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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

"Júlio de Mesquita Filho"


Instituto de Artes – Campus de São Paulo

MAURÍCIO FUNCIA DE BONIS

DA MÃO AO OUVIDO:
fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia
acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira

São Paulo
2022
MAURÍCIO FUNCIA DE BONIS

DA MÃO AO OUVIDO:
fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia
acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira

Tese apresentada ao Departamento de


Música do Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista "Júlio de
Mesquita Filho" (UNESP) como requisito
parcial para a obtenção do título de Livre-
Docente em Contraponto.

São Paulo
2022
D278m De Bonis, Maurício Funcia,
Da mão ao ouvido : fichas sobre pensamento e linguagem e uma
melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira / Maurício Funcia De
Bonis. – São Paulo, 2022.
129 p.: il. color.

Tese (Livre-docência em Contraponto) – Universidade Estadual


Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Instituto de Artes

1. Composição (Música). 2. Música para piano. 3. Melodia. 4.


Linguagem e línguas – Filosofia. 5. Acompanhamento musical. I.
Universidade Estadual Paulista, Instituto de Artes. II. Título.

CDD 781.3

Bibliotecária responsável: Laura M. de Andrade – CRB/8 8666


MAURÍCIO FUNCIA DE BONIS

DA MÃO AO OUVIDO:
fichas sobre pensamento e linguagem e uma melodia
acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira

Tese apresentada ao Departamento de


Música do Instituto de Artes da
Universidade Estadual Paulista "Júlio de
Mesquita Filho" (UNESP) como requisito
parcial para a obtenção do título de Livre-
Docente em Contraponto.

Tese aprovada em 05/07/2022

Banca examinadora

___________________________________
Prof. Dr. Florivaldo Menezes Filho
Instituição: UNESP
___________________________________
Prof. Dr. Marcos Fernandes Pupo Nogueira
Instituição: UNESP
___________________________________
Prof. Dr. Amílcar Zani Netto
Instituição: USP
___________________________________
Prof. Dr. Denise Hortência Lopes Garcia
Instituição: UNICAMP
___________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Cicchelli Velloso
Instituição: UFRJ
Para Caroline e Nuria.
RESUMO

As condições de trabalho que se nos apresentam para a composição musical


em tempos hediondos como os nossos são discutidas aqui em um ensaio na forma
de 38 fichas, que se propõem correlacionar duas frentes: de um lado, a elucubração
sobre as origens das linguagens humanas no Paleolítico superior; de outro, o
enfrentamento pontual de um fundamento histórico da linguagem musical em uma
peça para piano recente de Willy Corrêa de Oliveira. Das cinco partes textuais que
compõem a tese, a primeira e a quinta enquadram a discussão em lugar de introdução
e considerações finais, respectivamente. A segunda parte abre os levantamentos
sobre as origens das formas articuladas de comunicação humana a partir de Walter
Benjamin, Lev Vigotski e Alexander Spirkin, propondo uma ponte para suas
implicações na historiografia da arte. A terceira parte modula os resultados das
reflexões anteriores para a linguagem musical, situando o perfil de melodia
acompanhada como um caso histórico privilegiado na efetividade da construção
coletiva da comunicação do pensamento abstrato, enquanto a quarta parte consolida
a discussão realizada nesse ensaio ao detalhar, como estudo de caso, a proposta de
Willy Corrêa de Oliveira de enfrentamento desse perfil modelar na ausência do lastro
comum de linguagem que o conformara na história, na peça para piano Melodia
acompanhada, composta em maio de 2020.

Palavras-chave: composição musical; filosofia da linguagem; arte pré-histórica;


acompanhamento musical.
ABSTRACT

In this essay, the working conditions in musical composition in hideous times


like ours are discussed in the form of 38 records, that intend to correlate two fronts: on
the one hand, in the exploration of the origins of human languages in the Upper
Paleolithic; on the other hand, in the punctual confrontation of a historical foundation
of musical language in a piano piece by Willy Corrêa de Oliveira, composed at the
beginning of the pandemic (that now seems to be cooling off). Of the five textual parts
that make up the thesis, the first and fifth frame the discussion in place of introduction
and final considerations, respectively. The second part reflects on the origins of
articulated forms of human communication according to Walter Benjamin, Lev Vigotsky
and Alexander Spirkin, building bridges to the implications of their thought in the
historiography of art. The third part modulates the results of the previous reflections
onto musical language, establishing tonal melody and accompaniment (in
"homophonic-melodic" style) as a privileged historical case, through the effectiveness
of collective elaboration of a means of communication of abstract thought, while the
fourth part welds the argument carried out in this essay by detailing, as a case study,
Willy Corrêa de Oliveira's proposal in facing this model in the absence of the common
language that had shaped it in history, in the piano piece Melodia acompanhada,
written in May 2020.

Keywords: musical composition; philosophy of language; prehistoric art; musical


accompaniment.
SUMÁRIO

1ª parte (Fichas 1 a 6)................................................................................................13


2ª parte (Fichas 7 a 12)..............................................................................................25
3ª parte (Fichas 13 a 24)............................................................................................41
4ª parte (Fichas 25 a 34)............................................................................................67
5ª parte (Fichas 35 a 38)..........................................................................................115
Referências..............................................................................................................123
13

1ª parte (Fichas 1 a 6)

1.1. N.º 01

Há cerca de dois anos, nos primeiros rascunhos para esse trabalho, pensava
em orientá-lo a uma pergunta fundamental: quais propriedades concretas dos
repertórios históricos modal e tonal permaneceriam pertinentes ainda hoje, na
estruturação do discurso musical, em tempos de desarticulação da prática comum na
qual vigeram? Em certo sentido, essa teria sido uma das premissas de Schoenberg
na formulação do dodecafonismo, em resposta a uma aguda sensibilidade para com
o estado da prática musical já em seu tempo. Pela eliminação da medida clara de
afastamento ou centricidade (em oposição ao resquício tonal), o serialismo tem uma
vocação contrapontística fundamental – de onde decorre, ainda, seu alto grau de
densidade de informação. Tomado o partido da expansão do cromatismo, ora erigido
em paradigma, a diluição do sentido tonal direciona o contraponto dodecafônico a uma
recuperação de alguns fundamentos da polifonia modal: um campo fechado de
configurações de módulos lineares de informação, em multiplicados pela textura, sem
uma camada de significados pré-estabelecida para suas combinações verticais.
Frente à abrangência da pergunta inicial, a especificidade na abordagem do
serialismo parecia um desvio de rota, que viria a dominar o trabalho como um todo.
Considerei reformular o problema central para um questionamento sobre o que
constituiria, na história da música, um sistema de referência; não exatamente em
busca de cada resposta a ser encontrada na história, mas do quanto sua abordagem
crítica orienta nosso salto no escuro ao escrever hoje – deixando claro, nesse
caminho, o compromisso de não abordar os sistemas históricos pelos regramentos
em que tantas vezes foram traduzidos (em fins didáticos questionáveis e anacrônicos),
mas como formas vivas de linguagem1. Pouco tempo passado, já pensava em
descartar as duas linhas de trabalho em busca de uma terceira quando recebi uma
ligação do Willy Corrêa de Oliveira, que contava que acabara de escrever uma peça
que nomeou de Melodia acompanhada (sic).

1
Anotava à margem, nesse momento, o ensejo de um estudo mais aprofundado do que Carnap
chamava de framework.
14

1.2. N.º 02

Fora a curiosidade, logo sanada, de ver a partitura e ensaiar a leitura ao piano,


deitara o fone com a memória estranhada não apenas da surpresa com a ideia central
da peça, mas estranhando ainda o fato de Willy, por força de expressão, ter dito que
no meio do trabalho se sentiu como deve ter se sentido um artista de 30 mil anos
atrás. Cabe expor um estranhamento de cada vez, em desvendamento da analepse.
Que um perfil essencial para um pensamento musical comumente
compartilhado no passado fosse revisitado criticamente, e que sua abordagem crítica
se conformasse em plena consciência do estado diametralmente oposto em que
subsiste (em isolamentos multiplicados) o fazer musical em nosso tempo: proposta a
menos estranhável. Inseparável das chaves mestras do trabalho que realizei com
Willy desde minhas primeiras aulas com ele, no século passado. Naturalmente não
haveria de ser uma melodia acompanhada nos moldes antigos; mas não deixava de
surpreender, como desafio, a escolha de um perfil que fora estratégico em sua
simplicidade, e que sempre que foi revisitado em tempos de diluição de seu lastro
discursivo original, gerava alguns dos mais gloriosos anti-exemplos, moribundos,
caquéticos, natimortos, nas aulas de Willy na USP.
Era precisamente esse absurdo da proposta, dizia ele agora, que ao lado da
escuta da força de expressão de exemplos históricos do perfil de melodia
acompanhada no passado, o motivara a intentar ainda mais uma, mesmo hoje. Pelo
que ele me relatava, ocorriam também na peça citações, como sinais de exemplos
cabais de invenção na história desse perfil, na busca de se criar uma melodia
acompanhada consciente da inexistência do sistema tonal, hoje. É certo que a melodia
acompanhada só se realiza plenamente como fundamento de linguagem dentro do
universo particular do sistema tonal. Na experiência que Willy relatava, de enfrentar o
problema da melodia acompanhada na ausência de um sistema, as tentativas em
direção a uma forma de expressão projetavam gradualmente um objeto de linguagem
a partir do que se tem à mão, sem material, convenção ou combinação previamente
compartilhados ou referenciais. Era essa situação, em que a linguagem se cria na
própria enunciação do discurso, que o identificara a uma metáfora das origens da
linguagem e das expressões artísticas pré-históricas.
Esse ponto, que eu mais estranhara, acabou se convidando a apontar um norte
para o que poderia se tornar esse trabalho, com o tempo: de que modo as hipóteses
15

sobre as origens da linguagem e da arte pré-histórica, ao lado de uma


contextualização e detalhamento do perfil de melodia acompanhada na história da
música, poderiam animar uma análise da Melodia acompanhada escrita por Willy
Corrêa de Oliveira que se revelasse como reflexão sobre o enfrentamento desse perfil
na ausência do sistema que o conformara, e também como sinal para o sentido do
trabalho de criação musical em nosso tempo. Os três eixos dessa proposta
constituem, nessa ordem, a segunda, terceira e quarta partes desse trabalho,
tomando a leitura da Melodia acompanhada como objetivo central. Em direção a ela
caminham as fichas que seguem, escritas à maneira do trabalho empírico com os
materiais que, disponíveis no entorno, conformam as formas de expressão que
estudaremos aqui, na ausência de um código. Variam de memórias, relatos de
percurso e fichas de estudo até leituras das peças escolhidas em chaves particulares.
Nas experiências de montagem da tese (como em uma mesa de edição),
eventualmente se dispõem em direção a um mesmo fim, na linearidade da
argumentação subjacente, que não necessariamente percorre fichas sequenciais ou
emerge de forma explícita.

1.3. N.º 03

Uma obra de arte que consistisse apenas de elementos originais e criativos


seria incompreensível; se é compreensível, o é por sua renúncia parcial à
originalidade. [...] A ênfase recai sempre sobre a autonomia da arte, na
endogamia e autogênese das convenções artísticas. Se essas não
existissem, cada pintor teria que inventar a pintura, como cada compositor a
música e cada dramaturgo o teatro (HAUSER, 1961, p.478-480, tradução
nossa).

Como realizar um trabalho artístico em crise aguda das convenções? Desde o


século XX se revolve periodicamente sobre esse ponto. Por um lado, têm-se
desvendado como nunca dantes as matérias-primas, ao lado do potencial de uma
escuta multifacetada de registros das manifestações musicais humanas as mais
infinitamente diversas. Trabalha-se em plena desenvoltura técnica, engendrando
empiricamente as formas de enunciar o pensamento abstrato com vistas a uma
expressão. Mas sem almejar a uma convenção possível, não se abdica do estado de
compartilhamento da invenção que a arte possuíra na história (ou até na pré-história!),
como uma forma particularíssima de linguagem?
16

É certo, toda forma de linguagem jamais se completaria como experiência na


iniciativa individual do artista. Mas caberia, como experimento, inverter o eixo da
formulação do problema sobre como se dá, em sua essência, o trabalho artístico em
momento de crise das convenções. No polo oposto da referência histórica como lastro
para a criação: como se daria, na arte pré-histórica, o nascimento das formas de
expressão, sem o recurso a convenções anteriores? Grande parte do problema de
abordagem da pré-história da arte (um problema que não é plenamente sanado nos
períodos históricos, aliás) se situa na ausência de registros. Mas ainda assim, de que
forma se poderiam discutir hipóteses sobre as origens da linguagem, em analogia com
as primeiras manifestações artísticas, que contribuam para a problematização da
criação em uma forma de linguagem que tem, em dado momento, a desarticulação de
sua prática como trabalho coletivo?
Malraux, em defesa da força da prática artística anterior como referencial
imprescindível para o trabalho de todo artista, chega a um paradoxo ao conduzir sua
interpretação à arte pré-histórica. Começa o segundo tópico de La création artistique,
terceiro capítulo de Les voix du silence, colocando que "Se a visão de todo artista é
irredutível à visão comum, é porque desde sua origem ela é organizada pelas pinturas
e esculturas – pelo mundo da arte" (1951, p.279). Defende que ignoramos o que seria
de um artista sem conhecimento prévio de arte, como se o problema das causas
primeiras de sua origem não fosse um problema pertinente ao campo da arte.
Reconhece em seguida, como consequência, que "temos ideias confusas sobre os
desenhos dos pitecantropos". Ao reconhecer que as primeiras expressões artísticas
demonstram um primeiro sobressalto da humanidade, aponta que elas nos fariam
supor uma civilização anterior, em lugar de reconhecermos que teriam surgido "do
caos". Sem respostas concretas, ele direciona seu ensaio para uma reflexão sobre as
primeiras expressões artísticas infantis.

1.4. N.º 04

Há um estado metalinguístico no fazer musical desde o século XX. A música


desde o século XX não é mais uma nova realização das mesmas premissas, um
atendimento regular a uma demanda produtiva; só permanece na busca do inaudito
em sua formulação e parametrização. "A arte que sucede àquela que compravam os
17

aristocratas não é aquela que compram os burgueses, é aquela que ninguém compra"
(MALRAUX, 1965, p.67). É um reaprendizado e redescoberta constante. Existe como
projeto metalinguístico, seja na ausência ou na recusa dos conjuntos de materiais e
procedimentos consagrados. Unifica-se como prática não no desdobramento natural
dos caminhos anteriores, mas no questionamento distanciado de seus fundamentos
para se tecerem novas formas de caminhar. "Um estilo morto, é um estilo que só se
define por aquilo que ele não é" (MALRAUX, 1965, p.81). Nesse sentido, alcança-se
um estado metalinguístico de expressão, em comparação com a prática musical
anterior. Não nos referimos à metalinguagem como materialização da referencialidade
material e suas implicações semânticas, mas como operação linguística que privilegia
a consciência de linguagem no observador, fora do canal entre emissor e receptor.
Colin Cherry expressa com precisão, em primeiro lugar, que um campo de
expressão artística constitui uma forma de linguagem pelo quanto o artista "instila
ideias em nós". Atesta em seguida, no que diz respeito à interdependência entre
linguagem e pensamento: "A linguagem de um povo restringe consideravelmente seus
pensamentos. Suas palavras, conceitos, sintaxe, de todos os signos usados pelas
pessoas, são o determinante mais importante do que elas são livres e aptas para
pensar" (CHERRY, 1968, p.73). Ao distinguir em seu trabalho a linguagem-objeto da
metalinguagem, enfatiza o papel da metalinguagem em veicular hipóteses, teorias,
descrições, regras, leis, relações (CHERRY, 1968, p.91, p.307). O aprendizado ou a
formulação de formas de comunicação são sempre metalinguísticos. Em determinado
ponto, aponta o quanto
implicações e inferências lógicas têm muito pouco a ver, diretamente, com a
linguagem tal como ela é realmente usada nas relações humanas cotidianas.
No entanto, não é a linguagem-objeto em si mesma que é necessariamente
estruturada de maneira lógica, mas sim a metalinguagem (científica) na qual
o linguista faz declarações e proposições sobre a linguagem-objeto que ele
observa (CHERRY, 1968, p.252, tradução nossa2).

O compositor hoje é muito mais o observador distanciado (seja da história ou


do potencial futuro da efetividade de sua expressão) do que emissor em contato com
o receptor. Se o pensamento é inseparável da linguagem, por mais que se busque na
sistematização do material a sua própria inseparabilidade de suas formas de

2
"[...] logical implications and inference have little to do, directly, with language as it is actually used in
everyday human intercourse. It is, however, not the object-language itself which is necessarily logically
structured, but rather the (scientific) meta-language in which the linguist makes statements and
propositions about the object-language he is observing".
18

enunciação no tempo, dentro de um projeto que se coloque em nome da invenção


hoje, cria-se sob essa égide metalinguística. Na ausência de lastro comum largamente
compartilhado para a comunicação corrente, o pensamento musical passa
inexoravelmente por nova formulação inicial de substratos para novas formas de
expressão. A composição tende à autorreflexão, como um depoimento sobre seu
próprio processo de descoberta do material e de suas formas de enunciação no
tempo.

1.5. N.º 05

Assim, cada uma de suas obsessões permaneceu um trabalho, uma


experiência, uma maneira de vivenciar o espaço. "Ele é louco, dir-se-á. Faz
três mil anos que se esculpe – e muito bem – sem criar tantos problemas. Por
que ele não se dedica a criar obras indefectíveis segundo técnicas
comprovadas, em vez de fingir ignorar seus antecessores?" [...] Depois de
três mil anos, a tarefa de Giacometti e dos escultores contemporâneos não é
enriquecer as galerias com novas obras, mas provar que a escultura é
possível (SARTRE, 1949, p.291-292, tradução nossa3).

Escrevendo sobre uma exposição de esculturas de Alberto Giacometti em


1948, Jean-Paul Sartre depõe sobre o quanto as soluções do escultor em seu trabalho
apontam para um questionamento e uma busca constante por uma redefinição do que
constitui, de fato, o trabalho do escultor. A essência do esculpir, que Giacometti
dificilmente reconheceria ter alcançado, estaria menos distante em caminho traçado
ao mesmo tempo pela recusa de uma convenção ultrapassada, que não atenderia
mais à necessidade do trabalho presente, e pela impossibilidade do recurso a novo
estado compartilhado de convenções e de procedimentos comuns. O dado mais
concretamente compartilhado é precisamente este, o da negação de uma prática
estabelecida, a partir da qual se multiplicariam respostas individuais as mais
incompatíveis.

Assim, o escultor clássico cai no dogmatismo, porque acredita que pode


eliminar seu próprio olhar e esculpir no homem a natureza humana sem os
homens; mas na verdade ele não sabe mais o que faz, pois não faz o que vê.
Ao buscar a verdade, ele encontrou a convenção. E como, ao final, ele
descarrega no visitante a tarefa de animar esses simulacros inertes, esse

3
"Ainsi chacune de ses obsessions restait un travail, une expérience, une façon d'éprouver l'espace. 'Il
est bien fou, dira-t-on. Voici trois mille ans qu'on sculpte – et fort bien – sans faire tant d'histoires. Que
ne s'applique-t-il à réaliser des œuvres sans défaut selon des techniques éprouvées, au lieu de faire
semblant d'ignorer ses devanciers ?' [...] Après trois mille ans, la tâche de Giacometti et des sculpteurs
contemporains n'est pas d'enrichir les galeries avec des œuvres nouvelles, mais de prouver que la
sculpture est possible".
19

buscador do absoluto acaba fazendo sua obra depender da relatividade dos


pontos de vista que se assumem sobre ela. Quanto ao espectador, ele toma
o imaginário pelo real e o real pelo imaginário; ele busca o indivisível e
encontra por toda parte a divisibilidade (SARTRE, 1949, p.288-289, tradução
nossa4).

Fica claro na reflexão de Sartre que não se trata de desvalorização de uma


tradição estabelecida, mas de apontamento de suas contradições, em combate a um
dogmatismo estéril (não tão infrequente em nosso tempo) no qual o dado mais
estritamente convencional é o que permaneceria, confortável, no trabalho artístico.
Uma convenção anacrônica afasta o trabalho artístico de seu conflito com a força de
expressão que possuíra em outro tempo, intimamente ligado a sua função no grupo
social, ao compartilhamento de seus sentidos profundos. No caso específico da
escultura, a contradição se agudiza, segundo Sartre, na contraditória relação com o
espectador, do qual se cobra que anime os "simulacros inertes" de uma escultura sem
vida, que ao mesmo tempo se lhe apresenta cindida, fragmentada, por trás da
promessa de uma força de representação absoluta e indivisível. Sartre vê em
Giacometti o trabalho empírico de um "encantador de signos" (SARTRE, 1949, p.290),
cujo trabalho teria uma de suas chaves exatamente na ressignificação do ponto de
vista do espectador. Ele trabalharia para recuperar na escultura um espaço
imaginário, indiviso; o absoluto da representação humana passaria primeiro pela
aceitação da relatividade de pontos de vista. Giacometti seria "o primeiro a esculpir o
ser humano tal qual ele é visto, ou seja, à distância" (SARTRE, 1949, p.289). Tratando
das alongadíssimas figuras humanas obstinadamente reesculpidas por Giacometti,
Sartre coloca que
[...] esses corpos só têm a matéria minimamente suficiente para prometer. 'No
entanto, dir-se-á, isso não é possível: não é possível que o mesmo objeto
seja visto de perto e de longe ao mesmo tempo'. Mas não se trata do mesmo:
é o bloco de gesso que está próximo, é o personagem imaginário que está
distante (SARTRE, 1949, p.300-301, tradução nossa5).

4
"Ainsi le sculpteur classique verse dans le dogmatisme parce qu'il croit pouvoir éliminer son propre
regard et sculpter en l'homme la nature humaine sans les hommes ; mais en fait il ne sait ce qu'il fait
puisqu'il ne fait pas ce qu'il voit. En cherchant le vrai, iI a rencontré la convention. Et comme, en fin de
compte, il se décharge sur le visiteur du soin d'animer ces simulacres inertes, ce chercheur d'absolu
finit par faire dépendre son œuvre de la relativité des points de vue qu'on prend sur elle. Quant au
spectateur, il prend l'imaginaire pour le réel et le réel pour l'imaginaire ; il cherche l'indivisible et rencontre
partout la divisibilité".
5
"[...] ces corps n'ont de matière qu'autant qu'il en faut pour promettre. 'Pourtant, dira-t-on, cela n'est
pas possible : il ne se peut pas qu'un même objet soit vu de près et de loin à la fois'. Aussi n'est-ce pas
le même : c'est le bloc de plâtre qui est proche, c'est le personnage imaginaire qui est éloigné".
20

A razão de ser da tendência alongada, hierática, em estranha posição de


movimento, evitando a expressão particularizada, se direciona à reflexão sobre a
natureza da representação humana no espaço, em recolocação crítica de um
problema fundamental com que o trabalho artístico se depara desde o Paleolítico –
aqui, ressignificada pela recusa de soluções passadas anteriores, em processo de
redescoberta dos modos de ver. Para Sartre essa é a chave para a dimensão do
trabalho de Giacometti: na crítica à noção de progresso linear na história da arte, em
momento de perda de função das convenções e de buscas particulares em resposta
à ausência de um referencial compartilhado (que se mostrasse apto às demandas
presentes das formas de expressão), retornamos empiricamente a uma construção
primordial de sentido, similar à que se nos revela no trabalho artístico pré-histórico.

Não é preciso olhar muito para o rosto antediluviano de Giacometti para


adivinhar seu orgulho e seu desejo de se situar no princípio do mundo. Ele
zomba da Cultura e não acredita no Progresso, pelo menos no Progresso nas
Belas Artes; ele não se considera mais 'avançado' de que aqueles que ele
escolheu como seus contemporâneos, o homem de Les Eyzies, o homem de
Altamira6. Nesta extrema juventude da natureza e dos homens, não existe
ainda o belo nem o feio, nem o gosto, nem as pessoas de bom gosto, nem a
crítica: tudo está por fazer; pela primeira vez vem ao homem a ideia de
esculpir um homem a partir de um bloco de pedra. Eis então o modelo: o ser
humano (SARTRE, 1949, p.289, tradução nossa7).

1.6. N.º 06

Era o segundo dia do ano, há sete anos atrás; seco, quente, ermo8. A estrada
de terra cortava o esboço de cerrado, e a vista era sempre interrompida de surpresa
pelas rochas imensas, imprevisíveis, esculpidas pelos tempos. A toda roça que se nos
apresentasse, parávamos o carro (corajoso, nem minimamente preparado para a
empreitada) e perguntávamos se alguém vira rochas pintadas por ali, tal como
ouvíramos falar em Diamantina. E ali mais adiante, dentro mesmo do terreno do sítio

6
Sítios arqueológicos do Paleolítico superior, entre aqueles que contêm as primeiras manifestações
artísticas humanas.
7
"Il n 'est pas besoin de regarder longtemps le visage antédiluvien de Giacometti pour deviner son
orgueil et sa volonté de se situer au commencement du monde. Il se moque de la Culture et ne croit
pas au Progrès, du moins au Progrès dans les Beaux-Arts, il ne se juge pas plus 'avancé' que ses
contemporains d'élection, l'homme des Eyzies, l'homme d'Altamira. En cette extrême jeunesse de la
nature et des hommes, ni le beau ni le laid n'existent encore, ni le goût, ni les gens de goût, ni la critique
: tout est à faire, pour la première fois l 'idée vient à un homme de tailler un homme' dans un bloc de
pierre. Voilà donc le modèle : l'homme".
8
Com a licença do leitor, encerro essa primeira parte com uma espécie de assinatura; uma memória
pessoal provocada pela citação de Sartre sobre Giacometti e seus contemporâneos eleitos, os pintores
rupestres pré-históricos.
21

vizinho, prometeram que Caroline e eu veríamos uns animaizinhos desenhados.


