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PUTA LIVRO
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2
Este trabalho está licenciado sob a Licença
Atribuição-NãoComercial-SemDerivações
4.0 Internacional Creative Commons. Para
visualizar uma cópia desta licença, visite
http://creativecommons.org/licenses/
by-nc-nd/4.0/
PUTA LIVRO
ORGANIZAÇÃO
Angela Donini
Laura Murray
Naara Maritza
Natânia Lopes
Patricia Rosa
REVISÃO
Natânia Lopes
ILUSTRAÇÕES
LEONARDO LUBATSCH
PARECERISTAS
Amanda Calabria
Ana Paula da Silva
Angela Donini
Elaine Bortolanza
Flavio Lenz
Gabriel Alencar
Jose Miguel Olivar
Natânia Lopes
Naara Maritza
Laura Murray
Patricia Rosa
Soraya Simões
PARCERIAS
CasaNem
Coletivo Puta Davida
Critical Trafficking and Sex Work
3
Studies/Centre for Feminist
Research - York University
LaPeSPI - NEPP-DH/UFRJ
Observatório da Prostituição -
LeMetro/IFCS e IPPUR/UFRJ
PUTA LIVRO
Poplab - UNIRIO
FINANCIAMENTO
FAPERJ
Pesquisa: Os impactos dos megaeventos
esportivos nos mercados do sexo no Rio
de Janeiro (E-26/2010.137/2016)
Pesquisadora responsável:
Soraya Silveira Simões
22-136669 CDD-B869.8
6
16
Apresentação
ANGELA DONINI, NATÂNIA LOPES,
PUTA LIVRO
NAARA MARITZA DE SOUSA,
LAURA MURRAY E PATRÍCIA ROSA
23
Não. Não deem direitos as putas,
trans e travestis
INDIANARAE
SIQUEIRA
27
Mulher da vida
VÂNIA REZENDE
28
Dedo no rabo do teu pseudo-transgredir
MONIQUE PRADA
31
Ressignificação da palavra “puta”: reflexões
advindas de narrativa de memórias (auto)
biográficas de uma puta mulher
NAARA MARITZA DE SOUSA
45
Uma experiência de trabalho sexual sendo
homem trans e outros temas
sobre prostituição
LEONARDO FARIAS PESSOA TENÓRIO
55
Coluna da Gabi: uma nova geração
de pesquisadores da prostituição
GABRIELA LEITE
56
7
Luna
PALOMA COSTA
57
PUTA LIVRO
A puta do professor
FRIDA CARLA
58
A história que não pode ser contada
NATÂNIA LOPES
63
Ser puta é quebra de estigma: a puta
política e as transas no tempo. Trajetória
militante de Lourdes Barreto
AMANDA DE MELLO CALABRIA
76
Mulher negra é revolução
VÂNIA REZENDE
77
Nossos nós
SARA MARINHO
78
Lugares em movimento: putas
protagonistas e aliades no jornal Beijo
da rua. E um pouco mais
FLAVIO LENZ
116
Reflexões sobre despir o corpo e vestir
o rosto. E um convite para putas
e simpatizantes
NATÂNIA LOPES
8
133
Comentário ao texto “Reflexões sobre
despir o corpo e vestir o rosto. E um
convite para putas e simpatizantes”
de Natânia lopes
PUTA LIVRO
JOÃO PENTAGNA
136
Aquí estoy, no sé si entendí
JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO
143
A dor se exibe, enquanto o prazer e a
necessidade têm suas vergonhas
ANDRE ARAUJO
144
Recomeços
SARA MARINHO
146
Amar não é pecado
DOROTH DE CASTRO
148
Trabalho sexual é trabalho
PROFÂNIA TOMÉ
149
Banque o pornô independente
PROFÂNIA TOMÉ
150
Gritos da calçada
REJANE BARCELLOS
9
157
Digitalização e preservação do acervo
audiovisual da ONG Davida
MARCO DREER BUARQUE
PUTA LIVRO
171
Onde a memória disputa
HÉRCULES DA SILVA
XAVIER FERREIRA
182
Sobre(vivências)
INDIANARAE SIQUEIRA
185
Reflexão sobre o movimento
negro e prostituição
DOROTH DE CASTRO
186
Fotopoema: “prostituta”
NAARA MARITZA DE SOUSA
189
Autobiografia das coisas
NATÂNIA LOPES
193
Seja Pute. Pratique putarias.
Viva a faculdade da putaria.
INDIANARAE SIQUEIRA
195
Sem título
BIANCA FERREIRA
196
10
Margem da tela
RICARDO MASSAO
NAKAMURA NASSER
PUTA LIVRO
198
Para além das imagens, a escrita
RAFAELA DE SÁ
200
Seleção de fotos desfile Daspu
CLAUDIA FERREIRA
205
Prefiro a zona meu amor
ANDRE ARAUJO
206
#CasaNemCasaViva
INDIANARAE SIQUEIRA
210
“Fadas Baianas”: a trajetória da APROSBA
na luta por permanência no Centro
Histórico de Salvador
FÁTIMA MEDEIROS
220
O amor é um cão mamaluco
ANDRE ARAUJO
221
Não há claridade que se sustente nos
domínios noturnos da sexualidade
ANDRE ARAUJO
222
11
Vila Mimosa na cidade em disputa
SORAYA SILVEIRA SIMÕES
PUTA LIVRO
234
Putativismo, feminismo e resistência de
prostitutas nas redes e nas ruas
FABIANA RODRIGUES DE SOUSA
249
Fotográfias de eventos Davida
RENZO GOSTOLI
253
Comércio sexual na cidade olímpica:
prostituição, policiamento e exploração
sexual e midiática durante os jogos
olímpicos no Rio de Janeiro, 2016
THADDEUS BLANCHETTE, ANA PAULA DA
SILVA, LAURA MURRAY, SORAYA SIMÕES
290
O que Você Não Vê: construção da
exposição fotográfica sobre prostituição
e os jogos olímpicos
ANGELA DONINI
E LAURA MURRAY
311
Seleção de fotos da exposição: “O que
você não vê: a prostituição vista por nós
mesmas”
320
Uma análise sócio-histórica sobre o
«conde»: o território de prostituição
travesti em Lisboa
NÉLSON RAMALHO
12
332
“Joga pedra na geni”: política, intervenção
urbana e percepção da prostituição
em Amsterdã
PUTA LIVRO
JOÃO SOARES PENA
348
Uma assassina
ANDRE ARAUJO
349
Campanha
TAMPEP
354
Batendo salto at work
PAULA LAUFFER
355
Cordel
MILENE FERREIRA
360
Memória e luta na prostituição
ludovicense: diálogos com a ativista
Maria de Jesus
FERNANDA MARIA VIEIRA RIBEIRO E
MARIA DE JESUS ALMEIDA COSTA
378
Sobre captura e esvazimento
PAULA LAUFFER
13
378
Ok line, no trabalho
PAULA LAUFFER
PUTA LIVRO
379
O poder de empoderar
VÂNIA REZENDE
380
Estrutura, não evento: o megaevento
esportivo como pandemia
AMANDA DE LISIO
& THAYANE BRÊTAS
389
Lute como uma puta
PATRÍCIA ROSA
392
A incidência política do movimento de
prostitutas em tempos de pandemia:
a experiência do grupo de mulheres
prostitutas do estado do Pará (GEMPAC)
TIAGO LUÍS COELHO VAZ SILVA
409
Prostituição masculina: itinerários de um
taxiboy durante a pandemia do covid-19
em Recife e Caruaru
ANTONIO FERREIRA NETO
424
Um mês ou mais de saudade
WALEFF DIAS
14
426
As mediações e as dimensões
do trabalho sexual digital hoje;
PUTA LIVRO
perspectivas comunicacionais
RENATO GONÇALVES
FERREIRA FILHO
438
O afeto que faz política: trabalhadoras
sexuais unidas resistindo à covid-19
ELISIANE PASINI E
FERNANDA PRISCILA
ALVES DA SILVA
454
Lambe lambe
PAULA LAUFFER
455
Política do afeto: relatos de experiências
sobre o fundo de emergência gestado
por e para trabalhadoras sexuais
LILIAN TATIANA VIEIRA
E KARINA DIAS GEA
470
Transgprostituição virtual e violência
de gênero na era digital: novos desafios
ANA PAULA ZAPPELLINI SASSI
485
Ferramentas de trabalho
PAULA LAUFFER
15
486
Entre os mercados do sexo e a pandemia:
um estudo com mulheres profissionais
do sexo em um serviço de saúde
na cidade de São Paulo.
PUTA LIVRO
CARLA BEATRIZ CAMPOS
499
Lockdown de uma vida lgbtia+
open down for loving in the love
INDIANARAE SIQUEIRA
502
Carta para Gabriela
FÁTIMA MEDEIROS
504
Retrato de Gabriela Leite
PAULA LAUFFER
16
PUTA LIVRO
Em 2022 comemoramos 35 anos da
atuação organizada do movimento brasileiro
de prostitutas e 30 anos do Coletivo Puta
Davida. Com um repertório plural de
narrativas acerca da prostituição, este livro
materializa e celebra esta trajetória.
O livro está vinculado à pesquisa “Os
impactos dos megaeventos esportivos
nos mercados do sexo no Rio de Janeiro”
contemplada com o edital FAPERJ (E-
26/2010.137/2016) e coordenada a partir da
parceria entre o Observatório da Prostituição
e o Coletivo Puta Davida. O Observatório
da Prostituição (OP) é um projeto de
extensão do Laboratório de Etnografia
Urbana (LeMetro/IFCS) que está vinculado ao
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional (IPPUR) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. O OP agrega pesquisa,
ativismo e mobilização social no campo da
prostituição com o objetivo de promover
os direitos humanos, sexuais e trabalhistas
de prostitutes. O Coletivo Puta Davida
derivou da Ong Davida: Prostituição, Direitos
Civis e Saúde, fundada pelas prostitutas
ativistas Gabriela Leite e Doroth de Castro
em 1992 no Rio de Janeiro. O Coletivo tem
uma atuação intensa por direitos sexuais,
direito à saúde, direitos trabalhistas e
ativismo cultural, sempre com liderança e
17
protagonismo de prostitutas em todas as
suas ações. A realização deste livro integra e
soma as trajetórias do Coletivo Puta Davida e
do Observatório da Prostituição.
O projeto original do livro - planejado
PUTA LIVRO
inicialmente em 2015 - estava focado no
tema dos “mega-eventos e a prostituição”.
Porém, considerando a intensidade de
produções poéticas, de pesquisas, ensaios
textuais, fílmicos, fotográficos etc, que vem
sendo produzida por prostitutes, ativistes
e pesquisadores, o projeto se expandiu,
agregando mais dois eixos centrais além do
tema dos megaeventos, são eles: as questões
do espaço urbano contemporâneo e suas
relações com a prostituição e, os impactos
e desafios da pandemia de Covid-19
para o trabalho sexual. Neste sentido,
na parceria entre o Coletivo Puta Davida
e o Observatório da Prostituição para a
realização deste livro, diferentes miradas se
enlaçam e narram as batalhas e os processos
criativos em diferentes campos de atuação do
trabalho sexual.
Os materiais reunidos nesta obra
resultam então de dois processos de
trabalho: parte foi elaborada por ocasião
da pesquisa sobre os impactos dos
megaeventos no trabalho de prostitutes
que atuavam em diferentes ambientes como
zonas, sites, boates e bordéis. E outra parte
foi selecionada a partir de uma chamada
pública para envio de propostas de artigos,
ensaios escritos e fotográficos, poesias
etc., além de convites a pesquisadores,
artistas, trabalhadores sexuais e parceiros do
Movimento de Putas no Brasil. Recebemos,
desta maneira, um material muito variado,
com diferentes narrativas, linguagens e
perspectivas a respeito da prostituição e que
representa bem a diversidade que marca o
movimento de prostitutes.
O livro se divide em três partes ou
blocos: a primeira delas, disPUTAr narrativas,
reúne material sobre o fazer prostitucional, os
conflitos implicados no cotidiano do trabalho
sexual e as diversas formas de enfrentar
18
os estigmas. As narrativas e relatos nesse
primeiro bloco estão carregados de afetos e
percepções tecidas a partir da experiência na
prostituição (ou em diálogo com ela). Nele
PUTA LIVRO
pode-se localizar, mais do que nos outros
dois blocos que compõem o livro, a questão
da(s) identidade(s) relacionadas à prostituição
e seus problemas. Ao longo da leitura
pode-se compreender como as prostitutas
transformam os efeitos dos processos que
colam as trajetórias em identidades fixas
reduzindo as vidas, afetos e a profissão.
Com efeito, a questão do estigma que
atravessa e costura esse lugar de Puta aos
diversos contextos por onde trabalhadores
sexuais circulam, nos quais vivem, é assunto
central no tema da prostituição, uma vez
que desenha um campo de forças onde
trabalhadores sexuais são chamades a atuar.
Se por um lado o estigma carrega consigo
rotulações e classificações que pressionam e
massacram, violentam e matam, por outro, o
agenciamento da identidade de Puta libera
o valor e o sentido dado vulgarmente à
atividade da prostituição. Assim, os caminhos
se tecem pela construção política, artística,
científica, mas também via atuação criativa
cotidiana no trabalho, no âmbito da família e
nos espaços públicos.
Na segunda parte, disPUTAr os espaços
urbanos, estão reunidos trabalhos que
abordam as questões do espaço e como
prostitutes vivenciam os diferentes campos
de batalha que se instauram nas cidades,
negociam a ocupação desses e vivenciam
as experiências do trabalho sexual em meio
a disputas decorrentes da especulação
imobiliária e dos projetos de gentrificação e
moralização. As parcerias, os processos de
luta, as conquistas por moradia são narradas
nas diferentes formas de apresentação.
Este bloco reúne também ensaios
e imagens que resultaram do projeto de
pesquisa sobre os impactos dos jogos
olímpicos no trabalho sexual. Ao comparar
as pesquisas etnográficas realizadas nas
19
principais zonas de prostituição no Rio de
Janeiro durante a Copa do Mundo em 2014
e novamente nos Jogos Olímpicos em 2016,
a equipe de pesquisa concluiu que mais
uma vez, o grande número de clientes de
PUTA LIVRO
prostituição, previsto pela mídia e pelas
autoridades, não se concretizava e que os
Jogos tiveram um impacto negativo no
trabalho sexual na cidade. Além da falta
de clientes, diversos outros preconceitos,
desigualdades, pânicos e violências -
atravessados por racismo, sexismo, classismo
e transfobia - foram observados a partir da
mobilização das categorias de “exploração
sexual” e “turismo sexual” pela mídia, por
agentes de segurança do Estado e por
organizações e pessoas “do bem”.
Por fim, PUTA LUTA! Pandemia e os
desafios do presente reúne um conjunto de
ensaios, poesias e imagens que apresentam
as estratégias de vida protagonizadas
por prostitutes na pandemia. Destacado
nesta seção é o ativismo de trabalhadores
sexuais em diversos cantos do Brasil que
- através de suas ações, gestos, afeto e
solidaridade - foram forças literalmente vitais
nas zonas diante da total ausência de apoio
do governo federal e sua política de morte
diante da emergência pandêmica. As escritas
também refletem sobre o trabalho sexual
contemporâneo, dialogando tanto com a
questão do isolamento e distanciamento
provocados e instaurados durante a
pandemia quanto com os atravessamentos e
desafios da era digital.
Desde a chamada pública,
conceitualizamos a pandemia como um mega-
evento no sentido de ser algo que provocou
uma re-organização total de territórios
urbanos e estratégias vitais de resistência
frente a continuação de uma necropolítica
que despeja e despreza corpos lidos
como ameaças e/ou contraprodutivos aos
processos neoliberais em curso. Uma política
que incentiva a continuação de economias
20
e mercados sem dar valor ao trabalho e
condições necessárias para as pessoas
trabalharem e viverem com segurança nos
lugares que ocupam e corpos que habitam.
Acompanhando a interrogação de Indianarae
PUTA LIVRO
Siqueira na poesia publicada nesta seção do
livro, como falar e pensar sobre isolamento e
distanciamento social do lugar de populações
que sempre estiveram isoladas e distanciadas
de suas famílias e da sociedade? Como
trabalhar quando não é possível tocar os
corpos? Como militar desde o isolamento?
Como sentir e falar de prazer num momento
de crise e morte? Ou talvez melhor, como não
falar sobre prazer, dinheiro, sexo e vida num
momento em que o mundo parece prestes a
acabar?
Importante ainda ressaltar o
protagonismo de prostitutes neste projeto
em pelo menos três momentos. Primeiro,
durante a pesquisa sobre os megaeventos,
trazendo seus cotidianos através de relatos
e fotografias no período das Olimpíadas
de 2016, no Rio de Janeiro. As fotografias
produzidas neste processo resultaram em um
site e exposições cujo nome foi definido por
prostitutes que participaram do processo:
“O que você não vê: a prostituição vista
por nós mesmas”. Algumas destas imagens
fazem parte deste livro documentando o
vazio dentro das zonas e a frustração de
trabalhadores sexuais, junto com paisagens
de resistência, prazer e cuidado.
Segundo, pelo fato de prostitutes terem
sido convidades ou mesmo incentivades
a enviarem seus trabalhos pela chamada
pública. Tais contribuições trazem livremente
assuntos (e formas de abordá-los) que cada
pessoa considerou relevante a partir do tema
geral da atividade prostitucional. E terceiro,
mulheres que são ou foram trabalhadoras
sexuais, ligadas ao Coletivo Puta Davida,
participaram como organizadoras deste livro,
definindo critérios de seleção das propostas
enviadas durante a chamada, avaliando as
contribuições enviadas e ainda cuidando
21
da revisão e encadeamento dos trabalhos,
estruturando, portanto, o volume.
Na atual conjuntura política de nosso
país, assumir a puta luta através deste livro
proveniente da transa, diálogo, união e
PUTA LIVRO
produção de protagonistas do movimento
de prostitutes, trabalhadoras sexuais,
pesquisadores e ativistas, é um manifesto
de existência e mais um instrumento de
resistência da luta por direitos e respeito a
nossa categoria.
A leitura de um livro e como o seu
conteúdo irá nos transformar em leitores
é algo muito subjetivo, pois depende dos
contextos e das experiências de cada um e
de como cada um se relaciona com a temática
apresentada. O que irá aproximar muites,
no entanto, pensamos ser a característica
formativa desta leitura. Cada bloco se
apresenta como uma orgia de gêneros
discursivos, recheados de experiências que
nos prendem a atenção por seus conteúdos,
em que a cada palavra lida contribui para
a compreensão das questões acerca do
trabalho sexual sem a hipocrisia e o falso
moralismo (que se deita e se cria a partir
de experiências com e por prostitutes), nos
desperta, instiga e transforma.
PUTA LIVRO
DIS
R
IVAS
RAT
NAR
23
INDIANARAE
SIQUEIRA
PUTA LIVRO
As putas, trans e travestis não podem e
não devem ser escutadas - dizem.
Se essas pessoas tiverem voz e vez,
se deixarem que tenham direitos e ocupem
os lugares junto a todes na mesma sala de
aula, no mesmo ambulatório médico, no
mesmo templo religioso, no mesmo lugar de
lazer onde levam a família tradicional, toda
sociedade sucumbirá com seu machismo
patriarcal, sua hipocrisia, seu racismo, sua
lgbtifobia, seu etarismo, seu capacitismo,
sua putafobia, sua aidsfobia, sorofobia,
especismo, aporofobia, elitismo, e todes seus
sufixos fobicos opressores sucumbirão.
A sociedade que conhecemos deixará
de existir se putas travestis tiverem direito
de ocupar os mesmos espaços sociais a que
todes têm direito.
A sociedade não sobreviverá a uma
sociedade de putas e filhes de putes pois
escracharão na cara dessa sociedade sua
hipocrisia, a fragilidade de seus fundamentos
que precisam inventar mecanismos de
controle como religiões, heterossexualidades,
binariedades e todo tipo de controle sobre a
sexualidade das pessoas.
Pois dentro do calor úmido de uma
buceta pela qual se pode nascer, pela qual se
pode morrer, no deslizar da sobre uma piroca
penetrante ou sendo engolida por bocas,
bucetas ou por um cu apertado de início,
que com o consentimento vai relaxando e
24
mostrando que em seu interior não é só
merda, mas também gozo, dentre tudo isso a
sociedade é desnudada, mostrada, exposta, e
não sobreviverá ao cheiro do suor misturado
ao gozo.
PUTA LIVRO
Os pais de família terão medo de
passear no parque e correr o risco de sua
esposa impoluta do lar que lhe foi entregue,
talvez mesmo contra a vontade dela, se
encontre com a puta com quem ele goza e
talvez faça essa puta gozar como não faz a
própria esposa.
Ele tem medo de que sua esposa se
INDIANARAE SIQUEIRA
torne amiga da puta e que talvez acabe se
tornando puta ao descobrir que ele faz as
putas gozarem e ele reprimindo tudo isso já
imagina sua esposa no puteiro sendo comida
por outros homens, tendo a buceta sugada
por mulheres, tendo os seios que nem ele se
atreveu a tocar e os guardou somente para
alimentar sua prole e descendência, que
agora estão sendo sugados por travestis que
colocam na boca de sua impoluta esposa,
que só deveria beijar respeitosamente a
testa das crianças, e que agora recebe penis
de travestis que já penetraram o cu de seu
marido, que já se entregaram em 69 tendo
agora homens com bucetas a reinvendicar
também seus espaços de homens e também
um lugar de putos no puteiro, quando alguns
desses ontem ele penetrou e pagou como
símbolos de uma feminilidade que ele só
encontrou em puteiros, esquinas e vielas
onde se exerce a prostituição.
E o pior é olhar pra sua esposa vendo
seu rosto esplendoroso, iluminado e feliz
desse sentimento que ele nunca foi capaz de
lhe proporcionar. E agora imaginando tudo
isso ele que traz as mãos úmidas do esperma
de suas reflexões, se limpa pra que ninguém
perceba em que pensava. Guarda em algum
canto a calcinha que há poucos minutos atrás
esfregava na cara e a cueca com cheiro de um
cliente qualquer que ele comprou da puta pra
sentir o cheiro de outro homem.
Esse pai de família então se veste, faz
campanhas contra as putas, transexuais e
25
travestis pra que continuem lá em um espaço
sob controle, onde ele possa ter acesso
quando quiser, mesmo que esse lugar seja
somente em sua mente, que lhe mente
PUTA LIVRO
verdades que não lhe foram ensinadas, lhe
obrigando a viver mentiras ensinadas como
verdades absolutas do que deve ser um
homem e como deve ser suas atitudes.
Os puteiros são escolas de
insubordinação onde se ensina a quem
estiver disposte a aprender uma liberdade
extasiante, orgásmica entre suspiros, mas de
INDIANARAE SIQUEIRA
prazeres.
Os puteiros são um risco à submissão
das esposas ao patriarcado. Se não
existissem puteiros elas voltariam pra casa
pra lavar, passar, cozinhar, cuidar dos filhos
que precisam aprender a subjugar mulheres
e precisam da mãe subjugada, tendo como
exemplo a seguir um pai machista. Elas
voltariam pra casa do pai para cuidar desse
que a subjugou como dono e a repassou pro
marido.
Se não existissem os puteiros...
Mas existem. Precisam votar leis contra.
Aquele homem então, agora vestido
com a roupa adequada, foi eleito e à frente
de seu rebanho, com um livro que ele
consagrou nas mãos, agora brada ao outro
com quem ele dividiu as mesmas putas e
talvez a mesma esposa, que agora esse outro
vestido de toga precisa fazer cumprir o que
foi debatido nos templos religiosos entre
padres e pastores que viraram amigos nos
puteiros da vida e que agora esbravejam nos
congressos da vida contra leis que prostitutas
que se congregaram dentro dos puteiros,
agora querem aprovar .
Absurdo!!! Grita esse impoluto pai
de família, com a virgindade de sua filha
assegurada para ser dada como troféu a
outro homem que já traz as mãos sujas de
sangue de uma das esposas que matou, não
tendo matado a segunda que no puteiro se
refugiou.
26
Esse pai de família só quer que sua
lei contra as putas, puteiros e lgbti seja
aprovada pra que ele possa, em paz, ir pro
puteiro ver sua esposa preferida gozar e
depois voltar pra casa onde lhe espera a puta
PUTA LIVRO
de sua esposa.
NÃO.
NÃO DEEM DIREITOS A PUTES,
TRANS E TRAVESTIS.
INDIANARAE SIQUEIRA
27
VÂNIA REZENDE
Mulher da
PUTA LIVRO
Vida
Me chamam de Puta
Rapariga
Quenga
Garota de Programa
Prostituta
Profissional do Sexo
Trabalhadora Sexual
Mensalinha
Meretriz
Mulher da Vida Fácil
Vida Fácil?
Vida Vivida
Vida Sofrida
Vida Estigmatizada
Vida Marcada
Com o ferro que ferra as entranhas
Vida Feliz
Feliz, sim
Por que mulher é vida
E toda mulher é mulher da Vida
28
MONIQUE PRADA
DEDO NO RABO
PUTA LIVRO
DO TEU PSEUDO-
TRANSGREDIR1
1
Este texto foi publicado como posfácio do primeiro livro de
Amara Moira, Travesti e Doutora em Letras pela UNICAMP.
MOIRA, Amara. E se eu fosse pura. São Paulo: Hoo Editora,
2018.
afetação ou a baixaria das bichas promíscuas.
29
Você pode dizer pros seus pais velhinhos
e decrépitos sentados naquele sofazinho
de couro empoeirado do apartamentinho
classe média no meio da Independência que
PUTA LIVRO
defende o amor, que as pessoas têm o direito
de amar a quem quiserem, não importa o
sexo, que toda forma de amor vale a pena
e todo aquele blablablá puritano que te
ensinaram.
Mas não, meu amigo. As pessoas têm
é o direito de foder com quem quiserem e
se tiverem muita, muita sorte no meio dessa
MONIQUE PRADA
aridez toda de almas vazias e corpos quentes
talvez encontrem, um dia, alguém a quem
amar por um tempo. O direito mesmo pelo
qual se luta é o de foder com quem se quiser
– obviamente se os desejos coincidirem e
o “quem se quiser” também te queira. Por
tesão, pelo momento ou pela grana.
“Ah, não, por grana, não.” Te apavora
quem põe preço no teu prazer. Mexe com
teus brios. Não é que ela esteja pondo
preço no corpo firme e devasso que você
ardentemente deseja, e você sabe disso.
Ela pôs um preço é no teu prazer, e é isso
que você não pode perdoar. Ela deixa claro
que não te deseja ardentemente, “cobro
100 reais, amor”, e você cede ou perde. Ela
ardentemente cobra 100 reais de qualquer
um que tope pagar o preço, e tu refletes: o
que são, afinal de contas, 100 míseros reais
por uma trepada? Paga. E sai arrasado,
insuportavelmente ferido no teu orgulho de
macho – viril, porém não conquistador. Finge
acreditar que ela gozou – “ou gozou ou fingiu
muito bem”, você vai postar no TD2 (“mas
não beijou na boca”, olha que doce: ele quer
beijinho – beijinho não tem, ela é malvada e
não tem sentimentos).
Bate punheta pra pornô mainstream mas
aposto que morre de medo de levar por cima
2
Abreviação de “Test Drive” do GP Guia, fórum de
discussão sobre prestação de serviços sexuais utilizado por
clientes e prostitutas.
30
uma bela mijada.
Você defender as putas? Jamais. Que
cobrem e caiam fora – de preferência antes
que te desmanches em lágrimas pela mixaria
derramada.
PUTA LIVRO
MONIQUE PRADA
31
NAARA MARITZA
DE SOUSA
RESSIGNIFICAÇÃO
PUTA LIVRO
DA PALAVRA “PUTA”:
reflexões advindas de
narrativa de memórias
(auto)biográficas de
uma puta mulher
- PUTA!!!
Iniciar o texto com esta palavra é
uma prática libertadora! Trarei a seguir,
narrativas (auto)biográficas, de minhas
experiências como puta, em contextos,
semânticas da palavra, sujeitos, tempos e
situações distintas. A palavra traz consigo
muitos estigmas e preconceitos e ao assumir
minha identidade de puta, me posiciono
e apresento um ato revolucionário, de
emancipação e colaboração para possíveis
mudanças de estigmas preconceituosos,
como nos atenta Gabriela Leite2 (2013), que
é preciso “ter identidade, para gente mudar
alguma coisa”.
Assim como Gabriela Leite1, referência
e inspiração de ativismo da luta dos direitos
das putas, eu também gosto da fonologia e
morfologia da palavra “puta”:
1
Gabriela Leite foi uma prostituta e ativista pelos
direitos das prostitutas no Brasil. Fundou a ONG Davida
– atualmente Coletivo Puta Davida – que defende os
direitos das prostitutas e a regulamentação da profissão.
Foi também a idealizadora da grife Daspu, desenvolvida
por prostitutas. Uma de suas principais estratégias de luta
era dar voz às putas como exemplificado no slogan “Fala,
mulher da vida”, do I Encontro Nacional de Prostitutas, em
1987.
32
Eu gosto dessa palavra desde sempre. Eu acho
uma palavra sonora, quente e eu acho que
toda puta se não vivesse com tanto estigma
em suas cabeças, elas usariam e eu acho que
a gente começaria até vencer o preconceito
antes. Porque as pessoas levariam um choque
e depois iriam dizer “Ah é verdade! Ela é uma
PUTA LIVRO
puta”. Eu comecei a pensar nisso por conta de
começar a pensar por que eu gosto do nome.
Por conta das minhas filhas mesmo, por conta
das filhas das minhas colegas também. Eu que
nunca fui uma grande mãe eu pensei nisso. Eu
tenho colegas que são mães, mas não querem
que elas sabem que são putas. Eu que ficava
preocupada, eu que não sou uma grande mãe,
ficava preocupada porque que minhas filhas
NAARA MARITZA
são filhas da puta, isto é o maior palavrão da
sociedade. Isso é horrível. Então a gente tem
que mudar. Filho da puta deve ser um nome
de orgulho para os filhos da gente. Então é
esse o meu pensamento e também acho que
se a gente não toma a palavra pelo chifre e
assume ela, a gente não muda nada. Por isso
eu acho que este é um dos grandes motivos
que a sociedade atual estar tão babaca e
conservadora no mundo politicamente correto
que a gente vive [...] (LEITE, 2013)
33
uma prática de libertação, transformação,
posição ideológica e política. A
potencialidade da narrativa (auto)biográfica
é defendida por Passeggi (2011, p. 147)
quando diz que “ao narrar sua própria
PUTA LIVRO
história, a pessoa procura dar sentido às
suas experiências e, nesse percurso, constrói
outra representação de si: reinventa-
se”. Acredito que realizar o exercício de
rememorar e narrar minhas experiências
vividas, viabiliza possíveis roteiros e
compreensão-ressignificação da semântica
da palavra “puta”. Para Clandinin e Connelly
NAARA MARITZA
(2015, p. 98) esse movimento de “confrontar
nós próprios em passado narrativo torna-
nos vulneráveis como pesquisadores, pois
transforma histórias secretas em histórias
públicas”. Essa vulnerabilidade também
pode nos desvelar possibilidade outras
de compreensões. Palavras, experiências
e situações outrora secretas, escondidas,
disfarçadas, mascaradas, nas minúcias da vida
real contadas e recontadas narrativamente se
desvelam. Tenho a pretensão de que minhas
memórias individuais, apresentadas por
minhas narrativas (auto)biográficas, possam
contribuir na construção de novos sentidos
para a semântica da palavra “puta”.
Eu puta na infância
PUTA LIVRO
como desejava, saindo com muitas outras
mulheres. Sempre via minha mãe triste e
chorando pelos cantos. Assistir sua libertação
explanada por seu grito e assistir ele correr
de medo de sua atitude, foi minha primeira
experiência de emancipação de uma mulher.
Retornamos para Uberlândia / MG,
nossa cidade de origem. Minha mãe com
quatro filhas, todas crianças, teve que
NAARA MARITZA
iniciar uma nova vida, agora como “mãe
solteira” como diziam. Foram anos de muitas
dificuldades. Minha mãe voltou a estudar
e trabalhava como empregada doméstica.
No meio do caminho havia despejos e
dificuldades. A matriarca saía pela manhã
bem cedo para preparar o café da manhã
dos filhos da patroa, antes deles irem para a
escola e ao sair do trabalho ia direto para a
escola. Estudava a noite e ela ia caminhando
para economizar o dinheiro da passagem.
Eu e minhas irmãs (faixa etária entre cinco
a doze anos de idade) tínhamos que nos
cuidar sozinhas: ir para escola, arrumar
a casa, lavar a louça, nossa higienização,
atividades da escola. Recordo que no trajeto
da escola eu e minha irmã sempre corríamos
de “tarados” no caminho. Homens com o
pênis para fora nos perseguiam de bicicleta
realizando movimento de masturbação. Não
contávamos para nossa mãe. Não queríamos
que ela tivesse mais esta preocupação. O que
ela poderia fazer? Não poderia abandonar o
trabalho.
Nos indagávamos se ela também
tinha que correr de “tarados”. Seu salário
muitas vezes não era suficiente para os
mantimentos básicos do mês. Aprendemos
desde a infância a andar atentas na rua, a
correr e gritar por socorro, a ter medo dos
homens que caminhavam em nossa direção
e a desconfiar de todos os homens sem
exceção. Minha mãe nos alertava: “não deixe
35
seus primos entrarem aqui quando eu não
estiver”. Apesar de todos os obstáculos, ela
terminou o ensino médio e em uma tentativa
de vaga em concurso público para secretária
PUTA LIVRO
escolar da rede municipal de ensino, foi
aprovada em 3º lugar. Neste período, ela se
casa novamente e fomos morar em um bairro
novo, distante do centro da cidade, mas em
casa própria. Eu sentia muito orgulho de
minha mãe e de como ela conquistava seus
objetivos sem nos abandonar, como nosso pai
fizera.
NAARA MARITZA
Uma tia, irmã de meu pai, conseguiu
o endereço dele e nos repassou. Após
anos sem falar com ele, tivemos a ideia de
lhe escrever cartas. Todas escrevem e eu
também. Havia muito rancor e os transmiti
no conteúdo da carta. Escrevi o que sentia
no momento: que não compreendia o motivo
de ter nos abandonado; que acreditava
que muitas das dificuldades que passamos
poderiam ter sido evitadas se ele tivesse
ajudado minha mãe; que tivemos que correr
de “tarados”; que tivemos que pedir pão
adormecido nas padarias para ter o que
nos alimentar antes de irmos à escola; que
o considerava covarde; que ele poderia
ter se afastado da minha mãe, mas não
de suas filhas; e por fim, que se ele viesse
a envelhecer e precisasse de ajuda, não
precisava contar comigo. Assim que recebeu
as cartas, marcou um dia para conversar por
telefone na casa da minha tia com minha irmã
mais velha (na época poucas pessoas tinham
telefone). Na ligação, ele disse a ela: “Diga
a Naara que eu amei os puxões de orelha”.
Ao me repassar a mensagem, me senti muito
feliz. Que bom que meu pai entendera e
se atentara. Estava arrependido? Sentiu
nossa dor? Se sentira culpado por tantas
dificuldades que suas filhas experienciaram?
Ele iria ter uma conversa conosco e nos
pediria desculpas?
No mesmo ano da carta, meu pai
resolve ir em Uberlândia nos visitar – assim
acreditávamos até descobrirmos que seu
36
retorno se deu devido audiência na justiça
por não ter pagado pensão por todos os anos
que se ausentou de nossas vidas. Minha mãe
insistiu para todas nós irmos vê-lo. Ela dizia
“ele é o pai de vocês. Não importa o que ele
fez, sempre vai ser seu pai”. Saí da escola
PUTA LIVRO
e fui encontrá-lo na casa de minha tia no
mesmo bairro que morávamos. Almoçamos,
conversamos e brincamos. Em um certo
momento ele me convida para tomar sorvete,
só nós dois. No caminho, passamos por uma
trilha, em um terreno baldio com mato alto,
para atravessarmos para outra quadra. No
NAARA MARITZA
meio da trilha ele para e se vira para mim de
maneira agressiva e diz:
– Não vamos tomar sorvete nada! O que
foi aquela carta? Quem você pensa que é
para me escrever aquilo? Você é uma imbecil!
Em seguida, me dá um tapa no rosto e
grita:
– Você é uma puta! Uma puta como tua
mãe!
Recordo de correr em direção a minha
casa aos prantos. Ao chegar, conto o ocorrido
para minha mãe e ela me pede desculpas por
ter insistido em minha ida.
– Puta, mãe! Ele nos chamou de puta! Se
puta é ser uma mulher como a senhora, então
eu sou uma puta também! Eu sou puta, mãe!
Igual a senhora!
Assim foi o dia e a maneira que me
identifiquei como puta. Puta aos doze anos
de idade.
Eu puta na juventude
37
por anos dependente de meu pai.
Com meu salário, eu pagava meus
estudos e a conta de luz de nossa casa.
As regras da casa eram claras: “se não
tiver filhos, não precisa sair de casa. Mas
PUTA LIVRO
se engravidar, terá que sair”. Esse era
o trato familiar. Minha mãe com quatro
filhas mulheres e meu padrasto com três.
Todas em uma mesma residência pequena.
Sete filhas mulheres na mesma residência.
Vinte anos, sem filhos, logo, independente
financeiramente sem precisar pagar aluguel,
NAARA MARITZA
morando na casa dos pais. Estudava,
trabalhava, fazia curso de informática
(novidade na época). Era uma boa menina aos
olhos da família.
Havia saído de um relacionamento
abusivo que durou dos dezesseis aos dezoito
anos. Outras amigas também viveram abusos
em seus relacionamentos. Nos descuidamos.
Não se pode baixar a guarda, é preciso
estarmos atentas. Atentas e receosas por
todos os homens que se aproximam.
Se completam dois anos solteira e
liberta. Fazia o que queria nas horas de lazer.
Vivia a vida com toda a gana da juventude.
Paguei meus estudos do ensino médio em
uma escola particular próxima da quitanda
que eu trabalhava como balconista no centro
e fiz amizades com alunos que faziam parte
da classe média da cidade. Eu era a única que
trabalhava em minha turma. Não conseguia
acompanhar a escola pública e suas seguidas
greves com o trabalho e pagar uma escola
particular era uma saída. Ter estudado nesta
escola me levou a conhecer e conviver com
uma rede de amigos jovens pertencentes às
classes médias e alta da cidade. Convivia com
a burguesia tentando acompanhá-los com o
que sobrava de meu salário.
Começava um movimento na cidade
de música eletrônica e das festas raves. As
festas eram em sítios. Os Djs eram os boys
da burguesia da cidade e o público também.
Havia conseguido ir em duas festas e me
38
encantara por aquele universo e por aquelas
pessoas libertas e felizes. Era uma noite de
sexta feira chuvosa, fui encontrar a amiga
em seu apartamento na região central para
assistirmos algum filme, afinal, estávamos
sem dinheiro naquele fim de semana. Durante
PUTA LIVRO
nossa conversa, um dos boys da classe alta
envolvidos com as raves, envia mensagens
para ela convidando para sair. Vejo a foto e
me encanto pela pessoa. Ela me pergunta
se quero sair com ele. Digo que sim, claro!
Rapaz lindo e conhecido em nosso meio.
Estava com desejo de sair aquela noite, mas
NAARA MARITZA
a falta de dinheiro e a chuva não permitiam.
Tinha apenas o vale transporte. Ela fala
de mim para ele e em seguida, um táxi é
enviado para me buscar. Ele havia gostado
de mim? Não estava acostumada com isso.
Os homens que se relacionavam comigo
(apenas sexualmente) evitavam estar comigo
na frente das pessoas. Era sempre eu que ia
na casa deles ou no fim da festa saíamos e
ficávamos dentro dos carros. Já esse rapaz
mandara um táxi me buscar, só com uma foto
minha. Inusitada a situação. Talvez este tenha
sido o motivo de eu ter ido? Desejo de viver
algo novo que poderia talvez, ser como nas
novelas da rede Globo em que o jovem galã
burguês se apaixona pela mocinha preta,
pobre da periferia? Inocência.
Ao chegar na casa do boy, ele me levou
direto para o quarto dele. Conversamos
pouco. Ele me apresenta a cocaína e me
oferece para experimentar. Eu aceito.
Fazemos sexo loucamente, sem parar.
Deitada de bruços, ele utiliza meu corpo de
apoio para cocaína e faz carreiras em minhas
nádegas. Por volta das 3h da manhã, ele diz
que quer dormir. Eu penso que vou dormir
com ele ou na casa dele, mas para minha
surpresa ele pede que eu vá embora. Digo
a ele que estou sem dinheiro e pergunto
se posso sair pela manhã para utilizar o
transporte público (em minha cidade, não
funciona 24h) ou se ele poderia me levar. Ele
fica agressivo e sem paciência. Peço para me
39
levar e ao saber que moro na periferia ele diz
que não seria louco de ir se enfiar “naquele
buraco”. Também fico agressiva, efeito da
droga, creio. Digo que ele está sendo cruel.
Tínhamos mantido relação sexual por toda a
noite e agora me tratava com insignificância
PUTA LIVRO
e que ele fazia papel de moleque burguês.
Então ele diz:
– Você veio porque queria me dar! Saia
da minha casa agora! Acha mesmo que vou
dormir com uma putinha barata como você?
Aos vinte anos, uma “putinha barata”.
Saio da casa dele e caminho na madrugada
chuvosa, por aproximadamente três horas até
NAARA MARITZA
chegar em minha casa.
Eu puta profissional
PUTA LIVRO
garota de programa no período da tarde,
cursava pedagogia a noite onde também
fui eleita presidente do DCE – diretório
central dos estudantes (estava envolvida
com o movimento estudantil e político nesse
período). Após as aulas, retomava a profissão
de garota de programa e atendia clientes em
hotéis. Havia feito parceria com atendentes
NAARA MARITZA
de hotéis e a cada cliente que me indicavam
eu os pagava o valor de R$ 50,00 a quem me
indicasse. Me sentia exausta. Mas o salário
da loja no shopping não era suficiente para
pagar as contas e a faculdade.
Certa manhã, entra na loja que eu
trabalhava um senhor para comprar uma
caneta mont blanc, que possui valor alto no
mercado. Eu o atendo. Conseguia contatos
com muitos clientes para futuros programas
nessa loja. Bastava ser agradável com eles
e colocar meu número de celular no verso
do cartão da loja. O senhor me convida
para um café. Aceito. Passamos a nos falar
esporadicamente. Sou despedida dessa
loja porque fui para o Rio de Janeiro com
o movimento de estudantes em evento da
UNE – União Nacional de Estudantes e fiquei
dois dias a mais que o combinado. Logo,
vou trabalhar em empresa de telemarketing
e encontro o senhor da caneta na empresa.
Ele é holandês e possuía escola de inglês
na cidade e oferecia cursos específicos aos
empresários da empresa. Nos reencontramos
e às vezes ia de carona com ele até o centro
da cidade. Neste período, estou envolvida
com o sindicato dos trabalhadores e começo
a realizar movimento dentro da empresa para
levar informações dos direitos trabalhistas
aos trabalhadores de telemarketing. Faço
denúncias ao sindicato e reivindico nossos
direitos. Na portaria da empresa, entrego
panfletos e faço discursos informando nossos
41
direitos trabalhistas com megafone, além
de informar como estes direitos estavam
sendo infringidos. Em uma manhã, sou
convidada a ir ao RH e sou despedida. Ao
ver documento com os dizeres do motivo
de meu desligamento “Liderança Negativa
PUTA LIVRO
e envolvimento com sindicato”, o pego
e saio correndo alegando denunciar ao
sindicato. Seguranças conseguem me segurar
e me retirar da empresa. No dia seguinte,
me chamam para trabalhar novamente
alegando erro. Na verdade, foi o sindicato
que denunciou a prática. Sabia que não iria
NAARA MARITZA
demorar muito tempo na empresa.
O holandês continua oferecendo carona.
Sei que está “apaixonado”. Decido dizer a
verdade a ele: “EU SOU PUTA”. Ele se anima
com a notícia. Sabia que iria ser despedida
novamente em breve e faço uma proposta
ao holandês: “Você paga minha faculdade e
transamos duas vezes no mês”. Ele concorda
animado e assim fazemos. Ele pagou todo o
meu curso. No último um ano e seis meses
antes de concluir o curso, já não transávamos
mais, mas ele continuou pagando as
mensalidades da faculdade até o final.
Assim como ele, todos que passavam
pelo meu caminho e demonstravam interesse,
eu dizia: “SOU PUTA” e assim conseguia algo.
Professores da faculdade, médicos, cirurgiões
(inclusive realizei alguns procedimentos
gratuitos), políticos, policiais (militares, civis
e federais), juízes, delegados, empresários.
Parecia mágica. Era só dizer que era puta que
as oportunidades se abriam. Na cama sabia
como dominar cada um deles de maneira que
conseguia tudo que pedia. Não precisava
mais correr dos “tarados”, não precisava
mais temer os homens que se aproximavam
desejando sexo, ao contrário do que minha
mãe me alertava, usei o dinheiro dos homens
para colaborar com minha liberdade e com
minha formação.
O ano era 2010 e a profissão?
Pedagoga. Na ocasião já era professora da
rede pública de ensino. Encontrei o holandês
42
no shopping. Fazia um ano que não o
encontrava. Ele estava com uma garota. A
menina não tinha mais do que treze anos de
idade. Não acreditava. Ele estava saindo com
uma menina menor de idade em troca de
roupas. Isso é crime. Uma criança! Brigamos
PUTA LIVRO
muito e disse que tinha nojo dele, que era
crime o que estava fazendo e fui denunciá-lo
à polícia. Então ele diz:
– Você não passa de uma puta. Acha
que agora é pedagoga, mas sempre vai ser
uma puta! Uma puta mal-agradecida!
Considerações Provisórias
NAARA MARITZA
As três narrativas apresentadas trazem
experiências vivenciadas em que a semântica
da palavra “puta” foi enunciada com objetivo
de ofender, pois a palavra carrega estigmas
e preconceitos de uma sociedade de cultura
patriarcal, machista e hipócrita que utiliza a
palavra para minimizar as mulheres. Segundo
Bakhtin (2003), o contexto discursivo dos
sujeitos falantes é um campo de batalha. Os
usuários dos discursos não os utilizam de
modo neutro. Seguem certas regras sociais
que padronizam esse uso. Já para quem
escuta o discurso, apresenta-se resistência
e procuram (re)enquadrá-lo. Quando me
chamaram de “puta” o objetivo era me
ofender, mas nesse processo de luta nesse
campo de batalha discursivo, em que os
usuários envolvidos não estão passivos em
um sistema fechado e estável, quem recebe o
discurso também o ressignifica e lhe oferece
nova semântica.
Levo a reflexão da palavra “puta”
à sua consciência semântica “definida
como habilidades que permitem ao sujeito
refletir acerca dos significados das palavras
de uma determinada língua” (PICCOLI;
CAMINI, 2012, p. 115), sendo esta, uma das
habilidades da competência metalinguística
e isto “significa falar de um conjunto de
habilidades que permite ao sujeito raciocinar
sobre o próprio uso que faz a língua, ou
43
seja, sobre a forma como emprega ou vê
serem empregados os recursos linguísticos”
(PICCOLI; CAMINI, 2012, p. 102).
A língua só existe em função do uso
de quem fala e de quem escuta e o que
PUTA LIVRO
fazemos dela nestas diversas situações de
comunicação. Todos os homens que me
chamaram de “puta” em seus discursos,
consideraram que somos “putas” em
momentos em que os afrontamos, que não
nos calamos, que apontamos seus erros e
suas fraquezas. Em momentos que para se
defenderem de algo que os aflige, utilizam
a palavra para insultar. A palavra “puta”,
NAARA MARITZA
dita pelos locutores das narrativas citadas,
pretende soar como algo para ferir.
Em meu lugar de interlocutora da
palavra, não estava passiva em nenhuma das
narrativas. Compreendo a palavra “puta” em
seu lugar de manifestação ideológica, um
produto de interação. Podemos ressignifica-
lá de diferentes formas. A semântica de
“puta” que proponho neste texto não surge
por estes locutores, que podem ser nossos
familiares, companheiros, amigos e que nos
chegam, neste campo de batalha discursiva,
como ofensa em linguagem vulgar. Proponho
o entendimento de “puta” pela reflexão e
compreensão de nós interlocutoras e de
como significamos e recebemos esta palavra.
Nas três narrativas que selecionei para
pensarmos, compreendo que, em todas as
situações, a “puta” se referia a mulher livre,
que se posiciona, que demonstra se libertar,
que alcança a emancipação, que dialoga,
que pensa e reflete, que luta, que enfrenta,
afronta e aponta, que vem para subverter
o patriarcado, o machismo e a hipocrisia.
