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PUTA LIVRO
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Este trabalho está licenciado sob a Licença
Atribuição-NãoComercial-SemDerivações
4.0 Internacional Creative Commons. Para
visualizar uma cópia desta licença, visite
http://creativecommons.org/licenses/
by-nc-nd/4.0/

PUTA LIVRO
ORGANIZAÇÃO
Angela Donini
Laura Murray
Naara Maritza
Natânia Lopes
Patricia Rosa

REVISÃO
Natânia Lopes

DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO


LARALORE STUDIO

ILUSTRAÇÕES
LEONARDO LUBATSCH

PARECERISTAS
Amanda Calabria
Ana Paula da Silva
Angela Donini
Elaine Bortolanza
Flavio Lenz
Gabriel Alencar
Jose Miguel Olivar
Natânia Lopes
Naara Maritza
Laura Murray
Patricia Rosa
Soraya Simões

PARCERIAS
CasaNem
Coletivo Puta Davida
Critical Trafficking and Sex Work
3
Studies/Centre for Feminist
Research - York University
LaPeSPI - NEPP-DH/UFRJ
Observatório da Prostituição -
LeMetro/IFCS e IPPUR/UFRJ

PUTA LIVRO
Poplab - UNIRIO

FINANCIAMENTO
FAPERJ
Pesquisa: Os impactos dos megaeventos
esportivos nos mercados do sexo no Rio
de Janeiro (E-26/2010.137/2016)
Pesquisadora responsável:
Soraya Silveira Simões

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


(CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Puta livro [livro eletrônico] / (orgs.) Angela


Donini...[et al.]. -- Rio de Janeiro :
Ed. da Autora, 2022.
PDF
Vários autores.
Outros organizadores: Laura Murray, Naara Maritza,
Natânia Lopes, Patrícia Rosa.
Bibliografia.
ISBN 978-65-00-57281-0
1. Artigos - Coletâneas 2. Coletivo Puta Davida
3. Feminismo - Brasil 4. Gênero e sexualidade
5. Imagens 6. Organização social e política
7. Prostituição 8. Textos - Coletâneas
I. Donini, Angela. II. Murray, Laura. III. Maritza,
Naara. IV. Lopes, Natânia. V. Rosa, Patrícia.

22-136669 CDD-B869.8

Índices para catálogo sistemático:


1. Miscelânea : Literatura brasileira B869.8 Henrique
Ribeiro Soares - Bibliotecário - CRB-8/9314

Coletivo Puta Davida


Instagram: @coletivoputadavida
coletivoputadavida@gmail.com
4
PUTA LIVRO
A TODES PUTA ATIVISTES QUE
FAZEM ESSE MOVIMENTO
REVOLUCIONAR
5 PUTA LIVRO
Parte I: disPUTAR narrativas

6
16
Apresentação
ANGELA DONINI, NATÂNIA LOPES,

PUTA LIVRO
NAARA MARITZA DE SOUSA,
LAURA MURRAY E PATRÍCIA ROSA

23
Não. Não deem direitos as putas,
trans e travestis
INDIANARAE
SIQUEIRA

27
Mulher da vida
VÂNIA REZENDE

28
Dedo no rabo do teu pseudo-transgredir
MONIQUE PRADA

31
Ressignificação da palavra “puta”: reflexões
advindas de narrativa de memórias (auto)
biográficas de uma puta mulher
NAARA MARITZA DE SOUSA

45
Uma experiência de trabalho sexual sendo
homem trans e outros temas
sobre prostituição
LEONARDO FARIAS PESSOA TENÓRIO

55
Coluna da Gabi: uma nova geração
de pesquisadores da prostituição
GABRIELA LEITE
56

7
Luna
PALOMA COSTA

57

PUTA LIVRO
A puta do professor
FRIDA CARLA

58
A história que não pode ser contada
NATÂNIA LOPES

63
Ser puta é quebra de estigma: a puta
política e as transas no tempo. Trajetória
militante de Lourdes Barreto
AMANDA DE MELLO CALABRIA

76
Mulher negra é revolução
VÂNIA REZENDE

77
Nossos nós
SARA MARINHO

78
Lugares em movimento: putas
protagonistas e aliades no jornal Beijo
da rua. E um pouco mais
FLAVIO LENZ

116
Reflexões sobre despir o corpo e vestir
o rosto. E um convite para putas
e simpatizantes
NATÂNIA LOPES
8
133
Comentário ao texto “Reflexões sobre
despir o corpo e vestir o rosto. E um
convite para putas e simpatizantes”
de Natânia lopes

PUTA LIVRO
JOÃO PENTAGNA

136
Aquí estoy, no sé si entendí
JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO

143
A dor se exibe, enquanto o prazer e a
necessidade têm suas vergonhas
ANDRE ARAUJO

144
Recomeços
SARA MARINHO

146
Amar não é pecado
DOROTH DE CASTRO

148
Trabalho sexual é trabalho
PROFÂNIA TOMÉ

149
Banque o pornô independente
PROFÂNIA TOMÉ

150
Gritos da calçada
REJANE BARCELLOS
9
157
Digitalização e preservação do acervo
audiovisual da ONG Davida
MARCO DREER BUARQUE

PUTA LIVRO
171
Onde a memória disputa
HÉRCULES DA SILVA
XAVIER FERREIRA

182
Sobre(vivências)
INDIANARAE SIQUEIRA

185
Reflexão sobre o movimento
negro e prostituição
DOROTH DE CASTRO

186
Fotopoema: “prostituta”
NAARA MARITZA DE SOUSA

189
Autobiografia das coisas
NATÂNIA LOPES

193
Seja Pute. Pratique putarias.
Viva a faculdade da putaria.
INDIANARAE SIQUEIRA

195
Sem título
BIANCA FERREIRA
196

10
Margem da tela
RICARDO MASSAO
NAKAMURA NASSER

PUTA LIVRO
198
Para além das imagens, a escrita
RAFAELA DE SÁ

200
Seleção de fotos desfile Daspu
CLAUDIA FERREIRA

Parte II: disPUTAr espaços urbanos

205
Prefiro a zona meu amor
ANDRE ARAUJO

206
#CasaNemCasaViva
INDIANARAE SIQUEIRA

210
“Fadas Baianas”: a trajetória da APROSBA
na luta por permanência no Centro
Histórico de Salvador
FÁTIMA MEDEIROS

220
O amor é um cão mamaluco
ANDRE ARAUJO

221
Não há claridade que se sustente nos
domínios noturnos da sexualidade
ANDRE ARAUJO
222

11
Vila Mimosa na cidade em disputa
SORAYA SILVEIRA SIMÕES

PUTA LIVRO
234
Putativismo, feminismo e resistência de
prostitutas nas redes e nas ruas
FABIANA RODRIGUES DE SOUSA

249
Fotográfias de eventos Davida
RENZO GOSTOLI

253
Comércio sexual na cidade olímpica:
prostituição, policiamento e exploração
sexual e midiática durante os jogos
olímpicos no Rio de Janeiro, 2016
THADDEUS BLANCHETTE, ANA PAULA DA
SILVA, LAURA MURRAY, SORAYA SIMÕES

290
O que Você Não Vê: construção da
exposição fotográfica sobre prostituição
e os jogos olímpicos
ANGELA DONINI
E LAURA MURRAY

311
Seleção de fotos da exposição: “O que
você não vê: a prostituição vista por nós
mesmas”

320
Uma análise sócio-histórica sobre o
«conde»: o território de prostituição
travesti em Lisboa
NÉLSON RAMALHO
12
332
“Joga pedra na geni”: política, intervenção
urbana e percepção da prostituição
em Amsterdã

PUTA LIVRO
JOÃO SOARES PENA

348
Uma assassina
ANDRE ARAUJO

349
Campanha
TAMPEP

Parte III: Puta Luta! pandemia e os


desafios do presente

354
Batendo salto at work
PAULA LAUFFER

355
Cordel
MILENE FERREIRA

360
Memória e luta na prostituição
ludovicense: diálogos com a ativista
Maria de Jesus
FERNANDA MARIA VIEIRA RIBEIRO E
MARIA DE JESUS ALMEIDA COSTA

378
Sobre captura e esvazimento
PAULA LAUFFER
13
378
Ok line, no trabalho
PAULA LAUFFER

PUTA LIVRO
379
O poder de empoderar
VÂNIA REZENDE

380
Estrutura, não evento: o megaevento
esportivo como pandemia
AMANDA DE LISIO
& THAYANE BRÊTAS

389
Lute como uma puta
PATRÍCIA ROSA

392
A incidência política do movimento de
prostitutas em tempos de pandemia:
a experiência do grupo de mulheres
prostitutas do estado do Pará (GEMPAC)
TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA

409
Prostituição masculina: itinerários de um
taxiboy durante a pandemia do covid-19
em Recife e Caruaru
ANTONIO FERREIRA NETO

424
Um mês ou mais de saudade
WALEFF DIAS
14
426
As mediações e as dimensões
do trabalho sexual digital hoje;

PUTA LIVRO
perspectivas comunicacionais
RENATO GONÇALVES
FERREIRA FILHO

438
O afeto que faz política: trabalhadoras
sexuais unidas resistindo à covid-19
ELISIANE PASINI E
FERNANDA PRISCILA
ALVES DA SILVA

454
Lambe lambe
PAULA LAUFFER

455
Política do afeto: relatos de experiências
sobre o fundo de emergência gestado
por e para trabalhadoras sexuais
LILIAN TATIANA VIEIRA
E KARINA DIAS GEA

470
Transgprostituição virtual e violência
de gênero na era digital: novos desafios
ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI

485
Ferramentas de trabalho
PAULA LAUFFER
15
486
Entre os mercados do sexo e a pandemia:
um estudo com mulheres profissionais
do sexo em um serviço de saúde
na cidade de São Paulo.

PUTA LIVRO
CARLA BEATRIZ CAMPOS

499
Lockdown de uma vida lgbtia+
open down for loving in the love
INDIANARAE SIQUEIRA

502
Carta para Gabriela
FÁTIMA MEDEIROS

504
Retrato de Gabriela Leite
PAULA LAUFFER
16
PUTA LIVRO
Em 2022 comemoramos 35 anos da
atuação organizada do movimento brasileiro
de prostitutas e 30 anos do Coletivo Puta
Davida. Com um repertório plural de
narrativas acerca da prostituição, este livro
materializa e celebra esta trajetória.
O livro está vinculado à pesquisa “Os
impactos dos megaeventos esportivos
nos mercados do sexo no Rio de Janeiro”
contemplada com o edital FAPERJ (E-
26/2010.137/2016) e coordenada a partir da
parceria entre o Observatório da Prostituição
e o Coletivo Puta Davida. O Observatório
da Prostituição (OP) é um projeto de
extensão do Laboratório de Etnografia
Urbana (LeMetro/IFCS) que está vinculado ao
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional (IPPUR) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. O OP agrega pesquisa,
ativismo e mobilização social no campo da
prostituição com o objetivo de promover
os direitos humanos, sexuais e trabalhistas
de prostitutes. O Coletivo Puta Davida
derivou da Ong Davida: Prostituição, Direitos
Civis e Saúde, fundada pelas prostitutas
ativistas Gabriela Leite e Doroth de Castro
em 1992 no Rio de Janeiro. O Coletivo tem
uma atuação intensa por direitos sexuais,
direito à saúde, direitos trabalhistas e
ativismo cultural, sempre com liderança e
17
protagonismo de prostitutas em todas as
suas ações. A realização deste livro integra e
soma as trajetórias do Coletivo Puta Davida e
do Observatório da Prostituição.
O projeto original do livro - planejado

PUTA LIVRO
inicialmente em 2015 - estava focado no
tema dos “mega-eventos e a prostituição”.
Porém, considerando a intensidade de
produções poéticas, de pesquisas, ensaios
textuais, fílmicos, fotográficos etc, que vem
sendo produzida por prostitutes, ativistes
e pesquisadores, o projeto se expandiu,
agregando mais dois eixos centrais além do
tema dos megaeventos, são eles: as questões
do espaço urbano contemporâneo e suas
relações com a prostituição e, os impactos
e desafios da pandemia de Covid-19
para o trabalho sexual. Neste sentido,
na parceria entre o Coletivo Puta Davida
e o Observatório da Prostituição para a
realização deste livro, diferentes miradas se
enlaçam e narram as batalhas e os processos
criativos em diferentes campos de atuação do
trabalho sexual.
Os materiais reunidos nesta obra
resultam então de dois processos de
trabalho: parte foi elaborada por ocasião
da pesquisa sobre os impactos dos
megaeventos no trabalho de prostitutes
que atuavam em diferentes ambientes como
zonas, sites, boates e bordéis. E outra parte
foi selecionada a partir de uma chamada
pública para envio de propostas de artigos,
ensaios escritos e fotográficos, poesias
etc., além de convites a pesquisadores,
artistas, trabalhadores sexuais e parceiros do
Movimento de Putas no Brasil. Recebemos,
desta maneira, um material muito variado,
com diferentes narrativas, linguagens e
perspectivas a respeito da prostituição e que
representa bem a diversidade que marca o
movimento de prostitutes.
O livro se divide em três partes ou
blocos: a primeira delas, disPUTAr narrativas,
reúne material sobre o fazer prostitucional, os
conflitos implicados no cotidiano do trabalho
sexual e as diversas formas de enfrentar

18
os estigmas. As narrativas e relatos nesse
primeiro bloco estão carregados de afetos e
percepções tecidas a partir da experiência na
prostituição (ou em diálogo com ela). Nele

PUTA LIVRO
pode-se localizar, mais do que nos outros
dois blocos que compõem o livro, a questão
da(s) identidade(s) relacionadas à prostituição
e seus problemas. Ao longo da leitura
pode-se compreender como as prostitutas
transformam os efeitos dos processos que
colam as trajetórias em identidades fixas
reduzindo as vidas, afetos e a profissão.
Com efeito, a questão do estigma que
atravessa e costura esse lugar de Puta aos
diversos contextos por onde trabalhadores
sexuais circulam, nos quais vivem, é assunto
central no tema da prostituição, uma vez
que desenha um campo de forças onde
trabalhadores sexuais são chamades a atuar.
Se por um lado o estigma carrega consigo
rotulações e classificações que pressionam e
massacram, violentam e matam, por outro, o
agenciamento da identidade de Puta libera
o valor e o sentido dado vulgarmente à
atividade da prostituição. Assim, os caminhos
se tecem pela construção política, artística,
científica, mas também via atuação criativa
cotidiana no trabalho, no âmbito da família e
nos espaços públicos.
Na segunda parte, disPUTAr os espaços
urbanos, estão reunidos trabalhos que
abordam as questões do espaço e como
prostitutes vivenciam os diferentes campos
de batalha que se instauram nas cidades,
negociam a ocupação desses e vivenciam
as experiências do trabalho sexual em meio
a disputas decorrentes da especulação
imobiliária e dos projetos de gentrificação e
moralização. As parcerias, os processos de
luta, as conquistas por moradia são narradas
nas diferentes formas de apresentação.
Este bloco reúne também ensaios
e imagens que resultaram do projeto de
pesquisa sobre os impactos dos jogos
olímpicos no trabalho sexual. Ao comparar
as pesquisas etnográficas realizadas nas

19
principais zonas de prostituição no Rio de
Janeiro durante a Copa do Mundo em 2014
e novamente nos Jogos Olímpicos em 2016,
a equipe de pesquisa concluiu que mais
uma vez, o grande número de clientes de

PUTA LIVRO
prostituição, previsto pela mídia e pelas
autoridades, não se concretizava e que os
Jogos tiveram um impacto negativo no
trabalho sexual na cidade. Além da falta
de clientes, diversos outros preconceitos,
desigualdades, pânicos e violências -
atravessados por racismo, sexismo, classismo
e transfobia - foram observados a partir da
mobilização das categorias de “exploração
sexual” e “turismo sexual” pela mídia, por
agentes de segurança do Estado e por
organizações e pessoas “do bem”.
Por fim, PUTA LUTA! Pandemia e os
desafios do presente reúne um conjunto de
ensaios, poesias e imagens que apresentam
as estratégias de vida protagonizadas
por prostitutes na pandemia. Destacado
nesta seção é o ativismo de trabalhadores
sexuais em diversos cantos do Brasil que
- através de suas ações, gestos, afeto e
solidaridade - foram forças literalmente vitais
nas zonas diante da total ausência de apoio
do governo federal e sua política de morte
diante da emergência pandêmica. As escritas
também refletem sobre o trabalho sexual
contemporâneo, dialogando tanto com a
questão do isolamento e distanciamento
provocados e instaurados durante a
pandemia quanto com os atravessamentos e
desafios da era digital.
Desde a chamada pública,
conceitualizamos a pandemia como um mega-
evento no sentido de ser algo que provocou
uma re-organização total de territórios
urbanos e estratégias vitais de resistência
frente a continuação de uma necropolítica
que despeja e despreza corpos lidos
como ameaças e/ou contraprodutivos aos
processos neoliberais em curso. Uma política
que incentiva a continuação de economias
20
e mercados sem dar valor ao trabalho e
condições necessárias para as pessoas
trabalharem e viverem com segurança nos
lugares que ocupam e corpos que habitam.
Acompanhando a interrogação de Indianarae

PUTA LIVRO
Siqueira na poesia publicada nesta seção do
livro, como falar e pensar sobre isolamento e
distanciamento social do lugar de populações
que sempre estiveram isoladas e distanciadas
de suas famílias e da sociedade? Como
trabalhar quando não é possível tocar os
corpos? Como militar desde o isolamento?
Como sentir e falar de prazer num momento
de crise e morte? Ou talvez melhor, como não
falar sobre prazer, dinheiro, sexo e vida num
momento em que o mundo parece prestes a
acabar?
Importante ainda ressaltar o
protagonismo de prostitutes neste projeto
em pelo menos três momentos. Primeiro,
durante a pesquisa sobre os megaeventos,
trazendo seus cotidianos através de relatos
e fotografias no período das Olimpíadas
de 2016, no Rio de Janeiro. As fotografias
produzidas neste processo resultaram em um
site e exposições cujo nome foi definido por
prostitutes que participaram do processo:
“O que você não vê: a prostituição vista
por nós mesmas”. Algumas destas imagens
fazem parte deste livro documentando o
vazio dentro das zonas e a frustração de
trabalhadores sexuais, junto com paisagens
de resistência, prazer e cuidado.
Segundo, pelo fato de prostitutes terem
sido convidades ou mesmo incentivades
a enviarem seus trabalhos pela chamada
pública. Tais contribuições trazem livremente
assuntos (e formas de abordá-los) que cada
pessoa considerou relevante a partir do tema
geral da atividade prostitucional. E terceiro,
mulheres que são ou foram trabalhadoras
sexuais, ligadas ao Coletivo Puta Davida,
participaram como organizadoras deste livro,
definindo critérios de seleção das propostas
enviadas durante a chamada, avaliando as
contribuições enviadas e ainda cuidando
21
da revisão e encadeamento dos trabalhos,
estruturando, portanto, o volume.
Na atual conjuntura política de nosso
país, assumir a puta luta através deste livro
proveniente da transa, diálogo, união e

PUTA LIVRO
produção de protagonistas do movimento
de prostitutes, trabalhadoras sexuais,
pesquisadores e ativistas, é um manifesto
de existência e mais um instrumento de
resistência da luta por direitos e respeito a
nossa categoria.
A leitura de um livro e como o seu
conteúdo irá nos transformar em leitores
é algo muito subjetivo, pois depende dos
contextos e das experiências de cada um e
de como cada um se relaciona com a temática
apresentada. O que irá aproximar muites,
no entanto, pensamos ser a característica
formativa desta leitura. Cada bloco se
apresenta como uma orgia de gêneros
discursivos, recheados de experiências que
nos prendem a atenção por seus conteúdos,
em que a cada palavra lida contribui para
a compreensão das questões acerca do
trabalho sexual sem a hipocrisia e o falso
moralismo (que se deita e se cria a partir
de experiências com e por prostitutes), nos
desperta, instiga e transforma.

Angela Donini, Natânia Lopes,


Naara Maritza, Laura Murray, Patricia Rosa
Outubro 2022
22
PARTE I

PUTA LIVRO
DIS

R
IVAS
RAT
NAR
23
INDIANARAE
SIQUEIRA

PUTA LIVRO
As putas, trans e travestis não podem e
não devem ser escutadas - dizem.
Se essas pessoas tiverem voz e vez,
se deixarem que tenham direitos e ocupem
os lugares junto a todes na mesma sala de
aula, no mesmo ambulatório médico, no
mesmo templo religioso, no mesmo lugar de
lazer onde levam a família tradicional, toda
sociedade sucumbirá com seu machismo
patriarcal, sua hipocrisia, seu racismo, sua
lgbtifobia, seu etarismo, seu capacitismo,
sua putafobia, sua aidsfobia, sorofobia,
especismo, aporofobia, elitismo, e todes seus
sufixos fobicos opressores sucumbirão.
A sociedade que conhecemos deixará
de existir se putas travestis tiverem direito
de ocupar os mesmos espaços sociais a que
todes têm direito.
A sociedade não sobreviverá a uma
sociedade de putas e filhes de putes pois
escracharão na cara dessa sociedade sua
hipocrisia, a fragilidade de seus fundamentos
que precisam inventar mecanismos de
controle como religiões, heterossexualidades,
binariedades e todo tipo de controle sobre a
sexualidade das pessoas.
Pois dentro do calor úmido de uma
buceta pela qual se pode nascer, pela qual se
pode morrer, no deslizar da sobre uma piroca
penetrante ou sendo engolida por bocas,
bucetas ou por um cu apertado de início,
que com o consentimento vai relaxando e
24
mostrando que em seu interior não é só
merda, mas também gozo, dentre tudo isso a
sociedade é desnudada, mostrada, exposta, e
não sobreviverá ao cheiro do suor misturado
ao gozo.

PUTA LIVRO
Os pais de família terão medo de
passear no parque e correr o risco de sua
esposa impoluta do lar que lhe foi entregue,
talvez mesmo contra a vontade dela, se
encontre com a puta com quem ele goza e
talvez faça essa puta gozar como não faz a
própria esposa.
Ele tem medo de que sua esposa se

INDIANARAE SIQUEIRA
torne amiga da puta e que talvez acabe se
tornando puta ao descobrir que ele faz as
putas gozarem e ele reprimindo tudo isso já
imagina sua esposa no puteiro sendo comida
por outros homens, tendo a buceta sugada
por mulheres, tendo os seios que nem ele se
atreveu a tocar e os guardou somente para
alimentar sua prole e descendência, que
agora estão sendo sugados por travestis que
colocam na boca de sua impoluta esposa,
que só deveria beijar respeitosamente a
testa das crianças, e que agora recebe penis
de travestis que já penetraram o cu de seu
marido, que já se entregaram em 69 tendo
agora homens com bucetas a reinvendicar
também seus espaços de homens e também
um lugar de putos no puteiro, quando alguns
desses ontem ele penetrou e pagou como
símbolos de uma feminilidade que ele só
encontrou em puteiros, esquinas e vielas
onde se exerce a prostituição.
E o pior é olhar pra sua esposa vendo
seu rosto esplendoroso, iluminado e feliz
desse sentimento que ele nunca foi capaz de
lhe proporcionar. E agora imaginando tudo
isso ele que traz as mãos úmidas do esperma
de suas reflexões, se limpa pra que ninguém
perceba em que pensava. Guarda em algum
canto a calcinha que há poucos minutos atrás
esfregava na cara e a cueca com cheiro de um
cliente qualquer que ele comprou da puta pra
sentir o cheiro de outro homem.
Esse pai de família então se veste, faz
campanhas contra as putas, transexuais e

25
travestis pra que continuem lá em um espaço
sob controle, onde ele possa ter acesso
quando quiser, mesmo que esse lugar seja
somente em sua mente, que lhe mente

PUTA LIVRO
verdades que não lhe foram ensinadas, lhe
obrigando a viver mentiras ensinadas como
verdades absolutas do que deve ser um
homem e como deve ser suas atitudes.
Os puteiros são escolas de
insubordinação onde se ensina a quem
estiver disposte a aprender uma liberdade
extasiante, orgásmica entre suspiros, mas de

INDIANARAE SIQUEIRA
prazeres.
Os puteiros são um risco à submissão
das esposas ao patriarcado. Se não
existissem puteiros elas voltariam pra casa
pra lavar, passar, cozinhar, cuidar dos filhos
que precisam aprender a subjugar mulheres
e precisam da mãe subjugada, tendo como
exemplo a seguir um pai machista. Elas
voltariam pra casa do pai para cuidar desse
que a subjugou como dono e a repassou pro
marido.
Se não existissem os puteiros...
Mas existem. Precisam votar leis contra.
Aquele homem então, agora vestido
com a roupa adequada, foi eleito e à frente
de seu rebanho, com um livro que ele
consagrou nas mãos, agora brada ao outro
com quem ele dividiu as mesmas putas e
talvez a mesma esposa, que agora esse outro
vestido de toga precisa fazer cumprir o que
foi debatido nos templos religiosos entre
padres e pastores que viraram amigos nos
puteiros da vida e que agora esbravejam nos
congressos da vida contra leis que prostitutas
que se congregaram dentro dos puteiros,
agora querem aprovar .
Absurdo!!! Grita esse impoluto pai
de família, com a virgindade de sua filha
assegurada para ser dada como troféu a
outro homem que já traz as mãos sujas de
sangue de uma das esposas que matou, não
tendo matado a segunda que no puteiro se
refugiou.
26
Esse pai de família só quer que sua
lei contra as putas, puteiros e lgbti seja
aprovada pra que ele possa, em paz, ir pro
puteiro ver sua esposa preferida gozar e
depois voltar pra casa onde lhe espera a puta

PUTA LIVRO
de sua esposa.

NÃO.
NÃO DEEM DIREITOS A PUTES,
TRANS E TRAVESTIS.

INDIANARAE SIQUEIRA
27
VÂNIA REZENDE

Mulher da

PUTA LIVRO
Vida
Me chamam de Puta
Rapariga
Quenga
Garota de Programa
Prostituta
Profissional do Sexo
Trabalhadora Sexual
Mensalinha
Meretriz
Mulher da Vida Fácil
Vida Fácil?
Vida Vivida
Vida Sofrida
Vida Estigmatizada
Vida Marcada
Com o ferro que ferra as entranhas
Vida Feliz
Feliz, sim
Por que mulher é vida
E toda mulher é mulher da Vida
28
MONIQUE PRADA

DEDO NO RABO

PUTA LIVRO
DO TEU PSEUDO-
TRANSGREDIR1

Eu te leio tão libertário e sincero, mas


me pesa perceber que o teu “transgredir” é
bem leve e falso. Uma daquelas falácias tolas
que te ajudam a manter o jeitinho descolado
e comer, volta e meia, uma ou outra civil
sedenta (daquelas que não te ligam no outro
dia porque caem no teu conto de amor livre).
Tua transgressão vai só até um ponto bem
seguro: defende o casamento de pessoas do
mesmo sexo, a adoção por dois pais ou duas
mães que se amam, a família Doriana versão
arco-íris… mas ali ela emperra, como se
uma força superior, estúpida e caretésima te
barrasse.
Eu te falo então das putas e você
me vem com aquelas mesmas desculpas
esfarrapadas de sempre e teu salvacionismo
barato.
Você basicamente não quer ver seu
nome ligado a “isso”, a essas mulheres.Você
sabe que elas fazem porque precisam (?),
não tem nada contra nem a favor, mas diz
que é uma imoralidade defender que possam
trabalhar em paz. Isso tudo do alto da tua
moral inabalável de quem nunca fodeu sem
amor (ah, vai… conta outra), de quem nunca
cedeu ao desejo, de quem nunca meteu sem
saber com quem.
O casal-gay-propaganda-margarina
cumpre, na tua vidinha, uma função essencial:
você está defendendo o amor, não a

1
Este texto foi publicado como posfácio do primeiro livro de
Amara Moira, Travesti e Doutora em Letras pela UNICAMP.
MOIRA, Amara. E se eu fosse pura. São Paulo: Hoo Editora,
2018.
afetação ou a baixaria das bichas promíscuas.

29
Você pode dizer pros seus pais velhinhos
e decrépitos sentados naquele sofazinho
de couro empoeirado do apartamentinho
classe média no meio da Independência que

PUTA LIVRO
defende o amor, que as pessoas têm o direito
de amar a quem quiserem, não importa o
sexo, que toda forma de amor vale a pena
e todo aquele blablablá puritano que te
ensinaram.
Mas não, meu amigo. As pessoas têm
é o direito de foder com quem quiserem e
se tiverem muita, muita sorte no meio dessa

MONIQUE PRADA
aridez toda de almas vazias e corpos quentes
talvez encontrem, um dia, alguém a quem
amar por um tempo. O direito mesmo pelo
qual se luta é o de foder com quem se quiser
– obviamente se os desejos coincidirem e
o “quem se quiser” também te queira. Por
tesão, pelo momento ou pela grana.
“Ah, não, por grana, não.” Te apavora
quem põe preço no teu prazer. Mexe com
teus brios. Não é que ela esteja pondo
preço no corpo firme e devasso que você
ardentemente deseja, e você sabe disso.
Ela pôs um preço é no teu prazer, e é isso
que você não pode perdoar. Ela deixa claro
que não te deseja ardentemente, “cobro
100 reais, amor”, e você cede ou perde. Ela
ardentemente cobra 100 reais de qualquer
um que tope pagar o preço, e tu refletes: o
que são, afinal de contas, 100 míseros reais
por uma trepada? Paga. E sai arrasado,
insuportavelmente ferido no teu orgulho de
macho – viril, porém não conquistador. Finge
acreditar que ela gozou – “ou gozou ou fingiu
muito bem”, você vai postar no TD2 (“mas
não beijou na boca”, olha que doce: ele quer
beijinho – beijinho não tem, ela é malvada e
não tem sentimentos).
Bate punheta pra pornô mainstream mas
aposto que morre de medo de levar por cima

2
Abreviação de “Test Drive” do GP Guia, fórum de
discussão sobre prestação de serviços sexuais utilizado por
clientes e prostitutas.
30
uma bela mijada.
Você defender as putas? Jamais. Que
cobrem e caiam fora – de preferência antes
que te desmanches em lágrimas pela mixaria
derramada.

PUTA LIVRO
MONIQUE PRADA
31
NAARA MARITZA
DE SOUSA

RESSIGNIFICAÇÃO

PUTA LIVRO
DA PALAVRA “PUTA”:
reflexões advindas de
narrativa de memórias
(auto)biográficas de
uma puta mulher
- PUTA!!!
Iniciar o texto com esta palavra é
uma prática libertadora! Trarei a seguir,
narrativas (auto)biográficas, de minhas
experiências como puta, em contextos,
semânticas da palavra, sujeitos, tempos e
situações distintas. A palavra traz consigo
muitos estigmas e preconceitos e ao assumir
minha identidade de puta, me posiciono
e apresento um ato revolucionário, de
emancipação e colaboração para possíveis
mudanças de estigmas preconceituosos,
como nos atenta Gabriela Leite2 (2013), que
é preciso “ter identidade, para gente mudar
alguma coisa”.
Assim como Gabriela Leite1, referência
e inspiração de ativismo da luta dos direitos
das putas, eu também gosto da fonologia e
morfologia da palavra “puta”:

1
Gabriela Leite foi uma prostituta e ativista pelos
direitos das prostitutas no Brasil. Fundou a ONG Davida
– atualmente Coletivo Puta Davida – que defende os
direitos das prostitutas e a regulamentação da profissão.
Foi também a idealizadora da grife Daspu, desenvolvida
por prostitutas. Uma de suas principais estratégias de luta
era dar voz às putas como exemplificado no slogan “Fala,
mulher da vida”, do I Encontro Nacional de Prostitutas, em
1987.
32
Eu gosto dessa palavra desde sempre. Eu acho
uma palavra sonora, quente e eu acho que
toda puta se não vivesse com tanto estigma
em suas cabeças, elas usariam e eu acho que
a gente começaria até vencer o preconceito
antes. Porque as pessoas levariam um choque
e depois iriam dizer “Ah é verdade! Ela é uma

PUTA LIVRO
puta”. Eu comecei a pensar nisso por conta de
começar a pensar por que eu gosto do nome.
Por conta das minhas filhas mesmo, por conta
das filhas das minhas colegas também. Eu que
nunca fui uma grande mãe eu pensei nisso. Eu
tenho colegas que são mães, mas não querem
que elas sabem que são putas. Eu que ficava
preocupada, eu que não sou uma grande mãe,
ficava preocupada porque que minhas filhas

NAARA MARITZA
são filhas da puta, isto é o maior palavrão da
sociedade. Isso é horrível. Então a gente tem
que mudar. Filho da puta deve ser um nome
de orgulho para os filhos da gente. Então é
esse o meu pensamento e também acho que
se a gente não toma a palavra pelo chifre e
assume ela, a gente não muda nada. Por isso
eu acho que este é um dos grandes motivos
que a sociedade atual estar tão babaca e
conservadora no mundo politicamente correto
que a gente vive [...] (LEITE, 2013)

A semântica da palavra “puta” que


proponho pensar e ressignificar neste texto,
vai além da compreensão de “mulher que
faz relações sexuais por dinheiro”, ou seja,
prostituta. Proponho a pensar as diversas
semânticas da palavra “puta” em uma
perspectiva Bakhtiniana (BAKHTIN, 2003)
que partem das relações dialógicas entre
locutores e interlocutores (eu e os sujeitos
envolvidos nas narrativas) em meios sociais
diversos, vivenciadas no Brasil entre as
décadas de 90 e de 2010.
A escolha pelas narrativas (auto)
biográficas para pensar esta temática se dá
porque acredito ser “importante investir
na pessoa e dar um estatuto ao saber da
experiência” (NÓVOA, 1999, p. 25). É comum
encontrarmos obras que abordam a temática
das putas escritas e refletidas por pessoas
que não estão neste lugar de fala. Para
Clandinin e Connelly (2015, p. 48) a “narrativa
é o melhor modo de representar e entender a
experiência”.
Narrar minhas experiências sempre foi

33
uma prática de libertação, transformação,
posição ideológica e política. A
potencialidade da narrativa (auto)biográfica
é defendida por Passeggi (2011, p. 147)
quando diz que “ao narrar sua própria

PUTA LIVRO
história, a pessoa procura dar sentido às
suas experiências e, nesse percurso, constrói
outra representação de si: reinventa-
se”. Acredito que realizar o exercício de
rememorar e narrar minhas experiências
vividas, viabiliza possíveis roteiros e
compreensão-ressignificação da semântica
da palavra “puta”. Para Clandinin e Connelly

NAARA MARITZA
(2015, p. 98) esse movimento de “confrontar
nós próprios em passado narrativo torna-
nos vulneráveis como pesquisadores, pois
transforma histórias secretas em histórias
públicas”. Essa vulnerabilidade também
pode nos desvelar possibilidade outras
de compreensões. Palavras, experiências
e situações outrora secretas, escondidas,
disfarçadas, mascaradas, nas minúcias da vida
real contadas e recontadas narrativamente se
desvelam. Tenho a pretensão de que minhas
memórias individuais, apresentadas por
minhas narrativas (auto)biográficas, possam
contribuir na construção de novos sentidos
para a semântica da palavra “puta”.

Eu puta na infância

O ano era 1995. Na época eu tinha


doze anos de idade. Fazia cinco anos que
não reencontrava meu pai. A última vez que
havíamos nos vistos, ocorrera uma confusão
envolvendo ele e minha mãe no Estado de
Rondônia, onde morávamos na época. Após
anos de traições e agressões, ela havia se
libertado e em um momento de fúria, em que
ele tentou agredi-la novamente, ela partiu
para cima dele com uma faca aos gritos.
Essa imagem é muito presente em minha
memória. Aquele dia foi libertador. Meu pai,
um homem machista, proibia minha mãe de
estudar, trabalhar e ter vaidades. Dizia que
34
lugar de mulher era em casa cuidando das
filhas. Enquanto ela se dedicava aos cuidados
das filhas, do serviço doméstico e éramos
obrigadas a frequentar uma igreja evangélica
de doutrina pentecostal, ele vivia sua vida

PUTA LIVRO
como desejava, saindo com muitas outras
mulheres. Sempre via minha mãe triste e
chorando pelos cantos. Assistir sua libertação
explanada por seu grito e assistir ele correr
de medo de sua atitude, foi minha primeira
experiência de emancipação de uma mulher.
Retornamos para Uberlândia / MG,
nossa cidade de origem. Minha mãe com
quatro filhas, todas crianças, teve que

NAARA MARITZA
iniciar uma nova vida, agora como “mãe
solteira” como diziam. Foram anos de muitas
dificuldades. Minha mãe voltou a estudar
e trabalhava como empregada doméstica.
No meio do caminho havia despejos e
dificuldades. A matriarca saía pela manhã
bem cedo para preparar o café da manhã
dos filhos da patroa, antes deles irem para a
escola e ao sair do trabalho ia direto para a
escola. Estudava a noite e ela ia caminhando
para economizar o dinheiro da passagem.
Eu e minhas irmãs (faixa etária entre cinco
a doze anos de idade) tínhamos que nos
cuidar sozinhas: ir para escola, arrumar
a casa, lavar a louça, nossa higienização,
atividades da escola. Recordo que no trajeto
da escola eu e minha irmã sempre corríamos
de “tarados” no caminho. Homens com o
pênis para fora nos perseguiam de bicicleta
realizando movimento de masturbação. Não
contávamos para nossa mãe. Não queríamos
que ela tivesse mais esta preocupação. O que
ela poderia fazer? Não poderia abandonar o
trabalho.
Nos indagávamos se ela também
tinha que correr de “tarados”. Seu salário
muitas vezes não era suficiente para os
mantimentos básicos do mês. Aprendemos
desde a infância a andar atentas na rua, a
correr e gritar por socorro, a ter medo dos
homens que caminhavam em nossa direção
e a desconfiar de todos os homens sem
exceção. Minha mãe nos alertava: “não deixe

35
seus primos entrarem aqui quando eu não
estiver”. Apesar de todos os obstáculos, ela
terminou o ensino médio e em uma tentativa
de vaga em concurso público para secretária

PUTA LIVRO
escolar da rede municipal de ensino, foi
aprovada em 3º lugar. Neste período, ela se
casa novamente e fomos morar em um bairro
novo, distante do centro da cidade, mas em
casa própria. Eu sentia muito orgulho de
minha mãe e de como ela conquistava seus
objetivos sem nos abandonar, como nosso pai
fizera.

NAARA MARITZA
Uma tia, irmã de meu pai, conseguiu
o endereço dele e nos repassou. Após
anos sem falar com ele, tivemos a ideia de
lhe escrever cartas. Todas escrevem e eu
também. Havia muito rancor e os transmiti
no conteúdo da carta. Escrevi o que sentia
no momento: que não compreendia o motivo
de ter nos abandonado; que acreditava
que muitas das dificuldades que passamos
poderiam ter sido evitadas se ele tivesse
ajudado minha mãe; que tivemos que correr
de “tarados”; que tivemos que pedir pão
adormecido nas padarias para ter o que
nos alimentar antes de irmos à escola; que
o considerava covarde; que ele poderia
ter se afastado da minha mãe, mas não
de suas filhas; e por fim, que se ele viesse
a envelhecer e precisasse de ajuda, não
precisava contar comigo. Assim que recebeu
as cartas, marcou um dia para conversar por
telefone na casa da minha tia com minha irmã
mais velha (na época poucas pessoas tinham
telefone). Na ligação, ele disse a ela: “Diga
a Naara que eu amei os puxões de orelha”.
Ao me repassar a mensagem, me senti muito
feliz. Que bom que meu pai entendera e
se atentara. Estava arrependido? Sentiu
nossa dor? Se sentira culpado por tantas
dificuldades que suas filhas experienciaram?
Ele iria ter uma conversa conosco e nos
pediria desculpas?
No mesmo ano da carta, meu pai
resolve ir em Uberlândia nos visitar – assim
acreditávamos até descobrirmos que seu
36
retorno se deu devido audiência na justiça
por não ter pagado pensão por todos os anos
que se ausentou de nossas vidas. Minha mãe
insistiu para todas nós irmos vê-lo. Ela dizia
“ele é o pai de vocês. Não importa o que ele
fez, sempre vai ser seu pai”. Saí da escola

PUTA LIVRO
e fui encontrá-lo na casa de minha tia no
mesmo bairro que morávamos. Almoçamos,
conversamos e brincamos. Em um certo
momento ele me convida para tomar sorvete,
só nós dois. No caminho, passamos por uma
trilha, em um terreno baldio com mato alto,
para atravessarmos para outra quadra. No

NAARA MARITZA
meio da trilha ele para e se vira para mim de
maneira agressiva e diz:
– Não vamos tomar sorvete nada! O que
foi aquela carta? Quem você pensa que é
para me escrever aquilo? Você é uma imbecil!
Em seguida, me dá um tapa no rosto e
grita:
– Você é uma puta! Uma puta como tua
mãe!
Recordo de correr em direção a minha
casa aos prantos. Ao chegar, conto o ocorrido
para minha mãe e ela me pede desculpas por
ter insistido em minha ida.
– Puta, mãe! Ele nos chamou de puta! Se
puta é ser uma mulher como a senhora, então
eu sou uma puta também! Eu sou puta, mãe!
Igual a senhora!
Assim foi o dia e a maneira que me
identifiquei como puta. Puta aos doze anos
de idade.

Eu puta na juventude

O ano era 2003. E a palavra era


“Independência”! Essa é uma palavra
que puta conhece e busca em sua prática
cotidiana. A independência financeira já era
realidade desde os quatorze anos de idade.
Fazia quatro anos que eu trabalhava de
carteira assinada. Minha mãe dizia:
– Nunca precise depender de um
homem para pagar suas contas. Mulher
dependente de homem é mulher sem
liberdade – ela se referia a sua experiência

37
por anos dependente de meu pai.
Com meu salário, eu pagava meus
estudos e a conta de luz de nossa casa.
As regras da casa eram claras: “se não
tiver filhos, não precisa sair de casa. Mas

PUTA LIVRO
se engravidar, terá que sair”. Esse era
o trato familiar. Minha mãe com quatro
filhas mulheres e meu padrasto com três.
Todas em uma mesma residência pequena.
Sete filhas mulheres na mesma residência.
Vinte anos, sem filhos, logo, independente
financeiramente sem precisar pagar aluguel,

NAARA MARITZA
morando na casa dos pais. Estudava,
trabalhava, fazia curso de informática
(novidade na época). Era uma boa menina aos
olhos da família.
Havia saído de um relacionamento
abusivo que durou dos dezesseis aos dezoito
anos. Outras amigas também viveram abusos
em seus relacionamentos. Nos descuidamos.
Não se pode baixar a guarda, é preciso
estarmos atentas. Atentas e receosas por
todos os homens que se aproximam.
Se completam dois anos solteira e
liberta. Fazia o que queria nas horas de lazer.
Vivia a vida com toda a gana da juventude.
Paguei meus estudos do ensino médio em
uma escola particular próxima da quitanda
que eu trabalhava como balconista no centro
e fiz amizades com alunos que faziam parte
da classe média da cidade. Eu era a única que
trabalhava em minha turma. Não conseguia
acompanhar a escola pública e suas seguidas
greves com o trabalho e pagar uma escola
particular era uma saída. Ter estudado nesta
escola me levou a conhecer e conviver com
uma rede de amigos jovens pertencentes às
classes médias e alta da cidade. Convivia com
a burguesia tentando acompanhá-los com o
que sobrava de meu salário.
Começava um movimento na cidade
de música eletrônica e das festas raves. As
festas eram em sítios. Os Djs eram os boys
da burguesia da cidade e o público também.
Havia conseguido ir em duas festas e me
38
encantara por aquele universo e por aquelas
pessoas libertas e felizes. Era uma noite de
sexta feira chuvosa, fui encontrar a amiga
em seu apartamento na região central para
assistirmos algum filme, afinal, estávamos
sem dinheiro naquele fim de semana. Durante

PUTA LIVRO
nossa conversa, um dos boys da classe alta
envolvidos com as raves, envia mensagens
para ela convidando para sair. Vejo a foto e
me encanto pela pessoa. Ela me pergunta
se quero sair com ele. Digo que sim, claro!
Rapaz lindo e conhecido em nosso meio.
Estava com desejo de sair aquela noite, mas

NAARA MARITZA
a falta de dinheiro e a chuva não permitiam.
Tinha apenas o vale transporte. Ela fala
de mim para ele e em seguida, um táxi é
enviado para me buscar. Ele havia gostado
de mim? Não estava acostumada com isso.
Os homens que se relacionavam comigo
(apenas sexualmente) evitavam estar comigo
na frente das pessoas. Era sempre eu que ia
na casa deles ou no fim da festa saíamos e
ficávamos dentro dos carros. Já esse rapaz
mandara um táxi me buscar, só com uma foto
minha. Inusitada a situação. Talvez este tenha
sido o motivo de eu ter ido? Desejo de viver
algo novo que poderia talvez, ser como nas
novelas da rede Globo em que o jovem galã
burguês se apaixona pela mocinha preta,
pobre da periferia? Inocência.
Ao chegar na casa do boy, ele me levou
direto para o quarto dele. Conversamos
pouco. Ele me apresenta a cocaína e me
oferece para experimentar. Eu aceito.
Fazemos sexo loucamente, sem parar.
Deitada de bruços, ele utiliza meu corpo de
apoio para cocaína e faz carreiras em minhas
nádegas. Por volta das 3h da manhã, ele diz
que quer dormir. Eu penso que vou dormir
com ele ou na casa dele, mas para minha
surpresa ele pede que eu vá embora. Digo
a ele que estou sem dinheiro e pergunto
se posso sair pela manhã para utilizar o
transporte público (em minha cidade, não
funciona 24h) ou se ele poderia me levar. Ele
fica agressivo e sem paciência. Peço para me
39
levar e ao saber que moro na periferia ele diz
que não seria louco de ir se enfiar “naquele
buraco”. Também fico agressiva, efeito da
droga, creio. Digo que ele está sendo cruel.
Tínhamos mantido relação sexual por toda a
noite e agora me tratava com insignificância

PUTA LIVRO
e que ele fazia papel de moleque burguês.
Então ele diz:
– Você veio porque queria me dar! Saia
da minha casa agora! Acha mesmo que vou
dormir com uma putinha barata como você?
Aos vinte anos, uma “putinha barata”.
Saio da casa dele e caminho na madrugada
chuvosa, por aproximadamente três horas até

NAARA MARITZA
chegar em minha casa.

Eu puta profissional

O ano é 2008. Estou na faculdade


cursando pedagogia. Desde o dia que saí
da casa do produtor de festas como uma
“putinha barata” muitas coisas aconteceram.
O uso da cocaína havia se tornado algo
rotineiro. Me tornara dependente da droga.
Não parava em nenhum emprego. Fazia sexo
com todos que desejavam. Já era conhecida
no meio das festas como “aquela que já
deu para todos”. Desempregada, os amigos
se afastaram. Não conseguia acompanhar
o ritmo dos amigos burgueses. Não tinha
dinheiro e ninguém fazia questão de pagar
nada para mim. Nesse período estava na casa
de uma amiga que era garota de programa.
Um amigo dela iria leva-la para São José do
Rio Preto, interior de São Paulo para trabalhar
em uma casa de prostituição. Me interessei
em ir com ela. Iria fazer stripper. Nunca havia
feito, mas tirar a roupa para ganhar dinheiro
seria moleza, pois já fazia isso de graça. Por
um ano em viagens de puteiro a puteiro pelo
interior do Brasil, a ideia de fazer apenas
stripper já tinha ficado no passado. Éramos
putas profissionais.
Em uma crise de overdose, decido que
era hora de voltar para a casa da minha mãe.
Retorno para Minas com o intuito de voltar a
40
trabalhar e estudar. Me libertara do vício de
cocaína (herança do boy burguês). Trabalhava
de carteira assinada em loja no shopping pela
manhã (precisava provar à minha família como
conseguia dinheiro), atendia clientes como

PUTA LIVRO
garota de programa no período da tarde,
cursava pedagogia a noite onde também
fui eleita presidente do DCE – diretório
central dos estudantes (estava envolvida
com o movimento estudantil e político nesse
período). Após as aulas, retomava a profissão
de garota de programa e atendia clientes em
hotéis. Havia feito parceria com atendentes

NAARA MARITZA
de hotéis e a cada cliente que me indicavam
eu os pagava o valor de R$ 50,00 a quem me
indicasse. Me sentia exausta. Mas o salário
da loja no shopping não era suficiente para
pagar as contas e a faculdade.
Certa manhã, entra na loja que eu
trabalhava um senhor para comprar uma
caneta mont blanc, que possui valor alto no
mercado. Eu o atendo. Conseguia contatos
com muitos clientes para futuros programas
nessa loja. Bastava ser agradável com eles
e colocar meu número de celular no verso
do cartão da loja. O senhor me convida
para um café. Aceito. Passamos a nos falar
esporadicamente. Sou despedida dessa
loja porque fui para o Rio de Janeiro com
o movimento de estudantes em evento da
UNE – União Nacional de Estudantes e fiquei
dois dias a mais que o combinado. Logo,
vou trabalhar em empresa de telemarketing
e encontro o senhor da caneta na empresa.
Ele é holandês e possuía escola de inglês
na cidade e oferecia cursos específicos aos
empresários da empresa. Nos reencontramos
e às vezes ia de carona com ele até o centro
da cidade. Neste período, estou envolvida
com o sindicato dos trabalhadores e começo
a realizar movimento dentro da empresa para
levar informações dos direitos trabalhistas
aos trabalhadores de telemarketing. Faço
denúncias ao sindicato e reivindico nossos
direitos. Na portaria da empresa, entrego
panfletos e faço discursos informando nossos
41
direitos trabalhistas com megafone, além
de informar como estes direitos estavam
sendo infringidos. Em uma manhã, sou
convidada a ir ao RH e sou despedida. Ao
ver documento com os dizeres do motivo
de meu desligamento “Liderança Negativa

PUTA LIVRO
e envolvimento com sindicato”, o pego
e saio correndo alegando denunciar ao
sindicato. Seguranças conseguem me segurar
e me retirar da empresa. No dia seguinte,
me chamam para trabalhar novamente
alegando erro. Na verdade, foi o sindicato
que denunciou a prática. Sabia que não iria

NAARA MARITZA
demorar muito tempo na empresa.
O holandês continua oferecendo carona.
Sei que está “apaixonado”. Decido dizer a
verdade a ele: “EU SOU PUTA”. Ele se anima
com a notícia. Sabia que iria ser despedida
novamente em breve e faço uma proposta
ao holandês: “Você paga minha faculdade e
transamos duas vezes no mês”. Ele concorda
animado e assim fazemos. Ele pagou todo o
meu curso. No último um ano e seis meses
antes de concluir o curso, já não transávamos
mais, mas ele continuou pagando as
mensalidades da faculdade até o final.
Assim como ele, todos que passavam
pelo meu caminho e demonstravam interesse,
eu dizia: “SOU PUTA” e assim conseguia algo.
Professores da faculdade, médicos, cirurgiões
(inclusive realizei alguns procedimentos
gratuitos), políticos, policiais (militares, civis
e federais), juízes, delegados, empresários.
Parecia mágica. Era só dizer que era puta que
as oportunidades se abriam. Na cama sabia
como dominar cada um deles de maneira que
conseguia tudo que pedia. Não precisava
mais correr dos “tarados”, não precisava
mais temer os homens que se aproximavam
desejando sexo, ao contrário do que minha
mãe me alertava, usei o dinheiro dos homens
para colaborar com minha liberdade e com
minha formação.
O ano era 2010 e a profissão?
Pedagoga. Na ocasião já era professora da
rede pública de ensino. Encontrei o holandês
42
no shopping. Fazia um ano que não o
encontrava. Ele estava com uma garota. A
menina não tinha mais do que treze anos de
idade. Não acreditava. Ele estava saindo com
uma menina menor de idade em troca de
roupas. Isso é crime. Uma criança! Brigamos

PUTA LIVRO
muito e disse que tinha nojo dele, que era
crime o que estava fazendo e fui denunciá-lo
à polícia. Então ele diz:
– Você não passa de uma puta. Acha
que agora é pedagoga, mas sempre vai ser
uma puta! Uma puta mal-agradecida!

Considerações Provisórias

NAARA MARITZA
As três narrativas apresentadas trazem
experiências vivenciadas em que a semântica
da palavra “puta” foi enunciada com objetivo
de ofender, pois a palavra carrega estigmas
e preconceitos de uma sociedade de cultura
patriarcal, machista e hipócrita que utiliza a
palavra para minimizar as mulheres. Segundo
Bakhtin (2003), o contexto discursivo dos
sujeitos falantes é um campo de batalha. Os
usuários dos discursos não os utilizam de
modo neutro. Seguem certas regras sociais
que padronizam esse uso. Já para quem
escuta o discurso, apresenta-se resistência
e procuram (re)enquadrá-lo. Quando me
chamaram de “puta” o objetivo era me
ofender, mas nesse processo de luta nesse
campo de batalha discursivo, em que os
usuários envolvidos não estão passivos em
um sistema fechado e estável, quem recebe o
discurso também o ressignifica e lhe oferece
nova semântica.
Levo a reflexão da palavra “puta”
à sua consciência semântica “definida
como habilidades que permitem ao sujeito
refletir acerca dos significados das palavras
de uma determinada língua” (PICCOLI;
CAMINI, 2012, p. 115), sendo esta, uma das
habilidades da competência metalinguística
e isto “significa falar de um conjunto de
habilidades que permite ao sujeito raciocinar
sobre o próprio uso que faz a língua, ou
43
seja, sobre a forma como emprega ou vê
serem empregados os recursos linguísticos”
(PICCOLI; CAMINI, 2012, p. 102).
A língua só existe em função do uso
de quem fala e de quem escuta e o que

PUTA LIVRO
fazemos dela nestas diversas situações de
comunicação. Todos os homens que me
chamaram de “puta” em seus discursos,
consideraram que somos “putas” em
momentos em que os afrontamos, que não
nos calamos, que apontamos seus erros e
suas fraquezas. Em momentos que para se
defenderem de algo que os aflige, utilizam
a palavra para insultar. A palavra “puta”,

NAARA MARITZA
dita pelos locutores das narrativas citadas,
pretende soar como algo para ferir.
Em meu lugar de interlocutora da
palavra, não estava passiva em nenhuma das
narrativas. Compreendo a palavra “puta” em
seu lugar de manifestação ideológica, um
produto de interação. Podemos ressignifica-
lá de diferentes formas. A semântica de
“puta” que proponho neste texto não surge
por estes locutores, que podem ser nossos
familiares, companheiros, amigos e que nos
chegam, neste campo de batalha discursiva,
como ofensa em linguagem vulgar. Proponho
o entendimento de “puta” pela reflexão e
compreensão de nós interlocutoras e de
como significamos e recebemos esta palavra.
Nas três narrativas que selecionei para
pensarmos, compreendo que, em todas as
situações, a “puta” se referia a mulher livre,
que se posiciona, que demonstra se libertar,
que alcança a emancipação, que dialoga,
que pensa e reflete, que luta, que enfrenta,
afronta e aponta, que vem para subverter
o patriarcado, o machismo e a hipocrisia.
Proponho hipervalorizar a semântica de
“puta” com seu adjetivo que define qualquer
coisa como maravilhoso, fantástico ou
excelente: “Uma Puta ressignificação da
Puta!”. Ressignificar a palavra “puta” no
sentido de “mulher livre”, para que possamos
usufruir de sua entonação forte, “sonora e
quente”. Se é preciso “ter identidade, para
gente mudar alguma coisa” (LEITE, 2013),

44
então que possamos assumir e construir
nossa identidade de puta nesta semântica
que emerge de nossas próprias experiências.

PUTA LIVRO
Puta
Pu.ta. sf.

Toda e qualquer mulher - independentemente da idade,


profissão, situação econômica, classe social, contexto, raça,

NAARA MARITZA
posição política e afins – que usufruir da sua liberdade de
expressão, de seus direitos sexuais, que se posicionam
contra e/ou enfrentam o patriarcado.
Mulher livre; liberta; que se posiciona; Mulher que enfrenta
e afronta;

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 4. ed. São


Paulo: Martins Fontes, 2003.

CLANDININ, D. Jean. CONELLY, F. Michael. Pesquisa


narrativa: experiências e história na pesquisa qualitativa.
Tradução: Grupo de Pesquisa Narrativa e Educação de
Professores ILEEL/UFU. 2a edição rev. - Uberlândia: EDUFU,
2015.

LEITE, Gabriela. 1 vídeo (3:52m). Publicado pelo canal Um


beijo para Gabriela.
Porque Gabriela gosta da palavra puta/Why Gabriela
prefers the word puta(whore). Youtube, 12 jun.
2013. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=CvKkGPiXv0o&t=100s>. Acesso em: 28 de abr.
2021.

NÓVOA, António. Os professores na virada do milênio: do


excesso dos discursos à pobreza das práticas (1999) - Denise
Trento Rebello de Souza; Flavia Medeiros Sarti.: Mercado
de formação docente: constituição, funcionamento e
dispositivos. - 1 ed. - Belo Horizonte, MG: Fino Traço, 2014.
p.23-36.

PASSEGGI, Maria da Conceição. (2011). A experiência em


formação. Educação, 34(2), 147-156. Disponível em: Acesso
em: 01 ag. 2019.

PICCOLI, Luciana; CAMINI Patrícia. Práticas pedagógicas


em Alfabetização: espaço, tempo e corporeidade. Erechim:
Edelbra, 2012.
45
LEONARDO FARIAS
PESSOA TENÓRIO

UMA EXPERIÊNCIA DE

PUTA LIVRO
TRABALHO SEXUAL
SENDO HOMEM
TRANS E OUTROS
TEMAS SOBRE
PROSTITUIÇÃO
Primeiro eu gostaria de falar da
experiência de uma forma abrangente
sobre o trabalho sexual, regulamentação
e movimento das trabalhadoras sexuais.
Gostaria de responder à pergunta: o que é
trabalho sexual? Há vários tipos de trabalho
sexual, existe uma grande diversidade nessas
práticas. Há o sexo ao vivo em casa, sozinho,
ou com outros trabalhadores sexuais em
motéis, hotéis, saunas, cines pornôs, bordéis,
puteiros, cabarés ou zonas de prostituição.
A captação de clientes pode ser online (via
anúncios), na própria zona de prostituição
ou fazendo pontos em avenidas, estradas,
ruas, esquinas, motéis. Pode ser cobrado
por transa, por hora ou por pernoite (o
tempo influencia o valor). Fazer filmes pornôs
amadores, caseiros ou profissionais. Vender
vídeos caseiros, amadores ou profissionais.
Fazer performances online na frente da
webcam ou smartphone numa videochamada
com um cliente, ou numa sala virtual em que
podem entrar vários clientes, nessas salas, em
alguns sites, os clientes podem comprar uma
sala individual para interagir com a camgirl ou
camboy.
Se faz sexo em troca de coisas,
produtos, serviços, boletos pagos, cursos,
noitadas em bares ou em motéis com
46
drogas ou não. Algumas pessoas misturam
trabalho sexual com relacionamento conjugal,
mantendo uma relação de responsabilidades
financeira e afetiva. Na relação de sugar
daddy / sugar baby, na maior parte das
vezes, existe uma relação de sedução e às

PUTA LIVRO
vezes tem sexo, às vezes não. O trabalho
pode ser viajando e fazendo temporadas
em outros lugares, migrando entre cidades,
estados, países ou continente. Ao vivo você
pode fazer o atendimento individual, mas
também a casais ou ménages entre amigos,
ou surubas com vários clientes e/ou vários
outros profissionais do sexo.

LEONARDO TENÓRIO
É possível na internet fazer anúncios1
pagos ou gratuitos em sites especializados
para trabalhadores sexuais ou sites de
anúncios no geral. É possível fazer e
visibilizar pornografia no Twitter, através
de uma conta no Câmera Prive, Onlyfans
ou vários outros sites. É possível vender
videochamadas com performances (sozinho
ou a dois) e masturbação por aplicativos
como o WhatsApp, Google Meet, Skype,
Zoom entre outros. Dá para captar clientes
para o trabalho ao vivo também em
aplicativos de pegação gay, utilizava o Grindr
enquanto fazia programas.
Trabalhadores sexuais podem trabalhar
integralmente com sexo, como segundo
emprego ou como um complemento de
renda. A relação com a prostituição pode
durar por anos, décadas ou períodos
passageiros da vida. Às vezes a pessoa
trabalha com isso uma ou duas vezes na
vida. Ou uma vez ou outra perdida no ano,
ou sendo uma coisa esporádica ao longo do
tempo, não sendo uma prostituição rotineira.

1
Às vezes os anúncios pagos ficam num valor muito alto para
o trabalhador sexual, chegando ao valor de um aluguel de
imóvel. Isto gera uma precarização do trabalho sexual, fica
mais difícil pagar as contas do mês e você precisa recorrer
a aplicativos de pegação ou fica menos visível nos sites
gratuitamente.
O movimento das trabalhadoras sexuais

47
merece reconhecimento de sua história, das
suas lideranças históricas, das ativistas cis e
trans. E por consideração e respeito devemos
fazer eco e reverberar as ideias delas.

PUTA LIVRO
Tenho conhecimento apenas de duas redes
nacionais de trabalhadores sexuais: Anprosex
(Articulação Nacional de Profissionais do
Sexo) e Cuts (Central Única das Trabalhadoras
Sexuais). São nacionais, mas existem dezenas
de associações locais de trabalhadoras
sexuais espalhadas pelo país.
Entendi, ouvindo e lendo as ativistas do
movimento que as trabalhadoras sexuais no

LEONARDO TENÓRIO
país lutam pela:
1. Regulamentação do trabalho sexual
(obter direitos trabalhistas).
2. Redução do estigma, preconceito e violência
(direitos humanos, segurança).
3. Prevenção e cuidado a infecções
sexualmente transmissíveis (IST) (saúde).
4. Diminuir as precariedades da informalidade
da profissão, quando presentes.

Os homens trans e cis trabalhadores


sexuais precisam questionar por que existe
essa ausência de homens no movimento
que reivindica direitos de trabalhadoras
e trabalhadores sexuais. Parece-me uma
irresponsabilidade. Eu sou da opinião de que
até que tenha vários ativistas homens dentro
do movimento das trabalhadoras sexuais,
podemos continuar utilizando o feminino
para se referir ao movimento. É movimento
das trabalhadoras sexuais, porque elas
estão aí numa luta de décadas, atravessando
gerações, e não se vê quase nenhum homem
dentro do movimento.
O PL Gabriela Leite do ex-deputado
federal Jean Wyllys – um projeto de
lei no Congresso Nacional que prevê a
regulamentação da prostituição – na minha
opinião é ruim porque dá até 49% do
dinheiro do trabalho para cafetão, cafetina
ou empresário. Acho uma taxação absurda,
exagerada. Dar quase 50% do trabalho é
muito. Me soa como exploração sexual. Mas
48
acredito que antes de tudo, a proposição
legislativa precisa de muito debate ainda
dentro do movimento para que seja levada
à frente. As associações nacionais e locais
precisam ser chamadas para discutir esse
PL e designar as modificações no texto do

PUTA LIVRO
projeto de lei que agrade ao movimento das
trabalhadoras sexuais como um todo.
Existe uma categoria referente ao
trabalho sexual na CBO (Classificação
Brasileira de Ocupações) do Ministério do
Trabalho:
5198-05 - Profissional do sexo Garota de

LEONARDO TENÓRIO
programa, Garoto de programa, Meretriz,
Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta,
Trabalhador do sexo

Buscam programas sexuais; atendem e


acompanham clientes; participam em ações
educativas no campo da sexualidade.
As atividades são exercidas seguindo
normas e procedimentos que minimizam a
vulnerabilidades da profissão.

O trabalho sexual não é proibido


no Brasil, mas a cafetinagem é proibida,
deixando alguns profissionais do sexo
com medo de se reunirem num mesmo
empreendimento. Como cafetinagem
(“rufianismo”) é crime no Código Penal,
ninguém vai arriscar contratar via CLT um
profissional do sexo, porque essa pessoa
pode ser criminalizada. Por outro lado,
muitos puteiros e saunas gays poderiam
ser criminalizados e não o são, estão aí
livremente funcionando.

Minha experiência na prostituição


enquanto homem trans

Eu trabalhei como garoto de programa


durante cerca de seis anos na minha vida, foi
um curto espaço de tempo, em comparação
a muitas outras pessoas, e por isso não
me considero a pessoa mais experiente.
Uso neste momento a expressão “garoto
de programa” porque foi assim que me
identifiquei na maior parte do tempo às

49
pessoas, mas numa perspectiva crítica utilizo
neste texto mais a expressão “trabalhador
sexual”.
No meu trabalho, fiquei com a forte

PUTA LIVRO
impressão de que a procura para homem
trans não é tão grande quando dos outros
segmentos populacionais que trabalham
com sexo: homem cis, mulher cis e mulher
trans/travesti. E na minha experiência,
acredito que muitas vezes encontrei uma
resistência no mercado do sexo em função
da necessidade de atender a um estereótipo
de gênero cisgênero e corpo “padrão”,

LEONARDO TENÓRIO
que às vezes tive mais, às vezes tive menos,
dependendo da fase da vida enquanto garoto
de programa. Mas no trabalho com anúncios
online que eu fazia, tudo também muitas
vezes gira em torno do truque de câmera
e iluminação nas fotos e vídeos que você
vai utilizar nos anúncios. Conseguia mais
clientes quanto mais “macho” eu parecia
nas fotos e vídeos, e quando essas fotos e
vídeos tinham mais qualidade profissional. Eu
achava difícil, ou bem suado, conseguir pagar
todas as contas do mês com prostituição.
Mesmo eu conseguindo pagar as contas,
eu ficava estressado com a possibilidade de
não conseguir, e por um bom tempo vivi “no
limite”.
Geralmente trabalhava ao vivo e em
casa. Sempre morei sozinho, então atendia
nas tantas kitnets que morei. Não sei
direito como é o trabalho online. Cheguei
a fazer algumas vezes, vendendo vídeos já
prontos ou vendendo videochamadas e me
masturbando na frente da câmera. Foram
poucas vezes, não me considero uma pessoa
que tem muita habilidade cênica, mas no
final eu acabava apenas me masturbando
na frente da câmera e gozando, e o cliente
se masturbando do outro lado, sem que eu
pudesse vê-lo. Acabava quando o cliente
gozava. Foram poucas vezes que fiz isso. São
chamadas curtas, de meia hora no máximo.
50
Mas as transas ao vivo nos programas
não duram também mais de 40 minutos.
Às vezes os clientes ficam preocupados
perguntando se a pessoa conta hora, porque
é meio que um padrão dizer que se faz o

PUTA LIVRO
programa de uma hora. Mas eu nunca contei
o tempo no relógio, e na verdade nunca dura
além de 40 minutos na cama. Os clientes
ficam com um medo que não precisam ter.
Em geral os clientes querem gozar apenas
uma vez. Muitas vezes, se querem gozar duas
vezes, eles avisam antes e combinam duas
gozadas.

LEONARDO TENÓRIO
Também não cheguei a fazer muitas
temporadas em outros lugares, apenas
viajei duas vezes para fazer temporada em
São Paulo, de uma semana e um mês, mas
fora uma cidade que eu já conhecia, como
muitas outras capitais. Além disso já cheguei
a viajar a outro estado do Nordeste ou
outras cidades no interior de Pernambuco
para atender clientes que pagaram minha
passagem, além do programa.
Já cheguei a filmar vídeos caseiros meus
para colocar no Xvideos, vídeos de transas
e já fiz dois pornôs amadores com outros
garotos de programa. Não ganhei dinheiro
nenhum com eles. Mas também não teve uma
ampla divulgação e conhecimento, então não
tenho como me colocar enquanto “pornstar”.
Antes de trabalhar com sexo eu já
convivia com outras pessoas que trabalhavam
deste modo. Trabalhadores sexuais sempre
fizeram parte da minha socialização. Trabalhar
com sexo para mim foi muito “natural”,
já que eu sempre fui muito sexualizado e
já tinha contato com o meio. Tanto é que
nenhuma amizade minha estranhou que eu
tivesse entrado no ramo na época.
Você tem que ter um nível de
impessoalidade, transar com um cliente
para quem trabalha com sexo ao vivo não
pode ser uma fonte de angústia. Se a pessoa
faz o programa e depois se sente mal,
desconfortável, pra baixo, então é melhor
não fazer. Você também precisa ter um
51
nível de libido mais alto se você pretende
se sustentar com sexo. Algumas poucas
vezes trabalhei com pouca libido, e isso não
é bom. A libido varia muito em função da
nossa saúde mental, relação com o corpo e

PUTA LIVRO
autoestima.
Em geral meu público, trabalhando ao
vivo, foi “tranquilo”. Muitos homens cis gays
e bi que já tinham uma cultura LGBT, “do
meio”. Raros homens cis hétero apareciam.
Apareciam muitos “sigilosos”, que se
apresentam à sociedade como hétero, mas
transam com homens por trás, e por definição
não são hétero. E às vezes mulheres trans/

LEONARDO TENÓRIO
travestis apareciam. Mulher cis só cheguei a
atender duas vezes apenas, e homem trans
apenas uma vez. A maioria dos clientes tinha
entre 25 e 55 anos. A maioria era da classe
trabalhadora.
Muitos clientes querem fazer sexo
sem camisinha. Isso é burrice deles
porque eles é que deveriam temer fazer
sexo sem camisinha, porque quem tem a
maior vulnerabilidade a pegar IST são os
trabalhadores sexuais. Se eles não têm
medo de transar sem camisinha comigo, eu
devo ficar preocupado em fazer sexo sem
camisinha com eles, porque eles devem fazer
sexo sem camisinha com todo mundo.
Muitos clientes também querem pagar
menos e desvalorizar seu trabalho. Isso é
uma coisa que estressa, mas infelizmente, às
vezes, quando você está precisando, você
faz. Se você não tem comida em casa, você
acaba fazendo um programa por 20 reais, 30
reais. É triste. Os clientes sabem que no final
do mês nós estamos com menos dinheiro,
então aproveitam para pechinchar e diminuir
o valor do nosso programa. Eu considero
exploração sexual diminuir demais o valor do
programa.
Algumas situações incomuns de
violência aconteceram comigo, como
também podem acontecer em outros
trabalhos informais quando são precários.
Isso considerando a distância do meu
corpo em relação à norma cisgênera. Já

52
sofri “stealthing” (quando a pessoa retira a
camisinha sem avisar) e fiquei três semanas
com um quadro de ansiedade muito forte –
isso é uma forma de estupro. E já sofri um

PUTA LIVRO
golpe de um cliente que pediu para eu passar
bem mais horas no motel com ele dizendo
que ia me pagar mil reais, quando no final me
pagou apenas 200.
Os clientes comigo muitas vezes não
tinham a mesma visão que seria de muitas
pessoas sobre o que é assédio ou abordagem
de sedução que as pessoas no geral têm.
A objetividade é outra, muito semelhante à

LEONARDO TENÓRIO
do meio gay, e inclusive o uso de palavras
pornográficas é bem maior. Não sei como
funciona com as mulheres cis, mas comigo,
que me identifico no gênero masculino e
lidava com outros homens no trabalho, as
abordagens eram bem objetivas tipo ao invés
de dizer “Oi, boa noite, tudo bem?” era “E aí
como faço pra comer tua buceta?”.
Sempre fui muito sexualizado, com
atividade sexual mais intensa e múltiplos
parceiros, inclusive namorando. Digo isto não
na ideia de querer contar vantagem, porque
eu sempre fui passivo no sexo e acho que
isso não me traz muito privilégio. Talvez seja
revolucionário o fato de os caras quererem
fazer sexo comigo, um homem com buceta.
Em geral eu me identificava assim nos
anúncios: homem com buceta e homem trans.
Mas a quantidade de sexo que eu fiz ou faço,
conheço tanta gente, mas tanta gente mesmo
que também fez e faz, que me considero
igual a um grupo grande de pessoas, o das
pessoas mais sexualizadas. Não sei se já tem
nome pra isso.
Não sendo por programa, transei
desde o início na minha vida sexual ativa com
muitos caras hétero cis, mulheres cis lésbicas
e bissexuais, homens cis gays e bissexuais,
e mulheres trans/travestis. Homens trans e
intersexuais foi até bem mais raro pra mim.
Não binário não contei por que eles sempre
estiveram no meio LGBT só que de um modo
53
não anunciado, demarcado.
Antigamente eu transava com todo
mundo que aparecesse. Eu tinha o sexo como
uma forma de me aproximar afetivamente
das pessoas. Isso me deu acesso a muitas
pessoas diferentes. Mas além de sexo, eu

PUTA LIVRO
troco afeto com as pessoas de outros modos
também, já faz um bom tempo. Durante a
adolescência, até ficar adulto, eu fui criando
um filtro de seletividade, como exemplo o
aspecto do nude do pau duro no aplicativo
de pegação etc. Na adolescência eu já fazia
suruba, ménages, ficava com homens mais
velhos. Sexo sempre esteve na minha rotina,

LEONARDO TENÓRIO
independente da fase que eu vivia, salvo
umas poucas exceções.
Ainda curto muito sexo a três ou em
grupo, suruba/orgia – que pra quem faz
putaria isso é inclusive uma coisa bem “feijão
com arroz”, nada revolucionário. Fui menos a
saunas e cines do que gostaria. Já fui a sauna
e transei com a maior parte dos boys do lugar
de uma vez só, de graça. Foi muito bom esse
dia, gozei bastante.
Atendi uma pessoa com câncer, atendi
pessoa com problema de mobilidade (acho
que por causa de acidente), atendi velhinhos,
atendi obeso mórbido, com o pauzinho,
com o pauzão, atendi caras lindos também,
e transei com muitos garotos de programa
que eram colegas de profissão e amigos.
Mas tenho muitos interesses na vida além
de transar com boa parte das categorias
pesquisadas e não pesquisadas pelo IBGE.
Outras coisas que não são sexo. Minha vida
não gira em torno de sexo.
Os limites pro sexo são: não pode com
pessoas com menos de 18 anos; não pode
contra a vontade da pessoa, tem que ser
consensual; tem que ser com a pessoa viva
e em consciência (não drogada2 demais,

2
Algumas pessoas mantêm a prática de fazerem sexo sob
o uso de drogas, eu já fiz bastante. Mas tecnicamente
aumenta o risco de você contrair IST.
sedada, dormindo); não pode de outras

54
espécies que não são humanas; que ninguém
esteja sofrendo durante o ato sexual3.
Já saí com um pessoal que curte BDSM
em duas cidades diferentes, fui pra uma festa,
fiz sexo em público e em dark room lá, mas

PUTA LIVRO
nem estava na mesma vibração. Eu não me
identifico com os fetiches do BDSM em maior
parte. Sou baunilha.
Sobre atender fetiches no trabalho, foi
algo bem raro, não é comum aparecer. Já
atendi um cara podólatra que queria lamber
meus pés, não vi graça (ele aproveitou para

LEONARDO TENÓRIO
lamber mais do que os pés, e não vejo graça
nessa coisa de lambida pelo corpo). Mas
quando pediram para mim para eu fazer xixi
no cliente não fiz, afinal não consigo fazer
xixi com outra pessoa vendo, muito menos
esperando.
Na pornografia o que eu mais curto
assistir é pornô hétero cis, porque eu acho
que pega as melhores filmagens pro gênero
que eu mais gosto (gang bang / dupla
penetração) e me encanto mais em assistir
as cenas objetivas, como com o close no pau
entrando na buceta, que é a parte que mais
me interessa.
Hoje em dia, no momento de escrita
desse texto, não trabalho com sexo, mas
achei importante deixar os registros de
minhas compreensões sobre essa vivência.

3
O BDSM é uma exceção a essa regra, às vezes há um
fetiche em torno da dor, se há no casal um masoquista
e uma pessoa sádica. No entanto as relações BDSM são
bastante burocráticas e em geral se assina um contrato
antes da prática sexual.
55 PUTA LIVRO
56
PALOMA COSTA

PUTA LIVRO
Se tu perguntar lá no Mercado quem é a
Luna todos vão saber te responder:
- É aquela que vive bêbada por aqui...
- Lógico que sei! Chama lá aquela fodida...
bem aprontou de novo, né?
- A Maria abortadeira... fica grávida não sei
pra quê... nem pra isso presta.
Luna é uma mulher de mais ou menos trinta
e cinco anos, mas já aparenta ter cinquenta e seis.
Ela gostar de dançar com a gente; diz que
se sente em casa quando nos encontra em algum
batuque em praça pública.
Por vezes vi lágrimas descerem do rosto
magro que ela tem por que ela é bem mais dor
que contentamento quando aqueles assuntos
de projeções de vida, sem querer, surgem na
conversa.
- Como tá tua mãe?
- E os filho, mulher? Por onde andam?
- Soube que tu mudaste de endereço, é
verdade?
Luna foi mandada embora de casa aos treze
anos porque ela e o namoradinho roubaram os
objetos da casa e estouraram tudo em crack e
putaria.
Ao todo, pelas histórias que pude escutar,
filhos mesmo ela só tem um – que deu pra
alguma crente criar. De abortos, contei pra mais
de sete. “O corpo não suporta”, ela diz. Eu
acredito.
Luna mora na rua há décadas, mas o
endereço mais recente é lá no centro de
triagem para pessoas que estão se tratando da
COVID-19. Se bem que disseram que ela roubou
mantimentos e colchonete pra ficar mais à
vontade lá na Praça da República – de conchinha
com os companheiros dela.
- São os amores, né, mana? A gente tem
que valorizar quem quer ficar com a gente.
Nunca mais soube de Luna.
57
FRIDA CARLA

PUTA LIVRO
Por tantas vezes eu fui sua
Sua dama nos bistrôs
Sua amante nos cafés
Sua puta nos quartos de hotéis

Fui seu caminho transgressor


Fui fogo na sua rede
Fui sua mulher, seu escândalo
Seu pecado
Fui sua santa, sua profana
Fui vadia na sua cama

Fui sua fantasia nos fins de tarde


Fui objeto do seu prazer
O orgasmo no seu corpo
A sua mentira de amor
Fui a puta do professor
58
NATÂNIA LOPES

A historia

PUTA LIVRO
que nao pode
ser contada
Foi nos anos em que lecionava
Antropologia na Universidade Federal daqui
da cidade que comecei a pesquisa sobre
aquela coisa. O Professor que supervisionava
meu trabalho ficou um pouco reticente.
Ele tinha uma reputação pela qual zelar, e
também não queria que eu me expusesse à
toa. Há temas que são objeto de pesquisa
por sua própria natureza e outros sobre
os quais não se deve sequer falar. Foi por
um destes dos quais não se fala que eu me
apaixonei.
Mais pernóstica que o tema era minha
paixão. Um cientista apaixonado é uma
contradição de termos. E a moral é o cimento
que elide a cátedra: é importante manter do
assunto que se estuda um distanciamento
asséptico, um olhar crítico, uma frieza
analítica. Então os pesquisadores entram e
saem dos seus campos de estudos. Entram
e saem. Entram e saem. Entram e saem.
Entram e saem. E retornam aos seus edifícios
apresentando aos colegas o seu patrimônio,
fruto de espólio. Alcançam o clímax do seu
voyeurismo estranho contando aos pares o
que viram lá no mundo exótico. São estas
narrativas, carregadas de sensatez, que os
põem laureados com os títulos honoríficos.
Como Ulisses, eu deveria atravessar o
mar amarrada ao mastro da embarcação, para
que pudesse ouvir o canto das sereias, sem
me afogar. Daria então testemunho magno da
maravilha mortal, enquanto alguns escravos
remariam com os seus ouvidos selados. Esta
gana de dominação da natureza que a ciência
59
tem...
Mas eu tinha a ideia fixa naquele
assunto, como quando um pensamento nos
rapta sem possibilidade de fuga, como se
ouvisse o canto antes mesmo de zarpar.

PUTA LIVRO
Queria estar suspensa no oco do mar. De
perto. De dentro. Então mergulhei logo
que pude, levada pelos sons das gargantas
míticas. Sobrevivi? O mergulho profundo
se tornou hábito. Eu emergia com algas
nos cabelos, algo muito impróprio para um
cientista.
Contra o meu fascínio pelo mundo

NATÂNIA LOPES
submerso, o meu Professor convidava-me
para congressos sobre religião, comunidades
ribeirinhas, os impactos das políticas estatais
nisso, naquilo... recomendava-me ler os
clássicos da pedagogia, da filosofia, da
sociologia, da teologia... tentava plantar em
mim um interesse que fosse válido entre os
homens do saber.
E pela pedagogia, filosofia, sociologia...
eu voltava a interpretar o meu tema. Nas
igrejas e nas comunidades nativas, quando
as pessoas iam conversar pelos cantos,
elaborando sobre suas condenações,
eu o reencontrava. E todos os autores
pareciam murmurar por entre as linhas suas
apreciações a respeito do tortuoso assunto.
As conexões de sentido vinham dos livros
como frutas na cesta, peixes servidos na
travessa, uma mesa farta, posta para o meu
deleite. Eu não procurava. Elas se insinuavam.
Nas reuniões de supervisão eu voltava
a falar com meu Professor sobre as relações
possíveis entre o que eu lia e desejava. E
percorríamos as pontes de sentido que nos
levavam, juntos, à atmosfera espúria. De lá
eu saltava para a água. Ele ficava do barco
avaliando o ornamento do meu salto. Eu só
queria o fundo.
Era escuro lá. As mulheres andavam
nuas e os homens não importavam. Havia
muitos espelhos e luzes de todas as cores.
E se podia ganhar muito dinheiro. Ou até
dinheiro nenhum. Mas o mais importante é
60
que, tal como deve ser, as garotas podiam,
enquanto os homens queriam. E quando
eu emergia, meu supervisor se punha
intransigente com os compromissos, tanto
respeito tinha pelos pactos estabelecidos.

PUTA LIVRO
Todas as vezes que eu mergulhava,
voltava mais afiada. Tanto que umas linhas
das políticas que sustentam as relações se
partiram. E eu fiquei ainda mais solta. E
mergulhava vestida com minhas roupinhas em
tons de bege, e voltava de escarlate, como
mulher e sujeito, aquela que duvida e vai,
toda assertiva. Descia falando o português

NATÂNIA LOPES
culto das rodas acadêmicas, emergia falando
a língua universal da roda da vida; uma
linguagem ancestral do corpo e para além
do corpo e de tudo. Lá de onde as coisas
existem com violência e sem artifícios.
Vendo que minha presença no mundo
de fora era cada vez mais rarefeita, meu
Professor tentou ainda seduzir-me com
promessas de sucesso: viajar o mundo
estudando o cartesianismo, palestrar na
Europa, um reconhecimentozinho glamoroso
feito de livros lidos sempre da mesma
maneira, de óculos e echarpes, nas mãos um
café para cheirar e beber com dedo mindinho
durinho, assim... em pezinho. Trouxe até um
Professor dele, de uma universidade francesa,
para ouvir meus achados de pesquisa, que
deveriam se articular com todo material lícito
sobre o qual eu havia estudado.
O Professor do meu Professor, por
detrás dos óculos, sorvia seu café enquanto
outros lhe bajulavam. Lixava as unhas
enquanto dizia palavras conclusivas a alunos
ansiosos por seu parecer. Dormia enquanto
meu Professor o aguardava. Eram, os dois,
totens de remota idade, a quem o tempo não
legara sabedoria.
A mim o tempo não apaziguou.
E entre um douto e um cauto, eu salto.
Mergulho.
Encontro.
De novo vinha com algas embaraçadas
nas madeixas. Que gafe! Que desalinho! Meu
supervisor puxou-as antes que eu entrasse

61
na sala, arrancando junto uns fios do meu
cabelo. A água imprimia meus saltos no
assoalho. O Professor francês sentou-se
diante de mim, tão adestrado e adestrador,

PUTA LIVRO
munido do seu poder.
Eu abri a boca para dizer “Estado”, saiu
“cabaré”. Quis dizer “práticas corporais”,
saiu um canto de sereia. Minhas cordas
vocais vibrando alucinadamente. Foi como
se uma bomba caísse sobre a sala. Não
havia sanidade que resistisse. Meu Professor
pendurou-se no ventilador e começou a

NATÂNIA LOPES
rodar. O Professor dele pôs-se de quatro
como um jumento. O som estilhaçou as
vidraças. Uma vara de porcos atirou-se do
último andar, possuídos por uma legião de
demônios. Eu não cantava mais o canto das
sereias. Eu era o canto.
Quando tudo se recompôs intimaram-
me a pagar pelos vidros quebrados -embora
sem eles estivesse tudo tão mais arejado!
Tive também que indenizar os donos da vara
suicida. Vá bem. Melhor assim do que eles
manterem os porcos cristianizados.
Fui convidada a me retirar.
Houve uns coros assustados sobre o
acontecido nos meses que se seguiram,
sem consenso sobre motivações para o meu
desvio, ou resultados adequados.
-Talvez o certo fosse ela viver no mar–
diziam.
Mas eu não queria.
-E como poderia não querer? – Eles não
entendiam, embora não houvesse nisso nada
sobre o que entender.
Os cientistas não gostam quando não
entendem. Mas como não são habituados
a pôr as coisas em termos de gosto, e,
como tampouco aceitam os limites do
entendimento, rotulam de errado, de mal, de
doente tudo aquilo o que lhes escapa.
-Você quer nos chocar! – acusavam.
Me ressenti dos policiamentos. Depois
me cansei. Mas ainda tenho medo de abrir
a boca e deixar escapar um canto. E se
62
vierem galopando os cavaleiros das cruzadas
e armarem cerco à minha volta? Com que
cara eu olho para eles? Feições duras?
Suplicantes? Um semblante cheio de amor?
Em silêncio, ando buscando uma pedra onde

PUTA LIVRO
me sentar. Me sobraram no bolso uma folha
de papel úmida de águas salgadas e uma
caneta que escreve borrado, mas que quase
nunca falha.

NATÂNIA LOPES
63
AMANDA DE
MELLO CALABRIA

SER PUTA É QUEBRA

PUTA LIVRO
DE ESTIGMA: a puta
política e as transas
no tempo. Trajetória
militante de Lourdes
Barreto. 1

Rua Lourdes Barreto (2018)2 .Fotografia de acervo pessoal


64
Dizer pra vocês que é um prazer imenso
falar dessa trajetória. Daqui há 50 anos as
mulheres vão se despertar pra como uma
mulher que já vem revolucionando desde o
século XX, falando de história, de concepção

PUTA LIVRO
de valores... e sonhando com uma sociedade
mais justa e mais fraterna consegue dizer
pra sociedade que ela é puta. Puta com
esse sistema, puta com essa sociedade
preconceituosa, mas uma puta mulher que
tem um prazer de gozar da maternidade,
mãe de 4 filhos, vó de 10 netos e bisavó de 8
bisnetos. Isso pra mim é o maior patrimônio.

AMANDA DE MELLO CALABRIA


1
A recomposição da trajetória militante de Lourdes
Barreto integra a pesquisa história oral de vida “Eu Sou
Puta: Lourdes Barreto, História de vida e Movimento de
Prostitutas no Brasil”, dissertação de mestrado de Amanda
de Mello Calabria, defendida em março de 2020 no
Programa de Pós-Graduação em História na Universidade
Federal Fluminense. Entre 2018 e 2020 foram realizadas,
com Lourdes, quatro entrevistas por meio da metodologia
da história oral em um processo de constante diálogo
e negociação. A história oral compreende um conjunto
de procedimentos desde a condução e gravação de
entrevistas, textualização, transcrição e arquivamento
das narrativas à devolução do material produzido aos
entrevistados. Abarca uma série de questionamentos éticos
e uma relação de comprometimento com o entrevistado,
valorizando o seu desejo de narrar. A transcriação proposta
tem como base as contribuições de José Carlos Sebe B.
Meihy e Fabíola Holanda (Manual de História Oral, 1996 e
História Oral: Como fazer, como pensar, 2020) acerca da
edição e produção de sentido por parte do pesquisador
na recomposição de uma história de vida. A transcriação
busca valorizar o elemento comunicativo da narrativa oral
e expressa a vivacidade das narrativas de histórias de
vida durante as entrevistas – desejos, ênfases, hesitações,
silêncios e esquecimentos.
2
A placa Rua Lourdes Barreto foi colocada na Rua General
Gurjão, tradicional esquina do “Quadrilátero do Amor”,
em uma ação do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado
do Pará – Gempac, associação fundada e coordenada por
Lourdes, no evento conhecido como Puta Dei de 2018
(em comemoração ao 2 de junho, Dia Internacional das
Prostitutas).
65
Pra mim começar a contar da minha
história de vida eu tenho que falar de onde
eu vim, né. Eu sou Lourdes Barreto, sou
natural do estado da Paraíba, vou fazer 79
anos. Nasci na cidade Brejo de Areia e fui

PUTA LIVRO
criada em Catolé do Rocha. E o estado que
eu escolhi para morar é o Pará e Belém,
a cidade morena. Belém é fêmea, sempre
digo isso. Belém é uma cidade mulher.
Uma puta mulher. Quem vem pra Belém se
apaixona. E foi por aqui que eu aprendi com
a vida. A vida traz momentos maravilhosos
e momentos tristes também. Eu tive muitos

AMANDA DE MELLO CALABRIA


problemas, mas também eu tive mais prazer,
satisfação, amor no coração. E juntando o
útil ao agradável a gente luta por direito e
cidadania.
Eu cheguei em 57, 58 no “Quadrilátero
do Amor”, a zona era aberta, uma coisa
glamorosa, muito grande. Era toda aquela
área do Bairro da Campina, que é um bairro
de Belém. Uma zona amorosa, muito brilho,
muito glamour, muita penumbra, né. E eu
era completamente apaixonada por essa
coisa, essa fantasia linda de tá aqui, lidar
com sexo, lidar com homem, com prazer,
com a sensualidade, com a sexualidade,
então isso pra mim preenchia meu ego. E
tu tinha mulheres de vários países. A zona
era considerada uma das mais poderosa do
Brasil. Encontrei puta japonesa, portuguesa
e de outro continente que eu nunca podia
imaginar, e elas muito mais madura que
eu. Davam aula de organização política, de
entendimento da sexualidade. A coisa da
prostituição é uma coisa muito profunda,
muito rica.
A zona aqui em Belém era uma zona
completamente confinada, uma zona
controlada pela questão sanitária. Levava
a gente pra unidade de saúde pra saber se
tinha sífilis, se tinha uma coisa. Aquele tempo
você tinha uma epidemia de sífilis muito
grande, não só no Brasil, mas na América
Latina. E como os gringos também vinham
e às vezes eles tava doente, a gente era
levada pra fazer um exame ginecológico de

66
15 em 15 dias. E outra coisa, tinha que se
cadastrar na delegacia de costumes, que era
uma carteirinha. Nós tinha duas carteirinhas.
Uma da polícia, quem chegava em Belém

PUTA LIVRO
ia primeiro pra Delegacia de Costumes pra
ficar registrado. E a outra era da saúde, pra
fazer os exames. Mas eu me senti muito feliz
porque vivia na zona glamorosa, também
sofri pouca violência dos cliente. A violência
que eu mais sofri foi institucional, da polícia,
do poder público. Dentro da zona a gente
tinha afeto, carinho dos cliente, ganhava
dinheiro, recebia flores... então eu me sentia

AMANDA DE MELLO CALABRIA


favorecida e também acolhida pelos nossos
cliente.
Já a partir da ditadura militar, nós
ficou impedida de sair, tu só saía se fosse
acompanhada de policial. Tu tava na janela,
passava um agente, via e levava a gente.
Na rua não podia tirar horário. O golpe foi
em 64, né, e foi muito cruel, muita violência
contra nós. A gente ia muitas vezes presa
sem praticar nenhum crime. Muita violência
social, urbana, cultural e política mesmo.
Não podia se posicionar, se questionar.
Só que naquele tempo eu já era uma puta
revolucionária. Eu fazia greve na zona de
trabalho. Achava que tinha que tá organizada
dentro da própria zona pra lutar por uma
carga horária menor, porque você ficava
24 horas no ar. Tava dormindo, chegava o
cliente, batia na porta, tinha que acordar.
Era uma violência que a gente ficava triste.
Mas eu sempre fui uma mulher que tive
autonomia. Mesmo dentro da zona quando
queria cobrar uma carga horária maior, eu
já reunia 10, 15 putas dentro de uma alcova
lá e dizia: “olha, é pra entrar dez horas, nós
vamos entrar meia noite.” Um atraso de duas
horas. Porque um cabaré, cheio de cliente,
e as mulher entocadinha dentro do quatro...
Eu enfrentava isso. Era muito foda, muito
danada. Diziam: “gente, essa paraibana!”
Porque eu sou paraibana, né. “Essa paraibana
é muito foda!” Porque eu não brincava em
67
serviço. Eu fazia isso. Eu era uma líder já sem
saber que era. Tomava a frente das coisas.
Nessa época, já no final dos anos 60, eu
conheço a Pastoral da Mulher Marginalizada,
que era uma instituição que começou na

PUTA LIVRO
França e espalhou muito no Nordeste do país
e no Pará, no Brasil e toda América Latina,
mas onde foi muito presente foi no Norte e
no Nordeste na questão de alfabetizar adulto.
Realmente tinha muitas prostitutas que eram
analfabetas, que mulher da minha época
não estudava pra arranjar namorado. Eu
não estudei, vim estudar depois. A Pastoral

AMANDA DE MELLO CALABRIA


que me alfabetizou e depois eu resolvi
estudar. E a Pastoral reunia com a gente,
ensinava. Toda tarde a gente ia pra reunião
com elas, eu achava importante. Umas se
vitimizava, mas eu sempre nessa posição
de identidade, dizia que gostava do meu
trabalho, que não estava fazendo nenhum
pecado, estava só trabalhando dentro da
prostituição pra manter os filhos, que eu já
tinha dois filhos, né. E aí vem os anos 70.
Fecharam a zona de Belém. Um governador
militar do exército, coronel do exército.
Fecharam a zona de prostituição. Quem tava
dentro não saía, quem tava fora não entrava.
Como eu sempre fui uma mulher bastante
inteligente, sabia que a zona ia ser fechada
dia primeiro de abril, dia da mentira de 1970,
sabia que tavam divulgando que ia fechar
a zona. Eu já tinha dois filhos, aluguei uma
casa e levei meus filhos. Ficou ainda umas
casas legais e tivemos que trabalhar na rua
também. Eu trabalhei na rua, em barragem,
em boate, dançarina de cartão. Entrava e só
saía no final, quando fechava a casa. Essas
são as chamada boate fechada. Trabalhei
em garimpo também, em navio fundiário,
trabalhei na beira da praia, no cais do porto,
maresia. Trabalhei com caminhoneiro nas
estradas. Onde tinha cliente eu ia, não tinha
dificuldade pra ir.
Nos anos 80 eu fiz uma luta muito
grande também. Lutamos pelas diretas já,
lutamos aqui no Pará pela implantação da
68
delegacia da mulher, dos fóruns de Aids. Eu
participei de tudo isso. Ajudei a construir.
Aliás, a puta ajuda a construir uma cidade,
a puta ajuda a formar pessoas humanas.
Eu ajudei na campanha de luta contra Aids.