Primeiro estacionamos para depois pedir licença, aos olhares pacientes dos
moradores aparentemente acostumados com a curiosidade alheia. Passamos, os
cachorros, o trator, amontoados de peças de maquinaria; seguíssemos o caminho de
terra em direção à serrinha rochosa ao fundo e estaria tudo lá, parece.

Fig. 1 – Formação rochosa próxima a Diamantina – MG.

Fonte: acervo pessoal (2015).

O carro, que deveria ter descansado bem antes, atolou entre a lama e as rochas
no chão e nos esperou por ali. Seguimos entre um mato baixo mas denso, cruzando
o regato naquele silêncio ruidoso com que os insetos nos avisam (sons e fontes
sonoras atingindo desordenadamente os ouvidos e a face) que o território não é
nosso. O sol a pino, o chão irregular, o mato denso e a escuta do entorno fazem da
lapa avistada na rocha (Fig.1) uma meta cada vez mais sedutora. A sensação de alívio
ao avistá-la mais de perto e perceber a proteção que o breu da gruta oferece é
imediatamente acompanhada da consciência de que estamos em dois e não
possuímos nenhum meio de proteção contra os animais maiores, que certamente
também apreciariam o esconderijo. O arrepio na espinha torna mais tensa a busca de
sinais na pedra, que parece intacta de qualquer manifestação humana. A lapa é
revelada em um trecho de desabamento da parte superior da rocha, com
empilhamentos desordenados de grandes pedras ao chão e uma variedade de
22

manchas das cores da sedimentação que acompanha a irregularidade do espaço, dos


cortes no frontão, do teto curvilíneo (Fig.2). Nesse jogo de cores e ruídos, qualquer
jogo de luz e sombra parece ser a fera na selva, ou o pobre animal por trás da pedra
com medo dos visitantes urbanoides.

Fig.2 – Vista da entrada da lapa, à esquerda

Fonte: acervo pessoal (2015).

Em um lampejo simultâneo, de repente viramos uma chave de leitura, e o


espanto do ajuste do foco ocular suspendeu o calafrio. Alguns dos fragmentos de
manchas, conectados a traços, se revelam não mais como rocha, vegetação, luz, mas
como ação intencional pela mão humana, e invadem a consciência como
representação do visível. Nesse caso, representação do que não se vê no momento,
mas do que já se viu e povoa a memória e o medo estampado no córtex.
Imediatamente, qualquer golpe de vista sobre a rocha traduz agora tudo que era signo
estampado e se camuflara à percepção desavisada.
Pouquíssimos desenhos de figuras humanas (talvez posteriores aos outros);
apenas um pequeno grupo, bastante simples graficamente, de três a seis figuras
(difícil contagem, os hominídeos feitos de poucos traços que gradualmente se tornam
mais fracos e se fundem às fissuras da rocha). Predominam pela lapa aves, peixes,
tatus e mamíferos maiores. Em um painel frontal de rocha multicolorida (que agora
23

forçosamente se imagina esculpido e tingido) os mamíferos parecem em proximidade


e com os corpos articulados, em clara sugestão de movimento (Fig.3).

Fig.3 – Painel rochoso frontal sobre a entrada da lapa.

Fonte: acervo pessoal (2015).

Dificílimo o acesso a esse painel mais alto, que é o que contém a maior
variedade de técnicas de preenchimento dos contornos dos animais, desde manchas
mais homogêneas até linhas paralelas. Já no teto da entrada da gruta, mais facilmente
acessível e estendendo-se da plena iluminação à completa obscuridade, sobrepõem-
se desordenadamente inúmeros animais, agrupados porém por categorias:
acumulações de mamíferos à esquerda e de aves à direita (Fig.4). As aves seguem o
preenchimento dos contornos por poucas linhas internas paralelas ao desenho, mas
esses mamíferos são coloridos por pontilhados ou linhas tracejadas.
24

Fig.4 – Vista da entrada da lapa, à direita.

Fonte: acervo pessoal (2015).

Passado o primeiro espanto, a sensação de missão cumprida em pleno


despreparo e a decodificação primária dessa profusão de sinais (em estreita relação
com o suporte e o entorno) fez reemergir o receio da decodificação dos outros sinais,
das sombras que sugeriam o jogo de camuflagem da fera retratada e imaginada por
trás da rocha. Meia-volta em passo mais acelerado que a vinda, o pedido de ajuda
para desatolar o auto sofrido, e o asfalto até a cidade. Na beira da estrada, a cada
rocha uma pergunta.
25

2ª parte (Fichas 7 a 12)

2.1. N.º 07

"Conteúdo artístico e comunicação espiritual são uma e a mesma coisa!",


escreve Walter Benjamin (2020, p.172) em carta a Gershom Scholem de 29 de
outubro de 1917. Benjamin concluíra no ano anterior seu ensaio Sobre a linguagem
em geral e a linguagem humana, em que argumenta sua concepção da unidade e
inseparabilidade entre pensamento e linguagem. Escolhe para a construção do seu
argumento um de seus campos de predileção, a comparação com a filosofia da
religião, o que "não significa que o objetivo seja o de fazer exegese bíblica, nem
tampouco o de tomar a Bíblia, neste contexto, como verdade revelada"; mito de
criação como livro que considera a si mesmo como revelação, "tem necessariamente
de desenvolver os fatos fundamentais da língua" (BENJAMIN, 2020, p.16-17). A
reflexão sobre a origem mítica da linguagem direciona-se ao questionamento sobre
sua essência, seu sentido e sua multiplicidade como dado humano fundamental.
Por todo o texto ele ressalta o quanto a palavra é um caso particular do edifício
da linguagem humana, que corresponde a toda e qualquer comunicação de conteúdos
espirituais. É no desenvolvimento dessa concepção que ele combate a
"insustentabilidade e vacuidade" de uma "concepção burguesa da linguagem" em que
"o meio da comunicação é a palavra, o seu objeto a coisa, o seu destinatário um ser
humano" (BENJAMIN, 2020, p.13). Para Benjamin toda essência espiritual só se
comunica sob a forma de linguagem, e nesse sentido a ela corresponde, desde que
seja suscetível de comunicação (BENJAMIN, 2020, p.10).
É nesse sentido que a linguagem comunica sempre a si mesma, comunica uma
comunicabilidade por excelência (BENJAMIN, 2020, p.15). A origem mítica do poder
da linguagem que comunica a essência de linguagem das coisas está na faculdade
do ser humano de nomear aquilo que conhece, que o cerca, que se fez necessário.
Traduz-se o sem-nome da linguagem das coisas em nomes humanos. Nesse dado de
ação transformadora sobre a realidade, pela nomeação, e de expressão dos
conteúdos espirituais das coisas em inseparabilidade do meio pelo qual se exprimem,
Benjamin reitera sua crítica a uma concepção burguesa da linguagem "segundo a qual
existiria uma relação arbitrária entre a palavra e a coisa, e que a palavra seria um
26

signo puramente convencional da coisa (ou do seu conhecimento). A linguagem nunca


se limita a fornecer meros signos"9 (BENJAMIN, 2020, p.19).
A especificidade da discussão sobre o papel da palavra e da linguagem verbal
não encerram o ensaio de Benjamin nesse único campo. Na abertura do texto, após
a afirmação de que "Todas as manifestações da vida do espírito no ser humano podem
ser entendidas como uma forma de linguagem", a assertiva na frase que segue é a de
que "Pode-se falar de uma linguagem da música e da escultura [...]. Linguagem
significa, neste contexto, o princípio orientado para a comunicação de conteúdos
espirituais nos respectivos domínios".
Numa palavra: toda comunicação de conteúdos espirituais é linguagem,
sendo que a comunicação pela palavra é apenas um caso particular, o da
comunicação humana e daquilo que a fundamenta ou nela se baseia (a
justiça, a poesia, etc.). A existência da linguagem, porém, não abarca apenas
todos os domínios das manifestações do espírito humano, de algum modo
sempre animadas pela língua – abarca absolutamente a totalidade do ser.
Não existe acontecimento ou coisa, nem na natureza animada nem na
inanimada, que não participe de algum modo da linguagem, porque a tudo é
essencial poder comunicar o seu conteúdo espiritual. Mas de nenhum modo
o uso da palavra "linguagem" neste contexto é metafórico. De fato, trata-se
de uma constatação plena e substancial: não nos é possível imaginar seja o
que for que não comunique a sua essência espiritual através da expressão
(BENJAMIN, 2020, p.9).

Ao final do ensaio Benjamin expande a aplicação dessas ideias para as artes,


colocando que se fundam
em certos tipos de linguagem das coisas, que elas documentam uma
tradução da linguagem das coisas para uma linguagem infinitamente
superior, mas talvez da mesma esfera. Trata-se, nesse caso, de linguagens
sem nome, [...] de linguagens constituídas pelo próprio material (BENJAMIN,
2020, p.26).

Ao sugerir que, em sua especificidade, a linguagem da arte fosse devidamente


abordada em profunda relação com a doutrina dos signos, de modo a buscar sua
compreensão particular como forma de pensamento – e de expressão da parte
comunicável do pensamento – que não compartilha seu modo próprio de existir com
a linguagem verbal, Benjamin reforça que mesmo a linguagem em sentido estrito não
coincide necessariamente com o signo. Uma estreiteza de sentido em uma
abordagem pela doutrina dos signos eliminaria a univocidade essencial entre
linguagem e pensamento. O ponto central, para ele, é que "a linguagem nunca é

9
Benjamin reitera esse ponto no texto A doutrina das semelhanças, de 1933: "a linguagem, como é
evidente para os mais perspicazes pesquisadores, não é um sistema convencional de signos"
(BENJAMIN, 2020, p.49).
27

apenas comunicação daquilo que é comunicável, mas também símbolo do não-


comunicável" (BENJAMIN, 2020, p.26).

2.2. N.º 08

A questão das relações entre pensamento e linguagem são aprofundadas em


outra clave por Lev Vigotski em A construção do pensamento e da linguagem. Em sua
pesquisa da fundamentação teórica, no campo da psicologia, para a unidade entre
pensamento e linguagem, Vigotski verifica, a partir de diversos estudos feitos com
crianças, que por mais que o pensamento e a fala tenham raízes diferentes (a fala tem
um estágio pré-intelectual, assim como o pensamento tem uma etapa pré-verbal). "Em
um determinado ponto, ambas as linhas se cruzam, após o que o pensamento se torna
verbal e a fala se torna intelectual" (VIGOTSKI, 2001, p.133).
Se a crítica às investigações que alienem o desenvolvimento do pensamento e
da linguagem é uma chave para o pensamento de Vigotski que o aproxima da visão
de Benjamin, ela permanece um referencial de particular importância para a
abordagem crítica da historiografia da arte no quanto ela levanta hipóteses sobre a
origem das linguagens visuais. Vigotski aprofunda sua análise, a uma vez, da
antropologia, na análise das formas de linguagem nas espécies que compartilhariam
características biológicas com os antepassados humanos, e da psicologia infantil, nos
experimentos sobre o desenvolvimento da linguagem e do pensamento na infância. A
agudeza crítica de Vigotski, aliada a um agudo senso materialista dialético, o
aproximam diretamente da crítica de Benjamin a uma abordagem da linguagem como
um sistema de convenções arbitrárias, em que o significado estivesse essencialmente
desconectado da palavra que o veicula. Silvana Tuleski (2008, p.124-125) detalha o
quanto o pensamento de Vigotski deve aos trabalhos de Engels nesse sentido.
Encontramos no significado da palavra essa unidade que reflete da forma
mais simples a unidade do pensamento e da linguagem. O significado da
palavra, como tentamos elucidar anteriormente, é uma unidade
indecomponível de ambos os processos e não podemos dizer que ele seja
um fenômeno da linguagem ou um fenômeno do pensamento. A palavra
desprovida de significado não é palavra, é um som vazio. Logo, o significado
é um traço constitutivo indispensável da palavra. É a própria palavra vista no
seu aspecto interior.
[...] O significado da palavra só é um fenômeno de pensamento na medida
em que o pensamento está relacionado à palavra e nela materializado, e vice-
versa: é um fenômeno de discurso apenas na medida em que o discurso está
vinculado ao pensamento e focalizado por sua luz. É um fenômeno do
28

pensamento discursivo ou da palavra consciente, é a unidade da palavra com


o pensamento (VIGOTSKI, 2001, p.397-398).

Essa citação contribui para o detalhamento de um ponto central em nosso


trabalho, a saber, na discussão sobre as origens da linguagem e de sua
inseparabilidade do pensamento, de que forma uma abordagem crítica no campo da
psicologia encontra os mesmos resultados da filosofia da linguagem, quando esta se
baseia sobre uma abordagem materialista dialética das ciências naturais. Não caberia,
em um ensaio como o que apresentamos aqui, o questionamento sobre o estado da
arte da pesquisa científica em todos os campos evocados por esses autores.
Convergem aqui, como em sua proposta de origem, ao amadurecimento de um partido
tomado na visão dos fenômenos, em direção a uma hipótese coerente com os
materiais revelados pelos campos científicos invocados independentemente do
compromisso com seus modelos teóricos específicos e interpretações particulares.

2.3. N.º 09

O quanto Benjamin acompanhava com extrema atenção o estado das


pesquisas e hipóteses sobre as origens da linguagem fica claro em um texto de 1935,
Problemas de sociologia da linguagem (BENJAMIN, 2020, p.57-83), em que faz um
levantamento crítico bastante detalhado das correntes e debates de seu tempo no
campo, que transcorriam em intersecções entre a linguística, a arqueologia, a
antropologia, a etnografia e a psicologia infantil. No abismo da falta de dados
concretos entre as descobertas arqueológicas de resquícios da pré história e o uso
moderno da linguagem, hipóteses e construções dedutivas se beneficiaram do
cruzamento dos exemplos, por um lado, de sociedades que ainda hoje se
organizassem economicamente como grupos humanos antigos, e por outro, da
formação da linguagem na infância. Com o devido distanciamento crítico, o primeiro
caso atesta para a hipotética permanência de sinais da inseparabilidade entre as
relações de produção e o desenvolvimento das forças produtivas (tomando a
sobrevivência material como base da vida social), enquanto o segundo traz elementos
para a compreensão das formas de aprendizado social da linguagem em relação com
o desenvolvimento da capacidade cognitiva.
Um dos primeiros e mais extensivos e marcantes trabalhos nesse sentido, no
século XIX, foi Ancient Society de Lewis Morgan, que propõe a partir de um longo
29

estudo sobre tribos de povos originários norte-americanos um panorama sobre o


processo de transformação das sociedades antigas, com especial ênfase sobre o
desenvolvimento do trabalho e da fabricação de utensílios na evolução da espécie
humana. O trabalho de Morgan, como o de Darwin, desencadearam avanços
fundamentais em seus campos de estudo, apesar de suas limitações conceituais e
documentais e do questionamento posterior de algumas de suas conclusões
particulares. As conclusões de Morgan foram de especial interesse e contribuição para
a formulação do pensamento de Marx e Engels, como demonstram suas cartas e os
textos O papel do trabalho na transformação do macaco em homem e A Origem da
família, da propriedade privada e do Estado, de Engels (1963). Um trecho d'O Capital
demonstra brevemente a importância desses estudos no trabalho de Marx:
Nas cavernas humanas mais antigas encontramos instrumentos de pedra e
armas de pedra. [...] O uso e a criação de meios de trabalho, embora existam
em germe em certas espécies de animais, caracterizam o processo de
trabalho especificamente humano e [Benjamin] Franklin define, por isso, o
homem como a toolmaking animal, um animal que faz ferramentas. A mesma
importância que a estrutura de ossos fósseis têm para o conhecimento da
organização de espécies de animais desaparecidas, os restos dos meios de
trabalho têm para a apreciação de formações socioeconômicas
desaparecidas (MARX, 1996, p.299).

Pouco adiante, acrescenta ainda em nota de rodapé:


Por pouco que a historiografia até agora conheça o desenvolvimento da
produção material, a base, portanto, de toda vida social e por isso de toda
verdadeira História, pelo menos dividiu-se o tempo pré-histórico com base em
pesquisas das ciências naturais e não das chamadas históricas, em idade da
pedra, do bronze e do ferro, segundo o material das ferramentas e das armas
(MARX, 1996, p.299-300).

Um panorama crítico das contribuições citadas por Benjamin, construído a


partir da referência de Marx e Engels a Morgan e convergindo especificamente para
a relação entre pensamento e linguagem, pode ser encontrado no trabalho de
Alexander Spirkin, Origem da linguagem e seu papel na formação do pensamento
(1961).

2.4. N.º 10

Às teorias hegemônicas que propunham as origens da linguagem humana ora


na imitação de ruídos do ambiente, ora na emissão sonora espontânea como
expressão das emoções, Spirkin responde com o questionamento de quais seriam as
condições objetivas da vida do ser humano em formação que poderiam dar origem à
30

necessidade de se comunicarem uns com os outros. Estuda meios de sinalização nos


animais, em comentário crítico dos estudos influenciados por Darwin e Pavlov,
defendendo que, uma vez que os animais em geral (e os símios em particular) não
percebem o ambiente que os circunda como experiência de coletividade, como o
fazem os seres humanos, não necessitam de linguagem articulada, por mais
complexo que tenha sido seu desenvolvimento biológico (SPIRKIN, 1961, p.27-28). O
surgimento da linguagem (como instrumento necessário do pensamento) estaria
coerentemente situado, portanto, no Paleolítico, com o processo do trabalho coletivo
da caça de grandes animais, a fabricação de ferramentas e armas, as primeiras
expressões artísticas.
A história da arte, em suas impressionantes origens paleolíticas10 (ainda
surpreendidas, de tempos em tempos, por novos sítios de invenções soterradas por
dezenas de milhares de anos), apresenta um atestado de tal forma categórico sobre
sua origem na inseparabilidade entre pensamento e linguagem, no contexto em que
as hordas pré-históricas dominam a caça e fabricação de utensílios, que é comum a
coincidência com uma leitura marxista na descrição das origens da arte, ainda que
eventualmente não se encontre, nas mesmas obras, rastro de abordagem materialista
dialética na reflexão sobre a história da arte ulterior. Georges Bataille, por exemplo,
em um de seus intensos depoimentos sobre a arte paleolítica, coloca que o que
distinguiria o Homo sapiens seria não exatamente a consciência, mas “a maestria da
obra de arte”.
Nunca devemos perder de vista o fato de que o trabalho expandiu a
consciência. Acima de tudo, o trabalho é a operação intelectual que modificou
o cérebro do animal que o homem inicialmente era em um cérebro humano.
Esse cérebro tomou o sílex amorfo e isolou empiricamente as ações que
transformavam essa rocha em um objeto útil, em uma ferramenta (BATAILLE,
2005, p.149-150, tradução nossa).

Germain Bazin, mediando a interpretação mítica das origens da arte com a


interpretação materialista, coloca que "pela consciência que lhe é dado ter do mundo
que o cerca, o homem separa-se dele e tenta constantemente recuperá-lo através do
pensamento e da ação", acrescentando (em correspondência com o pensamento de
Benjamin) que "a gênese da linguagem é uma operação artística na medida em que

10
Note-se que datam também do "aurignaciano", período de criação das primeiras esculturas que
chegaram até nós, as primeiras flautas feitas de osso ou marfim (CONARD et al., 2009). Mário de
Andrade pontua com propriedade que "talvez seja mais acertado falar que os povos primitivos
constroem instrumentos apenas com o fito de obterem som. Mas nem sempre sons predeterminados"
(ANDRADE, 1987, p.21-22).
31

é geradora de formas; a faculdade de dar nomes às coisas é o primeiro acto criador"


(BAZIN, 1976, p.10).
Spirkin segue argumentando que na investigação sobre as origens da
linguagem, questionando-se os meios que responderiam às necessidades de
comunicação, coloca-se em nova clave a questão da unidade entre pensamento e
linguagem, entre palavra e significado. Spirkin retoma a afirmação do linguista
Alexander Potebnya (1835-1891) de que "na criação da linguagem não existe
arbitrariedade, pelo que cabe perfeitamente perguntar qual é a razão de que uma
palavra dada designe precisamente uma coisa e não outra" (apud SPIRKIN, 1961,
p.29). Distingue, nesse sentido, as origens do estado atual da linguagem, colocando
que recebemos sentidos historicamente formados determinados pelo uso e não pelo
aspecto material da palavra, e que as hipóteses sobre as origens da linguagem não
poderiam partir do mesmo pressuposto.

2.5. N.º 11

Para Spirkin, no trabalho coletivo desenvolve-se paulatinamente a capacidade


para que um indivíduo influencie os demais por meio de sons e gestos, e que para
que isso ocorra de forma consciente, é necessário o estabelecimento de um vínculo
cabal entre som e imagem, entre palavra e objeto (SPIRKIN, 1961, p.32). Citando o
antropólogo Lévy-Bruhl, comenta que em um momento anterior ao desenvolvimento
da linguagem articulada, a linguagem gestual e mímica teria uma função primordial,
como pode ainda hoje ser observado em algumas tribos11.
Spirkin segue argumentando que a defesa e o ataque contra outros animais
exige uma ação coordenada, um contato entre os membros do grupo humano. A
comunicação sonora atende a uma necessidade vital da coletividade. Uma série de
condições para o desenvolvimento da linguagem e do pensamento se acumula nos
estágios anteriores à formação da espécie humana, sem uma correspondência direta
entre seu desenvolvimento e as condições materiais que o possibilitassem. Assim,
ainda que não houvesse necessidade coletiva para o desenvolvimento e
aperfeiçoamento da linguagem articulada, as condições para seu desenvolvimento já

11
Walter Benjamin, no texto Problemas de sociologia da linguagem, detalha uma crítica pontual ao
método e às conclusões míticas de Lévy-Bruhl, opondo a ele a crítica de Nikolaus Marr (BENJAMIN,
2020, p.65-66).
32

estariam presentes e permitiram as primeiras expressões inarticuladas, na


organização do trabalho coletivo (SPIRKIN, 1961, p.33-37). Em estágio
correspondente da pré-história da arte Elie Faure defende que
A arte é então uma ferramenta de utilidade imediata, como os primeiros
balbucios da palavra: designar os objetos que o circundam, imitá-los ou
modificados para deles se servir, o ser humano não vai além disso. A arte
não pode ser ainda um instrumento de generalização filosófica, que ele ainda
não saberia utilizar. Mas ele fabrica esse instrumento, porque destaca de seu
meio algumas leis rudimentares que aplica para se beneficiar (FAURE, 1976,
p.41, tradução nossa12).

Spirkin remete, nesse contexto, às relações entre a consolidação da postura


ereta nos hominídeos e sua relação não apenas com o desenvolvimento da mão mas
com a transformação do aparelho vocal (SPIRKIN, 1961, p.37). Esse ponto foi
bastante detalhado por André Leroi-Gourhan, autor de vasta obra sobre as formas de
trabalho do artista pré-histórico (2009a, 2009b). No texto Libération de la main, ele
relaciona a transformação da caixa craniana e das áreas corticais de integração e
associação motora nos símios com o trabalho manual, relacionando inclusive, na
topografia cortical, a importância equivalente da mão e do polegar com as fibras da
face, os lábios e a língua. Ao comparar essa característica com a dos primeiros
humanos, ele complementa:
[...] enquanto se desenvolve de maneira quase exclusiva a tecnicidade
manual, uma nova forma de atividade progressivamente toma posse do
campo facial: a mímica e a linguagem. Não se produz corte algum, já que os
movimentos dos lábios e da língua simplesmente deslizam das operações
alimentares em direção à modelagem dos sons; os mesmos órgãos e as
mesmas áreas motoras interessam às duas formas de atividade.
Essa relação entre tecnicidade manual e linguagem, implicada de alguma
forma por uma evolução que pode ser acompanhada desde os primeiros
vertebrados, é certamente um dos aspectos mais gratificantes da
paleontologia e da psicologia, pois restitui os elos profundos entre o gesto e
a palavra, entre o pensamento exprimível e a atividade criativa da mão
(LEROI-GOURHAN, 2014, p.8-9, tradução nossa13).

