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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO

CENTRO DE ESTUDOS SUPERIORES DE PRESIDENTE DUTRA


CURSO DE LETRAS LICENCIATURA EM LÍNGUA PORTUGUESA E LITERATURA
DE LÍNGUA PORTUGUESA

FLAVIO WILLIAN DE ARAUJO SILVA

DA LITERATURA AO CINEMA: explorando a representação da cultura nordestina e


estereótipos na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

Presidente Dutra – MA
2023
FLAVIO WILLIAN DE ARAUJO SILVA

DA LITERATURA AO CINEMA: explorando a representação da cultura nordestina e


estereótipos na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

Monografia apresentada ao Curso de Letras


Licenciatura em Língua Portuguesa e
Literatura de Língua Portuguesa da
Universidade Estadual do Maranhão-UEMA,
para a obtenção do grau de Licenciado em
Letras Língua Portuguesa e Literatura de
Língua Portuguesa.

Orientadora: Profª. Esp. Francisca Fabiana da


Conceição Cruz.

Presidente Dutra - MA
2023
Silva, Flávio Willian de Araújo.

Da Literatura ao cinema: explorando a representação da


cultura nordestina e estereótipos na obra O Auto da Compadecida, de
Ariano Suassuna. / Flávio Willian de Araújo Silva. – Pesidente Dutra (MA), 2023.

54 p.

TCC (Curso de Letras Licenciatura em Língua Portuguesa e Literatura de Língua


Portuguesa) Universidade Estadual do Maranhão - Campus Presidente Dutra (MA), 2023.

Orientadora: Profa. Esp. Francisca Fabiana da Conceição Cruz.

1. Auto da Compadecida. 2. Cinema. 3. Identidade nordestina. 4. Estereótipos. I. Título.

CDU: 821.134.3:791

Elaborado por Luciana de Araújo - CRB 13/445


FLAVIO WILLIAN DE ARAUJO

DA LITERATURA AO CINEMA: explorando a representação da cultura nordestina e


estereótipos na obra O Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna.

Monografia apresentada ao Curso de Letras


Licenciatura em Língua Portuguesa e
Literatura de Língua Portuguesa da
Universidade Estadual do Maranhão-UEMA,
para a obtenção do grau de Licenciado em
Letra Língua Portuguesa e Literatura de
Língua Portuguesa.

BANCA EXAMINADORA

___________________________
__
Prof.ª Esp.ª Francisca Fabiana da Conceição Cruz – Orientadora

_________________________________
Prof.ª Ma. Fausta Maria Miranda dos Reis

_________________________________
Prof.ª Esp.ª Laize Oliveira Silva
Porque sou eu que conheço os planos
que tenho para vocês", diz o Senhor,
"planos de fazê-los prosperar e não de
lhes causar dano, planos de dar-lhes
esperança e um futuro." - Jeremias 29:11
AGRADECIMENTOS

Agradeço em primeiro lugar a Deus, fonte de toda sabedoria e força que me


possibilitou alcançar este momento significativo em minha jornada acadêmica. À
minha esposa, Tania Regina, expresso minha profunda gratidão por seu amor
incondicional e apoio constante que foram pilares fundamentais durante todo o
percurso da minha vida acadêmica.
À minha família, representada pelo meu pai, Antônio Jose, e minha mãe,
Antônia Neres, dedico minha gratidão pela inspiração, valores e incentivo ao longo
dos anos. Suas presenças foram um alicerce sólido em minha trajetória.
Não poderia deixar de mencionar minha extensa rede de amigos e colegas,
cuja amizade e companheirismo tornaram essa jornada mais leve e repleta de
significado. Cada interação e apoio foram essenciais para o meu crescimento
pessoal e acadêmico.
À minha orientadora pedagógica, Francisca Fabiana da Conceição Cruz,
expresso minha sincera gratidão pela orientação competente, paciência e dedicação
ao longo do processo de elaboração deste trabalho. Sua expertise e apoio foram
fundamentais para o desenvolvimento do meu TCC.
Gostaria de expressar minha profunda gratidão ao corpo docente da
universidade pela orientação e conhecimentos valiosos que me foram
proporcionados. Suas contribuições foram fundamentais para o meu crescimento
acadêmico. Além disso, desejo estender meus agradecimentos à equipe de apoio
aos estudantes, secretarias e demais profissionais envolvidos, cuja dedicação e
eficiência tornaram possível o meu percurso acadêmico de maneira mais fluida e
enriquecedora.
À direção da universidade, agradeço pela visão inspiradora e pelo ambiente
educacional propício ao aprendizado e à excelência. Esta jornada não teria sido a
mesma sem o apoio e a orientação dessa comunidade acadêmica excepcional.
Muito obrigado por serem parte fundamental do meu sucesso acadêmico.
A todos que de alguma forma contribuíram para o sucesso deste trabalho, meu
mais profundo agradecimento. Este é um momento de celebração compartilhado
com todos que fizeram parte desta jornada e cada um de vocês tem um lugar
especial em meu coração. Muito obrigado!
RESUMO

Este estudo propõe uma análise comparativa entre literatura e cinema, visando refletir sobre
o processo de transposição de uma obra da linguagem literária para a cinematográfica. Na
análise comparativa, busca-se identificar e analisar as transformações pelas quais o texto
passa durante o processo de adaptação, decorrentes das mudanças de suporte, contextos
diversos, modos de produção e públicos distintos. Para a realização dessa pesquisa, foram
levantados dois questionamentos, sendo esses: De que forma a adaptação cinematográfica
de obras literárias influencia a interpretação da narrativa, e quais são os desafios e
oportunidades encontrados nesse diálogo entre duas formas distintas de expressão artística?
Como a subversão de estereótipos na literatura pode impactar as percepções culturais
existentes e de que maneira os autores abordam essa estratégia para promover uma narrativa
mais inclusiva e reflexiva? Para responder, tem-se como objetivo geral averiguar a obra nas
perspectivas literária e cinematográfica. E de modo mais específicos, buscou-se identificar
as apresentações das características do Nordeste; analisar exposição da vida dos autores
Suassuna e Arraes, e a avaliação das adaptações realizadas tanto na literatura quanto no
cinema. E por fim, estabelecer conexões entre o campo literário e as adaptações
cinematográficas. A obra destaca-se pela centralidade atribuída ao sertão nordestino,
simbolizando não apenas sua geografia árida, mas também a resiliência e particularidades
da vida local. A abordagem literária e cinematográfica proporciona uma compreensão mais
profunda, explorando os matizes culturais e sociais da região. O foco do estudo recai sobre
a importância da identidade nordestina e como as representações artísticas desafiam ou
perpetuam estereótipos. A análise destaca as principais discrepâncias entre o livro e o filme,
com ênfase nos objetivos gerais de examinar a obra nas perspectivas literária e
cinematográfica. Essa abordagem procura estabelecer conexões entre o campo literário e as
adaptações cinematográficas. A metodologia empregada envolve uma revisão de literatura,
explorando conceitos e análises de renomados teóricos como Bazin (1991), Hutcheon
(2011), Pellegrini (2003), Johnson (1982), Wellek e Warren (1983), Bosi (2006), Cândido
(2006), Freyre (1951), Fukas
(2018), Gomes (2015), Júnior (2008), entre outros.

Palavras-Chave: Auto da Compadecida; Cinema; Identidade nordestina; Estereótipos.

ABSCTRAT

This study proposes a comparative analysis between literature and cinema, aiming to reflect
on the process of transposing a work from literary to cinematic language. In comparative
analysis, we seek to identify and analyze the transformations that the text undergoes during
the adaptation process, resulting from changes in support, different contexts, modes of
production and different audiences. To carry out this research, two questions were raised,
namely: How does the film adaptation of literary works influence the interpretation of the
narrative, and what are the challenges and opportunities found in this dialogue between two
distinct forms of artistic expression? How can the subversion of stereotypes in literature
impact existing cultural perceptions and how do authors approach this strategy to promote a
more inclusive and reflective narrative? To respond, the aim is togeneral to investigate the
work from literary and cinematographic perspectives. And more specifically, we sought to
identify the presentations of the characteristics of the Northeast; analyze an exposition of
the lives of the authors Suassuna and Arraes, and evaluate the adaptations made in both
literature and cinema. And finally, establish connections between the literary field and
cinematographic adaptations. The work stands out for the centrality attributed to the
northeastern hinterland, symbolizing not only its arid geography, but also the resilience and
particularities of local life. The literary and cinematic approach provides a deeper
understanding, exploring the cultural and social nuances of the region. The focus of the
study is on the importance of northeastern identity and how artistic representations
challenge or perpetuate stereotypes. The analysis highlights the main discrepancies between
the book and the film, with an emphasis on the general objectives of examining the work
from literary and cinematic perspectives. This approach seeks to establish connections
between the literary field and cinematographic adaptations. The methodology used involves
a literature review, exploring concepts and analyzes from renowned theorists such as Bazin
(1991), Hutcheon (2011), Pellegrini (2003),Johnson (1982), Wellek and Warren (1983),
Bosi (2006), Cândido (2006), Freyre (1951), Fukas
(2018), Gomes (2015), Júnior (2008), among others.

Key words: Auto da Compadecida; Movie theater; Northeastern identity; Stereotypes.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO..........................................................................................................8
2 ENTRE LETRAS E CENAS: uma abordagem comparativa entre literatura e
cinema.......................................................................................................................10
3 SERTÃO EM PALAVRAS: explorando a identidade nordestina através da
literatura....................................................................................................................18
4 ENTRE FICÇÃO E REALIDADE “OS AUTOS DA COMPADECIDA: o sertão nas
teias dos estereótipos..............................................................................................25
4.1 Desvendando Suassuna: estereótipos em
análise...............................................30
4.2 Além da Comédia: os estereótipos em "O Auto da Compadecida" de Guel
Arrais..........................................................................................................................37
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................48
REFERÊNCIAS......................................................................................................51
8

1 INTRODUÇÃO

Esta monografia tem como foco a investigação das interações entre literatura
e cinema, utilizando como conjunto de pesquisa a obra literária "O Auto da
Compadecida" de Ariano Suassuna e sua adaptação cinematográfica dirigida por
Guel Arraes. A análise dessas relações parte da premissa de que uma obra literária
oferece diversas interpretações, sendo a produção cinematográfica uma dessas
facetas. Importa ressaltar que, no estudo da adaptação, é intrínseco realizar
comparações, despertar curiosidades e empreender tentativas de identificar
similaridades e discrepâncias.
Considerando a contemporaneidade, uma sociedade predominantemente
visual com produtos culturais como cinema, telenovela e videoclipes, a análise da
transposição da linguagem literária para a audiovisual leva em consideração a
organização dos elementos formais nos suportes literário e audiovisual. Nesse
contexto, a pesquisa enfatizará o exame das personagens, enquanto outros
elementos serão abordados com menor profundidade.
A contextualização do cinema nacional é pertinente, pois a obra "O Auto da
Compadecida" reflete uma fase de restauração do prestígio da produção
cinematográfica brasileira. A transformação no cenário cinematográfico brasileiro,
com a ampliação da exibição de filmes nacionais, resulta da preocupação dos
produtores com a aceitação do público, culminando em reconhecimento
internacional.
O propósito desta pesquisa é compreender o processo de adaptação do texto
literário para o cinema, considerando a disparidade entre as linguagens do suporte
literário e do suporte audiovisual. A metodologia empregada envolve uma revisão de
literatura, explorando conceitos e análises de renomados teóricos como Bazin
(1991), Hutcheon (2011), Pellegrini (2003), Johnson (1982), Wellek e Warren (1983),
Bosi (2006), Cândido (2006), Freyre (1951), Fukas (2018), Gomes (2015), Júnior
(2008), entre outros.
Este trabalho tem como justificativa, a relevância da representação cultural na
obra "O Auto da Compadecida" como meio de construção da identidade regional.
Uma vez que o foco esteve voltado em mostrar marcas culturais específicas da
região nordestina e como elas são refletidas na obra, evidenciando a riqueza e
diversidade dessa tradição. Destacando os desafios e oportunidades que surgem
9

nesse diálogo entre literatura e cinema. Outrossim, a presente pesquisa também se


justifica na maneira em como os autores utilizam essa abordagem para promover
uma narrativa mais inclusiva e reflexiva, contribuindo para uma compreensão mais
ampla e crítica da cultura regional.
Diante disso, a presente pesquisa esteve voltada para responder as seguintes
perguntas: De que forma a adaptação cinematográfica de obras literárias influencia a
interpretação da narrativa, e quais são os desafios e oportunidades encontrados
nesse diálogo entre duas formas distintas de expressão artística? Como a subversão
de estereótipos na literatura pode impactar as percepções culturais existentes e de
que maneira os autores abordam essa estratégia para promover uma narrativa mais
inclusiva e reflexiva?
Para que essas problemáticas fossem respondidas, foi necessário traçar
alguns objetivos, de maneira geral, buscou-se averiguar a obra nas perspectivas
literária e cinematográfica. E de modo mais específicos, buscou-se identificar as
apresentações das características do Nordeste; analisar exposição da vida dos
autores Suassuna e Arraes, e a avaliação das adaptações realizadas tanto na
literatura quanto no cinema. E por fim, estabelecer conexões entre o campo literário
e as adaptações cinematográficas.
Deste moto, o presente estudo propõe uma investigação abrangente da
identidade nordestina, evidenciando suas raízes profundas e sua expressão na
literatura e na adaptação cinematográfica de "O Auto da Compadecida". A análise se
estende ao universo cinematográfico, examinando de forma crítica a representação
do Nordeste na obra em análise. Assim, a pesquisa busca compreender como essa
adaptação influencia a percepção pública, questionando estereótipos e narrativas
preconcebidas.
10

2 ENTRE LETRAS E CENAS: uma abordagem comparativa entre literatura e


cinema

Inicialmente, coloca-se em evidencia que a presente pesquisa se baseia a


partir de uma perspectiva da literatura comparada, Carvalhal (2006) pontua que a
comparação acentua que a literatura comparada “não é um método específicos, mas
um procedimento mental que favorece a generalização ou a diferenciação”, isso por
que a comparação faz parte da sociedade, uma vez que integram um conjunto de
pensamentos que compõem as conjecturas de um sujeito.
Nesse sentido, conforme os estudos realizados por Carvalhal (2006 p. 20), o
ato de fazer uma comparação entre uma ou mais obras com o intuito de fazer um
juízo de valor, visando, sobretudo, identificar o que está sendo transmitido de forma
igual e o que está sendo posto de forma diferente, é o principal intuito da literatura
comparada, uma vez que é responsável por verificar se a afiliação feita entre uma
obra e um filme, por exemplo, está sendo transmitido de forma fiel o que se passa
dentro das duas narrativas.
Para Carvalhal (2006):

Pode-se dizer, então, que a literatura comparada compara não pelo


procedimento em si, mas porque, como recurso analítico e interpretativo, a
comparação possibilita a esse tipo de estudo literário uma exploração
adequada de seus campos de trabalho e o alcance dos objetivos a que se
propõe (2006, p. 8).

