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Capa
Ficha Técnica
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NOTA DA AUTORA
AGRADECIMENTOS
E. Lockhart
Noa estava sentada no corredor, com as costas contra a parede, a segurar uma
chávena de café fumegante entre as mãos.
À espera.
17
Quando o dinheiro chegou ao seu banco, Jule levantou-o todo e abriu uma
nova conta num outro banco. Aderiu a vários outros cartões de crédito e deu
instruções para que as suas contas fossem pagas automaticamente todos os
meses.
Depois foi às compras. Comprou pestanas postiças, base de maquilhagem,
lápis para os olhos, blush, pó de arroz, pincéis, três batons diferentes, duas
sombras para os olhos e uma caixa de maquilhagem pequena, mas cara. Uma
peruca ruiva, um vestido preto e um par de sapatos de saltos altos. Teria sido
agradável comprar mais, mas necessitava de viajar com pouca bagagem.
Usou o seu computador para comprar um bilhete de avião para Los Angeles,
reservou um quarto num hotel nessa cidade e pesquisou stands de automóveis
usados na zona de Las Vegas. De Londres para Los Angeles, depois de
autocarro de Los Angeles para Las Vegas. De Las Vegas de carro até ao
México. Esse era o plano.
Jule passou em revista os documentos no seu portátil. Assegurou-se de que
sabia de cor todos os números bancários e números de atendimento ao cliente,
todas as palavras-passe, todos os números dos cartões de crédito e códigos.
Memorizou o número do passaporte e o da carta de condução. Depois, uma
noite, atirou o portátil e o seu telemóvel ao Tamisa.
*
Quando uma batalha chega ao fim, quando o grande herói de filmes de ação
branco e heterossexual vive para lutar de novo noutro dia, vai a algum ponto
alto acima da cidade, algures com vista. O Homem de Ferro, o Homem-
Aranha, o Batman, o Wolverine, Jason Bourne, James Bond – todos o fazem. O
herói fita a dor e a beleza contidas nas luzes cintilantes da metrópole. Pensa na
sua missão especial, nos seus talentos únicos, na sua força, na sua estranha e
violenta vida e em todos os sacrifícios que faz para a viver.
De manhã cedo, o VooDoo Lounge era pouco mais do que uma extensão de
telhado de cimento pontuada com sofás vermelhos e pretos. As cadeiras tinham
a forma de mãos enormes. Uma escadaria curvava-se acima do telhado. Os
clientes podiam subi-la para terem uma vista melhor da zona dos casinos de
Las Vegas lá em baixo. Havia um par de gaiolas para as coristas dançarem
dentro delas, mas não se encontrava ninguém no bar naquele momento
excetuando um funcionário da limpeza. Ergueu as sobrancelhas quando Jule
apareceu ali.
– Só queria dar uma vista de olhos – disse-lhe Jule. – Sou inofensiva, juro.
– Claro que é – disse ele. – Força. Estou a limpar o chão.
Jule subiu até ao cimo da escadaria e fitou a cidade. Pensou em todas as
vidas que estavam a ser vividas lá em baixo. Havia pessoas a comprar pasta de
dentes, a ter discussões, ir buscar ovos a caminho de casa vindos do trabalho.
Viviam as suas vidas rodeados por todo aquele brilho e aquele néon, supondo
alegremente que todas as mulheres pequenas e engraçadas eram inofensivas.
Três anos antes, Julietta West Williams tinha quinze anos. Encontrava-se
num salão de jogos – num dos grandes, com ar condicionado e novinho em
folha. Estava a arrecadar pontos numa simulação de guerra. Estava embrenhada
no jogo, a disparar, quando dois rapazes que conhecia da escola se
aproximaram por trás dela e lhe apertaram as mamas. Um de cada lado.
Julietta deu uma forte cotovelada a um deles no seu estômago flácido e a
seguir rodou sobre os calcanhares e calcou o pé do outro com força. Depois
deu-lhe uma joelhada no baixo-ventre.
Era a primeira vez que agredia alguém fora da sua aula de artes marciais. A
primeira vez que necessitara de o fazer.
Bem, não necessitara de o fazer. Quisera fazê-lo. Gostou da sensação.
Quando aquele rapaz se dobrou pela cintura, a tossir, Jule virou-se e bateu no
rosto do primeiro com a base da mão. A cabeça dele voou para trás e ela
agarrou a parte da frente da sua T-shirt e berrou-lhe ao ouvido oleoso: – Não
sou tua para tocares em mim!
Queria ver medo no rosto daquele rapaz, e ver o seu amigo enroscado num
banco ali perto. Aqueles dois rapazes tinham sempre sido tão arrogantes na
escola, sem medo de nada.
Um homem com borbulhas que trabalhava no salão de jogos aproximou-se e
agarrou o braço de Julietta. – Não podemos ter lutas aqui dentro, menina.
Lamento, mas vai ter de sair.
– Está a agarrar-me o braço? – perguntou-lhe ela. – Porque não quero que me
agarre o braço.
Ele soltou-lhe o braço muito depressa.
Teve medo dela.
Era quinze centímetros mais alto do que ela e pelo menos três anos mais
velho. Era um homem crescido, e teve medo dela.
Era uma boa sensação.
Julietta saiu do salão de jogos. Não a preocupava que os rapazes pudessem
segui-la. Sentia-se como se estivesse num filme. Não sabia até esse momento
que seria capaz de olhar por si daquela maneira, não sabia que a força que
andava a consolidar nas aulas e na sala de pesos na secundária daria frutos.
Apercebeu-se de que construíra uma armadura para si mesma. Talvez fosse o
que tencionara fazer.
Parecia a mesma, como qualquer outra pessoa, mas passou a ver o mundo de
um modo diferente depois daquilo. Ser uma mulher fisicamente poderosa – era
qualquer coisa. Podias ir a qualquer lado e fazer o que quisesses se fosse difícil
fazer-te mal.
*
Uns andares abaixo, num corredor do hotel Rio, Jule encontrou uma
empregada que ia a empurrar um carrinho. Uma gorjeta de quarenta dólares e
arranjou um quarto para dormir até às três e meia da tarde. A hora do check-in
era às quatro.
Mais uma noite a roubar carteiras e mais um dia a dormir e Jule ficou pronta
a comprar um carro usado que não desse nas vistas a um tipo duvidoso num
parque de estacionamento. Pagou em dinheiro. Foi buscar a bagagem à estação
dos autocarros e escondeu os seus vários documentos de identificação por
baixo do feltro que forrava a porta da mala do carro.
Atravessou a fronteira para o México com o passaporte de Adelaide Belle
Perry.
16
Olá, Jule. Quando leres isto, eu já terei tomado uma dose excessiva de soníferos. E depois terei
apanhado um táxi para me levar à ponte de Westminster.
Vou ter pedras nos bolsos. Uma data de pedras. Tenho andado a juntá-las a semana toda. E
estarei afogada, O rio ter-me-á, e sentirei algum alívio.
Tenho a certeza de que te perguntarás porquê. É difícil dar uma resposta. Nada está bem. Já não
me sinto em casa. Nunca me senti em casa. Penso que nunca me sentirei.
O Forrest não era capaz de compreender. Nem a Brooke. Mas tu – penso que compreendes.
Conheces o meu eu, que mais ninguém pode amar. Se há um eu, de todo.
Immie
– Oh, meu Deus. Oh, meu Deus – disse Forrest uma e outra vez.
Jule pensou na linda ponte de Westminster com os seus arcos de pedra e os
seus gradeamentos verdes, e no rio caudaloso e frio que corria por baixo dela.
Pensou no corpo de Immie, uma camisa branca à flutuar à sua volta, de rosto
para baixo na água, numa poça de sangue. Sentia realmente de modo agudo a
perda de Imogen Sokoloff, mais do que Forrest alguma vez poderia sentir. –
Escreveu esta mensagem há dias – disse Jule a Forrest quando ele ficou
finalmente em silêncio. – Está desaparecida desde quarta-feira.
– Disseste que tinha ido para Paris.
– Estava a assumir.
– Talvez não se tenha atirado da ponte.
– Deixou uma mensagem de suicídio.
– Mas porquê? Porque o faria?
– Nunca se sentiu em casa. Sabes que isso era verdade quanto a ela. Disse-o
na mensagem. – Jule engoliu em seco e depois disse o que sabia que Forrest
quereria ouvir. – O que achas que devíamos fazer? Não sei o que fazer. És a
primeira pessoa a quem contei.
– Vou para aí – disse Forrest. – Telefona à polícia.
Forrest chegou ao apartamento daí a duas horas. Estava com um ar ausente e
desgrenhado. Trouxera a sua bagagem do hotel e declarou que dormiria no sofá
na salinha até as coisas se resolverem. Jule podia dormir no quarto. Nenhum
dos dois devia ficar só, disse.
Ela não o queria ali. Estava a sentir-se triste e vulnerável. Com Forrest,
preferia ter a armadura posta. No entanto, ele era bom numa situação de crise,
reconhecia-lhe isso. Pôs-se a enviar mensagens e a telefonar às pessoas, e falou
com todas com uma delicadeza extrema que Jule não sabia que ele possuía. Os
Sokoloff, os seus amigos de Martha’s Vineyard, os amigos de Immie da
faculdade: Forrest contactou todos pessoalmente, riscando-os ordenadamente
de uma lista que elaborara.
Jule telefonou para a polícia de Londres. Eles chegaram, todos enérgicos,
enquanto Forrest estava ao telefone com Patti. Os agentes pegaram na
mensagem escrita na letra de Imogen e depois pediram um depoimento a Jule e
a Forrest.
Concordaram que não dava a ideia de que Immie tivesse ido viajar. As suas
malas encontravam-se no armário, assim como as suas roupas. A carteira do
dinheiro e os cartões de crédito estavam numa mala de mão que encontraram.
O seu portátil não estava no apartamento, no entanto, e a carta de condução e o
passaporte também não.
Forrest perguntou a um agente se a mensagem de suicídio não poderia ser
forjada. – Talvez um raptor quisesse desviar as suspeitas – disse. – Ou talvez
seja uma mensagem que ela foi forçada a escrever? Há alguma maneira de
descobrirem se ela foi forçada a escrevê-la?
– Forrest, a mensagem estava dentro da caixa do pão – lembrou-lhe Jule
delicadamente. – A Immie deixou-ma na caixa do pão.
– Porque é que Miss Sokoloff haveria de ser raptada? – perguntou o agente.
– Por dinheiro. Alguém pode tê-la refém pelo resgate. É estranho que o
portátil dela tenha desaparecido. Ou podia ter sido assassinada. Tipo, por
alguém que a obrigou a escrever a mensagem.
Os agentes escutaram as teorias de Forrest. Lembraram que ele próprio era a
pessoa mais suspeita: um ex-namorado que chegara recentemente à cidade à
procura de Imogen. Contudo, deixaram também claro que não suspeitavam
realmente de um crime de qualquer tipo. Procuraram sinais de uma luta, mas
não encontraram nenhum.
Forrest disse que Imogen podia ter sido raptada fora do apartamento, mas os
agentes lembraram-lhe a caixa do pão. – A mensagem de suicídio deixa-o claro
– disseram. Perguntaram se aquela era a letra de Immie e Jule disse que era.
Perguntaram a Forrest, e ele também disse que era. Ou, pelo menos, parecia
ser.
Jule deu-lhes o telemóvel do Reino Unido de Imogen. Só mostrava
telefonemas para museus locais e e-mails dos pais dela, de Forrest, de Vivian
Abromowitz e de mais alguns amigos que Jule pôde identificar. Os agentes
pediram os extratos bancários de Immie. Jule deu-lhes alguns papéis impressos
a partir do computador em falta. Encontravam-se numa gaveta da secretária na
sala de estar.
Os agentes prometeram procurar o corpo de Imogen no rio, mas também
observaram que se o seu corpo estivesse pesado com pedras não viria
facilmente à tona. Provavelmente, teria sido afastado da ponte de Westminster
pela corrente.
Se chegassem a encontrá-la, poderia demorar dias ou mesmo semanas.
14
S eis semanas antes, Jule chegou a Londres pela primeira vez. Era o dia a
seguir ao Natal. Apanhou um táxi para o hotel onde reservara um quarto. O
dinheiro inglês era demasiado grande para caber bem na sua carteira. O táxi foi
caro como tudo, mas ela não se importou. Tinha fundos.
O hotel era um edifício velho e formal, com o interior remodelado. Um
cavalheiro com um casaco aos quadrados estava sentado a uma secretária.
Tinha um registo da reserva e acompanhou pessoalmente Jule ao seu quarto.
Falou com ela enquanto um empregado levava a sua bagagem. Ela adorava a
maneira como ele falava, como se tivesse saído de um romance de Dickens.
As paredes da suite estavam forradas com um papel toile de Jouy preto e
branco. Cortinas de um brocado pesado cobriam as janelas. A casa de banho
tinha aquecimento no chão. As toalhas eram brancas e texturadas com
pequenos quadrados. Havia sabonetes de alfazema embrulhados em papel
pardo.
Jule mandou vir um bife. Quando veio o que pediu, comeu tudo e bebeu dois
grandes copos de água. Depois disso, dormiu durante dezoito horas.
Quando acordou, sentia-se eufórica.
Era uma nova cidade e um país estrangeiro, a cidade de A Feira das Vaidades
e de Grandes Esperanças. Era a cidade de Immie, mas tornar-se-ia a cidade de
Jule, assim como os livros que Immie adorava se tinham tornado parte de Jule
também.
Abriu as cortinas. Londres estendia-se lá em baixo. Autocarros vermelhos e
táxis pretos como escaravelhos avançavam lentamente por entre o trânsito em
ruas estreitas. Os edifícios pareciam ter centenas de anos. Pensou em todas as
vidas que estavam a ser vividas ali em baixo, pessoas a conduzirem pela
esquerda, a comerem crumpets, a beberem chá, a verem televisão.
Jule sentia-se despida de culpa e de arrependimento, como se tivesse largado
uma pele. Via-se como uma justiceira solitária, um super-herói em repouso,
uma espia. Era mais corajosa do que qualquer outra pessoa no hotel, mais
corajosa do que toda a Londres, mais corajosa do que o comum, de longe.
No verão em Martha’s Vineyard, Immie dissera a Jule que era proprietária de
um apartamento em Londres. Disse: – As chaves estão aqui mesmo. Podíamos
ir amanhã – e deu uma palmadinha na sua carteira.
Mas não voltou a mencionar aquilo.
Agora, Jule telefonou ao zelador do prédio que tratava dos assuntos do
apartamento e disse-lhe que Immie tinha chegado. Ele poderia mandar limpar e
arejar o apartamento? Poderia mandar trazer alguns produtos de mercearia e
umas flores? Sim, tudo isso poderia ser tratado.
Quando o apartamento ficou pronto, a chave de Immie rodou facilmente na
fechadura. Era um apartamento grande com um quarto e uma sala em St. John’s
Wood, perto de muitas lojas. Ocupava o último andar de uma casa antiga
pintada de branco e tinha janelas com vista para árvores. Nos armários havia
toalhas macias e lençóis com uma lista de um tecido mais grosso. Só havia
banheira, não chuveiro. O frigorífico era minúsculo e a cozinha bastante básica.
Immie mandara arranjar o apartamento antes de ter aprendido a cozinhar. Mas
isso não importava.
No mês de junho depois de acabar o secundário, Jule sabia, Imogen
frequentara um programa de verão no estrangeiro, em Londres. Durante esse
tempo, comprou o apartamento a conselho do seu consultor financeiro. A venda
processou-se rapidamente e Immie e os seus amigos tinham andado às
compras, de antiguidades no mercado de Portobello Road e de têxteis nos
armazéns Harrods. Immie cobrira a porta da frente com fotografias instantâneas
desse verão – talvez umas cinquenta. Na maioria, aparecia com um grupo de
raparigas e rapazes, com o braço por cima uns dos outros, em frente a lugares
como a Torre de Londres ou o museu Madame Tussauds.
Jule arrumou as suas coisas no apartamento e a seguir tirou as fotografias da
porta. Atirou-as para o caixote do lixo e levou o saco para a cave.
*
Nas semanas que se seguiram, Jule adquiriu um novo portátil e pôs os dois
velhos no incinerador. Foi a museus e restaurante, comendo bifes em
estabelecimentos tranquilos e hambúrgueres em pubs ruidosos. Era encantadora
com os empregados. Metia conversa com livreiros e apresentava-se como
Imogen. Falava com turistas – pessoas temporárias – e por vezes fazia uma
refeição com eles ou acompanhava-os ao teatro. Sentia-se como imaginava que
Immie se sentiria: bem-vinda em toda a parte. Mantinha o seu regime de
exercício físico e só comia comida de que gostava. A não ser isso, vivia a vida
de Imogen.
No início da sua terceira semana em Londres, Jule foi ao Madame Tussauds.
O museu é uma atração famosa, cheia de atores de Bollywood, membros da
família real e estrelas de bandas de música pop adolescentes, todos esculpidos
em cera. Aquele lugar estava apinhado de crianças americanas a falarem alto e
dos seus pais irritados.
Jule estava a olhar para o modelo em cera de Charles Dickens, que se
encontrava sentado com cara de poucos amigos numa cadeira de madeira,
quando alguém falou com ela.
– Se ele vivesse agora – disse Paolo Vallarta-Bellstone – rapava aquela
cabeça meio careca.
– Se vivesse agora – disse Jule – escreveria para a televisão.
– Lembras-te de mim? – perguntou ele. – Sou o Paolo. Conhecemo-nos no
verão em Martha’s Vineyard. – Estava com um sorriso tímido. Vestia umas
calças de ganga velhas e uma T-shirt cor de laranja macia. Uns Vans todos
velhos. Andava a viajar de mochila às costas, Jule sabia-o. – Mudaste de
penteado – acrescentou ele. – Não tinha a certeza se eras tu, ao princípio.
Tinha bom aspeto. Jule esquecera-se de como tinha bom aspeto. Beijara-o
uma vez. O seu cabelo preto e farto tombava-lhe para o rosto. As suas faces
pareciam ligeiramente queimadas pelo sol e os seus lábios um pouco gretados.
Talvez tivesse estado a esquiar.
– Lembro-me de ti – disse ela. – Não consegues decidir-te entre caramelo e
doce de leite, enjoas em carrosséis, talvez queiras vir a ser médico um dia.
Jogas golfe, o que é um bocado conservador; andas a viajar pelo mundo, o que
é interessante; segues raparigas em museus e apareces-lhes de surpresa quando
elas param para olhar para um romancista famoso feito de cera.
– Só vou dizer obrigado – disse Paolo –, embora tenhas feito um comentário
mauzinho sobre o golfe. Fico contente por te lembrares de mim. Já o leste? –
Apontou para Dickens. – Era suposto que o lesse na escola, mas não me dei a
esse trabalho.
– Já.
– Qual é o melhor romance dele, na tua opinião?
– Grandes Esperanças.
– Sobre o que é? – Paolo não estava a olhar para a figura de cera. Estava a
olhar para Jule, atentamente. Estendeu a mão e passou-a pelo braço de Jule
enquanto ela respondia. Era um gesto muito confiante, tocar-lhe assim,
segundos depois de voltar a apresentar-se. Normalmente, ela não deixava que
as pessoas lhe tocassem, mas com Paolo não se importou. Era muito delicado.
– Um rapaz órfão apaixona-se por uma rapariga rica – disse-lhe ela. – O
nome dela é Estella. E a Estella foi treinada toda a vida para quebrar o coração
dos homens, e talvez não tenha ela própria coração. Foi criada por uma senhora
louca que foi abandonada pelo noivo no altar.
– Então essa tal Estella quebra o coração do rapaz?
– Muitas vezes. De propósito. A Estella não sabe fazer outra coisa. Quebrar
corações é o seu único poder no mundo. – Afastaram-se de Dickens para uma
secção diferente do museu. – Estás aqui sozinho? – perguntou Jule.
– Estou com um amigo do meu pai. Estou na casa dele por uns dias. Ele quer
mostrar-me a cidade, só que tem de estar sempre a sentar-se. O Artie Thatcher,
conhece-lo?
– Não.
– A ciática dele agravou-se. Foi descansar no salão de chá.
– E a que propósito é que estás em Londres?
– Fiz a coisa de andar de mochila às costas por Espanha, Portugal, França,
Alemanha, Holanda e França outra vez. Depois vim para cá. Estava a viajar
com um amigo, mas ele foi a casa passar o Natal e não me apeteceu voltar, por
isso vim ficar com o Artie durante a época festiva. E tu?
– Tenho um apartamento aqui.
Paolo aproximou-se mais e apontou para um corredor escuro. – Ei, ali fica a
Câmara dos Horrores, ao fundo daquele corredor. Vens lá dentro comigo?
Preciso de proteção.
– De quê?
– Das figuras de cera loucamente assustadoras, é do quê – disse Paolo. – É
uma prisão com presos evadidos. Vi na Internet. Uma data de sangue e tripas.
– E queres ir?
– Adoro sangue e tripas. Mas não sozinho. – Sorriu. – Vens para me proteger
dos internados do asilo, Imogen? – Estavam agora à porta da Câmara dos
Horrores.
– Com certeza – disse Jule. – Eu protejo-te.
Não tinham havido três namorados em Stanford.
Nunca tinham havido três namorados em lado nenhum. Ou mesmo um
namorado.
Jule não precisava de um tipo, não tinha a certeza se gostava de tipos, não
tinha a certeza se gostava fosse de quem fosse.
Ficara de se encontrar com Paolo às oito horas. Escovou os dentes três vezes
e mudou de roupa duas. Pôs perfume de jasmim.
