barris.
— E aí? Vai ficar chorando emburrado ou vai realizar seu desejo de
tomar vinho pela primeira vez na vida? Agora você tem doze anos, então eu
te permito beber comigo! — perguntou o tio, enquanto se sentava num dos
bancos improvisados à mesa.
Argus vestia uma calça preta curta, que ia apenas até suas canelas, e
calçava uma sandália simples de tiras de couro, ideal para secar mais
facilmente os pés durante seu trabalho como pescador. Sua camisa era
marrom, não podendo se diferenciar o que era tinta e o que era barro dos
mangues em que trabalhava. Sua pele bronzeada contrastava com seus
cabelos loiros escuros e olhos azuis, que somados ao queixo quadrado e
expressão austera, davam a ele o ar da nobreza na qual nasceu e viveu por
quase toda a vida. Ele não era muito alto e nem muito forte, mas não se
percebia nenhuma grama de gordura em seu corpo.
— Eu não estou chorando! — respondeu Rubyo, tentando segurar sua
raiva. — Quero beber, sim, mas não foi esse o nosso combinado sobre o meu
aniversário!
— Ah, é mesmo? E o que combinamos? — perguntou Argus,
empurrando a caneca na direção de Rubyo, do outro lado da mesa, com um
sorriso irônico.
— Combinamos que eu começaria a treinar com espadas de verdade!
As de madeira são para crianças, e eu agora já tenho doze anos! —
respondeu Rubyo, orgulhoso, aparando a caneca que deslizava em sua
direção.
— Hum... Acho que me lembro de algo sobre isso... Mas me diga,
amado sobrinho, o que acabei de te falar sobre confiar em...
— Não, eu não confiei em você. — interrompeu Rubyo, levantando a
caneca com vinho à sua frente. — Por isso que eu não cumpri nossa parte no
acordo, e venho bebendo desse seu vinho horrível há semanas!
Rubyo terminou a frase e tomou todo o vinho em poucos goles, batendo
a caneca vazia na mesa em seguida, enquanto disfarçava a careta pelo gosto
azedo do álcool que queimava sua garganta. Argus, tentando não parecer
surpreso e até um pouco orgulhoso do sobrinho, disse-lhe:
— Pelas tetas de Selline! Parece que o garoto realmente já é um
homem! Que bom então! Já que não é mais criança, não precisarei mais
pegar leve com você nos treinamentos da Eddor.
— Então vou poder usar uma espada de verdade?! — perguntou Rubyo,
sem tentar disfarçar a empolgação.
— Oh, sim! E acredite: você vai precisar. Agora vá passar um pano
nesses dentes e esfregar hortelã na língua para tirar o cheiro de vinho, pois o
velho Ollaff já está te esperando para as aulas de hoje. Nos veremos mais
tarde, quando eu voltar do trabalho.
***
Antes de sair de casa, Rubyo pegou seu casaco para ajudar a enfrentar o
odioso frio que o aguardava do lado de fora. Seu casaco azul destoava do
resto de suas roupas pelo aspecto de quase novo, num tom marinho muito
bonito, ornado por um pequeno sol vermelho em cada ombro — símbolo da
Casa de Edmund, a realeza do reino de Minalkar. As mangas já estavam
curtas e não escondiam mais a marca que o garoto tinha na pele de seu
punho direito, feita com ferro queimado em formato de sol, assim como
todos os minalkarianos que viviam no reino de Alferius.
Rubyo respirou fundo e saiu de casa, grato pelo vinho que tomara há
pouco e que esquentava seu corpo. O dia estava bonito, com um sol forte
brilhando logo cedo, abrandando o frio daquela manhã de outono. Os raios
de sol brigavam para passar entre a folhagem densa das árvores que
cercavam o vilarejo e seguravam a névoa baixa, que atrapalhava a visão ao
cobrir a região. A vila onde vivia ficava numa região pantanosa, cercada
parte por floresta e parte pelos muros e portões da cidade de Nenáreah,
capital do reino de Alferius.
Rubyo rumou para a cidade cruzando as humildes casas da vizinhança,
pulando sobre poças de água e sobre fezes de cavalos, que puxavam as
carroças indo e voltando da cidade.
Ao passar perto da casa de Gary, seu melhor amigo, Rubyo sentiu o
doce cheiro de torta de amoras se espalhar pela chaminé. Ele sabia que a
senhora Bortolly deveria estar cozinhando logo cedo para os filhos, e o
coração de Rubyo se entristeceu, como todas as manhãs, por saber que nunca
teve e nem teria a oportunidade de viver aquele momento tão lindo entre
mãe e filho.
Gary viu, pela janela, Rubyo parado na esquina, farejando e salivando,
e o convidou para o desjejum. Porém, o amigo agradeceu com um aceno e
seguiu seu caminho, pois já estava atrasado para a aula e não queria chatear
o mestre Ollaff.
Chegando ao fortemente armado portão oeste de Nenáreah, Rubyo
contemplou, entre os prédios, a silhueta do imponente castelo de Alferius,
que ficava bem no centro da cidade, ostentando suas oito torres; o sol se
escondia atrás delas, dando a impressão de que eram ainda mais altas,
estampando as gigantescas bandeiras com o polvo cinzento tremeluzindo.
Um gelo correu por toda a espinha de Rubyo e, instintivamente, o jovem
esfregou a marca de ferro queimada em seu punho direito. Emergindo de
seus pensamentos e temores, Rubyo retomou a caminhada.
Usando de alguns atalhos que conhecia, o jovem seguiu desviando de
várias pessoas, animais e carroças, enquanto cruzava as enlameadas e
congestionadas ruas de Nenáreah. A capital de Alferius era a maior cidade
do continente, repleta de prédios altos e mal alinhados, com os mais diversos
tipos de comércio que se pode imaginar. Por ser o maior porto do continente
de Cehvambar, a cidade atraía pessoas do mundo inteiro que estivessem
interessadas em escambo, comércio ou em busca de ingredientes raros que
só poderiam ser encontrados ali. Era muito comum encontrar pessoas de
diversas raças trafegando pela cidade, e as mais estranhas línguas se
misturavam ao idioma comum, trazendo uma sonoridade caótica para quem
estivesse mergulhado naquele mar de gente. Estar no centro de Nenáreah era
como estar no centro do mundo todo, mas de uma maneira claustrofóbica.
Após cruzar uma praça suja, cheia de refugiados que ali viviam em
extrema pobreza, Rubyo viu dois guardas abordando um mendigo de idade
já avançada, e, após analisarem seu punho, começaram a espancá-lo e a
ofendê-lo. Rubyo desejava ajudar, pois bem sabia o porquê aquele senhor
estava sendo agredido, mas o que poderia fazer sozinho contra dois guardas,
sendo apenas uma criança?
O jovem já conhecia aquele sentimento de impotência, então guardou
seu pequeno punhal de volta na bainha secreta que trazia na cintura, engoliu
em seco, e deixou a triste cena para trás, dobrando a esquina para finalmente
chegar ao seu destino. Rubyo parou em frente a um prédio estreito, com
telhados angulados e feitos de madeira, com uma placa na porta que brilhava
e se podia ler: “Baú de Conhecimentos do Mestre Morrenn”.
Entrando sem bater na pequena loja, Rubyo rapidamente conferiu, mais
uma vez, seu hálito para ver se o cheiro de vinho havia passado, mas apenas
o perfume da hortelã apalpou suas narinas. A loja tinha centenas de livros
espalhados por suas estantes, além de pergaminhos, poções, criaturas
empalhadas, ingredientes engarrafados e belos quadros nas paredes.
Repetindo o caminho que fazia quase diariamente, atravessou a recepção da
loja, cumprimentou o jovem Norm, que lia algo debruçado no balcão, e,
cruzando uma das portas entre as estantes, chegou à sala dos fundos, onde
Ollaff já o aguardava com um enorme livro sobre a mesa.
— Está atrasado, Jovem Rei. Você sabe muito bem que o atraso não
condiz com o comportamento de um nobre. — disse-lhe o ancião, de
maneira educada, mas firme.
Ollaff era alto, magro e um pouco corcunda, provavelmente pela idade,
que já aparentava estar além dos setenta anos. Tinha a pele negra, olhos
verdes brilhantes e uma enorme barba cinzenta que ia até quase o umbigo —
o que compensava sua total falta de cabelo. Vestia um robe roxo-escuro com
um cordão branco na cintura, e deixava o capuz caído em seus ombros.
— Me perdoe, mestre Ollaff, mas meu tio quis fazer um café da manhã
especial hoje e, por isso, me atrasei. Prometo que não acontecerá de novo...
— Justificou Rubyo, sentando-se ao lado de Ollaff no longo banco que
margeava a mesa comprida onde o enorme livro repousava.
— Um homem, seja rei ou camponês, não deve prometer aquilo que
não é capaz de cumprir, meu jovem senhor. — respondeu Ollaff num tom
polido, mas crítico.
— O senhor não precisa se preocupar com isso, mestre, pois estou
muito longe de ser um rei para fazer promessas importantes, e pobre demais
para ser um camponês que tenha algo para cumprir. São apenas palavras,
modo de falar...
— E o Jovem Rei acha que palavras não são nada de mais? —
perguntou Ollaff, com um forçado tom de surpresa.
— Acho que palavras são apenas palavras, e nada mais. Por exemplo,
não importa quantas vezes o senhor me chame de “rei”, isso não me fará ser
rei de lugar nenhum
Ollaff abriu a boca para responder rapidamente, mas conteve-se e ficou
pensativo por alguns segundos, vendo Rubyo se deliciar com uma pequena
vitória no diálogo. Ollaff olhou para o candelabro que estava sobre a mesa,
próximo ao livro, com três pequenas velas apagadas, e perguntou a Rubyo:
— Se palavras não são nada de mais, creio que nada ocorrerá a essa
vela apagada se eu a mandar acender, certo?
Rubyo levantou uma das sobrancelhas, surpreso pela pergunta aleatória
de seu mestre, e respondeu em tom debochado:
— Creio que não acontecerá absolutamente nada, a vela não pode te
ouvir...
— Flaminus! — gritou Ollaff, com sua voz grossa e rouca, fazendo
todas as velas daquela sala se acenderem.
Rubyo já havia escutado seu tio comentar que o velho mestre era
letrado também em magia, mas nunca havia visto um feitiço de perto. O
jovem ficou encantado com a cena, e seu coração se acelerou ao chegar perto
do candelabro e ver que o fogo nas velas era real, passando sua mão bem
próximo à chama.
— Toda palavra tem poder, meu Jovem Rei. Nem sempre importa o que
você quis dizer, mas sim, como ou quem vai escutar. A vela realmente não
me escuta, mas o fogo, sim, me ouve. E pode te ouvir também se você
souber como falar.
— Flaminus! — gritou Rubyo, na esperança de também produzir fogo,
como fizera seu mestre, mas nada aconteceu.
— Bela tentativa, meu jovem, mas você ainda tem muito o que
aprender. Não se pode correr sem antes aprender a andar, assim como não se
é capaz de andar sem que antes seus pés toquem o chão... e pelo seu olhar
perdido, creio que você mal sabe onde está pisando, Jovem Rei. — disse
Ollaff, olhando no fundo dos olhos de seu aprendiz.
Rubyo desviou o olhar, abaixou a cabeça e cruzou os braços. Ele se
irritava quando sentia que Ollaff podia ouvir seus pensamentos.
— Odeio quando me chamam de “Rei”, mestre, sinto que zombam de
mim. Por isso, procuro não me ater em palavras, e focar mais em atitudes.
— E o que o senhor quer dizer com “atitudes”? Disputa de força com
seus amigos? Pregar peças em bêbados, junto ao menino Bortolly? Praticar
Eddor com seu tio? Pois saiba, meu jovem, que as palavras, quando bem
usadas, podem machucar muito mais que uma espada afiada ou curar muito
mais que um potente remédio. Seu pai e seu avô sabiam disso, e por isso
foram grandes reis.
— Eu sei da história, mestre. Já ouvi meu tio, bêbado, tocando as
canções sobre a tragédia da casa do meu pai. Pela letra da música, meu pai
não parecia ter sido tão sábio ou um grande manipulador de palavras, pois se
assim o fosse, não teria sido traído pelo Rei Louis e nem pelo Líder dos
orcs...
— Seu pai não errou com eles, meu jovem. Ele foi honrado, e defendeu
seu nome e sua palavra até o fim. Não se pode culpar um homem por ser
vítima de falsas promessas ou traições. Por isso é totalmente imprudente e
desonroso nosso futuro rei fazer promessas que não pode cumprir, ou usar
palavras de maneira tola. A história de Minalkar começou com uma
enganação e terminou em traição. E essa é a história que corre em suas veias,
meu Jovem Rei.
— Rei? Rei do quê, mestre?! — Explodiu Rubyo com um ar de rebeldia
juvenil, potencializado pelo álcool do vinho. — Olhe para mim! Olhe
minhas roupas, meu cabelo, minha pobreza! Nem se eu morasse em um
chiqueiro, e olha que moro ao lado de um, eu seria o rei dos porcos, vá dizer
de Minalkar!
— E você acha que toda a dinastia de Edmund teve uma vida abastada e
tranquila, meu senhor? — perguntou Ollaff calmamente, contrastando com a
ira do jovem. — Então está na hora de conhecer mais suas raízes para
entender de onde veio, e talvez assim conseguir decidir para onde você está
indo.
Ollaff aproveitou o momento dramático e abriu o enorme livro sobre a
mesa, com a capa escrita numa linda caligrafia: “Uma Breve História de
Minalkar”. Rubyo se debruçou sobre a mesa e escondeu o rosto entre seus
braços. O velho mestre pigarreou levemente e começou a leitura, em voz
alta, forçando um tom professoral e erudito, em postura ereta, demonstrando
total respeito pelo livro que lia.
— “Com o falecimento do rei Edmund I, cavaleiro do dragão de
madeira e fundador de Minalkar, seu único filho, Edmund II, ascendeu ao
trono e resolveu fazer importantes mudanças em toda a estrutura geográfica,
política e econômica do reino. Edmund II, chamado depois de O Sábio, era
um leitor assíduo desde alfabetizado, e enquanto príncipe, lutara em várias
batalhas em nome de seu pai. Unindo seu conhecimento teórico e
experiência militar, Edmund II sabia que as guerras jamais acabariam, e por
isso, entendeu que seria mais inteligente investir os recursos no preparo
mental e físico de seu povo e de seu exército, do que simplesmente aumentar
o número de soldados. Entre as diversas medidas que tomou em suas
reformas, o rei elegeu como Artesão Real o senhor Carlo Ishmiter, que
armou seu exército com os melhores equipamentos existentes na época e
forjou, para Edmund, a espada Sabedoria. Escolheu como Engenheiro e
Construtor Real, o famoso Naenuo Augow, vindo das terras quentes do
Sudeste com a missão de construir as muralhas de Minalkar, assim como
passagens secretas que permitissem maior segurança para a família real.
Escolheu, como Mestre das Ciências, o jovem mago Ollaff Morrenn,
formado na academia de Magos de Michello, para conduzir experimentos,
estudar modernidades e lecionar para a corte. Nomeou como Mestre de
Caça…”
— Pera aí, mestre... — interrompeu Rubyo, surpreso. — O senhor
estava na corte desde os tempos de Edmund II?
— Sim, meu senhor. — respondeu Ollaff, com um riso discreto. — Eu
certamente não aparento ser jovem, mas também não demonstro toda a idade
que tenho. Alguns dizem que, por minha pele ser negra, eu demoro mais
para aparentar a idade... Já outros afirmam que minha longa barba ajuda a
esconder e distrair as profundas rugas do meu rosto. Mas, na verdade, minha
aparência é fruto de diversas magias e poções de rejuvenescimento de corpo,
alma e mente, pois preciso estar apto para ensinar ao meu último rei.
— Último rei? Quer dizer, eu? — perguntou Rubyo, apontando com o
polegar para si. — Então, depois de mim...
— Sim, meu rei. Depois de te ensinar tudo o que precisa saber para ser
coroado, terei cumprido minha promessa ao rei Edmund II e poderei me
aposentar das obrigações reais. Quando me formei em Michello, há pouco
mais de duzentos verões, jurei dedicar minha vida ao estudo, ao ensino e às
artes, pois fiquei viúvo logo cedo e nada mais na vida me trazia sentido além
da ciência. Me senti muito honrado com o convite do rei de Minalkar, pois
eu ainda era muito jovem e vivia o luto por minha esposa. Essa nova missão
me salvou das trevas em que vivia. Como gratidão ao seu antepassado, jurei
condicionar minha promessa de ensino para todo fruto da casa de Edmund,
que acabou em você.
— Acabou em meu pai, mestre. Não tenho o nome Edmund. Sou Hant,
assim como minha mãe. — respondeu Rubyo, com um tom de pesar na voz.
— Achei que as palavras não te importavam tanto, meu rei, então por
que nomes importariam? Você é filho de Edmund VI, tem o sangue real,
assim como as atitudes inquisidoras e teimosas de seus familiares... e olha
que o sei bem, pois já convivi com mais Edmunds do que gostaria.
Ollaff esboçou uma gargalhada contida, que rapidamente se
transformou numa tosse seca. Aproveitou que Rubyo parecia envolto em
pensamentos e pulou algumas páginas do livro; mas ao retomar a leitura, foi
interrompido pelo jovem Norm, que trabalhava como atendente em sua loja:
— Senhor Ollaff, perdoe a intromissão, mas tem um senhor aqui
querendo raízes de Barba de Fantasma, que já acabou há dias. Sabe quando
chega mais? — perguntou Norm, com apenas a cabeça apontando na porta
por onde Rubyo entrara mais cedo.
— Diga a ele que retorne na outra semana, Norm. Explique para ele que
o barco que traz nossos suprimentos de Fallemyr foi afundado por serpannas
mês passado, mas até o fim dessa semana deve chegar mais. — respondeu
Ollaff. — Agora, feche a porta, por favor.
— Barba de Fantasma? — perguntou Rubyo, curioso, enquanto Norm
saía da sala.
— É apenas uma planta que nasce em outros continentes, meu jovem.
Obviamente, não se pode extrair barbas de um fantasma. — explicou Ollaff,
enquanto procurava no livro o ponto onde parou a leitura.
— Isso quer dizer que fantasmas realmente existem? — perguntou
Rubyo, surpreso.
— Meu jovem, preocupe-se nesse momento apenas com os fantasmas
do seu passado. Retomando a leitura: “Aos setenta e seis anos, morre o rei
Edmund II, o Sábio, deixando três filhos homens. Seu primogênito e
herdeiro direto, Edmund III, estava prestes a assumir o trono, mas, na
véspera de sua coroação, foi convencido pelos irmãos mais novos de que um
rei realmente forte deveria lutar pelo seu trono, e assim ter o respeito de seu
povo. Edmund III, por puro orgulho, aceitou o desafio e acordaram um duelo
entre os três na Arena de Minalkar. Todos teriam algumas semanas para se
preparar, e o último que ficasse em pé durante o torneio seria o novo rei.
Logo no primeiro dia de treinamento, Edmund III sofreu uma importante
torção no tornozelo, o impedindo de treinar, condenando-o, assim, a uma
derrota certa, fato esse, que quebraria a tradição natural de sucessão e traria
instabilidade à realeza frente à corte. Em seu desespero, Edmund buscou a
ajuda de generais, mestres de guerra, cavaleiros famosos e até mesmo
artesãos que pudessem dar a ele alguma vantagem na competição, porém,
ninguém queria se associar a um provável perdedor, temendo retaliações do
futuro rei. Certo dia, Edmund foi abordado por um mascate proveniente das
montanhas frias do oriente, que prometeu ensiná-lo uma milenar arte de luta
de sua terra, a qual Edmund, mesmo machucado, poderia utilizar da força de
seus adversários para vencê-los. Em troca, caso vencesse, o mascate pediu
metade do tesouro do reino. Edmund, em desespero, prontamente aceitou e
treinou todos os dias restantes com o mascate anônimo. No dia do grande
torneio pelo trono, foi capaz de matar seus irmãos com movimentos de
contra-ataque tão rápidos e brutais que chocou a quem assistia, pois ele mais
parecia um animal bestial brincando com sua presa que um príncipe
lutando...”
— Essa é a origem da Eddor, mestre? — perguntou Rubyo.
— Sim, meu senhor. Edmund III aprimorou tudo o que lhe foi ensinado
pelo mascate e criou a Eddor, fazendo com que todos os seus generais a
aprendessem e, posteriormente, treinassem seus exércitos com as técnicas,
criando soldados extremamente mortais. Essa foi a linha de defesa mais
importante de Minalkar desde então.
— Meu tio tem me ensinado a Eddor desde meus três anos, e mal
consigo acertar os movimentos e passos certos ainda... não sei como
Edmund III conseguiu aprender tão rápido!
Ollaff desviou o olhar de Rubyo, voltando sua atenção para o livro e
passando algumas páginas. Após alguns segundos, respondeu:
— Nunca subestime o desejo de um homem por coroa, tesouro ou por
mulheres. Alguns são capazes de secar um rio, derrubar uma montanha com
as mãos ou, até mesmo, aprender uma arte complexa como a Eddor em
poucos dias, só para satisfazer seu desejo de poder... ainda que use alguns
subterfúgios para isso. Mas, enfim, Edmund III já tinha o direito natural ao
trono, mas aceitou lutar com seus irmãos para ganhar não só o reino, mas
também o temor de seu povo, pois ele sabia que haveria comparações, e ele
jamais seria um rei tão bom quanto seu pai e seu avô foram antes dele.
— A Eddor é realmente incrível, não é? Meu tio disse que já lutou
sozinho contra cinco homens de uma só vez, mesmo desarmado, e matou
todos os inimigos sem se ferir!
— Eu não duvido, meu jovem, e te digo que, provavelmente, esse ainda
não foi o maior feito de seu tio. Nunca houve em nosso reino um guerreiro
como Argus, nem mesmo Edmund III. Seu tio aprendeu a Eddor ainda
criança com os generais do seu avô, Rubyo, e aperfeiçoou a técnica pelos
livros antigos escritos pelo próprio Edmund III, que ficavam guardados em
minha biblioteca lá em Minalkar. Desde então, a Eddor é a vida dele. Seu tio
é, na verdade, um grande sacerdote que nunca pensou em se casar, pois se
sente casado com a Eddor, e já tem você como filho.
— Filho?! Ele não me trata como um filho! Às vezes odeio meu tio por
ser tão duro comigo, e até mesmo sinto que ele nem me quer por perto... —
confessou Rubyo, cabisbaixo.
— Jamais diga uma besteira dessas, meu senhor! Seu tio é um militar,
um guerreiro, e te traz uma disciplina rígida, pois sabe que você precisa estar
forte para o porvir. Você carrega o fardo que deveria ser dele. Perdoe pelas
duras palavras, meu jovem, mas você é o filho bastardo de um rei morto que
tem um irmão vivo na linha de sucessão. Seu tio abdicou ao trono antes da
tragédia toda de seu pai acontecer, desejando seguir com uma vida de
torneios e batalhas, viajando o mundo regado a sangue, vinho e mulheres...
se você não tivesse nascido, a coroa seria dele após a morte de seu pai,
mesmo que ele nunca desejasse isso.
— Mas se meu tio é tão bom guerreiro, por que não salvou meu pai?
Ele estava na capital quando Minalkar foi cercada pelos orcs...
— No dia trinta e nove do cerco dos orcs, Rubyo... — disse uma voz
feminina e rouca vinda de uma sala ao lado, que dava acesso à entrada dos
fundos da loja. — Seu pai percebeu que não conseguiria mais resistir às
tropas de Inak e que, realmente, o socorro não viria de Alferius. Ele mandou
que buscasse Argus, que lutava na linha de frente da resistência nos portões,
e o incumbiu de liderar todo o seu povo pelas cavernas do Caminho
Segundo, em direção ao Rio Miriba. Seu tio recusou a princípio, mas mudou
de ideia justamente quando você foi entregue em seus braços e sorriu para
ele.
— Senhora Rosalind, não sabia que viria tão cedo! — disse o velho
mestre, surpreso, enquanto saía do caminho para a passagem do apressado
jovem Rubyo, que correu em direção à velha senhora. — Você quase me
mata de susto quando fica ouvindo nossas aulas, ao pé da porta.
— Senhora Rose, que bom te ver! — gritou Rubyo, enquanto tentava
abraçar a robusta senhora com seus braços curtos.
— Desculpe Ollaff. — disse Rosalind, olhando para o ancião, enquanto
bagunçava o cabelo de Rubyo num cafuné. — Resolvi vir mais cedo para
não deixar esse reizinho com fome, mas não quis atrapalhar a aula. Rubyo,
trouxe uma torta de maçã nessa cesta, e amanhã deixarei na sua casa um
novo casaco com as cores de Minalkar, pois pelo que vejo, o que te dei ano
passado já está bem curto, não é?
Rubyo tentou puxar as mangas para disfarçar, mas realmente, sobrava
braço para pouco tecido.
— Obrigado, senhora Rose! Os seus presentes são sempre os melhores!
— disse Rubyo, abraçando novamente o corpo roliço de Rosalind.
— Não diga isso sobre os presentes da Rose perto do seu tio, Rubyo,
ainda mais com o presente que ele vai lhe dar hoje... — disse Ollaff,
enquanto partia um pedaço da torta, ainda quente, que pegara na cesta de
Rosalind.
— Presente? — perguntou Rubyo, surpreso. — Meu tio nunca me dá
presentes! Se ele te disse algo, mestre, deve estar apenas brincado com o
senhor.
— Você sabe qual é esse misterioso presente, Ollaff? — perguntou
Rosalind, curiosa, tomando de Ollaff o primeiro pedaço da torta e comendo-
a.
— Esqueçam sobre isso, já falei demais! — disse Ollaff, rindo de canto
da boca pelo mistério que deixara no ar, enquanto partia outro pedaço de
torta para si.
— Se não vai satisfazer minha curiosidade, então já vou voltar para o
castelo antes que a rainha note a minha ausência em seu desjejum. — disse
Rosalind, acabando de engolir o pedaço de torta. — Feliz aniversário, Jovem
Rei! Que a idade lhe traga força, sabedoria e juízo, pois nosso povo conta
com o senhor!
Capítulo 2: O Presente
Ollaff limpou as mãos engorduradas em sua própria roupa e, quão logo
engoliu o último pedaço, já retomou a leitura do gigantesco livro à sua
frente.
— “Devido ao enorme rombo no tesouro real, cuja metade foi levada
pelo mascate misterioso, Edmund III não teve outra opção a não ser
aumentar os impostos que praticava ao povo e à corte para reequilibrar as
finanças. Custava caro manter o enorme exército que ele montava e treinava
para fazer frente à constante ameaça dos orcs do Oeste, e com isso, precisou
fazer cortes nos serviços públicos que oferecia aos seus súditos. A pressão
social devido ao descontentamento com o rei estava crescendo rapidamente,
e nem mesmo o temor que o povo tinha de Edmund III era capaz de conter
as rebeliões que se formavam. Numa medida impensada frente ao forte
inverno daquele ano, Edmund não cedeu ao povo os grãos da reserva real
para saciar a fome, o que resultou em revoltas sangrentas que levaram ao
início de uma guerra civil, causando massacres no povo minalkariano pelas
mãos do próprio exército real. Cansado de ver seus familiares e amigos
sofrendo, Jeremy Cowa, copeiro do castelo, resolveu envenenar o rei
Edmund, trazendo sua morte prematura aos trinta e seis anos. Jeremy foi
considerado herói por parte do povo, mas foi exemplarmente torturado pelos
membros da corte real, em praça pública. O regicida, assim como o restante
da família Cowa, foram condenados a servir para sempre à realeza,
instituindo a Lei do Primeiro Pedaço. À família real, restou apenas aguardar
o único filho do rei, Edmund IV, atingir a idade e o conhecimento necessário
para assumir o trono, ficando como seu tutor e regente o barão Korreyn
Kalmarson."
— Cowa? — perguntou Rubyo, surpreso. — Então esse tal Jeremy era
parente da senhora Rose?
— Sim, era avô dela. Mas ninguém da família Cowa tem orgulho do
que aconteceu e mal falam do tal Jeremy... A única herança que ele deixou
para toda a família foi essa dívida eterna de serviço para a Casa de Edmund
e a Lei do Primeiro Pedaço também. Por isso, a senhora Rosalind era a
copeira do seu pai.
— Nunca ouvi falar disso, mestre. — respondeu Rubyo
— Você notou que a senhora Rosalind não me deixou comer o primeiro
pedaço da torta? É um costume arraigado na família dela, devido a essa lei.
Os Cowa devem sempre comer o primeiro pedaço de qualquer coisa que
ofereçam a alguém para provar que não está envenenado. Por comer tanto
assim, a senhora Rose ficou corpulenta daquele jeito.
— Pelas tetas de Selline! Sempre achei que ela era gulosa! Coitada... e
ainda é neta de um regicida...
— Cuidado com seu linguajar, meu senhor. Da boca de um rei devem
fluir apenas palavras virtuosas e verdadeiras, e não termos sujos como esse!
Uma mesma fonte não jorra duas águas diferentes. — repreendeu Ollaff.
— Desculpe mestre, são só palav…— Rubyo olhou rapidamente para
Ollaff, notando o erro que cometeria novamente. — Quer dizer, me
desculpe, mestre. Prometo que... digo, tentarei ser melhor.
— Isso sim é o comportamento de um grande rei: aprende com seus
erros e assimila suas lições! — aplaudiu Ollaff. — Creio que isso mostre que
já chega de aulas por hoje, meu jovem, afinal, é seu aniversário e precisa ter
tempo para comemorar. Volte amanhã bem cedo e traga seu alaúde, pois
vamos iniciar as aulas de magia e dar seguimento às escalas musicais com
instrumentos de corda...
— Aulas de magia? — perguntou Rubyo, com os olhos brilhando. —
Vou aprender a falar com o fogo, como o senhor?
— O fogo já te ouve, meu jovem, mas ainda não entende o que você
fala. Vou te ensinar a cantar para ele até que vocês se entendam. — disse o
velho mestre, enquanto se afastava da mesa. — Mas, espere um momento.
Ollaff arrastou a pesada cadeira de madeira em que estava sentado,
bateu em sua barba para tirar os farelos da torta e foi até uma prateleira no
canto da sala, onde repousava uma caixinha prateada. O ancião levou o
objeto até Rubyo, que seguia sentado observando atentamente à cena. Ao
abrir a caixinha, o aniversariante encontrou um colar feito de um cordão
trançado com um pingente de cristal.
— Amanhã te ensinarei tudo o que precisa saber sobre esse colar. Por
hora, apenas se lembre de nunca tirá-lo, e procure sempre escondê-lo de
olhares curiosos. Nunca se sabe quando precisará dele. — Ollaff se abaixou
e abraçou seu pupilo. — Feliz aniversário, meu senhor! Que os Três possam
te abençoar em sua jornada!
Ainda sem entender muito bem, Rubyo devolveu o abraço para Ollaff,
levantou-se e vestiu seu novo colar. Com uma singela reverência, agradeceu
pelo tempo e pelo presente de seu mestre, deixando o local rumo às agitadas
ruas de Nenáreah.
O sol estava a pino, e a lama fina que cobria as ruas já estava mais seca,
facilitando o caminhar. Apesar de ter comido há pouco a torta que Rosalind
lhe dera, um cheiro inebriante de javali assado exalava da Taverna Sol
Vermelho, que ficava perto dali, enchendo a boca do jovem de saliva.
Rubyo gostava de ir até essa taverna, pois seus donos eram um casal da
antiga nobreza de Minalkar, que, por não terem filhos, conseguiram levar
vários de seus tesouros pessoais consigo na fuga para Alferius, durante a
guerra contra os orcs. O senhor Bower Bianco — dono da taverna —,
sempre que tinha tempo, contava para Rubyo diversas histórias sobre sua
terra e sobre a família real, e vez ou outra dava algumas guloseimas para
agradar seu soberano. Mas, infelizmente, não eram todos que tratavam
Rubyo com essa mesma cordialidade.
Diversos refugiados de Minalkar que viviam em Nenáreah, tratavam
Rubyo com certo desprezo e deboche. Para eles, o filho bastardo e único
herdeiro do amado rei Edmund VI, era a representação da lembrança de suas
tragédias e a personificação da frustração de seus sonhos de, quem sabe, um
dia, deixar a vida miserável que levavam em Alferius e retornar para sua
casa. Já para a maioria, o príncipe herdeiro representava a esperança de que,
de alguma maneira miraculosa, veriam a restauração do glorioso reino de
Minalkar.
Rubyo sentia na pele essa divisão entre os refugiados e compreendia o
comportamento que tinham para com ele, ainda que nunca tivesse desejado
estar naquela posição incômoda de herdar, não um reino, mas uma espécie
de dívida. Mas, naquele momento, a única preocupação de Rubyo era com
seu estômago, então rumou para a taverna.
Na frente da Sol Vermelho existia um enorme quadro de avisos com
diversas propostas de trabalho, caças, pedidos de socorro, textos racistas
contra os minalkarianos e, destacando-se entre eles, um papel de alta
qualidade com o selo real informando sobre um torneio chamado de:
“Perdão dos Deuses”, onde prisioneiros de todo o reino lutariam até a morte
por sua liberdade. Rubyo gostaria de assistir à competição que ocorria
somente a cada dez anos, mas sabia que seu tio não teria dinheiro para
comprar os caros ingressos do coliseu.
