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DA MÃO AO OUVIDO:
fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia
acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira
São Paulo
2022
MAURÍCIO FUNCIA DE BONIS
DA MÃO AO OUVIDO:
fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia
acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira
São Paulo
2022
D278m De Bonis, Maurício Funcia,
Da mão ao ouvido : fichas sobre pensamento e linguagem e uma
melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira / Maurício Funcia De
Bonis. – São Paulo, 2022.
129 p.: il. color.
CDD 781.3
DA MÃO AO OUVIDO:
fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia
acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira
Banca examinadora
___________________________________
Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho
Instituição: UNESP
___________________________________
Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira
Instituição: UNESP
___________________________________
Prof. Dr. Amílcar Zani Netto
Instituição: USP
___________________________________
Prof. Dr. Denise Hortência Lopes Garcia
Instituição: UNICAMP
___________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso
Instituição: UFRJ
Para Caroline e Nuria.
RESUMO
1ª parte (Fichas 1 a 6)
1.1. N.º 01
Há cerca de dois anos, nos primeiros rascunhos para esse trabalho, pensava
em orientá-lo a uma pergunta fundamental: quais propriedades concretas dos
repertórios históricos modal e tonal permaneceriam pertinentes ainda hoje, na
estruturação do discurso musical, em tempos de desarticulação da prática comum na
qual vigeram? Em certo sentido, essa teria sido uma das premissas de Schoenberg
na formulação do dodecafonismo, em resposta a uma aguda sensibilidade para com
o estado da prática musical já em seu tempo. Pela eliminação da medida clara de
afastamento ou centricidade (em oposição ao resquício tonal), o serialismo tem uma
vocação contrapontística fundamental – de onde decorre, ainda, seu alto grau de
densidade de informação. Tomado o partido da expansão do cromatismo, ora erigido
em paradigma, a diluição do sentido tonal direciona o contraponto dodecafônico a uma
recuperação de alguns fundamentos da polifonia modal: um campo fechado de
configurações de módulos lineares de informação, em multiplicados pela textura, sem
uma camada de significados pré-estabelecida para suas combinações verticais.
Frente à abrangência da pergunta inicial, a especificidade na abordagem do
serialismo parecia um desvio de rota, que viria a dominar o trabalho como um todo.
Considerei reformular o problema central para um questionamento sobre o que
constituiria, na história da música, um sistema de referência; não exatamente em
busca de cada resposta a ser encontrada na história, mas do quanto sua abordagem
crítica orienta nosso salto no escuro ao escrever hoje – deixando claro, nesse
caminho, o compromisso de não abordar os sistemas históricos pelos regramentos
em que tantas vezes foram traduzidos (em fins didáticos questionáveis e anacrônicos),
mas como formas vivas de linguagem1. Pouco tempo passado, já pensava em
descartar as duas linhas de trabalho em busca de uma terceira quando recebi uma
ligação do Willy Corrêa de Oliveira, que contava que acabara de escrever uma peça
que nomeou de Melodia acompanhada (sic).
1
Anotava à margem, nesse momento, o ensejo de um estudo mais aprofundado do que Carnap
chamava de framework.
14
1.2. N.º 02
1.3. N.º 03
1.4. N.º 04
aristocratas não é aquela que compram os burgueses, é aquela que ninguém compra"
(MALRAUX, 1965, p.67). É um reaprendizado e redescoberta constante. Existe como
projeto metalinguístico, seja na ausência ou na recusa dos conjuntos de materiais e
procedimentos consagrados. Unifica-se como prática não no desdobramento natural
dos caminhos anteriores, mas no questionamento distanciado de seus fundamentos
para se tecerem novas formas de caminhar. "Um estilo morto, é um estilo que só se
define por aquilo que ele não é" (MALRAUX, 1965, p.81). Nesse sentido, alcança-se
um estado metalinguístico de expressão, em comparação com a prática musical
anterior. Não nos referimos à metalinguagem como materialização da referencialidade
material e suas implicações semânticas, mas como operação linguística que privilegia
a consciência de linguagem no observador, fora do canal entre emissor e receptor.
Colin Cherry expressa com precisão, em primeiro lugar, que um campo de
expressão artística constitui uma forma de linguagem pelo quanto o artista "instila
ideias em nós". Atesta em seguida, no que diz respeito à interdependência entre
linguagem e pensamento: "A linguagem de um povo restringe consideravelmente seus
pensamentos. Suas palavras, conceitos, sintaxe, de todos os signos usados pelas
pessoas, são o determinante mais importante do que elas são livres e aptas para
pensar" (CHERRY, 1968, p.73). Ao distinguir em seu trabalho a linguagem-objeto da
metalinguagem, enfatiza o papel da metalinguagem em veicular hipóteses, teorias,
descrições, regras, leis, relações (CHERRY, 1968, p.91, p.307). O aprendizado ou a
formulação de formas de comunicação são sempre metalinguísticos. Em determinado
ponto, aponta o quanto
implicações e inferências lógicas têm muito pouco a ver, diretamente, com a
linguagem tal como ela é realmente usada nas relações humanas cotidianas.
No entanto, não é a linguagem-objeto em si mesma que é necessariamente
estruturada de maneira lógica, mas sim a metalinguagem (científica) na qual
o linguista faz declarações e proposições sobre a linguagem-objeto que ele
observa (CHERRY, 1968, p.252, tradução nossa2).
2
"[...] logical implications and inference have little to do, directly, with language as it is actually used in
everyday human intercourse. It is, however, not the object-language itself which is necessarily logically
structured, but rather the (scientific) meta-language in which the linguist makes statements and
propositions about the object-language he is observing".
18
1.5. N.º 05
3
"Ainsi chacune de ses obsessions restait un travail, une expérience, une façon d'éprouver l'espace. 'Il
est bien fou, dira-t-on. Voici trois mille ans qu'on sculpte – et fort bien – sans faire tant d'histoires. Que
ne s'applique-t-il à réaliser des œuvres sans défaut selon des techniques éprouvées, au lieu de faire
semblant d'ignorer ses devanciers ?' [...] Après trois mille ans, la tâche de Giacometti et des sculpteurs
contemporains n'est pas d'enrichir les galeries avec des œuvres nouvelles, mais de prouver que la
sculpture est possible".