Quando o avistou à espera junto ao carrossel onde tinham combinado
encontrar-se, quase deu meia volta e se foi embora. Paolo estava a ver um
artista de rua. Tinha o cachecol bem apertado a proteger-se do vento de janeiro.
Jule disse a si mesma que não devia tornar-se próxima de ninguém. Não
havia ninguém por quem valesse a pena correr esse risco. Ir-se-ia embora
imediatamente, estava a ponto de ir embora – mas Paolo avistou-a e correu
para ela a toda a velocidade, como um rapazinho, estacando antes de esbarrar
contra ela. Fê-la rodar segurando-a pelos pulsos e disse: – Ena pá, é como um
filme. Consegues acreditar que estamos em Londres? Tudo o que conhecemos
está do outro lado do oceano.
E tinha razão. Tudo estava do outro lado do oceano.
Esta noite correria bem.
Paolo levou Jule a passear ao longo do Tamisa. Havia artistas de rua a
tocarem acordeão e a equilibrarem-se em cordas bambas baixas. Os dois
andaram a dar uma vista de olhos numa livraria durante algum tempo e depois
Jule comprou algodão doce para ambos. Enfiando nuvens cor-de-rosa doces na
boca, dirigiram-se para a ponte de Westminster.
Paolo pegou na mão de Jule e ela deixou. Ele acariciava-lhe o pulso
suavemente de vez em quando com a almofada do polegar. Aquilo provocava
em Jule uma excitação quente pelo braço acima. Surpreendia-a que o seu toque
pudesse dar uma sensação tão reconfortante.
A ponte de Westminster era uma série de arcos de pedra sobre o rio, cinza e
verde. As luzes dos candeeiros na parte de cima da ponte incidiam na corrente
forte do rio.
– A coisa pior naquela Câmara dos Horrores era o Jack, o Estripador – disse
Paolo. – Sabes porquê?
– Porquê?
– Um, porque nunca chegou a ser apanhado. E dois, porque consta que se
matou atirando-se precisamente desta ponte.
– Não acredito.
– Podes crer. Provavelmente, estava aqui mesmo quando se atirou ao rio. Li
na Internet.
– Isso é uma treta absoluta – disse Jule. – Ninguém sabe sequer quem era
realmente o Jack, o Estripador.
– Tens razão – disse ele. – É uma treta.
Beijou-a então, à luz de um candeeiro. Como uma cena de um filme. As
pedras estavam húmidas no nevoeiro e brilhavam. As abas dos casacos deles
adejavam ao vento. Jule tremia com o ar da noite e Paolo pôs a sua mão quente
contra o pescoço dela.
Beijou-a como se não conseguisse imaginar querer estar em qualquer outra
parte à face do planeta, porque aquilo não era tão agradável e não dava uma
sensação mesmo boa? Como se soubesse que ela não deixava que as pessoas
lhe tocassem, e soubesse que o deixaria a ele, e que era o tipo mais sortudo do
mundo. Jule sentiu-se como se o rio por baixo dela estivesse a correr-lhe nas
veias.
Queria ser ela própria com ele.
Perguntou-se se estaria a ser ela própria. Se poderia continuar a ser ela
própria.
E se alguém poderia amar a pessoa que ela era.
Soltaram-se dos braços um do outro e caminharam em silêncio por um
minuto. Um grupo de quatro mulheres jovens bêbedas estava a dirigir-se para
eles, a atravessar a ponte com passos incertos de tacões altos. – Não posso crer
que nos puseram fora – queixou-se uma delas, a arrastar as palavras.
– Deviam querer-nos como clientes, aqueles cabrões – disse outra. A
pronúncia delas era do Yorkshire.
– Ooh, ele é giro. – A primeira olhou para Paolo a uma distância de três
metros.
– Achas que ele quer ir beber um copo?
– Ah! Atrevida.
– Não sei. Pergunta-lhe.
Uma das mulheres berrou: – Se quer uma saída à noite, bom senhor, pode vir
connosco.
Paolo corou. – O quê?
– Vens daí? – perguntou ela. – Só tu.
Paolo abanou a cabeça. As mulheres continuaram a andar, a rir-se, e ele ficou
a olhar para elas até saírem da ponte. A seguir, pegou de novo na mão de Jule.
O clima entre os dois estava diferente, no entanto. Já não sabiam o que dizer
um ao outro.
Por fim, Paolo disse: – Conhecias a Brooke Lannon?
O quê?
A amiga de Imogen, Brooke. O que é que Paolo tinha que ver com Brooke?
Jule aligeirou o tom de voz. – Conhecia, de Vassar. Porquê?
– A Brooke... faleceu há cerca de uma semana. – Paolo olhou para o chão.
– O quê? Oh, não.
– Não era minha intenção ser eu a dizer-te. Não me ocorreu que a conhecias
até este momento – disse Paolo. – E depois saiu-me.
– Como é que conhecias a Brooke?
– Não a conhecia, realmente. Era amiga da minha irmã, dos acampamentos
de verão.
– O que aconteceu? – Jule queria ouvir a resposta dele, queria-o
desesperadamente, mas acalmou a voz.
– Foi um acidente. Ela estava no cimo de um parque a norte de São
Francisco. Estava lá a visitar uns amigos que andavam na faculdade na cidade,
mas eles estavam ocupados, ou algo do género, e a Brooke foi fazer uma
caminhada. Era uma caminhada durante o dia, mas já tarde, quando começava
a ficar escuro. Estava numa reserva natural sozinha. E simplesmente... caiu de
um passadiço. Um passadiço por cima de uma ravina.
– Caiu?
– Acham que tinha estado a beber. Bateu com a cabeça e ninguém a
encontrou até de manhã. Só alguns animais. O corpo estava bastante destruído.
Jule estremeceu. Pensou em Brooke Lannon, com o seu riso alto e
espalhafatoso. Brooke, que bebia demasiado. Brooke, com aquele sentido de
humor perverso, o cabelo amarelo liso e brilhante e o corpo como o de uma
foca. A linha do maxilar de quem se acha com direito a tudo. A tonta,
mesquinha, áspera Brooke. – Como sabem o que aconteceu?
– Debruçou-se do gradeamento. Talvez tenha trepado para ver alguma coisa.
Encontraram o carro dela no parque de estacionamento com uma garrafa de
vodca vazia lá dentro.
– Foi suicídio?
– Não, não. Foi só um acidente. Veio nas notícias hoje, como uma história a
servir de aviso. Sabes, leva sempre um amigo quando vais para o meio da
Natureza. Não bebas vodca antes de atravessares uma ravina. A família dela
ficou preocupada quando ela não apareceu em casa na véspera de Natal, mas a
polícia supôs que ela se tinha ausentado deliberadamente.
Jule sentia-se fria e estranha. Não pensava em Brooke desde que chegara a
Londres. Poderia tê-la pesquisado na Internet, mas não o tinha feito. Excluíra
completamente Brooke dos seus pensamentos. – Tens a certeza de que foi um
acidente?
– Um acidente terrível – disse Paolo. – Lamento muito.
Continuaram a andar uns momentos num silêncio embaraçado.
Paolo puxou o gorro para baixo a tapar as orelhas.
Ao fim de um minuto, Jule estendeu a mão e pegou de novo na dele. Queria
tocar-lhe. Admitir isso e fazê-lo dava-lhe mais a sensação de ser um ato de
coragem do que qualquer luta em que alguma vez se tivesse envolvido. – Não
pensemos nisso – disse. – Vamos só pensar que estamos no outro lado do
oceano e sentirmo-nos com sorte.
Deixou que Paolo a acompanhasse a casa e ele beijou-a mais uma vez em
frente ao prédio dela. Enroscaram-se um no outro nos degraus para se
manterem quentes enquanto uns alegres flocos de neve flutuavam pelo ar.
No dia seguinte, de manhã cedo, Paolo apareceu no apartamento com um
saco. Jule estava com calças de pijama e uma camisola interior de alças quando
ele tocou à campainha. Fê-lo esperar na entrada enquanto se vestia.
– Pedi emprestada a casa do meu amigo no Dorset – disse ele, seguindo-a até
à cozinha. E aluguei um carro. Tudo o mais de que alguém poderia precisar
para um fim de semana fora está neste saco.
Jule espreitou para dentro do saco que ele lhe estendia: quatro chocolates
Crunchie, Hula Hoops, Swedish Fish, duas garrafas de água com gás e um
pacote de batatas fritas com sal e vinagre. – Não tens nenhumas roupas aí
dentro. Nem sequer uma escova dos dentes.
– Isso é para amadores.
Ela riu-se. – Uh.
– OK, tudo bem, tenho a mochila no carro. Mas estes são os itens
importantes – disse Paolo. – Podemos ver Stonehenge no caminho. Já o viste?
– Não.
Jule sentia-se de facto particularmente curiosa por ver Stonehenge, sobre o
qual lera num romance de Thomas Hardy que tinha comprado numa livraria em
São Francisco, mas queria ver todas as coisas – era como se sentia. Toda a
Londres que não vira ainda, toda a Inglaterra, todo o grande e vasto mundo – e
sentir-se livre, poderosa e sim, com direito a tudo, testemunhar e compreender
o que havia por aí.
– Vai ter mistério antigo, portanto vai ser bom – disse Paolo. – Depois,
quando chegarmos à casa, podemos fazer umas caminhadas e olhar para as
ovelhas nos prados. Ou tirar fotografias de ovelhas. Talvez fazer-lhes festas. O
que quer que seja que as pessoas fazem no campo.
– Estás a convidar-me?
– Sim! Tem quartos separados. Disponíveis.
Empoleirou-se na beira da cadeira da cozinha, como se não tivesse a certeza
de ser bem-vindo. Como se talvez tivesse sido demasiado atrevido.
– Agora estás nervoso – disse ela, a ganhar tempo.
Queria aceitar o convite. Sabia que não devia.
– Pois é, estou muito nervoso.
– Porquê?
Paolo pensou por um momento. – Está muito mais em jogo agora. Importa-
me qual vai ser a tua resposta. – Pôs-se de pé lentamente e beijou-lhe o lado do
pescoço. Ela encostou-se a ele e sentiu que ele estava a tremer um pouco.
Beijou o lóbulo tenro da sua orelha e depois os seus lábios, pondo-se nas
pontas dos pés ali na cozinha.
– Isso é um sim? – segredou ele.
Jule sabia que não devia ir.
Era uma péssima ideia. Deixara para trás esta possibilidade há muito tempo.
O amor era do que desistias quando te tornavas – o que quer que ela era agora.
Extraordinária. Perigosa. Correra riscos e reinventara-se.
Agora este rapaz estava na sua cozinha, a tremer quando a beijava, com um
saco cheio de comida de plástico e água com gás. A dizer tolices sobre ovelhas.
Jule atravessou para o outro lado da divisão e lavou as mãos no lava-louça.
Sentia-se como se o universo estivesse a oferecer-lhe algo belo e especial. Não
voltaria a aparecer-lhe com uma oferta como aquela.
Paolo aproximou-se e pousou a mão no ombro dela, muito, muito
delicadamente, como se a pedir permissão. Como se maravilhado por ter
licença para tocar nela.
E Jule virou-se e disse-lhe que sim.
Stonehenge estava fechado.
E estava a chover.
Não se podia mesmo ver as pedras a não ser que se tivesse comprado bilhetes
antecipadamente. Jule e Paolo nem sequer conseguiram pôr-lhes a vista em
cima do centro de visitantes.
– Prometi-te mistério antigo e agora não é mais do que um parque de
estacionamento – disse Paolo, meio triste e meio na brincadeira, quando
voltaram para dentro do carro. – Devia ter-me informado.
– Não faz mal.
– Sei como usar a Internet, acredita.
– Oh, não te preocupes. Estou mais empolgada com a ideia das ovelhas, de
qualquer maneira.
Ele sorriu. – Estás mesmo?
– Claro que sim. Podes garantir-me ovelhas?
– Falas a sério? Porque não me parece que possa garantir ovelhas de facto, e
não quero dececionar-te outra vez.
– Não, não quero saber de ovelhas para nada.
Paolo abanou a cabeça. – Devia ter adivinhado. As ovelhas não são
Stonehenge. Temos de encarar esse facto. Nem mesmo as melhores ovelhas
alguma vez serão Stonehenge.
– Vamos comer uns Swedish Fish – disse ela, para o animar.
– Perfeito – disse Paolo. – Isso é um plano perfeito.
A casa não era uma casa. Era uma mansão. Uma grande casa, construída no
século XIX. Havia terras à volta e uma entrada com portão. Paolo tinha um
código para o portão. Digitou-o e conduziu o carro por um caminho de acesso à
casa em curva.
As paredes da casa eram de tijolo e estavam cobertas de heras. Num dos
lados, havia um jardim em declive com roseiras e bancos de pedra, a terminar
num pavilhão redondo à beira de um ribeiro.
Paolo remexeu nos bolsos. – Tenho as chaves aqui algures.
Chovia muito agora. Eles estavam na soleira da porta, com os sacos na mão.
– Com um raio, onde é que elas estão? – Paolo palpou o casaco, as calças, o
casaco de novo. – Chaves, chaves. – Procurou no saco. Procurou na mochila.
Deu uma corrida e foi procurar no carro.
Sentou-se na soleira da porta, abrigado da chuva, e tirou tudo dos bolsos.
Depois, tirou tudo do saco. E tudo da mochila.
– Não tens as chaves – disse Jule.
– Não tenho as chaves.
Era um trapaceiro, um vigarista. Não era nada Paolo Vallarta-Bellstone. Que
provas vira Jule? Nem documento de identificação nem fotografias na Internet.
Só o que ele lhe dissera, os seus modos, o seu conhecimento da família de
Imogen. – És realmente amigo destas pessoas? – perguntou ela, aligeirando a
voz.
– É a casa de campo da família do meu amigo Nigel. Ele recebeu-me aqui no
verão, e ninguém está a usá-la e... eu sabia o código do portão, não sabia?
– Não estou a duvidar de ti de facto – mentiu ela.
– Podemos ir às traseiras e ver se a porta da cozinha está aberta. Há um
jardim da cozinha, de... dos tempos na história em que tinham jardins da
cozinha – disse Paolo. – Penso que o termo técnico é «nos bons velhos
tempos».
Puseram os respetivos casacos por cima da cabeça e correram à chuva,
pisando poças e rindo.
Paolo sacudiu a porta da cozinha. Estava aferrolhada. Andou por ali à
procura de uma chave extra debaixo de pedras, enquanto Jule se abrigava sob o
guarda-chuva.
Ela tirou o telemóvel do bolso e pesquisou o nome dele, procurando imagens.
Que alívio. Era decididamente Paolo Vallarta-Bellstone. Havia fotografias
dele em eventos de angariação de fundos para organizações de caridade, de pé
ao lado dos pais, sem gravata num evento onde claramente se esperava que os
homens usassem gravara. Imagens dele com outros tipos num campo de
futebol. Uma fotografia da cerimónia de fim do curso do secundário que
mostrava dentes com aparelho e um mau corte de cabelo, publicada por uma
avó que tinha escrito no seu blogue um total de três vezes.
Jule sentia-se contente por ele ser Paolo e não um vigarista qualquer.
Agradava-lhe que fosse tão boa pessoa. Era melhor que fosse genuíno, porque
podia acreditar nele. Mas havia tanto de Paolo que Jule nunca saberia. Tanta
história que ele nunca chegaria a contar-lhe.
Paolo desistiu de procurar a chave. Tinha o cabelo ensopado. – As janelas
têm alarme – disse. – Acho que é um caso perdido.
– O que havemos de fazer?
– É melhor irmos até ao pavilhão e ficarmos a beijar-nos por um bocado –
disse Paolo.
A chuva não abrandava.
Com as roupas húmidas, dirigiram-se no carro para Londres e pararam num
pub para comer comida frita.
Paolo parou junto ao prédio de Jule. Não a beijou, mas estendeu a mão para
pegar na dela. – Gosto de ti – disse. – Pensei... acho que já o tinha deixado
claro? Mas pensei que devia dizê-lo.
Jule retribuía o seu sentimento. Gostava de si mesma com ele.
Mas não era ela mesma com ele. Não sabia do que era ou mesmo de quem
era que Paolo gostava.
Poderia ser de Immie. Poderia ser de Jule.
Ela já não tinha a certeza de onde traçar a linha entre as duas. Jule cheirava a
jasmim como Imogen, Jule falava como Imogen, Jule gostava dos livros de que
Immie gostava. Essas coisas eram verdade. Jule era órfã como Immie, uma
pessoa que se criara a si mesma, uma pessoa com um passado misterioso.
Muito de Imogen estava em Jule, sentia ela, e muito de Jule estava em Imogen.
Mas Paolo pensava que Patti e Gil eram os seus pais. Pensava que ela tinha
andado na faculdade com a pobre da falecida Brooke Lannon. Pensava que ela
era judia e rica e proprietária de um apartamento em Londres. Essas mentiras
faziam parte daquilo de que ele gostava. Era impossível contar-lhe a verdade, e,
mesmo que ela o fizesse, ele odiá-la-ia por essas mentiras.
– Não posso continuar a ver-te – disse-lhe ela.
– O quê?
– Não posso continuar a ver-te. Assim. Nunca mais.
– Porque não?
– Simplesmente não posso.
– Há outra pessoa? Com quem andes? Eu podia tirar vez ou pôr-me na fila ou
coisa do género.
– Não. Sim. Não.
– É sim ou não? Consigo fazer-te mudar de ideias?
– Não estou disponível. – Podia dizer-lhe que tinha outra pessoa, mas não
queria mentir-lhe mais.
– Porque não?
Abriu a porta do carro. – Não tenho coração.
– Espera.
– Não.
– Por favor, espera.
– Tenho de ir.
– Passaste um dia mau? Quer dizer, além da chuva, de não termos visto
Stonehenge, não ficarmos na casa de campo, não haver ovelhas? Além do facto
de ter sido um dia de desastre em cima de desastre?
Jule queria ficar no carro. Tocar nos lábios dele com as pontas dos seus
dedos e descontrair-se como Immie e deixar as mentiras aumentarem, assentes
umas em cima das outras.
Mas não podia.
– Deixa-me em paz Paolo, porra – resmungou. Abriu a porta do carro e saiu
para a chuva torrencial.
Passaram duas semanas. Jule mantinha as sobrancelhas depiladas finas.
Comprou roupas e mais roupas, coisas maravilhosas com etiquetas de preços
exorbitantes. Comprou livros de culinária para a cozinha do apartamento,
embora nunca os usasse. Foi ao bailado, à ópera, ao teatro. Viu todas as coisas,
locais históricos e museu e edifícios famosos. Comprou antiguidades em
Portobello Road.
Uma noite, já tarde, Forrest apareceu no apartamento. Era suposto estar na
América.
Jule tentou controlar o pânico ao espreitar pelo óculo da porta. Apetecia-lhe
abrir a janela e trepar pelo cano do esgoto para o telhado, saltar para o prédio
ao lado e, francamente, não estar em casa, ponto final. Queria mudar as
sobrancelhas e o cabelo e a maquilhagem e...
Ele tocou à campainha uma segunda vez. Jule optou por tirar os anéis e vestir
umas calças de fato de treino e uma T-shirt em vez do vestido maxi com que
estava. Pôs-se em frente à porta e recordou a si mesma que sempre soubera que
Forrest poderia aparecer. Era o apartamento de Immie. Jule tinha uma
estratégia. Podia lidar com ele. Abriu a porta.
– Forrest. Que grande surpresa.
– Jule.
– Pareces cansado. Estás bem? Entra.
Ele trazia um saco de fim de semana. Ela tirou-lho das mãos e trouxe-o para
dentro do apartamento.
– Acabei de sair de um avião – disse Forrest, a esfregar o queixo e a
pestanejar por trás dos óculos.
– Apanhaste um táxi de Heathrow?
– Apanhei. – Olhou-a friamente. – Porque é que tu estás aqui? No
apartamento da Imogen?
– Estou cá por uns tempos. Ela deu-me as chaves.
– Onde é que ela está? Quero vê-la.
– Não voltou para casa ontem à noite. Como é que deste com o apartamento?
– A Patti Sokoloff deu-me a morada. – Forrest olhou para o chão,
embaraçado. – Foi um voo longo. Posso beber um copo de água?
Jule conduziu-o à cozinha. Deu-lhe água da torneira, sem gelo. Tinha limões
numa taça em cima da bancada da cozinha, porque se enquadravam na ideia de
como deveria ser o aspeto do apartamento, mas dentro dos armários e do
frigorífico não havia nada que Imogen teria comprado. Jule comia bolachas de
água e sal e manteiga de amendoim açucarada, embalagens de salame e tabletes
de chocolate. Esperava que Forrest não pedisse comida.
– Onde está a Immie, diz lá? – perguntou.
– Já te disse, não está aqui.
– Mas, Jule. – Agarrou-lhe o braço e por um momento ela sentiu medo dele,
medo das suas mãos duras a pressionarem o algodão da sua T-shirt, embora
fosse magro e fraco. – Onde é que ela está em vez de estar aqui? – disse, muito
lentamente. Jule detestava a sensação do corpo dele perto do seu.
– Nunca mais me toques, porra – disse-lhe. – Nunca mais. Compreendes?
Ele soltou-lhe o braço e entrou na sala de estar, onde se esparramou no sofá
sem ser convidado. – Penso que sabes onde ela está. É tudo.
– Provavelmente foi passar o fim de semana a Paris. Pode-se ir muito
rapidamente daqui pelo Eurotúnel.
– Paris?
– É uma suposição.
– Ela disse-te para não me dizeres aonde ia?
– Não. Nem sequer sabíamos que tu vinhas.
Forrest voltou a afundar-se no sofá. – Preciso de a ver. Mandei-lhe
mensagem, mas ela é capaz de me ter bloqueado.