Ao entrar na taverna e perceber o quão cheio estava o local, o jovem
desanimou, pois sabia que não teria a atenção de seu anfitrião e nem sua
cortesia, pois o mesmo deveria, junto à sua esposa, estar cozinhando e
servindo as mesas. A taverna era composta de dois andares, sendo o superior
destinado para quem quisesse dormir em seus humildes quartos. O piso
inferior era um enorme salão, todo feito de madeira e pedras, com mesas
compridas espalhadas em torno de uma lareira central, que era utilizada para
assar o animal do dia.
O aroma que exalava do javali sendo preparado ao molho de frutas
cítricas se misturava com o cheiro de cerveja e de pão fresco assado, fazendo
o coração de Rubyo até acelerar de tanta fome que sentia, como se não
comesse há dias. A música estava alta, sendo tocada por um famoso grupo
de bardos no canto do salão. Rubyo tentava não reparar, mas criticava
mentalmente cada nota errada ou confusão na letra cantada pelo grupo, tendo
certeza de que faria melhor do que qualquer um deles.
Ao passar pela multidão, viu de relance a senhora Marilyn, esposa de
Bower, que sorriu para Rubyo e fez um respeitoso aceno com a cabeça ao
jovem rei, enquanto carregava incontáveis canecas sujas de cerveja e saliva
de volta à cozinha. Rubyo olhou em todas as direções tentando encontrar o
senhor Bower, mas não conseguiu. Ao olhar para cima, Rubyo reconheceu
seu amigo, Gary, que estava na escada que dava acesso ao segundo andar,
olhando para baixo como uma ave de rapina em busca de presas.
Gary, ao ver seu amigo, abriu um sorriso e o chamou para subir e
sentar-se ao seu lado, alcançando o mezanino com suas pernas, balançando
para a queda, enquanto apoiava seu tronco numa das ripas de madeira do
guarda-corpo. Gary era três anos mais velho que Rubyo, mas tinha
exatamente a mesma altura, apesar de ser mais magro e ter braços mais
compridos.
O jovem Bortolly tinha seu corpo todo angulado, com pontas de ossos
proeminentes em sua coluna, cotovelo, joelhos e até mesmo em seu rosto,
apresentando um nariz longo e fino, além de um queixo proeminente. Seus
cabelos pretos ficavam sempre envoltos por uma bandana cinza, que
combinava com suas roupas um pouco largas e escuras, e contrastava com
seus olhos muito azuis.
— Já almoçou, Rubyo? — perguntou Gary.
— Mais ou menos… comi um pedaço de torta agora há pouco, mas eu
comeria de novo, com certeza! — respondeu Rubyo, olhando fixamente para
o javali sendo assado na lareira central
— Então vamos comer uma carne assada, por minha conta! É seu
aniversário hoje, não é?
— Sim, estou fazendo doze anos! — respondeu Rubyo, orgulhoso.
— Então esse será meu presente! Afinal, um rei deve comer como um
rei, certo? — disse Gary, num tom debochado, rindo para seu amigo.
— Você não é de Minalkar para me ter por seu rei. — respondeu Rubyo
de modo ríspido, claramente irritado com a provocação. — Além disso, não
dá para você ficar me oferecendo coisas que você não tem! Sejamos
sinceros, Gary: você é tão pobre quanto eu... as únicas duas coisas que você
tem, e que eu não tenho, é uma mãe e essa sua cara de fuinha!
— Hahaha, essa foi boa, Rubyo! — disse Gary, gargalhando. — Mas
você se esqueceu que tenho mais algumas coisas do que você... Sou mais
habilidoso, mais rápido, e com certeza tenho muito mais “sorte” em
encontrar dinheiro que está sobrando nos bolsos alheios. Observe e aprenda,
pois vou providenciar comida para nós.
Gary saltou do mezanino onde estavam e pousou como um gato sobre
uma mesa desocupada que estava abaixo deles. O jovem ladino avistou de
longe um homem visivelmente bêbado, que ia se levantando do balcão, com
a barba suja de cerveja, cambaleando em direção aos fundos da taverna,
provavelmente para usar a latrina que ficava do lado de fora. Como um
predador, Gary o alcançou em poucos passos, tornando-se um apoio para o
boêmio, que mal pode notar quando sua bolsa de moedas foi surrupiada por
aquele bondoso jovem que o ajudara a não cair no chão; a bolsa deslizou
sobre a longa manga da camisa preta desbotada.
Girando contra o próprio corpo, Gary parecia bailar enquanto seguia de
volta para a escada na direção de Rubyo, com mãos ágeis enquanto se
embrenhava no meio do povo, conseguindo roubar mais duas ou três bolsas
de moedas de consumidores da taverna que estavam distraídos, rindo,
comendo, bebendo e dançando ao som dos bardos. Ao sentar-se ao lado de
Rubyo, Gary jogou uma das bolsas de moeda em seu colo, com um sorriso
orgulhoso no rosto, e disse-lhe:
— Não sei te ensinar a lutar como seu tio, e muito menos a falar bonito
como aquele velhote barbudo, mas posso te ensinar o mais importante: não
morrer de fome, onde quer que esteja. — disse Gary, passando uma das
moedas de ouro surrupiadas entre seus dedos, de um lado para o outro,
demonstrando habilidade.
— Roubar é errado, Gary. — disse Rubyo de maneira quase mecânica,
parecendo tentar convencer mais a si mesmo do que ao seu amigo, olhando
para a bolsa de moedas e, em seguida, para o javali sendo assado.
— E o que é certo nessa droga de vida, Rubyo? Certo é ver os guardas
espancando os velhos da nossa vila que não conseguem pagar os impostos?
Certo é ficarmos aqui, vendo esses homens com as bolsas cheias de dinheiro,
gastando com putas e cerveja enquanto morremos de fome?! — perguntou
Gary, irritado com a crítica de seu amigo.
— Não sei, Gary..., mas deve existir algum jeito das coisas se
equilibrarem sem prejudicarmos ninguém. Meu povo vive aqui na miséria,
mas todos sempre buscam uma maneira honesta de viver.
— Seu povo? — gargalhou Gary. — Acho que seu tio e o velhote
careca estão mesmo te convencendo sobre essa história de ser rei...
— Não sou rei de nada, mas sou um príncipe, sim... ainda que não
tenha reino algum. — argumentou Rubyo, envergonhado.
Gary se sentou novamente ao lado do amigo, e disse-lhe:
— Você sabe que vários dos refugiados riem de você, não é?! Falam
que você não passa de um mendigo de sangue real... Mas fique tranquilo,
pois eu me vingo de cada um deles por você, meu amigo! E o prejuízo deles
é a alegria da minha mãe e da minha irmã, que hoje vão dormir com a
barriga cheia de novo! — disse Gary, sorrindo com satisfação.
— Obrigado Gary, mas não precisa de...
— Já chega, Rubyo! Chega de discussão, hoje é seu aniversário! Vamos
comemorar com um pedaço daquele javali bem gordo!
***
***
***
Amado Filho,
Escrevo essa carta enquanto você está sendo levado por seu tio
para um local seguro, longe da ira dos orcs sanguinários que desejam
nossas terras desde os tempos de seus antepassados. Queria eu ter o
privilégio de te ver crescer, te ensinar nossa história, nossa luta, mas
essa honra ficará com meu irmão, e sei que ele o fará muito bem.
Quero que saiba que, desde que sua mãe me contou que estava
grávida de você, eu já te amei. Te amei, assim como amarei para
sempre sua mãe, a mulher mais linda e doce que já viveu. Talvez você
se pergunte por que não me casei com ela ao invés de Lucrécia, mas
espero que um dia tenha maturidade para entender que homens em
nossa posição precisam abrir mão de várias coisas pelo bem do reino e
do povo, ainda que essa “coisa” seja o grande amor da sua vida.
A dor de te ver partir só se compara com a que senti quando
soube que sua mãe faleceu, poucos dias após seu parto; quando me
contaram, ela já havia sido cremada. Espero que nunca sinta dor
parecida com essa, pois é como se meu coração tivesse sido arrancado
para fora do peito…, mas ele foi colocado no lugar de novo quando vi
seu sorriso pela primeira vez, meu filho.
Você terá que ser forte. Crescerá num reino estranho, com outra
cultura, sob as asas de uma mulher que te odeia por me odiar antes.
Mas, infelizmente, não temos outra opção. Seu tio está levando a
espada da nossa família e, um dia ela, será sua. Espero que faça
melhor proveito dela, do que fiz.
Rogo aos deuses que possa me perdoar por tanta dor que seu
sangue lhe trará, pois, apesar de não ter o meu nome, você é meu
herdeiro, minha semente, parte de mim, e tudo o que tenho será seu um
dia... ou pelo menos, o que sobrar daqui.
Não sei se algum dia, pela misericórdia de Selline, essa carta
chegará até você, mas, se chegar, quero que saiba que te amo com cada
pedaço meu, e que apesar de não estar fisicamente com você, sempre
estarei te observando e tentando te guiar, seja lá onde eu estiver, pois
não há barreiras físicas ou espirituais capazes de manter meu amor
afastado de ti, meu filho.
Com todo o amor de seu pai,
Edmund Aureus VI
Capítulo 14: As Catacumbas dos
Reis
Assim que acabou de ler a carta de seu pai, Rubyo fechou o diário e o
abraçou com tanta força que era como se abraçasse o próprio pai. Argus se
aproximou e abraçou o sobrinho, chorando também.
— Venha, Rubyo, está na hora de lutar com seu passado e assumir o
que é seu por direito. — disse Argus, com a voz embargada.
Rubyo guardou o diário em um bolso interno de sua roupa, próximo aos
ovos de fênix, e seguiu o restante do grupo que já caminhava na direção da
escada em espiral. Voltando à sala do trono, entraram pela porta que haviam
visto mais cedo, à esquerda do trono centenário. Ao passar por ela, chegaram
a um corredor que dava acesso a jardins abandonados, com esculturas
destruídas entre grandes árvores e com extensos matagais que cobriam
alguns corpos espalhados.
Um pouco mais adiante, encontraram uma grande porta dupla de
madeira, toda destruída por machadadas e pelo fogo, dando passagem a uma
antessala, que Argus explicou ser o cômodo que guardava a sala do tesouro.
No local, encontravam-se mais entulhos e móveis destruídos, esculturas de
pedra que viraram pó e até antigos altares de exposição de artes, já vazios;
mas algumas pinturas ainda estavam intactas na parede. Podia-se ver uma
representação de Edmund I montado no dragão, uma outra de Edmund III
matando seus irmãos no torneio, e até mesmo uma do Mestre Ollaff, bem
mais jovem, ensinando jovens nobres num pequeno auditório. No centro da
sala, uma grande estátua da deusa Selline estava sobre um altar, totalmente
vandalizada. A parede do fundo dessa sala continha uma enorme porta de
ferro fundido e pedras rústicas, que também estavam destruídas.
Argus, por pura curiosidade, atravessou essa porta e chegou até a sala
do tesouro, que obviamente se encontrava vazia. Apenas alguns papéis
antigos estavam ali jogados pelo chão, indicando posses de terra para alguns
membros da nobreza.
Ollaff se aproximou da estátua da deusa, que ficava ao centro da sala.
Selline era representada como uma linda mulher nua, com seu corpo curvado
como uma lua minguante, esticando seus braços para tentar alcançar o sol,
enquanto seus longos cabelos cobriam as partes íntimas. Ollaff apalpou algo
debaixo do altar e um alçapão se abriu ao lado, dando acesso a uma escada
em espiral para o subterrâneo do castelo. O mestre sussurrou algo e um
domo de energia se formou em volta dos quatro, de cor acinzentada,
diferente dos tons de dourado daquela barreira de proteção erguida contra os
goblins.
— Nossas vozes estão seguras aqui dentro, ninguém pode ouvir nada do
que conversamos nesse domo. — disse o mestre Ollaff. — Não sabemos ao
certo o que encontraremos lá embaixo, mas tenho certeza de que não será
nada igual ao que já vimos antes em nossas vidas.
— Os livros contam que seres mortos-vivos tem a habilidade de nos
confundir, criar ilusões e falar coisas diretamente aos nossos corações para
causar medo. Sejam fortes e não se desviem do nosso objetivo: pegar o anel
e sair vivos. — reforçou Argus, como se instruísse seu exército.
Rubyo olhou para Gary, que tentava disfarçar seu medo com um rosto
endurecido, porém não conseguia segurar o tremor em suas pernas.
— Gary, você sabe que não precisa entrar, né? Você já fez muito mais
do que eu poderia esperar de um amigo, e sacrificou um dos seus bens mais
valiosos para nos trazer até aqui. Não posso pedir mais nada de você, além
de sua eterna amizade. — disse Rubyo, colocando a mão sobre o ombro do
amigo.
— Tá brincando, né, Rubyo? Eu não vim até aqui para perder a
oportunidade de matar um fantasma! Vou ser uma lenda em nosso vilarejo e
os bardos farão canções sobre mim! Além do mais, se você não conseguir
esse anel, eu não terei meu emprego de Mestre da Moeda, e eu estou
contando muito com esse salário. — disse Gary, esforçando-se para sorrir.
— Disse muito bem, jovem Bortolly; provavelmente mataremos um
fantasma e, como sabemos, eles não podem ser tocados por lâminas, apenas
por magia, o que impede que você e Argus o ataque. Porém, eu tenho a
solução bem aqui.
Ollaff tirou de sua bolsa mágica quatro pequenos frascos de vidro
arredondados, com um líquido magenta espumoso, entregando um para cada
e pendurando o último na corda em sua cintura.
— Essa poção cria um campo mágico em volta dos nossos inimigos
etéreos, fazendo com que fiquem vulneráveis a ataques físicos. — disse
Ollaff, orgulhoso ao ver a surpresa do jovem ladino. — O que foi, Gary?
Achou que só você sabia fazer poções? Não esqueça que boa parte dos livros
que você tem em sua casa foram roubados da minha biblioteca.
— Senhor Ollaff, me perdoe! Eu juro que pretendia devolver, só não
sabia como... — disse Gary, visivelmente envergonhado.
— Fique tranquilo, meu jovem, são seus agora. De que serve o
conhecimento, se não for compartilhado? Fico feliz que tenha feito bom uso
deles! — respondeu Ollaff, com um sorriso doce para Gary. — Agora, todos
vocês fiquem atentos... o efeito da poção é temporário, e temos apenas esses
quatro frascos, pois eu não tinha mais essência de salamandra para fazer
outros.
Todos assentiram com a cabeça, guardaram seus frascos, e seguiram
para a escada das catacumbas, enquanto o domo se dissipava. Dessa vez,
Ollaff foi guiando o caminho, iluminando tudo com seu cajado. Ao chegar
no fim da escada, deram de frente com um portão de ferro, selado com uma
runa brilhante emanando das grades. O velho mestre pegou seu cachimbo na
manga, deu algumas tragadas e soprou a fumaça na runa. O selo mágico
projetou algumas linhas e símbolos no ar, que não eram estranhos para
Rubyo. Ollaff, em seguida, pegou sua flauta e tocou uma canção
representada por aqueles símbolos que flutuavam no ar, como se fossem uma
partitura. Ao fim da música, a runa começou a girar e a porta se abriu,
soprando um vento mórbido na direção dos aventureiros, com um
desagradável cheiro de podridão e morte.
Dentro das catacumbas, ouvia-se apenas o som de gotas que pingavam
do alto, caindo ao chão. Estranharam o fato de nem mesmo morcegos ou
ratos estarem ali, apenas algumas larvas se esgueiravam pelas paredes de
pedra. O local ficava mais claro e fácil de enxergar conforme Argus, que
seguia logo atrás de Ollaff, acendia as tochas fixadas nas enormes colunas
que seguravam o teto, utilizando suas pedras de faísca.
O chão era todo de pedra bruta, o que tornava o clima muito mais frio
do que deveria ser, com uma fina camada de água que cobria todo o piso,
vinda das gotas que caíam constantemente do teto, minando de raízes, como
numa gruta. As paredes eram esculpidas e cavadas, se transformando em
camas de pedra, onde repousavam vários cadáveres decompostos e
mumificados, ostentando armas enferrujadas sobre seus corpos. Abaixo dos
mortos, placas de ouro indicavam os nomes e os feitos daqueles nobres. Era
insano imaginar que, a qualquer momento, um daqueles mortos poderia se
levantar para atacar os forasteiros.
Conforme desciam alguns degraus de pedra para níveis ainda mais
baixos, se depararam com o vulto de uma enorme criatura ao fundo da sala.
Todos sacaram instantaneamente suas armas, mas ao se aproximarem um
pouco mais, viram que, na verdade, era apenas uma estátua de dragão que
existia sobre o túmulo de Edmund I.
— “Rei Edmund I, fundador de Minalkar. Herói de guerra, conquistou o
reino sem derramar uma gota de sangue. Marceneiro, construtor, pai, amigo,
mas sobretudo, grande Rei.” — leu Gary, sussurrando para todos. — Sua
família parece ter uma história incrível, Rubyo. Já eu, venho de uma família
tradicional de bastardos. Meu pai nos abandonou, pois foi abandonado pelo
pai dele também, que foi abandonado pelo pai dele... Não vejo a hora de ter
um filho com a Vallery! — disse Gary, rindo de sua própria piada.
— Suas raízes mostram de onde você veio, meu jovem, mas é para
onde o vento sopra suas folhas que realmente importa. — sussurrou Ollaff,
retomando a caminhada logo em seguida, deixando Gary com seus
pensamentos.
Um pouco mais à frente, encontraram diversos sarcófagos e urnas
funerárias com os sobrenomes de diversas famílias tradicionais de Minalkar.
Algumas possuíam lápides simples, apenas com o nome, enquanto outras
ostentavam títulos, bustos e estátuas sobre seus túmulos. Na sala seguinte,
uma nova sombra assustou o grupo, mas dessa vez, era da estátua de um
homem em pé, com uma espada numa mão e um martelo de construção na
outra, representando Edmund II, O Sábio.
— Mestre, por que não posso pegar o anel desse corpo para irmos
embora daqui? — perguntou Rubyo, sussurrando, apontando para o
sarcófago do seu antepassado.
— Infelizmente, Edmund II usava o anel que era de seu pai, e
presenteou o construtor Naenuo com esse anel, uma recompensa pela criação
do Caminho Segundo. E, como depois de Edmund III todos os reis foram
cremados, o único anel que temos acesso é o que viemos buscar.
Rubyo pareceu um pouco frustrado, mas seguiu a exploração com o
grupo. Conforme avançavam, sentiram o cheiro de podridão piorar, assim
como a quantidade de água sob seus pés, que agora já cobriam quase o pé
inteiro. Seguiram caminhando, sendo observados por gárgulas esculpidas nas
colunas do salão, com sorrisos macabros e cheios de dentes.
— Se isso aqui fosse uma história de terror, essas gárgulas se tornariam
vivas e nos devoraria. — disse Gary, em voz baixa, seguida por um riso
nervoso.
— Existem coisas piores aqui embaixo, meu jovem, fique atento. —
respondeu Ollaff, rispidamente, encarando a escuridão.
Após um corredor estreito, chegaram até um pequeno salão com
diversos túmulos adornados com ouro e pedras preciosas. Gary pensou em
pegar alguma como recordação, mas Ollaff parecia ter ouvido seu
pensamento e olhou com desaprovação para o jovem, que desistiu de seu
prêmio. Passado esse local, chegaram a um novo lugar, mais amplo e alto
que os demais, parecendo não ter sido acabado e não mostrando nenhuma
outra saída além de por onde vieram. No final dele, um sarcófago estava
fechado sob a estátua de um rei empunhando uma representação de pedra da
espada Sabedoria.
Ollaff se aproximou com o cajado iluminando o local, projetando uma
enorme sombra atrás dessa estátua, e chegou perto do sarcófago para ler:
— “Rei Edmund III, temido pelos inimigos, odiado pelo povo...” — leu
Ollaff, em voz alta. — Chegamos ao nosso destino, senhores.
Enquanto Argus acendia as tochas do local, Rubyo olhava fixamente
para a estátua e respirava aliviado pelo caminho ter sido mais fácil do que
esperava, porém, o jovem teve a impressão de que a sombra começava a se
mover de uma maneira não natural. Quando ia comentar sobre o fenômeno
com o resto do grupo, uma voz vinda de trás chamou a atenção:
— Vieram incomodar o nosso Rei? Não sei o que desejam buscar aqui,
mas encontrarão apenas a morte.
O grupo todo olhou para trás, pelo corredor de onde vieram, assustados
e aterrorizados por aquela voz fantasmagórica. Viram dois jovens em pé,
cabisbaixos, com roupas nobres em farrapos, cobertas por armaduras
enferrujadas. Seus corpos tinham sinais de decomposição avançada, sendo
possível avistar vermes saindo dos orifícios de suas faces, além de
fragmentos de ossos por trás da pele dilacerada.
— Argus?! — perguntou Ollaff.
— O que foi, mestre? — disse o general, já com suas espadas curtas em
mãos.
— Não, não você... o outro Argus... esse é Argus I, irmão de Edmund
III, que foi morto no torneio pelo trono! — respondeu Ollaff. — Meu jovem,
por que o seu espírito e de seu irmão ainda vagam pelo mundo dos vivos?
— Ele não nos deixa partir... Quer que o sirvamos por toda a eternidade
como castigo por nossa insolência em desafiá-lo. — respondeu o outro
jovem, com longos cabelos loiros, ao lado de Argus I.
— Mestre Ollaff... você está muito velho... — disse Argus I, levantando
o rosto e revelando seu olhar esbranquiçado, com um enorme afundamento
em sua face, além de dentes apodrecidos. — É uma pena ter que te matar...
Pettruck nunca gostou de você, mas eu gostava...
— Esse velho maldito ajudou Edmund a nos matar! Não terei remorso
algum em mandar esse traidor para a morada de Harddam! — disse Pettruck,
levantando seu rosto e evidenciando um rasgo enorme em seu pescoço.
Os dois mortos-vivos, de maneira mecanizada e coordenada, sacaram
suas espadas enferrujadas. Ollaff deu um passo à frente e tentou dizer algo,
mas, nesse momento, Pettruck lançou contra ele uma enorme rajada de
energia negra, saindo de seus olhos e acertando em cheio o peito do ancião,
que caiu vários passos élficos para trás.
Argus — o III — correu com suas espadas em direção de Pettruck, que
também tentou lançar sua energia contra ele, mas o general habilmente
deslizou de joelhos no chão molhado, jogando o corpo para trás e desviando
da magia do inimigo, que passou por cima de sua cabeça e levou parte de sua
franja.
Rubyo correu ao socorro de Ollaff, que seguia caído pelo golpe sofrido,
enquanto Gary tentava se esconder nas sombras projetadas por uma das altas
colunas que sustentavam o salão. Argus I percebeu o movimento do jovem
ladino e avançou contra ele, empunhando uma enorme espada de duas mãos.
Gary abaixou-se para desviar do golpe, perdendo apenas a sua bandana, que
ficou presa entre a lâmina e a pilastra.
Enquanto isso, Pettruck aproveitava a curta distância do general,
tentando estocar o pescoço do oponente com sua espada, porém Argus III
era mais rápido e habilidoso, conseguindo desviar a lâmina do inimigo com
uma das espadas, enquanto com a outra golpeava o abdômen da criatura.
Apesar do movimento perfeito de perfurar e girar com a lâmina na barriga da
criatura, Argus III sentiu que golpeara um saco de areia, não percebendo
qualquer sinal de dor pelo golpe recebido, na expressão do inimigo.
Perto dali, Gary notou que a grande espada de seu inimigo ficara presa
na pilastra, após o golpe que levou sua bandana. Aproveitando a distração de
Argus I, o ladino sacou um punhal com cada mão e passou a esfaquear o
peito do oponente nos pontos em que a armadura enferrujada não protegia,
porém a criatura também não aparentava sentir os golpes sofridos contra seu
corpo putrefato.
Ollaff finalmente acordou, após Rubyo jogar um pouco da água do chão
contra o seu rosto, e, assustado, viu a cena em que seus companheiros
tentavam, em vão, golpear os inimigos. Pettruck aproveitou a curta distância
que Argus III estava e lançou outra de suas rajadas de energia pelos olhos,
mas o general, mesmo sem condições de se esquivar, fez um X com suas
espadas na frente do corpo, conseguindo desviar a energia graças às runas
mágicas que brilharam em suas lâminas.
Argus I deu um grito fantasmagórico e conseguiu, finalmente, arrancar
a espada cravada na pilastra. Com o cabo da arma, golpeou o rosto de Gary,
que ainda estava tentando esfaqueá-lo com toda a raiva e desespero de seu
coração. Com a pancada, Gary caiu e rolou alguns passos élficos para a
direita, tentando se esquivar de possíveis ataques vindos de cima.
Rubyo, já ciente do bom estado de Ollaff, finalmente sacou sua espada
e correu para socorrer Gary, chegando bem a tempo de aparar um golpe de
espada que vinha de cima para baixo, como uma guilhotina, contra o
pescoço de seu amigo. Rubyo aproveitou o desequilíbrio do morto vivo ao
golpear com a enorme espada e, com a mão livre, lançou uma potente bola
de fogo contra o peito de Argus I, que voou para trás, chocando-se contra a
parede.
O barulho da pancada e as chamas da magia de Rubyo chamaram a
atenção de Pettruck, que olhou para o jovem e viu a espada Sabedoria em
suas mãos, refletindo a luz das tochas em sua lâmina. Enquanto a criatura
olhava com curiosidade para a espada, Argus III aproveitou a situação e,
utilizando suas duas espadas como uma enorme tesoura, cortou o braço de
Pettruck que segurava a espada. O membro caiu no chão, e quão logo tocou
o solo, se transformou num punhado de cinzas enegrecidas, assim como sua
arma.
Pettruck pareceu nem sentir o corte do seu braço. Ignorando a presença
do general ao seu lado, o morto vivo caminhou lentamente na direção de
Rubyo... e se ajoelhou. Argus I, assim que se levantou, com o peito
esfumaçante, deixou a enorme espada no chão e se juntou ao irmão,
lançando-se de joelhos aos pés de Rubyo.
— Por favor, nosso Rei, tenha piedade... Não use mais essa espada
contra nós! — disseram as duas criaturas em sincronia.
Rubyo ficou estático, com a espada em mãos, tentando entender aquela
situação. De repente, um enorme vento frio correu por toda a sala, apagando
a maioria das tochas que iluminavam o ambiente. A sombra que se formava
atrás da estátua de Edmund III foi crescendo cada vez mais, até se
desprender da parede e sair voando pelos ares na forma de um espectro, que
atravessou a cabeça dos dois mortos-vivos ajoelhados, explodindo-os
instantaneamente.
— Quem é que ousa atrapalhar o meu descanso e usurpar minha coroa
com a minha própria espada?! — ouviu-se uma voz alta, grave e
fantasmagórica ecoando, sabe-se lá de onde.
Rubyo, ainda com a Sabedoria em mãos, respondeu a plenos pulmões:
— Sou Rubyo Hant, filho do Rei Edmund VI, herdeiro do reino de
Minalkar!
— Hant? Herdeiro? Um bastardo de cabelos vermelhos, herdeiro do
meu trono?! — perguntou a misteriosa voz, enquanto a sombra que pairava
na frente de Rubyo ia se condensando, assumindo a forma do mesmo
homem que a estátua representava.
Edmund III apresentava-se como uma criatura etérea, num tom azulado
e semitransparente, utilizando suas túnicas reais e ostentando sua coroa e
armadura completa de metal translúcido, com o sol de Minalkar estampado
no peito. Em sua mão direita usava um anel negro, mão essa em que
empunhava uma espada idêntica à Sabedoria. Seu rosto tinha os olhos
saltados para fora, bizarramente arregalados e que não piscavam, com
detalhes arroxeados perto das pálpebras e bochechas, além de uma baba
espessa que escorria no canto direito da boca, manchando sua longa barba
que ia até o peito.
— Sim, eu sou seu herdeiro, e vim reivindicar o meu direito! —
afirmou Rubyo, apertando ainda mais o cabo de sua espada com as duas
mãos, olhando no fundo dos olhos da morte.
— Edmund, meu senhor, viemos aqui para buscar o anel que há muito
tempo eu lhe dera, para que sua semente possa permanecer no trono, vingar
seus inimigos e cuidar do seu povo! — disse Ollaff, finalmente se
levantando, apoiado em seu cajado
Edmund, que olhava curiosamente para Rubyo, virou-se para trás na
direção de Ollaff, e disse:
— Meu povo? O mesmo povo que me odiou a ponto de me envenenar?!
Que Harddam devore suas malditas almas e que se afundem em miséria! Eu
não estou pronto para entregar meu trono... não enquanto os que me traíram
ainda respirarem!
— Você matou o senhor Cowa quando ele veio clamar por seu perdão,
se lembra? Sua vingança já se concluiu! — argumentou Ollaff.
— Cowa? Oh, sim... Jeremy... maldito seja aquele lavador de pratos!
Devorei sua alma imunda aqui mesmo nessa sala. Mas não descansarei
enquanto houver um Cowa vivo! Malditas serpentes! Ele foi tolo de vir até
aqui, assim como você, mestre... ou acha que não sei que conspirou com o
velho para me matar?! Aquele veneno, sim... o veneno que ele usou só
poderia ter vindo das suas mãos! Sua hora também chegou, velho maldito!
Edmund III terminou seu discurso e, com uma das mãos, ergueu Ollaff
em telecinesia e o arremessou contra o sarcófago. Rubyo, pronto para atacar,
notou, em seu campo de visão, a figura de seu tio com o frasco dado por
Ollaff em mãos.
— AGORA! — gritou Argus III, lançando o frasco contra as costas do
fantasma.
Com a explosão, a cor azulada da criatura desapareceu, formando-se
várias runas ao seu redor no chão coberto pela água. O corpo de Edmund,
em questão de instantes, foi recuperando a cor humana. Um humano morto,
pálido como uma manhã de inverno, mas sim, um humano. Suas vestes se
mostravam em retalhos, com as cores de Minalkar desbotadas, e todo seu
corpo estava íntegro, sem sinais de putrefação. Tudo era real, inclusive a
espada que carregava em mãos, com a palavra “sabedoria” gravada na
lâmina.
Rubyo rapidamente desferiu um golpe contra Edmund, mas a criatura,
numa velocidade sobre-humana, virou-se e aparou o ataque.
— Isso são modos de tratar seu avô, bastardo maldito? Acha que pode
usar minha espada contra mim?! — gritou Edmund, com uma voz quase
humana, contra-atacando.
Rubyo tentou girar seu corpo para fugir do golpe, mas já era tarde.
Edmund conhecia a Eddor melhor do que ele, e soube exatamente o
movimento que o jovem faria. A espada de Edmund entrou, em estocada, no
ombro esquerdo de Rubyo, que ainda se recuperava do veneno goblin,
causando uma dor lancinante que fez o jovem rei derrubar sua própria arma
e cair no chão enquanto gritava.
De repente, outra explosão ardida rompeu nas costas de Edmund. Ao se
virar, viu Ollaff lançando bolas de fogo, que queimaram sua roupa e sua
pele, deixando um cheiro de carne podre e queimada se espalhar por toda a
sala. Do meio da fumaça levantada, surgiu Argus, saltando com as duas
espadas como punhais na direção do peito de Edmund, que rapidamente
soltou Rubyo para se esquivar do ataque, mas sem sucesso. Argus foi rápido,
mas a armadura que o antigo rei usava em seu peito repeliu o ataque do
general. Com a mão esquerda, Edmund pegou Argus pelo colarinho e
começou a dar golpes com o cabo de sua espada no rosto do bisneto.
Outra explosão irrompeu na nuca de Edmund, dessa vez causada por
um dos frascos que Gary lançara de seu colete. A criatura não sentiu seu
corpo queimar e nem mudar de forma, como nas explosões anteriores, mas
percebeu que seus movimentos foram ficando cada vez mais lentificados,
como se uma gosma invisível envolvesse seu corpo todo. Gary, satisfeito
com sua granada de lentidão, lançou diversas adagas contra o inimigo, que
lentamente levantou seus braços revestidos pela armadura para aparar os
projéteis, soltando Argus no chão, ao lado de Rubyo.
Ao cair no chão, Argus, com o nariz quebrado e supercílio rasgado, viu
seu sobrinho já se levantando, erguendo-se bravamente com a espada na mão
direita, enquanto o ombro esquerdo seguia pendurado. Aproveitando a
distração criada por Gary, Rubyo girou seu corpo com toda sua força para
um ataque em arco, de cima para baixo, contra o pescoço de Edmund.
O jovem estava certo do sucesso de seu ataque, mas enquanto a lâmina
descia no movimento, notou que as runas em volta de Edmund
desapareciam, e o corpo de seu inimigo retomava o tom azulado original e o
aspecto semitransparente, pois o efeito da poção de Ollaff havia passado. A
espada de Rubyo atravessou o pescoço translúcido da criatura como se
cortasse o vento, sem causar dano nenhum ao inimigo. Rindo malignamente,
o espectro de Edmund flutuou em direção ao teto e desapareceu na
escuridão.
