Você está na página 1de 81

FACULDADE PAN AMERICANA

Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

REVISTA ACADÊMICA

SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA

ISSN 2316-8471
CAPANEMA (PARÁ) – ANO 1 – NÚMERO 4 – 2013
1
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

FACULDADE PAN AMERICANA

REITOR Mons. Dr. Dom Dirceu Milani


DIRETORA GERAL Profª Cleudimar Milani
DIRETOR PEDAGÓGICO Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula
DIRETOR ACADÊMICO Profº Lionel Milani
SECRETÁRIA ACADÊMICA Madre Francesca Soares Milani
COORDENADOR DE FILOSOFIA Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso
COORDENADOR DE LETRAS Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista
COORDENADOR DE PEDAGOGIA Prof. Marco Antônio Teixeira de Paula
COORDENADOR DE TEOLOGIA Prof. MSc. Sharles Cruz

SABERES LINGUÍSTICOS N’AMAZÔNIA


ISSN 2316-8471
Capanema (Pará) – ANO 1 – NÚMERO 4 - 2013

DIRETOR-GERAL Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista

MEMBROS Profa. MSc. Graciane Felipe Serrão


Profa. MSc. Renata de Cássia Dória da Silva
Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista
Prof. MSc. Regis Guedes
Prof. MSc. Marcelo Dias
Prof. MSc. Wladirson R. da S. Cardoso
Prof. Esp. Marco Antônio Teixeira de Paula
Profa. Esp. Grazielle de Jesus Leal de Sousa
Prof. Esp. Adson Manoel Bulhões da Silva

O Periódico SABERES LINGUÍSTICOS N AMAZÔNIA é uma publicação acadêmica do Curso de Letras da


Faculdade Pan Americana com periodicidade semestral e suporte em CD-ROM.
Os artigos e resenhas aqui publicados são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Suas
opiniões não refletem necessariamente as do corpo editorial desta publicação.

Figura da capa: http://www.joseeduardomartins.com/10000-univ-big.jpg

2
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

APRESENTAÇÃO

É com muita satisfação que a Coordenação do Curso de Letras da Faculdade Pan


Americana coloca em público a quarta edição do Periódico SABERES LINGUÍSTICOS
N AMAZÔN)A. Trata-se de uma publicação desenvolvida em conjunto entre docentes e
discentes da Instituição. Assim, busca-se por meio da reflexão e observação diante da
problemática educacional a apresentação de pesquisas desenvolvidas em âmbito
amazônico com o intuito de dar retorno à sociedade a qual esta Instituição de ensino
superior está inserida e, também, com textos que colaborem com a formação dos
estudantes e pesquisadores que atuam no âmbito amazônico.
O primeiro artigo – intitulado Investigando a construção de identidades de
aprendizes de inglês no curso de Letras de autoria de Andressa Furlan Ferreira e de
Mariana R. Mastrella-de-Andrade – investiga a maneira como as identidades de alunos
de inglês no curso de Letras são construídas a partir de suas interações no contexto de
aprendizagem e também a partir dos discursos que regem as verdades do que vem a
ser ensinar e aprender línguas.
O segundo texto (Letramento: a leitura no contexto das aulas de Língua
Portuguesa) de Maria Suellen de Souza Sá e de Gerlândia de Castro Silva analisa como se
dá a prática da leitura nas aulas de Língua no 6º ano do Ensino Fundamental, na Escola
Estadual Maria Deusarina, localizada na cidade de Castanhal, no estado do Pará.
Já o terceiro artigo de Stelamary Domingos tem como título aprendendo um
sistema de escrita de segunda língua e apresenta o resultado de pesquisa com
estudantes iniciantes no sistema de escrita de francês como segunda língua (francês-
SEL2) que tinham como sistema de escrita de primeira língua o português do Brasil.
Passando para os Estudos literários, Leomir Silva de Carvalho apresenta o
trabalho O tempo mítico em ó serdespanto, sendo este o quarto trabalho que tem como
objetivo analisar o tempo mítico, sob a perspectiva de Benedito Nunes (1929-2011),
presente no fragmento intitulado A história da obra Ó Serdespanto (2006) de Vicente
Franz Cecim. Como percurso da análise, o estudo procede por meio das implicações
conceituais atribuídas ao tempo mítico em Nunes; em seguida a perspectiva recai sobre
as particularidades formais da obra ceciniana e os matizes de significado que dela
decorrem, bem como a análise de duas imagens, o homem e a mãe, e seu reflexo
simbólico na narrativa mítica A história .
Renata Ortiz Brand~o nos oferece o trabalho Palavras da instauração da
república: o cidadão brasileiro nos discursos de posse de Deodoro da Fonseca e Floriano
Peixoto em que realiza a análise semântico-enunciativa dos discursos de posse dos dois
primeiros presidentes do período republicano no Brasil, Deodoro da Fonseca e Floriano
Peixoto. O escopo é investigar como a palavra cidadão significa na enunciação dos dois

3
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

presidentes; que predicações/determinações recebe nos textos que compõem o corpus.


O estudo está ancorado na Semântica do Acontecimento, cuja filiação é materialista.
Por fim, A literatura árabe e seu impacto no ocidente de Peter France é o texto
traduzido por Marcos dos Reis Batista em que é tratado a recepção de textos de origem
árabe em traduções para línguas europeias.
Com esta publicação desejamos a todos uma ótima leitura.

Prof. MSc. Marcos dos Reis Batista

4
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

SUMÁRIO

INVESTIGANDO A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES DE APRENDIZES DE INGLÊS NO 06


CURSO DE LETRAS
Andressa Furlan Ferreira; Mariana R. Mastrella-de-Andrade – Universidade de Brasília

LETRAMENTO: a leitura no contexto das aulas de Língua Portuguesa 25


Maria Suellen de Souza Sá; Gerlândia de Castro Silva – Universidade Federal do Pará

APRENDENDO UM SISTEMA DE ESCRITA DE SEGUNDA LÍNGUA 40


Stelamary Domingos – Universidade Federal do Rio de Janeiro

O TEMPO MÍTICO EM Ó SERDESPANTO 49


Leomir Silva de Carvalho – Universidade Federal do Pará

PALAVRAS DA INSTAURAÇÃO DA REPÚBLICA: O CIDADÃO BRASILEIRO NOS 58


DISCURSOS DE POSSE DE DEODORO DA FONSECA E FLORIANO PEIXOTO
Renata Ortiz Brandão – Universidade Estadual de Campinas

A LITERATURA ÁRABE E SEU IMPACTO NO OCIDENTE 74


Peter France
Marcos dos Reis Batista – Universidade do Estado do Pará (Tradutor)

5
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

FORMAÇÃO DOCENTE

INVESTIGANDO A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES DE APRENDIZES DE INGLÊS NO


CURSO DE LETRAS

Andressa Furlan Ferreira


Mariana R. Mastrella-de-Andrade
Universidade de Brasília

RESUMO: Aprender uma língua estrangeira implica em engajar-se na contínua produção


das identidades (RAJAGOPALAN, 2001) dos sujeitos participantes do processo de
ensino-aprendizagem, as quais são reconhecidamente fluidas e cambiáveis, jamais fixas.
Trata-se de uma construção social e discursiva. Com base nessas premissas, este artigo
tem por objetivo investigar a maneira como as identidades de alunos de inglês no curso
de Letras Inglês são construídas a partir de suas interações no contexto de
aprendizagem e também a partir dos discursos que regem as verdades do que vem a
ser ensinar e aprender línguas. A metodologia utilizada foi de cunho qualitativo, a partir
da qual se apresentam relatos de experiência pessoais narrados pelos próprios
estudantes, graduandos em uma universidade pública brasileira. A coleta de dados foi
feita por meio de questionários online com 4 voluntários. Os dados analisados sugerem
que muitos alunos receiam ter suas identidades negativamente marcadas, possuem
visões equivocadas sobre o papel do erro na aprendizagem de línguas e evitam
participar de interações a fim de evitar exposições orais. Esses resultados dão espaço
para discussões sobre os significados da aprendizagem de línguas no contexto brasileiro.
Palavras-chave: identidade; Letras; aprendizes; inglês.

ABSTRACT: Learning a foreign language implies in a continuous identity production


(RAJAGOPALAN, 2001) of the people taking part in the teaching and learning process.
Identities are acknowledged as flowing and interchangeable, never fixed. They are
socially and discursively constructed. Based on such premises, this article aims to
examine the way English Major students have their identities constructed concerning
the learning process. The methodology applied to it was of qualitative order, and its
result presents personal experiences shared by the students themselves, enrolled in a
Brazilian public university. The data collection was possible through an online
questionnaire, having 4 volunteers taken part in it. The analysis suggests that many
students fear having their identities negatively constructed. They are likely to deal with
misunderstood perspectives regarding the role of errors when learning a foreign
language, which makes them avoid participating in oral interaction. The results allow for
important issues to be discussed about the meanings of language learning in the
Brazilian context.
Key-words: identity; Letras; apprentices; English.

6
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

INTRODUÇÃO
As investigações com foco em identidades têm ganhado grande espaço no campo
da Linguística Aplicada nas últimas décadas, o que pode ser visto através do grande
número de publicações sobre o tema na área e a quantidade crescente de pesquisas que
têm as identidades, nos mais variados contextos, enfocadas (MOITA LOPES, 2002; 2006).
Pensar em identidade atualmente implica em deslocar a ênfase sobre a descrição de
sujeitos, enfocando-a sobre a ideia de tornar-se, uma concepção que envolve movimento
e transformação a partir de uma noção de linguagem que opera e realiza o que se diz
(BUTLER, 1997).
Aprender uma língua estrangeira implica em engajar-se na contínua produção
das identidades (RAJAGOPALAN, 2001) dos sujeitos participantes do processo de
ensino-aprendizagem, especialmente quando identidade é entendida como relação, não
como característica fixa ou naturalmente dada (NORTON, 2000). Assim, enfocar a
identidade dos sujeitos participantes no processo de ensino-aprendizagem de inglês
como LE é importante pelo fato de tal enfoque possibilitar um maior acesso ao tipo de
relações sociais que se estabelecem nos contextos formais de ensino, isto é, na sala de
aula, bem como aos discursos que posicionam o sujeitos e as interações que constroem e
(re)negociam identidades, se constituindo enquanto conflitantes. Tratar da identidade
dos sujeitos da aprendizagem é também apropriado por permitir que lidemos com
questões individuais e sociais de forma mais equilibrada, não dissociando o sujeito de
seu contexto, não fazendo dicotomias entre fatores individuais e sociais, mas
reconhecendo-os enquanto tais em sujeição à estrutura e, ao mesmo tempo, em agência
e operação, num modelo de relação em constante formação e transformação. Além disso,
é também importante ressaltar, como o faz Norton (2000), que as identidades não são
algo simplesmente abstrato ou neutro, mas são todas políticas, engendradas em relações
desiguais de poder. Isso nos impele a outra razão para justificar a importância das
investigações sobre a construção de identidades: elas são responsáveis por promover ou
negar acesso a interações na nova língua, rotulando e categorizando quem são os
sujeitos que podem ter acesso às práticas interativas no processo de aprendizagem
(NORTON, 2000; NORTON e TOOHEY, 2002).
Nessa perspectiva teórica, o projeto maior intitulado Quem pode ensinar, quem
pode aprender? A construção de identidades em contextos de ensino-aprendizagem de
língua estrangeira gera este plano de trabalho com o objetivo específico de investigar a
maneira como as identidades de alunos de inglês no curso de Letras Inglês são
construídas, bem como as relações e interações no contexto de aprendizagem que
produzem tais identidades.
Tendo como foco esse objetivo, o trabalho buscará responder às seguintes
perguntas de pesquisa:

1) Como os alunos de inglês no curso de Letras Inglês se identificam e são


identificados no processo de aprendizagem em sala de aula?
2) Que tipos de experiências ou interações participam na construção dessas
identidades e de que forma elas promovem ou embargam o acesso dos
alunos na aquisição da competência linguística na língua estrangeira?

7
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

O QUE É IDENTIDADE?

O apelo da identidade fala desde o ser do ente


(HEIDEGGER, 1971, p. 52)

O conceito atual de identidade é caracterizado como múltiplo e inconstante. O


indivíduo contemporâneo sofre frequentes confrontos de identidades, as quais podem
ou não ser adotadas. Porém, sua concepção nem sempre foi essa. Na verdade, ela varia
de acordo com o período em que fora vivenciada na História. Sua definição, portanto,
depende de um contexto histórico-pragmático a ser adotado. Considerando o percurso
histórico, Stuart (all, em sua obra A identidade cultural na pós-modernidade ,
distinguiu três concepções principais de identidade: o sujeito do Iluminismo, o sujeito
sociológico e o sujeito pós-moderno.
O sujeito iluminista se apresentava individualmente unificado, usuário pleno da
consciência e da razão, todas concernentes à sua pessoa. O sujeito sociológico, por outro
lado, se construía na sua relação com outras pessoas, aquelas que lhe mediavam valores
e símbolos do mundo ao seu redor. A formação da identidade concentrava-se na
interação entre o eu e a sociedade, sendo que o eu era formado e modificado no diálogo
contínuo com o mundo exterior. O sujeito pós-moderno, por sua vez, resultou desse
processo histórico de formação identitária. Ele se originou do conflito advindo do
choque do sujeito iluminista com o sujeito sociológico, o que também refletiu as
mudanças estruturais e institucionais da época. Logo, na pós-modernidade, a identidade
pode ser projetada diversamente, caracterizando-se como fracionada, instável,
incompleta e até mesmo incoerente.
A concepção da individualidade pós-moderna, porém, se iniciou há mais tempo
do que se costuma imaginar. No período medieval, o colapso das instituições que o
sustentavam desvinculou essa amarra intrínseca que havia entre o sujeito e o coletivo,
proporcionando, assim, uma nova perspectiva sobre o indivíduo propriamente dito. Ao
passo que as sociedades se complexaram, o coletivismo voltou a se tornar presente,
ainda que de maneira peculiar sobre as identidades. O sujeito da sociedade complexa
enfrenta o dilema entre o eu e o outro, entre o ser individual que é e o indivíduo que ele
próprio representa no coletivo, passando por um processo de deslocamento da
identidade. O deslocamento da identidade se baseia na identificação do indivíduo em
algum aspecto do mundo exterior, seja em alguma função que ele exerce em um
determinado grupo, seja na identificação em outro indivíduo (HALL, 2003).
Uma série de rupturas nos discursos modernos provocou o deslocamento
identitário, aspecto caracterizante do sujeito pós-moderno. Hall (2003) selecionou os
cinco maiores expoentes que contribuíram para a descentralização do sujeito racional-
cartesiano, os quais foram:
 Althusser, com sua teoria anti-humanista (na qual o raciocínio não deriva
de uma essência universal do Homem, mas está alojado em cada sujeito
individual);
 Freud, com sua descoberta do inconsciente (a identidade não é inata, mas
trabalhada ao longo do tempo por meio de processos inconscientes);
 Saussure, ao defender que não somos os autores da língua e respectivos
significados que ela provém, apenas a utilizamos como um meio para nos
expressar;
8
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

 Foucault, com a sua teoria do poder disciplinar quanto mais coletiva e


organizada a natureza institucional, maior a individualização do sujeito);
 O impacto do Feminismo, uma vez que ele politizou o processo de
identificação.

A identidade do sujeito pós-moderno, então, mostra-se instável. Diante de tantas


possibilidades, a liberdade da qual ele usufrui no processo de identificação, assim como
as situações inconscientes a que é submetido, provocam uma inconstância no caráter de
sua identidade social. É com base nessa perspectiva teórica de instabilidade, contradição
e fragmentação identitária que este artigo se desenvolverá.
Diante do exposto, cabe indagar: como o processo identitário procede ou ocorre
nos dias atuais? Quando se adquire uma língua, se integra ao sistema social que a utiliza,
pois se adquirem os meios comunicativos requeridos para uma interação com o outro. O
indivíduo é inserido naquele campo à medida que se familiariza com a língua estudada.
Um interesse pessoal passa a se atenuar ou florescer no indivíduo conforme ele
compreende sua arquitetura. Onde quer que se depare com ela, há um interesse em
entender o conteúdo trazido pela língua-alvo, visto que o indivíduo que a estuda detém a
capacidade de adentrar aquele domínio ao depreender significado e coesão dos códigos.
No entanto, durante esse processo de aquisição da língua, ocorrências
traumáticas podem vir a ocorrer, o que prejudica a desenvoltura linguística do falante.
Tais ocorrências estão primariamente conectadas a identidade social, tanto do estudante
quanto do professor. A identidade social, construída por meio de exposição e
participação em práticas de uso da língua submete o aluno a diversos papéis sociais, tais
como especialista de linguística, especialista de literatura, falante fluente, entre outros,
podendo afetar ou incentivar seu processo de aprendizagem e aperfeiçoamento. No
âmbito das línguas estrangeiras, estudantes de cursos de Letras, principalmente, podem
estar propícios a sofrer uma pressão maior de tais papéis, uma vez que o conhecimento
aprofundado e padronizado da língua estudada é o determinante de seus cursos. Ainda
que não corresponda à sua língua-mãe, do licenciando ou bacharelando é esperado que
dominasse a língua-alvo em todas as quatro habilidades (escrita, leitura, compreensão
auditiva e expressão oral), independentemente de sua formação e experiência com
aquela língua anteriormente.
Entretanto, apesar de a expectativa ser compatível com o objetivo do curso, a
maneira como é imposta não deveria ocorrer sem maiores e aprofundadas reflexões.
Cada estudante carrega uma bagagem pessoal de relação com a língua, seja
formalmente, seja emocionalmente (SAVIGNON, 1991). Qualquer interferência nesse
campo individual é precípua, seja ela positiva ou negativa, uma vez que ela pode
fortalecer o estímulo, incentivando ao sucesso, assim como pode dar início à aversão da
relação do indivíduo com a língua-alvo.

LÍNGUA E IDENTIDADE
Ao estudar uma língua, investe-se não somente em um meio de comunicação
alheio ao sujeito, mas também em duas outras aquisições: de um mundo ideológico e de
uma sequência de raciocínio até então diferente para o estudante da língua. Logo, a

9
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

questão da identidade se coloca em xeque nesse ambiente, pois se trata de uma área
onde facilmente aspectos linguísticos se cruzam com aspectos identitários.
A língua por si mesma já é diversificada, se considerarmos suas variações
regionais. Uma variação linguística, por sua vez, é dotada de algum valor específico
dentro de uma sociedade, o que atribui ao seu falante valor semelhante. Por exemplo, há
uma variação da língua que é adotada como padrão, geralmente sendo de caráter
complexo e de difícil acesso popular. No ambiente profissional, se o falante não detém
conhecimento das normas da língua padrão, geralmente, é discriminado e, em alguns
casos, até mesmo recusado por não saber empregá-la. Isso ocorre não apenas no âmbito
do mercado de trabalho, como também em outros ambientes sociais. A própria mídia
tem o poder de selecionar uma variação como padrão, tornando-a prestigiada ou não,
dependendo da maneira como é abordada. Maurizzio Gnerre (1985) afirma que o
emprego de uma variedade linguística atribui valores ao seu falante, valores esses que
nela anteriormente foram embutidos. Em outras palavras, uma variedade da língua
reflete o poder e a autoridade que seus falantes têm nas relações econômicas e sociais.
Assim como Gnerre (1985), outros pensadores também trataram a respeito da
relação entre sujeito, identidade e língua. Lacan (1977), por exemplo, reafirma o
pensamento de Gnerre sob uma perspectiva psicanalista, pois defende que o sujeito se
afirma na linguagem. Maurice Merleau-Ponty (2007), entretanto, afirma que toda
linguagem é indireta , que, no di|logo, cada ego se demite de si para se atingir no outro.
As imagens sociais erigidas de acordo com o uso da língua em situações
pragmáticas tratam de identidades coletivas. Todavia, a discriminação que ocorre nesses
ambientes também é concernente à identidade do sujeito, uma vez que o indivíduo se vê
sujeito a essas ocorrências, podendo, inclusive, influenciar em sua identidade pessoal.
Segundo Foucault: na )dade Cl|ssica, as línguas tinham uma gramática porque tinham
poder de representar; agora representam a partir dessa gram|tica FOUCAULT, ,
p. 257).
O mecanismo interior das línguas, além de determinar a semelhança e a
individualidade entre elas, também exerce a função de portador de identidade e de
diferença. O que define uma língua é seu sistema flexional, sua arquitetura interna que
modifica as próprias palavras segundo a postura gramatical que ocupam umas em
relaç~o {s outras FOUCAULT, , p. . No entanto, a maneira como ela edifica as
representações é de ordem social.
É muito comum encontrarmos as conceituações e referências a respeito do que
seja fazer uso da língua na vida cotidiana relacionadas, de um modo ou de outro, a uma
visão de que ela (a língua) seja um veículo por meio do qual se descrevem realidades ou
um meio neutro de comunicação. Em princípio, é para isso que aprendemos desde
criança a fazer uso da linguagem: para estabelecer comunicação. Referências como essas
fazem com que o significado de se fazer uso da linguagem seja meramente o
desempenho da função que ela possuiria de estabelecer contato, de transmitir ideias que
as pessoas possuem, de conectar as mentes dos indivíduos e uni-los, possibilitando
assim que possam se expressar e, ao fazê-lo, expressar o que são. Essa seria uma visão
representacionalista de linguagem, a qual a vê como código transparente e neutro que
supostamente representaria as coisas.
Em uma visão representacionalista de linguagem, como o próprio nome sugere,
ela seria responsável por representar o mundo. Do latim re- prefixo de novo, de volta
e praesentare que se refere a trazer algo { presença de; mostrar; exibir; pôr algo diante
10
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

de 1, poderíamos dizer que representar teria o significado de tornar algo presente de


novo, ou seja, algo que possui uma existência prévia e que, ao ser representado – no
caso, quando falamos sobre ele, tornaria a se fazer presente. Nessa visão, fazer uso da
língua seria prover então a representação do mundo, dos objetos, das idéias, todos
anteriores àquele uso, já estabelecidas. É a ideia de uma linguagem transparente e
explícita, um código cuja função é a transmissão e apreensão de mensagens. Nessa visão,
tem-se o estabelecimento de correspondência entre a expressão e o seu referente, de
forma que assim um represente a realidade. Também mostra a crença na oposição entre
mundo e linguagem, dicotomia proveniente de uma visão representacionalista da
referência, portanto, de linguagem:

as categorias mundo e linguagem, neste caso, remetem à noção de


referência como uma construção ilusória entre as expressões e os
objetos, considerando estáveis os elementos da ligação entre os
dois (...). A dicotomia mundo/linguagem se sustenta sobre a
possibilidade de linguagem representar mundo, aqui representar
no sentido de estabelecer correspondência (PINTO, 2002, p. 135).

A compreensão de linguagem com a qual este trabalho compartilha busca romper


com uma visão representacionalista. Contudo, se não tomamos a linguagem como
instrumento de representação do mundo e se descartamos uma oposição entre mundo e
linguagem, como então estabelecemos a relação entre os dois, já que podemos nos ver
sempre, de alguma forma, imersos em ambos? Em que está implicada a não adoção de
uma visão representacionalista de linguagem?
A língua não é um meio neutro de comunicação nem um veículo por meio do qual
se descrevem realidades. Essa afirmação é sustentada sobre uma compreensão de língua
a partir da teoria dos atos de fala de Austin (1976) e de autores que têm se baseado em
tal teoria para analisar e compreender diversos aspectos da vida social. Assim sendo, se
a língua não é apenas expressão de ideias ou representações e se ela é, em si mesma, a
própria construção dessas ideias e representações (FOUCAULT, 2000), e se ela é
também performativa, ou seja, se ela realiza aquilo que se diz (AUSTIN, 1976), então
uma das coisas que sabemos que ela realiza é exatamente que somos, ou seja, nossas
identidades (MASTRELLA, 2007). Tendo então essa compreensão, trataremos a seguir
sobre a relação entre língua, identidade e ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras.