Proponho hipervalorizar a semântica de
“puta” com seu adjetivo que define qualquer
coisa como maravilhoso, fantástico ou
excelente: “Uma Puta ressignificação da
Puta!”. Ressignificar a palavra “puta” no
sentido de “mulher livre”, para que possamos
usufruir de sua entonação forte, “sonora e
quente”. Se é preciso “ter identidade, para
gente mudar alguma coisa” (LEITE, 2013),
44
então que possamos assumir e construir
nossa identidade de puta nesta semântica
que emerge de nossas próprias experiências.
PUTA LIVRO
Puta
Pu.ta. sf.
NAARA MARITZA
posição política e afins – que usufruir da sua liberdade de
expressão, de seus direitos sexuais, que se posicionam
contra e/ou enfrentam o patriarcado.
Mulher livre; liberta; que se posiciona; Mulher que enfrenta
e afronta;
Referências
UMA EXPERIÊNCIA DE
PUTA LIVRO
TRABALHO SEXUAL
SENDO HOMEM
TRANS E OUTROS
TEMAS SOBRE
PROSTITUIÇÃO
Primeiro eu gostaria de falar da
experiência de uma forma abrangente
sobre o trabalho sexual, regulamentação
e movimento das trabalhadoras sexuais.
Gostaria de responder à pergunta: o que é
trabalho sexual? Há vários tipos de trabalho
sexual, existe uma grande diversidade nessas
práticas. Há o sexo ao vivo em casa, sozinho,
ou com outros trabalhadores sexuais em
motéis, hotéis, saunas, cines pornôs, bordéis,
puteiros, cabarés ou zonas de prostituição.
A captação de clientes pode ser online (via
anúncios), na própria zona de prostituição
ou fazendo pontos em avenidas, estradas,
ruas, esquinas, motéis. Pode ser cobrado
por transa, por hora ou por pernoite (o
tempo influencia o valor). Fazer filmes pornôs
amadores, caseiros ou profissionais. Vender
vídeos caseiros, amadores ou profissionais.
Fazer performances online na frente da
webcam ou smartphone numa videochamada
com um cliente, ou numa sala virtual em que
podem entrar vários clientes, nessas salas, em
alguns sites, os clientes podem comprar uma
sala individual para interagir com a camgirl ou
camboy.
Se faz sexo em troca de coisas,
produtos, serviços, boletos pagos, cursos,
noitadas em bares ou em motéis com
46
drogas ou não. Algumas pessoas misturam
trabalho sexual com relacionamento conjugal,
mantendo uma relação de responsabilidades
financeira e afetiva. Na relação de sugar
daddy / sugar baby, na maior parte das
vezes, existe uma relação de sedução e às
PUTA LIVRO
vezes tem sexo, às vezes não. O trabalho
pode ser viajando e fazendo temporadas
em outros lugares, migrando entre cidades,
estados, países ou continente. Ao vivo você
pode fazer o atendimento individual, mas
também a casais ou ménages entre amigos,
ou surubas com vários clientes e/ou vários
outros profissionais do sexo.
LEONARDO TENÓRIO
É possível na internet fazer anúncios1
pagos ou gratuitos em sites especializados
para trabalhadores sexuais ou sites de
anúncios no geral. É possível fazer e
visibilizar pornografia no Twitter, através
de uma conta no Câmera Prive, Onlyfans
ou vários outros sites. É possível vender
videochamadas com performances (sozinho
ou a dois) e masturbação por aplicativos
como o WhatsApp, Google Meet, Skype,
Zoom entre outros. Dá para captar clientes
para o trabalho ao vivo também em
aplicativos de pegação gay, utilizava o Grindr
enquanto fazia programas.
Trabalhadores sexuais podem trabalhar
integralmente com sexo, como segundo
emprego ou como um complemento de
renda. A relação com a prostituição pode
durar por anos, décadas ou períodos
passageiros da vida. Às vezes a pessoa
trabalha com isso uma ou duas vezes na
vida. Ou uma vez ou outra perdida no ano,
ou sendo uma coisa esporádica ao longo do
tempo, não sendo uma prostituição rotineira.
1
Às vezes os anúncios pagos ficam num valor muito alto para
o trabalhador sexual, chegando ao valor de um aluguel de
imóvel. Isto gera uma precarização do trabalho sexual, fica
mais difícil pagar as contas do mês e você precisa recorrer
a aplicativos de pegação ou fica menos visível nos sites
gratuitamente.
O movimento das trabalhadoras sexuais
47
merece reconhecimento de sua história, das
suas lideranças históricas, das ativistas cis e
trans. E por consideração e respeito devemos
fazer eco e reverberar as ideias delas.
PUTA LIVRO
Tenho conhecimento apenas de duas redes
nacionais de trabalhadores sexuais: Anprosex
(Articulação Nacional de Profissionais do
Sexo) e Cuts (Central Única das Trabalhadoras
Sexuais). São nacionais, mas existem dezenas
de associações locais de trabalhadoras
sexuais espalhadas pelo país.
Entendi, ouvindo e lendo as ativistas do
movimento que as trabalhadoras sexuais no
LEONARDO TENÓRIO
país lutam pela:
1. Regulamentação do trabalho sexual
(obter direitos trabalhistas).
2. Redução do estigma, preconceito e violência
(direitos humanos, segurança).
3. Prevenção e cuidado a infecções
sexualmente transmissíveis (IST) (saúde).
4. Diminuir as precariedades da informalidade
da profissão, quando presentes.
PUTA LIVRO
projeto de lei que agrade ao movimento das
trabalhadoras sexuais como um todo.
Existe uma categoria referente ao
trabalho sexual na CBO (Classificação
Brasileira de Ocupações) do Ministério do
Trabalho:
5198-05 - Profissional do sexo Garota de
LEONARDO TENÓRIO
programa, Garoto de programa, Meretriz,
Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta,
Trabalhador do sexo
49
pessoas, mas numa perspectiva crítica utilizo
neste texto mais a expressão “trabalhador
sexual”.
No meu trabalho, fiquei com a forte
PUTA LIVRO
impressão de que a procura para homem
trans não é tão grande quando dos outros
segmentos populacionais que trabalham
com sexo: homem cis, mulher cis e mulher
trans/travesti. E na minha experiência,
acredito que muitas vezes encontrei uma
resistência no mercado do sexo em função
da necessidade de atender a um estereótipo
de gênero cisgênero e corpo “padrão”,
LEONARDO TENÓRIO
que às vezes tive mais, às vezes tive menos,
dependendo da fase da vida enquanto garoto
de programa. Mas no trabalho com anúncios
online que eu fazia, tudo também muitas
vezes gira em torno do truque de câmera
e iluminação nas fotos e vídeos que você
vai utilizar nos anúncios. Conseguia mais
clientes quanto mais “macho” eu parecia
nas fotos e vídeos, e quando essas fotos e
vídeos tinham mais qualidade profissional. Eu
achava difícil, ou bem suado, conseguir pagar
todas as contas do mês com prostituição.
Mesmo eu conseguindo pagar as contas,
eu ficava estressado com a possibilidade de
não conseguir, e por um bom tempo vivi “no
limite”.
Geralmente trabalhava ao vivo e em
casa. Sempre morei sozinho, então atendia
nas tantas kitnets que morei. Não sei
direito como é o trabalho online. Cheguei
a fazer algumas vezes, vendendo vídeos já
prontos ou vendendo videochamadas e me
masturbando na frente da câmera. Foram
poucas vezes, não me considero uma pessoa
que tem muita habilidade cênica, mas no
final eu acabava apenas me masturbando
na frente da câmera e gozando, e o cliente
se masturbando do outro lado, sem que eu
pudesse vê-lo. Acabava quando o cliente
gozava. Foram poucas vezes que fiz isso. São
chamadas curtas, de meia hora no máximo.
50
Mas as transas ao vivo nos programas
não duram também mais de 40 minutos.
Às vezes os clientes ficam preocupados
perguntando se a pessoa conta hora, porque
é meio que um padrão dizer que se faz o
PUTA LIVRO
programa de uma hora. Mas eu nunca contei
o tempo no relógio, e na verdade nunca dura
além de 40 minutos na cama. Os clientes
ficam com um medo que não precisam ter.
Em geral os clientes querem gozar apenas
uma vez. Muitas vezes, se querem gozar duas
vezes, eles avisam antes e combinam duas
gozadas.
LEONARDO TENÓRIO
Também não cheguei a fazer muitas
temporadas em outros lugares, apenas
viajei duas vezes para fazer temporada em
São Paulo, de uma semana e um mês, mas
fora uma cidade que eu já conhecia, como
muitas outras capitais. Além disso já cheguei
a viajar a outro estado do Nordeste ou
outras cidades no interior de Pernambuco
para atender clientes que pagaram minha
passagem, além do programa.
Já cheguei a filmar vídeos caseiros meus
para colocar no Xvideos, vídeos de transas
e já fiz dois pornôs amadores com outros
garotos de programa. Não ganhei dinheiro
nenhum com eles. Mas também não teve uma
ampla divulgação e conhecimento, então não
tenho como me colocar enquanto “pornstar”.
Antes de trabalhar com sexo eu já
convivia com outras pessoas que trabalhavam
deste modo. Trabalhadores sexuais sempre
fizeram parte da minha socialização. Trabalhar
com sexo para mim foi muito “natural”,
já que eu sempre fui muito sexualizado e
já tinha contato com o meio. Tanto é que
nenhuma amizade minha estranhou que eu
tivesse entrado no ramo na época.
Você tem que ter um nível de
impessoalidade, transar com um cliente
para quem trabalha com sexo ao vivo não
pode ser uma fonte de angústia. Se a pessoa
faz o programa e depois se sente mal,
desconfortável, pra baixo, então é melhor
não fazer. Você também precisa ter um
51
nível de libido mais alto se você pretende
se sustentar com sexo. Algumas poucas
vezes trabalhei com pouca libido, e isso não
é bom. A libido varia muito em função da
nossa saúde mental, relação com o corpo e
PUTA LIVRO
autoestima.
Em geral meu público, trabalhando ao
vivo, foi “tranquilo”. Muitos homens cis gays
e bi que já tinham uma cultura LGBT, “do
meio”. Raros homens cis hétero apareciam.
Apareciam muitos “sigilosos”, que se
apresentam à sociedade como hétero, mas
transam com homens por trás, e por definição
não são hétero. E às vezes mulheres trans/
LEONARDO TENÓRIO
travestis apareciam. Mulher cis só cheguei a
atender duas vezes apenas, e homem trans
apenas uma vez. A maioria dos clientes tinha
entre 25 e 55 anos. A maioria era da classe
trabalhadora.
Muitos clientes querem fazer sexo
sem camisinha. Isso é burrice deles
porque eles é que deveriam temer fazer
sexo sem camisinha, porque quem tem a
maior vulnerabilidade a pegar IST são os
trabalhadores sexuais. Se eles não têm
medo de transar sem camisinha comigo, eu
devo ficar preocupado em fazer sexo sem
camisinha com eles, porque eles devem fazer
sexo sem camisinha com todo mundo.
Muitos clientes também querem pagar
menos e desvalorizar seu trabalho. Isso é
uma coisa que estressa, mas infelizmente, às
vezes, quando você está precisando, você
faz. Se você não tem comida em casa, você
acaba fazendo um programa por 20 reais, 30
reais. É triste. Os clientes sabem que no final
do mês nós estamos com menos dinheiro,
então aproveitam para pechinchar e diminuir
o valor do nosso programa. Eu considero
exploração sexual diminuir demais o valor do
programa.
Algumas situações incomuns de
violência aconteceram comigo, como
também podem acontecer em outros
trabalhos informais quando são precários.
Isso considerando a distância do meu
corpo em relação à norma cisgênera. Já
52
sofri “stealthing” (quando a pessoa retira a
camisinha sem avisar) e fiquei três semanas
com um quadro de ansiedade muito forte –
isso é uma forma de estupro. E já sofri um
PUTA LIVRO
golpe de um cliente que pediu para eu passar
bem mais horas no motel com ele dizendo
que ia me pagar mil reais, quando no final me
pagou apenas 200.
Os clientes comigo muitas vezes não
tinham a mesma visão que seria de muitas
pessoas sobre o que é assédio ou abordagem
de sedução que as pessoas no geral têm.
A objetividade é outra, muito semelhante à
LEONARDO TENÓRIO
do meio gay, e inclusive o uso de palavras
pornográficas é bem maior. Não sei como
funciona com as mulheres cis, mas comigo,
que me identifico no gênero masculino e
lidava com outros homens no trabalho, as
abordagens eram bem objetivas tipo ao invés
de dizer “Oi, boa noite, tudo bem?” era “E aí
como faço pra comer tua buceta?”.
Sempre fui muito sexualizado, com
atividade sexual mais intensa e múltiplos
parceiros, inclusive namorando. Digo isto não
na ideia de querer contar vantagem, porque
eu sempre fui passivo no sexo e acho que
isso não me traz muito privilégio. Talvez seja
revolucionário o fato de os caras quererem
fazer sexo comigo, um homem com buceta.
Em geral eu me identificava assim nos
anúncios: homem com buceta e homem trans.
Mas a quantidade de sexo que eu fiz ou faço,
conheço tanta gente, mas tanta gente mesmo
que também fez e faz, que me considero
igual a um grupo grande de pessoas, o das
pessoas mais sexualizadas. Não sei se já tem
nome pra isso.
Não sendo por programa, transei
desde o início na minha vida sexual ativa com
muitos caras hétero cis, mulheres cis lésbicas
e bissexuais, homens cis gays e bissexuais,
e mulheres trans/travestis. Homens trans e
intersexuais foi até bem mais raro pra mim.
Não binário não contei por que eles sempre
estiveram no meio LGBT só que de um modo
53
não anunciado, demarcado.
Antigamente eu transava com todo
mundo que aparecesse. Eu tinha o sexo como
uma forma de me aproximar afetivamente
das pessoas. Isso me deu acesso a muitas
pessoas diferentes. Mas além de sexo, eu
PUTA LIVRO
troco afeto com as pessoas de outros modos
também, já faz um bom tempo. Durante a
adolescência, até ficar adulto, eu fui criando
um filtro de seletividade, como exemplo o
aspecto do nude do pau duro no aplicativo
de pegação etc. Na adolescência eu já fazia
suruba, ménages, ficava com homens mais
velhos. Sexo sempre esteve na minha rotina,
LEONARDO TENÓRIO
independente da fase que eu vivia, salvo
umas poucas exceções.
Ainda curto muito sexo a três ou em
grupo, suruba/orgia – que pra quem faz
putaria isso é inclusive uma coisa bem “feijão
com arroz”, nada revolucionário. Fui menos a
saunas e cines do que gostaria. Já fui a sauna
e transei com a maior parte dos boys do lugar
de uma vez só, de graça. Foi muito bom esse
dia, gozei bastante.
Atendi uma pessoa com câncer, atendi
pessoa com problema de mobilidade (acho
que por causa de acidente), atendi velhinhos,
atendi obeso mórbido, com o pauzinho,
com o pauzão, atendi caras lindos também,
e transei com muitos garotos de programa
que eram colegas de profissão e amigos.
Mas tenho muitos interesses na vida além
de transar com boa parte das categorias
pesquisadas e não pesquisadas pelo IBGE.
Outras coisas que não são sexo. Minha vida
não gira em torno de sexo.
Os limites pro sexo são: não pode com
pessoas com menos de 18 anos; não pode
contra a vontade da pessoa, tem que ser
consensual; tem que ser com a pessoa viva
e em consciência (não drogada2 demais,
2
Algumas pessoas mantêm a prática de fazerem sexo sob
o uso de drogas, eu já fiz bastante. Mas tecnicamente
aumenta o risco de você contrair IST.
sedada, dormindo); não pode de outras
54
espécies que não são humanas; que ninguém
esteja sofrendo durante o ato sexual3.
Já saí com um pessoal que curte BDSM
em duas cidades diferentes, fui pra uma festa,
fiz sexo em público e em dark room lá, mas
PUTA LIVRO
nem estava na mesma vibração. Eu não me
identifico com os fetiches do BDSM em maior
parte. Sou baunilha.
Sobre atender fetiches no trabalho, foi
algo bem raro, não é comum aparecer. Já
atendi um cara podólatra que queria lamber
meus pés, não vi graça (ele aproveitou para
LEONARDO TENÓRIO
lamber mais do que os pés, e não vejo graça
nessa coisa de lambida pelo corpo). Mas
quando pediram para mim para eu fazer xixi
no cliente não fiz, afinal não consigo fazer
xixi com outra pessoa vendo, muito menos
esperando.
Na pornografia o que eu mais curto
assistir é pornô hétero cis, porque eu acho
que pega as melhores filmagens pro gênero
que eu mais gosto (gang bang / dupla
penetração) e me encanto mais em assistir
as cenas objetivas, como com o close no pau
entrando na buceta, que é a parte que mais
me interessa.
Hoje em dia, no momento de escrita
desse texto, não trabalho com sexo, mas
achei importante deixar os registros de
minhas compreensões sobre essa vivência.
3
O BDSM é uma exceção a essa regra, às vezes há um
fetiche em torno da dor, se há no casal um masoquista
e uma pessoa sádica. No entanto as relações BDSM são
bastante burocráticas e em geral se assina um contrato
antes da prática sexual.
55 PUTA LIVRO
56
PALOMA COSTA
PUTA LIVRO
Se tu perguntar lá no Mercado quem é a
Luna todos vão saber te responder:
- É aquela que vive bêbada por aqui...
- Lógico que sei! Chama lá aquela fodida...
bem aprontou de novo, né?
- A Maria abortadeira... fica grávida não sei
pra quê... nem pra isso presta.
Luna é uma mulher de mais ou menos trinta
e cinco anos, mas já aparenta ter cinquenta e seis.
Ela gostar de dançar com a gente; diz que
se sente em casa quando nos encontra em algum
batuque em praça pública.
Por vezes vi lágrimas descerem do rosto
magro que ela tem por que ela é bem mais dor
que contentamento quando aqueles assuntos
de projeções de vida, sem querer, surgem na
conversa.
- Como tá tua mãe?
- E os filho, mulher? Por onde andam?
- Soube que tu mudaste de endereço, é
verdade?
Luna foi mandada embora de casa aos treze
anos porque ela e o namoradinho roubaram os
objetos da casa e estouraram tudo em crack e
putaria.
Ao todo, pelas histórias que pude escutar,
filhos mesmo ela só tem um – que deu pra
alguma crente criar. De abortos, contei pra mais
de sete. “O corpo não suporta”, ela diz. Eu
acredito.
Luna mora na rua há décadas, mas o
endereço mais recente é lá no centro de
triagem para pessoas que estão se tratando da
COVID-19. Se bem que disseram que ela roubou
mantimentos e colchonete pra ficar mais à
vontade lá na Praça da República – de conchinha
com os companheiros dela.
- São os amores, né, mana? A gente tem
que valorizar quem quer ficar com a gente.
Nunca mais soube de Luna.
57
FRIDA CARLA
PUTA LIVRO
Por tantas vezes eu fui sua
Sua dama nos bistrôs
Sua amante nos cafés
Sua puta nos quartos de hotéis
A historia
PUTA LIVRO
que nao pode
ser contada
Foi nos anos em que lecionava
Antropologia na Universidade Federal daqui
da cidade que comecei a pesquisa sobre
aquela coisa. O Professor que supervisionava
meu trabalho ficou um pouco reticente.
Ele tinha uma reputação pela qual zelar, e
também não queria que eu me expusesse à
toa. Há temas que são objeto de pesquisa
por sua própria natureza e outros sobre
os quais não se deve sequer falar. Foi por
um destes dos quais não se fala que eu me
apaixonei.
Mais pernóstica que o tema era minha
paixão. Um cientista apaixonado é uma
contradição de termos. E a moral é o cimento
que elide a cátedra: é importante manter do
assunto que se estuda um distanciamento
asséptico, um olhar crítico, uma frieza
analítica. Então os pesquisadores entram e
saem dos seus campos de estudos. Entram
e saem. Entram e saem. Entram e saem.
Entram e saem. E retornam aos seus edifícios
apresentando aos colegas o seu patrimônio,
fruto de espólio. Alcançam o clímax do seu
voyeurismo estranho contando aos pares o
que viram lá no mundo exótico. São estas
narrativas, carregadas de sensatez, que os
põem laureados com os títulos honoríficos.
Como Ulisses, eu deveria atravessar o
mar amarrada ao mastro da embarcação, para
que pudesse ouvir o canto das sereias, sem
me afogar. Daria então testemunho magno da
maravilha mortal, enquanto alguns escravos
remariam com os seus ouvidos selados. Esta
gana de dominação da natureza que a ciência
59
tem...
Mas eu tinha a ideia fixa naquele
assunto, como quando um pensamento nos
rapta sem possibilidade de fuga, como se
ouvisse o canto antes mesmo de zarpar.
PUTA LIVRO
Queria estar suspensa no oco do mar. De
perto. De dentro. Então mergulhei logo
que pude, levada pelos sons das gargantas
míticas. Sobrevivi? O mergulho profundo
se tornou hábito. Eu emergia com algas
nos cabelos, algo muito impróprio para um
cientista.
Contra o meu fascínio pelo mundo
NATÂNIA LOPES
submerso, o meu Professor convidava-me
para congressos sobre religião, comunidades
ribeirinhas, os impactos das políticas estatais
nisso, naquilo... recomendava-me ler os
clássicos da pedagogia, da filosofia, da
sociologia, da teologia... tentava plantar em
mim um interesse que fosse válido entre os
homens do saber.
E pela pedagogia, filosofia, sociologia...
eu voltava a interpretar o meu tema. Nas
igrejas e nas comunidades nativas, quando
as pessoas iam conversar pelos cantos,
elaborando sobre suas condenações,
eu o reencontrava. E todos os autores
pareciam murmurar por entre as linhas suas
apreciações a respeito do tortuoso assunto.
As conexões de sentido vinham dos livros
como frutas na cesta, peixes servidos na
travessa, uma mesa farta, posta para o meu
deleite. Eu não procurava. Elas se insinuavam.
Nas reuniões de supervisão eu voltava
a falar com meu Professor sobre as relações
possíveis entre o que eu lia e desejava. E
percorríamos as pontes de sentido que nos
levavam, juntos, à atmosfera espúria. De lá
eu saltava para a água. Ele ficava do barco
avaliando o ornamento do meu salto. Eu só
queria o fundo.
Era escuro lá. As mulheres andavam
nuas e os homens não importavam. Havia
muitos espelhos e luzes de todas as cores.
E se podia ganhar muito dinheiro. Ou até
dinheiro nenhum. Mas o mais importante é
60
que, tal como deve ser, as garotas podiam,
enquanto os homens queriam. E quando
eu emergia, meu supervisor se punha
intransigente com os compromissos, tanto
respeito tinha pelos pactos estabelecidos.
PUTA LIVRO
Todas as vezes que eu mergulhava,
voltava mais afiada. Tanto que umas linhas
das políticas que sustentam as relações se
partiram. E eu fiquei ainda mais solta. E
mergulhava vestida com minhas roupinhas em
tons de bege, e voltava de escarlate, como
mulher e sujeito, aquela que duvida e vai,
toda assertiva. Descia falando o português
NATÂNIA LOPES
culto das rodas acadêmicas, emergia falando
a língua universal da roda da vida; uma
linguagem ancestral do corpo e para além
do corpo e de tudo. Lá de onde as coisas
existem com violência e sem artifícios.
Vendo que minha presença no mundo
de fora era cada vez mais rarefeita, meu
Professor tentou ainda seduzir-me com
promessas de sucesso: viajar o mundo
estudando o cartesianismo, palestrar na
Europa, um reconhecimentozinho glamoroso
feito de livros lidos sempre da mesma
maneira, de óculos e echarpes, nas mãos um
café para cheirar e beber com dedo mindinho
durinho, assim... em pezinho. Trouxe até um
Professor dele, de uma universidade francesa,
para ouvir meus achados de pesquisa, que
deveriam se articular com todo material lícito
sobre o qual eu havia estudado.
O Professor do meu Professor, por
detrás dos óculos, sorvia seu café enquanto
outros lhe bajulavam. Lixava as unhas
enquanto dizia palavras conclusivas a alunos
ansiosos por seu parecer. Dormia enquanto
meu Professor o aguardava. Eram, os dois,
totens de remota idade, a quem o tempo não
legara sabedoria.
A mim o tempo não apaziguou.
E entre um douto e um cauto, eu salto.
Mergulho.
Encontro.
De novo vinha com algas embaraçadas
nas madeixas. Que gafe! Que desalinho! Meu
supervisor puxou-as antes que eu entrasse
61
na sala, arrancando junto uns fios do meu
cabelo. A água imprimia meus saltos no
assoalho. O Professor francês sentou-se
diante de mim, tão adestrado e adestrador,
PUTA LIVRO
munido do seu poder.
Eu abri a boca para dizer “Estado”, saiu
“cabaré”. Quis dizer “práticas corporais”,
saiu um canto de sereia. Minhas cordas
vocais vibrando alucinadamente. Foi como
se uma bomba caísse sobre a sala. Não
havia sanidade que resistisse. Meu Professor
pendurou-se no ventilador e começou a
NATÂNIA LOPES
rodar. O Professor dele pôs-se de quatro
como um jumento. O som estilhaçou as
vidraças. Uma vara de porcos atirou-se do
último andar, possuídos por uma legião de
demônios. Eu não cantava mais o canto das
sereias. Eu era o canto.
Quando tudo se recompôs intimaram-
me a pagar pelos vidros quebrados -embora
sem eles estivesse tudo tão mais arejado!
Tive também que indenizar os donos da vara
suicida. Vá bem. Melhor assim do que eles
manterem os porcos cristianizados.
Fui convidada a me retirar.
Houve uns coros assustados sobre o
acontecido nos meses que se seguiram,
sem consenso sobre motivações para o meu
desvio, ou resultados adequados.
-Talvez o certo fosse ela viver no mar–
diziam.
Mas eu não queria.
-E como poderia não querer? – Eles não
entendiam, embora não houvesse nisso nada
sobre o que entender.
Os cientistas não gostam quando não
entendem. Mas como não são habituados
a pôr as coisas em termos de gosto, e,
como tampouco aceitam os limites do
entendimento, rotulam de errado, de mal, de
doente tudo aquilo o que lhes escapa.
-Você quer nos chocar! – acusavam.
Me ressenti dos policiamentos. Depois
me cansei. Mas ainda tenho medo de abrir
a boca e deixar escapar um canto. E se
62
vierem galopando os cavaleiros das cruzadas
e armarem cerco à minha volta? Com que
cara eu olho para eles? Feições duras?
Suplicantes? Um semblante cheio de amor?
Em silêncio, ando buscando uma pedra onde
PUTA LIVRO
me sentar. Me sobraram no bolso uma folha
de papel úmida de águas salgadas e uma
caneta que escreve borrado, mas que quase
nunca falha.
NATÂNIA LOPES
63
AMANDA DE
MELLO CALABRIA
PUTA LIVRO
DE ESTIGMA: a puta
política e as transas
no tempo. Trajetória
militante de Lourdes
Barreto. 1
PUTA LIVRO
de valores... e sonhando com uma sociedade
mais justa e mais fraterna consegue dizer
pra sociedade que ela é puta. Puta com
esse sistema, puta com essa sociedade
preconceituosa, mas uma puta mulher que
tem um prazer de gozar da maternidade,
mãe de 4 filhos, vó de 10 netos e bisavó de 8
bisnetos. Isso pra mim é o maior patrimônio.
PUTA LIVRO
criada em Catolé do Rocha. E o estado que
eu escolhi para morar é o Pará e Belém,
a cidade morena. Belém é fêmea, sempre
digo isso. Belém é uma cidade mulher.
Uma puta mulher. Quem vem pra Belém se
apaixona. E foi por aqui que eu aprendi com
a vida. A vida traz momentos maravilhosos
e momentos tristes também. Eu tive muitos
66
15 em 15 dias. E outra coisa, tinha que se
cadastrar na delegacia de costumes, que era
uma carteirinha. Nós tinha duas carteirinhas.
Uma da polícia, quem chegava em Belém
PUTA LIVRO
ia primeiro pra Delegacia de Costumes pra
ficar registrado. E a outra era da saúde, pra
fazer os exames. Mas eu me senti muito feliz
porque vivia na zona glamorosa, também
sofri pouca violência dos cliente. A violência
que eu mais sofri foi institucional, da polícia,
do poder público. Dentro da zona a gente
tinha afeto, carinho dos cliente, ganhava
dinheiro, recebia flores... então eu me sentia
PUTA LIVRO
França e espalhou muito no Nordeste do país
e no Pará, no Brasil e toda América Latina,
mas onde foi muito presente foi no Norte e
no Nordeste na questão de alfabetizar adulto.
Realmente tinha muitas prostitutas que eram
analfabetas, que mulher da minha época
não estudava pra arranjar namorado. Eu
não estudei, vim estudar depois. A Pastoral
PUTA LIVRO
Teve o encontro com a Gabriela, né, que foi
em 84, 85. Eu casualmente encontro com a
Gabriela Leite, no encontro da Pastoral em
Salvador, encontro aquela mulher baixinha,
empoderada, e eu arrodeada de mais de
150 trabalhadoras sexuais tudo vítima,
coitadinha, que a zona não prestava, porque
tava perto das freira, né, mas quando tava na
69
mulher da vida”, que até aí as puta não
falava, né, porque era proibida de falar. Foi
no Rio de Janeiro. E quem faz a abertura
sou eu, porque Gabriela era uma mulher
PUTA LIVRO
mais frágil do que eu, nordestina é bicho
resistente. Gabriela teve uma hemorragia,
engoliu um dente, “Como é que eu vou
falar faltando um dente e tal? Então tu faz a
abertura?”, eu disse “Faço”. Fui lá, peguei
o microfone, me tremia como uma vara
verde. Um gringo da Suíça conseguiu 7 mil
dólares pra fazer esse encontro lá no Rio
PUTA LIVRO
uma associação aqui no Pará, porque é
muita violência. Nós fundamos o Gempac
em 90. O cartório não queria. O cartório
de ofício registrou, por muito lutar, como
Grupo de Mulheres da Área Central. Mas
eu já arrumei uma casa, um cabaré pra fazer
uma placa Grupo de Mulheres Prostitutas
da Área Central. Depois de alguns anos nós
72
é o SUS. Eu sou uma das pessoas que pensei
e ajudei na elaboração do projeto do sistema
de saúde dos anos 80.
A gente vai levando a vida, levando
PUTA LIVRO
o barco, reunindo, falando. Dentro desse
contexto mais político de formação das
trabalhadoras sexuais, a gente viu a
contribuição que a gente deu, tem dado, e
ainda pode dar muita contribuição também
pra academia. A academia mesmo depois
com muitas vezes alguma diferença, com
alguns conceitos, a gente percebeu ser
PUTA LIVRO
Num momento eu dizia assim “meu deus,
porque eu tô aqui? Porque que os clientes
vêm aqui?” Havia uma necessidade. Porque
esse homem nunca vai falar das suas fantasias
sexuais com a mulher que está dentro de
casa. Ele vai falar com uma mulher que ele
não conhece, mesmo se conheça ela tá ali
PUTA LIVRO
puta até que tinha identidade já. Então eu via
elas passar puxando aquelas malas imensa,
porque ninguém queria puxar a mala delas.
Elas com aquele vestido brilhoso, batom bem
vermelho, toda muito bem maquiada. Égua,
andando num sol carregando uma tremenda
mala. Passavam bem na porta da casa onde
eu morava. Eu dizia: “mas por que ninguém
PUTA LIVRO
mas também quero defender qualquer
mulher. Porque independendo da nossa
profissão, nós somos mulher. Eu não posso
só lutar, se eu chegar num espaço e defender
só a prostituta, eu tenho que defender a
mulher na questão da relação de gênero, da
violência, da questão cultural, patriarcal, nós
PUTA LIVRO
Sou negra sim senhor
Não me venha com seu racismo
Sou negra com muito orgulho
Carrego nas costas as marcas
Das chicotadas do seu preconceito.
PUTA LIVRO
Eu sei que você gosta
do meu cabelo assim
despenteado, emaranhado,
bagunçado
Te lembra nossas vidas
Te traz um certo conforto,
Uma certa sensação de paz
Em meio ao caos.
Já eu,
não gosto dos nós do meu cabelo
Eles também me lembram
nossas vidas
Aquele incansável
Estica, puxa, amolece, machuca.
Quando eu era pequena
queria ter meu cabelo liso
Sem curvas,
onde eu não pudesse me enrolar
onde suas mãos não pudessem
me prender
Hoje,
adulta
Eu só queria que nossas
vidas fossem assim também.
78
FLAVIO LENZ
LUGARES EM
PUTA LIVRO
MOVIMENTO:
putas protagonistas
e aliades no jornal
Beijo da rua. E um
pouco mais
Numa sala de aula da Universidade
Federal de Goiás, durante o I Encontro de
Comunicação e Movimento Popular, em 1989,
uma aluna questiona o palestrante convidado
sobre a sua posição como editor de uma
publicação de movimento social. Jornalista,
mas não protagonista daquele segmento
social, o relato do convidado não satisfaz a
estudante, que insiste; deveria ser o lugar
de editor ocupado pelas protagonistas, que
deveriam também ser as principais autoras na
publicação.
Flashback. Dezembro de 1988. Diante
da sede e gráfica da Tribuna da Imprensa no
Centro Histórico do Rio, madrugada, dois
humanos meio bêbados choram abraçados de
emoção enquanto tateiam a morna aspereza
da edição número zero de um jornal tabloide
(ver capa).
79
PUTA LIVRO
FLAVIO LENZ
Um desses humanos é a guerreira
revolucionária, a puta inteira, grandiosa e
fundamental que estimulou e levou à frente
o desejo de comunicação dela mesma e das
outras mulheres reunidas um ano antes no
I Encontro Nacional de Prostitutas (foto),
também no Rio: Gabriela Leite1, evidente. O
outro humano é o jornalista por ela convidado
a editar o jornal Beijo da rua, este que vos
escreve.2
1
Na coluna que escreveu embalada pelo “êxtase” do
primeiro desfile Daspu, Gabriela Leite acabou projetando
para si própria, mesmo afirmando ser utopia, a melhor
definição que qualquer pessoa poderá ou deveria dar
para ela. Escreveu: “Sonho com a puta inteira, grandiosa e
fundamental”. No corpo do texto, preferi evitar as aspas
para não atrapalhar a riqueza adjetiva desse sonho realizado
(LEITE, 2005, p.16).
2
Além das minhas nítidas lembranças, graciosamente
embaladas pelas antárcticas, Gabriela se refere a este
episódio: “Eram duas horas da manhã quando, junto com
o editor do jornal, Flavio Lenz, cheguei à gráfica da Tribuna
da Imprensa. Chorei como uma mãe que acaba de parir seu
primeiro filho. E comemorei esse privilégio num botequim
da Lapa, bebendo todas as cervejas do mundo naquela
noite” (Idem, 1992, p.97). Comigo.
O contexto em que se deu e
80
desenvolveu esse enlace humano-profissional,
e outros, todos contribuindo para a
publicação deste Beijo, jornal alternativo
com mais de 30 anos de pista, têm a ver
PUTA LIVRO
com a questão da estudante goiana, mais de
três décadas atrás. E é caldo para debater
aspectos dos conjuntos comunicação-
movimento social, prostituição-estigma,
protagonistas-aliades.3
No botequim
FLAVIO LENZ
Depois de cursar a faculdade de
Comunicação Social, com especialidade em
jornalismo, de estágios em revista de grande
circulação e na principal rede de TV, de frilas
de texto e fotografia, desembarquei em
1984 numa organização da sociedade civil
de “promoção de estudos, conferências,
seminários, publicações e assessoria no
campo da cultura, especialmente em seus
aspectos religiosos” – o Iser, Instituto de
Estudos da Religião.4
A vaga de secretário de Redação incluía
apoiar editores e conselhos editoriais de
uma revista científica (Religião & Sociedade),
de coleção de livros a publicar pesquisas e
teses (Cadernos do Iser) e de uma revista
de temas mais contemporâneos e pesquisas
em andamento (Comunicações do Iser). Em
resumo, tratar da produção das publicações,
do recebimento e distribuição de artigos
a avaliadores, da revisão de textos à
interlocução com editoras e designers, e
inúmeras outras atividades. E assim fiz, fui
fazendo.
3
Agradeço imensamente a leitura e contribuições a este
texto de Friederike Strack. Como seu nome, terminado
em “e”, uso diversas vezes o sufixo “e” e até “ae”, num
caso muito especial, ao invés dos marcadores de gênero
“a” e “o”. Não sempre, já que algumas palavras têm forte
referência e importância no período de que trato, a principal
delas, Puta.
4
LINHA DO TEMPO: Iser.
81
No ano seguinte, 1985, essa
organização viveu uma “grande expansão
de suas atividades com uma nova geração
de ativistas e pesquisadores de diferentes
áreas, especialmente ligadas ao trabalho
PUTA LIVRO
contra a discriminação, o preconceito e a
desigualdade econômica e social”.5
Foi nesse período que, na acolhedora
casa carioca das Laranjeiras, a primeira de
uma vila, encontrei uma mulher a datilografar
(o tempo é este, lembre-se) com espantosa
velocidade na garagem adaptada para
escritório.6
FLAVIO LENZ
Sua outra principal atividade era fumar,
o que então se fazia em qualquer lugar,
enfumaçando a garagem ou a cozinha, ou
dissipando o fumo no estreito quintal – eu
também praticava e assim nos encontramos
algumas vezes a pitar. Depois do serviço, ela
ou ia pra zona – a Vila Mimosa onde viveu
sua vida de puta no Rio – ou seguia direto
para um botequim próximo, onde quedava
muitas vezes só, bebendo, fumando e
pensando, outras vezes lendo. Sozinha em
termos, porque tinha a habilidade de ganhar
a simpatia dos garçons, talvez por ser das
poucas mulheres a frequentar à vontade um
espaço sobretudo masculino, além de ótima
freguesa.
Depois de alguns meses, num fim de
tarde sentei com ela no botequim. Já sabia
então que também batalhava.
Papo vai papo vem, chegamos à prostituição,
por óbvio. De repente, numa escalada,
de conteúdo e álcool, as vozes subiram
e subiram e subiram e houve uma forte
5
Ibidem.
6
Esta lembrança é distinta do relato da própria personagem,
de ter sido encarregada “da atualização das fichas,
com nome, endereço e telefone, para o fichário da
recepcionista”, já que no Iser “sabiam que eu tinha sido
secretária, antes de ser prostituta” (LEITE, op. cit., p.105).
Insisto nessa memória, porém (quem sabe datilografava as
fichas?), porque a experiência como secretária e datilógrafa
em São Paulo era vez por outra lembrada por ela. E a
imagem é muito viva.
discussão. Saí de lá pensando “que mulher
82
doida, vê preconceito em toda a parte”.
Eu ainda não sabia, mas tinha começado
a minha desconstrução.
Na cabeça
PUTA LIVRO
Na mesma noite e nos dias seguintes,
tudo o que Gabriela tinha me dito começou
a cair na cabeça. Menos ou mais lentamente,
ora penetrando profundamente, num
download que se tornaria upload – quiçá
upgrade. Certamente assim foi porque
FLAVIO LENZ
também assim fui, a tentar dar sentido. Podia
ter tudo sempre negado e me afastado
daquela “doida”. Mas outros botequins
vieram, muitos outros.
De atualizadora de fichas e datilógrafa,
em pouco tempo Gabriela passou a organizar
o projeto que almejava, ao qual se chamou
Prostituição e Direitos Civis. E com ele subiu
para uma sala ampla no segundo andar
da casa, pertinho da minha. Lá conseguiu
incorporar gente ao projeto, sobretudo
petistas da militância católica, ligados à
teologia da libertação.
Ali correu muita água, até mesmo a
tentativa de enquadramento do nascente
movimento de prostitutas numa doutrina
político-partidária, em que “não há
espaço para novas experiências, nem para
contradições e urgências imediatas que
se manifestam a todo momento” (LEITE,
1992, p.142); ou por meio da qual se nega
espaço para a “puta cidadã”, não aquela que
escuta as “convincentes palestras de líderes
especialistas”, mas aquelas “que alcancem,
ou pelo menos se esforcem por alcançar, o
lugar da participação política” (Idem, 2005,
p.16); ou para o “puta politics”, em que
se distingue a “importância de estruturas
institucionais se adaptarem às culturas
dos distritos de luz vermelha, ao invés do
contrário” (MURRAY, 2015, p. 20).
Tempos depois, os doutrinadores foram
afastados por Gabriela, que se empoderava
83
e fortalecia seu espaço na instituição,
culminando em 1987 com a realização
daquele I Encontro Nacional de Prostitutas. E
com novas alianças.
E aqui voltamos ao futuro Beijo.
PUTA LIVRO
Concebido como vimos nesse encontro,
no qual atuei como assessor de imprensa,
a criação do jornal tornou-se de fato um
compromisso para Gabriela, que em algum
momento de 1988 me convidou para ser o
editor. Vibrei! “Que puta desafio!”
O que ela considerava essencial para
o jornal, a partir dos debates ocorridos no I
Encontro e das suas próprias experiências,
FLAVIO LENZ
conhecimentos e reflexões, e o que juntos
elaboramos e produzimos nos meses
anteriores ao lançamento e ao longo dos anos
com muitos outros atores e atrizes, tantas
vezes nos botequins, incluiu concepções
sobre prostituição e estigma, comunicação
e movimento social, protagonistas e aliades,
como já referido. “O Flavio era o editor
e nossas conversas no botequim varavam
madrugadas. Discutíamos temas, tínhamos
ideias, trazíamos convidados (...) O Beijo era
um pequeno sucesso editorial” (LEITE, 2009,
p.161).
O babado do estigma
84
cultural, pessoal, social e a posterior e
continuada desconstrução profissional, diante
do confronto inaugural com ela em seu
rascante estilo.7
PUTA LIVRO
Assim como frequentemente relatam
tantos dos aliados que criou, muitos tornados
amigos, também meus. São, ou somos os
“aliados afetivos”, como denominei em
outro lugar, a partir de reflexões com a
pesquisadora e ativista Friederike Strack
(LENZ, 2016, p.104-106). Hoje nós dois e
toda a tchurma dizemos “aliades afetives”,
FLAVIO LENZ
com a essencial contribuição da pute ativiste
transvestigênere Indianarae Siqueira, outre
demolidorae.8
Pois a desconstrução em diversas
esferas que Gabriela ofereceu a nós futuros
aliades – como depois outras putas explosivas
– é de um valor inestimável. A nós cabia ter
a coragem e a humildade de aproveitar essa
oferta, ou não, e pra mim foi impossível não
7
Escrito por Amarna Miller (2020), ex-atriz pornô, o Guia
ético para falar sobre trabalho sexual nos media se propõe
analisar “os cinco preconceitos mais comuns com que as
pessoas que fazem trabalho sexual têm de lidar” e inclui o
item “Desconstrução pessoal do jornalista”. Nele, a ativista
e feminista crava que “é da responsabilidade do jornalista
estar num processo constante de desconstrução”, e que
“seria interessante convidar o jornalista a questionar se o
trabalho que está a fazer está enviesado pelos seus ideais
e crenças enquanto indivíduo, ou se é uma representação
confiável da realidade” (p.20). Essa responsabilidade do
jornalista de desconstruir-se, com a qual concordo, pode ser
acionada pelo convite referido, feito com maior ou menor
gentileza, como o que recebi desde sempre de Gabriela.
Também presenciei semelhante ato dela diante de outros
jornalistas e, de modo mais contundente, de pesquisadores.
Vale conferir também entrevista de Amarna disponível em:
https://fundaciongabo.org/es/etica-periodistica/entrevistas/
exactriz-porno-publica-guia-responsable-para-hablar-del-
trabajo. Acesso em 2/9/2021.
8
Um dos que me dou a liberdade de chamar aliado afetivo,
ou aliade afetive, também se declarou capturado, ou
mais. “... na hora em que me dispus ao mergulho afetivo
e etnográfico, o caminho tinha sido traçado: dificilmente
haveria volta. (...) Fui predado pelas prostitutas e pela
prostituição, apropriado, sempre com a esperança de ser
um parente incômodo” (OLIVAR, 2013, p.32-33).
85
ser envolvido e atraído por elas, oferta e
ofertante.
E ponto. Encerro aqui esses dois
emocionados parágrafos para tratar de uma
coisa banal: pote de maionese.
O quê??!! Pote de maionese?
PUTA LIVRO
Pois sim!
E o que isso tem a ver com o jornal?
Já verás!
No primeiro livro que publicou, em
1992, e também no segundo, de 2009,
Gabriela Leite descreveu a breve convivência
que teve com “as mulheres católicas” do
Banco da Providência, localizado próximo da
FLAVIO LENZ
Vila Mimosa. Como se sabe, o objetivo da
principal organização voltada à prostituição
da igreja católica, a Pastoral da Mulher
Marginalizada, é o “resgate” das prostitutas,
a partir de sua (Pastoral) imaginação como
“sujeito benevolente” diante de “vítimas”, e
recorrendo a “práticas quase artesanais de
assistência” (SKACKAUSKAS, 2017, p.74,71).
Entre estas, escreveu Gabriela, irônica
e demolidora: “… pintar florzinha em pote
de maionese Hellmann’s e colocar babado
naquela tampa laranja” (LEITE, 2009, p.139).
Destaco essa denúncia por mostrar
que desde muito cedo a fundadora do
movimento de putas – que não estava e
nunca esteve “de bobeira na vida”, como
gostava dizer – recusava práticas que indicam
no mínimo subestimação e subalternização,
e tinha concepções bem diferentes sobre as
capacidades e possibilidades de expressão
artística, cultural, política e social de suas
colegas. A autoestima está aqui também em
causa.
Como criar um movimento social,
afirmar-se sujeita de direitos, sujeitas
políticas, estimular suas colegas a
ressignificarem sua identidade, tratar de
direitos sexuais, dialogar com o restante
da sociedade, negociar políticas públicas…
pintando florzinha em pote de maionese e
colocando babado na tampa laranja?
86
PUTA LIVRO
FLAVIO LENZ
Fonte: reprodução da internet
Sacam?
O que viria mais tarde a ser o Beijo da
rua já tinha assim bons antecedentes, na
cabeça de Gabriela, em matéria de produto.
Fazer bem feito já era do jogo. E ao
surgir o desejo e ao se criar a oportunidade
de fazer essa mídia de puta, não haveria de
ser qualquer coisa. E sim uma joia! Preciosa.
Como o movimento.
PUTA LIVRO
de informação jornalística, a proibição de
censura de natureza política, ideológica e
artística (BRASIL, 1988).
Os ares eram outros. E a comunicação
se revelava central nesse período. “De
um lado, criar estratégias para disputar
a arena midiática, principal campo de
produção e circulação de sentidos sociais;
FLAVIO LENZ
de outro, adotar ou criar novas práticas de
comunicação, incluindo a gestão de veículos
próprios, como foi o caso do Beijo da rua”.
(LENZ et al., abr. 2015).
Perspectivas que, associadas à gestão
de uma mídia própria, compõem aquele
aspecto da mídia cidadã que “atua como
instância educativa e formativa, através de
estratégias criativas e plurais, contribuindo
para o estabelecimento de relações sociais
e culturais mais igualitárias, com vistas ao
aprofundamento da democratização da
sociedade” (COGO, 2010, p.821, apud
Ibidem).
O movimento de prostitutas,
considerando a vasta discussão acadêmica
sobre o conceito e a categoria analítica de
movimentos sociais, incluindo noções de
atores sociais, ação coletiva e outras, poderia
ser reconhecido como de cunho identitário,
aquele que luta “pelo reconhecimento
de suas particularidades e diferenças [e
pode acabar] tocando em temáticas muito
importantes que afetam a estrutura social e
a própria constituição da sociedade”. Entre
esses estão o movimento feminista com
a hierarquia de gênero e a politização do
espaço doméstico; o negro, com a denúncia
do racismo e a política de cotas (GOSS, K. P.;
PRUDENCIO, K., 2004, p.81).
“As prostitutas, por seu lado,
levantavam questões ligadas à violência
institucional, à legislação penal e trabalhista,
à sexualidade, ao feminismo, à vitimização
88
versus autonomia e autodeterminação, entre
outras” (LENZ, 2016, p.19).
Outro fator que impulsionava a criação
da mídia cidadã, em geral, e de um jornal
PUTA LIVRO
das putas, em particular, era a multiplicação
de publicações ligadas a movimentos
sociais, inclusive tratando de gênero e
sexualidade. O exemplo mais emblemático é
o Lampião da Esquina (1978-1981), um “jornal
homossexual” (LAMPIÃO DA ESQUINA,
1978, p.2), que é mesmo citado na primeira
coluna da fundadora do Beijo: “Desde os
FLAVIO LENZ
áureos tempos em que surgiu nas bancas
de jornal O Lampião que eu imaginava o
movimento de prostitutas tendo um jornal,
onde se pudessem discutir todas as questões
que dizem respeito a nossa amada-maldita
marginália” (LEITE, 1988, p.2).