Ollaff girou o cajado e lançou um enorme clarão para cima, na
esperança de enxergar seu inimigo que se escondia nas trevas, porém, nada
conseguiram enxergar além das gárgulas esculpidas no topo das colunas e as
raízes de árvores que brotavam no teto, e minavam água sobre suas cabeças.
Gary correu até Argus, ajudando-o a se levantar e entregando uma de
suas poções vermelhas. Rubyo segurava a espada apenas com a mão direita,
olhando com atenção ao redor, tentando esquecer da dor e do formigamento
em seu ombro esquerdo, que seguia pendurado de forma não anatômica.
Subitamente, o jovem sentiu um movimento vindo por trás e girou a espada
já em contra-ataque, mas, outra vez, sua lâmina atravessou o fantasma de
Edmund como se fosse nada. Edmund, invulnerável ao ataque, colocou suas
duas mãos frias sobrepostas no peito de Rubyo e lançou uma espiral de fogo,
que arremessou o jovem para o outro lado da sala, chocando-o gravemente
contra a parede e fazendo-o desmaiar longe de sua espada.
Gary levantou-se assustado, pegando a poção de Ollaff em seu colete o
mais rápido possível, porém Edmund percebeu o movimento do jovem. O
antigo rei levantou suas mãos, erguendo à distância o corpo de Gary, em
telecinesia, cada vez mais alto, na intenção de derrubá-lo do teto. Argus,
ainda tonto pelas pancadas em sua cabeça, olhou para trás e viu Ollaff cravar
o cajado no chão, enquanto girava suas mãos uma sobre a outra, formando
uma imensa esfera de energia, que foi lançada contra o espectro, atingindo-o
em cheio.
Com o golpe, Edmund largou o controle de Gary que, naquele
momento, encontrava-se a pouco mais de quatro passos élficos de altura. O
jovem ladino caiu sem defesa nenhuma, quebrando a perna esquerda
instantaneamente, sentindo todos os frascos em seu colete e mochila se
quebrarem contra seu corpo, criando uma fumaça multiforme e colorida em
volta dele.
Argus, sentindo que a poção de Gary já melhorava seus ferimentos,
pegou suas espadas no chão e gritou para Ollaff lançar a poção de
salamandra contra Edmund, mas Ollaff seguia descarregando a enorme carga
de energia contra o fantasma, que agora seguia ajoelhado, tentando se
proteger da forte magia de seu antigo mestre.
O general lembrou-se, então, da poção de salamandra que Rubyo ainda
portava e correu desesperadamente na direção de seu sobrinho, que seguia
desacordado. Ao se aproximar, notou que o imenso clarão vindo da magia de
Ollaff se apagou e, quando olhou para trás, viu o ancião exaurido de suas
forças, apoiando-se no cajado para não cair.
Quão logo o ataque de Ollaff parou, Edmund se levantou e lançou uma
enorme estaca de gelo no alto da pilastra próxima a Argus e Rubyo,
causando um desabamento de pedras que soterrou o corpo do jovem. Argus
saltou para o outro lado, fugindo do desabamento, mudando sua estratégia
para correr na direção de Ollaff em busca da poção. O ancião entendeu o
plano de Argus e, com a pouca força que lhe restava, lançou a poção na
direção do general. Habilmente, Argus pegou o frasco no ar, girou o corpo e
lançou-o contra Edmund, que, apesar de aparar o objeto, não conseguiu
impedir a explosão. O chão em volta do fantasma voltou a brilhar num tom
púrpura, ressurgindo as runas e, com elas, o corpo humano do morto-vivo.
Edmund, ciente de sua vulnerabilidade, sacou sua espada e foi até o
centro do salão, fazendo uma saudação de cortesia e convidando Argus para
um duelo. Seu bisneto cuspiu alguns cacos de dente que se soltaram na boca
e limpou com o punho o sangue que escorria de seu nariz, para logo em
seguida girar suas espadas no ar e caminhar também para o corredor central
do salão, repetindo o gesto do inimigo e aceitando o desafio.
Era realmente uma pena que não houvesse ninguém ali para assistir a
formidável luta entre os dois maiores mestres da Eddor que o mundo já viu.
Parecia uma enorme dança, toda coreografada, onde as espadas se chocavam
a todo momento e criavam fagulhas no ar. Os giros se ornavam a desvios,
esquivas, passos e aparos de golpes, criando um espetáculo inigualável.
Ambos sabiam que bastava um passo em falso, apenas um erro, para que a
luta terminasse.
Ao errar uma de suas estocadas, Argus aproveitou o balanço do seu
corpo para frente e usou as duas mãos para apoiar o corpo contra o chão,
lançando seu peso para realizar duas piruetas no ar, afastando-se de seu
inimigo. Ele sabia que o efeito da poção passaria em breve, então resolveu
arriscar tudo num último ataque, apostando tudo no golpe que era
considerado o movimento mais difícil e mortal da Eddor, cujo livros
contavam que teria sido realizado com sucesso por apenas um único homem:
Edmund III.
Percebendo a distância que Argus estava e o posicionamento do corpo
do inimigo, o morto-vivo perguntou:
— Você não vai tentar o Chaki contra mim, não é, garoto? Será menos
doloroso se você apenas se ajoelhar e deixar que eu te dê uma morte digna
do nosso sangue!
Argus, sem se abalar, correu com as espadas em mãos, com seus braços
esticados para baixo, abrindo totalmente a guarda para seu adversário, como
uma isca. Edmund preparou a espada para girar no ar de cima para baixo
enquanto via o bisneto se aproximando. Argus, na distância correta, fez um
salto, jogando seus pés para o ar e ficando de ponta cabeça durante a
cambalhota. Logo após, girou seu corpo em parafuso para a esquerda,
enquanto desviava por fios de cabelo de distância do ataque de Edmund, que
mal pôde acreditar que Argus acertara o movimento. Quão logo pousou nas
costas do inimigo, Argus girou as duas espadas como hélices, cortando, num
só golpe, os dois braços de Edmund, na altura dos ombros.
O antigo rei virou-se para Argus com um olhar atônito e incrédulo de
sua derrota, ajoelhando-se aos pés do bisneto e fechando seus olhos. Argus
colocou as duas lâminas no pescoço do inimigo para utilizar as armas como
uma tesoura gigante. Edmund suspirou com alívio, sentindo que, de uma
forma ou de outra, finalmente teria paz em sua morte, porém, ao abrir os
olhos, viu que as espadas de Argus passaram por seu pescoço sem causar
nenhuma lesão, pois seu corpo já estava novamente na forma etérea.
— Fique tranquilo, garoto. Se um dia alguém perguntar, eu direi que
você venceu esse nosso duelo. É uma pena que nem sempre quem ganha é o
verdadeiro vencedor. — disse Edmund, lançando Argus agressivamente na
direção de Ollaff, que foi atingido pelo corpo do general enquanto tentava se
levantar.
Capítulo 15: Raios e Trovões
Rubyo despertou devido a um alto som fantasmagórico que ecoava ao seu
redor. Percebeu que seu pé esquerdo estava embaixo de uma grande pedra e
que, por sorte, não teve seu corpo todo soterrado pelos escombros que se
empilharam sobre sua cabeça. Ao puxar a perna para fora, percebeu que
estava quebrada, além do fato de já não sentir mais o ombro esquerdo. Sua
cabeça sangrava por um corte na nuca e, estranhamente, um pouco de sangue
escorria de seus ouvidos. O ar entrava com dificuldade em seus pulmões,
parecendo rasgar o peito a cada inspiração entre as inúmeras costelas
quebradas. Com dificuldade, Rubyo caçou por entre seus bolsos a resistente
caixinha de madeira que recebera do druida, pegando de dentro dela um dos
três ovos de fênix.
Ao colocar na boca, mastigou com dificuldade, tanto pelo gosto
horrível de ovo podre, quanto pela dor de seus dentes quebrados, que só
pioraram pelos fragmentos da casca que lhe cortavam as gengivas.
Incrivelmente, em questão de segundos, sentiu um calor enorme se
espalhando por todo o corpo, enquanto o coração disparava. Sua perna
voltou a se movimentar e o ombro passou a ser sentido novamente, mas
agora sem dor alguma. O ar voltou a fluir levemente por seus pulmões, seus
ossos se corrigiram e sua força foi restaurada. A sensação revitalizante era
maravilhosa.
Rubyo se arrastou para fora dos escombros e, olhando na direção do
sarcófago, viu o corpo de seus três amigos flutuando a uns dois passos
élficos de altura, girando lentamente no ar em volta de Edmund III, que
estava ajoelhado em frente a sua tumba, realizando algum tipo de ritual que
fazia emanar uma forte luz azulada por toda a sala, enquanto emitia sons
grotescos e horrendos que se espalhavam em todas as direções.
O jovem silenciosamente se moveu para trás da pilastra derrubada pela
estaca de gelo e, escondido, analisou a situação. Rubyo sabia que, daquela
distância, provavelmente não acertaria a poção de Ollaff em Edmund; e
ainda que acertasse, sua espada estava longe demais para utilizar. O
desespero quase tomou conta de sua mente, mas seguindo os ensinamentos
de Argus, o jovem respirou fundo e controlou seus batimentos cardíacos
enquanto pensava no que fazer.
Observando o ambiente, percebeu que a luz azul em toda a sala agora se
reunia em círculos que orbitavam os corpos flutuantes de seus amigos.
Aquela cena fez com que Rubyo se lembrasse dos livros de magia proibida
que leu escondido de Ollaff, em sua biblioteca, e graças a isso, Rubyo
entendeu do que se tratava aquele ritual: Edmund pretendia sugar os
espíritos de seus amigos para, talvez assim, retornar à vida. Apesar da cena
maligna, o jovem regozijou-se, pois, se seus amigos ainda tinham almas para
serem devoradas, é porque ainda estavam vivos.
Escondido atrás da pilastra, Rubyo olhou para os céus em busca de uma
orientação, e por coincidência — ou benção de algum deus —, entendeu
exatamente o que precisava fazer. Desde que entraram naquela cripta,
sempre estiveram envoltos num ambiente molhado, pois a água minava do
teto formando poças gigantescas de água, especialmente naquela sala, que
ficava no nível mais baixo das catacumbas.
Como seus amigos estavam flutuando, não teria risco de afetá-los com
sua magia, então, na pior das hipóteses, Rubyo morreria com Edmund, mas
seus amigos estariam a salvo. Não havia mais nada a perder. Apesar de
conhecer o encantamento, Rubyo precisaria de uma fonte de energia maior
do que o pequeno cristal em seu colar — por sorte, sabia bem onde
encontrar.
Subindo na pilastra caída para se afastar da poça de água, Rubyo
esticou seus dois braços para a frente, na direção de Edmund, assobiando
para chamar sua atenção. A criatura, ao notar sua presença, virou-se sorrindo
em deboche para Rubyo, dando uma piscadela para provocar, enquanto
ficava em pé para ver do que seu herdeiro era capaz. De sua mão esquerda,
Rubyo lançou uma pequena bola de fogo, que acertou o peito de Edmund
sem causar quase nada de efeito.
— Isso é tudo o que tem para mim? Realmente, você não passa de um
bastardo fraco, e não é digno da minha coroa.
— Sim, isso é tudo o que tenho para você, vovô..., mas o mestre Ollaff
tem muito mais!
Edmund, em sua arrogância, não percebeu que, da mão direita de
Rubyo, se formavam algumas fagulhas douradas, enquanto a mão esquerda
produzia a fraca bola de fogo apenas para distraí-lo. As fagulhas douradas
atraíram, em telecinesia, o cajado de Ollaff para a mão de Rubyo, que
habilmente girou o cajado de seu mestre com as duas mãos, cravando-o no
chão inundado abaixo da pilastra, gritando a plenos pulmões: Fulgur!
Em questão de frações de segundos, as raízes úmidas de árvore, que
apontavam no teto, foram criando faíscas azuladas, como se conduzissem
energia vinda da superfície para dentro da cripta, formando um gigantesco
raio, que caiu sobre o cristal do cajado, irradiando a onda de energia elétrica
por toda a catacumba e eletrocutando Edmund, que estava com os pés
fantasmagóricos cobertos por água. Seu corpo espectral se desintegrou no ar
entre as fagulhas de eletricidade num grito de desespero e dor. As luzes do
ritual se apagaram e os sons cessaram, sendo o silêncio interrompido pelo
barulho dos três corpos caindo no chão.
Com a explosão, Rubyo foi lançado para longe, sendo arremessado no
corredor por onde entraram. Seu peito ficou ardendo em chamas elétricas,
que criaram cicatrizes espessas que jamais desapareceriam. Após alguns
momentos e inspirações profundas, Rubyo conseguiu se sentar, enquanto a
consciência voltava e sua vista se acostumava novamente com a escuridão.
Seus olhos ardiam e seu coração batia de maneira descompassada. O jovem
cogitou comer outro ovo de fênix, mas sentia que aquele mal-estar era
momentâneo, e não queria desperdiçar outro daquele item milagroso sem
que houvesse real necessidade.
Passados alguns minutos, respirou fundo e conseguiu se levantar. Seu
coração já se acalmava e, aos poucos, seus pés e mãos paravam de tremer. O
peito ainda ardia, mas era uma dor suportável.
— Flaminus! — gritou Rubyo para a escuridão, notando que apenas
algumas das tochas se acenderam, demonstrando que sua magia ainda estava
muito fraca devido ao desgaste físico.
Com luz o suficiente para enxergar, o jovem correu na direção de seus
amigos o mais rápido que seu corpo permitia, enquanto eles despertavam de
um sono profundo. Rubyo abraçou cada um deles como se não os visse há
vários anos, agradecendo aos deuses por estarem vivos. Ollaff levantou-se
com a ajuda de seu pupilo e procurou seu cajado, mas pouco restara dele
após aquele enorme trovão. Argus levantou-se, guardou suas espadas e
afagou o cabelo do sobrinho, com os olhos marejados de gratidão e orgulho.
Gary tentou se levantar, mas sua perna quebrada latejava de dor, não sendo
possível andar por conta própria.
Rubyo caminhou até a estátua de Edmund, que ficava em cima do
sarcófago e, com um só golpe de sua espada, destruiu a escultura. Em
seguida, o jovem empurrou a pesada tampa do sarcófago com a ajuda de
Argus, liberando uma grande nuvem de poeira e cheiro podre de um corpo
em decomposição há dezenas de anos. Dentro do caixão, jazia os ossos de
Edmund III, vestindo apenas um enorme colar de ouro e rubi, com um anel
dourado ornado por uma pedra negra em sua mão direita.
Rubyo pegou o anel e, quando ia colocá-lo no dedo, Ollaff o impediu,
advertindo-o:
— Meu jovem, não se esqueça do que te falei sobre esse artefato. Ele
vai amplificar tudo o que há de bom e de ruim em você... cuide de seus
pensamentos, sempre!
Assentindo com a cabeça, Rubyo colocou o anel no dedo indicador da
mão direita, pois temia que, se o colocasse na esquerda, poderia atrapalhar o
toque do alaúde, mesmo seu instrumento tendo se reduzido a fragmentos
após o choque de Rubyo contra a parede. Ao encaixar o anel, vislumbrou um
pequeno brilho avermelhado no interior da pedra negra que adornava a joia,
sentindo um estranho arrepio envolver todo o seu corpo. Sentiu sua língua
com um gosto estranho. Seus ouvidos se aguçaram e seus olhos doeram,
mesmo com a pouca claridade vinda das tochas. Rubyo sentiu seus músculos
mais fortes e seus ossos mais endurecidos, como se estivesse pronto para
enfrentar qualquer coisa. A pele em seu peito ainda queimava em dor, mas o
desconforto se tornou mais brando, sentindo as fibras musculares se unirem
com força, acelerando sua recuperação.
Argus recolheu o colar que a ossada de Edmund III ostentava no
sarcófago, guardando em seu bolso e, em seguida, disse com desdém:
— Fique tranquilo vovô, se alguém me perguntar, eu direi que você
lutou bem... para alguém da sua idade.
O general cuspiu na ossada e fechou novamente o sarcófago. Argus
caminhou na direção de Gary, depositando o pesado colar de ouro no bolso
de seu companheiro, dando dois tapinhas no ombro, como se tratasse de um
presente. Gary imaginou que ficaria mais animado com aquele presente, pois
nunca tivera tanto dinheiro em sua posse, mas a forte dor em sua perna o
impedia de esboçar qualquer sorriso. Ollaff buscou o que sobrou de seu
antigo cajado e utilizou a madeira para fazer uma tala para Gary.
— Mestre, você não tem nenhuma magia que possa me ajudar?
Qualquer uma cairia bem... perdi todas as minhas poções na queda, e tenho
cacos de vidro espalhados nas minhas costas e na minha bunda.
Ollaff enfiou o braço em sua bolsa mágica e retirou de lá uma vareta de
madeira enegrecida e bem-acabada, com uns dois palmos humanos de
extensão, atarracada a um pequeno cristal na ponta.
— Gary, estou fraco, e essa varinha mágica não tem o mesmo poder do
meu velho cajado, mas creio que será suficiente para sanar sua dor... o osso,
porém, vai levar alguns dias para colar novamente.
Ollaff virou Gary de bruços e desnudou suas costas, podendo visualizar
centenas de cacos de vidro encravados por todo o dorso e lombar, que
sangravam abundantemente. Ollaff sussurrou algumas palavras e fez alguns
movimentos, emitindo uma luz dourada da varinha mágica, lançando ondas
de energia no corpo de Gary, que sentia a dor reduzindo enquanto os cacos
de vidro subiam flutuando para deixar a pele cicatrizar.
Rubyo ajudou Gary a se levantar, firmando a perna quebrada graças à
tala improvisada. Argus já estava na porta para saída, como um batedor
procurando possíveis perigos, mas nada ouviu além do silêncio mórbido da
cripta e da água que seguia pingando do teto.
O general foi à frente com uma tocha em mãos, seguido por Rubyo, que
vinha logo em seguida servindo de muleta para Gary, e por fim Ollaff,
conjurando magias de cura para o grupo com sua varinha mágica. Ao chegar
no portão de ferro da entrada, Rubyo teve a impressão de ouvir algo acima
das escadas que levavam de volta à antessala do tesouro, mas como ninguém
além dele afirmou ter ouvido algo, não deram atenção. Argus já estava no pé
da escada, mas Rubyo insistiu em ter algo acima, passando o apoio de Gary
para Ollaff, correndo em seguida para alcançar o tio.
Atravessando quase que simultaneamente o alçapão, Rubyo congelou
ao ver a cena e Argus fechou rapidamente a portinhola que dava acesso à
escada abaixo deles, mantendo Gary e Ollaff escondidos lá embaixo. Os dois
nobres de Minalkar estavam cercados por dezenas de orcs, liderados por uma
espécie de capitão do bando; além do orc com a mancha vermelha na testa
que encontraram em Vertiga.
— Quando conversamos na estalagem, vocês me disseram que não
queriam confusão, minalkarianos... — disse o orc de rosto familiar e sotaque
estranho.
— Aí que está o problema, seu merda. Nós conversamos, mas com orc
não se fala; com orc se luta!
Rubyo terminou a frase e tentou desferir um soco no orc de rosto
manchado, mas foi atingido antes por uma pancada na nuca e caiu de
joelhos. Seu tio foi colocado de joelhos ao seu lado, enquanto as mãos de
ambos eram amarradas e suas armas recolhidas com as bainhas.
— Onde está aquele maldito ladino que viaja com vocês?
— Ele morreu. Foi devorado pelo fantasma do rei Edmund III, que jaz
nas profundezas dessas catacumbas amaldiçoadas. — afirmou Argus, sem
hesitar, gritando alto para que Gary e Ollaff entendessem o que estava
acontecendo.
— Eu acho que você está mentindo, humano... — disse o Capitão Orc,
aproximando de Argus o rosto verde acinzentado, cheio de argolas
encravadas e pústulas nojentas.
— Então fique à vontade para entrar lá e procurar, mas pode ir
tranquilo, porque ouvi dizer que esse fantasma não come qualquer coisa. —
respondeu Argus, com um sorriso debochado.
O capitão caiu na provocação e desferiu uma cabeçada no rosto já
fraturado de Argus que, exaurido de forças, desmaiou. Rubyo tentou ficar
em pé para reagir, mas sofreu um outro golpe na nuca, que o jogou com o
rosto no chão.
— A sorte de vocês é que a nossa ordem é para levá-los com vida até a
presença do nosso senhor, Inak... caso contrário, já estariam nas pontas de
nossas lanças. Mas vivos não quer dizer inteiros... — disse o orc de Vertiga
e, em seguida, chutou com força o rosto de Rubyo, fazendo-o desmaiar.
Capítulo 16: Inak Trodar
Rubyo despertou sem saber onde estava, e olhar ao redor não ajudou em
nada. Estava dentro de uma construção rústica com paredes de barro e
pedras escoradas por madeiras. O telhado era feito de palha seca amarrada e
galhos de árvores, e a luz do sol conseguia atravessar o frágil teto. Seu tio
estava amarrado ao seu lado e, assim como ele, com os braços suspensos por
uma corda, presos numa das vigas que sustentava o telhado. Ambos estavam
amarrados a mais de um palmo humano do chão. Rubyo notou que, de seus
pertences, haviam levado apenas sua espada, e por isso agradeceu aos deuses
por não terem levado os ovos de fênix e nem o diário de seu pai, ambos
escondidos em bolsos internos da roupa.
Perto de onde estava, existia uma enorme mancha de sangue fresco no
chão, seguido de um rastro sangrento que ia até a porta de madeira. Era
difícil dizer com certeza, mas não parecia ser seu ou de seu tio, ao avaliar os
ferimentos. Rubyo balançou seu corpo como um pêndulo e conseguiu
alcançar Argus com um chute, acordando-o prontamente.
— Tio, acorde... Fomos pegos pelos orcs. — sussurrou Rubyo.
— Merda, não era para ser assim... — disse Argus, despertando. —
Rubyo, preste atenção, pois não temos muito tempo. Em breve, nos
encontraremos com Inak. Não fale nada, não expresse nenhuma reação e
controle sua ira! Deixe-me falar com ele, para que você não coloque nosso
plano a perder. Concentre-se na luta que está por vir e não esqueça que você
não pode mat…
Argus interrompeu a frase quando aquele mesmo orc — que lhe deu
uma cabeçada — entrou no lugar onde estavam. Junto a ele, outros oito orcs
fortemente armados entraram, segurando lanças e maças. Rubyo percebeu
que um deles estava com a mão envolta em várias ataduras manchadas por
sangue fresco, e imaginou que a poça de sangue no chão fosse daquele orc.
— Bom dia, vermes! Espero que tenham dormido bem, afinal,
gostamos de deixar a carne descansar antes do churrasco. — todos os orcs
riram da piada, junto ao seu capitão. — Vamos levá-los à presença do nosso
senhor, Inak, então comportem-se ou morrerão mais cedo e de maneira mais
dolorosa.
Argus olhou para Rubyo e fez um olhar de pacificação. Eles foram
colocados no chão, mas seguiram com suas mãos amarradas para trás e com
seus pés sendo acorrentados um ao outro. Os dois nobres foram levados para
fora da edificação onde estavam escoltados pela tropa orc, ouvindo-os falar
em seu dialeto próprio, que era bem parecido com o idioma comum, mas
cheio de estalos de língua e entonações estranhas. Do lado de fora, avistaram
um enorme pátio de terra batida, com várias construções parecidas com as
quais estavam antes, dispostas em forma de círculopara cercar o lugar. No
centro do pátio, existia uma construção parecida com as demais, porém bem
maior e mais bem acabada, com telhado feito de barro e ângulos agudos, que
expressavam uma certa beleza rústica; e foi justamente para lá que foram
encaminhados.
Durante o caminho, perceberam que era difícil contar quantas daquelas
cabanas existiam; e mais difícil ainda era contar a quantidade de orcs que
habitavam as redondezas, mas seguramente eram mais de cem. As criaturas
seguiam divididas em pequenos grupos, realizando ações militares,
treinamentos, bebendo, brigando e comendo alguns coelhos que assavam
numa fogueira, perto do centro do pátio. Próximo à fogueira, um grande
buraco envolto numa baixa mureta de pedras mostrava um balde amarrado
na beira, sugerindo que fosse um poço de água.
O prédio central tinha uma curta escada de madeira na frente, de quatro
degraus, mostrando a importância do edifício, que ficava mais alto que os
demais. Antes da porta principal, uma pequena varanda coberta já estava
decorada com grandes cabeças de animais e monstros, que ornamentavam o
local. Logo na primeira sala, uma grande mesa de madeira mal-acabada
servia como apoio para um grande mapa do continente de Cehvambar,
curiosamente mostrando Rurkuk e Minalkar como se fossem apenas uma
região, sob o domínio dos orcs. Apenas Michello era apontada como uma
região não-conquistada, no norte e noroeste do mapa.
Foram levados para uma porta ao fim dessa sala, onde se abriu um salão
repleto de adereços e itens pendurados nas paredes entre as janelas de
madeira e, ao fundo, uma espécie de trono, feito de ossos colados e
amarrados, sustentava um enorme orc sentado nele.
Mesmo sentado, era possível perceber que ele era maior do que os
demais orcs que viram pelo acampamento — o que fazia com que ele
tivesse, pelo menos, dois passos élficos de altura. Sua cabeça calva ainda
mostrava alguns fios de cabelos brancos apontando. Tinha presas como de
javalis, mas eram quatro, duas apontado para cada direção vertical, mesmo
com a boca fechada. Seus ombros eram quase tão largos quanto a porta por
onde entraram, e seus braços tinham a largura das coxas de Rubyo. Vestia
um traje feito de couro e madeira, assim como os demais membros daquele
exército, mas sua armadura era melhor trabalhada, com ossos polidos
travando as amarrações e com detalhes púrpuras garantindo um certo ar de
realeza ao enorme orc. Ao vê-los entrar na sala, Inak disse, com sua voz
grossa e rouca, enquanto as argolas de seu rosto se mexiam:
— General Argus! Que enorme prazer te receber em meus humildes
domínios! Nós não nos encontramos desde quando mesmo? Ah, sim... acho
que foi quando eu estava comendo suas primas no castelo do seu irmão! —
disse o orc, gargalhando.
— Grandioso Inak! Você não mudou absolutamente nada! É um prazer
estarmos aqui nesse chiqueiro que você chama de lar! Pela falta de comida,
cheiro de orc azedo e cabanas militares caindo aos pedaços, creio que
estamos em Hothum, certo? — disse Argus, com um sorriso amistoso no
rosto.
— Devo admitir que o que lhe falta em tamanho, te sobra em bolas e
ousadia. Sim, estão em Hothum, base do meu exército, que comanda as duas
ilhas que fazem parte do meu reino! Ouviu bem? Duas! — disse o orc,
sorrindo de volta.
— Mérito seu, Inak, devo admitir! Sua estratégia em atacar Minalkar
em nosso momento de vulnerabilidade foi algo digno de um verdadeiro
mestre militar.
— Não me venha com bajulações, seu verme! — gritou Inak, mudando
totalmente o tom amigável e provocativo. — Acha que não sei que veio até
aqui para se vingar de mim?!
— Me vingar? — gargalhou Argus de forma tão natural que quase
enganou até seu sobrinho. — Eu não tenho nenhuma pretensão de enfrentá-
lo, até porque estou certo de que jamais venceria o lendário rei dos orcs...,
mas esse rapaz aqui do meu lado facilmente te faria cuspir essas bolas
verdes!
Inak foi pego de surpresa com aquela afirmação, fechando a cara ao
olhar para Rubyo. O enorme orc levantou-se de seu trono e caminhou
lentamente na direção dos dois minalkarianos, que foram colocados de
joelhos no chão de madeira pela tropa que os escoltava.
— Esse seu olhar altivo, nariz fino e empinado... bochechas rosadas...
queixo quadrado... você me faz lembrar da família Edmund. Mas esses
cabelos vermelhos são diferentes de qualquer outro rei nojento de Minalkar.
Me disseram que você carregava aquela espada em sua bainha, não é? —
Inak apontou para uma mesa ao lado, onde estava a Sabedoria. — Essa arma
é uma relíquia real... deixe-me entender, você é o bastardinho, não é? E
como seu tio só quis saber de mulheres e bebidas, caiu no seu colo a missão
de se vingar de mim?! — Inak começou a gargalhar compulsivamente,
apontando para Rubyo.
O jovem fez menção de dizer algo, mas foi rapidamente interrompido
por Argus.
— Que bom que você já entendeu tudo e nos poupou horas de conversa,
Inak. Viemos aqui para negociar, mas seus soldados nos emboscaram pelo
caminho. — disse Argus.
— Negociar?! Acha mesmo que estão em posição de negociar alguma
coisa?! — gritou Inak, irritado, mantendo suas bizarras variações de humor.
— Sim, Inak. Veja bem, nós dois somos os últimos herdeiros de
Minalkar, que você vergonhosamente deixou escapar em sua incursão.
Minalkar jamais será sua de verdade enquanto estivermos vivos, e você sabe
disso.
— Ora, mas isso é muito fácil de resolver! — disse Inak, sacando o
enorme machado que levava na cintura.
— Exatamente, nos matar agora seria algo muito simples..., mas onde
ficaria a honra do lendário guerreiro Inak Trodar, Chefe das tribos e Rei de
Rurkuk? Se você simplesmente nos executar, sem chance de defesa, vai dar
a impressão aos demais líderes que você está ficando velho e fraco... e você
sabe melhor do que eu o que seu povo faz com líderes fracos... — disse
Argus, de modo condescendente.
— Acha mesmo que sou tolo a ponto de cair nessa sua conversinha,
Argus?! Todos aqui sabem que eu mataria vocês facilmente numa luta, mas
não vejo motivos para...
— Não, não, caro Inak... Você está entendendo errado! Repito: Eu não
vim para lutar. A luta seria entre você e meu sobrinho. Eu só vim para
assistir ele quebrando a sua cara. — afirmou Argus, interrompendo o rei orc.
— Ou vai dizer que está com medo de enfrentar um humano de dezesseis
anos que tem a metade do seu peso?
— Medo? MEDO?! Eu sou Inak Trodar, Rei de Rurkuk e de Minalkar,
e não tenho medo de NADA! — gritou o enorme orc, cuspindo incontáveis
perdigotos no rosto dos humanos.
— Foi o que pensei... e é o que seus oficiais também pensam... eu acho.
— disse Argus, apontando com a cabeça para a tropa de orcs que os
escoltava.
Inak virou-se de costas e começou a caminhar de um lado para o outro,
pensativo.
— E qual é o interesse de vocês nisso? Apenas vingança? — perguntou
o Rei dos Orcs, curioso.
— Vingança não enche barriga de ninguém, Inak. Nossa proposta é
simples: se você vencer meu sobrinho, nós dois seremos executados por
você diante de todo o seu exército, garantindo a você toda a honra, glória e
os direitos legítimos sobre Minalkar, além de te garantir mais anos de paz
como Rei de Rurkuk, sem que ninguém te desafie.
— Me parece interessante, de fato... mas, caso ocorra o impossível, e eu
perca a luta para esse franguinho, o que aconteceria?
— Você seguiria Rei de Rurkuk, mas nos devolveria Minalkar,
garantindo dez anos de paz, sem saques ou ataques.
— E por que eu faria isso? Acha que sou burro assim?! Minalkar já é
minha!
— Não seria burrice. Seria a atitude mais sensata possível para um líder
na sua posição. Seu povo passa fome, Inak. Vocês sempre se alimentaram de
nossas fazendas e, esporadicamente, do nosso povo. Mas e agora? Vocês não
têm mais nossos grãos e nem nossas carnes! Seu povo tem se alimentado do
quê? Coelhos? Aves? Não vai me dizer que estão pensando em pescar, não
é?! — disse Argus com tom irônico. — Quanto tempo mais para que esses
recursos se acabem de vez em suas ilhas? E depois, o que você vai fazer?
Atacará Alferius com esses orcs magricelos?
Rubyo olhou admirado para seu tio, compreendendo a engenhosidade
de seu plano. Inak viu que as palavras de Argus trouxeram dúvidas no olhar
de seus homens, e resolveu sentar-se novamente no trono de ossos para
ponderar.
— Dez anos… hummm… levariam dez anos para reerguerem as
fazendas, as cidades e produzir bastante comida de novo... E é claro, um
novo exército, não é?!
— Inak, nós já reconhecemos nossa derrota! Minalkar não é páreo para
Rurkuk! Nosso povo está espalhado por todo o continente. Não temos
comida, posses, terras... Nenhum minalkariano desperdiçaria a chance de
retornar para seu lar pensando em guerras! Queremos apenas sobreviver, e
vocês precisam de nós para sobreviverem também.
— Hum... mas isso só aconteceria se eu perdesse para esse fracote.
Torkag, coloque-o em pé!
O capitão dos orcs, que dera a cabeçada em Argus, respondeu ao
comando do Rei e soltou a corrente dos pés de Rubyo, colocando-o em pé,
mas ainda com as mãos amarradas. Inak levantou-se novamente e caminhou
na direção de Rubyo, analisando-o dos pés à cabeça.
— Você concorda com os termos da nossa aposta, garoto?
— Sim, eu concordo. — disse Rubyo, sem hesitar.
