Você está na página 1de 7

MARIOLINA CERIOTTI MIGLIARESE

O CASAL IMPERFEITO
E se também os defeitos fossem
um ingrediente do amor?

Miolo casal imperfeito.indd 3 02/06/22 16:26


Miolo casal imperfeito.indd 4 02/06/22 16:26
Nota à edição portuguesa

«[…] é possível aceitar, com simplicidade, que todos somos uma


complexa combinação de luzes e sombras. O outro não é apenas
aquilo que me incomoda; é muito mais do que isso. E, pela mesma
razão, não lhe exijo que seja perfeito o seu amor para o apreciar:
ama-me como é e como pode, com os seus limites, mas o facto de
o seu amor ser imperfeito não significa que seja falso ou que não
seja real […]».
Amoris Laetitia, 113

Casados há quase trinta anos, há um facto inquestionável que


descobrimos logo nos primeiros anos de casados, não como uma
total surpresa, mas como a confrontação com uma realidade inul-
trapassável – nenhum de nós é perfeito. É evidente que durante o
namoro já nos tínhamos dado conta de que o outro era uma «com-
plexa combinação de luzes e sombras», mas fomos criando durante
o final do nosso noivado a ideia de que, com o casamento e a par-
tilha total das nossas vidas, essas imperfeições se esbateriam e os
nossos dias seriam de felicidade plena.
Não temos a experiência clínica que transparece neste livro de
Mariolina Ceriotti Migliarese, mas estamos convictos que uma
das causas mais relevantes para o fim dos casamentos de hoje em
dia é a ideia incutida nos jovens de que o outro ou a outra é aquele
que me completa totalmente (a ideia muito difundida da “metade
da laranja”) e que em todas as situações da vida do casal será
“a pessoa certa”. Ao longo de três décadas de vida em comum,

Miolo casal imperfeito.indd 5 02/06/22 16:26


6 O casal imperfeito

muitas vezes pareceu que tínhamos escolhido a pessoa errada, que


num determinado momento não seria a pessoa certa para estar ao
nosso lado e que, inclusivamente, era a fonte dos nossos proble-
mas, preocupações, aborrecimentos e monotonias. Normalmente
não foram questões centrais ou de grande importância que nos
dividiram, como sejam a educação dos filhos ou opções de car-
reira profissional, mas muitas vezes foram pequenas questões que
foram sobrevalorizadas e a nossa história passada fez dar uma
dimensão que na maioria das vezes não tinha. A grande questão
que se coloca a cada casal é como se encaram estes momentos de
maior divisão. Podemos ter um prisma de abordagem de nos colo-
carmos numa posição de que “tenho o direito de ser feliz” e, se
ou outro não contribui para essa felicidade em todos os momen-
tos da minha vida, então não serve, e, se não serve, não se justi-
fica continuarmos uma vida em comum. Uma perspetiva distinta é
assumimos que o outro tem falhas e não lhe posso exigir que seja
perfeito, em alguns momentos é razão de tristeza, mas foi alguém
que escolhi, que é único e é com quem decidi construir uma vida
em comum e, portanto, vale a pena ser criativo, ultrapassar as difi-
culdades e, se ultrapassadas, estes momentos servirão para fortale-
cer esta relação a dois. Como disse o cardeal D. José Tolentino de
Mendonça aos casais das Equipas de Nossa Senhora no Encontro
Internacional em 2018, em Fátima, «as próprias crises fazem parte
do percurso do amor e, se trazem consigo turbulência e sofri-
mento, também constituem oportunidades para mergulhar mais
profundamente na sua realidade. O importante é não desani-
mar. O importante é não confundir a etapa com a totalidade do
caminho. Quando vividas em casal e em família até as experiên-
cias de crise se podem tornar experiências de reforço do projeto
comum. Elas dão-nos acesso a dimensões da vida que, porventura,
não tínhamos ainda tocado. […] Muitas vezes são as crises que