PUTA LIVRO
Teve o encontro com a Gabriela, né, que foi
em 84, 85. Eu casualmente encontro com a
Gabriela Leite, no encontro da Pastoral em
Salvador, encontro aquela mulher baixinha,
empoderada, e eu arrodeada de mais de
150 trabalhadoras sexuais tudo vítima,
coitadinha, que a zona não prestava, porque
tava perto das freira, né, mas quando tava na

AMANDA DE MELLO CALABRIA


zona virava cavalo de cão. E tinha Gabriela
e eu dizendo que a gente gostava de ser
puta, de tá na zona, que a zona também dá
prazer. Aí eu digo: “olha, achei uma parecida
comigo!” Porque puta só tem dinheiro
quando tá na zona, quando saiu da zona fica
lisa, aí quando ela chegou: “Gabriela, bora
procurar cabaré pra gente se virar”. Fomos
lá pra rua chamada Maceió Pinheiro, em
Salvador. Fomos pra zona batalhar. Depois
já se encontramo lá pra Jundiaí, em 84. Era
o encontro da Pastoral, né. A Gabriela disse:
“Lourdes, Maria de Lourdes, bora fazer um
encontro de puta?” Eu digo: “Mas como a
gente vai fazer? Sem a Pastoral? A Pastoral
vai tá com a gente pra ajudar?” Aí ela disse:
“Não, vai ser nós”.

I Encontro Nacional de Prostitutas (1987) Fotografia extraída


do Jornal Beijo da rua, ano III, n.7, 1991. Acervo Davida
(APERJ).
Aí nós faz o I Encontro Nacional “Fala

69
mulher da vida”, que até aí as puta não
falava, né, porque era proibida de falar. Foi
no Rio de Janeiro. E quem faz a abertura
sou eu, porque Gabriela era uma mulher

PUTA LIVRO
mais frágil do que eu, nordestina é bicho
resistente. Gabriela teve uma hemorragia,
engoliu um dente, “Como é que eu vou
falar faltando um dente e tal? Então tu faz a
abertura?”, eu disse “Faço”. Fui lá, peguei
o microfone, me tremia como uma vara
verde. Um gringo da Suíça conseguiu 7 mil
dólares pra fazer esse encontro lá no Rio

AMANDA DE MELLO CALABRIA


de Janeiro. Mandaram uma passagem de
avião pra mim e essa passagem foi dividida
em duas de ônibus. Fui eu e a Diene, aqui
de Belém. Levamos uma banda de frango
assado, uma farofa... e com pouco dinheiro,
que tinha os filho pra deixar despesa, né.
Fomos pro Rio. Chegamo lá não sabia nem
como sair da rodoviária. Esse encontro “Fala
Mulher da Vida” ele foi um marco na história,
porque muitas vezes a gente nem acreditava
que era possível se organizar politicamente,
lutar por direitos e cidadania, lutar por uma
sociedade mais justa e fraterna quando a
gente precisa de viver. E falar da organização
das prostitutas, do movimento de putas, é
falar de autoestima, de valores, não negar
que existe esse movimento que nunca vai
acabar. Ser puta é quebra de estigma, é lutar
pelos direito, é cidadania. É o maior palavrão
da sociedade são meus filhos, filhos da puta.
E nós estamos junto nessa sociedade por
direito e igualdade.
Depois de 87, que teve o encontro, todo
mundo viajou e eu fiquei responsável de fazer
as formações, de chamar as companheiras
pra formar grupo no Norte e no Nordeste
do país. Eu passei três anos, de 87 até 90,
batalhando pra formar o Gempac.
Puta não queria! Jogava ovo na minha
cabeça, e eu ia atrás pra reunir. A trancos
e barrancos nós conseguimos formar
o Gempac. Mas antes a gente já tinha
ajudado a fundar uma delegacia da mulher,
70
um conselho municipal na época. E toda
essa política eu tava envolvida, sempre
representando as trabalhadoras sexuais,
mesmo sem ter o movimento.
E eu fui ver que eu precisava criar

PUTA LIVRO
uma associação aqui no Pará, porque é
muita violência. Nós fundamos o Gempac
em 90. O cartório não queria. O cartório
de ofício registrou, por muito lutar, como
Grupo de Mulheres da Área Central. Mas
eu já arrumei uma casa, um cabaré pra fazer
uma placa Grupo de Mulheres Prostitutas
da Área Central. Depois de alguns anos nós

AMANDA DE MELLO CALABRIA


estadualizamos o movimento, regionalizamos,
aí foi: Grupo de Mulheres Prostitutas do
Estado do Pará. Ali onde é o Gempac, aquela
sala que agora tá depredada, você nem
chegou a ver bem arrumadinha, tinha sofá...
Ali teve três momentos: cabaré, bar, depois
aquela boate Rola Drink. Aquele prédio
tem 100 anos. Eu morei minha vida toda ali,
dentro da zona.

Lourdes em campanha de prevenção de HIV/Aids no


antigo Gempac. Sem data. Acervo Gempac.
71
PUTA LIVRO
AMANDA DE MELLO CALABRIA
Comemoração 25 anos de Gempac (1.Mai.2015)
Fotografia extraída da página pública do Gempac
no Facebook, 2015.

E tem a história da Aids, né... As


pessoas chamavam os gays e as prostituta
na época de “grupo de risco”. Teve aquele
alarde todo e o Ministério da Saúde ficou
preocupado: “bora chamar duas prostitutas.
Chama Lourdes Barreto e Gabriela. Lourdes
vem pelo Norte do país, Nordeste, Gabriela
vem pelo Sul, Sudeste, Centro Oeste
pra dizer como é que vai fazer política
de prevenção”. Como já estávamos na
mídia, na primeira ditadura militar nós já
estávamos revolucionando, nós fomos pra
lá e até hoje somos referência na questão
da prevenção. Nós começamos primeiro do
que homossexuais. As prostituta brasileira
liderada por Gabriela Leite e Lourdes Barreto.
Somos pioneiras. Pioneiras! O departamento
de Aids sabe disso. Somos fonte de usar
preservativo, fonte de lidar com o cliente, a
forma de dizer pro cliente que é importante.
Eu sempre soube lidar com isso muito bem.
Eu sou uma mulher que diante de todos os
meus problemas, eu luto muito.
Como eu lutei pelas diretas já,
enfrentei a mão de ferro da ditadura militar,
eu também lutei por alguns direitos, pelo
sistema de saúde... E até hoje eu não tenho
nenhum plano de saúde. Meu plano de saúde

72
é o SUS. Eu sou uma das pessoas que pensei
e ajudei na elaboração do projeto do sistema
de saúde dos anos 80.
A gente vai levando a vida, levando

PUTA LIVRO
o barco, reunindo, falando. Dentro desse
contexto mais político de formação das
trabalhadoras sexuais, a gente viu a
contribuição que a gente deu, tem dado, e
ainda pode dar muita contribuição também
pra academia. A academia mesmo depois
com muitas vezes alguma diferença, com
alguns conceitos, a gente percebeu ser

AMANDA DE MELLO CALABRIA


essencial fazer essa transa: movimento social
e academia. O movimento social indo pra sala
de aula, dentro da academia, e a academia
vem pra zona com a gente. Essa coisa toda
tem contribuído muito.
Eu fui candidata à vereadora, né. Sou do
partido de esquerda, filiada hoje ao Psol. Eu
tinha uma jóia, eu perdi na caixa econômica
porque eu empenhei. Não tinha estrutura
para gastar na campanha. “Vote na mãe que
nos filhos não deu certo”. “Difícil é aquilo
que não se tentou, velho são os jovens sem
ideias” Depois eu vi que os partidos políticos
não têm respeito pela mulher. Tô muito a
fim de criar um partido de puta. Ajudei a
criar o movimento da Pastoral da Mulher
aqui no Pará, a Rede Brasileira, o Gempac,
outras associações no Brasil, participei do
movimento LGBT, movimentos de mulheres
também. Agora é criar o partido das putas. O
movimento de putas é um grande movimento
social na sua forma política, organizada,
revolucionária, que mexe com a sexualidade
humana, com essa coisa que ninguém quer
falar, que é o sexo, o prazer, é a troca por
dinheiro... Eu não sei por que tanta coisa
contra nós, né? Nós lidamos com os dois
lados da moeda. Nós lidamos com a questão
dos homens, muitos homens doentes. É na
cama que tu consegue perceber a fragilidade
humana, masculina... Eles muitas vezes
incapazes de calçar seus próprios chinelos,
né. Por outro lado, também têm seus valores,
73
sua importância na sociedade.
Porque eu senti, assim, que a sociedade
tinha uma limitação, uma dificuldade muito
grande, dentro de um contexto social e
político, dentro de uma concepção de valores
muito grande, de lidar com a sexualidade.

PUTA LIVRO
Num momento eu dizia assim “meu deus,
porque eu tô aqui? Porque que os clientes
vêm aqui?” Havia uma necessidade. Porque
esse homem nunca vai falar das suas fantasias
sexuais com a mulher que está dentro de
casa. Ele vai falar com uma mulher que ele
não conhece, mesmo se conheça ela tá ali

AMANDA DE MELLO CALABRIA


por causa do dinheiro, não vai comentar com
ninguém. Ele não vai falar isso pra mulher
que todo dia levanta, vive a rotina da vida.
É por isso que eu faço uma análise política
de conjuntura, se caso nós parássemos com
o trabalho sexual seria uma violência muito
grande para a sociedade. A sociedade precisa
do nosso trabalho sexual. Muitas vezes nós
somos analistas, psicólogas, assistentes
sociais, pedagogas. Nós somos conselheiras.
Eles deitam muito no ombro pra soluçar,
pra chorar... porque a sexualidade humana,
principalmente para o homem, quando não é
muito bem resolvida, ela causa muitos danos,
entendeu? E a prostituta tem essa habilidade
de lidar com a sexualidade de uma forma
muito prática. Impressionante.
E eu me sinto realizada, porque com
todas limitações e dificuldades eu aprendi
a lidar com a sociedade de forma muito
prática. É desse jeito? Aprendi a lidar. Tem
dificuldade? Tem, mas dá pra lidar. Eu sou
puta. Exerço meu trabalho sexual. Trabalho
com o prazer, com a delícia do gozo. Trabalho
com tudo isso, por que eu não posso fazer
disso uma coisa boa na minha vida? Eu sou
muito apaixonada pelo que eu faço. Eu
tenho muito carinho por isso, porque eu digo
assim: “meu Deus, eu sou puta!” Puta por
convicção, puta porque eu quero, porque
eu poderia ter feito tanta coisa! Nasci numa
família que não tava morrendo de fome,
se eu não quisesse ir pra zona, daria outro
74
jeito, iria trabalhar em alguma coisa. Eu fui
pra zona, porque eu morei numa cidade lá
na Paraíba chamada Patos Espinhara e tinha
um cabaré de um homem chamado Epídio,
que era só de prostituta de raiz. Puta mesmo,

PUTA LIVRO
puta até que tinha identidade já. Então eu via
elas passar puxando aquelas malas imensa,
porque ninguém queria puxar a mala delas.
Elas com aquele vestido brilhoso, batom bem
vermelho, toda muito bem maquiada. Égua,
andando num sol carregando uma tremenda
mala. Passavam bem na porta da casa onde
eu morava. Eu dizia: “mas por que ninguém

AMANDA DE MELLO CALABRIA


carregava a mala daquela mulher tão
bonita?” Depois alguém da família falou que
elas são mulheres da vida, são meretrizes,
então ninguém encosta nela. “Como é que
elas vivem?”, eu perguntava. O pessoal que
ia lá eram os homens, mas ninguém carregava
a mala delas. Se um homem daqueles fosse
carregar a mala delas ia sofrer preconceito da
família. Aí eu digo: “ah, Meu Deus, eu tenho
que enfrentar isso de uma forma bem bacana
mesmo. Bem beleza mesmo. Sem frescura.”
A minha vontade às vezes é de estar
num parlamento pra fazer a diferença. É
pra ter alguém que bata de frente com
a questão da igualdade de gênero. Nós
temos poucas pessoas pra discutir isso.
Ninguém quer discutir isso. Nas Câmaras
de Vereadores, na Assembleia Legislativa,
no Senado, no Congresso você tem mais
homens pensando diferente. Tem algumas
mulheres parlamentar aguerridas, corajosas,
podia até citar nome aqui, né. Mas tem
outras pessoas mulheres também. Eu acho
que pra mulher é um espaço que ela pode
ocupar. O projeto político vai ser com a
discussão dos sentido da mulher. Há uma
diferença de.... como que chama? Pelo fato
da questão da relação de gênero, a violência
contra a mulher. Feminicídio! O feminicídio é
uma violência velada no cotidiano da mulher.
Não é violência doméstica, é violência de
gênero, pelo fato dela ser mulher. Isso é uma
coisa que tá claro pra mim, pra todo mundo
75
na sociedade. Como boa parte da sociedade,
a violência de gênero tem que ser debatida
mais dentro da prostituição também, porque
é uma violência muito grande contra as
trabalhadoras sexuais. Mas independente da
profissão. Quero defender o trabalho sexual,

PUTA LIVRO
mas também quero defender qualquer
mulher. Porque independendo da nossa
profissão, nós somos mulher. Eu não posso
só lutar, se eu chegar num espaço e defender
só a prostituta, eu tenho que defender a
mulher na questão da relação de gênero, da
violência, da questão cultural, patriarcal, nós

AMANDA DE MELLO CALABRIA


precisamos discutir a questão da mulher. Eu
tenho um sonho, né. Quem sabe...

Fazendo política de puta. Fotos de cima para baixo:


Manifestação em Amsterdã (2018). Lourdes e Marinor Brito,
Mandato Cabano, Belém, 2020. Corrida da Calcinha no
Gempac (2017), Todas as fotografias foram extraídas da
página pessoal de Lourdes Barreto no Facebook.
76
VÂNIA REZENDE

PUTA LIVRO
Sou negra sim senhor
Não me venha com seu racismo
Sou negra com muito orgulho
Carrego nas costas as marcas
Das chicotadas do seu preconceito.

Tenho nas veias o sangue


negro de Zumbi
Sou filha da senzala sou negra forte,
corajosa, bonita e gostosa
Você não baixa minha auto estima
Aprendi a lutar desde menina.

Sou negra tenho a força da beleza


Mulher negra é poder e a força
do querer
Não é flor que se cheire
É flor que se cuide, que se
ame e que se respeite.

É luta persistência paciência


generosidade sabedoria
É pura alegria filha da natureza
rainha da beleza.
77
SARA MARINHO

PUTA LIVRO
Eu sei que você gosta
do meu cabelo assim
despenteado, emaranhado,
bagunçado
Te lembra nossas vidas
Te traz um certo conforto,
Uma certa sensação de paz
Em meio ao caos.
Já eu,
não gosto dos nós do meu cabelo
Eles também me lembram
nossas vidas
Aquele incansável
Estica, puxa, amolece, machuca.
Quando eu era pequena
queria ter meu cabelo liso
Sem curvas,
onde eu não pudesse me enrolar
onde suas mãos não pudessem
me prender
Hoje,
adulta
Eu só queria que nossas
vidas fossem assim também.
78
FLAVIO LENZ

LUGARES EM

PUTA LIVRO
MOVIMENTO:
putas protagonistas
e aliades no jornal
Beijo da rua. E um
pouco mais
Numa sala de aula da Universidade
Federal de Goiás, durante o I Encontro de
Comunicação e Movimento Popular, em 1989,
uma aluna questiona o palestrante convidado
sobre a sua posição como editor de uma
publicação de movimento social. Jornalista,
mas não protagonista daquele segmento
social, o relato do convidado não satisfaz a
estudante, que insiste; deveria ser o lugar
de editor ocupado pelas protagonistas, que
deveriam também ser as principais autoras na
publicação.
Flashback. Dezembro de 1988. Diante
da sede e gráfica da Tribuna da Imprensa no
Centro Histórico do Rio, madrugada, dois
humanos meio bêbados choram abraçados de
emoção enquanto tateiam a morna aspereza
da edição número zero de um jornal tabloide
(ver capa).
79
PUTA LIVRO
FLAVIO LENZ
Um desses humanos é a guerreira
revolucionária, a puta inteira, grandiosa e
fundamental que estimulou e levou à frente
o desejo de comunicação dela mesma e das
outras mulheres reunidas um ano antes no
I Encontro Nacional de Prostitutas (foto),
também no Rio: Gabriela Leite1, evidente. O
outro humano é o jornalista por ela convidado
a editar o jornal Beijo da rua, este que vos
escreve.2

1
Na coluna que escreveu embalada pelo “êxtase” do
primeiro desfile Daspu, Gabriela Leite acabou projetando
para si própria, mesmo afirmando ser utopia, a melhor
definição que qualquer pessoa poderá ou deveria dar
para ela. Escreveu: “Sonho com a puta inteira, grandiosa e
fundamental”. No corpo do texto, preferi evitar as aspas
para não atrapalhar a riqueza adjetiva desse sonho realizado
(LEITE, 2005, p.16).
2
Além das minhas nítidas lembranças, graciosamente
embaladas pelas antárcticas, Gabriela se refere a este
episódio: “Eram duas horas da manhã quando, junto com
o editor do jornal, Flavio Lenz, cheguei à gráfica da Tribuna
da Imprensa. Chorei como uma mãe que acaba de parir seu
primeiro filho. E comemorei esse privilégio num botequim
da Lapa, bebendo todas as cervejas do mundo naquela
noite” (Idem, 1992, p.97). Comigo.
O contexto em que se deu e

80
desenvolveu esse enlace humano-profissional,
e outros, todos contribuindo para a
publicação deste Beijo, jornal alternativo
com mais de 30 anos de pista, têm a ver

PUTA LIVRO
com a questão da estudante goiana, mais de
três décadas atrás. E é caldo para debater
aspectos dos conjuntos comunicação-
movimento social, prostituição-estigma,
protagonistas-aliades.3

No botequim

FLAVIO LENZ
Depois de cursar a faculdade de
Comunicação Social, com especialidade em
jornalismo, de estágios em revista de grande
circulação e na principal rede de TV, de frilas
de texto e fotografia, desembarquei em
1984 numa organização da sociedade civil
de “promoção de estudos, conferências,
seminários, publicações e assessoria no
campo da cultura, especialmente em seus
aspectos religiosos” – o Iser, Instituto de
Estudos da Religião.4
A vaga de secretário de Redação incluía
apoiar editores e conselhos editoriais de
uma revista científica (Religião & Sociedade),
de coleção de livros a publicar pesquisas e
teses (Cadernos do Iser) e de uma revista
de temas mais contemporâneos e pesquisas
em andamento (Comunicações do Iser). Em
resumo, tratar da produção das publicações,
do recebimento e distribuição de artigos
a avaliadores, da revisão de textos à
interlocução com editoras e designers, e
inúmeras outras atividades. E assim fiz, fui
fazendo.

3
Agradeço imensamente a leitura e contribuições a este
texto de Friederike Strack. Como seu nome, terminado
em “e”, uso diversas vezes o sufixo “e” e até “ae”, num
caso muito especial, ao invés dos marcadores de gênero
“a” e “o”. Não sempre, já que algumas palavras têm forte
referência e importância no período de que trato, a principal
delas, Puta.
4
LINHA DO TEMPO: Iser.
81
No ano seguinte, 1985, essa
organização viveu uma “grande expansão
de suas atividades com uma nova geração
de ativistas e pesquisadores de diferentes
áreas, especialmente ligadas ao trabalho

PUTA LIVRO
contra a discriminação, o preconceito e a
desigualdade econômica e social”.5
Foi nesse período que, na acolhedora
casa carioca das Laranjeiras, a primeira de
uma vila, encontrei uma mulher a datilografar
(o tempo é este, lembre-se) com espantosa
velocidade na garagem adaptada para
escritório.6

FLAVIO LENZ
Sua outra principal atividade era fumar,
o que então se fazia em qualquer lugar,
enfumaçando a garagem ou a cozinha, ou
dissipando o fumo no estreito quintal – eu
também praticava e assim nos encontramos
algumas vezes a pitar. Depois do serviço, ela
ou ia pra zona – a Vila Mimosa onde viveu
sua vida de puta no Rio – ou seguia direto
para um botequim próximo, onde quedava
muitas vezes só, bebendo, fumando e
pensando, outras vezes lendo. Sozinha em
termos, porque tinha a habilidade de ganhar
a simpatia dos garçons, talvez por ser das
poucas mulheres a frequentar à vontade um
espaço sobretudo masculino, além de ótima
freguesa.
Depois de alguns meses, num fim de
tarde sentei com ela no botequim. Já sabia
então que também batalhava.
Papo vai papo vem, chegamos à prostituição,
por óbvio. De repente, numa escalada,
de conteúdo e álcool, as vozes subiram
e subiram e subiram e houve uma forte

5
Ibidem.
6
Esta lembrança é distinta do relato da própria personagem,
de ter sido encarregada “da atualização das fichas,
com nome, endereço e telefone, para o fichário da
recepcionista”, já que no Iser “sabiam que eu tinha sido
secretária, antes de ser prostituta” (LEITE, op. cit., p.105).
Insisto nessa memória, porém (quem sabe datilografava as
fichas?), porque a experiência como secretária e datilógrafa
em São Paulo era vez por outra lembrada por ela. E a
imagem é muito viva.
discussão. Saí de lá pensando “que mulher

82
doida, vê preconceito em toda a parte”.
Eu ainda não sabia, mas tinha começado
a minha desconstrução.

Na cabeça

PUTA LIVRO
Na mesma noite e nos dias seguintes,
tudo o que Gabriela tinha me dito começou
a cair na cabeça. Menos ou mais lentamente,
ora penetrando profundamente, num
download que se tornaria upload – quiçá
upgrade. Certamente assim foi porque

FLAVIO LENZ
também assim fui, a tentar dar sentido. Podia
ter tudo sempre negado e me afastado
daquela “doida”. Mas outros botequins
vieram, muitos outros.
De atualizadora de fichas e datilógrafa,
em pouco tempo Gabriela passou a organizar
o projeto que almejava, ao qual se chamou
Prostituição e Direitos Civis. E com ele subiu
para uma sala ampla no segundo andar
da casa, pertinho da minha. Lá conseguiu
incorporar gente ao projeto, sobretudo
petistas da militância católica, ligados à
teologia da libertação.
Ali correu muita água, até mesmo a
tentativa de enquadramento do nascente
movimento de prostitutas numa doutrina
político-partidária, em que “não há
espaço para novas experiências, nem para
contradições e urgências imediatas que
se manifestam a todo momento” (LEITE,
1992, p.142); ou por meio da qual se nega
espaço para a “puta cidadã”, não aquela que
escuta as “convincentes palestras de líderes
especialistas”, mas aquelas “que alcancem,
ou pelo menos se esforcem por alcançar, o
lugar da participação política” (Idem, 2005,
p.16); ou para o “puta politics”, em que
se distingue a “importância de estruturas
institucionais se adaptarem às culturas
dos distritos de luz vermelha, ao invés do
contrário” (MURRAY, 2015, p. 20).
Tempos depois, os doutrinadores foram
afastados por Gabriela, que se empoderava
83
e fortalecia seu espaço na instituição,
culminando em 1987 com a realização
daquele I Encontro Nacional de Prostitutas. E
com novas alianças.
E aqui voltamos ao futuro Beijo.

PUTA LIVRO
Concebido como vimos nesse encontro,
no qual atuei como assessor de imprensa,
a criação do jornal tornou-se de fato um
compromisso para Gabriela, que em algum
momento de 1988 me convidou para ser o
editor. Vibrei! “Que puta desafio!”
O que ela considerava essencial para
o jornal, a partir dos debates ocorridos no I
Encontro e das suas próprias experiências,

FLAVIO LENZ
conhecimentos e reflexões, e o que juntos
elaboramos e produzimos nos meses
anteriores ao lançamento e ao longo dos anos
com muitos outros atores e atrizes, tantas
vezes nos botequins, incluiu concepções
sobre prostituição e estigma, comunicação
e movimento social, protagonistas e aliades,
como já referido. “O Flavio era o editor
e nossas conversas no botequim varavam
madrugadas. Discutíamos temas, tínhamos
ideias, trazíamos convidados (...) O Beijo era
um pequeno sucesso editorial” (LEITE, 2009,
p.161).

O babado do estigma

Pra começar do começo, a prostituição


e o estigma, Gabriela tinha e desenvolveu
cada vez mais na vida uma enorme argúcia,
perspicácia, percepção do estigma e das
suas armadilhas, e de como enfrentá-las e
superá-las em si e provocar em outres essa
percepção e a tentativa de superação. Não
à toa relatei aqui o meu primeiro choque

84
cultural, pessoal, social e a posterior e
continuada desconstrução profissional, diante
do confronto inaugural com ela em seu
rascante estilo.7

PUTA LIVRO
Assim como frequentemente relatam
tantos dos aliados que criou, muitos tornados
amigos, também meus. São, ou somos os
“aliados afetivos”, como denominei em
outro lugar, a partir de reflexões com a
pesquisadora e ativista Friederike Strack
(LENZ, 2016, p.104-106). Hoje nós dois e
toda a tchurma dizemos “aliades afetives”,

FLAVIO LENZ
com a essencial contribuição da pute ativiste
transvestigênere Indianarae Siqueira, outre
demolidorae.8
Pois a desconstrução em diversas
esferas que Gabriela ofereceu a nós futuros
aliades – como depois outras putas explosivas
– é de um valor inestimável. A nós cabia ter
a coragem e a humildade de aproveitar essa
oferta, ou não, e pra mim foi impossível não

7
Escrito por Amarna Miller (2020), ex-atriz pornô, o Guia
ético para falar sobre trabalho sexual nos media se propõe
analisar “os cinco preconceitos mais comuns com que as
pessoas que fazem trabalho sexual têm de lidar” e inclui o
item “Desconstrução pessoal do jornalista”. Nele, a ativista
e feminista crava que “é da responsabilidade do jornalista
estar num processo constante de desconstrução”, e que
“seria interessante convidar o jornalista a questionar se o
trabalho que está a fazer está enviesado pelos seus ideais
e crenças enquanto indivíduo, ou se é uma representação
confiável da realidade” (p.20). Essa responsabilidade do
jornalista de desconstruir-se, com a qual concordo, pode ser
acionada pelo convite referido, feito com maior ou menor
gentileza, como o que recebi desde sempre de Gabriela.
Também presenciei semelhante ato dela diante de outros
jornalistas e, de modo mais contundente, de pesquisadores.
Vale conferir também entrevista de Amarna disponível em:
https://fundaciongabo.org/es/etica-periodistica/entrevistas/
exactriz-porno-publica-guia-responsable-para-hablar-del-
trabajo. Acesso em 2/9/2021.
8
Um dos que me dou a liberdade de chamar aliado afetivo,
ou aliade afetive, também se declarou capturado, ou
mais. “... na hora em que me dispus ao mergulho afetivo
e etnográfico, o caminho tinha sido traçado: dificilmente
haveria volta. (...) Fui predado pelas prostitutas e pela
prostituição, apropriado, sempre com a esperança de ser
um parente incômodo” (OLIVAR, 2013, p.32-33).
85
ser envolvido e atraído por elas, oferta e
ofertante.
E ponto. Encerro aqui esses dois
emocionados parágrafos para tratar de uma
coisa banal: pote de maionese.
O quê??!! Pote de maionese?

PUTA LIVRO
Pois sim!
E o que isso tem a ver com o jornal?
Já verás!
No primeiro livro que publicou, em
1992, e também no segundo, de 2009,
Gabriela Leite descreveu a breve convivência
que teve com “as mulheres católicas” do
Banco da Providência, localizado próximo da

FLAVIO LENZ
Vila Mimosa. Como se sabe, o objetivo da
principal organização voltada à prostituição
da igreja católica, a Pastoral da Mulher
Marginalizada, é o “resgate” das prostitutas,
a partir de sua (Pastoral) imaginação como
“sujeito benevolente” diante de “vítimas”, e
recorrendo a “práticas quase artesanais de
assistência” (SKACKAUSKAS, 2017, p.74,71).
Entre estas, escreveu Gabriela, irônica
e demolidora: “… pintar florzinha em pote
de maionese Hellmann’s e colocar babado
naquela tampa laranja” (LEITE, 2009, p.139).
Destaco essa denúncia por mostrar
que desde muito cedo a fundadora do
movimento de putas – que não estava e
nunca esteve “de bobeira na vida”, como
gostava dizer – recusava práticas que indicam
no mínimo subestimação e subalternização,
e tinha concepções bem diferentes sobre as
capacidades e possibilidades de expressão
artística, cultural, política e social de suas
colegas. A autoestima está aqui também em
causa.
Como criar um movimento social,
afirmar-se sujeita de direitos, sujeitas
políticas, estimular suas colegas a
ressignificarem sua identidade, tratar de
direitos sexuais, dialogar com o restante
da sociedade, negociar políticas públicas…
pintando florzinha em pote de maionese e
colocando babado na tampa laranja?
86
PUTA LIVRO
FLAVIO LENZ
Fonte: reprodução da internet

Sacam?
O que viria mais tarde a ser o Beijo da
rua já tinha assim bons antecedentes, na
cabeça de Gabriela, em matéria de produto.
Fazer bem feito já era do jogo. E ao
surgir o desejo e ao se criar a oportunidade
de fazer essa mídia de puta, não haveria de
ser qualquer coisa. E sim uma joia! Preciosa.
Como o movimento.

Disputa midiática, comunicação e


movimento social

O contexto da segunda metade da


década de 1980, da redemocratização,
da reconquista de direitos e cidadania,
do aprofundamento da organização da
sociedade civil e do processo da Reforma
Sanitária, fertilizou a liberdade de expressão
e de reunião e, com elas, iniciativas
de comunicação. Ativistas da Reforma
Sanitária, em especial, construíram discursos
“sobre direito à informação, educação e
comunicação como inerentes ao direito à
saúde” (ARAÚJO; CARDOSO, 2007, p.26) e
a respeito do controle social do Estado pela
população organizada.
Numa esfera ainda mais ampla do
que o já abrangente campo da saúde, a
87
Constituição cidadã de 1988 garantiu, após
períodos de intensa censura à imprensa
durante a ditadura de 1964-1985, a livre
manifestação do pensamento, da criação, da
expressão e da informação, a plena liberdade

PUTA LIVRO
de informação jornalística, a proibição de
censura de natureza política, ideológica e
artística (BRASIL, 1988).
Os ares eram outros. E a comunicação
se revelava central nesse período. “De
um lado, criar estratégias para disputar
a arena midiática, principal campo de
produção e circulação de sentidos sociais;

FLAVIO LENZ
de outro, adotar ou criar novas práticas de
comunicação, incluindo a gestão de veículos
próprios, como foi o caso do Beijo da rua”.
(LENZ et al., abr. 2015).
Perspectivas que, associadas à gestão
de uma mídia própria, compõem aquele
aspecto da mídia cidadã que “atua como
instância educativa e formativa, através de
estratégias criativas e plurais, contribuindo
para o estabelecimento de relações sociais
e culturais mais igualitárias, com vistas ao
aprofundamento da democratização da
sociedade” (COGO, 2010, p.821, apud
Ibidem).
O movimento de prostitutas,
considerando a vasta discussão acadêmica
sobre o conceito e a categoria analítica de
movimentos sociais, incluindo noções de
atores sociais, ação coletiva e outras, poderia
ser reconhecido como de cunho identitário,
aquele que luta “pelo reconhecimento
de suas particularidades e diferenças [e
pode acabar] tocando em temáticas muito
importantes que afetam a estrutura social e
a própria constituição da sociedade”. Entre
esses estão o movimento feminista com
a hierarquia de gênero e a politização do
espaço doméstico; o negro, com a denúncia
do racismo e a política de cotas (GOSS, K. P.;
PRUDENCIO, K., 2004, p.81).
“As prostitutas, por seu lado,
levantavam questões ligadas à violência
institucional, à legislação penal e trabalhista,
à sexualidade, ao feminismo, à vitimização

88
versus autonomia e autodeterminação, entre
outras” (LENZ, 2016, p.19).
Outro fator que impulsionava a criação
da mídia cidadã, em geral, e de um jornal

PUTA LIVRO
das putas, em particular, era a multiplicação
de publicações ligadas a movimentos
sociais, inclusive tratando de gênero e
sexualidade. O exemplo mais emblemático é
o Lampião da Esquina (1978-1981), um “jornal
homossexual” (LAMPIÃO DA ESQUINA,
1978, p.2), que é mesmo citado na primeira
coluna da fundadora do Beijo: “Desde os

FLAVIO LENZ
áureos tempos em que surgiu nas bancas
de jornal O Lampião que eu imaginava o
movimento de prostitutas tendo um jornal,
onde se pudessem discutir todas as questões
que dizem respeito a nossa amada-maldita
marginália” (LEITE, 1988, p.2).
Se na década de 1970 diversas dessas
publicações eram fruto da “articulação entre
jornalistas, ativistas e intelectuais, apesar
de serem engajamentos prioritariamente
jornalísticos” (BRASIL DE MATTOS, 2020,
p.36), e muitas delas “tinham em destaque
a figura de um líder, ‘jornalista-alma do
projeto’, sem a qual seria difícil imaginar
sua existência” (KUCINSKY, 2001, p.7, apud
Ibidem, p.36), na década de 1980 os novos
jornais surgiam de entidades da sociedade
civil.
Não mais iniciativas partidas de jornalistas com
articulações políticas, mas sim jornalismo feito
através de terceiras instituições – muitas vezes,
partidos, sindicatos, movimentos populares
e contando com o apoio material da Igreja
Católica e outras entidades da sociedade civil
como veículo de defesa de seus interesses.
(KUCINSKY, 2001, p.14, apud Ibidem, p.37)

É ainda a partir do final da década de


1980 que surge uma segunda geração de
periódicos feministas, focando-se em “temas
específicos ‘da mulher’ e reivindicações
no sentido da igualdade entre homens e
mulheres”, e tendo também como âncora
organizações da sociedade civil (CARDOSO,
89
2004a, 2004b, apud BRASIL DE MATTOS,
2020, p.37).
O Beijo da rua associa de certa forma
esses dois contextos. O dos anos de 1970
pelo encontro e articulação de ativistas,

PUTA LIVRO
jornalistas e acadêmicos, no âmbito do
Iser, que por seu lado se torna uma dessas
“terceiras instituições” dos 1980 em
condições de materializar a publicação,
por contar com recursos sobretudo da
cooperação internacional.
O que não havia era um jornalista-
alma (por certo um entusiasta dedicado ao

FLAVIO LENZ
desafio), mas uma ativista-alma!
Esta que vinha de uma trajetória de
se ressignificar e renomear (LEITE, 1992,
p.7-13), produzindo novos sentidos para a
sua própria vida; que da classe média da
Vila Mariana e dos cursos de Filosofia e
Sociologia na Universidade de São Paulo
(USP) havia construído ponte para a Boca
do Lixo paulistana e o samba da terra da
garoa, a Zona Boêmia de Belo Horizonte
e a Vila Mimosa do Rio, conhecendo a
malandragem carioca; que era e foi por toda
a vida adita de literatura e ciências humanas;
que passara pela Pastoral da Mulher
Marginalizada e recusara a vitimização e
práticas silenciadoras de “resgate”; que
chegara a uma organização da sociedade
civil e nela abrira espaço para gestar um
movimento social, enfrentando o poderoso
estigma da prostituição a ponto de ativar
sua potência cidadã para gritar “Fala,
mulher da vida”, brado que atraiu colegas
de todo o país para um encontro de putas;
esta que convivia na entidade onde atuava
com diversos outros profissionais, incluindo
jornalistas e designers; enfim: por que esta
mulher, de trânsito intenso na vida e entre
gente de tantas qualificações, iria desprezar
essa trajetória, experiência e conhecimentos,
no momento de expor a face pública do
movimento em mídia própria?
90
Gêneros e formatos

Vamos tocar agora nos lábios do Beijo.


Na sua excitação editorial, nas preliminares
das primeiras edições. Estamos novamente

PUTA LIVRO
em 1988 e nos anos seguintes.
A proposta editorial acompanhava e
refletia elementos fundantes do movimento
de prostitutas, destacados na já citada
Coluna da Gabi. Outros trechos: “trabalhar as
questões relativas à prostituição”; “priorizar
a organização das prostitutas em um
movimento e (...) enfatizar que a prostituição
não é um fenômeno à parte da sociedade”;

FLAVIO LENZ
“ver outras e muitas outras prostitutas
mostrarem também o seu [rosto]”; “mostrar
(...) com suas matérias, artigos e entrevistas
(...) o que somos e para que viemos”; explicar
em “poesia (...) a linha do nosso Programa”
(LEITE, 1988, p.2).
Desde o I Encontro, e até dos “áureos
tempos em que surgiu nas bancas de jornal
O Lampião” (LEITE, op.cit.), estava indicado
que o movimento se comunicaria por meio
de jornal – por princípio periódico, mesmo
que a fundadora escrevesse “não temos
periodicidade” naquela mesma coluna,
embora mais tarde reclamasse da falta dela:
“Não há inspiração que resista a um atraso de
dois meses e meio entre o Beijo n.º 6 e o que
finalmente está saindo com essa coluna, ou
seja o 7” (LEITE, 1991, p.2).
Assim, o movimento faria jornalismo
periodístico, por meio de um jornal, e
com pretensões de comunicação massiva
(MARQUES DE MELO et al., 2016), já que
ambicionava comunicar-se não só entre
putas e o “povo da rua”, mas com o público
mais amplo possível: o “gueto falando e
mostrando para a sociedade, que insiste
em guetificar o diferente, que prostituta,
mendigo, homossexual, michê, louco também
é gente e cidadão...” (LEITE, op. cit.).
E não se tratava de “um periódico do
tipo ‘prostituta unida jamais será vencida’”,
na paródia de Gabriela Leite (idem) à tão
91
famosa quanto repetida palavra de ordem
“o povo unido jamais será vencido”, ela
que nunca se encantou pelo “politicamente
correto”, por “palavras de ordem”,
pelas “frases prontas” que constatou
com “pontinha de tristeza” habitarem o

PUTA LIVRO
movimento, dois dias antes de um encontro
nacional: “Nos tornamos politicamente
corretas (…) Existe um modelo concebido de
como deve ser e agir o movimento popular:
sério, racional, com discursos prontos e
decisões de lideranças. Não há lugar para a
poesia, o romântico, o contraditório” (LEITE,

FLAVIO LENZ
1994, p.2).
Se classificarmos o Beijo por gêneros
jornalísticos, suas funções e formatos,
identificaremos todos os relacionados por
Marques de Melo et al. (2016, p.49-51). O
Informativo, com a função de “vigilância
social”; o Interpretativo, com papel
“educativo, esclarecedor”; o Opinativo,
como “fórum de ideias”; o Utilitário,
de “auxílio nas tomadas de decisões
cotidianas”; e o Diversional, para “distração,
lazer”, todos foram constituindo o jornal,
em diferentes edições e períodos ou numa
mesma edição, mesmo que não tivessem
havido conversações tão estritas então.
A discussão inicial se deu diretamente
em torno dos formatos jornalísticos que
compõem cada gênero, com destaque para
os mais comuns nos jornais comerciais,
aqueles do gênero Informativo: nota
(seções Rapidinhas, Na Zona ou No Ponto,
conforme o período), notícia, reportagem,
entrevista. Vale sublinhar que, além de
notícias do Brasil, prioridade do jornal,
conforme o movimento passou a ter ligações
e a participar de eventos com ativistas da
América Hispânica, da Europa e da América
do Norte, bem como da África e da Ásia,
criou-se uma seção Internacional. Teve
contribuições do jornalista Jayme Brener e
vem tendo da socióloga e ativista Friederike
Strack, assinando agora a coluna Gira
Internacional.
92
Do gênero Opinativo, já começamos
a empreitada com os formatos editorial e
comentário (um e outro se alternando na
Coluna da Gabi), sendo coluna também
um formato opinativo, e artigo, do qual

PUTA LIVRO
trataremos adiante. Ao longo do tempo,
incorporamos crônicas, como “Papo Davida”
(de 1997 a 2014), “Histórias da Lucineide”
e “e outras histórias” (2002 e 2003),
quase sempre escritas por prostitutas, e
até resenha (LENZ, 1992, p.6-7). Diversas
edições tiveram também seção de cartas,
na qual buscávamos escutar a percepção do

FLAVIO LENZ
jornal e da prostituição.
Os formatos do gênero Interpretativo
utilizados foram análise, perfil, enquete
(sobre o nome preferido para a “sua
atividade”, na edição de março 2002 e
seguintes), assim como cronologia, entre
outros, no jornal sobre os 30 anos do
movimento de prostitutas.9
Publicamos ainda matérias de serviço,
do gênero Utilitário, sobre prevenção
de DST/Aids, em diversas edições, a
exemplo de “Com a boca” (2002, p.2), e
também sobre uso de óculos (CHERIGATTI,
2002. p.16-17) e cuidados com os dentes
(Idem, 2003, p.9), ou ainda a respeito de
maquiagem (ABUD, 2002, p.2, e CAVOUR,
2002, p.2).
Como distração e lazer, as funções
do gênero Diversional (que alguns autores
consideram também literário), publicamos
um formato que pode “entreter”, mesmo
que no Beijo tivesse um forte componente
político. Trata-se da seção de Poesia, que
desde o princípio foi editada pela fundadora
do jornal, uma amante de literatura e
poesia, que poderiam, para ela, até mesmo
substituir o discurso político-militante:
“Amo as letras, amo a prosa e a poesia,
e por isso acho que nesse momento uma
poesia explica muito melhor a linha do nosso

9
Cf. Lenz, 2002, p.11, e Beijo da rua, dez. 2017, p.18-21.
Programa do que eu ficar escrevendo e

93
escrevendo sobre tal” (LEITE, 1988, p.2).
E atacou logo de Manuel Bandeira, seu
“poeta preferido”, com versos que valorizam
os corpos diante das almas, “Porque os
corpos se entendem, mas/as almas não”

PUTA LIVRO
(idem).
Ainda nesse gênero, publicamos o
que Hidalgo (2001, p.97, apud ASSIS, 2008,
p.8) chama de “história de vida”, definida
por Vilas Boas (2003, p.16-17, apud Ibidem)
como “modalidade [que] dá atenção total
ou parcial às narrativas sobre as vidas de

FLAVIO LENZ
indivíduos ou de grupos sociais, visando
humanizar um tema, um fato ou uma situação
contemporânea”. Há muitas.
A ideia básica era, ao fazer jornalismo,
aproveitar a familiaridade do público geral
com a estrutura dos jornais comerciais
correntes, demonstrando capacidade
de produção jornalística profissional, em
oposição a um produto de aparência
improvisada. Acreditávamos ainda que
agregaríamos, assim, credibilidade ao veículo.
Alguns desses formatos foram
privilegiados porque se adaptavam melhor às
protagonistas, como é o caso de entrevistas,
publicadas já desde o número 1 (mais abaixo).
Elas constituíam um recurso importante de
expressão e manifestação das prostitutas
porque a grande maioria das ativistas
daqueles primeiros anos do movimento havia
tido pouco acesso à educação formal e tinha
pouca prática de escrita – houve diversas
tentativas frustradas de obter textos de
muitas delas.10
A “adaptação” ia além disso, já
que pretendíamos também “retratar o

10
Estudo com 2.712 prostitutas de três regiões do país, com
trabalho de campo de outubro de 2000 a março de 2001,
apontou que o percentual dessas mulheres com o segundo
grau completo era de 5,8% no Nordeste, de 7,7% no
Sudesrte e de 11,4% no Sul (BRASIL, 2003, p.21; p.29-30).
Edição de abril de 2002 do Beijo publicou resultados desse
estudo.
94
cotidiano, os momentos simples, o não-
dito, o individual” da prostituta e de outros
“marginais” (LEITE, 1991, p.2), estratégia
bem exemplificada no nosso Perfil do
Consumidor, que parodiava os perfis de

PUTA LIVRO
consumidores de jornais comerciais, com
perguntas relacionadas à prostituição,
como: “Pagamento – Adiantado. Chato –
Homem que quer fazer a gente gozar. Dia
fraco – Quando tem jogo do Flamengo ou
chove” (LENZ CESAR, 1989, p.9). Assim, o
elemento jocoso e irônico estava também
presente. Como ainda nesta titulação

FLAVIO LENZ
da matéria sobre eleições do número 0:
“Prostitutas não vão em massa à zona
eleitoral – Cantadas mal dadas só elegem
candidato que nega tudo” (BEIJO DA RUA,
dez. 1988, p.3). Ou na manchete de capa
da edição que cobriu evento no exterior:
“Prostitutas agitam o Peru” (BEIJO DA
RUA, out. 2004).
Como nas entrevistas, citação direta
ou reprodução de falas das prostitutas é
frequentemente usada, até para manter
fidelidade aos discursos e palavras.
Há mesmo um compromisso editorial
na primeira cobertura de um encontro
publicada pelo jornal, sob o título “Fala
mulher da vida”, como segue: “As
falas dessas mulheres, de convidados e
organizadores estão registradas nesta
matéria, que é fiel à principal proposta
do trabalho de organização e resgate da
cidadania das prostitutas: FALA MULHER
DA VIDA” (LENZ CESAR e LEMOS, 1989,
p.5-8).
Lembrando que “Mulher: da vida, é
preciso falar” foi o slogan do I Encontro
Nacional de Prostitutas, daí em diante
ligeiramente modificado nas pontuações,
porém mantendo a essência da proposta. E
que, novamente na cobertura do encontro
nacional de 2017, o título-slogan “Fala
mulher da vida” voltou a ser impresso no
95
abre (introdução) da cobertura do evento.11
Ainda no elemento verbal, havia
uma total liberdade de criação, inclusive
pela ampla diversidade de autores e
colaboradores, de diversas profissões, como

PUTA LIVRO
veremos mais adiante. A Coluna da Gabi, em
especial, tornou-se forte referência de estilo
e conteúdo absolutamente pessoal, libertário,
revolucionário, inclusive pelo fato de a
fundadora do jornal circular por tantos meios,
teorias e práticas, artes e mídias (poesia,
literatura, música, para citar algumas), por
adotar um tom intimista e provocador, em

FLAVIO LENZ
permanente diálogo com as leitoras, irônica
e sarcástica, também consigo mesma,
como em:
Perguntarão vocês: o que temos a ver com
as questões existenciais da Gabriela [‘como
será que os jornalistas conseguem escrever e
escrever com hora marcada e todos os dias?!’],
com tantas questões sociais e econômicas a
serem resolvidas no país? Respondo: vocês
não têm nada com isso, só que gosto de
escrever sobre as minhas interioridades e, se
me acham chata, por favor virem a página, pois
encontrarão matérias sensacionais elaboradas
pelo exército de brancaleone e eu continuarei
a escrever minhas bobices; é o destino, fazer o
quê? (LEITE, out./nov.1989, p.2)

Memória e identidade

A memória ocupa um lugar especial


no jornal, e por isso me detenho um pouco
nela. Logo na terceira edição, lançamos a
seção fixa “Moral da História”, escrita pelo
historiador e jornalista Nivaldo Lemos (1989,

11
Confira também as coberturas do II Encontro de Mulheres
Prostitutas do Pará, de 1996, assim como a do mais recente
encontro nacional, 2017, apenas com variações nos formatos
“nome-reprodução da fala”, “reprodução da fala-nome”, ou
“tema-reprodução da fala sem o nome” – neste caso devido
à falta de registro, à dificuldade de identificação posterior
nas gravações ou a pedido da participante de não ser
identificada, situação menos comum. (BEIJO DA RUA maio-
junho 1996, p.1-16; BEIJO DA RUA, dezembro 2017, p.3-10).
96
p.9-10). Esta seção (de análise, educativa,
do gênero Intepretativo) pretendia, como o
movimento e sua mídia cidadã, ressignificar e
contribuir para a produção de novos sentidos
sobre a prostituição e as prostitutas, assim

PUTA LIVRO
como para a construção social de uma nova
identidade da prostituta, em oposição à
“identidade deteriorada” de Goffman (1988).
O percurso de construção de uma
nova identidade começa pelo que Castells
denomina identidade de “resistência”, aquela
“criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou
estigmatizadas pela lógica da dominação”.

FLAVIO LENZ
A próxima posição a ser alcançada é a
“identidade de projeto”, “quando os atores
sociais (...) constroem uma nova identidade
capaz de redefinir sua posição na sociedade
e, ao fazê-lo, de buscar a transformação
de toda a estrutura social”. Haveria ainda
uma terceira posição, a da “identidade
legitimadora”, que “dá origem a uma
sociedade civil” (CASTELLS, 2000, p.24).
Produzir memória, assim, é também
constituir-se como “‘lugar de memória’” e
“objeto de não esquecimento”, no qual “é
perceptível a lembrança da construção do
jornal, a rememoração e comemoração dos
eventos e encontros importantes para elas
[prostitutas], assim também como as datas
que revitalizam o desenvolvimento do jornal”,
de acordo com Souza (2019, p.89-91).
E segue o pesquisador: “A criação do
Beijo da rua teve significativo valor, dando
possibilidade às prostitutas de alcançarem,
além de um espaço para propagar sua voz,
também um objeto de não esquecimento.
(…) O jornal é não só uma afirmação, uma
forma de confronto, mas também um suporte
que se faz necessário para manter e contar a
história das prostitutas por intermédio de um
movimento de prostitutas, um vestígio dessa
trajetória” (Ibidem, p.91-92).
O próprio aniversário de 30 anos do
jornal foi comemorado em 2018 (BEIJO DA
RUA, dez. 2018).
97
Artigos

E voltamos ao que chamo de artigos,


jornalísticos e acadêmicos, assim como a

PUTA LIVRO
contribuições em geral assinadas por aliados
ou mesmo simpatizantes, porque o tema
pode contribuir para a compreensão desse
tipo de cooperação no jornal e ao próprio
movimento.
Em jornalismo, artigo é um texto
opinativo, “geralmente, elaborado por um
especialista, que julga um acontecimento

FLAVIO LENZ
passível de controvérsia a partir de seu
repertório” (MARQUES DE MELO e ASSIS,
2016, p.52). “Em jornais impressos, é normal
que os editores convidem personalidades
da sociedade (especialistas, intelectuais,
autoridades) para escrever artigos sobre
temas específicos do noticiário, sem
remuneração” (ARTIGO: Wikipédia). Além
disso, no meio acadêmico, compreende-
se artigo acadêmico ou científico como
“produções textuais que têm a finalidade de
comunicar os resultados de pesquisas, ideias
e debates de uma maneira clara, concisa e
fidedigna” (ARTIGO CIENTÍFICO: Portal de
Artigos Científicos).
A criação e multiplicação de publicações
ligadas a movimentos sociais por meio
da articulação de jornalistas, ativistas e
intelectuais (década de 1970) e no âmbito
de entidades da sociedade civil, com
expressiva presença de acadêmicos (década
de 1980), foram ambos campos férteis no
desenvolvimento inicial do Beijo, como já
argumentei. Diversos desses intelectuais
e acadêmicos estavam, por dizer assim, à
mão, tanto por já conviverem diretamente
com a pioneira Gabriela Leite quanto pela
forte repercussão do I Encontro Nacional de
Prostitutas, gerando até mesmo interesse
acadêmico por aquele fenômeno social como
objeto de investigação.
Participar dele de alguma forma seria
um plus (e um passo na direção de eventual
98
pesquisa participante?). E mais, apoio a uma
causa de defesa e promoção de direitos,
solidariedade, mesmo.
Nesse contexto, profissionais de
diversas áreas, inicialmente simpatizantes,

PUTA LIVRO
alguns depois aliados, foram convocados e
concordaram em contribuir no princípio e ao
longo do tempo ao jornal.
Tratava-se de uma aliança importante
por conta do poder desses intelectuais e
acadêmicos de influir no discurso público,
se não exatamente na produção de
sentidos, nesta caso, na circulação deles,

FLAVIO LENZ
inclusive por sua visibilidade juntos aos seus
pares, eventual multiplicadores, e por sua
capacidade de presença na mídia comercial.
Ao lado desse cenário, havia as
dificuldades na produção de textos autorais
pelas prostitutas.12
Desse modo, a se verificar estritamente
as autorias nas primeiras edições do Beijo
da rua, como pode ter feito a participante
daquele evento de Goiás, serão encontradas
menos autoras prostitutas do que autoras
de outros segmentos. Em princípio apenas
Gabriela Leite, com sua coluna. No entanto,
entrevistas com prostitutas, reprodução
literal de suas falas em eventos, reprodução
de um texto publicado por uma associação
suíça, prostituição e putas como tema em
textos e em imagens, tudo isso tem vasto
espaço naquelas primeiras edições do jornal.
Brasil de Mattos (2020, p.18-20)
chega a fazer esse tipo de levantamento.
Identifica um primeiro período (1988-1992,
no Iser) com autorias principalmente de
“profissionais das ciências humanas”; um
segundo, em Davida (1993-2011),
de “ativistas”; e um terceiro (2014-2017),
com contribuição de “pesquisadores

12
Não localizei registro, nem tenho lembrança, da data
do evento em Goiânia. As edições a que participantes
poderiam ter tido acesso são até quatro, do número 0
(dez.1988) ao número 3 (out./nov. 1989), todas do primeiro
período, no Iser.
acadêmicos”.

99
A pesquisadora também anota que
o tema “movimento social de prostitutas”
está presente em todos esses períodos,
e que, no primeiro, prostitutas “figuram

PUTA LIVRO
principalmente como entrevistadas e como
personagens de reportagens e matérias
realizadas”; que essa caractertística “se
mantém nas edições do período seguinte”,
além de que “prostitutas passam a ser
autoras regulares no jornal”; e que, no
terceiro, mesmo os autores identificados
sendo “em sua maioria pesquisadores

FLAVIO LENZ
acadêmicos de ciências humanas e sociais”,
há “relatos de prostitutas sobre batalhas e
clientes”, incluindo, em uma edição sobre as
Olimpíadas no Rio, “imagens produzidas (...)
por dezesseis pessoas (mulheres, travestis
e pessoas trans) que atuam na prostituição”
(Ibidem, 18-20; p.41).
A última edição a que a pesquisadora
teve acesso foi a de dezembro de 2017,
comemorativa dos 30 anos do movimento
de prostitutas, na qual “as prostitutas são
as únicas protagonistas das narrativas
construídas no jornal” (Ibidem, p.41).
Esses apontamentos contribuem para
indicar que o Beijo da rua, com recurso a
seus diferentes formatos jornalísticos, vem
mantendo as prostitutas e seu movimento
social como protagonistas no jornal, tanto
como autoras, entrevistadas, em falas
reproduzidas literalmente (cf. nota 11),
como tema de matérias e ainda de outros
modos, inclusive em imagens, conforme
complemento adiante.
Além desses modos de interpretar o
protagonismo, inúmeras vezes, em distritos
de luz vermelha, prostitutas perguntam
sobre a próxima edição (“Quando
sai?”), sobre participação na produção
e distribuição ou como personagem no
jornal, e sugerem pautas. Tornou-se prática
promover reuniões de pauta em botequins
de zonas cariocas, ou pedir sugestões por
100
telefone ou outro meio a prostitutas de
outros estados.13
Finalmente, há uma edição em especial,
a que comemorou os 30 anos do jornal, em
dezembro de 2018, que traz declarações

PUTA LIVRO
de prostitutas sobre o próprio veículo, numa
página reproduzida a seguir.

FLAVIO LENZ

Reprodução da página 4 do jornal Beijo da


rua, ano 30, n. 1, dezembro de 2018

O visual

Tratei nesse trecho de um dos


elementos do jornal, a comunicação verbal.
Esse meio se compõe, contudo, e “na mesma
medida, de comunicação visual e verbal –
ambas de expressão gráfica, já que se trata
de imprensa escrita” (PIVETTI, 2006, p.177,

13
Tratarei em outro artigo da distribuição do jornal. Por ora,
menciono que nasceu com pretensões nacionais, conforme
apontou Strack (1996, p.168): “Como foi pensado como
meio de comunicação para prostitutas do país inteiro, foi
lançado no encontro em Recife, em 1988”
101
apud DAMASCENO, 2006, p.2). E entre seus
componentes, o projeto gráfico, a identidade
visual, o design, a diagramação, fotos,
ilustrações, histórias em quadrinhos, cartuns
(ou anedota gráfica).

PUTA LIVRO
Há muito o que tratar, sob esse aspecto,
desde a primeira página do jornal (um
artigo por si) até cada um e o conjunto dos
componentes visuais. O editor de Arte do
Beijo mencionou sucintamente a extensão de
tal análise:
Se olharmos em painel a trajetória visual do
Beijo da rua, veremos que há uma pegada

FLAVIO LENZ
da arte de guerrilha, do spray, do stencil, da
xeroz dos primórdios do magazine, até da arte
vetorial mais moderna. E tudo tem sua analogia,
tudo conversa, apesar das radicais mudanças
tecnológicas nos processos de edição gráfica ao
longo desse período. (PRUDENTE, 2018, p.2)

Aqui me concentro na criação da marca,


com seu símbolo e logotipo.
Havia uma equipe de programação
visual no Iser, liderada pela designer Cecília
Leal. Ela, assim como os dois jornalistas que
lá trabalhavam (eu e Jesus Lemos, que se
tornou também o “padrinho” do jornal, por
ter sido autor do título escolhido), queríamos
todos incorporar na produção dessa mídia
cidadã nossas práticas, experiências e
conhecimentos. Assim como as estratégias
de comunicação verbal, a visual também
pretendia ser uma expressão gráfica de
profissionalismo e autoestima, pauta esta
que o movimento buscava levantar entre as
prostitutas.
O exemplo maior desta associação
verbo-imagem está no nome do jornal e
na marca que dele se criou. O nome, fruto
de um concurso em que Batom Carmim
e Maria-sem-Vergonha foram o segundo
e terceiro colocados, traz dois elementos
com significados próprios, que, ligados pela
preposição “da”, criam “uma expressão
incomum, distinta, por exemplo, de um beijo
‘na’ rua”.
102
Isso porque a ideia de um beijo dado desde
essa rua, ou por ela, metaforicamente, introduz
a noção de anonimidade, algo característico da
experiência urbana e também da prostituta, que
frequentemente adota um nome de guerra, que
pode servir para designar uma característica
pessoal e/ou sexual, mas também para apontar

PUTA LIVRO
que se trata de um personagem. Nessa
proposta de representação, assim, ela também
poderá acolher outro personagem (ou aquele
que não ousa se revelar), com suas fantasias
não realizadas. Encontro de dois anônimos, que
deixam de lado suas identidades formais. Este o
Beijo da rua. (LENZ et al., abril 2015)

Por outro lado, a noção de que

FLAVIO LENZ
prostituta não beija (pelo menos na boca),
“pois esse ato criaria aproximação afetiva não
pretendida nem desejada”, faz o título tornar-
se também “equivocante” (Idem).
Definido o nome, a designer Cecília Leal
desenvolveu a identidade visual e o projeto
gráfico. E a marca já agregou ao nome
“elementos de representação identitária e
reforço contextual” (Ibidem).

Marca original do Beijo da rua


O vermelho utilizado na palavra “Beijo” busca
acrescentar sentido e se associar à imagem
verbal, tanto por representar os lábios como por
ser cor relacionada a fogo, energia, sexo, nas
culturas ocidentais em geral. Lembremos, por
exemplo, da expressão “casa da luz vermelha”
ou “red light district” (...). Além disso, o
vermelho é associado à pombagira, que seria
um exu-fêmea na umbanda, e é relacionada, por
sua vez, à prostituta, e por vezes representada
também por duas cores, sendo o preto aquela
103
que acompanha o vermelho.

A letra manuscrita e serrilhada, por outro lado,


assim como o uso intencional da caixa baixa
no segundo elemento do título (rua), procura
demonstrar informalidade, característica das

PUTA LIVRO
ruas e da prostituição (LENZ et al., op. cit.)

Quase três décadas depois, a partir


da edição de novembro de 2017, uma
pequena alteração na logomarca, a letra
B “maliciosamente mais arredondada”
(compare as logos na última imagem deste
artigo), foi introduzida pelo designer Claudio

FLAVIO LENZ
Prudente (op. cit.). A essa altura, o Beijo
já estava há muito sendo publicado por
Davida – Prostituição, Direitos Civis, Saúde,
fundada em 1992 pelas prostitutas Gabriela
Leite e Doroth de Castro, bem como aliades,
inclusive este autor.14
Não é demais destacar que a produção
do Beijo da rua por Davida garantiu ainda
maior potência ao jornal, pois a entidade já
nasceu integralmente dedicado à prostituição
e às prostitutas, como informava sua missão:
“Criar oportunidades para o fortalecimento
da cidadania das prostitutas, por meio
da organização da categoria, da defesa e
promoção de direitos, da mobilização e do
controle social”.15
Em 2004 criamos o Beijo da rua online
(www.beijodarua.com.br), com a publicação
virtual de cada edição impressa e espaço na
página inicial para dar notícias a qualquer
momento, até mesmo breaking news e furos
jornalísticos, como de fato ocorreu, inclusive
na última nota publicada no site, como

14
O acordo que formalizou a saída de Gabriela Leite do
Iser, em 1992, incluiu transferência de acervo, livros e
documentos, recursos e titularidade do Beijo da rua. O
primeiro número publicado por Davida foi o 13, em 1993.
15
Missão, objetivos, uma linha do tempo e outras
informações sobre Davida constavam no site www.davida.
org.br, hoje fora do ar, assim como em documentos
institucionais impressos, como folhetos.
se pode ler logo abaixo. Com o website

104
programado por Rafael Pena, desse período
se destaca Fernando Pena, o editor de arte
das edições impressas e virtual.
Tragicamente, no final de 2016, o

PUTA LIVRO
provedor deletou o website.16 Hoje ainda
é possível ler o Beijo online devido às
“capturas” feitas pelo arquivo de internet
Wayback Machine (https://web.archive.org).
A última captura do site é de 22 de outubro
de 2016. E a última matéria no plantão de
notícias é uma exclusiva, datada de 3 de
setembro de 2016, informando que uma rua

FLAVIO LENZ
no Rio de Janeiro havia sido denominada
Gabriela Leite.

Versão online do Beijo da rua. Disponível em:


https://web.archive.org

Autonomia e parcerias, protagonistas


e aliades

Também ao ampliar sua abrangência e,


portanto, o público potencial com o website,

16
Ao verificar que o site não estava no ar e entrar em
contato com o provedor, fui informado que mensagens
solicitando o pagamento tinham sido enviadas e não
respondidas ao e-mail principal de contato, que era um dos
e-mails institucionais de Davida, pouco usado na época.
No entanto, existia um e-mail secundário, pessoal, que
era por mim acessado diariamente. E, para este, nenhuma
mensagem foi enviada, como o próprio provedor admitiu.
A severa reclamação a esse respeito foi inútil, uma vez que
não era possível recuperar o website. O provedor nunca foi
responsabilizado.
o Beijo da rua reafirmou o objetivo de atrair

105
leitores de diversos campos profissionais, não
exclusivamente ligados à prostituição, como
putas e clientes e administradores do ramo,
já que a estratégia política do movimento

PUTA LIVRO
sempre foi a de fazer circular novos sentidos
da prostituição, produzir conhecimento desde
dentro, promover a interlocução, o diálogo,
como forma de tirar do gueto a prostituição,
denunciar e desconstruir o estigma, buscar
apoios para a causa de direitos e cidadania
das putas. Estratégia esta inscrita nas
próprias páginas do Beijo da rua, não é

FLAVIO LENZ
demais repetir.
Não gostamos de guetos, e quem já viveu no
gueto ou pelo menos imagina o que seja, sabe
do que estamos falando quando escrevemos
com todas as letras maiúsculas, em negrito e
destacado: NÃO AO GUETO! E foi com esta
filosofia que pensamos o Beijo da rua: a partir
da prostituta (universo conhecido e vivido desta
que vos escreve), escrever, entrevistar, conhecer
o povo da rua. (LEITE, 1991, p.2)

Além do Beijo da rua, tratado aqui


especificamente, outro emblemático exemplo
dessa composição protagonistas-aliades é a
Daspu, inventada durante a festa de 13 anos
da vibrante adolescente Davida. Já desde
aquela noite de 2005, passou de “confecção”
a “grife”, as duas modalidades de negócio
pensadas por putas, e foi imediatamente
batizada Daspu por um designer. Nos meses
seguintes, além de algumas peças terem
sido costuradas pela única puta do coletivo
que conhecia o ofício, o mesmo designer
criou a marca e as primeiras estampas para
as camisetas, um jornalista registrou a marca,
criou textos e fez a assessoria de imprensa,
uma loja online foi criada por aquele designer,
a contratação de fornecedores para produção
de peças (estampas em camisetas, sobretudo),
vendas e reposições de estoque foram
responsabilidade de diversos profissionais, e
ao designer juntou-se depois uma estilista.
Antes dos desfiles-performances, ou
passarelas passeatas (BORTOLANZA, 2007),
ou ainda desfiles-trottoir (LENZ, 2016),

106
os bastidores se agitam com produtores,
pessoal de beleza, direção artística e muito
mais. Já em cena, seja em palco, nas ruas,
nas passarelas, focadas por luzes vermelhas,

PUTA LIVRO
brilharam e vêm brilhando as estrelas
maiores, as putas. Muitas vezes, com elas,
desfilam aliades afetives e até celebridades.
E tem DJs, iluminadores e por aí vai. Com a
criação de coleções inteiras e o registro de
eventos, equipes completas de produção de
moda, fotógrafos, câmeras, editores, enfim,
uma incrível variedade de profissionais

FLAVIO LENZ
está em torno da pista (LENZ, 2008, p.37 e
seguintes).
E Beijo da rua e Daspu não são as
únicas estratégias políticas, estéticas,
culturais e comunicacionais do hoje Coletivo
Davida que demandam tal variedade e
diversidade de gente, seja pelo aspecto
pragmático ou político, muitas vezes ambos
se associando.
Lançado também em 2005, o evento
Mulheres Seresteiras, de “putas que
cantam e encantam” (no slogan da época),
incorporou cantores, compositores e
instrumentistas, assim como uma professora
de canto. A peça Cabaré Davida, “um
espetáculo para profissionais e amadores
do sexo que ensina tudo sobre Aids”,
encenada por diversos anos em várias
cidades do Estado do Rio, com atores e
atrizes profissionais e amadores, incluindo
uma prostituta, contou também com diretor,
músicos, cenógrafo, iluminador. E ainda
o Bloco Carnavalesco Prazeres Davida,
que agitou por dois anos a boêmia praça
carioca Tiradentes, com instrumentistas,
compositores e, lógico, putas e putos foliões
(LENZ, 2008, p.31).
Para além de Davida, também buscam
parcerias e conexões outras iniciativas
de prostitutas, como o Puta Dei, evento
de comemoração do Dia Internacional da
Prostituta, o 2 de junho, criado pelo Grupo
de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará
107
(Gempac), lideradas pela co-fundadora
do movimento de putas Maria de Lourdes
Barreto, a majestosa.
O PUTADEI em cada ano firma seu conceito
de incidência política que une a diversidade

PUTA LIVRO
de esquinas – Uma política cultural que não
se pretende fechada em um grupo, local ou
conceito – mas quer ganhar aliados e espaços
na construção de novos significados que
fortaleçam as lutas das mulheres prostitutas,
do direito de qualquer cidadão à cidade – à
liberdade de expressão e por felicidade! (PUTA
DEI: Facebook)

Lourdes Barreto é, inclusive uma

FLAVIO LENZ
ardorosa apoiadora dos “parceiros”.
Movimentro isolado não existe. Precisa de
outros ingredientes, de pessoas com outras
concepções, outros entendimentos. Vocês não
são só colaboradores, nem só técnicos. Vocês
são parceiros, vocês apoiam o movimento,
vocês acreditam no movimento – e eu acho isso
fundamental; de repente você [protagonista]
é do mesmo segmento, mas não acredita no
movimento. Está no movimento, mas não
acredita. Então vocês são técnicos também,
muitas vezes também fazem política, mas são
muito mais movimento, se movimentam do
nosso lado (BARRETO, 2021).

Tensões e transformações: uma nova


geração de putas

Mesmo havendo processos


enriquecedores e resultados positivos para
o movimento de prostitutas a partir da
parceria entre protagonistas e colaboradores,
sempre houve e ainda há tensões, como
em outros movimentos sociais. Tentativas
de doutrinação, como já exposto, críticas
à ocupação por parceiros de espaços ou
funções que protagonistas consideram que
deveriam ser ocupados por elas, ou disputas
em torno de remunerações estão entre esses
conflitos.
Ao mesmo tempo, ao longo das últimas
décadas cresceram, e muito, as possibilidades
de maior independência e autonomia de
protagonistas em relação a parceiros.
108
Entre elas, tecnologias
contemporâneas que permitem e facilitam
a comunicação, seja entre grupos ou com
terceiros, a produção e circulação de
conteúdos em redes sociais, restritas ou

PUTA LIVRO
abertas, e mesmo a realização de eventos
virtuais. A epidemia de coronavírus ampliou
ainda mais essas possibilidades e usos
cotidianos, como é o caso das reuniões
virtuais numa diversidade de plataformas
– hoje se faz incidência política sem sair
de casa. E prostitutas, como quase todo

FLAVIO LENZ
mundo, também se tornaram hábeis no
manejo dessas tecnologias, adquirindo
maior autonomia e independência de
aliades e parceiros.
Além disso, as pioneiras do
movimento, se em geral tiveram pouco
acesso à educação formal, adquiriram ao
longo do tempo outros conhecimentos –
para além dos tantos que têm – também
úteis para o ativismo, como o famoso
“saber fazer projeto”, ou supervisionar um
terceiro nesse fazer. Mais ainda, palestram
em universidades e são sujeitas-objeto de
pesquisas acadêmicas.
Vieram juntar-se a elas e ao
movimento, em anos recentes, prostitutas
com maior acesso à educação formal.
Escrevem livros e são protagonistas deles,
produzem e são protagonistas de filmes,
também são convidadas a palestrar na
academia, fazem pesquisas e publicam
textos acadêmicos.
Esse último aspecto, da produção de
(um novo) conhecimento acadêmico, ou da
mudança de abordagem acadêmica sobre a
prostituição, tanto por prostitutas como por
pesquisadores não trabalhadores do sexo,
parece tão relevante quanto ainda pouco
109
estudado.17 Foi apontado pela própria
Gabriela Leite, em sua derradeira coluna no
Beijo da rua, intitulada “Uma nova geração
de pesquisadores da prostituição”.
Faz algum tempo criamos um núcleo de

PUTA LIVRO
pesquisa no Davida (...) a partir da constatação
de que muito se fala sobre a prostituição e
pouco ou quase nada se estuda em termos
estruturais. [Hoje já há pesquisadores] se
manifestando a partir de seus estudos, com
uma linha comum: sair da superfície e entender
o que chamo de estrutural na compreensão
do que seja prostituição (...) Investigar a
complexidade da prostituta a partir dos estudos

FLAVIO LENZ
de sexualidade e dos direitos sexuais é o meu
sonho maior. Ver a prostituição, a prostituta e
a indústria do sexo como parte da criação da
mesma sociedade que estigmatiza e discrimina
é meio caminho andado para avançar e sair da
mesmice e da hipocrisia (LEITE, abril 2012, p.36).

Todo esse contexto, de conhecimentos


adquiridos, de apropriação de tecnologias
de comunicação, de prostitutas presentes
nas universidades, incluindo a produção de
conhecimento acadêmico por elas próprias, da
tendência contemporânea ao reconhecimento
de saberes não acadêmicos, com o
entrelaçamento de uns e outros (como neste
livro), tudo isso contribui para que as putas
protagonistas do movimento de prostitutas,
da geração pioneira a esta nova geração
de putas, tenham muito maior autonomia e
independência de aliades e parceiros.
Assim, mesmo que a trajetória do
movimento de putas aponte para a valorização e
apropriação de alianças e interlocuções, mesmo
que as alianças tenham se mostrado ao longo do
tempo contraparte importante do ativismo das
putas, são as protagonistas que podem avaliar
se é possível e desejável protagonizar o ativismo

Moraes (2020) estuda “mudanças nas práticas discursivas


17

sobre prostituição no Brasil”, relacionadas às práticas


discursivas de Gabriela Leite, concentrando-se sobretudo
na “penetração de novas ideias e valores no campo dos
direitos sexuais, destacadamente nas políticas de prevenção
ao HIV/Aids”.
110
sem aliades e parceiros. Ou com outros modos
de aliança. Para os quais, conversas e diálogos
provavelmente dariam bons frutos.
É tudo isso, obviamente, a visão de um
aliade. Deste lugar em que tento continuar

PUTA LIVRO
desde o primeiro convite no botequim, daquele
outro para contribuir na comunicação do
movimento, de muitos mais nos espaços dos
grandes eventos, e também junto de luzes
vermelhas, algumas vezes até me tratando de
convidar. Autoconvite.
Já vem de longe este artigo, como de
longe vem a questão levantada décadas atrás.
E nem assim o texto entrega tudo o que

FLAVIO LENZ
pretendia. Mas durante a pesquisa e a escritura,
foi despertado e cresceu o desejo de mais.
O Beijo é foda. Continua um puta desafio.
Parece até que está na alma deste jornalista.

Capas no sentido horário: edição de abril de 2002, com


a manchete para a reportagem sobre o estudo com
prostitutas de três regiões do Brasil; edição de dezembro
de 2018 comemorando 30 anos do jornal; criação de
Aliedo para a capa sobre o boicote a testagens para HIV
financiadas pelo governo americano (1997); a primeira
aparição de Daspu no Beijo da rua (2005); a edição de
homenagem a Gabriela Leite (2014), que mudou o título do
jornal; e segmento da capa do número que cobriu estreia e
pré-estreia da peça Filha, mãe, avó e puta – uma entrevista
(2011). Entre as capas, alguns títulos e manchetes.
Arte: Claudio Prudente
Referências

111
ABUD, Camila. Nem tanto, nem tão pouco. Maquiagem
demais espanta cliente; e, de menos, não tem graça. Beijo
da rua, Rio de Janeiro: Davida, out. 2002, p.2.

ARAÚJO, I.S; CARDOSO, J.M. Comunicação e saúde. Rio de

PUTA LIVRO
Janeiro: Fiocruz, 2007.

ASSIS, Francisco. O gênero jornalístico diversional na


imprensa paulista: evidências nos jornais Valeparaibano e
Correio Popular. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação XIII Congresso de
Ciências da Comunicação na Região Sudeste – São Paulo – 7
a 10 de maio de 2008.

FLAVIO LENZ
ARTIGO (JORNALISMO). In: Wikipédia, a enciclopédia livre.
Flórida: Wikimedia Foundation, 2019.
Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.
php?title=Artigo_(jornalismo)&oldid=55966805>. Acesso
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ARTIGO CIENTÍFICO. In: Portal de Artigos Científicos,


Pesquisas, Periódicos e Informações Acadêmicas.
Disponível em: https://artigocientifico.com.br. Acesso em:
10/9/2021

BARRETO, Maria de Lourdes. Entrevista concedida a Flavio


Lenz. 3 set. 2021.

BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Iser, ano I, n.0, dez. 1988.

BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Iser, ano I, n.1, abril/maio


1989.

BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Iser, ano I, n.2, julho/agosto


1989.

BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Iser, n.3, out./nov. 1989.

BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Davida, ano VIII, n.15, maio-


junho 1996, p.1-16.

BEIJO DA RUA. O retrato da prostituta brasileira. Rio de


Janeiro: Davida, abril 2002, p.7-10.

BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Davida, abril 2002.

BEIJO DA RUA. Prostitutas agitam o Peru. Rio de Janeiro:


Davida, outubro 2004.

BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Davida, ano 28, n.2,


dezembro 2017, p.3-10 e p.18-21. Disponível em: https://
issuu.com/flaviolenzcesar/docs/prova06. Acesso em:
18/8/2021
112
BEIJO DA RUA, Rio de Janeiro: Davida, ano 30, n.1,
dezembro 2018.
Disponível em: https://issuu.com/flaviolenzcesar/docs/
beijo_30_2018_rgb_final. Acesso em: 9/9/2021

BORTOLANZA, Elaine. As passarelas passeatas da Daspu.

PUTA LIVRO
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Disponível em: http://eroticomia.blogspot.com/2007/10/as-
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FLAVIO LENZ
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Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em
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CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz


e Terra, 2000. v. II.

CAVOUR, Clara. Cor da pele pede tons diferentes. Beijo da


rua, Rio de Janeiro: Davida, out. 2002, p.2.

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116
NATÂNIA LOPES

REFLEXÕES SOBRE

PUTA LIVRO
DESPIR O CORPO E
VESTIR O ROSTO. E UM
CONVITE PARA PUTAS
E SIMPATIZANTES
“Minha máscara quer burlar a lei. Sem
isso ela não tem nenhuma razão de existir”
(Kôbô Abe)

Introdução

Este ensaio comenta a relação entre o


corpo, o rosto e as identidades usando como
ferramentas as discussões que faz um conjunto
de autores sobre o rosto, aplicando-as ao
contexto da prostituição de call girls no Rio de
Janeiro.
Abordando o que vou chamar aqui de
“a questão do rosto” em ensaios fotográficos
de mulheres prostitutas que anunciam seus
serviços através da publicação de fotos em
sites especializados, ocupo-me, desde uma
perspectiva antropológica, de compreender os
agenciamentos feitos pelas próprias garotas
de programa da exibição dos seus corpos nus
e ocultação/ revelação dos seus rostos, nos
ensaios fotográficos.
Escolhi partir do sentido que as gp1
anônimas dão à prática de ocultação do rosto,
dentro do jogo que procura equilibrar estigma
e manipulação da identidade com ganhos
potencializados por uma propaganda eficiente.

1
abreviatura da terminologia “Garota de Programa”. Refere-
se à mulheres trabalhadoras sexuais.
117 PUTA LIVRO NATÂNIA LOPES
118
A questão do rosto se insinuou para
mim pela primeira vez em campo.2 Eu a
exponho aqui a partir de um breve relato
etnográfico. Esta questão vai se desdobrar
depois, na trajetória da minha reflexão

PUTA LIVRO
sobre ela, em diálogo com o movimento
de prostitutas e uma de suas mais caras
estratégias de ativismo: a de tornar pública a
opção pelo trabalho na prostituição daquelas
militantes que são trabalhadoras sexuais. Esta
prática tem o intuito de ganhar visibilidade
para as reivindicações de caráter trabalhista e
humanitário do movimento e de promover o

NATÂNIA LOPES
reconhecimento das prostitutas como sujeitos
políticos, indo na contramão de uma cultura
do segredo da atividade prostitucional.
Com efeito, podemos pensar no
rosto como vocalização (LEVINAS, 2005 e
BUTLER, 2011). O rosto fala, demanda, uma
vez que representa a alteridade. Precede
o eu e subsiste depois dele. Assim é que
o ato de suprimir o rosto do outro, de
apagá-lo, desumanizá-lo como é o caso
do racismo (que vê no rosto do outro “um
rosto em geral”), implica numa produção
de indivíduos matáveis (LE BRETON, 2017
e AGAMBEN, 2000). De fato, o rosto tem
importância central nas trocas relacionais
e no reconhecimento mútuo dos sujeitos,
assim estruturados e socialmente legitimados
como sujeitos políticos e de direitos, como
cidadãos.
Isso posto, a partir da prática
prostitucional das gp que escolhem não
publicizar sua atuação como trabalhadoras
sexuais, ocultando os próprios rostos nos
anúncios, pretendo provocar a reflexão sobre
a variedade dos modos de criar sentidos para
as prostitutas enquanto sujeitos, na articulação
de suas múltiplas identidades.
Algumas perguntas podem ser feitas de saída.

2
O trabalho de campo sobre prostituição feminina de luxo
no Rio de Janeiro foi feito entre os anos de 2012 e 2016
como parte de minha pesquisa de doutorado e contou com
financiamento da CAPES.
A identidade de militante seria a única

119
dobradiça entre o nome de batismo e o nome
de guerra? Sem ela é possível unificar os
dois nomes? Para uma prostituta, é possível
“mostrar o rosto” em que condições? Quais

PUTA LIVRO
seriam as perdas e os ganhos e quando é
que os ganhos podem superar as perdas?
Noutros termos: é viável, dada a moralidade
social em que estamos inseridas, e sua
margem de manobra cujo alargamento
forçamos, fazer conviver rosto e buceta numa
imagem pública? Quando? No sentido da
ação política, haverá modos outros de falar,

NATÂNIA LOPES
de demandar sem usar a boca, quando não se
tem rosto?
Eu estava numa saleta escondida nos
fundos de um antiquário no bairro do Recreio
dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, com
mais duas garotas, desconhecidas, todas,
entre nós mesmas. Clima de sala de espera;
uma lendo uma revista, outra mexendo
no celular, outra anotando coisas num
caderninho. A fotógrafa estava lá fora, no
imenso jardim da propriedade, fotografando
uma modelo que hospedaria aquele ensaio
no site. Pela janela, eu via a garota nua
fazendo pose na borda de uma piscina de
água esmeralda.
Quando a garota voltou, enrolada numa
toalha, prestei atenção à grande quantidade
de tatuagens espalhadas pelos seus braços
e costas. No bíceps, a frase: “Senhor, se eu
me perder, por favor, vem me encontrar”. A
fotógrafa nos chamou, às outras mulheres
que esperávamos na salinha, para ver o
resultado preliminar dos clicks.
-Nossa, que lindas as fotos, disse uma
das meninas.
-A modelo também ajuda, disse a outra.
A de toalha sorriu, segurando um
cigarro apagado entre os dedos e dirigindo-
se à fotógrafa:
-Mas é pra apagar minhas tatuagens
todas quando for tratar as fotos tá, amor?
A fotógrafa assentiu com a cabeça.
-Você vai apagar as tatuagens com
120
photoshop? Perguntei.
-Mas é claro, não quero que me
reconheçam.
A fotógrafa completou, percebendo
minha confusão:

PUTA LIVRO
-Não podem saber que ela é garota
de programa. Ela não quer que saibam,
entendeu? Então eu vou borrar bastante o
rosto dela e apagar tudo o que identifique:
as marcas, sinais, as tatuagens... até a cor
do cabelo a gente pode carregar mais um
pouquinho no loiro pra despistar qualquer
um.

NATÂNIA LOPES
-Ué, mas e os clientes? Se você acabar
ficando muito diferente das fotos, eles não
podem te mandar embora quando você
chegar pro atendimento no motel? Quer
dizer; o cara escolhe uma mulher no site,
chega lá e é praticamente outra pessoa. Não
é o que ele viu.
A garota pareceu ofendida:
-Meu amor, nunca me mandaram
embora. Mas se um dia alguém me mandar
embora sem fazer o programa, vai ter que
pelo menos pagar o meu taxi de ida e volta
do motel. Sabe disso, né? Se mandam a
gente embora têm que pagar o taxi.

Notas ou a quem serve esconder o rosto?

A partir deste relato de campo


podemos indagar sobre a gramática que
organiza a relação entre: 1) os rostos e
marcas identificadoras dos corpos das gp, 2)
a exibição ou apagamento destes elementos
identificadores e a camada tecnológica que
constitui o meio de publicação do serviço
sexual, 3) as particularidades e quesitos
estéticos do corpo da modelo que publica
suas fotos à título de propaganda, 4) a
questão do estigma e ainda5) as negociações
e possíveis conflitos e formas de resolvê-los
que conjugam estes elementos todos quando
se trata da interação entre garotas e clientes
no acerto do programa.
De fato, há muitas formas de se
121
pensar o rosto. E se orientarmos a busca
de bibliografia para empreender esta
discussão pelo motivo que leva algumas
garotas a esconderem seus rostos em
ensaios fotográficos nos sites de call girls,

PUTA LIVRO
será preciso pensar o rosto como a parte
do corpo portadora da identidade: quando
a garota esconde o rosto ela procura
proteger a sua identidade.
Convenhamos que seria possível, no
entanto, a identificação através da imagem
do corpo por parte de pessoas conhecidas
e próximas, mas se além do rosto ocultado,

NATÂNIA LOPES
o corpo e o cabelo são modificados para
despistar, para apagar possíveis índices
de identificação, o quê exatamente, na
distância entre a imagem da foto e a
mulher de carne e osso, continua a fazer
com que a escolha do cliente por uma
certa acompanhante se dê e se confirme
através da efetivação do programa? Como
se sustenta esta representação do corpo
sem rosto num espaço em que os corpos
e os rostos estão colocados para o exame
masculino?
Com base na minha própria
experiência e circulação pelo universo da
prostituição, argumento que a viabilidade
da representação do corpo sem rosto
naquele espaço específico do site de
acompanhantes procura atender aos
interesses das mulheres prostitutas, sua
opção pelo anonimato, ainda que sirva ao
mesmo tempo para compor um ambiente
em que o próprio segredo faz parte da
constelação de desejos em jogo.
É raro o cancelamento do programa
quando a call girl chega para encontrar
o cliente no motel. Já ouvi relatos de
clientes que mandaram mulheres embora
tendo cumprido o tal protocolo de pagar
pelo seu deslocamento de ida e volta do
ambiente do programa. Mas nas falas dos
clientes são mais comuns relatos de que,
nas vezes em que não gostaram da mulher
122
quando ela se apresentou pessoalmente,
fizeram o programa assim mesmo, entre
constrangidos e apreensivos, se resignaram.
Muito porque estando já no motel e
dispondo, como é comum, de um par de

PUTA LIVRO
horas para fazer um programa caro com
uma garota, o cancelamento seria um
transtorno para o próprio cliente. Estes
programas geralmente requerem algum
grau de planejamento para os homens.
Incluem uma escapada do trabalho, ou uma
desculpa para esposas ou namoradas. Em
caso de cancelamento, seria necessário

NATÂNIA LOPES
arranjar outra gp que pudesse atender
imediatamente, que pudesse chegar rápido
ao motel e da qual o cliente também
gostasse.
Detalhes, digamos, operacionais
como estes e outros mais que
integram expectativas, negociações
e o acontecimento a que chamamos
“programa”, neste contexto específico,
podem ser convocados para se pensar em
como e porque as fotos, ainda que sem
rosto e ligeiramente modificadas, atendem
à finalidade de um catálogo.
Entendemos que deve então haver
ali um outro processo de identificação
operando, ou melhor, um tipo de
singularização que não seria apropriado
chamar de “identificação”. Ele funciona
através das poses da modelo, de um
certo estilo das lingeries que usa, dos
seus contornos corporais e adornos. Se
a mulher usa botas de cano longo ou se
está descalça, se usa pérolas, se é magra,
se é musculosa, se á alta ou baixa, a
forma de seus seios, o aspecto da vagina,
pelos pubianos, marca de biquíni, unhas,
marcadores étnico-raciais, dentre outros.
Processo de singularização esse que
continua, num segundo momento, com
as breves conversas ao telefone entre
garota e cliente, ao modo de uma pequena
entrevista, na qual acontecem negociações
123
do que as prostitutas estão dispostas
a fazer no programa; práticas sexuais e
realização de fantasias3, mas também todo
tipo de ajuste antecipado ao encontro e
necessário para que ele aconteça, como o

PUTA LIVRO
acerto de hora e lugar.
Considerando então que os clientes
habituais do site já levam em conta a possível
distância que o apagamento do rosto e das
marcas identificadoras da garota pode causar
em relação à mulher de carne e osso; que o
site consultado para a escrita deste trabalho
seja reconhecido por não “exagerar no

NATÂNIA LOPES
photoshop”; que haja uma ficha complementar
ao ensaio no site em que constam algumas
“medidas asseguradoras” como peso corporal,
a altura e a idade da anunciante (ainda que isso
seja também respondido pela mulher e que o
site não intervenha no texto do anúncio que
a garota cria)... E que na conversa ao telefone
para a marcação do programa os clientes
perguntem àquelas que não mostram o rosto
nas fotos se são bonitas, que peçam fotos
de rosto da mulher vestida, além do fato de
que o rosto possa não ser o mais importante
para a escolha da prostituta na maioria dos
casos, ficando atrás dos marcadores corporais
de gênero mais comumente relacionados ao
exercício da prática sexual (peitos, vagina,
bunda, cintura, cabelos, unhas...) e mesmo do
entrosamento que pareça ser ou não possível
na entrevista que se faz ao telefone; um corpo
sem rosto funciona.
O acerto de um programa com uma call
girl é um procedimento quase burocrático.
Com todo o risco de um rosto oculto e de uma
imagem ligeiramente modificada do corpo, os
clientes estão seguros.

3
É comum o cliente perguntar: se a mulher faz sexo anal, se
faz sexo oral sem camisinha, banho dourado, se deixa gozar
na cara, na boca, se tem uma parceira para fazer programa a
três, se pode levar acessórios eróticos e roupas específicas,
se está disposta a atender no carro, no trailer, a viajar...
muitas call girls atendem somente em motéis e hotéis por
acreditarem ser mais seguro do que residências.
124
Tecnologias de Identificação

De fato, o rosto e o nome constituem


duas grandes tecnologias de identificação

PUTA LIVRO
dos indivíduos nas sociedades modernas
ocidentais. Quando minha interlocutora
diz: “não quero que me reconheçam”, ela
fala, na verdade, de uma dimensão da sua
identidade ou, também podemos dizer;
de um conjunto mais ou menos coeso e
harmonioso de pertencimentos que vai desde
dimensões mais públicas às mais privadas da

NATÂNIA LOPES
sua vida. Esta identidade, que se traduzirá
por trânsitos específicos e relações que a
garota preserva quando esconde o rosto,
aquela sua identidade reconhecida pelo
Estado através do registro de nascimento
e demais documentos oficiais, a identidade
que a autoriza a circular pelo espaço público
na condição de cidadã e que se converte
em diversos pertencimentos institucionais
como à religião e à família. Aquele rosto
e aquele nome e um certo conjunto de
performances que organiza o seu trânsito
pelo mundo do trabalho formal e que faz com
seja muito natural a sua inserção em relações
de vizinhança. Assim, o nome de batismo é
ocultado e preservado através do recurso
ao nome de guerra e o rosto é ocultado por
poses, cabelos e embaçamento da imagem
através de photoshop.
Em seu livro Rostos, Le Breton investiga
como o rosto veio a se tornar a parte do
corpo predominantemente relacionada à
identidade na cultura ocidental. Desde o
desenvolvimento dos retratos nas pinturas
laicas europeias no séc. XV, passando pela
invenção dos espelhos modernos em Murano
e sua popularização no séc. XVI, até chegar
aos documentos de identificação contendo
a foto do rosto, no séc. XIX, além de todo o
delírio que se formou conjugando fotografias
judiciárias, retratos falados e tipificações de
traços faciais que permitiram o surgimento de
uma ciência fisionômica à serviço do controle
125
estatal de verve racista, pode-se acompanhar
a cristalização do individualismo ocidental.
“O espelho, à medida em que restitui uma
imagem fidedigna do rosto, é um vetor
predileto da aparição do sentimento de si”,

PUTA LIVRO
diz Le Breton. (LE BRETON, 2019: 44) Para o
autor, o rosto se torna o representante maior
do indivíduo porque o nome é falseável. O
rosto, por sua vez, diferente do nome de
registro, se transforma com o tempo. São,
portanto, tecnologias complementares de
identificação do Estado neoliberal.
Neste sentido também Deleuze

NATÂNIA LOPES
e Guattari pensam uma máquina de
rostidade. Consideram que a significação
e a subjetivação são dois eixos, ou duas
semióticas, que constituem um dispositivo de
produção de rostos e de capturas. Haveria
um sistema de dupla captura que começa
com um “buraco negro”, que é o processo de
subjetivação, cujo índice são os olhos e que
continua na pele do rosto, o “muro branco”,
a superfície significante de ressonância.
O rosto, de acordo com esta
perspectiva, coloniza o corpo,
neutralizando-o. Ele obscurece o corpo e as
suas manifestações em prol de um sistema
de dominação, este dispositivo de controle
que é o muro branco-buraco negro; regime
de captura das possibilidades por vir que, se
bem que seja atravessado por linhas de fuga,
atua através de linhas de força ocupadas
de reproduzir padrões, indiferenciações,
fraquezas, despotencializando a faculdade
humana de criar.
O rosto é assim um quadro, é um
enquadramento de possíveis necessário
para determinar indivíduos, para recortá-
los e separá-los do todo. Nos termos dos
autores; o rosto é uma zona de frequência
ou de probabilidade que circunscreve os
significados e os sujeitos.
Se o homem tem um destino, esse será mais o
de escapar ao rosto e às rostificações, tornar-
se imperceptível, tornar-se clandestino, não
por um retorno à animalidade, nem mesmo
pelos retornos à cabeça, mas por devires

126
animais muito espirituais e muito especiais, por
estranhos devires que certamente atravessarão
o muro e sairão dos buracos negros, que farão
com que os próprios traços de rostidade se
subtraiam, enfim à organização do rosto, não
se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas

PUTA LIVRO
que escoam no horizonte, cabelos levados pelo
vento, olhos que atravessamos ao invés de nos
vermos neles, ou ao invés de olha-los no morno
face-à-face das subjetividades significantes.
(DELEUZE & GUATTARI, 1996, pp. 32-33)

Mostrar Não Mostrar o Rosto

Num primeiro momento temos a

NATÂNIA LOPES
impressão de que o dilema da prostituição
no espaço público poderia ser resumido
a uma escolha entre dois caminhos,
representados por estes dois investimentos
estéticos que o site acolhe: modelos que
mostram o rosto, modelos que escondem o
rosto. Esta opção dá pistas do arranjo que
a prostituta faz entre a sua identidade e o
trabalho sexual, mas tanto seria temerário
afirmar que uma mulher que mostra o rosto
no ensaio nu tenha podido integrar o que a
literatura especializada sobre prostituição
em antropologia chamou de duplo self 4 da
mulher prostituta, como também é míope a
perspectiva que ignora a existência de outras
costuras que escapem à opção de mostrar
o rosto no anúncio. Os agenciamentos
da visibilidade do trabalho sexual pelas

4
Para discussões sobre o que chamam de duplo self da
mulher prostituta ver por exemplo FONSECA, 1996 e
PISCITELLI, 2013
127
prostitutas são variados.
No caso das prostitutas que escolhem
publicar suas fotos sem a imagem do rosto,
usando o embaçamento do photoshop, além
dos cortes estratégicos no enquadramento

PUTA LIVRO
e poses que omitem o rosto orientadas
pela fotógrafa que as dirige no momento
da realização do ensaio, podemos pensar
no dispositivo da máscara a fim de apontar
potencialidades e limites dessa opção.
Libertar-se de sua face pode possibilitar
encarnar todas as faces possíveis, responder
a todas as transformações desejadas. É

NATÂNIA LOPES
nesse aspecto que está o poder de liberar as
contenções das inúmeras facetas que compõem
uma pessoa. Uma das razões de ser da máscara
consiste em dissimular ou tornar desconhecidos
os traços de um rosto, para que possa fazer
com toda impunidade uma transgressão de
códigos sociais e se esquivar das consequências
de seu ato. Se o indivíduo for reconhecido,
ele eliminará o traço que lhe deixou vulnerável
à indiscrição dos outros. Mas a máscara não
assegura somente o anonimato, ela favorece
também a liberdade e o enfrentamento de
proibições, ela catalisa as tentações enterradas
no indivíduo pela moral, que encontra, por
sua vez, identidade na face do indivíduo que
a possui. A máscara derruba os traços e anula
também as exigências morais. Ela retira a
fechadura que impedia o curso das pulsões. (LE
BRETON, 2017, pp. 159)

A máscara, ao multiplicar as
possibilidades do rosto até o infinito, produz
o rosto incógnito, o rosto mascarado ao
qual o disfarce adere. Para as prostitutas,
usar esta máscara implica também em ser
usada por ela: uma troca de interesses com
o próprio imperativo da ocultação da face da
prostituta. É uma maneira de se isentar do
ônus do estigma, uma proteção mediante a
esquiva das tecnologias de identificação do
Estado e da moralidade sexual hegemônica.
Nisso consiste a sua ambiguidade. Porque
esta máscara lembra que a prostituta pode
ter qualquer rosto. Aquela perspectiva
interessantíssima de Margareth Rago
da prostituição como fantasma que vem
assombrar a sexualidade de qualquer mulher

128
como uma possibilidade-perigo (RAGO,
2008).
Daí que a ocultação do rosto pode ser
pensada também como um processo de
“desfiguração”, para usar a expressão de

PUTA LIVRO
Le Breton. O corpo sem rosto conotaria,
neste sentido, a morte social de um corpo
objeto de imensa e incessante violência
simbólica. E como desfiguração, a máscara
resulta em aniquilamento. A face desfigurada
retira o indivíduo da comunidade humana,
anormalidade da espécie, torna-o bestial.