19
4
"Ainsi le sculpteur classique verse dans le dogmatisme parce qu'il croit pouvoir éliminer son propre
regard et sculpter en l'homme la nature humaine sans les hommes ; mais en fait il ne sait ce qu'il fait
puisqu'il ne fait pas ce qu'il voit. En cherchant le vrai, iI a rencontré la convention. Et comme, en fin de
compte, il se décharge sur le visiteur du soin d'animer ces simulacres inertes, ce chercheur d'absolu
finit par faire dépendre son œuvre de la relativité des points de vue qu'on prend sur elle. Quant au
spectateur, il prend l'imaginaire pour le réel et le réel pour l'imaginaire ; il cherche l'indivisible et rencontre
partout la divisibilité".
5
"[...] ces corps n'ont de matière qu'autant qu'il en faut pour promettre. 'Pourtant, dira-t-on, cela n'est
pas possible : il ne se peut pas qu'un même objet soit vu de près et de loin à la fois'. Aussi n'est-ce pas
le même : c'est le bloc de plâtre qui est proche, c'est le personnage imaginaire qui est éloigné".
20
1.6. N.º 06
Era o segundo dia do ano, há sete anos atrás; seco, quente, ermo8. A estrada
de terra cortava o esboço de cerrado, e a vista era sempre interrompida de surpresa
pelas rochas imensas, imprevisíveis, esculpidas pelos tempos. A toda roça que se nos
apresentasse, parávamos o carro (corajoso, nem minimamente preparado para a
empreitada) e perguntávamos se alguém vira rochas pintadas por ali, tal como
ouvíramos falar em Diamantina. E ali mais adiante, dentro mesmo do terreno do sítio
6
Sítios arqueológicos do Paleolítico superior, entre aqueles que contêm as primeiras manifestações
artísticas humanas.
7
"Il n 'est pas besoin de regarder longtemps le visage antédiluvien de Giacometti pour deviner son
orgueil et sa volonté de se situer au commencement du monde. Il se moque de la Culture et ne croit
pas au Progrès, du moins au Progrès dans les Beaux-Arts, il ne se juge pas plus 'avancé' que ses
contemporains d'élection, l'homme des Eyzies, l'homme d'Altamira. En cette extrême jeunesse de la
nature et des hommes, ni le beau ni le laid n'existent encore, ni le goût, ni les gens de goût, ni la critique
: tout est à faire, pour la première fois l 'idée vient à un homme de tailler un homme' dans un bloc de
pierre. Voilà donc le modèle : l'homme".
8
Com a licença do leitor, encerro essa primeira parte com uma espécie de assinatura; uma memória
pessoal provocada pela citação de Sartre sobre Giacometti e seus contemporâneos eleitos, os pintores
rupestres pré-históricos.
21
O carro, que deveria ter descansado bem antes, atolou entre a lama e as rochas
no chão e nos esperou por ali. Seguimos entre um mato baixo mas denso, cruzando
o regato naquele silêncio ruidoso com que os insetos nos avisam (sons e fontes
sonoras atingindo desordenadamente os ouvidos e a face) que o território não é
nosso. O sol a pino, o chão irregular, o mato denso e a escuta do entorno fazem da
lapa avistada na rocha (Fig.1) uma meta cada vez mais sedutora. A sensação de alívio
ao avistá-la mais de perto e perceber a proteção que o breu da gruta oferece é
imediatamente acompanhada da consciência de que estamos em dois e não
possuímos nenhum meio de proteção contra os animais maiores, que certamente
também apreciariam o esconderijo. O arrepio na espinha torna mais tensa a busca de
sinais na pedra, que parece intacta de qualquer manifestação humana. A lapa é
revelada em um trecho de desabamento da parte superior da rocha, com
empilhamentos desordenados de grandes pedras ao chão e uma variedade de
22
Dificílimo o acesso a esse painel mais alto, que é o que contém a maior
variedade de técnicas de preenchimento dos contornos dos animais, desde manchas
mais homogêneas até linhas paralelas. Já no teto da entrada da gruta, mais facilmente
acessível e estendendo-se da plena iluminação à completa obscuridade, sobrepõem-
se desordenadamente inúmeros animais, agrupados porém por categorias:
acumulações de mamíferos à esquerda e de aves à direita (Fig.4). As aves seguem o
preenchimento dos contornos por poucas linhas internas paralelas ao desenho, mas
esses mamíferos são coloridos por pontilhados ou linhas tracejadas.
24
2.1. N.º 07
9
Benjamin reitera esse ponto no texto A doutrina das semelhanças, de 1933: "a linguagem, como é
evidente para os mais perspicazes pesquisadores, não é um sistema convencional de signos"
(BENJAMIN, 2020, p.49).
27
2.2. N.º 08
2.3. N.º 09
2.4. N.º 10
10
Note-se que datam também do "aurignaciano", período de criação das primeiras esculturas que
chegaram até nós, as primeiras flautas feitas de osso ou marfim (CONARD et al., 2009). Mário de
Andrade pontua com propriedade que "talvez seja mais acertado falar que os povos primitivos
constroem instrumentos apenas com o fito de obterem som. Mas nem sempre sons predeterminados"
(ANDRADE, 1987, p.21-22).
31
2.5. N.º 11
11
Walter Benjamin, no texto Problemas de sociologia da linguagem, detalha uma crítica pontual ao
método e às conclusões míticas de Lévy-Bruhl, opondo a ele a crítica de Nikolaus Marr (BENJAMIN,
2020, p.65-66).
32
12
“L’art est d’abord un outil d’utilité immédiate, comme les premiers balbutiements du verbe : désigner
les objets qui l’entourent, les imiter ou les modifier pour s’en servir, l’homme ne va pas au-delà. L’art ne
peut être encore un instrument de généralisation philosophique qu’il ne saurait pas utiliser. Mais il forge
cet instrument, puisqu’il dégage déjà de son milieu quelques lois rudimentaires qu’il applique à son
profit.”
