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Presidente Dutra – MA
2023
FLAVIO WILLIAN DE ARAUJO SILVA
Presidente Dutra - MA
2023
Silva, Flávio Willian de Araújo.
54 p.
CDU: 821.134.3:791
BANCA EXAMINADORA
___________________________
__
Prof.ª Esp.ª Francisca Fabiana da Conceição Cruz – Orientadora
_________________________________
Prof.ª Ma. Fausta Maria Miranda dos Reis
_________________________________
Prof.ª Esp.ª Laize Oliveira Silva
Porque sou eu que conheço os planos
que tenho para vocês", diz o Senhor,
"planos de fazê-los prosperar e não de
lhes causar dano, planos de dar-lhes
esperança e um futuro." - Jeremias 29:11
AGRADECIMENTOS
Este estudo propõe uma análise comparativa entre literatura e cinema, visando refletir sobre
o processo de transposição de uma obra da linguagem literária para a cinematográfica. Na
análise comparativa, busca-se identificar e analisar as transformações pelas quais o texto
passa durante o processo de adaptação, decorrentes das mudanças de suporte, contextos
diversos, modos de produção e públicos distintos. Para a realização dessa pesquisa, foram
levantados dois questionamentos, sendo esses: De que forma a adaptação cinematográfica
de obras literárias influencia a interpretação da narrativa, e quais são os desafios e
oportunidades encontrados nesse diálogo entre duas formas distintas de expressão artística?
Como a subversão de estereótipos na literatura pode impactar as percepções culturais
existentes e de que maneira os autores abordam essa estratégia para promover uma narrativa
mais inclusiva e reflexiva? Para responder, tem-se como objetivo geral averiguar a obra nas
perspectivas literária e cinematográfica. E de modo mais específicos, buscou-se identificar
as apresentações das características do Nordeste; analisar exposição da vida dos autores
Suassuna e Arraes, e a avaliação das adaptações realizadas tanto na literatura quanto no
cinema. E por fim, estabelecer conexões entre o campo literário e as adaptações
cinematográficas. A obra destaca-se pela centralidade atribuída ao sertão nordestino,
simbolizando não apenas sua geografia árida, mas também a resiliência e particularidades
da vida local. A abordagem literária e cinematográfica proporciona uma compreensão mais
profunda, explorando os matizes culturais e sociais da região. O foco do estudo recai sobre
a importância da identidade nordestina e como as representações artísticas desafiam ou
perpetuam estereótipos. A análise destaca as principais discrepâncias entre o livro e o filme,
com ênfase nos objetivos gerais de examinar a obra nas perspectivas literária e
cinematográfica. Essa abordagem procura estabelecer conexões entre o campo literário e as
adaptações cinematográficas. A metodologia empregada envolve uma revisão de literatura,
explorando conceitos e análises de renomados teóricos como Bazin (1991), Hutcheon
(2011), Pellegrini (2003), Johnson (1982), Wellek e Warren (1983), Bosi (2006), Cândido
(2006), Freyre (1951), Fukas
(2018), Gomes (2015), Júnior (2008), entre outros.