— Hum… vejo que você é muito corajoso para se colocar em risco por
todo o seu povo... você realmente deve ter um coração muito bom. — disse
Inak, parando em frente a Rubyo, olhando em seus olhos com um sorriso. —
E espero que seja tão bom quanto o do seu pai, pois o coração dele foi
delicioso!
Rubyo sentiu todo o seu corpo arder de raiva e tentou soltar as cordas
que prendiam suas mãos, mas Argus gritou seu nome para acalmá-lo.
— Veja só, parece que o filhote já tem garras! — ironizou Inak,
gargalhando. — Deixe-me te mostrar algumas coisas que tenho aqui na
minha sala de troféus, para que você conheça bem quem vai te matar!
Inak caminhou para uma das paredes, onde vários objetos se
encontravam pendurados. Apontando para um deles, o orc disse:
— Essa é a cabeça de um Antigo Homem, um líder tribal que ousou
atravessar as montanhas frias e entrar nas nossas terras. Ele tinha a altura de
uma árvore e arrastava um tronco como arma e, mesmo assim, não teve
chances contra o meu machado. Esse enorme cristal vermelho que emana
calor, — disse Inak, apontando para uma pedra de poder do tamanho de uma
melancia. — Eu roubei de uma caravana que seguiria para Michello e, para
isso, tive que enfrentar um poderoso mago, a quem, é claro, não só matei,
como jantei em seguida. Ah, falando nisso... Argus, por onde anda aquele
velho barbudo que sua família tinha de estimação? Preciso dele para me
ensinar a usar esse troço mágico.
— Infelizmente, o mestre Ollaff já não se encontra mais entre nós. —
simulou Argus, baixando sua cabeça com pesar.
— Tanto faz também, foda-se essa magia. É uma bela decoração em
minha parede. — disse Inak, seguindo apontando para outros troféus. —
Esse arco élfico feito de ébano veio de um comandante da fortaleza de
Assylan, que pensou ser uma boa ideia atravessar o rio Parny para
treinamentos militares... preciso dizer o que aconteceu? E essa coroa aqui,
reconhece? Ela estava na cabeça do seu pai quando a encontrei...
Inak seguiu explicando alguns outros objetos, enquanto caminhava na
direção da mesa onde estava a espada de Rubyo.
— Entre tantas relíquias, a minha mais nova é essa belíssima espada,
que não pendurei em minha parede porque ainda não matei o dono dela... E
também porque não sou idiota de colocar minha mão em seu cabo, assim
como fez o meu sobrinho, que perdeu os dedos por não saber que essa
maldita espada mágica arranca os dedos de quem não tem o sangue de
Edmund. Mas eu sei, porque não sou burro! — disse Inak, olhando com
desagrado para o orc com a mão enfaixada.
Rubyo não conseguiu disfarçar a cara de surpresa ao descobrir aquilo
sobre sua espada; e para tentar disfarçar seu espanto, resolveu falar:
— Você acha que demonstrando essas velharias vai conseguir me
assustar? Eu não preciso nem dessa espada para arrancar esses dentes
amarelados que não cabem em sua boca!
Inak virou-se surpreso para Rubyo, mas instigado pela provocação.
— Pois, que assim seja. Que todas as tribos tenham ciência do meu
acordo com a família real de Minalkar, e esse tratado durará enquanto eu
respirar! — disse Inak, em alto tom de voz para que todos os orcs ouvissem,
em especial os que espiavam pelas janelas, do lado de fora. — Agora,
desamarrem esses idiotas. O cabeça de fogo deve ser levado para o pátio, e o
general vai assistir aqui, da minha varanda, o seu sobrinho ser destroçado
pelo meu machado!
— Espere, Inak... não vai dar nenhuma arma para ele? — perguntou
Argus, preocupado.
— Claro que não! Ele acabou de dizer que não precisa nem da espada
dele para me vencer, então por que precisaria de uma espada minha?
Capítulo 17: O Duelo
Rubyo foi levado amarrado para o centro do pátio, próximo de onde se
encontrava a grande fogueira e o poço que viram antes. Ao olhar para trás,
viu seu tio em pé na varanda do prédio onde estava, ladeado por um soldado
orc, tentando disfarçar a cara de preocupação.
Os orcs jogaram Rubyo no chão de terra e desamarraram suas mãos. O
jovem, instintivamente, procurou sua espada nas costas, mas obviamente não
encontrou nada. Ao conferir seu pescoço, Rubyo notou que não haviam
retirado seu colar mágico, porém achou melhor não utilizar magia contra
Inak, pois isso poderia desfazer o trato. Ele estava sem armas e sem poder
usar magia, mas o anel negro que carregava na mão direita não o fazia se
sentir tão indefeso.
O sol do meio-dia queimava a nuca de Rubyo, que torcia para que as
densas nuvens que estavam no céu cobrissem logo a luz solar para apaziguar
o calor que fazia naquele pátio. De repente, Rubyo notou que vários
soldados abriram uma enorme roda em volta deles, abrangendo a sala de
troféus, a fogueira e o poço, para garantir que Rubyo não fugisse. Os orcs
começaram a tocar os tambores que carregavam em seu colo, criando uma
marcha infernal enquanto Inak caminhava, do prédio onde estavam, em sua
direção. O enorme orc havia marcado seu rosto com tinta vermelha e verde,
fazendo uma horrenda pintura de guerra. Em suas mãos, carregava seu
enorme machado na direita e um outro menor, de apenas um gume, na
esquerda.
O coração de Rubyo batia forte, no mesmo ritmo que os tambores dos
orcs, que faziam o chão e a perna do jovem tremer. Suas mãos transpiravam
a ponto de pingar, contrastando com a boca extremamente seca, enquanto
sua respiração ficava mais curta e acelerada. Ao se aproximar, Inak olhou
para Rubyo, deu um sorriso confiante e um grito bem alto para intimidar o
jovem. Rubyo olhava fixamente para orc; e ao pensar em tudo o que aquele
maldito fez com sua família, o ódio do jovem rei de Minalkar falou mais alto
que qualquer medo, trazendo uma estranha paz para seu coração. Um som
estridente de uma corneta tocou e os tambores pararam, indicando o início
do duelo.
Rubyo tirou a capa que cobria sua armadura pela primeira vez desde
que saiu de casa, mostrando orgulhosamente as cores de Minalkar. Um fino
sereno começou a molhar seu corpo, fazendo as cores brilharem levemente.
Inak fez o primeiro movimento, girando o grande machado de cima para
baixo na direção de Rubyo que, calculadamente, deu um pequeno passo para
trás, deixando a lâmina atingir secamente o chão, como uma guilhotina.
Aproveitando o movimento, Rubyo abaixou-se, apoiou a mão esquerda no
cabo de madeira do machado preso ao chão e acertou um chute alto, de
baixo para cima, como um coice no rosto de Inak, que largou a arma e deu
um passo para trás, com o lábio cortado pela própria presa.
Inak aproveitou o passo para trás e usou o impulso para avançar contra
Rubyo, usando seu machado menor para cortar o ar em várias direções, mas
o jovem continuava esquivando-se, dando passos para trás e para o lado,
girando o corpo em movimentos perfeitamente coordenados. O orc percebeu
que não acertaria facilmente seu inimigo, então fingiu desistir do ataque com
a arma e preparou um soco com a mão livre, de maneira coreografada.
Rubyo se concentrou no soco que estava por vir, caindo na armadilha de
Inak e esquecendo-se por apenas um segundo da machadinha, sendo tempo
suficiente para Inak acertá-lo com um corte na diagonal, fazendo um talho
em seu peito e estilhaçando a armadura de madeira e couro feita por
Rosalind.
O Rei de Rurkuk percebeu que Rubyo se assustara com o golpe que
havia sofrido, e aproveitou a distração do jovem para acertá-lo com um
chute na boca do estômago, arremessando-o contra o chão, alguns passos
élficos para trás, onde ficou se retorcendo de dor. Inak, certo da vitória,
voltou para buscar seu grande machado que estava preso ao chão, mas sem
tirar os olhos de seu inimigo que seguia caído. Quão logo pegou sua arma,
Inak correu em disparada para cima de Rubyo que, ao notar a aproximação,
já estava com as mãos cheias de terra. Quando o orc tentou novamente
acertá-lo com o grande machado, Rubyo rolou para o lado para desviar e
levantou-se rapidamente, jogando terra nos olhos do grandalhão.
Inak gritou de dor e de ódio, girando as armas no ar sem enxergar nada.
Rubyo fazia barulhos e pisava pesadamente no chão para atrair o inimigo
pelo som, fazendo Inak correr atrás dele enfurecidamente, mesmo sem ver
nada. O jovem correu na direção da fogueira, com o inimigo em seu encalço
e, ao se aproximar, saltou a enorme fogueira como um gato, e só esperou
para que Inak atravessasse as chamas sem enxergá-las. O plano era
excelente, porém os soldados orcs gritaram e alertaram seu líder sobre o
perigo, fazendo-o parar de correr a menos de um passo élfico das chamas.
Com seu plano frustrado, Rubyo correu dando a volta na fogueira e
disparou uma voadora nas costas de Inak, para tentar empurrá-lo sobre as
brasas, mas o experiente guerreiro orc percebeu o movimento do jovem,
aparando seu ataque no último segundo, utilizando seu enorme antebraço
para arremessar Rubyo para longe.
Inak aproveitou a distância do adversário e limpou seus olhos, voltando
a enxergar quase perfeitamente. Ao recuperar a visão, viu Rubyo em pé, a
uns dez passos élficos de onde estava, parado em posição de defesa,
esperando o movimento adversário. Cada vez mais enfurecido, Inak correu
na direção de seu inimigo, mas resolveu surpreendê-lo com um ataque
duplo, lançando seu machado menor contra o jovem, enquanto usava o
maior para golpeá-lo de perto. Rubyo conseguiu desviar do projétil,
deixando a machadinha cair ao lado do poço, atrás dele, mas seu movimento
custou segundos preciosos para que pudesse se desviar de Inak que, embora
tenha errado o golpe com o grande machado, conseguiu acertar uma forte
cotovelada no rosto de Rubyo, jogando-o também para perto do poço.
O jovem sentiu seu rosto inchar na mesma hora, enquanto a sobrancelha
direita pesava sobre seu olho e o gosto de sangue invadia a boca. Tentando
se levantar, Rubyo viu Inak caminhando lentamente em sua direção,
respirando fundo para recuperar o fôlego após a corrida. O Rei dos Orcs
carregava o imenso machado com as duas mãos, confiante de que o jovem
humano não se levantaria depois da cotovelada. Porém, Rubyo não só se
levantou, mas também se armou com a machadinha caída ao seu lado, e
partiu para cima de Inak.
Nesse exato momento, começou a chover pesado e um enorme trovão
calou a plateia, que gritava o nome do Rei dos Orcs sem parar. Inak distraiu-
se com o barulho estrondoso e com a forte luz do raio que caiu na floresta ali
perto, não tendo tempo para defender-se do ataque de Rubyo, que cravou a
machadinha em seu ombro direito, fazendo com que o orc largasse o grande
machado no chão.
Apesar da dor em seu ombro, Inak aproveitou a curta distância de
Rubyo e acertou uma cabeçada no jovem, que, mesmo tonto pela pancada,
girou o corpo no ar com uma cambalhota, apoiando as mãos no chão, e
contra golpeou o orc com as duas pernas, novamente como se fosse um
coice, empurrando Inak para trás. Aproveitando o movimento, Rubyo deu
uma cambalhota na direção contrária e girou seu corpo no próprio eixo,
virando-se novamente de frente para o inimigo, de joelhos no chão.
O Rei dos Orcs, surpreendido pelo movimento do humano,
desequilibrou-se e tropeçou numa pedra atrás de seu pé, caindo sem defesa
para trás. Rubyo tentou se levantar para aproveitar o momento de
vulnerabilidade do oponente, mas sentiu uma forte tontura pela cabeçada que
sofrera. Sua visão ficou avermelhada e ele percebeu um corte na testa que
fazia o sangue escorrer sobre seus olhos.
Inak levantou-se o mais rápido que pôde e viu Rubyo agachado,
tentando limpar o sangue com terra de seus olhos. O orc então arrancou a
machadinha que estava encravada em seu ombro, partindo para cima de seu
inimigo. Rubyo, com a visão parcialmente melhor, esperou até o último
segundo do movimento de Inak para usar as suas pernas fletidas e realizar
um grande salto, fazendo com que Inak passasse por baixo de si e golpeasse
o ar com o machado na altura da cintura, perdendo novamente o equilíbrio
ao não encontrar Rubyo. A velocidade do orc era tanta que não conseguiu
conter suas pernas, tropeçando novamente e batendo a cabeça pesadamente
contra o muro de pedra do poço.
Rubyo pousou de seu salto, girou sobre os calcanhares e pegou o
machado grande de Inak, que estava caído ali perto. O jovem correu o mais
rápido que pôde com aquele machado pesado em mãos e se aproximou de
Inak, já chutando a nuca do orc, que tentava se levantar após a cabeçada que
dera nas pedras. Pelo chute na nuca, Inak deu outra cabeçada na mureta,
quebrando duas de suas presas, ficando semi-inconsciente pela dor
lancinante que sentia. Rubyo não poupou o inimigo caído e tampouco parou
de chutar a cabeça e as costelas do orc que, à essa altura, já tinha perdido as
últimas presas e todas as argolas antes penduradas em seu rosto, piorando
ainda mais os rasgos e o sangramento.
— Chega... — tentou dizer Inak, entre um chute e outro. — Já chega!
O jovem, ensandecido, não parava de chutar a cabeça do inimigo
indefeso, mas Argus gritou seu nome e o jovem parou imediatamente. A
multidão de soldados orcs permanecia muda, descrente do que seus olhos
viam. Inak seguia no chão, com a cabeça afundada entre os pedaços de pedra
da mureta, tentando se levantar, enquanto Rubyo, com o grande machado
nas mãos e o rosto sangrando, olhava fixamente para ele.
— Já chega, garoto, você venceu! Maldito seja, Argus! Não me disse
que seu sobrinho era um demônio! — gritou Inak, com raiva, respirando
com dificuldade e tentando não se engasgar com o próprio sangue. — É
aquela maldita terra que você quer? Pois a pegue, então! É sua por dez anos,
eu prometo!
Inak conseguiu virar seu corpo para a frente e apoiou as costas na
mureta do poço, sem forças para se levantar. Rubyo limpou mais um pouco
do sangue escorrendo de sua testa e, com a boca inchada, tentou sorrir para
seu tio, que estava sendo solto pelo orc ao seu lado.
— Você é realmente um rei guerreiro, garoto... e todo rei merece uma
coroa. Acho que você gostaria que seu pai lhe entregasse sua coroa, certo?
— Inak cuspiu mais um dente e olhou para Rubyo. — Tenho uma surpresa
para você. Seu pai está aqui conosco, e ele mesmo vai te entregar a coroa de
Minalkar, você merece! Torkag, traga o rei Edmund VI para entregar a coroa
ao seu filho!
Rubyo não conseguiu conter a emoção e começou a chorar com a
simples ideia de ver seu pai saindo da porta atrás de seu tio, da sala de
troféus. Argus olhou para trás, incrédulo, vendo Torkag saindo dela e,
seguido dele, um orc carregando uma vara longa de madeira, onde um
esqueleto estava pendurado, com os ossos anatomicamente amarrados,
usando a coroa de Minalkar no crânio, mostrando os ossos de suas costelas
triturados na parte da frente, onde, um dia, bateu o coração do último rei de
Minalkar.
— O que foi garoto? Não vai correr para abraçar seu papai? —
gargalhou Inak, com o pouco ar que ainda entrava em seus pulmões.
Rubyo sentiu um forte formigamento na mão direita, onde usava o anel
negro, e seu corpo todo passou a tremer e ferver com uma raiva que jamais
sentira antes. Seu coração disparou e começou a bater na garganta. A boca,
mesmo cheia de sangue, parecia seca. Suas mãos sujas de terra, sangue e
suor, pressionavam o cabo do enorme machado como se fosse parti-lo. Sua
respiração ficou pesada e seu campo de visão foi se escurecendo nas bordas,
enxergando apenas, no centro dela, o riso debochado de Inak.
Argus gritou para seu sobrinho se acalmar, mas, dessa vez, Rubyo não
ouviu, ou simplesmente não conseguiu se segurar. Quando percebeu, Rubyo
já havia cravado o machado no meio da testa de Inak, partindo sua cabeça
em duas partes, como um melão maduro.
O silêncio que os soldados de Rurkuk faziam — que, incrédulos,
assistiam a cena — foi interrompido por gritos de ódio e de luta entre eles.
Rubyo se lembrou das palavras de Argus, que havia lhe explicado que, assim
que um líder orc morre, os aspirantes já iniciam lutas entre si para ver quem
será o novo rei. Ciente do erro que cometera, e já sem forças, Rubyo limitou-
se a sentar na borda do poço, ao lado do corpo inerte de Inak. Ao procurar
seu tio, viu Argus correndo para dentro do prédio e sair pouco depois com
uma das cortinas da sala de troféus, envolvendo alguma coisa, além de trazer
a Sabedoria em mãos. O general pegou a coroa caída ao lado da ossada de
Edmund VI e correu na direção de Rubyo.
Assim que Argus chegou ao lado do sobrinho, os gritos entre os orcs se
calaram e, mecanicamente, abriram caminho na multidão para que passasse
seu novo líder, Torkag, o ex-capitão de Inak. Antes que Argus pudesse dizer
algo, os orcs correram e cercaram os dois no poço, com lanças e espadas. O
novo líder pediu silêncio e disse para os minalkarianos:
— O acordo era bem claro, seus idiotas, e teria validade enquanto Inak
respirasse! E ele parece já não respirar mais... — disse Torkag, sorrindo. —
Eu não sou tão orgulhoso quanto ele, então foda-se o acordo que tinham.
Convido vocês apenas para o jantar. Ou no caso, para ser o nosso jantar.
Todos os orcs caíram na gargalhada. Eram mais de uma centena deles,
fortemente armados com lanças, arcos e maças,não teria como apenas os
dois lutar contra todos. Argus colocou a Sabedoria no colo de Rubyo, que
seguia sentado na borda, esbaforido, e, em seguida, entregou-lhe a coroa.
Olhando nos olhos de Rubyo, sem se importar com os inimigos em volta, o
general disse:
— Ah, meu tolo e amado sobrinho... sangue do meu sangue e semente
de meu irmão. Obrigado por me fazer ser uma pessoa melhor, para que você
fosse o melhor possível. Não me decepcione, tome de volta o que é seu!
Rubyo olhou para seu tio com uma estranha sensação de adeus, sem
entender o que estava acontecendo, ainda exaurido pela luta. Argus jogou
para cima o tecido que levava em seu braço, revelando, debaixo dele, o
enorme cristal vermelho que estava na parede de Inak. Os orcs correram para
cima dele com as armas em punho, mas não havia mais tempo.
Argus empurrou Rubyo para dentro do abismo do poço, levantou o
cristal e gritou com todas as suas forças: Flaminus!
Capítulo 18: O Caminho de Volta
— Rubyo?!... Rubyo, você está bem?
Uma voz chamava, de longe, o nome de Rubyo; aos poucos, ela o
despertava de um sono profundo. Seu corpo inteiro doía como se tivesse sido
pisoteado por uma manada de centauros. O frio em que estava envolto só
fazia a dor piorar, mantendo a musculatura tensa, tanto pela inflamação,
quanto pelos tremores. Alguns fragmentos de lembranças se juntavam em
memórias recentes e confusas, quase sem sentido. Ao abrir os olhos, Rubyo
viu uma forte luz vinda do fim do túnel que existia no céu escuro, e ele
perguntou a si mesmo se havia morrido. Outra vez, a voz chamou-lhe — e
no fim do túnel, reconheceu um rosto familiar... era a cara de fuinha de Gary.
Com dificuldade, Rubyo levantou-se e olhou ao redor; estava em uma
caverna úmida e mal iluminada, caído na margem de um rio subterrâneo, que
corria lentamente de uma escuridão para outra, formando um enorme lago.
Havia pouca luz, vinda exclusivamente da abertura no teto, de onde Gary o
chamava. Estava sozinho e confuso, com sua espada e coroa caídas ali perto.
Levou alguns minutos para sua cabeça parar de girar e conseguir se
lembrar, ainda que em partes, do que aconteceu. Lembrava-se de Argus
empurrando-o para dentro do poço e, enquanto caía, enxergou uma enorme
onda de fogo cobrir os céus, até que afundou em águas escuras e frias.
Mais uma vez, a voz de Gary o chamou do topo do poço e, em seguida,
uma corda desceu, seguida da ordem de se segurar nela. Rubyo percebeu a
falta de sua capa enquanto apalpava o corpo para conferir se havia quebrado
algum osso. Guardou sua espada, encaixou a coroa em seu braço e agarrou-
se na corda, sendo içado para cima. Ao chegar no topo, viu que as bordas de
pedra do poço já não existiam mais, assim como as casas ao redor do pátio.
Hothum havia sido transformado num enorme deserto de cinzas.
Gary e Ollaff respiravam fundo, cansados pelo esforço de subir Rubyo
pela corda, mas, ainda ofegantes, abraçaram, com todas as suas forças, o
jovem que milagrosamente estava vivo. Rubyo permitiu ser abraçado, apesar
da dor em seu corpo, olhando incrédulo para o cenário de destruição ao seu
redor. Não existia nenhum sinal de vida, apenas cinzas misturadas com a
terra vermelha, enlameada pela forte chuva que caía.
— Mestre... onde está meu tio? — perguntou Rubyo com a voz
embargada, pois já sabia a resposta.
— Eu sinto muito, meu senhor. Ele se sacrificou para derrotar todos
aqueles orcs... Nós estávamos escondidos na floresta, observando seu duelo
com Inak, e testemunhamos quando Argus te jogou no poço e explodiu
aquele enorme cristal de fogo, com magia.
— Mas, eu não entendo... meu tio não sabia usar magia... não pode ser,
mestre... — disse Rubyo, já com os olhos cheios de lágrimas.
— Sim, meu Rei, ele sabia sim. Apesar de nunca usar, ele foi letrado
em magia durante a infância, assim como o senhor. Ninguém suportaria o
poder daquele cristal sozinho, e ele sabia disso quando se sacrificou por
você.
Rubyo se levantou e, chorando desesperadamente, começou a procurar,
em volta, algum vestígio ou fragmento do corpo de Argus ou da ossada de
seu pai, mas não via nada além de cinzas. Poucos corpos carbonizados ainda
ardiam em brasas, mas todos mais distantes do epicentro da explosão, e pelas
características dos crânios, eram claramente de orcs.
— Não tenho nem mesmo uma parte deles para sepultar e dar o fim
digno que eles mereciam! — disse Rubyo, entre um soluço e outro, caindo
de joelhos no chão.
— Não existe fim mais digno do que eles tiveram, meu senhor. Eles
deram a vida por seu povo e por sua família e, assim, viveram e morreram
por Minalkar! Não existe nada mais nobre do que dar a sua vida por quem
se ama! — respondeu Ollaff, ajoelhando-se ao lado de Rubyo e abraçando-o
novamente.
Gary, nervoso com a situação e sem saber como agir, enrolou a corda
que usaram e entregou de volta para Ollaff, que guardou em sua bolsa
mágica ao se levantar. O mago estendeu o braço para Rubyo e disse:
— Sei de sua dor, meu Rei, mas temos que deixar nosso luto para mais
tarde. Em breve, algumas hordas de orcs chegarão de Lukum para investigar
a explosão... e temos que estar bem longe daqui.
Rubyo aceitou a mão de seu mestre e colocou-se em pé. Entregou a
coroa para Ollaff, que também guardou em sua bolsa mágica, trocando com
o jovem por uma poção avermelhada que trazia em seu inventário. Gary deu
um abraço sem jeito em Rubyo, que aproveitou o gesto para dar apoio ao
amigo, que seguia caminhando com muita dificuldade devido à perna
quebrada.
— Em breve vai anoitecer, Rubyo, e orcs enxergam melhor à noite do
que nós. Vamos voltar para a floresta e lá decidimos o que fazer.
Os três seguiram em silêncio até a floresta a leste de onde estavam,
caminhando o mais rápido que a perna de Gary permitia. Rubyo olhou uma
vez mais para trás e, em pensamento, agradeceu ao seu tio e ao seu pai pelo
sacrifício de ambos, jurando, para si, mesmo que não seria em vão.
Chegaram na floresta ainda com o restinho da luz do dia, enquanto as
últimas gotas de chuva lavavam o céu. A floresta que separava os reinos de
Rurkuk e de Minalkar era bastante densa e fechada, cheia de morros e
árvores caídas que atrapalhavam a passagem e deixava o caminho mais
confuso; Ollaff o iluminava com sua varinha mágica, porém sua luz nem se
comparava à luminosidade de uma tocha ou de seu antigo cajado. Após
algumas horas, chegaram ao rio que cortava a floresta no meio, e Gary
reparou que as águas estavam bem mais altas e agitadas do que quando
passaram por ali mais cedo, provavelmente pela forte chuva que caiu.
Ollaff explicou que, mais ao sul, existia uma ponte que cruzava o rio,
mas que com certeza estaria sob o domínio de orcs. Rubyo resolveu
atravessar por ali mesmo, nadando até o outro lado enquanto carregava a
corda de seu mestre. Com ela, o jovem ajudou seus dois amigos a
atravessarem o rio sem serem levados pela correnteza. Com o cansaço da
caminhada e da travessia, Gary pediu para que se sentassem e descansassem
um pouco, o que foi aceito pelos amigos. Ollaff orientou que se afastassem
um pouco mais do rio para montar o acampamento, pelo risco de as águas
subirem ainda mais.
Rubyo acendeu uma pequena fogueira e todos beberam bastante água,
na intenção de tapear a fome que fazia seus estômagos roncarem bem alto. A
noite estava muito escura e o extremo cansaço não permitia que caçassem
nada para o jantar.
— Eu nunca senti tanta saudade do Bokko quanto agora... não só pela
companhia do meu velho amigo, mas também pelos nossos equipamentos
que ele levava; e por essa minha maldita perna que não para de doer a cada
passo... — lamentou Gary, abraçando a si mesmo pelo frio, enquanto olhava
as chamas da fogueira.
Rubyo seguia em silêncio, quebrando alguns gravetos finos e jogando-
os nas brasas. Ollaff percebeu o clima de desânimo dos jovens, tendo o luto
agravado pelo frio e pela fome, então tentou trazer de volta o foco para a
equipe.
— Precisamos traçar um plano de como voltaremos para casa, da
maneira mais rápida e segura possível. — afirmou o ancião.
— Se vocês desejam ir mais rapidamente, é melhor me deixar por aqui
e seguirem sem mim, pois não consigo andar mais rápido do que...
— Ninguém mais fica para trás! — disse Rubyo, rispidamente,
voltando a chorar. — Nós perdemos coisas demais nessa viagem, já chega!
Ollaff puxou um mapa de sua bolsa mágica e, ao abri-lo, Gary percebeu
que nele brilhava um pequeno ponto azulado no meio da floresta de
Minalkar.
— Esse mapa mágico mostra exatamente onde estamos, em qualquer
lugar que estivermos, e como podem ver, estamos bem aqui, nesse ponto
azul. — explicou Ollaff, mostrando o mapa à luz da fogueira. — Se
caminharmos em linha reta, cruzando as antigas fazendas e campos de
Minalkar, chegaremos em Vertiga em pouco mais de dois dias, nessa
velocidade.
Gary tentou recolher um pouco a perna, pela vergonha, mas a dor e a
tala impediam que ele a mexesse.
— Cruzando os campos ficaremos expostos, mestre. E se formos por
dentro da floresta, margeando o Rio Parny? — perguntou Rubyo, enxugando
as lágrimas e o nariz em sua roupa.
— Por dentro da floresta não há como saber. O caminho parece
acidentado, acredito que levaríamos por volta de quatro dias, mas estaríamos
mais seguros.
Rubyo notou o olhar de preocupação de Gary ao ouvir a possibilidade
de continuar caminhando naquela difícil floresta, estando com a perna
naquelas condições, e tomou uma decisão:
— Vamos pelas fazendas. Talvez encontremos comida e refúgio no
caminho.
Sem discutir, Gary e Ollaff concordaram. O mestre guardou seu mapa e
se ofereceu para ficar de vigia no primeiro turno da noite, mas Rubyo
insistiu que ficaria a noite toda de guarda, pois não conseguiria mesmo
dormir. O jovem rei de Minalkar passou a noite toda alimentando a fogueira,
com a espada em seu colo, olhando para o breu da noite sem luar e sem
estrelas.
No início da manhã, Rubyo improvisou uma lança utilizando um galho
comprido e, com ele, conseguiu capturar algumas trutas no rio, que já
apaziguava suas águas. Os peixes no desjejum levantaram a moral da equipe,
uma vez que estavam novamente secos e alimentados. Retomaram a jornada
sentido sudeste, fugindo das áreas de mata fechada da floresta de Minalkar,
alcançando, em poucas horas, os antigos campos das fazendas.
O cenário era lamentável. Rubyo lembrava-se de ver ilustrações sobre
os belíssimos campos de cultivo e de criação de gado de Minalkar, mas em
nada se parecia com aquelas planícies secas e ruínas de antigas fazendas e
moinhos abandonados. Quem não conhecia a história daquele lugar jamais
imaginaria que, um dia, aqueles campos já foram considerados o celeiro do
continente.
Seguiram seu rumo pelas antigas estradas abandonadas, encontrando
pelo caminho apenas destruição e lembranças. Viam restos de pessoas
enforcadas e diversas gaiolas com corpos decompostos dentro, esquecidos
pelos orcs e pelo tempo. O caminho era repleto de pequenas construções em
ruínas, destruídas e queimadas pela fúria da marcha de Inak. Um alto capim
crescia nas terras férteis, onde milho e trigo já foram cultivados ao extremo.
Algumas pás de moinhos ainda tentavam girar com o vento, mas os rasgos
não permitiam força o suficiente.
Perto de uma das pequenas vilas e fazendas que atravessavam,
enxergaram uma pequena tropa de orcs vindo na direção deles,
provavelmente com destino a Hothum. A mão de Rubyo coçou sobre o cabo
da espada para sacá-la e enfrentar as criaturas, e percebeu que sua sede de
vingança não havia sido saciada com a morte de Inak, porém, a preocupação
com a vulnerabilidade de Gary falou mais alto. Os três amigos se
esconderam num curral abandonado, repleto de moscas, fezes e mortos,
enquanto a horda passava.
O sol já estava a pino quando, do alto de uma colina, Gary avistou, de
longe, um cervo macho que ostentava enormes chifres enquanto xeretava o
solo batido em busca de alguma pastagem boa. Ao sinalizar a presa para os
amigos, eles decidiram que caçar não era mais uma questão de escolha, mas
de sobrevivência.
— Mestre, consegue prendê-lo no chão? — perguntou Rubyo,
apontando para o animal que estava a uns cem passos élficos de distância.
Ollaff respondeu já sussurrando algumas palavras mágicas, enquanto se
ajoelhava e colocava uma das mãos no chão, fazendo com que galhos e cipós
surgissem da terra e prendessem os pés do cervo, imobilizando o animal.
Rubyo correu para reduzir a distância, enquanto dizia algumas palavras que
fizeram com que pedaços de terra flutuassem ao redor dele e se unissem
numa lança mágica de terra, a qual arremessou contra o animal indefeso.
Com o projétil prestes a acertar o animal, uma forte rajada de vento
afastou a lança, fazendo com que o jovem errasse o golpe. O grito irado de
Rubyo por errar foi suprimido por um som alto e agudo vindo de cima, por
entre as densas nuvens de chuva. Olhando contra o sol do dia nublado,
enxergaram a silhueta de um enorme grifo, que batera suas asas para desviar
a lança mágica de Rubyo. A fera gritou novamente com sua enorme cabeça
de águia, descendo para agarrar o cervo com suas patas dianteiras, e levando
o animal para longe, rompendo as amarras naturais de Ollaff. Rubyo não se
sentia forte o bastante para enfrentar uma criatura daquelas — sentimento
que, pelo olhar dos amigos, era compartilhado por eles.
De repente, três flechas cruzaram o céu e acertaram em cheio o grifo
que, ao sentir os projéteis, soltou o cervo do alto. Ao ouvir o som do corpo
do animal se chocando contra o chão, Gary lembrou-se de sua própria queda
e a perna pareceu doer ainda mais. Ainda no alto, o grifo fez um giro em seu
voo, rumando para a colina ao lado de onde Rubyo e seus amigos estavam,
sendo aquele, o local de onde partiram as flechas. A criatura alada desceu
em rasante, fazendo com que as cinco pessoas que se escondiam lá
corressem em direção ao grupo de Rubyo, para fugir da investida do
monstro.
Percebendo que tinham um inimigo em comum, Rubyo se animou e
novamente levantou suas mãos com as palmas para cima, enquanto
sussurrava algumas palavras, criando outras três lanças mágicas de terra ao
seu redor, disparando-as contra o grifo. Gary, mesmo com a perna ruim,
habilmente subiu na copa da árvore mais próxima, escondendo-se do campo
de visão da criatura e, também, daquelas pessoas desconhecidas. Rubyo,
desconcentrado, errou todos os seus ataques, mas Ollaff não cometeu o
mesmo erro, arremessando uma potente bola de fogo contra o peito da fera.