A RELAÇÃO ENSINO-APRENDIZAGEM ENTRE LÍNGUAS E IDENTIDADE


Partindo de uma visão performativa de linguagem, podem-se encontrar direções
para interrogações como: de que forma podemos falar em posições de sujeito sem fixar a
identidade, sem defini-la ou encerrá-la em categorias unitárias? Além disso, como os
alunos assumem posições de sujeito nos discursos da aprendizagem de língua
estrangeira? Acreditamos que é também com a ajuda da teoria de Butler (1999) sobre o
conceito de performatividade que podemos pensar essas questões. Segundo ela, para
pensarmos em identidade é preciso deslocar a ênfase na descrição – a identidade de

1Conforme The Online Etymology Dictionary, disponível em: <http://www.etymonline.com/>, acesso em


05/07/05.
11
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

alguém é essa, tal pessoa é assim – para a idéia de tornar-se , para uma concepç~o da
identidade como movimento e transformação a partir de uma noção de linguagem que
opera e realiza o que se diz. Uma concepção de linguagem como produtiva e
performativa, um fazer, porém,

não um fazer por um sujeito que pode-se dizer que preexiste ao


feito [mas] a estilização repetida do corpo, um conjunto de atos
repetidos dentro de uma estrutura altamente regulatória que se
solidifica com o tempo para produzir a aparência de substância, de
uma forma natural de ser. (BUTLER, 1990, p. 33)

Essa forma natural de ser , da qual Butler 990) fala no trecho citado, que
aparece naturalizada, como se sempre fora assim, é o que conhecemos como o normal ,
normalizado, não passível de questionamentos. Isso acontece em todas as realidades que
nos cercam, inclusive na pedagogia que, conforme aponta Giroux (1999, p. 13), constrói
conhecimento, relações sociais e subjetividades2. Enquanto tal, portanto, a sala de aula
de LE deveria ser explorada a partir do que lhe é normal, natural , baseada em uma
perspectiva performativa de linguagem, como aponta Butler (1990). A linguagem
performa realidades e faz identidades em cada ato de fala. Para ser produtiva, carrega
em si uma historicidade condensada, que não tem origem no sujeito que fala, mas faz
parte de uma rede contextual histórica e discursiva, a qual acumula e, ao mesmo tempo,
dissimula sua força.
Diante dessas considerações sobre como as identidades são construídas e como
podem ser acessadas, consideramos importante abordar a seguinte questão: por que
falar em identidade na aprendizagem de inglês como língua estrangeira? De acordo com
Norton e Toohey (2002, p. 115), tal aprendizagem engaja as identidades dos aprendizes
pelo fato de que língua não é apenas um sistema lingüístico de signos e símbolos, mas
também uma prática social complexa, de atribuição de valor e significado a quem fala. As
atribuições de valor e de significado têm a ver com a forma como os falantes e, no caso,
os aprendizes, se identificam e são identificados enquanto sujeitos e participantes em
um determinado contexto de interação. A língua estrangeira, enquanto tal, também tem
um papel ativo na contínua produção das identidades dos aprendizes, especialmente
quando identidade é entendida como relação, não como característica fixa ou
naturalmente dada3. Assim, é o papel íntimo e crucial que a língua exerce na construção
das identidades que faz com que seja também íntima a relação entre identidade e LE,
bem como, a meu ver, de grande importância as investigações sobre a construções
identitárias no processo de ensino-aprendizagem de língua estrangeira.
Como já foi dito anteriormente, em outras seções neste capítulo, tratar de
identidade nos remete, mais comumente, à idéia de identidade nacional, que marca as
fronteiras de uma determinada cultura – certas características definidas, atribuídas a um

2 Pedagogia, para esse autor, não se resume a apenas um conjunto de estratégias e habilidades para
ensinar conte’dos, mas, num sentido mais amplo e crítico, como uma forma de produç~o política e
cultural profundamente envolvida na construção de conhecimento, subjetividades e relações sociais
(GIROUX, 1999, p. 13).
3 Essa idéia de identidade como relação é também defendida por Skutnabb-Kangas (1991 apud

Rajagopalan, 2001, p. 87), que busca enfatizar que, por não ser característica, mas sim relação, as
condições de negociação de identidade devem ser também consideradas como objetos vitais de estudo.
12
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

grupo de indivíduos. A idéia da identidade cultural, entretanto, tem sido criticada por
alguns autores que adotam uma perspectiva de estudos da pós-modernidade pelo fato
de ser, segundo eles, uma tentativa de fixação da identidade. Norton (1997b) afirma
preferir o termo identidade social a identidade cultural, explicando que esse último
tende a entender a identidade como homogênea e fixa, com categorias preconcebidas.
Para a autora, a identidade social é a relação entre o indivíduo e o mundo social mais
amplo, mediada por instituições, tais como família, escola, local de trabalho, serviços
sociais e tribunais de justiça (NORTON, 1997b, p. 420). Em outro momento, Norton
(2000, p.5) define a identidade como a forma como uma pessoa entende seu
relacionamento com o mundo, como esse relacionamento é construído ao longo do
tempo e do espaço e como a pessoa entende as possibilidades para o futuro. Com isso, a
autora procura enfatizar que os estudos de aquisição de segunda língua (SLA – Second
Language Acquisition) precisam desenvolver uma concepção de identidade que seja
compreendida com referência a estruturas sociais mais amplas e frequentemente
desiguais e injustas, que são reproduzidas (e, enfatizaríamos, também produzidas) na
interação social do cotidiano. Nessa compreensão de identidade, a língua possui um
papel fundamental: ela é constitutiva e constituída pela identidade do aprendiz. Isso
também se assemelha ao que propõe Heller (1987), pois a autora dá lugar de destaque à
língua na formação da identidade. Para ela, é através da língua que a pessoa negocia sua
compreensão de si mesma (self) em diferentes lugares e momentos no tempo. É também
através da língua que a pessoa ganha acesso – ou esse lhe é negado – a redes sociais de
poder que dá aos aprendizes oportunidades de falar. Com isso, podemos perceber que a
língua não é simplesmente um meio neutro de comunicação, mas é nela e por meio dela
que os significados são construídos e as relações sociais estabelecidas. Nesse mesmo
sentido, essa compreensão do lugar da língua na construção da identidade e na
propiciação de acessos às relações sociais pode também ser transportada para o
contexto das relações que se estabelecem na sala de aula, considerando a visão que
Canagarajah (1999) tem desse ambiente enquanto um lugar de autonomia relativa – ao
mesmo tempo que se faz sob a influência do mundo social externo, possui maneiras
próprias de se constituir, de estabelecer relações entre os sujeitos e de resistir a práticas
já estruturadas.
Indo além, tendo em vista a produção da identidade não como categorias sociais
ou culturais fixas, mas como uma questão de performatividade, como uma constante e
contínua negociação de como nos relacionamos com o mundo e nos fazemos por meio da
linguagem, temos que a aprendizagem de língua estrangeira, bem como toda a estrutura
formal institucionalizada de ensino de línguas, está intimamente ligada a questões de
formaç~o e transformaç~o de identidades. Como ressalta Pennycook , se
levarmos a sério a ideia de que o engajamento no discurso é parte da contínua
construção da identidade, então o contexto da educação de segunda língua levanta
questões significativas sobre a construção e a negociação de identidade (PENNYCOOK,
2001, p. 149).
Com isso, consideramos relevante enfocar a identidade dos aprendizes no
processo de ensino-aprendizagem de inglês como LE pelo fato de tal enfoque possibilitar
um maior acesso ao tipo de relações sociais que se estabelecem nos contextos formais de
ensino, isto é, na sala de aula, bem como aos discursos que posicionam o sujeitos e as
interações que constroem e (re)negociam identidades, se constituindo enquanto
conflitantes. Além disso, tratar da identidade do sujeito da aprendizagem é também
13
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

apropriado por permitir que lidemos com questões individuais e sociais de forma mais
equilibrada, não dissociando o sujeito de seu contexto, não fazendo dicotomias, mas
reconhecendo-os enquanto tais em sujeição à estrutura e, ao mesmo tempo, em agência
e operação, num modelo de relação em constante formação e transformação.

METODOLOGIA DA PESQUISA
Este foi um estudo de cunho qualitativo, segundo o qual os fatores sociais não
podem ser vistos como fixos, mas assumindo sempre uma diversidade de significados
múltiplos e socialmente construídos (BURNS, 1999). Nesse sentido, a opção
metodológica foi com base em histórias de vida, através de relatos de experiência, já que
eles possibilitam o reaparecimento de sujeitos face {s estruturas e aos sistemas, a
qualidade face { quantidade, a vivência face ao instituído NÓVOA, , p. . Assim,
a coleta de dados foi feita por meio de questionários online com estudantes de inglês do
curso de Letras de uma universidade pública brasileira. Quatro participantes, três
homens e uma mulher, responderam ao questionário fornecendo relatos sobre suas
experiências de aprendizagem e de uso da língua inglesa como língua estrangeira.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS


As entrevistas, seguindo o caráter qualitativo deste estudo, foi realizada por
escrito com quatro estudantes – uma mulher e três homens – de Letras Inglês de uma
universidade federal brasileira da região do Centro-Oeste. Todos os entrevistados são
jovens adultos e provêm de famílias de classe média, o que concluímos a partir das
respostas dadas por eles aos questionários.
Dividimos esta seção de análise em alguns tópicos, os quais buscam responder às
perguntas de pesquisa (conforme apontadas anteriormente na introdução deste artigo)
que guiaram nosso estudo, todas ligadas à questão de como o processo de contato com a
língua inglesa contribui para a construção da identidade do aprendiz de inglês no curso
de Letras.

IDENTIDADE E A ESCOLHA DO NOME FICTÍCIO


A fim de analisar a relação da escolha do nome fictício com a identidade do
entrevistado, tomaremos como base a teoria de aquisição denominada aculturação por
Schumman (1978). Vera Menezes Paiva (2009), substituindo o termo por afiliação,
afirma que afiliaç~o corresponderia ao grau de relacionamento com a cultura da
segunda língua ou com falantes dessa língua e a construção de identidades. Afiliações
com a segunda língua funcionam como um potente combustível que move o sistema de
ASL Aquisiç~o de Segunda Língua .
Tendo isso em vista, houve uma preferência da maioria dos candidatos por
nomes estrangeiros, como Werter , Cat Stevens e Rachel . A exceç~o foi o
entrevistado que optou pelo nome Abra~o Silva . A escolha deste nome refletiu como o
próprio estudante vê sua identidade social, afirmando sua identidade brasileira e
excluindo qualquer vínculo de origem inglesa ou internacional, como é afirmado a
seguir: Abra~o por causa da personagem bíblica de mesmo nome. Sou crist~o. Silva

14
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

por ser um nome comum nas famílias brasileiras. A escolha do nome não tem nenhuma
relaç~o com o inglês 4.
Werter, outro entrevistado, possui membros familiares que detêm conhecimento
de uma literatura estrangeira, uma realidade um tanto quanto distante de muitas
famílias brasileiras. Diferindo da perspectiva identitária de Abraão, a explicação provida
por ele foi a seguinte: Werter. The sufferings of young Werter Goethe foi o primeiro
livro que li em inglês, há 6 anos. Alguns familiares que conhecem a estória a relacionam
a mim; quanto ao protagonista, essas mesmas pessoas me dizem que somos muito
parecidos . Esse aspecto familiar do qual ele se refere j| desponta um diferencial em sua
aprendizagem, o que refletiu na construção de sua identidade, a qual, diferente da do
participante Abraão Silva, não é exclusivamente brasileira nem procura enfatizar isso.
Ao contrário, mostra forte influência estrangeira e o desejo de marcar tal relação.
Cat Stevens, assim como Werter, justificou sua escolha apresentando uma clara
influência que um produto cultural da língua inglesa lhe incutiu: Um cantor inglês que
admiro muito. Ele canta de maneira simples as coisas simples da vida. Aprendi bastante
vocabulário com as músicas dele e procurando informações, em inglês, acerca de sua
biografia . Rachel também demonstrou uma afiliaç~o explícita para com a língua inglesa.
Inclusive, com a produção cultural, como pode se conferir em seu depoimento:

Eu escolhi o nome Rachel, foi o primeiro nome que me veio à


cabeça, acho que porque eu estava assistindo Friends. Gosto muito
de tal seriado e gosto muito da personagem com esse nome.
Assistir a esse seriado me ajuda no aprendizado do inglês, pois
como já estou acostumada com as vozes dos atores e com o ritmo
de fala deles, consigo compreender mais facilmente o que falam.
Acho que a única conexão com minha identidade social é que
muitos amigos meus também assistem ao seriado que conta
histórias do cotidiano de 6 amigos.

Werter, Cat Stevens e Rachel demonstraram já de início uma afiliação pela língua
inglesa, o que demonstra uma relação mais próxima com ela e respectivos produtos
culturais por produto cultural entende-se o conceito proposto por Pierre Bourdieu),
como se conferirá novamente em um novo tópico nesta seção de análise e discussão dos
dados.

ALUNOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA: identidades não merecedoras de investimento de


ensino de inglês?
Quanto ao ensino escolar de língua inglesa, todos apresentaram insatisfação
explícita. Segundo Abra~o Silva, nas escolas regulares vejo-o como deficiente, pobre. Ao
considerar a língua inglesa em si mesma, seu ensino é voltado apenas para atender as
necessidades imediatas do aluno, como provas bimestrais e vestibulares . Cat Stevens
enfatiza: A minha vivência foi péssima. O professor fingia que ensinava; o aluno fingia
que aprendia. Salas lotadas, alunos com níveis diferentes. N~o havia muito o que fazer... .

4 As falas dos participantes serão apresentadas entre aspas ao longo desta seção de análise dos dados.
15
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

De modo geral, os participantes relataram que o conteúdo transmitido no


ambiente escolar é muito superficial e improdutivo. O material didático não atinge as
expectativas de um ensino qualificado para substanciar a aprendizagem da língua
estrangeira. Além disso, o professor não costuma preparar um material diversificado e
satisfatório, visto que ele não desfruta de tal liberdade nesse meio pedagógico. A gestão
educacional é falha neste ponto, pois limita e pressiona o conteúdo a ser passado aos
alunos, o que prejudica o desenvolvimento do professor e o interesse dos estudantes.
Isso pode ser compreendido na experiência relatada por Werter no trecho a seguir, a
qual não foi diferente da de Abraão Silva nem de Cat Stevens:

Minha experiência no fundamental, que foi em escola particular, eu


diria que foi praticamente nula, pois além de lições de vocabulário
limitadas também havia uma forte utilização de gramáticas
adaptadas no modelo português/inglês; não havia profundidade no
estudo da língua, somente lições de preenchimento de lacunas com
palavras que eram aprendidas até em programas matinais infantis.
Já no ensino médio, na escola particular era uma forte tendência à
leitura e interpretação de textos. Na escola pública era o mesmo
modelo do ensino fundamental. Minha experiência com essas aulas
foi, diria, bem morna .

Pra quê estudar inglês se nem português falo direito? é um questionamento


recorrente em salas de aula de ensino público (MOITA LOPES, 1996), que mostra uma
compreensão de que o aluno não tenha em si a capacidade ou o preparo para aprender a
língua estrangeira. Tal afirmação contribui para a construção da identidade dos alunos
como não merecedores de investimentos no que se refere ao ensino da língua inglesa ou
qualquer outra língua estrangeira, uma vez que limita suas potencialidades. Segundo
Moita Lopes (1996), esse tipo de crença ou afirmativa mostra preconceitos e
desconhecimentos sobre a relação entre língua materna e língua estrangeira, além de
uma visão limitada sobre o processo de ensino-aprendizagem de línguas. Como efeito,
tem-se uma descrença na possibilidade de que se possa ensinar e aprender inglês na
educação básica na escola pública e, consequentemente, tem-se uma visão de que os
alunos dessa instituição não sejam capazes de corresponder aos investimentos de
ensino da LE. Isso está de acordo com o que relata Cat Stevens (o participante deste
estudo no trecho anteriormente citado).
O desinteresse em aprender uma língua tão diferente do meio social em que se
vive é fruto de frustrações com a disciplina em questão. Ainda assim, apesar de diferir do
meio social, o inglês encontra-se nitidamente presente no cotidiano brasileiro, seja no
uso da internet, no meio da informática, em músicas, filmes ou até mesmo no uso de
estrangeirismo, além do próprio meio profissional. Justamente por ter se infiltrado no
dia-a-dia do cidadão brasileiro, o estudante se acostumou com a presença da língua
estrangeira, podendo se acomodar ou aprofundar em seu domínio. Por isso, necessita-se
de projetos e didáticas que superem esses obstáculos e instiguem os estudantes.
A falta de perspectiva profissional referente a idiomas estrangeiros também é
evidente entre os alunos que não são submetidos a um ensino fortalecido de inglês, o
qual, infelizmente, é encontrado apenas em cursos específicos particulares. Justamente
por se encontrarem à parte do ensino público, o acesso ao ensino qualificado de língua
16
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

inglesa torna-se elitizado, restrito somente aos que podem investir uma quantia que
famílias de baixa renda não usufruem (GIMENEZ, 1999). Assim, é preciso que haja mais
cursos preparatórios de livre acesso para os professores, cursos que explorem as quatro
habilidades linguísticas de forma construtiva, e não superficialmente. É preciso também
abranger os assuntos abordados criativamente, e não restringi-los a um conteúdo clichê,
de fácil compreensão e sem muita exigência crítica dos alunos. De acordo com o relato
do aluno participante Cat Stevens, esse cenário também ocorre no ensino superior de
língua estrangeira: na verdade, h| muitos docentes e discentes que est~o acomodados
com a situação do jeito que está; afinal ela é muito cômoda: finge-se que ensina; finge-se
que aprende .
O aluno não deve ser subestimado, pelo contrário, ele deveria ser instigado a
superar os desafios com os quais ele se depara. O desafio do novo e do desconhecido
serve de incentivo para aqueles alunos que já estão aptos a aprofundar na matéria,
incitando-os a não abandonar o que supostamente já seria do domínio deles.
Quanto ao aluno iniciante, porém, a aplicação dessa proposta deveria ser
moderada, a fim de que não assuste nem desencoraje o estudante, que sempre deve ter
seu esforço reconhecido. Rachel enfatiza com a sua experiência:

O inglês sempre foi obrigatório nas escolas em que estudei, desde o


1° ano. Nas escolas o ensino da língua inglesa sempre foi
superficial, principalmente para mim que estudava inglês em uma
escola de idiomas e já tinha um domínio maior que grande parte
das pessoas da minha sala. Exatamente por isso que o professor
nunca podia avançar muito na matéria, sempre havia pessoas com
mais dificuldade ou que quase não tinham contato com o inglês.

O PAPEL DA FAMÍLIA COMO ESTÍMULO DE CONTATO COM A LÍNGUA


ESTRANGEIRA PARA UM ALUNO BEM-SUCEDIDO
Segundo os alunos participantes deste estudo, suas famílias sempre incentivaram
o estudo do inglês, proporcionando a oportunidade de o aluno estudar em um curso
particular específico. O participante Abra~o Silva alegou que n~o chegou a ser uma
cobrança, mas sim um conselho. Disseram que estudar inglês me ajudaria na escola e
seria bom se eu evoluísse meus conhecimentos na |rea . Sobre isso Cat Stevens relata
que

Na época, não havia inglês obrigatório na escola, e as referências do


curso [especializado de idiomas]5 eram as melhores. Foi uma
experiência muito boa. Aprendi pronúncia, escrita e conversação.
Os professores ensinavam de uma maneira bastante lúdica,
conjugando teoria linguística com a prática da língua. Nesse
percurso fiz grandes amigos e aprendi bastante acerca da cultura
estadunidense.

5Os símbolos [ ] presentes nas falas dos participantes indicam inclusão, por parte das autoras, de frases
explicativas sobre o assunto em questão.
17
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Matricular o filho em um curso de inglês é uma prática comum entre famílias de


classe média alta, pois é de conhecimento geral que o ensino público não atende as
exigências do mercado de trabalho (GIMENEZ, 1999). A participante Rachel discorre
quanto { imposiç~o da família: (oje n~o h| mais, pelo fato de o inglês ter se tornado
uma opção minha. Quanto ao meu irmão menor, ele já aprende inglês na escola, desde os
anos. O inglês se tornou comum na nossa vida , e continua: j| fiz inglês em escolas
de idiomas diferentes, pelo fato de o inglês da escola ser superficial e não exigir muito do
aluno. Hoje eu agradeço demais aos meus pais por terem me colocado em escolas de
idiomas desde cedo, creio que isso me ajudou bastante e facilitou meu aprendizado .
Há sites virtuais que tratam do assunto quando matricular seu filho em um curso
de inglês . Os próprios domínios têm enfoque para o navegante que pertence à classe
média alta ou à classe alta, porque não há preocupação com a renda ou com as formas de
pagamento, apenas com as condições ideais de matricular o filho, como, por exemplo,
matricular na idade certa para um maior aproveitamento e adaptação à língua
estrangeira. A resposta ideal para essa pergunta, entretanto, não deveria ser pertinente,
pois a escola pública da educação básica deveria ser capaz de prover aos alunos as
possibilidades de aprender língua estrangeira com sucesso. Na realidade, porém, as
famílias se veem obrigadas a matricular seus filhos em cursos particulares caso tenham
o capital necessário para investir e almejem melhores condições para os estudantes.
Praticamente, não há espaço para o estudante de baixa renda estudar o idioma
estrangeiro, uma vez que as bolsas são extremamente escassas e não se apresentam em
número suficiente para atender a todos os pedidos. Isso implica em uma importante
questão: tem acesso ao aprendizado de inglês quem pode por ele pagar, isto é, o fator
classe social, as condições socioeconômicas dos aprendizes são determinantes para o
acesso à língua estrangeira, contribuindo para identidades em prestígio e, em
contrapartida, identidades menos privilegiadas frente ao desafio do domínio de uma LE.

INFLUÊNCIAS ARTÍSTICO-CULTURAIS NA APRENDIZAGEM DA LÍNGUA


ESTRANGEIRA
Todos os participantes afirmaram que fatores extralinguísticos, tais como
músicas, filmes e jogos, possibilitam contato e provocaram interesse pela língua. Não é
de se estranhar que isso tenha ocorrido e que ainda ocorra com os entrevistados. A
mídia é o instrumento de transmissão de língua e de cultura mais utilizado, atuando
principalmente em famílias que têm condições de pagar por esses recursos. É também
nesse meio que a identidade entra em conflito, uma vez que as produções de
entretenimento se dispõem em massa para seu usuário, chocando ou aderindo à sua
identidade cultural.
Muitos estudantes de língua inglesa são cativados a aprender a língua devido a
fatores artístico-culturais. Esses fatores podem se apresentar por meio de séries
televisivas, literatura, e, principalmente, da música. A música é o contato mais imediato
entre a língua estrangeira e o aluno, pois se apresenta de fácil acesso, seja por rádio,
meio virtual ou televisivo, dispondo a sonoridade da língua e já atraindo o ouvinte que
se agradar com seu contato, como foi o caso de Cat Stevens ao justificar a escolha de seu
nome no segundo tópico da seção de análise deste artigo.

18
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

O participante Werter também explicita sua experiência e demonstra o quão


estimulante e importante foi o contato com um produto cultural da língua inglesa para
sua aprendizagem:

Sempre gostei de uma banda irlandesa chamada The Cranberries,


cuja canção Linger é da qual tenho minha primeira lembrança de
ter vivenciado a língua. Diria que foi aos anos, possivelmente.
Como eu queria entender o que a música dizia, pedi à minha irmã –
que naquela época estava em seus 12 anos – para procurá-la na
internet – ainda no sistema de conexão discada, então era uma
tarefa complicada, pois o desempenho era ruim e a conexão era
falha. Ela achou. Com um dicionário ela mesma traduziu para mim.
Gostei tanto que foi também a primeira música que guardei para
cantar de cor. Me lembro até hoje. Acredito que essa música tenha
sido o estopim, pois gosto muito de estudar línguas. No mais,
estudei no ensino regular – da 5ª à 8ª série, além do ensino médio,
que cursei parte em escola privada e parte em pública. Não fiz
curso específico de línguas, mas estudei por mim mesmo com os
livros de minha irmã e os que minha mãe comprava ou ganhava.
Quando fiquei mais velho comecei a assistir filmes e séries, ler
romances em inglês também virou uma espécie de hobby, isso
porque muitas literaturas de outras nacionalidades – como a
japonesa, chinesa – não são encontradas em português.

Os quatro alunos de Letras entrevistados foram influenciados por esses


instrumentos positivamente considerando a relação do indivíduo com a língua, tendo
filmes, séries, músicas e jogos como fatores que mais influenciaram os estudantes a
ponto de provocar um gosto pela língua, resultado da afiliação. Sendo assim, uma forma
de incentivar os estudantes desinteressados seria o investimento em materiais mais
interativos com outras áreas, especialmente artísticas. O conteúdo estudado que
interliga a estrutura gramatical da língua inglesa com aspectos artísticos, seja em
versões cinematográficas, musicais ou literárias, certamente será não somente bem
recebido pelo aluno, como também possivelmente utilizado significativamente por ele.

MOTIVAÇÕES PARA O INVESTIMENTO NA IDENTIDADE DE ESTUDANTE E


PROFISSIONAL DE LETRAS INGLÊS
Dentre os participantes, é interessante notar que todos disseram ser motivados
para a aprendizagem de inglês e pela busca pelo curso de Letras Inglês em função do
apreço que têm pela língua, seja por sua literatura ou pela própria gramática. Para o
participante Cat Stevens, sua motivaç~o é compreender a gram|tica, os meandros
textuais e as expressões de uma língua universal. Meu maior desejo é conseguir ler
grandes obras liter|rias em inglês .
Já Abraão Silva afirma que tem

objetivos pessoais e relacionados à carreira profissional. Também o


gostar da língua. Gosto muito de estudá-la. Interesso-me por esta
19
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

área, tanto que escolhi minha carreira relacionada ao inglês. Gosto


de estudar o modo como a língua funciona. Gosto da gramática.
Gosto de poder usar um meio de comunicação além da língua
portuguesa.

De acordo com Norton (2000), a motivação dos aprendizes para aprender novas
línguas vai muito além do que em geral chamamos de vontade ou desejo interior. Para a
autora, trata-se de investimento em identidade e em aceitação social. Em Mastrella
, p. , encontramos que a relaç~o com a língua estrangeira é construída com base
no desejo por identidade, por reconhecimento social, desejo de autotransformaç~o , o
que pode ser entendido também a partir dos relatos dos participantes deste estudo
sobre o que lhes motiva a aprender inglês e a investir no curso de Letras Inglês, como
Werter, no trecho a seguir:

Sempre achei divertido. De alguma forma estudar inglês ou outras


línguas estrangeira, ou mesmo estudar português me faz bem. Eu
não sei explicar de forma satisfatória, mas estudar línguas desde
criança faz parte do meu cotidiano. Eu geralmente não sou muito
curioso por certas questões, mas acho que sou bastante curioso
quanto a línguas e culturas, além de história, literatura e filosofia
de produzida aqui mesmo no Brasil e em outras nações. Acho que
todos temos algum tipo de forte ligação com a língua ou cultura,
seja o fanatismo por algum romancista ou poeta, ou a fixação por
algum grupo musical ou cineastas renomados, enfim, vejo que, de
alguma forma, todos somos atraídos por essa língua. Quanto ao
desenvolvimento na língua, vejo que há algumas diferenças. Por
exemplo, eu me desenvolvi lendo, mas outros fizeram o mesmo ao
assistir séries e filmes. Outros fizeram cursos no exterior ou grupos
de conversação. Neste ponto as experiências são bem diversas. Não
posso dizer que seja a minha língua favorita . Vejo o inglês como
uma ferramenta muito útil, além de ser o meio pelo qual pude ter
contato com conhecimentos que mudaram a minha vida. Construí
ligações muito fortes com algumas obras de escritores(as) de
língua inglesa, como Virgina Woolf, William Faulkner, Margaret
Atwood, Earnest Hemingway, Philip Roth, mesmo Shakespeare,
Thomas Kid e por aí vai. Mas também acho que é por causa de um
certo dinamismo que vejo em se ter uma graduação em língua
inglesa, pois são vários os ramos nos quais um profissional desta
área pode atuar.

A VISÃO SOBRE ERROS: QUESTÕES DE IDENTIDADE E A AUTOCONFIANÇA PARA


FAZER USO DA LÍNGUA ESTRANGEIRA
Em Mastrella (2002), a visão dos alunos sobre os erros é discutida como um dos
aspectos que podem produzir e manter ansiedade em sala de aula de línguas. Segundo a
autora, muitas vezes os alunos consideram que errar é algo inaceitável, especialmente
porque imputa, sobre o sujeito que comete o erro, a ideia de não saber ou de não ser
20
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

capaz, uma avaliação que constrói uma identidade negativa do aprendiz mediante seu
grupo. No relato a seguir do aluno Abraão Silva, quando ele fala sobre sentir-se
reprimido para usar a língua inglesa, podemos identificar essa questão:

Tímido para me expressar, mas não reprimido (no sentido real da


palavra). Minha confiança está relacionada ao ambiente em que eu
estou: se eu me sentir confortável e integrado ao meio, não terei
tantos problemas para reproduzir a língua. Sem dúvidas, tenho
mais confiança na minha escrita, pois tenho a possibilidade de
corrigir o erro sem ele ser identificado pelos outros.

Como se pode notar no trecho citado por Abraão, a comparação entre a confiança
para falar ou para escrever se deve ao fato de que, ao escrever, seus erros não são
identificados por outros, mas por ele mesmo, o que não acontece no momento da fala. O
relato de Rachel, a seguir, também dá indícios sobre essa questão:

Me sinto confiante, mas não totalmente. Sei que ainda preciso


ampliar mais meu vocabulário, principalmente em relação às
expressões próprias da língua inglesa, seja dos Estados Unidos ou
da Inglaterra, principalmente. Me sinto mais confiante na escrita,
pois a fala já entra como uma habilidade que requer mais prática e
desenvoltura. Nunca me senti reprimida.

Durante a fala, a identidade do falante é construída conforme os parâmetros de


verdade, os discursos, que o grupo tem sobre como deveria ser o ideal de produção oral
no ambiente da sala de aula. De acordo com Mastrella e Dalacorte (2008), esse pode ser
um aspecto silenciador dos alunos, que pode impedi-los de participar e fazer uso da
língua estrangeira; ao eximirem-se da prática na nova língua para resistir a uma
categorização de menos capazes, ou seja, para evitar que suas identidades sejam
construídas negativamente, os aprendizes podem ter menos oportunidades de
aprendizagem.
Relacionado à questão dos erros, os alunos participantes também falaram a
respeito de serem corrigidos. Para Abra~o, s~o meios de aprendizagem um pouco
dolorosos. No entanto, ajudam a alcançar o dito correto . Ninguém gosta de errar. O erro
traz a correção, e dependendo de como ela é feita, ela pode criar sentimentos de tristeza,
culpa, timidez, etc.; o que acaba ferindo, nem que seja o ego . É interessante notar, pelos
termos do aluno, que a correç~o acaba ferindo o ego , ou seja, afeta a identidade de
quem é corrigido. Esse é um tipo de crença que privilegia o saber, o que é correto a
partir de um modelo de uso de língua que supostamente sabe usá-la em perfeição. Para
Rajagopalan (2002), o suposto modelo de perfeição, o falante nativo, precisa ser
problematizado a partir de uma visão de língua não estruturalista, porém discursiva, e
sem considerar que a língua possua donos que sabem sobre ela dizer com autoridade e
exatidão.

