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GREGORIO BAREMBLITT

A ClíNICA COMO ELA É.


DEZ PONTOS
PARA UMA APRESENTAÇÃO

O uem subscreve essa apresentação: o coordenador e co-autor

deste livro, assim como os seus demais co-autores, acreditamos. ter alguns atributos
comuns, apesar de assumi-los de maneiras es tr~ente singulares.
Em primeiro lugar, entre muitos outros afazeres, todos desempenha mos funções
Clínicas. Sem dúvida, é necessário esclarecer que, muito além de uma Clínica
definida como um conjunto de práticas assistenciais, deno minamos dessa maneira
uma certa dimensão que adquire (de forma deli berada ou não, e apenas às vezes
bem-sucedida), tudo quanto fazemos.
Em segunda instância, cabe deixar claro que todos temos uma gra duação
universitária que, em alguns casos, inclui títulos de especializa ção, mestrado ou
doutorado. Essa condição, que segundo veremos não tem para nós maior
importância, é destacada aqui para a lamentável fi-
.nalidade de descartar antecipadamente possíveis tentativas de desqua lificação
acadêmica, como também para indicar que todos atuamos em processos
clínico-pedagógicos, nomeando assim o exercício do ensino .. dos procedimentos
clínicos.
Em terceiro plano, podemos declarar que, ainda que tenhamos in 5
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sistido em aprender todo tipo de teorias e abordagens acerca da Clínica, cada
um de nós passou por formações psicanalíticas mais ou menos tra dicionais,
ainda que diversas, no que se refere à orientação teórica e me todológica. Tal
antecedente, ao qual não atribuímos nenhuma valorização superior, explicará
por que nossos textos não conseguem evitar certo matiz psicanalítico. Isso tem
que ser dito porque, apesar de sabermos, penosamente, que para cada escola
psicanalítica as outras não o são, nos permitímos afirmar e reconhecer que nada
do que é psicanalítico, exceto o fanatismo, nos é estranho.
Em quarto lugar, não obstante insistirmos em que isso não implica
nenhuma autoridade, é procedente enfatizar que nosso currículo ostenta uma
experiência Clínica extensa, não só na quantidade (e talvez na quali dade), mas
também quanto ao tempo; alguns de nós, por exemplo, exer cemos a Clínica há
mais de trinta anos. Pode ser que isso acrescente al gum valor a nosso desejo de
ser "eternos principiantes".
Em quinto nível, o qual, como se verá, não carece de importância pa ra
contextualizar e datar nossa experiência, se bem seja certo que temos
trabalhado clinicamente nos três Mundos, nossos lugares de atividade e
residência são os países do Terceiro Mundo, em particular Brasil, Uruguai
e Argentina. Explicitamos o que foi dito anteriormente para advertir que, longe
de pretender, para nossos testemunhos, uma generalização universa lizante,
tratamos de atribuir-lhe o exato alcance de cartografias, que, sen do sempre
únicas e circunstanciais, tomam-se válidas justamente por isso.
Como sexta colocação, acreditamos interessante aclarar que, apesar de
compartilhar atividades que se desenvolvem em âmbitos variados, os
co-autores não nos envolvemos em afiliações fortes nem exclusivas a ne
nhuma entidade científico-profissional, entendendo como tais as associa ções,
institutos, fundações etc., que nos possam dar uma "identidade" pc
lítico-epistemológico-técnicc-institucional homogênea e definida, a não ser a
que, justamente, tentamos enfatizar e investigar: a de sermos clínicos.
Como sétimo ponto, assinalaremos que os autores desses trabalhos são
unidos por algumas convicções, digamos, existenciais, que, segura mente, se
irão evidenciando na densidade dos respectivos artigos ... con vicções estas
dentre as quais talvez não seria excessivo nem definitivo pontuar umas poucas:
Acreditamos que as diferentes formas nas quais se manifestam a
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insatisfação e o sofrimento humanos, que na modemidade configuram quadros