NATÂNIA LOPES
O corpo sem rosto feito corpo orifício para
o uso capitalista e masculino não fala. Não
tem olhos pelos quais se possa estabelecer
uma relação especular. Não tem boca para
demandar. E como pode ser sujeito de
direitos num Estado que historicamente
parece ter ancorado a identidade no rosto?
Bem, aqui me parece ser o caso de
avaliar quando e como desejamos o desejo
do Estado, para usar a expressão de Butler
(BUTLER, 2003). Reivindicar direitos quando
estes não são garantidos é urgente. Por isso
o ativismo de putas no Brasil tem se valido
desta estratégia específica: a de mostrar
os rostos das prostitutas, desde a iniciativa
revolucionária da ativista Gabriela Leite, “a
puta que fala”, a que falou quando putas
não falavam. Tamanho foi o alvoroço, que
estamos até agora tanto admirados como
ofuscados por este rosto que se levantou
no meio da massa de meretrizes mudas,
anônimas e falou. E fala! Gabriela tem sido
seguida por uma falange de putas com bocas.
Bocas abertas afirmando o lugar da infâmia,
desafiando o poder de nomear dos homens,
do Estado, da língua. Daí a opção por se
intitular “puta”, em vez de “trabalhadora
sexual”, uma vez que “trabalhadora” já seria
uma concessão à moralidade dominante, uma
espécie de higienização.
Mas é necessário empregar uma arte
das doses aí. Mostrar o rosto de puta não
pode se tornar uma palavra de ordem
dentro do ativismo. Trata-se de exercitar

129
um pompoarismo do espírito; de estreitar
ou alargar a passagem da máscara e da
identidade em cada contexto. Afinal de
contas, não é sempre disso que se trata?

PUTA LIVRO
Da mentira mais verdadeira que a verdade?
Do teatro -desde o ritual do flerte até a
consumação do programa e também nos
almoços de família aos domingos? Recolher-
se ou derramar-se na hora certa. O emprego
de uma avaliação constante.
Além disso, é preciso lembrar que o
rosto da prostituta exposto logo se torna
também um tipo de máscara desfigurada e

NATÂNIA LOPES
desfiguradora. A máscara de puta desfigura o
rosto da “boa moça” e da “mãe de família”.
-Essa tem cara de puta mesmo! Cara de
safada! -ouvi um homem dizer ao olhar um
catálogo de prostitutas.
-E como é a cara de puta, meu bem?
-perguntei.
-Essa sobrancelha fina e pretíssima, essa
boca carnuda vermelha...
Deve-se considerar que o processo de
estigmatização atua através de linhas de
força de caráter segregacionista; identificar
para separar as boas das más mulheres. São
forças de identificação, de policiamento,
de proscrição, de violência e de morte, de
silenciamento e de estupro, de traição e de
roubo.
O rosto mostrado, tal qual o ocultado,
pode facilmente passar da desfiguração da
máscara ao aniquilamento.
Se há um mecanismo que trabalha para
calar as putas e relegar a sua existência ao
cumprimento do papel de alívio clandestino
das tensões sexuais acumuladas no
casamento, e se esse mecanismo preexiste
aos rostos de cada uma das mulheres de
carne e osso, de cada uma de nós, é preciso
então avaliar continuamente quando e como
falar, mas também como e quando calar,
ampliando o leque de estratégias e formas
de dizer. Será preciso, às vezes, saber falar
sem a boca, falar por outros orifícios, talvez,
130
ou fazer com que outras bocas falem por si,
possuídas pela causa.

Convocação ao Baile de Máscaras


para Putas e Simpatizantes

PUTA LIVRO
Se eu fosse dar um baile na minha casa
diria para todos os meus muitos amigos
comparecerem usando máscaras. Máscaras
de puta: coloridas com penachos, enfeitadas
com paetês, sobrancelhas arqueadas e bocas
carmim, borramentos técnicos, estratégicos,
artístico-científicos, saborosos. Aqueles

NATÂNIA LOPES
borramentos de uma noite agitada de
trabalho, e também caras lavadas corajosas. E
a brincadeira seria afirmar ser/estar prostituta
através da máscara.
Quero uma corrente de gente que
saia por aí escrevendo em suas publicações
pela internet, livros e cartas, e-mails e
currículos: “Fui convidado a revelar que sou
trabalhadora sexual”; “E se eu fosse puta?”,
etc. etc. Especialmente aqueles que nunca
trabalharam com prostituição. Mintam!
Dancemos!
Faça os outros acreditarem que você
é prostituta, que tem uma vida dupla e que
os enganou este tempo todo. Faça de tudo
para acreditarem. Sugiro misturar detalhes
biográficos conhecidos sobre você com as
suas experiências na prostituição, que teriam
sido ocultadas. Descreva seus clientes: os
velhos ricos, os garotos enlouquecidos de
desejo, as mulheres curiosas.
Conte anedotas dos programas. Aquela
de quando você e o cliente ficaram presos
de roupa íntima na varanda do hotel no
38º andar. Ou de quando o policial revistou
sua bolsa, onde você levava um vibrador a
caminho do trabalho e você fingia que estava
muito constrangida para que ele desistisse
da revista, quando na verdade estava com
medo de que ele achasse a maconha que
você tinha, então você exibia o vibrador
fazendo de conta que tentava escondê-lo e
teatralmente confessava que era prostituta.
131
E aquela história de quando você pegou o
filho daquele cantor famoso, que cheio de
autoconfiança artística e arrogância masculina
não quis ler o seu texto porque pra ele
“qualquer texto pode ser resumido a duas
palavras”?

PUTA LIVRO
O que mais vale é o disfarce perfeito.
Será servida uma receita de família;
camarões preparados com delicadeza em
uma cama de purê de aipim. Tragam bebidas.
Leia-se: cerveja e vinho. Vai até de manhã,
pra quem tiver fôlego e amor.

NATÂNIA LOPES
Apontamento

O corpo sem rosto possui dois sentidos


que convivem e entre os quais, às vezes,
será preciso rebolar com perícia: ter o rosto
apagado é morte, decidir apagar é vida. Há
que se reconhecer os riscos de ocultar o
rosto, mas também os limites de o mostrar,
no contexto do ativismo inclusive. Reivindicar
rostos para o trabalho sexual pode ser uma
ferramenta fundamental para disputar o
Estado, uma forma de exigir reconhecimento.
Mas além de investir cidadãs de seus direitos,
quais são as outras possibilidades de ser
para mulheres prostitutas e como estas
outras possibilidades poderão sobreviver nos
espaços moralizados?

Referências

AGAMBEN, Giorgio. The Face. In: Means without End:


Notes on Politics. Minneapolis, University of Minnesota
Press, 2000, p. 91-100.

BUTLER, Judith. O Parentesco é Sempre Tido Como


Heterossexual? In: Cadernos Pagu, nº 21, 2003, p. 219-260.

BUTLER, Judith. Vida precária. Contemporânea – Revista de


Sociologia da UFSCar, São Carlos, nº 1, v 1, 2011, p. 13-33.

DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. Ano Zero – Rostidade.


In: Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 3 / Tradução
de Aurélio Guerra Neto et alii. — Rio de Janeiro: Ed. 34,
1996 (Coleção TRANS)
132
FONSECA, Cláudia. FONSECA, Claudia. A Dupla Carreira da
Mulher Prostituta. Revista Estudos Feministas. nº 1, 1996, p.
7-33.
OLIVAR, José Miguel Nieto. Devir Puta – política da
prostituição de rua na experiência de quatro mulheres
militantes. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

PUTA LIVRO
LE BRETON, David. Antropologia da Face, alguns
fragmentos. Revista de Ciências Sociais, nº 47, Junho/
Dezembro de 2017, p. 153-169.

LE BRETON, David. Rostos – ensaios de antropologia.


Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira —
Petrópolis, RJ: Vozes, 2019

LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.

NATÂNIA LOPES
LEVINAS, Emmanuel. Violência do Rosto. Tradução de
Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2014.

PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados


transnacionais do sexo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite – prostituição e


códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930).
São Paulo: Paz e Terra, 2008.

SOUZA, Frederico da Cruz Vieira de. & MARQUES, Ângela


Cristina Salgueiro. Rosto e Cena de Dissenso: aspectos
éticos, estéticos e comunicacionais de constituição do
sujeito político. Questões Transversais – Revista de
Epistemologia da Comunicação. Vol. 4, nº 7, Janeiro/ Junho
de 2016, p. 18- 27.
133
JOÃO PENTAGNA

COMENTÁRIO AO

PUTA LIVRO
TEXTO “REFLEXÕES
SOBRE DESPIR O
CORPO E VESTIR
O ROSTO. E UM
CONVITE PARA PUTAS
E SIMPATIZANTES” DE
NATÂNIA LOPES
Acho que sua discussão sobre a
“questão do rosto” segue uma linha pós-
estruturalista em que identidade, verdade,
origem, etc. se quebram em nome da
potência do falso: a máscara, o artifício,
etc… achei importante ter delineado outras
leituras possíveis, por exemplo a questão
do apagamento do rosto e os indivíduos
matáveis, ainda que fique claro que não é
sua abordagem do problema. A ideia mais
interessante pra mim é da máscara como
estratégia que potencializa o dispositivo
“prostituição”. É curioso como você trabalha
a representação do corpo feminino e sua
sustentação ou não quando do encontro,
dada a diferença entre o corpo real e as
fotos. Você diz que “Entendemos que
deve então haver ali um outro processo de
identificação operando, ou melhor, um tipo
de singularização que não seria apropriado
chamar de “identificação”. Ele funciona
através das poses da modelo, de um certo
estilo das lingeries que usa, nos seus
contornos corporais e adornos. Se a mulher
usa botas de cano longo ou se está descalça,
se usa pérolas, se é magra, se é musculosa,
se á alta ou baixa, a forma de seus seios, o
134
aspecto da vagina, pelos pubianos, marca
de biquíni, unhas, marcadores étnico-raciais,
dentre outros.
Processo de singularização esse que
continua, num segundo momento, com as

PUTA LIVRO
breves conversas ao telefone entre garota e
cliente, ao modo de uma pequena entrevista,
na qual acontecem negociações do que
as prostitutas estão dispostas a fazer no
programa; práticas sexuais e realização de
fantasias, mas também todo tipo de ajuste
antecipado ao encontro e necessário para
que ele aconteça, como o acerto de hora
e lugar.” Essa é a lógica do fetiche e do

JOÃO PENTAGNA
desejo que se alimenta de um incapturável,
não o corpo da mulher, mas alguma coisa
na periferia desse corpo, na superfície:
maquiagem, tatuagem, sobrancelha,
voz… essas marcas que simultaneamente
sustentam o segredo e ligam o desejo num
ponto singular. A análise via Le Breton está
bem construída, fica associado o rosto à
identidade, bordejando também a questão
do nome, outro marcador da identidade,
mas também de outra coisa, como
veremos. Quanto à referência ao Deleuze e
Guattari achei muito rápida e a constelação
conceituação deles nos arranca um pouco do
texto. Eu tiraria essa parte ou aumentaria,
explicitando melhor o que você quer dizer.
Caso não faça isso a maioria dos leitores vai
acompanhar o texto e ser cuspida pra fora
dele nesse ponto. Outra coisa é que, mesmo
entendendo que você quer publicar como um
artigo, vou te falar o que tem passado por
mim. Acho que está, como os meus textos
também, ainda muito acadêmico. Com isso
falamos pra poucas pessoas. Quanto mais
literário e oralizado seu estilo mais afiado
e abrangente ele vai se tornar. Por fim uma
última questão; a máscara nos joga num
espaço outro, utopos diz o Foucault, um
lugar sem lugar no presente mas que ressoa
os acontecimentos incorporais. A máscara
nos conecta aos deuses, os demônios, seduz
forças espirituais e os outros. Talvez não seja
135
a hora nem o lugar nesse artigo, mas é bem
curioso esse domínio do segredo, em que o
segredo nos tira da dimensão da lei humana
para a dimensão dos Delírios histórico
mundiais. Nesse sentido os nomes próprios

PUTA LIVRO
e as máscaras fazem reviver intensamente
as odaliscas da história mundial, as mulheres
sedutoras como Cleópatra reencarnam nos
corpos e catalisam uma atenção para além de
um corpo orgânico, acessando a dimensão
do corpo sem órgãos. Estou dizendo que
os adereços, os nomes, a simulação da
identidade têm uma potência própria cuja

JOÃO PENTAGNA
força é singularizar alguém. Nesse processo
o mascaramento é também uma espécie de
feitiço.
JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO

136
PUTA LIVRO
¿Cuándo fue que quisiste la
verdad de un rostro sin máscara alguna?
¿Fue en la tarde de los derechos?
¿En la cuesta debajo de aquel mundo?

Yo no sé.
Yo tan sólo puedo imaginar.
Imaginar más allá de este cuerpo
y de esta vida que soy.
Yo no sé lo que es no poder
tener un rostro.
¿O sé?

Señora-Puta, si un día me pierdo,


por favor ven a encontrarme.

Yo no sé bien lo que es morir.


A pesar de todo.
Supe, cuando era bebé, como
dice León.
Pero después uno olvida todo.
Uno muere.
Yo morí como mi pueblo entero
Pero no morí como tu
Como tus amigas,
Como las hermanas de verga y fuego.

Frida.
No hay máscara alguna.
Hay rostros borrados
Eliminados
Escondidos
137
Multiplicados
Deformados
Y hay cuerpos y cuerpos y cuerpos
Y el deseo por un Estado imposible
Los actos heroicos

PUTA LIVRO
Otra melancolía
La de los rostros también borrados
los rostros de tus hermanas
Con sus ropitas
Con sus fotos sin retoque
Acostadas
En la calle, solitas
Quietas
Esperando infinitamente que el

JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO


Estado las desee, mientras el Estado,
de hecho, las desea.

Nosotros morimos de otras formas.


Aún más si no somos más negros
O más indios en estas tierras de Dios
e Higiene.

Creo que me hice hombre para no morir.

El rostro, tenía que tener barba


Y cara de eso que decían que era
ter cara de hombre
Y de ese rostro tenía que salir una
voz de hombre
Y palabras de hombre
Con trazos y gestos y cabello
de hombre.

Y fue difícil producir ese rostro


Que no venía

Yo sé lo que es tener que esconder


el rostro
No usar máscara
Esconder el rostro
Borrarlo.
Lo supe por vergüenza
Por culpa
Por injusticias.
138
Yo supe lo que es ser desterrado
Una y otra vez
Nómada casi.
Inclusive, y jamás había pensado
en eso, por ser puto.

PUTA LIVRO
Pero jamás como tu.
Este cuerpo mío
Esta vida mía
Cuyo lugar se volvió extraño,
indeseable, tonto
En la barricada que queremos.

JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO


Déjame contarte una mentira:
Un día yo fui una princesa, ¿sabías?
Otro día fui una puta.
Una puta que me habitaba.
Terrible
Antes de conocerte
Y fui una puta y a la orilla del
grande río que circunda Bogotá me
senté encima de mi amigo-jefe un
verdadero hombre y le di todo mi amor
apretando bien su verga con mi cuceta,
meu xiricu (como me enseñaron mis
amiguitas putas sirenas misses en la
frontera), que aprendía a usar en la
noche de Navidad.

Recuerdo una muchachita voraz que


surgía en tardes de orgía
Hecha lengua
Hecha dedos
Hecha muslo o pecho lampiños
de rodillas frente a tu sexo hambriento
A tu servicio

O en la alta montaña
Loca de amor y de soledad
borrachita
princesa brillante
girando bajo espejos girando
con mis deseos de hombre
en la maldita primavera de querer
ser un hombre
con sus amigos hombres
139
Y también fui una sacerdotisa
Inmensa
Ancestral
Egipcia
Una vieja curandera

PUTA LIVRO
Una especie de bruja
Hija de mi bisabuela india
Que un día aún seré.

Después creo que las maté


A la puta, a la princesa, a la muchachita.
Fui un hombre colocándolas en
su debido lugar

JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO


Mientras jamás conseguía ser
completa y suficientemente hombre
Sufrí locamente
Noches noches días días
El esfuerzo de hacerme hombre
nos mató.
Talvez me las comí
Talvez fui Saturno una y otra vez,
Y entonces me volví un hombre
Y nunca más fui capaz de nada.
Y talvez fue en concierto con algunas
mujeres que también me quisieron
bien hombre
Puto
Porque las palabras son fáciles pero lo
grande que nos queda el deseo.
Pero eso es todo mentira.
Todo mentira
Nada aquí fue dicho.
Retiro mi nombre y mi rostro de esta
fantasía idiota.

Dejo apenas mi cuerpo derretido en


palabras frente a ti
Como lo hice la vida entera
Mi pequeño espacio más feliz.

No sé cuando fue la primera vez que


te vi.
¿Tendría yo algunos días o meses
de nacido?
Sé que a mi papá le encantaban
estar contigo
140
No, no sé si le encantaba
Es raro que a los hombres como mi
papá le encanten otros seres que no
sean hombres.
Sé que te visitaba. Pero visitaba más
al whisky y a los dados, a los amigos y a

PUTA LIVRO
los amigos.
Y a su propia rabia.
Y sé que a mi mamá le encantaba decir,
sufriendo, que eras una puta.
Son todas putas.
Son todos sin vergüenza, degenerados,
inmundos.

JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO


No, no sé si le encantaba. Sé que lo
decía, y que el sufrimiento se le tragó
la vida.
¿Y ella?
No sé cuando fue la primera vez
que te vi.
¿Cuántas veces mi mamá habrá
muerto hecha una puta bajo el desprecio
de mi papá?
¿O, justamente, no siendo?
¿Tuvo mi mamá alguna vez rostro
de puta? ¿O debería haberlo tenido?
¿A cuántas putas mi mamá y mi papá
habrán matado, de formas distintas,
para construir la casa en la que crecí?
Recuerdo el odio de los hombres
El deseo de los hombres
Ese extraño modo masculino de
desear odiando
De celebrar con rabia
De poseer destruyendo
Imagina en Colombia,
en la guerra…
Imagina Brasil.
Los hombres morimos de melancolía
en los puteros
Y matamos en casa.

Son todos sin vergüenza, degenerados,


inmundos.
Yo
Y además fui una puta.
141
La vida entera vi tu cuerpo
En dos minutos me masturbo
Veo tus fotos
Veo la luz de la pantalla de
mi computador

PUTA LIVRO
Veo tu invitación
¿Y cuándo vi tu rostro por primera vez?
Tienes razón.

Fue sólo esta mañana


Casi antes del sol nacer
Te encontré en la cocina
Con tu niño en el regazo
Escribiendo un manifiesto

JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO


que acabaría con todo
Celebrando un pix que recibiste
Calculando en tu cabeza las cuentas
de la casa y los casos de Covid
por cien mil habitantes
Cansada
Más hermosa que nunca
Golpeada
Armada e impaciente
Me dijiste que me fuera a la mierda
Y seguiste.

Pasé esta mañana así,


Leyéndote.
Mirando fijamente tu rostro
Oyéndote
Entendiendo que no había nada
que yo pudiera decir
Y tienes razón, te dije, cada vez
sirvo para menos.

Necesito no sentirme mal con eso.


Tuve la desgracia de haber sido un
hombre creyente de la historia
de los hombres

Me haré un tatuaje que diga:


“Señora-Puta, si un día me pierdo,
por favor ven a encontrarme.”
A mí las putas con rostros y nombres
Cuerpo y maquillaje
Poemas y guerras
142
Me salvaron la vida.
Contigo se abrieron puertas de
existencia más dignas
Menores.
A mí las putas me colocaron en mi lugar.

PUTA LIVRO
Todo el poder a las putas.
Pero las que matamos no podrán volver.

Esta mañana conocí tus palabras


Un artefacto pequeñito lleno de ti
en líneas calculadas
conectado con mis artefactos.

JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO


…pelas beiradas.
143
ANDRE ARAUJO

PUTA LIVRO

A dor se exibe, enquanto o prazer e a necessidade têm suas vergonhas


120 x 100 cm
Óleo sobre tela
2012
144
SARA MARINHO

PUTA LIVRO
Ei,
Eu preciso te pedir perdão
Perdão por minha intensidade,
Minha voluptuosidade
Eu sei que estou sempre nos extremos
E o que não for demais, para mim,
não me desperta interesse
Eu sempre fui assim
A culpa não é sua
Outros passaram por isso também.
É apenas aquela minha
Já tão conhecida necessidade
De novidade
De peito aberto e dilacerado
Sangrando litros de sentimentos
De explosão,
De desejo,
De pele,
De beijo,
De cheiros
Novos, diferentes, presentes.
O novo não distrai,
Ele te prende no interesse
de conhecer cada molécula
Daquele novo ser
Quando você vê, ele te desperta
Mais uma vez um outro querer
E quando eu me vejo,
O novo já tomou conta,
me envolveu em desejo
Já abriu e já sangrou o peito
E é aí que eu sei que lá vem mais um
145
RE-CO-ME-ÇO
E por isso te digo, que sinto muito
Lhe agradeço
Continuo lhe tendo imenso apreço
Mas preciso continuar,

PUTA LIVRO
Qualquer dia vamos nos encontrar
Podemos tomar algo pra relaxar
E não dificilmente logo estaremos
A jogar palavras ao vento
Sobre como nos arrependemos
De todo aquele futuro
Que não tivemos.

SARA MARINHO
146
DOROTH DE CASTRO

PUTA LIVRO

Doroth de Castro. Acervo Davida: prostituição,


direitos civis, saúde/Arquivo Público do Estado do
Rio de Janeiro.
147
PUTA LIVRO
Eu pecador te confesso
meu amor
Me perdoa por querer-te tanto
Não sei que fazer com este amor.
Eu pecador te confesso
A dor
De amar-te em silêncio
De te ouvir no barulho dos ventos

DOROTH DE CASTRO
Eu pecador te confesso
que os dias são tristes
que as noites são longas
que a saudade dói
que o amor corrói
Eu pecador não te confesso
mais nada
Amar não é pecado!

Jornal Beijo da rua. Rio de Janeiro, 1990.


PROFANIA TOMÉ

148
PUTA LIVRO

Trabalho sexual é trabalho


Marcador a base d’água, lapis de cor e caneta 0.4mm
sobre papel 150g/m². 297mm x 210mm
149
PUTA LIVRO
PROFANIA TOMÉ

Banque o pornô independente


Marcador a base d’água, lapis de cor e caneta
0.4mm sobre papel 150g/m². 297mm x 210mm
150
REJANE BARCELLOS

PUTA LIVRO
A etimologia da palavra puta
Vem do latim puttus
Que quer dizer pura e casta
através do tempo essa terminologia
foi ressignificada.

Ideologias e acepções
Não significam nada
Apenas encoraja o preconceito
do cidadão de bem
Que acha
Que a voz que ecoa nas esquinas
não tem nada a dizer
ocupantes das calçadas passível
e objetificável
Apenas mais um corpo
Pra pagar usar e esquecer

As Mariposas que voam e enfeitam


a margem
Todas maiores de idade
Pois não existe prostituição infantil
E sim
Exploração sexual e
Crime de pedofilia
Não sejam putofóbicos
E por favor não confundam o labor
Com crime e pornografia

Naquelas ruas que elas passavam


Ninguém as enxergavam
Nas sombras ficavam
Pra conquistar seu pão
151
Na violenta madrugada
Estupros e porradas
Extorsão e roubos
Dói no coração

PUTA LIVRO
Naquela vida que nunca foi fácil
E num senso comum
Se disseminou
Cansou de só apanhar da vida
Foi lutar na guerrilha
E seu próprio futuro ela determinou

Mas se vida de puta e difícil

REJANE BARCELLOS
Gabriela e Lourdes calaram a boca
de quem as apontou
Ouviram a voz das calçadas que gritam
Buscaram os seus direitos
Que respeito para todos
É transformador

A rua traz narrativas


Muito além da estereotipia
Corpos livres por direito
Trabalhadoras organizadas

Marília estava errada


Não é porque são putas
Que não são donas de casa

Permitem que elas falem!


Algo além de seu ofício
Suas alegrias tristezas carências
família vivência
Algo que as faça se sentirem bem
e sorrir
Algo que nunca doeu
Que o sistema falho não corrompeu
Oralitudes guardadas na esquina
Opção ou sina
O promotor é só um homem
Só deus é quem vai julgar
Desde que o mundo é mundo,
há alguém pra apontar
À noite, o corre pra sobreviver
Ganhando a vida com o corpo
Sem ousar gritar socorro
152
Se a radio patrulha chegasse aqui
agora... seria uma grande derrota
Roubos surra extorsão
Jogada como lixo na gaiola
do camburão

PUTA LIVRO
Se não se esconder
Ninguém vai proteger
risco iminente de ser morta!
Não dá pra pagar pra ver

As vozes que ecoa das calçadas


são perfeitamente audíveis
Guardam histórias gravadas,

REJANE BARCELLOS
indigentes profundas
Trazidas na proa e na tumba
Tão silenciadas
Quanto as polacas enterradas
Meretrizes do rei
Usadas e descartadas
Ouro de tolo guardadas no bordel
Tratadas como um troféu

O tempo passou
E por aqui nada mudou
Mais de 40 milhões de mulheres
se prostituem no mundo.
40 milhões de vidas invisibilizadas
Esquecida nas calçadas
Madalena apedrejada
Julgada e demonizada
Às vezes carne barata
Para pagar as contas do mês

De mulher pra mulher


Não há preocupação agora se
o seu marido é infiel
Sem essa de Júlia Robert
Em Uma Linda Mulher
Pois a preocupação é com os filhos
e o aluguel
É nisso que se pensa em cada ida
ao motel

Assassinatos em série
Apagados da história
Mas a rua traz memória
153
Se a sociedade não colabora
Puta não se comporta
e com o arquivo estadual
vem metendo o pé na porta

PUTA LIVRO
Uma vitória pras mulheres com
a colaboração do APERJ
Décadas de luta para não
serem cerceadas
Não serem silenciadas
sua história perfeitamente
documentada
preservada em um vasto acervo

REJANE BARCELLOS
de valor incalculável

Nunca mais contestadas


Memória da vida quem pegou
essa empreitada
Arquivo organizados
selecionados digitalizados
futuramente disponibilizados
à comunidade
quem não viu vai ver
a história dessas guerreiras
que tentaram esconder

Cada fita ouvida


Conta uma história vivida
que pela equipe estão sendo
digitalizados
A ONG Davida agora é legitimada
As prostitutas saem da zona
Vão pro palanque mandar o seu recado
Acadêmicos chocados
Vendo as putas dando o papo
os detalhes das vivências
agora é tese de doutorado

Há quem duvide das vivências


Há quem pregue equivalências
Questionam as referências
Põem em xeque a inteligência
e as chamam de equivocadas
Gabriela Leite põe de forma
incontestável
A pauta das piranhas
154
Agora é tese irrefutável

A jornada não para


Às demandas das rameiras
Projeto de lei apresentado por Gabeira

PUTA LIVRO
Regulamentação do ofício é pauta
prioritária
Porque se a vida da mulher já é dura
Pra mulher da vida e ainda muito mais

A calçada grita!
Por respeito, segurança
Mulheres que lutam

REJANE BARCELLOS
Por seu direito civil
legalização do ofício
Aposentadoria digna
Carteira assinada
Nunca mais agredida
Nunca mais apagada

Corpos livres trabalhando


sem distinção
Do corpo que é pro lar
Do corpo que é pra usar
Quem ousa ser ousada
É desacreditada
Ócios do oficio!
Você está lá pra isso!
Não!
Estupro não e só crime
Por quem é mais recatada
A surpresa era nenhuma
A resiliência era demais
Remar contra a maré
Se afogando todo dia
Nas ondas de Beauvoir
De um lado as raparigas
outro conservadoristas e
feministas radicais
Sabotaram avanços
Desassociaram pautas
Sem uma conversa franca

Como entender a ironia


Filhas de Frida brancas e burguesas
em sua maioria
Netas das bruxas que não

155
conseguiram queimar
Versus filhas da puta que o seu
preconceito tenta eliminar
E nesse verso eu tenho propriedade

PUTA LIVRO
pra falar
Eis-me aqui!
neta de puta, filha da luta que
nasceu pra guerrear
Meretriz do Apocalipse
Armadura de ferro cor púrpura
e escarlate…

Celem a besta! Vou de encontro

REJANE BARCELLOS
à liberdade
Podem me chamar de filha do pecado
O choro é livre
O berço da burguesia
Vendo puta se formar
graduanda bem completa, liberal
e sem frescuras
Agora quem dita as regras desse
jogo, irmão?
No passado enquadre no camburão
Agora, no presente, sala de reunião

A luta não para


Puta não se abala
Ocupando espaços sem cautela
Nunca foi diferente
Ninguém solta a mão de ninguém
Ninguém nunca segurou a delas

Mas agora é Movimento Organizado


Elas por elas sem receio
Blindadas contra a má fé
Beijo da rua traz a manchete
Santa Thays dá o amém
Pomba gira da o axé
além do arco-íris
e Doroth
Reverberando versos...

Sojourner é referência
Antecede a dama de Tefé
Quem tem ouvidos ouçam:
156
o berro que ecoa
Questionando o patriarcado
Indianare e Gabriela engajadas na fé
A garganta que grita
Não sou eu uma mulher?

PUTA LIVRO
Não sou eu uma mulher?
Quando jogaram-na aos lobos
retornou de salto 15, liderando
a matilha
Gritaram vadia!
E da esquina Ela sorriu
pois não tá nem aí
Só ela sabe o que viveu até aqui

REJANE BARCELLOS
Quem aponta o ofício
Não repara cicatriz
E pra vocês agora
A chamem
Dona meretriz!

Que esse poema possa explicar


O que a sociedade não consegue
entender
O lugar de mulher é onde ela quiser
Agora o jogo virou
As detenha se puder
De Wall Street à Mimosa
De Tiradentes à Kandapara
Elas não serão paradas
Ouçam o grito das calçadas

De Wall Street à Mimosa


De Tiradentes à Kandapara
Suas histórias serão lembradas
Elas não serão paradas
Ouçam o grito das calçadas
Memórias da vida
A voz que não se cala
157
MARCO DREER BUARQUE

DIGITALIZAÇÃO E

PUTA LIVRO
PRESERVAÇÃO DO
ACERVO AUDIOVISUAL
DA ONG DAVIDA
Introdução

Este artigo tem como objetivo descrever


o processo de digitalização do acervo
audiovisual da Davida – Prostituição, Direitos
Civis, Saúde, organização não governamental
(ONG) fundada em 1992 no Rio de Janeiro
por Gabriela Leite para lutar para os direitos
das prostitutas no Brasil. Sob custódia do
Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro
(APERJ), o acervo, de natureza analógica,
é composto por fitas magnéticas de vídeo
dos formatos U-matic, VHS e Betacam, que
reúnem conteúdos gravados sobretudo
entre as décadas de 1980 e 1990, incluindo
depoimentos de prostitutas e registros de
eventos relacionados ao tema da prostituição
no Brasil. O artigo é um relato dos principais
desafios encontrados nas diversas etapas
de recuperação dos materiais, desde a
higienização até a digitalização, além do
registro de informações técnicas (metadados)
– resultando em um trabalho pautado por
padrões e diretrizes internacionais do campo
da preservação audiovisual.
O trabalho realizado com as fitas
videomagnéticas do acervo foi realizado
entre os anos de 2018 e 2021, incluindo
etapas de inspeção dos suportes, registros
fotográficos dos mesmos, higienização,
digitalização, geração de metadados e,
finalmente, procedimentos de preservação
digital, consistindo também na geração de
uma planilha de metadados relativos a cada
uma das fitas digitalizadas. Este texto tem

158
por objetivo descrever as etapas essenciais
deste projeto, que envolveu não somente o
processo de digitalização dos documentos
audiovisuais, mas um conjunto de ações de

PUTA LIVRO
preservação fundamentais para a salvaguarda
do acervo da Davida.

Documentos audiovisuais:
alguns conceitos

Entre os chamados gêneros


documentais encontra-se o audiovisual, que
possui características e complexidade muito

MARCO DREER BUARQUE


particulares. Comparados aos documentos
tradicionais em papel, os documentos
audiovisuais são mais frágeis e vulneráveis a
danos causados por fatores como manuseio
inadequado, equipamentos em más
condições de operação e armazenamento
precário. A International Association of Sound
and Audiovisual Archives (IASA), organização
de referência no campo da preservação de
arquivos audiovisuais, chama atenção para
a natureza dos documentos audiovisuais,
pautada pela fragilidade:
Textos impressos ou manuscritos, assim como
documentos fixados em película, podem se
manter inteiramente legíveis mesmo quando
danificados; por outro lado, a natureza
contínua e baseada na duração temporal dos
documentos audiovisuais implica em que
qualquer comprometimento na integridade
do documento resulte na perda da informação
(IASA, 2017).

Em seu célebre Arquivística audiovisual:


filosofia e princípios, Edmondson (2017)
destaca outras características fundamentais
dos documentos audiovisuais, para além da
sua fragilidade.
Documentos audiovisuais são obras que contém
imagens e/ou sons reprodutíveis reunidos em
um suporte e que:
- em geral exigem um dispositivo tecnológico
para serem registrados, transmitidos,
percebidos e compreendidos
- o conteúdo visual e/ou sonoro tem duração

159
linear
- o objetivo é a comunicação desse conteúdo e
não a utilização da tecnologia para outros fins.

Dentre esses três elementos destacados

PUTA LIVRO
pelo autor, aquele que talvez mais impacte os
trabalhos de preservação é o primeiro, que
diz respeito à exigência de um dispositivo
tecnológico. Os documentos audiovisuais
se caracterizam, portanto, pela necessidade
de uma mediação tecnológica, pois somente
podem ser reproduzidos e interpretados por
meio de máquinas, que por sua vez também

MARCO DREER BUARQUE


devem ser cuidadosamente conservadas e
revisadas.
Outro aspecto a se destacar são os
processos de obsolescência que afetam
diretamente os documentos audiovisuais. No
caso dos suportes em vídeo, uma quantidade
considerável de formatos foi desenvolvida
sobretudo na segunda metade do século
XX para o registro em fita magnética, para
fins tanto domésticos quanto profissionais
e industriais. Desde 1956, quando do
surgimento do primeiro formato de registro
em vídeo analógico, até o ano 2000, cerca
de 60 formatos foram disponibilizados no
mercado, sendo que expressiva parcela
desse montante teve mínima adoção tanto
nas esferas profissionais de produção quanto
junto ao mercado doméstico.
Processos de obsolescência também
atingem diretamente as máquinas de
reprodução, indispensáveis para a leitura
e decodificação das fitas de vídeo. Trata-
se atualmente da ameaça mais letal à
preservação desses conteúdos audiovisuais,
pois a não disponibilidade das máquinas,
assim como a falta de peças de reposição
e de profissionais especializados em
manutenção, inviabilizam qualquer
possibilidade de reformatação digital desses
materiais.
Tais processos se refletem no Brasil
há mais de uma década, em função da
dificuldade cada vez mais presente de
160
se encontrar nos arquivos e instituições
de guarda, de modo geral, máquinas de
reprodução compatíveis com formatos mais
antigos – como, por exemplo, para as fitas
U-matic, que integram o acervo da Davida.
Para executar a digitalização dos materiais

PUTA LIVRO
deste projeto, foram utilizadas duas máquinas
U-matic profissionais, ambas adquiridas em
leilões virtuais e que, apesar de usadas,
apresentaram um ótimo desempenho. Ainda
assim, são máquinas que necessitam de
cuidados permanentes, desde procedimentos
de limpeza dos seus mecanismos internos
até eventuais revisões com profissionais

MARCO DREER BUARQUE


especializados.
No caso do acervo audiovisual do
Davida, um elemento técnico, relativo à
época de gravação das fitas, também teve
que ser levado em consideração: tanto as
fitas U-matic quanto as fitas VHS foram
originalmente registradas em sistemas de
gravação de dois tipos distintos: NTSC
(utilizado no território norte-americano) e
PAL-M (utilizado no Brasil). Para cobrir essas
características técnicas, foram necessárias
máquinas de reprodução compatíveis com
esses sistemas, a fim de que a reprodução
de cores, brilho e contraste das imagens se
desse de maneira correta.

Fitas analógicas de vídeo:


características e fatores de
deterioração

Como mencionado acima, no acervo


da Davida três formatos de vídeo analógico
se fazem presentes: U-matic, Betacam e
VHS. Para um trabalho de digitalização bem
fundamentado, é importante compreender
tanto o contexto de produção de cada um
desses formatos, quanto suas características
técnicas principais.
O U-matic é um formato cassete de
vídeo lançado pela Sony em 1971, que
utiliza uma fita de ¾ de polegada, com
base de poliéster. Foi o primeiro formato
161
de vídeo em cassete, que utiliza um estojo
plástico de proteção, uma vez que todos os
formatos de fita anteriores eram mantidos
em carretéis abertos. O U-matic se tornou o
formato padrão para propósitos industriais

PUTA LIVRO
e educacionais, sendo utilizado por mais
duas décadas. Foi amplamente utilizado
em produções de TV, particularmente no
telejornalismo, sendo também um formato
bastante presente em produções de artistas,
ativistas e instituições acadêmicas ao longo
das décadas de 1980 e 1990.
O Betacam tem características muito

MARCO DREER BUARQUE


similares ao U-matic, mas foi uma evolução
em termos de qualidade de som e imagem.
Também desenvolvido pela Sony, em 1982,
o Betacam é um formato de fita de meia
polegada que foi paulatinamente substituindo
o U-matic no mercado profissional e nos
meios artístico e acadêmico. Ainda que a
obsolescência também seja uma questão
para o formato, máquinas de reprodução
Betacam são muito menos escassas do que os
aparelhos U-matic, de modo que a urgência
para a digitalização dessas fitas é menor.
Observa-se também que as fitas Betacam
são menos suscetíveis a índices de umidade
elevados, algo que afeta intensamente as
fitas U-matic.
Ao contrário dos anteriores, o VHS
foi um formato concebido para o mercado
doméstico, desenvolvido pela JVC no final
da década de 1970, apresentando uma fita
de meia polegada de diâmetro. Portanto,
por não ser um formato de características
profissionais, as qualidades de som e imagem
são notadamente inferiores, com espectro
de cores reduzido. Por ter sido um formato
amador extremamente popular, ainda é
possível encontrar máquinas de reprodução
com alguma facilidade, embora usadas, o
que faz com que esses materiais estejam em
um grau de risco inferior às fitas Betacam e,
sobretudo, U-matic.
Todos esses três formatos analógicos de
vídeo são suscetíveis à deterioração por meio
162
de mofo, degradação do aglutinante1
e outros fatores físicos e biológicos. Assim
como grande parte dos suportes audiovisuais,
degradam mais rapidamente se expostos
a ambientes com temperatura e umidade

PUTA LIVRO
relativa elevadas. No entanto, conforme
apontamos acima, o maior problema
envolvendo esses formatos, assim como os
documentos audiovisuais de maneira mais
ampla, está relacionado com a obsolescência
das mídias e das máquinas. Portanto, em
termos de preservação, as fitas U-matic em
particular são consideradas de alto risco e

MARCO DREER BUARQUE


devem ser priorizadas em planejamentos de
digitalização, sobretudo devido à escassez
de máquinas de reprodução que estejam em
pleno funcionamento.
Por esse motivo, o processo de
digitalização das fitas do acervo da Davida
foi iniciado pelas fitas U-matic, seguido pelos
demais formatos. A priorização pelo U-matic
também foi motivada tanto pela idade das
fitas, mais antigas, quanto por conterem
registros únicos. Já algumas fitas VHS, por
exemplo, além de conterem registros mais
recentes, possuem cópias idênticas.

Acervo da Davida: estado de


conservação e procedimentos
de higienização

Os estojos das fitas de vídeo do acervo


da Davida não informam, em sua grande
maioria, as datas de gravação, mas alguns
indícios apontam que o material foi produzido
provavelmente entre as décadas de 1980 e
1990. Muitas fitas, portanto, foram gravadas
há pelo menos 30 anos, tempo considerável
para colocar esses suportes em risco.

1
O aglutinante é o elemento responsável por manter as
partículas magnéticas aderidas à base da fita.
A vida útil das fitas magnéticas não costuma

163
alcançar muito mais do que três décadas,
fazendo com que procedimentos de
digitalização sejam emergenciais, a fim de
extrair os conteúdos desses materiais o

PUTA LIVRO
quanto antes.
Uma vez se tratando de fitas magnéticas
gravadas há algumas décadas, foi necessário
um procedimento prévio de higienização
dos suportes, a fim de se obter um bom
resultado técnico ao final do processo de
digitalização, além de garantir o adequado
funcionamento das máquinas de reprodução.
A maior parte das fitas, de todos os

MARCO DREER BUARQUE


formatos, apresentavam mofo e sujeira,
sendo que em algumas delas a quantidade
de mofo era expressiva, de modo que os
microorganismos envolviam praticamente
toda a superfície da fita [imagem 1]. Houve
fitas que apresentavam sinais de cristalização,
mas que foi possível higienizar e digitalizar o
conteúdo sem maiores dificuldades [imagens
2 e 3]; e algumas poucas fitas se encontravam
ressecadas e enrijecidas, aparentemente
apresentando a chamada síndrome sticky-
shed (provocada por armazenamento
contínuo em ambiente com umidade elevada,
que faz com que o aglutinante da fita se
degrade). Nesses casos, as fitas não puderam
ser higienizadas nem digitalizadas, pois não
foi possível desembaraçar as fitas sem que o
óxido presente nelas se desprendesse, o que
poderia degradá-las irreversivelmente.2

2
Uma solução possível para esse caso seria “assar” a
fita, um procedimento bastante utilizado para suportes
com síndrome sticky-shed: a fita é depositada em uma
estufa específica, ao longo de algumas horas, para que
o aglutinante se reposicione, de maneira a ser possível
reproduzir a fita ao menos mais uma vez para que seu
conteúdo seja digitalizado e recuperado. Trata-se de
procedimento agressivo ao suporte, devendo ser utilizado
com critério e parcimônia, uma vez que a fita geralmente se
torna irrecuperável após sair da estufa.
164
PUTA LIVRO
MARCO DREER BUARQUE
Imagem 1: superfície da fita inteiramente tomada por mofo

Imagem 2: fita apresentando sujeira, mofo e cristalização


165
PUTA LIVRO
MARCO DREER BUARQUE
Imagem 3: fita da Imagem 2 após procedimento
de higienização

As fitas foram higienizadas


separadamente, de modo que cada uma
delas foi aberta e desmontada, para que
o procedimento pudesse ser feito em uma
máquina tira-mofo específica para cada um
dos formatos (U-matic, Betacam e VHS).
Além do material magnético propriamente
dito, o estojo e os carretéis também foram
higienizados com álcool isopropílico 99%,
componente que evapora rapidamente após
contato, evitando danos aos materiais.
Após a reprodução de cada fita, todos
os caminhos por onde passa a fita (guias
e cabeçotes de áudio) eram higienizados
através de hastes flexíveis que não soltam
fiapos embebidas em álcool isopropílico.
Além disso, o cabeçote de leitura era
higienizado com pano de microfibra, para que
partículas de poeira não pudessem interferir
na captura do sinal de vídeo.

Digitalização: especificações
técnicas e fluxo de trabalho

O fluxo de trabalho se iniciava com


a inspeção das fitas magnéticas, a fim
166
de avaliar o seu estado de conservação.
Informações sobre a presença de mofos
e sujidades eram devidamente anotadas
em uma planilha de controle. Além disso,
todas as fitas e seus respectivos estojos de
proteção eram fotografados, a fim de se

PUTA LIVRO
registrar possíveis informações relevantes
presentes nos rótulos dos materiais. Todas
as fotografias eram armazenadas juntamente
com os arquivos digitais de vídeo resultantes
da digitalização, a fim de proporcionar o
devido contexto entre suportes utilizados e
conteúdos digitalizados.

MARCO DREER BUARQUE


Em seguida, as fitas eram introduzidas
em suas respectivas máquinas de
reprodução, onde eram feitas avaliações
e testes preliminares sobre a qualidade
dos sinais de vídeo e áudio, além da
correta seleção do sistema de gravação
utilizado (NTSC ou PAL-M). A digitalização
propriamente dita se iniciava na sequência,
acompanhada em tempo real. Eventuais
problemas ou outras questões técnicas eram
registradas em uma planilha de controle,
voltada para o monitoramento do processo
de digitalização.
Quanto à digitalização e aos formatos
utilizados, alguns critérios foram adotados.
Uma vez se tratando de acervo de relevância
histórica e cultural, a informação audiovisual
foi digitalizada respeitando-se ao máximo
suas características originais, de modo que
não foram utilizados quaisquer tratamentos
ou filtragens eletrônicas de som e imagem.
Os arquivos digitais resultantes estão em
formato Quicktime (.mov), resolução 720
x 486 pixels, e codec DVCPRO50. Foram
gerados também arquivos digitais para
acesso rápido, em formato MPEG-4 (.mp4),
codec H.264 e taxa de bits de 2 Mbps.
Na maior parte dos casos, foi utilizada
uma placa de captura da Blackmagic,
juntamente com o software de captura do
mesmo fabricante. Em casos específicos,
em que a captura do vídeo apresentava
167
resultados irregulares, era feita também
uma captura através de placa fabricada pela
Pinnacle, e, ao final, o arquivo digital com
o resultado mais satisfatório de captura era
armazenado, sendo o outro descartado.

PUTA LIVRO
A cadeia do processo de digitalização
também incluiu o uso de um Time Base
Corrector (TBC), dispositivo essencial para
assegurar estabilidade ao sinal de vídeo.
Quanto aos resultados da
digitalização, de modo geral foi possível
capturar sinais de vídeo ainda íntegros, mas
riscos horizontais ou oscilações na imagem

MARCO DREER BUARQUE


estão presentes em algumas fitas, os quais
podem ser resultado de inúmeros fatores:
sujeira aderida ao suporte, deterioração do
próprio material, reprodução das fitas em
máquinas danificadas, reaproveitamento do
material etc. Em relação ao áudio, grande
parte das fitas apresenta sinal mono,
gravadas em apenas um canal sonoro, algo
comum em gravações do formato U-matic,
sendo que em alguns casos o áudio
apresenta distorção, pois foi originalmente
capturado desse modo.
Ao final do processo de digitalização,
os arquivos digitais gerados foram
armazenados em unidades de disco rígido
(HDD) externas, distribuídos em diretórios.
Cada diretório corresponde a uma fita
digitalizada, contendo uma matriz de
preservação e uma derivada de acesso,
além de fotos de registros do estojo da fita
[imagem 5], a fim de conservar informações
descritivas (metadados) importantes que
possam estar ali contidas.
168
PUTA LIVRO
MARCO DREER BUARQUE
Imagem 4: registro do estojo de fita U-matic,
com informações descritivas

Para cada um dos arquivos digitais


foi gerado um checksum, espécie de
impressão digital do arquivo, uma
sequência alfanumérica que confere sua
integridade, indicando que não foi alterado
ou corrompido. Recomenda-se que, a cada
vez que os arquivos forem movimentados,
uma verificação de checksum seja realizada,
tendo como parâmetro o registro de
checksum gerado originalmente. Além disso,
tal verificação deve ser feita em intervalos
regulares, pelo menos uma vez ao ano, a fim
de que se possa avaliar a integridade dos
arquivos digitais.
É importante salientar que o trabalho
foi acompanhado pela criação de metadados
descritivos e técnicos, com o objetivo de
contextualizar sobretudo os procedimentos
utilizados ao longo do processo de
digitalização. Foi elaborado, portanto,
uma planilha (formato Excel) contendo um
169
conjunto de metadados separados por
campos/elementos específicos, baseados
no padrão de metadados PBCore – voltado
especificamente para a descrição de
documentos audiovisuais. Os metadados

PUTA LIVRO
também têm a função de proporcionar um
melhor acesso e busca futura às informações
digitalizadas.
Os parâmetros de digitalização aqui
descritos, bem como os procedimentos
de preservação digital adotados, foram
baseados em recomendações internacionais,
sobretudo nos documentos da IASA, que

MARCO DREER BUARQUE


são importante referência no campo da
preservação audiovisual.

Considerações finais

O processo de digitalização e
preservação do acervo audiovisual da
Davida envolveu um conjunto de desafios.
Em primeiro lugar, foram necessários
procedimentos de higienização para a grande
parte dos suportes – fitas magnéticas que,
de modo geral, apresentavam condições
de conservação que inspiravam cuidados.
Em segundo lugar, uma vez que o trabalho
envolveu formatos analógicos de vídeo
já obsoletos, foi necessário fazer uso de
máquinas de reprodução em boas condições
de uso, cada vez mais raras de serem
encontradas. As fitas U-matic, em particular,
mereceram atenção especial, tanto pela
fragilidade do formato quanto pela escassez
das máquinas necessárias para a sua correta
leitura.
O trabalho não se limitou ao
processo de digitalização, incluindo também
procedimentos de preservação digital,
como a geração de metadados descritivos
e técnicos. Estas estratégias visaram não só
à preservação dos conteúdos audiovisuais
digitalizados, mas também à presunção de
sua integridade e autenticidade, qualidades
essenciais em um acervo digital.
Referências

170
EDMONDSON, Ray. Arquivística audiovisual: filosofia e
princípios. Unesco, 2017. Disponível em: https://unesdoc.
unesco.org/ark:/48223/pf0000259258. Acesso em: 22 ago.
2021.

PUTA LIVRO
IASA (International Association of Sound and Audiovisual
Archives). A Salvaguarda do Patrimônio Audiovisual: Ética,
Princípios e Estratégia de Preservação (IASA-TC 03). IASA,
2017. Disponível em: https://www.iasa-web.org/tc03-pt/
etica-principios-e-estrategia-de-preservacao. Acesso em: 22
ago. 2021.

VAN BOGART, John W. C. Armazenamento e manuseio de


fitas magnéticas: um guia para bibliotecas e arquivos. Trad.

MARCO DREER BUARQUE


José Luiz Pedersoli Júnior. 2 ed. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2001.

VAN MALSSEN, Kara. Preservação de vídeo e História Oral.


Oral History in the Digital Age, edited by Doug Boyd, Steve
Cohen, Brad Rakerd, and Dean Rehberger. Washington,
D.C.: Institute of Museum and Library Services, 2012.
Tradução de Marco Dreer. Disponível em: http://www.
via78.com/blog/preservao-de-vdeo-e-histria-oral-kara-van-
malssen. Acesso em: 22 ago. 2021.

WHEELER, Jim. Videotape Preservation Handbook. AMIA,


2002. Disponível em: https://amianet.org/wp-content/
uploads/Resources-Guide-Video-Handbook-Wheeler-2002.
pdf. Acesso em: 22 ago 2021.
HÉRCULES DA SILVA

171
XAVIER FERREIRA

ONDE A MEMÓRIA

PUTA LIVRO
DISPUTA
Some o dia, cai a noite fria.
E o silêncio me arrepia.
Vamos juntas que tem muito pra fazer.
Sem fingir que dá, que dói, é só dizer.
Música “Língua Solta”,
De Alice Coutinho e Romulo Fróes

Nas muitas narrativas que envolvem a


prostituição, a moral certamente participa
como teto delimitador sobre o que deve ou
não ser lembrado, principalmente por parte
dos órgãos oficiais de preservação em suas
três instâncias: municipal, estadual e federal.
Nesse sentido, interessante é pensar no
IPHAN, órgão federal que já possui pouco
mais de 80 anos. Suas 5 letras indicam
sua função social: Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Atualmente,
porém, há o entendimento de que tanto os
termos ‘histórico’ como ‘artístico’ não dão
conta de abarcar a totalidade da cultura
brasileira, optando-se, justamente, pelo
termo ‘cultural’ para melhor uso e referência
no campo do patrimônio. Seu equivalente,
para o estado do Rio de Janeiro, chama-se
INEPAC: Instituto Estadual do Patrimônio
Cultural. Já para a instância municipal
carioca tem-se o Instituto Rio Patrimônio da
Humanidade, o IRPH. Estes órgãos, como
muitos outros dispostos pelo país, são
responsáveis pelos processos e anotações em
livros próprios dos inúmeros bens culturais
espalhados por todo o território brasileiro.
Junto de algo compreendido como
um bem cultural vem a reboque a ideia
de sua preservação. Mas o que seria esse
172
patrimônio, cultural, que se deve preservar
e manter? E o que ele tem a ver com as
prostitutas e com a prostituição? Se forem
dadas respostas marcadamente objetivas
para tais perguntas, um certo elemento

PUTA LIVRO
subjetivo será ignorado, que é justo o que
motiva e fomenta a defesa daquilo que será
entendido como um bem. E especificamente
bem cultural.
Não há atos ingênuos por parte do
Estado. Pois os órgãos mencionados lidam
com a promoção de eventos passados
que, postos como memória social, bens

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


e patrimônios culturais, vão servir de
composição ideológica para a construção de
uma identidade nacional. E, pelos afetos, uma
população identificada com tal narrativa, vai
sentir-se parte de algo maior que a esfera
íntima, privada, que ajudará na manutenção
dessas ideias e ideais; parte de um coletivo,
que se quer/pretende grande, que nos
exemplos usados são ‘carioca’, ‘fluminense’ e
‘brasileiro’.
Para articular a reflexão acima podemos
nos utilizar de algumas abstrações, como, por
exemplo, por que proprietárias defendem
seus imóveis? Por que militares defendem seu
país? Por que famílias protegem parentes?
Por que pessoas defendem seus interesses?
Elas o fazem pelo valor atribuído. Essa
atribuição (valor) é fruto de um investimento,
na combinação de afetos, identificações e
tempo - e também, em muitos casos, de
dinheiro. E essa combinação diz respeito
ainda à memória, devido a sua capacidade
de falar sobre, de narrar, uma capacidade
de contar, de dizer algo a respeito. É pela
memória em seu ato de lembrar que o valor é
atualizado.
Talvez seja mais fácil imaginar por uma
outra perspectiva... a do crime, que tal? Se
algo, com o qual podia-se contar, é subtraído,
a expectativa de seu uso é frustrada. Seja
um simples iogurte deixado na geladeira em
uma noite e não encontrado pela manhã, seja
um carro estacionado por 30 minutos que é
173
roubado. Em suma: qualquer coisa que se
espera encontrar ou ver em algum lugar e...
nada!, eis o crime. Inclua-se aí nesse bojo o
passado de qualquer localidade com suas
pessoas em suas atuações, com os cheiros e

PUTA LIVRO
demais ocorrências e acontecimentos, isto
é, uma ausência que se faz sentir devido sua
busca, afetiva ou não, que não foi localizada,
encontrada. Mas então não ver mais a
pipoqueira em frente uma antiga escola
que deu lugar a uma academia, seria algo
criminoso? Aqui cabe um sorriso malicioso.
A memória do fato ainda está guardada,

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


mantida, na lembrança, logo não sumiu de
todo. A mudança deu-se na sociedade, na
dura realidade dos apressados que vão de
um lado para o outro em suas cotidianas
atividades, a trabalho ou a lazer. Aquela
pipoqueira agora reside em outra esfera, pois
mesmo ausente no social, estará presente
no ato de lembrar, que pode tornar-se em
gesto de memória ao se apontar para o local
e contar sobre ele e seu entorno, “aqui, onde
hoje é uma academia, havia uma escola e à
frente dela, uma pipoqueira; quando dava
meio-dia, a criançada corria para comprar-lhe
vários saquinhos das mais salgadas ou doces
que tivesse”.
A memória afetiva impõe valores e
colabora para sua manutenção no espaço,
e também para o reconhecimento social
através das diversas homenagens. Ainda
no exemplo da pipoqueira, ela sendo muito
querida pelas crianças e dependendo de
sua biografia, seu nome poderia figurar em
uma praça, um espaço, uma rua ou mesmo
uma esquina. Opções não faltam quanto às
formas de marcar a ausência de alguém que
se tem em conta. Se muitas são as maneiras
de registrar a passagem de alguém pela
Terra, outras tantas são as que lhe calam o
testemunho por questões que - forçoso dizer
-, perpassam pela moral. Como exemplo,
bem carioca, tem-se o decreto municipal1,
número 42.212 de 1º de setembro 2016,
que institui como “RUA GABRIELA LEITE
174
(Socióloga), o logradouro antes conhecido
como Rua Projetada B do PAL 46983 e Rua
Projetada B do PAL 47068” e que conforme
consulta ao CCNLEP, sigla para Comissão
Carioca de Nominação de Logradouros e
Equipamentos Públicos, este reconhece a

PUTA LIVRO
ausência de emplacamento2 para a referida
rua, bem como o seu respectivo CEP, embora
esta competência seja dos Correios.
Com base no que é possível afirmar
que se trata de uma moral, atuante, que
impede a justa homenagem? Realmente: não
é possível afirmar diretamente. Mas então

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


por qual motivo insiste-se na moralidade
como espécie de censura prévia a uma
homenagem? Talvez pelo fato de constar
como profissão ‘socióloga’ e não a outra, a
de puta3, ocorrendo assim um certo tipo de
apagamento. Afinal, a própria homenageada -
e saudosa - Gabriela Leite, falou que “é muito
engraçado porque eu não sou socióloga,
eu não terminei meu curso. Mas as pessoas
botaram na cabeça que eu sou socióloga,
então as pessoas dizem assim: Gabriela
socióloga e ex-prostituta”. E na mesma fala
ela prossegue dizendo que “É engraçado,
porque o que eu não sou, eu sou; e o que
sou, eu não sou. Pra ver a que ponto chega

1
O decreto, na íntegra, pode ser conferido aqui:
https://leismunicipais.com.br/a1/rj/r/rio-de-janeiro/
decreto/2016/4222/42212/decreto-n-42212-2016-
reconhece-como-logradouros-publicos-da-cidade-do-
rio-de-janeiro-com-denominacoes-oficiais-aprovadas-os-
logradouros-que-menciona-situados-no-bairro-pechincha
-na-xvi-ra
2
A ata da reunião, de 8 de abril de 2019, pode
ser acessada em: http://www.rio.rj.gov.br/
dlstatic/10112/9085213/4239303/AtadaReuniao08.04.2019.
pdf
3
Importante registrar que para referir-se à palavra ‘puta’,
os mais variados termos e expressões foram inventados,
conforme pode ser lido em O Dicionário do sexo e da
prostituta, da Scortecci Editora, 2001. Seu autor, Émerson
Ribeiro Oliveira, pesquisou e registrou cerca de 3 mil
verbetes.
175
o preconceito, que chega o estigma e tudo
mais. É um absurdo. Eu não sou socióloga,
mas eu sou puta, estou aposentada, mas
eu sou”. Ela também confirma que acha
“detestável me chamar de ex-prostituta”, e
que “não precisa me chamar de socióloga,

PUTA LIVRO
não, não quero, não precisa mas me chamam
de socióloga, acho que até pra justificar o
fato de eu ser puta, sabe como que é?”. E
aqui ela escancara a maior violência simbólica,
feita contra a profissional e a profissão, o de
criminosamente lhe calar a fala, “eles mesmos
querem justificar pra mim. Eu não preciso
dessas justificativas, nunca precisei”. Estes

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


trechos foram recolhidos do filme Corpos que
escapam, de 2016, com a direção de Angela
Donini.
Como outro exemplo, há o decreto
que tomba o Cemitério Israelita de Inhaúma
- e sempre mencionando a professora
historiadora Beatriz Kushnir e sua luta
incansável pelo ético gesto de memória -, em
âmbito municipal carioca, de número 32993
de 27 de outubro de 20104. Esse decreto,
o seu texto, não tem escrito o epíteto de
‘polacas’, nem tampouco a profissão de
prostitutas que exerceram por muitos anos,
inclusive fundando com o dinheiro obtido
da prostituição uma sinagoga e uma rede de
assistência mútua, além, é claro, do próprio
cemitério.
Em busca de pistas sobre, também é
possível pegar como exemplo o processo
0064-T-38 junto ao IPHAN, que tomba a
cidade mineira de Diamantina, pois lá consta
que em 1959 uma certa reclamação do
arcebispo, endereçada ao presidente da
república Juscelino Kubistchek, solicitava o
levantamento (cancelamento) do processo
para poder dar início às obras de recuperação

4
O decreto, na íntegra, pode ser lido aqui:
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4722991/4122086/
255DECRETO32993CemiterioIsraelitadeInhauma.pdf
176
de um imóvel... mas no real objetivo de
expulsar as prostitutas que faziam o dito
uso indevido, tanto do lugar, quanto de seus
corpos. Um verdadeiro acinte!
Esses apagamentos e ausências, de
palavras e profissões, escanteiam sempre

PUTA LIVRO
pessoas, promovendo assim um alto grau
da mencionada violência simbólica. Afinal,
escanteiam elementos sociais entendidos
sob a categoria do ‘indesejável’, embora
dentro de um certo grau de tolerância,
isto é, desde que camuflado, escondido,
disfarçado, discreto, quase invisível. Por sinal,

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


no bairro conhecido como Cidade Nova,
onde está construído o prédio administrativo
da prefeitura do Rio de Janeiro, havia muitas
‘casas de tolerância’, ‘pensões alegres’,
‘conventilhos’, prostíbulos, que resistiram ao
máximo que puderam até sua mudança para
a rua Sotero dos Reis, na Praça da Bandeira.
Sobre esse lugar foi escrito, também, o
seguinte:
Quem, onde o rubor não domine
a face, ou cujos pudores não descure a
moral e os bons costumes, pautados em
hipócrita perfídia a julgar corpos alheios na
sensualização, “porque, aquele que pede,
recebe; e, o que busca, encontra; e, ao que
bate, abrir-se-lhe-á5”, desde que a pecúnia
se faça presente em laços efêmeros; e, no
encontro de trilhos, asfalto e concreto, na
coincidência à guisa de único umbral por
sobre um rio de ocres águas, cujo olor soma-
se à frituras, ranços e perfumes baratos já
vencidos pelo diário labor, nessa recepção de
exclusiva paleta odorífera, em decompoente
paisagem de sujos animais, lixos e quetais; e,
ao fundo, escutar sons de batidas eletrônicas
e urros que em verdade são cantos lúbricos,
enquanto aproxima-se da barraca de cachorro
quente pedindo informação, saiba logo a

5
Referência bíblica: Mateus 7:8.
177
resposta para seus desejos: bem vindo à Vila
Mimosa – VAI COMEÇAR A (§ 8º)RIA.6
A indicação do ‘parágrafo oito’ (§8),
acima, diz respeito a uma lei do período da
ditadura cívico-militar que versava sobre a

PUTA LIVRO
moral e os bons costumes, devido a ameaça
que determinadas práticas e modos de ser
poderiam levar às famílias de boa gente. Isso
incluía termos considerados ofensivos. E o
sorriso que vem malicioso, aqui, fica mais
provocativo. Por essa moral e bons costumes,
quantas vozes potentes não foram caladas?
Ou ainda: quem de fato está na ocorrência

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


de um crime? No processo mencionado
de Diamantina o gestor à época ignorou o
pedido. Mas ainda é pouco. É preciso ocupar
os muitos espaços conflituosos.
Ainda que os poderes públicos insistam
numa dada higienização social, taxando
automaticamente como ruim e suja toda
aquela categoria tida por indesejável, devido
à moral vigente em relação às prostitutas
e a prostituição - que o vulgo refere-
se asquerosamente como ‘três pês’7 -, a
memória sobre seus corpos e ações vazam
por outros canais, como por exemplo, os
apelidos em relação às localidades: o prédio
da prefeitura do Rio de Janeiro chama-
se ‘piranhão’, o anexo é o ‘cafetão’, com a
praça no meio sendo chamada de ‘praça do
orgasmo’8. Esses apelidos fazem menção
direta ao passado do lugar e da região, que

6
Passagem retirada da dissertação Onde a Memória
Disputa: Filosofia, Patrimônio, (§8): http://portal.iphan.
gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/FERREIRA_Hercules-
Dissertacao_Mestrado.pdf
7
Preta, pobre e puta. Sim, é horrível, mesmo, essa
expressão, por conter um preconceito digno de prisão para
quem profere.
8
Sobre essa toponímia o professor João Baptista Ferreira
de Mello escreveu um bonito texto, que pode ser lido
em: http://www.neer.com.br/anais/NEER-2/Trabalhos_
NEER/Ordemalfabetica/Microsoft%20Word%20-%20
JoaoBatistaFMello.pdf
já fora chamada de República do Mangue,

178
donde zona do mangue era a referência
política-administrativa, e também policial,
que confinavam as ‘marafonas’, ‘quengas’,
‘primas’, ‘meretrizes’, ‘mulheres de vida
airada’, ‘messalinas’, ‘rameiras’, ‘michelas’,

PUTA LIVRO
‘biscaias’, ‘chinas’, ‘dadeiras’, ‘decaídas’, e
ainda ‘mariposas’, bem como outros tantos
inventados criativamente como forma de
driblar a censura – e a moral e os bons
costumes. E há quem diga que, por conta
das festas e demais animosidades que
aconteceram e aconteciam durante o período

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


dessa farra, o nome zona, que implicava
organização e ordenamento, tornou-se um
sinônimo de significado oposto: bagunça.
A Vila Mimosa foi o último bastião a
cair, por volta de 1994, da Cidade Nova,
pondo uma espécie de ponto final à
experiência de uma área de lazer adulto9 na
região central do Rio de Janeiro, mas com
equivalente planejado, e não fruto de um
cerco policial/cordão de isolamento, que é o
Jardim Itatinga10, em São Paulo. Importante
mencionar que, anos antes, em junho de
1987 foi organizado um inédito evento no
Rio de Janeiro, no Centro de Artes Calouste
Gulbenkian, que fica na Praça XI - a mesma
região que na década de 70 foi palco de
grandes demolições, dos inúmeros cortiços
que serviam de prostíbulos, devido às
obras da linha 2 do metrô, que a imprensa
na época chamou de “espanta mariposas”
ou “borboletas”. O evento foi o I Encontro
Nacional das Prostitutas, organizado
pela baita11 Gabriela Leite, com apoio do

9
;-)
10
Diana Helene Ramos, professora arquiteta, escreveu uma
brilhante tese, cujo título são os infames ‘três pês’, que
pode ser lida em: https://uab.capes.gov.br/images/stories/
download/pct/2016/Teses-Premiadas/Planejamento-Urbano-
Regional-Demografia-Diana-Helene-Ramos.PDF
11
Sinônimo equivalente à “grande”, “célebre”, “insigne”,
“puta”.
179
ISER, o Instituto de Estudos da Religião.
Interessante associar esse evento com outro
que viria trinta anos depois, no Maranhão,
o V Encontro Nacional das Prostitutas, pois
o lugar de encontro foi no Convento das

PUTA LIVRO
Mercês, antigo abrigo católico da Ordem dos
Mercedários. Bem se diz que Deus age de
maneiras misteriosas.
Mas bem, sobre elas e a partir delas,
muitos e muitos textos foram escritos, muitas
ações ocorreram e seguem ocorrendo.
Como as várias associações espalhadas
pelo Brasil afora e suas várias conquistas

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


pela preservação da história e memória da
profissão e das profissionais. Citando apenas
uma, como exemplo, a APROSMIG em Minas
Gerais e o Museu do Sexo... que garante
visibilidade e reivindicações políticas no que
diz respeito às narrativas de si. É preciso
ter em conta para poder contar, sim, mas
principalmente é preciso que as próprias
envolvidas no métier falem de si.
Muitas e muitas pesquisadoras,
e putativistas, e putas, escreveram e
eventualmente escrevem sobre o tema,
como Indianare Siqueira, Lená Medeiros
de Menezes, Soraya Silveira Simões, Luzia
Margareth Rago, Aparecida Fonseca Moraes,
Beatriz Kushnir, Amara Moira, Cristiana
Schettini Pereira, Magali Gouveia Engel,
Diana Helene Ramos, Sueann Caulfield,
Monique Prada e Gabriela Leite e outras
tantas. Inclusive tantos que também
resolveram falar sobre o tema.
Como uma dessas ações de falar sobre,
um mapa de nome Roteiro da Prostituição
foi feito, cujo acesso se dá através do link
https://tinyurl.com/prostituicao. Esse mapa
consiste em registrar os endereços citados
nos inúmeros livros das autoras mencionadas,
acerca do período mais antigo da história
do Rio de Janeiro, bem como de pôr
também os vários bordéis que estejam em
funcionamento.
Finalmente, com o devido cuidado,
não há como lançar fora pelo esquecimento
180
as necessárias palavras de Monique Prada,
quando escreveu que: “eu sou aquela cuja
palavra é constantemente invalidada – eu sou
uma proscrita, e para cada uma das palavras
que escrevo há alguém que sabe mais do que

PUTA LIVRO
eu, estudou mais do que eu e leu mais do
que eu e, portanto, pode falar melhor do que
eu sobre as coisas da minha vida”12. Falar de
si e, principalmente, ser ouvida por outrem,
implica em diálogo e em troca, condição
para combater estigmas e fortalecer estimas.
Condição para valorar a própria biografia
e saber que faz parte de outras tantas

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


parecidas que vão compor a devida parte
de uma História que, politicamente, sempre
se tenta esconder ou negativar como algo
degradado.
A vida é mesmo esse palco de lides,
polêmicas, conflitos, embates e tudo o mais.
Quando se pensa no resultado formado a
partir de tais contendas, quando se pensa
que tudo que falamos e ouvimos sofre
uma mudança, e com a ação antecipada de
colher algo bom daí, tem-se então a devida
depuração. Depurar talvez seja uma palavra-
chave diante de algo imputado como ruim em
uma disputa a ser deputada como boa – tem
puta em tudo. Pois se há uma narrativa oficial
imposta de cima pra baixo, que se faça força,
essa força subterrânea, própria dos mares
e vulcões. Que o bate boca esteja presente
sempre, que as falas conflitem e sejam
deputadas, ressignificando-as. E se afirme aí
o respectivo lugar de resistência e afirmação,
ensejando novo entendimento àquela palavra
que insistem em usar como ofensa o que, na
verdade, é um puta elogio.
Choques, embates, conflitos,
polêmicas, são palavras que surgem
nos movimentos de reivindicações de
visibilidades, de vozes insurgentes, que re-

12
Fortes palavras ditas em momento forte e por pessoa
forte, com outras que podem ser conferidas no link: https://
dialogospelaliberdade.com/2015/10/08/
afirmam seu passado para fortalecer suas

181
bases no presente. Bases estas que servem
para o sentimento de unidade e identificação
e também de orgulho. Daí a importância da
luta. No Rio de Janeiro houve uma República
do Mangue, uma “cidade dentro da cidade”,

PUTA LIVRO
conforme dito pelo poeta Manuel Bandeira,
para essa região que foi atualizada para
Praça XI e Cidade Nova. A baixa referência
atual para as ocorrências passadas deve-se a
critérios de influência higienista, sanitarista,
partindo de velhos médicos e suas velhas
ideias, que associavam sujeira e salubridade
do ambiente às mentes e aos corpos que

HÉRCULES DA SILVA XAVIER FERREIRA


frequentavam tais espaços – bem como o uso
de ambos, alcançando o clímax imaginário e
ideológico que vai imputar o mecanismo de
vergonha e repulsa à estes usos e costumes,
como pode ser entendido a partir de frases
cotidianas como “não fica bem pra você estar
em tais ambientes”, ou, “você, fazendo isso,
e ali, pra quê”?
Mas houve lugares, como sempre
terão, frequentados por cidadãos de
toda ordem, por súditos de toda ordem;
por rainhas. Um puta passado a ser
constantemente lembrado e bem recordado.
Lugares de puta memória.
Lugares onde a memória... dis-puta.
182
INDIANARAE SIQUEIRA

PUTA LIVRO
Os pelos que ostento hoje não me
fazem nem menos nem mais do que
quem eu sou.
É o meu grito de liberdade.
Um grito libertador.
É tirar os grilhões dos padrões sociais
que me impediam de avançar.
É me encontrar.
É um grito de liberdade silencioso,
que toma o meu rosto saindo por baixo, no
queixo e nas laterais do lábio superior.
É a minha carta de alforria, que liberta
quem olha e encontra, através de meu corpo
e rosto, uma estrada de liberdade, colocada
como estandarte pra dizer: Sim, você
também pode e não se obrigue a nada.
Sobrevivente, ultrapassei a expectativa
de 25 anos de vida pra transvestisgeneres no
Brasil. Eles aumentaram a meta pra 35 anos e
eu bati a meta.
Ultrapassando metas, outra vez
sobrevivi aos 45 anos.
Agora chego aos 50 anos de vida,
sobrevivente e vigiade por câmeras de
protocolo de segurança.
Sim tenho pelos e por trás dessa barba,
através desse cabelo branco, dessas rugas,
é como se você lesse um livro de histórias
contadas e experiências sobrevividas e
repassadas a frente, como um manual de
sobrevivência.
Sim. Ainda sou eu. Agora sou eu.
Foi meio século de vida e parece que foi
bem mais.
Foram muitas lutas que já não me
lembro mais quando não foi luta.
183
Do respirar ao dormir, ao transitar em
uma rua, ao se alimentar, ir a um médico,
acessar a educação na escola e até mesmo
um banheiro pra necessidade fisiológica, tudo
se tornava uma luta.
Fui Kaoma, Sophia por lembrar Sophia

PUTA LIVRO
Loren diziam, Indianara, Lídia, Luisa, Vênus
travesti Asiatique, fui Fênix, Indianare e hoje
Indianarae.
Sobrevivi às ruas e suas calçadas como
cama.
Sobrevivi dos alimentos caídos dos
caminhões .

INDIANARAE SIQUEIRA
Sobrevivi ao braço armado do Estado
que violentava meu corpo jovem, mas já
forjado na dor, que às vezes, ao provar meu
sangue e sentir o gosto dele, era a prova de
que eu ainda estava vivente.
Alguns estupros praticados por agentes
do Estado, que depois de um tempo eu já
não os repelia mais.
Foram muitas surras da vida.
Sobrevivi ao Hiv/Aids e perdi muites pra
aids.
Sobrevivi comendo do que caía de
caminhões que abasteciam feiras e mercados,
a ponto de automaticamente meu estômago
reconhecer o ronco do motor que trazia o
alimento já esperado e disputado quase a
tapa ou a tapa mesmo.
Sobrevivi aos lares por onde passei.
Mas vivi.
Vivi nos puteiros e esquinas onde
aprendi a cobrar pelo que queriam que eu
desse de graça.
Adotade por putes, fui educade e
forjade pra viver .
No puteiro me desnudei, ri, bebi,
aprendi sobre a vida em uma intensidade que
nenhuma universidade está preparada pra me
ensinar.
De perspicácia à filosofia passando pela
praxis fui contestando, me contestando, me
libertando ao colocar
preço no que queriam que eu doasse
sem garantias de gozo.
184
E então, de repente, mãos e bocas
sôfregas exigiam meu corpo pra satisfazer
desejos, me dando o dinheiro necessário pra
não correr mais atrás do caminhão e então
meu estômago perdeu sua memória faminte

PUTA LIVRO
e minha pele passou a ter uma memória
sexual.
Os caminhões de comida agora eram os
homens da sacrossanta família, que pagavam
pra comer-me-los.
Estampei capa de revista com meu
corpo desnudado sendo exposto em bancas
de jornais país afora com eles de pênis em

INDIANARAE SIQUEIRA
riste por minha ereção vital.
Corri mundo.
Vivi vidas.
Fui presa pra encontrar a liberdade e ao
ser livre das grades físicas me encontrava de
novo aprisionade em uma sociedade que me
odiava e me queria morte.

Todas foram eu pra ser todes eu mesme.


Estou aqui, ainda sou eu.
Daqui partimos juntes.
Você já dançou à luz da lua.
Eu te convido pro baile.
A música está dentro de você.
Pare e sinta o ritmo.
Está dentro de você.
Be Yourself .
Seja você mesme.
Vamos juntes daqui em diante.
Por mim.
Por nós.
E por todes.
Beijes!
185
DOROTH DE CASTRO

PUTA LIVRO

Acervo Davida: Prostituição, Direitos Civis e Saúde/


Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro.
186
NAARA MARITZA DE SOUSA

PUTA LIVRO

Prostituta,
minha irmã,
conheço tua luta
És mulher guerreira
que não foge da labuta
Do pecado surgira
disseram línguas fajutas.
Mas da árvore dos anseios
e desejos humanos
És a mais doce fruta.
187
Criadora e criatura
dessa força bruta
Enfrenta o patriarcado
E por seus direitos luta
Das experiências, astuta

PUTA LIVRO
Da militância, recruta.
Pedras lhe são jogadas
Porque receiam ser escutas.
Onde já se viu?
Mulheres, bruxas, putas, prostitutas
com tal conduta?
Corpos, mentes e almas livres
Instrumentos de permuta?
Hipócrita sociedade biruta!

NAARA MARITZA DE SOUSA


Das feministas aos amantes,
As suas causas, refuta.
Em meio ao ódio e hipocrisia
És impoluta!
Segue adiante, absoluta!
Da vida, das relações e dos
amantes, desfruta.
Em forma de poema chulo,
Registro essa minuta.

Poemas chamados pela autora, ex


trabalhadora sexual, de “poemas chulos”
e/ou “poemas mundanos”, a proposta
do fotopoema intitulado “Prostituta”, foi
publicada na rede social Instagram, em sua
conta pessoal1, em comemoração do “Puta
Dei 2021”. Comemorado em vários países do
mundo e batizado no Brasil de Puta Dei, no
dia 2 de junho se festeja o Dia Internacional
da Luta das Trabalhadoras Sexuais, que tem
como marco o dia em que as putas francesas
invadiram uma igreja em 1975, em Lyon, para
denunciar a violência contra elas e reivindicar
seus direitos.

1
O Fotopoema se encontra em postagem realizada no
dia 04 de junho de 2021 na rede social Instagram da
autora. @naaramaritza
188
A homenagem se refere a liberdade
da mulher prostituta. Liberdade de fazer
o que quiser, de usufruir de seus direitos
sexuais e dos direitos que envolvem sua
profissão. O poema também indica a luta
das trabalhadoras sexuais em meio às

PUTA LIVRO
hipocrisias e estigmas que enfrentam no
sistema patriarcal. Para essas milhares de
trabalhadoras que não fogem da labuta,
ofereço um poema chulo para celebrar a luta.
A imagem é uma foto datada em junho
de 2021, do acervo pessoal da autora,
editada no aplicativo “PICSART – Photo
editor”.

NAARA MARITZA DE SOUSA


189
NATÂNIA LOPES

AUTOBIOGRAFIA DAS

PUTA LIVRO
COISAS
Eu me transformei em muitas coisas,
mas nunca deixei de ser fêmea. Assinei todos
os contratos que a cultura tem para esse
nome. Mas custou até que eu me tornasse
mulher.
Primeiro eu era minha mãe. Não fui
minha mãe só enquanto dividíamos o espaço
de um corpo. Lembro dela me dizendo,
quando eu já tinha montinhos de seios por
debaixo da blusa, que tínhamos que cortar
o cordão umbilical -alertando-me para o fato
de que eu havia nascido. Antes de aceitar o
convite fiz todos os experimentos que pude
com o cordão: pus no pescoço, que é para o
que servem os cordões, afinal. E me olhei no
espelho. Mãe. Nosso colar de pérolas. Depois
amarrei no alambrado para me enforcar.
Também joguei janela abaixo para tentar
escapar da torre. Nada disso valeu para
preservar o cordão. Então decidi cortá-lo. O
nosso cordão. Mas isso não é coisa que se
decida, claro que não é. É coisa que se sinta.
Por isso tentei dilacerar o cordão à dentadas
como fazem as cadelas. Sem sucesso. Nada
consegui além de dor e sangue. Minha filha
tinha que nascer. Mordi a tripa com toda a
força. Os filamentos de nervos estancando
nos dentes. Assei os cantos da boca. Senti
gosto de ferro. Nada. Éramos eu e minha
mãe.
Um dia eu estava na escola sofrendo
com a nossa distância. Olhei para uma escada
e pensei: vou saltar dos degraus -como
quando chamamos a atenção do bebê para
qualquer coisa boba a fim evitar os berros.
Eu já era grande, mas era pequena. Pulei do
primeiro degrau para o chão. Era fácil. Subi
até o segundo e pulei. Fácil. Do terceiro
190
foi fácil também. Do quarto, o pulo já era
para alguém do meu tamanho. Do quinto
foi desafiador. Do sexto, cheguei ao chão
catando cavaco, como dizia minha mãe. O
inspetor veio me chamar. Ela metia a cara

PUTA LIVRO
esbaforida pelo portão. Eu sorri e ela sorriu
de volta, aliviadas, as duas, sem a tensão do
cordão.
Então me encantei por coisas. Já me
reconhecia no espelho. Gostei de música. De
uma bateria de heavy metal, daquele estilo...
Dos lugares para onde as avenidas de som
me levavam, saindo do bumbo, dos pratos...

NATÂNIA LOPES
Fui a festivais. Fechei os olhos e cantei. Fiquei
reativa. Uma vez levei um toca-discos para o
banheiro, tarde da noite. Apaguei as luzes e
tomei um banho quente. Não se via nada no
meio do negro vapor. Mas dava para ouvir
as viradas molhadas da bateria com todos
os poros dos braços, no pescoço, na barriga,
escorrendo desde a cabeça, passando por
dentro das pernas, pingando dos cabelos, na
boca...
Eu amava aquilo, mas estava perdida
no mundo, com meu nascimento tardio.
Uma garota pósmatura. Via os vultos com
o canto dos olhos e tentava persegui-
los e era atropelada pela marcha habitual
dos passantes, que eu não conhecia bem.
Saudades da minha mãe! Do ventre da minha
mãe. Da nossa casa cheia de papéis da minha
mãe professora.
No meio do tumulto encontrei uma
banquinha de livros usados. Ficava numa
praça que tinha uma igreja e um quiosque de
flores. Parei ali pra beber água, pra descansar
os pés da caminhada bruta. Peguei uma
coletânea esfarrapada de trechos clássicos do
marxismo.
E virei o livro. Revirei. Era aquilo! Era
eu. Logo virei bandeira. Uma bandeirona
vermelha com as ferramentas dos
trabalhadores estampada. Tão demodè, eu,
bandeira. Ganhei fôlego, com a minha nova
forma, para estar no meio das multidões. Eu
tinha um cabo de madeira cheirando a suor
191
capaz de partir um crânio. E um algodão
romântico e inspirador que pertencia ao ar.
Me erguiam no alto. Eu me erguia. Sobre as
cabeças podia ver as convicções, antigas,
na falta de novas. Queríamos querer alguma

PUTA LIVRO
coisa. Algo que fosse justo.
Houve um grande fórum, noutra
praça, no sul. Eu estava lá, bandeira,
exalando juventude. Nós dormíamos em
acampamentos. Gritávamos pela libertação
que a gente fingia entender do que tratava,
e entendia afinal. Na falta de casacos a gente
bebia cachaça, se abraçava, fazia fogueira e

NATÂNIA LOPES
contava histórias.
Pelas beiradas dos caminhos, um povo
irmão apareceu, por detrás das pedras,
vendendo brincos de pena, pulseiras feitas
com sementes. Conchas lilases, corais
vermelhos, arabescos de arame. Lindo!
Como sempre, capturada pela beleza,
tornei-me um punhado de missangas.
Bobas e artísticas. Incríveis! Aviltadas pela
ordem, tínhamos a nossa própria ordem,
transpassadas por um fio de nylon, postas
em fila de três verdes, três azuis, uma maior,
amarela como o sol, três azuis, três verdes...
Um punhado missangas cheias de luz, eu era.
Os hippies me penduravam aos montes nas
suas tranças, nos seus braços e pernas, nas
suas barracas, nas árvores. Defumadas por
ervas, fumos, incensos, nós fomos pela vida
seguimos em caravana. Eu e minha trupe
de palhaços e malabaristas da razão e da
tristeza... Fumávamos para dar onda e surfar
nela.
Tornei-me um cigarro de maconha bem
verde. Um cigarro eterno. Verde, bem verde
mesmo. Tragada, eu estalava um pouco,
lembrando roça e aconchego. Me dizendo
mato. Imaginando histórias, compondo
lendas. Observando em silêncio. Fluindo
como as marés. Mundos e mundos internos,
um infinito invaginado.
Incendiei-me e fumei a mim mesma,
num loop de irrealidade. No fundo da espiral
havia um núcleo duro: a verdade das coisas.
192
Mas era inalcançável. Armei-me até os dentes
contra esse fato. Já tinha algum cansaço, mas
a vida estava só começando. E eu me tornei
mulher.
Notei que carregava uma mala cheia

PUTA LIVRO
de coisas que me sopravam respostas diante
das dúvidas. Uma fotografia desbotada,
meu cordão umbilical seco, preso por um
pregador de plástico branco. Meus dentes
de leite. Um fiapo de bigode de gato, um
potinho com lágrimas, uma bactéria de
estimação e outras velharias. Nada que me
fizesse rica. Precisava de dinheiro.

NATÂNIA LOPES
Logo que passou pelas minhas mãos
uma nota grande, dessas com cheiro de
acabava de sair da casa da moeda, eu me
transmutei na cédula, com meu devido
lastro de outro guardado em algum lugar.
Me lambuzei de comprar aquilo de que não
precisava, esquecendo do que precisava.
Invadi uma loja de joias. Roubei um banco.
Fui podre de rica. Podre.
Depois desisti de tudo, como sempre.
Virei uma casa com filho e cachorro, e
planta e papagaio, marido desses bons...
Uma casa com quintalzinho. Bem casa. Com
bolo assando no forno e janelas abertas,
com canto de passarinhos... a coisa mais
doce do mundo! Então tudo acalmou, ficou
às claras. Tudo o que fui foi apaziguado e
estava ao alcance da mão, numa prateleira
desempoeirada, disponível para o melhor
arranjo. Assim como se administra o arroz e
o feijão para que durem até o final do mês.
Só uma dúvida permanece, mas ainda falta
formulá-la.
193
INDIANARAE SIQUEIRA

PUTA LIVRO
“A menina disse que saiu impactada e
mudou sua visão de mundo da prostituição”.

Eu comecei dizendo que a prostituição


vai pra além de sexo em troca de dinheiro ou
vice-versa.
Que a prostituição produz saberes,
produz economia solidária, escambo, arte,
moda.
Liberta as pessoas do capitalismo, já que
pro capital não é uma profissão necessária
pra mover as engrenagens capitalistas.
A prostituição pode ser capitalizada,
mas ela não contribui diretamente com o
capital.

E vou além: A prostituição é a anarquia


das “escolas de princesas”, dessa sociedade
que ensina as meninas a serem mães,
romantizando isso sem falar de toda a
problemática de uma gravidez, como criar
uma criança sem a dependência que isso
implica, mantendo tua liberdade.

Ensinam a serem donas de casa,


cuidadoras, esposas que devem se submeter
a maridos e acabou.

Durante séculos essa criação é ensinada


às meninas e leva à violência feita a mulher e
esse número alarmante de feminicídio.

194
Até prostitutes levam tempo a se
libertar, mas quando isso acontece é
transformador e um divisor de águas.

PUTA LIVRO
Você entende o mundo, suas
engrenagens e passa a caminhar com mais
leveza.

Vão te acusar de insensível, a-romântica,


louca.
Só não vão te chamar de pute, pois isso

INDIANARAE SIQUEIRA
é o que você dirá sobre você, tirando deles o
poder.

Você subverte a ordem.

A prostituição é a forma mais organizada


de anarquismo.

A prostituição é subversiva.
Seje pute.
Pratique putarias.
Viva a Faculdade da Putaria.
195
BIANCA FERREIRA

PUTA LIVRO
Vejo-me.
Parada, presa, ambígua, inerte.
Lamento-me.
Mágoas ressentidas devem
ser deixadas.
Resta-me, pois, exercer o ócio,
já conhecido. O inebriante calor
do tédio, que agrada-me.
Espero então qualquer reação,
movimento.
Aguardo-me.
Como aguardam-se as
outras quaisquer.
196
RICARDO MASSAO
NAKAMURA NASSER

PUTA LIVRO
À margem da rua, ficava
O vento da noite
A sirene, alemão, gargalhadas
O para e abre dos carros
Quanto? Aonde? Como?

De repente a margem da rua esfriou


Nem sirene, nem alemão
Jandira caiu
Pâmela se desmontou
Raspou a cabeça
Subiu os Prazeres...

Insisti
Sozinha insisti
Pensei: sem saída
Patrão cobra ponto
Ponto pede carne

Não deu

O caminho das pedras Alzira me deu


“A margem mudou de lugar...”

14 polegadas e algumas possibilidades


Mas mãos quentes
Aliança no bolso
Pelo e suor
A tela não tem

E à margem da tela estou


Roupa de guerra
Olhos negros
197
Luz piscando

Está armado o ponto


Ouço, incito e vejo o gozo
O delírio virtual de uma primeira vez

PUTA LIVRO
Se Jandira caiu
Esperta escapei
Pela outra margem (sobre)vivi

RICARDO MASSAO NAKAMURA NASSER


198
RAFAELA DE SÁ

PARA ALÉM DAS


IMAGENS, A ESCRITA

PUTA LIVRO
199
Cliente português que mora em
Dubai, vai visitar Seicheles, já vacinado,
jovem, pouco cabelo, depiladidinho, corpo
de quem está retomando as atividades
físicas, educado e tímido. Chego simpática

PUTA LIVRO
e acompanhada da minha amiga que nos
convidou. Conversamos, esperamos o drink,
bebemos e transamos.

Durante o sexo eu estava tesa como


sempre que sou bem paga, a pessoa é
educada, o quarto é bom e ele está com a
depilação em dia. Estou quase tão exigente
quanto um homem heterossexual, branco e

RAPHAELA MARQUES
europeu.

