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Ficha Técnica

Título: HISTÓRIA DE UMA FRAUDE


Título original: GENUINE FRAUD
Autor: E. Lockart
Tradução: Ana Saldanha
Revisão: Carolina Matias
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem da capa: Jonathan Knowles/Stone/Getty Images
ISBN: 9789892353135

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201

© 2017, E. Lockhart
© 2022, Edições ASA II, S.A.
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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Índice

Capa
Ficha Técnica
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NOTA DA AUTORA
AGRADECIMENTOS
E. Lockhart

HISTÓRIA DE UMA FRAUDE


Para qualquer pessoa a quem tenha sido ensinado que «bom» significa
«pequeno e silencioso», aqui está o meu coração com todos os seus
feios emaranhados e a sua esplêndida fúria.
18
Começar aqui:

TERCEIRA SEMANA DE JUNHO, 2017


CABO SAN LUCAS, MÉXICO

E ra um hotel fabuloso como o caraças.


No minibar do quarto de Jule havia batatas fritas e quatro tipos
diferentes de tabletes de chocolate. A banheira era de hidromassagem. Havia
um abastecimento infindável de toalhas fofas e gel de banho com perfume de
gardénia. No átrio, um cavalheiro idoso tocava Gershwin num piano de cauda
às quatro horas todas as tardes. Podiam fazer-se tratamentos de pele com argila
quente, se não se objetasse ao toque de estranhos. A pele de Jule cheirava a
cloro o dia inteiro.
O resort Playa Grande em Baja tinha cortinas brancas, azulejos brancos,
alcatifas brancas e explosões de luxuriantes flores brancas. Os funcionários
pareciam enfermeiros, com as suas fardas de algodão branco. Jule encontrava-
se sozinha no hotel há quase quatro semanas. Tinha dezoito anos.
Esta manhã, estava a correr no ginásio do Playa Grande. Calçava ténis verde-
mar feitos à medida, com atacadores em azul-marinho. Corria sem música.
Estava a fazer intervalos há quase uma hora quando uma mulher subiu para a
passadeira ao seu lado.
Esta mulher tinha menos de trinta anos. O seu cabelo preto estava preso num
rabo de cavalo apertado, acamado com laca. Tinha braços grandes e um tronco
sólido, pele de um moreno claro e uma camada de blush em pó nas faces. Os
seus ténis estavam cambados e salpicados com lama seca.
Não se encontrava mais ninguém no ginásio.
Jule abrandou o passo, a calcular que se iria embora daí a um minuto.
Agradava-lhe ter privacidade, e, de qualquer maneira, já estava quase a acabar.
– Está a treinar? – perguntou a mulher. Apontou para o registo digital de Jule.
– Tipo, para uma maratona ou coisa do género? – A pronúncia era mexicano-
americana. Provavelmente, era uma nova-iorquina criada num bairro de língua
espanhola.
– Corria em pista na secundária. É tudo. – A maneira de falar de Jule era
clara e seca, aquilo a que os britânicos chamam inglês da BBC.
A mulher lançou-lhe um olhar penetrante. – Gosto da sua pronúncia – disse.
– De onde é?
– De Londres. De St. John’s Wood.
– Eu sou de Nova Iorque. – A mulher apontou para si própria.
Jule desceu da passadeira para fazer alongamentos dos quadríceps.
– Estou aqui sozinha – confidenciou a mulher ao fim de um momento. –
Cheguei ontem à noite. Reservei este hotel à última hora. Está cá há muito
tempo?
– Nunca é tempo suficiente – disse Jule – num sítio como este.
– Então, o que recomenda? No Playa Grande?
Jule não falava frequentemente com outros hóspedes do hotel, mas não viu
mal em responder. – Vá fazer a excursão de mergulho – disse. –Vi uma moreia
grande como o caraças.
– Não me diga. Uma enguia?
– O guia tentou-a com tripas de peixe que trazia numa garrafa de leite de
plástico. A enguia nadou para fora das rochas. Devia ter dois metros e quarenta
de comprimento. E era de um verde-vivo.
A mulher estremeceu. – Não gosto de enguias.
– Pode não ir. Se se assusta com facilidade.
A mulher riu-se. – Como é a comida? Ainda não comi.
– Peça o bolo de chocolate.
– Para o pequeno-almoço?
– Oh, sim. Trazem-lho especialmente, se pedir.
– É bom saber isso. Está de férias sozinha?
– Ouça, vou andando – disse Jule, sentindo que a conversa se tornara pessoal.
– Adeusinho. – Dirigiu-se para a porta.
– O meu pai está muito doente – disse a mulher, falando para as costas de
Jule. – Já estou a tomar conta dele há imenso tempo.
Uma pontada de compaixão. Jule parou e virou-se.
– Todas as manhãs e todas as noites depois do trabalho, estou com ele –
prosseguiu a mulher. – Agora, encontra-se finalmente estável, e eu queria tanto
afastar-me daquilo tudo que nem pensei no preço. Estou a estourar uma data de
massa que não devia.
– O que tem o seu pai?
– E. M. – respondeu a mulher. – Esclerose múltipla? E demência. Era o chefe
da nossa família. Muito machista. Com opiniões fortes em tudo. Agora é um
corpo contorcido numa cama. Metade do tempo, nem sequer sabe onde está.
Põe-se, tipo, a perguntar-me se sou a empregada de mesa.
– Que diabo.
– Tenho medo de o perder e detesto estar com ele, as duas coisas ao mesmo
tempo. E quando ele morrer e eu ficar órfã, sei que vou arrepender-me de ter
feito esta viagem para longe dele, sabe? – A mulher parou de correr e pôs um
pé de cada lado da passadeira. Limpou os olhos com as costas da mão. –
Desculpe. Demasiada informação.
– Não tem mal.
– Vá lá. Vá tomar um duche ou o que for. Talvez a veja por aí mais tarde.
A mulher arregaçou as mangas compridas da sua T-shirt e virou-se para o
registo digital da passadeira. Serpenteava-lhe uma cicatriz pelo antebraço
direito, como se resultante de uma facada, não regular como a de uma
operação. Havia ali uma história.
– Ouça, gosta de concursos tipo Trivial Pursuit? – perguntou Jule, sabendo
que não devia fazê-lo.
Um sorriso. Dentes brancos, mas tortos. – Sou excelente em trivialidades, de
facto.
– Organizam um de duas em duas noites no salão lá em baixo – disse Jule. –
É uma treta. Quer ir?
– Que tipo de treta?
– Treta da boa. Um bocado tonto e barulhento.
– OK. Sim, está bem.
– Ótimo – disse Jule. – Vamos arrasar. Vai ficar contente por ter tirado férias.
Eu sou uma barra em super-heróis, filmes de espiões, YouTubers, fitness,
dinheiro, maquilhagem e escritores vitorianos. E você?
– Escritores vitorianos? Tipo, Dickens?
– Sim, isso. – Jule sentiu que corava. De repente, parecia uma série estranha
de coisas por que se interessar.
– Adoro Dickens.
– Não me diga.
– É verdade. – A mulher sorriu de novo. – Sou boa em Dickens, culinária,
notícias da atualidade, política... vejamos, oh, e em gatos.
– Está bem, então – disse Jule. – Começa às oito, naquele salão que dá para o
átrio principal. O bar com sofás.
– Às oito. Combinado. – A mulher aproximou-se e estendeu a mão. –
Relembre-me, como se chama? Eu sou a Noa.
Jule apertou-lhe a mão. – Não lhe tinha dito o meu nome – respondeu. – Mas
é Imogen.
Jule West Williams tinha um aspeto razoavelmente agradável. Quase nunca
lhe chamavam feia, e também não era habitualmente considerada sexy. Era
baixa, media só um metro e cinquenta, e tinha o queixo espetado. Usava o
cabelo num corte atraente, à rapazinho, com madeixas louras aplicadas num
cabeleireiro e atualmente a mostrar as raízes escuras. Olhos verdes, pele
branca, sardas claras. Com a maior parte das suas roupas, não poderia ver-se a
força da sua estrutura corporal. Jule tinha músculos que sobressaíam dos ossos
em arcos potentes – como se tivesse sido desenhada por um artista de banda
desenhada, especialmente nas pernas. Havia um painel duro de músculo
abdominal sob uma camada de gordura na zona do umbigo. Gostava de carne e
sal e chocolate e gorduras.
Jule acreditava que quanto mais se transpirar nos treinos, menos se sangrará
na batalha.
Acreditava que a melhor maneira de evitar que nos partam o coração é fingir
que não temos coração.
Acreditava que a maneira como se fala é frequentemente mais importante do
que qualquer coisa que se tenha a dizer.
Também acreditava em filmes de ação, no treino com pesos, no poder da
maquilhagem, na memorização, na igualdade de direitos e na ideia de que os
vídeos do YouTube podem ensinar um milhão de coisas que não se
aprenderiam na escola.
Se confiasse na pessoa com quem estava a falar, Jule diria que andou um ano
em Stanford com uma bolsa de atletismo. «Fui recrutada» explicava às pessoas
de quem gostava. «Stanford é a Primeira Divisão. A universidade deu-me
dinheiro para as propinas, os livros, isso tudo.»
O que aconteceu?
Jule poderia encolher os ombros. «Queria estudar Literatura Vitoriana e
Sociologia, mas o treinador principal era um pervertido» diria. «Tocava nas
raparigas todas. Quando chegou a minha vez, preguei-lhe um pontapé no certo
sítio e contei a toda a gente que me quis ouvir. A professores, alunos, ao
Stanford Daily. Berrei-o ao topo da estúpida torre de marfim, mas sabes o que
acontece aos atletas que denunciam os seus treinadores.»
Torcia os dedos entrelaçados e baixava os olhos. «As outras raparigas da
equipa negaram» acrescentava. «Disseram que eu estava a mentir e que o
pervertido nunca tinha tocado em ninguém. Não queriam que os pais
soubessem e tinham medo de perder a bolsa de estudos. Foi assim que acabou a
história. O treinador manteve-se no seu lugar. Eu abandonei a equipa. Isso
significou que deixei de ter apoio financeiro. E é assim que se transforma uma
excelente aluna num caso de abandono dos estudos.»
*

Depois do ginásio, Jule nadou mil e seiscentos metros na piscina do Playa


Grande e passou o resto da manhã, como era frequente, sentada na sala de
conferências a ver vídeos de língua espanhola. Ainda estava de fato de banho,
mas com uns ténis verde-mar. Usava batom cor-de-rosa vivo e eyeliner
prateado. O fato de banho era de uma só peça, cor de chumbo, com um aro no
peito e um decote acentuado. Dava-lhe um ar muito Universo Marvel.
A sala de conferências tinha ar condicionado. Nunca estava lá mais ninguém.
Jule punha os pés em cima de uma mesa e usava fones e bebia Cola-Cola de
dieta.
Depois de duas horas de língua espanhola, almoçou um Snickers e pôs-se a
ver vídeos de música. Dançou por ali com a energia da cafeína, cantando para a
fila de cadeiras giratórias na sala vazia. Hoje, a vida estava a ser fabulosa como
o caraças. Gostava daquela triste mulher fugida ao pai doente, da mulher com a
cicatriz interessante e o gosto surpreendente em livros.
Iam arrasar no concurso.
Jule bebeu mais uma Cola-Cola de dieta. Verificou a maquilhagem e
pontapeou o seu reflexo no vidro da janela da sala. A seguir, riu-se alto, porque
parecia ao mesmo tempo tonta e incrível. Durante todo esse tempo, o ritmo da
música pulsava nos seus ouvidos.
O empregado do bar da piscina, Donovan, era um tipo da zona. Tinha ossos
grandes, mas um aspeto molengão. E cabelo penteado para trás. Era dado a
piscar o olho à clientela. Falava inglês com o sotaque típico de Baja e sabia o
que Jule bebia: uma Coca-Cola de dieta com um shot de xarope de baunilha.
Nalgumas tardes, Donovan fazia perguntas a Jule sobre como fora crescer em
Londres. Jule praticava espanhol. Viam filmes no ecrã por cima do balcão
enquanto conversavam.
Hoje, às três da tarde, Jule empoleirou-se no banco no canto do balcão, ainda
de fato de banho. Donovan vestia um blazer branco do Playa Grande e uma T-
shirt. Estavam a crescer-lhe uns pelos da barba no pescoço.
– Qual é o filme? – perguntou-lhe ela, olhando para cima para a televisão.
– O Hulk.
– Qual deles?
– Não sei.
– Foste tu quem pôs o DVD. Como podes não saber?
– Nem sequer sabia que havia dois Hulks.
– Há três Hulks. Espera, retiro o que disse. Há vários Hulks. Se contarmos
com os da televisão, da banda desenhada, isso tudo.
– Não sei que Hulk é, Miss Williams.
O filme continuava no ecrã. Donovan passou uns copos por água e limpou o
balcão. Preparou um uísque escocês com água com gás para uma cliente, o que
o levou para o outro extremo da zona da piscina.
– É o segundo melhor Hulk – disse Jule, quando voltou a ter a atenção de
Donovan. – Como se diz uísque escocês em espanhol?
– Escocés.
– Escocés. Qual é uma marca boa para se beber?
– A menina nunca bebe.
– Mas se bebesse.
– O Macallan – disse Donovan, encolhendo os ombros. – Quer que lhos dê a
provar?
Deitou em cinco copos de shot diferentes marcas de uísque escocês da
melhor qualidade. Explicou as diferenças entre scotches e whiskeys, e porque
se mandaria vir um e não o outro. Jule provou cada um deles, mas não bebeu
muito.
– Este cheira a sovaco – disse-lhe ela.
– A menina é louca.
– E este cheira a gasolina de isqueiro.
Ele debruçou-se sobre o copo para o cheirar. – Talvez.
Ela apontou para o terceiro. – Mijo de cão, tipo, de um cão mesmo furioso.
Donovan riu-se. – A que cheiram os outros? – perguntou.
– A sangue seco – disse Jule. – E àquele pó que se usa para limpar casas de
banho. Aquele pó de limpeza.
– Qual prefere?
– O do sangue seco – disse ela, enfiando o dedo no copo e provando-o
novamente. – Diz-me como se chama.
– É o Macallan. – Donovan retirou os copos. – Oh, e esqueci-me de lhe
dizer: esteve aqui uma senhora a perguntar por si. Ou talvez não por si. Talvez
ela se tivesse confundido.
– Que senhora?
– Uma senhora mexicana. A falar espanhol. Perguntou-me por uma rapariga
americana branca com cabelo louro curto, que viaja sozinha – disse Donovan. –
Referiu-se a sardas. – Tocou no seu próprio rosto. – No nariz.
– O que é que lhe disseste?
– Disse que é um resort grande. Muitos americanos. Não sei quem está cá
sozinho e quem não está.
– Não sou americana – disse Jule.
– Eu sei. Portanto, disse-lhe que não tinha visto ninguém assim.
– Foi o que disseste?
– Foi.
– Mas não deixaste de pensar em mim.
Donovan olhou para Jule por um longo minuto. – Pensei de facto em si –
disse por fim. – Não sou estúpido, Miss Williams.
Noa sabia que ela era americana.
Isso significava que Noa era da polícia. Ou coisa do género. Tinha de ser.
Tentara iludir Jule com aquela conversa toda. O pai doente, Dickens, ficar
órfã. Noa soubera exatamente o que dizer. Lançara aquele isco – «o meu pai
está muito doente» – e Jule mordera-o logo, faminta.
Ficou com o rosto quente. Era a solidão e a fraqueza e uma estupidez do
caraças que a tinham feito cair na esparrela de Noa. Era tudo uma artimanha
para que Jule a visse como uma confidente, não uma adversária.
Jule voltou para o seu quarto com um ar tão relaxado quanto conseguia
aparentar. Uma vez dentro do quarto, tirou os seus pertences valiosos do cofre.
Vestiu umas calças de ganga e uma T-shirt, calçou umas botas e meteu na sua
pequena mala tanta roupa quanta cabia nela. O resto deixou ficar. Pousou em
cima da cama uma gorjeta de cem dólares para Gloria, a criada com quem
falava por vezes. A seguir, empurrou a mala de rodinhas pelo corredor e
arrumou-a ao lado da máquina do gelo.
De volta ao bar da piscina, Jule disse a Donovan onde se encontrava a mala.
Passou uma nota de vinte dólares americanos sobre o balcão.
Pediu um favor.
Passou mais uma nota de vinte e deu instruções.
No parque de estacionamento do pessoal, Jule olhou à sua volta e deu com o
pequeno automóvel azul do empregado do bar, com a porta destrancada. Entrou
e deitou-se no chão na parte de trás. Estava cheio de sacos e copos de plástico
vazios.
Teria de esperar uma hora até Donovan terminar o seu turno no bar. Com
sorte, Noa só se aperceberia de que se passava alguma coisa quando Jule já
estivesse muito atrasada para o concurso dessa noite, talvez por volta das oito e
meia. A seguir, investigaria o shuttle do aeroporto e os registos da empresa de
táxis antes de pensar no parque de estacionamento do pessoal.
Estava abafado e quente dentro do carro. Jule pôs-se à escuta de passos.
Teve uma cãibra no ombro. Sentia sede.
Donovan ajudá-la-ia, correto?
Correto. Já tinha mentido a encobri-la. Dissera a Noa que não conhecia
ninguém que correspondesse à descrição dela. Avisara Jule e prometera ir
buscar a sua mala e dar-lhe boleia. Ela pagara-lhe, também.
Além disso, Donovan e Jule eram amigos.
Jule estendeu as pernas, uma de cada vez, e a seguir voltou a dobrar-se no
espaço por trás dos assentos.
Pensou no que trazia e a seguir tirou os brincos e o anel de jade, enfiando-os
no bolso das suas calças de ganga. Forçou-se a acalmar a respiração.
Finalmente, ouviu-se o som de uma mala com rodinhas. O baque da mala do
carro a ser fechada. Donovan sentou-se ao volante, ligou o motor e saiu do
parque de estacionamento. Jule manteve-se no chão do carro. Havia poucos
candeeiros na estrada. Na rádio passava música pop mexicana.
– Para onde quer ir? – perguntou Donovan por fim.
– Para qualquer parte da cidade.
– Vou para casa, então. – De repente, a sua voz soava predadora.
Com um raio. Teria feito mal em meter-se no carro dele? Seria Donovan um
daqueles tipos que julgam que uma rapariga que queira um favor tem de dar
umas voltas com ele?
– Deixa-me ficar a caminho da tua casa – disse-lhe num tom ríspido. – Eu
trato de mim.
– Não tem de o dizer dessa maneira – disse ele. – Estou a arriscar-me por si
neste momento.
Imagine-se isto: uma casa acolhedora nos arredores de uma cidade no
Alabama. Uma noite, Jule, com oito anos, acorda no escuro. Terá ouvido um
ruído?
Não tem a certeza. A casa está em silêncio.
Vai ao andar de baixo na sua camisa de noite fina cor-de-rosa.
No rés do chão, trespassa-a um frio gélido. A sala de estar está virada de
pernas para o ar, livros e papéis por todo o lado. O escritório está ainda pior. Os
armários de arquivo foram derrubados. Os computadores foram-se.
– Mamã? Papá? – A Pequena Jule volta a correr para o andar de cima para
espreitar para o quarto dos pais.
As camas deles estão vazias.
Agora sente-se verdadeiramente assustada. Abre a porta da casa de banho.
Eles não estão lá. Corre para o exterior.
O jardim é cercado por árvores altas. A Pequena Jule vai a meio do caminho
quando se apercebe do que está a ver ali, no círculo de luz criado por um
candeeiro.
A mamã e o papá estão deitados no relvado, de cara para baixo. Os seus
corpos estão enroscados e moles. O sangue forma uma poça negra por baixo
deles. A mamã foi atingida no cérebro por um tiro. Deve ter morrido
instantaneamente. O papá está claramente morto, mas os únicos ferimentos que
Jule consegue ver são nos seus braços. Deve ter sangrado até à morte. Está
enroscado à volta da mamã, como se só tivesse pensado nela nos seus últimos
momentos de vida.
Jule volta a correr para dentro de casa para telefonar à polícia. A linha
telefónica está cortada.
Regressa ao jardim, a querer dizer uma oração, a pensar em dizer adeus, pelo
menos – mas os corpos dos seus pais desapareceram. O seu assassino levou-os.
Não se permite chorar. Fica sentada durante o resto da noite naquele círculo
de luz do candeeiro, a deixar empapar a camisa de noite com o sangue espesso.
Nas duas semanas seguinte, a Pequena Jule fica sozinha naquela casa
saqueada. Mantém-se forte. Cozinha para se alimentar e organiza os papéis
deixados, à procura de pistas. Enquanto lê os documentos, vai encaixando as
peças de vidas de heroísmo, poder e identidades secretas.
Uma tarde, está no sótão a ver fotografias antigas quando aparece nessa
divisão uma mulher de preto.
A mulher avança um passo, mas a Pequena Jule é rápida. Arremessa um
abre-cartas, com força e rápida, mas a mulher apanha-o na mão esquerda. A
Pequena Jule trepa por uma pilha de caixotes, agarra-se a uma trave do teto do
sótão e iça-se. Corre ao longo da trave e enfia-se por um postigo no telhado. O
pânico martela-lhe o peito.
A mulher corre atrás dela. Jule salta do telhado para os ramos de uma árvore
vizinha e quebra um galho aguçado para usar como arma. Segura-o na boca
enquanto desce da árvore. Está a correr para o matagal quando a mulher a
atinge com um tiro no tornozelo.
A dor é intensa. A Pequena Jule tem a certeza de que a assassina dos seus
pais voltou para acabar com ela – mas a mulher de preto ajuda-a a levantar-se e
ocupa-se da ferida. Remove a bala e trata a ferida com um antissético.
Enquanto a mulher lhe liga o tornozelo, explica que é uma recrutadora. Tem
estado a observar Jule nas duas últimas semanas. Jule não só é filha de duas
pessoas excecionalmente capazes, mas também possui um intelecto notável
com um instinto de sobrevivência feroz. A mulher quer treinar Jule e ajudá-la a
procurar vingança. Já que é uma espécie de tia há muito julgada perdida. Está a
par dos segredos que aqueles pais guardaram da sua adorada filha única.
Ali começa uma educação muito fora do comum. Jule vai para uma academia
especializada, instalada numa mansão renovada numa rua normal da cidade de
Nova Iorque. Aprende técnicas de vigilância e a fazer saltos mortais para trás, e
torna-se mestre na remoção de algemas e coletes de forças. Usa calças de pele e
enche os bolsos com engenhocas. Há aulas de línguas estrangeiras, costumes
sociais, literatura, artes marciais, uso de armas de fogo, disfarces, sotaques
variados, métodos de falsificação e questões específicas da lei. Os seus estudos
levam dez anos. Quando acabam, Jule tornou-se o tipo de mulher que seria um
grande erro subestimar.
Esta era a história da origem de Jule West Williams. Na altura em que estava
a viver no Playa Grande, Jule preferia-a a qualquer outra história que poderia
contar sobre si mesma.
Donovan parou e abriu a porta do lado do condutor. A luz acendeu-se dentro
do carro.
– Onde estamos? – perguntou Jule. Estava escuro lá fora.
– Em San José del Cabo.
– É onde vives?
– Não muito perto.
Jule sentiu-se aliviada, mas parecia muito escuro lá fora. Não deveria haver
candeeiros e lojas, iluminadas para os turistas? – Está alguém por perto? –
perguntou.
– Estacionei num beco para que não fosse vista a sair do meu carro.
Jule rastejou para fora do carro. Sentia os músculos rígidos e a sensação de
ter uma camada de gordura no rosto. O beco estava ladeado por contentores do
lixo. A única luz vinha de um par de janelas num segundo andar. – Obrigada
pela boleia. Abres a mala do carro, por favor?
– Disse cem dólares americanos quando a trouxesse para a cidade.
– É claro. – Jule tirou a carteira do bolso de trás e pagou.
– Mas agora é mais – acrescentou Donovan.
– O quê?
– Mais trezentos.
– Pensei que éramos amigos.
Ele deu um passo na direção dela. – Preparo-lhe bebidas porque é o meu
trabalho. Finjo que gosto de conversar consigo porque também faz parte do
meu trabalho. Pensa que não vejo como me olha de alto? O segundo melhor
Hulk. Que tipo de uísque escocês. Nós não somos amigos, Miss Williams.
Mente-me metade do tempo e eu minto-lhe o tempo todo. – Jule sentia o cheiro
a álcool derramado na camisa de Donovan. O seu hálito quente no rosto dela.
Jule acreditara sinceramente que Donovan simpatizava com ela. Tinham
contado piadas um ao outro e ele dava-lhe batatas fritas de graça. – Uau – disse
ela baixinho.
– Mais trezentos – disse ele.
Seria um pequeno patife a raptar uma rapariga que trazia na sua pessoa
muitos dólares americanos? Ou um ordinário que julgava que ela preferiria
esfregar-se nele do que dar-lhe os trezentos dólares extra? Noa tê-lo-ia
subornado?
Jule voltou a meter a carteira do dinheiro no bolso. Mudou a posição da alça
do seu saco para o pôr a tiracolo. – Donovan? – Deu um passo em frente, a
aproximar-se. Fitou-o com os olhos muito abertos.
E então ergueu o braço direito com força, atirou-lhe a cabeça para trás e
assentou-lhe um murro no baixo-ventre. Ele dobrou-se pela cintura. Jule
agarrou-o pelo cabelo liso e puxou-lhe a cabeça para trás. Fê-lo rodopiar,
forçando-o a desequilibrar-se.
Ele acotovelou-a no peito. Doeu-lhe, mas a segunda cotovelada falhou, com
ela a desviar-se, a agarrar o cotovelo de Donovan e a dobrá-lo por trás das
costas dele. O seu braço era mole, repulsivo. Segurou-o com força e com a mão
livre arrancou o dinheiro aos seus dedos gananciosos.
Enfiou o dinheiro no bolso das suas calças de ganga e puxou com força o
cotovelo de Donovan enquanto palpava os seus bolsos da frente, à procura do
telemóvel.
Não o encontrou. No bolso de trás, então.
Encontrou-o e enfiou-o no seu soutien, à falta de outro lugar. Agora, ele não
poderia telefonar a Noa a indicar a localização de Jule, mas continuava a ter as
chaves do carro na mão esquerda.
Donovan esperneou, atingindo-a na canela. Jule deu-lhe um muro no lado do
pescoço e ele cambaleou para a frente. Um empurrão forte e tombou por terra.
Começou a tentar levantar-se, mas Jule pegou numa tampa de metal de um dos
caixotes do lixo ali perto e bateu-lhe na cabeça duas vezes, e ele desabou sobre
um monte de sacos do lixo, a sangrar da testa e de um olho.
Jule recuou até ficar fora do seu alcance. Ainda tinha a tampa na mão. –
Larga as chaves do carro.
A gemer, Donovan estendeu a mão esquerda e atirou-as, de modo que
aterraram a uns cinco centímetros do seu corpo.
Jule pegou nas chaves e abriu a mala do carro. A seguir, tirou a sua mala de
viagem e desatou a correr pela rua abaixo antes de Donovan conseguir pôr-se
de pé.
Abrandou o passo mal chegou à rua principal em San José del Cabo e
verificou o estado da sua camisa. Parecia razoavelmente limpa. Passou a mão
pelo rosto de um modo lento e calmo, para o caso de haver alguma coisa nele –
sujidade, saliva ou sangue. Tirou um espelhinho do saco e viu-se a ele
enquanto continuava a andar, usando o espelho para olhar por cima do ombro.
Não havia ninguém por trás dela.
Aplicou batom mate, fechou o espelhinho e abrandou o passo ainda mais.
Não podia dar a impressão de que estava a fugir de alguma coisa.
O ar estava quente e saía música dos bares. Os turistas andavam por ali, a
passear em frente a muitos dos bares – brancos, negros e mexicanos, todos
bêbedos e ruidosos. Turistas de férias baratas. Jule atirou as chaves e o
telemóvel de Donovan para um caixote do lixo. Olhou à volta à procura de um
táxi ou de um autocarro supercabos, mas não viu nem um, nem outro.
OK, então.
Precisava de se esconder e mudar de roupa, para o caso de Donovan vir atrás
dela. Persegui-la-ia, se trabalhava para Noa. Ou se queria vingança.
Imagina-te agora, num filme. Passam sombras pela tua pele lisa enquanto
continuas a andar. Começam a formar-se equimoses por baixo das roupas, mas
o teu cabelo está com um aspeto excelente. Estás armada com todo o tipo de
equipamento, placas finas de metal que desempenham feitos assombrosos de
tecnologia e assalto. Trazes contigo venenos e antídotos.
És o centro da história. Tu e mais ninguém. Tens aquela interessante história
da tua origem, aquela educação pouco comum. Agora és implacável, és
brilhante, és praticamente destemida. Há um número de corpos no teu rasto,
porque fazes o que for necessário para te manteres viva – mas são ossos do
ofício, é tudo.
Tens um aspeto soberbo à luz das montras dos bares mexicanos. Depois de
uma luta, ficas com as faces coradas. E, oh, as tuas roupas ficam-te mesmo a
matar.
Sim, é verdade que és criminosamente violenta. Brutal até. Mas é o teu
trabalho e tens qualificações únicas para ele, portanto isso é sexy.
Jule já tinha visto uma carrada de filmes. Sabia que as mulheres raramente
eram o centro de tais histórias. Eram antes um prazer para os olhos, um troféu a
levar pelo braço, vítimas ou objetos de atração. Na maior parte dos casos,
existiam para ajudar o grande herói branco e heterossexual na porra da sua
viagem épica. Quando existia uma heroína, pesava muito pouco, usava
pouquíssima roupa e tinha arranjado os dentes.
Jule sabia que não se parecia com essas mulheres. Nunca se pareceria com
essas mulheres. Mas era tudo o que aqueles heróis eram e, em certos aspetos,
ainda mais.
Também sabia isso.
Chegou ao terceiro bar do Cabo e entrou. Estava mobilado com mesas de
piquenique e decorado com peixes empalhados nas paredes. Os clientes eram
na sua maioria americanos, a embebedarem-se depois de um dia de pesca
desportiva. Jule dirigiu-se rapidamente para as traseiras, lançou um olhar por
cima do ombro e entrou na casa de banho dos homens.
Estava vazia. Enfiou-se num dos cubículos. Donovan nunca viria à sua
procura aqui.
O assento da sanita estava molhado e amarelo. Jule procurou na mala até
encontrar uma peruca preta – um corte à pagem com franja. Pô-la, limpou o
batom dos lábios, aplicou um brilho escuro e pó de arroz. Abotoou um casaco
de malha de algodão preto por cima da sua T-shirt branca.
Entrou um tipo e usou o urinol. Jule manteve-se imóvel, contente por estar de
calças de ganga e botas pretas pesadas. Só os seus pés e a parte inferior da sua
mala seriam visíveis na parte de baixo da abertura do cubículo.
Entrou um segundo tipo, que se meteu no cubículo ao lado do seu. Jule olhou
para os sapatos dele.
Era Donovan.
Aqueles eram os Crocs brancos e sujos dele. Aquelas eram as suas calças do
Playa Grande, à enfermeiro. Jule sentia o sangue latejar-lhe nos ouvidos.
Pegou silenciosamente na mala e segurou-a para que ele não pudesse vê-la.
Manteve-se imóvel.
Donovan puxou o autoclismo e Jule ouviu-o arrastar os pés até ao lavatório.
Ele abriu a torneira.
Entrou outro tipo. – Pode emprestar-me o telemóvel? – perguntou Donovan
em inglês. – É só para fazer uma chamada rápida.
– Alguém lhe deu uma coça, meu? – O outro tipo tinha sotaque americano,
da Califórnia. – Está com um ar de quem passou das boas.
– Estou bem – disse Donovan. – Só preciso de um telefone.
– Não tenho chamadas aqui, só mensagens – disse o tipo. – Tenho de voltar
para junto dos meus amigos.
– Eu não vou roubá-lo – disse Donovan. – Só preciso de...
– Eu já disse que não, OK ? Mas tudo de bom, pá. – O outro tipo saiu sem
usar a casa de banho.
Donovan queria um telefone porque não tinha as chaves do carro e precisava
de uma boleia? Ou porque queria telefonar a Noa?
Respirava pesadamente, como se estivesse com dores. Não voltou a abrir a
torneira.
Por fim, saiu da casa de banho.
Jule pousou a mala de viagem. Sacudiu as mãos para ativar a circulação e
estendeu os braços por trás das costas. Ainda no cubículo, contou o seu
dinheiro, tanto os pesos como os dólares. Verificou a peruca no seu espelhinho.
Quando teve a certeza de que Donovan tinha partido, saiu confiante e sem
alardes da casa de banho dos homens e dirigiu-se para a rua. Lá fora, abriu
caminho por entre as multidões de pessoas a divertir-se até uma esquina e teve
sorte. Apareceu um táxi. Ela apressou-se a entrar e mandou seguir para o Grand
Solmar, o resort ao lado do Playa Grande.
No Grand Solmar, arranjou facilmente um segundo táxi. Pediu ao novo
motorista que a levasse a uma pensão barata e de proprietários locais na cidade.
Ele levou-a à Cabo Inn.
Era uma espelunca. Paredes finas, tinta suja, mobília de plástico, flores de
plástico em cima do balcão. Jule fez o check-in sob um nome falso e pagou ao
rececionista em pesos. Ele não lhe pediu um documento de identificação.
No quarto, Jule usou a pequena máquina do café para fazer uma chávena de
descafeinado. Sentou-se na beira da cama.
Tinha de fugir?
Não.
Sim.
Não.
Ninguém sabia onde ela estava. Ninguém à face da Terra. Esse facto deveria
fazê-la feliz. Quisera desaparecer, ao fim e ao cabo.
Mas sentia medo.
Queria Paolo. Queria Imogen.
Queria poder anular tudo o que tinha acontecido.
Se ao menos pudesse recuar no tempo, sentiu Jule, seria uma pessoa melhor.
Ou uma pessoa diferente. Seria mais ela própria. Ou talvez menos ela própria.
Não sabia qual das opções, porque já não sabia em que estado estava o seu eu
ou se na realidade não havia nenhuma Jule, mas apenas uma série de eus que
apresentava em diferentes contextos.
Seriam todas as pessoas assim, sem um verdadeiro eu?
Ou seria só Jule?
Não sabia se era capaz de amar o seu próprio estranho coração estraçalhado.
Queria que outra pessoa o fizesse por ela, que o visse bater por trás das costelas
e dissesse: Consigo ver o teu verdadeiro eu. Está aí e é raro e valioso. Amo-te.
Que sombrio e estúpido era ser estraçalhada e estranha, não ter uma forma
específica, não ter um eu quando a vida se estendia perante ela. Jule possuía
muitos talentos raros. Trabalhava no duro e realmente tinha muito para
oferecer, com um raio. Sabia tudo isso.
Então, porque se sentia ao mesmo tempo sem valor?
Queria telefonar a Imogen. Desejava poder ouvir o riso baixo de Immie e as
suas frases sem pausas a revelarem segredos. Desejava poder dizer a Imogen:
Estou com medo. E Immie diria: Mas tu és corajosa, Jule. És a pessoa mais
corajosa que conheço.
Desejava que Paolo viesse e pusesse os braços à sua volta, dizendo-lhe como
dissera uma vez que ela era uma pessoa de primeira, excelente.
Desejava que houvesse alguém que a amasse incondicionalmente, alguém
que lhe perdoasse fosse o que fosse. Ou melhor ainda, alguém que soubesse
tudo e a amasse por isso.
Nem Paolo nem Immie seriam capazes de tal.
Mesmo assim, Jule recordava-se da sensação dos lábios de Paolo nos seus e
do cheiro a jasmim do perfume de Immie.
De peruca preta, Jule desceu ao escritório da pensão Cabo Inn. Tinha
delineado a sua estratégia. O escritório estava fechado a esta hora da noite, mas
ela deu uma gorjeta ao rececionista da noite para que lho abrisse. No
computador, reservou um voo de San José del Cabo para Los Angeles para a
manhã do dia seguinte. Usou o seu próprio nome e o seu cartão de crédito
habitual, o mesmo que usara no La Playa Grande.
A seguir, perguntou ao rececionista onde poderia comprar um carro a
dinheiro. Ele disse que havia um sujeito que fazia negócio nas traseiras da sua
casa e que poderia vender-lhe qualquer coisa na manhã seguinte com dólares
americanos. Escreveu uma morada, na Ortiz junto à Ejido, disse.
Noa andava a vigiar as transações com cartões de crédito. Devia andar a
fazê-lo, ou nunca teria encontrado Jule. Agora, a detetive veria a nova despesa
e iria para Los Angeles. Jule compraria um carro a dinheiro e conduziria na
direção de Cancùn. De Cancùn, acabaria por ir até à ilha de Culebra, em Porto
Rico, onde havia carradas de americanos que nunca mostravam o passaporte a
ninguém.
Agradeceu ao rececionista a informação sobre o vendedor de automóveis. –
Não vai lembrar-se da nossa conversa, pois não? – disse, empurrando outra
nota de vinte por cima do balcão.
– Sou capaz – disse ele.
– Não, não vai. – Acrescentou uma nota de cinquenta.
– Nunca a vi – disse ele.
Dormiu mal. Ainda pior do que o costume. Sonhos de afogamento em águas
quentes azuis-turquesa; sonhos de gatos abandonados a andarem em cima do
corpo dela enquanto dormia; sonhos de estrangulamento por serpente. Jule
acordou a gritar.
Bebeu água. Tomou um duche frio.
Adormeceu e acordou a gritar de novo.
Às cinco da manhã, cambaleou até à casa de banho, lavou o rosto e pintou os
olhos. Porque não? Gostava de maquilhagem. Tinha tempo. Aplicou concealer
e pó, acrescentou uma sombra esfumada, depois rímel e um batom quase preto
com um brilho por cima.
Pôs gel no cabelo e vestiu-se. Calças de ganga preta, botas mais uma vez e
uma T-shirt escura. Uma indumentária demasiado quente para o calor
mexicano, mas prática. Fez a mala, bebeu uma garrafa de água e deu uns
passos para fora do quarto.
*

Noa estava sentada no corredor, com as costas contra a parede, a segurar uma
chávena de café fumegante entre as mãos.
À espera.
17

FINAIS DE ABRIL, 2017


LONDRES

S ete semanas antes, no final de abril, Jule acordou num albergue da


juventude nos arredores de Londres. Havia oito camas de beliche em cada
quarto: colchões finos, cobertos com os lençóis brancos da praxe. Em cima,
estavam pousados sacos-cama. Mochilas encostadas às paredes. Havia um
fedor ténue a odor corporal e patchuli.
Dormira com a roupa do ginásio vestida. Levantou-se, apertou os atacadores
dos ténis e foi correr treze quilómetros pelo subúrbio, passando por pubs e
talhos ainda fechados na primeira luz da manhã. Ao regressar, fez prancha,
alongamentos, flexões e agachamentos na sala de estar do albergue.
Jule já estava no chuveiro antes de as suas colegas de quarto acordarem e
começou a usar a água quente. A seguir, voltou a trepar para a sua cama de
beliche e desembrulhou uma barra proteica de chocolate.
O dormitório ainda se encontrava às escuras. Jule abriu O Amigo Comum e
pôs-se a ler à luz do telemóvel. Era um romance vitoriano grosso sobre um
órfão. Tinha sido escrito por Charles Dickens. A sua amiga Imogen tinha-lho
oferecido.
Imogen Sokoloff era a melhor amiga que Jule alguma vez tivera. Os seus
livros favoritos eram sempre sobre órfãos. A própria Immie era órfã, nascida no
Minnesota de uma mãe adolescente que morrera quando Immie tinha dois anos.
Depois, foi adotada por um casal que vivia num luxuoso apartamento num
último andar no Upper East Side de Nova Iorque.
Patti e Gil Sokoloff andavam pelos trinta e muitos anos na altura. Não
podiam ter filhos, e o trabalho de Gil na área do Direito incluía há muito
tempo, em regime de voluntariado, a defesa de crianças no sistema de
acolhimento. Ele acreditava na adoção. Portanto, após vários anos em listas de
espera por um bebé recém-nascido, os Sokoloff declararam-se dispostos a
aceitar uma criança mais velha.
Apaixonaram-se pelos braços gorduchos e o nariz cheio de sardas daquela
menina de dois anos. Acolheram-na, deram-lhe o nome Imogen e deixaram o
seu antigo nome num armário de arquivo. Fotografavam-na e faziam-lhe
cócegas. Patti cozinhava-lhe macarrão com manteiga e queijo. Quando a
pequena Immie tinha cinco anos, os Sokoloff matricularam-na no Colégio
Greenbriar, um estabelecimento de ensino particular em Manhattan. Aí, usava
um uniforme verde e branco e aprendeu a falar francês. Aos fins de semana, a
pequena Immie brincava com Legos, fazia bolachas e ia ao Museu Americano
de História Natural, onde preferia os esqueletos de répteis. Comemorava todos
os feriados da fé judaica e, quando cresceu, teve uma cerimónia não-ortodoxa
do bat mitzvah nos bosques no norte do estado de Nova Iorque.
A questão do bat mitzvah foi algo complicada. A mãe de Patti e os pais de
Gil não consideravam Imogen judia, porque a sua mãe biológica não o fora.
Todos insistiam num processo de conversão formal que adiaria a cerimónia por
um ano, mas em vez disso Patti abandonou a sinagoga da família e aderiu a
uma comunidade secular judaica que realizava cerimónias num retiro na
montanha.
Foi assim que, aos treze anos, Imogen Sokoloff se tornou mais consciente do
seu estatuto de órfã do que alguma vez estivera e começou a ler as histórias que
se tornariam a pedra basilar da sua vida interior. Inicialmente, voltou aos livros
sobre órfãos que tinha sido obrigada a ler na escola. Havia uma grande
quantidade desses. «Gostava das roupas e das sobremesas e das carruagens
puxadas a cavalos» contou Immie a Jule.
Em junho passado, as duas tinham estado a viver numa casa que Immie
arrendara na ilha de Martha’s Vineyard. Nesse dia, foram de carro a uma quinta
onde se podia colher flores.
– Gostava da Heidi e Deus sabe de que outras tretas – disse Immie a Jule.
Estava debruçada sobre um arbusto de dálias com uma tesoura na mão. – No
entanto, mais tarde, todos esses livros me davam vontade de vomitar. As
heroínas andavam sempre animadas como o caraças. Eram modelos de
feminilidade abnegada. Tipo, «Estou a morrer à fome! Aqui tens, come o único
pãozinho que me resta!» «Não consigo andar, estou paralisada, mas mesmo
assim sou capaz ver o lado bom da vida, feliz feliz!» Aqueles livros, tipo, Uma
Princesinha e Poliana, deixa que te diga, estão a vender-te uma data de
mentiras horrendas. Quando me apercebi disso, deixei de gostar deles.
Tendo acabado de compor o seu ramo, Immie içou-se e empoleirou-se na
vedação de madeira. Jule ainda continuava a colher flores.
– Na secundária, li Jane Eyre, A Feira das Vaidades, Grandes Esperanças,
etc. – continuou Immie. – São, tipo, os órfãos mais arrojados.
– Os livros que me deste – disse Jule, tomando consciência desse facto.
– Sim. Tipo, em A Feira das Vaidades, a Becky Sharp é uma máquina de
ambição. Nada a faz parar. A Jane Eyre faz birras, atira-se para o chão. O Pip,
em Grandes Esperanças, está iludido e quer imenso ter dinheiro. Todos
desejam uma vida melhor e tentam consegui-la, e todos são moralmente
duvidosos. Isso torna-os interessantes.
– Já gosto deles – disse Jule.
*

Imogen tinha entrado para a universidade, Vassar College, em grande medida


por causa do ensaio que escrevera sobre essas personagens. Não sentia grande
predileção pelos estudos para além disso, admitia. Não gostava que as pessoas
lhe dissessem o que fazer. Quando os professores a mandaram ler os autores
gregos da Antiguidade, não o fez. Quando a sua amiga Brooke lhe disse que
lesse Suzanne Collins, também não o fez. E quando a sua mãe lhe disse que se
esforçasse mais nos estudos, Immie desistiu de estudar.
É claro que a pressão não fora a única razão para Immie deixar Vassar. A
situação era desesperadamente complicada. Mas a natureza controladora de
Patti Sokoloff foi decididamente um dos fatores.
– A minha mãe acredita no sonho americano – disse Imogen. – E quer que eu
também acredite nele. Os pais dela nasceram na Bielorrússia. Compraram o
pacote todo sem hesitações. Sabes, aquela ideia de que aqui nos US of A
qualquer pessoa pode chegar ao topo. Não importa de onde partes, um dia
podes governar o país, ficar rico, ter uma mansão. Correto?
Esta conversa aconteceu um pouco mais tarde durante o verão em Martha’s
Vineyard. Jule e Immie estavam em Moshup Beach, na praia. Tinham uma
grande manta de algodão estendida por baixo delas.
– É um sonho bonito – disse Jule, metendo uma batata frita na boca.
– A família do meu pai também foi nele – prosseguiu Imogen. – Os avós dele
vieram da Polónia e viviam num apartamento modesto. Depois, o pai dele saiu-
se bem na vida e era proprietário de uma charcutaria. Era suposto que o meu
pai subisse ainda mais na vida, fosse o primeiro na família a andar na
universidade, portanto foi exatamente o que ele fez. Tornou-se, tipo, um
advogado importante. Os pais dele ficaram muito orgulhosos. Parecia-lhes
simples: deixar o velho país para trás e reinventar a tua vida. E se tu não
conseguisses concretizar totalmente o sonho americano, os teus filhos fá-lo-iam
por ti.
Jule adorava ouvir Immie falar. Nunca conhecera ninguém que falasse tão
livremente. Divagava bastante, mas falava sempre com curiosidade e de um
modo refletido. Não parecia censurar-se ou ensaiar as suas frases.
Simplesmente falava, num fluxo que a fazia parecer alternadamente
questionadora e desesperada por ser ouvida.
– Terra de oportunidades – disse Jule agora, só para ver em que direção iria
Immie.
– É no que eles acreditam, mas não penso que seja realmente verdade –
respondeu Immie. – Tipo, podes concluir, ao fim de meia hora a ver as notícias,
que há mais oportunidades para pessoas brancas. E para pessoas que falam
inglês.
– E para pessoas com o teu tipo de pronúncia.
– Da Costa Leste? – disse Immie. – Sim, suponho que sim. E para pessoas
sem incapacidades. Oh, e para os homens. Homens, homens, homens! Os
homens continuam a comportar-se como se os US of A fossem uma grande
pastelaria e os bolos todos fossem para eles. Não achas?
– Não vou deixar que fiquem com o meu bolo – disse Jule. – A porra do bolo
é meu e vou comê-lo.
– Sim. Defende o teu bolo – disse Immie. – E arranja bolo de chocolate com
cobertura de chocolate e, tipo, cinco camadas. Mas, para mim, a questão é...
podes chamar-me estúpida, mas não quero bolo. Talvez nem sequer tenha
fome. Só estou a tentar ser. Existir e desfrutar do que está mesmo à minha
frente. Sei que é um luxo e que talvez seja uma parvalhona por me poder
sequer dar a esse luxo, mas também penso que estou a tentar apreciá-lo, minha
gente! Deixem-me só sentir-me grata por me encontrar aqui nesta praia e não
sentir que devia estar a esforçar-me todo o tempo.
– Penso que estás enganada quanto ao sonho americano – disse Jule.
– Não, não estou. Porquê?
– O sonho americano é ser um herói de ação.
– A sério?
– Os americanos gostam de travar guerras – disse Jule. – Queremos mudar
leis ou quebrá-las. Gostamos de justiceiros. Somos loucos por eles, correto? Os
super-heróis e os filmes da série Taken e coisas do género. Temos tudo a ver
com a corrida ao Oeste para nos apoderarmos de terras que pertenciam a outro
povo. Chacinar os alegados mauzões e combater o sistema. Esse é que é o
sonho americano.
– Diz isso à minha mãe – disse Immie. – Diz-lhe: Olá! Quando for grande, a
Immie quer ser uma justiceira em vez de capitã da indústria. A ver como corre.
– Eu tenho uma conversa com ela.
– Ótimo. Isso vai resolver tudo. – Immie soltou uma risadinha e virou-se na
manta da praia. Tirou os óculos de sol. – Ela tem ideias sobre mim que não
encaixam. Tipo, quando eu era pequena, teria sido muito importante para mim
ter um par de amigos que também tivessem sido adotados, para não me sentir
só ou diferente ou o que fosse, mas nessa altura ela só dizia: A Immie está bem,
não precisa disso, nós somos tal e qual como outras famílias! Depois, daí a
quinhentos anos, quando eu andava no décimo ano, leu um artigo numa revista
sobre crianças adotadas e decidiu que eu tinha de fazer amizade com uma
rapariga, a Jolie, que tinha acabado de entrar para o Greenbriar.
Jule lembrava-se. A rapariga da festa de aniversário e do American Ballet
Theatre.
– A minha mãe tinha a fantasia de nós as duas criarmos laços, e eu tentei,
mas aquela rapariga não gostava mesmo nada de mim – prosseguiu Immie. –
Tinha cabelo azul. Tipo, «sou muito mais fixe do que tu». Gozava-me por
causa daquela minha coisa dos gatos vadios e por ler a Heidi, e fazia pouco da
música de que eu gostava. Mas a minha mãe andava sempre a telefonar à mãe
dela e a mãe dela andava sempre a telefonar à minha, a fazerem planos para
nós as duas. Imaginavam toda uma ligação de filhas adotivas entre nós que
nunca existiu . – Imogen suspirou. – Era simplesmente triste. Mas depois ela
mudou-se para Chicago e a minha mãe desistiu.
– Agora tens-me a mim – disse Jule.
Immie estendeu o braço para tocar na nuca de Jule. – Agora tenho-te a ti, o
que me torna significativamente menos desequilibrada mental.
– Menos desequilibrada mental é bom.
Immie abriu a mala térmica e encontrou duas garrafas de chá gelado caseiro.
Metia sempre na mala bebidas para a praia. Jule não gostava das rodelas de
limão que flutuavam no chá, mas bebeu um pouco, de qualquer maneira.
– Ficas bonita com o cabelo curto – disse Immie, tocando de novo no
pescoço de Jule.
*