ABSCTRAT
This study proposes a comparative analysis between literature and cinema, aiming to reflect
on the process of transposing a work from literary to cinematic language. In comparative
analysis, we seek to identify and analyze the transformations that the text undergoes during
the adaptation process, resulting from changes in support, different contexts, modes of
production and different audiences. To carry out this research, two questions were raised,
namely: How does the film adaptation of literary works influence the interpretation of the
narrative, and what are the challenges and opportunities found in this dialogue between two
distinct forms of artistic expression? How can the subversion of stereotypes in literature
impact existing cultural perceptions and how do authors approach this strategy to promote a
more inclusive and reflective narrative? To respond, the aim is togeneral to investigate the
work from literary and cinematographic perspectives. And more specifically, we sought to
identify the presentations of the characteristics of the Northeast; analyze an exposition of
the lives of the authors Suassuna and Arraes, and evaluate the adaptations made in both
literature and cinema. And finally, establish connections between the literary field and
cinematographic adaptations. The work stands out for the centrality attributed to the
northeastern hinterland, symbolizing not only its arid geography, but also the resilience and
particularities of local life. The literary and cinematic approach provides a deeper
understanding, exploring the cultural and social nuances of the region. The focus of the
study is on the importance of northeastern identity and how artistic representations
challenge or perpetuate stereotypes. The analysis highlights the main discrepancies between
the book and the film, with an emphasis on the general objectives of examining the work
from literary and cinematic perspectives. This approach seeks to establish connections
between the literary field and cinematographic adaptations. The methodology used involves
a literature review, exploring concepts and analyzes from renowned theorists such as Bazin
(1991), Hutcheon (2011), Pellegrini (2003),Johnson (1982), Wellek and Warren (1983),
Bosi (2006), Cândido (2006), Freyre (1951), Fukas
(2018), Gomes (2015), Júnior (2008), among others.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................8
2 ENTRE LETRAS E CENAS: uma abordagem comparativa entre literatura e
cinema.......................................................................................................................10
3 SERTÃO EM PALAVRAS: explorando a identidade nordestina através da
literatura....................................................................................................................18
4 ENTRE FICÇÃO E REALIDADE “OS AUTOS DA COMPADECIDA: o sertão nas
teias dos estereótipos..............................................................................................25
4.1 Desvendando Suassuna: estereótipos em
análise...............................................30
4.2 Além da Comédia: os estereótipos em "O Auto da Compadecida" de Guel
Arrais..........................................................................................................................37
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................48
REFERÊNCIAS......................................................................................................51
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1 INTRODUÇÃO
Esta monografia tem como foco a investigação das interações entre literatura
e cinema, utilizando como conjunto de pesquisa a obra literária "O Auto da
Compadecida" de Ariano Suassuna e sua adaptação cinematográfica dirigida por
Guel Arraes. A análise dessas relações parte da premissa de que uma obra literária
oferece diversas interpretações, sendo a produção cinematográfica uma dessas
facetas. Importa ressaltar que, no estudo da adaptação, é intrínseco realizar
comparações, despertar curiosidades e empreender tentativas de identificar
similaridades e discrepâncias.
Considerando a contemporaneidade, uma sociedade predominantemente
visual com produtos culturais como cinema, telenovela e videoclipes, a análise da
transposição da linguagem literária para a audiovisual leva em consideração a
organização dos elementos formais nos suportes literário e audiovisual. Nesse
contexto, a pesquisa enfatizará o exame das personagens, enquanto outros
elementos serão abordados com menor profundidade.
A contextualização do cinema nacional é pertinente, pois a obra "O Auto da
Compadecida" reflete uma fase de restauração do prestígio da produção
cinematográfica brasileira. A transformação no cenário cinematográfico brasileiro,
com a ampliação da exibição de filmes nacionais, resulta da preocupação dos
produtores com a aceitação do público, culminando em reconhecimento
internacional.
O propósito desta pesquisa é compreender o processo de adaptação do texto
literário para o cinema, considerando a disparidade entre as linguagens do suporte
literário e do suporte audiovisual. A metodologia empregada envolve uma revisão de
literatura, explorando conceitos e análises de renomados teóricos como Bazin
(1991), Hutcheon (2011), Pellegrini (2003), Johnson (1982), Wellek e Warren (1983),
Bosi (2006), Cândido (2006), Freyre (1951), Fukas (2018), Gomes (2015), Júnior
(2008), entre outros.
Este trabalho tem como justificativa, a relevância da representação cultural na
obra "O Auto da Compadecida" como meio de construção da identidade regional.
Uma vez que o foco esteve voltado em mostrar marcas culturais específicas da
região nordestina e como elas são refletidas na obra, evidenciando a riqueza e
diversidade dessa tradição. Destacando os desafios e oportunidades que surgem
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literatura comparada e a literatura geral, uma vez que ambas já foram colocadas
como pertences de uma mesma definição.
Concernente as discussões que vem sendo feita em relação a literatura
comparada, observa-se que:
emoções, uma vez que a expressão literária atua como forma de escape e permite a
liberação das emoções, proporcionando um senso de ruptura e emancipação. No
entanto, segundo Wellek e Warren (1983, p.41), as emoções representadas na
literatura não se equiparam às experiências da "vida real", sendo cuidadosamente
moldadas e liberadas por meio da análise e percepção emocional.
