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DIANA TAYLOR

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Performa nce e
memória cultural
nas Américas

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Ao transitar por diferentes culturas e disciplinas,


Diana Taylor apresenta neste livro duplamente
premiado (2003, Prêmio de pesquisa em prática
teatral e pedagogia; 2004, Prêmio Katherine
Singer Kovacs de melhor livro em culturas e
literaturas latino-americanas e espanholas) uma
instigante reflexão sobre a tessitura da memória
cultural nas Américas, por meio das relações da
performance com a escrita, a arte, a mídia, a
história e a política, evidenciando os rituais e as
contradições que marcam esse processo.

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o ARQUIVO E O REPERTÓRIO
Performance e memória cultural nas Américas
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
REITOR Clélio Campolina Diniz
VICE-REITORA Rocksane de Carvalho Norton

EDITORA UFMG
DIRETOR Wander Melo Miranda
VICE-DIRETOR Roberto Alexandre do Carmo Said

CONSELHO EDITORIAL
WanderMelo Miranda (PRESIDENTE)
Ana Maria Caetano de Faria
Flavio.de Lemos Catsalade
Heloisa Maria Murgel Starlíng
:&far.cio Gomes Soares
Maria das Graças Santa Bárbara
MariaHelena Damasceno e Silva Megale
'Roberto Alexandre do Carmo Said
DIANA TAYLOR

O ARQUIVO E O REPERTÓRIO
Performance e memória cultural nas Américas

ELIANA LOURENÇO DE LIMA REIS


Tradução

Belo Horizonte I Editora UFMG I 2013


1

ATOS DE TRANSFERÊNCIA

De 14 a 23 de junho de 2003, o Instituto Hemisférico de


Performance e Política reuniu artistas, ativistas e pesquisadores
das Américas para seu segundo encontro anual, a fim de compar-
tilhar as maneiras como nosso trabalho usa a performance
para intervir nos cenários políticos que nos interessam.' Todos
entendiam "política", mas a compreensão de "performance" era
mais difícil. Para alguns artistas, performance se referia à arte
performática. Outros brincavam com o termo. Jesusa Rodríguez,
a artista de cabaré/performance mais aguerrida e influente do
México, se referia aos 300 participantes como performenzos
(menzos significa idiotas)." Performalucos (performnuts) pode-
ria ser uma tradução aproximada, e muitos dos espectadores
concordariam que é preciso ser louco para fazer o que ela faz,
confrontando abertamente o Estado mexicano ea igreja católica.
Tito Vasconcelos, um dos primeiros performers abertamente
gays do início dos anos de 1980 no México, apareceu em cena
como Marta Sahagún, na época, amante, e agora, esposa do
então presidente do México, Vicente Fox. Em seu traje branco,
com sapatos de salto combinando, ela deu as boas-vindas ao
público do congresso de "perfumance". Sorrindo, ela admitiu que
não entendia bem sobre o que era o congresso; reconheceu que
ninguém dava a mínima para o que fazíamos, mas, mesmo assim"
ela nos dava as boas-vindas. PerPARAquê? (PerFORwhat?),
pergunta a mulher, confusa, no cartum de Diana Raznovich.
As piadas e trocadilhos, apesar de bem-humorados, revelavam
tanto a ansiedade pela definição quanto a promessa de uma nova
arena para mais intervenções.

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1. "PerFORwhat Studies?" Cartum de


Diana Raznovich, 2000.

ESTUDOS DE PERparaQUÊ?
Este livro, como o Instituto Hemisférico, propõe que os
estudos da performance podem contribuir para nossa compre-
ensão das tradições de performance da América Latina - e do
hemisfério - ao repensar as fronteiras disciplinares e nacionais
do século XIX e focalizar comportamentos incorporados. De
modo inverso, os debates que acontecem, desde o século XVI,
acerca da natureza e função das práticas de performance nas
Américas podem ampliar o âmbito de uma recém-pós-disciplina
que, devido a seu contexto, tem focalizado mais o futuro e os
fins da performance do que sua prática histórica. Finalmente, é
urgente focalizar as características específicas da performance

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niim meio cultural em que as corporações promovem a world
music, enquanto organizações internacionais (como a Unesco),
bem como as agências de fomento, tomam decisões sobre os
direitos culturais "mundiais" e os "patrimônios imateriais".
As performances funcionam como atos de transferência
vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e um sentido de
identidade social por meio do que Richard Schechner denomina
"comportamento reiterado"." Em um primeiro nível, a perfor-
mance constitui o objeto/processo de análise nos estudos da
performance, isto é, as muitas práticas e eventos - dança, teatro,
ritual, comícios políticos, funerais - que envolvem comporta-
mentos teatrais, ensaiados ou convencionais/apropriados para a
ocasião. Essas práticas são geralmente separadas de outras à sua
volta para constituir focos de análise distintos. Algumas vezes,
esse enquadramento faz parte do próprio evento - determinada
dança ou comício têm começo e fim; não afluem, de modo contí-
nuo ou sem divisões, para dentro de outras formas de expressão
cultural. Dizer que algo é uma performance significa fazer uma
afirmação ontológica, embora localizada. O que uma sociedade
considera uma performance poderia ser considerado um não
evento em outra.
Em um segundo nível, a performance também constitui a
lente metodológica que permite que pesquisadores analisem
eventos como perforrnances." Obediência cívica, resistência,
cidadania, gênero, etnicidade e identidade sexual, por exemplo,
são ensaiados e performatizados diariamente na esfera pública.
Entender esses itens como performances sugere que a perfor-
mance também funciona como uma epistemologia. A prática
incorporada, juntamente com outras práticas culturais associadas
a elas, oferece um modo de conhecer. A qualidade parentética
dessas performances é externa, vindo da lente metodológica que
as organiza como uma "totalidade" analisável. A performance e
a estética da vida cotidiana variam de comunidade para comu-
nidade, refletindo a especificidade cultural e histórica existente
tanto na encenação quanto na recepção. (Enquanto a recepção

27
se modifica na performance ao vivo, bem como naquela mediada
tecnologicamente, apenas na performance ao vivo o ato em si se
modifica.) As performances viajam, desafiando e influenciando
outras performances. Contudo, elas estão, em certo sentido,
sempre in situ: são inteligíveis na estrutura do ambiente imediato
e das questões que as rodeiam. O é/como realça a compreensão
da performance como simultaneamente "real" e "construída",
como um conjunto de práticas que reúnem o que historicamente
ficou separado como discursos ontológicos e epistemológicos
distintos, supostamente autónomos.
Os muitos usos da palavra performance apontam para
as complexas camadas de referencialidade, aparentemente
contraditórias, que às vezes se sustentam mutuamente. Victor
Turner toma como base para seu entendimento do termo a raiz
etimológica francesa, parfournir, "fornecer", "'completar' ou
'executar completamente'"." Do francês, o termo passou para
o inglês como performance no século XVI e, desde os séculos
XVI e XVII, tem sido usado com o sentido que tem hoj e. 6 Para
Turner, ao escrever nas décadas de 1960 e 1970, as perfor-
mances revelavam o caráter mais profundo, mais verdadeiro
e mais individual da cultura. Guiado por uma crença em sua
universalidade e relativa transparência, Turner afirmava que as
populações poderiam aprender a compreender umas às outras
por meio de suas perforrnances,? Para outros, evidentemente,
o termo significa justamente o oposto: o caráter construído
das performances indica sua artificialidade - ela é algo "simu-
lado", antitético ao "real" e "verdadeiro". Em alguns casos, a
ênfase nesse caráter construído revela um preconceito antite-
atral; em leituras mais complexas, o construído é reconhecido
como vizinho do real. Embora uma dança, um ritual ou uma
manifestação exijam uma separação ou um enquadramento
que os diferenciem de outras práticas sociais à sua volta, isso
não implica que a performance não seja real ou verdadeira.
Ao contrário, a ideia de que esta destila uma verdade "mais
verdadeira" do que a própria vida vem desde Aristóteles,

28
r
passando por Shakespeare, Calderón de la Barca, Artaud e
Grotowski, chegando até o presente. No campo dos negócios,
o termo é usado com mais frequência do que em qualquer
outro, embora geralmente com sentido diferente, isto é, para
indicar que alguém ou, mais frequentemente, alguma coisa
põe em prática todo seu potencial. Os supervisores avaliam a
eficácia dos trabalhadores em seu emprego, sua performance;
como se fossem carros ou computadores, e parece que os
mercados competem para ter uma performance melhor do que
seus rivais. Perform or else [Tenha uma boa performance, ou
então...], o título do livro de Jon McKenzie, capta muito bem
o imperativo de alcançar os padrões de negócios (e de cultura).
Os consultores políticos entendem que a performance como
estilo - em vez de no sentido de levar a cabo ou completar
com êxito - frequentemente determina o resultado político. A
ciência também começou a explorar o comportamento humano
reiterado e a cultura expressiva através de memes: "Memes são
histórias, canções, hábitos, habilidades, invenções e maneiras
de fazer as coisas que copiamos de pessoa para pessoa por
meio da imitação" - em suma, os atos reiterativos que venho
chamando de performance, embora, é claro, ela não envolva
necessariamente comportamentos miméticos."
Nos estudos da performance, portanto, as noções sobre a
definição, o papel e a função da performance variam muito. Ela
sempre diz respeito apenas à incorporação? Ou questiona os
próprios contornos do corpo, desafiando noções tradicionais
de incorporação? Desde os tempos antigos, a performance tem
manipulado, ampliado e experimentado com a incorporação -
essa intensa experimentação não começou com Laurie Anderson.
As tecnologias digitais nos convidarão, mais e mais, a reformular
nossa compreensão de questões como "presença", lugar (agora
o "site" on-line, não localizável), efêmero e incorporação. Os
debates proliferam.
Um exemplo do âmbito dessa compreensão é o debate sobre
a capacidade de permanência da performance. Partindo de uma

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posição lacaniana, Peggy Phelan delimita a vida da performance
ao presente: "( ...) a performance não pode ser salvada, gravada,
documentada ou participar de outro modo da circulação de
representações da representação. (...) O ser da performance, como
a ontologia da subjetividade proposta aqui, torna-se ela mesma
por meio do desaparecimento.i" Joseph Roach, por outro lado,
amplia o entendimento ao colocá-la ao lado da memória e da
história. Assim, ela participa da transferência e da continuidade
do conhecimento:

As genealogias da performance trazem consigo a ideia de movi-


mentos expressivos como reservas mnemônicas, incluindo movimentos
padronizados feitos e lembrados por corpos, movimentos residuais
guardados implicitamente em imagens ou palavras (ou nos silêncios
entre eles) e movimentos imaginários sonhados em mentes, não ante-
riormente à linguagem, mas como partes constitutivas dela. lO

Os debates sobre o caráter efêmero da performance são, eviden-


temente, profundamente políticos. De quem são as memórias,
tradições e reivindicações à história que desaparecem se falta às
práticas performáticas o poder de permanência para transmitir
conhecimento vital?
Pesquisadores vindos da filosofia e da retórica (como J.
L. Austin, Jacques Derrida e Judith Butler) criaram termos
como performativo e performatividade. O performativo, para
Austin, refere-se a casos em que "a emissão de um enunciado
[utterance] é também a realização de uma ação".ll Em alguns
casos, a reiteração e o processo parentético que associei com
a performance anteriormente são claros: é dentro da estrutura
convencional de uma cerimônia de casamento que a palavra
"sim" contém peso legal. 12 Outros continuaram a desenvolver
a noção de performativo de maneiras diversas. Derrida, por
exemplo, vai mais além ao enfatizar a importância do aspecto
citacional e iterativo do "evento de fala", questionando a ideia
de que "uma declaração performativa é bem-sucedida se sua

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formulação não repetiu uma declaração 'codificada' ou iterá-
vel"." Entretanto, o enquadramento que sustenta o uso, feito
por Butler, de performatívídade - o processo de socialização por
meio do qual as identidades de gênero e de sexo (por exemplo)
são produzidas mediante práticas regulatórias e citacionais - é
mais difícil de identificar, pois a normalização tornou-a invisí-
vel. Enquanto em Austin o performativo aponta para a língua
que age, em Butler o performativo segue na direção oposta,
subsumindo a subjetividade e a agência cultural na prática
discursiva normativa. Nessa trajetória, o performativo se torna
menos uma qualidade (ou adjetivo) de "performance" do que do
discurso. Embora possa ser tarde demais para trazer de volta o
performativo para o reino não discursivo da performance, sugiro
que se tome emprestada uma palavra do uso contemporâneo
de performance em espanhol - performátíco - para denotar a
forma adjetiva do reino não discursivo da performance. Por
que isso. é importante? Porque é vital sinalizar que os campos
performático, digital e visual são separados (apesar de estarem
sempre enredados entre si) do campo discursivo, tão privilegiado
pelo logocentrismo ocidentaL O fato de não termos uma palavra
em inglês para sinalizar esse espaço performático é um produto
daquele mesmo logocentrismo, e não uma confirmação de que
não há lá, lá. 14
Portanto, um dos problemas de se usar a performance, bem
como seus falsos cognatos "performativo" e "performatividade",
vem do âmbito extraordinariamente amplo de comportamentos
abrangidos pelo termo, que vão desde uma determinada dança
até a performance mediada tecnologicamente ou o comporta-
mento cultural convencionaL Contudo, o fato de a performance
ter camadas múltiplas indica as interconexões profundas entre
todos esses sistemas de inteligibilidade e as fricções produtivas
entre eles. Como os usos diferentes do termo/conceito - acadêmi-
cos, políticos, científicos e relacionados a negócios - raramente
interagem de modo direto, a performance tem também uma
história de intraduzibilidade. Ironicamente, a própria palavra