Nas férias de inverno no primeiro ano em Vassar, Imogen tinha vasculhado o


armário de arquivo de Gil Sokoloff à procura dos seus papéis de adoção. Não
foram difíceis de encontrar.
– Suponho que pensei que ler o registo me daria alguma revelação sobre a
minha identidade – disse. – Como se ficar a saber nomes pudesse explicar
porque me sentia tão infeliz na faculdade ou fazer-me sentir enraizada de
alguma maneira como nunca me sentira. Mas não.
Nesse dia, Immie e Jule tinham ido de carro a Menemsha, uma vila piscatória
não muito distante da casa de Immie em Vineyard. Percorreram um molhe de
pedra que avançava pelo mar dentro. Andavam gaivotas à volta lá em cima. As
ondas vinham rebentar aos pés delas. Immie e Jule eram da mesma altura, e,
sentadas nos rochedos, as suas pernas esticadas estavam morenas, brilhantes
com o protetor solar.
– É, foi uma perda total de tempo – disse Imogen. – Não aparecia o nome do
pai.
– Que nome te deram à nascença?
Immie corou e puxou o capuz a tapar o rosto por um momento. Tinha
covinhas fundas nas faces e dentes muito certos. O seu cabelo louro com um
corte à rapazinho deixava ver umas orelhas minúsculas, numa das quais tinha
três piercings. As suas sobrancelhas estavam depiladas numa linha fina.
– Não quero dizer – disse a Jule por trás do tecido. – Estou a esconder-me no
meu capuz agora.
– Vá lá. Tu é que começaste a contar a história.
– Não te podes rir se eu te disser. – Immie ergueu o capuz e olhou para Jule.
– O Forrest riu-se e eu fiquei furiosa. Não lhe perdoei durante dois dias, até ele
me trazer chocolates com recheio de creme de limão. – Forrest era o namorado
de Immie. Vivia com elas na casa em Martha’s Vineyard.
– O Forrest podia aprender a ter maneiras – disse Jule.
– Não pensou. A gargalhada saiu-lhe sem querer. A seguir, ficou
superarrependido. – Immie defendia sempre Forrest depois de o criticar.
– Por favor diz-me o nome que te deram à nascença – pediu Jule. – Não me
rio.
– Prometes?
– Prometo.
Immie segredou ao ouvido de Jule: – Melody, e o apelido Bacon. Melody
Bacon.
– Deram-te um segundo nome próprio? – perguntou Jule.
– Não.
Jule não se riu, nem sequer sorriu. Pôs os braços à volta do corpo de Immie.
Olharam para o mar.
– Sentes-te como uma Melody?
– Não. – Immie estava pensativa. – Mas também não me sinto como uma
Imogen.
Olharam para um par de gaivotas que tinha acabado de aterrar num rochedo
perto delas.
– De que morreu a tua mãe? – perguntou Jule por fim. – Essa informação
constava do registo?
– Adivinhei o quadro geral antes de ler, mas sim. Morreu de uma overdose de
metanfetaminas.
Jule apreendeu aquela informação. Imaginou a sua amiga como bebé, de
fralda molhada, a gatinhar sobre roupas de cama sujas, com a sua mãe deitada
por baixo delas, drogada e negligente. Ou morta.
– Tenho duas marcas na parte de cima do braço direito – disse Immie. –
Tinha-as quando vim viver para Nova Iorque. Tanto quanto sabia, sempre as
tinha tido. Nunca me ocorreu perguntar, mas a enfermeira em Vassar disse-me
que eram queimaduras. Tipo, de um cigarro.
Jule não sabia o que dizer. Queria resolver as coisas à bebé Immie, mas Patti
e Gil Sokoloff já o tinham feito, há muito tempo.
– Os meus pais também já morreram – disse por fim. Era a primeira vez que
o dizia em voz alta, embora Immie já soubesse que ela tinha sido criada pela
tia.
– Foi o que supus – disse Immie. – Mas também supus que não querias falar
sobre isso.
– Não quero – disse Jule. – Ainda não, de qualquer maneira. – Inclinou-se
para a frente, a separar-se de Imogen. – Ainda não sei que história contar sobre
isso. Não... – Faltavam-lhe as palavras. Não conseguia divagar como Immie,
analisar-se. – A história recusa-se a tomar forma.
Era verdade. Nessa altura, Jule só começara ainda a construir a história da
sua origem em que mais tarde se apoiaria, e não podia, não podia dizer mais
nada.
– Tudo bem – disse Imogen.
Meteu a mão na mochila e tirou uma tablete grossa de chocolate de leite.
Desembrulhou-a até meio e quebrou um pedaço para Jule e um pedaço para si
mesma. Jule recostou-se contra o rochedo e deixou o chocolate derreter na sua
boca e o sol aquecer-lhe o rosto. Immie enxotou as gaivotas pedinchonas,
ralhando-lhes.
Jule sentia que conhecia completamente Imogen. Tudo estava compreendido
entre elas, e sempre estaria.
Agora, no albergue da juventude, Jule pousou O Amigo Comum. Havia um
corpo no Tamisa, perto do início da história. Não lhe agradava ler aquilo – a
descrição de um corpo morto saturado de água. Os dias de Jule eram longos
agora, desde que fora divulgada a notícia de que Imogen Sokoloff se matara
nesse mesmo rio, metendo pedras nos bolsos e saltando da ponte de
Westminster, deixando uma mensagem de suicídio na sua caixa do pão.
Jule pensava em Immie todos os dias. A todas as horas. Recordava a maneira
como Immie tapava o rosto com as mãos ou com o capuz quando se sentia
vulnerável. O som agudo da sua voz. Imogen rodava os anéis nos dedos. Tinha
aquelas duas queimaduras de cigarro na parte superior do braço e uma cicatriz
numa das mãos, de um tabuleiro quente de brownies de queijo-creme. Cortava
cebolas depressa e com força com uma faca pesada e demasiado grande, algo
que aprendera a fazer num vídeo de culinária. Cheirava a jasmim e por vezes a
café com leite e açúcar. Havia um spray com cheiro a limão que punha no
cabelo.
Imogen Sokoloff era o tipo de rapariga que os professores achavam que
nunca explorava o seu pleno potencial. O tipo de rapariga que desistia de
estudar e, no entanto, enchia os seus livros favoritos com Post-its. Immie
recusava-se a visar a grandeza ou a esforçar-se no sentido de corresponder à
definição de sucesso de outras pessoas. Debatia-se para se soltar de homens
que queriam dominá-la e de mulheres que queriam a sua atenção exclusiva.
Recusava-se, uma e outra vez, a dar a sua devoção a uma única pessoa,
preferindo criar um lar para si mesma, que definia segundo os seus próprios
termos e do qual era senhora e dona. Aceitara o dinheiro dos pais, mas não o
controlo da sua identidade por eles, e aproveitara a sua sorte para se reinventar,
para encontrar uma maneira diferente de viver. Era uma espécie particular de
coragem, uma coragem que frequentemente era confundida com egoísmo ou
preguiça. Era o tipo de rapariga que, poderia pensar-se, não era nada mais do
que uma loura de colégio particular, mas seria um grande engano não ir mais
fundo do que isso.
*

Hoje, quando o albergue de juventude acordou e os hóspedes começavam a


cambalear até à casa de banho, Jule saiu. Passou o dia como era frequente, em
atividades de autoaperfeiçoamento. Percorreu as salas do Museu Britânico
durante um par de horas, aprendendo os títulos de quadros e bebendo uma série
de Coca-Colas de dieta em pequenas garrafas. Esteve uma hora numa livraria e
decorou um mapa do México, a seguir aprendeu de cor um capítulo de um livro
chamado Gestão da Riqueza: Oito Princípios Básicos.
Queria telefonar a Paolo, mas não podia.
Não atenderia nenhum telefonema a não ser aquele de que estava à espera.
O telemóvel tocou quando Jule estava a sair do metro perto do albergue. Era
Patti Sokoloff. Jule viu o número e usou a sua pronúncia americana genérica.
Patti encontrava-se em Londres, ficou a saber.
Jule não estava à espera disso.
Jule poderia encontrar-se com ela para almoçar no restaurante The Ivy no dia
seguinte?
É claro que sim. Jule disse que se sentia muito surpreendida com o contacto
de Patti. Tinham conversado uma série de vezes logo a seguir à morte de
Immie, quando Jule falara com agentes da polícia e enviara vários objetos itens
do apartamento de Immie em Londres enquanto Patti cuidava de Gill em Nova
Iorque, mas todas aquelas conversas difíceis tinham terminado havia algumas
semanas.
Normalmente, Patti tinha uns modos despachados e tagarelas, mas hoje soava
em baixo e a sua voz não aparentava a animação usual. – Tenho de te informar
– disse – que perdi o Gil.
Aquilo foi um choque. Jule pensou no rosto inchado e macilento de Gil
Sokoloff e nos cãezinhos engraçados que ele adorava. Gostava muito dele. Não
sabia que tinha morrido.
Patti explicou que Gil morrera duas semanas antes, de um ataque de coração.
Todos aqueles anos de diálise, e fora o coração a matá-lo. Ou talvez, disse
Patti, por causa do suicídio de Immie, não quisera continuar a viver.
Falaram sobre a doença de Gil por mais algum tempo e sobre como ele fora
uma pessoa maravilhosa e sobre Immie. Patti disse que Jule tinha sido uma
grande ajuda a tratar das coisas em Londres quando os Sokoloff não podiam
ausentar-se de Nova Iorque.
– Sei que parece estranho eu estar a viajar – disse Patti –, mas depois destes
anos todos a olhar pelo Gil, não consigo suportar o apartamento sozinha. Está
cheio das coisas dele, das coisas da Immie. Eu ia... – Interrompeu-se, e quando
recomeçou a falar foi num tom de voz com uma animação forçada. – Seja
como for, a minha amiga Rebecca vive em Hampshire e ofereceu-me a casinha
para os convidados que tem na propriedade para eu descansar e recuperar.
Disse-me que tinha de vir. Alguns amigos são mesmo assim. Já não falava com
a Rebecca há séculos, mas, mal me telefonou, depois de ouvir a notícia da
Immie e do Gil, retomámos a amizade imediatamente. Nada de conversas de
circunstância. Só franqueza e sinceridade. Andámos juntas no Greenbriar. As
amigas dos tempos da escola têm recordações, histórias partilhadas que as
ligam, penso. Olha para ti e a Immie. Retomaram tão maravilhosamente a
vossa amizade depois de estarem longe uma da outra.
– Lamento muito, muito sobre o Gil – disse Jule. Estava a ser completamente
sincera.
– Ele já estava doente há uma eternidade. Tantos comprimidos. – Patti fez
uma pausa e quando voltou a falar soava sufocada. – Penso que, depois do que
aconteceu à Immie, já não lhe restavam forças no corpo para lutar. Ele e a
Immie eram as minhas batatinhas doces. – A seguir, forçou de novo a voz a
assumir uma vivacidade despachada. – Ora bem, voltando à razão para te ter
telefonado. Vens almoçar comigo, certo?
– Já disse que ia. Claro.
– No The Ivy, amanhã, à uma hora. Quero agradecer-te por tudo o que fizeste
por mim, e pelo Gil, depois de a Immie morrer. E até tenho uma surpresa para
ti – disse Patti. – Algo que talvez possa até animar-nos às duas. Portanto, não
chegues tarde.
Depois de a conversa terminar, Jule manteve o telemóvel encostado ao peito
durante algum tempo.
O restaurante The Ivy ocupava na perfeição o seu canto estreito de Londres.
Parecia feito à medida para o terreno em que se encontrava implantado. Dentro,
as paredes estavam forradas com retratos e vitrais. Cheirava a dinheiro: borrego
assado e flores de estufa. Jule trazia um vestido justo e sabrinas. Acrescentara
batom vermelho à sua maquilhagem de jovem universitária.
Foi dar com Patti à sua espera a uma mesa, a beber água por um copo para o
vinho. Na última vez que Jule a vira, onze meses antes, a mãe de Immie era
uma senhora cheia de brilho. Era dermatologista, andava pelos cinquenta e tal e
era magra, embora tivesse uma barriguinha. A sua pele na altura aparentava um
brilho húmido rosado e usava o cabelo comprido, pintado de um castanho-
escuro e penteado em caracóis soltos. Agora, tinha as raízes brancas e estava
cortado à pagem. Vestia, à moda das senhoras do Upper East Side, calças pretas
justas e um casaco de malha de caxemira comprido – mas, em vez de saltos
altos, trazia um par de ténis de um azul vivo. Jule quase não a reconheceu. Patti
levantou-se e sorriu quando viu Jule atravessar a sala.
– Estou com um aspeto diferente, eu sei.
– Não, não está – mentiu Jule. Beijou Patti na face.
– Já não consigo fazer aquilo tudo – disse Patti. – Aquele tempo todo em
frente ao espelho de manhã, os sapatos desconfortáveis. Maquilhar-me.
Jule sentou-se.
– Costumava maquilhar-me para o Gil – prosseguiu Patti. – E para a Immie,
quando ela era pequena. Ela dizia-me: «Mamã, faz caracóis! Vai pôr brilhos na
cara!» Agora não há razão para isso. Deixei de trabalhar por uns tempos. Um
dia, pensei: Não tenho de me incomodar com isso tudo. Saí porta fora sem
fazer nada e foi um tal alívio, nem consigo explicar. Mas sei que perturba as
pessoas. Os meus amigos preocupam-se. Mas eu penso... eh... Perdi a Imogen.
Perdi o Gil. Esta sou eu agora.
Jule estava ansiosa por dizer a coisa certa, mas não sabia se o requerido era
compreensão ou distração. – Li um livro sobre isso na faculdade – disse.
– Sobre o quê?
– A apresentação do eu na vida do dia a dia. Um tal Goffman teve a ideia de
que, em situações diferentes, a pessoa tem um desempenho diferente do seu eu.
A nossa personalidade não é estática. É uma adaptação.
– Parei de desempenhar o meu eu, queres dizer?
– Ou está a fazer isso de outra maneira agora. Há diferentes versões do eu.
Patti pegou na ementa e depois estendeu o braço e tocou na mão de Jule. –
Tens de voltar para a faculdade, batatinha doce. És tão esperta.
– Obrigada.
Patti olhou Jule nos olhos. – Sou muito intuitiva em relação às pessoas,
sabes? – disse. – E tu tens tanto potencial. És ambiciosa e aventureira. Espero
que saibas que podes ser o que quiseres no mundo.
O empregado aproximou-se da mesa e tomou nota dos pedidos de bebidas.
Outra pessoa pousou um cesto com pão.
– Trouxe-lhe os anéis da Imogen – disse Jule quando a azáfama parou. –
Devia ter-lhos enviado pelo correio, mas...
– Eu compreendo – disse Patti. – Foi difícil largá-los.
Jule assentiu com a cabeça. Entregou-lhe uma embrulho de papel de seda.
Patti descolou a fita-cola. Dentro encontravam-se oito anéis antigos, todos com
entalhes ou em forma de animais. Immie colecionara-os. Eram divertidos e
pouco comuns, cuidadosamente produzidos, todos em estilos diferentes. Jule
ainda usava o nono anel. Immie oferecera-lho. Era uma serpente de jade, que
usava no anelar da mão direita.
Patti começou a chorar silenciosamente, com o guardanapo encostado ao
rosto.
Jule olhou para a coleção. Cada um daqueles círculos estivera nos dedos
frágeis de Immie a dada altura. Immie estivera, bronzeada, naquela joalharia
em Vineyard. «Quero ver o anel mais fora do comum que tem à venda» dissera
ao lojista. E mais tarde: «Este é para ti.» Dera a Jule o anel da serpente, e Jule
usava-o sempre agora, embora já não o merecesse e talvez nunca o tivesse
merecido.
Jule engasgou-se, uma sensação que estava a vir-lhe do fundo do estômago e
subiu em ondas pela sua garganta. – Com licença. – Levantou-se e cambaleou
na direção da casa de banho das senhoras. O restaurante estava a andar à roda.
Avolumou-se um negrume dos lados dos seus olhos. Agarrou-se às costas de
uma cadeira vazia para se segurar.
Ia vomitar. Ou desmaiar. Ou ambas as coisas. Aqui no restaurante The Ivy,
rodeada por estas pessoas imaculadas, onde não merecia estar, embaraçando a
pobre, pobre mãe de uma amiga de quem não gostara o suficiente ou de quem
gostara demasiado.
Jule chegou à casa de banho e debruçou-se sobre o lavatório.
A sensação de engasgamento não parava. A sua garganta contraía-se
repetidamente.
Fechou-se num cubículo, apoiando-se à parede. Os seus ombros sacudiam-se.
Tinha arrancos de vómito, mas não saía nada.
Deixou-se ficar ali dentro até a sensação de engasgamento se atenuar, a
tremer e a tentar recuperar o fôlego.
De novo no lavatório, limpou o rosto húmido com uma toalha de papel.
Pressionou os olhos inchados com as pontas dos dedos molhadas em água fria.
Trazia o batom vermelho no bolso do vestido. Aplicou-o de novo como uma
armadura e voltou para junto de Patti.
*

Quando Jule regressou à mesa, Patti já se tinha recomposto e estava a falar


com o empregado. – Vou querer a entrada de beterraba – disse ao empregado
quando Jule se sentou. – E depois o espadarte, penso. O espadarte é bom? Sim,
OK.
Jule mandou vir um hambúrguer e uma salada verde.
Quando o empregado de mesa se afastou, Patti pediu desculpa. – Lamento.
Lamento muito. Estás bem?
– Claro que sim.
– Aviso-te, sou capaz de voltar a chorar. Possivelmente na rua! Nunca se
sabe, nos dias que correm. Sou capaz de começar a soluçar a qualquer
momento. – Os anéis e o papel de embrulho já não estavam em cima da mesa.
– Ouve, Jule – disse Patti. – Disseste-me uma vez que os teus pais te falharam.
Lembras-te?
Jule não se lembrava. Nunca pensava nos pais, a não ser através da lente da
origem digna de um herói que criara para si mesma. Nunca, jamais pensava na
sua tia.
Agora, a história da sua origem veio-lhe à mente. Os seus pais no jardim da
frente de uma casinha bonita ao fundo de uma rua sem saída naquela minúscula
cidade do Alabama. Estavam deitados de rosto para baixo em poças de sangue
negro que se infiltrava na relva, iluminados por um só candeeiro. A sua mãe
alvejada com um tiro no cérebro. O seu pai a sangrar até à morte de buracos de
balas nos braços.
Achava aquela história reconfortante. Era linda. Os pais tinham sido
corajosos. Ao crescer, a menina viria a tornar-se uma pessoa com estudos e
extremamente poderosa.
Contudo, sabia que não era uma história para partilhar com Patti. Em vez
disso, perguntou num tom ameno: – Eu disse isso?
– Sim, e quando o disseste pensei que talvez eu própria também tivesse
falhado à Imogen. Eu e o Gil quase nunca falávamos sobre o facto de ela ter
sido adotada em pequena. Nem em frente a ela nem em privado. Eu queria
pensar na Immie como a minha bebé, sabes? Não de mais ninguém, mas minha
e do Gil. E era difícil falar do assunto, porque a mãe biológica dela tornou-se
toxicodependente e não havia outros parentes dispostos a ficarem com a bebé.
Disse a mim mesma que estava a protegê-la de sofrimento. Não fazia ideia de
como estava a falhar-lhe redondamente até ela... – Patti parou de falar.
– A Imogen adorava-a – disse Jule.
– Estava desesperada em relação a alguma coisa. E não veio ter comigo.
– Também não veio ter comigo.
– Devia tê-la criado de modo a que conseguisse abrir-se com as pessoas,
pedir auxílio se estivesse com problemas.
– A Immie contava-me tudo – disse Jule. – Os seus segredos, as suas
inseguranças, como queria viver a sua vida. Disse-me o nome que lhe deram à
nascença. Usávamos a roupa uma da outra e líamos os livros uma da outra.
Sinceramente, eu era muito íntima da Immie quando ela morreu, e penso que
ela tinha uma sorte louca por a ter a si, Patti.
Os olhos de Patti encheram-se de lágrimas e ela tocou na mão de Jule. –
Também tinha sorte por te ter a ti. Pensei-o quando começou a conviver
contigo no décimo ano em Greenbriar. Sei que te adorava mais do que a
qualquer outra pessoa na sua vida, Jule, porque... Bem. Era por isto que queria
encontrar-me contigo. O advogado da nossa família disse-me que a Immie te
deixou o seu dinheiro.
Jule sentiu-se estonteada. Pousou o garfo.
O dinheiro de Immie. Milhões.
Era segurança e poder. Era bilhetes de avião e chaves de carros, mas, mais
importante ainda, era dinheiro para propinas, comida na despensa, seguro de
saúde. Significava que ninguém poderia dizer-lhe que não. Ninguém poderia
nunca mais detê-la e ninguém poderia magoá-la. Jule não necessitaria da ajuda
de ninguém, nunca mais.
– Não compreendo as questões de finanças – prosseguiu Patti. – Devia, sei
que sim. Mas confiava no Gil e sentia-me aliviada por ele se ocupar disso tudo.
Aborrece-me de morte. Mas a Immie compreendia esses assuntos, e deixou um
testamento. Enviou-o ao advogado antes de morrer. Passou a ter muito
dinheiro, do pai e de mim, depois de fazer dezoito anos. O dinheiro esteve num
fundo até essa altura, e, depois de ela fazer anos, o Gil tratou da papelada para
o passar para o nome dela.
– Ela recebeu o dinheiro quando ainda andava na secundária?
– No mês de maio, antes de começar a faculdade. Talvez tenha sido um erro.
De qualquer maneira, está feito – prosseguiu Patti. – Ela era boa em questões
de finanças. Vivia dos juros e nunca tocou no capital a não ser para comprar o
apartamento em Londres. Era por isso que não tinha de trabalhar. E no
testamento deixou-te tudo. Fez pequenos donativos à National Kidney
Foundation, por causa da doença dos rins do Gil, e à North Shore Animal
League, mas fez um testamento e deixou-te a ti o grosso do seu dinheiro.
Enviou um e-mail ao advogado em que dizia especificamente que queria
ajudar-te a voltar a estudar.
Jule ficou comovida. Não fazia sentido, mas ficou.
Patti sorriu. – Deixou este mundo mandando-te de volta aos estudos. É o lado
positivo que estou a tentar ver.
– Quando é que ela redigiu o testamento?
– Alguns meses antes de morrer. Fê-lo reconhecer num notário em São
Francisco. Só falta assinar algumas coisas. – Patti empurrou um envelope sobre
a mesa. – Transferem o dinheiro diretamente para a tua conta e em setembro já
serás aluna do segundo ano em Stanford.
*

Quando o dinheiro chegou ao seu banco, Jule levantou-o todo e abriu uma
nova conta num outro banco. Aderiu a vários outros cartões de crédito e deu
instruções para que as suas contas fossem pagas automaticamente todos os
meses.
Depois foi às compras. Comprou pestanas postiças, base de maquilhagem,
lápis para os olhos, blush, pó de arroz, pincéis, três batons diferentes, duas
sombras para os olhos e uma caixa de maquilhagem pequena, mas cara. Uma
peruca ruiva, um vestido preto e um par de sapatos de saltos altos. Teria sido
agradável comprar mais, mas necessitava de viajar com pouca bagagem.
Usou o seu computador para comprar um bilhete de avião para Los Angeles,
reservou um quarto num hotel nessa cidade e pesquisou stands de automóveis
usados na zona de Las Vegas. De Londres para Los Angeles, depois de
autocarro de Los Angeles para Las Vegas. De Las Vegas de carro até ao
México. Esse era o plano.
Jule passou em revista os documentos no seu portátil. Assegurou-se de que
sabia de cor todos os números bancários e números de atendimento ao cliente,
todas as palavras-passe, todos os números dos cartões de crédito e códigos.
Memorizou o número do passaporte e o da carta de condução. Depois, uma
noite, atirou o portátil e o seu telemóvel ao Tamisa.
*

De regresso ao albergue da juventude, escreveu uma carta de agradecimento


sincero a Patti Sokoloff num papel antiquado de correio aéreo e enviou-a.
Esvaziou o armário e fez a mala. Os seus documentos de identificação e outra
papelada estavam devidamente organizados. Assegurou-se de que transferia
todas as suas loções e produtos para o cabelo para frascos de tamanho de
viagem em sacos de plástico com fecho hermético.
Jule nunca estivera em Las Vegas. Mudou de roupa na casa de banho da
estação de autocarros. Na zona dos lavatórios, encontrava-se uma mulher
branca dos seus cinquenta e tal anos com um trólei das compras. Estava
sentada na bancada, a comer um sanduíche embrulhada em papel branco
lustroso. Usava umas leggings pretas sujas e tinha coxas finas. Tufara o cabelo,
que era grisalho e louro. E estava todo cheio de riças e sujo. Os seus sapatos
encontravam-se no chão – uns sapatos de tacão alto e muito fino, de plástico
cor-de-rosa claro. Os seus pés nus, com pensos rápidos nos calcanhares,
balouçavam no ar.
Jule entrou no cubículo maior e remexeu na sua mala. Pôs as argolas nas
orelhas pela primeira vez em quase um ano. Enfiou-se no vestido que tinha
comprado – curto e preto, combinado com uns sapatos de cunha em pele. Tirou
da mala a peruca ruiva. Tinha um brilho pouco natural, mas a cor ficava bem
com as suas sardas. Jule pegou no estojo de maquilhagem, fechou o saco e foi
até ao lavatório.
A mulher que estava sentada em cima da bancada não comentou a mudança
de cor de cabelo. Amassou o papel do sanduíche e acendeu um cigarro.
O jeito para se maquilhar de Jule vinha-lhe de ver tutoriais na Internet. Na
maior parte do ano passado usara aquilo em que pensava como maquilhagem
de jovem universitária: pele natural, blush, brilho nos lábios, rímel. Agora,
tirou do estojo umas pestanas postiças, uma sombra verde para os olhos, um
eyeliner preto, pincéis para contornar o rosto, um lápis para as sobrancelhas,
batom cor-de-rosa coral.
Não era realmente necessário. Não necessitava dos cosméticos, do vestido ou
dos sapatos. Provavelmente, a peruca seria suficiente. De qualquer modo, a
transformação era uma boa prática – era assim que a encarava. E agradava-lhe
tornar-se outra pessoa.
A mulher falou quando Jule estava a acabar de maquilhar os olhos. – És uma
rapariga da vida?
Jule respondeu, só por piada, com uma pronúncia escocesa. – Não.
– Quero dizer, andas a vender o corpo?
– Não.
– Não te vendas. É tão triste, vocês raparigas.
– Não me vendo.
– É uma pena, é tudo o que quero dizer.
Jule ficou em silêncio. Aplicou iluminador nas maçãs do rosto.
– Eu andei nessa vida – prosseguiu a mulher. Desceu da bancada e enfiou os
seus pés todos estragados nos sapatos. – Já sem família e sem dinheiro: foi
assim que comecei, e não é diferente agora. Mas não dá para subir na vida,
mesmo com tipos da alta. Devias saber isso.
Jule vestiu um casaco de malha verde e pegou na sua mala de viagem. – Não
se preocupe comigo. Estou ótima, sinceramente. – Arrastando a mala,
encaminhou-se para a porta, mas tropeçou ligeiramente com aqueles sapatos
estranhos.
– Estás bem? – perguntou a mulher.
– Oh, sim.
– É difícil ser mulher por vezes.
– Pois é, é uma seca, exceto a maquilhagem – disse Jule. Empurrou a porta e
saiu sem olhar para trás.
Com a mala guardada num cacifo na estação de autocarros, Jule pôs ao
ombro um saco de viagem e apanhou um táxi para a zona dos casinos de Las
Vegas. Sentia-se cansada – não conseguira dormir na viagem de autocarro – e
ainda estava a funcionar pela hora de Londres.
O casino estava iluminado com néon, lustres e o brilho das máquinas de
jogo. Jule passou por homens com camisolas desportivas, pensionistas,
raparigas a divertirem-se e um grupo grande de bibliotecários com crachás de
uma conferência ao peito. Demorou duas horas a ir de lugar em lugar, mas por
fim encontrou o que procurava.
Havia um grupo de mulheres à volta de uma série de máquinas de jogo
Batman que pareciam estar a divertir-se imenso. Tinham bebidas geladas, roxas
e espessas. Algumas americano-asiáticas, algumas brancas. Tratava-se de uma
festa de despedida de solteira, e a noiva era perfeita, exatamente do que Jule
precisava. Era pálida e pequena, com ombros com um ar forte e sardas
delicadas – e não devia ter mais de vinte e três anos. O seu cabelo castanho-
claro estava preso num rabo de cavalo e ela usava um minivestido de um rosa
forte e uma faixa branca com pedrinhas coloridas: FUTURA NOIVA. Pendia-lhe do
ombro esquerdo uma pequena carteira azul-turquesa com múltiplos fechos de
correr. Estava debruçada para as amigas a jogarem nas máquinas, a animá-las, à
vontade com a adoração de toda a gente à sua volta.
Jule aproximou-se do grupo e adotou um sotaque das terras baixas do Sul,
como o do Alabama. – Desculpem, alguma de vocês... bem, o meu telemóvel
está sem carga e tenho de enviar uma mensagem à minha amiga. Na última vez
que a vi ela estava ao pé do balcão do sushi, mas depois comecei a jogar e
agora, oh não! Passaram três horas e ela está desaparecida em combate.
As raparigas da despedida de solteira viraram-se.
Jule sorriu. – Oh, são uma despedida de solteira?
– Ela vai casar-se no sábado! – gritou uma das raparigas, agarrando a noiva.
– Hurra! – disse Jule. – Como te chamas?
– Shanna – disse a noiva. Eram da mesma altura, mas Shanna estava de
sapatos de salto raso, portanto Jule parecia um pouco mais alta.
– Shanna Dixie, que em breve vai ser Shanna McFetridge – gritou uma das
amigas.
– Com um diacho – disse Jule. – Tens vestido?
– É claro que tenho – respondeu Shanna.
– Não é um casamento de Las Vegas – disse uma das amigas. – Vai ser na
igreja.
– De onde é que vocês todas são? – perguntou Jule.
– De Tacoma. Fica em Washington. Conheces? Só estamos em Las Vegas
para...
– Elas planearam o fim de semana todo para mim – disse Shanna. – Viemos
de avião hoje de manhã e fomos ao spa e arranjar as unhas. Estás a ver? Pus
unhas de gel. Depois viemos até ao casino, e amanhã vamos ver os tigres
brancos.
– E como é o teu vestido? Para o casamento, quero dizer.
Shanna agarrou o braço de Jule. – É lindo de morrer. Sinto-me como uma
princesa, é perfeito.
– Posso vê-lo? No teu telemóvel? Deves ter uma fotografia. – Jule tapou a
boca com a mão e baixou um pouco a cabeça. – Tenho um fraquinho por
vestidos de casamento, sabes? Desde que era pequenininha.
– Com os diabos, claro que tenho uma fotografia – disse Shanna. Abriu o
fecho da sua carteira e tirou um telemóvel com uma capa dourada. O forro da
bolsa era cor-de-rosa. Dentro estava uma carteira em pele castanha-escura, dois
tampões no seu invólucro de plástico, uma embalagem de pastilhas elásticas e
um batom.
– Deixa ver – disse Jule. Aproximou-se para olhar para o telemóvel de
Shanna.
Shanna percorreu as fotografias. Um cão. O lado de baixo enferrujado de um
lava-louça. Um bebé. O mesmo bebé outra vez. – É o meu filho, o Declan. Tem
dezoito meses. – Umas árvores junto a um lago. – Aí está ele.
O vestido era cai-cai e comprido, com pregas de tecido à volta das ancas. Na
fotografia, Shanna envergava-o numa loja de vestidos de noiva cheia de outros
vestidos brancos.
Jule soltou ós e ás. – Posso ver o teu noivo?
– Com os diabos, se podes. Ele, tipo, arrasou no pedido de casamento – disse
Shanna. – Meteu o anel num dónute. Anda em Direito. Não vou ter de trabalhar
a não ser que queira. – Continuou. A falar, a falar. Empunhou o telemóvel para
mostrar o felizardo a sorrir na encosta de uma montanha.
– É giro como tudo – disse Jule. Enfiou a mão na carteira de Shanna. Tirou a
carteira do dinheiro e meteu-a no seu saco. – O meu namorado, o Paolo, anda
de mochila às costas a dar a volta ao mundo – prosseguiu. – Está nas Filipinas
neste momento. Dá para crer? Então, estou em Las Vegas com a minha amiga.
Devia arranjar um tipo que queira assentar, não dar a volta ao mundo de
mochila às costas, certo? Se quero casar.
– Se é o que queres – disse Shanna – podes decididamente tê-lo. Podes ter o
que quiseres se te focares nisso. Rezas e, tipo, visualizas.
– Visualização – disse uma das damas-de-honor. – Fomos a um workshop.
Resulta mesmo.
– Ouçam – disse Jule –, a razão por que vim falar com vocês foi para ver se
podiam emprestar-me um telemóvel. O meu está sem bateria. Importavam-se
muito?
Shanna passou-lhe o seu telemóvel para as mãos e Jule enviou uma
mensagem para um número ao acaso. «Encontramo-nos às 10:15 no
Cheesecake Factory». Devolveu o telemóvel a Shanna. – Obrigada. Vais ser a
noiva mais linda.
– Tu também, minha doçura – disse Shanna. – Um dia em breve.
As raparigas da despedida de solteira acenaram-lhe. Jule retribuiu o aceno e
avançou pelas filas de máquinas de jogos até um grupo de elevadores.
Mal a porta do elevador se fechou e ela ficou sozinha, tirou a peruca.
Descalçou os sapatos de salto alto e tirou do saco umas calças de fato de treino
e uns Vans, enfiou as calças por cima do vestido preto curto e calçou os ténis. A
peruca e os sapatos de salto alto foram para dentro do saco. Vestiu um blusão
de fecho com capuz e as portas abriram-se no décimo andar do hotel.
Jule não saiu do elevador. Quando ele voltou a descer, ela pegou num
toalhete desmaquilhante e descolou as pestanas postiças. Limpou o brilho dos
lábios. A seguir, abriu a carteira de Shanna, tirou a carta de condução e deitou a
carteira para o chão.
Era outra pessoa quando as portas do elevador se abriram.
*

Quatro casinos abaixo na avenida, Jule passou em revista seis restaurantes


até encontrar um sítio onde mandou vir um café e meteu conversa com uma
estudante universitária que estava a entrar ao serviço no turno da noite. O
estabelecimento era uma réplica de um restaurante típico dos anos 50. A
empregada de mesa era uma mulher minúscula com sardas e caracóis castanhos
macios. Usava um vestido às pintas e um avental aos folhos de dona de casa
tradicional. Quando um grupo de tipos bêbedos invadiu o espaço a falar sobre
cerveja e hambúrgueres, Jule pousou algum dinheiro em cima do balcão para
pagar a comida que pedira e depois esgueirou-se para a cozinha. De uma fila de
ganchos, tirou a mochila com o ar mais feminino e saiu pelas traseiras para o
corredor de serviço do casino. Descendo a correr um lanço de escadas e saindo
para a travessa, pôs a mochila às costas e abriu caminho por entre um grupo de
pessoas que estavam numa fila para um espetáculo de magia.
Lá mais para baixo, remexeu na mochila. No bolso com fecho estava um
passaporte. O nome nele era Adelaide Belle Perry, de vinte e um anos.
Tivera sorte. Jule calculara que poderia ter de trabalhar durante muito tempo
antes de conseguir um passaporte. Sentia pena de Adelaide, no entanto, e,
depois de tirar o passaporte, entregou a mochila nuns perdidos e achados.
De regresso à zona dos casinos, encontrou uma loja de perucas e duas lojas
de roupa. Abasteceu-se, e ao chegar a manhã já tinha mudado de casino mais
duas vezes. Com uma peruca loura ondulada e batom cor de laranja, apropriou-
se da carta de condução de uma tal Dakota Pleasance, com um metro e
cinquenta e cinco de altura. Com uma peruca preta e um casaco prateado,
roubou o passaporte de Dorothea von Schnell, da Alemanha, com um metro e
cinquenta e oito de altura.
Pelas oito da manhã, Jule estava de novo de calças de fato de treino e Vans,
de rosto limpo. Apanhou um táxi para o hotel Rio e subiu no elevador até ao
topo do edifício. Lera sobre o VooDoo Lounge, no quinquagésimo primeiro
andar.
*

Quando uma batalha chega ao fim, quando o grande herói de filmes de ação
branco e heterossexual vive para lutar de novo noutro dia, vai a algum ponto
alto acima da cidade, algures com vista. O Homem de Ferro, o Homem-
Aranha, o Batman, o Wolverine, Jason Bourne, James Bond – todos o fazem. O
herói fita a dor e a beleza contidas nas luzes cintilantes da metrópole. Pensa na
sua missão especial, nos seus talentos únicos, na sua força, na sua estranha e
violenta vida e em todos os sacrifícios que faz para a viver.
De manhã cedo, o VooDoo Lounge era pouco mais do que uma extensão de
telhado de cimento pontuada com sofás vermelhos e pretos. As cadeiras tinham
a forma de mãos enormes. Uma escadaria curvava-se acima do telhado. Os
clientes podiam subi-la para terem uma vista melhor da zona dos casinos de
Las Vegas lá em baixo. Havia um par de gaiolas para as coristas dançarem
dentro delas, mas não se encontrava ninguém no bar naquele momento
excetuando um funcionário da limpeza. Ergueu as sobrancelhas quando Jule
apareceu ali.
– Só queria dar uma vista de olhos – disse-lhe Jule. – Sou inofensiva, juro.
– Claro que é – disse ele. – Força. Estou a limpar o chão.
Jule subiu até ao cimo da escadaria e fitou a cidade. Pensou em todas as
vidas que estavam a ser vividas lá em baixo. Havia pessoas a comprar pasta de
dentes, a ter discussões, ir buscar ovos a caminho de casa vindos do trabalho.
Viviam as suas vidas rodeados por todo aquele brilho e aquele néon, supondo
alegremente que todas as mulheres pequenas e engraçadas eram inofensivas.
Três anos antes, Julietta West Williams tinha quinze anos. Encontrava-se
num salão de jogos – num dos grandes, com ar condicionado e novinho em
folha. Estava a arrecadar pontos numa simulação de guerra. Estava embrenhada
no jogo, a disparar, quando dois rapazes que conhecia da escola se
aproximaram por trás dela e lhe apertaram as mamas. Um de cada lado.
Julietta deu uma forte cotovelada a um deles no seu estômago flácido e a
seguir rodou sobre os calcanhares e calcou o pé do outro com força. Depois
deu-lhe uma joelhada no baixo-ventre.
Era a primeira vez que agredia alguém fora da sua aula de artes marciais. A
primeira vez que necessitara de o fazer.
Bem, não necessitara de o fazer. Quisera fazê-lo. Gostou da sensação.
Quando aquele rapaz se dobrou pela cintura, a tossir, Jule virou-se e bateu no
rosto do primeiro com a base da mão. A cabeça dele voou para trás e ela
agarrou a parte da frente da sua T-shirt e berrou-lhe ao ouvido oleoso: – Não
sou tua para tocares em mim!
Queria ver medo no rosto daquele rapaz, e ver o seu amigo enroscado num
banco ali perto. Aqueles dois rapazes tinham sempre sido tão arrogantes na
escola, sem medo de nada.
Um homem com borbulhas que trabalhava no salão de jogos aproximou-se e
agarrou o braço de Julietta. – Não podemos ter lutas aqui dentro, menina.
Lamento, mas vai ter de sair.
– Está a agarrar-me o braço? – perguntou-lhe ela. – Porque não quero que me
agarre o braço.
Ele soltou-lhe o braço muito depressa.
Teve medo dela.
Era quinze centímetros mais alto do que ela e pelo menos três anos mais
velho. Era um homem crescido, e teve medo dela.
Era uma boa sensação.
Julietta saiu do salão de jogos. Não a preocupava que os rapazes pudessem
segui-la. Sentia-se como se estivesse num filme. Não sabia até esse momento
que seria capaz de olhar por si daquela maneira, não sabia que a força que
andava a consolidar nas aulas e na sala de pesos na secundária daria frutos.
Apercebeu-se de que construíra uma armadura para si mesma. Talvez fosse o
que tencionara fazer.
Parecia a mesma, como qualquer outra pessoa, mas passou a ver o mundo de
um modo diferente depois daquilo. Ser uma mulher fisicamente poderosa – era
qualquer coisa. Podias ir a qualquer lado e fazer o que quisesses se fosse difícil
fazer-te mal.
*

Uns andares abaixo, num corredor do hotel Rio, Jule encontrou uma
empregada que ia a empurrar um carrinho. Uma gorjeta de quarenta dólares e
arranjou um quarto para dormir até às três e meia da tarde. A hora do check-in
era às quatro.
Mais uma noite a roubar carteiras e mais um dia a dormir e Jule ficou pronta
a comprar um carro usado que não desse nas vistas a um tipo duvidoso num
parque de estacionamento. Pagou em dinheiro. Foi buscar a bagagem à estação
dos autocarros e escondeu os seus vários documentos de identificação por
baixo do feltro que forrava a porta da mala do carro.
Atravessou a fronteira para o México com o passaporte de Adelaide Belle
Perry.
16