Assim, a literatura comparada não realiza essa comparação somente pelo


procedimento, mas por que esse estilo de estudo que é realizado dentro de diversas
áreas de conhecimento abre caminho para que haja uma exploração detalhada do
trabalho feito e dos objetivos propostos diante da abordagem. Vale ressaltar que a
teoria da literatura comparada não é um termo recente, como coloca em evidência
Carvalhal (2006, p. 9), ela existe desde a Idade Média, aparecendo inicialmente nos
escritos de Francis Meres e nos estudos realizados por William Fulbecke.
Van Tieghem, um autor que busca realizar um estudo a respeito da definição
do que é a literatura comparada, acentua que o objeto de estudo desse estilo de
literatura é, justamente, realizar um estudo acerca da relação que há entre as
diversas literaturas. Este mesmo autor, busca evidenciar a diferença entre a
11

literatura comparada e a literatura geral, uma vez que ambas já foram colocadas
como pertences de uma mesma definição.
Concernente as discussões que vem sendo feita em relação a literatura
comparada, observa-se que:

A literatura comparada, sendo uma atividade crítica, não necessita excluir o


histórico (sem cair no historicismo), mas ao lidar amplamente com dados
literários e extraliterários ela fornece à crítica literária, à historiografia
literária e à teoria literária uma base fundamental. Todas essas disciplinas
concorrem em conjunto para o estudo do literário, resguardada a
especificidade de cada uma (Carvalhal, 2006, p. 40).

Assim, a literatura comparada é uma atividade crítica que fornece uma


historiografia para a crítica literária e para a teoria literária, bem como fornece uma
base essencial para realizar estudos dentro do universo literário, mediante a
singularidade que elas possuem, além disso, nota-se que a literatura comparada não
precisa deixar de lado o que é histórico.
Por um longo período, a literatura ocupou uma posição de superioridade e
maior prestígio em comparação ao cinema. Era vista como um campo de
conhecimento de qualidade superior, enquanto ao cinema cabia o papel de
entretenimento e lazer. Contudo, com o tempo, o cinema também passou a ser
reconhecido como um domínio de saber, capaz de proporcionar conhecimento e
reflexão, sendo objeto de estudo e análises diversas.
Nesse contexto, Xavier (2003), ao discutir a influência do texto literário na
formação do cinema, destaca que o romance do século XIX teve impacto
significativo na forma de narrar do cinema. Brito (2006, p. 4) corrobora essa relação,
afirmando que, em seus primórdios, o cinema preferiu seguir o modelo convencional
dos romances do século XIX, "contando uma história com começo, meio e fim, e
assumindo ser três coisas ao mesmo tempo: ficcional, narrativo e representacional".
Fica evidente que a relação entre literatura e cinema é tão antiga quanto o próprio
cinema, uma vez que a construção dessas duas formas artísticas se baseia na
afinidade existente entre elas.
Ao contrário do que se pode pensar comumente, não apenas o cinema se
inspira na literatura, mas também o oposto ocorre. Nessa perspectiva, Epstein
(1983, p. 269) destaca a relação recíproca entre essas duas formas artísticas,
afirmando que "a literatura moderna está saturada de cinema [...] esta arte
12

misteriosa muito assimilou da literatura". Para Epstein, literatura e cinema não se


opõem ou se anulam, mas, pelo contrário, aproximam o leitor ou espectador da vida
criada pela arte, proporcionando o prazer da descoberta e da construção de sentidos
diversos.
Esse raciocínio também é respaldado por Johnson em seu livro "Literatura e
cinema: Macunaíma: do modernismo na literatura ao cinema novo", publicado em
1982, onde o autor destaca que o cinema se aproxima da literatura pela
narratividade. O autor destaca:

O romance e o filme são basicamente iguais em termos de capacidade de


significar. Eles significam, sim, diferentemente. Os dois meios, porém, usam
e distorcem o tempo e o espaço, e ambos tendem a usar linguagem
figurativa ou metafórica (Johnson, 1982, p. 29).

No entanto, Johnson destaca que o filme e o texto literário são manifestações


de artes distintas, operando por meio diferentes e visando fins diversos. Em linhas
gerais, enquanto a comunicação em um romance se dá de maneira verbal, no
cinema, ela é predominantemente visual.
Diversos debates têm ocorrido acerca da literatura contemporânea e suas
inovadoras formas de expressão. A renovação na técnica narrativa, na construção
de personagens e na abordagem do tempo são exemplos destacados. Outro ponto
discutido é a adaptação de obras literárias para o cinema, suscitando indagações
como: quais são as alterações na transposição do texto literário para o meio
cinematográfico? O roteiro do filme dialoga harmoniosamente ou transgride o texto
original? Em caso de transgressão, qual é a intenção por trás disso?
As transformações nas modalidades de expressão literária, aliadas à
diversidade nos métodos de produção de narrativas, caracterizam a comunicação
contemporânea. Essa realidade é fortemente influenciada pelos avanços
tecnológicos, tanto na vida cotidiana das pessoas quanto nas manifestações
artísticas, exemplificada pela adaptação.
Antes de nos aprofundarmos na análise do processo de adaptação, é crucial
considerar que tanto a literatura quanto o cinema são formas narrativas ficcionais.
Pode-se afirmar que a narração sempre fez parte da experiência humana:
inicialmente, histórias eram compartilhadas em torno de uma fogueira, e hoje, a
audiência encontra-se nas salas de cinema ou em frente à televisão. Isso evidencia
13

que ao longo do tempo, os métodos de narrativa e sua recepção passaram por


metamorfoses.
A narrativa consiste na representação de uma ação organizada no enredo.
Assim, uma sequência de eventos é elaborada conforme a perspectiva do narrador,
e a progressão dos fatos ocorre através do discurso, uma sucessão de enunciados
encadeados. Conforme Pellegrini (2003) destaca, o tempo é uma condição
intrínseca à narrativa, pois esta está ligada à linearidade do discurso, preenchendo o
tempo com os eventos organizados de forma sequencial.
Conforme observado na citação mencionada, tanto a literatura quanto o
cinema são expressões narrativas que revelam uma ação. Contudo, a literatura
utiliza palavras como matéria-prima, enquanto o cinema se baseia em imagens.
Ambas as formas artísticas buscam primariamente a construção de uma narrativa,
mas é crucial perceber que possuem suportes distintos em termos de produção e
recepção. Na literatura, a linguagem verbal, estrutura do texto e estilo do autor são
elementos-chave, enquanto o cinema recorre a técnicas como movimentos de
câmera, uso de imagem, som, luz, cor e cenário.
A câmera desempenha um papel essencial no cinema, explorando várias
formas no processo narrativo, representando diferentes perspectivas. Juntamente
com a câmera, outro elemento crucial na narrativa cinematográfica é a imagem,
sendo a matéria-prima fílmica. Martin (2005) destaca que o movimento da câmera é
decisivo na imagem fílmica, pois cada imagem na tela resulta de uma percepção
subjetiva do mundo, conferindo ao cinema uma dimensão artística.
Contudo, a magia da imagem não é alcançada apenas pelo registro visual,
sendo essencial uma contribuição criativa por parte do operador da câmera.
Elementos como movimento de câmera, som, luz e cenário estão interligados para
criar um efeito cinematográfico envolvente. O som desempenha papel crucial na
linguagem cinematográfica, caracterizando o espaço, personalidade dos
personagens e adicionando uma dimensão sensorial à experiência. Enquanto na
literatura as sensações podem ser detalhadas pelo narrador, no cinema é
necessário o trabalho conjunto de vários elementos para atingir determinados
efeitos, incluindo a música, que desempenha um papel sensorial e lírico, criando
uma atmosfera emocional e reforçando a penetração da imagem.
Esses são alguns dos recursos utilizados na arte literária e audiovisual para
criar uma narrativa. Cada suporte produz a narrativa dentro de seu formato,
14

possibilidades e recursos específicos. No entanto, chama atenção o fato de uma


mesma narrativa ser contada por diferentes formas artísticas, inevitavelmente
conduzindo a comparações e avaliações.
É relevante destacar que a prática de adaptar narrativas literárias para o meio
cinematográfico é uma tradição comum e de longa data. Conforme apontado por
Bazin (1991), há tempos o cinema busca inspiração em enredos provenientes do
teatro e da literatura. Pellegrini (2003, p. 7) salienta que "o cinema, enquanto arte e
indústria, assim como a televisão, têm muito a dever à literatura pelo fornecimento
de enredos e recursos para as histórias que apresentam". A mesma autora ressalta
que, reciprocamente, a literatura do século XX passou por transformações diante
das inovações técnicas no campo audiovisual.
Bazin também observa a influência mútua entre literatura e cinema. Ele
destaca que a interação entre essas duas formas artísticas é evidente, indicando
uma relação em que ambas se beneficiam e se moldam mutuamente:

Se a crítica deplora frequentemente os empréstimos que o cinema faz à


literatura, a existência da influência inversa é, geralmente, tida tanto por
legítima quanto por evidente. É quase um lugar-comum afirmar que o
romance contemporâneo, e particularmente o romance americano, sofreu a
influência do cinema (Bazin, 1991, p. 88).

A convergência entre literatura e cinema, conforme explicitado por Pellegrini e


Bazin, pode ser validamente sustentada, indicando um processo natural em que
ambas as formas artísticas se complementam. Reforçando seus argumentos, Bazin
(1991) enfatiza que é inerente ao cinema buscar inspiração em outras formas
artísticas mais antigas, uma vez que o cinema é uma arte jovem, enquanto a
literatura, o teatro e a pintura têm uma longa história. Bazin (1991, p. 84) ainda
afirma que "assim como a educação de uma criança se dá por meio da imitação dos
adultos ao seu redor, a evolução do cinema foi inevitavelmente influenciada pelo
exemplo das artes consagradas".
Desde sua origem, o cinema mantém um diálogo constante com a literatura. A
prática de adaptar texto para diferentes meios não é um fenômeno recente, mas o
cinema oferece à literatura uma nova forma de exposição. Na literatura,
especificamente na área de pesquisa da literatura comparada que os estudos sobre
adaptação ganham destaque. Dentro desse campo, Rebello (2012) discute as
relações entre literatura e cinema, considerando a perspectiva da tradução,
15

transposição ou adaptação. Assim como os debates sobre tradução, a adaptação de


uma obra literária para o cinema gera décadas de discussões teóricas, centradas
principalmente na fidelidade ao livro que está sendo transposto para a tela. No
entanto, assim como nos estudos de tradução, a análise da adaptação gradualmente
revela uma visão que não busca a fidelidade absoluta à fonte, mas sim reconhece o
produto resultante como algo distinto, construído em um meio com suas próprias
características e que aborda a narrativa de acordo com suas ferramentas e
possibilidades.
Segundo Diniz (1999), é essencial que as relações ideológicas e contextuais
sejam consideradas em uma análise de adaptação. Além disso, é fundamental
abordar os objetos não apenas como textos, a partir de uma perspectiva intertextual,
mas também como resultados de sistemas diferentes, permitindo a exploração de
relações intersistêmicas. Hutcheon ressalta que a adaptação declara oficialmente
sua ligação com outra obra e que, geralmente, à luz de correntes teóricas da
segunda metade do século XX, como a intertextualidade, torna-se quase impossível
conceber a existência de um texto puro, sendo viável abordá-lo sob a ótica do
comparatismo.

Quando dizemos que a obra é uma adaptação, anunciamos abertamente


sua relação declarada com outras obras. É isso que Gerard Genette (1982,
p.5) entende por um texto de “segundo grau”, criado e então recebido em
conexão com um texto anterior. Eis o motivo pelo qual os estudos de
adaptação são frequentemente estudos comparados (Cardwell, 2011, p.
27).