13
"alors que se développe de manière presque exclusive la technicité manuelle, une forme nouvelle
d’activité prend progressivement possession du champ facial : la mimique et le langage. Aucune
coupure ne se produit car les mouvements des lèvres et de la langue glissent simplement des opérations
alimentaires vers le façonnage des sons, les mêmes organes et les mêmes aires motrices intéressant
les deux formes d’activités. Ce rapport entre la technicité manuelle et le langage, impliqué en quelque
sorte par une évolution qu’on peut suivre depuis les premiers vertébrés, est certainement un des
aspects les plus satisfaisants de la paléontologie et de la psychologie car ils restituent les liens profonds
entre le geste et la parole, entre la pensée exprimable et l’activité créatrice de la main."
33
Spirkin acrescenta a esse mesmo ponto que a região cerebral responsável pela
fala se situa no hemisfério cerebral correspondente à mão utilizada na escrita,
contribuindo para a verificação da "estreitíssima concatenação existente entre o
trabalho, o pensamento e a linguagem". Comparando o desenvolvimento do trabalho
e da vida social entre o Neandertal, o sinantropo e o Cro-Magnon, associa a esse
último o estágio em que já se produzem ferramentas destinadas à produção de outros
utensílios, enquanto se desenvolvem amplamente a pintura rupestre e embriões da
linguagem escrita.
Todos esos aspectos de la actividad creadora del hombre en el trabajo y en
el arte que brotan de las necesidades de la vida económica se encuentran ya
a gran distancia de los fines inmediatos que se cifraban en satisfacer las
necesidades materiales del hombre primitivo. Sólo el lenguaje articulado
podía servir de forma en que cobrara realidad el pensamiento abstracto.
(SPIRKIN, 1961, p.44-46).
2.6. N.º 12
14
"Nier le rôle de la main, le rôle du travail, dans le développement de la société et de ses manifestations
idéologiques, c'est s'acheminer, consciemment ou inconsciemment, vers cette forme d'aliénation
spirituelle qui consiste à nier également que l'art et les autres productions de l'esprit aient leur origine
entière et exclusive dans le travail de l'homme, et à en attribuer l'invention à de prétendues divinités, à
des fétiches mythologiques.”
38
15
Essa hipótese é desenvolvida ainda na pesquisa de Marc Azéma. Em outro momento do filme de
Herzog, o paleontólogo Julien Monney relata a visita de um etnógrafo ao norte da Austrália, em que ele
presencia um aborígene retocando uma pintura rupestre que começara a se desintegrar. O etnógrafo
pergunta ao nativo por que ele pintava, ao que ele responde que não está pintando, que o espírito é
que pintava através de sua mão. O etnógrafo, Monney e Herzog parecem não ter vislumbrado
suficientemente o quanto a expressão precisa do pintor está em plena coerência com a argumentação
de Benjamin, Vigotski e Spirkin que evocamos aqui.
39
3.1. N.º 13
3.2. N.º 14
16
"L'oreille va davantage vers le dedans, l'oeil vers le dehors".
43
3.3. N.º 15
3.4. N.º 16
O anseio por algo que se impusesse com força comparável aos sistemas
musicais históricos permeia (como metalinguagem) parte significativa do repertório
desde o início do século XX. Talvez a última proposta de uma ampla generalização
compartilhada da operação composicional tenha sido a de Pousseur na década de
1960, que por sua vez, é claramente exposta como desdobramento do pensamento
serial. As experiências seriais, desde Schoenberg, sempre se propuseram agir na
lacuna da falta de uma sistematização, no compartilhamento de uma solução
estruturante para o discurso musical em larga escala. Em resposta ao repertório atonal
de seu tempo, o primeiro serialismo opera como uma pulsão para a superação do
balbucio pré-linguístico em direção à linguagem articulada.
A música dos últimos séculos, que consideramos como nossa música
clássica em sentido amplo, como nossa música tradicional, e que encontra
no sistema da tonalidade sua expressão sintática mais equilibrada, é uma
música na qual praticamente tudo se encontra construído e sustentado de
maneira periódica.
[...] Pode-se facilmente mostrar que essa disposição estrutural bem definida
é a expressão e a realização de uma ideologia igualmente bem definida, de
uma estrutura social e de uma prática das relações humanas facilmente
reconhecível. Para ser breve, podemos resumi-las num único vocábulo:
"individualismo". A disposição simétrica, periódica, era, por excelência,
auxiliar de uma concepção de mundo concêntrica, egocêntrica. Que as
dificuldades experimentadas desde muito cedo pelo individualismo geral, e
que conduziram à sua progressiva desagregação, tenham encontrado suas
correspondências no domínio musical, que uma crise autodestrutiva se tenha
desenvolvido na música como em todos os outros domínios parciais, parece
ser evidente e não necessitar de maiores desenvolvimentos neste quadro
limitado.
46
3.5. N.º 17
3.6. N.º 18
17
"In a manifold sense, music uses time. [...] It would be most annoying if it did not aim to say the most
important things in the most concentrated manner in every fraction of this time. [...] The necessity of
compromising with comprehensibility forbids jumping into a style which is overcrowded with content, a
style in which facts are too often juxtaposed without connectives, and which leaps to conclusions before
proper maturation".
48
3.7. N.º 19
18
"In homophonic forms, for the sake of the principal part's development, a certain economy governs
the harmony, thanks to which it is in a position to exert a decisive influence on the development of the
structure (contrasts, climaxes, turning-points, intensifications, variations)".
50
Fig.5. Trecho de Col sorriso d'innocenza, ária do segundo ato de Il Pirata, de Vincenzo Bellini.
Fig.6. Sequência do exemplo anterior, somando quatro indicações de col canto em um espaço de seis
compassos, em meio a indicações como a piacere, stentato e fermatas.
3.8. N.º 20
hasta esa ocasión había salido de Austria y que hasta entonces sólo era
“conocido”, se hizo famoso por su éxito entre el público burgués de la
metrópoli y en la prensa: el salto a una nueva época no requirió un cambio de
generación, sino que fue consumado por el Haydn de 60 años.