No sexo, olhos fechadíssimos, dessa vez


os dele.
200
CLAUDIA FERREIRA

SELEÇÃO DE FOTOS

PUTA LIVRO
DESFILE DASPU1

1. Fotos do Forum Internacional sobre os Direitos das


Mulheres, promovido pela Association for Women’s
Rights in Development (AWID) na Costa do Sauípe,
Bahia, 2016.
201 PUTA LIVRO CLAUDIA FERREIRA
202 PUTA LIVRO CLAUDIA FERREIRA
203 PUTA LIVRO CLAUDIA FERREIRA
204
PARTE II

PUTA LIVRO
DIS

R
OS S
AÇ N O
SP BA
S E R
O U
205
ANDRE ARAUJO

PUTA LIVRO

Prefiro a zona meu amor


150 x 150 cm
Óleo sobre tela
2013
206
INDIANARAE SIQUEIRA

#CASANEMCASAVIVA

PUTA LIVRO
Agora é oficial.
Depois de uma luta de quase 5 anos em
uma união de vários movimentos sociais.
Costurando acordos e trabalhando em
conjunto com os poderes públicos,
onde foi necessário traçar um caminho
da Lapa, na Rua Morais e Vale, 18, ocupando
o Automóvel Clube do Brasil, no passeio
público, em uma ocupação cultural nesse
que foi o primeiro Congresso Nacional desde
que o Brasil se tornou República, passando
pela ocupação Denise em Botafogo, na R.
General Polidoro,descendo pra fortalecer
a ocupação de Vila Isabel, se unindo à FIST
e indicando como nome uma homenagem
à cantora Elza Soares, expulses, fomos pra
Bonsucesso, fortalecer a Ocupação cultural
Olga Benário, que precisava de ajuda, fomos
pra R. Ramalho Ortigão temporariamente, no
centro, ocupamos por uma noite um imóvel
na Rua da Carioca, pra que as pessoas da
CasaNem descansassem de suas andanças
ao pôr do sol, pra que ao raiar do dia
pudéssemos, juntes, sem largar as mãos dos
que ficavam, mas entendendo quem ficava
no meio do caminho. E pra esses deixávamos
as provisões e a promessa de um dia termos
nosso lugar e viremos te buscar ou você
poderá nos encontrar onde estivermos.
Chegamos à Copacabana pra flertar
durante um tempo com a princesinha do mar
em um prédio da R. Dias da Rocha, um dos
primeiros a ser construído em Copacabana,
onde um acervo de obras de arte foi
encontrado e devolvido ao IPHAN, Museu
Nacional e Polícia Federal e parecia que por
termos prestado um serviço à sociedade nos
207
dariam esse local.
Limpamos e organizamos o prédio.
Fomos sementes e levamos a presença
de Marielles, Dandaras, Xicas Manicongos,
Giselles Meirelles, Demétrios, Joãos W.Nery

PUTA LIVRO
por onde fomos e sem perceber já nos
dávamos em fruto, em pão, alimento, em
água pra matar a sede dos afogados pelo
abandono.
Fomos tantes e uma força nos unia:
A sobrevivência nutrida pela esperança
de um mundo melhor, mas não só pra nós
e sim por todes.E de repente, quando o

INDIANARAE SIQUEIRA
mundo parou e um vírus mortal atacou a
humanidade.
A morte nos rondava, no ar, ao respirar.
Mas para a CasaNem, não lhe foi permitido
parar. E lhe foi exigido além do que parecia
ser possível. E enquanto as pessoas pareciam
perdides, a CasaNem chamou para si a
responsabilidade de proteger os mais
vulneráveis,sem esquecer os animais não
humanes.
Formou-se então uma rede onde as
Casas de Acolhimento LGBTIA+ foram
chamadas a formar a REBRACA LGBTIA+.
A fome apertava e a gente achava que
não daria conta.
Mas estamos dando e não chegamos lá
sozinhes.
CasaNem provou que um outro mundo
é possível
através da rede de colaboradores
(colabores) e amigues durante essa
pandemia, distribuímos mais de 3.500 cestas
com Kit de higiene e limpeza, 20 mil máscaras
de proteção, quentinhas e roupas pra
alimentar e proteger moradores de rua com
ração pros animais de estimação e acolhendo
alguns desses animais.
Está sendo exaustivo.
E depois de muita luta, se não era
possível estar a duas quadras de uma das
praias mais famosas do mundo, nos atacavam
outra vez.
208
As forças policiais chegaram e era
necessário resistir.
Resistimos e a organização levou a um
acordo em frente às câmeras de televisão,
os órgãos públicos foram chamados: ou
fazíamos um acordo pacífico, ou lutaríamos

PUTA LIVRO
até a nossa última gota de sangue.
Então nos escondemos por trás de
barricadas prontas a explodir.
Do lado de fora dos portões tinha os
corpos de manifestantes que começaram
conosco uma vigília.
Entre a promessa de ir pra Laranjeiras

INDIANARAE SIQUEIRA
restava a alternativa da escola Estadual
Pedro Álvares Cabral como provisório, até
que o governo do estado do Rio de Janeiro
encontrasse um local pra CasaNem.
Aceitamos o acordo. Ao chegar na
escola já sabíamos que estaríamos sob
ataques de uma vizinhança que já é hostil aos
estudantes do local.
Vizinhança que nos atacou com cabeças
explosivas de fogos de artifício e aos animais
de estimação acolhides.
Sem mandato, a polícia invadiu o local e
levou a pessoa responsável detida, como se
quisesse humilhá-la mais uma vez.
Foram muitas lutas e toda luta, pra
assim ser chamada, precisa de adversários e
esses foram muitos.
E parecia que nos espreitavam a cada
curva.
E nós só queríamos saber depois da
curva ali o que tinha pra nós.
Então esperamos e depois da curva logo
atrás do castelinho vocês nos encontraram à
beira mar do bairro do Flamengo.
Pra quem já teve tantas incertezas,
Pra quem já passou fome,
Pra quem a vida tirou todas as
possibilidades e ainda assim espera o
temporal passar e sorri Pra que vocês
possam nos encontrar ali, depois da curva,
como um pote de ouro no fim do arco-íris.
209
Quando perguntarem a vocês e depois
da curva hein?
Respondam:Tem a CasaNem com viado,
sapatão, Transvestigenere, TransAgenere,
gates, cachorres e putes de luta.

PUTA LIVRO
Logo ali.
Depois da curva do túnel, ali na rua 2 de
Dezembro n°09.
Convidamos vocês a nos visitar quando
a tempestade da pandemia passar.

“Nós somos sementes de Marielle que


brotaram contra bolsonaro”.

INDIANARAE SIQUEIRA
#CasaNemCasaViva
210
FÁTIMA MEDEIROS

“FADAS BAIANAS ”: 1

a trajetória da

PUTA LIVRO
APROSBA na luta por
permanência no Centro
Histórico de Salvador
Cheguei a Salvador em 1988. O centro
de Salvador era muito bom para ganhar
dinheiro, porque você descia o Elevador,
você estava no porto, você subia, haviam
as boates. Pigalle, Hollyday, Liberty Night,
Maria da Vovó, era tanta boate no centro de
Salvador. Ainda haviam dois restaurantes bem
famosos na Ladeira da Praça que eram ponto
de encontro: o Braseiro, que não funciona
mais, e o Bar do China. Era muito gringo que
ia para lá. Eu sou de uma época que rolava
muito dinheiro. Na Ladeira da Praça também
havia um hotel onde a gente permanecia
em pé na porta, que era o Hotel Ilhéus. Se a
gente não quisesse ir para lugar nenhum, só
bastava ficar em pé ali, os gringos já sabiam
que era trabalhadora sexual e que estava a
fim de fazer programa. Embaixo do Elevador
Lacerda, havia o famoso Damasco, de Sr.
Sami. Quando a gente não subia no navio,
os gringos passavam rádio (telefone naquela
época era raridade): “Olha, eu estou indo
para o Damasco, me encontra lá”. Quando

1
O resgate da expressão “Fadas baianas” para compor o
título deste texto é uma homenagem à memória de Gabriela
Leite, que, na edição especial do jornal Beijo da Rua
publicada em nov/dez de 2002, escolheu “Fadas baianas”
como título da seção Coluna da Gabi para se referir às
ativistas da Aprosba, que naquele ano haviam organizado o
1º Encontro Nordeste-Sudeste de Profissionais do Sexo
em Salvador.
211
não havia navio no porto, eu ia para a Ladeira
da Montanha, ganhei bastante dinheiro lá.
A polícia chegou a me prender duas
vezes. A primeira foi no porto de Salvador,
porque é proibido entrar em navio e a gente

PUTA LIVRO
tinha que subir depois que a Capitania
descesse. Um dia a gente subiu primeiro, a
gente se atrapalhou, havia muito navio, e foi
presa. Ficamos o dia todo detidas no porto
de Salvador. Na verdade, a gente não era
para ter sido presa, se fosse hoje em dia,
eu saberia lutar pelos meus direitos, quem
era para ter sido detido era o capitão, quem
deixou a gente subir. E a outra vez foi na

FÁTIMA MEDEIROS
época da reforma do Centro Histórico. A
polícia disse que iam sair todas as mulheres
do Pelourinho, não ia ficar mais ninguém, que
lá ia ser um local de família.
Eu ficava nesse pensamento: “Poxa,
quer dizer que quando a gente está entregue
às baratas, pode tudo. A gente chegou
primeiro do que todo mundo aqui. Agora,
com essa reforma, a gente vai ter que sair?”.
E ficava preocupada com como as mulheres
sobreviveriam caso fossem retiradas do
Centro Histórico, do Pelourinho como um
todo, e principalmente da Praça da Sé.
Eu nunca batalhei na Praça da Sé. Eu
me sentava ali para conversar com as minhas
colegas. A maioria era minhas vizinhas, eu
morava no Centro Histórico, tinha muitas
amigas que batalhavam lá, e ainda batalham
até hoje. Eu ficava pensando: “Poxa, tem um
monte de mulheres de até 60, 70 e tantos
anos, e elas ganham o dinheiro delas ali.
Qual era a boate que ia aceitar uma mulher
acima de 30 para ganhar seu dinheiro?”. Essa
amiga mesmo dizia para mim: “Fátima, para
onde eu vou? Eu ganho meu dinheiro aqui,
ainda tem meu velho de navio que me acha
por aqui, tem os meus clientes que vêm aqui,
tem o menino novo que quer a experiência
da mulher mais velha. Qual a boate que me
aceita?” E eu ficava naquela preocupação,
onde elas iam ganhar dinheiro, como iam
sobreviver.
212
Eu conversava com dona Josefa, que
era uma senhora que lavava a roupa da
gente e era puta também do passado, e ela
contava tanta história de quando ela chegou
menina com uma tia que foi fazer vida, e que
ali sempre foi lugar de batalha. Ela ficava

PUTA LIVRO
muito triste, perguntava como ia lavar roupa,
como ia ganhar dinheiro se lavava roupa das
meninas que iam para navio. E porque ia tirar
a gente do Pelourinho se a gente chegou há
tantos anos?
Então eu fui a um Encontro da Mulher
Marginalizada em Ipatinga, bem no interior
de Minas Gerais. Sempre fiz parte da

FÁTIMA MEDEIROS
Pastoral, me chamaram para denunciar uns
hotéis que estavam explorando as prostitutas
em Belo Horizonte, e eu aproveitei para falar
da situação da Praça da Sé, que estava com
muita violência. Lá eu conheci a Lourdes
Barreto, ela falou do GEMPAC, da Gabriela
Leite.
A gente acordava às seis da manhã
nesse convento, assistia à missa de duas em
duas horas. Em vez de colocar puta com puta,
era cada puta com uma freira nos quartos,
era uma desconfiança, para a gente não
fazer alguma coisa de errado. Mas a gente
deixava uma janela aberta, quando as freiras
pegavam no sono, a gente saía. Teve uma vez
que a gente saiu, faltou energia, e a gente
comprou umas latinhas de cerveja para tomar
no convento e voltou. Quando a Lourdes
foi pular a janela do convento, as latinhas
caíram e acordamos todas as freiras. Levamos
tanta bronca... A gente fez muita história
nesse evento, quando eu voltei, já vim com
a ideia fixa de que ia fazer alguma coisa por
Salvador, que eu precisava me juntar com
as companheiras que tivessem coragem
de mostrar a cara. Eu vim motivada, esse
primeiro contato com Lourdes foi um grande
pontapé inicial. Lourdes foi a maior referência
que eu tive de prostituta liderança.
A polícia chegava à Praça, prendia as
mulheres. Um dia foi todo mundo preso,
era umas sete para oito da manhã, a gente
só saiu à noite, fez faxina, no outro dia

213
todo mundo dispersou. Elas voltavam para
a Praça. Depois de muito conflito, muitas
batalhas, muitas prisões e arbitrariedade, a
gente chamou e a imprensa veio. Eu disse
o quão entregue às baratas a gente estava,

PUTA LIVRO
e ninguém nunca fez nada por nós. Quando
era dos vagabundos, podia ficar. Agora,
eles queriam fazer essa limpeza e tirar a
gente, que não roubava, não tirava a roupa,
não fazia atentado ao pudor. Mas a gente
ia continuar, porque desde que o mundo é
mundo que existe a prostituição, e a gente

FÁTIMA MEDEIROS
chegou primeiro.
Eu me reunia com umas oito mulheres
que tinham coragem de mostrar a cara, a
gente ia para o meu quartinho e planejava
o que fazer, quem poderia estar do nosso
lado para nos ajudar a não sair do centro
de Salvador. Eu comecei a juntar história,
que lá já foi lugar de magnata, que ninguém
nunca mexeu com as prostitutas, elas quem
ajudaram a fundar o Sport Club Bahia, e a
gente tinha que estar afiada para dizer que a
prostituta também fazia parte da sociedade,
quer queira ou não. A gente é história.
Então eu fui a esse evento, no Centro de
Convenção. Eu sei que foram três dias muito
chatos. Se era para falar do Dia da Mulher,
não se falava da mulher, eram só políticos,
doutores, não haviam mulheres, e aquilo já
estava me irritando. A gente foi para esse
evento porque Marcelo Cerqueira (do Grupo
Gay da Bahia) disse: “Vai para esse evento,
talvez você se identifica como puta, se tiver
uma oportunidade, você fala sobre o que está
acontecendo na Praça da Sé”. No último dia,
houveram os debates, tinha que dar o nome,
colocar o comentário em uma cesta, e então
a mulher chamava para falar no microfone.
Gente pra caramba, você acha que a gente ia
falar que era puta naquele evento? É difícil,
não tem como você falar. Eu posso até me
identificar, mas não é 24h, tem momentos
que você nem fala, tem medo de apanhar.
A gente escreveu que era cinco garotas
214
de programa que estavam com um problema
sério no Pelourinho, porque a gente batalha
lá, nossas amigas batalham lá, e estão
apanhando. A gente vive presa 24 horas e
queria saber se isso é crime ou não. E queria

PUTA LIVRO
fundar uma Associação. A mulher começou a
ler nossa carta: “Olha, tem uma carta muito
interessante de cinco garotas de programa
que estão aqui nesse evento, elas não se
identificaram”. Todo mundo olhou para trás,
nós também. “E elas estão pedindo ajuda”. E
começaram a procurar, a gente também, por
medo, a gente tinha medo da sociedade. Eu
fui lá na frente me tremendo todinha: “Sou

FÁTIMA MEDEIROS
eu e minhas amigas”. Mas foi tanto apoio,
que eu nunca me senti tão acolhida. A gente
fundou a Associação das Prostitutas da Bahia
- APROSBA, e registramos em 1998. De lá
para cá, não parei mais nunca.
Depois que a APROSBA surgiu,
Antônio Carlos Magalhães, que era senador
na época, falou: “As prostitutas vão sair
do Pelourinho!”. E eu disse: “Não vão não
porque eu já sei que não é crime”. A gente
mandou uma carta para ele e ele atendeu
pessoalmente a APROSBA. A gente falou
que as mulheres não tinham onde ganhar
dinheiro, iam morrer de fome, o que eu disse
foi de fazer um acordo: “Vocês acham que
toda puta é ladrona e não é verdade, tem
a puta que batalha, e tem puta que nem
toma cerveja. Não existe polícia? Então faz
ronda ali e olha quem está roubando e tira,
mas deixa as outras”. Entramos em acordo
com a Prefeitura para as mulheres poderem
permanecer na Praça da Sé, e elas estão lá
até hoje. Tudo foi por causa da APROSBA.
Se não tivesse mostrado a cara na televisão,
tinha saído todo mundo. Eu sempre vou lá,
as mulheres continuam trabalhando, não tem
mais policial batendo nelas.
As mulheres não podem sair do centro
urbano, a rua é nossa, vocês têm que
entender. Já está dizendo MULHERES DE
RUA, somos nós, porque vai tirar a gente da
rua? Eu acho que todo mundo tem o direito
de ir e vir, e a gente precisa ir, vir e ficar. A

215
rua é nossa.
A APROSBA surgiu, eu era um boom.
Todo mundo queria saber quem era a puta
que tinha fundado a Associação. A imprensa

PUTA LIVRO
ajudou a gente porque era um prato cheio
puta mostrar a cara na televisão, dizer que
a gente queria ficar no Pelourinho porque
quem chegou primeiro foram as putas, tem
história de mais de cem anos.
De lá para cá, a APROSBA promoveu
alguns projetos voltados para a questão
de prevenção, violência e direitos

FÁTIMA MEDEIROS
humanos. A gente conseguiu fazer vários
encaminhamentos, seja para retirada de
documentos, seja para fazer mamografia,
autocuidados. Quando a mulher era de outro
Estado, que ela estava completamente sem
documentos, a gente entrava em contato
com o local onde ela nasceu, mandava o
dinheiro na conta do cartório da cidade.
Na época era fax, a gente mandava um fax,
mostrando que tinha depositado dinheiro na
conta, e fazia o registro.
A gente teve muitos problemas
com a polícia, mas também muito êxito,
inclusive com casos de policiais que foram
presos através de muitas denúncias. A
gente conseguiu deter um policial que
tinha o nome de Rambo, e que espancava
e matava, chegou a matar travestis, trans
e trabalhadoras sexuais. Todo mundo tinha
medo de denunciar e a APROSBA denunciou,
ele foi preso e expulso da polícia.
Organizamos e participamos de
vários eventos nacionais e internacionais.
Construímos a Rádio Zona, que foi
um projeto do Ponto de Cultura que,
infelizmente, não foi para frente. A gente
tinha muitas ideias boas para a Rádio, para
fazer rádio novela, ouvir nossas vozes, mas
infelizmente fomos boicotadas. Participamos
de parcerias com outras pessoas que tinham
trabalho com as profissionais do sexo,
participamos do Mulher-dama, que foi um
projeto da Silvana Olivieri para contar a
216
história das mulheres da Ladeira da Montanha
através de uma exposição de fotos que
ficou três meses em cartaz no MUNCAB,
em Salvador. No último dia da exposição,
a gente fez uma homenagem a Xangô, e
as mulheres desfilaram de roupa de orixás

PUTA LIVRO
no Centro Histórico. Em 2017, fizemos o
Simpósio “Gênero, Educação, Feminismos
e Prostituição: Diálogos Necessários”
com o apoio da UNEB, e no mesmo ano
participei também do Fórum Social Mundial
em Salvador, com direito a uma tenda para
expor nossos materiais informativos e nossa

FÁTIMA MEDEIROS
bandeira, a bandeira do movimento.
Depois de tanto conflito que eu tive
com a Prefeitura, um dia eles viram que a
APROSBA realmente fazia um belíssimo
trabalho, e eu fui reconhecida pela Secretaria
Municipal de Políticas para as Mulheres como
a Mulher 360, que fazia a diferença. Recebi
placa e tudo das mãos do então prefeito
ACM Neto.
O primeiro encontro de prostitutas
que participei foi no Ceará, o encontro de
prostitutas da APROCE. Quando eu desci no
aeroporto, estava com o endereço na mão
pedindo informações sobre o hotel onde
eu ia ficar hospedada, e tinha uma mulher
fumando, me observando. Ouviu que o
endereço que ela ia era igual ao meu, então
se aproximou de mim e disse: “Venha cá,
você não quer dividir um táxi comigo?”. A
gente conseguiu um táxi, e ela me perguntou:
“Mas você não é daqui não né? Você tem um
sotaque assim de baiano”. Eu falei que era de
Salvador, e ela: “Eu sou carioca. Mas desculpa
perguntar, você está indo a esse hotel para
passear?” Eu falei que não, que estava indo
para um evento. Ela quis saber qual evento.
Eu me arretei, disse que era um evento de
puta, porque eu era puta. Ela perguntou:
“Você é da APROSBA, da Bahia?” Eu disse:
“Sou, e você quem é?” “Gabriela Leite”.
Ah, mas foi um abraço muito gostoso que a
gente deu! A gente ia para o hotel meio dia,
o pessoal estava nos esperando para almoçar,
217
e quem disse que a gente foi para o hotel?
Em vez de chegar meio dia, chegamos meia
noite, as duas bêbadas, e o povo sem saber
onde a gente estava.
Eu era tão feliz quando estava na Rede

PUTA LIVRO
Brasileira de Prostitutas, e com Gabriela
viva. Eu e Lourdes já aprontamos muitas
aventuras, e com Leila, sua filha, também.
Uma das coisas engraçadas que eu fiz com
a Lourdes Barreto foi quando ela veio para
Salvador no I Encontro Nordeste-Sudeste
de Profissionais do Sexo, organizado pela
APROSBA em 2002. Ela tinha um namorado,
era muito apaixonada, mas ele não estava

FÁTIMA MEDEIROS
nem aí. Eu disse para ela fazer uns ciúmes
nele: “Quando você chegar em Belém, eu
vou mandar uma carta para você como se
fosse um namorado que você arrumou na
Bahia”. Eu consegui uma fotografia 3x4,
nesses lugares que revelam foto no centro
de Salvador, de um coroa bem bonito. Pedi
a um amigo, sr. Carlos, para escrever a carta,
ele tinha uma letra muito bonita. A carta
ficou muito bem escrita, de um homem
muito apaixonado. A gente deu o nome de
Carlos Magalhães, em referência ao político
ACM. Mandei a carta por SEDEX com a
fotografia, quando o namorado de Lourdes
pegou a carta no correio, não a entregou
para Lourdes, ele a leu todinha, e deu certo.
Ele levou Lourdes para o motel, depois que
ela saiu, eu fui a primeira pessoa para quem
ela ligou: “Mana, deu certo, tomei uma surra
agora, foi maravilhoso”. Eu sei que essa carta
foi parar no jornal Beijo da Rua.
De todos os problemas que a
APROSBA já enfrentou, a pandemia está
sendo o pior de todos porque, no começo,
muitas mulheres saíram daqui da Bahia,
de Salvador, e foram para outros estados,
mas na pandemia infelizmente para onde
elas iam estava difícil. E a APROSBA só
não ficou simplesmente só na luta porque
eu consegui fechar muitas parcerias para
arrecadar alimentos e material de higiene.
Com o Força Feminina, Olodum, Movimento
Libertação da Mulher, Redtrasex, algumas

218
casas de terreiro de candomblé, meus amigos
e pessoas anônimas. Deu para comprar
algumas cestas básicas, mas cestas básicas
só não dá, a gente precisa conseguir com

PUTA LIVRO
que essas mulheres paguem seus alugueis,
porque muitas agora estão em situação de
rua. Consegui fazer uma parceria com o Pop
Rua para algumas trabalhadoras sexuais que
moram na área do Centro Histórico, para que
elas pudessem ter alimentação, pelo menos
três refeições diárias: café, almoço e janta.
Mas está muito difícil. Eu acho que a pior de

FÁTIMA MEDEIROS
todas estamos vivendo agora.
Monique Prada fez muita diferença
nessa pandemia, ela mobilizou todos os
amigos, inclusive internacionais, para nos
ajudar, e através dela nós recebemos muitas
doações, seja em dinheiro, cestas básicas e
até pagamento de aluguel. Para além disso,
Monique fez muita diferença na minha vida,
pois foi por causa dela, através das conversas,
de assistir aos seus debates, que eu aprendi
a me impor e me sentir de fato uma puta
feminista. Eu sempre tive comportamentos e
atitudes feministas, mas não tinha noção.
Eu já pensei em desistir, muitas vezes eu
me sinto só na APROSBA, mas não desisto
porque sei que tem muita gente precisando
de mim. Diana Soares tem uma força enorme
e faz eu enxergar muitas coisas, esclarece,
tira dúvidas, me ajuda, e me mantém ativa
no movimento nacional. Na Bahia, eu conheci
Fernanda Priscila em um dos momentos em
que pensava em desistir, em 2016. Ela estava
fazendo pesquisa na Praça da Sé, e foi amor
à primeira vista, nunca mais soltei a mão dela,
me segurei nela. A Fernanda Priscila tem se
desdobrado para ajudar a APROSBA, faz os
projetos da APROSBA, da ANPROSEX. João
Pena e Gabriela Pinto também são pessoas
que tem contribuído como podem para as
trabalhadoras sexuais da Bahia. Essas pessoas
me motivam a permanecer, a continuar no
movimento de puta.
Nota: O texto aqui apresentado foi construído a partir da

219
transcrição e da organização de trechos de falas de Fátima
Medeiros registrados em entrevista concedida a João Pena
e a mim em janeiro de 2020, e em conversas durante o
mês de abril de 2021. Todas as informações e reflexões
expostas no corpo do texto são de autoria exclusiva de
Fátima Medeiros e compõem um importante relato de

PUTA LIVRO
quem vivenciou e fez frente às decisões impostas por um
projeto de intervenção urbana mundialmente reconhecido
pelo seu caráter excludente e violador de direitos, que foi o
Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador
dos anos 1990, e que desde então tem se organizado
coletivamente na luta por direitos e melhores condições de
vida e de trabalho para todas as trabalhadoras sexuais.

FÁTIMA MEDEIROS
220
ANDRE ARAUJO

PUTA LIVRO

O amor é um cão mamaluco


150 x 150 cm
Óleo sobre tela
2013
221
ANDRE ARAUJO

PUTA LIVRO

Não há claridade que se sustente


nos domínios noturnos da sexualidade
21 x 31 cm
caderno
Colagem e lápis de cor sobre papel
2021
222
SORAYA SIMÕES

VILA MIMOSA: NA
CIDADE EM DISPUTA

PUTA LIVRO
A política de remoção de favelas que
vigorou no Rio de Janeiro até meados da
década de 70 deixou em seu rastro uma
série de incongruências decorrentes do
deslocamento compulsório de milhares de
pessoas. De acordo com o estudo realizado
por Lícia do Prado Valladares à época das
remoções, a favela era tratada como “uma
questão puramente habitacional e do
uso do solo, sem levar em consideração
as características de sua população”
(VALLADARES, 1978, p. 44). Esta era
uma das concepções que legitimavam a
identificação de certos usos e modos de
vida no espaço urbano como sendo um
“problema público”, pois era a modernização
deste espaço que estava na pauta e na
justificativa dos sucessivos governos do
Estado da Guanabara, especialmente nas
administrações de Carlos Lacerda (1960-
19651), Negrão de Lima (1966-1970) e Chagas
Freitas (1970-1974). Parte dos conflitos
surgidos com essa política deveria ser
administrado pelo Estado, uma vez que a
“remoção” previa a assunção, pelo Estado,
dos custos da mudança e da acomodação dos
habitantes das favelas erradicadas para os
conjuntos habitacionais erguidos em bairros
periféricos.
Ao contrário do que ocorreu com os
habitantes das favelas e das regiões atingidas
pela política de remoção, o caso narrado aqui
é resultado de uma política indenizatória que

1
Política essa federalizada pelos militares após o golpe de
1964. Ver GONÇALVES & AMOROSO, 2014. file:///tmp/468-
Texto%20do%20artigo-486-1-10-20150708.pdf
223
envolveu, entre outros atores, prostitutas
e cafetinas da Vila Mimosa, um conhecido
lugar da prostituição do Rio, cujas casas
foram as últimas a serem desapropriadas
pela Prefeitura, em 1995, para a conclusão do
Projeto Teleporto, que finalizaria o processo de

PUTA LIVRO
reurbanização previsto para aquele bairro2.
Este caso, portanto, é bastante
relevante e emblemático no debate sobre as
lutas pelo direito à cidade, pois a indenização
consiste em um mecanismo que realoca a
responsabilidade sobre os deslocamentos e
reassentamentos, individuais ou coletivos,

SORAYA SIMÕES
isentando o Estado da mediação entre os
deslocados e os habitantes das demais
localidades, deixando aos atores afetados a
administração dos conflitos surgidos com seu
deslocamento e acomodação.
No caso da Vila Mimosa, a mudança das
cafetinas e prostitutas chama a atenção por
ter sido um deslocamento coletivo de um
grupo que tomou a decisão de “reinventar
a zona” em outro endereço, mantendo, com
isso, seus negócios e um lugar de destino
diário para milhares de mulheres prostitutas e
seus clientes. A visibilidade que este episódio
teve através da mídia ultrapassou não só as
fronteiras do Rio de Janeiro, mas também
do país, merecendo destaque na primeira
página do jornal francês Le Monde, no dia
02 de janeiro de 1996. Afinal, depois de
quase um século de existência, a prostituição
da chamada Zona do Mangue3 chegava ao
fim com a demolição da Vila Mimosa que,
desde 1979, simbolizava a resistência da
prostituição naquele bairro, tido até então
como “área natural” do baixo meretrício no
Rio.
Não foi por acaso que este grupo
de pessoas indenizadas no processo de

2
Ver SIMÕES, 2003 e 2010a.
3
O nome Mangue é considerado sinônimo de “baixo
meretrício” pelo dicionário Aurélio, demonstrando assim o
reconhecimento e importância desta zona na história da ex-
capital federal.
224
reurbanização decidiu investir o dinheiro
na construção de uma nova zona. Vários
foram os motivos desta empreitada, desde
a plausibilidade do investimento até a
manutenção de um estilo de vida e trabalho,

PUTA LIVRO
com todas as vantagens que a construção da
chamada Vila Mimosa II implicaria para estes
atores, pois a continuidade nominal remetia à
antiga Vila demolida, que havia sido palco de
uma das primeiras associações de prostitutas
do Brasil, onde a luta pelo reconhecimento
e direitos da categoria, no país, ganhou
expressão internacional4. Além disso, esta

SORAYA SIMÕES
continuidade ganhou a conotação de um
upgrade sugerido pela graduação do título
Vila Mimosa II.
Afirmações como “deixamos de ser
zona, somos Vila Mimosa” e “nossa intenção
é mudar o conceito de zona” tornavam
manifesto um projeto que apontava, entre
outras coisas, para a organização de uma
categoria, para a promoção de um lugar e
para o incremento da divisão do trabalho.
Afinal, “mudar o conceito de zona” passava
pela construção de uma ideia de ordem – ao
considerarmos o campo semântico onde esta
palavra se insere – comumente desvinculada
da representação desta atividade4. “Vida
vã”, “vida fácil” e “vagabundagem”, termos
incompatíveis com as ideias de ordem,
disciplina e responsabilidade, são expressões
que norteiam o esforço então empreendido
para “mudar o conceito de zona”, esforço
este principalmente realizado pelos
chamados “donos-de-casa6”, ou seja, pelos
proprietários de estabelecimentos da Vila

4
Ver SIMÕES, 2003, 2010a e 2010b
5
Vale ressaltar que, no Brasil, a palavra “zona” (“zona
de prostituição”) é também conotada pela noção de
“bagunça”, o que não ocorre com o uso da palavra “zona”
em outras línguas.
6
Normalmente a palavra cafetina deixava de ser utilizada
quando o interlocutor era alguém de fora da zona.
esta palavra implica a ideia de lenocínio, tornando-a
estigmatizada. Por isso o uso de “dono” ou “dona de casa”.
Mimosa. Pelas especificidades desse lugar,

225
que também se expressam pela existência
de categorias como “dono-de-casa”, são
sugeridas as diferenciações existentes nas
relações de trabalho e, portanto, de poder

PUTA LIVRO
entre os atores da Vila Mimosa – prostitutas,
clientes, gerentes, donas e donos de casa,
vendedores ambulantes e prestadores de
serviço –, sobretudo se as relacionarmos
com as que existem em outras áreas de
prostituição da cidade também chamadas de
“baixo meretrício7”.
Esta classificação (“baixo meretrício”)
por si só já impõe a existência de uma

SORAYA SIMÕES
hierarquia – ou distinção de classe – na
prostituição. O que a pesquisa etnográfica
permitiu compreender é que, com a
mudança do grupo indenizado, novos atores
passaram a atuar nesse novo lugar, também
chamado Vila Mimosa, diversificando o
aparato utilizado na construção de uma
ambiência propícia aos jogos eróticos e às
perspectivas relacionadas à promoção do
lugar. Muitas mulheres que chegaram ao Rio
nas décadas de 40 e 50 e foram trabalhar
na Zona do Mangue, como prostitutas ou
cafetinas, passaram a conviver, na mesma
zona, com donos de termas e outros agentes
do mercado sexual. Todas essas diferentes
trajetórias geraram conflitos na construção
da imagem de uma “nova Vila Mimosa” e,
evidentemente, na convivência desses atores.
A Vila Mimosa II fica na área central
do Rio, no bairro da Praça da Bandeira, a
cerca de um quilômetro do antigo ponto.
Se tirarmos partido da ideia de tropismo,
veremos que tal escolha foi, em grande
parte, determinada pela acessibilidade do
local – próximo a estações de trem e metrô
e pontos de diversas linhas de ônibus – e

7
“Baixo meretrício” dá nome à prostituição acessível
à população de baixa renda, concentrada nos centros
históricos das cidades brasileiras, em ruas de bairros
periféricos etc.
pela proximidade com o antigo endereço,

226
bastante conhecido pela população carioca.
Expressões como “aqui estamos ilhados”,
“não incomodamos a sociedade lá fora”
e “não estamos no fim do mundo” eram

PUTA LIVRO
recorrentes nos depoimentos que ouvia
das pessoas na Vila Mimosa para dizer que
ali estavam protegidas e, também, bem
localizadas.
O receio de incomodar e serem
incomodadas também levou as donas-de-casa
indenizadas da Vila Mimosa a registrarem
em cartório o estatuto social da Associação

SORAYA SIMÕES
dos Moradores e Amigos do Condomínio
da Vila Mimosa II (AMOCAVIM), tão logo
ocorreu a mudança. Com isso, surgia uma
nova instância de controle e manutenção da
zona, onde ainda pudessem ser formalmente
negociados os limites para os usos e
horários dos espaços partilhados com sua
circunvizinhança e, também, exercido o
controle sobre pesquisas, reportagens e
qualquer outro tipo de trabalho que tivesse a
Vila e seus atores como “objeto”.
A AMOCAVIM é um espaço privilegiado
na negociação da ordem e dos sentidos
que a Vila Mimosa pode ter na construção
de uma opinião pública. No início dos
anos 2000, foi instalado, ali, um posto de
atendimento médico8 e cursos de informática,
então oferecidos na sede da Associação
para todos os habitantes da região e,
claro, frequentadores da Vila Mimosa,
promovendo um intercâmbio que ajudou
a difundir uma reputação outra do lugar –
um lugar com serviços de saúde e voltados
para a qualificação da mão-de-obra. Esta
talvez fosse uma das maiores preocupações
dos associados. Pelos cartazes fixados nos
corredores e dentro dos estabelecimentos

8
Esta novidade dividiu opiniões por representar a chamada
“discriminação positiva”. Muitas mulheres na Vila disseram
ser melhor pleitear, via Associação, a flexibilização dos
horários de atendimento nos postos de saúde para o
atendimento a trabalhadores noturnos.
227
eram feitas convocações para as reuniões,
convites para palestras sobre saúde e
prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis e, sobretudo, publicizados os
deveres de prostitutas e donos-de-casa, tais

PUTA LIVRO
como: não transitar com roupas sumárias nas
ruas adjacentes e não permitir o trabalho de
menores de idade nas casas da Vila Mimosa.
Cada uma dessas ações foi surgindo
no decurso da convivência com os antigos
moradores da região, contrários ao
funcionamento da zona. A necessidade
de se estabelecer limites e difundir uma
imagem onde ficasse clara a existência de

SORAYA SIMÕES
uma organização formalizada tornou-se
urgente. Quando iniciei meu trabalho de
campo, em 2000, fui informada dos desejos
de construção de um site para divulgação do
lugar e das mudanças e esforços feitos para
a melhoria da segurança de prostitutas e
clientes, de investimentos em infraestrutura
e articulação com órgãos governamentais e
não-governamentais. Em sua terceira versão,
o site da Vila Mimosa passou a divulgar links
também com informações sobre o Mangue9,
fotos de mulheres e da zona antiga e nova,
mapa de localização, anúncios, dados sobre
os números de acesso do site, espaço para
anunciantes e uma tela “pop up” com o
ícone da campanha Sem-vergonha, garota:
você tem profissão, desenvolvida pelo
Ministério da Saúde junto à Rede Brasileira
de Prostitutas. “O point mais querido do
Rio” e “O cartão postal secreto do Rio”,
subtítulos da primeira e terceira versão do
site, denotavam a identificação do potencial
turístico pelos antigos e novos empresários
da Vila Mimosa, que a consideravam uma
importante “área de lazer” para adultos. Tudo
isto, convém dizer, resultava de um processo

9
Como era conhecida a região onde se concentravam as
casas de prostituição nas margens do canal homônimo, na
Cidade Nova. Ver também, especialmente, LEITE, 1993 e
SIMÕES, BLANCHETTE, SILVA e BRÊTAS, 2021.
228
iniciado com as indenizações e assumido como
um projeto de “mudança do conceito de zona”
elaborado com a participação de novos e
antigos atores, particularmente donas e donos-
de-casa. Para estes, a Vila ascendeu, passando
de “baixo meretrício” para um “point”, uma

PUTA LIVRO
“área de lazer” ou, ainda, o “cartão postal
secreto” do Rio de Janeiro.
Se anteriormente os moradores e
comerciantes daquele pedaço da Praça
da Bandeira demonstravam uma enorme
insatisfação com a presença das prostitutas e
frequentadores da Vila Mimosa, aos poucos

SORAYA SIMÕES
foram todos percebendo que esta atividade
se tornou determinante para a revitalização da
região. Durante a reforma do imóvel comprado
para abrigar as mulheres provenientes da
antiga Vila Mimosa, centenas de prostitutas
se revezavam em apenas doze quartos
improvisados e, nos dias de maior movimento,
muitas faziam programas no velho Hotel
Canário, localizado na rua adjacente. O vai-e-
vem das mulheres e de seus clientes reaqueceu
o comércio local, fazendo com que os bares
começassem a ter lucros sem precedentes e o
hotel, antes praticamente desativado, voltasse
a ter seus quartos ocupados diariamente.
Se o reaquecimento do comércio
imediatamente causou uma cisão entre os
interesses de moradores e comerciantes, pouco
tempo depois aqueles também tiraram proveito
da situação: muitos moradores passaram a
organizar suas casas para cuidarem dos filhos
das trabalhadoras da Vila, oferecerem serviços
de lavanderia para os estabelecimentos, alugar
quartos para descanso do trabalho, oferecer
aulas de reforço para concursos públicos10
e prestar pequenos serviços em obras na

10
Sobretudo mulheres moradores nas ruas vizinhas
mantinham placas, em suas portas e janelas, informando
a oferta do serviço de “explicadoras”. Muitas prostitutas
comentavam manterem-se informadas sobre as datas dos
concursos graças à sua clientela, formada, também, por
militares de várias corporações, técnicos de empresas
públicas etc.
229
Vila Mimosa. Há ainda os que passaram a
vender comida e roupas íntimas no interior
da zona, e outros que, enfim, se tornaram
donos-de-casa na Vila Mimosa. Momentos
de sociabilidade, portanto, eram relevantes

PUTA LIVRO
para a consolidação desses laços, com
destaque para comemoração de aniversários
de prostitutas, donos-de-casa, funcionários
da Associação e mesmo moradores da
região realizados no interior das casas ou nos
espaços comuns da Vila Mimosa.
Passados alguns anos desde o início da
pesquisa iniciada em 2000, foi possível ver o

SORAYA SIMÕES
sucesso de todo esse trabalho diuturno. Em
meados daquela década, a Vila concentrava
setenta estabelecimentos, inúmeras
barraquinhas de comida e bebida e uma
ampla rede de comércio que se espalhava por
toda a rua, num raio de mais ou menos cem
metros, em torno do imóvel onde a então
chamada “Vila mãe” havia começado. Além
disso dois novos galpões estavam passando
por uma reforma para abrigar mais dezesseis
bares, com uma média de cinco quartos em
cada.
As possibilidades de consecução de
renda proporcionadas pela Vila Mimosa
auxiliaram na redefinição de limites e regras
de convivência entre os atores da Vila e
outros que já moravam na região. O aspecto
lucrativo influiu na mediação e atuou como
promotor na diversificação de posturas
referentes à presença da prostituição naquela
área, ao possibilitar uma densa interação
face-a-face entre os atores, personalizando
as relações (dando densidade aos dramas) e,
consequentemente, abrindo novos espaços
para a administração dos conflitos.
Em outras palavras, podemos dizer
que a partir de um fato, neste caso
configurado pelo deslocamento de um
grupo, os inúmeros conflitos que surgiram
ou emergiram impuseram a necessidade de
criação de espaços onde estes pudessem ser
administrados. Nas interações cotidianas, os
laços criados pelas relações de trabalho ou
vizinhança, por exemplo, geram expectativas

230
quanto ao cumprimento de regras que são,
por definição, mediadoras do conflito.
Creio ser importante considerar ainda
algumas das observações feitas por Schutz

PUTA LIVRO
sobre os meios sociais de orientação e
interpretação. O autor observa que as
expressões tidas como “essencialmente
subjetivas” têm um significado objetivo na
medida em que mostram uma certa relação
com a pessoa que as utiliza. Ou seja, uma
vez que tenhamos localizado essa pessoa no
espaço, ou no contexto, tipificando-a, então
dizemos que essas expressões subjetivas

SORAYA SIMÕES
ocasionais têm significado objetivo (SCHUTZ,
1970, p. 108) e, ao tipificar, definimos nossas
expectativas e, com elas, criamos os limites
da aceitação e do embate ou da intolerância.
São muitos os comportamentos,
atitudes, situações e ambiências que
ilustram aquilo que se espera de categorias
ocupacionais e de seus lugares de
atuação, com seus respectivos horários.
Tais expectativas geram o controle sobre
a emissão de significados durante uma
interação, controle este que se realiza
principalmente através da influência sobre
a definição da situação que os interagentes
venham a formular. Nestas interações
face-a-face, nós nos influenciamos de
maneira recíproca com a emissão de
sinais variados, deliberadamente ou não,
realizando aquilo que Simmel identificou
como sendo uma “ação mutuamente
determinada” (SIMMEL, 1983, p. 23). Os
estereótipos que se associam a qualquer
atividade fazem com que expressões e
expectativas se tornem possíveis bem como
as lutas que visam promover ou restituir
as virtualidades positivas dos sujeitos.
As interações, portanto, confirmam, na
prática, a conformidade típica dos sujeitos
e das situações por eles definidas e
experimentadas.
Se a vida social é, então, uma constante
negociação simbólica envolvendo os mais
231
díspares interesses e motivos, materiais e
não-materiais, o significado do mundo está
sempre, em alguma medida, em questão.
De fato, os conflitos gerados por uma
mudança, num lugar e num tempo específico,

PUTA LIVRO
envolvendo pessoas, grupos ou categorias
específicas, colocam para todos os envolvidos
questões não partilhadas ou pensadas por
quem, naquele momento, não faz parte ou
desconhece a situação. Esse é o drama que
ocasiona as lutas sociais e exige a ampliação
da mobilização. Esse é também o drama que
se resume, desde Henri Lefebvre, na ideia
de direito à cidade. Neste contexto, cada

SORAYA SIMÕES
um dos envolvidos, direta ou indiretamente,
passa a formular uma crítica que incide como
uma nova luz sobre a convivência de grupos
sociais distintos e suas razões de existir e
lutar por reconhecimento e direitos.

Um eterno recomeço

Em fevereiro de 2020, quando a


notícia da pandemia corria o mundo e
um possível lockdown já se precipitava
no horizonte próximo dos brasileiros, a
Vila Mimosa foi fechada. O motivo para o
fechamento da zona não foi a pandemia,
mas a visita da chamada CPI dos Incêndios,
instaurada pela Assembleia Legislativa do
Estado do Rio de Janeiro e presidida por
deputados do PSL. Desde aquele dia, um
drama social foi deflagrado, novamente
reacendendo uma memória e sentimento
coletivo conhecido por muitos habitantes do
Rio de Janeiro, cidade marcada por políticas
apelidadas de “remoção”. A comunidade
de aflição11 que se formou a partir da
desestruturação das rotinas de milhares de
pessoas que têm na Vila Mimosa um lugar de
vida12 (ocupação, trabalho, relações de afeto,
solidariedade, festas… enfim, um lugar),

11
TURNER, 1968.
12
cf. ROLNIK (s/d).
232
se fez presente, semanas depois, em uma
audiência pública realizada na sexta-feira, dia
12 de março de 2020, na ALERJ – a última
audiência realizada, na cidade já praticamente
fechada pelo lockdown. Ao final da audiência,

PUTA LIVRO
um Termo de Ajustamento de Conduta foi
firmado para que a Vila Mimosa pudesse
reabrir imediatamente, com o compromisso
de adequação das instalações elétricas,
que agora seriam observadas de perto pela
equipe técnica destacada para acompanhar
o investimento a ser feito, com vista às
melhorias indicadas13.
Ao final da audiência, por volta das

SORAYA SIMÕES
16h, o ônibus cor de rosa-choque que levara
dezenas de mulheres à ALERJ retornava à
Vila Mimosa. Nesse mesmo dia, a cidade
já começava a fechar suas portas. Era o
início de uma quarentena que nos enchia de
incertezas. Na sexta-feira seguinte, dia 19
de março, a Vila Mimosa voltaria a fechar.
Agora, por um outro motivo que novamente
ressaltava a responsabilidade dos associados
e frequentadores do lugar face a um desafio,
também presente no histórico de organização
das lutas populares (em prol da vida, da
sobrevivência e contra os estigmas), em
particular das prostitutas: o combate a um
vírus. E essa não é uma outra história...

Referências

GONÇALVES, Rafael Soares; AMOROSO, Mauro. “Golpe


militar e remoções das favelas cariocas: revisitando um
passado ainda atual”, in: ACERVO, Rio de Janeiro, V. 27, Nº
1, P. 209-226, jan/jun, 2014.
Disponível em: file:///tmp/468-Texto%20do%20
artigo-486-1-10-20150708.pdf

13
O desembargador Siro Darlan, presente na audiência,
lembrou que a ALERJ, o Tribunal de Justiça e outras
instituições do legislativo e do judiciário também se
encontravam burlando normas que a CPI dos Incêndios, com
o apoio do Corpo de Bombeiros, exigiam da Associação
dos Moradores e Amigos do Condomínio Vila Mimosa –
AMOCAVIM.
LEITE, Juçara Luzia. A República do Mangue: Controle

233
Policial e Prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974).
Dissertação de mestrado em História Moderna e
Contemporânea apresentada na Universidade Federal
Fluminense (mimeo.), 1993.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro,

PUTA LIVRO
2006.

ROLNIK, Raquel. “Paisagens para a renda, paisagens para


a vida: disputas contemporâneas pelo território urbano”,
disponível em
https://periodicos.ufmg.br/index.php/indisciplinar/article/
view/32741/26190

SCHUTZ, Alfred. Fenomenologia e Relações Sociais. Zahar

SORAYA SIMÕES
Editores, Rio de Janeiro, 1970, p. 319.

SIMMEL, Georg. A natureza sociológica do conflito. In:


MORAES, Evaristo. Georg Simmel: sociologia (org. Florestan
Fernandes), Editora Ática, São Paulo, 1983, p. 192.

SIMÕES, Soraya Silveira. Vila Mimosa II: a construção


do novo conceito de zona. Dissertação de mestrado em
Antropologia, UFF, 2003.

SIMÕES, Soraya Silveira. Vila Mimosa: etnografia da cidade


cenográfica da prostituição carioca. Niterói: EdUFF, 2010.

SIMÕES, Soraya Silveira. Identidade e Política: a


prostituição e o reconhecimento de um métier no Brasil. In:
r@u Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-
UFSCar, v.2, n.1, jan.-jun., p.24-46, 2010.

SIMÕES, Soraya Silveira; BLANCHETTE. Thaddeus Gregory;


SILVA, Ana Paula; BRÊTAS, Thaiane. De-Hygeinization
Clusivities: Urban Renewal and Parastatal. In: AMAR, Paul.
Rio as Method, 2021.

TURNER, Victor. Drums of affliction: a study of religious


processes among the Ndembu of
Zambia. Oxford: Oxford University Press, 1968.

VALLADARES, Lícia do Prado. Passa-se uma casa – Análise


do Programa de Remoção de Favelas do Rio de Janeiro.
Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1978, 142 p.
234
FABIANA RODRIGUES
DE SOUSA

PUTATIVISMO,

PUTA LIVRO
FEMINISMO E
RESISTÊNCIA DE
PROSTITUTAS NAS
REDES E NAS RUAS

Este ensaio1 tem como objetivo suscitar


reflexões sobre o processo de construção da
autonomia e afirmação política de prostitutas,
que vem se consolidando pela participação
em diversas arenas políticas, seja nas ruas e/
ou nas redes digitais. As considerações, aqui
apresentadas, foram gestadas em pesquisas
dialógicas com mulheres trabalhadoras
sexuais, a fim de visibilizar a face educativa
de práticas prostitucionais. Nessas
experiências de pesquisa e de diálogo, foi
possível apreender que uma das principais
reivindicações dessas mulheres consiste na
defesa do reconhecimento do trabalho sexual
como trabalho e no reconhecimento de sua
autodeterminação, isto é, de que prostitutas
são “sujeitas políticas de sua história”
(BARRETO, 2015) e que, portanto, possuem
agência para falar por si e para conduzir a sua
vida.
O processo de autodeterminação de
prostitutas se concretiza com a afirmação de
sua autonomia, em contraposição ao estigma

1
Versão atualizada de trabalho apresentado no 11º.
Seminário Internacional Fazendo Gênero e 13º Mundo de
Mulheres, realizado na cidade de Florianópolis/SC, em 2017
(SOUSA, 2017).
que recai a essa ocupação e às pessoas que

235
exercem trabalho sexual. “O entendimento
desse valor negativo (do estigma) como
um erro e uma injustiça social possibilitaria
a positivação da experiência própria, da

PUTA LIVRO
identidade e da reivindicação. A autonomia
se imagina, assim, como base axiológica da
luta” (OLIVAR, 2013, p.288).
A luta política de prostitutas por
autonomia e representação não é recente
na história. Todavia, montar o quebra-
cabeça da historicidade dos movimentos
de organização de trabalhadoras/es do
sexo consiste em árdua tarefa, já que seus

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


marcos iniciais se imbricam aos movimentos
de resistência aos governos ditatoriais no
Brasil e na América Latina. Nos anos de
chumbo, estrategicamente, esta resistência
se articulava de modo subterrâneo por meio
da ação de diversos grupos e sujeitos sociais.
O caráter subterrâneo dessas iniciativas
dificulta o mapeamento e o desenvolvimento
de análises acerca de cada uma das peças
que compuseram essa resistência que
capilarizou-se por toda a América Latina. Essa
dificuldade se acentua, sobremaneira, quando
se trata de ações protagonizadas por grupos e
sujeitos outsiders2, como prostitutas e travestis,
gerando uma lacuna, na produção acadêmica,
no tocante a como se deu a participação de
prostitutas e demais pessoas que exercem
trabalho sexual, no bojo desses movimentos
de resistência aos regimes autoritários e
também no processo de abertura política.
Ratificando essa assertiva, Bonomi (2019, p.20),
ao desenvolver a revisão bibliográfica em

2
O termo outsiders é utilizado “para designar aquelas
pessoas que são consideradas desviantes por outras,
situando-se por isso fora do círculo dos membros ‘normais’
do grupo. Mas o termo contém um segundo significado,
cuja análise leva a um outro importante conjunto de
problemas sociais: ‘outsiders’, do ponto de vista da pessoa
rotulada de desviante, podem ser aquelas que fazem
as regras de cuja violação ela foi considerada culpada”
(BECKER, 2008, p.27).
sua pesquisa de mestrado, constatou que “há

236
pouca menção ao protagonismo do movimento
organizado de trabalhadoras sexuais no processo
de redemocratização brasileira”.
Apesar desta lacuna, o trabalho com

PUTA LIVRO
fontes orais, em pesquisas e demais materiais
autorais (LEITE, 1992; 2009; MOIRA, 2016;
NEIRA, 2012; PRADA, 2018) produzidos pelas
próprias prostitutas, desvela que os movimentos
de trabalhadoras sexuais foram tomando forma,
no Brasil, a partir da década de 1970, por meio
da união e solidariedade entre prostitutas e
travestis, que prestavam serviços sexuais em

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


zonas de prostituição localizadas em diferentes
regiões do país e que, para continuarem
realizando o trabalho sexual, precisaram fazer os
enfrentamentos necessários às diversas formas de
violência que lhes eram impingidas, no contexto
do regime ditatorial, dentre as quais se destacam
à imputação do delito de “vadiagem”, as
constantes batidas policiais, a segregação social
(ESPINHEIRA, 1984; HELENE, 2010; SIMÕES,
2010;), além da negação do direito ao trabalho e
do direito à cidade (HELENE, 2017).
A título de exemplo de ação insurgente
promovida por prostitutas e travestis organizadas,
destaca-se a manifestação de 1979, na chamada
“Boca do Lixo”, zona de prostituição localizada
na cidade de São Paulo/SP. Resistindo à repressão
e ao processo de supressão de direitos que
marcaram o período de ditadura militar, essas
mulheres se organizaram para denunciar uma
onda de violência e assassinatos perpetrada às
pessoas que exerciam trabalho sexual no local.
Essa manifestação é um evento marcante na
formação política de Gabriela Leite3, que afirma
que a partir dessa ação começou a se indagar:
“ ‘Por que nós não nos organizamos de uma

3
Prostituta, militante e precursora do movimento de
prostitutas no Brasil. Fundou a Rede Brasileira de
Prostitutas, criou a ONG Davida e a grife Daspu. Exerceu
prostituição na Boca do Lixo (em São Paulo) e na Vila
Mimosa (Rio de Janeiro) e em outros lugares do país. Autora
dos livros “Eu, Mulher da vida” e “Filha, mãe, avó e puta”.
Faleceu em 2013.
maneira mais permanente?’ ‘Por que a gente

237
não se organiza contra a violência policial?’
Comecei a ver nisso um trabalho político
seríssimo, concreto, que faz parte do dia-a-
dia da prostituição” (LEITE, 1992, p.86).

PUTA LIVRO
Com essas indagações em mente,
Gabriela Leite e Lourdes Barreto4 uniram-
se a outras trabalhadoras do sexo e, em
decorrência do I Encontro Nacional de
Prostitutas realizado em 1987 no Rio
de Janeiro, fundam a Rede Brasileira de
Prostitutas. Essa rede agrega associações de
prostitutas que partilham princípios comuns,

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


tais como a defesa da regulamentação
do trabalho da prostituta, a promoção da
auto-organização da categoria e o repúdio
à vitimização e controle sanitário das
prostitutas, dentre outros. No decorrer
dos anos, outras redes nacionais foram
criadas, algumas delas com posicionamentos
distintos quanto à questão da defesa da
regulamentação da profissão. Como observa
Bonomi (2019), em 2008, surge a Federação
Nacional de Trabalhadoras Sexuais, atuante
por cerca de três anos; em 2015, a Central
Única de Trabalhadoras e Trabalhadores
Sexuais (CUTS), e em 2016, a Articulação
Nacional de Profissionais do Sexo (ANPS)
que, conforme aponta (SILVA, 2021),
passa a ser denominada, em 2020, como
Associação Nacional de Profissionais do Sexo
(ANPROSEX).
Se inicialmente, a organização social
de prostitutas foi motivada pela denúncia
da violência e reivindicação de segurança
e proteção social, em um cenário marcado
pela repressão militar, com o fim da ditadura
e a consequente abertura política, essas

4
Prostituta, militante e precursora do movimento de
prostitutas, ao lado de Gabriela Leite, fundou a Rede
Brasileira de Prostitutas. É também fundadora do Grupo
de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará – GEMPAC.
Reconhecida por seu notório saber no campo das lutas em
defesa dos direitos das mulheres, participou do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher.
238
mulheres foram criando associações e redes
da categoria, ocupando novos espaços
e tecendo novas demandas, as quais se
diversificaram em função da pluralidade de
contextos e sujeitos em interação. Para além

PUTA LIVRO
do enfoque trabalhista, as reivindicações se
ampliam e passam a incluir também pautas
voltadas a afirmação da prostituição como
direito sexual (OLIVAR, 2007, 2010).
Apesar da predominância do enfoque
trabalhista, e da só recente enunciação dos
direitos sexuais, uma discursividade alternativa
ao trabalho, de alguma maneira, esteve

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


presente na história e na ação do movimento.
Trata-se do fluxo subterrâneo, quiçá burguês,
quiçá anárquico, da sexualidade, do prazer, da
insubmissão feminina. Seria um erro pensar
que a inclusão da sexualidade e do prazer nas
agendas políticas do movimento brasileiro
é uma absoluta novidade, tanto ou quanto
pensar que, pelo fato de ser um movimento
de prostitutas, esses mesmos temas seriam
automaticamente agenciados (OLIVAR, 2010,
p.302-3).

Ao passo que ocupam novos espaços


na arena política, nas ruas ou nas redes,
seja participando de manifestações,
passeatas, atos públicos, canais de interação
socioestatal, essas mulheres vão tecendo
novas demandas e leituras de suas realidades.
E, assim, redigindo seus textos, planejando
e executando ações políticas e culturais, vão
exercendo sua ocupação e construindo o
putAtivismo.
A participação de prostitutas, nessas
arenas políticas, apresenta uma dimensão
político-educativa que persegue “certo
fim, um sonho, uma utopia” (FREIRE, 2003,
p.37), não podendo, portanto, ser neutra.
Por meio dessa participação política, elas
tanto se educam como educam às pessoas
com quem se relacionam e, assim, vão
tecendo, em colaboração, “a gestação de
projetos de vida coletivos, nos quais as
prostitutas podem pronunciar o mundo
de maneira autêntica, sendo respeitadas
como cidadãs e detentoras do direito de ser
quem elas são, em vez de adaptarem-se à

239
moral vigente para serem aceitas” (SOUSA,
2015, p.165). A face político-educativa
presente nas práticas desenvolvidas por
trabalhadoras do sexo desvela-as como

PUTA LIVRO
mulheres questionadoras do instituído e em
busca por sua emancipação. Ciente de que
as representações sociais sobre a prostituta
e a prostituição se assentam em estereótipos
e, historicamente, são acionadas para
reforçar sua marginalização e exclusão social,
prostitutas vêm reivindicando o seu lugar de
fala, ou seja, o direito de falar por si e de ser

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


ouvida.

Construindo-se putAtivistas
e feministas

Ao assumirem seu lugar de fala,


prostitutas reivindicam o reconhecimento
da prostituição voluntária como trabalho
e do putafeminismo como uma episteme
integrante do movimento feminista,
não estabelecendo com este relação de
oposição, mas sim de complementariedade e
pluralidade. Suas reivindicações têm gerado
saberes e conhecimentos que favorecem
a problematização de tensões entre os
movimentos feministas e de prostitutas.
De acordo com Piscitelli (2012),
no Brasil, os posicionamentos dos
movimentos feministas sobre prostituição
são heterogêneos. Não obstante, tenha
constatado que, à época da escrita de seu
texto, havia uma configuração particular entre
setores estatais e certos grupos feministas
que amplificava os discursos abolicionistas,
em detrimento da autodeterminação
de prostitutas. Os grupos feministas
abolicionistas preconizam o fim da prática
da prostituição, por considerá-la uma forma
de violência sexista incompatível com a
dignidade da mulher. Essa articulação
entre setores estatais e grupos feministas
hegemônicos é designada por Tavares (2015)
como “feminismo de estado”, caraterizado

240
pela “hegemonia de determinada perspectiva
feminista no interior do setor público”,
notadamente, a perspectiva abolicionista.
Mas como bem ressalta a pesquisadora,

PUTA LIVRO
a presença de discursos hegemônicos, no
âmbito do movimento feminista, não implica
em homogeneidade, mas sim na coexistência
com “outras visões e ações que disputam
significado dentro das arenas de debate
sobre prostituição” (TAVARES, 2015, s/p).
Ratificando o entendimento de Tavares
(2015), Gabriela Leite comenta, em entrevista

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


cedida a Piscitelli (2012), que os contatos com
os grupos feministas, nas décadas de 1970
e 1980, foram positivos. E que as tensões e
ambivalências entre movimento feminista e
movimento de prostitutas se intensificaram, a
partir da década de 1990. Como bem sinaliza,
Piscitelli (2012), não é possível compreender
essa reconfiguração sem considerar que,
após a redemocratização do Brasil, em
meados da década de 1980, ampliam-se as
articulações entre Estado e grupos feministas
ligados às organizações não governamentais
e que, a partir da década de 1990, essas
ONG receberam fomento significativo de
agências multilaterais. Sendo assim, posições
verbalizadas por prostitutas que, como
Gabriela Leite, afirmavam “o exercício da
prostituição como escolha e como direito”
figuravam como inquietantes, pois se
convertiam na “expressão de um conceito
caro ao feminismo: a autonomia” (PISCITELLI,
2012, p.15).
Ao questionarem essas tensões e
exigirem que o movimento de prostitutas
seja reconhecido como parte constituinte
do movimento feminista, as prostitutas vêm
consolidando o “putafeminismo”. Essa
reivindicação configura-se como mais
um passo no processo de construção da
autonomia e do protagonismo político das
prostitutas, por meio do qual elas vão se
percebendo como mulheres, putas e sujeitos
de sua história, positivando a si e a sua
241
prática. No que concerne ao putafeminismo,
Monique Prada5 (2018) esclarece que
ele é fruto de perspectivas que aliam a
possibilidade de ser mulher, trabalhadora e
feminista sem ter de higienizar ou se despir

PUTA LIVRO
da condição de puta. O putafeminismo nasce,
portanto, do encontro de mulheres putas e
pobres, muitas delas pretas, que afirmam a
sua autonomia.

Assim, vi o nosso putafeminismo se construir,


aos trancos, entre mulheres que, sem conhecer
teoria alguma – muitas mesmo sem jamais

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


ter ouvido falar de feminismo -, faziam já um
feminismo bruto, essencial, para se manterem
vivas nos lugares agrestes de onde vinham.
Um feminismo verdadeiramente radical,
radicalmente libertário, autônomo, estava se
forjando e acontecendo ali, entre mulheres
pobres e de pouco estudo formal (PRADA,
2018, p.71).

Essas tensões e conflitos não


ocorrem exclusivamente nas relações entre
movimentos feministas e mulheres putas,
pobres e pretas, já que a propagação
de um modelo universal de “ser mulher”
tem levado, historicamente, os setores
hegemônicos do movimento feminista a
ignorar as experiências de mulheres que
vivenciam condições existenciais distintas
daquelas protagonizadas por mulheres
brancas, heterossexuais, de classe média
e com boa escolaridade. A esse respeito,
hooks (2015) – ativista e feminista negra
– denuncia que ao redigir The feminine
mystique, livro publicado em 1963 e que
abre caminho para o movimento feminista
contemporâneo, a autora Betty Friedan não

5
Prostituta, militante, feminista, co-editora do site Mundo
Invisível, integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil
da ONU Mulheres, colunista do Coletivo Mídia Ninja e
autora do livro “Putafeminsita”.
levou em consideração a experiência de

242
muitas mulheres.
Ela não falou das necessidades das mulheres
sem homem, sem filhos, sem lar, ignorou a
existência de todas as mulheres não brancas

PUTA LIVRO
e das brancas pobres, e não disse aos leitores
se era mais gratificante ser empregada, babá,
operária, secretária ou uma prostituta do que
ser dona de casa da classe abastada (HOOKS,
2015, p.194).

Piscitelli (2018, p.21) ratifica a denúncia


de hooks (2015), ao apontar que os
feminismos hegemônicos, no Brasil, também

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


negligenciaram e encobriram epistemes e
conhecimentos alternativos produzidos por
mulheres negras, a exemplo da obra de Lélia
Gonzales. Reitera que as contribuições dos
feminismos negros, assim como as produções
gestadas no contexto do putafeminismo, são
fundamentais no sentido da compreensão
do jogo de poder e dos “processos de
subalternização e de resistência de algumas
mulheres e de alguns feminismos”.
De modo similar ao putafeminismo,
a categoria “transfeminismo” vem sendo
delineada no contexto das ações e lutas do
movimento trans para visibilizar o processo
de construção de “uma episteme política
trans” (CARVALHO; CARRARA, 2015,
p.396). Essas epistemes políticas que foram
e são violentamente encobertas pelos
feminismos hegemônicos, vêm sendo tecidas
nas experiências nas ruas e vêm ganhando
visibilidade nas redes, sobretudo, através da
veiculação de textos autorais redigidos por
mulheres que vivenciam condições existenciais
singulares, em contextos prostitucionais
diversos.
O blog e a página no Facebook - “E se
eu fosse puta” (MOIRA, 2016), que resultaram
no livro de Amara Moira6, ilustram como essas

6
Prostituta militante, travesti, é colunista do Coletivo Mídia
Ninja e autora do livro ‘E se eu fosse pura’.
243
epistemes vão sendo criadas, consolidando
um putAtivismo que converte as redes sociais
em ferramentas de autorreconhecimento e
de reconhecimento social “da experiência
da prostituição como politicamente
legítima e constitutiva das lutas feministas”

PUTA LIVRO
(CARVALHO; CARRARA, 2015, p.394).
O fenômeno da internet e das redes
sociais abre um novo cenário, onde a
representação da prostituição dá lugar
a novas narrativas em primeira pessoa,
as quais se contrapõem à imagem
estigmatizada da prostituta como vítima,

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


delinquente, escravizada e sempre descrita
em terceira pessoa (CLUA, 2015). A ironia, a
irreverência e o desejo de ‘incomodar’ – pela
disponibilidade de debater temas polêmicos
e sobre os quais ninguém quer falar - são
marcas recorrentes nos textos veiculados
pelas putafeministas, possibilitando uma
ampla divulgação de visões, saberes e leituras
diversas sobre a prática da prostituição.
No mundo todo, verifica-se uma crescente
ocupação desses espaços de ativismo digital
por parte de prostitutas militantes o que tem
propiciado outras formas de luta pelos seus
direitos.
No Brasil, os escritos de Monique
Prada desvelam esse tipo de ativismo
digital. Nos textos veiculados em sua página
do Facebook, no Mundo Invisível7, no
Coletivo Mídia Ninja (rede descentralizada
de jornalismo e ativismo) ou em seu livro
“Putafeminista”, a autora socializa saberes
e conhecimentos sobre a prática da
prostituição e reivindica o reconhecimento
das prostitutas como militantes feministas,
afirmando as categorias ‘putafeminismo’
e ‘putafobia’, sendo que esta designa a
opressão e o estigma social que recaem
sobre as mulheres que exercem prostituição.
A internet é apontada como elemento

7
Projeto de mídia livre < https://mundoinvisivel.org/> que
trata de temas ligados ao trabalho sexual ao redor do mundo.
244
educativo importante na formação política de
Monique Prada, seja por possibilitar acesso a
textos de outras trabalhadoras sexuais, seja
como ferramenta para facilitar a comunicação
e articulação entre essas mulheres.

PUTA LIVRO
Também pela internet soube da existência da
Ammar (Associação de Mulheres Meretrizes da
Argentina) e conheci o trabalho maravilhoso
de Georgina Orellano, sua secretária geral,
que vim a conhecer pessoalmente anos depois,
em Montevidéu. Tive acesso a textos de
trabalhadoras sexuais com Montse Neira, Missia
Gira Grant, Pye Jakobsoson, Morgane Merteuil

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


e outras tantas que me traziam a possibilidade
real de me considerar, também, uma feminista
(PRADA, 2018, p.70-1).

O blog “La mala mujer” e a rede


social de Montse Neira8, na Espanha, são
outros exemplos da apropriação desses
meios de comunicação para constituição do
putAtivismo e do protagonismo político da
prostituta. Montse Neira tem participado
ativamente na elaboração de categorias
de análises que permitem ampliar a
compreensão da prática da prostituição
online e de como o uso dessas novas formas
de comunicação podem gerar melhores
condições para a visibilidade pública do
debate sobre gênero e prostituição, bem
como para o exercício da ocupação, ao
ampliar a captação de clientes, a circulação e
troca de informações sobre clientes e locais
seguros para trabalhar, a comunicação entre
companheiras de trabalho, etc (CLUA, 2015).
A despeito da dificuldade que alguns
setores hegemônicos do feminismo
ainda apresentam para ouvir as vozes e
reivindicações de prostitutas, posto que
permaneçam ancorados em um modelo de

8
Prostituta militante, licenciada em Ciências Políticas
e Administração, é autora do livro ‘Una mala mujer: la
prostitución al descubierto’.
reivindicações universais e na existência de

245
um sujeito ‘mulher’ indiferenciado (JULIANO,
2016); as ressonâncias do putafeminismo têm
se ampliado e ganhado visibilidade, por meio
do PutAtivismo digital e do planejamento

PUTA LIVRO
e realização de ações culturais e educativas
(Puta dei, desfiles de moda, Miss Prostituta,
peças de teatro, jornal Beijo da Rua, Corrida
da Calcinha, etc).
Desafia-se, assim, o feminismo
desde “dentro” (PISCITELLI, 2016, p.84),
o que possibilita o questionamento de
representações preconcebidas e cristalizadas

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


sobre as mulheres e as práticas de
prostituição. Suas vozes não apontam para
um discurso homogêneo e estático acerca
de si e de sua prática, já que são produzidas
em diferentes contextos e em distintas
condições de exercício do trabalho sexual.
Elas expressam possibilidades plurais de
putas mulheres existirem e resistirem em
meio a tantas adversidades e negações.
As vozes das prostitutas, nas ruas e nas
redes, têm favorecido a desconstrução de
imagens estereotipadas como a da “‘puta
coitadinha” que exerce essa atividade “em
decorrência das vicissitudes de vida, pelo
contrário, suas falas indicam que o fazer-
se puta pode ser uma recusa em aceitar
estruturas desumanizantes que permeiam
outras instituições sociais tais como a família,
o casamento e o trabalho” (SOUSA, 2018,
p.330).
A autonomia das prostitutas vai sendo
fiada por todas as putas que se movimentam
de ponto em ponto, na noite, na batalha, nas
ruas, nas praças, nos bregas e nos calçadões.
Na vida aprenderam que “mulheres boas
vão para o céu, mulheres más vão para
qualquer lugar9”. Ir para qualquer lugar,
não é o mesmo que não ter para onde ir,

9
Uma das frases estampadas nas camisetas produzidas pela
grife Daspu.
246
antes representa a possibilidade de criar
múltiplos caminhos, de construir “novos
modos de expressão subjetiva, política e
social” (RAGO, 2013). Ir para qualquer lugar
requer a ousadia de ocupar novos espaços,

PUTA LIVRO
tecer novas epistemes, leituras, olhares,
saberes e compreensões sobre as condições
existenciais vivenciadas pelas mulheres e,
sobretudo, de forjar coletivamente novas
práticas de liberdade.

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA


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Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/
becas/20151225060933/Clacso_ Kirkwood_Maria_Flor_final.
pdf Acesso em: 02.05.21.
249
RENZO GOSTOLI

PUTA LIVRO

Valquíria Pereira da Costa no primeiro desfile da


Daspu na Praça Tiradentes. 05/12/2005. Austral Foto/
Renzo Gostoli.
250
PUTA LIVRO
RENZO GOSTOLI

Jane Eloy no desfile da escola de samba Caprichosos de


Pilares no sambodromo do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
Brazil. 27/02/2006. Austral Foto/Renzo Gostoli.
251
PUTA LIVRO
RENZO GOSTOLI
Betânia Santos no desfile Daspu em homenagem a Gabriela
Leite. Rio de Janeiro,19/03/2014. Austral Foto/Renzo
Gostoli.

Gerenilza Marinho no desfile em homenagem a Gabriela Leite. Rio


de Janeiro, 19/03/2014. Austral Foto/Renzo Gostoli.
252
PUTA LIVRO
RENZO GOSTOLI
Maria Nilce dos Santos, Gabriela Leite e Gerenilza Marinho
no final do desfile Daspu no Hot Fair, Rio de Janeiro.
30/10/2010. Austral Foto/Renzo Gostoli.

Indianarae Siquiera no desfile-protesto Daspu contra


violência policial em Niterói, Rio de Janeiro. 31/12/2014.
Austral Foto/Renzo Gostoli.
253
THADDEUS BLANCHETTE,
ANA PAULA DA SILVA,
LAURA MURRAY,
SORAYA SIMÕES

PUTA LIVRO
COMÉRCIO SEXUAL
NA CIDADE OLÍMPICA:
Prostituição,
Policiamento e
Exploração Sexual e
Midiática durante os
Jogos Olímpicos no Rio
de Janeiro, 2016

Introdução

O Observatório da Prostituição (OP)


é um projeto de pesquisa e extensão do
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional (IPPUR) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Laboratório de
Etnografia Metropolitana – LeMetro (IFCS/
UFRJ). Entre 2012-2014, a OP organizou
uma investigação etnográfica profunda
e ampla do comércio sexual nas cidades
sedes brasileiras da Copa do Mundo FIFA
de 2014. Naquele projeto, focalizamos
particularmente na cidade do Rio de
Janeiro, que também seria a sede dos Jogos
Olímpicos de 2016. Durante esse projeto
anterior, nossas equipes engajaram-se em
mais de 3000 horas de pesquisa de campo,
empregando participação/observação,
questionários dirigidos, entrevistas semi-
estruturadas, e a coleta e análise de histórias
de vida e trabalho para delinear os efeitos
254
que a Copa do Mundo teve na prostituição,
tráfico humano, a exploração de crianças
e adolescentes, e a violências e exclusões
criadas pelo Estado e por outros agentes
durante o evento (BLANCHETTE, et al 2014).
No final de 2014, a OP começou a se

PUTA LIVRO
mobilizar para uma investigação semelhante
durante os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos
de 2016, no Rio de Janeiro. Mobilizamos
muitos dos mesmos pesquisadores, agentes
políticos, e instituições que contribuiram
para a pesquisa anterior e, desta vez,
também colaboramos com 16 pesquisadorxs
trabalhadorxs sexuais para construir um

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projeto foto e audiovisual, documentando
suas experiências durante os Jogos. Esse
projeto prestou atenção particular nas
experiências cotidianas desses pesquisadores
e nas transformações das áreas urbanas onde
trabalhavam, viviam, e transitavam antes,
durante e depois do mega-evento esportivo
(veja-se Donini e Murray, et al, neste volume).
Para nossa pesquisa de campo, organizamos
equipes multidisciplinares compostas por
acadêmicos, ativistas, e jornalistas, todos
treinados em metodologias do trabalho de
campo etnográfico, para observar os 80
pontos mais movimentados e populares de
sexo comercial no Rio. 77 destes pontos eram
frequentados por prostitutas mulheres cis,
trans, ou travestis e três por trabalhadores
do sexo masculino. Conduzimos trabalho de
campo nestes pontos, constantemente, nos
dois anos anteriores e posteriores aos Jogos
Olímpicos – semanalmente durante o evento.
Visitamos os 30 pontos mais movimentados
duas ou até três vezes por semana durante os
Jogos e, mensalmente, no ano antes (2015)
e depois (2017) da Olimpíada, todos esses
frequentados por prostitutas mulheres cis,
trans, ou travestis.
Os pontos visitados foram, grosso
modo, divididos em três regiões, mais ou
menos iguais em termos do tamanho do
movimento “normativo” de seus mercados
sexuais: Copacabana e Ipanema (a “Zona
Sul”), o Centro, e Vila Mimosa (“VM”).
Adicionalmente, fizemos várias incursões aos

255
pontos de comércio sexual na Barra da Tijuca
(particularmente em meia-dúzia de lugares
tradicionalmente associados com o turismo
sexual) e algumas de nossas pesquisadoras/
trabalhadoras sexuais investigaram os circúitos

PUTA LIVRO
dos serviços de “escort” on-line.
Nossas análises de parte do enorme
volume de dados colecionado durante essas
incursões são apresentadas neste volume. Os
participantes do projeto fotográfico fizeram a
curadoria de milhares de imagens, gravações, e
narrativas de texto para a exposição intitulada,
O que você não vê: a prostituição através de

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nossos próprios olhos (www.oquevcnaove.com).
O capítulo que segue abaixo analisa dados
coletados por nossas equipes de trabalho de
campo etnográfico para focalizar na questão da
violência (principalmente a violência do Estado)
contra profissionais do sexo no Rio de Janeiro
antes, durante, e depois dos Jogos, bem como
o impacto geral dos Jogos sobre o comércio e
mercados sexuais na cidade e, finalmente, uma
análise crítica dos discursos midiáticos sobre
exploração sexual em comparação com os
achados de nosso trabalho de campo. Para um
relatório mais extenso sobre nossa pesquisa,
sugerimos consultar o Beijo da rua publicado
em dezembro 2017 com todos os resultados.

Os Jogos Olímpicos de 2016 tiveram um


impacto negativo no trabalho sexual na
cidade de Rio de Janeiro

Para começar, os Jogos Olímpicos não


eram muito lucrativos para as profissionais do
sexo. Estimamos que, em geral, o comércio
sexual caiu cerca de 5% durante os Jogos, em
comparação à queda de 15% que registramos
durante a Copa do Mundo1. Em ambos os
casos, a queda foi causada por um fator
principal: a maioria dos pontos de comércio

1
Em termos dos lucros reportados pelas trabalhadoras
sexuais e pelos pontos de prostituição, confirmados
com nossas próprias contagens de números de clientes,
programas, e preços do programa.
sexual do Rio perdeu seus clientes regulares,

256
que costumavam ficar em casa durante os
eventos e evitavam o Centro, e, a Vila Mimosa,
em particular. Essas duas regiões contêm a
maior parte dos pontos de comércio sexual na

PUTA LIVRO
cidade e atendem, principalmente, aos homens
que trabalham no Centro e suas adjacências
durante os dias da semana.
A queda nas Olimpíadas, no entanto, foi
contraposta a um movimento “normal” já baixo
provocado pela crise econômica e política do
Brasil, que explodiu durante o período 2014-
2016. Nos 12 meses que antecederam as
Olimpíadas, o movimento nos locais de sexo

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comercial do Rio foi o mais lento que temos
visto em mais de uma década de pesquisa,
já que os homens da cidae tinham cada vez
menos dinheiro para gastar com sexo. O
Centro do Rio foi particularmente atingido
durante este período pelos diversos projetos
de melhoria da infraestrutura urbana ligados
aos Jogos, que dificultaram a passagem pela
região, diminuindo significativamente o fluxo
de clientes. Assim, embora tenha havido
uma queda menor no movimento “normal”
dos mercados do sexo comercial na cidade
durante as Olimpíadas do que durante
a Copa do Mundo, os anos entre 2014 e
2016 testemunharam um declínio geral no
movimento. Isso significa que a redução de
5% nos lucros do trabalho sexual durante as
Olimpíadas foi tirada de um “bolo” econômico
significativamente inferior àquele dos anos
antes da Copa do Mundo: talvez até 10%
menor, globalmente, chegando a ser 30%
menor no Centro. Todavia, os Jogos Olímpicos
duraram só duas semanas, em comparação
com as quatro da Copa do Mundo. Portanto,
a baixa do mercado de comércio sexual durou
por menos tempo no primeiro evento que no
segundo2.

2
Encontramos zero impacto dos Jogos Paraolímpicos nos
mercados sexuais do Rio de Janeiro.
257
Um fator que contribuiu para que
a diminuição do comércio sexual fosse
menor nas Olimpíadas do que na Copa
do Mundo foi o fato de que houve menos
feriados municipais durante os Jogos do que

PUTA LIVRO
durante o evento da FIFA. Em 2014, esses
impactaram desproporcionalmente na maior
concentração de locais de trabalho sexual na
cidade: Downtown e Vila Mimosa. O comércio
naquelas regiões do Rio estava quase
totalmente fechado durante os feriados da
Copa, e os locais de sexo não eram exceção.
Com menor número de feriados municipais

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durante as Olimpíadas, mais pontos de
comércio (de sexo e de outros serviços ou
produtos) permaneceram abertos no Centro.
Além disto, embora houvesse menos clientes
estrangeiros comprando sexo nas Olimpíadas
do que na Copa, o mercado normal de sexo,
voltado para os nativos do Rio (que é muito
maior do que seu mercado de sexo voltado
para o turismo: cf BLANCHETTE & DA
SILVA, 2011a, b)), não estava tão fortemente
impactado pelo evento de 2016.
A “oferta”, no entanto, ainda
permaneceu muito maior do que a
“demanda” durante as Olimpíadas. Quase
todos os pontos de venda de sexo que
visitamos tinham muito mais profissionais
do sexo do que clientes. Este fenômeno,
observado tanto na Copa do Mundo quanto
nas Olimpíadas, problematiza a opinião
comumente repetida de que megaeventos
necessariamente aumentam o número
potencial de clientes de prostitutas, bem
como a percepção de que a “demanda”
impulsiona o trabalho sexual.

O comércio sexual foi difuso pelo


Rio de Janeiro

Outro fator que resultou em uma


queda relativamente menor no trabalho
sexual durante as Olimpíadas (principalmente
258
no Centro), foi o fato de que o evento
encontrava-se espalhado por toda a cidade.
Isso significava que, mesmo durante os dias
de feriado municipal, um número significativo
de clientes potenciais ainda visitava o Centro.
Embora o comércio sexual tenha disparado

PUTA LIVRO
em Copacabana durante a Copa do Mundo,
diminuindo-se em quase todos os outros
lugares do Rio, ele continuou mais ou menos
igualmente distribuído pela cidade durante as
Olimpíadas, com poucos locais demonstrando
grandes aumentos ou quedas no número
de clientes. As duas exceções a essa regra

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geral parecem ter sido na Vila Mimosa (que,
ao contrário do Centro, não tinha eventos
culturais olímpicos a seu redor para atrair
as multidões durante os dias de férias) e
um estabelecimento específico na Barra da
Tijuca, que ficava relativamente próximo à
Vila Olímpica e era favorecido pelos membros
da mídia e as equipes de produção que
cobriam os Jogos.
Na Copa do Mundo, a maioria dos
pontos de sexo comercial no Rio sofreu uma
queda acentuada no número de clientes,
fora cerca de uma dúzia de pontos que
focavam em uma faixa de 4 quarteirões
de comprimento na área turística da Praia
de Copacabana. Lá, o número de clientes
cresceu cerca de 200-300%, provocando uma
migração em massa de profissionais do sexo
de outras áreas do Rio para Copacabana.
Durante as Olimpíadas, semelhante
fenômeno não ocorreu. Poucos pontos
testemunharam um grande aumento no
número de clientes e, mesmo assim, a
maioria desses só viu aumentos periódicos ou
pontuais. Muitas trabalhadoras do sexo, no
entanto, vagaram pela cidade em busca da
“concentração de ouro”, onde teria enormes
números de turistas a procura do sexo pago.
Essa terreno utópico nunca foi encontrado
durante os Jogos Olímpicos, porém.
Semelhante ao que aconteceu na Copa do
Mundo de 2014, a maioria dos clientes das
profissionais do sexo eram brasileiros e não
259
estrangeiros. Parece que também havia
menos estrangeiros procurando o sexo pago
nas Olimpíadas. As profissionais do sexo
acreditavam que isso se devia ao fato de
que as Olimpíadas atraíam uma população

PUTA LIVRO
de turistas estrangeiros mais equilibrada em
termos de gênero, uma observação que foi
confirmada por nossas observações durante o
trabalho de campo.
As Olimpíadas pareciam gerar maior
movimento em mercados de sexo não
comerciais em toda a cidade, particularmente
em boates, clubes, bares, e nas festas

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frequentadas por jovens, estrangeiros e
cariocas (cf DA SILVA et al, neste volume) .
Muitas de nossas interlocutoras trabalhadoras
sexuais relataram frequentar esses espaços,
se envolvendo no sexo transacional3 durante
as Olimpíadas, um fenômeno que não era tão
aparente durante a Copa do Mundo.

Mais trabalhadoras sexuais chegaram


no Rio nos Jogos Olímpicos do que
na Copa do Mundo

Durante a Copa do Mundo,


encontramos poucas profissionais do sexo
que vieram para o Rio de fora da cidade, e
apenas uma que veio de fora do Brasil. Isso
provavelmente se deve ao fato de que várias
cidades sediaram a Copa do Mundo no Brasil,
de modo que a maior parte da migração
para o trabalho sexual foi estritamente
local. A Olimpíada, claro, foi realizada
apenas no Rio e, dessa forma, atraiu mais
migrantes oriundas do resto do Brasil e do
continente. No entanto, esse “aumento”
foi muito pequeno. Encontramos apenas

3
Uma forma de prostituição onde troca-se sexo por prazer e
afeto mútuo, mas onde um dos parceiros recebe benefícios
materiais (e até financeiros) significativos, geralmente não
negociados antes do ato sexual. Veja-se Bernstein (2007)
e DaSilva & Blanchette (2005) para mais discussões sobre
esse fenômeno, particularmente o conceito de “girlfriend
experience”.
menos de uma dúzia de profissionais do

260
sexo estrangeiras, todas oriundas de outros
países sul-americanos, e talvez três dúzias de
trabalhadoras sexuais que vieram de outros
estados brasileiros. Lembre-se de que esses
números foram encontrados no total, no

PUTA LIVRO
curso de centenas de visitas aos maiores e
mais populares pontos de sexo comercial da
cidade. A maioria das mulheres que vieram
de fora do Rio apresentou-se bastante
decepcionada com a quantidade de dinheiro
que ganharam nos Jogos. Quase nenhuma
alcançou suas metas financeiras. Várias

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relataram ter sofrido prejuízos econômicos,
uma vez que os custos de passagem,
hospedagem e alimentação excederam seus
ganhos com a venda de sexo.
Seguindo a definição de “tráfico de
pessoas” do Protocolo de Palermo4, não
vimos qualquer indicação de qualquer mulher
traficada para fins de exploração sexual
durante os Jogos Olímpicos. Uma vítima
de tráfico, do sexo feminino, supostamente
foi encontrada pelo Comitê Estadual de
Combate ao Tráfico, mas isto não chegou a
ser confirmado pelo Comitê e mais detalhes
sobre esse caso nunca foram liberados5.

Diferente da Copa, não tivemos relatos de


violência policial em contextos de trabalho
sexual durante os Jogos Olímpicos

Ao contrário do que aconteceu na


Copa do Mundo, a polícia carioca não fechou
nenhum grande centro de trabalho sexual
antes, durante, ou depois das Olimpíadas.
Não vimos, nem ouvimos falar, de nenhuma
violação por parte da polícia dos direitos
das profissionais do sexo durante os Jogos.
Certamente, nada aconteceu que fosse
semelhante à invasão policial ilegal em

4
O tratado internacional da ONU que define “tráfico de
pessoas” como conceito.
5
É mister notar, neste contexto, que Dr. Thaddeus
Blanchette do OP é membro do referido Comitê.
261
Niterói, em 2014, na qual estupros e roubos
foram cometidos por policiais, vitimizando
trabalhadoras sexuais durante as operações
pré-Copa6. Houve uma exceção a essa regra
geral: as profissionais do sexo perto do

PUTA LIVRO
Estádio do Maracanã, onde foram realizadas
as cerimônias de abertura e encerramento
dos Jogos, relataram terem sido expulsas
pela polícia da avenida principal que leva ao
Estádio. Todavia, essa operação parece ter
sido uma ação mais geralizada que visava o
comércio alternativo e ambulante de todos os
tipos – não era direcionada especificamente

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contra a prostituição. Nossas interlocutoras
trabalhadoras do sexo afirmam que também
houve uma operação policial de médio
porte realizada pela Polícia Rodoviária
em bordéis na periferia do Rio durante os
Jogos. Essa investigava o tráfico de drogas
e a exploração sexual de menores, mas não
foi feita nenhuma prisão e nada a respeito
da operação foi veiculado na imprensa. As
poucas outras operações policiais divulgadas
antes, durante, e depois dos Jogos que
tangiam na questão do comércio sexual
foram principalmente voltadas para a
repressão à exploração sexual de menores
(da qual falaremos abaixo).
Pensamos que houve duas razões
para a relativa falta de repressão policial
das profissionais de sexo em torno dos
Jogos Olímpicos. Em primeiro lugar, após
as operações violentas em bem noticiadas
antes da Copa do Mundo, o Observatório da
Prostituição e suas aliadas denunciaram os
ocorridos em diversas instâncias municipais,
estaduais, federais e internacionais (MURRAY,
2014) e entraram em contato com o Comitê
de Megaeventos do Estado do Rio de
Janeiro e o Comitê Anti-Exploração Sexual

6
Oficio do Observatório da Prostituição detalhando
o ocorrido: http://umbeijoparagabriela.com.br/index.
php/2014/05/30/violacoes-graves-contra-prostitutas-em-
niteroi-demandam-atencao-e-acao-urgente/
262
de Menores da Fundação para a Infância e
a Adolescência (FIA-RJ), compartilhando os
impactos negativos das operações pré-Copa
sobre as populações envolvidas no comércio
sexual no Rio e a falta de preocupação
visível das instâncias de segurança pública

PUTA LIVRO
sobre a exploração de mão de obra infantil
em todos os setores da economia fora
o comércio sexual. Em 2014, embora
nenhuma criança ou adolescente tenha sido
encontrado vendendo sexo no Rio em função
da Copa do Mundo, os pesquisadores do
OP documentaram o enorme emprego de

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trabalhadores infanto-juvenis no comércio de
bares e da rua (BLANCHETTE & DASILVA,
2016). Escrevemos e divulgamos múltiplos
artigos e relatos sobre as operações anti-
prostituição da Copa e conseguimos que a
Anistia Internacional e vários políticos locais
as denunciassem.7 Por fim, informamos às
instituições relevantes (particularmente a FIA,
ao Comitê Estadual de Combate a Trabalho
Escravo, e o Comité de Megaeventos)
que estaríamos vigilantes em relação às
operações de “segurança” olímpicas,
particularmente em termos de seus impactos
sobre as mulheres e crianças. Participamos
de reuniões dessas organizações e de outras
que estavam articuladas ao Comitê Olímpico
e apresentamos várias propostas para ajudar
as profissionais do sexo durante os Jogos,
incluindo centros de acolhimento e educação
por pares. Simultaneamente, realizamos
oficinas com os próprios membros dessas
instituições sobre as realidades do trabalho
sexual no Rio.
Acreditamos que essas nossas
atividades contribuíram para criar uma
melhoria nos discursos oficiais sobre o tráfico
humano, trabalho escravo, e a exploração

7
Veja-se https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/
noticia/2014-07/anistia-internacional-lanca-acao-em-defesa-
de-prostitutas-agredidas e https://mundoinvisivel.org/jean-
wyllys-por-que-participar-do-puta-dei-em-niteroi/
sexual nos dois anos antes das Olimpíadas.

263
Como resultado, em 2016, muitos
funcionários e burocratas dessas instituições
do Estado e seus parceiros na sociedade civil
falavam muito mais sobre a exploração em si
– particularmente a exploração do trabalho

PUTA LIVRO
infantil, da qual documentamos centenas de
casos durante a Copa – evitando o cultivo
de pânicos sexuais e a congruência simplista
de que “mega-eventos = trabalho sexual =
exploração sexual = pedofilia”. Queremos
sentir que nossos esforços entre 2014 e
2016, nos campos político e informativo-

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educacional, ajudaram a realizar essa
mudança.
Infelizmente, há uma explicação
alternativa (e talvez mais convincente) para
a relativa escassez de operações policiais
contra a prostituição antes e durante
as Olimpíadas. Dada a crescente crise
econômica do Estado do Rio de Janeiro, o
Governador do Rio teve que declarar um
estado de calamidade nos meses anteriores
aos Jogos, apenas para conseguir os
recursos para garantir um nível adequado
de segurança durante o evento. Neste
cenário, simplesmente não havia dinheiro
suficiente para gastar naquilo que seriam,
essencialmente, operações de relações
públicas voltadas para amenizar o senso de
pânico moral do público frente ao espectro
de “exploração sexual”.
Em geral, as prostitutas eram ignoradas
pelas forças de segurança durante os Jogos
Olímpicos e, também, pelas instituições
de direitos humanos e pelo aparato de
assistência social do Estado. Por um lado, isso
significava que não havia nenhuma tentativa
das instancia estatais de ouvir as profissionais
do sexo ou lidar com seus problemas antes
ou durante as Olimpíadas. Por outro lado, a
polícia praticamente deixou as trabalhadoras
sexuais adultas em paz, o que – dadas as
experiências anteriores da Copa – foi um
ganho importante para a categoria, mesmo
não sendo fruto de uma política planejada.
É muito importante enfatizar que

264
embora o comérico de sexo não tenha sido
alvo direto das estratégias de segurança
pública dos Jogos Olímpicos de 2016, isso
não significa que atividades policiais punitivas
e violentas, frequentemente associadas à

PUTA LIVRO
aplicação da lei no Brasil, tenham, de todo,
cessado. Também não significa que houve
uma organização mais ética das Olimpíadas,
em termos mais gerais. Por exemplo; são
bem conhecidas as “campanhas de limpeza
urbana” que costumam ser associadas a
megaeventos esportivos, e, as associadas

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aos Jogos Olímpicos de 2016 resultaram na
hipermilitarização das comunidades anfitriãs.
Sendo assim, as Olimpíadas impactaram
negativamente a segurança de cidadãos
cariocas já marginalizados e aceleraram
a feminização e racialização da pobreza
na Grande Área Metropolitana do Rio de
Janeiro. Para uma cobertura mais detalhada
dessas violações, recomendamos os trabalhos
publicados pelo Comitê Popular da Copa
do Mundo e das Olimpíadas do Rio de
Janeiro e/ou Comunidades Catalisadoras /
RioOnWatch.org.8
Desta maneira, fora as poucas
operações policiais que visavam a repressão
da assim chamada “exploração sexual
infantil”, podemos dizer que o Estado não
impactou as trabalhadoras sexuais adultas
de forma direta durante os Jogos. Porém, a
cobertura jornalística do trabalho sexual, em
muitos casos, acabou por reforçar estigmas
e preconceitos sobre a profissão além de
potencializar pânicos morais, já antigos,
sobre prostituição, tráfico e megaeventos
esportivos. Parecido com o que aconteceu
na Copa do Mundo, o tema da exploração
sexual esteve muito presente nesses
discursos midiáticos e como preocupação de
algumas ONGs no Rio de Janeiro.
Na segunda parte do texto, iremos

8
Veja: https://rioonwatch.org.br/?p=11633
discutir diferentes formas de exploração

265
encontradas e não encontradas em nossos
campos. Um dos grandes problemas que
percebemos em nosso trabalho é justamente
a falta de definição de “exploração sexual”

PUTA LIVRO
no código penal brasileiro, que, conforme
temos ressaltado em outros lugares
(BLANCHETTE, MITCHELL & MURRAY,
2017), muitas vezes é utilizada para reprimir
e violentar os direitos das prostitutas.
Frente essa indefinição, e complexidades
que percebemos no campo de como o
termo é empregado, usaremos a seguinte
definição, empregada pela Rede Brasileira

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das Prostitutas: “forçar alguém a se prostituir
ou impedir sua saída da prostituição” (com a
ressalva de que a RBP entende que qualquer
forma de trabalho jovem-infantil é trabalho
forçado).
É importante que se diga que, seguindo
esta definição de “exploração”, não
encontramos evidências de exploração sexual
relacionados aos Jogos Olímpicos. Conforme
o capítulo de Blanchette, Da Silva e Ferreira
nesse volume, encontramos diversas formas
pelas quais estabelecimentos comerciais
ganharam dinheiro com a prostituição, e
também casos da exploração midiática de
prostitutas durante os Jogos. Finalmente,
e muito preocupante, percebemos um
silêncio quase total em relação aos casos de
exploração sexual infantil que não estavam
relacionados aos Jogos Olímpicos – tanto
no âmbito político como midiático - fato que
revelava as características perenes estruturais
desse fenômeno em nossa cidade. Na última
secção deste capítulo, vamos discutir alguns
desses casos em mais detalhe.