Se na década de 1970 diversas dessas
publicações eram fruto da “articulação entre
jornalistas, ativistas e intelectuais, apesar
de serem engajamentos prioritariamente
jornalísticos” (BRASIL DE MATTOS, 2020,
p.36), e muitas delas “tinham em destaque
a figura de um líder, ‘jornalista-alma do
projeto’, sem a qual seria difícil imaginar
sua existência” (KUCINSKY, 2001, p.7, apud
Ibidem, p.36), na década de 1980 os novos
jornais surgiam de entidades da sociedade
civil.
Não mais iniciativas partidas de jornalistas com
articulações políticas, mas sim jornalismo feito
através de terceiras instituições – muitas vezes,
partidos, sindicatos, movimentos populares
e contando com o apoio material da Igreja
Católica e outras entidades da sociedade civil
como veículo de defesa de seus interesses.
(KUCINSKY, 2001, p.14, apud Ibidem, p.37)
PUTA LIVRO
jornalistas e acadêmicos, no âmbito do
Iser, que por seu lado se torna uma dessas
“terceiras instituições” dos 1980 em
condições de materializar a publicação,
por contar com recursos sobretudo da
cooperação internacional.
O que não havia era um jornalista-
alma (por certo um entusiasta dedicado ao
FLAVIO LENZ
desafio), mas uma ativista-alma!
Esta que vinha de uma trajetória de
se ressignificar e renomear (LEITE, 1992,
p.7-13), produzindo novos sentidos para a
sua própria vida; que da classe média da
Vila Mariana e dos cursos de Filosofia e
Sociologia na Universidade de São Paulo
(USP) havia construído ponte para a Boca
do Lixo paulistana e o samba da terra da
garoa, a Zona Boêmia de Belo Horizonte
e a Vila Mimosa do Rio, conhecendo a
malandragem carioca; que era e foi por toda
a vida adita de literatura e ciências humanas;
que passara pela Pastoral da Mulher
Marginalizada e recusara a vitimização e
práticas silenciadoras de “resgate”; que
chegara a uma organização da sociedade
civil e nela abrira espaço para gestar um
movimento social, enfrentando o poderoso
estigma da prostituição a ponto de ativar
sua potência cidadã para gritar “Fala,
mulher da vida”, brado que atraiu colegas
de todo o país para um encontro de putas;
esta que convivia na entidade onde atuava
com diversos outros profissionais, incluindo
jornalistas e designers; enfim: por que esta
mulher, de trânsito intenso na vida e entre
gente de tantas qualificações, iria desprezar
essa trajetória, experiência e conhecimentos,
no momento de expor a face pública do
movimento em mídia própria?
90
Gêneros e formatos
PUTA LIVRO
em 1988 e nos anos seguintes.
A proposta editorial acompanhava e
refletia elementos fundantes do movimento
de prostitutas, destacados na já citada
Coluna da Gabi. Outros trechos: “trabalhar as
questões relativas à prostituição”; “priorizar
a organização das prostitutas em um
movimento e (...) enfatizar que a prostituição
não é um fenômeno à parte da sociedade”;
FLAVIO LENZ
“ver outras e muitas outras prostitutas
mostrarem também o seu [rosto]”; “mostrar
(...) com suas matérias, artigos e entrevistas
(...) o que somos e para que viemos”; explicar
em “poesia (...) a linha do nosso Programa”
(LEITE, 1988, p.2).
Desde o I Encontro, e até dos “áureos
tempos em que surgiu nas bancas de jornal
O Lampião” (LEITE, op.cit.), estava indicado
que o movimento se comunicaria por meio
de jornal – por princípio periódico, mesmo
que a fundadora escrevesse “não temos
periodicidade” naquela mesma coluna,
embora mais tarde reclamasse da falta dela:
“Não há inspiração que resista a um atraso de
dois meses e meio entre o Beijo n.º 6 e o que
finalmente está saindo com essa coluna, ou
seja o 7” (LEITE, 1991, p.2).
Assim, o movimento faria jornalismo
periodístico, por meio de um jornal, e
com pretensões de comunicação massiva
(MARQUES DE MELO et al., 2016), já que
ambicionava comunicar-se não só entre
putas e o “povo da rua”, mas com o público
mais amplo possível: o “gueto falando e
mostrando para a sociedade, que insiste
em guetificar o diferente, que prostituta,
mendigo, homossexual, michê, louco também
é gente e cidadão...” (LEITE, op. cit.).
E não se tratava de “um periódico do
tipo ‘prostituta unida jamais será vencida’”,
na paródia de Gabriela Leite (idem) à tão
91
famosa quanto repetida palavra de ordem
“o povo unido jamais será vencido”, ela
que nunca se encantou pelo “politicamente
correto”, por “palavras de ordem”,
pelas “frases prontas” que constatou
com “pontinha de tristeza” habitarem o
PUTA LIVRO
movimento, dois dias antes de um encontro
nacional: “Nos tornamos politicamente
corretas (…) Existe um modelo concebido de
como deve ser e agir o movimento popular:
sério, racional, com discursos prontos e
decisões de lideranças. Não há lugar para a
poesia, o romântico, o contraditório” (LEITE,
FLAVIO LENZ
1994, p.2).
Se classificarmos o Beijo por gêneros
jornalísticos, suas funções e formatos,
identificaremos todos os relacionados por
Marques de Melo et al. (2016, p.49-51). O
Informativo, com a função de “vigilância
social”; o Interpretativo, com papel
“educativo, esclarecedor”; o Opinativo,
como “fórum de ideias”; o Utilitário,
de “auxílio nas tomadas de decisões
cotidianas”; e o Diversional, para “distração,
lazer”, todos foram constituindo o jornal,
em diferentes edições e períodos ou numa
mesma edição, mesmo que não tivessem
havido conversações tão estritas então.
A discussão inicial se deu diretamente
em torno dos formatos jornalísticos que
compõem cada gênero, com destaque para
os mais comuns nos jornais comerciais,
aqueles do gênero Informativo: nota
(seções Rapidinhas, Na Zona ou No Ponto,
conforme o período), notícia, reportagem,
entrevista. Vale sublinhar que, além de
notícias do Brasil, prioridade do jornal,
conforme o movimento passou a ter ligações
e a participar de eventos com ativistas da
América Hispânica, da Europa e da América
do Norte, bem como da África e da Ásia,
criou-se uma seção Internacional. Teve
contribuições do jornalista Jayme Brener e
vem tendo da socióloga e ativista Friederike
Strack, assinando agora a coluna Gira
Internacional.
92
Do gênero Opinativo, já começamos
a empreitada com os formatos editorial e
comentário (um e outro se alternando na
Coluna da Gabi), sendo coluna também
um formato opinativo, e artigo, do qual
PUTA LIVRO
trataremos adiante. Ao longo do tempo,
incorporamos crônicas, como “Papo Davida”
(de 1997 a 2014), “Histórias da Lucineide”
e “e outras histórias” (2002 e 2003),
quase sempre escritas por prostitutas, e
até resenha (LENZ, 1992, p.6-7). Diversas
edições tiveram também seção de cartas,
na qual buscávamos escutar a percepção do
FLAVIO LENZ
jornal e da prostituição.
Os formatos do gênero Interpretativo
utilizados foram análise, perfil, enquete
(sobre o nome preferido para a “sua
atividade”, na edição de março 2002 e
seguintes), assim como cronologia, entre
outros, no jornal sobre os 30 anos do
movimento de prostitutas.9
Publicamos ainda matérias de serviço,
do gênero Utilitário, sobre prevenção
de DST/Aids, em diversas edições, a
exemplo de “Com a boca” (2002, p.2), e
também sobre uso de óculos (CHERIGATTI,
2002. p.16-17) e cuidados com os dentes
(Idem, 2003, p.9), ou ainda a respeito de
maquiagem (ABUD, 2002, p.2, e CAVOUR,
2002, p.2).
Como distração e lazer, as funções
do gênero Diversional (que alguns autores
consideram também literário), publicamos
um formato que pode “entreter”, mesmo
que no Beijo tivesse um forte componente
político. Trata-se da seção de Poesia, que
desde o princípio foi editada pela fundadora
do jornal, uma amante de literatura e
poesia, que poderiam, para ela, até mesmo
substituir o discurso político-militante:
“Amo as letras, amo a prosa e a poesia,
e por isso acho que nesse momento uma
poesia explica muito melhor a linha do nosso
9
Cf. Lenz, 2002, p.11, e Beijo da rua, dez. 2017, p.18-21.
Programa do que eu ficar escrevendo e
93
escrevendo sobre tal” (LEITE, 1988, p.2).
E atacou logo de Manuel Bandeira, seu
“poeta preferido”, com versos que valorizam
os corpos diante das almas, “Porque os
corpos se entendem, mas/as almas não”
PUTA LIVRO
(idem).
Ainda nesse gênero, publicamos o
que Hidalgo (2001, p.97, apud ASSIS, 2008,
p.8) chama de “história de vida”, definida
por Vilas Boas (2003, p.16-17, apud Ibidem)
como “modalidade [que] dá atenção total
ou parcial às narrativas sobre as vidas de
FLAVIO LENZ
indivíduos ou de grupos sociais, visando
humanizar um tema, um fato ou uma situação
contemporânea”. Há muitas.
A ideia básica era, ao fazer jornalismo,
aproveitar a familiaridade do público geral
com a estrutura dos jornais comerciais
correntes, demonstrando capacidade
de produção jornalística profissional, em
oposição a um produto de aparência
improvisada. Acreditávamos ainda que
agregaríamos, assim, credibilidade ao veículo.
Alguns desses formatos foram
privilegiados porque se adaptavam melhor às
protagonistas, como é o caso de entrevistas,
publicadas já desde o número 1 (mais abaixo).
Elas constituíam um recurso importante de
expressão e manifestação das prostitutas
porque a grande maioria das ativistas
daqueles primeiros anos do movimento havia
tido pouco acesso à educação formal e tinha
pouca prática de escrita – houve diversas
tentativas frustradas de obter textos de
muitas delas.10
A “adaptação” ia além disso, já
que pretendíamos também “retratar o
10
Estudo com 2.712 prostitutas de três regiões do país, com
trabalho de campo de outubro de 2000 a março de 2001,
apontou que o percentual dessas mulheres com o segundo
grau completo era de 5,8% no Nordeste, de 7,7% no
Sudesrte e de 11,4% no Sul (BRASIL, 2003, p.21; p.29-30).
Edição de abril de 2002 do Beijo publicou resultados desse
estudo.
94
cotidiano, os momentos simples, o não-
dito, o individual” da prostituta e de outros
“marginais” (LEITE, 1991, p.2), estratégia
bem exemplificada no nosso Perfil do
Consumidor, que parodiava os perfis de
PUTA LIVRO
consumidores de jornais comerciais, com
perguntas relacionadas à prostituição,
como: “Pagamento – Adiantado. Chato –
Homem que quer fazer a gente gozar. Dia
fraco – Quando tem jogo do Flamengo ou
chove” (LENZ CESAR, 1989, p.9). Assim, o
elemento jocoso e irônico estava também
presente. Como ainda nesta titulação
FLAVIO LENZ
da matéria sobre eleições do número 0:
“Prostitutas não vão em massa à zona
eleitoral – Cantadas mal dadas só elegem
candidato que nega tudo” (BEIJO DA RUA,
dez. 1988, p.3). Ou na manchete de capa
da edição que cobriu evento no exterior:
“Prostitutas agitam o Peru” (BEIJO DA
RUA, out. 2004).
Como nas entrevistas, citação direta
ou reprodução de falas das prostitutas é
frequentemente usada, até para manter
fidelidade aos discursos e palavras.
Há mesmo um compromisso editorial
na primeira cobertura de um encontro
publicada pelo jornal, sob o título “Fala
mulher da vida”, como segue: “As
falas dessas mulheres, de convidados e
organizadores estão registradas nesta
matéria, que é fiel à principal proposta
do trabalho de organização e resgate da
cidadania das prostitutas: FALA MULHER
DA VIDA” (LENZ CESAR e LEMOS, 1989,
p.5-8).
Lembrando que “Mulher: da vida, é
preciso falar” foi o slogan do I Encontro
Nacional de Prostitutas, daí em diante
ligeiramente modificado nas pontuações,
porém mantendo a essência da proposta. E
que, novamente na cobertura do encontro
nacional de 2017, o título-slogan “Fala
mulher da vida” voltou a ser impresso no
95
abre (introdução) da cobertura do evento.11
Ainda no elemento verbal, havia
uma total liberdade de criação, inclusive
pela ampla diversidade de autores e
colaboradores, de diversas profissões, como
PUTA LIVRO
veremos mais adiante. A Coluna da Gabi, em
especial, tornou-se forte referência de estilo
e conteúdo absolutamente pessoal, libertário,
revolucionário, inclusive pelo fato de a
fundadora do jornal circular por tantos meios,
teorias e práticas, artes e mídias (poesia,
literatura, música, para citar algumas), por
adotar um tom intimista e provocador, em
FLAVIO LENZ
permanente diálogo com as leitoras, irônica
e sarcástica, também consigo mesma,
como em:
Perguntarão vocês: o que temos a ver com
as questões existenciais da Gabriela [‘como
será que os jornalistas conseguem escrever e
escrever com hora marcada e todos os dias?!’],
com tantas questões sociais e econômicas a
serem resolvidas no país? Respondo: vocês
não têm nada com isso, só que gosto de
escrever sobre as minhas interioridades e, se
me acham chata, por favor virem a página, pois
encontrarão matérias sensacionais elaboradas
pelo exército de brancaleone e eu continuarei
a escrever minhas bobices; é o destino, fazer o
quê? (LEITE, out./nov.1989, p.2)
Memória e identidade
11
Confira também as coberturas do II Encontro de Mulheres
Prostitutas do Pará, de 1996, assim como a do mais recente
encontro nacional, 2017, apenas com variações nos formatos
“nome-reprodução da fala”, “reprodução da fala-nome”, ou
“tema-reprodução da fala sem o nome” – neste caso devido
à falta de registro, à dificuldade de identificação posterior
nas gravações ou a pedido da participante de não ser
identificada, situação menos comum. (BEIJO DA RUA maio-
junho 1996, p.1-16; BEIJO DA RUA, dezembro 2017, p.3-10).
96
p.9-10). Esta seção (de análise, educativa,
do gênero Intepretativo) pretendia, como o
movimento e sua mídia cidadã, ressignificar e
contribuir para a produção de novos sentidos
sobre a prostituição e as prostitutas, assim
PUTA LIVRO
como para a construção social de uma nova
identidade da prostituta, em oposição à
“identidade deteriorada” de Goffman (1988).
O percurso de construção de uma
nova identidade começa pelo que Castells
denomina identidade de “resistência”, aquela
“criada por atores que se encontram em
posições/condições desvalorizadas e/ou
estigmatizadas pela lógica da dominação”.
FLAVIO LENZ
A próxima posição a ser alcançada é a
“identidade de projeto”, “quando os atores
sociais (...) constroem uma nova identidade
capaz de redefinir sua posição na sociedade
e, ao fazê-lo, de buscar a transformação
de toda a estrutura social”. Haveria ainda
uma terceira posição, a da “identidade
legitimadora”, que “dá origem a uma
sociedade civil” (CASTELLS, 2000, p.24).
Produzir memória, assim, é também
constituir-se como “‘lugar de memória’” e
“objeto de não esquecimento”, no qual “é
perceptível a lembrança da construção do
jornal, a rememoração e comemoração dos
eventos e encontros importantes para elas
[prostitutas], assim também como as datas
que revitalizam o desenvolvimento do jornal”,
de acordo com Souza (2019, p.89-91).
E segue o pesquisador: “A criação do
Beijo da rua teve significativo valor, dando
possibilidade às prostitutas de alcançarem,
além de um espaço para propagar sua voz,
também um objeto de não esquecimento.
(…) O jornal é não só uma afirmação, uma
forma de confronto, mas também um suporte
que se faz necessário para manter e contar a
história das prostitutas por intermédio de um
movimento de prostitutas, um vestígio dessa
trajetória” (Ibidem, p.91-92).
O próprio aniversário de 30 anos do
jornal foi comemorado em 2018 (BEIJO DA
RUA, dez. 2018).
97
Artigos
PUTA LIVRO
contribuições em geral assinadas por aliados
ou mesmo simpatizantes, porque o tema
pode contribuir para a compreensão desse
tipo de cooperação no jornal e ao próprio
movimento.
Em jornalismo, artigo é um texto
opinativo, “geralmente, elaborado por um
especialista, que julga um acontecimento
FLAVIO LENZ
passível de controvérsia a partir de seu
repertório” (MARQUES DE MELO e ASSIS,
2016, p.52). “Em jornais impressos, é normal
que os editores convidem personalidades
da sociedade (especialistas, intelectuais,
autoridades) para escrever artigos sobre
temas específicos do noticiário, sem
remuneração” (ARTIGO: Wikipédia). Além
disso, no meio acadêmico, compreende-
se artigo acadêmico ou científico como
“produções textuais que têm a finalidade de
comunicar os resultados de pesquisas, ideias
e debates de uma maneira clara, concisa e
fidedigna” (ARTIGO CIENTÍFICO: Portal de
Artigos Científicos).
A criação e multiplicação de publicações
ligadas a movimentos sociais por meio
da articulação de jornalistas, ativistas e
intelectuais (década de 1970) e no âmbito
de entidades da sociedade civil, com
expressiva presença de acadêmicos (década
de 1980), foram ambos campos férteis no
desenvolvimento inicial do Beijo, como já
argumentei. Diversos desses intelectuais
e acadêmicos estavam, por dizer assim, à
mão, tanto por já conviverem diretamente
com a pioneira Gabriela Leite quanto pela
forte repercussão do I Encontro Nacional de
Prostitutas, gerando até mesmo interesse
acadêmico por aquele fenômeno social como
objeto de investigação.
Participar dele de alguma forma seria
um plus (e um passo na direção de eventual
98
pesquisa participante?). E mais, apoio a uma
causa de defesa e promoção de direitos,
solidariedade, mesmo.
Nesse contexto, profissionais de
diversas áreas, inicialmente simpatizantes,
PUTA LIVRO
alguns depois aliados, foram convocados e
concordaram em contribuir no princípio e ao
longo do tempo ao jornal.
Tratava-se de uma aliança importante
por conta do poder desses intelectuais e
acadêmicos de influir no discurso público,
se não exatamente na produção de
sentidos, nesta caso, na circulação deles,
FLAVIO LENZ
inclusive por sua visibilidade juntos aos seus
pares, eventual multiplicadores, e por sua
capacidade de presença na mídia comercial.
Ao lado desse cenário, havia as
dificuldades na produção de textos autorais
pelas prostitutas.12
Desse modo, a se verificar estritamente
as autorias nas primeiras edições do Beijo
da rua, como pode ter feito a participante
daquele evento de Goiás, serão encontradas
menos autoras prostitutas do que autoras
de outros segmentos. Em princípio apenas
Gabriela Leite, com sua coluna. No entanto,
entrevistas com prostitutas, reprodução
literal de suas falas em eventos, reprodução
de um texto publicado por uma associação
suíça, prostituição e putas como tema em
textos e em imagens, tudo isso tem vasto
espaço naquelas primeiras edições do jornal.
Brasil de Mattos (2020, p.18-20)
chega a fazer esse tipo de levantamento.
Identifica um primeiro período (1988-1992,
no Iser) com autorias principalmente de
“profissionais das ciências humanas”; um
segundo, em Davida (1993-2011),
de “ativistas”; e um terceiro (2014-2017),
com contribuição de “pesquisadores
12
Não localizei registro, nem tenho lembrança, da data
do evento em Goiânia. As edições a que participantes
poderiam ter tido acesso são até quatro, do número 0
(dez.1988) ao número 3 (out./nov. 1989), todas do primeiro
período, no Iser.
acadêmicos”.
99
A pesquisadora também anota que
o tema “movimento social de prostitutas”
está presente em todos esses períodos,
e que, no primeiro, prostitutas “figuram
PUTA LIVRO
principalmente como entrevistadas e como
personagens de reportagens e matérias
realizadas”; que essa caractertística “se
mantém nas edições do período seguinte”,
além de que “prostitutas passam a ser
autoras regulares no jornal”; e que, no
terceiro, mesmo os autores identificados
sendo “em sua maioria pesquisadores
FLAVIO LENZ
acadêmicos de ciências humanas e sociais”,
há “relatos de prostitutas sobre batalhas e
clientes”, incluindo, em uma edição sobre as
Olimpíadas no Rio, “imagens produzidas (...)
por dezesseis pessoas (mulheres, travestis
e pessoas trans) que atuam na prostituição”
(Ibidem, 18-20; p.41).
A última edição a que a pesquisadora
teve acesso foi a de dezembro de 2017,
comemorativa dos 30 anos do movimento
de prostitutas, na qual “as prostitutas são
as únicas protagonistas das narrativas
construídas no jornal” (Ibidem, p.41).
Esses apontamentos contribuem para
indicar que o Beijo da rua, com recurso a
seus diferentes formatos jornalísticos, vem
mantendo as prostitutas e seu movimento
social como protagonistas no jornal, tanto
como autoras, entrevistadas, em falas
reproduzidas literalmente (cf. nota 11),
como tema de matérias e ainda de outros
modos, inclusive em imagens, conforme
complemento adiante.
Além desses modos de interpretar o
protagonismo, inúmeras vezes, em distritos
de luz vermelha, prostitutas perguntam
sobre a próxima edição (“Quando
sai?”), sobre participação na produção
e distribuição ou como personagem no
jornal, e sugerem pautas. Tornou-se prática
promover reuniões de pauta em botequins
de zonas cariocas, ou pedir sugestões por
100
telefone ou outro meio a prostitutas de
outros estados.13
Finalmente, há uma edição em especial,
a que comemorou os 30 anos do jornal, em
dezembro de 2018, que traz declarações
PUTA LIVRO
de prostitutas sobre o próprio veículo, numa
página reproduzida a seguir.
FLAVIO LENZ
O visual
13
Tratarei em outro artigo da distribuição do jornal. Por ora,
menciono que nasceu com pretensões nacionais, conforme
apontou Strack (1996, p.168): “Como foi pensado como
meio de comunicação para prostitutas do país inteiro, foi
lançado no encontro em Recife, em 1988”
101
apud DAMASCENO, 2006, p.2). E entre seus
componentes, o projeto gráfico, a identidade
visual, o design, a diagramação, fotos,
ilustrações, histórias em quadrinhos, cartuns
(ou anedota gráfica).
PUTA LIVRO
Há muito o que tratar, sob esse aspecto,
desde a primeira página do jornal (um
artigo por si) até cada um e o conjunto dos
componentes visuais. O editor de Arte do
Beijo mencionou sucintamente a extensão de
tal análise:
Se olharmos em painel a trajetória visual do
Beijo da rua, veremos que há uma pegada
FLAVIO LENZ
da arte de guerrilha, do spray, do stencil, da
xeroz dos primórdios do magazine, até da arte
vetorial mais moderna. E tudo tem sua analogia,
tudo conversa, apesar das radicais mudanças
tecnológicas nos processos de edição gráfica ao
longo desse período. (PRUDENTE, 2018, p.2)
PUTA LIVRO
que se trata de um personagem. Nessa
proposta de representação, assim, ela também
poderá acolher outro personagem (ou aquele
que não ousa se revelar), com suas fantasias
não realizadas. Encontro de dois anônimos, que
deixam de lado suas identidades formais. Este o
Beijo da rua. (LENZ et al., abril 2015)
FLAVIO LENZ
prostituta não beija (pelo menos na boca),
“pois esse ato criaria aproximação afetiva não
pretendida nem desejada”, faz o título tornar-
se também “equivocante” (Idem).
Definido o nome, a designer Cecília Leal
desenvolveu a identidade visual e o projeto
gráfico. E a marca já agregou ao nome
“elementos de representação identitária e
reforço contextual” (Ibidem).
PUTA LIVRO
ruas e da prostituição (LENZ et al., op. cit.)
FLAVIO LENZ
Prudente (op. cit.). A essa altura, o Beijo
já estava há muito sendo publicado por
Davida – Prostituição, Direitos Civis, Saúde,
fundada em 1992 pelas prostitutas Gabriela
Leite e Doroth de Castro, bem como aliades,
inclusive este autor.14
Não é demais destacar que a produção
do Beijo da rua por Davida garantiu ainda
maior potência ao jornal, pois a entidade já
nasceu integralmente dedicado à prostituição
e às prostitutas, como informava sua missão:
“Criar oportunidades para o fortalecimento
da cidadania das prostitutas, por meio
da organização da categoria, da defesa e
promoção de direitos, da mobilização e do
controle social”.15
Em 2004 criamos o Beijo da rua online
(www.beijodarua.com.br), com a publicação
virtual de cada edição impressa e espaço na
página inicial para dar notícias a qualquer
momento, até mesmo breaking news e furos
jornalísticos, como de fato ocorreu, inclusive
na última nota publicada no site, como
14
O acordo que formalizou a saída de Gabriela Leite do
Iser, em 1992, incluiu transferência de acervo, livros e
documentos, recursos e titularidade do Beijo da rua. O
primeiro número publicado por Davida foi o 13, em 1993.
15
Missão, objetivos, uma linha do tempo e outras
informações sobre Davida constavam no site www.davida.
org.br, hoje fora do ar, assim como em documentos
institucionais impressos, como folhetos.
se pode ler logo abaixo. Com o website
104
programado por Rafael Pena, desse período
se destaca Fernando Pena, o editor de arte
das edições impressas e virtual.
Tragicamente, no final de 2016, o
PUTA LIVRO
provedor deletou o website.16 Hoje ainda
é possível ler o Beijo online devido às
“capturas” feitas pelo arquivo de internet
Wayback Machine (https://web.archive.org).
A última captura do site é de 22 de outubro
de 2016. E a última matéria no plantão de
notícias é uma exclusiva, datada de 3 de
setembro de 2016, informando que uma rua
FLAVIO LENZ
no Rio de Janeiro havia sido denominada
Gabriela Leite.
16
Ao verificar que o site não estava no ar e entrar em
contato com o provedor, fui informado que mensagens
solicitando o pagamento tinham sido enviadas e não
respondidas ao e-mail principal de contato, que era um dos
e-mails institucionais de Davida, pouco usado na época.
No entanto, existia um e-mail secundário, pessoal, que
era por mim acessado diariamente. E, para este, nenhuma
mensagem foi enviada, como o próprio provedor admitiu.
A severa reclamação a esse respeito foi inútil, uma vez que
não era possível recuperar o website. O provedor nunca foi
responsabilizado.
o Beijo da rua reafirmou o objetivo de atrair
105
leitores de diversos campos profissionais, não
exclusivamente ligados à prostituição, como
putas e clientes e administradores do ramo,
já que a estratégia política do movimento
PUTA LIVRO
sempre foi a de fazer circular novos sentidos
da prostituição, produzir conhecimento desde
dentro, promover a interlocução, o diálogo,
como forma de tirar do gueto a prostituição,
denunciar e desconstruir o estigma, buscar
apoios para a causa de direitos e cidadania
das putas. Estratégia esta inscrita nas
próprias páginas do Beijo da rua, não é
FLAVIO LENZ
demais repetir.
Não gostamos de guetos, e quem já viveu no
gueto ou pelo menos imagina o que seja, sabe
do que estamos falando quando escrevemos
com todas as letras maiúsculas, em negrito e
destacado: NÃO AO GUETO! E foi com esta
filosofia que pensamos o Beijo da rua: a partir
da prostituta (universo conhecido e vivido desta
que vos escreve), escrever, entrevistar, conhecer
o povo da rua. (LEITE, 1991, p.2)
106
os bastidores se agitam com produtores,
pessoal de beleza, direção artística e muito
mais. Já em cena, seja em palco, nas ruas,
nas passarelas, focadas por luzes vermelhas,
PUTA LIVRO
brilharam e vêm brilhando as estrelas
maiores, as putas. Muitas vezes, com elas,
desfilam aliades afetives e até celebridades.
E tem DJs, iluminadores e por aí vai. Com a
criação de coleções inteiras e o registro de
eventos, equipes completas de produção de
moda, fotógrafos, câmeras, editores, enfim,
uma incrível variedade de profissionais
FLAVIO LENZ
está em torno da pista (LENZ, 2008, p.37 e
seguintes).
E Beijo da rua e Daspu não são as
únicas estratégias políticas, estéticas,
culturais e comunicacionais do hoje Coletivo
Davida que demandam tal variedade e
diversidade de gente, seja pelo aspecto
pragmático ou político, muitas vezes ambos
se associando.
Lançado também em 2005, o evento
Mulheres Seresteiras, de “putas que
cantam e encantam” (no slogan da época),
incorporou cantores, compositores e
instrumentistas, assim como uma professora
de canto. A peça Cabaré Davida, “um
espetáculo para profissionais e amadores
do sexo que ensina tudo sobre Aids”,
encenada por diversos anos em várias
cidades do Estado do Rio, com atores e
atrizes profissionais e amadores, incluindo
uma prostituta, contou também com diretor,
músicos, cenógrafo, iluminador. E ainda
o Bloco Carnavalesco Prazeres Davida,
que agitou por dois anos a boêmia praça
carioca Tiradentes, com instrumentistas,
compositores e, lógico, putas e putos foliões
(LENZ, 2008, p.31).
Para além de Davida, também buscam
parcerias e conexões outras iniciativas
de prostitutas, como o Puta Dei, evento
de comemoração do Dia Internacional da
Prostituta, o 2 de junho, criado pelo Grupo
de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará
107
(Gempac), lideradas pela co-fundadora
do movimento de putas Maria de Lourdes
Barreto, a majestosa.
O PUTADEI em cada ano firma seu conceito
de incidência política que une a diversidade
PUTA LIVRO
de esquinas – Uma política cultural que não
se pretende fechada em um grupo, local ou
conceito – mas quer ganhar aliados e espaços
na construção de novos significados que
fortaleçam as lutas das mulheres prostitutas,
do direito de qualquer cidadão à cidade – à
liberdade de expressão e por felicidade! (PUTA
DEI: Facebook)
FLAVIO LENZ
ardorosa apoiadora dos “parceiros”.
Movimentro isolado não existe. Precisa de
outros ingredientes, de pessoas com outras
concepções, outros entendimentos. Vocês não
são só colaboradores, nem só técnicos. Vocês
são parceiros, vocês apoiam o movimento,
vocês acreditam no movimento – e eu acho isso
fundamental; de repente você [protagonista]
é do mesmo segmento, mas não acredita no
movimento. Está no movimento, mas não
acredita. Então vocês são técnicos também,
muitas vezes também fazem política, mas são
muito mais movimento, se movimentam do
nosso lado (BARRETO, 2021).
PUTA LIVRO
abertas, e mesmo a realização de eventos
virtuais. A epidemia de coronavírus ampliou
ainda mais essas possibilidades e usos
cotidianos, como é o caso das reuniões
virtuais numa diversidade de plataformas
– hoje se faz incidência política sem sair
de casa. E prostitutas, como quase todo
FLAVIO LENZ
mundo, também se tornaram hábeis no
manejo dessas tecnologias, adquirindo
maior autonomia e independência de
aliades e parceiros.
Além disso, as pioneiras do
movimento, se em geral tiveram pouco
acesso à educação formal, adquiriram ao
longo do tempo outros conhecimentos –
para além dos tantos que têm – também
úteis para o ativismo, como o famoso
“saber fazer projeto”, ou supervisionar um
terceiro nesse fazer. Mais ainda, palestram
em universidades e são sujeitas-objeto de
pesquisas acadêmicas.
Vieram juntar-se a elas e ao
movimento, em anos recentes, prostitutas
com maior acesso à educação formal.
Escrevem livros e são protagonistas deles,
produzem e são protagonistas de filmes,
também são convidadas a palestrar na
academia, fazem pesquisas e publicam
textos acadêmicos.
Esse último aspecto, da produção de
(um novo) conhecimento acadêmico, ou da
mudança de abordagem acadêmica sobre a
prostituição, tanto por prostitutas como por
pesquisadores não trabalhadores do sexo,
parece tão relevante quanto ainda pouco
109
estudado.17 Foi apontado pela própria
Gabriela Leite, em sua derradeira coluna no
Beijo da rua, intitulada “Uma nova geração
de pesquisadores da prostituição”.
Faz algum tempo criamos um núcleo de
PUTA LIVRO
pesquisa no Davida (...) a partir da constatação
de que muito se fala sobre a prostituição e
pouco ou quase nada se estuda em termos
estruturais. [Hoje já há pesquisadores] se
manifestando a partir de seus estudos, com
uma linha comum: sair da superfície e entender
o que chamo de estrutural na compreensão
do que seja prostituição (...) Investigar a
complexidade da prostituta a partir dos estudos
FLAVIO LENZ
de sexualidade e dos direitos sexuais é o meu
sonho maior. Ver a prostituição, a prostituta e
a indústria do sexo como parte da criação da
mesma sociedade que estigmatiza e discrimina
é meio caminho andado para avançar e sair da
mesmice e da hipocrisia (LEITE, abril 2012, p.36).
PUTA LIVRO
desde o primeiro convite no botequim, daquele
outro para contribuir na comunicação do
movimento, de muitos mais nos espaços dos
grandes eventos, e também junto de luzes
vermelhas, algumas vezes até me tratando de
convidar. Autoconvite.
Já vem de longe este artigo, como de
longe vem a questão levantada décadas atrás.
E nem assim o texto entrega tudo o que
FLAVIO LENZ
pretendia. Mas durante a pesquisa e a escritura,
foi despertado e cresceu o desejo de mais.
O Beijo é foda. Continua um puta desafio.
Parece até que está na alma deste jornalista.
111
ABUD, Camila. Nem tanto, nem tão pouco. Maquiagem
demais espanta cliente; e, de menos, não tem graça. Beijo
da rua, Rio de Janeiro: Davida, out. 2002, p.2.
PUTA LIVRO
Janeiro: Fiocruz, 2007.
FLAVIO LENZ
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Ministério da Saúde, 2003. 104 p.: il. color. – (Série Estudos
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FLAVIO LENZ
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Disponível em: www.faac.unesp.br/Home/Departamentos/
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13/8/2021. Trabalho apresentado na Conferência Brasileira
de Mídia Cidadã e V Conferência Sul-Americana de Mídia
Cidadã UNESP | FAAC | Bauru-SP | 22-24 de abril de 2015.
115
Ciências Sociomedicinais) – Escola de Pós-Graduação em
Artes e Ciências (Graduate School of Arts and Sciences),
Universidade de Columbia, Nova York, 2015. Disponível
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D8TQ60PZ. Acesso em: 17/8/2021.
PUTA LIVRO
OLIVAR, José Miguel Nieto. Devir puta: políticas da
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FLAVIO LENZ
PUTA DEI. In: Facebook. Disponível em: https://www.
facebook.com/putadei/. Acesso em: 28/8/2021
REFLEXÕES SOBRE
PUTA LIVRO
DESPIR O CORPO E
VESTIR O ROSTO. E UM
CONVITE PARA PUTAS
E SIMPATIZANTES
“Minha máscara quer burlar a lei. Sem
isso ela não tem nenhuma razão de existir”
(Kôbô Abe)
Introdução
1
abreviatura da terminologia “Garota de Programa”. Refere-
se à mulheres trabalhadoras sexuais.
117 PUTA LIVRO NATÂNIA LOPES
118
A questão do rosto se insinuou para
mim pela primeira vez em campo.2 Eu a
exponho aqui a partir de um breve relato
etnográfico. Esta questão vai se desdobrar
depois, na trajetória da minha reflexão
PUTA LIVRO
sobre ela, em diálogo com o movimento
de prostitutas e uma de suas mais caras
estratégias de ativismo: a de tornar pública a
opção pelo trabalho na prostituição daquelas
militantes que são trabalhadoras sexuais. Esta
prática tem o intuito de ganhar visibilidade
para as reivindicações de caráter trabalhista e
humanitário do movimento e de promover o
NATÂNIA LOPES
reconhecimento das prostitutas como sujeitos
políticos, indo na contramão de uma cultura
do segredo da atividade prostitucional.
Com efeito, podemos pensar no
rosto como vocalização (LEVINAS, 2005 e
BUTLER, 2011). O rosto fala, demanda, uma
vez que representa a alteridade. Precede
o eu e subsiste depois dele. Assim é que
o ato de suprimir o rosto do outro, de
apagá-lo, desumanizá-lo como é o caso
do racismo (que vê no rosto do outro “um
rosto em geral”), implica numa produção
de indivíduos matáveis (LE BRETON, 2017
e AGAMBEN, 2000). De fato, o rosto tem
importância central nas trocas relacionais
e no reconhecimento mútuo dos sujeitos,
assim estruturados e socialmente legitimados
como sujeitos políticos e de direitos, como
cidadãos.
Isso posto, a partir da prática
prostitucional das gp que escolhem não
publicizar sua atuação como trabalhadoras
sexuais, ocultando os próprios rostos nos
anúncios, pretendo provocar a reflexão sobre
a variedade dos modos de criar sentidos para
as prostitutas enquanto sujeitos, na articulação
de suas múltiplas identidades.
Algumas perguntas podem ser feitas de saída.
2
O trabalho de campo sobre prostituição feminina de luxo
no Rio de Janeiro foi feito entre os anos de 2012 e 2016
como parte de minha pesquisa de doutorado e contou com
financiamento da CAPES.
A identidade de militante seria a única
119
dobradiça entre o nome de batismo e o nome
de guerra? Sem ela é possível unificar os
dois nomes? Para uma prostituta, é possível
“mostrar o rosto” em que condições? Quais
PUTA LIVRO
seriam as perdas e os ganhos e quando é
que os ganhos podem superar as perdas?
Noutros termos: é viável, dada a moralidade
social em que estamos inseridas, e sua
margem de manobra cujo alargamento
forçamos, fazer conviver rosto e buceta numa
imagem pública? Quando? No sentido da
ação política, haverá modos outros de falar,
NATÂNIA LOPES
de demandar sem usar a boca, quando não se
tem rosto?
Eu estava numa saleta escondida nos
fundos de um antiquário no bairro do Recreio
dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro, com
mais duas garotas, desconhecidas, todas,
entre nós mesmas. Clima de sala de espera;
uma lendo uma revista, outra mexendo
no celular, outra anotando coisas num
caderninho. A fotógrafa estava lá fora, no
imenso jardim da propriedade, fotografando
uma modelo que hospedaria aquele ensaio
no site. Pela janela, eu via a garota nua
fazendo pose na borda de uma piscina de
água esmeralda.
Quando a garota voltou, enrolada numa
toalha, prestei atenção à grande quantidade
de tatuagens espalhadas pelos seus braços
e costas. No bíceps, a frase: “Senhor, se eu
me perder, por favor, vem me encontrar”. A
fotógrafa nos chamou, às outras mulheres
que esperávamos na salinha, para ver o
resultado preliminar dos clicks.
-Nossa, que lindas as fotos, disse uma
das meninas.
-A modelo também ajuda, disse a outra.
A de toalha sorriu, segurando um
cigarro apagado entre os dedos e dirigindo-
se à fotógrafa:
-Mas é pra apagar minhas tatuagens
todas quando for tratar as fotos tá, amor?
A fotógrafa assentiu com a cabeça.
-Você vai apagar as tatuagens com
120
photoshop? Perguntei.
-Mas é claro, não quero que me
reconheçam.
A fotógrafa completou, percebendo
minha confusão:
PUTA LIVRO
-Não podem saber que ela é garota
de programa. Ela não quer que saibam,
entendeu? Então eu vou borrar bastante o
rosto dela e apagar tudo o que identifique:
as marcas, sinais, as tatuagens... até a cor
do cabelo a gente pode carregar mais um
pouquinho no loiro pra despistar qualquer
um.
NATÂNIA LOPES
-Ué, mas e os clientes? Se você acabar
ficando muito diferente das fotos, eles não
podem te mandar embora quando você
chegar pro atendimento no motel? Quer
dizer; o cara escolhe uma mulher no site,
chega lá e é praticamente outra pessoa. Não
é o que ele viu.
A garota pareceu ofendida:
-Meu amor, nunca me mandaram
embora. Mas se um dia alguém me mandar
embora sem fazer o programa, vai ter que
pelo menos pagar o meu taxi de ida e volta
do motel. Sabe disso, né? Se mandam a
gente embora têm que pagar o taxi.
PUTA LIVRO
será preciso pensar o rosto como a parte
do corpo portadora da identidade: quando
a garota esconde o rosto ela procura
proteger a sua identidade.
Convenhamos que seria possível, no
entanto, a identificação através da imagem
do corpo por parte de pessoas conhecidas
e próximas, mas se além do rosto ocultado,
NATÂNIA LOPES
o corpo e o cabelo são modificados para
despistar, para apagar possíveis índices
de identificação, o quê exatamente, na
distância entre a imagem da foto e a
mulher de carne e osso, continua a fazer
com que a escolha do cliente por uma
certa acompanhante se dê e se confirme
através da efetivação do programa? Como
se sustenta esta representação do corpo
sem rosto num espaço em que os corpos
e os rostos estão colocados para o exame
masculino?
Com base na minha própria
experiência e circulação pelo universo da
prostituição, argumento que a viabilidade
da representação do corpo sem rosto
naquele espaço específico do site de
acompanhantes procura atender aos
interesses das mulheres prostitutas, sua
opção pelo anonimato, ainda que sirva ao
mesmo tempo para compor um ambiente
em que o próprio segredo faz parte da
constelação de desejos em jogo.
É raro o cancelamento do programa
quando a call girl chega para encontrar
o cliente no motel. Já ouvi relatos de
clientes que mandaram mulheres embora
tendo cumprido o tal protocolo de pagar
pelo seu deslocamento de ida e volta do
ambiente do programa. Mas nas falas dos
clientes são mais comuns relatos de que,
nas vezes em que não gostaram da mulher
122
quando ela se apresentou pessoalmente,
fizeram o programa assim mesmo, entre
constrangidos e apreensivos, se resignaram.
Muito porque estando já no motel e
dispondo, como é comum, de um par de
PUTA LIVRO
horas para fazer um programa caro com
uma garota, o cancelamento seria um
transtorno para o próprio cliente. Estes
programas geralmente requerem algum
grau de planejamento para os homens.
Incluem uma escapada do trabalho, ou uma
desculpa para esposas ou namoradas. Em
caso de cancelamento, seria necessário
NATÂNIA LOPES
arranjar outra gp que pudesse atender
imediatamente, que pudesse chegar rápido
ao motel e da qual o cliente também
gostasse.
Detalhes, digamos, operacionais
como estes e outros mais que
integram expectativas, negociações
e o acontecimento a que chamamos
“programa”, neste contexto específico,
podem ser convocados para se pensar em
como e porque as fotos, ainda que sem
rosto e ligeiramente modificadas, atendem
à finalidade de um catálogo.
Entendemos que deve então haver
ali um outro processo de identificação
operando, ou melhor, um tipo de
singularização que não seria apropriado
chamar de “identificação”. Ele funciona
através das poses da modelo, de um
certo estilo das lingeries que usa, dos
seus contornos corporais e adornos. Se
a mulher usa botas de cano longo ou se
está descalça, se usa pérolas, se é magra,
se é musculosa, se á alta ou baixa, a
forma de seus seios, o aspecto da vagina,
pelos pubianos, marca de biquíni, unhas,
marcadores étnico-raciais, dentre outros.
Processo de singularização esse que
continua, num segundo momento, com
as breves conversas ao telefone entre
garota e cliente, ao modo de uma pequena
entrevista, na qual acontecem negociações
123
do que as prostitutas estão dispostas
a fazer no programa; práticas sexuais e
realização de fantasias3, mas também todo
tipo de ajuste antecipado ao encontro e
necessário para que ele aconteça, como o
PUTA LIVRO
acerto de hora e lugar.
Considerando então que os clientes
habituais do site já levam em conta a possível
distância que o apagamento do rosto e das
marcas identificadoras da garota pode causar
em relação à mulher de carne e osso; que o
site consultado para a escrita deste trabalho
seja reconhecido por não “exagerar no
NATÂNIA LOPES
photoshop”; que haja uma ficha complementar
ao ensaio no site em que constam algumas
“medidas asseguradoras” como peso corporal,
a altura e a idade da anunciante (ainda que isso
seja também respondido pela mulher e que o
site não intervenha no texto do anúncio que
a garota cria)... E que na conversa ao telefone
para a marcação do programa os clientes
perguntem àquelas que não mostram o rosto
nas fotos se são bonitas, que peçam fotos
de rosto da mulher vestida, além do fato de
que o rosto possa não ser o mais importante
para a escolha da prostituta na maioria dos
casos, ficando atrás dos marcadores corporais
de gênero mais comumente relacionados ao
exercício da prática sexual (peitos, vagina,
bunda, cintura, cabelos, unhas...) e mesmo do
entrosamento que pareça ser ou não possível
na entrevista que se faz ao telefone; um corpo
sem rosto funciona.
O acerto de um programa com uma call
girl é um procedimento quase burocrático.
Com todo o risco de um rosto oculto e de uma
imagem ligeiramente modificada do corpo, os
clientes estão seguros.
3
É comum o cliente perguntar: se a mulher faz sexo anal, se
faz sexo oral sem camisinha, banho dourado, se deixa gozar
na cara, na boca, se tem uma parceira para fazer programa a
três, se pode levar acessórios eróticos e roupas específicas,
se está disposta a atender no carro, no trailer, a viajar...
muitas call girls atendem somente em motéis e hotéis por
acreditarem ser mais seguro do que residências.
124
Tecnologias de Identificação
PUTA LIVRO
dos indivíduos nas sociedades modernas
ocidentais. Quando minha interlocutora
diz: “não quero que me reconheçam”, ela
fala, na verdade, de uma dimensão da sua
identidade ou, também podemos dizer;
de um conjunto mais ou menos coeso e
harmonioso de pertencimentos que vai desde
dimensões mais públicas às mais privadas da
NATÂNIA LOPES
sua vida. Esta identidade, que se traduzirá
por trânsitos específicos e relações que a
garota preserva quando esconde o rosto,
aquela sua identidade reconhecida pelo
Estado através do registro de nascimento
e demais documentos oficiais, a identidade
que a autoriza a circular pelo espaço público
na condição de cidadã e que se converte
em diversos pertencimentos institucionais
como à religião e à família. Aquele rosto
e aquele nome e um certo conjunto de
performances que organiza o seu trânsito
pelo mundo do trabalho formal e que faz com
seja muito natural a sua inserção em relações
de vizinhança. Assim, o nome de batismo é
ocultado e preservado através do recurso
ao nome de guerra e o rosto é ocultado por
poses, cabelos e embaçamento da imagem
através de photoshop.
Em seu livro Rostos, Le Breton investiga
como o rosto veio a se tornar a parte do
corpo predominantemente relacionada à
identidade na cultura ocidental. Desde o
desenvolvimento dos retratos nas pinturas
laicas europeias no séc. XV, passando pela
invenção dos espelhos modernos em Murano
e sua popularização no séc. XVI, até chegar
aos documentos de identificação contendo
a foto do rosto, no séc. XIX, além de todo o
delírio que se formou conjugando fotografias
judiciárias, retratos falados e tipificações de
traços faciais que permitiram o surgimento de
uma ciência fisionômica à serviço do controle
125
estatal de verve racista, pode-se acompanhar
a cristalização do individualismo ocidental.
“O espelho, à medida em que restitui uma
imagem fidedigna do rosto, é um vetor
predileto da aparição do sentimento de si”,
PUTA LIVRO
diz Le Breton. (LE BRETON, 2019: 44) Para o
autor, o rosto se torna o representante maior
do indivíduo porque o nome é falseável. O
rosto, por sua vez, diferente do nome de
registro, se transforma com o tempo. São,
portanto, tecnologias complementares de
identificação do Estado neoliberal.
Neste sentido também Deleuze
NATÂNIA LOPES
e Guattari pensam uma máquina de
rostidade. Consideram que a significação
e a subjetivação são dois eixos, ou duas
semióticas, que constituem um dispositivo de
produção de rostos e de capturas. Haveria
um sistema de dupla captura que começa
com um “buraco negro”, que é o processo de
subjetivação, cujo índice são os olhos e que
continua na pele do rosto, o “muro branco”,
a superfície significante de ressonância.
O rosto, de acordo com esta
perspectiva, coloniza o corpo,
neutralizando-o. Ele obscurece o corpo e as
suas manifestações em prol de um sistema
de dominação, este dispositivo de controle
que é o muro branco-buraco negro; regime
de captura das possibilidades por vir que, se
bem que seja atravessado por linhas de fuga,
atua através de linhas de força ocupadas
de reproduzir padrões, indiferenciações,
fraquezas, despotencializando a faculdade
humana de criar.
O rosto é assim um quadro, é um
enquadramento de possíveis necessário
para determinar indivíduos, para recortá-
los e separá-los do todo. Nos termos dos
autores; o rosto é uma zona de frequência
ou de probabilidade que circunscreve os
significados e os sujeitos.
Se o homem tem um destino, esse será mais o
de escapar ao rosto e às rostificações, tornar-
se imperceptível, tornar-se clandestino, não
por um retorno à animalidade, nem mesmo
pelos retornos à cabeça, mas por devires
126
animais muito espirituais e muito especiais, por
estranhos devires que certamente atravessarão
o muro e sairão dos buracos negros, que farão
com que os próprios traços de rostidade se
subtraiam, enfim à organização do rosto, não
se deixem mais subsumir pelo rosto, sardas
PUTA LIVRO
que escoam no horizonte, cabelos levados pelo
vento, olhos que atravessamos ao invés de nos
vermos neles, ou ao invés de olha-los no morno
face-à-face das subjetividades significantes.
