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CIBERFEMINISMO: EFEITOS DO DISCURSO FEMINISTA A PARTIR DE

UMA ETNOGRAFIA DIGITAL

Bianca Carolline Oconoski Zarpellon*


Kátia Alexsandra dos Santos**

RESUMO: As novas tecnologias e o advento da internet vêm transformando a forma


como as pessoas se relacionam, rompendo limites entre o espaço público e o espaço
privado. Nesse sentido, movimentos sociais, como o feminismo, têm se apropriado do
espaço digital, o que tem reconfigurado formas de ativismo. Assim, este trabalho teve
como objetivo compreender os efeitos do ciberfeminismo a partir de uma perspectiva
discursiva e etnográfica, bem como descrever os alcances e limites dessa forma de
ativismo, discutindo quais são os efeitos online e off-line dos discursos mobilizados pelas
ciberativistas. Os dados foram coletados através da inserção em uma página e um blog
feministas e também por meio de entrevista com as duas administradoras desses
ambientes online. As conclusões apontam para uma heterogeneidade de discursos nesses
espaços, que se configuram, portanto, como lugares de estabilização, mas também de
deslizamento.

ABSTRACT: The new technologies and the rising of the internet have been transforming
the way people connect to each other, breaking the boundaries between the public and
the private space. In this regard, social movements, such as feminism, have appropriated
digital space, which have reconfigured forms of activism. Therefore, this research aimed
to understand the effects of cyberfeminism from a discursive and ethnographic
perspective, as well as describe the range and limits of this form of activism in order to
discuss the online and offline effects of discourses mobilized by cyberactivists. The data
were collected through the insertion in a feminist page and a blog and also through an
interview with the two administrators of these online spaces. The conclusions indicate to
a heterogeneity of discourses in these spaces, which, thus, constitute places of both
stabilization and sliding.

PALAVRAS-CHAVE: Feminismo; Ciberativismo; Análise do Discurso.

KEYWORDS: Feminism; Cyberactivism; Discourse Analysis.

INTRODUÇÃO

As novas tecnologias de comunicação e interação a partir da internet vêm transformando


a forma com que as pessoas se relacionam, perpassando várias esferas de suas vidas,
ultrapassando os limites entre suas vivências públicas e privadas (FRAGOSO;

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RECUERO; AMARAL, 2011). Atualmente, existe uma grande apropriação das
Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) pelos movimentos sociais, o que, de
diversas formas, vem reconfigurando o modo com que esses movimentos se organizam e
se mobilizam, seja via internet ou não.

A esse movimento, dá-se o nome de ciberativismo, que se caracteriza como “reflexões


sobre a potencialização da ação do indivíduo/coletividade em termos de ação política via
internet” (AMARAL; MONTARDO, 2010, p. 9), surgindo como proposição de
conscientização através da internet, “aprimorando a atuação de grupos e ampliando as
técnicas tradicionais de apoio” (RIGITANO, 2003, p. 3). Um exemplo de tal apropriação
é a realizada pelo movimento feminista, denominado ciberfeminismo. Para melhor
compreender esses movimentos atuais, ao longo do texto, remontamos a alguns pontos
específicos do movimento feminista.

Assim, o objetivo deste trabalho foi compreender os efeitos do ciberfeminismo a partir


de uma perspectiva discursiva e etnográfica, buscando entender de que modo esse
movimento produz práticas discursivas nos ambientes digitais e fora deles, compreender
o papel dos ambientes digitais nas práticas ativistas, descrever os alcances e limites dessa
forma de ativismo e discutir quais são os efeitos online e off-line dos discursos
mobilizados pelas ciberativistas.

A fim de apresentar as condições de produção nas quais se colocam quaisquer discursos


em torno de feminino, apresentamos, na sequência, um recorte acerca da história do
movimento feminista.

1 FEMINISMO E CIBERFEMINISMO

Ao longo da história, as mulheres foram silenciadas, tendo sua história narrada a partir
do discurso masculino. Deste modo, foram retratadas como frágeis, inferiores aos homens
e submissas. Diante disso, o feminismo surge com a proposta de questionar o lugar
destinado à mulher na sociedade e as diferenças existentes entre mulheres e homens,
trazendo, assim, a discussão de gênero (LOURO, 2000). Contudo, a história do
movimento feminista é bastante controversa, uma vez que coloca no mesmo patamar a
luta de mulheres brancas, negras, ricas, pobres, entre as mais diversas categorizações
possíveis para o conjunto mulher. Tendo isso em vista, o considerado primeiro momento
do feminismo se deu quando mulheres passaram a lutar pela igualdade em relação aos
homens, por direitos sociais e pelo direito ao voto. Esse período ficou conhecido como
movimento Sufragista e foi caracterizado por ter à frente das lutas mulheres brancas e de
classe média, portanto não representava a todas.