A exploração sexual revelada pelo


trabalho de campo etnográfico

Em mais de 1.500 horas de trabalho


de campo etnográfico antes, durante, e
266
depois dos Jogos Olímpicos (2015-2017),
não encontramos nenhum caso de pessoas
sendo forçadas a trabalhar na prostituição ou
sendo impedidas de sair dela. Na verdade,
encontramos várias mulheres que haviam

PUTA LIVRO
deixado o trabalho sexual nos dois anos
após a Copa do Mundo FIFA 2014, mas que
voltaram a fazê-lo por vontade própria nas
semanas antes das Olimpíadas, na esperança
de ganhar muito dinheiro. Em todos esses
casos, suas esperanças foram frustradas,
segundo os relatos que coletamos e as

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entrevistas. Assim também, na maioria dos
locais de trabalho sexual que visitamos,
havia muito mais profissionais do sexo do
que clientes e, na segunda semana das
Olimpíadas, muitas de nossas interlocutoras
que vendiam sexo haviam parado de
trabalhar, apostando no sexo transacional
como melhor maneira de ganhar nos Jogos
(ver SILVA et al, este volume).
Encontramos um caso em que donos
de bordéis recrutaram ativamente mulheres,
profissionais do sexo, oriundas de fora do Rio
de Janeiro, o que era, sem dúvida, “tráfico
de pessoas” de acordo com a legislação
brasileira então vigente. Nada neste caso
implicava “tráfico” nos termos do Protocolo
de Palermo (transporte ou recrutamento
para trabalho anãlogo ao trabalho escravo
ou para a exploração sexual) ou da nova
legislação brasileira referente ao tráfico, que
entraria em vigor no final de 2016 (não houve,
enfim, coação, engano, ou exploração de
situação de vulnerabilidade). Esse caso e suas
consequências serão discutidos, a seguir, na
seção sobre exploração de mídia.
Preconceitos, Desigualdades e

267
Violências Revelados pelo Trabalho
de Campo Etnográfico
sobre“Exploração Sexual Infantil”

PUTA LIVRO
A “exploração sexual infantil” é um
conceito ainda mais escorregadio do que o
de “exploração sexual”. Legalmente, refere-
se à prostituição de crianças ou adolescentes
menores de 17 anos. Culturalmente (e
biologicamente), porém, uma criança de

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10 anos de idade é muito diferente de uma
jovem de 17, em termos de comportamento
sexual, e também em termos da tolerância
social a este comportamento. Essas
diferenças tornam-se ainda mais evidentes
quando o conceito jurídico de “criança” se
cruza com marcadores de gênero, raça, classe
e sexualidade.
A atividade sexual de jovens na faixa
etária de 15 a 17 anos é um fato social
normativo no Rio de Janeiro, no sentido de
“normativo” como definido pelo sociólogo
Emilé Durkheim.9 É comum e pode ser
observado em jovens de todas as classes,
sexos, raças, e orientações sexuais da
cidade. Também é normal encontrar jovens
de 15 a 17 anos envolvidos em contatos
sexuais com pessoas maiores de 18 anos.

9
“Um fato social é normal para um determinado tipo social,
visto em uma determinada fase de seu desenvolvimento,
quando ocorre na sociedade média das espécies,
considerada na fase correspondente de sua evolução”
(Durkheim, 1982 [1895]: 97) . Embora discordemos dos
preceitos evolucionários sociais de Durkheim que s’ao
expostas nesta frase, concordamos com sua visão de que
o normal é aquilo que pode ser encontrado em qualquer
lugar em uma determinada sociedade, em um determinado
momento do tempo.
Por fim, é normal que um dos parceiros de

268
um casal afetivo-sexual “corteje” o outro
com presentes, que podem até envolver
dinheiro10. Isso é particularmente o caso
quando o parceiro mais jovem é mulher

PUTA LIVRO
e o parceiro mais velho é homem. A
normalidade dessas relações e suas trocas
correlacionadas é raramente questionada no
Rio, principalmente se forem heterossexuais,
se a parceira mais jovem for mulher, se ambos
os parceiros tiverem a mesma cor da pele,
e também se ambos os parceiros forem da
classe média ou alta.

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Porém, como Blanchette e da Silva
apontam em outro lugar (2016 b), as
populações que não se enquadram nos
ideários de beleza e moralidade branca e da
classe média/alta têm sua sexualidade muito
mais vigiada no Rio de Janeiro. As jovens
mais escuras e mais pobres em particular, são
tradicionalmente vistas como sujeitos cuja
sexualidade deve ser acompanhada de perto
e, se necessário, controlada pelo Estado11.
Em nossas reuniões com os agentes de
segurança e do sistema de serviços sociais
do Estado antes dos Jogos Olímpicos,
as pessoas “vulneráveis a exploração

10
C.f. Georg Simmel (2004 [1900]: Capítulo V) para uma
discussão interessante sobre trocas de dinheiro e presentes
nas relações sexuais / afetivas. Embora a análise de Simmel
seja bastante vitoriana e se baseie quase exclusivamente na
análise moral do sexo de Kant (c.f. Blanchette, et al, 2021),
ela ilustra o emarranhado tipológico que os cientistas sociais
encontram ao tentar separar, de forma limpa, a sexualidade
supostamente “normal” da prostituição. C.f. Viviana Zelizer
(2009) para reflexões mais contemporâneas sobre esse
fenômeno.
11
Um exemplo excelente dessa moralidade dupla poderia
ser vista em Agosto de 2013, quando uma Juíza da Vara de
Infância e da Juventude proibiu a apresentação do grupo
Bonde das Maravilhas composto por adolescentes de 13, 16
e 17 anos, negras e oriundas de comunidades populares do
Rio de Janeiro. A alegação da Juíza era que ao “apresentam-
se praticamente seminuas, dançando coreografias altamente
sensuais, elas estão inseridas em contexto erotizante que
lhes deturpa a boa formação moral e sexual, com aberto
convite à prostituição” (WURMEISTER, 2013).
sexual” eram, sem exceção, retratadas por

269
como meninas negras ou pardas, pobres
e faveladas e incapazes de controlar sua
própria sexualidade. Nestas ocasiões,
apontamos que os únicos casos que tínhamos

PUTA LIVRO
encontrado de meninas, menores de idade,
engajando-se em trocas sexuais-afetivas com
estrangeiros na Copa do Mundo aconteciam
no contexto da vida noturna “normal” (i.e.
não envolvia comercialização do sexo),
particularmente no bairro boêmio de Lapa.
Mas essas informações foram ignoradas
pelos agentes do Estado, que repetidamente
explicavam para as representantes da OP (o

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único grupo nessas reuniões que montou uma
pesquisa sobre a exploração sexual durante
a Copa) que era necessário “concentrar
no problema real”, que seria a exploração
sexual de jovens negras, pobres, e faveladas/
periféricas. Por outro lado temos, como
exemplo dos tipos de práticas empregadas
por esses agentes, em agosto de 2015, a
utilização do Batalhão de Policiamento dos
Megaeventos que, criado para atuar na Copa
e Nos Jogos Olímpicos, acabou trabalhando
pela interdição da ida de jovens pobres
e negros às praias da Zona Sul do Rio de
Janeiro (MARTÍN, 2015; BLANCHETTE & DA
SILVA, 2016a).
Notável neste quadro foi a absoluta
falta de qualquer planejamento, por parte
das autoridades, para atender eventuais
casos de jovens trans se prostituindo
nos Jogos Olímpicos. Nas reuniões do
Comitê Anti-Exploração, organizado pela
FIA antes dos jogos, a solução proposta
por alguns membros da Comité – e, em
particular, pelos membros representantes da
segurança pública e da assistência social --,
caso uma jovem trans fosse encontrada na
prostituição, era sua apreensão pela polícia
e sua internação (como menino) no sistema
socioeducativo para crianças e adolescentes.
Graças a uma relação, via de regra,
problemática com o Estado e suas
instituições, que gerencia certas populações
270
a partir de estereotipias e moralidades
muito conservadoras, jovens negros, pobres,
e trans no Rio dificilmente procurariam a
polícia ou mesmo agentes do sistema de
assistência social como forma de apoio. O
único caso provável de exploração sexual de

PUTA LIVRO
menores que testemunhamos diretamente
durante nosso trabalho de campo dos Jogos
Olímpicos foi de observar negociações
transacionais envolvendo duas jovens trans
na Lapa que pareciam ter menos de 18. Mas
pelos fatores descritos acima e a seguir, não
sentimos que poderíamos simplesmente
qualificar a situação delas como tal, dado

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o contexto político e social mais amplo
da cidade e a recusa das autoridades de
segurança pública e assistência social a
contemplar de forma realista os problemas
das jovens trans que vendem sexo.
Das jovens trans por nós entrevistadas
durante os Jogos, nenhuma opinou que
entregar jovens trans às autoridades poderia
resultar em algo além de mais violência e
exclusão. Como uma das pesquisadoras
trans- comentou no decorrer do trabalho
de campo: “Se você é uma jovem trans- na
prostituição e você encontra a violência,
quase qualquer opção é preferível a ir em
buscar de ajuda por parte do Estado. O
Estado só pensa em você como problema
que deve ser eliminado ou, pelo menos,
removido do espaço público”. Mutatis
mutandis, a mesma coisa pode ser dita com
respeito às jovens negras e pobres envolvidas
no comércio do sexo. O problema pode ser
resumido desta maneira: para estas jovens,
a “exploração sexual” pode ser preferível ao
tratamento que receberiam como “jovens
resgatadas da exploração” por agentes do
Estado.

A exploração sexual infantil retratada


pela mídia e pelos agentes de
segurança do Estado

Duas operações policiais contra a


exploração sexual infantil no Rio de Janeiro

271
foram amplamente divulgadas pelos
agentes de segurança do Estado durante as
Olimpíadas. Ambas as operações tiveram
ampla cobertura da mídia nacional e

PUTA LIVRO
internacional, atraindo muita atenção ao
suposto risco que os Jogos Olímpicos
representavam para as crianças cariocas.
Infelizmente, ambas as operações também
demonstram as limitações dos agentes de
segurança e das instituições de assistência
social em lidar com essa questão de
menores que vendem sexo em nossa

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cidade.
A primeira operação ocorreu na
semana anterior aos Jogos, quando
mais de 90 policiais e assistentes sociais
demarcaram clandestinamente cenas de
prostituição de rua no bairro suburbano do
Recreio das Bandeirantes. Há denúncias
feitas pelos próprios moradores sobre esta
região, desde bem antes dos megaeventos,
de que ela vem sendo frequentada por
crianças e adolescentes que vendem sexo.
Por isso havia operações policiais sendo
feitas na área desde um ano antes das
Olimpíadas (G1, 4.7.2015). E se a presença
de jovens engajadas na prostituição nesta
“pista” no Recreio, de conhecimento
notório e público no Rio pelo menos 12
meses antes da chegada dos Jogos, não
existia (e não existe até hoje) evidência
alguma que essas jovens estavam se
prostituindo em função das Olimpíadas.
Inicialmente, porém, a operação
foi mundialmente noticiada como uma
operação de resgate de oito crianças
da exploração sexual, cuja presença
tinha alguma articulação com os Jogos.
Geralmente, a mídia repetia a notícia de
que a operação aconteceu “perto” da sede
272
dos Jogos. O local da operação ficava, na
verdade, a seis quilômetros a distância,
numa parte do Recreio das Bandeirantes
quase nunca frequentada por turistas
estrangeiros (FOLHA DE SÃO PAULO,

PUTA LIVRO
9, 7, 2016)12. Mais tarde, as manchetes
foram modificadas para afirmar que oito
“pessoas” foram resgatadas da prostituição
forçada, entre as quais havia três
adolescentes entre 15-16 anos (FOX NEWS,
11.7.2016). E foi essa versão de eventos que
informou numerosos estudos acadêmicos
e de ONGs sobre o efeito dos Jogos na

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exploração sexual no Rio de Janeiro13.
Como reportado pela jornalista
Maria Martín do Jornal El País (MARTÍNS,
2016a) e confirmado por nosso trabalho
de campo posterior na região e entre os
órgãos de defesa dos direitos das crianças
e adolescentes, a situação revelada pela
operação era muito mais complexa do que
geralmente noticiada. Em primeiro lugar, as
oito pessoas foram presas, não resgatadas.
Os cinco adultos presos nunca foram
concebidos como “vítimas da exploração
sexual forçada” e as adolescentes – que eram
duas de 17 e uma de 16 – tampouco tinham
sido traficadas. Como relata Martíns, duas
das meninas estavam na rua para fugir dos
abusos familiares ou o encarceramento no
sistema de “proteção infantil”. A terceira
estava se prostituindo em função da pobreza
familiar. Nenhuma das três tinham sido
recrutadas ou forçadas por terceiros a se
prostituir (Idbid).
É notável que Martíns reconta na
matéria dela o mito de que essa região onde

12
A manchete desse artigo, como revelado em seu link,
originalmente foi “Polícia resgata oito adolescente sob
exploração sexual em área olímpica”. A Folha de São Paulo
aparentemente mudou a manchete, posteriormente, para
“Polícia resgata oito pessoas sob exploração sexual em área
olímpica”.
13
C.f. Terre des Hommes International Federation relatório
de Set. 2016, que repete a história da Folha como sua única
fontes sobre essa operação.
as meninas operavam era “mais frequentada

273
durante os Jogos”, além de afirmar que “as
meninas tinham que pagar 50 reais pelo
seu direito de ocupar a rua”. É também
interessante que, embora a polícia afirme

PUTA LIVRO
ter empregado 90 agentes nesta operação
por mais de uma semana, nenhum cliente
ou cafetão foi preso, apesar das alegações
de “exploração sexual” (Ibid, Idem). Até
hoje, as únicas três pessoas encarceradas
em função desta operação foram as três
adolescentes “resgatadas”, que foram
remetidas ao sistema de serviços sociais

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e, presumivelmente, para a detenção
preventiva.14
Nosso trabalho de campo etnográfico
nesta mesma pista no Recreio das
Bandeirantes antes, durante, e depois dos
Jogos ainda revelou alguns detalhes a mais
sobre esse caso. Em primeiro lugar, as
mulheres que frequentavam a pista afirmavam
que a polícia só e unicamente estava caçando
menores de idade na prostituição durante os
Jogos, deixando as adultas trabalharem em
paz após a operação inicial noticiada acima.
Estas mulheres também recontavam que a
polícia não tinha interesse em “resgatar”
meninas nem antes, nem depois das
Olimpíadas (algo que Martíns confirma).15
De acordo com elas, os 50 reais
pagos para ter “direito a rua” eram pagos
a própria polícia da região, ou seus aliados

14
Nosso trabalho de campo junto com a FIA e os vários
comitês anti-exploração, antes dos Jogos, deixou claro que
a detenção preventiva pela Polícia Militar era o remédio
indicado nos casos de adolescentes e crianças descobertos
se prostituindo durante os Jogos. As vítimas, uma vez
que eram menores de idade, ficaram compulsoriamente
internadas, sob a tutela do Estado, até serem retiradas da
instituição tal por suas respetivas famílias – inexistente no
caso de “Carol” e abusiva no caso de “Luciana”.
15
“Sem políticas específicas para resgatar crianças vítimas
de exploração sexual, operações como essa enxugam gelo,
lamentam as autoridades consultadas. Carol, Luciana e
Maria reconheceram no mesmo dia que iriam voltar para
a rua. Duas semanas depois da ação policial, a praia do
Recreio voltava a ser cenário de bordel.” (MARTÍN, 2016a)
274
paraestatais (AMAR, 2018) nos vários grupos
milicianos que controlavam o comércio
irregular no Recreio. Finalmente, as mulheres
unanimemente afirmavam que não houve
um aumento na frequência dos clientes na

PUTA LIVRO
pista durante os Jogos. De fato, muitas
delas acabaram migrando para Copacabana
e Centro em busca da suposta “onda de
turistas sexuais estrangeiros” que, de acordo
com a mídia, chegaria na cidade junto com a
Olimpíada.
Só uma das mais de 100 mulheres
entrevistadas por nós na pista do Recreio

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de Bandeirantes reportava ter conseguido
um cliente estrangeiro naquela região,
supostamente tão “perto da sede dos
Jogos”, durante o evento. Todas reportaram
que o movimento de clientes de todos os
tipos estava baixíssimo na região durante a
Olimpíada.
O caso das “meninas do Recreio” pode
ser pensado então como um evento criado
pela polícia para a mídia para demonstrar
que o Rio estava “combatendo a exploração
sexual de crianças e adolescentes durante os
Jogos Olímpicos”. Reportado acriticamente
pela grande mídia, em busca de histórias
sensacionalistas, não revelou nenhum caso
de exploração ligado à Olimpíada, muito
menos coibiu a exploração sexual de crianças
e adolescentes que, de fato, existe no Rio de
Janeiro. De todos os jornalistas que cobriram
esta história (e contamos pelo menos 17
vezes em que foi repetida por jornais e
revistas pelo mundo), só Maria Martíns, de El
País, a investigou com mais precisão, embora
mesmo ela, como vimos, pecasse pelo
sensacionalismo em seu retrato do caso.
A segunda operação de repressão
à exploração sexual infantil envolvia uma
“agência de modelos” perto da Vila Olímpica,
que teria sido invadida pela polícia por
supostamente empregar meninas de 14
anos. Novamente, esse caso foi amplamente
retratado pela mídia nacional e internacional
como evidência de que os Jogos Olímpicos
estavam incentivando a exploração sexual de

275
crianças e adolescentes. Mais uma vez, de
acordo com Maria Martín, de El País:

Uma investigação da Polícia Civil do Rio de

PUTA LIVRO
Janeiro descobriu que atrás das promessas
[de trabalho como modelo] há uma quadrilha
de exploração sexual de menores. Graças ao
site e outros anúncios em redes sociais, os
chefes da gangue, Márcio Garcia, de 33 anos,
e Jonathan Alves, de 24, conseguiam atrair
adolescentes para se prostituírem. A dupla
mantinha alugados há um ano três apartamentos
em um condomínio de luxo na Barra de Tijuca,
de frente para o Parque Olímpico. “Tudo aponta

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que a intenção deles era aproveitar o aumento
da demanda por causa da Olimpíada”, explica a
delegada responsável do caso, Cristiana Bento.
(MARTÍN, 2016a)

Neste caso, nem as meninas vítimas,


nem os membros da suposta quadrilha
foram encontrados, embora o apartamento
apresentasse supostos indícios de
exploração de sexo infantil, tais como
decorações de “Hello Kitty” e “As Meninas
Superpoderosas”, além de vários produtos
eróticos. A “agência de modelos” em
questão foi criada na área anos antes das
Olimpíadas de 2016 (MARTÍN, 2016a).
Novamente, não foram encontradas
evidências de que a agência tivesse alguma
relação específica com as Olimpíadas ou
o turismo sexual, embora, mais uma vez,
essa tenha sido a forma como a história foi
contada na mídia global e pelas ONGs e
acadêmicos que empregavam essas histórias
como sua fonte principal de informações
a cerca da exploração sexual durante a
Olimpíada (como, por exemplo, TERRE DE
HOMMES, 2016).
Durante nosso trabalho de campo,
falamos com muitas trabalhadoras do sexo,
proprietários de bordéis e gerentes sobre
o caso. O quase consenso entre esses
profissionais era que alguém de dentro da
polícia deve ter alertado os donos da agência
sobre a operação, visto que o apartamento
276
foi desocupado imediatamente antes da
chegada da polícia. De qualquer maneira,
o caso teve desdobramentos estranhos
após do fim da Olimpíada. Marcio Garcia de
Andrade, o primeiro acusado, ficou escondido

PUTA LIVRO
por meses, junto com sua namorada de 16
anos (EXTRA, 29.07.2016). Os dois eram
namorados fazia mais de um ano e o caso
demonstra um dos problemas estruturais
chave de alegações de exploração sexual
no Rio: embora seja ilegal um homem de 33
anos pagar por sexo para uma jovem de 16
anos, é legal ele ter sexo não comercial com a

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mesma, ausente alguma reclamação dos pais.
No caso referido, o pai da garota procurou
a polícia e os órgãos de assistência social
bem antes da operação que rendeu a ordem
de prisão de Marcio e Jonathan. Seu relato
demonstra a falta de seriedade com que as
autoridades levaram tais denúncias, fora da
época olímpica:
[O pai da garota] alegou ter procurado o
Conselho Tutelar de Belford Roxo e a 54ªDP
(Belford Roxo), por, pelo menos, cinco vezes.
Nos dois locais, afirma não ter recebido ajuda.
“Eu desisti (de buscar ajuda). Ninguém me
ajudou. Eu tenho meu trabalho, tenho minha
vida. Ela disse, ‘Pai eu estou bem, eu quero viver
minha vida’. Já fui lá cinco vezes (na delegacia),
fui no conselho tutelar e não adiantou nada.
Ninguém me deu atenção. Fui na 54ª DP cinco
vezes e ninguém me atendeu. Falaram “Rapaz
isso não vai dar em nada. Ela está tendo contato
com você. Isto aí é uma aborrecente”. Ainda
falaram isto pra mim: “Isto aí é adolescente e
aborrecente. Depois vai dar errado e vai voltar
pra sua casa”. Nisto taí né,” disse. (Ibid, idem)

Não encontramos nenhuma indicação


de que Marcio, homem branco com cidadania
brasileira e americana, indiciado como “chefe
da quadrilha” nas histórias que inicialmente
saíram na mídia (EXTRA, 29.07.2016;
MARTÍN, 2016a; GAZETA NEWS, 11.08.2016)
tenha sido preso. Aparentemente, ainda
encontra-se livre e, julgando pela sua
presença na internet, em Miami nos EUA.
Inclusive, sua namorada de 16 anos criou
uma página de Facebook intitulada “Falsa
denúncia Marcio Garcia De Andrade” (GAZETA

277
NEWS, 11.08.2016). Em dezembro de 2016,
porém, Jonatham Alves Mendes, o segundo
acusado no caso, foi preso em Belford Roxo.
Homem negro, com cidadania exclusivamente
brasileira e nenhum recurso a exílio no exterior,

PUTA LIVRO
Jonathan foi inicialmente descrito como
o braço direito de Marcio. A partir de sua
prisão, porém, ele começava a constar como
“líder da quadrilha” em algumas reportagens
(MARQUES, 2016). Apesar de tentativas de
habeas corpus, ele parece continuar preso,
porém, não julgado pelo sistema de justiça.16
Falando sobre o caso no início de 2017

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com um de nossos informantes, advogado e
dono de um bordel exclusivo, recebemos o
seguinte comentário dele:
É mais que óbvio que o líder do esquema, o
cara com o capital, era Marcio. Ele vivia em
Miami, fazia pose de businessman internacional,
vivia na cobertura do prédio onde estava o
esquema. Enquanto isto, Jonathan era o leão
da chácara. Preto, pobre, morador da periferia.
O cara foi preso de chinelo em Belford Roxo,
“pelamordedeus”. Enquanto isto, Marcio está
lá nos States. Tem um monte de foto dele na
internet com terno e gravata, carro zero, cacete
a quatro. Era um esquema de prostituição, sim,
sem dúvida. As próprias namoradas dos caras
eram putas e menores de idade! E, com certeza,
eles estavam recrutando outras meninas. Mas
tudo isto começou bem antes dos Jogos e o
cara com a grana – Marcio – era até cidadão
americano. Ele foi preso? Não. Vai ser? Só se for
burro. Agora Jonatham, adeus, né? E você acha
que Marcio conseguia fazer todo esse esquema
sem nenhuma cobertura da polícia? (Dono de
bordel no Rio, fevereiro 2017)

Figura 3: Cartaz procurando Marcio Garcia e Jonathan Alves.


Fonte: Extra, 29.12.2016

16
Vide JusBrasil: https://stf.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/1121800971/recurso-ordinario-em-habeas-
corpus-rhc-159892-rj-7000351-3220181000000
A exploração das profissionais do sexo

278
pela mídia

Como descrevemos acima, tanto a


grande mídia quanto a mídia social, tendeu
a tratar da questão da exploração sexual nos

PUTA LIVRO
Jogo Olímpicos de maneira sensacionalista
e acrítica, com poucas investigações mais
profundas acerca das acusações proferidas
pelos agentes do Estado, além de alinhar os
problemas encontrados como sendo criados
ou intensificados pelas Olimpíadas, embora
carecessem de evidências sustentando essa

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hipótese. Em ambos os casos retratados
neste capítulo, a prostituição exercida
por menores (com ou sem recrutadores e
cafetões) eram situações preexistentes,
que continuavam a ser evidenciados no Rio
após do fim do megaevento. Mas a mídia
também foi sensacionalista em seu trato da
prostituição excercido por mulheres maiores
de idade.17
Embora Maria Martín, do jornal El
País, tenha produzido uma cobertura
sensivelmente mais nuançada sobre as
alegações de exploração sexual de jovens
e crianças retratadas acima, ela também
escreveu uma série de artigos, junto com a
fotojornalista Luisa Dorr, retratando de forma
mais sensacionalista as mulheres engajadas
na venda do sexo no Rio, particularmente
as que foram recrutadas para trabalhar
especificamente para os Jogos Olímpicos
num renomeado bordel no Centro (MARTÍN,
2016b, Dorr, 2016).
Em sua cobertura das histórias dessas
mulheres, Martín priorizava um sentido de
“recontagem de histórias tristes” que a
antropóloga Maria Dulce Gaspar identificou
como estratégia de gerenciamento de

17
Não encontramos nenhuma história na mídia que
retratasse a prostituição excercida pelos homens durante os
Jogos Olímpicos, embora os pesquisadores do OP Gregory
Mitchell e Thaddeus Blanchette tenham testemunhado
vários casos disso.
279
estigmas entre garotas de programa
(GASPAR, 1985). Nesta maneira de retratar
a prostituição, mulheres engajadas na venda
de sexo usam estrategicamente apresentar
sua entrada no mercado sexual comercial

PUTA LIVRO
como algo que aconteceu só e unicamente
pela “força das circunstâncias”, evitando
outros fatores contribuintes. Contando
uma “história triste”, onde a decisão de
se prostituir é sempre representada como
algo absolutamente fora de seu controle, a
pessoa que vende sexo se esquiva o estigma
da prostituição, ao se apresentar como

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vítima das circunstâncias. Como Gaspar
adverte, essas “histórias tristes” podem
até ser factuais, mas quase nunca dão
conta do complexo emaranhado de razões
e circunstâncias que interseccionam para
fazer uma determinada pessoa optar pela
prostituição.
Conhecíamos bem o prostíbulo
retratado por Martín e várias das mulheres
que trabalharam lá. Nos Jogos Olímpicos, foi
o único bordel dos mais que 90, no Centro do
Rio, que encontramos recrutando mulheres
especificamente para os Jogos. Como
Martín mesmo afirma (mas não explica), o
bordel em questão tinha sido fechado por
quase um ano antes dos Jogos por causa
de um desentendimento entre seus donos.
Foi vendido, então, para um grupo de
investidores que nunca tinham trabalhado
anteriormente com a prostituição no Centro
do Rio. Esses rapidamente descobriram que
nenhuma prostituta que conhecia o bordel,
sob seus antigos donos, queria trabalhar no
lugar, pois o ponto tinha sofrido um declínio
brutal em termos de número de clientes,
dado as constantes obras de revitalização
urbana que quase fecharam suas portas.
Os novos donos, não conhecendo a
situação, buscavam recrutar mulheres de
fora da cidade. Essas foram trazidas para o
Rio e abrigadas num apartamento de luxo na
Zona Sul. Tanto as mulheres quanto os novos
donos esperavam lucrar muito com os Jogos
280
Olímpicos, um otimismo não compartilhado
pelos outros integrantes do mercado sexual
comercial no Centro do Rio que tinham
testemunhado o colapso quase total desse
durante a Copa do Mundo de 2014.

PUTA LIVRO
Após a publicação dos artigos de
Martín, entrevistamos várias das mulheres
que apareciam em sua matéria. Elas
comentaram que achava a série em El País
“bem tendenciosa”. Uma das mulheres que
afirmou ter recontado a história para Martín
falou:

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Essa de chorar no edredom foi particularmente
ridícula. É claro que chorei quando cheguei
aqui! Eu estou longe de minha família e os
programas não estavam pagando nem para
comprar cerveja! Agora que melhorou não
estou chorando. Mas isto não é a história que
jornalista quer ouvir. (Trabalhadora sexual
entrevistada, setembro/2016)

As histórias contadas em El País


certamente exploravam o estereótipo
da “puta triste”, sem se engajar mais
profundamente nas condições e problemas
do trabalho sexual no Rio. Eram exploradoras
no sentido de que seu intuito parecia ser
gerar pena em seus leitores (e lucro na
venda de jornais), sem oferecer um contexto
adequado sobre como o trabalho sexual
funcionava na cidade, nem informações
sobre como os direitos das trabalhadoras
sexuais poderiam ser protegidos e suas
demandas incluídas em políticas públicas. A
perspectiva adotada priorizava a vitimização
das mulheres, retratando as trabalhadoras
sexuais como mulheres quase destituídas
de agência e forçadas a se prostituir.
Suas condições específicas – atípicas, em
função das razões detalhadas acima –
eram apresentadas como uma espécie de
“norma” para as mulheres que trabalharam
no sexo nos Jogos Olímpicos e histórias que
pudessem complicar essa visão simplista e
reducionista não foram contadas. Todavia,
não mentia sobre a situação de algumas
das prostitutas no Rio: só a recontava de
281
forma preconceituosa e parcial – tendência
replicada por diversos meios durante os
megaeventos no Brasil e que tem sido
também documentada em outros contextos
como parte de estratégias melodramáticas,

PUTA LIVRO
conforme destacada pela Carole Vance
(VANCE, 2012). Como contado no capítulo
sobre a exposição fotográfica O que você
não vê (DONINI e MURRAY, neste volume)
o desejo das prostitutas de participarem do
projeto foi uma resposta direta à este tipo
de reportagens e imagens – especialmente,
como será descrito abaixo, para as mulheres

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da Vila Mimosa.
Mat Roper, um jornalista inglês,
radicado no Brasil e escritor para The Daily
Mail, notório veículo da imprensa marrom
britânica, publicou artigos com informações
falsas sobre a prostituição em seus textos
retratando os Jogos. Roper escreveu uma
matéria sobre a Vila Mimosa, a tradicional
zona de prostituição carioca para o jornal,
afirmando que as prostitutas da VM estavam
rebaixando os preços para programas em
antecipação do grande fluxo de turistas
sexuais estrangeiros durante o jogo
(ROPER, 2016). A afirmação era falsa e foi
imediatamente contestada pela Associação
dos Moradores do Condomínio e Amigos da
Vila Mimosa – AMOCAVIM, a associação do
bairro que reúne os donos e trabalhadores
das casas de prostituição. Em entrevista
concedida na semana seguinte ao jornal
O Dia, a assistente social Cleide Almeida,
associada da AMOCAVIM, acusou Roper de
falsificar a notícia: “Não tem cartaz nenhum
na Vila Mimosa. O repórter pediu às meninas
para segurarem o papel, enquanto batia
as fotos. Pagou R$150 por isso” (MATTOS,
2016).
De acordo com as mulheres que
trabalharam na Vila, por nós entrevistadas,
Roper teria chegado na zona com a placa já
impressa. Pior: ele prometeu anonimidade
para as mulheres, mas o Mail reproduziu as
imagens delas segurando o cartaz, com seus
rostos à mostra. Após reclamações feitas pela

282
AMOCAVIM e o OP, o jornal apagou os rostos
das mulheres. Todavia, os danos já tinham
sido feitos: uma das mulheres fotografadas,
que mantinha sua profissão de prostituta em
sigilo, foi identificada por sua família antes do

PUTA LIVRO
Mail se autocensurar.
A falta de ética jornalística de Roper
não causou nenhuma impressão na mídia ou
entre os agentes de segurança e assistência
social do Estado, em franco contraste com
a reação contra os atos de outro jornalista
olímpico, Nico Hines do Daily Beast. Hines

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teria empregado o app Grindr para revelar
as identidades de atletas gays nos Jogos,
colocando alguns em situações perigosas em
seus países de origens. As ações de Hines
foram denunciadas numa série de publicações
nacionais e internacionais e sua matéria
imediatamente foi retirada do site do Beast
em resposta às reclamações (STERN, 2016).

Polícia, autoridades políticas e o abuso


sexual de crianças adolescentes: as histórias
não contadas

Como parte de nossa pesquisa,


também atentamos às histórias não contadas
na orgia midiática que explorava o tema
de prostituição e a exploração sexual de
crianças e adolescentes nos Jogos Olímpicos
de 2016. Duas dessas aconteciam em torno
do megaevento, atraindo quase nenhum
interesse da mídia local e cobertura zero na
imprensa internacional.18
Na semana anterior às Olimpíadas, mais
ou menos no mesmo período da operação
policial no Recreio dos Bandeirantes que
“resgatava” as três meninas prostitutas,
Nelson Nahim (ex-presidente da Câmara
de Veradores e ex-prefeito de Campos
de Goycatazes, irmão do ex-governador
do Estado do Rio de Janeiro, Anthony
Garotinho) foi condenado a 12 anos de
prisão por participar da organização de
uma casa de prostituição em que crianças
283
a partir dos 8 anos foram mantidas em
cárcere privado, violentadas, forçadas a se
prostituir e forçadas a consumir drogas.
Nahim foi condenado pelo tribunal junto com
treze outros réus, incluindo três outros ex-

PUTA LIVRO
vereadores, alguns dos quais receberam até
31 anos de prisão.
É importante entender que esses
homens foram julgados e condenados – não
apenas acusados – tendo as condenações
ocorrido poucas semanas antes das
Olimpíadas. No dia 27 de Outubro de
2016, porém, Nahim foi libertado da prisão

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após um habeas corpus bem-sucedido.
Até o momento, nenhuma fonte da mídia
internacional cobriu essa história (G1, 27.10.
2021).
Na última semana das Paraolimpíadas,
Pedro Chavarry Duarte, coronel aposentado
da Polícia Militar do Estado (a principal força
policial do Rio) e então presidente do Fundo
Beneficente da Polícia Militar do Estado,
foi encontrado em seu carro em um posto
de gasolina com uma menina de dois anos
de idade, nua e estuprada (LEITÃO, 2016).
A polícia que prendeu Duarte informou à
imprensa que ele tentou suborná-los. Duarte
havia sido investigado na década de 1990
por tráfico de crianças, mas foi considerado
inocente naquela ocasião. Novamente,
até o momento, nenhuma fonte da mídia
internacional cobriu essa história. Com a
exceção notável do sempre profícua Maria
Martín de El País, a historia teve muitíssima
pouca repercussão na mídia local (MARTÍN,
2016c)
A exploração sexual de crianças e jovens
encontrada no Rio em torno dos Jogos
Olímpicos não revelou nenhuma articulação
entre megaeventos e abusos. Pelo contrário:
revelou estruturas racistas, sexistas,
transfóbicas e classistas persistentes de
poder que permitem a exploração sexual de
crianças, muitas vezes com o conhecimento
e até a participação de policiais e de outras
autoridades locais. Como eventos recentes
284
na Europa e na América do Norte (os casos
de Peter Nygard, Jeffery Epstein, Jimmy
Savile, etc.) indicam, abusadores são, bem
frequentemente, pessoas poderosas e ricas
que conseguem se proteger através de sua

PUTA LIVRO
reputação entendida como idônea e seu
acesso a advogados excelentes. No Brasil, a
situação não parece ser nada diferente. No
entanto, a investigação dessas verdadeiras
“máfias de exploração”, absolutamente
imbricadas com sistemas locais de poder,
não parece causar o mesmo fervor político e
mediático que a caça às bruxas representada
pela busca das “dezenas de milhares” de

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crianças exploradas – supostamente por
ocasião dos megaeventos esportivos como os
Jogos Olímpicos.

Conclusões

Embora poucas profissionais do sexo


tenham ganhado muito dinheiro durante os
Jogos Olímpicos de 2016, elas felizmente
passaram por menos violência e repressão
do que durante a Copa do Mundo FIFA de
2014. Como as histórias sobre exploração
sexual relatadas pela mídia que analisamos
indicam, porém, as prioridades dos orgãos
de segurança, justiça, e serviço social no
cada vez mais falido Estado do Rio de
Janeiro ainda parecem ser indevidamente
direcionadas à suposta ameaça de “turistas
sexuais” em vez de para a pobreza,
vulnerabilidades e corrupções cotidianas
que criam situações de exploração sexual no
Rio de Janeiro. Além disso, embora a polícia
tenha sido menos ostensivamente violenta
com as trabalhadoras do sexo durante as
Olimpíadas, o Estado e muitas de suas ONGs
para-humanitárias (AMAR, 2018) associadas
continuaram ignorando as trabalhadoras do
sexo como parceiras cidadãs interessadas e
implicadas na organização urbana. Por isso –
e dada a contínua degradação do Estado de
Direito e do Estado Democrático no Brasil
após o “golpe suave” do impeachment da
285
Presidente Dilma Rousseff e a eleição do
Presidente Jair Bolsonaro – sentimos que a
relativa falta de violência do Estado contra
as profissionais do sexo durante os Jogos
poderia ser vista como uma combinação

PUTA LIVRO
do negacionismo com o neoliberalismo
que desde então tem tomado conta do
país. O negacionismo se materializou (e
materializa ainda) na negação dos direitos das
prostitutas, das verdadeiras explorações de
trabalho e de sexo que existem e contra as
quais a melhor forma de atuação certamente
são mudanças estruturais e não as operações

THADDEUS BLANCHETTE, ANA PAULA DA SILVA, LAURA MURRAY, SORAYA SIMÕES


policiais.

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290
ANGELA DONINI
E LAURA MURRAY

PUTA LIVRO
O QUE VOCÊ NÃO VÊ:
Construção da Exposição
Fotográfica sobre
Prostituição e os Jogos
Olímpicos

Ao refletirmos sobre o desenvolvimento


do projeto “Impactos dos mega-eventos
esportivos nos mercados de sexo no Rio
de Janeiro”1, ficou nítido para nós que tal
processo deveria ter como centralidade a
implicação das prostitutas a partir de suas
narrativas cotidianas e vivências ao longo do
período de preparação e realização dos jogos
olímpicos. E como fazer isso? Como trazer
tais narrativas? Que estratégias e dispositivos
são capazes de articular a realidade cotidiana
para além das clássicas entrevistas e
aplicação de questionários?
A trajetoria de ações, críticas e estudos
sobre prostituição, gentrificação e pânicos
morais em torno de mega-eventos da
organização Davida (BEIJO DA RUA 2012,
2014; SILVA et al 2005) e do Observatório da
Prostituição/UFRJ nos auxiliou, funcionando
como uma espécie de guia ético para a
elaboração de uma proposta que poderia
ser tecida por meio de alianças. Em
diálogo com as prostitutas que integraram
o grupo de aliades da pesquisa, optamos
pela estratégia do registro audiovisual por

1
Projeto financiado pela Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ.
#E-26/210.137/2016.
291
considerar que tal prática traria camadas de
imagens e sonoridades singulares e próprias
ao cotidiano de suas vidas. Fomos inspiradas
por experiências de colaborações entre
pesquisadores, ativistas e prostitutas em
outros contextos internacionais que olharam

PUTA LIVRO
especificamente as intersecções de questões
urbanas e nas quais as trabalhadoras sexuais
foram sujeitos, não objetos, da produção
de conhecimento (CHENG 2013, OLIVEIRA
2016). Consideramos tais estratégias como
ativadoras dos lugares e das experiências
do viver a cidade de modo mais encarnado,

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


de percursos singulares, trajetórias de vida,
afetos, cotidianos enlaçados pelos desafios
da cidade em obras, mas também pelas
fabulações vitais que transbordam dessas
narrativas de vida.
A estratégia audiovisual também foi
uma maneira de ressignificar os processos
estigmatizantes e higienizantes ocorridos
entre a copa do mundo de futebol em 2014
e os jogos olímpicos em 2016. As cidades
brasileiras envolvidas na realização da copa
do mundo e a cidade do Rio de Janeiro
envolvida tanto com a copa do mundo
quanto com os jogos olímpicos vivenciaram
processos parecidos com os que têm sido
documentados em todas as partes do mundo
por ocasião da realização destes mega-
eventos esportivos (RICHTER, LUCHTERS,
DUDU, TEMMERMAN e CHERSICH 2012;
SILK 2014). No Brasil, circularam manchetes
ameaçadoras sobre aumento do “turismo
sexual”, exploração de crianças e mulheres
por parte de turistas sexuais, e aumento do
tráfico de pessoas, que em seu conjunto,
espalharam pânicos morais e paisagens
apocalípticas que conectam a imagem do
país a conteúdos que articulam a prostituição
com vergonha, violência e decepção. Esses
discursos foram ainda potencializados em
decorrência da presença cada vez mais
forte da extrema direita no cenário político
brasileiro, processo que foi silenciando
pouco a pouco as ações de políticas
públicas relacionadas à direitos humanos

292
e prostituição (ABIA e DAVIDA, 2012), um
exemplo disso foi a censura da campanha
relativa ao Dia Internacional da Prostituta em
2013 (REDE BRASILEIRA DE PROSTITUTAS

PUTA LIVRO
2013).
Um dos grandes entraves na quebra
do estigma em relação à prostituição tem a
ver justamente com a sistemática produção
de imagens hegemônicas com narrativas de
vitimização e apagamento das realidades
subjetivas e materiais das vidas das
prostitutas. Tais processos têm suas raízes

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


no colonialismo e se manifestam fortemente
nos contextos “anti-tráfico” (AUGUSTIN,
2007; BROWN, IORDANOVA, & TORCHIN,
2010) e preparações de mega-eventos
esportivos (MITCHELL, 2016). As relações
de poder historicamente estabelecidas entre
produtores de imagens, sejam elas no campo
das artes visuais, do cinema documental
ou no campo jornalístico, grande parte das
vezes são perspectivadas por contadores de
histórias que, em geral, são homens brancos,
cis e heteros, cujos procedimentos narrativos
se estabelecem no sentido de revelar algo,
movimento que acaba por suprimir as
próprias histórias das prostitutas. Ou seja,
revela-se um discurso consolidado pela longa
trajetória moral frente à prostituição e que
predominantemente é voltado à vitimização.
Promover um giro nesse imaginário
social e poder narrar a cidade a partir dos
olhares e das falas das prostitutas foram as
estratégias escolhidas para que pudéssemos
assegurar narrações contra-hegemônicas
da prostituição e da cidade do Rio de
Janeiro durante o processo de preparação e
realização dos jogos olímpicos. Experiências
de gentrificação se intensificam antes de
mega-eventos, e no Rio de Janeiro tínhamos
um largo processo em curso que mexeu de
maneira extrema com os principais locais de
trabalho sexual da região central da cidade.
O projeto gentrificador – que está em curso
há décadas em contextos de prostituição
293
(RAMOS 2019) – atuou com voracidade no
deslocamento forçado de parte significativa
de moradores e trabalhadores de áreas
estratégicas e turísticas da cidade, como
por exemplo, o centro e os bairros de

PUTA LIVRO
Copacabana e Barra da Tijuca.
O movimento brasileiro de prostitutas
nasceu nos final dos anos 1970 lutando
contra processos violentos de repressão e
gentrificação, e contra o estigma que recai
sobre a prostituição. Combater o estigma
tem sido central no movimento organizado
justamente porque é a construção do
estigma sobre a profissão que contribui

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


para os processos sociais de marginalização
e discriminação. A Rede Brasileira de
Prostitutas, desde sua fundação em
1987, vem trabalhando para a construção
de representações culturais positivas e
engajadas sobre a prostituição. Tal trabalho
encontrou alianças com artistas, músicos,
escritores e intelectuais, e vem contribuindo
para a visibilidade de narrativas alternativas
às hegemônicas, destacando o protagonismo
e os direitos das prostitutas. O primeiro
encontro nacional, “Fala, Mulher da Vida”,
foi realizado no Circo Voador com o apoio
e presença de artistas como Martinho da
Vila, Elza Soares e Lucélia Santos. Em 1988,
foi fundado o jornal da Rede Brasileira de
Prostitutas, o Beijo da rua e em 2005, a
grife Daspu, ambos exemplos de como o
movimento tem se dedicado a resignificar
os sentidos da prostituição, subvertendo
representações estigmatizantes através de
mecanismos e ativismos culturais – todos
fortemente investidos na produção e
circulação de imagens.
Desenvolvido em parceria com a
ONG Davida (hoje Coletivo Puta Davida), o
projeto audiovisual “O que você não vê - a
prostituição vista por nós mesmas” faz parte
dessa genealogia de produções culturais que
sempre chamou atenção para as diversas
experiências, subjetividades e olhares de
quem trabalha nos mercados de sexo como
294
protagonistas das suas vidas e pessoas
dignas de respeito e direitos. O projeto foi
desenhado para promover a circulação de
sentidos da prostituição a partir de suas
protagonistas por meio de uma linguagem
artística e poética que relaciona o direito à

PUTA LIVRO
cidade com seus afazeres e afetos cotidianos.
Optamos por um trabalho de fotografia
participativa onde as prostitutas participaram
como sujeitos de saber e produtoras de
seus próprios discursos visuais e narrativos
durante o período das Olimpíadas e
Paraolimpíadas, procurando criar um discurso

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


alternativo aos pânicos morais promovidos
na época em torno da prostituição e para
reivindicar o direito das prostitutas à cidade.
Aqui neste capítulo, narramos o processo
de criação e exposição, refletindo sobre
questões centrais à realização de projetos
participativos de produção de conhecimento
como ética em pesquisa, financiamento e
direitos autorais de imagens.

O processo

Começamos o processo com a


formalização de cooperações entre as
organizações parceiras do Observatório
da Prostituição – a Coletivo Puta Davida,
Grupo Transrevolução, CasaNem, Associação
Brasileira Interdisciplinar de AIDS – ABIA e
o Grupo Pela Vidda. A formação da equipe
contou com uma coordenação composta
pelas duas autoras desse texto e mais três
trabalhadoras sexuais que coordenaram os
três campos onde o projeto foi realizado
(Zona Sul, Centro/Lapa e Vila Mimosa), além
de duas fotógrafas profissionais, equipe
audiovisual constituída por três profissionais
da área que acompanharam o processo e
uma artista visual que idealizou e desenhou o
site do projeto. A escolha por um percurso

2
Ver capítulo do Flavio Lenz sobre o Beijo da rua neste
volume.
formativo em fotografia foi justamente

295
para proporcionar o diálogo sobre o tema
da produção de imagens e para autonomia
no uso dos equipamentos e nas escolhas
artísticas de cada uma das integrantes. Desde

PUTA LIVRO
2016 a CasaNem desenvolve o laboratório de
formação audiovisual, portanto, a parceria foi
oportuna e conseguimos integrar professoras
de fotografia e alunas que se interessaram
pelo projeto.
O processo de realização das
fotos buscou viabilizar a apropriação

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


do conhecimento técnico e artístico das
participantes para produzir seus próprios
discursos e imagens sobre a vida cotidiana
de quem trabalha na prostituição. Como
coordenadoras de campo e também
fotógrafas do projeto, Indianarae Siqueira,
Natania Lopes e Cristiana Oliveira recrutaram
pessoas que trabalham em diferentes locais
de prostituição na cidade do Rio de Janeiro
para participar. Isso foi feito através das
redes das coordenadoras e também de
contatos feitos por sites de prostituição.
Como equipe, tivemos uma preocupação
em recrutar mulheres cis e trans das diversas
geografias e economias do sexo do Rio de
Janeiro. E, ao final, tivemos um grupo de 16
pessoas, incluindo mulheres cis e trans, que
trabalharam no Centro, Lapa, Vila Mimosa,
Copacabana, Jardim Botânico, Barra da Tijuca
e online.
As prostitutas participaram de
encontros formativos em fotografia com as
duas fotógrafas do projeto. Com trajetória
e experiência em projetos pedagógicos e
comunitários em fotografia, Flavia Viana
e Hevelin Costa introduziram conceitos
básicos de fotografia e aulas práticas em
encontros realizados nos locais escolhidos
pelas participantes. Ao longo de todo o
processo de produção de imagens, que durou
296
três meses, foram realizados encontros de
acompanhamento para escolha das fotos que
integrariam a exposição e o site. O processo
foi registrado por uma equipe responsável
pela captação de áudios e vídeos. As

PUTA LIVRO
integrantes desta equipe foram: Angela
Donini, Marina Cavalcanti e Tais Lobo, que
também participaram da formação com foco
na produção audiovisual.
No desenho original, incluímos recursos
para a compra de câmeras, gravadores de
áudio e outros equipamentos, mas devido a

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


um atraso no recebimento dos recursos do
projeto financiado pela FAPERJ, corremos
atrás de outras fontes de financiamento
para esse componente de pesquisa uma vez
que, por se tratar de um evento com data
marcada, esperar seria perder a oportunidade
de realizar os registros. Conseguimos um
financiamento da Open Society Foundations,
mas também enfrentamos desafios para o
recurso chegar no Brasil, o que nos levou a
usar câmeras de celulares.
O lado positivo do uso de celulares
foi que o processo acabou se tornando
mais dinâmico, uma vez que trabalhamos
colaborativamente por meio de três grupos
de WhatsApp, o intercâmbio de imagens
e áudios entre as participantes. Os grupos
acabaram facilitando também as trocas
entre as fotógrafas e a equipe audiovisual,
além de permitir um processo de formação
continuada, já que as professoras de
fotografia também participaram dos grupos.
297 PUTA LIVRO ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
298 PUTA LIVRO ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
299 PUTA LIVRO ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
300 PUTA LIVRO ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
301 PUTA LIVRO ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
302
No total, foram mais de 1.500 fotos
e inúmeros áudios e mensagens de texto
compartilhados num processo que combinou
engajamento artístico e expressão de
singularidades nas relações com a cidade
e o trabalho sexual. Vale destacar que as

PUTA LIVRO
trocas aconteceram com intensa produção
de afetos e apoio mútuo entre as prostitutas
nas conversas; as trocas atravessaram a
dimensão do trabalho para articular a vida
cotidiana em toda a sua extensão, portanto,
as conversas e os registros não ficaram
restritos à atividade profissional. Os ensaios
fotográficos e sonoros trazem um amplo

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


repertório de imagens de estudo, de relação
com os espaços da cidade, com namorados,
com animais de estimação, momentos de
lazer, momentos de cozinhar e o desejo por
mais clientes. Esses são alguns dos aspectos
que demonstram o quanto as imagens e
narrativas produzidas pelos grandes meios de
comunicação são assimétricas em relação às
imagens reais das vidas das prostitutas.

O Site e a Exposição

Desde o início o projeto contemplava


um site com uma exposição virtual. A
proposta do site e a seleção das fotos foram
trabalhadas coletivamente em reuniões
com toda a equipe, incluindo a artista visual
Anais Karenin, que ficou responsável pelo
desenvolvimento do site e catálogo da
exposição. Cada fotógrafa tem sua página
individual, onde estão expostas as fotos
selecionadas, além de uma imagem de fundo
personalizada. Também criamos a página da
“Exposição virtual”, que é um conjunto das
fotos selecionadas por todes e contém suas
imagens preferidas (das quais incluímos uma
seleção a seguir) e na página “Relatos”, há
áudios das conversas de whatsapp e registros
audiovisuais, alguns transcritos e outros
disponíveis para ouvir.
O nome escolhido para o site e para
a exposição foi definido por uma das
303
participantes e escolhido coletivamente. Nos
encontros de equipe reunimos sugestões de
nomes e depois foi realizada uma votação
por meio dos grupos de whatsapp, sendo
“O que Você Não Vê: A Prostitutação Vista
por Nós Mesmas” o vitorioso. Conforme

PUTA LIVRO
apontamos no início deste ensaio, as
narrativas sobre prostituição, em geral,
são reducionistas e estigmatizantes,
portanto, o nome do projeto também é um
posicionamento estético e político sobre
quem narra e o que é narrado.

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY

Site do projeto com links para as páginas individuais de cada


fotógrafa. www.oquevcnaove.com
304
Além do site, trabalhamos na
realização de duas exposições presenciais
no Brasil, e uma na Inglaterra. A curadoria
das fotos e projeto expográfico foram
feitos coletivamente por meio de oficinas

PUTA LIVRO
facilitadas pela equipe responsável pelo
projeto em colaboração com a artista
Juanita Cuartas. Esse processo de curadoria
coletiva aconteceu nos espaços onde seriam
realizadas as exposições no Rio de Janeiro,
portanto, a relação entre o espaço de
exposição e os conteúdos produzidos foi
amplamente debatida por todes. A primeira
exposição aconteceu entre os meses de

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


dezembro de 2017 e fevereiro de 2018 no
Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica,
centro cultural com entrada gratuita,
localizado na região central da cidade, o que
permitiu que a exposição tenha tido ampla
participação de público. Por ocasião do
lançamento do catálogo da exposição, foi
realizada uma roda de conversa aberta ao
público. A segunda exposição ocupou a ante-
sala do salão nobre do Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ).
Ambas as exposições contaram com
eventos de abertura que se articularam com
datas importantes para o movimento de
prostitutas. A abertura foi em dezembro
de 2017, ano que marcou os trinta anos
da Rede Brasileira de Prostitutas e que foi
comemorado com o lançamento do exemplar
do jornal Beijo da rua comemorativo aos 30
anos do movimento. O ano e o mês também
marcaram os trinta anos de um ato público no
Circo Voador que foi organizado por Gabriela
Leite e prostitutas da antiga Vila Mimosa
contra as ameaças à remoção da zona do
mangue com cartazes que afirmavam: “O
Mangue Resiste.” A abertura da exposição
no IFCS foi realizada em junho de 2018 em
homenagem ao Puta Dei - Dia Internacional
das Prostitutas e contou com um debate
com a presença das fotógrafas do projeto
e de Lourdes Barreto. O fechamento foi um
305
seminário internacional realizado com nossos
parceiros do Sexual Spaces Project4 que
apoiaram a realização de todas as exposições
e também montaram duas exposições na
Inglaterra em 2018: uma no Kings College e

PUTA LIVRO
outra no Bournemouth University.

Direitos e Desafios

Os desafios éticos, financeiros e


sobre direitos de imagens em processos
participativos de pesquisa têm sido
amplamente debatidos e discutidos na
literatura internacional (OLIVEIRA 2016;

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


PRINS 2010). No caso desse projeto, todo o
processo foi definido a partir das diretrizes
éticas sobre a realização de pesquisas e de
direito e uso de imagens no Brasil. A pesquisa
como um todo foi aprovada pelo Comitê de
ética em Pesquisa da UFRJ/Macaé, onde um
dos investigadores principais é professor.
Todas as participantes assinaram termos de
consentimento de uso de imagens, onde
especificaram se permitiriam, ou não, expor
seus rostos e/ou suas vozes. O site foi
desenvolvido no modo Creative commons
“By-Non Commercial-No Derivitives” licença,
ou seja, permite reprodução desde que citada
a fonte e que não seja para fins comerciais.
As participantes têm todos os direitos de
suas imagens e autorizaram o Observatório
da Prostituição a usá-las e distribuí-las como
parte deste projeto. Todas as participantes
também receberam um pendrive ao final
do processo com todas as imagens que
produziram.
As questões de financiamento que
atravessaram esse projeto revelam desafios
tremendos na realização de pesquisas
participativas no Brasil. Além do equipamento
audiovisual, era fundamental para nós que
o projeto também pudesse oferecer bolsas
para as fotógrafas e pagar as coordenadoras

4
https://sexualspacesproject.com
306
de campo por seu trabalho. Porém, nos
editais de pesquisa com dinheiro público
no Brasil, os recursos para pagar pessoas
são escassos, sendo priorizados recursos
para a compra de material de capital. No

PUTA LIVRO
edital da FAPERJ no qual essa pesquisa foi
contemplada, por exemplo, somente 30%
poderia ir para serviços de terceiros. A
lógica é que as pesquisas devem envolver
mais que tudo pesquisadores-professores e
outros bolsistas, mas na prática, isso restringe
drasticamente a possibilidade de envolver e
pagar outras pessoas da comunidade para
atuarem no desenvolvimento, execução e

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


análise de pesquisas: papéis absolutamente
fundamentais em metodologias mais
participativas de pesquisa.
Há décadas o movimento de prostitutas
questiona e denuncia pesquisas que têm
tratado elas sob perspectivas exploratórias
e de extrativistas (BEIJO DA RUA 1997). Ao
mesmo tempo, no Brasil é proibido pagar
participantes de estudos, uma norma que
têm um papel fundamental na proteção de
exploração de sujeitos de pesquisa, mas que
também pode limitar modelos de produção
de conhecimento mais horizontais e que
prezem por reconhecer o valor do tempo e
conhecimento de quem está participando.
Levando todos esse fatores em conta,
desenhamos o projeto para que as fotógrafas
recebessem mensalmente a mesma bolsa que
alunes do Observatório da Prostituição para
cobrir todos os custos de transporte e diárias
para seus dias no campo, além de um recurso
para cobrir o uso de dados de seus celulares.
Isso foi mais uma forma de enfatizar o papel
delas como pesquisadoras e produtoras de
conhecimento, e não objetos da pesquisa.
Ao fecharmos este capítulo, nos
deparamos com mais um desafio: recebemos
um email do YouTube para o Canal de Um
Beijo para Gabriela, onde temos o vídeo
feito sobre o processo do projeto e também
entrevistas com a Gabriela Leite. No e-mail,
fomos avisados que o conteúdo do canal
307
tinha sido revisado e avaliaram que o vídeo
sobre O Que Você Não Vê não estava de
acordo com seus “Community Guidelines”
(normas da comunidade), e restringiram o
conteúdo para maiores de 18 anos. Isso

PUTA LIVRO
ocorreu num momento em que imagens
produzidas por prostitutas nas redes sociais
têm sido sistematicamente censuradas
e os perfis delas derrubados5, algo que
prostitutas vêm denunciando já há um tempo
com ataques a sites de anúncios com o
Backpage e mais recentemente OnlyFans6.
Como Patrícia Rosa, artista audiovisual e
trabalhadora sexual ativista da Rede Brasileira

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


de Prostitutas e Coletivo Puta Davida,
que teve seu perfil @patricinhamentiroza
derrubado, observa numa nota de repúdio
assinado por diversos grupos, “Cada vez mais
mulheres, LGBTQI+, negres, trabalhadores
sexuais perdem perfis na plataforma com
políticas de censura do corpo feminino,
por expressar vivências de sexualidade em
primeira pessoa.”
Em um dos relatos recolhidos sobre o
projeto pela equipe audiovisual, a Giovanna
observa que a visibilidade da prostituição
muitas vezes é uma visibilidade problemática
e atravessada por diversas negociações,
moralidades e estigmas:
Não sei se a prostituição é invisível,
acho que pelo contrário, acho que ela
chama muito a atenção, é uma visibilidade
problemática, assim né? entre aparecer e não
aparecer. Uma das casas que eu trabalhei,
por exemplo... é uma casa grande, enorme...

5
No Brasil, o caso que mais ganhou atenção da mídia
foi da Lays Peace, que tem tido seu perfil derrubado
pela companhia várias vezes sob alegações de conteúdo
inapropriado.
6
Diversas organizações internacionais se manifestaram
sobre a decisão do Only Fans para banir conteúdo explícito
em agosto de 2008. Aqui a nota da rede europea de
trabalhadorxs sexuais: http://www.sexworkeurope.org/
news/news-region/icrse-statement-regarding-onlyfans-
explicit-content-ban-and-exclusion-sex-workers
308
onde o perímetro urbano é caríssimo, num
bairro de família, um bordel gigantesco, na
frente do bordel tinha um bar, que os donos
do bordel compraram pra poder dar mais
privacidade pro estabelecimento, e nesse

PUTA LIVRO
lugar onde o perímetro urbano é caríssimo
esse bar na frente do bordel ta fechado,
porque não pode funcionar nada pra poder
manter a privacidade dos clientes e tal, não
tanto das garotas, mais dos clientes. Mas,
assim, todo mundo sabe, né? que é um
bordel ali. Então é uma convivência assim
não sei, muito caracterizada, uma coisa bem

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


estranha, bem problemática, eu não diria que
a prostituição é invisível, eu diria que ela tem
uma visibilidade muito específica, e a gente
fica tentando rebolar pra poder lidar com isso
[Entrevista sobre o processo, gravada pelo
equipe audiovisual 10/2016].
Fazer circular narrativas de prostituição
construídas por suas protagonistas abre
mais uma via de diálogo com a sociedade. O
desafio de que tais narrativas permaneçam
presentes em um mundo de hiperprodução
de imagens é enorme, portanto, disputar
os espaços para circular tais imagens é uma
batalha constante, neste sentido que temos
investido na continuidade de alguns projetos
de produção audiovisual, especialmente
realizados através das parcerias entre o
Coletivo Puta da Vida e a Casa Nem, e
com o APERJ através da preservação e
divulgação do acervo Davida. Nesse sentido,
é importante ressaltar que a FAPERJ aprovou
um remanejamento do recurso que chegou
após dos Jogos Olímpicos que permitiu
tanto a digitalização de uma grande parte
do acervo audiovisual da Davida como
apoio para um laboratório audiovisual
em parceria com a CasaNem; fatos que
reforçam a importância do fomento e
investimento público a projetos de pesquisa
e a flexibilidade de apoiar as ações de
produção, e preservação, de conhecimentos
de movimentos sociais.
309
Os deslocamentos forçados revelam a
face violenta do poder nas áreas - virtuais
e “reais” - de prostituição, mas as brechas
encontradas para ressignificar as histórias
de vida e os locais de trabalho resistem
à moral e à voracidade dos processos de

PUTA LIVRO
gentrificação. Se, por exemplo, no prédio
do IFCS, inicialmente, foi questionada
a possibilidade de que as fotos fossem
colocadas nas paredes por se tratar de um
prédio tombado, essas fotos finalmente
estarem ali, na arquitetura da colonialidade
é um gesto de retomada dos espaços e de

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


partilha de narrativas que habitualmente
não adentram as universidades, museus e
galerias.

Referências

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Davida: Rio de Janeiro. 1997.
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A reflection on the use of visual and narrative methods in
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310
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ANGELA DONINI E LAURA MURRAY


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de seres humanos”. cadernos pagu, 153-184. 2005.
311
SELEÇÃO DE FOTOS
DA EXPOSIÇÃO O QUE
VOCÊ NÃO VÊ:

PUTA LIVRO
A PROSTITUIÇÃO
VISTA POR NÓS
MESMAS

Não é serio. Maya Hoffman. Fotografia com telefone


celular. 2016.
312
PUTA LIVRO
Beth. Dia de sol. Fotografia com telefone celular. 2016.

ANGELA DONINI E LAURA MURRAY

Cristiane Oliveira. Prevenção. Fotografia


com telefone celular. 2016.

Trabalho. Fabricia Ferraz.


Fotografia com telefone celular. 2016.
313
PUTA LIVRO
ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
Naomi Savage. Mais amor por favor. Fotografia
com telefone celular. 2016.

Paula. Bananas. Fotografia com telefone celular. 2016

Natasha Roxy. Povo marcado, povo feliz. Fotografia


com camera digital. 2016.
314
PUTA LIVRO
ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
Manuela. Sapatos. Fotografia com telefone celular. 2016.

Beth. Dia de Festa. Fotografia com celular. 2016.


315
PUTA LIVRO
ANGELA DONINI E LAURA MURRAY

Gabi. Café Amigo. Fotografia com telefone


celular. 2016.

Monique Santos. Indo pro Trabalho. Fotografia com telefone


celular. 2016.
316
PUTA LIVRO
ANGELA DONINI E LAURA MURRAY
Giovanna. Suspeita ou suspense. Fotografia com
telefone celular. 2016.

Indianarae Siqueira. Puta dor de joelho.


Fotografia com telefone celular. 2016.
317
PUTA LIVRO
ANGELA DONINI E LAURA MURRAY

Evelym Gutierrez. Sem título. Fotografia com telefone


celular. 2016.
318
PUTA LIVRO
ANGELA DONINI E LAURA MURRAY

Evelym Gutierrez. Sem título. Fotografia com telefone


celular. 2016.
319
PUTA LIVRO
ANGELA DONINI E LAURA MURRAY

Sabrina. Sem título. Fotografia com camera digital. 2016.


NÉLSON RAMALHO

320
UMA ANÁLISE SÓCIO-
HISTÓRICA SOBRE

PUTA LIVRO
O «CONDE»:
O território de
prostituição travesti em
Lisboa
De bairro prestigiado a bairro
estigmatizado

O “Conde de Redondo” é, na cidade de


Lisboa (Portugal), o principal território onde
travestis e transexuais exercem a prostituição
de rua. Este território – comumente
designado pelas trabalhadoras do sexo
como o «Conde» – provém historicamente
do Palácio dos Condes de Redondo erguido,
na segunda metade do século XVII, nas suas
terras de família situadas no lado oriental da
Avenida da Liberdade (Consiglieri, Ribeiro,
Vargas & Marília, 1995, p. 1451). A partir de
1878, os terrenos e caminhos que serviam
a quinta anexa ao Palácio, confinadas entre
a Rua de Santa Marta, a Rua do Chafariz
d’Andaluz (atualmente denominada Largo
de Andaluz) e a Rua Cruz do Taboado
(atualmente denominada Rua Gomes Freire)
foram palco de uma urbanização que veio a
alterar drasticamente toda a sua fisionomia
rural. A Rua da Sociedade Farmacêutica
foi, então, a primeira a ser construída.
Posteriormente, nasceram palacetes,
vivendas, chalés, residências e prédios que
fizeram da região uma zona habitacional de

1
Este imóvel alberga, hoje, a sede da Universidade
Autónoma de Lisboa.
excelência para muitos nobres e burgueses

321
(Junta de Freguesia do Coração de Jesus,
1995, p. 27). Assim, a 10 de Junho de 1880,
por altura do centenário da morte do poeta
Luís de Camões, é solenemente inaugurado

PUTA LIVRO
um bairro novo em Lisboa: o Bairro Camões.
Em 1902, quando a companhia urbanizadora
já se encontrava na falência, a Câmara
Municipal de Lisboa assumiu a conclusão
do bairro, que se prolongou pela Primeira
República, tendo atribuído o topónimo Rua
Conde de Redondo à então Avenida da Índia
(Consiglieri et al., 1995, p. 1482).

NÉLSON RAMALHO
O bairro desenvolveu-se segundo uma
malha praticamente ortogonal, composto
por oito quarteirões de forma retangular e
quatro quarteirões de configuração diversa,
sendo delimitado pelas ruas de Santa Marta
e Gomes Freire, situadas a ocidente e oriente
respectivamente, a sul pelo Hospital Miguel
Bombarda e a norte pela Avenida Duque
de Loulé. É em função da Rua do Conde de
Redondo – considerada uma artéria principal
– que foram estabelecidas as ligações às
ruas perpendiculares, nomeadamente, as da
Sociedade Farmacêutica, Luciano Cordeiro,
Bernardo Lima, Ferreira Lapa e Gonçalves
Crespo, e assegurada a continuação da
Rua Alexandre Herculano até à Avenida da
Liberdade, um dos eixos mais importantes
da cidade de Lisboa (cf. Figura 1). Por ser
contíguo à atual Praça do Marquês de Pombal
– palco de diferentes episódios sócio políticos
(e.g. paradas militares, cortejos cívicos,
concentrações, manifestações) e eventos
lúdicos (e.g. corsos de Carnaval, marchas
populares, festas, feiras e exposições) –
transformou-se num importante espaço
urbano de sociabilidade, atraindo muitos
lisboetas de então, que aqui se deslocavam à
procura de lazer, convívio e entretenimento.

2
Mais tarde, a 19 de Outubro de 1951, foi homologado, em
reunião da Comissão Consultiva Municipal de Toponímia de
Lisboa, que os letreiros toponímicos passassem a escrever-
se Rua do Conde de Redondo, em vez de Rua Conde de
Redondo.
322
PUTA LIVRO
Figura 1
Bairro Camões («O Conde»)

NÉLSON RAMALHO
A par de outros fatores, dos quais se
destacam a fácil acessibilidade, a localização
no “coração da cidade” (Consiglieri et
al.,1995, p. 142), próximo a determinados
equipamentos já existentes (p. ex. Hospital
de Santa Marta; Hospital Santo António dos
Capuchos), assim como a outros entretanto aí
instalados (nomeadamente o Liceu Camões,
cuja construção foi concluída em 1909), veio
tornar o território apetecível a diferentes
populações e investidores com um padrão
aquisitivo acima da média, acabando estes
por aí se fixarem. Ao longo dos anos, o
número de residentes da (antiga) Freguesia
do Coração de Jesus, que abrangia grande
parte do Bairro Camões, teve um crescimento
acentuado, passando de 12.039 habitantes
em 1911, para 21.973 habitantes em 1940.
Esta concentração demográfica traduziu-se,
pois, na necessidade de instalação de novos
projetos urbanísticos, de áreas residenciais
em zonas circundantes ao bairro. Porém,
desde a década de 1950 até à atualidade,
a freguesia assistiu a um crescente avanço
dos processos de terciarização, com a
introdução de inúmeros serviços e atividades
comerciais, financeiras e imobiliárias. A
substituição de velhos edifícios (alguns
dos quais através da sua demolição) por
lojas, escritórios, embaixadas, consultórios,
bancos, clínicas, pensões e hotéis, acabou por
fragmentar e descaracterizar o território da
sua componente eminentemente residencial
e introduzir “profundas dissonâncias e

323
alterações funcionais e estruturais” (Junta de
Freguesia do Coração de Jesus3, 1995, p. 27).
Mais recentemente, a especulação imobiliária
e a inflação dos preços dos imóveis verificada
nas últimas décadas potencializaram

PUTA LIVRO
a expulsão dos seus moradores, com
implicações na redução do número de
residentes. Os dados dos últimos censos dão
conta que a freguesia apresentava, em 2011,
apenas 3.689 habitantes (INE, 2011), e o
aumento do número de idosos e consequente
diminuição de jovens, traduziu-se num índice

NÉLSON RAMALHO
de envelhecimento de 256, quando o de
Lisboa (cidade) era de 1174.
Durante os dias de semana, a circulação
de transeuntes, carros e transportes coletivos
nas ruas do «Conde» devia-se, em larga
medida, a uma população externa a ele, que
aí recorria por razões profissionais, comerciais,
lazer ou outras. Porém, com o cair da noite,
o encerramento dos estabelecimentos e o
regresso de muitos indivíduos às suas casas, o
bairro mergulhava numa quase desertificação,
ficando reduzido a alguns cafés e restaurantes
que se mantinham em atividade até mais
tarde, e a alguns condutores e taxistas
que apressadamente por ali passavam. O
território conciliava a acessibilidade própria
de um centro urbano movimentado e a
privacidade proporcionada pela reclusão
noturna, garantindo discrição e invisibilidade a
quem ali se deslocava. Todas estas condições
favoreceram o florescimento de atividades,
serviços e estabelecimentos comerciais ligados
à indústria do sexo, que passaram a fixar-se

3
Atualmente, na sequência da reorganização administrativa
da cidade (Lei nº 56/2012 de 08 de novembro de 2012),
grande parte do Bairro Camões passou a integrar a
Freguesia de Santo Antônio, com exceção da Rua Gonçalves
Crespo e parte das ruas Bernardim Ribeiro, Conde de
Redondo e Ferreira Lapa que integraram a Freguesia de
Arroios.
4
O índice de envelhecimento é expresso no número de
pessoas com 65 e mais anos por cada 100 pessoas menores
de 15 anos. Isto significava que, por cada 100 jovens
existiam, na freguesia, 256 pessoas idosas.
324
nessa região. Com efeito, o «Conde», outrora
prestigiado, passou a ser considerado um
território estigmatizado, ligado, sobretudo, à
prática da prostituição.
É a partir de um trabalho etnográfico
de duração prolongada nos contextos de

PUTA LIVRO
prostituição do «Conde», sobretudo travesti,
que envolveu diferentes técnicas – como
a realização de observação participante,
entrevistas, notas de campo, entre outras –
que resultou a obra Virar Travesti: Trajetórias
de Vida, Prostituição e Vulnerabilidade
(RAMALHO, 2019) da qual surge o presente
capítulo. Este tem a pretensão de realizar uma

NÉLSON RAMALHO
breve análise sócio-histórica sobre o modo
como este território foi sendo associado à
prostituição travesti, ainda que nele figure, na
atualidade, uma diversidade de agentes ligados
à indústria do sexo.

Das primeiras travestis à ocupação


do «Conde»

Ainda que pouco explorada, a história


da prostituição travesti em Portugal é
relativamente recente. Eduarda, a travesti
“veterana” mais antiga do «Conde»5 –
atualmente com 67 anos de idade – explicou-
me que o fenômeno apenas teve início no
período prévio ao da revolução de 25 de
Abril. «Antes disso não havia nada», afirmou
ela. Com orgulho de ter pertencido ao grupo
das primeiras travestis prostitutas,6 e como
tal uma das “pioneiras”, afirmou que «tudo
começou em 1974, na Rua Castilho, lá em cima
ao pé do Parque Eduardo VII7». Na altura,
a atividade da prostituição era considerada
um desvio à “moral e bons costumes”, e a
apresentação pública de trajes femininos
por parte de indivíduos do sexo masculino
era vista como uma “anormalidade”. «Na
altura, não se podia usar saias», esclareceu.

5
Nome fictício por forma a assegurar o anonimato.
6
A maior parte destas já faleceram, outras encontram-se
emigradas em Paris.
7
Considerado um território predominantemente de
prostituição masculina.
Esta conduta subvertia profundamente “os

325
valores de honra masculinos, confundia
as identidades de gênero, perturbava os
códigos que geriam as relações entre os
dois sexos, recusava a instituição familiar
– pilar do Estado Novo” (BASTOS, 1997,

PUTA LIVRO
p. 238). Deste modo, os comportamentos
“impróprios” destes protagonistas tinham
de ser corrigidos, competindo à lei vigiar,
julgar e punir. A criminalização das “práticas
de vícios contra a natureza”, nas quais
estavam contempladas não só as práticas de
travestilidade, como também da prostituição
e a homossexualidade, encontravam-se

NÉLSON RAMALHO
enquadradas pela Lei de 20 de Julho de 1912,
sobre a mendicidade, cuja revisão do Código
Penal de 1954 trouxe medidas repressivas
adicionais, que permaneceram em vigor até
1982 (ALMEIDA, 2010).
Para assegurar que a lei fosse cumprida
passou a promover-se uma intensa repressão
e perseguição policial, que obrigavam as
travestis a fugir. «Escondíamo-nos debaixo
dos carros [...] ia tudo a correr aos saltos
[...] tirávamos os sapatos, doidas», recordou
Eduarda acerca desse tempo. Mas as travestis
que tinham a má sorte de serem apanhadas
nas malhas da “justiça”, eram colocadas
dentro de carrinhas e conduzidas para a 1ª
esquadra de investigação criminal (situada
na Rua Gomes Freire) ou para a 4ª esquadra
de Lisboa (situada na Rua de Santa Marta),
onde eram detidas e identificadas. A sua
saída estava condicionada pelo pagamento
de uma multa. Quando libertas, muitas
vezes já ao amanhecer, eram obrigadas a
regressar a casa em condições vexatórias:
sem maquiagem, sem peruca, mas vestidas
de mulher. A humilhação era tão grande e
violenta que, algumas, começaram a prevenir-
se com dinheiro para pagarem, de imediato,
a multa. Em casos de maior gravidade eram
levadas a tribunal e encarceradas em prisões
e em albergues da Mitra de Lisboa, tal como
relatou Eduarda.
326
Às vezes levavam-nos para a esquadra e
eu era a última a sair. Eles [os polícias] diziam-
nos «lavar a esquadra», «varrer a esquadra»,
«limpar a esquadra toda!» Bem que a esquadra
podia cair de pé que eu não fazia nada. Eu não
limpava! [...] Lá na esquadra, às vezes elas [as
travestis] estavam todas em fileira. Os polícias

PUTA LIVRO
passavam por elas e pisavam-lhes os pés de
propósito. Quando me faziam isso eu dizia
logo «PORRA, MAS QUE MERDA É ESTA!»
[...] E daqui ia muitas vezes para a Mitra, onde
estavam os velhos. E eu de lá, fugia. Já estive
na cadeia muitas vezes [...]. Eu sofri muito.
Muito. [...] estive na cadeia e os guardas davam-
nos a comida como se fossemos cães. E uma
das vezes eu não aguentei. Assim que ele nos

NÉLSON RAMALHO
lançou a comida como se fôssemos cães eu dei-
lhe com o copo na cara que lhe parti a cabeça.
[...] Fecharam os presos todos. Nisto abriram-
me a cela e estava uma turma de polícias com
capacetes à porta da minha cela. Eles queriam
que eu saísse, mas eu não saí. Eles atiraram uma
bola de gás e aquela merda era fumo por todo
o lado. Os presos não se calavam na galeria e
a bater contra as portas. Como eu não saí, eles
fecharam-me lá. E eu tinha comigo uma lâmina,
daquelas de fazer a barba. Agarrei nela e cortei-
me toda nos braços. Olhem [disse, arregaçando
as mangas, para mostrar os dois braços8
golpeados desde os pulsos até aos cotovelos].
Toda cheia de golpes. Eu estava cheia de sangue
por todo o lado. [Eduarda]

Eduarda reconhecia a sua atitude


insubordinada, razão pela qual se referia
a si própria como “revolucionária”. Por
vezes dava a conhecer às “novatas” que
a possibilidade de, hoje em dia, poderem
apresentar-se publicamente no gênero
feminino sem que tal ato implique uma
sanção legal, só foi possível graças a ela e a
outras corajosas que lutaram afincadamente
a favor da livre expressão e identidade de

8
Neste período repressivo era habitual, entre as travestis,
existirem práticas de automutilação. Ao serem capturadas
e encarceradas em prisões e albergues, cortavam-se
(especialmente nos antebraços) com uma lâmina, na
tentativa de serem libertas e conduzidas, de imediato,
para uma unidade local de saúde. Esta mesma prática foi
verificada por Kulick (2008 [1998]), Oliveira (1994) e Pelúcio
(2005), junto das travestis brasileiras.
327
gênero. Embora permaneçam invisíveis,
as travestis foram figuras extremamente
importantes na construção da história do
gênero e da sexualidade em Portugal.
Mais tarde, da Rua Castilho – local onde
tinham iniciado a prática da prostituição

PUTA LIVRO
– as travestis deslocaram-se para a zona
do Parque Mayer e ruas adjacentes,
nomeadamente, a Rua do Salitre, a Praça
da Alegria, a Rua das Pretas, assim como
a Rua Condes. Em 1976, restabelecem-
se num novo território de prostituição,
próximo ao famoso clube noturno Cova da

NÉLSON RAMALHO
Onça, situado no n.º 244-B da Avenida da
Liberdade. Neste período, o cruzamento
entre a Praça do Marquês de Pombal com a
Avenida Duque de Loulé era, também, um
outro ponto de paragem para algumas delas.
Por se encontrarem próximas ao “Conde
de Redondo” – um local já frequentado por
mulheres prostitutas – acabaram por ocupá-lo
no início da década de 1980. «Fomos lá para
cima [Conde] entre 81 e 82 [...] Havia ali as
mulheres e tudo», confidenciou Eduarda. A
prostituição que outrora tinha sido exercida
de forma difusa por vários espaços da cidade
– facto também evidenciado na publicação
Os Travestis de Lisboa (1977) de Arinto e na
obra Prostituição Masculina em Lisboa (1882)
de Duarte e Clemente – passou, então, a
estar maioritariamente concentrada na zona
do «Conde».
À medida que elas foram conseguindo
atrair e fidelizar cada vez mais clientes e,
consequentemente, ganhar uma maior
centralidade nesse território, sentiram a
necessidade de o apropriar. Com efeito,
a sua disputa e dominação materializou-
se na expulsão da quase totalidade das
mulheres prostitutas que aí se encontravam,
acabando estas por “migrar” para outras
zonas da cidade à procura de maior clientela,
nomeadamente, para a zona do «Técnico»
(i.e. Instituto Superior Técnico de Lisboa)
e da «Artilharia» (i.e. Rua da Artilharia I).
Na atualidade, existe apenas um número
muito reduzido de mulheres a exercerem

328
a prostituição no «Conde», estando,
porém, subjugadas a uma espacialidade
restrita, junto à Residencial Dallas, na Rua
Gonçalves Crespo, e a uma convivência e

PUTA LIVRO
interação limitada com as travestis. Embora
se reconheça a existência (pontual e
inexpressiva) de prostituição travesti noutros
territórios (nomeadamente na «Artilharia»,
em Lisboa, ou na mata de Rio de Mouro,
em Sintra), o «Conde» constitui-se o maior
e mais importante local de prostituição de
rua travesti da Grande Lisboa, sendo as

NÉLSON RAMALHO
ruas do Conde de Redondo, da Sociedade
Farmacêutica, da Luciano Cordeiro, da
Gonçalves Crespo e da Bernardim Ribeiro as
zonas de maior concentração prostitucional.

Um território comercializador de (inúmeros)


prazeres

À primeira vista, por serem facilmente


visíveis, as travestis parecem ser as únicas
protagonistas que, durante a noite, prestam
serviços sexuais no «Conde». Por isso, não é
de estranhar que grande parte da população
o associe às travestis. «Conde» e travestis
são, hoje, praticamente sinônimos. Mas uma
observação mais atenta revela a existência de
um número considerável de outros agentes
direta ou indiretamente ligados à indústria
do sexo. Durante o trabalho etnográfico
realizado (RAMALHO, 2019), identificou-
se e mapeou-se neste território um total
de 19 espaços (Figura 2), entre sexshops,
saunas, clubes privados de alterne, pensões,
residenciais, «puteiros», bares de striptease,
boîtes e discotecas, um verdadeiro rodízio
de casas e estabelecimentos comerciais
que vendiam múltiplas formas de diversão,
erotismo, sexo e prazer. A diversidade era
tal que conseguia captar diferentes tipos de
públicos em termos de gênero, orientação
sexual, idade, classe e nacionalidade.
329
PUTA LIVRO
NÉLSON RAMALHO
Figura 2 Casas e Estabelecimentos Comerciais
Ligados à Indústria do Sexo

O «Conde» não é um território onde


apenas existem travestis. Esta é uma ideia
estereotipada, imprecisa e, se não mesmo,
falsa. Nele radica um enorme e diverso
mercado comercializador de serviços
eróticos e sexuais, dentro do qual as
travestis não participam. Não porque não
querem, mas porque simplesmente são
proibidas de frequentar algumas das casas
e estabelecimentos comerciais. Este tipo de
discriminação é baseada puramente numa
questão de gênero. Corpos “infratores”, que
se mostram em conflito com a ordem vigente,
sofrem penalidades, sanções e rejeições no
próprio espaço onde são identificados como
figuras centrais. A concepção que Ornat
(2008) apresenta sobre o território, é de que
ele não é um mero espaço físico, mas um
espaço fruto de interações humanas e, por
isso, delimitado por e a partir de relações
de poder que posicionam os indivíduos em
“centro” e “margem”. Neste caso, a exclusão
que as travestis são alvo, sem possibilidades
de usufruir de toda a espacialidade, “força-
as” a viver como outsiders, a apropriar-
se e a disputar as margens, as periferias,
as ruas e os espaços públicos. Privadas de

330
regulamentação que enquadre e defina o seu
trabalho, têm de se valer de uma enorme
exposição pessoal para conseguirem angariar
clientes. À primeira vista, parecem ser as
únicas protagonistas do mercado sexual, mas

PUTA LIVRO
na realidade são a expressão mais visível e
também a mais estigmatizada.

Referências

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NÉLSON RAMALHO
Porto: Sextante Editora. 2010.

ARINTO, Carlos. Os travestis de Lisboa: Os subterrâneos de


um negócio que floresceu depois do 25 de Abril. Opções,
24, pp. 34-37. 1997.

BASTOS, Susana. O Estado Novo e os seus vadios. Lisboa:


Publicações Dom Quixote. 1997.

CONSIGLIERI, Carlos, RIBEIRO, Filomena, VARGAS, José,


& MARÍLIA, Abel. Pelas freguesias de Lisboa: De Campo de
Ourique à Avenida. Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa.
1995.

DUARTE, Antônio, & CLEMENTE, Hermínio. Prostituição


masculina em Lisboa (3ª ed.). Lisboa: Contra-Relógio. 1982.
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população presente, famílias, núcleos familiares, alojamentos
e edifícios (Quadro Resumo 1.01). 2011.
Disponível em: http://censos.ine.pt/xportal/
xmain?xpid=CENSOS&xpgid=censos_quadros
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do Coração de Jesus. Agenda Cultural, Lisboa, série 5, n.º
58, 23-31. 1995.

KULICK, Don. Travesti – Prostituição, sexo, género e cultura


no Brasil. (C. Gordon, Trad.). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz
(trabalho original publicado em 1998). 2008.
Lei nº 56/2012, 08 de Novembro, publicada no Diário da
República, 1.ª série, N.º 2016. Disponível em: http://www.
cne.pt/sites/default/files/dl/lei_56_2012_freguesias_lisboa.
pdf

OLIVEIRA, Neuza. Dama de paus: O jogo aberto das


travestis no espelho da mulher. Salvador: Centro Editorial e
Didático da UFBA. 1994.

ORNAT, Márcio. Território da prostituição e instituição do


ser travesti em Ponta Grossa. Ponta Grossa: Dissertação de
mestrado em gestão do território, sector de ciências exactas
e naturais, apresentada à Universidade Estadual de Ponta

331
Grossa. 2008.

PELÚCIO, Larissa. Na noite nem todos os gatos são pardos:


notas sobre a prostituição travesti. Cadernos Pagu, 25, 217-
248. 2005.

PUTA LIVRO
RAMALHO, Nélson. “Virar Travesti”. Trajetórias de vida,
prostituição e vulnerabilidade social. Lisboa: Tese de
doutoramento em serviço social apresentada ao ISCTE –
Instituto Universitário de Lisboa. 2019.

NÉLSON RAMALHO
332
JOÃO SOARES PENA

“JOGA PEDRA NA

PUTA LIVRO
GENI”: política,
intervenção urbana
e percepção da
prostituição em
Amsterdã

Notas iniciais

A prostituição tem sido, há bastante


tempo, um dos elementos mais marcantes de
Amsterdã. Sua importância tem relação não
apenas com a reputação que a cidade possui
no contexto internacional, mas também
com questões que marcam a dinâmica da
cidade e, mais amplamente, com discussões
políticas na Holanda. Embora a prostituição
ocorra de distintas formas, a mais famosa
e característica da cidade é a que ocorre
no Red Light District, onde prostitutas se
posicionam em vitrines para atrair e atender
seus clientes (Figura 1). Esse aspecto confere
a Amsterdã um lugar de destaque entre as
capitais da Europa Ocidental.

Figura 1: Vitrines no Red Light District


Fonte: Acervo do autor, 2018
333
PUTA LIVRO
JOÃO SOARES PENA
O Red Light District está localizado no
centro histórico da cidade, perto da área
portuária e da Amsterdam Centraal, principal
estação de transporte intermodal da cidade.
Essa é uma área bastante diversa, contando
com as vitrines de prostituição, sexshops,
coffeeshops, bares, boates, teatros de sexo
ao vivo, residências, instituições de educação
etc. É, por isso, um dos locais mais visitados
pelos turistas, mas também tem sido palco de
conflitos ao longo do tempo, pois a presença
da prostituição não é um ponto pacífico.
O lugar da prostituição nessa cidade
sempre esteve em disputa. Durante o
medievo, houve momentos em que essa
atividade foi localizada fora dos muros
da cidade, onde se poderia trabalhar
sem grandes problemas. Mas ao longo
do tempo, a prostituição se estabeleceu
nas proximidades do porto, onde se
concentravam os marinheiros e viajantes.
Recentemente, alguns projetos têm sido
implementados no sentido de remover as
vitrines de prostituição do Red Light District,
mesmo sendo esse um trabalho devidamente
regulamentado em todo o país desde o ano
2000 (PENA, 2019; 2020).
Neste texto discutimos a prostituição
em Amsterdã a partir das políticas de
prostituição implementadas para regular a
atividade, bem como as críticas e os limites
da regulamentação em vigor desde 2000. Em
seguida analisamos as mudanças na geografia
334
da prostituição no Red Light District no
bojo de um projeto de “renovação urbana”
chamado Plano 1012. Além disso, discutimos
a forma como essa atividade tem sido
percebida no debate público, variando entre

PUTA LIVRO
criminalização, reconhecimento enquanto
trabalho e causa dos problemas urbanos.