12
“L’art est d’abord un outil d’utilité immédiate, comme les premiers balbutiements du verbe : désigner
les objets qui l’entourent, les imiter ou les modifier pour s’en servir, l’homme ne va pas au-delà. L’art ne
peut être encore un instrument de généralisation philosophique qu’il ne saurait pas utiliser. Mais il forge
cet instrument, puisqu’il dégage déjà de son milieu quelques lois rudimentaires qu’il applique à son
profit.”
13
"alors que se développe de manière presque exclusive la technicité manuelle, une forme nouvelle
d’activité prend progressivement possession du champ facial : la mimique et le langage. Aucune
coupure ne se produit car les mouvements des lèvres et de la langue glissent simplement des opérations
alimentaires vers le façonnage des sons, les mêmes organes et les mêmes aires motrices intéressant
les deux formes d’activités. Ce rapport entre la technicité manuelle et le langage, impliqué en quelque
sorte par une évolution qu’on peut suivre depuis les premiers vertébrés, est certainement un des
aspects les plus satisfaisants de la paléontologie et de la psychologie car ils restituent les liens profonds
entre le geste et la parole, entre la pensée exprimable et l’activité créatrice de la main."
33

Spirkin acrescenta a esse mesmo ponto que a região cerebral responsável pela
fala se situa no hemisfério cerebral correspondente à mão utilizada na escrita,
contribuindo para a verificação da "estreitíssima concatenação existente entre o
trabalho, o pensamento e a linguagem". Comparando o desenvolvimento do trabalho
e da vida social entre o Neandertal, o sinantropo e o Cro-Magnon, associa a esse
último o estágio em que já se produzem ferramentas destinadas à produção de outros
utensílios, enquanto se desenvolvem amplamente a pintura rupestre e embriões da
linguagem escrita.
Todos esos aspectos de la actividad creadora del hombre en el trabajo y en
el arte que brotan de las necesidades de la vida económica se encuentran ya
a gran distancia de los fines inmediatos que se cifraban en satisfacer las
necesidades materiales del hombre primitivo. Sólo el lenguaje articulado
podía servir de forma en que cobrara realidad el pensamiento abstracto.
(SPIRKIN, 1961, p.44-46).

Esse estágio de desenvolvimento da linguagem corresponderia às primeiras


manifestações coletivamente organizadas da comunicação como atividade
potencialmente independente da produção, do trabalho para subsistência. A imensa
força de expressão das pinturas parietais do Paleolítico superior, independentemente
de sua hipotética função mágica ou ritual, tem uma estreita relação não apenas com
o trabalho coletivo para sobrevivência do grupo humano como também com uma
extremamente amadurecida aptidão para a expressão comunitária do pensamento
abstrato.
Nesse contexto, em que abundam estudos comparativos entre as origens da
linguagem e a observação de sua formação na criança, Spirkin é categórico: "A
criança assimila – e não cria – a linguagem das pessoas maiores, de formas, já
preparadas, que foram se cristalizando no devir da história. O homem primitivo criava
sua linguagem espontaneamente" (SPIRKIN, 1961, p.47). Em oposição às hipóteses
de que em uma fase inicial a linguagem consistia de palavras isoladas, como na
primeira infância, defende que em um estágio inarticulado, as reações fônicas já
constituíam cadeias de sinalizações recíprocas, ainda que breves e primitivas. As
etapas subsequentes de seu desenvolvimento passam por diversos estágios da
capacidade de síntese e de estabelecimento de relações entre complexos fônicos,
que provavelmente ainda não tinham um papel fundamental no sistema de relações
mútuas do grupo humano. Em um estágio ulterior, a hipótese de Spirkin é a de que,
na consolidação da expressão de complexos de pensamentos através de complexos
sonoros, a palavra e a oração teriam surgido simultaneamente. Afinal, a palavra não
34

seria o início da linguagem inarticulada, mas o resultado da formação da linguagem


articulada, que tem sua unidade não na palavra mas na oração (SPIRKIN, 1961, p.49-
50). Nesse contexto, pode-se pressupor que o sentido concreto da palavra ainda
estava plenamente determinado pelo contexto e pelo entorno, resultando em uma
polissemia abstrata compensada pelo significado exato do seu uso na vida social, até
que os processos de comunicação adquirissem algum grau de independência das
atividades quotidianas. O afastamento de uma "gramática material" impõe a
necessidade da elaboração de uma estrutura gramatical, que teria se configurado nas
origens do pensamento abstrato. A elaboração de um regime fonético, a formação do
vocabulário e das combinações mais simples de palavras em orações acompanhariam
o desenvolvimento de um regime gramatical, que permitiria o lento desenvolvimento
da linguagem articulada (SPIRKIN, 1961, p.51-52).
Tratando em seguida do surgimento da escrita, Spirkin supõe que seu
surgimento, em oposição ao da linguagem falada, deu-se como atividade criadora
plenamente consciente, em alto grau de desenvolvimento do pensamento e da
coordenação dos movimentos da mão, em complexo sistema de mediações entre o
ser humano e a realidade. Nessa mediação, a escrita supera as limitações da
linguagem oral, que para além de suas limitações no tempo e no espaço, converte-se
em domínio da memória, adquirindo uma forma subjetiva de existência (SPIRKIN,
1961, p.55). Nesse ponto, imagina uma indistinção inicial entre a escrita pictográfica
e as artes plásticas, na qual o desenho, a gravura e a pintura já possuíam a mesma
propriedade de superação das limitações da fala que a escrita aperfeiçoaria com o
passar do tempo. Nessa etapa não se fixariam pensamentos particulares, nem
conceitos precisos, mas conjuntos de pensamentos que refletissem uma situação
compartilhada: "um meio para fixar de maneira patente formas do pensamento em
imagens". A hipótese que segue associa a evolução do pictográfico (simbólico) ao
ideográfico (abstrato) e ulteriormente ao fonético, elaborado como envoltura material
da língua, convertendo-se na realidade material do pensamento (SPIRKIN, 1961,
p.57-62).
Spirkin conclui seu ensaio detendo-se sobre o ponto comum com os trabalhos
evocados de Benjamin e Vigotski, a saber, a inseparabilidade entre linguagem e
pensamento. Spirkin coloca que, ao dar forma objetiva material ao reflexo das
propriedades das coisas e suas relações na consciência, a linguagem possibilita a
35

criação de conceitos, como objetos ideais de pensamento. Como forma material do


pensamento, a linguagem cumpriu de certa forma uma função análoga às ferramentas
do Paleolítico: "Assim como através do instrumento de trabalho o ser humano
transforma um objeto no sentido que lhe seja útil, por meio da linguagem – que dá
caráter mediato à relação entre os seres humanos – um sujeito influi sobre outro
sujeito também no sentido desejado" (SPIRKIN, 1961, p.64).
El pensamiento humano, nacido junto con el lenguaje, constituye la actividad
cognoscitiva del sujeto hecha inmediata por medio de la palabra. La palabra
enlaza la relación existente entre el sujeto y la realidad con la relación
existente entre el sujeto y otros individuos. La esencia del propio pensar
radica en la actividad que el sujeto lleva a cabo utilizando el resultado de la
experiencia social objetivamente condensada en la palabra y que dirige
conscientemente a la comprensión del mundo real (SPIRKIN, 1961, p.65).

A dialética da relação entre o trabalho manual e o desenvolvimento do


pensamento como etapa formadora da condição humana, em sua inseparabilidade da
constituição biológica anterior que permitisse o desenvolvimento motor, cognitivo e
fonético, encontra sua materialização final na linguagem, como instrumento e como
produto gradual do trabalho coletivo, em constante transformação da própria natureza
humana. Assim como a verificação da efetividade do trabalho se dá no grupo social e
pelo atendimento à função, a verificação da comunicação se dá pelo
compartilhamento dos sentidos. Nesse processo, o pensamento abstrato se faz
verificável, em sua relação seja com objetos ou conceitos, pelo compartilhamento da
linguagem.
É através da linguagem que a consciência humana chega a ter uma visão de
conjunto da infinita variedade das coisas e dos fenômenos particulares do mundo real,
fixando seu aspecto geral, suas concatenações e relações, diferenciando-os,
sintetizando-os em conceitos e apresentando-os como relativamente estáveis. Com
isso, a atividade mental pôde adquirir um caráter até certo ponto independente e
chegar ao pensamento abstrato, à ciência e à arte, à cultura espiritual e material.

2.6. N.º 12

O pensamento de Spirkin fornece uma chave preciosa de leitura para um tempo


de abordagens tão hipotéticas quanto improváveis como a arte produzida no
Paleolítico superior (aproximadamente entre 50 e 10 mil anos atrás). Se no mínimo se
reconhece, como disse Marx, que a divisão entre as eras da pré-história devesse
36

seguir o estágio do desenvolvimento técnico e material, como dado determinante para


as condições de sobrevivência e para a organização da vida social, grande parte da
bibliografia evita a construção de uma relação mais estreita entre a arte como
manifestação do pensamento abstrato, a origem da linguagem articulada e o
desenvolvimento da habilidade manual e da fabricação de ferramentas. Naturalmente,
não se devem associar esses elementos centrais do desenvolvimento humano como
se percorressem evoluções simétricas, coordenadas ou sucessivas de modo linear.
Não apenas pela impossibilidade de um registro preciso de um processo tão distante,
mas porque na abordagem do ser humano como ser social, que se desenvolveu
através do trabalho coletivo, não bastam apenas as condições técnicas e materiais
para que esses processos se desencadeiem; elas são necessárias como condições
prévias para uma transformação que dependerá da necessidade concreta da
comunidade, na vida social. É nesse sentido que, se o desenvolvimento das pinturas
paleolíticas das quais temos rastros data desde cerca de 40 mil anos, claros
elementos de uma oficina de fabricação de pigmentos para pintura (restos de ocre
vermelho macerado dentro de uma concha) foram encontrados em Blombos, na África
do Sul, um sítio datado de aproximadamente 100 mil anos atrás que não possui
nenhum sinal de arte parietal (DAVID, 2017, p.281-294). Já em sítios como Limeuil,
com uma série de representações de animais de no mínimo 12 mil anos, encontram-
se placas gravadas corresponderiam a esboços para a realização das pinturas
(BAZIN, 1976, p.14).
Na formação primeira da arte como linguagem, como expressão do
pensamento abstrato, René Huyghe destaca a relação entre os planos mental, visual
e manual, reconhecendo o papel fundamental do desenvolvimento da mão humana
para a configuração social do pensamento. “O homem não vislumbra mais do que
aquilo que já conhece, o que aprendeu a ver. [...] Mas o visual não seria viável sem o
concurso do manual, que transpõe o mental e o visual para a matéria” (HUYGHE,
1986, p.27-28). Um passo além nessa direção é empreendido por Virgilio Gilardoni
em seu Naissance de l’art, assertivo quanto às consequências de uma abordagem
que não reconhecesse o papel do trabalho tanto na conformação social da espécie
humana quanto na origem das expressões artísticas e das formas de linguagem.
Negar o papel da mão, o papel do trabalho, no desenvolvimento da sociedade
e das manifestações ideológicas, é caminhar, consciente ou
inconscientemente, para essa forma de alienação do espírito que consiste em
negar da mesma forma que a arte e as outras produções do espírito tiveram
37

sua origem inteira e exclusiva no trabalho humano, e atribuir sua invenção a


supostas divindades, a fetiches mitológicos (GILARDONI, 1948, p.8-9,
tradução nossa14).

A importância do trabalho manual na formação da arte, da linguagem e do


pensamento são inseparáveis de seu papel no próprio desenvolvimento anátomo-
fisiológico da espécie humana. Nesse sentido, a argumentação de Gilardoni converge
para o questionamento da real função da ênfase, na historiografia da arte, sobre a
função mágica ou mítica dessas manifestações artísticas, especialmente tratando-se
de uma prática sobre a qual não teremos jamais a comprovação de hipóteses dessa
ordem. “Na realidade, o que nasceu da mão deve ser experimentado e degustado pela
mão” (GILARDONI, 1948, p.8).
Mesmo em tudo que se relaciona à argumentação de Spirkin sobre as origens
e as etapas de formação da linguagem, o que o Paleolítico nos legou de mais concreto
é precisamente a pintura parietal, a gravura, a escultura. Não são apenas uma
demonstração do estágio de desenvolvimento da habilidade manual e da
representação visual, são correspondentemente um documento do desenvolvimento
do pensamento abstrato na coletividade.
É claro que, a partir deste momento [o aurignacense], o cérebro humano estava
apto a generalizar, a condensar numa ideia o traço comum de uma multidão de
fatos particulares. O dom da abstração e do símbolo já nascera! Esta dupla
faculdade parece derivar do desenvolvimento cerebral no homem. O córtex,
permitindo conexões entre miríades de neurônios, detém provavelmente o
poder de associar que caracteriza o símbolo e um poder de combinar
mentalmente que se traduz na inteligência por estruturas: ao nível da
consciência, inauguram a aptidão para conceber as ideias e as formas. A
generalidade que estas implicam reflete, sem dúvida, as conexões mais
fundamentais existentes, assim como um denominador comum, sob a
ramagem diversa dos casos particulares. Semelhança e símbolo, por um lado,
ideia e forma por outro, fundamentam todas as possibilidades da arte
(HUYGHE, 1986, p.50).

A arte paleolítica não consiste em um documento de uma busca empírica com


resultados pontuais; aponta para uma clara unidade de linguagem em sua imensa
variedade. O poder de síntese se desenvolve pari passu com a habilidade manual;
elaboram-se representações animais que extraem a unidade da generalização do
conhecimento do animal a partir da variedade com que se apresenta à visão na vida
cotidiana; "à força de obter formas essenciais, o artista franco-cantábrico tinha

14
"Nier le rôle de la main, le rôle du travail, dans le développement de la société et de ses manifestations
idéologiques, c'est s'acheminer, consciemment ou inconsciemment, vers cette forme d'aliénation
spirituelle qui consiste à nier également que l'art et les autres productions de l'esprit aient leur origine
entière et exclusive dans le travail de l'homme, et à en attribuer l'invention à de prétendues divinités, à
des fétiches mythologiques.”
38

acabado por sistematizá-las, por reduzi-las a uma espécie de geometria" (HUYGHE,


1986, p.64). Retratam-se não animais particulares, mas símbolos precisos aos quais
corresponde cada categoria animal por inteiro. A vida em movimento é primeiro
reduzida à sua forma mais elementar, imediatamente reconhecível a partir do contorno
gerado por um único traço. Em seguida esse mesmo movimento é sugerido em
elaboração plástica, seja pela superposição desordenada das figuras, seja pelo
planejamento de sua justaposição linear. Na película Cave of forgotten dreams (2010),
Werner Herzog vê a invenção plástica da justaposição coordenada de imagens
correlatas sobre um suporte na caverna de Chauvet, à maneira de uma câmara
escura, proposta para ser vista por meio de uma ação luminosa também em
movimento no espaço, como uma forma de invenção cinematográfica paleolítica15. Em
outra clave, Stanley Kubrick aponta em 2001: a space odissey (1968) o domínio da
ferramenta pela mão em bandos dos primeiros hominídeos como um passo que
levaria em última instância (na cena contígua) para a exploração interestelar; mas por
inegável força que a cena tenha (ressignificando o nascer do sol do Zarathustra de
Strauss), forçoso é reconhecer que em seu contexto, em trama que tange os limites
últimos do conhecimento e do desenvolvimento técnico humanos, o embate dramático
com a inteligência artificial no filme tem sua pedra fundamental na intervenção
alienígena, inclusive como responsável pela evolução à espécie humana na pré-
história (CLARKE, 1968, p.8-22). Entre as maiores realizações artísticas e mesmo
técnicas da ficção científica, ainda vemos sua invenção permeada pela origem mítica
e sobrenatural do trabalho humano.
Gilardoni ressalta por todo seu trabalho que, de forma muito diversa do que se
sucederia na história da arte, a “unidade clássica” da pintura do Paleolítico superior
se apresentaria independentemente da variedade de suas formas de expressão e dos
contextos que lhe deram origem; “este classicismo não foi a conquista de uma geração
nem de um povo, mas o produto de milhares de anos de trabalho e de meditação”
(GILARDONI, 1948, p.34-37). Trabalhos como Préhistoire de l'art occidental, de André
Leroi-Gourhan, já em 1965, apontam para uma detalhadíssima análise da unidade de

15
Essa hipótese é desenvolvida ainda na pesquisa de Marc Azéma. Em outro momento do filme de
Herzog, o paleontólogo Julien Monney relata a visita de um etnógrafo ao norte da Austrália, em que ele
presencia um aborígene retocando uma pintura rupestre que começara a se desintegrar. O etnógrafo
pergunta ao nativo por que ele pintava, ao que ele responde que não está pintando, que o espírito é
que pintava através de sua mão. O etnógrafo, Monney e Herzog parecem não ter vislumbrado
suficientemente o quanto a expressão precisa do pintor está em plena coerência com a argumentação
de Benjamin, Vigotski e Spirkin que evocamos aqui.
39

linguagem da arte paleolítica, de suas soluções comuns em estreita relação com a


matéria utilizada e com os recursos técnicos disponíveis, nessa expressão artística
em que, nas palavras de Spirkin, o ser humano primitivo "criava sua linguagem
espontaneamente" (SPIRKIN, 1961, p.47).
40
41

3ª parte (Fichas 13 a 24)

3.1. N.º 13

Nos ensaios confrontados na segunda parte desse trabalho, de Benjamin e


Vigotski a Spirkin, transparece o quanto essas reflexões sobre as possíveis origens
da linguagem afastam-se de tal forma do uso comum da linguagem verbal hoje que
pareceriam tratar mais especificamente da arte e de linguagens poéticas de que do
quotidiano da comunicação humana. E não obstante, esses autores coincidem na
crítica deliberada a concepções da linguagem que a alienassem de sua origem, de
seu sentido primordial ligado ao trabalho coletivo, da inseparabilidade entre
comunicação expressa, pensamento, espírito. O que Benjamin e Spirkin também não
deixam de reconhecer é o estreito elo entre as origens da linguagem, do pensamento
abstrato e da arte, sendo esta o único registro intacto que chega até nós das
revelações de dezenas de milhares de anos passados.
No sentido desdobrado por Gilardoni e Huyghe, associando-o com as reflexões
de Benjamin, Vigotski e Spirkin, podemos defender que, nas artes plásticas, o olho
está para a linguagem como a mão está para o pensamento. Se pensamento e
linguagem são inseparáveis em sua origem e desenvolvimento, o trabalho manual
envolve a descoberta empírica, individual, que reflete a visão de mundo compartilhada
pelo grupo em que ele ocorre. Em um esboço de analogia dessa ordem de ideias para
o universo da música: o trabalho empírico, o lugar da descoberta, da escolha e da
recusa representado pela mão no trabalho plástico, encontrar-se-ia no ouvido? Temos
tido ferramentas, naturalmente, em contínua evolução conforme a necessidade e a
capacidade técnica, mas o trabalho artístico de compositor e intérprete não
encontraria a contraparte do pensamento em sua atitude de ouvinte?
E no esforço de aproximar a analogia proposta com a afirmação anterior, em
que o ouvido corresponderia ao pensamento no trabalho musical, que dimensão
associar (comparativamente) ao lugar da linguagem? Olho e ouvido sugerem sentidos
receptivos; a mão, a ação transformadora. Considerando a escuta o lugar da ação
transformadora no trabalho musical, o lugar da linguagem se situaria nos modos
coletivos de ouvir. Estes, nas sociedades humanas, se traduziram seja pela sua
42

função e lugar, seja pela parametrização do material; por sua organização,


classificação e limitação com vistas à constituição de paradigma comunitário.
"O ouvido se dirige com mais afinco ao interior, o olho ao exterior" (BRESSON,
1995, p.63, tradução nossa16). A parametrização do som não é apenas um dado
teórico, ou uma convenção particular de um momento histórico; é a instrumentalização
do trabalho com o som. A complexidade do fenômeno sonoro demandou, a cada
tempo, a construção e o aperfeiçoamento de instrumentos musicais que libertassem
o material dos limites paramétricos de nossa percepção. Somos gradualmente
convidados a produzir empiricamente, para instrumentos, o que jamais poderia ter
existido antes de sua construção. O campo sonoro como matéria prima da linguagem
musical não está na natureza, mas na imaginação criadora do ouvido como órgão de
trabalho e de transformação da realidade.

3.2. N.º 14

Desde que artistas como Picasso, Matisse, Modigliani, Derain e Epstein


começaram a se entusiasmar com ela há trinta anos, o interesse na escultura
africana aumentou consideravelmente. [...] A escultura africana exerceu um
grande papel no nascimento do Cubismo, e teve uma influência poderosa em
toda a pintura e escultura contemporâneas. Ela ajudou o artista a perceber o
significado emocional intrínseco das formas como distinto de seus valores
como representação, e o libertou para reconhecer novamente a importância
do material sobre o qual ele trabalha (MOORE, 2002, p.99, tradução nossa).

Entre as ideias fixas do anseio de linguagem na arte ocidental do século XX


está um encantamento por expressões artísticas exteriores a sua própria tradição,
desde a fantasia de suas origens no passado remoto até a busca referencial em
culturas as mais distantes, que refletissem modos de vida social e funções da arte
estranhas ao modo de produção capitalista. A arte é provavelmente o campo em que
essa influência ocorreu da forma menos violenta e colonialista, em comparação com
a etnografia ou mesmo com a historiografia da arte. Nem toda abordagem traz a
sensibilidade de Boas, quando coloca que
todo aquele que viveu entre tribos primitivas [...] concordará que não exista a
tal 'mente primitiva', nem uma maneira 'mágica' ou 'pré-lógica' de pensar, mas
que cada indivíduo na sociedade 'primitiva' é um homem, uma mulher ou uma
criança da mesma classe, da mesma maneira de pensar, de sentir e de
trabalhar que um homem, uma mulher ou uma criança de nossa própria
sociedade (BOAS, 1947, p.8).

16
"L'oreille va davantage vers le dedans, l'oeil vers le dehors".
43

A arte do século XX frequentemente reconheceu com a devida propriedade a


riqueza (não apenas material, mas de invenção e de estruturação de linguagem) no
trabalho artístico de outras culturas, fossem suas contemporâneas ou do passado
distante, como manifestação do pensamento abstrato. Nesse contexto, por mais
inviável que fosse vislumbrar um traço inicial da expressão musical na aurora da
humanidade, houve uma atração não apenas pela música de outros povos como
também pela emulação de linguagens musicais ancestrais, em contexto de superação
da tonalidade (em manifesta negação de seus materiais e implicações). Se o contato
com culturas musicais milenares do oriente distante foi um divisor de águas na
trajetória de Debussy, a Sagração da Primavera é provavelmente a peça mais
simbólica dessa tendência – seja pela unidade estrutural em torno de pentatônicas e
poucas combinações acórdicas (como Pousseur mais tarde detalharia em sua
análise), seja pela força impulsionadora dos jogos de periodicidade e aperiodicidade
rítmica, ou pela eventual acumulação polifônica anti-contrapontística (que poderia
fazer lembrar os painéis de pinturas rupestres sobrepostas). Mas o ballet de Stravinsky
guarda ainda o símbolo de um sopro ancestral; depoimentos do compositor e mesmo
os projetos para cenografia e figurinos do ballet evocam a memória da dudka eslava,
da qual se ouve um eco distante na parte alta do fagote que abre a cortina. Teriam
sido tubos perfurados para o sopro os primeiros instrumentos que até nós
sobreviveram, de osso e marfim, desde o Paleolítico. E em fantasias as mais
variegadas, evocações de aerofones ancestrais permeariam, nesse início de século,
o Uirapuru de Villa-Lobos, Amériques de Varèse, Prélude à l'après-midi d'un faune e
Syrinx de Debussy, Daphnis et Chloé de Ravel.
A falta de todo e qualquer registro sonoro, por um lado, e a impossibilidade de
se reconstruir com responsabilidade qualquer manifestação musical apenas pelo seu
registro escrito, direcionam necessariamente a reflexão sobre estados ancestrais da
linguagem musical para o campo particular da música erudita ocidental,
sistematicamente registrada em notação desde as suas origens, de forma a ter seus
próprios desdobramentos históricos em estreita relação e interdependência com a
transformação da escrita.
44

3.3. N.º 15

A origem material da música erudita ocidental como trabalho de criação,


inseparável de seu sentido mítico de representação (na palavra), está na monodia
cristã. Tão claro quanto a prática do Gregoriano não se fundamente em intenção de
trabalho de criação individual é que a unidade essencial entre música e pensamento
na Idade Média tenha sua materialidade originada em práticas e ideias de
experiências pregressas (como o Oktoechos bizantino e a teoria grega antiga) e,
ainda, que seu desdobramento ulterior tenha se caracterizado pela expansão do
potencial de articulação do pensamento abstrato e da força de expressão criadora em
maior independência da funcionalidade prática imediata. Abre-se o Musica enchiriadis
(de autor anônimo do século IX) com as palavras:
Assim como os componentes elementares e indivisíveis da fala (vox
articulata) são letras, das quais as sílabas são formadas, e essas por sua vez
conformam verbos e substantivos, e desses é composto o tecido de um
discurso completo, também as raízes do canto (vox canora) são phthongi,
que são chamado soni em latim. O conteúdo de toda música é em última
instância redutível a eles. Da combinação de sons vêm os intervalos, e dos
intervalos, por sua vez, nascem os sistemas (PALISCA, 1995, p1, tradução
nossa).