– Arranjou um telemóvel do Reino Unido, com um número diferente.
– Também não responde aos meus e-mails. Foi por isso que vim lá de tão
longe. Tinha a esperança de conversar com ela.
Jule fez um chá para os dois enquanto Forrest telefonava para hotéis. Teve de
fazer doze telefonemas antes de encontrar um hotel com um quarto que
pudesse reservar por algumas noites.
Fora suficientemente arrogante para pensar que Imogen o deixaria ficar no
apartamento.
13
D ois dias antes da sua chegada a Londres, Jule estava a subir a pé uma
encosta em São Francisco com uma estatueta pesada de um leão na
mochila.
Adorava São Francisco. Tinha o aspeto que Immie dissera que teria, com
colinas e pitoresca, mas ao mesmo tempo expansiva e elegante. Hoje, Jule fora
ver a exposição de cerâmica do Museu de Arte Asiática. A proprietária do seu
apartamento recomendara-o.
Maddie Chung, a proprietária, era uma mulher enxuta, andava pelos
cinquenta e era gay. Usava calças de ganga e fumava no alpendre e tinha uma
pequena livraria. Jule pagou a dinheiro uma semana de arrendamento do
apartamento, que era o último andar de uma casa vitoriana. Maddie e a sua
mulher viviam nos dois andares de baixo. Ela andava sempre a falar a Jule
sobre história de arte e exposições em galerias. Era muito bondosa e parecia
encarar Jule como alguém a necessitar de benevolência.
Hoje, quando Jule chegou a casa, Brooke Lannon estava sentada nos degraus
do alpendre. A amiga de Immie de Vassar. – Cheguei aqui mais cedo – disse
Brooke. – Mas adiante.
O descapotável de Brooke ficara estacionado em frente à casa durante a
noite. Ela precisava de vir buscá-lo, mas Jule enviara-lhe uma mensagem a
pedir-lhe que ficasse para conversarem.
Brooke tinha coxas grossas, queixo quadrado e cabelo louro liso e brilhante
que parecia sempre igual. Pele branca e batom sem cor. Um estilo desportivo.
Crescera em La Jolla. Bebia demasiado, jogara hóquei em campo na secundária
e tivera uma série de namorados e uma namorada, mas nunca amor. Essas eram
todas as coisas que Jule sabia sobre ela dos tempos de Martha’s Vineyard.
Agora, Brooke pôs-se de pé e quase se desequilibrou.
– Estás bem? – perguntou Jule.
– Nem por isso.
– Estiveste a beber?
– Estive – respondeu Brooke. – Que tem isso?
Estava a anoitecer.
– Vamos dar uma volta de carro – disse Jule. – Podemos conversar.
– Uma volta de carro?
– Vai ser agradável. Tens um carro tão giro. Dá-me as chaves. – O carro era o
tipo de coisa que homens mais velhos compram para se convencerem de que
ainda são sexy. Os dois assentos eram beges-escuros, o chassi arredondado e de
um verde-vivo. Jule perguntou-se se o carro pertenceria ao pai de Brooke. –
Não te posso deixar conduzir se estiveste a beber.
– Quem é que tu és, a polícia?
– Não propriamente...
– Uma espia?
– Brooke.
– A sério, és?
– Não posso responder a isso.
– Ah. É o que uma espia diria.
Já não importava o que Jule dissesse ou não dissesse a Brooke. – Vamos
fazer uma caminhada – disse. – Conheço um sítio no parque estatal. Podemos
atravessar a ponte Golden Gate, vai ser cénico como tudo.
Brooke fez tilintar as chaves do carro no bolso. – É um bocado tarde.
– Olha – disse Jule. – Tivemos um mal-entendido em relação à Immie, e fico
contente que tenhas vindo cá. Vamos só a um lugar neutro conversar sobre o
assunto. O meu apartamento não é o melhor sítio para isso.
– Não sei se quero conversar contigo.
– Apareceste mais cedo – disse Jule. – Queres conversar comigo.
– OK, falamos sobre o assunto, resolvemos a coisa com um abraço, isso tudo
– disse Brooke. – Vai fazer feliz a Immie. – Entregou as chaves do carro a Jule.
As pessoas eram estúpidas quando bebiam.
Dois dias antes do Natal fazia demasiado frio para andar num descapotável,
mas a capota do carro de Brooke estava descida, de qualquer modo. Brooke
insistira. Jule estava com calças de ganga, botas e uma camisola quente de lã. A
sua mochila encontrava-se na mala do carro, e dentro dela trazia a carteira do
dinheiro, uma segunda camisola e uma T-shirt limpa, uma garrafa de água com
o bocal largo, uma embalagem de toalhetes de bebé, um saco preto do lixo e a
estatueta do leão.
Brooke tirou uma garrafa de vodca meio vazia do saco que trazia ao ombro,
mas não chegou a beber. Adormeceu quase imediatamente.
Jule atravessou a cidade ao volante. Quando chegaram à ponte Golden Gate,
sentia-se agitada. A viagem em silêncio era enervante. Acotovelou Brooke a
acordá-la. – A ponte – disse. – Olha. – Pairava acima delas, cor de laranja e
majestosa.
– As pessoas adoram atirar-se desta ponte para se matarem – disse Brooke
com a voz empastada.
– O quê?
– É a segunda ponte mais popular do mundo para suicídios – disse Brooke. –
Li isso algures.
– Qual é a primeira?
– Uma ponte no rio Yangtze. Não me lembro do nome. Leio coisas desse
género – disse Brooke. – As pessoas pensam que é poético, atirar-se de uma
ponte. É por isso que o fazem. Ao passo que, digamos, cortares os pulsos numa
banheira é só uma sujeira. O que é que uma pessoa deve vestir para se esvair
em sangue até à morte numa banheira?
– Não veste nada.
– Como é que sabes?
– Simplesmente sei. – Jule desejava não se ter envolvido na conversa sobre
este tópico com Brooke.
– Não quero que as pessoas me vejam nua quando estiver morta! – berrou
Brooke para o ar por baixo da ponte Golden Gate. – Mas também não quero
usar roupas na banheira! É muito embaraçoso.
Jule ignorou-a.
– De qualquer maneira, andam a construir uma barreira agora para as pessoas
não poderem atirar-se – prosseguiu Brooke. – Aqui na Golden Gate.
Saíram da ponte em silêncio e viraram para o parque.
Por fim, Brooke acrescentou: – Não devia ter abordado aquele assunto. Não
quero meter-te ideias na cabeça.
– Eu não tenho ideias.
– Não te mates – disse Brooke.
– Não me vou matar.
– Estou a ser tua amiga neste momento, OK? Há algo em ti que não é normal.
Jule não respondeu.
– Cresci com pessoas muito normais e estáveis – continuou Brooke. –
Comportávamo-nos como pessoas normais o dia todo na minha família. Tão
normais que me dava vontade de arrancar os olhos. Portanto sou, tipo,
especialista. E tu? Tu não és normal. Devias pensar em procurar ajuda para
isso, é o que estou a dizer.
– Tu pensas que ser normal é ter carradas de dinheiro.
– Não, não penso. A Vivian Abromowitz anda em Vassar com uma bolsa de
estudos que cobre tudo e é normal, aquela bruxa.
– Pensas que é normal ter tudo o que queres todo o tempo – disse Jule. – Que
as coisas sejam fáceis. Mas não é. A maior parte das pessoas não consegue o
que quer, tipo, nunca. Fecham-lhes portas na cara. Têm de se esforçar, todo o
tempo. Não vivem na tua terra mágica de carros de dois lugares e dentes
perfeitos e viagens para a Itália e casacos de peles.
– Ai está – disse Brooke. – Provaste o que eu disse.
– Como?
– Nem sequer é normal dizer coisas como essas. Voltaste à vida da Immie
depois de já não a veres há anos e numa questão de dias mudaste-te para a casa
dela, andas a pedir emprestadas as coisas dela, andas a nadar na porra da
piscina dela e a deixá-la pagar os teus cortes de cabelo. Tu andaste na porra de
Stanford e, coitadinha, perdeste a bolsa de estudos, mas não te dês ares de que
és a porta-voz da porra dos noventa e nove por cento. Ninguém te está a fechar
portas na cara, Jule. E também ninguém usa casacos de pele porque, hello, isso
nem sequer é ético. Quer dizer, talvez a avó de alguém usasse, mas não uma
pessoa normal. E eu nunca disse nada sobre os teus dentes. Fogo. Precisas de
aprender a relaxar e a comportares-te como um ser humano se queres ter
amigos de verdade e não só pessoas que te toleram.
Nem uma nem a outra disseram mais uma palavra durante o resto da viagem.
Estacionaram e Jule pegou na sua mochila. Tirou as luvas do bolso das calças
de ganga e enfiou-as. – Vamos deixar os nossos telemóveis na mala do carro –
disse.
Brooke olhou para ela por um longo minuto. – OK, tudo bem. Estamos numa
de natureza – disse, a arrastar as palavras. Fecharam os telemóveis e Jule meteu
as chaves do carro no bolso. Olharam para a tabuleta na entrada do parque de
estacionamento. Os trilhos de caminhadas estavam assinalados em várias cores.
– Vamos até ao miradouro – disse Jule, apontando para o trilho assinalado a
azul. – Já lá estive.
– Tanto faz – disse Brooke.
Era uma caminhada de ida e volta de seis quilómetros e meio. O parque
estava quase vazio por causa do frio e de ser a época de Natal, mas algumas
famílias estavam a ir-se embora com a aproximação do fim do dia. Havia
crianças cansadas a queixarem-se ou a serem levadas ao colo. Quando Brooke
e Jule começaram a subir a colina, o caminho já estava vazio.
Jule sentiu acelerar a pulsação. Ia à frente.
– Tu tens um fraquinho pela Imogen – disse Brooke, quebrando o silêncio. –
Não penses que isso te torna especial. Toda a gente tem um fraquinho pela
Imogen.
– Ela é a minha melhor amiga. Não é o mesmo que ter um fraquinho – disse
Jule.
– Ela não é a melhor amiga de ninguém. É uma quebra-corações.
– Não digas mal dela. Só estás furiosa por não te ter mandado uma
mensagem.
– Ela mandou-me uma mensagem. A questão não é essa – disse Brooke. –
Ouve. Quando nos tornámos amigas no primeiro ano da faculdade, a Immie
andava sempre no meu quarto na residência: de manhã, a trazer-me um latte
antes das aulas; a arrastar-me para ir ver filmes no departamento de cinema; a
querer pedir brincos emprestados; a trazer-me bolachas de água e sal Goldfish
porque sabia que eu gostava delas.
Jule não disse nada.
Immie arrastara-a para filmes. Immie comprara-lhe chocolates. Immie trazia-
lhe café à cama, quando viviam juntas.
Brooke continuou: – Passava por lá todas as terças e quintas, porque
tínhamos uma aula de Italiano de manhã cedo. E ao princípio eu nem sequer
estava acordada. Ela tinha de esperar enquanto eu me vestia. A minha colega de
quarto começou a implicar por a Immie ir lá tão cedo, por isso eu comecei a
ligar o alarme no telemóvel. Levantava-me e já estava à porta antes de a Immie
chegar.
«E depois, um dia, ela não veio. Foi no princípio de novembro, acho eu. E
sabes que mais? Nunca mais veio depois disso. Nunca mais me comprou um
latte nem me arrastou para o cinema. Tinha passado para a Vivian Abromowitz.
E sabes que mais? Eu podia ter feito uma cena de miúda da secundária quanto a
isso, Jule. Podia ter ficado toda amuada e agido tipo, ooh, pobre de mim,
porque não podes ter duas melhores amigas e uá, uá, uá. Mas não o fiz. Fui
simpática com as duas. E ficámos todas amigas. E ficou tudo bem.»
– OK.
Jule detestava aquela história. Detestava, também, o facto de não ter
compreendido antes que a razão por que Vivian e Brooke não gostavam uma da
outra era a própria Imogen.
Brooke prosseguiu: – O que estou a dizer é que a Imogen quebrou o
coraçãozinho da Vivian também. Mais tarde. E o do Isaac Tupperman. Deu
esperanças a uma data de tipos diferentes quando andava com o Isaac e o Isaac,
claro, ficou todo cheio de ciúmes e inseguro. Depois a Immie ficou
surpreendida quando ele acabou com ela. Mas do que é que estava à espera,
quando se envolvia com outros tipos? Queria ver se as pessoas perdiam a calma
e ficavam todas obcecadas com ela. E sabes que mais? Isso foi exatamente o
que tu fizeste e exatamente o que uma data de pessoas fez na faculdade. É uma
coisa de que a Imogen gosta, porque a faz sentir espantosa e sexy, mas depois
já não podem continuar amigas. A outra maneira de lidar com a situação é
provares que és superior a isso. A Imogen sabe que tu és tão forte como ela ou
talvez até mais forte. E então respeita-te e continuam a dar-se.
Jule mantinha-se em silêncio. Esta era uma nova versão da história de Isaac
Tupperman, o Isaac do Bronx, de Coates e Tony Morrison, dos poemas
deixados na bicicleta de Imogen, da possível gravidez. Immie não o olhara com
admiração? Ficara embeiçada e a seguir desiludida – mas só depois de ele a
deixar. Não parecia possível que ela o tivesse traído.
Mas então, de repente, parecia de facto possível. Parecia óbvio a Jule agora
que Imogen – que se sentira oca e inferior ao lado do intelecto e da
masculinidade de Tupperman – se tivesse feito sentir mais forte e mais
poderosa do que ele traindo-o.
Continuaram a andar pela floresta. O sol começava a pôr-se.
Não havia mais ninguém no caminho.
– Se queres ser como a Immie, então sê como ela. Tudo bem – disse Brooke.
Tinham chegado a um passadiço sobre uma ravina. Conduzia a uns degraus de
madeira que davam acesso a uma torre de onde se via o vale lá no fundo e as
colinas à volta. – Mas tu não és a Imogen, compreendes?
– Eu sei que não sou a Imogen.
– Não tenho a certeza se sabes – disse Brooke.
– Nada disso é da tua conta.
– Talvez eu o tenha tornado da minha conta. Talvez pense que és instável e
que o melhor seria que te afastasses da Immie e procurasses ajuda para os teus
problemas mentais.
– Diz-me uma coisa. Porque é que estamos aqui? – perguntou Jule.
Encontrava-se nos degraus acima de Brooke.
Abaixo delas estava a ravina.
O sol já quase se tinha posto.
– Porque é que estamos aqui, perguntei – disse Jule. Disse-o num tom ligeiro,
tirando a mochila dos ombros e abrindo-a como se para ir buscar a garrafa de
água.
– Vamos ter uma conversa sobre o assunto, como tu disseste. Quero que
pares de te meter na vida da Immie, de viver do fundo fiduciário dela, de a
levar a ignorar os amigos e de fazer o que mais estejas a fazer.
– Perguntei-te porque estamos aqui – disse Jule, debruçada sobre a mochila.
Brooke encolheu os ombros. – Aqui exatamente? Neste parque? Tu
trouxeste-nos cá.
– Correto.
Jule levantou o saco que continha a estatueta do leão do Museu de Arte
Asiática. Balouçou-a uma vez, com força, acertando na testa de Brooke com
um estalido horrendo.
A estatueta não se partiu.
A cabeça de Brooke projetou-se para trás. Ela cambaleou no passadiço de
madeira.
Jule avançou um passo e atingiu-a de novo. Desta vez de lado. Começou a
esguichar sangue da cabeça de Brooke. Salpicou o rosto de Jule.
Brooke tombou contra o gradeamento, as mãos a agarrarem os varões de
madeira.
Jule deixou cair a estatueta e baixou-se para Brooke. Agarrou-a pelos
joelhos. Brooke esperneou e atingiu Jule no ombro, a tentar voltar a agarrar-se
ao gradeamento. O pontapé foi forte e o ombro de Jule deslocou-se com um
choque de dor.
Merda.
Jule viu tudo branco por um minuto. Largou Brooke e, com o braço esquerdo
a pender, enganchou o direito e enfiou-o por baixo dos antebraços de Brooke,
obrigando-a a largar o gradeamento. A seguir, inclinou-se e voltou a baixar-se.
Prendeu as pernas de Brooke, que se debatia no chão, agarrou-as com força,
meteu o ombro são por baixo do corpo de Brooke, ergueu-a e atirou-a para a
ravina.
Tudo ficou em silêncio.
O sedoso cabelo louro de Brooke caiu a pique.
Ouviu-se um baque surdo quando o corpo dela bateu contra os topos das
árvores e outro quando aterrou no fundo da ravina rochosa.
Jule debruçou-se do gradeamento. O corpo estava invisível por baixo da
vegetação.
Olhou à sua volta. Ainda ninguém no caminho.
O seu ombro estava deslocado. Doía-lhe tanto que não conseguia pensar
bem.
Não contara com um ferimento. Se não conseguisse mexer o seu braço
deslocado, fracassaria, porque Brooke estava morta e o sangue dela estava por
toda a parte e Jule tinha de mudar de roupa. Imediatamente.
Forçou-se a acalmar a respiração. Forçou-se a focar os olhos.
Segurando o pulso esquerdo com o direito, ergueu o braço esquerdo num
movimento a afastá-lo do corpo. Uma, duas vezes – meu Deus, como doía –
mas à terceira tentativa o ombro esquerdo voltou ao seu lugar.
A dor desapareceu.
Jule vira um tipo fazer aquilo uma vez, num ginásio de artes marciais.
Fizera-lhe perguntas sobre essa técnica.
Ora bem, então. Olhou para a sua camisola. Estava salpicada com sangue.
Tirou-a. A T-shirt que trazia por baixo também estava húmida. Despiu-a e usou
uma ponta limpa para limpar as mãos e o rosto. Tirou as luvas. Pegou nos
toalhetes de bebé que trazia na mochila e limpou-se – o peito, os braços, o
pescoço, as mãos – a tremer ao ar frio de inverno. Enfiou as roupas e os
toalhetes ensanguentados no saco preto do lixo, atou-o para o fechar e enfiou
tudo na mochila.
Vestiu a T-shirt limpa e a camisola limpa.
Havia sangue no saco onde trazia a estatueta.
Jule tirou a estatueta do saco e virou-o do avesso de modo a que o sangue
ficasse no seu interior. Meteu a estatueta na mochila e enfiou o saco sujo na sua
garrafa de água de bocal largo.
Limpou os salpicos de sangue do passadiço com toalhetes e depois enfiou
todo o lixo na garrafa de água.
Olhou à sua volta.
O caminho estava vazio.
Jule tocou a medo no ombro. Estava bem. Limpou o rosto, as orelhas e o
cabelo quatro vezes mais com toalhetes, a desejar ter-se lembrado de trazer um
espelhinho de bolso. Olhou por cima da ponte, para a ravina.
Não conseguia ver Brooke.
Percorreu o caminho de volta pelo trilho. Sentia que poderia caminhar para
sempre e nunca ficar cansada. Não viu ninguém no caminho até perto da
entrada, onde passou por quatro tipos de ar desportivo com gorros à Pai Natal e
lanternas elétricas, a começarem a subir o trilho assinalado a amarelo.
Junto ao carro, Jule parou.
O carro devia ficar ali. Se o levasse para qualquer outro lugar, não faria
sentido quando o corpo de Brooke fosse encontrado na ravina.
Cuidadosamente, entrou no carro. Tirou os toalhetes da mochila e começou a
limpar o travão de mão, mas parou.
Não, não. Era um plano errado. Porque não pensara bem nisso antes?
Pareceria suspeito se não houvesse nenhumas impressões digitais no carro. As
impressões digitais de Brooke deviam estar ali. Pareceria estranho, agora que o
travão estava limpo.
Pensa, pensa. A garrafa de vodca encontrava-se no chão junto ao lugar do
passageiro. Jule pegou nela com um toalhete e abriu a tampa. A seguir, verteu
um pouco de vodca em cima do travão de mão, como se se tivesse derramado
acidentalmente. Talvez isso fizesse com que parecesse normal não haver
impressões digitais nele. Não fazia ideia se os investigadores do local do crime
prestavam atenção a esse tipo de coisa. Não sabia o que investigavam, na
verdade.
Com um raio.
Saiu do carro. Forçou-se a pensar logicamente. As suas impressões digitais
não constavam de nenhum registo. Não tinha cadastro. A polícia poderia
descobrir que outra pessoa conduzira o carro, se investigasse – mas não saberia
que fora Jule.
Não havia nenhum indício de que alguém chamado Jule West Williams
alguma vez vivera na cidade de São Francisco ou a visitara.
Abriu a mala do carro e tirou dela o telemóvel de Brooke, assim como o seu.
A seguir, ainda a tremer, trancou as portas do carro e afastou-se.
Estava uma noite fria. Jule caminhava rapidamente para se manter quente. A
um quilómetro e meio a pé do parque já se sentia mais calma. Deitou a garrafa
da água num caixote do lixo na berma da estrada. Mais abaixo, atirou as roupas
ensanguentadas no seu saco de plástico preto para o fundo de um contentor do
lixo.
A seguir continuou a andar.
A ponte Golden Gate estava incandescente contra o céu noturno. Jule era
pequena por baixo dela, mas sentia-se como se um foco lá em cima estivesse a
incidir em si. Atirou as chaves do carro e o telemóvel de Brooke pelo lado da
ponte para a água.
A sua vida era cinemática. Tinha um aspeto soberbo à luz dos candeeiros.
Depois da luta, as suas faces estavam coradas. Começavam a formar-se
equimoses por baixo da roupa, mas o seu cabelo parecia excelente. E oh, as
roupas caíam-lhe tão bem. Sim, era verdade que ela era criminosamente
violenta. Brutal, até. Mas esse era o seu trabalho, e Jule era singularmente
qualificada para ele, portanto era sexy.