Y también le salió bien otro salto, quizá el más discretamente revolucionario
de la historia de la música. A partir de 1740, aproximadamente, el rígido y
anticuado estilo contrapuntístico iba a desembocar en un lenguaje musical
homofónico más complaciente y ligero. [...] Con la elaboración motívico-
temática por él inventada (hacia 1770-1780), Haydn consiguió desarrollar una
nueva polifonía que no recordaba a la música antigua, como le sucedía al
grave estilo eclesiástico (tal era su intención, al fin y al cabo), sino que
evolucionó a partir del nuevo lenguaje de la sinfonía y el cuarteto de cuerda
(DE LA MOTTE, 1998, p.297).
19
Wallace Berry, em breve passagem sobre a “ativação de texturas simples”, comenta sobre o recurso
frequente ao acompanhamento arpejado de um elemento temático dominante nos séculos XVIII e XIX,
como no baixo de Alberti, mas aborda-o de forma isolado de seu contexto como impulsionador do
discurso harmônico e motívico, expresso com tanta clareza por Schoenberg. Para Berry a “vitalização
rítmica” desse tipo de perfil compensaria a ausência de eventos significativos funcionais na textura
(1987, p.222), o que é exatamente o oposto do que argumentamos aqui e do que Schoenberg
demonstra.
20
“The accompaniment should not be a mere addition. It should be as functional as possible, and at
best should act as a complement to the essentials of its subject: the tonality, rhythm, phrasing, contour,
character and mood. It should reveal the inherent harmony of the theme, and establishes a unifying
motus. It should satisfy the necessities and exploit the resources of the instrument (or group of
instruments).”
57
3.9. N.º 21
21
De La Motte ressalta que a expressão “elaboração temática” surge em torno da obra de Haydn
precisamente porque em sua obra a elaboração pode passar despercebida pela facilidade de execução
(1998, p.297).
58
3.10. N.º 22
22
"Music of the homophonic-melodic style of composition, that is, music with a main theme,
accompanied by and based on harmony, produces its material by, as I call it, developing variation. This
means that variation of the features of a basic unit produces all the thematic formulations which provide
for fluency, contrasts, variety, logic and unity, on the one hand, and character, mood, expression, and
every needed differentiation, on the other hand – thus elaborating the idea of the piece."
59
que dela se desdobra. A elaboração dos temas principais nos movimentos em forma
sonata constituiriam exemplo máximo, naquele momento, desse compromisso
estrutural (Fig.8).
3.11. N.º 23
3.12. N.º 24
23
"These indications are for the purpose of making clear to each performer the importance of his part.
It follows that unmarked passages are to retire into the background as accompaniment".
64
qual fosse possível incorporar a sabedoria discursiva do trabalho musical dos últimos
duzentos anos no contexto da música de seu tempo. O que o movia à construção
dessa proposição pode ser apontado como o fato da música de seu tempo só ser
passível de uma definição por negação; por oposição àquilo que se sabe que ela não
é. Por mais reverente que fosse sua devoção ao compromisso entre a estruturação
da polifonia e o tempo de sua enunciação no repertório tonal, sua solução é
necessariamente circunscrita a esse estado de coisas. A falta de memória coletiva na
premissa do problema a ser enfrentado se reflete não apenas na difícil memorização
dos discursos musicais (o que, hipoteticamente, poderia ser enfrentado através de um
treinamento específico), mas principalmente, no quanto a linguagem permanece
inseparável das formas de pensamento que produziram o estado de coisas do qual se
parte. O que é inegável em sua iniciativa (e que se tornaria imprescindível para a
criação musical pelas gerações subsequentes) é a ação deliberada para alcançar uma
contribuição no avanço dos meios de produção, nas técnicas de operação discursiva
em música, informadas ao máximo pela abordagem crítica das experiências
passadas. Há um sinal de uma agudíssima consciência dialética da história do
material musical no difícil percurso das peças de Schoenberg em seu tempo.
O repertório mais diretamente centrado na recuperação de tais perfis históricos
coincide com a produção mais comumente criticada em toda a obra serial de
Schoenberg. Comparem-se nesse sentido os concertos para piano (op.42) e violino
(op.36), o Quinteto de Sopros op.26, o terceiro e o quarto quartetos de cordas (op.30
e op.37), esforços deliberados de metalinguagem do tonalismo no que se refere tanto
ao perfil quanto a suas implicações formais, com a Fantasia para violino e piano op.47,
o Sobrevivente de Varsóvia op.46, o Trio para cordas op.45. Mas que se verifique em
detalhe uma peça como a Klavierstück op.33a para se dirimir qualquer dúvida quanto
ao grau de consciência do compositor quanto à inseparabilidade entre pensamento e
linguagem, forma e conteúdo, material e enunciação em larga escala. Se a densidade
de informação e a larga duração se impõem como desafios à apreensão, por exemplo,
do op.26, que se verifiquem as escolhas do material e de seu perfil para uma crítica
que opusesse com propriedade os movimentos iniciais do op.42 e do op.37, do op.36
e do op.30, por exemplo.
A simplicidade na estruturação da polifonia foi uma ferramenta necessária no
século XVIII, quando se apresentou a demanda pela estruturação autorreferente do
65
4.1. N.º 25
Fig.12. Compassos 16 a 18 de Epitalâmio para piano, de Willy Corrêa de Oliveira (2016). Compare-se
o perfil da mão direita nos compassos 17 e 18 com o motivo principal do 1º movimento da Sonata
op.49 no.1 de Beethoven (Fig.14).