Na música medieval esse caminho para o domínio da articulação se dá na


estruturação parametrizada da simultaneidade sonora. Circunscrita às possibilidades
técnicas da época e a sua funcionalidade específica (inclusive na multiplicação da
monodia como cláusula para incorporação na função litúrgica), concentrou-se na
invenção do pensamento polifônico – do qual resta nem pálido resquício
(eventualmente alguma teoria desconectada da prática do pensamento musical) no
que tão frequentemente se chama de Contraponto em nossa pedagogia.
A invenção da polifonia medieval se dá em elaboração ainda murada pela
estrutura social e econômica que originara o Gregoriano: proposta de linguagem
articulada que afirmasse o humano como transcendência do mito original, no qual
apenas se reconhece a mão, o ouvido, mas não ainda a pulsão artística amadurecida
em meio à coletividade. Exploração em descoberta do espaço de expressão, em
profusão polifônica pouco organizada a partir da estrutura modal sistêmica, mas que
revelava aos ouvidos superposições intervalares inauditas, reverberando por templos
das mais variadas dimensões.
45

Em livre analogia, o século XX se aperceberia em desarticulação dos lastros


anteriores de linguagem musical, o que reconduz a questionamentos milenares no
campo de trabalho da música erudita, agora desprovidos do eixo funcional e sistêmico
que a liturgia demandava na Idade Média. Na diversidade das constituições de
materiais lineares, na configuração de novas formas de notação, na descoberta
empírica de soluções para a simultaneidade sonora, no fluxo temporal dessa
simultaneidade sem cláusulas discursivas pré-definidas, a aventura da polifonia
medieval poderia encontrar termos de comparação com as formas de expressão
intentadas no século XX, mas com a exclusão categórica de seu principal lastro
unificador: o modalismo Gregoriano.

3.4. N.º 16

O anseio por algo que se impusesse com força comparável aos sistemas
musicais históricos permeia (como metalinguagem) parte significativa do repertório
desde o início do século XX. Talvez a última proposta de uma ampla generalização
compartilhada da operação composicional tenha sido a de Pousseur na década de
1960, que por sua vez, é claramente exposta como desdobramento do pensamento
serial. As experiências seriais, desde Schoenberg, sempre se propuseram agir na
lacuna da falta de uma sistematização, no compartilhamento de uma solução
estruturante para o discurso musical em larga escala. Em resposta ao repertório atonal
de seu tempo, o primeiro serialismo opera como uma pulsão para a superação do
balbucio pré-linguístico em direção à linguagem articulada.
A música dos últimos séculos, que consideramos como nossa música
clássica em sentido amplo, como nossa música tradicional, e que encontra
no sistema da tonalidade sua expressão sintática mais equilibrada, é uma
música na qual praticamente tudo se encontra construído e sustentado de
maneira periódica.
[...] Pode-se facilmente mostrar que essa disposição estrutural bem definida
é a expressão e a realização de uma ideologia igualmente bem definida, de
uma estrutura social e de uma prática das relações humanas facilmente
reconhecível. Para ser breve, podemos resumi-las num único vocábulo:
"individualismo". A disposição simétrica, periódica, era, por excelência,
auxiliar de uma concepção de mundo concêntrica, egocêntrica. Que as
dificuldades experimentadas desde muito cedo pelo individualismo geral, e
que conduziram à sua progressiva desagregação, tenham encontrado suas
correspondências no domínio musical, que uma crise autodestrutiva se tenha
desenvolvido na música como em todos os outros domínios parciais, parece
ser evidente e não necessitar de maiores desenvolvimentos neste quadro
limitado.
46

Devemos a Arnold Schoenberg uma das enunciações teóricas mais lúcidas


sobre esse estado de crise, tendo contribuído de maneira essencial a orientar
sua evolução ulterior (POUSSEUR, 2009, p.112-113).

Se o projeto serial constituiu um gesto de responsabilidade do compositor (em


que pese o agudíssimo senso da história da linguagem em Schoenberg e Pousseur),
a abordagem distanciada do repertório deixa claro que, como projeto, o serialismo
abriu campos, espaços, portas, registros, mas não garantiu nem pertinência coletiva
como compartilhamento de linguagem (o que dependeria de inúmeros fatores
externos à prática musical), nem o mínimo juízo prévio de valor sobre qualquer obra
que nele se realizasse, como se pretendeu em certas militâncias. A efetividade da
solução particular para cada obra em nosso tempo (na ausência de critério
minimamente compartilhado socialmente) independe, inabalada, de toda qualquer
filiação anterior.
As formas de expressão musical do século XIX se mostraram em pleno
esgotamento em poucas décadas; mas não se tratava precisamente de uma
aceleração no campo da comunicação, da vida social, do tempo histórico, mas antes
de sua própria natureza, já tão entrecortada, autossuficiente e autorreferente mesmo
em seus maiores acertos. Se o século XX teve o que dizer em arte, com força e
propriedade, começou do reconhecimento de quais aspectos da produção anterior
estavam plenamente liquidados (muitos já em frangalhos, moribundos, em sua origem
mesma). Se essa produção anterior era, ela própria, o estertor do empirismo
individual, sua liquidação reconduziria a experiência ulterior a um balbucio pré-
linguístico, a uma pré-história de outra música ainda impossível de se vislumbrar. No
estúdio, trabalho, material e descoberta se configuram com mais força quanto mais
isolados do que soa na paisagem do mundo.

3.5. N.º 17

Schoenberg, ao discutir a efetividade do slogan "música nova" já em 1946,


escolhe a melodia acompanhada como exemplo modelar na argumentação sobre
quais seriam as razões de fato para as transformações históricas na linguagem
musical. Coloca que há uma dialética na tendência de um tempo histórico manifestar-
se musicalmente em incremento do discurso precisamente nas dimensões específicas
da linguagem que tivessem sido submetidas, estrategicamente, ao maior grau de
47

simplificação nas gerações anteriores. Um caso privilegiado dessa tendência, para


ele, seria a simplificação da polifonia na segunda metade do século XVIII – por mais
que se tivesse conquistado “grande habilidade na criação melódica” nesse momento.
Ele elucubra em seguida que um equilíbrio contrapontístico em uma dada textura,
privilegiada em um momento histórico dado, geraria necessariamente uma menor
elaboração e destaque para cada linha melódica, em comparação à elaboração de
uma voz principal, acompanhada. E que essa mesma complexidade polifônica poderia
fazer ressurgir, renovado, “o desejo de elaborar apenas uma voz e reduzir o
acompanhamento ao mínimo exigido para a compreensibilidade”, como nova
tendência generalizada (SCHOENBERG, 1984, p.115-116).
A defesa de uma dialética própria do material musical na história da música por
Schoenberg (comparável em certo sentido às ideias de Wölfflin para a história da arte)
nunca prescinde da sua pertinência como dado de linguagem, como objeto
apreensível, pela comunidade que a pratique. Tal é o equilíbrio a ser tecido entre o
tempo ideal da enunciação da ideia e a responsabilidade pela sua clara apreensão,
pelo qual ele advoga (em forte coincidência com a teoria da informação) em trecho
que soa profético em relação aos riscos assumidos pela geração seguinte.
Em um sentido multifacetado, a música faz uso do tempo. [...] Seria muito
desagradável se ela não tivesse como objetivo dizer as coisas mais
importantes da maneira mais concentrada em cada fração desse tempo. [...]
A necessidade do compromisso com a compreensibilidade proíbe o salto a
um estilo que seja abarrotado de conteúdo, um estilo no qual fatos são muito
frequentemente justapostos sem conectivos, e que se lança em conclusões
antes do amadurecimento apropriado (SCHOENBERG, 1984, p.116,
tradução nossa17).

3.6. N.º 18

O que chamamos de melodia acompanhada foi, historicamente, o perfil da


matéria musical responsável pela mais clara expressão de uma nova densidade de
informação em um campo subjacente de significado, que articularia a relação da
polifonia com a larga medida de tempo e (de forma mais efetiva que outrora) com todo
o repertório de uma mesma época. A construção do campo direcional de alturas e

17
"In a manifold sense, music uses time. [...] It would be most annoying if it did not aim to say the most
important things in the most concentrated manner in every fraction of this time. [...] The necessity of
compromising with comprehensibility forbids jumping into a style which is overcrowded with content, a
style in which facts are too often juxtaposed without connectives, and which leaps to conclusions before
proper maturation".
48

acordes em atrações e afastamentos torna-se uma especulação coletiva, em que cada


experiência no repertório tem o potencial de influenciar uma coletividade que
compartilha das mesmas premissas, num contexto em que a linguagem responde
muito mais por uma invenção estrutural de que pelo cumprimento de uma função
simbólica, como ocorrera na música sacra seiscentista. É nesse contexto também que
ocorre uma separação mais efetiva entre o repertório instrumental e o repertório vocal,
invertendo-se a relação de forças entre os materiais tal como esta se organizava,
ainda, em torno da contrarreforma – tanto na música sacra como também na profana.
O repertório instrumental do século XVI, quando aborda com precisão os meios
instrumentais convocados e a especificidade dos discursos a eles enunciados,
demora a se pensar autônomo da voz. Madeiras e cordas vinham de longe enquanto
se experimentava o tato em novas harpas e tubos, e o que para eles à mesa se
escrevia por muito tempo veio transportado das naves dos coros. Muito antes de seu
voo sem palavras a partir do século XVII, a música vocal já esvaziara todo o arcabouço
do antigo modalismo, enquanto traduzia e entoava em língua franca suas descobertas
empíricas. Para Giulio Caccini, um dos artífices desse esvaziamento, "o contraponto
é obra do Diabo, ele destrói a inteligibilidade. O acompanhamento deve ser simples,
a ponto de não ser escutado" (HARNONCOURT, 1998, p.167).
Há um longo caminho desde uma experimental simplicidade de
acompanhamento sob os arabescos melódicos, na geração de Caccini, até os perfis
de melodia acompanhada tonal que se configuram durante o século XVIII. A
desintegração do modalismo no final do século XVI abriria uma era de experimentos
em que a harmonia lentamente se revela como nova dimensão semântica do material
sonoro, em plena força de expressão. A música instrumental ao final do século XVIII
consolidaria, ao fim e ao cabo, um pleno exemplo da autonomia da linguagem musical
para a estruturação autossuficiente de discursos mais extensos, autorreferentes, sem
necessário lastro na palavra, no gesto, na cena ou na liturgia para a sustentação do
edifício do espírito.
Há certamente um desdobramento dessa gradual descoberta da harmonia no
Barroco no campo da ópera, e eventualmente, no caráter dramático das cantatas e
oratórios, como reforço na caracterização e aprofundamento de sentidos
extramusicais particulares. Convoca-se com muita frequência a harmonia a uma
expressão pontual, representativa. Mas na nova música instrumental do Classicismo,
49

a responsabilidade estrutural para com a novidade da especulação harmônica se faz


premente, de fato. Em nome de uma prática socialmente compartilhada de tal
complexidade discursiva (em constante especulação e ampliação do campo de
materiais e de suas implicações estruturais), foi imprescindível formular com clareza
e coerência o modo de jogo da polifonia que permitisse tal apreensão discursiva.
Em formas homofônicas, em prol do desenvolvimento da parte principal, certa
economia governa a harmonia, graças à qual ela está em posição de exercer
uma influência decisiva no desenvolvimento da estrutura (contrastes, clímax,
pontos de virada, intensificações, variações) (SCHOENBERG, 1984, p.208,
tradução nossa18).

A lenta construção dos modos de jogo do campo harmônico encontraria a plena


expressão de suas potencialidades após o atendimento de um requisito técnico
primordial, sem o qual a harmonia não alcançaria força de expressão e projeção no
tempo (em larga escala) comparáveis aos outros elementos da linguagem: o
temperamento igual. É com o sacrifício dos múltiplos sistemas de afinação, na
imposição de um leito de Procusto às antigas sensíveis dos séculos XVI e XVII e seus
afetos, que floresce a lógica própria dos acordes como objetos que tecem seus
próprios destinos. É a partir dessa condição técnica anterior que as funções do
repertório musical ocidental passam a ser gradualmente atendidas através do perfil
predominante da melodia acompanhada, em meados do século XVIII.

3.7. N.º 19

O Lied desde o século XIX (com gloriosas antecipações no final do XVIII), em


certo sentido, é mais um desdobramento da melodia acompanhada clássica de que
da música vocal Barroca. Passa por um aprendizado das melodias tradicionais do
país, sempre, mas tem sua razão de ser no modo de jogo da melodia acompanhada
tonal, agora em isomorfismo com a poesia. Se uma personagem do teatro lírico pode
ser representada mesmo na redução pianística uma ária de ópera, sem a orquestra
que situa seu espaço cênico, nada no Lied se sustenta sem a precisão solução
camerística para a qual ele foi imaginado.

18
"In homophonic forms, for the sake of the principal part's development, a certain economy governs
the harmony, thanks to which it is in a position to exert a decisive influence on the development of the
structure (contrasts, climaxes, turning-points, intensifications, variations)".
50

E foi muitas vezes em memória nostálgica da canção que a melodia


acompanhada persistiu anacrônica, em nome de um sentido extramusical ausente,
quando não era simples repetição conservatorial de um padrão canônico. Viria a
povoar o repertório, com cada vez mais frequência, esse modelo de simplicidade e
clareza de enunciação e memorização, mesmo em peças distantes do compromisso
estrutural da sonata clássica. Seja por influência dos temas de sonatas, seja pela
transposição do perfil de canções e árias conhecidas ao teclado em uso doméstico, o
século XIX viu a proliferação descontrolada da melodia acompanhada em peças
instrumentais despretensiosas, na imensa maioria de interesse vertiginosamente
decrescente. Preciosas e condensadas proposições novas para problemas simples
nesse campo, encontremo-las em Chopin, Schumann, Grieg, Alkan.
Até o início do século XX, em paralelo aos desenvolvimentos propriamente
musicais, a ópera pôde se beneficiar do legado da estruturação do perfil no repertório
tonal. De Bellini a Verdi e a Puccini, o lastro no repertório musical do Classicismo foi
imprescindível para a construção de formas musicais de expressão dramática
rediviva, senão finalmente liberta e consolidada, no campo da ópera.
Não é um cuidado excessivo (ainda mais em tempos anômicos como o que se
nos apresenta) alertar para que uma melodia acompanhada em uma ária de ópera
jamais deveria ser ouvida como aquelas que configuram temas clássicos, lieder,
cantatas, oratórios, movimentos lentos nos séculos XVIII e XIX. Indispensável:
alfabetização elementar no campo de cada uma dessas linguagens para que se saiba
a chave de leitura específica a decodificar cada objeto (de categoria aparentemente
idêntica) como proposta absolutamente distinta. De todo modo, não é infrequente a
associação do nome de Bellini a uma notória pobreza de soluções de
acompanhamento, por mais que se reconheça seu veio de melodista. De fato, não se
deveria estranhar a extrema simplicidade com que ele frequentemente confia todo o
aparato orquestral à repetição obstinada de arpejos, de acordes quebrados sobre
poucas pontuações ao baixo? Força é reconhecer que o recurso à melodia
acompanhada em meio à dramaturgia, no caso de Bellini, não transcende sua
dependência da trama e da identificação da personagem na escuta (como pode ser
sugerido em casos muito particulares em meio ao repertório lírico; exceções que
confirmam a regra). Mas ainda que essa trama ou mesmo a especificidade do papel
não sejam conhecidos, para o ouvinte de ópera bem informado a chave de leitura é
51

inconfundível com a escuta do repertório da música erudita. E mesmo assim, caberia


refletir sobre a aparente pobreza deliberada de suas soluções de acompanhamento
mais frequentes em suas árias.
Bellini trabalha sistematicamente, em suas árias, em clara hierarquia entre as
camadas da polifonia: uma base harmônica sugerida em pontuações eventuais ao
baixo, como sinais de referência para uma caminhada em larga escala em trajeto
permanentemente flutuante, na melodia. Como se houvesse uma possibilidade de
mensuração ponto a ponto de uma linha da mais absoluta fluidez sobre uma marcação
rítmica periódica. Entre essas duas dimensões distantes, caminham inabaláveis
arpejos, repetidos em moto perpétuo na região central do campo de tessitura.
Esses cantos, como fluir continuado movido por suas mais sutis inflexões de
frequência e duração, se beneficiam da imprevisibilidade de seu perfil, seja nas
implicações intervalares do desenho de alturas e na variedade das formas do seu
deslocamento no campo de tessitura, seja evitando a estrita regularidade rítmica. Na
construção de cada personagem na ópera do século XIX, as sutilezas mais
características de sua personalidade estão no modo de jogo do perfil melódico e no
tecido dos conflitos entre os tipos vocais, de forma muito mais determinante de que
nas palavras entoadas. Um segredo da melodia de Bellini é que a força dramática da
construção de suas personagens atinge um grau de sutileza e profundidade que não
seria realizável sem a participação direta do intérprete. Cada inflexão melódica escrita
por Bellini pede sua execução de modo que a medida de tempo (desde modulações
mínimas nas durações até imensas suspensões e alterações de andamento) seja da
ordem do espírito, e não da aritmética. A ferramenta para a possibilidade de sincronia
entre a pontuação do baixo como cláusula métrica em larga escala e a eterna
flutuação do caráter trágico de cada personagem cantado é a estrita regularidade dos
arpejos na camada central da polifonia (Fig.5-6). Em virtuosístico acompanhamento
de cada microscópico ademane, o regente propicia a medida para a indeterminação
em tudo que ouve (e vê), e o espírito da tragédia encarnado na voz se torna mais
humano na melancolia das tríades perfeitas quebradas.
52

Fig.5. Trecho de Col sorriso d'innocenza, ária do segundo ato de Il Pirata, de Vincenzo Bellini.

Fonte: Bellini (1970).


53

Fig.6. Sequência do exemplo anterior, somando quatro indicações de col canto em um espaço de seis
compassos, em meio a indicações como a piacere, stentato e fermatas.

Fonte: Bellini (1970).


54

Um trabalho de tradução para a música erudita da força da contribuição de


Bellini apenas chegaria a se revelar nos Noturnos de Chopin, que jamais poderiam
ser musicalmente considerados apenas pelo traço melódico, como tende a ocorrer
com as melodias de Bellini. O legato das longuíssimas linhas vocais de Bellini é ali
ressignificado na polifonia pianística, enquanto a dramaticidade em larga escala é
comovida por uma novíssima maneira harmônica (desde a oitiva modal até a
assertividade cromática) que percorre os extremos parametrizáveis de intensidade,
densidade, modos de ataque, em nome de todo o não parametrizável.
A experiência de Chopin é indispensável para o piano que hoje temos, para a
maneira como soa na Melodia acompanhada de Willy Corrêa. Se o Prelúdio no.4 ecoa
distante no cp.33 da peça de Willy (e as Baladas são indiretamente sugeridas pela
intensidade polifônica no cp.34 – veja-se a Fig.20), há uma única referência direta a
Chopin na peça, ao Noturno op.27 nº1 (Fig. 17). Quase ofensivo nomear de
acompanhamento uma pulsação tão móvel, em uma camada cuidadosamente privada
de definição de modo, como a que abre o Noturno. Ao primeiro baixo na tônica se
segue o quinto grau em oitavas, ao que logo se somam (pedal abaixado), como sinos
distantes, repetições de primeiro e quinto graus em oitavas; ressonância ancestral das
três primeiras frequências da série harmônica (afastadas, portanto, do tempo
presente, da tonalidade ao início do século XIX). Em seguida a tônica cai na mais
fraca subdivisão do conjunto, e no tempo seguinte o apoio recai sobre o quinto grau.
A repetição irregular da nota mais grave deixa a percepção da métrica de todo o
conjunto em suspenso até que sua repetição literal afirme, minimamente, uma medida
para as durações. O campo harmônico, esse só seria respondido na entrada da
melodia no terceiro compasso, que de fato apresenta, em camada temporal
diametralmente oposta (em longa ressonância do ataque solitário no médio agudo do
teclado) a terça ausente da camada grave (Fig.7). O que se delinearia em seguida,
porém, nega toda e qualquer afirmação de campo: a melodia, movendo-se à maneira
de uma clara silabação, é inicialmente constituída apenas de três notas longas
ascendentes a um semitom uma da outra, sobre o badalar constante da camada
grave. A estranha estaticidade da ressonância grave sob a instabilidade cromática da
linha aguda é momentaneamente apaziguada pela movimentação harmônica
consensual das duas partes à subdominante em meio ao quarto compasso. Mas
imediatamente segue a estranha cadência em que a napolitana, já singularmente
55

suspensa em seu badalar de quartas e quintas, é convertida em sexta aumentada no


quinto compasso (movimento integralmente acompanhado pelo pedal grave à tônica).
Encimam esse estranhamento os primeiros trechos diatônicos na linha melódica,
finalmente afirmando uma direção ao primeiro grau e em seguida ao terceiro, nos
compassos 16 e 17 (e ainda, pela fundamental do acorde de terceiro grau,
reconduzindo todo o discurso para a primeira nota da melodia e para a repetição
variada dos primeiros compassos).

Fig.7. Primeiros oito compassos do Noturno op.27 no.1 de Frédéric Chopin.

Fonte: Chopin (1878).

A surpreendência de Chopin não deveria apenas justificar sua presença


fragmentária nos compassos 17 a 20 da Melodia acompanhada, em uma peça que se
pretenda colocar o problema de se escrever uma melodia acompanhada hoje; deveria
nos ensinar o quanto a própria ideia de acompanhamento deveria ser fortemente
questionada em todo o conhecimento musical (que dirá, ainda, na educação dos
músicos hoje).

3.8. N.º 20

Durante treinta años compuso Joseph Haydn (1723-1809), como empleado


del príncipe Eszterházy, música de baile y de entretenimiento, música
nocturna para el aire libre, divertimentos, cantatas de homenaje, música de
cámara, misas y sinfonías: todo lo que hiciera falta (“Mi príncipe siempre ha
estado satisfecho con mis trabajos”). Pero en 1790, el agente Salomon
consigue comprometerlo como compositor y director de sus conciertos de
abono en Londres, a cambio de una considerable suma. Haydn, que nunca
56

hasta esa ocasión había salido de Austria y que hasta entonces sólo era
“conocido”, se hizo famoso por su éxito entre el público burgués de la
metrópoli y en la prensa: el salto a una nueva época no requirió un cambio de
generación, sino que fue consumado por el Haydn de 60 años.
Y también le salió bien otro salto, quizá el más discretamente revolucionario
de la historia de la música. A partir de 1740, aproximadamente, el rígido y
anticuado estilo contrapuntístico iba a desembocar en un lenguaje musical
homofónico más complaciente y ligero. [...] Con la elaboración motívico-
temática por él inventada (hacia 1770-1780), Haydn consiguió desarrollar una
nueva polifonía que no recordaba a la música antigua, como le sucedía al
grave estilo eclesiástico (tal era su intención, al fin y al cabo), sino que
evolucionó a partir del nuevo lenguaje de la sinfonía y el cuarteto de cuerda
(DE LA MOTTE, 1998, p.297).

Schoenberg deixa o raríssimo (senão o único) caso, no Fundamentals of


musical composition, de um tratado que dedique um capítulo inteiro à discussão do
perfil do acompanhamento e de seu papel estrutural na estruturação de discursos
tonais19. Causa espécie o quanto tratados recentes sobre a música tonal tratam do
pensamento temático e motívico expondo apenas a melodia principal de exemplos
retirados do repertório clássico e romântico. Seria uma alienação absoluta da essência
do processo de conformação do discurso tonal uma separação arbitrária entre
pensamento e linguagem a ponto de desconsiderar, como cláusula do discurso, as
camadas da polifonia estrategicamente tornadas menos informativas. Fato é que o
discurso tonal em larga escala depende precisamente do planejamento e da coerência
entre as formas de estruturação do acompanhamento para sua efetiva enunciação no
espaço de tempo em ele se nos apresenta.
O acompanhamento não deveria ser uma mera adição. Ele deveria ser tão
funcional quanto possível, e no melhor dos casos deveria agir como um
complemento à essência do sujeito: tonalidade, ritmo, fraseado, perfil
melódico, caráter e atmosfera. Deve revelar a harmonia inerente ao tema e
estabelece um impulso unificador. Deve satisfazer as necessidades e
explorar os recursos do instrumento (ou grupo de instrumentos)
(SCHOENBERG, 1967, p.82, tradução nossa20).

Após inúmeros exemplos ilustrativos de repertório do século XVIII, Schoenberg


propõe quatro tipos fundamentais de acompanhamento nesse repertório: de tipo coral,

19
Wallace Berry, em breve passagem sobre a “ativação de texturas simples”, comenta sobre o recurso
frequente ao acompanhamento arpejado de um elemento temático dominante nos séculos XVIII e XIX,
como no baixo de Alberti, mas aborda-o de forma isolado de seu contexto como impulsionador do
discurso harmônico e motívico, expresso com tanta clareza por Schoenberg. Para Berry a “vitalização
rítmica” desse tipo de perfil compensaria a ausência de eventos significativos funcionais na textura
(1987, p.222), o que é exatamente o oposto do que argumentamos aqui e do que Schoenberg
demonstra.
20
“The accompaniment should not be a mere addition. It should be as functional as possible, and at
best should act as a complement to the essentials of its subject: the tonality, rhythm, phrasing, contour,
character and mood. It should reveal the inherent harmony of the theme, and establishes a unifying
motus. It should satisfy the necessities and exploit the resources of the instrument (or group of
instruments).”
57

figurado, intermitente e complementar. As duas primeiras categorias se referem


prioritariamente ao perfil polifônico do acompanhamento, enquanto as outras duas são
caracterizadas pela sua constituição rítmica e métrica.
Detalhando o quanto o acompanhamento deve ter um papel funcional de fato
no discurso (para além de uma relação coerente e complementar com o tema), em
sua essência no repertório que ele define como homofônico-melódico, Schoenberg
enfatiza o quanto o acompanhamento, como um recurso unificador, “deve ser
organizado de maneira similar à organização de um tema: pela utilização de um
motivo, o motivo de acompanhamento”, deixando claro que este deve ser tratado pela
repetição rítmica e pela adaptação à harmonia, sem a mesma variedade da melodia
ou tema que acompanha21. “Sua forma particular deve ser constituída de tal modo que
possa ser modificada, liquidada ou abandonada, de acordo com a demanda da
natureza do tema” (SCHOENBERG, 1967, p.83).