Conforme Wellek e Warren (1983, p.33) destacam, quando uma obra literária
cumpre sua função com sucesso, prazer e utilidade, não apenas coexistem, mas se
fundem. O prazer na literatura reside na contemplação, enquanto a utilidade é
tratada com seriedade para a aquisição de lições, tanto estéticas quanto
relacionadas à percepção dos valores transmitidos. A literatura, ao transfigurar a
natureza humana, desempenha um papel crucial na cultura da sociedade,
registrando as observações e sentimentos do escritor diante do processo
sociocultural. Isso confere à escrita uma função artística e social
A literatura vai além da fuga da realidade para a fantasia, ela desempenha um
papel fundamental na sociedade. De acordo com Aristóteles e Platão, a literatura é a
mimese, uma representação da realidade e da vida. Existe uma relação estreita
entre a ficção e a realidade, incorporando à sociedade elementos identificáveis ou
desejáveis. No entanto, é crucial lembrar que as obras literárias são formas de arte,
expressando o que sentimos e desejamos comunicar, moldadas pela visão dos
criadores e artistas. Ainda nos escritos de Wellek e Warren (1983), ao abordarem a
obra literária como uma forma de arte, é afirmado que:
Isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o
indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica
entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma
posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas
expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra
dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a
consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre
criador e público (Cândido, 2006, p. 83-84).
dois nordestinos pobres, João Grilo e Chicó, que vivem de golpes. Eles sempre
enganam os moradores do pequeno vilarejo de Taperoá, interior da Paraíba, para
saírem de situações difíceis que a vida lhes impõe, incluindo o aparecimento do
temido cangaceiro Severino de Aracaju, que era conhecido por promover o caos por
onde passava. Este longa-metragem utiliza elementos dramáticos populares
contidos na dramaturgia medieval e na literatura de cordel para representar figuras
importantes da cultura nordestina, como o cangaceiro e o sertanejo pobre.
O Nordeste, a seca e a pobreza eram temas centrais relevantes, fosse pela
mídia ou nas conversas entre amigos, levando à construção e divulgação de uma
imagem única de uma região tão vasta geográfica e culturalmente. A divulgação de
imagens de tragédias ocorridas no Nordeste é uma característica inerente às
relações de poder que colocam a região no polo negativo. Alves (2022) destaca que
o Nordeste é visto como um espaço de negação por meio de filmes, seriados, cenas
de novelas, trejeitos de personagens supostamente nordestinos e, claro, das
vestimentas utilizadas. Diante disso, além de caracterizar os personagens com o
que é percebido como realidade, a vestimenta também traz à tona o tempo e o lugar
onde a narrativa se passa.
Portanto, para Alves (2022), eventuais lapsos relacionados à indumentária
dos intérpretes podem causar ruídos na comunicação com o público, pois o
espectador pode não assimilar a obra ao que ela busca retratar, interferindo em sua
autenticidade, ou seja, em sua proximidade com a realidade pretendida na narrativa.
Assim, o teórico destaca que os figurinos dos personagens são elaborados com
elementos que sugerem o que a sociedade considera realidade, visando facilitar a
assimilação do que é mostrado à pessoa figurada. Os clichês e os arquétipos são
frequentemente usados porque pressagiam uma rápida assimilação, uma vez que
são o resultado de um conjunto de traços sociais pré-estabelecidos.
O filme "O Auto da Compadecida" foi um grande sucesso no Prêmio do
Cinema Brasileiro em 2001, ganhando os seguintes prêmios: Guel Arraes de Melhor
Diretor e Matheus Nachtergaele de Melhor Ator por seus papéis como João Grilo,
Adriana Falcão, João Falcão e Guel de Melhor Roteiro Arraes e Melhor Lançamento.
Diante disso, é de suma importância compreender a forma como o Nordeste é
retratado no filme em questão, pois este pressupõe que afirmações que começam a
se estabelecer no imaginário do espectador como verdades absolutas possam ser
recriadas e divulgadas por meio de audiovisuais.