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ficou trancada dentro das caixas disciplinares e geográficas que
ela desafia; também teve negada a universalidade e a transpa-
rência que, para alguns, ela prometeria a seus focos de análise.
Evidentemente, esses muitos pontos de intraduzibilidade são
o que torna o termo e as práticas capacitados teoricamente e
reveladores culturalmente. As performances não podem, como
Turner esperava, nos dar acesso a outra cultura, permitindo
vê-la em profundidade, mas elas certamente nos dizem muito
sobre nosso desejo desse acesso e refletem a política de nossas
interpretações.
Parte dessa indefinibilidade caracteriza os estudos da
performance como campo de pesquisa. Na época de seu apare-
cimento, nos anos de 1970, como produto dos levantes sociais
e disciplinares que, no final da década de 1960, sacudiram a
academia, os estudos da perforrnance buscavam atenuar as
divisões disciplinares entre a antropologia e o teatro, enca-
rando os dramas sociais, a liminaridade e a encenação como
formas de escapar das noções estruturalistas de normatividade.
Os estudos da performance - que, como já indiquei, não têm
apenas um significado - claramente surgiram dessas disciplinas,
mesmo rejeitando suas fronteiras. Ao fazer isso, eles herdaram
alguns dos pressupostos e pontos cegos dos estudos do teatro
e da antropologia, mesmo quando procuravam transcender a
formação ideológica destes. Contudo, é igualmente importante
ter em mente que a antropologia e os estudos do teatro eram (e
são) compostos de variadas correntes, muitas vezes em conflito.
Neste momento posso apenas oferecer alguns exemplos rápidos
de como algumas dessas preocupações disciplinares e limitações
metodológicas foram transferidas para o pensamento sobre a
performance.
Da antropologia dos anos de 1970, os estudos da perfor-
mance herdaram seu rompimento radical com as noções de
comportamento normativo promulgadas pelo sociólogo Émile
Durkheim, que afirmava que a condição social dos humanos
(e não a agência individual) é responsável por comportamentos

32
e crenças.P Os que discordavam dessa posição estruturalista
defendiam que a cultura não era algo gratuito e reificado, mas
uma arena de disputa social em que os atores sociais se junta-
vam para lutar pela sobrevivência. A partir da ala comumente
denominada "dramatúrgica", antropólogos como Turner,
Milton Singer, Erving Goffman e Clifford Geertz começaram
a escrever sobre os indivíduos como agentes em seus próprios
dramas. As normas, eles argumentavam, são contestadas, e não
apenas aplicadas. A análise de encenações tornou-se crucial
no estabelecimento de reivindicações de agência cultural. Os
humanos não se adaptam simplesmente aos sistemas. Eles os
formam. Como reconhecer elementos, tais como escolha, opção
pelo momento adequado e autoapresentação, a não ser por meio
das maneiras como indivíduos e grupos os performatizam?
O modelo dramatúrgico também salientava os componentes
estéticos e lúdicos dos eventos sociais, bem como o caráter
intervalar da liminaridade e da inversão simbólica.
Participando da corrente linguística, antropólogos como DelI
Hymes, Richard Bauman, Charles Briggs, Gregory Bateson e
MichelIe Rosaldo foram influenciados por pensadores como
J. L. Austin, John Searle e Ferdinand de Saussure, que focali-
zavam a função performativa da comunicação - a parole, nos
termos de Saussure." Novamente, assim como aconteceu com o
modelo dramatúrgico, o modelo linguístico enfatizava a agência
cultural em funcionamento no uso da língua. Como, nos termos
propostos pelo título da obra de Austin, faziam-se coisas com
palavras? Da mesma forma que o modelo dramatúrgico, o
linguístico também enfatizava a criatividade em jogo no uso da
língua, já que os falantes e suas audiências trabalhavam juntos
para produzir performances verbais bem-sucedidas. A corrente
linguística também investia no reconhecimento da criatividade
na vida cotidiana de outros povos, maneiras de usar a linguagem
que eram engenhosas, específicas e "autênticas".
Enquanto os pesquisadores da performance adotaram pron-
tamente o projeto de levar a sério as encenações incorporadas,

33
vistas como uma maneira de entender como as pessoas gerenciam
suas vidas, absorveram também o posicionamento ocidental da
antropologia, que continuava a lutar com sua herança colonial.
O "nós" que estuda e escreve sobre "eles" era, evidentemente,
parte de um projeto colonialista do qual provinha a antropologia.
Contudo, os pesquisadores que trabalhavam na década de 1970
buscavam romper o paradigma que fetichizava o local, negava
agência aos povos que estudavam e os excluía da circulação do
conhecimento criado sobre eles. Apesar disso, a comunicação,
na maior parte dos casos, continuava a ser unidirecional. "Eles"
não tinham acesso à "nossa" escrita. Essa prática de escrita de
mão única revelava a ambivalência contínua em relação à dúvida
sobre se "eles" ocupavam um mundo diferente - no espaço e no
tempo - e se nós somos inter-relacionados e coevos. A unidírecio-
nalidade da criação de sentido e da comunicação, por um lado,
também provinha do privilégio dado, há séculos, ao escrito em
relação ao conhecimento incorporado e, por outro, o refletia.
Além disso, pouco se pensava sobre as muitas maneiras como o
contato com o "não ocidental" havia, durante séculos, moldado
a própria noção de identidade" ocidental" .Alguns antropólogos
e pesquisadores do teatro estavam profundamente influenciados
pelo impulso modernista de procurar a expressão autêntica,
"primitiva" e, de algum modo, mais pura da condição humana
nas sociedades não ocidentais. As tentativas feitas na literatura
dos anos de 1970 para ilustrar que esses "outros" eram de fato
completamente humanos, com práticas de performance tão
significativas quanto as "nossas", traem a ansiedade produzida
pelo colonialismo sobre o status dos sujeitos não ocidentais.
Apesar dos sentimentos descolonizantes de muitos antropólo-
gos da década de 1970, as estruturas de explicação que usavam
eram decididamente ocidentais. Voltando a Turner - a influência
mais direta sobre os Estudos da Performance devido à associação
produtiva deste antropólogo com Richard Schechner -, fica claro
que, embora o conceito de drama social tenha sido fundamental
para os Estudos da Performance, as afirmações universalistas

34
que ele faz sobre a ubiquidade do conceito se ressentem do
filtro bastante estreito que usa para compreendê-lo: o drama
aristotélico. Segundo Turner, "ninguém poderia deixar de notar
a analogia, na verdade a homologia, entre aquelas sequências
de eventos supostamente 'espontâneos', que tornam totalmente
evidentes as tensões existentes naquelas duas aldeias, e a 'forma
processual' característica do drama ocidental, desde Aristóteles,
ou do épico e da saga ocidentais, embora em uma escala limitada
ou em miniatura". Ninguém deixaria de notar, isto é, exceto
aqueles que participavam dos eventos sem a menor noção desses
paradigmas. I? Como que para se prevenir de uma acusação, já
percebida, de eurocentrismo, Turner completa:

o fato de que um drama social (...) corresponde de perto à descrição


da tragédia por Aristóteles na Poética, de que ela é "completa e inteira,
e de uma certa magnitude (...) possuindo um começo, um meio e um
fim", não acontece, repito, porque tentei de modo inapropriado impor
um modelo "ético" ocidental de ação no palco à conduta da sociedade
de uma aldeia africana, mas porque existe uma relação interdependente,
talvez dialética, entre os dramas sociais e os gêneros de performance
cultural em todas as sociedades. (p. 72)

Novamente, as teorias de Turner sobre acontecimentos estrutu-


rados com começo, meio e fim reconhecíveis podem ter menos a
ver com os acontecimentos "supostamente 'espontâneos'" do que
com sua lente analítica. A lente, para ele como para qualquer um,
revela seus (nossos) desejos e interesses. Ele pode estar correto
ao notar a interdependência das performances sociais e culturais
no interior de uma sociedade específica, mas seria importante
questionar se, e como, essa interdependência poderia atravessar
as culturas. Além disso, sua postura de observador "objetivo",
que olha de uma posição superior o "objeto" de análise, cria a
perspectiva desigual e distorcida que resulta no gesto duplo que
caracteriza muito da escrita sobre práticas de performance em
contextos diferentes do nosso. Primeiro, o observador declara

35
reconhecer o que está acontecendo na performance do Outro, ou
sobre o Outro. De algum modo, esse acontecimento é reificado e
interpretado por meio de um paradigma ocidental preexistente.
Segundo, o reconhecimento é seguido por uma afronta: essa
performance se mostra como uma versão "em miniatura" ou
diminuída do "original" .
Dos estudos de teatro - o parceiro "materno", de acordo
com Turner (p. 9) - os estudos da performance herdam outra
forma de radicalismo: sua propensão à vanguarda, que valoriza a
originalidade, o transgressivo e, novamente, o "autêntico". Essa
é uma operação diferente, mas complementar: o não ocidental
é a matéria-prima a ser retrabalhada e tornada "original" no
Ocidente. Presume-se, evidentemente, que a performance - agora
entendida como prática inspirada fortemente nas artes visuais
e em representações teatrais não convencionais, happenings,
instalações, body art e performance art ~ é uma prática estética
com raízes, por um lado, no surrealismo e dadaísmo e, por outro,
er tradições performáticas mais antigas como o cabaré, o jornal
vivo e os rituais de cura e possessão. A ênfase da vanguarda na
originalidade, no efêmero e no novo esconde múltiplas tradições
ricas e antigas de prática performática. Em 1969, por exemplo,
Michael Kirby, membro fundador do Departamento de Estudos
da Performance na NYU, criado logo depois, afirmou que "o
teatro ambiental é um desenvolvimento recente", associado com
a vanguarda, embora ele reconheça que, desde o teatro grego,
existem produções que poderiam receber esse mesmo rótulo. É
o "elemento estético específico" que, para Kirby, o diferencia de
formas anteriores. rs Contudo, sua ênfase na estética não conse-
gue, na verdade, distinguir os exemplos recentes dos anteriores.
Frei Motolinía, um dos primeiros 12 franciscanos a alcançar as
Américas no século XVI, descreve uma celebração de Corpus
Christi em 1538 durante a qual participantes nativos de Tlaxcala
criaram elaboradas plataformas externas, "todas de ouro e
trabalhos com penas", bem como montanhas e florestas inteiras
povoadas com animais vivos ou artificiais, que eram "uma coisa

36
maravilhosa de se ver", e por onde os espectadores/participantes
andavam para alcançar um efeito "natural" Y Afirmações como
a proposta por Kirby no final da década de 1960 constituem a
epítome da obsessão autoconsciente pelo novo, comum naquele
período, ao mesmo tempo que se esquecia ou se ignorava o que
já existia. Esses tipos de afirmação incitaram acusações de que
o campo nascente dos estudos da performance era a-histórico
ou até mesmo antí-histórico.
Há muitos outros exemplos de esquecimentos semelhan-
tes, acompanhados de novas "descobertas" que, novamente,
reencenam as omissões de laços entre práticas ocidentais e não
ocidentais: Artaud, inspirado pelos Taraumara; a dependência
de Brecht de formas não ocidentais como base para sua estética
revolucionária; o interesse de Grotowski pelos Huichol, para
ficar apenas nos casos mais óbvios. Poucos teóricos e profis-
sionais - com notáveis exceções - pensam com seriedade sobre
a construção mútua do ocidental/não ocidental nas Américas.
Isso exigiria dos pesquisadores não apenas aprender as línguas
dos povos com os quais procuram interagir, mas também
tratá-los como colegas, ao invés de vê-los como informantes
ou objetos de análise. Isso, por sua vez, significaria que esses
novos colegas permaneceriam a par de todos os projetos que
dizem respeito a eles, desde a produção até a distribuição e a
análise. Isso também acarretaria uma mudança metodológica,
uma reflexão sobre o que deve ser considerado como expertise
ou como fonte válida. Demandaria também o reconhecimento
da reciclagem permanente dos materiais e processos culturais
entre o ocidental e o não ocidental. Esse contato recíproco tem
sido em geral teorizado na América Latina como transcultura-
ção. A transculturação denota o processo transformativo por
que passam todas as sociedades quando entram em contato com
material cultural estrangeiro e o adquirem, voluntariamente ou
não (ver Capítulo 3). A transculturação acontece desde que o
mundo é mundo.ê? Porém, as discussões sobre os cruzamentos
de culturas continuam tensas como sempre.

37
o nervosismo que cerca o não ocidental continua a assom-
brar grande parte da escrita sobre a performance como prática
estética. Um exemplo: Patrice Pavis, no sumário introdutório da
seção "Contextos históricos" em The Intercultural Performance
Reader, apresenta um projeto que soa defensivo e bastante
paternalista:

Propomos começar juntando documentos e declarações de intenção,


sem nos permitirmos ser intimidados pelos hipócritas e fanáticos do
"politicamente correto". Em uma área como esta, precisamos ser
pacientes e calmos. Estamos ainda na fase de observar e fazer um
levantamento das práticas culturais e nossa única ambição é oferecer
aos leitores um certo número de declarações, escolhidas dentro de um
âmbito infinitamente possível, sem a imposição de uma teoria global
ou universal para analisar esses exemplos em definitivo.ê!

o simples ato de pensar sobre como lidar com práticas não


ocidentais deixa Pavis tenso. As declarações de inclusão (o
"âmbito infinitamente possível") não mascaram mais a prática
da exclusão: em seu livro, não existe um único ensaio sobre a
performance latino-americana, por exemplo. Críticos ocidentais
assediados devem manter a atitude de paciência e calma, no estilo
"papai sabe o que faz". Duas ou três décadas depois de Turner
e Kirby, muitos pesquisadores perderam as pretensões fáceis
com relação à decifrabilidade e ao novo. Pavis entende que os
teóricos "ocidentais" nos anos de 1990 precisam renunciar às
reivindicações de uma teoria global ou universalizante, embora
sua ênfase na observação e no levantamento, aparentemente
desinteressados, reinscreva o domínio da posição crítica. As
declarações e os documentos "históricos", todos escritos por
teóricos inegavelmente de Primeiro Mundo - Ericka Fischer-
-Lichte, Richard Schechner e Josette Féral- preparam o cami-
nho. Em uma seção separada, "A performance intercultural de
outro ponto de vista", Pavis inclui perspectivas "não ocidentais",
embora observe que a maioria daqueles que escrevem "vivem,
ou então viveram e trabalharam, nos Estados Unidos" (p. 147).