3.9. N.º 21

O destaque da linha superior como mais elaborada na polifonia vocal ao final


do século XVI se desdobraria, no século seguinte, em uma acentuada simplicidade
das formas de acompanhamento no repertório dramático. A linha vocal, pelo menos
nos primeiros 150 anos (aproximadamente) da ópera, concentra em si a
representação do personagem, frequentemente delegando o acompanhamento a uma
função quase cenográfica.
No repertório instrumental tonal é raro esse grau de simplicidade no
acompanhamento. Que se procurem figuras de acompanhamento como perfil estático,
reiterado, no repertório anterior a 1756. A projeção estrutural da harmonia como um
novo modo de jogo da polifonia convida o perfil de melodia acompanhada a não
privilegiar apenas a melodia principal, uma vez que sem a clara escuta do
acompanhamento o tempo do discurso harmônico não fará sentido. Esse repertório
tende, portanto, a uma hierarquia equilibrada entre o grau de informação melódico e
harmônico, colocando claramente a função de acompanhamento às camadas
responsáveis por veicular o pensamento harmônico de forma mais assertiva, em perfis

21
De La Motte ressalta que a expressão “elaboração temática” surge em torno da obra de Haydn
precisamente porque em sua obra a elaboração pode passar despercebida pela facilidade de execução
(1998, p.297).
58

menos variados, em constituição inseparável da estruturação de alturas e durações


da melodia principal, que afirma seu perfil de forma mais categórica de que sua
definição harmônica, que permanece aberta a uma miríade de abordagens. E é nesse
contexto que, com o tempo, cairia em desuso o recurso ao baixo contínuo e detalhar-
se-ia com toda precisão a participação exata do acompanhamento, por mais simples
que se configurasse (ou ainda, para que estivesse garantida sua necessária e
específica simplicidade, em detrimento da prática improvisatória anterior). Esse novo
perfil permitiria, em última instância, a conformação de todo o pensamento motívico-
temático no século XVIII, pedra fundamental do discurso tonal.
A música do estilo composicional homofônico-melódico, ou seja, aquela que
possui um tema principal baseado em uma harmonia e por ela acompanhado,
produz seu material pelo que eu chamo de variação em desenvolvimento.
Isso significa que a variação das características de uma unidade básica
produz todas as formulações temáticas que proveem fluência, contrastes,
variedade, lógica e unidade, por um lado, e caráter, atmosfera, expressão e
toda e qualquer diferenciação que se fizer necessária, por outro lado –
elaborando assim a ideia da peça (SCHOENBERG, 1984, p.397, tradução
nossa22).

Para Schoenberg, o pensamento contrapontístico até meados do século XVIII


ainda não tinha recursos para conectar frases contrastantes de forma eficiente; a
elaboração propriamente dita do material só se engendraria a partir do momento em
que a homofonia libertasse a harmonia das obrigações da condução polifônica
(SCHOENBERG, 1984, p.485). Schoenberg insiste reiteradamente em seus textos na
definição por oposição entre o pensamento contrapontístico e o repertório temático
harmônico e em suas consequências estruturais, sempre tendo em vista o
aprendizado reverente do que animara os discursos musicais no passado, para que
não deixássemos de almejar a mesma força discursiva em nosso tempo.

3.10. N.º 22

A melodia acompanhada é o recurso modelar ao qual converge o primeiro


repertório tonal sob o temperamento igual no século XVIII, aquele que age no máximo
compromisso estrutural entre a apresentação de uma ideia central e todo o discurso

22
"Music of the homophonic-melodic style of composition, that is, music with a main theme,
accompanied by and based on harmony, produces its material by, as I call it, developing variation. This
means that variation of the features of a basic unit produces all the thematic formulations which provide
for fluency, contrasts, variety, logic and unity, on the one hand, and character, mood, expression, and
every needed differentiation, on the other hand – thus elaborating the idea of the piece."
59

que dela se desdobra. A elaboração dos temas principais nos movimentos em forma
sonata constituiriam exemplo máximo, naquele momento, desse compromisso
estrutural (Fig.8).

Fig.8. Início da Sonata op.1 no.6 de Domenico Alberti (1710-1746).

Fonte: Alberti (s.d.).

Com que frequência se encontrariam exemplos de perfis polifônicos ao teclado


com esse grau de redundância no repertório anterior a Alberti? Na mais flagrante
simplicidade, o tecido de uma linha subalterna contraposta à melodia principal contém
a uma só vez a plena informação da densidade harmônica e de um propulsionamento
rítmico que lhe confira identidade métrica e de caráter, resultando, em sua
60

inseparabilidade da melodia principal, o objeto doravante entendido como tema, com


sua densidade e perfil particulares. No acompanhamento ao então chamado "baixo
de Alberti", além dessas propriedades, o conteúdo intervalar da linha subalterna ficaria
prioritariamente restrito à repetição alternada das notas dos acordes implicados
(eventualmente adornadas por notas vizinhas), em estrita regularidade rítmica.
Conforma-se assim pela sua efetividade (independentemente da suposta autoria
albertina, dificilmente verificável) um caso extremo de solução para a simplicidade
estratégica na construção do discurso tonal em larga escala; solução que,
precisamente por essa razão, se expandiria pela prática comum do século XVIII. O
achado dessa figuração, em toda sua singeleza, viria a permear frequentemente a
apresentação dos temas, que identificados da maneira mais imediata pelo seu modo
próprio de enunciação, conformam a apreensão de um sentido particular como
proposta central no desdobramento do discurso.

3.11. N.º 23

O notório primeiro movimento da Sonata K545 de Mozart começa pelo arpejo


de tônica em semínimas e mínimas sobre o baixo de Alberti em colcheias sobre as
mesmas três notas (Fig.9). Exemplo máximo da economia de material, traz todas as
propriedades iniciais do tema principal, ocupando um quarto de sua duração, pelo uso
de apenas três das doze notas. A subdominante no terceiro compasso, que lhe
articulara a cesura, inicia também a ponte (ou seria um episódio dentro do primeiro
grupo temático?), em que o arpejo é substituído pela escala e o baixo de Alberti dá
lugar a pontuações de acordes. Ao final desse trecho, a cadência sobre a dominante
é novamente feita pela superposição de arpejos em medidas de tempo diferentes
(cp.11).
61

Fig.9. Compassos 1 a 13 do primeiro movimento da Sonata K545 de W. A. Mozart.

Fonte: Mozart (1893).

O baixo de Alberti retornaria em escopo reduzido (enunciando apenas uma


terça e não o acorde completo) no acompanhamento do segundo tema (cp.14-17,
Fig.10), formado este pela inversão do motivo inicial (arpejo descendente). Todo esse
segundo tema opera em diminuição rítmica do primeiro, movido pela ponte. Seguem-
se novas figurações de acompanhamento sobre os mesmos elementos: primeiro o
arpejo, agora em cascatas alternadas e invertidas, em espelho, em indistinção
momentânea entre melodia e figura de acompanhamento (cp.18-21, Fig.10).
62

Fig.10. Compassos 14 a 28 do primeiro movimento da Sonata K545 de W. A. Mozart.

Fonte: Mozart (1893).

Ao final desse elemento retornam a rítmica e a melodia arpejada do primeiro


tema, mas em perfil distinto: as colcheias da mão esquerda fazem em notas repetidas
a terça que acompanhara o segundo tema (cp.22-23). Dois compassos depois a frase
é conduzida pela primeira vez na peça à aceleração do baixo de Alberti (cp.24),
superposta a uma reconfiguração do motivo principal do segundo tema de forma a se
aproximar do cp.3. O compasso seguinte (cp.25) é evocado na peça de Willy que
analisamos nesse trabalho, ainda que bastante transfigurado. Memória de um
momento de densificação e diminuição, sobre um motivo que permeia melodia e
63

acompanhamento como assunto central da peça. O tema em Mozart é mais


coerentemente derivado do baixo de Alberti de que do arpejo pura e simplesmente,
como material.
Mas a exposição como um todo não se sustenta apenas na variedade melódica;
tem sua razão de ser na apresentação de ao menos sete perfis de melodia
acompanhada marcadamente distintos: baixo de Alberti (cp.1-4); pontuações
harmônicas e silêncios (cp.5-8); contraponto em medidas de tempo distintas (cp.9-10),
rápidos arpejos ascendentes (cp.11); rápido volteio de terça (cp.14 e 16, modulados
para incluir um contracanto nos cp.15 e 17); arpejos ascendentes e descendentes, em
plena indistinção entre melodia e acompanhamento (cp.18-21); terças em pulsação
constante de notas repetidas, em colcheias (cp.22-23); baixo de Alberti acelerado em
semicolcheias (cp.24-25). Seguem, como conclusão da seção, suas únicas repetições
de perfil: o retorno das pontuações harmônicas e silêncios (cp.26-27) e a homofonia
para encerramento de frase (cp.28, como retomada do perfil do cp.12). Cada um
desses objetos pianísticos tem sua identidade como perfil mas também pelo seu papel
harmônico, seja pela afirmação estável de uma região (cp.1-4, 11-12, 14-17, 24-28),
pelo movimento direcional contínuo (cp.5-10, 13, 18-21) ou pela relativa estabilidade
sobre um ponto temporário de espera, em meio ao movimento (cp.22-23).

3.12. N.º 24

Nas notas preliminares à partitura do Quarteto de Cordas no.4 op.37,


Schoenberg escreve a respeito de suas marcações de Hauptstimmme (parte principal,
a "cabeça") e Nebenstimme (parte secundária, "lateral"): "Essas indicações têm o
propósito de deixar clara a cada intérprete a importância de sua parte. Portanto,
passagens sem essas indicações devem se restringir a um pano de fundo como
acompanhamento"23 (SCHOENBERG, 1939, p.2).
Tão forçoso quanto é reconhecer esforço de clareza na enunciação do perfil da
ideia, em uma peça estritamente dodecafônica como essa, é notar o quanto o universo
serial é naturalmente infenso à efetividade do papel do acompanhamento no discurso
tal como ele se configurou historicamente. Schoenberg empreende um método pelo

23
"These indications are for the purpose of making clear to each performer the importance of his part.
It follows that unmarked passages are to retire into the background as accompaniment".
64

qual fosse possível incorporar a sabedoria discursiva do trabalho musical dos últimos
duzentos anos no contexto da música de seu tempo. O que o movia à construção
dessa proposição pode ser apontado como o fato da música de seu tempo só ser
passível de uma definição por negação; por oposição àquilo que se sabe que ela não
é. Por mais reverente que fosse sua devoção ao compromisso entre a estruturação
da polifonia e o tempo de sua enunciação no repertório tonal, sua solução é
necessariamente circunscrita a esse estado de coisas. A falta de memória coletiva na
premissa do problema a ser enfrentado se reflete não apenas na difícil memorização
dos discursos musicais (o que, hipoteticamente, poderia ser enfrentado através de um
treinamento específico), mas principalmente, no quanto a linguagem permanece
inseparável das formas de pensamento que produziram o estado de coisas do qual se
parte. O que é inegável em sua iniciativa (e que se tornaria imprescindível para a
criação musical pelas gerações subsequentes) é a ação deliberada para alcançar uma
contribuição no avanço dos meios de produção, nas técnicas de operação discursiva
em música, informadas ao máximo pela abordagem crítica das experiências
passadas. Há um sinal de uma agudíssima consciência dialética da história do
material musical no difícil percurso das peças de Schoenberg em seu tempo.
O repertório mais diretamente centrado na recuperação de tais perfis históricos
coincide com a produção mais comumente criticada em toda a obra serial de
Schoenberg. Comparem-se nesse sentido os concertos para piano (op.42) e violino
(op.36), o Quinteto de Sopros op.26, o terceiro e o quarto quartetos de cordas (op.30
e op.37), esforços deliberados de metalinguagem do tonalismo no que se refere tanto
ao perfil quanto a suas implicações formais, com a Fantasia para violino e piano op.47,
o Sobrevivente de Varsóvia op.46, o Trio para cordas op.45. Mas que se verifique em
detalhe uma peça como a Klavierstück op.33a para se dirimir qualquer dúvida quanto
ao grau de consciência do compositor quanto à inseparabilidade entre pensamento e
linguagem, forma e conteúdo, material e enunciação em larga escala. Se a densidade
de informação e a larga duração se impõem como desafios à apreensão, por exemplo,
do op.26, que se verifiquem as escolhas do material e de seu perfil para uma crítica
que opusesse com propriedade os movimentos iniciais do op.42 e do op.37, do op.36
e do op.30, por exemplo.
A simplicidade na estruturação da polifonia foi uma ferramenta necessária no
século XVIII, quando se apresentou a demanda pela estruturação autorreferente do
65

discurso em larga escala em um contexto de altíssimo compartilhamento do novo


repertório junto ao público – e mesmo a um mercado musical específico. Empreende-
se, naquele momento, verdadeira militância em prol do estilo galante e em detrimento
da complexidade polifônica anterior, em meados do século XVIII – veja-se o
comentário sobre as críticas de J. A. Scheibe a J. S. Bach em Pestelli (1984, p.6-12).
Há um reequilíbrio de forças em jogo, em que a densidade de informação cede à
profundidade de significados sintáticos e formais em potencial para cada objeto. A
condição primeira para essa transformação e sua efetividade era o compartilhamento
prévio do modo de jogo das funções harmônicas tonais, ademais plenamente
compartilhado por toda a prática musical do continente naquele tempo.
O que se busca discutir nesse trabalho – e que necessita de um estudo de caso
preciso para se aclarar – é que a proposta de se trabalhar hoje, em uma composição,
com a referência ao problema histórico da melodia acompanhada, em sua mais
aparente transparência e simplicidade, diferencia-se integralmente de figurações
secundárias compreendidas como formas de acompanhamento em repertório atonal
ou mesmo serial no século XX, uma vez que estas estarão inexoravelmente
esvaziadas do grau de compromisso estrutural em larga escala conferido pelo modo
particular de enunciação da harmonia tonal, como projeto mnemônico. Um projeto
como esse, ao mesmo tempo, não poderia prescindir de uma forma de expressão
coletivamente compartilhada para se tornar efetivo, e esse é o ponto que o compositor
não pode enfrentar sozinho, fora de seu próprio tempo. Seria possível tatear o material
em conformação de uma possível discursividade, mesmo que essa não possua
terreno fértil para sua verificação posterior? De que forma pode ser colocada em jogo
a modelagem de um discurso em processo de conformação, sem uma coletividade
que a operasse de forma conjunta, na mesma direção, em nome de uma necessidade
compartilhada?
A quarte parte desse trabalho busca respostas a essas perguntas na
abordagem de um caso particular em fonte primária, como centro de nossa
argumentação; no quanto a partir dele se depreenderia a reflexão conjugada das
implicações das discussões prévias sobre as origens das formas de linguagem (em
sua inseparabilidade das formas de pensamento) e do trabalho na criação musical em
nosso tempo, quando do enfrentamento pontual de um perfil modelar recuperado de
tempos de plena comunicação da invenção.
66
67

4ª parte (Fichas 25 a 34)

4.1. N.º 25

Antes de abordar propriamente a Melodia acompanhada, preferimos que as


três primeiras fichas dessa quarta parte realizassem uma espécie de ponte, em que a
reflexão sobre seus materiais mais fundamentais conduzisse melhor à verificação de
sua enunciação no discurso.
Alguns dias depois do telefonema evocado na ficha n.º 02, chegavam por e-
mail as fotos do manuscrito da Melodia acompanhada; mais uns dias e viria ainda
digitada, prestativamente, pelo Vitor Ramirez. Nos quatro primeiros compassos
(Fig.11), o perfil que ele acusara como ponto de partida, que teria sido tomado de uma
peça anterior, saltava à vista como um ponto em que dificilmente se reconheceria essa
referência.

Fig.11. Compassos 1 a 8 da Melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira.

Fonte: Oliveira (2020).

Nossa elucubração sobre a razão da escolha desse perfil convidou à busca de


sua ocorrência em outras peças de Willy. A peça para piano Epitalâmio (2016) traz,
em dado momento, um breve perfil similar de seis notas, estirado pelo campo de
tessitura, ao qual seguem breves citações literais da Sonata op.49 no.1 de Beethoven.
68

A citação do motivo principal do 1º movimento da Sonata, nessa peça24, o aproxima


do reconhecimento de seu desenho melódico no perfil de seis notas comentado acima
– em extrema aumentação e distorção de seus intervalos constitutivos, mas ainda
mantendo todas as relações de direção entre os seis pontos que o conformam – à
mão direita, nos compassos 17 e 18 do Epitalâmio (Fig.12).

Fig.12. Compassos 16 a 18 de Epitalâmio para piano, de Willy Corrêa de Oliveira (2016). Compare-se
o perfil da mão direita nos compassos 17 e 18 com o motivo principal do 1º movimento da Sonata
op.49 no.1 de Beethoven (Fig.14).

Fonte: Oliveira (2016).

É essa mesma ordem de perfil (na mão direita) que abre a Melodia
acompanhada. Mas há outra peça sua para piano, Ruba'i (2012), em que o papel
fundamental exercido, por um lado, por um breve perfil similar reiterado ao início, e
por outro, pela citação de um trecho do segundo movimento da Sonata de Beethoven
(já citado no Epitalâmio), faz parecer que o Ruba’i era a peça a que Willy se referia,
como origem do perfil inicial da Melodia acompanhada. O perfil do segundo compasso
da Melodia acompanhada é quase idêntico ao perfil inicial do Ruba'i; são as mesmas
alturas, dispostas de modo diverso no registro, apenas com uma mudança na ordem
das notas (a segunda nota do perfil de Ruba'i se tornaria a quarta nota na Melodia
acompanhada). Ainda, no Ruba'i, o perfil é repetido duas vezes e variado em seguida,
o que por si só já aponta para uma estratégia estruturante distinta entre as duas peças
(Fig.13). Na Melodia acompanhada o material da peça anterior é colhido como algo

24
Esse mesmo motivo também é citado por Willy nas peças para piano Versos (2019c) e Madrigal
(2017).
69

do entorno, como um desenho prévio no mesmo suporte, e independentemente de


seu propósito anterior, começa-se com ele uma nova ideia.

Fig.13. Ruba'i para piano (2012) de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 1 a 9. Compare-se o perfil
inicial com o segundo compasso da Melodia acompanhada (Fig.11) e com o motivo principal do
1º movimento da Sonata op.49 no.1 de Beethoven (Fig.14).

Fonte: Oliveira (2012).

A próxima ficha abre um parêntese antes da abordagem da Melodia


acompanhada. Ao folhear as três páginas da nova partitura de Willy, percebemos que
o perfil que identificamos como derivado da Sonata op.49 no.1 de Beethoven terá um
papel estruturante por toda a peça. Sabendo que não se trata apenas de um fragmento
melódico, mas de um princípio unificador em uma forma sonata clássica, achamos
que seria uma abordagem mais responsável verificar o modo de operação desse
motivo em seu contexto original. Ainda que ele pudesse ter sido tomado por Willy
apenas como um perfil melódico, sua escuta referencial recenderia a seu papel
discursivo em um exemplo notório de um perfil histórico modelar.

4.2. N.º 26

Schoenberg associa a Sonata op.49 no.1 de Beethoven com as sonatas op.14


no.1, op.78 e op.79, como casos condensados de forma sonata, em que se recorre a
70

um número mínimo de partes reduzidas em si mesmas, ao modo do que se entende


por sonatina. Seriam exemplos de que a forma sonata não é necessariamente extensa
e complexa, mas que seguiria a demanda de cada ideia particular (SCHOENBERG,
1967, p.201).
O perfil inicial da Melodia acompanhada se desdobra a partir do motivo principal
do primeiro movimento da Sonata op.49 no.1, em sol menor. A sonata já começa com
a apresentação do tema, sentenciforme (em 8 compassos), inteiramente baseado no
motivo principal e em suas variantes (Fig.14). Na melodia, o motivo é primeiro
apresentado em sua forma mais completa e a cada reaparição é variado pela omissão
de uma de suas partes constitutivas (primeiro é retirada a anacruse, para em seguida
restarem apenas os grupos centrais de três e até duas notas). O acompanhamento
começa em movimento homofônico que sintetiza os jogos de direção do perfil da
melodia25. Em seguida, encerra o antecedente como arpejo de subdominante e
percorre o consequente em forma de pontuações acórdicas e silêncios26. O tema é
repetido agora com 7 compassos (cp.9-15) pela alteração no papel do consequente,
que enuncia uma diminuição da figura de quatro notas descendentes (cp.1) para a
semicolcheia (que gerará o ritmo da figura de acompanhamento do segundo tema),
enquanto articula a modulação para a mediante. Essas características podem
ressignificar a função dos compassos 13 a 15 para uma brevíssima ponte ao segundo
tema (Fig.14).

25
Poderia ser argumentado que a melodia é que omite uma das quatro notas do motivo diatônico
descendente, apresentado de forma integral no acompanhamento. Comparem-se as três primeiras
notas da mão direita no compasso 1 com as notas 1, 3 e 4 da voz inferior na mão esquerda (Fig.14).
26
Cabe ressaltar que a ênfase sobre o arpejo, ocorrida na subdominante em sua primeira aparição no
acompanhamento ao final do antecedente, ocorre sob uma melodia que afirmara apenas uma vez, em
suas três primeiras notas, um arpejo do acorde de tônica.
71

Fig.14. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 1 a 18.

Fonte: Beethoven (1862).

O segundo tema (também sentenciforme, cp.16-24) é diretamente derivado do


mesmo motivo principal, agora com a eliminação da bordadura de sensível ao centro
da figura. A figura central do primeiro tema oscilava entre deslocamentos de terça
menor e quarta justa, enquanto privilegiara os saltos ascendentes de sexta menor nas
extremidades. O segundo salto de sexta menor no 1º tema recai no ponto culminante
do antecedente, mi bemol (cp. 4). A partir da memória desse mi bemol, o segundo
tema iniciará com o salto descendente de trítono (cp.16, Fig.15), seguido de notas
repetidas e arpejo ascendente. O arpejo (raro no 1º tema) é também incorporado
agora nas variações do baixo de Alberti na mão esquerda, em semicolcheias que
permanecerão até o fechamento da exposição. Uma rápida revisita à ponte articula a
repetição do consequente do segundo tema (cp.25-26, Fig.15), antes que a coda da
exposição sintetize, em duas enunciações de dois compassos, os elementos
principais do segundo tema como um todo (cp.30-31, cp.32-33, Fig.15). Esse segundo
tema seria reaproveitado por Beethoven, ligeiramente alterado, como refrão no rondó
final (terceiro movimento) do Concerto para piano no.3 op.37, composto poucos anos
depois. O refrão é exposto na maioria das vezes como um a-b-a', e o material de sua
seção central tem constituição rítmica e intervalar idêntica ao motivo principal do
segundo tema do primeiro movimento da Sonata op.49 no.1 (Fig.16).
72

Fig.15. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 14 a 33.

Fonte: Beethoven (1862).

Fig.16. Compassos 17 a 20 do terceiro movimento do Concerto para piano no.3 op.37 de Beethoven.
Compare-se com os compassos 16 a 20 do 1º movimento da Sonata op.49 no.1 (Fig.15).

Fonte: Beethoven (s.d.).

O desenvolvimento do primeiro movimento da Sonata (com 30 compassos,


apenas três compassos mais breve de que a exposição) toma o partido da
fragmentação para a elaboração modulante de diversas células da exposição,
separadas de seu contexto inicial (Fig.17). Enfatiza o material melódico do segundo
tema, ao lado de trechos da ponte e do consequente do primeiro tema, da bordadura
de sensível (ausente no segundo tema) e de um dado até então inexplorado: o caráter
73

acéfalo do acompanhamento do primeiro tema. A versão condensada do segundo


tema que constitui a coda da exposição (cp.30-33, Fig.15) é retomada e repetida, nos
compassos 47 a 50, até se tornar um episódio completo de aparição única, entre os
compassos 51 e 54 (Fig.17).

Fig.17. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 34 a 59.

Fonte: Beethoven (1862).

Na reexposição, chama a atenção o principal elemento significativamente


alterado: na repetição do primeiro tema, a melodia é mantida na mesma região central,
enquanto um novo acompanhamento figurado em acordes quebrados e contracantos
em semicolcheias é agora alocado na região aguda do instrumento, em filtragem da
banda grave e médio-grave (cp.72-79, Fig.18). A ressignificação de toda a textura do
74

primeiro tema na reinvenção do acompanhamento é a informação mais importante de


toda a reexposição.

Fig.18. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 60 a 86.

Fonte: Beethoven (1862).