A lua estava em quarto crescente e o vento, cortante. Jule sugava grandes
golfadas de ar e respirava o glamour e a dor e a beleza da vida do herói de
ação.
De volta ao apartamento, tirou a estatueta do leão da mochila e verteu lixívia
sobre ela. A seguir, lavou-a no chuveiro, secou-a e colocou-a na prateleira por
cima do fogão de sala.
Imogen teria gostado daquela estatueta. Adorava felinos.
Jule comprou um bilhete de avião para Londres com partida de Portland, no
Oregon, no nome de Imogen. A seguir, apanhou um táxi para a estação dos
autocarros.
Ao chegar, apercebeu-se de que acabara de perder o autocarro das nove da
noite. O autocarro seguinte só partiria às sete da manhã.
Quando Jule se instalou para esperar, a adrenalina das últimas horas começou
a esvair-se. Comprou três embalagens de M&Ms numa máquina e sentou-se em
cima da sua bagagem. De repente, sentia-se exausta e com medo.
Só estava mais um par de pessoas na sala de espera, a usar a estação como
abrigo noturno. Jule chupou os M&Ms para os fazer durar. Tentou ler, mas não
conseguia concentrar-se. Ao fim de vinte e cinco minutos, um bêbedo que
estava a dormir num banco acordou e começou a cantar alto:
*
Jule sabia que se tinha tresmalhado como o caraças. Matara uma rapariga
estúpida e linguaruda com uma premeditação brutal. Nunca haveria um
salvador que pudesse salvá-la do que quer que a tinha levado a fazer aquilo.
Nunca tivera um salvador.
Era isso. Não havia como voltar atrás. Encontrava-se sozinha numa estação
de autocarros gélida, em 23 de dezembro, a ouvir um tipo bêbedo e a raspar os
últimos vestígios do sangue de alguém de debaixo das unhas com a ponta do
seu bilhete de autocarro. Outras pessoas, pessoas boas, estavam a fazer
bolachas de gengibre, a comer rebuçados de hortelã-pimenta e a atar laços em
presentes de Natal. Estavam a discutir e a decorar a casa e a levantar a mesa
depois de grandes refeições, toldadas com o vinho quente com especiarias, a
verem filmes antigos inspiradores.
Jule estava aqui. Merecia o frio, a solidão, os bêbedos e o lixo, mil punições
e torturas piores.
O relógio deu uma volta completa. Chegou a meia-noite e o dia tornou-se
oficialmente Véspera de Natal. Jule comprou um chocolate quente na máquina.
Bebeu-o e sentiu-se mais quente. Apresentou argumentos a si mesma para se
livrar do desespero. Ao fim e ao cabo, era corajosa, esperta e forte. Cometera o
ato com uma eficiência incrível. Com estilo, até. Cometera um homicídio com
o raio de uma estatueta de um gatinho num belo parque estatal acima de uma
ravina maciça e cénica. Não houvera uma só testemunha. Não deixara sangue
em lado nenhum.
Matara Brooke para se proteger.
As pessoas necessitavam de se protegerem. Era da natureza humana, e Jule
passara anos a treinar-se para se tornar especialmente boa nisso. Os
acontecimentos desse dia eram prova de que ela era ainda mais capaz do que
esperara. Era fenomenal, de facto – uma mutante lutadora, uma supercriatura.
O Wolverine, com um raio, não parava para chorar a morte das pessoas que as
suas garras dilaceravam. Andava sempre a matar pessoas para se defender ou
por uma causa meritória. O mesmo no caso de Bourne, Bond e os outros todos.
Os heróis não desejavam bolachas de gengibre, presentes e rebuçados de
hortelã-pimenta. Jule também não desejaria tais coisas. Nunca as tivera, de
qualquer maneira. Não havia nada por que se lamentar.
*
Jule não respondeu. Nada que pudesse dizer importaria se Brooke estava
decidida a causar problemas.
11
N ove semanas antes de Brooke vir jantar, Jule foi de avião de Porto Rico
para São Francisco e instalou-se no hotel Sir Francis Drake em Nob Hill.
Aquele lugar era só veludo vermelho, lustres e floreados rococó. Os tetos eram
de estuque. Jule usou o cartão de crédito e o documento de identificação com
uma fotografia de Imogen. O rececionista não questionou nada e chamou-lhe
Ms. Sokoloff.
Jule tinha uma suite no último andar. No quarto havia cadeirões de pele com
tachas e uma cómoda com um debruado dourado. Ela começou a sentir-se
melhor assim que a viu.
Tomou um duche demorado e lavou o suor da viagem e as recordações de
Porto Rico da sua pele. Esfregou com força com a esponja e pôs champô duas
vezes. Vestiu um pijama que nunca tinha usado e dormiu até a dor que lhe
subia pelo pescoço desaparecer finalmente.
Jule passou uma semana naquele hotel. Sentia-se como se estivesse num ovo.
A casca cintilante e dura do hotel protegia-a quando estava a necessitar de
proteção.
No final da semana, viu uma lista de casas para arrendar, enviou alguns e-
mails e foi ver o apartamento de São Francisco. Maddie Chung fez-lhe a visita
guiada. A casa era mobilada, mas não tinha o tipo de mobiliário simples que
poderia esperar-se de um apartamento de arrendamento. Estava cheio de
pequenas esculturas pouco usuais e de coleções bonitas em frascos de vidro:
botões, berlindes e pedras de fantasia expostos em prateleiras de modo a que a
luz incidisse neles. A cozinha tinha armários vermelhos e soalho de madeira.
Havia pratos de vidro e tachos e panelas de ferro pesado.
Entregando-lhe a chave, Maddie explicou que tivera um inquilino durante
mais de dez anos, um cavalheiro solteiro que morrera sem deixar parentes. –
Não havia ninguém a quem comunicar a morte dele. Ninguém para vir buscar
as coisas dele – disse ela. – E tinha um gosto tão bonito e tinha tomado conta
de tudo tão bem. Pensei: «Vou arrendar o apartamento mobilado, para férias.
Assim, as pessoas podem apreciá-lo.» – Tocou num frasco com berlindes. –
Nenhuma loja de caridade quer estas coisas.
– Porque é que ele não tinha ninguém? – perguntou Jule.
– Não sei. Era mais ou menos da minha idade quando morreu. Cancro da
garganta. Não tinha parentes que eu conseguisse descobrir. Nem dinheiro.
Talvez tenha mudado de nome ou estivesse zangado com a família. Acontece. –
Encolheu os ombros. Estavam agora à porta. – Vai mandar homens de
mudanças? – perguntou Maddie. – Pergunto porque gosto de estar em casa se a
porta do prédio for ficar aberta o dia todo, mas não deve ser problema
combinarmos isso.
Jule abanou a cabeça. – Só tenho uma mala.
Maddie olhou-a com bondade e sorriu. – Sinta-se à vontade, Imogen. Espero
que seja feliz aqui.
Olá, mãe e pai,
Parti de Martha’s Vineyard há pouco mais de uma semana e agora ando em viagem.
Não sei bem para onde irei! Talvez para Mumbai ou Paris ou o Cairo.
A vida na ilha era tranquila e, tipo, isolada do resto do mundo. Tudo se movia a um
ritmo lento. Lamento realmente não me ter mantido em contacto. Só preciso de descobrir
quem sou sem os estudos, a família ou qualquer outra coisa a definir-me. Isso faz
sentido?
Por favor não se preocupem comigo. Vou viajar em segurança e olhar bem por mim
mesma.
Muitos beijinhos,
Imogen
Este e-mail é difícil de escrever, mas tenho de te dizer: não vou voltar. A renda está
paga até ao fim de setembro, portanto, desde que saias antes de 1 de outubro, está tudo
bem.
Não quero voltar a ver-te. Vou-me embora. Bem, ah. Já me vim embora.
Mereço alguém que não me olhe de alto. Admite, é o que tu fazes. Porque és um
homem e eu sou uma mulher. Porque sou mais pequena do que tu. Porque sou adotada e
tu não gostas de o dizer, mas dás valor às origens. Pensas que és superior porque eu
desisti de estudar e tu não. E pensas que escrever um romance é mais importante do que
qualquer coisa que eu gosto de fazer ou quero fazer com a minha vida.
A verdade, Forrest, é que sou eu que tenho o poder. Tinha a casa. E o carro. Pagava as
contas. Sou uma adulta, Forrest. Tu não passas de um rapazinho dependente que se acha
com todos os direitos.
IS: Acabei com o Forrest. Este gato triste listrado talvez seja como ele se sente
IS: O cor de laranja peludo é como me sinto. (Tão aliviada.)
Brooke respondeu.
Nos dias seguintes, Jule preparou-se para viver como pensava que Immie
viveria. Numa manhã, bateu à porta de Maddie Chung com um latte do café ao
fundo do quarteirão. – Achei que talvez estivesse a precisar de um café.
O rosto de Maddie iluminou-se. Jule foi convidada a entrar e conheceu a
mulher da sua senhoria, uma mulher grisalha e bem vestida, que saía de casa
nesse momento para «ir dirigir uma corporação», como disse Maddie. Jule
perguntou se podia ir ver a livraria, e a senhoria levou-a lá num Volvo.
A loja de Maddie era pequena e desarrumada, mas confortável. Vendia uma
mistura de livros novos e usados. Jule comprou dois romances vitorianos de
autores que não tinha a certeza se Immie alguma vez lera: Gaskell e Hardy.
Maddie recomendou O Coração das Trevas e Dr. Jekyll e Mr. Hyde, além de
um livro da autoria de um tipo chamado Goffman intitulado The Presentation
of Self in Everyday Life.2 Jule comprou esses também.
Noutros dias, Jule foi ver exposições que Maddie sugerira. Pensando em
Imogen, abrandava o passo e deixava a mente vaguear.
Immie não teria prestado muita atenção em nenhum museu. Não teria tentado
aprender história de arte e memorizar datas.
Não. Immie teria atravessado preguiçosamente as salas, a deixar que o
espaço ditasse o seu estado de espírito. Teria parado para apreciar beleza, para
existir sem se esforçar.
Tanto de Immie estava agora em Jule. Isso era uma consolação.
2 A Apresentação do Eu na Vida Quotidiana. Livro de Ervin Goffman não traduzido em Portugal. (N. da
T.)
10
D uas semanas e meia antes de partir para São Francisco, Jule estava sentada
ao lado de Imogen no banco traseiro de um táxi, um jipe aos solavancos
na estrada do aeroporto de Culebra. Immie tinha feito a reserva no resort.
– Vim aqui com a família da minha amiga Bitsy Cohan quando tínhamos
doze anos – disse Immie, apontando para a ilha à volta delas. – A Bitsy estava
com a boca fechada com um arame nos maxilares, depois de um acidente de
bicicleta. Lembro-me que só bebia daiquiris virgens todo o dia. Não comia
nada. Numa manhã, fomos de barco para uma ilha minúscula chamada
Culebrita. Tinha rochas vulcânicas pretas como nada que eu alguma vez tivesse
visto. E fizemos mergulho, mas os maxilares da Bitsy causavam-lhe problemas,
por isso ela estava muito rabugenta.
– Tiveram de me pôr um arame nos maxilares uma vez – disse Jule. Era
verdade, mas, assim que as palavras lhe saíram da boca, desejou não ter falado.
Não era uma história divertida.
– O que aconteceu? Caíste de uma moto que pertencia a um dos teus
namorados de Stanford? Ou o treinador malvado da tua equipa de atletismo
mandou alguém espancar-te?
– Foi uma briga num balneário – mentiu Jule.
– Outra? – Immie parecia ligeiramente dececionada.
– Bem, estávamos nuas – disse Jule, para a divertir.
– Não posso!
– Depois dos treinos, no último ano do secundário. Uma batalha nua e crua,
no chuveiro, três contra uma.
– Como um filme pornográfico passado na prisão.
– Não tão sexy. Partiram-me o raio do maxilar.
– Cavalos – disse o taxista, apontando, e lá estavam eles. Um grupo de três
cavalos selvagens amorosos, com o pelo desgrenhado, estava parado no meio
da estrada. O taxista buzinou.
– Não lhes buzine! – disse Imogen.
– Eles não se deixam assustar – disse o taxista. – Olhe. – Voltou a buzinar e
os cavalos afastaram-se lentamente do caminho, só ligeiramente irritados.
– Gostas mais de animais do que de pessoas – disse Jule.
– As pessoas são umas parvalhonas, como a história que acabaste de contar
prova completamente. – Imogen tirou uma embalagem de lenços de papel do
seu saco e usou um para limpar a testa. – Quando é que alguma vez viste um
cavalo a ser parvalhão? Ou uma vaca? Nunca são.
O taxista falou lá da frente. – As cobras são umas parvalhonas.
– Não são nada – disse Immie. – As cobras estão a tentar sobreviver como
todos os outros seres.
– Não as que mordem – disse ele. – São más como tudo.
– As cobras mordem quando estão com medo – disse Immie, inclinando-se
para a frente no assento traseiro. – Mordem se precisarem de se proteger.
– Ou se precisarem de comer – disse o taxista. – Provavelmente, mordem
alguma coisa uma vez por dia. Detesto cobras.
– É muito mais agradável para um rato morrer de uma mordida de cascavel
do que, por exemplo, ser apanhado por um gato. Os gatos brincam com as suas
presas – disse Immie. – Dão-lhes patadas, deixam-nas escapar e depois
apanham-nas outra vez.
– Os gatos são uns parvalhões, então – disse o taxista.
Jule riu-se.
Pararam em frente ao hotel. Immie pagou ao motorista com dólares
americanos. – Mantenho a minha defesa das cobras – disse Imogen. – Gosto
delas. Obrigada pela viagem.
O taxista tirou as malas delas da mala do carro e arrancou.
– Não ias gostar de uma cobra se te aparecesse uma pela frente – disse Jule.
– Sim, gostava. Adorava a cobra e fazia dela um animal de estimação.
Enrolava-a à volta do pescoço como uma joia.
– Uma cobra venenosa?
– Claro. Estou aqui contigo, não estou? – Imogen passou o braço à volta do
corpo de Jule. – Vou-te dar a comer uns ratos deliciosos e outros tipos de
petiscos para cobras, e deixo-te descansar em cima dos meus ombros. De vez
em quando, quando for absolutamente necessário, podes espremer os meus
inimigos até à morte, toda nua. OK?
– As cobras estão sempre nuas – disse Jule.
– Tu és uma cobra especial. Na maior parte do tempo vais usar roupas.
Immie entrou à frente no átrio do hotel, a puxar as suas duas malas atrás de
si.
O hotel era sofisticado, de uma forma turística, muito azul-turquesa. Havia
plantas verdes e flores de cores vivas por toda a parte. Jule e Imogen tinham
quartos um ao lado do outro. Havia duas piscinas e uma praia que se estendia
num longo arco branco, com uma doca no outro extremo. A ementa era toda
peixe e frutos tropicais.
Depois de desfazerem as malas, encontraram-se para jantar. Immie tinha um
ar fresco e parecia grata por estar a comer uma refeição tão maravilhosa. Não
aparentava nenhum sinal de mágoa ou culpa. Só existia.
Mais tarde, desceram a estrada até um lugar que aparecia descrito na Internet
como um bar de americanos estrangeiros residentes na ilha. O balcão era a toda
a volta, com o empregado no centro. Sentaram-se em bancos de vime. Immie
mandou vir Kahlúa com natas e Jule uma Coca-Cola de dieta com xarope de
baunilha. As pessoas eram conversadoras. Imogen meteu conversa com um
tipo branco de idade com uma camisa havaiana. Ele disse-lhes que vivia em
Culebra há vinte e dois anos.
– Tinha um pequeno negócio de marijuana – disse o tipo. – Cultivava-a numa
despensa com luzes e depois vendia-a. Era em Portland. Não se pensaria que
alguém lá se importasse. Mas a bófia meteu-me dentro e quando saí sob fiança
apanhei um avião para Miami. Daí fui de barco para Porto Rico e depois
apanhei o ferry para cá. – Fez um gesto ao empregado do balcão, a pedir outra
cerveja.
– É foragido da justiça? – perguntou Immie.
Ele resfolegou. – Pensa na coisa desta maneira: não acreditava que o que
tinha feito devia considerar-se crime, e portanto eu não merecia as
consequências que estavam para vir Mudei-me. Não ando fugido. Toda a gente
aqui me conhece. Só não sabem o nome no meu passaporte, é tudo.
– E que nome é? – perguntou Jule.
– Não te vou dizer. – Riu-se. – Assim como não lhes digo a eles. Ninguém se
incomoda com coisas desse género aqui.
– O que faz para ganhar a vida? – perguntou Jule.
– Há muitos americanos e porto-riquenhos ricos que têm casas de férias aqui.
Olho pelas casas deles. Pagam-me a dinheiro. Segurança, organizar reparações,
esse tipo de coisa.
– E a sua família? – perguntou Immie.
– Não tenho muita. Tenho uma namorada aqui. O meu irmão sabe onde
estou. Já me veio visitar uma ou duas vezes.
Imogen franziu a testa. – Quer voltar um dia?
O homem abanou a cabeça. – Nunca penso nisso. Quando se fica longe o
tempo suficiente, deixa de parecer haver grande coisa para que voltar.
Passaram os três dias seguintes sentadas junto à enorme piscina curva,
rodeadas por guarda-sóis e espreguiçadeiras azuis-turquesas. Jule estava
enroscada à volta do pescoço de Imogen. Liam. Imogen via vídeos no YouTube
sobre técnicas de culinária. Jule fazia exercício na sala dos pesos. Imogen fazia
tratamentos de spa. Nadavam e caminhavam na praia.
Imogen bebia muito. Pedia aos empregados para lhe trazerem margaritas à
beira da piscina. Mas não parecia triste. A sensação mágica da sua fuga inicial
de Martha’s Vineyard entretecia-se nos dias. Tanto quanto Jule adivinhava,
eram triunfantes. Esta era a vida que Imogen descrevera que queria, livre de
ambição e expetativas, sem ninguém a quem agradar e ninguém a quem
dececionar. As duas simplesmente existiam, e os dias eram lentos e sabiam a
coco.
Já tarde na quarta noite, Jule e Immie estavam sentadas com os pés no
jacuzzi exterior, como em tantas noites na casa de Immie em Martha’s
Vineyard.
– Talvez eu devesse voltar para Nova Iorque – disse Imogen pensativamente.
– Devia ir ver os meus pais. – Tinham jantado há algum tempo. Ela tinha uma
margarita num copo de plástico com uma tampa e uma palhinha.
– Não, não vás – disse Jule. – Fica aqui comigo.
– Aquele tipo no bar na outra noite? Disse que quanto mais tempo se ficar,
menos há para que voltar. – Imogen pôs-se de pé, então, e despiu a T-shirt e os
calções. Por baixo trazia um fato de banho de um cinzento metalizado com um
aro dourado no peito e um decote fundo. Mergulhou o corpo lentamente no
jacuzzi. – Não quero que não reste nada. Com a minha mãe e o meu pai. Mas
também detesto estar lá. Eles simplesmente... eles fazem-me sentir tão triste.
Na última vez em que fui a casa, contei-te isto? Sobre as férias de inverno?
– Não.
– Saí da faculdade e sentia-me muito contente por me afastar. Tinha
chumbado a Ciências Políticas. A Brooke e a Vivian andavam a discutir todo o
tempo. O Isaac tinha-me deixado. E quando voltei para casa o meu pai estava
muito mais doente do que eu esperava. A minha mãe estava em lágrimas o
tempo todo. O meu estúpido receio de estar grávida e o drama das amizades e
os problemas com o namorado e as más notas... era tudo demasiado trivial para
mencionar sequer. O meu pai estava todo mirradinho, a respirar com a ajuda da
botija de oxigénio. A mesa da cozinha estava coberta de frascos de remédios.
Um dia, ele agarrou-me o braço e segredou: «Traz ao teu velhote um babka.»
– O que é um babka?
– Nunca comeste? É um bolo, um caracol de canela delicioso como tudo.
– Trouxeste-lho?
– Saí e comprei seis babkas e dei-lhe um todos os dias até acabarem as férias.
Deu-me algo para fazer por ele, quando não havia nada para fazer... Depois, na
manhã em que me vim embora, quando a minha mãe me estava a levar de carro
a Vassar, atacou-me uma sensação de pavor. Não queria ver a Vivian. Ou a
Brooke. Ou o Isaac. A faculdade parecia não fazer sentido nenhum, como uma
escola para meninas da sociedade onde ia aprender a ser o tipo de filha que a
minha mãe queria que eu fosse. Ou o tipo de rapariga que o Isaac queria que eu
fosse. Mas não o que eu queria ser, de modo nenhum. Assim que a minha mãe
se foi embora, chamei um táxi e fui para Martha’s Vineyard.
– Porquê para lá?
– Para escapar. Tínhamos estado lá de férias quando eu era pequena. Ao fim
do primeiro par de dias, deixei o telemóvel ficar sem bateria. Não queria
atender ninguém. Sei que isso deve soar egoísta, mas tinha de fazer algo
radical. Com o meu pai assim tão doente, não tinha falado com ninguém sobre
os meus problemas. A única maneira como poderia resolver as minhas questões
era tentar ver como era a vida afastada de tudo. Sem todas aquelas outras
pessoas a quererem coisas de mim, a sentirem-se dececionadas comigo. E
depois fui ficando. Estava a viver no hotel há um mês quando me
consciencializei de que não ia voltar. Enviei um e-mail aos meus pais a dizer
que estava bem, e arrendei a casa.
– Como é que eles reagiram?
