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REVISTA ACADÊMICA
ISSN 2316-8471
CAPANEMA (PARÁ) – ANO 1 – NÚMERO 4 – 2013
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APRESENTAÇÃO
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SUMÁRIO
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FORMAÇÃO DOCENTE
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INTRODUÇÃO
As investigações com foco em identidades têm ganhado grande espaço no campo
da Linguística Aplicada nas últimas décadas, o que pode ser visto através do grande
número de publicações sobre o tema na área e a quantidade crescente de pesquisas que
têm as identidades, nos mais variados contextos, enfocadas (MOITA LOPES, 2002; 2006).
Pensar em identidade atualmente implica em deslocar a ênfase sobre a descrição de
sujeitos, enfocando-a sobre a ideia de tornar-se, uma concepção que envolve movimento
e transformação a partir de uma noção de linguagem que opera e realiza o que se diz
(BUTLER, 1997).
Aprender uma língua estrangeira implica em engajar-se na contínua produção
das identidades (RAJAGOPALAN, 2001) dos sujeitos participantes do processo de
ensino-aprendizagem, especialmente quando identidade é entendida como relação, não
como característica fixa ou naturalmente dada (NORTON, 2000). Assim, enfocar a
identidade dos sujeitos participantes no processo de ensino-aprendizagem de inglês
como LE é importante pelo fato de tal enfoque possibilitar um maior acesso ao tipo de
relações sociais que se estabelecem nos contextos formais de ensino, isto é, na sala de
aula, bem como aos discursos que posicionam o sujeitos e as interações que constroem e
(re)negociam identidades, se constituindo enquanto conflitantes. Tratar da identidade
dos sujeitos da aprendizagem é também apropriado por permitir que lidemos com
questões individuais e sociais de forma mais equilibrada, não dissociando o sujeito de
seu contexto, não fazendo dicotomias entre fatores individuais e sociais, mas
reconhecendo-os enquanto tais em sujeição à estrutura e, ao mesmo tempo, em agência
e operação, num modelo de relação em constante formação e transformação. Além disso,
é também importante ressaltar, como o faz Norton (2000), que as identidades não são
algo simplesmente abstrato ou neutro, mas são todas políticas, engendradas em relações
desiguais de poder. Isso nos impele a outra razão para justificar a importância das
investigações sobre a construção de identidades: elas são responsáveis por promover ou
negar acesso a interações na nova língua, rotulando e categorizando quem são os
sujeitos que podem ter acesso às práticas interativas no processo de aprendizagem
(NORTON, 2000; NORTON e TOOHEY, 2002).
Nessa perspectiva teórica, o projeto maior intitulado Quem pode ensinar, quem
pode aprender? A construção de identidades em contextos de ensino-aprendizagem de
língua estrangeira gera este plano de trabalho com o objetivo específico de investigar a
maneira como as identidades de alunos de inglês no curso de Letras Inglês são
construídas, bem como as relações e interações no contexto de aprendizagem que
produzem tais identidades.
Tendo como foco esse objetivo, o trabalho buscará responder às seguintes
perguntas de pesquisa:
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O QUE É IDENTIDADE?
LÍNGUA E IDENTIDADE
Ao estudar uma língua, investe-se não somente em um meio de comunicação
alheio ao sujeito, mas também em duas outras aquisições: de um mundo ideológico e de
uma sequência de raciocínio até então diferente para o estudante da língua. Logo, a
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questão da identidade se coloca em xeque nesse ambiente, pois se trata de uma área
onde facilmente aspectos linguísticos se cruzam com aspectos identitários.
A língua por si mesma já é diversificada, se considerarmos suas variações
regionais. Uma variação linguística, por sua vez, é dotada de algum valor específico
dentro de uma sociedade, o que atribui ao seu falante valor semelhante. Por exemplo, há
uma variação da língua que é adotada como padrão, geralmente sendo de caráter
complexo e de difícil acesso popular. No ambiente profissional, se o falante não detém
conhecimento das normas da língua padrão, geralmente, é discriminado e, em alguns
casos, até mesmo recusado por não saber empregá-la. Isso ocorre não apenas no âmbito
do mercado de trabalho, como também em outros ambientes sociais. A própria mídia
tem o poder de selecionar uma variação como padrão, tornando-a prestigiada ou não,
dependendo da maneira como é abordada. Maurizzio Gnerre (1985) afirma que o
emprego de uma variedade linguística atribui valores ao seu falante, valores esses que
nela anteriormente foram embutidos. Em outras palavras, uma variedade da língua
reflete o poder e a autoridade que seus falantes têm nas relações econômicas e sociais.
Assim como Gnerre (1985), outros pensadores também trataram a respeito da
relação entre sujeito, identidade e língua. Lacan (1977), por exemplo, reafirma o
pensamento de Gnerre sob uma perspectiva psicanalista, pois defende que o sujeito se
afirma na linguagem. Maurice Merleau-Ponty (2007), entretanto, afirma que toda
linguagem é indireta , que, no di|logo, cada ego se demite de si para se atingir no outro.
As imagens sociais erigidas de acordo com o uso da língua em situações
pragmáticas tratam de identidades coletivas. Todavia, a discriminação que ocorre nesses
ambientes também é concernente à identidade do sujeito, uma vez que o indivíduo se vê
sujeito a essas ocorrências, podendo, inclusive, influenciar em sua identidade pessoal.
Segundo Foucault: na )dade Cl|ssica, as línguas tinham uma gramática porque tinham
poder de representar; agora representam a partir dessa gram|tica FOUCAULT, ,
p. 257).
O mecanismo interior das línguas, além de determinar a semelhança e a
individualidade entre elas, também exerce a função de portador de identidade e de
diferença. O que define uma língua é seu sistema flexional, sua arquitetura interna que
modifica as próprias palavras segundo a postura gramatical que ocupam umas em
relaç~o {s outras FOUCAULT, , p. . No entanto, a maneira como ela edifica as
representações é de ordem social.
É muito comum encontrarmos as conceituações e referências a respeito do que
seja fazer uso da língua na vida cotidiana relacionadas, de um modo ou de outro, a uma
visão de que ela (a língua) seja um veículo por meio do qual se descrevem realidades ou
um meio neutro de comunicação. Em princípio, é para isso que aprendemos desde
criança a fazer uso da linguagem: para estabelecer comunicação. Referências como essas
fazem com que o significado de se fazer uso da linguagem seja meramente o
desempenho da função que ela possuiria de estabelecer contato, de transmitir ideias que
as pessoas possuem, de conectar as mentes dos indivíduos e uni-los, possibilitando
assim que possam se expressar e, ao fazê-lo, expressar o que são. Essa seria uma visão
representacionalista de linguagem, a qual a vê como código transparente e neutro que
supostamente representaria as coisas.
Em uma visão representacionalista de linguagem, como o próprio nome sugere,
ela seria responsável por representar o mundo. Do latim re- prefixo de novo, de volta
e praesentare que se refere a trazer algo { presença de; mostrar; exibir; pôr algo diante
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alguém é essa, tal pessoa é assim – para a idéia de tornar-se , para uma concepç~o da
identidade como movimento e transformação a partir de uma noção de linguagem que
opera e realiza o que se diz. Uma concepção de linguagem como produtiva e
performativa, um fazer, porém,
Essa forma natural de ser , da qual Butler 990) fala no trecho citado, que
aparece naturalizada, como se sempre fora assim, é o que conhecemos como o normal ,
normalizado, não passível de questionamentos. Isso acontece em todas as realidades que
nos cercam, inclusive na pedagogia que, conforme aponta Giroux (1999, p. 13), constrói
conhecimento, relações sociais e subjetividades2. Enquanto tal, portanto, a sala de aula
de LE deveria ser explorada a partir do que lhe é normal, natural , baseada em uma
perspectiva performativa de linguagem, como aponta Butler (1990). A linguagem
performa realidades e faz identidades em cada ato de fala. Para ser produtiva, carrega
em si uma historicidade condensada, que não tem origem no sujeito que fala, mas faz
parte de uma rede contextual histórica e discursiva, a qual acumula e, ao mesmo tempo,
dissimula sua força.
Diante dessas considerações sobre como as identidades são construídas e como
podem ser acessadas, consideramos importante abordar a seguinte questão: por que
falar em identidade na aprendizagem de inglês como língua estrangeira? De acordo com
Norton e Toohey (2002, p. 115), tal aprendizagem engaja as identidades dos aprendizes
pelo fato de que língua não é apenas um sistema lingüístico de signos e símbolos, mas
também uma prática social complexa, de atribuição de valor e significado a quem fala. As
atribuições de valor e de significado têm a ver com a forma como os falantes e, no caso,
os aprendizes, se identificam e são identificados enquanto sujeitos e participantes em
um determinado contexto de interação. A língua estrangeira, enquanto tal, também tem
um papel ativo na contínua produção das identidades dos aprendizes, especialmente
quando identidade é entendida como relação, não como característica fixa ou
naturalmente dada3. Assim, é o papel íntimo e crucial que a língua exerce na construção
das identidades que faz com que seja também íntima a relação entre identidade e LE,
bem como, a meu ver, de grande importância as investigações sobre a construções
identitárias no processo de ensino-aprendizagem de língua estrangeira.
Como já foi dito anteriormente, em outras seções neste capítulo, tratar de
identidade nos remete, mais comumente, à idéia de identidade nacional, que marca as
fronteiras de uma determinada cultura – certas características definidas, atribuídas a um
2 Pedagogia, para esse autor, não se resume a apenas um conjunto de estratégias e habilidades para
ensinar conte’dos, mas, num sentido mais amplo e crítico, como uma forma de produç~o política e
cultural profundamente envolvida na construção de conhecimento, subjetividades e relações sociais
(GIROUX, 1999, p. 13).
3 Essa idéia de identidade como relação é também defendida por Skutnabb-Kangas (1991 apud
Rajagopalan, 2001, p. 87), que busca enfatizar que, por não ser característica, mas sim relação, as
condições de negociação de identidade devem ser também consideradas como objetos vitais de estudo.
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grupo de indivíduos. A idéia da identidade cultural, entretanto, tem sido criticada por
alguns autores que adotam uma perspectiva de estudos da pós-modernidade pelo fato
de ser, segundo eles, uma tentativa de fixação da identidade. Norton (1997b) afirma
preferir o termo identidade social a identidade cultural, explicando que esse último
tende a entender a identidade como homogênea e fixa, com categorias preconcebidas.
Para a autora, a identidade social é a relação entre o indivíduo e o mundo social mais
amplo, mediada por instituições, tais como família, escola, local de trabalho, serviços
sociais e tribunais de justiça (NORTON, 1997b, p. 420). Em outro momento, Norton
(2000, p.5) define a identidade como a forma como uma pessoa entende seu
relacionamento com o mundo, como esse relacionamento é construído ao longo do
tempo e do espaço e como a pessoa entende as possibilidades para o futuro. Com isso, a
autora procura enfatizar que os estudos de aquisição de segunda língua (SLA – Second
Language Acquisition) precisam desenvolver uma concepção de identidade que seja
compreendida com referência a estruturas sociais mais amplas e frequentemente
desiguais e injustas, que são reproduzidas (e, enfatizaríamos, também produzidas) na
interação social do cotidiano. Nessa compreensão de identidade, a língua possui um
papel fundamental: ela é constitutiva e constituída pela identidade do aprendiz. Isso
também se assemelha ao que propõe Heller (1987), pois a autora dá lugar de destaque à
língua na formação da identidade. Para ela, é através da língua que a pessoa negocia sua
compreensão de si mesma (self) em diferentes lugares e momentos no tempo. É também
através da língua que a pessoa ganha acesso – ou esse lhe é negado – a redes sociais de
poder que dá aos aprendizes oportunidades de falar. Com isso, podemos perceber que a
língua não é simplesmente um meio neutro de comunicação, mas é nela e por meio dela
que os significados são construídos e as relações sociais estabelecidas. Nesse mesmo
sentido, essa compreensão do lugar da língua na construção da identidade e na
propiciação de acessos às relações sociais pode também ser transportada para o
contexto das relações que se estabelecem na sala de aula, considerando a visão que
Canagarajah (1999) tem desse ambiente enquanto um lugar de autonomia relativa – ao
mesmo tempo que se faz sob a influência do mundo social externo, possui maneiras
próprias de se constituir, de estabelecer relações entre os sujeitos e de resistir a práticas
já estruturadas.