A reelaboração do segundo tema na reexposição traz, já a caminho da coda, a


marca do salto de uma décima quinta descendente no compasso 19 (Fig.15), agora
deslocado no tempo e na tessitura, em salto de sétima diminuta composta
descendente sobre o tempo fraco (cp.92), e também em saltos ascendentes de oitava
em síncopa (cp.93 e 95, Fig.19). Já a coda retoma finalmente a densidade acórdica e
o movimento em colcheias, característicos do perfil do primeiro tema, articulando
novamente o acompanhamento (agora na região central) acima da melodia, que
75

reitera o motivo principal do segundo tema na região grave; agora é a banda aguda e
médio-aguda que é inteiramente filtrada (cp.97 a 110, Fig.19).

Fig.19. Sonata no.19, op.49 no.1, de Beethoven, primeiro movimento, compassos 92 a 110.

Fonte: Beethoven (1862).

Um dado soterrado sob a transparente textura pianística ainda é revelado na


coda, caso passasse despercebida sua primeira enunciação ao final do
desenvolvimento: entre os compassos 58 e 63 (Fig.17-18), assim como nos oito
últimos compassos do movimento (Fig.19), desenhos cromáticos reminiscentes do
consequente do primeiro tema se imiscuem nas figuras de acompanhamento, em
intrincada polifonia. Como estratégia, o único trecho da peça em que o
acompanhamento é deliberadamente secundário (ainda que as variantes do baixo de
Alberti sigam de constituição imprevisível) é a região do segundo tema (Fig.15);
contraste que reforça o papel estrutural do perfil textural como um todo pelo discurso
inteiro, na mais absoluta inseparabilidade. O desenho melódico do primeiro tema é
apenas a face mais diretamente apreensível, superficial, da estrutura integrada que é
dele desdobrada e articulada harmonicamente no tempo. Princípio unificador,
Grundgestalt: qualquer referência direta ao perfil evoca a essência que impulsionara
76

a peça inteira27. Mesmo que esse impulsionamento opere em múltiplas variantes


harmônicas e intervalares, em última instância a representação da essência desse
perfil se daria pelo desenho melódico aproximado, e não pela sua primeira ocorrência,
já traduzida em uma região harmônica específica. A presença estruturante desse perfil
melódico de modo atomizado, pontilhístico, na peça de Willy, não deixa de ser uma
síntese do papel generalizado que ele de fato assume na Sonata.

4.3. N.º 27

Fechado o parêntese; no extremo oposto de um primeiro estranhamento ao


qual podem convidar os perfis ouvidos nos quatro primeiros compassos, saltam à
escuta em meio à Melodia acompanhada materiais da mais extrema familiaridade.
Logo após a calma atomização do perfil abstrato inicial, os compassos 5 e 6
contrastam trazendo o acorde de Tristão, seguido de uma escala diatônica sobre
tríades paralelas (Fig.11). Esse conjunto conduz diretamente a um acorde de
constituição estranha aos materiais que o antecederam (si-dó-fá!-sol-dó), e essa
oscilação entre a familiaridade e o estranhamento pode desviar o ouvinte a um
suposto jogo entre materiais díspares, alguns funcionais e outros anti-funcionais.
Confirmariam esse movimento em falso, aparentemente, o retorno periódico ao
acorde de Tristão, figurações à Alberti sobre tríades menores nos compassos 12 e 16,
reiterações da tríade de sol menor nos compassos 19, 20, 24 e 32, e mais um arpejo
menor no compasso 31 (Fig.20 e 22). Antes do fim da primeira escuta (atenta), a
superficialidade de tal chave de leitura fica patente, principalmente porque os
materiais harmônicos menos familiares são os mais reiterados e variados em suas
concatenações (de modo a configurarem de fato o espaço harmônico em
acompanhamento e melodia), enquanto a familiaridade eventual de alguns materiais
faz mais corpo com a referencialidade em si, como estratégia, de que a um modo de
jogo que de fato não se realiza no discurso. Ainda em estágio preliminar à análise da
peça, em tentativa de identificação isolada e classificação dos materiais que se nos
apresentam, caberia verificar qual o papel dessa referencialidade explícita na
estruturação da peça.

27
Compare-se esse pensamento com a leitura proposta na nota de rodapé 25, sobre a inseparabilidade
entre esse motivo e seu acompanhamento, para que se vislumbre uma realização do que foi discutido
nas fichas n.º 21 e n.º 22.
77

Intentemos brevemente, como experimento prévio à exegese do discurso, um


levantamento das citações que a Melodia acompanhada chega a incorporar no
discurso. Se a primeira referência externa, que abre a peça28, vem transfigurada e não
é facilmente decifrável apenas a partir desse discurso, logo em seguida já se acusa o
que ele chamara de "assinatura", em ataque do acorde de Tristão seguido de linha
literalmente advinda do Concerto para piano no.24 K491 de Mozart. A linha mozartiana
desce sobre paralelismo triádico na direção oposta, na mão esquerda, que por essas
mesmas razões nega seu papel de acompanhamento (Fig.11).
Poucos compassos depois, identificamos em sequência: a lembrança
(comentada ao telefone) da primeira das Valentine waltzes de Antheil (cp.11, 13, 15,
Fig.2029); um fragmento transfigurado da Sonata K545 de Mozart (cp.16 na Fig.2030),
o início do Noturno op.27 no.1 de Chopin (cp.17 a 20, Fig.2031).

28
Na sugestão de associação dos perfis dos quatro primeiros compassos com o motivo principal da
Sonata op.49 no.1 de Beethoven que empreendemos na ficha n.º 25.
29
Compare-se com a Fig.21.
30
Compare-se com o cp.25 da peça de Mozart na Fig.10.
31
Compare-se com o início da peça de Chopin na Fig.7.
78

Fig.20. Melodia acompanhada, de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 9 a 22.

Fonte: Oliveira (2020).

O trecho que lembraria Antheil surge precisamente com a eliminação do


aspecto fundamental em jogo aqui: o acompanhamento, que na origem era o mais
absolutamente tradicional, impávido na alternância entre baixo e tríades, sob a
singular melodia valsável. Na origem, o acompanhamento era imprescindível para
situar a valsa como a oferta de uma lembrança, como cristalização lânguida de uma
memória lúbrica (Fig.21). Um acompanhamento que remetesse a uma função comum
como articulação de um gesto de dança não necessariamente deporia sobre sua
79

inseparabilidade de perfil junto à melodia; mas não perderia, também, sua razão de
ali subjazer só por essa falta de compromisso. Perde, sim, sua função na evocação
da peça em projeto que problematize a melodia acompanhada, razão que justifica sua
ausência nas duas referências à peça de Antheil: o motivo principal (compassos 1 e 2
em Antheil) é evocado nos compassos 13 e 15 da Melodia acompanhada, enquanto
a figura em resposta descendente (compasso 3 da valsa) é referida no compasso 11
da peça de Willy (Fig.20).

Fig.21. Primeira peça do ciclo Valentine waltzes, de George Antheil (1900-1959), compassos 1 a 9.

Fonte: Antheil (1997).

O fragmento de Mozart é exatamente a evocação da surpreendência do retorno


do baixo de Alberti ao final da exposição da Sonata K545, agora no dobro da
velocidade, sob ainda mais intensa granulação do perfil, no trinado cadencial da mão
direita (Fig.10, cp.25). Na Melodia acompanhada (Fig.20, cp.16), surge com função
contrária, modulante, em transfiguração do perfil que se abre em direções opostas.
O trecho de Chopin, por sua vez, é permeado da harmonia à qual a peça de
Willy chegava, passo a passo. As quintas iniciais ao baixo (cp.17, Fig.20) são
complementadas pela relação de semitom com o dó natural na mão direita, na mesma
80

resultante harmônica que deriva da melodia nos compassos 12 e 1432. Seguem as


notas iniciais da melodia original (cp.18, Fig.20), em alteração de registro e duração,
ao que o acompanhamento converte-se em um conjunto de doze sons, sob nova
variação do mesmo motivo melódico dos compassos 12 e 14 (cp.19-20, Fig.20). A
transição do campo harmônico de dó! menor para o conjunto de doze sons é articulada
pela tríade mais distante, sol menor (talvez uma lembrança da região harmônica
principal da Sonata op.49 no.1 de Beethoven, eliminada na citação de seu perfil
inicial).
Ao final da peça, quando do retorno do perfil de seis notas dos quatro primeiros
compassos, este é eventualmente aumentado em versão alargadíssima (cp.29 a 33),
e de dentro do segundo de seus (agora) longos pontos irrompe o início da Sonata "ao
luar" op.27 no.2 (cp.30, Fig.22). Sua irrupção, em memória a mais familiar, funciona
como uma espécie de variante da seção contrastante da peça (cp.25-27, Fig.22), em
que a sequência continuada de arpejos na mesma direção torna indistintas as ideias
de melodia e acompanhamento (veja-se na Fig.10 a solução similar de Mozart, aos
compassos 18 a 21). Na variante metalinguística, o arpejo de dó sustenido menor é
logo sucedido por uma sequência de doze sons sem repetição sobre outro agregado
que forma o arcabouço da peça, em quatro tríades aumentadas a um semitom de
distância uma da outra (cp.31, Fig.22).

32
Tentaremos dar conta do papel dessas resultantes harmônicas nas fichas seguintes.
81

Fig.22. Melodia acompanhada, de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 23 a 32.

Fonte: Oliveira (2020).


82

No que segue, cinco dos últimos seis compassos da peça veem o recurso ao
acorde de Tristão, braço do campo de materiais da peça ao qual o discurso converge.
Entre esses seis compassos, o terceiro, único que não ouve o acorde de Wagner,
refaz a "assinatura" de Willy com a pena de Mozart, agora adensada em terças. Nos
três últimos compassos a assinatura é repetida sobre a reiteração do acorde de Tristão
como único objeto vertical (Fig.23).

Fig.23. Melodia acompanhada, de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 33 a 38.

Fonte: Oliveira (2020).

Encerrado o arrazoado sobre os materiais forasteiros, à diferença de um


grande número de peças de Willy, cada uma dessas referências está longe de ser o
problema central da peça. Não é um projeto metalinguístico que tenha como
linguagem-objeto os sentidos particulares das peças referidas em sua origem; pelo
contrário, cada citação surge como se fosse um sinal do meio, algo tomado do que se
encontra no entorno (como sorte de objets trouvés), ou do que se perde à mesa de
trabalho, e seu lugar na peça (sua sobrevivência à recusa de integrá-la) se justifica
por uma propriedade de perfil. Muito mais próximo do readymade de que de uma
elaboração estrutural que protagonizasse a citação.
83

Ao depreender seu modo de operação dos materiais da pertinência do recurso


à melodia acompanhada em sua origem (no momento histórico de maior clareza
compartilhada na estruturação do pensamento abstrato), e ao mesmo tempo assumir
o recurso extemporâneo ao mesmo perfil na mais plena ausência de pertinência
coletiva similar na estruturação da polifonia, o projeto aqui é a metalinguagem sobre
o próprio ofício, a redescoberta de uma forma primordial de trabalho.
Note-se que a condução de uma citação do século XIX em dó! menor para um
conjunto de doze sons em proximidade de uma tríade de sol menor é uma repetição
da estrutura que enquadrara a citação de Chopin nos compassos 17 a 20 (Fig.20).
Agora enquadra a Sonata “ao luar”, nos compassos 30 a 32 (Fig.22). Fica claro,
reiteramos aqui, que as citações, como sinais, não apontam para seu contexto de
origem como centro semântico de um novo discurso referencial. São tomadas como
sinais de soluções na inseparabilidade entre melodia e acompanhamento, que
participam, aqui, de um novo discurso, mais heterogêneo, mas que aspira à mesma
unidade essencial entre material e enunciação, ideia e perfil dinâmico em movimento.
Nesse contexto, eventuais citações tonais compõem uma unidade entre materiais
harmônicos heterogêneos, em direção a um campo de relações que se tece no tempo
mesmo da enunciação do discurso.

4.4. N.º 28

Em preparação, ainda, para desvelar as maneiras pelas quais o discurso passo


a passo se tece, propomos analisar primeiro a constituição interna dos primeiros
materiais ouvidos na peça. Ao investigar as potenciais combinações intervalares
sugeridas nos perfis expostos nos quatro primeiros compassos, pode-se verificar até
que ponto a dimensão harmônica da peça como um todo se relaciona com esses
materiais.
Todos os quatro desenhos começavam descobrindo o extremo grave do
teclado, bordão de lá, seguido de sétima ou nona como primeiro afastamento (fig.24).
Esse gesto inicial ocorre como um reconhecimento simultâneo do extremo grave do
instrumento e do alcance da mão aberta. Nos outros três perfis, esse primeiro intervalo
será sempre distendido a uma distância maior no registro, revelando (com a mesma
abordagem) as outras faixas do campo de ação até que se percorra, do começo ao
84

fim do quarto perfil (cp.4), uma extensão de pouco mais de seis oitavas (excetuando-
se apenas a última oitava aguda do instrumento).
O conteúdo intervalar desses quatro perfis pontilhísticos pode ser comparado,
entre outras maneiras, abordando-os em posição fechada (como se suas notas
constitutivas estivessem no mesmo registro), de modo a descrever um núcleo
intervalar característico que se manterá reconhecível em operações variadas de
aberturas no registro e inversões33. Assim, o primeiro e o segundo perfis contêm um
conjunto de quatro notas à distância de semitom, formando um âmbito de terça menor
(notas 3 a 6 do primeiro perfil e notas 1 a 4 do segundo). Em cada um desses perfis,
esse conjunto é acrescido de um grupo de duas notas em relação de segunda, a uma
terça de distância do conjunto de quatro notas (lá/si no primeiro grupo, ré/mi" no
segundo, Fig.24).
O terceiro perfil se mostra sutilmente contrastante em relação aos dois
primeiros: também começa com a relação de segunda menor, seguida de um grupo
de três notas à distância de semitom (notas 3 a 5), não chegando a constituir um grupo
de quatro notas cromáticas como os dois primeiros. Entre a quinta e a sexta nota,
nova informação, em deslocamento de trítono e ataque timbrado em oitavas ao médio-
agudo. E assim como as notas 3 a 5 desse terceiro grupo constituem um grupo
cromático, também o perfaz o agrupamento das notas 1, 2 e 6. A relação de trítono
que encerra o terceiro grupo conduz a um contexto intervalar consistente com a escala
de tons inteiros, que predomina no quarto grupo, distendendo de alguma forma a
tensão intervalar dos conjuntos cromáticos anteriores. Essa distensão intervalar como
sugestão conclusiva, após um terceiro elemento de contraste ligeiramente mais
acentuado (em resposta aos dois perfis iniciais mais similares) pode sugerir a esse
início aparentemente pré-discursivo um perfil sentenciforme (Fig.24).

33
Não empreendemos aqui uma análise na qual o material fosse essa redução às posições mais
fechadas, como sua forma primária. A forma primária dos materiais harmônicos é sua disposição
específica no registro; para efeito de comparação, consideramos aqui algum grau de parentesco entre
as inversões intervalares.
85

Fig.24. Compassos 1 a 4 de Melodia acompanhada.

Fonte: Oliveira (2020).

Retornando a uma observação do compromisso de cada um desses perfis com


seu modo de jogo no campo de tessitura, cabe uma abordagem que leve em conta as
formas de abertura dos intervalos, assim como as escolhas de suas sequências
particulares. Essas disposições privilegiam resultantes harmônicas que terão um
papel estruturante por toda a peça, em suas mais diversas aberturas e inversões –
não exatamente por terem sido expostas nesse início, mas por terem sido recuperadas
desses primeiros traços para constituir o tecido propriamente discursivo nas
enunciações melódicas (e em seus perfis texturais) no decorrer da peça.
Com essa lente, podemos buscar em primeira abordagem acordes de
conformação mais familiar (Fig.25). O primeiro perfil delineia um arpejo de acorde
meio diminuto sobre si, (lá-si-fá-ré, cp.1), seguido de desenho melódico familiar ao
contexto harmônico de um tal acorde, na sequência fá-ré-mi (notas 3 a 5). O segundo
perfil, por sua vez, começa e termina nas mesmas notas que o primeiro (deslocando
a última nota uma oitava acima), perfazendo novamente um âmbito de trítono; seu
conteúdo harmônico entre esses extremos passa novamente por um conteúdo
triádico, embora distante de relação funcional com o acorde do primeiro perfil,
enunciando as tríades de sol menor e mi bemol maior (cp.2, notas 3 a 5, 4 a 6, Fig.25).
A superposição das duas tríades conformaria, ainda, uma tétrade maior com sétima
maior. Por último, a sequência pertinente a um conjunto de tons inteiros no quarto
perfil convida à formação de uma tríade aumentada entre as notas 2, 4 e 5 (Fig.25),
além do acorde formado pelo empilhamento de uma segunda maior e uma terça maior,
enarmônico da tríade maior com sétima menor (omitida a quinta).
86

Fig.25. Resultantes harmônicas triádicas a partir dos perfis dos compassos 1 a 4.

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Oliveira (2020).

Outras resultantes harmônicas, menos afeitas à identificação com modelos


tonais, são diretamente deriváveis dos quatro perfis iniciais e terão um papel
fundamental na estruturação melódica e harmônica da peça (Fig.26). O primeiro é o
conjunto de três notas formado pelas notas 2, 3 e 4 do segundo perfil (sol!-sol#-si"),
que reduzido a uma formação fechada (e enarmonizado) resultaria no empilhamento
de segunda menor e segunda maior, perfazendo um âmbito de terça menor. Essa
resultante é pertinente ainda ao primeiro perfil (notas 3-4-5 ou 3-4-6) e também ao
terceiro (notas 1-2-3 e 2-3-4).
Outro conjunto particularmente relevante na construção dos desenhos
melódicos no decorrer da peça é a resultante do empilhamento de quarta e semitom,
perfazendo um âmbito de trítono, observável de forma direta nas notas 4 a 6 do
terceiro perfil (dó!-ré-sol!), e presente também entre as notas 1, 5 e 6 desse mesmo
perfil; 2-3-5, 1-4-6 e 1-5-6 do primeiro; 1-2-5, 1-4-6, 1-5-6, 2-3-5 e 2-5-6 do segundo
perfil.
Ainda uma terceira resultante, de empilhamento de terça menor e semitom
(perfazendo um âmbito de terça maior), se mostrará frequente no desdobramento
harmônico da peça; é observada no conjunto 4-5-6 do quarto perfil (si-dó-ré!) e
também entre as notas 1-2-4, 1-3-4 e 2-4-5 do terceiro. Uma pequena variação desse
conjunto também é encontrada, no empilhamento de terça maior e semitom
(perfazendo um âmbito de quarta justa), entre as notas 4-5-6 (si"-ré-mi"), 1-4-5, 2-3-6
e 3-5-6 do segundo perfil, 1-2-5, 1-4-5 e 1-4-6 do terceiro, 1-3-5 e 2-5-6 do primeiro,
4-6-7 do quarto perfil (Fig.26).
87

Fig.26. Outras resultantes harmônicas dos perfis iniciais pertinentes à estruturação da peça.

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Oliveira (2020).

Organizando os acordes elencados aqui, para facilitar sua identificação e o


recurso à sua origem nos perfis que acabamos de descrever, propomos seu
escalonamento e numeração das resultantes mais cerradas gradualmente às mais
espaçadas (sempre utilizando sua posição mais fechada como referência).
Apresentamo-los transpostos para partirem todos do mesmo ponto, para efeito de
comparação de sua estrutura interna, comparando sua versão transposta com suas
disposições originais mais frequentes na peça (Fig.27). Chega-se dessa forma a um
campo de 9 formações de acordes. Os cinco primeiros acordes desse campo, que
começa praticamente no cluster, podem ser numerados segundo sua tendência à
abertura de sua conformação intervalar; os acordes seguintes, de uso familiar na
música tonal, são mais facilmente referidos por sua nomenclatura tradicional (tríades
diminuta, menor, maior e aumentada). Nessa nomenclatura, os quatro acordes da
Fig.26 corresponderiam, respectivamente, aos números 1, 3, 4 e 2 na Fig.27.
88

Fig.27. Campo de acordes derivados dos perfis iniciais (compassos 1 a 4), em redução para sua
posição mais fechada. Na linha superior, estão transpostos para iniciarem sobre o mesmo ponto (para
efeito de comparação) e escalonados do agregado mais cerrado aos mais abertos34; na linha inferior,
apontam-se as ocorrências originais mais frequentes dos perfis não triádicos, na peça.

Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos materiais harmônicos de Oliveira (2020).

Esse campo será sujeito, na peça, a outras superposições de seus acordes


constituintes, seguindo conformações do perfil textural que privilegiam sua escuta
como camadas referenciais distintas, em detrimento da difícil memorização e
identificação das resultantes de superposições de agregados infrequentes como
esses. A estruturação gradual da polifonia na Melodia acompanhada recorrerá
também, com muita frequência, à superposição de camadas estruturadas por esses
acordes a citações de outras peças. A ausência de resultante harmônica funcional, de
campo harmônico pertinente para além da peça em si (e a breve duração da peça na
liquidação de sua premissa) impedem a conformação de uma escuta das resultantes
harmônicas de tais superposições, como ocorre no contraponto tonal. Pelo contrário,
a força das superposições em densidade harmônica e intervalar, nessa peça, convida
à escuta da constituição interna de cada uma das camadas da polifonia. Os materiais
são certamente ressignificados na superposição a outros, mas não chegam a
constituir novas entidades como resultado dessa superposição; mais efetivamente,
reafirmam sua pertinência como variantes dos campos referenciais que se formam no
decorrer do discurso.
Ainda não há, nos primeiros quatro compassos, melodia ou acompanhamento;
mas já há a memória do risco que primeiro se experimentou ouvir como fonte a ser

34
O caminho percorrido nessa exposição linear do campo de acordes da peça lembra a estratégia de
Henri Pousseur em peças como Vue sur les jardins interdits (veja-se DE BONIS, 2014). Em que pese
a importância impulsionadora de Pousseur para Willy em sua juventude, o caminho tecido por Pousseur
é o mais absolutamente distinto do projeto empírico intentado por Willy nessa peça, já que o percurso
de Pousseur desde clusters até agregados gradualmente mais distendidos e finalmente ao campo
harmônico triádico (e a uma citação setecentista) é percorrido dentro de um plano pré-estabelecido, em
rede intervalar projetada como solução generalizadora pós-serial, e não em estratégia desdobrada da
especificidade do material para cada peça em particular.
89

convertida em campo de materiais harmônicos. Faltaria que sobrevivessem a sua


veiculação como perfil que se apresenta, memoriza e ao mesmo tempo convida ao
impulsionamento de seu desdobramento e liquidação, como destino.

4.5. N.º 29

Agradecendo a paciência do leitor que percorreu as fichas anteriores,


arriscamos, nas quatro fichas que seguem, compartilhar o percurso de uma escuta da
Melodia acompanhada. Nosso intento, no modo proposto para esse percurso, é
desvelar o quanto, na ausência do lastro sistêmico que dera origem ao perfil de
melodia acompanhada na história, a peça de Willy conforma possibilidades de
recuperação desse perfil que se conformam no próprio tempo e espaço de sua
enunciação.
Na Melodia acompanhada o primeiro traço, seja ele um reconhecimento do
suporte ou uma calibragem da mão que sobre ele avança, não arrisca ainda a linha.
Como o resto da peça como um todo toma exatamente esse risco (linear), a
nebulosidade grave e pulverizada no registro parece sugerir uma introdução (Fig.28).
Já sabemos que ela retorna com acentuado protagonismo ao final, então
provavelmente mudaremos de ideia sobre essa classificação. Mas ainda se ouve uma
introdução, no abrir da peça. São quatro variantes de um mesmo perfil, que segue o
contorno da mão direita do primeiro e segundo compassos de Beethoven em
aumentação intervalar extrema, mas com uma significativa alteração, em nome de
menor redundância: em Beethoven a quinta nota repete a terceira; aqui ela se situa
acima da terceira nota.

Fig.28. Compassos 1 a 4 de Melodia acompanhada.

Fonte: Oliveira (2020).


90

O primeiro sinal recebido após os perfis expostos nos quatro primeiros


compassos afirma um alto grau de contraste com o resto da peça (em sua rara
aparição), sendo constituído a partir de duas referências externas que convidam a
uma articulação conjunta, à maneira de um ideograma. Nesse sentido é que
configurariam uma espécie de “assinatura” musical, como Willy dissera no telefonema
(Fig.30).
A marca mais permanente da assinatura é a citação de um traço melódico de
Mozart, cuja reminiscência merecerá um pouco mais de atenção em outra ficha. Mas
o ideograma se constitui de três elementos (compassos 5-7, Fig.29): a citação de
Mozart (com novo acompanhamento) é enquadrada de um lado pelo acorde de Tristão
e do outro por um acorde dissonante.
Cabe ressaltar que todos esses elementos estão em estrita identidade com as
resultantes harmônicas implicadas nos perfis melódicos dos quatro primeiros
compassos: o acorde de Tristão como enarmônico da tétrade meio diminuta, o
acompanhamento sob a citação de Mozart enunciando cinco tríades em paralelismo
unidirecional (diminuta, maior, menor, menor e aumentada, em negação de qualquer
campo harmônico elementar que as abarcasse todas), e o acorde de fechamento, si-
dó-fá!-sol-dó, resultado da superposição dos tipos 3 e 4 (Fig.27).
A assinatura, como breve sinal, não configura ainda nem uma enunciação
discursiva, nem um perfil propriamente dito: a independência polifônica da citação de
Mozart e dos inabalados paralelismos de tríades acusa a falta de tecido de relações
estruturais entre materiais da mesma origem e natureza constitutiva, razão pela qual
não se conforma também um perfil de melodia acompanhada; antes se sugere (e se
demanda do pianista) uma iluminação, executada “como uma epifania” – resultado de
emanação inconsciente do hipotálamo.