A partir dos anos 60, o movimento passa a se expressar principalmente no âmbito


acadêmico, trazendo a discussão sobre gênero, maternidade, sexualidade, dentre outras
pautas que até então eram pouco discutidas, causando, assim, rupturas no discurso, até

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então hegemônico, masculino (LOURO, 2002). No final desta década, muitas das
explicações reducionistas – biológicas sobre diferenças entre homens e mulheres – que
reafirmavam o lugar da mulher como inferior ao homem foram fortemente questionadas.
Conforme Simone de Beauvoir (1980, p. 9), em afirmação que se tornou um ícone da luta
feminista: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, ou seja, as mulheres desde o seu
nascimento são inseridas em um contexto em que o papel feminino é imposto a elas por
meio de signos culturais que passam a ser naturalizados, como se fossem da “essência”
do feminino.

Em 1970, o movimento coloca em pauta a distinção entre público e privado que existia
na época, questionando o papel quase sempre reservado às mulheres: o espaço privado.
Para isso, trazem a afirmação de que “o pessoal é político”, com discussões que, até esse
momento, eram vistas como específicas do espaço privado, reivindicando, assim, o lugar
da mulher no espaço público. O debate causa uma ruptura no discurso hegemônico que
estava instalado sobre a mulher e seu lugar na sociedade, mobilizando a luta pelo direito
da mulher ao seu próprio corpo, uma vez que, ao longo da história, mulheres que
exerciam livremente sua sexualidade eram vistas como impuras, exceto quando o
objetivo era satisfazer os desejos do homem ou, ainda, para fins reprodutivos. A
discussão segue até os dias atuais. Dito isso, passemos, agora, a discutir o modo como o
movimento feminista passou a existir a partir do advento da internet e das mídias sociais
digitais.

No ano de 1990, o feminismo, em várias partes do mundo, além de atuar por meio de
manifestos acadêmicos, passeatas, entre outras formas de manifestações, passa a se
expressar, também, através da internet. Em 1991, o grupo feminista Australiano VSN
Matrix organizou o manifesto ciberfeminista, que tinha como propósito homenagear
Donna Haraway, teórica que, em 1984, introduziu a ideia da apropriação das tecnologias
pelos movimentos sociais, com a publicação do Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia
e feminismo socialista, entendendo tal apropriação e forma de manifestação como
ativismo político (CASTELLS, 2013).

Esse modelo de ativismo trouxe outras formas de expressão para as integrantes dos
movimentos feministas, dentro e fora das redes sociais. Desse modo, pessoas que se
identificam com a militância feminista, nos mais variados segmentos, promovem
passeatas e manifestos, expressando as pautas de sua luta através de escritas no próprio
corpo. Um exemplo desse tipo de manifestação é a Marcha das Vadias 1. Marie-Anne

1
A Marcha das Vadias é um movimento que surgiu em 2011 na cidade de Toronto,
Canadá, com o movimento denominado Slut Walks. A mobilização teve início após um
policial afirmar que “as mulheres deveriam evitar se vestir como vadias, para não serem
vítimas de ataque”. Apropriando-se do termo “vadia”, o movimento tem o objetivo de
se manifestar contra a ideia de culpabilização das mulheres em situações de violência.

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Paveau (2014) tem refletido a respeito do uso da nudez do corpo dentro e fora dos
ambientes digitais, discutindo a propagação das imagens de maneira viral, enfatizando o
fato de as mulheres escreverem literalmente em seus corpos como ato político.

Assim, a internet se torna uma importante ferramenta que, ao permitir a conexão entre
diversos lugares do país e do mundo através de grupos e páginas, mesmo que em longa
distância, proporcionou a divulgação de movimentos organizados pelas mulheres, o
empoderamento, a discussão de suas pautas e demandas, reflexões, trocas sobre vivências
diárias, bem como denúncias, através de campanhas e relatos, proporcionando, assim,
visibilidade ao movimento feminista.