(DELEUZE & GUATTARI, 1996, pp. 32-33)
NATÂNIA LOPES
impressão de que o dilema da prostituição
no espaço público poderia ser resumido
a uma escolha entre dois caminhos,
representados por estes dois investimentos
estéticos que o site acolhe: modelos que
mostram o rosto, modelos que escondem o
rosto. Esta opção dá pistas do arranjo que
a prostituta faz entre a sua identidade e o
trabalho sexual, mas tanto seria temerário
afirmar que uma mulher que mostra o rosto
no ensaio nu tenha podido integrar o que a
literatura especializada sobre prostituição
em antropologia chamou de duplo self 4 da
mulher prostituta, como também é míope a
perspectiva que ignora a existência de outras
costuras que escapem à opção de mostrar
o rosto no anúncio. Os agenciamentos
da visibilidade do trabalho sexual pelas
4
Para discussões sobre o que chamam de duplo self da
mulher prostituta ver por exemplo FONSECA, 1996 e
PISCITELLI, 2013
127
prostitutas são variados.
No caso das prostitutas que escolhem
publicar suas fotos sem a imagem do rosto,
usando o embaçamento do photoshop, além
dos cortes estratégicos no enquadramento
PUTA LIVRO
e poses que omitem o rosto orientadas
pela fotógrafa que as dirige no momento
da realização do ensaio, podemos pensar
no dispositivo da máscara a fim de apontar
potencialidades e limites dessa opção.
Libertar-se de sua face pode possibilitar
encarnar todas as faces possíveis, responder
a todas as transformações desejadas. É
NATÂNIA LOPES
nesse aspecto que está o poder de liberar as
contenções das inúmeras facetas que compõem
uma pessoa. Uma das razões de ser da máscara
consiste em dissimular ou tornar desconhecidos
os traços de um rosto, para que possa fazer
com toda impunidade uma transgressão de
códigos sociais e se esquivar das consequências
de seu ato. Se o indivíduo for reconhecido,
ele eliminará o traço que lhe deixou vulnerável
à indiscrição dos outros. Mas a máscara não
assegura somente o anonimato, ela favorece
também a liberdade e o enfrentamento de
proibições, ela catalisa as tentações enterradas
no indivíduo pela moral, que encontra, por
sua vez, identidade na face do indivíduo que
a possui. A máscara derruba os traços e anula
também as exigências morais. Ela retira a
fechadura que impedia o curso das pulsões. (LE
BRETON, 2017, pp. 159)
A máscara, ao multiplicar as
possibilidades do rosto até o infinito, produz
o rosto incógnito, o rosto mascarado ao
qual o disfarce adere. Para as prostitutas,
usar esta máscara implica também em ser
usada por ela: uma troca de interesses com
o próprio imperativo da ocultação da face da
prostituta. É uma maneira de se isentar do
ônus do estigma, uma proteção mediante a
esquiva das tecnologias de identificação do
Estado e da moralidade sexual hegemônica.
Nisso consiste a sua ambiguidade. Porque
esta máscara lembra que a prostituta pode
ter qualquer rosto. Aquela perspectiva
interessantíssima de Margareth Rago
da prostituição como fantasma que vem
assombrar a sexualidade de qualquer mulher
128
como uma possibilidade-perigo (RAGO,
2008).
Daí que a ocultação do rosto pode ser
pensada também como um processo de
“desfiguração”, para usar a expressão de
PUTA LIVRO
Le Breton. O corpo sem rosto conotaria,
neste sentido, a morte social de um corpo
objeto de imensa e incessante violência
simbólica. E como desfiguração, a máscara
resulta em aniquilamento. A face desfigurada
retira o indivíduo da comunidade humana,
anormalidade da espécie, torna-o bestial.
NATÂNIA LOPES
O corpo sem rosto feito corpo orifício para
o uso capitalista e masculino não fala. Não
tem olhos pelos quais se possa estabelecer
uma relação especular. Não tem boca para
demandar. E como pode ser sujeito de
direitos num Estado que historicamente
parece ter ancorado a identidade no rosto?
Bem, aqui me parece ser o caso de
avaliar quando e como desejamos o desejo
do Estado, para usar a expressão de Butler
(BUTLER, 2003). Reivindicar direitos quando
estes não são garantidos é urgente. Por isso
o ativismo de putas no Brasil tem se valido
desta estratégia específica: a de mostrar
os rostos das prostitutas, desde a iniciativa
revolucionária da ativista Gabriela Leite, “a
puta que fala”, a que falou quando putas
não falavam. Tamanho foi o alvoroço, que
estamos até agora tanto admirados como
ofuscados por este rosto que se levantou
no meio da massa de meretrizes mudas,
anônimas e falou. E fala! Gabriela tem sido
seguida por uma falange de putas com bocas.
Bocas abertas afirmando o lugar da infâmia,
desafiando o poder de nomear dos homens,
do Estado, da língua. Daí a opção por se
intitular “puta”, em vez de “trabalhadora
sexual”, uma vez que “trabalhadora” já seria
uma concessão à moralidade dominante, uma
espécie de higienização.
Mas é necessário empregar uma arte
das doses aí. Mostrar o rosto de puta não
pode se tornar uma palavra de ordem
dentro do ativismo. Trata-se de exercitar
129
um pompoarismo do espírito; de estreitar
ou alargar a passagem da máscara e da
identidade em cada contexto. Afinal de
contas, não é sempre disso que se trata?
PUTA LIVRO
Da mentira mais verdadeira que a verdade?
Do teatro -desde o ritual do flerte até a
consumação do programa e também nos
almoços de família aos domingos? Recolher-
se ou derramar-se na hora certa. O emprego
de uma avaliação constante.
Além disso, é preciso lembrar que o
rosto da prostituta exposto logo se torna
também um tipo de máscara desfigurada e
NATÂNIA LOPES
desfiguradora. A máscara de puta desfigura o
rosto da “boa moça” e da “mãe de família”.
-Essa tem cara de puta mesmo! Cara de
safada! -ouvi um homem dizer ao olhar um
catálogo de prostitutas.
-E como é a cara de puta, meu bem?
-perguntei.
-Essa sobrancelha fina e pretíssima, essa
boca carnuda vermelha...
Deve-se considerar que o processo de
estigmatização atua através de linhas de
força de caráter segregacionista; identificar
para separar as boas das más mulheres. São
forças de identificação, de policiamento,
de proscrição, de violência e de morte, de
silenciamento e de estupro, de traição e de
roubo.
O rosto mostrado, tal qual o ocultado,
pode facilmente passar da desfiguração da
máscara ao aniquilamento.
Se há um mecanismo que trabalha para
calar as putas e relegar a sua existência ao
cumprimento do papel de alívio clandestino
das tensões sexuais acumuladas no
casamento, e se esse mecanismo preexiste
aos rostos de cada uma das mulheres de
carne e osso, de cada uma de nós, é preciso
então avaliar continuamente quando e como
falar, mas também como e quando calar,
ampliando o leque de estratégias e formas
de dizer. Será preciso, às vezes, saber falar
sem a boca, falar por outros orifícios, talvez,
130
ou fazer com que outras bocas falem por si,
possuídas pela causa.
PUTA LIVRO
Se eu fosse dar um baile na minha casa
diria para todos os meus muitos amigos
comparecerem usando máscaras. Máscaras
de puta: coloridas com penachos, enfeitadas
com paetês, sobrancelhas arqueadas e bocas
carmim, borramentos técnicos, estratégicos,
artístico-científicos, saborosos. Aqueles
NATÂNIA LOPES
borramentos de uma noite agitada de
trabalho, e também caras lavadas corajosas. E
a brincadeira seria afirmar ser/estar prostituta
através da máscara.
Quero uma corrente de gente que
saia por aí escrevendo em suas publicações
pela internet, livros e cartas, e-mails e
currículos: “Fui convidado a revelar que sou
trabalhadora sexual”; “E se eu fosse puta?”,
etc. etc. Especialmente aqueles que nunca
trabalharam com prostituição. Mintam!
Dancemos!
Faça os outros acreditarem que você
é prostituta, que tem uma vida dupla e que
os enganou este tempo todo. Faça de tudo
para acreditarem. Sugiro misturar detalhes
biográficos conhecidos sobre você com as
suas experiências na prostituição, que teriam
sido ocultadas. Descreva seus clientes: os
velhos ricos, os garotos enlouquecidos de
desejo, as mulheres curiosas.
Conte anedotas dos programas. Aquela
de quando você e o cliente ficaram presos
de roupa íntima na varanda do hotel no
38º andar. Ou de quando o policial revistou
sua bolsa, onde você levava um vibrador a
caminho do trabalho e você fingia que estava
muito constrangida para que ele desistisse
da revista, quando na verdade estava com
medo de que ele achasse a maconha que
você tinha, então você exibia o vibrador
fazendo de conta que tentava escondê-lo e
teatralmente confessava que era prostituta.
131
E aquela história de quando você pegou o
filho daquele cantor famoso, que cheio de
autoconfiança artística e arrogância masculina
não quis ler o seu texto porque pra ele
“qualquer texto pode ser resumido a duas
palavras”?
PUTA LIVRO
O que mais vale é o disfarce perfeito.
Será servida uma receita de família;
camarões preparados com delicadeza em
uma cama de purê de aipim. Tragam bebidas.
Leia-se: cerveja e vinho. Vai até de manhã,
pra quem tiver fôlego e amor.
NATÂNIA LOPES
Apontamento
Referências
PUTA LIVRO
LE BRETON, David. Antropologia da Face, alguns
fragmentos. Revista de Ciências Sociais, nº 47, Junho/
Dezembro de 2017, p. 153-169.
NATÂNIA LOPES
LEVINAS, Emmanuel. Violência do Rosto. Tradução de
Fernando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
COMENTÁRIO AO
PUTA LIVRO
TEXTO “REFLEXÕES
SOBRE DESPIR O
CORPO E VESTIR
O ROSTO. E UM
CONVITE PARA PUTAS
E SIMPATIZANTES” DE
NATÂNIA LOPES
Acho que sua discussão sobre a
“questão do rosto” segue uma linha pós-
estruturalista em que identidade, verdade,
origem, etc. se quebram em nome da
potência do falso: a máscara, o artifício,
etc… achei importante ter delineado outras
leituras possíveis, por exemplo a questão
do apagamento do rosto e os indivíduos
matáveis, ainda que fique claro que não é
sua abordagem do problema. A ideia mais
interessante pra mim é da máscara como
estratégia que potencializa o dispositivo
“prostituição”. É curioso como você trabalha
a representação do corpo feminino e sua
sustentação ou não quando do encontro,
dada a diferença entre o corpo real e as
fotos. Você diz que “Entendemos que
deve então haver ali um outro processo de
identificação operando, ou melhor, um tipo
de singularização que não seria apropriado
chamar de “identificação”. Ele funciona
através das poses da modelo, de um certo
estilo das lingeries que usa, nos seus
contornos corporais e adornos. Se a mulher
usa botas de cano longo ou se está descalça,
se usa pérolas, se é magra, se é musculosa,
se á alta ou baixa, a forma de seus seios, o
134
aspecto da vagina, pelos pubianos, marca
de biquíni, unhas, marcadores étnico-raciais,
dentre outros.
Processo de singularização esse que
continua, num segundo momento, com as
PUTA LIVRO
breves conversas ao telefone entre garota e
cliente, ao modo de uma pequena entrevista,
na qual acontecem negociações do que
as prostitutas estão dispostas a fazer no
programa; práticas sexuais e realização de
fantasias, mas também todo tipo de ajuste
antecipado ao encontro e necessário para
que ele aconteça, como o acerto de hora
e lugar.” Essa é a lógica do fetiche e do
JOÃO PENTAGNA
desejo que se alimenta de um incapturável,
não o corpo da mulher, mas alguma coisa
na periferia desse corpo, na superfície:
maquiagem, tatuagem, sobrancelha,
voz… essas marcas que simultaneamente
sustentam o segredo e ligam o desejo num
ponto singular. A análise via Le Breton está
bem construída, fica associado o rosto à
identidade, bordejando também a questão
do nome, outro marcador da identidade,
mas também de outra coisa, como
veremos. Quanto à referência ao Deleuze e
Guattari achei muito rápida e a constelação
conceituação deles nos arranca um pouco do
texto. Eu tiraria essa parte ou aumentaria,
explicitando melhor o que você quer dizer.
Caso não faça isso a maioria dos leitores vai
acompanhar o texto e ser cuspida pra fora
dele nesse ponto. Outra coisa é que, mesmo
entendendo que você quer publicar como um
artigo, vou te falar o que tem passado por
mim. Acho que está, como os meus textos
também, ainda muito acadêmico. Com isso
falamos pra poucas pessoas. Quanto mais
literário e oralizado seu estilo mais afiado
e abrangente ele vai se tornar. Por fim uma
última questão; a máscara nos joga num
espaço outro, utopos diz o Foucault, um
lugar sem lugar no presente mas que ressoa
os acontecimentos incorporais. A máscara
nos conecta aos deuses, os demônios, seduz
forças espirituais e os outros. Talvez não seja
135
a hora nem o lugar nesse artigo, mas é bem
curioso esse domínio do segredo, em que o
segredo nos tira da dimensão da lei humana
para a dimensão dos Delírios histórico
mundiais. Nesse sentido os nomes próprios
PUTA LIVRO
e as máscaras fazem reviver intensamente
as odaliscas da história mundial, as mulheres
sedutoras como Cleópatra reencarnam nos
corpos e catalisam uma atenção para além de
um corpo orgânico, acessando a dimensão
do corpo sem órgãos. Estou dizendo que
os adereços, os nomes, a simulação da
identidade têm uma potência própria cuja
JOÃO PENTAGNA
força é singularizar alguém. Nesse processo
o mascaramento é também uma espécie de
feitiço.
JOSÉ MIGUEL OLIVAR NIETO
136
PUTA LIVRO
¿Cuándo fue que quisiste la
verdad de un rostro sin máscara alguna?
¿Fue en la tarde de los derechos?
¿En la cuesta debajo de aquel mundo?
Yo no sé.
Yo tan sólo puedo imaginar.
Imaginar más allá de este cuerpo
y de esta vida que soy.
Yo no sé lo que es no poder
tener un rostro.
¿O sé?
Frida.
No hay máscara alguna.
Hay rostros borrados
Eliminados
Escondidos
137
Multiplicados
Deformados
Y hay cuerpos y cuerpos y cuerpos
Y el deseo por un Estado imposible
Los actos heroicos
PUTA LIVRO
Otra melancolía
La de los rostros también borrados
los rostros de tus hermanas
Con sus ropitas
Con sus fotos sin retoque
Acostadas
En la calle, solitas
Quietas
Esperando infinitamente que el
PUTA LIVRO
Pero jamás como tu.
Este cuerpo mío
Esta vida mía
Cuyo lugar se volvió extraño,
indeseable, tonto
En la barricada que queremos.
O en la alta montaña
Loca de amor y de soledad
borrachita
princesa brillante
girando bajo espejos girando
con mis deseos de hombre
en la maldita primavera de querer
ser un hombre
con sus amigos hombres
139
Y también fui una sacerdotisa
Inmensa
Ancestral
Egipcia
Una vieja curandera
PUTA LIVRO
Una especie de bruja
Hija de mi bisabuela india
Que un día aún seré.
PUTA LIVRO
los amigos.
Y a su propia rabia.
Y sé que a mi mamá le encantaba decir,
sufriendo, que eras una puta.
Son todas putas.
Son todos sin vergüenza, degenerados,
inmundos.
PUTA LIVRO
Veo tu invitación
¿Y cuándo vi tu rostro por primera vez?
Tienes razón.
PUTA LIVRO
Todo el poder a las putas.
Pero las que matamos no podrán volver.
PUTA LIVRO
PUTA LIVRO
Ei,
Eu preciso te pedir perdão
Perdão por minha intensidade,
Minha voluptuosidade
Eu sei que estou sempre nos extremos
E o que não for demais, para mim,
não me desperta interesse
Eu sempre fui assim
A culpa não é sua
Outros passaram por isso também.
É apenas aquela minha
Já tão conhecida necessidade
De novidade
De peito aberto e dilacerado
Sangrando litros de sentimentos
De explosão,
De desejo,
De pele,
De beijo,
De cheiros
Novos, diferentes, presentes.
O novo não distrai,
Ele te prende no interesse
de conhecer cada molécula
Daquele novo ser
Quando você vê, ele te desperta
Mais uma vez um outro querer
E quando eu me vejo,
O novo já tomou conta,
me envolveu em desejo
Já abriu e já sangrou o peito
E é aí que eu sei que lá vem mais um
145
RE-CO-ME-ÇO
E por isso te digo, que sinto muito
Lhe agradeço
Continuo lhe tendo imenso apreço
Mas preciso continuar,
PUTA LIVRO
Qualquer dia vamos nos encontrar
Podemos tomar algo pra relaxar
E não dificilmente logo estaremos
A jogar palavras ao vento
Sobre como nos arrependemos
De todo aquele futuro
Que não tivemos.
SARA MARINHO
146
DOROTH DE CASTRO
PUTA LIVRO
DOROTH DE CASTRO
Eu pecador te confesso
que os dias são tristes
que as noites são longas
que a saudade dói
que o amor corrói
Eu pecador não te confesso
mais nada
Amar não é pecado!
148
PUTA LIVRO
PUTA LIVRO
A etimologia da palavra puta
Vem do latim puttus
Que quer dizer pura e casta
através do tempo essa terminologia
foi ressignificada.
Ideologias e acepções
Não significam nada
Apenas encoraja o preconceito
do cidadão de bem
Que acha
Que a voz que ecoa nas esquinas
não tem nada a dizer
ocupantes das calçadas passível
e objetificável
Apenas mais um corpo
Pra pagar usar e esquecer
PUTA LIVRO
Naquela vida que nunca foi fácil
E num senso comum
Se disseminou
Cansou de só apanhar da vida
Foi lutar na guerrilha
E seu próprio futuro ela determinou
REJANE BARCELLOS
Gabriela e Lourdes calaram a boca
de quem as apontou
Ouviram a voz das calçadas que gritam
Buscaram os seus direitos
Que respeito para todos
É transformador
PUTA LIVRO
Se não se esconder
Ninguém vai proteger
risco iminente de ser morta!
Não dá pra pagar pra ver
REJANE BARCELLOS
indigentes profundas
Trazidas na proa e na tumba
Tão silenciadas
Quanto as polacas enterradas
Meretrizes do rei
Usadas e descartadas
Ouro de tolo guardadas no bordel
Tratadas como um troféu
O tempo passou
E por aqui nada mudou
Mais de 40 milhões de mulheres
se prostituem no mundo.
40 milhões de vidas invisibilizadas
Esquecida nas calçadas
Madalena apedrejada
Julgada e demonizada
Às vezes carne barata
Para pagar as contas do mês
Assassinatos em série
Apagados da história
Mas a rua traz memória
153
Se a sociedade não colabora
Puta não se comporta
e com o arquivo estadual
vem metendo o pé na porta
PUTA LIVRO
Uma vitória pras mulheres com
a colaboração do APERJ
Décadas de luta para não
serem cerceadas
Não serem silenciadas
sua história perfeitamente
documentada
preservada em um vasto acervo
REJANE BARCELLOS
de valor incalculável
PUTA LIVRO
Regulamentação do ofício é pauta
prioritária
Porque se a vida da mulher já é dura
Pra mulher da vida e ainda muito mais
A calçada grita!
Por respeito, segurança
Mulheres que lutam
REJANE BARCELLOS
Por seu direito civil
legalização do ofício
Aposentadoria digna
Carteira assinada
Nunca mais agredida
Nunca mais apagada
155
conseguiram queimar
Versus filhas da puta que o seu
preconceito tenta eliminar
E nesse verso eu tenho propriedade
PUTA LIVRO
pra falar
Eis-me aqui!
neta de puta, filha da luta que
nasceu pra guerrear
Meretriz do Apocalipse
Armadura de ferro cor púrpura
e escarlate…
REJANE BARCELLOS
à liberdade
Podem me chamar de filha do pecado
O choro é livre
O berço da burguesia
Vendo puta se formar
graduanda bem completa, liberal
e sem frescuras
Agora quem dita as regras desse
jogo, irmão?
No passado enquadre no camburão
Agora, no presente, sala de reunião
Sojourner é referência
Antecede a dama de Tefé
Quem tem ouvidos ouçam:
156
o berro que ecoa
Questionando o patriarcado
Indianare e Gabriela engajadas na fé
A garganta que grita
Não sou eu uma mulher?
PUTA LIVRO
Não sou eu uma mulher?
Quando jogaram-na aos lobos
retornou de salto 15, liderando
a matilha
Gritaram vadia!
E da esquina Ela sorriu
pois não tá nem aí
Só ela sabe o que viveu até aqui
REJANE BARCELLOS
Quem aponta o ofício
Não repara cicatriz
E pra vocês agora
A chamem
Dona meretriz!
DIGITALIZAÇÃO E
PUTA LIVRO
PRESERVAÇÃO DO
ACERVO AUDIOVISUAL
DA ONG DAVIDA
Introdução
158
por objetivo descrever as etapas essenciais
deste projeto, que envolveu não somente o
processo de digitalização dos documentos
audiovisuais, mas um conjunto de ações de
PUTA LIVRO
preservação fundamentais para a salvaguarda
do acervo da Davida.
Documentos audiovisuais:
alguns conceitos
159
linear
- o objetivo é a comunicação desse conteúdo e
não a utilização da tecnologia para outros fins.
PUTA LIVRO
pelo autor, aquele que talvez mais impacte os
trabalhos de preservação é o primeiro, que
diz respeito à exigência de um dispositivo
tecnológico. Os documentos audiovisuais
se caracterizam, portanto, pela necessidade
de uma mediação tecnológica, pois somente
podem ser reproduzidos e interpretados por
meio de máquinas, que por sua vez também
PUTA LIVRO
deste projeto, foram utilizadas duas máquinas
U-matic profissionais, ambas adquiridas em
leilões virtuais e que, apesar de usadas,
apresentaram um ótimo desempenho. Ainda
assim, são máquinas que necessitam de
cuidados permanentes, desde procedimentos
de limpeza dos seus mecanismos internos
até eventuais revisões com profissionais
PUTA LIVRO
e educacionais, sendo utilizado por mais
duas décadas. Foi amplamente utilizado
em produções de TV, particularmente no
telejornalismo, sendo também um formato
bastante presente em produções de artistas,
ativistas e instituições acadêmicas ao longo
das décadas de 1980 e 1990.
O Betacam tem características muito
PUTA LIVRO
relativa elevadas. No entanto, conforme
apontamos acima, o maior problema
envolvendo esses formatos, assim como os
documentos audiovisuais de maneira mais
ampla, está relacionado com a obsolescência
das mídias e das máquinas. Portanto, em
termos de preservação, as fitas U-matic em
particular são consideradas de alto risco e
1
O aglutinante é o elemento responsável por manter as
partículas magnéticas aderidas à base da fita.
A vida útil das fitas magnéticas não costuma
163
alcançar muito mais do que três décadas,
fazendo com que procedimentos de
digitalização sejam emergenciais, a fim de
extrair os conteúdos desses materiais o
PUTA LIVRO
quanto antes.
Uma vez se tratando de fitas magnéticas
gravadas há algumas décadas, foi necessário
um procedimento prévio de higienização
dos suportes, a fim de se obter um bom
resultado técnico ao final do processo de
digitalização, além de garantir o adequado
funcionamento das máquinas de reprodução.
A maior parte das fitas, de todos os
2
Uma solução possível para esse caso seria “assar” a
fita, um procedimento bastante utilizado para suportes
com síndrome sticky-shed: a fita é depositada em uma
estufa específica, ao longo de algumas horas, para que
o aglutinante se reposicione, de maneira a ser possível
reproduzir a fita ao menos mais uma vez para que seu
conteúdo seja digitalizado e recuperado. Trata-se de
procedimento agressivo ao suporte, devendo ser utilizado
com critério e parcimônia, uma vez que a fita geralmente se
torna irrecuperável após sair da estufa.
164
PUTA LIVRO
MARCO DREER BUARQUE
Imagem 1: superfície da fita inteiramente tomada por mofo
Digitalização: especificações
técnicas e fluxo de trabalho
PUTA LIVRO
registrar possíveis informações relevantes
presentes nos rótulos dos materiais. Todas
as fotografias eram armazenadas juntamente
com os arquivos digitais de vídeo resultantes
da digitalização, a fim de proporcionar o
devido contexto entre suportes utilizados e
conteúdos digitalizados.
PUTA LIVRO
A cadeia do processo de digitalização
também incluiu o uso de um Time Base
Corrector (TBC), dispositivo essencial para
assegurar estabilidade ao sinal de vídeo.
Quanto aos resultados da
digitalização, de modo geral foi possível
capturar sinais de vídeo ainda íntegros, mas
riscos horizontais ou oscilações na imagem
PUTA LIVRO
também têm a função de proporcionar um
melhor acesso e busca futura às informações
digitalizadas.
Os parâmetros de digitalização aqui
descritos, bem como os procedimentos
de preservação digital adotados, foram
baseados em recomendações internacionais,
sobretudo nos documentos da IASA, que
Considerações finais
O processo de digitalização e
preservação do acervo audiovisual da
Davida envolveu um conjunto de desafios.
Em primeiro lugar, foram necessários
procedimentos de higienização para a grande
parte dos suportes – fitas magnéticas que,
de modo geral, apresentavam condições
de conservação que inspiravam cuidados.
Em segundo lugar, uma vez que o trabalho
envolveu formatos analógicos de vídeo
já obsoletos, foi necessário fazer uso de
máquinas de reprodução em boas condições
de uso, cada vez mais raras de serem
encontradas. As fitas U-matic, em particular,
mereceram atenção especial, tanto pela
fragilidade do formato quanto pela escassez
das máquinas necessárias para a sua correta
leitura.
O trabalho não se limitou ao
processo de digitalização, incluindo também
procedimentos de preservação digital,
como a geração de metadados descritivos
e técnicos. Estas estratégias visaram não só
à preservação dos conteúdos audiovisuais
digitalizados, mas também à presunção de
sua integridade e autenticidade, qualidades
essenciais em um acervo digital.
Referências
170
EDMONDSON, Ray. Arquivística audiovisual: filosofia e
princípios. Unesco, 2017. Disponível em: https://unesdoc.
unesco.org/ark:/48223/pf0000259258. Acesso em: 22 ago.
2021.
PUTA LIVRO
IASA (International Association of Sound and Audiovisual
Archives). A Salvaguarda do Patrimônio Audiovisual: Ética,
Princípios e Estratégia de Preservação (IASA-TC 03). IASA,
2017. Disponível em: https://www.iasa-web.org/tc03-pt/
etica-principios-e-estrategia-de-preservacao. Acesso em: 22
ago. 2021.
171
XAVIER FERREIRA
ONDE A MEMÓRIA
PUTA LIVRO
DISPUTA
Some o dia, cai a noite fria.
E o silêncio me arrepia.
Vamos juntas que tem muito pra fazer.
Sem fingir que dá, que dói, é só dizer.
Música “Língua Solta”,
De Alice Coutinho e Romulo Fróes
PUTA LIVRO
subjetivo será ignorado, que é justo o que
motiva e fomenta a defesa daquilo que será
entendido como um bem. E especificamente
bem cultural.
Não há atos ingênuos por parte do
Estado. Pois os órgãos mencionados lidam
com a promoção de eventos passados
que, postos como memória social, bens
PUTA LIVRO
demais ocorrências e acontecimentos, isto
é, uma ausência que se faz sentir devido sua
busca, afetiva ou não, que não foi localizada,
encontrada. Mas então não ver mais a
pipoqueira em frente uma antiga escola
que deu lugar a uma academia, seria algo
criminoso? Aqui cabe um sorriso malicioso.
A memória do fato ainda está guardada,
PUTA LIVRO
ausência de emplacamento2 para a referida
rua, bem como o seu respectivo CEP, embora
esta competência seja dos Correios.
Com base no que é possível afirmar
que se trata de uma moral, atuante, que
impede a justa homenagem? Realmente: não
é possível afirmar diretamente. Mas então
1
O decreto, na íntegra, pode ser conferido aqui:
https://leismunicipais.com.br/a1/rj/r/rio-de-janeiro/
decreto/2016/4222/42212/decreto-n-42212-2016-
reconhece-como-logradouros-publicos-da-cidade-do-
rio-de-janeiro-com-denominacoes-oficiais-aprovadas-os-
logradouros-que-menciona-situados-no-bairro-pechincha
-na-xvi-ra
2
A ata da reunião, de 8 de abril de 2019, pode
ser acessada em: http://www.rio.rj.gov.br/
dlstatic/10112/9085213/4239303/AtadaReuniao08.04.2019.
pdf
3
Importante registrar que para referir-se à palavra ‘puta’,
os mais variados termos e expressões foram inventados,
conforme pode ser lido em O Dicionário do sexo e da
prostituta, da Scortecci Editora, 2001. Seu autor, Émerson
Ribeiro Oliveira, pesquisou e registrou cerca de 3 mil
verbetes.
175
o preconceito, que chega o estigma e tudo
mais. É um absurdo. Eu não sou socióloga,
mas eu sou puta, estou aposentada, mas
eu sou”. Ela também confirma que acha
“detestável me chamar de ex-prostituta”, e
que “não precisa me chamar de socióloga,
PUTA LIVRO
não, não quero, não precisa mas me chamam
de socióloga, acho que até pra justificar o
fato de eu ser puta, sabe como que é?”. E
aqui ela escancara a maior violência simbólica,
feita contra a profissional e a profissão, o de
criminosamente lhe calar a fala, “eles mesmos
querem justificar pra mim. Eu não preciso
dessas justificativas, nunca precisei”. Estes
4
O decreto, na íntegra, pode ser lido aqui:
http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4722991/4122086/
255DECRETO32993CemiterioIsraelitadeInhauma.pdf
176
de um imóvel... mas no real objetivo de
expulsar as prostitutas que faziam o dito
uso indevido, tanto do lugar, quanto de seus
corpos. Um verdadeiro acinte!
Esses apagamentos e ausências, de
palavras e profissões, escanteiam sempre
PUTA LIVRO
pessoas, promovendo assim um alto grau
da mencionada violência simbólica. Afinal,
escanteiam elementos sociais entendidos
sob a categoria do ‘indesejável’, embora
dentro de um certo grau de tolerância,
isto é, desde que camuflado, escondido,
disfarçado, discreto, quase invisível. Por sinal,
5
Referência bíblica: Mateus 7:8.
177
resposta para seus desejos: bem vindo à Vila
Mimosa – VAI COMEÇAR A (§ 8º)RIA.6
A indicação do ‘parágrafo oito’ (§8),
acima, diz respeito a uma lei do período da
ditadura cívico-militar que versava sobre a
PUTA LIVRO
moral e os bons costumes, devido a ameaça
que determinadas práticas e modos de ser
poderiam levar às famílias de boa gente. Isso
incluía termos considerados ofensivos. E o
sorriso que vem malicioso, aqui, fica mais
provocativo. Por essa moral e bons costumes,
quantas vozes potentes não foram caladas?
Ou ainda: quem de fato está na ocorrência
6
Passagem retirada da dissertação Onde a Memória
Disputa: Filosofia, Patrimônio, (§8): http://portal.iphan.
gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/FERREIRA_Hercules-
Dissertacao_Mestrado.pdf
7
Preta, pobre e puta. Sim, é horrível, mesmo, essa
expressão, por conter um preconceito digno de prisão para
quem profere.
8
Sobre essa toponímia o professor João Baptista Ferreira
de Mello escreveu um bonito texto, que pode ser lido
em: http://www.neer.com.br/anais/NEER-2/Trabalhos_
NEER/Ordemalfabetica/Microsoft%20Word%20-%20
JoaoBatistaFMello.pdf
já fora chamada de República do Mangue,
178
donde zona do mangue era a referência
política-administrativa, e também policial,
que confinavam as ‘marafonas’, ‘quengas’,
‘primas’, ‘meretrizes’, ‘mulheres de vida
airada’, ‘messalinas’, ‘rameiras’, ‘michelas’,
PUTA LIVRO
‘biscaias’, ‘chinas’, ‘dadeiras’, ‘decaídas’, e
ainda ‘mariposas’, bem como outros tantos
inventados criativamente como forma de
driblar a censura – e a moral e os bons
costumes. E há quem diga que, por conta
das festas e demais animosidades que
aconteceram e aconteciam durante o período
9
;-)
10
Diana Helene Ramos, professora arquiteta, escreveu uma
brilhante tese, cujo título são os infames ‘três pês’, que
pode ser lida em: https://uab.capes.gov.br/images/stories/
download/pct/2016/Teses-Premiadas/Planejamento-Urbano-
Regional-Demografia-Diana-Helene-Ramos.PDF
11
Sinônimo equivalente à “grande”, “célebre”, “insigne”,
“puta”.
179
ISER, o Instituto de Estudos da Religião.
Interessante associar esse evento com outro
que viria trinta anos depois, no Maranhão,
o V Encontro Nacional das Prostitutas, pois
o lugar de encontro foi no Convento das
PUTA LIVRO
Mercês, antigo abrigo católico da Ordem dos
Mercedários. Bem se diz que Deus age de
maneiras misteriosas.
Mas bem, sobre elas e a partir delas,
muitos e muitos textos foram escritos, muitas
ações ocorreram e seguem ocorrendo.
Como as várias associações espalhadas
pelo Brasil afora e suas várias conquistas
PUTA LIVRO
eu, estudou mais do que eu e leu mais do
que eu e, portanto, pode falar melhor do que
eu sobre as coisas da minha vida”12. Falar de
si e, principalmente, ser ouvida por outrem,
implica em diálogo e em troca, condição
para combater estigmas e fortalecer estimas.
Condição para valorar a própria biografia
e saber que faz parte de outras tantas
12
Fortes palavras ditas em momento forte e por pessoa
forte, com outras que podem ser conferidas no link: https://
dialogospelaliberdade.com/2015/10/08/
afirmam seu passado para fortalecer suas
181
bases no presente. Bases estas que servem
para o sentimento de unidade e identificação
e também de orgulho. Daí a importância da
luta. No Rio de Janeiro houve uma República
do Mangue, uma “cidade dentro da cidade”,
PUTA LIVRO
conforme dito pelo poeta Manuel Bandeira,
para essa região que foi atualizada para
Praça XI e Cidade Nova. A baixa referência
atual para as ocorrências passadas deve-se a
critérios de influência higienista, sanitarista,
partindo de velhos médicos e suas velhas
ideias, que associavam sujeira e salubridade
do ambiente às mentes e aos corpos que
PUTA LIVRO
Os pelos que ostento hoje não me
fazem nem menos nem mais do que
quem eu sou.
É o meu grito de liberdade.
Um grito libertador.
É tirar os grilhões dos padrões sociais
que me impediam de avançar.
É me encontrar.
É um grito de liberdade silencioso,
que toma o meu rosto saindo por baixo, no
queixo e nas laterais do lábio superior.
É a minha carta de alforria, que liberta
quem olha e encontra, através de meu corpo
e rosto, uma estrada de liberdade, colocada
como estandarte pra dizer: Sim, você
também pode e não se obrigue a nada.
Sobrevivente, ultrapassei a expectativa
de 25 anos de vida pra transvestisgeneres no
Brasil. Eles aumentaram a meta pra 35 anos e
eu bati a meta.
Ultrapassando metas, outra vez
sobrevivi aos 45 anos.
Agora chego aos 50 anos de vida,
sobrevivente e vigiade por câmeras de
protocolo de segurança.
Sim tenho pelos e por trás dessa barba,
através desse cabelo branco, dessas rugas,
é como se você lesse um livro de histórias
contadas e experiências sobrevividas e
repassadas a frente, como um manual de
sobrevivência.
Sim. Ainda sou eu. Agora sou eu.
Foi meio século de vida e parece que foi
bem mais.
Foram muitas lutas que já não me
lembro mais quando não foi luta.
183
Do respirar ao dormir, ao transitar em
uma rua, ao se alimentar, ir a um médico,
acessar a educação na escola e até mesmo
um banheiro pra necessidade fisiológica, tudo
se tornava uma luta.
Fui Kaoma, Sophia por lembrar Sophia
PUTA LIVRO
Loren diziam, Indianara, Lídia, Luisa, Vênus
travesti Asiatique, fui Fênix, Indianare e hoje
Indianarae.
Sobrevivi às ruas e suas calçadas como
cama.
Sobrevivi dos alimentos caídos dos
caminhões .
INDIANARAE SIQUEIRA
Sobrevivi ao braço armado do Estado
que violentava meu corpo jovem, mas já
forjado na dor, que às vezes, ao provar meu
sangue e sentir o gosto dele, era a prova de
que eu ainda estava vivente.
Alguns estupros praticados por agentes
do Estado, que depois de um tempo eu já
não os repelia mais.
Foram muitas surras da vida.
Sobrevivi ao Hiv/Aids e perdi muites pra
aids.
Sobrevivi comendo do que caía de
caminhões que abasteciam feiras e mercados,
a ponto de automaticamente meu estômago
reconhecer o ronco do motor que trazia o
alimento já esperado e disputado quase a
tapa ou a tapa mesmo.
Sobrevivi aos lares por onde passei.
Mas vivi.
Vivi nos puteiros e esquinas onde
aprendi a cobrar pelo que queriam que eu
desse de graça.
Adotade por putes, fui educade e
forjade pra viver .
No puteiro me desnudei, ri, bebi,
aprendi sobre a vida em uma intensidade que
nenhuma universidade está preparada pra me
ensinar.
De perspicácia à filosofia passando pela
praxis fui contestando, me contestando, me
libertando ao colocar
preço no que queriam que eu doasse
sem garantias de gozo.
184
E então, de repente, mãos e bocas
sôfregas exigiam meu corpo pra satisfazer
desejos, me dando o dinheiro necessário pra
não correr mais atrás do caminhão e então
meu estômago perdeu sua memória faminte
PUTA LIVRO
e minha pele passou a ter uma memória
sexual.
Os caminhões de comida agora eram os
homens da sacrossanta família, que pagavam
pra comer-me-los.
Estampei capa de revista com meu
corpo desnudado sendo exposto em bancas
de jornais país afora com eles de pênis em
INDIANARAE SIQUEIRA
riste por minha ereção vital.
Corri mundo.
Vivi vidas.
Fui presa pra encontrar a liberdade e ao
ser livre das grades físicas me encontrava de
novo aprisionade em uma sociedade que me
odiava e me queria morte.
PUTA LIVRO
PUTA LIVRO
Prostituta,
minha irmã,
conheço tua luta
És mulher guerreira
que não foge da labuta
Do pecado surgira
disseram línguas fajutas.
Mas da árvore dos anseios
e desejos humanos
És a mais doce fruta.
187
Criadora e criatura
dessa força bruta
Enfrenta o patriarcado
E por seus direitos luta
Das experiências, astuta
PUTA LIVRO
Da militância, recruta.
Pedras lhe são jogadas
Porque receiam ser escutas.
Onde já se viu?
Mulheres, bruxas, putas, prostitutas
com tal conduta?
Corpos, mentes e almas livres
Instrumentos de permuta?
Hipócrita sociedade biruta!
1
O Fotopoema se encontra em postagem realizada no
dia 04 de junho de 2021 na rede social Instagram da
autora. @naaramaritza
188
A homenagem se refere a liberdade
da mulher prostituta. Liberdade de fazer
o que quiser, de usufruir de seus direitos
sexuais e dos direitos que envolvem sua
profissão. O poema também indica a luta
das trabalhadoras sexuais em meio às
PUTA LIVRO
hipocrisias e estigmas que enfrentam no
sistema patriarcal. Para essas milhares de
trabalhadoras que não fogem da labuta,
ofereço um poema chulo para celebrar a luta.
A imagem é uma foto datada em junho
de 2021, do acervo pessoal da autora,
editada no aplicativo “PICSART – Photo
editor”.
AUTOBIOGRAFIA DAS
PUTA LIVRO
COISAS
Eu me transformei em muitas coisas,
mas nunca deixei de ser fêmea. Assinei todos
os contratos que a cultura tem para esse
nome. Mas custou até que eu me tornasse
mulher.
Primeiro eu era minha mãe. Não fui
minha mãe só enquanto dividíamos o espaço
de um corpo. Lembro dela me dizendo,
quando eu já tinha montinhos de seios por
debaixo da blusa, que tínhamos que cortar
o cordão umbilical -alertando-me para o fato
de que eu havia nascido. Antes de aceitar o
convite fiz todos os experimentos que pude
com o cordão: pus no pescoço, que é para o
que servem os cordões, afinal. E me olhei no
espelho. Mãe. Nosso colar de pérolas. Depois
amarrei no alambrado para me enforcar.
Também joguei janela abaixo para tentar
escapar da torre. Nada disso valeu para
preservar o cordão. Então decidi cortá-lo. O
nosso cordão. Mas isso não é coisa que se
decida, claro que não é. É coisa que se sinta.
Por isso tentei dilacerar o cordão à dentadas
como fazem as cadelas. Sem sucesso. Nada
consegui além de dor e sangue. Minha filha
tinha que nascer. Mordi a tripa com toda a
força. Os filamentos de nervos estancando
nos dentes. Assei os cantos da boca. Senti
gosto de ferro. Nada. Éramos eu e minha
mãe.
Um dia eu estava na escola sofrendo
com a nossa distância. Olhei para uma escada
e pensei: vou saltar dos degraus -como
quando chamamos a atenção do bebê para
qualquer coisa boba a fim evitar os berros.
Eu já era grande, mas era pequena. Pulei do
primeiro degrau para o chão. Era fácil. Subi
até o segundo e pulei. Fácil. Do terceiro
190
foi fácil também. Do quarto, o pulo já era
para alguém do meu tamanho. Do quinto
foi desafiador. Do sexto, cheguei ao chão
catando cavaco, como dizia minha mãe. O
inspetor veio me chamar. Ela metia a cara
PUTA LIVRO
esbaforida pelo portão. Eu sorri e ela sorriu
de volta, aliviadas, as duas, sem a tensão do
cordão.
Então me encantei por coisas. Já me
reconhecia no espelho. Gostei de música. De
uma bateria de heavy metal, daquele estilo...
Dos lugares para onde as avenidas de som
me levavam, saindo do bumbo, dos pratos...
NATÂNIA LOPES
Fui a festivais. Fechei os olhos e cantei. Fiquei
reativa. Uma vez levei um toca-discos para o
banheiro, tarde da noite. Apaguei as luzes e
tomei um banho quente. Não se via nada no
meio do negro vapor. Mas dava para ouvir
as viradas molhadas da bateria com todos
os poros dos braços, no pescoço, na barriga,
escorrendo desde a cabeça, passando por
dentro das pernas, pingando dos cabelos, na
boca...
Eu amava aquilo, mas estava perdida
no mundo, com meu nascimento tardio.
Uma garota pósmatura. Via os vultos com
o canto dos olhos e tentava persegui-
los e era atropelada pela marcha habitual
dos passantes, que eu não conhecia bem.
Saudades da minha mãe! Do ventre da minha
mãe. Da nossa casa cheia de papéis da minha
mãe professora.
No meio do tumulto encontrei uma
banquinha de livros usados. Ficava numa
praça que tinha uma igreja e um quiosque de
flores. Parei ali pra beber água, pra descansar
os pés da caminhada bruta. Peguei uma
coletânea esfarrapada de trechos clássicos do
marxismo.
E virei o livro. Revirei. Era aquilo! Era
eu. Logo virei bandeira. Uma bandeirona
vermelha com as ferramentas dos
trabalhadores estampada. Tão demodè, eu,
bandeira. Ganhei fôlego, com a minha nova
forma, para estar no meio das multidões. Eu
tinha um cabo de madeira cheirando a suor
191
capaz de partir um crânio. E um algodão
romântico e inspirador que pertencia ao ar.
Me erguiam no alto. Eu me erguia. Sobre as
cabeças podia ver as convicções, antigas,
na falta de novas. Queríamos querer alguma
PUTA LIVRO
coisa. Algo que fosse justo.
Houve um grande fórum, noutra
praça, no sul. Eu estava lá, bandeira,
exalando juventude. Nós dormíamos em
acampamentos. Gritávamos pela libertação
que a gente fingia entender do que tratava,
e entendia afinal. Na falta de casacos a gente
bebia cachaça, se abraçava, fazia fogueira e
NATÂNIA LOPES
contava histórias.
Pelas beiradas dos caminhos, um povo
irmão apareceu, por detrás das pedras,
vendendo brincos de pena, pulseiras feitas
com sementes. Conchas lilases, corais
vermelhos, arabescos de arame. Lindo!
Como sempre, capturada pela beleza,
tornei-me um punhado de missangas.
Bobas e artísticas. Incríveis! Aviltadas pela
ordem, tínhamos a nossa própria ordem,
transpassadas por um fio de nylon, postas
em fila de três verdes, três azuis, uma maior,
amarela como o sol, três azuis, três verdes...
Um punhado missangas cheias de luz, eu era.
Os hippies me penduravam aos montes nas
suas tranças, nos seus braços e pernas, nas
suas barracas, nas árvores. Defumadas por
ervas, fumos, incensos, nós fomos pela vida
seguimos em caravana. Eu e minha trupe
de palhaços e malabaristas da razão e da
tristeza... Fumávamos para dar onda e surfar
nela.
Tornei-me um cigarro de maconha bem
verde. Um cigarro eterno. Verde, bem verde
mesmo. Tragada, eu estalava um pouco,
lembrando roça e aconchego. Me dizendo
mato. Imaginando histórias, compondo
lendas. Observando em silêncio. Fluindo
como as marés. Mundos e mundos internos,
um infinito invaginado.
Incendiei-me e fumei a mim mesma,
num loop de irrealidade. No fundo da espiral
havia um núcleo duro: a verdade das coisas.
192
Mas era inalcançável. Armei-me até os dentes
contra esse fato. Já tinha algum cansaço, mas
a vida estava só começando. E eu me tornei
mulher.
Notei que carregava uma mala cheia
PUTA LIVRO
de coisas que me sopravam respostas diante
das dúvidas. Uma fotografia desbotada,
meu cordão umbilical seco, preso por um
pregador de plástico branco. Meus dentes
de leite. Um fiapo de bigode de gato, um
potinho com lágrimas, uma bactéria de
estimação e outras velharias. Nada que me
fizesse rica. Precisava de dinheiro.
NATÂNIA LOPES
Logo que passou pelas minhas mãos
uma nota grande, dessas com cheiro de
acabava de sair da casa da moeda, eu me
transmutei na cédula, com meu devido
lastro de outro guardado em algum lugar.
Me lambuzei de comprar aquilo de que não
precisava, esquecendo do que precisava.
Invadi uma loja de joias. Roubei um banco.
Fui podre de rica. Podre.
Depois desisti de tudo, como sempre.
Virei uma casa com filho e cachorro, e
planta e papagaio, marido desses bons...
Uma casa com quintalzinho. Bem casa. Com
bolo assando no forno e janelas abertas,
com canto de passarinhos... a coisa mais
doce do mundo! Então tudo acalmou, ficou
às claras. Tudo o que fui foi apaziguado e
estava ao alcance da mão, numa prateleira
desempoeirada, disponível para o melhor
arranjo. Assim como se administra o arroz e
o feijão para que durem até o final do mês.
Só uma dúvida permanece, mas ainda falta
formulá-la.
193
INDIANARAE SIQUEIRA
PUTA LIVRO
“A menina disse que saiu impactada e
mudou sua visão de mundo da prostituição”.
194
Até prostitutes levam tempo a se
libertar, mas quando isso acontece é
transformador e um divisor de águas.
PUTA LIVRO
Você entende o mundo, suas
engrenagens e passa a caminhar com mais
leveza.
INDIANARAE SIQUEIRA
é o que você dirá sobre você, tirando deles o
poder.
A prostituição é subversiva.
Seje pute.
Pratique putarias.
Viva a Faculdade da Putaria.
195
BIANCA FERREIRA
PUTA LIVRO
Vejo-me.
Parada, presa, ambígua, inerte.
Lamento-me.
Mágoas ressentidas devem
ser deixadas.
Resta-me, pois, exercer o ócio,
já conhecido. O inebriante calor
do tédio, que agrada-me.
Espero então qualquer reação,
movimento.
Aguardo-me.
Como aguardam-se as
outras quaisquer.
196
RICARDO MASSAO
NAKAMURA NASSER
PUTA LIVRO
À margem da rua, ficava
O vento da noite
A sirene, alemão, gargalhadas
O para e abre dos carros
Quanto? Aonde? Como?
