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2.

JUSTIFICATIVA E APRESENTAÇÃO DO APORTE TEÓRICO-


METODOLÓGICO

A teoria disposicionalista da ação de Bourdieu foi adotada por três razões:


(i) nosso objeto diz respeito às [re]ações práticas dos(as) professores(as) de
Sociologia em resposta aos desafios inerentes às regras do “jogo” do ensino das
RER, no âmbito da Sociologia escolar e, nesse sentido, as contribuições teóricas
de Pierre Bourdieu constituem um aporte robusto, ajudando-nos a compreender a
mola propulsora dessas [re]ações; (ii) os conceitos de campo, habitus, senso
prático, ação e trabalho pedagógico, arbitrário cultural e capital cultural, ao longo
desse estudo, mostraram ser instrumentos profícuos para a realização de uma
análise multidimensional e relacional das disposições docentes em resposta às
situações escolares e; por fim, (iii) no âmbito das pesquisas sobre o ensino de
Sociologia no Brasil, há um esforço dos pesquisadores da área, para pensar esse
objeto de estudo a partir da teoria do campo de Bourdieu. Nesse sentido, a
presente pesquisa se insere nesse debate, uma vez que busca realizar uma
análise empírica das disposições docentes em operação, o que se coloca no
“sentido de valorizar o espaço social voltado aos estudos da Sociologia Escolar
no interior do campo educacional e sociológico” (Bodart, 2019, p. 33).
Desde o início da pesquisa, há dois anos, projetamos outras
possibilidades teóricas para orientar nossas análises, como, por exemplo, a
Sociologia das Ausências e das Emergências, no âmbito das Epistemologias do
Sul, a partir das contribuições de Boaventura de Souza Santos; a teoria
Decolonial a partir dos(as) teóricos(as) sul-americanos(as), dentre eles(as)
Aníbal Quijano, Nelson Maldonado Torres, Walter Mignolo e Catarine Walsh; os
estudos subalternos e feministas, a partir de Gayatri Spivak; Linda Alcoff, Patrícia
Hill Colins e Dona Haraway; a Sociologia das Associações, a partir de Bruno
Latour e Michel Callon; e, por último, a Sociologia Figuracional de Norbert Elias.
Contudo, a teoria disposicionalista da ação em Bourdieu, em nossa perspectiva,
mostrou-se uma alternativa mais completa e adequada aos nossos anseios,
tendo em vista que nos proporcionou uma lente de análise em relação ao campo
educacional que nos possibilita compreender a prática educativa enquanto
produto das disposições sociais adquiridas no processo de socialização, por uma
perspectiva específica do habitus e do senso prático, isto é, do senso que
permite os agentes, em nosso caso, os(as) professores(as) de Sociologia,
agirem de diferentes maneiras, frente às situações cotidianas no interior das
salas de aula. Isso não significa dizer que o diálogo com alguns autores pelos
quais perpassamos vá ser silenciado. Vez por outra invocaremos esses e outros
autores para nos ajudar a fundamentar o debate, sobretudo naquilo que toca a
questão racial.
Aproveito esse “gancho”, para fazer uma explanação que julgo importante
acerca do lugar o qual me situo no contexto dessa pesquisa.
Ao que tudo indica, um aspecto muito presente no cotidiano de um
pesquisador ou pesquisadora, no contexto do mundo acadêmico, é o carácter
dinâmico que os inúmeros processos e etapas de uma pesquisa pode assumir
ao longo de sua realização. Como vimos, ideias iniciais ou projetos pilotos
tendem a ser modificados inúmeras vezes. E os motivos são diversos: inserção
do pesquisador no campo empírico, a inserção dos sujeitos na pesquisa, por
meio de entrevistas, questionários ou outras técnicas, os exames de
documentos, que podem apontar para novas direções antes não percebidas, as
críticas recebidas em decorrência dos diálogos formais e informais entre os
pares, incluindo nesse aspecto, as reuniões de orientação, releituras do trabalho,
incorporação de novas perspectivas, participação em eventos, seminários e
congressos, entre outras circunstâncias que vão agregando novas formas de
percepção e conduzindo o pesquisador e a pesquisa a novos caminhos antes
não vislumbrados.
Esse rumo dinâmico, relacional, interdependente e, muitas vezes caótico
pelo qual a pesquisa tende a tomar, ao mesmo tempo que se desloca e se
transforma, desloca e transforma a percepção do pesquisador, e assim,
concomitantemente, desloca e transforma também o pesquisador e o ser humano.
Movimentos de idas e vindas, ao longo desse trabalho, foram uma constante, no
entanto, desde os primeiros brotos de ideias, em meados de 2021, um elemento
se fez consistente e assim se manteve até agora. Esse elemento foi a questão em
torno das problemáticas raciais ou, se assim o quisermos, do meu interesse em
refletir sobre as relações étnico-raciais no âmbito da sociologia Escolar. Essa
talvez tenha sido a única constante que atravessou essa pesquisa desde sua
concepção. Contudo, olhando mais de perto, não é difícil identificar que essa
“escolha”, essa tomada de posição, se é que podemos chamar assim, é antes de
tudo, um posicionamento ético e político que resulta da minha trajetória de vida.
As discussões envolvendo “raça”, racismo e as questões da cultura africana,
atravessaram-me desde a infância. Levando em consideração que desde que
tenho consciência da minha existência, tenho lembranças muito nítidas de estar
na companhia dos meus primos e primas, tios e tias, e principalmente, na
companhia da minha mãe e avó paterna, quando visitávamos com alguma
frequência um terreiro de candomblé em Magé, município da baixada fluminense,
situado na Região Metropolitana do Rio de Janeiro e às seções de umbanda, em
outros centros próximos ao local em que morávamos. Lembro-me das noites em
que minha avó acompanhava, pelo radinho de pilha, o programa do babalorixá,
Toninho de Obaluaiê, responsável pelo terreiro de Magé e um amigo muito
presente da família. Lembro-me dos banhos de ervas que constantemente
tomava, os “banhos” de pipoca (para Omolu), o forte cheiro das ervas queimando
nos defumadores que serviam para purificar a casa, a casa de Tranca Rua
protegendo espiritualmente o portão principal da entrada da casa de minha avó.
Lembro-me também das idas, desde muito pequeno, ao terreiro de candomblé, da
nação Jeje, do eternizado “Tio João de Omolu”, babalorixá, irmão de minha avó.
Cabe dizer que, no exercício de sua profissão como Terapeuta Ocupacional,
minha avó, ex-aluna de Nise da Silveira1 e apaixonada pela psiquiatria, foi morar
em uma espécie de vila de operários, lugar onde meu pai, tios e tias nasceram,
foram criados e lá vivem até hoje. Lugar onde eu e minhas irmãs também
passaram a viver e, então, meu filho e meus sobrinhos e afilhado. Tratava-se,
precisamente, de um complexo psiquiátrico famoso, chamado Colônia Juliano
Moreira2, construído em 1920, numa região localizada no bairro de Jacarepaguá,
lugar histórico e famoso pelas atividades coloniais do passado e seus registros
sobre a existência de engenhos de escravos e quilombos (Venancio; Potengy,
2015). Não raro, nos encontros festivos em família, ouvirmos histórias sobre a
nossa origem familiar estar associada a uma relação abusiva entre um famoso
barão, proprietário de terras em Jacarepaguá e uma de suas escravizadas.