– Com uma centena de biliões de e-mails e mensagens. «Por favor volta para
casa, só por um par de dias. Nós pagamos o voo.» «O teu pai quer saber porque
não lhe retribuis as chamadas.» Esse tipo de coisa. A diálise do meu pai não
lhes permitia virem a Martha’s Vineyard, mas andavam literalmente a assediar-
me. – Immie suspirou. – Bloqueei-os. Parei de pensar neles. Parecia magia,
simplesmente desligar aqueles pensamentos. Ser capaz de não pensar neles
salvou-me, de algum modo. Talvez eu fosse uma pessoa terrível, mas foi tão
bom, Jule, deixar de me sentir culpada.
– Não acho que sejas uma pessoa terrível – disse Jule. – Querias mudar a tua
vida. Tinhas de fazer algo radical para te tornares a pessoa em que estás a
tornar-te.
– Exatamente. – Immie tocou o joelho de Jule com a mão molhada. – Ora
bem, e tu? – Era o padrão usual de Imogen, falar numa longa divagação até ter
explorado completamente uma ideia, e depois, cansada, fazer uma pergunta.
– Não vou voltar – disse Jule. – Nunca mais.
– É assim tão mau, lá em casa? – perguntou Immie, a olhar atentamente para
o rosto de Jule.
Jule pensou então, por um segundo cheio de esperança, que alguém poderia
amá-la e ela poderia amar-se a si mesma e merecer tudo. Immie compreenderia
o que Jule dissesse naquele momento. Tudo, fosse o que fosse.
– Nós somos iguais – aventurou-se a dizer. – Não quero ser a pessoa que era,
quando estava a crescer. Quero ser o eu que está aqui, agora. Contigo. – Era
uma declaração tão verdadeira quanto sabia fazer.
Immie inclinou-se e beijou-lhe a face. – As famílias são lixadas, em todo o
mundo.
As palavras de Jule jorraram-lhe da boca. – Nós somos a família uma da
outra agora. Eu sou a tua e tu podes ser a minha.
Esperou. Olhou para Immie.
Imogen deveria dizer que eram como irmãs.
Imogen deveria dizer que eram amigas para toda a vida e que sim, eram
família.
Tinham acabado de falar tão intimamente, e Imogen deveria prometer que
nunca deixaria Jule como acabara de deixar Forrest, como deixara a mãe e o
pai.
Em vez disso, Imogen sorriu afavelmente. A seguir, saiu do jacuzzi e dirigiu-
se para a piscina com aquele fato de banho de um cinzento metalizado. Sorriu
ao grupo de rapazes adolescentes que andavam na brincadeira na parte menos
funda da piscina. Rapazes americanos.
– Ei, rapazes. Um de vocês quer ir-me buscar um pacote de batatas fritas ou
de pretzels ao bar lá dentro? – disse Immie. – Tenho os pés molhados. Não
quero levar água lá para dentro.
Os rapazes estavam mais molhados do que ela, mas um deles saltou para fora
da piscina e limpou-se a uma toalha. Era magricela e tinha borbulhas, mas tinha
dentes bons e o tipo de corpo comprido e estreito que agradava a Immie. – Ao
teu serviço – disse ele, com uma vénia tonta.
– És um príncipe entre homens.
– Estão a ver? – disse o rapaz aos seus amigos na piscina. – Sou um príncipe.
Porque é que Immie tinha de tentar encantar toda a gente? Eles eram só um
bando de rapazes, com pouco a oferecer. Mas Immie fazia este tipo de coisa
sempre que as situações se tornavam intensas. Virava-se e fazia incidir a sua
luz em pessoas novas, pessoas que se sentiam com sorte por ela ter reparado
nelas. Fizera-o quando trocara as suas amigas no colégio Greenbriar por outras
amigas que andavam no Dalton. Fizera-o quando deixara o seu pai doente e as
suas amigas do Dalton para ir para Vassar, e quando deixara Vassar para viver
em Martha’s Vineyard. Deixara Forrest e Martha’s Vineyard por Jule, mas Jule
não era uma novidade suficiente, ao que parecia. Immie necessitava de
admiração fresca.
O rapaz trouxe vários pacotes de batatas fritas. Imogen sentou-se numa
espreguiçadeira, a comer e a fazer-lhe perguntas.
De onde eram? – Do Maine.
Que idade tinham? – A suficiente. Ah, ah.
Não, a sério, que idade? – Dezasseis.
O riso de Imogen ecoou por toda a piscina. – Bebés!
Jule pôs-se de pé e voltou a calçar os ténis. Havia algo naqueles rapazes que
lhe arrepiava a pele. Detestava a maneira como competiam por manter Imogen
entretida, a agitarem a água e a exibirem os músculos na piscina. Ela não
queria pôr-se a falar com um bando de alunos do secundário todos babados. A
Imogen que lhes alimentasse o ego se precisava de o fazer.
Na manhã seguinte, Jule queria alugar um barco e ir a Culebrita. Era a ilha
minúscula com as típicas rochas vulcânicas pretas, uma reserva de vida
selvagem com praias. Immie falara sobre ela no primeiro dia. Podia-se ir de
barco-táxi, mas teria de se esperar para te virem buscar. Era mais agradável ir
pelos seus próprios meios, porque assim podia vir-se embora quando se
quisesse. O rececionista deu a Jule o número de telefone de um tipo com um
barco para alugar.
Immie não via necessidade de irem pelos seus próprios meios quando alguém
poderia fazê-lo por elas. Não via necessidade nenhuma de irem a Culebrita. Já
a visitara. E havia água límpida e brilhante aqui mesmo. E um restaurante. E
duas piscinas aquecidas. Havia pessoas com quem falar.
Mas Jule não conseguia suportar um dia na piscina com aqueles rapazes do
secundário, uns toscos duns exibicionistas. Jule queria ir a Culebrita e ver as
famosas rochas negras e fazer uma caminhada até ao farol.
O tipo do barco disse que se encontrava com elas na doca que se estendia no
outro extremo da praia. Era muito informal. Jule e Immie desceram até lá, e
dois homens jovens porto-riquenhos apareceram em dois pequenos barcos.
Immie pagou em dinheiro. Um dos tipos mostrou a Jule como ligar o motor e
como os remos se encaixavam na beira do barco, só para o caso de precisarem
deles. Havia um número para telefonarem quando já não precisassem do barco.
Immie estava amuada. Disse que os coletes salva-vidas estavam estalados e
que o barco precisava de uma pintura. Mas entrou nele, mesmo assim.
A travessia da baía demorou meia hora. O sol ficou mais quente. A água
estava chocantemente azul.
Em Culebrita, Jule e Imogen saltaram para a água para empurrar o barco para
a praia. Jule escolheu um caminho, e começaram a andar. Immie mantinha-se
em silêncio.
– Para que lado? – perguntou Jule ao chegarem a uma bifurcação no trilho.
– Para o que quiseres.
Viraram à esquerda. A colina era íngreme. Ao fim de quinze minutos, Immie
esfolou a planta do pé numa rocha. Ergueu o pé e pousou-o contra uma árvore
para o examinar.
– Estás bem? – perguntou Jule.
Immie estava a sangrar, mas só ligeiramente. – Tou, ótima.
– Quem me dera que tivéssemos pensos rápidos – disse Jule. – Devia ter
trazido alguns.
– Mas não trouxeste, portanto tudo bem.
– Lamento.
– A culpa não é tua – disse Immie.
– Quero dizer que lamento que te tenha acontecido.
– Deixa para lá – disse Imogen, e continuou a subir a encosta. No cume,
chegaram às rochas pretas.
Eram diferentes do que Jule esperava. Mais belas. Quase assustadoras. Eram
escuras e escorregadias. Fluía água para dentro delas e à sua volta, formando
umas piscinas naturais que pareciam quentes ao sol. Algumas das rochas
estavam cobertas por umas algas verdes e macias.
Não havia mais ninguém por ali.
Immie despiu-se, ficando em fato de banho, e meteu-se na piscina maior sem
uma palavra. Estava bronzeada e trazia um biquini preto com uma fita à volta
do pescoço.
Jule sentiu-se como uma pessoa grossa e masculina de repente. Os músculos
que se esforçava tanto por desenvolver pareciam toscos, e o fato de banho azul-
claro que usara todo o verão, foleiro.
– Está quente? – perguntou, sobre a piscina natural pouco funda.
– Bastante quente – disse Immie. Estava inclinada, a lançar água pelos braços
acima e pela nuca. Jule sentia-se irritada com Immie por ela estar amuada.
Afinal, não era culpa dela que Imogen tivesse esfolado o pé. Jule só era
culpada de dizer que queria alugar um barco e ver Culebrita.
Immie era uma criança mimada que fazia beicinho quando não levava a sua
avante. Era uma das suas limitações. Nunca ninguém dizia que não a Imogen
Sokoloff.
– Vamos até ao farol? – perguntou Jule. Era o ponto mais alto da ilha.
– Podemos ir.
Jule queria que Immie mostrasse entusiasmo. Mas Immie recusava-se a fazê-
lo.
– O teu pé está bem?
– Provavelmente.
– Queres subir até ao farol?
– Podia.
– Mas queres?
– O que queres que eu diga, Jule? «Oh, é um sonho meu ver um farol»? Em
Martha’s Vineyard vi a porra de um farol todos os dias da minha vida. Queres
que diga que estou a morrer por caminhar até lá acima com o pé magoado neste
calor louco para ver uma construção minúscula que se parece com um milhão
de construções minúsculas que já vi um milhão de vezes? É isso que queres?
– Não.
– O que queres, então?
– Só estava a perguntar.
– Quero voltar para o hotel.
– Mas acabámos de chegar aqui.
Imogen saiu da água e vestiu as roupas, enfiando os pés nas sandálias. –
Podemos voltar para o hotel, por favor? Quero telefonar ao Forrest. O meu
telemóvel não tem rede aqui.
Jule secou as pernas e calçou os ténis. – Porque queres telefonar ao Forrest?
– Porque ele é o meu namorado e tenho saudades dele – disse Immie. – O
que é que pensaste? Que eu tinha acabado com ele?
– Não pensei nada.
– Não acabei com ele. Vim para Culebra para fazer uma pausa, é tudo.
Jule pôs ao ombro o saco que traziam para as duas. – Se queres voltar,
voltemos.
Jule sentia-se esvaída de todo o júbilo que sentira nos últimos dias. Tudo
parecia quente e vulgar.
Tinham puxado o barco bastante para cima e quando regressaram à praia
tiveram de o empurrar pelo areal. A seguir, saltaram para dentro dele e tiraram
os remos do descanso, usando-os para guiar o barco para águas suficientemente
profundas para ele começar a flutuar e poderem ligar o motor.
Imogen quase não falava.
Jule ligou o motor e apontou para Culebra, que era visível à distância.
Immie ia sentada na parte da frente do barco, o seu perfil dramático contra o
mar. Jule olhou para ela e sentiu um acesso de afeto. Immie era bela, e na sua
beleza podia ver-se que era bondosa. Boa para com os animais. O tipo de
amiga que te traz café feito tal e qual como gostas, te compra flores, dá livros e
faz queques. Ninguém sabia como se divertir como Immie. Atraía as pessoas;
toda a gente a adorava. Tinha uma espécie de poder – dinheiro, entusiasmo,
independência – que brilhava à sua volta. E aqui estava Jule, no meio do mar,
deste mar louco azul-turquesa, com este ser humano raro, único.
Nada da sua discussão importava. Era a fadiga, era tudo. As pessoas
discutiam, mesmo nas melhores amizades. Fazia parte de serem verdadeiras
uma com a outra.
Jule desligou o motor. O mar estava muito calmo. Não havia mais nenhum
barco à vista.
– Está tudo bem? – perguntou Imogen.
– Desculpa ter-nos feito alugar este estúpido barco.
– Não tem mal. Mas ouve-me, por favor. Vou voltar para Vineyard para estar
com o Forrest amanhã de manhã.
Jule sentiu-se estonteada. – Então?
– Já te disse, tenho saudades dele. Sinto-me mal pela maneira como me vim
embora. Estava chateada com... – Immie fez uma pausa, hesitante em pô-lo em
palavras. – Com o que aconteceu com o funcionário da limpeza. E com a
maneira como o Forrest lidou com aquilo. Mas não devia ter fugido. Fujo
demasiado.
– Não devias voltar para Vineyard porque sentes obrigação para com o
Forrest, logo ele – disse Jule.
– Eu amo o Forrest.
– Então porque é que lhe andas sempre a mentir? – ripostou Jule. – Porque é
que estás aqui comigo? Porque é que ainda pensas no Isaac Tupperman? Não é
assim que te comportas quando estás apaixonada. Não deixas uma pessoa a
meio da noite e esperas que ela fique toda contente quando voltas a aparecer.
Não tens o direito de a deixar assim.
– Tu tens ciúmes do Forrest. Eu entendo. Mas não sou nenhuma boneca com
que possas brincar e não partilhar. – Immie falava com aspereza. – Dantes,
pensava que gostavas de mim por mim mesma, sem o meu dinheiro, sem nada.
Julgava que éramos iguais e que me compreendias. Era fácil contar-te coisas.
Mas sinto cada vez mais que tens uma ideia de mim, da Imogen Sokoloff –
disse o seu nome como se estivesse em itálico – e essa não é quem eu sou. Tens
uma ideia de uma pessoa de quem gostas. Mas não sou eu. Só queres usar as
minhas roupas e ler os meus livros e fazer de conta com o meu dinheiro. Não é
uma amizade real, Jule. Não é uma amizade real quando eu é que pago tudo e
tu pedes tudo emprestado e mesmo assim não é suficiente. Queres todos os
meus segredos e depois usa-los para me controlares. Sinto pena de ti, sinto
mesmo. Gosto de ti... mas tornaste-te, tipo, uma imitação de mim metade do
tempo. Nem sabes o quanto lamento ter de dizer isto, mas tu...
– O quê?
– Não bates certo. Estás sempre a alterar os pormenores das histórias que
contas e é como se nem sequer te desses conta. Nunca devia ter-te convidado
para vires ficar connosco na casa de Vineyard. Foi bom durante algum tempo,
mas agora sinto-me usada, e até mesmo enganada, de certo modo. Preciso de
me afastar de ti. É a verdade.
A sensação de estonteamento aumentou.
Immie não podia estar a dizer o que estava a dizer.
Jule andava a fazer tudo o que Imogen queria há semanas e semanas.
Deixava Immie em paz quando ela queria ficar sozinha, ia às compras quando
Immie queria ir às compras. Tolerara Brooke, tolerara Forrest. Jule fora ouvinte
quando necessário, contadora de histórias quando necessário. Adaptara-se ao
ambiente e aprendera todo os códigos de comportamento para o mundo de
Immie. Mantivera a boca fechada. Lera centenas de páginas de Dickens.
– Eu não sou as minhas roupas – disse Imogen. – Eu não sou o meu dinheiro.
Tu queres que eu seja uma pessoa que...
– Não quero que sejas nada a não ser tu – interrompeu Jule. – Não quero
mesmo.
– Mas queres – disse Imogen. – Queres que te preste atenção quando não me
apetece. Queres que eu seja linda e natural, quando nalguns dias me sinto feia e
é uma luta. Instalaste-me num trono e queres que eu faça sempre comida boa e
leia obras-primas e seja maravilhosa com toda a gente, mas essa não sou eu, e é
extenuante. Não quero vestir a roupagem e levar à cena esta ideia que tens de
mim.
– Isso não é verdade.
– O peso disto é enorme, Jule. Sufoca-me. Estás a pressionar-me para ser
algo para ti, e eu não quero sê-lo.
– És a minha amiga mais íntima. – Era a verdade, e saiu do peito de Jule,
num tom alto e queixoso. Jule sempre passara de raspão pelas pessoas. Não
eram suas; nunca deixavam marca nela, e não sentiria a falta de ninguém. Jule
contara cem mentiras para fazer Immie gostar dela. Merecia esse afeto em troca
delas.
Immie abanou a cabeça. – Ao fim de um par de semanas na minha casa? A
tua amiga mais íntima? Nem sequer é possível. Devia ter-te pedido que te
fosses embora depois do primeiro fim de semana.
Jule pôs-se de pé. Immie estava sentada na beira da frente do barco.
– O que é que eu fiz para tu me odiares? – perguntou-lhe Jule. – Não
compreendo o que fiz.
– Não fizeste nada! Eu não te odeio.
– Quero saber o que fiz de errado.
– Olha. Só te convidei para vires comigo porque queria manter-te calada –
disse Imogen. – Convidei-te para aqui para te calar. Pronto, está dito.
Ficaram em silêncio. Aquela frase ficou entre elas: Convidei-te para aqui
para te calar.
Imogen prosseguiu: – Não consigo suportar mais esta viagem. Não consigo
suportar que tu me peças as minhas roupas emprestadas e olhes para mim como
olhas, como se eu nunca fosse suficiente, e que me estejas a ameaçar e queiras
que eu goste tanto de ti. Não gosto.
Jule não pensou, não conseguia pensar.
Pegou num remo do fundo do barco. Balançou-o com força.
A parte mais larga do remo atingiu Imogen no crânio. A ponta aguçada
primeiro.
Immie tombou. O barco balouçou loucamente. Jule avançou e o rosto de
Immie virou-se para ela. Immie parecia surpreendida, e Jule sentiu um
momento de triunfo; a oponente subestimara-a.
Acertou de novo com o remo naquela cara de anjo. O nariz partiu-se, e os
ossos das maçãs do rosto. Um dos olhos ficou esbugalhado e começou a
esguichar. Jule bateu uma terceira vez e o ruído foi terrível, alto e de algum
modo final. O maxilar de Imogen e o ar de quem tem direito a tudo e a beleza e
a autoimportância fácil, tudo isso foi esmagado pela força do braço direito de
Jule. Jule era a porra da vencedora, e por um breve momento a sensação foi
gloriosa.
Immie deslizou do seu poleiro para a água. O barco inclinou-se quando o
peso dela caiu borda fora. Jule cambaleou para trás, batendo com força com a
anca contra o lado.
Immie bateu de chapa na água duas vezes, a debater-se. Arquejante. Tinha os
olhos cheios de sangue, que pingava para a água azul-turquesa. A sua camisa
branca flutuava à volta dela.
A sensação de triunfo desvaneceu-se e Jule saltou para dentro do mar,
agarrando Immie pelo ombro. Queria obter uma resposta.
Immie devia-lhe uma resposta.
Ainda não tinham acabado, com um raio. Immie não podia fugir. – O que
tens para me dizer? – gritou Jule, a dar com os pés e erguendo Immie o melhor
que podia. – O que tens para me dizer agora? – Corria-lhe sangue do rosto de
Immie pelos braços. – Porque eu não sou a porra do teu animal de estimação e
também já não sou tua amiga, estás a ouvir-me? – berrou Jule. – Olhas-me de
alto, porra, mas eu é que sou a forte, eu é que sou a forte aqui, porra. Estás a
ver, Immie? Estás a ver?
Jule tentou virar Immie, manter o seu rosto no ar, mantê-la a respirar, e a
escutá-la, mas as feridas eram enormes. O rosto de Imogen estava feito numa
papa e a pingar sangue do ouvido, do nariz, do lado esmagado da maçã do
rosto. O seu corpo era percorrido por espasmos e tremia. A sua pele estava
escorregadia, tão escorregadia. Esperneava e esbracejava, atingindo Jule no
rosto com as costas de uma mão a mover-se involuntariamente.
– Que porra tens a dizer agora? – repetiu Jule, suplicante. – O que é que
queres dizer-me?
O corpo de Imogen Sokoloff contraiu-se mais uma vez e a seguir ficou
imóvel.
O sangue acumulava-se à volta das duas.
Jule trepou de novo para dentro do barco e o tempo parou.
Devia ter passado uma hora. Talvez duas. Talvez só um par de minutos.
Nenhuma luta alguma vez correra assim. Sempre fora ação, heroísmos,
defesa, competição. Por vezes vingança. Isto era diferente. Havia um corpo no
mar. O rebordo de uma orelha pequena, com três piercings. Os botões no punho
da camisa, um azul frio contra o linho branco.
Jule amara Imogen Sokoloff tão bem como sabia amar alguém. Amara
mesmo.
Mas Immie não quisera o seu amor.
Pobre Immie. A linda, a especial Immie.
Jule sentiu uma volta no estômago. Tentou vomitar pela borda do barco.
Agarrou-se à beira, a pensar que ia vomitar, com os ombros a tremerem. Sentia
arrancos, mas não saía nada, e continuava a não sair nada. Aquilo prolongou-se
por um ou dois minutos até ela se aperceber de que estava a chorar.
Tinha as faces brilhantes com lágrimas.
Não fora sua intenção fazer mal a Imogen.
Não, não fora.
Queria não o ter feito.
Queria poder voltar atrás. Queria ser um ser humano diferente num corpo
diferente com uma vida diferente. Queria que Immie tivesse retribuído o seu
amor, e estava a soluçar porque agora isso nunca aconteceria.
Estendeu a mão e pegou na mão molhada e mole de Immie. Segurou-a,
inclinando-se para trás sobre a beira do barco.
Ouviu-se um som de um avião lá em cima.
Jule largou a mão de Immie e engoliu as lágrimas. O seu instinto de
autopreservação entrou em ação.
Estava bastante longe da costa. A uns vinte minutos de barco de Culebra e a
uns dez de Culebrita. Jule tocou com a mão na água. Havia uma corrente na
direção do mar aberto vinda do canal muito movimentado entre as duas ilhas.
Puxou a mão de Immie para si até ela ficar suficientemente perto para lhe
passar uma corda por baixo dos braços, tendo o cuidado de a manter frouxa
para não deixar marca. A corda era áspera e foi difícil atá-la. Jule ficou com as
palmas das mãos doridas, com a pele esfolada. Fez várias tentativas antes de
conseguir dar um nó que ficasse seguro.