38
Ainda assim, eles são "estrangeiros" e "Outros", e suas visões
"realmente diferem radicalmente das visões dos interculturalistas
euro-americanos, sendo menos seguras de si" (p. 147).
Essa jogada crítica dupla realça uma área de preocupação/inte-
resse (o não ocidental) e, ao mesmo tempo, nega-a. Ela distancia
a produção cultural não ocidental como radicalmente outra e, em
seguida, procura abarcá-la dentro de sistemas críticos existentes
como sendo elementos menores ou disruptivos. A performance,
como aponta Roach, diz respeito tanto a esquecer quanto a
lembrar. O Ocidente se esqueceu de muitas partes do mundo
que escapam de seu alcance de explicação. Todavia, lembra-se
da necessidade de cimentar a centralidade de sua posição como
Ocidente ao criar e congelar o não ocidental como sempre
outro, "estrangeiro" e impossível de conhecer. A dominação
pela cultura, pela" definição", pela pretensão à originalidade e
autenticidade tem funcionado em conjunto com a supremacia
econômica e militar.
Apesar de serem a-históricos em parte de sua prática, nada
há de inerentemente a-histórico ou ocidental nos estudos da
performance. Nossas metodologias podem, e devem, ser revisadas
constantemente por meio do encontro com outros interlocutores,
bem como com outras realidades regionais, raciais, políticas e
linguísticas, tanto dentro de nossas fronteiras nacionais quanto
fora delas. Isso não significa estender nossos paradigmas atuais
para incluir outras formas de produção cultural. Também não
justifica limitar nosso âmbito de interlocutores àqueles cujas
histórias de vida e habilidades linguísticas se parecem com as
nossas. O que estou propondo é um empenho e um diálogo
ativos, apesar de complicados. A performance existe desde que
existem pessoas, embora o campo de estudo em sua forma atual
seja relativamente recente. Os estudos da performance surgiram
na cena acadêmica com uma bagagem herdada e vêm tentando,
há muito tempo, superar - muitas vezes com sucesso - algumas
dessas limitações. O eurocentrismo e o esteticismo de parte dos
estudos sobre o teatro, por exemplo, entram em conflito com
o fato de que tradicionalmente a antropologia focalize práticas

39
não ocidentais como sistemas criadores de sentido. A crença
de antropólogos como Geertz de que "fazer etnografia é como
procurar ler (...) um manuscrito - estrangeiro, descolorido, cheio
de elipses" e de que a cultura é um "documento performatizado"
vai contra os princípios dos estudos da performance, que insis-
tem na participação e reação ativas de todos." Estamos todos
presentes nesse quadro, somos todos atores sociais em nossos
dramas sobrepostos, limítrofes, litigiosos. Até mesmo o distan-
ciamento de Brecht se apoia na ideia de que os espectadores
estão fortemente ligados aos acontecimentos no palco, não por
meio da identificação, mas da participação, e de que eles são
frequentemente chamados a intervir e mudar o curso da ação.
Na América Latina, onde o termo não encontra um equiva-
lente satisfatório no espanhol e no português, em geral se refere
à performance como arte performática (performance art).
Traduzida simplesmente, mas de modo ambíguo, para o espa-
nhol como el performance ou la performance, um travestismo
linguístico que convida os falantes de inglês a pensar na perfor-
mance de sexo/gênero, a palavra está começando a ser usada
mais amplamente para se referir aos dramas sociais e às práticas
incorporadas. 23 É comum se referir atualmente a lo performático
como o que se relaciona à performance em seu sentido mais
amplo. Apesar das críticas de que "performance" é um termo
inglês e de que não há uma maneira de fazer com que se torne
confortável de pronunciar em espanholou português, pesquisa-
dores e profissionais estão começando a apreciar as qualidades
multivocais e estratégicas do termo. Embora a palavra possa ser
vista como estrangeira e intraduzível, os debates, determinações e
estratégias vindos das muitas tradições de práticas incorporadas
e de conhecimento corpóreo estão, nas Américas, profundamente
enraizados e prontos para a luta. Contudo, a linguagem que se
refere a esses conhecimentos corpóreos mantém uma ligação
firme com as tradições teatrais. A performance inclui qualquer
dos seguintes termos usados para substituí-la (sem se reduzir a
eles): teatralidad, espectáculo, acción, representación.

40
Teatralidad e espectáculo, assim como teatralidade e espetá-
culo, captam o sentido construído e abrangente da performance.
As muitas maneiras como a vida social e o comportamento
humano podem ser vistos como performance estão presentes
nesses termos, embora com valor específico. A teatralidade, para
mim, comporta um roteiro, uma configuração paradigmática
que conta com participantes supostamente ao vivo, estruturados
ao redor de um enredo esquemático, com um fim pretendido
(apesar de adaptável). Seria possível dizer que toda a escrita
do século XVI sobre o descobrimento e a conquista reencena o
que Michel de Certeau denomina a "cena inaugural: depois de
um momento de pasmo, nesse umbral pontilhado de colunatas
de árvores, o conquistador escreverá o corpo do outro e traçará
ali sua própria história" .24 A teatralidade torna o roteiro vivo e
irresistível. Em outras palavras, os roteiros existem como imagi-
nários específicos culturalmente - conjuntos de possibilidades,
maneiras de conceber o conflito, a crise ou a resolução - ativados
com maior ou menor teatralidade. Diferentemente do tropa, que
é uma figura de linguagem, a teatralidade não se baseia na língua
para transmitir um padrão estabelecido de comportamento ou
de ação. 25 No Capítulo 2, sugiro que o "encontro" colonial é
um roteiro teatral estruturado de maneira previsível, como que
uma fórmula, daí ser facilmente repetível. A teatralidade, como o
teatro, ostenta seu artifício, seu caráter construído. Não importa
quem reencena o encontro colonial da perspectiva do Ocidente-
o romancista, o dramaturgo ou o funcionário do governo -, no
elenco estão sempre o mesmo protagonista-sujeito masculino e o
mesmo "objeto" encontrado, de pele escura. A teatralidade luta
pela eficácia, não pela autenticidade. Ela conota uma dimensão
consciente, controlada e, portanto, sempre política, que a perfor-
mance não precisa conter. A teatralidade difere do espetáculo
por ressaltar a mecânica do espetáculo. Concordo com Guy
Debord, que afirma que o espetáculo não é uma imagem, mas
uma série de relações sociais mediadas pelas imagens. Portanto,
como aponto em outro texto, o espetáculo "liga os indivíduos a
uma economia de aparências e de olhar" que pode parecer mais

41
invisivelmente normalizadora, isto é, menos "teatral" .26 Ambos
os termos, entretanto, são substantivos sem verbo; assim, eles
não deixam espaço para a agência cultural individual como
faz a performance. Perde-se muito, em minha opinião, quando
abrimos mão do potencial para a intervenção direta e ativa ao
adotar palavras como teatralidade ou espetáculo em lugar do
termo performance.
Palavras como acción e representación abrem espaço para a
ação e intervenção individuais. Acción pode ser definida como
um ato, um happening de vanguarda, uma manifestação ou
intervenção política, como, por exemplo, os protestos em forma
de teatro de rua encenados pelo grupo de teatro Yuyachkani,
do Peru (ver Capítulo 7) ou os escraches ou atos de execração
pública contra torturadores por H.I.].O.S., a organização de
direitos humanos composta por filhos dos desaparecidos na
Argentina (ver Capítulo 6). Dessa forma, a acción reúne tanto
as dimensões estéticas quanto as políticas da performance.
Porém, os mandatos econômicos e sociais que pressionam
os indivíduos a performatizar de acordo com certos modos
normativos desaparecem - a maneira como performatizamos
nosso gênero, etnicidade e assim por diante. O termo acción
parece mais dirigido e intencional e, portanto, menos imbricado
social e politicamente do que performatizar, que evoca tanto
a proibição quanto o potencial para a transgressão. Podemos,
por exemplo, performatizar, ao mesmo tempo, múltiplos papéis
construídos socialmente, mesmo enquanto nos ocupamos de
uma acción antimilitar claramente definida. A representação,
mesmo com seu verbo representar, invoca noções de mimes e, de
uma quebra entre o "real" e sua representação, que os termos
performance e performatizar tornam mais produtivamente
complicados. Embora esses termos tenham sido propostos, em
vez de performance, de som estrangeiro, eles também derivam
de línguas, histórias culturais e ideologias ocidentais.
Por que, então, não usar um termo vindo de uma das
línguas não europeias, como o nauatle, o quéchua, o aimara
ou qualquer uma das centenas de línguas indígenas ainda

42
faladas nas Américas? Olin, que significa movimento em
nauatle, parece um candidato possível. Olin é o motor por
trás de tudo que acontece na vida, o movimento repetido do
sol, das estrelas, da terra e dos elementos. Olin, que também
significa "hule" ou borracha, era aplicado nas vítimas sacri-
ficiais para facilitar a transição do reino terrestre para o
divino. Além disso, Olin é um mês no calendário mexicano
e, assim, permite a especificidade temporal e histórica. Olin
também se manifesta como uma divindade que intervém em
questões sociais. O termo capta simultaneamente a natureza
mais ampla e abrangente da performance como processo
reiterativo e de ajuda, bem como seu potencial para a espe-
cificidade histórica, para a transição e a agência cultural e
. individual. Também poderíamos, talvez, adotar areito, termo
que designa música e dança. Areitos, do arauaque aririn, era
usado pelos conquistadores para descrever um ato coletivo
que envolvia canto, dança, celebração e culto, que reivindi-
cava legitimidade não só estética, mas também sociopolítica
e religiosa. O termo me atrai porque embaralha todas as
noções aristotélicas de gêneros, públicos e fins desenvolvidos
distintamente. Ele reflete claramente a suposição de que as
manifestações culturais excedem a compartimentalização, seja
ela por gênero (música-dança) ou por participantes/atores, seja
pelo efeito pretendido (religioso, sociopolítico, estético) em
que se baseia o pensamento cultural ocidental. Ele também
questiona nossas taxonomias, mesmo ao apontar para novas
possibilidades interpretativas.
Sendo assim, por que não? Creio que, nesse caso, substituir
uma palavra com uma história reconhecível, embora problemá-
tica - como a performance -, por outra desenvolvida em um
contexto diferente, para sinalizar uma visão de mundo profun-
damente diferente, seria apenas um ato de racionalização dos
desejos, uma aspiração a esquecer nossa história compartilhada
de relações de poder e de dominação cultural que não desapa-
receria, mesmo que mudássemos nossa língua. A perforrnance,
como termo teórico e não como objeto ou prática, é nova nesse

43
campo. Embora surgida nos Estados Unidos, em uma época
de mudanças disciplinares, para fazer frente a áreas de análise
que, anteriormente, excediam as fronteiras acadêmicas (isto é,
"a estética da vida cotidiana"), a performance não está, como
o teatro, sob o peso de séculos de atividade evangélica colonial
ou normalizadora. Considero tranquilizadoras até mesmo sua
própria indefinibilidade e complexidade. A performance traz
consigo a possibilidade de desafio, até mesmo de autodesafio.
Como termo que conota, simultaneamente, um processo, uma
práxis, uma episteme, um modo de transmissão, uma realização
e um modo de intervir no mundo, a performance excede, em
muito, as possibilidades dessas outras palavras oferecidas em
seu lugar. Além disso, o problema da intraduzibilidade, em
minha opinião, é na verdade positivo, uma pedra no caminho
que nos lembra que "nós" - seja em nossas várias disciplinas,
línguas ou situações geográficas por todas as Américas - não
nos compreendemos uns aos outros de modo simples ou não
problemático. Proponho que se parta desta premissa - a de
que não nos compreendemos uns aos outros - e se reconheça
que cada esforço nessa direção precisa trabalhar com noções
como acesso fácil, decifrabilidade e traduzibilidade. Essa pedra
no caminho constitui um entrave não apenas para os falantes
de espanhol e português que se deparam com uma palavra
estrangeira, mas também para falantes de inglês que pensavam
saber o que significa performance.