cuja caracterização e auxílio são delegados a diversas ciências... NÃO SÃO,
tanto no campo de suas causas e efeitos, quanto no de seu conhecimento e
resolução, DO DOMíNIO EXCLUSIVOE EXCLUDENTE DE NENHUMA
DISCIPLINA. Pelo contrário, pensamos que o mal-estar humano é sempre
causado pela incidência de múltiplas determinações, e que se expressa em
inúmeras manifestações, invariavelmente concer nentes a TODAS AS
DISCIPLINAS E A TODAS AS MODALIDADES DO SABERE DO
AFAZER. Isso inclui não só a inteligência e a eficácia dos conhecimentos e
práticas artísticas, religiosas e idiossincráticas (sexuais, raciais, nacionais,
etárias etc.), mas também os saberes e maneiras de
proceder pragmáticos, populares, espontâneos e não-enquadráveis. Desde
sempre não ignoramos que a sociedade que "pathos-Iogiza" (ou seja, que toma
o
sofridas e inviáveis as diferenças sinii!iares ue não conse ue incor orar se undo
a ló ica ue lhe é vi ente),oé a mesma que produz as disci linas como a aratos
cognoscitivos e operativo~estina- .st0S a gerenciar a dissidência e o desvio.
Apesar de ter essa certeza, tam pouco negamos que os saberes e afazeres
disciplinares tenham impor tantes contribuições a dar para o arsenal de recursos
com os quais se ten ta aperfeiçoar a vida em suas variadas áreas. No tocante a
isso, estamos seguros que esses aportes somente se efetuam sob a condição de
que se os desidealize, não os considerando sempre preferenciais e apenas auto
criticáveis, quer dizer, hegemônicos.
Em oitavo lugar, diremos que estamos convencidos de que a Clínica é um
âmbito cujo estatuto não se reduz ao domínio de uma teoria, de um método ou
de uma técnica (ou seja: ao exercício de uma especialidade), e muito menos ao
que regula as prestações de serviços contratados, rentáveis etc. (ou seja: ao
regulamentado como exercício de uma profissionalidade).
Parece-nos que, tanto a especificidade como a profissionalidade são práticas
condicionadas em tal medida pela ética implícita na racionalidade mercan til
gnosiológica e operacional do Capitalismo, que mal podem erigir-se em
garantias indiscutivelmente confiáveis para um processo de desnormativi
zação ou emancipação. Para nós, a Clínica transcorre num espaço sui generis
que pode ser constituído em qualquer lugar, toda vez que "Vontades de Ajuda"
(segundo uma paradoxal redefinição da idéia de Nietzsche), plas mem
subjetividades que se encontram para se auxiliar, ou seja, dispostas a
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localizar e demolir tudo aquilo que entorperce seu acoplamento produtivo,


tratando de atualizar as virtualidades deste até chegar às suas "últimas"
conseqüências. Nesse sentido ATÉ um consultório pode vir a formar parte de
um plano de consistência no qual transcorra um agenciamento inventivo e
libertário. Mas liberdade aqui não implica apenas a capacitação para, e o
desempenho das convenções segundo as quais "o direito de um acaba onde
começam os do outro" (ainda que não seja demais lembrar disso para avaliar e
corrigir o grosseiro ou sutil autoritarismo de certas terapias). Tampouco se trata
da instalação instrumental de um campo de paixões as simétricas, destinadas a
ser "sublimadas" e dissolvidas quando o Um re signa suas expectativas de
conexão e é induzido a passar (segundo a obe diência a uma Lei, exclusiva e
geral) de uma vez só: DE QUERER SER
TUDO PARA O OUTRO... ATÉ QUE NADA FIQUE ENTRE OS DOIS. Essa
"liberdade condicional", própria da democracia liberal e disciplinar, por meio
da qual se metaaprende muito bem a protagonizar relações contratuais
"moderadas", terá de ser ampliada em todas as direções neces sárias e
intensificada segundo um regime de variação contínua. Não se trata de procurar
uma "liberdade incondicional", trata-se de não "partir de condições de
chegada", cuja estereotipia universalize seus limites. Trata-se de uma abertura
tanto aos devires individualizantes quanto às alteridades correspondentes, que
terão de produzir-se NESSEencontro único e irrepe tível, Liberdade para jogar
a aposta que implica atualizar o virtual, quer dizer, o mais insólito e o melhor
de cada pura diferença.
Em conseqüência, a Clínica é para todos um espaço em que os "papéis",
"lugares", "funções" ... imaginários, simbólicos... ou como se queira
chamá-los, conformam apenas uma topologia distributiva inicial. O andamento
do processo, toda vez que devenha produtivo (e o será sempre no campo da
Realidade), se deleitará em reinventar como simu lacros os ocupantes dessas
posições estruturais e tecnoburocráticas, in fundindo-lhes formas tão
imprevisíveis que jamais poderemos antecipar suas multiplicidades
exuberantes. Como se pode apreciar, será exata mente a desinstitucionalização
dessas entidades e a desidentificação des sas identidades o que será posto a
funcionar desde o princípio ... e não apenas segundo uma vocação de
demonstrar aos sujeitos "tu és isso", ou seja, um efeito específico do
significante. Este processo de desestratifica ção e desterritorialização não
haverá de estar circunscrito aos presuntivos
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resultados que se pretende conseguir com a adoção, pelo operador, de uma