21
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista as discussões empreendidas neste trabalho, a partir dos dados que
informaram as análises, retomamos aqui, como considerações finais, as perguntas de
pesquisa que guiaram o estudo. A primeira pergunta dizia respeito a como os alunos de
inglês no curso de Letras se identificam e são identificados no processo de
aprendizagem em sala de aula. Sobre essa questão, é preciso ressaltar que todos os
participantes desta pesquisa iniciaram o curso de Letras já com níveis intermediários ou
avançados de proficiência na língua inglesa. Assim, os dados coletados sugerem indícios
de que alguns alunos entram na universidade com uma experiência já iniciada com a
língua inglesa, a qual inicia a partir do contato com músicas, artistas etc., além da
influência de cursos de idiomas anteriores. Com isso, a entrada no curso de Letras pode
ser muitas vezes frustrante, pois, em meio a turmas heterogêneas, os alunos que já
possuem uma história de vivência anterior com a língua inglesa não encontram espaços
para avançarem na aprendizagem, considerando as aulas das diversas disciplinas
bastante monótonas ou repetitivas.
Esse assunto também se relaciona com a segunda pergunta de pesquisa, a qual
buscava analisar os tipos de interação que participam na construção das identidades dos
alunos e que possivelmente promovem ou embargam o acesso dos alunos na aquisição
da competência na LE. Os dados analisados sugerem que muitos alunos possuem visões
equivocadas sobre o papel do erro na aprendizagem de línguas, evitando participar ou
procurando muitas vezes atuar mais em participações escritas, a fim de evitar
exposições orais na LE.
Em função do espaço limitado para a discussão neste artigo, ressaltamos, por
último, a expectativa de que os resultados das análises deste trabalho possam servir de
subsídios para se pensar e repensar a sala de aula de inglês no curso de Letras enquanto
espaço democrático de ensino-aprendizagem.

REFERÊNCIAS

BURNS, A. Collaborative Action Research for English Language Teachers. Cambridge:


Cambridge University Press, 1999.

CARMAGNANI, Anna Maria Grammatico. A questão da identidade na mídia – Reflexos na


sala de aula. )n: Maria José Coracini org. )dentidade e Discurso – (Des)construindo
subjetividades . Editora Unicamp.

FOUCAULT, Michel. Os limites da representação. )n: A palavra e as coisas – Uma


arqueologia das ciências humanas Trad. Salma Tannus Muchail. S~o Paulo: Martins
Fontes, 2000.

GIMENEZ, T. Terceirizaram o inglês. Boletim NAPDATE, n. 6, 1999b, Londrina, PR, p. 3 –


4. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/nap/artigos/artigo12.htm>. Acesso em:
06/06/06.

GNERRE, Maurizzio. Linguagem, poder e discriminação. )n: Linguagem, escrita e poder .


São Paulo: Martins Fontes, 1985.

22
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz T. da Silva e


Guacira L. Louro. 7 ed. DP&A Editora.

HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? Identidade e diferença. Editora: Livraria Duas
Cidades, 1971.

LACAN, J. Écrits: a selection. Londres: Tavistock, 1977.

MASTRELLA, M. R. A Relação entre crenças dos aprendizes e ansiedade em sala de aula de


língua inglesa: um estudo de caso. 2002. Dissertação (Mestrado em Letras e Linguística)
– Faculdade de Letras, UFG.

MASTRELLA, M. R. Inglês como Língua Estrangeira: Entre o desejo do domínio e a luta


contra a exclusão. Tese (Doutorado em Letras e Linguística). Programa de Pós-
Graduação em Letras e Linguística. Universidade Federal de Goiás, Goiânia.

MASTRELLA-DE-ANDRADE, M. R.; NORTON, B. Querer é poder? Motivação, identidade e


aprendizagem de língua estrangeira. In: MASTRELLA-DE-ANDRADE, M. R.. (Org.).
Afetividade e emoções no ensino/aprendizagem de línguas: M’ltiplos olhares .
Campinas, SP: Pontes Editores, 2011, p. 89-114.

MASTRELLA, M. R.; DALACORTE, M. C. F. Ressignificando o conceito de ansiedade no


processo de aprendizagem de língua estrangeira: uma perspectiva crítica. In: BRITO, H. A.
M.; REES, D. K. (Org.). Múltiplas Vozes (no prelo). Goiânia: Ed. da UFG.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O desejo, palavra originária. A dizibilidade do sensível,


fundamento da idealidade, p. 212. In: Noella Baraquin e Jacqueline Laffitte (org.)
Dicion|rio universit|rio dos filósofos Trad. Eduardo Brand~o. S~o Paulo: Martins
Fontes, 2007.

MOITA LOPES, L. P. Oficina de Linguística Aplicada: a natureza social e educacional dos


processos de ensino/aprendizagem de línguas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1996.

NORTON, B. Identity and Language Learning: Gender, Ethnicity and Educational Change.
Harlow, England: Pearson Education, 2000.

PAIVA, Vera Menezes. Como o sujeito vê a aquisição de segunda língua. In: CORTINA, A.;
NASSER. S.M.G.C. Sujeito e Linguagem . S~o Paulo: Cultura Acadêmica, .

PEIRCE, Bonny Norton. Social Identity, Investment, and Language Learning. In: TESOL
Publications – Policy and practice in the education of culturally and linguistically diverse
students. Vol. 29, No. 1, Spring 1995.

RAJAGOPALAN, Kanavillil. ELT classroom as an arena for identity clashes. In: Anna M. G.
Carmagnani e Marisa Grigoletto org. English as a foreign language: )dentity, Practices
and Textuality . Editora: (umanitas – FFLCH-USP, 2001.

23
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

RAJAGOPALAN, K. O Conceito de Identidade em Linguística: é chegada a hora para uma


reconsideraç~o radical? )n: S)GNOR)N), ). org. . Língua gem e )dentidade: elementos
para uma discussão no campo aplicado . Campinas, SP: Mercado de Letras, , p. -
46.

SAVIGNON, S. Communicative Language Teaching: State of the art. TESOL Quarterly, v.


25, p. 261-278, 1991.

THOMPSON, John B. O conceito de ideologia. )n: )deologia e cultura moderna – Teoria


social crítica na era dos meios de comunicaç~o de massa . ed. Petrópolis: Editora
Vozes, 2002.

ZACHARIAS, T. Nugrahenny. Ackowledging Learner Multiple Identities in the EFL


Classroom. K@ta: A Biannual Publication on the Study of Language and Literature, 2010.

24
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

LETRAMENTO

LETRAMENTO: a leitura no contexto das aulas de Língua Portuguesa

Maria Suellen de Souza Sá


Gerlândia de Castro Silva
Universidade Federal do Pará

RESUMO: Este artigo analisa como se dá a prática da leitura nas aulas de Língua no 6º
ano do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Maria Deusarina, localizada na cidade de
Castanhal/PA. Fundamentou-se no paradigma qualitativo de pesquisa, tendo como
referência metodológica o estudo de caso. A fim de investigar com maior propriedade a
situação problema, utilizamos como técnicas de pesquisa a entrevista com a professora
de Língua Portuguesa e a observação em sala de aula. Deram base para a análise do
objeto em questão autores como: Brasil (1998), Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni
(2004), Klaiman (2008), dentre outros. O estudo constata que o letramento numa
perspectiva sociohistórica se faz de forma incipiente e precária nas aulas de Língua
Portuguesa. A leitura como parte do processo de letramento é trabalhada de forma
descontextualizada da realidade sociocultural do aluno.
Palavras-chave: Letramento. Língua Portuguesa. Ensino. Leitura.

ABSTRACT: This article analyzed as the practice of literacy in the classroom in the
Portuguese Language in the 6TH year of Primary Education, in Maria Deusarina School,
located in Castanhal city (Para). It is based on a qualitative paradigm of research, having
as a methodological reference the case study. In order to investigate with greater
ownership the problem situation, we use as research techniques the interview with
Portuguese Language professor and the observation in the classroom. Some authors
provided the basis for the analysis of the object in question as following: Brazil (1998),
Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni (2004), Klaiman (2008), among others. The
result of the research shows that the literacy has been treated in an incipient and
precarious form in the Portuguese language classes and this has been taught in a
decontextualized way of sociocultural reality of the student.
Keywords: Literacy. Portuguese language. Teaching. Reading.

1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho oferece um breve olhar sobre o letramento nas aulas de
Língua Portuguesa, especificamente sobre a dimensão da leitura. Ler ainda é um fardo
para muitos educandos, pois esta atividade, na maioria das vezes, apresenta-se
desprovida de sentido pessoal e social, o que proporciona, aos alunos, antipatia pelo
ensino da Língua Portuguesa.
Apesar do conceito de letramento pressupor ou envolver o trabalho com leitura,
oralidade e escrita, este estudo focalizará o aspecto leitura no contexto das aulas da
disciplina Língua Portuguesa.
Nosso interesse em investigar o ensino da leitura surgiu a partir do momento em
que tomamos contato com as concepções e práticas de letramento do Programa Mais
25
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Educação6 do Governo Federal brasileiro do qual participamos como bolsista


desenvolvendo atividades de letramento.
Na oportunidade, nos deparamos com duas perspectivas de leitura: uma já
vivenciada por nós, quando estudantes da Educação Básica, em que a leitura
pressupunha a decodificação de letras, palavras e frases, tendo o aluno que passar pelo
processo de memorização das letras e dos seus respectivos sons, soletrar as sílabas para
formar as palavras etc, sem fazer relação alguma com o seu contexto pessoal e social. A
outra nos foi apresentada pelo Programa Mais educação, em que a leitura ia além do ato
de decodificar as palavras, ou seja, ler significava compreender o texto e o contexto do
texto, sua relação com a realidade sociocultural e histórica do aluno, permitindo uma
interação do leitor com o texto e com seu contexto.
Neste sentido, o letramento sugere um trabalho com a leitura e a escrita que vá
além da decodificação e copia de palavras. É necessário promover a leitura e a escrita de
forma inserida na realidade sóciohistórica do indivíduo. Isto implica em selecionar
variados tipos e gêneros textuais, variados portadores de textos, de tal modo que estes
possam permitir ao indivíduo um contato significativo com o mundo comunicativo no
qual estão imersos.
Foi nesse contexto, então, que surge a curiosidade de saber, para além do
Programa Mais Educação, como se dava o processo de letramento na Educação Básica,
especificamente no Ensino Fundamental. Tendo em vista, então, a operacionalização da
pesquisa, optamos em delimitar a investigação para o conhecimento do aspecto leitura
no processo de letramento, nas aulas de Língua Portuguesa, no 6º ano do Ensino
Fundamental, tendo as seguintes questões como norteadoras do estudo:
- O letramento, em uma perspectiva sociohistórica, é trabalhado nas aulas de
Língua Portuguesa?
- Como se desenvolve a leitura nas aulas de Língua Portuguesa?
- Quais os gêneros discursivos trabalhados na leitura?
- Quais os portadores de textos utilizados (livro didático, jornais, revistas,
quadros) no processo de leitura?
- Existe relação entre os assuntos lidos nos textos e a realidade sociohistórica dos
alunos?
Nossa preferência em conhecer como se dava o processo de leitura nessa série e
nível de ensino seu deu pelo fato de terem poucas pesquisas nesse nível, já que a maioria
dos estudos existentes no campo do letramento refere-se às séries inicias do Ensino
Fundamental. A escolha em verificar tal situação no contexto das aulas de Língua
Portuguesa se deu por entendermos que é nessa disciplina que se deve ocorrer com
maior ênfase o trabalho planejado de ensino aprendizagem da leitura e da escrita.
O estudo fundamentou-se no paradigma qualitativo de pesquisa que segundo
Bogdan e Biklen tem como objetivo não o juízo de valor, mas antes, o de
compreender o mundo dos sujeitos e determinar como e com que critérios eles o
julgam p. .

6 O Programa Mais Educação foi criado pela portaria Interministerial nº 17/2007. É coordenado pela
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC). Abrange atividades
agrupadas em macrocampos como Acompanhamento Pedagógico; Meio ambiente, esporte e lazer; Direitos
humanos; Cultura e arte; Cultura digital; Prevenção e promoção da saúde; Educomunicação; Educação
científica e Educação econômica. Mais informações acessar: www.mec.gov.br .
26
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

A abordagem metodológica escolhida foi o estudo de caso, pois entendemos que a


prática do letramento nas aulas de língua portuguesa, no 6º ano do Ensino Fundamental,
configura-se como uma realidade particular, ou seja, um caso específico, com
características próprias, que deveriam ser bem estudadas, sem excluir a possibilidade de
levantarmos elementos que se relacionem com outras realidades.
Para aquisição das informações adotamos a entrevista semiestruturada e a
observação. A primeira para conhecermos o pensamento da professora acerca da
realidade estudada e a segunda com a intenção de perceber mais de perto a prática do
letramento nas aulas de língua portuguesa e a relação entre discurso proclamado e a
vivência deste em sala de aula.
Quanto à organização do artigo, o mesmo está dividido em dois itens que
expressam dois momentos distintos, mas complementares da pesquisa. O primeiro,
intitulado alguns ditos sobre letramento refere-se à pesquisa bibliográfica, onde
procuramos nos aproximar da teoria do letramento para compreendermos suas
dimensões e desdobramentos na pr|tica pedagógica. O segundo, intitulado letramento
no ensino de Língua Portuguesa , refere-se à pesquisa de campo, onde descrevemos e
analisamos como acontece o letramento no ensino de Língua Portuguesa, dando
destaque para o aspecto leitura.
Para fundamentar a presente análise dialogamos com autores, tais como:
Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni (2004), klaiman (2008), dentre outros, que já
desenvolveram estudos sobre a temática em análise.
Em fim, o estudo em voga trata-se de um recorte de uma realidade e que, por isso,
não tem a pretensão de explicar exaustivamente o fenômeno em estudo, mais de
contribuir com as pesquisas já existentes na área.

2 ALGUNS DITOS SOBRE LETRAMENTO E PRÁTICA DA LEITURA


Neste tópico do trabalho apresentaremos sinteticamente algumas concepções de
letramento, sua inserção no campo educacional, dando ênfase ao processo de leitura.
O termo ou express~o letramento ainda n~o foi dicionarizado. A complexidade
do conceito é visível, haja vista a variação dos tipos de estudos que se propõem a
investigá-lo. (KLEIMAN, 2008).
A express~o letramento foi utilizada pela primeira vez por Kato , a partir
da década de 80 quando a concepção de leitura, escrita, dentre outros aspectos do
ensino da Língua Portuguesa, passaram a ganhar novos significados, não só no campo
teórico e acadêmico, mas também nas práticas de ensino da Língua Portuguesa na
Educação Básica.
Para Tfouni (2004), o letramento é um processo de aprendizagem social e
histórica da leitura e da escrita em contextos informais e para usos utilitários que se
distribui em graus de domínio que vai de um patamar mínimo ao máximo.
Assim, falar de letramento é falar das formas ou maneiras de como os povos ou
sociedades trilham o caminho da escrita e da leitura. Mais que isso, letramento é um
processo, é uma prática de aprendizagem da leitura e da escrita tendo em vista sua
utilização nos mais variados espaços, momentos e situações da vida em sociedade.
Assim sendo, letramento não é um ato mecânico de apresentação de letras e palavras
para o indivíduo decodificar ou copiar, ao contrário, é uma ação altamente significativa e
sociohistórica.
27
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Esse aspecto social do letramento destacado por Tfouni (2004) está em


conson}ncia com a fala de outros autores como a de Kleiman , ao dizer: podemos
definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, como
sistema simbólico e como tecnologia, em contextos específicos, para objetivos
específicos p. -19).
A autora trata o letramento como um fenômeno que tem por objetivo o ensino da
escrita como uma forma de potencializar o cidadão para lidar com as estruturas de
poder na sociedade, adquirindo esse poder por meio do uso da escrita.
Essa relação do domínio da escrita e o poder nada mais são do que o domínio do
uso e função da mesma, adquirida pelo indivíduo no seu convívio social informal (igreja,
movimentos sociais, espaço de lazer) ou formal (escola, universidade, palestras) que lhe
credenciam a participação em outros mundos, públicos e institucionais, como o da
mídia, da burocracia, da tecnologia, tendo acesso à informação e à manipulação desta.
Soares (2002), compreende o letramento como o resultado da ação de ensinar ou
de aprender a ler e escrever, ou seja, é o estado ou a condição que adquire um grupo
social ou um individuo como conseqüência de ter-se apropriado da escrita. A autora,
porém, adverte que a condição de quem sabe ler e escrever não são mais suficientes,
pois é preciso saber responder com propriedade às exigências de leitura e de escrita que
a sociedade demanda continuamente.
Neste sentido, o letramento sugere um trabalho com a leitura e a escrita que vá
além da decodificação e copia de palavras. É necessário promover a leitura e a escrita de
forma inserida na realidade sociohistórica do indivíduo. Isto implica em selecionar
variados tipos e gêneros textuais, variados portadores de textos, de tal modo que estes
possam permitir ao indivíduo um contato significativo com o mundo comunicativo no
qual estão imersos.
Soares (2002) afirma ainda que o nível ou grau de letramento está ligado à maior
ou menor presença de práticas de leitura e escrita no cotidiano escolar e social. O nível
de letramento nos países desenvolvidos, por exemplo, é medido pelo número de anos
completados na escola, sugerindo que em 4,5 ou mais anos a escola terá levado os
indivíduos não só a aquisição da leitura, mas também ao uso e práticas sociais.
No Brasil, nos últimos anos, temos assistido uma força tarefa de governantes,
educadores e sociedade em geral em potencializar a prática da leitura e da escrita, em
casa, nas escolas e em outros espaços sociais, pois avançamos na compreensão de que a
cidadania plena só é possível por meio do domínio da tecnologia e do uso adequado da
função da leitura e da escrita.
Outro autor que se posiciona acerca do letramento é Marcuschi (2001). Ele
afirma que letramento envolve:

As mais diversas práticas da escrita (nas suas várias formas) na


sociedade e pode ir desde uma apropriação mínima da escrita [...]
até uma apropriação profunda, como no caso do indivíduo que
desenvolve tratados de Filosofia e Matemática ou escreve
romances. Letrado é o indivíduo que participa de forma
significativa de eventos de letramento e não apenas aquele que faz
um uso formal da escrita (p. 25).

28
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Dessa forma, letramento está relacionado com o fazer significativo da escrita, da


leitura, da oralidade, ou seja, trata-se de uma prática social e histórica marcada pela
necessidade de sua utilização no dia-a-dia.
No campo educacional, letramento consiste no ato pedagógico de ajudar uma
criança, jovem ou adulto a se auto-reconhecer como um ser de linguagem, que fala, que
se comunica, que pode ler e escrever o mundo a sua volta, partindo da sua realidade
social. Por isso cabe, então, à instituição escolar, responsável pelo ensino da leitura e da
escrita, ampliar as experiências das crianças e dos adolescentes de modo que eles
possam ler e produzir diferentes textos com autonomia LEAL ET AL, , p. .
O letramento na escola, especialmente, a prática da leitura, não pode ser dado de
forma mecanicista e impositiva, alheia às necessidades pessoais e sociais do aluno. A
leitura deve acontecer na escola de modo produtivo, dinâmico, dialógico e,
principalmente, levando em consideração os contextos de relações e interação social em
que os alunos estão envolvidos.
Talvez seja preciso que a escola pública brasileira reflita sobre os procedimentos
que vem utilizando em relação à leitura, pois é comum ouvirmos falar que adolescentes
e jovens estão concluindo o Ensino Fundamental sem terem alcançado a competência
leitora necessária para ler e compreender os textos e contextos, com os quais se
deparam cotidianamente.
Assim, para melhorar a condição do desenvolvimento dessa habilidade no campo
educacional é necessário que a leitura possa ser tratada como prioridade. Por isso,
trabalhar a leitura de forma mais lúdica, significativa e intensa com a criança desde a
alfabetização, é uma alternativa para que tenhamos, num futuro próximo, adolescente e
jovem apaixonados pelo ato de ler.
É preciso, ainda, possibilitar ao aluno o gosto pela leitura. Isso só é possível
quando os professores também têm o habito de ler e fazem dessa prática um ato
prazeroso e significativo. Mais que isso, é necessário que a escola planeje e execute uma
política de valorização da leitura, em que todos os autores da educação escolar possam
exercitar essa atividade.
A leitura tem muitas funções e uma delas é a função social. Assim, a leitura exerce
grande importância na vida de todo e qualquer cidadão. Através dela, as pessoas podem
se libertar para o mundo, n~o sendo obrigadas a conviver com as injustiças que muitas
vezes acontecem com pessoas despreparadas e sem o conhecimento suficiente para que
exerçam sua cidadania.
A leitura, nesse sentido, que dá força ao homem e o desperta para sua realidade
social, não é apenas a de decodificação dos códigos lingüísticos, mas a que dá capacidade
de interpretar o que ler e condições de atuar dignamente em sociedade, sendo ciente de
seus deveres e direitos.
A prática do letramento, portanto, consiste em uma ação de ajuda aos indivíduos,
dentro ou fora da escola, a desenvolverem suas habilidades para ler e escrever a vida,
numa perspectiva que valorize o contexto pessoal e sociocultural dos mesmos. Esta se
constitui mais que uma prática pedagógica, trata-se de uma prática social permeada de
valores e ideologias, pois toda ação pedagógica não é neutra, ao contrário, sempre
expressa uma concepção de homem e de sociedade e por isso expressa um compromisso
com a transformação ou não da sociedade em que vivemos.

29
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

3 A LEITURA NO PROCESSO DE LETRAMENTO NO CONTEXTO DA DISCIPLINA


LÍNGUA PORTUGUESA
A reflexão que ora apresentamos é fruto de nossas constatações e
inferências alcançadas por meio da investigação que realizamos, tendo como objetivo
central conhecer como se dá o processo de letramento, especificamente, a prática da
leitura, no fazer da disciplina Língua Portuguesa. Em vista do alcance de nossos
objetivos e melhor compreensão de nosso objeto de estudo, delimitamos nossa pesquisa
para o 6º ano do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Maria Deusarina, em
Castanhal-Pará.
Cabe esclarecer que nossa investigação partiu do pressuposto de que há um
processo de letramento acontecendo na escola, e em especial no contexto das aulas de
Língua Portuguesa, por compreendermos que nesta área do conhecimento se discute,
planeja e se vivencia com mais constância o ato de ler, escrever, interpretar textos etc.
Por outro lado, não tínhamos um conhecimento sistemático e profundo de como esse
processo de letramento vinha acontecendo, em especial, como o processo de leitura
estava sendo trabalhado nas aulas de Língua Portuguesa. Foi, então, a partir dessas
inquietações que resolvemos executar a presente pesquisa.
Para uma melhor compreensão do presente estudo, apresentamos de modo
sistematizado, as questões-problema que nortearam a pesquisa realizada:
- O letramento, em uma perspectiva sociohistórica, é trabalhado nas aulas de
Língua Portuguesa?
- Como se desenvolve a leitura nas aulas de Língua Portuguesa?
- Quais os gêneros discursivos trabalhados na leitura?
- Quais os portadores de textos utilizados (livro didático, jornais, revistas,
quadros) no processo de leitura?
- Qual a relação entre os assuntos lidos nos textos e a realidade sociohistórica dos
alunos?
Para o desenvolvimento da pesquisa adotamos os referencias metodológicos da
pesquisa qualitativa, do tipo estudo de caso, tendo a entrevista semiestruturada e a
observação como nossas técnicas de aquisição das informações.
Quanto à opção de adotarmos os procedimentos metodológicos próprios da
pesquisa qualitativa, se deu por entendermos que nosso objeto ou problema de estudo
só seria possível se compreendido na ótica da pesquisa qualitativa que, segundo Bogdan
e Biklen (1982 apud Ludke e André, 1986) apresenta as seguintes características:

A pesquisa qualitativa tem o ambiente natural como sua fonte


direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento;
os dados coletados são predominantemente descritivos; a
preocupação com o processo é muito maior do que com o
produto; o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida
são focos de atenção especial pelo pesquisador (p. 11-13).

Quanto aos procedimentos adotados no decorrer da pesquisa, cabe aqui


apresentá-los: levantamento e estudo bibliográfico objetivando fundamentar e situar
melhor o objeto de estudo; entrevista estruturada com a professora de Língua
Portuguesa e observação em lócus.

30
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Para a entrevista preparamos um conjunto de perguntas relacionadas à:


concepção de letramento, ao letramento no contexto das aulas de Língua Portuguesa, ao
trabalho de leitura nas aulas da referida disciplina, aos gêneros discursivos utilizados
nos textos para leitura, aos portadores de textos e à relação dos assuntos trabalhados
nos textos lidos e a realidade sociohistórica dos alunos. Já para nortear nosso trabalho
de observação das aulas, tendo como foco central nosso objetivo de pesquisa já
anunciado, preparamos um roteiro de observação com os seguintes aspectos: frequência
em que se desenvolvia a leitura em sala de aula; como se dava o trabalho com a leitura,
quais gêneros discursivos eram utilizados para leitura, que portadores de textos eram
utilizados, quais os conteúdos ou assuntos dos textos lidos e sua relação com o contexto
sociohistórico dos alunos. Foram feitas oito observações no período de 12 de abril a 06
de maio de 2011, as quais foram registradas em um caderno de campo.
Vale esclarecer que para esta análise nos guiaremos pelos aspectos definidos na
entrevista dada pela professora, utilizando as informações obtidas durante o período de
observações para complementar ou contradizer o discurso da entrevistada.
Nossa entrevistada é licenciada em Letras e Artes pela Universidade Federal do
Pará, com especialização em Ensino Aprendizagem da Língua Portuguesa. A mesma já
atua no Magistério em torno de dez anos, tendo sido professora da rede municipal de
ensino, estando atualmente na rede estadual, acerca de seis anos. A mesma se identifica
com o ensino da Língua Portuguesa, mas nem tanto com a profissão professor, conforme
deixa claro em sua fala a seguir:

Gostar de ser professora de Língua Portuguesa...com a disciplina


eu me identifico muito, mas, hoje, o gostar de ser professora, tem
que gostar mesmo pra ser professora, né? Que as situações que
acarretam o ambiente, a situação em si, a falta de apoio é
complicado (PROFª DE LÍNGUA PORTUGUESA).