Balogh (1996) enfatiza na adaptação a natureza conjuntiva entre o livro e o


filme, fundamentada em uma base narrativa. Segundo a autora, independentemente
do suporte em que a narrativa está ancorada, o elemento facilitador da adaptação e
de sua posterior análise reside na configuração de ambos os objetos como
narrativas. Além de reconhecer a importância desse fator de conexão entre livro e
filme, é crucial considerar que as relações estabelecidas entre o cinema e a
literatura derivam de diversas correntes teóricas desenvolvidas em torno da arte em
geral.
Desde a "notável semelhança entre a alegoria da caverna de Platão e o
dispositivo cinematográfico" (Stam, 2006, p. 24) até as numerosas indagações sobre
a estética: o que define uma obra de arte? O que é considerado belo? Um filme é
16

uma obra de arte? A teoria do cinema incorpora ao longo do tempo discussões de


natureza literária, remodeladas com base nas especificidades cinematográficas.
Stam (2006), ao ressaltar a estética, também destaca o contínuo ponto de
tensão relacionado à natureza específica do meio, onde "a literatura, em especial,
frequentemente tem sido percebida como um meio mais distintivo, mais venerável,
fundamentalmente mais 'nobre' do que o cinema" (Stam, 2006, p. 26). A herança
teórica sobre os gêneros literários, que, quando transposta para o cinema, amplia-
se, pois não se restringe apenas ao agrupamento temático, sendo a forma como o
tema é tratado de importância aguda; e por fim, o realismo, que acompanhou o
modernismo e influenciou a arte de maneira abrangente, gerando debates sobre a
natureza realista ou não-realista do cinema.
É por meio desse diálogo teórico contínuo que Stam (2006) afirma que a
história da teoria do cinema não pode ser dissociada da história da teoria da arte. No
entanto, como enfatiza Hutcheon (2011, p. 45): "as adaptações estão ubíquas nos
dias de hoje: nas telas da televisão e do cinema, nos palcos do musical e do teatro
dramático, na internet, nos romances e quadrinhos (...)". Com base nessa presença
generalizada da adaptação nas diversas mídias, a preocupação tradicional com a
fidelidade no processo adaptativo é transferida para uma análise dedicada a
observar de que maneira a adaptação promove leituras constantes de um mesmo
texto, possibilitando ao adaptador realizar um processo duplo, de interpretação e
criação de algo novo.
Em adição aos aspectos discutidos, é crucial examinar a inter-relação cultural
e social que permeia tanto a literatura quanto o cinema. Ambas as formas artísticas
atuam como reflexos e construtores de valores, ideias e identidades culturais,
refletindo as nuances da sociedade em que são produzidas. O cinema, por exemplo,
tem a capacidade única de capturar visualmente as complexidades sociais,
fornecendo uma janela para as diferentes realidades e perspectivas do mundo. Da
mesma forma, a literatura, ao tecer narrativas intricadas, pode abordar questões
culturais e sociais de maneira profunda e reflexiva.
A literatura comparada, ao se debruçar sobre a adaptação, também se depara
com as questões de representação cultural e social. A transposição de um texto
literário para o meio cinematográfico implica escolhas interpretativas que afetam a
forma como aspectos culturais e sociais são retratados. A diversidade de
interpretações desses elementos pode resultar em uma rica variedade de
17

adaptações, cada uma refletindo diferentes matizes das complexidades sociais e


culturais presentes no texto original.
A influência recíproca entre cinema e literatura é evidente na maneira como
ambos exploram e desafiam normas culturais e sociais. A literatura muitas vezes
atua como precursora de mudanças sociais, questionando e redefinindo valores
estabelecidos. O cinema, por sua vez, tem o poder de visualizar e amplificar essas
transformações, proporcionando uma experiência sensorial que pode impactar a
consciência coletiva.
A análise da adaptação entre literatura e cinema, à luz das correntes teóricas
culturais e sociais, torna-se um terreno fértil para explorar como as obras transitam
entre diferentes contextos temporais e geográficos. Os temas e narrativas
abordados podem ganhar novas camadas de significado quando transplantados
para uma nova mídia, oferecendo aos espectadores e leitores novas perspectivas
sobre questões culturais e sociais universais.
Ao considerar a presença massiva de adaptações nas diversas mídias
contemporâneas, torna-se imperativo compreender como essas representações
contribuem para a construção da identidade cultural e social. A convergência entre
literatura e cinema, nesse sentido, não apenas amplifica as vozes culturais, mas
também desafia e remodela as percepções existentes, fornecendo um terreno
propício para a exploração e compreensão das complexidades sociais e culturais de
diferentes épocas e lugares.
Assim, a literatura e o cinema, ao se entrelaçarem através da adaptação, não
apenas transcendem fronteiras artísticas, mas também servem como testemunhas e
construtores ativos das dinâmicas culturais e sociais que moldam nossa
compreensão coletiva do mundo como veremos no capítulo a seguir.
18

3 SERTÃO EM PALAVRAS: explorando a identidade nordestina através da


literatura

A construção da identidade nordestina inserida no panorama brasileiro,


refere-se à elaboração cultural, histórica e social da região Nordeste e à maneira
como suas populações se regularizam. A diversidade geográfica, a herança cultural
rica e os desafios socioeconômicos tornam a região Nordeste única. Elementos
como tradições culturais, experiências históricas, folclore, música e resistência
desempenham um papel significativo na moldagem da identidade nordestina. O
sertão, por exemplo, simboliza não apenas a aridez geográfica, mas também a
resistência e resiliência do povo nordestino.
Vários escritores da região nordestina exploram em suas obras as
particularidades e complexidades da vida local. Graciliano Ramos (1938), José Lins
do Rego (1932), Rachel de Queiroz (1930) e João Cabral de Melo Neto (1955) são
exemplos notáveis para a literatura nordestina, abordando temas como secas,
questões sociais, migração, tradições culturais e relações humanas. Essas
narrativas formam uma rica tapeçaria de histórias que refletem a diversidade e
complexidade do Nordeste, documentando não apenas a realidade regional, mas
também contribuindo para a construção e preservação da identidade cultural do
Nordeste brasileiro.
Essa identidade nordestina, frequentemente retratada na literatura brasileira
desde o Romantismo, atingiu seu ápice literário na década de 1930 com a prosa
regionalista dos escritores modernistas, em sua maioria nordestina. O objetivo era
revelar um universo desconhecido para a maioria dos brasileiros, apresentando
problemas, inquietações e pensamentos locais. Na busca pelo reconhecimento
nacional, os escritores exploraram a linguagem, detalhes e costumes, além dos
aspectos físicos e geográficos de suas vivências. Isso resultou na criação de uma
imagem estereotipada do Nordeste na sociedade brasileira, uma representação que
persiste até hoje.
Muitas pessoas veem na literatura uma ferramenta para escapar das
19

emoções, uma vez que a expressão literária atua como forma de escape e permite a
liberação das emoções, proporcionando um senso de ruptura e emancipação. No
entanto, segundo Wellek e Warren (1983, p.41), as emoções representadas na
literatura não se equiparam às experiências da "vida real", sendo cuidadosamente
moldadas e liberadas por meio da análise e percepção emocional.
Conforme Wellek e Warren (1983, p.33) destacam, quando uma obra literária
cumpre sua função com sucesso, prazer e utilidade, não apenas coexistem, mas se
fundem. O prazer na literatura reside na contemplação, enquanto a utilidade é
tratada com seriedade para a aquisição de lições, tanto estéticas quanto
relacionadas à percepção dos valores transmitidos. A literatura, ao transfigurar a
natureza humana, desempenha um papel crucial na cultura da sociedade,
registrando as observações e sentimentos do escritor diante do processo
sociocultural. Isso confere à escrita uma função artística e social
A literatura vai além da fuga da realidade para a fantasia, ela desempenha um
papel fundamental na sociedade. De acordo com Aristóteles e Platão, a literatura é a
mimese, uma representação da realidade e da vida. Existe uma relação estreita
entre a ficção e a realidade, incorporando à sociedade elementos identificáveis ou
desejáveis. No entanto, é crucial lembrar que as obras literárias são formas de arte,
expressando o que sentimos e desejamos comunicar, moldadas pela visão dos
criadores e artistas. Ainda nos escritos de Wellek e Warren (1983), ao abordarem a
obra literária como uma forma de arte, é afirmado que:

A obra de arte literária aparece, pois, como um objeto de conhecimento sui


generis que tem uma categoria ontológica especial. Não é nem real (como
uma estátua), nem mental (como a experiência da lua ou da dor), nem ideal
(como um triângulo). É um sistema de normas e conceitos ideais, que são
intersubjetivos. Devem ser tomados como existentes na ideologia coletiva,
com ela evoluindo, acessíveis apenas através de experiências mentais
individuais baseadas na estrutura sonora de suas orações (Wellek e
Warren,1983, p.189).

A coletividade assume um papel crucial na narrativa fictícia. Segundo


Aristóteles, em sua Poética, o mito é definido como a representação do enredo,
estrutura narrativa ou a própria "fábula". O termo "mito" ganhou destaque na crítica
moderna, especialmente a partir dos românticos, assumindo uma verdade ou
equivalência à verdade. Ele é concebido como um complemento à verdade histórica
ou científica, conforme sublinhado por Wellek e Warren (1983, p. 236), que o
20

descrevem como "a narrativa ou história, o arquétipo ou universal, a representação


simbólica de nossos ideais eternos como eventos ocorreram no tempo, o pragmático
ou escatológico, o místico".
O romance, tal como o entendemos atualmente, surge no século XVIII,
durante a era do Romantismo, como uma forma de expressão narrativa derivada das
epopeias. Esse período de revolução cultural, social e política reflete os anseios da
crescente burguesia. O romance se torna uma porta-voz para suas ambições, ao
mesmo tempo em que oferece uma rota de fuga da materialidade da época.
Em prosa, o romance apresenta uma sucessão de acontecimentos
envolvendo personagens em um cenário específico. Conforme Moisés (1987, p. 97)
destaca, "sua faculdade essencial consiste em reconstruir, recriar o mundo. Não o
fotografa, mas recria; não demonstrar, repetir, reconstruir, à sua maneira, o fluxo da
vida e do mundo, uma vida própria, um mundo próprio”. Essa recriação acontece de
forma única e original, refletindo a percepção particular e intransferível do autor. O
romancista, em sua liberdade criativa, enfrenta apenas a interferência do mundo que
deseja criar em sua obra, moldando-a com sua linguagem, monólogos interiores,
interesses narrativos e intuições pessoais.
Bosi (2006) destaca que:

As tentações de ordenar os romances a partir de dados externos explicam-


se pela natureza do gênero, voltado como nenhum outro para as realidades
empíricas da paisagem e do contexto familiar e social de onde o romancista
extrai não imagens isoladas, como faz os poetas, mas ambientações,
personagens, enredos (Bosi, 2006, p. 127).

Ao explorar a liberdade intrínseca à prosa ficcional, o romancista adquire


flexibilidade e extensão, proporcionando ao romance uma perspectiva ampla e
macrocósmica do Universo. Essa abordagem surge da convergência de diversas
formas de conhecimento, como História, Psicologia, Filosofia, Política, Economia,
entre outras, as quais são incorporadas para contribuir com a recriação do mundo.
Assim, durante esse processo, o autor busca uma visão integral e abrangente.
Nesse sentido, a responsabilidade do romancista vai além de oferecer
entretenimento. Dentro de sua expressão artística, ele assume um "compromisso"
que o leva a uma abordagem engajada, a serviço de uma causa, doutrina, ideologia,
entre outras, mesmo que seja no âmbito da ficção. Nesse contexto, sua arte
frequentemente orienta o caminho a ser seguido, construindo a obra com o propósito
21

de mostrar ou demonstrar, abrindo mão, em parte, de sua autonomia mental em prol


desse engajamento. No entanto, se o romance alcançar sucesso, o envolvimento se
integra organicamente aos recursos artísticos do romancista.
É fundamental compreender que o entretenimento desempenha uma das
funções essenciais do romance, uma característica que mantém sua relevância até
os dias atuais, impulsionada pela liberdade linguística e flexibilidade estrutural que o
gênero oferece. Cada romance, assim como qualquer narrativa literária, apresenta
elementos estruturais fundamentais, como narrador, personagens, ação, espaço,
tempo e foco narrativo. A ação desempenha um papel central na arquitetura do
romance, manifestando uma multiplicidade dramática, uma sucessão de dramas e
conflitos escolhidos e organizados de maneira harmoniosa ao longo da narrativa,
todos com um encaminhamento sugerido, garantido ou resolvido.
De acordo com Moisés (1987, p. 100), ao escolher a porção da realidade a
ser comprovada, o romancista procede com base nesse entrelaçamento dramático,
reduzindo o campo de observação para melhor compreender, apoiado na revelação
dos conflitos vivenciados pelas personagens.
Assim como o romance abriga uma diversidade dramática, há também uma
diversidade geográfica com o romancista assumindo pleno controle do cenário em
que as ações da narrativa se desdobram, podendo o espaço ser estrategicamente
utilizado a favor da trama. No entanto, ao mover os personagens para diferentes
localidades, o romancista corre o risco de realizar uma análise superficial e rápida
dos conflitos enfrentados por eles, enfraquecendo a força do romance.
Por outro lado, essa localização geográfica pode enriquecê-lo,
especificamente como uma ferramenta para discutir os conflitos vivenciados pelos
personagens, como exemplificado na obra "Vidas Secas", de Graciliano Ramos,
onde o espaço molda o personagem e suas ações são reflexo de sua condição física
e psicológica. O romance pode ser categorizado de acordo com a temática
explorada, como romance urbano ou de figurino, romance histórico, romance
indianista, romance psicológico, romance gótico, romance policial, romance
regionalista, entre outros.
O romance regionalista, de natureza tipicamente brasileira, concentra-se nas
questões sociais específicas do Brasil, destacando-se por sua preocupação com os
aspectos humanos, políticos e sociais. Apesar de ter o homem como ponto central,
há uma busca pela coletividade, pelo engajamento em denúncias e reflexões sobre
22

a realidade regional abordada, especialmente no contexto do sertão e do sertanejo.