ÚLTIMA SEMANA DE FEVEREIRO, 2017


LONDRES

T rês meses antes de Jule chegar ao México, Forrest Smith-Martin estava no


sofá de Jule a comer cenouras pequeninas com os seus dentes direitos e
brilhantes. Encontrava-se no apartamento de Jule em Londres há cinco noites.
Forrest era o ex-namorado de Immie. Comportava-se sempre como se não
acreditasse numa palavra do que Jule dizia. Se ela dizia que gostava de
mirtilos, ele erguia as sobrancelhas como se tivesse grandes dúvidas disso. Se
ela dizia que Immie tinha dado à sola para Paris, ele questionava-se sobre onde,
exatamente, Immie estava alojada. Fazia Jule sentir uma falta total de
legitimidade.
Pálido e delgado, Forrest pertencia à categoria de homens magricelas que se
sentem desconfortáveis quando uma mulher é mais musculosa do que eles. As
suas articulações davam a impressão de estarem meio-soltas e o bracelete de
fios entrançados que trazia no pulso esquerdo parecia sujo. Andara na
universidade de Yale a estudar Literatura Mundial. Gostava que as pessoas
soubessem que tinha andado em Yale e mencionava-o com frequência nas
conversas. Usava uns óculos pequenos, estava a deixar crescer uma barba que
nunca chegara a despontar propriamente e prendia o seu cabelo comprido num
man bun no cimo da cabeça. Tinha vinte e dois anos e estava a escrever um
romance.
Naquele momento, andava a ler um livro traduzido do francês. De Albert
Camus. Pronunciava o nome do autor como Camu. Estava esparramado no
sofá, não meramente sentado, e vestia uma sweatshirt e uns boxers.
Forrest encontrava-se no apartamento por causa da morte de Immie. Disse
que queria dormir no sofá-cama na sala para ficar perto das coisas de Imogen.
Mais do que uma vez, Jule foi dar com ele a tirar do armário roupas de Imogen
e cheirá-las. Um par de vezes, pendurou-as dos caixilhos das janelas.
Encontrou os livros velhos de Imogen – edições antigas de A Feira das
Vaidades e de outros romances vitorianos – e empilhou-os ao lado da sua cama,
como se precisasse de os ver antes de adormecer. E depois deixava o tampo da
sanita levantado.
Jule e ele tinham andado a tratar dos assuntos relacionados com a morte de
Immie a partir de Londres. Gil e Patti estavam presos em Nova Iorque por
causa da saúde de Gil. Os Sokoloff tinham conseguido evitar que a notícia do
suicídio saísse nos jornais. Disseram que não queriam publicidade e que não se
punha a questão de suspeita de crime, de acordo com a polícia. Embora o corpo
de Imogen não tivesse sido encontrado, ninguém duvidava do que acontecera.
Immie deixara aquela mensagem na caixa do pão.
Todos concordavam que ela devia estar deprimida. Andavam sempre a atirar-
se pessoas ao Tamisa, disse a polícia. Se uma pessoa metesse pesos nos bolsos
antes de saltar, como Imogen escrevera que tencionava fazer, não havia como
saber quanto tempo poderia demorar até se encontrar o corpo.
Agora, Jule sentou-se ao lado de Forrest e ligou a televisão. Eram programas
do fim da noite na BBC. Os dois tinham passado o dia a tratar da cozinha de
Immie, a encaixotar coisas como Patti pedira. Tinha sido um projeto longo e
emotivo.
– Aquela rapariga parece-se com a Immie – disse Forrest, apontando para
uma atriz no ecrã.
Jule abanou a cabeça. – Não acho.
– Parece-se, sim – disse Forrest. – A mim, parece.
– Não ao perto – disse Jule. – Só tem cabelo curto. As pessoas também
acham que me pareço com a Immie, ao longe.
Olhou-a fixamente. – Não te pareces com ela, Jule – disse. – A Imogen era
um milhão de vezes mais bonita do que tu alguma vez serás.
Jule olhou-o furiosa. – Não sabia que íamos ficar hostis esta noite. Estou um
bocado cansada. Podemos saltar essa parte ou estás realmente empenhado
numa discussão?
Forrest inclinou-se para ela, fechando o seu Camus. – A Imogen emprestou-
te dinheiro? – perguntou.
– Não, não emprestou – respondeu Jule verdadeiramente.
– Tu querias dormir com ela?
– Não.
– Dormiste com ela?
– Não.
– Ela tinha um novo namorado?
– Não.
– Há alguma coisa que não me estás a contar.
– Há seiscentas coisas que não te estou a contar – disse Jule. – Porque sou
uma pessoa reservada. E a minha amiga morreu há pouco tempo. Estou triste e
a tentar lidar com isso. Pode ser, por ti?
– Não – disse Forrest. – Preciso de compreender o que aconteceu.
– Olha. A regra para ficares neste apartamento é não fazeres à Jule um
milhão de perguntas sobre a vida privada da Immie. Ou sobre a vida privada da
Jule. Dessa maneira, poderemos dar-nos bem. Combinado?
Forrest explodiu. – A regra deste apartamento? Do que é que estás a falar, a
regra deste apartamento?
– Todos os lugares têm regras. O que fazes quando chegas a um lugar novo é
calcular quais são. Tipo, quando és hóspede, aprendes os códigos de
comportamento e adaptas-te. Sim?
– Talvez isso seja o que tu fazes.
– É o que toda a gente faz. Calculas quão alto podes falar, como te podes
sentar, que coisas não tem mal dizer e o que é mal-educado. Chama-se
comportar-se como um ser humano em sociedade.
– Nã. – Forrest cruzou as pernas numa atitude descontraída. – Não sou assim
tão falso. Só faço o que me parece correto. E sabes que mais? Nunca foi
problema, até agora.
– Porque tu és tu.
– O que é que isso quer dizer?
– És homem. És de uma família com dinheiro, és branco, tens uns dentes
realmente bons, tiraste o curso em Yale, a lista é infindável.
– E então?
– As outras pessoas adaptam-se a ti, parvalhão. Pensas que não há adaptação
a acontecer, mas és cego como o caraças, Forrest. Está a toda a tua volta, todo o
tempo.
– Está bem visto – disse ele. – OK, concedo-te esse ponto.
– Obrigada.
– Mas se pensas nessa loucura toda de cada vez que entras numa nova
situação, então há alguma coisa de seriamente errado contigo, Jule.
– A minha amiga está morta – disse-lhe ela. – É o que há de seriamente
errado comigo.
Immie não contara os seus segredos a Forrest. Contara-os a Jule.
Jule apercebera-se da verdade bastante cedo, ainda antes de Immie lhe
revelar o nome que lhe fora dado à nascença e de Brooke Lannon aparecer na
casa de Vineyard.
Foi no feriado do Quatro de Julho, não muito tempo depois de Jule se ter
mudado para lá. Immie encontrara uma receita de massa de piza que se fazia
num grelhador de churrasco. Estava a mexer em fermento na cozinha.
Convidara amigos, uma gente de verão que conhecera um par de dias antes
numa feira de venda direta. Vieram e comeram. Correu tudo bem, mas queriam
ir-se embora cedo.
– Vamos até à cidade ver o fogo de artifício – disseram. – Não devíamos
perder o espetáculo. Despachem-se.
Jule sabia que Imogen detestava os apertos dos eventos de multidões. Não
conseguia ver por cima da cabeça das outras pessoas. Havia sempre demasiado
ruído.
Forrest não pareceu importar-se. Meteu-se no carro com a gente de verão, só
parando para tirar uma caixa de bolachas da despensa.
Jule ficou. Ela e Immie deixaram a louça para o funcionário da limpeza e
vestiram os fatos de banho. Jule tirou a tampa do jacuzzi exterior e Immie
trouxe uns copos altos com água com gás e limão.
Ficaram sentadas em silêncio por algum tempo. Tinha arrefecido ao fim do
dia e erguia-se vapor da água.
– Gostas disto aqui? – perguntou Immie, finalmente. – Na minha casa?
Comigo?
Jule gostava, e disse-o. Quando Immie olhou para ela na expetativa,
acrescentou: – Todos os dias há tempo para ver de facto o céu e saborear o que
estou a comer. Há espaço para uma pessoa se espreguiçar. Sem trabalho, sem
expetativas, sem adultos.
– Nós somos os adultos – disse Immie, inclinando a cabeça para trás. – Penso
que sim, pelo menos. Tu e eu e o Forrest, somos o raio dos adultos, e é por isso
que dá uma sensação tão boa. Ups! – Tinha entornado a sua água com gás no
jacuzzi sem querer. Pôs-se a andar atrás de três pedaços de limão, que se
afundavam lentamente, até os apanhar. – Ainda bem que gostas disto aqui –
disse Immie ao pescar a última rodela –, porque havia uma parte de viver com
o Forrest que era como... estar sozinha. Não consigo explicar. Talvez seja
porque ele está a escrever um romance ou porque é mais velho do que eu. Mas
é melhor contigo aqui.
– Como é que o conheceste?
– Em Londres, frequentei um programa de verão com a prima dele e depois,
um dia, estava a tomar café no Black Dog e reconheci-o do Instagram.
Começámos a conversar. Ele estava aqui a passar um mês para trabalhar no
livro dele. Não conhecia ninguém. Foi isso, basicamente. – Immie pôs-se a
passar os dedos à tona da água. – E tu? Andas com alguém?
– Houve alguns namorados em Stanford – disse Jule. – Mas ainda estão na
Califórnia.
– Alguns namorados?
– Três.
– Três namorados é muito, Jule!
Jule encolheu os ombros. – Não conseguia decidir-me.
– Quando cheguei à faculdade – disse Immie –, a Vivian Abromowitz
convidou-me para a festa da Associação de Estudantes de Cor. Já me ouviste
falar sobre a Vivian, certo? Seja como for, a mãe dela é americana de origem
chinesa; o pai dela é judeu de origem coreana. Ela estava decidida a ir à tal
festa porque um tipo por quem tinha uma paixoneta ia estar lá. Eu sentia-me
um bocado nervosa por ser a única pessoa branca, mas não foi problema. A
parte embaraçosa foi que as pessoas eram todas viradas para a política e
ambiciosas. Tipo, a falarem sobre comícios de protesto e listas de leitura de
obras filosóficas e de uma série de filmes da Renascença do Harlem. Numa
festa! Eu estava, tipo, quando é que dançamos? E a resposta foi: nunca. Havia
festas assim em Stanford? Sem cerveja e com as pessoas a serem todas
intelectuais?
– Stanford tem um sistema grego.
– OK, então talvez não. Seja como for, um tipo negro alto com rastas, mesmo
giro, pôs-se tipo: «Andaste no Greenbriar e não leste o James Baldwin? E a
Toni Morrison? Devias ler Ta-Nehisi Coates.» E eu disse: «Hello? Acabei de
entrar na faculdade. Ainda não li ninguém!» A Vivian estava ao meu lado e vai
e diz: « A Brooke mandou-me mensagem e há outra festa com DJ e a equipa de
râguebi está lá. Pomo-nos daqui para fora?» E eu queria ir a uma festa onde se
dançasse. Por isso fomos embora. – Immie enfiou a cabeça debaixo da água do
jacuzzi e voltou à tona.
– O que aconteceu com o tipo condescendente?
Immie riu-se. – O Isaac Tupperman. Ele é a razão por que estou a contar-te
esta história. Andei com ele quase dois meses. É por isso que consigo lembrar-
me dos nomes dos escritores favoritos dele.
– Foi teu namorado?
– Foi. Escrevia-me poemas e deixava-os na minha bicicleta. Ia lá a casa
tarde, tipo às duas da manhã, e dizia que tinha sentido saudades de mim. Mas
também havia pressão. Ele cresceu-se no Bronx e andou na Stuy e era...
– O que é a Stuy?
– É uma escola pública em Nova Iorque para miúdos espertos. Ele tinha uma
data de ideias sobre o que eu devia ser, o que devia estudar, o que devia
importar-me. Queria ser o espantoso tipo mais velho que me ia esclarecer. E eu
sentia-me lisonjeada e, tipo, cheia de admiração por ele, mas por vezes também
realmente cheia de tédio.
– Então ele era como o Forrest.
– O quê? Não. Fiquei tão contente quando conheci o Forrest porque ele era o
oposto do Isaac. – Immie disse aquilo de um modo decisivo, como se fosse
totalmente verdade. – O Isaac gostava de mim porque eu era ignorante e isso
significava que ele podia ensinar-me, certo? Isso fazia-o sentir-se mais homem.
E sabia de facto uma data de coisas que eu nunca tinha estudado ou vivido ou o
que seja. Mas, por outro lado, e essa é a ironia, ficava totalmente irritado com a
minha ignorância. E por fim, depois de ele acabar comigo e quando eu andava
a sentir-me triste e um bocado perturbada, vim a Vineyard e um dia pensei: Vai-
te lixar, Mr. Isaac. Não sou assim tão ignorante. Só sei coisas sobre coisas que
tu rejeitas como sendo sem importância e inúteis. Faz sentido? Quero dizer, eu
não sabia as coisas do Isaac. E sei que as coisas do Isaac são importantes, mas
em todo o tempo que passei com ele senti-me como se fosse só burra e oca. O
facto de não ser capaz de compreender muito bem a experiência de vida dele,
combinado com o de ele andar um ano à frente de mim e realmente
embrenhado nos estudos, na revista literária, etc., significava que durante todo
o tempo pôde ser o grande homem e ter-me a olhá-lo com admiração, de olhos
esbugalhados. E era disso que ele gostava em mim. E porque me desprezava.
«Depois, houve uma semana em que julguei que estava grávida – prosseguiu
Immie. – Jule, imagina. Sou adotada. E ali estou eu, grávida de um bebé que
penso que talvez tenha de dar para adoção. Ou abortar. O pai é um tipo que os
meus pais conheceram e descartaram como inconsciente, por causa da cor da
sua pele e do estilo de penteado na única vez em que o viram, e eu não faço
ideia do que fazer, portanto passo a semana toda a faltar às aulas e a ler
histórias de abortos na Internet. Depois, um dia, vem-me finalmente o período
e envio uma mensagem ao Isaac. Ele larga tudo e vem ao meu quarto na
residência universitária... e acaba o namoro. – Immie tapou o rosto com as
mãos. – Nunca me senti tão assustada como naquela semana – prosseguiu. –
Quando julguei que tinha um bebé dentro de mim.
*

Nessa noite, quando Forrest regressou do fogo de artifício, Imogen já tinha


ido para a cama. Jule ainda estava acordada, a ver televisão sentada no sofá da
sala. Seguiu-o quando ele se pôs a remexer no frigorífico e encontrou uma
cerveja e uma costeleta de porco grelhada que tinha sobrado.
– Sabes cozinhar? – perguntou-lhe ela.
– Sei cozer massa. E aquecer molho de tomate.
– A Imogen é realmente boa cozinheira.
– Pois é. É bom para nós, certo?
– Trabalha no duro na cozinha. Aprendeu sozinha, a ver vídeos e a requisitar
livros de culinária da biblioteca.
–Ah sim? – disse Forrest, sem grande interesse. – Ei, sobrou crumble? O
crumble é necessário para a minha existência neste momento.
– Comi-o – disse-lhe Jule.
– Sua sortuda – disse ele. – Está bem, então. Vou trabalhar no meu livro. À
noite é quando o meu cérebro funciona melhor.
Uma noite, quando Forrest já estava com Jule em Londres há uma semana,
comprou bilhetes para verem O Conto de Inverno no teatro da Royal
Shakespeare Company. Era algo para fazerem. Precisavam de sair do
apartamento.
Apanharam o metro da linha Jubilee para a linha Central para St. Paul e daí
encaminharam-se a pé para o teatro. Estava a chover. Como o espetáculo só
começaria daí a uma hora, encontraram um pub e mandaram vir peixe frito e
batatas fritas. O espaço era escuro e tinha as paredes forradas a espelhos.
Comeram ao balcão.
Forrest falou muito sobre livros. Jule fez-lhe perguntas sobre o Camus que
andava a ler, L’ Étranger. Fê-lo explicar o enredo, que era sobre um tipo com a
mãe morta que mata outro tipo e depois vai para a prisão por isso.
– É um policial?
– De maneira nenhuma – disse Forrest. – Os policiais perpetuam o statu quo.
Tudo se resolve sempre no fim. A ordem é restabelecida. Mas a ordem não
existe realmente, correto? É uma construção artificial. O género do romance
policial reforça a hegemonia das noções ocidentais de causalidade. Em L’
Étranger, sabes tudo o que acontece desde o princípio. Não há nada a
descobrir, porque a existência humana é em última instância desprovida de
sentido.
– Oh, é tão sexy quando dizes palavras francesas – disse-lhe Jule, estendendo
a mão sobre o prato dele e tirando uma batata frita. – Estou a gozar.
Quando chegou a conta, Forrest tirou o cartão de crédito da carteira. – Pago
eu, graças ao Gabe Martin.
– O teu pai?
– Sim. Ele paga as contas deste bebé – Forrest bateu no cartão – até eu fazer
vinte e cinco anos. Para poder trabalhar no meu romance.
– Que sorte. – Jule pegou no cartão. Memorizou o número. Virou-o e
memorizou o código na parte de trás. – Nem sequer olhas para a conta?
Forrest riu-se e pegou no cartão. Empurrou-o sobre o balcão. – Nã. Vai para
o Connecticut. Mas tento manter-me consciente do meu privilégio e não o
tomar por garantido.
No resto do caminho até ao Barbican Centre sob uma chuva ligeira, Forrest
segurou no guarda-chuva a abrigar os dois. Comprou um programa, do tipo que
se compra nos teatros de Londres, cheios de fotografias e com a história da
produção da peça. Sentaram-se no escuro.
Durante o intervalo, Jule encostou-se a uma parede do átrio e pôs-se a ver as
pessoas, Forrest foi à casa de banho. Jule escutava as pronúncias dos presentes:
Londres, Yorkshire, Liverpool. Boston, Americano Genérico, Califórnia.
África do Sul. Londres de novo.
Com um raio.
Paolo Vallarta-Bellstone estava aqui.
Neste preciso momento. Do outro lado do átrio, em frente a Jule.
Destacava-se muito no meio da multidão parda. Trazia uma T-shirt vermelha
por baixo de um blazer e estava com ténis azuis e amarelos. A fímbria das suas
calças de ganga estava esfiapada. Paolo tinha mãe filipina e pai branco
americano de misturada. Era assim que ele os descrevia. Tinha cabelo preto –
cortado curto desde a última vez que Jule o vira – e sobrancelhas delicadas.
Bochechas rechonchudas, olhos castanhos e lábios vermelhos macios, quase
inchados. Dentes direitos. Paolo era o tipo de rapaz que viaja pelo mundo só
com uma mochila, que mete conversa com estranhos em carrosséis e em
museus de cera. Era um conversador despretensioso. Gostava de pessoas e
pensava sempre o melhor delas. Neste preciso momento, estava a comer gomas
Swedish Fish que tirava de um pequeno saco amarelo.
Jule virou-se. Não lhe agradava o quão feliz se sentia. Não lhe agradava o
quão lindo ele era.
Não. Não queria ver Paolo Vallarta-Bellstone.
Não podia vê-lo. Não agora nem nunca.
Apressou-se a sair do átrio e regressou à sala do teatro. As portas duplas
fecharam-se atrás de si. Não havia muitas pessoas do público ali dentro. Só os
arrumadores e um par de pessoas idosas que não tinham querido sair do seu
lugar.
Tinha de ir embora tão depressa quanto possível, sem ver Paolo. Pegou no
casaco. Não esperaria por Forrester.
Haveria uma saída lateral algures?
Ia a correr pela coxia com o casaco por cima do braço – e ali estava ele.
Diante dela. Estacou. Não havia como o evitar agora.
Paolo acenou-lhe com o saco de gomas Swedish Fish.
– Imogen! – Correu pela coxia até ela e beijou-a na face. Jule sentiu o cheiro
a açúcar no seu hálito. – Estou louco de alegria por te ver.
– Olá – disse ela friamente. – Julguei que estavas na Tailândia.
– Os planos atrasaram-se – disse Paolo. – Adiámos tudo. – Recuou como se
para a admirar. – Deves ser a rapariga mais bonita em Londres. Uau.
– Obrigada.
– Estou a falar a sério. Mulher, não rapariga. Desculpa. As pessoas andam a
seguir-te por toda a parte, tipo com a língua de fora? Como é que ficaste mais
bonita desde a última vez que te vi? É aterrador. Estou a falar demasiado
porque me sinto nervoso.
Jule sentiu a sua pele aquecer.
– Vem comigo – disse ele. – Ofereço-te um chá. Ou um café. O que quiseres.
Tinha saudades tuas.
– Eu também tinha saudades tuas. – Não tencionava dizer aquilo. As palavras
saíram-lhe e eram verdadeiras.
Paolo pegou-lhe na mão, tocando só nos seus dedos. Sempre fora assim
autoconfiante. Embora ela o tivesse rejeitado, ele viu imediatamente que não
era sentido. Era supremamente delicado e, no entanto, seguro de si ao mesmo
tempo. Tocou-a como se os dois tivessem sorte por estarem a tocar um no
outro; como se soubesse que ela não permitia com muita frequência que
alguém lhe tocasse. Ponta do dedo contra ponta do dedo, conduziu Jule de volta
ao átrio.
– Só não te telefonei porque me dissestes para não o fazer – disse Paolo,
soltando a sua mão quando se puseram na fila para o chá. – Apetece-me
telefonar-te o tempo todo. Todos os dias. Fico a olhar para o telemóvel e depois
não telefono porque não quero parecer sinistro. Estou tão contente por te ter
encontrado por acaso. Meu Deus, és linda.
Jule gostava da maneira como a T-shirt se ajustava à clavícula dele e como os
seus pulsos se moviam contra o tecido do casaco. Mordia o lábio inferior
quando estava preocupado. O seu rosto curvava suavemente contra as pestanas
pretas. Ela queria vê-lo mal abrisse os olhos de manhã. Sentia que, se pudesse
ver Paolo Vallarta-Bellstone mal acordasse, tudo estaria bem.
– Continuas a não querer voltar para casa, para Nova Iorque? – perguntou
ele.
– Não quero voltar para casa, nunca mais – disse Jule. Como tantas coisas
que dava por si a dizer-lhe, era absolutamente verdade. Os seus olhos
encheram-se de lágrimas.
– Eu também não quero ir para casa – disse ele. O pai de Paolo era um
magnata do setor imobiliário que fora condenado por abuso de informação
privilegiada há alguns meses. Aparecera em todas as notícias. – A minha mãe
deixou o meu pai quando descobriu o que ele tinha andado a fazer. Agora vive
com a irmã e vai de Nova Jérsia para o trabalho todos os dias. As coisas estão
uma barafunda com o dinheiro, e há advogados de divórcio e advogados
criminais e mediadores. Uh.
– Lamento.
– É simplesmente feio. O irmão do meu pai está a ser mega-racista em
relação ao divórcio. Não ias acreditar no que lhe sai da boca. E por isso a
minha mãe está cheia de raiva, francamente. Tem o direito de estar, mas é
infernal falar sequer com ela ao telefone. Acho que não há nada, realmente,
para que voltar.
– O que vais fazer?
– Viajar por aí mais um bocado. O meu amigo pode partir daqui a mais um
par de semanas, e depois vamos atravessar de mochila às costas a Tailândia, o
Camboja e o Vietname, o mesmo plano de antes. Depois até Hong Kong, e
vamos visitar a minha avó às Filipinas. – Pegou de novo na mão de Jule.
Passou um dedo suavemente pela palma da mão dela. – Não trazes os teus
anéis. – As unhas dela estavam pintadas com um verniz cor-de-rosa desmaiado.
– Só um. – Jule mostrou-lhe a outra mão, em que tinha o anel com a víbora
de jade. – Os outros pertenciam todos a uma amiga minha. Só os usava por
empréstimo.
– Pensei que eram teus.
– Não. Sim. Não. – Jule suspirou.
– Em que ficamos?
– A minha amiga matou-se há relativamente pouco tempo. Tínhamos
discutido e ela morreu zangada comigo. – Jule estava a dizer a verdade, e
estava a mentir. Estar com Paolo baralhava-lhe os pensamentos. Sabia que não
devia falar mais com ele. Sentia as histórias que contava a si mesma e as
histórias que contava às outras pessoas a deslocarem-se, a sobreporem-se, a
mudarem de cambiante. Não saberia dizer, esta noite, quais eram os nomes das
histórias, o que queria dizer e o que não queria.
Paolo apertou-lhe a mão. – Lamento muito.
Jule saiu-se com: – Diz-me, achas que uma pessoa é tão má quanto as suas
piores ações?
– O quê?
– Achas que uma pessoa é tão má quanto as suas piores ações?
– Queres dizer, a tua amiga vai para o inferno porque se matou?
– Não. – Não era de modo nenhum o que Jule queria dizer. – Quero dizer se
as nossas piores ações nos definem quando ainda estamos vivos? Ou pensas
que nós os seres humanos somos melhores do que as coisas piores que alguma
vez fizemos?
Paolo refletiu. – Bem, vê o caso de Leontes em Um Conto de Inverno.
Tentou envenenar o amigo, atirou com a própria mulher para a prisão e mandou
abandonar a filha bebé num lugar selvagem. Portanto, é do pior possível.
Correto?
– Correto.
– Mas no fim... já tinhas visto a peça antes desta noite?
– Não.
– No fim, arrepende-se. Sente-se mesmo, mesmo arrependido de tudo, e isso
é suficiente. Toda a gente lhe perdoa. Shakespeare deixa que o Leontes seja
redimido, embora ele tenha feito aquelas coisas más todas.
Jule sentia vontade de contar tudo a Paolo.
Queria revelar-lhe o seu passado em toda a sua fealdade e beleza, na sua
coragem e complexidade. Seria redimida.
Não conseguia falar.
– Ohhhh – disse Paolo, arrastando a palavra. – Não estamos a falar sobre a
peça, pois não?
Jule abanou a cabeça.
– Não estou zangado contigo, Imogen – disse Paolo. – Estou louco por ti. –
Estendeu a mão e tocou-lhe na face. A seguir, passou a almofada do seu
polegar pelo lábio inferior dela. – Tenho a certeza de que a tua amiga também
não continua zangada contigo, seja o que for que tenha acontecido quando ela
era viva. Tu és uma pessoa excelente, de primeira. Dá para ver.
Tinham chegado à frente da fila. – Duas chávenas de chá – disse Jule à
senhora que estava ao balcão. Escorriam-lhe lágrimas dos olhos, embora não
estivesse a chorar. Tinha de parar de ser emotiva.
– Isto parece ser conversa para um jantar – disse Paolo. Pagou o chá. –
Queres jantar depois da peça? Ou comer uns bagels? Conheço um pub que
serve bagels genuínos de Nova Iorque.
Jule sabia que devia dizer que não, mas acenou que sim com a cabeça.
– Bagels, ótimo. Então, por agora, falemos sobre coisas alegres – disse
Paolo. Levaram as suas bebidas em copos de papel até um balcão onde havia
leite e colheres pequenas. – Eu ponho duas colheres de açúcar e uma dose
gigantesca de leite gordo. Como é que tu bebes o chá?
– Com limão – respondeu Jule. – Preciso, tipo, de quatro rodelas de limão
para o chá.
– OK, coisas alegres e que distraiam – disse Paolo quando se dirigiam para
uma mesa. – Falo sobre mim?
– Não me parece que alguém conseguisse impedir-te.
Paolo riu-se. – Quando tinha oito anos, parti o tornozelo a saltar do tejadilho
do carro do meu tio. Tinha um cão chamado Twister e um hamster chamado St.
George. Queria ser detetive quando era pequeno. Vomitei por comer
demasiadas cerejas uma vez. E já não saio com ninguém desde que me disseste
para não te telefonar.
Ela não conseguiu deixar de sorrir. – Mentiroso.
– Nem uma só mulher. Estou aqui esta noite com o Artie Thatcher.
– O amigo do teu pai?
– Aquele em casa de quem estou. Disse que eu não tinha visto Londres se
não tivesse visto a Royal Shakespeare Company. E tu?
Jule foi trazida de volta à realidade.
Estava ali com Forrest.
Fora estúpido, inacreditavelmente estúpido, deixar que Paolo a descarrilasse.
Decidira sair do teatro. Mas depois ele roçara os lábios na face dela. Tocara-
lhe nos dedos. Reparara nas mãos dela e dissera, Deus, como era linda. Disse
que sentia vontade de lhe telefonar todos os dias.
Jule sentira muitas saudades de Paolo.
Mas Forrest estava ali.
Os dois não podiam encontrar-se. Paolo não podia de maneira nenhuma ver
Forrest.
– Ouve, tenho de...
Forrest apareceu ao seu lado. Estava lânguido e curvado.
– Encontraste um amigo – disse a Jule. Disse-o como se estivesse a dirigir-se
a um cachorrinho.
Tinham de se ir embora imediatamente. Jule pôs-se de pé.
– Não me estou a sentir bem – disse. – Sinto a cabeça quente. Estou com
náuseas. Podes levar-me para casa? – Agarrou no pulso de Forrest e puxou-o
na direção das portas do átrio.
– Estavas bem há um minuto – disse ele, a segui-la.
– Foi ótimo ver-te – disse ela a Paolo. – Adeus.
Tencionara que Paolo ficasse sentado sem se mexer, mas ele levantou-se e
seguiu Jule e Forrest até à porta. – Sou o Paolo Vallarta-Bellstone – disse,
sorrindo a Forrest enquanto continuavam a andar. – Sou amigo da Imogen.
– Temos de ir embora – disse Jule.
– Forrest Smith-Martin – respondeu Forrest. – Já soubeste, então?
– Vamos embora – disse Jule. – Imediatamente.
– Soube o quê? – disse Paolo. Manteve-se a par deles enquanto Jule puxava
Forrest para o exterior.
– Desculpem, desculpem – disse Jule. – Passa-se algo de errado comigo.
Arranja-me um táxi. Por favor.
Estavam lá fora, à chuva intensa. O Barbican Centre tinha passadiços
compridos a ligarem o edifício à rua. Jule arrastou Forrest pelo passeio.
Paolo parou sob o abrigo do edifício, sem querer molhar-se.
Jule fez paragem a um táxi. Entrou. Deu a morada do apartamento em St.
John’s Wood.
A seguir, inspirou fundo e tentou acalmar-se. Decidiu o que contar a Forrest.
– Deixei o casaco no meu lugar – queixou-se ele. – Estás doente?
– Não, realmente não.
– Então o que é que foi? Porque é que estamos a ir para casa?
– Aquele tipo tem andado a incomodar-me.
– O Paolo?
– Sim. Anda sempre a telefonar-me. Tipo, muitas vezes ao dia. Mensagens.
E-mails. Acho que anda a perseguir-me.
– Tens relações esquisitas.
– Não é uma relação. Ele não aceita um não como resposta. Foi por isso que
tive de me vir embora.
– Paolo qualquer coisa Bellstone, correto? – disse Forrest. – Era esse o nome
dele?
– Era.
– É da família do Stuart Bellstone?
– Não sei.
– Mas esse era o apelido dele? Bellstone? – Forrest tinha tirado o telemóvel
do bolso. – Na Wikipédia diz... pois é, o filho de Stuart Bellstone, o escândalo
da transação D and G, blá, blá, o seu filho é Paolo Vallarta-Bellstone.
– Suponho que sim – disse Jule. – Penso nele tão pouco quanto posso.
– Bellstone, tem graça – disse Forrest.– A Imogen conhecia-o?
– Sim. Não. – Jule estava atarantada.
– É sim ou não?
– As famílias dos dois conheciam-se. Encontrámo-lo por acaso nos primeiros
tempos em Londres.
– E agora ele anda a perseguir-te?
– Anda.
– E nunca te passou pela cabeça que poderia valer a pena mencionar à polícia
este perseguidor, o Bellstone, no âmbito da investigação do desaparecimento da
Immie?
– Ele não tem nada a ver com coisa nenhuma.
– Mas pode ter. Há uma data de coisas que não batem certo.
– A Immie matou-se e é tudo – ripostou Jule. – Estava deprimida e já não te
amava e também não me amava o suficiente para continuar a viver. Para de te
comportares como se houvesse mais alguma coisa que pudesse ter acontecido.
Forrest mordeu o lábio e seguiram viagem em silêncio. Daí a um ou dois
minutos, Jule olhou para o lado e viu que ele estava a chorar.
Na manhã seguinte, Forrest tinha-se ido embora. Simplesmente não estava no
sofá-cama. O seu saco não estava no armário da entrada. As suas camisolas
felpudas não estavam aqui e ali na sala. O seu portátil fora-se, assim como os
seus romances francesas. Deixara os pratos sujos no lava-louça.
Jule não sentiria a sua falta. Não queria voltar a vê-lo. Mas não queria que se
fosse embora sem dizer porquê.
O que dissera Paolo a Forrest na noite anterior. Só «Sou amigo da Imogen» e
«Soube o quê?» E o seu nome. Era tudo.
Não ouvira Paolo chamar Imogen a Jule. Ou ouvira?
Não.
Talvez.
Não.
Porque é que Forrest queria que a polícia investigasse Paolo? Pensaria que
Imogen fora perseguida e assassinada? Pensaria que Imogen tivera um
envolvimento romântico com Paolo? Pensaria que Jule estava a mentir?
Jule fez as malas e foi para um albergue da juventude sobre o qual lera um
artigo, na outra ponta da cidade.
15

TERCEIRA SEMANA DE FEVEREIRO, 2017


LONDRES

O ito dias antes de ir para o albergue da juventude, Jule telefonara do


apartamento de Londres para o telemóvel de Forrest. Tremiam-lhe as
mãos. Sentou-se na bancada da cozinha ao lado da caixa do pão e deixou
pender os pés. Era de manhã muito cedo. Queria despachar aquele telefonema.
– Olá, Jule – disse ele. – A Imogen já voltou?
– Não, ainda não.
– Oh. – Houve uma pausa. – Então porque me estás a telefonar? – O desdém
na voz de Forrest era palpável.
– Tenho más notícias – disse Jule. – Lamento muito.
– O que foi?
– Onde estás?
– Na tabacaria. A que, ao que parece, chamam outra coisa aqui.
– Devias sair para a rua.
– Está bem. – Jule aguardou enquanto ele dava uns passos. – O que foi? –
perguntou Forrest.
– Encontrei uma mensagem, no apartamento. Da Imogen.
– Que tipo de mensagem?
– Estava na caixa do pão. Vou lê-la. – Jule segurou o papel entre os dedos.
Havia as letras altas e floreadas da assinatura de Immie, as suas expressões
típicas e as suas palavras favoritas.

Olá, Jule. Quando leres isto, eu já terei tomado uma dose excessiva de soníferos. E depois terei
apanhado um táxi para me levar à ponte de Westminster.
Vou ter pedras nos bolsos. Uma data de pedras. Tenho andado a juntá-las a semana toda. E
estarei afogada, O rio ter-me-á, e sentirei algum alívio.
Tenho a certeza de que te perguntarás porquê. É difícil dar uma resposta. Nada está bem. Já não
me sinto em casa. Nunca me senti em casa. Penso que nunca me sentirei.
O Forrest não era capaz de compreender. Nem a Brooke. Mas tu – penso que compreendes.
Conheces o meu eu, que mais ninguém pode amar. Se há um eu, de todo.
Immie

– Oh, meu Deus. Oh, meu Deus – disse Forrest uma e outra vez.
Jule pensou na linda ponte de Westminster com os seus arcos de pedra e os
seus gradeamentos verdes, e no rio caudaloso e frio que corria por baixo dela.
Pensou no corpo de Immie, uma camisa branca à flutuar à sua volta, de rosto
para baixo na água, numa poça de sangue. Sentia realmente de modo agudo a
perda de Imogen Sokoloff, mais do que Forrest alguma vez poderia sentir. –
Escreveu esta mensagem há dias – disse Jule a Forrest quando ele ficou
finalmente em silêncio. – Está desaparecida desde quarta-feira.
– Disseste que tinha ido para Paris.
– Estava a assumir.
– Talvez não se tenha atirado da ponte.
– Deixou uma mensagem de suicídio.
– Mas porquê? Porque o faria?
– Nunca se sentiu em casa. Sabes que isso era verdade quanto a ela. Disse-o
na mensagem. – Jule engoliu em seco e depois disse o que sabia que Forrest
quereria ouvir. – O que achas que devíamos fazer? Não sei o que fazer. És a
primeira pessoa a quem contei.
– Vou para aí – disse Forrest. – Telefona à polícia.
Forrest chegou ao apartamento daí a duas horas. Estava com um ar ausente e
desgrenhado. Trouxera a sua bagagem do hotel e declarou que dormiria no sofá
na salinha até as coisas se resolverem. Jule podia dormir no quarto. Nenhum
dos dois devia ficar só, disse.
Ela não o queria ali. Estava a sentir-se triste e vulnerável. Com Forrest,
preferia ter a armadura posta. No entanto, ele era bom numa situação de crise,
reconhecia-lhe isso. Pôs-se a enviar mensagens e a telefonar às pessoas, e falou
com todas com uma delicadeza extrema que Jule não sabia que ele possuía. Os
Sokoloff, os seus amigos de Martha’s Vineyard, os amigos de Immie da
faculdade: Forrest contactou todos pessoalmente, riscando-os ordenadamente
de uma lista que elaborara.
Jule telefonou para a polícia de Londres. Eles chegaram, todos enérgicos,
enquanto Forrest estava ao telefone com Patti. Os agentes pegaram na
mensagem escrita na letra de Imogen e depois pediram um depoimento a Jule e
a Forrest.
Concordaram que não dava a ideia de que Immie tivesse ido viajar. As suas
malas encontravam-se no armário, assim como as suas roupas. A carteira do
dinheiro e os cartões de crédito estavam numa mala de mão que encontraram.
O seu portátil não estava no apartamento, no entanto, e a carta de condução e o
passaporte também não.
Forrest perguntou a um agente se a mensagem de suicídio não poderia ser
forjada. – Talvez um raptor quisesse desviar as suspeitas – disse. – Ou talvez
seja uma mensagem que ela foi forçada a escrever? Há alguma maneira de
descobrirem se ela foi forçada a escrevê-la?
– Forrest, a mensagem estava dentro da caixa do pão – lembrou-lhe Jule
delicadamente. – A Immie deixou-ma na caixa do pão.
– Porque é que Miss Sokoloff haveria de ser raptada? – perguntou o agente.
– Por dinheiro. Alguém pode tê-la refém pelo resgate. É estranho que o
portátil dela tenha desaparecido. Ou podia ter sido assassinada. Tipo, por
alguém que a obrigou a escrever a mensagem.
Os agentes escutaram as teorias de Forrest. Lembraram que ele próprio era a
pessoa mais suspeita: um ex-namorado que chegara recentemente à cidade à
procura de Imogen. Contudo, deixaram também claro que não suspeitavam
realmente de um crime de qualquer tipo. Procuraram sinais de uma luta, mas
não encontraram nenhum.
Forrest disse que Imogen podia ter sido raptada fora do apartamento, mas os
agentes lembraram-lhe a caixa do pão. – A mensagem de suicídio deixa-o claro
– disseram. Perguntaram se aquela era a letra de Immie e Jule disse que era.
Perguntaram a Forrest, e ele também disse que era. Ou, pelo menos, parecia
ser.
Jule deu-lhes o telemóvel do Reino Unido de Imogen. Só mostrava
telefonemas para museus locais e e-mails dos pais dela, de Forrest, de Vivian
Abromowitz e de mais alguns amigos que Jule pôde identificar. Os agentes
pediram os extratos bancários de Immie. Jule deu-lhes alguns papéis impressos
a partir do computador em falta. Encontravam-se numa gaveta da secretária na
sala de estar.
Os agentes prometeram procurar o corpo de Imogen no rio, mas também
observaram que se o seu corpo estivesse pesado com pedras não viria
facilmente à tona. Provavelmente, teria sido afastado da ponte de Westminster
pela corrente.
Se chegassem a encontrá-la, poderia demorar dias ou mesmo semanas.
14

FINAIS DE DEZEMBRO, 2016


LONDRES

S eis semanas antes, Jule chegou a Londres pela primeira vez. Era o dia a
seguir ao Natal. Apanhou um táxi para o hotel onde reservara um quarto. O
dinheiro inglês era demasiado grande para caber bem na sua carteira. O táxi foi
caro como tudo, mas ela não se importou. Tinha fundos.
O hotel era um edifício velho e formal, com o interior remodelado. Um
cavalheiro com um casaco aos quadrados estava sentado a uma secretária.
Tinha um registo da reserva e acompanhou pessoalmente Jule ao seu quarto.
Falou com ela enquanto um empregado levava a sua bagagem. Ela adorava a
maneira como ele falava, como se tivesse saído de um romance de Dickens.
As paredes da suite estavam forradas com um papel toile de Jouy preto e
branco. Cortinas de um brocado pesado cobriam as janelas. A casa de banho
tinha aquecimento no chão. As toalhas eram brancas e texturadas com
pequenos quadrados. Havia sabonetes de alfazema embrulhados em papel
pardo.
Jule mandou vir um bife. Quando veio o que pediu, comeu tudo e bebeu dois
grandes copos de água. Depois disso, dormiu durante dezoito horas.
Quando acordou, sentia-se eufórica.
Era uma nova cidade e um país estrangeiro, a cidade de A Feira das Vaidades
e de Grandes Esperanças. Era a cidade de Immie, mas tornar-se-ia a cidade de
Jule, assim como os livros que Immie adorava se tinham tornado parte de Jule
também.
Abriu as cortinas. Londres estendia-se lá em baixo. Autocarros vermelhos e
táxis pretos como escaravelhos avançavam lentamente por entre o trânsito em
ruas estreitas. Os edifícios pareciam ter centenas de anos. Pensou em todas as
vidas que estavam a ser vividas ali em baixo, pessoas a conduzirem pela
esquerda, a comerem crumpets, a beberem chá, a verem televisão.
Jule sentia-se despida de culpa e de arrependimento, como se tivesse largado
uma pele. Via-se como uma justiceira solitária, um super-herói em repouso,
uma espia. Era mais corajosa do que qualquer outra pessoa no hotel, mais
corajosa do que toda a Londres, mais corajosa do que o comum, de longe.
No verão em Martha’s Vineyard, Immie dissera a Jule que era proprietária de
um apartamento em Londres. Disse: – As chaves estão aqui mesmo. Podíamos
ir amanhã – e deu uma palmadinha na sua carteira.
Mas não voltou a mencionar aquilo.
Agora, Jule telefonou ao zelador do prédio que tratava dos assuntos do
apartamento e disse-lhe que Immie tinha chegado. Ele poderia mandar limpar e
arejar o apartamento? Poderia mandar trazer alguns produtos de mercearia e
umas flores? Sim, tudo isso poderia ser tratado.
Quando o apartamento ficou pronto, a chave de Immie rodou facilmente na
fechadura. Era um apartamento grande com um quarto e uma sala em St. John’s
Wood, perto de muitas lojas. Ocupava o último andar de uma casa antiga
pintada de branco e tinha janelas com vista para árvores. Nos armários havia
toalhas macias e lençóis com uma lista de um tecido mais grosso. Só havia
banheira, não chuveiro. O frigorífico era minúsculo e a cozinha bastante básica.
Immie mandara arranjar o apartamento antes de ter aprendido a cozinhar. Mas
isso não importava.
No mês de junho depois de acabar o secundário, Jule sabia, Imogen
frequentara um programa de verão no estrangeiro, em Londres. Durante esse
tempo, comprou o apartamento a conselho do seu consultor financeiro. A venda
processou-se rapidamente e Immie e os seus amigos tinham andado às
compras, de antiguidades no mercado de Portobello Road e de têxteis nos
armazéns Harrods. Immie cobrira a porta da frente com fotografias instantâneas
desse verão – talvez umas cinquenta. Na maioria, aparecia com um grupo de
raparigas e rapazes, com o braço por cima uns dos outros, em frente a lugares
como a Torre de Londres ou o museu Madame Tussauds.
Jule arrumou as suas coisas no apartamento e a seguir tirou as fotografias da
porta. Atirou-as para o caixote do lixo e levou o saco para a cave.
*