Indo além, tendo em vista a produção da identidade não como categorias sociais
ou culturais fixas, mas como uma questão de performatividade, como uma constante e
contínua negociação de como nos relacionamos com o mundo e nos fazemos por meio da
linguagem, temos que a aprendizagem de língua estrangeira, bem como toda a estrutura
formal institucionalizada de ensino de línguas, está intimamente ligada a questões de
formaç~o e transformaç~o de identidades. Como ressalta Pennycook , se
levarmos a sério a ideia de que o engajamento no discurso é parte da contínua
construção da identidade, então o contexto da educação de segunda língua levanta
questões significativas sobre a construção e a negociação de identidade (PENNYCOOK,
2001, p. 149).
Com isso, consideramos relevante enfocar a identidade dos aprendizes no
processo de ensino-aprendizagem de inglês como LE pelo fato de tal enfoque possibilitar
um maior acesso ao tipo de relações sociais que se estabelecem nos contextos formais de
ensino, isto é, na sala de aula, bem como aos discursos que posicionam o sujeitos e as
interações que constroem e (re)negociam identidades, se constituindo enquanto
conflitantes. Além disso, tratar da identidade do sujeito da aprendizagem é também
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apropriado por permitir que lidemos com questões individuais e sociais de forma mais
equilibrada, não dissociando o sujeito de seu contexto, não fazendo dicotomias, mas
reconhecendo-os enquanto tais em sujeição à estrutura e, ao mesmo tempo, em agência
e operação, num modelo de relação em constante formação e transformação.
METODOLOGIA DA PESQUISA
Este foi um estudo de cunho qualitativo, segundo o qual os fatores sociais não
podem ser vistos como fixos, mas assumindo sempre uma diversidade de significados
múltiplos e socialmente construídos (BURNS, 1999). Nesse sentido, a opção
metodológica foi com base em histórias de vida, através de relatos de experiência, já que
eles possibilitam o reaparecimento de sujeitos face {s estruturas e aos sistemas, a
qualidade face { quantidade, a vivência face ao instituído NÓVOA, , p. . Assim,
a coleta de dados foi feita por meio de questionários online com estudantes de inglês do
curso de Letras de uma universidade pública brasileira. Quatro participantes, três
homens e uma mulher, responderam ao questionário fornecendo relatos sobre suas
experiências de aprendizagem e de uso da língua inglesa como língua estrangeira.
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por ser um nome comum nas famílias brasileiras. A escolha do nome não tem nenhuma
relaç~o com o inglês 4.
Werter, outro entrevistado, possui membros familiares que detêm conhecimento
de uma literatura estrangeira, uma realidade um tanto quanto distante de muitas
famílias brasileiras. Diferindo da perspectiva identitária de Abraão, a explicação provida
por ele foi a seguinte: Werter. The sufferings of young Werter Goethe foi o primeiro
livro que li em inglês, há 6 anos. Alguns familiares que conhecem a estória a relacionam
a mim; quanto ao protagonista, essas mesmas pessoas me dizem que somos muito
parecidos . Esse aspecto familiar do qual ele se refere j| desponta um diferencial em sua
aprendizagem, o que refletiu na construção de sua identidade, a qual, diferente da do
participante Abraão Silva, não é exclusivamente brasileira nem procura enfatizar isso.
Ao contrário, mostra forte influência estrangeira e o desejo de marcar tal relação.
Cat Stevens, assim como Werter, justificou sua escolha apresentando uma clara
influência que um produto cultural da língua inglesa lhe incutiu: Um cantor inglês que
admiro muito. Ele canta de maneira simples as coisas simples da vida. Aprendi bastante
vocabulário com as músicas dele e procurando informações, em inglês, acerca de sua
biografia . Rachel também demonstrou uma afiliaç~o explícita para com a língua inglesa.
Inclusive, com a produção cultural, como pode se conferir em seu depoimento:
Werter, Cat Stevens e Rachel demonstraram já de início uma afiliação pela língua
inglesa, o que demonstra uma relação mais próxima com ela e respectivos produtos
culturais por produto cultural entende-se o conceito proposto por Pierre Bourdieu),
como se conferirá novamente em um novo tópico nesta seção de análise e discussão dos
dados.
4 As falas dos participantes serão apresentadas entre aspas ao longo desta seção de análise dos dados.
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inglesa torna-se elitizado, restrito somente aos que podem investir uma quantia que
famílias de baixa renda não usufruem (GIMENEZ, 1999). Assim, é preciso que haja mais
cursos preparatórios de livre acesso para os professores, cursos que explorem as quatro
habilidades linguísticas de forma construtiva, e não superficialmente. É preciso também
abranger os assuntos abordados criativamente, e não restringi-los a um conteúdo clichê,
de fácil compreensão e sem muita exigência crítica dos alunos. De acordo com o relato
do aluno participante Cat Stevens, esse cenário também ocorre no ensino superior de
língua estrangeira: na verdade, h| muitos docentes e discentes que est~o acomodados
com a situação do jeito que está; afinal ela é muito cômoda: finge-se que ensina; finge-se
que aprende .
O aluno não deve ser subestimado, pelo contrário, ele deveria ser instigado a
superar os desafios com os quais ele se depara. O desafio do novo e do desconhecido
serve de incentivo para aqueles alunos que já estão aptos a aprofundar na matéria,
incitando-os a não abandonar o que supostamente já seria do domínio deles.
Quanto ao aluno iniciante, porém, a aplicação dessa proposta deveria ser
moderada, a fim de que não assuste nem desencoraje o estudante, que sempre deve ter
seu esforço reconhecido. Rachel enfatiza com a sua experiência:
5Os símbolos [ ] presentes nas falas dos participantes indicam inclusão, por parte das autoras, de frases
explicativas sobre o assunto em questão.
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De acordo com Norton (2000), a motivação dos aprendizes para aprender novas
línguas vai muito além do que em geral chamamos de vontade ou desejo interior. Para a
autora, trata-se de investimento em identidade e em aceitação social. Em Mastrella
, p. , encontramos que a relaç~o com a língua estrangeira é construída com base
no desejo por identidade, por reconhecimento social, desejo de autotransformaç~o , o
que pode ser entendido também a partir dos relatos dos participantes deste estudo
sobre o que lhes motiva a aprender inglês e a investir no curso de Letras Inglês, como
Werter, no trecho a seguir:
capaz, uma avaliação que constrói uma identidade negativa do aprendiz mediante seu
grupo. No relato a seguir do aluno Abraão Silva, quando ele fala sobre sentir-se
reprimido para usar a língua inglesa, podemos identificar essa questão:
Como se pode notar no trecho citado por Abraão, a comparação entre a confiança
para falar ou para escrever se deve ao fato de que, ao escrever, seus erros não são
identificados por outros, mas por ele mesmo, o que não acontece no momento da fala. O
relato de Rachel, a seguir, também dá indícios sobre essa questão:
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista as discussões empreendidas neste trabalho, a partir dos dados que
informaram as análises, retomamos aqui, como considerações finais, as perguntas de
pesquisa que guiaram o estudo. A primeira pergunta dizia respeito a como os alunos de
inglês no curso de Letras se identificam e são identificados no processo de
aprendizagem em sala de aula. Sobre essa questão, é preciso ressaltar que todos os
participantes desta pesquisa iniciaram o curso de Letras já com níveis intermediários ou
avançados de proficiência na língua inglesa. Assim, os dados coletados sugerem indícios
de que alguns alunos entram na universidade com uma experiência já iniciada com a
língua inglesa, a qual inicia a partir do contato com músicas, artistas etc., além da
influência de cursos de idiomas anteriores. Com isso, a entrada no curso de Letras pode
ser muitas vezes frustrante, pois, em meio a turmas heterogêneas, os alunos que já
possuem uma história de vivência anterior com a língua inglesa não encontram espaços
para avançarem na aprendizagem, considerando as aulas das diversas disciplinas
bastante monótonas ou repetitivas.
Esse assunto também se relaciona com a segunda pergunta de pesquisa, a qual
buscava analisar os tipos de interação que participam na construção das identidades dos
alunos e que possivelmente promovem ou embargam o acesso dos alunos na aquisição
da competência na LE. Os dados analisados sugerem que muitos alunos possuem visões
equivocadas sobre o papel do erro na aprendizagem de línguas, evitando participar ou
procurando muitas vezes atuar mais em participações escritas, a fim de evitar
exposições orais na LE.
Em função do espaço limitado para a discussão neste artigo, ressaltamos, por
último, a expectativa de que os resultados das análises deste trabalho possam servir de
subsídios para se pensar e repensar a sala de aula de inglês no curso de Letras enquanto
espaço democrático de ensino-aprendizagem.
REFERÊNCIAS
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HEIDEGGER, Martin. Que é isto – a filosofia? Identidade e diferença. Editora: Livraria Duas
Cidades, 1971.
NORTON, B. Identity and Language Learning: Gender, Ethnicity and Educational Change.
Harlow, England: Pearson Education, 2000.
PAIVA, Vera Menezes. Como o sujeito vê a aquisição de segunda língua. In: CORTINA, A.;
NASSER. S.M.G.C. Sujeito e Linguagem . S~o Paulo: Cultura Acadêmica, .
PEIRCE, Bonny Norton. Social Identity, Investment, and Language Learning. In: TESOL
Publications – Policy and practice in the education of culturally and linguistically diverse
students. Vol. 29, No. 1, Spring 1995.
RAJAGOPALAN, Kanavillil. ELT classroom as an arena for identity clashes. In: Anna M. G.
Carmagnani e Marisa Grigoletto org. English as a foreign language: )dentity, Practices
and Textuality . Editora: (umanitas – FFLCH-USP, 2001.
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LETRAMENTO
RESUMO: Este artigo analisa como se dá a prática da leitura nas aulas de Língua no 6º
ano do Ensino Fundamental, na Escola Estadual Maria Deusarina, localizada na cidade de
Castanhal/PA. Fundamentou-se no paradigma qualitativo de pesquisa, tendo como
referência metodológica o estudo de caso. A fim de investigar com maior propriedade a
situação problema, utilizamos como técnicas de pesquisa a entrevista com a professora
de Língua Portuguesa e a observação em sala de aula. Deram base para a análise do
objeto em questão autores como: Brasil (1998), Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni
(2004), Klaiman (2008), dentre outros. O estudo constata que o letramento numa
perspectiva sociohistórica se faz de forma incipiente e precária nas aulas de Língua
Portuguesa. A leitura como parte do processo de letramento é trabalhada de forma
descontextualizada da realidade sociocultural do aluno.
Palavras-chave: Letramento. Língua Portuguesa. Ensino. Leitura.
ABSTRACT: This article analyzed as the practice of literacy in the classroom in the
Portuguese Language in the 6TH year of Primary Education, in Maria Deusarina School,
located in Castanhal city (Para). It is based on a qualitative paradigm of research, having
as a methodological reference the case study. In order to investigate with greater
ownership the problem situation, we use as research techniques the interview with
Portuguese Language professor and the observation in the classroom. Some authors
provided the basis for the analysis of the object in question as following: Brazil (1998),
Marcuschi (2001), Soares (2002), Tfouni (2004), Klaiman (2008), among others. The
result of the research shows that the literacy has been treated in an incipient and
precarious form in the Portuguese language classes and this has been taught in a
decontextualized way of sociocultural reality of the student.
