Finge tão completamente Tudo que escrevo. Não. Que chega a fingir que é dor Eu simplesmente sinto A dor que deveras sente. Com a imaginação. Não uso o coração. E os que leem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Tudo o que sonho ou passo, Não as duas que ele teve, O que me falha ou finda, Mas só a que eles não têm. É como que um terraço Sobre outra coisa ainda. E assim nas calhas de roda Essa coisa é que é linda. Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Por isso escrevo em meio Que se chama coração. Do que não está ao pé, Livre do meu enleio, Sério do que não é. Sentir? Sinta quem lê! Ela canta, pobre ceifeira Gato que brincas na rua
Ela canta, pobre ceifeira, Gato que brincas na rua
Julgando-se feliz talvez; Como se fosse na cama, Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia Invejo a sorte que é tua De alegre e anónima viuvez, Porque nem sorte se chama.
Ondula como um canto de ave Bom servo das leis fatais
No ar limpo como um limiar, Que regem pedras e gentes, E há curvas no enredo suave Que tens instintos gerais Do som que ela tem a cantar. E sentes só o que sentes.
Ouvi-la alegra e entristece, És feliz porque és assim,
Na sua voz há o campo e a lida, Todo o nada que és é teu. E canta como se tivesse Eu vejo-me e estou sem mim, Mais razões para cantar que a vida. Conheço-me e não sou eu.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando. Derrama no meu coração A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência, E a consciência disso! Ó céu! Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai Minha alma a vossa sombra leve! Depois, levando-me, passai! Tenho tanto sentimento Chove. Que fiz eu da vida?
Tenho tanto sentimento Chove. Que fiz eu da vida?
Que é frequente persuadir-me Fiz o que ela fez de mim... De que sou sentimental, De pensada, mal vivida... Mas reconheço, ao medir-me, Triste de quem é assim! Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal. Numa angústia sem remédio Tenho febre na alma, e, ao ser, Temos, todos que vivemos, Tenho saudade, entre o tédio, Uma vida que é vivida Só do que nunca quis ter... E outra vida que é pensada, E a única vida que temos Quem eu pudera ter sido, É essa que é dividida Que é dele? Entre ódios pequenos Entre a verdadeira e a errada. De mim, estou de mim partido. Se ao menos chovesse menos! Qual porém é verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar. Quando era criança Quando as crianças brincam
Quando era criança Quando as crianças brincam
Vivi, sem saber, E eu as oiço brincar, Só para hoje ter Qualquer coisa em minha alma Aquela lembrança. Começa a se alegrar.
E hoje que sinto E toda aquela infância
Aquilo que fui. Que não tive me vem, Minha vida flui, Numa onda de alegria Feita do que minto. Que não foi de ninguém.
Mas nesta prisão, Se quem fui é enigma,
Livro único, leio E quem serei visão, O sorriso alheio Quem sou ao menos sinta De quem fui então. Isto no coração. Não sei, ama, onde era Não sei se é sonho, se realidade
Não sei, ama, onde era, Não sei se é sonho, se realidade,
Nunca o saberei... Se uma mistura de sonho e vida, Sei que era Primavera Aquela terra de suavidade E o jardim do rei... Que na ilha extrema do sul se olvida. (Filha, quem o soubera!...). É a que ansiamos. Ali, ali A vida é jovem e o amor sorri Que azul tão azul tinha Ali o azul do céu! Talvez palmares inexistentes, Se eu não era a rainha, Áleas longínquas sem poder ser, Por que era tudo meu? Sombra ou sossego deem aos crentes (Filha, quem o adivinha?). De que essa terra se pode ter Felizes, nós? Ali, talvez, talvez, E o jardim tinha flores Naquela terra, daquela vez, De que não me sei lembrar... Flores de tantas cores... Mas já sonhada se desvirtua, Penso e fico a chorar... Só de pensá-la cansou pensar; (Filha, os sonhos são dores...). Sob os palmares, à luz da lua, Sente-se o frio de haver luar Qualquer dia viria Ah, nesta terra também, também Qualquer coisa a fazer O mal não cessa, não dura o bem. Toda aquela alegria Mais alegria nascer Não é com ilhas do fim do mundo, (Filha, o resto é morrer...). Nem com palmares de sonho ou não, Que cura a alma seu mal profundo, Conta-me contos, ama... Que o bem nos entra no coração. Todos os contos são É em nós que é tudo. É ali, ali, Esse dia, e jardim e a dama Que a vida é jovem e o amor sorri. Que eu fui nessa solidão... (Filha, )