atitude muda, com a qual se espera desmitificar os privilégios que lhe são
atribuídos como depositário de um "suposto saber".
O submetimento que se imagina desarmar com essa tática retoma
exacerbado, quando o usuário dos serviços prestados por esse operador hierático
se convence de que quem assim se nega a desempenhar-se como "sujeito
suposto-saber" o faz, entre outras coisas, para ser reconhecido como o possuidor
inquestionável do "saber acerca dos supostos", o único que "assegura", com a
propriedade de tais fundamentos, o acesso à Ver dade. O fato de que este serviço
seja vendido sob o slogan de "Faça-o você mesmo ... em presença de minha
ausência" ... não faz senão confirmar o pioneirismo pós-moderno destas
"escolas".
O que aqui delineamos é a invenção de um instrumental, único para cada
"caso", que se elabora sem Fundamentos, sem Modelo, sem Imagem e sem
nenhum possível Proprietário.
Em nono lugar, muito ligado ao anterior, acreditamos que a Clínica é um
espaço tanto para as VARIAÇÕES CONCEI1UAIS filosóficas, quanto para as
VARIÁVEIS-FUNÇÕES científicas, como para as VARIEDADES artísticas ... mas
também é o campo das VARIANTES micropolíticas, das VARIABILIDADES
ecológicas e; sobretudo, das VARIEGAÇÕES e DES VARIOS loucos do Real.
Nenhuma constante pode permanecer incólume como padrão de medida com relação
à qual se detectará e se medirá o que muda. Mas, se todas as invariantes
(organismos, significâncias, subjeti vidades) podem ser desmontadas, não o serão
apenas por "tomadas de consciência", nem por "re-significações", mas por uma
raspagem radical, por invasão heterogenética e heteróloga e pela eclosão de linhas
de fuga • transversais, capazes de engendrar metamorfoses fabulosas.
Desde já, num périplo dessa índole, no qual os viajantes, particular mente os
"operadores", são a duração em si do processo, mal se pode acres centar-lhes
qualquer categoria que os assemelhe a um intérprete, nem no sentido
hermenêutico, nem no artístico, ou mesmo em qualquer outro. Ou seja: já não
serão nada parecidos a um decifrador ou a um exe-cutante, mais ou menos
virtuoso, ao qual se permite uma certa repetição diferencial na "performance" de
uma "competence", seja esta entendida como uma prescritiva que autoriza uma
de-codificação relativamente engenhosa, ou uma partitura que conceda ao
concertista a graça deadivinhar os "tempos"
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de sua notação. Estes textos doutrinário-musicais, petrificados ou "desli


zantes", essências últimas d'O Último, não deixam de ser Modelos Ideais
Primigênios, que apenas concedem aos agentes de sua "rede de repetido ras", a
discreta originalidade de um "estilo". Na Clínica, tal como a quere mos, o
"operador" proteiforme e nômade, enquanto ainda é perceptível e dizível como
tal, será um improvisador (no melhor sentido da palavra), que compõe
enquanto executa. Engendrará partituras intranscrevíveis, pura performance,
aoant-premiêre e princeps ... com o "agravante" de configurar uma polifonia que
inclua como coro o público. Ciência e arte "menores", cujos artífices nunca
serão "maestros", senão sempre "expedivisionários".
Em décimo e último posto, esperamos seja notório que não existe entre
os co-autores nenhum vínculo formal nem (até onde entendemos) informal,
que involucre estratificação hierárquica, nem pedagógica, orga nizacional ou
analítica ... ainda que a maior parte dos integrantes tenha, entre si e com o
coordenador, uma relação de AMIZADE que até pode chegar a incluir traços
de mútua influência e de agradecimento por afei ções favoráveis recebidas. Ser
livre não exige ser ingrato, nem dizer-se eclético e pragmático dá certeza de
não ser confuso ou traidor.
Em suma: tratamos de ser um Rizoma de amigos, mas não de amigos da
Sabedoria, nem da Verdade, nem da Razão... e esperemos que, menos ainda,
da Riqueza, do Poder e do Prestígio. Seria de nosso agrado devir um
dispositivo amistoso da Produção Desejante (ainda que nem sempre nos
demonstremos dignos dessa Idéia), que, como quer que seja, crê haver
inventado uma das possíveis concepções polívocas da Clínica e que aqui a
expõe para propiciar o surgimento de outros agenciamentos diferentes, dos
quais lhe entusiasmaria ser um detonador. Quer dizer, um catalisador de novas
amizades, ainda que nunca chegue a conhecê-las pessoalmente.
O leitor poderá apreciar que vários dos artigos incluídos neste livro
adotam a forma epistolar, outros são versões de registros fonomagnéticos de
diálogos ocasionalmente mantidos entre os co-autores, ... essa diver sidade e
extra-academicismo da forma de expressão e de conteúdo, pre tende ser
coerente com a vontade heterodoxa de nossa proposta. Os efeitos de sua leitura
serão o único juiz deste empreendimento.

Tradução do espanhol:
Eliana Rodrigues Pereira Mendes.

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