Ligou o motor e dirigiu-se lentamente para o mar aberto, seguindo a corrente.
Quando o mar começou a ficar escuro e profundo, quando já estavam bem fora
do caminho percorrido entre Culebra e Culebrita, Jule soltou a corda e largou
Imogen.
O corpo afundou-se muito, muito lentamente.
Jule lavou a corda e esfregou-a com uma escova que encontrou numa
pequena caixa com materiais. Tinha as mãos esfoladas e a sangrarem
ligeiramente, mas nenhumas outras marcas. Enrolou a corda muito bem
enrolada e arrumou-a no seu lugar no barco. Esfregou e passou por água o
remo.
A seguir, ligou o motor e voltou para Culebra.
*
D ois dias antes de morrer, Scott estava a limpar a piscina quando Jule
regressou da sua corrida matinal. Ele estava em tronco nu. Com as calças
de ganga descaídas nas ancas. Andava a arrastar um varre-folhas ao longo da
água no perímetro da piscina.
Disse bom dia num tom animado quando Jule passou por ele. Immie e
Forrest ainda não se tinham levantado. O carro alugado de Brooke não estava
no caminho para a casa. Jule pegou numa pilha de roupas que escolhera antes e
pendurou-as no gancho ao lado do chuveiro do exterior. A seguir, entrou para a
cabina.
Lavou-se, rapou os pelos das pernas e pensou em Scott. Ele era muito, muito
bonito. Pensou quais seriam os seus exercícios para os músculos das costas e
nos pagamentos só a dinheiro. Como se tornara um tipo que estava disposto a
limpar com lixívia as casas de banho de outras pessoas e cortar a relva dos seus
jardins? Tinha o aspeto e a maneira de falar do grande herói de ação branco
heterossexual que se vê em filme atrás de filme. Provavelmente, poderia ter a
maior parte das coisas que quisesse neste mundo sem demasiado esforço. Nada
estava a empurrá-lo para baixo, mas ali estava ele. A limpar.
Talvez lhe agradasse assim. Mas talvez não.
Quando ela desligou a água, Scott e Imogen estavam a conversar no deque.
– Tens de me ajudar – disse ele em voz baixa.
– Não, não tenho, por acaso.
– Por favor.
– Não posso envolver-me.
– Não tens de te envolver, Imogen. Vim ter contigo a pedir-te ajuda porque
confio em ti.
Immie suspirou. – Vieste ter comigo porque eu tenho uma conta bancária.
– Não foi isso. Nós temos uma ligação.
– Hello?
– Todas aquelas tardes na minha casa. Não te pedi nada. Foste lá porque
querias.
– Já não vou à tua casa há uma semana – disse Imogen a Scott.
– Tenho saudades tuas.
– Não vou pagar a tua dívida. – A voz de Imogen era firme.
– Só preciso de um empréstimo. Para me desenrascar. Até aqueles gajos me
saírem de cima.
– É uma má ideia – disse Imogen. – Devias ir ao banco. Ou contrair um
empréstimo com o cartão de crédito.
– Não tenho cartão de crédito. Estes gajos são... eles não brincam em serviço.
Deixaram-me recados dentro do carro. Eles...
– Não devias ter andado a jogar – ripostou Immie. – Achei que eras mais
esperto do que isso.
– Não me podes adiantar o suficiente para pagar esta dívida? Depois não tens
de voltar a ver-me. Devolvo-te o dinheiro e desapareço, prometo.
– Há um minuto, só falavas na grande ligação que temos. Agora estás a
prometer desaparecer?
– Não tenho nada – implorou Scott. – Há cinco paus na minha carteira neste
momento.
– Onde está a tua família?
– O meu pai deu à sola há muito tempo. A minha mãe teve cancro quando eu
tinha dezassete anos – disse Scott. – Não tenho ninguém.
Immie ficou em silêncio por um momento. – Lamento muito. Não sabia isso.
– Por favor, Immie. Bombom.
– Não comeces com isso. O Forrest está lá em cima.
– Se me ajudares, posso ir-me embora discretamente.
– Isso é uma ameaça?
– Estou a pedir ajuda a uma amiga para pagar uma dívida, é tudo. Dez mil
dólares não é nada para alguém como tu.
– Porque deves dinheiro? Em que apostaste?
Scott murmurou a resposta. – Lutas de cães.
– Não. – Immie soou chocada.
– Tinha um bom cão.
– As lutas de cães são um desporto sangrento. Isso é crime.
– Havia uma cadela de um refúgio de animais de que ouvi falar; era uma fera
autêntica. E conheço um gajo que promove lutas às vezes. Tem um par de pit
bulls. Não foi, tipo, uma coisa organizada.
– Foi organizada se esse sujeito promove lutas. Há leis contra isso. É cruel.
– Esta cadela gostava de lutar.
– Não digas isso – disse Imogen. – Simplesmente, não o digas. Se alguém a
adotasse e a tratasse bem ela teria...
– Tu não conheceste esta cadela – disse Scott, petulante. – De qualquer
maneira, realizou-se a luta e ela perdeu, está bem? Mandei parar antes de ela
ficar demasiado ferida, porque podes, se fores o dono do cão, porque ela
estava... A luta não foi o que eu pensava que seria.
Jule manteve-se imóvel, protegida pela parede do chuveiro no exterior. Não
se atrevia a mexer-se.
– Isso significou que perdi dinheiro para todos aqueles gajos que apostaram
nela – prosseguiu Scott. – Disseram que eu devia tê-la deixado lutar até à
morte. Eu disse que as regras dizem que o dono do cão pode mandar parar a
luta. Eles disseram, OK, mas ninguém faz isso, porque lixas as pessoas todas
que apostaram no teu cão. – Estava a chorar agora. – E querem o dinheiro deles
de volta. O gajo que organizou a luta também quer o investimento dele de
volta. Diz que as pessoas se queixaram, que lhe dei cabo do negócio pondo a
lutar um cão quando eu estava... com medo, Imogen. Não sei como resolver
isto sem a tua ajuda.
– Deixa-me explicar-te a situação – disse Imogen lentamente. – Tu és o meu
rapaz do jardim, o meu rapaz da piscina, o meu funcionário da limpeza.
Trabalhas aqui. Tens feito um trabalho decente e tens sido um tipo razoável
para dar umas voltas de vez em quando. Isso não me dá nenhuma obrigação de
te ajudar quando fizeste uma coisa ilegal e imoral a um pobre cão indefeso.
Jule começou a transpirar.
A maneira como Imogen dissera rapaz do jardim, rapaz da piscina,
funcionário da limpeza. Era tão frio. Jule não vira Immie cara-a-cara com uma
pessoa por quem sentisse desdém até àquele momento.
– Não me vais ajudar, então? – perguntou Scott.
– Mal nos conhecemos.
– Vá lá, vieste à minha casa todos os dias, nalgumas semanas.
– Não fazia ideia de que gostavas de ver cães despedaçarem-se uns aos
outros até morrerem. Não sabia que eras um jogador. Não sabia que eras tão
estúpido e cruel como és, porque não és mais para mim do que o tipo que limpa
a minha casa. Acho que devias ir-te embora agora – disse Imogen a Scott. –
Posso arranjar outra pessoa qualquer para me esfregar o chão.
Immie andara a mentir a Forrest. E a Jule. Immie inventara de propósito
histórias sobre aonde ia de tarde. Mentira sobre porque voltava para casa com o
cabelo molhado, porque estava cansada, sobre onde fizera as compras de
mercearia. Mentira ao dizer que ia jogar ténis com Brooke.
Brooke. Brooke devia saber do caso com Scott. Ela e Imogen chegavam a
casa juntas muitas vezes com raquetes e garrafas da água, a falar sobre os seus
jogos de ténis, quando, provavelmente, não tinham jogado ténis nenhum.
Scott foi-se embora sem mais uma palavra. Daí a um minuto, Immie bateu
com força na porta da cabina do chuveiro. – Consigo ver os teus pés, Jule.
Jule arquejou.
– Porque é que ouves as conversas das outras pessoas assim? – rosnou
Immie.
Jule apertou mais ao corpo a toalha e abriu a porta do chuveiro. – Estava a
secar-me. Tu vieste cá para fora. Eu não sabia o que fazer.
– Andas sempre à espreita por aí. A espiar. Ninguém gosta disso.
– Entendi. Agora, se não te importas, deixas-me vestir?
Imogen afastou-se.
Jule sentia vontade de seguir Immie e esbofetear o seu rosto falso e lindo.
Queria sentir-se cheia de razão e forte em vez de embaraçada e traída.
Mas teria de queimar aquela fúria de outra maneira.
Pegou no fato de banho e nos óculos da natação de um gancho no chuveiro.
Na piscina, nadou uma milha, estilo livre.
Uma segunda milha. Nadou até os braços lhe tremerem.
Finalmente, atirou-se para cima de uma toalha no deque de madeira. Virou o
rosto para o sol e não sentiu mais nada a não ser cansaço.
Imogen veio da casa daí a algum tempo. Trazia uma taça de queques ainda
quentes com pepitas de chocolate. – Fiz estes bolinhos – disse. – Para pedir
desculpa.
– Não há nada de que pedir desculpa – disse Jule, sem se mexer.
– Tudo o que eu disse foi mauzinho. E tenho andado a mentir-te.
– Como se isso me importasse.
– Importa-te.
Jule não respondeu.
– Sei que te importa, fofinha. Não devia haver mentiras entre nós. Tu
compreendes-me muito melhor do que o Forrest. Ou do que a Brooke.
– Possivelmente, é verdade. – Jule não conseguiu conter-se. Sorriu.
– Tens o direito de estar zangada. Agi mal. Eu sei.
– Possivelmente, também é verdade.
– Penso que a coisa toda foi uma maneira de eu afastar o Forrest. Faço isso
quando me canso dos tipos. Traio-os. Desculpa não te ter contado. Não me
sinto realmente orgulhosa de mim mesma.
Imogen pousou os queques ao lado do ombro de Jule. Deitou-se no deque.
Os corpos delas ficaram paralelos.
– Quero sentir-me em casa em algum lugar, e quero fugir – prosseguiu
Immie. – Quero sentir-me ligada às pessoas, e quero afastá-las. Quero estar
apaixonada, e engato tipos de quem nem tenho a certeza de gostar. Ou amo-os
e dou cabo de tudo, e talvez dê cabo de tudo de propósito. Nem sequer sei qual
das coisas é, e isso é mesmo uma cena marada, não é?
– É mediamente marada – disse Jule com uma risadinha. – Mas não
drasticamente. Numa escala de um a dez, é, tipo, um sete, acho eu.
Ficaram ali deitadas em silêncio por mais um minuto.
– Mas uma cena marada de nível sete, provavelmente, é normal –
acrescentou Jule.
– Por favor, posso subornar-te com queques para me perdoares? – pediu
Immie.
Jule pegou num queque e deu uma dentada. – O Scott é lindo de morrer –
disse, engolindo. – Um tipo como ele, o que havias de fazer: deixá-lo em paz e
ficar a vê-lo limpar a piscina? Penso que talvez tivesses a obrigação legal de
lhe saltar para cima.
Imogen gemeu. – Porque é que ele tinha de ser tão sexy? – Agarrou na mão
de Jule. – Fui mesmo uma bruxa. Perdoas-me?
– Sempre.
– És um doce, minha fofinha. Vem à loja comigo agora! – Disse aquilo como
se uma ida à loja fosse maravilhosamente divertido.
– Estou cansada. Obriga a Brooke a ir contigo.
– Não quero a Brooke.
Jule levantou-se.
– Não digas ao Forrest que vamos sair – disse Immie.
– Não digo.
– É claro que não dizes. – Imogen ergueu os olhos para Jule e sorriu-lhe. –
Sei que posso contar contigo. Não lhe vais contar nada de nada, pois não?
6
O nze semanas antes de Immie fazer os queques, Jule deu consigo na praia
em Moshup Beach sem toalha nem fato de banho. O sol estava brilhante e
o dia quente. Depois da longa caminhada desde o parque de estacionamento,
passeou à beira-mar. Pairavam acima dela uns enormes rochedos de calcário
em tons de chocolate, pérola e ferrugem. O calcário estava estalado e era
ligeiramente mole ao toque.
Jule descalçou-se e deixou-se ficar imóvel com os dedos dos pés no mar. A
uns cinquenta metros, Imogen e o seu amigo estavam a instalar-se para passar a
tarde. Não tinham cadeiras de praia, mas o tipo abriu um saco de onde tirou
uma manta de praia de algodão, toalhas, revistas e uma pequena mala térmica.
Atiraram com as roupas para a areia, puseram protetor solar e beberam de
latas que tiraram da mala térmica. Imogen deitou-se na manta para ler. O tipo
pôs-se a apanhar pedrinhas e a empilhá-las umas em cima das outras para
construir uma escultura delicada na areia.
Jule encaminhou-se para eles. A uns metros, gritou: – Immie, és tu?
Imogen não se virou, mas o seu namorado espetou-lhe um dedo no ombro. –
Ela está a chamar o teu nome.
– Imogen Sokoloff, correto? – disse Jule, aproximando-se. – Sou eu, a Jule
West Williams. Lembras-te?
Imogen semicerrou os olhos e sentou-se. Tateou à procura dos seus óculos de
sol no saco de rede que trazia e pô-los.
– Andámos juntas no colégio – prosseguiu Jule. – No Greenbriar.
Immie era digna de se ver, pensou Jule. Pescoço comprido, maçãs do rosto
salientes. Um leve bronzeado. Era magricela na parte de cima do corpo, no
entanto, e fraca. – Andámos mesmo? – perguntou.
– Só durante parte do décimo ano. Depois fui transferida – disse Jule. – Mas
lembro-me de ti.
– Desculpa, diz-me outra vez o teu nome?
– Jule West Williams – repetiu Jule. Ao ver Imogen franzir a testa,
acrescentou: – Andava um ano atrás de ti.
Immie sorriu. – Bem, é bom voltar a encontrar-te, Jule. Este é o meu
namorado, o Forrest.
Jule ficou ali de pé, pouco à vontade. Forrest estava a prender de novo o seu
cabelo escorrido num puxo. Tinha um exemplar da revista New Yorker ao seu
lado. – Queres uma bebida? – perguntou, surpreendentemente simpático.
– Obrigada. – Jule ajoelhou-se na beira da manta e aceitou uma lata de Coca-
Cola de dieta.
– Dá a ideia de que vais a algum lado – disse Imogen. – Com o saco, e os
sapatos na mão.
– Oh, eu...
– Não tens coisas de praia?
Jule pensou na coisa mais apelativa que poderia dizer, que acabou por ser a
verdade. – Vim por impulso – disse. – Faço isso às vezes. Não tinha planeado
vir à praia hoje.
– Tenho um fato de banho extra no saco – disse Imogen, subitamente
calorosa. – Queres ir nadar connosco? Estou com tanto calor que tenho de ir já
para a água ou ainda fico arrasada e o Forrest vai ter de me levar ao colo por
aquele caminho comprido como tudo. – Passou os olhos pelo corpo estreito de
Forrest. – Não sei se ele ia conseguir. Então, queres vir nadar?
Jule ergueu as sobrancelhas. – Era capaz de aceitar o teu desafio.
Imogen tirou um biquini do seu saco e passou-o a Jule. Era branco e muito
reduzido. – Veste-o por baixo da saia e encontramo-nos na água.
Ela e Forrest correram a rir para dentro do mar.
Jule vestiu a roupa de Imogen pela primeira vez.
Com o biquini de Immie, mergulhou debaixo das ondas e veio à tona a sentir-
se milagrosamente feliz. O dia estava cintilante e parecia impossível sentir
outra coisa que não gratidão pela oportunidade de estar no oceano, a olhar para
o horizonte enquanto a água salgada à sua volta os fustigava. Forrest e Immie
não falavam muito, mas galgavam as ondas, a gritar e a rir. Quando se
cansaram, deixaram-se ficar nas pontas dos pés para além do ponto onde as
ondas rebentavam, saltando delicadamente e deixando a água erguê-los e
baixá-los. «Aqui vem uma das grandes.» «Não, a que vem a seguir é ainda
maior. Ali, estás a ver? «Oh, com um raio, quase morri, mas foi excelente.»
Quando os três já tinham os dedos roxos e tremiam de frio, voltaram para a
manta de Imogen, e Jule viu-se no seu centro. Forrest deitou-se num dos lados,
envolto numa toalha com um tema náutico, e Imogen no outro, de rosto virado
para o sol e ainda coberta de gotas de água.
– Onde andaste depois do Greenbriar? – perguntou Imogen.
– Depois de me expulsarem – disse Jule. – A minha tia e eu saímos de Nova
Iorque.
– Não te expulsaram – disse Imogen toda divertida. Forrest pousou a revista.
– Oh sim, expulsaram. – Ambos estavam agora interessados. – Por
prostituição – disse Jule.
O rosto de Imogen ficou sombrio.
– Estou a brincar. Era uma piada.
Imogen começou a rir-se baixo e lentamente, tapando a boca com a mão.
– A Tina qualquer coisa costumava puxar-me as cuecas e fazer-me umas
ameaças no balneário – disse Jule. – Por fim, bati-lhe com a cabeça contra uma
parede de tijolo. Acabou por ter de levar pontos.
– Era aquela com o cabelo encaracolado? A alta? – perguntou Imogen.
– Não. A mais baixa que andava sempre a seguir essa.
– Não consigo lembrar-me do aspeto dela.
– É melhor assim.
– E bateste-lhe com a cabeça contra a parede?
Jule acenou com a cabeça. – Sou uma safada. Podias chamar-lhe um talento
meu.
– Uma safada? – perguntou Forrest.
– Uma lutadora – disse Jule. – Não para me divertir, mas... vocês sabem.
Autodefesa. Para combater o mal. Proteger Gotham City.
– Não posso crer que nunca tenha ouvido dizer que mandaste uma rapariga
para o hospital – disse Imogen.
– Abafaram o caso. A Tina não queria falar nisso por causa do que andava a
fazer-me antes de eu a obrigar a parar, sabes? E dava mau aspeto ao
Greenbriar. Raparigas a lutarem. Foi mesmo antes do concerto de inverno –
disse Jule. – Quando vinham os pais todos. Deixaram-me cantar nele antes de
me expulsarem. Não te lembras? Aquela rapariga Caraway fez o solo.
– Oh, sim. A Peyton Caraway.
– Cantámos uma canção de Gershwin.
– E o «Rudolph» – disse Imogen. – Éramos muito crescidas para cantarmos o
«Rudolph». Foi ridículo.
– Estavas com um vestido de veludo azul com pregas na frente.
Imogen tapou os olhos com as mãos. – Não posso acreditar que te lembres
desse vestido! A minha mãe obrigava-me sempre a usar coisas como essas nas
festas, e nós nem sequer comemoramos o Natal. Como se estivesse a vestir
uma boneca tradicional americana.
Forrest espetou um dedo no ombro de Jule. – Deves ir começar a faculdade
no outono.
– Por acaso, acabei o secundário mais cedo. Portanto já ando há um ano na
faculdade.
– Onde?
– Em Stanford.
– Conheces a Ellie Thornberry? – perguntou Imogen. – Ela anda lá.
– Acho que não.
– E o Walker D’ Angelo? – disse Forrest. – Está no mestrado de História de
Arte.
– O Forrest já acabou a faculdade – disse Imogen. – Mas para mim era como
os quintos da porra do Inferno, portanto não vou mais.
– Não tentaste realmente – disse Forrest.
– Estás a falar como o meu pai.
– Oh, faz beicinho, faz.
Immie pôs os óculos de sol. – O Forrest está a escrever um romance.
– Que tipo de romance? – perguntou Jule.
– É um bocado Samuel Beckett combinado com Hunter S. Thompson – disse
Forrest. – E sou um grande fã do Pynchon, portanto ele é uma influência
minha.
– Boa sorte com isso – disse Jule.
– Ooh, és mesmo uma safada – disse Forrest. – Até gosto dela, sabes,
Imogen?
– Ele gosta de mulheres com mau feitio – disse Imogen. – É uma das poucas
qualidades cativantes que tem.
– E nós, gostamos dele? – perguntou Jule a Imogen.
– Toleramo-lo por ser giro – disse Immie.
Disseram que tinham fome e foram a pé até às lojas de Aquinah. Nessa zona
havia um aglomerado de barracas de petiscos. Forrest pediu três embalagens de
papel com batatas fritas para partilharem.
Immie fez um grande sorriso ao tipo por trás do balcão e disse: – Vai rir-se de
mim, mas preciso, tipo, de quatro rodelas de limão para o ice tea. Sou louca por
limão. Pode fazer isso por mim?
Ele disse: – Limão?
– Quatro rodelas – disse Immie. Pousou os braços e os cotovelos no balcão
da barraca e inclinou-se para a frente, erguendo o rosto para ele.
– Com certeza – disse ele.
– Está a rir-se do meu limão – disse ela.
– Não me estou a rir.
– Está a rir-se interiormente.
– Não. – Ele já tinha cortado o limão e empurrou-o por cima do balcão na
direção dela num copo de papel vermelho e branco.
– Obrigada, então, por levar o meu limão tão a sério – disse Imogen. Pegou
numa das rodelas e enfiou-a na boca, trincando-a para espremer algum sumo.
Através da casca de limão na boca, disse: – É muito importante que os limões
obtenham respeito. Fá-los sentirem-se valorizados.