Ao perceberem o sucesso do ataque de Ollaff, os três arqueiros que
faziam parte daquele grupo pararam de modo sincronizado, dobraram um de
seus joelhos, e dispararam outra rajada de flechas contra o grifo, que, dessa
vez, utilizou seu rabo de leão para rebater os projéteis, mesmo sentindo as
penas de seu peito arderem em chamas. Rubyo, cansado, mas sem desistir,
lançou mais uma lança mágica, que finalmente acertou e atravessou uma das
asas do inimigo, derrubando a criatura no chão.
Os outros dois membros do grupo de desconhecidos portavam,
respectivamente, um enorme martelo de guerra e, o outro, uma longa espada
de duas mãos. Ambos correram na direção do grifo que, ao perceber a
movimentação, deu um agudo grito de águia na direção deles, que nada
puderam fazer além de soltar suas armas para cobrir seus ouvidos com as
mãos.
Ollaff novamente se abaixou, dessa vez com as duas mãos no chão,
enquanto conjurava sua magia. Da terra, criaram-se cipós ao lado do grifo,
que teve seu bico envolto pelas amarras, impedindo-o de gritar. Quão logo o
monstro foi silenciado, o menor entre aqueles guerreiros levantou-se
empunhando o martelo e, com um salto, desceu um pesado golpe contra a
testa do animal. Em seguida, seu companheiro desferiu um corte preciso
contra o pescoço da criatura, utilizando sua longa espada para decapitar a
fera.
Com a criatura morta, a atenção dos grupos se voltou um para o outro.
Rubyo e Ollaff ainda estavam com suas mãos e olhos brilhando, mostrando a
magia emanando de seus corpos, como forma de intimidação, enquanto
Gary, de cima da árvore, se equilibrava com apenas uma das mãos, pois,
com a outra, segurava suas últimas três adagas de arremesso. Um dos três
arqueiros, notando a postura defensiva dos desconhecidos, colocou o arco no
chão e levantou as mãos em sinal de paz, enquanto se aproximava do grupo
de Rubyo:
— Boa tarde, amigos, obrigado pela ajuda inesperada! Estamos
caçando esse grifo há dias, desde que ele matou um grupo de bardos nos
campos de Flarys. Meu nome é Odyno, sou o líder da Guilda dos Caçadores
de Cehvambar. Vocês têm talento para a caça, deveriam cogitar seguir
carreira conosco! — disse o caçador, olhando subitamente para Ollaff, com
um sorriso simpático. — Nunca é tarde para se tornar um caçador.
Odyno era um homem de média estatura, mas bem forte. Seus braços
pareciam desejar um machado ou uma espada, mas jamais um arco como o
que usava. Tinha uma longa barba castanha clara que ia quase até a altura do
peito, mesma cor de seu cabelo engordurado, penteado para a direita. Seu
rosto era quadrado, margeado por grossas sobrancelhas, que se uniam no
meio do caminho e se tornavam uma só. Vestia um casaco cinza com o
capuz abaixado, cobrindo suas roupas de couro curtido, e ornando
braçadeiras e caneleiras de madeira, sendo vestimentas muito parecidas com
as que os demais caçadores usavam; todos ostentavam o brasão de um
tridente virado para baixo, atravessando uma caveira.
— Boa tarde, senhores, é um prazer conhecer membros dessa distinta
guilda. Sou Oseah, professor aposentado de magia! — disse Ollaff, sem
titubear, enquanto baixava sua varinha. — Esse é meu neto, John, o qual
venho ensinando as artes mágicas. Aquele jovem escondido na árvore é
Gary, seu melhor amigo.
— Foi uma benção encontrá-los em tão boa hora, meu senhor! É
sempre um prazer conhecer um adepto da magia. Temos uma maga que viaja
conosco, mas ela preferiu ficar no acampamento nesta manhã. É uma pena
que tenham se desencontrado. Essa é Indyra, minha esposa e mestre de caça.
— Odyno apontou para uma mulher loira e magra ao seu lado, que estava
guardando o arco em seu dorso. — Esse elfo com arco longo é nosso amigo
Gill, aquele baixinho com o martelo é Tinno, e aquele grandalhão limpando
a espada é Karl.
— É vergonhoso dizer, mas acho que, sem a ajuda de vocês, não
teríamos vencido o monstro. Muito obrigada! — disse Indyra, com sua pele
clara, mas bronzeada, enquanto reforçava as tranças em seu cabelo.
— Foi um prazer ajudá-los, mas a verdade é que nossa intenção era
almoçarmos aquele cervo. — confessou Rubyo, apontando para o animal
que agonizava com seus ossos quebrados pela queda.
— Cervo? Oh não, meu jovem, hoje você vai comer carne de grifo! É
uma especialidade nossa em Fwarden! — disse o guerreiro do martelo de
guerra.
Tinno tinha ombros muito largos, mãos pequenas, mas bem gordas,
uma longa barba negra trançada até a cintura, e era mais baixo que um
homem comum. Sua voz grossa combinava com seu porte físico, e não
escondia a cabeça raspada, que estampava algumas runas enânicas tatuadas.
— Fwarden? Pensei que apenas anões eram permitidos de entrar lá. —
disse Rubyo.
— Sim, e meu pai sabia disso. Por isso que ele, um humano, teve que
engravidar minha mãe, anã, no meio da floresta do grande lago de Laghuna!
— disse Tinno, rindo com as mãos na barriga volumosa. — Minha mãe dizia
que meus olhos são azuis de tanto ela admirar o lago enquanto meu pai
montava nela!
Rubyo e Ollaff ficaram sem graça de rir da história do meio anão, mas,
percebendo que todo o seu grupo gargalhava, sentiram-se confortáveis em rir
também. Karl se aproximou deles com a cabeça ensanguentada do grifo,
colocando-a num enorme saco de estopa.
— Espero que não se oponham, mas precisamos ficar com a cabeça
para a recompensa. — disse o enorme homem, que vestia uma armadura de
metal parecida com a que Argus usava, mas um pouco mais simples e com
vários riscos, marcas de ferro queimado e tinta velha disfarçando algum
brasão que existia no peito.
— Karl, isso são modos?! — censurou Odyno. — Matamos o monstro
juntos, então os espólios precisam ser divididos de modo igualitário, pelas
leis de Robbery!
— Leis de Robbery? — perguntou Rubyo.
— Sim, meu amado neto. — disse Ollaff. — Pelas leis centenárias de
Robbery, quando um grupo vence uma batalha, cada um dos vencedores tem
direito a escolher um dos espólios inimigos por vez, até que tudo o que for
interessante seja recolhido e dividido de maneira justa. E, pela lei de
Robbery, caro Odyno, o senhor Karl tem direito a escolher o primeiro
tesouro, afinal, foi ele quem deu o golpe fatal no grifo.
— Fico agradecido e encantado por conhecer tão bem as leis, meu
nobre mago! — disse Odyno, satisfeito. — O mundo não estaria essa
bagunça que está se todos conhecessem as antigas leis e tradições! Venham,
vamos limpar esses animais e levá-los para nosso acampamento... Não é
longe daqui. E vocês, hoje, são os convidados de honra para nosso jantar!
Capítulo 19: A Guilda
Rubyo contou com a ajuda de Karl para carregar Gary numa espécie de
maca improvisada, feita com o couro do cervo morto pelo grifo, e amarrado
em dois longos galhos. Os demais membros do grupo seguiam na frente,
acompanhados de Ollaff, rumando à uma vila abandonada onde a guilda
montara seu acampamento.
— Golens? — perguntou Gary, segurando-se no balanço da maca.
— Sim, um de pedra e um de terra. — respondeu Karl, com sua voz
grave.
— Centauros? — perguntou novamente Gary.
— Sim, matei um, mas o outro fugiu. Correm rápidos, aqueles
demônios! — disse Karl, orgulhoso.
— Balrogs?
— Balrogs?! — gargalhou Karl. — Não seja tolo, não existem balrogs,
são apenas histórias de terror para crianças! Mas Elementais, sim, existem.
Foi um de fogo, inclusive, que queimou minha cabeça e me deixou careca
desse jeito.
— E dragões? Já matou algum? — seguiu Gary com seu interrogatório,
empolgado por conhecer um caçador tão experiente.
Karl era o humano mais alto que Gary já vira. Rubyo notou que ele
tinha a mesma altura de Inak, com ombros um pouco mais estreitos, mas,
ainda assim, mais largos que a maioria dos humanos. Seus braços eram
compridos e bem torneados, cobertos por longas mangas de tecido velho e
cota de malha, sobrepostos por uma leve armadura de metal com um brasão
no peito irreconhecível, pelo estado deplorável. O caçador tinha a pele muito
branca, olhos caramelo-claros e várias cicatrizes em seu rosto, que quase
passavam imperceptíveis ao se notar a queimadura grotesca que tinha por
todo o seu couro cabeludo.
— Dragões?! Que tipo de idiota se meteria com um dragão? Meu
jovem, com a perna boa ou ruim, se você avistar um dragão, corra como se
não houvesse amanhã! Porque se não fizer isso, realmente não haverá!
Rubyo seguia em silêncio, ouvindo a conversa dos dois. Esforçou-se
bastante para subir a colina adiante, pois já estava cansado da caminhada e
por estar carregando a maca de Gary; além disso, a noite anterior, que
passara em claro, começou a cobrar seu preço. Ao chegarem no cume,
reuniram-se com o resto do grupo, que admirava a bela paisagem natural à
frente, cercando a linda vila de Abnerdy, na baixada do pequeno vale.
Abnerdy era uma vila antiga e famosa, pois era onde morava a grande
maioria dos ricos comerciantes de grãos dos tempos áureos de Minalkar. A
vila tinha uma arquitetura que remetia muito às construções élficas, com
madeiras em ângulos bem abertos, cores vivas e encaixes bem trabalhados
em pedras. Rubyo se lembrava dos livros que contavam sobre Abnerdy,
local onde o povo de Minalkar se encontrava com os elfos vindos de Vastako
para realizar comércio, festas de colheita, festivais, e para degustar das
famosas ervas com aroma de canela. Boa parte da cultura ali se misturava,
assim como o povo, que se miscigenava graças à paixão trazida pelo vinho e
pela música. Era triste ver aquele lugar, outrora tão belo, agora jazendo em
ruínas, tomado por matagais, prédios caídos e incendiados.
O grupo desceu a colina rumo ao vale onde estava Abnerdy, que se
encontrava a apenas algumas horas de caminhada à frente. Rubyo notou
Ollaff conversando bastante com Odyno e, curiosamente, alguma coisa que o
chefe da guilda disse ao mestre o deixou bastante desconcertado e agitado.
Rubyo nem imaginava o que seria, mas era preocupante ver seu mestre
nervoso daquela maneira.
Ao entrar pelas muralhas de madeira que envolviam a vila — ou, pelo
menos, do que restou dela —, puderam sentir o cheiro de lenha queimando,
misturado ao perfume de algo bom sendo cozido em algum lugar por ali. O
bom cheiro da comida se misturava com um odor rançoso de carne podre,
vindo de diversos cadáveres pendurados em gaiolas e enforcados ao longo
da cidade.
Odyno guiou o grupo para um pequeno prédio bem no centro da vila,
que ainda estava em surpreendentes boas condições. Após duas portas,
chegaram ao salão principal do prédio, onde existia uma grande mesa de
mais ou menos vinte lugares, que ficava no centro do cômodo, feito com
madeiras claras e adornadas no estilo élfico clássico. Sobre o móvel, uma
enorme bandeira de Minalkar cobria a mesa, ornando com uma linda
tapeçaria que cobria boa parte da parede do fundo, ilustrando algum antigo
rei brandindo a espada Sabedoria numa batalha contra orcs.
O cheiro da fumaça guiou o olhar de Rubyo, que viu, no canto direito
do salão, todo o material de acampamento da guilda, além de duas pessoas
encapuzadas com a mesma capa que seus novos amigos caçadores usavam.
Uma delas estava sentada sobre um tapete velho, com as pernas cruzadas,
lendo um enorme livro; enquanto a outra mexia um grande caldeirão, que
fervia pendurado sobre a fogueira, de onde borbulhava um líquido
acastanhado, repleto de vegetais boiando.
Ollaff, quão logo entrou, viu a cena, virou de costas e saiu
apressadamente do prédio, passando ao lado de Rubyo sem dizer nada.
Parecia que algo o assustara, e isso deixou seu pupilo em alerta. O jovem rei
seguiu até próximo da fogueira, ainda carregando a liteira com a ajuda de
Karl, deixando Gary próximo às chamas para se esquentar.
— Sejam bem-vindos à nossa casa! — disse Odyno. — Ou, pelo
menos, é como a consideramos desde ontem... e somente será até amanhã.
Caçadores não possuem domicílio, pois estamos sempre nos mudando em
busca de nossas presas.
— Lar é qualquer lugar onde estivermos juntos, meu amor. — disse
Indyra, dando um beijo em Odyno, que ruborizou na hora.
— Sim, meu amor, nada é mais importante do que estarmos juntos. —
disse, sorrindo, o bruto caçador. — Gary, John, venham conhecer o restante
do nosso grupo!
Gary, com a ajuda de Karl, levantou-se da maca, enquanto Rubyo
seguia olhando para a porta de entrada, perguntando-se o que houve com seu
mestre.
— John, me ajude por favor. — disse Gary para Rubyo, que não
percebia que estava sendo chamado por seu nome fictício. — John!
Pelo grito de Gary, Rubyo lembrou-se do disfarce e ajudou o amigo a se
aproximar das duas figuras encapuzadas ali perto. Perceberam que quem
cozinhava era uma mulher alta, magra, com cabelos castanho-escuros
trançados, que iam até a cintura. A bela mulher olhou para os dois com um
sorriso amistoso, e jogou para trás seu capuz, revelando as orelhas pontudas.
— Pathar, esses são nossos novos amigos, John e Gary. Eles nos
ajudaram a matar o maldito grifo! Seu marido está lá fora, lavando a carne, e
já vai trazê-la para assarmos!
— Muito prazer, meus jovens, sejam bem-vindos! O ensopado estará
pronto em alguns minutos, espero que gostem de coelho cozido.
— Eu amo coelhos! — disse Gary, sem cerimônias, com os olhos
marejados de fome.
— Obrigado, senhora elfa, será um prazer. E sua amiga, quem é? —
perguntou Rubyo, olhando para a mulher de cabelos negros que seguia
cabisbaixa, concentrada em seu grande livro.
— Jessi, venha cumprimentar nossos convidados, Gary e John. — disse
Pathar, tirando uma longa colher de pau do caldeirão para experimentar o
caldo.
Jessi levantou sua cabeça, mostrando um lindo e estranhamente familiar
sorriso para os dois jovens. Sua pele era parda e perfeitamente lisa. Seus
olhos acastanhados brilhavam com a luz da fogueira ali perto, trazendo uma
sensação quase hipnotizante. Ao jogar o capuz para trás, revelou seus longos
cabelos negros e encaracolados, sustentando a franja com uma tiara em
forma de coroa fina, adornada com um cristal muito semelhante ao do colar
de Rubyo. Sobre seus fartos seios, num decote ousado, um colar repousava,
feito de ouro com um medalhão de esmeralda.
— Boa tarde, senhores, muito prazer! — disse a bela mulher, deixando
o livro no chão ao se levantar. — Meu nome é Jessyann, mas podem me
chamar de Jessi. Perdoem minha desatenção, mas estou há mais de cem anos
procurando uma versão desse livro de herbologia élfica e, por sorte,
encontrei um exemplar perdido nas ruínas dessa vila!
— Cem anos?! Não me leve a mal, minha senhora, mas você mal
aparenta ter quarenta! — confessou Gary.
— Obrigada, meu jovem, mas não deixe minha aparência te enganar...
Já tenho mais de trezentos anos, mas parei de contar há muito tempo. Sou
uma maga formada na Academia de Michello, já ouviu falar?
— Se já ouvi?! Tenho um amigo de lá, inclusive ele está... — Gary
percebeu que estava falando demais ao notar o olhar furioso de Rubyo para
ele.
— Está onde, meu jovem? Talvez eu o conheça.
— Ele está em Alferius, vendendo livros na capital. Acho que você não
o conhece, ele deixou Michello há muitos anos, para servir o rei de Minalkar.
— disse Rubyo, tentando disfarçar.
— Ollaff está vivo?! — perguntou ansiosamente a mulher, quase
gritando.
Rubyo e Gary se entreolharam em silêncio e com surpresa, não sabendo
mais o que responder sem estragar o disfarce. Jessyann se aproximou de
Rubyo, colocou as duas mãos sobre seus ombros e, olhando no fundo dos
olhos do jovem, perguntou:
— Pelo amor de Selline à Calavann, me responda, John: Ollaff está
vivo? Está mesmo em Nenáreah? Por favor, não minta para mim e nem me
dê falsas esperanças!
Rubyo, sentindo a angústia daquela mulher, resolveu falar a verdade.
— Sim, minha senhora. Ollaff está vivo, mas não está em Nenáreah.
Ele está ali fora, sabem os deuses fazendo o quê.
Jessyann largou Rubyo e correu para o lado de fora do prédio onde
estavam. O jovem olhou ao redor e percebeu Odyno, Indyra e Karl olhando
para eles de uma maneira estranha ao perceberem a mentira contada por
Ollaff.
— Temo que nossa amizade tenha começado de uma maneira um pouco
conturbada por mentiras, meu rapaz. Talvez fosse melhor nos falar a
verdade, para que possamos nos sentar à mesa como amigos. — disse
Odyno, tentando manter um tom amigável.
— Pois bem, senhor Odyno. — disse Rubyo, levando a mão direita ao
cabo da espada em seu ombro. — Sou Rubyo Hant, herdeiro do trono de
Minalkar e filho bastardo de Edmund VI. Aquele senhor lá fora é Ollaff
Morrenn, Mestre das Ciências de Minalkar e formado em Michello, assim
como a amiga de vocês...
— E eu sou Gary mesmo, meus senhores... não que isso tenha alguma
importância. — disse Gary, interrompendo seu amigo, buscando no colete
suas adagas.
— Mas é claro que tem importância, meu jovem! Aqui não ligamos
para sobrenomes ou títulos; o que nos importa é a amizade e a sinceridade,
pois nossa confiança, uns nos outros, é tudo o que temos! — disse Odyno,
andando lentamente na direção dos dois, com as mãos levantadas em sinal
de paz. — Rei Rubyo, permita-me te dar um abraço... não como seu súdito,
mas como seu parente. Sou Odyno Hant, seu primo, sabem os deuses como!
Odyno aproximou-se de Rubyo e deu um forte e caloroso abraço no
jovem, que ficou estático pela surpresa, conseguindo apenas soltar o cabo de
sua arma, na emoção de conhecer algum familiar vivo.
— Eu pensava que toda a família de minha mãe havia morrido... jamais
esperei conhecer um outro Hant! — desabafou Rubyo, finalmente
devolvendo o abraço.
— Eu também não esperava por essa linda surpresa... Selline é sempre
boa demais comigo! Meus pais se mudaram de Minalkar para Flarys quando
eu ainda era uma criança, pois meu pai foi contratado para ser um dos líderes
da recém-formada Guilda dos Caçadores de Laghuna, criada pelo Império
Marrom. Meu pai sempre dizia que quase tudo o que ele sabia sobre caça
aprendeu com o primo Eric. Era seu avô, não era? — perguntou Odyno.
— Sim, Eric Hant era o pai da minha mãe. Ele faleceu no cerco de
Minalkar e, segundo me foi contado, minha mãe morreu dias depois que
nasci, pela febre do parto.
Indyra caminhou na direção de Rubyo e também o abraçou. Nesse
momento, Tinno entrou pela porta, carregando o pernil do grifo totalmente
limpo, pronto para ser assado. Em silêncio, e percebendo que interrompeu
alguma coisa, entregou a carne para Pathar e ficou na ponta dos pés para dar
um beijo na esposa, que se inclinou para corresponder ao marido, afinal, a
elfa era quase três palmos mais alta do que ele.
Rubyo abriu a boca para dizer algo a Odyno, mas, neste momento,
Ollaff e Jessyann entraram no salão.
— Jessi, veja só que mundo pequeno! Esse jovem na verdade é meu
primo, Rubyo Hant! — disse Odyno, orgulhoso.
— Que bom te conhecer de verdade, meu jovem. — disse Jessyann,
com um enorme sorriso para Rubyo. — Quero aproveitar esse momento de
reencontros e apresentar a vocês Ollaff Morrenn, meu marido.
Capítulo 20: Reencontros
Gary cuspiu a água que estava bebendo de seu cantil ao ouvir o que
Jessyann dissera sobre Ollaff. Todos olharam surpresos para o casal, mas a
atenção se desviou para Gary, que molhara toda sua roupa com o engasgo da
água.
— Mestre Ollaff, o senhor é casado?! Pensei que fosse viúvo! —
perguntou Rubyo, sem esconder a surpresa.
— Pois é, meu senhor, eu também pensei, mas graças aos deuses, eu
estava errado! — disse Ollaff, de mãos dadas com Jessyann, sentando lado a
lado na enorme mesa do salão.
— Nos casamos logo após nossa formatura e decidimos seguir em
Michello para lecionarmos. — contou Jessyann, enquanto Ollaff retirava o
cachimbo da manga. — E lá vivemos por vários anos, até que houve a guerra
civil em Hannambar. Eles precisavam de magos para ajudar no equilíbrio
político e tentar apaziguar as coisas, e como eu era de lá, decidi voltar para
ajudar minha terra.
— Eu também sou de lá,— emendou Ollaff, preparando seu fumo. —
De uma pequena vila ao sul do continente, que foi escravizada por um
terrível feiticeiro chamado Fawarlokh. Ele utilizava magia obscura para
comandar o nosso povo, abusar das mulheres, e utilizava nossas crianças em
rituais macabros. Quando a atenção dele se voltou para minha mãe, meu pai
tentou defendê-la, mas foi morto por ele. Minha mãe se sujeitou aos prazeres
daquele maldito enquanto procurava alguma fraqueza nele, algo que me
ajudasse a fugir de lá. Com o tempo, ela conseguiu roubar três grandes
esmeraldas do tesouro pessoal dele, e me deu para que eu utilizasse em
minha fuga. O primeiro, troquei por uma passagem para Cehvambar,
enquanto o segundo custeou meus estudos em Michello...
— E o terceiro? — perguntou Gary, curioso.
Jessi levantou a corrente, mostrando o medalhão que carregava em seu
pescoço, ornado por uma bela esmeralda.
— Meus pais eram membros da corte de Couriénn e queriam que eu me
casasse com algum nobre, mas recusei a proposta de todos. Como minha
mãe temia que eu acabasse me casando com algum plebeu qualquer,
resolveu me mandar para Michello, pois preferia que eu dedicasse minha
vida à magia. Conheci Ollaff no navio, vindo para cá.
— E o que ela temia aconteceu, minha amada: você se casou mesmo
com um plebeu. — disse Ollaff, dando um beijo carinhoso na mão de
Jessyann, que a segurava como um tesouro.
Causava uma certa estranheza ver um homem de aparência tão mais
velha estar com uma mulher muito mais jovem e bela do que ele. Ollaff
aparentava ter por volta de setenta anos — o que não era nada mal para
alguém que já beirava os quatrocentos —, mas nem se comparava à beleza
que os feitiços de rejuvenescimento garantiam à Jessi. Apesar da aparência,
o olhar apaixonado que trocavam deixava de lado qualquer preconceito.
— Quando houve a necessidade de voltar para Hannambar por conta da
guerra, Ollaff foi contra, pois não queria mais pisar naquele lugar onde tanto
sofreu. Ele sabia que sua mãe já teria morrido, e vingança alguma contra
Fawarlokh traria de volta sua família. Mas, quanto a mim, estava morrendo
de saudades dos meus pais depois de vinte anos e não tinha notícias deles
desde o início da guerra.
— Eu realmente deveria ter ido com você, Jessi, me perdoe, mas,
naquele momento, julguei que seria mais útil utilizar a ciência e a magia para
construir um mundo melhor através dos alunos, do que enfrentar meu
passado numa guerra sem sentido. Quando se passaram mais de dois anos e
você não voltou, imaginei que tivesse morrido ou decidido ficar com sua
família. Procurei notícias suas com alguns conhecidos da universidade de
Kanonder, mas fui informado, através de corvos, que você havia sido morta,
coincidentemente, na minha antiga vila. Algumas semanas depois, Edmund
II me fez o convite para ser o mago de seu reino, e aceitei o desafio para
esquecer a dor de te perder.
— Não se culpe, meu amor. Eu tinha prometido voltar em um ano,
ainda que não conseguisse cumprir meu objetivo de ajudar nas negociações
de paz, mas fui impedida por uma força bem maior. Durante as minhas
investigações sobre a causa do conflito, descobri que Fawarlokh estava
plantando hostilidade entre os reis de Couriénn e Nettiel, que eram, antes de
reis, irmãos. Fawarlokh esperava que os exércitos se enfraquecessem com o
conflito entre eles, para que pudesse, de uma vez só, tomar o continente
inteiro com seu poder.
— Demônio maldito! Eu deveria ter ido com você! — lamentou Ollaff,
enquanto todos ao redor seguiam em silêncio para ouvir a história.
— Você realmente fez falta, Ollaff, mas fico feliz que não tenha ido. Eu
me juntei com outros feiticeiros e fomos até a fortaleza de Fawarlokh para
derrubá-lo, mas ele, de alguma forma, utilizou uma magia antiga e se
transformou num dragão negro. Não tivemos nenhuma chance contra ele.
Todos os meus companheiros foram mortos, e eu fui aprisionada em seu
calabouço.
— Por que ele não te matou? — perguntou Karl, mais rápido que Gary,
que pretendia fazer a mesma pergunta. — As magias dos dragões são
poderosas, afinal, eles são formados dos próprios elementos.
— De alguma maneira, esse colar me protegeu de todos os ataques que
ele usava contra mim. Essa esmeralda deve ter alguma relação com o poder
dele. Como ele não conseguia me matar, me aprisionou em sua fortaleza por
quase trezentos anos...
— E como você se libertou? — perguntou Gary, mais rápido dessa vez.
— Gostaria de dizer que foi por mérito próprio, mas não foi. Eu
sobrevivi esse tempo todo no cativeiro me alimentando de pequenos animais
perdidos na escuridão, de cogumelos que cresciam por ali, e bebendo da
minha pequena fonte mágica de água. Achei que nunca mais sairia dali, e me
envergonho em dizer que, por vezes, pensei em tirar minha própria vida.
Mas um dia, por volta de vinte anos atrás, ouvi sons de uma batalha
ocorrendo em algum lugar da fortaleza, seguido de um grito estrondoso de
dor vindo do dragão.
— Então... ele está morto? — perguntou Ollaff, visivelmente abalado
ao ouvir o relato de sua amada.
— Sim, meu amor. Ele foi morto por um jovem herói, Rodrick
Dellanor, um paladino que havia jurado derrotar o Dragão Negro e livrar o
continente dessa constante ameaça; e assim ele fez, me libertando de
Fawarlokh. Fui levada de volta para Couriénn, onde fiquei alguns anos me
recuperando de tanto tempo presa. Quão logo tive forças, retornei para
Michello, mas me contaram que você havia sido morto num cerco à capital
de Minalkar, alguns anos antes. — contou Jessi, deitando a cabeça no ombro
de Ollaff. — Meu coração ficou em pedaços pela ironia do tempo, pois, por
questão de poucos anos, eu não pude te reencontrar com vida. Vivendo meu
luto, resolvi seguir no colégio e viver o nosso sonho... por nós dois.
— Nós encontramos a Jessi perto da ponte de Flarys, durante uma de
nossas missões há alguns anos. Essa maluca estava caçando, sozinha, uma
horda de orcs. — disse Indyra, do outro lado da mesa, segurando firme a
mão de Odyno, como se temesse perdê-lo.
— Sim, eu estava em busca dos assassinos de Kallann. Ele foi
emboscado e morto por orcs enquanto voltava de Vertiga para Michello.
— Kallann está morto?! — o semblante de Ollaff entristeceu-se
imediatamente. — Ele foi um grande amigo e o maior reitor que Michello já
teve.
— Sim, meu amor, foi uma perda inestimável. Ele foi atacado enquanto
retornava com um enorme e raro cristal de fogo, que havia conseguido
comprar com um comerciante de Vertiga. Aquela é uma arma terrível para se
cair em mãos erradas.
— Não precisa mais se preocupar com isso, minha senhora. O cristal
caiu nas mãos certas e foi destruído. Eu vi com meus próprios olhos.
Rubyo terminou a frase e se levantou para que ninguém o visse
chorando. O jovem caminhou até a fogueira e serviu um pouco do ensopado
de coelho, torcendo para que o calor da fogueira secasse suas lágrimas.
— Que bom que aqueles malditos orcs não estão mais com o cristal. —
afirmou Jessyann. — Eu pedi a ajuda da Guilda para lutar contra aquela
horda, mas fui convencida por eles que aquilo seria suicídio. Para me
acalmar, resolvi aceitar o convite deles para jantar e fui ficando mais uma
noite, e outra mais... e lá se foram alguns anos junto à minha nova família.
Afastei-me do meu cargo em Michello e vivo como uma caçadora desde
então.
— No nosso caminho para cá, Odyno me contou que a maga do grupo
tinha o mesmo nome que o seu, e isso me deixou transtornado. A mínima
esperança de te encontrar viva depois de tantos anos quase surtou essa
cabeça velha. Vergonhosamente, quando entrei aqui e te vi, meu primeiro
instinto foi de fugir, pois nem sabia o que falar. — confessou Ollaff,
envergonhado.
— Ainda bem que as mulheres são mais corajosas que nós, ou o senhor
já estaria em Vastako de tanto correr! — disse Tinno, fazendo todos
gargalharem.
— Que dia maravilhoso, meus amigos! — disse Odyno, batendo palmas
de satisfação. — Estamos todos em família, vamos celebrar!
Pathar levantou-se e serviu o ensopado para todos, enquanto Tinno
colocou a carne do grifo para assar. Após a refeição, Ollaff pegou sua flauta
e começou a tocar as canções favoritas de Jessi, que chorava de emoção a
cada nota de seu marido. Tinno e Pathar, assim como Odyno e Indyra,
dançavam abraçados ao som da melodia do ancião, celebrando o amor que
pairava no ar naquele momento, regado a um bom vinho de Flarys. Gill
permanecia em silêncio, quase desaparecendo na escuridão, por sua pele
negra, mantendo-se de guarda na porta, enquanto Gary cochilava perto da
fogueira, com a barriga cheia.
Rubyo caminhou até a tapeçaria que existia no fundo do salão, para
admirar mais de perto o rei minalkariano ilustrado nela. Karl se aproximou
de Rubyo e perguntou:
— A espada que carrega em suas costas é a mesma dessa pintura, não
é?
— Sim, é a Sabedoria.
— Que nome horrível para uma espada, não é?! — perguntou o
grandalhão, criando mais rugas em sua cabeça deformada enquanto ria.
— Eu pensei nisso quando a recebi de presente, mas achei melhor não
comentar. — respondeu Rubyo, com um sorriso discreto, lembrando-se de
quando a recebera de Argus.
— Posso vê-la?
— Claro, mas não pode empunhá-la. Um orc tentou e perdeu alguns
dedos.
Rubyo sacou a espada e a girou no ar, apoiando a lâmina com a outra
mão para exibi-la ao guerreiro.
— É ainda mais linda do que eu imaginava! — disse Karl. — Sem
dúvidas, é a espada digna de um rei. Espero que saiba usar isso aí, garoto, e
quem sabe um dia possamos colocar nossas habilidades à prova.
— Seria um prazer, Karl, mas agora preciso descansar. Como vocês
dividem o turno de guarda?
— Turno? — gargalhou Karl. — Acho que você não ouviu o Odyno;
ele vai festejar essa noite e beber até amanhã! Durma em paz, meu jovem, eu
te acordo quando o pernil estiver pronto.
Rubyo deitou-se próximo a Gary e adormeceu. Apesar do enorme
cansaço, era difícil relaxar enquanto seus sonhos e suas lembranças se
misturavam. Ele estava novamente caindo daquele poço, com a espada e a
coroa em queda ao seu lado, enquanto a boca do poço era coberta por
labaredas. Abaixo dele, a escuridão do poço se transformou num céu azul e,
lá embaixo, enxergou o castelo de Minalkar. Rubyo estava em queda livre na
direção do castelo. Conforme se aproximava, viu que toda a capital estava
em chamas. Seu pai e seu tio lutavam lado a lado contra hordas de orcs para
defender o berço onde um bebê ruivo chorava. O jovem tentava alcançar a
coroa e a espada, mas elas estavam cada vez mais longes, enquanto o chão
cada vez mais perto. Rubyo tentou gritar, mas a voz não saía para conjurar
magias. O berço foi ficando mais próximo a cada segundo, até que,
finalmente, ele caiu em cima do bebê.... e despertou com a pancada.