2. Desenho de Alberto Beltrán. Cortesia Diana Taylor.

44
o ARQUIVO EOREPERTÓRIO
Meu investimento particular nos estudos da performance
deriva menos daquilo que ela é do que daquilo que ela nos
permite fazer. Ao levar a performance a sério, considerando-a
um sistema de aprendizagem, armazenamento e transmissão
de conhecimento, os estudos da performance nos permitem
ampliar o que entendemos por "conhecimento". Esse gesto, para
começar, pode nos preparar para desafiar a preponderância da
escrita nas epistemologias ocidentais. Como sugiro neste estudo,
a escrita, paradoxalmente, passou a substituir a incorporação
e a se colocar contra ela. Quando os frades chegaram ao Novo
Mundo nos séculos XV e XVI, eles afirmavam que o passado
dos povos indígenas - e as "vidas que viveram" - havia desapa-
recido porque eles não tinham escrita. Agora, à beira de uma
revolução digital que ao mesmo tempo utiliza a escrita e ameaça
deslocá-la, o corpo parece, novamente, estar suspenso, prestes
a desaparecer no espaço virtual que foge à incorporação. A
expressão incorporada continua e, provavelmente, continuará a
participar da transmissão do conhecimento social, da memória
e da identidade pré e pós-escrita. Sem ignorar as pressões para
se repensar a escrita e a incorporação do ponto de vista das
mudanças epistêmicas ocasionadas pelas tecnologias digitais, vou
me concentrar aqui em algumas das implicações metodológicas
da revalorização da cultura expressiva e incorporada.
Ao mudar o foco da cultura escrita para a cultura incorporada,
do discursivo para o performático, precisamos mudar nossas
metodologias. Em vez de focalizar os padrões de expressão cultu-
ral em termos de textos e narrativas, podemos considerá-los como
roteiros que não reduzem os gestos e as práticas incorporadas à
descrição narrativa. Essa mudança necessariamente altera o que
as disciplinas acadêmicas veem como cânones apropriados e pode
ampliar as fronteiras disciplinares tradicionais a fim de incluir
práticas anteriormente fora de sua jurisdição.
O conceito de performance, como práxis e episteme incor-
porada, por exemplo, mostraria ser vital para se definirem os

45
estudos latino-americanos, pois ele descentra o papel histórico da
escrita introduzido pela Conquista. Como observa Ángel Rama
emA cidade letrada, "o lugar exclusivo da escrita nas sociedades
latino-americanas era tão reverenciado que assumia uma aura
de sagrado. (...) Documentos escritos não pareciam sair da vida
social, mas, sim, ser impostos a ela e forçá-la para dentro de um
molde que não havia sido de modo algum feito sob medida.v"
Embora os astecas, maias e incas praticassem a escrita antes
da conquista - em forma de pictogramas, hieróglifos ou sistemas
de nós -, ela nunca substituiu a expressão vocal performatizada.
A escrita, apesar de altamente valorizada, era originalmente
um lembrete para a performance, um auxílio mnemônico.
Informações mais precisas podiam ser armazenadas através da
escrita, o que exigia habilidades especializadas, mas dependia
da cultura incorporada para sua transmissão. Como na Europa
medieval, a escrita era uma forma privilegiada, praticada apenas
por poucos especialistas. Por meio do in tlilli in tlapalli ("a tinta
vermelha e preta", como os nauas chamavam a sabedoria asso-
ciada à escrita), os mesaamericanos armazenavam sua compre-
ensão do movimento planetário, do tempo e do calendário. Os
códices transmitiam narrativas históricas, datas importantes,
negócios regionais, fenômenos cósmicos e outros tipos de conhe-
cimento. A escrita era censurada, e os escribas indígenas viviam
com um medo mortal de alguma transgressão. As histórias eram
queimadas e reescritas para se ajustarem às necessidades de
memorização dos que estavam no poder. O espaço da cultura
escrita na época, como agora, parecia mais fácil de controlar do
que a cultura incorporada. Porém, a escrita dependia muito mais
da cultura incorporada para sua transmissão do que o inverso.
Enrique Florescano, um eminente historiador mexicano, observa:
"Além dos tlacuilos, especialistas que pintavam os livros, havia
especialistas que os liam, interpretavam, memorizavam e comen-
tavam em detalhes frente a audiências de não especialistas."?"
Contudo, a meu ver, a descrição, feita por Florescano, desses
sistemas que se sustentam mutuamente confere ênfase exagerada

46
ao papel da escrita. Seria muito limitador entender a performance
incorporada como voltada basicamente para a transmissão desses
"fatos essenciais" (p. 39), escritos em códices ou livros pintados.
Os códices comunicam muito mais do que fatos. As imagens, tão
densas visualmente, transmitem o conhecimento do movimento
ritualizado e das práticas sociais cotidianas. Muitos outros tipos
de conhecimento que não envolvem nenhum componente escrito
também eram passados adiante por meio da cultura expressiva
- danças, rituais, funerais, huehuehtlahtolli ("a palavra antiga",
sabedoria transmitida através da fala) e exibições majestosas
de poder e riqueza. Os escribas eram treinados em uma escola
especializada, ou calmecac, que também ensinava dança, recita-
ção e outras formas de comunicação essenciais para a interação
social. A educação tinha como foco basicamente essas técnicas
do corpo para assegurar a doutrinação e a continuidade.
O que mudou com a conquista não foi que a escrita deslocou
a prática incorporada (precisamos apenas nos 'lembrar de que
os jesuítas trouxeram suas próprias práticas incorporadas), mas
o grau de legitimação da escrita em relação a outros sistemas
epistêrnicos e mnemônicos. A escrita agora assegurava que o
Poder, com P maiúsculo, conforme Rama, poderia ser desenvol-
vido e imposto sem a opinião da grande maioria da população,
os indígenas e as populações marginais do período colonial,
sem acesso à escrita sistemática. Os colonizadores não apenas
queimaram os códices antigos, mas também limitaram o acesso
à escrita a um grupo muito pequeno de homens conquistados que
eles sentiam que promoveriam os esforços evangélicos. Enquanto
os conquistadores se esforçaram por elaborar, ao invés de trans-
formar, uma prática de elite e um determinado arranjo de poder
baseado no gênero, a importância dada à escrita aconteceu às
custas das práticas incorporadas como modos de conhecimento
e de fazer reivindicações. Aqueles que controlavam a escrita -
primeiro os frades e, em seguida, os letrados - ganharam poder
excessivo. A escrita também permitiu aos centros imperiais
europeus - Espanha e Portugal - controlar suas populações

47
coloniais de longe. A escrita diz respeito à distância, como nota
Michel de Certeau: "O poder que o expansionismo da escrita
deixa intato é, em princípio, colonial. Ele é estendido sem ser
modificado. Ele é tautológico, imunizado tanto contra qualquer
alteridade que possa transformá-lo quanto contra qualquer coisa
que ouse resistir a ele."29
A separação entre palavra escrita e falada, observada por
Rama e também presente em Certeau, aponta apenas para um
aspecto da repressão à prática incorporada indígena como forma
de conhecimento. Práticas não verbais - como dança, ritual e culi-
nária, entre outras -, que há muito tempo serviam para preservar
um senso de identidade e de memória comunitária, não eram
consideradas formas válidas de conhecimento. Muitos tipos de
performance, considerados idólatras por autoridades religiosas
e civis, foram totalmente proibidos. Asserções manifestadas por
meio da performance - seja a ação de amarrar as vestes para
significar casamento ou reivindicações de terra performatizadas
- deixaram de conter valor legal. Aqueles que tinham dedicado
suas vidas a estudar as práticas culturais, como esculpir máscaras
ou tocar música, não eram considerados "especialistas", uma
designação reservada aos pesquisadores formados por meio de
livros. A medida que a Igreja substituía suas próprias práticas
performáticas, os neófitos não poderiam mais pretender utilizar
seu conhecimento ou a tradição para legitimar sua autoridade.
A fratura, a meu ver, não é entre palavra escrita e falada, mas
entre o arquivo de materiais supostamente duradouros (isto é,
textos, documentos, edifícios, ossos) e o repertório, visto como
efêmero, de práticas/conhecimentos incorporados (isto é, língua
falada, dança, esportes, ritual).
A memória "arquivai" existe na forma de documentos,
mapas, textos literários, cartas, restos arqueológicos, ossos,
vídeos, filmes, CDs, todos esses itens supostamente resisten-
tes à mudança. Arquivo vem do grego e etimologicamente se
refere a "um edifício público", a "um lugar em que se guardam
registros't.ê? Vindo de arkhé, significa também um começo,

48
o primeiro lugar, o governo. Ao transformar os verbetes do
dicionário em um arranjo sintático, poderíamos concluir que
o arquivaI, desde o começo, sustenta o poder. A memória
arquivaI trabalha a distância, acima do tempo e do espaço;
investigadores podem voltar para reexaminar um manuscrito
antigo; cartas encontram seus endereços através do tempo e do
lugar; discos de computador às vezes cospem pastas perdidas,
com o uso do software certo. O fato de que a memória arqui-
vaI consegue separar a fonte de "conhecimento" do conhe-
cedor - no tempo e/ou espaço - leva a comentários, como o
feito por Certeau, de que ela é "expansionista" e "imunizada
contra a alteridade" (p. 216). O que muda ao longo do tempo
é o valor, relevância ou significado do arquivo, como os itens
que ele contém são interpretados ou mesmo incorporados. Os
ossos podem continuar os mesmos, embora sua história possa
mudar, dependendo do paleontólogo ou antropólogo forense
que os examina. Antígona pode ser encenada de maneiras
múltiplas, enquanto o texto imutável assegura um significado
estável. Textos escritos 'permitem que pesquisadores descubram
tradições literárias, fontes e influências. Na medida em que se
constitui de materiais que parecem durar, o arquivo excede
o que acontece ao vivo. Há vários mitos que acompanham o
arquivo. Um é que ele não é mediado - que objetos lá localiza-
dos podem significar algo fora da moldura do próprio ímpeto
arquivaI. O que torna um objeto arquivaI é o processo pelo
qual é selecionado para análise. Outro mito é que o arquivo
resiste à mudança, à corruptibilidade e à manipulação política.
Coisas individuais -livros, amostras de DNA, documentos de
identidade com fotos - podem aparecer misteriosamente no
arquivo, ou então desaparecer dele.
O repertório, por outro lado, encena a memória incorporada
- performances, gestos, oralidade, movimento, dança, canto -, em
suma, todos aqueles atas geralmente vistos como conhecimento
efêmero, não reproduzível. O repertório, etimologicamente "uma
tesouraria, um inventário" , também permite a agência individual,

49
referindo-se também a "aquele que encontra, descobridor" .31 0
repertório requer presença - pessoas participam da produção
e reprodução do conhecimento ao "estar lá", sendo parte da
transmissão. Em oposição aos objetos no arquivo, supostamente
estáveis, as ações do repertório não permanecem as mesmas. O
repertório ao mesmo tempo guarda e transforma as coreografias
de sentido. Os entusiastas dos esportes afirmam que o futebol
não teve mudanças nos últimos 100 anos, apesar de que fãs
e jogadores de países diferentes se apropriaram do evento de
diversas maneiras. Danças mudam ao longo do tempo, mesmo
que gerações de dançarinos (ou mesmo dançarinos individuais)
jurem que elas permaneceram sempre iguais. Porém, mesmo
que a incorporação se modifique, o significado pode muito bem
permanecer o mesmo.
O repertório, então, permite também que pesquisadores
investiguem tradições e influências. Muitos tipos de perfor-
mances têm viajado pelas Américas, deixando sua marca à
medida que se movimentam. O pesquisador Richard Flores,
por exemplo, mapeia como as pastoreias, peças de pastores,
passaram da Espanha até o centro do México, ao noroeste
deste país e, então, ao sudeste do atual território estadunidense.
As diferentes versões permitiram que ele distinguisse várias
rotas.P Max Harris pesquisou a prática de uma batalha simu-
lada específica, moras y cristianos, desde a Espanha antes da
conquista até o México do século XVI, vindo até o presente.ê" O
repertório permite o aparecimento de perspectivas alternativas
dos processos históricos transnacionais de cantata e sugere um
remapeamento das Américas, dessa vez seguindo tradições de
prática incorporada.
Certamente é verdade que instâncias individuais de perfor-
mances desaparecem do repertório. Isso acontece, em menor
grau, no arquivo. A questão do desaparecimento em relação ao
arquivo e ao repertório difere em tipo e em grau. A performance
"ao vivo" nunca pode ser captada ou transmitida por meio do
arquivo. Um vídeo de uma performance não é uma performance,

50
embora frequentemente acabe por substituir a performance como
uma coisa em si (o vídeo é parte do arquivo; o que representa
é parte do repertório). A memória incorporada está "ao vivo"
e excede a capacidade do arquivo de captá-la. Porém, isso não
significa que a performance - como comportamento ritualizado,
formalizado ou reiterativo - desaparece.ê" As performances
também replicam a si mesmas por meio de suas próprias
estruturas e códigos. Isso significa que o repertório, como
o arquivo, é mediado. O processo de seleção, memorização
ou internalização e, finalmente, de transmissão acontece no
interior de sistemas específicos de reapresentação (e, por sua
vez, auxilia a constituí-los). Formas múltiplas de atos incorpo-
rados estão sempre presentes, embora em estado constante de
"agoridade". Eles se reconstituem - transmitindo memórias,
histórias e valores comuns de um grupo/geração para outro.
Os atos incorporados e performatizados geram, gravam e
transmitem conhecimento. '
O arquivo e o repertório têm sempre sido fontes importantes
de informação, sendo que cada um excede as limitações do outro
em sociedades letradas e semiletradas. Além disso, eles, em geral,
trabalham em conjunto. Inúmeras práticas nas sociedades mais
letradas requerem tanto a dimensão arquival quanto a incorpo-
rada - os casamentos precisam tanto da declaração performativa
do "sim" quanto do contrato assinado. A legalidade de uma
decisão jurídica depende da combinação do julgamento ao vivo
e do resultado registrado. A performance de uma reivindica-
ção contribui para sua legalidade. Temos apenas de pensar em
Colombo cravando a bandeira espanhola no "Novo Mundo",
ou em Neil Armstrong fincando a bandeira estadunidense na
lua. Os materiais do arquivo dão forma à prática incorporada de
inumeráveis maneiras, mas nunca ditam totalmente a incorpora-
ção. Jesús Martín-Barbero, o teórico colombiano que trabalha
com estudos da mídia, ilustra os usos que os espectadores fazem
das mídias de massa - como, por exemplo, a telenovela.ê" O que
acontece não é que as mídias simplesmente impõem estruturas