Nas semanas que se seguiram, Jule adquiriu um novo portátil e pôs os dois
velhos no incinerador. Foi a museus e restaurante, comendo bifes em
estabelecimentos tranquilos e hambúrgueres em pubs ruidosos. Era encantadora
com os empregados. Metia conversa com livreiros e apresentava-se como
Imogen. Falava com turistas – pessoas temporárias – e por vezes fazia uma
refeição com eles ou acompanhava-os ao teatro. Sentia-se como imaginava que
Immie se sentiria: bem-vinda em toda a parte. Mantinha o seu regime de
exercício físico e só comia comida de que gostava. A não ser isso, vivia a vida
de Imogen.
No início da sua terceira semana em Londres, Jule foi ao Madame Tussauds.
O museu é uma atração famosa, cheia de atores de Bollywood, membros da
família real e estrelas de bandas de música pop adolescentes, todos esculpidos
em cera. Aquele lugar estava apinhado de crianças americanas a falarem alto e
dos seus pais irritados.
Jule estava a olhar para o modelo em cera de Charles Dickens, que se
encontrava sentado com cara de poucos amigos numa cadeira de madeira,
quando alguém falou com ela.
– Se ele vivesse agora – disse Paolo Vallarta-Bellstone – rapava aquela
cabeça meio careca.
– Se vivesse agora – disse Jule – escreveria para a televisão.
– Lembras-te de mim? – perguntou ele. – Sou o Paolo. Conhecemo-nos no
verão em Martha’s Vineyard. – Estava com um sorriso tímido. Vestia umas
calças de ganga velhas e uma T-shirt cor de laranja macia. Uns Vans todos
velhos. Andava a viajar de mochila às costas, Jule sabia-o. – Mudaste de
penteado – acrescentou ele. – Não tinha a certeza se eras tu, ao princípio.
Tinha bom aspeto. Jule esquecera-se de como tinha bom aspeto. Beijara-o
uma vez. O seu cabelo preto e farto tombava-lhe para o rosto. As suas faces
pareciam ligeiramente queimadas pelo sol e os seus lábios um pouco gretados.
Talvez tivesse estado a esquiar.
– Lembro-me de ti – disse ela. – Não consegues decidir-te entre caramelo e
doce de leite, enjoas em carrosséis, talvez queiras vir a ser médico um dia.
Jogas golfe, o que é um bocado conservador; andas a viajar pelo mundo, o que
é interessante; segues raparigas em museus e apareces-lhes de surpresa quando
elas param para olhar para um romancista famoso feito de cera.
– Só vou dizer obrigado – disse Paolo –, embora tenhas feito um comentário
mauzinho sobre o golfe. Fico contente por te lembrares de mim. Já o leste? –
Apontou para Dickens. – Era suposto que o lesse na escola, mas não me dei a
esse trabalho.
– Já.
– Qual é o melhor romance dele, na tua opinião?
– Grandes Esperanças.
– Sobre o que é? – Paolo não estava a olhar para a figura de cera. Estava a
olhar para Jule, atentamente. Estendeu a mão e passou-a pelo braço de Jule
enquanto ela respondia. Era um gesto muito confiante, tocar-lhe assim,
segundos depois de voltar a apresentar-se. Normalmente, ela não deixava que
as pessoas lhe tocassem, mas com Paolo não se importou. Era muito delicado.
– Um rapaz órfão apaixona-se por uma rapariga rica – disse-lhe ela. – O
nome dela é Estella. E a Estella foi treinada toda a vida para quebrar o coração
dos homens, e talvez não tenha ela própria coração. Foi criada por uma senhora
louca que foi abandonada pelo noivo no altar.
– Então essa tal Estella quebra o coração do rapaz?
– Muitas vezes. De propósito. A Estella não sabe fazer outra coisa. Quebrar
corações é o seu único poder no mundo. – Afastaram-se de Dickens para uma
secção diferente do museu. – Estás aqui sozinho? – perguntou Jule.
– Estou com um amigo do meu pai. Estou na casa dele por uns dias. Ele quer
mostrar-me a cidade, só que tem de estar sempre a sentar-se. O Artie Thatcher,
conhece-lo?
– Não.
– A ciática dele agravou-se. Foi descansar no salão de chá.
– E a que propósito é que estás em Londres?
– Fiz a coisa de andar de mochila às costas por Espanha, Portugal, França,
Alemanha, Holanda e França outra vez. Depois vim para cá. Estava a viajar
com um amigo, mas ele foi a casa passar o Natal e não me apeteceu voltar, por
isso vim ficar com o Artie durante a época festiva. E tu?
– Tenho um apartamento aqui.
Paolo aproximou-se mais e apontou para um corredor escuro. – Ei, ali fica a
Câmara dos Horrores, ao fundo daquele corredor. Vens lá dentro comigo?
Preciso de proteção.
– De quê?
– Das figuras de cera loucamente assustadoras, é do quê – disse Paolo. – É
uma prisão com presos evadidos. Vi na Internet. Uma data de sangue e tripas.
– E queres ir?
– Adoro sangue e tripas. Mas não sozinho. – Sorriu. – Vens para me proteger
dos internados do asilo, Imogen? – Estavam agora à porta da Câmara dos
Horrores.
– Com certeza – disse Jule. – Eu protejo-te.
Não tinham havido três namorados em Stanford.
Nunca tinham havido três namorados em lado nenhum. Ou mesmo um
namorado.
Jule não precisava de um tipo, não tinha a certeza se gostava de tipos, não
tinha a certeza se gostava fosse de quem fosse.
Ficara de se encontrar com Paolo às oito horas. Escovou os dentes três vezes
e mudou de roupa duas. Pôs perfume de jasmim.
Quando o avistou à espera junto ao carrossel onde tinham combinado
encontrar-se, quase deu meia volta e se foi embora. Paolo estava a ver um
artista de rua. Tinha o cachecol bem apertado a proteger-se do vento de janeiro.
Jule disse a si mesma que não devia tornar-se próxima de ninguém. Não
havia ninguém por quem valesse a pena correr esse risco. Ir-se-ia embora
imediatamente, estava a ponto de ir embora – mas Paolo avistou-a e correu
para ela a toda a velocidade, como um rapazinho, estacando antes de esbarrar
contra ela. Fê-la rodar segurando-a pelos pulsos e disse: – Ena pá, é como um
filme. Consegues acreditar que estamos em Londres? Tudo o que conhecemos
está do outro lado do oceano.
E tinha razão. Tudo estava do outro lado do oceano.
Esta noite correria bem.
Paolo levou Jule a passear ao longo do Tamisa. Havia artistas de rua a
tocarem acordeão e a equilibrarem-se em cordas bambas baixas. Os dois
andaram a dar uma vista de olhos numa livraria durante algum tempo e depois
Jule comprou algodão doce para ambos. Enfiando nuvens cor-de-rosa doces na
boca, dirigiram-se para a ponte de Westminster.
Paolo pegou na mão de Jule e ela deixou. Ele acariciava-lhe o pulso
suavemente de vez em quando com a almofada do polegar. Aquilo provocava
em Jule uma excitação quente pelo braço acima. Surpreendia-a que o seu toque
pudesse dar uma sensação tão reconfortante.
A ponte de Westminster era uma série de arcos de pedra sobre o rio, cinza e
verde. As luzes dos candeeiros na parte de cima da ponte incidiam na corrente
forte do rio.
– A coisa pior naquela Câmara dos Horrores era o Jack, o Estripador – disse
Paolo. – Sabes porquê?
– Porquê?
– Um, porque nunca chegou a ser apanhado. E dois, porque consta que se
matou atirando-se precisamente desta ponte.
– Não acredito.
– Podes crer. Provavelmente, estava aqui mesmo quando se atirou ao rio. Li
na Internet.
– Isso é uma treta absoluta – disse Jule. – Ninguém sabe sequer quem era
realmente o Jack, o Estripador.
– Tens razão – disse ele. – É uma treta.
Beijou-a então, à luz de um candeeiro. Como uma cena de um filme. As
pedras estavam húmidas no nevoeiro e brilhavam. As abas dos casacos deles
adejavam ao vento. Jule tremia com o ar da noite e Paolo pôs a sua mão quente
contra o pescoço dela.
Beijou-a como se não conseguisse imaginar querer estar em qualquer outra
parte à face do planeta, porque aquilo não era tão agradável e não dava uma
sensação mesmo boa? Como se soubesse que ela não deixava que as pessoas
lhe tocassem, e soubesse que o deixaria a ele, e que era o tipo mais sortudo do
mundo. Jule sentiu-se como se o rio por baixo dela estivesse a correr-lhe nas
veias.
Queria ser ela própria com ele.
Perguntou-se se estaria a ser ela própria. Se poderia continuar a ser ela
própria.
E se alguém poderia amar a pessoa que ela era.
Soltaram-se dos braços um do outro e caminharam em silêncio por um
minuto. Um grupo de quatro mulheres jovens bêbedas estava a dirigir-se para
eles, a atravessar a ponte com passos incertos de tacões altos. – Não posso crer
que nos puseram fora – queixou-se uma delas, a arrastar as palavras.
– Deviam querer-nos como clientes, aqueles cabrões – disse outra. A
pronúncia delas era do Yorkshire.
– Ooh, ele é giro. – A primeira olhou para Paolo a uma distância de três
metros.
– Achas que ele quer ir beber um copo?
– Ah! Atrevida.
– Não sei. Pergunta-lhe.
Uma das mulheres berrou: – Se quer uma saída à noite, bom senhor, pode vir
connosco.
Paolo corou. – O quê?
– Vens daí? – perguntou ela. – Só tu.
Paolo abanou a cabeça. As mulheres continuaram a andar, a rir-se, e ele ficou
a olhar para elas até saírem da ponte. A seguir, pegou de novo na mão de Jule.
O clima entre os dois estava diferente, no entanto. Já não sabiam o que dizer
um ao outro.
Por fim, Paolo disse: – Conhecias a Brooke Lannon?
O quê?
A amiga de Imogen, Brooke. O que é que Paolo tinha que ver com Brooke?
Jule aligeirou o tom de voz. – Conhecia, de Vassar. Porquê?
– A Brooke... faleceu há cerca de uma semana. – Paolo olhou para o chão.
– O quê? Oh, não.
– Não era minha intenção ser eu a dizer-te. Não me ocorreu que a conhecias
até este momento – disse Paolo. – E depois saiu-me.
– Como é que conhecias a Brooke?
– Não a conhecia, realmente. Era amiga da minha irmã, dos acampamentos
de verão.
– O que aconteceu? – Jule queria ouvir a resposta dele, queria-o
desesperadamente, mas acalmou a voz.
– Foi um acidente. Ela estava no cimo de um parque a norte de São
Francisco. Estava lá a visitar uns amigos que andavam na faculdade na cidade,
mas eles estavam ocupados, ou algo do género, e a Brooke foi fazer uma
caminhada. Era uma caminhada durante o dia, mas já tarde, quando começava
a ficar escuro. Estava numa reserva natural sozinha. E simplesmente... caiu de
um passadiço. Um passadiço por cima de uma ravina.
– Caiu?
– Acham que tinha estado a beber. Bateu com a cabeça e ninguém a
encontrou até de manhã. Só alguns animais. O corpo estava bastante destruído.
Jule estremeceu. Pensou em Brooke Lannon, com o seu riso alto e
espalhafatoso. Brooke, que bebia demasiado. Brooke, com aquele sentido de
humor perverso, o cabelo amarelo liso e brilhante e o corpo como o de uma
foca. A linha do maxilar de quem se acha com direito a tudo. A tonta,
mesquinha, áspera Brooke. – Como sabem o que aconteceu?
– Debruçou-se do gradeamento. Talvez tenha trepado para ver alguma coisa.
Encontraram o carro dela no parque de estacionamento com uma garrafa de
vodca vazia lá dentro.
– Foi suicídio?
– Não, não. Foi só um acidente. Veio nas notícias hoje, como uma história a
servir de aviso. Sabes, leva sempre um amigo quando vais para o meio da
Natureza. Não bebas vodca antes de atravessares uma ravina. A família dela
ficou preocupada quando ela não apareceu em casa na véspera de Natal, mas a
polícia supôs que ela se tinha ausentado deliberadamente.
Jule sentia-se fria e estranha. Não pensava em Brooke desde que chegara a
Londres. Poderia tê-la pesquisado na Internet, mas não o tinha feito. Excluíra
completamente Brooke dos seus pensamentos. – Tens a certeza de que foi um
acidente?
– Um acidente terrível – disse Paolo. – Lamento muito.
Continuaram a andar uns momentos num silêncio embaraçado.
Paolo puxou o gorro para baixo a tapar as orelhas.
Ao fim de um minuto, Jule estendeu a mão e pegou de novo na dele. Queria
tocar-lhe. Admitir isso e fazê-lo dava-lhe mais a sensação de ser um ato de
coragem do que qualquer luta em que alguma vez se tivesse envolvido. – Não
pensemos nisso – disse. – Vamos só pensar que estamos no outro lado do
oceano e sentirmo-nos com sorte.
Deixou que Paolo a acompanhasse a casa e ele beijou-a mais uma vez em
frente ao prédio dela. Enroscaram-se um no outro nos degraus para se
manterem quentes enquanto uns alegres flocos de neve flutuavam pelo ar.
No dia seguinte, de manhã cedo, Paolo apareceu no apartamento com um
saco. Jule estava com calças de pijama e uma camisola interior de alças quando
ele tocou à campainha. Fê-lo esperar na entrada enquanto se vestia.
– Pedi emprestada a casa do meu amigo no Dorset – disse ele, seguindo-a até
à cozinha. E aluguei um carro. Tudo o mais de que alguém poderia precisar
para um fim de semana fora está neste saco.
Jule espreitou para dentro do saco que ele lhe estendia: quatro chocolates
Crunchie, Hula Hoops, Swedish Fish, duas garrafas de água com gás e um
pacote de batatas fritas com sal e vinagre. – Não tens nenhumas roupas aí
dentro. Nem sequer uma escova dos dentes.
– Isso é para amadores.
Ela riu-se. – Uh.
– OK, tudo bem, tenho a mochila no carro. Mas estes são os itens
importantes – disse Paolo. – Podemos ver Stonehenge no caminho. Já o viste?
– Não.
Jule sentia-se de facto particularmente curiosa por ver Stonehenge, sobre o
qual lera num romance de Thomas Hardy que tinha comprado numa livraria em
São Francisco, mas queria ver todas as coisas – era como se sentia. Toda a
Londres que não vira ainda, toda a Inglaterra, todo o grande e vasto mundo – e
sentir-se livre, poderosa e sim, com direito a tudo, testemunhar e compreender
o que havia por aí.
– Vai ter mistério antigo, portanto vai ser bom – disse Paolo. – Depois,
quando chegarmos à casa, podemos fazer umas caminhadas e olhar para as
ovelhas nos prados. Ou tirar fotografias de ovelhas. Talvez fazer-lhes festas. O
que quer que seja que as pessoas fazem no campo.
– Estás a convidar-me?
– Sim! Tem quartos separados. Disponíveis.
Empoleirou-se na beira da cadeira da cozinha, como se não tivesse a certeza
de ser bem-vindo. Como se talvez tivesse sido demasiado atrevido.
– Agora estás nervoso – disse ela, a ganhar tempo.
Queria aceitar o convite. Sabia que não devia.
– Pois é, estou muito nervoso.
– Porquê?
Paolo pensou por um momento. – Está muito mais em jogo agora. Importa-
me qual vai ser a tua resposta. – Pôs-se de pé lentamente e beijou-lhe o lado do
pescoço. Ela encostou-se a ele e sentiu que ele estava a tremer um pouco.
Beijou o lóbulo tenro da sua orelha e depois os seus lábios, pondo-se nas
pontas dos pés ali na cozinha.
– Isso é um sim? – segredou ele.
Jule sabia que não devia ir.
Era uma péssima ideia. Deixara para trás esta possibilidade há muito tempo.
O amor era do que desistias quando te tornavas – o que quer que ela era agora.
Extraordinária. Perigosa. Correra riscos e reinventara-se.
Agora este rapaz estava na sua cozinha, a tremer quando a beijava, com um
saco cheio de comida de plástico e água com gás. A dizer tolices sobre ovelhas.
Jule atravessou para o outro lado da divisão e lavou as mãos no lava-louça.
Sentia-se como se o universo estivesse a oferecer-lhe algo belo e especial. Não
voltaria a aparecer-lhe com uma oferta como aquela.
Paolo aproximou-se e pousou a mão no ombro dela, muito, muito
delicadamente, como se a pedir permissão. Como se maravilhado por ter
licença para tocar nela.
E Jule virou-se e disse-lhe que sim.
Stonehenge estava fechado.
E estava a chover.
Não se podia mesmo ver as pedras a não ser que se tivesse comprado bilhetes
antecipadamente. Jule e Paolo nem sequer conseguiram pôr-lhes a vista em
cima do centro de visitantes.
– Prometi-te mistério antigo e agora não é mais do que um parque de
estacionamento – disse Paolo, meio triste e meio na brincadeira, quando
voltaram para dentro do carro. – Devia ter-me informado.
– Não faz mal.
– Sei como usar a Internet, acredita.
– Oh, não te preocupes. Estou mais empolgada com a ideia das ovelhas, de
qualquer maneira.
Ele sorriu. – Estás mesmo?
– Claro que sim. Podes garantir-me ovelhas?
– Falas a sério? Porque não me parece que possa garantir ovelhas de facto, e
não quero dececionar-te outra vez.
– Não, não quero saber de ovelhas para nada.
Paolo abanou a cabeça. – Devia ter adivinhado. As ovelhas não são
Stonehenge. Temos de encarar esse facto. Nem mesmo as melhores ovelhas
alguma vez serão Stonehenge.
– Vamos comer uns Swedish Fish – disse ela, para o animar.
– Perfeito – disse Paolo. – Isso é um plano perfeito.
A casa não era uma casa. Era uma mansão. Uma grande casa, construída no
século XIX. Havia terras à volta e uma entrada com portão. Paolo tinha um
código para o portão. Digitou-o e conduziu o carro por um caminho de acesso à
casa em curva.
As paredes da casa eram de tijolo e estavam cobertas de heras. Num dos
lados, havia um jardim em declive com roseiras e bancos de pedra, a terminar
num pavilhão redondo à beira de um ribeiro.
Paolo remexeu nos bolsos. – Tenho as chaves aqui algures.
Chovia muito agora. Eles estavam na soleira da porta, com os sacos na mão.
– Com um raio, onde é que elas estão? – Paolo palpou o casaco, as calças, o
casaco de novo. – Chaves, chaves. – Procurou no saco. Procurou na mochila.
Deu uma corrida e foi procurar no carro.
Sentou-se na soleira da porta, abrigado da chuva, e tirou tudo dos bolsos.
Depois, tirou tudo do saco. E tudo da mochila.
– Não tens as chaves – disse Jule.
– Não tenho as chaves.
Era um trapaceiro, um vigarista. Não era nada Paolo Vallarta-Bellstone. Que
provas vira Jule? Nem documento de identificação nem fotografias na Internet.
Só o que ele lhe dissera, os seus modos, o seu conhecimento da família de
Imogen. – És realmente amigo destas pessoas? – perguntou ela, aligeirando a
voz.
– É a casa de campo da família do meu amigo Nigel. Ele recebeu-me aqui no
verão, e ninguém está a usá-la e... eu sabia o código do portão, não sabia?
– Não estou a duvidar de ti de facto – mentiu ela.
– Podemos ir às traseiras e ver se a porta da cozinha está aberta. Há um
jardim da cozinha, de... dos tempos na história em que tinham jardins da
cozinha – disse Paolo. – Penso que o termo técnico é «nos bons velhos
tempos».
Puseram os respetivos casacos por cima da cabeça e correram à chuva,
pisando poças e rindo.
Paolo sacudiu a porta da cozinha. Estava aferrolhada. Andou por ali à
procura de uma chave extra debaixo de pedras, enquanto Jule se abrigava sob o
guarda-chuva.
Ela tirou o telemóvel do bolso e pesquisou o nome dele, procurando imagens.
Que alívio. Era decididamente Paolo Vallarta-Bellstone. Havia fotografias
dele em eventos de angariação de fundos para organizações de caridade, de pé
ao lado dos pais, sem gravata num evento onde claramente se esperava que os
homens usassem gravara. Imagens dele com outros tipos num campo de
futebol. Uma fotografia da cerimónia de fim do curso do secundário que
mostrava dentes com aparelho e um mau corte de cabelo, publicada por uma
avó que tinha escrito no seu blogue um total de três vezes.
Jule sentia-se contente por ele ser Paolo e não um vigarista qualquer.
Agradava-lhe que fosse tão boa pessoa. Era melhor que fosse genuíno, porque
podia acreditar nele. Mas havia tanto de Paolo que Jule nunca saberia. Tanta
história que ele nunca chegaria a contar-lhe.
Paolo desistiu de procurar a chave. Tinha o cabelo ensopado. – As janelas
têm alarme – disse. – Acho que é um caso perdido.
– O que havemos de fazer?
– É melhor irmos até ao pavilhão e ficarmos a beijar-nos por um bocado –
disse Paolo.
A chuva não abrandava.
Com as roupas húmidas, dirigiram-se no carro para Londres e pararam num
pub para comer comida frita.
Paolo parou junto ao prédio de Jule. Não a beijou, mas estendeu a mão para
pegar na dela. – Gosto de ti – disse. – Pensei... acho que já o tinha deixado
claro? Mas pensei que devia dizê-lo.
Jule retribuía o seu sentimento. Gostava de si mesma com ele.
Mas não era ela mesma com ele. Não sabia do que era ou mesmo de quem
era que Paolo gostava.
Poderia ser de Immie. Poderia ser de Jule.
Ela já não tinha a certeza de onde traçar a linha entre as duas. Jule cheirava a
jasmim como Imogen, Jule falava como Imogen, Jule gostava dos livros de que
Immie gostava. Essas coisas eram verdade. Jule era órfã como Immie, uma
pessoa que se criara a si mesma, uma pessoa com um passado misterioso.
Muito de Imogen estava em Jule, sentia ela, e muito de Jule estava em Imogen.
Mas Paolo pensava que Patti e Gil eram os seus pais. Pensava que ela tinha
andado na faculdade com a pobre da falecida Brooke Lannon. Pensava que ela
era judia e rica e proprietária de um apartamento em Londres. Essas mentiras
faziam parte daquilo de que ele gostava. Era impossível contar-lhe a verdade, e,
mesmo que ela o fizesse, ele odiá-la-ia por essas mentiras.
– Não posso continuar a ver-te – disse-lhe ela.
– O quê?
– Não posso continuar a ver-te. Assim. Nunca mais.
– Porque não?
– Simplesmente não posso.
– Há outra pessoa? Com quem andes? Eu podia tirar vez ou pôr-me na fila ou
coisa do género.
– Não. Sim. Não.
– É sim ou não? Consigo fazer-te mudar de ideias?
– Não estou disponível. – Podia dizer-lhe que tinha outra pessoa, mas não
queria mentir-lhe mais.
– Porque não?
Abriu a porta do carro. – Não tenho coração.
– Espera.
– Não.
– Por favor, espera.
– Tenho de ir.
– Passaste um dia mau? Quer dizer, além da chuva, de não termos visto
Stonehenge, não ficarmos na casa de campo, não haver ovelhas? Além do facto
de ter sido um dia de desastre em cima de desastre?
Jule queria ficar no carro. Tocar nos lábios dele com as pontas dos seus
dedos e descontrair-se como Immie e deixar as mentiras aumentarem, assentes
umas em cima das outras.
Mas não podia.
– Deixa-me em paz Paolo, porra – resmungou. Abriu a porta do carro e saiu
para a chuva torrencial.
Passaram duas semanas. Jule mantinha as sobrancelhas depiladas finas.
Comprou roupas e mais roupas, coisas maravilhosas com etiquetas de preços
exorbitantes. Comprou livros de culinária para a cozinha do apartamento,
embora nunca os usasse. Foi ao bailado, à ópera, ao teatro. Viu todas as coisas,
locais históricos e museu e edifícios famosos. Comprou antiguidades em
Portobello Road.
Uma noite, já tarde, Forrest apareceu no apartamento. Era suposto estar na
América.
Jule tentou controlar o pânico ao espreitar pelo óculo da porta. Apetecia-lhe
abrir a janela e trepar pelo cano do esgoto para o telhado, saltar para o prédio
ao lado e, francamente, não estar em casa, ponto final. Queria mudar as
sobrancelhas e o cabelo e a maquilhagem e...
Ele tocou à campainha uma segunda vez. Jule optou por tirar os anéis e vestir
umas calças de fato de treino e uma T-shirt em vez do vestido maxi com que
estava. Pôs-se em frente à porta e recordou a si mesma que sempre soubera que
Forrest poderia aparecer. Era o apartamento de Immie. Jule tinha uma
estratégia. Podia lidar com ele. Abriu a porta.
– Forrest. Que grande surpresa.
– Jule.
– Pareces cansado. Estás bem? Entra.
Ele trazia um saco de fim de semana. Ela tirou-lho das mãos e trouxe-o para
dentro do apartamento.
– Acabei de sair de um avião – disse Forrest, a esfregar o queixo e a
pestanejar por trás dos óculos.
– Apanhaste um táxi de Heathrow?
– Apanhei. – Olhou-a friamente. – Porque é que tu estás aqui? No
apartamento da Imogen?
– Estou cá por uns tempos. Ela deu-me as chaves.
– Onde é que ela está? Quero vê-la.
– Não voltou para casa ontem à noite. Como é que deste com o apartamento?
– A Patti Sokoloff deu-me a morada. – Forrest olhou para o chão,
embaraçado. – Foi um voo longo. Posso beber um copo de água?
Jule conduziu-o à cozinha. Deu-lhe água da torneira, sem gelo. Tinha limões
numa taça em cima da bancada da cozinha, porque se enquadravam na ideia de
como deveria ser o aspeto do apartamento, mas dentro dos armários e do
frigorífico não havia nada que Imogen teria comprado. Jule comia bolachas de
água e sal e manteiga de amendoim açucarada, embalagens de salame e tabletes
de chocolate. Esperava que Forrest não pedisse comida.
– Onde está a Immie, diz lá? – perguntou.
– Já te disse, não está aqui.
– Mas, Jule. – Agarrou-lhe o braço e por um momento ela sentiu medo dele,
medo das suas mãos duras a pressionarem o algodão da sua T-shirt, embora
fosse magro e fraco. – Onde é que ela está em vez de estar aqui? – disse, muito
lentamente. Jule detestava a sensação do corpo dele perto do seu.
– Nunca mais me toques, porra – disse-lhe. – Nunca mais. Compreendes?
Ele soltou-lhe o braço e entrou na sala de estar, onde se esparramou no sofá
sem ser convidado. – Penso que sabes onde ela está. É tudo.
– Provavelmente foi passar o fim de semana a Paris. Pode-se ir muito
rapidamente daqui pelo Eurotúnel.
– Paris?
– É uma suposição.
– Ela disse-te para não me dizeres aonde ia?
– Não. Nem sequer sabíamos que tu vinhas.
Forrest voltou a afundar-se no sofá. – Preciso de a ver. Mandei-lhe
mensagem, mas ela é capaz de me ter bloqueado.
– Arranjou um telemóvel do Reino Unido, com um número diferente.
– Também não responde aos meus e-mails. Foi por isso que vim lá de tão
longe. Tinha a esperança de conversar com ela.
Jule fez um chá para os dois enquanto Forrest telefonava para hotéis. Teve de
fazer doze telefonemas antes de encontrar um hotel com um quarto que
pudesse reservar por algumas noites.
Fora suficientemente arrogante para pensar que Imogen o deixaria ficar no
apartamento.
13

MEADOS DE DEZEMBRO, 2016


SÃO FRANCISCO, CALIFÓRNIA

D ois dias antes da sua chegada a Londres, Jule estava a subir a pé uma
encosta em São Francisco com uma estatueta pesada de um leão na
mochila.
Adorava São Francisco. Tinha o aspeto que Immie dissera que teria, com
colinas e pitoresca, mas ao mesmo tempo expansiva e elegante. Hoje, Jule fora
ver a exposição de cerâmica do Museu de Arte Asiática. A proprietária do seu
apartamento recomendara-o.
Maddie Chung, a proprietária, era uma mulher enxuta, andava pelos
cinquenta e era gay. Usava calças de ganga e fumava no alpendre e tinha uma
pequena livraria. Jule pagou a dinheiro uma semana de arrendamento do
apartamento, que era o último andar de uma casa vitoriana. Maddie e a sua
mulher viviam nos dois andares de baixo. Ela andava sempre a falar a Jule
sobre história de arte e exposições em galerias. Era muito bondosa e parecia
encarar Jule como alguém a necessitar de benevolência.
Hoje, quando Jule chegou a casa, Brooke Lannon estava sentada nos degraus
do alpendre. A amiga de Immie de Vassar. – Cheguei aqui mais cedo – disse
Brooke. – Mas adiante.
O descapotável de Brooke ficara estacionado em frente à casa durante a
noite. Ela precisava de vir buscá-lo, mas Jule enviara-lhe uma mensagem a
pedir-lhe que ficasse para conversarem.
Brooke tinha coxas grossas, queixo quadrado e cabelo louro liso e brilhante
que parecia sempre igual. Pele branca e batom sem cor. Um estilo desportivo.
Crescera em La Jolla. Bebia demasiado, jogara hóquei em campo na secundária
e tivera uma série de namorados e uma namorada, mas nunca amor. Essas eram
todas as coisas que Jule sabia sobre ela dos tempos de Martha’s Vineyard.
Agora, Brooke pôs-se de pé e quase se desequilibrou.
– Estás bem? – perguntou Jule.
– Nem por isso.
– Estiveste a beber?
– Estive – respondeu Brooke. – Que tem isso?
Estava a anoitecer.
– Vamos dar uma volta de carro – disse Jule. – Podemos conversar.
– Uma volta de carro?
– Vai ser agradável. Tens um carro tão giro. Dá-me as chaves. – O carro era o
tipo de coisa que homens mais velhos compram para se convencerem de que
ainda são sexy. Os dois assentos eram beges-escuros, o chassi arredondado e de
um verde-vivo. Jule perguntou-se se o carro pertenceria ao pai de Brooke. –
Não te posso deixar conduzir se estiveste a beber.
– Quem é que tu és, a polícia?
– Não propriamente...
– Uma espia?
– Brooke.
– A sério, és?
– Não posso responder a isso.
– Ah. É o que uma espia diria.
Já não importava o que Jule dissesse ou não dissesse a Brooke. – Vamos
fazer uma caminhada – disse. – Conheço um sítio no parque estatal. Podemos
atravessar a ponte Golden Gate, vai ser cénico como tudo.
Brooke fez tilintar as chaves do carro no bolso. – É um bocado tarde.
– Olha – disse Jule. – Tivemos um mal-entendido em relação à Immie, e fico
contente que tenhas vindo cá. Vamos só a um lugar neutro conversar sobre o
assunto. O meu apartamento não é o melhor sítio para isso.
– Não sei se quero conversar contigo.
– Apareceste mais cedo – disse Jule. – Queres conversar comigo.
– OK, falamos sobre o assunto, resolvemos a coisa com um abraço, isso tudo
– disse Brooke. – Vai fazer feliz a Immie. – Entregou as chaves do carro a Jule.
As pessoas eram estúpidas quando bebiam.
Dois dias antes do Natal fazia demasiado frio para andar num descapotável,
mas a capota do carro de Brooke estava descida, de qualquer modo. Brooke
insistira. Jule estava com calças de ganga, botas e uma camisola quente de lã. A
sua mochila encontrava-se na mala do carro, e dentro dela trazia a carteira do
dinheiro, uma segunda camisola e uma T-shirt limpa, uma garrafa de água com
o bocal largo, uma embalagem de toalhetes de bebé, um saco preto do lixo e a
estatueta do leão.
Brooke tirou uma garrafa de vodca meio vazia do saco que trazia ao ombro,
mas não chegou a beber. Adormeceu quase imediatamente.
Jule atravessou a cidade ao volante. Quando chegaram à ponte Golden Gate,
sentia-se agitada. A viagem em silêncio era enervante. Acotovelou Brooke a
acordá-la. – A ponte – disse. – Olha. – Pairava acima delas, cor de laranja e
majestosa.
– As pessoas adoram atirar-se desta ponte para se matarem – disse Brooke
com a voz empastada.
– O quê?
– É a segunda ponte mais popular do mundo para suicídios – disse Brooke. –
Li isso algures.
– Qual é a primeira?
– Uma ponte no rio Yangtze. Não me lembro do nome. Leio coisas desse
género – disse Brooke. – As pessoas pensam que é poético, atirar-se de uma
ponte. É por isso que o fazem. Ao passo que, digamos, cortares os pulsos numa
banheira é só uma sujeira. O que é que uma pessoa deve vestir para se esvair
em sangue até à morte numa banheira?
– Não veste nada.
– Como é que sabes?
– Simplesmente sei. – Jule desejava não se ter envolvido na conversa sobre
este tópico com Brooke.
– Não quero que as pessoas me vejam nua quando estiver morta! – berrou
Brooke para o ar por baixo da ponte Golden Gate. – Mas também não quero
usar roupas na banheira! É muito embaraçoso.
Jule ignorou-a.
– De qualquer maneira, andam a construir uma barreira agora para as pessoas
não poderem atirar-se – prosseguiu Brooke. – Aqui na Golden Gate.
Saíram da ponte em silêncio e viraram para o parque.
Por fim, Brooke acrescentou: – Não devia ter abordado aquele assunto. Não
quero meter-te ideias na cabeça.
– Eu não tenho ideias.
– Não te mates – disse Brooke.
– Não me vou matar.
– Estou a ser tua amiga neste momento, OK? Há algo em ti que não é normal.
Jule não respondeu.
– Cresci com pessoas muito normais e estáveis – continuou Brooke. –
Comportávamo-nos como pessoas normais o dia todo na minha família. Tão
normais que me dava vontade de arrancar os olhos. Portanto sou, tipo,
especialista. E tu? Tu não és normal. Devias pensar em procurar ajuda para
isso, é o que estou a dizer.
– Tu pensas que ser normal é ter carradas de dinheiro.
– Não, não penso. A Vivian Abromowitz anda em Vassar com uma bolsa de
estudos que cobre tudo e é normal, aquela bruxa.
– Pensas que é normal ter tudo o que queres todo o tempo – disse Jule. – Que
as coisas sejam fáceis. Mas não é. A maior parte das pessoas não consegue o
que quer, tipo, nunca. Fecham-lhes portas na cara. Têm de se esforçar, todo o
tempo. Não vivem na tua terra mágica de carros de dois lugares e dentes
perfeitos e viagens para a Itália e casacos de peles.
– Ai está – disse Brooke. – Provaste o que eu disse.
– Como?
– Nem sequer é normal dizer coisas como essas. Voltaste à vida da Immie
depois de já não a veres há anos e numa questão de dias mudaste-te para a casa
dela, andas a pedir emprestadas as coisas dela, andas a nadar na porra da
piscina dela e a deixá-la pagar os teus cortes de cabelo. Tu andaste na porra de
Stanford e, coitadinha, perdeste a bolsa de estudos, mas não te dês ares de que
és a porta-voz da porra dos noventa e nove por cento. Ninguém te está a fechar
portas na cara, Jule. E também ninguém usa casacos de pele porque, hello, isso
nem sequer é ético. Quer dizer, talvez a avó de alguém usasse, mas não uma
pessoa normal. E eu nunca disse nada sobre os teus dentes. Fogo. Precisas de
aprender a relaxar e a comportares-te como um ser humano se queres ter
amigos de verdade e não só pessoas que te toleram.
Nem uma nem a outra disseram mais uma palavra durante o resto da viagem.
Estacionaram e Jule pegou na sua mochila. Tirou as luvas do bolso das calças
de ganga e enfiou-as. – Vamos deixar os nossos telemóveis na mala do carro –
disse.
Brooke olhou para ela por um longo minuto. – OK, tudo bem. Estamos numa
de natureza – disse, a arrastar as palavras. Fecharam os telemóveis e Jule meteu
as chaves do carro no bolso. Olharam para a tabuleta na entrada do parque de
estacionamento. Os trilhos de caminhadas estavam assinalados em várias cores.
– Vamos até ao miradouro – disse Jule, apontando para o trilho assinalado a
azul. – Já lá estive.
– Tanto faz – disse Brooke.
Era uma caminhada de ida e volta de seis quilómetros e meio. O parque
estava quase vazio por causa do frio e de ser a época de Natal, mas algumas
famílias estavam a ir-se embora com a aproximação do fim do dia. Havia
crianças cansadas a queixarem-se ou a serem levadas ao colo. Quando Brooke
e Jule começaram a subir a colina, o caminho já estava vazio.
Jule sentiu acelerar a pulsação. Ia à frente.
– Tu tens um fraquinho pela Imogen – disse Brooke, quebrando o silêncio. –
Não penses que isso te torna especial. Toda a gente tem um fraquinho pela
Imogen.
– Ela é a minha melhor amiga. Não é o mesmo que ter um fraquinho – disse
Jule.
– Ela não é a melhor amiga de ninguém. É uma quebra-corações.
– Não digas mal dela. Só estás furiosa por não te ter mandado uma
mensagem.
– Ela mandou-me uma mensagem. A questão não é essa – disse Brooke. –
Ouve. Quando nos tornámos amigas no primeiro ano da faculdade, a Immie
andava sempre no meu quarto na residência: de manhã, a trazer-me um latte
antes das aulas; a arrastar-me para ir ver filmes no departamento de cinema; a
querer pedir brincos emprestados; a trazer-me bolachas de água e sal Goldfish
porque sabia que eu gostava delas.
Jule não disse nada.
Immie arrastara-a para filmes. Immie comprara-lhe chocolates. Immie trazia-
lhe café à cama, quando viviam juntas.
Brooke continuou: – Passava por lá todas as terças e quintas, porque
tínhamos uma aula de Italiano de manhã cedo. E ao princípio eu nem sequer
estava acordada. Ela tinha de esperar enquanto eu me vestia. A minha colega de
quarto começou a implicar por a Immie ir lá tão cedo, por isso eu comecei a
ligar o alarme no telemóvel. Levantava-me e já estava à porta antes de a Immie
chegar.
«E depois, um dia, ela não veio. Foi no princípio de novembro, acho eu. E
sabes que mais? Nunca mais veio depois disso. Nunca mais me comprou um
latte nem me arrastou para o cinema. Tinha passado para a Vivian Abromowitz.
E sabes que mais? Eu podia ter feito uma cena de miúda da secundária quanto a
isso, Jule. Podia ter ficado toda amuada e agido tipo, ooh, pobre de mim,
porque não podes ter duas melhores amigas e uá, uá, uá. Mas não o fiz. Fui
simpática com as duas. E ficámos todas amigas. E ficou tudo bem.»
– OK.
Jule detestava aquela história. Detestava, também, o facto de não ter
compreendido antes que a razão por que Vivian e Brooke não gostavam uma da
outra era a própria Imogen.
Brooke prosseguiu: – O que estou a dizer é que a Imogen quebrou o
coraçãozinho da Vivian também. Mais tarde. E o do Isaac Tupperman. Deu
esperanças a uma data de tipos diferentes quando andava com o Isaac e o Isaac,
claro, ficou todo cheio de ciúmes e inseguro. Depois a Immie ficou
surpreendida quando ele acabou com ela. Mas do que é que estava à espera,
quando se envolvia com outros tipos? Queria ver se as pessoas perdiam a calma
e ficavam todas obcecadas com ela. E sabes que mais? Isso foi exatamente o
que tu fizeste e exatamente o que uma data de pessoas fez na faculdade. É uma
coisa de que a Imogen gosta, porque a faz sentir espantosa e sexy, mas depois
já não podem continuar amigas. A outra maneira de lidar com a situação é
provares que és superior a isso. A Imogen sabe que tu és tão forte como ela ou
talvez até mais forte. E então respeita-te e continuam a dar-se.
Jule mantinha-se em silêncio. Esta era uma nova versão da história de Isaac
Tupperman, o Isaac do Bronx, de Coates e Tony Morrison, dos poemas
deixados na bicicleta de Imogen, da possível gravidez. Immie não o olhara com
admiração? Ficara embeiçada e a seguir desiludida – mas só depois de ele a
deixar. Não parecia possível que ela o tivesse traído.
Mas então, de repente, parecia de facto possível. Parecia óbvio a Jule agora
que Imogen – que se sentira oca e inferior ao lado do intelecto e da
masculinidade de Tupperman – se tivesse feito sentir mais forte e mais
poderosa do que ele traindo-o.
Continuaram a andar pela floresta. O sol começava a pôr-se.
Não havia mais ninguém no caminho.
– Se queres ser como a Immie, então sê como ela. Tudo bem – disse Brooke.
Tinham chegado a um passadiço sobre uma ravina. Conduzia a uns degraus de
madeira que davam acesso a uma torre de onde se via o vale lá no fundo e as
colinas à volta. – Mas tu não és a Imogen, compreendes?
– Eu sei que não sou a Imogen.
– Não tenho a certeza se sabes – disse Brooke.
– Nada disso é da tua conta.
– Talvez eu o tenha tornado da minha conta. Talvez pense que és instável e
que o melhor seria que te afastasses da Immie e procurasses ajuda para os teus
problemas mentais.
– Diz-me uma coisa. Porque é que estamos aqui? – perguntou Jule.
Encontrava-se nos degraus acima de Brooke.
Abaixo delas estava a ravina.
O sol já quase se tinha posto.
– Porque é que estamos aqui, perguntei – disse Jule. Disse-o num tom ligeiro,
tirando a mochila dos ombros e abrindo-a como se para ir buscar a garrafa de
água.
– Vamos ter uma conversa sobre o assunto, como tu disseste. Quero que
pares de te meter na vida da Immie, de viver do fundo fiduciário dela, de a
levar a ignorar os amigos e de fazer o que mais estejas a fazer.
– Perguntei-te porque estamos aqui – disse Jule, debruçada sobre a mochila.
Brooke encolheu os ombros. – Aqui exatamente? Neste parque? Tu
trouxeste-nos cá.
– Correto.
Jule levantou o saco que continha a estatueta do leão do Museu de Arte
Asiática. Balouçou-a uma vez, com força, acertando na testa de Brooke com
um estalido horrendo.
A estatueta não se partiu.
A cabeça de Brooke projetou-se para trás. Ela cambaleou no passadiço de
madeira.
Jule avançou um passo e atingiu-a de novo. Desta vez de lado. Começou a
esguichar sangue da cabeça de Brooke. Salpicou o rosto de Jule.
Brooke tombou contra o gradeamento, as mãos a agarrarem os varões de
madeira.
Jule deixou cair a estatueta e baixou-se para Brooke. Agarrou-a pelos
joelhos. Brooke esperneou e atingiu Jule no ombro, a tentar voltar a agarrar-se
ao gradeamento. O pontapé foi forte e o ombro de Jule deslocou-se com um
choque de dor.
Merda.
Jule viu tudo branco por um minuto. Largou Brooke e, com o braço esquerdo
a pender, enganchou o direito e enfiou-o por baixo dos antebraços de Brooke,
obrigando-a a largar o gradeamento. A seguir, inclinou-se e voltou a baixar-se.
Prendeu as pernas de Brooke, que se debatia no chão, agarrou-as com força,
meteu o ombro são por baixo do corpo de Brooke, ergueu-a e atirou-a para a
ravina.
Tudo ficou em silêncio.
O sedoso cabelo louro de Brooke caiu a pique.
Ouviu-se um baque surdo quando o corpo dela bateu contra os topos das
árvores e outro quando aterrou no fundo da ravina rochosa.
Jule debruçou-se do gradeamento. O corpo estava invisível por baixo da
vegetação.
Olhou à sua volta. Ainda ninguém no caminho.
O seu ombro estava deslocado. Doía-lhe tanto que não conseguia pensar
bem.
Não contara com um ferimento. Se não conseguisse mexer o seu braço
deslocado, fracassaria, porque Brooke estava morta e o sangue dela estava por
toda a parte e Jule tinha de mudar de roupa. Imediatamente.
Forçou-se a acalmar a respiração. Forçou-se a focar os olhos.
Segurando o pulso esquerdo com o direito, ergueu o braço esquerdo num
movimento a afastá-lo do corpo. Uma, duas vezes – meu Deus, como doía –
mas à terceira tentativa o ombro esquerdo voltou ao seu lugar.
A dor desapareceu.
Jule vira um tipo fazer aquilo uma vez, num ginásio de artes marciais.
Fizera-lhe perguntas sobre essa técnica.
Ora bem, então. Olhou para a sua camisola. Estava salpicada com sangue.
Tirou-a. A T-shirt que trazia por baixo também estava húmida. Despiu-a e usou
uma ponta limpa para limpar as mãos e o rosto. Tirou as luvas. Pegou nos
toalhetes de bebé que trazia na mochila e limpou-se – o peito, os braços, o
pescoço, as mãos – a tremer ao ar frio de inverno. Enfiou as roupas e os
toalhetes ensanguentados no saco preto do lixo, atou-o para o fechar e enfiou
tudo na mochila.
Vestiu a T-shirt limpa e a camisola limpa.
Havia sangue no saco onde trazia a estatueta.
Jule tirou a estatueta do saco e virou-o do avesso de modo a que o sangue
ficasse no seu interior. Meteu a estatueta na mochila e enfiou o saco sujo na sua
garrafa de água de bocal largo.
Limpou os salpicos de sangue do passadiço com toalhetes e depois enfiou
todo o lixo na garrafa de água.
Olhou à sua volta.
O caminho estava vazio.
Jule tocou a medo no ombro. Estava bem. Limpou o rosto, as orelhas e o
cabelo quatro vezes mais com toalhetes, a desejar ter-se lembrado de trazer um
espelhinho de bolso. Olhou por cima da ponte, para a ravina.
Não conseguia ver Brooke.
Percorreu o caminho de volta pelo trilho. Sentia que poderia caminhar para
sempre e nunca ficar cansada. Não viu ninguém no caminho até perto da
entrada, onde passou por quatro tipos de ar desportivo com gorros à Pai Natal e
lanternas elétricas, a começarem a subir o trilho assinalado a amarelo.
Junto ao carro, Jule parou.
O carro devia ficar ali. Se o levasse para qualquer outro lugar, não faria
sentido quando o corpo de Brooke fosse encontrado na ravina.
Cuidadosamente, entrou no carro. Tirou os toalhetes da mochila e começou a
limpar o travão de mão, mas parou.
Não, não. Era um plano errado. Porque não pensara bem nisso antes?
Pareceria suspeito se não houvesse nenhumas impressões digitais no carro. As
impressões digitais de Brooke deviam estar ali. Pareceria estranho, agora que o
travão estava limpo.
Pensa, pensa. A garrafa de vodca encontrava-se no chão junto ao lugar do
passageiro. Jule pegou nela com um toalhete e abriu a tampa. A seguir, verteu
um pouco de vodca em cima do travão de mão, como se se tivesse derramado
acidentalmente. Talvez isso fizesse com que parecesse normal não haver
impressões digitais nele. Não fazia ideia se os investigadores do local do crime
prestavam atenção a esse tipo de coisa. Não sabia o que investigavam, na
verdade.
Com um raio.
Saiu do carro. Forçou-se a pensar logicamente. As suas impressões digitais
não constavam de nenhum registo. Não tinha cadastro. A polícia poderia
descobrir que outra pessoa conduzira o carro, se investigasse – mas não saberia
que fora Jule.
Não havia nenhum indício de que alguém chamado Jule West Williams
alguma vez vivera na cidade de São Francisco ou a visitara.
Abriu a mala do carro e tirou dela o telemóvel de Brooke, assim como o seu.
A seguir, ainda a tremer, trancou as portas do carro e afastou-se.
Estava uma noite fria. Jule caminhava rapidamente para se manter quente. A
um quilómetro e meio a pé do parque já se sentia mais calma. Deitou a garrafa
da água num caixote do lixo na berma da estrada. Mais abaixo, atirou as roupas
ensanguentadas no seu saco de plástico preto para o fundo de um contentor do
lixo.
A seguir continuou a andar.
A ponte Golden Gate estava incandescente contra o céu noturno. Jule era
pequena por baixo dela, mas sentia-se como se um foco lá em cima estivesse a
incidir em si. Atirou as chaves do carro e o telemóvel de Brooke pelo lado da
ponte para a água.
A sua vida era cinemática. Tinha um aspeto soberbo à luz dos candeeiros.
Depois da luta, as suas faces estavam coradas. Começavam a formar-se
equimoses por baixo da roupa, mas o seu cabelo parecia excelente. E oh, as
roupas caíam-lhe tão bem. Sim, era verdade que ela era criminosamente
violenta. Brutal, até. Mas esse era o seu trabalho, e Jule era singularmente
qualificada para ele, portanto era sexy.
A lua estava em quarto crescente e o vento, cortante. Jule sugava grandes
golfadas de ar e respirava o glamour e a dor e a beleza da vida do herói de
ação.
De volta ao apartamento, tirou a estatueta do leão da mochila e verteu lixívia
sobre ela. A seguir, lavou-a no chuveiro, secou-a e colocou-a na prateleira por
cima do fogão de sala.
Imogen teria gostado daquela estatueta. Adorava felinos.
Jule comprou um bilhete de avião para Londres com partida de Portland, no
Oregon, no nome de Imogen. A seguir, apanhou um táxi para a estação dos
autocarros.
Ao chegar, apercebeu-se de que acabara de perder o autocarro das nove da
noite. O autocarro seguinte só partiria às sete da manhã.
Quando Jule se instalou para esperar, a adrenalina das últimas horas começou
a esvair-se. Comprou três embalagens de M&Ms numa máquina e sentou-se em
cima da sua bagagem. De repente, sentia-se exausta e com medo.
Só estava mais um par de pessoas na sala de espera, a usar a estação como
abrigo noturno. Jule chupou os M&Ms para os fazer durar. Tentou ler, mas não
conseguia concentrar-se. Ao fim de vinte e cinco minutos, um bêbedo que
estava a dormir num banco acordou e começou a cantar alto:
*

«God rest ye merry, gentlemen,


Let nothing you dismay
Remember Christ our savior
Was born on Christmas Day,
To save us all from Satan’s power
When we had gone astray.»1
*

Jule sabia que se tinha tresmalhado como o caraças. Matara uma rapariga
estúpida e linguaruda com uma premeditação brutal. Nunca haveria um
salvador que pudesse salvá-la do que quer que a tinha levado a fazer aquilo.
Nunca tivera um salvador.
Era isso. Não havia como voltar atrás. Encontrava-se sozinha numa estação
de autocarros gélida, em 23 de dezembro, a ouvir um tipo bêbedo e a raspar os
últimos vestígios do sangue de alguém de debaixo das unhas com a ponta do
seu bilhete de autocarro. Outras pessoas, pessoas boas, estavam a fazer
bolachas de gengibre, a comer rebuçados de hortelã-pimenta e a atar laços em
presentes de Natal. Estavam a discutir e a decorar a casa e a levantar a mesa
depois de grandes refeições, toldadas com o vinho quente com especiarias, a
verem filmes antigos inspiradores.
Jule estava aqui. Merecia o frio, a solidão, os bêbedos e o lixo, mil punições
e torturas piores.
O relógio deu uma volta completa. Chegou a meia-noite e o dia tornou-se
oficialmente Véspera de Natal. Jule comprou um chocolate quente na máquina.
Bebeu-o e sentiu-se mais quente. Apresentou argumentos a si mesma para se
livrar do desespero. Ao fim e ao cabo, era corajosa, esperta e forte. Cometera o
ato com uma eficiência incrível. Com estilo, até. Cometera um homicídio com
o raio de uma estatueta de um gatinho num belo parque estatal acima de uma
ravina maciça e cénica. Não houvera uma só testemunha. Não deixara sangue
em lado nenhum.
Matara Brooke para se proteger.
As pessoas necessitavam de se protegerem. Era da natureza humana, e Jule
passara anos a treinar-se para se tornar especialmente boa nisso. Os
acontecimentos desse dia eram prova de que ela era ainda mais capaz do que
esperara. Era fenomenal, de facto – uma mutante lutadora, uma supercriatura.
O Wolverine, com um raio, não parava para chorar a morte das pessoas que as
suas garras dilaceravam. Andava sempre a matar pessoas para se defender ou
por uma causa meritória. O mesmo no caso de Bourne, Bond e os outros todos.
Os heróis não desejavam bolachas de gengibre, presentes e rebuçados de
hortelã-pimenta. Jule também não desejaria tais coisas. Nunca as tivera, de
qualquer maneira. Não havia nada por que se lamentar.
*

«God rest ye merry, gentlemen,


Let nothing you dismay...»
*

O bêbedo começou a cantar outra vez.