1
O fato de eu sair do Rio de Janeiro para estudar em Maceió, lugar de nascimento de Nise, não passa de
uma mera coincidência.
2
O nome Colônia Juliano Moreira foi dado em homenagem ao médico negro, baiano e considerado
fundador da disciplina psiquiátrica no Brasil. Na faculdade, foi aluno de Nina Rodrigues, de quem rebateu
as teses sobre a inferioridade do(a) negro(a). Ver mais sobre a Colônia Juliano Moreira em:
https://museubispodorosario.com/colonia-juliano-moreira/ e também no documentário de 2016,
chamado Holocausto Brasileiro. Direção de Armando Mendz e Daniela Arbex.
Levando em consideração a importância que Bourdieu confere ao ambiente
familiar para a formação do habitus, do ethos, isto é, das disposições dos sujeitos
em pensar sentir e agir no mundo, seria razoável afirmar que meu interesse, meu
gosto em torno da temática racial e também da educação não passam de um mero
Amor fati (Nietzsche, 2006, p. 162), expressão latina que significa amor ao destino
e que segundo Rubira (2008), está associada à noção de eterno retorno. Bourdieu
toma emprestado de Nietzsche a expressão Amor fati, para explicar a tendência
das pessoas em gostarem daquilo que as conectam com o ambiente familiar da
infância, fazendo-as “retornarem eternamente” a esse ambiente. Sendo assim,
reforço que meu interesse temático por esse trabalho se constitui como uma
posição ética e política. Como diz Bourdieu (2020, p.47), “sempre fazemos política
quando fazemos sociologia”. Nesse contexto, tenho gravado em minha identidade,
em meu habitus, apesar deste não se constituir como uma coisa fixa, um
compromisso para com a luta e a resistência dos povos de terreiro3, com a
população negra, os indígenas, os loucos e todos os excluídos que foram, no
passado e que ainda são alvos de discriminações constantes. Desse modo,
constituo-me como um aliado dessa causa e também como objeto de minha
própria análise, pois em concordância com Bourdieu (2005), acredito que no
processo de uma investigação científica, o pesquisador também está em situação,
quer dizer, ao mesmo tempo em que realiza sua pesquisa, o pesquisador é,
também, além de sujeito, o objeto da sua própria análise, e sendo assim,
elementos de sua subjetividade, constituem o modo único sem o qual não seria
possível esse pesquisador perceber e interpretar o mundo social.

3
Não só por conta da minha trajetória familiar tão próxima da cultura e da religião de matriz africana,
mas em decorrência do presente. Atualmente minha irmã caçula, a única entre as novas gerações da
família do meu pai, tornou-se Ialorixá da nação Ketu (candomblé) e se dedica, com muito compromisso,
assim como outras pessoas que formam a grande comunidade de candomblecistas brasileiras, a manter
viva as práticas e a memória da cultura africana por meio da religiosidade e como forma de resistência
contra o racismo e os preconceitos tão vivos ainda em nossa cultura em relação a população negra.

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