4.6. N.º 30

Reconhecido o terreno e assinada a peça, toma-se agora o partido da tactura


a duas mãos, primeira busca incipiente de uma polifonia. A enunciação a duas vozes
ocupa bandas distantes (médio-agudo e extremo grave), com a voz inferior em
espelho do movimento melódico, mas em ligeira defasagem temporal e a um semitom
de distância (cp.7, Fig.29). O intervalo melódico primeiro é aquele que, acusticamente,
91

primeiro afirma a diferença em plena identidade, a relação 2:3 na quinta justa. A


resultante harmônica desse primeiro esboço polifônico, portanto, é da mesma ordem
do acorde imediatamente anterior, do empilhamento de quintas justas e semitons. Em
inversão intervalar da quinta, é a quarta justa em apojatura (à maneira de tremolo) que
conduz ao próximo acorde, repetição do acorde de Tristão (cp.8-9, Fig.29).
Segue um novo começo, distinto, priorizando agora uma melodia isolada, em
perfil de maior plasticidade na enunciação das durações, enunciando primeiro
resultantes do acorde de tipo 3 (Fig.27) nos compassos 9 e 10, e em seguida uma
tétrade diminuta, que conduz a uma resultante de tétrade maior com sétima, em arpejo
descendente (cp.11, Fig.29). Sobre a filtragem do arpejo para sustentação de sua nota
final advém uma rápida figuração aguda de tríade menor à maneira do baixo de Alberti
(cp.12, Fig.29). Seria um primeiro sinal de acompanhamento (em repetição de um
modelo), convidado não apenas pela constituição comum ao arpejo anterior, pelo
empilhamento de terças, mas pela evocação de um exemplo de perfil tradicional de
melodia acompanhada na origem dos gestos melódicos dos compassos 11 e 13, a
primeira das Valentine waltzes de Antheil. A figuração à maneira de Alberti ocorre
sobre o acorde de dó menor, que teria encerrado a melodia descendente de Mozart
no compasso 6, mas que ficara ausente tanto de sua conclusão quanto das tríades
paralelas na mão esquerda (Fig.29).
É no fragmento apanhado da valsa de Antheil à mão, portanto, que se desenha
um primeiro traço melódico mais completo, em compromisso com a estrutura interna
de sua enunciação homofônica. A melodia principal alterna motivos derivados dos
agregados de tipos 3 e 4 (Fig.27), justapondo quartas ou quintas e semitons,
recorrendo frequentemente ao agrupamento cromático sequencial (que não deixa de
ser pertinente aos perfis dos três primeiros compassos). O tecido homofônico, por sua
vez, prioriza resultantes triádicas aumentadas, logo incorrendo na superposição de
tríades (a seis vozes) no compasso 14 (superposição de tríades aumentadas à
distância de um semitom, seguida de superposição de tríade aumentada com acorde
tipo 3). O compasso 15 alcança melodicamente as mesmas notas a que chegara o
compasso 14, mas agora como resultante de uma variação do motivo do compasso
13 – em um primeiro jogo de variantes de uma célula central, mas ainda sem
enunciação como melodia acompanhada (fig.29).
92

A demanda reprimida para que o material encontrado alcançasse o perfil de


melodia acompanhada impulsiona mais uma vez a tomada de material referencial
disponível no entorno, na gaveta. Irrompem e logo são transfigurados o compasso 25
da Sonata K545 de Mozart e os compassos 3 e 4 do Noturno op.27 no.1 de Chopin,
nos compassos 16 a 18 da Melodia acompanhada (Fig.29-30). Sua transfiguração é
operada pela interpenetração dos elementos melódicos dos compassos 13 e 14: o
movimento cromático contínuo e o caminho da tríade menor ao perfil de acorde do
tipo 3, à tríade aumentada e aos tipos 4 e 5 (cp.16-18, Fig.29-30). Nos compassos 19
e 20 chega-se a uma derivação do perfil de Chopin em eliminação dos rastros de suas
alturas originais: a melodia percorre uma inversão do compasso 13, seguida do acorde
de Tristão ao agudo, sobre acompanhamento em largos arcos lineares que partem do
arpejo de sol menor e percorrem o total cromático (Fig.30).
93

Fig.29. Melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 1 a 17.

Fonte: Oliveira (2020).


94

Fig.30. Melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 18 a 25.

Fonte: Oliveira (2020).

Até aqui seria possível ouvir os perfis, a "assinatura" e os primeiros tateamentos


lineares como uma espécie de introdução, seguida de uma parte A, pela assertividade
motívica e melódica, a partir do compasso 13. Viria então uma pequena seção
contrastante dentro do próprio A, nas citações e em sua transfiguração (cp.16-20).
Nessa possibilidade de escuta, o retorno da homofonia nos compassos 21 e 24
marcaria o fechamento da seção A com a memória de seu início, entremeada por um
retorno dos desenhos exploratórios dos compassos 7 a 11 (nos compassos 22 e 23,
Fig.30).
A estruturação da homofonia nos compassos 21 e 24 é intimamente ligada ao
material dos compassos 13 a 15. A melodia do compasso 15 orienta a voz superior
da homofonia no compasso 21, sob a qual o adensamento gradual parte do intervalo
de oitava para a tríade aumentada e o acorde de Tristão. No compasso 24 é a melodia
95

do compasso 13 que retorna na parte superior, sobre acordes do tipo 3 (Fig.27) e uma
superposição de tríade maior e tétrade diminuta na mão direita (resultando em um
acorde maior com sétima e nona menor), superposto ainda à sonoridade dominante
da tríade grave e aberta de sol menor na mão esquerda (Fig.30).

4.7. N.º 31

Se a busca pela possibilidade da construção do perfil de melodia acompanhada


na parte A toma de empréstimo casos referenciais das soluções históricas, os
compassos 25 a 27 sugerem uma seção contrastante, seja pela ausência de citações
e pelo contraste de perfil que alcança maior estabilidade, seja por esse perfil
alcançado consistir exatamente na eliminação da melodia propriamente dita como
camada independente do acompanhamento, em enunciação indistinta entre o arpejo
linear dos acordes e a resultante harmônica de perfis lineares repetitivos, em gradual
variação (Fig.31). Essa pequena seção de três compassos inclui o longo compasso
26, com 60 colcheias sem definição clara de pulso, escrito quase à maneira de uma
cadência. Já comentamos sobre o recurso a esse modelo situado no limite da noção
mesma de melodia acompanhada nos compassos 18 a 21 da Sonata K545 de Mozart
(Fig.11); mas trata-se, de fato, de um achado com inúmeras enunciações modelares,
do Prelúdio no.1 do primeiro livro do Cravo Bem Temperado até seu uso por
Beethoven (no 3º movimento da Tempestade, no 1º movimento da Appassionata, no
1º movimento da Sonata ao luar, em Für Elise), Scarlatti e na Arabesque de Debussy,
por exemplo.
Um perfil homofônico simples (como o que ocorre nos compassos 21 e 24 da
Melodia acompanhada, Fig.31), por mais claras que torne as resultantes harmônicas
sob a enunciação de uma melodia principal, não constitui a ideia-força do perfil de
melodia acompanhada com o mesmo sucesso da linha arpejada, figurada. Por
contraditório que pareça enxergar o modelo de melodia acompanhada em perfil que
aparentemente elimina a própria noção de melodia, fato é que esse perfil de
indistinção entre melodia e acompanhamento em uma só linha de figuração dos
acordes (ao qual Willy recorre nos compassos 25 e 26, Fig.31) conforma, na mais
transparente simplicidade, um desenho melódico que "acompanha" a si mesmo. Além
da enunciação motívica unificada entre perfil linear e resultante harmônica, esse
96

desenho opera na reiteração do padrão rítmico que move o perfil, na efetividade do


"impulso unificador" do discurso (nas palavras de Schoenberg). O perfil de
acompanhamento deve dizer a que veio, enunciando univocidade motívica e tecido
harmônico em movimento no tempo. A homofonia não figurada dificilmente transcende
o estado de uma resultante estacionária, de uma sucessão de pontos de chegada que
convidam à escuta de sua própria constituição interior, mais de que propulsionam o
movimento harmônico e motívico do texto em constante (e sutil) variabilidade35.

Fig.31. Melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 23 a 27.

Fonte: Oliveira (2020).

A marca do encaminhamento dessa seção a um fechamento é justamente a


interrupção de sua estabilidade, na simples inversão do perfil, antes ascendente do
médio-agudo ao agudo, agora em movimento descendente para a região grave. Os

35
Em tempos passados, de enunciações tonais (e à maneira de contraste textural), a homofonia estrita
pôde operar, eventualmente, confiando todo o movimento ao significado harmônico. Mas mesmo
nesses contextos, dificilmente sustentava sozinha a enunciação do discurso, como faz o
acompanhamento figurado.
97

perfis repetidos e gradualmente variados têm, quase em sua totalidade, cinco notas;
o aumento para seis e oito notas nos três últimos também é um sinal para sua
liquidação última (cp.26, Fig.31). Em coerência com o que até o momento se enunciou,
essa seção recupera o trecho o mais assertivo e o menos reelaborado já ouvido na
peça, os perfis dos quatro compassos iniciais. Antes atomizados em estupor a partir
do convite da memória do motivo da Sonata op.49 no.1 de Beethoven, nos compassos
25 e 26 (Fig.31) serão diretamente derivados do segundo perfil, na predominância da
segunda menor e do acorde de tipo 3 (Fig.27). Outro sinal do caminho para sua
conclusão é o abandono dessa configuração harmônica em direção às resultantes de
tons inteiros (pertinentes ao perfil do compasso 4), ao final do compasso 26 (Fig.31).
O encerramento da repetição dos perfis leva a uma espécie de coda da seção
central contrastante, em retorno do adensamento vertical e em encadeamento mais
sistemático das resultantes acórdicas observadas na peça. O compasso 27 se abre
com o mesmo motivo melódico do compasso 13, dirigindo-se a um encadeamento de
duas terças maiores, seguido de uma superposição dos acordes de tipo 3 e 4, um
acorde do tipo 1, outro de tipo 2, uma tríade aumentada e um acorde de Tristão
(Fig.31). Em rápida verificação dos resultados da aplicação das propostas de Edmond
Costère (1962) a esse trecho caracteristicamente cadencial (agrupando em dois
acordes sucessivos, para efeito de comparação, as três primeiras notas e as duas
díades que a seguem), observamos a ênfase sobre o caminho da estabilidade à
instabilidade específica dos acordes: primeiro, terceiro, quarto e quinto acordes são
estáveis; segundo, sexto e sétimo são instáveis (Fig.32). Há forte mobilidade entre as
notas polarizadas no caminho, privilegiando inicialmente o centro em si e fá! (no
contexto do acorde de tipo 3) e caminhando para lá" (no acorde de Tristão).
98

Fig.32. Compasso 27 da Melodia acompanhada: na linha central, potencial atrativo interno de cada
acorde; na linha inferior (entre parênteses), unidades de potencial atrativo entre cada acorde e o
acorde seguinte; as notas brancas indicam os polos de atração e as setas o caminho para sua
polarização. A partir dos números da linha central pode-se verificar a estabilidade ou instabilidade
específica de cada acorde, comparando-o com os valores médios de referência para cada caso (para
acordes de 3 sons: entre 3 e 4 unidades de potencial atrativo; para acordes de quatro sons, entre 6 e
7 unidades).

Fonte: Elaborado pelo autor (2022).

A interrupção (no cp.27) do perfil de melodia "auto-acompanhada" dessa seção


consiste em um trecho homofônico, e portanto, de abandono momentâneo da
problematização dos perfis de acompanhamento. Trata-se de uma espécie de
abandono da movimentação polifônica em nome de homofonia cadencial, o que não
deixa de ser um arquétipo da estruturação da polifonia na música ocidental. Aqui, ele
pretende a exposição assertiva de uma parte do campo de materiais acórdicos da
peça, reforçando seu registro na memória como parte de seu vocabulário elementar.
São privilegiados os acordes menos tonais do conjunto, partindo dos mais dissonantes
e concluindo sobre a tríade aumentada e o acorde de Tristão, sem acordes maiores
ou menores (que, ademais, tinham sido de alguma forma enfatizados na sequência
sob a citação de Mozart, na "assinatura" dos compassos 5 e 6).

4.8. N.º 32

É a seção final da Melodia acompanhada, em que retornam os perfis melódicos


iniciais da peça em imprevisíveis variantes polifônicas, que efetiva a modelagem do
perfil de melodia acompanhada propriamente dito, com o potencial textural unívoco e
impulsionador do discurso musical pretendido (Fig.33).
O perfil inicial, que se apresentara à memória já em quatro variantes, é
reconhecido aqui em protagonismo melódico sob a repetição de acordes rebatidos
(primeiro o de Tristão, depois a tríade aumentada, nos compassos 28-29), deslocados
99

de seu registro funcional de origem para a banda aguda (sem a demanda pelo registro
central característica do modo de jogo tonal). Pode-se ouvir nesse lugar (cp.30-31) a
memória da Sonata "ao luar" op.27 no.2 como variante da seção central contrastante.
Com isso, abre-se uma pequena seção contrastante dentro de um A', e o arpejo36 aos
poucos se converte em largo desenho ao agudo como acompanhamento do perfil
aumentado, alargado, provindo do segundo compasso. O fechamento desse segundo
perfil, em seus dois últimos pontos, é feito com o retorno dos acordes rebatidos,
primeiro ao agudo (em tríades menor e maior com sétima) e em seguida, pela primeira
vez na peça, na região central, com o acorde de Tristão ressignificando o perfil do
Prelúdio no. 4 de Chopin (cp.33, Fig.33).
Esse retorno dos acordes rebatidos no compasso 32 pode ser ouvido como
referência distante ao op.49 no.1 de Beethoven, sem nenhum dado de seu perfil
dinâmico: apenas as duas funções harmônicas básicas, predominantes no primeiro e
segundo compassos da Sonata (Fig.33).

36
Arpejo que, no original de Beethoven, é a melodia de fato, auto-acompanhada, sob pontos estáticos
que demoram a se sugerirem lineares.
100

Fig.33. Melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 28 a 38.

Fonte: Oliveira (2020).

A semelhança estrutural entre os cinco últimos compassos convida a agrupá-


los todos em uma Coda; por outro lado, o contraste proposto nos compassos 30 a 33
com a mudança de textura sobre a aumentação do perfil melódico do segundo
compasso é respondido por um retorno intensificado ao modo de jogo dos compassos
101

28 e 29, nos compassos 34 a 36 (Fig.33). Há uma acumulação de informação nesse


momento (o mais desafiador da peça ao pianista), em que o conteúdo harmônico do
compasso 27, que fechara a seção central contrastante, retorna em denso e móvel
acompanhamento agudo ao retorno do perfil do terceiro compasso. Segue uma
superposição da "assinatura" (compassos 5 e 6), como acompanhamento, ao perfil do
compasso 4, nos compassos 35 e 36. Já nos compassos 37 e 38 caberia (aqui sim)
ver uma pequena Coda, no quanto ainda se poderia afirmar a reiteração da assinatura
como acompanhamento de uma última, nova variante dos perfis iniciais, agora em
terceira camada polifônica, somada à repetição obstinada do acorde de Tristão
(Fig.33).
Essa aparente terceira camada é uma espécie de trompe l'oreille no interior do
perfil de melodia acompanhada. A última enunciação da melodia de Mozart (a única
que tem a primeira nota alterada para mi natural, descaracterizando a escala menor
harmônica e gerando uma linha ambígua) é acompanhada pela insistente reiteração
do acorde de Tristão em diferentes inversões e aberturas, por cinco vezes, entre os
compassos 36 e 38. A manutenção desse conteúdo harmônico convida à separação
da escuta dos materiais, na região média do piano, entre pontos isolados e acordes
de Tristão (cp.37). A associação desses pontos isolados ao pertencimento a um perfil
melódico em potencial é incentivada pela chave de escuta de toda a peça, desde o
primeiro compasso. Se o primeiro e o último acordes de Tristão que enquadram essas
notas (os acordes dos compassos 36 e 38) forem considerados como partes do perfil,
temos mais uma última vez, no compasso 37, uma variação do desenho melódico da
Sonata de Beethoven, através da variação do perfil dos quatro primeiros compassos.
Nos compassos 36 a 38 essa variação do perfil seria formada, no pentagrama inferior,
pelo acorde de Tristão, seguido das notas si, sol, mi bemol, ré e novamente o acorde
de Tristão.
Forçoso é reconhecer, em questionamento dessa chave de escuta, que as
notas si, sol, mi bemol e ré que acabamos de citar nada mais são de que dobramentos
da melodia de Mozart enunciada acima, assim como também o são as notas
superiores dos dois acordes de Tristão enunciados no compasso 37, lá bemol e fá.
Que se considere um testemunho do alcance da enunciação de um perfil de melodia
acompanhada, como proposta discursiva levada a cabo, que a escuta atenta de sua
estrutura convide a encontrar correspondências de variantes do princípio unificador
102

por toda parte, mesmo em sua absoluta ausência, como ocorre nos compassos 36 a
38. Ouvimos aqui uma solução pianística para expressar o pontilhismo dos perfis
iniciais em densidade acórdica que imiscui o acorde de Tristão à melodia da assinatura
mozartiana. À maneira da formação da linguagem pictográfica, fundem-se os
elementos ideogramáticos antes justapostos (cp.5-6) em um só ideograma que
condense as duas representações (cp.36-38, Fig.34).

Figura 34. Melodia acompanhada de Willy Corrêa de Oliveira, compassos 35 a 38. Abaixo, propostas
distintas de filtragem dos compassos 37 e 38, apontando duas possíveis chaves de escuta para o
conteúdo do compasso 37: na primeira, a derivação dos perfis iniciais da peça; na segunda, a
enunciação pontilhística da “assinatura” advinda do Concerto de Mozart.

Fonte: Oliveira (2020) e elaboração do autor.

O fechamento da peça, na última ocorrência do acorde de Tristão, ocorre


superposto à nota dó, nota final da melodia do Concerto de Mozart. Essa superposição
remete ao compasso 9, em que a nota sol se sobrepõe ao acorde de Tristão que se
acabara de enunciar – mas naquela superposição, ponto de partida para primeiras
buscas melódicas, o acorde permanecia um agregado instável (na classificação de
Costère37). A superposição da nota dó acima do acorde de Tristão converte-a em nota
mais polarizada do conjunto e faz com que resulte em um agregado estável. Esse
caminho da instabilidade com forte presença do acorde de Tristão à estabilidade em
acorde dissonante com centro em dó remete diretamente à estrutura harmônica da

37
Edmond Costère considera que o valor médio de referência para a verificação da estabilidade
específica do acorde de cinco notas se situa entre 10 e 11 unidades de potencial atrativo (1962, p.95).
O acorde do compasso 9 possui 9 unidades, enquanto o acorde do compasso 38 possui 11.
103

"assinatura" nos compassos 5 e 6 (de Wagner a Mozart), e convida, por fim, a ouvi-la
como ideograma que sintetiza a proposta harmônica da peça.

4.9. N.º 33

A ambiguidade de uma enunciação que se constrói no próprio tempo do


discurso dificulta uma tomada de partido unívoca sobre seu particionamento formal38.
Nesse sentido, poderia ser associada a uma forma empírica de tateamento de uma
enunciação – uma experiência que remete ao primeiro movimento da Sonata op.111
de Beethoven, como caso que sugere que boa parte do trabalho no caderno de notas
fora incorporado à partitura final, como registro do trabalho empírico em busca do
material, no tempo de sua própria enunciação39.
Na Melodia acompanhada, como já comentamos, a assertividade melódica e o
grau de variação motívica no trecho que inicia o compasso 13 pode sugerir o que o
antecedeu como uma introdução. Nesse sentido é que, como comentamos, essa
seção A iniciada no compasso 13 teria uma seção central contrastante na aparição
das citações, e retornaria ao material inicial nos compassos 21 a 24. A divisão que
sugeríramos antes dividiria a peça em Introdução (cp.1-12), Seção A (cp.13-24),
Seção B (cp.25-27), Seção A' (cp.28-36), Coda (cp.37-38). A contradição mais forte
aqui reside no quanto a seção A' liquida grande parte dos materiais da peça (em
especial os materiais harmônicos e os perfis iniciais), mas não se refere diretamente
ao que chamamos de Seção A, e sim à Introdução. Opera-se, portanto, como se o
material dos compassos 13 a 24 já tivesse sido liquidado, mostrando-se inclusive mais
exíguo de que se esperaria de uma seção expositiva principal. A seção A', por sua
vez, é a que tem maior grau de elaboração, resultando de fato no momento em que
se consolida a proposta de enunciação de um perfil de melodia acompanhada, com
tudo que ele implica.
Com esses pontos em vista podemos sugerir outro seccionamento formal, que
privilegie o papel estrutural dos quatro perfis iniciais, seja como fonte de todos os

38
Em que pese, ainda, a ausência de um sistema de referência que orientasse seccionamentos
privilegiados em larga escala.
39
No registro feito por Alexandre Ulbanere das aulas de graduação ministradas por Willy Corrêa de
Oliveira, no encontro de 27 de novembro de 2000, Willy comentava em aula sobre uma escuta do
primeiro movimento da Sonata op.111 de Beethoven como uma metalinguagem do processo criativo.
Como se, procedendo à maneira de um improviso, o discurso enunciasse um comentário sobre o
trabalho da composição (ULBANERE, 2005, Anexos, p.79-82).
104

materiais harmônicos, seja como origem dos perfis melódicos principais sobre os
quais se estruturará a melodia acompanhada ao final da peça. Assim, teríamos uma
Seção A entre os compassos 1 e 6 (que pode possuir a "assinatura" como coda,
estendendo-se até a fermata). Inicia-se então um movimento discursivo gradual, que
comparado à assertividade motívica que o segue, pode ser considerado uma ponte
(inclusive, nesse caso, uma condução direcional à nota inicial da melodia seguinte).
Portanto, os compassos 7 a 12 podem ser ouvidos como uma ponte para a parte B. A
parte B iria do compasso 13 ao 24, incluindo uma seção central contrastante sobre as
citações de Mozart e Chopin (situando-as como dado secundário na estruturação
formal da peça, espécie de episódios em meio à grande seção contrastante).
Compreendendo dessa forma a enunciação, em que os perfis graves iniciais são a
principal exposição de material (mesmo que se trate de um lento nascimento da ideia,
ainda em conformação), a aparição do perfil grave e ondulante de acompanhamento
advinda do Noturno de Chopin oferece-se como variante daqueles perfis dos quatro
primeiros compassos.
O trecho da melodia "auto-acompanhada", breve, de pouca variedade de
material mas em forte movimento, pode ser considerado agora uma ponte (cp.25-27)
para a seção A' (compassos 28 a 34). O A', aqui, consolida o projeto da peça; constitui
para todos os efeitos o perfil de melodia acompanhada, em contraste textural
constante, em inseparabilidade e compromisso entre melodia e acompanhamento, e
em impulsionamento temporal do discurso nas dimensões motívica e harmônica,
simultaneamente. A consideração da assinatura como coda da seção A sugere, agora,
a separação dos compassos 35 a 38 como Coda da peça como um todo, restringindo
a seção A' aos compassos 28 a 34. Duas características reforçam a compreensão do
compasso 34 como encerramento da seção A': primeiro, a interrupção do intenso
movimento do perfil de melodia acompanhada sobre a fermata, e segundo, a
recuperação literal dos materiais harmônicos em gesto cadencial que tinham ocorrido
ao final da ponte entre B e A’ (cp.27).
Teríamos nessa nova leitura a divisão em Seção A (cp.1-6), ponte (cp.7-12),
Seção B (cp.13-24), ponte (cp.25-27), Seção A' (cp.28-34), Coda (cp.35-38). Não se
pode deixar de observar, nessa interpretação do seccionamento formal da peça, que
subverte-se acentuadamente a razão de ser mais comum de um ABA, na realização
de um projeto que seja meramente esboçado nos primeiros compassos e se desdobre
105

plenamente apenas na seção final (Fig.35, 36, 37). Mas essa leitura seria pertinente
à sugestão de um A-B-A “transfigurado”, tal como sugerido por Willy (e exemplificado
em Chopin) no texto A forma ABA: linguagem e memória (1977). Como se a
recuperação de modos de acompanhar da história da música na parte B – de Mozart
(cp.16) e de Chopin (cp.17-20), além da linha “auto-acompanhada” na ponte –
impulsionasse a transfiguração dos perfis (cp.1-4) da parte A em um painel de formas
de acompanhamento enunciadas da elaboração dos materiais anteriores, na terceira
seção. E ainda, ao final, a “assinatura” que concluíra a parte A (cp.5-6) ressurgiria
transfigurada em nova polifonia, na Coda (cp.35-38).
106

Fig.35. Willy Corrêa de Oliveira, Melodia acompanhada (2020), p.1

Fonte: Oliveira (2020).


107

Fig.36. Willy Corrêa de Oliveira, Melodia acompanhada (2020), p.2

Fonte: Oliveira (2020).