Keywords: Literacy. Portuguese language. Teaching. Reading.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho oferece um breve olhar sobre o letramento nas aulas de
Língua Portuguesa, especificamente sobre a dimensão da leitura. Ler ainda é um fardo
para muitos educandos, pois esta atividade, na maioria das vezes, apresenta-se
desprovida de sentido pessoal e social, o que proporciona, aos alunos, antipatia pelo
ensino da Língua Portuguesa.
Apesar do conceito de letramento pressupor ou envolver o trabalho com leitura,
oralidade e escrita, este estudo focalizará o aspecto leitura no contexto das aulas da
disciplina Língua Portuguesa.
Nosso interesse em investigar o ensino da leitura surgiu a partir do momento em
que tomamos contato com as concepções e práticas de letramento do Programa Mais
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6 O Programa Mais Educação foi criado pela portaria Interministerial nº 17/2007. É coordenado pela
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC). Abrange atividades
agrupadas em macrocampos como Acompanhamento Pedagógico; Meio ambiente, esporte e lazer; Direitos
humanos; Cultura e arte; Cultura digital; Prevenção e promoção da saúde; Educomunicação; Educação
científica e Educação econômica. Mais informações acessar: www.mec.gov.br .
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Trabalhar com as letras, saber ler, melhorar a leitura, saber interpretar, não ser
analfabeto, eis alguns pontos da fala da professora que nos chamam atenção pelo fato de
sua colocação está mais voltada à prática do letramento como processo formal de
construção da competência leitora e escritora, aparentemente dissociada do contexto
social. Além disso, mostra claramente como a escola em que trabalha tem deixado a
prática do letramento a cargo do Programa Mais Educação do Governo Federal
Brasileiro.
Vale ressaltar, ainda, tendo como ponto de partida a fala da professora, que
existem muitos analfabetos por não dominarem os códigos lingüísticos, mais que são
letrados do ponto de vista social, ou seja, sabem ler e compreender o mundo a sua volta,
ainda que apresentem limitações para essa tarefa.
As colocações sobre letramento ora apresentadas refletem o que Kleiman (2008)
nos diz:
A professora não detalha em sua fala como ela organiza e executa o trabalho com
a leitura, mas retrata a condição em que se encontram os alunos em relação ao ato de ler,
chegando, inclusive, a mencionar a defasagem que os mesmos têm em relação à leitura,
tendo como parâmetro a série que cursam. Vergonha de ler, leitura com voz baixa,
dificuldade para decodificar as palavras durante a leitura etc, retratam um cenário que
não é somente dessa turma de alunos, mas, com certeza, corresponde à realidade de
alunos das escolas públicas brasileiras.
Com bases em nossas observações comprovamos que a leitura de textos era
realizada em todas as aulas, mas geralmente feita pela professora para os alunos, tendo
como portador desses textos o livro didático de português. Raramente se fazia a leitura
coletiva ou individual de um texto, não oportunizando aos alunos a construção de
capacidades inerentes ao ato de ler, conforme preconiza os PCNs de Língua Portuguesa:
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Logo, a escola deve proporcionar uma leitura que leve à compreensão dos textos
e dos contextos sociohistóricos de onde partiram as produções textuais. A escola precisa
incentivar os alunos a se posicionarem criticamente frente à realidade em que estão
inseridos, por meio da leitura. Para que isso aconteça os professores devem lançar mão
de determinados textos, produzidos por determinados autores, para instigar e esmerar a
compreensão, a crítica e o posicionamento des seus alunos.
Quanto aos gêneros textuais7 trabalhados na leitura em sala de aula, a professora
entrevistada se posiciona:
De acordo com que observamos podemos dizer que foram utilizados, de fato, para
leitura e interpretação de textos, gêneros textuais como: tiras, poema, lista, carta e
7 gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente vinculados à vida cultural e social [...]
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia. [...] Caracterizam-se como
eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem emparelhados as necessidades e as
atividades sócio-culturais, o que é facilmente perceptível ao se considerar a quantidade de gêneros
textuais hoje existentes em relação às sociedades anteriores à comunicação escrita (MARCUSCHI,
2001,p.19).
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história em quadrinhos. Tal utilização tinha como suporte o livro didático de Língua
Portuguesa adotado para a 6º ano.
O que nos chamou a atenção na utilização desses gêneros discursivos foi o fato de
eles não serem explorados como deveriam ser. Os alunos não eram levados e instigados
pela professora a conseguirem identificar as idéias centrais e secundárias do texto, o
gênero textual, sua linguagem e estrutura, o modo como foi organizado, a fazer relação
entre o que liam e o que pensavam, muito menos tirar conclusões sobre o que liam e a
realidade em sua volta. A professora lia o texto e, em seguida, direcionava as perguntas
de compreensão do mesmo para os alunos. Quando eles não sabiam, ela respondia para
eles, que registravam em seus cadernos as devidas respostas.
Dessa forma, os alunos não tinham oportunidade e nem eram motivados a
expressarem seus pensamentos por meio da fala e escrita em relação ao gênero
trabalhado. E o mais impressionante era que os itens dos exercícios do livro didático
utilizado, que pediam a produção textual, que possivelmente possibilitaria um maior
conhecimento das fragilidades lingüísticas e a subjetividade de cada aluno por meio da
escrita, eram ignorados. Em suma, era o exercício pelo exercício.
Outro aspecto que merece destaque refer-se aos textos adotados pela professora,
no que tange às suas características e usos sociais. Estes pouco favoreciam a reflexão
crítica e o despertar do pensamento elaborado, de modo que os alunos viessem a ter
plena participação numa sociedade letrada, em que o ensino tem como objeto de estudo
a diversidade dos gêneros textuais.
É preciso, portanto, tomarmos consciência de que o trabalho de leitura utilizando
variados gêneros textuais é de fundamental importância para os alunos, pois aproxima-
os dos vários enunciados produzidos pela linguagem humana nos mais diversos
contextos da vida em sociedade. Dessa forma, texto e contexto se desenrolam com a
nossa vida e por isso devem ser objetos de ensino, conforme nos orienta os PCNs de
Língua Portuguesa:
Quanto aos Portadores de textos8 para leitura, na maioria das vezes, era utilizado
o livro didático de Língua portuguesa, conforme defende a professora:
8 Para Soares (2002), todo objeto que apresente algo que possa ser lido ou qualquer objeto que leve um
texto impresso ou manuscrito seja um texto gr|fico – palavras, um texto iconogr|fico – uma imagem)
são portadores de texto.
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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo nos possibilitou conhecer a realidade do letramento,
especificamente do aspecto leitura, no contexto das aulas de Língua Portuguesa, no
Ensino Fundamental. Tal estudo nos mostrou que um dos grandes desafios do processo
de letramento, no campo educacional, é trabalhá-lo de forma significativa e
contextualizada, despertando nos alunos o desejo por novas descobertas.
Além disso, a realidade estudada nos permite afirmar que ainda há educadores
que vêem o ensino de qualidade como utópico e utilizam as dificuldades encontradas em
sala de aula e a falta de tempo para não inovar.
O letramento em uma perspectiva sociohistórica não é trabalhado, pois a maioria
dos professores se prende a mera reprodução dos conceitos gramaticais que serão
exigidos nos dias de prova, nos concursos, sem que esses conceitos possam
proporcionar maior interação entre os alunos e dos alunos com o conhecimento, por
meio da provocação, do debate e da produção individual.
O trabalho com leitura de forma planejada é quase que inexistente. A mesma
continua sendo trabalhada de forma mecanicista, descontextualizada, sem relacioná-la
com as vivências socioculturais dos leitores. Tais aspectos precisam ser melhor
explorados nas aulas de Língua Portuguesa e em outras disciplinas também. Tal fato
implica em melhores condições de trabalho docente, maior acompanhamento do
trabalho do professor pelo serviço de coordenação pedagógica da escola, bem como
maior investimento em formação continuada para todos os docentes.
Os gêneros textuais mais utilizados foram as tiras, história em quadrinho, lista,
poemas, dentre outros. Estes pequenos textos, no entanto, eram utilizados apenas como
recursos para se verificar o aprendizado dos alunos em relação a conceitos como
substantivo, adjetivo, sinônimo, ligados à disciplina Língua Portuguesa.
O principal portador ou suporte de texto utilizado pela professora era o livro
didático que, por sua vez, estava rico em gêneros textuais como: tiras, poemas, receitas,
listas de compra etc. Porém, poucos explorados quanto às suas características, autores,
linguagens etc.
Os conteúdos ou assuntos apresentados nos textos lidos abordavam temas como
o preconceito, culinária, fantasias ou desejos de personagens, dentre outros. Estes
assuntos não eram discutidos com o propósito de formar opinião sobre o assunto,
relacioná-lo com fatos ou aspectos da vida dos alunos.
Diante de tais constatações, entendemos que a escola deve ser vista como
ambiente de valorização e produção do letramento. Deve ser espaço propício para
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5 REFERÊNCIAS
LEAL, Telma Ferraz et al. Letramento e alfabetização: pensando a prática pedagógica. In:
BRASIL, Ministério da Educação. Ensino Fundamental de nove anos: orientações para
a inclusão da criança de seis anos de idade. Brasília: FNDE, Estação Gráfica, 2006.
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SOARES, Magda. Letramento em três gêneros. 2. Ed. Belo Horizonte: Autentica, 2002.
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ENSINO-APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS
Stelamary Domingos9
Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMÉ: Cet article présente le résultat d une recherche faite auprès d étudiants qui
débutent dans l'écriture du français langue seconde, et qui ont comme premier système
d'écriture le portugais brésilien. On a mis en parallèle deux écritures qui utilisent
l'alphabet latin tout en ayant une différente orthographe. En analysant des fautes de
dictées, on a trouvé des évidences qui indiquent les trois principales sources d'obstacles
pour les élèves: le niveau d'opacité phonologique de l'orthographe du français; un
tableau de voyelles plus grand que celui du portugais, quoique représenté par les mêmes
cinq voyelles latines; et l'orthographe du premier système d'écriture influençant
l'apprentissage du second.
Les mots clés: systèmes d'écriture en langue seconde, français, portugais, transparence
phonologique.
1. INTRODUÇÃO
A aprendizagem formal de uma segunda língua (L2)10 não é tarefa fácil, posto
que se tem de lidar não apenas com uma gramática diferente, mas também com um
sistema de escrita diferente daquele da língua materna, a primeira língua (L1). Em
relação à oralidade, uma segunda língua pode apresentar fonemas que não existem na
língua materna, causa inicial de dificuldades de compreensão, assim como dificuldades
em sua correta produção. Quanto ao sistema de escrita, é certo encontrar na L2
9E-mail:stelamary@outlook.com
Este trabalho foi realizado com bolsa de Iniciação Científica UFRJ-CNPq. Agradeço à minha Orientadora,
Prof. Maria Carlota Rosa, o apoio e dedicação durante a vigência da bolsa. Agradeço também suas
sugestões para a versão final deste artigo.
10 Emprega-se aqui segunda língua/L2 como língua n~o materna .
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2. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Um sistema de escrita é um conjunto de sinais — visuais ou táteis — usados
para representar unidades de uma língua de um modo sistem|tico Cook & Bassetti,
2005: 2-3, citando Florian Coulmas). Esses sinais são os grafemas, as menores unidades
de um sistema de escrita Cook & Bassetti, : . Cook & Bassetti : apontam
ainda um segundo significado para sistema de escrita, que se confunde com ortografia.