Sentaram-se a uma mesa de piquenique com vista para o parque de
estacionamento de um dos lados e para o mar do outro. No outro lado do
parque de estacionamento, havia pessoas a lançarem papagaios de papel. Fazia
muito vento. A mesa de piqueniques estava cinzenta e amolgada dos anos ao ar
livre. Imogen comeu uma ou duas batatas fritas e depois tirou uma banana do
saco e comeu-a com uma colher.
– Estás aqui sozinha? – perguntou Immie. – Em Vineyard?
Forrest abrira o seu exemplar da revista New Yorker. O seu corpo estava
ligeiramente desviado delas.
Jule assentiu com a cabeça. – Estou. Deixei Stanford. – Contou a história do
treinador pervertido e da perda da bolsa de estudos. – Não quero ir para casa.
Não me dou bem com a minha tia.
Immie inclinou-se para a frente. – É com ela que vives?
– Não, não estou disposta a lidar mais com a família.
Forrest soltou uma risadinha. – A Imogen também não.
– Estou, sim – disse Imogen.
– Não, não está – disse ele.
Jule olhou Imogen nos olhos. – Temos isso em comum, então.
– Sim, suponho que temos. – Immie atirou a casca da banana para o caixote
do lixo. – Ouve, vem connosco até lá a casa. Podemos nadar na piscina e podes
ficar para jantar. Vão aparecer umas pessoas de passagem, amigos novos que
só estão na ilha por um par de semanas. Vamos grelhar bifes. É mesmo em
Menemsha. Nem vais acreditar na casa. É gigantesca.
Imogen sentou-se perto de Jule e alinhou os pés das duas.
– Anda lá. Vai ser divertido – disse, persuasiva. – Já não tenho uma conversa
de raparigas há séculos.
A casa de Menemsha tinha tetos tão altos e janelas tão rasgadas que as
atividades do dia a dia pareciam ter espaço e luz extra. As bebidas pareciam ter
mais gás e serem mais frias do que quaisquer bebidas alguma vez tinham sido.
Jule, Forrest e Immie nadaram na piscina e depois usaram o chuveiro no
exterior. As pessoas temporárias vieram jantar, mas Jule via já que não era uma
delas, pela maneira como Imogen a chamou ao grelhador para olhar para os
bifes e pela maneira como se sentou no deque, enroscada aos pés de Jule.
Imogen disse-lhe que devia passar ali a noite num dos quartos de hóspedes,
quando os outros amigos estavam a meter-se no carro. Tinham-se oferecido
para dar boleia a Jule para o seu hotel, pelas estradas agora escuras da ilha.
Ela recusou.
Immie levou Jule a um quarto no segundo andar. Havia uma enorme cama e
cortinas brancas esvoaçantes – e estranhamente, um pequeno cavalo de baloiço
antigo e uma coleção de cata-ventos antigos expostos numa secretária grande
de madeira. Jule dormiu o sono profundo que se segue a longos dias ao sol.
*
– Desculpa?
Immie estava à porta do quarto. Trazia calções de ganga e uma camisola com
capuz que pertencia a Forrest. Os seus lábios brilhavam com um batom
vermelho que não costumava usar. Não se parecia muito com a Imogen na
mente de Jule.
A vergonha inundou o corpo de Jule, mas ela sorriu.
– Achei que não te importavas – disse. – Precisava de um vestido. Telefonou-
me um tipo, coisa de última hora.
– Que tipo?
– O tipo de Oak Bluffs, aquele com quem falei quando andei no carrossel.
– Quando foi isso?
– Mandou-me mensagem agora mesmo e perguntou-me se queria encontrar-
me com ele no jardim das esculturas daqui a meia hora.
– Seja como for – disse Immie. – Fazes-me o favor de despir a minha roupa?
Jule sentia o rosto quente. – Não julguei que te importasses.
– Vais mudar de roupa ou quê?
Jule puxou para baixo a parte de cima do vestido verde de Immie e pegou no
seu soutien do chão.
– Esses são os meus anéis, também? – perguntou Immie.
– São. – Não havia como fingir outra coisa.
– Porque é que haverias de usar as minhas roupas?
Jule tirou o vestido e voltou a pendurá-lo no cabide. Vestiu o resto das suas
roupas e pousou os anéis em cima da cómoda.
– Não acredito que tenhas um tipo à espera do jardim das esculturas – disse
Immie.
– Acredita no que quiseres.
– O que se está a passar?
– Peço desculpa por ter usado as tuas roupas e não volto a fazê-lo. OK?
– OK. – Imogen ficou a ver Jule arrumar as sandálias no armário e apertar os
atacadores dos seus ténis. – Tenho uma pergunta – disse, quando Jule se
preparava para passar por ela para o corredor.
O rosto de Jule ainda estava a arder. Não queria conversar.
– Não te vás embora – disse Immie. – Responde-me uma coisa, pode ser?
– O que é?
– Estás sem dinheiro? – perguntou Imogen.
Sim. Não. Sim. Jule detestava o quão vulnerável a fazia sentir aquela
pergunta.
– Falida – disse finalmente.– É, estou completamente falida.
Immie tapou a boca com a mão. – Não sabia.
E assim, sem mais, Jule ficou em vantagem. – Não tem problema – disse. –
Posso arranjar um emprego. Quer dizer, não tenho andado a encarar a situação
como tenho de a encarar.
– Devia ter-me apercebido. – Immie sentou-se na cama. – Sabia que não ias
voltar para Stanford, e disseste que te tinhas zangado com a tua tia, mas não
deduzi que a situação era assim tão má. Ver-te a usar as mesmas coisas dia após
dia. Nunca comprares nada no supermercado cá para casa. Deixares-me pagar
tudo.
Oh. Então, ela devia comprar coisas no supermercado. Era um código de
conduta que Jule não compreendera até àquele momento. Mas limitou-se a
dizer a Imogen: – Tudo bem.
– Não, tudo mal, Jule. Lamento imenso. – Immie ficou em silêncio por um
momento. A seguir, disse: – Penso que tenho andado a presumir coisas sobre a
tua vida que não devia presumir. E não te pedi para me contares. Não tenho
uma experiência muito alargada, acho eu.
Jule encolheu os ombros. – Tens sorte.
– O Isaac andava sempre a dizer-me que eu tinha uma perspetiva acanhada.
Mas adiante. Pede emprestado tudo o que quiseres.
– Ia sentir-me esquisita, agora.
– Não te sintas esquisita. – Immie abriu o armário. Estava atafulhado com
roupas. – Tenho mais do que preciso.
Voltou para junto de Jule. – Deixa-me arranjar-te o cabelo. Tens uns ganchos
soltos.
O cabelo de Jule era comprido. Na maior parte do tempo, usava-o apanhado
para trás, bem repuxado. Agora, inclinou a cabeça para a frente e Immie
prendeu umas madeixas no pescoço que se tinham soltado.
– Devias cortá-lo curto – disse Immie. – Ia ficar-te bem. Não bem como o
meu. Um pouco mais comprido na franja, penso, e mais suave à volta das
orelhas.
– Não.
– Levo-te ao meu cabeleireiro amanhã, se quiseres – insistiu Immie. –
Ofereço eu.
Jule abanou a cabeça.
– Deixa-me fazer alguma coisa por ti – disse Immie. – Tu mereces.
*
Em Oak Bluffs no dia seguinte, Jule sentiu-se leve, sem o peso do cabelo.
Era agradável ter Imogen a cuidar dela. A emprestar-lhe um brilho dos lábios
depois do corte de cabelo. A levá-la a almoçar num restaurante com vista para
o porto. Depois da refeição, entraram numa joalharia de peças vintage.
– Quero ver o anel mais fora do comum que tem à venda – disse Immie.
O empregado afadigou-se a alinhar seis anéis num tabuleiro forrado a veludo.
Imogen tocou-lhes com reverência. Selecionou um de jade com a forma de uma
víbora, pagou-o e passou a caixa de veludo azul para as mãos de Jule.
– Este é para ti.
Jule abriu a caixa imediatamente e enfiou a víbora no anelar da mão direita. –
Sou demasiado nova para me casar – disse. – Não fiques com ideias.
Immie riu-se. – Amo-te – disse casualmente.
Era a primeira vez que Immie usava a palavra amar.
No dia seguinte, Jule levou o carro para ir buscar gás para o grelhador aos
armazéns de ferragens do outro lado da ilha. Também fez algumas compras no
supermercado. Quando voltou, Imogen e Forrest estavam nus, os seus corpos
entrelaçados na piscina.
Jule ficou parada do lado de dentro da porta de vidro, a observá-los.
Os dois pareciam tão desajeitados, a bambolearem-se abraçados. O cabelo
comprido de Forrest estava molhado e caía-lhe à volta dos ombros. Tinha os
óculos na beira da piscina e o seu rosto parecia apagado e vazio sem eles.
Parecia impossível. Jule tinha a certeza de que Imogen não podia realmente
amar ou desejar Forrest. Ele era só uma ideia de um namorado: um marcador
de lugar. Embora não o soubesse, era uma pessoa temporária, como os
universitários e os estudantes de Belas-Artes que vinham jantar e nunca mais se
voltavam a ver. Forrest não ouvia os segredos de Immie. Não era um ser
amado. Jule nunca acreditara que Imogen pudesse agarrar-lhe o rosto e beijá-lo
e parecer esfomeada e louca por ele, como estava a fazer naquele momento.
Não acreditara realmente que Imogen ficasse sequer nua em frente a ele, tão
vulnerável.
Forrest viu-a.
Jule recuou, a contar que Forrest berrasse ou ficasse embaraçado, mas ele
limitou-se a dizer a Immie: – A tua amiguinha está aqui – como se estivesse a
falar sobre uma criança.
Imogen virou a cabeça e disse: – Adeusinho, Jule. Vemos-te mais tarde.
Jule deu meia volta e correu para o andar de cima.
*
Jule tocou na beira da mesa. Sentar-se-ia naquele lugar, ali, decidiu. Seria o
seu lugar habitual, de costas para a luz da janela e de olho na porta. Debateria a
citação de Du Bos com as outras alunas. A professora, uma senhora vestida de
preto, andaria a pairar entre elas, não ameaçadora, mas inspiradora. Incentivá-
las-ia a alcançarem a excelência. Acreditaria que as suas alunas eram o futuro.
Houve uma tossidela. O supervisor do catering estava na sala com Jule.
Apontou para a porta. Jule seguiu-o de volta à pilha de guardanapos e começou
a dobrá-los.
Chegou um pianista ao salão de baile, todo apressado. Era magricela, tinha a
pele clara e sardenta e era ruivo. Os pulsos despontavam-lhe das mangas do
casaco, demasiado curtas. Tirou da pasta umas pautas musicais, olhou para o
telemóvel por um ou dois minutos e depois começou a tocar. A música era
animada e de algum modo cheia de classe. Quando Jule acabou de dobrar os
guardanapos, aproximou-se dele. – Que canção é essa?
– É do Gershwin – disse o pianista com desdém. – É um almoço só com
Gershwin. As pessoas com dinheiro adoram Gershwin.
– Tu não?
Ele encolheu os ombros, ainda a tocar. – Paga a renda de casa.
– Julguei que as pessoas que tocavam num piano de cauda já tinham
dinheiro.
– Temos dívidas, normalmente.
– Então, quem é o Gershwin?
– Quem foi o Gershwin? – O pianista parou de tocar e começou a tocar algo
novo. Jule olhava para as suas mãos a correrem sobre o teclado e reconheceu a
canção. Summertime, and the livin’ is easy.
– Conheço essa – disse. – Ele já morreu?
– Há muito tempo. Era dos anos 1920 e 1930. Era um imigrante de primeira
geração; o pai dele fazia sapatos. Singrou no teatro iídiche e começou por
escrever canções de jazz populares para fazer uns dinheiritos, a seguir fez
música para filmes. Depois, mais tarde, música clássica e ópera. Portanto,
acabou por ser da classe alta, mas veio do nada.
Que incrível ser capaz de tocar um instrumento, pensou Jule. Acontecesse o
que acontecesse a uma pessoa, fosse o que fosse que se passasse na sua vida,
podia olhar para as mãos e pensar: Eu toco piano. Sempre saberia isso sobre si.
Era como ser capaz de lutar, apercebeu-se. E ser capaz de mudar de sotaque.
Eram poderes que residiam no próprio corpo. Nunca te deixariam,
independentemente do teu aspeto, de quem te amasse ou não te amasse.
Daí a uma hora, o supervisor do catering bateu no ombro de Jule. – Tens
molho de cocktail na roupa, Lita – disse. – E também natas azedas. Vai-te
arranjar e dou-te outro avental.
Jule olhou por si abaixo. Tirou o avental e entregou-o.
Como estava alguém na casa de banho que ficava mais perto do salão de
baile, Jule subiu a escadaria de pedra até ao terceiro andar. Vislumbrou um par
de salas elegantes. As mesas estavam decoradas com ramos de flores cor-de-
rosa. Os convidados davam apertos de mão e sujeitavam-se a apresentações.
Na casa de banho das senhoras havia uma antecâmara. Estava forrada a um
papel de parede verde e dourado e tinha um pequeno sofá ornamentado. Jule
atravessou o espaço e abriu a porta da casa de banho. Ali, descalçou os sapatos
de Lita. Tinha os dedos dos pés inchados e estava a sangrar dos calcanhares.
Enxugou o sangue com uma toalha de papel humedecida. A seguir, limpou o
vestido até ele ficar sem manchas.
Recuou para a antecâmara descalça e deu com uma senhora de cinquenta e
tal anos sentada no sofá. A senhora era bonita, ao estilo da zona alta de
Manhattan: pele morena com blush cuidadosamente aplicado e cabelo pintado
de castanho. Trazia um vestido de seda verde que fazia com que parecesse
coadunar-se com aquele sofá de veludo verde e aquele papel de parede verde e
dourado. Estava sem meias e a pôr pensos rápidos nos dedos dos pés, que
tinham bolhas. Havia um par de sandálias de salto alto no chão.
– O calor faz-me inchar os pés – disse a senhora –, e depois o sofrimento é
interminável. Tenho ou não tenho razão?
Jule respondeu com uma pronúncia semelhante à da senhora: americano
genérico. – Pode dispensar-me um penso rápido?
– Tenho uma embalagem inteira – respondeu a senhora. Enfiou a mão numa
carteira grande e tirou a embalagem. – Vim preparada. – As suas unhas das
mãos e dos pés estavam pintadas num tom rosa-pálido.
– Obrigada. – Jule sentou-se ao lado dela e tratou dos seus pés.
– Não te lembras de mim, pois não? – disse a senhora.
– Eu...
– Não te preocupes. Eu lembro-me de ti. Tu e a minha filha Immie pareciam
sempre iguaizinhas, com os vossos uniformes do colégio. Ambas tão
pequeninas e com aquelas sardas fofinhas no nariz.
Jule pestanejou.
A senhora sorriu. – Sou a mãe da Imogen Sokoloff, batatinha doce. Podes
chamar-me Patti. Vieste à festa de anos da Imogen no nono ano, lembras-te?
Aquela festa de pijama em que fizemos chupa-chupas de bolo. E tu e a Immie
costumavam ir às compras no SoHo. Oh, lembras-te, levámos-te ao bailado
Coppelia, no American Ballet Theatre?
– É claro – disse Jule. – Desculpe não a ter reconhecido imediatamente.
– Não te preocupes – disse Patti.– Esqueci-me do teu nome, tenho de
confessar, embora nunca esqueça um rosto. E tu tinhas aquele cabelo azul
divertido.
– É Jule.
– É claro. Era tão fixe que tu e a Immie fossem tão amigas, naquele primeiro
ano do secundário. Depois de te ires embora, ela começou a andar com aquelas
miúdas de Dalton. Nunca gostei tanto delas como de ti. Só há algumas antigas
alunas recentes aqui na festa de angariação de fundos, penso eu. Talvez
ninguém que conheças? É só ex-alunas de uma certa idade, como eu.
– Enviaram-me o convite e vim pelo Gershwin – disse Jule. – E para voltar a
ver o colégio depois de ter estado ausente.
– Que ótimo que aprecies Gershwin – disse Patti. – Na adolescência, eu só
gostava de punk e nos meus vinte anos era Madonna e outros do género. Em
que universidade andas?
Uma pausa. Uma escolha. Jule atirou com o papel dos pensos rápidos para o
caixote do lixo.
– Em Stanford – respondeu. – Mas não tenho a certeza se vou voltar no
outono. – Revirou os olhos comicamente. – Estou em guerra com o gabinete de
auxílio financeiro. – Tudo o que estava a dizer a Patti lhe dava uma sensação
deliciosa na boca, como caramelo a derreter.
– Isso é desagradável – disse Patti. – Pensei que tinham um sistema de
auxílio financeiro ótimo lá.
– E têm, geralmente – disse Jule. – Mas não para mim.
Patti olhou para Jule muito séria. – Penso que tudo se vai resolver. Olhando
para ti, vejo que não vais deixar que te fechem nenhumas portas na cara. Ouve,
tens um trabalho para o verão, um estágio, algo do género?
– Ainda não.
– Então, tenho uma ideia de que gostava de te falar. É só um pensamento
louco que estou a ter, mas talvez te agrade. – Tirou um cartão de visita branco
da sua mala de mão e entregou-o a Jule. Nele havia uma morada na Quinta
Avenida. – Tenho de voltar para casa agora, para junto do meu marido. Ele não
está bem de saúde. Mas porque não vens jantar lá a casa amanhã à noite? Sei
que o Gil vai ficar encantado por conhecer uma das velhas amigas da Immie.
– Obrigada. Adoraria.
– Às sete?
– Lá estarei – disse Jule. – Agora, atrevemo-nos a calçar os sapatos?
– Oh, suponho que tem de ser – disse Patti. – É muito duro ser-se mulher, por
vezes.
1
D ezasseis horas antes, às oito da noite, Jule saiu do metro num bairro
duvidoso de Brooklyn. Passara o dia à procura de trabalho. Era a quarta
vez seguida que usava o seu melhor vestido.
Sem sorte.
O seu apartamento ficava por cima de uma mercearia com um toldo amarelo
desbotado: o Joyful Food Mart. Era uma noite de sexta-feira e havia tipos num
grupo à esquina, a falar alto. Os caixotes do lixo nos passeios estavam a
transbordar.
Jule só vivia ali há quatro semanas. Partilhava o apartamento com uma
rapariga, Lita Kruschala. Hoje era dia de pagar a renda e ela não tinha como.
Não era amiga íntima de Lita. Tinham-se conhecido quando Jule respondeu a
um anúncio que encontrou na Internet. Antes disso, tinha ficado num albergue
da juventude. Usara a Internet da biblioteca pública para pesquisar
apartamentos partilhados.
Quando foi ver o apartamento, Lita estava a oferecer a sala de estar como
quarto de dormir. Estava separada da cozinha por uma cortina. Lita disse a Jule
que a sua irmã regressara recentemente à Polónia. Lita preferia ficar na
América. Limpava casas e trabalhava para uma empresa de catering, ambos os
trabalhos pagos a dinheiro na hora. Não estava numa situação legal para
trabalhar nos Estados Unidos. Frequentava aulas de Inglês numa instituição de
solidariedade, o YMCA.
Jule disse a Lita que tinha um emprego como personal trainer. Era o que
tinha feito na Florida, e Lita acreditou nela. Jule pagou um mês de renda em
dinheiro. Lita não pediu para ver um documento de identificação. Jule nunca
pronunciou o nome Julietta.
Em certas noites, os amigos de Lita iam lá a casa e ficavam a falar polaco e a
fumar cigarros. Faziam carne estufada e batatas cozidas na cozinha. Nessas
noites, Jule punha os fones e enroscava-se na cama, a praticar pronúncias com
a ajuda de tutoriais na Internet. Por vezes, Lita entrava no quarto de Jule com
uma tigela com guisado e passava-lha para as mãos sem dizer nada.
Jule chegara a Nova Iorque de autocarro. Depois do rapaz e do granizado
azul, depois da sandália de salto alto e do sangue no passeio, depois de esse
rapaz ter caído, Julietta West Williams desaparecera do estado do Alabama.
Também deixara de estudar. Tinha dezassete anos e não era obrigada a terminar
os estudos. Nenhuma lei dizia que tinha de o fazer.
Poderia não ter tido problemas se tivesse ficado onde estava. O rapaz não
morrera, e nunca disse uma palavra sobre o que se passara. Mas, por outro
lado, se ela tivesse ficado na cidade, talvez ele falasse. Ou poderia ter retaliado.
Pensacola, na Florida, ficava só a uns quatrocentos quilómetros. Jule foi
contratada para trabalhar a dinheiro num ginásio com montra para a rua numa
zona comercial de um subúrbio. Os proprietários não requeriam do pessoal que
tivesse qualquer espécie de certificado. Insuflavam os rapazes com esteroides,
e nada era propriamente legal.
Julietta treinava tipos todos os dias. Seguranças de discotecas, rufias, guarda-
costas, até alguns polícias. Trabalhou lá seis meses e ganhou músculo. O patrão
era proprietário de um sítio de artes marciais a menos de dois quilómetros, e
deixava-a ter aulas lá de graça. Julietta alugara à semana um quarto de motel
com kitchenette.
À hora do almoço, ia muitas vezes a pé ao centro comercial, a alguma
distância. Era um centro comercial de luxo, com fontes e lojas de marcas caras.
Julietta ia ler para a livraria arejada, admirava vestidos de mil dólares nas
montras e experimentava produtos de maquilhagem nos grandes armazéns.
Aprendeu os nomes das marcas com mais classe. Reinventava-se com pós,
cremes e brilhos. O seu rosto tinha um aspeto num dia, outro no seguinte.
Nunca gastava um cêntimo que fosse.