O jovem estava todo suado, não sabendo se a transpiração era fruto do
pesadelo ou da proximidade da fogueira. Percebeu que já era tarde da noite,
pois a grande fogueira do caldeirão já estava no fim das brasas e todas as
tochas estavam acesas, iluminando o ambiente escuro daquele salão. Pouco
restara do pernil do grifo e, apesar de não o ter comido, Rubyo não sentia
fome. Todos ao redor estavam dormindo, então o jovem levantou-se
silenciosamente, tomou um pouco de vinho que restara em uma taça, e foi
até o lado de fora do prédio.
A noite estava fria e clara, mas a lua cheia já começava a diminuir de
tamanho, minguando-se mais a cada noite. Rubyo notou que o prédio
demolido, ao lado de onde estava, formava uma espécie de plataforma bem
alta entre os entulhos e escombros, onde poderia facilmente subir para
observar ao redor. Ao chegar no topo, através de uma rampa acidental, notou
que o breu envolvia a região. Minalkar era um deserto onde não se sentia a
presença de ninguém, não se ouvia vozes, e não se via nada além do que
estava iluminado pela luz de Selline. Nada, exceto uma luz fraca brilhando
ao norte, como um pequeno farol, vindo da penumbra de uma torre.
Rubyo tentou se lembrar se haviam apagado as tochas que acenderam
nos quartos do castelo, mas não conseguia ter certeza. Independentemente de
como elas estivessem acesas, a chama daquelas tochas eram um bastião de
luz lutando contra as trevas em que Minalkar estava mergulhada,
representando a esperança que aquela terra tanto precisava.
— Pelo jeito esquecemos as luzes acesas, meu senhor. — disse Ollaff,
surgindo na escuridão ao lado de Rubyo, que tentou não fingir surpresa.
— Te acordei, mestre?
— Não, meu senhor, eu não consegui dormir. Acho que meu velho
coração não consegue se acalmar desde que vi Jessyann novamente. Percebi
o senhor saindo do salão como uma sombra, e vim ver se estava bem.
— Estou bem, mestre, obrigado pela preocupação. Que bom que o
senhor está aqui, precisamos conversar.
— Pois não, meu Rei. — disse Ollaff, virando-se para Rubyo.
— O senhor está livre dos seus deveres comigo e com minha família. É
um homem livre de seu juramento, o qual cumpriu da maneira mais honrada
possível. Quero que saiba que não precisa mais se preocupar com meus
problemas e deve viver sua vida com sua esposa, como bem desejar. — disse
Rubyo, colocando a mão sobre o ombro de seu mestre.
— Obrigado, meu senhor, mas sou um homem livre do meu juramento
há anos. Eu jurei ensinar e proteger a casa de Edmund, e o senhor é um
Hant, como você mesmo já me disse centenas de vezes. Minha promessa foi
cumprida com a morte de seu pai.
— Então por que o senhor ficou e fez tudo o que fez por mim? Por que
ainda está aqui? — perguntou Rubyo, enquanto Ollaff acendia seu
cachimbo.
— O senhor já ouviu falar que os pais, quando são frustrados em seus
desejos na vida, projetam nos filhos os seus sonhos? Pois bem, saiba que
você é um filho para mim.
— E o senhor é como um pai para mim, mestre.
— Eu sinto isso, meu jovem, e me alegra a reciprocidade. E eu,
frustrado com a vingança que nunca tive contra o algoz da minha família,
projetei em você o meu desejo de fazer o que não fiz. Eu não tive coragem
de voltar para Hannambar e lutar contra Fawarlokh, mas sabia que o senhor,
um dia, teria a força e a coragem de enfrentar aquele que acabou com a vida
da sua família. E eu, graças aos Três, estava certo. Você não sabe o orgulho
que tenho do senhor!
— E você não sabe a gratidão que tenho por ter me trazido até aqui,
mestre. Se não fosse pelo senhor, por meu tio e pela Rose, eu nem vivo
estaria, quanto mais teria tido a chance de vencer Inak. Eu só queria ter tido
mais forças para segurar minha ira e não ter matado aquele maldito... talvez
meu tio...
— Não viva de conjecturas, meu senhor. Inak provavelmente não
deixaria que vocês saíssem de lá com vida depois de ter sido humilhado, e
seu tio sempre soube disso. Essa sempre foi a parte mais arriscada do nosso
plano, mas não tínhamos outra opção. Acredite, meu jovem... as coisas
sempre acontecem como têm que acontecer.
— Se as coisas são assim, de que servem nossas escolhas, mestre? —
perguntou Rubyo, se debruçando em uma espécie de parapeito formado
pelas ruínas, enquanto admirava a escuridão do horizonte.
— Pense na loucura que é a vida, meu Rei: se não tivéssemos perdido o
Bokko na ponte, talvez teríamos acampado na floresta e não teríamos
encontrado aquele orc de mancha vermelha. Se tivéssemos ido diretamente
para os sarcófagos, ao invés de visitar os quartos, talvez teríamos saído das
catacumbas antes que os orcs chegassem. Se não tivéssemos atrasado nossa
partida de manhã, para comer aquelas trutas, eu jamais teria reencontrado a
minha Jessi. As coisas acontecem como têm que acontecer, pois se
tivéssemos dado um único passo diferente em nossa jornada, não estaríamos
conversando aqui, agora.
— Achei que Emmanajj tivesse nos dado o livre arbítrio... —
resmungou Rubyo, ponderando as palavras de Ollaff.
— A vida é como uma enorme canção que todos os seres vivos tocam
juntos, cada um o seu instrumento. Às vezes, acreditamos que estamos
fazendo um solo, mas nossa vida nada mais é que notas perdidas no meio
dessa melodia; e não importa o arpejo que esteja fazendo, a canção segue
tocando conforme o maestro ordena.
Rubyo ficou confuso com as palavras de seu mestre e julgou que,
talvez, ainda não tivesse maturidade para entendê-las. Por isso, ao invés de
prolongar aquela lição, preferiu apenas abraçar seu amigo.
— Muito obrigado por tudo, mestre. Espero que seja muito feliz em sua
nova vida.
— Eu vou te coroar, meu jovem, e só então Jessi e eu resolveremos o
que fazer. Amanhã vamos rumo ao seu dia de glória... e que seja longa a vida
do nosso Rei!
Capítulo 21: No Mesmo Barco
Os dois amigos retornaram ao salão logo após o nascer do sol, que
assistiram do alto do prédio em ruínas. Todos seguiam dormindo, exceto
Jessyann, que estava ao lado das brasas, fazendo a fogueira se reavivar com
um pouco de lenha.
— Um segundo que fecho meus olhos, e você some de novo, meu
amor? — perguntou Jessyann, em tom de brincadeira.
Ollaff abriu um sorriso bobo e sentou-se perto de sua amada. Gill
acordou logo em seguida e, com chutes, despertou seus amigos. Somente
naquele momento, Rubyo reparou que em momento nenhum havia ouvido a
voz do elfo, mas achou indelicado perguntar o porquê ele não falava. Em
poucos minutos — e com um padrão quase militar —, todo o grupo já estava
em pé e com suas coisas organizadas, prontos para a viagem de volta.
Gary seguia massageando um pouco a perna perto da fogueira antes de
recolocar sua bota. Rubyo se aproximou do amigo para ajudá-lo e percebeu
o enorme hematoma que se formava desde o joelho até o tornozelo de Gary,
com algumas lesões bolhosas e avermelhadas de dor, mas, pelo menos, não
sentiam o cheiro podre de uma infecção, o que já era um ótimo sinal. O
jovem ladino se levantou com a ajuda do amigo, mas se recusou a retornar à
maca, dizendo que já se sentia bem para andar. Jessi deu um frasco de poção
para Gary, que tomou num gole só, sem se importar com o gosto amargo.
Tinno pegou a cabeça do grifo que deixaram secando próximo à
entrada, prendeu num gancho e pendurou na ponta de seu martelo de guerra,
para carregar em seu ombro. Todos o seguiram, caminhando lentamente e
em silêncio, tanto para acompanhar a marcha de Gary, quanto pela ressaca
da noite anterior. Rumaram para leste, com o sol nascente resplandecendo
em seus rostos, enquanto margeavam a floresta de Minalkar. Algumas horas
de caminhada adiante, chegaram a uma bifurcação, que separava os
caminhos entre a estrada real, que levava a Vertiga, e as trilhas comerciais,
que rumavam para o norte do reino.
— Rubyo, meu parente, temo em dizer que nos separaremos aqui. —
disse Odyno, com sincero pesar em sua voz.
— Não pode ir até Nenáreah conosco? Serei coroado nos próximos
dias, e ficaria muito feliz em ter vocês junto comigo.
— Infelizmente, não podemos. Precisamos entregar a cabeça desse
grifo aos nossos contratantes para garantir a recompensa e manter nossa
reputação ilibada. Mas sinto que, algum dia... alguma caçada fará nossos
caminhos se cruzarem outra vez. — respondeu o líder dos caçadores, com
um sorriso doce.
— Odyno, eu... — disse Jessyann.
— Não precisa me dizer nada, Jessi. Eu nunca te vi tão feliz nesse
tempo todo em que estivemos juntos, e não ousaria pedir para que
continuasse conosco. Nós, caçadores, amamos o que fazemos, pois temos
prazer em sempre estar em busca de algo. E pelo seu sorriso, você já
encontrou tudo o que queria.
Odyno deu um longo abraço em Jessi, seguido pelos demais membros
da guilda. Indyra estava em lágrimas, mas desejou toda a sorte de alegrias
para sua amiga. Em seguida, os caçadores também se despediram dos
membros do grupo de Rubyo, tomando cuidado para não machucar Gary
com o abraço. Rubyo foi o último a ser abraçado por Odyno, que colou sua
testa com a do jovem, para olhar no fundo dos seus olhos e dizer:
— Rubyo, se precisar de mim algum dia, envie um corvo para a sede da
Guilda dos Caçadores de Flarys, escrito apenas o sobrenome da nossa
família. Não importa onde eu esteja, prometo que em três dias eu te
encontrarei em Abnerdy. E se eu não chegar, é porque estou morto. Saiba
que, enquanto eu viver, você nunca estará sozinho.
O jovem rei abraçou forte seu primo, agradecendo pelas palavras de
Odyno. Guiando seu grupo, Rubyo tomou o caminho que seguia para o sul,
floresta adentro. Após mais algumas horas lentas de caminhada,
principalmente pela dificuldade de Gary andar na mata, chegaram aos
portões de Vertiga, quase no fim da tarde. Atravessaram a cidade o mais
rápido que podiam, na direção do porto da cidade, em busca de algum barco
que zarpasse ainda naquele dia, rumo ao sul.
Ollaff facilmente descobriu uma embarcação que pudesse levá-los e
pagou com o resto das moedas de ouro que tinha em sua bolsa. Rubyo,
envergonhado, jurou que, um dia, pagaria de volta aquele empréstimo. Os
quatro subiram no grande navio mercante, e procuraram algum lugar para se
sentar entre as caixas fortemente amarradas no convés.
Rubyo ficou admirado ao ver os marinheiros tão habilmente içando
velas, puxando cordas de maneira coordenada e fazendo nós com uma
facilidade ímpar, tanto que imaginou que poderia ter sido um marinheiro tão
bom quanto aqueles homens. Porém, seu estômago não compartilhava dessa
opinião, fazendo-o vomitar de enjoo pelo balanço do barco antes mesmo de
partirem. Gary deitou-se no chão, esticou seu corpo, e jurou só se levantar
quando chegassem em Nenáreah. Ollaff e Jessyann foram até a proa e
aguardaram ali a partida da embarcação, enquanto admiravam as cores do
pôr do sol.
Depois de alguns minutos, já estavam em movimento, rumo ao sul. A
embarcação, apesar de seu tamanho, era bem rápida — o que era bom para
garantir uma viagem breve, mas, por outro lado, sua velocidade só
aumentava as náuseas de Rubyo. Após quase uma hora rio abaixo, os
marinheiros abaixaram as velas para aproveitar a forte correnteza que se
formava à frente, na junção dos dois rios. Ollaff chamou Rubyo e Gary para
a proa, para que pudessem ver a bela junção das águas dos rios Parny e
Miriba formando o Rio Dourado.
— Obrigado, mestre, mas eu já vi coisas demais desse mundo em nossa
viagem... — respondeu Gary, deitado, massageando a perna.
Rubyo se aproximou do casal bem a tempo de ver as cristalinas águas
azuis do Rio Miriba se encontrarem com as águas negras do Rio Parny,
criando um espetáculo natural, onde uma linha estreita separava os rios,
correndo lado a lado por vários passos élficos, até enfim se juntarem para
formar o Rio Dourado.
— Rubyo, atente-se bem para o que a natureza nos ensina. A luz e as
trevas parecem que não se unem, assim como as águas desses rios, mas se
você deixar ambos seguirem o mesmo rumo, com a mesma força em sua
vida, uma hora você já estará com ambos misturados para sempre em seu
coração, e nunca mais conseguirá separá-los novamente.
O jovem manteve o silêncio, admirando o lindo caminho iluminado
pelas cores alaranjadas do pôr do sol, enquanto fazia um enorme esforço
para não vomitar mais. Passadas algumas horas rio abaixo, a escuridão cedeu
lugar para um enorme clarão adiante, onde podia-se admirar, à direita, a
gigantesca silhueta do farol de Alferius, com a estátua de Ottonni segurando
sua tocha mágica, enquanto iluminava a noite como uma segunda lua.
Gary, que seguia cochilando no chão da proa, abriu os olhos no exato
momento em que passavam ao lado do farol e tomou um enorme susto ao
ver aquele colosso de pedra olhando para ele. Era uma vista magnífica e, ao
mesmo tempo, amedrontadora. Rubyo reconheceu que a vista do farol, pela
perspectiva do rio, era muito mais imponente do que a vista de suas costas,
tal qual contemplaram das colinas de Kedir, dias antes.
Chegaram ao porto de Nenáreah junto com os primeiros raios de sol da
manhã. Rubyo ajudou Gary a descer da embarcação e rumaram lentamente
para a vila onde moravam. Ollaff recomendou que fossem por fora,
margeando as muralhas, e prometeu encontrar com Rubyo em sua casa na
manhã seguinte. Gary aceitou o convite de Rubyo para ficar em sua casa,
afinal, agora tinha uma cama sobrando. Os dois se despediram dos magos,
que seguiram para a cidade, e rumaram para a vila pantanosa.
Rubyo seguia apoiando Gary como se fosse sua muleta, enquanto
cruzavam a vila cumprimentando os vizinhos que, curiosos, assistiam a cena
dos dois jovens sujos, emagrecidos, descabelados e com uma aparência
cansada como nunca se viu. Sem tentar dar explicações, Rubyo ignorou os
olhares curiosos e chegou em sua casa. O jovem estranhou ao perceber que a
porta estava entreaberta e, por garantia, deixou Gary sentado no batente e
sacou a espada. Um barulho veio da cozinha e, em poucos passos largos,
Rubyo chegou silenciosamente girando a espada no ar.
— Rubyo, calma, sou eu! — disse Rosalind, com as mãos levantadas.
— Senhora Rose, me desculpe! — disse Rubyo, derrubando a espada
no chão e abraçando a roliça senhora.
— Tudo bem, você também me assustou, meu jovem! — respondeu
Rose, claramente surpresa. — Eu não esperava ver vocês de novo por aqui.
Tenho vindo todos os dias à sua casa para cuidar das coisas e ver se vocês
regressavam, mas já estava perdendo as esperanças. Onde está seu tio?
Rubyo encerrou o abraço, cabisbaixo, virou-se e pegou a espada no
chão, guardando-a na bainha.
— Ele se sacrificou por mim em Hothum. Matamos Inak e mais uma
centena de orcs, mas isso custou a vida dele. — respondeu Rubyo, com os
olhos marejados.
— Hothum? Mas o plano não era buscar o anel real em Mundy?! Como
foi que vocês... — Rosalind interrompeu o discurso ao perceber a joia no
dedo de Rubyo. — Pelas tetas de Selline, você realmente conseguiu!
— Sim, senhora Rose, conseguimos! Não só o anel, mas também a
coroa. Ela estava com Inak esse tempo todo. Deixei-a com Ollaff, que ficou
de organizar minha coroação amanhã, num evento secreto só para
minalkarianos. A rainha não pode saber de nosso êxito!
Rosalind ficou visivelmente surpresa e, de alguma maneira, triste pela
notícia.
— Que notícia excelente, meu senhor! Preciso, então, encontrar Ollaff
na cidade para ajudá-lo! Que bom que te ver de novo e com vida, meu
jovem, mas preciso mesmo ir... Nos vemos em breve, Rubyo, e quero que
saiba que eu sinto muito... muito mesmo.
Rosalind deu um beijo na bochecha de Rubyo e saiu apressada da casa,
quase pulando por cima de Gary, que seguia sentado na porta, com a perna
esticada. Rubyo achou estranho, mas, com certeza, era muita novidade para
assimilar.
— Essa sua tia tá esquisita, hein Rubyo? — disse Gary, levantando-se
apoiado no batente.
— Acho que ela não reagiu bem à notícia da morte do meu tio. Ela o
viu nascer, era parte da família. — justificou Rubyo.
Os dois jovens comeram alguns peixes secos que defumavam
pendurados sobre a lareira da sala e resolveram acender a lenha para relaxar.
Rubyo acendeu o fogo e ficou vendo a madeira queimar, assim como fazia o
seu tio, deixando seu coração transbordar de saudade e escorrer lágrimas.
Gary seguia sentado no banco do lado, pensando em algo para dizer e
consolar o amigo, mas nada de bom vinha à sua mente, então preferiu
manter o silêncio. Ficaram ali por algumas horas, vendo a madeira se
transformar em brasas e depois em cinzas, lembrando da jornada intensa que
tiveram nos últimos dias.
— E então, Gary, o que você achou do mundo lá fora? Valeu a pena ter
ido? — perguntou Rubyo, quebrando o silêncio ao parar de chorar.
— Apesar da perda do Bokko, e do fato de que nunca mais vou andar
como antes, valeu muito a pena, sim. — disse Gary, sem hesitar.
— Sério? — perguntou Rubyo, surpreso, olhando para a perna
quebrada. — Já está pronto para outra, então?
— De jeito nenhum! Para mim, essa jornada toda serviu apenas para me
fazer valorizar o meu lar! Eu não o porquê minha mãe nunca havia saído
desse lugar. Ela era uma cozinheira tão boa, e eu sempre soube que ela
conseguiria emprego em qualquer castelo, mas acho que agora eu a
entendo... Esse era o lar dela, e é o meu também.
— Achou Minalkar tão ruim assim?
— Claro que não, é um lugar lindo e bem mais bonito que essa
espelunca onde a gente mora. Mas essa é a minha espelunca, é o meu lar... e
quero viver aqui. A gente quase morreu, Rubyo, aquele seu avô por pouco...
deixa pra lá, não quero nem pensar. Quero valorizar mais a minha vida.
Amanhã vou buscar minha irmã e pretendo começar, em breve, um negócio
honesto. É claro, se você me permitir.
— Eu? Permitir? Eu não tenho que te deixar fazer nada, Gary.
— Tem sim, pois estou oficialmente pedindo demissão do meu cargo de
Mestre da Moeda. Além disso, preciso de um empréstimo alto para iniciar
meu negócio.
— Eu, com pesar, aceito sua demissão, meu amigo. — disse Rubyo,
rindo. — Mas você sabe que, mesmo coroado, eu não tenho tesouros nem
para mim, quanto menos para te emprestar.
— Na verdade, você tem sim. — disse Gary, retirando de seu bolso o
enorme medalhão de ouro e rubi que Argus pegara do corpo de Edmund III.
— Pelas tetas de Selline, eu nem me lembrava disso!
— Depois de tudo o que passamos, imaginei que você nem se lembraria
do colar, mas nem por isso ele deixa de ser seu. É o único tesouro do seu
reino, meu amigo.
— Não, Gary, não é meu. Lembra-se das leis de Robbery? Eu dei o
golpe final em Edmund, e peguei o primeiro tesouro. — disse Rubyo,
apontando para o anel em sua mão direita. — Os demais tesouros são
divididos de maneira igual entre os vitoriosos.
— Mas não é justo, seu tio e o mestre Ollaff não ficaram com nada...
— Tenho certeza de que ouro nenhum compra a alegria que Ollaff está
sentindo, com o tesouro que ele trouxe de volta nessa viagem. Já meu tio...
— disse Rubyo, esforçando-se para não chorar de novo. — Meu tio não vai
precisar mais de ouro algum. O medalhão é seu. Ele te deu, e espero que faça
bom proveito dele, meu amigo.
Gary agradeceu e colocou de volta o medalhão no seu bolso mais
seguro. Apesar de ainda estar no meio da tarde, ele e Rubyo decidiram que
deveriam dormir para tentar colocar o sono em dia e descansar de forma
decente depois de tanto esforço. Rubyo subiu primeiro para arrumar a cama
que outrora era de seu tio, enquanto Gary subia lentamente as escadas. Em
seguida, Rubyo tirou sua armadura e colocou-a no chão ao lado da cama,
junto à sua espada. Deitando-se em sua própria cama, certificou-se que o
punhal estava embaixo do travesseiro, e ficou olhando para o teto de madeira
mofada.
Apesar do cansaço extremo que seu corpo sentia, o sono simplesmente
não vinha, e ele só conseguia pensar... lembrar... temer; a ansiedade e a
preocupação dominavam seu corpo a ponto de quase fazê-lo tremer. A todo
momento se lembrava de Argus orientando que ele deixasse Alferius após
ser coroado, mas para onde ir? Gary, mesmo cansado e com dor, percebeu a
agitação de seu amigo na outra cama, e perguntou:
— Está nervoso para amanhã, Rubyo?
— Muito! — respondeu o jovem de cabelos ruivos, instantaneamente.
— Enquanto aquela coroa não estiver na minha cabeça, o meu título de Rei é
apenas uma promessa. E depois de coroado, a verdade é que eu não tenho
nem ideia do que fazer pelo meu povo.
— Você já pensou que, talvez, eles não esperam de fato que você
resolva os problemas deles? perguntou Gary, mais secamente do que
gostaria.
Rubyo ia responder algo, mas hesitou e preferiu entender melhor o que
Gary quis dizer.
— Pense bem, Rubyo. O povo de Minalkar já está fora de casa há quase
dezessete anos. Alguns poucos trabalham no castelo, outros são
comerciantes, construtores, camponeses... existem sim, vários na miséria,
mas são tão pobres quanto você. Não acho que, para eles, você seja uma
“resolução dos problemas”, mas uma esperança de dias melhores que
possam vir, afinal, se um garoto pobre como você pode virar um rei, eles
também podem sonhar com uma vida melhor.
— Sim, Gary, eu concordo. Mas esses dias melhores só vão realmente
acontecer se eu conseguir levá-los de volta para casa. Mesmo os que
conseguiram prosperar aqui, como o senhor Bower, não tem prazer nenhum
em ver seus filhos terem seus braços marcados com ferro quente ao nascer.
— E como vai fazer isso? — perguntou Gary.
— Não sei. Os orcs estão, sim, enfraquecidos pelo duro golpe que
sofreram do meu tio, mas se nosso povo voltar hoje para Minalkar, em
poucos meses a fúria de Rurkuk recairá sobre nós. Não estamos prontos para
nos defender.
— Não estão prontos hoje, mas você pode liderar esses preparativos! —
disse Gary, empolgado. — Pense comigo, Rubyo! Os minalkarianos tem
vários filhos com mais ou menos a nossa idade, e a grande maioria deles já
pode pegar uma espada para lutar. Fora que você tem seu primo, que é líder
de uma guilda cheia de guerreiros experientes! Ainda tem aquele druida
maluco que ficou seu amigo... aposto que ele convenceria grande parte dos
animais de Minalkar a lutar em seu nome.
Gary reparou que Rubyo parecia considerar sua ideia, e continuou:
— Sabe por que eu fui com você nessa missão suicida? Porque não
aguentava mais essa vida tediosa e precisava conhecer mais do que isso que
eu vivia aqui! Assim como eu, tem centenas de jovens aqui em Alferius que
estão apenas esperando um chamado às armas, para tentar descobrir algum
significado em sua vida de pobreza. Tenho certeza de que eles topariam
entrar numa guerra, com sua promessa de terras e riquezas.
Rubyo sentou-se na cama boquiaberto, como se tivesse ouvido a ideia
mais genial do mundo.
— E eu poderia ensiná-los a Eddor. Em poucos meses, estaríamos
prontos para retomar Minalkar e defendê-la daqueles orcs magricelos, afinal,
eles já não são mais a potência militar que eram na época que tomaram o
reino do meu pai.
Gary também se sentou na cama, admirado por sua própria inteligência.
— Exatamente, Rubyo! E você agora tem dois magos poderosos para te
ajudar! A nossa vitória é certa!
— Nossa? — ironizou Rubyo. — Achei que tinha se demitido do seu
cargo de Mestre da Moeda de Minalkar.
— E me demiti mesmo, mas aceito o cargo de Conselheiro Militar. Eu
preciso mesmo de bastante dinheiro para abrir meu negócio. Agora, vamos
dar um jeito de dormir, Rubyo, pois o primeiro passo do nosso plano de
retomar Minalkar começa com o dia de glória da sua coroação... e afinal, o
que poderia dar errado amanhã?
Capítulo 22: A Coroa
Rubyo acordou com alguém batendo pesadamente à porta. Olhou ao redor e
viu que já havia amanhecido, e ficou surpreso com o tanto que dormira.
Gary seguia dormindo na cama ao lado, que era de Argus, não demonstrando
nenhum incômodo com o barulho. Rubyo pegou sua espada e desceu as
escadas, ainda descalço, em direção à porta da frente. Ao abri-la, encontrou
Ollaff e Jessyann.
— Bom dia, meu Jovem Rei! Achei que não escutaria as batidas.
Espero que tenha tido um sono revigorante. — disse Ollaff, com um sorriso
animado.
— Bom dia, mestre! Por favor, entrem, está frio! — respondeu Rubyo,
escondendo a espada atrás da porta.
O casal entrou na casa, trazendo com eles uma pequena cesta com um
cheiro maravilhoso de pão fresco. Quão logo entraram, Gary despontou na
escada, quase enfeitiçado pelo perfume da massa assada.
— Eu trouxe para vocês, Rubyo. Duvido que tenham feito uma refeição
decente ontem. — disse Jessyann, docemente, entregando a cesta para o
anfitrião.
— Obrigado, senhora Jessi, estamos mesmo muito famintos! — gritou
Gary, descendo as escadas o mais rápido que sua perna lhe permitia.
Os quatro se sentaram à mesa. Rubyo levantou-se e pegou um pedaço
de queijo que tinha na dispensa e serviu o horrível vinho de Argus para seus
convidados. Ollaff propôs um brinde em memória de Argus e de Bokko, e
todos bateram suas canecas de madeira ao centro da mesa, bebendo em
silêncio. Sem mais cerimônias, Rubyo e Gary atacaram os pães que estavam
na cesta. Enquanto comiam, Ollaff disse:
— Meu senhor, venho com boas notícias. Ontem, quando chegamos,
fomos até a taverna Sol Vermelho e contei para o barão sobre as nossas
novidades. Ele ficou extremamente feliz com a notícia, assim como todos os
minalkarianos que estavam no local, além de surpresos por suas conquistas.
Todos entenderam a urgência da questão e a necessidade de manter o
segredo de Lucrécia, então ficaram de repassar para suas famílias e amigos
minalkarianos os acontecimentos, sem grandes alardes, para não chamar a
atenção.
— Mas não é arriscado fazermos a cerimônia na taverna, mestre? Por
mais que eu confie em nossos irmãos, celebrarmos bem no meio da cidade é
loucura... — disse Rubyo, com a boca cheia.
— Sim, meu Rei, e é por isso que decidimos realizar a cerimônia na
fazenda Iktar, mantendo os olhares curiosos longe do nosso povo. Hoje
encontrei alguns minalkarianos no caminho até sua casa, e nunca os vi tão
animados e felizes, desde que nos mudamos para cá.
Rubyo ficou com seus olhos marejados de emoção, pois temia que a
notícia de sua coroação não fosse bem recebida pelo povo. Gary aproveitou
a deixa e, orgulhoso, começou a contar sobre o plano para a retomada de
Minalkar, que desenvolveram na noite anterior. Ao ouvi-lo, Jessyann olhou
para Ollaff de maneira estranha. O ancião pareceu dividido sobre o que
responder diante da empolgação dos jovens.
— Sinceramente, me parece um excelente plano, jovem Bortolly, e não
consigo pensar em um melhor nesse momento! Temo apenas que, talvez, não
poderemos ajudá-los dessa vez... Jessi e eu ainda estamos decidindo o que
faremos daqui para frente, mas, sem dúvidas, uma guerra não está em nossos
planos.
Gary pareceu um pouco desanimado e frustrado com a resposta de
Ollaff, mas Rubyo seguiu confiante.
— Eu entendo, mestre, e sei que não poderia lhe pedir mais nada, além
de tudo o que já fez por mim. Gostaria apenas, se possível, que ajudassem a
me encontrar com a liderança de Michello. Após minha coroação, vou direto
para lá, para discutir a participação deles na retomada de Minalkar. Sei que
eles prezam pela imparcialidade política, mas como também estão sendo
alvos dos orcs, creio que uma aliança seja algo produtivo.
Ollaff ficou surpreso com o pedido, mas muito orgulhoso da perspicácia
e sabedoria que Rubyo vinha demonstrando.
— Com certeza, meu senhor, isso será providenciado! Mas deixemos
para amanhã as preocupações de amanhã, pois hoje é um dia de festa! Sua
coroação será no fim da tarde, não esqueça de levar o anel e a espada... e
vista a melhor roupa que puder!
Rubyo concordou, apesar de sentir vergonha em confessar que aquelas
vestes que usava já era sua melhor roupa.
— Espero que a senhora Rose consiga uma folga no castelo para ir à
coroação, ela saiu apressada daqui ontem. Você também a achou um pouco
estranha, mestre?
— Rosalind? Não a vi ontem, meu senhor. Talvez tenhamos nos
desencontrado, mas se você já contou a ela sobre nosso sucesso, ela com
certeza dará um jeito de estar na coroação. Agora, peço que me perdoe, mas
precisamos ir, temos muito o que preparar para sua cerimônia!
Ollaff e Jessyann se despediram, prometendo encontrá-los no fim da
tarde. Gary aproveitou a deixa e foi embora, agradecendo ao amigo pela
hospedagem e pela oportunidade daquela viagem. Ao fechar a porta, Rubyo
sentiu uma solidão enorme invadir seu corpo. Seria a primeira vez que
estaria sozinho em casa, sem a esperança de que seu tio chegaria a qualquer
momento. Para não ser envolto pela tristeza, começou a arrumar a cozinha
com um sentimento estranho de que, se deixasse bagunçado, Argus se
zangaria pela desorganização. Rubyo assobiava alguma de suas canções
favoritas para tentar afastar aquele incômodo silêncio que pairava no ar,
lamentando por não ter mais nenhum instrumento musical em casa.
Com a cozinha arrumada, subiu novamente as escadas, abriu a janela do
quarto e arrumou as camas. Rubyo percebeu que, no canto do quarto, estava
o baú que seu tio sempre deixava fechado, o qual era proibido de mexer.
Porém, agora não haveria mais castigo por sua desobediência, então o jovem
pegou o punhal debaixo de seu travesseiro e passou a cutucar a fechadura do
baú, assim como Gary ensinara-lhe, até ouvir um clique da abertura do
mecanismo.
Ao abrir o baú, percebeu que tinha pouca coisa lá. Encontrou apenas
um saco de estopa com algumas roupas dentro e um livro com capa de
couro, idêntico ao diário de seu pai. Rubyo tirou tudo do baú e colocou em
cima da cama, abrindo o livro com pressa, para se surpreender com o fato de
que, assim como seu pai, Argus também mantinha um diário. O jovem nunca
havia visto seu tio escrevendo nele, mas, realmente, as páginas estavam
quase completas, contando vários acontecimentos, desde os tempos em que
Argus se tornara general, até a véspera da saída deles em busca do anel de
Edmund.
Deitando-se na cama, Rubyo passou a ler desesperadamente o diário de
seu tio, aprendendo um pouco mais sobre ele, sobre seu pai e sobre a história
de sua família. Era reconfortante e, ao mesmo tempo, doloroso, perceber a
cada página que seu tio era ainda mais honrado e nobre do que ele já sabia;
fora o carinho e o amor com que seu tio o retratava nas páginas,
evidenciando o quanto Rubyo era amado por ele.
Em uma das passagens, datada de quase um ano antes, Argus detalhava
o plano que fizera com Ollaff e Rose sobre o anel e, curiosamente, Rosalind
se recusava a fazer uma túnica real para Rubyo utilizar, se um dia fosse
coroado. Argus suspeitava que Rosalind, com seu perfeccionismo, se
preocupasse em fazer a roupa antes, sem previsão de quando usaria e, por
isso, poderia não servir no jovem rei, que crescia rapidamente. Porém, Argus
parecia confiante com o plano, então contratou um alfaiate com suas poucas
economias, encomendando uma túnica que pudesse ser ajustada a qualquer
tamanho, através de um sistema de cordas em suas bordas. Rubyo lamentou
que jamais veria aquela roupa... ou não. Ao olhar para o saco de estopa sobre
a cama, seu coração disparou.