51
de desejo e de comportamento apropriadas. As maneiras como
as populações desenvolvem modos de assistir, conviver, recontar
ou reciclar os materiais levam em consideração um âmbito amplo
de respostas. As mediações, ele afirma, e não as "mídias", ofere-
cem a chave para se compreender os comportamentos sociais.
Essas respostas e comportamentos, por sua vez, são tomados e
apropriados pelas mídias de massa de maneira dialógica, e não
de maneira unidirecional.
Embora o arquivo e o repertório existam em constante
estado de interação, a tendência tem sido banir o repertório
para o passado. Jacques Le Goff, por exemplo, escreve sobre a
"memória étnica": "(...) o domínio principal em que a memória
coletiva dos povos sem escrita se cristaliza é aquele que oferece
uma fundação aparentemente histórica para a existência de
grupos étnicos ou famílias, isto é, mitos de origem.v" Ele sugere,
então, que a escrita proporciona consciência histórica, enquanto
a oralidade oferece consciência mítica. A distinção estabelecida
por Pierre Nora entre os lieux e os milieux de mémoire cria
um conjunto binário em que os milieux (que se parecem muito
com o repertório) pertencem ao passado e os lieux são algo do
presente. Para Nora, os milieux de mémoire, que ele chama de
"ambiente real da memória" (p. 284), encenam o conhecimento
incorporado: "(...) gestos e hábitos, em habilidades passadas
adiante por tradições não ditas, no autoconhecimento inerente
do corpo, em reflexos não estudados e em memórias arraiga-
das."?" A diferença entre o meu pensamento e o dele, contudo,
é que para Nora os milieux de mémoire constituem o local
primordial, não mediado e espontâneo da "memória verdadeira",
enquanto os lieux de mémoire - a memória arquival - é sua
antítese moderna, ficcional e altamente mediada. Um "rastro",
a "mediação" e a "distância", ele argumenta, separaram o ato
do significado, levando-nos do reino da verdadeira memória ao
da história (p. 285). Esse paradigma opõe história e memória
como polos opostos de um conjunto binário. Nora não diferencia
entre formas de transmissão (incorporadas ou arquivais), ou entre

52
tipos diferentes de públicos e comunidades. Sua diferenciação cai
dentro de uma temporalidade antes e depois, uma fenda entre
o passado (tradicional, autêntico, agora perdido) e o presente
,
(generalizado como cultura moderna, global e de massa).
A relação entre o arquivo e o repertório, a meu ver, certamente
é não sequencial, como imagina Nora (para este, o primeiro
ascenderia à preeminência depois do desaparecimento do
segundoi." Não se trata, tampouco, de verdadeiro versus falso,
mediado versus não mediado, primordial versus moderno. Não se
trata, ainda, de um conjunto claramente binário - com o escrito
e o arquivaI constituindo o poder hegemônico e o repertório
oferecendo o desafio anti-hegemônico. A performance pertence
tanto aos fortes quanto aos fracos; ela subscreve as "estratégias"
de Certeau, bem como suas "táticas", o "banquete" de Bakhtin,
assim como seu "carnaval". Os modos de armazenar e transmitir
conhecimento são muitos, e as performances incorporadas têm
frequentemente contribuído para a manutenção de uma ordem
social repressiva. Precisamos apenas olhar para o amplo espec-
tro de práticas políticas nas Américas, exercidas sobre corpos
humanos, desde os sacrifícios humanos anteriores à conquista
até as queimas nas fogueiras ordenadas pela Inquisição, ou até
os linchamentos de afro-americanos ou os atos contemporâneos
de tortura e os desaparecimentos, patrocinados pelo Estado.
Não precisamos polarizar a relação entre esses tipos diferentes
de conhecimento para reconhecer que, frequentemente, eles
têm se mostrado antagônicos na luta pela sobrevivência ou
supremacia cultural.
As tensões historicamente desenvolvidas entre o arquivo e o
repertório continuam a se mostrar nas discussões sobre a cultura
do "mundo" e o "patrimônio imaterial". Este não é o lugar certo
para relatar os debates em detalhes, mas gostaria ao menos de
apontar algumas das questões que dizem respeito a meu tópico.
Como têm aparecido cada vez mais leis para proteger a
propriedade intelectual e artística, começou-se a pensar em
maneiras de proteger a propriedade "imaterial". Como proteger

53
perforrnances, comportamentos e expressões que constituem o
repertório? A Unesco está agora lutando para descobrir modos
de promover o trabalho "de salvaguardar, proteger e revitalizar
espaços culturais ou formas de expressão cultural proclamadas
como 'obras-primas do patrimônio oral e imaterial da humani-
dade"'. Essas salvaguardas protegeriam "as formas tradicionais e
populares de expressão cultural"; como exemplo, a organização
cita a arte de contar histórias oralmente."
Considerando que os materiais no repertório participam da
produção e transmissão de conhecimento, concordo que eles
justificam a proteção. Contudo, não está claro que a Unesco
tenha sido capaz de conceber o melhor modo de proteger esse
"patrimônio imaterial". Embora reconheça que "os métodos de
preservação aplicáveis ao patrimônio físico não são apropriados
para o patrirnônio imaterial", essas diferenças apenas podem ser
imaginadas na linguagem e nas estratégias associadas ao arquivo.
'0 termo obras-primas aponta não só para objetos, mas para
todo um sistema de valorização que Artaud havia descartado
como antiquado no início do século XX. O patrimânio, ligado
etimologicamente a herança, ressalta, novamente, a propriedade
material passada para herdeiros. A humanidade poderia bem ser
considerada tanto como o produtor quanto como o consumidor
desses bens culturais, mas sua abstração prejudica o sentido de
agência cultural. Além disso, o objetivo da Unesco parece ser
proteger certos tipos de performances - basicamente aquelas
produzidas pelos setores "tradicionais" e "populares". Essa
atitude repete a etnografia de salvamento da primeira metade
do século XX, sugerindo que essas formas desapareceriam sem
a intervenção e preservação oficiais. Parte do projeto da Unesco
envolve transportar materiais do repertório para o arquivo
("gravar sua forma em fita"). Contudo, a Unesco está também
buscando conscientemente proteger a transmissão incorporada
("facilitar sua sobrevivência auxiliando as pessoas interessadas
e assistindo na transmissão para as gerações futuras"). Porém,
como isso será realizado? O único programa desenvolvido

54
até este momento, "Tesouros Humanos Vivos", protege os
"possuidores de habilidades culturais tradicionais". Para mim,
isso evoca visões do objeto humanoide fetichizado, sonhado
por Guillermo Cómez- Pena para um diorama vivo em uma
instalação. Essas soluções parecem destinadas a reproduzir os
problemas de objetificar, isolar e exotizar o não ocidental a
que eles dizem se dedicar. Sem entender o funcionamento do
repertório, as maneiras como se produz e se transmite conhe-
cimento por meio da ação incorporada, será difícil saber como
desenvolver reivindicações legais para a propriedade. Porém,
isso difere do argumento da "preservação" que, a meu ver, mal
esconde uma profunda nostalgia colonial.
A tensão entre o que denomino arquivo e repertório tem sido
frequentemente construída como existente entre a língua escrita
e a falada. O arquivo inclui textos escritos, mas não se limita
a eles. O repertório contém performances verbais - canções,
orações, discursos -, bem como práticas não verbais. A divisão
entre escrito/oral, em um nível, capta a diferença entre arquivo/
repertório que venho desenvolvendo neste estudo, na medida em
que os meios de transmissão diferem, como acontece também
com as exigências de armazenamento e disseminação. O repertó-
rio, seja em termos de expressão verbal ou não verbal, transmite
ações incorporadas reais. Assim, as tradições são armazenadas
no corpo, por meio de vários métodos mnemônicos, e são
transmitidas "ao vivo" no aqui e agora, para uma audiência
real. Formas legadas, vindas do passado, são vivenciadas como
presentes. Embora isso possa descrever bem a mecânica da língua
falada, também serve para descrever um recital de dança ou
um festival religioso. É apenas porque a cultura ocidental está
casada com a palavra, escríra ou falada, que a língua reivindica
tal poder epistêmico e explanatório.
A equação escrita = memória/conhecimento é central para
a epistemologia ocidental. "A metáfora da memória como uma
superfície escrita é tão antiga e tão persistente em todas as
culturas ocidentais", escreve Mary Carruthers, "que deve, a meu

55
ver, ser considerada como o modelo dominante ou 'arquétipo
cognitivo'" .40 Esse modelo continua a causar o desaparecimento
do conhecimento incorporado que anuncia com tanta frequên-
cia. Durante o século XVI, como observa Certeau, a escrita e
a imprensa levavam em conta "uma reprodução indefinida dos
mesmos produtos" como "oposta à fala, que nem viaja muito
longe, nem preserva muita coisa (...) o significante não pode ser
separado do corpo individual ou coletivo" .41 (Um parêntese: a
limitação que Certeau atribui aqui à fala - o significante não pode
ser separado do corpo individual ou coletivo - também contribui,
evidentemente, para o poder político, afetivo e mnemônico do
repertório, como afirmo neste estudo.)
O texto de Freud, "Uma nota sobre o bloco mágico", evita
o corpo humano situado historicamente em suas teorizações
sobre a memória. Usando a analogia do "bloco mágico", que
admite ser imperfeita, Freud busca aproximar "a capacidade
receptiva ilimitada e uma retenção ..de traços permanentes" que
ele vê como propriedades fundamentais do "aparato perceptual
da mente"." Um computador moderno, evidentemente, cons-
titui uma analogia melhor, embora ele também não consiga
gerar memórias e seu corpo exterior - uma concha translúcida,
num modelo Macintosh recente - sirva apenas para proteger e
ressaltar o maravilhoso aparato interno. Nem o bloco mágico
nem o computador levam em conta o corpo. Da mesma forma,
a analogia de Freud se limita ao mecanismo externo da escrita
e ao puro aparato psíquico sem corpo que "tem uma capacidade
receptiva ilimitada para novas percepções e, contudo, deposita
nelas traços de memória permanentes - embora não inalteráveis"
(p. 228). A psique só pode ser imaginada como uma superfície
onde se escreve, e o traço permanente, como o ato da escrita. A
escrita, ao invés de reforçar a memória ou oferecer uma analo-
gia, torna-se a própria memória: "Preciso apenas ter em mente
o lugar em que essa 'memória' foi depositada e então posso
'reproduzi-la' a qualquer momento que queira, com a certeza
de que terá ficado inalterada" (p. 227).

56
Derrida, em "Freud e a cena da escrita", refere-se à "metáfora
da escrita que assombra o discurso europeu" sem, entretanto,
desenvolver a ideia na direção de um repertório de conheci-
mento incorporado." Mesmo quando sugere áreas para futu-
ras pesquisas, ele indica a necessidade de uma "história da
escrita" (p. 214) sem observar que a história pode desaparecer
no momento mesmo em que é trazida à luz. Quando afirma
que "a escrita é impensável sem repressão", a repressão que me
vem à lembrança é aquela história de repúdio colonial por meio
da documentação que remonta ao século XVI nas Américas.
Para Derrida, essas repressões são "os apagamentos, espaços
em branco e disfarces" (p. 226) da escrita e dentro da própria
escrita - com certeza um ato de escrita que encena sua própria
prática de rasura e forclusão.
O domínio da linguagem e da escrita acabou por significar o
próprio significado. Devemos nos lembrar de que práticas reais e
incorporadas, não baseadas em códigos linguísticos ou literários,
não podem reivindicar sentido. Como diz Barthes, "considera-se
que o inteligível seja adverso à experiência vivida."." Isso sugere
que Barthes discordava de que se situasse a inteligibilidade como
antitética à experiência vivida, mas, em outros ensaios, afirma
que tudo que tem significado se torna "uma espécie de escrita" .45
Parte do que a performance e os estudos da performance nos
permitem fazer, então, é levar a sério o repertório de práticas
incorporadas como um importante sistema de conhecer e de
transmitir conhecimento. O repertório, num nível muito prático,
expande o arquivo tradicional usado pelos departamentos
acadêmicos nas humanidades. Nos Estados Unidos, por
exemplo, departamentos de Espanhol e Português enfatizam
a língua e a literatura, embora a literatura seja claramente seu
foco. Nas instituições latino-americanas, os departamentos de
Letras, que incluem literatura e estudos culturais, pertencem
às faculdades de Filosofia e Letras. Alguns desses departamen-
tos realmente focalizam as literaturas orais, o que, ao menos
na superfície, parece combinar materiais do repertório e do

57
arquivo. Contudo, o próprio termo literatura oral nos diz que
o oral já foi transformado em literatura, que o repertório foi
transferido para o arquivo. O oral foi "constituído historica-
mente corno uma categoria (...) até mesmo fabricado como tal"
sob as forças do nacionalismo, afirma Barbara Kirshenblatt-
-Gimblett;" O arquivo, no caso da literatura oral, é anterior
e constitui os fenômenos que ele parece documentar. Todavia,
muitos desses departamentos, na verdade, combinam o funcio-
namento do arquivo e do repertório de maneiras produtivas,
embora talvez não do modo como esses pesquisadores poderiam
esperar. Departamentos que realmente levam a sério o ensino da
língua, por exemplo, têm alguma experiência em pensar sobre a
prática social incorporada e reiterada. Os alunos aprendem uma
segunda língua imaginando-se em um ambiente social diferente,
encenando roteiros em que a língua adquirida assume sentido,
imitando, repetindo e ensaiando não apenas palavras, mas
também atitudes culturais. Teorizar essas práticas não apenas
como estratégias pedagógicas, mas como a transmissão de um
comportamento cultural incorporado, tornaria possível para os
pesquisadores ampliar sua visão para uma nova maneira crítica
de pensar sobre o repertório. As lentes dos estudos da perfor-
mance enriqueceriam essas disciplinas, constituindo uma ponte
não apenas entre as tradições literárias e orais, mas também
entre a prática cultural incorporada verbal e não verbal.
De modo semelhante, os estudos da performance desafiam
a compartimentalização disciplinar das artes - a dança sendo
designada a um departamento, a música a outro, a performance
dramática a ainda outro - como se essas formas da J?rodução
artística tivessem algo a ver com essas divisões. Essa compar-
timentalização também reforça a noção de que as artes são
separáveis dos construtos sociais dos quais participam - seja
pela primeira ou pela enésima vez. As performances, mesmo
aquelas com pretensões puramente estéticas, movimentam-se
em todos os tipos de circuitos, incluindo os espaços e as econo-
mias nacionais e transnacionais. Cada performance encena uma