Políticas de prostituição e seus limites

A regulamentação da prostituição em
2000 na Holanda foi um acontecimento
muito emblemático, passando a ser uma

JOÃO SOARES PENA


referência no movimento de trabalhadoras
sexuais. Entretanto, antes de detalharmos
essa regulamentação, é importante assinalar
outras abordagens adotadas anteriormente
tanto em âmbito local quanto nacional. As
distintas formas de regulação e controle
das prostitutas decorrem das formas como
a prostituição foi percebida ao longo dos
séculos, mas é preciso dizer que essa
trajetória não é linear ou evolutiva, ao
contrário, é marcada por avanços, rupturas,
contradições e retrocessos.
Em 1413 a prostituição foi inserida na
legislação de Amsterdã, reconhecendo-a
como uma atividade importante para a
dinâmica da cidade e a economia local. Esta
perspectiva era pautada pela ideia de que
a prostituição era um “mal necessário”,
sendo tolerada pela Igreja. Era uma forma
de proteger as jovens virgens e puras dos
desejos dos homens, que podiam satisfazê-
los com as prostitutas, consideradas impuras,
“mulheres da vida”. Nesse período, as
autoridades tentaram mantê-las fora dos
muros da cidade, sendo esta uma forma de
evitar sua visibilidade cotidiana. Mais tarde,
com a Reforma Protestante e o avanço do
Calvinismo, a atividade foi considerada ilegal,
mas não foi possível bani-la. Então, entre os
séculos XVI e XVIII as autoridades buscaram
delimitar espacialmente a prostituição e
controlar de forma rigorosa o funcionamento
dos bordéis.
Na célebre canção “Geni e o Zepelim”,

335
de Chico Buarque1, apesar de muitos fazerem
uso dos serviços sexuais de Geni, ela é
motivo de execração pública na cidade. O
fato de que “ela dá para qualquer um” e
satisfaz os desejos sexuais dos errantes,

PUTA LIVRO
cegos, retirantes, detentos, lazarentos
e moleques do internato a torna alvo da
violência de uma sociedade moralista. Esta
mesma cidade não hesita em lhe pedir que
se entregue ao comandante do Zepelim
para salvar a todos da destruição. Mesmo
assim, a cidade continua a cantoria: “Joga
pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela

JOÃO SOARES PENA


é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir!
Ela dá pra qualquer um! Maldita Geni!”.
Essa é a perspectiva de que a prostituição
seria um “mal necessário”, uma vez que é
utilizada por muitos e desempenha um papel
econômico importante, mas ainda assim
sofre perseguição, repressão, restrição de
localização no espaço urbano e cerceamento
de direitos.
Durante o século XIX, a Holanda
sofreu uma ocupação pela França, refletindo
na gestão da prostituição. Pela primeira vez
no país, a prostituição foi regulamentada
seguindo o modelo definido pelo higienista
francês Alexandre Parent-Duchâtelet. Nesse
sentido, todas as prostitutas eram obrigadas
a fazer exames médicos regularmente, mas a
preocupação era com a saúde dos soldados
franceses, ou seja, era uma medida para
evitar que a força armada adquirisse alguma
infecção sexualmente transmissível (IST). Com
o fim da ocupação francesa, Amsterdã deixou
de exigir os exames médicos.
A partir de meados do século XIX
surgiram movimentos contra a prostituição,
culminando no fechamento dos bordéis de
Amsterdã no final desse mesmo século e,

1
Cf.: Canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque,
disponível em: <https://www.letras.mus.br/chico-
buarque/77259/>. Acesso em: 20 abr. 2021.
336
em 1911, na proibição de seu funcionamento
em todo o país. Nessa perspectiva
abolicionista, as prostitutas eram vistas
como vítimas, já os donos de bordéis,
ou quem facilitasse a prostituição, eram

PUTA LIVRO
considerados criminosos. Contudo, essa
proibição não significou efetivamente o fim
dos bordéis, mas um regime de “tolerância
regulada”, em outras palavras, uma gestão
das ilegalidades (FOUCAULT, 1999). Isto
significa que o município fazia vistas grossas
ao funcionamento dos bordéis, desde que
eles não causassem transtornos. Entretanto,
o município não deixava de efetuar um

JOÃO SOARES PENA


controle, inclusive buscando concentrar essa
atividade em áreas específicas (PENA, 2019).
Durante todo o século XX, a “tolerância
regulada” foi a forma de gestão pública da
prostituição. Contudo, a partir dos anos 1970
uma discussão sobre a regulamentação foi
iniciada, sendo esta uma reivindicação não
apenas das prostitutas, mas também dos
municípios holandeses. Havia, portanto, um
entendimento e uma nítida distinção entre
a exploração sexual (quando há coerção,
por exemplo) e a prostituição, exercida de
forma voluntária, esta última devendo ser
considerada um trabalho como qualquer
outro, assegurando-se direitos sociais
e trabalhistas às profissionais do sexo.
Esse movimento contou com o apoio da
Associação dos Municípios Holandeses
(Vereniging van Nederlandse Gemeenten –
VNG) e de grupos como o movimento em
defesa dos direitos das prostitutas, De Rode
Draad (Fio Vermelho, em tradução livre), e
a Fundação contra o Tráfico de Mulheres
(Stichting tegen Vrouwenhandel), os quais
foram as principais forças no lobby feminista
(OUTSHOORN, 2012).
O movimento feminista, como qualquer
outro, não é homogêneo, então apenas
uma parte dele era aliada do movimento
de prostitutas. Na véspera do Primeiro
Congresso Mundial de Prostitutas, em
1985, um grupo de feministas criou o De
337
Roze Draad (Fio Rosa, em tradução livre),
como uma ponte entre o movimento de
prostitutas e o de mulheres (não prostitutas).
Uma de suas fundadoras foi a professora,
pesquisadora e ativista Gail Pheterson, que

PUTA LIVRO
criou grupos aliados de mulheres tanto
nos Estados Unidos quanto na Holanda.
Esse grupo buscava dar suporte ao De
Rode Draad, fomentar discussões sobre
a prostituição entre as feministas e atuar
no monitoramento de políticas municipais,
além de escrever cartas e artigos em jornais.
Dessa maneira, o grupo levava a um público

JOÃO SOARES PENA


amplo discussões sobre questões caras
a todas as mulheres, prostitutas ou não,
como a autodeterminação, a independência
financeira e a proteção contra abusos sexuais
(SAX, 1987).
Contando com o apoio de grupos
feministas a favor da prostituição, o debate
ganhou força na arena política nos anos 1990.
Nesta década, houve um intenso debate com
grupos conservadores de um lado, contra
a regulamentação, e grupos progressistas
de outro, defendendo o reconhecimento
da prostituição como trabalho (PENA,
2019; 2020). Com a mudança da conjuntura
política, em 1997 foi proposta uma lei que
regulamentaria a prostituição e permitiria o
funcionamento dos bordéis. O projeto de
lei contou com o apoio de mais de 70% da
população, sendo aprovada em 1999, com
efeito a partir do ano 2000 (OUTSHOORN,
2012).
A nova lei reorganizou completamente
o setor da prostituição, com exigências a
serem cumpridas tanto pelos bordéis quanto
pelas prostitutas. As empresas passaram a
necessitar de uma licença de funcionamento
concedida pelo município enquanto as
prostitutas precisaram ter que se registrar
na Câmara do Comércio para atuarem nas
vitrines. Elas trabalham como profissionais
autônomas, o que significa que os bordéis
apenas alugam as vitrines, mas não mantém
qualquer relação trabalhista com as mesmas.
338
Cabe aos municípios estabelecer as zonas
onde a prostituição pode ser exercida, mas a
legislação também permite que um município
possa proibir o funcionamento de bordéis
em seu território (OUTSHOORN, 2012).
Esta prerrogativa dá margem à proibição

PUTA LIVRO
da atividade em determinada cidade em
razão de questões morais, evidenciando um
tratamento distinto em comparação com
outros setores e profissionais.
Embora seja um marco importante
e ainda uma referência, a política de
prostituição holandesa tem sido alvo de
críticas de trabalhadoras sexuais e de

JOÃO SOARES PENA


ativistas que questionam a forma como essa
política foi desenhada e implementada. Uma
ativista e trabalhadora sexual relatou que
nos anos 1990 essa era a alternativa que
elas vislumbravam, mas hoje em dia acredita
que a descriminalização, como ocorreu
na Nova Zelândia, poderia ser muito mais
benéfica para o setor (PENA, 2020). Embora
a regulamentação tenha reconhecido a
prostituição enquanto trabalho e garantido
às trabalhadoras sexuais um lugar no sistema
formal, a maneira como são tratadas e
as exigências impostas evidenciam que a
prostituição não é um trabalho como outro
qualquer. Só podem exercer a prostituição,
por exemplo, pessoas oriundas de países
da União Europeia (UE), uma barreira que
não existe para profissionais estrangeiros de
outros setores que atuam de maneira formal
no país.
A negativa para trabalhadoras sexuais
oriundas de fora da UE tem relação com um
uma ideia que retira das mulheres a agência
sobre suas vidas e seus corpos. Assim,
considera-se que elas, necessariamente,
seriam vítimas de tráfico de pessoas. A
impossibilidade de atuar formalmente, aliada
ao estigma que ronda a prostituição, coloca
muitas trabalhadoras sexuais em situação de
vulnerabilidade, uma vez que só lhes resta a
ilegalidade. A precariedade em que muitas
delas ainda se encontram fica flagrante
339
nos dias atuais em que o mundo enfrenta
a pandemia da Covid-19, além de que as
medidas tomadas pelo governo tem afetado
diretamente a situação das trabalhadoras
sexuais.

PUTA LIVRO
No Red Light District de Amsterdã as
vitrines foram fechadas e o governo ordenou
que as trabalhadoras sexuais e outros
tantos profissionais parassem de trabalhar.
Aquelas que atuam sob um contrato de
trabalho podem estar na mesma situação
que outros trabalhadores: em isolamento
social e possuir algumas garantias; aquelas

JOÃO SOARES PENA


que são registradas como autônomas
poderiam ter um suporte financeiro
prometido pelo governo holandês de até
cerca de um salário mínimo (€ 1.500) por três
meses, independentemente de que tenha
regularmente uma renda maior. Já quem
está na informalidade não tem acesso a essa
assistência e, conforme tem sido noticiado,
tem atendido seus clientes em casa para ter
alguma renda2 (CRISP, 2020; NETHERLANDS,
2020; SCHAPS, 2020).
No caso dos profissionais autônomos,
o auxílio acima referido deve ser solicitado
à municipalidade onde residem, desde
que atendam a vários critérios, entre eles
possuírem a nacionalidade holandesa
(NETHERLANDS, s.d.). Isto significa
dizer que as prostitutas que atuam nas
vitrines de forma autônoma e que não são
holandesas não podem ter acesso a esse
suporte financeiro, além das que estão na
informalidade (DUTCH NEWS, 2020). Desse
modo, embora atuem formalmente e paguem
os devidos impostos, há uma assimetria

2
Foi também criado o Fundo Holandês de Emergência
(Dutch Emergency Fund), por iniciativa da trabalhadora
sexual e ativista Hella Dee, para ajudar financeiramente
aquelas trabalhadoras sexuais que não tenham renda fixa.
Trata-se de uma campanha de financiamento coletivo em
um site na internet onde cada pessoa pode fazer uma
doação a partir de € 10. Disponível em: <https://www.
dutchemergencyfund.nl/>. Acesso em: 04 abr. 2020.
340
em termos de acesso a essa assistência em
razão da nacionalidade. Isto também aponta
os limites da regulamentação, que deixa as
trabalhadoras sexuais não holandesas em
situação de vulnerabilidade caso não possam

PUTA LIVRO
trabalhar por certo período em razão de uma
doença ou outro impedimento.

O lugar da prostituição na cidade:


mudanças recentes no Red Light District

Alguns anos após a legalização dos


bordéis e a regulamentação da prostituição,

JOÃO SOARES PENA


a situação das prostitutas na cidade de
Amsterdã foi colocada em cheque. Em
meados dos anos 2000 emergiu um debate
sobre tráfico de pessoas, exploração sexual e
a criminalidade no Red Light District. A mídia
passou a disseminar um discurso em que as
prostitutas eram vítimas de organizações
criminosas, abordagem distinta daquela que
marcou os anos 1990, quando o debate era
centrado na legitimidade do trabalho sexual.
Então, houve uma mudança na percepção
sobre a prostituição e, consequentemente,
sobre as prostitutas. Esse discurso esteve em
voga nos anos 1980, quando a prostituição
foi considerada a responsável pelos males do
bairro, sobretudo em relação à presença de
heroína.
Com a criminalização do entorno dessa
atividade, criou-se um ambiente favorável
para a proposição de uma limpeza do bairro,
uma tentativa de reconquistar o Red Light
District e devolvê-lo aos moradores da
cidade. A intenção era expulsar Geni. Assim,
em 2007 foi lançado o Plano 1012 sob a
justificativa do combate à criminalidade, com
ênfase no tráfico de mulheres (AALBERS,
2016). Esse plano alterou sobremaneira
não só a geografia da prostituição, mas a
dinâmica de toda a indústria do sexo e do
bairro em si. O plano visava reposicionar
Amsterdã no mercado internacional de
turismo, diminuindo a importância da
prostituição para a imagem da cidade
(PENA, 2021). Apesar de alegar o combate à

341
criminalidade, os objetivos do plano visavam
muito mais a melhoria das qualidades do
bairro e dos serviços oferecidos, bem como a
atração de investidores (PENA, 2020).

PUTA LIVRO
Para Aalbers (2016), esse projeto
evidencia uma mudança na percepção local
acerca da prostituição, cuja regulamentação
fora considerada emancipatória, liberal e
progressista. Então, o trabalho sexual passou
a ser visto como imoral, orientado para o
mercado, relacionado à criminalidade e,
portanto, indesejado. Geni voltou a ser vista

JOÃO SOARES PENA


como abjeta. Recentemente foi lançada uma
campanha chamada “Eu não tenho um preço”
(Ik ben onbetaalbaar) (HOLLIGAN, 2019),
que, segundo o site da iniciativa, já conta com
mais de 50.000 assinaturas.3 A campanha,
lançada por um movimento de jovens
chamado Exxpose, visa à adoção do modelo
nórdico, ou modelo sueco, que criminaliza
clientes e terceiros, enquanto a prostituição
em si continua sendo legal (ÖSTERGREN,
2018). Nesta perspectiva, a prostituta é vista
como uma vítima, negando-lhe a agência
sobre sua vida e seu corpo.
O turismo, tão presente no Red Light
District, também era um dos focos do plano,
mas buscava-se a mudança do perfil de
visitantes: em vez daqueles que buscavam
“sexo, drogas e rock ’n’ roll”, o Plano 1012
objetivava atrair visitantes mais abastados.
Para tanto, foi proposto o fechamento de
vitrines de prostituição e sua substituição por
galerias, loja, cafés, restaurantes etc.: o típico
modelo de gentrificação. O fechamento das
vitrines também foi apontado como solução
para o suposto tráfico de mulheres, mas a
simples retirada das vitrines não constitui
uma medida séria e efetiva para enfrentar
esse problema. Assim, o que balizava essa
proposta era o interesse em proporcionar
um ambiente favorável para investimentos

3
Cf.: Campanha “Eu não tenho um preço”. Disponível em:
<https://ikbenonbetaalbaar.nl/>. Acesso em: 19 abr. 2021.
342
privados, além de uma mudança na paisagem
urbana.
Esse plano enfrentou a resistência das
trabalhadoras sexuais que diversas vezes
protestaram contra o fechamento das

PUTA LIVRO
vitrines. Apesar de o Plano 1012 ter sido,
supostamente, participativo, não foram
ouvidos integrantes da indústria do sexo,
como os donos de bordéis e as trabalhadoras
sexuais, os quais foram os mais afetados
pelas intervenções. Já próximo ao fim da
implementação do Plano 1012, foi realizado
um grande protesto em 09 de abril de 2015

JOÃO SOARES PENA


contra o fechamento das vitrines. Centenas
de trabalhadoras sexuais saíram às ruas para
denunciar a perda de seus locais de trabalho
e questionaram ao então prefeito Eberhard
Edzard van der Laan sobre o destino
daquelas que não teriam onde trabalhar.
Apesar de não terem sido ouvidas
quando da elaboração do Plano 1012, isto
não significa que as trabalhadoras sexuais
aceitaram passivamente a redução do número
de vitrines. Desde 2014 a trabalhadora
sexual e ativista Felicia Anna tem relatado
em seu blog “Behind The Red Light District”4
o que tem sido feito no bairro em termos
de intervenções e políticas públicas, mas
também sobre o debate público de questões
vinculadas ao trabalho sexual no país.
Como resposta às reivindicações de 2015,
o prefeito resolveu apoiar a abertura de
um bordel autogerido por trabalhadoras
sexuais chamado My Red Light. Localizado
no principal canal do bairro, o referido bordel
está em operação desde 2017 (VAN DER
ZEE, 2017).
Se em 2015 o prefeito Eberhard
Edzard van der Laan foi confrontado pelas
trabalhadoras sexuais, em 2017 ele mesmo
condecorou a ex-trabalhadora sexual e

4
O blog Behind the Red Light District está disponível em:
<http://behindtheredlightdistrict.blogspot.com/>. Acesso
em: 14 jul.2021.
ativista Mariska Majoor com o título de

343
cavaleira da Ordem Real de Orange-Nassau
(PROUD NEWS, 2017). Esta honraria é
concedida a pessoas que tenham prestado
relevantes serviços à sociedade, ao Estado ou
à Casa Real holandesa. Esse reconhecimento

PUTA LIVRO
pelos 20 anos de ativismo de Mariska Majoor
pelos direitos das trabalhadoras sexuais
é emblemático, pois reitera a importância
da garantia de direitos a esse grupo de
trabalhadoras. Entre esses direitos está a
salvaguarda dos seus locais de trabalho que,
naquele momento, já haviam sido reduzidos
significativamente, em virtude do fechamento

JOÃO SOARES PENA


das vitrines no bojo do Plano 1012, e que
atualmente continuam em risco.
Voltando às mudanças ocorridas no
bairro, a prostituição – considerada um
elemento indesejado na paisagem urbana
– foi concentrada em algumas ruas do
Red Light District, deixando outras áreas
livres para os novos serviços e comércios
almejados. Entre 2007 e 2018 foram fechadas
112 vitrines, o que equivale a 1/3 do total
existente, além de coffeeshops, sexshops,
entre outros. O encolhimento da área de
prostituição provocou uma superlotação,
uma vez que os turistas se concentram
onde há bares, vitrines, sexshops, teatros
de sexo ao vivo etc. O número excessivo de
visitantes em uma pequena parte do bairro
passou a gerar incômodos aos cerca de
8.500 moradores. Soma-se à concentração
da prostituição a abertura de diversos
serviços com foco no turismo e, por outro
lado, a saída de comércios que atendiam às
necessidades dos residentes (PENA, 2020).
Apesar de ter tomado algumas medidas
para tentar dirimir os impactos do turismo
a partir de 2017, como a não autorização
de novos restaurantes, lanchonetes, lojas
de souvenir etc., a prefeitura não assumiu
a responsabilidade pelos problemas. O
aumento do número de turistas é uma
consequência das intervenções do Plano
1012, além de outras iniciativas de marketing
urbano. Entretanto, nos últimos anos, a

344
prostituição foi considerada a razão para o
crescimento do turismo e os decorrentes
transtornos enfrentados pelos moradores.
Contudo, vale ressaltar que os investimentos

PUTA LIVRO
e intervenções a partir de 2007 buscavam
diminuir a importância da prostituição
no bairro e na imagem da cidade e não o
contrário.
Se nos anos 1980 havia um discurso
que vinculava a prostituição aos problemas
ligados a violência e drogas, nos anos 2000
ela foi considerada um elemento central no
contexto de criminalidade que assolava o

JOÃO SOARES PENA


Red Light District. Em ambos os momentos
estamos falando de problemas que não são
provocados pelas prostitutas, são problemas
sociais que devem ser abordados de forma
séria, com medidas que visem sua efetiva
superação. Para combater o tráfico de
mulheres, por exemplo, não é preciso fechar
vitrines, mas realizar investigações e punir os
culpados. Acontece que já havia um interesse
por investimentos privados no bairro, então
era necessário abrir caminho para novos
negócios, o que foi facilitado pela redução da
indústria do sexo.
Em continuidade à intenção de remover
a prostituição do Red Light District, a
prefeitura anunciou em 2020 o plano de
criar um “centro erótico” fora do centro
da cidade, para onde parte substancial das
vitrines remanescentes deve ser transferida.
Isto foi proposto “após anos de discussão
sobre como reduzir o barulho e os incômodos
provocados pelo turismo sexual no Red Light
District” (NL TIMES, 2020, tradução livre).
Embora o projeto ainda esteja em fase de
concepção, já tem enfrentado a resistência
das trabalhadoras sexuais que não desejam
deixar o bairro. Essa é mais uma pedra
atirada contra Geni!
Conclusão

345
Apesar de emblemática e importante,
a política holandesa de legalização dos
bordéis e regulamentação da prostituição, em

PUTA LIVRO
vigor desde o ano 2000, possui fragilidades
que colocam em vulnerabilidade muitas
trabalhadoras sexuais. Isto já ocorria, mas
ficou ainda mais evidente durante a pandemia
de Covid-19. Ao longo do tempo houve
diversas mudanças na forma como essa
atividade era encarada pelo Estado, mas
poucos anos após a regulamentação do setor

JOÃO SOARES PENA


houve em Amsterdã um debate que deslocou
a questão para o âmbito da criminalidade.
Isso abriu espaço para uma mudança na
percepção sobre o trabalho sexual em que
as prostitutas passaram a ser retratadas mais
como vítimas do que como trabalhadoras.
Em Amsterdã, a prostituição tem
sido usada como bode expiatório para (1)
problemas sociais muito mais complexos;
(2) justificar a desejada higienização social
no centro da cidade; e (3) realizar uma
“renovação urbana” com foco em um público
mais abastado e em negócios da indústria
criativa. Isto acontece porque, mesmo na
Holanda, ainda existe um grande estigma em
relação à prostituição que, como foi mostrado
anteriormente, não é socialmente aceita,
mas historicamente tolerada. Assim como
acontece com Geni, que após ter salvado
a todos e todas foi apedrejada pela cidade
na primeira oportunidade, em Amsterdã
as prostitutas são historicamente alvos de
repressão, remoção, estigmatização, exclusão
etc. As intervenções urbanas já realizadas e
propostas mostram que, a despeito de sua
importância histórica para a cidade, não se
deseja mais que a prostituição tenha um lugar
central e de grande visibilidade no tecido
urbano.
Referências

346
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Observer, 2016.

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PUTA LIVRO
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JOÃO SOARES PENA


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PENA, João Soares. Gestão pública da prostituição no Brasil

347
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PUTA LIVRO
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JOÃO SOARES PENA


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sets-up-funding-appeal-as-coronavirus-closes-brothels-
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by prostitutes: ‘It’s a whole new model’. The Guardian, 16
de maio de 2017. Disponível em: <https://www.theguardian.
com/cities/2017/may/16/amsterdam-mayor-brothel-
prostitutes-new-model>. Acesso em: 14 jul. 2021.
348
ANDRE ARAUJO

PUTA LIVRO

Uma assassina
200 x 150 cm
Óleo sobre tela
2013
349
TAMPEP

CAMPANHA

PUTA LIVRO
migrant
sex
2 de junho de 2021

2 de junho de 2021
workers
call for
rights DECLARAÇÃO

Europa ignora os Direitos Humanos de Trabalhadorxs Sexuais Migrantes


AGORA É O MOMENTO PARA AGIR

Diariamente vemos como as conseqüências da Ao avaliar o impacto da pandemia, diferentes


pandemia da COVID-19 têm um impacto negativo questões fundamentais foram destacadas tanto
desproporcional sobre aquelxs que já são em relatórios como em testemunhos feitos por
vulneráveis e os que estão à margem da integrantes de comunidadesde trabalhadorxs
sociedade. Os trabalhadorxs sexuais migrantes sexuais migrantes de toda a Europa:
em toda a Europa têm vivido níveis crescentes de
pobreza e exclusão, não só socialmente, mas Exclusão do apoio financeiro do governo
também dos serviços e apoios acessíveis a outros Migrantes, com e sem documentos, relataram
grupos da sociedade. grandes dificuldades no acesso ao apoio do
O estigma, a ameaça ao bem-estar e a seus Direitos governo, resultando em situações muitas difíceis
Humanos básicos tem crescido, em um ambiente para manter um padrão básico de moradia e
ainda mais hostil e excludente desde o início da alimentação. Os governos europeus também não
pandemia. Muitos dos desafios enfrentados pelos forneceram apoio financeiro adequado às ONGs
trabalhadorxs sexuais migrantes não são novos, que trabalham diretamente com trabalhadorxs
mas a situação agora é desesperadora. sexuais migrantes e outros grupos marginalizados.
TAMPEP é uma rede de mais de 30 organiza-
ções em toda a Europa que trabalha pela Aumento do risco de exposição à COVID-19 e
promoção dos Direitos Humanos e da saúde de de outras desigualdades na saúde
trabalhadorxs sexuais migrantes desde 1993. Trabalhadorxs sexuais migrantes se deparam hoje
Isto tem sido fundamental para organizações e com acesso restrito à saúde, barreiras lingüísticas e
trabalhadorxs do sexo em todo o continente, situações de trabalho precárias, resultando em taxas
devido à degradação da situação por COVID-19 e mais altas de práticas inseguras, como sexo sem
a exclusão de trabalhadorxs migrantes de apoios proteção. Têm sido classificados como grupo
nacionais e europeus. altamente vulnerável mas sem necessidade de
Além disso, existem as contínuas tentativas de proteção, devido à natureza pessoal de seu traba-
criminalizar a indústria do sexo e estabelecer lho. Entretanto, apesar desta vulnerabilidade,
políticas de migração hostis, resultando em migrantes são ignorados por programas de apoio
múltiplas formas de discriminação e sistemas estatal, mesmo em países onde o trabalho sexual é
punitivos, desestimulando o apoio, encorajando legal e apesar de que mais de 70% dos trabalhadorxs
o acesso restrito aos serviços e aumentando os do sexo na Europa Ocidental serem migrantes.
níveis de vulnerabilidade.
Situação social precária e mobilidade limitada
Em vez de apoiar trabalhadorxs migrantes, as
Muitos trabalhadorxs sexuais migrantes já eram
medidas contra COVID-19 tem sido utilizadas
vulneráveis a moradia instáveis, dívidas e
para combater o trabalho sexual e controlar a
isolamento, mas a pandemia aumentou estas
migração. Exemplos concretos incluem a
questões consideravelmente. Em países onde
aplicação da lei que muda a situação legal de
trabalhadorxs sexuais são criminalizados, a
trabalhadores do sexo, a negação do seu acesso
violência por parte dos clientes e a aplicação da
à justiça e o aumento da violência e da
lei de forma mais rígida se faz mais presente.
discriminação contra elxs.

tampep.info@gmail.com | www.tampep.eu | @tampepnetwork | tampepeu


350
PUTA LIVRO
Estas questões são agravadas pela limitada 3. Parar de usar regulamentos pandêmicos para
mobilidade dos migrantes como resultado das prender, deter, multar pesadamente e deportar
restrições da COVID-19. injustamente trabalhadorxs sexuais migrantes

Estigmatização e pressões psicológicas 4. Garantir que nenhuma pessoa seja detida por

TAMPEP
A crise que trabalhadorxs sexuais migrantes estão violar leis de imigração ou vistos por excesso de
vivenciando se deve ao estigma, a discriminação, permanência devido à COVID-19, e garantir sua
a insegurança financeira e ao isolamento. Estes liberação, embora detida sob alegação de assim
fatores têm um impacto enorme sobre seu bem- reduzir o risco de disseminar COVID-19
estar mental. Para elxs, o estigma é a principal 5. Aplicar políticas de migração que sejam inclusivas
barreira para acessar serviços ou a justiça. e respeitosas dos direitos humanos de trabalhadorxs
sexuais migrantes, garantindo sua proteção legal
Trabalhadorxs sexuais migrantes exigem que
seus Direitos Humanos sejam respeitados! Migrantes, independentemente do status, têm
direito à vida, liberdade e segurança. Eles têm o
A discriminação contra trabalhadorxs sexuais direito de viver livres de discriminação e ter um
migrantes e sua exclusão do processo padrão de vida adequado.
democrático têm desafiado sua capacidade de
No entanto, trabalhadorxs sexuais migrantes
defender seus direitos. No entanto, não pode
têm sido abandonados pelos governos nacionais
haver mais espera. Vidas estão em jogo.
e por funcionários europeus.
TAMPEP, em cooperação com redes de Eles não podem mais esperar.
organizações de trabalhadorxs do sexo e aliados Pedimos a você que se posicione contra a
em toda a Europa, apela para que todos se injustiça, que exija uma Europa que se
unam e exijam mudanças. mantenha fiel a um código moral humano que
inclua os mais vulneráveis da sociedade.
Pedimos a todos aqueles que querem uma Apoie e participe da nossa ação.
Europa justa, uma Europa que esteja à altura
dos desafios da COVID, que exijam que a saúde
e os direitos dos trabalhadorxs sexuais Estamos lançando uma petição para pedir a indiví-
migrantes sejam protegidos. A nenhuma duos e organizações que a assinem, como demons-
pessoa devem ser negadas estas necessidades tração de solidariedade aos grupos mais vulneráveis.
básicas, especialmente em tempos de crise. A função da petição será de pressionar junto às
autoridades governamentais nacionais e
NÓS EXIGIMOS europeias para forçar mudanças reais, garantindo
a segurança e os Direitos Humanos de
À luz desta realidade, nós, da Rede TAMPEP, trabalhadorxs sexuais migrantes.
pedimos às pessoas e organizações que apoiem
as seguintes demandas por mudança com base
A situação é crítica, agora é hora de agir!
nos valores e responsabilidade legal decorrentes
da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos.
Assine a petição aqui:
1. Garantir acesso livre de barreiras aos serviços
de saúde e vacinas para trabalhadorxs sexuais https://tampep.eu/campaign
migrantes e outras comunidades criminalizadas,
de acordo com as recomendações do UNAIDS Fique em dia com a campanha
www.tampep.eu
2. Acesso a serviços públicos e ajuda financeira
@ta mp ep n et w ork
sem penalização ou risco de deportação
tam p ep eu
351 PUTA LIVRO TAMPEP
352
PUTA LIVRO
TAMPEP

Link da campanha TAMPEP


https://tampep.eu/declaration
https://tampep.eu/declaration/?lang=pt-pt
353 PUTA LIVRO
PARTE III
354
PAULA LAUFFER

PUTA LIVRO

Batendo salto at work


Aquarela sobre papel A3
355
MILENE FERREIRA

PUTA LIVRO
1
De uma forma extrovertida
Eu vim aqui pra falar
De um assunto muito sério
Que vai te arrepiar
Minha amiga prostituta
Não descuide um só segundo
Pra covid não te pegar

2
Com esse vírus não tem idade
Raça cor ou profissão
Por isso, na hora de fazer sexo
Só faça com proteção
Por mais que o parceiro seja
ator de novela, modelo e bonitão
Sem máscara, diga não!

3
Quem ama se cuida e se previne
Não paga pra vacilar
Transar, curtir e beijar
é bom, eu não vou negar
Porém só com camisinha,
máscara e álcool
Se não tiver, amiguinha,
Desculpe. Não vai rolar

4
Não brinque com sua vida
para não se machucar
Só faça sexo seguro
na hora de trabalhar.
Prevenção é a solução
É a forma de evitar
Não importa a empolgação
sem a máscara, não dá
356
5
Quem precisa trabalhar
e faz do sexo a profissão
O cuidado é dobrado

PUTA LIVRO
Use máscara e lave as mãos
Se o cliente insistir
Diga... guarde seu dinheiro
Sem máscara não rola não

6
A cada dia que passa
A estatística aumenta

MILENE FERREIRA
Não queira nela estar
Se conselho fosse bom
Não se dava, se vendia
Sei que é dito popular
Porém, prefiro não arriscar

7
Eu já vi morrer João Pedro,
Leandro, Carla, Isabel,
Antônio Fávero, a esposa
Anna e Ismael, Irmão Lázaro,
Timóteo e Genival
Com o COVID é assim!!
Pega eu, pega tu Infecta
e mata no fim.

8
Todo cuidado é pouco
Pra lidar com esse vilão
Seja no motel ou na rua
Por prazer ou profissão
Se não tiver máscara e camisinha
Vista a roupa, diga não!!

9
Não se iluda com beleza
Ou com um lindo carrão
Seja homem ou mulé
Vacilou não tem perdão
O corona pega de jeito
Destroi seu organismo
É de cortar coração!
357
10
Pense bem na sua vida
Antes de ir trabalhar
Peça proteção divina

PUTA LIVRO
Pra você não se infectar
Evite aglomeração e
sem máscara, não vá não!

11
Dependendo da imunidade
do corpo e do organismo
o vírus pega de jeito e depois

MILENE FERREIRA
de infectado o sujeito tá lascado
Vai direto pro abismo

12
Já vi pessoas chorando
prestes a morrer
No leito de um hospital
Cena triste de se vê
Não seja mais uma dessas
Num minuto de prazer
a próxima pode ser você

13
Só te digo uma coisa
Quem avisa amiga é
O coronavírus não tem idade
Pega homem e mulhé
Só faça sexo com camisinha
E use máscara
Até no cabaré

14
Quem faz assim está correto
Faz com amor a vida
Previne a si e ao próximo
Com camisinha é seguro
E com a máscara também
Sem elas, o pau pode tá duro
358
Que eu corro com mais de cem
15
Transar, curtir, beijar
é gostoso e faz bem
Independente de status raça

PUTA LIVRO
cor ou posição
O ser humano é livre
Entre parceiro e parceira
Só diz respeito a paixão

16
E se precisar do dinheiro
e rolar atração com cliente

MILENE FERREIRA
ou com parceiro
Não vá com a vida jogar
Por mais que sinta o desejo
O risco é absoluto
Não vale a pena arriscar

17
Em todo canto se encontra
a popular camisinha, máscara
e álcool em gel na farmácia
ou até na feira de galinha
mas puta prevenida
Já carrega na bolsinha

18
Pode ser puta viúva ou separada
moça solteira ou casada
Não se pode confiar
O COVID não mostra cara
Vista a roupa não vai dar
Pois existe um vírus
Que pode te matar

19
Trabalhar sem proteção
É loucura pode crê
O risco é muito alto
Tu tem que entender
Use máscara pra se proteger
O recado foi dado
Quem decide é você
359
20
A prevenção não é cara
A higienização é segura
Previna você e seus pares

PUTA LIVRO
De uma doença sem cura
O CIPMAC adverte
Quem não se previne quer morrer
Cava em vida a sepultura

21
Minha amiga companheira
Preste muita atenção

MILENE FERREIRA
Se cuide e se proteja
Evite disseminação
Compartilhe com as putas
E escute a voz da razão!

Idealizado pelo poeta Aziel.


Escrito por Milene Ferreira Puta-ativista
360
FERNANDA MARIA VIEIRA RI-
BEIRO E MARIA DE JESUS
ALMEIDA COSTA

PUTA LIVRO
MEMÓRIA E LUTA
NA PROSTITUIÇÃO
LUDOVICENSE:
diálogos com a ativista
Maria de Jesus
Esse pequeno ensaio traz a memória da
puta ativista Maria de Jesus Almeida Costa,
carinhosamente conhecida como Dije, falando
sobre temas que perpassam o cotidiano
das mulheres prostitutas/profissionais do
sexo/trabalhadoras sexuais, e um pouco
do trabalho que o Coletivo Por Elas
Empoderadas tem realizado nesse momento
de pandemia.1 A intenção é contribuir com o
Coletivo Puta Davida e com o Observatório
da Prostituição (IPPUR/UFRJ) na tarefa de
exaltar a memória de mulheres que, assim
como a Jesus, dão e deram uma grande
contribuição para o movimento de prostitutas
do Brasil. Que essa memória nunca se perca,
e iniciativas como essas contribuem para essa
perpetuação.
Maria de Jesus Almeida Costa, 62
anos, maranhense, veio do interior para a
capital, São Luís, com apenas 12 anos, e
não demorou muito a conhecer a Rua 28 de
Julho, antiga zona de meretrício ludovicense.
Trabalhou como babá, lavadeira de roupa
e empregada doméstica até conhecer a
zona e seus caminhos, na década de 1970.
Trabalhando na zona como prostituta,

1
O texto foi elaborado em conjunto a partir de entrevistas e
diálogos entre as duas autoras.
361
e depois como gerente de uma casa de
prostituição, Jesus conheceu e participou
de instituições como a Casa Ninho, da
Igreja Católica, que oferecia formação para
filh@s de prostitutas e da qual ela saiu por
discordância política; militou como mulher

PUTA LIVRO
negra e prostituta dentro do GRUCON
(Grupo de União e Consciência Negra); e com
o surgimento da AIDS, entrou no combate e
luta contra o HIV/AIDS participando de vários
projetos e sendo multiplicadora e parceira de
órgãos públicos do Estado e organizações
internacionais. A APROSMA (Associação das

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


Prostitutas do Maranhão) foi fundada nesse
interim. Atualmente, Jesus está na liderança
do movimento de prostitutas no Estado do
Maranhão, atuando no Coletivo Por Elas
Empoderadas2, e dentro da Rede Brasileira
de Prostitutas - RBP.3
Em relação a fundação da APROSMA,
nos informa Tatiana Silva,
No Maranhão, a mobilização ocorreu a partir de
1991, com o engajamento de prostitutas junto a
um projeto de educação e prevenção sexual da
Companhia Francesa Inter-Aide, que iniciara o
trabalho em algumas cidades do Estado, o que
teria contribuído para a criação da APROSMA.
Em 2003, com o apoio das Secretarias Estadual
e Municipal de Saúde, a Associação foi
regularizada como instituição. (SILVA, 2015,
p.30)

Fernanda Maria Vieira Ribeiro, 33 anos,


piauiense, é professora do IFMA (Instituto

2
O Coletivo Por Elas Empoderadas foi fundado em 2019,
durante o Seminário Nacional 2019: avanços e desafios
das profissionais do sexo, realizado em São Luis/MA.
É formado por mulheres que lutam pelos direitos das
profissionais do sexo na cidade de São Luís, trabalhando
com prevenção das IST’s, HIV/AIDS, também pelo
empoderamento político e econômico das mulheres, em
sua maioria vivendo em situação de vulnerabilidade social.
Email: porelasempoderadas@gmail.com; Fanpage: Por Elas
Empoderadas; Instagram: @porelasempoderadas.
3
A Rede Brasileira de Prostitutas foi fundada em 1988,
durante o evento nacional de prostitutas “Fala, Mulher
da Vida” no Rio de Janeiro, por Gabriela Leite e Lourdes
Barreto.
362
Federal do Maranhão), e acompanha desde
dois mil e onze o movimento organizado
de prostitutas no Brasil. Pesquisando e
tentando compreender as nuances desse
movimento, se apaixonou pela solidariedade,

PUTA LIVRO
perseverança e luta incansável das putas
ativistas por direitos e espaço na sociedade.
Por essa admiração e por ser feminista, desde
dois mil e dezenove é ativista do Coletivo Por
Elas Empoderadas, que atua na defesa dos
direitos das(os) trabalhadoras(es) sexuais no
Estado do Maranhão.

Escrevivência e memória

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


Nesse tópico, trazemos a experiência de
vida da mulher negra, nordestina, mãe e puta
ativista Jesus, falando sobre temas difíceis e
muitas vezes polêmicos que perpassam a vida
de todas as mulheres, mas a das prostitutas
de forma mais específica por causa do
estigma relacionado a sua profissão. Família,
aceitação, identidade, maternidade, aborto,
religião, preconceito e, claro, o ativismo
sempre presente na vida da Dije, desde que
ela começou a vivenciar violências e injustiças
com suas colegas de trabalho e amigas
dentro da zona. A partir dessas vivências e
por discordar de muito do que viveu dentro
e fora das casas de prostituição, ela abraçou
o ativismo e aprendeu na própria luta como
combater as injustiças.
Iniciamos nosso diálogo falando sobre a
cidade de São Luís e a dedicação de uma vida
inteira da ativista Jesus em prol de melhores
condições de vida para os(as) moradores do
seu bairro. Juntamente com a militância em
prol das trabalhadoras sexuais, desde que
adotou o Centro Histórico de São Luís como
sua moradia, Dije desenvolve um trabalho
voluntário e permanente com a comunidade,
junto às pessoas mais carentes e auxiliando
as famílias sem moradia nas ocupações dos
prédios e casarões abandonados.

1. Cidade e ativismo4
363
Há 30 anos atrás, o governo do
Estado do Maranhão criou um programa
de habitação5 para o Centro Histórico de
São Luís, que era voltado para os servidores
públicos estaduais. Isso para os moradores

PUTA LIVRO
do Centro Histórico foi uma agressão, porque
no centro já tinha muita gente morando mal.
Criaram o programa para os funcionários do
Estado e nada para a comunidade. Nesse
período, tínhamos prédios desmoronando,
caindo e as pessoas tendo que se mudar,
então fundamos a entidade União de

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


Moradores do Centro Histórico. Ela foi criada
especificamente para trabalhar habitação no
centro histórico, exatamente para brigarmos
por moradia, para o governo olhar também
para a comunidade. Todo o tempo, nosso
grande desafio era habitação, e hoje essa
luta está bem maior porque a decadência
na habitação está muito grande, e o centro
histórico é um cartão postal de São Luís.
Quem sustenta o título de patrimônio
histórico é o patrimônio humano vivo, são
as pessoas que estão lá. Essas pessoas é
que levam esse título na cabeça, no coração,
então nunca podemos esquecer dessas
pessoas.
Há muito tempo estamos nessa luta
árdua da moradia digna. Não esquecendo
que o governo não pode focar somente na
moradia, tem que pensar na educação, tem
que pensar na saúde, tem que pensar na
geração de renda. Se você me dá uma casa
linda, mas não me diz como é que eu vou
ganhar dinheiro para pagar a conta de luz e
de água no final do mês, eu vou ficar com a

4
Os tópicos 1, 2, 3 e 4 são parte de entrevistas realizadas
com Maria de Jesus nos dias 09 e 17 de fevereiro de 2021,
por isso resolvemos preservar a escrita em primeira pessoa
e a oralidade.
5
Primeiramente nomeado como Projeto Praia Grande,
e depois como Projeto Reviver, iniciado em 1987 pelo
Governo do Maranhão, buscou recuperar e revitalizar o
conjunto arquitetônico do Centro Histórico de São Luís.
364
casa linda, no escuro e no seco. Tem que ser
uma política puxando a outra. A gente tem
uma política de habitação, mas precisamos
ter uma política de educação, a política de
saúde, uma política de geração de renda.

PUTA LIVRO
Tudo tem sua história. Eu não posso ser só
ativista de puta, eu tenho que ser ativista da
minha comunidade também, das pessoas. Eu
tenho que ser ativista dos idosos também,
porque eu já estou idosa.

2. Maternidade e aborto

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


Eu fui estudar6 e já comecei a
revolucionar as coisas. Algumas coisas,
como mulher que engravidava não podia
ficar no cabaré, eu achava aquilo o cúmulo
do absurdo. Eles mandavam embora, às
vezes era uma pessoa que a gente tinha laço
afetivo. Engravidava e tinha que ir embora,
não tinha camisinha, não tinha nada. Eu era
contra isso e contra o aborto, porque eu vi
muita mulher morrer por conta de aborto,
que não era um aborto bem-feito. Eu lembro
muito que naquela época eles diziam que o
remédio que fazia aborto era soda cáustica.
Já pensou? Havia uma casa só de fazer
aborto, as mulheres engravidavam e já iam
para lá fazer aborto e logo voltavam para o
cabaré.
Então, briga de homem e mulher eu não
conseguia ver, me dava muita raiva de ver
um homem batendo em uma mulher. Nessa
época, as mulheres tinham uma concepção
de que se a mulher errasse tinha que apanhar.
Eu sou dessa geração que “ah, fulana tá
apanhando... quem manda ela botar homem
no quarto”. Mas eu já achava que não era
certo, e eu já começava a confrontar essas
coisas. Eu vivenciei muito a violência, talvez
isso também me ajudou muito a ser contra. E

6
Jesus reiniciou os estudos para terminar o segundo grau,
referente ao ensino médio hoje, depois que ela começou a
trabalhar nas casas de prostituição.
365
a questão também de eu ter me ligado muito
com a mãe biológica da minha filha, que era
uma colega de trabalho. Ela engravidou e eu
não a deixei sair da casa. Eu a fiz ficar e levar
a gravidez até o fim.

PUTA LIVRO
3. Religião e família

Eu discordava de muita coisa da Igreja.


Eu sempre achei que a Igreja é cúmplice de
muita coisa, até da violência contra mulher.
Porque você chega na igreja e eles te
orientam para a casa, eles te orientam a ser

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


a mulher digna, eles te orientam a ter uma
família. Você é orientada a ter uma família
que não tenha nenhuma puta, nenhuma
travesti. O é que acontecia antigamente?
Nenhuma mãe ia parir um filho para ser gay,
nenhuma filha para ser puta de cabaré. E
eles estavam errados? Não estavam, porque
essa era a educação que eles tiveram na
vida. Agora tinha coisa errada? Claro! Porque
muitas das vezes quem estuprava a filha era
o pai de criação. Ela era violentada em casa,
pelo irmão, pelo pai, pela própria mãe sem
entender disso...
“Pois minha filha ficou puta? Ela vai
simbora”. Eu conheci muita gente assim.
“Ah! Eu vim porque eu fiquei rapariga e
meu pai e minha mãe não me aceita”. A
gente tem que questionar o pai e a mãe?
Não. A gente tem que entender que essa
foi a educação que eles tiveram. Eles só te
dão o que eles receberam, mas para que
essa mentalidade mude eu não preciso ser
agressiva com a sociedade. A partir da hora
que eu fizer a Fernanda entender, a Cléo
entender, todo mundo entender que essas
coisas que aconteceram comigo – que eu
vim parar no cabaré com 12 anos, que eu me
prostitui com 13 anos, que eu fui violentada,
não fui respeitada, que eu não senti a mesma
dor que todo mundo sente quando perde o
cabaço7, nem lembro –, aconteceu por uma
falta de informação, lá atrás, há 40 anos, as
366
pessoas podem começar a pensar diferente.
62 é a minha idade, mas eu saí com 12
anos. Então, aquela época era a educação
que meu pai tinha, que minha família tinha...
“ficou puta? Vá pra lá. Aqui eu não quero
puta.”, mas muitas vezes já saía puta de

PUTA LIVRO
casa, já saía prostituída de casa, já saía
violentada de casa. A gente tem que ter todo
esse contexto lá atrás, porque agora somos
ativistas e para poder falar essas coisas que
aconteceram com a gente, para que não
aconteça mais com as mulheres. A família
precisa entender o que é liberdade, o que é
ter liberdade, o que é falar de sexo em casa,

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


o que é falar de camisinha em casa, o que é
falar de tudo em casa. Precisamos ter muito
como um aprendizado na vida da gente,
porque ainda tem muita gente que não tem
essa leitura. Para mim, isso fica um pouco
mais fácil porque eu tenho já essa leitura,
então ninguém me barra. Se eu sentir que
está de preconceito, a gente vai longe.

4. Rede Brasileira de Prostitutas


e outros movimentos

A Rede Brasileira de Prostitutas entrou


na minha vida há muito tempo. Eu fui
convidada para o primeiro evento nacional de
prostitutas “Fala, Mulher da Vida” no Rio de
Janeiro, mas não pude ir. Nos anos noventa,
organizamos vários movimentos de combate
ao HIV/AIDS e de apoio às profissionais
do sexo no estado8, mas foi no começo de
2000, que fizemos um encontro estadual,
não lembro exatamente se foi em dois mil

7
Termo êmico para hímen ou para a perda da virgindade.
8
Para saber mais sobre essa trajetória, recomendamos a
entrevista Pleasure and Protagonism: An interview with
Maria de Jesus Almeida Costa, a Black sex worker activist
from Brazil’s Northeast Region, publicada na Revista
Global Public Health Special Issue: (Re)imagining Research,
Activism, and Rights at the Intersections of Sexuality, Health,
and Social Justice.
367
e dois ou dois mil e três. Realizamos esse
evento para discutir prostituição, eu mandei
um convite para Gabriela Leite9 e para
Rosarina Sampaio10, pois estávamos criando o
movimento aqui. O evento também era para

PUTA LIVRO
falarmos de ONG e trabalhar para formar
uma associação.
Nesse evento eu conheci Gabriela Leite.
Rosarina Sampaio veio também, elas foram
as palestrantes. Esse foi o primeiro evento
que realizamos aqui, depois eu comecei a
ir para todos os eventos... Rio de Janeiro,
Fortaleza, Salvador... em todos. Em todos os

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


eventos em que Gabriela estava, estávamos
junto na plenária, mas geralmente terminava
os eventos eu ia dormir, eu sempre fui
dorminhoca assim. Depois eu comecei a ficar
mais, porque a gente começou a trabalhar
depois do evento, a ter reuniões. Numa
dessas reuniões fui escolhida para fazer parte
da coordenação da Rede.
A gente caminhou muito enquanto
grupo, tivemos outro evento aqui no
Maranhão onde formaram a Articulação
Regional Norte e Nordeste, mas não era para
romper com a Rede Brasileira de Prostitutas.
Em nenhum momento tinha que romper
com ninguém, era uma articulação para
sustentar um pouquinho mais a rede, pelo
menos o meu pensamento era esse. Porque
o que é que faz a CUTS11? O que é que faz
a Articulação Nacional das Profissionais do
Sexo12? O que é que faz a Rede? Qual é a

9
Gabriela Leite foi uma das fundadoras do movimento
brasileiro de prostitutas. Para conhecer sua história,
sugerimos a leitura de Filha, mãe, avó e puta: a história de
uma mulher que decidiu ser prostituta (2009).
10
Rosarina Sampaio foi uma das fundadoras da Federação
Nacional das Trabalhadoras do Sexo. Atuou como
presidenta da APROCE (Associação das Prostitutas do
Ceará) por vários anos.
11
Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais,
fundada em 2015.
368
política que nós temos? Não é uma só? Com
algumas pessoas ganhando mais destaque,
outras com mais autenticidade, com mais
vontade, fazendo mais. Aqui no Maranhão
não se nega que a gente faz muita coisa sem

PUTA LIVRO
dinheiro, sem um pau para dar no gato, como
diz Lourdes Barreto13. Para mim, a gente
nunca tinha que se separar, a gente tinha
sempre que ficar com a sigla, porém a mesma
política, porque termina a gente sempre se
encontra como puta, como prostituta lá no
final.
Na minha história de vida, eu não tenho

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


nada financeiramente falando construído pelo
movimento, por ser ativista. Eu não tenho
nada e tenho muito. Eu quero sempre ser a
pessoa que tem o que comer, mas sempre
quero poder colaborar com as companheiras,
pelo menos na hora de dizer para elas o que
é o certo e o que o errado. Eu sou morta
de apaixonada pelas histórias da Monique
Prada14, com a independência que ela tem.
Eu acho que a gente tem que respeitar isso
nas pessoas, a independência de ser puta, de
ser uber, de ser escritora. Ela me representa
como a pessoa de uma palavra, liberdade
de ser, de dizer e fazer o que quer do jeito
que ela acha que é certo. Assim que a gente
vai respeitando as ideologias das pessoas,
respeitando o jeito das pessoas fazerem as
coisas, é importante. Nós estamos nesse
caminho de deixar as pessoas com essa
liberdade.
Eu sei que sempre fui um nó no
sapato de algumas pessoas, porque eu

12
Articulação Nacional das Profissionais do Sexo (ANPS/
Anprosex), fundada em 2016.
13
Lourdes Barreto é uma das fundadoras do movimento
brasileiro de prostitutas e do GEMPAC (Grupo de Mulheres
Prostitutas do Estado do Pará).
14
Monique Prada é trabalhadora sexual, ativista e escritora
brasileira. Em 2018, lançou o livro Putafeminista.
sempre deixei que as pessoas fossem muito

369
livres. A gente tem um movimento que é
o movimento de liberdade também. Se eu
quero ser puta, vou ser puta. Se eu quero
ser mulher de programa, vou ser mulher de

PUTA LIVRO
programa. Se eu quero ser acompanhante,
vou ser acompanhante. Mas o meu papel
enquanto ativista é respeitar o que a mulher
quer ser naquele momento, até porque
senão eu desconsidero que a mulher tem que
estar no lugar que ela quiser, fazer o que ela
quiser. Então, eu estou em um movimento
de prostituta, mas a Fernanda não precisa

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


ser prostituta para estar no movimento. Você
está em um movimento de prostituta porque
apoia o movimento, que veste a camisa e
que conhece a política. Mas eu não posso te
obrigar a dizer: “ah, eu tô num movimento de
prostituta, porque eu sou prostituta.”.
Então tem algumas coisas que a gente
precisa ler também e reler, para melhorar o
movimento. Se uma juíza quer fazer parte do
movimento, a gente precisa entender, é uma
juíza que entende a necessidade das putas
que estão no cabaré, ela é nossa parceira.
Essas coisas a gente tem que aprender a
respeitar, os lugares dos nossos pares. E eu
sempre gostei de fazer isso, porque eu acho
que se for eu, Jesus, falando para as minhas
colegas, não vai muito longe as coisas não.
Agora, se vamos fazer uma ação e levamos
médico, advogado, delegada, juíza, a coisa
muda de figura, porque eles vão conhecer
essa realidade e como operadores da lei
podem auxiliar em melhorar ou transformar a
realidade dessas mulheres.
São Luís tem um movimento de
puta bom, agora com o Coletivo Por Elas
Empoderadas estamos conseguindo avançar
em algumas questões, mas ainda precisamos
avançar em outras. Por exemplo, poderíamos
ter mais mulheres denunciando a violência,
entre outras coisas, mas ainda tem assuntos
que estamos lutando para melhorar o diálogo
com as mulheres. Se uma mulher denunciar
uma violência no lugar onde ela batalha, onde
370
ela vai todo dia, o homem vai preso, no outro
dia ele sai e volta para lá. Prejudica a mulher
e o seu trabalho. Infelizmente, a lei Maria da
Penha não tem nada que nos assegure, que
assegure as prostitutas. É uma falha, a lei

PUTA LIVRO
Maria da Penha ela assegura muito a mulher
casada, a família, a gente precisa colocar
lá que a gente também tem família e que
precisamos de proteção. Acho que para nós,
do movimento de prostitutas, a lei não nos
contempla. Se uma puta apanhar no cabaré,
não é considerado violência doméstica,
porque ela não tem relação com o agressor,

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


mas o tempo que ele estava trepando com
ela, beijando na boca? Temos que lutar pela
inclusão das prostitutas nas leis de combate à
violência, seja doméstica ou não.

Por Elas Empoderadas


e o combate à pandemia

O coletivo Por Elas Empoderadas foi


lançado em dois mil e dezenove durante
o III Seminário Nacional 2019 “Avanços e
desafios das profissionais do sexo”, realizado
em São Luís/MA com os três movimentos
de prostitutas do Brasil: Rede Brasileira
de Prostitutas (RBP), Central Única de
Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais (CUTS)
e Articulação Nacional das Profissionais do
Sexo (ANPS/Anprosex). A ideia do coletivo
foi ampliar tanto as pessoas envolvidas
com o movimento de prostitutas na cidade
de São Luís, agregando também ativistas
que não realizassem o trabalho sexual, mas
também reavivar os trabalhos da APROSMA
(Associação de Prostitutas do Maranhão), que
estava desarticulada. Desde então boa parte
das antigas militantes do APROSMA estão
somando forças no coletivo, e agregando
novos(as) ativistas para a luta. O objetivo
do coletivo é lutar pelos direitos e pelo
empoderamento político e econômico das
trabalhadoras sexuais no Estado do Maranhão.
Nessa última parte do texto, vamos falar
um pouco desse trabalho e do fortalecimento
371
do coletivo a partir da pandemia de
COVID-19, já que está sendo um momento
no qual tivemos que nos unir para ajudar
outras mulheres. Ao longo do ano de dois
mil e vinte, assim que começaram as medidas

PUTA LIVRO
restritivas e de distanciamento e isolamento
social, buscamos parcerias com diversas
organizações da sociedade civil e também
com o Estado para conseguir cestas básicas
para as trabalhadoras sexuais. Sobretudo no
período entre os meses de março e agosto
de dois mil e vinte, alguns bares foram
fechados e medidas restritivas mais rígidas

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


foram tomadas pelo governo.
Apesar de algumas mulheres terem
conseguido ficar em casa, a maioria não
tinha como ficar porque precisava colocar
comida na mesa de sua família, muitas
responsáveis pelo sustento das mesmas.
Os bares não fecharam completamente,
mas o número de clientes diminuiu, como
nos relataram algumas mulheres. A primeira
reflexão que fazemos perante esse contexto
é a invisibilidade dessas mulheres perante o
poder público, e a necessidade de enfatizar
a comunidade do Centro Histórico de São
Luís para conseguir cesta também para as
trabalhadoras sexuais. Quando pedimos
para a Secretaria de Direitos Humanos
do Estado do Maranhão cestas básicas,
tivemos que pedir para a comunidade do
centro histórico, pois não sairiam cestas
somente para as prostitutas, mas para as
mulheres da comunidade. Quer dizer, sempre
tem que justificar para o poder público
as necessidades das prostitutas, porque
são essas mulheres que estão nessa dupla
vulnerabilidade, além de ter que sustentar
suas famílias, tem que ir para os bares e
cabarés se expor junto aos clientes.
Enfatizamos aqui essa fala da Jesus:
“Se depois do auxílio emergencial, as que
não conseguiram, deixaram de trepar para
ganhar seu dinheiro? Não. E se contraíram
Covid e não foram para o hospital? E depois,
como ficou? O que impactou na vida delas?
Esse tempo que ficou em casa, que ficou no

372
anonimato sem poder ir para a rua? E se tem
filhos?”.
Então, tivemos que arrumar
parceiros(as) para conseguir alimentos e

PUTA LIVRO
itens básicos para as mulheres, sobretudo
para as trabalhadoras sexuais da região do
Oscar Frota e seu entorno15. No ano de dois
mil e vinte realizamos ações de entrega de
cestas básicas, máscaras de tecido, álcool em
gel, produtos de higiene e limpeza, além de
continuar os trabalhos de prevenção, entrega
de insumos e testagens. Alguns desses itens

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


foram doados pelo Estado, mas a maioria
pelas organizações da sociedade civil que se
solidarizaram conosco. A UNICEF16 nos doou
kits com materiais de limpeza, o Sindicato
dos Trabalhadores em Educação Básica das
Redes Pública Estadual e Municipais do
Maranhão (Sinproesemma) doou máscaras de
tecido, o projeto Solidariza Slz, o grupo Terça
Nobre e a Rádio Tambor nos doaram cestas
básicas. Solidariedade é uma palavra que
marcou esse período tão difícil da pandemia
e agradecemos muito a esses parceiros e
outros que não elencamos aqui. Lançamos
de forma online a vaquinha Colabore com
as profissionais do sexo do Estado do
Maranhão17, que ainda está ativa e angariou
recursos de doadores de vários cantos do
Brasil.
O coletivo também continua os
trabalhos antigamente realizados pela
associação no cuidado à saúde dessas
mulheres, temos parceria com a UPA
(Unidade de Pronto Atendimento) do bairro
Vinhais, com a Secretaria de Saúde do Estado

15
Região do Centro Histórico de São Luís, próximo ao
mercado central, onde se localizam vários bares e pousadas
onde se alugam quartos para a realização de programas.
16
Fundo das Nações Unidas para a Infância.
17
Quem quiser colaborar conosco, acesse a vaquinha pelo
link http://vaka.me/1052352
e do município; além da parceria com os CTAs

373
(Centro de Testagem e Aconselhamento),
que distribui insumos, realiza testes, aplica
vacinas e faz acompanhamento de pessoas
com testagem positiva para diversas doenças.

PUTA LIVRO
Estamos também realizando uma parceria
importante com a Casa da Mulher Brasileira
para intensificar nossas ações no combate à
violência dentro dos bares, casas, boates e
cabarés.
Abaixo seguem fotos de algumas das
ações realizadas nesse período da pandemia.

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


374
PUTA LIVRO
FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA
Em relação ao diagnóstico da pandemia
na prostituição, estamos participando de uma
pesquisa sobre o impacto da pandemia na
vida das trabalhadoras sexuais, em parceria
com o NUDHES (Núcleo de Pesquisa em
Direitos Humanos e Saúde da População
LGBT+), vinculado à Faculdade de Ciências
Médicas da Santa Casa de São Paulo, e
com o CPaS-1 (Coletivo de pesquisa, arte
e antropologia em saúde pública), da
Faculdade de Saúde Pública da Universidade
de São Paulo. Essa pesquisa irá nos ajudar a
compreender esse impacto, porque mesmo
estando no combate à pandemia, levando
informações sobre a COVID-19 e suprimentos
para as mulheres, precisamos de informações
mais detalhadas.
Enfatizo novamente outra fala de Jesus
para finalizarmos nossa escrevivência em
melhor estilo: “todo mundo sabe de todo
mundo, mas ninguém sabe das prostitutas,
ninguém sabe das travestis que estão lá
375
no pistão18. Ninguém sabe quem contraiu,
a gente só sabe dizer: ‘óia, não vá pra rua
que Covid tá aí... não beija na boca, usa
máscara...’, é só isso que sabemos dizer.
O primordial e principal que tem que ser

PUTA LIVRO
feito, precisamos fazer pesquisas e políticas
públicas para essas mulheres e saber o
desastre que essa pandemia trouxe na
vida delas. É necessário! Porque é uma
população que nem sequer foi falada dentro
da pandemia. Ninguém falou em profissional
de sexo no tempo da pandemia, como quase
ninguém falou em negro, quase ninguém

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


falou em população em situação de rua.
Se esqueceram de ver a população mais
vulnerável, essa população que é difícil
se trabalhar distanciamento, que é difícil
trabalhar o ‘fica em casa’.”
Gostaríamos de agradecer ao Coletivo
Davida e ao Observatório da Prostituição
(IPPUR/UFRJ) por essa oportunidade de
contarmos um pouco sobre o nosso trabalho
junto às trabalhadoras sexuais no Estado
do Maranhão, e a todos os(as) parceiros(as)
e apoiadores(as) da nossa luta. Que outras
iniciativas como essas surjam, precisamos
continuar atentas e fortes!

18
Pistão é como ficou conhecido o local onde as travestis
exercem a prostituição na Avenida Guaxenduba, Centro da
cidade de São Luis.
Referências

376
CALABRIA, Amanda de Mello. “Eu Sou Puta: Lourdes
Barreto, História de Vida e Movimento de Prostitutas
No Brasil.” Dissertação (Mestrado em História), Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal

PUTA LIVRO
Fluminense, Niterói, RJ, 2020.

COLLINS, Patrícia Hill. Pensamento Feminista Negro:


conhecimento, consciência e a política do empoderamento.
1 ed. São Paulo: Boitempo, 2019.

DUARTE, Constância L.; NUNES, Isabella R. (2020).


Escrevivência, a escrita de nós: reflexões sobre a obra de
Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e
Arte, 2020.

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


LEITE, Gabriela. Filha, mãe, avó e puta: a história de uma
mulher que decidiu ser prostituta. Rio de Janeiro: Objetiva,
2009.

MURRAY, Laura Rebecca. Uma reflexão histórica, teórica


e etnográfica sobre o ativismo de prostitutas no Brasil.
In: 30 ABA: Políticas da Antropologia: ética, diversidade
e conflitos, 30, 2016, João Pessoa. Anais..., João Pessoa:
UFPB, 2016, p. 1-14.

PRADA, Monique. Putafeminista. São Paulo: Veneta, 2018.

RIBEIRO, Fernanda Maria V. Táticas do sexo, estratégias de


vida e subjetividades: mulheres e agência no mercado do
sexo e no circuito do turismo internacional em Fortaleza/
Ceará. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-
Graduação em Sociologia, UFPE, Recife, 2013.

RIBEIRO, ________. É possível consentir no mercado do


sexo? O difícil diálogo entre feministas e trabalhadoras do
sexo? Revista de Estudos e Investigações Antropológicas, v.
2 p. 17-29, 2015.

RIBEIRO, ________; COSTA, Maria Jesus. Pleasure and


Protagonism: An interview with Maria de Jesus Almeida
Costa, a Black sex worker activist from Brazil’s Northeast
Region, In Revista Global Public Health Special Issue: (Re)
imagining Research, Activism, and Rights at the Intersections
of Sexuality, Health, and Social Justice (no prelo). 2021.

RODRIGUES, Marlene T. Prostituição, neoconservadorismo


e pandemia – o Movimento de Prostitutas e os desafios da
Covid-19. EM PAUTA Revista da Faculdade de Serviço Social
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2.º semestre
de 2021, n. 48, v.19, p. 169 – 182. 2021.

SILVA, Tatiana R. Reis. Sexualidade e cor: mulheres negras


e prostituição feminina nas áreas centrais da cidade de São
Luís. São Luís: Eduema. 2015.
SIMÕES, Soraya S.; SILVA, Hélio R.; MORAES, Aparecida F.

377
(Org.) (2014). Prostituição e outras formas de amar. Niterói:
Editora da UFF, 2014.

VIEIRA, Sthefane B. Restauração da feira da praia grande:


um estudo sobre as práticas de preservação patrimonial

PUTA LIVRO
desenvolvidas no Centro Histórico de São Luís (1970-
1990). Monografia (Licenciatura em História), Universidade
Estadual do Maranhão (UEMA), 2016.

FERNANDA RIBEIRO E JESUS MARIA DA COSTA


378
PAULA LAUFFER

Sobre captura e esvaziamento PUTA LIVRO


Aquarela sobre papel A3

Ok line, no trabalho
Lápis de cor e hidrocor
sobre papel A4
379
VÂNIA REZENDE

PUTA LIVRO
Empoderar, uma palavra feminina
Que conhecemos agora
Qual será o significado desta
palavra da hora?
Surgiu para definir o que
é a luta pelos direitos das
mulheres agora
De Norte a Sul, de Leste a Oeste,
do Nordeste ao Sudeste
Somos todas cabras da peste
Sabemos ser sol mesmo
quando está nublado
Somos mulheres guerreiras,
fortes, verdadeiras
Na luta contra toda forma
de violência
Tenha santa paciência!
Queremos providências
Pelo fim da violência
Empodera empoderadas
mulheres fantásticas,
verdadeiras fênix
Destemidas como profetas
Corajosas como mártires
E ao mesmo tempo meigas
como aves
Assim somos!
POR ELAS EMPODERADAS
AMANDA DE LISIO &

380
THAYANE BRÊTAS

ESTRUTURA,

PUTA LIVRO
NÃO EVENTO:
O MEGAEVENTO
ESPORTIVO COMO
PANDEMIA
Quando falamos sobre expropriação, quando
falamos sobre colonialismo de colonos ou
colonialismo imperial, não estamos falando
sobre eventos anteriores, ou mesmo apenas
eventos, estamos falando sobre processos em
andamento e o que o historiador comparativo
Patrick Wolfe chamou de ‘estrutura’ robusta e
duradoura e, neste caso, não apenas um evento.
(SIMPSON, 2016, p. 19)

O colonialismo de colonos europeus foi o


catalizador da expansão do capitalismo e
continua a estruturar a vida sob o capitalismo
enquanto ele se move por diferentes fases. A
atual iteração do capitalismo – neoliberalismo
– continua a ser moldada pelo imperativo
colonial do colono de desapropriação/extração/
eliminação justificado pelas lógicas racializadas
e de gênero que, enquanto mudam, continuam
a emergir daquele imperativo. (SPEED, 2017, p.
788, tradução do autor)

Em grande parte do mundo, o


neoliberalismo, a versão hoje mais dominante
do capitalismo, facilitou a transição para
a governança corporativa e resultou em
uma redução do estado de bem-estar e
responsabilidades associadas; embora nunca
de maneira uniforme. O neoliberalismo vivido
é tão único quanto as comunidades, cidades,
países que são forçados a se remodelarem.
É difícil saber até que ponto a influência
penetrante do neoliberalismo constituiu
políticas e processos que reconstroem nossas
381
cidades, mas também nossas identidades,
subjetividades e até intimidades. Porém, de
fato vemos o neoliberalismo se manifestar
por meio de políticas históricas que
prejudicaram a saúde pública, em particular o

PUTA LIVRO
trabalho desvalorizado e as pessoas a quem o
vírus atacou de forma mais veemente.
Com base na lógica de que as crises
do capitalismo servem ao avanço neoliberal,
Naomi Klein introduziu o termo “capitalismo
do desastre” para explicar o uso instrumental
da catástrofe (chamada natural e causada
pelo homem) para promover e capacitar
uma gama de itinerários econômicos (KLEIN,

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


2007). O neoliberalismo é frequentemente
imaginado como um conjunto de ideologias
econômicas e sociais impostas sem
consentimento democrático. Essas ideologias
muitas vezes se materializam por meio de
processos ou políticas que desregulamentam
o controle governamental e/ou privatizam
serviços públicos. Crises, como argumentou
Naomi Klein, exigem ação rápida e, portanto,
substituem processos democráticos. A
questão para Klein é se a resposta à crise
atende à necessidade cívica mais ampla ou é
usada para promover políticas impopulares
em prol de alguns poucos favorecidos. Ela
examinou as políticas neoliberais adaptadas
após a guerra do Iraque e o furacão Katrina
e concluiu que o “capitalismo desastroso”
exacerbou as desigualdades existentes e
atendeu exclusivamente aos empresários
que lucraram com as crises do capitalismo.
Politicamente, as crises são utilizadas como
desculpa para cortar impostos, privatizar
serviços públicos, desregulamentar empresas
e regulamentar ainda mais a cidadania.
Quanto maior a crise, maior o potencial para
desmantelar o setor público e criar novas
oportunidades de lucro privado.
Crises do capitalismo estão diretamente
ligadas ao consumismo. No caso do
megaevento esportivo, particularmente
no que se deu no Rio de Janeiro, estamos
cientes que foram os empresários que mais
382
lucraram com os Jogos — suas riquezas
pessoais dispararam, enquanto o dinheiro
público despencou e os salários públicos
congelaram temporariamente. No caso da
COVID-19 no Brasil, a resposta à pandemia

PUTA LIVRO
passou a ser o foco de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI). No centro
dessa investigação está um contrato de R $
1,6 bilhão (US $ 300 milhões) para 20 milhões
de doses da vacina Covaxin; uma vacina ainda
não aprovada ou distribuída no Brasil e mais
cara do que qualquer outra vacina no mundo.
Agora há novas evidências que sugerem
que o Ministro da Saúde, General Eduardo

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


Pazuello, e sua equipe estavam envolvidos
em um esquema de propina em que o
dinheiro foi desviado do contrato inflacionado
para riqueza pessoal. Combinadas, essas
crises aceleraram os itinerários neoliberais e
evisceraram o governo (central) e a liderança
da saúde pública, à medida que o protesto
popular e a dissidência cívica lidavam mais
seriamente com suas propensões genocidas e
forjavam novas solidariedades atentas a elas.1
Afirmamos que o megaevento esportivo
no Rio de Janeiro (como demonstrado
em outras cidades-sede) estreou as
potencialidades para crises urbanas com
o fim de acelerar o neoliberalismo. O
megaevento esportivo mundialmente
reconhecido deu início a uma série de
estratégias que funcionaram para separar o
governo da governança. Mais notavelmente
via 1) a privatização e/ou desregulamentação
de instalações financiadas pelo governo (via
Lei 12.035/2009, que garantiu ao Comitê
anfitrião manter o uso exclusivo do espaço
público), 2) o acesso facilitado a terras
públicas para reconstrução (como observado
na reconstrução do Porto Maravilha e nas
quase 170.000 pessoas que foram ameaçadas

1
Veja em especial Ortega, F. & Orsini, M. (2020). Governing
COVID-19 without government in Brazil: Ignorance,
neoliberal authoritarianism, and the collapse of public
health leadership. Global Public Health, 15(9): 1257-1277.
383
ou permanentemente despejadas devido
à construção das megaeventos), e 3) o
aumento da dependência do trabalhador
autônomo e do trabalho precário e mal
remunerado (conforme observado, por
exemplo, na construção de estádios da FIFA

PUTA LIVRO
que resultou na morte de oito homens).
Em última análise, as políticas e processos
excepcionais relacionados aos megaeventos,
exigidos em nome da FIFA e do Comitê
Olímpico Internacional (COI) para modernizar
rapidamente as cidades para o turismo,
consolidaram as desigualdades sociais e
espaciais a serviço da expansão capitalista

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


e forçaram as comunidades a lidar com as
realidades de um governo recém-configurado
que estrategicamente negou e descartou a
necessidade local.
Isso mobilizou a dissidência popular,
que lutou corajosamente. O ativismo das
trabalhadoras do sexo foi parte integrante
das estratégias que buscaram confrontar
e desafiar a aceleração e intensificação
da gentrificação e da repressão policial
que o megaevento esportivo ocasionou
(AMAR, 2013). O período anterior ao evento
(principalmente junho de 2013), para sempre
envolvido na reforma urbana, tornou-se
um divisor de águas para uma mobilização
social mais ampla nas ruas no Brasil. Na
época, grupos em defesa da natureza se
alinharam com o sentimento anti-olímpico
progressista, que reconhecia as megaeventos
como antidemocráticas e benéficas para
uns poucos afortunados. Especificamente,
as ansiedades relacionadas ao fracasso
na despoluição da Baía de Guanabara e à
construção da Reserva Natural de Marapendi
— legalmente protegida desde 1959 e lar de
inúmeras espécies ameaçadas — pioraram
com o surgimento de um vírus transmitido
por mosquitos recentemente descoberto.
O vírus Zika inspirou uma onda de pedidos,
por parte de médicos e especialistas, do
adiamento de todas as viagens ao Brasil
e, portanto, o adiamento das Olimpíadas
384
de 2016. No entanto, o pandemônio inicial
diminuiu rapidamente e o investimento
necessário em infraestrutura e perícia
biomédica (ou seja, para criar uma vacina,
etc.) nunca foi realizado. Em vez disso, a

PUTA LIVRO
SC Johnson se tornou um parceiro olímpico
oficial e a venda de seu repelente de insetos
mais que dobrou durante o evento. Logo, a
devastação ambiental, que antes era motivo
de preocupação, foi posicionada como
um problema para as pessoas em outros
lugares, sendo raramente abordada pela
mídia internacional quando o circo olímpico

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


terminou e os turistas voltaram para casa.
O foco então mudou para a suposta e real
corrupção do governo, o que galvanizou
um movimento político ultraconservador
e resultou no impeachment da Presidente
Dilma Rousseff e subsequente eleição do
candidato presidencial Jair Bolsonaro,
governo que lançaria as bases para que os
ministérios do governo fossem suplantados
por militares e empresários.
Portanto, não é surpresa que a resposta
à COVID-19 no Brasil abdicasse ainda mais
das responsabilidades federais relacionadas
à saúde pública em favor de estratégias
neoliberais que moldaram os megaeventos de
maneira semelhante. Bolsonaro usou a crise
mais recente para deslegitimar evidências
científicas e disseminar deliberadamente
desinformação — mais notavelmente, o
uso de hidroxicloroquina como um possível
tratamento — enquanto a maioria da
população permanecia sem defesa contra a
ameaça virulenta, sem a necessária expertise,
o abrigo, ventilação, saneamento, seguro-
desemprego etc. O descaso sistemático
resultou na morte evitável de mais de
550.000 pessoas — a maioria das quais
vinha de comunidades negras e indígenas
das quais Bolsonaro nunca escondeu seu
desdém. A primeira morte serviu como
metáfora para o impacto desigual de sua
negligência estratégica com as comunidades
necessitadas: foi uma mulher de 63 anos
385
que trabalhava como empregada doméstica
para um casal brasileiro privilegiado que
foi infectado com o vírus em suas férias na
Europa (CAPONI, 2020). Relativamente ilesos
à doença, o marido e a esposa sobreviveram.

PUTA LIVRO
A total ausência de políticas/governança
de saúde pública para eliminar o vírus de
forma eficaz incitou as comunidades a
reagirem e responderem. A ação coletiva
das comunidades locais desafiou a difusão
do neoliberalismo por meio de ajuda
mútua e solidariedades em rede. A hashtag
#COVID19NasFavelas destacou o impacto

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


desigual do vírus em comunidades já muito
familiarizadas com o abandono do Estado2.
Em agosto de 2020, em meio à pandemia, as
autoridades ameaçaram despejar a CasaNem,
consequentemente ameaçando mais de 60
pessoas LGBTQIA+ à situação de rua. Em
resposta, a Indianarae Siqueira, fundadore
da CasaNem, reuniu aliados políticos para
coordenar o uso de uma escola pública
próxima, que passou a servir como abrigo
temporário, antes de se mudar para um local
mais permanente no Flamengo, um bairro
vizinho e afluente da Zona Sul do Rio de
Janeiro. O prédio de dois andares se tornou
um refúgio para as pessoas LGBTQIA+
que enfrentam o aumento da violência
familiar e a diminuição das oportunidades
econômicas — já muito escassos — em meio
à pandemia. Por meio de uma plataforma
de crowdsourcing, a CasaNem também
garantiu a ajuda financeira necessária. Como
Indianarae comentou em uma entrevista à
Vice Media:

2
O impacto desigual e deletério do vírus em comunidades
de baixa renda é especialmente evidente na taxa de
mortalidade por infecção confirmada — 30,8% na Maré,
uma área composta por comunidades na empobrecida Zona
Norte, em comparação com 2,4% no Leblon, um bairro
nobre da Zona Sul voltado para o turismo.
Durante a pandemia, as expulsões e a

386
violência contra a população LGBTQ realmente
cresceram. É algo bom que saiu de algo ruim.
Como a pandemia de HIV/AIDS. Algo ruim, mas
trouxe à luz todos os direitos civis LGBTQ que
foram desrespeitados. Como a vida. Da guerra,

PUTA LIVRO
paz. A morte como fonte de vida. (RUGE, 2021,
online)

Bruna Benevides e Sayonara Nogueira


(2021) relataram em sua pesquisa que, em
2020, 175 pessoas trans e não binárias foram
mortas no Brasil (BENEVIDES & NOGUEIRA,
2021). Mais intimamente relacionado à
CasaNem, a tinta derramada no motor de

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


um veículo usado pela organização quase
tirou a vida de seu motorista voluntário. Em
19 de março de 2021, a família distante de
uma pessoa moradora da CasaNem entrou
ilegalmente na residência e ameaçou usar
violência. Policiais militares foram chamados
ao local, mas se recusaram a intervir. Essas
realidades indicam, de fato, um padrão mais
amplo de violência contra pessoas LGBTQIA+
e o trabalho ainda necessário para defender
as comunidades em crises persistentes
— bem como o papel central do ativismo
das trabalhadoras do sexo nas crises do
capitalismo.3 Nesse contexto de perversão
neoliberal e isolamento social, o movimento
brasileiro de prostitutas ampliou suas ações
de solidariedade e se solidificou online, e
em muitas cidades foram para a rua para
demonstrar o cuidado radical necessário para
desmantelar o domínio do mercado e lutar
contra a morte e a doença.
Ao longo desta breve contribuição,
tentamos demonstrar a maneira pela qual
o megaevento esportivo serviu como
uma incubadora urbana para as políticas
e processos atrelados ao COVID-19. As
estratégias neoliberais utilizadas na época

3
Veja especialmente, SANTOS, B., SIQUEIRA, I., OLIVEIRA,
C., MURRAY, L., BLANCHETTE, T. BONOMI, C., da SILVA,
A.P., & SIMÕES, S. (2021).
387
do megaevento esportivo — que impôs um
parâmetro de exceção ao governo enquanto
se privatizavam serviços públicos e se
desregulamentavam indústrias privadas —
normalizou e reforçou o seu teste e uso como

PUTA LIVRO
respostas a crises, onde testemunhamos
processos gêmeos de negação e menosprezo
como resposta pandêmica “oficial”, ou a
falta dela. Os beneficiários dessa negação
e menosprezo são o mesmo grupo de
empresários — inclusive aqueles eleitos e
nomeados em nível federal, estadual ou
municipal — que lucram com emergências de
saúde pública capitalizando a crise sanitária

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


por meio, por exemplo, da promoção de
remédios cientificamente infundados. Por
sua vez, as crises iniciadas por essa variante
do neoliberalismo são, como o historiador
Patrick Wolfe sabiamente argumentou,
estrutura, não evento, e é essa estrutura
que qualquer resposta eficaz deve primeiro
atender (WOLFE, 2006).

Referências

AMAR, P. The Security Archipelago: Human-Security States,


Sexuality Politics and the End of Neoliberalism. Durham,
NC: Duke University Press. 2013

BENEVIDES, B.G. & NOGUEIRA, S.N.B. Dossiê: Assassinatos


e violência contra travestis e transexuais Brasileiras em 2020.
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CAPONI, S. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a


razão neoliberal. Estudos Avançados. 34(99), pp. 209-223.
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KLEIN, N. The shock doctrine: The rise of disaster


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MIER, B. Covid-19 Scandal: Brazilian Military threatens


Senate. Brasil Wire. 8 de Julho de 2021. Disponível em

388
https://www.brasilwire.com/covid-19-scandal-brazilian-
military-threatens-senate/

ORTEGA, F. & ORSINI, M. Governing COVID-19 without


government in Brazil: Ignorance, neoliberal authoritarianism,

PUTA LIVRO
and the collapse of public health leadership. Global Public
Health, 15(9), pp. 1257-1277. 2020

RUGE, E. How Rio’s trans community defeated right wing


leaders and saved a shelter. Vice Media. 21 de Janeiro
de 2021. Disponível em https://www.vice.com/en/article/
akdyd8/how-rios-trans-community-defeated-right-wing-
leaders-and-saved-a-shelter

SANTOS, B., Siqueira, I., Oliveira, C., Murray, L., Blanchette,

AMANDA DE LISIO & THAYANE BRÊTAS


T. Bonomi, C., da Silva, A.P., & Simões, S.. Sex Work,
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Sex Work in Times of COVID-19. In Brazil. Social Sciences,
10(2), pp. 1-20. 2021

SAXENA, S. & COSTA, F. Brazil Senate inquiry probes


Bolsonaro’s ‘scandalous’ Covaxin Deal with India. Brasil
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Saunders and the Gendered Costs of Settler Sovereignty.
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WOLFE, P. Settler colonialism and the elimination of the


native. Journal of Genocide Research, 8(4): 387-409. 2006.
389
PATRÍCIA ROSA

LUTE COMO

PUTA LIVRO
UMA PUTA
390 PUTA LIVRO PATRÍCIA ROSA
391 PUTA LIVRO PATRÍCIA ROSA
392
TIAGO LUÍS COELHO
VAZ SILVA

A INCIDÊNCIA

PUTA LIVRO
POLÍTICA DO
MOVIMENTO DE
PROSTITUTAS
EM TEMPOS DE
PANDEMIA:
a experiência do Grupo
de Mulheres Prostitutas
do Estado do Pará
(GEMPAC)
Introdução

Certamente estamos presenciando a


pior crise sanitária global da nossa geração.
Exatamente um ano após o novo coronavírus
ter se disseminado por todas as regiões do
Brasil, em abril de 2021, o país figura como
epicentro mundial da pandemia, tendo
registrado 358.425 de óbitos até o dia em
que escrevo este texto1. No decorrer desse
período, houve incitação ao não uso de
máscaras e desrespeito ao distanciamento
social, bem como o incentivo à aglomerações,
principalmente em locais públicos,
diferentemente do que preconizam as
medidas e protocolos de segurança da OMS.
Além disso, a negligência na participação de

1
Informações obtidas no portal https://covid.saude.gov.br/
do Ministério da Saúde. Os dados obtidos correspondem à
última atualização do dia 13/04/2021, às 19h.
393
consórcios e aquisição de vacinas, igualmente
ao atraso no processo de vacinação da
população, ajudam a entender o impacto
devastador da pandemia no Brasil. Este
quadro desolador resulta da incompetência

PUTA LIVRO
do Governo Federal em promover políticas
públicas eficazes para combater o avanço da
pandemia no país.
Mesmo com as dificuldades de se fazer
ativismo em tempos de autoritarismo e
perseguição aos movimentos sociais, bem
como as restrições de distanciamento social
impostas pela pandemia de covid-19, o

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado
do Pará (GEMPAC), em sua trajetória
exitosa de mais de trinta anos de militância
e incidência política junto às prostitutas no
estado do Pará, realizou um conjunto de
ações visando assistir essas mulheres e seus
familiares, profundamente afetados por essa
crise sanitária global. O propósito deste
texto é apresentar um relato de experiência
das ações desenvolvidas pelo GEMPAC no
cenário de pandemia de covid-19, entre os
meses de abril e dezembro de 2020.

O GEMPAC e o enfrentamento
a pandemia de covid-19

Semelhante a muitas outras categorias


profissionais, as trabalhadoras sexuais
se viram no dilema de ter que continuar
trabalhando e correr o risco de se infectar
pelo coronavírus, ou paralisar suas atividades
para se resguardar. A grande maioria das
trabalhadoras sexuais que participaram
das campanhas realizadas pelo GEMPAC
relataram ter ficado sem batalhar nos
primeiros meses da pandemia, uma vez que
os clientes “sumiram da zona”. As poucas
que conseguiram fazer algum programa
nesse período disseram ter praticado
relações sexuais de costas para os clientes,
ambos fazendo uso de máscaras, para
minimizar os riscos de contágio diante das
circunstâncias. As dificuldades financeiras e
394
de outras ordens relatadas por elas foram
demasiadamente preocupantes e pareciam
não ter precedentes.
Para essas mulheres, paralisar as
atividades completamente nunca foi

PUTA LIVRO
uma opção, uma vez que é do trabalho
sexual que garantem o seu sustento e de
seus familiares2. Mesmo quando estavam
recebendo a primeira rodada do auxílio
emergencial3, que teve aprovação e
repasse morosos, além de ter se mostrado
insuficiente para atender as suas reais
necessidades e da maioria da população

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


em situação de vulnerabilidade econômica
afetada pela pandemia, deixar de atender
os clientes não era possível. Ainda assim, o
auxílio emergencial foi muito bem-vindo e
serviu como desafogo frente ao contexto em
que se apresentara.
Perante este cenário alarmante,
o GEMPAC usou de sua expertise para
coordenar ajudas humanitárias para
trabalhadoras sexuais e suas famílias em
tempos de covid-19, mas também para outras
pessoas em situação de vulnerabilidade que
fazem parte da zona de prostituição. O foco
das ações foram as trabalhadoras sexuais, além
daquelas que não exercem mais a profissão,
mas continuam fazendo parte da Associação,
porque possuem insuficiência econômica.
O objetivo consistiu, justamente, em
fortalecer todas essas pessoas e suas famílias,
considerando o contexto da pandemia.
O GEMPAC participa ativamente

2
Em outros nichos do trabalho sexual, onde também
desenvolvo pesquisa, muitas mulheres migraram para o
sexo virtual neste período de pandemia, desempenhando
serviços como camgirls. No entanto, esta é uma realidade
muito distante para as trabalhadoras sexuais que exercem
o seu ofício no baixo meretrício, do qual fazem parte as
integrantes do GEMPAC e o público assistido por ele.
3
Nos meses de abril e maio, o GEMPAC realizou campanhas
de orientação e fez a inscrição de trabalhadoras sexuais no
cadastro do Programa de Auxílio Emergencial do Governo
Federal.
em vários domínios da esfera pública,

395
possuindo representação em Redes,
Comissões, Conselhos e Fórum de discussão
e elaboração de políticas. A exemplo
disto, possui representação nas ações

PUTA LIVRO
coordenadas pela Secretaria de Justiça e
Direitos Humanos (SEJUDH-PA), participando
como parceiro nas ações de prevenção
que visam ao enfrentamento ao trabalho
escravo, à exploração sexual de crianças e
adolescentes e ao tráfico de seres humanos.
No que se refere às parcerias, a Associação
possui reconhecimento expressivo junto a

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


organizações da sociedade civil com quem
estabelece diálogo constante, participando
do debate na esfera pública sobre elaboração
e gestão de políticas públicas; além de
contribuir para a realização de ações em
benefício da melhoria da comunidade local
e para o fortalecimento do ativismo político
entre diferentes movimentos sociais da
região metropolitana de Belém. O GEMAPC
também estabelece relações de parceria
com entidades governamentais, tanto da
administração estadual quanto da municipal,
com destaque para a SEJUDH-PA, Conselho
Estadual dos Direitos da Mulher (CEDM-PA) e
Secretária Municipal de Saúde (SESMA).
Deste modo, novas parcerias foram
construídas, outras foram fortalecidas,
por meio de articulações planejadas com
organizações não-governamentais, entidades
da sociedade civil e agentes governamentais.
A exemplo disto, podemos mencionar
as ações realizadas em parceria com a
Fundação Papa João XIII (FUNPAPA), com
o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF/BRASIL) e com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Faz-se
necessário destacar que em todas as reuniões
e ações realizadas pelo GEMPAC com os
seus mais diversos parceiros, bem como com
as trabalhadoras sexuais, foram seguidos os
protocolos de segurança contra a covid-19.
Além disso, as orientações e cuidados
relacionados à pandemia sempre estiveram
396
entre as principais questões abordadas nas
reuniões e ações das quais a Associação
esteve à frente.
A parceria entre GEMPAC e FUNPAPA
vem de longa data e remonta aos primeiros

PUTA LIVRO
anos de criação da Associação, na década
de 1990, como nos foi dito por Lourdes
Barreto, principal liderança do GEMPAC
e uma das fundadoras do movimento de
prostitutas no Brasil. A FUNPAPA é um
órgão da administração indireta da Prefeitura
Municipal de Belém que atua na promoção de
assistência social através do desenvolvimento
de ações de amparo e proteção à populações

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


que se encontram em situação de risco
pessoal e social impulsionados pela pobreza,
abandono ou isolamento social. Esta ação
consistiu na distribuição de 80 cestas básicas
para as trabalhadoras sexuais associadas.
Em outra ação, a parceria entre o
UNICEF/BRASIL e GEMPAC beneficiou
duzentas famílias, entre trabalhadoras
sexuais e demais pessoas em situação de
vulnerabilidade econômica. A campanha
ocorreu em âmbito nacional, sendo que
em Belém-PA a organização ficou a cargo
do escritório zonal da entidade, localizado
no município, e teve o GEMPAC como um
dos principais articuladores desta ajuda
humanitária. A campanha consistiu na
distribuição de kits de material de limpeza e
higiene pessoal nas zonas de prostituição e
bairros da região metropolitana de Belém.
Em conformidade com os critérios do
UNICEF, as pessoas atendidas deveriam ter
crianças e adolescentes em suas famílias.
Por sua vez, a parceria entre o MST e
GEMPAC envolveu uma rede mais ampla
de apoio e solidariedade que culminou
na distribuição de 50 cestas de alimentos
orgânicos, produzidos por camponeses nos
assentamentos do MST. É sempre importante
destacar que, historicamente, o MST tem
reivindicado o acesso à terra por meio de
políticas de reforma agrária e ocupação
legítima de propriedades rurais improdutivas,
muitas delas destinadas à especulação

397
imobiliária e até objeto de grilagem. A
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) e a Sociedade Paraense de Direitos
Humanos (SDDH) também foram parceiras

PUTA LIVRO
nessa ação, colaborando com a logística
de acolhimento dos trabalhadores rurais na
cidade e no transporte dos alimentos.
Além disso, foram feitas articulações
junto aos responsáveis pela saúde pública
do município de Belém-PA para que as
trabalhadoras sexuais tivessem acesso aos
serviços de saúde integral e aos insumos
necessários ao exercício de sua profissão.

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


A ação foi desenvolvida pela SESMA em
conjunto com o GEMPAC em alusão ao
dia internacional da prostituta, que é
celebrado anualmente no dia 2 de junho.
A ação aconteceu na sede da Associação,
no dia 26 de junho, entre 9h e 15h, onde
foram oferecidos serviços de saúde, tais
como: distribuição de preservativos e gel
lubrificante, vacinas para prevenção de gripe
e sarampo; testes rápidos para detecção de
sífilis, HIV e hepatites B e C; e emissão de
cartão do Sistema Único de Saúde (SUS).
Na ocasião, não foram realizados testes
de covid-19, segundo os organizadores,
devido a indisponibilidades de insumos. A
ação beneficiou cerca de 200 pessoas, entre
trabalhadoras sexuais e pessoas em situação
de vulnerabilidade que compõem o bairro4.
Neste período, também foram

4
Esta ação já faz parte da agenda que resulta da parceria
entre SESMA e GEMPAC. Trata-se do projeto “Corujão da
Saúde”, que consiste em uma ação social de mobilização
ampliada que oferta serviços de saúde. O Corujão ocorre
em espaços públicos e considera as áreas de prostituição
e a compatibilidade com o horário das trabalhadoras
sexuais, que tem prioridade no atendimento. No entanto, os
serviços são ofertados para a toda a comunidade de bairro e
transeuntes que circulam nas proximidades de realização da
ação. O Corujão representa um exemplo de micropolítica
bem-sucedida de articulação entre movimento social e
agentes governamentais, em que cada um dos parceiros
compreende e desempenha o seu papel.
398
desenvolvidas atividades formativas com
o objetivo de capacitar trabalhadoras
sexuais para reconhecerem seus direitos
como cidadãs e aturem como lideranças
em suas comunidades. Esta campanha faz
parte do projeto SWIT Brasil5 e constitui

PUTA LIVRO
um conjunto de ações mais amplas (OMS,
2015) estabelecidas em rede e coordenadas
na América Latina pela Plataforma
Latinoamericana de Personas que Ejercen el
Trabajo Sexual (PLAPERTS).
Em 2020, a implementação do SWIT
Brasil ocorreu na cidade de Belém-PA, a cargo

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


do GEMPAC e sob a coordenação de Lourdes
Barreto. As atividades abordaram uma série
de questões que visam favorecer a autonomia
comunitária e a capacidade organizativa
das pessoas que exercem o trabalho sexual,
desenvolvidas a partir da perspectiva de
advocacy. Assim, o advocacy possibilitou que
a incidência política atuasse na promoção
e defesa dos interesses e demandas das
trabalhadoras sexuais, mobilizadas com o
propósito de dar maior visibilidade para
certas questões no debate público, visando
à transformação de determinada realidade
social (LIBARDONI, 2000).
Os temas abordados nas atividades

5
O SWIT é um documento extenso que fornece
recomendações para a implementação de estratégias de
teste, tratamento e prevenção de IST/HIV/Aids, que é
liderado e capacita as pessoas que exercem o trabalho
sexual (NSWP, 2015). O SWIT foi criado em 2013 pela OMS,
United Nations Population Fund (UNFPA), United Nations
Programme on HIV/Aids (UNAIDS), Global Network of
Sex Work Projects (NSWP) e Banco Mundial. Em 2018, o
Workshop SWIT Brasil ocorreu em Campinas-SP e contou
com a participação de várias lideranças das Associações que
compõem a Rede Brasileira de Prostitutas (RBP), além de
outras ativistas que integram o movimento de prostitutas
no país. A implementação do SWIT Brasil de 2019 ocorreu
apenas em janeiro de 2020, em Belo Horizonte-MG, através
da parceria entre a Associação das Prostitutas de Minas
Gerais (APROSMIG) e o GEMPAC. A atividade formativa
promoveu a capacitação de treze trabalhadoras sexuais,
contando também com a participação de integrantes do
“Clã das lobas”, coletivo de trabalhadoras sexuais ligadas a
Articulação Nacional de Profissionais do Sexo (ANPS).
399
formativas foram: direitos humanos e
saúde integral de trabalhadoras sexuais;
desigualdades de gênero, raça e classe; as
diferentes formas de violência contra as
mulheres; o cenário político atual frente às
eleições municipais de 2020; trabalho sexual

PUTA LIVRO
e as novas tecnologias de saúde.
As formações capacitaram 12

Foto 1 - Organização para TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


distribuição das cestas
básicas doadas pela FUPAPA.

Foto 2 – Distribuição dos kits de higiene


pessoal e limpeza doados pelo UNICEF/
BRASIL, em uma zona de Belém-PA.
400
PUTA LIVRO
TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA
Foto 3 – Organização para distribuição
dos alimentos orgânicos doados pelo
MST, na sede da CNBB em Belém.

Foto 4 – Reunião na sede do GEAMPAC


para distribuição dos alimentos orgânicos
doados pelo MST.

trabalhadoras sexuais a cada temática, tendo


sido realizadas de agosto a dezembro, em
um encontro mensal de aproximadamente
uma hora. A cada encontro, fez-se uma
breve apresentação da história e missão
da PLAPERTS e do GEMPAC, bem como
sobre os princípios e valores que orientam o
ativismo político destas duas organizações.
Além disso, antes do diálogo sobre cada
temática propriamente dita, fez-se a
exposição sobre as recomendações de boas
401
práticas7 e as recomendações baseadas em
provas8, com ênfase nos elementos dos seis
eixos necessários para o fortalecimento da
autonomia comunitária e da capacidade
organizativa das pessoas que exercem o
trabalho sexual9.