Rubyo retirou a túnica do pacote e, sem dúvidas, era a roupa mais linda
que já vira em toda sua vida. A túnica era idêntica à que seu pai utilizava nas
pinturas que viu em Minalkar, toda azul marinho, com um enorme sol
vermelho estampado na frente e nas costas, com uma capa branca que descia
dos ombros até os joelhos, presa por uma corrente dourada cruzando o peito
e por um pingente de dragão, idêntico ao dragão de madeira de Edmund I.
O jovem rei não teve coragem de vestir aquela roupa nas péssimas
condições de higiene em que estava, então desceu para a parte de trás da
cozinha, para se lavar no enorme barril em que captavam água de chuva. Ao
tirar as roupas que vestia, Rubyo jogou fora o que restara de sua armadura de
couro e madeira, toda destruída pela luta com Inak e pela queda no poço.
Despido, o jovem tocou com cuidado na cicatriz em seu ombro e na
queimadura elétrica em seu peito, mas não doíam mais. Após se lavar na
água fria, o jovem pegou uma tesoura na cozinha e, utilizando a água do
barril como reflexo, acertou o corte de seu cabelo. Uma barba rala já crescia
em seu rosto, principalmente no bigode, mas preferiu tirá-la, usando a
lâmina de seu punhal.
Rubyo andava de um lado para o outro, esperando as horas passarem,
mas parecia que o sol não queria se deitar naquela tarde. Cansado de esperar,
Rubyo resolveu adiantar sua ida para a cerimônia e aguardar lá mesmo o
início. Vestiu sua túnica, ajustou seu tamanho com o mecanismo de cordas,
pendurou a capa, pegou um velho cinto de seu tio e o fechou na cintura. Não
tinha nada de bom para os pés, então teve que se contentar com um velho
sapato de couro que tinha no fundo de seu baú, que apesar de apertado, era o
que estava menos surrado. Guardou os ovos de fênix e os diários de volta no
baú, trancando-o novamente. Rubyo pendurou a Sabedoria em sua cintura,
penteou os cabelos para trás num rabo de cavalo e seguiu caminhando sem
pressa, para não chegar tão cedo na festa.
O jovem rumou sentido sudoeste, pela estrada lamacenta que cortava
sua vila, em direção contrária à cidade, tomando todo o cuidado do mundo
para não sujar suas vestes. Ao ver a condição da estrada, Rubyo preocupou-
se em como Gary seguiria por aquele caminho acidentado. Ao longo do
percurso, Rubyo encontrou dezenas de minalkarianos que foram
acompanhando o jovem, perguntando se os boatos sobre seus feitos eram
verdade. Era uma bela novidade ver todo mundo tão amistoso assim com ele,
e era uma sensação maravilhosa. Rubyo não se lembrava de ter sido tão feliz
na vida.
Chegando na fazenda, no início do pôr do sol, uma multidão já estava
formada, ficando ainda maior ao se unir com o grupo que acompanhou
Rubyo pelo caminho. Mecanicamente, todos abriam caminho para a
passagem do jovem, realizando grande reverência. Rubyo percebeu, com
surpresa, que mesmo aqueles jovens minalkarianos que tanto zombavam
dele, olhavam-no com orgulho e esperança. O caminho se abriu até o centro
do evento, bem em frente à antiga sede da fazenda, onde um pequeno
palanque de madeira havia sido construído de maneira improvisada. Uma
cadeira de madeira bem trabalhada estava sobre o palanque, com alguns
ramos de flores aos pés, e um sol vermelho pintado em suas costas.
Ollaff estava em pé ao lado dessa cadeira, vestindo um robe azul escuro
com vários sóis vermelhos estampados. Um chapéu branco e pontudo cobria
sua careca, indicando a formalidade daquele evento. Rubyo notou que Ollaff
já estava com um novo cajado, idêntico ao que fora destruído nas
catacumbas. Perto dele estava Jessyann, ainda mais linda, com seus longos
cabelos negros presos numa trança encaracolada repousando em seu ombro,
usando um vestido púrpura que quase brilhava, assim como o cristal de sua
tiara.
No pé da escada do palanque, o casal Bianco estava visivelmente
emocionado, puxando calorosos aplausos para Rubyo, que seguiu
caminhando lentamente em direção ao trono. Ao subir os degraus, o jovem
olhou para a multidão que o admirava, procurando entre eles os rostos de
Rosalind e de Gary, e talvez o olhar de seu tio. Ollaff se aproximou dele em
cima do palanque, batendo o cajado no chão e pedindo silêncio. A plateia
respeitou, calando-se uniformemente.
— Amados irmãos minalkarianos, eis diante de vós a presença de seu
príncipe, Rubyo Hant, filho único do nosso amado rei Edmund VI! Nosso
príncipe se apresenta a vocês utilizando o Anel de Edmund, símbolo do
juramento de seus antepassados à família real!
Ollaff pegou a mão direita de Rubyo e a levantou, expondo o anel para
a multidão.
— Nosso bravo príncipe desceu até às catacumbas do reino, enfrentou
os fantasmas de seu passado e venceu seus inimigos usando a Sabedoria de
sua família!
Instintivamente, Rubyo sacou sua espada e brandiu-a ao alto, levando a
multidão à loucura. Era incrível ver aquele espírito patriota nos refugiados.
— Por fim, esse destemido guerreiro entrou na cidade militar dos orcs,
desafiou Inak e o enviou para as trevas eternas de Harddam, recuperando a
coroa do nosso povo! — gritou Ollaff para a multidão, levantando a coroa de
Minalkar para que todos vissem a relíquia. — Eu lhes pergunto, povo de
Minalkar, quem poderá nos levar de volta à nossa terra?
— Rubyo! — gritou a multidão, uníssona.
— Quem poderá desafiar o exército de orcs e expulsá-los de nossos
lares?!
— Rubyo! — respondeu novamente o povo, aos gritos.
— Quem poderá restaurar toda a glória de nossa amada Minalkar?! —
gritou Ollaff, inflamando a multidão.
— Rubyo! Rubyo! Rubyo! — a multidão irrompeu em aclamação.
Ollaff, mais uma vez, bateu seu cajado no chão, pedindo silêncio. Ao
consegui-lo, conduziu Rubyo até o trono e o sentou com a espada no colo,
enquanto Jessyann ajeitava, com cuidado, a capa do jovem. Ollaff entregou o
cajado para sua esposa e posicionou-se atrás do trono improvisado,
levantando a coroa acima da cabeça do príncipe.
— Rubyo Hant, filho de Edmund Aureus VI, herdeiro legítimo e
incontestável do trono de Minalkar, você aceita o fardo de carregar as dores
de seu povo? Aceita a sorte de dividir com eles as suas glórias? Aceita
sacrificar seus desejos, e até mesmo sua vida, em prol de seu povo?
— Sim, eu aceito. — respondeu Rubyo, firmemente.
— Então eu, Ollaff Morrenn, ungido Mestre da Ciência e guardião da
história de nosso reino, nomeio você como rei e protetor de Minalkar.
Levante-se, Rei Rubyo Hant I!
Rubyo sentiu o peso da coroa em sua cabeça pela primeira vez e
levantou-se devagar, com medo de que ela caísse. Mas não caiu. A coroa
encaixava perfeitamente em sua cabeça. O Rei de Minalkar levantou a
Sabedoria e brandiu novamente para o alto, fazendo a multidão irromper em
aplausos. Rubyo virou sua espada com a ponta para baixo e cravou-a no
chão, colocando seu punho direito na frente da testa, expondo, com orgulho,
o sol de Minalkar queimado em sua pele. O povo todo repetiu o mesmo
gesto, exibindo as marcas feitas à mando de Lucrécia para segregá-los.
Rubyo virou-se e abraçou Ollaff, que estava em lágrimas de emoção pela
conquista do jovem.
De repente, uma corneta ressoou no ar, vinda da direção da capital,
seguida do som de incontáveis passos pesados, marchando e fazendo o chão
tremer um pouco. A multidão foi cercada por vários soldados, que usavam o
manto negro e ostentavam escudos com o polvo cinzento estampado, não
permitindo que ninguém fugisse. Rubyo percebeu que algo maior se movia
entre as árvores que os cercavam, vindo em sua direção, mas não conseguia
entender o que era. Os guardas começaram a abrir caminho, até que a figura
oculta de um enorme crocko se revelou — e sobre seu lombo, Lucrécia
estava montada em uma sela.
Ao ver Rubyo, a rainha gritou:
— Vida longa ao Rei Rubyo, o bastardo de Minalkar!
Capítulo 23: Lucrécia
Lucrécia Wanda Lurullo era a filha mais velha do rei Louis de Alferius,
descendente direto do segundo filho de Ottonni, pai dos oito fundadores do
reino. A rainha tinha uma beleza exótica que conseguiu resistir à idade, mas
nem seus traços finos e delicados conseguiam quebrar a imagem fria e
amarga de seu rosto. Era uma mulher alta e esguia, com um nariz pontudo e
perfeitamente arrebitado, combinando com seu queixo proeminente que
sustentava lábios finos, guardiões de dentes perfeitamente brancos e
alinhados. Sua tez clara combinava com os cabelos loiros e lisos, presos num
coque alto, contrastando com as vestes negras que utilizava, e ostentando o
brasão de sua família com o polvo cinzento em prata e dourado.
Quando Lucrécia viu Rubyo no alto daquele palanque, com a coroa de
Minalkar e as mesmas vestes de seu finado marido, não conseguiu impedir
sua mente de retornar às lembranças de sua juventude e a todo o drama do
seu falido casamento.
Lucrécia era uma jovem linda e doce, muito orgulhosa do nome de sua
família e do prestígio que vinha dele. Mas, com o nascimento de seu irmão,
Adonnis, Lucrécia, por ser mulher, perdeu o direito ao trono de seu pai, e
sempre deixou clara a sua insatisfação. Desde criança, ela ouvia sua mãe
reclamar da vida figurativa que vivia sendo uma rainha, mas sem poder
nenhum, presa num casamento arranjado com o rei e reduzida a um objeto
utilizado para o prazer e para reprodução dos herdeiros de Louis. Lucrécia
não queria aquela vida; ela desejava tomar as rédeas de seu destino e assumir
o poder enraizado em seu sangue.
Vendo a relação conflitante entre seus filhos, Louis sabia que a
transição de seu trono não seria algo simples, pois, conforme cresciam, a
corte se dividia no apoio entre eles. Adonnis não fazia questão de esconder
sua preferência pela companhia de outros homens, e aquele fato colocava em
xeque o apoio da nobreza à sua reivindicação ao trono. Por outro lado,
Lucrécia se demonstrava uma sábia administradora, auxiliando seu pai em
decisões importantes no reino, o que aumentava seu prestígio político frente
à corte.
Apesar da transição natural do trono ao primogênito garantir o direito à
Lucrécia, Alferius nunca havia tido uma rainha antes, e isso preocupava
Louis. Mesmo desejando que a filha assumisse seu trono, o rei sabia que
aquele apoio velado da corte poderia ser apenas uma forma de seus primos
tentarem usurpar a coroa após sua morte, justificando a ilegalidade de uma
mulher no trono, portanto, era melhor que Adonnis assumisse o seu lugar,
apesar de não ser o príncipe mais querido do mundo.
Para tentar resolver esse conflito, Louis resolveu casar sua filha com o
rei de Minalkar, Edmund VI, que buscava uma aliança com Alferius através
do casamento. Lucrécia não queria se casar e muito menos deixar Alferius,
mas, ao conhecer seu pretendente, tudo mudou. Apesar de ver os
minalkarianos como um povo menos importante e forte do que os alferianos,
Lucrécia não conseguiu lutar contra seus sentimentos ao conhecer Edmund,
apaixonando-se à primeira vista. A princesa encantou-se com a beleza do rei
de Minalkar, por seu tom de voz sempre comedido, por sua postura, e até
mesmo por seus cabelos perfeitamente bagunçados pela coroa.
Em poucas semanas, a princesa se mudou para Minalkar com uma
pequena comitiva de membros da corte de Alferius, para preparar o
casamento. Separada de Edmund apenas por algumas portas na torre de
Minalkar, Lucrécia desejava ceder à luxúria enquanto esperava os dias até a
cerimônia, mas Edmund a recusava em sua cama, dizendo que deveriam
esperar o casamento para a consumação. A noiva ficava ainda mais
apaixonada a cada dia e admirada pela nobreza de seu marido e fidelidade
aos antigos costumes, enquanto seu corpo ardia de desejo pelo futuro
marido. Porém, o amor e a admiração caminham numa linha muito tênue
entre o ódio e a repulsa — e qualquer sentimento bom que Lucrécia nutria
pelo rei transformou-se no mais profundo e amargo ressentimento ao
descobrir sobre Elysa.
Poucos dias após seu casamento, Lucrécia descobriu que seu marido
teria um filho bastardo de uma antiga namorada plebeia. A rainha entendeu
que Edmund a recusava em sua cama antes do casamento não por sua honra,
mas porque Elysa ocupava a cama do rei. Mais difícil ainda era saber que
essa devassidão geraria um fruto que, um dia, disputaria poder com ela,
assim como sofrera com seu irmão, Adonnis.
O povo nas ruas de Mundy riam de Lucrécia, com piadas baixas sobre a
traição que sofrera, sendo alvo até mesmo de peças de teatro que a
colocavam como uma jovem tola que atravessou o continente para ser traída.
Sua situação em Minalkar estava insustentável, mas, para Lucrécia, era tarde
demais, pois já estava casada com Edmund, e as leis matrimoniais sagradas
da Trindade não permitiam que houvesse uma separação.
Lamentando para seu pai sobre o ocorrido e sobre a vergonha que
aquela traição traria para o reino de Alferius, Lucrécia convenceu o rei Louis
a quebrar o pacto militar que assinara com Edmund, por pura vingança
contra Minalkar. Para justificar a quebra do acordo frente ao Conselho dos
Três Reinos, composto por Alferius, Minalkar e Laghuna, Louis justificou
que não protegeria um reino onde um bastardo fosse o herdeiro, mas que
voltaria atrás na proteção caso Lucrécia gerasse um filho homem do rei, ou
se Edmund renegasse seu filho.
Edmund VI, ciente do risco que seu reino corria, tentou
desesperadamente reconquistar Lucrécia e gerar nela um filho, mas a rainha
não aceitava se deitar com o rei, deixando Minalkar vulnerável ao ataque dos
orcs. Edmund aceitou o risco, e decidiu que assumiria seu filho,
independente do impacto político de sua ação.
Com o iminente cerco de Mundy pelas tropas de Inak, Lucrécia tentou
deixar Minalkar, mas foi impedida por Edmund, que deseja utilizá-la como
moeda de troca e forçar Alferius a vir defender suas muralhas. Apesar do
plano de Edmund VI não sair como desejava, Lucrécia intermediou um novo
acordo entre seu marido e seu pai, que garantiria refúgio aos minalkarianos
caso ela chegasse viva em Alferius.
De volta à sua casa e já viúva, Lucrécia viu-se livre das amarras do
casamento e poderia, novamente, disputar o reino de Alferius. Depois de
tudo o que sua filha passou, Louis não teve coragem de forçá-la num novo
casamento, voltando ao impasse sobre a sucessão. Lucrécia, ao descobrir
sobre o relacionamento que seu irmão mantinha com o general das tropas
reais, convenceu ambos a deixarem Nenáreah para viverem juntos como
comandantes da Fortaleza de Assylan, ameaçando revelar a todos o que
acontecia no quarto do príncipe caso não aceitassem.
Com o caminho livre para o trono de Alferius, Lucrécia esperou a
morte de seu pai para ascender como a primeira rainha da história, gerando
uma divisão no povo que ainda preferia Adonnis no trono por não se
conformar com essa mudança tão grande na tradição. Porém, através do
apoio da nobreza, conseguiu se manter no poder.
Nutrindo um enorme ressentimento pelo povo de Minalkar, quão logo
assumiu o trono, Lucrécia resolveu se vingar. Utilizando alguns espiões que
mantinha entre o povo, descobriu que Argus III, seu ex-cunhado, havia
conseguido comprar uma porção de terra perto da cidade, onde centenas de
refugiados formavam uma espécie de vila comunitária em forma de fazenda,
conseguindo, assim, prosperar e ter uma vida digna em solo alferiano.
A rainha sabia que não podia quebrar o pacto que seu pai fizera diante
do Conselho dos Três Reinos sem uma justificativa, com risco de iniciar uma
guerra contra Laghuna, então procurou brechas no acordo. Ao perceber que
os minalkarianos não poderiam formar comunidades ou embaixadas em
Alferius sem a aprovação da coroa, Lucrécia mandou destruir a fazenda Iktar
e determinou que todo minalkariano deveria ser marcado no punho direito à
ferro quente, para não se misturar com os alferianos.
A decisão da rainha não foi bem-vista por seu próprio povo e pela corte,
o que a impediu de seguir adiante em sua vingança, pois temia perder seu
apoio, e com ele, o trono para o irmão. Apesar de suas atitudes não
estancarem as mágoas que tinha de Minalkar, saber que o bastardo de seu
marido estaria para sempre na miséria abrandou o ódio da rainha.
Com o trono em suas mãos e com sua vingança parcialmente realizada,
só restou a Lucrécia seguir sua vida como rainha, aguardando pacientemente
o dia em que os minalkarianos dessem um passo em falso para que ela
pudesse legalmente agir contra eles e terminar de vez com o que restou
daquele reino caído do norte.
Capítulo 24: Sacrifícios
— Vida longa ao Rei Rubyo, o bastardo de Minalkar!
Lucrécia, de cima de seu crocko, aplaudiu ironicamente ao olhar para
Rubyo, coroado, em cima daquele palanque. A multidão estava num silêncio
sepulcral, olhando atônitos para a rainha, que parou de aplaudir e olhou para
eles, gritando:
— Então é assim, Minalkar, que vocês agradecem por minha
hospitalidade? Se ajoelham a um outro rei? Preferem um maldito bastardo,
que não tem nem o que comer, do que a mim, sua benevolente salvadora?!
A multidão seguia emudecida. O barão Bower Bianco, aos pés do
palanque, tentou falar algo para a rainha, mas quão logo abriu a boca, foi
golpeado no estômago por um soldado, que o jogou no chão. Ao ver a cena,
Rubyo sentiu sua mão direita começar a formigar e tremer, irradiando um
calor do anel para todo o seu corpo, aumentando ainda mais sua ira, quase a
ponto de não conseguir se controlar e partir para cima daquele exército,
ainda que sozinho. Ollaff notou a agitação de seu rei, assim como percebeu a
luz fria que emanava da pedra negra do anel de Edmund, e resolveu agir
antes que Rubyo perdesse o controle.
— Vossa Majestade, nossa amada rainha, peço que nos perdoe por esse
enorme mal-entendido! — disse Ollaff, fazendo uma enorme reverência e se
prostrando de onde estava. — Não entenda isso como uma traição, minha
senhora, é apenas a celebração de uma tradi…
— Calado, sua serpente velha! Não me venha com seus truques e jogos
de palavras, pois conheço bem o que é capaz de fazer com sua fala! Eu não
confio em você, assim como não confio nesse bastardo ou em qualquer outro
maldito minalkariano! Exceto por uma pessoa. Obrigada, Rosalind, por
cumprir seu juramento real e defender sua rainha!
Alguns guardas que cercavam a multidão abriram uma passagem e,
dela, surgiu Rosalind, caminhando lentamente e cabisbaixa, enrolando
nervosamente os dedos em sua roupa, como se sua mão não parasse de
transpirar e precisasse secá-la a cada momento. Rubyo, ao ver sua velha
amiga, tentou não entender o que havia acontecido, olhando diretamente
para aquela senhora que tanto amava, mas seu olhar não era correspondido,
assim como, provavelmente, o seu amor.
— Me perdoe, Rubyo, mas minha família não poderia ter seu nome
manchado novamente, com outra traição ao rei que serve... — disse
Rosalind, em voz alta, olhando para seus pés.
— Maldito sejam os Cowas! Traidores imundos! — gritou Marilyn
Bianco, que estava abaixada ajudando seu marido, mas foi surpreendida por
um chute em seu rosto, caindo ao lado de Bower, com a boca cortada e
sangrando.
Rubyo seguia em silêncio, incrédulo e tremendo. Ele temia que se
movimentasse um só músculo de seu corpo, perderia totalmente o controle
de suas ações, como foi contra Inak. Toda a raiva que sentia até aquele
momento se transformou num sentimento de tristeza e de luto, pois era como
se a doce senhora Rose, a quem ele tinha como uma mãe, estivesse acabado
de morrer diante de seus olhos. Ele até tentou falar algo, mas a voz
simplesmente não saiu.
— Não façamos disso um drama desnecessário. — disse Lucrécia, em
voz alta. — Rosalind jurou servir à casa de Lurullo quando veio para nosso
castelo, e assim o fez, ficando de olho nos passos dos verdadeiros traidores
de nosso reino: esses malditos conspiradores de Minalkar! Sei que almejam
minha coroa, e por isso, Rosalind...
— Eu nunca quis e nunca vou querer sua coroa, velha maluca! Você é
suja, mesquinha e vil, deixando nosso povo apenas com migalhas, enquanto
arrota benevolência! Mesmo aqueles que se deram bem em Alferius, só têm
o que comer porque pagam impostos caríssimos para bancar a vida luxuosa
que você leva em seu castelo! — desabafou Rubyo.
— Como ousa falar assim comigo, seu mendigo bastardo?! — gritou
Lucrécia. — Acha mesmo que é um rei de verdade, a ponto de falar em tom
de igualdade comigo? Cadê seu exército? Cadê o seu reino?! Você não tem
nem mesmo um trono, apenas essa cadeira ridícula que montaram para te
agradar! Você pode ter toda a arrogância de seu pai, mas não é nada do que
ele era, e não tem nada do que ele tinha! E mesmo que tivesse, olhe onde ele
acabou…
— Meu pai salvou sua vida, velha ingrata! — gritou Rubyo, no mesmo
tom de voz que Lucrécia, para desespero de Ollaff. — E vendo quem você é,
não me surpreende que ele tenha preferido uma plebeia como minha mãe, ao
invés do poço de fel que transborda de você!
Lucrécia não conseguiu disfarçar o quanto as palavras de Rubyo a
afetaram, respondendo ao insulto apenas com um grito de ódio que mais
parecia de dor. A rainha, então, fez um gesto com sua mão esquerda, fazendo
com que alguns guardas subissem ao palanque onde Rubyo estava. O rei de
Minalkar, que já estava armado com sua espada, girou a lâmina no ar e
colocou-se em posição de ataque, sedento pelo sangue daqueles soldados,
porém Ollaff deteve sua mão.
— Meu Rei, isso vai virar um mar de corpos e vamos nos afogar no
próprio sangue de Minalkar! — disse Ollaff, desesperado, segurando a mão
direita de Rubyo, que emanava uma luz ainda mais forte do anel negro.
Tremendo e fazendo uma força descomunal, Rubyo conseguiu baixar
sua espada, deixando os guardas se aproximarem. O primeiro deu-lhe um
chute na boca do estômago, deixando-o de joelhos. O segundo sacou um
punhal da cintura e colocou no pescoço de Rubyo, segurando sua cabeça
para trás, fazendo-o olhar para a multidão que, ao ver seu rei em perigo,
começou a gritar e empurrar os soldados que os cercavam, recebendo chutes
e socos como resposta.
— Calados! Calados! — gritava Lucrécia, mas sem sucesso.
Logo atrás de Lucrécia, outros dois crockos estavam sendo montados
em selas parecidas como a sua. Em um deles, um homem fortemente
armado, com armadura negra lustrada, ostentava sua capa dourada de
general das forças de Alferius, com seu rosto coberto pelo elmo em forma de
polvo. No outro crocko, uma mulher muito branca, com cabelos negros
assim como seu vestido, estava montada no réptil gigante, segurando as
rédeas com uma mão, enquanto, na outra, carregava um cajado parecido com
o de Ollaff. Em seu rosto, uma tatuagem de serpente escorria de sua têmpora
até o pescoço. Lucrécia fez um gesto e a maga sussurrou algo, mirando para
cima seu cajado e causando um enorme som de trovão, que calou a multidão
novamente. Aproveitando o silêncio, Lucrécia falou:
— Rubyo, serei extremamente pragmática com você, e olha que isso é
muito mais do que você merece. Seu povo cometeu um crime de alta traição
contra o meu reino quando decidiu se ajoelhar a outro rei dentro de meus
domínios. A sentença é a morte, de todos. Mas, diante da minha exemplar e
famosa benevolência, eu aceito que você pague com sua vida o perdão ao
seu povo.
Todos os presentes olharam instantaneamente para Rubyo, que seguia
ajoelhado, com seus braços presos por dois guardas, enquanto o terceiro
segurava o punhal em seu pescoço. Rubyo, que até aquele momento estava
dominado pelo ódio, respirou fundo ao ouvir aquela proposta e passou a
controlar seus batimentos e sua mente, para analisar melhor toda aquela
situação. O rei fechou seus olhos, abaixou a cabeça o máximo que a lâmina
em seu pescoço permitia, e começou a ponderar sobre a proposta.
Rubyo sabia que o plano que desenvolvera com Gary, apesar de
plausível, seria extremamente difícil de ser executado, e que provavelmente
não teriam sucesso, fazendo com que todo o esforço e sacrifício de seu pai e
seu tio tivessem sido em vão. Seu pai e seu tio... ambos se sacrificaram pelo
povo de Minalkar. Seria essa a sina dos reis do Norte? O desejo de Rubyo
sempre foi devolver ao povo o seu lar, mas, talvez... apenas talvez... Gary
estivesse certo, e Alferius já fosse o lar em definitivo daqueles refugiados.
Sentindo uma estranha paz em seu coração, Rubyo entendeu que sua função
não era devolver a terra para seu povo, mas sim, a paz e a liberdade,
indepente do preço. O rei de Minalkar então levantou sua cabeça, olhou para
Lucrécia e disse:
— Perdão ao meu povo? Não há o que perdoar, pois não cometeram
nenhum crime. Porém, eu aceito os seus termos, desde que prometa devolver
a eles essa fazenda, comprada honestamente pelo meu tio. E que o povo de
Minalkar tenha os mesmos direitos civis que os alferianos. Eles merecem
viver uma vida digna, com impostos justos, e não serem marcados como
gado! Se você estiver de acordo, com prazer, me ofereço como sacrifício
para que meu povo tenha paz, aqui em Alferius.
Lucrécia não conseguiu esconder sua surpresa e ponderou por alguns
momentos antes de responder:
— Você é mesmo tão arrogante quanto seu pai! Mesmo rendido e com
uma lâmina em seu pescoço, ainda acha que está em posição de negociar... é
inacreditável! Mas diante de minha histórica misericórdia, e em memória do
meu benevolente pai, eu aceito suas condições.
Lucrécia fez um novo gesto para sua maga, que desceu da montaria,
caminhou até o lado da rainha, e estendeu o seu cajado com o cristal
próximo a ela, amplificando sua voz:
— Que todo o reino de Alferius ouça o que sua rainha tem a dizer: o
povo de Minalkar, a partir de hoje, será reconhecido como legítimos
cidadãos alferianos e, portanto, terão os mesmos direitos e o mesmo julgo
que qualquer cidadão nativo! Declaro, ainda, o retorno da posse da
Fazenda... qual é o nome da fazenda mesmo? — perguntou Lucrécia para um
soldado próximo, com certo desprezo.
— Iktar, minha senhora, significa esp…
— Declaro ainda que a posse da Fazenda Iktar retorna aos refugiados
de Minalkar, ficando sob a tutela de quem eles elegerem como responsável.
Para tanto, sentencio o seu rei, o bastardo Rubyo, à morte!
Os guardas que cercavam o povo sistematicamente abaixaram seus
escudos e permitiram que quem quisesse, pudesse deixar aquele lugar.
Porém, ninguém ousou sair. O povo de Minalkar seguia olhando atônito para
seu rei, que aceitara dar a vida por eles. Rubyo foi colocado em pé, e o
guarda que segurava o punhal deitou o trono improvisado, utilizando as
pernas da cadeira como suporte para o tronco do rei, debruçando-o sobre a
madeira e deixando sua nuca exposta. O terceiro guarda decidiu, por puro
sadismo, utilizar a própria espada de Rubyo para decapitá-lo, mas assim que
tocou o cabo da Sabedoria, as letras inscritas na lâmina brilharam em
vermelho, liberando um pulso mágico no cabo e decepando todos os dedos
de sua mão.
Ninguém que assistia a cena ousou esboçar alguma reação, exceto a
rainha que, gargalhando, desceu habilmente de seu crocko e caminhou na
direção do palanque, enquanto a multidão abria o caminho.
— Parece que os deuses desejam que eu mesma te execute, bastardinho,
então que assim seja. — disse a rainha, colocando a mão na cintura, sobre o
cabo de sua espada.
Rubyo seguia imobilizado, com seu corpo arqueado sobre o trono
tombado, com a cabeça ainda coroada inclinada para baixo, esperando sua
sentença. O rei olhava fixamente para seu mestre, com um olhar
apaziguador, demonstrando certeza e confiança em sua decisão.
Ollaff tentava desviar sua atenção do olhar de Rubyo, mas estava quase
hipnotizado por aquela cena. O velho mestre tentava pensar em milhares de
desfechos possíveis para aquela situação, e até mesmo cogitou o uso de
magia obscura, mas sabia que qualquer atitude que tomasse resultaria ou na
morte de Rubyo, ou na de Jessyann, ou na de milhares de pessoas que estava
ali. Jessi, apavorada com a situação, sussurrou ao ouvido de seu marido:
— Ollaff, pelo amor de Selline, não faça nenhuma maluquice! Eu não
posso te perder de novo! Você não pode salvar o menino dessa vez, você é
apenas um conselheiro... e eles são dois reis, sacramentados pelas leis
antigas, eles que se resolvam! Por favor, não se meta!
Dois reis... de repente, para Ollaff, o tempo desacelerou enquanto a
rainha subia os degraus do palanque, sacando sua fina espada da cintura,
curvada como o tentáculo de um polvo. Dois reis... leis antigas... O coração
de Ollaff disparou, enquanto as palavras de Jessi se encaixavam, criando
uma resolução lógica para aquela situação.
— Minha rainha, permita-me lembrá-la de uma Lei Antiga do Conselho
dos Três Reinos! “Nenhum rei poderá ser executado em terra estrangeira
por leis que não são consideradas crimes em seus domínios”. A senhora
sabe bem que são as Leis Antigas que regem a paz em nosso continente. E
em Minalkar, ninguém é executado por se ajoelhar perante seu rei natural!
— Não venha usar as leis de meus antepassados contra mim, serpente
velha! Seu bastardo consentiu com a execução, eu não vou voltar atrás! —
disse Lucrécia, chegando ao topo do palanque, olhando no fundo dos olhos
de Ollaff, com a espada em mãos.
— Exatamente, minha senhora... essa lei foi proposta justamente pela
sua família, no segundo conclave entre as três coroas, para se protegerem
dos Cavaleiros de Harddam! Pense no quanto essa execução pode abrir
brechas para que eles quebrem outras leis, Vossa Majestade, prejudicando o
seu povo, sua coroa, e até mesmo sua vida! A senhora bem sabe que o
Império Marrom sempre teve olhos gananciosos voltados para as terras de
Alferius...
Lucrécia pensou em uma resposta rápida para Ollaff, na intenção de não
demonstrar fraqueza, mas, infelizmente, havia sentido nas palavras do mago.
Ainda que o Império Marrom, que domina Laghuna há séculos, não
estivesse disposto a entrar numa guerra aberta contra Alferius, a quebra da
harmonia no Conselho dos Três Reinos poderia implicar em perdas de rotas
comerciais, de terras, e até mesmo do domínio sobre o Rio Dourado. O preço
pelo pescoço de Rubyo era alto demais.
— Pois bem, seu velho maldito... — disse Lucrécia, com os dentes
cerrados e a mão direita pressionando com força o cabo de sua espada. —
Qual seu plano, então? Acha que vou simplesmente deixar esse fedelho
partir? Não posso voltar atrás nas promessas que fiz aos malditos
minalkarianos!
— Não, Vossa Majestade, a senhora cumpriu sua parte no acordo, e
somos muitos gratos por sua infinita misericórdia! Apenas estou alertando
Vossa Graça, senhora do Rio Dourado, de que não precisa tirar a vida do rei
de Minalkar para tornar o acordo justo. Creio que, exilá-lo, já seria o
suficiente.
Lucrécia ponderou as palavras de Ollaff e olhou para a multidão ao
redor. Todos estavam em silêncio; povo, soldados e até os pássaros da
floresta ao redor pareciam se calar, esperando a decisão da rainha. O único
som que se ouvia era do guarda que perdeu seus dedos, gemendo de dor,
enquanto era socorrido por seus colegas. De repente, a rainha olhou
novamente para Ollaff, deu um sorriso de canto de boca e disse em voz
baixa:
— Entenda uma coisa, Ollaff, o bastardo não sairá daqui com vida. Mas
não preciso matá-lo para tirar a vida dele.
A rainha voltou-se novamente de frente para a multidão, abriu um
sorriso delicado e guardou a espada. Em seguida, Lucrécia caminhou na
direção de Rubyo, agachou-se e fez um carinho no rosto do jovem,
colocando-o em pé.