No primeiro sentido, os sistemas de escrita podem distinguir-se: a) quanto ao tipo de
representação estabelecida no grafema; b) quanto às unidades linguísticas
representadas; c) quanto à escrita empregada; e d) quanto à ortografia. É o que se verá
a seguir.
2.1. No tocante aos tipos, a classificação dos sistemas diz respeito à referência do
grafema: o significado ou o som. Um sistema de escrita pode relacionar o grafema a um
significado; são os sistemas logográficos. Cook & Bassetti (2005:5) afirmam que um
sistema desses pode ser compreendido mesmo por pessoas que não conhecem a
fonologia da língua. Pode contar como evidência para essa afirmação a surpresa
resultante da tentativa de introdução de uma escrita alfabética na China em meados do
século XX, noticiada em jornais da época (Anônimo,1976a; Anônimo, 1976b;
Bloodworth, 1979): a diversidade linguística da China tornou-se evidente ao se tentar
implantar um sistema fonográfico, a ponto de afetar a denominação das figuras políticas
e da toponímia pelas agências de notícias. No entanto, Cook & Bassetti ressaltam que
mesmo esse tipo de sistema tem grafemas com contraparte fonológica, caso dos radicais
fonéticos da escrita chinesa (Cook & Bassetti, 2005:5).
Já nos sistemas de escrita baseados em som, ou fonográficos, o grafema se
conecta aos sons da fala Cook & Bassetti, : , e nesses sistemas é possível
imaginar a pronúncia de uma palavra escrita sem saber seu significado. O sistema de
escrita francês e o português são exemplos de sistemas baseados em som.
as vogais. Logo, os hanzi da China e os kanji do Japão são morfêmicos; o kana japonês e o
tibetano são sistemas silábicos; o árabe e o hebraico têm sistemas de escrita
fonográficos consonantais; o português e o francês, fonográficos alfabéticos.
2.3. Escrita é a forma gr|fica das unidades de um sistema de escrita Cook &
Bassetti, 2005:3, citando Florian Coulmas). O árabe e o hebraico, apesar de serem
sistemas consonantais, têm escritas diferentes; assim também o grego e o português,
ambos alfabéticos.
2.4. A ortografia é um conjunto de regras estabelecido para que uma escrita possa
ser usada em uma determinada língua Cook &Bassetti, : , o que envolve n~o
apenas a referência dos grafemas, como ainda as regras de hifenização, de pontuação, de
acentuação.
Num sistema fonográfico, caso do português e do francês, da ortografia fazem
também parte as regras de correspondência. Uma regra de correspondência grafema-
fonema no português estabelece que <x> pode ser lido como // em <caixa>,/ks/ em
<táxi>, /z/ em <exausto>, como /s/ ou /ks/ em <sintaxe>. Uma regra de correspondência
fonema-grafema no português estabelece que /z/ é representado de vários modos: <z>
em <azul>, <s> em <mesa>, por <x> em <exame>.
As regras de correspondência determinam se uma ortografia é mais ou menos
transparente fonologicamente. Uma ortografia é transparente quando as relações
estabelecidas pelas regras de correspondência grafema-fonema e pelas regras de
correspondência fonema-grafema apresentam, diferentemente dos exemplos acima, uma
relação um-para-um. O exemplo típico é o italiano (Cook & Bassetti, 2005:7). Um
exemplo de sistema de escrita pouco transparente, ou opaco, é o inglês, pois nele as
correspondências entre grafema e fonema são muito irregulares. É atribuída ao famoso
escritor George Bernard Shaw (1856-1950) a crítica às irregularidades da ortografia do
inglês que procurava demonstrar ser possível ler <ghoti> e <fish> do mesmo modo:
<gh> como /f/ aparece em <tough>; <o> como /i/, em <women>; e <ti> como a fricativa
pós-alveolar em <nation>.
Este trabalho focaliza os passos iniciais no domínio da ortografia da língua
francesa como segunda língua por estudantes nativos de língua portuguesa, cujo sistema
de escrita foi o primeiro aprendido. São dois sistemas de escrita fonográficos. São
escritas alfabéticas, porém têm ortografias diferentes. Essas diferenças condicionam
certas dificuldades como se verá adiante. Doravante abreviaremos as denominações
sistema de escrita da primeira língua e sistema de escrita de segunda língua como,
respectivamente, SEL1 e SEL2.
3. METODOLOGIA E DADOS
No corpus do presente trabalho encontram-se ditados de dois alunos iniciantes
no aprendizado de francês como segunda língua (L2) e segundo sistema de escrita
(SEL2). A língua materna (L1) e o primeiro sistema de escrita (SEL1) de ambos é o
português brasileiro. Quando o corpus foi coletado, o estudante nomeado como "Aluno
A" tinha doze anos de idade e cursava o sétimo ano do Colégio Pedro II, campus São
Cristóvão. Já o estudante nomeado "Aluno B" tinha 21 anos de idade e cursava Língua
Francesa II no curso de Letras (Português-Francês) da Universidade Federal do Rio de
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Janeiro. Tanto o Aluno A como o Aluno B estudavam francês havia cerca de um ano.
Em ambas as instituições ensinava-se a língua francesa com base na pronúncia de Paris.
Não houve controle acerca da audição dos sujeitos, nem das condições de ruído no
ambiente em que as tarefas foram executadas.
O material foi cedido pelos próprios estudantes, que assinaram um termo de
consentimento livre e esclarecido (TCLE) lhes assegurando anonimato e autorizando a
divulgação dos dados e o uso na pesquisa. No projeto inicial previa-se um número de
sujeitos maior, mas a apresentação do TCLE parece ter intimidado a grande maioria dos
potenciais sujeitos.
O corpus é constituído de ditados em classe. O vocabulário dos ditados já havia
sido estudado nas aulas anteriores à da atividade. Nos quatro ditados, as palavras foram
lentamente e separadamente ditas — exceto quando houve ligação, encadeamento ou
elisão, fenômenos que afetam as fronteiras de palavras (Reis, 2000: 42). O asterisco (*)
indica a ocorrência de um desses fenômenos na fronteira das duas palavras anteriores a
ele. Os erros dos alunos estão numerados e analisados.
O ditado 1 foi feito pelo "Aluno A". A tarefa foi corrigida pela docente e entregue
aos alunos. Os ditados 2, 3 e 4 foram realizados pelo "Aluno B". Para a realização do
ditado 2, a professora ditou um texto da página 117 do livro 1 da coleção Tout va bien! 11,
material didático usado no curso. Após o término da tarefa, os alunos compararam o
material produzido com o texto original e fizeram as correções necessárias. Os ditados 3
e 4, também foram feitos em sala de aula, sobre textos que apenas a professora tinha.
Após o término destes ditados, as atividades foram corrigidas pelos próprios alunos com
seu auxilio.
4. ANÁLISE
(1), (2), (6) - O grafema <s> em posição final não é representado fonologicamente, e o
aluno não o escreveu. Por outro lado, em (5) há a escrita de um <s> que não existe na
palavra, evidenciando que o aluno sabe que em alguns contextos o <s> não é falado.
(3), (4) - Tanto <ll> como <l> podem representar /l/ na ortografia do francês; por seu
turno o português-SEL1 não tem <ll>.
(4), (5), (7), (8) - O aluno mostra não ter domínio da acentuação.
(9) - Problema na identificação das vogais médias.
TEXTO ORIGINAL
Le croque-monsieur
Prenez deux tranches de pain de mie, mettez à l'intérieur une tranche de jambon blanc et
de chaque côté, du gruyère râpé. Trempez le pain de mie dans de l'oeuf battu avec une
goutte de lait. Faites dorer à feu doux des deux côtés. Vous avez* un* succulent croque-
monsieur à manger bien chaud! Si vous faites frire deux oeufs* sur le tout , vous aurez* un*
croque-madame, également excellent!
(1), (2), (4), (7) - Problemas com a correspondência fonema-grafema para vogais médias
inexistentes em português.
(3),(6)- No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra.
(6) -<gruiller> por <gruyère>: o aluno já sabe existir uma correspondência grafema-
fonema para <ll> que não lhe atribui pronúncia.
(3), (8), (13) - Problemas com a identificação de palavras ortográficas no interior de um
grupo rítmico.
(5), (6) - Novamente a inconsistência no emprego de diacríticos. Em (5), o acento
circunflexo pode marcar que a vogal é mais aberta ou mais fechada. O uso desse acento
sobre o grafema <o> indica que ele corresponde à vogal média-alta posterior
arredondada /o/, como na diferença entre a palavra <cote> correspondente a /kt/, e
<côte>, correspondente a /kot/. Provavelmente o aluno tinha conhecimento dessa regra,
mas não sabia que ela não é igual quando o acento circunflexo está sobre o grafema <e>.
Nesse caso, tal acento marca que a vogal é pronunciada com maior abertura, o que se
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evidencia na correspondência de <fête> com /ft/. Além disso, o aluno também pode ter
confundido a utilização do acento circunflexo na escrita da língua francesa com sua
utilização na escrita da língua portuguesa, já que no português tal acento gráfico marca
uma vogal fechada, como em <bebê>.
(6) - <gruiller>por <gruyère>. A semivogal /j/foi grafada não como <y>, mas como<i>,
como em português.
(9) - Sugere-se que o aluno não ouviu corretamente a consoante.
(10) - O aluno faz a correspondência fonema-grafema no francês-SEL2 utilizando a
correspondência do português-SEL1./gut/corresponde, no sistema de escrita francês, a
<goutte>, não a <gutte>. Na língua portuguesa, /u/ corresponde ao grafema <u>, porém
na ortografia francesa esse fonema corresponde ao grafema <ou>.
(11) - Essa é outra situação na qual, diante de um fonema que não existe em sua língua
materna, o aluno faz a correspondência fonema-grafema tomando por base seu SEL1.
(12) - Possivelmente o aluno não escutou corretamente o que foi falado.
(13) - O fonema /o/ pode ter mais de um correspondente grafêmico em francês, como os
que estão em questão, <ô> e <au>.
(14) É possível que o aluno não tenha ouvido corretamente, pois não há o /e/ de <et>,
apenas o /e/ de <également>.
TEXTO ORIGINAL
Le curriculum vitae doit avoir comme but d'obtenir un rendez-vous pour un entretien*. Le
CV présente votre vie scolaire et professionnelle. Il doit être une bonne image de ce que
vous êtes*. Toujours accompagné de votre lettre de candidature, écrite à la main, c'est
souvent sa lecture que se décide à rendez-vous.
Le curriculum vitae doit avoir comme but d'obtenir un rendez-vous pour un entretien.
Le CV présente votre vie scolaire et professionaire(1). Il doit être une bonne image de ce
que vous êtes. Toujour(2) accompagnée(3) de votre lettre de candidature, écrit(4) à* la
main , c'est souvent à ça(5) lecture que se dècide(6) à rendez-vous.
(1)- Sugere-se que o aluno não ouviu corretamente a última consoante pronunciada,
confundindo duas consoantes líquidas, /r/ e /l/.
(2) - O grafema <s> em posição final não é representado fonologicamente, e o aluno não
o escreveu.
(3)- Há a escrita de um <e> que não existe na forma masculina, evidenciando que o
aluno sabe que em alguns contextos <e> não é falado.
(4) - No francês, o grafema <e> não é pronunciado quando em final de palavra. Aqui, o
<e> final não pronunciado da palavra <écrite> e a ressilabificação resultante do
encadeamento induziram o aluno a escrever incorretamente.
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(5) É provável que o aluno não tenha ouvido corretamente, pois não há o /a/ de <à>,
apenas /sa/.
(6) O aluno mostra não ter domínio da acentuação.
TEXTO ORIGINAL
Écrivez sur une feuille blanche, format 21 par 29,7. Envoyer toujours l'original. La lettre
doit impérativement être écrite à la main pour permettre éventuellement une analyse
graphologique ( étude du caractère et de la personnalité d'un individu à travers de son
écriture). Soignez votre écriture, mais restez naturel.