Originado do Romantismo como expressão da realidade regional e da
nacionalização, o romance regionalista, embora idealizado, aborda em suas obras
literárias a paisagem típica do semiárido, onde é relevante destacar a importância da
relação entre essa paisagem e a situação do homem que nela habita.
Conforme Wellek e Warren (1983, p. 263) pontuam, o romance não deve ser
considerado como uma narrativa autêntica, uma crônica da vida e de sua evolução.
A literatura, em sua essência, precisa ser envolvente e ter um propósito definido,
sendo necessário possuir um conhecimento independente da literatura para
entender como uma obra específica se relaciona com a "vida". Dessa forma,
independentemente do movimento literário ou literário-filosófico, uma obra literária
deve destacar a distinção entre diversas concepções de realidade e ficção.
Ainda segundo Wellek e Warren (1983), em relação ao romance e seu autor,
argumenta-se que:

Todos os grandes romancistas possuem o seu mundo – reconhecível como


justaposto ao mundo empírico, mas distinto na sua inteligibilidade auto
coerente. Por vezes é um mundo que pode encontrar-se no mapa de certa
região do globo (…); outras vezes, porém, como no caso de Poe, tal não é
possível: os horrendos castelos de Poe não se situam na Alemanha ou na
Virgínia, mas sim na alma (Wellek & Warren, 1983, p. 265).

Segundo a tradição literária, um romance deve contemplar a dimensão


temporal, bem como despertar interesse pelo desenrolar dos eventos e não apenas
pelo desfecho. Em "O Auto da Compadecida", é evidente um universo geográfico
claramente delineado, mas o autor se destaca ao investigar, dentro desse contexto
espacial, as questões existenciais enfrentadas pelas personagens diante dos
eventos e de suas consequências.
Antes dessa abordagem de Ariano Suassuna, outros autores já retrataram
essa paisagem desde o período Romântico. No entanto, em "O Auto da
Compadecida", Suassuna apresenta uma visão única, explorando o espaço
geográfico para esclarecer as inquietações existenciais de seus personagens diante
dos acontecimentos e de suas repercussões.
Na década de 1930, diversos escritores, além de Ariano Suassuna,
começaram a explorar temas regionalistas com foco no Nordeste. Romancistas
como José Lins do Rego e Rachel de Queiroz, ambos nordestinos, incorporaram e
23

introduziram na literatura brasileira a realidade dessa região muitas vezes


negligenciada, proporcionando oportunidades para que os brasileiros
compreendessem a complexidade social do nordestino. A intenção desses escritores
era denunciar as dificuldades e o esquecimento vividos pelos sertanejos, levando os
brasileiros a refletir sobre essa situação. Descrições de situações, sejam elas
espaciais, sociais ou humanas, dentro de uma função literária mais social, assumem
a dimensão de identificação desse povo que até hoje é percebida pela sociedade
brasileira devido à visão inicial da elite intelectual. Diante dessa realidade, o que foi
positivo na década de 1930, ao longo do século, transformou-se em uma visão
negativa sobre o homem sertanejo e o próprio Nordeste.
Na literatura brasileira, dois momentos cruciais alteraram os rumores e
introduziram ideologias em nossa formação intelectual, refinando nossa prosa: o
Romantismo e o Modernismo. Durante o século XIX, no período romântico, o
romance chegou ao Brasil, consolidando sua estrutura, função e significado nas
sociedades modernas. A função que passou a desempenhar foi transmitir uma visão
abrangente do homem, de suas inquietações, do fluxo da vida e do mundo,
reconstruindo esses elementos por meio da ficção. O Romantismo brasileiro
valorizou a produção do gênero romance, divulgando a leitura no Brasil por meio dos
folhetos que publicaram capítulo a capítulo os romances produzidos aqui.
O Realismo teve influência, mas foi o Modernismo, principalmente a partir de
1930, que conferiu dimensão à produção de romances no Brasil. Nesse período,
escritores prosadores renomados, como Rachel de Queiroz, José Lins do Rego,
Jorge Amado, entre outros, buscaram na estrutura do romance a base para suas
produções literárias. Eles exploraram uma linguagem e temática que expressava o
regionalismo brasileiro, especialmente o Nordeste.
E sobre essa racionalização, Cândido (2006) afirma que:

Isto quer dizer que o escritor, numa determinada sociedade, é não apenas o
indivíduo capaz de exprimir a sua originalidade (que o delimita e especifica
entre todos), mas alguém desempenhando um papel social, ocupando uma
posição relativa ao seu grupo profissional e correspondendo a certas
expectativas dos leitores ou auditores. A matéria e a forma da sua obra
dependerão em parte da tensão entre as veleidades profundas e a
consonância ao meio, caracterizando um diálogo mais ou menos vivo entre
criador e público (Cândido, 2006, p. 83-84).

Dessa maneira, no movimento literário regionalista da segunda fase do


24

Modernismo, os autores desse período, atentos às questões sociais


contemporâneas e ao abandono enfrentado pela região nordeste, comprometeram-
se em ser porta-vozes de uma sociedade e de uma cultura por meio de uma
literatura engajada, buscando estabelecer um diálogo com seu público, promovendo
transformações nos comportamentos e nas ideologias vigentes na sociedade da
época.
De acordo com Cândido (2006, p. 85): “Se a obra é mediadora entre o autor
e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só
adquire plena consciência da obra quando ela é mostrada através da ocorrência de
terceiros". Nesse contexto, a audiência torna-se uma condição para que o autor
compreenda o mesmo, considerando que a maioria dos escritores desse período,
especialmente na década de 1930, eram originários do Nordeste.
Destarte, a literatura, enquanto expressão artística pulsante e detentora de
funções dignas para a sociedade, através de suas obras, influencia umas às outras
e aos leitores, configurando-se como um elemento social crucial na medida em que
estes a vivenciam, interpretam, aceitam ou transformam. Conforme Cândido (2006,
p. 84), "A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é
passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito". Sua influência no
amadurecimento da consciência popular, no desenvolvimento de sugestões de
ordem sociológica, folclórica, literária e na construção de uma identidade nacional,
contribui para as manifestações ideológicas que são aceitas ou não, difundidas ao
longo de suas expressões. Nesse contexto, obras como "O Auto da Compadecida"
de Ariano Suassuna desempenham um papel crucial ao refletir e moldar as
percepções sociais e culturais da região nordestina.
Sobretudo por meio do romance, que se evidencia como o gênero literário
mais apreciado pela população brasileira ao longo do século XX, a influência do
regionalismo na década de 1930, exemplificado na obra "O Auto da Compadecida"
de Ariano Suassuna, desempenhou um papel crucial. Mas como essa influência do
romance regionalista de 1930 foi elaborada para modificar as percepções da
sociedade brasileira em relação ao homem nordestino e à representação de sua
identidade?
Na visão comprometida do escritor, muitas vezes originário do Nordeste,
assim como seus personagens principais, busca inserir esse indivíduo na sociedade,
expondo criticamente que o "herói" em sua obra representa sempre um dilema:
25

recusar-se a aceitar o mundo, os outros e até a si mesmo, delineando uma


identidade marcada por hostilidade e opressão, como evidenciada em "O Auto da
Compadecida", "O Romance da Pedra do Reino" e "O Santo e a Porca".
26

4 ENTRE FICÇÃO E REALIDADE “OS AUTOS DA COMPADECIDA”: o sertão


nas teias dos estereótipos

A obra-prima “O Auto da Compadecida” é dividida em três atos, com estreia


em 1956 no Teatro Santa Isabel, em Recife, Pernambuco, como uma das primeiras
produções teatrais com forte tradição popular e elementos nordestinos. A peça de
Suassuna se destaca por sua riqueza cultural e pela habilidade do autor em mesclar
o cômico com o trágico, proporcionando uma experiência única ao público. Ao longo
dos anos, a obra transcendeu as fronteiras do teatro e ganhou diferentes formas de
expressão, incluindo adaptações para o cinema e a televisão. A adaptação
cinematográfica do “O Auto da Compadecida”, dirigida por Guel Arraes e lançada em
2000, tornou-se um marco na cinematografia brasileira.
Ao explorar "O Auto da Compadecida", não apenas mergulhamos na riqueza
cultural do Nordeste brasileiro, mas também nos deparamos com uma obra que
atravessou gerações, mantendo sua relevância e encanto. A análise comparativa
entre o texto original e sua adaptação cinematográfica enriquece nossa
compreensão da interação entre literatura e cinema, evidenciando como ambas as
formas artísticas podem coexistir e complementar-se, contribuindo para a construção
e preservação da identidade cultural brasileira.
Baseado na obra de Ariano Suassuna, o filme conta as aventuras do pobre e
mentiroso sertanejo João Grilo e do mais covarde de todos, Chicó. Eles ganham a
vida de trapaça no pequeno povoado de Taperoá, na Paraíba e apenas uma
aparição da Virgem pode salvar a dupla (Fuks, 2018). Em relação ao livro, todos são
julgados de acordo com sua atitude, alguns são absolvidos e destinados ao céu,
outros são deixados no purgatório e João Grilo recebe o direito de voltar à vida.
É salutar informar que o livro de Ariano Suassuna foi originalmente adaptado
para uma série de TV em 4 partes. Os resultados foram transmitidos pela Rede
Globo de Televisão de 5 a 8 de janeiro de 1998. Devido ao grande sucesso de
público, os diretores cogitaram fazer um longa-metragem, o projeto deu certo e
resultou no filme “O Auto da Compadecida”, de Guel Arraes (Fuks, 2018).
Filmado em Cabaceras, interior da Paraíba, o longa-metragem foi sucesso
instantâneo de grande público, mais de 2 milhões de brasileiros assistiram ao filme
após suas exibições (Fuks, 2018). A história do filme gira em torno das aventuras de
27

dois nordestinos pobres, João Grilo e Chicó, que vivem de golpes. Eles sempre
enganam os moradores do pequeno vilarejo de Taperoá, interior da Paraíba, para
saírem de situações difíceis que a vida lhes impõe, incluindo o aparecimento do
temido cangaceiro Severino de Aracaju, que era conhecido por promover o caos por
onde passava. Este longa-metragem utiliza elementos dramáticos populares
contidos na dramaturgia medieval e na literatura de cordel para representar figuras
importantes da cultura nordestina, como o cangaceiro e o sertanejo pobre.
O Nordeste, a seca e a pobreza eram temas centrais relevantes, fosse pela
mídia ou nas conversas entre amigos, levando à construção e divulgação de uma
imagem única de uma região tão vasta geográfica e culturalmente. A divulgação de
imagens de tragédias ocorridas no Nordeste é uma característica inerente às
relações de poder que colocam a região no polo negativo. Alves (2022) destaca que
o Nordeste é visto como um espaço de negação por meio de filmes, seriados, cenas
de novelas, trejeitos de personagens supostamente nordestinos e, claro, das
vestimentas utilizadas. Diante disso, além de caracterizar os personagens com o
que é percebido como realidade, a vestimenta também traz à tona o tempo e o lugar
onde a narrativa se passa.
Portanto, para Alves (2022), eventuais lapsos relacionados à indumentária
dos intérpretes podem causar ruídos na comunicação com o público, pois o
espectador pode não assimilar a obra ao que ela busca retratar, interferindo em sua
autenticidade, ou seja, em sua proximidade com a realidade pretendida na narrativa.
Assim, o teórico destaca que os figurinos dos personagens são elaborados com
elementos que sugerem o que a sociedade considera realidade, visando facilitar a
assimilação do que é mostrado à pessoa figurada. Os clichês e os arquétipos são
frequentemente usados porque pressagiam uma rápida assimilação, uma vez que
são o resultado de um conjunto de traços sociais pré-estabelecidos.
O filme "O Auto da Compadecida" foi um grande sucesso no Prêmio do
Cinema Brasileiro em 2001, ganhando os seguintes prêmios: Guel Arraes de Melhor
Diretor e Matheus Nachtergaele de Melhor Ator por seus papéis como João Grilo,
Adriana Falcão, João Falcão e Guel de Melhor Roteiro Arraes e Melhor Lançamento.
Diante disso, é de suma importância compreender a forma como o Nordeste é
retratado no filme em questão, pois este pressupõe que afirmações que começam a
se estabelecer no imaginário do espectador como verdades absolutas possam ser
recriadas e divulgadas por meio de audiovisuais.
28