108

Fig.37. Willy Corrêa de Oliveira, Melodia acompanhada (2020), p.3.

Fonte: Oliveira (2020).


109

4.10. N.º 34

Na ficha 25, que abria essa quarta parte, prometemos não desviar novamente
da peça de Willy, como no parêntese um pouco longo da ficha 26. Mas ao percorrer
essa quarta parte e propor uma escuta da Melodia acompanhada, há um ponto sobre
o qual restaria o que dizer, e este aponta novamente para fora da peça, para outrem;
agora não mais à maneira de um parêntese, mas de uma coda da quarta parte do
trabalho.
Que a linha advinda do Concerto de Mozart não tenha na peça de Willy um
papel temático predominante, assim como não participe da proposição fundamental
dos materiais na Melodia acompanhada, fica claro pela sua deliberada ausência no
corpo da peça. Sua aparição súbita no início da Melodia acompanhada é esquecida
para ser finalmente compensada, como dado final que faltava ao equilíbrio estrutural,
quando de seu ressurgimento como último modo de acompanhamento do perfil inicial,
nos quatro últimos compassos. Esse conteúdo ausente do corpo da peça (e que ainda
demandava ser liquidado) converte a escuta dos quatro últimos compassos em uma
Coda, não exatamente por sua natureza polifônica ou harmônica, mas pela ausência
até ali do material expresso na banda superior. Mas no telefonema, Willy tinha dito
que antes mesmo das tentativas de uma configuração melódica, ele "assinara" a peça.
Por volta de 40 mil anos atrás, estampávamos negativos das mãos, pintando seu
entorno: espalmadas na rocha. Aqui, o retrato da mão se ouve como um fragmento
de uma estrutura sistêmica, uma enunciação diatônica descendente da escala menor
melódica – mas a sutileza específica dessa enunciação é inseparável de sua
ocorrência no Concerto de Mozart. Ainda que não se trate precisamente de uma
escolha deliberada ("o que nasceu da mão deve ser experimentado e degustado pela
mão", diria Gilardoni), caberia desvendar o que resta implicado na assinatura como
parte de outra peça distante, subitamente evocada.
No Concerto para piano no.24 K491, a linha citada na Melodia acompanhada
constitui um episódio dentro do primeiro grupo temático (cp.44-46, Fig.38). O tema
principal do movimento é caracterizado pelo cromatismo (perpassa o total cromático
em oito compassos) e pelos largos saltos dissonantes, enunciado primeiro
monodicamente, e em seguida em densa homofonia.
110

Sua alta densidade é filtrada para uma espécie de ponte (cp.35-44) para um
primeiro episódio na tônica. O episódio (cp.44-46, fig.38) desencadeia imitações e
contracantos (cp.46-52) a partir uma linha que tem a estranheza de um desenho
diatônico descendente sobre a escala menor harmônica, em simples alternância de
primeiro e quinto graus.
A surpreendência dessa aparição no Concerto, para além da estabilidade com
que contrasta com o cromatismo exacerbado do tema (afirmando assertivamente a
tônica, após o encerramento do tema principal), reside na reiterada singeleza
melódica que acompanha a falta de movimento harmônico, com a sutileza de se
enfatizarem as arestas intervalares da escala menor harmônica. As três notas em
anacruse começam no terceiro grau e o apoio no tempo forte do compasso seguinte
recai sobre o sétimo grau (em âmbito de quarta diminuta para esse primeiro
fragmento), imediatamente sucedido da segunda aumentada para o sexto grau e do
caminho diatônico para a tônica no próximo tempo forte. Nesse momento surge
também, pela primeira vez no Concerto, o acompanhamento figurado, primeiro com o
acorde quebrado de tônica, sucedido por um movimento em sextas e terças paralelas
à melodia. Observando o conjunto todo em maior distanciamento, o protagonismo do
acompanhamento e a organização sistemática das imitações sugere um duplo fugato,
brevíssimo, como estrutura do episódio como um todo (cp.44-52, fig.38).
111

Fig.38. Concerto para piano no.24 K491 de Mozart, compassos 37 a 56.

Fonte: Mozart (2013).

No texto National music, de 1931, Schoenberg faz um primeiro apontamento


em direção à especificidade das soluções discursivas de Mozart, como um de seus
mestres referenciais, ao lado de Bach. Relata que teria aprendido de Mozart a
desigualdade nas durações das frases; a coordenação de elementos heterogêneos
para formar uma unidade temática; o desvio de construções temáticas por números
pares; a habilidade de formar ideias secundárias; a habilidade de criar introduções e
112

transições (SCHOENBERG, 1984, p.173). Se todas essas características apontam


para um altíssimo coeficiente de informação na obra de Mozart (em desafio a critérios
de compreensibilidade já consolidados), a interpretação de Schoenberg para o sentido
original do pensamento mozartiano recai, estranhamente, sobre a sua produção em
outra linguagem, como uma influência de sua produção operística. No texto Brahms
the progressive, de 1947, ele afirma que "Mozart deve ser compreendido acima de
tudo como um compositor dramático" (SCHOENBERG, 1984, p.411). Ao apontar a
permanência da tendência mozartiana na obra de Brahms, ele analisa indistintamente
obras vocais e instrumentais (dele e de seus contemporâneos), o que, não obstante a
força e originalidade características de sua escuta, poderia comprometer o próprio
argumento central, tal a especificidade na estruturação distinta do Lied, da ópera e da
música instrumental.
Em seu Ensaio de autobiografia, contido nos Cadernos (2019), Willy remonta
ao quanto aprofundara a "noção de objeto estrutural através de diálogos com alguns
mestres do passado", entre os quais a presença de Mozart é patente. Após citar um
relato de época sobre a riqueza de ideias na obra de Mozart e sua profusão em
sucessão contínua, que terminaria por impedir sua retenção na memória, Willy coloca
que foi com Mozart que passara a "aceitar como natural que as informações se
sucedam quase que vertiginosamente, e que os materiais musicais possam parecer
discordes, até discrepantes pelos atritos de suas proximidades". Willy formula uma
identidade fundamental da obra de Mozart com o sentido do rondó como problema
formal. Ao mesmo tempo em que propõe articulações de materiais heterogêneos nas
mesmas entidades temáticas, confere um sentido particular a cada uma dessas
entidades pela sua posição no sintagma, mais de que pela sua natureza específica.
Willy relata o quanto trabalhou detidamente sobre essa ordem de problemas em suas
peças do início da década de 1970 (OLIVEIRA, 2019a, p.25-28).
Se esse relato modula a forma como se pode situar a presença específica da
obra de Mozart como referencial para o trabalho de Willy, o modo de jogo particular
da Melodia acompanhada (que norteia essa tese como um todo) tece um conjunto
variado de entidades temáticas em direção a uma proposta central. A construção de
um perfil essencial na Melodia acompanhada confere funções estruturais às camadas
da polifonia, como espelho distorcido da naturalidade discursiva de tempos de uma
prática comum e compartilhada em música. Há uma profundidade implicada na
113

referência à tendência mozartiana (no tecido das disparidades) que acusa uma
identidade de base com a ordem de trabalho da Melodia acompanhada, uma vez que
o sentido primeiro da experiência intentada nessa peça é uma resposta esclarecida à
consciência do estado anômico da composição hoje, à tendência generalizada à
prolixidade sem lastro nem articulação discursiva.
Não temos hoje um mundo sendo feito às nossas vistas, por nós. Hoje
dispomos de pedaços, de escombros, de estilhaços, que juntamos,
remontamos, recompomos: para sobreviver.
Se é que existe coisa em comum na música do século XX, há de ser a
fragmentação, o acúmulo de informações, porém sem nexo quase sempre.
Para quem recebe um mundo aos cacos, cacofônico, variegado, berrante e
escuro como o capitalismo tem prodigado, creio que se pode invocar a ajuda
de Mozart. Não que Mozart faça corpo com este mundo, mas pela ciência que
ele tinha de lidar com as informações. Pelo menos, que saibamos juntar as
coisas, mesmo que terríveis, visto que não nos sobram mais que sobras. Mas
que as obras não sejam só sombras das sobras. [...] A assíndese como
técnica de interligação das informações torna ainda mais aliciante o feito
mozartiano para um compositor de hoje (OLIVEIRA, 2019a, p.26-27).
114
115

5ª parte (Fichas 35 a 38)

5.1. N.º 35

As metalinguagens através das quais intentamos refletir sobre a música, longe


de toda e qualquer ilusão de sua plena tradução para o discurso verbal, são marcadas
por uma empresa metafórica fundamental. Assumimos o risco, aqui, da elaboração de
uma analogia entre o estudo da pré-história e das origens da linguagem e o sentido
da estruturação da polifonia em uma peça para piano recente. Pesa, em um extremo,
a profusão de hipóteses na ausência de dados concretos; no outro, a busca, em um
estudo de caso, de uma metonímia para o trabalho de criação em nosso tempo. Nesse
sentido, mais de que a verificação de resultados precisos, esse ensaio transcende o
estudo de caso como plano de ação localizada; almeja pela sua projeção como sinal
numa garrafa.
Que não cause estranhamento a comparação do estado atual da composição
na música erudita ocidental, tão eivada de narrativas de progresso estético e técnico,
tão despudorada em panegíricos de produções supostamente privilegiadas nas
tradições locais de países imperialistas, com a pré-história da arte – exatamente o
contexto que, naquelas mesmas narrativas, é considerado o mais primitivo e bárbaro
de nossa espécie. Estranhamento nenhum, desde que em abordagem crítica,
materialista, da história – tome-se da estante, por exemplo, a sétima das teses Sobre
o conceito da história:
Aqueles que, até hoje, sempre saíram vitoriosos integram o cortejo triunfal
que leva os senhores de hoje a passar por cima daqueles que hoje mordem
o pó. Os despojos, como é da praxe, são também levados no cortejo.
Geralmente lhes é dado o nome de patrimônio cultural. Eles poderão contar,
no materialista histórico, com um observador distanciado, pois o que ele pode
abarcar desse patrimônio cultural provém, na sua globalidade, de uma
tradição em que ele não pode pensar sem ficar horrorizado. Porque ela deve
a sua existência não apenas ao esforço dos grandes gênios que a criaram,
mas também à escravidão anônima dos seus contemporâneos. Não há
documento de cultura que não seja documento de barbárie (BENJAMIN,
2013, p.12-13).

Na voz do mesmo Benjamin: não há conteúdo artístico separado de


comunicação espiritual; não há documento de cultura que não seja documento de
barbárie. Os termos escolhidos por Benjamin são preciosos, retratos de nosso tempo:
patrimônio cultural, despojos incluídos no cortejo triunfal; tradição como fruto do
trabalho de grandes gênios e da escravidão anônima. Que a inseparabilidade entre
116

cultura e barbárie professada por Benjamin não seja lida como metáfora e nem mesmo
como hipótese, tal como boa parte de nosso ensaio. Verifique-se, como antídoto, se
nos mais de cem anos passados desde o trecho de Rosa Luxemburgo copiado abaixo
(retirado de A crise da social-democracia) conseguimos, como sociedade, superar
esse estado de coisas, ou se o texto se mantém atual.
Friedrich Engels disse uma vez40: a sociedade burguesa encontra-se perante
um dilema – ou passagem ao socialismo ou regressão à barbárie. O que
significa “regressão à barbárie” no nível atual da civilização europeia? Até
hoje todos nós lemos e repetimos essas palavras sem pensar, sem ter ideia
de sua terrível gravidade. Se olharmos à nossa volta neste momento,
veremos o que significa a regressão da sociedade burguesa à barbárie. Esta
guerra mundial é uma regressão à barbárie. O triunfo do imperialismo leva ao
aniquilamento da civilização – esporadicamente enquanto durar uma guerra
moderna e, definitivamente, se o período das guerras mundiais que está
começando continuar sem obstáculos até suas últimas consequências
(LUXEMBURGO, 2009, p.92).

Entre os impulsionadores das discussões tecidas na segunda parte desse


trabalho, Vigotski e Spirkin têm em textos de Engels como A origem da família, da
propriedade privada e do Estado uma referência central, no contexto da argumentação
sobre o papel fundamental do trabalho na evolução para a espécie humana e na
conformação da vida social, da barbárie à civilização. Mas fato é que, na comparação
metafórica que tecemos na terceira e na quarta partes desse trabalho entre o trabalho
artístico em nosso tempo e o estado primevo das expressões orais e plásticas no
Paleolítico, desenvolvendo-se em direção às linguagens articuladas (ou seja, no
período da fabricação dos instrumentos de sílex, do domínio da produção do fogo e
do desenvolvimento das armas e da caça de animais de grande porte), estamos nos
referindo, na retomada do trabalho de Lewis Morgan por Engels, a um estágio mais
primitivo de que a barbárie; lidamos com sinais do que eles chamam de fases média
e superior de um estado selvagem, pré-bárbaro (ENGELS, 1963, p.21-22).

5.2. N.º 36

No filme Cave of forgotten dreams, de Werner Herzog (2010), o arqueólogo


Jean-Michel Geneste, refletindo sobre a pintura paleolítica, coloca que o registro
artístico da memória visual se comunica com o futuro, transcendendo enormemente a
linguagem oral. Ao mesmo tempo, uma linguagem criada espontaneamente não teria

40
Sobre as possíveis origens da frase atribuída a Engels, veja-se Morita (2020).
117

ainda o mesmo pleno respaldo em comunicação factual como as experiências


humanas posteriores. Seria o destino da composição hoje o mesmo da arte pré-
histórica? Uma expressão que se projeta potencialmente para um outro, e para fora
de um presente no qual é enunciada como uma forma de linguagem sem grupo
humano que a compartilhe como código. Temos, no máximo, seres expostos às
mesmas matérias-primas, sem experiência prévia com suas combinações possíveis;
sem chave de acesso ao imponderável das operações geradoras de sentido.
No breve texto O remédio, Willy aponta, a partir da leitura de Sobre a linguagem
em geral e a linguagem humana de Benjamin, para a modulação de reflexões como
as que empreendemos nessa tese em contextos de descaracterização do canal de
comunicação, que convidassem a uma comunicação sem receptor.
O homem se expressa (também) por se expressar, não só por
dever/necessidade de se comunicar com alguém, por uma mensagem. Em
tais casos, a expressão exprime “conteúdos espirituais”: nem mesmo
(precisamente) para si mesmo – a esmo – (parece), aí o dom da linguagem
reflui como reflexão de sua própria expressão – como dom de linguagem
ensimesmada – mais se põe como revelação do que como mensagem. Que
não seja (praticamente) uma mensagem, mas de que então é uma revelação?
Do dom da linguagem, do possível de uma substanciação de pensamento
entre a inconsciência e a consciência (a linguagem mesma sem mediações).
Em tais revelações a um só e único sujeito é ele próprio a mensagem? : que
ele não emite (como emissor) e que não decodificou (como receptor). A
revelação é “um possível linguístico” (conteúdo de expressão) ter sido factível
[...]: a linguagem e o ser como um uno, imanente, iminente (OLIVEIRA,
2019b, p.93).

A ênfase predominante nessa tese recai, em abordagem da música erudita


como umas das formas (das mais surpreendentes) entre as linguagens humanas,
sobre a tragédia da desintegração histórica da comunicabilidade em um campo
milenar de compartilhamento da invenção do pensamento abstrato. O que Willy
exprime pontualmente na citação acima está em oposição dialética diametral a esse
aspecto de nossa premissa: se a expressão artística, como testemunho do ser
humano como criador, permanece, ainda que revolvida nas mais agudas crises de
suas formas de expressão (e de fato, permanece), essa persistência não deixa de ser
uma revelação do dom de linguagem, como reflexão de sua própria expressão. A
linguagem, em sua essência não-mediada, se revelaria como "possível de uma
substanciação do pensamento", ainda incondicionado por seu compartilhamento com
o outro, a coletividade. Não obstante o isolamento incontornável do fazer musical em
nosso tempo, que enfraquece o potencial da arte como mensagem mediada, o
trabalho da invenção solipsista revela um "possível linguístico" que projetaria a
118

reflexão sobre as formas de expressão para seu potencial compartilhamento e função


latentes.

5.3. N.º 37

Dizíamos logo acima, sobre o motivo principal de um movimento de sonata


beethoveniano, que “a representação da essência desse perfil se daria pelo desenho
melódico aproximado, e não pela sua primeira ocorrência, já traduzida em uma região
harmônica específica”. Na releitura dessas linhas, vem à memória o quão
frequentemente Schoenberg recorre ao traço linear como representação do perfil
melódico dos temas em seu Fundamentals of musical composition (1967). A variação
de perfil conforma-se na história do repertório tonal como um critério para a efetividade
do enunciado motívico-temático: sua reaparição em plasticidade modulada é
representável com precisão não pela potencialidade harmônica ou intervalar das
variações que o transfigurem (que permanecem imprevisíveis e eventualmente
imponderáveis), mas pela semelhança do traço, em plano cartesiano, como tradução
cognitiva de um dado melódico essencial. Nesse caso, a memória linear é uma
camada inseparável de uma textura que conforma um significado tonal, ainda que
harmonicamente aberto; projeta-se simultaneamente como produto e como impulso
do percurso das atrações e afastamentos, conduzida pela repetição e variação de
seus núcleos essenciais.
É por essa coerência estrutural fundamental expressa no próprio material e em
suas formas mais funcionais de enunciação que a desarticulação da retórica tonal na
virada do século XX ameaça a potencialidade de memorização do discurso, na falta
de uma renovação coletivizada que se mostrasse suficiente para compensar tamanha
perda. É a aguda consciência desse estado de coisas, ademais, que propulsiona
naquele momento a primeira aventura serial.
Ouvira de Willy ao telefone que a melodia de Beethoven, trazida para a Melodia
acompanhada, estava ali “estuporada” para o piano inteiro. Que ao atomizar uma
melodia por todo o campo de tessitura, cria-se uma polifonia; e se se retêm aqui e ali
alguns desses pontos, chega-se a objetos que podem ser formas de melodia e
acompanhamento. Essa estratégia confere uma identidade ao perfil pontilhístico, uma
vez que se busca convertê-lo em dado estruturante pela retenção de seus pontos na
119

memória, na caracterização de uma polifonia particular que ainda recenda ao perfil


anterior. O recurso é pertinente, em última instância, às propostas de Henri Pousseur
em Pour une périodicité généralisée (2019), escrito em 1964. No contexto em que ele
responde criticamente à experiência anterior com o serialismo integral, na defesa da
operação com o reconhecimento de perfis e agrupamentos rítmicos como entidades
mnemônicas estruturantes através de sua repetição e variação, ele expande essa
noção para a recuperação da memória melódica, sumariamente eliminada do
repertório serial. Em livre analogia com a vibração periódica nas formas de onda
geradoras de altura definida (nas quais operam-se alterações de espectro e de perfil
dinâmico), ele exemplifica modos de trabalho com a variação de perfis melódicos
lineares, em que se mantivesse a memória da essência do desenho do qual se partiu
no percurso de suas modulações plásticas. Pousseur aplica operações advindas da
música eletrônica (como variações e modulações de amplitude, frequência e fase) a
materiais melódicos e polifônicos, em estreita identidade com a memória do trabalho
motívico-temático tonal, em tentativa de tradução para um contexto privado de
funcionalidade harmônica ou de campo compartilhado de agrupamentos intervalares.
Se a relação da ideia-força do trabalho a partir de variantes de perfis
memorizáveis com a história de uma prática compartilhada no discurso temático e
motívico tonal é engendrada por Pousseur nos termos da experiência recente de
descoberta das operações no estúdio eletrônico, ela transcende a perigosa ideia de
progresso técnico que poderia se sugerir como acompanhamento – não apenas em
sua efetividade e aplicação, como é largamente demonstrado no texto, mas também
pelo seu recurso frequente à psicologia da percepção e à Gestalttheorie41.
As palestras de Pousseur em Darmstadt que deram origem a esse texto foram
uma das experiências mais marcantes de Willy em sua formação como compositor42.
Em que pese a semelhança entre essa proposta e o trabalho com a variação sobre
perfis atomizados nas peças de Willy citadas, cabe apontar as diferenças
fundamentais entre as soluções de cada um. A variação sobre perfis na obra de Willy
(assim como outros procedimentos que podem ser comparados com a obra de
Pousseur, em torno de uma chave metalinguística comum) jamais almeja uma
proposta sistêmica serializante, como se a solução particular do compositor hoje

41
Veja-se Pousseur (2004; 2009, p.119).
42
Veja-se De Bonis (2014, p.338-343, 384).
120

pudesse servir de contribuição técnica direta para novas formas socialmente


compartilhadas de linguagem. Essa é uma marca utópica do trabalho de Pousseur
peremptoriamente ausente no trabalho de Willy. Em outra chave, ao recusar a
pertinência de um projeto de ordem pós-serial como possibilidade de linguagem
compartilhada (como ainda são as sistematizações de Pousseur), as propostas de
Willy se assentam na essência metalinguística do estado atual do trabalho do
compositor, recuperando da reflexão sobre a linguagem e sua história as condições
para o estabelecimento de um ofício possível, pura e simplesmente, fazendo jus ao
compromisso entre pensamento e expressão.

5.4. N.º 38

Em seu longo ensaio Se…, escrito em resposta a seu ensaio anterior


Experiência, Willy discute a importância fundamental que teria o sistema dodecafônico
como recurso pedagógico, no aprendizado da linguagem, projetado inclusive em um
curso de composição propriamente dito. No subcapítulo Torre de marfim, comentando
sobre o impasse na permanência de ademanes e formulações do passado na obra
serial de Schoenberg, Willy aponta o quanto ele “exibe procedimentos da retórica
tonal, necessariamente evitáveis, improcedentes no código novo”, dando entre alguns
exemplos o “discurso saturado de perfis dinâmicos extrínsecos (e convencionais),
contraditórios (em geral) com o novo código: como a melodia acompanhada”
(OLIVEIRA, 2019b, p.59-60).
No subcapítulo Um lance de dados, Willy discute as bases para uma
abordagem da música serial como uma forma de linguagem (incluindo uma resposta
a Lévi-Strauss). Em dado momento, enuncia, para efeito de comparação com o
serialismo, propriedades fundamentais do sistema tonal. Ao tratar dos modos de jogo
no campo de tessitura pertinentes ao tonalismo, chega a uma expressão lídima do
papel essencial da melodia acompanhada na história da linguagem:
No campo de tessitura, as notas se arranjam mui próximas umas das outras
de modo a favorecerem o alcance magnético das atrações harmônicas
comandadas pela hierarquia de graus. Assim é que se privilegia uma estreita
banda de frequências (dispensados, em média, os registros muito graves
como o sobreagudo) para a incidência das movimentações dos
acontecimentos musicais (em geral sintetizados sob o perfil dinâmico da
melodia acompanhada, carta de identificação do código) (OLIVEIRA, 2019b,
p.52).
121

Toda e qualquer expressão de pensamento opera sob sua codificação. Não há


sociabilidade humana sem cifragens do espírito. É a vida em sociedade que inspira a
capacidade de sua decodificação, em aprendizados simultâneos da esfera do espírito.
Acompanha a história do incremento do pensamento abstrato o grau cada vez mais
acentuado de formas de codificação discretas, que na ignorância de sua decifração
poderiam parecer autossuficientes; como se o ato criador ocorresse em última
instância na escrita e não no ouvido – como se fosse ainda a mão o utensílio de
trabalho que orientasse a invenção musical, em detrimento da escuta. A notação,
quando serve a um trabalho de linguagem, segue sempre a sabedoria da economia
de meios a serviço do leitor bem informado, agente de sua decodificação. Mas a
decodificação da escrita musical opera em grau absolutamente elementar, em
completo apartamento do pensamento musical propriamente dito. Este informa ao
ouvido em movimento ininterrupto, exigindo treinadíssimo solfejo do código em si, das
soluções das coletividades humanas, na história do compartilhamento do pensamento
musical no fluir do tempo. E como código, o peso característico das operações de
sentido musical se dá no eixo das combinações, na estruturação sintática, inclusive
como definição de campo para aventura sonora que não se confundisse com a prática
universalizante da linguagem verbal. Não basta, nesse contexto, um
compartilhamento prévio de um campo de materiais familiares; sua própria
enunciação no tempo já é indistinta das operações combinatórias geradoras de
sentido, o que só incrementa a densidade de informação inerente a toda linguagem
musical. As práticas mais compartilhadas na história da linguagem revelam, na
aparência de uma absoluta simplicidade, as cláusulas para a efetividade da expressão
de força de invenção tamanha como a que ainda ouvimos na revisita ao repertório.
Modos de operação do perfil dinâmico os mais frequentes, verdadeiros regimes de
sustentação do discurso sonoro, tecem o espaço frequencial e o tempo da memória
ao mesmo tempo em que dão vida e sentido à própria codificação. O modo mais
elementar e efetivo para esse tecido do tempo em plena comunicabilidade não terá
sido aquele que informa o dado monódico primevo, concentração de todo pensamento
em um único traço; mas sim, aquele que situe os perfis sonoros em inseparabilidade
de uma camada informativa necessariamente menos densa, que acompanhe no
discurso a própria medida de tempo, materializada. A conformação da maneira mais
elementar de se concentrar o máximo de informação estrutural constitui, de forma
122

modelar, a carta de identificação do código, pela qual a própria expressão do


pensamento fornece as chaves para sua decodificação.
123

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