Écrivez sur une feille (1) blanche, format 21 par 29,7. Envoyer toujours l'originalle (2).
La lettre doit impérativemant(3) être écrit(4) à la main pour permetre(5)
éventuellement une analise(6) graphologique ( étude du caractère et de la personalité
(7) d'un individue (8) à travers de son écriture). Sonhaiez(9) votre écriture, mais
rester(10) naturalle(11).
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5. DISCUSSÃO
No ditado do aluno A, há dois focos principais para os erros cometidos no
francês-SEL2: ainda não há o domínio das regras de acentuação nem do uso de grafemas
que não têm representação fonológica. O aluno B também teve essas duas dificuldades,
mas foram identificadas outras áreas de erros. São elas: a representação de fonemas
existentes no francês-SEL2, mas não no português- SEL1; a possibilidade de mais de uma
grafia para o mesmo fonema no francês-SEL2; a percepção de palavras ortográficas num
grupo rítmico; e transferência de regras de correspondência do português-SEL1 para o
francês-SEL2.
As dificuldades com a acentuação decorrem das funções diferentes em ambos
os sistemas. No sistema de escrita do francês o acento marca a qualidade da vogal; no
português, marca a tonicidade, o que explica só haver um acento por palavra na escrita
portuguesa, enquanto, na francesa, se pode utilizar mais de um acento. O que não
significa que todos os acentos geraram erros: o aluno A acertou a acentuação, por
exemplo, em <supermarché> e <mère>, o que pode sugerir que, não dominando as
regras de acentuação do francês, o estudante acentuou as palavras alternadamente na
esperança de em algumas acertar.
No sistema de escrita do francês, alguns grafemas não são falados, o que exige
do aluno o conhecimento prévio da escrita das palavras. O conhecimento da existência
de correspondências de grafemas com fonema algum gerou duas situações de erro: o
aluno por vezes escreveu grafemas que não existiam e, outras vezes, deixou de escrever
os não pronunciados.
A língua francesa tem um quadro de vogais maior que o do português. Assim,
além da série anterior não-arredondada, representada em <il>, <blé>, <merci>, <plat> e
da série posterior arredondada, representada em <genou>, <mot>, <mort>, também
presentes em português, há ainda uma série de anteriores arredondadas,
representadas em <rue>, <peu>, <peur>, uma posterior não-arredondada, como aquela
representada em <bas>, uma central média, como em <le>, além de quatro nasais,
representadas em <matin>, <sans>, <bon> e <lundi>. Além das semivogais /j/ (como em
<pied>) e /w/ (como em <oui>), também encontradas em português, tem ainda uma
labial-palatal, como em <lui>. Para a representação desse quadro, a ortografia do francês
emprega as cinco vogais do alfabeto latino com ou sem diacríticos e dígrafos vocálicos.
Nos erros, ambos os alunos representaram fonemas inexistentes em português com o
grafema que na ortografia do português era o correspondente mais próximo, em termos
de abertura, daquele inexistente.
Uma outra fonte de dificuldades está no fato de a ortografia francesa ser menos
transparente fonologicamente que a do português, sendo mais frequente a ocorrência de
mais de uma correspondência gráfica para um fonema.
A percepção de fronteiras de palavras num grupo rítmico surgiu no ditado 2.
Por último, há cinco casos nos quais o estudante ouve uma palavra francesa e a
escreve utilizando as regras de correspondência do sistema de escrita de sua língua
materna, ou seja, identifica um fonema que também existe em sua língua e o faz
corresponder ao grafema que usaria em seu primeiro sistema de escrita.
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6. CONCLUSÃO
A ortografia do primeiro sistema de escrita tem influência quando do início da
aprendizagem de um segundo sistema, ainda que o estudante não se aperceba, e isso é
evidenciado nos casos em que os alunos A e B erraram a acentuação e utilizaram regras
de correspondência da língua materna em suas tarefas.
Uma vez que as tarefas analisadas foram ditados, i.e., tarefas em que os alunos
tinham de decidir como grafar fonemas, o nível de transparência fonológica foi foco de
dificuldade para os dois alunos. Como notam Cook & Bassetti (2005: 9), o francês é mais
transparente fonologicamente em relação à leitura do que em relação à escrita, uma vez
que as regras de correspondência fonema-grafema são mais irregulares que as regras de
correspondência grafema-fonema. A dificuldade que isso pode trazer está evidenciada
nos casos em que os alunos desconheciam os contextos em que as letras não
correspondem a som algum, ou quando erraram a opção pelo grafema que poderia
correspondera um fonema. Além disso, o fato de o francês ter fonemas que o português
não tem condiciona um maior número de possibilidades de correspondências fonema-
grafema para as mesmas cinco vogais do alfabeto latino e traz ao aluno o desafio de lidar
com sons e correspondências antes desconhecidos.
8. REFERÊNCIAS
BLOODWORTH, Dennis. 1979. Pequim muda a grafia e divide ocidentais. Jornal do Brasil, 24
de fevereiro de 1979.
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ESTUDOS LITERÁRIOS
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar o tempo mítico, sob a perspectiva de
Benedito Nunes (1929- , presente no fragmento intitulado A história da obra Ó
Serdespanto (2006) de Vicente Franz Cecim. Utilizo a teorização do tempo apontada por
Nunes em Tempo na Narrativa (1995) para realizar a análise. Como percurso,
primeiramente, procedo ao estudo das implicações conceituais atribuídas ao tempo
mítico em Nunes; em seguida minha perspectiva recai sobre as particularidades formais
da obra ceciniana e os matizes de significado que dela decorrem, bem como analiso duas
imagens, o homem e a m~e, e seu reflexo simbólico na narrativa mítica A história . Por
fim, associo a concepção de tempo mítico de Nunes ao fragmento de Ó Serdespanto
quanto à forma e às imagens suscitadas neste, para compreender como o conceito do
primeiro ilumina a obra do poeta paraense.
Palavras-chave: Vicente Franz Cecim. Tempo Mítico. Ó Serdespanto.
RESUMEN: Este trabajo tiene como objetivo analizar el tiempo mítico, bajo la
perspectiva de Benedito Nunes (1929- , presente en el fragmento titulado A
história de la obra Ó Serdespanto (2006) de Vicente Franz Cecim. Utilizo la teorización
del tiempo apuntada por Nunes en Tempo na Narrativa (1995) para realizar el análisis.
Como recorrido, primeramente, procedo el estudio de las implicaciones conceptuales
atribuidas al tiempo mítico por Nunes; en seguida mi perspectiva recae sobre las
particularidades formales de la obra ceciniana y los matices de significado que de ella
decurren, también analizo dos imágenes, el hombre y la madre, y su reflejo simbólico en
la narrativa mítica A história . Por fin, asocio la concepción de tiempo mítico de Nunes
al fragmento de Ó Serdespanto en relación a la forma y a las imágenes suscitadas en este,
buscando comprender como el concepto del primero ilumina la obra del poeta paraense.
Palabras-clave: Vicente Franz Cecim. Tempo Mítico. Ó Serdespanto.
INTRODUÇÃO
Vicente Franz Cecim nasceu em Belém. Sua obra iniciada com os livros reunidos
em Viagem a Andara, o livro invisível (1988) não pretende se concluir. Tal viagem rumo
ao lugar de mistério chamado Andara começa em 1979, com o que Cecim prefere
nomear de o primeiro livro visível, A asa e a Serpente, que em sequência com os demais
permitem somente ao observador vislumbrar o verdadeiro livro, este sim, que não se
pode ler em palavras, escrito no silêncio, à espera de ser desvelado. Em 1983, Cecim
lança no Congresso da SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência que
acontecia em Belém, Flagrados em delito contra a noite/ Manifesto Curau convocando os
escritores da região a recriar a História da Amazônia pelo imaginário. Neste Manifesto
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A HISTÓRIA
Em Andara,
é quando os homens esperam um anoitecer mais
calmo que vêm as noites da vida nos lançar pedras de sombras
e asas de areia
vêm nos açoitar.
.
Mas depois ele já não andava mais de rastros,
esse Serdespanto.
Muito alto,
- Ó Serdespanto.
Lamentasse sua mãe, da terra agora, o lhe ter aberto a
portinha que as mulheres têm entre as pernas para nos fazer
tombar aqui,
caídos da casinha escura que elas, úmida, trazem dentro de si
1. A RECRIAÇÃO DO ETERNO
De acordo com Benedito Nunes em O Tempo na Narrativa, o tempo mítico se
destaca das demais categorias de tempo por ele apresentadas – tempos cronológico e
psicológico – por ser instaurado para representar a história do universo, isto é, sua
origem se encontra nas narrativas míticas como o Gênese, história bíblica referente à
criação do mundo e à trajetória mítica do povo hebreu; ou a Odisséia, epopéia atribuída a
Homero que narra a trajetória do lendário herói Odisseu em retorno a sua terra Ítaca,
que no decorrer de suas peripécias é auxiliado pelos deuses. Assim, o tempo mítico
costuma repelir a sucessão causal do tempo cronológico por uma origem única, tal
ancestralidade é capaz de nutrir as mudanças históricas sempre posteriores à causa
primeva:
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A mente humana, por outro lado, atua com igual estranheza sobre
o corpo do tempo. Uma hora, uma vez alojada no estranho
elemento do espírito humano, pode ser estendida cinquenta a cem
vezes mais do que a sua duração no relógio; inversamente, uma
hora pode ser representada com precisão por um segundo no
tempo mental. (WOOLF, 1997, p. 75)
2. AS BRUMAS DA FORMA
A escrita ceciniana se singulariza por apresentar inovações formais que estão
para além de classificações estanques, ou poesia, ou prosa. Em verdade, sua escrita está
inserida em uma concepção de mundo e de literatura que transpassa o texto. Cecim está
marcado pela descoberta do Uno, latente nos variados matizes da existência, e pelo olhar
de surpresa ao tecer as descobertas na sombra e no silêncio. Sua obra se aproxima no
ocidente de autores como Kafka e Guimarães Rosa, e das filosofias orientais como o Tao
e o Zen. Quanto ao seu projeto poético, almeja fundar a literatura fantasma, a ser aquela
que transcende o fantástico para causar o estranhamento pelo onírico, o simbólico e a
reflexão existencial.
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Moisés (1997) cogita que narrativa poética seja o nome mais apropriado para
este gênero híbrido, visto que a narração o constitui. Todavia, na prosa poética, o enredo
é menos denso, a contrariar os intrincados desdobramentos de uma prosa realista; o
tom é intimista, o que torna a narração fértil de reminiscências, de matizes oníricas e de
estranhamento; o inconsciente assume relevância de maneira que o mundo e o eu
parecem confluir na realidade criada. Na narrativa poética, por fim, a metáfora é
perceptível desde o início, o sentido se torna um enigma a ser perscrutado:
Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se disso, a
mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui para
fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto isso,
deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros. Isso
de nascer. (CECIM, 2006, P. 61)
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O despertar pode ser doloroso, num espaço sem a proteção materna, condenado
a um vagar solitário. É quando Serdespanto se confronta com o real manifesto na vida e
a mãe retorna ao silêncio da terra:
3. OS SERES DE ESPANTO
O tempo mítico como afirma Nunes, é instaurado no âmbito do singular, é o
evento único da gênese do cosmo, origem por si mesma do sagrado. No fragmento em
análise, a história narrada não é somente um episódio na existência de um homem
particular, mas toma proporções de mito ao nomear de maneira genérica a principais
personagens, a mãe e o homem. Ainda que este assuma um nome, Serdespanto, o que se
revela é um caráter que transcende a aparente individualidade para alcançar o humano:
assim
Serdespanto.