Insisti
Sozinha insisti
Pensei: sem saída
Patrão cobra ponto
Ponto pede carne
Não deu
PUTA LIVRO
Se Jandira caiu
Esperta escapei
Pela outra margem (sobre)vivi
PUTA LIVRO
199
Cliente português que mora em
Dubai, vai visitar Seicheles, já vacinado,
jovem, pouco cabelo, depiladidinho, corpo
de quem está retomando as atividades
físicas, educado e tímido. Chego simpática
PUTA LIVRO
e acompanhada da minha amiga que nos
convidou. Conversamos, esperamos o drink,
bebemos e transamos.
RAPHAELA MARQUES
europeu.
SELEÇÃO DE FOTOS
PUTA LIVRO
DESFILE DASPU1
PUTA LIVRO
DIS
R
OS S
AÇ N O
SP BA
S E R
O U
205
ANDRE ARAUJO
PUTA LIVRO
#CASANEMCASAVIVA
PUTA LIVRO
Agora é oficial.
Depois de uma luta de quase 5 anos em
uma união de vários movimentos sociais.
Costurando acordos e trabalhando em
conjunto com os poderes públicos,
onde foi necessário traçar um caminho
da Lapa, na Rua Morais e Vale, 18, ocupando
o Automóvel Clube do Brasil, no passeio
público, em uma ocupação cultural nesse
que foi o primeiro Congresso Nacional desde
que o Brasil se tornou República, passando
pela ocupação Denise em Botafogo, na R.
General Polidoro,descendo pra fortalecer
a ocupação de Vila Isabel, se unindo à FIST
e indicando como nome uma homenagem
à cantora Elza Soares, expulses, fomos pra
Bonsucesso, fortalecer a Ocupação cultural
Olga Benário, que precisava de ajuda, fomos
pra R. Ramalho Ortigão temporariamente, no
centro, ocupamos por uma noite um imóvel
na Rua da Carioca, pra que as pessoas da
CasaNem descansassem de suas andanças
ao pôr do sol, pra que ao raiar do dia
pudéssemos, juntes, sem largar as mãos dos
que ficavam, mas entendendo quem ficava
no meio do caminho. E pra esses deixávamos
as provisões e a promessa de um dia termos
nosso lugar e viremos te buscar ou você
poderá nos encontrar onde estivermos.
Chegamos à Copacabana pra flertar
durante um tempo com a princesinha do mar
em um prédio da R. Dias da Rocha, um dos
primeiros a ser construído em Copacabana,
onde um acervo de obras de arte foi
encontrado e devolvido ao IPHAN, Museu
Nacional e Polícia Federal e parecia que por
termos prestado um serviço à sociedade nos
207
dariam esse local.
Limpamos e organizamos o prédio.
Fomos sementes e levamos a presença
de Marielles, Dandaras, Xicas Manicongos,
Giselles Meirelles, Demétrios, Joãos W.Nery
PUTA LIVRO
por onde fomos e sem perceber já nos
dávamos em fruto, em pão, alimento, em
água pra matar a sede dos afogados pelo
abandono.
Fomos tantes e uma força nos unia:
A sobrevivência nutrida pela esperança
de um mundo melhor, mas não só pra nós
e sim por todes.E de repente, quando o
INDIANARAE SIQUEIRA
mundo parou e um vírus mortal atacou a
humanidade.
A morte nos rondava, no ar, ao respirar.
Mas para a CasaNem, não lhe foi permitido
parar. E lhe foi exigido além do que parecia
ser possível. E enquanto as pessoas pareciam
perdides, a CasaNem chamou para si a
responsabilidade de proteger os mais
vulneráveis,sem esquecer os animais não
humanes.
Formou-se então uma rede onde as
Casas de Acolhimento LGBTIA+ foram
chamadas a formar a REBRACA LGBTIA+.
A fome apertava e a gente achava que
não daria conta.
Mas estamos dando e não chegamos lá
sozinhes.
CasaNem provou que um outro mundo
é possível
através da rede de colaboradores
(colabores) e amigues durante essa
pandemia, distribuímos mais de 3.500 cestas
com Kit de higiene e limpeza, 20 mil máscaras
de proteção, quentinhas e roupas pra
alimentar e proteger moradores de rua com
ração pros animais de estimação e acolhendo
alguns desses animais.
Está sendo exaustivo.
E depois de muita luta, se não era
possível estar a duas quadras de uma das
praias mais famosas do mundo, nos atacavam
outra vez.
208
As forças policiais chegaram e era
necessário resistir.
Resistimos e a organização levou a um
acordo em frente às câmeras de televisão,
os órgãos públicos foram chamados: ou
fazíamos um acordo pacífico, ou lutaríamos
PUTA LIVRO
até a nossa última gota de sangue.
Então nos escondemos por trás de
barricadas prontas a explodir.
Do lado de fora dos portões tinha os
corpos de manifestantes que começaram
conosco uma vigília.
Entre a promessa de ir pra Laranjeiras
INDIANARAE SIQUEIRA
restava a alternativa da escola Estadual
Pedro Álvares Cabral como provisório, até
que o governo do estado do Rio de Janeiro
encontrasse um local pra CasaNem.
Aceitamos o acordo. Ao chegar na
escola já sabíamos que estaríamos sob
ataques de uma vizinhança que já é hostil aos
estudantes do local.
Vizinhança que nos atacou com cabeças
explosivas de fogos de artifício e aos animais
de estimação acolhides.
Sem mandato, a polícia invadiu o local e
levou a pessoa responsável detida, como se
quisesse humilhá-la mais uma vez.
Foram muitas lutas e toda luta, pra
assim ser chamada, precisa de adversários e
esses foram muitos.
E parecia que nos espreitavam a cada
curva.
E nós só queríamos saber depois da
curva ali o que tinha pra nós.
Então esperamos e depois da curva logo
atrás do castelinho vocês nos encontraram à
beira mar do bairro do Flamengo.
Pra quem já teve tantas incertezas,
Pra quem já passou fome,
Pra quem a vida tirou todas as
possibilidades e ainda assim espera o
temporal passar e sorri Pra que vocês
possam nos encontrar ali, depois da curva,
como um pote de ouro no fim do arco-íris.
209
Quando perguntarem a vocês e depois
da curva hein?
Respondam:Tem a CasaNem com viado,
sapatão, Transvestigenere, TransAgenere,
gates, cachorres e putes de luta.
PUTA LIVRO
Logo ali.
Depois da curva do túnel, ali na rua 2 de
Dezembro n°09.
Convidamos vocês a nos visitar quando
a tempestade da pandemia passar.
INDIANARAE SIQUEIRA
#CasaNemCasaViva
210
FÁTIMA MEDEIROS
“FADAS BAIANAS ”: 1
a trajetória da
PUTA LIVRO
APROSBA na luta por
permanência no Centro
Histórico de Salvador
Cheguei a Salvador em 1988. O centro
de Salvador era muito bom para ganhar
dinheiro, porque você descia o Elevador,
você estava no porto, você subia, haviam
as boates. Pigalle, Hollyday, Liberty Night,
Maria da Vovó, era tanta boate no centro de
Salvador. Ainda haviam dois restaurantes bem
famosos na Ladeira da Praça que eram ponto
de encontro: o Braseiro, que não funciona
mais, e o Bar do China. Era muito gringo que
ia para lá. Eu sou de uma época que rolava
muito dinheiro. Na Ladeira da Praça também
havia um hotel onde a gente permanecia
em pé na porta, que era o Hotel Ilhéus. Se a
gente não quisesse ir para lugar nenhum, só
bastava ficar em pé ali, os gringos já sabiam
que era trabalhadora sexual e que estava a
fim de fazer programa. Embaixo do Elevador
Lacerda, havia o famoso Damasco, de Sr.
Sami. Quando a gente não subia no navio,
os gringos passavam rádio (telefone naquela
época era raridade): “Olha, eu estou indo
para o Damasco, me encontra lá”. Quando
1
O resgate da expressão “Fadas baianas” para compor o
título deste texto é uma homenagem à memória de Gabriela
Leite, que, na edição especial do jornal Beijo da Rua
publicada em nov/dez de 2002, escolheu “Fadas baianas”
como título da seção Coluna da Gabi para se referir às
ativistas da Aprosba, que naquele ano haviam organizado o
1º Encontro Nordeste-Sudeste de Profissionais do Sexo
em Salvador.
211
não havia navio no porto, eu ia para a Ladeira
da Montanha, ganhei bastante dinheiro lá.
A polícia chegou a me prender duas
vezes. A primeira foi no porto de Salvador,
porque é proibido entrar em navio e a gente
PUTA LIVRO
tinha que subir depois que a Capitania
descesse. Um dia a gente subiu primeiro, a
gente se atrapalhou, havia muito navio, e foi
presa. Ficamos o dia todo detidas no porto
de Salvador. Na verdade, a gente não era
para ter sido presa, se fosse hoje em dia,
eu saberia lutar pelos meus direitos, quem
era para ter sido detido era o capitão, quem
deixou a gente subir. E a outra vez foi na
FÁTIMA MEDEIROS
época da reforma do Centro Histórico. A
polícia disse que iam sair todas as mulheres
do Pelourinho, não ia ficar mais ninguém, que
lá ia ser um local de família.
Eu ficava nesse pensamento: “Poxa,
quer dizer que quando a gente está entregue
às baratas, pode tudo. A gente chegou
primeiro do que todo mundo aqui. Agora,
com essa reforma, a gente vai ter que sair?”.
E ficava preocupada com como as mulheres
sobreviveriam caso fossem retiradas do
Centro Histórico, do Pelourinho como um
todo, e principalmente da Praça da Sé.
Eu nunca batalhei na Praça da Sé. Eu
me sentava ali para conversar com as minhas
colegas. A maioria era minhas vizinhas, eu
morava no Centro Histórico, tinha muitas
amigas que batalhavam lá, e ainda batalham
até hoje. Eu ficava pensando: “Poxa, tem um
monte de mulheres de até 60, 70 e tantos
anos, e elas ganham o dinheiro delas ali.
Qual era a boate que ia aceitar uma mulher
acima de 30 para ganhar seu dinheiro?”. Essa
amiga mesmo dizia para mim: “Fátima, para
onde eu vou? Eu ganho meu dinheiro aqui,
ainda tem meu velho de navio que me acha
por aqui, tem os meus clientes que vêm aqui,
tem o menino novo que quer a experiência
da mulher mais velha. Qual a boate que me
aceita?” E eu ficava naquela preocupação,
onde elas iam ganhar dinheiro, como iam
sobreviver.
212
Eu conversava com dona Josefa, que
era uma senhora que lavava a roupa da
gente e era puta também do passado, e ela
contava tanta história de quando ela chegou
menina com uma tia que foi fazer vida, e que
ali sempre foi lugar de batalha. Ela ficava
PUTA LIVRO
muito triste, perguntava como ia lavar roupa,
como ia ganhar dinheiro se lavava roupa das
meninas que iam para navio. E porque ia tirar
a gente do Pelourinho se a gente chegou há
tantos anos?
Então eu fui a um Encontro da Mulher
Marginalizada em Ipatinga, bem no interior
de Minas Gerais. Sempre fiz parte da
FÁTIMA MEDEIROS
Pastoral, me chamaram para denunciar uns
hotéis que estavam explorando as prostitutas
em Belo Horizonte, e eu aproveitei para falar
da situação da Praça da Sé, que estava com
muita violência. Lá eu conheci a Lourdes
Barreto, ela falou do GEMPAC, da Gabriela
Leite.
A gente acordava às seis da manhã
nesse convento, assistia à missa de duas em
duas horas. Em vez de colocar puta com puta,
era cada puta com uma freira nos quartos,
era uma desconfiança, para a gente não
fazer alguma coisa de errado. Mas a gente
deixava uma janela aberta, quando as freiras
pegavam no sono, a gente saía. Teve uma vez
que a gente saiu, faltou energia, e a gente
comprou umas latinhas de cerveja para tomar
no convento e voltou. Quando a Lourdes
foi pular a janela do convento, as latinhas
caíram e acordamos todas as freiras. Levamos
tanta bronca... A gente fez muita história
nesse evento, quando eu voltei, já vim com
a ideia fixa de que ia fazer alguma coisa por
Salvador, que eu precisava me juntar com
as companheiras que tivessem coragem
de mostrar a cara. Eu vim motivada, esse
primeiro contato com Lourdes foi um grande
pontapé inicial. Lourdes foi a maior referência
que eu tive de prostituta liderança.
A polícia chegava à Praça, prendia as
mulheres. Um dia foi todo mundo preso,
era umas sete para oito da manhã, a gente
só saiu à noite, fez faxina, no outro dia
213
todo mundo dispersou. Elas voltavam para
a Praça. Depois de muito conflito, muitas
batalhas, muitas prisões e arbitrariedade, a
gente chamou e a imprensa veio. Eu disse
o quão entregue às baratas a gente estava,
PUTA LIVRO
e ninguém nunca fez nada por nós. Quando
era dos vagabundos, podia ficar. Agora,
eles queriam fazer essa limpeza e tirar a
gente, que não roubava, não tirava a roupa,
não fazia atentado ao pudor. Mas a gente
ia continuar, porque desde que o mundo é
mundo que existe a prostituição, e a gente
FÁTIMA MEDEIROS
chegou primeiro.
Eu me reunia com umas oito mulheres
que tinham coragem de mostrar a cara, a
gente ia para o meu quartinho e planejava
o que fazer, quem poderia estar do nosso
lado para nos ajudar a não sair do centro
de Salvador. Eu comecei a juntar história,
que lá já foi lugar de magnata, que ninguém
nunca mexeu com as prostitutas, elas quem
ajudaram a fundar o Sport Club Bahia, e a
gente tinha que estar afiada para dizer que a
prostituta também fazia parte da sociedade,
quer queira ou não. A gente é história.
Então eu fui a esse evento, no Centro de
Convenção. Eu sei que foram três dias muito
chatos. Se era para falar do Dia da Mulher,
não se falava da mulher, eram só políticos,
doutores, não haviam mulheres, e aquilo já
estava me irritando. A gente foi para esse
evento porque Marcelo Cerqueira (do Grupo
Gay da Bahia) disse: “Vai para esse evento,
talvez você se identifica como puta, se tiver
uma oportunidade, você fala sobre o que está
acontecendo na Praça da Sé”. No último dia,
houveram os debates, tinha que dar o nome,
colocar o comentário em uma cesta, e então
a mulher chamava para falar no microfone.
Gente pra caramba, você acha que a gente ia
falar que era puta naquele evento? É difícil,
não tem como você falar. Eu posso até me
identificar, mas não é 24h, tem momentos
que você nem fala, tem medo de apanhar.
A gente escreveu que era cinco garotas
214
de programa que estavam com um problema
sério no Pelourinho, porque a gente batalha
lá, nossas amigas batalham lá, e estão
apanhando. A gente vive presa 24 horas e
queria saber se isso é crime ou não. E queria
PUTA LIVRO
fundar uma Associação. A mulher começou a
ler nossa carta: “Olha, tem uma carta muito
interessante de cinco garotas de programa
que estão aqui nesse evento, elas não se
identificaram”. Todo mundo olhou para trás,
nós também. “E elas estão pedindo ajuda”. E
começaram a procurar, a gente também, por
medo, a gente tinha medo da sociedade. Eu
fui lá na frente me tremendo todinha: “Sou
FÁTIMA MEDEIROS
eu e minhas amigas”. Mas foi tanto apoio,
que eu nunca me senti tão acolhida. A gente
fundou a Associação das Prostitutas da Bahia
- APROSBA, e registramos em 1998. De lá
para cá, não parei mais nunca.
Depois que a APROSBA surgiu,
Antônio Carlos Magalhães, que era senador
na época, falou: “As prostitutas vão sair
do Pelourinho!”. E eu disse: “Não vão não
porque eu já sei que não é crime”. A gente
mandou uma carta para ele e ele atendeu
pessoalmente a APROSBA. A gente falou
que as mulheres não tinham onde ganhar
dinheiro, iam morrer de fome, o que eu disse
foi de fazer um acordo: “Vocês acham que
toda puta é ladrona e não é verdade, tem
a puta que batalha, e tem puta que nem
toma cerveja. Não existe polícia? Então faz
ronda ali e olha quem está roubando e tira,
mas deixa as outras”. Entramos em acordo
com a Prefeitura para as mulheres poderem
permanecer na Praça da Sé, e elas estão lá
até hoje. Tudo foi por causa da APROSBA.
Se não tivesse mostrado a cara na televisão,
tinha saído todo mundo. Eu sempre vou lá,
as mulheres continuam trabalhando, não tem
mais policial batendo nelas.
As mulheres não podem sair do centro
urbano, a rua é nossa, vocês têm que
entender. Já está dizendo MULHERES DE
RUA, somos nós, porque vai tirar a gente da
rua? Eu acho que todo mundo tem o direito
de ir e vir, e a gente precisa ir, vir e ficar. A
215
rua é nossa.
A APROSBA surgiu, eu era um boom.
Todo mundo queria saber quem era a puta
que tinha fundado a Associação. A imprensa
PUTA LIVRO
ajudou a gente porque era um prato cheio
puta mostrar a cara na televisão, dizer que
a gente queria ficar no Pelourinho porque
quem chegou primeiro foram as putas, tem
história de mais de cem anos.
De lá para cá, a APROSBA promoveu
alguns projetos voltados para a questão
de prevenção, violência e direitos
FÁTIMA MEDEIROS
humanos. A gente conseguiu fazer vários
encaminhamentos, seja para retirada de
documentos, seja para fazer mamografia,
autocuidados. Quando a mulher era de outro
Estado, que ela estava completamente sem
documentos, a gente entrava em contato
com o local onde ela nasceu, mandava o
dinheiro na conta do cartório da cidade.
Na época era fax, a gente mandava um fax,
mostrando que tinha depositado dinheiro na
conta, e fazia o registro.
A gente teve muitos problemas
com a polícia, mas também muito êxito,
inclusive com casos de policiais que foram
presos através de muitas denúncias. A
gente conseguiu deter um policial que
tinha o nome de Rambo, e que espancava
e matava, chegou a matar travestis, trans
e trabalhadoras sexuais. Todo mundo tinha
medo de denunciar e a APROSBA denunciou,
ele foi preso e expulso da polícia.
Organizamos e participamos de
vários eventos nacionais e internacionais.
Construímos a Rádio Zona, que foi
um projeto do Ponto de Cultura que,
infelizmente, não foi para frente. A gente
tinha muitas ideias boas para a Rádio, para
fazer rádio novela, ouvir nossas vozes, mas
infelizmente fomos boicotadas. Participamos
de parcerias com outras pessoas que tinham
trabalho com as profissionais do sexo,
participamos do Mulher-dama, que foi um
projeto da Silvana Olivieri para contar a
216
história das mulheres da Ladeira da Montanha
através de uma exposição de fotos que
ficou três meses em cartaz no MUNCAB,
em Salvador. No último dia da exposição,
a gente fez uma homenagem a Xangô, e
as mulheres desfilaram de roupa de orixás
PUTA LIVRO
no Centro Histórico. Em 2017, fizemos o
Simpósio “Gênero, Educação, Feminismos
e Prostituição: Diálogos Necessários”
com o apoio da UNEB, e no mesmo ano
participei também do Fórum Social Mundial
em Salvador, com direito a uma tenda para
expor nossos materiais informativos e nossa
FÁTIMA MEDEIROS
bandeira, a bandeira do movimento.
Depois de tanto conflito que eu tive
com a Prefeitura, um dia eles viram que a
APROSBA realmente fazia um belíssimo
trabalho, e eu fui reconhecida pela Secretaria
Municipal de Políticas para as Mulheres como
a Mulher 360, que fazia a diferença. Recebi
placa e tudo das mãos do então prefeito
ACM Neto.
O primeiro encontro de prostitutas
que participei foi no Ceará, o encontro de
prostitutas da APROCE. Quando eu desci no
aeroporto, estava com o endereço na mão
pedindo informações sobre o hotel onde
eu ia ficar hospedada, e tinha uma mulher
fumando, me observando. Ouviu que o
endereço que ela ia era igual ao meu, então
se aproximou de mim e disse: “Venha cá,
você não quer dividir um táxi comigo?”. A
gente conseguiu um táxi, e ela me perguntou:
“Mas você não é daqui não né? Você tem um
sotaque assim de baiano”. Eu falei que era de
Salvador, e ela: “Eu sou carioca. Mas desculpa
perguntar, você está indo a esse hotel para
passear?” Eu falei que não, que estava indo
para um evento. Ela quis saber qual evento.
Eu me arretei, disse que era um evento de
puta, porque eu era puta. Ela perguntou:
“Você é da APROSBA, da Bahia?” Eu disse:
“Sou, e você quem é?” “Gabriela Leite”.
Ah, mas foi um abraço muito gostoso que a
gente deu! A gente ia para o hotel meio dia,
o pessoal estava nos esperando para almoçar,
217
e quem disse que a gente foi para o hotel?
Em vez de chegar meio dia, chegamos meia
noite, as duas bêbadas, e o povo sem saber
onde a gente estava.
Eu era tão feliz quando estava na Rede
PUTA LIVRO
Brasileira de Prostitutas, e com Gabriela
viva. Eu e Lourdes já aprontamos muitas
aventuras, e com Leila, sua filha, também.
Uma das coisas engraçadas que eu fiz com
a Lourdes Barreto foi quando ela veio para
Salvador no I Encontro Nordeste-Sudeste
de Profissionais do Sexo, organizado pela
APROSBA em 2002. Ela tinha um namorado,
era muito apaixonada, mas ele não estava
FÁTIMA MEDEIROS
nem aí. Eu disse para ela fazer uns ciúmes
nele: “Quando você chegar em Belém, eu
vou mandar uma carta para você como se
fosse um namorado que você arrumou na
Bahia”. Eu consegui uma fotografia 3x4,
nesses lugares que revelam foto no centro
de Salvador, de um coroa bem bonito. Pedi
a um amigo, sr. Carlos, para escrever a carta,
ele tinha uma letra muito bonita. A carta
ficou muito bem escrita, de um homem
muito apaixonado. A gente deu o nome de
Carlos Magalhães, em referência ao político
ACM. Mandei a carta por SEDEX com a
fotografia, quando o namorado de Lourdes
pegou a carta no correio, não a entregou
para Lourdes, ele a leu todinha, e deu certo.
Ele levou Lourdes para o motel, depois que
ela saiu, eu fui a primeira pessoa para quem
ela ligou: “Mana, deu certo, tomei uma surra
agora, foi maravilhoso”. Eu sei que essa carta
foi parar no jornal Beijo da Rua.
De todos os problemas que a
APROSBA já enfrentou, a pandemia está
sendo o pior de todos porque, no começo,
muitas mulheres saíram daqui da Bahia,
de Salvador, e foram para outros estados,
mas na pandemia infelizmente para onde
elas iam estava difícil. E a APROSBA só
não ficou simplesmente só na luta porque
eu consegui fechar muitas parcerias para
arrecadar alimentos e material de higiene.
Com o Força Feminina, Olodum, Movimento
Libertação da Mulher, Redtrasex, algumas
218
casas de terreiro de candomblé, meus amigos
e pessoas anônimas. Deu para comprar
algumas cestas básicas, mas cestas básicas
só não dá, a gente precisa conseguir com
PUTA LIVRO
que essas mulheres paguem seus alugueis,
porque muitas agora estão em situação de
rua. Consegui fazer uma parceria com o Pop
Rua para algumas trabalhadoras sexuais que
moram na área do Centro Histórico, para que
elas pudessem ter alimentação, pelo menos
três refeições diárias: café, almoço e janta.
Mas está muito difícil. Eu acho que a pior de
FÁTIMA MEDEIROS
todas estamos vivendo agora.
Monique Prada fez muita diferença
nessa pandemia, ela mobilizou todos os
amigos, inclusive internacionais, para nos
ajudar, e através dela nós recebemos muitas
doações, seja em dinheiro, cestas básicas e
até pagamento de aluguel. Para além disso,
Monique fez muita diferença na minha vida,
pois foi por causa dela, através das conversas,
de assistir aos seus debates, que eu aprendi
a me impor e me sentir de fato uma puta
feminista. Eu sempre tive comportamentos e
atitudes feministas, mas não tinha noção.
Eu já pensei em desistir, muitas vezes eu
me sinto só na APROSBA, mas não desisto
porque sei que tem muita gente precisando
de mim. Diana Soares tem uma força enorme
e faz eu enxergar muitas coisas, esclarece,
tira dúvidas, me ajuda, e me mantém ativa
no movimento nacional. Na Bahia, eu conheci
Fernanda Priscila em um dos momentos em
que pensava em desistir, em 2016. Ela estava
fazendo pesquisa na Praça da Sé, e foi amor
à primeira vista, nunca mais soltei a mão dela,
me segurei nela. A Fernanda Priscila tem se
desdobrado para ajudar a APROSBA, faz os
projetos da APROSBA, da ANPROSEX. João
Pena e Gabriela Pinto também são pessoas
que tem contribuído como podem para as
trabalhadoras sexuais da Bahia. Essas pessoas
me motivam a permanecer, a continuar no
movimento de puta.
Nota: O texto aqui apresentado foi construído a partir da
219
transcrição e da organização de trechos de falas de Fátima
Medeiros registrados em entrevista concedida a João Pena
e a mim em janeiro de 2020, e em conversas durante o
mês de abril de 2021. Todas as informações e reflexões
expostas no corpo do texto são de autoria exclusiva de
Fátima Medeiros e compõem um importante relato de
PUTA LIVRO
quem vivenciou e fez frente às decisões impostas por um
projeto de intervenção urbana mundialmente reconhecido
pelo seu caráter excludente e violador de direitos, que foi o
Programa de Recuperação do Centro Histórico de Salvador
dos anos 1990, e que desde então tem se organizado
coletivamente na luta por direitos e melhores condições de
vida e de trabalho para todas as trabalhadoras sexuais.
FÁTIMA MEDEIROS
220
ANDRE ARAUJO
PUTA LIVRO
PUTA LIVRO
VILA MIMOSA: NA
CIDADE EM DISPUTA
PUTA LIVRO
A política de remoção de favelas que
vigorou no Rio de Janeiro até meados da
década de 70 deixou em seu rastro uma
série de incongruências decorrentes do
deslocamento compulsório de milhares de
pessoas. De acordo com o estudo realizado
por Lícia do Prado Valladares à época das
remoções, a favela era tratada como “uma
questão puramente habitacional e do
uso do solo, sem levar em consideração
as características de sua população”
(VALLADARES, 1978, p. 44). Esta era
uma das concepções que legitimavam a
identificação de certos usos e modos de
vida no espaço urbano como sendo um
“problema público”, pois era a modernização
deste espaço que estava na pauta e na
justificativa dos sucessivos governos do
Estado da Guanabara, especialmente nas
administrações de Carlos Lacerda (1960-
19651), Negrão de Lima (1966-1970) e Chagas
Freitas (1970-1974). Parte dos conflitos
surgidos com essa política deveria ser
administrado pelo Estado, uma vez que a
“remoção” previa a assunção, pelo Estado,
dos custos da mudança e da acomodação dos
habitantes das favelas erradicadas para os
conjuntos habitacionais erguidos em bairros
periféricos.
Ao contrário do que ocorreu com os
habitantes das favelas e das regiões atingidas
pela política de remoção, o caso narrado aqui
é resultado de uma política indenizatória que
1
Política essa federalizada pelos militares após o golpe de
1964. Ver GONÇALVES & AMOROSO, 2014. file:///tmp/468-
Texto%20do%20artigo-486-1-10-20150708.pdf
223
envolveu, entre outros atores, prostitutas
e cafetinas da Vila Mimosa, um conhecido
lugar da prostituição do Rio, cujas casas
foram as últimas a serem desapropriadas
pela Prefeitura, em 1995, para a conclusão do
Projeto Teleporto, que finalizaria o processo de
PUTA LIVRO
reurbanização previsto para aquele bairro2.
Este caso, portanto, é bastante
relevante e emblemático no debate sobre as
lutas pelo direito à cidade, pois a indenização
consiste em um mecanismo que realoca a
responsabilidade sobre os deslocamentos e
reassentamentos, individuais ou coletivos,
SORAYA SIMÕES
isentando o Estado da mediação entre os
deslocados e os habitantes das demais
localidades, deixando aos atores afetados a
administração dos conflitos surgidos com seu
deslocamento e acomodação.
No caso da Vila Mimosa, a mudança das
cafetinas e prostitutas chama a atenção por
ter sido um deslocamento coletivo de um
grupo que tomou a decisão de “reinventar
a zona” em outro endereço, mantendo, com
isso, seus negócios e um lugar de destino
diário para milhares de mulheres prostitutas e
seus clientes. A visibilidade que este episódio
teve através da mídia ultrapassou não só as
fronteiras do Rio de Janeiro, mas também
do país, merecendo destaque na primeira
página do jornal francês Le Monde, no dia
02 de janeiro de 1996. Afinal, depois de
quase um século de existência, a prostituição
da chamada Zona do Mangue3 chegava ao
fim com a demolição da Vila Mimosa que,
desde 1979, simbolizava a resistência da
prostituição naquele bairro, tido até então
como “área natural” do baixo meretrício no
Rio.
Não foi por acaso que este grupo
de pessoas indenizadas no processo de
2
Ver SIMÕES, 2003 e 2010a.
3
O nome Mangue é considerado sinônimo de “baixo
meretrício” pelo dicionário Aurélio, demonstrando assim o
reconhecimento e importância desta zona na história da ex-
capital federal.
224
reurbanização decidiu investir o dinheiro
na construção de uma nova zona. Vários
foram os motivos desta empreitada, desde
a plausibilidade do investimento até a
manutenção de um estilo de vida e trabalho,
PUTA LIVRO
com todas as vantagens que a construção da
chamada Vila Mimosa II implicaria para estes
atores, pois a continuidade nominal remetia à
antiga Vila demolida, que havia sido palco de
uma das primeiras associações de prostitutas
do Brasil, onde a luta pelo reconhecimento
e direitos da categoria, no país, ganhou
expressão internacional4. Além disso, esta
SORAYA SIMÕES
continuidade ganhou a conotação de um
upgrade sugerido pela graduação do título
Vila Mimosa II.
Afirmações como “deixamos de ser
zona, somos Vila Mimosa” e “nossa intenção
é mudar o conceito de zona” tornavam
manifesto um projeto que apontava, entre
outras coisas, para a organização de uma
categoria, para a promoção de um lugar e
para o incremento da divisão do trabalho.
Afinal, “mudar o conceito de zona” passava
pela construção de uma ideia de ordem – ao
considerarmos o campo semântico onde esta
palavra se insere – comumente desvinculada
da representação desta atividade4. “Vida
vã”, “vida fácil” e “vagabundagem”, termos
incompatíveis com as ideias de ordem,
disciplina e responsabilidade, são expressões
que norteiam o esforço então empreendido
para “mudar o conceito de zona”, esforço
este principalmente realizado pelos
chamados “donos-de-casa6”, ou seja, pelos
proprietários de estabelecimentos da Vila
4
Ver SIMÕES, 2003, 2010a e 2010b
5
Vale ressaltar que, no Brasil, a palavra “zona” (“zona
de prostituição”) é também conotada pela noção de
“bagunça”, o que não ocorre com o uso da palavra “zona”
em outras línguas.
6
Normalmente a palavra cafetina deixava de ser utilizada
quando o interlocutor era alguém de fora da zona.
esta palavra implica a ideia de lenocínio, tornando-a
estigmatizada. Por isso o uso de “dono” ou “dona de casa”.
Mimosa. Pelas especificidades desse lugar,
225
que também se expressam pela existência
de categorias como “dono-de-casa”, são
sugeridas as diferenciações existentes nas
relações de trabalho e, portanto, de poder
PUTA LIVRO
entre os atores da Vila Mimosa – prostitutas,
clientes, gerentes, donas e donos de casa,
vendedores ambulantes e prestadores de
serviço –, sobretudo se as relacionarmos
com as que existem em outras áreas de
prostituição da cidade também chamadas de
“baixo meretrício7”.
Esta classificação (“baixo meretrício”)
por si só já impõe a existência de uma
SORAYA SIMÕES
hierarquia – ou distinção de classe – na
prostituição. O que a pesquisa etnográfica
permitiu compreender é que, com a
mudança do grupo indenizado, novos atores
passaram a atuar nesse novo lugar, também
chamado Vila Mimosa, diversificando o
aparato utilizado na construção de uma
ambiência propícia aos jogos eróticos e às
perspectivas relacionadas à promoção do
lugar. Muitas mulheres que chegaram ao Rio
nas décadas de 40 e 50 e foram trabalhar
na Zona do Mangue, como prostitutas ou
cafetinas, passaram a conviver, na mesma
zona, com donos de termas e outros agentes
do mercado sexual. Todas essas diferentes
trajetórias geraram conflitos na construção
da imagem de uma “nova Vila Mimosa” e,
evidentemente, na convivência desses atores.
A Vila Mimosa II fica na área central
do Rio, no bairro da Praça da Bandeira, a
cerca de um quilômetro do antigo ponto.
Se tirarmos partido da ideia de tropismo,
veremos que tal escolha foi, em grande
parte, determinada pela acessibilidade do
local – próximo a estações de trem e metrô
e pontos de diversas linhas de ônibus – e
7
“Baixo meretrício” dá nome à prostituição acessível
à população de baixa renda, concentrada nos centros
históricos das cidades brasileiras, em ruas de bairros
periféricos etc.
pela proximidade com o antigo endereço,
226
bastante conhecido pela população carioca.
Expressões como “aqui estamos ilhados”,
“não incomodamos a sociedade lá fora”
e “não estamos no fim do mundo” eram
PUTA LIVRO
recorrentes nos depoimentos que ouvia
das pessoas na Vila Mimosa para dizer que
ali estavam protegidas e, também, bem
localizadas.
O receio de incomodar e serem
incomodadas também levou as donas-de-casa
indenizadas da Vila Mimosa a registrarem
em cartório o estatuto social da Associação
SORAYA SIMÕES
dos Moradores e Amigos do Condomínio
da Vila Mimosa II (AMOCAVIM), tão logo
ocorreu a mudança. Com isso, surgia uma
nova instância de controle e manutenção da
zona, onde ainda pudessem ser formalmente
negociados os limites para os usos e
horários dos espaços partilhados com sua
circunvizinhança e, também, exercido o
controle sobre pesquisas, reportagens e
qualquer outro tipo de trabalho que tivesse a
Vila e seus atores como “objeto”.
A AMOCAVIM é um espaço privilegiado
na negociação da ordem e dos sentidos
que a Vila Mimosa pode ter na construção
de uma opinião pública. No início dos
anos 2000, foi instalado, ali, um posto de
atendimento médico8 e cursos de informática,
então oferecidos na sede da Associação
para todos os habitantes da região e,
claro, frequentadores da Vila Mimosa,
promovendo um intercâmbio que ajudou
a difundir uma reputação outra do lugar –
um lugar com serviços de saúde e voltados
para a qualificação da mão-de-obra. Esta
talvez fosse uma das maiores preocupações
dos associados. Pelos cartazes fixados nos
corredores e dentro dos estabelecimentos
8
Esta novidade dividiu opiniões por representar a chamada
“discriminação positiva”. Muitas mulheres na Vila disseram
ser melhor pleitear, via Associação, a flexibilização dos
horários de atendimento nos postos de saúde para o
atendimento a trabalhadores noturnos.
227
eram feitas convocações para as reuniões,
convites para palestras sobre saúde e
prevenção de doenças sexualmente
transmissíveis e, sobretudo, publicizados os
deveres de prostitutas e donos-de-casa, tais
PUTA LIVRO
como: não transitar com roupas sumárias nas
ruas adjacentes e não permitir o trabalho de
menores de idade nas casas da Vila Mimosa.
Cada uma dessas ações foi surgindo
no decurso da convivência com os antigos
moradores da região, contrários ao
funcionamento da zona. A necessidade
de se estabelecer limites e difundir uma
imagem onde ficasse clara a existência de
SORAYA SIMÕES
uma organização formalizada tornou-se
urgente. Quando iniciei meu trabalho de
campo, em 2000, fui informada dos desejos
de construção de um site para divulgação do
lugar e das mudanças e esforços feitos para
a melhoria da segurança de prostitutas e
clientes, de investimentos em infraestrutura
e articulação com órgãos governamentais e
não-governamentais. Em sua terceira versão,
o site da Vila Mimosa passou a divulgar links
também com informações sobre o Mangue9,
fotos de mulheres e da zona antiga e nova,
mapa de localização, anúncios, dados sobre
os números de acesso do site, espaço para
anunciantes e uma tela “pop up” com o
ícone da campanha Sem-vergonha, garota:
você tem profissão, desenvolvida pelo
Ministério da Saúde junto à Rede Brasileira
de Prostitutas. “O point mais querido do
Rio” e “O cartão postal secreto do Rio”,
subtítulos da primeira e terceira versão do
site, denotavam a identificação do potencial
turístico pelos antigos e novos empresários
da Vila Mimosa, que a consideravam uma
importante “área de lazer” para adultos. Tudo
isto, convém dizer, resultava de um processo
9
Como era conhecida a região onde se concentravam as
casas de prostituição nas margens do canal homônimo, na
Cidade Nova. Ver também, especialmente, LEITE, 1993 e
SIMÕES, BLANCHETTE, SILVA e BRÊTAS, 2021.
228
iniciado com as indenizações e assumido como
um projeto de “mudança do conceito de zona”
elaborado com a participação de novos e
antigos atores, particularmente donas e donos-
de-casa. Para estes, a Vila ascendeu, passando
de “baixo meretrício” para um “point”, uma
PUTA LIVRO
“área de lazer” ou, ainda, o “cartão postal
secreto” do Rio de Janeiro.
Se anteriormente os moradores e
comerciantes daquele pedaço da Praça
da Bandeira demonstravam uma enorme
insatisfação com a presença das prostitutas e
frequentadores da Vila Mimosa, aos poucos
SORAYA SIMÕES
foram todos percebendo que esta atividade
se tornou determinante para a revitalização da
região. Durante a reforma do imóvel comprado
para abrigar as mulheres provenientes da
antiga Vila Mimosa, centenas de prostitutas
se revezavam em apenas doze quartos
improvisados e, nos dias de maior movimento,
muitas faziam programas no velho Hotel
Canário, localizado na rua adjacente. O vai-e-
vem das mulheres e de seus clientes reaqueceu
o comércio local, fazendo com que os bares
começassem a ter lucros sem precedentes e o
hotel, antes praticamente desativado, voltasse
a ter seus quartos ocupados diariamente.
Se o reaquecimento do comércio
imediatamente causou uma cisão entre os
interesses de moradores e comerciantes, pouco
tempo depois aqueles também tiraram proveito
da situação: muitos moradores passaram a
organizar suas casas para cuidarem dos filhos
das trabalhadoras da Vila, oferecerem serviços
de lavanderia para os estabelecimentos, alugar
quartos para descanso do trabalho, oferecer
aulas de reforço para concursos públicos10
e prestar pequenos serviços em obras na
10
Sobretudo mulheres moradores nas ruas vizinhas
mantinham placas, em suas portas e janelas, informando
a oferta do serviço de “explicadoras”. Muitas prostitutas
comentavam manterem-se informadas sobre as datas dos
concursos graças à sua clientela, formada, também, por
militares de várias corporações, técnicos de empresas
públicas etc.
229
Vila Mimosa. Há ainda os que passaram a
vender comida e roupas íntimas no interior
da zona, e outros que, enfim, se tornaram
donos-de-casa na Vila Mimosa. Momentos
de sociabilidade, portanto, eram relevantes
PUTA LIVRO
para a consolidação desses laços, com
destaque para comemoração de aniversários
de prostitutas, donos-de-casa, funcionários
da Associação e mesmo moradores da
região realizados no interior das casas ou nos
espaços comuns da Vila Mimosa.
Passados alguns anos desde o início da
pesquisa iniciada em 2000, foi possível ver o
SORAYA SIMÕES
sucesso de todo esse trabalho diuturno. Em
meados daquela década, a Vila concentrava
setenta estabelecimentos, inúmeras
barraquinhas de comida e bebida e uma
ampla rede de comércio que se espalhava por
toda a rua, num raio de mais ou menos cem
metros, em torno do imóvel onde a então
chamada “Vila mãe” havia começado. Além
disso dois novos galpões estavam passando
por uma reforma para abrigar mais dezesseis
bares, com uma média de cinco quartos em
cada.
As possibilidades de consecução de
renda proporcionadas pela Vila Mimosa
auxiliaram na redefinição de limites e regras
de convivência entre os atores da Vila e
outros que já moravam na região. O aspecto
lucrativo influiu na mediação e atuou como
promotor na diversificação de posturas
referentes à presença da prostituição naquela
área, ao possibilitar uma densa interação
face-a-face entre os atores, personalizando
as relações (dando densidade aos dramas) e,
consequentemente, abrindo novos espaços
para a administração dos conflitos.
Em outras palavras, podemos dizer
que a partir de um fato, neste caso
configurado pelo deslocamento de um
grupo, os inúmeros conflitos que surgiram
ou emergiram impuseram a necessidade de
criação de espaços onde estes pudessem ser
administrados. Nas interações cotidianas, os
laços criados pelas relações de trabalho ou
vizinhança, por exemplo, geram expectativas
230
quanto ao cumprimento de regras que são,
por definição, mediadoras do conflito.
Creio ser importante considerar ainda
algumas das observações feitas por Schutz
PUTA LIVRO
sobre os meios sociais de orientação e
interpretação. O autor observa que as
expressões tidas como “essencialmente
subjetivas” têm um significado objetivo na
medida em que mostram uma certa relação
com a pessoa que as utiliza. Ou seja, uma
vez que tenhamos localizado essa pessoa no
espaço, ou no contexto, tipificando-a, então
dizemos que essas expressões subjetivas
SORAYA SIMÕES
ocasionais têm significado objetivo (SCHUTZ,
1970, p. 108) e, ao tipificar, definimos nossas
expectativas e, com elas, criamos os limites
da aceitação e do embate ou da intolerância.
São muitos os comportamentos,
atitudes, situações e ambiências que
ilustram aquilo que se espera de categorias
ocupacionais e de seus lugares de
atuação, com seus respectivos horários.
Tais expectativas geram o controle sobre
a emissão de significados durante uma
interação, controle este que se realiza
principalmente através da influência sobre
a definição da situação que os interagentes
venham a formular. Nestas interações
face-a-face, nós nos influenciamos de
maneira recíproca com a emissão de
sinais variados, deliberadamente ou não,
realizando aquilo que Simmel identificou
como sendo uma “ação mutuamente
determinada” (SIMMEL, 1983, p. 23). Os
estereótipos que se associam a qualquer
atividade fazem com que expressões e
expectativas se tornem possíveis bem como
as lutas que visam promover ou restituir
as virtualidades positivas dos sujeitos.
As interações, portanto, confirmam, na
prática, a conformidade típica dos sujeitos
e das situações por eles definidas e
experimentadas.
Se a vida social é, então, uma constante
negociação simbólica envolvendo os mais
231
díspares interesses e motivos, materiais e
não-materiais, o significado do mundo está
sempre, em alguma medida, em questão.
De fato, os conflitos gerados por uma
mudança, num lugar e num tempo específico,
PUTA LIVRO
envolvendo pessoas, grupos ou categorias
específicas, colocam para todos os envolvidos
questões não partilhadas ou pensadas por
quem, naquele momento, não faz parte ou
desconhece a situação. Esse é o drama que
ocasiona as lutas sociais e exige a ampliação
da mobilização. Esse é também o drama que
se resume, desde Henri Lefebvre, na ideia
de direito à cidade. Neste contexto, cada
SORAYA SIMÕES
um dos envolvidos, direta ou indiretamente,
passa a formular uma crítica que incide como
uma nova luz sobre a convivência de grupos
sociais distintos e suas razões de existir e
lutar por reconhecimento e direitos.
Um eterno recomeço
11
TURNER, 1968.
12
cf. ROLNIK (s/d).
232
se fez presente, semanas depois, em uma
audiência pública realizada na sexta-feira, dia
12 de março de 2020, na ALERJ – a última
audiência realizada, na cidade já praticamente
fechada pelo lockdown. Ao final da audiência,
PUTA LIVRO
um Termo de Ajustamento de Conduta foi
firmado para que a Vila Mimosa pudesse
reabrir imediatamente, com o compromisso
de adequação das instalações elétricas,
que agora seriam observadas de perto pela
equipe técnica destacada para acompanhar
o investimento a ser feito, com vista às
melhorias indicadas13.
Ao final da audiência, por volta das
SORAYA SIMÕES
16h, o ônibus cor de rosa-choque que levara
dezenas de mulheres à ALERJ retornava à
Vila Mimosa. Nesse mesmo dia, a cidade
já começava a fechar suas portas. Era o
início de uma quarentena que nos enchia de
incertezas. Na sexta-feira seguinte, dia 19
de março, a Vila Mimosa voltaria a fechar.
Agora, por um outro motivo que novamente
ressaltava a responsabilidade dos associados
e frequentadores do lugar face a um desafio,
também presente no histórico de organização
das lutas populares (em prol da vida, da
sobrevivência e contra os estigmas), em
particular das prostitutas: o combate a um
vírus. E essa não é uma outra história...
Referências
13
O desembargador Siro Darlan, presente na audiência,
lembrou que a ALERJ, o Tribunal de Justiça e outras
instituições do legislativo e do judiciário também se
encontravam burlando normas que a CPI dos Incêndios, com
o apoio do Corpo de Bombeiros, exigiam da Associação
dos Moradores e Amigos do Condomínio Vila Mimosa –
AMOCAVIM.
LEITE, Juçara Luzia. A República do Mangue: Controle
233
Policial e Prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974).
Dissertação de mestrado em História Moderna e
Contemporânea apresentada na Universidade Federal
Fluminense (mimeo.), 1993.
PUTA LIVRO
2006.
SORAYA SIMÕES
Editores, Rio de Janeiro, 1970, p. 319.
PUTATIVISMO,
PUTA LIVRO
FEMINISMO E
RESISTÊNCIA DE
PROSTITUTAS NAS
REDES E NAS RUAS
1
Versão atualizada de trabalho apresentado no 11º.
Seminário Internacional Fazendo Gênero e 13º Mundo de
Mulheres, realizado na cidade de Florianópolis/SC, em 2017
(SOUSA, 2017).
que recai a essa ocupação e às pessoas que
235
exercem trabalho sexual. “O entendimento
desse valor negativo (do estigma) como
um erro e uma injustiça social possibilitaria
a positivação da experiência própria, da
PUTA LIVRO
identidade e da reivindicação. A autonomia
se imagina, assim, como base axiológica da
luta” (OLIVAR, 2013, p.288).
A luta política de prostitutas por
autonomia e representação não é recente
na história. Todavia, montar o quebra-
cabeça da historicidade dos movimentos
de organização de trabalhadoras/es do
sexo consiste em árdua tarefa, já que seus
2
O termo outsiders é utilizado “para designar aquelas
pessoas que são consideradas desviantes por outras,
situando-se por isso fora do círculo dos membros ‘normais’
do grupo. Mas o termo contém um segundo significado,
cuja análise leva a um outro importante conjunto de
problemas sociais: ‘outsiders’, do ponto de vista da pessoa
rotulada de desviante, podem ser aquelas que fazem
as regras de cuja violação ela foi considerada culpada”
(BECKER, 2008, p.27).
sua pesquisa de mestrado, constatou que “há
236
pouca menção ao protagonismo do movimento
organizado de trabalhadoras sexuais no processo
de redemocratização brasileira”.
Apesar desta lacuna, o trabalho com
PUTA LIVRO
fontes orais, em pesquisas e demais materiais
autorais (LEITE, 1992; 2009; MOIRA, 2016;
NEIRA, 2012; PRADA, 2018) produzidos pelas
próprias prostitutas, desvela que os movimentos
de trabalhadoras sexuais foram tomando forma,
no Brasil, a partir da década de 1970, por meio
da união e solidariedade entre prostitutas e
travestis, que prestavam serviços sexuais em
3
Prostituta, militante e precursora do movimento de
prostitutas no Brasil. Fundou a Rede Brasileira de
Prostitutas, criou a ONG Davida e a grife Daspu. Exerceu
prostituição na Boca do Lixo (em São Paulo) e na Vila
Mimosa (Rio de Janeiro) e em outros lugares do país. Autora
dos livros “Eu, Mulher da vida” e “Filha, mãe, avó e puta”.
Faleceu em 2013.
maneira mais permanente?’ ‘Por que a gente
237
não se organiza contra a violência policial?’
Comecei a ver nisso um trabalho político
seríssimo, concreto, que faz parte do dia-a-
dia da prostituição” (LEITE, 1992, p.86).
PUTA LIVRO
Com essas indagações em mente,
Gabriela Leite e Lourdes Barreto4 uniram-
se a outras trabalhadoras do sexo e, em
decorrência do I Encontro Nacional de
Prostitutas realizado em 1987 no Rio
de Janeiro, fundam a Rede Brasileira de
Prostitutas. Essa rede agrega associações de
prostitutas que partilham princípios comuns,
4
Prostituta, militante e precursora do movimento de
prostitutas, ao lado de Gabriela Leite, fundou a Rede
Brasileira de Prostitutas. É também fundadora do Grupo
de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará – GEMPAC.