58
teoria e cada teoria representa na esfera pública. Por causa de
seu caráter interdisciplinar, os estudos da performance podem
colocar disciplinas que haviam sido anteriormente mantidas
separadas em contato direto umas com as outras e com seu
contexto histórico, intelectual e sociopolítico. Esse treinamento
desafia os alunos a desenvolverem seus paradigmas teóricos ao
tirar partido tanto da prática textual quanto da incorporada.f?
Eles recebem treinamento em várias metodologias: trabalho de
campo etnográfico, técnicas de entrevista, análise de movimentos,
tecnologias digitais, som, análise textual e escrita performativa,
entre outras.
Os estudos da performance oferecem, então, um modo de
repensar o cânone e as metodologias críticas. Isso porque,
mesmo que pesquisadores nos Estados Unidos e na América
Latina reconheçam a necessidade de se libertar do domínio do
texto - como o objeto de análise privilegiado, ou mesmo único
-, nossas ferramentas teóricas continuam assombradas pelo
legado literário. Alguns pesquisadores se voltam para os estudos
culturais e não se limitam mais ao exame dos textos, mas seu
treinamento em dose reading e análise de textos pode fazer com
que eles transformem tudo que veem em texto ou narrativa - seja
um funeral, uma campanha eleitoral ou o carnaval. A tendência
nos estudos culturais de tratar todos os fenômenos como textos
diferencia esse campo dos estudos da performance. Ao expandir
o âmbito de materiais a serem examinados, os estudos culturais
ainda deixam todo o poder explicativo com os letrados, ao
mesmo tempo que omitem outras formas de transmissão. Dwight
Conquergood leva esse ponto adiante em um ensaio recente: "Só
acadêmicos de classe média poderiam presumir alegremente que
o mundo todo é um texto porque textos e leitura são centrais
para o seu mundo e para sua segurança profissional.v"
É imperativo agora - apesar de estarmos atrasados - prestar
atenção no repertório. Mas o que resultaria disso em termos
metodológicos? A questão não é simplesmente mudar nosso
foco para o "ao vivo" como objeto de análise. Ou desenvolver

59
,

estratégias variadas para coletar informações, tais como fazer


pesquisa etnográfica, entrevistas e anotações de campo. Ou
mesmo alterar nossas hierarquias de legitimação que estruturam
nossa prática acadêmica tradicional (como o aprendizado em
livros, fontes e documentos escritos). Precisamos repensar nosso
método de análise.
Vou focalizar aqui um exemplo. Ao invés de privilegiar
textos e narrativas, poderíamos também ver os roteiros como
paradigmas para a construção de sentidos que estruturam os
ambientes sociais, comportamentos e consequências poten-
ciais. Os roteiros de descoberta, por exemplo, têm reaparecido
constantemente ao longo dos últimos 500 anos nas Américas.
Por que continuam tão atraentes? O que justifica seu poder
explicativo e afetivo? Como eles podem ser parodiados e
subvertidos? O roteiro - "um sumário ou esboço de uma peça,
que dá informações sobre as cenas, situações etc." -, como a
performance, nunca significa pela primeira vez." Da mesma
forma que o discurso mítico de Barthes, o roteiro consiste de
"material que já foi trabalhado antes" (Mythologies, p. 110).
Seu arcabouço portátil carrega o peso de repetições cumula-
tivas. O roteiro torna visível, mais uma vez, o que já está lá
- os fantasmas, as imagens, os estereótipos. O descobridor, o
conquistador e o "selvagem", a princesa nativa, por exemplo,
podem ser personagens básicos em muitos roteiros ocidentais.
Algumas vezes eles são registrados como scripts, mas o roteiro
precede o script e abre a possibilidade de muitos "finais". Às
vezes, pode-se realmente empreender aventuras para viver a
fantasia gloriosa da posse. Outros podem assistir regularmente
na televisão a programas do tipo Survivor ou Ilha da fantasia.
O roteiro estrutura nossa compreensão. Ele também assombra
nosso presente, constituindo uma forma de espectrologia (ver
Capítulo 5), que ressuscita e reativa velhos dramas. Já vimos
tudo isso antes. O arcabouço permite oclusões; ao posicionar
nossa perspectiva, ele promove certas visões enquanto ajuda a
fazer outras desaparecerem. No roteiro de Ilha da fantasia, por

60
exemplo, podemos ser encorajados a não notar o deslocamento
e desaparecimento de povos nativos, a exploração baseada em
critérios de gênero, o impacto ambiental, e assim por diante.
Esse cegamento parcial constitui o que chamei anteriormente
de "percepticídio't.P
O roteiro inclui aspectos bem teorizados na análise literá-
ria, como narrativa e enredo, mas exige também que se preste
atenção aos milieux e comportamentos corporais como gestos,
atitude e tom, que não se reduzem à linguagem. Simultaneamente
montagem e ação, os roteiros moldam e ativam os dramas
sociais. A montagem exibe a extensão de possibilidades; todos
os elementos estão lá: encontro, conflito, resolução e desenlace,
por exemplo. Certamente, os próprios elementos são produtos
de estruturas econômicas, políticas e sociais que, por sua vez,
tendem a reproduzir. Todos os roteiros têm significado localizado,
embora muitos tentem se passar como válidos universalmente. As
ações e os comportamentos que surgem dessa montagem podem
ser previsíveis - uma consequência aparentemente natural dos
pressupostos, valores, objetivos, relações de poder, audiência
presumida e as grades epistêmicas estabelecidas pela própria
montagem. Mas eles são, em última instância, flexíveis e abertos
à mudança. Os atares sociais podem receber papéis considerados
estáticos e inflexíveis par alguns. Entretanto, a fricção irreconci-
liável entre os atares sociais e os papéis permite o aparecimento
de graus de distanciamento crítico e de agência cultural. O
roteiro da conquista, reencenado em numerosos atas de posse,
bem como em peças, rituais e batalhas simuladas por todas as
Américas, pode ser subvertido a partir de seu interior, o que tem
acontecido com frequência. Os exemplos variam desde batalhas
simuladas do século XVI até "Dois ameríndios não descobertos",
de 1992, uma performance dentro de uma jaula, por Guillermo
Gómez-Pefia e Coco Fusco. Como a narrativa, do modo como
foi proposta por V. Propp em 1928, os roteiros se limitam a um
número finito de variações, com suas próprias classificações,
categorias, temas, formas, personagens e assim por diante.é!

61
Aqui, vou simplesmente indicar algumas das maneiras como o
uso do roteiro como paradigma para se entender as estruturas
e os comportamentos sociais pode nos permitir valer-nos tanto
do repertório quanto do arquivo.
Primeiro, para relembrar, recontar ou reativar um roteiro,
precisamos invocar o local físico (em inglês, a "cena" como
ambiente físico, ou seja, um palco ou lugar; em espanhol,
escenario, um falso cognato que significa palco). Cena denota
intencionalidade em termos artísticos ou de outras maneiras (a
cena do crime) e sinaliza estratégias conscientes de exibição. A
palavra sugere apropriadamente tanto o palco material quanto
o ambiente altamente codificado que dá aos espectadores infor-
mações pertinentes - por exemplo, sobre a classe ou o período
histórico. Os móveis, o vestuário, os sons e o estilo contribuem
para a compreensão, por parte do espectador, do que se imagina
acontecer ali. Os dois, a cena e o roteiro, se colocam em relação
metonímica: o lugar nos permite pensar sobre as possibilidades
da ação.F Porém, a ação também define o lugar. Se, como sugere
Certeau, "o espaço é um espaço praticado", então não existe
algo como um lugar, pois nenhum lugar está livre da história e
da prática social.P
Segundo, nos roteiros, os espectadores precisam lidar com
a corporalidade dos atores sociais. Portanto, além das funções
que esses atores performatizam, tão bem catalogadas por Propp
em relação às estruturas narrativas, o roteiro exige que enfrente-
mos a construção social dos corpos em contextos particulares.
Propp enfatiza a importância dos detalhes visuais ao descrever
os atributos dos personagens: "Por atributos queremos dizer a
totalidade das qualidades externas dos personagens: sua idade,
sexo, status, aparência externa, peculiaridades de aparência,
e assim por diante" (p. 87). Porém, os roteiros, por definição,
introduzem a distância crítica produtiva entre ator social e
personagem. Quer isso seja uma questão de representação
mimética (um ator assumindo um papel) ou uma questão de
performatividade, isto é, atores sociais assumindo padrões

62
regulados de comportamento apropriado, o roteiro nos permite
mais completamente manter em vista ao mesmo tempo o ator
social e seu papel, reconhecendo, assim, as áreas de resistência e
tensão. As fricções entre o "enredo" e o personagem (no nível da
narrativa) e a incorporação (atores sociais) fazem surgir alguns
dos exemplos mais notáveis de paródia e resistência nas tradições
de performance das Américas.
Podemos analisar, por exemplo, as batalhas simuladas entre
mouros e cristãos encenadas no México no século XVI. A
tradição, como indica o nome, veio da Espanha, um transplante
do tema da reconquista da Espanha depois da expulsão dos
mouros e judeus em 1492. No México, essas batalhas previsi-
velmente terminavam com a derrota dos índios-corno-mouros
e com um batismo em massa. No nível da estrutura narrativa
que polariza grupos em termos definíveis de nós/eles, temos de
concordar com os comentaristas que veem nessas performan-
ces a humilhação reiterada das populações nativas. S4 Quanto
à eficácia mensurável, podemos concluir que esses roteiros
foram altamente bem-sucedidos da perspectiva dos espanhóis,
levando à conversão de milhares de pessoas. A performance
incorporada, entretanto, permite-nos reconhecer também outras
dimensões. Isso porque todos os "ateres" das batalhas simuladas
eram indígenas - alguns vestidos como espanhóis, outros como
turcos. Ao invés de cimentar a diferença cultural e racial, como
pretendem o enredo e a caracterização, a encenação pode ter
mais a ver com o mascaramento cultural e com o reposiciona-
mento estratégico. Os performers não eram nem mouros nem
cristãos, e suas encenações permitiam que eles se fantasiassem e
representassem suas próprias versões da oposição nós/eles. Em
uma interpretação particularmente engraçada, o personagem do
malfadado rei muçulmano transformou-se, surpreendentemente,
no personagem do conquistador Cortés. A derrota obrigató-
ria do mouro, na versão que constava do script, mascarava a
derrota dos espanhóis fora do script, na performance. Nessa
batalha simulada, os conquistados encenavam seu desejo por sua

63
própria reconquista do México, como afirmou Max Barris. O
espaço de ambiguidade e de manobra não está, entretanto, na
"transcrição escondida" (hidden transcripti - termo desenvol-
vido pelo antropólogo]ames Scott para marcar uma estratégia
criada por grupos subordinados e "que representa uma crítica
ao poder, dita pelas costas dos dominantes"." As transcrições,
normalmente entendidas como cópias ou documentos escritos,
transferem o conhecimento arquivaI no interior de uma econo-
mia de interação específica. Essa batalha simulada torna claro
que é a natureza incorporada do repertório que confere a esses
atores sociais a oportunidade de rearranjar os personagens de
maneiras paródicas e subversivas. A paródia acontece diante
dos próprios espanhóis, um dos quais ficou tão surpreso por
essa exibição inacreditável que escreveu uma carta detalhada
para outro frade. 56
Terceiro, os roteiros, ao condensar tanto a montagem quanto
a ação/comportamentos, são estruturas que seguem certas
fórmulas e que predispõem para certos resultados, mas deixam
margem para inversão, paródia e mudança. O arcabouço é
basicamente fixo e, por isso, repetível e transferível. Os roteiros
podem conscientemente fazer referências uns aos outros pelo
modo como concebem a situação e citam palavras e gestos. Eles
podem frequentemente parecer estereotipados, com situações e
personagens como que congelados dentro deles. O roteiro da
conquista tem sido encenado repetidas vezes - desde a entrada de
Cortés em Tenochtitlán até o encontro entre Pizarro e Ataualpa,
ou a declaração de posse do Novo México por Ofiate.F Cada
repetição acrescenta algo ao seu poder afetivo e explicativo até
o resultado parecer uma conclusão previamente determinada.
Cada novo conquistador pode esperar que os nativos caiam
a seus pés simplesmente devido à força do roteiro reativado.
Contudo, com o tempo e as novas circunstâncias, o paradigma
pode se tornar obsoleto e ser substituído por outro. Os roteiros
de conquista, no início do século XVI, como observa ]ill Lane,
foram remodelados como roteiros de conversão por volta do

64
final do século, como esforços para mitigar a violência dos
projetos envolvidos." A conquista, mais como termo do que
como projeto, estava fora de moda. Assim, como acontece com
a noção de habitus, formulada por Bourdieu - "um tipo parti-
cular de ambiente (p. ex., as condições materiais de existência
características de uma condição de classe) produz o habitus,
sistemas de disposições duráveis e transportáveis" - os rotei-
ros são "disposições duráveis e transportáveis" .59 Em outras
palavras, os roteiros são passados adiante e permanecem como
paradigmas notavelmente coerentes de atitudes e valores aparen-
temente imutáveis. Entretanto, eles constantemente se adaptam
às condições reinantes. Diferentemente do habitus, que pode se
referir a estruturas sociais amplas como classe, os roteiros se
referem a repertórios mais específicos de imaginações culturais.
Quarto, a transmissão de um roteiro reflete os sistemas multi-
facetados em funcionamento no próprio roteiro: ao passá-lo
adiante, podemos nos inspirar em modelos variados que vêm
do arquivo e/ou do repertório - a escrita, a narração oral, a
reencenação, a mímica, o gesto, a dança. A multiplicidade de
formas de transmissão lembra-nos dos múltiplos sistemas em
jogo - um não é redutível ao outro; eles têm diferentes estruturas
discursivas e performáticas. Um grito, ou um gesto brechtiano,
pode não encontrar uma descrição verbal adequada, pois essas
expressões não são redutíveis ou posteriores à língua. O desafio
não é "traduzir" uma expressão incorporada em uma expressão
linguística ou vice-versa, mas reconhecer os pontos fortes e as
limitações de cada sistema.
Quinto, o roteiro força-nos a nos situar em relação a ele;
como participantes, espectadores ou testemunhas, precisamos
"estar lá", como parte do ato de transferência. Portanto, o
roteiro impede certo tipo de distanciamento. Mesmo os escritores
etnográficos, que se agarram a fantasias de que podem observar
as culturas a partir das margens, são parte do roteiro, embora
talvez não seja o que eles lutam para descrever.s?