Dado os devidos esclarecimentos acerca dos procedimentos e demais dados da


pesquisa, partiremos agora para a análise das informações adquiridas durante a
entrevista e observações, obedecendo a ordem dos seguintes aspectos: concepção de
letramento, prática da leitura nas aulas de Língua Portuguesa, gêneros discursivos
trabalhados na leitura, portadores de textos utilizados no processo de leitura e relação
entre os assuntos lidos nos textos e a realidade sociohistórica dos alunos.
No que concerne à concepção de letramento, a professora entrevistada, ainda que
não formule completamente um conceito, nos dá elementos para compreendermos o
que seria letramento em sua concepção, conforme veremos a seguir:

Por letramento a gente... trabalhar com as letras tanto que eu até


falei que tem o letramento em matemática como deveria ser. O
Letramento é tipo uma base do português, né, um auxilio, e o
projeto mais educação ele vem como um apoio né, vem somar com
as aulas de língua portuguesa tipo um reforço a mais com os
alunos que tem muita dificuldade com leitura e produção de texto.
O conceito eu acho que é saber ler, melhorar a leitura e saber
interpretar essa leitura, não ser um analfabeto (PROFª DE LÍNGUA
PORTUGUESA).
31
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Trabalhar com as letras, saber ler, melhorar a leitura, saber interpretar, não ser
analfabeto, eis alguns pontos da fala da professora que nos chamam atenção pelo fato de
sua colocação está mais voltada à prática do letramento como processo formal de
construção da competência leitora e escritora, aparentemente dissociada do contexto
social. Além disso, mostra claramente como a escola em que trabalha tem deixado a
prática do letramento a cargo do Programa Mais Educação do Governo Federal
Brasileiro.
Vale ressaltar, ainda, tendo como ponto de partida a fala da professora, que
existem muitos analfabetos por não dominarem os códigos lingüísticos, mais que são
letrados do ponto de vista social, ou seja, sabem ler e compreender o mundo a sua volta,
ainda que apresentem limitações para essa tarefa.
As colocações sobre letramento ora apresentadas refletem o que Kleiman (2008)
nos diz:

Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de


letramento, preocupa-se não com o letramento, prática social, mas
com apenas um tipo de prática de letramento, qual seja, a
alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético,
numérico), processo geralmente concebido em termos de uma
competência individual necessária para o sucesso e promoção na
escola (p. 20).

Esta perspectiva de letramento contradiz inclusive os objetivos gerais do ensino


da Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental que é:

Utilizar a linguagem na escuta e produção de textos orais e na


leitura e produção de textos escritos de modo a atender a
múltiplas demandas sociais, responder a diferentes propósitos
comunicativos e expressivos e considerar as diferentes condições
de produção do discurso (BRASIL, 1998, p.32).

Nesse sentido, faz-se necessário uma reavaliação da concepção e prática de


letramento que vem ocorrendo em nossas escolas, haja vista promovermos um
letramento que permita ao educando um aprender a ler e escrever significativo,
relacionado com suas necessidades sociais, com aplicação concreta no cotidiano,
permitindo ao mesmo exercer sua cidadania plenamente.
No que tange à prática da leitura nas aulas de Língua Portuguesa, perguntamos à
professora entrevistada como ela trabalhava esse aspecto em suas aulas. A mesma
afirma:

Os alunos como não têm o habito da leitura, eles têm vergonha de


ler. Porque pra escutar o que eles falam... eles falam muito baixo. A
maioria gosta que a gente leia junto. Agora tem uns que gostam de
ler, que você percebe que eles têm o domínio da leitura, mas a
maioria tem uma péssima leitura. Então pra gente trabalhar a
oralidade, perceber como eles estão falando, eles tem muita
32
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

vergonha porque eles têm deficiência. Na exposição de trabalho


eles falam muito baixo. Alguns se sobressaem. Numa turma de 50,
10 sabem se destacar, tanto que eles sabem perguntar, indagar,
agora a maioria só se agente for junto com eles perguntando de
carteira em carteira. Só quando eles chegam na 7ª série ai eles
estão no nível que a gente imaginou mais ou menos que poderia
ser a 5ª série.

A professora não detalha em sua fala como ela organiza e executa o trabalho com
a leitura, mas retrata a condição em que se encontram os alunos em relação ao ato de ler,
chegando, inclusive, a mencionar a defasagem que os mesmos têm em relação à leitura,
tendo como parâmetro a série que cursam. Vergonha de ler, leitura com voz baixa,
dificuldade para decodificar as palavras durante a leitura etc, retratam um cenário que
não é somente dessa turma de alunos, mas, com certeza, corresponde à realidade de
alunos das escolas públicas brasileiras.
Com bases em nossas observações comprovamos que a leitura de textos era
realizada em todas as aulas, mas geralmente feita pela professora para os alunos, tendo
como portador desses textos o livro didático de português. Raramente se fazia a leitura
coletiva ou individual de um texto, não oportunizando aos alunos a construção de
capacidades inerentes ao ato de ler, conforme preconiza os PCNs de Língua Portuguesa:

A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de


compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos,
de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo que
sabe sobre a linguagem etc. Não se trata de extrair informações,
decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma
atividade que implica estratégias de seleção, antecipação,
inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência
(BRASIL, 1998, p.69).

Neste sentido, apropriar-se dos mecanismos da leitura e da escrita e utilizá-los


com propriedade e racionalidade seja para comunicar, defender uma idéia, palestrar,
escrever um bilhete ou até mesmo fazer uma lista de supermercado, demonstra a
autonomia do educando no uso dos mesmos. Mas, para que isso ocorra, é preciso que a
escola crie necessidades de leituras, incentivando a interação social assim como o
raciocínio lógico e organizado.
Sendo assim, espera-se que um leitor alfabetizado e letrado não seja apenas
capaz de ler e escrever fazendo o uso adequado das regras da Língua portuguesa para a
construção e interpretação de palavras, frases, orações e textos, mas também, de
instaurar uma situação de interação discursiva com o texto lido, vivenciando um
momento prazeroso de busca e apreensão de idéias, conhecimentos e informações
diversas.
Dessa forma, a leitura só poderá ocorrer com a intervenção do professor
independentemente do aluno ler baixo ou ter vergonha. É ele, o professor, que
favorecerá a circulação de informações, cabendo ao mesmo orientar o aluno e encorajá-
lo a usar todo o seu conhecimento prévio para que possa participar efetivamente do

33
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

processo de leitura, utilizando suas técnicas de interpretação de modo a interagir com o


texto, em busca do seu sentido.
A leitura, portanto, como aquisição do conhecimento, deve ser uma prática diária
em todas as disciplinas. O aluno precisa ser respeitado em suas limitações e incentivado
a vencê-las. Não foi o que observamos no cotidiano da sala de aula observada. Ao
contrário, o que vimos foi uma grande preocupação por parte da professora em avançar
com o conteúdo, seguindo à risca as páginas do livro.
Diante desse cenário, é cabível o que disse Paulo Freire em um Trabalho
apresentado na abertura no Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, em
novembro de 1981, acerca da concepção de leitura a ser levada em consideração por
nossos professores, em nossas escolas:

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a


posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da
leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem
dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua
leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o
contexto.

Logo, a escola deve proporcionar uma leitura que leve à compreensão dos textos
e dos contextos sociohistóricos de onde partiram as produções textuais. A escola precisa
incentivar os alunos a se posicionarem criticamente frente à realidade em que estão
inseridos, por meio da leitura. Para que isso aconteça os professores devem lançar mão
de determinados textos, produzidos por determinados autores, para instigar e esmerar a
compreensão, a crítica e o posicionamento des seus alunos.
Quanto aos gêneros textuais7 trabalhados na leitura em sala de aula, a professora
entrevistada se posiciona:

A gente utiliza carta, né, bilhetinho, história em quadrinho


também é usada. Nos livros vêm esses gêneros. Vêm textos
jornalísticos e eles se confundem muito com o discurso direto e
indireto desde a 5ª série, tanto que até o Ensino Médio a gente
tem que mostrar pra eles no texto, o diálogo, a conversa, porque
usar o travessãozinho, a chamada dos verbos: ela falou, ele disse,
tudo isso aí eles têm muitas dificuldades, mas a gente gosta de
trabalhar esse tipo de discurso: narrativo no discurso livre e o
discurso direto.

De acordo com que observamos podemos dizer que foram utilizados, de fato, para
leitura e interpretação de textos, gêneros textuais como: tiras, poema, lista, carta e

7 gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social [...]
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. [...] Caracterizam-se como
eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados as necessidades e as
atividades sócio-culturais, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros
textuais hoje existentes em relação às sociedades anteriores à comunicação escrita (MARCUSCHI,
2001,p.19).

34
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

história em quadrinhos. Tal utilização tinha como suporte o livro didático de Língua
Portuguesa adotado para a 6º ano.
O que nos chamou a atenção na utilização desses gêneros discursivos foi o fato de
eles não serem explorados como deveriam ser. Os alunos não eram levados e instigados
pela professora a conseguirem identificar as idéias centrais e secundárias do texto, o
gênero textual, sua linguagem e estrutura, o modo como foi organizado, a fazer relação
entre o que liam e o que pensavam, muito menos tirar conclusões sobre o que liam e a
realidade em sua volta. A professora lia o texto e, em seguida, direcionava as perguntas
de compreensão do mesmo para os alunos. Quando eles não sabiam, ela respondia para
eles, que registravam em seus cadernos as devidas respostas.
Dessa forma, os alunos não tinham oportunidade e nem eram motivados a
expressarem seus pensamentos por meio da fala e escrita em relação ao gênero
trabalhado. E o mais impressionante era que os itens dos exercícios do livro didático
utilizado, que pediam a produção textual, que possivelmente possibilitaria um maior
conhecimento das fragilidades lingüísticas e a subjetividade de cada aluno por meio da
escrita, eram ignorados. Em suma, era o exercício pelo exercício.
Outro aspecto que merece destaque refer-se aos textos adotados pela professora,
no que tange às suas características e usos sociais. Estes pouco favoreciam a reflexão
crítica e o despertar do pensamento elaborado, de modo que os alunos viessem a ter
plena participação numa sociedade letrada, em que o ensino tem como objeto de estudo
a diversidade dos gêneros textuais.
É preciso, portanto, tomarmos consciência de que o trabalho de leitura utilizando
variados gêneros textuais é de fundamental importância para os alunos, pois aproxima-
os dos vários enunciados produzidos pela linguagem humana nos mais diversos
contextos da vida em sociedade. Dessa forma, texto e contexto se desenrolam com a
nossa vida e por isso devem ser objetos de ensino, conforme nos orienta os PCNs de
Língua Portuguesa:

Os textos se organizam como pertencente a este ou aquele gênero.


Deste modo, a noção de gênero, constitutiva do texto precisa ser
tomada como objeto de ensino... É necessário contemplar, nas
atividades de ensino, a diversidade de textos e gêneros já que são
organizados de forma diferente, além de sua relevância social
(BRASIL 1998. P.23).

Quanto aos Portadores de textos8 para leitura, na maioria das vezes, era utilizado
o livro didático de Língua portuguesa, conforme defende a professora:

A gente procura fazer uso máximo do livro.... As técnicas e


metodologias, a gente usa muito o livro de português. Porque é
uma correria, né?

Os portadores de textos são excelentes oportunidades de se trabalhar a realidade


do aluno, no entanto, eles variam em relação à realidade dos sujeitos envolvidos nas

8 Para Soares (2002), todo objeto que apresente algo que possa ser lido ou qualquer objeto que leve um
texto impresso ou manuscrito seja um texto gr|fico – palavras, um texto iconogr|fico – uma imagem)
são portadores de texto.
35
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

situações de aprendizagem. A nossa realidade é rica de portadores de textos, mas talvez


a falta de tempo para o planejamento das aulas leve os professores a se limitarem a um
único suporte, neste caso, o livro didático.
Na perspectiva de melhorar o ensino da leitura, variando os suportes textuais,
podemos citar alguns: rótulos de produtos alimentícios e de higiene pessoal; manuais
dos eletrodomésticos; bula de Remédios; tv (anúncios, telejornais, telenovelas, filmes,
documentários, programas de entrevistas, etc); rádios, conta de luz, água e telefone;
revistas, jornais, quadro de arte, dentre outros, que podem ser utilizados no processo de
leitura.
A utilização desses portadores de textos em sala de aula permite fazer com que os
alunos não só percebam os diferentes gêneros discursivos, mas façam uma leitura do seu
cotidiano, pois todos nós precisamos saber ler e compreender uma mensagem que
cotidianamente é dirigida a nós, como por exemplo, as informações sobre os nutrientes
de um alimento, contidas em uma embalagem.
A prática da leitura nos diferentes portadores de textos precisa ser realizada de
forma a desenvolver mais que a leitura das palavras, deve provocar a releitura da
realidade a partir de uma abordagem crítica dos textos. É fundamental que os sujeitos
interajam com estes portadores textuais no seu cotidiano ou no ambiente escolar.
Quanto maior a vivência com o material escrito, tanto maior a facilidade em
compreender os usos da linguagem escrita. Se estes materiais de leitura estão
associados à realidade individual e social deste sujeito tanto melhor. Se ele faz uso social
freqüente destes portadores de textos, mais eficiente e significativo será o seu processo
de letramento.
No que tange à relação dos assuntos discutidos nos textos e a realidade
sociohistórica dos alunos não são nada comuns, ainda pode-se observar uma enorme
distância entre o que se ensina na escola, as informações provenientes do livro didático
e a realidade pessoal, familiar e comunitária dos alunos.
De acordo com nossas observações, dois entre cinco alunos da escola em questão
tem aparelho celular e utilizam o mesmo para ouvir música (melody e funk), seja fora da
sala de aula ou, até mesmo, dentro dela. As conversas paralelas à aula diziam respeito ao
namoro, à sexualidade, ao gosto por vários estilos de música, dentre outros aspectos que
os textos dos livros didáticos não abordavam. Por essa razão, talvez, se explique a falta
de atenção e desconcentração dos alunos, as conversas paralelas, as entradas e saídas
durante a aula etc.
Como fazer, então, o aluno gostar ou se interessar por algo que não tem sentido
claro pra ele? A escola precisa conhecer melhor a cultura dos alunos para que o ensino
seja significativo, conforme preconiza os PCNs de Língua Portuguesa de 5ª a 8ª séries:

Pensar sobre o ensino de língua portuguesa no terceiro e no


quarto ciclo requer a compreensão da adolescência como o
período da vida explicitamente marcado por transformações que
ocorrem em várias dimensões: sociocultural, afetivo-emocional,
cognitiva e corporal. [...]. Organizar o aprendizado de língua
portuguesa nesses ciclos requer que se reconheçam e se
considerem as características próprias do aluno adolescente, a
especificidade do espaço escolar, no que se refere à possibilidade
de constituição de sentidos e referencias nele colocada, e a
36
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

natureza e peculiaridades da linguagem e de suas práticas


(BRASIL, 1998, p. 45).

A compreensão da realidade e, por conseguinte a consciência crítica sobre a


mesma, viria, neste sentido, com um trabalho organizado e intencional da escola, que
partisse da realidade do educando e a ela voltasse, permitindo ao mesmo problematizá-
la, conhecê-la, por meio das variadas formas de leitura, possibilitando a todos o que
tanto almejamos: a leitura dos códigos lingüísticos e a leitura de mundo ao mesmo
tempo. Tal fato nos possibilitaria sonhar com uma sociedade mais e melhor letrada,
capaz de exercer plenamente a sua cidadania.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo nos possibilitou conhecer a realidade do letramento,
especificamente do aspecto leitura, no contexto das aulas de Língua Portuguesa, no
Ensino Fundamental. Tal estudo nos mostrou que um dos grandes desafios do processo
de letramento, no campo educacional, é trabalhá-lo de forma significativa e
contextualizada, despertando nos alunos o desejo por novas descobertas.
Além disso, a realidade estudada nos permite afirmar que ainda há educadores
que vêem o ensino de qualidade como utópico e utilizam as dificuldades encontradas em
sala de aula e a falta de tempo para não inovar.
O letramento em uma perspectiva sociohistórica não é trabalhado, pois a maioria
dos professores se prende a mera reprodução dos conceitos gramaticais que serão
exigidos nos dias de prova, nos concursos, sem que esses conceitos possam
proporcionar maior interação entre os alunos e dos alunos com o conhecimento, por
meio da provocação, do debate e da produção individual.
O trabalho com leitura de forma planejada é quase que inexistente. A mesma
continua sendo trabalhada de forma mecanicista, descontextualizada, sem relacioná-la
com as vivências socioculturais dos leitores. Tais aspectos precisam ser melhor
explorados nas aulas de Língua Portuguesa e em outras disciplinas também. Tal fato
implica em melhores condições de trabalho docente, maior acompanhamento do
trabalho do professor pelo serviço de coordenação pedagógica da escola, bem como
maior investimento em formação continuada para todos os docentes.
Os gêneros textuais mais utilizados foram as tiras, história em quadrinho, lista,
poemas, dentre outros. Estes pequenos textos, no entanto, eram utilizados apenas como
recursos para se verificar o aprendizado dos alunos em relação a conceitos como
substantivo, adjetivo, sinônimo, ligados à disciplina Língua Portuguesa.
O principal portador ou suporte de texto utilizado pela professora era o livro
didático que, por sua vez, estava rico em gêneros textuais como: tiras, poemas, receitas,
listas de compra etc. Porém, poucos explorados quanto às suas características, autores,
linguagens etc.
Os conteúdos ou assuntos apresentados nos textos lidos abordavam temas como
o preconceito, culinária, fantasias ou desejos de personagens, dentre outros. Estes
assuntos não eram discutidos com o propósito de formar opinião sobre o assunto,
relacioná-lo com fatos ou aspectos da vida dos alunos.
Diante de tais constatações, entendemos que a escola deve ser vista como
ambiente de valorização e produção do letramento. Deve ser espaço propício para
37
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

trabalhar a competência comunicativa e as diferentes formas de fala e produção textual,


valorizando a cultura do aluno, aquilo que ele traz, tem e representa no meio social em
que está inserido. A escola deve ser o ambiente primordial do letramento e o professor
seu principal agente.
Vale ressaltar que aprendizagem para o desenvolvimento intelectual e letrado
está intrinsecamente ligada à intervenção do individuo na realidade em que está
inserido, sendo este capaz de criar uma representação pessoal sobre um objeto do seu
cotidiano ou conteúdo que quer aprender, construindo um significado próprio e pessoal
a partir dos conhecimentos que possui.
Nessa perspectiva, é fundamental, então, que nas aulas de Língua Portuguesa e
nas demais disciplinas do currículo o questionamento sobre a importância ou relevância
do que se aprende, do como se aprende e por que se aprende seja valorizado. O
professor de Língua Portuguesa e os demais devem primordialmente ajudar o aluno a
adquirir as habilidades de ler, compreender e usar diferentes gêneros textuais como:
editoriais, reportagens, poemas e de localizar e usar informações extraídas de mapas,
tabelas, quadros de horários etc, para que os mesmos pudessem desenvolver a
competência de ler e escrever, com base em diferentes tipos de discursos e suas
linguagens, compreendendo-os, interpretando-os e extraindo deles informações
essenciais para suas vidas.
O ambiente escolar, por tanto, deve ser o principal local de formação do cidadão,
pois deve permitir que os alunos estudem e utilizem a língua e as diferentes linguagens,
dentro do contexto das práticas sociais da qual fazem parte. Esta ação permite que a
escola, por meio de sua ação formadora geste uma sociedade mais justa, humana e
cidadã.

5 REFERÊNCIAS

BOGDAN, R. BIKLEN. S. Investigação qualitativa em educação. Porto: Porto Editora,


1994.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e


quarto ciclos do Ensino Fundamental: língua portuguesa. Brasília, 1998.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. Trabalho apresentado na abertura no


Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, nov. 1981. Disponível em:
WWW.

KLEIMAN, Ângela B. (org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre


a prática social da escrita. Campina, SP: Mercado de Letras, 2008.

LEAL, Telma Ferraz et al. Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica. In:
BRASIL, Ministério da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações para
a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: FNDE, Estação Gráfica, 2006.

LUDKE, Menga ; ANDRÉ, Marli R. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas.


São Paulo: EPU, 1986.

38
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Atividade de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

SOARES, Magda. Letramento em três gêneros. 2. Ed. Belo Horizonte: Autentica, 2002.

TFOUNI, Leda Verdiani. Letramento e Alfabetização. São Paulo: Cortez, 2004.

39
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS

APRENDENDO UM SISTEMA DE ESCRITA DE SEGUNDA LÍNGUA

Stelamary Domingos9
Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO: Este artigo apresenta o resultado de pesquisa com estudantes iniciantes no


sistema de escrita de francês como segunda língua (francês-SEL2) que tinham como
sistema de escrita de primeira língua o português do Brasil. Foram postas em paralelo,
portanto, duas escritas com o alfabeto latino, mas de ortografias diferentes. Analisados
os erros em ditados, encontraram-se evidências que apontaram três principais focos de
obstáculos para os alunos: o nível de opacidade fonológica da ortografia do francês, um
quadro de vogais maior que o do português, mas representado pelas mesmas cinco
vogais latinas, e a ortografia do primeiro sistema de escrita influenciando a
aprendizagem do segundo.
Palavras-chaves: sistema de escrita de segunda língua, francês, português,
transparência fonológica.

RESUMÉ: Cet article présente le résultat d une recherche faite auprès d étudiants qui
débutent dans l'écriture du français langue seconde, et qui ont comme premier système
d'écriture le portugais brésilien. On a mis en parallèle deux écritures qui utilisent
l'alphabet latin tout en ayant une différente orthographe. En analysant des fautes de
dictées, on a trouvé des évidences qui indiquent les trois principales sources d'obstacles
pour les élèves: le niveau d'opacité phonologique de l'orthographe du français; un
tableau de voyelles plus grand que celui du portugais, quoique représenté par les mêmes
cinq voyelles latines; et l'orthographe du premier système d'écriture influençant
l'apprentissage du second.
Les mots clés: systèmes d'écriture en langue seconde, français, portugais, transparence
phonologique.

1. INTRODUÇÃO
A aprendizagem formal de uma segunda língua (L2)10 não é tarefa fácil, posto
que se tem de lidar não apenas com uma gramática diferente, mas também com um
sistema de escrita diferente daquele da língua materna, a primeira língua (L1). Em
relação à oralidade, uma segunda língua pode apresentar fonemas que não existem na
língua materna, causa inicial de dificuldades de compreensão, assim como dificuldades
em sua correta produção. Quanto ao sistema de escrita, é certo encontrar na L2

9E-mail:stelamary@outlook.com
Este trabalho foi realizado com bolsa de Iniciação Científica UFRJ-CNPq. Agradeço à minha Orientadora,
Prof. Maria Carlota Rosa, o apoio e dedicação durante a vigência da bolsa. Agradeço também suas
sugestões para a versão final deste artigo.
10 Emprega-se aqui segunda língua/L2 como língua n~o materna .

40
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

correspondências entre fonemas e grafemas diferentes daquelas aprendidas na


ortografia da primeira língua, que teria sido aprendida primeiro.
Todo sistema de escrita tem suas particularidades. Semelhanças e diferenças
entre o já conhecido e o que se está aprendendo estabelecem as dificuldades para o
iniciante. Quanto mais semelhança houver, mais fácil e rápida será a aprendizagem, mas
quais diferenças podemos encontrar? Para responder a essa questão, analisaram-se
erros de alunos falantes nativos de português do Brasil e há muito alfabetizados na sua
língua materna, mas iniciantes no estudo de francês. O objetivo era detectar dificuldades
no início do aprendizado do sistema de escrita de segunda língua. Em paralelo, dois
sistemas alfabéticos com escrita em caracteres latinos e ortografias diferentes: o
português e o francês.

2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Um sistema de escrita é um conjunto de sinais — visuais ou táteis — usados
para representar unidades de uma língua de um modo sistem|tico Cook & Bassetti,
2005: 2-3, citando Florian Coulmas). Esses sinais são os grafemas, as menores unidades
de um sistema de escrita Cook & Bassetti, : . Cook & Bassetti : apontam
ainda um segundo significado para sistema de escrita, que se confunde com ortografia.
No primeiro sentido, os sistemas de escrita podem distinguir-se: a) quanto ao tipo de
representação estabelecida no grafema; b) quanto às unidades linguísticas
representadas; c) quanto à escrita empregada; e d) quanto à ortografia. É o que se verá
a seguir.

2.1. No tocante aos tipos, a classificação dos sistemas diz respeito à referência do
grafema: o significado ou o som. Um sistema de escrita pode relacionar o grafema a um
significado; são os sistemas logográficos. Cook & Bassetti (2005:5) afirmam que um
sistema desses pode ser compreendido mesmo por pessoas que não conhecem a
fonologia da língua. Pode contar como evidência para essa afirmação a surpresa
resultante da tentativa de introdução de uma escrita alfabética na China em meados do
século XX, noticiada em jornais da época (Anônimo,1976a; Anônimo, 1976b;
Bloodworth, 1979): a diversidade linguística da China tornou-se evidente ao se tentar
implantar um sistema fonográfico, a ponto de afetar a denominação das figuras políticas
e da toponímia pelas agências de notícias. No entanto, Cook & Bassetti ressaltam que
mesmo esse tipo de sistema tem grafemas com contraparte fonológica, caso dos radicais
fonéticos da escrita chinesa (Cook & Bassetti, 2005:5).
Já nos sistemas de escrita baseados em som, ou fonográficos, o grafema se
conecta aos sons da fala Cook & Bassetti, : , e nesses sistemas é possível
imaginar a pronúncia de uma palavra escrita sem saber seu significado. O sistema de
escrita francês e o português são exemplos de sistemas baseados em som.

2.2. No tocante às unidades linguísticas representadas, elas podem ser o morfema, a


sílaba, todos os fonemas ou apenas os consonantais. O morfema é a unidade linguística
representada nos sistemas de escrita baseados em significado, enquanto a sílaba e o
fonema são unidades linguísticas representadas nos sistemas baseados em som. Os
sistemas fonográficos se dividem entre os consonantais, que representam consoantes, e
os alfabéticos, cujos grafemas representam todos os fonemas, tanto as consoantes como
41
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

as vogais. Logo, os hanzi da China e os kanji do Japão são morfêmicos; o kana japonês e o
tibetano são sistemas silábicos; o árabe e o hebraico têm sistemas de escrita
fonográficos consonantais; o português e o francês, fonográficos alfabéticos.

2.3. Escrita é a forma gr|fica das unidades de um sistema de escrita Cook &
Bassetti, 2005:3, citando Florian Coulmas). O árabe e o hebraico, apesar de serem
sistemas consonantais, têm escritas diferentes; assim também o grego e o português,
ambos alfabéticos.

2.4. A ortografia é um conjunto de regras estabelecido para que uma escrita possa
ser usada em uma determinada língua Cook &Bassetti, : , o que envolve n~o
apenas a referência dos grafemas, como ainda as regras de hifenização, de pontuação, de
acentuação.
Num sistema fonográfico, caso do português e do francês, da ortografia fazem
também parte as regras de correspondência. Uma regra de correspondência grafema-
fonema no português estabelece que <x> pode ser lido como // em <caixa>,/ks/ em
<táxi>, /z/ em <exausto>, como /s/ ou /ks/ em <sintaxe>. Uma regra de correspondência
fonema-grafema no português estabelece que /z/ é representado de vários modos: <z>
em <azul>, <s> em <mesa>, por <x> em <exame>.
As regras de correspondência determinam se uma ortografia é mais ou menos
transparente fonologicamente. Uma ortografia é transparente quando as relações
estabelecidas pelas regras de correspondência grafema-fonema e pelas regras de
correspondência fonema-grafema apresentam, diferentemente dos exemplos acima, uma
relação um-para-um. O exemplo típico é o italiano (Cook & Bassetti, 2005:7). Um
exemplo de sistema de escrita pouco transparente, ou opaco, é o inglês, pois nele as
correspondências entre grafema e fonema são muito irregulares. É atribuída ao famoso
escritor George Bernard Shaw (1856-1950) a crítica às irregularidades da ortografia do
inglês que procurava demonstrar ser possível ler <ghoti> e <fish> do mesmo modo:
<gh> como /f/ aparece em <tough>; <o> como /i/, em <women>; e <ti> como a fricativa
pós-alveolar em <nation>.
Este trabalho focaliza os passos iniciais no domínio da ortografia da língua
francesa como segunda língua por estudantes nativos de língua portuguesa, cujo sistema
de escrita foi o primeiro aprendido. São dois sistemas de escrita fonográficos. São
escritas alfabéticas, porém têm ortografias diferentes. Essas diferenças condicionam
certas dificuldades como se verá adiante. Doravante abreviaremos as denominações
sistema de escrita da primeira língua e sistema de escrita de segunda língua como,
respectivamente, SEL1 e SEL2.