Foi assim que conheceu Neil. Neil era um tipo magro com um blusão de pele
da cor da manteiga. De vez em quando, passava uma tarde a rondar os balcões
dos cosméticos, a falar com as raparigas. Usava Nikes personalizados e falava
com pronúncia sulista. Não devia ter mais de vinte e cinco anos e tinha um
rosto branco de bebé com faces coradas, suíças e uma cruz de ouro ao pescoço.
O tipo de sujeito que falava e ria demasiado alto no cinema e comprava sempre
uma embalagem grande de pipocas.
– Neil quê? – perguntara Julietta.
– Não uso o meu último nome – respondeu ele. – Não é tão bonito como eu.
Neil estava no negócio. Foi o que respondeu quando ela perguntou o que
estava a fazer junto aos balcões de perfumaria. – Estou no negócio.
Ela perguntou-se de onde viria aquela expressão. Seria uma expressão de
Pensacola, ou de outro lugar?
Sabia o que ele queria dizer.
– Podias ganhar muito mais do que ganhas agora, a trabalhar para mim. Eu
tratava-te muito bem – disse-lhe Neil. Era o terceiro dia que ela falava com ele.
– O que fazes para ganhar dinheiro, bebé bonita? Vejo que não estás a gastar
nenhum.
– Não me chames bebé bonita.
– O quê? Tu és deslumbrante
– A sério, consegues arranjar raparigas que gostem de ti, a chamares-lhes
isso?
Ele encolheu os ombros e riu-se. – É, consigo.
– Então, arranjas umas raparigas mesmo estúpidas.
– Tenho raparigas bem fixes, é o que tenho. Elas mostravam-te como é que é.
O trabalho não é duro.
– Certo.
– Mantinhas-te na linha. Podias comprar umas roupas bonitas. Dormir até
tarde todas as manhãs.
Julietta deu-lhe com os pés nesse dia, mas Neil voltou a rondar os balcões
dos produtos de cosmética daí a uma semana. Dessa vez, convidou-a tão
delicadamente que ela deixou que lhe pagasse um burrito num sítio de pronto-
a-comer no centro comercial Sentaram-se a uma mesa delicada junto a um
laguinho.
– Os homens gostam de mulheres com músculos, sabias? – disse Neil. – Nem
todos, mas muitos gostam. Esse tipos gostam de ser mandados. Querem uma
rapariga com o teu físico, que não os deixe chamarem-lhe bebé bonita. Sabes o
que quero dizer? Posso arranjar-te uma pipa de massa com um certo tipo de
gajo. Uma bela pipa de massa.
–Recuso-me a andar nas ruas – disse-lhe ela.
– Não é nas ruas, sua novata. É um grupo de apartamentos com porteiro e
elevador. Banheiras de hidromassagem. Tenho um segurança que patrulha os
corredores, mantém toda a gente em segurança. Ouve, estás com uma vida
difícil neste momento. Dá para ver, porque já passei por isso. Vim do nada e
trabalhei como o diabo para ter uma vida melhor. Tu és uma rapariga esperta e
com resposta pronta; uma rapariga linda, fora do comum. Tens um corpo do
caraças que é só músculo, e acredito que mereces melhor do que o que tens
neste momento. É tudo.
Julietta escutou-o.
Ele estava a dizer o que ela sentia. Compreendia-a.
– De onde és, Julietta?
– Do Alabama.
– O teu sotaque parece do Norte.
– Perdi o sotaque.
– O quê?
– Substitui-o.
– Como?
Os tipos no ginásio onde Julietta trabalhava eram velhos. Só queriam falar
sobre repetições e milhas, pesos e dosagens. E eram as únicas pessoas com
quem ela alguma vez falava. Neil, pelo menos, era jovem. – Quando tinha nove
anos – disse-lhe ela –, um dia tinha tido... chamemos-lhe um dia mau. A
professora a mandar-nos estar calados. A berrar comigo para eu me calar.
«Cala-te, minha menina, já disseste quanto baste.» «Para, minha menina, não
batas, usa as palavras»... e cala-te ao mesmo tempo. Esmagam-te. Querem que
sejas pequena e silenciosa. Boa era só outra maneira de dizer não dês luta.
Neil acenou com a cabeça. – Eu andava sempre a ser repreendido por fazer
barulho.
– Um dia, não veio ninguém buscar-me à escola. Simplesmente... não veio
ninguém. Da secretaria fartaram-se de telefonar para a minha casa, mas
ninguém atendia. Miss Kayla, uma professora que ficava a tomar conta dos
alunos depois das aulas, levou-me a casa de carro. Já estava escuro. Eu mal a
conhecia. Entrei no carro porque ela tinha cabelo bonito. Pois é, fui estúpida,
meter-me no carro de uma desconhecida, eu sei. Mas ela era professora. Deu-
me uma caixinha de Tic Tacs. Enquanto conduzia, fartou-se de falar, para me
animar, percebes? E era do Canadá. Não sei de que parte do Canadá, mas tinha
sotaque.
Neil acenou com a cabeça.
– Comecei a imitá-la – prosseguiu Julietta. – Sentia curiosidade em saber
porque é que ela falava daquela maneira. Dizia gaz em vez de gas. Aboot em
vez de about. A isso chama-se rising canadiano, já agora. É uma alteração
vocálica. E fiz Miss Kayla rir-se, a imitar o sotaque dela. Ela disse-me que eu
era uma boa imitadora. Depois, chegámos a minha casa e ela acompanhou-me
até à porta.
– E depois?
– Tinha estado sempre alguém em casa.
– Fogo.
– Pois é. Ela estava a ver televisão. Não se tinha lembrado de me ir buscar.
Ou não podia. Não sei. Era uma cena marada, de uma maneira ou outra. Não se
tinha dado ao trabalho de atender a porcaria do telefone naquelas vezes todas
em que a escola telefonou. Empurrei a porta a abri-la e entrei. Disse: «Onde é
que estavas?» E ela disse: «Cala-te, não vês que tenho a televisão ligada?» E eu
disse: «Porque é que não atendeste o telefone?» E ela disse: «Já te disse que te
calasses.» Mais um cala-te e não dês luta. Então, pus uns flocos de cereais
secos numa tigela para o jantar e pus-me a ver televisão ao lado dela.
Estávamos a ver televisão há uma hora ou mais quando me veio à cabeça uma
ideia.
– O quê?
– A televisão ensina-te como falar. Locutores, pessoas ricas, médicos
naquelas séries de hospitais. Nenhum deles falava como eu. Mas todos falavam
uns como os outros.
– Suponho que sim.
– É verdade. Calculei que se aprendesse a falar daquela maneira talvez não
me mandassem calar tantas vezes.
– Aprendeste sozinha?
– Aprendi americano genérico primeiro. É o que se ouve na televisão. Mas
agora sei falar à moda de Boston, de Brooklyn, da Costa Oeste, das Terras
Baixas do Sul, do Canadá Central, do inglês da BBC, do irlandês, escocês, sul-
africano.
– Queres ser atriz. É isso?
Julietta abanou a cabeça. – Tenho coisas melhores em mente.
– O domínio do mundo, então.
– Algo do género. Ainda tenho de decidir ao certo.
– Decididamente, podias ser atriz – disse Neil, sorrindo. – De facto, aposto
que vais entrar em filmes. Daqui a um ano, vou dizer, tipo, uau. Aquela
rapariga, a Julietta, costumava estar ao balcão da Chanel a empastar a cara com
cosméticos de graça. Aquela rapariga deixava-me conversar com ela de vez em
quando.
– Obrigada.
– Precisas de arranjar umas roupas boas, Miss Julietta. Tens de conhecer uns
gajos com dinheiro que te comprem joias e vestidos bonitos. Falar como na
televisão é uma coisa, mas neste momento é tudo fatos de treino, ténis, cabelo
com um ar barato. Assim nunca vais chegar a lado nenhum.
– Não quero vender o que andas a vender.
– Deixa-me ouvir-te falar à Brooklyn – disse Neil.
– A minha hora do almoço chegou ao fim. – Ela pôs-se de pé.
– Vá lá. À irlandesa, então.
– Não.
– Bem, se alguma vez quiseres um trabalho melhor do que o que tens agora,
aqui tens o meu número – disse Neil, tirando do bolso um cartão de visita. O
cartão era preto e tinha um número de telemóvel impresso a prateado.
– Vou-me embora.
Neil ergueu a sua Coca-Cola como se num brinde.
Julietta riu-se ao afastar-se.
Neil fazia-a sentir-se bonita. Era um bom ouvinte.
Na manhã seguinte fez as malas e meteu-se num autocarro para a cidade de
Nova Iorque. Receava aquilo em que poderia tornar-se se esperasse mais
tempo.
Agora a renda de Jule tinha de ser paga. Andava a comer ramen de
supermercado. Só tinha cinco dólares na carteira.
Nenhum ginásio em Nova Iorque contrataria uma instrutora sem habilitações.
Ela nem tinha o diploma do secundário. Não tinha cartas de recomendação,
porque abandonara o seu primeiro e único emprego até à data. Os ginásios
pagariam melhor, calculara, e pouparia um pouco de dinheiro e depois
procuraria algo que lhe possibilitasse subir na vida. Mas depois, como nenhum
dos ginásios se dispusera a contratá-la, tentou os balcões de perfumaria nos
grandes armazéns, outros empregos na venda a retalho, trabalhos como ama,
como empregada de mesa, qualquer oferta de trabalho. Andava à procura todo
o dia, todos os dias. Sem resultado.
Entrou no Joyful Food Mart, por baixo do seu apartamento. Estava bastante
movimentado. Pessoas saídas dos empregos a comprarem embalagens de
massa e latas de feijão ou a jogarem o seu número na lotaria. Jule comprou um
pudim de baunilha por um dólar e pegou numa colher de plástico. Comeu o
pudim como jantar enquanto subia as escadas para o apartamento que
partilhava com Lita.
O apartamento estava às escuras, Jule sentiu-se aliviada. Lita fora cedo para a
cama ou tinha saído até tarde. Num caso ou no outro, Jule não teria de dar
desculpas por não ter o dinheiro da renda.
*
Julgara que estava livre, ou quase livre. Agora, tinha uma luta pela frente.
Noa parecia autoconfiante; descontraída, até. Manteve-se sentada, com os
joelhos para cima. A equilibrar aquele copo de café com espuma. – Imogen
Sokoloff? – disse.
Espera. O quê?
Noa pensava que ela era Imogen?
Imogen, claro.
Noa tentara cativar Jule com Dickens. E um pai doente. E gatos
abandonados. Porque sabia que todas essas coisas seriam um engodo para
envolver Imogen Sokoloff numa conversa.
– Noa! – disse Jule, sorrindo, regressando à sua pronúncia da BBC, com as
costas contra a porta do seu quarto. – Oh, uau, apanhaste-me de surpresa. Não
consigo acreditar que estás aqui neste momento.
– Quero falar consigo sobre o desaparecimento de Julietta West Williams –
disse Noa. – Conhece uma jovem com esse nome?
– Peço perdão? – Jule pôs a carteira a tiracolo para não lhe descer do ombro
facilmente.
– Pode deixar essa do sotaque, Imogen – disse Noa, pondo-se de pé
lentamente para não derramar o café. – Temos razões para crer que tem andado
a usar o passaporte da Julietta. As provas apontam para que tenha encenado a
sua própria morte em Londres há um par de meses, depois do que transferiu o
seu dinheiro para a Julietta e assumiu a sua identidade, possivelmente com a
cooperação dela. Mas agora já ninguém a vê há semanas. Não deixou nenhuma
pegada desde pouco depois da execução do seu testamento até a Imogen
começar a usar cartões de crédito emitidos no nome dela no Playa Grande. Isso
soa-lhe familiar? Será que poderia mostrar-me um documento de identificação?
Jule precisava de processar toda esta nova informação, mas não havia tempo.
Tinha de agir de imediato.
– Penso que deves estar a confundir-me com outra pessoa qualquer – disse,
mantendo a pronúncia da BBC. – Peço desculpa por não ter ido à noite do
concurso. Deixa-me tirar a carteira e tenho a certeza de que esclareceremos
tudo isto imediatamente.
Fez de conta que procurava no seu saco e em dois passos estava em cima de
Noa. Deu um pontapé no café de baixo para cima. O café ainda estava quente e
borrifou o rosto da detetive.
A cabeça de Noa projetou-se para trás, e Jule balançou a mala com força.
Atingiu Noa no lado do crânio, derrubando-a. Jule ergueu novamente a mala e
bateu com ela no ombro de Noa com toda a força. Uma e outra e outra vez.
Noa caiu no chão e pôs-se a tatear à procura do tornozelo de Jule com a mão
esquerda enquanto estendia a direita para a perna das suas calças.
A mulher estaria armada? Sim. Tinha algo atado à perna.
Jule deixou cair com força a sua bota nos ossos da mão de Noa. Houve um
som de esmagamento e Noa soltou um grito, mas com a sua outra mão ainda
estava a tentar agarrar o tornozelo de Jule, para a desequilibrar.
Jule apoiou-se à parede e pontapeou Noa no rosto. Enquanto a detetive se
retraía, encolhida, levando as duas mãos aos olhos para os proteger, Jule
arregaçou a perna das calças de ganga dela.
Havia uma arma atada à barriga da perna de Noa. Jule arrancou-a.
Apontou a arma a Noa e começou a recuar pelo corredor, arrastando a sua
mala sem deixar de ter a detetive sob a sua mira.
Quando chegou às escadas, virou-se e desceu-as a correr.
Ao sair pela porta traseira da estalagem, lançou um olhar aos caixotes do lixo
e aos carros estacionados no parque de estacionamento. Havia bicicletas
encostadas às paredes da parte de trás do edifício.
Não. Jule não podia ir de bicicleta, porque não podia deixar a mala.
Mais abaixo na encosta, a rua desembocava numa praça com um café.
Não, seria demasiado óbvio.
Jule atravessou a correr o parque de estacionamento da estalagem. Quando
dobrou a esquina do edifício, viu uma janela de um quarto de hóspedes na
parede lateral. Estava aberta na parte de cima.
Jule olhou para dentro do quarto.
Vazio. A cama estava feita.
Arrancou o mosquiteiro da janela e atirou-o para dentro do quarto. Enfiou a
mala pela abertura na parte de cima da janela – cabia à justa – e fê-la passar
pelos estores venezianos baratos. Atirou o seu saco de pôr ao ombro para
dentro do quarto e saltou para cima do parapeito da janela e daí para dentro do
quarto. Esfolou a pele, e aterrou com força no chão. A seguir, fechou a janela,
ajustou os estores, atirou as suas coisas e o mosquiteiro da janela para dentro da
casa de banho – e fechou-se ali dentro também.
A pensão era o último lugar onde Noa a procuraria.
Jule sentou-se na beira da banheira e forçou-se a respirar lentamente. Puxou
o fecho da mala e tirou dela a sua peruca ruiva. Despiu a T-shirt preta e vestiu
um top branco, a seguir pôs a peruca e escondeu o seu cabelo por baixo dela.
Fechou a mala.
Pegou na arma e enfiou-a na parte de trás da cintura das suas calças de
ganga, como vira fazer nos filmes.
Daí a um par de minutos, ouviu Noa passar pela janela do quarto de hotel. A
detetive estava a falar ao telefone e a mover-se lentamente. – Eu sei – disse
Noa.– Subestimei a situação, eu sei isso.
Uma pausa.– Era uma coisa ligeira, uma herdeira que fugiu, sabes? – Noa
parara de andar e era fácil de ouvir. – Uma rapariga tonta e rica numa grande
farra. Os indícios até ao momento fazem com que pareça que ela e a amiga
encenaram um suicídio que iria permitir que ambas vivessem à grande. As duas
combinaram fugir juntas. Queriam escapar às coisas do costume: ex-namorado
obsessivo, pais controladores. A amiga julgou que iam partilhar o dinheiro da
herdeira, mas a herdeira faz jogo duplo. Assume a identidade da amiga como
planeado e depois livra-se completamente da amiga... Um assassino contratado
é a nossa melhor suposição, provavelmente no Reino Unido. A amiga está
agora desaparecida, vista pela última vez em Londres em abril passado.
Entretanto, a herdeira, usando a identidade da amiga, foge com o dinheiro todo
e estaria a viver feliz, só que o namorado obsessivo não consegue acreditar que
ela se matou, por isso continua a atazanar a polícia. Finalmente, a polícia acaba
por pensar que ele deve ter alguma razão. Investigam o caso e acabam por
verificar que o cartão de crédito da amiga está a ser usado neste resort
mexicano.
Outra pausa enquanto Noa escutava. – Vá lá. Uma rapariga como ela, uma
rapariga de Vassar, não se espera uma ofensiva. Ninguém o esperaria. Ela mal
chega ao metro e cinquenta. Usa ténis de trezentos dólares. Não me podes
chamar à capa por isso.
Mais uma pausa, e a voz de Noa começou a desvanecer-se à medida que se ia
afastando. – Bem, envia alguém, porque preciso de cuidados médicos. A miúda
tem a minha arma. Sim, eu sei, eu sei. Envia-me só auxílio local, comprende?
Forrest enviara detetives. Jule compreendia isso agora. Ele nunca aceitara o
suicídio de Immie, suspeitara de Jule desde o início, e o que é que todas as suas
questões desconfiadas tinham revelado? Fora-lhe dito que Imogen cometera
uma fraude para se afastar dele e que a pobre Jule estava morta e não passara
de uma vítima crédula.
Jule saiu da casa de banho, rastejou pelo chão e acocorou-se por baixo da
janela para espreitar lá para fora. Noa ia a descer a encosta, agarrando o braço e
o ombro.
Vinha um autocarro supercabos a descer a estrada. Jule pegou na mala,
empurrou-a para o corredor e a seguir saiu da pensão por uma porta lateral.
Dirigiu-se calmamente para a berma da estrada e ergueu o braço.
O autocarro parou.
Ela respirou.
Noa não se virou.
Jule entrou pela parte da frente do autocarro.
Noa continuava a não se virar.
Jule pagou o bilhete e as portas do autocarro fecharam-se. Chegou um carro
ao lugar onde Noa estava parada, a amparar a sua mão fraturada. A detetive
mostrou o seu cartão de identificação à pessoa dentro do carro.
O autocarro arrancou na direção oposta. Jule sentou-se no assento gasto mais
perto do condutor.
O motorista pararia onde ela quisesse sair. Era assim que funcionava o
supercabos. – Quiero ir a la esquina de Ortiz y Ejido. Puede llevarme cerca de
allí? – perguntou Jule. À esquina de Ortiz e Ejido – era onde o funcionário do
hotel lhe dissera que havia um tipo que vendia carros usados a dinheiro. Sem
fazer perguntas.
O motorista do autocarro acenou com a cabeça.
Jule West Williams inclinou-se para a frente no assento.
Tinha quatro passaportes, quatro cartas de condução, três perucas, vários
milhares de dólares em dinheiro e um número de cartão de crédito que
pertencia a Forrest Smith-Martin, que serviria para comprar bilhetes de avião.
De facto, havia uma série de coisas que Jule poderia fazer com aquele cartão
de crédito de Smith-Martin. Poderia vingar-se de Forrest por todos os
problemas que lhe causara.
Era tentador.
Provavelmente, no entanto, não se daria a esse trabalho. Forrest não era nada
para Jule, agora que ela já não necessitava de ser Imogen Sokoloff.
Os últimos pedacinhos de Immie que tinham estado dentro de si deslizaram
para fora, como pedrinhas levadas de uma praia por uma maré a vazar.
Daí para a frente, Jule tornar-se-ia outra coisa completamente diferente.
Haveria outras pontes a atravessar e outros vestidos a usar. Mudara a
pronúncia, mudara o seu próprio ser.
Poderia voltar a fazê-lo.
Jule tirou o anel de jade com a víbora, atirou-o ao chão e ficou a vê-lo rolar
para a parte de trás do autocarro. Em Culebra, ninguém pedia para ver
documentos de identificação.
A arma dava uma sensação de calor contra as suas costas. Ela estava armada.
Não tinha um coração que pudesse partir-se.
Como um herói de um filme de ação, Jule West Williams ocupava o centro
da história.
NOTA DA AUTORA
Agradeço aos meus primeiros leitores pelo seu feedback detalhado: Ivy
Aukin, Coe Booth, Matt de la Peña, Justine Larbalestier e Zoey Peresman. Um
agradecimento ainda maior a Sarah Mlynowski, que leu múltiplos rascunhos. A
fotógrafa Heather Weston criou uma série de imagens maravilhosas inspiradas
pelo romance e acrescentou muito à minha compreensão da sua estética. Tenho
uma dívida para com Ally Carter, Laura Ruby, Anne Ursu, Robin Wasserman,
Scott Westerfeld, Gayle Forman, Melissa Kantor, Bob, Meg Wolitzer, Kate
Carr, Libba Bray e Len Jenkin pelo seu apoio e os seus conselhos. A minha
agente, Elizabeth Kaplan, tem sido uma campeã; o seu assistente, Brian
McGuffog, um enorme auxílio. Obrigada a Jane Harris e Emma Matthewson,
da HotKey, e a Eva Mills e Elise Jones, da Allen and Unwin, pelo seu
entusiasmo inicial. Obrigada a Ramona Jenkin pelas suas informações médicas
especializadas. A minha gratidão à equipa espantosa na Penguin Random
House, que inclui, mas não se limita a, John Adamo, Laura Antonacci,
Dominique Cimina, Kathleen Dunn, Colleen Fellingham, Anna Gjesteby,
Rebecca Gudelis, Christine Labov, Casey Lloyd, Barbara Marcus, Lisa Nadel,
Adrienne Waintraub – e especialmente à minha exigente, paciente e
encorajadora heroína de ação, a editora Beverly Horowitz. Obrigada à minha
família, próxima e distante, e a Daniel Aukin acima de tudo.