Paralelo a isso, Fuks (2018) destaca que a linguagem quase lúdica, marcada
pela espontaneidade, é uma das marcas da prosa do escritor, agregando elegância
ao drama. Outro aspecto que contribui para esse problema é a construção dos
personagens, que muitas vezes são caricaturados para trazer mais comédia à
trama.
O Auto da Compadecida é uma obra marcada por uma linguagem de cunho
regional, ou seja, uma forma de oralidade para expressar o regionalismo do
Nordeste. Aspectos do Nordeste buscam a autenticidade da região, desde a
linguagem até o uso de objetos típicos, trajes e até paisagens sertanejas, elementos
que imergem o espectador na narrativa.
De forma descontraída e bem-humorada, a obra mostra cenas do drama
vivido pelos nordestinos na seca, na fome e na luta contra a pobreza. Oprimidos que
encontram na esperteza e na criminalidade do sertão sua forma de sobrevivência. A
peça é considerada um desdobramento do modernismo, também conhecido como
45ª Geração, devido à discussão da moralidade incluindo religião e temas mundiais
adaptados à realidade do Nordeste. A peça tem um aspecto literário de cordel com
fortes características nordestinas, próximas ao barroco católico brasileiro.
Conforme ressalta Gomes (2015), as definições de cultura são variadas e
moldadas de acordo com o olhar aguçado do pesquisador e as observações da
realidade em estudo, seja uma sociedade particular como uma tribo, nação, região
ou organização, que tem suporte mediato e imediato. Nesse sentido, o estudo das
culturas brasileira e nacional se desenvolveu ao longo do tempo na tentativa de
compreender melhor essa heterogeneidade e especificidade.
Ainda de acordo com Gomes (2015, p. 509): "Estamos acostumados a falar
da cultura brasileira no singular assim, como se existisse uma unidade que unisse
todas as manifestações materiais e espirituais do povo brasileiro". Contudo, a
concepção de singularidade pode representar um risco ao considerar a
particularidade de diversas regiões e localidades. Estas áreas abrigam distintos
costumes, comunidades, tradições e valores exclusivos, os quais são apreciados
pelos residentes, compartilhados ou moldam percepções específicas da cultura
naquele contexto.
Nesse bojo, Gomes (2015) evidencia que do ponto de vista internacional, os
estudos comparativos na perspectiva da aculturação têm apresentado um grande
número de estudos que enfatizam diferenças entre regiões ou países, porém, não
29

analisam contextos subnacionais, assumindo que os países estão relacionados à


cultura, ou seja, não consideram a possibilidade de diversidade cultural regional
nesses países
Nessa perspectiva, Gomes (2015) destaca que um país de proporções
"continentais" como o Brasil permanece "inexplorado" no que diz respeito à cultura
regional. A diversidade cultural presente no país possibilita a investigação de
contextos variados, não lineares, sendo inquestionavelmente rica em suas múltiplas
formas. Alguns estudiosos argumentam que as análises organizacionais não devem
pressupor homogeneidade cultural apenas por se tratar de um país, negligenciando
a existência de culturas locais.
Diante dessa perspectiva, Sobra e Peci (2013) destacam que não há uma
lógica de cultura única, assemelhando-se a fotos estáticas, mas sim a interação de
diversas culturas entrelaçadas em ondas de fluxo, irradiando de múltiplos locais. Ao
mesmo tempo, observa-se a origem e o destino dessas culturas, inclusive em
espaços virtuais. Sob essa abordagem, percebemos que certos traços da cultura
brasileira se destacam, como o formalismo, refletido na diferença entre o que a lei
estipula e o que é praticado, sendo esta discrepância não punível, caracterizando
um modo peculiar de raciocínio à brasileira.
O paternalismo também emerge como uma característica cultural,
evidenciando a concentração de poder e o individualismo entre os indivíduos,
especialmente no patriarcado. Esse fenômeno se manifesta nas relações
interpessoais e na confiança na nomeação de cargos, refletindo um sistema
hereditário que, de forma simples e sintética, é descrito como uma confusão entre o
público e o privado.
Essa ambiguidade proporciona caminhos alternativos, envolvendo
criatividade, inovação e descoberta, além da atração por relações sociais informais,
utilizando o "jeitinho" que emerge da interpretação flexível das leis. Nessa terra de
contrastes chamada Brasil, o "jeitinho brasileiro" tornou-se um traço distintivo,
merecendo uma análise mais aprofundada dadas suas nuances e especificidades.
A comicidade do filme "Alto da Compadecida" revela características
marcantes do sertão nordestino, encarnando plenamente a relação regional onde o
coronelismo, as crenças religiosas (especialmente o catolicismo) e a cultura popular
são os pilares da sociedade em um período específico.
30

Até recentemente, psicólogos sustentavam a crença de que apenas


indivíduos com predisposição ao preconceito recorriam a estereótipos. Contudo,
pesquisas científicas recentes revelam que esses padrões estão intricadamente
enraizados em nossas percepções de mundo de maneira mais sutil do que se
supunha anteriormente. A renomada psicóloga indiana Mahzarin Banaji, da
Universidade de Harvard (EUA), desenvolveu um dos testes destinados a identificar
o chamado "preconceito inconsciente".
Mesmo pertencendo a grupos historicamente discriminados, sendo mulher e
pertencendo a uma minoria étnica, Banaji, ao submeter-se ao seu próprio teste,
surpreendentemente descobriu que também ela, contrariando expectativas,
manifestava intolerância em um grau considerável. A conclusão atual é que todos
utilizamos estereótipos de forma constante, muitas vezes sem consciência desse
processo.
Seguindo a mesma lógica, diversos renomados artistas ao redor do mundo
incontestavelmente recorrem, em maior ou menor medida, a estereótipos ao longo
de suas trajetórias profissionais. O aspecto intrigante reside na análise daqueles
que, de maneira consciente, se esforçaram para contribuir por meio de suas obras
para a transformação desse cenário, mesmo que, no íntimo, pudessem ter
inclinações discriminatórias. A ideia é destacar que nada é mais eficaz para
desconstruir um estereótipo do que o próprio estereótipo subvertido promovido por
seus criadores.
Para evocar de maneira sucinta os costumes e hábitos de um local, povo ou
grupo, o estereótipo desempenha um papel crucial devido à sua natureza icônica e à
sua pretensão de representar a realidade com exatidão. Nesse sentido, caso um
criador artístico almeje desconstruir um estereótipo por meio de sua obra, a
ferramenta mais eficaz à sua disposição é o próprio estereótipo. Ao conceber um
personagem, por exemplo, é suficiente atribuir a ele uma ou duas características
específicas, o que provavelmente gerará uma expectativa no leitor ou espectador em
relação ao personagem como um todo. A partir desse ponto, se a intenção do artista
for a desconstrução consciente dessa expectativa, a obra pode direcionar seus
esforços para subverter essa antecipação.
Nesse contexto, o artista dispõe de uma ampla variedade de recursos com o
propósito de converter a previsibilidade em imprevisibilidade, detendo em seu
arsenal a capacidade de introduzir prontamente um estereótipo reconhecível para,
31

posteriormente, discorrer sobre ele, investigando as origens das características que


o constituem. Os estereótipos, portanto, podem servir como o ponto inaugural por
meio do qual uma expressão artística instiga diálogos acerca do tema, expondo as
raízes autênticas da questão em vez de apenas replicá-las. Se a função típica dos
estereótipos é indicar a percepção coletiva de uma sociedade em relação a um
grupo ou objeto específico, compreendê-los concede ao artista a habilidade de
antecipar e influenciar as expectativas do público de maneira positiva ou negativa.
O "Auto da Compadecida" e sua versão adaptada fazem uso de estereótipos
como meio para alcançar seus propósitos artísticos. A obra teatral e sua adaptação,
embora compartilhem uma essência semelhante, apresentam divergências
significativas: o filme e a minissérie ampliam a participação de vários personagens,
incluindo a esposa do padeiro, nomeada de Dora na adaptação e o major Antônio
Morais, enquanto eliminam outros, como o Sacristão, o Frade e o Demônio, este
último é serviçal do Encourado, que, por sua vez, no filme representa o Diabo. Além
disso, introduzem novos personagens, como Rosinha, o Cabo Setenta e Vicentão.
Esse rearranjo facilita a análise separada das obras.

4.1 Desvendando Suassuna: estereótipos em análise

A caracterização do Nordeste na produção de Suassuna é delineada de


acordo com os preceitos estabelecidos pelo próprio autor. Suassuna, um indivíduo
perspicaz e letrado, ainda assim encarnava uma figura descomplicada, vivendo de
maneira singela. Ao defender uma cultura fundamentada na tradição, ancorada na
memória e no passado, nunca era marcada pelo "reino encantado do sertão",
cordéis, folclore e expressões culturais. Suassuna nunca negligenciava a erudição,
seu esforço visava preservar viva sua arte "sertaneja e popular pelo espírito e não
pela forma, já que o artista deve elevar o povo até ele e não se rebaixar até o povo"
(Júnior, 2011, p. 193).
A abordagem única de Ariano em relação ao trabalho ficcional, em
contraponto ao documental, tem repercussões significativas na análise de sua obra,
pois não se compromete rigidamente com a realidade. Embora sua intenção seja
instigar o público a questionar as similaridades entre o que é apresentado, seja na
peça escrita ou na performance ao vivo e a vida real, sua atitude se aproxima mais
da esfera artística do que de uma afirmação objetiva. Avaliar se o trabalho do autor
32

reforça determinadas perspectivas sobre a região e o povo nordestino também


implica nessa consideração, como esclarece Albuquerque Júnior (2011).
O autor da obra em análise emerge como um dos forjadores do Nordeste
como o espaço da saudade e da tradição, mas o concebe como um trabalho
ficcional, diferenciando-se do trabalho documental adotado pelos tradicionalistas do
romance da sociologia. O Nordeste popular se alinha à produção sociológica e
literária anterior, assim como à pintura regionalista e tradicionalista e à música de
Luiz Gonzaga, na invenção, reinvenção e atualização de séries de temas, conceitos,
imagens, enunciados e estratégias que configuram o Nordeste como o espaço
oposto ao moderno, ao burguês, ao urbano, ao industrial (Júnior, 2008, p. 194)
O autor, imerso no fascínio pelas narrativas que deram forma ao Nordeste,
não ignorava as adversidades enfrentadas pelo povo e pela região em suas obras.
Pelo contrário, utilizava essas adversidades, inclusive no "Auto da Compadecida",
como instrumentos de denúncia e crítica à politicagem das classes dominantes, em
detrimento da dignidade do povo (Júnior, 2008, p. 190).
Entretanto, mesmo ao abordar os aspectos negativos do Nordeste, Suassuna
não se contentava com a representação exclusivamente desfavorável da região. No
"Auto da Compadecida", Suassuna retrata o nordestino conforme o estereótipo
nacional, apresentando personagens como João Grilo, um "amarelo" feio, ignorante,
franzino e subalterno, e Severino de Aracaju, um cangaceiro violento e sanguinário.
Além disso, ele apresenta o major Antônio Morais, pertencente à aristocracia
latifundiária, como um coronel autoritário, egocêntrico e interessado apenas em
manter seu status e poder, bem como a burguesia comercial, personificada pelo
Padeiro e a Mulher, como hipócritas e insensíveis, que exploram seus funcionários,
mas zelam excessivamente por sua cadela de estimação. Suassuna, no entanto,
introduz esses personagens por meio de estereótipos, caricaturas que
posteriormente são colocadas em situações problemáticas, buscando sempre a
sátira, culminando em desfechos inesperados.
O "Auto da Compadecida" exige uma interpretação contextualizada. O
cangaço já era, naquela época, um tema definidor do Nordeste e os sertanejos
pobres eram frequentemente considerados inferiores pelas classes mais abastadas
e intelectuais, vistos como uma raça biologicamente subdesenvolvida. Para o
público da época, personagens como João Grilo e Severino eram figuras
prontamente reconhecíveis.
33

Quanto ao cangaceiro, embora faça referências ao santo “Padim Ciço”, ele


encontra prazer em matar ou ordenar mortes. Suassuna não rejeita o apelo ao
estereótipo, mas revela suas raízes: na cena do julgamento, percebemos que
Severino enlouqueceu quando sua família, de condição humilde, foi massacrada
pela polícia, remetendo ao abuso de poder policial. Assim, Suassuna apresenta o
cangaço como resultado da tirania da república, surpreendendo ao retratar o cruel
Severino como vítima, parte de um ciclo de violência estabelecido muito antes de
seu nascimento.
O major Antônio Morais surge como o estereótipo e arquétipo de uma
aristocracia indiferente às dificuldades alheias, adaptado para sua versão regional
como o proprietário de terras sertanejas. Este é o único estereótipo apresentado
sem subversões. Antônio Morais, que se orgulha de não trabalhar, defende o status
quo, revelando-se uma figura egoísta e orgulhosa de pertencer à alta classe.
Entretanto, sua caracterização é limitada a uma cena, na qual o Padre,
inadvertidamente, o confunde com um cachorro, tornando o desrespeito involuntário
do Padre mais cômico, pois acaba xingando a esposa do major de cachorra. Dessa
forma, Suassuna retrata negativamente a aristocracia, sem explorar ou subverter
essa representação.