É essa mesma ordem de perfil (na mão direita) que abre a Melodia
acompanhada. Mas há outra peça sua para piano, Ruba'i (2012), em que o papel
fundamental exercido, por um lado, por um breve perfil similar reiterado ao início, e
por outro, pela citação de um trecho do segundo movimento da Sonata de Beethoven
(já citado no Epitalâmio), faz parecer que o Ruba’i era a peça a que Willy se referia,
como origem do perfil inicial da Melodia acompanhada. O perfil do segundo compasso
da Melodia acompanhada é quase idêntico ao perfil inicial do Ruba'i; são as mesmas
alturas, dispostas de modo diverso no registro, apenas com uma mudança na ordem
das notas (a segunda nota do perfil de Ruba'i se tornaria a quarta nota na Melodia
acompanhada). Ainda, no Ruba'i, o perfil é repetido duas vezes e variado em seguida,
o que por si só já aponta para uma estratégia estruturante distinta entre as duas peças
(Fig.13). Na Melodia acompanhada o material da peça anterior é colhido como algo
24
Esse mesmo motivo também é citado por Willy nas peças para piano Versos (2019c) e Madrigal
(2017).
69
Fig.13. Ruba'i para piano (2012) de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 1 a 9. Compare-se o perfil
inicial com o segundo compasso da Melodia acompanhada (Fig.11) e com o motivo principal do
1º movimento da Sonata op.49 no.1 de Beethoven (Fig.14).
4.2. N.º 26
25
Poderia ser argumentado que a melodia é que omite uma das quatro notas do motivo diatônico
descendente, apresentado de forma integral no acompanhamento. Comparem-se as três primeiras
notas da mão direita no compasso 1 com as notas 1, 3 e 4 da voz inferior na mão esquerda (Fig.14).
26
Cabe ressaltar que a ênfase sobre o arpejo, ocorrida na subdominante em sua primeira aparição no
acompanhamento ao final do antecedente, ocorre sob uma melodia que afirmara apenas uma vez, em
suas três primeiras notas, um arpejo do acorde de tônica.
71
Fig.14. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 1 a 18.
Fig.15. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 14 a 33.
Fig.16. Compassos 17 a 20 do terceiro movimento do Concerto para piano no.3 op.37 de Beethoven.
Compare-se com os compassos 16 a 20 do 1º movimento da Sonata op.49 no.1 (Fig.15).
Fig.17. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 34 a 59.
Fig.18. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 60 a 86.
reitera o motivo principal do segundo tema na região grave; agora é a banda aguda e
médio-aguda que é inteiramente filtrada (cp.97 a 110, Fig.19).
Fig.19. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 92 a 110.
4.3. N.º 27
27
Compare-se esse pensamento com a leitura proposta na nota de rodapé 25, sobre a inseparabilidade
entre esse motivo e seu acompanhamento, para que se vislumbre uma realização do que foi discutido
nas fichas n.º 21 e n.º 22.
77
28
Na sugestão de associação dos perfis dos quatro primeiros compassos com o motivo principal da
Sonata op.49 no.1 de Beethoven que empreendemos na ficha n.º 25.
29
Compare-se com a Fig.21.
30
Compare-se com o cp.25 da peça de Mozart na Fig.10.
31
Compare-se com o início da peça de Chopin na Fig.7.
78
inseparabilidade de perfil junto à melodia; mas não perderia, também, sua razão de
ali subjazer só por essa falta de compromisso. Perde, sim, sua função na evocação
da peça em projeto que problematize a melodia acompanhada, razão que justifica sua
ausência nas duas referências à peça de Antheil: o motivo principal (compassos 1 e 2
em Antheil) é evocado nos compassos 13 e 15 da Melodia acompanhada, enquanto
a figura em resposta descendente (compasso 3 da valsa) é referida no compasso 11
da peça de Willy (Fig.20).
Fig.21. Primeira peça do ciclo Valentine waltzes, de George Antheil (1900-1959), compassos 1 a 9.
32
Tentaremos dar conta do papel dessas resultantes harmônicas nas fichas seguintes.
81
No que segue, cinco dos últimos seis compassos da peça veem o recurso ao
acorde de Tristão, braço do campo de materiais da peça ao qual o discurso converge.
Entre esses seis compassos, o terceiro, único que não ouve o acorde de Wagner,
refaz a "assinatura" de Willy com a pena de Mozart, agora adensada em terças. Nos
três últimos compassos a assinatura é repetida sobre a reiteração do acorde de Tristão
como único objeto vertical (Fig.23).
4.4. N.º 28
fim do quarto perfil (cp.4), uma extensão de pouco mais de seis oitavas (excetuando-
se apenas a última oitava aguda do instrumento).
O conteúdo intervalar desses quatro perfis pontilhísticos pode ser comparado,
entre outras maneiras, abordando-os em posição fechada (como se suas notas
constitutivas estivessem no mesmo registro), de modo a descrever um núcleo
intervalar característico que se manterá reconhecível em operações variadas de
aberturas no registro e inversões33. Assim, o primeiro e o segundo perfis contêm um
conjunto de quatro notas à distância de semitom, formando um âmbito de terça menor
(notas 3 a 6 do primeiro perfil e notas 1 a 4 do segundo). Em cada um desses perfis,
esse conjunto é acrescido de um grupo de duas notas em relação de segunda, a uma
terça de distância do conjunto de quatro notas (lá/si no primeiro grupo, ré/mi" no
segundo, Fig.24).
O terceiro perfil se mostra sutilmente contrastante em relação aos dois
primeiros: também começa com a relação de segunda menor, seguida de um grupo
de três notas à distância de semitom (notas 3 a 5), não chegando a constituir um grupo
de quatro notas cromáticas como os dois primeiros. Entre a quinta e a sexta nota,
nova informação, em deslocamento de trítono e ataque timbrado em oitavas ao médio-
agudo. E assim como as notas 3 a 5 desse terceiro grupo constituem um grupo
cromático, também o perfaz o agrupamento das notas 1, 2 e 6. A relação de trítono
que encerra o terceiro grupo conduz a um contexto intervalar consistente com a escala
de tons inteiros, que predomina no quarto grupo, distendendo de alguma forma a
tensão intervalar dos conjuntos cromáticos anteriores. Essa distensão intervalar como
sugestão conclusiva, após um terceiro elemento de contraste ligeiramente mais
acentuado (em resposta aos dois perfis iniciais mais similares) pode sugerir a esse
início aparentemente pré-discursivo um perfil sentenciforme (Fig.24).