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Paralelo a isso, Fuks (2018) destaca que a linguagem quase lúdica, marcada
pela espontaneidade, é uma das marcas da prosa do escritor, agregando elegância
ao drama. Outro aspecto que contribui para esse problema é a construção dos
personagens, que muitas vezes são caricaturados para trazer mais comédia à
trama.
O Auto da Compadecida é uma obra marcada por uma linguagem de cunho
regional, ou seja, uma forma de oralidade para expressar o regionalismo do
Nordeste. Aspectos do Nordeste buscam a autenticidade da região, desde a
linguagem até o uso de objetos típicos, trajes e até paisagens sertanejas, elementos
que imergem o espectador na narrativa.
De forma descontraída e bem-humorada, a obra mostra cenas do drama
vivido pelos nordestinos na seca, na fome e na luta contra a pobreza. Oprimidos que
encontram na esperteza e na criminalidade do sertão sua forma de sobrevivência. A
peça é considerada um desdobramento do modernismo, também conhecido como
45ª Geração, devido à discussão da moralidade incluindo religião e temas mundiais
adaptados à realidade do Nordeste. A peça tem um aspecto literário de cordel com
fortes características nordestinas, próximas ao barroco católico brasileiro.
Conforme ressalta Gomes (2015), as definições de cultura são variadas e
moldadas de acordo com o olhar aguçado do pesquisador e as observações da
realidade em estudo, seja uma sociedade particular como uma tribo, nação, região
ou organização, que tem suporte mediato e imediato. Nesse sentido, o estudo das
culturas brasileira e nacional se desenvolveu ao longo do tempo na tentativa de
compreender melhor essa heterogeneidade e especificidade.
Ainda de acordo com Gomes (2015, p. 509): "Estamos acostumados a falar
da cultura brasileira no singular assim, como se existisse uma unidade que unisse
todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro". Contudo, a
concepção de singularidade pode representar um risco ao considerar a
particularidade de diversas regiões e localidades. Estas áreas abrigam distintos
costumes, comunidades, tradições e valores exclusivos, os quais são apreciados
pelos residentes, compartilhados ou moldam percepções específicas da cultura
naquele contexto.
Nesse bojo, Gomes (2015) evidencia que do ponto de vista internacional, os
estudos comparativos na perspectiva da aculturação têm apresentado um grande
número de estudos que enfatizam diferenças entre regiões ou países, porém, não
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ANTÔNIO MORAIS
[...] quer insinuar? Quer dizer por acaso que a mãe dele...
PADRE
Mas, uma cachorra!...
ANTÓNIO MORAIS
O quê?
PADRE
Uma cachorra.
ANTÓNIO MORAIS
Repita.
PADRE
Não vejo nada de mal em repetir, não é uma cachorra mesmo?
ANTÔNIO MORAIS
Padre, não o mato agora mesmo porque o senhor é um padre e está louco, mas vou me queixar
ao bispo. [...]
(Auto da Compadecida, 1955 p.48)
CHICÓ
[...] Eu mesmo já tive um cavalo bento.
JOÃO GRILO
Que é isso, Chico? (Passa o dedo na garganta.) Já estou ficando por aqui com suas histórias. É
sempre uma coisa toda esquisita.
Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não sei, só sei que foi assim”.
CHICÓ
Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive?
JOÃO GRILO
[...] Mas seu cavalo, como foi?
CHICÓ
Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo cuidado, porque o
cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma
vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem um
momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço e
enchocalhei ares, olhei ao redor, e não conhecia o lugar onde estávamos. Tomei uma vereda que
havia assim e aí tangendo o boi...
JOÃO GRILO
O boi? Não era uma garrota?
CHICÓ
Uma garrota e um boi.
JOÃO GRILO
E você corria atrás do dois de uma vez?
CHICÓ, irritado
Corria, é proibido?
JOÃO GRILO
Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos, sem me apertarem. Como foi isso?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim. Saí tangendo os bois e de repente avistei uma cidade. É uma história
que eu não goste nem de contar [...]