ANTÔNIO MORAIS
[...] quer insinuar? Quer dizer por acaso que a mãe dele...
PADRE
Mas, uma cachorra!...
ANTÓNIO MORAIS
O quê?
PADRE
Uma cachorra.
ANTÓNIO MORAIS
Repita.
PADRE
Não vejo nada de mal em repetir, não é uma cachorra mesmo?
ANTÔNIO MORAIS
Padre, não o mato agora mesmo porque o senhor é um padre e está louco, mas vou me queixar
ao bispo. [...]
(Auto da Compadecida, 1955 p.48)

Chicó, coprotagonista da história e fiel escudeiro de João Grilo, é


extremamente medroso e desempenha o papel mais passivo na trama, agindo
sempre em resposta a outros. Sem a perspicácia ou eloquência do amigo para
persuadir, lida de maneira diferente com as dificuldades, levando uma vida mais
34

tranquila, fumando seu cigarro e contando histórias inacreditáveis, na verdade,


impossíveis, como uma fuga da realidade.
Ele é um prodigioso fabricante de narrativas, todas destituídas de lógica,
finalizando cada uma com seu bordão característico: "Não sei, só sei que foi assim",
evitando assim incursões mais detalhadas sobre suas alegadas façanhas.
Poderíamos inferir que ele se encaixa, nesse contexto, no estereótipo do sertanejo
ocioso e indiferente, o que poderia ser verdade no livro, mas não completamente no
filme, pois ele se apaixona por Rosinha e, com a orientação de João, passa a
enfrentar conflitos mais diretos com outras pessoas. O trecho subsequente
encapsula de maneira concisa a figura de Chicó:

CHICÓ
[...] Eu mesmo já tive um cavalo bento.
JOÃO GRILO
Que é isso, Chico? (Passa o dedo na garganta.) Já estou ficando por aqui com suas histórias. É
sempre uma coisa toda esquisita.
Quando se pede uma explicação, vem sempre com “não sei, só sei que foi assim”.
CHICÓ
Mas se eu tive mesmo o cavalo, meu filho, o que é que eu vou fazer? Vou mentir, dizer que não tive?
JOÃO GRILO
[...] Mas seu cavalo, como foi?
CHICÓ
Foi uma velha que me vendeu barato, porque ia se mudar, mas recomendou todo cuidado, porque o
cavalo era bento. E só podia ser mesmo, porque cavalo bom como aquele eu nunca tinha visto. Uma
vez corremos atrás de uma garrota, das seis da manhã até as seis da tarde, sem parar nem um
momento, eu a cavalo, ele a pé. Fui derrubar a novilha já de noitinha, mas quando acabei o serviço e
enchocalhei ares, olhei ao redor, e não conhecia o lugar onde estávamos. Tomei uma vereda que
havia assim e aí tangendo o boi...
JOÃO GRILO
O boi? Não era uma garrota?
CHICÓ
Uma garrota e um boi.
JOÃO GRILO
E você corria atrás do dois de uma vez?
CHICÓ, irritado
Corria, é proibido?
JOÃO GRILO
Não, mas eu me admiro é eles correrem tanto tempo juntos, sem me apertarem. Como foi isso?
CHICÓ
Não sei, só sei que foi assim. Saí tangendo os bois e de repente avistei uma cidade. É uma história
que eu não goste nem de contar [...]
(Auto da Compadecida, 1955, p. 25)

Assim como João Grilo, Chicó também encontra um jeito de driblar as


dificuldades. Chicó não usa artimanhas, mas usa sua imaginação para fugir de sua
dura realidade. Suassuna, na concepção de Albuquerque Júnior (2011, p. 85),
35

representa um sujeito refugiado de sua própria história num "reino dos mistérios,
onde o maravilhoso se mistura à mais cruel realidade e lhe dá sentido". Chicó se
transforma em um exímio contador de histórias fantásticas, fantasiosa e mentirosas
para camuflar sua vida difícil.
João Grilo emerge como o principal foco de atenção de Suassuna.
Demonstrando uma visão à frente de seu tempo, o autor evita uma tendência que se
tornou comum na contemporaneidade: a santificação ou idealização de indivíduos
pertencentes a grupos historicamente injustiçados, como negros, homossexuais e
índios. Diversos termos descrevem esses estereótipos bem-intencionados.
O "Bom Selvagem", por exemplo, refere-se a personagens indígenas, ou que
remetem a eles, retratados como seres puros e belos que não foram corrompidos
pela civilização. O "Melhor Amigo Gay", cujos conselhos repletos de humor auxiliam
o protagonista heterossexual em suas conquistas amorosas. Personagens negros,
como apontado de maneira perspicaz por Spike Lee, são estereotipados como o
"Super Negro Mágico", que, assim como o "Melhor Amigo Gay", parece não ter
função na vida além de oferecer conselhos ao protagonista branco, embora
enquanto o "Melhor Amigo Gay" é espirituoso e brincalhão, o "Super Negro Mágico"
irradia sabedoria adquirida em sua ampla experiência.
A intenção benevolente por trás desses estereótipos é evidente: retratar
pessoas brancas heterossexuais, frequentemente, ricas e/ou poderosas,
aprendendo com as minorias que foram oprimidas por aqueles com o mesmo perfil
dominante ao longo do tempo. Contudo, essa abordagem resulta na criação de
novos estereótipos, ironicamente perpetuando a noção de inferioridade, pois as
minorias continuam a servir a essas mesmas pessoas. Assim, essas obras insinuam
constantemente que o mundo depende das pessoas brancas, heterossexuais e ricas
para manter seu funcionamento, reforçando a ideia de que elas são o epicentro de
tudo.
No "Auto da Compadecida", Suassuna evita essa abordagem ao elevar João
Grilo, o sertanejo humilde, à posição de protagonista e elemento central da trama.
Seria simples transformá-lo em um ícone de simplicidade e bondade,
assemelhando-se desconfortavelmente a um "Bom Selvagem" brasileiro, um
personagem coadjuvante na narrativa, por exemplo, do padeiro e sua esposa, os
quais aprenderiam valiosas lições de vida com ele. Contudo, o autor, dotado de um
progressismo avantajado para a época, semelhante à abordagem de Mário de
36

Andrade em "Macunaíma", de 1928, configura João Grilo como um personagem


falho, definido principalmente por sua astúcia.
As características de João Grilo se alinham à noção de "anti-herói". Segundo
o Houaiss, um "herói" é um "indivíduo capaz de suportar exemplarmente uma sorte
incomum", como "infortúnios" e "sofrimentos", ou que arrisca a vida pelo dever ou
em benefício de outrem. Já o "anti-herói", conforme o mesmo dicionário, é o "oposto
do herói", especificamente um "personagem de ficção que carece de atributos físicos
e/ou morais característicos do herói clássico". Nesse contexto, João Grilo atende
plenamente à segunda definição: é oportunista, astuto e recorre a mentiras para
alcançar seus objetivos. Além disso, de acordo com os padrões da sociedade
retratada, não é considerado um homem atraente.
O público, apreciando o aspecto humorístico de João Grilo, talvez
manifestasse hesitações em depositar confiança nele, uma perspectiva evidenciada
por Severino ao proferir: "Aponte o rifle para esse indivíduo, pois é desse grupo que
eu tenho apreensão" (Suassuna, 1999, p. 122). Ao associar João a um "grupo",
Severino perpetua o estigma, enquadrando-o como um estereótipo. No entanto,
durante o julgamento, Suassuna retrata Grilo usando sua sagacidade em prol
daqueles que ele ludibriou em vida, salvando-os. João, por sua vez, parece
destinado à condenação irremediável e Jesus não enxerga uma saída para redimi-
lo. A Compadecida, contudo, intercede em seu favor, argumentando que desde o
nascimento ele foi desfavorecido, aprendendo artimanhas para sobreviver em sua
condição desfavorável. Jesus, confrontado com as acusações, esclarece que não
pode permitir que João ascenda ao Céu. Apesar disso, Nossa Senhora intercede em
seu favor, pleiteando outra oportunidade para ele, a qual é concedida.
A cena do julgamento representa, em si, uma subversão de um "estereótipo",
especialmente das características inerentes ao gênero teatral conhecido como auto,
uma peça de temática religiosa que realiza julgamentos morais por meio da sátira
social. Um exemplo ilustre desse gênero é "O Auto da Barca do Inferno", de Gil
Vicente, encenado pela primeira vez em 1517. Nessa obra, o diabo e um anjo
aguardam junto às suas embarcações, prontos para partir rumo ao Inferno ou ao
Paraíso. Representantes de diversas classes da sociedade portuguesa do século
XVI chegam para serem julgados, incluindo um fidalgo, um onzeneiro, um parvo, e
outros personagens que transitam entre estereótipos e arquétipos. O destino de
cada alma é decidido pelo anjo e pelo diabo com base em suas ações em vida,
37

desconsiderando motivos ou outros pormenores. A maioria dos personagens termina


no Inferno, refletindo a realidade e os valores da sociedade portuguesa da época,
destacando-se o antissemitismo evidenciado na recusa do judeu pelas
embarcações.
Contrariamente, "O Auto da Compadecida" de Suassuna não se enquadra
completamente no gênero auto, apenas a cena do julgamento é classificada dessa
forma. Embora siga a premissa tradicional de um auto, um subgênero medieval
originado na Espanha por volta do século XII, época em que Suassuna se inspira
amplamente, o autor subverte seu conteúdo. Se a moralidade rígida de "O Auto da
Barca do Inferno" fosse aplicada, todos os personagens de Suassuna seriam
condenados. No entanto, Suassuna rejeita o conservadorismo religioso e preconiza,
em vez disso, a compreensão e o perdão, explorando a complexidade da psique
humana, uma abordagem que Gil Vicente, imerso em uma época em que os dogmas
da Igreja eram mais proeminentes, não considerou.
A intenção de Suassuna parece ser não a condenação do catolicismo, mas
sim a sua renovação. Em vez de contrastar as ações dos personagens com as leis
de Deus, ele expõe os contextos de suas vidas. Ao contrário da obra de Gil Vicente,
as ações dos personagens são menos significativas do que as circunstâncias que
moldaram seus destinos.
As subversões de Suassuna em relação aos estereótipos extrapolam as
fronteiras regionais. O Padre e o Bispo, ao invés de serem representantes dignos da
Igreja, são retratados como homens mundanos, que demonstram mais respeito pelo
Major Antônio Morais do que por Deus, preocupando-se mais em reformar a
paróquia e a diocese do que em auxiliar os pobres habitantes de Taperoá. Suas
personalidades não são edificantes, revelando uma falta de compreensão sobre
suas prioridades, o Bispo, em particular, assemelha-se mais a um político do que a
um líder religioso. A única figura que parece representar a benevolência que a Igreja
deveria personificar é o Frade, enquanto os demais ridicularizam ou menosprezam-
no, considerando-o simplório.
A religiosidade integra o estereótipo do nordestino. Em "O Auto da
Compadecida", Suassuna reitera o estereótipo da religiosidade sertaneja por meio
de João Grilo, que busca amparo em Nossa Senhora durante o julgamento.
Surpreendentemente, outro personagem parece ser ainda mais devoto do que
todos, desafiando expectativas: Severino de Aracaju, o cangaceiro sanguinário,
38

emerge como possivelmente o mais religioso entre os personagens, mesmo sem


aderir às proibições dos dogmas católicos. Essa dedicação é evidente tanto em suas
constantes referências ao Padre Cícero quanto em sua defesa apaixonada da
Compadecida contra o Diabo, levantando, em uma cena, críticas, afirmando: "Você
só fala assim porque nunca teve mãe". Seria plausível inferir que a devoção de
Severino pode ter surgido da ausência de figuras parentais, substituindo
inconscientemente duas influências fundamentais por outras divinas, com igual
potencial de ensino e apoio nos momentos difíceis.
Outra subversão intrigante se revela por meio do relacionamento entre o
Padeiro e a Mulher. Em narrativas como “Vidas Secas” e “Deus e o Diabo na Terra
do Sol”, as mulheres sertanejas frequentemente são retratadas como submissas ou
relegadas a papéis secundários. No entanto, em "O Auto da Compadecida", o
Padeiro é praticamente tratado como uma criatura pela esposa, pois ela toma as
decisões e lidera as conversas, enquanto ele se limita a repetir suas palavras. Nesse
contexto, ocorre uma inversão do estereótipo do homem dominador, culminando em
mais uma crítica progressista do autor: a Mulher é estigmatizada como adúltera,
uma acusação utilizada contra ela no julgamento.

4.2 Além da Comédia: os estereótipos em "O Auto da Compadecida" de Guel Arrais

A adaptação de "O Auto da Compadecida" por Guel Arrais, apresenta


características marcantes e distintas do sertão nordestino, encapsulando
plenamente a dinâmica regional em que o coronelismo, as crenças religiosas,
especialmente o catolicismo e a cultura popular desempenham papéis fundamentais
na sociedade de uma época específica (Gomes, 2015).
Nesse cenário, a capacidade de improvisação de João Grilo, um exímio
contador de mentiras, acaba por enfrentar consequências mais tarde, evidenciadas
ao longo de toda a trama do filme, desde a exibição da "Paixão de Cristo" até o
episódio do "Começo - o filme mais preso do mundo", que não se desenrola
conforme o planejado. Contudo, o astuto sertanejo sempre encontra uma solução
para os problemas que surgem, tomando decisões que, se consideradas, realizam a
ação desejada pelo solicitante, destacando assim o impacto pessoal de maneira
abrangente.
39

Por fim, no plano geral de “O Juízo Final”, as técnicas de persuasão e


mediação surgem e são usadas de forma tão intensificada que “salvam” todos no
filme, inclusive o mais mentiroso e causador de confusões e desacordos – João
Grilo. Gomes (2015) destaca que nessa passagem, o jeitinho brasileiro se confunde
com a intercessão de Nossa Senhora pelos vulneráveis de que para tudo há um
jeito: "Mãe, se você continuar interferindo assim por todos, o inferno acabará virando
uma repartição pública. Existe, mas não funciona”.