– Cala-te antes que eu vá aí e te obrigue! – berrou-lhe Jule.
A cantoria parou.
Ela emborcou o resto do chocolate. Não pensaria em ter-se tresmalhado. Não
se sentiria culpada. Seguiria esta via do herói de ação e continuaria com toda a
força.
*

Jule West Williams passou o dia 24 de dezembro numa viagem de autocarro


de dezanove horas e adormeceu cedo na manhã do dia de Natal num hotel do
aeroporto de Portland, no Oregon. Às onze da manhã, foi para o aeroporto e fez
o check-in da bagagem para o voo da noite para Londres, em classe executiva.
Comeu um hambúrguer na praça da alimentação. Comprou livros e perfumou-
se com perfumes desconhecidos na loja duty-free.
1 Cântico tradicional de Natal. «Deus vos descanse felizes, cavalheiros/Que nada vos
desconsole/Lembrai-vos de que Cristo, o nosso salvador/Nasceu no Dia de Natal/Para nos salvar a todos
do poder de Satanás/Quando nos tínhamos tresmalhado.» (N. da T.)
12

MEADOS DE DEZEMBRO, 2016


SÃO FRANCISCO

N o dia anterior à caminhada, Jule recebeu um telefonema de Brooke. –


Onde estás? – rosnou Brooke, sem dizer olá. – Viste a Immie?
– Não. – Jule acabara nesse momento uma sessão de exercício físico. Sentou-
se num banco no exterior do ginásio Haight-Ashbury Fitness.
– Já lhe mandei, tipo, um trilião de mensagens, mas ela não me responde –
disse Brooke. – Não está no Snapchat nem no Insta. Estou a ponto de ficar
hostil, por isso pensei telefonar-te e ver o que sabes.
– A Immie não responde a ninguém – disse Jule.
– Onde estás?
Jule não viu razão para mentir. – Em São Francisco.
– Estás aqui?
– Espera, tu estás aqui? – La Jolla, onde Brooke supostamente se encontrava,
ficava a umas boas oito horas de carro.
– Tenho amigos do secundário que andam na universidade em São Francisco,
por isso arranjei um hotel e vim até cá. Mas afinal eles todos têm empregos ou
exames o dia todo. Era para me encontrar com o Chip Lupton hoje de manhã,
mas ele deixou-me pendurada, o filho da mãe. Nem sequer me mandou
mensagem até eu já estar à espera dele, tipo, num corredor de cobras mortas.
– Cobras mortas?
– Uh – gemeu Brooke. – Estou na Academia das Ciências. O filho da mãe do
Lupton disse que queria ver a exposição de herpetologia. Se não quisesse
saltar-lhe em cima nunca teria dito que sim. A Immie está em São Francisco
contigo?
– Não.
– Quando é que é a porra do Hanukkah? Ela vai a casa para essa festa?
– É agora. Não iria a casa para isso. Foi para Mumbai, talvez. Não sei ao
certo.
– OK. Então vem até cá, já que estás na cidade.
– Às cobras?
– Sim. Meu Deus, que tédio. Estás longe?
– Tenho...
– Não digas que tens cenas para fazer. Continuamos a mandar mensagens à
Immie e forçamo-la a responder. Ela tem rede em Mumbai? Podemos mandar-
lhe e-mails, se não tem. Vem ter comigo à exposição de herpetologia – disse
Brooke. – Tens de fazer uma marcação. Eu envio-te o número.
Jule queria ver todas as coisas. Ainda não fora à Academia das Ciências.
Além disso, queria saber o que Brooke sabia sobre a vida de Imogen depois de
Martha’s Vineyard. Portanto, meteu-se num táxi.
A Academia era um museu de história natural cheio de ossos de dinossauro e
taxidermia.
– Tenho uma marcação para as duas horas – disse Jule ao homem ao balcão
da herpetologia.
– Um documento de identificação, por favor.
Jule mostrou-lhe o cartão de Vassar e ele deixou-a passar.
– Temos mais de trezentos mil espécimes provenientes de cento e sessenta e
seis países – disse ele. – Desfrute da sua visita.
A coleção estava albergada numa série de salas. O ambiente era meio
biblioteca, meio armazém. Nas prateleiras havia frascos cheios com animais
conservados: cobras, lagartos, sapos e muitos outros que Jule não sabia
identificar. Estavam todos cuidadosamente rotulados.
Jule sabia que Brooke estava à sua espera, mas não lhe enviou uma
mensagem a avisar que chegara. Em vez disso, percorreu lentamente os
corredores, em passos silenciosos.
Decorou os nomes da maior parte das coisas para que olhava. Xenopus leivis,
rã de unhas africana. Crotalus cerastes, cascavel chifruda. Crotalus ruber,
cascavel diamante vermelho. Anotou mentalmente os nomes de víboras,
salamandras, rãs raras, cobras minúsculas nativas de ilhas remotas.
As víboras estavam enroscadas sobre si mesmas, suspensas num líquido
turvo. Jule tocou com a mão nas suas bocas venenosas, sentindo o medo
percorrê-la.
Dobrou uma esquina e deu com Brooke sentada no chão num corredor, a fitar
uma rã amarela robusta numa prateleira baixa.
– Levaste uma eternidade – disse Brooke.
– Distraí-me com as cobras – disse Jule. – São tão poderosas.
– Não são poderosas. Estão mortas – disse Brooke. – Estão, tipo, enroscadas
em frascos e ninguém gosta delas. Meu Deus, não seria deprimente se depois
de morreres a tua família, tipo, te conservasse em formol e te guardasse num
frasco gigante?
– Têm veneno dentro delas – disse Jule, ainda a falar sobre as víboras. –
Algumas conseguem matar um animal trinta vezes maior do que elas. Não
achas que seria uma sensação incrível, ter uma arma assim dentro de ti?
– São feias como o diabo – disse Brooke. – Não valeria a pena. Adiante.
Estou farta de herpetologia. Vamos beber um café.
No bar do museu serviam chávenas minúsculas de café extremamente
amargo e gelados italianos. Brooke disse a Jule que pedisse de baunilha, e
deitaram o café por cima da taça de gelado.
– Isto tem um nome – disse Brooke –, mas não prestei atenção quando fomos
a Itália. Tomávamo-lo num pequeno restaurante numa praça qualquer. A minha
mãe estava sempre a tentar contar-me a história da praça e o meu pai era tipo
«Vamos praticar o teu italiano!» Mas a minha irmã e eu achávamos tudo uma
seca. Foi assim a viagem toda, a revirarmos os olhos, mas depois... e isto
acontecia quase sempre... chegava a comida e nós ficávamos só nham nham
nham. Já foste a Itália? É um nível de massas que nem sequer compreendes,
juro-te. Não devia ser legal. – Ergueu a taça e bebeu o resto do café. – Vou
contigo para casa para jantarmos – anunciou.
Ainda não tinham falado sobre Imogen, portanto Jule disse que estava bem.
Compraram salsichas, massa e um molho vermelho. Brooke tinha uma
garrafa de vinho na mala do carro. No apartamento, Jule enfiou numa gaveta a
pilha de correio, com a parte da frente para baixo, e escondeu a sua carteira do
dinheiro enquanto Brooke cirandava por ali.
– Um sítio fixe. – Brooke mexeu nas almofadas em forma de ouriço-cacheiro
e nos frascos com berlindes bonitos e pedras de fantasia. Olhou para a toalha de
mesa estampada, os armários vermelhos da cozinha, as estatuetas decorativas e
os livros que tinham pertencido ao inquilino anterior. A seguir, abriu armários e
encheu um tacho com água para a massa. – Precisas de uma árvore de Natal –
disse. – Espera, és judia? Não, não és judia.
– Não sou nada.
– Todas as pessoas são alguma coisa.
– Não.
– Não sejas esquisita, Jule. Tipo, eu sou holandesa da Pensilvânia do lado da
minha mãe e católica irlandesa e cubana do lado do meu pai. Isso não quer
dizer que seja cristã, mas quer dizer que tenho de ir a casa todas as Vésperas de
Natal e fingir que presto atenção na Missa do Galo. O que és tu?
– Não comemoro a data. – Jule gostaria que Brooke não insistisse. Não tinha
resposta. Não tinha mitologia que evocasse alguma coisa além da história de
origem de herói.
– Bem, isso é triste como o caraças – disse Brooke, abrindo a garrafa de
vinho.– Diz-me onde tem estado a Immie.
– Eu e ela viemos até cá – disse Jule. – Mas só por uma semana. Depois ela
disse-me que ia a Paris, despediu-se e mais tarde mandou uma mensagem a
dizer que Paris era só uma cidade como Nova Iorque e que ia antes para
Mumbai. Ou então para o Cairo.
– Sei que não foi para casa, porque a mãe dela voltou a mandar-me um e-
mail – disse Brooke. – Oh, e sei que deixou o Forrest. A Immie mandou-me
uma mensagem a dizer que ele andava em baixo como um gato listrado triste e
que se sentia aliviada por se livrar dele, mas não me pintou o quadro completo.
Falou-te sobre o funcionário da limpeza?
Essa era a conversa que Jule queria ter, mas sabia que teria de avançar com
cautela. – Um pouco. O que é que te contou a ti?
– Telefonou-me no dia a seguir a eu ter partido de Vineyard e disse que era
tudo culpa dela e que ia dar à sola para Porto Rico contigo para descansar e
descontrair – disse Brooke.
– Não fomos para Porto Rico – disse Jule. – Viemos para aqui.
– Detesto pra caraças como ela é de segredinhos – disse Brooke. – Adoro-a,
mas, tipo, ela gosta de parecer desligada e misteriosa. É tão irritante.
Jule sentiu necessidade de defender Imogen. – Ela está a tentar ser verdadeira
consigo mesma em vez de andar sempre a agradar às outras pessoas – disse.
– Bem, não me importava se ela se esforçasse um bocado mais por agradar às
pessoas, na verdade – disse Brooke. – De facto, ela podia tentar muito mais,
com um caraças.
Brooke foi até ao televisor como se tivesse dito as palavras definitivas sobre
o assunto de Imogen Sokoloff. Saltou de canal em canal até encontrar um filme
antigo com Bette Davis que começara nesse momento. – Vamos ver isto –
disse. – Serviu-se de um segundo copo de vinho e pôs a massa nos pratos.
Viram o filme. Era a preto e branco. Todas as pessoas usavam roupas
maravilhosa e se comportavam horrivelmente umas para com as outras. Daí
uma hora, ouviu-se bater à porta.
Era Maddie, a proprietária do apartamento. – Preciso de ligar a água no
lavatório da sua casa de banho e a seguir desligá-la – disse. – O canalizador
está lá em baixo. Quer que o ajude a descobrir por que motivo tem andado a
funcionar mal.
– Pode voltar mais tarde?
– O tipo está na minha casa neste momento – disse Maddie. – Eu só demoro
um minuto. Mal se vai aperceber de que estou aqui.
Jule lançou um olhar a Brooke. Estava com os pés cima da mesa de apoio ao
sofá. – Entre.
– Obrigada, é uma joia. – Jule seguiu Maddie até à casa de banho, onde a
proprietária se pôs a ligar e a desligar as torneiras. – Já deve bastar – disse
Maddie, saindo. – Agora vou ver se o meu lavatório está entupido. Espero não
ter de voltar.
– Obrigada – disse Jule.
– Não, obrigada eu, Imogen. Desculpe ter vindo incomodá-la.
Que raio.
Que raio.
A porta fechou-se nas costas de Maddie.
Brooke desligou a televisão. Estava com o telemóvel na mão. – O que é que
ela disse?
– É hora de ires para casa – disse Jule. – Já bebeste muito. Vou chamar-te um
táxi.
Jule manteve uma conversa fiada ininterrupta até Brooke estar dentro do táxi,
mas, mal ele arrancou, o telemóvel de Immie deu sinal no seu bolso.

Brooke Lannon: Immie! Onde tás?


BL: A Jule diz Mumbai? Ou Cairo.
BL: É verdade?
BL: Também, a Vivian foi uma enorme bruxa para mim e não posso crer na coisa sobre ela e
o Isaac. Quer dizer, posso crer, mas que porra.
BL: O Chip Lupton apalpou-me as mamas ontem à noite e depois hoje deixou-me
pendurada. Portanto, ADIANTE. Quem me dera que estivesses aqui, só que tá uma cena
tão má que ias detestar.
BL: E também a Jule disse à senhoria que se chama Imogen. ????!!!!

Jule finalmente respondeu.

IS: Ei. Estou aqui.


BL: – Olá!!!!!
IS: O Chip apalpou-te as mamas?
BL: São precisas mamas para te fazer responder-me, eh eh.
BL: Bem, as mamas são mto importantes.

Jule esperou um minuto e a seguir escreveu:

IS: Na boa com a Jule. Ela é a minha amiga mais antiga.


IS: Arranjei-lhe um apartamento até ela se instalar em condições. Assinei o contrato de
arrendamento, portanto a proprietária julga que ela é eu. Está sem dinheiro.
BL: Não tou convencida. Passa-se alguma coisa, não sei o quê. A sério, a Jule deixou a tal
senhora CHAMAR-LHE «IMOGEN».
IS: Não tem mal.
BL: Não sei. Podia dar cabo do teu nome em termos de crédito, e sei que esse tipo de treta é
importante para ti. Além de que é sinistro. Hello? Roubo de identidade? Existe de facto,
não é só um mito urbano.
BL: E também, onde estás? Em Mumbai?

Jule não respondeu. Nada que pudesse dizer importaria se Brooke estava
decidida a causar problemas.
11

ÚLTIMA SEMANA DE SETEMBRO, 2016


SÃO FRANCISCO

N ove semanas antes de Brooke vir jantar, Jule foi de avião de Porto Rico
para São Francisco e instalou-se no hotel Sir Francis Drake em Nob Hill.
Aquele lugar era só veludo vermelho, lustres e floreados rococó. Os tetos eram
de estuque. Jule usou o cartão de crédito e o documento de identificação com
uma fotografia de Imogen. O rececionista não questionou nada e chamou-lhe
Ms. Sokoloff.
Jule tinha uma suite no último andar. No quarto havia cadeirões de pele com
tachas e uma cómoda com um debruado dourado. Ela começou a sentir-se
melhor assim que a viu.
Tomou um duche demorado e lavou o suor da viagem e as recordações de
Porto Rico da sua pele. Esfregou com força com a esponja e pôs champô duas
vezes. Vestiu um pijama que nunca tinha usado e dormiu até a dor que lhe
subia pelo pescoço desaparecer finalmente.
Jule passou uma semana naquele hotel. Sentia-se como se estivesse num ovo.
A casca cintilante e dura do hotel protegia-a quando estava a necessitar de
proteção.
No final da semana, viu uma lista de casas para arrendar, enviou alguns e-
mails e foi ver o apartamento de São Francisco. Maddie Chung fez-lhe a visita
guiada. A casa era mobilada, mas não tinha o tipo de mobiliário simples que
poderia esperar-se de um apartamento de arrendamento. Estava cheio de
pequenas esculturas pouco usuais e de coleções bonitas em frascos de vidro:
botões, berlindes e pedras de fantasia expostos em prateleiras de modo a que a
luz incidisse neles. A cozinha tinha armários vermelhos e soalho de madeira.
Havia pratos de vidro e tachos e panelas de ferro pesado.
Entregando-lhe a chave, Maddie explicou que tivera um inquilino durante
mais de dez anos, um cavalheiro solteiro que morrera sem deixar parentes. –
Não havia ninguém a quem comunicar a morte dele. Ninguém para vir buscar
as coisas dele – disse ela. – E tinha um gosto tão bonito e tinha tomado conta
de tudo tão bem. Pensei: «Vou arrendar o apartamento mobilado, para férias.
Assim, as pessoas podem apreciá-lo.» – Tocou num frasco com berlindes. –
Nenhuma loja de caridade quer estas coisas.
– Porque é que ele não tinha ninguém? – perguntou Jule.
– Não sei. Era mais ou menos da minha idade quando morreu. Cancro da
garganta. Não tinha parentes que eu conseguisse descobrir. Nem dinheiro.
Talvez tenha mudado de nome ou estivesse zangado com a família. Acontece. –
Encolheu os ombros. Estavam agora à porta. – Vai mandar homens de
mudanças? – perguntou Maddie. – Pergunto porque gosto de estar em casa se a
porta do prédio for ficar aberta o dia todo, mas não deve ser problema
combinarmos isso.
Jule abanou a cabeça. – Só tenho uma mala.
Maddie olhou-a com bondade e sorriu. – Sinta-se à vontade, Imogen. Espero
que seja feliz aqui.
Olá, mãe e pai,

Parti de Martha’s Vineyard há pouco mais de uma semana e agora ando em viagem.
Não sei bem para onde irei! Talvez para Mumbai ou Paris ou o Cairo.

A vida na ilha era tranquila e, tipo, isolada do resto do mundo. Tudo se movia a um
ritmo lento. Lamento realmente não me ter mantido em contacto. Só preciso de descobrir
quem sou sem os estudos, a família ou qualquer outra coisa a definir-me. Isso faz
sentido?

Tive um namorado em Martha’s Vineyard. Chama-se Forrest. Mas acabámos, e quero


ver mais do mundo.

Por favor não se preocupem comigo. Vou viajar em segurança e olhar bem por mim
mesma.

Sempre foram uns pais maravilhosos. Penso em vocês todos os dias.

Muitos beijinhos,
Imogen

Depois de instalar a Wi-Fi no apartamento de São Francisco, Jule enviou


aquela mensagem por e-mail a partir da conta de Imogen.
Também escreveu a Forrest. Usou as palavras favoritas de Immie, o seu
calão, a sua fórmula de despedida, os seus «tipo» e «talvez».
Olá Forrest.

Este e-mail é difícil de escrever, mas tenho de te dizer: não vou voltar. A renda está
paga até ao fim de setembro, portanto, desde que saias antes de 1 de outubro, está tudo
bem.

Não quero voltar a ver-te. Vou-me embora. Bem, ah. Já me vim embora.

Mereço alguém que não me olhe de alto. Admite, é o que tu fazes. Porque és um
homem e eu sou uma mulher. Porque sou mais pequena do que tu. Porque sou adotada e
tu não gostas de o dizer, mas dás valor às origens. Pensas que és superior porque eu
desisti de estudar e tu não. E pensas que escrever um romance é mais importante do que
qualquer coisa que eu gosto de fazer ou quero fazer com a minha vida.

A verdade, Forrest, é que sou eu que tenho o poder. Tinha a casa. E o carro. Pagava as
contas. Sou uma adulta, Forrest. Tu não passas de um rapazinho dependente que se acha
com todos os direitos.

Seja como for, parti. Achei que devias saber porquê.


Imogen

Forrest respondeu. Sentia-se triste e arrependido. Furioso. Implorou.


Jule não respondeu. Em vez disso, enviou uma breve mensagem a Brooke
com dois gatinhos.

IS: Acabei com o Forrest. Este gato triste listrado talvez seja como ele se sente
IS: O cor de laranja peludo é como me sinto. (Tão aliviada.)

Brooke respondeu.

BL: Tiveste notícias da Vivian?


BL: ou de mais alguém de Vassar?
BL: Immie?
BL: Porque soube pela Caitlin (a Caitlin Moon, não a Caitlin Clark) que
BL: a Vivian anda com o Isaac agora.
BL: Mas não acredito em nenhuma coisa que a Caitlin Moon diga.
BL: Portanto, talvez não seja verdade.
BL: Acabei de vomitar um bocadinho na boca.
BL: Espero que não fiques incomodada.
BL: Sinto-me incomodada por ti.
BL: Mas bye bye, Forrest! Immie, tu consegues muito melhor.
BL: Oh meu Deus La Jolla é uma seca descomunal la la la porque é que não me respondes?
responde-me sua bruxa.

Mais tarde nesse mesmo dia, chegou um e-mail da própria Vivian a


comunicar que estava apaixonada por Isaac Tupperman e esperava que Imogen
compreendesse, porque não havia como controlar o coração humano.
*

Nos dias seguintes, Jule preparou-se para viver como pensava que Immie
viveria. Numa manhã, bateu à porta de Maddie Chung com um latte do café ao
fundo do quarteirão. – Achei que talvez estivesse a precisar de um café.
O rosto de Maddie iluminou-se. Jule foi convidada a entrar e conheceu a
mulher da sua senhoria, uma mulher grisalha e bem vestida, que saía de casa
nesse momento para «ir dirigir uma corporação», como disse Maddie. Jule
perguntou se podia ir ver a livraria, e a senhoria levou-a lá num Volvo.
A loja de Maddie era pequena e desarrumada, mas confortável. Vendia uma
mistura de livros novos e usados. Jule comprou dois romances vitorianos de
autores que não tinha a certeza se Immie alguma vez lera: Gaskell e Hardy.
Maddie recomendou O Coração das Trevas e Dr. Jekyll e Mr. Hyde, além de
um livro da autoria de um tipo chamado Goffman intitulado The Presentation
of Self in Everyday Life.2 Jule comprou esses também.
Noutros dias, Jule foi ver exposições que Maddie sugerira. Pensando em
Imogen, abrandava o passo e deixava a mente vaguear.
Immie não teria prestado muita atenção em nenhum museu. Não teria tentado
aprender história de arte e memorizar datas.
Não. Immie teria atravessado preguiçosamente as salas, a deixar que o
espaço ditasse o seu estado de espírito. Teria parado para apreciar beleza, para
existir sem se esforçar.
Tanto de Immie estava agora em Jule. Isso era uma consolação.

2 A Apresentação do Eu na Vida Quotidiana. Livro de Ervin Goffman não traduzido em Portugal. (N. da
T.)
10

TERCEIRA SEMANA DE SETEMBRO, 2016


ILHA DE CULEBRA, PORTO RICO

U ma semana antes de se mudar para São Francisco, Jule estava bêbeda na


ilha de Culebra. Nunca estivera bêbeda.
Culebra é um arquipélago ao largo da costa de Porto Rico. Na ilha principal,
andam cavalos selvagens pelas estradas. Existem hotéis caros ao longo da
costa, mas o centro da cidade não é muito virado para o turismo. A ilha é
conhecida pelo mergulho, e existe ali uma pequena comunidade de residentes
norte-americanos.
Eram dez da noite. O bar era um local que Jule conhecia. Estava aberto ao ar
da noite num dos lados. Umas ventoinhas brancas e sujas zumbiam nos cantos.
O espaço estava cheio de americanos, alguns turistas, mas muitos residentes. O
empregado do balcão não pediu um documento de identificação a Jule para
confirmar a sua idade. Quase ninguém pedia a identificação em Culebra.
Esta noite, Jule mandara vir um Kahlúa e natas. Um homem que conhecera
antes ocupou um par de lugares ao balcão, mais adiante. Era um tipo branco de
barba, talvez com uns cinquenta e cinco anos. Usava uma camisa havaiana e
tinha a testa queimada do sol. Falava com pronúncia da Costa Oeste – de
Portland, dissera antes a Jule. Ela não sabia o seu nome. Com ele encontrava-se
uma mulher da mesma idade. O seu cabelo era aos caracóis grisalhos
despenteados. A sua T-shirt cor de rosa era decotada e um pouco incongruente
com a saia estampada e as sandálias que usava na metade inferior do corpo.
Começou a comer uma mistura de pretzel de uma taça que se encontrava em
cima do balcão.
A bebida de Jule chegou. Engoliu-a e pediu outra. O casal estava a discutir.
– Aquela puta com um coração de ouro: era o meu principal problema – disse
a mulher com uma pronúncia sulista. Talvez do Tennessee, talvez do Alabama.
Despretensiosa.
– Era só um filme – respondeu o homem.
– A namorada perfeita é uma puta que comes de graça. Nojento.
– Não sabia que ia ser isso – disse o homem. – Nem sequer sabia que te
incomodou até começarmos a vir para cá. O Manuel disse que era um bom
filme. Passámo-lo; não é nada de importante.
– Menospreza metade da população, Kenny.
– Não te obriguei a vê-lo. Além disso, talvez o filme seja de mente aberta em
relação à prostituição. – Kenny soltou uma risada. – Tipo, não devemos pensar
mal dela por causa do trabalho que faz.
– Deve dizer-se trabalho sexual – disse o empregado do balcão, piscando-
lhes o olho. – Não prostituição.
Jule terminou a sua bebida e pediu uma terceira.
– Era só coisas a explodir e um tipo com um fato vermelho – disse Kenny. –
Tens andado a conviver demasiado com essas amigas do clube de leitura. Ficas
sempre mais sensível depois de estares com elas.
– Oh, vai-te lixar – disse a senhora, mas disse-o de uma maneira agradável. –
Tens tantos ciúmes das minhas amigas do clube de leitura.
Kenny reparou que Jule estava a olhar para eles. – Ei, olá – disse, erguendo o
seu copo de cerveja.
Jule sentiu que os três Kahlúas estavam a inundá-la como uma onda
pegajosa. Sorriu à senhora. – É a sua mulher – disse numa voz empastada.
– Sou a namorada dele – disse a senhora.
Jule acenou com a cabeça.
A noite começou a toldar-se. Kenny e a sua senhora estavam a falar com ela.
Jule estava a rir-se. Disseram que ela devia comer alguma coisa.
Ela não conseguia encontrar a boca. As batatas fritas eram demasiado
salgadas.
Kenny e a sua senhora ainda estavam a falar sobre filmes. A senhora
detestava o tipo do fato vermelho.
Quem era esse tipo? Tinha um guaxinim? Era amigo de uma árvore. Não, de
um unicórnio. O tipo feito de pedras estava sempre triste. Estava condenado a
ser pedras o tempo todo, por isso ninguém gostava dele. Depois havia aquele
que não falava sobre quem era. Era velho, mas tinha um bom corpo e um
esqueleto de metal. Espera, espera. Também havia um tipo azul. E uma mulher
nua. Duas pessoas azuis. De repente, Jule estava no chão do bar.
Não sabia como tinha chegado lá. Sentia as mãos doridas. Havia algo de
errado com as suas mãos. Sentia a boca estranha e doce. Tanto Kahlúa.
– Estás no Del Mar, no resort mais acima na estrada? – disse a senhora do
Kenny a Jule.
Jule assentiu com a cabeça.
– Devíamos acompanhá-la até lá, Kenny – disse a senhora. Estava acocorada
no chão junto a Jule. – Aquela estrada não é iluminada. Ela podia meter-se à
frente de um carro.
A seguir estavam no exterior. Kenny não se encontrava perto delas. A
senhora estava a segurar o braço de Jule. Acompanhou Jule pela estrada escura
até onde as luzes do Del Mar brilhavam.
– Preciso de lhe contar uma história – disse Jule em voz muito alta. Tinha de
dizer coisas à senhora do Kenny.
– Ah sim? – disse a senhora. – Cuidado com os pés, aí. Está escuro.
– É uma história sobre uma rapariga – disse Jule. – Não, uma história sobre
um rapaz. Passada há muito tempo. Esse rapaz empurrou uma rapariga que
conhecia contra uma parede. Outra rapariga, não eu.
– Hum-hum...
Jule sabia que não estava a contar a história da maneira como devia ser
contada, mas estava a contá-la. Agora não pararia. – Fez as coisas feias que
queria com aquela rapariga no beco por trás do supermercado, de noite. Certo?
Sabe do que falo?
– Penso que sim.
– Essa rapariga conhecia-o de vista e foi para o beco com ele quando ele lhe
pediu, porque ele tinha uma cara bonita. Essa rapariga estúpida não sabia como
dizer não da maneira certa. Não com os punhos. Ou talvez não importasse o
que ela dissesse, porque ele não lhe deu ouvidos. A questão é que essa rapariga
não tinha músculos. Não tinha competências. Tinha um saco de plástico cheio
de leite e dónutes.
– És do Sul, minha doçura? – perguntou a senhora do Kenny. – Não tinha
reparado. Eu sou do Tennessee. De onde és?
– Ela não contou a nenhuma pessoa crescida o que tinha acontecido, mas
contou a um par de amigas na casa de banho. Foi assim que fiquei a saber.
– Ah, pois.
– Esse rapaz, esse mesmo rapaz, ia a pé do cinema para casa uma noite. Dois
anos depois. Eu tinha dezasseis anos e, sabe, estou em forma. Sabia isso sobre
mim? Estou em forma. Então, uma noite, fui ao cinema e vi-o. Vi o rapaz
quando estava a ir para casa. Eu não devia estar sozinha na rua, a maior parte
das pessoas diria isso. Mas estava. Esse rapaz também não devia estar sozinho.
Toda aquela ideia parecia engraçada. Jule sentiu que precisava de parar de
andar para se rir. Plantou os pés e esperou que viesse o riso. Mas não veio.
– Tinha um granizado azul na mão – prosseguiu –, um daqueles grandes que
se compram no cinema. Sandálias com tiras e saltos altos. Era verão. Gosta de
sapatos bonitos?
– Tenho joanetes – disse a senhora. – Anda lá, vamos continuar a andar.
Jule pôs-se a andar. – Descalcei os sapatos. E chamei o nome daquele rapaz.
Contei-lhe uma mentira, que precisava de telefonar para um táxi, ali na esquina
no escuro. Disse que o meu telemóvel estava sem bateria e perguntei se podia
ajudar-me. Ele julgou que eu era inofensiva. Tinha um sapato numa das mãos e
a bebida na outra. O outro sapato estava no chão. Ele aproximou-se. Atirei-lhe
o granizado à cara com a mão esquerda, ataquei-o com o tacão. Atingiu-o na
têmpora.
Jule aguardou que a senhora dissesse alguma coisa. Mas a senhora manteve-
se em silêncio. Continuava a agarrar o braço de Jule.
– Ele tentou prender-me pela cintura, mas eu ergui o joelho e atingi-o no
maxilar. Depois voltei a atacá-lo com o tacão do sapato. Atingi-o mesmo no
topo da cabeça. Numa parte mole. – Parecia importante explicar onde
exatamente o sapato o atingira. – Bati-lhe com o sapato, uma e outra e outra
vez.
Jule parou de andar e forçou a senhora a olhá-la no rosto. Estava muito
escuro. Só conseguia ver as rugas bondosas à volta dos olhos da senhora, mas
não os olhos em si. – Ficou ali deitado com a boca aberta – disse Jule. – Com
sangue a sair-lhe do nariz. Parecia morto, minha senhora. Não se levantou.
Olhei para o fundo da rua. Era tarde. Nem uma luz de um alpendre estava
acesa. Não conseguia ver se ele estava morto. Peguei no copo do granizado e
nos meus sapatos e fui a pé para casa.
«Peguei em tudo o que tinha usado e meti-o num saco de plástico do
supermercado. De manhã, fiz de conta que ia para as aulas.»
Jule baixou os braços ao lado do corpo. De súbito sentia-se cansada e
estonteada e vazia.
– Ele estava morto? – perguntou a senhora do Kenny.
– Não estava morto, minha senhora – disse Jule lentamente. – Procurei o
nome dele na Internet. Procurei-o todos os dias e nunca apareceu, exceto num
jornal local, ao lado de uma fotografia. Tinha ganhado um concurso de poesia.
– A sério?
– Nunca chegou a apresentar queixa na polícia.
«Essa foi a noite em que eu soube quem era – disse Jule à senhora do Kenny.
– Em que soube do que era capaz. Compreende-me, minha senhora?»
– Fico contente que ele não tenha morrido, minha doçura. Penso que não
estás habituada a beber.
– Nunca bebo.
– Ouve. Essa coisa aconteceu-me, há muitos anos – disse a senhora. – Como
o que aconteceu àquela rapariga de quem falaste. Não gosto de abordar o
assunto, mas é verdade. Resolvi a coisa na minha cabeça e agora estou bem,
estás a ouvir-me?
– Tá, OK.
– Achei que ias querer saber isso.
Jule olhou para a senhora. Era uma senhora linda, e Kenny era um homem
com sorte. – Sabe qual é o verdadeiro nome do Kenny? – perguntou Jule. –
Qual é o nome verdadeiro do Kenny?
– Deixa-me levar-te ao teu quarto – disse a senhora. – Devia assegurar-me de
que chegas lá bem.
– Foi quando senti o herói dentro de mim – disse Jule.
Depois disso, estava no seu quarto e o mundo ficou às escuras.
Jule acordou na manhã seguinte com bolhas nas mãos. Em cada mão tinha
quatro inchaços cheios de pus nas palmas, logo abaixo dos dedos.
Deixou-se ficar deitada na cama a olhar para elas. Estendeu a mão para o
anel de jade na mesa de cabeceira. Não conseguia enfiá-lo. Tinha os dedos
demasiado inchados.
Rebentou cada bolha e deixou o líquido escorrer para o lenço branco e macio
do hotel. A pele ficaria calejada mais depressa dessa maneira.
Isto não é um filme sobre uma rapariga que rompe com o namorado que a
menospreza, pensou. Isto também não é um filme sobre uma rapariga que se
afasta da sua mãe controladora. Não é sobre um grande herói branco
heterossexual que ama uma mulher que tem de salvar ou faz equipa com uma
mulher menos poderosa vestida com um fato justo como uma segunda pele.
Eu sou o centro da história agora, disse Jule para consigo. Não tenho de ter
muito pouco peso, de usar muito pouca roupa ou de arranjar os dentes.
Eu sou o centro.
Assim que se sentou para cima na cama, começou a sentir vontade de
vomitar. Correu para a casa de banho e pressionou as palmas das mãos contra a
frialdade do chão, mas não lhe saiu nada da boca para dentro da sanita.
Nada e mais nada. Os arrancos continuaram durante o que pareceram horas,
com a sua garganta a fechar-se e a abrir-se. Pressionou uma toalha pequena
contra o rosto. Quando a tirou estava húmida. Enroscou-se, a tremer e a
arquejar.
Finalmente, o ritmo da sua respiração abrandou.
Jule pôs-se de pé. Fez café e bebeu-o. A seguir, abriu a mochila de Immie.
Ali estava a carteira do dinheiro de Immie. Tinha um milhão de pequenos
compartimentos e um fecho prateado. Dentro havia cartões de crédito, recibos,
um cartão da biblioteca de Martha’s Vineyard, um cartão de Vassar, um cartão
do refeitório de Vassar, um cartão do Starbucks, um cartão de um seguro de
saúde e o cartão da porta do quarto de hotel de Immie. E seiscentos e doze
dólares em dinheiro.
Jule abriu a encomenda de Immie, entregue no dia anterior. Dentro havia
roupas enviadas por uma loja online através da FedEx. Quatro vestidos, duas
camisas, um par de calças de ganga, uma camisola de seda. Cada peça era tão
cara que Jule tapou a boca com a mão involuntariamente quando olhou para a
fatura.
O quarto de Immie era ao lado. Jule tinha agora o cartão da porta. O quarto
estava limpo. Na casa de banho, encontrava-se um estojo de maquilhagem sujo
em cima da bancada. Nele, Jule encontrou o passaporte de Imogen, além de um
número surpreendente de bisnagas e caixinhas, tudo desorganizado. No
toalheiro estava pendurado um soutien bege feio. Havia uma lâmina de barbear
com alguns pelos.
Jule pegou no passaporte de Immie e olhou para a fotografia ao lado do seu
próprio rosto no espelho. A diferença de altura era só de dois centímetros e
meio. A cor dos olhos estava registada como verde. O cabelo de Immie era
mais claro. O peso de Jule era significativamente mais elevado, mas a maior
parte era músculo e não se via por baixo de certas roupas.
Tirou os documentos de identificação de Vassar da carteira de Immie e olhou
para eles. O cartão do refeitório mostrava claramente o pescoço comprido de
Immie e a sua orelha com três piercings. O cartão de estudante era mais
pequeno e mais desfocado. Não mostrava a orelha. Jule poderia facilmente usar
esse.
Cortou o cartão do refeitório em minúsculos pedacinhos com uma tesoura
das unhas, deitou-os na sanita e puxou o autoclismo.
A seguir depilou as sobrancelhas – finas, como as de Immie. Cortou a franja
mais curta com a tesoura das unhas. Encontrou a coleção de anéis vintage
gravados de Immie: a raposa de ametista, a silhueta, o pato esculpido em
madeira, o da safira com um abelhão, um elefante de prata, um coelho de prata
a saltar e uma rã de jade verde. Não entravam nos seus dedos inchados.
Os dois dias seguintes foram passados a passar em revista os ficheiros de
Immie no computador. Jule usava os dois quartos. Tinham ar condicionado. Por
vezes, abria a porta da varanda para deixar o calor espesso entrar e inundá-la.
Comia panquecas com pepitas de chocolate e bebia sumo de manga do serviço
dos quartos.
Na conta bancária e na de investimento de Immie havia um total de oito
milhões de dólares. Jule memorizou os números e as palavras-passe. Números
de telefone e endereços de e-mail também.
Aprendeu a fazer a assinatura floreada de Imogen pela do passaporte e das
folhas de guarda dos livros dela. Copiou outras palavras escritas por ela num
bloco de apontamentos, que estava coberto de rabiscos e listas de compras.
Depois de criar uma assinatura eletrónica, encontrou o nome do advogado da
família de Immie. Disse-lhe que ela (Immie) iria viajar muito no ano seguinte,
dar a volta ao mundo. Queria fazer um testamento. O dinheiro seria deixado a
uma amiga que não tinha muito, uma amiga que era órfã e perdera a sua bolsa
de estudos: Julietta West Williams. Também deixaria dinheiro à North Shore
Animal League e à National Kidney Foundation.
O advogado demorou alguns dias a entrar em ação, mas prometeu tratar de
tudo. Não havia problema. Imogen Sokoloff era legalmente adulta.
Jule examinou o estilo de escrita de Immie nos e-mails e no Instagram: a
maneira como rematava a mensagem, a maneira como escrevia parágrafos, as
expressões que usava. Apagou todas as contas de Immie nas redes sociais.
Estavam inativas, de qualquer maneira. Retirou a identificação de Immie de
tantas fotografias quanto possível. Assegurou-se de que todas as contas dos
cartões de crédito de Immie eram pagas automaticamente através das suas
contas bancárias. Escolheu novas palavras-passe usando o e-mail de Immie.
Lia os jornais de Culebra à procura de notícias, mas não aparecia nada.
Jule comprou tinta para o cabelo num supermercado e aplicou-a
cuidadosamente com uma escova dos dentes. Praticou sorrir sem mostrar os
dentes. Sentia uma dor intensa num dos lados do pescoço que não havia
maneira de passar.
Finalmente, o advogado enviou-lhe um formulário de testamento por e-mail.
Jule imprimiu-o no escritório do hotel. Meteu os papéis na sua mala de viagem
e decidiu que já esperara tempo suficiente. Comprou um bilhete para São
Francisco em nome de Imogen. Fez o check-out de ambas do hotel.
9