Reconhecida por seu notório saber no campo das lutas em
defesa dos direitos das mulheres, participou do Conselho
Nacional dos Direitos da Mulher.
238
mulheres foram criando associações e redes
da categoria, ocupando novos espaços
e tecendo novas demandas, as quais se
diversificaram em função da pluralidade de
contextos e sujeitos em interação. Para além
PUTA LIVRO
do enfoque trabalhista, as reivindicações se
ampliam e passam a incluir também pautas
voltadas a afirmação da prostituição como
direito sexual (OLIVAR, 2007, 2010).
Apesar da predominância do enfoque
trabalhista, e da só recente enunciação dos
direitos sexuais, uma discursividade alternativa
ao trabalho, de alguma maneira, esteve
239
moral vigente para serem aceitas” (SOUSA,
2015, p.165). A face político-educativa
presente nas práticas desenvolvidas por
trabalhadoras do sexo desvela-as como
PUTA LIVRO
mulheres questionadoras do instituído e em
busca por sua emancipação. Ciente de que
as representações sociais sobre a prostituta
e a prostituição se assentam em estereótipos
e, historicamente, são acionadas para
reforçar sua marginalização e exclusão social,
prostitutas vêm reivindicando o seu lugar de
fala, ou seja, o direito de falar por si e de ser
Construindo-se putAtivistas
e feministas
240
pela “hegemonia de determinada perspectiva
feminista no interior do setor público”,
notadamente, a perspectiva abolicionista.
Mas como bem ressalta a pesquisadora,
PUTA LIVRO
a presença de discursos hegemônicos, no
âmbito do movimento feminista, não implica
em homogeneidade, mas sim na coexistência
com “outras visões e ações que disputam
significado dentro das arenas de debate
sobre prostituição” (TAVARES, 2015, s/p).
Ratificando o entendimento de Tavares
(2015), Gabriela Leite comenta, em entrevista
PUTA LIVRO
da condição de puta. O putafeminismo nasce,
portanto, do encontro de mulheres putas e
pobres, muitas delas pretas, que afirmam a
sua autonomia.
5
Prostituta, militante, feminista, co-editora do site Mundo
Invisível, integrante do Grupo Assessor da Sociedade Civil
da ONU Mulheres, colunista do Coletivo Mídia Ninja e
autora do livro “Putafeminsita”.
levou em consideração a experiência de
242
muitas mulheres.
Ela não falou das necessidades das mulheres
sem homem, sem filhos, sem lar, ignorou a
existência de todas as mulheres não brancas
PUTA LIVRO
e das brancas pobres, e não disse aos leitores
se era mais gratificante ser empregada, babá,
operária, secretária ou uma prostituta do que
ser dona de casa da classe abastada (HOOKS,
2015, p.194).
6
Prostituta militante, travesti, é colunista do Coletivo Mídia
Ninja e autora do livro ‘E se eu fosse pura’.
243
epistemes vão sendo criadas, consolidando
um putAtivismo que converte as redes sociais
em ferramentas de autorreconhecimento e
de reconhecimento social “da experiência
da prostituição como politicamente
legítima e constitutiva das lutas feministas”
PUTA LIVRO
(CARVALHO; CARRARA, 2015, p.394).
O fenômeno da internet e das redes
sociais abre um novo cenário, onde a
representação da prostituição dá lugar
a novas narrativas em primeira pessoa,
as quais se contrapõem à imagem
estigmatizada da prostituta como vítima,
7
Projeto de mídia livre < https://mundoinvisivel.org/> que
trata de temas ligados ao trabalho sexual ao redor do mundo.
244
educativo importante na formação política de
Monique Prada, seja por possibilitar acesso a
textos de outras trabalhadoras sexuais, seja
como ferramenta para facilitar a comunicação
e articulação entre essas mulheres.
PUTA LIVRO
Também pela internet soube da existência da
Ammar (Associação de Mulheres Meretrizes da
Argentina) e conheci o trabalho maravilhoso
de Georgina Orellano, sua secretária geral,
que vim a conhecer pessoalmente anos depois,
em Montevidéu. Tive acesso a textos de
trabalhadoras sexuais com Montse Neira, Missia
Gira Grant, Pye Jakobsoson, Morgane Merteuil
8
Prostituta militante, licenciada em Ciências Políticas
e Administração, é autora do livro ‘Una mala mujer: la
prostitución al descubierto’.
reivindicações universais e na existência de
245
um sujeito ‘mulher’ indiferenciado (JULIANO,
2016); as ressonâncias do putafeminismo têm
se ampliado e ganhado visibilidade, por meio
do PutAtivismo digital e do planejamento
PUTA LIVRO
e realização de ações culturais e educativas
(Puta dei, desfiles de moda, Miss Prostituta,
peças de teatro, jornal Beijo da Rua, Corrida
da Calcinha, etc).
Desafia-se, assim, o feminismo
desde “dentro” (PISCITELLI, 2016, p.84),
o que possibilita o questionamento de
representações preconcebidas e cristalizadas
9
Uma das frases estampadas nas camisetas produzidas pela
grife Daspu.
246
antes representa a possibilidade de criar
múltiplos caminhos, de construir “novos
modos de expressão subjetiva, política e
social” (RAGO, 2013). Ir para qualquer lugar
requer a ousadia de ocupar novos espaços,
PUTA LIVRO
tecer novas epistemes, leituras, olhares,
saberes e compreensões sobre as condições
existenciais vivenciadas pelas mulheres e,
sobretudo, de forjar coletivamente novas
práticas de liberdade.
PUTA LIVRO
JULIANO, Dolores. Feminismo y sectores marginales.
Logros y retrocesos de un diálogo difícil. Cadernos Pagu,
Campinas, n. 47, e16474, 2016.
248
cada dia”: participação política, dinâmicas de socialização e
educação em famílias de putas. 2021. 257f. Tese (Doutorado
em Educação e Contemporaneidade) – Universidade
Estadual da Bahia, Salvador, 2021.
PUTA LIVRO
cenográfica da prostituição carioca. Niterói: EdUFF, 2010.
PUTA LIVRO
PUTA LIVRO
COMÉRCIO SEXUAL
NA CIDADE OLÍMPICA:
Prostituição,
Policiamento e
Exploração Sexual e
Midiática durante os
Jogos Olímpicos no Rio
de Janeiro, 2016
Introdução
PUTA LIVRO
mobilizar para uma investigação semelhante
durante os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos
de 2016, no Rio de Janeiro. Mobilizamos
muitos dos mesmos pesquisadores, agentes
políticos, e instituições que contribuiram
para a pesquisa anterior e, desta vez,
também colaboramos com 16 pesquisadorxs
trabalhadorxs sexuais para construir um
255
pontos de comércio sexual na Barra da Tijuca
(particularmente em meia-dúzia de lugares
tradicionalmente associados com o turismo
sexual) e algumas de nossas pesquisadoras/
trabalhadoras sexuais investigaram os circúitos
PUTA LIVRO
dos serviços de “escort” on-line.
Nossas análises de parte do enorme
volume de dados colecionado durante essas
incursões são apresentadas neste volume. Os
participantes do projeto fotográfico fizeram a
curadoria de milhares de imagens, gravações, e
narrativas de texto para a exposição intitulada,
O que você não vê: a prostituição através de
1
Em termos dos lucros reportados pelas trabalhadoras
sexuais e pelos pontos de prostituição, confirmados
com nossas próprias contagens de números de clientes,
programas, e preços do programa.
sexual do Rio perdeu seus clientes regulares,
256
que costumavam ficar em casa durante os
eventos e evitavam o Centro, e, a Vila Mimosa,
em particular. Essas duas regiões contêm a
maior parte dos pontos de comércio sexual na
PUTA LIVRO
cidade e atendem, principalmente, aos homens
que trabalham no Centro e suas adjacências
durante os dias da semana.
A queda nas Olimpíadas, no entanto, foi
contraposta a um movimento “normal” já baixo
provocado pela crise econômica e política do
Brasil, que explodiu durante o período 2014-
2016. Nos 12 meses que antecederam as
Olimpíadas, o movimento nos locais de sexo
2
Encontramos zero impacto dos Jogos Paraolímpicos nos
mercados sexuais do Rio de Janeiro.
257
Um fator que contribuiu para que
a diminuição do comércio sexual fosse
menor nas Olimpíadas do que na Copa
do Mundo foi o fato de que houve menos
feriados municipais durante os Jogos do que
PUTA LIVRO
durante o evento da FIFA. Em 2014, esses
impactaram desproporcionalmente na maior
concentração de locais de trabalho sexual na
cidade: Downtown e Vila Mimosa. O comércio
naquelas regiões do Rio estava quase
totalmente fechado durante os feriados da
Copa, e os locais de sexo não eram exceção.
Com menor número de feriados municipais
PUTA LIVRO
em Copacabana durante a Copa do Mundo,
diminuindo-se em quase todos os outros
lugares do Rio, ele continuou mais ou menos
igualmente distribuído pela cidade durante as
Olimpíadas, com poucos locais demonstrando
grandes aumentos ou quedas no número
de clientes. As duas exceções a essa regra
PUTA LIVRO
de turistas estrangeiros mais equilibrada em
termos de gênero, uma observação que foi
confirmada por nossas observações durante o
trabalho de campo.
As Olimpíadas pareciam gerar maior
movimento em mercados de sexo não
comerciais em toda a cidade, particularmente
em boates, clubes, bares, e nas festas
3
Uma forma de prostituição onde troca-se sexo por prazer e
afeto mútuo, mas onde um dos parceiros recebe benefícios
materiais (e até financeiros) significativos, geralmente não
negociados antes do ato sexual. Veja-se Bernstein (2007)
e DaSilva & Blanchette (2005) para mais discussões sobre
esse fenômeno, particularmente o conceito de “girlfriend
experience”.
menos de uma dúzia de profissionais do
260
sexo estrangeiras, todas oriundas de outros
países sul-americanos, e talvez três dúzias de
trabalhadoras sexuais que vieram de outros
estados brasileiros. Lembre-se de que esses
números foram encontrados no total, no
PUTA LIVRO
curso de centenas de visitas aos maiores e
mais populares pontos de sexo comercial da
cidade. A maioria das mulheres que vieram
de fora do Rio apresentou-se bastante
decepcionada com a quantidade de dinheiro
que ganharam nos Jogos. Quase nenhuma
alcançou suas metas financeiras. Várias
4
O tratado internacional da ONU que define “tráfico de
pessoas” como conceito.
5
É mister notar, neste contexto, que Dr. Thaddeus
Blanchette do OP é membro do referido Comitê.
261
Niterói, em 2014, na qual estupros e roubos
foram cometidos por policiais, vitimizando
trabalhadoras sexuais durante as operações
pré-Copa6. Houve uma exceção a essa regra
geral: as profissionais do sexo perto do
PUTA LIVRO
Estádio do Maracanã, onde foram realizadas
as cerimônias de abertura e encerramento
dos Jogos, relataram terem sido expulsas
pela polícia da avenida principal que leva ao
Estádio. Todavia, essa operação parece ter
sido uma ação mais geralizada que visava o
comércio alternativo e ambulante de todos os
tipos – não era direcionada especificamente
6
Oficio do Observatório da Prostituição detalhando
o ocorrido: http://umbeijoparagabriela.com.br/index.
php/2014/05/30/violacoes-graves-contra-prostitutas-em-
niteroi-demandam-atencao-e-acao-urgente/
262
de Menores da Fundação para a Infância e
a Adolescência (FIA-RJ), compartilhando os
impactos negativos das operações pré-Copa
sobre as populações envolvidas no comércio
sexual no Rio e a falta de preocupação
visível das instâncias de segurança pública
PUTA LIVRO
sobre a exploração de mão de obra infantil
em todos os setores da economia fora
o comércio sexual. Em 2014, embora
nenhuma criança ou adolescente tenha sido
encontrado vendendo sexo no Rio em função
da Copa do Mundo, os pesquisadores do
OP documentaram o enorme emprego de
7
Veja-se https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/
noticia/2014-07/anistia-internacional-lanca-acao-em-defesa-
de-prostitutas-agredidas e https://mundoinvisivel.org/jean-
wyllys-por-que-participar-do-puta-dei-em-niteroi/
sexual nos dois anos antes das Olimpíadas.
263
Como resultado, em 2016, muitos
funcionários e burocratas dessas instituições
do Estado e seus parceiros na sociedade civil
falavam muito mais sobre a exploração em si
– particularmente a exploração do trabalho
PUTA LIVRO
infantil, da qual documentamos centenas de
casos durante a Copa – evitando o cultivo
de pânicos sexuais e a congruência simplista
de que “mega-eventos = trabalho sexual =
exploração sexual = pedofilia”. Queremos
sentir que nossos esforços entre 2014 e
2016, nos campos político e informativo-
264
embora o comérico de sexo não tenha sido
alvo direto das estratégias de segurança
pública dos Jogos Olímpicos de 2016, isso
não significa que atividades policiais punitivas
e violentas, frequentemente associadas à
PUTA LIVRO
aplicação da lei no Brasil, tenham, de todo,
cessado. Também não significa que houve
uma organização mais ética das Olimpíadas,
em termos mais gerais. Por exemplo; são
bem conhecidas as “campanhas de limpeza
urbana” que costumam ser associadas a
megaeventos esportivos, e, as associadas
8
Veja: https://rioonwatch.org.br/?p=11633
discutir diferentes formas de exploração
265
encontradas e não encontradas em nossos
campos. Um dos grandes problemas que
percebemos em nosso trabalho é justamente
a falta de definição de “exploração sexual”
PUTA LIVRO
no código penal brasileiro, que, conforme
temos ressaltado em outros lugares
(BLANCHETTE, MITCHELL & MURRAY,
2017), muitas vezes é utilizada para reprimir
e violentar os direitos das prostitutas.
Frente essa indefinição, e complexidades
que percebemos no campo de como o
termo é empregado, usaremos a seguinte
definição, empregada pela Rede Brasileira
PUTA LIVRO
deixado o trabalho sexual nos dois anos
após a Copa do Mundo FIFA 2014, mas que
voltaram a fazê-lo por vontade própria nas
semanas antes das Olimpíadas, na esperança
de ganhar muito dinheiro. Em todos esses
casos, suas esperanças foram frustradas,
segundo os relatos que coletamos e as
267
Violências Revelados pelo Trabalho
de Campo Etnográfico
sobre“Exploração Sexual Infantil”
PUTA LIVRO
A “exploração sexual infantil” é um
conceito ainda mais escorregadio do que o
de “exploração sexual”. Legalmente, refere-
se à prostituição de crianças ou adolescentes
menores de 17 anos. Culturalmente (e
biologicamente), porém, uma criança de
9
“Um fato social é normal para um determinado tipo social,
visto em uma determinada fase de seu desenvolvimento,
quando ocorre na sociedade média das espécies,
considerada na fase correspondente de sua evolução”
(Durkheim, 1982 [1895]: 97) . Embora discordemos dos
preceitos evolucionários sociais de Durkheim que s’ao
expostas nesta frase, concordamos com sua visão de que
o normal é aquilo que pode ser encontrado em qualquer
lugar em uma determinada sociedade, em um determinado
momento do tempo.
Por fim, é normal que um dos parceiros de
268
um casal afetivo-sexual “corteje” o outro
com presentes, que podem até envolver
dinheiro10. Isso é particularmente o caso
quando o parceiro mais jovem é mulher
PUTA LIVRO
e o parceiro mais velho é homem. A
normalidade dessas relações e suas trocas
correlacionadas é raramente questionada no
Rio, principalmente se forem heterossexuais,
se a parceira mais jovem for mulher, se ambos
os parceiros tiverem a mesma cor da pele,
e também se ambos os parceiros forem da
classe média ou alta.
10
C.f. Georg Simmel (2004 [1900]: Capítulo V) para uma
discussão interessante sobre trocas de dinheiro e presentes
nas relações sexuais / afetivas. Embora a análise de Simmel
seja bastante vitoriana e se baseie quase exclusivamente na
análise moral do sexo de Kant (c.f. Blanchette, et al, 2021),
ela ilustra o emarranhado tipológico que os cientistas sociais
encontram ao tentar separar, de forma limpa, a sexualidade
supostamente “normal” da prostituição. C.f. Viviana Zelizer
(2009) para reflexões mais contemporâneas sobre esse
fenômeno.
11
Um exemplo excelente dessa moralidade dupla poderia
ser vista em Agosto de 2013, quando uma Juíza da Vara de
Infância e da Juventude proibiu a apresentação do grupo
Bonde das Maravilhas composto por adolescentes de 13, 16
e 17 anos, negras e oriundas de comunidades populares do
Rio de Janeiro. A alegação da Juíza era que ao “apresentam-
se praticamente seminuas, dançando coreografias altamente
sensuais, elas estão inseridas em contexto erotizante que
lhes deturpa a boa formação moral e sexual, com aberto
convite à prostituição” (WURMEISTER, 2013).
sexual” eram, sem exceção, retratadas por
269
como meninas negras ou pardas, pobres
e faveladas e incapazes de controlar sua
própria sexualidade. Nestas ocasiões,
apontamos que os únicos casos que tínhamos
PUTA LIVRO
encontrado de meninas, menores de idade,
engajando-se em trocas sexuais-afetivas com
estrangeiros na Copa do Mundo aconteciam
no contexto da vida noturna “normal” (i.e.
não envolvia comercialização do sexo),
particularmente no bairro boêmio de Lapa.
Mas essas informações foram ignoradas
pelos agentes do Estado, que repetidamente
explicavam para as representantes da OP (o
PUTA LIVRO
menores que testemunhamos diretamente
durante nosso trabalho de campo dos Jogos
Olímpicos foi de observar negociações
transacionais envolvendo duas jovens trans
na Lapa que pareciam ter menos de 18. Mas
pelos fatores descritos acima e a seguir, não
sentimos que poderíamos simplesmente
qualificar a situação delas como tal, dado
271
foram amplamente divulgadas pelos
agentes de segurança do Estado durante as
Olimpíadas. Ambas as operações tiveram
ampla cobertura da mídia nacional e
PUTA LIVRO
internacional, atraindo muita atenção ao
suposto risco que os Jogos Olímpicos
representavam para as crianças cariocas.
Infelizmente, ambas as operações também
demonstram as limitações dos agentes de
segurança e das instituições de assistência
social em lidar com essa questão de
menores que vendem sexo em nossa
PUTA LIVRO
9, 7, 2016)12. Mais tarde, as manchetes
foram modificadas para afirmar que oito
“pessoas” foram resgatadas da prostituição
forçada, entre as quais havia três
adolescentes entre 15-16 anos (FOX NEWS,
11.7.2016). E foi essa versão de eventos que
informou numerosos estudos acadêmicos
e de ONGs sobre o efeito dos Jogos na
12
A manchete desse artigo, como revelado em seu link,
originalmente foi “Polícia resgata oito adolescente sob
exploração sexual em área olímpica”. A Folha de São Paulo
aparentemente mudou a manchete, posteriormente, para
“Polícia resgata oito pessoas sob exploração sexual em área
olímpica”.
13
C.f. Terre des Hommes International Federation relatório
de Set. 2016, que repete a história da Folha como sua única
fontes sobre essa operação.
as meninas operavam era “mais frequentada
273
durante os Jogos”, além de afirmar que “as
meninas tinham que pagar 50 reais pelo
seu direito de ocupar a rua”. É também
interessante que, embora a polícia afirme
PUTA LIVRO
ter empregado 90 agentes nesta operação
por mais de uma semana, nenhum cliente
ou cafetão foi preso, apesar das alegações
de “exploração sexual” (Ibid, Idem). Até
hoje, as únicas três pessoas encarceradas
em função desta operação foram as três
adolescentes “resgatadas”, que foram
remetidas ao sistema de serviços sociais
14
Nosso trabalho de campo junto com a FIA e os vários
comitês anti-exploração, antes dos Jogos, deixou claro que
a detenção preventiva pela Polícia Militar era o remédio
indicado nos casos de adolescentes e crianças descobertos
se prostituindo durante os Jogos. As vítimas, uma vez
que eram menores de idade, ficaram compulsoriamente
internadas, sob a tutela do Estado, até serem retiradas da
instituição tal por suas respetivas famílias – inexistente no
caso de “Carol” e abusiva no caso de “Luciana”.
15
“Sem políticas específicas para resgatar crianças vítimas
de exploração sexual, operações como essa enxugam gelo,
lamentam as autoridades consultadas. Carol, Luciana e
Maria reconheceram no mesmo dia que iriam voltar para
a rua. Duas semanas depois da ação policial, a praia do
Recreio voltava a ser cenário de bordel.” (MARTÍN, 2016a)
274
paraestatais (AMAR, 2018) nos vários grupos
milicianos que controlavam o comércio
irregular no Recreio. Finalmente, as mulheres
unanimemente afirmavam que não houve
um aumento na frequência dos clientes na
PUTA LIVRO
pista durante os Jogos. De fato, muitas
delas acabaram migrando para Copacabana
e Centro em busca da suposta “onda de
turistas sexuais estrangeiros” que, de acordo
com a mídia, chegaria na cidade junto com a
Olimpíada.
Só uma das mais de 100 mulheres
entrevistadas por nós na pista do Recreio
275
crianças e adolescentes. Mais uma vez, de
acordo com Maria Martín, de El País:
PUTA LIVRO
Janeiro descobriu que atrás das promessas
[de trabalho como modelo] há uma quadrilha
de exploração sexual de menores. Graças ao
site e outros anúncios em redes sociais, os
chefes da gangue, Márcio Garcia, de 33 anos,
e Jonathan Alves, de 24, conseguiam atrair
adolescentes para se prostituírem. A dupla
mantinha alugados há um ano três apartamentos
em um condomínio de luxo na Barra de Tijuca,
de frente para o Parque Olímpico. “Tudo aponta
PUTA LIVRO
por meses, junto com sua namorada de 16
anos (EXTRA, 29.07.2016). Os dois eram
namorados fazia mais de um ano e o caso
demonstra um dos problemas estruturais
chave de alegações de exploração sexual
no Rio: embora seja ilegal um homem de 33
anos pagar por sexo para uma jovem de 16
anos, é legal ele ter sexo não comercial com a
277
NEWS, 11.08.2016). Em dezembro de 2016,
porém, Jonatham Alves Mendes, o segundo
acusado no caso, foi preso em Belford Roxo.
Homem negro, com cidadania exclusivamente
brasileira e nenhum recurso a exílio no exterior,
PUTA LIVRO
Jonathan foi inicialmente descrito como
o braço direito de Marcio. A partir de sua
prisão, porém, ele começava a constar como
“líder da quadrilha” em algumas reportagens
(MARQUES, 2016). Apesar de tentativas de
habeas corpus, ele parece continuar preso,
porém, não julgado pelo sistema de justiça.16
Falando sobre o caso no início de 2017
16
Vide JusBrasil: https://stf.jusbrasil.com.br/
jurisprudencia/1121800971/recurso-ordinario-em-habeas-
corpus-rhc-159892-rj-7000351-3220181000000
A exploração das profissionais do sexo
278
pela mídia
PUTA LIVRO
Jogo Olímpicos de maneira sensacionalista
e acrítica, com poucas investigações mais
profundas acerca das acusações proferidas
pelos agentes do Estado, além de alinhar os
problemas encontrados como sendo criados
ou intensificados pelas Olimpíadas, embora
carecessem de evidências sustentando essa
17
Não encontramos nenhuma história na mídia que
retratasse a prostituição excercida pelos homens durante os
Jogos Olímpicos, embora os pesquisadores do OP Gregory
Mitchell e Thaddeus Blanchette tenham testemunhado
vários casos disso.
279
estigmas entre garotas de programa
(GASPAR, 1985). Nesta maneira de retratar
a prostituição, mulheres engajadas na venda
de sexo usam estrategicamente apresentar
sua entrada no mercado sexual comercial
PUTA LIVRO
como algo que aconteceu só e unicamente
pela “força das circunstâncias”, evitando
outros fatores contribuintes. Contando
uma “história triste”, onde a decisão de
se prostituir é sempre representada como
algo absolutamente fora de seu controle, a
pessoa que vende sexo se esquiva o estigma
da prostituição, ao se apresentar como
PUTA LIVRO
Após a publicação dos artigos de
Martín, entrevistamos várias das mulheres
que apareciam em sua matéria. Elas
comentaram que achava a série em El País
“bem tendenciosa”. Uma das mulheres que
afirmou ter recontado a história para Martín
falou:
PUTA LIVRO
conforme destacada pela Carole Vance
(VANCE, 2012). Como contado no capítulo
sobre a exposição fotográfica O que você
não vê (DONINI e MURRAY, neste volume)
o desejo das prostitutas de participarem do
projeto foi uma resposta direta à este tipo
de reportagens e imagens – especialmente,
como será descrito abaixo, para as mulheres
282
AMOCAVIM e o OP, o jornal apagou os rostos
das mulheres. Todavia, os danos já tinham
sido feitos: uma das mulheres fotografadas,
que mantinha sua profissão de prostituta em
sigilo, foi identificada por sua família antes do
PUTA LIVRO
Mail se autocensurar.
A falta de ética jornalística de Roper
não causou nenhuma impressão na mídia ou
entre os agentes de segurança e assistência
social do Estado, em franco contraste com
a reação contra os atos de outro jornalista
olímpico, Nico Hines do Daily Beast. Hines
PUTA LIVRO
vereadores, alguns dos quais receberam até
31 anos de prisão.
É importante entender que esses
homens foram julgados e condenados – não
apenas acusados – tendo as condenações
ocorrido poucas semanas antes das
Olimpíadas. No dia 27 de Outubro de
2016, porém, Nahim foi libertado da prisão
PUTA LIVRO
reputação entendida como idônea e seu
acesso a advogados excelentes. No Brasil, a
situação não parece ser nada diferente. No
entanto, a investigação dessas verdadeiras
“máfias de exploração”, absolutamente
imbricadas com sistemas locais de poder,
não parece causar o mesmo fervor político e
mediático que a caça às bruxas representada
pela busca das “dezenas de milhares” de
Conclusões
PUTA LIVRO
do negacionismo com o neoliberalismo
que desde então tem tomado conta do
país. O negacionismo se materializou (e
materializa ainda) na negação dos direitos das
prostitutas, das verdadeiras explorações de
trabalho e de sexo que existem e contra as
quais a melhor forma de atuação certamente
são mudanças estruturais e não as operações
Referências
286
454. 2016.
PUTA LIVRO
Polo Books.
PUTA LIVRO
G1. “Condenado no ‘Meninas de Guarus’, Nahim é solto
após habeas corpus”. 27/10/2016.
Retirado de http://g1.globo.com/rj/norte-fluminense/
noticia/2016/10/condenado-no-meninas-de-guarus-nahim-e-
solto-apos-habeas-corpus.html. Acessado em 11/09/2021.
288
suspeito de estuprar crianças”. 2016c.
PUTA LIVRO
EL PAÍS, 14/09/2016.
Retirado de https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/12/
politica/1473706697_653533.html
Acessado em 11/09/2021.
289
narratives of sex trafficking and their consequences for law
and policy. History of the Present, 2(2), 200-218. 2012.
PUTA LIVRO
noticia/2013/08/justica-proibe-apresentacao-de-menores-
do-bonde-das-maravilhas.html Acessado em 11/09/2021
PUTA LIVRO
O QUE VOCÊ NÃO VÊ:
Construção da Exposição
Fotográfica sobre
Prostituição e os Jogos
Olímpicos
1
Projeto financiado pela Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ.
#E-26/210.137/2016.
291
considerar que tal prática traria camadas de
imagens e sonoridades singulares e próprias
ao cotidiano de suas vidas. Fomos inspiradas
por experiências de colaborações entre
pesquisadores, ativistas e prostitutas em
outros contextos internacionais que olharam
PUTA LIVRO
especificamente as intersecções de questões
urbanas e nas quais as trabalhadoras sexuais
foram sujeitos, não objetos, da produção
de conhecimento (CHENG 2013, OLIVEIRA
2016). Consideramos tais estratégias como
ativadoras dos lugares e das experiências
do viver a cidade de modo mais encarnado,
292
e prostituição (ABIA e DAVIDA, 2012), um
exemplo disso foi a censura da campanha
relativa ao Dia Internacional da Prostituta em
2013 (REDE BRASILEIRA DE PROSTITUTAS
PUTA LIVRO
2013).
Um dos grandes entraves na quebra
do estigma em relação à prostituição tem a
ver justamente com a sistemática produção
de imagens hegemônicas com narrativas de
vitimização e apagamento das realidades
subjetivas e materiais das vidas das
prostitutas. Tais processos têm suas raízes
PUTA LIVRO
Copacabana e Barra da Tijuca.
O movimento brasileiro de prostitutas
nasceu nos final dos anos 1970 lutando
contra processos violentos de repressão e
gentrificação, e contra o estigma que recai
sobre a prostituição. Combater o estigma
tem sido central no movimento organizado
justamente porque é a construção do
estigma sobre a profissão que contribui
PUTA LIVRO
cidade com seus afazeres e afetos cotidianos.
Optamos por um trabalho de fotografia
participativa onde as prostitutas participaram
como sujeitos de saber e produtoras de
seus próprios discursos visuais e narrativos
durante o período das Olimpíadas e
Paraolimpíadas, procurando criar um discurso
O processo
2
Ver capítulo do Flavio Lenz sobre o Beijo da rua neste
volume.
formativo em fotografia foi justamente
295
para proporcionar o diálogo sobre o tema
da produção de imagens e para autonomia
no uso dos equipamentos e nas escolhas
artísticas de cada uma das integrantes. Desde
PUTA LIVRO
2016 a CasaNem desenvolve o laboratório de
formação audiovisual, portanto, a parceria foi
oportuna e conseguimos integrar professoras
de fotografia e alunas que se interessaram
pelo projeto.
O processo de realização das
fotos buscou viabilizar a apropriação
PUTA LIVRO
integrantes desta equipe foram: Angela
Donini, Marina Cavalcanti e Tais Lobo, que
também participaram da formação com foco
na produção audiovisual.
No desenho original, incluímos recursos
para a compra de câmeras, gravadores de
áudio e outros equipamentos, mas devido a
PUTA LIVRO
trocas aconteceram com intensa produção
de afetos e apoio mútuo entre as prostitutas
nas conversas; as trocas atravessaram a
dimensão do trabalho para articular a vida
cotidiana em toda a sua extensão, portanto,
as conversas e os registros não ficaram
restritos à atividade profissional. Os ensaios
fotográficos e sonoros trazem um amplo
O Site e a Exposição
PUTA LIVRO
apontamos no início deste ensaio, as
narrativas sobre prostituição, em geral,
são reducionistas e estigmatizantes,
portanto, o nome do projeto também é um
posicionamento estético e político sobre
quem narra e o que é narrado.
PUTA LIVRO
facilitadas pela equipe responsável pelo
projeto em colaboração com a artista
Juanita Cuartas. Esse processo de curadoria
coletiva aconteceu nos espaços onde seriam
realizadas as exposições no Rio de Janeiro,
portanto, a relação entre o espaço de
exposição e os conteúdos produzidos foi
amplamente debatida por todes. A primeira
exposição aconteceu entre os meses de
PUTA LIVRO
outra no Bournemouth University.
Direitos e Desafios
4
https://sexualspacesproject.com
306
de campo por seu trabalho. Porém, nos
editais de pesquisa com dinheiro público
no Brasil, os recursos para pagar pessoas
são escassos, sendo priorizados recursos
para a compra de material de capital. No
PUTA LIVRO
edital da FAPERJ no qual essa pesquisa foi
contemplada, por exemplo, somente 30%
poderia ir para serviços de terceiros. A
lógica é que as pesquisas devem envolver
mais que tudo pesquisadores-professores e
outros bolsistas, mas na prática, isso restringe
drasticamente a possibilidade de envolver e
pagar outras pessoas da comunidade para
atuarem no desenvolvimento, execução e
PUTA LIVRO
ocorreu num momento em que imagens
produzidas por prostitutas nas redes sociais
têm sido sistematicamente censuradas
e os perfis delas derrubados5, algo que
prostitutas vêm denunciando já há um tempo
com ataques a sites de anúncios com o
Backpage e mais recentemente OnlyFans6.
Como Patrícia Rosa, artista audiovisual e
trabalhadora sexual ativista da Rede Brasileira
5
No Brasil, o caso que mais ganhou atenção da mídia
foi da Lays Peace, que tem tido seu perfil derrubado
pela companhia várias vezes sob alegações de conteúdo
inapropriado.
6
Diversas organizações internacionais se manifestaram
sobre a decisão do Only Fans para banir conteúdo explícito
em agosto de 2008. Aqui a nota da rede europea de
trabalhadorxs sexuais: http://www.sexworkeurope.org/
news/news-region/icrse-statement-regarding-onlyfans-
explicit-content-ban-and-exclusion-sex-workers
308
onde o perímetro urbano é caríssimo, num
bairro de família, um bordel gigantesco, na
frente do bordel tinha um bar, que os donos
do bordel compraram pra poder dar mais
privacidade pro estabelecimento, e nesse
PUTA LIVRO
lugar onde o perímetro urbano é caríssimo
esse bar na frente do bordel ta fechado,
porque não pode funcionar nada pra poder
manter a privacidade dos clientes e tal, não
tanto das garotas, mais dos clientes. Mas,
assim, todo mundo sabe, né? que é um
bordel ali. Então é uma convivência assim
não sei, muito caracterizada, uma coisa bem
PUTA LIVRO
gentrificação. Se, por exemplo, no prédio
do IFCS, inicialmente, foi questionada
a possibilidade de que as fotos fossem
colocadas nas paredes por se tratar de um
prédio tombado, essas fotos finalmente
estarem ali, na arquitetura da colonialidade
é um gesto de retomada dos espaços e de
Referências
PUTA LIVRO
em Campinas. AnnaBlume: São Paulo. 2019.
PUTA LIVRO
A PROSTITUIÇÃO
VISTA POR NÓS
MESMAS
320
UMA ANÁLISE SÓCIO-
HISTÓRICA SOBRE
PUTA LIVRO
O «CONDE»:
O território de
prostituição travesti em
Lisboa
De bairro prestigiado a bairro
estigmatizado
1
Este imóvel alberga, hoje, a sede da Universidade
Autónoma de Lisboa.
excelência para muitos nobres e burgueses
321
(Junta de Freguesia do Coração de Jesus,
1995, p. 27). Assim, a 10 de Junho de 1880,
por altura do centenário da morte do poeta
Luís de Camões, é solenemente inaugurado
PUTA LIVRO
um bairro novo em Lisboa: o Bairro Camões.
Em 1902, quando a companhia urbanizadora
já se encontrava na falência, a Câmara
Municipal de Lisboa assumiu a conclusão
do bairro, que se prolongou pela Primeira
República, tendo atribuído o topónimo Rua
Conde de Redondo à então Avenida da Índia
(Consiglieri et al., 1995, p. 1482).
NÉLSON RAMALHO
O bairro desenvolveu-se segundo uma
malha praticamente ortogonal, composto
por oito quarteirões de forma retangular e
quatro quarteirões de configuração diversa,
sendo delimitado pelas ruas de Santa Marta
e Gomes Freire, situadas a ocidente e oriente
respectivamente, a sul pelo Hospital Miguel
Bombarda e a norte pela Avenida Duque
de Loulé. É em função da Rua do Conde de
Redondo – considerada uma artéria principal
– que foram estabelecidas as ligações às
ruas perpendiculares, nomeadamente, as da
Sociedade Farmacêutica, Luciano Cordeiro,
Bernardo Lima, Ferreira Lapa e Gonçalves
Crespo, e assegurada a continuação da
Rua Alexandre Herculano até à Avenida da
Liberdade, um dos eixos mais importantes
da cidade de Lisboa (cf. Figura 1). Por ser
contíguo à atual Praça do Marquês de Pombal
– palco de diferentes episódios sócio políticos
(e.g. paradas militares, cortejos cívicos,
concentrações, manifestações) e eventos
lúdicos (e.g. corsos de Carnaval, marchas
populares, festas, feiras e exposições) –
transformou-se num importante espaço
urbano de sociabilidade, atraindo muitos
lisboetas de então, que aqui se deslocavam à
procura de lazer, convívio e entretenimento.
2
Mais tarde, a 19 de Outubro de 1951, foi homologado, em
reunião da Comissão Consultiva Municipal de Toponímia de
Lisboa, que os letreiros toponímicos passassem a escrever-
se Rua do Conde de Redondo, em vez de Rua Conde de
Redondo.
322
PUTA LIVRO
Figura 1
Bairro Camões («O Conde»)
NÉLSON RAMALHO
A par de outros fatores, dos quais se
destacam a fácil acessibilidade, a localização
no “coração da cidade” (Consiglieri et
al.,1995, p. 142), próximo a determinados
equipamentos já existentes (p. ex. Hospital
de Santa Marta; Hospital Santo António dos
Capuchos), assim como a outros entretanto aí
instalados (nomeadamente o Liceu Camões,
cuja construção foi concluída em 1909), veio
tornar o território apetecível a diferentes
populações e investidores com um padrão
aquisitivo acima da média, acabando estes
por aí se fixarem. Ao longo dos anos, o
número de residentes da (antiga) Freguesia
do Coração de Jesus, que abrangia grande
parte do Bairro Camões, teve um crescimento
acentuado, passando de 12.039 habitantes
em 1911, para 21.973 habitantes em 1940.
Esta concentração demográfica traduziu-se,
pois, na necessidade de instalação de novos
projetos urbanísticos, de áreas residenciais
em zonas circundantes ao bairro. Porém,
desde a década de 1950 até à atualidade,
a freguesia assistiu a um crescente avanço
dos processos de terciarização, com a
introdução de inúmeros serviços e atividades
comerciais, financeiras e imobiliárias. A
substituição de velhos edifícios (alguns
dos quais através da sua demolição) por
lojas, escritórios, embaixadas, consultórios,
bancos, clínicas, pensões e hotéis, acabou por
fragmentar e descaracterizar o território da
sua componente eminentemente residencial
e introduzir “profundas dissonâncias e
323
alterações funcionais e estruturais” (Junta de
Freguesia do Coração de Jesus3, 1995, p. 27).
Mais recentemente, a especulação imobiliária
e a inflação dos preços dos imóveis verificada
nas últimas décadas potencializaram
PUTA LIVRO
a expulsão dos seus moradores, com
implicações na redução do número de
residentes. Os dados dos últimos censos dão
conta que a freguesia apresentava, em 2011,
apenas 3.689 habitantes (INE, 2011), e o
aumento do número de idosos e consequente
diminuição de jovens, traduziu-se num índice
NÉLSON RAMALHO
de envelhecimento de 256, quando o de
Lisboa (cidade) era de 1174.
Durante os dias de semana, a circulação
de transeuntes, carros e transportes coletivos
nas ruas do «Conde» devia-se, em larga
medida, a uma população externa a ele, que
aí recorria por razões profissionais, comerciais,
lazer ou outras. Porém, com o cair da noite,
o encerramento dos estabelecimentos e o
regresso de muitos indivíduos às suas casas, o
bairro mergulhava numa quase desertificação,
ficando reduzido a alguns cafés e restaurantes
que se mantinham em atividade até mais
tarde, e a alguns condutores e taxistas
que apressadamente por ali passavam. O
território conciliava a acessibilidade própria
de um centro urbano movimentado e a
privacidade proporcionada pela reclusão
noturna, garantindo discrição e invisibilidade a
quem ali se deslocava. Todas estas condições
favoreceram o florescimento de atividades,
serviços e estabelecimentos comerciais ligados
à indústria do sexo, que passaram a fixar-se
3
Atualmente, na sequência da reorganização administrativa
da cidade (Lei nº 56/2012 de 08 de novembro de 2012),
grande parte do Bairro Camões passou a integrar a
Freguesia de Santo Antônio, com exceção da Rua Gonçalves
Crespo e parte das ruas Bernardim Ribeiro, Conde de
Redondo e Ferreira Lapa que integraram a Freguesia de
Arroios.
4
O índice de envelhecimento é expresso no número de
pessoas com 65 e mais anos por cada 100 pessoas menores
de 15 anos. Isto significava que, por cada 100 jovens
existiam, na freguesia, 256 pessoas idosas.
324
nessa região. Com efeito, o «Conde», outrora
prestigiado, passou a ser considerado um
território estigmatizado, ligado, sobretudo, à
prática da prostituição.
É a partir de um trabalho etnográfico
de duração prolongada nos contextos de
PUTA LIVRO
prostituição do «Conde», sobretudo travesti,
que envolveu diferentes técnicas – como
a realização de observação participante,
entrevistas, notas de campo, entre outras –
que resultou a obra Virar Travesti: Trajetórias
de Vida, Prostituição e Vulnerabilidade
(RAMALHO, 2019) da qual surge o presente
capítulo. Este tem a pretensão de realizar uma
NÉLSON RAMALHO
breve análise sócio-histórica sobre o modo
como este território foi sendo associado à
prostituição travesti, ainda que nele figure, na
atualidade, uma diversidade de agentes ligados
à indústria do sexo.
5
Nome fictício por forma a assegurar o anonimato.
6
A maior parte destas já faleceram, outras encontram-se
emigradas em Paris.
7
Considerado um território predominantemente de
prostituição masculina.
Esta conduta subvertia profundamente “os
325
valores de honra masculinos, confundia
as identidades de gênero, perturbava os
códigos que geriam as relações entre os
dois sexos, recusava a instituição familiar
– pilar do Estado Novo” (BASTOS, 1997,
PUTA LIVRO
p. 238). Deste modo, os comportamentos
“impróprios” destes protagonistas tinham
de ser corrigidos, competindo à lei vigiar,
julgar e punir. A criminalização das “práticas
de vícios contra a natureza”, nas quais
estavam contempladas não só as práticas de
travestilidade, como também da prostituição
e a homossexualidade, encontravam-se
NÉLSON RAMALHO
enquadradas pela Lei de 20 de Julho de 1912,
sobre a mendicidade, cuja revisão do Código
Penal de 1954 trouxe medidas repressivas
adicionais, que permaneceram em vigor até
1982 (ALMEIDA, 2010).
Para assegurar que a lei fosse cumprida
passou a promover-se uma intensa repressão
e perseguição policial, que obrigavam as
travestis a fugir. «Escondíamo-nos debaixo
dos carros [...] ia tudo a correr aos saltos
[...] tirávamos os sapatos, doidas», recordou
Eduarda acerca desse tempo. Mas as travestis
que tinham a má sorte de serem apanhadas
nas malhas da “justiça”, eram colocadas
dentro de carrinhas e conduzidas para a 1ª
esquadra de investigação criminal (situada
na Rua Gomes Freire) ou para a 4ª esquadra
de Lisboa (situada na Rua de Santa Marta),
onde eram detidas e identificadas. A sua
saída estava condicionada pelo pagamento
de uma multa. Quando libertas, muitas
vezes já ao amanhecer, eram obrigadas a
regressar a casa em condições vexatórias:
sem maquiagem, sem peruca, mas vestidas
de mulher. A humilhação era tão grande e
violenta que, algumas, começaram a prevenir-
se com dinheiro para pagarem, de imediato,
a multa. Em casos de maior gravidade eram
levadas a tribunal e encarceradas em prisões
e em albergues da Mitra de Lisboa, tal como
relatou Eduarda.
326
Às vezes levavam-nos para a esquadra e
eu era a última a sair. Eles [os polícias] diziam-
nos «lavar a esquadra», «varrer a esquadra»,
«limpar a esquadra toda!» Bem que a esquadra
podia cair de pé que eu não fazia nada. Eu não
limpava! [...] Lá na esquadra, às vezes elas [as
travestis] estavam todas em fileira. Os polícias
PUTA LIVRO
passavam por elas e pisavam-lhes os pés de
propósito. Quando me faziam isso eu dizia
logo «PORRA, MAS QUE MERDA É ESTA!»
[...] E daqui ia muitas vezes para a Mitra, onde
estavam os velhos. E eu de lá, fugia. Já estive
na cadeia muitas vezes [...]. Eu sofri muito.
Muito. [...] estive na cadeia e os guardas davam-
nos a comida como se fossemos cães. E uma
das vezes eu não aguentei. Assim que ele nos
NÉLSON RAMALHO
lançou a comida como se fôssemos cães eu dei-
lhe com o copo na cara que lhe parti a cabeça.
[...] Fecharam os presos todos. Nisto abriram-
me a cela e estava uma turma de polícias com
capacetes à porta da minha cela. Eles queriam
que eu saísse, mas eu não saí. Eles atiraram uma
bola de gás e aquela merda era fumo por todo
o lado. Os presos não se calavam na galeria e
a bater contra as portas. Como eu não saí, eles
fecharam-me lá. E eu tinha comigo uma lâmina,
daquelas de fazer a barba. Agarrei nela e cortei-
me toda nos braços. Olhem [disse, arregaçando
as mangas, para mostrar os dois braços8
golpeados desde os pulsos até aos cotovelos].
Toda cheia de golpes. Eu estava cheia de sangue
por todo o lado. [Eduarda]
8
Neste período repressivo era habitual, entre as travestis,
existirem práticas de automutilação. Ao serem capturadas
e encarceradas em prisões e albergues, cortavam-se
(especialmente nos antebraços) com uma lâmina, na
tentativa de serem libertas e conduzidas, de imediato,
para uma unidade local de saúde. Esta mesma prática foi
verificada por Kulick (2008 [1998]), Oliveira (1994) e Pelúcio
(2005), junto das travestis brasileiras.
327
gênero. Embora permaneçam invisíveis,
as travestis foram figuras extremamente
importantes na construção da história do
gênero e da sexualidade em Portugal.
Mais tarde, da Rua Castilho – local onde
tinham iniciado a prática da prostituição
PUTA LIVRO
– as travestis deslocaram-se para a zona
do Parque Mayer e ruas adjacentes,
nomeadamente, a Rua do Salitre, a Praça
da Alegria, a Rua das Pretas, assim como
a Rua Condes. Em 1976, restabelecem-
se num novo território de prostituição,
próximo ao famoso clube noturno Cova da
NÉLSON RAMALHO
Onça, situado no n.º 244-B da Avenida da
Liberdade. Neste período, o cruzamento
entre a Praça do Marquês de Pombal com a
Avenida Duque de Loulé era, também, um
outro ponto de paragem para algumas delas.
Por se encontrarem próximas ao “Conde
de Redondo” – um local já frequentado por
mulheres prostitutas – acabaram por ocupá-lo
no início da década de 1980. «Fomos lá para
cima [Conde] entre 81 e 82 [...] Havia ali as
mulheres e tudo», confidenciou Eduarda. A
prostituição que outrora tinha sido exercida
de forma difusa por vários espaços da cidade
– facto também evidenciado na publicação
Os Travestis de Lisboa (1977) de Arinto e na
obra Prostituição Masculina em Lisboa (1882)
de Duarte e Clemente – passou, então, a
estar maioritariamente concentrada na zona
do «Conde».
À medida que elas foram conseguindo
atrair e fidelizar cada vez mais clientes e,
consequentemente, ganhar uma maior
centralidade nesse território, sentiram a
necessidade de o apropriar. Com efeito,
a sua disputa e dominação materializou-
se na expulsão da quase totalidade das
mulheres prostitutas que aí se encontravam,
acabando estas por “migrar” para outras
zonas da cidade à procura de maior clientela,
nomeadamente, para a zona do «Técnico»
(i.e. Instituto Superior Técnico de Lisboa)
e da «Artilharia» (i.e. Rua da Artilharia I).
Na atualidade, existe apenas um número
muito reduzido de mulheres a exercerem
328
a prostituição no «Conde», estando,
porém, subjugadas a uma espacialidade
restrita, junto à Residencial Dallas, na Rua
Gonçalves Crespo, e a uma convivência e
PUTA LIVRO
interação limitada com as travestis. Embora
se reconheça a existência (pontual e
inexpressiva) de prostituição travesti noutros
territórios (nomeadamente na «Artilharia»,
em Lisboa, ou na mata de Rio de Mouro,
em Sintra), o «Conde» constitui-se o maior
e mais importante local de prostituição de
rua travesti da Grande Lisboa, sendo as
NÉLSON RAMALHO
ruas do Conde de Redondo, da Sociedade
Farmacêutica, da Luciano Cordeiro, da
Gonçalves Crespo e da Bernardim Ribeiro as
zonas de maior concentração prostitucional.
330
regulamentação que enquadre e defina o seu
trabalho, têm de se valer de uma enorme
exposição pessoal para conseguirem angariar
clientes. À primeira vista, parecem ser as
únicas protagonistas do mercado sexual, mas
PUTA LIVRO
na realidade são a expressão mais visível e
também a mais estigmatizada.
Referências
NÉLSON RAMALHO
Porto: Sextante Editora. 2010.
331
Grossa. 2008.
PUTA LIVRO
RAMALHO, Nélson. “Virar Travesti”. Trajetórias de vida,
prostituição e vulnerabilidade social. Lisboa: Tese de
doutoramento em serviço social apresentada ao ISCTE –
Instituto Universitário de Lisboa. 2019.