Figura 1. Cena de Jesus e Nossa Senhora e Jesus conversando após salvar João Grilo.

Reprodução/Youtube.
A concepção da adaptação do “Auto da Compadecida” para televisão e
cinema já contemplava a ênfase nos coadjuvantes da peça desde a fase de pré-
produção. Esse enfoque resultou não apenas em maior proeminência para os
personagens secundários já existentes, mas também na introdução de novos
elementos, como Rosinha, o Cabo Setenta e Vicentão.
Os dois últimos personagens encapsulam a representação do mesmo
estereótipo, porém em contextos distintos: o do macho alfa. Vicentão personifica o
estereótipo universal do valentão, a ponto de seu próprio nome evocar a
característica que o define. Contudo, Arraes adota uma abordagem satírica desde a
primeira aparição do personagem. O ator que interpreta Vicentão, Bruno Garcia,
entrega uma performance caricatural de maneira divertida, acentuando o queixo,
inflando o peito e modificando a voz a tal ponto que a simples fala do personagem
se torna cômica. Como toque final, Garcia, por meio do olhar, deixa claro que a
inteligência não é a qualidade dominante de Vicentão.
40

Essa caracterização exagerada alinha-se ao estereótipo do valentão, do


macho alfa, sendo amplificada para atender às demandas do gênero do filme, que é
uma comédia. No entanto, a coragem de Vicentão não é tão intrépida quanto
aparenta, como evidenciado no "duelo" encenado contra o Cabo Setenta, que, na
realidade, não ocorre, pois ambos fogem mutuamente.
O Cabo Setenta é caracterizado como um militar de postura autoritária e
solene. Em sua primeira aparição, ele marcha em formação com seu pelotão,
interrompendo-se para voltar-se aos protagonistas e realizar continência em vez de
expressar um cumprimento de boa noite. Em outro momento, quando João Grilo o
aborda em particular, o Cabo Setenta demonstra irritação com a "intimidade" do
pobre ao dirigir-se a ele, como se sua patente exigisse uma permissão formal antes
que pudessem "ousar" falar com ele. Ao usar uma expressão que o Cabo despreza:
"É ou não é?", João é agarrado pela gola da camisa e ameaçado de prisão,
evocando a imagem do abuso de autoridade policial. No entanto, assim como
Vicentão, o Cabo Setenta revela-se um falso macho alfa. Quando Rosinha é
mencionada por João Grilo na conversa, o militar se entrega ao choro e aceita a
falsa ajuda oferecida para conquistar o coração da moça.
Ao subverter a "macheza" desses personagens, os roteiristas Guel Arraes,
João e Adriana Falcão estão fazendo uma declaração. Pode-se argumentar que
estão expondo a natureza patética daqueles que recorrem à força física ou à patente
para intimidar os outros. Eles satirizam o próprio conceito de macho alfa,
desmantelando qualquer vestígio de dignidade que ele possa ter. Nesse contexto, o
estereótipo é empregado como uma maneira eficaz de criar uma figura prontamente
reconhecível para repudiar o que ela simboliza. No caso de Vicentão, a figura do
"macho alfa" não se limita estritamente a uma regionalidade específica, pois ele
poderia ser o valentão de qualquer lugar, mas no caso do Cabo Setenta, há um
componente regional catártico ao vê-lo ser ridicularizado, considerando que pessoas
em sua posição, representando tanto o exército quanto a polícia, oprimiram por
muito tempo o sertanejo.
A figura de Rosinha se apresenta como um estereótipo que, embora
desvinculado do regionalismo, se ajusta de maneira impecável ao papel de princesa.
Sendo filha do major Antônio Morais, que na trama foi apresentada com um filho em
vez de uma filha, Rosinha enfrenta a imposição de casar-se com o pretendente
escolhido por seu pai. Pode-se facilmente conceber a jovem como uma princesa em
41

eras medievais, sendo direcionada pelo monarca a unir-se em matrimônio com um


membro de outra linhagem nobre. A ausência de relevância atribuída ao amor nesse
contexto é tão evidente que, ao declarar que "não gosta de ninguém", a resposta do
major é: "Bobagem! Com o tempo, você se acostuma e acaba desenvolvendo
afeição".
Desempenhando um papel mais proeminente na narrativa da minissérie e do
filme, Antônio Morais revela-se ainda mais autoritário, confinado entre as paredes de
sua residência, ditando à filha suas vontades. Essa representação emblemática do
patriarcalismo, tão arraigada no nordeste da época, se manifesta por meio da
narrativa clássica do amor proibido, na qual uma jovem almeja casar-se com um
homem desaprovado pelo pai.
No que concerne ao Padeiro e à Mulher, a equipe criativa toma decisões que
divergem das preconizadas por Suassuna. Enquanto o autor apenas fazia alusões
às traições dela na peça, estas se tornaram motivo recorrente de humor no filme.
Cenas completas são dedicadas a Dora, seu nome na adaptação, ludibriando o
esposo. Trata-se de uma subtrama que se insere no folclore nordestino, conforme
destacado por João: a figura do corno é recorrente na literatura de cordel.
Portanto, essa inclusão pode ser justificada como uma expressão de comédia
e regionalismo, mas acaba por diminuir a empatia em relação à personagem Dora,
uma vez que ela não apenas maltrata Eurico constantemente, mas também o trai
sem demonstrar qualquer sinal de remorso. No filme, o padeiro permanece tão
submisso quanto na peça original.
Enquanto na peça teatral é esclarecido que as ações de Dora são uma
reação aos maus-tratos sofridos no início do casamento. Na versão cinematográfica,
Guel Arraes e seus roteiristas optam por uma catarse emocional que parece
bastante artificial. Segundo a visão deles, Eurico sempre foi um marido fiel e
submisso. No momento em que estão prestes a serem executados diante do pelotão
de fuzilamento, Dora diz ao marido: "Eu não suportaria vê-lo morrer. Eu quero
morrer primeiro, Eurico". Isso contrasta com a mesma mulher que, mais cedo no
filme, ao ouvir João mencionar "uma coisa desagradável com um ente querido",
respondeu sem saber que se referia à cachorra de estimação: "Quero que Eurico se
dane".
A cena do fuzilamento continua com Eurico questionando: "Dora, por que
você me traiu todo esse tempo?" Ela responde: "Acho que foi por isso mesmo. Trair
42

você era matar um pouco de você dentro do meu coração. Eu tinha tanto medo de
perder você de vez que vim tentando perder você aos poucos!" Ao voltar a qualquer
cena em que Dora estava "tentando perder Eurico aos pouquinhos", inclusive
insinuando-se para Severino e para o Diabo, percebe-se que essa justificativa não
faz sentido, parecendo uma catarse emocional simplista, que ainda coloca toda a
culpa sobre a mulher. Posteriormente, na cena do julgamento, o perdão concedido
por Eurico à esposa antes da morte é usado como motivo para salvar os dois da
condenação. O mérito é unicamente dele, deixando Dora estigmatizada como o
estereótipo da "mulher sonsa".
As narrativas fantasiosas de Chicó recebem uma representação visual repleta
de imagens que evocam xilogravuras e, pode-se dizer, seguem uma tradição de
artistas plásticos nordestinos, transformando Chicó em um meio para o riquíssimo
folclore nordestino que Suassuna tanto buscava disseminar na cultura brasileira. A
caracterização de Chicó é única, apresentando elementos de composição gráfica
visual: são animações ilustradas e animadas, assemelhando-se a recortes de papel,
técnica popularizada pelo filme "Uma Cilada Para Roger Rabbit" (1988).
As subtramas adicionais também proporcionam a Arraes a oportunidade de
revelar um aspecto menos desolador e mais animado de Taperoá. É no Dia da
Padroeira que Rosinha faz sua primeira aparição no filme e o romance entre ela e
Chicó se desenha. Os personagens surgem em meio a barracas de jogos,
carrosséis e rodas-gigantes, com a igrejinha adornada por belas luzes, criando um
momento de serenidade e leveza que quebra o estigma associado ao sertão
nordestino mantido até então.
Existe, também, uma alteração no tom entre a obra original e a adaptação: no
"Auto da Compadecida" de Suassuna, a peça é introduzida pelo Palhaço, que não
apenas se comunica diretamente com o público, mas também interage com os
personagens. Ele instrui os atores a alterar o cenário entre os atos e pede à plateia
que imagine o ambiente conforme sua indicação. O Palhaço comenta os
acontecimentos da trama e, em certo momento, pede desculpas à audiência pela
carnificina dos cangaceiros, justificando que era necessária para o desenvolvimento
da história. Os monólogos do personagem sempre carregam um tom irônico, como
se considerasse outros dignos de escárnio.
O filme renuncia a esses elementos e adota completamente a linguagem
cinematográfica, sem empregar recursos metalinguísticos. Ao mesmo tempo,
43

preserva-se uma leveza na narrativa por meio da produção de elementos visuais: os


atores estão constantemente em movimento, tratando os sets de filmagem com a
mesma vivacidade que dedicariam a um palco, e suas interpretações incorporam
uma solenidade teatral ajustada à proximidade íntima das câmeras. Quando
Severino de Aracaju inicia seus assassinatos, o impacto é mais marcante do que na
peça teatral, mas Guel Arraes consegue manter o controle do tom, realizando uma
transição eficaz para uma carga mais dramática, que, por fim, confere peso à cena
do julgamento.
A flexibilidade da adaptação ao transitar entre cenários permite uma conexão
mais intensa entre as forças arquetípicas da narrativa: a aristocracia personificada
pelo major Antônio Morais em sua fazenda, o clero representado pelo padre e pelo
bispo no amplo interior da igreja, e a pequena burguesia retratada por Dora e Eurico
em sua padaria. De maneira apropriada, observamos João e Chicó, como
representantes do proletariado e camponeses, servindo alternadamente todas as
três classes para garantir a sobrevivência, deslocando-se da padaria para a igreja,
da igreja para a fazenda e da fazenda de volta para a padaria. Eles ficam presos no
conflito entre essas três forças de uma maneira que, com sua única localização, a
peça de Suassuna não consegue representar de forma tão enfática.
Se a ideia do filme “O Auto da Compadecida” é provocar, inovar, chocar e
aguçar as percepções do destinatário por meio dos sentidos visuais, então a
presença do Cristo Negro chamado Manuel é bastante oportuna e provocativa,
(Souza, 2016). Demonstrando uma vanguarda temática à frente de seu tempo, o
autor logra evitar que Jesus seja visto como o estereótipo europeu, cabelos longos,
olhos azuis, ou até mesmo o típico “Super Negro Mágico”.
Quando o Diabo rejeita as motivações e traumas dos personagens como
justificativas para suas ações, Jesus parece concordar. Assim, Compadecida e os
acusados abordam o medo como catalisador do comportamento humano
inadequado, ao que Jesus responde de maneira assertiva: "E é a mim que vocês
vêm dizer isso, a mim que morri abandonado até por meu pai!" (Suassuna, 1999, p.
176). Ele destaca o sofrimento alheio como inferior ao que ele próprio enfrentou,
questionando o direito dos outros de errar, dado que não agiu de maneira reprovável
após enfrentar tanto sofrimento.
É crucial observar, entretanto, que em determinado momento Manuel afirma:
"Eu, Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como poderia ter nascido preto"
44

(Suassuna, 1999, p. 149). Em seguida, ele revela ter adotado a aparência de um


homem negro para provocar controvérsias e evidenciar aos personagens o
preconceito deles. Nesse contexto, João Grilo é repreendido quando Jesus e,
indiretamente, o autor, o critica severamente por ser "cheio de preconceitos de raça".
O progressismo de Suassuna é notável nesse aspecto: embora o humor guie suas
obras, a crítica social não é negligenciada.

Figura 2. Jesus surge para o Julgamento.

Reprodução/Youtube

O Diabo, emerge com uma abordagem lúdica, diferente da peça, pois


Suassuna o apresenta na forma de um vaqueiro, Arraes por outro lado confere a
este o estereótipo de um promotor antiético bem trajado. O autor destaca um
aspecto da Justiça que age em seu próprio benefício, uma vez que o personagem
tem interesse em aumentar o cordão de condenados sob sua autoridade. Portanto,
seu discurso é marcado por uma propensão ao alarde, visando chamar a atenção
para seus argumentos e tornar as exposições impactantes, acentuando os pecados
dos réus com a solenidade retórica que emprega. Essa estratégia busca enfatizar a
gravidade das acusações e aprofundar a impressão de condenação moral sobre os
transgressores.

Figura 3. Cena do Diabo Julgando os réus no purgatório.