SEGUNDA SEMANA DE SETEMBRO, 2016


CULEBRA, PORTO RICO

D uas semanas e meia antes de partir para São Francisco, Jule estava sentada
ao lado de Imogen no banco traseiro de um táxi, um jipe aos solavancos
na estrada do aeroporto de Culebra. Immie tinha feito a reserva no resort.
– Vim aqui com a família da minha amiga Bitsy Cohan quando tínhamos
doze anos – disse Immie, apontando para a ilha à volta delas. – A Bitsy estava
com a boca fechada com um arame nos maxilares, depois de um acidente de
bicicleta. Lembro-me que só bebia daiquiris virgens todo o dia. Não comia
nada. Numa manhã, fomos de barco para uma ilha minúscula chamada
Culebrita. Tinha rochas vulcânicas pretas como nada que eu alguma vez tivesse
visto. E fizemos mergulho, mas os maxilares da Bitsy causavam-lhe problemas,
por isso ela estava muito rabugenta.
– Tiveram de me pôr um arame nos maxilares uma vez – disse Jule. Era
verdade, mas, assim que as palavras lhe saíram da boca, desejou não ter falado.
Não era uma história divertida.
– O que aconteceu? Caíste de uma moto que pertencia a um dos teus
namorados de Stanford? Ou o treinador malvado da tua equipa de atletismo
mandou alguém espancar-te?
– Foi uma briga num balneário – mentiu Jule.
– Outra? – Immie parecia ligeiramente dececionada.
– Bem, estávamos nuas – disse Jule, para a divertir.
– Não posso!
– Depois dos treinos, no último ano do secundário. Uma batalha nua e crua,
no chuveiro, três contra uma.
– Como um filme pornográfico passado na prisão.
– Não tão sexy. Partiram-me o raio do maxilar.
– Cavalos – disse o taxista, apontando, e lá estavam eles. Um grupo de três
cavalos selvagens amorosos, com o pelo desgrenhado, estava parado no meio
da estrada. O taxista buzinou.
– Não lhes buzine! – disse Imogen.
– Eles não se deixam assustar – disse o taxista. – Olhe. – Voltou a buzinar e
os cavalos afastaram-se lentamente do caminho, só ligeiramente irritados.
– Gostas mais de animais do que de pessoas – disse Jule.
– As pessoas são umas parvalhonas, como a história que acabaste de contar
prova completamente. – Imogen tirou uma embalagem de lenços de papel do
seu saco e usou um para limpar a testa. – Quando é que alguma vez viste um
cavalo a ser parvalhão? Ou uma vaca? Nunca são.
O taxista falou lá da frente. – As cobras são umas parvalhonas.
– Não são nada – disse Immie. – As cobras estão a tentar sobreviver como
todos os outros seres.
– Não as que mordem – disse ele. – São más como tudo.
– As cobras mordem quando estão com medo – disse Immie, inclinando-se
para a frente no assento traseiro. – Mordem se precisarem de se proteger.
– Ou se precisarem de comer – disse o taxista. – Provavelmente, mordem
alguma coisa uma vez por dia. Detesto cobras.
– É muito mais agradável para um rato morrer de uma mordida de cascavel
do que, por exemplo, ser apanhado por um gato. Os gatos brincam com as suas
presas – disse Immie. – Dão-lhes patadas, deixam-nas escapar e depois
apanham-nas outra vez.
– Os gatos são uns parvalhões, então – disse o taxista.
Jule riu-se.
Pararam em frente ao hotel. Immie pagou ao motorista com dólares
americanos. – Mantenho a minha defesa das cobras – disse Imogen. – Gosto
delas. Obrigada pela viagem.
O taxista tirou as malas delas da mala do carro e arrancou.
– Não ias gostar de uma cobra se te aparecesse uma pela frente – disse Jule.
– Sim, gostava. Adorava a cobra e fazia dela um animal de estimação.
Enrolava-a à volta do pescoço como uma joia.
– Uma cobra venenosa?
– Claro. Estou aqui contigo, não estou? – Imogen passou o braço à volta do
corpo de Jule. – Vou-te dar a comer uns ratos deliciosos e outros tipos de
petiscos para cobras, e deixo-te descansar em cima dos meus ombros. De vez
em quando, quando for absolutamente necessário, podes espremer os meus
inimigos até à morte, toda nua. OK?
– As cobras estão sempre nuas – disse Jule.
– Tu és uma cobra especial. Na maior parte do tempo vais usar roupas.
Immie entrou à frente no átrio do hotel, a puxar as suas duas malas atrás de
si.
O hotel era sofisticado, de uma forma turística, muito azul-turquesa. Havia
plantas verdes e flores de cores vivas por toda a parte. Jule e Imogen tinham
quartos um ao lado do outro. Havia duas piscinas e uma praia que se estendia
num longo arco branco, com uma doca no outro extremo. A ementa era toda
peixe e frutos tropicais.
Depois de desfazerem as malas, encontraram-se para jantar. Immie tinha um
ar fresco e parecia grata por estar a comer uma refeição tão maravilhosa. Não
aparentava nenhum sinal de mágoa ou culpa. Só existia.
Mais tarde, desceram a estrada até um lugar que aparecia descrito na Internet
como um bar de americanos estrangeiros residentes na ilha. O balcão era a toda
a volta, com o empregado no centro. Sentaram-se em bancos de vime. Immie
mandou vir Kahlúa com natas e Jule uma Coca-Cola de dieta com xarope de
baunilha. As pessoas eram conversadoras. Imogen meteu conversa com um
tipo branco de idade com uma camisa havaiana. Ele disse-lhes que vivia em
Culebra há vinte e dois anos.
– Tinha um pequeno negócio de marijuana – disse o tipo. – Cultivava-a numa
despensa com luzes e depois vendia-a. Era em Portland. Não se pensaria que
alguém lá se importasse. Mas a bófia meteu-me dentro e quando saí sob fiança
apanhei um avião para Miami. Daí fui de barco para Porto Rico e depois
apanhei o ferry para cá. – Fez um gesto ao empregado do balcão, a pedir outra
cerveja.
– É foragido da justiça? – perguntou Immie.
Ele resfolegou. – Pensa na coisa desta maneira: não acreditava que o que
tinha feito devia considerar-se crime, e portanto eu não merecia as
consequências que estavam para vir Mudei-me. Não ando fugido. Toda a gente
aqui me conhece. Só não sabem o nome no meu passaporte, é tudo.
– E que nome é? – perguntou Jule.
– Não te vou dizer. – Riu-se. – Assim como não lhes digo a eles. Ninguém se
incomoda com coisas desse género aqui.
– O que faz para ganhar a vida? – perguntou Jule.
– Há muitos americanos e porto-riquenhos ricos que têm casas de férias aqui.
Olho pelas casas deles. Pagam-me a dinheiro. Segurança, organizar reparações,
esse tipo de coisa.
– E a sua família? – perguntou Immie.
– Não tenho muita. Tenho uma namorada aqui. O meu irmão sabe onde
estou. Já me veio visitar uma ou duas vezes.
Imogen franziu a testa. – Quer voltar um dia?
O homem abanou a cabeça. – Nunca penso nisso. Quando se fica longe o
tempo suficiente, deixa de parecer haver grande coisa para que voltar.
Passaram os três dias seguintes sentadas junto à enorme piscina curva,
rodeadas por guarda-sóis e espreguiçadeiras azuis-turquesas. Jule estava
enroscada à volta do pescoço de Imogen. Liam. Imogen via vídeos no YouTube
sobre técnicas de culinária. Jule fazia exercício na sala dos pesos. Imogen fazia
tratamentos de spa. Nadavam e caminhavam na praia.
Imogen bebia muito. Pedia aos empregados para lhe trazerem margaritas à
beira da piscina. Mas não parecia triste. A sensação mágica da sua fuga inicial
de Martha’s Vineyard entretecia-se nos dias. Tanto quanto Jule adivinhava,
eram triunfantes. Esta era a vida que Imogen descrevera que queria, livre de
ambição e expetativas, sem ninguém a quem agradar e ninguém a quem
dececionar. As duas simplesmente existiam, e os dias eram lentos e sabiam a
coco.
Já tarde na quarta noite, Jule e Immie estavam sentadas com os pés no
jacuzzi exterior, como em tantas noites na casa de Immie em Martha’s
Vineyard.
– Talvez eu devesse voltar para Nova Iorque – disse Imogen pensativamente.
– Devia ir ver os meus pais. – Tinham jantado há algum tempo. Ela tinha uma
margarita num copo de plástico com uma tampa e uma palhinha.
– Não, não vás – disse Jule. – Fica aqui comigo.
– Aquele tipo no bar na outra noite? Disse que quanto mais tempo se ficar,
menos há para que voltar. – Imogen pôs-se de pé, então, e despiu a T-shirt e os
calções. Por baixo trazia um fato de banho de um cinzento metalizado com um
aro dourado no peito e um decote fundo. Mergulhou o corpo lentamente no
jacuzzi. – Não quero que não reste nada. Com a minha mãe e o meu pai. Mas
também detesto estar lá. Eles simplesmente... eles fazem-me sentir tão triste.
Na última vez em que fui a casa, contei-te isto? Sobre as férias de inverno?
– Não.
– Saí da faculdade e sentia-me muito contente por me afastar. Tinha
chumbado a Ciências Políticas. A Brooke e a Vivian andavam a discutir todo o
tempo. O Isaac tinha-me deixado. E quando voltei para casa o meu pai estava
muito mais doente do que eu esperava. A minha mãe estava em lágrimas o
tempo todo. O meu estúpido receio de estar grávida e o drama das amizades e
os problemas com o namorado e as más notas... era tudo demasiado trivial para
mencionar sequer. O meu pai estava todo mirradinho, a respirar com a ajuda da
botija de oxigénio. A mesa da cozinha estava coberta de frascos de remédios.
Um dia, ele agarrou-me o braço e segredou: «Traz ao teu velhote um babka.»
– O que é um babka?
– Nunca comeste? É um bolo, um caracol de canela delicioso como tudo.
– Trouxeste-lho?
– Saí e comprei seis babkas e dei-lhe um todos os dias até acabarem as férias.
Deu-me algo para fazer por ele, quando não havia nada para fazer... Depois, na
manhã em que me vim embora, quando a minha mãe me estava a levar de carro
a Vassar, atacou-me uma sensação de pavor. Não queria ver a Vivian. Ou a
Brooke. Ou o Isaac. A faculdade parecia não fazer sentido nenhum, como uma
escola para meninas da sociedade onde ia aprender a ser o tipo de filha que a
minha mãe queria que eu fosse. Ou o tipo de rapariga que o Isaac queria que eu
fosse. Mas não o que eu queria ser, de modo nenhum. Assim que a minha mãe
se foi embora, chamei um táxi e fui para Martha’s Vineyard.
– Porquê para lá?
– Para escapar. Tínhamos estado lá de férias quando eu era pequena. Ao fim
do primeiro par de dias, deixei o telemóvel ficar sem bateria. Não queria
atender ninguém. Sei que isso deve soar egoísta, mas tinha de fazer algo
radical. Com o meu pai assim tão doente, não tinha falado com ninguém sobre
os meus problemas. A única maneira como poderia resolver as minhas questões
era tentar ver como era a vida afastada de tudo. Sem todas aquelas outras
pessoas a quererem coisas de mim, a sentirem-se dececionadas comigo. E
depois fui ficando. Estava a viver no hotel há um mês quando me
consciencializei de que não ia voltar. Enviei um e-mail aos meus pais a dizer
que estava bem, e arrendei a casa.
– Como é que eles reagiram?
– Com uma centena de biliões de e-mails e mensagens. «Por favor volta para
casa, só por um par de dias. Nós pagamos o voo.» «O teu pai quer saber porque
não lhe retribuis as chamadas.» Esse tipo de coisa. A diálise do meu pai não
lhes permitia virem a Martha’s Vineyard, mas andavam literalmente a assediar-
me. – Immie suspirou. – Bloqueei-os. Parei de pensar neles. Parecia magia,
simplesmente desligar aqueles pensamentos. Ser capaz de não pensar neles
salvou-me, de algum modo. Talvez eu fosse uma pessoa terrível, mas foi tão
bom, Jule, deixar de me sentir culpada.
– Não acho que sejas uma pessoa terrível – disse Jule. – Querias mudar a tua
vida. Tinhas de fazer algo radical para te tornares a pessoa em que estás a
tornar-te.
– Exatamente. – Immie tocou o joelho de Jule com a mão molhada. – Ora
bem, e tu? – Era o padrão usual de Imogen, falar numa longa divagação até ter
explorado completamente uma ideia, e depois, cansada, fazer uma pergunta.
– Não vou voltar – disse Jule. – Nunca mais.
– É assim tão mau, lá em casa? – perguntou Immie, a olhar atentamente para
o rosto de Jule.
Jule pensou então, por um segundo cheio de esperança, que alguém poderia
amá-la e ela poderia amar-se a si mesma e merecer tudo. Immie compreenderia
o que Jule dissesse naquele momento. Tudo, fosse o que fosse.
– Nós somos iguais – aventurou-se a dizer. – Não quero ser a pessoa que era,
quando estava a crescer. Quero ser o eu que está aqui, agora. Contigo. – Era
uma declaração tão verdadeira quanto sabia fazer.
Immie inclinou-se e beijou-lhe a face. – As famílias são lixadas, em todo o
mundo.
As palavras de Jule jorraram-lhe da boca. – Nós somos a família uma da
outra agora. Eu sou a tua e tu podes ser a minha.
Esperou. Olhou para Immie.
Imogen deveria dizer que eram como irmãs.
Imogen deveria dizer que eram amigas para toda a vida e que sim, eram
família.
Tinham acabado de falar tão intimamente, e Imogen deveria prometer que
nunca deixaria Jule como acabara de deixar Forrest, como deixara a mãe e o
pai.
Em vez disso, Imogen sorriu afavelmente. A seguir, saiu do jacuzzi e dirigiu-
se para a piscina com aquele fato de banho de um cinzento metalizado. Sorriu
ao grupo de rapazes adolescentes que andavam na brincadeira na parte menos
funda da piscina. Rapazes americanos.
– Ei, rapazes. Um de vocês quer ir-me buscar um pacote de batatas fritas ou
de pretzels ao bar lá dentro? – disse Immie. – Tenho os pés molhados. Não
quero levar água lá para dentro.
Os rapazes estavam mais molhados do que ela, mas um deles saltou para fora
da piscina e limpou-se a uma toalha. Era magricela e tinha borbulhas, mas tinha
dentes bons e o tipo de corpo comprido e estreito que agradava a Immie. – Ao
teu serviço – disse ele, com uma vénia tonta.
– És um príncipe entre homens.
– Estão a ver? – disse o rapaz aos seus amigos na piscina. – Sou um príncipe.
Porque é que Immie tinha de tentar encantar toda a gente? Eles eram só um
bando de rapazes, com pouco a oferecer. Mas Immie fazia este tipo de coisa
sempre que as situações se tornavam intensas. Virava-se e fazia incidir a sua
luz em pessoas novas, pessoas que se sentiam com sorte por ela ter reparado
nelas. Fizera-o quando trocara as suas amigas no colégio Greenbriar por outras
amigas que andavam no Dalton. Fizera-o quando deixara o seu pai doente e as
suas amigas do Dalton para ir para Vassar, e quando deixara Vassar para viver
em Martha’s Vineyard. Deixara Forrest e Martha’s Vineyard por Jule, mas Jule
não era uma novidade suficiente, ao que parecia. Immie necessitava de
admiração fresca.
O rapaz trouxe vários pacotes de batatas fritas. Imogen sentou-se numa
espreguiçadeira, a comer e a fazer-lhe perguntas.
De onde eram? – Do Maine.
Que idade tinham? – A suficiente. Ah, ah.
Não, a sério, que idade? – Dezasseis.
O riso de Imogen ecoou por toda a piscina. – Bebés!
Jule pôs-se de pé e voltou a calçar os ténis. Havia algo naqueles rapazes que
lhe arrepiava a pele. Detestava a maneira como competiam por manter Imogen
entretida, a agitarem a água e a exibirem os músculos na piscina. Ela não
queria pôr-se a falar com um bando de alunos do secundário todos babados. A
Imogen que lhes alimentasse o ego se precisava de o fazer.
Na manhã seguinte, Jule queria alugar um barco e ir a Culebrita. Era a ilha
minúscula com as típicas rochas vulcânicas pretas, uma reserva de vida
selvagem com praias. Immie falara sobre ela no primeiro dia. Podia-se ir de
barco-táxi, mas teria de se esperar para te virem buscar. Era mais agradável ir
pelos seus próprios meios, porque assim podia vir-se embora quando se
quisesse. O rececionista deu a Jule o número de telefone de um tipo com um
barco para alugar.
Immie não via necessidade de irem pelos seus próprios meios quando alguém
poderia fazê-lo por elas. Não via necessidade nenhuma de irem a Culebrita. Já
a visitara. E havia água límpida e brilhante aqui mesmo. E um restaurante. E
duas piscinas aquecidas. Havia pessoas com quem falar.
Mas Jule não conseguia suportar um dia na piscina com aqueles rapazes do
secundário, uns toscos duns exibicionistas. Jule queria ir a Culebrita e ver as
famosas rochas negras e fazer uma caminhada até ao farol.
O tipo do barco disse que se encontrava com elas na doca que se estendia no
outro extremo da praia. Era muito informal. Jule e Immie desceram até lá, e
dois homens jovens porto-riquenhos apareceram em dois pequenos barcos.
Immie pagou em dinheiro. Um dos tipos mostrou a Jule como ligar o motor e
como os remos se encaixavam na beira do barco, só para o caso de precisarem
deles. Havia um número para telefonarem quando já não precisassem do barco.
Immie estava amuada. Disse que os coletes salva-vidas estavam estalados e
que o barco precisava de uma pintura. Mas entrou nele, mesmo assim.
A travessia da baía demorou meia hora. O sol ficou mais quente. A água
estava chocantemente azul.
Em Culebrita, Jule e Imogen saltaram para a água para empurrar o barco para
a praia. Jule escolheu um caminho, e começaram a andar. Immie mantinha-se
em silêncio.
– Para que lado? – perguntou Jule ao chegarem a uma bifurcação no trilho.
– Para o que quiseres.
Viraram à esquerda. A colina era íngreme. Ao fim de quinze minutos, Immie
esfolou a planta do pé numa rocha. Ergueu o pé e pousou-o contra uma árvore
para o examinar.
– Estás bem? – perguntou Jule.
Immie estava a sangrar, mas só ligeiramente. – Tou, ótima.
– Quem me dera que tivéssemos pensos rápidos – disse Jule. – Devia ter
trazido alguns.
– Mas não trouxeste, portanto tudo bem.
– Lamento.
– A culpa não é tua – disse Immie.
– Quero dizer que lamento que te tenha acontecido.
– Deixa para lá – disse Imogen, e continuou a subir a encosta. No cume,
chegaram às rochas pretas.
Eram diferentes do que Jule esperava. Mais belas. Quase assustadoras. Eram
escuras e escorregadias. Fluía água para dentro delas e à sua volta, formando
umas piscinas naturais que pareciam quentes ao sol. Algumas das rochas
estavam cobertas por umas algas verdes e macias.
Não havia mais ninguém por ali.
Immie despiu-se, ficando em fato de banho, e meteu-se na piscina maior sem
uma palavra. Estava bronzeada e trazia um biquini preto com uma fita à volta
do pescoço.
Jule sentiu-se como uma pessoa grossa e masculina de repente. Os músculos
que se esforçava tanto por desenvolver pareciam toscos, e o fato de banho azul-
claro que usara todo o verão, foleiro.
– Está quente? – perguntou, sobre a piscina natural pouco funda.
– Bastante quente – disse Immie. Estava inclinada, a lançar água pelos braços
acima e pela nuca. Jule sentia-se irritada com Immie por ela estar amuada.
Afinal, não era culpa dela que Imogen tivesse esfolado o pé. Jule só era
culpada de dizer que queria alugar um barco e ver Culebrita.
Immie era uma criança mimada que fazia beicinho quando não levava a sua
avante. Era uma das suas limitações. Nunca ninguém dizia que não a Imogen
Sokoloff.
– Vamos até ao farol? – perguntou Jule. Era o ponto mais alto da ilha.
– Podemos ir.
Jule queria que Immie mostrasse entusiasmo. Mas Immie recusava-se a fazê-
lo.
– O teu pé está bem?
– Provavelmente.
– Queres subir até ao farol?
– Podia.
– Mas queres?
– O que queres que eu diga, Jule? «Oh, é um sonho meu ver um farol»? Em
Martha’s Vineyard vi a porra de um farol todos os dias da minha vida. Queres
que diga que estou a morrer por caminhar até lá acima com o pé magoado neste
calor louco para ver uma construção minúscula que se parece com um milhão
de construções minúsculas que já vi um milhão de vezes? É isso que queres?
– Não.
– O que queres, então?
– Só estava a perguntar.
– Quero voltar para o hotel.
– Mas acabámos de chegar aqui.
Imogen saiu da água e vestiu as roupas, enfiando os pés nas sandálias. –
Podemos voltar para o hotel, por favor? Quero telefonar ao Forrest. O meu
telemóvel não tem rede aqui.
Jule secou as pernas e calçou os ténis. – Porque queres telefonar ao Forrest?
– Porque ele é o meu namorado e tenho saudades dele – disse Immie. – O
que é que pensaste? Que eu tinha acabado com ele?
– Não pensei nada.
– Não acabei com ele. Vim para Culebra para fazer uma pausa, é tudo.
Jule pôs ao ombro o saco que traziam para as duas. – Se queres voltar,
voltemos.
Jule sentia-se esvaída de todo o júbilo que sentira nos últimos dias. Tudo
parecia quente e vulgar.
Tinham puxado o barco bastante para cima e quando regressaram à praia
tiveram de o empurrar pelo areal. A seguir, saltaram para dentro dele e tiraram
os remos do descanso, usando-os para guiar o barco para águas suficientemente
profundas para ele começar a flutuar e poderem ligar o motor.
Imogen quase não falava.
Jule ligou o motor e apontou para Culebra, que era visível à distância.
Immie ia sentada na parte da frente do barco, o seu perfil dramático contra o
mar. Jule olhou para ela e sentiu um acesso de afeto. Immie era bela, e na sua
beleza podia ver-se que era bondosa. Boa para com os animais. O tipo de
amiga que te traz café feito tal e qual como gostas, te compra flores, dá livros e
faz queques. Ninguém sabia como se divertir como Immie. Atraía as pessoas;
toda a gente a adorava. Tinha uma espécie de poder – dinheiro, entusiasmo,
independência – que brilhava à sua volta. E aqui estava Jule, no meio do mar,
deste mar louco azul-turquesa, com este ser humano raro, único.
Nada da sua discussão importava. Era a fadiga, era tudo. As pessoas
discutiam, mesmo nas melhores amizades. Fazia parte de serem verdadeiras
uma com a outra.
Jule desligou o motor. O mar estava muito calmo. Não havia mais nenhum
barco à vista.
– Está tudo bem? – perguntou Imogen.
– Desculpa ter-nos feito alugar este estúpido barco.
– Não tem mal. Mas ouve-me, por favor. Vou voltar para Vineyard para estar
com o Forrest amanhã de manhã.
Jule sentiu-se estonteada. – Então?
– Já te disse, tenho saudades dele. Sinto-me mal pela maneira como me vim
embora. Estava chateada com... – Immie fez uma pausa, hesitante em pô-lo em
palavras. – Com o que aconteceu com o funcionário da limpeza. E com a
maneira como o Forrest lidou com aquilo. Mas não devia ter fugido. Fujo
demasiado.
– Não devias voltar para Vineyard porque sentes obrigação para com o
Forrest, logo ele – disse Jule.
– Eu amo o Forrest.
– Então porque é que lhe andas sempre a mentir? – ripostou Jule. – Porque é
que estás aqui comigo? Porque é que ainda pensas no Isaac Tupperman? Não é
assim que te comportas quando estás apaixonada. Não deixas uma pessoa a
meio da noite e esperas que ela fique toda contente quando voltas a aparecer.
Não tens o direito de a deixar assim.
– Tu tens ciúmes do Forrest. Eu entendo. Mas não sou nenhuma boneca com
que possas brincar e não partilhar. – Immie falava com aspereza. – Dantes,
pensava que gostavas de mim por mim mesma, sem o meu dinheiro, sem nada.
Julgava que éramos iguais e que me compreendias. Era fácil contar-te coisas.
Mas sinto cada vez mais que tens uma ideia de mim, da Imogen Sokoloff –
disse o seu nome como se estivesse em itálico – e essa não é quem eu sou. Tens
uma ideia de uma pessoa de quem gostas. Mas não sou eu. Só queres usar as
minhas roupas e ler os meus livros e fazer de conta com o meu dinheiro. Não é
uma amizade real, Jule. Não é uma amizade real quando eu é que pago tudo e
tu pedes tudo emprestado e mesmo assim não é suficiente. Queres todos os
meus segredos e depois usa-los para me controlares. Sinto pena de ti, sinto
mesmo. Gosto de ti... mas tornaste-te, tipo, uma imitação de mim metade do
tempo. Nem sabes o quanto lamento ter de dizer isto, mas tu...
– O quê?
– Não bates certo. Estás sempre a alterar os pormenores das histórias que
contas e é como se nem sequer te desses conta. Nunca devia ter-te convidado
para vires ficar connosco na casa de Vineyard. Foi bom durante algum tempo,
mas agora sinto-me usada, e até mesmo enganada, de certo modo. Preciso de
me afastar de ti. É a verdade.
A sensação de estonteamento aumentou.
Immie não podia estar a dizer o que estava a dizer.
Jule andava a fazer tudo o que Imogen queria há semanas e semanas.
Deixava Immie em paz quando ela queria ficar sozinha, ia às compras quando
Immie queria ir às compras. Tolerara Brooke, tolerara Forrest. Jule fora ouvinte
quando necessário, contadora de histórias quando necessário. Adaptara-se ao
ambiente e aprendera todo os códigos de comportamento para o mundo de
Immie. Mantivera a boca fechada. Lera centenas de páginas de Dickens.
– Eu não sou as minhas roupas – disse Imogen. – Eu não sou o meu dinheiro.
Tu queres que eu seja uma pessoa que...
– Não quero que sejas nada a não ser tu – interrompeu Jule. – Não quero
mesmo.
– Mas queres – disse Imogen. – Queres que te preste atenção quando não me
apetece. Queres que eu seja linda e natural, quando nalguns dias me sinto feia e
é uma luta. Instalaste-me num trono e queres que eu faça sempre comida boa e
leia obras-primas e seja maravilhosa com toda a gente, mas essa não sou eu, e é
extenuante. Não quero vestir a roupagem e levar à cena esta ideia que tens de
mim.
– Isso não é verdade.
– O peso disto é enorme, Jule. Sufoca-me. Estás a pressionar-me para ser
algo para ti, e eu não quero sê-lo.
– És a minha amiga mais íntima. – Era a verdade, e saiu do peito de Jule,
num tom alto e queixoso. Jule sempre passara de raspão pelas pessoas. Não
eram suas; nunca deixavam marca nela, e não sentiria a falta de ninguém. Jule
contara cem mentiras para fazer Immie gostar dela. Merecia esse afeto em troca
delas.
Immie abanou a cabeça. – Ao fim de um par de semanas na minha casa? A
tua amiga mais íntima? Nem sequer é possível. Devia ter-te pedido que te
fosses embora depois do primeiro fim de semana.
Jule pôs-se de pé. Immie estava sentada na beira da frente do barco.
– O que é que eu fiz para tu me odiares? – perguntou-lhe Jule. – Não
compreendo o que fiz.
– Não fizeste nada! Eu não te odeio.
– Quero saber o que fiz de errado.
– Olha. Só te convidei para vires comigo porque queria manter-te calada –
disse Imogen. – Convidei-te para aqui para te calar. Pronto, está dito.
Ficaram em silêncio. Aquela frase ficou entre elas: Convidei-te para aqui
para te calar.
Imogen prosseguiu: – Não consigo suportar mais esta viagem. Não consigo
suportar que tu me peças as minhas roupas emprestadas e olhes para mim como
olhas, como se eu nunca fosse suficiente, e que me estejas a ameaçar e queiras
que eu goste tanto de ti. Não gosto.
Jule não pensou, não conseguia pensar.
Pegou num remo do fundo do barco. Balançou-o com força.
A parte mais larga do remo atingiu Imogen no crânio. A ponta aguçada
primeiro.
Immie tombou. O barco balouçou loucamente. Jule avançou e o rosto de
Immie virou-se para ela. Immie parecia surpreendida, e Jule sentiu um
momento de triunfo; a oponente subestimara-a.
Acertou de novo com o remo naquela cara de anjo. O nariz partiu-se, e os
ossos das maçãs do rosto. Um dos olhos ficou esbugalhado e começou a
esguichar. Jule bateu uma terceira vez e o ruído foi terrível, alto e de algum
modo final. O maxilar de Imogen e o ar de quem tem direito a tudo e a beleza e
a autoimportância fácil, tudo isso foi esmagado pela força do braço direito de
Jule. Jule era a porra da vencedora, e por um breve momento a sensação foi
gloriosa.
Immie deslizou do seu poleiro para a água. O barco inclinou-se quando o
peso dela caiu borda fora. Jule cambaleou para trás, batendo com força com a
anca contra o lado.
Immie bateu de chapa na água duas vezes, a debater-se. Arquejante. Tinha os
olhos cheios de sangue, que pingava para a água azul-turquesa. A sua camisa
branca flutuava à volta dela.
A sensação de triunfo desvaneceu-se e Jule saltou para dentro do mar,
agarrando Immie pelo ombro. Queria obter uma resposta.
Immie devia-lhe uma resposta.
Ainda não tinham acabado, com um raio. Immie não podia fugir. – O que
tens para me dizer? – gritou Jule, a dar com os pés e erguendo Immie o melhor
que podia. – O que tens para me dizer agora? – Corria-lhe sangue do rosto de
Immie pelos braços. – Porque eu não sou a porra do teu animal de estimação e
também já não sou tua amiga, estás a ouvir-me? – berrou Jule. – Olhas-me de
alto, porra, mas eu é que sou a forte, eu é que sou a forte aqui, porra. Estás a
ver, Immie? Estás a ver?
Jule tentou virar Immie, manter o seu rosto no ar, mantê-la a respirar, e a
escutá-la, mas as feridas eram enormes. O rosto de Imogen estava feito numa
papa e a pingar sangue do ouvido, do nariz, do lado esmagado da maçã do
rosto. O seu corpo era percorrido por espasmos e tremia. A sua pele estava
escorregadia, tão escorregadia. Esperneava e esbracejava, atingindo Jule no
rosto com as costas de uma mão a mover-se involuntariamente.
– Que porra tens a dizer agora? – repetiu Jule, suplicante. – O que é que
queres dizer-me?
O corpo de Imogen Sokoloff contraiu-se mais uma vez e a seguir ficou
imóvel.
O sangue acumulava-se à volta das duas.
Jule trepou de novo para dentro do barco e o tempo parou.
Devia ter passado uma hora. Talvez duas. Talvez só um par de minutos.
Nenhuma luta alguma vez correra assim. Sempre fora ação, heroísmos,
defesa, competição. Por vezes vingança. Isto era diferente. Havia um corpo no
mar. O rebordo de uma orelha pequena, com três piercings. Os botões no punho
da camisa, um azul frio contra o linho branco.
Jule amara Imogen Sokoloff tão bem como sabia amar alguém. Amara
mesmo.
Mas Immie não quisera o seu amor.
Pobre Immie. A linda, a especial Immie.
Jule sentiu uma volta no estômago. Tentou vomitar pela borda do barco.
Agarrou-se à beira, a pensar que ia vomitar, com os ombros a tremerem. Sentia
arrancos, mas não saía nada, e continuava a não sair nada. Aquilo prolongou-se
por um ou dois minutos até ela se aperceber de que estava a chorar.
Tinha as faces brilhantes com lágrimas.
Não fora sua intenção fazer mal a Imogen.
Não, não fora.
Queria não o ter feito.
Queria poder voltar atrás. Queria ser um ser humano diferente num corpo
diferente com uma vida diferente. Queria que Immie tivesse retribuído o seu
amor, e estava a soluçar porque agora isso nunca aconteceria.
Estendeu a mão e pegou na mão molhada e mole de Immie. Segurou-a,
inclinando-se para trás sobre a beira do barco.
Ouviu-se um som de um avião lá em cima.
Jule largou a mão de Immie e engoliu as lágrimas. O seu instinto de
autopreservação entrou em ação.
Estava bastante longe da costa. A uns vinte minutos de barco de Culebra e a
uns dez de Culebrita. Jule tocou com a mão na água. Havia uma corrente na
direção do mar aberto vinda do canal muito movimentado entre as duas ilhas.
Puxou a mão de Immie para si até ela ficar suficientemente perto para lhe
passar uma corda por baixo dos braços, tendo o cuidado de a manter frouxa
para não deixar marca. A corda era áspera e foi difícil atá-la. Jule ficou com as
palmas das mãos doridas, com a pele esfolada. Fez várias tentativas antes de
conseguir dar um nó que ficasse seguro.
Ligou o motor e dirigiu-se lentamente para o mar aberto, seguindo a corrente.
Quando o mar começou a ficar escuro e profundo, quando já estavam bem fora
do caminho percorrido entre Culebra e Culebrita, Jule soltou a corda e largou
Imogen.
O corpo afundou-se muito, muito lentamente.
Jule lavou a corda e esfregou-a com uma escova que encontrou numa
pequena caixa com materiais. Tinha as mãos esfoladas e a sangrarem
ligeiramente, mas nenhumas outras marcas. Enrolou a corda muito bem
enrolada e arrumou-a no seu lugar no barco. Esfregou e passou por água o
remo.
A seguir, ligou o motor e voltou para Culebra.
*

– Miss Sokoloff? – O rececionista no átrio acenou a Jule.


Jule parou e olhou para ele.
Ele pensava que ela era Imogen. Ninguém a confundira com Imogen até
àquele momento.
Não eram muito parecidas, mas evidentemente eram duas mulheres jovens
brancas, com cabelo curto e sardas. Tinham o mesmo sotaque da Costa Leste.
Poderiam passar uma pela outra.
– Chegou uma encomenda para si, Miss Sokoloff – disse o rececionista,
sorrindo. – Tenho-a aqui mesmo.
Jule retribuiu-lhe o sorriso. – O senhor é um doce – disse-lhe. – Obrigada.
8

SEGUNDA SEMANA DE SETEMBRO, 2016


MENEMSHA, MARTHA’S VINEYARD
MASSACHUSETTS

S eis dias antes de Jule receber aquela encomenda, o funcionário da limpeza


não apareceu para trabalhar na casa de Immie em Martha’s Vineyard. O
seu nome era Scott. Teria uns vinte e quatro anos, mais velho do que Immie,
Jule, Brooke e mesmo Forrest, mas Imogen chamava-lhe o funcionário da
limpeza.
Scott fora recomendado pelos proprietários da casa para trabalhar no jardim e
na limpeza da casa. A piscina e o jacuzzi necessitavam de manutenção. A casa
era arejada e tinha muitas janelas, tetos de altura dupla na sala de estar e na sala
de jantar. Seis claraboias, cinco quartos de dormir. Deque na frente e nas
traseiras. Roseiras e outras plantas. Era muita coisa para manter limpa.
Scott tinha um rosto largo e aberto e um nariz achatado. Era branco, com
bochechas cor-de-rosa, um rosto quadrado, e cabelo escuro rebelde. Tinha
ancas estreitas e músculos a sério nos braços. Costumava usar um boné de
basebol e andar em tronco nu.
Quando Jule conheceu Scott, não compreendeu bem o que ele estava a fazer
ali. Encontrava-se simplesmente na cozinha, a limpar o chão com uma
esfregona e um balde. Não parecia diferente dos vários amigos temporários de
Forrest e Imogen na ilha, mas ali estava ele, em tronco nu, a fazer trabalhos
domésticos.
– Olá, sou a Jule – disse ela, parada à porta.
– Scott – disse ele, ainda a limpar o chão.
– Vens até à praia? – perguntou ela.
– Ah, não. Estou bem aqui. Sou o funcionário da limpeza da Imogen. – A sua
pronúncia era americana genérica.
– Oh, estou a ver. – Jule perguntou-se se Imogen falaria com o funcionário da
limpeza como uma pessoa normal ou se Scott supostamente seria invisível.
Ainda não sabia quais eram os códigos de comportamento. – Sou uma amiga
da Immie da secundária.
Ele não disse mais nada.
Jule deixou-se ficar a vê-lo. – Queres uma bebida? – perguntou. – Há Coca-
Cola e Coca-Cola de dieta.
– Devia continuar a trabalhar. A Imogen não gosta que esteja sem trabalhar.
– É assim tão rígida?
– Sabe o que quer. Tenho de respeitar isso – disse ele. – E paga-me.
– Mas queres uma Coca-Cola?
Scott pôs-se de joelhos e borrifou um produto de limpeza na zona por baixo
da máquina de lavar louça, onde se acumulava sujidade. A seguir, esfregou-a
com uma esponja áspera. Os seus dorsais brilhavam com suor. – Não me paga
para tirar coisas do frigorífico dela – respondeu por fim.
Dias mais tarde, tornou-se claro que não era exatamente suposto que Scott
fosse invisível, porque era de facto tão decorativo que ninguém poderia ignorar
a sua presença, mas ninguém falava com ele além de um olá. Immie limitava-se
a dizer «ei» quando o via, embora os olhos dela lhe percorressem o corpo.
Scott esfregava as sanitas e levava o lixo e arrumava a confusão que as pessoas
deixavam na sala de estar. Jule nunca mais voltou a oferecer-lhe uma Coca-
Cola.
O dia em que Scott não apareceu era uma sexta-feira. Às sextas-feiras de
manhã, normalmente limpava a cozinha e as casas de banho e a seguir regava o
relvado. Acabava por volta das onze, portanto ninguém reparou muito na sua
ausência.
No dia seguinte, contudo, voltou a não aparecer. Aos sábados limpava a
piscina e tratava da manutenção do jardim. Immie deixava-lhe sempre dinheiro
para pagar o trabalho da semana anterior em cima da bancada da cozinha. O
dinheiro estava lá como era habitual, mas Scott não apareceu.
Jule desceu do quarto, vestida para fazer exercício físico. Brooke estava
sentada na bancada da cozinha com uma taça de uvas à sua frente. Forrest e
Immie estavam a comer granola com natas e framboesas à mesa de jantar. O
lava-louça estava cheio de pratos.
– Onde está o funcionário da limpeza? – perguntou Brooke para a sala de
jantar quando Jule estava a deitar água num copo.
– Está chateado comigo – respondeu Immie.
– Eu é que estou chateado com ele – disse Forrest.
– Também estou chateada – disse Brooke. – Quero que me lave as uvas, tire a
roupa e me lamba o corpo todo da cabeça aos pés. E, no entanto, ele continua a
não fazer isso. Nem sequer está aqui. Não sei o que correu mal.
– Muito engraçadinha – disse Forrest.
– Ele é tudo o que quero num tipo – disse Brooke. – É musculoso, mantém a
boca fechada e, ao contrário de ti – meteu uma uva à boca –, lava a louça.
– Eu lavo a louça – disse Forrest.
Immie riu-se. – Lavas, tipo, um prato de que comeste.
Forrest pestanejou e voltou ao tópico anterior.
– Já lhe telefonaste?
– Não. Quer um aumento e eu recuso-me a dar-lho – disse Immie
suavemente, erguendo a cabeça e olhando Jule nos olhos. – Ele é bom, mas já
chegou tarde uma data de vezes. Detesto acordar e ver a cozinha desarrumada.
– Despediste-o? – perguntou Forrest.
– Não.
– Depois de falarem sobre o aumento, ele disse que continuava a trabalhar
aqui?
– Acho que sim. Não tenho a certeza. – Immie pôs-se de pé para levar a
caneca e a taça para a cozinha.
– Como podes não ter a certeza?
– Pensei que sim. Mas suponho que não vai continuar – disse Immie da
cozinha.
– Vou telefonar-lhe – disse Forrest.
– Não, não faças isso. – Imogen voltou para a sala de jantar.
– Porque não? – Forrest pegou no telemóvel de Immie. – Precisamos de uma
pessoa para limpar a casa, e ele já conhece o trabalho. Talvez tenha havido um
mal-entendido.
– Eu disse para não lhe telefonares – resmungou Immie. – Esse telemóvel
que tens na mão é meu e a casa não é tua.
Forrest pousou o telemóvel. Voltou a pestanejar. – Só estou a querer ajudar –
disse.
– Não, não estás.
– Sim, estou.
– Tu deixas tudo a meu cargo aqui – disse Immie. – Eu encarrego-me da
cozinha e da comida e do funcionário da limpeza e das compras e da Wi-Fi.
Agora, estás chateado por eu não estar a lidar com uma coisa da maneira que tu
queres?
– Imogen.
– Eu não sou a porra da tua mulher e fada do lar, Forrest – disse ela. – É o
oposto do que sou.
Forrest dirigiu-se para o seu portátil. – Qual é o apelido do Scott? –
perguntou. – Acho que devíamos pesquisar o nome e ver se alguém se queixou
dele, qual é a dele. Deve aparecer na lista do Yelp ou coisa do género.
– Cartwright – disse Immie, ao que parecia disposta a parar com a discussão.
– Mas não o vais encontrar. Ele é um tipo de Vineyard que faz biscates a
dinheiro. Não tem site.
– Bem, posso descobrir... Oh, meu Deus.
– O que foi?
– Scott Cartwright, de Oak Bluffs?
– Sim.
– Está morto.
Immie correu para junto de Forrest. Brooke saltou da bancada da cozinha e
Jule voltou da entrada onde estava a fazer exercícios de alongamento.
Juntaram-se à volta do computador.
Era um artigo no website do Martha’s Vineyard Times, a noticiar o suicídio
de um tal Scott Cartwright. Enforcara-se com uma corda pendurada de uma
viga muito alto no teto do celeiro de um vizinho. Tinha deitado ao chão com
um pontapé um escadote com seis metros de altura.
– A culpa é minha – disse Imogen.
– Não, não é – disse Forrest, ainda a olhar para o ecrã. – Ele queria um
aumento e chegava consistentemente tarde. Tu recusaste-te a dar-lhe mais
dinheiro. Isso não tem nada que ver com ele se matar.
– Devia andar deprimido – disse Brooke.
– Diz aqui que não deixou nenhuma mensagem – disse Forrest. – Mas têm a
certeza de que foi suicídio.
– Não acho que tenha sido – disse Immie.
– Vá lá – disse Forrest. – Ninguém o forçou a subir um escadote de seis
metros num celeiro e a enforcar-se.
– Pois – disse Immie. – Mas acho que é capaz de ter acontecido.
– Estás a ter uma reação exagerada – disse Forrest. – O Scott era um tipo
simpático, e é triste que tenha morrido, mas ninguém o matou. Comporta-te
racionalmente.
– Não me digas para me comportar racionalmente – disse Immie, numa voz
dura.
– Ninguém mata o funcionário da limpeza e faz com que pareça suicídio. –
Forrest levantou-se do computador. Torceu o seu cabelo comprido num rabo de
cavalo e prendeu-o com um elástico que trazia no pulso.
– Não fales comigo como se eu fosse uma criança.
– Imogen, estás perturbada com a notícia do Scott, o que é compreensível,
mas...
– Isto não tem a ver com o Scott! – gritou Immie. – Tem a ver com tu
dizeres-me que me comporte racionalmente. Pensas que és superior porque tens
um curso universitário. E porque és homem. E porque és um Martin, dos
Martins de Greenwich e...
– Immie...
– Deixa-me acabar – rosnou Imogen. – Tu vives na minha casa. Comes a
minha comida e conduzes o meu carro e o lixo que fazes era limpo por aquele
pobre rapaz a quem eu pagava. Uma parte de ti detesta-me por isso, Forrest.
Detestas-me porque tenho posses para esta vida e tomo as minhas próprias
decisões, e portanto tratas-me com paternalismo e desvalorizas as minhas
ideias.
– Por favor, podemos ter esta conversa em particular? – pediu Forrest.
– Vai só. Deixa-me em paz por algum tempo – disse Immie. Soava cansada.
Forrest gemeu e foi para o andar de cima. Seguiu-se Brooke.
O rosto de Immie contorceu-se com lágrimas assim que eles desapareceram
de vista. Aproximou-se de Jule e abraçou-a, cheirando a café e a jasmim.
Ficaram assim durante muito tempo.
Immie e Forrest saíram de carro daí a vinte minutos, dizendo que precisavam
de conversar. Brooke ficou no seu quarto.
Jule fez exercício físico e a seguir matou sozinha o tempo que restava da
manhã. Almoçou duas torradas com creme de chocolate e avelã e bebeu
proteína em pó dissolvida em sumo de laranja. Estava a lavar a louça quando
Brooke desceu ruidosamente e arrastou o seu saco de viagem para a sala de
estar.
– Vou-me embora – disse.
– Neste momento?
– Não preciso deste drama todo. Vou para casa, para La Jolla. Os meus pais
vão dizer, tipo, Brooke, devias arranjar um estágio! Fazer voluntariado! Voltar
a estudar! Portanto vai ser extremamente irritante, mas, sabes, por acaso até
estou com umas certas saudades de casa. – Brooke virou-se abruptamente e
entrou na cozinha. Abriu a porta da despensa com força e pegou em duas
embalagens de bolachas e um pacote de tortilla chips, enfiando-os no saco que
trazia ao ombro. – A comida no ferry não presta – disse. – Bye.
*

Ao fim do dia, Imogen regressou. Saiu para o deque e viu Jule.


– Onde está o Forrest? – perguntou Jule.
– Foi lá para cima para o escritório dele. – Immie sentou-se e tirou as
sandálias. – Há um serviço religioso em memória do Scott no próximo fim de
semana.
– A Brooke foi-se embora.
– Eu sei. Mandou-me uma mensagem.
– Levou as bolachas todas.
– A Brooke.
– Disse que tu não te importarias.
– Não estava a guardá-las. – Imogen levantou-se e foi até ao interruptor que
acendia as luzes da piscina. A água iluminou-se. – Acho que devíamos ir para
fora. Sem o Forrest.
Sim.
Seria realmente assim tão fácil? Ter a Immie só para si?
– Acho que devíamos partir de manhã – continuou Imogen.
– OK. – Jule esforçou-se por soar indiferente.
– Reservo um voo para nós. Tu compreendes. Preciso de sair daqui, ter um
tempo só de raparigas.
– Eu não preciso de estar aqui – disse Jule, encantada. – Não tenho de ir a
lado nenhum.
– Tive uma ideia – disse Imogen com um ar de conspiração. Deitou-se na
espreguiçadeira. – Uma ilha chamada Culebra. Fica ao largo de Porto Rico. –
Immie estendeu a mão e tocou no braço de Jule. – E não te preocupes com
questões de dinheiro. Bilhetes, hotel, tratamentos de spa... ficam por minha
conta.
– Sou toda tua – disse Jule.
7

PRIMEIRA SEMANA DE SETEMBRO, 2016


MENEMSHA, MARTHA’S VINEYARD
MASSACHUSETTS

D ois dias antes de morrer, Scott estava a limpar a piscina quando Jule
regressou da sua corrida matinal. Ele estava em tronco nu. Com as calças
de ganga descaídas nas ancas. Andava a arrastar um varre-folhas ao longo da
água no perímetro da piscina.
Disse bom dia num tom animado quando Jule passou por ele. Immie e
Forrest ainda não se tinham levantado. O carro alugado de Brooke não estava
no caminho para a casa. Jule pegou numa pilha de roupas que escolhera antes e
pendurou-as no gancho ao lado do chuveiro do exterior. A seguir, entrou para a
cabina.
Lavou-se, rapou os pelos das pernas e pensou em Scott. Ele era muito, muito
bonito. Pensou quais seriam os seus exercícios para os músculos das costas e
nos pagamentos só a dinheiro. Como se tornara um tipo que estava disposto a
limpar com lixívia as casas de banho de outras pessoas e cortar a relva dos seus
jardins? Tinha o aspeto e a maneira de falar do grande herói de ação branco
heterossexual que se vê em filme atrás de filme. Provavelmente, poderia ter a
maior parte das coisas que quisesse neste mundo sem demasiado esforço. Nada
estava a empurrá-lo para baixo, mas ali estava ele. A limpar.
Talvez lhe agradasse assim. Mas talvez não.
Quando ela desligou a água, Scott e Imogen estavam a conversar no deque.
– Tens de me ajudar – disse ele em voz baixa.
– Não, não tenho, por acaso.
– Por favor.
– Não posso envolver-me.
– Não tens de te envolver, Imogen. Vim ter contigo a pedir-te ajuda porque
confio em ti.
Immie suspirou. – Vieste ter comigo porque eu tenho uma conta bancária.
– Não foi isso. Nós temos uma ligação.
– Hello?
– Todas aquelas tardes na minha casa. Não te pedi nada. Foste lá porque
querias.
– Já não vou à tua casa há uma semana – disse Imogen a Scott.
– Tenho saudades tuas.
– Não vou pagar a tua dívida. – A voz de Imogen era firme.
– Só preciso de um empréstimo. Para me desenrascar. Até aqueles gajos me
saírem de cima.
– É uma má ideia – disse Imogen. – Devias ir ao banco. Ou contrair um
empréstimo com o cartão de crédito.
– Não tenho cartão de crédito. Estes gajos são... eles não brincam em serviço.
Deixaram-me recados dentro do carro. Eles...
– Não devias ter andado a jogar – ripostou Immie. – Achei que eras mais
esperto do que isso.
– Não me podes adiantar o suficiente para pagar esta dívida? Depois não tens
de voltar a ver-me. Devolvo-te o dinheiro e desapareço, prometo.
– Há um minuto, só falavas na grande ligação que temos. Agora estás a
prometer desaparecer?
– Não tenho nada – implorou Scott. – Há cinco paus na minha carteira neste
momento.
– Onde está a tua família?
– O meu pai deu à sola há muito tempo. A minha mãe teve cancro quando eu
tinha dezassete anos – disse Scott. – Não tenho ninguém.
Immie ficou em silêncio por um momento. – Lamento muito. Não sabia isso.
– Por favor, Immie. Bombom.
– Não comeces com isso. O Forrest está lá em cima.
– Se me ajudares, posso ir-me embora discretamente.
– Isso é uma ameaça?
– Estou a pedir ajuda a uma amiga para pagar uma dívida, é tudo. Dez mil
dólares não é nada para alguém como tu.
– Porque deves dinheiro? Em que apostaste?
Scott murmurou a resposta. – Lutas de cães.
– Não. – Immie soou chocada.
– Tinha um bom cão.
– As lutas de cães são um desporto sangrento. Isso é crime.
– Havia uma cadela de um refúgio de animais de que ouvi falar; era uma fera
autêntica. E conheço um gajo que promove lutas às vezes. Tem um par de pit
bulls. Não foi, tipo, uma coisa organizada.
– Foi organizada se esse sujeito promove lutas. Há leis contra isso. É cruel.
– Esta cadela gostava de lutar.
– Não digas isso – disse Imogen. – Simplesmente, não o digas. Se alguém a
adotasse e a tratasse bem ela teria...
– Tu não conheceste esta cadela – disse Scott, petulante. – De qualquer
maneira, realizou-se a luta e ela perdeu, está bem? Mandei parar antes de ela
ficar demasiado ferida, porque podes, se fores o dono do cão, porque ela
estava... A luta não foi o que eu pensava que seria.
Jule manteve-se imóvel, protegida pela parede do chuveiro no exterior. Não
se atrevia a mexer-se.
– Isso significou que perdi dinheiro para todos aqueles gajos que apostaram
nela – prosseguiu Scott. – Disseram que eu devia tê-la deixado lutar até à
morte. Eu disse que as regras dizem que o dono do cão pode mandar parar a
luta. Eles disseram, OK, mas ninguém faz isso, porque lixas as pessoas todas
que apostaram no teu cão. – Estava a chorar agora. – E querem o dinheiro deles
de volta. O gajo que organizou a luta também quer o investimento dele de
volta. Diz que as pessoas se queixaram, que lhe dei cabo do negócio pondo a
lutar um cão quando eu estava... com medo, Imogen. Não sei como resolver
isto sem a tua ajuda.
– Deixa-me explicar-te a situação – disse Imogen lentamente. – Tu és o meu
rapaz do jardim, o meu rapaz da piscina, o meu funcionário da limpeza.
Trabalhas aqui. Tens feito um trabalho decente e tens sido um tipo razoável
para dar umas voltas de vez em quando. Isso não me dá nenhuma obrigação de
te ajudar quando fizeste uma coisa ilegal e imoral a um pobre cão indefeso.
Jule começou a transpirar.
A maneira como Imogen dissera rapaz do jardim, rapaz da piscina,
funcionário da limpeza. Era tão frio. Jule não vira Immie cara-a-cara com uma
pessoa por quem sentisse desdém até àquele momento.
– Não me vais ajudar, então? – perguntou Scott.
– Mal nos conhecemos.
– Vá lá, vieste à minha casa todos os dias, nalgumas semanas.
– Não fazia ideia de que gostavas de ver cães despedaçarem-se uns aos
outros até morrerem. Não sabia que eras um jogador. Não sabia que eras tão
estúpido e cruel como és, porque não és mais para mim do que o tipo que limpa
a minha casa. Acho que devias ir-te embora agora – disse Imogen a Scott. –
Posso arranjar outra pessoa qualquer para me esfregar o chão.
Immie andara a mentir a Forrest. E a Jule. Immie inventara de propósito
histórias sobre aonde ia de tarde. Mentira sobre porque voltava para casa com o
cabelo molhado, porque estava cansada, sobre onde fizera as compras de
mercearia. Mentira ao dizer que ia jogar ténis com Brooke.
Brooke. Brooke devia saber do caso com Scott. Ela e Imogen chegavam a
casa juntas muitas vezes com raquetes e garrafas da água, a falar sobre os seus
jogos de ténis, quando, provavelmente, não tinham jogado ténis nenhum.
Scott foi-se embora sem mais uma palavra. Daí a um minuto, Immie bateu
com força na porta da cabina do chuveiro. – Consigo ver os teus pés, Jule.
Jule arquejou.
– Porque é que ouves as conversas das outras pessoas assim? – rosnou
Immie.
Jule apertou mais ao corpo a toalha e abriu a porta do chuveiro. – Estava a
secar-me. Tu vieste cá para fora. Eu não sabia o que fazer.
– Andas sempre à espreita por aí. A espiar. Ninguém gosta disso.
– Entendi. Agora, se não te importas, deixas-me vestir?
Imogen afastou-se.
Jule sentia vontade de seguir Immie e esbofetear o seu rosto falso e lindo.
Queria sentir-se cheia de razão e forte em vez de embaraçada e traída.
Mas teria de queimar aquela fúria de outra maneira.
Pegou no fato de banho e nos óculos da natação de um gancho no chuveiro.
Na piscina, nadou uma milha, estilo livre.
Uma segunda milha. Nadou até os braços lhe tremerem.
Finalmente, atirou-se para cima de uma toalha no deque de madeira. Virou o
rosto para o sol e não sentiu mais nada a não ser cansaço.
Imogen veio da casa daí a algum tempo. Trazia uma taça de queques ainda
quentes com pepitas de chocolate. – Fiz estes bolinhos – disse. – Para pedir
desculpa.
– Não há nada de que pedir desculpa – disse Jule, sem se mexer.
– Tudo o que eu disse foi mauzinho. E tenho andado a mentir-te.
– Como se isso me importasse.
– Importa-te.
Jule não respondeu.
– Sei que te importa, fofinha. Não devia haver mentiras entre nós. Tu
compreendes-me muito melhor do que o Forrest. Ou do que a Brooke.
– Possivelmente, é verdade. – Jule não conseguiu conter-se. Sorriu.
– Tens o direito de estar zangada. Agi mal. Eu sei.
– Possivelmente, também é verdade.
– Penso que a coisa toda foi uma maneira de eu afastar o Forrest. Faço isso
quando me canso dos tipos. Traio-os. Desculpa não te ter contado. Não me
sinto realmente orgulhosa de mim mesma.
Imogen pousou os queques ao lado do ombro de Jule. Deitou-se no deque.
Os corpos delas ficaram paralelos.
– Quero sentir-me em casa em algum lugar, e quero fugir – prosseguiu
Immie. – Quero sentir-me ligada às pessoas, e quero afastá-las. Quero estar
apaixonada, e engato tipos de quem nem tenho a certeza de gostar. Ou amo-os
e dou cabo de tudo, e talvez dê cabo de tudo de propósito. Nem sequer sei qual
das coisas é, e isso é mesmo uma cena marada, não é?
– É mediamente marada – disse Jule com uma risadinha. – Mas não
drasticamente. Numa escala de um a dez, é, tipo, um sete, acho eu.
Ficaram ali deitadas em silêncio por mais um minuto.
– Mas uma cena marada de nível sete, provavelmente, é normal –
acrescentou Jule.
– Por favor, posso subornar-te com queques para me perdoares? – pediu
Immie.
Jule pegou num queque e deu uma dentada. – O Scott é lindo de morrer –
disse, engolindo. – Um tipo como ele, o que havias de fazer: deixá-lo em paz e
ficar a vê-lo limpar a piscina? Penso que talvez tivesses a obrigação legal de
lhe saltar para cima.
Imogen gemeu. – Porque é que ele tinha de ser tão sexy? – Agarrou na mão
de Jule. – Fui mesmo uma bruxa. Perdoas-me?
– Sempre.
– És um doce, minha fofinha. Vem à loja comigo agora! – Disse aquilo como
se uma ida à loja fosse maravilhosamente divertido.
– Estou cansada. Obriga a Brooke a ir contigo.
– Não quero a Brooke.
Jule levantou-se.
– Não digas ao Forrest que vamos sair – disse Immie.
– Não digo.
– É claro que não dizes. – Imogen ergueu os olhos para Jule e sorriu-lhe. –
Sei que posso contar contigo. Não lhe vais contar nada de nada, pois não?
6