Pois esse o nome que lhe deram quando ele nasceu, diz-se
disso, a mãe, essa que denomina uma parte de si que sai de si aqui
para fora, humanamente, para ser outro ser. Um outro espanto
isso, deve-se reconhecer com melancolias, resignações, suspiros.
Isso de nascer. (CECIM, 2006, P. 61)
CONCLUSÃO
O tempo, de acordo com Benedito Nunes, se instaura como questão. O homem
organiza seu estar no mundo em um movimento constante, entre o início e o fim, e deste
modo, tende a temporalizar a existência. Na narrativa, um fato desencadeado acontece
devido a um outro que o precedeu, é o princípio da casualidade. O evento, neste caso, é
onde o autor tece as entrelinhas deixando ao leitor o encargo de destecê-las, a perceber
a ordem causal estabelecida. Neste caso, o tempo cronológico pode estar implícito, visto
que fundamenta-se no fluxo recorrente e natural dos eventos, sujeitos à medição do
cronômetro, e que se qualificam a partir de tal eixo de referência (o nascimento de um
personagem, etc.).
O tempo psicológico, também chamado de duração interior, se define como a
sucessão dos vivenciamentos internos. Não equiparável ao tempo cronológico, a duração
interior singulariza-se pela fluidez que as demarcações objetivas podem assumir. A hora
que passamos entediados numa fila decorre de maneira distinta se estamos nos
divertindo numa festa. Portanto, o tempo psicológico prima pelo caráter subjetivo e
qualitativo dos eventos, à medida que no cronológico há o imperativo físico da Natureza
de percepção do presente, que deriva de um passado e de onde se projeta o futuro.
O tempo mítico se contrapõe às duas categorias de tempo supracitadas.
Distancia-se da duração interior por sua natureza transubjetiva e impessoal e do tempo
cronológico por repelir a ideia de sucessão temporal, isto porque o mito é uma narrativa
fundadora, conta a história de um evento único instaurado no presente intemporal; que
se repete sempre que é contado e abrange indivíduos de uma sociedade que mantêm
relação de identidade com o mito:
6. REFERÊNCIAS
MOISÉS, Massaud. Criação Literária: prosa II. São Paulo: Cultrix, 1997.
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ESTUDOS DO DISCURSO
the meaning of this word, fundamental in modern Western republics at the moment of
the Republic s establishment in Brazil.
Key words: citizen, presidential speeches, Brazilian Republic, semantic.
1. INTRODUÇÃO E OBJETIVOS
O presente trabalho, filiado a uma semântica enunciativa de base materialista, a
Semântica do Acontecimento, teve como objetivo geral a compreensão da designação do
nome cidadão na enunciação dos dois primeiros presidentes da República brasileira:
Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. O intuito foi investigar como a palavra cidadão
significa na enunciação dos dois presidentes; que predicações/determinações recebe
nos textos que compõem o corpus12; bem como compreender os pontos de encontro na
designação da palavra entre as enunciações de cada um deles e o modo como os dois
primeiros governantes do regime republicano afirmam seu pertencimento ao novo
regime. As questões pontuais nos permitem compreender a significação desta palavra
fundamental na construção das Repúblicas Modernas no momento de implantação do
novo sistema político no Brasil, tal como ela aparece na enunciação dos dois primeiros
chefes de Estado.
A palavra-objeto – cidadão – é considerada no senso comum do domínio político,
uma vez que faz parte da terminologia da organização do Estado e que é enunciada por
locutores-políticos, ou seja, por indivíduos que tomam a palavra enquanto
representantes do povo, legitimados pelo regime político do país OL)VE)RA, ,
p.110). Operamos com o movimento do político na enunciação, tal como definido por
Guimarães (2002). O autor, inscrevendo-se em uma posição materialista nos estudos da
linguagem, afirma que enunciar é uma pr|tica política, e que o político é o fundamento
das relações sociais, no que tem import}ncia central a linguagem , p. . A
definiç~o de político é relativa { enunciaç~o: O político, ou a política, é para mim
caracterizado pela contradição de uma normatividade que estabelece (desigualmente)
uma divisão do real e a afirmação de pertencimento dos que n~o est~o incluídos ,
p.16). Nesse sentido, o político torna-se incontornável pelo fato de o homem falar e
assumir a palavra, por mais que isso lhe seja negado em algumas situações.
A palavra, enunciada por locutores-presidentes no início da República, traz em
sua história de enunciações a relação com o equivalente em francês – citoyen – e os
movimentos de sentidos que a palavra do francês irradia nas línguas do Ocidente a
partir da Revolução Francesa e da fundação da República Moderna Ocidental. A questão
foi obervar como, por meio das predicações/determinações que recebe, a palavra
cidadão se atualiza no dizer, o modo como significa no presente dos acontecimentos
enunciativos em que os dois primeiros presidentes republicanos tomam a palavra,
inscrevendo sentidos para o novo sistema político.
* Este trabalho de Iniciação Científica foi realizado com o financiamento e o apoio do PIBIC/CNPq,
responsável por estimular uma maior articulação entre a graduação e a pesquisa, ampliando assim o
acesso e a integração à cultura científica. Agradeço especialmente a minha orientadora, a Professora Dra.
Sheila Elias de Oliveira, por todo suporte, ajuda, atenção e diálogo. 12 Textos repertoriados: o discurso do
Marechal Deodoro da Fonseca de 16 de novembro de 1889, na Proclamação do Governo Provisório,
publicada no Diário Oficial e o discurso de posse de Floriano Peixoto, de 23 de novembro de 1891, ambos
retirados de Peixoto (1939).
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Cidadania surge deste novo sentido político de cidadão, instaurado pela relação
com citoyen e suas transformações na Revolução Francesa, que deram origem à
citoyenneté. Ainda segundo Oliveira (ibidem), nos dicionários brasileiros de língua
portuguesa, desde o primeiro, de 1938, e ao longo do século XX,
significaç~o de um nome, mas n~o enquanto algo abstrato , mas enquanto uma relaç~o
linguística tomada na história (GUIMARÃES, 2002, p.9). Segundo Guimarães (2002, p.
, ... a linguagem significa o mundo de tal modo que identifica os seres em virtude
de significá-los , p. . A operaç~o de referência produz uma identificaç~o do
objeto de discurso no real das coisas e/ou das ideias, pela relação entre a palavra e as
predicações/determinações que recebe no enunciado em que se inscreve, como parte de
um texto. Não se trata, portanto, da atribuição de um sentido fixo ou único à palavra
cidadão e suas determinações, mas sim da compreensão do modo como o presente do
acontecimento trabalha sobre a latência da significação da palavra, repetindo e/ou
deslocando sentidos, e de que modo isso se d| ao longo do corpus que aqui analisamos
(OLIVEIRA, 2012, p.110). É preciso, então, observar as operações de textualidade em
torno da palavra, e as cenas enunciativas configuradas a partir destas operações.
Uma cena enunciativa se caracteriza por constituir modos específicos de acesso {
palavra dadas as relações entre as figuras da enunciação e as formas linguísticas
(GUIMARÃES, 2002, p.23). Desse modo, é a cena enunciativa que distribui os lugares de
enunciação no acontecimento, configurando assim o agenciamento das figuras da
enunciação. As figuras da enunciação são o Locutor (L), o locutor-x (l-x) e os
enunciadores (Es). O Locutor é aquele que é responsabilizado pelo dizer, aquele ao qual
se atribui uma assinatura pelo dizer. Segundo Guimar~es , p. , para se estar
no lugar de L é necessário estar afetado pelos lugares sociais autorizados a falar p. ,
ou seja, é necessário estar predicado por um lugar social. A este lugar social do locutor
Guimarães chama de locutor-x, onde o locutor com min’scula sempre vem predicado
por um lugar social que a variável x representa (presidente, governador, etc p. .
Nossos Locutores (Deodoro e Floriano), nas cenas enunciativas que analisamos, são
autorizados a falar como presidentes; contudo, há uma nuance que os afeta, uma vez que
assumem, ora o lugar social de chefe do governo provisório, no caso de Deodoro, ora o
lugar social de funcionário substitutivo, no caso de Floriano. De todo modo, é do lugar de
chefes de Estado que eles enunciam. Os enunciadores (individual, genérico, coletivo e
universal) são lugares de dizer que se apresentam como representações - independentes
ou fora da história – da inexistência dos lugares sociais de locutor GU)MARÃES, ,
p.26). O modo como se configura na enunciação o lugar de dizer projeta sentidos sobre a
relação locutor-alocutário e esta predicação do eu e do tu incide sobre as formas
linguísticas (em nosso caso, a que tomamos como objeto, a palavra cidadão), que vão
sendo predicadas/determinadas nos textos em que se inscrevem. Essas determinações
podem ser observadas nos movimentos textuais de reescritura(ção) (retomada) e
articulação (contiguidade).
A reescrituraç~o, conforme Guimar~es , p. , é o procedimento pelo qual
a enunciação de um texto rediz insistentemente o que já foi dito fazendo interpretar uma
forma como diferente de si . Por sua vez, a articulaç~o s~o relações de contiguidade local
que, não redizendo, afetam as expressões linguísticas no interior dos enunciados ou na
relação entre eles (ibidem). Eles funcionam segundo o princípio de deriva dos sentidos
que constitui a unidade de um texto. A observação dos procedimentos textuais de
reescritura e articulação, em nossa análise, permitiu observar as predicações e
determinações semânticas diretas e indiretas da palavra cidadão nos discursos
presidenciais. Segundo Guimar~es , n~o h| texto sem o processo de deriva de
sentidos, sem reescrituraç~o , p. . Essa deriva ocorre exatamente nos pontos
em que se estabelecem identificações de semelhanças e de correspondências. Nesse
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sentido, as predicações de uma forma linguística (cidadão, no nosso caso), seja nos
procedimentos de reescritura ou de articulação, realizadas sob uma aparência de
neutralidade, mostram-se como pontos de deriva, de movimento dos sentidos. Esses
dois movimentos sobre as palavras que se colocam como objetos de discurso de um
texto permitem compreendê-lo como unidade complexa de significação, integrada por
enunciados (GUIMARÃES, 2011, p.19). O efeito de unidade próprio da textualização é
tomado na relação com a deriva de sentidos a partir da qual se constitui. Não se trata, ao
buscar compreender a designação da palavra cidadão em um conjunto de textos, de uma
busca pela decodificaç~o da palavra ou do texto; ao contr|rio, consideramos o
funcionamento da linguagem pensando nas condições em que os acontecimentos
enunciativos se produzem ibidem, p. .
Interessou-nos particularmente para este trabalho o artigo de Guimarães (2007)
sobre o conceito de Domínio Semântico de Determinação (DSD), procedimento que nos é
fundamental para as análises do corpus, uma vez que representa os sentidos das
palavras em virtude da relação de uma palavra com a outra, no texto em que se insere.
Importa para nós a concepção de Guimarães de que é o processo enunciativo que
constrói essas determinações para as expressões linguísticas. Tais determinações são
instáveis, embora funcionem sob o efeito da estabilidade. Assim, as palavras significam
pelas relações de determinação semântica, constituídas pelo acontecimento enunciativo.
As relações entre as palavras são escritas no DSD por meio de alguns sinais específicos,
determinados por Guimar~es : ├ ou ┤ou ┬ ou ┴ que significam determina ; —
que significa sinonímia; e um traço como _______, dividindo um domínio, significa
antonímia p. .
Na designação da palavra, assumindo que a linguagem funciona na tensão entre
paráfrase e polissemia, serão investigados os movimentos parafrásticos e polissêmicos
de cidadão na especificidade dos dois locutores-presidentes escolhidos, ou seja,
buscando entender sua especificidade em relação à memória discursiva ligada à
República tal como ela se configura na modernidade a partir da Revolução Francesa.