PUTA LIVRO
Ao adentrar especificamente nos temas
elencados para as atividades formativas, foi
possível tratar sobre questões fundamentais
que constituíram a trajetória do movimento
de prostitutas no Brasil, mas sobre os quais
ainda existe um certo desconhecimento,
inclusive, pelas próprias trabalhadoras
sexuais, como por exemplo: a implementação

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


das políticas de combate e prevenção ao
HIV/Aids no país e a conquista da inclusão
da categoria profissionais do sexo na
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO),
do extinto Ministério do Trabalho e Emprego.
Desta forma, foi abordado a respeito do
protagonismo do movimento de prostitutas
no Brasil em busca por cidadania e direitos.
Além disso, deu-se ênfase à importância
do Projeto de Lei Gabriela Leite, como
possibilidade de alteração da legislação
sobre prostituição e regulamentação laboral
do trabalho sexual no país, com a finalidade
de avançar na luta por direitos não apenas
das prostitutas, mas como representativo da
luta de todos os trabalhadores, sobretudo

7
São princípios amplos baseados no senso comum, ético
e direitos humanos. Não são baseados em comprovações
científicas, mas são instruídos por experiências de pessoas
que exercem o trabalho sexual (NSWP, 2015).
8
São recomendações técnicas baseadas em comprovações
científicas. Tem sido avaliadas através de um processo
formal. As recomendações baseadas em provas também
são instruídas por experiências das pessoas que exercem o
trabalho sexual (NSWP, 2015).
9
O SWIT abrange seis grandes temas recomendados no
documento elaborado pela OMS em parceria com a NSW,
são eles: 1- Empoderamento comunitário; 2- Abordar a
violência contra as pessoas que exercem o trabalho sexual;
3- Serviços dirigidos para as comunidades; 4- Programas
sobre preservativos e lubrificantes; 5- Serviços clínicos e
de apoio; 6- Gestão de programas e fortalecimento da
capacidade organizativa (OMS, 2015).
em um contexto político de profunda

402
precarização das relações trabalhistas, onde
a classe trabalhadora tem sofrido ataques
sistemáticos aos seus direitos.
Uma das características mais

PUTA LIVRO
interessantes das formações está relacionada
à conexão constante que as participantes
estabeleciam entre gênero, raça e classe
como marcadores da exclusão na qual se
intersectam. De modo que estávamos falando
sobre uma dimensão que, aparentemente,
dizia respeito à opressão de gênero, mas,
em seguida, compreendíamos como aquela

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


realidade também era afetada por questões
de raça e classe. Além disso, através dos
relatos de experiência das participantes e
da relação estabelecida entre esses relatos
e a atual conjuntura que o Brasil atravessa,
ficou nítida a compreensão delas sobre a
importância da consciência de classe e da
capacidade organizativa do movimento de
putas como o caminho a ser trilhado em
busca de fazer valer os direitos individuais e
coletivos; fundamentais, inclusive, na luta pela
conquista de novos direitos.
Nas atividades formativas, ao falar sobre
a importância dos métodos de prevenção
combinada e da necessidade de se conhecer
bem cada uma das tecnologias disponíveis,
um dos temas que mais despertou o
interesse das participantes foi o das novas
tecnologias: Profilaxia Pós-Exposição (PEP)
e Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), ambas
tecnologias de prevenção ao HIV, sobre as
quais havia desconhecimento em virtude de
serem relativamente recentes. Desta forma,
foi ressaltada a importância do acesso pelas
trabalhadoras sexuais (e demais populações-
chave e prioritárias) a essas tecnologias de
prevenção combinada, a fim de fazer valer
a política de saúde implementada pelo
Estado brasileiro e o direito ao acesso a tal
política para quem, de fato, ela foi pensada e
colocada em prática.
403
PUTA LIVRO
TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA
Foto 5 – Campanha da SESMA na sede
do GEMPAC, promovendo serviços de
saúde para as trabalhadoras sexuais e
demais pessoas da comunidade.

Foto 6 – Lourdes Barreto e duas


participantes da campanha da SESMA em
alusão ao dia internacional da prostituta,
na sede do GEMPAC.
404
PUTA LIVRO
TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA
Foto 7 – Reunião de planejamento na sede
do GEMPAC sobre as orientações e cuidados
relacionados à pandemia de covid-19.

Foto 8 – Distribuição de
cestas básicas e materiais de
higiene pessoal e limpeza,
após atividade formativa
em uma zona da região
metropolitana de Belém-PA.

As participantes avaliaram de
maneira positiva os temas abordados e as
metodologias empregadas nas atividades
formativas. Segundo elas, os temas foram
discutidos satisfatoriamente, muitos,
inclusive, sendo debatidos em profundidade,
o que possibilitou uma compreensão
significativa sobre determinadas questões
fundamentais para o exercício do trabalho
sexual e para a prática da cidadania e luta
por direitos das prostitutas. Assim, as falas
405
ressaltaram o reconhecimento da necessidade
contínua por formação de novas lideranças
e para o fortalecimento organizativo das
bases. As falas também deram destaque
para a capacidade de atividades formativas

PUTA LIVRO
proporcionarem conhecimento atualizado
e empoderamento para as trabalhadoras
sexuais seguirem cotidianamente no exercício
de incidência política em sua comunidade
local, abordando, a respeito das diferentes
formas de violência sofridas pelas mulheres,
a saúde sexual e reprodutiva em uma
perspectiva de saúde integral, bem como

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


sobre as condições de trabalho nas boates
e nas zonas de prostituição. Tais atividades
possibilitariam mais capacidade informativa
e comunicativa para a articulação visando o
debate sobre a autonomia e afirmação da
identidade política de outras trabalhadoras
sexuais junto ao movimento organizado de
prostitutas.
A partir das ações descritas neste
relato de experiência, pudemos perceber
a capilaridade do GEMPAC em coordenar
ajudas humanitárias e promover capacitação
para trabalhadoras sexuais durante a crise
sanitária de covid-19 que assola o país. São
justamente as transas sociais e institucionais
(BARRETO, 2016), essa capacidade de
diálogo e articulação com organizações não-
governamentais, entidades da sociedade civil
e agentes governamentais, que possibilitam
ao GEMPAC atender as demandas das
trabalhadoras sexuais e fortalecer a sua
base organizativa; ao passo que também
sensibilizam e aproximam esses parceiros da
complexidade de experiências que fazem
parte do trabalho sexual. A política do
corpão (BARRETO, 2016) também cumpre
papel fundamental no fortalecimento dessa
base organizativa que constitui o GEMPAC,
uma vez que o fazer-se presente ocupando
espaços públicos estratégicos e mobilizando
os atores sociais a quem se destina a ação,
possibilita aproximá-los das propostas
e trazê-los para o ativismo, ou mesmo
406
estabelecer novas parcerias (VAZ SILVA,
2021).
Ao longo de sua trajetória, o GEMPAC,
através da Rede Brasileira de Prostitutas
(RBP), tem fortalecido a sua incidência

PUTA LIVRO
política na perspectiva dos direitos humanos
por meio da articulação do movimento
de prostitutas no Brasil, em constante
diálogo com a América Latina e outras
redes de trabalhadoras sexuais globais10.
Estes intercâmbios e trocas de experiências
fortalecem e ampliam a visibilidade das
práticas de prevenção e tratamento em IST/

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


HIV/Aids desenvolvidas no país, bem como
os avanços desse segmento como estratégia
fundamental para o enfretamento – no
âmbito local e global – são fundamentais
para a autodeterminação das trabalhadoras
sexuais na busca por direitos e cidadania.

Considerações Finais

Sabemos que a pandemia de


covid-19, e a recessão na economia
impulsionada em decorrência dela, afetaram
desproporcionalmente os diferentes
grupos na sociedade, acarretando inúmeras
consequências para os trabalhadores e seus
familiares, sobretudo, os mais pobres e
vulneráveis financeiramente. Até o presente
momento em que escrevo este texto, a
pandemia ainda está descontrolada no Brasil,
devido à incompetência do Governo Federal,
que insiste em alimentar a controvérsia
em torno dos impactos econômicos do
distanciamento social, o que reflete o falso
dilema entre salvar vidas e garantir o sustento

10
A principal delas é a NSWP, que visa conectar redes
locais, regionais e nacionais em defesa e promoção de
direitos das mulheres, homens e transgêneros que exercem
o trabalho sexual. A NSWP agrega organizações na África;
Ásia e Pacífico; Europa; América Latina; América do Norte e
Caribe, facilitando a representação de profissionais do sexo
em fóruns de políticas internacionais que abordem temas de
saúde e direito humanos relacionados ao trabalho sexual.
407
da população mais vulnerável. Este cenário
desolador não será superado enquanto as
políticas públicas de enfrentamento não
forem baseadas em dados, informações
confiáveis e evidências científicas. Sem
dúvida, o caminho para a superação desta

PUTA LIVRO
crise sanitária está na vacinação em massa
da população. Porém, enquanto a epidemia
perdurar, medidas como o auxílio emergencial
são fundamentais para assegurar o sustento
das famílias.
Desde sua origem, o movimento
organizado de prostitutas no Brasil

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


sempre esteve na vanguarda da luta pela
emancipação, autodeterminação e pelos
direitos das profissionais do sexo. A trajetória
do movimento de prostitutas no país se
confunde com a luta por justiça social, sendo
protagonista na defesa dos direitos humanos
e do Sistema Único de Saúde (SUS) por meio
da política nacional de prevenção ao HIV/
Aids, por exemplo. Além disso, o movimento
de prostitutas demonstra estar no primeiro
plano de linha da pauta de lutas do feminismo
pela democracia, por justiça e contra
repressões (VAZ SILVA, 2021). Em tempos de
pandemia, o caminho trilhado pelo GEMPAC
para seguir com seu ativismo em favor das
trabalhadoras sexuais foi investir naquilo que
o movimento já faz há décadas e com êxito:
a organização do movimento de prostitutas
em rede e o fortalecimento das transas
sociais e institucionais. Essa estratégia tem
obtido resultados significativos por meio de
articulações nas esferas local, nacional e, até
mesmo, transnacional. Isto possibilita maior
visibilidade às demandas das trabalhadoras
sexuais, ao passo que também integra mais
adeptos e potencializa coalizões junto a
outros movimentos sociais (VAZ SILVA, 2021).
408
Referências

BARRETO, Leila Suely Araújo. Prostituição, A História


Recontada: Transas Sociais e Institucionais em Belém.
(Especialização em Educação em Direitos Humanos e

PUTA LIVRO
Diversidade). Instituto de Ciências Jurídicas, UFPA. Belém,
2016.
GLOBAL NETWORK OF SEX WORK PROJECTS (NSWP).
SWIT – Guía útil para la Persona que Ejerce el Trabajo Sexual
del SWIT. NSWP, 2015.

LIBARDONI, M. Fundamentos teóricos e visão estratégica


da advocacy. Revista de Estudos Feministas. V. 8. N. 2.
Florianópolis-SC, 2000.

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA


ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD. Implementación
de programas integrales de VIH/ITS con personas
trabajadoras del sexo: enfoques prácticos basados en
intervenciones colaborativas. OMS, 2015.

VAZ SILVA, Tiago L. Coelho. O significado de prostituição


em disputa e a incidência política do movimento de
prostitutas no Brasil. In: NAUAR, Ana Lídia; VAZ SILVA, Tiago
L. Coelho; QUINTELA, Rosângela da Silva (Orgs). Gêneros,
Corpos e Sexualidades em Contextos Contemporâneos.
Belém: Imprensa Oficial do Estado (IOEPA), 2021.
409
ANTONIO FERREIRA NETO

PROSTITUIÇÃO

PUTA LIVRO
MASCULINA: Itinerários
de um taxiboy durante
a pandemia do covid-19
em Recife e Caruaru
Introdução

Enxergar-se e narrar-se como


homossexual é um importante recurso de
cumplicidade social para com a população
LGBTI+, justamente porque vivemos sob
uma atual política presidencial correligionária
de dogmas religiosos fundamentalistas e
militaristas. Por pertencer a comunidade
LGBTI+1 sinto na própria vivência os intensos
ataques físicos e psicológicos executados
por familiares e conhecidos, bem como pelo
Estado.
Afirmo com ênfase esta questão do
contexto familiar, pois desde as memórias
mais distantes das minhas relações com pais,
irmãs, primos e tios, é possível lembrar que
a homofobia, a coerção, o autoritarismo,
a doutrinação e a penitência religiosa
neopentecostal estiveram presentes. Tais
dinâmicas tentaram reprimir o meu exercício
de liberdade assim como a construção da
minha identidade como homem gay.
Minha própria história esteve sublimada
por ações homofóbicas e masculinistas

1
Irei adotar a sigla LGBTI+ (Lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, pessoas trans e intersexuais) seguindo o modelo
dos boletins da Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA), uma importante associação ativista
pelos direitos de LGBTI+, tendo como foco a urgência de
estratégias de proteção e apoio a pessoas trans e travestis.
410
aplicadas pelos meus familiares, seguidores
dos fundamentos neopentecostais e que
afirmam que minha homossexualidade é uma
maldição herdada dos meus antepassados –
especificamente de um tio declaradamente

PUTA LIVRO
gay que faleceu nos anos 90.
Evidencio ao leitor e leitora que o
neopentecostalismo é uma sectarização
e radicalização do movimento evangélico
cristão protestante. Com preceitos mais
autoritários e coercitivos direcionados
a determinados grupos, esse sistema
doutrinário religioso também é chamado

ANTONIO FERREIRA NETO


de Terceira Onda do Pentecostalismo. Uma
de suas significativas marcas é a crença na
existência de uma batalha espiritual que está
em curso e também na fé como única maneira
de ascensão social por meio da prosperidade
financeira (MARIANO, 2014).
Assim sabemos que a ausência de
companheirismo, empatia, solidariedade e
respeito familiar são feridas traumáticas que
muito de nós LGBTI+ carregamos ao longo
da nossa vida. Tais lesões psicológicas e
emocionais podem nos conduzir a infinitas
instabilidades emocionais e depressões, assim
como nos levar a ter tendências suicidas e
complexos de inferioridade com o corpo.
Nesse contexto, é importante elucidar
que, aliada a um governo federal2 que
declaradamente discursa com ideias que
ferem os direitos humanos, a bancada
evangélica, constituída por lideranças de
igrejas pentecostais, neopentecostais e
muitas outras vertentes das igrejas cristãs
evangélicas, vem se estabelecendo na
administração pública com bastante poder
político nos últimos anos.

2
Em 2019, a Marcha para Jesus, um dos maiores eventos
públicos que reúne lideranças e adeptos de várias
denominações e vertentes evangélicas, contou com a
presença do presidente Bolsonaro, numa demonstração
de apoio e unidade junto as pautas estabelecidas por esse
grupo.
411
Agindo diretamente como potência
influenciadora e transformadora da
sociedade, a política bolsonarista e
neopentecostal propaga-se nacionalmente
difundindo e estimulando ações doutrinárias,
repressivas e violentas aos grupos LGBTI+,

PUTA LIVRO
feministas, indígenas, candomblecistas,
associações comunitárias das favelas,
moradores sem terra e sem teto e também
as/os prostitutas/prostitutos.
Este panorama governamental fere
diretamente nossa existência enquanto
grupos dissidentes, pois afeta todos os

ANTONIO FERREIRA NETO


vínculos sociais, incitando atrozes relações de
poder que alcançam os níveis interpessoais
de todos/todas nós. Estas ações castradoras
estimulam tensões e conflitos identitários,
além de apoiarem cruéis investidas contra
grupos historicamente oprimidos.

A escrita de si

Afirmar-se e inscrever-se como


LGBTI+ é, diante deste cenário, uma
estratégia de proteção coletiva bem
como de visibilidade da nossa resistência
enquanto grupo violentado pelas ações
políticas da governabilidade bolsonarista e
neopentecostal. Entendo que há inúmeros
caminhos e táticas de afirmações identitárias
e de si diante destas políticas tiranas e
autoritárias, uma dessas estratégias é a
escrita de si (RAGO, 2013). Dessa forma,
as narrativas pessoais são importantes
ferramentas de combate aos poderes
hegemônicos vigentes no contexto brasileiro.
Ao falar de si, enquanto integrante de
algum grupo que sofre banimentos sociais,
pronuncia-se também contra um fundamento
social amplo – que degrada, aniquila e
invisibiliza pessoas de lugares, itinerários
e histórias semelhantes. É nesse contexto
que infinitas identificações e conexões
socioculturais são estabelecidas. Assim, meu
caminho processual nesse texto é a narrativa
autobiográfica – a escrita de mim.
Quando falo de mim reflito,

412
consequentemente, sobre muitas outras
narrativas LGBTI+ e, nesse processo
relacional, me ressignifico e me transformo.
Assim procuro um método de reinterpretação

PUTA LIVRO
das minhas individualidades e de empatia
para com as pessoas cis, trans e travestis.
Reconheço as particularidades desse
lugar que ocupo, bem como dessa escrita
pessoal, pois mesmo integrando um grupo
discriminado, entendo os privilégios que
tenho justamente por ser homem, cis e
branco.
Trago tais afirmativas tendo em vista

ANTONIO FERREIRA NETO


o longo e histórico processo de colonização
que nosso país viveu, bem como as relações
violentas que a pós-colonialidade exerce
sobre pessoas negras, indígenas, trans e
travestis. Sabe-se que na construção colonial
o catolicismo foi imposto como formação
primordial das relações sociais, dessa forma
nosso país herda uma série de códigos
culturais que erroneamente hegemoniza
a heterossexualidade, o cisgênero, a
branquitude, o falocratismo e o masculinismo
como signos de saúde, beleza e por fim de
“moralidade”. Sobre tais questões Braga et al
afirma:
Faz-se necessário reconhecer que os sujeitos se
constroem dentro de um contexto sociocultural
marcado por relações de poder, no qual são
determinados os padrões de normalidade de
ser, estar e se relacionar com os outros, a partir
de uma linearidade da matriz heterossexual
(BRAGA et al. 2017, p. 130).

Em todo caso, nós, homens, cis, gays


e brancos não estamos insetos de executar
ou difundir posturas racistas, lesbofóbicas,
misóginas e transfobicas, justamente porque
também estamos inseridos nesse contexto
histórico de hierarquias das identidades.
Estas gradações identitárias todavia se
fundam a partir de problemas sistêmicos
e estruturais construídos também pela
colonialidade.
Perceber-se e marcar-se historicamente
413
é um dos elementos basilares que nos ajuda
nessa busca constante por quebras nos ciclos
de poder. Esse reconhecimento histórico
nos auxilia em uma “desnaturalização”
dessa prática circular que coloca grupos

PUTA LIVRO
oprimidos para copiar as posturas de grupos
opressores.
Assim, apontando essas questões,
evidencio que a escrita de si, a qual me
refiro, tem demarcações, balizas e fronteiras.
No entanto, essas divisórias podem ser
perfuradas por meio de um contexto
relacional feito por cada pessoa que se sente
representada por essa narrativa que expõem

ANTONIO FERREIRA NETO


minhas vivências no universo da prostituição
masculina.
Afinal somos frutos de vários
cruzamentos culturais que nos marcam de
inúmeras formas. Este processo coopera para
construção dos nossos agrupamentos sociais
firmando assim inúmeras identificações
raciais, sexo-afetivas, profissionais, religiosas,
de classe, origem, gênero, fenótipo, idade
etc. Dessa forma por ser uma narrativa que
reflete sobre a relação da sexualidade e do
trabalho, não há objeção de que infinitos
vínculos se formem entre obra e público em
sua ampla multiplicidade.
Nesse sentido, confesso que sou plural,
inconstante e volátil. Sou resultado de
profundos choques culturais, não sou sempre
coerente e não me formo apenas de verdades
absolutas. Logo, esta escrita não difere da
minha própria vivência, ela é um pélago de
inseguranças emocionais transformadas em
uma escrita inquieta, nerval, pulsante e viva –
tudo que vive, comete erros.
Neste texto trago meu relato das
minhas experiências como garoto de
programa em Recife e Caruaru, logo, gostaria
de evidenciar as minhas concepções sobre os
inúmeros vínculos e banimentos sociais aos
quais fui submetido ao longo desses anos de
trabalho sexual, que se iniciou em 2016 em
Buenos Aires, Argentina.
Este arcabouço serve para uma melhor
414
visualização dos alicerces que constituem
meu processo de autoanálise, que são
também as minhas vivências cotidianas.
Começo então registrando que o primeiro
banimento que sofri por minhas escolhas
profissionais e sexuais ocorreram no cerne da

PUTA LIVRO
minha relação familiar.

Itinerários de um taxiboy:

Expulso de casa e sem ter onde morar


tive que me casar com um namorado em
2011, esta relação me trouxe crescimentos
significativos, mas não se sustentou por muito

ANTONIO FERREIRA NETO


tempo. Assim, literalmente, com uma bolsa
nas costas, subi em um ônibus em São Paulo
e fui para Buenos Aires tentar estabelecer
uma vida na Argentina como taxiboy3.
Nesta cidade, iniciei meus trabalhos
utilizando o aplicativo Grindr como meio
de divulgação das minhas habilidades.
Ainda inseguro e temeroso sobre como os
amigos receberiam essa minha nova escolha
trabalhista, mantive tudo sob confidência.
Sabemos que há uma série de situações
cotidianas que incitam constrangimentos e
deméritos sociais sobre o trabalho sexual.
Tais preconceitos fazem com que nós,
trabalhadores e trabalhadoras sexuais,
mantenhamos uma vida trabalhista sigilosa,
oculta e clandestina.
Foi justamente por medo das reações
alheias que eu me fechei em relação ao meu
trabalho na Argentina e sempre que me
perguntavam como seguiam meus planos
neste novo país, eu respondia que trabalhava
com Design Gráfico – e não era mentira, este
era um dos bicos que eu conseguia como
imigrante.
A vivência entre taxiboys na Argentina
me mostrou uma série de trâmites
performáticos nesse contexto. Dessa forma,

3
Gíria portenha para se referir a trabalhador sexual (gogo
boys, prostitutos, camboy etc).
415
minha formação enquanto GP se consolidou
de maneira autônoma e “autodidata” no
bairro de San Telmo, na frente da boate
KM Zero, Jolie e nos encontros marcados
pelo Grindr. Nesse período, pude vivenciar

PUTA LIVRO
algumas interpelações que estão em
constantes renovações na relação entre
taxiboy e cliente.
Ao voltar pro Brasil, depois de um sério
problema causado por complicações de uma
Hepatite, tive que me reinventar, justamente
porque aqui, em meio aos amigos de longas
datas, eu me sentia muito mais inseguro para

ANTONIO FERREIRA NETO


trabalhar como GP – tratava-se do medo do
julgamento que tanto me atormentou por
anos.
O longo e lento processo de aceitação
foi doloroso. Hoje, acho extremamente
curioso quando lembro de um amigo que
comentou sobre mim em pleno carnaval de
Olinda: “Toni, você parece deprimido”. Talvez
estivesse, ou apenas estava me sentindo
reprimido por não me sentir confortável para
falar abertamente sobre minha experiência na
Argentina.
Não tenho problema algum em
declarar minha trajetória e minhas
escolhas profissionais atualmente. Neste
universo fiz amizades, renovei ciclos, me
redescobri e principalmente, me sustentei
economicamente para seguir um mestrado
na área de arte. No entanto, gostaria
de interromper essa narrativa para falar
sobre minha experiência atual, em meio a
pandemia.
Não apenas por extrema necessidade,
mas também por autonomia, eu sigo
trabalhando com sexo (e com inúmeros
“bicos” que surgem aqui e acolá). Atualmente
publicito meus trabalhos nos sites Garotos.
com.br e Malícia.com.br, no qual me
descrevo (Vinicius Tache) da seguinte forma:
“Atendo público fetichista, BDSM e fisting/
fist-fucking – Aberto a explorar outros
fetiches, tudo acordado previamente para
evitar excessos. Atendo Recife e Caruaru. Ao
416
ligar informe que me viu aqui no Site Garotos.
com.br ou se preferir clique agora no botão
do WhatsApp e fale diretamente comigo. Eu
estou esperando pelo seu contato.”
Estas plataformas me proporcionam

PUTA LIVRO
maiores possibilidades de trabalhos, mais
renda e principalmente, mais experiências
com a prostituição, que vão além da
relação sexual. Por exemplo, sempre que
divulgo meu perfil em redes sociais como
Instagram ou Whatsapp tenho conversas com
inúmeros homens sobre sexo, sexualidade,
masculinidade, pornoerotismo, direitos de
trabalhadores sexuais e LGBTfobia.

ANTONIO FERREIRA NETO


Assim, nesse contexto de pandemia
e tentando minimizar os riscos, atendo
alguns clientes específicos, em sua grande
maioria, via webcam. É importante destacar
que utilizo também um site espanhol para
divulgar meu trabalho pornoerótico amador,
assim a maioria dos clientes que me solicitam
encontros sexuais virtuais, são homens da
Espanha. Também ingresso em sites como
CAM4 onde “descolo” 100 ou 80 reais por
trinta minutos de sexo virtual.
O CAM4, no entanto, me parece um site
muito instável, pois há dias que rapidamente
você “captura” um cliente e consegue
monetizar seu conteúdo pornoerótico, mas

417
também há semanas que você perdura horas
e não consegue rentabilizar absolutamente
nada. Ou seja, é como se você navegasse em
um mar de correntes imprecisas.

PUTA LIVRO
Por meio de diversos trâmites nesse
cenário, percebo que ainda opera uma
busca (culto?) por rapazes que reproduzem
masculinidades hegemônicas, no qual o
corpo lido como afeminado é subalternizado
numa escala hierárquica de poder e
aceitação (CONNEL, 2013). Esse modelo de
masculinidade se reproduz constantemente
nos inúmeros clientes que me acionam e de

ANTONIO FERREIRA NETO


antemão já afirmam: Quero um macho!
Assim, entendo meu lugar privilegiado
quando posso simplesmente dizer “Não”
para um cliente que julgo ser nefasto ou
inconveniente. Todavia, conheço outros
garotos de programa que não têm o mesmo
privilégio e que recorrem a reproduções de
estereótipos de masculinidades como forma
de ampliar suas clientelas (não julgo tais
atitudes, entendo que há situações muito
mais complexas nesse universo).
Nesse meu território virtual trabalhista
há alguns marcadores importantes que
necessito evidenciar: os clientes, em sua
grande maioria, buscam garotos musculosos
e dotados. Esta problemática delimitação
opera, desde a demanda do cliente,
“peneirando” corpos e performatividades,
justamente por categorizar modelos de
hegemonia e subalternidade em relação aos
corpos masculinos. Dessa forma, sempre que
vejo alguém criticando: “Os GP são tudo
macho UOH”, eu pergunto: “Se são, são
porque querem ou porque há uma demanda
do cliente?”
Afirmo veementemente que esta
performance de masculinidade viril muitas
vezes é apenas um fingimento para aumentar
a possibilidade de clientes, pois muitos dos
GP que conheço e com os quais convivo e
me relaciono, agem de forma extremamente
diferente quando estão com os amigos,
418
namorados e companheiros. Vivo junto de
rapazes que, para suprir as fantasias de
seus clientes, performam as masculinidades
solicitadas por seus fregueses.
Para não capotar no estigma petulante

PUTA LIVRO
sobre este trâmite, provoco o leitor ou leitora
a pensar: No mundo ocidental/ocidentalizado
e capitalista existem profissões que não
impõem modelos de condutas em seus
ambientes de trabalho? Esses arquétipos
comportamentais divergem das condutas
sociais que temos afora deste ambiente de
trabalho? O modo como nos comportamos

ANTONIO FERREIRA NETO


quando estamos com nossos amigos é o
mesmo em nossos núcleos profissionais?
Quero com isso mostrar que no
mundo capitalista ocidental/ocidentalizado,
todos nós seguimos, sob algum aspecto,
comportamentos, ações, posições, roupas
e até falas específicas nos nossos lugares
de trabalho. Dessa forma, trabalhadores
sexuais atuam na mesma lógica, dispondo
performances exatamente sob a demanda
solicitada pelo cliente.
Se a grande maioria dos gays anela
por homens masculinizados, obviamente o
GP vai performar aquilo que o seu cliente
fantasia. Provoco então o leitor ou leitora a
se questionar: o problema do masculinismo,
virilidade compulsória, falocentrismo e
etarismo no mundo dos michês é realmente
culpa do GP, ou há questões estruturais muito
mais profundas a se discutir nesse contexto?
É realmente o “cancelamento” de um
indivíduo que trará significativas mudanças
nesse cenário social?
Veja! Não quero apontar os oito ou
oitenta desse processo, pois se trata de
relações sociais e culturais, dessa forma há
um verdadeiro universo de trâmites possíveis
nessas negociações que se forjam entre
cliente e GP/camboy. Eu mesmo busco
remodelar, ainda que minimamente, essa
conjuntura, entendendo que da mesma forma
que há GP e clientes falocêntricos, há os que
não o são.
419
Sob meu processo enquanto GP na
cidade de Caruaru e Recife, observo que a
maior parte dos meus clientes são homens
que costumo chamar de “Maduros”. Defino
“Maduros” os homens de idade acima de

PUTA LIVRO
50 anos e que buscam meus programas ou
encontros via webcam para satisfazer fetiches
BDSM, ou porque cultuam o corpo jovem.
Percebo que a busca pela beleza jovem
se funda, nesse contexto, quase como um
cânon.
Nesse sentido por serem homens mais
velhos, por terem condições econômicas

ANTONIO FERREIRA NETO


abastadas e por terem consciência dos riscos
que correm devido a situação pandêmica
atual, muitos aceitam encontros virtuais pela
webcam. Nesses encontros me exibo fazendo
sexo com algum outro companheiro, me
masturbando ou me penetrando com objetos
fálicos. Essa situação me ajuda a conseguir
encaminhar minha vida e construir minha
carreira acadêmica que tanto desejo.
Assim, mesmo com as propostas de
casamento e idas para Europa feitas por
muitos clientes, prefiro minha autonomia e,
portanto, estou satisfeito com essa minha
escolha trabalhista. Obviamente que não
podemos resumir todas as relações que
envolvem a prostituição por meio de lógicas
quase matemáticas, pois as situações,
condições e acordos firmados nesse contexto
são múltiplos, infinitos.
A minha condição diz respeito apenas
à minha trajetória, mas pode também ser
uma espécie de vista telescópica – a partir
do micro para o macro. Nesse sentido, a
pandemia trouxe uma outra realidade onde
busco construir outras possibilidades de
trabalhos sexuais que minimizem os riscos
que corro e obviamente os riscos dos meus
clientes (afinal prezo pelas suas vidas).
Creio que não permanecerei nesse meio
por muito tempo, pois entendo esse trabalho
como uma passagem para algo que sonho –
ser professor. No entanto, não subalternizo
esse processo, ele é importante para minha
420
manutenção econômica e também minha
maturação enquanto ser humano. Quero tê-lo
por perto sempre, se não for atuando como
GP, que seja trabalhando em prol de melhores
condições para profissionais do sexo.

PUTA LIVRO
Dessa forma entendo que há a
indispensabilidade de arruinar/desmoronar
os estigmas construídos socialmente sobre
a prostituição, pois em um mundo onde o
puritanismo e heterogamia determinam os
vínculos de hegemonia e subalternidade,
muitas vezes somos nós, garotos de
programa, que somos colocados em

ANTONIO FERREIRA NETO


situações de constrangimento, demérito
e desrespeito. Os ataques são constantes
e na maioria das vezes advêm de grupos
conservadores e radicais.
Há operantes práticas culturais que
estereotipam os prostitutos como pessoas
violentas, perversas, ardilosas, malandras
e covardes. Historicamente se edificaram
noções injustas (e porque não estúpidas?) de
que os prostitutos são indivíduos desprovidos
de afeto, que não respeitam o cliente,
sem empatia e que ligados ao bandidismo
e ao vigarismo, têm caráter trapaceiro e
criminoso. Assim se constroem estigmas que
caricaturam os GP como pessoas de quem se
deve manter distância e frieza.
No entanto, mesmo com toda essa
caricatura edificada sobre os GP, não
é incomum encontrar casos em que os
contratantes dos nossos serviços são os
burladores dos acordos iniciais no negócio da
prostituição. Estas defraudações geralmente
terminam em conflitos, levando a casos
policiais, nos quais, muitas vezes sem uma
averiguação detalhada, de antemão se
culpabiliza o GP.
Esses estigmas não se revelam apenas
por meio de ações policiais truculentas, mas
mostram-se também no extremo incômodo
de amigos próximos quando eu falo que
sou GP. Há uma extrema moléstia quando
declaro nas redes sociais que, nesse período
da pandemia, resolvi trabalhar como camboy,
421
este incomodo se torna ainda maior quando
falo que recebi proposta de fazer pornôs (há
convites aparecendo, graças a tudo que é
mais sagrado, ou profano).
Percebo um enfadonho discurso

PUTA LIVRO
paternalista que sempre conclui que o fato de
ser GP ou camboy necessariamente significa
que ou estou passando por um período de
instabilidade emocional e por isso estou
querendo “aparecer”, ou estou vivendo sob
regimes exploratórios. Acho cômico, porque
quando eu falava que era design de vídeo,
ninguém questionava sobre minha profissão,

ANTONIO FERREIRA NETO


mas ao falar que escolhi autonomamente
ser GP e camboy, há sempre um espírito
salvacionista ecoando de algum canto.
Não preciso de resgate pois não vivo
sob uma situação de exploração. Percebo
que há uma grande confusão sobre o que
é prostituição e o que é exploração do
trabalho. A exploração do trabalho deve ser
combatida em todos os espaços, sejam nos
canaviais, no serviço doméstico, nos garimpos
ou dentro das fábricas de costuras. Em vista
disto, não é correto resumir a prostituição
apenas às situações de exploração.
Prostituição, assim como agricultura,
extrativismo, costura, serviço doméstico
é uma prática, ou um conjunto de práticas
trabalhistas. Não é porque há agricultores
sendo explorados nos latifúndios brasileiros
que vamos declarar a abolição da agricultura,
entendemos que a agricultura é uma forma
de trabalho ampla e que não se resume
apenas às situações de extorsão de direitos
– essa premissa serve exatamente para o
trabalho sexual.

Considerações finais

Deste modo, não vivo situações de


exploração e busco por meio do meu
itinerário reconhecer possibilidades
de crescimento enquanto ser humano,
entendendo também esse caminho, essa
passagem, como um importante percurso
422
em direção ao meu objetivo: ser professor.
A situação pandêmica traz um novo cenário
para todos nós, dessa forma, aproveitando
meus conhecimentos de edição de vídeo,
pude transformar essa minha habilidade em

PUTA LIVRO
uma ferramenta para conquistar mais clientes
via webcam.
Assim, vou construindo novas
possibilidades de vivências no universo
da prostituição masculina, reconhecendo
meus privilégios e também lutando para a
construção de um lugar menos estigmatizado
para os garotos de programa, camboys,

ANTONIO FERREIRA NETO


atores pornô, gogo boys etc. Busco com
isso tanto me remodelar ideologicamente
como estabelecer pontes e conexões sociais
que julgo importantes para construção das
relações que me circulam. Este processo
pode, mesmo que minimamente, cooperar
na construção de uma sociedade com mais
empatia e respeito aos garotos e garotas de
programa.

Referências

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Cultura Económica, 2007.

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RIBEIRO, Djamila. Lugar de Fala: Feminismos plurais. Ed


Polém, São Paulo, 2019.
WALEFF DIAS

424
UM MÊS OU MAIS

PUTA LIVRO
DE SAUDADE

Imagem 1. Uma semana.

Imagem 2. Três semanas.

Imagem 3. Quatro semanas ou mais.


Fonte das imagens: Acervo pessoal.
425
Ano:
2020

Técnica:
Fotografia, registro do sêmen em pote coletor

PUTA LIVRO
Descrição do trabalho:
“Estamos passando por uma pandemia e as
medidas preventivas para combatê-la são:
evitar tocar boca, nariz ou olhos. Se tossir ou
espirrar, usar a região próxima ao cotovelo, e
a principal, evitar espaços públicos e não sair
de casa, se possível”, disse a moça do jornal,
o secretário de saúde, alguma postagem que

WALEFF DIAS
li por uma rede social, não lembro.

Se isolar. Ficar em latência e evitar o contato


com outro corpo. Porém, o corpo tem
desejos, não para de produzir e os dias do
isolamento potencializam a saudade do
contato. A série um mês ou mais de saudade
conta com três fotografias e surge a partir da
falta do contato físico, no qual, a partir de
conversas eróticas feitas por videochamadas
com outras pessoas, armazeno meu sêmen
num pote coletor enquanto não posso
presenteá les/as/os presencialmente.
426
RENATO GONÇALVES
FERREIRA FILHO

AS MEDIAÇÕES

PUTA LIVRO
E AS DIMENSÕES
DO TRABALHO
SEXUAL DIGITAL
HOJE; Perspectivas
comunicacionais
No desenrolar de uma pandemia que
impôs, entre outras ações, medidas de
isolamento social como estratégias para
o manejo da transmissão da COVID-19,
deparamo-nos com um processo de
virtualização da vida cotidiana. Adaptado às
plataformas e às práticas digitais, o trabalho,
agora remoto, tornou-se uma realidade para
diversas profissões não-essenciais. Como
pensarmos o trabalho sexual em um contexto
de virtualidade? Se é verdade que tais
possibilidades laborais não são inéditas, pelo
menos, no atual cenário, tornaram-se uma
frente importante para aquelas e aqueles que
puderam e buscaram reduzir sua exposição
ao vírus. Certamente, muitos trabalhadores
e muitas trabalhadoras sexuais não
interromperam seus trabalhos presenciais,
não apenas pelo medo do desemprego e da
falta de renda, mas sobretudo pelos escassos
auxílio e apoio governamental. Porém, as
realidades digitais do trabalho sexual, ainda
que tenham suas limitações em relação ao
seu acesso, cresceu vertiginosamente no
contexto pandêmico.
Na última década, pudemos observar
que, no que diz respeito ao trabalho
sexual, a internet deixou de ser apenas um
veículo para a divulgação e a articulação
de trabalhadores e trabalhadoras sexuais,

427
aspecto já destacado por Monique Prada, e
passou a ser, sobretudo, um dos possíveis
espaços para o exercício laboral. Em
grande medida, o avanço das plataformas

PUTA LIVRO
digitais, cada vez mais plurais, tem sido
fundamental para essa miríade de opções.
Hoje, aquele que exerce o trabalho sexual
tem à disposição sites de transmissão ao
vivo de vídeo mediante gorjetas (Cam4 e
LiveJasmin, por exemplo); sites de produção
e comercialização via assinatura de conteúdos
visuais e audiovisuais (como o OnlyFans);

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


além das redes sociais (eróticas ou não)
como espaços de mediação entre clientes
e profissionais (muitas vezes, havendo-se
relações de troca dentro da própria rede
social). Na esteira das evoluções tecnológicas
que impactaram o trabalho sexual, também
podemos destacar as novas formas de
transação financeira que facilitaram a
remuneração de trabalhadores sexuais,
como o Pix e o PayPal, ferramentas digitais
destinadas à transferência de valores.
Diante de um novo e complexo cenário
que se desenha, neste ensaio, refletiremos
sobre as mediações e as dimensões
do trabalho sexual no contexto digital.
Por mediação, usamos a sua definição
comunicacional retomada por Lucia Santaella:
“qualquer processo no qual dois elementos
são colocados em articulação por meio ou
através da intervenção de um terceiro”
(2020, p. 27). Baseamo-nos também na
perspectiva das mediações comunicacionais
da cultura (MARTÍN-BARBERO, 2001), a
partir da qual enxergamos o emaranhado de
fluxos comunicacionais entre agentes que
engendram estruturas, práticas e dinâmicas
culturais. Elencando polos aparentemente
opostos, percorreremos quatro principais
pontos, buscando os espaços intermediários
do mercado digital do sexo. Trata-se de
uma humilde contribuição às discussões
atuais sobre trabalho sexual, tendo em vista
os atravessamentos e os desdobramentos
da tecnologia digital, tópico de interesse à

428
comunicação na contemporaneidade.

Entre o real e o virtual

PUTA LIVRO
Uma das primeiras mediações a serem
discutidas é aquela construída ao redor da
dicotomia entre o real e o virtual. Desde os
primeiros avanços das tecnologias digitais,
estabeleceu-se a ideia de que a virtualidade
estaria do lado oposto à realidade. Por
vezes, desenvolveu-se o argumento de que
a primeira emularia a segunda, simulando e

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


até mesmo falseando a vida real. Ou ainda
de que se tratava de mundos apartados, sem
qualquer ligação ou reverberação de um em
outro. Essa percepção, por muito tempo, foi
sustentada pelos jogos e pelas dinâmicas
que recriavam, no online, o mundo off-line.
Porém, com o tempo, pudemos notar que o
real e o virtual estão integrados de tal forma
que, reciprocamente, os acontecimentos de
um afetam o outro, o que é observável nas
mais diversas frentes da vida humana (cultura,
sociedade, política, economia etc.)1.
No contexto da sexualidade multimídia,
conceito cunhado pelo filósofo Paul B.
Preciado (2020) para salientar as novas
formas de produção erótica mediadas por
materiais visuais e audiovisuais, podemos
observar como a tecnologia e as mídias estão
integradas à materialidade do corpo quando
se estabelece um circuito pulsional que
caminha do olhar e dos ouvidos (no contexto
audiovisual) ao estímulo genital, por exemplo.
Uma mão no celular, outra a masturbar
a genitália. Os olhos e os ouvidos, sob

1
Se tomarmos apenas as eleições presidenciais de 2018
como exemplo, nas quais fake news propagadas por robôs
em grupos de WhatsApp foram salutares para a eleição de
Jair Bolsonaro, podemos ver que não há separação entre a
vida mediada por telas e aquela vivida na experiência real.
Ver MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio. Notas de
uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
429
certa medida, são zonas erógenas a serem
alimentadas pelo erotismo mediado pelas
mídias. Do outro lado da tela, o trabalhador
sexual é aquele que conduz a experiência,
fazendo uso de signos verbais, visuais e

PUTA LIVRO
sonoros, orquestrando o desejo daquele ou
daquela que o procura, finalidade máxima
da troca comercial sexual. A mediação
multimídia não exclui a experiência erótica,
sentida no corpo e ecoada nos meandros da
subjetividade.
Quando pensamos nos trabalhadores e
nas trabalhadoras sexuais, dizer que aquele

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


trabalho realizado pelo meio virtual viria a
ser menor ou menos importante do que o
“trabalho real” seria cair no mesmo equívoco
daqueles que enxergam separadamente
ambas as esferas. Sem dúvidas, há diferenças
salutares entre elas. Contudo, é preciso
reconhecer que a virtualidade também
traz questões importantes que devem ser
discutidas para uma melhor articulação,
mobilização e emancipação do trabalho
sexual. Uma delas, que discutiremos
no último eixo, diz respeito ao controle
inerente às realidades algorítmicas. Outras,
como a violência e a vulnerabilidade, tão
relatadas no dia a dia da prostituição de
rua, também estão presentes, mas assumem
outras dimensões e acarretam outros
desdobramentos, como, por exemplo, a
vulnerabilidade do uso indevido de imagem.
O processo de virtualização da
prostituição aparentemente parece ter
distendido as relações sociais, temporais e
espaciais. A percepção de uma sociedade
em rede desenvolvida pelo sociólogo Manuel
Castells (2000), muitas vezes, assimilada
sem qualquer aprofundamento, traz a falsa
ideia de democratização, horizontalidade
e igualdade, como se todos tivessem a
mesma voz e vez na internet. Porém, o
uso da tecnologia em si já se mostra uma
grande peneira social: quem, no Brasil,
tem acesso a uma boa rede de internet
e equipamentos adequados para uma
transmissão via streaming, por exemplo?

430
Quem tem um espaço em casa que possa ser
destinado exclusivamente para esse trabalho?
Quem pode investir em equipamentos de
imagem, som e luz? As desigualdades das

PUTA LIVRO
muitas realidades brasileiras não são de
forma alguma diluídas na virtualidade; pelo
contrário, elas tornam-se ainda mais visíveis.

Entre a prostituição e a pornografia

No contexto laboral do trabalho sexual


digital, é saliente a supremacia da imagem,

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


estática ou em movimento, nas trocas
comerciais. Certamente, outros signos a
ela estão acoplados, como os verbais, que
direcionam a experiência erótica em títulos,
usernames e conversas de sexting. Todavia,
grande parte do trabalho sexual ocorre
quando o trabalhador ou a trabalhadora
sexual se coloca, sincronicamente ou não,
diante de uma câmera. Sob o olhar do cliente,
metaforizado pela lente das webcams e
dos smartphones, o corpo se posiciona em
uma experiência exibicionista, estimulando
aquele que o assiste do outro lado da tela.
Neste ponto, as relações entre prostituição
e pornografia se fundem e confundem. A
produção imagética do trabalhador sexual
se assemelha à produção pornográfica,
justamente por visar a excitação pela via
visual.
As relações entre prostituição e
pornografia não são novas e se revelam na
etimologia do segundo termo. Como registra
o historiador H. Montgomery Hyde (1973,
p. 15), “a palavra vem do grego
pornographos, que significa literalmente
‘escrever sobre as prostitutas’”. Localizados
nas regiões centrais das cidades gregas
e romanas, os registros pornográficos
indicavam as zonas destinadas à prostituição.
Uma solução comunicacional para a
delimitação de espaços e a promoção
do comércio sexual (teria sido essa uma
das primeiras formas de comunicação
431
estritamente publicitária na história
ocidental?).
Usualmente ligada à degradação da
experiência erótica, devido ao seu suposto
viés comercial e popularesco, ao contrário

PUTA LIVRO
da alta cultura erótica (essa, sublime)2, a
pornografia, ao longo dos séculos, foi se
transformando de acordo com o suporte
material que a sustentava. Das gravuras
em livros proibidos e retidos pela censura
nos séculos XVI e XVII às revistas Playboy,
massivamente comercializadas em bancas
de jornal, a pornografia manteve o fascínio

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


e o desprezo que sempre a rondaram,
mobilizando discursos conservadores e
libertários, adentrando o foro íntimo na
mesma medida em que tem sido rechaçada
publicamente. Alguns desses aspectos de
sua recepção diferem daquela relacionada à
prostituição?
Na prática, a pornografia e a
prostituição são duas áreas que se irmanam.
Muitos homens e muitas mulheres que
trabalham sexualmente acabam encarando a
pornografia como um complemento de renda
esporádico – como María Elvira Díaz-Benítez
(2010, p. 172) comenta, o elenco da indústria
pornô é uma das áreas da cadeia produtiva
com maior rotatividade. Se uma ocupação
tem a suposta garantia do anonimato, pelo
próprio contexto oculto ou periférico do
trabalho, a outra acarreta os desdobramentos
da exposição e da comercialização da
imagem. O trabalho, no caso da pornografia,
não acaba quando a cena sexual termina.
Seus lugares de trabalho usualmente são
distintos: o ambiente doméstico individual
ou compartilhado; e o set de filmagem,
equipado com câmeras, luzes e profissionais
do audiovisual. Isso tudo em um contexto
industrial clássico que perdurou até o início

2
Os argumentos que aqui tomo emprestados, para a eles
me contrapor, estão em BRANCO, Lucia Castello.
O que é erotismo? São Paulo: Brasiliense, 1987.
432
da década de 2010. Atualmente, com a
proliferação de plataformas digitais de
produção, circulação e consumo de conteúdo
pornográfico, a grande indústria do pornô
foi se fragmentando, despontando-se novas

PUTA LIVRO
iniciativas independentes, tanto de pequenas
produtoras quanto de profissionais solo. O
set de filmagem adentra o espaço doméstico
e o espaço doméstico torna-se público,
gravado e compartilhado. A sobreposição de
espaços torna os limites entre as áreas cada
vez mais diluídos.
Quando os profissionais do sexo

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


abrem suas câmeras ou enviam imagens
pornográficas por ele ou ela produzidas,
como pode haver a garantia de que aquele
material visual ou audiovisual será exclusivo
daquele que paga ou que ele não será
compartilhado com outras pessoas de forma
gratuita? Isso coloca questões importantes
para as práticas e as dinâmicas mercantis do
trabalho sexual no digital. Sua alcunha de
“terra de ninguém” não é à toa: a internet
tem se revelado, de fato, um espaço de
extrema vulnerabilidade no que diz respeito
aos direitos autorais e, consequentemente,
ao uso indevido de imagem, ainda que
pouco a pouco o Legislativo e o Judiciário
brasileiros tenham dado passos em direção
à regulamentação das rotinas virtuais. Se
essas esferas são lentas com as já históricas
mobilizações e organização políticas em torno
da prostituição, o que dirá com o trabalho
sexual atualizado pelas novas realidades.

Entre o amadorismo e o profissionalismo

Na esteira da suposta horizontalidade


entre usuários na sociedade em rede, coloca-
se em perspectiva a formação de uma
cultura participativa, em que consumidores
se tornam também produtores (JENKINS,
2014, p. 196). Sob a égide da participação,
o profissionalismo e o amadorismo
tornam-se áreas pouco delimitadas. Quem
institucionaliza o trabalho sexual amador ou
profissional? Um selo de perfil verificado em

433
alguma rede social ou plataforma digital?
Haverá mesmo essa necessidade de se
delimitar os profissionais dos amadores,
ainda mais em uma área em que o percurso
pessoal de se reconhecer trabalhador sexual

PUTA LIVRO
conta tanto quanto ou até mais que o
reconhecimento social?
Por um lado, a nova realidade
participativa, fomentada pelas redes,
permite que novas trabalhadoras e novos
trabalhadores sexuais possam iniciar
suas carreiras de forma aparentemente

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


independente e com maior facilidade.
Pessoas de todas as regiões podem adentrar
espaços destinados ao trabalho sexual digital
sem comprometer suas representações
públicas diante da família e da sociedade,
mantendo a discrição e o anonimato sob
avatares, máscaras e filtros. São muitos
os caminhos para se iniciar a carreira, sem
que haja deslocamentos físicos ou maiores
envolvimentos. Basta conectar- se à internet,
acessar as plataformas disponíveis e começar
a trabalhar, muitas vezes ganhando-se até
mesmo em moedas estrangeiras, devido
à internacionalização dos espaços digitais.
Nisso também reside um caminho mais fácil
para o trabalho esporádico. Pessoas curiosas
que não teriam coragem de enfrentar a
vida das beiras de estrada, das ruas ou dos
bordéis, podem experimentar e vivenciar o
trabalho sexual sem qualquer compromisso.
Alguns e algumas podem usá-lo como
complemento de renda; outras e outros,
como a realização de um desejo.
Por outro lado, com o borramento
das bordas entre o profissionalismo e o
amadorismo, pode haver uma banalização
do trabalho sexual. Já que ele está tão
disponível, muitas vezes, até mesmo de
forma gratuita, como a produção de imagens
amadoras, o sexting ou as transmissões de
vídeo entre usuários, aqueles que pretendem
desempenhar o trabalho sexual de forma
séria podem ser desacreditados por clientes
434
que não querem pagar por esses serviços.
“Se já tenho tudo de graça, por que pagarei
por isso? Isso é um trabalho de verdade?”
Essa mentalidade ainda encontra paralelos
na ideia de que tudo na internet seria ou

PUTA LIVRO
deveria ser de graça. Como observamos
em outras áreas laborais, como a música, o
cinema e a literatura, os usuários costumam
não remunerar os seus usos e consumos,
alegando que as plataformas digitais são
espaços de livre troca.
Esse último ponto é extremamente
sensível. Soma-se a ele a supressão do
distanciamento entre o público e o privado

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


própria ao contexto digital, como identifica
o filósofo Byung-Chul Han (2018, p. 13). As
situações de desrespeito, já tão rotineiras ao
trabalho sexual clássico, tornam-se ainda mais
comuns em espaços supostamente anônimos.
As estratégias de proteção e precaução nas
mídias digitais devem ser pensadas como
rotinas inerentes ao exercício laboral do
sexo na busca de uma profissionalização,
para evitar que seus profissionais não
estejam expostos a golpes e outros crimes
cibernéticos.
No campo da autoria como um espaço
entre o profissionalismo e o amadorismo (o
não-seguimento de roteiros ou regras pré-
estabelecidas por uma profissão permite
inovações), os usos de espaços que não
são destinados à prostituição acabam se
tornando uma forma de possibilidade criativa
para o trabalho sexual. Como já observou o
antropólogo Victor Hugo de Souza Barreto
(2019), o uso de aplicativos como o Grindr
(voltado ao homoerotismo masculino) tem
se mostrado um complemento aos espaços
tradicionais de prostituição, como as saunas.
Tais plataformas, institucionalmente voltadas
exclusivamente à conexão entre usuários sem
qualquer troca financeira, têm combatido
tais práticas, bloqueando profissionais do
sexo e estimulando a denúncia de perfis
descobertos por seus clientes. As empresas,
assim, querem assumir todo o monopólio
435
das transações comerciais (com a venda
de espaços publicitários e planos especiais
dentro do aplicativo), limpando de seus
ambientes digitais qualquer usuário que
queira fazer um uso profissional de suas

PUTA LIVRO
dinâmicas. Falamos aqui também de outras
redes sociais voltadas ao encontro, como o
Tinder, o Happn e o Hornet.

Entre a autonomia e o controle

Intimamente ligadas às atitudes de


determinadas plataformas diante dos
profissionais do sexo, abordado acima, estão

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


as dimensões estruturais do contexto digital
que, ao mesmo tempo em que permitem
uma certa autonomia do trabalhador sexual,
também o controlam e limitam sua atuação.
Na genealogia da formação das redes
digitais está o controle, como o sociólogo
Benjamin Loveluck (2019) explicita ao
remontar a história da internet (que foi criada
em um contexto militar, vale ressaltar), e não
a emancipação de seus usuários, percepção
alimentada pelo discurso oficial e publicitário
das redes sociais. As interfaces tão amigáveis
à navegação tamponam as estruturas
algorítmicas e dataficadas, engrenagens que
armazenam dados de usuários e manejam
dinâmicas de uso.
É preciso estarmos atentos às
transformações que o trabalho digital,
dentro do contexto do chamado capitalismo
de plataforma, tem promovido na práxis
laboral. A “uberização” do trabalho, que
se observa em diversas frentes, já chegou
ao trabalho sexual? Quando pensamos
nos pontos principais elencados pelo
comunicólogo Rafael Grohmann (2021)
a respeito desta nova realidade, como a
gamificação, a avaliação dos usuários e a
dimensão algorítmica, provavelmente tornar-
se-ão regras as práticas de que o trabalhador
sexual passe a ser avaliado por seu serviço,
tenha metas institucionais a atingir e apareça
em rankings de acessos e satisfação do
436
cliente, como já ocorre com outras ocupações
atravessadas pelo digital.
Em certa medida, podemos pensar
que os algoritmos e os conglomerados
de empresas de tecnologia são o novo

PUTA LIVRO
cafetão e a nova cafetina da prostituição.
Propiciam a estrutura necessária para a
execução do trabalho sexual virtual, mas, em
contrapartida, cobram um alto custo, como
as taxas abusivas por transação, ou coletam
dados posteriormente comercializados a
terceiros, tarefa que tem a contribuição do
trabalhador ou da trabalhadora e pela qual

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO


eles não serão remunerados. Trabalhe o
quanto você puder e quiser, mas (grande)
parte dos seus rendimentos será nosso. O
mais perverso, nessa relação de trabalho,
possivelmente seja o mascaramento dessas
engrenagens por trás das imagens de
autonomia e liberdade sobre as quais tais
interfaces tecnológicas se apoiam. Como
observa o sociólogo Callum Cant (2019),
o espaço digital tornou-se um lugar de
materialização das lutas de classe. Uma
viável saída talvez seja a cooperativização
do trabalho sexual digital, com a criação
de plataformas autônomas e auto gestadas
pelos trabalhadores sexuais.
Longe de esgotarmos o assunto e no
ensejo de estimularmos mais discussões
plurais sobre a tópica, destacamos que o
futuro do trabalho sexual digital deverá
buscar, antes de tudo, a emancipação, seja
através da instrumentalização comunicacional
(profissionais dominando as ferramentas e as
tecnologias que querem a eles dominar), seja
pelo uso consciente dos meios.
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ELISIANE PASINI E FERNANDA
PRISCILA ALVES DA SILVA

O AFETO QUE

PUTA LIVRO
FAZ POLÍTICA:
trabalhadoras sexuais
unidas resistindo à
Covid-19
O contexto que o mundo todo enfrenta
desde o início de 2020 com a explosão
pandêmica da Covid-19 tem nos obrigado
a nos reinventar e nos coloca diante de
emoções, situações e ações diferentes e
impensáveis. Hoje precisamos viver outras
formas de socialização e de sociabilidade,
com o distanciamento e o isolamento social
obrigatório e o contato físico proibido
estabeleceu-se uma nova maneira de gerir
as relações e o cotidiano, incluindo o uso
das máscaras, a higienização das mãos e as
testagens. Ao mesmo tempo, essas mudanças
para a proteção de infecção do vírus também
obrigaram que as pessoas encontrassem
novas ferramentas para a realização do
trabalho e se adaptassem a elas. De fato,
estas situações nos reposicionam diante
das lutas e de enfrentamentos econômicos,
políticos e sociais, principalmente, quando se
trata de sujeitos que historicamente têm sido
deixados à margem da garantia de direitos.
Neste campo encontramos as trabalhadoras
sexuais (TS) e seus contextos desafiantes que
atravessam a vida, o trabalho e suas lutas
políticas.
As mobilizações coletivas dos grupos
de TS estão inseridas em um amplo processo
de politização das questões relacionadas ao
corpo, gênero, sexualidade, trabalho, saúde
e têm, desde o período de redemocratização
no Brasil por exemplo, pautado, a partir da

439
organização política destes coletivos, um
debate permanente acerca da dissociação
do estigma de puta1 (PHETERSON, 1996;
LEITE, 2009) e valorização da identidade

PUTA LIVRO
das TS. Neste processo, considerando
o cenário brasileiro, diversos grupos,
associações e coletivos têm se organizado
em diferentes cidades e estados pautando e
reivindicando importantes temas e levando
as reivindicações e as vozes das TS para
a sociedade. Atualmente, existem cerca
de trinta organizações de TS e três redes

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


nacionais que as representam: a Rede
Brasileira de Prostitutas (RBP) fundada em
1987, a Central Única de Trabalhadoras/
es Sexuais (CUTS) fundada em 2015 e a
Articulação Nacional de Profissionais do Sexo
(Anprosex) fundada em 20162.
Neste artigo pretendemos
problematizar e trazer para o campo
da visibilidade algumas das lutas e dos
enfrentamentos das TS cisgênero em
tempos de Covid-19, a relação entre o
trabalho sexual e a pandemia, seus desafios
e as possibilidades tecidas no bojo e nas
articulações no interior do movimento,
bem como a maneira pela qual as TS se
reinventaram politicamente nesse tempo de
apagamento de cidadania e agravamento
das desigualdades sociais. Neste cenário, a

1
O conceito “puta” é importante para o legado teórico-
político de Gabriela Leite, que o ressignifica, potencializando
suas características de subversão e de transgressão. Já,
para Gail Pheterson, o chamado “estigma de Puta” é uma
categoria que expressa um marcador de “desvalor”, que
tem sido utilizado para se referir às TS e outras mulheres.
E assim para esta autora o movimento de trabalhadoras
sexuais vem desconstruir a negatividade deste conceito. A
organização do movimento de Putas emerge na perspectiva
de transgredir tais concepções, ressignificar o conceito e
fazer irromper modos outros de fazer política.
2
Ver mais detalhes na postagem do Coletivo Puta da Vida:
https://www.google.com/maps/d/u/1/viewer?mid=1kVpkyK
WCMcOm0frKwa5X5ad2M5ITRcQB&ll=13.50063298326286
3%2C-54.390349873632985&z=4 .
440
política de Estado não tem considerado o
campo da garantida de direitos, antes, tem
invisibilizado cada vez mais os corpos na
prostituição. Muitas TS não tiveram acesso ao
auxílio emergencial3 concedido pelo governo

PUTA LIVRO
no período da pandemia. Assim, estas redes
têm se inventado e reinventado com o
objetivo de subsidiar e fortalecer suas vidas,
em distintos contextos, em suas necessidades
de vivência e sobrevivência.
Recorremos neste artigo, em termos
metodológicos, à análise de notícias,
artigos, lives e discursos de TS em eventos

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


e/ou entrevistas a jornais, revistas e redes
sociais acerca da relação trabalho sexual
e pandemia. Estes relatos e narrativas nos
apontam a realidade e o contexto, assim
como evidenciam as “leituras de mundo”
(FREIRE, 2011) construídas por estas ativistas
e “sujeitas políticas” (BARRETO, 2015). Os
relatos nos apontam para as ausências das
políticas de Estado e o fortalecimento do
protagonismo, solidariedade, engajamento e
participação política destas sujeitas enquanto
movimento de luta das TS.

“Como a gente diz para ficar a um


metro de distância do cliente?”:
TS na pandemia

Consideramos o trabalho sexual um


trabalho4 exercido por pessoas adultas,
autônomas e que escolheram realizá–lo.
Isso significa que reconhecemos os direitos

3
Segundo o Decreto n.10316/2020 o auxílio emergencial
era de R$600,00 durante três meses e para todas as pessoas
trabalhadoras autônomos e pessoas de baixa renda. Em 2021,
o Decreto n.1039/2021 definiu que o auxílio emergencial seria
de R$250,00, pago para as mesmas pessoas selecionadas
anteriormente.
4
Desde 2002, o trabalho sexual é reconhecido pelo Ministério
do Trabalho como uma ocupação e adicionou o termo na
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Mesmo que
esse reconhecimento seja importante, pois garante o direito
a contribuição mensal e a aposentaria, na prática, ainda é
pouco conhecida e reconhecida pela sociedade.
de quem exerce o trabalho sexual, suas

441
identidades, cidadania e vozes. Entretanto,
trata–se de uma prática social complexa
e que tem sido historicamente marcada
por muitas diferenças, envolvendo uma

PUTA LIVRO
diversidade de pessoas, performances e
contextos. Vários estudos (PASINI, 2000;
PISCITELLI, 2005; SOUSA, 2012; BARRETO,
2015, SILVA, 2017) têm apontado essa
heterogeneidade quando se trata de
especificar e caracterizar o trabalho sexual,
desse modo, verificamos uma pluralidade
de elementos que o constituem. Nestes
contextos, as TS têm ocupado áreas

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


diferentes (bares, esquinas, pontos, hotéis,
ruas) e, apesar da circulação de pessoas e
trânsitos, ainda costumam ser desvalorizadas
em termos econômicos e estigmatizadas
socialmente. As pessoas que realizam o
trabalho sexual sofrem tanto pelo estigma
como pela falta de políticas públicas voltadas
para a regulamentação. Segundo Barreto
(2008), as zonas de prostituição são espaços
que historicamente têm sido “tolerados” e,
de modo geral, associados a ideias de perigo,
sujeira e diversas formas e modos pelos quais
os sujeitos são estigmatizados. A prostituição
tem carregado uma “significação marginal”
(MARINHO, 2007) que nos coloca diante
do debate acerca do “estigma de Puta”,
da categoria de trabalhadoras identificadas
como desviantes do papel social aceito.
Diante das questões até aqui explicitadas e
sem perder de vistas a discussão a que nos
propomos, nós consideramos fundamental
trazer para o centro do debate as vozes e os
corpos das TS, ou seja, se a sociedade tem
historicamente marginalizado e estigmatizado
estas sujeitas políticas (Barreto, 2015),
o movimento e sua organização por
meio de suas ações, questionamentos e
enfrentamentos (re)direciona tais pautas
e conceitos. O movimento de TS sempre
problematizou tais questões e isto não está
diferente em tempos de pandemia. Assim,
buscamos verificar notícias, artigos, entre
outros, atentas às vozes emergentes deste

442
cenário.
Fica evidente em todas as leituras de
notícias e nas falas das TS a partir de 2020
que a pandemia e a crise mundial também

PUTA LIVRO
impuseram aos movimentos do trabalho
sexual outra maneira de atuação. Lourdes
Barreto (2020), uma das fundadoras da RBP
e coordenadora do Grupo de Prostitutas
do Estado do Pará (Gempac) afirmou em
entrevista para a UOL, em março daquele
ano, que “algumas já estão isoladas, sem
ter o que comer e muitas moram em locais
com um único cômodo. Se isolar é quase

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


impossível. A quarentena só dá certo para
o rico, porque essas medidas não adiantam
para a sociedade mais pobre” (UOL,
28.3.20). Pouco depois, em abril, Pasini
(2020) reforçava essa ideia e anunciava que
a Covid-19 faria com que “as pessoas que
historicamente são as mais vulnerabilizadas
no Brasil serão as maiores vítimas dessa
pandemia, pois a elas não é dado o direito
de se protegerem como outras pessoas do
coronavírus”. (PASINI, 2020). A situação
das TS se tornou insustentável, era preciso,
urgentemente, ajudarem-se umas as outras
e encontrar dispositivos para que todas
pudessem sobreviver. Assim, o verdadeiro
sentido de que ninguém soltaria a mão
de ninguém se consolidou nessa união e
necessidade entre as TS.
O fortalecimento foi sendo realizado por
meio de ações, diálogos, busca de recursos
das mais diversas formas. Em entrevista a
Pasini (2020), Diana Soares, coordenadora da
Associação das Prostitutas do Rio Grande do
Norte (Asprorn) afirmou:
Hoje, no Brasil, com a pandemia do coronavírus
nós, trabalhadoras sexuais não existimos. Eu
me reconheço como um sujeito político de
direitos, mas a sociedade não. Está muito difícil.
Ninguém fala em nós. Nós não existimos. Na
verdade, até existimos, mas como pessoa pobre
e desempregada, mas não como uma prostituta.
Não somos lembradas, a não ser pelas nossas
próprias vozes. O que está sendo feito é para
443
a população em geral. Se para mim está difícil,
imagine para as colegas que estão lá, sem
saber onde buscar apoio e sem poder trabalhar.
(PASINI, 2020).

As Associações se estruturaram em duas

PUTA LIVRO
grandes frentes: na conscientização sobre a
maneira de se prevenir contra a Covid-19 e
de trabalhar (se necessário) com o máximo
de segurança e na organização coletiva de
buscar auxílio financeiro para apoiar aquelas
que mais necessitavam. Em setembro de
2020 a UOL mostrou o trabalho de Santuzza
de Souza, coordenadora do Coletivo Rebu

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


e integrante da CUTS e, em dezembro,
Célia Gomes, presidente da CUTS e da
Associação de Prostitutas do Estado do Piauí
(Aprospi) falou sobre o assunto para o site do
Metrópoles.
Ela mesma tomou a iniciativa de correr de
esquina em esquina, bordel em bordel, para
fazer um cadastro dessas mulheres e de seus
familiares, para entender a necessidade de cada
uma. (...) Em três meses, conseguiu ajudar mais
de noventa famílias, doando de fralda a legumes
e produtos de limpeza, com apoio de amigos e
empresas. (UOL, 09.09.20).

Na primeira onda (...) garantir cesta básica,


pagar água, luz e fornecer outras doações
como roupas e calçados para elas e seus filhos.
Agora, a situação está ficando cada vez mais
difícil, então iniciamos uma redução de danos
(...) Sempre estivemos vulneráveis, ficamos
mais ainda. Não existiu nenhum apoio do
governo. Não foi pensada nenhuma política
para a gente. Agora, na segunda onda, está
muito difícil segurar esse público fora do
mercado de trabalho presencial. Orientamos a
ter cuidados: trabalhadora sexual não beija na
boca! Use máscara, peça ao parceiro para que
use também. (...) Nós fizemos muito mais do
que podíamos. Nós nos organizamos: o estado
que recebeu mais ajuda enviou para o que
mais precisava. Foi uma grande rede de apoio
formada por essas mulheres. (METRÓPOLES,
30.12.2020)

Estes modos de organização e de


fortalecimento foram sendo construídos
no dia a dia e à medida que a vida trazia

444
à tona suas urgências. Percebemos dois
movimentos: de um lado, o convite ao
isolamento social como forma de prevenção,
mas de outro, a necessidade de sair e ir

PUTA LIVRO
ao trabalho. Neste cenário, as lideranças
apontaram os modos criativos como se (re)
inventam e denunciam o modo como o
governo e a sociedade as invisibilizam no que
tange ao acesso e garantia de direitos. Fátima
Medeiros, coordenadora da Associação de
Prostitutas da Bahia (Aprosba) e integrante
da Anprosex, ao participar da II Semana da
Diversidade Sexual e Gênero5 em junho de

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


2020 enfatizou o momento vivenciado pelas
TS:
Fui convidada pra falar sobre o que estamos
passando neste momento de pandemia, de
Covid-19. Então, a gente sempre enfrenta
muita coisa né, porque a gente não tem uma
política pública específica pra gente, a não
ser a de HIV, parece que eles só enxergam a
gente da cintura pra baixo e nesse momento
de pandemia está muito complicado porque
todos os bordéis fecharam e a gente não tem
uma renda, a gente não tem... A política que
deveria ter é o benefício que viesse específico
para nossa categoria. Tem para todas as outras,
todas as outras, eu vejo aparecer para todas as
categorias, menos pra profissional do sexo. É
muito difícil pra gente ser beneficiada porque
não tem. A gente é invisível para a sociedade.
E neste momento está muito mais complicado
porque a gente não tem um apoio do governo
federal, estadual, quando a gente muito tem é
cesta básica que a gente faz uma parceria com
outras organizações e aí eles doam pra gente
a cesta básica, mas a gente precisa muito mais
que cesta básica, a gente paga aluguel, a gente
precisa comprar remédio. (MEDEIROS, 2020)

As falas aqui apresentadas são algumas


das diversas expressões tecidas pelas TS no
contexto de pandemia. Assim, é importante
considerar a dimensão temporal dentro deste

5
Fátima participou do evento juntamente com Fernanda
Priscila. O Evento foi realizado pela Universidade Estadual
de Alagoas durante o período de 22/06/2020 a 26/06/2020
pela plataforma Google Meet.
contexto, ou seja, à medida que o tempo

445
vai passando estas lideranças e ativistas vão
resistindo e (re)existindo, visto que com o
tempo e o prolongamento da pandemia os
desafios aumentaram. A discussão perpassava
pelo dilema: como deixar de trabalhar se

PUTA LIVRO
elas necessitavam do dinheiro vindo do seu
trabalho e como trabalhar e correr o risco de
ser infectada pela Covid-19? Era preciso se
reinventar! Então, em tempos de pandemia
e na impossibilidade de não deixar de
trabalhar, era preciso recomendar alternativas
de segurança. Assim, para aquelas que

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


continuaram realizando programas, em
contato com os clientes, foi preciso adotar
protocolos de segurança para o trabalho
sexual. No mundo todo várias Associações
buscaram organizar essas possibilidades6. Em
março desse ano, Maria Elias Silveira, sócia-
fundadora do coletivo Coisa de Puta + e
integrante da Anprosex falou para a Revista
Época sobre a necessidade de mudanças
na rotina do seu trabalho: “além de menos
contatos, beijos e abraços, a gente começou
a ter posicionamentos sobre as posições
sexuais, passamos a nos virar de costas.”
(REVISTA ÉPOCA, 20.03.2021). Em outra
matéria da UOL Luza Silva, coordenadora da
Associação de Prostitutas da Paraíba (Apros
PB) e integrante da CUTS explicou que
“muitas colegas pegaram a Covid-19 e algumas
ficaram com sequela... Então os cuidados
redobraram. Se já tomávamos banho antes
e depois, e obrigávamos também os clientes
a fazerem o mesmo, agora aumentamos a
quantidade. Os clientes que gostam de ficar
mais tempo acham ruim tanto protocolo, mas
sabemos que é necessário” (UOL, 25.03.2021).

Realizar um programa com atitudes


seguras, entre elas “ficar de costas” se
tornou um tema recorrente nos debates e
encontros virtuais entre as TS. Era preciso
discutir sobre estratégias para driblar o

6
Ver detalhes em Pasini 2020.
446
afastamento corporal necessário e a escassez
de ajuda econômica.
Em contexto de pandemia, ainda
que muitas TS tenham mantido o exercício
profissional, outras têm buscado (re)inventar

PUTA LIVRO
a prestação destes serviços, utilizando cada
vez mais as plataformas digitais e redes
sociais, o que colocou um novo desafio
digital para muitas delas. Atenta a essas
questões, a Anprosex7 promoveu encontros
com especialistas sobre esse tema para TS
aprenderem e acessar mais facilmente essas
novas tecnologias digitais. Maria Elias, ainda
em entrevista para a Revista Época afirmou:

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


Quando percebemos que algumas colegas
tinham dificuldade de trabalhar presencialmente
em virtude da idade, do deslocamento, a gente
começou a migrar para o trabalho sexual online.
(...) Os programas então passaram a ser feitos
por chamadas de vídeo no WhatsApp ou em
salas virtuais, onde o cliente pode ver todas as
profissionais e escolher a que mais lhe agrada.
Como nem todas dispunham de aparelhos
com câmeras de boa resolução ou acesso à
internet, o coletivo conseguiu cinco aparelhos
e um notebook para dividir entre elas. (...) A
nova modalidade ajudou que trabalhadoras
sexuais pagassem suas contas e não passassem
fome, apesar de o faturamento ter caído
significativamente e muitas não terem recebido
o auxílio emergencial do governo. (REVISTA
ÉPOCA, 20.3.2021)

Parece mesmo que a pandemia também


trouxe outras realidades para o trabalho
sexual nesse cenário da vida cotidiana.
Entretanto, é fato que o uso da máscara e de
todos os cuidados obrigatórios para que não
aconteça a contaminação da Covid-19 não

7
A Anprosex atuou em um projeto financiado pela
ONU Mulheres com apoio da União Europeia intitulado
“Fortalecer as trabalhadoras sexuais para vencer o
Covid-19”. A chamada foi uma proposta voltada à
implementação do Plano de Contingência diante da
pandemia da Covid-19 do projeto “Conectando Mulheres,
Defendendo Direitos” e à implementação do Plano
Estratégico e Nota Estratégica da ONU Mulheres para o
Brasil.
é simples no contexto do trabalho sexual.

447
Muitas vezes, ouvimos importantes debates
sobre a obrigação do uso de máscaras
durante os programas e a dificuldade
disso, sem esquecer que quase sempre os

PUTA LIVRO
programas acontecem em locais pequenos e
sem muita circulação do ar, inseguros para a
proteção de uma possível transmissão. Aline
Lopes, integrante da Anprosex, falou para
uma matéria à Marie Claire em março de
2021:
O que significa, no entanto, tomar maior
cuidado, quando a matéria-prima do

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


trabalho de Aline e outras profissionais do
sexo é, justamente, o contato físico? “Vi
matérias falando que certas garotas usam
máscara durante o atendimento, adotaram o
protocolo de não beijar na boca e acho tudo
meio fantasioso, sabe? Porque um simples
abraço pode transmitir o vírus durante o
sexo. O que adianta usar máscara, se estou
em contato direto com a pessoa?”, reforça.
Ciente da importância de minimizar possíveis
contaminações, manda os clientes tomarem
banho quando chegam para o programa e antes
de irem embora”. (MARIE CLAIRE, 30.3.2021)

Desta forma, as TS buscam encontrar


alternativas para se manterem sadias e terem
o mínimo de renda para a sua sobrevivência e
de suas famílias. A realidade ainda é difícil e
não sabemos quantas pessoas que realizam o
trabalho sexual foram infectadas pela Covid e
quantas delas morreram. Também aqui há um
silêncio!
Em 05 de abril o site G1 destacou
a manifestação que aconteceu em Belo
Horizonte e contou com cerca de três mil
TS. Elas demandavam sua inclusão nos
grupos prioritários para receber a vacina
contra a Covid-19. Cida Vieira, presidente
da Associação das Prostitutas de Minas
Gerais (Aprosmig) e integrante da RBP
afirmou “Nossa profissão é de risco. Muitas
estão afastadas e com medo (...) A vacina
é fundamental para que todas voltem ao
trabalho com segurança!” (G1, 2021) A
matéria teve grande repercussão no Brasil e,
448
em outros países, e foi apoiada pelas outras
redes nacionais de trabalhadoras sexuais.
Mais uma vez, a demonstração de que a
união entre elas está sendo a única forma de
resistir a Covid-19.

PUTA LIVRO
Trans(A)ções possíveis
em tempos de pandemia

O afeto que faz política. Esta afirmativa,


parte do título deste texto e elucida uma
dimensão importante da discussão que
buscamos apresentar. As trans(A)ções

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


possíveis em tempos de pandemia tem
acontecido na medida em que as TS “não
soltam às mãos umas das outras”. Diante dos
desafios enfrentados a organização política
se viabiliza quando o afeto, a solidariedade
e a beleza marcam este caminhar. A beleza
é a força do batom vermelho, por exemplo,
o copo de cerveja ao lado, a alegria de ver
a conta da energia elétrica paga daquela
colega que estava às escuras, a cesta básica
chegando nas mãos umas das outras, as
lágrimas pela companheira que venceu a
Covid-19 ou voltar para casa após uma rede
efetiva de solidariedade são sinais de que o
ativismo aqui tecido é atravessado por outras
lógicas.
Desafios e desencontros existem.
Sintonizar as ações e os movimentos nesta
grande dança e engajamento político, por
vezes, não tem sido o movimento mais
fácil. Dançar, deixar os corpos entrarem
no ritmo das melodias, saborear/sentir os
prazeres, acordar os sentidos em contextos
de organização política talvez seja um
dos grandes e maiores desafios, que está
presente não somente no movimento de TS.
Os movimentos sociais têm demonstrado
sua importância social e política à medida
que possibilitam à organização em busca
de democracia, a participação política e a
construção de cidadania. Bell hooks (2019)
nos fala de como tem sido importante,
no processo de organização política, duas
449
dimensões: erguer a voz e o afeto. Erguer a
voz significa fazer a transição do silêncio para
a fala como um gesto revolucionário. E para
tal, é preciso que cada pessoa encontre sua
própria voz. Falar, portanto, se torna uma

PUTA LIVRO
forma de engajamento de autotransformação
(hooks, 2019, p. 45). Falar como ato de
resistência! A voz que é dita e anunciada
expressa as diversas linguagens como lugares
de lutas. As vozes presentes neste texto são
de TS, ativistas e lideranças do movimento
de pessoas que exercem o trabalho sexual,
denunciando as ausências e os silêncios e

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


anunciando o afeto, a união e a solidariedade
como forma de construção política. O afeto
em sua expressão maior, o amor, é para esta
autora uma ação capaz de transformar o
mundo. Somente através de uma construção
ética amorosa será possível construir uma
sociedade verdadeiramente igualitária, justa e
comprometida com o bem estar coletivo.
As mobilizações coletivas das TS que
estão envolvidas em um processo mais
amplo de politização sobre as questões do
corpo, da sexualidade e de gênero, ao longo
dos anos envolveram também feministas
homossexuais, travestis e transexuais. As
lideranças deste movimento têm apontado
resistências cotidianas quando por meio de
sua fala e performance evocam e criticam
a normatividade presente na sociedade,
uma certa normatividade que tem (des)
legitimado um grupo imenso de mulheres.
Prada (2018) citando Dolores Juliano no
início de seu livro Putafeminista recorda
que: “a divisão das mulheres entre boas e
más beneficia a estabilidade do sistema.
O estigma da prostituição nada tem a ver
com o que as trabalhadoras sexuais são ou
fazem. Ele representa um potente elemento
de controle para as mulheres que não atuam
na indústria do sexo” (PRADA, 2018, pg.
09). Quando Fátima Medeiros reivindica: “a
sociedade precisa nos olhar como pessoas”,
ou quando Diana Soares aponta a existência
das trabalhadoras sexuais, para além de
450
colocar o dedo na ferida e questionar este
lugar estigmatizado do qual as TS têm
historicamente sido colocadas, estas ativistas
tomam nas mãos e reclamam os direitos
que lhes têm sido negados. Quando todas
as outras vozes que mostramos nesse texto

PUTA LIVRO
reivindicam seus lugares de protagonistas
de suas histórias, elas nos afirmam o seu
pertencimento à sociedade. A Puta que fala
e coloca a boca no trombone fala de todas
as mulheres e todos os corpos que têm sido
controlados por uma sociedade branca,
heteronormativa, homofóbica, racista e
sexista.

ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


O afeto que une e faz política
na existência e na resistência!

O que ficou mais evidenciado nesse


tempo de pandemia da Covid-19 é que as TS
estão sem qualquer direito assegurado, sem
seguridade e proteção social, a única força
que elas têm para resistir à pandemia é a
união entre pares, a solidariedade de outros
movimentos sociais e a colaboração de
alguns setores governamentais, estaduais e
municipais. Nada de políticas públicas. Muito
de solidariedade e de lutas.
Nosso texto buscou contribuir na
visibilização das lutas, das vozes e da atuação
política das TS. Buscamos compartilhar um
fazer política em tempos de Covid-19 com
afeto, com sofrimento, com poder, com
respeito, com responsabilidade e com união.
As TS lutam por todas nós, por todas as
pessoas que acreditam numa sociedade mais
justa, equitativa, feminista e democrática. As
TS existem, resistem, traçam seus caminhos
e mudam o mundo com afeto, união,
resistência e existência.

Referências

BARRETO, Letícia. Prostituição, gênero e sexualidade:


Hierarquias sociais e enfrentamento no contexto de Belo

451
Horizonte. 2008. 154 f. Dissertação (Mestrado) – Programa
de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.

BARRETO, Letícia. Somos sujeitas políticas de nossa própria

PUTA LIVRO
história: prostituição e feminismos em Belo Horizonte. Tese
(doutorado interdisciplinar) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas,
Florianópolis, 2015.

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ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA


trabalhadoras-sexuais-no-pior-momento-da-pandemia-no-
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452
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mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta
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Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2000.

PUTA LIVRO
PASINI, Elisiane. Nós existimos: reflexões sobre o trabalho
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PUTA LIVRO
ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA
454
PAULA LAUFFER

PUTA LIVRO

Trabalho sexual é trabalho


Lambe lambe em papel A3
455
LILIAN TATIANA VIEIRA
E KARINA DIAS GEA

POLÍTICA DO

PUTA LIVRO
AFETO: Relatos de
experiências sobre o
Fundo de Emergência
gestado por e para
Trabalhadoras Sexuais

Como tudo começou:

Desde outubro de 2018, o Projeto


MINA da Escola de Ativismo1 visa apoiar
ações coletivas para a promoção da
dignidade e visibilidade das reivindicações
das Trabalhadoras Sexuais (TS) cisgêneras,
transexuais e travestis de Belo Horizonte
(BH) e Região Metropolitana (RMBH). O
trabalho ocorre por meio do financiamento
realizado de forma conjunta e coletiva com as
beneficiárias é pautada, por meio da escuta
ativa, em suas realidades e necessidades,
na realização de processos educacionais . A
metodologia de aprendizagem utilizada é o
“aprender fazendo” e a educação popular,
com ferramentas participativas, inovadoras e
criativas.
Em março de 2020, iniciamos o “3º
processo de aprendizagem e financiamento”,
um processo de aprendizagem de 5
(cinco) meses voltado às trabalhadoras
Sexuais de BH e RMBH. Por meio do
trabalho em equipe entre pares, buscou-se
estimular a criatividade, a solidariedade e o
fortalecimento comunitário. Para garantir a
permanência das mulheres nesse processo
de aprendizagem, foi oferecido bolsas
individuais de valores fixos e verba para a

456
realização de projetos.
Nos dias 04 e 05 de março, ocorreram
os dois primeiros dias de encontros coletivos
desse terceiro processo, que contemplou 45

PUTA LIVRO
mulheres TS entre cis, trans e travestis.
Através de dinâmicas traçamos múltiplos
pontos temáticos que resultaram na formação
de pequenos grupos para a execução de
projetos e ações que seriam elaboradas
pelas trabalhadoras, junto com o processo
de mentoria das integrantes da equipe Mina.
As 45 participantes foram divididas em nove

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


grupos, compostos por 4 a 5 mulheres, que
são: (1) Autoestima e Empoderamento;
(2) Educação e Cultura; (3) Saúde Física;
(4) Educação Política e Cidadã; (5) Saúde
Mental; (6) Geração de Renda; (7) Diálogos
com a Sociedade; (8) Empoderamento; (9)
Fortalecimento de Redes.
Após os encontros, os pequenos grupos
temáticos iniciaram a traçar os objetivos,
as ações e as ideias para executarem seus
projetos. No dia 12 de março, Izadora,
participante dos processos do Projeto Mina,
foi assassinada. Ela era uma Trabalhadora
Sexual trans muito querida. Com o objetivo
de homenageá-la, a equipe Mina renomeou
o processo de “Jornada Izadora”. Além da
grande perda, mais um novo desafio seria
posto para esse processo de aprendizagem: a
pandemia da covid-19.
A primeira mobilização de
enfrentamento da pandemia pelos gestores
públicos de Belo Horizonte ocorreu no dia
17 de março, o dia em que a Prefeitura de
Belo Horizonte (PBH) declarou emergência
na saúde pública e estabeleceu medidas

1
A Escola de Ativismo é um coletivo independente
constituído em 2012 com a missão de fortalecer grupos
ativistas por meio de processos de aprendizagem em
estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas,
mobilização, e cuidados integrais, voltadas para a defesa
da democracia, dos direitos humanos e da sustentabilidade.
Para conhecer mais acesse https://escoladeativismo.org.br
457
de biossegurança no município (Decreto nº
17.298/2020). As medidas eram de políticas
de contenção e distanciamento social, como
o cancelamento das aulas na rede municipal
de ensino e a suspensão de eventos públicos

PUTA LIVRO
e privados com potencial de aglomeração.
Já no dia 20 de março teve a paralisação do
comércio e outras atividades não essenciais
(Decreto nº 17.304/2020) (ANDRADE et al.,
2020).
Com essas medidas de contenção,
o mercado do sexo em BH ficou muito
prejudicado, com a falta de circulação de

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


pessoas na cidade, os potenciais clientes
também pararam de circular pelos pontos de
prostituição. Além disso, as TS mães, viram-se
obrigadas a ficarem em casa com suas filhas/
os, já que as aulas foram suspensas. Para
agravar a situação, com as medidas sanitárias
da PBH, os hotéis de prostituição da região
da Guaicurus e as boates foram fechados no
dia 18 de março (Diário de campo de Karina
Gea; Emiliana, 2020). Devido a esse complexo
contexto, muitas começaram a enfrentar uma
brusca redução de renda, visto que estava
mais difícil realizarem programas.
Com o cenário nacional e global
preocupante, a equipe Mina, compreendendo
sua responsabilidade, tomou decisões para
não colocar em risco a saúde das TS e suas
famílias, solicitando a suspensão de todas as
reuniões presenciais entre as integrantes dos
pequenos grupos; e destes grupos com a sua
mentora. Desta forma, a Jornada se adaptou
para o meio online para que os grupos
continuassem as conversas e construções.
Elaboramos projetos que inicialmente
seriam presenciais e voltados para TS que
não foram selecionadas no edital da Jornada
Izadora. Mas, devido o novo contexto,
todas as atividades planejadas pelos grupos
tiveram que se adaptar e tivemos que
aprender novas formas de realizar a Jornada
e seus processos de aprendizagens, como
fazer reuniões online e utilizar plataformas
de videoconferência. Para tentar diminuir as
exclusões digitais enfrentadas por muitas

458
participantes, foi oferecido um auxílio
internet para colocarem nos aparelhos
móveis e manter a participação e o diálogo
com todas. Além disso, os próprios projetos

PUTA LIVRO
também mudaram a forma de realizar suas
ações e suas atividades, a fim de respeitar
o contexto pandêmico e a biossegurança:
realização de atividades online, como “lives”;
utilização e criação de redes sociais; rodas de
conversa online; gravação de vídeos; estudos
sobre fake news; montagens de kit de higiene
para combate a covid-19 e outras atividades.

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


Após um mês, a equipe percebeu que
seria necessária a continuação da Jornada
Izadora, mesmo com as dificuldades
evidenciadas pela exclusão digital. Afinal,
percebemos que a bolsa individual, que
anteriormente era vista como complemento
da renda, tornou-se algumas vezes a única
renda que tinham garantia de receber. Tanto
as TS como a equipe Mina perceberam as
péssimas condições socioeconômicas que as
TS cis, trans e travestis estavam enfrentando.
Todas relataram muita dificuldade para pagar
suas contas mensais e muitas se encontravam
com dificuldades de acesso a alimentação de
qualidade, assim como suas famílias.
Algumas das TS participantes da
Jornada eram integrantes de organizações,
como a APROSMIG (Associação de
Profissionais do Sexo de Minas Gerais),
Clã das Lobas e Coletivo Rebu. Estas
Organizações, paralelamente aos projetos,
realizavam ações emergenciais de
enfrentamento a covid-19, como distribuição
de cestas básicas, kits de higiene, fraldas,
máscaras de tecido, mobilização de doações
e criação de uma casa de abrigo para aquelas
que não conseguiam ou não desejavam
voltar para a terra de origem. Além disso,
as TS organizadas e a equipe Mina fizeram
mobilizações para cadastro das TS para
conseguirem cestas com a Prefeitura da
capital e a solicitação para conseguirem
acesso ao auxílio emergencial do governo
federal. No final de março as participantes

459
da Jornada procuraram a equipe Mina
para levarem a ideia de utilizarem todos
os recursos dos projetos para a compra
de cestas básicas e outros alimentos para

PUTA LIVRO
suas colegas. Como a ideia do Projeto
Mina é fomentar o ativismo e processos de
aprendizagens, propomos às trabalhadoras
que utilizassem os recursos que não seriam
utilizados para realizar seus projetos para a
criação do Fundo de Emergência (FE).

Metodologia: da
experiência à escrita

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


Utilizamos o que Gea (2019) nomeou
como “Programa Metodológico”, uma
proposta inspirada nos programas sexuais
realizados pelas trabalhadoras, visto que
essas mulheres possuem uma flexibilidade
na realização dos atendimentos, como
negociar novamente, para inclusão de mais
práticas sexuais, aumentar o valor e/ou a
duração do programa. Ou seja, o “Programa
Metodológico” é uma proposta de abertura
na utilização de técnicas metodológicas para
dar conta das experiências e do contexto em
questão, afinal são marcados por uma fluidez
própria.
No presente artigo, vamos articular
relatos de experiências de duas autoras que
experienciaram o Fundo de Emergência
de lugares distintos, assim como campos
de saberes diversos e complementares
como a Psicologia Social, a Antropologia e
a Sociologia. Então, para dar conta dessa
complexidade, realizamos um conjunto
de “negociações metodológicas”: como
as observações participantes (CICOUREL,
1980) e os diários de campo (GEERTZ,
1988) de cada uma das autoras; assim como
análise narrativa (PAIVA, 2008) a partir
dos documentos produzidos ao longo do
processo, como atas de reuniões, grupos
de WhatsApp e materiais de divulgação do
Jornada Izadora.
460
O Fundo de Emergência (FE):

Com a ideia sugerida pela Equipe


Mina e aceita pelas participantes, começou

PUTA LIVRO
a formação do grupo que seria responsável
pelo Fundo de Emergência. Para a gestão do
fundo, um novo grupo foi formado e utilizaria
os recursos para aportar apoios emergenciais
às Trabalhadoras Sexuais. A escolha das
participantes para a criação do grupo do FE
foi por meio da escolha de uma representante
de cada um dos nove grupos temáticos

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


que participavam da Jornada Izadora.
Logo, cada um escolheu uma participante
para representar e integrar o FE de acordo
com alguns critérios: Desejo em participar,
de forma não remunerada, ao longo do
processo; Disponibilidade de tempo para
se dedicar ao FE bem como ao seu grupo
temático original; Confiança do restante do
grupo; Acesso fácil e frequente aos canais de
comunicação do projeto; Exercer o Elo duplo,
ou seja, ter disponibilidade para manter seu
grupo temático sempre informado do que
estava acontecendo no FE e representar suas
colegas naquele novo grupo. Assim, no dia
11 de maio de 2020 o grupo foi formado,
composto por 09 integrantes, com reuniões
semanais para o grupo pensar e deliberar
coletivamente, junto às mentoras, como o
dinheiro deveria ser utilizado. Assim como
os grupos temáticos, o novo grupo utilizava
o Whatsapp para comunicações rápidas e as
reuniões semanais ocorriam online, por meio
da ferramenta Jitsi, Meet ou Zoom.
Os momentos iniciais do Fundo de
Emergência foram utilizados para planejamento
das ações que seriam executadas com
o aportefinanceiro do Projeto Mina e,
posteriormente, com a colaboração de outras
ONGs e doadores individuais. Estabelecemos
que as pessoas apoiadas deveriam ser
Trabalhadoras Sexuais (cis, trans ou
travestis) de Belo Horizonte ou da Região
Metropolitana. O FE deveria ser utilizado por
461
mulheres que não participaram da Jornada
Izadora, visto que as participantes recebiam
uma bolsa mensal e que daríamos prioridade
a apoios que beneficiassem o maior número
de pessoas possível, com prioridade

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para mães de crianças pequenas, famílias
e moradias compartilhadas. Depois da
construção deste acordo, estabeleceu-
se como esse recurso disponibilizado pelo
Projeto Mina seria utilizado e, partimos para
a prática. Decidimos comprar cestas básicas,
cesta de frutas e legumes, kits de higiene,
compra de botijão de gás e pagamento de

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


conta de água e/ou luz das TS que seriam
mapeadas, com objetivo de ajudá-las a
enfrentar as consequências da dificuldade
econômica provocada pela Pandemia da
covid-19, a falta de políticas públicas e a
ausência de ações efetivas do governo.
A partir dessas decisões, ocorreu a
realização de uma espécie de seleção das
trabalhadoras que seriam contempladas. O
processo ocorreu de três formas: indicações
das integrantes do Fundo de Emergência por
meio de nossas redes de contatos; indicações
das integrantes dos grupos temáticos da
Jornada Izadora e com a busca ativa dentro
dos hotéis, nas ruas, boates e flats. Cada
representante ficou responsável por indicar 10
mulheres, realizando assim um mapeamento
de 90 mulheres trabalhadoras para serem
contempladas, com as informações
necessárias, como: nome, endereço, telefone,
se morava com filhas/os, familiares ou outras
pessoas e a demanda (que poderia ser mais
de uma, entre elas: cesta básica, cesta de
frutas e legumes, kit higiene, pagar conta de
água, pagar conta de luz e compra de botijão
de gás).
Com esse levantamento, as
representantes começaram a fazer uma
divisão de tarefas entre elas: cotação de
preço das cestas básicas de empresas de
atacado; compras de verduras e legumes
na CEASA; pagamento das contas de
água e luz; cotação de preço com carretos
462
ou pagamento da gasolina de motoristas
voluntários para a entrega das cestas
básicas nas casas das Trabalhadoras Sexuais
comtempladas.
A mobilização estava intensa e durante

PUTA LIVRO
esse processo o Projeto Mina foi acionado
pela Organização Não Governamental
FA.VELA com a disponibilização de 70
cartões alimentação para serem distribuídos
entre TS mulheres cis, trans e travestis.
Um novo mapeamento começou, contudo,
começaram a surgir conflitos. A pandemia,
a cada mês, expôs as desigualdades
existentes e afetou muito a população dessas

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


trabalhadoras em suas rendas, submetendo-
as à situações de precariedade na saúde
e na alimentação. Com isso, com o passar
do tempo e com aumento do risco, elas
perceberam que para muitas participantes
da própria Jornada Izadora estavam cada vez
mais vulneráveis e incapazes de sustentar
a si mesmas, inclusive suas famílias com o
pouco que obtiveram, pois muitas tiveram
que continuar trabalhando mesmo com os
riscos e medos de serem infectadas. Então,
uma trabalhadora alertou “como vou ajudar
uma colega de fora, sendo que tem uma do
‘meu lado’ [participante da Jornada] também
passando necessidade?!”. A partir disso,
o grupo do Fundo de Emergência decidiu
que todas as doações recebidas poderiam
ser utilizadas tanto para as participantes da
Jornada Izadora quanto para as trabalhadoras
que não participavam do processo.
Neste processo de estudos de preço
e tomadas decisões, também recebemos
doações de 40 cestas básicas da AIC (Agência
de Iniciativas Cidadãs) por meio de seu
projeto “Periferia Viva”, uma força-tarefa
formada por uma grande rede de parceiros
para colaborar com populações que foram
impactadas pela pandemia e pelas suas
consequências socioeconômicas. Assim,
na primeira compra do FE foram 50 cestas
básicas e 90 kits de limpeza (com esponja
de aço, detergente líquido, desinfetante,
463
sabonete, sabão em barra, água sanitária,
sabão em pó e creme dental), juntando
com as cestas da AIC, totalizando 90 cestas
básicas, 90 kits de limpeza, 30 cestas de
verduras e legumes e 10 pagamentos de

PUTA LIVRO
luz, água ou compra de botijão de gás. As
entregas foram feitas pelas representantes
integrantes do fundo, que levaram
diretamente as TS atendidas por meio de
carreto, com ajuda de motoristas voluntários
ou Uber, em Belo Horizonte e Região
Metropolitana (Ribeirão da Neves, Santa
Luzia e Sete Lagoas).