FINAIS DE JUNHO, 2016


MARTHA’S VINEYARD, MASSACHUSETTS

O nze semanas antes de Immie fazer os queques, Jule deu consigo na praia
em Moshup Beach sem toalha nem fato de banho. O sol estava brilhante e
o dia quente. Depois da longa caminhada desde o parque de estacionamento,
passeou à beira-mar. Pairavam acima dela uns enormes rochedos de calcário
em tons de chocolate, pérola e ferrugem. O calcário estava estalado e era
ligeiramente mole ao toque.
Jule descalçou-se e deixou-se ficar imóvel com os dedos dos pés no mar. A
uns cinquenta metros, Imogen e o seu amigo estavam a instalar-se para passar a
tarde. Não tinham cadeiras de praia, mas o tipo abriu um saco de onde tirou
uma manta de praia de algodão, toalhas, revistas e uma pequena mala térmica.
Atiraram com as roupas para a areia, puseram protetor solar e beberam de
latas que tiraram da mala térmica. Imogen deitou-se na manta para ler. O tipo
pôs-se a apanhar pedrinhas e a empilhá-las umas em cima das outras para
construir uma escultura delicada na areia.
Jule encaminhou-se para eles. A uns metros, gritou: – Immie, és tu?
Imogen não se virou, mas o seu namorado espetou-lhe um dedo no ombro. –
Ela está a chamar o teu nome.
– Imogen Sokoloff, correto? – disse Jule, aproximando-se. – Sou eu, a Jule
West Williams. Lembras-te?
Imogen semicerrou os olhos e sentou-se. Tateou à procura dos seus óculos de
sol no saco de rede que trazia e pô-los.
– Andámos juntas no colégio – prosseguiu Jule. – No Greenbriar.
Immie era digna de se ver, pensou Jule. Pescoço comprido, maçãs do rosto
salientes. Um leve bronzeado. Era magricela na parte de cima do corpo, no
entanto, e fraca. – Andámos mesmo? – perguntou.
– Só durante parte do décimo ano. Depois fui transferida – disse Jule. – Mas
lembro-me de ti.
– Desculpa, diz-me outra vez o teu nome?
– Jule West Williams – repetiu Jule. Ao ver Imogen franzir a testa,
acrescentou: – Andava um ano atrás de ti.
Immie sorriu. – Bem, é bom voltar a encontrar-te, Jule. Este é o meu
namorado, o Forrest.
Jule ficou ali de pé, pouco à vontade. Forrest estava a prender de novo o seu
cabelo escorrido num puxo. Tinha um exemplar da revista New Yorker ao seu
lado. – Queres uma bebida? – perguntou, surpreendentemente simpático.
– Obrigada. – Jule ajoelhou-se na beira da manta e aceitou uma lata de Coca-
Cola de dieta.
– Dá a ideia de que vais a algum lado – disse Imogen. – Com o saco, e os
sapatos na mão.
– Oh, eu...
– Não tens coisas de praia?
Jule pensou na coisa mais apelativa que poderia dizer, que acabou por ser a
verdade. – Vim por impulso – disse. – Faço isso às vezes. Não tinha planeado
vir à praia hoje.
– Tenho um fato de banho extra no saco – disse Imogen, subitamente
calorosa. – Queres ir nadar connosco? Estou com tanto calor que tenho de ir já
para a água ou ainda fico arrasada e o Forrest vai ter de me levar ao colo por
aquele caminho comprido como tudo. – Passou os olhos pelo corpo estreito de
Forrest. – Não sei se ele ia conseguir. Então, queres vir nadar?
Jule ergueu as sobrancelhas. – Era capaz de aceitar o teu desafio.
Imogen tirou um biquini do seu saco e passou-o a Jule. Era branco e muito
reduzido. – Veste-o por baixo da saia e encontramo-nos na água.
Ela e Forrest correram a rir para dentro do mar.
Jule vestiu a roupa de Imogen pela primeira vez.
Com o biquini de Immie, mergulhou debaixo das ondas e veio à tona a sentir-
se milagrosamente feliz. O dia estava cintilante e parecia impossível sentir
outra coisa que não gratidão pela oportunidade de estar no oceano, a olhar para
o horizonte enquanto a água salgada à sua volta os fustigava. Forrest e Immie
não falavam muito, mas galgavam as ondas, a gritar e a rir. Quando se
cansaram, deixaram-se ficar nas pontas dos pés para além do ponto onde as
ondas rebentavam, saltando delicadamente e deixando a água erguê-los e
baixá-los. «Aqui vem uma das grandes.» «Não, a que vem a seguir é ainda
maior. Ali, estás a ver? «Oh, com um raio, quase morri, mas foi excelente.»
Quando os três já tinham os dedos roxos e tremiam de frio, voltaram para a
manta de Imogen, e Jule viu-se no seu centro. Forrest deitou-se num dos lados,
envolto numa toalha com um tema náutico, e Imogen no outro, de rosto virado
para o sol e ainda coberta de gotas de água.
– Onde andaste depois do Greenbriar? – perguntou Imogen.
– Depois de me expulsarem – disse Jule. – A minha tia e eu saímos de Nova
Iorque.
– Não te expulsaram – disse Imogen toda divertida. Forrest pousou a revista.
– Oh sim, expulsaram. – Ambos estavam agora interessados. – Por
prostituição – disse Jule.
O rosto de Imogen ficou sombrio.
– Estou a brincar. Era uma piada.
Imogen começou a rir-se baixo e lentamente, tapando a boca com a mão.
– A Tina qualquer coisa costumava puxar-me as cuecas e fazer-me umas
ameaças no balneário – disse Jule. – Por fim, bati-lhe com a cabeça contra uma
parede de tijolo. Acabou por ter de levar pontos.
– Era aquela com o cabelo encaracolado? A alta? – perguntou Imogen.
– Não. A mais baixa que andava sempre a seguir essa.
– Não consigo lembrar-me do aspeto dela.
– É melhor assim.
– E bateste-lhe com a cabeça contra a parede?
Jule acenou com a cabeça. – Sou uma safada. Podias chamar-lhe um talento
meu.
– Uma safada? – perguntou Forrest.
– Uma lutadora – disse Jule. – Não para me divertir, mas... vocês sabem.
Autodefesa. Para combater o mal. Proteger Gotham City.
– Não posso crer que nunca tenha ouvido dizer que mandaste uma rapariga
para o hospital – disse Imogen.
– Abafaram o caso. A Tina não queria falar nisso por causa do que andava a
fazer-me antes de eu a obrigar a parar, sabes? E dava mau aspeto ao
Greenbriar. Raparigas a lutarem. Foi mesmo antes do concerto de inverno –
disse Jule. – Quando vinham os pais todos. Deixaram-me cantar nele antes de
me expulsarem. Não te lembras? Aquela rapariga Caraway fez o solo.
– Oh, sim. A Peyton Caraway.
– Cantámos uma canção de Gershwin.
– E o «Rudolph» – disse Imogen. – Éramos muito crescidas para cantarmos o
«Rudolph». Foi ridículo.
– Estavas com um vestido de veludo azul com pregas na frente.
Imogen tapou os olhos com as mãos. – Não posso acreditar que te lembres
desse vestido! A minha mãe obrigava-me sempre a usar coisas como essas nas
festas, e nós nem sequer comemoramos o Natal. Como se estivesse a vestir
uma boneca tradicional americana.
Forrest espetou um dedo no ombro de Jule. – Deves ir começar a faculdade
no outono.
– Por acaso, acabei o secundário mais cedo. Portanto já ando há um ano na
faculdade.
– Onde?
– Em Stanford.
– Conheces a Ellie Thornberry? – perguntou Imogen. – Ela anda lá.
– Acho que não.
– E o Walker D’ Angelo? – disse Forrest. – Está no mestrado de História de
Arte.
– O Forrest já acabou a faculdade – disse Imogen. – Mas para mim era como
os quintos da porra do Inferno, portanto não vou mais.
– Não tentaste realmente – disse Forrest.
– Estás a falar como o meu pai.
– Oh, faz beicinho, faz.
Immie pôs os óculos de sol. – O Forrest está a escrever um romance.
– Que tipo de romance? – perguntou Jule.
– É um bocado Samuel Beckett combinado com Hunter S. Thompson – disse
Forrest. – E sou um grande fã do Pynchon, portanto ele é uma influência
minha.
– Boa sorte com isso – disse Jule.
– Ooh, és mesmo uma safada – disse Forrest. – Até gosto dela, sabes,
Imogen?
– Ele gosta de mulheres com mau feitio – disse Imogen. – É uma das poucas
qualidades cativantes que tem.
– E nós, gostamos dele? – perguntou Jule a Imogen.
– Toleramo-lo por ser giro – disse Immie.
Disseram que tinham fome e foram a pé até às lojas de Aquinah. Nessa zona
havia um aglomerado de barracas de petiscos. Forrest pediu três embalagens de
papel com batatas fritas para partilharem.
Immie fez um grande sorriso ao tipo por trás do balcão e disse: – Vai rir-se de
mim, mas preciso, tipo, de quatro rodelas de limão para o ice tea. Sou louca por
limão. Pode fazer isso por mim?
Ele disse: – Limão?
– Quatro rodelas – disse Immie. Pousou os braços e os cotovelos no balcão
da barraca e inclinou-se para a frente, erguendo o rosto para ele.
– Com certeza – disse ele.
– Está a rir-se do meu limão – disse ela.
– Não me estou a rir.
– Está a rir-se interiormente.
– Não. – Ele já tinha cortado o limão e empurrou-o por cima do balcão na
direção dela num copo de papel vermelho e branco.
– Obrigada, então, por levar o meu limão tão a sério – disse Imogen. Pegou
numa das rodelas e enfiou-a na boca, trincando-a para espremer algum sumo.
Através da casca de limão na boca, disse: – É muito importante que os limões
obtenham respeito. Fá-los sentirem-se valorizados.
Sentaram-se a uma mesa de piquenique com vista para o parque de
estacionamento de um dos lados e para o mar do outro. No outro lado do
parque de estacionamento, havia pessoas a lançarem papagaios de papel. Fazia
muito vento. A mesa de piqueniques estava cinzenta e amolgada dos anos ao ar
livre. Imogen comeu uma ou duas batatas fritas e depois tirou uma banana do
saco e comeu-a com uma colher.
– Estás aqui sozinha? – perguntou Immie. – Em Vineyard?
Forrest abrira o seu exemplar da revista New Yorker. O seu corpo estava
ligeiramente desviado delas.
Jule assentiu com a cabeça. – Estou. Deixei Stanford. – Contou a história do
treinador pervertido e da perda da bolsa de estudos. – Não quero ir para casa.
Não me dou bem com a minha tia.
Immie inclinou-se para a frente. – É com ela que vives?
– Não, não estou disposta a lidar mais com a família.
Forrest soltou uma risadinha. – A Imogen também não.
– Estou, sim – disse Imogen.
– Não, não está – disse ele.
Jule olhou Imogen nos olhos. – Temos isso em comum, então.
– Sim, suponho que temos. – Immie atirou a casca da banana para o caixote
do lixo. – Ouve, vem connosco até lá a casa. Podemos nadar na piscina e podes
ficar para jantar. Vão aparecer umas pessoas de passagem, amigos novos que
só estão na ilha por um par de semanas. Vamos grelhar bifes. É mesmo em
Menemsha. Nem vais acreditar na casa. É gigantesca.
Imogen sentou-se perto de Jule e alinhou os pés das duas.
– Anda lá. Vai ser divertido – disse, persuasiva. – Já não tenho uma conversa
de raparigas há séculos.
A casa de Menemsha tinha tetos tão altos e janelas tão rasgadas que as
atividades do dia a dia pareciam ter espaço e luz extra. As bebidas pareciam ter
mais gás e serem mais frias do que quaisquer bebidas alguma vez tinham sido.
Jule, Forrest e Immie nadaram na piscina e depois usaram o chuveiro no
exterior. As pessoas temporárias vieram jantar, mas Jule via já que não era uma
delas, pela maneira como Imogen a chamou ao grelhador para olhar para os
bifes e pela maneira como se sentou no deque, enroscada aos pés de Jule.
Imogen disse-lhe que devia passar ali a noite num dos quartos de hóspedes,
quando os outros amigos estavam a meter-se no carro. Tinham-se oferecido
para dar boleia a Jule para o seu hotel, pelas estradas agora escuras da ilha.
Ela recusou.
Immie levou Jule a um quarto no segundo andar. Havia uma enorme cama e
cortinas brancas esvoaçantes – e estranhamente, um pequeno cavalo de baloiço
antigo e uma coleção de cata-ventos antigos expostos numa secretária grande
de madeira. Jule dormiu o sono profundo que se segue a longos dias ao sol.
*

Na manhã seguinte, Forrest levou-a contrafeito de carro ao hotel para ela ir


buscar as suas coisas. Quando Jule voltou a entrar na casa com a sua mala,
Immie tinha posto quatro jarras com flores no quarto. Quatro. Também tinha
deixado livros na mesa de cabeceira: A Feira das Vaidades, de Thackeray e
Grandes Esperanças, de Dickens, além de um guia turístico, The Insider’s
Guide to Martha’s Vineyard.
Assim começou uma série de dias que se sucediam indistintos uns aos outros.
A gente de Immie, amigos temporários e literários da semana, adquiridos na
praia ou na feira da ladra, atravessavam a casa. Nadavam na piscina e
ajudavam a cozinhar ao ar livre e riam-se histericamente, agarrados ao peito.
Eram todos jovens; rapazes bem parecidos e efeminados e raparigas igualmente
bem parecidas e exuberantes. Na sua maioria eram divertidos e nada atléticos,
tagarelas e bastante alcoólicos, estudantes universitários ou de Belas-Artes.
Para além disso, eram de vários meios e orientações sexuais. Imogen era a
típica nova-iorquina: de mente aberta, de uma maneira que Jule só vira na
televisão, ao que parecia totalmente confiante nos seus atrativos como amiga e
anfitriã.
Jule demorou um ou dois dias a adaptar-se, mas não tardou a sentir-se à
vontade. Encantou os temporários com histórias de Greenbriar, de Stanford e,
em menor grau, de Chicago. Debatia com eles, bem disposta, quando queriam
debates. Namoriscava com eles e esquecia os seus nomes e deixava-os saber
que esquecera os seus nomes, porque o facto de os esquecer fazia com que eles
quisessem que ela os lembrasse. Ao princípio, enviava fotografias a Patti
Sokoloff e escrevia e-mails cheios de conversa e de esperança, mas pouco
tardou até Jule ignorar Patti tal como Imogen a ignorava.
Immie fazia-a sentir-se desejada. O júbilo dessa sensação nova enchia os dias
de Jule.
Um dia, quando Jule já estava a viver ali há duas semanas, viu-se só pela
primeira vez. Forrest e Immie tinham ido almoçar fora juntos. Havia um novo
restaurante que Immie queria experimentar.
Jule comeu restos em frente à televisão e depois foi para o andar de cima.
Ficou à porta do quarto de Immie por um momento, a olhar lá para dentro.
A cama estava feita. Na mesa havia livros, um boião de creme para as mãos,
o estojo dos óculos de Forrest e um carregador vazio. Jule entrou e abriu um
frasco de perfume, perfumou-se e esfregou os pulsos um contra o outro.
No armário estava pendurado um vestido que Imogen usava com frequência.
Era um vestido maxi verde-escuro, de algodão fino, com um grande decote em
vê na frente que tornava impossível usar soutien. Immie tinha pouco peito,
portanto isso não importava.
Sem pensar, Jule despiu os calções de correr e depois a T-shirt desbotada e
esfiapada de Stanford. E depois o soutien.
Enfiou o vestido de Immie pela cabeça. Encontrou um par de sandálias. A
coleção de Immie de anéis, oito, com formas de animais, estava em cima da
cómoda.
Havia um espelho de corpo inteiro com uma moldura larga prateada
encostado a uma parede. Jule virou-se e mirou-se de olhos semicerrados. Tinha
o cabelo preso num rabo de cavalo, mas, para além disso, à pouca luz do
quarto, parecia Imogen. Quase.
Então, esta era a sensação que dava. Sentar-se na cama de Imogen. Usar o
perfume de Imogen e os anéis de Imogen.
Immie deitava-se nesta cama à noite, ao lado de Forrest, mas ele era
substituível. Immie aplicava este creme nas mãos, assinalava a página no livro
com aquele marcador. De manhã, abria os olhos e via estes lençóis azuis-
esverdeados e aquela pintura do mar. Era esta a sensação que dava saber que
esta enorme casa era dela, nunca se preocupar com dinheiro ou a
sobrevivência, sentir-se amada por Gil e Patti.
Andar tão maravilhosamente vestida, sem esforço.
*

– Desculpa?
Immie estava à porta do quarto. Trazia calções de ganga e uma camisola com
capuz que pertencia a Forrest. Os seus lábios brilhavam com um batom
vermelho que não costumava usar. Não se parecia muito com a Imogen na
mente de Jule.
A vergonha inundou o corpo de Jule, mas ela sorriu.
– Achei que não te importavas – disse. – Precisava de um vestido. Telefonou-
me um tipo, coisa de última hora.
– Que tipo?
– O tipo de Oak Bluffs, aquele com quem falei quando andei no carrossel.
– Quando foi isso?
– Mandou-me mensagem agora mesmo e perguntou-me se queria encontrar-
me com ele no jardim das esculturas daqui a meia hora.
– Seja como for – disse Immie. – Fazes-me o favor de despir a minha roupa?
Jule sentia o rosto quente. – Não julguei que te importasses.
– Vais mudar de roupa ou quê?
Jule puxou para baixo a parte de cima do vestido verde de Immie e pegou no
seu soutien do chão.
– Esses são os meus anéis, também? – perguntou Immie.
– São. – Não havia como fingir outra coisa.
– Porque é que haverias de usar as minhas roupas?
Jule tirou o vestido e voltou a pendurá-lo no cabide. Vestiu o resto das suas
roupas e pousou os anéis em cima da cómoda.
– Não acredito que tenhas um tipo à espera do jardim das esculturas – disse
Immie.
– Acredita no que quiseres.
– O que se está a passar?
– Peço desculpa por ter usado as tuas roupas e não volto a fazê-lo. OK?
– OK. – Imogen ficou a ver Jule arrumar as sandálias no armário e apertar os
atacadores dos seus ténis. – Tenho uma pergunta – disse, quando Jule se
preparava para passar por ela para o corredor.
O rosto de Jule ainda estava a arder. Não queria conversar.
– Não te vás embora – disse Immie. – Responde-me uma coisa, pode ser?
– O que é?
– Estás sem dinheiro? – perguntou Imogen.
Sim. Não. Sim. Jule detestava o quão vulnerável a fazia sentir aquela
pergunta.
– Falida – disse finalmente.– É, estou completamente falida.
Immie tapou a boca com a mão. – Não sabia.
E assim, sem mais, Jule ficou em vantagem. – Não tem problema – disse. –
Posso arranjar um emprego. Quer dizer, não tenho andado a encarar a situação
como tenho de a encarar.
– Devia ter-me apercebido. – Immie sentou-se na cama. – Sabia que não ias
voltar para Stanford, e disseste que te tinhas zangado com a tua tia, mas não
deduzi que a situação era assim tão má. Ver-te a usar as mesmas coisas dia após
dia. Nunca comprares nada no supermercado cá para casa. Deixares-me pagar
tudo.
Oh. Então, ela devia comprar coisas no supermercado. Era um código de
conduta que Jule não compreendera até àquele momento. Mas limitou-se a
dizer a Imogen: – Tudo bem.
– Não, tudo mal, Jule. Lamento imenso. – Immie ficou em silêncio por um
momento. A seguir, disse: – Penso que tenho andado a presumir coisas sobre a
tua vida que não devia presumir. E não te pedi para me contares. Não tenho
uma experiência muito alargada, acho eu.
Jule encolheu os ombros. – Tens sorte.
– O Isaac andava sempre a dizer-me que eu tinha uma perspetiva acanhada.
Mas adiante. Pede emprestado tudo o que quiseres.
– Ia sentir-me esquisita, agora.
– Não te sintas esquisita. – Immie abriu o armário. Estava atafulhado com
roupas. – Tenho mais do que preciso.
Voltou para junto de Jule. – Deixa-me arranjar-te o cabelo. Tens uns ganchos
soltos.
O cabelo de Jule era comprido. Na maior parte do tempo, usava-o apanhado
para trás, bem repuxado. Agora, inclinou a cabeça para a frente e Immie
prendeu umas madeixas no pescoço que se tinham soltado.
– Devias cortá-lo curto – disse Immie. – Ia ficar-te bem. Não bem como o
meu. Um pouco mais comprido na franja, penso, e mais suave à volta das
orelhas.
– Não.
– Levo-te ao meu cabeleireiro amanhã, se quiseres – insistiu Immie. –
Ofereço eu.
Jule abanou a cabeça.
– Deixa-me fazer alguma coisa por ti – disse Immie. – Tu mereces.
*

Em Oak Bluffs no dia seguinte, Jule sentiu-se leve, sem o peso do cabelo.
Era agradável ter Imogen a cuidar dela. A emprestar-lhe um brilho dos lábios
depois do corte de cabelo. A levá-la a almoçar num restaurante com vista para
o porto. Depois da refeição, entraram numa joalharia de peças vintage.
– Quero ver o anel mais fora do comum que tem à venda – disse Immie.
O empregado afadigou-se a alinhar seis anéis num tabuleiro forrado a veludo.
Imogen tocou-lhes com reverência. Selecionou um de jade com a forma de uma
víbora, pagou-o e passou a caixa de veludo azul para as mãos de Jule.
– Este é para ti.
Jule abriu a caixa imediatamente e enfiou a víbora no anelar da mão direita. –
Sou demasiado nova para me casar – disse. – Não fiques com ideias.
Immie riu-se. – Amo-te – disse casualmente.
Era a primeira vez que Immie usava a palavra amar.
No dia seguinte, Jule levou o carro para ir buscar gás para o grelhador aos
armazéns de ferragens do outro lado da ilha. Também fez algumas compras no
supermercado. Quando voltou, Imogen e Forrest estavam nus, os seus corpos
entrelaçados na piscina.
Jule ficou parada do lado de dentro da porta de vidro, a observá-los.
Os dois pareciam tão desajeitados, a bambolearem-se abraçados. O cabelo
comprido de Forrest estava molhado e caía-lhe à volta dos ombros. Tinha os
óculos na beira da piscina e o seu rosto parecia apagado e vazio sem eles.
Parecia impossível. Jule tinha a certeza de que Imogen não podia realmente
amar ou desejar Forrest. Ele era só uma ideia de um namorado: um marcador
de lugar. Embora não o soubesse, era uma pessoa temporária, como os
universitários e os estudantes de Belas-Artes que vinham jantar e nunca mais se
voltavam a ver. Forrest não ouvia os segredos de Immie. Não era um ser
amado. Jule nunca acreditara que Imogen pudesse agarrar-lhe o rosto e beijá-lo
e parecer esfomeada e louca por ele, como estava a fazer naquele momento.
Não acreditara realmente que Imogen ficasse sequer nua em frente a ele, tão
vulnerável.
Forrest viu-a.
Jule recuou, a contar que Forrest berrasse ou ficasse embaraçado, mas ele
limitou-se a dizer a Immie: – A tua amiguinha está aqui – como se estivesse a
falar sobre uma criança.
Imogen virou a cabeça e disse: – Adeusinho, Jule. Vemos-te mais tarde.
Jule deu meia volta e correu para o andar de cima.
*

Horas depois, desceu. Ouviu o som de um podcast na cozinha, que Imogen


tinha o hábito de ouvir quando cozinhava, e foi dar com ela a cortar curgetes
para o grelhador.
– Precisas de ajuda? – perguntou Jule. Sentia-se extremamente embaraçada.
O facto de ter presenciado aquela cena era excruciante. Poderia dar cabo de
tudo.
– Desculpa lá o espetáculo pornográfico – disse Imogen num tom ligeiro. –
Não te importas de cortar uma cebola roxa?
Jule tirou uma cebola da taça.
– Quando arranjei o apartamento em Londres – continuou Imogen –, havia
duas raparigas do meu programa de estudos que namoravam. Tinham acabado
de se assumir, sabes, longe da família, e iam ficar lá em casa durante o mês de
agosto. Um dia, apanhei-as no chão da cozinha em flagrante, tipo,
completamente nuas e a gritarem. Devo ter chegado num momento de auge
como o caraças, se me faço entender. Pensei, meu Deus, alguma vez vamos
voltar a conseguir encarar-nos? Tipo, como é que podíamos ir todas ao pub
mais tarde, depois daquilo, e comer peixe com batatas fritas? Simplesmente
não parecia possível, e tive a sensação de que talvez tivesse perdido duas
amigas incríveis só por ter voltado para casa no momento errado. Mas uma
delas disse, tipo, «Oh, desculpa lá o espetáculo pornográfico», e desatámos
todas a rir e ficou tudo bem. Portanto, pensei que também ia dizer isso se
alguma vez me visse no mesmo tipo de situação.
– Tens um apartamento em Londres? – Jule olhava para a cebola enquanto a
descascava.
– Foi um investimento – disse Immie. – E, tipo, um capricho. Estava em
Inglaterra num programa de verão. A pessoa que me trata do dinheiro tinha-me
aconselhado a investir algum em imobiliário, e eu adorava a cidade. Aquele
apartamento foi o primeiro que visitei, uma compra impulsiva no país
totalmente errado, mas não me arrependo. Fica numa zona muito gira: St.
John’s Wood. – Immie pronunciou o nome como Sin Jahn’s Wood. – Diverti-
me imenso a decorá-lo com as minhas amigas. E andámos pela cidade a fazer
coisas de turista. A Torre de Londres, a mudança da guarda, o museu de cera.
Vivíamos de bolachas digestivas. Foi antes de eu aprender a cozinhar. Posso
emprestar-te o apartamento quando quiseres. Nunca o uso agora.
– Devíamos ir juntas – disse Jule.
– Oh, ias adorar. Tenho as chaves aqui mesmo. Podíamos ir amanhã – disse
Immie, batendo com a mão na carteira que estava em cima da bancada da
cozinha. – E talvez devêssemos. Consegues imaginar? Só tu e eu em Londres?
Immie adorava pessoas que fossem entusiásticas. Queria que adorassem a
música que ela adorava, as flores que lhes oferecia, os livros que ela admirava.
Queria que apreciassem o aroma de uma especiaria ou o sabor de um novo tipo
de sal. Não se importava que discordassem, mas detestava pessoas que fossem
apáticas ou indecisas.
Jule leu os dois livros com personagens órfãs que Immie deixara na sua mesa
de cabeceira e tudo o mais que Immie trazia para casa para ela. Memorizava os
rótulos das garrafas de vinho, as etiquetas dos queijos, excertos de romances,
receitas. Era uma doçura com Forrest. Era safada, mas disposta a agradar,
feminista mas feminina, cheia de raiva mas amistosa, eloquente mas não
dogmática.
Compreendia que a manufatura de si mesma para agradar a Imogen – era
como correr, na realidade. Simplesmente persistias, quilómetro após
quilómetro. Acabavas por desenvolver resistência. Um dia, apercebias-te de
que adoravas aquilo.
Quando Jule já estava na casa de Vineyard há cinco semanas, Brooke Lannon
apareceu um dia no alpendre de Immie. Jule foi abrir a porta.
Brooke entrou e atirou com os seus sacos de viagem para cima do sofá. A sua
camisa de flanela azul estava no fio e velha e trazia o cabelo louro e sedoso
preso num puxo no cocuruto da cabeça. – Immie, ainda existes, sua bruxa –
disse quando Immie entrou na sala de estar. – Toda Vassar acha que estás
morta. – Virou-se para olhar para Forrest. – Este é que é o tipo? Quem...? –
Deixou um ponto de interrogação no ar.
– Este é o Forrest – disse Immie.
– Forrest! – disse Brooke, dando-lhe um aperto de mão. – OK, venha de lá
um abraço.
Forrest abraçou-a embaraçado. – Prazer em conhecer-te.
– É sempre um prazer conhecer-me – disse Brooke. A seguir, apontou para
Jule. – Quem é esta?
– Não sejas mazinha – disse Immie.
– Estou a ser encantadora – disse Brooke. – Quem és tu? – Aquilo, a Jule.
Jule forçou um sorriso e apresentou-se. Não sabia que Brooke viria. E,
claramente, Brooke também não fora informada de que Jule se encontrava ali.
– A Imogen diz que és a pessoa favorita dela de Vassar.
– Sou a pessoa favorita de Vassar de toda a gente – disse Brooke. – Por isso é
que tive de desistir. Eram só duas mil pessoas. Preciso de um público maior.
Arrastou os seus sacos para o andar de cima e instalou-se como em casa no
segundo melhor quarto de hóspedes.
5

FINAIS DE JUNHO, 2016


MARTHA’S VINEYARD, MASSACHUSETTS

C inco semanas antes da chegada de Brooke, no seu sétimo dia em Martha’s


Vineyard, Jule abriu os cordões à bolsa e fez um circuito turístico de
autocarro pela ilha. A maior parte das pessoas no autocarro era do tipo que quer
pôr um visto numa lista dos atrativos locais tirada de um site de viagens. Eram
grupos de família e casais, a falarem alto.
À tarde, a excursão chegou ao farol de Aquinnah, numa zona que o guia
explicou que tinha sido habitada originalmente pela Tribo Wampanoag de Gay
Head e mais tarde, no século XVII, por colonos ingleses também. O guia
começou a falar sobre a pesca da baleia enquanto os passageiros saíam todos
do autocarro para admirar o farol. Do miradouro, viam os rochedos de calcário
colorido de Moshup Beach, mas não se podia descer até à água sem fazer uma
caminhada de cerca de oitocentos metros à torreira do sol.
Jule afastou-se do miradouro na direção das lojas de Aquinnah, um
aglomerado de pequenos estabelecimentos que vendiam recordações para
turistas, produtos artesanais ao estilo da tribo Wampanoag e comida. Entrava e
saía dos edifícios baixos, a passar a mão casualmente por colares e postais.
Talvez devesse ficar para sempre em Martha’s Vineyard. Poderia arranjar um
emprego numa loja ou num ginásio, passar os dias à beira-mar, arranjar um
sítio para viver. Podia desistir de tentar fazer alguma coisa pela vida, parar de
ser ambiciosa. Podia simplesmente aceitar a vida que se lhe apresentava
naquele preciso momento e sentir-se grata por ela. Ninguém se meteria com
ela. Não tinha de procurar Imogen Sokoloff se não quisesse.
Ao mesmo tempo que Jule saiu de uma loja, um homem novo ia a sair da loja
em frente. Levava um saco grande de lona. Era mais ou menos da idade de
Jule. Não, um pouco mais velho. Era magro e tinha a cintura estreita, um nariz
ligeiramente adunco e uma boa estrutura óssea. O seu cabelo castanho estava
preso num puxo. Usava calças de algodão pretas tão compridas que estavam
todas desfeitas na bainha, chinelos e uma T-shirt com LARSEN’S FISH MARKET
estampado.
– Não sei porque é que queres entrar aí – disse ele à pessoa que o
acompanhava, que, presumivelmente, ainda estava dentro da loja. – Não faz
sentido comprar coisas que não têm utilidade.
Não houve resposta.
– Immie! Anda lá. Vamos para a praia – disse o rapaz.
E ali estava ela.
Imogen Sokoloff. O seu cabelo estava agora cortado curto, um bocado à
rapazinho, mais louro do que nas fotografias, mas não havia dúvida quanto à
sua identidade. Parecia exatamente quem era.
Saiu da loja como se nada fosse, como se Jule não estivesse à sua espera e à
sua procura há dias e dias. Era encantadora, mas, mais do que isso, estava à
vontade. Como se o encanto não requeresse nenhum esforço.
Jule quase esperava que Imogen a reconhecesse, mas isso não aconteceu.
– Estás tão implicativo hoje – disse Immie ao tipo. – É uma seca quando
estás implicativo.
– Nem sequer compraste nada – disse ele. – Quero ir para a praia.
– A praia não vai a lado nenhum – disse Imogen, remexendo no seu saco. – E
comprei uma coisa.
O tipo suspirou. – O quê?
– É para ti – disse ela. Tirou do saco um pequeno embrulho e deu-lho. Ele
descolou a fita-cola e tirou uma pulseira entrançada.
Jule estava a contar que o namorado ficasse irritado, mas em vez disso ele
sorriu. Pôs a pulseira e enterrou o rosto no pescoço de Imogen. – Adoro-a –
disse. – É perfeita.
– É um berloque – disse ela. – Tu detestas berloques.
– Mas gosto de presentes – disse ele.
– Eu sei que gostas.
– Anda daí – disse ele. – A água deve estar morna. – Atravessaram o parque
de estacionamento na direção do caminho para a praia.
Jule olhou para trás. O guia turístico estava a acenar ao grupo, a indicar às
pessoas que deviam voltar para o autocarro. A partida estava marcada para daí
a cinco minutos.
Jule não tinha maneira de regressar ao hotel. O seu telemóvel estava quase
sem bateria e não sabia se poderia chamar um táxi desta parte da ilha.
Não importava. Encontrara Imogen Sokoloff.
Jule deixou o autocarro partir sem ela.
4

TERCEIRA SEMANA DE JUNHO, 2016


MARTHA’S VINEYARD

U ma semana antes, um guarda mandou parar Jule no controlo de segurança


do aeroporto. – Se quer levar este saco, menina, tem de meter os produtos
de higiene num saco plástico transparente – disse-lhe o homem. Tinha o
pescoço flácido e usava um uniforme azul. – Não viu o aviso? Tudo tem de ter
um máximo de cem mililitros.
O guarda estava a revistar a mala de Jule com um par de luvas de látex azul.
Pegou no champô, no creme amaciador, no protetor solar, na loção corporal.
Atirou-os todos para o caixote do lixo.
– Vou passar o saco outra vez – disse, puxando o fecho. – Já deve estar bem.
Aguarde aqui.
Ela aguardou. Tentou dar a impressão de que sabia as regras dos líquidos em
viagens aéreas e simplesmente se esquecera, mas as suas orelhas estavam a
ficar quentes. Sentia-se furiosa com o desperdício. Sentia-se pequena e
inexperiente.
O avião era apertado, com assentos de um material plástico gastos por anos
de uso, mas Jule desfrutou do voo. A vista era empolgante. Estava um dia sem
nuvens. A linha da costa traçava uma curva ao longo do mar, castanha e verde.
O seu hotel ficava em frente ao porto em Oak Bluffs. Era um edifício
vitoriano com faixas brancas. Jule deixou a mala no quarto e percorreu os
poucos quarteirões até Circuit Avenue. A cidade estava cheia de pessoas em
férias. Havia um par de lojas com roupas bonitas. Jule precisava de roupa; tinha
os cartões-presente da Visa e sabia o que lhe ficava bem, mas hesitou.
Pôs-se a observar as mulheres que passavam. Usavam calças de ganga ou
saias curtas de algodão e sandálias. Cores desbotadas e azul-escuro. Os seus
sacos eram de tecido, não de pele. O batom sem cor ou cor-de-rosa, nunca
vermelho. Algumas vestiam calças brancas e alpergatas. Não se viam as marcas
de soutiens. Usavam só brincos muito pequenos.
Jule tirou as argolas e guardou-as na carteira. Regressou às lojas, onde
comprou um par de calças de ganga de estilo boyfriend, três tops de algodão de
alças, um casaco de malha comprido e largo, alpergatas e um vestido branco de
alças. A seguir, um saco de trazer ao ombro de lona estampada com flores
cinzentas. Pagou com o cartão e levantou dinheiro no multibanco.
Parada a uma esquina, Jule transferiu os seus documentos de identificação e
o dinheiro, os produtos de maquilhagem e o telemóvel para o novo saco.
Telefonou para o serviço de faturas do telemóvel e solicitou o pagamento com
o número do cartão Visa. Telefonou à sua colega de casa, Lita, e deixou uma
mensagem de voz a pedir desculpa.
No hotel, Jule fez exercício, tomou um duche e vestiu o vestido branco.
Secou o cabelo e penteou-o em ondas largas. Precisava de encontrar Imogen,
mas isso podia esperar até ao dia seguinte.
Foi a pé até um bar de ostras com vista para o porto e mandou vir uma
sanduíche de lagosta. Quando chegou, não era o que ela esperava. Não passava
de pedaços de lagosta com maionese metidos num pão de cachorro-quente
torrado. Imaginara que seria algo mais elegante.
Pediu um prato de batatas fritas e comeu-as em vez da sanduíche.
Era estranho andar pela cidade sem ter nada para fazer. Jule acabou no
carrossel. Ficava dentro de um edifício escuro e velho que cheirava a pipocas.
Numa tabuleta declarava-se que o Flying Horses era «O Carrossel Mais Antigo
da América».
Comprou um bilhete. Não se encontrava ali muita gente, só algumas crianças
e os seus irmãos mais velhos. Os pais estavam a olhar para o telemóvel na zona
de espera. A música era antiquada. Jule escolheu um cavalo na parte de fora.
Quando a corrida estava a começar, reparou no tipo sentado no pónei ao seu
lado. Era um homem enxuto, com deltoides e dorsais desenvolvidos:
possivelmente alpinista, não do tipo que frequenta a sala de pesos no ginásio.
Alguma ascendência branca e alguma asiática, supôs Jule. Tinha cabelo preto
farto, um pouco comprido de mais. Parecia ter andado ao sol.
– Estou a sentir-me um verdadeiro fracassado neste momento – disse-lhe ele
quando o carrossel começou a andar. – Como se isto fosse uma ideia má como
tudo. – A sua pronúncia era americana genérica.
Jule adotou-a. – Porquê?
– Náuseas. Senti-as mal começámos a andar. Uh. E também sou a única
pessoa nesta coisa que tem mais de dez anos.
– Além de mim.
– Além de ti. Andei neste carrossel uma vez quando era miúdo. A minha
família veio cá passar férias. Hoje, estou à espera do ferry e tinha uma hora
para matar, portanto pensei, porque não? Para recordar os velhos tempos. –
Esfregou a testa com a mão. – Porque estás aqui? Tens um irmãozinho ou uma
irmãzinha algures?
Jule abanou a cabeça. – Gosto de andar em carrosséis.
Ele inclinou-se no espaço entre os dois e estendeu-lhe a mão. – Sou o Paolo
Santos. E tu?
Ela apertou-lhe a mão atabalhoadamente, porque os cavalos dos dois estavam
a mover-se.
Aquele tipo ia partir da ilha. Jule só falaria com ele por um ou dois minutos;
depois disso, nunca mais voltaria a vê-lo. Não fazia muito sentido; foi um
impulso – mas mentiu. – Sou a Imogen Sokoloff.
Dava uma sensação agradável dizer o nome. Seria bom, afinal, ser Imogen.
– Oh, tu é que és a Imogen Sokoloff? – Paolo atirou a cabeça para trás, a rir-
se e a erguer as suas sobrancelhas macias. – Devia ter adivinhado. Tinha
ouvido dizer que eras capaz de estar em Vineyard.
– Sabias que eu estava aqui?
– Devia explicar. Disse-te um nome falso. Peço realmente perdão, isso deve
parecer marado. Só o apelido é que é falso. Chamo-me realmente Paolo. Mas
não realmente Santos.
– Oh.
– Desculpa. – Voltou a esfregar a testa. – Foi uma coisa estranha de se fazer,
mas calculei que só íamos conversar um com o outro durante o próximo par de
minutos. Por vezes, quando ando em viagem, gosto de ser outra pessoa.
– Tudo bem.
– Sou o Paolo Vallarta-Bellstone. O meu pai, o Stuart, estudou com o teu.
Tenho a certeza de que já o conheceste.
Jule ergueu as sobrancelhas. Ouvira falar de Stuart Bellstone. Era um tipo
importante do mundo financeiro que recentemente fora para a prisão por aquilo
a que os sites de notícias chamavam «o escândalo de transação D and G». A
sua fotografia andara pelas notícias dois meses antes, quando o julgamento
terminara.
– Joguei golfe com o teu pai e o meu uma série de vezes – prosseguiu Paolo.
– Antes de o Gil ficar doente. Ele falava sempre sobre ti. Andaste no
Greenbriar e depois começaste em... Vassar, foi isso?
– Foi, mas desisti a seguir ao primeiro semestre – disse Jule.
– Porquê?
– É uma história longa e desinteressante.
– Vá lá. Distrais-me das náuseas e assim não vomito para cima de ti. Saímos
todos a ganhar.
– O meu pai diria que me envolvi com gente que só pensava em festas e não
usei o meu potencial todo no primeiro semestre.
Paolo riu-se. – Soa típico dele. O que dirias tu?
– Diria... que queria uma vida diferente da que supostamente me estava
destinada – disse Jule lentamente. – Vir para cá foi uma maneira de a ter.
O carrossel abrandou a marcha até parar. Desceram dos cavalos e saíram.
Paolo pegou numa mochila grande de um canto onde a deixara pousada. –
Queres ir comer um gelado? – perguntou. – Conheço a melhor gelataria da ilha.
Foram até uma pequena loja. Debateram os méritos respetivos de molho
quente de caramelo e doce de leite e a seguir concordaram que os dois ao
mesmo tempo resolveria tudo. Paolo disse: – É tão engraçado, tu estares aqui
neste preciso momento. Sinto que, até agora, quase nos conhecemos um milhão
de vezes.
– Como é que soubeste que estava em Martha’s Vineyard?
Paolo comeu uma colher de gelado. – És um bocadinho famosa, Imogen,
deixares os estudos e desapareceres... e depois apareceres aqui. O teu pai
pediu-me que te telefonasse quando estivesse na ilha, para dizer a verdade.
– Não!
– É verdade. Enviou-me um e-mail. Estás a ver? Telefonei para o teu número
há seis dias. – Tirou do bolso um iPhone e mostrou-lhe o registo das chamadas
recentes.
– Isso é um bocado sinistro.
– Não, não é – disse Paolo. – O Gil quer saber como estás, é tudo. Disse que
não tens atendido o telefone, que deixaste de estudar e estavas em Vineyard. Se
te visse, queria que o informasse de que estás bem. Queria que te dissesse que
vai fazer uma operação.
– Sei que vai fazer uma operação. Estive há pouco na cidade com ele.
– Então os meus esforços foram um desperdício – disse Paolo, encolhendo os
ombros. – Não será a primeira vez.
Voltaram para o porto e puseram-se a ver os barcos. Paolo falou sobre viajar
para escapar à reputação destroçada do seu pai e à queda da família. Acabara o
curso em maio e estava a pensar em estudar Medicina, mas queria ver o mundo
antes de assumir esse compromisso. Ia agora passar uma noite em Boston antes
de se meter num avião para Madrid. Ele e um amigo tencionavam andar de
mochila às costas durante um ano ou mais – primeiro na Europa, depois na
Ásia, acabando nas Filipinas.
O embarque no ferry estava a começar. Paolo beijou Jule rapidamente nos
lábios antes de partir. Foi delicado e confiante, não atrevido. Os seus lábios
estavam um pouco pegajosos, do molho de doce de leite.
Jule ficou surpreendida com o beijo. Não queria que ele tocasse nela. Não
queria que ninguém tocasse nela, nunca. Mas quando os lábios cheios e macios
de Paolo roçaram nos seus, a sensação agradou-lhe.
Estendeu a mão para o seu pescoço, puxou-o a si e beijou-o outra vez. Era
um tipo lindo, pensou. Não todo dominador e transpirado. Não todo de agarrar
com força e violento. Não condescendente. Não todo lisonjas e correntes de
ouro ao pescoço, tão pouco. O seu beijo foi tão delicado que ela teve de se
inclinar mais para o sentir completamente.
Gostava de lhe ter dito o seu verdadeiro nome.
– Posso telefonar-te? – perguntou ele. – Outra vez, quero dizer? Não em
nome do teu pai.
Não, não.
Paolo não podia voltar a telefonar para o número de Imogen. Se o fizesse,
ficaria a saber que não fora Imogen que conhecera. – É melhor não – disse Jule.
– Porque não? Vou estar em Madrid, e depois noutro sítio qualquer, mas
podíamos... podíamos só conversar, de vez em quando. Sobre caramelo quente
e doce de leite, talvez. Ou a tua nova vida.
– Estou numa relação – disse Jule, para o calar.
Paolo ficou com um ar desolado.– Oh, estás. É claro que estás. Bem, tens o
meu número, de qualquer maneira – disse. – Deixei-te uma mensagem há uns
tempos. É um número que começa por 646. Portanto, podes dar-me um toque
se acabares... romperes, ou lá como se diz. OK?
– Não te vou telefonar – disse Jule. – Mas obrigada pelo gelado.
Pareceu magoado, por breves instantes. Mas a seguir sorriu. – Quando
quiseres, Imogen.
Pôs a mochila aos ombros e foi-se embora.
Jule ficou a ver o ferry afastar-se da doca. A seguir, descalçou as alpergatas e
desceu ao areal. Deixou-se ficar com os pés na água. Sentia que Imogen
Sokoloff teria feito aquilo, teria saboreado a ligeira sensação de tristeza e a
beleza da vista do porto, a segurar acima dos joelhos a saia do seu bonito
vestido branco.
3

SEGUNDA SEMANA DE JUNHO, 2016


CIDADE DE NOVA IORQUE

U ma semana antes de ir para Martha’s Vineyard, Jule estava de pé com


Patti Sokoloff num deque com vista para o Central Park. O sol já se tinha
posto. O parque estendia-se à sua frente, um retângulo escuro delimitado pelas
luzes da cidade.
– Sinto-me como o Homem-Aranha – disse Jule sem pensar. – Ele olha para
a cidade à noite.
Patti acenou com a cabeça. O cabelo tombava-lhe nos ombros em grandes
caracóis profissionais, e trazia um casaco de malha comprido por cima de um
vestido branco e umas bonitas sandálias rasas. Os seus pés pareciam velhos, e
tinha pensos rápidos nos calcanhares e nos dedos. – A Immie teve um
namorado que veio uma vez cá a uma festa – disse a Jule. – Disse a mesma
coisa sobre a vista. Bem, o Batman, disse ele. Mas a ideia é a mesma.
– Não são o mesmo.
– OK, mas são os dois órfãos – disse Patti. – O Batman perdeu os pais muito
cedo. E o Homem-Aranha também. Vive com a tia.
– Lê banda desenhada?
– Nunca. Mas fiz a revisão do ensaio que a Immie escreveu para a faculdade
para aí umas seis vezes. Ela dizia que o Homem-Aranha e o Batman são
descendentes de todos os órfãos daqueles romances vitorianos de que gosta. A
Immie tem mesmo uma grande predileção por romances vitorianos, sabias
isso? É uma coisa que usa para definir a sua identidade. Sabes, algumas
pessoas definem-se como atletas, defensores da justiça social, fãs do teatro. A
Immie define-se como uma leitora de romances vitorianos.
«Não é uma estudante excelente – prosseguiu Patti – mas adora literatura. No
ensaio para a faculdade, escreveu que nessas histórias ser órfão é uma pré-
condição para se tornar herói. Também disse que aqueles heróis de banda
desenhada não são simples heróis, mas “heróis complicados que fazem
cedências morais, na mesma tradição dos órfãos de narrativas vitorianas”.
Penso que essas são capazes de ser as palavras exatas do ensaio dela.»
– Eu costumava ler banda desenhada no secundário – disse Jule. – Mas não
tinha tempo para isso em Stanford.
– O Gil cresceu a ler banda desenhada, mas eu não, nem a Immie, na
realidade. Os super-heróis foram só a introdução do ensaio dela, para indicar
por que razão os livros mais antigos são importantes para os leitores atuais.
Obteve a maior parte das informações sobre o Batman daquele namorado que
mencionei.
Viraram-se para entrar em casa. O apartamento dos Sokoloff no último andar
do prédio era dramático e moderno, mas estava atulhado com pilhas de livros,
revistas e objetos com valor afetivo. O chão era de madeira branca, em toda a
casa. Estava uma cozinheira a trabalhar na cozinha, onde havia um amontoado
de correio não-solicitado, frascos de comprimidos e pacotes de lenços de papel
em cima da mesa dos pequenos-almoços. A sala de estar centrava-se em dois
enormes sofás de pele. Ao lado de um deles estava uma botija de oxigénio.
Gil Sokoloff não se levantou quando Patti conduziu Jule para dentro da sala.
Andava pelos cinquenta anos, mas umas rugas de dor vincavam-lhe os lados da
boca e a pele do seu pescoço pendia flácida. A forma do seu rosto era da
Europa de Leste e tinha uma espessa cabeleira de cabelo grisalho encaracolado.
Vestia umas calças de fato de treino e uma T-shirt cinzenta. As suas faces e o
seu nariz estavam salpicados com pequenos derrames. Inclinou-se para a frente
lentamente, como se mover-se lhe causasse dor, apertou a mão de Jule e a
seguir apresentou-lhe dois cães brancos, pequenos e gordos: Snowball e
Snowman. Apresentou também os três gatos de Imogen.
Foram imediatamente jantar numa sala de jantar formal, com Gil a arrastar os
pés e Patti a andar lentamente ao seu lado. A cozinheira trouxe taças e travessas
e depois deixou-os sozinhos. Comeram minúsculas costeletas de borrego e um
risotto de cogumelos. Gil pediu a sua botija de oxigénio a meio da refeição.
Enquanto comiam queijo, falaram sobre os cães, que eram novos na casa. –
Arruinaram-nos a vida – disse Patti. – Estão sempre a fazer cocó. O Gil deixa-
os fazer no deque. Consegues acreditar? Vou lá de manhã e há um cocó de cão
mal-cheiroso.
– Eles ganem para sair antes de tu te levantares – disse Gil, impenitente.
Puxou para o lado a máscara do oxigénio para poder falar. – O que é que hei de
fazer?
– Depois temos de borrifar o deque com um produto de limpeza com lixívia.
Há pequenas manchas de lixívia por toda a madeira – disse Patti. – É um nojo.
De qualquer maneira, é o que se faz quando se gosta de um animal. Deixa-se
que faça cocó no deque, suponho.
– A Imogen andava sempre a trazer gatos vadios para casa – disse Gil. – Era
mais um gatinho a cada dois meses, no secundário.
– Alguns não se safavam – disse Patti. – Ela encontrava-os na rua e eles
tinham bronquite dos gatos ou outra praga qualquer. Morriam uma mortezinha
triste, e a Immie ficava destroçada de cada vez que isso acontecia. Depois foi
para Vassar e nós ficámos com estes bichos. – Patti fez uma festa a um gato que
andava às voltas debaixo da mesa de jantar. – Só dão trabalho e orgulham-se
disso.
Como qualquer antiga aluna de Greenbriar, Patti tinha histórias dos seus
tempos no colégio. – Tínhamos de usar meias de vidro ou meias até ao joelho
com o uniforme, todo o ano – disse. – E quando chegava o verão sentíamo-nos
muito desconfortáveis. No secundário... isto foi nos finais dos anos 1970...
algumas de nós andávamos sem roupa interior, só para nos sentirmos mais
frescas. Meias pelos joelhos sem roupa interior! – Deu uma palmadinha no
ombro de Jule. – Tu e a Immie tiveram sorte por os uniformes terem mudado.
Estudaste música no Greenbriar? Pareceste tão entusiástica em relação ao
Gershwin no outro dia.
– Um pouco.
– Lembras-te do concerto de inverno?
– Claro.
– Estou mesmo a ver-vos, a ti e à Imogen, uma ao lado da outra. Eram as
meninas mais pequeninas no nono ano. Cantaram todas cânticos de Natal, e a
filha dos Caraway cantou o solo. Lembras-te?
– É claro que sim.
– Tinham iluminado o salão de baile todo para a época festiva, com a árvore
naquele canto. Também tinham uma menorá, claro, mas não era realmente com
convicção – disse Patti. – Oh, com um raio. Vou ficar à beira das lágrimas, a
pensar na Immie com aquele vestido de veludo azul. Comprei-lhe um vestido
próprio para a época festiva para aquele concerto, em azul-forte com pregas na
frente.
– A Immie veio em meu socorro no meu primeiro dia no Greenbriar – disse
Jule. – Alguém esbarrou em mim na fila da cafetaria e fiquei com molho do
esparguete pela camisa toda. Ali estava eu, a olhar para aquelas raparigas todas
sofisticadas com as suas roupas limpas. Todas se conheciam já do segundo
ciclo. – A história fluía com naturalidade. Patti e Gil eram bons ouvintes. –
Como podia eu sentar-me à mesa de alguém quando tinha molho, como
sangue, por mim toda?
– Oh, batatinha doce.
– A Immie aproximou-se de mim em grandes passadas. Tirou-me o tabuleiro
das mãos. Apresentou-me às amigas todas e fingiu que não via a sujidade na
minha camisa toda, portanto elas também fingiram que não a viam. E foi assim
– disse Jule. – Ela era uma das minhas pessoas favoritas, mas não nos
mantivemos em contacto depois de eu sair de lá.
Mais tarde, na sala de estar, Gil instalou-se no sofá com os tubos de oxigénio
no nariz. Patti abriu um álbum de fotografias grosso, de papel dourado. – Vais
deixar-me mostrar-te fotografias, não vais?
Puseram-se a ver velhas fotografias. Jule achou Imogen excecionalmente
bonita – baixa e com um ar um pouco maroto. Tinha cabelo claro e bochechas
gorduchas com covinhas, que mais tarde se tornariam maçãs do rosto salientes.
Em muitas das fotografias aparecia em frente a algum destino atraente. «Fomos
a Paris,» dizia Patti, ou: «Visitámos uma quinta,» ou: «Esse é o carrossel mais
antigo da América.» Immie usava saias de roda e leggings às riscas. Na maior
parte das fotografias, o seu cabelo era comprido e um pouco rebelde. Em
fotografias mais recentes, via-se que usava aparelho nos dentes.
– Nunca mais teve amigas que tivessem sido adotadas depois de tu saíres do
Greenbriar – disse Patti. – Sempre senti que lhe tínhamos falhado a esse
respeito. – Patti inclinou-se para a frente. – Tiveste isso? Uma comunidade de
famílias como a tua?
Jule inspirou fundo. – Não tive isso.
– Sentes que os teus pais te falharam? – perguntou Patti.
– Sim – disse Jule. – Os meus pais falharam-me, de facto.
– Penso tantas vezes que devia ter criado a Immie de modo diferente. Ter
feito mais. Ter falado mais sobre as coisas difíceis. – Patti continuou a divagar,
mas Jule não a ouvia.
Os pais de Julietta tinham morrido quando ela tinha oito anos. A sua mãe
faleceu de uma doença prolongada e horrível. Pouco depois, o seu pai sangrou-
se até à morte, nu numa banheira.
Julietta fora criada por outra pessoa, aquela tia, num lar que não era um lar.
Não. Não pensaria mais nisso. Estava a apagar tudo agora.
Estava a escrever uma nova história para si própria, uma história da sua
origem. Nessa versão, a sala de estar aparecia virada de pernas para o ar. No
escuro da noite. Sim, era isso. A história ainda não estava acabada, mas Jule
reviu-a tão bem quanto conseguia. Via os pais no círculos de luz criado pelo
candeeiro, mortos no relvado com o sangue a formar uma poça negra por baixo
deles.
– Precisamos de chegar ao que interessa – disse Gil, com a respiração
sibilante. – A rapariga não tem a noite toda.
Patti acenou com a cabeça. – O que não te disse, e porque te convidámos
para vires cá, é que a Imogen abandonou os estudo em Vassar depois do
primeiro semestre.
– Pensamos que se meteu com pessoas que só andam em festas – disse Gil. –
Não usou o potencial todo dela nas aulas.
– Bem, ela nunca gostou muito da escola – disse Patti. – Não da maneira
como tu obviamente adoras Stanford, Jule. De qualquer maneira, deixou Vassar
sem nos dizer nada, e só um mês depois é que nos contactou. Estávamos muito
preocupados.
– Tu estavas muito preocupada – disse Gil. Inclinou-se para a frente. – Eu só
estava furioso. A Imogen é uma irresponsável. Perde o telemóvel ou esquece-se
de o ligar. Não é nada boa a telefonar, mandar mensagens, nenhuma dessas
coisas.
– Afinal, foi para Martha’s Vineyard – disse Patti. – Costumávamos ir muitas
vezes para lá em família, e ela fugiu para lá, ao que parece. Disse-nos que tinha
arrendado uma casa, mas não nos deu a morada, nem sequer nos disse em que
cidade está.
– Porque não vão vê-la? – perguntou Jule.
– Eu não posso ir a lado nenhum – disse Gil.
– Faz diálise dos rins a cada dois dias. É arrasador. E vai ter de fazer uma
operação – disse Patti.
– Vão-me tirar as entranha todas em breve – disse Gil. – Vou ter de andar
com elas um saco.
Patti debruçou-se e beijou-o na face. – Portanto, tivemos a ideia de que
talvez tu gostasse de ir até lá, Jule. A Vineyard. Pensámos em contratar um
detetive...
– Tu pensaste nisso – disse Gil. – Uma ideia ridícula.
– Chegámos a pedir a algumas amigas dela da faculdade, mas não queriam
interferir – disse Patti.
– O que querem que eu faça? – perguntou Jule.
– Que confirmes que ela está bem. Não lhe digas que fomos nós que te
mandámos lá, mas envia-nos uma mensagem para ficarmos a saber como estão
a correr as coisas – disse Patti. – Tenta convencê-la a voltar para casa.
– Não vais trabalhar este verão, pois não? – perguntou Gil. – Não tens
nenhum estágio, nada desse género?
– Não – respondeu Jule. – Não tenho nenhum emprego em vista.
– Naturalmente, pagamos as tuas despesas para ires a Vineyard – disse Gil. –
Podemos dar-te uns vales no valor de uns dois mil dólares, e pagamos o hotel.
Os Sokoloff eram tão crédulos. Tão bondosos. Tão estúpidos. Os gatos, os
cães que faziam cocó no deque, a botija de oxigénio de Gil, o álbum cheio de
fotografias, a preocupação com Imogen, a interferência até; a tralha toda no
apartamento, as costeletas de borrego, a maneira tagarela como falavam, tudo
era maravilhoso.
– Teria todo o prazer em ajudar – disse-lhes Jule.
*