Por outro lado, o ciberativismo trouxe, também, mobilizações contrárias que, através da
criação de grupos e páginas, propagam uma imagem distorcida do movimento feminista,
bem como a violência virtual e não virtual, dentre outras questões que nos mostram
como a apropriação das redes sociais pelos movimentos feministas repercutiu direta e
indiretamente na vida das ativistas.

Atualmente, o ativismo online acontece através de publicações, compartilhamentos,


divulgação de eventos e campanhas, além de hashtags que circulam em mídias sociais
digitais como Facebook e Twitter. Conforme Silveira e Santos (2016), “As campanhas
tanto surgem nas ruas e vão para as mídias sociais quanto surgem nas mídias e vão para
as ruas” (SILVEIRA; SANTOS, 2016, p. 829). Desse modo, não se pode pensar em um
ativismo que é exclusivamente online ou off-line, as duas esferas estão interligadas na
contemporaneidade.

As críticas existentes sobre o ciberativismo se relacionam com uma tentativa de


deslegitimar as formas de militância feminista que acontecem nas mídias sociais digitais.
No entanto, mesmo não indo para as ruas, as campanhas divulgadas através de tais meios,
visam denunciar situações cotidianas da vida das mulheres e têm um efeito real na vida
delas, já que, ao compartilharem suas vivências, saem do silêncio a que muitas vezes são
submetidas e têm um lugar de fala nas mídias sociais digitais. Essas mulheres percebem
que não estão sozinhas, visto que têm acesso ao relato e apoio de muitas outras que já
passaram por situações semelhantes (SILVEIRA; SANTOS, 2016).

Tendo apresentado as condições de produção dos discursos que pretendemos analisar por
meio de uma imersão etnográfica, passaremos a discorrer sobre a Análise de Discurso,
teoria e método que organiza o olhar para o ciberativismo.

2 ANÁLISE DE DISCURSO

A Análise de Discurso, enquanto abordagem metodológica, dirige-se para a compreensão


do modo pelo qual as materialidades discursivas produzem sentido. Levando em conta
que a linguagem não é transparente, faz-se necessário partir das condições sócio-

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históricas e posições ideológicas de sua constituição, uma vez que o sentido de uma
palavra não existe nela mesma (ORLANDI, 2003).

Entendemos discurso a partir de Pêcheux (1997), que, ao discutir esse conceito, traz a
tríade língua, sujeito e história, pois é através dela que se constitui o discurso. O sujeito
da linguagem é interpelado pela ideologia, constituído e atravessado pela linguagem que
tem caráter histórico. Enquanto materialidade histórica e linguística, o discurso torna
possível perceber a relação que se estabelece entre a língua e ideologia (PÊCHEUX,
1997). Sendo assim, é aquilo que, a partir de um texto, produz sentido, articulando essa
materialidade linguística ao contexto sócio-histórico e ideológico em que se insere e se
constitui (ORLANDI, 2003).

Então, compreendemos que, por ser perpassada pela ideologia e pela história, a linguagem
não é transparente e, portanto, na análise do corpus de pesquisa não buscaremos um
sentido no discurso, mas, a partir de sua materialidade, os possíveis efeitos de sentido
(ORLANDI, 2003). Assim, para analisar o discurso feminista, faz-se necessário entender
as suas condições de produção, o contexto atual e a memória discursiva que o constitui
(PÊCHEUX, 1997).

O eixo que organiza os dizeres possíveis de serem ditos é o que se chama, em AD, de
interdiscurso (ORLANDI, 2003). Nesta esteira, o conceito de Formação Discursiva (FD)
se faz importante, visto que está diretamente relacionado com a problemática do Sujeito,
em seu duplo aspecto de constituição: linguístico e sócio-histórico. Para Pêcheux (1997,
p. 160), FD “se define como aquilo que em uma formação ideológica dada – ou seja, a
partir de uma posição dada em uma conjuntura dada – determina o que pode e deve ser
dito”, sendo assim, a ideologia é preponderante nos efeitos de sentido, podendo uma
mesma palavra ter seu sentido alterado, de acordo com a posição do sujeito no discurso.
A ideologia produz a naturalização de sentidos a partir das formações ideológicas que
possibilitam um efeito de evidência (TFOUNI; PANTONI, 2004). Desta forma, a FD é
aquilo que, a partir das formações ideológicas, organiza os dizeres e possibilita que os
sentidos se coloquem como “já-lá”, ou seja, como sentidos já cristalizados, ditos em outro
momento.