3. METODOLOGIA E DADOS
No corpus do presente trabalho encontram-se ditados de dois alunos iniciantes
no aprendizado de francês como segunda língua (L2) e segundo sistema de escrita
(SEL2). A língua materna (L1) e o primeiro sistema de escrita (SEL1) de ambos é o
português brasileiro. Quando o corpus foi coletado, o estudante nomeado como "Aluno
A" tinha doze anos de idade e cursava o sétimo ano do Colégio Pedro II, campus São
Cristóvão. Já o estudante nomeado "Aluno B" tinha 21 anos de idade e cursava Língua
Francesa II no curso de Letras (Português-Francês) da Universidade Federal do Rio de
42
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Janeiro. Tanto o Aluno A como o Aluno B estudavam francês havia cerca de um ano.
Em ambas as instituições ensinava-se a língua francesa com base na pronúncia de Paris.
Não houve controle acerca da audição dos sujeitos, nem das condições de ruído no
ambiente em que as tarefas foram executadas.
O material foi cedido pelos próprios estudantes, que assinaram um termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE) lhes assegurando anonimato e autorizando a
divulgação dos dados e o uso na pesquisa. No projeto inicial previa-se um número de
sujeitos maior, mas a apresentação do TCLE parece ter intimidado a grande maioria dos
potenciais sujeitos.
O corpus é constituído de ditados em classe. O vocabulário dos ditados já havia
sido estudado nas aulas anteriores à da atividade. Nos quatro ditados, as palavras foram
lentamente e separadamente ditas — exceto quando houve ligação, encadeamento ou
elisão, fenômenos que afetam as fronteiras de palavras (Reis, 2000: 42). O asterisco (*)
indica a ocorrência de um desses fenômenos na fronteira das duas palavras anteriores a
ele. Os erros dos alunos estão numerados e analisados.
O ditado 1 foi feito pelo "Aluno A". A tarefa foi corrigida pela docente e entregue
aos alunos. Os ditados 2, 3 e 4 foram realizados pelo "Aluno B". Para a realização do
ditado 2, a professora ditou um texto da página 117 do livro 1 da coleção Tout va bien! 11,
material didático usado no curso. Após o término da tarefa, os alunos compararam o
material produzido com o texto original e fizeram as correções necessárias. Os ditados 3
e 4, também foram feitos em sala de aula, sobre textos que apenas a professora tinha.
Após o término destes ditados, as atividades foram corrigidas pelos próprios alunos com
seu auxilio.

4. ANÁLISE

4.1. DITADO 1 - ALUNO A

TEXTO ORIGINAL TAREFA REALIZADA PELO ALUNO A

Il a des pouvoir extraordinaires Il a de(1) pouvoir extraordinaire(2)


Nous allons* au* supermarché Nous alons(3) au supermarché
Je suis brésilienne Je suis brèsillienne(4)
Vous êtes* étranger Vous êtes estrangère(5)
Tu peux nager Tu peux nager
Ils veulent étudier Il(6) veulent ètudier(7)
Elle regarde la télévision Elle regarde la tèlevision(8)
C'est ma mère C'est ma mère
Je vais au cinéma Je veux(9) au cinèma
Il a dix ans* Il a dix ans

11AUGÉ, Hélène et alii. Tout va bien! Paris: Clé International.


43
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

(1), (2), (6) - O grafema <s> em posição final não é representado fonologicamente, e o
aluno não o escreveu. Por outro lado, em (5) há a escrita de um <s> que não existe na
palavra, evidenciando que o aluno sabe que em alguns contextos o <s> não é falado.
(3), (4) - Tanto <ll> como <l> podem representar /l/ na ortografia do francês; por seu
turno o português-SEL1 não tem <ll>.
(4), (5), (7), (8) - O aluno mostra não ter domínio da acentuação.
(9) - Problema na identificação das vogais médias.

4.2. DITADO 2 - ALUNO B

TEXTO ORIGINAL

Le croque-monsieur

Prenez deux tranches de pain de mie, mettez à l'intérieur une tranche de jambon blanc et
de chaque côté, du gruyère râpé. Trempez le pain de mie dans de l'oeuf battu avec une
goutte de lait. Faites dorer à feu doux des deux côtés. Vous avez* un* succulent croque-
monsieur à manger bien chaud! Si vous faites frire deux oeufs* sur le tout , vous aurez* un*
croque-madame, également excellent!

TAREFA REALIZADA PELO ALUNO B.

Le croque messieurs (1)


Prenez de(2) tranche de pain demi(3), mettez à l'antérieur(4), une tranche de jambon
blanc et de chaque côtê(5) du gruiller(6) râpé.
Trompez(7) le pain demi(8) dans le(9) l'oeuf battu, avec une gute(10) de lait, faites
dorrer(11) à feu doux le(12) deux côtés, vous avez un succulent croque monssieur à
manger bienchôt(13) si vous faites frire deux oeufs sur le tout, vous aurez un croque
madame et(14) également excellent.

(1), (2), (4), (7) - Problemas com a correspondência fonema-grafema para vogais médias
inexistentes em português.
(3),(6)- No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra.
(6) -<gruiller> por <gruyère>: o aluno já sabe existir uma correspondência grafema-
fonema para <ll> que não lhe atribui pronúncia.
(3), (8), (13) - Problemas com a identificação de palavras ortográficas no interior de um
grupo rítmico.
(5), (6) - Novamente a inconsistência no emprego de diacríticos. Em (5), o acento
circunflexo pode marcar que a vogal é mais aberta ou mais fechada. O uso desse acento
sobre o grafema <o> indica que ele corresponde à vogal média-alta posterior
arredondada /o/, como na diferença entre a palavra <cote> correspondente a /k฀t/, e
<côte>, correspondente a /kot/. Provavelmente o aluno tinha conhecimento dessa regra,
mas não sabia que ela não é igual quando o acento circunflexo está sobre o grafema <e>.
Nesse caso, tal acento marca que a vogal é pronunciada com maior abertura, o que se
44
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

evidencia na correspondência de <fête> com /ft/. Além disso, o aluno também pode ter
confundido a utilização do acento circunflexo na escrita da língua francesa com sua
utilização na escrita da língua portuguesa, já que no português tal acento gráfico marca
uma vogal fechada, como em <bebê>.
(6) - <gruiller>por <gruyère>. A semivogal /j/foi grafada não como <y>, mas como<i>,
como em português.
(9) - Sugere-se que o aluno não ouviu corretamente a consoante.
(10) - O aluno faz a correspondência fonema-grafema no francês-SEL2 utilizando a
correspondência do português-SEL1./gut/corresponde, no sistema de escrita francês, a
<goutte>, não a <gutte>. Na língua portuguesa, /u/ corresponde ao grafema <u>, porém
na ortografia francesa esse fonema corresponde ao grafema <ou>.
(11) - Essa é outra situação na qual, diante de um fonema que não existe em sua língua
materna, o aluno faz a correspondência fonema-grafema tomando por base seu SEL1.
(12) - Possivelmente o aluno não escutou corretamente o que foi falado.
(13) - O fonema /o/ pode ter mais de um correspondente grafêmico em francês, como os
que estão em questão, <ô> e <au>.
(14) É possível que o aluno não tenha ouvido corretamente, pois não há o /e/ de <et>,
apenas o /e/ de <également>.

4.3. DITADO 3 - ALUNO B

TEXTO ORIGINAL

Le curriculum vitae doit avoir comme but d'obtenir un rendez-vous pour un entretien*. Le
CV présente votre vie scolaire et professionnelle. Il doit être une bonne image de ce que
vous êtes*. Toujours accompagné de votre lettre de candidature, écrite à la main, c'est
souvent sa lecture que se décide à rendez-vous.

TAREFA REALIZADA PELO ALUNO B

Le curriculum vitae doit avoir comme but d'obtenir un rendez-vous pour un entretien.
Le CV présente votre vie scolaire et professionaire(1). Il doit être une bonne image de ce
que vous êtes. Toujour(2) accompagnée(3) de votre lettre de candidature, écrit(4) à* la
main , c'est souvent à ça(5) lecture que se dècide(6) à rendez-vous.

(1)- Sugere-se que o aluno não ouviu corretamente a última consoante pronunciada,
confundindo duas consoantes líquidas, /r/ e /l/.
(2) - O grafema <s> em posição final não é representado fonologicamente, e o aluno não
o escreveu.
(3)- Há a escrita de um <e> que não existe na forma masculina, evidenciando que o
aluno sabe que em alguns contextos <e> não é falado.
(4) - No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra. Aqui, o
<e> final não pronunciado da palavra <écrite> e a ressilabificação resultante do
encadeamento induziram o aluno a escrever incorretamente.
45
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

(5) É provável que o aluno não tenha ouvido corretamente, pois não há o /a/ de <à>,
apenas /sa/.
(6) O aluno mostra não ter domínio da acentuação.

4.4. DITADO 4 - ALUNO B

TEXTO ORIGINAL

Écrivez sur une feuille blanche, format 21 par 29,7. Envoyer toujours l'original. La lettre
doit impérativement être écrite à la main pour permettre éventuellement une analyse
graphologique ( étude du caractère et de la personnalité d'un individu à travers de son
écriture). Soignez votre écriture, mais restez naturel.

TAREFA REALIZADA PELO ALUNO B

Écrivez sur une feille (1) blanche, format 21 par 29,7. Envoyer toujours l'originalle (2).
La lettre doit impérativemant(3) être écrit(4) à la main pour permetre(5)
éventuellement une analise(6) graphologique ( étude du caractère et de la personalité
(7) d'un individue (8) à travers de son écriture). Sonhaiez(9) votre écriture, mais
rester(10) naturalle(11).

(1) - Problema na identificação das vogais médias.


(2) e (11) - Quando apalavra ditada terminava com a consoante alveolar /l/, o aluno
grafou <lle>. O fonema /l/ em posição final pode ter como correspondente <l> ou <lle>
dependendo do gênero de que se trata. Por exemplo, <selle> e <sel> são homônimos,
assim como <salle> e <sal>, <mal> e <malle>,etc. Sabendo que a consoante lateral
alveolar pode corresponder na escrita a duas formas diferentes, o aluno encontrou uma
dificuldade pela qual não passa na escrita de sua língua materna.
(3) - Problemas com a correspondência fonema-grafema em SEL2 para vogais
inexistentes em português
(4) - No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra. Aqui, o
<e> final não pronunciado da palavra <écrite> e a ressilabificação resultante do
encadeamento induziram o aluno a erro.
(5) - Tanto <tt> como <t> remetem a /t/ em francês; por seu turno o SEL1 não tem<tt>.
(6) - Para /i/, um dos correspondentes pode ser <y>, como no caso de /analiz/. No
entanto, no SEL1 não há essa correspondência: para /i/ usa-se<i>.
(7) - Mais um caso em que foi escrito um grafema simples, <n> num contexto em que ele
deveria ser duplo, <nn>.
(8) - Há a escrita de um <e> que não existe na forma masculina, evidenciando que o
aluno sabe que em alguns contextos <e> não é falado.
(9) - A correspondência da nasal palatal com <gn> não ocorre no SEL1, apenas no SEL2.
(10) - A palavra ditada pode corresponder a <rester> e a <restez>. O conhecimento
gramatical indicará a forma correta.

46
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

5. DISCUSSÃO
No ditado do aluno A, há dois focos principais para os erros cometidos no
francês-SEL2: ainda não há o domínio das regras de acentuação nem do uso de grafemas
que não têm representação fonológica. O aluno B também teve essas duas dificuldades,
mas foram identificadas outras áreas de erros. São elas: a representação de fonemas
existentes no francês-SEL2, mas não no português- SEL1; a possibilidade de mais de uma
grafia para o mesmo fonema no francês-SEL2; a percepção de palavras ortográficas num
grupo rítmico; e transferência de regras de correspondência do português-SEL1 para o
francês-SEL2.
As dificuldades com a acentuação decorrem das funções diferentes em ambos
os sistemas. No sistema de escrita do francês o acento marca a qualidade da vogal; no
português, marca a tonicidade, o que explica só haver um acento por palavra na escrita
portuguesa, enquanto, na francesa, se pode utilizar mais de um acento. O que não
significa que todos os acentos geraram erros: o aluno A acertou a acentuação, por
exemplo, em <supermarché> e <mère>, o que pode sugerir que, não dominando as
regras de acentuação do francês, o estudante acentuou as palavras alternadamente na
esperança de em algumas acertar.
No sistema de escrita do francês, alguns grafemas não são falados, o que exige
do aluno o conhecimento prévio da escrita das palavras. O conhecimento da existência
de correspondências de grafemas com fonema algum gerou duas situações de erro: o
aluno por vezes escreveu grafemas que não existiam e, outras vezes, deixou de escrever
os não pronunciados.
A língua francesa tem um quadro de vogais maior que o do português. Assim,
além da série anterior não-arredondada, representada em <il>, <blé>, <merci>, <plat> e
da série posterior arredondada, representada em <genou>, <mot>, <mort>, também
presentes em português, há ainda uma série de anteriores arredondadas,
representadas em <rue>, <peu>, <peur>, uma posterior não-arredondada, como aquela
representada em <bas>, uma central média, como em <le>, além de quatro nasais,
representadas em <matin>, <sans>, <bon> e <lundi>. Além das semivogais /j/ (como em
<pied>) e /w/ (como em <oui>), também encontradas em português, tem ainda uma
labial-palatal, como em <lui>. Para a representação desse quadro, a ortografia do francês
emprega as cinco vogais do alfabeto latino com ou sem diacríticos e dígrafos vocálicos.
Nos erros, ambos os alunos representaram fonemas inexistentes em português com o
grafema que na ortografia do português era o correspondente mais próximo, em termos
de abertura, daquele inexistente.
Uma outra fonte de dificuldades está no fato de a ortografia francesa ser menos
transparente fonologicamente que a do português, sendo mais frequente a ocorrência de
mais de uma correspondência gráfica para um fonema.
A percepção de fronteiras de palavras num grupo rítmico surgiu no ditado 2.
Por último, há cinco casos nos quais o estudante ouve uma palavra francesa e a
escreve utilizando as regras de correspondência do sistema de escrita de sua língua
materna, ou seja, identifica um fonema que também existe em sua língua e o faz
corresponder ao grafema que usaria em seu primeiro sistema de escrita.

47
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

6. CONCLUSÃO
A ortografia do primeiro sistema de escrita tem influência quando do início da
aprendizagem de um segundo sistema, ainda que o estudante não se aperceba, e isso é
evidenciado nos casos em que os alunos A e B erraram a acentuação e utilizaram regras
de correspondência da língua materna em suas tarefas.
Uma vez que as tarefas analisadas foram ditados, i.e., tarefas em que os alunos
tinham de decidir como grafar fonemas, o nível de transparência fonológica foi foco de
dificuldade para os dois alunos. Como notam Cook & Bassetti (2005: 9), o francês é mais
transparente fonologicamente em relação à leitura do que em relação à escrita, uma vez
que as regras de correspondência fonema-grafema são mais irregulares que as regras de
correspondência grafema-fonema. A dificuldade que isso pode trazer está evidenciada
nos casos em que os alunos desconheciam os contextos em que as letras não
correspondem a som algum, ou quando erraram a opção pelo grafema que poderia
correspondera um fonema. Além disso, o fato de o francês ter fonemas que o português
não tem condiciona um maior número de possibilidades de correspondências fonema-
grafema para as mesmas cinco vogais do alfabeto latino e traz ao aluno o desafio de lidar
com sons e correspondências antes desconhecidos.

8. REFERÊNCIAS

ANÔNIMO.1976a. Chinês simplificado/1. Jornal do Brasil, 29 de agosto de 1976.

ANÔNIMO. 1976b. Chinês simplificado/2. Jornal do Brasil, 29 de agosto de 1976.

BASSETTI,Benedetta. 2005. Effects of writing systems on second language awareness:


Word awareness in English learners of Chinese as a Foreign Language. In: COOK, Vivian J.
& BASSETTI, Benedetta (eds). Second Language Writing Systems. Clevedon, UK:
Multilingual Matters. pp. 335-356. Disponível em
http://eprints.bbk.ac.uk/archive/00000530 Acesso em 30 de agosto de 2013.

BLOODWORTH, Dennis. 1979. Pequim muda a grafia e divide ocidentais. Jornal do Brasil, 24
de fevereiro de 1979.

COOK, Vivian J .& BASSETTI, Benedetta. 2005. An introduction to researching second


language writing systems. In: COOK, Vivian J. & BASSETTI, Benedetta (eds). Second
Language Writing Systems. Clevedon, UK: Multilingual Matters. pp. 1-67.

REIS, César, 2000. Notasparaumapronúncia do francês. In Caligrama: Revista de Estudos


Românico, 5. Versão eletrônica:
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/caligrama/article/view/291 Acesso
em 30 de agosto de 2013.

SILVA, Thaïs Cristófaro et alii. 2008. Fonética & Fonologia. http://www.fonologia.org/


Acesso em 30 de agosto de 2013.

48
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

ESTUDOS LITERÁRIOS

O TEMPO MÍTICO EM Ó SERDESPANTO

Leomir Silva de Carvalho


Universidade Federal do Pará

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar o tempo mítico, sob a perspectiva de
Benedito Nunes (1929- , presente no fragmento intitulado A história da obra Ó
Serdespanto (2006) de Vicente Franz Cecim. Utilizo a teorização do tempo apontada por
Nunes em Tempo na Narrativa (1995) para realizar a análise. Como percurso,
primeiramente, procedo ao estudo das implicações conceituais atribuídas ao tempo
mítico em Nunes; em seguida minha perspectiva recai sobre as particularidades formais
da obra ceciniana e os matizes de significado que dela decorrem, bem como analiso duas
imagens, o homem e a m~e, e seu reflexo simbólico na narrativa mítica A história . Por
fim, associo a concepção de tempo mítico de Nunes ao fragmento de Ó Serdespanto
quanto à forma e às imagens suscitadas neste, para compreender como o conceito do
primeiro ilumina a obra do poeta paraense.
Palavras-chave: Vicente Franz Cecim. Tempo Mítico. Ó Serdespanto.

RESUMEN: Este trabajo tiene como objetivo analizar el tiempo mítico, bajo la
perspectiva de Benedito Nunes (1929- , presente en el fragmento titulado A
história de la obra Ó Serdespanto (2006) de Vicente Franz Cecim. Utilizo la teorización
del tiempo apuntada por Nunes en Tempo na Narrativa (1995) para realizar el análisis.
Como recorrido, primeramente, procedo el estudio de las implicaciones conceptuales
atribuidas al tiempo mítico por Nunes; en seguida mi perspectiva recae sobre las
particularidades formales de la obra ceciniana y los matices de significado que de ella
decurren, también analizo dos imágenes, el hombre y la madre, y su reflejo simbólico en
la narrativa mítica A história . Por fin, asocio la concepción de tiempo mítico de Nunes
al fragmento de Ó Serdespanto en relación a la forma y a las imágenes suscitadas en este,
buscando comprender como el concepto del primero ilumina la obra del poeta paraense.
Palabras-clave: Vicente Franz Cecim. Tempo Mítico. Ó Serdespanto.

INTRODUÇÃO
Vicente Franz Cecim nasceu em Belém. Sua obra iniciada com os livros reunidos
em Viagem a Andara, o livro invisível (1988) não pretende se concluir. Tal viagem rumo
ao lugar de mistério chamado Andara começa em 1979, com o que Cecim prefere
nomear de o primeiro livro visível, A asa e a Serpente, que em sequência com os demais
permitem somente ao observador vislumbrar o verdadeiro livro, este sim, que não se
pode ler em palavras, escrito no silêncio, à espera de ser desvelado. Em 1983, Cecim
lança no Congresso da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência que
acontecia em Belém, Flagrados em delito contra a noite/ Manifesto Curau convocando os
escritores da região a recriar a História da Amazônia pelo imaginário. Neste Manifesto
49
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

percebe-se os posicionamentos estéticos e políticos de seu autor que pretendia alertar a


consciência do amazônida sobre a necessidade de se constituir uma nova História, que
agregasse homem e região pelo elemento criativo do imaginário. As palavras finais do
Manifesto trazem a lume as disposições do autor: Nossa (istória só ter| realidade
quando o nosso )magin|rio a refizer, a nosso favor .
Com a reunião de seus sete primeiros livros na publicação supracitada, Viagem a
Andara alcança reconhecimento nacional ao receber o Grande Prêmio de Crítica da
Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA), em 1988, já tendo obtido o prestígio
internacional com a Menção Especial no Premio Internacional Plural, do México, em
1981. Sua escrita então é aclamada por críticos e escritores como Benedito Nunes e
Fabrício Carpinejar e comparada a Guimarães Rosa.
O fragmento que analiso neste artigo, intitulado A história , foi extraído do
terceiro livro, Ó Serdespanto, que compõe a trajetória poética do autor; tal obra teve
primeira edição lançada em Portugal pela editora Íman em 2001. Minha análise tem por
escopo o estudo do tempo mítico, a ter como base os estudos de Benedito Nunes em O
Tempo na Narrativa (1995), no fragmento que destaco abaixo:

A HISTÓRIA

Em Andara,
é quando os homens esperam um anoitecer mais
calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras

e asas de areia
vêm nos açoitar.

Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó


serdespanto.
Passando, pois, aquele homem a se chamar
assim
Serdespanto.
Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se
disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui
para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto
isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros.
Isso de nascer

Em Andara, pois. Mais um tendo vindo.


De rastros, humano.

.
Mas depois ele já não andava mais de rastros,
esse Serdespanto.
Muito alto,

ou eram as nuvens que baixavam do céu para nele roçar,


50
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

o certo é que os seus olhos atravessavam névoas, nadas. Uma


neblina vaga sempre flutuando em torno de sua caixinha de osso,
diz-se cabeça. Posta essa neblinazinha entre os dois buracos, diz-
se olhos, através dos quais veria a vida, e a coisa dissimulada lá
fora.

- Maldita semi-noite, costumava dizer baixinho Serdespanto,


tropeçando nas coisas duras que ela, a sonsa, sempre espalha à
frente dos caminhos dos homens para nos despertar, com quedas,
do sonho de estar vivo.

Assim, a região dos murmúrios


naquele homem ela se instalando. Se instalara.

- Ó Serdespanto.
Lamentasse sua mãe, da terra agora, o lhe ter aberto a
portinha que as mulheres têm entre as pernas para nos fazer
tombar aqui,
caídos da casinha escura que elas, úmida, trazem dentro de si

Pois depois que ele chegara ela se fora


Aquele túmulo sendo uma outra casinha de terra onde a mãe
agora habitasse em silêncio. (CECIM, 2006, p.61-4)

Como pontos a serem delineados para o estudo do tempo mítico em Ó


Serdespanto, primeiramente, analiso as implicações conceituais atribuídas ao tempo
mítico em Nunes (1995). Em seguida, realizo um estudo do poema a partir da forma e
das imagens nele suscitadas, o homem e a mãe. A escolha destas decorre da
particularidade de serem os únicos personagens que interagem na obra em análise. E,
posteriormente, descortino as similitudes e as divergências expressas entre a teorização
do tempo mítico apresentada e A história .

1. A RECRIAÇÃO DO ETERNO
De acordo com Benedito Nunes em O Tempo na Narrativa, o tempo mítico se
destaca das demais categorias de tempo por ele apresentadas – tempos cronológico e
psicológico – por ser instaurado para representar a história do universo, isto é, sua
origem se encontra nas narrativas míticas como o Gênese, história bíblica referente à
criação do mundo e à trajetória mítica do povo hebreu; ou a Odisséia, epopéia atribuída a
Homero que narra a trajetória do lendário herói Odisseu em retorno a sua terra Ítaca,
que no decorrer de suas peripécias é auxiliado pelos deuses. Assim, o tempo mítico
costuma repelir a sucessão causal do tempo cronológico por uma origem única, tal
ancestralidade é capaz de nutrir as mudanças históricas sempre posteriores à causa
primeva:

51
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Pois se a história do povo hebreu começa em Ur, na Caldéia, a sua


trajetória mítica principia no jardim do Éden. Esse outro começo
recobre o primeiro com a marca de uma origem perene, que o
passado mais longínquo não absorve. Qualquer momento
posterior da história, como processo de mudança, remontará a
este tempo primordial enfaixado pelo mito, e que subsiste, em
estado puro, na tradição religiosa. (NUNES, 1995, p.66)

Benedito Nunes pontua ainda que a necessidade de rememorar as origens, de


remeter a existência ao sagrado, intemporaliza o presente, ou seja, liberta o indivíduo da
mutabilidade da vida. O filósofo paraense destaca o tempo mítico recriado por Virgínia
Woolf em Orlando, no qual a autora confere a sua protagonista características
arquetípicas do inconsciente, o que torna perene certos traços de Orlando, ainda que se
transforme de personagem masculino para feminino ou atravesse o limite dos séculos. O
fluxo e a continuidade, apesar das mudanças, é questionado pelo narrador no referido
romance:

A mente humana, por outro lado, atua com igual estranheza sobre
o corpo do tempo. Uma hora, uma vez alojada no estranho
elemento do espírito humano, pode ser estendida cinquenta a cem
vezes mais do que a sua duração no relógio; inversamente, uma
hora pode ser representada com precisão por um segundo no
tempo mental. (WOOLF, 1997, p. 75)

Em Ó Serdespanto, Cecim conta a trajetória do ser homônimo ao livro do qual se


sabe apenas que é homem, nascido em Andara, do ventre da mãe. E que tem como irmã
uma ave que o acompanha em sua peregrinação a lugar desconhecido, capaz de
controlar os sonhos de Serdespanto. Esta é a parte primeira de um percurso que
perpassa por questionamentos sobre as verdades humanas, o tempo, o sagrado, as
ilusões, o onírico. Para alcançar a expressão de sua mundividência o poeta paraense se
utiliza de recursos híbridos, como a prosa poética, e instaura imagens que movem o
leitor a co-criação da história a partir dos símbolos retirados de labirintos humanos.
São nestes pontos, respectivamente, em que detenho minha análise nos próximos
tópicos.

2. AS BRUMAS DA FORMA
A escrita ceciniana se singulariza por apresentar inovações formais que estão
para além de classificações estanques, ou poesia, ou prosa. Em verdade, sua escrita está
inserida em uma concepção de mundo e de literatura que transpassa o texto. Cecim está
marcado pela descoberta do Uno, latente nos variados matizes da existência, e pelo olhar
de surpresa ao tecer as descobertas na sombra e no silêncio. Sua obra se aproxima no
ocidente de autores como Kafka e Guimarães Rosa, e das filosofias orientais como o Tao
e o Zen. Quanto ao seu projeto poético, almeja fundar a literatura fantasma, a ser aquela
que transcende o fantástico para causar o estranhamento pelo onírico, o simbólico e a
reflexão existencial.