— Meu amado povo de Alferius. Nesse momento, me dirijo a todos
vocês como apenas um. Todos viram que, de maneira justa, esse jovem
consentiu em abrir mão de sua vida pela liberdade de seu povo, porém, não
quero fazer do usurpador um mártir. Esse maldito bastardo não conhecerá a
morte por minhas mãos, contudo, não posso deixar minha misericórdia
transpassar meu senso de justiça e ordem, em respeito às leis da minha
família! Sendo assim, te condeno, Rei Rubyo de Minalkar, à prisão perpétua
em nosso calabouço, não sendo permitido contato com nenhum homem
livre, para que não conspire novamente contra mim. Guardas, levem esse
criminoso para a prisão!
A multidão agitou-se novamente, mas, dessa vez, estava dividida.
Algumas pessoas ainda vaiavam e ofendiam a rainha, mas a maioria aplaudia
e ovacionava sua decisão. Lucrécia fazia reverências ao povo, satisfeita com
a repercussão daquela cena toda, e certa de que conquistara um prestígio
político e popularidade que, talvez, nem seu pai já tivera um dia.
Rubyo, olhando para baixo e sem forças para reagir, viu por entre as
tábuas do assoalho, a figura de Gary, que estava logo abaixo dele no fosso do
palanque, fazendo gestos, indicando sua coroa e seu colar. Assim que os
guardas começaram a conduzi-lo em direção às escadas, Rubyo fingiu um
tropeço e jogou seu corpo para fora do palanque, sendo amparado pela
multidão abaixo. No meio de tantos braços e pernas, Rubyo sentiu-se
tranquilo ao perceber a presença de Gary tomando sua coroa e seu colar
mágico, desaparecendo em seguida no meio da multidão. Quando os guardas
alcançaram Rubyo, o rei não demonstrou nenhum tipo de resistência,
pedindo apenas que se dirigisse à rainha, que descia do palanque, seguida de
Ollaff e Jessyann. A maga, esposa de Ollaff, trazia a Sabedoria em suas
mãos, carregando pela lâmina.
— Rainha Lucrécia, obrigado. Eu prometo que não tentarei fugir ou
agir contra suas leis. Eu aceito, de bom grado, o meu dever para com meu
povo e com sua sentença.
— Espero que sim, bastardo. Saiba que, se um dia você fugir, o acordo
estará desfeito, e seu povo vai sofrer em minha mão como você nunca nem
imaginou!
Rubyo consentiu em silêncio, olhando em seguida para Ollaff, que não
parava de chorar. Estendendo sua mão direita, Rubyo disse ao mago:
— Não vai nem ao menos se despedir de seu rei? — Rubyo deu uma
piscadela para Ollaff, olhando em seguida para o anel real.
Ollaff, sem nada dizer, segurou apressado com as duas mãos a mão
direita de Rubyo, dando um demorado beijo na mão de seu soberano,
enquanto, habilmente, retirava o anel sem que ninguém percebesse.
— Guardas, retirem essas vestes do bastardo! Ele é um condenado e
não um rei! Largue-as no chão, para que sejam saqueadas por seu próprio
povo, assim como fizeram com sua coroa! — disse Lucrécia, sorrindo.
— Não permitirá que seus amigos a guardem, Vossa Majestade? —
perguntou um dos soldados.
— Não, ele nunca mais vestirá nada além de suas roupas de prisioneiro.
Que fiquem com a maldita espada, para que se lembrem de seu fracasso, se
quiserem. Agora, levem-no para sua nova e última casa, pois a maior glória
que esse bastardo merece, é a cela fria da minha prisão!
Capítulo 25: Os Calabouços
Rubyo foi conduzido seminu até os portões do castelo de Alferius,
caminhando cabisbaixo diante de tamanha humilhação. Chegando diante das
Oito Torres Negras, o prisioneiro lamentou que sua primeira oportunidade de
admirar de perto aquela fascinante construção, seria numa situação tão
deprimente e constrangedora. Os seis guardas que escoltavam Rubyo
seguiam levando-o pacificamente, conduzindo-o para a parte de trás do
castelo, enquanto margeavam a muralha que o separava da cidade, até chegar
no cemitério.
O castelo era todo feito de pedras negras e adornado por diversas
estruturas de ébano, mantendo o tom negro por toda aquela construção
colossal. Rubyo estimou que, provavelmente, aquele castelo era duas vezes
maior que o de Minalkar, porém, patriotismo à parte, sua beleza não chegava
nem perto da morada da casa de Edmund.
No centro do cemitério, existia uma pequena edificação feita de pedras
largas e ferro, fechada por uma pesada porta de aço, que se abriu ao sinal dos
soldados que escoltavam o prisioneiro. Lá dentro, outros quatro guardas
aguardavam Rubyo, fazendo-o se despir totalmente e, em seguida,
examinando vexatoriamente cada pequeno espaço de seu corpo, onde
poderia estar carregando alguma coisa escondida. Logo após, fizeram-no
vestir uma túnica bem rústica, acinzentada, mais parecendo um saco de pano
com abertura apenas para a cabeça e os braços, que cobria o corpo do jovem
até os joelhos.
Rubyo foi conduzido por uma escada em espiral até a parte inferior do
calabouço, que ficava abaixo do cemitério. Um dos guardas mais velhos,
parecendo orgulhoso de sua profissão, disse que, em Alferius, até os mortos
são mais importantes do que os prisioneiros. As paredes entre as celas eram
bem grossas, justamente para não permitir a interação entre os presos, mas
mal se podia enxergar lá embaixo, pois apenas algumas das tochas do
corredor estavam acesas, criando um clima de total abandono. O rei de
Minalkar foi jogado na oitava cela, pois todas as anteriores já se
encontravam ocupadas. O jovem não ofereceu resistência ao empurrão,
deixando seu corpo cair no chão, onde ficou largado por algumas horas em
posição fetal. A mente de Rubyo estava absolutamente acelerada, mas seu
corpo parecia pesado e sem forças desde que Ollaff retirara o anel de seu
dedo.
Após algumas horas no chão frio, Rubyo juntou forças e se levantou
para conhecer sua nova moradia. Checou primeiramente as grades, que eram
feitas de ferro grosso fundido e altamente resistente, trancadas por um
enorme cadeado fixado à tranca, para o lado de fora. Do corredor, podia-se
ouvir, de longe, a voz de alguns outros presos, sendo possível distinguir
apenas algumas palavras sobre o novato ser muito jovem para estar preso.
Voltando-se para sua cela, Rubyo percebeu que as paredes dos dois lados
eram todas feitas de pedra, assim como o teto e o fundo da cela, onde existia
uma pequena janela quadrada, do tamanho de dois palmos humanos,
travadas com o mesmo ferro da porta. Da janela, via-se um estreito túnel que
levava até a superfície do cemitério, por onde entrava ar, luz do sol e,
provavelmente, água da chuva — visto a poça que existia ali perto —,
servindo como bebedouro para um rato surpreendentemente grande que não
parecia se importar com a presença de seu novo companheiro de cela.
Da parede do lado esquerdo, emanava um forte odor azedo, por uma
mistura de fezes e urina; local esse que, provavelmente, antigos moradores
daquela cela usavam como banheiro. Dessa parede até a outra, onde existia
um pouco de palha seca, Rubyo contou oito passos. O jovem juntou a palha,
improvisou uma cama bem fina, deitou-se sobre ela e começou a chorar
desesperadamente.
Conforme o tempo passava, Rubyo ia anotando, com um pequeno
fragmento de pedra, a quantidade de dias naquele lugar, riscando um
pequeno espaço na parede que ainda não havia sido rabiscado por antigos
presos. A alimentação era sempre da mesma forma: duas vezes por dia, os
guardas traziam algum tipo de mingau frio, pão endurecido — às vezes, sem
bolor — e, nos dias festivos, restos de comida do castelo, misturados como
uma lavagem para porcos. A água era escassa, vinda pela manhã num
pequeno balde de madeira, sendo necessário racionar para se higienizar,
lavar o banheiro improvisado e, ainda, se sobrasse um pouco e a sede
apertasse, beber aquela água com forte odor de cavalo, pois, provavelmente,
ela era retirada das cocheiras do estábulo real, que ficava ali perto.
Depois de vários riscos na parede, Rubyo resolveu parar de marcar os
dias que iam passando, pois isso só aumentava sua tristeza e revolta. Seus
pensamentos estavam cada vez mais confusos e suas lembranças pareciam
atrapalhadas. Ele tentava evitar pensar em tudo o que viveu e que o levou até
ali, mas o que mais ele poderia fazer naquele lugar senão pensar?
Sua mente, ainda que contra sua vontade, arquitetava planos de fuga
daquele lugar. Ele já era capaz de detalhar os períodos das trocas de guarda,
os costumes de cada soldado, as rotas de patrulha, e, principalmente, os
guardas mais preguiçosos e desatentos, que poderiam cometer pequenos
erros para ajudá-lo a sair dali. Por outro lado, as palavras de Lucrécia
ecoavam em sua mente, lembrando-o do sofrimento que seu povo teria caso
ele fugisse.
Apesar de sentir-se orgulhoso por sua decisão, Rubyo quase se
arrependia de seu sacrifício a todo momento. Com vergonha de si mesmo,
ele confessava para as paredes que, se soubesse o sofrimento que viria, não
teria firmado o acordo com a rainha. Ele sabia que não era justo ter que
pagar por tudo aquilo que herdou, das más escolhas de seu pai, do plano
frustrado de Argus e Ollaff..., mas, por outro lado, seria justo seguir seu
desejo egoísta de fugir, mesmo que isso lançasse centenas de crianças e
idosos numa vida de sofrimento? Era difícil saber o que lhe trazia mais ódio:
o sentimento de injustiça ou saber o quanto Lucrécia se regozijava na vitória
que teve contra ele e sua família.
Será que Argus teria permitido que aquilo tudo acontecesse? E se
Rubyo não tivesse matado Inak, assim como seu tio ordenou? As conjecturas
se ligavam a lembranças, tristezas, lágrimas e ira. Rubyo já não conseguia
mais se reconhecer, tanto fisicamente, quanto em seus pensamentos. O
inverno já deveria estar quase no fim, mas parecia que cada dia era mais frio
que o outro; e quanto mais frio ficava, mais o jovem odiava sua vida. Rubyo
tremia de frio sentado no meio da cela, não se incomodando com o enorme
rato que sempre o visitava e que, desde alguns dias, se aconchegava perto
dele para dividir o calor corporal.
Nos momentos de desespero, Rubyo perdia suas unhas tentando cavar
as paredes, em busca de quem sabe algum cristal mágico que pudesse estar
incrustado nas pedras que o cercavam. Às vezes, encontrava algum
fragmento de pedra um pouco mais brilhante e, em posse delas, Rubyo
tentava falar com todos os elementos, mas nenhum deles o respondia. Ele
daria sua vida por uma pequena fogueira que pudesse espantar o fantasma
gélido do inverno e esquentar um pouco de comida, que pudesse trazer
prazer ao seu estômago.
Numa dessas noites de inverno, a neve escorria do túnel de sua janela,
trazendo com ela o maior frio que Rubyo jamais sentira. Seus lábios estavam
rachados e sangravam. Suas nádegas e testículos doíam de tanto se contrair
pelo contato com o chão frio, abrandado discretamente pelas palhas secas
que os guardas traziam uma vez por semana. Nessa noite, em especial,
Rubyo sentia tanta dor em seu corpo, que sua mente, em desespero, puxou
na memória alguns rituais de magia obscura que lera nos livros proibidos de
Ollaff. As magias negras não necessitavam de nenhum tipo de cristal ou
artefato mágico para serem realizadas, bastava apenas saber os gestos, os
rituais ou as palavras corretas para realizá-las, porém apenas magos muito
experientes ou pessoas sem amor à vida se atreviam a realizá-las, pois,
quando conjuradas, alguma entidade das trevas poderia dominar a mente e o
corpo de quem estivesse realizando, tornando seu usuário um eterno escravo
daquele ser, e se rendendo à loucura.
Sentindo não ter mais nada a perder, Rubyo se concentrou e lembrou-se
do passo a passo do ritual da invocação de fogo amaldiçoado, que era um
tipo de chama que não se apagava com água, apenas com outro feitiço. O
jovem lembrou-se das palavras, doss gestos, e da parte principal do ritual:
precisava de sangue inocente para realizá-lo. No desespero, Rubyo agarrou
seu vizinho rato, fazendo o roedor gritar e tentar mordê-lo. O prisioneiro já
estava com uma lasca de pedra bem amolada para usar como faca, e com a
mão tremendo, aproximou a lâmina improvisada da barriga do pobre animal,
para derramar seu sangue e executar o ritual. Mas, no último momento,
Rubyo olhou no fundo dos olhos de seu companheiro de cela e desistiu,
soltando o roedor, que correu para fora da cela.
Rubyo começou a chorar numa mistura de arrependimento e desespero,
apesar de aliviado por ter resistido àquela tentação, restando a ele apenas
torcer para que seu amigo roedor o perdoasse e retornasse em breve para
visitá-lo. No fim das contas, pelo menos o medo que sentira fez seu coração
disparar, abrandando um pouco o frio.
Mais alguns dias se passaram, sabem os deuses quantos e, numa noite
qualquer, Rubyo foi acordado por uma voz familiar:
— Ei, Rubyo! — disse a voz sussurrante, vinda da direção da porta da
cela.
O prisioneiro, deitado em posição fetal e abraçado com seus joelhos,
virou-se para as barras de ferro da porta da cela e viu uma figura conhecida.
Era Gary. Como já não confiava mais em sua mente, o rei de Minalkar
apenas se virou para o outro lado e tentou dormir.
— Ei, Rubyo, acorde! Sou eu, Gary, e não tenho muito tempo! —
insistiu a voz, sussurrando da porta.
— Gary? É você mesmo? — perguntou Rubyo, descrente.
— Sim, sou eu! Venha aqui perto da porta para conversarmos... e por
favor, feche essas pernas, pois dá pra ver todas as suas vergonhas daqui!
Rubyo, ainda desconfiado, aproximou-se lentamente da porta,
abaixando a túnica para esconder suas intimidades. Gary tentou abraçar o
amigo pelas barras de ferro, mas ele seguia distante, em atitude defensiva.
— Se você é mesmo o Gary, qual era o nome do seu cavalo?
— Rubyo, sou eu mesmo, Gary Bortolly, seu amigo de infância,
vizinho, antigo Mestre da Moeda de Minalkar e seu Conselheiro Militar!
Meu cavalo se chamava Bokko, com dois Kás, mas um maldito troll partiu
ele no meio, então deve estar se chamando apenas Bok, hoje em dia... —
sussurrou Gary, com seu tradicional sorriso sarcástico.
— Pelas tetas de Selline, não acredito que é você mesmo, Gary! —
gritou Rubyo, em prantos como uma criança.
Gary não conseguiu conter as lágrimas ao ver a emoção de seu amigo
por encontrar um rosto familiar, mas, mesmo assim, o repreendeu pelo
barulho que fazia.
— Rubyo, eu não posso demorar... Coloquei os guardas lá de cima para
dormir, e vim ver como você está. Você faz muita falta, meu amigo, e
estamos todos preocupados com você...
— “Estamos”? Quem?! Já estou aqui há uns cinquenta dias e ninguém
veio me visitar antes! — disse Rubyo, com seu humor variando rapidamente
para a ira.
— Cinquenta dias? Meu amigo, na verdade, você já está aqui há mais
de seis meses! Não viemos antes, pois a rainha o proibiu de receber visitas, e
ela fortaleceu a guarnição dos calabouços justamente para impedir que
alguém fizesse o que estou fazendo agora. Precisávamos esperar a poeira
baixar, ou então, que Ollaff conseguisse convencer a Lucrécia de que seria,
de alguma maneira, bom para ela se você recebesse visitas.
— E ele conseguiu? — perguntou Rubyo, surpreso.
— Não, pelo contrário, ele foi proibido de chegar próximo ao castelo
para não importunar mais a rainha. Jessyann me contou que nem mesmo a
velha Rosalind conseguiu dissuadir a megera da Lucrécia.
— Rosalind?! — aquele nome soou estranho para Rubyo, como se sua
mente tivesse apagado a lembrança da senhora Rose de sua memória para
poupá-lo do sofrimento causado pela traição daquela mulher. — Você esteve
com ela?
— Oh, sim, muitas vezes na verdade! Ela vinha sempre até sua casa,
depois que você foi preso. Eu a via chegando até a porta e chorando
copiosamente ao ver a casa vazia. Um dia, eu a convidei para entrar em
minha casa para conversarmos, e isso se repetiu por diversas vezes depois.
Ela realmente parecia arrependida, Rubyo, e repetia que só tinha feito o
juramento para a rainha, porque jamais imaginou que você conseguiria
voltar de Minalkar com o anel para ser coroado.
— E você fez amizade com aquela maldita velha traidora?! —
perguntou Rubyo, grudando as grades com sua ira.
— Sim, fiquei amigo dela! Ela me contava histórias e me ensinava
receitas, enquanto desfrutava da minha presença para suprir a falta que você
fazia na vida dela. Como ela cozinhava bem, né? Melhorei muito nas minhas
receitas graças às dicas que ela me deu. Assei várias tortas para ela como
agradecimento, até que um dia consegui fazer uma receita, daquelas de
matar! — respondeu Gary, sorrindo maliciosamente.
— Vá se foder, Gary! Você espera esse tempo todo para vir me visitar
só para me contar que... — Rubyo pausou sua frase irada, entendendo as
entrelinhas do que Gary quis dizer. — Espere aí, Gary... você literalmente
matou a senhora Rose?
— Claro que não! Quem matou ela foi a morte. Eu só fiz a ponte para
que as duas se conhecessem. — respondeu Gary, orgulhoso. — Eu jamais
perdoaria aquela velha maldita pelo que ela fez com você, Rubyo. Fui
ganhando a confiança dela na intenção de que ela levasse alguma receita
especial minha para a rainha, fingindo que eu queria um emprego na cozinha
do castelo. Mas, aparentemente, ela comeu um pedaço antes da Lucrécia e
caiu durinha na frente da corte toda. Até rolou uma investigação, mas se
convenceram que ela se suicidou pela culpa.
Rubyo foi inundado por um misto de emoções. Há muito tempo ele não
sentia nada além de fome, frio e ódio, mas, naquele momento, vivenciou a
dor do luto por alguém que amava e, ao mesmo tempo, não se lembrava
como era ser amado por alguém, pois seu amigo o vingara de quem o lançou
ali.
— Obrigado, Gary. É reconfortante saber que ainda tenho amigos,
mesmo estando nessa latrina. Meu tio sempre me disse para nunca confiar
em ninguém, e ele tinha razão, se pensar no que Rosalind fez comigo. Mas
sei que, com você, eu posso contar.
— Fico feliz, Rubyo, mas não posso deixar de reforçar também a
amizade do mestre Ollaff e da senhora Jessi. Desde o dia da sua prisão, eles
buscam incessantemente alguma brecha em antigos tratados, Leis Antigas do
tal Conselho dos Três Reinos, e tentaram diversos acordos para te libertar...
mas agora, a Lucrécia já nem os recebe mais. Eu achava que eles iriam
embora depois da sua prisão, mas não, eles ficaram e estão ajudando o povo
a se reerguer na sua ausência.
— A rainha realmente devolveu a fazenda para os minalkarianos?
— Sim! O senhor Bianco vendeu a taverna e investiu o dinheiro em
casas e plantações para o povo, que o elegeram como administrador da
fazenda. Ollaff me contou isso tudo ontem à noite, e me pediu que te
contasse também. Ele, inclusive, disse para você ficar tranquilo, pois todas
as suas coisas estão guardadas em um quarto secreto na livraria.
Ao se lembrar de seus tesouros, o coração de Rubyo se apertou, pois
não conseguia imaginar um futuro em que ele pudesse usá-los novamente.
Mas o simples fato de saber que estavam bem guardados por Ollaff já era
reconfortante. Rubyo permaneceu em silêncio por alguns segundos,
assimilando as informações recebidas, e Gary aguardou o tempo de seu
amigo, esperando que ele fizesse mais perguntas.
— Caso esteja curioso, — sussurrou Gary, quebrando o silêncio. —
Coloquei os guardas lá em cima para dormir através de alguns pães especiais
que fiz para eles, como sinal de agradecimento pelo bom serviço prestado.
Eu mesmo fiz o sonífero. O mestre Ollaff me presenteou com dezenas de
livros de alquimia, e estou usando esse conhecimento e o dinheiro do colar
que você me deu para abrir uma loja de poções. Fique tranquilo, assim que
eu recuperar o dinheiro, vou te pagar o valor do colar.
Rubyo se alegrou pelo amigo, mas não conseguiu deixar de
transparecer sua tristeza:
— Que notícia maravilhosa, Gary, parabéns! Espero que os deuses
abençoem seu negócio. Mas quanto ao pagamento, não se preocupe, pois
creio que nunca mais precisarei de ouro na minha vida... Só de ter sua visita
aqui, para me devolver a sanidade, já vale muito mais que qualquer dinheiro.
Gary sentiu seu coração se apertar ao ver o amigo naquela situação.
Rubyo estava malcheiroso, com os cabelos engordurados e armados de
sujeira, usando uma barba rala, que estava suja de mingau seco. Seu amigo
estava emagrecido e pálido, tendo perdido seus músculos e porte atlético,
que foram trocados por braços e pernas finas, somente pele e osso. Ele
tentou se segurar, mas não conteve a curiosidade:
— Você não pensa em fugir daqui, Rubyo? — perguntou Gary, olhando
para os dois lados. — Sabe que não seria difícil, né?
— Penso sim, meu amigo. Absolutamente todos os dias. Mas ao pensar
no que a rainha faria com meu povo ao saber da fuga, eu acabo desistindo.
Estou a cada dia mais convencido de que esse é meu destino, Gary, e não há
nada que possamos fazer para mudar isso... pelo menos enquanto a Lucrécia
viver ou governar.
— Creio que Ollaff já tenha cogitado isso também. Ouvi ele e a esposa
falando algo sobre assassinar a rainha, mas concluíram que isso não faria
diferença nesse momento. A Lucrécia ganhou muita popularidade depois que
te poupou e integrou os refugiados ao povo de Alferius, e qualquer pessoa
que assumisse o trono no lugar dela, com certeza manteria os decretos, para
manter o mesmo prestígio.
— Sim, eu imaginei... na verdade, já estou me conformando com essa
realidade. É uma merda viver aqui e sentir que estou pagando por erros que
não cometi, mas, por outro lado, o sentimento de dever cumprido, e de ter
honrado meu pai e meu tio, me trazem um certo conforto e paz. —
respondeu Rubyo, com um sorriso forçado, tentando convencer seu amigo
— Eu espero que sim, Rubyo, quero te ver bem. Prometo vir te visitar
todos os meses e sempre que tiver novidades. Já descobri como passar pelos
guardas, então ficará mais fácil vir aqui a partir de agora. Continue firme
assim, meu amigo. Você é, sem dúvidas, a pessoa mais forte que já conheci,
e o rei que todo o povo merecia ter!
Rubyo esticou seus braços e abraçou seu amigo através das grades, que
tentou disfarçar a careta pelo cheiro forte vindo do prisioneiro. Antes de
partir, Gary tirou de seu colete uma bolsa de pano idêntica à que Ollaff
utilizara na jornada até Minalkar, e entregou para Rubyo.
— O mestre me pediu para te entregar, e disse que, talvez, aí tenha tudo
o que você precisa.
Ao entregar a bolsa, Gary entrou na escuridão do corredor mal
iluminado e desapareceu facilmente. Rubyo abraçou a bolsa como se fosse o
próprio mestre Ollaff, e chorou copiosamente, colocando para fora toda a
tristeza que não quisera demonstrar ao seu visitante.
Capítulo 26: Hannambar
Algumas horas depois da saída de Gary, Rubyo conseguiu finalmente parar
de chorar e se recompor, acalmando-se para ver as surpresas que aquela
bolsa mágica continha. Ao enfiar o braço no artefato, Rubyo sentiu sua mão
formigar e esfriar instantaneamente, como se estivesse atravessando um
portal mágico. Sentiu diversos objetos lá dentro e foi retirando um por um.
Primeiro, o jovem encontrou seu colar de cristal, o qual colocou
apressadamente em seu pescoço, respirando com um enorme alívio por ter
sua magia de volta. Com cuidado, escondeu a pedra debaixo da túnica que
usava. Em seguida, Rubyo retirou várias frutas frescas, algumas secas,
pedaços de queijo, de bolo e, até mesmo uma pequena ave assada. O cheiro
da comida começou a se espalhar pelo local, agitando os presos das celas
mais próximas, então Rubyo deu algumas mordidas desesperadas na comida
e guardou de volta na bolsa.
Fuçando mais a fundo, encontrou dezenas de livros lá dentro. Eram
sobre diversos temas: História, Geografia, contos, romances, e inclusive
livros de magia e sobre a Eddor. Dentre eles, o que mais alegrou o jovem foi
reencontrar os diários de seu pai e seu tio. Rubyo notou que Ollaff sabia bem
as provações que ele deveria estar passando, então se preocupou em
alimentar não só o corpo de Rubyo, mas também sua mente e sua alma.
Ainda revirando as últimas porções da bolsa, encontrou um cantil cheio
de água limpa, do qual bebeu incansavelmente. De maneira curiosa, parecia
que, por mais que bebesse, a água simplesmente não acabava, assim como a
fonte mágica que Ollaff tinha em seu quarto de Minalkar. Por fim, Rubyo
encontrou seu anel mágico, porém achou melhor não colocar, para não
potencializar seus sentimentos ruins ou seu desejo de fugir.
O prisioneiro não se lembrava há quanto tempo não se sentia tão bem
animado como naquela noite. Era difícil dizer se sua melhora foi devido a
presença de seu amigo, se foi pela comida ou pela água fresca abundante,
mas, sem dúvidas, ele se sentia vivo novamente.
Os dias foram passando, o clima esquentando e a neve virou água,
dando espaço para um leve perfume de flores que vinha da pequena janela
de sua cela. Os livros já haviam sido todos lidos, mas Gary, conforme
prometido, retornava todos os meses com um novo pacote, trazendo mais
livros e mais comida para o amigo. Sentindo-se mais forte, Rubyo voltou a
praticar a Eddor e a se exercitar, recuperando, depois de alguns meses, seu
antigo condicionamento físico, ficando ainda mais forte, graças ao
desenvolvimento natural de seu corpo. De tempos em tempos, Rubyo
encontrava cartas de Ollaff entre as páginas dos livros, contando para o
jovem notícias e desejando forças para o cativo, prometendo que, um dia, o
tiraria dali.
Com o tempo, as visitas de Gary já não foram sendo tão constantes. Os
dois amigos passaram a parecer estranhos um para o outro, pois havia pouco
assunto, já que Gary não levava uma vida tão excitante atrás do balcão de
uma loja, enquanto seu amigo só tinha, de novidades, o que lia em seus
livros. Rubyo já não sabia mais quanto tempo se passava entre as — agora
— raras visitas de Gary, então passou a racionar o alimento que recebia para
não passar fome de novo.
Apesar dos livros, da comida, da bebida e de, até mesmo uma pesada
coberta que Ollaff, de alguma maneira, conseguiu enviar dentro da sacola
mágica, tinham dias em que Rubyo entrava em desespero e passava o dia
inteiro chorando e esbravejando, para a solidão de sua cela, sobre a vida
miserável que levava.
Durante as noites dos invernos seguintes, Rubyo utilizava seu cristal
para fazer pequenas fogueiras com a palha seca — o que fez com que seu
velho amigo roedor voltasse a visitá-lo. Apesar de já não ter noção de quanto
tempo havia se passado desde seu cárcere, Rubyo estimava já ter passado,
pelo menos, quatro invernos na prisão. Seu corpo já não era de um jovem,
mas de um homem. A boa alimentação, associado à rotina de atividades
físicas intensas, criou em Rubyo músculos que ele nem sabia que existiam
em seus braços, tronco e coxas, sustentando seus quase dois passos élficos
de altura. Ainda estava longe de ser grande como Inak, mas, com certeza, já
era muito mais forte do que seu tio um dia já sonhou ser. Seu cabelo
vermelho margeava a cintura quando molhado, e sua barba descia até o
peito. Estava pálido como uma manhã de outono, com a pele bem clara pela
falta de sol, diferente de seus dentes amarelados, que só não estavam piores
graças ao extrato de hortelã que, vez ou outra, Ollaff mandava em suas
encomendas, para a higiene bucal.
Após alguns meses sem a visita de Gary, a comida já havia acabado, e
Rubyo precisou voltar a comer o nojento mingau servido pelos guardas. Os
livros já haviam sido lidos e relidos algumas vezes, a ponto de até decorar
vários trechos deles.
Numa noite quente de verão, Rubyo transpirava muito pelo abafamento
de sua cela mal ventilada, o que o fez acordar para jogar um pouco de água
no corpo. Ao pegar o balde, ouviu alguém chamá-lo na porta, fazendo-o
derrubar o objeto pelo susto.
— Mestre Ollaff? — perguntou Rubyo, assustado, olhando para a
figura do ancião parado na porta de sua cela.
Ollaff vestia uma longa túnica negra, com um capuz escondendo parte
de seu rosto, mas não a barba, que agora estava bem curta. O velho mestre
sussurrou algumas palavras e tocou seu cajado na cela, abrindo o cadeado e a
porta. Rubyo correu e abraçou seu velho amigo, que correspondeu ao abraço,
apesar do forte cheiro que emanava do corpo do prisioneiro.
— Meu senhor, que homem você se tornou! — disse Ollaff, em voz
baixa, mas visivelmente alegre em ver Rubyo.
— E o senhor não mudou absolutamente nada! Exceto sua barba,
mestre, por que cortou? — perguntou Rubyo, animado.
— Nem tudo são flores no matrimônio, meu senhor... minha mulher
pediu. — respondeu Ollaff, com um sorriso amarelado.
— Não acredito nisso, mestre! — disse Rubyo, gargalhando. — Mas a
barba curta ficou bem no senhor, e nem parece que envelheceu nesses
últimos... quatro anos?
— Foram cinco anos, meu senhor. Cinco anos, seis meses e dezessete
dias. E não teve uma noite sequer em que dormi em paz, pensando no que o
senhor estava passando aqui!
Rubyo não conseguiu disfarçar a surpresa ao saber há quanto tempo
estava preso. Se Ollaff estivesse certo, ele já estaria agora com mais de vinte
e um anos, sendo que, quase um quarto da sua vida, fora naquela prisão.
— Mais de cinco anos, e o senhor nunca veio me visitar... Eu não te
culpo mestre, e nem culpo Gary por estar vindo tão pouco, pois sei que deve
ser uma cena lamentável me ver nessas condições. Eu só não consigo conter
a curiosidade em saber o porquê o senhor resolveu, do nada, aparecer aqui.
— Eu não tenho nem palavras para me desculpar por minha covardia,
meu Rei. Jessi me cobrava quase diariamente para vir te visitar, mas eu havia
prometido para mim mesmo que não viria até aqui enquanto não tivesse uma
solução para o seu problema. E o senhor sabe, só devemos...
— Só devemos prometer aquilo que podemos cumprir. Sim, eu me
lembro de suas lições, mestre. — completou Rubyo, interrompendo Ollaff,
enquanto olhava para o corredor através da porta aberta da cela, preocupado
com os guardas.
— Que bom que prestava atenção às minhas aulas, meu senhor. Quanto
aos guardas, fique tranquilo, pois eles beberam de uma safra de vinhos
especiais nesta noite, cortesia da Loja de Poções Bortolly e Bortolly, e estão
dormindo como bebês! — disse Ollaff, com um sorriso de canto.
Rubyo voltou para o centro da cela e sentiu-se estranhamente
desconfortável por haver outra pessoa lá dentro com ele. Não havia
protocolo social em ser um preso e receber visitas dentro de uma cela que
fedia, sem lugar algum para se sentar. Ollaff notou o desconforto de seu rei e
foi direto ao assunto:
— Meu senhor, não temos muito tempo, então preste muita atenção.
Encontrei uma maneira do senhor retomar Minalkar. É um plano arriscado,
complexo, mas, qual não seria, quando o prêmio é um reino inteiro? Ou
quem sabe, até dois...
— Mestre, se um dia eu realmente puder sair daqui e tiver condições de
fazer algo pelo meu povo, minha intenção é retomar as terras de Minalkar,
simplesmente. Não pretendo nunca nem tentar tomar as terras de Alferius.
— Mas não é do reino de Alferius que estou falando, Vossa Majestade.
— Outro reino, além de Minalkar, que não é Alferius? Quem, em sã
consciência, desafiaria o Império Marrom dos Cavaleiros de Harddam para
tomar Laghuna?!
— Também não estou falando de Laghuna, meu senhor. — disse Ollaff,
tirando um pergaminho de sua manga e entregando-o para Rubyo.
O pergaminho tinha um aspecto de novo, mas estava amassado em
várias partes, com marcas de oito dobras de papel. Rubyo notou uma
caligrafia diferente do que estava acostumado, mas escrito na língua comum,
com um selo real de cera ao final do texto, moldando um brasão
desconhecido:
Com amor,
Rosalind Cowa.”
Flaminus!