33
Não empreendemos aqui uma análise na qual o material fosse essa redução às posições mais
fechadas, como sua forma primária. A forma primária dos materiais harmônicos é sua disposição
específica no registro; para efeito de comparação, consideramos aqui algum grau de parentesco entre
as inversões intervalares.
85
Fig.26. Outras resultantes harmônicas dos perfis iniciais pertinentes à estruturação da peça.
Fig.27. Campo de acordes derivados dos perfis iniciais (compassos 1 a 4), em redução para sua
posição mais fechada. Na linha superior, estão transpostos para iniciarem sobre o mesmo ponto (para
efeito de comparação) e escalonados do agregado mais cerrado aos mais abertos34; na linha inferior,
apontam-se as ocorrências originais mais frequentes dos perfis não triádicos, na peça.
Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos materiais harmônicos de Oliveira (2020).
34
O caminho percorrido nessa exposição linear do campo de acordes da peça lembra a estratégia de
Henri Pousseur em peças como Vue sur les jardins interdits (veja-se DE BONIS, 2014). Em que pese
a importância impulsionadora de Pousseur para Willy em sua juventude, o caminho tecido por Pousseur
é o mais absolutamente distinto do projeto empírico intentado por Willy nessa peça, já que o percurso
de Pousseur desde clusters até agregados gradualmente mais distendidos e finalmente ao campo
harmônico triádico (e a uma citação setecentista) é percorrido dentro de um plano pré-estabelecido, em
rede intervalar projetada como solução generalizadora pós-serial, e não em estratégia desdobrada da
especificidade do material para cada peça em particular.
89
4.5. N.º 29
4.6. N.º 30
do compasso 13 que retorna na parte superior, sobre acordes do tipo 3 (Fig.27) e uma
superposição de tríade maior e tétrade diminuta na mão direita (resultando em um
acorde maior com sétima e nona menor), superposto ainda à sonoridade dominante
da tríade grave e aberta de sol menor na mão esquerda (Fig.30).
4.7. N.º 31
35
Em tempos passados, de enunciações tonais (e à maneira de contraste textural), a homofonia estrita
pôde operar, eventualmente, confiando todo o movimento ao significado harmônico. Mas mesmo
nesses contextos, dificilmente sustentava sozinha a enunciação do discurso, como faz o
acompanhamento figurado.
97
perfis repetidos e gradualmente variados têm, quase em sua totalidade, cinco notas;
o aumento para seis e oito notas nos três últimos também é um sinal para sua
liquidação última (cp.26, Fig.31). Em coerência com o que até o momento se enunciou,
essa seção recupera o trecho o mais assertivo e o menos reelaborado já ouvido na
peça, os perfis dos quatro compassos iniciais. Antes atomizados em estupor a partir
do convite da memória do motivo da Sonata op.49 no.1 de Beethoven, nos compassos
25 e 26 (Fig.31) serão diretamente derivados do segundo perfil, na predominância da
segunda menor e do acorde de tipo 3 (Fig.27). Outro sinal do caminho para sua
conclusão é o abandono dessa configuração harmônica em direção às resultantes de
tons inteiros (pertinentes ao perfil do compasso 4), ao final do compasso 26 (Fig.31).
O encerramento da repetição dos perfis leva a uma espécie de coda da seção
central contrastante, em retorno do adensamento vertical e em encadeamento mais
sistemático das resultantes acórdicas observadas na peça. O compasso 27 se abre
com o mesmo motivo melódico do compasso 13, dirigindo-se a um encadeamento de
duas terças maiores, seguido de uma superposição dos acordes de tipo 3 e 4, um
acorde do tipo 1, outro de tipo 2, uma tríade aumentada e um acorde de Tristão
(Fig.31). Em rápida verificação dos resultados da aplicação das propostas de Edmond
Costère (1962) a esse trecho caracteristicamente cadencial (agrupando em dois
acordes sucessivos, para efeito de comparação, as três primeiras notas e as duas
díades que a seguem), observamos a ênfase sobre o caminho da estabilidade à
instabilidade específica dos acordes: primeiro, terceiro, quarto e quinto acordes são
estáveis; segundo, sexto e sétimo são instáveis (Fig.32). Há forte mobilidade entre as
notas polarizadas no caminho, privilegiando inicialmente o centro em si e fá! (no
contexto do acorde de tipo 3) e caminhando para lá" (no acorde de Tristão).
98
Fig.32. Compasso 27 da Melodia acompanhada: na linha central, potencial atrativo interno de cada
acorde; na linha inferior (entre parênteses), unidades de potencial atrativo entre cada acorde e o
acorde seguinte; as notas brancas indicam os polos de atração e as setas o caminho para sua
polarização. A partir dos números da linha central pode-se verificar a estabilidade ou instabilidade
específica de cada acorde, comparando-o com os valores médios de referência para cada caso (para
acordes de 3 sons: entre 3 e 4 unidades de potencial atrativo; para acordes de quatro sons, entre 6 e
7 unidades).
4.8. N.º 32
de seu registro funcional de origem para a banda aguda (sem a demanda pelo registro
central característica do modo de jogo tonal). Pode-se ouvir nesse lugar (cp.30-31) a
memória da Sonata "ao luar" op.27 no.2 como variante da seção central contrastante.
Com isso, abre-se uma pequena seção contrastante dentro de um A', e o arpejo36 aos
poucos se converte em largo desenho ao agudo como acompanhamento do perfil
aumentado, alargado, provindo do segundo compasso. O fechamento desse segundo
perfil, em seus dois últimos pontos, é feito com o retorno dos acordes rebatidos,
primeiro ao agudo (em tríades menor e maior com sétima) e em seguida, pela primeira
vez na peça, na região central, com o acorde de Tristão ressignificando o perfil do
Prelúdio no. 4 de Chopin (cp.33, Fig.33).
Esse retorno dos acordes rebatidos no compasso 32 pode ser ouvido como
referência distante ao op.49 no.1 de Beethoven, sem nenhum dado de seu perfil
dinâmico: apenas as duas funções harmônicas básicas, predominantes no primeiro e
segundo compassos da Sonata (Fig.33).