Miolo casal imperfeito.indd 6 02/06/22 16:26


Nota à edição portuguesa 7

possibilitam que se escute a vida para lá da aparência e se contacte


com a sede que se aloja dentro de nós».
É bastante cómodo imaginarmos que são os outros os principais
responsáveis pelos nossos problemas, aborrecimentos e monotonias.
Esta abordagem, em muitos dos círculos das nossas vidas, sejam
relações de amizade, carreira profissional e até as preferências clu-
bísticas, muitas vezes também se reflete na nossa vida familiar com
o foco principal no nosso marido ou mulher. Temos que desmontar
esta ideia e interiorizarmos que somos os protagonistas principais da
nossa felicidade. Temos que aprender a ser criativos e investir verda-
deiramente na nossa vida concreta do dia a dia, envolvendo todos
os que estão à nossa volta, mas de um modo prioritário e especial
a nossa família, para que o nosso quotidiano tenha um carácter de
novidade, tornando-se desta forma caminho de felicidade.
Uma ideia que recentemente ouvimos ao antropólogo Stephan
Kampowski foi que «as relações familiares são relações incondi-
cionais». Todos entendemos que os vínculos entre pai e filho, entre
avô e neto ou entre irmãos são inquebráveis. Estas relações fami-
liares podem ser mais ou menos agradáveis, mais ou menos dis-
tantes, mas como relações de consanguinidade são incondicionais.
É fácil perceber que por mais forte que seja uma amizade, esta
relação não tem o mesmo vínculo incondicional que uma rela-
ção familiar. O mesmo se passa, por exemplo, nas nossas relações
profissionais. Podemos, em determinado momento da nossa vida,
dizer a um amigo que nos ofendeu que «já não quero manter esta
relação de amizade», ou ao nosso diretor de recursos humanos que
«não quero continuar a trabalhar nesta empresa».
No entanto, como seres humanos, podemos estabelecer víncu-
los familiares com base, primeiro numa escolha e, posteriormente,
numa promessa. Diz Stephan Kampowski que «assim como a con-
sanguinidade é um facto biológico objetivo que dá origem a uma

Miolo casal imperfeito.indd 7 02/06/22 16:26


8 O casal imperfeito

relação pessoal incondicional e irrevogável, a promessa que dá ori-


gem a uma relação familiar não consanguínea deve ser incondi-
cional e irrevogável. Deve tomar a forma de uma promessa que
estabelece uma aliança». O casamento e a adoção são os dois casos
de uma relação familiar não consanguínea. É determinante na
sociedade contemporânea reforçar a ideia do vínculo incondicional
e irrevogável do casamento. Não como um fardo que teremos de
carregar para o resto das nossas vidas, mas como uma aliança que
nos engrandece, permite cumprir dia a dia a nossa vocação para a
santidade e nos abre a oportunidade a uma paternidade generosa e
responsável.
Importa chamar a atenção que muitos estudos referem que
quanto mais ténues forem os vínculos entre homem e mulher,
menos fértil é esse relacionamento. Face ao inverno demográ-
fico que atualmente enfrentamos, com especial significado em
Portugal, é urgente reforçar a importância do vínculo matrimo-
nial com um perfil incondicional, sendo um tema incontornável na
preparação dos noivos para o matrimónio.

Apenas mais duas breves ideias que, como casal católico, gos-
taríamos de partilhar com o leitor. A primeira é que o sacramento
do Matrimónio, além de ser uma vocação, é também uma missão.
Ao decidirmos casar, além de prometermos um ao outro «ser-te
fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na
doença, todos os dias da nossa vida», tornando assim o casamento
o nosso caminho de santidade, assumimos também uma missão,
desde logo no acolhimento e na educação dos filhos, mas também
como casal na Igreja e no mundo. É urgente que os casais e as
famílias assumam que são «os sujeitos principais da pastoral fami-
liar, sobretudo oferecendo o testemunho jubiloso dos cônjuges e
das famílias, igrejas domésticas» (Amoris Laetitia, 200).

Miolo casal imperfeito.indd 8 02/06/22 16:26


Nota à edição portuguesa 9

A segunda ideia é que temos consciência, e a experiência vivida


tem-nos confirmado isso, que o sacramento do Matrimónio nos
cumula das graças necessárias, não apenas para ultrapassarmos os
momentos difíceis que vamos enfrentando no nosso casamento,
mas também para nos ajudar a cumprir as várias missões que
vamos assumindo, quer no seio da família, quer no mundo.

O livro que tem nas suas mãos é revelador da importância que a


autora dá ao vínculo do matrimónio e que justifica todos os esfor-
ços para ser preservado das crises que vai enfrentando ao longo das
várias fases de um casamento. Temas como a educação dos filhos, as
relações com as famílias dos cônjuges, o nosso corpo e o corpo do
outro, o sexo, a monotonia e o aborrecimento, o dinheiro e as difi-
culdades económicas, as carreiras profissionais, a promessa, o senti-
mento de culpa, a infidelidade, o perdão e muitos outros vão sendo
apresentados ancorados em histórias concretas que foram passando
pelo consultório clínico de Mariolina Ceriotti Migliarese. Com
algumas destas histórias identificámo-nos de uma forma quase arre-
piante, outras ainda que sabemos terem acontecido algo parecido
nas vidas de casais amigos nossos. Problemas frequentes dos casa-
mentos dos dias de hoje são expostos, primeiro numa perspetiva de
análise das razões porque surgiram, e depois numa apresentação de
possíveis formas de serem ultrapassados. Embora com suporte cien-
tífico, a forma clara e ao alcance de todos como os vários temas vão
sendo tratados permite uma leitura fluida e com uma proximidade
que garante uma facilidade na compreensão dos assuntos, mesmo
para aqueles que não têm formação nas áreas abordadas.

Isabel e Francisco Pombas


casal diretor do Departamento Nacional da Pastoral Familiar
(2020-2023)

Miolo casal imperfeito.indd 9 02/06/22 16:26

Você também pode gostar