Pêcheux (1990) traz ainda o conceito de forma-sujeito, descrevendo como, a partir da


ideologia, o indivíduo é interpelado em sujeito de sua própria fala, assumindo sua posição
constitutiva de sujeito e a ilusão necessária para essa constituição, percebendo-se, desta
forma, enquanto fonte de seu discurso. No entanto, há sempre a presença do outro, ou
grande Outro, no discurso, o que pode ser compreendido a partir da noção de
heterogeneidade discursiva, postulada na terceira fase da AD, sobretudo a partir do
encontro com a proposta teórica de Authier-Revuz (1990). Segundo a autora, em uma voz
aparentemente unitária e linear falam outras vozes, a isso se chama heterogeneidades
enunciativas. A heterogeneidade enunciativa, como um fenômeno geral, apresenta-se de
dois tipos: constitutiva e mostrada. A constitutiva é aquela que possibilita a existência de

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qualquer discurso, pois parte de sua constituição. Já a heterogeneidade mostrada pode
aparecer de forma marcada ou não marcada. Na primeira – heterogeneidade marcada – a
representação do discurso do outro aparece de forma explícita, por meio de marcas
linguísticas (discurso relatado- direto ou indireto, -glosas, aspas, etc.). Na segunda –
heterogeneidade não-marcada – a representação acontece de forma menos evidente, por
meio da ironia, discurso indireto livre, etc. (AUTHIER-REVUZ, 1990).

Considerando os princípios da Análise de Discurso, a compreensão de seus conceitos


fundamentais, é preciso levar em conta que toda análise é um gesto de interpretação que
mobiliza um dispositivo analítico (ORLANDI, 2003). Nesse sentido, o conceito balizador
da análise será o de Formação Discursiva, na complexa relação com a noção de
heterogeneidade, a partir da qual observamos os dados a partir de uma etnografia digital.
Tal método de coleta de dados nos permitiu situar as condições de produção dos discursos
feministas online.

3 ETNOGRAFIA DIGITAL

Como pontuado acima, através dos pressupostos básicos da Análise do Discurso, foi
realizada uma imersão etnográfica digital que “se caracteriza por ser um método
interpretativo e investigativo sobre o comportamento cultural e de comunidades on-line”
(KOZINETS, 1997, p. 34). Este método de pesquisa surgiu com a necessidade de estudar
o espaço virtual e digital, partindo do pressuposto de que os comportamentos fora do
ambiente virtual são afetados por comportamentos dentro dele. Nesta metodologia de
pesquisa, acontece a inserção do pesquisador no espaço virtual (site, mídias sociais, blog,
etc.), mediada por um computador, o que possibilita a observação e participação neste
espaço que é online e não mais off-line como em outras formas de etnografia. Sempre
levando em conta seu estranhamento em relação ao objeto, ao âmbito de estudo, e à
subjetividade dos participantes do processo, o pesquisador “se transforma num
experimentador do campo, engajado na utilização do objeto pesquisado enquanto o
pesquisa” (KOZINETS, 2007 apud AMARAL; NATAL; VIANA, 2008, p. 35)

Neste ambiente, existe um leque muito grande de informações, assim como questões
culturais, que podem variar de acordo com o tema e objeto de estudo. A não interferência
pela presença do pesquisador, como acontece em uma pesquisa off-line, pode ser vista
como uma vantagem de tal forma de pesquisa. No entanto, há também algumas questões
que podem interferir e dificultar a pesquisa, uma vez que não existe o contato físico direto
com quem produz os discursos analisados, como exemplo, os efeitos de sentido possíveis
a partir de algumas características do texto escrito, como emoticons, dentre outros
recursos utilizados na esfera virtual.

De todo modo, os movimentos que advêm do ambiente virtual produzem discursos – que
materializam posições ideológicas e se inscrevem no interior de uma FD – sendo
fundamental estudá-los, já que a justificativa para um trabalho como este se aloca nos

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efeitos reais que os discursos e o que eles produzem têm na vida das pessoas em
sociedade.

Para participar da imersão etnográfica digital, foram escolhidos uma página e um blog
feminista. A escolha se deu em função de serem ambientes bastante conhecidos e
divulgados nas redes sociais digitais a partir de compartilhamentos. Para a coleta de
dados, foram consideradas diversas fontes, como: observação e participação nos
ambientes online (com anotações em diários de campo); recortes de postagens e
comentários, como fonte documental, por meio de prints das páginas; e, por fim,
entrevista com uma das responsáveis por cada um dos ambientes virtuais analisados.
Sobre as entrevistas, é necessário explicitar que ocorreram por meio de plataformas
digitais, utilizando, inclusive, materialidades híbridas, como gravações em áudio e
trechos escritos, algo próprio da interação em ambientes digitais. A página escolhida foi
a Feminismo sem demagogia e o blog Escreva Lola, escreva, ambos descritos a seguir.