(Auto da Compadecida, 1955, p. 25)
representa um sujeito refugiado de sua própria história num "reino dos mistérios,
onde o maravilhoso se mistura à mais cruel realidade e lhe dá sentido". Chicó se
transforma em um exímio contador de histórias fantásticas, fantasiosa e mentirosas
para camuflar sua vida difícil.
João Grilo emerge como o principal foco de atenção de Suassuna.
Demonstrando uma visão à frente de seu tempo, o autor evita uma tendência que se
tornou comum na contemporaneidade: a santificação ou idealização de indivíduos
pertencentes a grupos historicamente injustiçados, como negros, homossexuais e
índios. Diversos termos descrevem esses estereótipos bem-intencionados.
O "Bom Selvagem", por exemplo, refere-se a personagens indígenas, ou que
remetem a eles, retratados como seres puros e belos que não foram corrompidos
pela civilização. O "Melhor Amigo Gay", cujos conselhos repletos de humor auxiliam
o protagonista heterossexual em suas conquistas amorosas. Personagens negros,
como apontado de maneira perspicaz por Spike Lee, são estereotipados como o
"Super Negro Mágico", que, assim como o "Melhor Amigo Gay", parece não ter
função na vida além de oferecer conselhos ao protagonista branco, embora
enquanto o "Melhor Amigo Gay" é espirituoso e brincalhão, o "Super Negro Mágico"
irradia sabedoria adquirida em sua ampla experiência.
A intenção benevolente por trás desses estereótipos é evidente: retratar
pessoas brancas heterossexuais, frequentemente, ricas e/ou poderosas,
aprendendo com as minorias que foram oprimidas por aqueles com o mesmo perfil
dominante ao longo do tempo. Contudo, essa abordagem resulta na criação de
novos estereótipos, ironicamente perpetuando a noção de inferioridade, pois as
minorias continuam a servir a essas mesmas pessoas. Assim, essas obras insinuam
constantemente que o mundo depende das pessoas brancas, heterossexuais e ricas
para manter seu funcionamento, reforçando a ideia de que elas são o epicentro de
tudo.
No "Auto da Compadecida", Suassuna evita essa abordagem ao elevar João
Grilo, o sertanejo humilde, à posição de protagonista e elemento central da trama.
Seria simples transformá-lo em um ícone de simplicidade e bondade,
assemelhando-se desconfortavelmente a um "Bom Selvagem" brasileiro, um
personagem coadjuvante na narrativa, por exemplo, do padeiro e sua esposa, os
quais aprenderiam valiosas lições de vida com ele. Contudo, o autor, dotado de um
progressismo avantajado para a época, semelhante à abordagem de Mário de
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Figura 1. Cena de Jesus e Nossa Senhora e Jesus conversando após salvar João Grilo.
Reprodução/Youtube.
A concepção da adaptação do “Auto da Compadecida” para televisão e
cinema já contemplava a ênfase nos coadjuvantes da peça desde a fase de pré-
produção. Esse enfoque resultou não apenas em maior proeminência para os
personagens secundários já existentes, mas também na introdução de novos
elementos, como Rosinha, o Cabo Setenta e Vicentão.
Os dois últimos personagens encapsulam a representação do mesmo
estereótipo, porém em contextos distintos: o do macho alfa. Vicentão personifica o
estereótipo universal do valentão, a ponto de seu próprio nome evocar a
característica que o define. Contudo, Arraes adota uma abordagem satírica desde a
primeira aparição do personagem. O ator que interpreta Vicentão, Bruno Garcia,
entrega uma performance caricatural de maneira divertida, acentuando o queixo,
inflando o peito e modificando a voz a tal ponto que a simples fala do personagem
se torna cômica. Como toque final, Garcia, por meio do olhar, deixa claro que a
inteligência não é a qualidade dominante de Vicentão.