Jule apanhou o metro de regresso ao seu apartamento. Abriu o computador,


fez uma pesquisa e encomendou uma T-shirt vermelha da Universidade de
Stanford.
Quando chegou, daí a uns dias, puxou pela gola até ela ficar esbambeada e
borrifou a parte de baixo com um produto de limpeza com lixívia para lhe fazer
uma nódoa.
Lavou-a repetidamente até ficar macia e parecer velha.
2

AINDA A SEGUNDA SEMANA DE JUNHO, 2016


CIDADE DE NOVA IORQUE

U m dia antes do jantar em casa de Patti, Jule encontrava-se a uma esquina


na zona alta de Manhattan com um pedaço de papel em que estava escrita
uma morada. Eram dez da manhã. Trazia um vestido de algodão preto com um
decote quadrado que a favorecia. As suas sandálias de salto alto fechadas à
frente e pontiagudas também eram pretas. Ficavam-lhe demasiado pequenas.
Tinha um par de ténis no saco. Maquilhara-se num estilo que considerava ser
de menina da faculdade. Trazia o cabelo preso num puxo.
O Colégio Greenbriar ocupava uma série de mansões renovadas na Quinta
Avenida junto à Rua 82. A fachada de pedra da secundária, onde Jule iria
trabalhar, tinha uma altura de cinco andares. Uma escadaria em curva conduzia
a umas estátuas junto à entrada. Grandes portas duplas. Parecia um lugar onde
se poderia obter uma educação altamente incomum.
– O evento é no salão de baile – disse o guarda quando Jule entrou. – A
escadaria para o segundo andar fica à sua direita.
A entrada tinha chão de mármore. Numa tabuleta à esquerda podia ler-se
SECRETARIA, e num quadro de cortiça ao seu lado havia uma lista das
colocações dos alunos finalistas: Yale, Penn, Harvard, Brown, Williams,
Princeton, Swarthmore, Dartmouth, Stanford. Pareciam a Jule locais de ficção.
Era estranho vê-los escritos como um poema, cada nome na sua própria linha e
cada palavra evocando uma imensidade.
Ao cimo das escadas, o patamar abria-se para um salão de baile. Uma
senhora de casaco vermelho e com um ar de autoridade aproximou-se com a
mão estendida. – É do catering? Bem-vinda ao Colégio Greenbriar – disse. –
Fico muito contente que pudesse ajudar-nos hoje. Sou a Mary Alice McIntosh,
a presidente do comité de angariação de fundos.
– Prazer em conhecê-la. Sou a Lita Kruschala.
– O Colégio Greenbriar foi pioneiro na educação das mulheres, começando
em 1926 – disse Mary Alice. – Ocupamos três mansões de estilo Beaux Arts
que eram originalmente casas particulares. Os edifícios são considerados
património cultural e os nossos doadores atuais são filantropos e apoiantes da
educação das raparigas.
– É um colégio só para raparigas?
Mary Alice passou para as mãos de Jule um avental preto com folhos. – Há
estudos que demonstram que, nas escolas femininas, as raparigas escolhem
disciplinas mais não-tradicionais, como as da área de Ciências. Preocupam-se
menos com o seu aspeto, são mais competitivas e têm uma maior autoestima. –
Recitou aquilo como um discurso que já tivesse feito mil vezes. – Hoje,
esperamos cem convidados aqui para ouvir música e comer uns hors d’oeuvres.
A seguir, um almoço servido à mesa nas salas do terceiro andar. – Mary Alice
acompanhou Jule ao salão de baile, onde umas mesas altas estavam a ser
cobertas com toalhas brancas. – As alunas vêm aqui para a assembleia às
segundas e sextas, e a meio da semana usamos o espaço para ioga e palestras.
As paredes do salão de baile estavam decoradas com quadros a óleo. Havia
um forte cheiro a cera para móveis. Pendiam três lustres do teto e via-se um
piano de cauda a um canto. Custava crer que andassem ali pessoas a estudar.
Mary Alice encaminhou Jule para o supervisor do catering, e Jule deu o
nome de Lita. Atou o avental por cima do vestido. O supervisor mandou-a
dobrar guardanapos, mas, assim que ele virou as costas, Jule foi ao patamar e
espreitou para dentro de uma das salas de aula.
Algumas das paredes estavam forradas a livros. Havia um Smartboard numa
das paredes e uma fila de computadores noutra, mas o centro da sala dava uma
sensação de antiguidade. Havia um tapete de um vermelho forte no chão.
Cadeiras pesadas à volta de uma velha mesa larga. No quadro negro, a
professora tinha escrito:

Escrita livre, 10 minutos:


«A coisa importante é esta: ser capaz a qualquer momento de sacrificar o que somos por aquilo
em que poderíamos tornar-nos.»
– Charles Du Bos

Jule tocou na beira da mesa. Sentar-se-ia naquele lugar, ali, decidiu. Seria o
seu lugar habitual, de costas para a luz da janela e de olho na porta. Debateria a
citação de Du Bos com as outras alunas. A professora, uma senhora vestida de
preto, andaria a pairar entre elas, não ameaçadora, mas inspiradora. Incentivá-
las-ia a alcançarem a excelência. Acreditaria que as suas alunas eram o futuro.
Houve uma tossidela. O supervisor do catering estava na sala com Jule.
Apontou para a porta. Jule seguiu-o de volta à pilha de guardanapos e começou
a dobrá-los.
Chegou um pianista ao salão de baile, todo apressado. Era magricela, tinha a
pele clara e sardenta e era ruivo. Os pulsos despontavam-lhe das mangas do
casaco, demasiado curtas. Tirou da pasta umas pautas musicais, olhou para o
telemóvel por um ou dois minutos e depois começou a tocar. A música era
animada e de algum modo cheia de classe. Quando Jule acabou de dobrar os
guardanapos, aproximou-se dele. – Que canção é essa?
– É do Gershwin – disse o pianista com desdém. – É um almoço só com
Gershwin. As pessoas com dinheiro adoram Gershwin.
– Tu não?
Ele encolheu os ombros, ainda a tocar. – Paga a renda de casa.
– Julguei que as pessoas que tocavam num piano de cauda já tinham
dinheiro.
– Temos dívidas, normalmente.
– Então, quem é o Gershwin?
– Quem foi o Gershwin? – O pianista parou de tocar e começou a tocar algo
novo. Jule olhava para as suas mãos a correrem sobre o teclado e reconheceu a
canção. Summertime, and the livin’ is easy.
– Conheço essa – disse. – Ele já morreu?
– Há muito tempo. Era dos anos 1920 e 1930. Era um imigrante de primeira
geração; o pai dele fazia sapatos. Singrou no teatro iídiche e começou por
escrever canções de jazz populares para fazer uns dinheiritos, a seguir fez
música para filmes. Depois, mais tarde, música clássica e ópera. Portanto,
acabou por ser da classe alta, mas veio do nada.
Que incrível ser capaz de tocar um instrumento, pensou Jule. Acontecesse o
que acontecesse a uma pessoa, fosse o que fosse que se passasse na sua vida,
podia olhar para as mãos e pensar: Eu toco piano. Sempre saberia isso sobre si.
Era como ser capaz de lutar, apercebeu-se. E ser capaz de mudar de sotaque.
Eram poderes que residiam no próprio corpo. Nunca te deixariam,
independentemente do teu aspeto, de quem te amasse ou não te amasse.
Daí a uma hora, o supervisor do catering bateu no ombro de Jule. – Tens
molho de cocktail na roupa, Lita – disse. – E também natas azedas. Vai-te
arranjar e dou-te outro avental.
Jule olhou por si abaixo. Tirou o avental e entregou-o.
Como estava alguém na casa de banho que ficava mais perto do salão de
baile, Jule subiu a escadaria de pedra até ao terceiro andar. Vislumbrou um par
de salas elegantes. As mesas estavam decoradas com ramos de flores cor-de-
rosa. Os convidados davam apertos de mão e sujeitavam-se a apresentações.
Na casa de banho das senhoras havia uma antecâmara. Estava forrada a um
papel de parede verde e dourado e tinha um pequeno sofá ornamentado. Jule
atravessou o espaço e abriu a porta da casa de banho. Ali, descalçou os sapatos
de Lita. Tinha os dedos dos pés inchados e estava a sangrar dos calcanhares.
Enxugou o sangue com uma toalha de papel humedecida. A seguir, limpou o
vestido até ele ficar sem manchas.
Recuou para a antecâmara descalça e deu com uma senhora de cinquenta e
tal anos sentada no sofá. A senhora era bonita, ao estilo da zona alta de
Manhattan: pele morena com blush cuidadosamente aplicado e cabelo pintado
de castanho. Trazia um vestido de seda verde que fazia com que parecesse
coadunar-se com aquele sofá de veludo verde e aquele papel de parede verde e
dourado. Estava sem meias e a pôr pensos rápidos nos dedos dos pés, que
tinham bolhas. Havia um par de sandálias de salto alto no chão.
– O calor faz-me inchar os pés – disse a senhora –, e depois o sofrimento é
interminável. Tenho ou não tenho razão?
Jule respondeu com uma pronúncia semelhante à da senhora: americano
genérico. – Pode dispensar-me um penso rápido?
– Tenho uma embalagem inteira – respondeu a senhora. Enfiou a mão numa
carteira grande e tirou a embalagem. – Vim preparada. – As suas unhas das
mãos e dos pés estavam pintadas num tom rosa-pálido.
– Obrigada. – Jule sentou-se ao lado dela e tratou dos seus pés.
– Não te lembras de mim, pois não? – disse a senhora.
– Eu...
– Não te preocupes. Eu lembro-me de ti. Tu e a minha filha Immie pareciam
sempre iguaizinhas, com os vossos uniformes do colégio. Ambas tão
pequeninas e com aquelas sardas fofinhas no nariz.
Jule pestanejou.
A senhora sorriu. – Sou a mãe da Imogen Sokoloff, batatinha doce. Podes
chamar-me Patti. Vieste à festa de anos da Imogen no nono ano, lembras-te?
Aquela festa de pijama em que fizemos chupa-chupas de bolo. E tu e a Immie
costumavam ir às compras no SoHo. Oh, lembras-te, levámos-te ao bailado
Coppelia, no American Ballet Theatre?
– É claro – disse Jule. – Desculpe não a ter reconhecido imediatamente.
– Não te preocupes – disse Patti.– Esqueci-me do teu nome, tenho de
confessar, embora nunca esqueça um rosto. E tu tinhas aquele cabelo azul
divertido.
– É Jule.
– É claro. Era tão fixe que tu e a Immie fossem tão amigas, naquele primeiro
ano do secundário. Depois de te ires embora, ela começou a andar com aquelas
miúdas de Dalton. Nunca gostei tanto delas como de ti. Só há algumas antigas
alunas recentes aqui na festa de angariação de fundos, penso eu. Talvez
ninguém que conheças? É só ex-alunas de uma certa idade, como eu.
– Enviaram-me o convite e vim pelo Gershwin – disse Jule. – E para voltar a
ver o colégio depois de ter estado ausente.
– Que ótimo que aprecies Gershwin – disse Patti. – Na adolescência, eu só
gostava de punk e nos meus vinte anos era Madonna e outros do género. Em
que universidade andas?
Uma pausa. Uma escolha. Jule atirou com o papel dos pensos rápidos para o
caixote do lixo.
– Em Stanford – respondeu. – Mas não tenho a certeza se vou voltar no
outono. – Revirou os olhos comicamente. – Estou em guerra com o gabinete de
auxílio financeiro. – Tudo o que estava a dizer a Patti lhe dava uma sensação
deliciosa na boca, como caramelo a derreter.
– Isso é desagradável – disse Patti. – Pensei que tinham um sistema de
auxílio financeiro ótimo lá.
– E têm, geralmente – disse Jule. – Mas não para mim.
Patti olhou para Jule muito séria. – Penso que tudo se vai resolver. Olhando
para ti, vejo que não vais deixar que te fechem nenhumas portas na cara. Ouve,
tens um trabalho para o verão, um estágio, algo do género?
– Ainda não.
– Então, tenho uma ideia de que gostava de te falar. É só um pensamento
louco que estou a ter, mas talvez te agrade. – Tirou um cartão de visita branco
da sua mala de mão e entregou-o a Jule. Nele havia uma morada na Quinta
Avenida. – Tenho de voltar para casa agora, para junto do meu marido. Ele não
está bem de saúde. Mas porque não vens jantar lá a casa amanhã à noite? Sei
que o Gil vai ficar encantado por conhecer uma das velhas amigas da Immie.
– Obrigada. Adoraria.
– Às sete?
– Lá estarei – disse Jule. – Agora, atrevemo-nos a calçar os sapatos?
– Oh, suponho que tem de ser – disse Patti. – É muito duro ser-se mulher, por
vezes.
1

PRIMEIRA SEMANA DE JUNHO, 2016


CIDADE DE NOVA IORQUE

D ezasseis horas antes, às oito da noite, Jule saiu do metro num bairro
duvidoso de Brooklyn. Passara o dia à procura de trabalho. Era a quarta
vez seguida que usava o seu melhor vestido.
Sem sorte.
O seu apartamento ficava por cima de uma mercearia com um toldo amarelo
desbotado: o Joyful Food Mart. Era uma noite de sexta-feira e havia tipos num
grupo à esquina, a falar alto. Os caixotes do lixo nos passeios estavam a
transbordar.
Jule só vivia ali há quatro semanas. Partilhava o apartamento com uma
rapariga, Lita Kruschala. Hoje era dia de pagar a renda e ela não tinha como.
Não era amiga íntima de Lita. Tinham-se conhecido quando Jule respondeu a
um anúncio que encontrou na Internet. Antes disso, tinha ficado num albergue
da juventude. Usara a Internet da biblioteca pública para pesquisar
apartamentos partilhados.
Quando foi ver o apartamento, Lita estava a oferecer a sala de estar como
quarto de dormir. Estava separada da cozinha por uma cortina. Lita disse a Jule
que a sua irmã regressara recentemente à Polónia. Lita preferia ficar na
América. Limpava casas e trabalhava para uma empresa de catering, ambos os
trabalhos pagos a dinheiro na hora. Não estava numa situação legal para
trabalhar nos Estados Unidos. Frequentava aulas de Inglês numa instituição de
solidariedade, o YMCA.
Jule disse a Lita que tinha um emprego como personal trainer. Era o que
tinha feito na Florida, e Lita acreditou nela. Jule pagou um mês de renda em
dinheiro. Lita não pediu para ver um documento de identificação. Jule nunca
pronunciou o nome Julietta.
Em certas noites, os amigos de Lita iam lá a casa e ficavam a falar polaco e a
fumar cigarros. Faziam carne estufada e batatas cozidas na cozinha. Nessas
noites, Jule punha os fones e enroscava-se na cama, a praticar pronúncias com
a ajuda de tutoriais na Internet. Por vezes, Lita entrava no quarto de Jule com
uma tigela com guisado e passava-lha para as mãos sem dizer nada.
Jule chegara a Nova Iorque de autocarro. Depois do rapaz e do granizado
azul, depois da sandália de salto alto e do sangue no passeio, depois de esse
rapaz ter caído, Julietta West Williams desaparecera do estado do Alabama.
Também deixara de estudar. Tinha dezassete anos e não era obrigada a terminar
os estudos. Nenhuma lei dizia que tinha de o fazer.
Poderia não ter tido problemas se tivesse ficado onde estava. O rapaz não
morrera, e nunca disse uma palavra sobre o que se passara. Mas, por outro
lado, se ela tivesse ficado na cidade, talvez ele falasse. Ou poderia ter retaliado.
Pensacola, na Florida, ficava só a uns quatrocentos quilómetros. Jule foi
contratada para trabalhar a dinheiro num ginásio com montra para a rua numa
zona comercial de um subúrbio. Os proprietários não requeriam do pessoal que
tivesse qualquer espécie de certificado. Insuflavam os rapazes com esteroides,
e nada era propriamente legal.
Julietta treinava tipos todos os dias. Seguranças de discotecas, rufias, guarda-
costas, até alguns polícias. Trabalhou lá seis meses e ganhou músculo. O patrão
era proprietário de um sítio de artes marciais a menos de dois quilómetros, e
deixava-a ter aulas lá de graça. Julietta alugara à semana um quarto de motel
com kitchenette.
À hora do almoço, ia muitas vezes a pé ao centro comercial, a alguma
distância. Era um centro comercial de luxo, com fontes e lojas de marcas caras.
Julietta ia ler para a livraria arejada, admirava vestidos de mil dólares nas
montras e experimentava produtos de maquilhagem nos grandes armazéns.
Aprendeu os nomes das marcas com mais classe. Reinventava-se com pós,
cremes e brilhos. O seu rosto tinha um aspeto num dia, outro no seguinte.
Nunca gastava um cêntimo que fosse.
Foi assim que conheceu Neil. Neil era um tipo magro com um blusão de pele
da cor da manteiga. De vez em quando, passava uma tarde a rondar os balcões
dos cosméticos, a falar com as raparigas. Usava Nikes personalizados e falava
com pronúncia sulista. Não devia ter mais de vinte e cinco anos e tinha um
rosto branco de bebé com faces coradas, suíças e uma cruz de ouro ao pescoço.
O tipo de sujeito que falava e ria demasiado alto no cinema e comprava sempre
uma embalagem grande de pipocas.
– Neil quê? – perguntara Julietta.
– Não uso o meu último nome – respondeu ele. – Não é tão bonito como eu.
Neil estava no negócio. Foi o que respondeu quando ela perguntou o que
estava a fazer junto aos balcões de perfumaria. – Estou no negócio.
Ela perguntou-se de onde viria aquela expressão. Seria uma expressão de
Pensacola, ou de outro lugar?
Sabia o que ele queria dizer.
– Podias ganhar muito mais do que ganhas agora, a trabalhar para mim. Eu
tratava-te muito bem – disse-lhe Neil. Era o terceiro dia que ela falava com ele.
– O que fazes para ganhar dinheiro, bebé bonita? Vejo que não estás a gastar
nenhum.
– Não me chames bebé bonita.
– O quê? Tu és deslumbrante
– A sério, consegues arranjar raparigas que gostem de ti, a chamares-lhes
isso?
Ele encolheu os ombros e riu-se. – É, consigo.
– Então, arranjas umas raparigas mesmo estúpidas.
– Tenho raparigas bem fixes, é o que tenho. Elas mostravam-te como é que é.
O trabalho não é duro.
– Certo.
– Mantinhas-te na linha. Podias comprar umas roupas bonitas. Dormir até
tarde todas as manhãs.
Julietta deu-lhe com os pés nesse dia, mas Neil voltou a rondar os balcões
dos produtos de cosmética daí a uma semana. Dessa vez, convidou-a tão
delicadamente que ela deixou que lhe pagasse um burrito num sítio de pronto-
a-comer no centro comercial Sentaram-se a uma mesa delicada junto a um
laguinho.
– Os homens gostam de mulheres com músculos, sabias? – disse Neil. – Nem
todos, mas muitos gostam. Esse tipos gostam de ser mandados. Querem uma
rapariga com o teu físico, que não os deixe chamarem-lhe bebé bonita. Sabes o
que quero dizer? Posso arranjar-te uma pipa de massa com um certo tipo de
gajo. Uma bela pipa de massa.
–Recuso-me a andar nas ruas – disse-lhe ela.
– Não é nas ruas, sua novata. É um grupo de apartamentos com porteiro e
elevador. Banheiras de hidromassagem. Tenho um segurança que patrulha os
corredores, mantém toda a gente em segurança. Ouve, estás com uma vida
difícil neste momento. Dá para ver, porque já passei por isso. Vim do nada e
trabalhei como o diabo para ter uma vida melhor. Tu és uma rapariga esperta e
com resposta pronta; uma rapariga linda, fora do comum. Tens um corpo do
caraças que é só músculo, e acredito que mereces melhor do que o que tens
neste momento. É tudo.
Julietta escutou-o.
Ele estava a dizer o que ela sentia. Compreendia-a.
– De onde és, Julietta?
– Do Alabama.
– O teu sotaque parece do Norte.
– Perdi o sotaque.
– O quê?
– Substitui-o.
– Como?
Os tipos no ginásio onde Julietta trabalhava eram velhos. Só queriam falar
sobre repetições e milhas, pesos e dosagens. E eram as únicas pessoas com
quem ela alguma vez falava. Neil, pelo menos, era jovem. – Quando tinha nove
anos – disse-lhe ela –, um dia tinha tido... chamemos-lhe um dia mau. A
professora a mandar-nos estar calados. A berrar comigo para eu me calar.
«Cala-te, minha menina, já disseste quanto baste.» «Para, minha menina, não
batas, usa as palavras»... e cala-te ao mesmo tempo. Esmagam-te. Querem que
sejas pequena e silenciosa. Boa era só outra maneira de dizer não dês luta.
Neil acenou com a cabeça. – Eu andava sempre a ser repreendido por fazer
barulho.
– Um dia, não veio ninguém buscar-me à escola. Simplesmente... não veio
ninguém. Da secretaria fartaram-se de telefonar para a minha casa, mas
ninguém atendia. Miss Kayla, uma professora que ficava a tomar conta dos
alunos depois das aulas, levou-me a casa de carro. Já estava escuro. Eu mal a
conhecia. Entrei no carro porque ela tinha cabelo bonito. Pois é, fui estúpida,
meter-me no carro de uma desconhecida, eu sei. Mas ela era professora. Deu-
me uma caixinha de Tic Tacs. Enquanto conduzia, fartou-se de falar, para me
animar, percebes? E era do Canadá. Não sei de que parte do Canadá, mas tinha
sotaque.
Neil acenou com a cabeça.
– Comecei a imitá-la – prosseguiu Julietta. – Sentia curiosidade em saber
porque é que ela falava daquela maneira. Dizia gaz em vez de gas. Aboot em
vez de about. A isso chama-se rising canadiano, já agora. É uma alteração
vocálica. E fiz Miss Kayla rir-se, a imitar o sotaque dela. Ela disse-me que eu
era uma boa imitadora. Depois, chegámos a minha casa e ela acompanhou-me
até à porta.
– E depois?
– Tinha estado sempre alguém em casa.
– Fogo.
– Pois é. Ela estava a ver televisão. Não se tinha lembrado de me ir buscar.
Ou não podia. Não sei. Era uma cena marada, de uma maneira ou outra. Não se
tinha dado ao trabalho de atender a porcaria do telefone naquelas vezes todas
em que a escola telefonou. Empurrei a porta a abri-la e entrei. Disse: «Onde é
que estavas?» E ela disse: «Cala-te, não vês que tenho a televisão ligada?» E eu
disse: «Porque é que não atendeste o telefone?» E ela disse: «Já te disse que te
calasses.» Mais um cala-te e não dês luta. Então, pus uns flocos de cereais
secos numa tigela para o jantar e pus-me a ver televisão ao lado dela.
Estávamos a ver televisão há uma hora ou mais quando me veio à cabeça uma
ideia.
– O quê?
– A televisão ensina-te como falar. Locutores, pessoas ricas, médicos
naquelas séries de hospitais. Nenhum deles falava como eu. Mas todos falavam
uns como os outros.
– Suponho que sim.
– É verdade. Calculei que se aprendesse a falar daquela maneira talvez não
me mandassem calar tantas vezes.
– Aprendeste sozinha?
– Aprendi americano genérico primeiro. É o que se ouve na televisão. Mas
agora sei falar à moda de Boston, de Brooklyn, da Costa Oeste, das Terras
Baixas do Sul, do Canadá Central, do inglês da BBC, do irlandês, escocês, sul-
africano.
– Queres ser atriz. É isso?
Julietta abanou a cabeça. – Tenho coisas melhores em mente.
– O domínio do mundo, então.
– Algo do género. Ainda tenho de decidir ao certo.
– Decididamente, podias ser atriz – disse Neil, sorrindo. – De facto, aposto
que vais entrar em filmes. Daqui a um ano, vou dizer, tipo, uau. Aquela
rapariga, a Julietta, costumava estar ao balcão da Chanel a empastar a cara com
cosméticos de graça. Aquela rapariga deixava-me conversar com ela de vez em
quando.
– Obrigada.
– Precisas de arranjar umas roupas boas, Miss Julietta. Tens de conhecer uns
gajos com dinheiro que te comprem joias e vestidos bonitos. Falar como na
televisão é uma coisa, mas neste momento é tudo fatos de treino, ténis, cabelo
com um ar barato. Assim nunca vais chegar a lado nenhum.
– Não quero vender o que andas a vender.
– Deixa-me ouvir-te falar à Brooklyn – disse Neil.
– A minha hora do almoço chegou ao fim. – Ela pôs-se de pé.
– Vá lá. À irlandesa, então.
– Não.
– Bem, se alguma vez quiseres um trabalho melhor do que o que tens agora,
aqui tens o meu número – disse Neil, tirando do bolso um cartão de visita. O
cartão era preto e tinha um número de telemóvel impresso a prateado.
– Vou-me embora.
Neil ergueu a sua Coca-Cola como se num brinde.
Julietta riu-se ao afastar-se.
Neil fazia-a sentir-se bonita. Era um bom ouvinte.
Na manhã seguinte fez as malas e meteu-se num autocarro para a cidade de
Nova Iorque. Receava aquilo em que poderia tornar-se se esperasse mais
tempo.
Agora a renda de Jule tinha de ser paga. Andava a comer ramen de
supermercado. Só tinha cinco dólares na carteira.
Nenhum ginásio em Nova Iorque contrataria uma instrutora sem habilitações.
Ela nem tinha o diploma do secundário. Não tinha cartas de recomendação,
porque abandonara o seu primeiro e único emprego até à data. Os ginásios
pagariam melhor, calculara, e pouparia um pouco de dinheiro e depois
procuraria algo que lhe possibilitasse subir na vida. Mas depois, como nenhum
dos ginásios se dispusera a contratá-la, tentou os balcões de perfumaria nos
grandes armazéns, outros empregos na venda a retalho, trabalhos como ama,
como empregada de mesa, qualquer oferta de trabalho. Andava à procura todo
o dia, todos os dias. Sem resultado.
Entrou no Joyful Food Mart, por baixo do seu apartamento. Estava bastante
movimentado. Pessoas saídas dos empregos a comprarem embalagens de
massa e latas de feijão ou a jogarem o seu número na lotaria. Jule comprou um
pudim de baunilha por um dólar e pegou numa colher de plástico. Comeu o
pudim como jantar enquanto subia as escadas para o apartamento que
partilhava com Lita.
O apartamento estava às escuras, Jule sentiu-se aliviada. Lita fora cedo para a
cama ou tinha saído até tarde. Num caso ou no outro, Jule não teria de dar
desculpas por não ter o dinheiro da renda.
*

Na manhã seguinte, Lita não saiu do quarto. Normalmente, levantava-se


antes das sete aos sábados para ir para o trabalho de catering. Às oito, Jule
bateu à porta do seu quarto. – Estás bem?
– Estou morta – disse Lita do outro lado da porta fechada.
Jule espreitou para dentro. – Tens trabalho hoje, correto?
– Às dez. Mas estive a vomitar a noite toda. Misturei cocktails.
– Precisas de água?
Lita gemeu.
– Queres que eu vá trabalhar por ti? – perguntou Jule, com a ideia a ocorrer-
lhe nesse momento.
– Acho que não – disse Lita. – Sabes sequer como trabalhar no catering?
– Claro.
– Se eu não aparecer, despedem-me – disse Lita.
– Então, deixa-me ir a mim – disse Jule. – Dá jeito às duas.
Lita passou as pernas pelo lado da cama e agarrou-se à mesa de cabeceira,
com um ar de náusea. – Está bem. OK.
– A sério?
– Mas... diz-lhes que és eu.
– Não me pareço nada contigo.
– Não importa. Eles têm um supervisor novo. Não se vai dar conta. É uma
empresa grande. O importante é pôr um visto no meu nome no registo.
– Entendi.
– E que o gajo te pague antes de vires embora. Vinte por hora, dinheiro na
mão, além de que vais receber gorjetas.
– Fico com o dinheiro?
– Com metade – disse Lita. – O trabalho é meu, ao fim e ao cabo.
– Três quartos – disse Jule.
– Está bem. – Lita procurou no telemóvel e depois escreveu a informação
num pedaço de papel. – Colégio Greenbriar, no Upper East Side. Tens de
apanhar o autocarro até ao metro e depois mudar para a linha verde.
– Qual é o evento?
– Uma festa para doadores do colégio. – Lita voltou a deitar-se na cama,
movendo-se como se receasse bater com a cabeça. – Não devia beber, nunca
mais. Oh, tens de usar um vestido preto.
– Não tenho nenhum.
Lita suspirou. – Tira do meu armário. Eles dão-te um avental. Não, não o que
tem rendas. Esse tem de ser limpo a seco. Leva um de algodão.
– Também preciso de sapatos.
– Meu Deus, Jule.
– Desculpa lá.
– Leva os de saltos altos. Vão dar-te gorjetas maiores.
Jule enfiou os pés nos sapatos. Eram demasiado pequenos, mas conseguiria –
Obrigada.
– Traz-me também metade do dinheiro das gorjetas – disse Lita. – Esses são
os meus sapatos bons.
Jule nunca usara um vestido tão bonito como aquele. Era de um tecido grosso
de algodão, um vestido de passeio com um decote quadrado e uma saia rodada.
Surpreendeu-a que Lita tivesse tal peça de vestuário, mas ela disse que o tinha
comprado barato numa loja de segunda mão.
Jule saiu para a rua com o vestido e os seus ténis, os sapatos de salto alto de
Lita no saco. O cheiro da cidade de Nova Iorque no calor do princípio do verão
flutuava no ar espesso à sua volta: lixo, pobreza, ambição.
Decidiu atravessar a pé a ponte de Brooklyn. Podia apanhar um comboio da
linha verde do lado de Manhattan e assim não teria de mudar de linha no metro.
O sol cintilava quando se pôs a caminho. As torres de pedra pairavam lá no
alto. Jule via os barcos no porto, deixando trilhos na água. A Estátua da
Liberdade estava forte e brilhante.
Era estranho como o vestido de outra pessoa a fazia sentir-se uma nova
pessoa. Esta sensação de ser outra pessoa, de se transformar numa outra pessoa,
de ser linda e jovem e atravessar esta famosa ponte para algo grande – era para
isso que Jule viera para Nova Iorque.
Nunca sentira essa possibilidade espraiar-se à sua frente até esta manhã.
19

TERCEIRA SEMANA DE JUNHO, 2017


CABO SAN LUCAS, MÉXICO

U m pouco mais de um ano depois, na estalagem Cabo Inn, às cinco da


manhã, Jule cambaleou até à casa de banho, deitou água na cara e pintou
os olhos. Porque não? Gostava de maquilhagem. Tinha tempo. Aplicou
concealer e pó, acrescentou uma sombra esfumada, depois rímel e um batom
quase preto, com um brilho por cima.
Pôs gel no cabelo e vestiu-se. Calças de ganga pretas, botas, uma T-shirt
escura. Roupa quente para o calor do México, mas prática. Fez a mala, bebeu
uma garrafa de água e deu uns passos para fora do quarto.
*

Noa encontrava-se sentada no chão do corredor, com as costas contra a


parede e um copo de café a fumegar entre as mãos.
À espera.
A porta fechou-se com um estalido. Jule recuou contra ela.
Com um raio.
*

Julgara que estava livre, ou quase livre. Agora, tinha uma luta pela frente.
Noa parecia autoconfiante; descontraída, até. Manteve-se sentada, com os
joelhos para cima. A equilibrar aquele copo de café com espuma. – Imogen
Sokoloff? – disse.
Espera. O quê?
Noa pensava que ela era Imogen?
Imogen, claro.
Noa tentara cativar Jule com Dickens. E um pai doente. E gatos
abandonados. Porque sabia que todas essas coisas seriam um engodo para
envolver Imogen Sokoloff numa conversa.
– Noa! – disse Jule, sorrindo, regressando à sua pronúncia da BBC, com as
costas contra a porta do seu quarto. – Oh, uau, apanhaste-me de surpresa. Não
consigo acreditar que estás aqui neste momento.
– Quero falar consigo sobre o desaparecimento de Julietta West Williams –
disse Noa. – Conhece uma jovem com esse nome?
– Peço perdão? – Jule pôs a carteira a tiracolo para não lhe descer do ombro
facilmente.
– Pode deixar essa do sotaque, Imogen – disse Noa, pondo-se de pé
lentamente para não derramar o café. – Temos razões para crer que tem andado
a usar o passaporte da Julietta. As provas apontam para que tenha encenado a
sua própria morte em Londres há um par de meses, depois do que transferiu o
seu dinheiro para a Julietta e assumiu a sua identidade, possivelmente com a
cooperação dela. Mas agora já ninguém a vê há semanas. Não deixou nenhuma
pegada desde pouco depois da execução do seu testamento até a Imogen
começar a usar cartões de crédito emitidos no nome dela no Playa Grande. Isso
soa-lhe familiar? Será que poderia mostrar-me um documento de identificação?
Jule precisava de processar toda esta nova informação, mas não havia tempo.
Tinha de agir de imediato.
– Penso que deves estar a confundir-me com outra pessoa qualquer – disse,
mantendo a pronúncia da BBC. – Peço desculpa por não ter ido à noite do
concurso. Deixa-me tirar a carteira e tenho a certeza de que esclareceremos
tudo isto imediatamente.
Fez de conta que procurava no seu saco e em dois passos estava em cima de
Noa. Deu um pontapé no café de baixo para cima. O café ainda estava quente e
borrifou o rosto da detetive.
A cabeça de Noa projetou-se para trás, e Jule balançou a mala com força.
Atingiu Noa no lado do crânio, derrubando-a. Jule ergueu novamente a mala e
bateu com ela no ombro de Noa com toda a força. Uma e outra e outra vez.
Noa caiu no chão e pôs-se a tatear à procura do tornozelo de Jule com a mão
esquerda enquanto estendia a direita para a perna das suas calças.
A mulher estaria armada? Sim. Tinha algo atado à perna.
Jule deixou cair com força a sua bota nos ossos da mão de Noa. Houve um
som de esmagamento e Noa soltou um grito, mas com a sua outra mão ainda
estava a tentar agarrar o tornozelo de Jule, para a desequilibrar.
Jule apoiou-se à parede e pontapeou Noa no rosto. Enquanto a detetive se
retraía, encolhida, levando as duas mãos aos olhos para os proteger, Jule
arregaçou a perna das calças de ganga dela.
Havia uma arma atada à barriga da perna de Noa. Jule arrancou-a.
Apontou a arma a Noa e começou a recuar pelo corredor, arrastando a sua
mala sem deixar de ter a detetive sob a sua mira.
Quando chegou às escadas, virou-se e desceu-as a correr.
Ao sair pela porta traseira da estalagem, lançou um olhar aos caixotes do lixo
e aos carros estacionados no parque de estacionamento. Havia bicicletas
encostadas às paredes da parte de trás do edifício.
Não. Jule não podia ir de bicicleta, porque não podia deixar a mala.
Mais abaixo na encosta, a rua desembocava numa praça com um café.
Não, seria demasiado óbvio.
Jule atravessou a correr o parque de estacionamento da estalagem. Quando
dobrou a esquina do edifício, viu uma janela de um quarto de hóspedes na
parede lateral. Estava aberta na parte de cima.
Jule olhou para dentro do quarto.
Vazio. A cama estava feita.
Arrancou o mosquiteiro da janela e atirou-o para dentro do quarto. Enfiou a
mala pela abertura na parte de cima da janela – cabia à justa – e fê-la passar
pelos estores venezianos baratos. Atirou o seu saco de pôr ao ombro para
dentro do quarto e saltou para cima do parapeito da janela e daí para dentro do
quarto. Esfolou a pele, e aterrou com força no chão. A seguir, fechou a janela,
ajustou os estores, atirou as suas coisas e o mosquiteiro da janela para dentro da
casa de banho – e fechou-se ali dentro também.
A pensão era o último lugar onde Noa a procuraria.
Jule sentou-se na beira da banheira e forçou-se a respirar lentamente. Puxou
o fecho da mala e tirou dela a sua peruca ruiva. Despiu a T-shirt preta e vestiu
um top branco, a seguir pôs a peruca e escondeu o seu cabelo por baixo dela.
Fechou a mala.
Pegou na arma e enfiou-a na parte de trás da cintura das suas calças de
ganga, como vira fazer nos filmes.
Daí a um par de minutos, ouviu Noa passar pela janela do quarto de hotel. A
detetive estava a falar ao telefone e a mover-se lentamente. – Eu sei – disse
Noa.– Subestimei a situação, eu sei isso.
Uma pausa.– Era uma coisa ligeira, uma herdeira que fugiu, sabes? – Noa
parara de andar e era fácil de ouvir. – Uma rapariga tonta e rica numa grande
farra. Os indícios até ao momento fazem com que pareça que ela e a amiga
encenaram um suicídio que iria permitir que ambas vivessem à grande. As duas
combinaram fugir juntas. Queriam escapar às coisas do costume: ex-namorado
obsessivo, pais controladores. A amiga julgou que iam partilhar o dinheiro da
herdeira, mas a herdeira faz jogo duplo. Assume a identidade da amiga como
planeado e depois livra-se completamente da amiga... Um assassino contratado
é a nossa melhor suposição, provavelmente no Reino Unido. A amiga está
agora desaparecida, vista pela última vez em Londres em abril passado.
Entretanto, a herdeira, usando a identidade da amiga, foge com o dinheiro todo
e estaria a viver feliz, só que o namorado obsessivo não consegue acreditar que
ela se matou, por isso continua a atazanar a polícia. Finalmente, a polícia acaba
por pensar que ele deve ter alguma razão. Investigam o caso e acabam por
verificar que o cartão de crédito da amiga está a ser usado neste resort
mexicano.
Outra pausa enquanto Noa escutava. – Vá lá. Uma rapariga como ela, uma
rapariga de Vassar, não se espera uma ofensiva. Ninguém o esperaria. Ela mal
chega ao metro e cinquenta. Usa ténis de trezentos dólares. Não me podes
chamar à capa por isso.
Mais uma pausa, e a voz de Noa começou a desvanecer-se à medida que se ia
afastando. – Bem, envia alguém, porque preciso de cuidados médicos. A miúda
tem a minha arma. Sim, eu sei, eu sei. Envia-me só auxílio local, comprende?
Forrest enviara detetives. Jule compreendia isso agora. Ele nunca aceitara o
suicídio de Immie, suspeitara de Jule desde o início, e o que é que todas as suas
questões desconfiadas tinham revelado? Fora-lhe dito que Imogen cometera
uma fraude para se afastar dele e que a pobre Jule estava morta e não passara
de uma vítima crédula.
Jule saiu da casa de banho, rastejou pelo chão e acocorou-se por baixo da
janela para espreitar lá para fora. Noa ia a descer a encosta, agarrando o braço e
o ombro.
Vinha um autocarro supercabos a descer a estrada. Jule pegou na mala,
empurrou-a para o corredor e a seguir saiu da pensão por uma porta lateral.
Dirigiu-se calmamente para a berma da estrada e ergueu o braço.
O autocarro parou.
Ela respirou.
Noa não se virou.
Jule entrou pela parte da frente do autocarro.
Noa continuava a não se virar.
Jule pagou o bilhete e as portas do autocarro fecharam-se. Chegou um carro
ao lugar onde Noa estava parada, a amparar a sua mão fraturada. A detetive
mostrou o seu cartão de identificação à pessoa dentro do carro.
O autocarro arrancou na direção oposta. Jule sentou-se no assento gasto mais
perto do condutor.
O motorista pararia onde ela quisesse sair. Era assim que funcionava o
supercabos. – Quiero ir a la esquina de Ortiz y Ejido. Puede llevarme cerca de
allí? – perguntou Jule. À esquina de Ortiz e Ejido – era onde o funcionário do
hotel lhe dissera que havia um tipo que vendia carros usados a dinheiro. Sem
fazer perguntas.
O motorista do autocarro acenou com a cabeça.
Jule West Williams inclinou-se para a frente no assento.
Tinha quatro passaportes, quatro cartas de condução, três perucas, vários
milhares de dólares em dinheiro e um número de cartão de crédito que
pertencia a Forrest Smith-Martin, que serviria para comprar bilhetes de avião.
De facto, havia uma série de coisas que Jule poderia fazer com aquele cartão
de crédito de Smith-Martin. Poderia vingar-se de Forrest por todos os
problemas que lhe causara.
Era tentador.
Provavelmente, no entanto, não se daria a esse trabalho. Forrest não era nada
para Jule, agora que ela já não necessitava de ser Imogen Sokoloff.
Os últimos pedacinhos de Immie que tinham estado dentro de si deslizaram
para fora, como pedrinhas levadas de uma praia por uma maré a vazar.
Daí para a frente, Jule tornar-se-ia outra coisa completamente diferente.
Haveria outras pontes a atravessar e outros vestidos a usar. Mudara a
pronúncia, mudara o seu próprio ser.
Poderia voltar a fazê-lo.
Jule tirou o anel de jade com a víbora, atirou-o ao chão e ficou a vê-lo rolar
para a parte de trás do autocarro. Em Culebra, ninguém pedia para ver
documentos de identificação.
A arma dava uma sensação de calor contra as suas costas. Ela estava armada.
Não tinha um coração que pudesse partir-se.
Como um herói de um filme de ação, Jule West Williams ocupava o centro
da história.
NOTA DA AUTORA

Muitos, muitos livros e filmes me inspiraram para a escrita de História de


uma Fraude. Histórias vitorianas sobre órfãos, lendas de vigaristas, romances
de anti-heróis, filmes de ação, filmes noir, banda desenhada de super-heróis,
histórias contadas de trás para a frente, histórias sobre mobilidade social e
livros sobre as vidas de mulheres ferozmente ambiciosas e infelizes. O
romance que escrevi dá-me a sensação de conter camada sobre camada de
alusões. Não me é possível identificar individualmente tudo o que me
influenciou, mas tenho uma dívida particular para com O Talentoso Mr. Ripley,
de Patricia Highsmith, The Man in the Rockefeller Suit, de Mark Seal e
Grandes Esperanças, de Charles Dickens.
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus primeiros leitores pelo seu feedback detalhado: Ivy
Aukin, Coe Booth, Matt de la Peña, Justine Larbalestier e Zoey Peresman. Um
agradecimento ainda maior a Sarah Mlynowski, que leu múltiplos rascunhos. A
fotógrafa Heather Weston criou uma série de imagens maravilhosas inspiradas
pelo romance e acrescentou muito à minha compreensão da sua estética. Tenho
uma dívida para com Ally Carter, Laura Ruby, Anne Ursu, Robin Wasserman,
Scott Westerfeld, Gayle Forman, Melissa Kantor, Bob, Meg Wolitzer, Kate
Carr, Libba Bray e Len Jenkin pelo seu apoio e os seus conselhos. A minha
agente, Elizabeth Kaplan, tem sido uma campeã; o seu assistente, Brian
McGuffog, um enorme auxílio. Obrigada a Jane Harris e Emma Matthewson,
da HotKey, e a Eva Mills e Elise Jones, da Allen and Unwin, pelo seu
entusiasmo inicial. Obrigada a Ramona Jenkin pelas suas informações médicas
especializadas. A minha gratidão à equipa espantosa na Penguin Random
House, que inclui, mas não se limita a, John Adamo, Laura Antonacci,
Dominique Cimina, Kathleen Dunn, Colleen Fellingham, Anna Gjesteby,
Rebecca Gudelis, Christine Labov, Casey Lloyd, Barbara Marcus, Lisa Nadel,
Adrienne Waintraub – e especialmente à minha exigente, paciente e
encorajadora heroína de ação, a editora Beverly Horowitz. Obrigada à minha
família, próxima e distante, e a Daniel Aukin acima de tudo.

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