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


Após as primeiras entregas dos
Cartões Alimentação, dos kits de higiene,
das cestas do FE somadas as cestas da AIC
também surgiram conflitos, entre algumas
representantes e seus grupos temáticos, pois
devido a tomada de decisão de incluírem as
participantes da Jornada Izadora, algumas
não foram informadas sobre o novo critério
e se sentiram excluídas. Isso demonstrou
que a ideia do Elo duplo, ou seja, da
responsabilidade das integrantes do FE em
manter a comunicação entre as decisões
tomadas para o seu grupo temático estava
fragilizada, o que exigiu das mentoras
provocarem mais trocas para não ter falhas na
comunicação.
No segundo processo de doações,
as responsáveis pelo fundo observaram
que entregar as cestas e kits na porta de
cada trabalhadora estava gerando gastos
elevados. Esse gasto diminuiu o valor do
recurso financeiro para compras de cestas
básicas. Devido a isso, decidiram concentrar
as entregas no Mercado da Lagoinha para
ser um ponto de retirada das cestas e kits.
Recebemos novamente uma doação pela AIC
de 20 cestas e máscaras de tecido, então
compramos mais 30 cestas para atender
50 trabalhadoras cis, trans e travestis.
Infelizmente ocorreu essa queda na compra e
na doação de cestas devido ao aumento dos
preços das cestas básicas. Assim, as entregas
foram feitas pelas trabalhadoras sexuais
464
integrantes do FE que se revezaram para
fazer as doações no Mercado.
Felizmente conseguimos ainda
realizar a terceira entrega, já em dezembro,
com a nova doação de 20 cestas básicas

PUTA LIVRO
da AIC. Realizamos novos mapeamento e
as distribuições no Mercado da Lagoinha
como na segunda ação. Nesta ação o
recurso do fundo foi utilizado para compra
de cestas e também complementar com
outras necessidades: verduras, legumes,
fraldas, leite em pó, kits de higiene,
carreto para entrega de doações, para

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


gastos de deslocamento e alimentação das
representantes que realizavam as entregas.

Da experiência à reflexão:

A Jornada Izadora finalizou em julho


de 2020, contudo o grupo do Fundo de
Emergência continuou realizando reuniões
semanais para planejamento de entregas. No
dia 28 de outubro de 2020 foi realizado um
processo de avaliação e foi emocionante o
momento de refletir coletivamente sobre o
processo do FE. Uma das participantes disse
que:
Faria tudo de novo, foi muito importante
Trabalhadoras Sexuais construindo forças,
fazendo o que só religiosos podiam [...] o Fundo
foi uma formação política, [...] o político pode
ser feito também no assistencialismo e sem
dogma, sem religião! Foi emocionante saber que
essas trabalhadoras que foram contempladas
sabiam que tinha pessoas trabalhadoras sexuais
lutando por elas.

Além dessa fala marcante sobre a


importância do FE e do poder político que
o envolvia, a autora Lilian Tatiana Vieira
também partilhou na avaliação que:
Eu nunca tinha feito esse tipo de trabalho, [...]
é uma boa oportunidade de fazer política, a
fome dói no corpo, [...] a ajuda que demos no
Fundo de Emergência pra mim foi uma política
do afeto[...]. A fome dói e esse momento é
difícil, no mundo inteiro, é gratificante ajudar
465
em um problema, mesmo que seja imediato é
gratificante.

A partir da nomeação da experiência


feita por Vieira, o termo cunhado por ela
ficou ecoando a ponto de mobilizar a escrita

PUTA LIVRO
do presente artigo como forma de explorar
esse novo conceito e partilhar as experiências
que deram forma e nome ao processo gerado
pela criação e força das TS no Fundo de
Emergência.

A Política do Afeto:
a experiência da representante-autora

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


Apesar da felicidade sentida pelo
reconhecimento e confiança das colegas do
grupo temático de trabalho (Autoestima e
Empoderamento), quando fui escolhida para
representá-las na composição da equipe
do Fundo de Emergência, num primeiro
momento, fiquei resistente pelo meu histórico
e trajetória política em partido de viés
marxista. A minha compreensão sempre foi a
de que é dever do Estado promover políticas
públicas de assistência social de segurança
alimentar.
À medida que participava das reuniões
semanais do FE, comecei a perceber que
o apoio emergencial nesse momento de
pandemia fazia-se cada vez mais necessário.
Minha impressão sobre essa ação do FE,
é a de que se formou uma Política do
Afeto, construída a partir de laços de
solidariedade e confiança entre pares, em um
momento tão difícil.
Para mim, a percepção de uma Política
do Afeto advém da relação de solidariedade
que nasceu durante as ações de mobilização
para mapeamento junto às Trabalhadoras
dentro do grupo temático Autoestima e
Empoderamento, que eu fazia parte. Assim
como, durante as reuniões do Fundo de
Emergência e nas conversas com as mulheres
contempladas pelo WhatsApp. Por meio
dessas conversas consegui compreender a real
dimensão dos efeitos dessa pandemia sobre o
Trabalho Sexual: Mulheres e famílias passando

466
fome!
No Brasil, infelizmente, muitas pessoas
se aproveitam do trabalho voluntário e da
promoção da solidariedade para lucrar em cima

PUTA LIVRO
do sofrimento e da miséria humana (BIANCHI,
2005). Mas em especial, nesse momento de
pandemia em que muitas pessoas morreram,
perderam emprego e renda; a pobreza e
miséria aumentaram. Realizar esse trabalho
voluntário e receber o afeto e o carinho de
outras trabalhadoras sexuais despertou em
mim a noção de que eu também posso falar

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


sobre racismo, machismo e outras violências e
outras injustiça sociais que estão na estrutura
da sociedade capitalista e que me são muito
sensíveis, também utilizando o voluntariado
para conversar sobre isso.
O vínculo de confiança estabelecido
durante as atividades da Jornada Izadora
pelo grupo temático e, posteriormente, no
Fundo de Emergência foi grande quando
as componentes desses grupos confiaram a
mim a responsabilidade por gestar o dinheiro
que deveria ser utilizado para desenvolver as
ações. Esse ocorrido ao longo das relações,
na construção do ativismo das trabalhadoras
sexuais, me chamou a atenção.
A minha experiência com o Putativismo
ainda é muito pequena frente à história do
movimento de Prostitutas no Brasil. A confiança
que o Projeto Mina e as Trabalhadoras
depositaram em mim, contribuiu para
compreender a importância do papel das
Organizações Não Governamentais (ONGs) em
uma sociedade como a brasileira, com tanta
ausência de políticas públicas do Estado para as
minorias sociais, e de como as ONGs podem
preencher essa lacuna de forma colaborativa
junto a nós, para nós.

Considerações Finais:

O mercado do Trabalho Sexual é muito


competitivo, e essas relações de competição
e as disputas de poder que são presentes
467
dentro dos movimentos sociais marcam
também o Putativismo. Não foi diferente
do que aconteceu durante o processo
educacional de governança/gestão dos
recursos do Fundo de Emergência que eram

PUTA LIVRO
compreendidos como um bem comum.
O acompanhamento da mentoria
da equipe Mina para coordenar reuniões,
gerenciar e mediar conflitos foram essenciais
para que fosse estabelecido entre as
participantes do FE e dos grupos temáticos
uma relação de cooperação, afeto e respeito
dentro de um espaço que também acontecia

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


disputa por poder. Percebemos assim a
potência de um trabalho realizado por uma
organização meio, em que é central para o
trabalho proporcionar apoios e orientações
constantes às participantes para fortalecer
uma cultura de inclusão, solidariedade,
autoconscientização e abertura.
Percebemos como as atividades do
FE levaram a novas interações e conexões,
promovendo parcerias e fortalecimento das
conexões entre as Trabalhadoras do Sexo e
diferentes agentes da área de BH e Região
Metropolitana (como ONGs e o Mercado da
Lagoinha), que geram uma maior visibilidade
e incidência na assistência e na política
realizado por elas e para elas. Afirmamos isso,
pois depois do fim do Fundo Emergencial
foram formadas redes de apoio entre as
próprias TS representantes e as atendidas.
Assim como a continuidade da colaboração
entre as três entidades organizadas no
território: APROSMIG, Clã das Lobas e
Coletivo Rebu, em doações de cestas básicas,
criação de uma Casa de Passagem para TS
durante essa pandemia e na campanha pela
vacinação de Trabalhadoras Sexuais como
grupo prioritário (O TEMPO, 2021).
Foi potente o processo de perceber
que não é necessário mais dualizar
Assistência ou Política, que há outras formas
de realizar processos de aprendizagem na
construção de doações e assistência social,
é assim que a Política do afeto surge, é a
saída do tradicional, é a construção “do nós

468
por nós”, uma construção que não foi de
cima para baixo, mas uma política nossa.
Percebemos que a luta pela sobrevivência
pode ser uma faísca para senso de agência e

PUTA LIVRO
transformação. Desejamos com esse artigo,
divulgar essa experiência do Fundo de
Emergência com o desejo que mais processos
educacionais como esse aconteçam.

LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


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PUTA LIVRO
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Narrativa: uma introdução. Revista Brasileira de Linguística
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LILIAN TATIANA VIEIRA E KARINA DIAS GEA


470
ANA PAULA
ZAPPELLINI SASSI

TRANSG-

PUTA LIVRO
PROSTITUIÇÃO
VIRTUAL E VIOLÊNCIA
DE GÊNERO NA ERA
DIGITAL: NOVOS
DESAFIOS
Introdução

Com o advento da rede mundial de


computadores, as relações sociais sofreram
diversas mudanças. O impacto da tecnologia
nos meios de comunicação levou a novas
formas de trabalho, como o home office. E
as profissionais do sexo não se viram alheias
a essas alterações: muitas delas passaram a
atuar em blogs, sites e fóruns virtuais.
Entretanto, a Era Digital também trouxe
consigo novas formas de crimes e agressões.
A violência de gênero, que já constitui um
inquestionável problema de saúde pública,
ramificou-se no anonimato dos usuários
virtuais, e as profissionais do sexo são alvos
possíveis das extensas formas de agressões
cometidas online.
Nesse sentido, tomou-se, a partir de
uma perspectiva de gênero, as mulheres,
cisgêneras, transgêneras e travestis,
como sujeitos de pesquisa. Objetivou-se,
inicialmente, conceituar e contextualizar
as origens e práticas da prostituição
virtual. Posteriormente, apontou-se as
formas e os sujeitos da violência de gênero
perpetrada contra prostitutas e, por fim,
os tipos de agressão virtual de gênero e
sua contextualização no meio ambiente da
471
prostituição.
Com essa finalidade, foi realizada
uma pesquisa geral, através do método
bibliográfico, em sites e fóruns, trabalhos
científicos, relatórios, livros e legislações

PUTA LIVRO
relacionados ao tema. Posteriormente, por
meio da pesquisa documental, foram também
levantados dados e números concretos.

A prostituição para além das


ruas e dos clubes

A criação da internet e de novas

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


formas de tecnologia resultou em alterações
consubstanciais nas sociedades. As
distâncias estreitaram-se e o computador
e os smartphones tornaram-se grandes
protagonistas no dia a dia humano. A
internet facilitou as trocas de informações
e comunicações entre os indivíduos
(SILVA, 2018, p. 29), e o desenvolvimento
tecnológico também alterou o trabalho.
Como bem explica Bruna H. Torres
(2017, p. 23): “o uso da tecnologia cresceu
rapidamente nos últimos tempos, assim
como o uso de suas consequências para o
trabalho”. O teletrabalho, ou home office,
consiste na execução majoritária de serviços
em ambiente alheio às dependências do
empregador, através do uso de tecnologias
de comunicação e de informação1.
Extremamente difundido durante a pandemia
de Covid-19, é o grande exemplo da
influência da internet na área laboral, e
encontra-se abarcado pela Consolidação das
Leis do Trabalho, no Capítulo II-A.
A prostituição, como diversas outras
profissões, acompanhou as mudanças
sociais tecnológicas e se imbricou no meio
virtual. São diversas as formas pelas quais
profissionais do sexo homens e mulheres
oferecem seus serviços virtualmente: sites,
blogs, fóruns, anúncios e aplicativos de

1
Conforme estabelece o art. 75-B, da CLT.
472
celular (TOSCANINI, 2018, p. 46). Aqui,
entretanto, especificar-se-á os novos desafios
enfrentados pelas mulheres: cis, transgêneras
e travestis, tendo em vista que tomar-se-á
uma perspectiva de análise a partir do gênero

PUTA LIVRO
feminino.
Nessa linha, Monique Prada (2018, p. 83)
explica que “a migração da prostituição de
rua para os anúncios de jornal, e dos anúncios
de jornal para a internet, acontece no Brasil
no final do século XX a partir do uso de
chats para intermediar relações ocasionais”.
Através dos chats, as mulheres divulgavam

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


seus serviços e combinavam encontros com
futuros clientes.
Prada (2018, p. 84) continua,
apontando que as novas tecnologias não
substituíram por completo a realidade dos
intermediários, que continuam presentes
na forma de secretárias, agências, anúncios
em sites e fóruns de avaliação e divulgação
dos serviços das prostitutas. Além do
mais, modos anteriores de organização da
profissão igualmente se fazem evidentes,
como termas, casas de massagem e clubes.
Entretanto, é possível e importante perceber
que, com a internet, as profissionais do
sexo “[...] passam a ter maior controle em
relação à administração de seus horários
e mais liberdade para exercer atividades
diversas, fazendo do trabalho sexual um meio
complementar de sua renda” (PRADA, 2018,
p. 84).
Assim, nota-se que através da internet
as prostitutas têm maior segurança,
autonomia e discrição, comumente
executando a prostituição no ambiente
do flat, algumas vezes compartilhado com
outras colegas (TOSCANINI, 2018, p. 52).
Mas, para além da captação de clientes, Alles
e Cogo (2014, p. 346-347) apontam que a
utilização da internet pelas profissionais do
sexo tem sido uma ferramenta de ativismo
na luta pela regulamentação da profissão e
pelo reconhecimento dos direitos sexuais
femininos.
473
Dessa forma, o meio digital compreende
a divulgação do trabalho das prostitutas,
como também se mostra um espaço
importante para “[...] la construcción y
circulación de narrativas que componen el
debate sobre políticas públicas relacionadas

PUTA LIVRO
a cuestiones de género y sexualidade y, más
espeíficamente, sobre prostituición” (ALLES;
COGO, 2014, p. 347-348).

Agressões de gênero contra


profissionais do sexo

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


A violência de gênero advém da
socialização humana, consistindo no
desdobramento de relações de poder
de dominação masculina e submissão
feminina, construídos ao longo dos séculos e
consolidados pelo patriarcado (TELES; MELO,
2017, e-book). Assola mulheres em todo o
mundo, e como bem esclarecem Penha et al.
(2012, p. 985), “em termos gerais, a violência
contra a mulher é um fenômeno universal que
atinge todas as etnias, religiões e culturas,
ocorrendo em populações de diferentes
níveis de desenvolvimento econômico e
social, sem excluir as prostitutas”.
Apesar da agressão em função do
gênero ser reconhecida como grave problema
de saúde pública e violação de direitos
humanos, é importante acentuar que as
violências sofridas por mulheres cisgêneras,
transgêneras e travestis profissionais do
sexo são socialmente invisibilizadas (LIMA
et al., 2017, p. 02). Isso porque, fugindo
aos padrões de gênero culturalmente
determinados às mulheres recatadas, são
fortemente discriminadas, recaindo sobre
elas o estigma de puta, o qual define quais
espaços sociais podem por elas ser ocupados
sem que sofram agressões (PRADA, 2018, p.
77).
Ademais, Marlene Teixeira Rodrigues
(2004, p. 168) aponta para as ambiguidades
presentes entre as codificações legais e
morais em processos envolvendo a situação
474
das prostitutas, pois a polícia, dirigida
pela moralidade, ao invés de visualizar as
garotas de programa como profissionais
autônomas, e porque não pode puni-las pelo
exercício de seu ofício, “tende a atribuir às
prostitutas o lugar de vítimas da exploração

PUTA LIVRO
dos criminosos - os quais, na prática, quando
existem, dificilmente são punidos [...]”.
No meio científico, percebe-se
igualmente uma tendência de colocação da
trabalhadora sexual na posição de vítima de
crimes contra a liberdade sexual, enfatizando
estereótipos discriminantes em relação à
profissão, que visualizam a prostituição como

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


uma forma de exploração sexual, o que leva
a uma carência de dados no que se refere
às violências concretas sofridas por essas
mulheres em seu dia a dia.
Conforme o Ministério da Saúde (2002,
p. 12), a agressão contra profissionais do
sexo é superior àquela praticada contra
mulheres que têm outras profissões, o que
demonstra a presença de um fator de risco à
prostituição. Além do mais, pode-se apontar
como formas mais frequentes de violência
as agressões físicas, psicológicas e sexuais,
perpetradas por clientes, para modificação
das condições do programa; por agentes
estatais, em especial policiais civis, dos quais
são vítimas de batidas e revistas constantes,
e também parceiros íntimos, casos em que
há violência doméstica (DINIS, 2008, p. 02)
(MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2002, p. 68) (LIMA
et al., 2017, p.4).
Faz-se importante ressaltar que as
prostitutas não podem ser consideradas um
grupo homogêneo. Assim, para além dos
sofrimentos advindos do gênero, é essencial
perceber que existem vulnerabilidades
particulares que se interseccionam
(CRENSHAW, 2002, p. 174), como cor, classe,
orientação sexual, identidade de gênero e
diferentes outros marcadores sociais que
interferem nas vivências dentro do mundo da
prostituição.
Nesse âmbito, em estudo realizado em
475
dez cidades do Brasil2, foi constatado que a
maior parte das garotas de programa que
afirmou ter sofrido alguma forma de violência
física ou verbal tinha entre 18 e 29 anos, era
negra ou parda, solteira, e possuía níveis

PUTA LIVRO
baixos de escolaridade e de poder aquisitivo,
o que demonstra que a definição de seu perfil
se baseia em desigualdades de classe, cor
e gênero que simbolizam ofensas aos seus
direitos como ser humano (LIMA et al., 2017,
p. 6-8).
Em relação às mulheres transgêneras e

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


travestis, importante enfatizar que o Brasil é
o Estado que mais comete transfeminicídio
no mundo e, conforme Prada (2018, p. 61),
entre os anos de 2008 e 2016, a maioria das
mulheres trans assassinadas no país exercia
a prostituição, o que demonstra a dupla
vulnerabilidade dessa população, em função
do estigma de puta e da transfobia que
atacam seu ofício e sua existência. Assim,
essas mulheres são mais ainda marginalizadas
que as mulheres cis, restando exercer seu
trabalho majoritariamente nas ruas, e apesar
dos meios virtuais haverem alterado essa
realidade em certa forma, não conseguiram
frear os altos índices de violência perpetrada
contra elas (PRADA, 2018, p. 61).
A marginalização das profissionais do
sexo em geral se dá em função da visão
da prostituição como um mal social que
necessita constante controle e vigilância,
para que não cause danos à sociedade, o
que retira das prostitutas seu estatuto de
cidadãs de direitos, e relega-as à margem
social. Conforme Prada (2018, p. 68) assinala,
se trata de “uma sociedade que nos alimenta,
mas não quer que sentemos à mesa”.

2
Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Santos, Itajaí, Belo
Horizonte, Manaus, Recife, Curitiba e Campo Grande.
476
A violência virtual de gênero
e os crimes cibernéticos

O desenvolvimento tecnológico,

PUTA LIVRO
juntamente com diversas mudanças no
meio social, trouxe consigo os cibercrimes,
novas formas de agressão que atingem
não somente bens jurídicos no âmbito
patrimonial, mas também direitos humanos
fundamentais, como o direito à imagem e a
honra das pessoas (SILVA, 2018, p. 31).
Nesse sentido, consoante ensina Phillipe
Silva (2018, p. 31), “a facilidade do sigilo para

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


efetivar práticas criminosas fez do universo
digital o meio ideal para concretização e
o sucesso de práticas criminosas, dentre
elas, as tradicionais violências de gênero”.
E, conforme cartilha da Organização dos
Estados Americanos (OEA, 2019, p.7), “o
sistema interamericano de direitos humanos
ainda não estabeleceu uma definição para
a multiplicidade de comportamentos que
constituem a ‘violência online’ contra a
mulher dentro da estrutura de instrumentos
legais já existentes [...]”.
Assim, a violência virtual de gênero
trata-se de uma modalidade de agressão
contra mulheres com respostas ainda
recentes do Estado e dos Sistemas
Internacionais, que se caracteriza por
qualquer forma de assédio ou abuso realizado
contra mulheres, em função do gênero, e
mediante utilização de meios virtuais (OEA,
2019, p.7).
Na medida em que as profissionais
do sexo afirmam-se no ambiente virtual e
passam a oferecer seus serviços pela internet,
surgem novas formas de violência que
acarretam elevação em sua vulnerabilidade
social. Além do mais, dentro desse grupo
de mulheres, é essencial apontar que,
conforme assinala a cartilha da OEA (2019, p.
10), existem traços identitários que podem
elevar as chances da ocorrência da violência
online, tais como cor, etnia, orientação
sexual, identidade de gênero, deficiência e

477
procedência.
Quanto aos meios empregados para
cometimento da violência, o relatório
realizado em contribuição conjunta do Brasil

PUTA LIVRO
para a relatora especial da Organização
das Nações Unidas sobre violência contra a
mulher (CODING RIGHTS; INTERNETLAB,
2017, p. 18-19) compila alguns, dos quais
pode-se citar primeiramente a censura, que
envolve bloqueio de postagens em redes
sociais através de denúncias coordenadas;
bloqueios de perfis devido a denúncias
baseadas na “política de nome real”, em

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


detrimento do nome social; acusações falsas,
dentre outros.
Essa forma de violência pode ser
observada no apontamento realizado por
Alles e Cogo (2014, p. 348-349), de que
no ano de 2013, na celebração do Dia
Internacional da Prostituta, o Ministério da
Saúde havia publicado uma homenagem às
profissionais do sexo em suas redes sociais,
com imagens de cartazes do movimento
organizado. Ocorre que, dias depois, uma das
imagens, em que a militante Márcia segurava
um cartaz escrito “sou feliz sendo prostituta”,
foi removida dos canais virtuais oficiais, sob
alegação de que a assessoria de comunicação
não a havia aprovado. Foram também
retirados outros cartazes com frases positivas
e libertadoras, enquanto permaneceram
somente aqueles que demonstravam a
importância do uso de preservativos e
da prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis (DSTs). Esse episódio não
somente censurou os cartazes que pregavam
pela saúde mental das mulheres prostitutas,
como também reforçou o estereótipo
discriminatório contra a população, como se
fossem meros vetores para disseminação de
DSTs (ALLES; COGO, 2014, p. 349).
Além disso, pode-se citar como formas
de violência virtual de gênero ofensas em
geral, consubstanciadas em acusações falsas;
criação de perfis falsos em redes sociais para
fins de assédio moral; ameaças de violência

478
física (CODING RIGHTS; INTERNETLAB,
2017, p. 18). Nesses casos, a depender da
situação em concreto, as condutas podem ser
enquadradas no tipo penal de ameaça3 e nos

PUTA LIVRO
crimes contra a honra4.
Mais que isso, aponta-se o discurso de
ódio, que pode tomar forma em comentários
misóginos, transfóbicos, lgbtqfóbicos e
racistas. Importante salientar que o racismo,
ou seja, preconceito ou discriminação que
envolva cor, raça, etnia ou procedência
nacional, constitui crime, conforme a Lei n.

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


7.716/89. Além do mais, em conformidade
com a decisão do STF em sede da ADO
n. 26, ficou determinado que os atos de
transfobia e homofobia serão criminalizados
e regulados pela Lei n. 7.716/89 enquanto
não houver legislação específica (MIGALHAS,
2020). Dessa forma, as prostitutas
transgêneras, travestis e com orientação
sexual homoafetiva também podem acionar a
Justiça contra a discriminação.
Na prostituição virtual tornaram-
se comuns as avaliações dos clientes em
fóruns e sites, como o GP Guia. Segundo
Monique Prada (2018, p. 85), nos fóruns os
usuários relatam os encontros e avaliam,
positiva ou negativamente, o trabalho das
acompanhantes, o que publiciza o perfil do
consumidor dos serviços sexuais de forma a
quebrar estereótipos, que comumente ligam-
nos a pessoas violentas e pervertidas.
Entretanto, evidenciadas em anúncios,
as mulheres ficam expostas a ofensas virtuais
e discurso de ódio. Analisando-se alguns
dos comentários negativos realizados no GP
Guia, percebe-se que julgam a performance
e aparência das garotas, podendo chegar
a ser machistas e ofensivos em diversos
casos. Nessa baila, Lucca A. Toscanini

3
Art. 147, do Código Penal.
4
Arts. 138, 139 e 140, do Código Penal: calúnia, difamação e
injúria.
479
(2018, p. 45) assinala que, diante de más
avaliações, existe a possibilidade de entrar
em uma “lista negra”, o que seria prejudicial
ao perfil da trabalhadora sexual, que tem
como opção alterar o nome profissional, as

PUTA LIVRO
fotos e o contato. Prada (2018, p. 86), ao
compartilhar de sua experiência pessoal nos
Fóruns, todavia, assinala que tais ambientes,
apesar de insertos em um mundo misógino
masculino, permitem em geral interações
positivas com os clientes.
Outras formas de violência de gênero
perpetradas no meio virtual são a exposição

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


de dados pessoais e a utilização não
consentida de fotos (CODING RIGHTS;
INTERNETLAB 2017, p. 19-20). A primeira
constitui ilícito penal, consubstanciado no art.
154-A, do Código Penal, e pune a invasão
ou hacking de dispositivos informativos para
fins de obtenção, alteração ou destruição de
dados sem o consentimento do proprietário
do dispositivo. A segunda caracteriza-se pela
divulgação ou ameaça de compartilhamento
de imagens íntimas e igualmente constitui
crime, conforme art. 218-C, do Código
Penal. Além do mais, existe a possibilidade
de impetrar ações cíveis de obrigação de
fazer e não fazer, para fins de remoção do
material divulgado, além de indenização
por eventuais danos materiais e morais
ocasionados em função de violação dos
direitos da personalidade (CODING RIGHTS;
INTERNETLAB, 2017, p. 33).
Os citados delitos concretizam-
se, no ambiente da venda do sexo, no
compartilhamento de “[...] dados pessoais e
fotos sem retoque de mulheres que exercem
o trabalho sexual” (PRADA, 2018, p. 85),
podendo a distribuição de imagens íntimas
assumir a forma da pornografia de vingança,
ou revenge porn, quando a divulgação da
cena sexual é realizada por alguém que
tenha mantido relação íntima de afeto com a
prostituta, por motivos de vingança ou com
objetivo de humilhação da mulher profissional

480
do sexo5.
Além disso, o art. 216-B do Código
Penal prevê outro ilícito criminal, relativo
à exposição eletrônica clandestina da

PUTA LIVRO
intimidade (SILVA, 2018, p. 41), o qual se
consubstancia no registro não autorizado da
intimidade sexual, englobando a produção,
fotografia, filmagem ou registro, através de
quaisquer meios, de conteúdo com cena de
nudez ou ato sexual ou de caráter íntimo
e privado libidinoso, sem a autorização de
quem participa. Logo, o registro do programa

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


pelo cliente, sem que haja consentimento
da trabalhadora sexual, constitui crime,
assim como a realização de montagens com
conotação sexual, através da utilização não
autorizada de fotografia sua6.
É importante salientar que embora
a prostituta utilize seu corpo no comércio
sexual, a existência de fotos consentidas
de nudez em sites, nos quais anuncia seus
serviços, não retira seu direito à intimidade
e à privacidade. Nesse sentido, a produção
e o vazamento não consentidos de imagens
da profissional do sexo na internet e nas
redes sociais constituem violações de suas
liberdades individuais e são formas de
violência de gênero virtual.
Ademais, há possibilidade de roubo de
identidade, através de invasão de contas e
criação de perfis falsos (CODING RIGHTS;
INTERNETLAB, 2017, p. 21) em nome da
profissional, para causar-lhe dano. Nesse
caso, o autor incorrerá em crime de falsa
identidade, conforme art. 307, do Código
Penal. Caso haja a criação de um perfil falso
em site de anúncios, e tendo a divulgação
das fotos íntimas ocorrido de forma não
consensual, a profissional do sexo poderá
notificar o responsável pelo anúncio/

5
Art. 218-C, §1º, do Código Penal.
6
Art. 216-B, parágrafo único, do Código Penal.
481
provedor, de forma privada, para que remova
a publicação, tornando-se este responsável
subsidiariamente caso não o faça em tempo
razoável, conforme prevê o art. 21 do Marco
Civil da Internet7.

PUTA LIVRO
Finalmente, o crime de perseguição
constitui uma nova modalidade de delito,
abarcada pelo ordenamento jurídico penal
através da Lei n. 14.132, de 2021. Também
denominado stalking, é admitido em sua
configuração cibernética e caracteriza-se pela
perseguição de alguém, de modo reiterado,
e de forma a ameaçar sua integridade

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


física ou psicológica, através da invasão ou
perturbação de sua vida privada ou liberdade.
Concretiza-se em interações virtuais não
solicitadas ou obsessivas, além da criação
de perfis falsos criados para fins de assédio
(CODING RIGHTS; INTERNETLAB, 2017,
p. 20). No ambiente da prostituição, pode
eventualmente materializar-se em mensagens
excessivas e insistentes de clientes que
perturbem a privacidade da profissional do
sexo.

Considerações Finais

A violência virtual de gênero não


deixa de ser uma forma de agressão, e tem
por bases construções histórico-culturais
desiguais de gênero que criam polos distintos
de poder nas relações socias e determinam
papéis submissos e passivos ao sexo
feminino, do qual se espera a honestidade.
Fugindo do padrão de pudor desejável
às moças, as prostitutas, sob o estigma de
puta e como mal social necessário, violam as
imposições sexuais de feminilidade. Muitas
delas, adaptadas ao novo ambiente da era
digital, anunciam virtualmente seus corpos
e expõem sua nudez sem recato. Trocam
experiências. Avaliam e são avaliadas.
Nos crimes cibernéticos, em especial

7
Lei n. 12.965, de 2014.
os sexuais, as vítimas femininas são

482
constantemente culpabilizadas. Isso porque
“a mulher seria [...] a principal responsável
por resguardar sua sexualidade, sua imagem
e boa fama, pois é a principal culpada
por qualquer tipo de exposição que a

PUTA LIVRO
envolva, ainda que isso ocorra sem o seu
consentimento” (SILVA, 2018, p.43).
As profissionais do sexo, em especial
aquelas que já têm suas imagens divulgadas
nos meios digitais, têm maior dificuldade
no reconhecimento social das agressões
virtuais que contra elas são perpetradas.
Em um mundo adaptado à prostituição

ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI


virtual, colocam-se, como novos desafios,
a importância de se reconhecer as
trabalhadoras sexuais como sujeitos de
direitos e, também, passíveis a diversas
formas de violência.

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485
PAULA LAUFFER

PUTA LIVRO

Ferramentas de trabalho
Lápis de cor e hidrocor sobre papel ofício
486
CARLA BEATRIZ CAMPOS

ENTRE OS MERCADOS

PUTA LIVRO
DO SEXO E A
PANDEMIA: um
estudo com mulheres
profissionais do sexo
em um serviço de saúde
na cidade de São Paulo
Introdução

O texto a seguir decorre de uma pesquisa de


mestrado cujo objetivo foi pensar o encontro
entre mulheres trabalhadoras sexuais
e profissionais de saúde em um serviço
público de saúde especializado em IST-HIV/
Aids, tendo como referência o discurso dos
direitos sexuais, assim como os discursos
das políticas de saúde, dos movimentos
feministas e dos movimentos de prostitutas1.
Para tanto, foi realizada uma etnografia em
um ambulatório especializado em IST-HIV/
Aids, na zona sul da cidade de São Paulo, de
setembro a novembro de 2020, na qual foram
feitas observações e entrevistas tanto com as
mulheres identificadas como profissionais do
sexo2 quanto com os profissionais de saúde
do local.
A experiência do trabalho de campo

1
Entre profissionais da saúde e profissionais do sexo: Um
estudo sobre prostituição e direitos sexuais em um serviço
de saúde especializado em IST-HIV/Aids. Dissertação de
mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
(PPGCS), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 2022.
Orientação: Profa. Dra. Cynthia Andersen Sarti.
me permitiu refletir sobre a complexidade de

487
realizar uma pesquisa etnográfica presencial
com prostitutas e profissionais da saúde
em meio à pandemia da COVID-19. A partir
do trabalho de campo foi possível refletir

PUTA LIVRO
também sobre a pluralidade de dinâmicas
de trabalho sexual e a diversidade dos
mercados do sexo existentes na cidade, tal
como relatadas pelas mulheres no serviço de
saúde. Além disso, as entrevistas realizadas
com estas mulheres me possibilitaram discutir
como elas lidaram com os primeiros meses de
pandemia, e como a oferta e demanda por
trabalho e serviços sexuais foram afetados

CARLA BEATRIZ CAMPOS


durante o período. Dessa forma, são essas as
questões que pretendo apresentar e debater
neste texto.
Considerando ser uma pesquisa
etnográfica, a metodologia aplicada
na pesquisa consistiu na observação
participante (BECKER, 1999) dos espaços
da recepção, dos consultórios e da sala de
espera que compõem o ambulatório, e na
realização de entrevistas semiestruturadas
(MINAYO, 2010) com as profissionais do
sexo e os profissionais de saúde do local.
Foram entrevistados um total de sete
mulheres3 e seis profissionais de saúde do
ambulatório. Todas as entrevistas foram
gravadas e posteriormente transcritas, após
a autorização dos entrevistados mediante
assinatura do termo de compromisso4.
Uma vez que a pesquisa foi realizada
durante os primeiros meses da pandemia,

2
Utilizo o termo “profissionais do sexo” em itálico como
forma de demarcá-lo como um termo êmico, isso é, utilizado
em campo pelos profissionais de saúde. Porém, como será
visto adiante, observei entre as mulheres entrevistadas uma
diversidade de nomenclaturas utilizadas para se referir ao
trabalho sexual. Cabe afirmar como o uso de diferentes
nomenclaturas abrange distintos significados e moralidades
que se dirigem ao universo da prostituição e do trabalho
sexual.
3
Destas, seis mulheres cisgêneras e uma mulher transexual.
488
quando ainda não havia vacina, foi necessário
adotar uma série de cuidados e protocolos
de distanciamento social implementados
pela instituição de saúde, a fim de resguardar
a segurança de todas as pessoas, como: o

PUTA LIVRO
uso obrigatório de máscaras durante toda a
presença no local; a necessidade de manter
as salas e consultórios constantemente
ventilados e durante todas as conversas, com
janelas ou portas abertas; o uso contínuo
de álcool em gel, e, principalmente, a
manutenção do distanciamento físico de
um metro e meio a cada interação. Havia

CARLA BEATRIZ CAMPOS


ainda um limite de usuários do serviço que
poderiam estar ao mesmo tempo na sala
de espera do ambulatório e, quando este
limite era ultrapassado, os seguranças ou
enfermeiros direcionavam alguns deles para
a parte externa do serviço. Essas medidas
de segurança, por sua vez, impactaram e
produziram limitações sobre as relações
estabelecidas com as mulheres e os
profissionais de saúde em campo.
Desta forma, considerando o momento
no qual este texto foi escrito, em abril de
2021, o que será abordado nele são alguns
dos resultados preliminares da pesquisa,
na época ainda sob análise, nos quais
atentei especialmente para a diversidade
de trabalhos sexuais percebidos desde o
ambulatório estudado e como eles foram
adaptados com a chegada da crise sanitária.
Assim, pretendo discutir como as mulheres
entrevistadas estavam inseridas nos mercados
do sexo e como passaram a se movimentar
dentro deles durante a pandemia.

1. Referenciais teóricos
e o problema da pesquisa

4
Números dos pareceres de aprovação do projeto de
pesquisa nos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da
universidade e da instituição de saúde: 4.099.383/4.253.739.
489
A proposta da pesquisa foi
concebida tendo em vista o processo de
“cidadanização” (OLIVAR, 2012; TEIXEIRA
RODRIGUES, 2009) pelo qual a prostituição
passa na atualidade, no qual ela deixa de ser
debatida exclusivamente como problema

PUTA LIVRO
de violência e criminalidade, e passa a
ser tratada dentro da esfera de direitos,
visando a ressignificação da imagem da
mulher prostituta, e, consequentemente,
o enfrentamento do estigma que recai
sobre ela. Como parte disso, é notória
a consolidação do novo movimento de

CARLA BEATRIZ CAMPOS


prostitutas e da politização da prostituição,
florescendo os debates sobre cidadania
e direitos trabalhistas para prostitutas,
a partir da década de 1980 (CORRÊA
& OLIVAR, 2014). Neste contexto é
formada uma ampla discussão na esfera
pública e na produção acadêmica sobre a
relação entre a prostituição e os direitos
sexuais, que mobiliza agentes ligados a
movimentos feministas e de luta por direitos
humanos, prostitutas e suas subsequentes
organizações, formuladores de políticas
públicas, e pesquisadores (CARRARA, 2015;
OLIVAR, 2012; TEIXEIRA RODRIGUES, 2009).
Por conta disso propus pensar como a
relação entre direitos sexuais e prostituição é
debatida no campo da saúde, investigando,
para tanto, o atendimento a profissionais do
sexo em um serviço de saúde especializado
em IST-HIV/Aids. A escolha do campo da
saúde enquanto objeto de estudo se deu
por considerar o seu importante papel
na produção de concepções e valores
normativos sobre o corpo, o gênero e a
sexualidade, além de ter sido historicamente
um espaço primordial de atuação das
organizações de prostitutas (OLIVAR,
2012; CORRÊA & OLIVAR, 2014; TEIXEIRA
RODRIGUES, 2009).
No que diz respeito aos direitos
sexuais, ainda que atualmente em disputa,
eles podem ser compreendidos como
direitos que “dizem respeito à igualdade
e liberdade no exercício da sexualidade”

490
(ÁVILA, 2003, p. S466), e permitem “tratar a
sexualidade e reprodução como dimensões
da cidadania e consequentemente da vida
democrática” (Ibidem, p. S466). Contudo, há

PUTA LIVRO
um potencial moral contido neles, uma vez
que na atualidade eles ajudam a transformar
os critérios que delimitavam o bom e o
mau na sexualidade, de modo que estes se
desloquem dos princípios de reprodução
biológica para “a promoção do bem-estar
individual e coletivo através do bom uso dos
prazeres” (CARRARA, 2015, p. 329).
Não obstante, refletir a relação entre

CARLA BEATRIZ CAMPOS


os direitos sexuais e a prostituição requer
também considerar como o pensamento
feminista pensa esta questão. Neste sentido,
é notório entre as feministas a falta de
consenso sobre a prostituição, de modo que
o debate sobre ela se dividiu historicamente
em duas posições fundamentais. Enquanto
uma das posições se caracteriza pelo
entendimento da sexualidade enquanto
fonte da opressão patriarcal e elemento de
objetificação e subjugação das mulheres,
no qual “a prostituição é vista como caso
extremo do exercício abusivo do sexo,
portanto, quem oferece serviços sexuais é
percebida como inerentemente vítima de
violência” (PISCITELLI, 2005, p.13), na outra
posição, pertencente à tradição feminista
de defesa da liberdade sexual, a figura da
prostituta era frequentemente construída
como símbolo da autonomia sexual e como
uma ameaça à ordem sexual patriarcal
(GROGORI, 2003; PISCITELLI, 2005, 2007;
RUBIN, 2017). Como afirma Piscitelli, “nessas
discussões a prostituta ocupou tanto o lugar
da escrava sexual como o do agente mais
subversivo dentro de uma ordem sexista”
(Idem, p.13).
Considerando as questões debatidas
acima, minha proposta ao pensar a relação
entre prostituição e direitos sexuais foi a de
se atentar não apenas ao aspecto formal
dessa discussão, que se refere à própria
491
aquisição de direitos, mas ao aspecto
subjetivo da mesma. Isso é, me propus
a pensar quais são as moralidades que
perpassam esse debate, tanto no campo da
saúde, como no campo dos direitos sexuais

PUTA LIVRO
e nos movimentos feministas. Desta forma,
meu interesse se dirigiu especialmente ao
aspecto simbólico desta questão, ou seja,
pensar os olhares sociais que se dirigem à
prostituição, e o que ela significa e representa
socialmente nos distintos discursos que
a envolvem e a nomeiam. Falo aqui da
importância de se discutir o lugar social e
simbólico (MAUSS, 2003) associado à figura

CARLA BEATRIZ CAMPOS


da “puta”, e os imaginários que se formam
sobre ela. Discutir direitos neste contexto
significou, portanto, discutir esse lugar e a
sua transitoriedade.

2. Garota de programa,
acompanhante e profissional do sexo:
a diversidade de nomenclaturas e
dinâmicas de trabalho sexual
percebidas a partir do ambulatório

A diversidade de nomenclaturas
Algo que ficou claro durante a pesquisa
de campo foi que as mulheres que conheci
usavam diferentes nomes para identificar o
seu trabalho com sexo, sendo mais comum
se identificarem como garotas de programa
ou acompanhantes. Não era usual que elas
se identificassem como prostitutas, e o
uso dessa palavra parecia ter um sentido
pejorativo naquele ambiente. Além disso,
elas também usavam diferentes nomes
para se referir aos atos que acompanham
sua atividade, que podiam ser programas,
encontros ou reuniões. Os profissionais de
saúde, por sua vez, as identificavam como
profissionais do sexo, termo que eu por vezes
também utilizei, por estar inserida naquele
ambiente, além de nele poder ser abrangida
a diversidade de identidades e trabalhos
com sexo que essas mulheres apresentavam.
Cabe mencionar, porém, que posteriormente
também passei a refletir sobre os significados

492
e moralidades implícitos na escolha das
nomenclaturas, considerando especialmente
como algumas delas poderiam adquirir
sentidos higienizantes e moralizantes sobre a
prostituição e as formas de trabalho sexual.

PUTA LIVRO
Como será visto a seguir, a diversidade
de nomes para referir-se ao trabalho
sexual parecia acompanhar a diversidade
de dinâmicas de trabalho que as mulheres
relatavam. Nesse sentido, a preferência
por um determinado nome possivelmente
expressa também o sentido que a mulher
dá a seu trabalho. Natália, por exemplo,

CARLA BEATRIZ CAMPOS


afirmou que prefere ser identificada
como acompanhante, e não garota de
programa, uma vez que, na sua concepção,
a acompanhante tem uma relação de maior
afinidade e envolvimento com o cliente (ainda
que apenas no momento do programa),
enquanto a garota de programa estaria
interessada apenas no ganho financeiro.
Só pensa no dinheiro ...a garota de programa...
A acompanhante não, você tá ali, você ouve, às
vezes a pessoa chora, às vezes a pessoa quer
um abraço, às vezes a pessoa só quer sentar e
conversar, ou às vezes a pessoa quer desabafar
via WhatsApp, muitas vezes... (Natália)

3. A diversidade de dinâmicas
de trabalho

Como dito acima, além dos nomes,


pude observar também a diversidade de
locais e de dinâmicas de trabalho relatados
pelas mulheres em campo. Entre as mulheres
com quem conversei e que entrevistei, essa
diversidade pode ser assim descrita: uma que
trabalhava em boates, uma que trabalhava na
rua, duas que atendiam em apartamentos ou
flats, três que trabalhavam ou já trabalharam
em clínicas de massagem, cerca de quatro
que subiam anúncios na internet ou utilizavam
as redes sociais para marcar programas,
e cinco mulheres que fazem ou já fizeram
filmes pornográficos e conteúdos eróticos.
Era comum ainda que elas transitassem por
493
diferentes modalidades e locais de trabalho.
Me chamou a atenção ter encontrado
um número considerável de mulheres que
conciliavam a realização de programas com
a participação em filmes pornográficos,

PUTA LIVRO
sendo quatro delas ao total. Entre elas,
não parecia haver uma distinção clara entre
ambos os trabalhos. Ao contrário, pude
perceber, na similaridade de seus relatos,
que a dinâmica de trabalho que descreviam
parecia seguir um padrão, articulado a
partir de três grandes frentes: a presença
nas redes sociais, a participação em filmes
pornográficos e a realização de programas. O

CARLA BEATRIZ CAMPOS


que suas falas evidenciavam é que a presença
em filmes e nas redes sociais contribui para
criar uma identidade e uma reputação nesse
meio, o que, em troca, lhes oferece maior
segurança e retorno financeiro. Afinal, a
aquisição de reconhecimento e legitimidade
à sua identidade profissional lhes permite
selecionar melhor os seus clientes, receber
maiores cachês pelos filmes que fazem,
e realizar programas mais caros. Raíssa
exemplifica bem esta questão:
Pra você ficar famosa, ou você... um exemplo
bem bobo, você vai no estádio de futebol e
mostra os peitos (risos)... ou você paga pra
sair numa capa de revista, porque são pagas,
ou você inicia nos filmes, como foi o meu caso.
Com cachê baixo, pra você ter visibilidade...
Porque o que mais bomba uma garota de
programa são os trabalhos que ela faz... Não
só filme, mas assim, tudo que a expõe, rede
social... Então é o máximo de exposição que
você tem. (Raíssa)

Já no relato de Natália, além da


presença nas redes sociais e da produção de
filmes, aparece ainda mais uma modalidade
de trabalho: a realização de temporadas
presenciais em outras cidades, nas quais
ela realiza filmagens, colabora com outros
canais no Xvideos (site de pornografia), e faz
atendimentos com clientes.
Tem gente que fala assim “ah, eu quero que
você venha pro Rio”, “eu quero que você
494
venha para BH”... Eu fiz uma [temporada] em
Monte Verde... você fica uns... igual, a pessoa
vai ficar cinco dias comigo, então vai ficar 5
dias comigo e o resto eu vou atender. Tem
gente já chamando no “Xvideos”, que quer sair
comigo, tem gente no twitter... só que assim,

PUTA LIVRO
eu vou levar uma amiga para ela organizar isso.
(Natália)

O que é perceptível nas falas de todas


as mulheres entrevistadas, é o fato de elas
enquadrarem os programas, filmes ou demais
atividades com sexo na dimensão da vida
profissional, pensando-as estrategicamente
como trabalho, questão essa que é central

CARLA BEATRIZ CAMPOS


no debate sobre prostituição e que constitui
o enquadramento dos movimentos de
prostitutas e trabalhadoras sexuais no Brasil
e no mundo5. Isso aparece nas questões
discutidas acima, sobre as estratégias para
criar uma reputação no meio e construir
uma carreira, mas aparece também em
outros momentos, especialmente quando
as mulheres afirmam ter uma conduta
profissional durante os programas, que difere
da sua vida pessoal. Tal questão se observa
em falas como as de Alice:
Eu, por exemplo, eu sou muito profissional.
Na vida pessoal eu sou bem diferente da
profissional. Então pra mim eu levo dessa
forma... As pessoas têm uma mania de achar
que puta é sempre puta em todo lugar! Ou
ainda como diz Natália: Porque eu não exponho
meu... pessoal com meu profissional. Meu
pessoal é meu pessoal, e meu profissional é meu
profissional. (Alice)

4. Os impactos da pandemia
no trabalho sexual

No momento de realização da pesquisa,

5
Convém mencionar que há uma vasta literatura sobre
a discussão da prostituição e da oferta de outros
serviços sexuais como trabalho, o que inclui algumas das
bibliografias citadas neste texto (Alvarez, G.; Teixeira
Rodrigues, M, 2001; Corrêa & Olivar, 2014; Bonomi, 2019),
e motivo pelo qual também faço uso dos termos “trabalho
sexual” e “trabalhadora sexual”.
495
todas as mulheres com quem conversei
estavam trabalhando com os programas,
a produção de filmes pornográficos e/ou
conteúdo erótico para as redes sociais. Tendo
isto em vista, pude perceber que aderir ao

PUTA LIVRO
isolamento social por muito tempo não era
algo tangível à realidade delas, ainda que
algumas tenham chegado a parar de trabalhar
durante os primeiros meses de pandemia. A
maioria delas, porém, voltou a trabalhar ainda
no primeiro semestre de 2020. No geral, a
necessidade financeira parecia sobrepor-
se ao medo e ao perigo representados pela

CARLA BEATRIZ CAMPOS


pandemia. Isso aparece nas falas de algumas
delas:
No começo, eu fiquei uns dois meses em casa,
sem trabalhar, porque realmente eu estava com
medo. Só que aí... quando junta o medo, mas as
necessidades vão apertando mais, aí é o instinto
de sobrevivência que conta né? Então, aí você
com medo, mesmo o medo todo, você volta a
trabalhar. (Alice)

Eu parei dois meses. Eu estava muito assustada,


assim como todo mundo. Então [parei] no final
de março, e voltei no final de maio. E eu fiquei
com muito medo, já que eu moro com meus pais
e com a minha avó... Mas aí passaram-se dois
meses, eu pensei: “não, eu tô sem dinheiro, eu
preciso voltar a trabalhar... eu preciso arriscar e
continuar minha vida” (Carolina)

As mulheres ainda afirmaram que


houve uma queda na procura dos clientes,
ao menos no início da pandemia, e que isso
teve impacto sobre seu trabalho. Como disse
Natalia:
De [cliente] ter vontade e de não poder, porque
ele está em casa. Bastante mesmo. Tipo assim,
eu acho que não foi só pra mim, foi pras outras
pessoas. Porque as mulheres ficaram em casa,
e a maioria [dos clientes] são casados, a maioria
tem namorada, a maioria ficou trabalhando em
casa, então... (Natália)

Contudo, algumas delas afirmaram que


a demanda por serviços sexuais não parou
após a chegada da pandemia:
E vou te falar uma coisa, ...no pico, muitos
496
clientes sumiram. Porque muito cliente é de
idade. Mas parar nunca parou, porque parece
que é um vício. O homem fica...duas coisas que
eu acho que o homem não fica sem é comida
e sexo. Eles nunca abandonam a prostituição.
(Alice)

PUTA LIVRO
Eu pensei que esse ramo ia acabar. Eu falei:
“não, quem vai querer encontrar uma garota de
programa?”. Tem todo um contato, sabe? Ela
tem contato com várias outras pessoas, então
eu achei que esse ramo ia falir. Mas que nada!
Continuou. (Carolina)

Conclusão

CARLA BEATRIZ CAMPOS


A diversidade de trabalhos com sexo
observados em campo e os arranjos que eles
assumem remetem à discussão que Agustín
(2005) faz sobre a pluralidade de práticas
presentes nos mercados do sexo. Segundo
ela, “nos deparamos não com a prostituição,
mas com uma diversidade de trabalhos
sexuais” (p.7, 2005). Tal fato evidencia a
importância de não nos limitarmos à definição
tradicional de prostituição, e entender de
maneira mais ampla a formação de mercados
sexuais como um todo, cuja diversificação se
acentuou diante das possibilidades do mundo
digital, como visto. Porém, é importante
também atentar-se aos sentidos contidos em
cada um dos nomes utilizados para referir-
se ao trabalho sexual. A pluralidade de
nomenclaturas é um reflexo da diversidade
de dinâmicas de trabalho sexual, mas
também pode evidenciar como diferentes
sujeitos apreendem este trabalho e se
identificam nele.
Ademais, ter realizado a pesquisa
presencialmente em 2020, durante os
primeiros meses da pandemia e ainda em um
período de isolamento social, possibilitou-me
investigar como ela incidiu sobre as mulheres
que trabalham com sexo. Entre as mulheres
entrevistadas no ambulatório, fica evidente
como o trabalho sexual não foi interrompido
pela pandemia, e como tampouco deixou de
haver demanda de clientes para este tipo de
serviço. É notório, porém, que a motivação
497
para que essas mulheres continuassem
trabalhando sem distanciamento social era
da ordem da necessidade, para garantir seu
sustento. A falta de qualquer regulamentação
ou políticas de assistência a trabalhadoras
sexuais as colocou em uma situação em que

PUTA LIVRO
não era viável aderir ao isolamento social. A
questão que emergiu como principal naquele
momento foi, portanto, a escolha entre se
expor ao vírus da COVID-19 ou deixar de
trabalhar. Porém, dado que a pandemia ainda
é um evento presente, uma diversidade
de outras questões podem desdobrar-se

CARLA BEATRIZ CAMPOS


dela, de modo que será uma tarefa para os
próximos anos pensar as diversas formas
pelas quais ela incidiu e ainda incide sobre os
mercados do sexo e sobre o trabalho sexual.

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499
INDIANARAE SIQUEIRA

PUTA LIVRO
Queria sentir os abraços mas não
era mais possível.
Queria beijar tua face e receber
um beijo na testa de volta.
Mas não nos era mais possível.
Só podia te ver ao longe, pra minha
segurança psicológica e até física.
Que tempos terríveis estou vivendo
Como será que está sendo para você
esse nosso afastamento?
Fui me habituando e como algumas
coisas com o tempo deixam de ser
corriqueiras esse nosso distanciamento
físico e isolamento social passou a ser
visto por mim como minha condição
natural por conta de minhas “escolhas”
como vocês diziam.
Ser quem sou era difícil até pra mim
pois precisava rever valores que me
foram ensinados desde muito criança.
Me desfazer de toda minha vida
construída e estruturada por vocês.
Passamos a ser então vocês e eu.
Não éramos mais nós e nunca mais
seríamos.
Passei fome, frio, sede, dormi algumas
vezes nas ruas.
Me espancaram e eu me
perguntava:
Cadê vocês pra me ajudar
nesses momentos difíceis?
Afinal vocês diziam:
Somos família e temos que estar
juntos sempre.
500
Mas esses laços eram tão frágeis, que
bastou minha sexualidade ser
diferente da de vocês, ou eu fazer uma
escolha por uma identidade de gênero
que vocês julgavam incompatível com o

PUTA LIVRO
que desenharam como meu futuro, e
nossos laços,
que vcs diziam tão fortes, se romperam.
E de família vocês foram meus primeiros
algozes.
A dor e o tempo passaram.
Me encontrei com minha comunidade e
apesar de nossas diferenças, agora tinha

INDIANARAE SIQUEIRA
uma família novamente.
E assim o tempo passou, foi passando
cada vez mais.
Sentia cada vez menos faltas dos beijos
e abraços de vocês e das preocupações
que sabia que vocês já não tinham mais
por mim, ou comigo.
Será que pensam em mim nesse
momento?
Sim, nesse momento em que um vírus
devasta a humanidade será que pensas
se estou com vida ainda?
Eu penso em vocês e me preocupo
como devem estar. Se estão bem, se
cuidando, se alimentando… se tem
alimentos pra isso.
Sim, lembrei de vocês, coisa que há
muito tempo não fazia, mas não por
haver esquecido e sim por haver
guardado vocês em um lugar de minhas
memórias, que peguei o hábito de não
visitar tanto.
Nesse momento em que um vírus mortal
ataca a humanidade, meus pensamentos
se voltam pra vocês.
Sim, sei que em alguns momentos vocês
prefeririam ter filhe bandido, criminoso,
do que alguém como eu, e que
preferiam minha morte.
Mas não consigo não pensar em vocês
pai, mãe, irmãs, irmãos nesse momento.
Queria ao menos saber que estão bem.
Queria, talvez, se possível, voltar e
501
cuidar de vocês.
Pode ser à distância mesmo.
Pais, família... esse isolamento social
que vocês estão vivendo nesse
momento é o mesmo que vocês me
impuseram por ser LGBTIA+ e a

PUTA LIVRO
sociedade se fechou também pra mim.
Eu e minha comunidade sempre vivemos
um LOCKDOWN.
Mas nesse momento estou disposte
a esquecer tudo pra que possamos
nos ajudar.
Temos a oportunidade de apagar o
passado e reescrever a humanidade pra

INDIANARAE SIQUEIRA
ver se dessa vez dá certo.
Estendo então, nesse momento, minhas
mãos, mesmo sem podermos nos tocar,
e a ajuda de minha comunidade
a todes vocês.
Que o mundo nunca mais volte à
normalidade.
O “normal” feriu, matou, excluiu,
explorou, escravizou, guerreou e quase
destruiu o planeta com bombas
atômicas que, não obstante o poder
de destruição dessas, foram aperfeiçoar,
com bombas de nêutron e armas mais
“sofisticadas”, precisas e mortais.

Por um mundo sem exclusões


e sem LGBTIFOBIA.
Para que continue em repouso,
relaxando e se curando.
Que o novo despertar seja inclusivo
em toda sua amplitude, respeitando
toda a diferença.

Despertai e vos respeiteis e amais-vos


uns aos outres como nunca
o fizeste antes.

QUE SEJA O NOVO DE NOVO UM


APRENDIZADO CONSTANTE COMO
DEVERIA SER DESDE SEMPRE.

OPEN DOWN FOR LOVING


IN THE LOVE
ABERTOS PARA AMAR O AMOR
502
FÁTIMA MEDEIROS

PUTA LIVRO
22/04/2020

22 de abril, aniversário da minha amiga


Gabriela Leite, pelas minhas contas hoje vc
faz 70. Ainda lembro de quando vc fez 50.
Gabi, passe o tempo que passar, vou sempre
te lembrar como a mulher mais revolucionária
que já conheci.
Quanta falta vc nos faz, Gabi, vc não
tem noção como o país tá bagunçado, o
governo é uma bosta, não dá pra ter um
diálogo, se antes era difícil, agora cem mil
vezes pior, estamos em pandemia, um vírus
matando todo mundo e não temos vacina
o suficiente, imagine pra gente, pra nossa
categoria. Sei que se vc tivesse aqui estaria
correndo atrás, pra nós incluir nós grupos
específicos para vacinação, não podemos se
quer sair às ruas, logo a gente que amamos
as ruas, as esquinas, as praças. Eu sei que se
vc tivesse aqui hoje ia quebrar essa regra,
ia bebemorar, prosear, cantar umas cantigas
de seresta, fumar uns cigarrinhos, comer uns
petiscos…O dia era sempre curto pra gente,
terminava às cinco do dia seguinte, ao meio-
dia, como vc me dizia, iniciava novamente
a cervejinha, quanto mais bebia e fumava,
mais ideias surgia pro movimento, pra a Rede
Brasileira de Prostitutas.
Etha lasqueira, saudade da gota,
saudade de te ouvir, seus ensinamentos,
seu alô me chamando de QUERIDA, etha
lasqueira saudade da gota, eu ainda continuo
aqui na APROSBA, só saio daqui morta,
espero que demore muito tempo, a Bahia
que vc tanto amava tá sentindo sua falta. Eu
503
sempre falo em vc nas minhas entrevistas,
como nos conhecemos, no saguão do
aeroporto do Ceará, etha lasqueira saudade
da gota, aquele dia o melhor da minha
vida, muita gente te conheceu, mais não
tanto quanto eu e a Lourdes Barreto, que

PUTA LIVRO
privilégio. Mas cá entre nós, tú tinha um
carinho diferenciado por mim, rsrs, eu sei
e muita gente percebia, eu continuo com o
mesmo sentimento por ti, acho que até mais,
pq a saudade da gota nunca passa e cada dia
lembro mais, #GabrielaLeite vive firme, etha
lasqueira, saudade da gota!

FÁTIMA MEDEIROS
504
PAULA LAUFFER

PUTA LIVRO

Retrato de Gabriela Leite


Óleo sobre tela 1mx1m
505 PUTA LIVRO
506
AMANDA CALABRIA é historiadora, atriz e
performer. Mestra e doutoranda em História pela

PUTA LIVRO
Universidade Federal Fluminense, integrante do
Labhoi – Laboratório de História Oral e Imagem e
do Coletivo Puta Davida.

AMANDA DE LISIO (adelisio@yorku.ca) é


professora assistente de cultura física, política
e desenvolvimento sustentável na Escola de
Cinesiologia e Ciências da Saúde. Também é
afiliada ao City Institute de York University. Sua
pesquisa é dedicada ao desenvolvimento e à
remoção ou mobilidade de pessoas nas cidades-
sede da FIFA e das Olimpíadas. Sua tese de
doutorado financiada pelo Conselho de Pesquisa
em Ciências Sociais e Humanas (SSHRC) examinou
o impacto do urbanismo de eventos no Rio de
Janeiro, Brasil, especialmente sobre as mulheres
envolvidas no trabalho informal e precário. Antes
de tornar-se professora em York University,
Amanda De Lisio deu aulas de geografia urbana,
economia política e sociologia da saúde e cultura
física na University of Toronto (2015-20) e teve
bolsas de pós-doutorado na Bournemouth
University (2016-18), bem como na Brock
University (2018-20). Seu trabalho foi financiado
pelo Conselho de Pesquisa Econômica e Social da
Inglaterra, pela Mitacs Canadá e pelo Conselho
de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas
do Canadá, tendo sido publicado em editoras
acadêmicas e populares em inglês e português.

ANA PAULA DA SILVA é professora de educação


rural na Universidade Federal Fluminense e atual
co-presidenta da Coletiva Davida. Carioca da
gema, ela investiga as interssecções de raça,
gênero e classe na construção do conceito de
“brasilidade” faz duas décadas. Foco importante
de suas pesquisas é a sexualidade da mulher
negra e a prostituição.
507
ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI é advogada,
feminista e pesquisadora. Especialista em Direito

PUTA LIVRO
das Mulheres (UniDomBosco) e pós-graduanda
em Direito Internacional e Direitos Humanos (PUC
Minas), é autora do livro Síndrome de Estocolmo
e Violência Doméstica contra a Mulher: restrição
à liberdade psicológica. Contato: anapzapelini@
gmail.com

ANDRE ARAUJO é um artista brasileiro


contemporâneo, que tem seu trabalho
caracterizado pela incorporação do simbolismo,
pelo uso de marcas agressivas e gestuais e pelo
fascínio com os chamados out-siders. Ao longo
de sua prática, Araujo incorpora regularmente
imagens punk e textos marginais e pornografia.
Sua pesquisa vem das ruas, da zona, o que o
artista busca em seu trabalho é essencialmente
a expressão perseguindo a sensação que emana
das coisas para construir seu imaginário pictórico.
Andre Araujo é cidadão do mundo que vive e
trabalha em Belo Horizonte, MG.

ANGELA DONINI é professora do departamento


de Filosofia da Universidade Federal do Estado do
Rio de Janeiro – UNIRIO.

ANTONIO NETO ou Vinicius Eros Tache é


trabalhador sexual, camboy e pesquisador
sobre sexualidade pela Universidade de São
Paulo. Atualmente desenvolve uma pesquisa
no programa de doutorado Meio e Processos
Audiovisuais na Escola de Comunicação e
Artes da USP. Seu trabalho atual se chama
“Pornodistopia: Performance audiovisual no
CAM4”, nessa pesquisa Antônio Neto cria uma
série de lives onde explora outras representações
e performances pornoeróticas desviantes ao
modelo estandarte industrial
508
BIANCA FERREIRA é museóloga e artista do
bordado. Escreve desde os 12 anos, furtivamente,
e guarda nos cadernos seus sonhos de grandeza.
Sempre usando do simbolismo yônico, procura
extravasar sua própria experiência material e,
quem sabe, encontrar quem mais compartilhe

PUTA LIVRO
dessa mesma vivência.

CARLA BEATRIZ CAMPOS mestre em ciências


sociais pelo Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PPGCS) da Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP). Experiência em
pesquisas de antropologia social, com ênfase
em temas de gênero, sexualidade e direitos
humanos. Interessada em refletir sobre questões
da sexualidade feminina, especialmente em sua
relação com o trabalho sexual.

CLAUDIA FERREIRA é fotógrafa, graduada em


História. Trabalhou para os jornais Jornal do
Brasil, Folha de São Paulo, Correio Brasiliense e
para as agências Sipa Press e Cone Sur press. Fez
still em vários filmes de longa e curta-metragem
e fotografou importantes espetáculos teatrais
e musicais no Rio de Janeiro. Desde o final da
década de 80 vem documentando os movimentos
feministas brasileiros e globais. Sobre o tema
realizou dez exposições individuais nas cidades
de Londres, Rio de Janeiro, Porto Alegre,
Brasília, Salvador e João Pessoa e participou
de várias coletivas nacionais e internacionais.
Autora dos livros “Marcha das Margaridas”- Ed.
Aeroplano, 2015, “Mulheres e Movimentos - Ed.
Aeroplano, 2004, e coordenadora editorial do livro
“Marcha das Mulheres Negras” - AMNB/Fundação
Ford, 2016. Atualmente coordena o portal www.
memoriaemovimentossociais.com.br, composto por
fotos de sua autoria que recebeu, em 2013, o prêmio
Memórias Brasileiras, conferido pelo Instituto Brasileiro
de Museus/Ministério da Cultura. É pesquisadora
associada do Programa de Pós-doutorado em
Estudos Culturais, do Programa Avançado de Cultura
Contemporânea, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro; e do Laboratório de História Oral e Imagem,
da Universidade Federal Fluminense. Recebeu, em
2004, o prêmio “Rio Mulher” na área da cultura,
conferido pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.
509
DOROTH DE CASTRO (1958 - 2010) foi uma das
fundadoras de Davida (hoje Coletivo Puta Davida)
e militante do movimento de prostitutas, ativista
do movimento negro e do de egressos do sistema
penitenciário. Como ela falava: “É uma militância
de vida toda”. Também foi cantora, bailarina,

PUTA LIVRO
capoeirista, poetisa e mãe de quatro. Como
ela também disse, elegeu a prostituição “como
trabalho (porque) minha realidade é a liberdade
... na prostituição eu encontrei tudo isso. Você vai
para onde você quer, na hora que quer, batalha o
dia que quer”.

ELISIANE PASINI doutora em Ciências Sociais


pela Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP). Antropóloga. Feminista. Ativista
pelos direitos das Trabalhadoras Sexuais.
Especialista nos temas mulheres, trabalho sexual
e HIV/Aids. Criadora e organizadora do grupo
“Puta diálogos: potencializando os estudos
sobre o trabalho sexual”. Colunista no Site
Saúde Pulsando. Colaboradora na ONG Ecos
Comunicação e Sexualidade e na Associação
Abracem (Marseille, França).

FABIANA RODRIGUES DE SOUSA doutora e


Mestra em Educação com estágio pós-doutoral
no Centro de Educação e Ciências Humanas da
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
investiga sexualidades dissidentes e processos
educativos na prática da prostituição. Educadora
popular e pesquisadora do Grupo Práticas Sociais
e Processos Educativos (UFSCar).

FÁTIMA MEDEIROS Fundadora e coordenadora


da Aprosba (Associação de Profissionais do Sexo
da Bahia) e trabalhadora sexual. Fundadora da
Articulação Nacional de Profissionais do Sexo/
ANPROSEX

FERNANDA MARIA VIEIRA RIBEIRO mestra


em Sociologia pela Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), professora do Instituto
Federal do Maranhão (IFMA) e ativista do Coletivo
Por Elas Empoderadas, integrante da Rede
Brasileira de Prostitutas (RBP).
510
FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA
doutora em Educação e Contemporaneidade
pelo Programa de Pós-Graduação em Educação
e Contemporaneidade (UNEB). Mulher Negra,
Educadora Popular, Psicóloga. Feminista e Ativista
pelos direitos das Trabalhadoras Sexuais. Criadora

PUTA LIVRO
e organizadora do grupo “Puta diálogos:
potencializando os estudos sobre o trabalho
sexual”.

FLAVIO LENZ, jornalista, escritor e mestre em


Comunicação, antifascista da cabeça aos pés,
carioca vivendo em Berlim, edita o jornal Beijo da
rua desde 1988. Colaborador da Rede Brasileira
de Prostitutas, cofundador do coletivo Davida
e de Daspu, e autor do livro Daspu: a moda
sem vergonha, compartilhou com Gabriela Leite
grande parte da vida profissional e afetiva.

FRIDA CARLA, escritora, poetisa e mulher


da vida. Mestranda pesquisadora da narrativa
putafeminista.

GABRIELA LEITE (1951-2013) Filha, Mãe,


Avó, Puta, Ativista, Filósofa da vida. Gabriela
Leite nasceu em 1951 em São Paulo, filha dos
movimentos de contracultura dos anos 1970.
Estudou sociologia na Universidade de São
Paulo e, no fim dos anos 1970, abandonou seus
estudos e seu trabalho como secretária por um
salário mais alto e um estilo de vida boêmio na
prostituição, trabalhando nas áreas de prostituição
em São Paulo, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Seu trabalho de organização com as prostitutas
começou em meados da década de 1980 em
resposta aos frequentes abusos de direitos
humanos vivenciados por suas colegas. Em 1987,
ela liderou a organização do primeiro encontro
nacional de prostitutas no Rio de Janeiro e logo
depois, em 1988, fundou o Beijo da rua, um jornal
sobre prostituição e direitos para prostitutas e
seus aliados em todo o país. Em 1989, ela passou
a colaborar com o Ministério da Saúde na luta
contra a AIDS e, nas três décadas seguintes,
trabalhou com o governo para desenvolver
projetos protagonizadas por prostitutas com
511
abordagens não estigmatizantes e baseadas em
direitos humanos. Gabriela foi uma das sócias
fundadoras da organização não-governamental
Davida no início dos anos 1990 (hoje Coletivo Puta
Davida) e da grife Daspu – das Putas – em 2005.
Ela escreveu dois livros, Eu, mulher da vida (1992)

PUTA LIVRO
e Filha, Mãe, Avó e Puta (2008), que foi adaptado
para o teatro e agora está sendo adaptado para o
cinema. Em 2010, ela fez história ao ser a primeira
prostituta a se candidatar ao Congresso nacional.
Gabriela nos deixou em 2013, mas a puta
revolução que ela começou continua.

HÉRCULES FERREIRA é carioca de 1978 e filho


de pernambucanos. Doutorando em Memória
Social, pesquisa a temática da morte através do
luto ressignificado como intervenção urbana,
tendo ainda interesses em temas diversos,
como o silêncio e sua relação com a mística, e
a prostituição com sua história e influência na
sociedade. Como bom sagitariano, trabalha
também como técnico de informática e instrutor
de muay thai.

INDIANARAE SIQUEIRA nascide em Paranaguá-


Paraná, sobrevivente da ditadura militar
empresarial-midiática (1964 - 1990), é fundadore
e foi 1° presidente da ONG Grupo Filadélfia
de Travestis, gays, lésbicas e liberados em
1995 na cidade de Santos-SP (uma das ongs
LGBTIAQPNB+ mais antiga do Brasil). É ume
des fundadores da RedTrans Brasil. É presidente
fundadora do Grupo Transrevolução idealizado
por Giselle Meirelles em 2009, ex - presidiárie na
França, onde cumpriu 2 anos e meio de prisão
por ser considerade proxenete/cafetina ao
criar uma rede de sublocação de imóveis pra
profissionais do sexo não serem mais explorades
e teve sua luta criminalizada por uma justiça
francesa racista, machista, lgbtifóbica e xenófoba
que começou uma caça aos imograntes. Pela
2° vez consecutiva é Vereadore suplente da
camâra municipal do Rio de Janeiro. É integrante
da Rede Brasileira de Prostitutas e do Coletivo
Puta Davida. É idealizadore e diretore do curso
preparatório PrepareNem, da CasaNem de
acolhimento LGBTIAQPNB+, uma ocupação

512
urbana que fez parte da Frente Internacionalista
de Sem-Tetos (FIST) e agora QUILOMBOLA.
Idealizadore da REBRACA LGBTIA+ uma
rede de 28 casas seguras e de acolhimento

PUTA LIVRO
para LGBTQIAPNB+ em todo o Brasil filiada a
Alianza Diversa de Casas de Acolhimento para
LGBTIAQPNB+ das Américas e países do Caribe
, idealizadore da REDE NEM DE EDUCAÇÃO,
GERAÇÃO DE RENDA E ACOLHIMENTO
PARA LGBTIAQPNB+ (RENEGRA) ,ume des
fundadores do Fórum De TransVestiGeneres do
RJ e da Frente LGBTIAQPNB + do RJ, ume des
organizadores da Marcha das Vadias no Brasil e
da Marcha da Visibilidade Trans e idealizadore da
Univerdivercidade Nem Davida. Foi expulse do
PSOL por lutar contra o machismo, LGBTIfobia,
racismo, aidsfobia, capacitismo, etarismo,
sexismo, especicismo, aporofobia, psicofobia
entre outras opressões. É TransVestiGenere
(palavra que criou pra se autodefinir e hoje usada
pela comunidade trans), é Trãe (Transvestigeneres
Reunides no Acolhimento de Excluides) palavra
que indica o lugar de cuidado binárizado
como masculino e feminino de pai e mãe. É
indiafroeuramericane, vegane, ateie, pute,
politique, anticapitaliste, anti- racista,anti-
facista e poetise. Seus escritos e ativismo estão
presentes em suas páginas nas redes sociais. É
internacionalmente conhecide pelo seu ativismo
através dos filmes INDIANARA e ACONCHEGO
DA TUA MÃE.

JOÃO SOARES PENA urbanista, graduado


pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
mestre e doutor em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Realizou doutorado sanduíche no Amsterdam
Institute for Social Science Research (AISSR), da
Universiteit van Amsterdam (UvA). É Analista
de Urbanismo do Ministério Público do Estado
da Bahia (MPBA). É integrante do grupo de
pesquisa ¡DALE! – Decolonizar a América Latina
e seus Espaços, vinculado à UFBA, e do Grupo
513
de Estudos e Pesquisa sobre Racismo (GEPR) do
MPBA. Interessa-se pelas relações entre espaço
urbano, raça, gênero e sexualidade.

JOÃO PENTAGNA é escritor, mestre em

PUTA LIVRO
Psicologia clínica pelo núcleo da subjetividade
na PUC/SP; doutorando pela USP no programa
Diversitas da FFLCH; idealizador dos cursos livres
Literatura e cosmopolítica; atualmente trabalha
mediando os grupos de estudos Psicanálise para
além do Édipo, Animismo e sonho e atuando
como psicanalista em São Paulo.

JOSÉ MIGUEL DE OLIVAR colombiano e pai do


León, é professor de antropologia na Faculdade
de Saúde Pública da Universidade de São Paulo,
e ativista do movimento brasileiro de prostitutas,
entre outras coisas.

KARINA DIAS GEA é Psicóloga e Mestre em


Psicologia Social (Política, Participação Social e
Processos de Identificação) pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua
principalmente nas áreas de estudos de Gênero;
Feminismo; Sexualidade; Direitos Humanos;
Ativismos; Cuidados Integrais e Desenvolvimento
Social.

LAURA REBECCA MURRAY professora Adjunta


do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em
Direitos Humanos da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (NEPP-DH/UFRJ) e integrante
do Coletivo Puta Davida e Rede Brasileira de
Prostitutas. Pesquisdora do Observatório da
Prostituição (LeMetro/IFCS/UFRJ) e coordenadora
do projeto de extensão, “Memória da Vida:
Organização e disseminação do acervo do
movimento brasileiro de prostitutas” (NEPP-DH/
UFRJ). Produz reflexões em formatos audiovisuais
e textuais sobre os temas da prostituição,
sexualidade, ativismos, saúde, política e direitos
direitos e coordena o Laboratório de Pesquisa
sobre Sexualidade, Política e Imagem - LaPeSPI..
514
LEONARDO TENÓRIO é homem trans
(transmasculino), de Recife, tem 31 anos, foi
trabalhador sexual por alguns anos, tem sido
pesquisador acadêmico também por uns anos e é
ativista de direitos humanos.

PUTA LIVRO
LILIAN TATIANA DE BARRO é graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Pará (UFPA) .É professora de Sociologia na rede
pública estadual de ensino de Minas Gerais.
É Trabalhadora Sexual do ramo da Massagem
Tântrica. Atua em pesquisas sobre Gênero, Corpo
e Sexualidade.

MARCO DREER BUARQUE é pesquisador e


preservador audiovisual. Mestre em Bens Culturais
e Projetos Sociais pela Fundação Getulio Vargas
(FGV), trabalha com preservação de acervos
audiovisuais e digitais há quase 20 anos. Foi
consultor de diversas instituições públicas e
privadas como Arquivo Nacional, Instituto Moreira
Salles e Museu da República, além de acervos
particulares. Atualmente é consultor da Fiocruz
nos projetos de preservação digital da instituição.

MARIA DE JESUS ALMEIDA COSTA


Ex-presidenta da Associação de Prostitutas do
Maranhão (APROSMA), Vice-Presidenta da União
de Moradores do Centro Histórico de São Luís,
Diretora da Escola de Samba Flor do Samba,
membro do Boi de Orquestra Lendas e Magias
e ativista do Coletivo Por Elas Empoderadas,
integrante da Rede Brasileira de Prostitutas (RBP).

MAYARA FERREIRA DA SILVA, graduanda em


Serviço Social pela UFRJ. Atuei como produtora
do filme OGBÓN e como pesquisadora de base
para a elaboração de um filme sobre religiões
neopentecostais e religiões de matrizes africanas.
Atuei como pesquisadora e como assistente de
produção nas gravações do filme IROKO em São
Pedro da Aldeia.
515
MILENE FERREIRA é Putativista, coordenadora
do CIPMAC (Centro informativo de Prevenção,
Mobilização e Aconselhamento aos Profissionais
do Sexo de Campina Grande) e membro da Rede
Brasileira de Prostitutas. O cordel apresentado
neste livro, escrito por ela, foi idealizado pelo

PUTA LIVRO
poeta Aziel.

MONIQUE PRADA é trabalhadora sexual,


escritora, feminista, uma das fundadoras da CUTS
(Central Unica de Trabalhadoras Sexuais). Hoje é
membra da Articulação Nacional de Profissionais
do Sexo/ANPROSEX.

NAARA MARITZA mestre, Programa de Pós-


Graduação de Ensino em Educação Básica /
PPGEB / Mestrado Profissional, Instituto de
Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira -
Universidade do Estado do Rio de Janeiro /
CAp-UERJ (2019). Linha de pesquisa narrativa
e (auto)biografia; Pós-graduada em Docência
no ensino superior / Universidade Federal de
Uberlândia/UFU (2010). Graduação em pedagogia
licenciatura com ênfase em Ciência da Religião
pela Faculdade Católica de Uberlândia (2008)
e bacharel em Gestão (2008). Atualmente,
professora alfabetizadora na favela da Rocinha
/ Rio de Janeiro; criadora de narrativas (auto)
biográficas docentes em redes sociais: @
diariodebordoalfabetizacao; participante da
“rede de maestros y maestras, educadores y
educadoras que hacen investigación e innovación
desde su escuela y comunidade” que atuam com
as narrativas e experiências (auto)biográficas de
professores, como instrumento metodológico,
dos países da América do sul e Espanha para se
ressignificar a educação pública; ativista pelos
direitos das trabalhadoras sexuais no Coletivo
Puta Davida que atua no município do Rio de
Janeiro / Brasil e integrante da Rede Brasileira de
Prostitutas (RBP).
516
NATÂNIA LOPES é escritora, mestre e doutora
em ciências sociais pela UERJ. Pós-doutoranda em
Letras pela UFF, onde realiza pesquisa sobre as
escritas de si. É putativista da Rede Brasileira de
Prostitutas e do Coletivo Puta Davida.

PUTA LIVRO
NÉLSON RAMALHO nasceu em Lisboa a 21
de agosto de 1981. Licenciou-se e doutorou-
se em serviço social pela Universidade Católica
Portuguesa e pelo Iscte - Instituto Universitário
de Lisboa, respetivamente. É professor auxiliar
na Universidade Lusófona onde leciona várias
unidades curriculares no Instituto de Serviço
Social. É assistente de investigação no Centro
de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-
Iscte), tendo escrito várias publicações sobre
sexualidade, gênero, transgênero, trabalho
sexual, pobreza, exclusão social e serviço social.
Ativista pelos Direitos Humanos, colabora em
projetos de investigação e intervenção social com
trabalhadores do sexo. É membro da direção da
delegação de Lisboa, Tejo e Sado da Associação
para o Planeamento da Família e integra a
Rede Sobre Trabalho Sexual. A sua tese de
doutoramento sobre a realidade da prostituição
travesti foi distinguida, em 2019, com o “Prémio
APAV para a Investigação” e, em 2020, com o
“Prémio Silva Leal”.

PALOMA COSTA licenciada em Letras – Língua


Portuguesa pela Universidade do Estado Pará
(UEPA) – e Bacharela em Museologia pela
Universidade Federal do Pará (UFPA). Contadora
de Histórias do Grupo de Extensão Griô e
integrante do Coletivo Aparelho desde 2016.
No coletivo, atuo principalmente nos processos
de Curadoria, Expografia e Mediação de leitura,
integrando o Núcleo de Ações Públicas e Núcleo
Educativo desempenhando, assim, um papel
de articuladora ativa das ações na comunidade
e de produção artística a partir das vivências
em coletividade. Escritora e multiartista com
processos que são atravessados pela escrita
criativa, fotografia, bordado, desenho e escultura.
517
PATRÍCIA ROSA é Puta, Putativista pelos
direitos sexuais & reprodutivos, Performer,
Camerawoman, Escrevivant, Produtora Musical &
Cultural, Mentirozza profissional & Coordenadora
do Coletivo Puta Davida & Daspu, integrante da
Rede Brasileira de Prostitutas & faz parte do PAC

PUTA LIVRO
member do Red Umbrella Fund.

PAULA LAUFFER é artista visual autodidata,


ex-trabalhadora sexual e na sua pesquisa
artística traz questionamentos sobre educação
sexual, gênero e classe. Transita também pela
performance. Sempre numa tentativa de arejar
ideias e trazer novas possibilidades de desejo e
performance existencial antagônicas ao fascismo e
ao neoliberalismo.

PROFÂNIA TOMÉ multiartista nordestina,


tem uma pesquisa com o limite onde chega a
exaustão. Faz parte da EdiyPorn e se aventura nas
multifacetas artísticas onde explora e desconstrói
obsessões.

RAFAELA DE SÁ trabalhadora sexual,


coordenadora geral Daspu e mãe.

REJANE BARCELLOS é a Rainha do Verso,


estudante de letras pela UFRJ. Atriz com 27 anos
de carreira, cenógrafa e aderecista formada pela
FAETEC, performer, escritora, poeta e slammer.
Participou de uma antologia e alguns zines.
Atualmente organiza o slam Maré Cheia e compõe
o Coletivo Slam das Minas. Moradora do Maré e
da favela retira os elementos da construção da sua
obra.

RENATO GONÇALVES FERREIRA FILHO doutor


em Ciências da Comunicação pela Universidade
de São Paulo (ECA-USP), onde defendeu a
tese intitulada “Estética, ética e semiótica do
homoerotismo pós-hiv/aids. Contribuições
comunicacionais e semiopsicanalíticas para a
saúde pública a partir do consumo digital da
pornografia amadora”. Mestre em Filosofia pelo
Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-
518
USP), onde realiza um pós-doutorado atualmente.
Membro do GESC3 (Grupo de Estudos
Semióticos em Comunicação, Cultura e Consumo).
Pesquisador e escritor, é ainda autor dos livros
“Eros pornografado. Homoerotismo masculino
e pornografia amadora” (2022), “Nós duas: as

PUTA LIVRO
representações LGBT na canção brasileira” (2016),
“Questões LGBT e música brasileira ontem e
hoje” (2020) e “Marina Lima: Fullgás. O livro do
disco” (2022).”

RENZO GOSTOLI nascido em Buenos Aires,


começou a fotografar nos anos 70 tendo,
desde então, fotografias publicadas em jornais
e revistas da Argentina, México, Brasil e do
mundo. Foi fotógrafo oficial do Ballet Nacional
de México (1977-1987) e de 1984 a 2010
trabalhou alternadamente no México e no Brasil
nas agências internacionais France Presse (AFP),
Reuter (RTR), Associated Press (AP) cobrindo
todo tipo de evento noticioso sendo publicado
nos maiores jornais do mundo. Paralelamente
fez trabalhos fotográficos independentes para
publicações como Clarin, La Nación de Argentina,
El País, Cambio 16 de Espanha, e no México,
ilustrando livros do pesquisador de dança
Alberto Dallal e Secretaria de Educação Pública
do México. Tem fotos publicadas em Time, Los
Angeles Times, El Mundo, Latin Trade, Folha de
S.Paulo, e Miami Herald, entre outros jornais.
Atualmente está organizando junto com um sócio
o arquivo fotográfico de Austral Foto.

RICARDO MASSAO NAKAMURA NASSER


advogado e Assessor Jurídico em Direitos
Humanos (OAB/RJ nº 235.313), Pesquisador
Associado ao Laboratório Estado, Sociedade,
Tecnologia e Espaço (LabEspaço/INCT/IPPUR/
UFRJ), Mestrando em Políticas e Planejamento
Urbano e Regional pela Universidade Federal
do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) e Graduado em
Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ).
Atualmente se dedica à investigações acadêmicas
no campo da diversidade corporal, intelectual
e existencial com ênfase em deficiências,
acessibilidade, inclusão social e direito à cidade.
519
SARA MARINHO estudante de biomedicina
no Centro Universitário IBMR e profissional de
micropigmentação. Ativista no Coletivo Puta
Davida.

PUTA LIVRO
SORAYA SILVEIRA SIMÕES é antropóloga,
professora do IPPUR-UFRJ, pesquisadora
associada do Laboratório de Etnografia
Metropolitana/LeMetro/IFCS-UFRJ e
coordenadora do Observatório da Prostituição/
UFRJ. Trabalhou em Davida - prostituição, direitos
civis, saúde e atua junto a Rede Brasileira de
Prostitutas desde 2000.

TAMPEP é a Rede Européia para a Promoção dos


Direitos e da Saúde de Trabalhadorxs do Sexo
Migrantes. Foi fundada em setembro de 1993 por
Licia Brussa, Carla Corso, Pia Covre, Cristina Boidi
e Veronica Munk. É hoje uma plataforma pelos
direitos de trabalhadorxs do sexo migrantes na
Europa. Site: www.tampep.eu.

THADDEUS GREGORY BLANCHETTE é


professor de antropologia na Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Macaé, e professor
contribuinte para o Programa de Pós Graduação
de História da Universidade Federal Fluminense.
Cidadão brasileiro e euamericano, ele estuda
prostituição, migração, e as interssecções de
gênero, raça, e classe no Rio de Janeiro faz vinte
anos, tendo publicado uns 50 artigos científicos ao
respeito desses temas.

TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA é antropólogo,


professor da Universidade do Estado do Pará
(UEPA) e da Secretaria de Executiva de Estado e
Educação do Pará (SEDUC-PA) e atualmente cursa
o doutorado em Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Atua
principalmente nos seguintes temas: relações
étnico-raciais e de gênero, corpo e sexualidade,
com ênfase em mercados do sexo e economias
sexuais, mais especificamente, prostituição e
ouros nichos deste mercado.
520
THAYANE BRÊTAS é candidata a doutorado
no programa de Estudos Urbanos Globais da
Rutgers University-Newark. Formou-se pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
com bacharelado em direito e mestrado em

PUTA LIVRO
Teorias Jurídicas Contemporâneas com ênfase
em Sociedade, Direitos Humanos e Arte, com sua
tese investigando as condições de trabalho das
profissionais do sexo em alguns dos principais
espaços de comércio do sexo na cidade do
Rio de Janeiro. Trabalhou no Laboratório de
Direitos Humanos da UFRJ e em projetos do
Observatório da Prostituição em parceria com
o Coletivo PutaDavida e a Rede Brasileira de
Prostitutas. Agora, como estudante de doutorado
no programa de Estudos Urbanos Globais, seu
objetivo é continuar sua pesquisa sobre a indústria
do sexo e as maneiras pelas quais a aplicação da
lei e das políticas influenciam a vida das mulheres
na profissão.

VÂNIA REZENDE é prostituta, negra, poetisa,


bissexual. Fortalece o time das matriarcas, história
viva & ativa de nosso Movimento Brasileiro de
Prostitutas. Coordena a Associação Pernambucana
das Profissionais do Sexo (APPS) e integra a
Rede Brasileira de Prostitutas, a Plataforma
Latino-Americana de Pessoas que Exercem
Trabalho Sexual (PLAPERTS) & o Fórum LGBT de
Pernambuco.

WALEFF DIAS (Brasil, 1993). Psicólogo, artista


interdisciplinar e mestre em Artes Visuais na
Universidade Nacional de Brasília.
521
PUTA LIVRO
Em 2022 celebramos 35 anos da atuação
organizada do movimento brasileiro de
prostitutas e 30 anos do Coletivo Puta
Davida. Este Puta Livro, organizado a
partir da parceria entre o Coletivo Puta
Davida e o Observatório da Prostituição/
UFRJ, é um repertório plural de narrativas
acerca da prostituição que reúne textos,
poesias e narrativas de várias pessoas
que compõem uma parte importante
desta história. Esta obra resulta de dois
processos de trabalho: parte foi elaborada
por ocasião de uma pesquisa sobre os
impactos dos megaeventos no trabalho
de prostitutes que atuavam em diferentes
ambientes como zonas, sites, boates e
bordéis (projeto contemplado com o
edital FAPERJ E-26/2010.137/2016) e
outra parte foi selecionada a partir de
uma chamada pública para envio de
propostas de artigos, ensaios escritos
e fotográficos, poesias etc., além de
convites a trabalhadores sexuais, artistas
e parceiros do movimento de putas no
Brasil. A obra se divide em três blocos: a
primeira delas, disPUTAr narrativas, reúne
material sobre o fazer prostitucional,
os conflitos implicados no cotidiano do
trabalho sexual e as diversas formas de
enfrentar os estigmas.
522
PUTA LIVRO
Na segunda parte, disPUTAr os espaços
urbanos, estão reunidos trabalhos que
abordam as questões do espaço e como
prostitutes vivenciam os diferentes
campos de batalha que se instauram nas
cidades, negociam a ocupação destes e
vivenciam as experiências do trabalho
sexual em meio a disputas decorrentes da
especulação imobiliária e dos projetos
de gentrificação e moraliazação. Por fim,
PUTA LUTA! Pandemia e os desafios do
presente reúne um conjunto de ensaios,
poesias e imagens que apresentam as
estratégias de vida protagonizadas por
prostitutes no enfrentamento à pandemia
de Covid-19. O protagonismo de
prostitutes foi uma prioridade em todas
as etapas de organização do livro, neste
sentido, seu conteúdo é proveniente
das transas, diálogos e colaborações
coletivas. Um manifesto de existência e
um instrumento de resistência.
523 PUTA LIVRO

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