52
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

No limite entre a prosa e a poesia, sua expressão se aproxima da prosa poética,


gênero híbrido que se alicerça na confluência possível entre a narração presente na
prosa e a riqueza de metáforas e imagens associadas, em geral, a poesia. De acordo com
Massaud Moisés (1997), a prosa poética tem origens que a aproximam dos textos
bíblicos, em sua divisão em versículos, ou, de maneira patente, no Cântico dos Cânticos.
Todavia, o hibridismo entre ambos os gêneros transcorrerá com maior intensidade no
simbolismo, a prolongar sua influência no século XX, o tempo das vanguardas, com
destaque para o Surrealismo. A prosa poética para Moisés define-se pela confluência
entre o eu e o não-eu, respectivamente, quando o lirismo se insere na narração dos
acontecimentos suscitados pela imaginação a partir do mundo:

Desse modo, a prosa poética se definiria como o texto literário em


que se realizasse o nexo íntimo entre as duas formas de expressão,
a do eu e a do n~o-eu . Longe de ser pacífico, o encontro é
marcado por uma tensão, de que o texto extrai toda a sua força
comunicativa. No binômio, o substantivo é representado pela
prosa, ou a express~o do n~o-eu , ao passo que a poesia funciona
como um qualificativo. Estamos, pois, diante de um tipo específico
de prosa, assinalado pela fusão da poesia e da prosa. (MOISÉS,
1997, p. 26)

Moisés (1997) cogita que narrativa poética seja o nome mais apropriado para
este gênero híbrido, visto que a narração o constitui. Todavia, na prosa poética, o enredo
é menos denso, a contrariar os intrincados desdobramentos de uma prosa realista; o
tom é intimista, o que torna a narração fértil de reminiscências, de matizes oníricas e de
estranhamento; o inconsciente assume relevância de maneira que o mundo e o eu
parecem confluir na realidade criada. Na narrativa poética, por fim, a metáfora é
perceptível desde o início, o sentido se torna um enigma a ser perscrutado:

(...) à semelhança da poesia, e ao contrário da prosa de ficção


habitual, a metáfora é de imediata ressonância: enquanto na prosa
stricto sensu o sentido das metáforas somente se declara ou se
mostra no término da narrativa, na prosa poética, o sentido, ou,
quando não, o enigma do sentido, logo salta a vista. (MOISÉS,
1997, p.29)

Em Cecim, a narração se faz presente, no fragmento em análise, quando nos


defrontamos com o acontecimento, que pode sintetizar-se numa única palavra: o nascer.
Aquele que nasce é o homem, uma parte da própria mãe que vai para fora, e se torna
peregrino em Andara:

Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a
mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para
fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso,
deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso
de nascer. (CECIM, 2006, P. 61)

53
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

O nascimento de tal homem é sublime, assinalado com a interjeição à frente de


seu nome o qual passa a se chamar: Ó Serdespanto. As três maneiras dispostas pelo eu
lírico na folha, quer acentuar a reunião das atribuições da existência a um ser individual
numa gradação que pretende unir, numa única palavra, a atribuição maior do ser, o
estranhamento com o mundo e consigo próprio:

Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó


serdespanto.
Passando, pois, aquele homem a se chamar
assim
Serdespanto. (CECIM, 2006, P. 61)

O tempo agora é marcado pelo que acontece após o nascer, o ambiente em


Andara é coberto de brumas e ausências, e este caráter se reflete em Serdespanto que,
em lugar dos olhos, possui o nada onde uma neblina gravita:

o certo é que os seus olhos atravessavam névoas, nadas. Uma


neblina vaga sempre flutuando em torno de sua caixinha de osso,
diz-se cabeça. Posta essa neblinazinha entre os dois buracos, diz-
se olhos, através dos quais veria a vida, e a coisa dissimulada lá
fora. (CECIM, 2006, P. 62)

O despertar pode ser doloroso, num espaço sem a proteção materna, condenado
a um vagar solitário. É quando Serdespanto se confronta com o real manifesto na vida e
a mãe retorna ao silêncio da terra:

- Maldita semi-noite, costumava dizer baixinho Serdespanto,


tropeçando nas coisas duras que ela, a sonsa, sempre espalha à
frente dos caminhos dos homens para nos despertar, com quedas,
do sonho de estar vivo. (CECIM, 2006, P. 62)

A seguir analiso brevemente o homem e a mãe, imagens extraídas do fragmento


da obra de Cecim, para verificar em sua riqueza simbólica a gênese do tempo mítico de
Serdespanto.

3. OS SERES DE ESPANTO
O tempo mítico como afirma Nunes, é instaurado no âmbito do singular, é o
evento único da gênese do cosmo, origem por si mesma do sagrado. No fragmento em
análise, a história narrada não é somente um episódio na existência de um homem
particular, mas toma proporções de mito ao nomear de maneira genérica a principais
personagens, a mãe e o homem. Ainda que este assuma um nome, Serdespanto, o que se
revela é um caráter que transcende a aparente individualidade para alcançar o humano:

Sendo assim em Andara: ó ser de espanto, ó ser despanto, ó


serdespanto.
Passando, pois, aquele homem a se chamar
54
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

assim
Serdespanto.
Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se
disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui
para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto
isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros.
Isso de nascer. (CECIM, 2006, P. 61)

O homem, de acordo com o Dicionário de Símbolos (2000), é concebido como


microcosmo, nele o universo se resume. Tal perspectiva é tomada pelas sociedades
primitivas, a exemplo da Índia, onde o homem é um dos pilares do cosmo, como Atlas da
mitologia Grega, que tem o encargo de suster Céu e Terra, a remeter o homem ao
princípio da unidade. Ele também pode aludir ao entrelaçamento de relações do
universo, neste caso, seu nascimento é a criação do mundo e sua morte o termo do
mesmo:

Essa concepção do Gênesis é posta pela astronomia na própria base


da sua doutrina: ali cerca as relações entre o microcosmo (o
homem) e o macrocosmo (não só o universo, mas o pensamento
englobante de Deus e força do universo). Para todo o homem seu
pensamento é como uma criação do mundo: para ele é a mesma
coisa que ele nasça ou o mundo. Assim a sua morte é como o fim do
mundo. Àquele que morre tanto lhe faz morrer para o mundo
quanto que o mundo morra com ele. (CHEVALIER, 2000, p. 495-
496)

Segundo o Dicionário de Símbolos (2000) as Grandes Mães das mitologias


antigas são deusas da fertilidade como Gaia, Réia, Hera, Deméter, entre os gregos e Ísis
entre os egípcios, isto se deve a mãe estar associada às imagens do mar e da terra, em
que é patente a analogia com a fertilidade. A vida e a morte também se destacam do
símbolo materno, o nascimento é originar-se do ventre da mãe, o regresso a terra é a
morte: a vida e a morte s~o correlatas. Nascer é sair do ventre da m~e: morrer é
retornar a terra C(EVAL)ER, , p. .
Tais símbolos no poema em análise arrematam o mito de origem do humano. Ao
nascer o homem dimana da terra e instaura o seu fado, vagar através do nada e do
silêncio. Seu nome, Serdespanto, antes de individualizá-lo revela o caráter de todo
aquele que nasce:

Em Andara, pois. Mais um tendo vindo.


De rastros, humano.

Mas depois ele já não andava mais de rastros,


esse Serdespanto.
Muito alto,

ou eram as nuvens que baixavam do céu para nele roçar,


(CECIM, 2006, P. 61-2)
55
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

O homem é um microcosmo que mantém relação direta com o todo do qual


dimana, e, uma vez fora do todo, vaga como individualidade separada.

Pois depois que ele chegara ela se fora


Aquele túmulo sendo uma outra casinha de terra onde a mãe
agora habitasse em silêncio. (CECIM, 2006, p. 64)

CONCLUSÃO
O tempo, de acordo com Benedito Nunes, se instaura como questão. O homem
organiza seu estar no mundo em um movimento constante, entre o início e o fim, e deste
modo, tende a temporalizar a existência. Na narrativa, um fato desencadeado acontece
devido a um outro que o precedeu, é o princípio da casualidade. O evento, neste caso, é
onde o autor tece as entrelinhas deixando ao leitor o encargo de destecê-las, a perceber
a ordem causal estabelecida. Neste caso, o tempo cronológico pode estar implícito, visto
que fundamenta-se no fluxo recorrente e natural dos eventos, sujeitos à medição do
cronômetro, e que se qualificam a partir de tal eixo de referência (o nascimento de um
personagem, etc.).
O tempo psicológico, também chamado de duração interior, se define como a
sucessão dos vivenciamentos internos. Não equiparável ao tempo cronológico, a duração
interior singulariza-se pela fluidez que as demarcações objetivas podem assumir. A hora
que passamos entediados numa fila decorre de maneira distinta se estamos nos
divertindo numa festa. Portanto, o tempo psicológico prima pelo caráter subjetivo e
qualitativo dos eventos, à medida que no cronológico há o imperativo físico da Natureza
de percepção do presente, que deriva de um passado e de onde se projeta o futuro.
O tempo mítico se contrapõe às duas categorias de tempo supracitadas.
Distancia-se da duração interior por sua natureza transubjetiva e impessoal e do tempo
cronológico por repelir a ideia de sucessão temporal, isto porque o mito é uma narrativa
fundadora, conta a história de um evento único instaurado no presente intemporal; que
se repete sempre que é contado e abrange indivíduos de uma sociedade que mantêm
relação de identidade com o mito:

A rigor não há tempo mítico, porque o mito, história sagrada do


cosmos, do homem, das coisas e da cultura, abole a sucessão
temporal. O que quer que o mito narre, ele sempre conta o que se
produziu num tempo único que ele mesmo instaura, e no qual
aquilo que uma vez aconteceu continua se produzindo toda vez
que é narrado. (NUNES, 1995, p.66-67)

Assim, no poema em análise o tempo mítico se manifesta na forma como o eu


lírico estrutura sua narração, de maneira a relatar um acontecimento individual apenas
na aparência, e a se deter nos aspectos fundadores que o singularizam e o torna a
história da origem do ser. O princípio é marcado pelo nascimento do homem que
emerge da terra, seu caráter primevo é acentuado no próprio nome que lhe é atribuído
em tom sublime, Ó Serdespanto. É que o determina em seu destino, vagar por Andara e
admitir o estranhamento inerente a sua relação com o mundo e consigo próprio.
56
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

A prosa poética se manifesta na dissolução do enredo que se dissipa para tomar


a forma de uma metáfora, o nascimento; a narração se desdobra como se estivesse
acontecendo nos labirintos do próprio ser, rica em detalhes oníricos e brumas, parece
que o evento transcorre num espaço irreal; por fim, o eu , o car|ter introspectivo, bem
como o n~o-eu , o mundo empírico, confluem e se tornam indistintos no todo do poema
de Cecim.
Quanto às imagens por ele utilizadas, destaquei o homem e a mãe para ressaltar
a perspectiva simbólica atribuída a ambas e a ressonância mítica que encontram no
poema analisado neste artigo. O homem é tido desde os tempos primevos como um
microcosmo, uma síntese do universo, o seu nascimento está ligado a origem do mundo.
A mãe, relacionada à terra, nos remete a fertilidade. O homem encontra a vida quando
sai do ventre materno, e fenece ao retornar a terra.

6. REFERÊNCIAS

CECIM, Vicente Franz. Ó Serdespanto: ó ser de espanto, ó serdespanto, ó serdespanto. Rio


de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,


figuras, cores, números). Tradução Vera da Costa e Silva... [et al.]. – 15. Ed. – Rio de
Janeiro: José Olympio, 2000.

LITERATURA – VICENTE CECIM. Disponível em:


<http://www.culturapara.art.br/Literatura/vicentececim/index.htm>. Acesso em: 19
ago. 2009

MOISÉS, Massaud. Criação Literária: prosa II. São Paulo: Cultrix, 1997.

NUNES, Benedito. O Tempo na Narrativa. São Paulo: Ática, 1995. 2ª ed.

WOOLF, Virginia. Orlando – uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 1994.

57
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

ESTUDOS DO DISCURSO

PALAVRAS DA INSTAURAÇÃO DA REPÚBLICA: O CIDADÃO BRASILEIRO NOS


DISCURSOS DE POSSE DE DEODORO DA FONSECA E FLORIANO PEIXOTO*

Renata Ortiz Brandão


Universidade Estadual de Campinas

RESUMO: Este trabalho propõe realizar a análise semântico-enunciativa dos discursos


de posse dos dois primeiros presidentes do período republicano no Brasil, Deodoro da
Fonseca e Floriano Peixoto. O intuito é investigar como a palavra cidadão significa na
enunciação dos dois presidentes; que predicações/determinações recebe nos textos que
compõem o corpus. O estudo está ancorado na Semântica do Acontecimento, cuja filiação
é materialista. Assim, não se toma a linguagem como transparente, pois se entende que
as relações estabelecidas com o real são sempre históricas. Não se parte, portanto, de
um sentido fixo a priori para a palavra, mas se busca na materialidade textual
compreender suas especificidades. Por meio da análise das predicações/determinações
diretas e indiretas que cidadão recebe nos discursos selecionados, buscou-se
compreender o modo como a palavra significa nos movimentos de filiação e de diferença
em relação aos sentidos que se estabilizam na República Ocidental Moderna a partir da
Revolução Francesa. As análises mostraram tanto uma prevalência de cognata
concidadãos sobre cidadão(s) e uma especialização de sentidos entre ambas; quanto uma
crescente presença de palavras concorrentes não cognatas, como Nação, Brasileiros,
Pátria, que significam antes um sentimento patriótico do que uma identificação com o
regime jurídico-político republicano. Espera-se contribuir pontualmente com uma
análise de detalhe para a compreensão dos sentidos desta palavra fundamental nas
repúblicas ocidentais modernas neste momento de estabelecimento da República no
Brasil.
Palavras-chave: cidadão, enunciações presidenciais, República Brasileira, semântica

ABSTRACT: This work proposes to make the enunciative-semantic analysis of the


inaugural address of the first two presidents of the republican period in Brazil,
Deodoro da Fonseca and Floriano Peixoto. The aim is to investigate how the word citizen
means in the two presidents speeches; which determinations it receives on the texts
chosen for the analysis. The study is anchored to the Semantics of the Event, whose
enrolment is materialistic. So, we do not conceive language as transparent, once we
understand that the relations established with reality are always historical. There is not,
therefore, a priori fixed meaning for the word, because we seek to understand on textual
materiality its specificities. Through the analysis of direct and indirect determinations
that citizen gets on the selected speeches, we sought to understand how the word means
in the movements of affiliation and difference in relation to the senses that are stabilized
in modern Western Republics from the French Revolution. The analysis showed both a
prevalence of the cognate fellow citizen over citizen and a specialization of the meaning
between them, as a growing presence of non-cognate words competitors, as nation and
Brazilians, meaning a patriotic feeling rather than an identification with the legal-
political republican regime. We expect to contribute with a detail analysis to understand
58
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

the meaning of this word, fundamental in modern Western republics at the moment of
the Republic s establishment in Brazil.
Key words: citizen, presidential speeches, Brazilian Republic, semantic.

1. INTRODUÇÃO E OBJETIVOS
O presente trabalho, filiado a uma semântica enunciativa de base materialista, a
Semântica do Acontecimento, teve como objetivo geral a compreensão da designação do
nome cidadão na enunciação dos dois primeiros presidentes da República brasileira:
Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. O intuito foi investigar como a palavra cidadão
significa na enunciação dos dois presidentes; que predicações/determinações recebe
nos textos que compõem o corpus12; bem como compreender os pontos de encontro na
designação da palavra entre as enunciações de cada um deles e o modo como os dois
primeiros governantes do regime republicano afirmam seu pertencimento ao novo
regime. As questões pontuais nos permitem compreender a significação desta palavra
fundamental na construção das Repúblicas Modernas no momento de implantação do
novo sistema político no Brasil, tal como ela aparece na enunciação dos dois primeiros
chefes de Estado.
A palavra-objeto – cidadão – é considerada no senso comum do domínio político,
uma vez que faz parte da terminologia da organização do Estado e que é enunciada por
locutores-políticos, ou seja, por indivíduos que tomam a palavra enquanto
representantes do povo, legitimados pelo regime político do país OL)VE)RA, ,
p.110). Operamos com o movimento do político na enunciação, tal como definido por
Guimarães (2002). O autor, inscrevendo-se em uma posição materialista nos estudos da
linguagem, afirma que enunciar é uma pr|tica política, e que o político é o fundamento
das relações sociais, no que tem import}ncia central a linguagem , p. . A
definiç~o de político é relativa { enunciaç~o: O político, ou a política, é para mim
caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente)
uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que n~o est~o incluídos ,
p.16). Nesse sentido, o político torna-se incontornável pelo fato de o homem falar e
assumir a palavra, por mais que isso lhe seja negado em algumas situações.
A palavra, enunciada por locutores-presidentes no início da República, traz em
sua história de enunciações a relação com o equivalente em francês – citoyen – e os
movimentos de sentidos que a palavra do francês irradia nas línguas do Ocidente a
partir da Revolução Francesa e da fundação da República Moderna Ocidental. A questão
foi obervar como, por meio das predicações/determinações que recebe, a palavra
cidadão se atualiza no dizer, o modo como significa no presente dos acontecimentos
enunciativos em que os dois primeiros presidentes republicanos tomam a palavra,
inscrevendo sentidos para o novo sistema político.

* Este trabalho de Iniciação Científica foi realizado com o financiamento e o apoio do PIBIC/CNPq,
responsável por estimular uma maior articulação entre a graduação e a pesquisa, ampliando assim o
acesso e a integração à cultura científica. Agradeço especialmente a minha orientadora, a Professora Dra.
Sheila Elias de Oliveira, por todo suporte, ajuda, atenção e diálogo. 12 Textos repertoriados: o discurso do
Marechal Deodoro da Fonseca de 16 de novembro de 1889, na Proclamação do Governo Provisório,
publicada no Diário Oficial e o discurso de posse de Floriano Peixoto, de 23 de novembro de 1891, ambos
retirados de Peixoto (1939).
59
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Nosso primeiro contato com os estudos sobre a palavra cidadão e outras de


mesma raiz morfológica se deu por meio dos trabalhos de Oliveira (2006), que
investigou o percurso da palavra cidadania como entrada nos dicionários de língua
portuguesa, mostrando que, embora essa palavra venha do francês (citoyenneté) e que
seu sentido derive de uma mudança de sentido político de cidadão registrada no final do
século XIX semelhante à que acontece na França revolucionária do século XVIII com as
equivalentes citoyen/citoyenneté, o percurso de cidadão e cidadania nos dicionários
brasileiros do século XX é diferente do percurso lexicográfico das palavras equivalentes
francesas. Como afirma Oliveira (2012, p.106):

A palavra cidadão, derivada do latim, sofre uma mudança de


sentido na modernidade a partir da relação com o seu equivalente
por tradução no francês – citoyen, o qual, com a Revolução
Francesa e o processo de instauração do regime republicano,
deixa de significar aquele que tem privilégios na cidade (sentido
este que tem sua origem na Antiguidade Clássica), e passa a
significar todo indivíduo na relação com o Estado, pela igualdade
de direitos e deveres.

Cidadania surge deste novo sentido político de cidadão, instaurado pela relação
com citoyen e suas transformações na Revolução Francesa, que deram origem à
citoyenneté. Ainda segundo Oliveira (ibidem), nos dicionários brasileiros de língua
portuguesa, desde o primeiro, de 1938, e ao longo do século XX,

no verbete cidadão, há uma diluição do sentido político nos


discursos jurídico e urbano, em acepções como habitante da
cidade e indivíduo no gozo dos direitos civis e políticos de um
Estado ; j| no verbete cidadania não há sequer uma definição
própria, mas um reenvio a cidadão por acepções como estado de
cidad~o ou qualidade de cidad~o . É nos dois dicionários
publicados no século XXI – o Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa (2001) e o Dicionário de Usos do Português (2002),
que começamos a ter definições próprias no verbete cidadania.
Elas vêm acompanhadas de alterações no verbete cidadão.

O percurso da autora mostra também que, se a instauração da República trouxe


uma nova acepção política para a palavra, esta acepção permaneceu quase inalterada
nos dicionários brasileiros, o que indica um trabalho enunciativo pequeno sobre a
palavra ao longo de todo um século de República no Brasil. O primeiro momento deste
percurso – a derivação de cidadania a partir do novo sentido político de cidadão –
permite estabelecer um diálogo com o que historiadores já nos indicaram para a
cidadania não enquanto palavra, mas enquanto fato político que a palavra designa.
Segundo (obsbawm , A França forneceu o vocabul|rio e os temas da política
liberal e radical democr|tica para a maior parte do mundo , p. . A Revoluç~o
Francesa trouxe também a ideia de que o republicanismo é uma força de massa, ou seja,
do povo, da Naç~o, e de que o Estado Nacional precisa ser centralizado, forte e
unificado (OBSBAWM, , p. , o que lhe permite afirmar que a Revoluç~o
60
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Francesa tenha praticamente criado os termos naç~o e patriotismo em seus sentidos


modernos p. .
O que o percurso das palavras cidadão e cidadania nos dicionários leva a
questionar é em que medida a República brasileira se configurou de fato como uma
força de massa . Quanto ao Estado, ele se tornou centralizado, forte e unificado {s
custas de longos períodos ditatoriais, o que certamente teve impacto sobre a prática
política republicana no Brasil, seja por parte dos cidadãos, seja por parte dos governos.
Podemos supor, portanto, que a nação e o patriotismo tenham se construído
diferentemente da França revolucionária. Carvalho (2003) faz uma afirmação
contundente sobre a cidadania na República brasileira: diferentes conjunturas sociais,
políticas e econômicas não permitiram a formação de cidadãos brasileiros nem o
afloramento da cidadania, pois o sentido de que todos são iguais perante a lei e a
implementação dos valores de liberdade e direitos individuais praticamente não
existiram nem se efetivaram.
Para compreender os caminhos de cidadão, nos perguntamos, ao longo de nosso
trabalho, qual o lugar dessa palavra, tão importante na Revolução Francesa e no
pensamento republicano moderno, na enunciação dos dois primeiros presidentes da
República brasileira. Estas perguntas ganham força em uma conjuntura em que, de um
lado, há uma filiação a sentidos produzidos na França Revolucionária, atestados nos
dicionários, como expusemos acima; por outro, há uma aparente estagnação nos
sentidos da palavra em um longo período (o século XX).

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS


Esse estudo está ancorado na Semântica do Acontecimento. Inscrita em uma
posição materialista sobre a linguagem, esta teoria não toma a linguagem como
transparente, pois entende que as relações estabelecidas com o real, com o que está para
ser significado pela linguagem, são sempre históricas. Trata-se de uma semântica que
considera que a análise do sentido da linguagem deve localizar-se no estudo da
enunciaç~o, do acontecimento do dizer GU)MARÃES, , p. . Entende-se que uma
palavra, enquanto forma da língua, significa na relação dialética entre uma memória de
enunciações passadas e o presente do acontecimento, produzindo uma latência de
futuro. O acontecimento produz a cada vez uma nova temporalidade:

um presente que abre em si uma latência de futuro (uma


futuridade), sem a qual nada é significado, pois sem ela (a latência
de futuro) nada há aí de projeção, de interpretável. O
acontecimento tem como seu um depois incontornável, e próprio
do dizer. Todo acontecimento de linguagem significa porque
projeta em si mesmo um futuro. Por outro lado este presente e
futuro próprios do acontecimento funcionam por um passado que
os faz significar. Ou seja, essa latência de futuro, que, no
acontecimento, projeta sentido, significa porque o acontecimento
recorta um passado como memor|vel GU)MARÃES, , p. .

É neste jogo entre presente, passado e futuro que se configura a designação de


uma palavra no acontecimento enunciativo. A designação é entendida como a
61
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

significaç~o de um nome, mas n~o enquanto algo abstrato , mas enquanto uma relaç~o
linguística tomada na história (GUIMARÃES, 2002, p.9). Segundo Guimarães (2002, p.
, ... a linguagem significa o mundo de tal modo que identifica os seres em virtude
de significá-los , p. . A operaç~o de referência produz uma identificaç~o do
objeto de discurso no real das coisas e/ou das ideias, pela relação entre a palavra e as
predicações/determinações que recebe no enunciado em que se inscreve, como parte de
um texto. Não se trata, portanto, da atribuição de um sentido fixo ou único à palavra
cidadão e suas determinações, mas sim da compreensão do modo como o presente do
acontecimento trabalha sobre a latência da significação da palavra, repetindo e/ou
deslocando sentidos, e de que modo isso se d| ao longo do corpus que aqui analisamos
(OLIVEIRA, 2012, p.110). É preciso, então, observar as operações de textualidade em
torno da palavra, e as cenas enunciativas configuradas a partir destas operações.
Uma cena enunciativa se caracteriza por constituir modos específicos de acesso {
palavra dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas linguísticas
(GUIMARÃES, 2002, p.23). Desse modo, é a cena enunciativa que distribui os lugares de
enunciação no acontecimento, configurando assim o agenciamento das figuras da
enunciação. As figuras da enunciação são o Locutor (L), o locutor-x (l-x) e os
enunciadores (Es). O Locutor é aquele que é responsabilizado pelo dizer, aquele ao qual
se atribui uma assinatura pelo dizer. Segundo Guimar~es , p. , para se estar
no lugar de L é necessário estar afetado pelos lugares sociais autorizados a falar p. ,
ou seja, é necessário estar predicado por um lugar social. A este lugar social do locutor
Guimarães chama de locutor-x, onde o locutor com min’scula sempre vem predicado
por um lugar social que a variável x representa (presidente, governador, etc p. .
Nossos Locutores (Deodoro e Floriano), nas cenas enunciativas que analisamos, são
autorizados a falar como presidentes; contudo, há uma nuance que os afeta, uma vez que
assumem, ora o lugar social de chefe do governo provisório, no caso de Deodoro, ora o
lugar social de funcionário substitutivo, no caso de Floriano. De todo modo, é do lugar de
chefes de Estado que eles enunciam. Os enunciadores (individual, genérico, coletivo e
universal) são lugares de dizer que se apresentam como representações - independentes
ou fora da história – da inexistência dos lugares sociais de locutor GU)MARÃES, ,
p.26). O modo como se configura na enunciação o lugar de dizer projeta sentidos sobre a
relação locutor-alocutário e esta predicação do eu e do tu incide sobre as formas
linguísticas (em nosso caso, a que tomamos como objeto, a palavra cidadão), que vão
sendo predicadas/determinadas nos textos em que se inscrevem. Essas determinações
podem ser observadas nos movimentos textuais de reescritura(ção) (retomada) e
articulação (contiguidade).
A reescrituraç~o, conforme Guimar~es , p. , é o procedimento pelo qual
a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma
forma como diferente de si . Por sua vez, a articulaç~o s~o relações de contiguidade local
que, não redizendo, afetam as expressões linguísticas no interior dos enunciados ou na
relação entre eles (ibidem). Eles funcionam segundo o princípio de deriva dos sentidos
que constitui a unidade de um texto. A observação dos procedimentos textuais de
reescritura e articulação, em nossa análise, permitiu observar as predicações e
determinações semânticas diretas e indiretas da palavra cidadão nos discursos
presidenciais. Segundo Guimar~es , n~o h| texto sem o processo de deriva de
sentidos, sem reescrituraç~o , p. . Essa deriva ocorre exatamente nos pontos
em que se estabelecem identificações de semelhanças e de correspondências. Nesse
62
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

sentido, as predicações de uma forma linguística (cidadão, no nosso caso), seja nos
procedimentos de reescritura ou de articulação, realizadas sob uma aparência de
neutralidade, mostram-se como pontos de deriva, de movimento dos sentidos. Esses
dois movimentos sobre as palavras que se colocam como objetos de discurso de um
texto permitem compreendê-lo como unidade complexa de significação, integrada por
enunciados (GUIMARÃES, 2011, p.19). O efeito de unidade próprio da textualização é
tomado na relação com a deriva de sentidos a partir da qual se constitui. Não se trata, ao
buscar compreender a designação da palavra cidadão em um conjunto de textos, de uma
busca pela decodificaç~o da palavra ou do texto; ao contr|rio, consideramos o
funcionamento da linguagem pensando nas condições em que os acontecimentos
enunciativos se produzem ibidem, p. .
Interessou-nos particularmente para este trabalho o artigo de Guimarães (2007)
sobre o conceito de Domínio Semântico de Determinação (DSD), procedimento que nos é
fundamental para as análises do corpus, uma vez que representa os sentidos das
palavras em virtude da relação de uma palavra com a outra, no texto em que se insere.
Importa para nós a concepção de Guimarães de que é o processo enunciativo que
constrói essas determinações para as expressões linguísticas. Tais determinações são
instáveis, embora funcionem sob o efeito da estabilidade. Assim, as palavras significam
pelas relações de determinação semântica, constituídas pelo acontecimento enunciativo.
As relações entre as palavras são escritas no DSD por meio de alguns sinais específicos,
determinados por Guimar~es : ├ ou ┤ou ┬ ou ┴ que significam determina ; —
que significa sinonímia; e um traço como _______, dividindo um domínio, significa
antonímia p. .
Na designação da palavra, assumindo que a linguagem funciona na tensão entre
paráfrase e polissemia, serão investigados os movimentos parafrásticos e polissêmicos
de cidadão na especificidade dos dois locutores-presidentes escolhidos, ou seja,
buscando entender sua especificidade em relação à memória discursiva ligada à
República tal como ela se configura na modernidade a partir da Revolução Francesa.
Segundo Orlandi , a memória discursiva é o interdiscurso, aquilo que fala antes,
em outro lugar, independentemente p. . Segundo a autora, a memória discursiva é
um saber que possibilita dizeres e que retorna como um já-dito que é base do que pode
ser dito, do dizível, de modo a sustentar a tomada da palavra. Os processos parafrásticos,
por sua vez, s~o aqueles pelos quais em todo dizer h| sempre algo que se mantém, isto
é, o dizível, a memória , representando assim o retorno aos mesmos espaços do dizer
em diferentes formulações de um dizer estabilizado, sedimentado. Ao passo que, na
polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significaç~o , de modo
a lidar com o equívoco, com o movimento dos sentidos (ibidem, p.36).
Investigamos, neste trabalho, a especificidade de cidadão na enunciação dos
presidentes analisados em relação aos dizeres possíveis e à filiação dos sentidos
constituídos sobre a República Ocidental a partir da Revolução Francesa, bem como às
outras redes de memória que se entrecruzam na enunciação da palavra. A análise das
relações parafrásticas e polissêmicas estabelecidas sobre a palavra cidadão nos
procedimentos de reescritura e articulação textuais permitiu, tendo em conta o conceito
de político de Guimarães (2002), responder de que modo, por meio da enunciação de
cidadão e de suas determinações, se afirma a relação entre governante e governados, e o
pertencimento do governo que se inicia ao regime republicano, bem como de que modo
se inclui, na enunciação do Estado, uma relação cidadão-República.
63
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Oliveira (2012) analisa os discursos de posse dos presidentes da Primeira