45

Reprodução/Youtube
Por fim, temos a Nossa Senhora de Compadecida, que aparece no filme
como uma mulher madura, diferente de sua imagem tradicional. A escolha do papel
parece ter sido construída a partir da imagem da atriz Fernanda Montenegro, ícone
do teatro nacional, que se encaixava no papel (Souza, 2016). Por sua simpatia pelos
humanos, a Compadecida no filme tem a função de advogada de defesa: é ela quem
media a relação entre o céu e a terra. Essa figura religiosa existe no imaginário
cultural dos brasileiros, principalmente dos nordestinos, que nela encontram a única
saída para seus maiores medos e angústias, por considerá-la mais próxima do que
outras figuras celestes, como podemos observar no trecho a seguir, como também
visto no filme.

JOÃO GRILO
[...] Meu trunfo é maior do que qualquer santo.
MANUEL
Quem é?
JOÃO GRILO
A mãe da justiça.
ENCOURADO, rindo Ah, a mãe da justiça! Quem é essa?
MANUEL
Não ria, porque ela existe.
BISPO
E quem é?
MANUEL
A misericórdia.
SEVERINO
Foi coisa que nunca conheci. Onde mora? E como chamá-la?
JOÃO GRILO
Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em verso. Garanto que ela vem, querem ver?
(Recitando).
46

Valha-me Nossa Senhora,


Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
[...]
Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré.
(Auto da Compadecida, 1955 p. 148-149)
Partindo desse pressuposto e dadas as condições de abandono e
despojamento da maioria dos povos remotos do Nordeste, pode-se entender por que
os nordestinos têm uma relação tão forte com as crenças religiosas e seus
imaginários ícones religiosos. João Grillo apela à misericórdia da Virgem e à justiça
da imagem de Jesus Cristo em dois momentos cruciais que determinam a
condenação eterna da sua alma. Segundo o pensamento de Souza (2016), estes
podem ser considerados como momentos de limitação que certamente exacerbam
crenças e convicções religiosas.

Figura 4. Cena em que a Compadecida surge após o verso de João Grilo

Reprodução/Youtube.
Esse sentimento emocional de que todos são dotados permite efeito estético,
fruição e prazer do espectador rendido. Uma sala escura, pausas nos movimentos e
um comprometimento excessivo das funções visuais e auditivas tornam o processo
47

de reconhecimento mais intenso. Esse lugar privilegiado, sempre único e sempre no


centro, garante que o espectador seja o lugar de Deus, o sujeito que tudo vê.
Para Souza (2016) Nossa Senhora é outro viés do processo de identificação,
ela representa a grande mãe, a padroeira dos brasileiros. Se o sentimento de amor
materno é tão difundido na cultura brasileira, nada melhor do que a expressão de
uma mulher mais velha com características de mãe que preenche esse imaginário
coletivo. A decisão não vem de Jesus Cristo, mas da “Mãe”: ela media a absolvição
do acusado. Se Jesus representa a lei, o mandamento associado à figura paterna,
então nada melhor para exonerar o condenado do que uma mulher – a mãe, cuja
simpatia prevalece
Em toda a trama destaca-se a presença marcante de João Grilo, cujo
hooliganismo brasileiro evoca simpatia e identificação. Fora do mundo ficcional,
inúmeros brasileiros compartilham os mesmos sentimentos desse personagem,
embora, ao contrário da obra, tenham escassas chances de receber novas
oportunidades. Como ressalta Souza (2016), "a força de suas palavras possibilitou
essa transição de classes sociais, força tão típica dos sertanejos nordestinos." João
Grilo, um caipira pobre e ignorante, consegue envolver a todos, desde os que estão
no chão até os que pairam no céu, com sua astúcia singular. O protagonista, com
sua sagacidade, absolve os espectadores dos pecados e fantasmas que possam
atormentá-los. Essa capacidade de João Grilo de representar a transição de classes
sociais torna-se emblemática, refletindo a força característica dos sertanejos
nordestinos.
A obra "O Auto da Compadecida" oferece uma perspectiva que ultrapassa a
mera ficção, pois, como afirma Souza (2016), "sempre há novas oportunidades,
mesmo que esta se limite ao plano da ficção". João Grilo, mesmo sendo um
personagem fictício, personifica a esperança e a possibilidade de superação,
ressoando com a experiência de muitos brasileiros na realidade.
Isso contribui para o desfecho da adaptação que consegue preservar a
essência de Suassuna ao enaltecer a identidade do sertanejo humilde. Seria simples
fazer com que João, Chicó e Rosinha enriquecessem à custa do major, mas os
criadores inserem diversos obstáculos que resultam na necessidade dos três
abrirem mão do dinheiro. Dessa forma, restam apenas eles mesmos, com João
absorvendo a lição que Nossa Senhora lhe proporcionou. "Tenho ponderado se não
é preferível assim," ele comenta. "Quem sabe se, ficando rico, não acabaria como o
48

padeiro? Além disso, com a desgraça, já estamos acostumados." Mesmo sendo


pobre, João não deseja para si a vida do padeiro e a ganância que o impulsionou ao
longo da história se dissipa. O dinheiro ainda é algo que ele almeja, porém, ele
reconhece a importância de outros valores e adquire sabedoria.
Na última cena, Jesus surge disfarçado de mendigo e pede esmola aos
personagens, que estão agachados compartilhando um pequeno pedaço de bolo.
João justifica que são miseráveis e incapazes de ajudar, mas Rosinha oferece ao
mendigo um pedaço. Grilo, então, lamenta que a comida deles tenha acabado, e
Rosinha responde que, por vezes, Jesus se veste de mendigo para testar a bondade
dos homens. João, insinuando que percebeu a artimanha, indaga: "Jesus? Pretinho
daquele jeito?".
A cena final, com Jesus sorrindo diante da provocação de João, acrescenta
um toque de humor à narrativa, ressaltando a capacidade dos personagens de
manterem a autenticidade mesmo em situações inusitadas. Esse sorriso parece
reconhecer não apenas a perspicácia de João, mas também a jornada de
transformação que ele e seus companheiros percorreram ao longo da história.
Jesus, representado como um mendigo, personifica a divindade que testa a
humanidade e o diálogo subversivo destaca a habilidade de João em questionar até
mesmo a figura sacra com sagacidade.
A dualidade entre miséria material e riqueza espiritual é enfatizada na imagem
dos personagens compartilhando um simples pedaço de bolo. Esse gesto não
apenas ilustra a generosidade em meio à escassez, mas também simboliza a força
das relações humanas e a capacidade de encontrar alegria nas pequenas coisas. O
contraste entre a simplicidade do momento e a complexidade das experiências
vividas pelos personagens reforça a mensagem de que a verdadeira riqueza reside
nas relações interpessoais. A obra, ao concluir com essa cena simbólica, transcende
as fronteiras do entretenimento, oferecendo uma reflexão profunda sobre a condição
humana e os valores que permeiam a vida.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nas considerações finais desta pesquisa que aborda as interações entre


Literatura e Cinema, é possível destacar a complexidade inerente à transposição de
elementos narrativos de uma forma de expressão para outra. Ao mergulharmos na
análise de obras literárias, como "O Auto da Compadecida" de Ariano Suassuna, e
sua respectiva adaptação cinematográfica dirigida por Guel Arraes, percebemos a
multiplicidade de leituras e interpretações que essas obras podem oferecer. Essa
diversidade, contudo, não se traduz em uma dicotomia entre o valor intrínseco da
literatura e do cinema, mas sim em uma oportunidade de apreciar as distintas
linguagens artísticas que cada meio proporciona.
A fluidez entre as formas literária e cinematográfica evidencia não apenas a
capacidade de adaptação, mas também a maneira como diferentes mídias podem
dialogar entre si, enriquecendo o entendimento da narrativa. Observamos que, ao
passar do suporte literário para o audiovisual, ocorrem transformações inevitáveis,
mas não necessariamente prejudiciais à essência da obra.
Ao considerar a contemporaneidade e a predominância do meio visual na
sociedade atual, torna-se evidente que o cinema não apenas reproduz, mas também
molda as representações culturais. A análise da obra estudada permitiu não apenas
compreender a dinâmica entre literatura e cinema, mas também lançar luz sobre a
importância de reconhecer e questionar os estereótipos perpetuados nas
representações midiáticas.
50

O estudo da identidade nordestina revela-se como uma jornada fascinante


pelas intricadas tramas da cultura, história e expressões artísticas dessa região
singular do Brasil. Ao percorrer as obras de renomados escritores nordestinos, como
Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e João Cabral de Melo
Neto, e ao mergulhar nas adaptações cinematográficas, notadamente em "O Auto da
Compadecida", de Ariano Suassuna, somos conduzidos a uma compreensão mais
profunda da complexa tapeçaria que compõe a identidade nordestina.
A literatura nordestina, moldada por elementos como o sertão, as secas, as
questões sociais e a resistência do povo, transcende seu papel meramente
narrativo, tornando-se uma poderosa ferramenta de preservação cultural. A análise
dos romances regionalistas revela não apenas uma preocupação estética, mas um
engajamento social e político, retratando o sertão e seus habitantes como
protagonistas de uma narrativa que busca denunciar e refletir sobre a realidade
regional abordada.
No entanto, ao adentrarmos o universo de "O Auto da Compadecida", tanto
em sua forma literária quanto cinematográfica, confrontamo-nos com a influência da
representação midiática na construção de estereótipos. A adaptação para o cinema
de Guel Arraes, lançada em 2000, ilustra a complexidade de interpretar e
representar o Nordeste brasileiro para um público mais amplo. A obra torna-se uma
lente através da qual observamos não apenas a região em questão, mas também
como estereótipos podem ser perpetuados ou desafiados pelo meio audiovisual.
A dualidade presente na obra de Suassuna ecoa a dualidade inerente à
própria identidade nordestina. O Nordeste é uma parte intrínseca do Brasil, mas
também é um país dentro de um país, conforme destacado por Gilberto Freyre. A
obra de Suassuna, ao retratar o Nordeste, não apenas concentra-se na
singularidade regional, mas contribui para a formação de uma identidade nacional,
revelando-se como um espelho que reflete, questiona e idealiza o Brasil.
A presença do Cristo Negro na adaptação cinematográfica de "O Auto da
Compadecida" destaca-se como um elemento provocador, conectando-se à relação
profunda dos nordestinos com a religiosidade. Em um contexto de abandono e
despojamento, as crenças religiosas e seus ícones tornam-se fundamentais,
revelando a força dessa dimensão espiritual na construção da identidade nordestina.
Conclui-se, assim, que a literatura e o cinema são meios intrinsecamente
ligados à construção e expressão da identidade nordestina. Ao explorar as nuances
51

das representações artísticas, somos instigados a refletir sobre a riqueza cultural e a


diversidade que caracterizam o Nordeste brasileiro. Este estudo não apenas amplia
nossa compreensão sobre a região, mas também ressalta a importância de
abordagens sensíveis e contextualizadas na representação das identidades
culturais, desafiando estereótipos e promovendo uma apreciação mais profunda da
complexidade do Brasil.
Ao considerarmos o impacto da literatura e do cinema na construção da
identidade nordestina, é imperativo abordar os desafios contemporâneos que
cercam essa representação. A sociedade evolui e as narrativas também devem
acompanhar esse dinamismo para refletir de maneira autêntica a multiplicidade de
experiências e perspectivas que caracterizam o Nordeste.
A globalização e a disseminação rápida de informações oferecem novas
oportunidades, mas também apresentam riscos. Como a cultura nordestina é
disseminada globalmente, é essencial garantir que as representações sejam
enriquecedoras e precisas. Os criadores, tanto na literatura quanto no cinema,
enfrentam o desafio de equilibrar a autenticidade regional com a compreensão
global, evitando a simplificação excessiva que leva à perpetuação de estereótipos
prejudiciais.
A diversidade interna do Nordeste, com suas variações geográficas, históricas
e culturais, oferece uma riqueza de narrativas ainda a serem exploradas. Novos
escritores e cineastas têm a oportunidade de trazer à tona vozes menos
representadas, expandindo a compreensão da identidade nordestina para além das
histórias já consolidadas. Isso não apenas contribui para uma representação mais
completa, mas também desafia visões estreitas e preconceitos persistentes.
A tecnologia e as plataformas digitais desempenham um papel crucial na
amplificação dessas vozes. Iniciativas que apoiam a produção e a promoção de
obras que destacam a diversidade regional são essenciais para romper com a
monocromia das representações. A literatura e o cinema independentes têm o poder
de catalisar mudanças significativas na forma como o Nordeste é percebido e
compreendido não apenas no Brasil, mas em escala global.
Por fim, é crucial que as discussões em torno da identidade nordestina não se
restrinjam a uma esfera artística, mas permeiem os campos educacionais e políticos.
O estudo dessas representações deve ser incorporado ao currículo escolar,
incentivando o pensamento crítico e proporcionando uma compreensão aprofundada
52

da riqueza cultural do Nordeste. Além disso, políticas públicas devem apoiar


iniciativas que promovam uma representação justa e inclusiva nas artes,
contribuindo para uma sociedade mais plural e respeitosa.
Assim, a literatura e o cinema, como poderosas ferramentas de reflexão e
expressão, têm o potencial não apenas de refletir a sociedade, mas também de
influenciá-la. Ao navegarmos por essa jornada em constante evolução, somos
desafiados a garantir que as narrativas que moldam nossa compreensão do
Nordeste sejam tão diversas e vibrantes quanto a própria região.

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