O blog “Escreva Lola, Escreva” é administrado por Dolores Aronovich Aguero, mais
conhecida como Lola (Professora da UFC e doutora em literatura de Língua Inglesa pela
UFSC). Teve início em janeiro de 2008 e é um blog bastante ativo, tendo em média 20
publicações por mês. Nele, são abordados diversos temas emergentes, como: feminismo,
cinema, literatura, política, mídia, combate a preconceitos, bem como denúncias acerca
dos frequentes ataques que Lola sofre por parte de hackers.

A página Feminismo sem demagogia, fundada em outubro de 2012, é administrada por


Vera Lucia Dias da Silveira (Professora de Biologia), mais conhecida nas redes sociais
digitais como Verinha Kollontai. É uma página que tem como objetivo debater acerca do
feminismo pelo viés marxista, abordando questões de gênero, raça e classe, entendendo
a luta contra o machismo inseparável da luta de classes, apresentando postagens diárias
sobre essa amplitude de assuntos. A página, em sua descrição, se mostra como um espaço
aberto para mulheres cisgênero e não cisgênero e homens que queiram participar
enquanto aliados ao movimento, frisando a importância do protagonismo das mulheres.

Com um total de 1.079.249 curtidas (em 2017, época da coleta de dados) e por se tratar
de uma página que aborda uma diversidade de temas de maneira pública, é possível, ao
visitá-la e acessar seu conteúdo, perceber diversas interações dos seguidores e/ou
visitantes entre si e com a administração da página, sendo esses engajamentos contrários
e/ou favoráveis às ideias propostas e defendidas nas publicações.

4 FEMINISMOS ONLINE: EFEITOS DE SENTIDO DE AMBIENTES VIRTUAIS


FEMINISTAS

A página Feminismo sem demagogia, como descrito anteriormente, é caracterizada por


seguir a vertente marxista do feminismo e, por esse motivo, para além de assuntos

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relacionados à militância feminista, aborda questões de classe e raça, dentre outros temas.
Por se tratar de uma página sobre feminismo que entende como importante a participação
de homens aliados na militância feminista e, em função disso, possuir seguidores(as)
homens e mulheres, algumas postagens podem ter efeitos de sentido diferentes do
esperado e, por consequência, heterogêneos, dependendo da filiação de seus seguidores a
uma ou outra Formação Discursiva (FD).

Um exemplo dessa questão é a postagem sobre “mulheres abusivas” (figura 1), a qual
gerou algumas críticas de mulheres que entendem esse tipo de discurso, em uma página
feminista, como um modo de abrir margem para a deslegitimação das estatísticas sobre
casos de violência de gênero, além de apontar para a culpabilização e invisibilidade da
situação da mulher em nossa sociedade (figura 2). Em contrapartida, a publicação teve a
aceitação de um grupo de participantes, sobretudo homens, que se sentiram contemplados
por ela, fazendo comentários como: “Pela primeira vez vi um post bom”, “Finalmente um
post que faz sentido”, ou ainda relatando já terem passado ou conhecer alguém que já
passou por uma relação abusiva, afirmando, portanto, que mulheres também são abusivas.

Figura 1.

Podemos compreender essa materialidade discursiva a partir do conceito de


heterogeneidade, inerente à própria língua, e materializada nas interpretações de um
mesmo enunciado ou sequência discursiva. Desse modo, dependendo da FD à qual se filia
e da posição-sujeito do(a) leitor(a), podemos ter diferentes efeitos de sentido. Afinal,
como já afirmou Pêcheux (1990, p. 53), “todo enunciado é intrinsecamente suscetível de

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tornar-se outro, diferente se si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para
derivar para um outro”.
Nos comentários da publicação apresentada, é possível perceber a interação entre
a moderação da página e seguidoras que demonstram opiniões contrárias e favoráveis ao
discurso produzido (Figura 2).

Figura 2.