República brasileira, com o objetivo de compreender as especificidades semânticas de
cidadão(s)/concidadãos. Segundo a autora, os discursos de posse anunciam um
programa de governo e inauguram um modo de referência do novo governante aos seus
governados. As palavras presentes no seu acontecimento enunciativo têm a força de
projetar um futuro de interpretações sobre o governo que se inicia ibid., p. -108).
Oliveira levanta a hipótese de que a instabilidade de cidadão e de seus derivados é uma
característica do modo como essas palavras se constituem no regime republicano
brasileiro. Ela nega, no entanto, que esta instabilidade se deva apenas aos períodos de
ditadura que vivemos no século XX, mas que se constitua também nas enunciações dos
períodos democr|ticos, o que a autora associa { falta de um projeto republicano de
Estado e de mecanismos que garantissem sua manutenção a despeito das mudanças de
governo OL)VE)RA, , p. . A partir da hipótese levantada por Oliveira,
investigamos as particularidades dos sentidos de cidadão(s) nas enunciações
presidenciais de Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, em sua instabilidade e, talvez,
em pontos de estabilidade. Ao lançar luz sobre suas significações específicas, nas
enunciações dos dois primeiros presidentes da República do Brasil, Deodoro da Fonseca
e Floriano Peixoto, nossa análise, esperamos, permitirá aprofundar a análise da autora
em relação a este primeiro momento da República no Brasil.

3. ANÁLISES E RESULTADOS
Os procedimentos textuais de reescritura (retomada) e articulação
(contiguidade) servirão para observar as predicações/determinações semânticas diretas
e indiretas da palavra cidadão nos discursos presidenciais que compõem o corpus. As
predicações diretas são aquelas que incidem diretamente sobre cidadão, e as indiretas
são aquelas que, ao predicarem palavras que predicam cidadão, a predicam por
intermediação. Uma dessas palavras que predicam cidadão é República, já que cidadão
identifica o sujeito republicano em sua relação com o Estado. Outra predicação indireta é
a que incide sobre concidadãos ou outras palavras não cognatas que reescriturem
cidadão(s). Procuramos observar também o modo como o locutor-presidente se significa
e significa seus destinatários, além de terceiros a quem se refere, buscando
compreender quem se inclui na identificação pelo nome cidadão.

3.1. DISCURSO DO MARECHAL DEODORO DA FONSECA - A PROCLAMAÇÃO DO


GOVERNO PROVISÓRIO EM 16 DE NOVEMBRO DE 1889. IN: PEIXOTO, 1939.

Concidadãos – O povo, o exército e a armada nacional, em perfeita


comunhão de sentimentos com os nossos concidadãos residentes
nas províncias, acabam de decretar a deposição da dinastia
imperial e conseqüentemente a extinção do sistema monárquico
representativo. Como resultado imediato desta revolução
nacional, de caráter essencialmente patriótico, acaba de ser
instituído um governo provisório, cuja principal missão é garantir,
com a ordem pública, a liberdade e os direitos dos cidadãos. Para
comporem esse governo, enquanto a nação soberana, pelos seus
64
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

órgãos competentes, não proceder à escolha do governo


definitivo, foram nomeados pelo chefe do poder executivo da
nação os cidadãos abaixo assinados. Concidadãos – O governo
provisório, simples agente temporário da soberania nacional, é o
governo da paz, da liberdade, da fraternidade e da ordem. No uso
das atribuições e faculdades extraordinárias de que se acha
investido para a defesa da integridade da pátria e da ordem
pública, o governo provisório, por todos os meios a seu alcance,
permite e garante a todos os habitantes do Brasil, nacionais e
estrangeiros, a segurança da vida e da propriedade, o respeito aos
direitos individuais e políticos, salvas, quanto a estes, as
limitações exigidas pelo bem da pátria e pela legitima defesa do
governo proclamado pelo povo, pelo exercito, pela armada
nacional. (...)Concidadãos – O governo provisório reconhece e
acata todos os compromissos nacionais contraídos durante o
regime anterior, os tratados subsistentes com as potencias
estrangeiras, a dívida pública externa e interna, os contratos
vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas. Marechal
Manoel Deodoro da Fonseca, chefe do governo provisório.

No discurso da Proclamação, há apenas duas ocorrências de cidadão (missão do


governo provisório de garantir o direito dos cidadãos, e os cidadãos abaixo assinados,
escolhidos por Deodoro para compor o governo), o que indica, de saída, que esta
unidade lexical está em concorrência com outras palavras, cognatas (como concidadãos)
e também não cognatas (como habitantes do Brasil). Deodoro inicia a Proclamação do
Governo Provisório chamando seus interlocutores de concidadãos, vocativo que é
repetido diversas vezes em todo o discurso. A palavra cidadão(s) está presente no
discurso e tem a seu lado a palavra concidadãos, que aparece sempre no plural. As duas
palavras têm funcionamentos similares, mas não equivalentes. Dessa maneira, há uma
nuance de sentido entre elas. Guimarães (2011) estabelece que, neste discurso de
Deodoro, entre essas duas palavras (cidadão e concidadãos) se dá uma relação de
sinonímia. Por meio de nossas análises, entendemos que cidadãos/concidadãos têm um
duplo funcionamento: referem o todo da nação, significando-o de modo homogêneo, ou
especificam indivíduos/grupos distintos da sociedade, dividindo os sujeitos na sua
relação com o Estado. Neste duplo funcionamento, observamos uma direção mais forte
em cada uma dessas palavras: concidadãos refere prioritariamente o conjunto da nação
e cidadão(s) refere prioritariamente indivíduos ou grupos da nação. O sentido de
cidadãos aponta para uma divisão, na medida em que a expressão direitos dos cidadãos
estabelece uma divisão entre o cidadão e o próprio Estado, cuja missão é garantir-lhe
direitos, e, nesse sentido, como garantidor, difere-se de seus garantidos. Já a expressão
os cidadãos abaixo assinados aponta para uma divisão dos segmentos sociais, uma vez
que há apenas alguns escolhidos para compor o governo. Nesse sentido, cidadão entra
produzindo um sentido de divisão, pela hierarquia estabelecida entre os sujeitos e o
governo, e de desigualdade, no qual se incluem e pertencem apenas os setores
determinados (os abaixo assinados). Por sua vez, concidadãos, palavra concorrente e
cognata, repetida diversas vezes como vocativo, funciona como uma marca formal que
faz ecoar a nova forma de governo: a República. O efeito de sentido produzido por
65
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

concidadãos é o de aproximação do governo e de seus governados. Contudo, tal


aproximação se desfaz pelas divisões de cidadão(s)/concidadãos e, nesse sentido,
concidadãos também não equivale à nação como um todo, mas trabalha na contradição
entre o todo e suas divisões. O DSD abaixo ilustra as divisões na designação de
cidadãos/concidadãos:

povo, exército, armada nacional



(abitantes do Brasil ┤ CONCIDADÃOS — CIDADÃOS├ cidadãos abaixo assinados

concidadãos residentes nas províncias

Ao convocar seus interlocutores, chamando-os de concidadãos, Deodoro desliza


do lugar social de mandatário da nação para o lugar social de (con)cidadão, significando-
se como igual a todos, como parte do todo da Nação, de modo que tal relação apresenta-
se como inquestionável. Nesse sentido, trata-se de um enunciador-universal, na medida
em que fala do lugar da verdade. A repetição do vocativo concidadãos produz um efeito
de identificação do locutor e do alocutário com o lugar social de cidadão, o que é tido
como universalmente válido (cf. GUIMARÃES, 2011). Tal deslizamento entre o lugar
social de presidente e o de concidadão instaura um efeito de evidência contraditório, na
medida em que há um presidente que é diferente de seu interlocutor, pois está
predicado pelo lugar social de chefe do governo provisório, mas que, ao mesmo tempo,
apresenta-se como igual a ele, isto é, ocupando o mesmo lugar social que ele.
O vocativo concidadãos, predicação indireta de cidadão é reescriturado por povo,
exército e armada nacional, de modo que o locutor-presidente se destaca como
mandatário, mas como exército e armada nacional, distintos do povo. Concidadãos, desse
modo, significa por uma polissemia inscrita na palavra que funciona na enunciação, isto
é, no discurso de proclamação de Deodoro. No entanto, há um efeito de evidência do
étimo: aqueles que s~o cidad~os como eu que, no caso do vocativo, torna-se vocês que
são cidad~os como eu . Os sentidos de concidadãos deslizam, seja para incluir uma
coletividade dividida, seja para instituir uma dissimetria. Assim, não há homogeneidade
senão como efeito. Há sempre divisões e diferenças que repartem de modo heterogêneo
a palavra e seus referentes, que ora são tomados como parte de um todo, ora como
pertencentes a grupos diferentes. Outra marca desta divisão, desta vez entre governante
e governados, é a auto-denominação de Deodoro, enquanto locutor-presidente, como
chefe do poder executivo/chefe do governo provisório, e como tal já não é mais parte do
exército ou da armada nacional, mas mandatário do país.
As predicações de cidadão e de concidadãos discutidas acima mostram a relação
estreita entre essas duas palavras, que apresentam entre si uma nuance de sentido. No
início do governo republicano, há um foco maior nessas palavras republicanas, o que
parece indicar que elas se prestam a produzir uma identificação com a memória
republicana moderna, pela necessidade de instaurar e afirmar a República no Brasil.
Cidadão também é predicado indiretamente pela palavra República, na medida
em que, como dissemos anteriormente, cidadão identifica o sujeito republicano em sua
relação com o Estado. No entanto, como afirma Guimarães (2011) sobre o discurso da
Proclamação, apesar de o discurso de Deodoro instituir a República no Brasil, a palavra
república não aparece nem uma vez. Nesse sentido, entendemos que esta palavra
66
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

significa sob o modo do implícito na expressão nominal revolução nacional. A


observação das predicações de cidadão(s) e indiretas (sobre concidadãos e revolução) dá
visibilidade a um processo político em que se afirma um rompimento com o passado,
mas não se explicita nominalmente o presente. Nessa direção, os sentidos dessa
revolução nacional, que seria o acontecimento instaurador da República, de um novo
regime, apontam, contraditoriamente, para a continuidade.
Há um aspecto a ser mencionado de saída: o texto conhecido como a
Proclamaç~o da Rep’blica , se n~o traz a palavra república, não traz tampouco a
palavra proclamação; há apenas uma única aparição da cognata proclamado. O verbo, no
particípio passado, produz um efeito de estabilidade e de passado sobre o fato da
proclamação. A proclamação não se dá como presente do dizer, mas como um passado
no presente anunciado. Vejamos o DSD de República.

agente temporário da soberania nacional



garantidor do bem da p|tria ┤ Governo Provisório ├ acatador de todos os
compromissos
e da defesa do governo nacionais do regime anterior

(REPÚBLICA)

revolução nacional — deposição da dinastia imperial e
extinção do
sistema monárquico representativo

No DSD acima de República, notamos que um movimento de continuidade


atravessa os seus sentidos. A revolução nacional é predicada por elementos que indicam
o passado, a continuidade de um processo político, não uma mudança. Não há
determinações sobre ela que explicitem um futuro de mudança, o que é contraditório em
relação às acepções lexicográficas da palavra revolução, em que encontramos
determinações como transformação, mudança, alteração brusca e significativa,
sublevação, rebelião, movimento de revolta (HOUAISS, 2010).
Pelas determinações de governo provisório no DSD acima, o governo é acatador
de compromissos e garantidor do bem da pátria e da defesa do governo, o que apaga o
sentido de conflito presente na palavra revolução e institui uma hierarquia e, portanto,
uma desigualdade, entre o governo e os cidadãos, pois o garantidor difere-se
constitutivamente daqueles que por ele deverão ser garantidos e que anteriormente
foram postos como seus iguais. Há também uma contradição entre revolução nacional e
a garantia da ordem pública pelo Governo Provisório, na medida em que a ordem pública
representa a ausência de revoltas manifestadas publicamente, o que se opõe aos
sentidos de revolta e sublevação, latentes na acepção de revolução, presente nos
dicionários. As únicas mudanças apontadas no discurso da Proclamação da República
estão todas dentro da construção legal do Estado, como a abolição da vitaliciedade do
senado, que pressupõe eleições, e a dissolução da câmara dos deputados.
No discurso de Proclamação, Deodoro refere o Governo Provisório como um
agente temporário da soberania nacional, afirmando que, naquele momento, a nação
soberana seria governada por aqueles escolhidos pelo chefe do poder executivo,
67
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

enquanto aguardava pela escolha de um governo definitivo No entanto, pela observação


do DSD, temos determinações cujos sentidos são marcados pelo viés da continuidade,
contrárias aos sentidos de soberania, uma vez que o Governo Provisório tem como
determinação ser o acatador de todos os compromissos nacionais contraídos durante o
regime anterior, os tratados subsistentes com as potências estrangeiras, a dívida pública
externa e interna, os contratos vigentes e mais obrigações legalmente estatuídas , ou
seja, ainda submisso ao regime anterior e às dívidas e tratados impostos pelos países
estrangeiros; desse modo, não comprometido com transformações políticas para um
novo regime, o republicanismo.
Nesse sentido, a predicação indireta de cidadão pelo implícito de República
mostra, por um lado, que não há uma afirmação explícita da república, uma vez que a
palavra República não é dita. Ela não caracteriza uma nova relação política e
democrática entre o Estado Republicano e seus cidadãos, mas sim a manutenção de
estruturas. Tal entendimento se confirma quando observamos que a expressão
concorrente e não cognata habitantes do Brasil predica indiretamente cidadãos. Essa
predicação indireta é afetada por uma fluidez de sentidos, na medida em que refere ao
todo, à coletividade, mas sua significação diz respeito apenas ao espaço territorial e não
à relação dos sujeitos com o Estado. Ela mostra que cidadão(s)/concidadãos não são
palavras de ordem, ou tampouco signos de uma nova prática política reivindicada ou
posta, mas palavras que vêm de outro lugar, de uma memória republicana ocidental,
para produzir uma identificação com os movimentos políticos dos Estados modernos.

3.3. DISCURSO DE POSSE DE FLORIANO PEIXOTO – 23 DE NOVEMBRO DE 1891. IN:


PEIXOTO, 1939, P. 36-41.

Ao País: (..) A armada, grande parte do exercito e cidadãos de


diversas classes promoveram pelas armas o restabelecimento da
Constituição e das leis suspensas pelo decreto de 3 deste mês, que
dissolveu o Congresso Nacional. A historia registrará esse feito
cívico das classes armadas do País em prol da lei ,que não pode ser
substituída pela força; mas ela registrará igualmente o ato de
abnegação e patriotismo do generalíssimo Manoel Deodoro da
Fonseca resignando o poder afim de poupar a luta entre irmãos, o
derramamento do sangue de brasileiros, o choque entre os seus
companheiros de armas, fatores gloriosos do imortal movimento
de 15 de novembro, destinados a defender, unidos, a honra
nacional e a integridade da pátria contra o estrangeiro e a
defender e garantir a ordem e as instituições republicanas no
interior do País. Esses acontecimentos que não têm muitos
modelos nos anais da humanidade e dos quais podemos nos
gloriar, como justamente nos gloriamos das duas revoluções
pacificas que operaram pela Republica a transformação de todo
nosso direito político e pela abolição do elemento servil, a
transformação do trabalho nacional atestarão aos vindouros o
amor do povo, da marinha e do exercito pelas liberdades
constitucionais, que formam e enobrecem a vida das nações
68
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

modernas. (..) No governo do Estado, que foi-me conferido pela


Constituição, confio da retidão de sua consciência para promover
o bem da pátria. Da confiança do povo, do exercito e da marinha
espero não desmerecer. Das forças de terra e mar conheço o valor
realçado pela disciplina e pelo respeito aos direitos da sociedade
civil. Admirei e admiro os meus bons companheiros na guerra e na
paz. A coragem e a constância que mostraram nos combates se
transformaram nos anos de paz, que temos fruído, no amor da
Liberdade e da Republica, que com o povo fundaram e com ele
querem manter e consolidar. O povo que sabe e quer ser livre,
deve igualmente respeitar a ordem, primeira condição da
Liberdade e da riqueza. Na grandiosa oficina em que se trabalha
no progresso da pátria não há vencidos nem vencedores, grandes
ou pequenos. São todos operários de uma obra comum. A essa
obra dedicarei todo o meu esforço, para esse trabalho peço e
espero o concurso de todos os brasileiros. São estes os intuitos
que me dominam, e que julguei dever expor ao País. Capital
Federal, 23 de novembro de 1891. Floriano Peixoto

Floriano Peixoto assume o governo na condição da renúncia de Deodoro segundo


os termos constitucionais. Segundo Penna (1999), Floriano assume em um momento
crítico, em que o regime republicano ainda estava ameaçado e instável. Nas palavras do
historiador:

Floriano Peixoto foi simultaneamente a vítima e o responsável


pela sucessão crítica por que passou o regime republicano em
seus primeiros momentos. Vítima em razão de ter herdado uma
situação extremamente delicada e de diferente equacionamento,
responsável em virtude de ter agido na direção do confronto com
aqueles que se opuseram ao seu governo. Assumindo na
contramão de uma legalidade reclamada por certos intérpretes da
Constituição, promulgada em fevereiro de 1891, Floriano tornou-
se um símbolo da defesa da legalidade republicana. (PENNA, 1999,
p.37-38)

Em seu discurso de posse, Floriano Peixoto apresenta seus primeiros intuitos que
o inspirariam em sua administração pública. O presidente traz propostas de governo,
referentes, principalmente, à economia e à administração da fazenda pública. Além
disso, ele pede o apoio do povo, do exército e da marinha para promover o bem da
pátria. A divisão do todo nesses três setores mostra, de saída, que há uma divisão na
sociedade, o que afeta os sentidos da palavra que aqui temos por especificidade analisar.
Neste discurso, há apenas uma ocorrência da palavra cidadãos, no seguinte trecho:

A armada, grande parte do exercito e cidadãos de diversas


classes promoveram pelas armas o restabelecimento da
Constituição e das leis suspensas pelo decreto de 3 deste mês, que
dissolveu o Congresso Nacional. (grifo nosso)
69
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

No trecho acima, cidadãos parece apontar, como nos discursos de Deodoro, para a
divisão, pois além de estar predicado pela estratificação das classes sociais, a palavra
funciona ao lado da expressão grande parte do exército e da armada, o que distingue
civis e militares, predicando cidadãos como civis. É essa divisão entre os cidadãos (civis)
segmentados em classes, o exército e a armada que Floriano aponta como responsável
pelo feito cívico de restabelecer a Constituição, reescriturando as expressões nominais
por classes armadas do País em prol da lei. Nas palavras de Floriano, notamos uma ênfase
na militarização do Estado que, no limite, representa um embate com a própria
República, o que se dá, contraditoriamente, em uma tentativa de defendê-la. Cidadãos
aqui aparece predicada pela expressão diversas classes, que estão armadas, também por
oposição a militares na divisão, mas por junção a eles pelas armas.
Nas palavras de Floriano, a renúncia de Deodoro foi uma medida que poupou a
luta entre irmãos, expressão que é reescrita por o derramamento do sangue de brasileiros
e por o choque entre os seus companheiros de armas. Nesse sentido, a palavra República
significa, pelo viés do conflito, como um processo penoso e litigioso – o que difere da
forma como o processo de instauração da República significava no discurso de
Proclamação, isto é, como um processo pacífico, em perfeita comunhão de sentimentos,
em que não se explicita a mudança. Ocorre ainda, por essas reescriturações, uma
aproximação entre o Locutor e seus alocutários, de modo que o lugar social de
presidente desliza para o lugar do coletivo, de um todos diluído, em que os brasileiros
são predicados, ao mesmo tempo, como irmãos e companheiros daquele que é o chefe de
Estado. Em razão de se tratar de um Locutor que assume o lugar social de um locutor-
presidente, a figura do enunciador que aí fala é de um enunciador-coletivo, uma vez que
representa a coletividade dos irmãos em armas. Os cidadãos, predicados indiretamente
por brasileiros, significam por um viés sentimental, de irmandade e família, pois são
irmãos e companheiros do chefe de Estado, do governante.
A palavra República aparece no discurso de posse de Floriano, mas não
acompanhada de cidadãos/concidadãos, nem de cidadania. Há apenas duas ocorrências
de República, no entanto, elas surgem para afirmar e para dizer que aquele regime se
trata ainda de uma República, apesar da instabilidade e das ameaças. Não há democracia
associada ao republicanismo, uma vez que a palavra República significa como uma
revolução pacífica que atestou o amor do povo, da marinha e do exército. Há, desse modo,
não uma relação política entre o Estado Republicano e seus cidadãos, mas sim uma
relação sentimental, quase de devoção, que significa os sujeitos na sua identidade
nacional forjada no patriotismo e no sentimento, no afeto pela pátria, pelo Estado, e que
contradiz todo o conflito posto anteriormente.
República predica indiretamente cidadão e apresenta seus sentidos instabilizados
por uma predicação que indica uma instabilidade referencial que encaminha para dois
sentidos recorrentes: a República está em construção e precisa ser defendida. Nesse
sentido, os cidadãos são predicados pela expressão operários de uma obra comum, cuja
obra é trabalhar pelo de progresso da pátria. Há um processo de afirmação da
necessidade de estabilização do regime do qual não participa a enunciação de cidadão(s)
e concidadãos, palavras-símbolos da República Ocidental Moderna. Observamos apenas
uma ocorrência de cidadãos, como afirmamos acima, e nenhuma, nesse discurso de
posse, de concidadãos. Estas duas palavras estão em concorrência com outras, não
cognatas, como país cumpre-me expor ao País , garantir a ordem e as instituições
70
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

republicanas no interior do País , brasileiros o derramamento do sangue de


brasileiros , peço e espero o concurso de todos os brasileiros , nação recursos
econômicos da naç~o , povo o amor do povo, da marinha e do exército pelas
liberdades constitucionais , da confiança do povo, do exército, e da marinha espero n~o
desmerecer , no amor da Liberdade e da Rep’blica, que com o povo fundaram , O povo
que sabe e quer ser livre , pátria integridade da p|tria , promover o bem da p|tria ,
progresso da p|tria , n~o sendo t~o mobilizadas e, por isso, tendo seu valor como
signos republicanos esvaziado. O DSD abaixo ilustra nossas análises:

classes armadas do país em prol da lei



operários de uma obra em comum ┤ CIDADÃOS ├ diversas classes
_________________________________________
a armada e grande parte do exército

As palavras concorrentes apresentadas acima (brasileiros, nação, pátria)


sustentam o dizer do presidente em um discurso patriótico, em detrimento de um
discurso revolucionário republicano; são os sentidos da República em construção que se
colocam no texto. A esfera do conflito se sobressai, os cidadãos estão armados; contudo,
tal mobilização do sujeito republicano, exposta no dizer de Floriano, visa à aplicação da
Lei, o restabelecimento da Constituição, o que não implica em si uma revolução, mas sim
aponta para a defesa do regime republicano. Ao mesmo tempo, os cidadãos significam
como aqueles que estabelecem uma relação de irmandade com o Estado, contrariando o
sentido do conflito armado e, assim, produzindo sentidos de pacifismo. Os sentidos da
palavra cidadãos são instabilizados por uma relação cuja prioridade é um patriotismo
que não se constrói fundado na participação da coletividade na construção do país e da
República que esteja além da tomada pontual das armas. A participação dos cidadãos
significa pela divisão, no caso entre civis e militares e entre classes sociais, e está
fundada no sentimentalismo e no amor, evocados senão dos próprios cidadãos, como se
fossem gerados espontaneamente pelo fato de serem brasileiros. Desse modo, as
unidades lexicais concorrentes a cidadãos e concidadãos constituem antes uma
identidade nacional do que uma relação política com o Estado Republicano; além disso,
elas apagam o sentido político da relação dos sujeitos com o Estado em nome de uma
relação sentimental sem ancoragem histórica.

4. CONCLUSÕES
As análises sobre a designação da palavra cidadão e suas concorrentes cognatas e
não cognatas que desenvolvemos neste trabalho mostraram que tais unidades lexicais
entram produzindo sentidos, por um lado, de desigualdade e divisão, incluindo não o
todo da nação, mas sim setores e classes determinadas; por outro lado, de um
sentimentalismo patriótico de exaltação do regime e da Pátria que não está ancorado em
uma participação efetiva da coletividade nos rumos do país, mas sim em um sentimento
de amor que parece legitimar-se simplesmente no fato de o sujeito ser brasileiro. Desse
modo, parece não haver uma reivindicação do modo de participação dos sujeitos
republicanos na sua relação política com o Estado.