65
Sexto, um roteiro não é necessariamente, ou mesmo primor-
dialmente, mimético. Embora o paradigma permita a continui-
dade de mitos e suposições culturais, ele geralmente funciona
por meio da reativação, e não da duplicação. Os roteiros
invocam situações passadas, algumas vezes tão profundamente
internalizadas por uma sociedade que ninguém se lembra do
que aconteceu antes. O roteiro da "fronteira" nos Estados
Unidos, por exemplo, organiza eventos tão diversos quanto as
propagandas de cigarros ou a caçada a Osama Bin Laden. Em
lugar de ser uma cópia, o roteiro constitui algo que acontece
repetidas vezes.
Pensar sobre um roteiro, ao invés de sobre uma narrativa,
contudo, não resolve algumas das questões inerentes à represen-
tação em qualquer forma. Os problemas éticos de se reproduzir
a violência, seja na escrita, seja no comportamento incorporado,
perseguem pesquisadores e artistas, leitores e espectadores.
Saidiya V. Hartman, em Scenes ofSubjection: Terror, Slauery, and
Self-making in Nineteenth-Century America [Cenas de sujeição:
terror, escravidão e a construção de si na América do século XIX]
afirma: "Apenas mais obscena do que a brutalidade à solta no
pelourinho é a exigência de que esse sofrimento se materialize e
se evidencie pela exibição do corpo torturado ou pelas recitações
sem fim do medonho e do terrível." 61 Concordo com Hartman
que "são dignos de interesse os modos como somos obrigados
a participar de tais cenas" (p. 3) - como testemunhas, especta-
dores ou voyeurs; contudo, o roteiro, como postulo no Capítulo
2, coloca o espectador fisicamente dentro da moldura e pode
forçar o aparecimento da questão ética: não podemos esquecer
de que o significante não pode ser separado do corpo individual
ou coletivo. Qual o nosso papel "lá"?
Ao refletir sobre os roteiros, bem como sobre as narrativas,
expandimos nossa capacidade de analisar com rigor questões
como o "ao vivo" e o "que segue um script"; as práticas de cita-
ção que caracterizam ambos; como as tradições são constituídas

66
e contestadas; as várias trajetórias e influências que podem
aparecer em um, mas não em outro. Os roteiros, como outras
formas de transmissão, permitem aos comentadores historicizar
práticas específicas. Em resumo, como discuto nos capítulos
que se seguem, a noção de roteiro nos permite reconhecer mais
completamente as maneiras como o arquivo e o repertório
funcionam para constituir e transmitir conhecimento. O roteiro
coloca os espectadores dentro de sua moldura, enredando-nos
em sua ética e política.
Na parte seguinte, apresento um exemplo ampliado do que
poderia ser uma busca de historização da performance. Embora
todos os capítulos deste estudo analisem performances contem-
porâneas nas Américas, ao longo do livro eu proponho que alguns
dos debates com que lido podem, na verdade, ser rastreados até
o século XVI. Os roteiros mudam e se adaptam, mas parecem
nunca ir embora.

HISTORICIZANDO A PERFORMANCE
A fim de oferecer um relato verdadeiro e confiável da
origem dessas nações indígenas, uma origem tão duvidosa
e obscura, precisaríamos da revelação ou da assistência
divina para revelar essa origem para nós e ajudar-nos a
compreendê-la. Contudo, faltando a revelação, podemos
apenas especular e conjeturar sobre esses princípios,
baseando-nos na evidência oferecida por esses povos,
cujos modos e conduta estranhos e ações inferiores são
tão parecidos com os dos hebreus que eu não cometeria
um grande erro se afirmasse que este é um fato, consi-
derando seu modo de vida, suas cerimônias, seus ritos e
superstições, tão semelhantes e característicos daqueles
dos judeus; de nenhuma maneira eles parecem ser dife-
rentes. As Sagradas Escrituras dão testemunho disso e
delas podemos retirar provas e razões para confirmar
que essa opinião é verdadeira.
Fray Diego Durân, The History of the Indies ofNew
Spain [História das índias da Nova Espanha]

67
o momento inaugural do colonialismo nas Américas introduz
dois movimentos discursivos que contribuem para desvalorizar a
performance nativa, mesmo enquanto os colonizadores estavam
profundamente empenhados em seu próprio projeto perfor-
mativo de criar uma "nova" Espanha a partir de uma imagem
(idealizada) da "antiga": (1) a rejeição das tradições de perfor-
mance indígenas como episteme; e (2) a rejeição do "conteúdo"
(crença religiosa) como sendo objetos maus ou idolatria. Esses
discursos simultaneamente se contradizem e se sustentam um ao
outro. O primeiro postula que as performances, como fenômenos
efêmeros, não escritos, não podem servir para criar ou transmitir
conhecimento. Portanto, todos os traços de povos sem "escrita"
desapareceram. Apenas a revelação divina, de acordo com Durán,
pode ajudar observadores, como ele próprio, a relatar o passado,
ao fazê-lo ajustar-se a relatos preexistentes (como os relatos
bíblicos). O segundo discurso admite que a performance, na
verdade, transmite conhecimento, mas, como esse conhecimento
é idólatra e opaco, a própria performance precisa ser controlada
ou eliminada. Eu diria que os remanescentes desses dois discursos
continuam a filtrar nosso entendimento das práticas de perfor-
mance contemporâneas nas Américas, mas minha ênfase será na
utilização inicial desses dois discursos no século XVI. Embora eu
procure delinear os dois discursos separadamente, da maneira
como nos foram legados, eles são, certamente, inseparáveis e
funcionam em conjunto.
Parte do projeto colonizador por todas as Américas consistia
em desacreditar os modos autóctones de preservar e comunicar
o entendimento histórico. Como resultado, a própria existência!
presença dessas populações tem sido questionada. Códices, ou
livros pintados, astecas e maias foram destruídos como objetos
maus e idólatras. Porém, os conquistadores também procu-
raram destruir os sistemas incorporados de memória, não só
eliminando-os, mas também os desacreditando. O Manuscrito
Huarochirí, escrito em quéchua ao final do século XIX pelo Frei
Francisco de Ávila, dá o tom: "Se os ancestrais do povo chamado

68
índios tivessem conhecido a escrita anteriormente, as vidas que
eles viveram não teriam desaparecido de nossa vista até agora."62
Justamente as "vidas que eles viveram" desapareceram, tornando-
-se "ausência" quando apenas a escrita funciona como evidência
arquivaI, como prova da presença.
Podemos afirmar de modo anacronístico que os estudos
da performance articularam-se inicialmente nas Américas
como "estudos da ausência", fazendo desaparecer as próprias
populações que procuravam explicar. A sentença inicial de
Durán em The Histary af the Indies af New Spain (escrita na
segunda metade do século XVI) insiste que nós precisaríamos
da "revelação ou da assistência divina" para "oferecer um relato
verdadeiro e confiável da origem dessas nações indígenas't.é"
A partir do século XVI, os pesquisadores têm se queixado da
falta de fontes válidas. Embora essas declarações não tenham
sido questionadas, os frades do início da colonização deixam
claras as suposições/preconceitos em relação ao que consideram
como fontes. Durán enfatizava o valor dos textos escritos para
seu projeto arquivaI, lamentando que "alguns frades anteriores
tenham queimado livros antigos, que assim se perderam. Além
disso, os mais velhos, que poderiam escrever esses livros, não
estão mais vivos para contar a história do estabelecimento de
uma colônia neste país e seriam eles que eu teria consultado
para minha crônica."(p. 20) Esse conhecimento, ele supõe, deve
necessariamente ser perdido com a destruição da escrita. Por
que outra razão ele não consultaria os herdeiros dessa "memória
viva"? Ele não tinha outra escolha, conclui, a não ser confiar
em seu próprio discernimento.
Desde antes da Conquista, como observei, a escrita e a perfor-
mance incorporada têm frequentemente funcionado juntas para
organizar as camadas de memórias históricas que constituem
a comunidade. A Figura 2 ilustra a produção colaborativa de
conhecimento liderada pelo Frei Bernardino de Sahagún, que
envolve a recitação, a escrita e o diálogo de um lado para o
outro. O frade jesuíta José de Acosta descreveu como os jovens
recebiam treinamento sobre as tradições orais:

69
Dever-se-ia saber que os mexicanos tinham como peculiaridade o
interesse de que os jovens aprendessem de cor os ditados e composições
e, para isto, tinham escolas, como colégios ou seminários, onde os
mais velhos ensinavam aos jovens estas e muitas outras coisas que,
por tradição, eles conservam por inteiro como se tivessem escrita
entre eles.v'

Danças/canções iareitos e cantares) funcionavam como um. modo


de contar a história e de comunicar as glórias passadas:

Os cantares se referiam a coisas e eventos memoráveis que aconte-


ceram no tempo passado e presente; e eles eram cantados nos areitos
e danças públicas e neles também [se] contavam os louvores com que
engrandeciam seus reis e as pessoas que mereciam lembrança; por isso
tomavam muito cuidado para que o verso e a linguagem fossem muito
polidos e elevados.P

o poeta indígena do século XVI, Fernando Alvarado


Tezozómoc, compôs um. poema para ser recitado, descrevendo
a memória como sendo baseada tanto na oralidade quanto na
escrita (pictogramas):

Nunca será perdido, nunca esquecido


o que eles conseguiram fazer,
o que eles conseguiram registrar em suas pinturas:
seu renome, sua história, sua memória.
(...)
nós sempre teremos isso em alta estima...
nós, que carregamos seu sangue e sua cor,
contaremos isso, passaremos adiante."

o ato de contar é tão importante quanto o de escrever; o fazer


é tão central quanto o registrar a memória passada por meio de
corpos e de práticas mnemônicas. Os caminhos da memória e os
registras documentados podem reter o que o outro "esqueceu".

70
Esses sistemas se sustentam e produzem um ao outro; nenhum
deles está fora ou é antitético à lógica do outro.
Nos' Andes, escribas locais têm também mantido registros
escritos em quéchua e espanhol desde o século XVI. Mesmo
assim, as informações históricas e genealógicas foram, e
continuam a ser, performatizadas e transmitidas por meio de
"trilhas da memória" performatizadas, nos termos usados pelo
antropólogo Thomas Abercrombie para se referir às invocações
ritualizadas dos nomes dos ancestrais e de lugares sagrados, feita
por homens inebriados, quando relembram e recitam os eventos
associados a eles. Por meio dessas trilhas, eles têm acesso a histó-
rias ancestrais, boatos e relatos de testemunhas oculares. (Como
a porcentagem de pessoas alfabetizadas nos Andes na verdade
diminuiu desde o século XVI, a necessidade de reconhecer a
transmissão cultural por meio do conhecimento incorporado
torna-se ainda mais premente.l'"
Embora a relação entre o arquivo e o repertório não esteja,
por definição, em situação de antagonismo ou de oposição,
os documentos escritos têm anunciado repetidamente o
desaparecimento das práticas de performance envolvidas na
transmissão mnemônica. A escrita tem servido como estra-
tégia para se repudiar e excluir a própria incorporação que
afirma descrever. Frei Ávila não estava sozinho ao anunciar
prematuramente o fim de práticas e povos que não conseguia
nem compreender nem controlar. Novamente, em forma de
parênteses, é importante realçar que o repúdio das práticas que
estão sendo examinadas não pode se limitar à documentação
arquivaI. Como Barbara Kirshenblatt-Gimblett deixa claro
em Destination Culture, exposições, aldeias modelo e outras
formas de exibição "ao vivo" frequentemente fazem o mesmo:
repudiar as culturas que afirmam tornar visíveis. 68
O que estaria em risco politicamente ao se considerar o
conhecimento incorporado e a performance como efêmeros,
ou como aquilo que desaparece? De quem são as memórias que
"desaparecem" se apenas o conhecimento de arquivo é valorizado