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você era matar um pouco de você dentro do meu coração. Eu tinha tanto medo de
perder você de vez que vim tentando perder você aos poucos!" Ao voltar a qualquer
cena em que Dora estava "tentando perder Eurico aos pouquinhos", inclusive
insinuando-se para Severino e para o Diabo, percebe-se que essa justificativa não
faz sentido, parecendo uma catarse emocional simplista, que ainda coloca toda a
culpa sobre a mulher. Posteriormente, na cena do julgamento, o perdão concedido
por Eurico à esposa antes da morte é usado como motivo para salvar os dois da
condenação. O mérito é unicamente dele, deixando Dora estigmatizada como o
estereótipo da "mulher sonsa".
As narrativas fantasiosas de Chicó recebem uma representação visual repleta
de imagens que evocam xilogravuras e, pode-se dizer, seguem uma tradição de
artistas plásticos nordestinos, transformando Chicó em um meio para o riquíssimo
folclore nordestino que Suassuna tanto buscava disseminar na cultura brasileira. A
caracterização de Chicó é única, apresentando elementos de composição gráfica
visual: são animações ilustradas e animadas, assemelhando-se a recortes de papel,
técnica popularizada pelo filme "Uma Cilada Para Roger Rabbit" (1988).
As subtramas adicionais também proporcionam a Arraes a oportunidade de
revelar um aspecto menos desolador e mais animado de Taperoá. É no Dia da
Padroeira que Rosinha faz sua primeira aparição no filme e o romance entre ela e
Chicó se desenha. Os personagens surgem em meio a barracas de jogos,
carrosséis e rodas-gigantes, com a igrejinha adornada por belas luzes, criando um
momento de serenidade e leveza que quebra o estigma associado ao sertão
nordestino mantido até então.
Existe, também, uma alteração no tom entre a obra original e a adaptação: no
"Auto da Compadecida" de Suassuna, a peça é introduzida pelo Palhaço, que não
apenas se comunica diretamente com o público, mas também interage com os
personagens. Ele instrui os atores a alterar o cenário entre os atos e pede à plateia
que imagine o ambiente conforme sua indicação. O Palhaço comenta os
acontecimentos da trama e, em certo momento, pede desculpas à audiência pela
carnificina dos cangaceiros, justificando que era necessária para o desenvolvimento
da história. Os monólogos do personagem sempre carregam um tom irônico, como
se considerasse outros dignos de escárnio.
O filme renuncia a esses elementos e adota completamente a linguagem
cinematográfica, sem empregar recursos metalinguísticos. Ao mesmo tempo,
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Reprodução/Youtube
Reprodução/Youtube
Por fim, temos a Nossa Senhora de Compadecida, que aparece no filme
como uma mulher madura, diferente de sua imagem tradicional. A escolha do papel
parece ter sido construída a partir da imagem da atriz Fernanda Montenegro, ícone
do teatro nacional, que se encaixava no papel (Souza, 2016). Por sua simpatia pelos
humanos, a Compadecida no filme tem a função de advogada de defesa: é ela quem
media a relação entre o céu e a terra. Essa figura religiosa existe no imaginário
cultural dos brasileiros, principalmente dos nordestinos, que nela encontram a única
saída para seus maiores medos e angústias, por considerá-la mais próxima do que
outras figuras celestes, como podemos observar no trecho a seguir, como também
visto no filme.
JOÃO GRILO
[...] Meu trunfo é maior do que qualquer santo.
MANUEL
Quem é?
JOÃO GRILO
A mãe da justiça.
ENCOURADO, rindo Ah, a mãe da justiça! Quem é essa?
MANUEL
Não ria, porque ela existe.
BISPO
E quem é?
MANUEL
A misericórdia.
SEVERINO
Foi coisa que nunca conheci. Onde mora? E como chamá-la?
JOÃO GRILO
Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?
(Recitando).
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Reprodução/Youtube.
Esse sentimento emocional de que todos são dotados permite efeito estético,
fruição e prazer do espectador rendido. Uma sala escura, pausas nos movimentos e
um comprometimento excessivo das funções visuais e auditivas tornam o processo
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. 45 ed. São Paulo: Cultrix. 2006.
DINIZ, Thaís Flores Nogueira. Literatura e cinema. Ouro Preto: UFOP, 1999.
PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, Cinema e Televisão. São Paulo: Editora Itaú
Cultural, 2003.