71
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Em relação aos movimentos de paráfrase e polissemia (ORLANDI, 2007),


podemos cotejar os resultados de nossas análises na designação de cidadão entre as
enunciações dos dois presidentes. Nos dizeres dos chefes de Estado aqui analisados, há
sentidos que se mantêm e se estabilizam, produzindo, pela paráfrase, uma memória, o
dizível. Tanto nos discursos de Deodoro quanto nos de Floriano, cidadão refere a
indivíduos ou grupos/classes sociais da nação, apontando para uma divisão hierárquica
que se dá entre o cidadão e o Estado e, ao mesmo tempo, entre os próprios cidadãos,
divididos em categorias distintas, nas quais se incluem e pertencem, como vimos, apenas
setores e segmentos sociais determinados. Cidadãos e sua concorrente cognata
concidadãos aparecem predominantemente no plural e funcionam, nos dizeres dos dois
presidentes, estabilizando os sentidos, como marcas formais que fazem ecoar, que dizem
e afirmam a República como uma nova forma de governo para, de algum modo,
aproximar o governo de seus governados, uma vez que carregam uma memória
republicana ocidental. Tais palavras, no entanto, não significam como a reivindicação de
uma nova prática política em que o povo participa coletivamente no regime republicano,
mas sim como um discurso patriótico sentimental, que constrói a identidade nacional
pautada por sentimentos individuais e ligada a um imaginário de pátria. O nacionalismo
patriótico é assim reforçado pelo emprego de palavras concorrentes não cognatas, como
nação, pátria, brasileiros, irmãos, que entram produzindo os sentidos de amor à Pátria,
bem como de irmandade e de adoração ao regime e ao governo.
Pelo movimento de polissemia, que produz deslocamentos e rupturas no
processo de significação, notamos que, nos discursos de Deodoro e de Floriano, a
palavra República significa pelo equívoco. No dizer de Deodoro, a instauração do regime
republicano é predicado como uma revolução nacional que se dá, contraditoriamente,
por uma comunhão de sentimentos, ou seja, pelo viés do pacifismo. A República designa
um processo político em que se afirma um rompimento com o passado, mas não se
explicita nominalmente o presente; desse modo, o regime republicano aponta para a
continuidade. Ao mesmo tempo, nos discursos de Floriano, vimos que a República é
pautada pelos sentidos de um acontecimento liderado pelo militarismo, que reivindica
seu lugar no processo de consolidação do regime. Desse modo, os sentidos se deslocam,
produzindo deslizamentos, e República vai significando, pelo viés do conflito, como um
embate, um processo penoso, como algo que deve ser defendido, afirmado, salvo e,
assim, consolidado, pois sofre constantes ameaças e instabilidades em sua ordem
interna.
Nessa tensão entre o mesmo e o diferente, entre o conflito e o pacifismo, o sujeito
republicano, nos dizeres de Deodoro e de Floriano, significa como aquele que deve amar
a Pátria e a República, bem como preservar a ordem pública, sem questionar as decisões
e medidas do governo, o que garantiria um suposto progresso do país. O cidadão
brasileiro não estabelece, portanto, uma relação política participativa e democrática com
o Estado Republicano, mas sim uma relação sentimental, em que deve ser devoto de seu
governo e admirador de seus líderes, mas não participante nas decisões públicas.

9. REFERÊNCIAS

CARVALHO, J.M de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2003.
72
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas: Pontes Editores, 2002.

GUIMARÃES, E. Domínio Semântico de determinação. In: Guimarães, E.; Mollica, M. C.


(orgs.). A palavra: forma e sentido. Campinas, SP: Pontes Editores, 2007.

GUIMARÃES, E. Análise de texto: procedimentos, análises, ensino. Campinas: Editora


RG, 2011.

HOUAISS, A. Minidicionário da língua portuguesa.4.ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

HOBSBAWM, E.J. A revolução francesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1996.

LESSA, R. A invenção republicana: Campos Sales, as bases e a decadência da primeira


república brasileira. Rio de Janeiro; São Paulo: IUPERJ: Vertice, 1988.

OLIVEIRA, S.E. Cidadania: história e política de uma palavra. Campinas: Pontes Editores,
RG Editores, 2006.

OLIVEIRA, S.E. Cidadãos e concidadãos nos discursos de posse da Primeira República.


Signum: Estudos da Linguagem, v.15, n.3, p. 105-128, 2012.

ORLANDI, E.P. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 7. ed. Campinas:


Pontes Editores, 2007.

PEIXOTO, S. Floriano: memórias e documentos. Vol. IV. Rio de Janeiro: Ministério da


Educação, 1939.

PENNA, L. de A. República brasileira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

73
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

ESTUDOS ÁRABES

A LITERATURA ÁRABE E SEU IMPACTO NO OCIDENTE13

Peter France

ANTECEDENTES
A invasão napoleônica no Egito em 1798 pode ser considerada como o ponto de
partida da literatura árabe moderna. O século XIX foi tido pela primeira vez na sua
história em grande parte do Oriente Médio se mostrou exposto de maneira sistemática a
uma influência em grande escala das ideias europeias e a revisão da sociedade islâmica
tradicional que esta influência trouxe consigo com importantes consequências e em
todos os casos nos mais diversos âmbitos da vida árabe (político, econômico, social,
educativo, etc.). Junto a estas mudanças também se produziram outras de grande
importância para o desenvolvimento da literatura árabe moderna, entre os quais se
incluem o crescimento do novo público leitor, o nascimento de um período autóctone e o
impulso de um novo estilo da prosa árabe, mais simplificada. Tanto no âmbito da poesia
quanto da prosa, os autores reimplantaram as convenções da literatura árabe
tradicional e, ao mesmo tempo, o aumento do número de traduções de textos ocidentais
permitiu que leitores recém alfabetizados tivessem acesso a estilos literários europeus.
O renascimento literário e cultural (nahda, em árabe) alcançou seu ponto culminante no
último terço do século XIX e se completou de maneira efetiva na época da Primeira
Guerra Mundial; Assim, a poesia teria visto florescer um vigoroso movimento
neocl|ssico , enquanto as formas liter|rias tradicionais da prosa |rabe teriam sido
praticamente substituídas pela novela ocidental, os contos e o teatro.

A FICÇÃO ANTES DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL


O desenvolvimento da literatura árabe moderna tardou a exercer algum impacto
no Ocidente e a primeira obra que teve atenção fora do Oriente Médio foi a primeira
parte da novela de Tâhâ Husain titulada Al-ayyâm (Os dias) e escrita em 1929. Trata-se
de um dos trabalhos mais queridos na literatura árabe moderna, uma autobiografia
escrita basicamente em terceira pessoa que narra a educação e a criação de um menino
cego em uma aldeia do Alto Egito. A importância dessa obra ficou creditada quando se
publicou em 1932 sua tradução inglesa, assim como sua tradução em diferentes línguas
europeias. Dois novos volumes da autobiografia de Tâhâ Husain foram publicados em
árabe em 1939 e 1967, respectivamente, também foram traduzidas para o inglês.
A partir de um ponto de vista estilístico, Al-ayyâm é uma obra peculiar, sobre
todo seu primeiro volume. Combina os paralelismos típicos da prosa árabe clássica com
o estilo particular do autor, o qual plantou enormes problemas para o tradutor.

13 Texto original: FRANCE, Peter. La literatura árabe moderna y su impacto em Occidente. Disponível em
http://www.libreria-
mundoarabe.com/Boletines/n%BA86%20Oct.10/LiteraturaArabeModernaImpacto.htm. Artigo traduzido
por Marcos dos Reis Batista.
74
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Infelizmente, as peculiaridades que proporcionam seu encanto em língua árabe de Tâhâ


Husain soam em alguns idiomas ocidentais como algo simplesmente extravagante.
O trabalho de Tâhâ Husain também foi o primeiro a atrair a atenção do Ocidente,
algumas obras de ficção anteriores já haviam sido traduzidas para vários idiomas
europeus. Hadîz Îsâ ibn Hishâm A história de Îs} ibn (ish}m , -1902) de al-
Muwayli hî, representa o final de uma grande tradição, e talvez seja a última grande obra
árabe escrita como uma série de maqâmât, um estilo de narrativa clássico que emprega
a prosa rimada. Como tal, para o tradutor, essa apresenta problemas muito diversos em
relação às obras de ficção mais modernas. Resulta de modo assombroso que somente
vinte anos separam a obra de al-Muwayli hî da primeira novela árabe com um trama
genuinamente contemporâneo: Zaynab (1913), de Muhammad Husayn Haykal, escrita
enquanto o autor estava estudando na Europa. Entretanto, este relato sentimental de
amor e de vida campesinos que reflete a nostalgia do autor pelo seu país de origem
possui um certo ar antiquado.
Mais atrativas são as quatro novelas de Tawfiq al-Hakîm, todas elas
autobiografias que mostram uma tendência já estabelecida na obra de 1931 de Ibrâhîm
al-Mâzinî intitulada Ibrâhim al-kâtib (Ibrahim, o escritor). Desde um ponto de vista
estrutural, Yawmiyyât nâ ib fî al-aryâf (Diário de um fiscal rural) é considerada a mais
importante das novelas de al-Hakîm, se destacando em virtude de algumas críticas
sociais mais fortes que podemos encontrar na novela árabe anterior da década de 1950.
Ao contrário, tanto Awdat al-rû h (O regresso do espírito, 1933) como Us fûr min al-
sharq (Pássaro do leste, 1938) estão marcadas por uma falta de unidade artística que
nenhum tradutor pode desfazer. Entretanto, o elemento nacionalista nas primeiras
novelas lhes assegura sua constante popularidade, ao menos para o falecido presidente
egípcio Nasser. Enquanto a segunda é um dos primeiros exemplos importantes de uma
obra que ilustra uma série de temas relacionados com o conflito de valores entre o
Oriente e o Ocidente. Esses temas, de certo modo, procedente das experiências vividas
pelos árabes que estudavam no Ocidente, foram desenvolvidos mais tardes por uma
série de autores, tanto egípcios como de outros lugares do mundo árabe. Entre outros
exemplos, podemos mencionar a obra de 1942 intitulada Qindîl Umm Hâshim (A
lâmpada de Umm Hâshim) do egípcio Yahyâ Haqqî, e Mawim al-hiyra ilâ al-shimâl
(Época de migração para o norte) de 1966, escrita pelo autor sudanês al-Tayyib Salîh.

A FICÇÃO DEPOIS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL


O desenvolvimento da novela e o relato curto no mundo árabe depois da Segunda
Guerra Mundial experimentaram uma sofisticação cada vez maior no que diz respeito às
técnicas narrativas e a diversidade dos temas tratados, sobre um fundo político em
constante evolução que a menos fica refletido nas distintas tendências literárias. Muitas
dessas tendências se mostram nas obras de Nayîb Mahfûz, o escritor mais conhecido do
mundo árabe e ganhador do Prêmio Nobel, do qual falaremos mais adiante. A primeira
das tendências principais, o compromisso (iltizâm em árabe) teve sua origem em uma
combinação de acontecimentos políticos e sociais e a obra que melhor reflete é Al-ard (A
terra de cujo autor é Abd al-Ra mân al-Sharqâwî e da qual se levou a decidir que
possível que seja a obra mais conhecida da moderna ficção árabe, tanto dentro quanto
fora das regiões próximas ao Oriente Médio e redondezas. O livro gira em torno de
certos aspectos do poder e da corrupção e emprega um tom descaradamente socialista.
75
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

Um dos principais meios para atrair a atenção do leitor é o uso de uma língua coloquial
nos diálogos, uma técnica que al-Sharqâwî desenvolve usando diversos dialetos em
função do falante e que resulta quase impossível a reflexão nas traduções.
Talvez o leitor ocidental possa apreciar melhor o realismo desta fase da prosa
árabe nas coleções de relatos curtos de escritores como Yûsuf Idrîs. A primeira coleção
de relatos de Idrîs, Arjas layâli (As noites mais baratas) publicada em 1954 e
ambientada no Cairo e no entorno rural egípcio, analisa de maneira excepcional as
fraquezas da espécie humana e provocou uma grande controvérsia desde o momento de
sua aparição. A obra de Yûsuf Idrîs não está marcada somente por um realismo cru,
como também pelo emprego de uma linguagem absolutamente inconfundível que ao
menos vai além do simples uso do dialeto egípcio nos diálogos, colocando em relevo as
características do dialeto coloquial incluso às passagens narradas. Existem também boas
traduções das obras de Yûsuf Idrîs, ao menos em parte, muita dessas características
podem se perder.
A atmosfera do compromisso que dominou a literatura |rabe durante a década
de 1950 começou a se perder com a chegada da década seguinte, quando o idealismo da
revolução egípcia de 1952, encabeçada pelos oficiais livres, deu passo a desilusão. O
novo estado de ânimo no Egito fica refletido na obra de um grupo de autores
frequentemente conhecido como a geraç~o dos sessenta e entre os quis destacam Sun
Allâh Ibrahîm, Yamâl al-Ghîtânî e Yûsuf al-Qa îd. Provavelmente a obra que melhor
reflita esse novo estado de ânimo seja a novela de Sun Allâh Ibrahîm intitulada Tilka al-
râ iha Esse cheiro, um inspirado exemplo autobiogr|fico de literatura de pris~o
árabe em que o protagonista recém saído do cárcere, anda sem rumo pelo Cairo,
tentando em vão forjar relações com pessoas do seu passado. A sordidez que destila
toda a obra e as descrições explícitas de temas sexuais causaram indignação na sua
primeira publicação. Entretanto, vem sendo uma crônica lograda de monótonas vidas
das classes baixas do Cairo.
Especialmente exigente desde o ponto de vista do tradutor são as obras de Yamâl
al-Ghît}nî, cujo o uso frequente da intertextualidade oferece a soma de uma
dificuldade; o tradutor não enfrente somente os habituais problemas linguísticos e
culturais de traduzir do árabe, como também a tarefa de refletir, dentro da mesma obra,
uma série de estilos literários que em outras ocasiões podem incluir complexas alusões
históricas. Um bom exemplo em particular é o caso das obras de al-Ghîtânî, a novela
intitulada Al-zaynî barakât (1971) a qual incorpora textos do historiador medieval Ibn
Iyâs e outro material escrito com este mesmo estilo, dentro de um trabalho que retrata
com imagens alegóricas a corrupção no Egito contemporâneo.
Uma voz absolutamente inconfundível na literatura árabe moderna, ainda que
muito relacionada com a geraç~o dos sessenta é a de )dw}r al-Jarrât que ganhou a
reputação de ser um autor especialmente difícil para traduzir. O domínio da sutileza da
língua árabe por parte de al-Jarrât é muito superior a da maioria de seus
contemporâneos e seu estilo de digressões a menos produz um efeito semelhante a um
poema em prosa.
Ainda que muitas das mais recentes e interessantes inovações da prosa árabe se
produziram no Egito, outras partes do mundo árabe também experimentou um
crescimento na produção de obras de ficção inovadoras, somente uma parte das quais
tem sido traduzida até agora a algumas línguas europeias. Entre os trabalhos mais
ambiciosos estão os cinco volumes da obra intitulada Mudun al-milh (Cidades de sal, de
76
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

19 do autor saudita Abd al-Rahmân Munîf, que narra os progressos de uma


comunidade beduína ao longo do século XX abundante de petróleo, porém, dominada
pelo Ocidente. A obra supõe um desafio importante para seu tradutor e oferece uma
perspectiva do Oriente Médio muito diferente da maioria das novelas egípcias do mesmo
período.
As traduções das novelas de al-Jarrât são raros exemplos de trabalhos traduzidos
e publicados exclusivamente por seu valor literário e artístico. No reduzido mercado da
literatura árabe moderna para línguas ocidentais, o fator comercial também tem um
papel importante, pois o gosto de leitores se vê influenciado em grande medida pelas
modas do momento. Um exemplo deste fenômeno pode ser visto no aumento das
traduções das obras de Nayîb Mahfûz, depois que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura
em 1988 e no auge das traduções de trabalhos escritos por mulheres durante os últimos
anos. A moda não é, desde então, garantia de excelência, seja do original, seja das
traduções. Por exemplo, a relativa popularidade alcançada por suas traduções dos
trabalhos de Nawâl al-As d}wî sem d’vida se deve mais { admiraç~o por sua coragem
como feminista declarada do que as opiniões dos críticos literários.

TEATRO
As influências ocidentais que proporcionaram a substituição gradual das formas
árabes tradicionais de narração em prosa pela novela e pelos relatos curtos também
deram seus frutos na criação de um teatro ao estilo ocidental no Oriente Médio. As
primeiras experiências nesse sentido tiveram lugar em Beirute em 1847, ainda durante
a maior parte do século XIX e princípios do século XX, as produções teatrais se limitaram
em grande parte à comédia e ao melodrama, junto a adaptações livres de obras de teatro
ocidentais. A criação de um teatro egípcio maduro começou com os esforços de
Muhammad Taymûr, Antûn Yazbak e Ibrâhîm Ramzî, na Primeira Guerra Mundial e
culminou com Tawfîq al-Hakîm, quem dominou o teatro egípcio desde a década de 1930
até muito tempo depois da Revolução dos Oficiais Livres em 1952.
Embora as primeiras obras teatrais classificadas de tipo intelectual como Ahl al-
kahf (Gente da caverna, 1933) e Shahrazâd (Sherezade, 1934) sendo estas algumas das
mais importantes de Tawfîq al-Hakîm, muitas foram escritas para ser lidas em lugar de
ser interpretadas, enquanto que as obras posteriores – desde a década de 1960 adiante –
mostram a influência de técnicas procedentes do teatro ocidental de vanguarda. Entre
estes trabalhos destaca Yâ tâli al-shayara (O escalador de árvores, 1964) a primeira obra
teatral de al-Hakîm que mostra a influência do teatro do absurdo. A obra se caracteriza
por seus animados e velozes diálogos, sua frescura e seu tom festivo.
A produção teatral de al-Hakîm também incluiu uma série de obras sobre temas
sociais publicadas no final da década de 1940 e início dos anos 1950, com destaque para
a mais significativa entre as quais se destaca é Ughniyat al-mawt (Canção da morte,
1947) , quiçá a obra teatral mais longa em árabe. A peça gira em torno do conflito entre
os valores tradicionais e os modernos, um tema que lembra o cenário da já citada
Yawmiyyât nâ ib fî al-aryâf, uma de suas primeiras novelas. Uma vez mais, a obra se
caracteriza pelos rápidos diálogos cruzados entre os personagens, uma questão que
apresenta problemas específicos aos tradutores.
Um problema habitual para os dramaturgos árabes tem sido a eleição entre o
árabe clássico e o coloquial como meio de comunicação. Al-Hakîm escreveu a maior
77
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

parte de suas obras teatrais em |rabe cl|ssico, também {s vezes foram traduzidas ao
coloquial quando eram interpretadas. Porém estas questões vêm sendo objeto de
acalorado debate, assim como o tradutor deve enfrentar forçosamente o difícil dilema de
adaptar um ou outro registro, sendo inevitável que grande parte da paixão que
despertam entre certos setores da elite cultural árabe se perde nas versões traduzidas.
Como no caso da novela, o teatro recente se caracterizou por sua crescente
tendência à experimentação e, ao mesmo tempo, por uma vinculação cada vez maior
com a televisão. Tem tido também um considerável aumento da atividade teatral fora do
Egito (Líbano, Palestina, Kuwait, Iraque e Tunísia), destacando em especial o caso da
Síria, um país onde a recente inovação teatral – também talvez inesperada – tem sido
especialmente chamativa.

POESIA
A poesia árabe moderna se divide em três fases bem definidas, também
sobrepostas: neocl|ssica , escrita em sua maioria entre o ’ltimo terço do século X)X e a
Primeira Guerra Mundial; rom}ntica , escrita em sua maioria no período do
entreguerras e a modernista . Cada um destes estilos poéticos apresentou problemas
específicos aos tradutores. Enquanto que a poesia neoclássica soube conservar de
maneira estrita os esquemas métricos e rítmicos da poesia árabe medieval, com seus
problemas de tradução correspondentes, o estilo romântico esteve muito influenciado
pela poesia romântica ocidental, não somente em sua maneira de entender a poesia,
como também, até certo ponto, na sua adoção de uma ampla variedade de formas
poéticas. Quando se traduzem a algumas línguas europeias, estes poemas tender a soar,
no melhor dos casos, como antiquados, e no pior, como uma simples imitação da poesia
romântica ocidental.
Quiçá seja em parte esta razão pela qual se tenha traduzido relativamente pouco
a poesia neoclássica e romântica. A maioria da poesia árabe traduzida recentemente
data do período posterior a Segunda Guerra Mundial, quando os poetas começaram a
adotar técnicas modernistas vindas do Ocidente, incluindo o uso da prosa poética e
várias formas de verso livre. Como no caso da novela, a eleição do material a traduzir às
vezes se viu influenciada por questões políticas, além das estritamente literárias. Entre
os poetas mais traduzidos deste período estão os palestinos Mahmûd Darwîsh, Samîh al-
Qâsim e outros. Dentre estes, talvez a poesia de Darwîsh seja a mais universal e atrativa.
Dentre toda a sua produção poética disponível em numerosos idiomas, destacam obras
como sua autobiografia, escrita em forma de prosa poética durante o bombardeio
israelense de Beirute e intitulada Dhâkira lil-nislân (Memória para o ouvido, 1995).
Grande parte da literatura palestina se viu inevitavelmente presa por acontecimentos
políticos, porém, está longe de ser uma literatura monolítica. Também têm sido
publicadas traduções de obras completas de autores como Boullata, Asfour, Jouri e
Algar, al-Udhari, jayyusi e, acima de todos, Adûnîs, talvez o mais inovador e um ícone
entre os poetas árabes modernos.

NAGUIB MAHFOUZ
Considerado por muitos como um dos melhores novelistas do século XX e
também como a figura literária mais criativa e fecunda do mundo árabe moderno, o
78
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

escritor egípcio Naguib Mahfouz (Nayîb Mahfû) produziu mais de 30 novelas e várias
coleções de contos e obras teatrais com um amplo peso literário. Embora suas primeiras
obras se caracterizem pelo realismo e pelos detalhes da vida urbana no Cairo, o estilo
narrativo das últimas obras de Mahfouz recuperou os modelos narrativos tradicionais
do árabe e sua tradição literária clássica, no lugar dos estilos europeus que previamente
ele tinha empregado e adaptado.
Mahfouz tem sido e continua sendo muito lido em todo Oriente Médio, onde
exerceu uma tremenda influência no desenvolvimento de novelas, muito antes de
receber o reconhecimento internacional. Em 1988 se tornou o primeiro escritor árabe a
ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Eclético na eleição dos temas, Mahfouz se
expressou em vários gêneros: realismo social, como em sua obra de 1947 intitulada
Zuqâq al-Midaq (Saída de Midaq) e de novo em 1956, com sua trilogia do Cairo; novela
negra em 1949, com Al-liss wal-kilâb ( O ladrão e os cachorros) e em 1951, com Bidâyah
wa nihâyah (Princípio e fim); psicanálise, metafísicas e alegorias, como em seu Awlâd
hâratinâ (Filhos do nosso bairro). Mahfouz trata temas como a alienação, a frustração
política e a responsabilidade moral, os quais podem se encontrar em grande parte na
ficção contemporânea.
A Trilogia do Cairo consta de Bayn al-qasrayn (Entre dois palácios), Qasr al-
shawq (Palácio do desejo) e Al-sukkariyya (O açucareiro). Esta trilogia deu fama a Naguib
Mahfouz e permitiu ser conhecido fora dos círculos literários egípcios. Nela o autor
retrata um espírito nacionalista egípcio em elevação e a luta para escapar do domínio
britânico. Afirma-se que a publicação de uma tradução para o francês das primeiras
partes da trilogia se tornou importante fator que favoreceu a concessão do Prêmio Nobel
a Mahfouz.
A exceção de um número limitado de leitores, a importância de Mahfouz como
mestre da linguagem foi relativamente ignorada no Ocidente até não fez demasiado
tempo, apesar de que algumas de suas obras já tinham sido traduzidas para o inglês e
para o francês antes da concessão do prêmio Nobel. No The Politics of Dispossession
(1995) Edward Said comenta a aparente reticência das principais editoras dos Estados
Unidos para as traduções do árabe.
O uso que fez Mahfouz do árabe padrão nos diálogos de suas obras é uma linha
característica de seu estilo literário e isto facilita o trabalho do tradutor, pois resulta
extremamente complexo traduzir as formas do árabe dialetal. Quando o tradutor deve se
ocupar de expressões coloquiais no idioma original pode decidir abreviá-las ou
empregar uma linguagem padrão em versão traduzida. Em outras ocasiões, esta pode
ser a única opção para evitar que se veja afetada a coerência do texto em seu conjunto.
Ao contrário, o uso de localismos pode desorientar alguns leitores, como ocorre no caso
do emprego de norte-americanismos como okey (tudo bem) ou buster (macho, tio, etc.)
em algumas traduções para o inglês de obras de Mahfouz, como, por exemplo, Pal|cio
do desejo . Outra possibilidade é empregar a transliteraç~o |rabe para se referir aos
termos com fortes conotações culturais e logo fazer uso de uma série de notas de rodapé
ou empregar glossários esclarecendo determinados termos, fazendo com que os textos
se tornem mais acessíveis aos leitores estrangeiros. Isto é, por exemplo, o caso de
Mirâyâ, de 1972 (Espelhos), uma novela enquadrada na vida política egípcia e que
contém inúmeras referências a figuras históricas e aos principais partidos políticos, com
os quais o leitor ocidental provavelmente estará pouco familiarizado. Contudo, as notas
também podem ser úteis e oferecer certa informação ao leitor da tradução, seu abuso
79
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

pode resultar negativo, pois rompe o ritmo da leitura e frustra todo o interesse de
superar a especificidade do cenário, não fazendo justiça a intenção universalista e
transcultural do texto original. Pode também acontecer que o leitor ocidental de
traduções de obras árabes de ficção, sobretudo quando as traduções são bastante
literais, fazendo com que se percebam aspectos desconcertados e alguns arcaísmos e
aforismos em certas expressões que, de feito, são algo habitual em língua árabe e não
indicam o uso de um estilo especialmente recarregado por parte do autor.

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

EPALZA, Míkel. Traducir del árabe. Barcelona: Gedisa, 2004.

MONTÁVEZ, Pedro Martínez. Contribuición para uma bibliografía de la literatura árabe


del siglo XX. Madrid: Instituto Hispano-árabe de Cultura, 1966.

MONTÁVEZ, Pedro Martínez. Introducción a la literatura árabe moderna. Granada:


Cantarabia, 1994.

MONTÁVEZ, Pedro Martínez. Literatura árabe de hoy. Madrid: Cantarabia, 1990.

VÁRIOS AUTORES. Arabismo y traducción. Madrid: CSIC, 2003.

VÁRIOS AUTORES. La traducción de la iteratura árabe contemporânea: antes y después de


Naguib Mahfuz. Cuenca: Universidad de Castilla-La Mancha, 2000.

VÁRIOS AUTORES. Literatura árabe anotada (1967-1998). Alicante: Universidad de


Alicante, 2000.

VÁRIOS AUTORES. Traduccióny interculturalidad. Madrid: Cantarabia, 2009.

VERNET, Juan. Literatura árabe. Barcelona: El Acantilado, 2002.

YABRA, Yabra Ibrahim. Literatura árabe moderna y Occidente. Madrid: Revista Alif nûn,
número 52 (set. 2007).

YABRA, Yabra Ibrahim. Literatura árabe moderna y Occidente. Madrid: Revista Alif nûn,
número 53 (out. 2007).

80
FACULDADE PAN AMERICANA
Saberes linguísticos n Amazônia – ISSN 2316-8471

81

Você também pode gostar