36
Arpejo que, no original de Beethoven, é a melodia de fato, auto-acompanhada, sob pontos estáticos
que demoram a se sugerirem lineares.
100
por toda parte, mesmo em sua absoluta ausência, como ocorre nos compassos 36 a
38. Ouvimos aqui uma solução pianística para expressar o pontilhismo dos perfis
iniciais em densidade acórdica que imiscui o acorde de Tristão à melodia da assinatura
mozartiana. À maneira da formação da linguagem pictográfica, fundem-se os
elementos ideogramáticos antes justapostos (cp.5-6) em um só ideograma que
condense as duas representações (cp.36-38, Fig.34).
Figura 34. Melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 35 a 38. Abaixo, propostas
distintas de filtragem dos compassos 37 e 38, apontando duas possíveis chaves de escuta para o
conteúdo do compasso 37: na primeira, a derivação dos perfis iniciais da peça; na segunda, a
enunciação pontilhística da “assinatura” advinda do Concerto de Mozart.
37
Edmond Costère considera que o valor médio de referência para a verificação da estabilidade
específica do acorde de cinco notas se situa entre 10 e 11 unidades de potencial atrativo (1962, p.95).
O acorde do compasso 9 possui 9 unidades, enquanto o acorde do compasso 38 possui 11.
103
"assinatura" nos compassos 5 e 6 (de Wagner a Mozart), e convida, por fim, a ouvi-la
como ideograma que sintetiza a proposta harmônica da peça.
4.9. N.º 33
38
Em que pese, ainda, a ausência de um sistema de referência que orientasse seccionamentos
privilegiados em larga escala.
39
No registro feito por Alexandre Ulbanere das aulas de graduação ministradas por Willy Corrêa de
Oliveira, no encontro de 27 de novembro de 2000, Willy comentava em aula sobre uma escuta do
primeiro movimento da Sonata op.111 de Beethoven como uma metalinguagem do processo criativo.
Como se, procedendo à maneira de um improviso, o discurso enunciasse um comentário sobre o
trabalho da composição (ULBANERE, 2005, Anexos, p.79-82).
104
materiais harmônicos, seja como origem dos perfis melódicos principais sobre os
quais se estruturará a melodia acompanhada ao final da peça. Assim, teríamos uma
Seção A entre os compassos 1 e 6 (que pode possuir a "assinatura" como coda,
estendendo-se até a fermata). Inicia-se então um movimento discursivo gradual, que
comparado à assertividade motívica que o segue, pode ser considerado uma ponte
(inclusive, nesse caso, uma condução direcional à nota inicial da melodia seguinte).
Portanto, os compassos 7 a 12 podem ser ouvidos como uma ponte para a parte B. A
parte B iria do compasso 13 ao 24, incluindo uma seção central contrastante sobre as
citações de Mozart e Chopin (situando-as como dado secundário na estruturação
formal da peça, espécie de episódios em meio à grande seção contrastante).
Compreendendo dessa forma a enunciação, em que os perfis graves iniciais são a
principal exposição de material (mesmo que se trate de um lento nascimento da ideia,
ainda em conformação), a aparição do perfil grave e ondulante de acompanhamento
advinda do Noturno de Chopin oferece-se como variante daqueles perfis dos quatro
primeiros compassos.
O trecho da melodia "auto-acompanhada", breve, de pouca variedade de
material mas em forte movimento, pode ser considerado agora uma ponte (cp.25-27)
para a seção A' (compassos 28 a 34). O A', aqui, consolida o projeto da peça; constitui
para todos os efeitos o perfil de melodia acompanhada, em contraste textural
constante, em inseparabilidade e compromisso entre melodia e acompanhamento, e
em impulsionamento temporal do discurso nas dimensões motívica e harmônica,
simultaneamente. A consideração da assinatura como coda da seção A sugere, agora,
a separação dos compassos 35 a 38 como Coda da peça como um todo, restringindo
a seção A' aos compassos 28 a 34. Duas características reforçam a compreensão do
compasso 34 como encerramento da seção A': primeiro, a interrupção do intenso
movimento do perfil de melodia acompanhada sobre a fermata, e segundo, a
recuperação literal dos materiais harmônicos em gesto cadencial que tinham ocorrido
ao final da ponte entre B e A’ (cp.27).
Teríamos nessa nova leitura a divisão em Seção A (cp.1-6), ponte (cp.7-12),
Seção B (cp.13-24), ponte (cp.25-27), Seção A' (cp.28-34), Coda (cp.35-38). Não se
pode deixar de observar, nessa interpretação do seccionamento formal da peça, que
subverte-se acentuadamente a razão de ser mais comum de um ABA, na realização
de um projeto que seja meramente esboçado nos primeiros compassos e se desdobre
105
plenamente apenas na seção final (Fig.35, 36, 37). Mas essa leitura seria pertinente
à sugestão de um A-B-A “transfigurado”, tal como sugerido por Willy (e exemplificado
em Chopin) no texto A forma ABA: linguagem e memória (1977). Como se a
recuperação de modos de acompanhar da história da música na parte B – de Mozart
(cp.16) e de Chopin (cp.17-20), além da linha “auto-acompanhada” na ponte –
impulsionasse a transfiguração dos perfis (cp.1-4) da parte A em um painel de formas
de acompanhamento enunciadas da elaboração dos materiais anteriores, na terceira
seção. E ainda, ao final, a “assinatura” que concluíra a parte A (cp.5-6) ressurgiria
transfigurada em nova polifonia, na Coda (cp.35-38).
106
4.10. N.º 34
Na ficha 25, que abria essa quarta parte, prometemos não desviar novamente
da peça de Willy, como no parêntese um pouco longo da ficha 26. Mas ao percorrer
essa quarta parte e propor uma escuta da Melodia acompanhada, há um ponto sobre
o qual restaria o que dizer, e este aponta novamente para fora da peça, para outrem;
agora não mais à maneira de um parêntese, mas de uma coda da quarta parte do
trabalho.