NÉLSON RAMALHO
332
JOÃO SOARES PENA
“JOGA PEDRA NA
PUTA LIVRO
GENI”: política,
intervenção urbana
e percepção da
prostituição em
Amsterdã
Notas iniciais
PUTA LIVRO
criminalização, reconhecimento enquanto
trabalho e causa dos problemas urbanos.
A regulamentação da prostituição em
2000 na Holanda foi um acontecimento
muito emblemático, passando a ser uma
335
de Chico Buarque1, apesar de muitos fazerem
uso dos serviços sexuais de Geni, ela é
motivo de execração pública na cidade. O
fato de que “ela dá para qualquer um” e
satisfaz os desejos sexuais dos errantes,
PUTA LIVRO
cegos, retirantes, detentos, lazarentos
e moleques do internato a torna alvo da
violência de uma sociedade moralista. Esta
mesma cidade não hesita em lhe pedir que
se entregue ao comandante do Zepelim
para salvar a todos da destruição. Mesmo
assim, a cidade continua a cantoria: “Joga
pedra na Geni! Joga bosta na Geni! Ela
1
Cf.: Canção “Geni e o Zepelim”, de Chico Buarque,
disponível em: <https://www.letras.mus.br/chico-
buarque/77259/>. Acesso em: 20 abr. 2021.
336
em 1911, na proibição de seu funcionamento
em todo o país. Nessa perspectiva
abolicionista, as prostitutas eram vistas
como vítimas, já os donos de bordéis,
ou quem facilitasse a prostituição, eram
PUTA LIVRO
considerados criminosos. Contudo, essa
proibição não significou efetivamente o fim
dos bordéis, mas um regime de “tolerância
regulada”, em outras palavras, uma gestão
das ilegalidades (FOUCAULT, 1999). Isto
significa que o município fazia vistas grossas
ao funcionamento dos bordéis, desde que
eles não causassem transtornos. Entretanto,
o município não deixava de efetuar um
PUTA LIVRO
criou grupos aliados de mulheres tanto
nos Estados Unidos quanto na Holanda.
Esse grupo buscava dar suporte ao De
Rode Draad, fomentar discussões sobre
a prostituição entre as feministas e atuar
no monitoramento de políticas municipais,
além de escrever cartas e artigos em jornais.
Dessa maneira, o grupo levava a um público
PUTA LIVRO
da atividade em determinada cidade em
razão de questões morais, evidenciando um
tratamento distinto em comparação com
outros setores e profissionais.
Embora seja um marco importante
e ainda uma referência, a política de
prostituição holandesa tem sido alvo de
críticas de trabalhadoras sexuais e de
PUTA LIVRO
No Red Light District de Amsterdã as
vitrines foram fechadas e o governo ordenou
que as trabalhadoras sexuais e outros
tantos profissionais parassem de trabalhar.
Aquelas que atuam sob um contrato de
trabalho podem estar na mesma situação
que outros trabalhadores: em isolamento
social e possuir algumas garantias; aquelas
2
Foi também criado o Fundo Holandês de Emergência
(Dutch Emergency Fund), por iniciativa da trabalhadora
sexual e ativista Hella Dee, para ajudar financeiramente
aquelas trabalhadoras sexuais que não tenham renda fixa.
Trata-se de uma campanha de financiamento coletivo em
um site na internet onde cada pessoa pode fazer uma
doação a partir de € 10. Disponível em: <https://www.
dutchemergencyfund.nl/>. Acesso em: 04 abr. 2020.
340
em termos de acesso a essa assistência em
razão da nacionalidade. Isto também aponta
os limites da regulamentação, que deixa as
trabalhadoras sexuais não holandesas em
situação de vulnerabilidade caso não possam
PUTA LIVRO
trabalhar por certo período em razão de uma
doença ou outro impedimento.
341
criminalidade, os objetivos do plano visavam
muito mais a melhoria das qualidades do
bairro e dos serviços oferecidos, bem como a
atração de investidores (PENA, 2020).
PUTA LIVRO
Para Aalbers (2016), esse projeto
evidencia uma mudança na percepção local
acerca da prostituição, cuja regulamentação
fora considerada emancipatória, liberal e
progressista. Então, o trabalho sexual passou
a ser visto como imoral, orientado para o
mercado, relacionado à criminalidade e,
portanto, indesejado. Geni voltou a ser vista
3
Cf.: Campanha “Eu não tenho um preço”. Disponível em:
<https://ikbenonbetaalbaar.nl/>. Acesso em: 19 abr. 2021.
342
privados, além de uma mudança na paisagem
urbana.
Esse plano enfrentou a resistência das
trabalhadoras sexuais que diversas vezes
protestaram contra o fechamento das
PUTA LIVRO
vitrines. Apesar de o Plano 1012 ter sido,
supostamente, participativo, não foram
ouvidos integrantes da indústria do sexo,
como os donos de bordéis e as trabalhadoras
sexuais, os quais foram os mais afetados
pelas intervenções. Já próximo ao fim da
implementação do Plano 1012, foi realizado
um grande protesto em 09 de abril de 2015
4
O blog Behind the Red Light District está disponível em:
<http://behindtheredlightdistrict.blogspot.com/>. Acesso
em: 14 jul.2021.
ativista Mariska Majoor com o título de
343
cavaleira da Ordem Real de Orange-Nassau
(PROUD NEWS, 2017). Esta honraria é
concedida a pessoas que tenham prestado
relevantes serviços à sociedade, ao Estado ou
à Casa Real holandesa. Esse reconhecimento
PUTA LIVRO
pelos 20 anos de ativismo de Mariska Majoor
pelos direitos das trabalhadoras sexuais
é emblemático, pois reitera a importância
da garantia de direitos a esse grupo de
trabalhadoras. Entre esses direitos está a
salvaguarda dos seus locais de trabalho que,
naquele momento, já haviam sido reduzidos
significativamente, em virtude do fechamento
344
prostituição foi considerada a razão para o
crescimento do turismo e os decorrentes
transtornos enfrentados pelos moradores.
Contudo, vale ressaltar que os investimentos
PUTA LIVRO
e intervenções a partir de 2007 buscavam
diminuir a importância da prostituição
no bairro e na imagem da cidade e não o
contrário.
Se nos anos 1980 havia um discurso
que vinculava a prostituição aos problemas
ligados a violência e drogas, nos anos 2000
ela foi considerada um elemento central no
contexto de criminalidade que assolava o
345
Apesar de emblemática e importante,
a política holandesa de legalização dos
bordéis e regulamentação da prostituição, em
PUTA LIVRO
vigor desde o ano 2000, possui fragilidades
que colocam em vulnerabilidade muitas
trabalhadoras sexuais. Isto já ocorria, mas
ficou ainda mais evidente durante a pandemia
de Covid-19. Ao longo do tempo houve
diversas mudanças na forma como essa
atividade era encarada pelo Estado, mas
poucos anos após a regulamentação do setor
346
AALBERS, Manuel. Amsterdam. In: CHENG, Tsaiher (ed.).
Red Light City. Montreal/Amsterdã: The Architecture
Observer, 2016.
PUTA LIVRO
during coronavirus crackdown. The Telegraph, 25 de março
de 2020. Disponível em: <https://www.telegraph.co.uk/
news/2020/03/25/netherlands-orders-escorts-stop-work-
coronavirus-crackdown/>. Acesso em: 04 abr. 2020.
347
e na Holanda. Revista Políticas Públicas & Cidades, v. 7, n. 1,
2019, p. 1-20. Disponível em: <https://rppc.emnuvens.com.
br/RPPC/article/view/345>. Acesso em: 15 abr. 2021.
PUTA LIVRO
Tese (Doutorado Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de
Arquitetura, Universidade Federal da Bahia, 2020.
PUTA LIVRO
Uma assassina
200 x 150 cm
Óleo sobre tela
2013
349
TAMPEP
CAMPANHA
PUTA LIVRO
migrant
sex
2 de junho de 2021
2 de junho de 2021
workers
call for
rights DECLARAÇÃO
Estigmatização e pressões psicológicas 4. Garantir que nenhuma pessoa seja detida por
TAMPEP
A crise que trabalhadorxs sexuais migrantes estão violar leis de imigração ou vistos por excesso de
vivenciando se deve ao estigma, a discriminação, permanência devido à COVID-19, e garantir sua
a insegurança financeira e ao isolamento. Estes liberação, embora detida sob alegação de assim
fatores têm um impacto enorme sobre seu bem- reduzir o risco de disseminar COVID-19
estar mental. Para elxs, o estigma é a principal 5. Aplicar políticas de migração que sejam inclusivas
barreira para acessar serviços ou a justiça. e respeitosas dos direitos humanos de trabalhadorxs
sexuais migrantes, garantindo sua proteção legal
Trabalhadorxs sexuais migrantes exigem que
seus Direitos Humanos sejam respeitados! Migrantes, independentemente do status, têm
direito à vida, liberdade e segurança. Eles têm o
A discriminação contra trabalhadorxs sexuais direito de viver livres de discriminação e ter um
migrantes e sua exclusão do processo padrão de vida adequado.
democrático têm desafiado sua capacidade de
No entanto, trabalhadorxs sexuais migrantes
defender seus direitos. No entanto, não pode
têm sido abandonados pelos governos nacionais
haver mais espera. Vidas estão em jogo.
e por funcionários europeus.
TAMPEP, em cooperação com redes de Eles não podem mais esperar.
organizações de trabalhadorxs do sexo e aliados Pedimos a você que se posicione contra a
em toda a Europa, apela para que todos se injustiça, que exija uma Europa que se
unam e exijam mudanças. mantenha fiel a um código moral humano que
inclua os mais vulneráveis da sociedade.
Pedimos a todos aqueles que querem uma Apoie e participe da nossa ação.
Europa justa, uma Europa que esteja à altura
dos desafios da COVID, que exijam que a saúde
e os direitos dos trabalhadorxs sexuais Estamos lançando uma petição para pedir a indiví-
migrantes sejam protegidos. A nenhuma duos e organizações que a assinem, como demons-
pessoa devem ser negadas estas necessidades tração de solidariedade aos grupos mais vulneráveis.
básicas, especialmente em tempos de crise. A função da petição será de pressionar junto às
autoridades governamentais nacionais e
NÓS EXIGIMOS europeias para forçar mudanças reais, garantindo
a segurança e os Direitos Humanos de
À luz desta realidade, nós, da Rede TAMPEP, trabalhadorxs sexuais migrantes.
pedimos às pessoas e organizações que apoiem
as seguintes demandas por mudança com base
A situação é crítica, agora é hora de agir!
nos valores e responsabilidade legal decorrentes
da Convenção Europeia sobre Direitos Humanos.
Assine a petição aqui:
1. Garantir acesso livre de barreiras aos serviços
de saúde e vacinas para trabalhadorxs sexuais https://tampep.eu/campaign
migrantes e outras comunidades criminalizadas,
de acordo com as recomendações do UNAIDS Fique em dia com a campanha
www.tampep.eu
2. Acesso a serviços públicos e ajuda financeira
@ta mp ep n et w ork
sem penalização ou risco de deportação
tam p ep eu
351 PUTA LIVRO TAMPEP
352
PUTA LIVRO
TAMPEP
PUTA LIVRO
PUTA LIVRO
1
De uma forma extrovertida
Eu vim aqui pra falar
De um assunto muito sério
Que vai te arrepiar
Minha amiga prostituta
Não descuide um só segundo
Pra covid não te pegar
2
Com esse vírus não tem idade
Raça cor ou profissão
Por isso, na hora de fazer sexo
Só faça com proteção
Por mais que o parceiro seja
ator de novela, modelo e bonitão
Sem máscara, diga não!
3
Quem ama se cuida e se previne
Não paga pra vacilar
Transar, curtir e beijar
é bom, eu não vou negar
Porém só com camisinha,
máscara e álcool
Se não tiver, amiguinha,
Desculpe. Não vai rolar
4
Não brinque com sua vida
para não se machucar
Só faça sexo seguro
na hora de trabalhar.
Prevenção é a solução
É a forma de evitar
Não importa a empolgação
sem a máscara, não dá
356
5
Quem precisa trabalhar
e faz do sexo a profissão
O cuidado é dobrado
PUTA LIVRO
Use máscara e lave as mãos
Se o cliente insistir
Diga... guarde seu dinheiro
Sem máscara não rola não
6
A cada dia que passa
A estatística aumenta
MILENE FERREIRA
Não queira nela estar
Se conselho fosse bom
Não se dava, se vendia
Sei que é dito popular
Porém, prefiro não arriscar
7
Eu já vi morrer João Pedro,
Leandro, Carla, Isabel,
Antônio Fávero, a esposa
Anna e Ismael, Irmão Lázaro,
Timóteo e Genival
Com o COVID é assim!!
Pega eu, pega tu Infecta
e mata no fim.
8
Todo cuidado é pouco
Pra lidar com esse vilão
Seja no motel ou na rua
Por prazer ou profissão
Se não tiver máscara e camisinha
Vista a roupa, diga não!!
9
Não se iluda com beleza
Ou com um lindo carrão
Seja homem ou mulé
Vacilou não tem perdão
O corona pega de jeito
Destroi seu organismo
É de cortar coração!
357
10
Pense bem na sua vida
Antes de ir trabalhar
Peça proteção divina
PUTA LIVRO
Pra você não se infectar
Evite aglomeração e
sem máscara, não vá não!
11
Dependendo da imunidade
do corpo e do organismo
o vírus pega de jeito e depois
MILENE FERREIRA
de infectado o sujeito tá lascado
Vai direto pro abismo
12
Já vi pessoas chorando
prestes a morrer
No leito de um hospital
Cena triste de se vê
Não seja mais uma dessas
Num minuto de prazer
a próxima pode ser você
13
Só te digo uma coisa
Quem avisa amiga é
O coronavírus não tem idade
Pega homem e mulhé
Só faça sexo com camisinha
E use máscara
Até no cabaré
14
Quem faz assim está correto
Faz com amor a vida
Previne a si e ao próximo
Com camisinha é seguro
E com a máscara também
Sem elas, o pau pode tá duro
358
Que eu corro com mais de cem
15
Transar, curtir, beijar
é gostoso e faz bem
Independente de status raça
PUTA LIVRO
cor ou posição
O ser humano é livre
Entre parceiro e parceira
Só diz respeito a paixão
16
E se precisar do dinheiro
e rolar atração com cliente
MILENE FERREIRA
ou com parceiro
Não vá com a vida jogar
Por mais que sinta o desejo
O risco é absoluto
Não vale a pena arriscar
17
Em todo canto se encontra
a popular camisinha, máscara
e álcool em gel na farmácia
ou até na feira de galinha
mas puta prevenida
Já carrega na bolsinha
18
Pode ser puta viúva ou separada
moça solteira ou casada
Não se pode confiar
O COVID não mostra cara
Vista a roupa não vai dar
Pois existe um vírus
Que pode te matar
19
Trabalhar sem proteção
É loucura pode crê
O risco é muito alto
Tu tem que entender
Use máscara pra se proteger
O recado foi dado
Quem decide é você
359
20
A prevenção não é cara
A higienização é segura
Previna você e seus pares
PUTA LIVRO
De uma doença sem cura
O CIPMAC adverte
Quem não se previne quer morrer
Cava em vida a sepultura
21
Minha amiga companheira
Preste muita atenção
MILENE FERREIRA
Se cuide e se proteja
Evite disseminação
Compartilhe com as putas
E escute a voz da razão!
PUTA LIVRO
MEMÓRIA E LUTA
NA PROSTITUIÇÃO
LUDOVICENSE:
diálogos com a ativista
Maria de Jesus
Esse pequeno ensaio traz a memória da
puta ativista Maria de Jesus Almeida Costa,
carinhosamente conhecida como Dije, falando
sobre temas que perpassam o cotidiano
das mulheres prostitutas/profissionais do
sexo/trabalhadoras sexuais, e um pouco
do trabalho que o Coletivo Por Elas
Empoderadas tem realizado nesse momento
de pandemia.1 A intenção é contribuir com o
Coletivo Puta Davida e com o Observatório
da Prostituição (IPPUR/UFRJ) na tarefa de
exaltar a memória de mulheres que, assim
como a Jesus, dão e deram uma grande
contribuição para o movimento de prostitutas
do Brasil. Que essa memória nunca se perca,
e iniciativas como essas contribuem para essa
perpetuação.
Maria de Jesus Almeida Costa, 62
anos, maranhense, veio do interior para a
capital, São Luís, com apenas 12 anos, e
não demorou muito a conhecer a Rua 28 de
Julho, antiga zona de meretrício ludovicense.
Trabalhou como babá, lavadeira de roupa
e empregada doméstica até conhecer a
zona e seus caminhos, na década de 1970.
Trabalhando na zona como prostituta,
1
O texto foi elaborado em conjunto a partir de entrevistas e
diálogos entre as duas autoras.
361
e depois como gerente de uma casa de
prostituição, Jesus conheceu e participou
de instituições como a Casa Ninho, da
Igreja Católica, que oferecia formação para
filh@s de prostitutas e da qual ela saiu por
discordância política; militou como mulher
PUTA LIVRO
negra e prostituta dentro do GRUCON
(Grupo de União e Consciência Negra); e com
o surgimento da AIDS, entrou no combate e
luta contra o HIV/AIDS participando de vários
projetos e sendo multiplicadora e parceira de
órgãos públicos do Estado e organizações
internacionais. A APROSMA (Associação das
2
O Coletivo Por Elas Empoderadas foi fundado em 2019,
durante o Seminário Nacional 2019: avanços e desafios
das profissionais do sexo, realizado em São Luis/MA.
É formado por mulheres que lutam pelos direitos das
profissionais do sexo na cidade de São Luís, trabalhando
com prevenção das IST’s, HIV/AIDS, também pelo
empoderamento político e econômico das mulheres, em
sua maioria vivendo em situação de vulnerabilidade social.
Email: porelasempoderadas@gmail.com; Fanpage: Por Elas
Empoderadas; Instagram: @porelasempoderadas.
3
A Rede Brasileira de Prostitutas foi fundada em 1988,
durante o evento nacional de prostitutas “Fala, Mulher
da Vida” no Rio de Janeiro, por Gabriela Leite e Lourdes
Barreto.
362
Federal do Maranhão), e acompanha desde
dois mil e onze o movimento organizado
de prostitutas no Brasil. Pesquisando e
tentando compreender as nuances desse
movimento, se apaixonou pela solidariedade,
PUTA LIVRO
perseverança e luta incansável das putas
ativistas por direitos e espaço na sociedade.
Por essa admiração e por ser feminista, desde
dois mil e dezenove é ativista do Coletivo Por
Elas Empoderadas, que atua na defesa dos
direitos das(os) trabalhadoras(es) sexuais no
Estado do Maranhão.
Escrevivência e memória
1. Cidade e ativismo4
363
Há 30 anos atrás, o governo do
Estado do Maranhão criou um programa
de habitação5 para o Centro Histórico de
São Luís, que era voltado para os servidores
públicos estaduais. Isso para os moradores
PUTA LIVRO
do Centro Histórico foi uma agressão, porque
no centro já tinha muita gente morando mal.
Criaram o programa para os funcionários do
Estado e nada para a comunidade. Nesse
período, tínhamos prédios desmoronando,
caindo e as pessoas tendo que se mudar,
então fundamos a entidade União de
4
Os tópicos 1, 2, 3 e 4 são parte de entrevistas realizadas
com Maria de Jesus nos dias 09 e 17 de fevereiro de 2021,
por isso resolvemos preservar a escrita em primeira pessoa
e a oralidade.
5
Primeiramente nomeado como Projeto Praia Grande,
e depois como Projeto Reviver, iniciado em 1987 pelo
Governo do Maranhão, buscou recuperar e revitalizar o
conjunto arquitetônico do Centro Histórico de São Luís.
364
casa linda, no escuro e no seco. Tem que ser
uma política puxando a outra. A gente tem
uma política de habitação, mas precisamos
ter uma política de educação, a política de
saúde, uma política de geração de renda.
PUTA LIVRO
Tudo tem sua história. Eu não posso ser só
ativista de puta, eu tenho que ser ativista da
minha comunidade também, das pessoas. Eu
tenho que ser ativista dos idosos também,
porque eu já estou idosa.
2. Maternidade e aborto
6
Jesus reiniciou os estudos para terminar o segundo grau,
referente ao ensino médio hoje, depois que ela começou a
trabalhar nas casas de prostituição.
365
a questão também de eu ter me ligado muito
com a mãe biológica da minha filha, que era
uma colega de trabalho. Ela engravidou e eu
não a deixei sair da casa. Eu a fiz ficar e levar
a gravidez até o fim.
PUTA LIVRO
3. Religião e família
PUTA LIVRO
casa, já saía prostituída de casa, já saía
violentada de casa. A gente tem que ter todo
esse contexto lá atrás, porque agora somos
ativistas e para poder falar essas coisas que
aconteceram com a gente, para que não
aconteça mais com as mulheres. A família
precisa entender o que é liberdade, o que é
ter liberdade, o que é falar de sexo em casa,
7
Termo êmico para hímen ou para a perda da virgindade.
8
Para saber mais sobre essa trajetória, recomendamos a
entrevista Pleasure and Protagonism: An interview with
Maria de Jesus Almeida Costa, a Black sex worker activist
from Brazil’s Northeast Region, publicada na Revista
Global Public Health Special Issue: (Re)imagining Research,
Activism, and Rights at the Intersections of Sexuality, Health,
and Social Justice.
367
e dois ou dois mil e três. Realizamos esse
evento para discutir prostituição, eu mandei
um convite para Gabriela Leite9 e para
Rosarina Sampaio10, pois estávamos criando o
movimento aqui. O evento também era para
PUTA LIVRO
falarmos de ONG e trabalhar para formar
uma associação.
Nesse evento eu conheci Gabriela Leite.
Rosarina Sampaio veio também, elas foram
as palestrantes. Esse foi o primeiro evento
que realizamos aqui, depois eu comecei a
ir para todos os eventos... Rio de Janeiro,
Fortaleza, Salvador... em todos. Em todos os
9
Gabriela Leite foi uma das fundadoras do movimento
brasileiro de prostitutas. Para conhecer sua história,
sugerimos a leitura de Filha, mãe, avó e puta: a história de
uma mulher que decidiu ser prostituta (2009).
10
Rosarina Sampaio foi uma das fundadoras da Federação
Nacional das Trabalhadoras do Sexo. Atuou como
presidenta da APROCE (Associação das Prostitutas do
Ceará) por vários anos.
11
Central Única de Trabalhadoras e Trabalhadores Sexuais,
fundada em 2015.
368
política que nós temos? Não é uma só? Com
algumas pessoas ganhando mais destaque,
outras com mais autenticidade, com mais
vontade, fazendo mais. Aqui no Maranhão
não se nega que a gente faz muita coisa sem
PUTA LIVRO
dinheiro, sem um pau para dar no gato, como
diz Lourdes Barreto13. Para mim, a gente
nunca tinha que se separar, a gente tinha
sempre que ficar com a sigla, porém a mesma
política, porque termina a gente sempre se
encontra como puta, como prostituta lá no
final.
Na minha história de vida, eu não tenho
12
Articulação Nacional das Profissionais do Sexo (ANPS/
Anprosex), fundada em 2016.
13
Lourdes Barreto é uma das fundadoras do movimento
brasileiro de prostitutas e do GEMPAC (Grupo de Mulheres
Prostitutas do Estado do Pará).
14
Monique Prada é trabalhadora sexual, ativista e escritora
brasileira. Em 2018, lançou o livro Putafeminista.
sempre deixei que as pessoas fossem muito
369
livres. A gente tem um movimento que é
o movimento de liberdade também. Se eu
quero ser puta, vou ser puta. Se eu quero
ser mulher de programa, vou ser mulher de
PUTA LIVRO
programa. Se eu quero ser acompanhante,
vou ser acompanhante. Mas o meu papel
enquanto ativista é respeitar o que a mulher
quer ser naquele momento, até porque
senão eu desconsidero que a mulher tem que
estar no lugar que ela quiser, fazer o que ela
quiser. Então, eu estou em um movimento
de prostituta, mas a Fernanda não precisa
PUTA LIVRO
Maria da Penha ela assegura muito a mulher
casada, a família, a gente precisa colocar
lá que a gente também tem família e que
precisamos de proteção. Acho que para nós,
do movimento de prostitutas, a lei não nos
contempla. Se uma puta apanhar no cabaré,
não é considerado violência doméstica,
porque ela não tem relação com o agressor,
PUTA LIVRO
restritivas e de distanciamento e isolamento
social, buscamos parcerias com diversas
organizações da sociedade civil e também
com o Estado para conseguir cestas básicas
para as trabalhadoras sexuais. Sobretudo no
período entre os meses de março e agosto
de dois mil e vinte, alguns bares foram
fechados e medidas restritivas mais rígidas
372
anonimato sem poder ir para a rua? E se tem
filhos?”.
Então, tivemos que arrumar
parceiros(as) para conseguir alimentos e
PUTA LIVRO
itens básicos para as mulheres, sobretudo
para as trabalhadoras sexuais da região do
Oscar Frota e seu entorno15. No ano de dois
mil e vinte realizamos ações de entrega de
cestas básicas, máscaras de tecido, álcool em
gel, produtos de higiene e limpeza, além de
continuar os trabalhos de prevenção, entrega
de insumos e testagens. Alguns desses itens
15
Região do Centro Histórico de São Luís, próximo ao
mercado central, onde se localizam vários bares e pousadas
onde se alugam quartos para a realização de programas.
16
Fundo das Nações Unidas para a Infância.
17
Quem quiser colaborar conosco, acesse a vaquinha pelo
link http://vaka.me/1052352
e do município; além da parceria com os CTAs
373
(Centro de Testagem e Aconselhamento),
que distribui insumos, realiza testes, aplica
vacinas e faz acompanhamento de pessoas
com testagem positiva para diversas doenças.
PUTA LIVRO
Estamos também realizando uma parceria
importante com a Casa da Mulher Brasileira
para intensificar nossas ações no combate à
violência dentro dos bares, casas, boates e
cabarés.
Abaixo seguem fotos de algumas das
ações realizadas nesse período da pandemia.
PUTA LIVRO
feito, precisamos fazer pesquisas e políticas
públicas para essas mulheres e saber o
desastre que essa pandemia trouxe na
vida delas. É necessário! Porque é uma
população que nem sequer foi falada dentro
da pandemia. Ninguém falou em profissional
de sexo no tempo da pandemia, como quase
ninguém falou em negro, quase ninguém
18
Pistão é como ficou conhecido o local onde as travestis
exercem a prostituição na Avenida Guaxenduba, Centro da
cidade de São Luis.
Referências
376
CALABRIA, Amanda de Mello. “Eu Sou Puta: Lourdes
Barreto, História de Vida e Movimento de Prostitutas
No Brasil.” Dissertação (Mestrado em História), Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal
PUTA LIVRO
Fluminense, Niterói, RJ, 2020.
377
(Org.) (2014). Prostituição e outras formas de amar. Niterói:
Editora da UFF, 2014.
PUTA LIVRO
desenvolvidas no Centro Histórico de São Luís (1970-
1990). Monografia (Licenciatura em História), Universidade
Estadual do Maranhão (UEMA), 2016.
Ok line, no trabalho
Lápis de cor e hidrocor
sobre papel A4
379
VÂNIA REZENDE
PUTA LIVRO
Empoderar, uma palavra feminina
Que conhecemos agora
Qual será o significado desta
palavra da hora?
Surgiu para definir o que
é a luta pelos direitos das
mulheres agora
De Norte a Sul, de Leste a Oeste,
do Nordeste ao Sudeste
Somos todas cabras da peste
Sabemos ser sol mesmo
quando está nublado
Somos mulheres guerreiras,
fortes, verdadeiras
Na luta contra toda forma
de violência
Tenha santa paciência!
Queremos providências
Pelo fim da violência
Empodera empoderadas
mulheres fantásticas,
verdadeiras fênix
Destemidas como profetas
Corajosas como mártires
E ao mesmo tempo meigas
como aves
Assim somos!
POR ELAS EMPODERADAS
AMANDA DE LISIO &
380
THAYANE BRÊTAS
ESTRUTURA,
PUTA LIVRO
NÃO EVENTO:
O MEGAEVENTO
ESPORTIVO COMO
PANDEMIA
Quando falamos sobre expropriação, quando
falamos sobre colonialismo de colonos ou
colonialismo imperial, não estamos falando
sobre eventos anteriores, ou mesmo apenas
eventos, estamos falando sobre processos em
andamento e o que o historiador comparativo
Patrick Wolfe chamou de ‘estrutura’ robusta e
duradoura e, neste caso, não apenas um evento.
(SIMPSON, 2016, p. 19)
PUTA LIVRO
trabalho desvalorizado e as pessoas a quem o
vírus atacou de forma mais veemente.
Com base na lógica de que as crises
do capitalismo servem ao avanço neoliberal,
Naomi Klein introduziu o termo “capitalismo
do desastre” para explicar o uso instrumental
da catástrofe (chamada natural e causada
pelo homem) para promover e capacitar
uma gama de itinerários econômicos (KLEIN,
PUTA LIVRO
passou a ser o foco de uma Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI). No centro
dessa investigação está um contrato de R $
1,6 bilhão (US $ 300 milhões) para 20 milhões
de doses da vacina Covaxin; uma vacina ainda
não aprovada ou distribuída no Brasil e mais
cara do que qualquer outra vacina no mundo.
Agora há novas evidências que sugerem
que o Ministro da Saúde, General Eduardo
1
Veja em especial Ortega, F. & Orsini, M. (2020). Governing
COVID-19 without government in Brazil: Ignorance,
neoliberal authoritarianism, and the collapse of public
health leadership. Global Public Health, 15(9): 1257-1277.
383
ou permanentemente despejadas devido
à construção das megaeventos), e 3) o
aumento da dependência do trabalhador
autônomo e do trabalho precário e mal
remunerado (conforme observado, por
exemplo, na construção de estádios da FIFA
PUTA LIVRO
que resultou na morte de oito homens).
Em última análise, as políticas e processos
excepcionais relacionados aos megaeventos,
exigidos em nome da FIFA e do Comitê
Olímpico Internacional (COI) para modernizar
rapidamente as cidades para o turismo,
consolidaram as desigualdades sociais e
espaciais a serviço da expansão capitalista
PUTA LIVRO
SC Johnson se tornou um parceiro olímpico
oficial e a venda de seu repelente de insetos
mais que dobrou durante o evento. Logo, a
devastação ambiental, que antes era motivo
de preocupação, foi posicionada como
um problema para as pessoas em outros
lugares, sendo raramente abordada pela
mídia internacional quando o circo olímpico
PUTA LIVRO
A total ausência de políticas/governança
de saúde pública para eliminar o vírus de
forma eficaz incitou as comunidades a
reagirem e responderem. A ação coletiva
das comunidades locais desafiou a difusão
do neoliberalismo por meio de ajuda
mútua e solidariedades em rede. A hashtag
#COVID19NasFavelas destacou o impacto
2
O impacto desigual e deletério do vírus em comunidades
de baixa renda é especialmente evidente na taxa de
mortalidade por infecção confirmada — 30,8% na Maré,
uma área composta por comunidades na empobrecida Zona
Norte, em comparação com 2,4% no Leblon, um bairro
nobre da Zona Sul voltado para o turismo.
Durante a pandemia, as expulsões e a
386
violência contra a população LGBTQ realmente
cresceram. É algo bom que saiu de algo ruim.
Como a pandemia de HIV/AIDS. Algo ruim, mas
trouxe à luz todos os direitos civis LGBTQ que
foram desrespeitados. Como a vida. Da guerra,
PUTA LIVRO
paz. A morte como fonte de vida. (RUGE, 2021,
online)
3
Veja especialmente, SANTOS, B., SIQUEIRA, I., OLIVEIRA,
C., MURRAY, L., BLANCHETTE, T. BONOMI, C., da SILVA,
A.P., & SIMÕES, S. (2021).
387
do megaevento esportivo — que impôs um
parâmetro de exceção ao governo enquanto
se privatizavam serviços públicos e se
desregulamentavam indústrias privadas —
normalizou e reforçou o seu teste e uso como
PUTA LIVRO
respostas a crises, onde testemunhamos
processos gêmeos de negação e menosprezo
como resposta pandêmica “oficial”, ou a
falta dela. Os beneficiários dessa negação
e menosprezo são o mesmo grupo de
empresários — inclusive aqueles eleitos e
nomeados em nível federal, estadual ou
municipal — que lucram com emergências de
saúde pública capitalizando a crise sanitária
Referências
388
https://www.brasilwire.com/covid-19-scandal-brazilian-
military-threatens-senate/
PUTA LIVRO
and the collapse of public health leadership. Global Public
Health, 15(9), pp. 1257-1277. 2020
LUTE COMO
PUTA LIVRO
UMA PUTA
390 PUTA LIVRO PATRÍCIA ROSA
391 PUTA LIVRO PATRÍCIA ROSA
392
TIAGO LUÍS COELHO
VAZ SILVA
A INCIDÊNCIA
PUTA LIVRO
POLÍTICA DO
MOVIMENTO DE
PROSTITUTAS
EM TEMPOS DE
PANDEMIA:
a experiência do Grupo
de Mulheres Prostitutas
do Estado do Pará
(GEMPAC)
Introdução
1
Informações obtidas no portal https://covid.saude.gov.br/
do Ministério da Saúde. Os dados obtidos correspondem à
última atualização do dia 13/04/2021, às 19h.
393
consórcios e aquisição de vacinas, igualmente
ao atraso no processo de vacinação da
população, ajudam a entender o impacto
devastador da pandemia no Brasil. Este
quadro desolador resulta da incompetência
PUTA LIVRO
do Governo Federal em promover políticas
públicas eficazes para combater o avanço da
pandemia no país.
Mesmo com as dificuldades de se fazer
ativismo em tempos de autoritarismo e
perseguição aos movimentos sociais, bem
como as restrições de distanciamento social
impostas pela pandemia de covid-19, o
O GEMPAC e o enfrentamento
a pandemia de covid-19
PUTA LIVRO
uma opção, uma vez que é do trabalho
sexual que garantem o seu sustento e de
seus familiares2. Mesmo quando estavam
recebendo a primeira rodada do auxílio
emergencial3, que teve aprovação e
repasse morosos, além de ter se mostrado
insuficiente para atender as suas reais
necessidades e da maioria da população
2
Em outros nichos do trabalho sexual, onde também
desenvolvo pesquisa, muitas mulheres migraram para o
sexo virtual neste período de pandemia, desempenhando
serviços como camgirls. No entanto, esta é uma realidade
muito distante para as trabalhadoras sexuais que exercem
o seu ofício no baixo meretrício, do qual fazem parte as
integrantes do GEMPAC e o público assistido por ele.
3
Nos meses de abril e maio, o GEMPAC realizou campanhas
de orientação e fez a inscrição de trabalhadoras sexuais no
cadastro do Programa de Auxílio Emergencial do Governo
Federal.
em vários domínios da esfera pública,
395
possuindo representação em Redes,
Comissões, Conselhos e Fórum de discussão
e elaboração de políticas. A exemplo
disto, possui representação nas ações
PUTA LIVRO
coordenadas pela Secretaria de Justiça e
Direitos Humanos (SEJUDH-PA), participando
como parceiro nas ações de prevenção
que visam ao enfrentamento ao trabalho
escravo, à exploração sexual de crianças e
adolescentes e ao tráfico de seres humanos.
No que se refere às parcerias, a Associação
possui reconhecimento expressivo junto a
PUTA LIVRO
anos de criação da Associação, na década
de 1990, como nos foi dito por Lourdes
Barreto, principal liderança do GEMPAC
e uma das fundadoras do movimento de
prostitutas no Brasil. A FUNPAPA é um
órgão da administração indireta da Prefeitura
Municipal de Belém que atua na promoção de
assistência social através do desenvolvimento
de ações de amparo e proteção à populações
397
imobiliária e até objeto de grilagem. A
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB) e a Sociedade Paraense de Direitos
Humanos (SDDH) também foram parceiras
PUTA LIVRO
nessa ação, colaborando com a logística
de acolhimento dos trabalhadores rurais na
cidade e no transporte dos alimentos.
Além disso, foram feitas articulações
junto aos responsáveis pela saúde pública
do município de Belém-PA para que as
trabalhadoras sexuais tivessem acesso aos
serviços de saúde integral e aos insumos
necessários ao exercício de sua profissão.
4
Esta ação já faz parte da agenda que resulta da parceria
entre SESMA e GEMPAC. Trata-se do projeto “Corujão da
Saúde”, que consiste em uma ação social de mobilização
ampliada que oferta serviços de saúde. O Corujão ocorre
em espaços públicos e considera as áreas de prostituição
e a compatibilidade com o horário das trabalhadoras
sexuais, que tem prioridade no atendimento. No entanto, os
serviços são ofertados para a toda a comunidade de bairro e
transeuntes que circulam nas proximidades de realização da
ação. O Corujão representa um exemplo de micropolítica
bem-sucedida de articulação entre movimento social e
agentes governamentais, em que cada um dos parceiros
compreende e desempenha o seu papel.
398
desenvolvidas atividades formativas com
o objetivo de capacitar trabalhadoras
sexuais para reconhecerem seus direitos
como cidadãs e aturem como lideranças
em suas comunidades. Esta campanha faz
parte do projeto SWIT Brasil5 e constitui
PUTA LIVRO
um conjunto de ações mais amplas (OMS,
2015) estabelecidas em rede e coordenadas
na América Latina pela Plataforma
Latinoamericana de Personas que Ejercen el
Trabajo Sexual (PLAPERTS).
Em 2020, a implementação do SWIT
Brasil ocorreu na cidade de Belém-PA, a cargo
5
O SWIT é um documento extenso que fornece
recomendações para a implementação de estratégias de
teste, tratamento e prevenção de IST/HIV/Aids, que é
liderado e capacita as pessoas que exercem o trabalho
sexual (NSWP, 2015). O SWIT foi criado em 2013 pela OMS,
United Nations Population Fund (UNFPA), United Nations
Programme on HIV/Aids (UNAIDS), Global Network of
Sex Work Projects (NSWP) e Banco Mundial. Em 2018, o
Workshop SWIT Brasil ocorreu em Campinas-SP e contou
com a participação de várias lideranças das Associações que
compõem a Rede Brasileira de Prostitutas (RBP), além de
outras ativistas que integram o movimento de prostitutas
no país. A implementação do SWIT Brasil de 2019 ocorreu
apenas em janeiro de 2020, em Belo Horizonte-MG, através
da parceria entre a Associação das Prostitutas de Minas
Gerais (APROSMIG) e o GEMPAC. A atividade formativa
promoveu a capacitação de treze trabalhadoras sexuais,
contando também com a participação de integrantes do
“Clã das lobas”, coletivo de trabalhadoras sexuais ligadas a
Articulação Nacional de Profissionais do Sexo (ANPS).
399
formativas foram: direitos humanos e
saúde integral de trabalhadoras sexuais;
desigualdades de gênero, raça e classe; as
diferentes formas de violência contra as
mulheres; o cenário político atual frente às
eleições municipais de 2020; trabalho sexual
PUTA LIVRO
e as novas tecnologias de saúde.
As formações capacitaram 12
PUTA LIVRO
Ao adentrar especificamente nos temas
elencados para as atividades formativas, foi
possível tratar sobre questões fundamentais
que constituíram a trajetória do movimento
de prostitutas no Brasil, mas sobre os quais
ainda existe um certo desconhecimento,
inclusive, pelas próprias trabalhadoras
sexuais, como por exemplo: a implementação
7
São princípios amplos baseados no senso comum, ético
e direitos humanos. Não são baseados em comprovações
científicas, mas são instruídos por experiências de pessoas
que exercem o trabalho sexual (NSWP, 2015).
8
São recomendações técnicas baseadas em comprovações
científicas. Tem sido avaliadas através de um processo
formal. As recomendações baseadas em provas também
são instruídas por experiências das pessoas que exercem o
trabalho sexual (NSWP, 2015).
9
O SWIT abrange seis grandes temas recomendados no
documento elaborado pela OMS em parceria com a NSW,
são eles: 1- Empoderamento comunitário; 2- Abordar a
violência contra as pessoas que exercem o trabalho sexual;
3- Serviços dirigidos para as comunidades; 4- Programas
sobre preservativos e lubrificantes; 5- Serviços clínicos e
de apoio; 6- Gestão de programas e fortalecimento da
capacidade organizativa (OMS, 2015).
em um contexto político de profunda
402
precarização das relações trabalhistas, onde
a classe trabalhadora tem sofrido ataques
sistemáticos aos seus direitos.
Uma das características mais
PUTA LIVRO
interessantes das formações está relacionada
à conexão constante que as participantes
estabeleciam entre gênero, raça e classe
como marcadores da exclusão na qual se
intersectam. De modo que estávamos falando
sobre uma dimensão que, aparentemente,
dizia respeito à opressão de gênero, mas,
em seguida, compreendíamos como aquela
Foto 8 – Distribuição de
cestas básicas e materiais de
higiene pessoal e limpeza,
após atividade formativa
em uma zona da região
metropolitana de Belém-PA.
As participantes avaliaram de
maneira positiva os temas abordados e as
metodologias empregadas nas atividades
formativas. Segundo elas, os temas foram
discutidos satisfatoriamente, muitos,
inclusive, sendo debatidos em profundidade,
o que possibilitou uma compreensão
significativa sobre determinadas questões
fundamentais para o exercício do trabalho
sexual e para a prática da cidadania e luta
por direitos das prostitutas. Assim, as falas
405
ressaltaram o reconhecimento da necessidade
contínua por formação de novas lideranças
e para o fortalecimento organizativo das
bases. As falas também deram destaque
para a capacidade de atividades formativas
PUTA LIVRO
proporcionarem conhecimento atualizado
e empoderamento para as trabalhadoras
sexuais seguirem cotidianamente no exercício
de incidência política em sua comunidade
local, abordando, a respeito das diferentes
formas de violência sofridas pelas mulheres,
a saúde sexual e reprodutiva em uma
perspectiva de saúde integral, bem como
PUTA LIVRO
política na perspectiva dos direitos humanos
por meio da articulação do movimento
de prostitutas no Brasil, em constante
diálogo com a América Latina e outras
redes de trabalhadoras sexuais globais10.
Estes intercâmbios e trocas de experiências
fortalecem e ampliam a visibilidade das
práticas de prevenção e tratamento em IST/
Considerações Finais
10
A principal delas é a NSWP, que visa conectar redes
locais, regionais e nacionais em defesa e promoção de
direitos das mulheres, homens e transgêneros que exercem
o trabalho sexual. A NSWP agrega organizações na África;
Ásia e Pacífico; Europa; América Latina; América do Norte e
Caribe, facilitando a representação de profissionais do sexo
em fóruns de políticas internacionais que abordem temas de
saúde e direito humanos relacionados ao trabalho sexual.
407
da população mais vulnerável. Este cenário
desolador não será superado enquanto as
políticas públicas de enfrentamento não
forem baseadas em dados, informações
confiáveis e evidências científicas. Sem
dúvida, o caminho para a superação desta
PUTA LIVRO
crise sanitária está na vacinação em massa
da população. Porém, enquanto a epidemia
perdurar, medidas como o auxílio emergencial
são fundamentais para assegurar o sustento
das famílias.
Desde sua origem, o movimento
organizado de prostitutas no Brasil
PUTA LIVRO
Diversidade). Instituto de Ciências Jurídicas, UFPA. Belém,
2016.
GLOBAL NETWORK OF SEX WORK PROJECTS (NSWP).
SWIT – Guía útil para la Persona que Ejerce el Trabajo Sexual
del SWIT. NSWP, 2015.
PROSTITUIÇÃO
PUTA LIVRO
MASCULINA: Itinerários
de um taxiboy durante
a pandemia do covid-19
em Recife e Caruaru
Introdução
1
Irei adotar a sigla LGBTI+ (Lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, pessoas trans e intersexuais) seguindo o modelo
dos boletins da Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA), uma importante associação ativista
pelos direitos de LGBTI+, tendo como foco a urgência de
estratégias de proteção e apoio a pessoas trans e travestis.
410
aplicadas pelos meus familiares, seguidores
dos fundamentos neopentecostais e que
afirmam que minha homossexualidade é uma
maldição herdada dos meus antepassados –
especificamente de um tio declaradamente
PUTA LIVRO
gay que faleceu nos anos 90.
Evidencio ao leitor e leitora que o
neopentecostalismo é uma sectarização
e radicalização do movimento evangélico
cristão protestante. Com preceitos mais
autoritários e coercitivos direcionados
a determinados grupos, esse sistema
doutrinário religioso também é chamado
2
Em 2019, a Marcha para Jesus, um dos maiores eventos
públicos que reúne lideranças e adeptos de várias
denominações e vertentes evangélicas, contou com a
presença do presidente Bolsonaro, numa demonstração
de apoio e unidade junto as pautas estabelecidas por esse
grupo.
411
Agindo diretamente como potência
influenciadora e transformadora da
sociedade, a política bolsonarista e
neopentecostal propaga-se nacionalmente
difundindo e estimulando ações doutrinárias,
repressivas e violentas aos grupos LGBTI+,
PUTA LIVRO
feministas, indígenas, candomblecistas,
associações comunitárias das favelas,
moradores sem terra e sem teto e também
as/os prostitutas/prostitutos.
Este panorama governamental fere
diretamente nossa existência enquanto
grupos dissidentes, pois afeta todos os
A escrita de si
412
consequentemente, sobre muitas outras
narrativas LGBTI+ e, nesse processo
relacional, me ressignifico e me transformo.
Assim procuro um método de reinterpretação
PUTA LIVRO
das minhas individualidades e de empatia
para com as pessoas cis, trans e travestis.
Reconheço as particularidades desse
lugar que ocupo, bem como dessa escrita
pessoal, pois mesmo integrando um grupo
discriminado, entendo os privilégios que
tenho justamente por ser homem, cis e
branco.
Trago tais afirmativas tendo em vista
PUTA LIVRO
oprimidos para copiar as posturas de grupos
opressores.
Assim, apontando essas questões,
evidencio que a escrita de si, a qual me
refiro, tem demarcações, balizas e fronteiras.
No entanto, essas divisórias podem ser
perfuradas por meio de um contexto
relacional feito por cada pessoa que se sente
representada por essa narrativa que expõem
PUTA LIVRO
minha relação familiar.
Itinerários de um taxiboy:
3
Gíria portenha para se referir a trabalhador sexual (gogo
boys, prostitutos, camboy etc).
415
minha formação enquanto GP se consolidou
de maneira autônoma e “autodidata” no
bairro de San Telmo, na frente da boate
KM Zero, Jolie e nos encontros marcados
pelo Grindr. Nesse período, pude vivenciar
PUTA LIVRO
algumas interpelações que estão em
constantes renovações na relação entre
taxiboy e cliente.
Ao voltar pro Brasil, depois de um sério
problema causado por complicações de uma
Hepatite, tive que me reinventar, justamente
porque aqui, em meio aos amigos de longas
datas, eu me sentia muito mais inseguro para
PUTA LIVRO
maiores possibilidades de trabalhos, mais
renda e principalmente, mais experiências
com a prostituição, que vão além da
relação sexual. Por exemplo, sempre que
divulgo meu perfil em redes sociais como
Instagram ou Whatsapp tenho conversas com
inúmeros homens sobre sexo, sexualidade,
masculinidade, pornoerotismo, direitos de
trabalhadores sexuais e LGBTfobia.
417
também há semanas que você perdura horas
e não consegue rentabilizar absolutamente
nada. Ou seja, é como se você navegasse em
um mar de correntes imprecisas.
PUTA LIVRO
Por meio de diversos trâmites nesse
cenário, percebo que ainda opera uma
busca (culto?) por rapazes que reproduzem
masculinidades hegemônicas, no qual o
corpo lido como afeminado é subalternizado
numa escala hierárquica de poder e
aceitação (CONNEL, 2013). Esse modelo de
masculinidade se reproduz constantemente
nos inúmeros clientes que me acionam e de
PUTA LIVRO
sobre este trâmite, provoco o leitor ou leitora
a pensar: No mundo ocidental/ocidentalizado
e capitalista existem profissões que não
impõem modelos de condutas em seus
ambientes de trabalho? Esses arquétipos
comportamentais divergem das condutas
sociais que temos afora deste ambiente de
trabalho? O modo como nos comportamos
PUTA LIVRO
50 anos e que buscam meus programas ou
encontros via webcam para satisfazer fetiches
BDSM, ou porque cultuam o corpo jovem.
Percebo que a busca pela beleza jovem
se funda, nesse contexto, quase como um
cânon.
Nesse sentido por serem homens mais
velhos, por terem condições econômicas
PUTA LIVRO
Dessa forma entendo que há a
indispensabilidade de arruinar/desmoronar
os estigmas construídos socialmente sobre
a prostituição, pois em um mundo onde o
puritanismo e heterogamia determinam os
vínculos de hegemonia e subalternidade,
muitas vezes somos nós, garotos de
programa, que somos colocados em
PUTA LIVRO
paternalista que sempre conclui que o fato de
ser GP ou camboy necessariamente significa
que ou estou passando por um período de
instabilidade emocional e por isso estou
querendo “aparecer”, ou estou vivendo sob
regimes exploratórios. Acho cômico, porque
quando eu falava que era design de vídeo,
ninguém questionava sobre minha profissão,
Considerações finais
PUTA LIVRO
uma ferramenta para conquistar mais clientes
via webcam.