Segundo Orlandi , a memória discursiva é o interdiscurso, aquilo que fala antes,
em outro lugar, independentemente p. . Segundo a autora, a memória discursiva é
um saber que possibilita dizeres e que retorna como um já-dito que é base do que pode
ser dito, do dizível, de modo a sustentar a tomada da palavra. Os processos parafrásticos,
por sua vez, s~o aqueles pelos quais em todo dizer h| sempre algo que se mantém, isto
é, o dizível, a memória , representando assim o retorno aos mesmos espaços do dizer
em diferentes formulações de um dizer estabilizado, sedimentado. Ao passo que, na
polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significaç~o , de modo
a lidar com o equívoco, com o movimento dos sentidos (ibidem, p.36).
Investigamos, neste trabalho, a especificidade de cidadão na enunciação dos
presidentes analisados em relação aos dizeres possíveis e à filiação dos sentidos
constituídos sobre a República Ocidental a partir da Revolução Francesa, bem como às
outras redes de memória que se entrecruzam na enunciação da palavra. A análise das
relações parafrásticas e polissêmicas estabelecidas sobre a palavra cidadão nos
procedimentos de reescritura e articulação textuais permitiu, tendo em conta o conceito
de político de Guimarães (2002), responder de que modo, por meio da enunciação de
cidadão e de suas determinações, se afirma a relação entre governante e governados, e o
pertencimento do governo que se inicia ao regime republicano, bem como de que modo
se inclui, na enunciação do Estado, uma relação cidadão-República.
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3. ANÁLISES E RESULTADOS
Os procedimentos textuais de reescritura (retomada) e articulação
(contiguidade) servirão para observar as predicações/determinações semânticas diretas
e indiretas da palavra cidadão nos discursos presidenciais que compõem o corpus. As
predicações diretas são aquelas que incidem diretamente sobre cidadão, e as indiretas
são aquelas que, ao predicarem palavras que predicam cidadão, a predicam por
intermediação. Uma dessas palavras que predicam cidadão é República, já que cidadão
identifica o sujeito republicano em sua relação com o Estado. Outra predicação indireta é
a que incide sobre concidadãos ou outras palavras não cognatas que reescriturem
cidadão(s). Procuramos observar também o modo como o locutor-presidente se significa
e significa seus destinatários, além de terceiros a quem se refere, buscando
compreender quem se inclui na identificação pelo nome cidadão.
Em seu discurso de posse, Floriano Peixoto apresenta seus primeiros intuitos que
o inspirariam em sua administração pública. O presidente traz propostas de governo,
referentes, principalmente, à economia e à administração da fazenda pública. Além
disso, ele pede o apoio do povo, do exército e da marinha para promover o bem da
pátria. A divisão do todo nesses três setores mostra, de saída, que há uma divisão na
sociedade, o que afeta os sentidos da palavra que aqui temos por especificidade analisar.
Neste discurso, há apenas uma ocorrência da palavra cidadãos, no seguinte trecho:
No trecho acima, cidadãos parece apontar, como nos discursos de Deodoro, para a
divisão, pois além de estar predicado pela estratificação das classes sociais, a palavra
funciona ao lado da expressão grande parte do exército e da armada, o que distingue
civis e militares, predicando cidadãos como civis. É essa divisão entre os cidadãos (civis)
segmentados em classes, o exército e a armada que Floriano aponta como responsável
pelo feito cívico de restabelecer a Constituição, reescriturando as expressões nominais
por classes armadas do País em prol da lei. Nas palavras de Floriano, notamos uma ênfase
na militarização do Estado que, no limite, representa um embate com a própria
República, o que se dá, contraditoriamente, em uma tentativa de defendê-la. Cidadãos
aqui aparece predicada pela expressão diversas classes, que estão armadas, também por
oposição a militares na divisão, mas por junção a eles pelas armas.
Nas palavras de Floriano, a renúncia de Deodoro foi uma medida que poupou a
luta entre irmãos, expressão que é reescrita por o derramamento do sangue de brasileiros
e por o choque entre os seus companheiros de armas. Nesse sentido, a palavra República
significa, pelo viés do conflito, como um processo penoso e litigioso – o que difere da
forma como o processo de instauração da República significava no discurso de
Proclamação, isto é, como um processo pacífico, em perfeita comunhão de sentimentos,
em que não se explicita a mudança. Ocorre ainda, por essas reescriturações, uma
aproximação entre o Locutor e seus alocutários, de modo que o lugar social de
presidente desliza para o lugar do coletivo, de um todos diluído, em que os brasileiros
são predicados, ao mesmo tempo, como irmãos e companheiros daquele que é o chefe de
Estado. Em razão de se tratar de um Locutor que assume o lugar social de um locutor-
presidente, a figura do enunciador que aí fala é de um enunciador-coletivo, uma vez que
representa a coletividade dos irmãos em armas. Os cidadãos, predicados indiretamente
por brasileiros, significam por um viés sentimental, de irmandade e família, pois são
irmãos e companheiros do chefe de Estado, do governante.
A palavra República aparece no discurso de posse de Floriano, mas não
acompanhada de cidadãos/concidadãos, nem de cidadania. Há apenas duas ocorrências
de República, no entanto, elas surgem para afirmar e para dizer que aquele regime se
trata ainda de uma República, apesar da instabilidade e das ameaças. Não há democracia
associada ao republicanismo, uma vez que a palavra República significa como uma
revolução pacífica que atestou o amor do povo, da marinha e do exército. Há, desse modo,
não uma relação política entre o Estado Republicano e seus cidadãos, mas sim uma
relação sentimental, quase de devoção, que significa os sujeitos na sua identidade
nacional forjada no patriotismo e no sentimento, no afeto pela pátria, pelo Estado, e que
contradiz todo o conflito posto anteriormente.
República predica indiretamente cidadão e apresenta seus sentidos instabilizados
por uma predicação que indica uma instabilidade referencial que encaminha para dois
sentidos recorrentes: a República está em construção e precisa ser defendida. Nesse
sentido, os cidadãos são predicados pela expressão operários de uma obra comum, cuja
obra é trabalhar pelo de progresso da pátria. Há um processo de afirmação da
necessidade de estabilização do regime do qual não participa a enunciação de cidadão(s)
e concidadãos, palavras-símbolos da República Ocidental Moderna. Observamos apenas
uma ocorrência de cidadãos, como afirmamos acima, e nenhuma, nesse discurso de
posse, de concidadãos. Estas duas palavras estão em concorrência com outras, não
cognatas, como país cumpre-me expor ao País , garantir a ordem e as instituições
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4. CONCLUSÕES
As análises sobre a designação da palavra cidadão e suas concorrentes cognatas e
não cognatas que desenvolvemos neste trabalho mostraram que tais unidades lexicais
entram produzindo sentidos, por um lado, de desigualdade e divisão, incluindo não o
todo da nação, mas sim setores e classes determinadas; por outro lado, de um
sentimentalismo patriótico de exaltação do regime e da Pátria que não está ancorado em
uma participação efetiva da coletividade nos rumos do país, mas sim em um sentimento
de amor que parece legitimar-se simplesmente no fato de o sujeito ser brasileiro. Desse
modo, parece não haver uma reivindicação do modo de participação dos sujeitos
republicanos na sua relação política com o Estado.
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9. REFERÊNCIAS
CARVALHO, J.M de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 2003.
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HOBSBAWM, E.J. A revolução francesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1996.
OLIVEIRA, S.E. Cidadania: história e política de uma palavra. Campinas: Pontes Editores,
RG Editores, 2006.
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ESTUDOS ÁRABES
Peter France
ANTECEDENTES
A invasão napoleônica no Egito em 1798 pode ser considerada como o ponto de
partida da literatura árabe moderna. O século XIX foi tido pela primeira vez na sua
história em grande parte do Oriente Médio se mostrou exposto de maneira sistemática a
uma influência em grande escala das ideias europeias e a revisão da sociedade islâmica
tradicional que esta influência trouxe consigo com importantes consequências e em
todos os casos nos mais diversos âmbitos da vida árabe (político, econômico, social,
educativo, etc.). Junto a estas mudanças também se produziram outras de grande
importância para o desenvolvimento da literatura árabe moderna, entre os quais se
incluem o crescimento do novo público leitor, o nascimento de um período autóctone e o
impulso de um novo estilo da prosa árabe, mais simplificada. Tanto no âmbito da poesia
quanto da prosa, os autores reimplantaram as convenções da literatura árabe
tradicional e, ao mesmo tempo, o aumento do número de traduções de textos ocidentais
permitiu que leitores recém alfabetizados tivessem acesso a estilos literários europeus.
O renascimento literário e cultural (nahda, em árabe) alcançou seu ponto culminante no
último terço do século XIX e se completou de maneira efetiva na época da Primeira
Guerra Mundial; Assim, a poesia teria visto florescer um vigoroso movimento
neocl|ssico , enquanto as formas liter|rias tradicionais da prosa |rabe teriam sido
praticamente substituídas pela novela ocidental, os contos e o teatro.
13 Texto original: FRANCE, Peter. La literatura árabe moderna y su impacto em Occidente. Disponível em
http://www.libreria-
mundoarabe.com/Boletines/n%BA86%20Oct.10/LiteraturaArabeModernaImpacto.htm. Artigo traduzido
por Marcos dos Reis Batista.
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Um dos principais meios para atrair a atenção do leitor é o uso de uma língua coloquial
nos diálogos, uma técnica que al-Sharqâwî desenvolve usando diversos dialetos em
função do falante e que resulta quase impossível a reflexão nas traduções.
Talvez o leitor ocidental possa apreciar melhor o realismo desta fase da prosa
árabe nas coleções de relatos curtos de escritores como Yûsuf Idrîs. A primeira coleção
de relatos de Idrîs, Arjas layâli (As noites mais baratas) publicada em 1954 e
ambientada no Cairo e no entorno rural egípcio, analisa de maneira excepcional as
fraquezas da espécie humana e provocou uma grande controvérsia desde o momento de
sua aparição. A obra de Yûsuf Idrîs não está marcada somente por um realismo cru,
como também pelo emprego de uma linguagem absolutamente inconfundível que ao
menos vai além do simples uso do dialeto egípcio nos diálogos, colocando em relevo as
características do dialeto coloquial incluso às passagens narradas. Existem também boas
traduções das obras de Yûsuf Idrîs, ao menos em parte, muita dessas características
podem se perder.
A atmosfera do compromisso que dominou a literatura |rabe durante a década
de 1950 começou a se perder com a chegada da década seguinte, quando o idealismo da
revolução egípcia de 1952, encabeçada pelos oficiais livres, deu passo a desilusão. O
novo estado de ânimo no Egito fica refletido na obra de um grupo de autores
frequentemente conhecido como a geraç~o dos sessenta e entre os quis destacam Sun
Allâh Ibrahîm, Yamâl al-Ghîtânî e Yûsuf al-Qa îd. Provavelmente a obra que melhor
reflita esse novo estado de ânimo seja a novela de Sun Allâh Ibrahîm intitulada Tilka al-
râ iha Esse cheiro, um inspirado exemplo autobiogr|fico de literatura de pris~o
árabe em que o protagonista recém saído do cárcere, anda sem rumo pelo Cairo,
tentando em vão forjar relações com pessoas do seu passado. A sordidez que destila
toda a obra e as descrições explícitas de temas sexuais causaram indignação na sua
primeira publicação. Entretanto, vem sendo uma crônica lograda de monótonas vidas
das classes baixas do Cairo.