71
e visto como permanente? Deveríamos simplesmente ampliar
nossa noção de arquivo para acomodar as práticas mnernôni-
cas e gestuais e o conhecimento especializado transmitido "ao
vivo"? Ou ir além das fronteiras do arquivo? Retomo a pergunta
de Rebecca Schneider em "Archive Performance Remains" [A
performance de arquivo permanece]: "Se considerarmos a perfor-
mance como um processo de desaparecimento (...) estaríamos nos
limitando a um entendimento da performance predeterminado
por estarmos culturalmente habituados à lógica do arquivo?"
(p. 100). Pelo contrário: como tenho buscado estabelecer aqui,
há uma vantagem em se pensar sobre um repertório performa-
tizado por meio de práticas (como dança, teatro, canção, ritual,
testemunho, práticas de cura, trilhas da memória, e de muitas
outras formas de comportamentos repetíveis) como algo que não
pode ser abrigado ou contido no· arquivo.
Vou examinar agora o segundo discurso, que admite que a
performance gera e transmite conhecimento, mas rejeita esse
conhecimento como idólatra ou indecifrável. A acusação contra
a natureza efêmera, construída e visual da performance, tem
se associado ao discurso sobre a idolatria. Como Bruno Latour
adverte em seu ensaio "Towards an Anthropology of the Icono-
clastic Gesture" (Por uma Antropologia do gesto iconoclasta),

grande parte de nossa perspicácia crítica depende de uma distinção


clara entre o que é real e o que é construído, o que está lá fora, na
natureza das coisas, e o que está lá, na representação que fazemos delas.
Algo se perdeu para sempre, contudo, em favor dessa clareza, e pagou-
-se um preço alto por essa dicotomia entre, por um lado, as questões
ontológicas e, por outro, as questões epistemológicas.P

Como essa fratura entre o ontológico e o epistemológico (o é/


como) se relaciona com o iconoclasmo? Por meio da deslegitimi-
zação do construído como fetiche ou ídolo, o iconoclasta ataca-o
com o "martelo da verdade", isto é, Deus, que não foi feito ou
construído, sendo o único capaz de criar. Como explica um frade

72
do século XVI, Bernardino Sahagún, em seu prólogo ao Livro
I do Códice florentino, o idólatra cultua a imagem construída,
esquecendo-se de que Deus, e não os humanos, é "o Criador".
"Infelizes aqueles, os mortos amaldiçoados que adoravam como
deuses entalhes em pedra, entalhes em madeira, representações,
imagens, coisas feitas de ouro e cobre.v" As "coisas feitas",
representações e imagens, eram todas consideradas falsas,
enganadoras, deploráveis, efêmeras e perigosas. O "fato" de
que os povos indígenas haviam sido "enganados" custou-lhes
a humanidade: "O povo aqui na terra que não conhece Deus
não é contado como humano" (p. 55). Ao despedaçar um ídolo,
Sahagún cria sua própria representação falsa: a imagem dos
povos nativos como "vãos", "sem valor", "cegos", "confusos.
(...) Todos os seus atas, suas vidas, eram viscosos, imundos" (p.
59-60). Latour, reconhecendo totalmente o caráter construído
do fetiche, defende o caráter construído do próprio fato também:
"O iconoclasta (...) acredita, ingenuamente, que os fatos mesmos
que ele estava usando para despedaçar o ídolo eram eles próprios
produzidos sem a ajuda de qualquer agência humana" (p. 69).
É importante notar que o argumento de Sahagún está
centrado em binarismos criados entre o visível e o invisível, entre
o conhecimento incorporado e o de arquivo, entre os idólatras
que adoram o que pode ser visto e aqueles que sabem que o
Deus verdadeiro é aquele "que não é visto"." Sahagún pede
aos nativos para abandonar a imagem e aceitar "a palavra (...)
aqui escrita" (p. 55). A palavra condensa o poder do sagrado
e do político, pois é a palavra de Deus, "enviada a vocês pelo
Rei da Espanha", bem como pelo Papa, "o Santo Padre, que
mora em Roma" (p. 55). Os nativos, ele alega, apenas conhe-
cem seus deuses por meio de suas manifestações físicas (o sol,
a lua, a chuva, o fogo, as estrelas, e assim por diante), mas não
reconhecem o criador (invisível) por trás dessas manifestações.
Claramente, os méxicas e outros grupos nativos conquistados
não endossavam a divisão entre verdadeiro/falso, visível/invisível.
Eles não admitiam nenhuma distinção ontológica entre criação

73
humana e não humana (isto é, ritual/"natureza"). Ao invés disso,
para os méxicas a criação humana participava do dinamismo da
ordem cósmica. A natureza era ritualizada assim como o ritual
era naturalizado. As montanhas e os templos compartilhavam
a mesma função cósmica de mediar entre o cielo de arriba (o
céu de cima) e o cielo de abajo (o céu de baixo). Esse conceito
tem pouco a ver com as teorias da representação, mimes e ou
isomorfismo que subscrevem a separação entre o "original" e
o que se afasta ligeiramente. As performances - rituais, ceri-
mônias, sacrifícios - não eram "apenas" representações, mas
(entre outras coisas) apresentações para os deuses como formas
de débito-pagamento. Elas constituíam não só o é, mas também
o como se. Essas performances eram certamente também
políticas - elas cimentavam e tornavam visível a ordem social,
remapeando o universo conhecido, tendo Tenochtitlán como o
ombligo ou centro.
A palavra nauatle ixiptlatl, em geral traduzida como imagen,
aponta para o equívoco básico. Imagen pertence à mesma família
etimológica que imitar/? Mas ixiptlatl não significa imitar, mas
seu oposto, o entendimento do "ser espiritual e do ser físico como
completamente integrados"." Ixiptlatl constitui uma categoria
muito flexível que inclui deuses, representantes dos deuses, perso-
nificadores de deuses, sacerdotes, vítimas sacrificiais vestidas
como deuses, mendigos que usam as peles esfoladas de cativos,
figuras de madeira e de massa de sementes vegetais.?" Um dos
vários requisitos do ixiptlatl era que fosse feito, construído, sendo
"temporário, preparado para a ocasião, feito e desfeito durante
o desenrolar da ação".7 5 Sua qualidade de algo construído
tornava possível sua qualidade sagrada, ao invés de prejudicá-
-la, pois o fazer significava aceitação geral da participação. Ao
invés de ser um fetiche, em que facere (fazer) passa a significar
feitiço (bruxaria, artificialidade, ídolos), o caráter construído do
ixiptlatl abre espaço para a comunicação, a presença e a troca.
Delegado, representante ou enviado são traduções mais precisas
de ixiptlatl, pois captam melhor o significado da palavra: "aquilo

74
que possibilita ao deus apresentar aspectos de si mesmo"." Em
outras palavras, o ixiptlatl coincidia mais de perto com a ideia
católica de transubstanciação do que com uma imagem ou ídolo.
A consagração da hóstia, embora feita pelo homem, é o corpo
de Cristo, e não uma representação ou metáfora. Embora seja
um objeto, os católicos a veem como imbuída da essência divina,
realizando a integração da substância espiritual e física. Não é
preciso dizer que a profunda ansiedade dos católicos para garan-
tir a ortodoxia no entendimento da relação espiritual/físico em
sua própria prática (especialmente na era do Concílio de Trento)
contribuiu para sua rejeição do ixiptlatl méxica como "objetos
maus" (ídolos).
A natureza temporária do ixiptlatl não deveria, como os
espanhóis iriam sugerir, conotar a natureza efêmera e passível
de desaparecimento dos fenômenos. O constante processo de
fazer e desfazer indica o papel ativo dos seres humanos na
promoção da qualidade regenerativa do universo, da vida, da
performance - todos em estado constante de "renovação". De
modo inverso, podemos notar brevemente que a dependência
obsessiva da participação ritual também sugere que os méxicas
e outros grupos estavam presos na armadilha de um sistema
sociopolítico definido e" mantido por meio da crise induzida
ritualmente, seja a repetição do fim do mundo a cada 52 anos na
cerimônia do Fogo Novo, seja em relação a outros cataclismos
naturais como a seca ou terremotos. Esse fazer/desfazer reflete o
desafio e o terror associados ao desaparecimento: os primeiros
quatro sóis haviam todos tido um fim catastrófico. A confiança
extrema na performance constituía as tentativas, por parte dos
méxicas, de evitar o fim, ao coreografa~ constantemente as várias
aparições, correspondências e intervenções (divinas e humanas)
que mantinham o universo em movimento.
É interessante notar que Sahagún entrevistou os "anciãos mais
importantes" das aldeias durante anos; também trabalhou com
especialistas "em todas as coisas que diziam respeito à corte, ao
exército, ao governo e mesmo à idolatria"."? Imagina-se que ele

75
teria entendido as múltiplas funções e significados do ixiptlatl
como algo mais complexo do que a noção bíblica do ídolo. Mas
isso não aconteceu. São estas imagens que ele incluiu para apoiar
seu argumento sobre as práticas idólatras dos povos indígenas.

3. Bernardino de Sahagún, Códice florentino,


ed. e trad. Arthur]. O. Anderson e Charles E.
Dibble, Santa Fe, NM, School of American
ResearchlUniversity ofUtah, 1982, v. 1.

Se as performances méxicas eram eficientes para manter a


ordem cósmica ou se, ao invés disso, constituíam um sintoma de
desordem profunda continua uma questão a se debater," Mas
não havia nenhuma dúvida nas mentes dos evangelistas da época
de que as práticas de performance transmitiam com eficácia as
memórias coletivas, os valores e sistemas de crença.
Sahagún reconhecia claramente que as crenças eram transmiti-
das por meio da performance, embora admitisse que não entendia
o conteúdo. O Diabo, "nosso inimigo, plantou, nesta terra, uma
floresta ou um mato trançado cheio de espinheiros densos, de
onde pode praticar seus trabalhos e onde pode se esconder para
não ser descoberto". Inimigo da transparência, o Diabo se apro-
veita de músicas, danças e outras práticas dos povos indígenas
usando-os como "esconderijos para praticar seus trabalhos (...)
Os tais cantos contêm tanta malícia que dizem qualquer coisa e
proclamam aquilo que ele ordena. Mas apenas aqueles a quem

76
ele se dirige as compreendem.V? A pretensão do colonizador
ao acesso encontra a opacidade diabólica da performance: "E
[esses cantos] são cantados para ele sem que se entenda sobre o
que eles são, com exceção daqueles que são nativos e versados
nesta língua (... ) sem serem entendidos por outros" (p. 58). A
performance compartilhada e as práticas linguísticas constituíam
a própria comunidade. Outros não poderiam decifrar os códigos.
A conquista espiritual, esses frades temiam, era, no máximo, uma
tentativa. O Diabo espera o "retorno para o domínio que ele
mantém. (... ) E para esse momento é bom que tenhamos armas
à mão para podermos enfrentá-lo. E, para esse fim, servirá não
apenas o que está escrito neste terceiro Livro, mas também no
primeiro, segundo, quarto e quinto Livros" (p. 59).
A escrita servia como uma arma reconhecida no arsenal colo-
nial. Sahagún afirmava que precisava registrar todas as práticas
indígenas a fim de melhor erradicá-las: "É indispensável saber
como eles as praticavam no tempo de sua idolatria, pois, por
meio de [nossa] falta de conhecimento disso, eles praticam coisas
idólatras em nossa presença sem que nós as compreendamos."
(Livro I, p. 45). A "preservação" servia como um chamado para
o apagamento. A abordagem etnográfica do assunto oferecia
uma estratégia segura para se lidar com materiais perigosos.
Ela abria espaço, simultaneamente, para a documentação e o
desaparecimento; os relatos preservavam hábitos "diabólicos"
como sendo sempre estranhos e inassimiláveis, transmitindo
uma aversão profunda pelos comportamentos descritos.ê? O
distanciamento estudado, erudito, funcionava como repúdio.
Contudo, mesmo depois de 50 anos de compilação do vasto
material sobre as práticas méxicas, Sahagún suspeitava que elas
não haviam desaparecido totalmente.
Esses escritos do início da colonização são todos sobre o
apagamento, seja afirmando que as práticas antigas haviam
desaparecido, seja buscando efetuar o desaparecimento que
invocavam. Ironicamente, eles revelam uma profunda admiração
pelos povos e culturas que visavam destruir: Sahagún se refere

77
mais de uma vez ao "grau de perfeição deste povo mexicano". E,
o que é ainda mais irânico, esses escritos se tornaram recursos de
arquivo, de valor inestimável, sobre práticas antigas. Durante a
vida de Sahagún, de fato, o Santo Ofício da Inquisição concluiu
que, ao invés de servir como "armas" contra a idolatria, os livros
preservaram e transmitiram o que eles pretendiam erradicar. A
proibição era completa: "( ...) com grande cuidado e diligência,
tomem-se medidas para se apreender esses livros sem deixar
originais ou cópias deles. (...) Fique avisado que não se pode
permitir que ninguém, por qualquer razão, em qualquer língua,
escreva sobre as superstições e o modo de vida que esses índios
tiveram" (Livro I, p. 36-37). Sahagún morreu sem saber que uma
cópia de seu trabalho havia sobrevivido.
Apesar de todas as ambivalências e proibições, esses escritores
do século XVI, a contragosto, observaram algo repetidas vezes:
essas práticas não estavam desaparecendo. Elas continuavam
a comunicar sentidos que seus observadores nervosos não
entendiam. Em 1539, um edito do governo lançou um ataque à
observância indígena do sagrado, rebaixando-a a uma distração
secular. Ele ordenava "que os índios não tivessem fiestas (...) em
que há areitos" e proibiram as igrejas de atrair as populações
nativas "por meios profanos que incluem areitos, dançarinos, _
palas valadores, que parecem coisas de teatro ou de espetáculo,
porque esses espetáculos distraem seus corações da concen-
tração, da quietude e da devoção que se deve ter pela prática
divina'i.!' As fiestas, bailes e palas valadores, componentes inte-
grais do sagrado, recebiam agora ordem de se afastar em favor
dos comportamentos calmos dos espanhóis, associados com a
"prática divina". Em 1544, um edito lamentava

a vergonha de que, em frente do Santo Sacramento, havia homens


com máscaras e vestindo roupas de mulheres, dançando e pulando,
balançando de modo indecente e lascivo. (...) E, além disso, há outra
objeção maior, que é o costume que estes nativos [naturales] tinham,

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