Que a linha advinda do Concerto de Mozart não tenha na peça de Willy um
papel temático predominante, assim como não participe da proposição fundamental
dos materiais na Melodia acompanhada, fica claro pela sua deliberada ausência no
corpo da peça. Sua aparição súbita no início da Melodia acompanhada é esquecida
para ser finalmente compensada, como dado final que faltava ao equilíbrio estrutural,
quando de seu ressurgimento como último modo de acompanhamento do perfil inicial,
nos quatro últimos compassos. Esse conteúdo ausente do corpo da peça (e que ainda
demandava ser liquidado) converte a escuta dos quatro últimos compassos em uma
Coda, não exatamente por sua natureza polifônica ou harmônica, mas pela ausência
até ali do material expresso na banda superior. Mas no telefonema, Willy tinha dito
que antes mesmo das tentativas de uma configuração melódica, ele "assinara" a peça.
Por volta de 40 mil anos atrás, estampávamos negativos das mãos, pintando seu
entorno: espalmadas na rocha. Aqui, o retrato da mão se ouve como um fragmento
de uma estrutura sistêmica, uma enunciação diatônica descendente da escala menor
melódica – mas a sutileza específica dessa enunciação é inseparável de sua
ocorrência no Concerto de Mozart. Ainda que não se trate precisamente de uma
escolha deliberada ("o que nasceu da mão deve ser experimentado e degustado pela
mão", diria Gilardoni), caberia desvendar o que resta implicado na assinatura como
parte de outra peça distante, subitamente evocada.
No Concerto para piano no.24 K491, a linha citada na Melodia acompanhada
constitui um episódio dentro do primeiro grupo temático (cp.44-46, Fig.38). O tema
principal do movimento é caracterizado pelo cromatismo (perpassa o total cromático
em oito compassos) e pelos largos saltos dissonantes, enunciado primeiro
monodicamente, e em seguida em densa homofonia.
110
Sua alta densidade é filtrada para uma espécie de ponte (cp.35-44) para um
primeiro episódio na tônica. O episódio (cp.44-46, fig.38) desencadeia imitações e
contracantos (cp.46-52) a partir uma linha que tem a estranheza de um desenho
diatônico descendente sobre a escala menor harmônica, em simples alternância de
primeiro e quinto graus.
A surpreendência dessa aparição no Concerto, para além da estabilidade com
que contrasta com o cromatismo exacerbado do tema (afirmando assertivamente a
tônica, após o encerramento do tema principal), reside na reiterada singeleza
melódica que acompanha a falta de movimento harmônico, com a sutileza de se
enfatizarem as arestas intervalares da escala menor harmônica. As três notas em
anacruse começam no terceiro grau e o apoio no tempo forte do compasso seguinte
recai sobre o sétimo grau (em âmbito de quarta diminuta para esse primeiro
fragmento), imediatamente sucedido da segunda aumentada para o sexto grau e do
caminho diatônico para a tônica no próximo tempo forte. Nesse momento surge
também, pela primeira vez no Concerto, o acompanhamento figurado, primeiro com o
acorde quebrado de tônica, sucedido por um movimento em sextas e terças paralelas
à melodia. Observando o conjunto todo em maior distanciamento, o protagonismo do
acompanhamento e a organização sistemática das imitações sugere um duplo fugato,
brevíssimo, como estrutura do episódio como um todo (cp.44-52, fig.38).
111
referência à tendência mozartiana (no tecido das disparidades) que acusa uma
identidade de base com a ordem de trabalho da Melodia acompanhada, uma vez que
o sentido primeiro da experiência intentada nessa peça é uma resposta esclarecida à
consciência do estado anômico da composição hoje, à tendência generalizada à
prolixidade sem lastro nem articulação discursiva.
Não temos hoje um mundo sendo feito às nossas vistas, por nós. Hoje
dispomos de pedaços, de escombros, de estilhaços, que juntamos,
remontamos, recompomos: para sobreviver.
Se é que existe coisa em comum na música do século XX, há de ser a
fragmentação, o acúmulo de informações, porém sem nexo quase sempre.
Para quem recebe um mundo aos cacos, cacofônico, variegado, berrante e
escuro como o capitalismo tem prodigado, creio que se pode invocar a ajuda
de Mozart. Não que Mozart faça corpo com este mundo, mas pela ciência que
ele tinha de lidar com as informações. Pelo menos, que saibamos juntar as
coisas, mesmo que terríveis, visto que não nos sobram mais que sobras. Mas
que as obras não sejam só sombras das sobras. [...] A assíndese como
técnica de interligação das informações torna ainda mais aliciante o feito
mozartiano para um compositor de hoje (OLIVEIRA, 2019a, p.26-27).
114
115
5.1. N.º 35
cultura e barbárie professada por Benjamin não seja lida como metáfora e nem mesmo
como hipótese, tal como boa parte de nosso ensaio. Verifique-se, como antídoto, se
nos mais de cem anos passados desde o trecho de Rosa Luxemburgo copiado abaixo
(retirado de A crise da social-democracia) conseguimos, como sociedade, superar
esse estado de coisas, ou se o texto se mantém atual.
Friedrich Engels disse uma vez40: a sociedade burguesa encontra-se perante
um dilema – ou passagem ao socialismo ou regressão à barbárie. O que
significa “regressão à barbárie” no nível atual da civilização europeia? Até
hoje todos nós lemos e repetimos essas palavras sem pensar, sem ter ideia
de sua terrível gravidade. Se olharmos à nossa volta neste momento,
veremos o que significa a regressão da sociedade burguesa à barbárie. Esta
guerra mundial é uma regressão à barbárie. O triunfo do imperialismo leva ao
aniquilamento da civilização – esporadicamente enquanto durar uma guerra
moderna e, definitivamente, se o período das guerras mundiais que está
começando continuar sem obstáculos até suas últimas consequências
(LUXEMBURGO, 2009, p.92).
5.2. N.º 36
40
Sobre as possíveis origens da frase atribuída a Engels, veja-se Morita (2020).
117
5.3. N.º 37
41
Veja-se Pousseur (2004; 2009, p.119).
42
Veja-se De Bonis (2014, p.338-343, 384).
120
5.4. N.º 38
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