Especialmente exigente desde o ponto de vista do tradutor são as obras de Yamâl
al-Ghît}nî, cujo o uso frequente da intertextualidade oferece a soma de uma
dificuldade; o tradutor não enfrente somente os habituais problemas linguísticos e
culturais de traduzir do árabe, como também a tarefa de refletir, dentro da mesma obra,
uma série de estilos literários que em outras ocasiões podem incluir complexas alusões
históricas. Um bom exemplo em particular é o caso das obras de al-Ghîtânî, a novela
intitulada Al-zaynî barakât (1971) a qual incorpora textos do historiador medieval Ibn
Iyâs e outro material escrito com este mesmo estilo, dentro de um trabalho que retrata
com imagens alegóricas a corrupção no Egito contemporâneo.
Uma voz absolutamente inconfundível na literatura árabe moderna, ainda que
muito relacionada com a geraç~o dos sessenta é a de )dw}r al-Jarrât que ganhou a
reputação de ser um autor especialmente difícil para traduzir. O domínio da sutileza da
língua árabe por parte de al-Jarrât é muito superior a da maioria de seus
contemporâneos e seu estilo de digressões a menos produz um efeito semelhante a um
poema em prosa.
Ainda que muitas das mais recentes e interessantes inovações da prosa árabe se
produziram no Egito, outras partes do mundo árabe também experimentou um
crescimento na produção de obras de ficção inovadoras, somente uma parte das quais
tem sido traduzida até agora a algumas línguas europeias. Entre os trabalhos mais
ambiciosos estão os cinco volumes da obra intitulada Mudun al-milh (Cidades de sal, de
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TEATRO
As influências ocidentais que proporcionaram a substituição gradual das formas
árabes tradicionais de narração em prosa pela novela e pelos relatos curtos também
deram seus frutos na criação de um teatro ao estilo ocidental no Oriente Médio. As
primeiras experiências nesse sentido tiveram lugar em Beirute em 1847, ainda durante
a maior parte do século XIX e princípios do século XX, as produções teatrais se limitaram
em grande parte à comédia e ao melodrama, junto a adaptações livres de obras de teatro
ocidentais. A criação de um teatro egípcio maduro começou com os esforços de
Muhammad Taymûr, Antûn Yazbak e Ibrâhîm Ramzî, na Primeira Guerra Mundial e
culminou com Tawfîq al-Hakîm, quem dominou o teatro egípcio desde a década de 1930
até muito tempo depois da Revolução dos Oficiais Livres em 1952.
Embora as primeiras obras teatrais classificadas de tipo intelectual como Ahl al-
kahf (Gente da caverna, 1933) e Shahrazâd (Sherezade, 1934) sendo estas algumas das
mais importantes de Tawfîq al-Hakîm, muitas foram escritas para ser lidas em lugar de
ser interpretadas, enquanto que as obras posteriores – desde a década de 1960 adiante –
mostram a influência de técnicas procedentes do teatro ocidental de vanguarda. Entre
estes trabalhos destaca Yâ tâli al-shayara (O escalador de árvores, 1964) a primeira obra
teatral de al-Hakîm que mostra a influência do teatro do absurdo. A obra se caracteriza
por seus animados e velozes diálogos, sua frescura e seu tom festivo.
A produção teatral de al-Hakîm também incluiu uma série de obras sobre temas
sociais publicadas no final da década de 1940 e início dos anos 1950, com destaque para
a mais significativa entre as quais se destaca é Ughniyat al-mawt (Canção da morte,
1947) , quiçá a obra teatral mais longa em árabe. A peça gira em torno do conflito entre
os valores tradicionais e os modernos, um tema que lembra o cenário da já citada
Yawmiyyât nâ ib fî al-aryâf, uma de suas primeiras novelas. Uma vez mais, a obra se
caracteriza pelos rápidos diálogos cruzados entre os personagens, uma questão que
apresenta problemas específicos aos tradutores.
Um problema habitual para os dramaturgos árabes tem sido a eleição entre o
árabe clássico e o coloquial como meio de comunicação. Al-Hakîm escreveu a maior
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parte de suas obras teatrais em |rabe cl|ssico, também {s vezes foram traduzidas ao
coloquial quando eram interpretadas. Porém estas questões vêm sendo objeto de
acalorado debate, assim como o tradutor deve enfrentar forçosamente o difícil dilema de
adaptar um ou outro registro, sendo inevitável que grande parte da paixão que
despertam entre certos setores da elite cultural árabe se perde nas versões traduzidas.
Como no caso da novela, o teatro recente se caracterizou por sua crescente
tendência à experimentação e, ao mesmo tempo, por uma vinculação cada vez maior
com a televisão. Tem tido também um considerável aumento da atividade teatral fora do
Egito (Líbano, Palestina, Kuwait, Iraque e Tunísia), destacando em especial o caso da
Síria, um país onde a recente inovação teatral – também talvez inesperada – tem sido
especialmente chamativa.
POESIA
A poesia árabe moderna se divide em três fases bem definidas, também
sobrepostas: neocl|ssica , escrita em sua maioria entre o ’ltimo terço do século X)X e a
Primeira Guerra Mundial; rom}ntica , escrita em sua maioria no período do
entreguerras e a modernista . Cada um destes estilos poéticos apresentou problemas
específicos aos tradutores. Enquanto que a poesia neoclássica soube conservar de
maneira estrita os esquemas métricos e rítmicos da poesia árabe medieval, com seus
problemas de tradução correspondentes, o estilo romântico esteve muito influenciado
pela poesia romântica ocidental, não somente em sua maneira de entender a poesia,
como também, até certo ponto, na sua adoção de uma ampla variedade de formas
poéticas. Quando se traduzem a algumas línguas europeias, estes poemas tender a soar,
no melhor dos casos, como antiquados, e no pior, como uma simples imitação da poesia
romântica ocidental.
Quiçá seja em parte esta razão pela qual se tenha traduzido relativamente pouco
a poesia neoclássica e romântica. A maioria da poesia árabe traduzida recentemente
data do período posterior a Segunda Guerra Mundial, quando os poetas começaram a
adotar técnicas modernistas vindas do Ocidente, incluindo o uso da prosa poética e
várias formas de verso livre. Como no caso da novela, a eleição do material a traduzir às
vezes se viu influenciada por questões políticas, além das estritamente literárias. Entre
os poetas mais traduzidos deste período estão os palestinos Mahmûd Darwîsh, Samîh al-
Qâsim e outros. Dentre estes, talvez a poesia de Darwîsh seja a mais universal e atrativa.
Dentre toda a sua produção poética disponível em numerosos idiomas, destacam obras
como sua autobiografia, escrita em forma de prosa poética durante o bombardeio
israelense de Beirute e intitulada Dhâkira lil-nislân (Memória para o ouvido, 1995).
Grande parte da literatura palestina se viu inevitavelmente presa por acontecimentos
políticos, porém, está longe de ser uma literatura monolítica. Também têm sido
publicadas traduções de obras completas de autores como Boullata, Asfour, Jouri e
Algar, al-Udhari, jayyusi e, acima de todos, Adûnîs, talvez o mais inovador e um ícone
entre os poetas árabes modernos.
NAGUIB MAHFOUZ
Considerado por muitos como um dos melhores novelistas do século XX e
também como a figura literária mais criativa e fecunda do mundo árabe moderno, o
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escritor egípcio Naguib Mahfouz (Nayîb Mahfû) produziu mais de 30 novelas e várias
coleções de contos e obras teatrais com um amplo peso literário. Embora suas primeiras
obras se caracterizem pelo realismo e pelos detalhes da vida urbana no Cairo, o estilo
narrativo das últimas obras de Mahfouz recuperou os modelos narrativos tradicionais
do árabe e sua tradição literária clássica, no lugar dos estilos europeus que previamente
ele tinha empregado e adaptado.
Mahfouz tem sido e continua sendo muito lido em todo Oriente Médio, onde
exerceu uma tremenda influência no desenvolvimento de novelas, muito antes de
receber o reconhecimento internacional. Em 1988 se tornou o primeiro escritor árabe a
ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Eclético na eleição dos temas, Mahfouz se
expressou em vários gêneros: realismo social, como em sua obra de 1947 intitulada
Zuqâq al-Midaq (Saída de Midaq) e de novo em 1956, com sua trilogia do Cairo; novela
negra em 1949, com Al-liss wal-kilâb ( O ladrão e os cachorros) e em 1951, com Bidâyah
wa nihâyah (Princípio e fim); psicanálise, metafísicas e alegorias, como em seu Awlâd
hâratinâ (Filhos do nosso bairro). Mahfouz trata temas como a alienação, a frustração
política e a responsabilidade moral, os quais podem se encontrar em grande parte na
ficção contemporânea.
A Trilogia do Cairo consta de Bayn al-qasrayn (Entre dois palácios), Qasr al-
shawq (Palácio do desejo) e Al-sukkariyya (O açucareiro). Esta trilogia deu fama a Naguib
Mahfouz e permitiu ser conhecido fora dos círculos literários egípcios. Nela o autor
retrata um espírito nacionalista egípcio em elevação e a luta para escapar do domínio
britânico. Afirma-se que a publicação de uma tradução para o francês das primeiras
partes da trilogia se tornou importante fator que favoreceu a concessão do Prêmio Nobel
a Mahfouz.
A exceção de um número limitado de leitores, a importância de Mahfouz como
mestre da linguagem foi relativamente ignorada no Ocidente até não fez demasiado
tempo, apesar de que algumas de suas obras já tinham sido traduzidas para o inglês e
para o francês antes da concessão do prêmio Nobel. No The Politics of Dispossession
(1995) Edward Said comenta a aparente reticência das principais editoras dos Estados
Unidos para as traduções do árabe.
O uso que fez Mahfouz do árabe padrão nos diálogos de suas obras é uma linha
característica de seu estilo literário e isto facilita o trabalho do tradutor, pois resulta
extremamente complexo traduzir as formas do árabe dialetal. Quando o tradutor deve se
ocupar de expressões coloquiais no idioma original pode decidir abreviá-las ou
empregar uma linguagem padrão em versão traduzida. Em outras ocasiões, esta pode
ser a única opção para evitar que se veja afetada a coerência do texto em seu conjunto.
Ao contrário, o uso de localismos pode desorientar alguns leitores, como ocorre no caso
do emprego de norte-americanismos como okey (tudo bem) ou buster (macho, tio, etc.)
em algumas traduções para o inglês de obras de Mahfouz, como, por exemplo, Pal|cio
do desejo . Outra possibilidade é empregar a transliteraç~o |rabe para se referir aos
termos com fortes conotações culturais e logo fazer uso de uma série de notas de rodapé
ou empregar glossários esclarecendo determinados termos, fazendo com que os textos
se tornem mais acessíveis aos leitores estrangeiros. Isto é, por exemplo, o caso de
Mirâyâ, de 1972 (Espelhos), uma novela enquadrada na vida política egípcia e que
contém inúmeras referências a figuras históricas e aos principais partidos políticos, com
os quais o leitor ocidental provavelmente estará pouco familiarizado. Contudo, as notas
também podem ser úteis e oferecer certa informação ao leitor da tradução, seu abuso
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pode resultar negativo, pois rompe o ritmo da leitura e frustra todo o interesse de
superar a especificidade do cenário, não fazendo justiça a intenção universalista e
transcultural do texto original. Pode também acontecer que o leitor ocidental de
traduções de obras árabes de ficção, sobretudo quando as traduções são bastante
literais, fazendo com que se percebam aspectos desconcertados e alguns arcaísmos e
aforismos em certas expressões que, de feito, são algo habitual em língua árabe e não
indicam o uso de um estilo especialmente recarregado por parte do autor.
BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA
YABRA, Yabra Ibrahim. Literatura árabe moderna y Occidente. Madrid: Revista Alif nûn,
número 52 (set. 2007).
YABRA, Yabra Ibrahim. Literatura árabe moderna y Occidente. Madrid: Revista Alif nûn,
número 53 (out. 2007).
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