Assim, vou construindo novas
possibilidades de vivências no universo
da prostituição masculina, reconhecendo
meus privilégios e também lutando para a
construção de um lugar menos estigmatizado
para os garotos de programa, camboys,
Referências
PUTA LIVRO
103-117, out. 1998
424
UM MÊS OU MAIS
PUTA LIVRO
DE SAUDADE
Técnica:
Fotografia, registro do sêmen em pote coletor
PUTA LIVRO
Descrição do trabalho:
“Estamos passando por uma pandemia e as
medidas preventivas para combatê-la são:
evitar tocar boca, nariz ou olhos. Se tossir ou
espirrar, usar a região próxima ao cotovelo, e
a principal, evitar espaços públicos e não sair
de casa, se possível”, disse a moça do jornal,
o secretário de saúde, alguma postagem que
WALEFF DIAS
li por uma rede social, não lembro.
AS MEDIAÇÕES
PUTA LIVRO
E AS DIMENSÕES
DO TRABALHO
SEXUAL DIGITAL
HOJE; Perspectivas
comunicacionais
No desenrolar de uma pandemia que
impôs, entre outras ações, medidas de
isolamento social como estratégias para
o manejo da transmissão da COVID-19,
deparamo-nos com um processo de
virtualização da vida cotidiana. Adaptado às
plataformas e às práticas digitais, o trabalho,
agora remoto, tornou-se uma realidade para
diversas profissões não-essenciais. Como
pensarmos o trabalho sexual em um contexto
de virtualidade? Se é verdade que tais
possibilidades laborais não são inéditas, pelo
menos, no atual cenário, tornaram-se uma
frente importante para aquelas e aqueles que
puderam e buscaram reduzir sua exposição
ao vírus. Certamente, muitos trabalhadores
e muitas trabalhadoras sexuais não
interromperam seus trabalhos presenciais,
não apenas pelo medo do desemprego e da
falta de renda, mas sobretudo pelos escassos
auxílio e apoio governamental. Porém, as
realidades digitais do trabalho sexual, ainda
que tenham suas limitações em relação ao
seu acesso, cresceu vertiginosamente no
contexto pandêmico.
Na última década, pudemos observar
que, no que diz respeito ao trabalho
sexual, a internet deixou de ser apenas um
veículo para a divulgação e a articulação
de trabalhadores e trabalhadoras sexuais,
427
aspecto já destacado por Monique Prada, e
passou a ser, sobretudo, um dos possíveis
espaços para o exercício laboral. Em
grande medida, o avanço das plataformas
PUTA LIVRO
digitais, cada vez mais plurais, tem sido
fundamental para essa miríade de opções.
Hoje, aquele que exerce o trabalho sexual
tem à disposição sites de transmissão ao
vivo de vídeo mediante gorjetas (Cam4 e
LiveJasmin, por exemplo); sites de produção
e comercialização via assinatura de conteúdos
visuais e audiovisuais (como o OnlyFans);
428
comunicação na contemporaneidade.
PUTA LIVRO
Uma das primeiras mediações a serem
discutidas é aquela construída ao redor da
dicotomia entre o real e o virtual. Desde os
primeiros avanços das tecnologias digitais,
estabeleceu-se a ideia de que a virtualidade
estaria do lado oposto à realidade. Por
vezes, desenvolveu-se o argumento de que
a primeira emularia a segunda, simulando e
1
Se tomarmos apenas as eleições presidenciais de 2018
como exemplo, nas quais fake news propagadas por robôs
em grupos de WhatsApp foram salutares para a eleição de
Jair Bolsonaro, podemos ver que não há separação entre a
vida mediada por telas e aquela vivida na experiência real.
Ver MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio. Notas de
uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo:
Companhia das Letras, 2020.
429
certa medida, são zonas erógenas a serem
alimentadas pelo erotismo mediado pelas
mídias. Do outro lado da tela, o trabalhador
sexual é aquele que conduz a experiência,
fazendo uso de signos verbais, visuais e
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sonoros, orquestrando o desejo daquele ou
daquela que o procura, finalidade máxima
da troca comercial sexual. A mediação
multimídia não exclui a experiência erótica,
sentida no corpo e ecoada nos meandros da
subjetividade.
Quando pensamos nos trabalhadores e
nas trabalhadoras sexuais, dizer que aquele
430
Quem tem um espaço em casa que possa ser
destinado exclusivamente para esse trabalho?
Quem pode investir em equipamentos de
imagem, som e luz? As desigualdades das
PUTA LIVRO
muitas realidades brasileiras não são de
forma alguma diluídas na virtualidade; pelo
contrário, elas tornam-se ainda mais visíveis.
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da alta cultura erótica (essa, sublime)2, a
pornografia, ao longo dos séculos, foi se
transformando de acordo com o suporte
material que a sustentava. Das gravuras
em livros proibidos e retidos pela censura
nos séculos XVI e XVII às revistas Playboy,
massivamente comercializadas em bancas
de jornal, a pornografia manteve o fascínio
2
Os argumentos que aqui tomo emprestados, para a eles
me contrapor, estão em BRANCO, Lucia Castello.
O que é erotismo? São Paulo: Brasiliense, 1987.
432
da década de 2010. Atualmente, com a
proliferação de plataformas digitais de
produção, circulação e consumo de conteúdo
pornográfico, a grande indústria do pornô
foi se fragmentando, despontando-se novas
PUTA LIVRO
iniciativas independentes, tanto de pequenas
produtoras quanto de profissionais solo. O
set de filmagem adentra o espaço doméstico
e o espaço doméstico torna-se público,
gravado e compartilhado. A sobreposição de
espaços torna os limites entre as áreas cada
vez mais diluídos.
Quando os profissionais do sexo
433
alguma rede social ou plataforma digital?
Haverá mesmo essa necessidade de se
delimitar os profissionais dos amadores,
ainda mais em uma área em que o percurso
pessoal de se reconhecer trabalhador sexual
PUTA LIVRO
conta tanto quanto ou até mais que o
reconhecimento social?
Por um lado, a nova realidade
participativa, fomentada pelas redes,
permite que novas trabalhadoras e novos
trabalhadores sexuais possam iniciar
suas carreiras de forma aparentemente
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deveria ser de graça. Como observamos
em outras áreas laborais, como a música, o
cinema e a literatura, os usuários costumam
não remunerar os seus usos e consumos,
alegando que as plataformas digitais são
espaços de livre troca.
Esse último ponto é extremamente
sensível. Soma-se a ele a supressão do
distanciamento entre o público e o privado
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dinâmicas. Falamos aqui também de outras
redes sociais voltadas ao encontro, como o
Tinder, o Happn e o Hornet.
PUTA LIVRO
cafetão e a nova cafetina da prostituição.
Propiciam a estrutura necessária para a
execução do trabalho sexual virtual, mas, em
contrapartida, cobram um alto custo, como
as taxas abusivas por transação, ou coletam
dados posteriormente comercializados a
terceiros, tarefa que tem a contribuição do
trabalhador ou da trabalhadora e pela qual
437
BARRETO, Victor Hugo de Souza. Os novos territórios da
prostituição masculina. In. OLIVEIRA, Thiago (org.) Homens
no mercado do sexo: reflexões sobre agentes, espaços e
políticas. Salvador: Editora Devires, 2019. p. 77 – 102.
PUTA LIVRO
CANT, Callum. Riding for deliveroo. London: Polity, 2019.
O AFETO QUE
PUTA LIVRO
FAZ POLÍTICA:
trabalhadoras sexuais
unidas resistindo à
Covid-19
O contexto que o mundo todo enfrenta
desde o início de 2020 com a explosão
pandêmica da Covid-19 tem nos obrigado
a nos reinventar e nos coloca diante de
emoções, situações e ações diferentes e
impensáveis. Hoje precisamos viver outras
formas de socialização e de sociabilidade,
com o distanciamento e o isolamento social
obrigatório e o contato físico proibido
estabeleceu-se uma nova maneira de gerir
as relações e o cotidiano, incluindo o uso
das máscaras, a higienização das mãos e as
testagens. Ao mesmo tempo, essas mudanças
para a proteção de infecção do vírus também
obrigaram que as pessoas encontrassem
novas ferramentas para a realização do
trabalho e se adaptassem a elas. De fato,
estas situações nos reposicionam diante
das lutas e de enfrentamentos econômicos,
políticos e sociais, principalmente, quando se
trata de sujeitos que historicamente têm sido
deixados à margem da garantia de direitos.
Neste campo encontramos as trabalhadoras
sexuais (TS) e seus contextos desafiantes que
atravessam a vida, o trabalho e suas lutas
políticas.
As mobilizações coletivas dos grupos
de TS estão inseridas em um amplo processo
de politização das questões relacionadas ao
corpo, gênero, sexualidade, trabalho, saúde
e têm, desde o período de redemocratização
no Brasil por exemplo, pautado, a partir da
439
organização política destes coletivos, um
debate permanente acerca da dissociação
do estigma de puta1 (PHETERSON, 1996;
LEITE, 2009) e valorização da identidade
PUTA LIVRO
das TS. Neste processo, considerando
o cenário brasileiro, diversos grupos,
associações e coletivos têm se organizado
em diferentes cidades e estados pautando e
reivindicando importantes temas e levando
as reivindicações e as vozes das TS para
a sociedade. Atualmente, existem cerca
de trinta organizações de TS e três redes
1
O conceito “puta” é importante para o legado teórico-
político de Gabriela Leite, que o ressignifica, potencializando
suas características de subversão e de transgressão. Já,
para Gail Pheterson, o chamado “estigma de Puta” é uma
categoria que expressa um marcador de “desvalor”, que
tem sido utilizado para se referir às TS e outras mulheres.
E assim para esta autora o movimento de trabalhadoras
sexuais vem desconstruir a negatividade deste conceito. A
organização do movimento de Putas emerge na perspectiva
de transgredir tais concepções, ressignificar o conceito e
fazer irromper modos outros de fazer política.
2
Ver mais detalhes na postagem do Coletivo Puta da Vida:
https://www.google.com/maps/d/u/1/viewer?mid=1kVpkyK
WCMcOm0frKwa5X5ad2M5ITRcQB&ll=13.50063298326286
3%2C-54.390349873632985&z=4 .
440
política de Estado não tem considerado o
campo da garantida de direitos, antes, tem
invisibilizado cada vez mais os corpos na
prostituição. Muitas TS não tiveram acesso ao
auxílio emergencial3 concedido pelo governo
PUTA LIVRO
no período da pandemia. Assim, estas redes
têm se inventado e reinventado com o
objetivo de subsidiar e fortalecer suas vidas,
em distintos contextos, em suas necessidades
de vivência e sobrevivência.
Recorremos neste artigo, em termos
metodológicos, à análise de notícias,
artigos, lives e discursos de TS em eventos
3
Segundo o Decreto n.10316/2020 o auxílio emergencial
era de R$600,00 durante três meses e para todas as pessoas
trabalhadoras autônomos e pessoas de baixa renda. Em 2021,
o Decreto n.1039/2021 definiu que o auxílio emergencial seria
de R$250,00, pago para as mesmas pessoas selecionadas
anteriormente.
4
Desde 2002, o trabalho sexual é reconhecido pelo Ministério
do Trabalho como uma ocupação e adicionou o termo na
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Mesmo que
esse reconhecimento seja importante, pois garante o direito
a contribuição mensal e a aposentaria, na prática, ainda é
pouco conhecida e reconhecida pela sociedade.
de quem exerce o trabalho sexual, suas
441
identidades, cidadania e vozes. Entretanto,
trata–se de uma prática social complexa
e que tem sido historicamente marcada
por muitas diferenças, envolvendo uma
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diversidade de pessoas, performances e
contextos. Vários estudos (PASINI, 2000;
PISCITELLI, 2005; SOUSA, 2012; BARRETO,
2015, SILVA, 2017) têm apontado essa
heterogeneidade quando se trata de
especificar e caracterizar o trabalho sexual,
desse modo, verificamos uma pluralidade
de elementos que o constituem. Nestes
contextos, as TS têm ocupado áreas
442
cenário.
Fica evidente em todas as leituras de
notícias e nas falas das TS a partir de 2020
que a pandemia e a crise mundial também
PUTA LIVRO
impuseram aos movimentos do trabalho
sexual outra maneira de atuação. Lourdes
Barreto (2020), uma das fundadoras da RBP
e coordenadora do Grupo de Prostitutas
do Estado do Pará (Gempac) afirmou em
entrevista para a UOL, em março daquele
ano, que “algumas já estão isoladas, sem
ter o que comer e muitas moram em locais
com um único cômodo. Se isolar é quase
PUTA LIVRO
grandes frentes: na conscientização sobre a
maneira de se prevenir contra a Covid-19 e
de trabalhar (se necessário) com o máximo
de segurança e na organização coletiva de
buscar auxílio financeiro para apoiar aquelas
que mais necessitavam. Em setembro de
2020 a UOL mostrou o trabalho de Santuzza
de Souza, coordenadora do Coletivo Rebu
444
à tona suas urgências. Percebemos dois
movimentos: de um lado, o convite ao
isolamento social como forma de prevenção,
mas de outro, a necessidade de sair e ir
PUTA LIVRO
ao trabalho. Neste cenário, as lideranças
apontaram os modos criativos como se (re)
inventam e denunciam o modo como o
governo e a sociedade as invisibilizam no que
tange ao acesso e garantia de direitos. Fátima
Medeiros, coordenadora da Associação de
Prostitutas da Bahia (Aprosba) e integrante
da Anprosex, ao participar da II Semana da
Diversidade Sexual e Gênero5 em junho de
5
Fátima participou do evento juntamente com Fernanda
Priscila. O Evento foi realizado pela Universidade Estadual
de Alagoas durante o período de 22/06/2020 a 26/06/2020
pela plataforma Google Meet.
contexto, ou seja, à medida que o tempo
445
vai passando estas lideranças e ativistas vão
resistindo e (re)existindo, visto que com o
tempo e o prolongamento da pandemia os
desafios aumentaram. A discussão perpassava
pelo dilema: como deixar de trabalhar se
PUTA LIVRO
elas necessitavam do dinheiro vindo do seu
trabalho e como trabalhar e correr o risco de
ser infectada pela Covid-19? Era preciso se
reinventar! Então, em tempos de pandemia
e na impossibilidade de não deixar de
trabalhar, era preciso recomendar alternativas
de segurança. Assim, para aquelas que
6
Ver detalhes em Pasini 2020.
446
afastamento corporal necessário e a escassez
de ajuda econômica.
Em contexto de pandemia, ainda
que muitas TS tenham mantido o exercício
profissional, outras têm buscado (re)inventar
PUTA LIVRO
a prestação destes serviços, utilizando cada
vez mais as plataformas digitais e redes
sociais, o que colocou um novo desafio
digital para muitas delas. Atenta a essas
questões, a Anprosex7 promoveu encontros
com especialistas sobre esse tema para TS
aprenderem e acessar mais facilmente essas
novas tecnologias digitais. Maria Elias, ainda
em entrevista para a Revista Época afirmou:
7
A Anprosex atuou em um projeto financiado pela
ONU Mulheres com apoio da União Europeia intitulado
“Fortalecer as trabalhadoras sexuais para vencer o
Covid-19”. A chamada foi uma proposta voltada à
implementação do Plano de Contingência diante da
pandemia da Covid-19 do projeto “Conectando Mulheres,
Defendendo Direitos” e à implementação do Plano
Estratégico e Nota Estratégica da ONU Mulheres para o
Brasil.
é simples no contexto do trabalho sexual.
447
Muitas vezes, ouvimos importantes debates
sobre a obrigação do uso de máscaras
durante os programas e a dificuldade
disso, sem esquecer que quase sempre os
PUTA LIVRO
programas acontecem em locais pequenos e
sem muita circulação do ar, inseguros para a
proteção de uma possível transmissão. Aline
Lopes, integrante da Anprosex, falou para
uma matéria à Marie Claire em março de
2021:
O que significa, no entanto, tomar maior
cuidado, quando a matéria-prima do
PUTA LIVRO
Trans(A)ções possíveis
em tempos de pandemia
PUTA LIVRO
forma de engajamento de autotransformação
(hooks, 2019, p. 45). Falar como ato de
resistência! A voz que é dita e anunciada
expressa as diversas linguagens como lugares
de lutas. As vozes presentes neste texto são
de TS, ativistas e lideranças do movimento
de pessoas que exercem o trabalho sexual,
denunciando as ausências e os silêncios e
PUTA LIVRO
reivindicam seus lugares de protagonistas
de suas histórias, elas nos afirmam o seu
pertencimento à sociedade. A Puta que fala
e coloca a boca no trombone fala de todas
as mulheres e todos os corpos que têm sido
controlados por uma sociedade branca,
heteronormativa, homofóbica, racista e
sexista.
Referências
451
Horizonte. 2008. 154 f. Dissertação (Mestrado) – Programa
de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de
Minas Gerais, Belo Horizonte, 2008.
PUTA LIVRO
história: prostituição e feminismos em Belo Horizonte. Tese
(doutorado interdisciplinar) - Universidade Federal de Santa
Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa
de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas,
Florianópolis, 2015.
452
PASINI, Elisiane. “Corpos em evidência”, pontos em ruas,
mundos em pontos: a prostituição na região da Rua Augusta
em São Paulo. Dissertação de Mestrado Antropologia.
Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2000.
PUTA LIVRO
PASINI, Elisiane. Nós existimos: reflexões sobre o trabalho
sexual e covid-19 no Brasil. Viomundo, 14 abril 2020.
Disponível em: https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/
em-depoimentos-a-antropologa-elisiane-pasini-prostitutas-
falam-sobre-o-trabalho-e-a-vida-em-tempos-de-covid-19-no-
brasil-nos-existimos.html
PUTA LIVRO
ELISIANE PASINI E FERNANDA PRISCILA ALVES DA SILVA
454
PAULA LAUFFER
PUTA LIVRO
POLÍTICA DO
PUTA LIVRO
AFETO: Relatos de
experiências sobre o
Fundo de Emergência
gestado por e para
Trabalhadoras Sexuais
456
realização de projetos.
Nos dias 04 e 05 de março, ocorreram
os dois primeiros dias de encontros coletivos
desse terceiro processo, que contemplou 45
PUTA LIVRO
mulheres TS entre cis, trans e travestis.
Através de dinâmicas traçamos múltiplos
pontos temáticos que resultaram na formação
de pequenos grupos para a execução de
projetos e ações que seriam elaboradas
pelas trabalhadoras, junto com o processo
de mentoria das integrantes da equipe Mina.
As 45 participantes foram divididas em nove
1
A Escola de Ativismo é um coletivo independente
constituído em 2012 com a missão de fortalecer grupos
ativistas por meio de processos de aprendizagem em
estratégias e técnicas de ações não-violentas e criativas,
mobilização, e cuidados integrais, voltadas para a defesa
da democracia, dos direitos humanos e da sustentabilidade.
Para conhecer mais acesse https://escoladeativismo.org.br
457
de biossegurança no município (Decreto nº
17.298/2020). As medidas eram de políticas
de contenção e distanciamento social, como
o cancelamento das aulas na rede municipal
de ensino e a suspensão de eventos públicos
PUTA LIVRO
e privados com potencial de aglomeração.
Já no dia 20 de março teve a paralisação do
comércio e outras atividades não essenciais
(Decreto nº 17.304/2020) (ANDRADE et al.,
2020).
Com essas medidas de contenção,
o mercado do sexo em BH ficou muito
prejudicado, com a falta de circulação de
458
participantes, foi oferecido um auxílio
internet para colocarem nos aparelhos
móveis e manter a participação e o diálogo
com todas. Além disso, os próprios projetos
PUTA LIVRO
também mudaram a forma de realizar suas
ações e suas atividades, a fim de respeitar
o contexto pandêmico e a biossegurança:
realização de atividades online, como “lives”;
utilização e criação de redes sociais; rodas de
conversa online; gravação de vídeos; estudos
sobre fake news; montagens de kit de higiene
para combate a covid-19 e outras atividades.
459
da Jornada procuraram a equipe Mina
para levarem a ideia de utilizarem todos
os recursos dos projetos para a compra
de cestas básicas e outros alimentos para
PUTA LIVRO
suas colegas. Como a ideia do Projeto
Mina é fomentar o ativismo e processos de
aprendizagens, propomos às trabalhadoras
que utilizassem os recursos que não seriam
utilizados para realizar seus projetos para a
criação do Fundo de Emergência (FE).
Metodologia: da
experiência à escrita
PUTA LIVRO
a formação do grupo que seria responsável
pelo Fundo de Emergência. Para a gestão do
fundo, um novo grupo foi formado e utilizaria
os recursos para aportar apoios emergenciais
às Trabalhadoras Sexuais. A escolha das
participantes para a criação do grupo do FE
foi por meio da escolha de uma representante
de cada um dos nove grupos temáticos
PUTA LIVRO
para mães de crianças pequenas, famílias
e moradias compartilhadas. Depois da
construção deste acordo, estabeleceu-
se como esse recurso disponibilizado pelo
Projeto Mina seria utilizado e, partimos para
a prática. Decidimos comprar cestas básicas,
cesta de frutas e legumes, kits de higiene,
compra de botijão de gás e pagamento de
PUTA LIVRO
esse processo o Projeto Mina foi acionado
pela Organização Não Governamental
FA.VELA com a disponibilização de 70
cartões alimentação para serem distribuídos
entre TS mulheres cis, trans e travestis.
Um novo mapeamento começou, contudo,
começaram a surgir conflitos. A pandemia,
a cada mês, expôs as desigualdades
existentes e afetou muito a população dessas
PUTA LIVRO
luz, água ou compra de botijão de gás. As
entregas foram feitas pelas representantes
integrantes do fundo, que levaram
diretamente as TS atendidas por meio de
carreto, com ajuda de motoristas voluntários
ou Uber, em Belo Horizonte e Região
Metropolitana (Ribeirão da Neves, Santa
Luzia e Sete Lagoas).
PUTA LIVRO
da AIC. Realizamos novos mapeamento e
as distribuições no Mercado da Lagoinha
como na segunda ação. Nesta ação o
recurso do fundo foi utilizado para compra
de cestas e também complementar com
outras necessidades: verduras, legumes,
fraldas, leite em pó, kits de higiene,
carreto para entrega de doações, para
Da experiência à reflexão:
PUTA LIVRO
do presente artigo como forma de explorar
esse novo conceito e partilhar as experiências
que deram forma e nome ao processo gerado
pela criação e força das TS no Fundo de
Emergência.
A Política do Afeto:
a experiência da representante-autora
466
fome!
No Brasil, infelizmente, muitas pessoas
se aproveitam do trabalho voluntário e da
promoção da solidariedade para lucrar em cima
PUTA LIVRO
do sofrimento e da miséria humana (BIANCHI,
2005). Mas em especial, nesse momento de
pandemia em que muitas pessoas morreram,
perderam emprego e renda; a pobreza e
miséria aumentaram. Realizar esse trabalho
voluntário e receber o afeto e o carinho de
outras trabalhadoras sexuais despertou em
mim a noção de que eu também posso falar
Considerações Finais:
PUTA LIVRO
compreendidos como um bem comum.
O acompanhamento da mentoria
da equipe Mina para coordenar reuniões,
gerenciar e mediar conflitos foram essenciais
para que fosse estabelecido entre as
participantes do FE e dos grupos temáticos
uma relação de cooperação, afeto e respeito
dentro de um espaço que também acontecia
468
por nós”, uma construção que não foi de
cima para baixo, mas uma política nossa.
Percebemos que a luta pela sobrevivência
pode ser uma faísca para senso de agência e
PUTA LIVRO
transformação. Desejamos com esse artigo,
divulgar essa experiência do Fundo de
Emergência com o desejo que mais processos
educacionais como esse aconteçam.
PUTA LIVRO
abr. 2021.
TRANSG-
PUTA LIVRO
PROSTITUIÇÃO
VIRTUAL E VIOLÊNCIA
DE GÊNERO NA ERA
DIGITAL: NOVOS
DESAFIOS
Introdução
PUTA LIVRO
relacionados ao tema. Posteriormente, por
meio da pesquisa documental, foram também
levantados dados e números concretos.
1
Conforme estabelece o art. 75-B, da CLT.
472
celular (TOSCANINI, 2018, p. 46). Aqui,
entretanto, especificar-se-á os novos desafios
enfrentados pelas mulheres: cis, transgêneras
e travestis, tendo em vista que tomar-se-á
uma perspectiva de análise a partir do gênero
PUTA LIVRO
feminino.
Nessa linha, Monique Prada (2018, p. 83)
explica que “a migração da prostituição de
rua para os anúncios de jornal, e dos anúncios
de jornal para a internet, acontece no Brasil
no final do século XX a partir do uso de
chats para intermediar relações ocasionais”.
Através dos chats, as mulheres divulgavam
PUTA LIVRO
a cuestiones de género y sexualidade y, más
espeíficamente, sobre prostituición” (ALLES;
COGO, 2014, p. 347-348).
PUTA LIVRO
dos criminosos - os quais, na prática, quando
existem, dificilmente são punidos [...]”.
No meio científico, percebe-se
igualmente uma tendência de colocação da
trabalhadora sexual na posição de vítima de
crimes contra a liberdade sexual, enfatizando
estereótipos discriminantes em relação à
profissão, que visualizam a prostituição como
PUTA LIVRO
baixos de escolaridade e de poder aquisitivo,
o que demonstra que a definição de seu perfil
se baseia em desigualdades de classe, cor
e gênero que simbolizam ofensas aos seus
direitos como ser humano (LIMA et al., 2017,
p. 6-8).
Em relação às mulheres transgêneras e
2
Brasília, Rio de Janeiro, Salvador, Santos, Itajaí, Belo
Horizonte, Manaus, Recife, Curitiba e Campo Grande.
476
A violência virtual de gênero
e os crimes cibernéticos
O desenvolvimento tecnológico,
PUTA LIVRO
juntamente com diversas mudanças no
meio social, trouxe consigo os cibercrimes,
novas formas de agressão que atingem
não somente bens jurídicos no âmbito
patrimonial, mas também direitos humanos
fundamentais, como o direito à imagem e a
honra das pessoas (SILVA, 2018, p. 31).
Nesse sentido, consoante ensina Phillipe
Silva (2018, p. 31), “a facilidade do sigilo para
477
procedência.
Quanto aos meios empregados para
cometimento da violência, o relatório
realizado em contribuição conjunta do Brasil
PUTA LIVRO
para a relatora especial da Organização
das Nações Unidas sobre violência contra a
mulher (CODING RIGHTS; INTERNETLAB,
2017, p. 18-19) compila alguns, dos quais
pode-se citar primeiramente a censura, que
envolve bloqueio de postagens em redes
sociais através de denúncias coordenadas;
bloqueios de perfis devido a denúncias
baseadas na “política de nome real”, em
478
física (CODING RIGHTS; INTERNETLAB,
2017, p. 18). Nesses casos, a depender da
situação em concreto, as condutas podem ser
enquadradas no tipo penal de ameaça3 e nos
PUTA LIVRO
crimes contra a honra4.
Mais que isso, aponta-se o discurso de
ódio, que pode tomar forma em comentários
misóginos, transfóbicos, lgbtqfóbicos e
racistas. Importante salientar que o racismo,
ou seja, preconceito ou discriminação que
envolva cor, raça, etnia ou procedência
nacional, constitui crime, conforme a Lei n.
3
Art. 147, do Código Penal.
4
Arts. 138, 139 e 140, do Código Penal: calúnia, difamação e
injúria.
479
(2018, p. 45) assinala que, diante de más
avaliações, existe a possibilidade de entrar
em uma “lista negra”, o que seria prejudicial
ao perfil da trabalhadora sexual, que tem
como opção alterar o nome profissional, as
PUTA LIVRO
fotos e o contato. Prada (2018, p. 86), ao
compartilhar de sua experiência pessoal nos
Fóruns, todavia, assinala que tais ambientes,
apesar de insertos em um mundo misógino
masculino, permitem em geral interações
positivas com os clientes.
Outras formas de violência de gênero
perpetradas no meio virtual são a exposição
480
do sexo5.
Além disso, o art. 216-B do Código
Penal prevê outro ilícito criminal, relativo
à exposição eletrônica clandestina da
PUTA LIVRO
intimidade (SILVA, 2018, p. 41), o qual se
consubstancia no registro não autorizado da
intimidade sexual, englobando a produção,
fotografia, filmagem ou registro, através de
quaisquer meios, de conteúdo com cena de
nudez ou ato sexual ou de caráter íntimo
e privado libidinoso, sem a autorização de
quem participa. Logo, o registro do programa
5
Art. 218-C, §1º, do Código Penal.
6
Art. 216-B, parágrafo único, do Código Penal.
481
provedor, de forma privada, para que remova
a publicação, tornando-se este responsável
subsidiariamente caso não o faça em tempo
razoável, conforme prevê o art. 21 do Marco
Civil da Internet7.
PUTA LIVRO
Finalmente, o crime de perseguição
constitui uma nova modalidade de delito,
abarcada pelo ordenamento jurídico penal
através da Lei n. 14.132, de 2021. Também
denominado stalking, é admitido em sua
configuração cibernética e caracteriza-se pela
perseguição de alguém, de modo reiterado,
e de forma a ameaçar sua integridade
Considerações Finais
7
Lei n. 12.965, de 2014.
os sexuais, as vítimas femininas são
482
constantemente culpabilizadas. Isso porque
“a mulher seria [...] a principal responsável
por resguardar sua sexualidade, sua imagem
e boa fama, pois é a principal culpada
por qualquer tipo de exposição que a
PUTA LIVRO
envolva, ainda que isso ocorra sem o seu
consentimento” (SILVA, 2018, p.43).
As profissionais do sexo, em especial
aquelas que já têm suas imagens divulgadas
nos meios digitais, têm maior dificuldade
no reconhecimento social das agressões
virtuais que contra elas são perpetradas.
Em um mundo adaptado à prostituição
Referências
PUTA LIVRO
LIMA, Francisca Sueli da Silva et al. Fatores Associados à
Violência Contra Mulheres Profissionais do Sexo de Dez
Cidades Brasileiras. Cadernos de Saúde Pública. Rio de
Janeiro, v. 33, n. 2, p. 1-16, mar. 2017. FapUNIFESP.
Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-311X2017000205010&lng=pt&tlng=pt.
Acesso em: 14 fev. 2021.
PUTA LIVRO
23 abr. 2021.
PUTA LIVRO
Ferramentas de trabalho
Lápis de cor e hidrocor sobre papel ofício
486
CARLA BEATRIZ CAMPOS
ENTRE OS MERCADOS
PUTA LIVRO
DO SEXO E A
PANDEMIA: um
estudo com mulheres
profissionais do sexo
em um serviço de saúde
na cidade de São Paulo
Introdução
1
Entre profissionais da saúde e profissionais do sexo: Um
estudo sobre prostituição e direitos sexuais em um serviço
de saúde especializado em IST-HIV/Aids. Dissertação de
mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
(PPGCS), Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), 2022.
Orientação: Profa. Dra. Cynthia Andersen Sarti.
me permitiu refletir sobre a complexidade de
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realizar uma pesquisa etnográfica presencial
com prostitutas e profissionais da saúde
em meio à pandemia da COVID-19. A partir
do trabalho de campo foi possível refletir
PUTA LIVRO
também sobre a pluralidade de dinâmicas
de trabalho sexual e a diversidade dos
mercados do sexo existentes na cidade, tal
como relatadas pelas mulheres no serviço de
saúde. Além disso, as entrevistas realizadas
com estas mulheres me possibilitaram discutir
como elas lidaram com os primeiros meses de
pandemia, e como a oferta e demanda por
trabalho e serviços sexuais foram afetados
2
Utilizo o termo “profissionais do sexo” em itálico como
forma de demarcá-lo como um termo êmico, isso é, utilizado
em campo pelos profissionais de saúde. Porém, como será
visto adiante, observei entre as mulheres entrevistadas uma
diversidade de nomenclaturas utilizadas para se referir ao
trabalho sexual. Cabe afirmar como o uso de diferentes
nomenclaturas abrange distintos significados e moralidades
que se dirigem ao universo da prostituição e do trabalho
sexual.
3
Destas, seis mulheres cisgêneras e uma mulher transexual.
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quando ainda não havia vacina, foi necessário
adotar uma série de cuidados e protocolos
de distanciamento social implementados
pela instituição de saúde, a fim de resguardar
a segurança de todas as pessoas, como: o
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uso obrigatório de máscaras durante toda a
presença no local; a necessidade de manter
as salas e consultórios constantemente
ventilados e durante todas as conversas, com
janelas ou portas abertas; o uso contínuo
de álcool em gel, e, principalmente, a
manutenção do distanciamento físico de
um metro e meio a cada interação. Havia
1. Referenciais teóricos
e o problema da pesquisa
4
Números dos pareceres de aprovação do projeto de
pesquisa nos Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) da
universidade e da instituição de saúde: 4.099.383/4.253.739.
489
A proposta da pesquisa foi
concebida tendo em vista o processo de
“cidadanização” (OLIVAR, 2012; TEIXEIRA
RODRIGUES, 2009) pelo qual a prostituição
passa na atualidade, no qual ela deixa de ser
debatida exclusivamente como problema
PUTA LIVRO
de violência e criminalidade, e passa a
ser tratada dentro da esfera de direitos,
visando a ressignificação da imagem da
mulher prostituta, e, consequentemente,
o enfrentamento do estigma que recai
sobre ela. Como parte disso, é notória
a consolidação do novo movimento de
490
(ÁVILA, 2003, p. S466), e permitem “tratar a
sexualidade e reprodução como dimensões
da cidadania e consequentemente da vida
democrática” (Ibidem, p. S466). Contudo, há
PUTA LIVRO
um potencial moral contido neles, uma vez
que na atualidade eles ajudam a transformar
os critérios que delimitavam o bom e o
mau na sexualidade, de modo que estes se
desloquem dos princípios de reprodução
biológica para “a promoção do bem-estar
individual e coletivo através do bom uso dos
prazeres” (CARRARA, 2015, p. 329).
Não obstante, refletir a relação entre
PUTA LIVRO
e nos movimentos feministas. Desta forma,
meu interesse se dirigiu especialmente ao
aspecto simbólico desta questão, ou seja,
pensar os olhares sociais que se dirigem à
prostituição, e o que ela significa e representa
socialmente nos distintos discursos que
a envolvem e a nomeiam. Falo aqui da
importância de se discutir o lugar social e
simbólico (MAUSS, 2003) associado à figura
2. Garota de programa,
acompanhante e profissional do sexo:
a diversidade de nomenclaturas e
dinâmicas de trabalho sexual
percebidas a partir do ambulatório
A diversidade de nomenclaturas
Algo que ficou claro durante a pesquisa
de campo foi que as mulheres que conheci
usavam diferentes nomes para identificar o
seu trabalho com sexo, sendo mais comum
se identificarem como garotas de programa
ou acompanhantes. Não era usual que elas
se identificassem como prostitutas, e o
uso dessa palavra parecia ter um sentido
pejorativo naquele ambiente. Além disso,
elas também usavam diferentes nomes
para se referir aos atos que acompanham
sua atividade, que podiam ser programas,
encontros ou reuniões. Os profissionais de
saúde, por sua vez, as identificavam como
profissionais do sexo, termo que eu por vezes
também utilizei, por estar inserida naquele
ambiente, além de nele poder ser abrangida
a diversidade de identidades e trabalhos
com sexo que essas mulheres apresentavam.
Cabe mencionar, porém, que posteriormente
também passei a refletir sobre os significados
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e moralidades implícitos na escolha das
nomenclaturas, considerando especialmente
como algumas delas poderiam adquirir
sentidos higienizantes e moralizantes sobre a
prostituição e as formas de trabalho sexual.
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Como será visto a seguir, a diversidade
de nomes para referir-se ao trabalho
sexual parecia acompanhar a diversidade
de dinâmicas de trabalho que as mulheres
relatavam. Nesse sentido, a preferência
por um determinado nome possivelmente
expressa também o sentido que a mulher
dá a seu trabalho. Natália, por exemplo,
3. A diversidade de dinâmicas
de trabalho
PUTA LIVRO
sendo quatro delas ao total. Entre elas,
não parecia haver uma distinção clara entre
ambos os trabalhos. Ao contrário, pude
perceber, na similaridade de seus relatos,
que a dinâmica de trabalho que descreviam
parecia seguir um padrão, articulado a
partir de três grandes frentes: a presença
nas redes sociais, a participação em filmes
pornográficos e a realização de programas. O
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eu vou levar uma amiga para ela organizar isso.
(Natália)
4. Os impactos da pandemia
no trabalho sexual
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Convém mencionar que há uma vasta literatura sobre
a discussão da prostituição e da oferta de outros
serviços sexuais como trabalho, o que inclui algumas das
bibliografias citadas neste texto (Alvarez, G.; Teixeira
Rodrigues, M, 2001; Corrêa & Olivar, 2014; Bonomi, 2019),
e motivo pelo qual também faço uso dos termos “trabalho
sexual” e “trabalhadora sexual”.
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todas as mulheres com quem conversei
estavam trabalhando com os programas,
a produção de filmes pornográficos e/ou
conteúdo erótico para as redes sociais. Tendo
isto em vista, pude perceber que aderir ao
PUTA LIVRO
isolamento social por muito tempo não era
algo tangível à realidade delas, ainda que
algumas tenham chegado a parar de trabalhar
durante os primeiros meses de pandemia. A
maioria delas, porém, voltou a trabalhar ainda
no primeiro semestre de 2020. No geral, a
necessidade financeira parecia sobrepor-
se ao medo e ao perigo representados pela
PUTA LIVRO
Eu pensei que esse ramo ia acabar. Eu falei:
“não, quem vai querer encontrar uma garota de
programa?”. Tem todo um contato, sabe? Ela
tem contato com várias outras pessoas, então
eu achei que esse ramo ia falir. Mas que nada!
Continuou. (Carolina)
Conclusão
PUTA LIVRO
não era viável aderir ao isolamento social. A
questão que emergiu como principal naquele
momento foi, portanto, a escolha entre se
expor ao vírus da COVID-19 ou deixar de
trabalhar. Porém, dado que a pandemia ainda
é um evento presente, uma diversidade
de outras questões podem desdobrar-se
Referências
PUTA LIVRO
GREGORI, Maria Filomena. Relações de violência e
erotismo. Cadernos Pagu, (20), 87-120. 2003. Disponível
em: https://dx.doi.org/10.1590/S0104-83332003000100003.
Acesso em 20 ago 2020.
PUTA LIVRO
Queria sentir os abraços mas não
era mais possível.
Queria beijar tua face e receber
um beijo na testa de volta.
Mas não nos era mais possível.
Só podia te ver ao longe, pra minha
segurança psicológica e até física.
Que tempos terríveis estou vivendo
Como será que está sendo para você
esse nosso afastamento?
Fui me habituando e como algumas
coisas com o tempo deixam de ser
corriqueiras esse nosso distanciamento
físico e isolamento social passou a ser
visto por mim como minha condição
natural por conta de minhas “escolhas”
como vocês diziam.
Ser quem sou era difícil até pra mim
pois precisava rever valores que me
foram ensinados desde muito criança.
Me desfazer de toda minha vida
construída e estruturada por vocês.
Passamos a ser então vocês e eu.
Não éramos mais nós e nunca mais
seríamos.
Passei fome, frio, sede, dormi algumas
vezes nas ruas.
Me espancaram e eu me
perguntava:
Cadê vocês pra me ajudar
nesses momentos difíceis?
Afinal vocês diziam:
Somos família e temos que estar
juntos sempre.
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Mas esses laços eram tão frágeis, que
bastou minha sexualidade ser
diferente da de vocês, ou eu fazer uma
escolha por uma identidade de gênero
que vocês julgavam incompatível com o
PUTA LIVRO
que desenharam como meu futuro, e
nossos laços,
que vcs diziam tão fortes, se romperam.
E de família vocês foram meus primeiros
algozes.
A dor e o tempo passaram.
Me encontrei com minha comunidade e
apesar de nossas diferenças, agora tinha
INDIANARAE SIQUEIRA
uma família novamente.
E assim o tempo passou, foi passando
cada vez mais.
Sentia cada vez menos faltas dos beijos
e abraços de vocês e das preocupações
que sabia que vocês já não tinham mais
por mim, ou comigo.
Será que pensam em mim nesse
momento?
Sim, nesse momento em que um vírus
devasta a humanidade será que pensas
se estou com vida ainda?
Eu penso em vocês e me preocupo
como devem estar. Se estão bem, se
cuidando, se alimentando… se tem
alimentos pra isso.
Sim, lembrei de vocês, coisa que há
muito tempo não fazia, mas não por
haver esquecido e sim por haver
guardado vocês em um lugar de minhas
memórias, que peguei o hábito de não
visitar tanto.
Nesse momento em que um vírus mortal
ataca a humanidade, meus pensamentos
se voltam pra vocês.
Sim, sei que em alguns momentos vocês
prefeririam ter filhe bandido, criminoso,
do que alguém como eu, e que
preferiam minha morte.
Mas não consigo não pensar em vocês
pai, mãe, irmãs, irmãos nesse momento.
Queria ao menos saber que estão bem.
Queria, talvez, se possível, voltar e
501
cuidar de vocês.
Pode ser à distância mesmo.
Pais, família... esse isolamento social
que vocês estão vivendo nesse
momento é o mesmo que vocês me
impuseram por ser LGBTIA+ e a
PUTA LIVRO
sociedade se fechou também pra mim.
Eu e minha comunidade sempre vivemos
um LOCKDOWN.
Mas nesse momento estou disposte
a esquecer tudo pra que possamos
nos ajudar.
Temos a oportunidade de apagar o
passado e reescrever a humanidade pra
INDIANARAE SIQUEIRA
ver se dessa vez dá certo.
Estendo então, nesse momento, minhas
mãos, mesmo sem podermos nos tocar,
e a ajuda de minha comunidade
a todes vocês.
Que o mundo nunca mais volte à
normalidade.
O “normal” feriu, matou, excluiu,
explorou, escravizou, guerreou e quase
destruiu o planeta com bombas
atômicas que, não obstante o poder
de destruição dessas, foram aperfeiçoar,
com bombas de nêutron e armas mais
“sofisticadas”, precisas e mortais.
PUTA LIVRO
22/04/2020
PUTA LIVRO
privilégio. Mas cá entre nós, tú tinha um
carinho diferenciado por mim, rsrs, eu sei
e muita gente percebia, eu continuo com o
mesmo sentimento por ti, acho que até mais,
pq a saudade da gota nunca passa e cada dia
lembro mais, #GabrielaLeite vive firme, etha
lasqueira, saudade da gota!
FÁTIMA MEDEIROS
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PAULA LAUFFER
PUTA LIVRO
PUTA LIVRO
Universidade Federal Fluminense, integrante do
Labhoi – Laboratório de História Oral e Imagem e
do Coletivo Puta Davida.
PUTA LIVRO
das Mulheres (UniDomBosco) e pós-graduanda
em Direito Internacional e Direitos Humanos (PUC
Minas), é autora do livro Síndrome de Estocolmo
e Violência Doméstica contra a Mulher: restrição
à liberdade psicológica. Contato: anapzapelini@
gmail.com
PUTA LIVRO
dessa mesma vivência.
PUTA LIVRO
capoeirista, poetisa e mãe de quatro. Como
ela também disse, elegeu a prostituição “como
trabalho (porque) minha realidade é a liberdade
... na prostituição eu encontrei tudo isso. Você vai
para onde você quer, na hora que quer, batalha o
dia que quer”.
PUTA LIVRO
e organizadora do grupo “Puta diálogos:
potencializando os estudos sobre o trabalho
sexual”.
PUTA LIVRO
e Filha, Mãe, Avó e Puta (2008), que foi adaptado
para o teatro e agora está sendo adaptado para o
cinema. Em 2010, ela fez história ao ser a primeira
prostituta a se candidatar ao Congresso nacional.
Gabriela nos deixou em 2013, mas a puta
revolução que ela começou continua.
512
urbana que fez parte da Frente Internacionalista
de Sem-Tetos (FIST) e agora QUILOMBOLA.
Idealizadore da REBRACA LGBTIA+ uma
rede de 28 casas seguras e de acolhimento
PUTA LIVRO
para LGBTQIAPNB+ em todo o Brasil filiada a
Alianza Diversa de Casas de Acolhimento para
LGBTIAQPNB+ das Américas e países do Caribe
, idealizadore da REDE NEM DE EDUCAÇÃO,
GERAÇÃO DE RENDA E ACOLHIMENTO
PARA LGBTIAQPNB+ (RENEGRA) ,ume des
fundadores do Fórum De TransVestiGeneres do
RJ e da Frente LGBTIAQPNB + do RJ, ume des
organizadores da Marcha das Vadias no Brasil e
da Marcha da Visibilidade Trans e idealizadore da
Univerdivercidade Nem Davida. Foi expulse do
PSOL por lutar contra o machismo, LGBTIfobia,
racismo, aidsfobia, capacitismo, etarismo,
sexismo, especicismo, aporofobia, psicofobia
entre outras opressões. É TransVestiGenere
(palavra que criou pra se autodefinir e hoje usada
pela comunidade trans), é Trãe (Transvestigeneres
Reunides no Acolhimento de Excluides) palavra
que indica o lugar de cuidado binárizado
como masculino e feminino de pai e mãe. É
indiafroeuramericane, vegane, ateie, pute,
politique, anticapitaliste, anti- racista,anti-
facista e poetise. Seus escritos e ativismo estão
presentes em suas páginas nas redes sociais. É
internacionalmente conhecide pelo seu ativismo
através dos filmes INDIANARA e ACONCHEGO
DA TUA MÃE.
PUTA LIVRO
Psicologia clínica pelo núcleo da subjetividade
na PUC/SP; doutorando pela USP no programa
Diversitas da FFLCH; idealizador dos cursos livres
Literatura e cosmopolítica; atualmente trabalha
mediando os grupos de estudos Psicanálise para
além do Édipo, Animismo e sonho e atuando
como psicanalista em São Paulo.
PUTA LIVRO
LILIAN TATIANA DE BARRO é graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Pará (UFPA) .É professora de Sociologia na rede
pública estadual de ensino de Minas Gerais.
É Trabalhadora Sexual do ramo da Massagem
Tântrica. Atua em pesquisas sobre Gênero, Corpo
e Sexualidade.
PUTA LIVRO
poeta Aziel.
PUTA LIVRO
NÉLSON RAMALHO nasceu em Lisboa a 21
de agosto de 1981. Licenciou-se e doutorou-
se em serviço social pela Universidade Católica
Portuguesa e pelo Iscte - Instituto Universitário
de Lisboa, respetivamente. É professor auxiliar
na Universidade Lusófona onde leciona várias
unidades curriculares no Instituto de Serviço
Social. É assistente de investigação no Centro
de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-
Iscte), tendo escrito várias publicações sobre
sexualidade, gênero, transgênero, trabalho
sexual, pobreza, exclusão social e serviço social.
Ativista pelos Direitos Humanos, colabora em
projetos de investigação e intervenção social com
trabalhadores do sexo. É membro da direção da
delegação de Lisboa, Tejo e Sado da Associação
para o Planeamento da Família e integra a
Rede Sobre Trabalho Sexual. A sua tese de
doutoramento sobre a realidade da prostituição
travesti foi distinguida, em 2019, com o “Prémio
APAV para a Investigação” e, em 2020, com o
“Prémio Silva Leal”.
PUTA LIVRO
member do Red Umbrella Fund.
PUTA LIVRO
representações LGBT na canção brasileira” (2016),
“Questões LGBT e música brasileira ontem e
hoje” (2020) e “Marina Lima: Fullgás. O livro do
disco” (2022).”
PUTA LIVRO
SORAYA SILVEIRA SIMÕES é antropóloga,
professora do IPPUR-UFRJ, pesquisadora
associada do Laboratório de Etnografia
Metropolitana/LeMetro/IFCS-UFRJ e
coordenadora do Observatório da Prostituição/
UFRJ. Trabalhou em Davida - prostituição, direitos
civis, saúde e atua junto a Rede Brasileira de
Prostitutas desde 2000.
PUTA LIVRO
Teorias Jurídicas Contemporâneas com ênfase
em Sociedade, Direitos Humanos e Arte, com sua
tese investigando as condições de trabalho das
profissionais do sexo em alguns dos principais
espaços de comércio do sexo na cidade do
Rio de Janeiro. Trabalhou no Laboratório de
Direitos Humanos da UFRJ e em projetos do
Observatório da Prostituição em parceria com
o Coletivo PutaDavida e a Rede Brasileira de
Prostitutas. Agora, como estudante de doutorado
no programa de Estudos Urbanos Globais, seu
objetivo é continuar sua pesquisa sobre a indústria
do sexo e as maneiras pelas quais a aplicação da
lei e das políticas influenciam a vida das mulheres
na profissão.