Na figura 2, aparecem duas tomadas de


posição contrárias entre as seguidoras da
página: uma que concorda com a postagem apresentada na figura 1 e outra que,
recuperando a memória do efeito produzido pela própria página, que se autodeclara aliada
a um feminismo de cunho marxista, questiona a publicação com base nas relações
hierárquicas sociais. A resposta da Feminismo sem demagogia a essa interação
materializa o equívoco, próprio da língua e do seu caráter heterogêneo, que permite
utilizar a categoria “mulheres abusivas”, esquecendo-se do peso que carrega uma
expressão como essa em termos de homogeneização de um grupo.

Ainda pensando nos efeitos que a não neutralidade da língua produz, na figura 3, com
uma interação entre as seguidoras da página, podemos perceber a utilização da expressão
”mulherzinha” que traz consigo uma carga ideológica bastante característica quando se
pensa nas relações de gênero.

Figura 3.

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Nessa imagem, temos a fala de uma das seguidoras que, ao comentar em uma publicação
voltada à denúncia um caso de violência sexual, diz que o agressor iria “virar
mulherzinha” caso fosse preso. Essa expressão, em nossa sociedade, refere-se a uma
prática bastante comum entre a população carcerária em relação a homens que têm seus
corpos violados, como forma de punição, por terem cometido crimes considerados
hediondos. Nesse sentido, quando a expressão “virar mulherzinha” é usada, ocorre a
reprodução de uma condição de vulnerabilidade da mulher em uma sociedade patriarcal,
considerando que seu o corpo é tratado como um espaço público, passível de violação. A
escolha da palavra “mulher”, usada no diminutivo de forma pejorativa, não é neutra, mas
reflete uma memória histórica e cultural em torno desse significante.

Há várias outras postagens e interações coletadas na referida página, entretanto optamos


por trazer apenas esses recortes, a fim de compreender os conteúdos postados e seus
efeitos de sentido a partir das interações que ocorrem no ambiente online.

O blog Escreva Lola, escreva, caracterizado acima, é bastante ativo e discute sobre
diversos assuntos emergentes. Uma característica marcante na escrita da autora é seu
posicionamento político e sua militância feminista que, muitas vezes, é inserida em
paralelo com os mais diferentes temas.

Um exemplo disso é a figura 4, fragmento retirado do texto intitulado “Escola sem partido
é nota dez em matéria de atraso” no qual a autora, ao falar sobre o tema em questão e a
perseguição realizada a professores que traziam a discussão de gênero em suas aulas – na
acusação de que estes doutrinariam as crianças através “ideologia de gênero” – apresenta
que os comentários sobre professoras mulheres, teriam, também, críticas misóginas, além
das críticas relacionadas à profissão.

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Figura 4.

Essas afirmações são sustentadas por uma memória, enquanto pré-construído, que
possibilita a circulação de discursos de ódio pautados em críticas relacionadas ao gênero,
à raça ou à classe, tomando essas posições-sujeito como elementos possibilitadores de
efeitos de sentido diversos, dada a heterogeneidade que aponta para diferentes domínios
de saber que constituem uma FD feminista.

A autora vive frequentes situações de ataques ao seu blog e outras redes sociais, bem
como ameaças a sua integridade física e psicológica. Isso demonstra a dicotomia entre o
público versus privado e o individual versus coletivo, uma vez que, por ser, como ela
mesma diz, militante feminista e dos direitos humanos e expor publicamente seus
posicionamentos, é vista como alguém que ameaça às ideias contrárias às suas e, portanto,
precisa ser silenciada, efeito presente no comentário a seguir dirigido à página/Lola: “Isso
é pra você aprender que se NÓS, HOMENS, não quisermos, NADA vai pra frente,
inclusive o direito de opinião de vocês”.

O uso do pronome “você” individualiza a ameaça e o faz por meio de um agente que é
coletivo, escrito em caixa alta, “NÓS, HOMENS”, havendo, ainda, o retorno à
coletividade, que Lola representa, por meio do “vocês”. Em um de seus textos, intitulado
“Mascus estão conseguindo derrubar um dos maiores blogs feministas do Brasil” é
possível perceber efeitos a partir dessas dicotomias. A autora relata os ataques que sofreu
em janeiro de 2017, quando um grupo de pessoas contrárias às suas ideias e à existência
deste espaço de manifestação, criaram contas no Twitter em seu nome, enviando
conteúdos de cunho sexual para crianças e adolescentes e, através de denúncias por
direitos autorais, difamação, pedofilia, dentre outras, buscavam “derrubar” o blog, além
de direcionar ameaças a ela em sites onde essas pessoas organizam. Lola conta, ainda,
que durante esses ataques, um homem a ligava constantemente para rir da situação pela
qual ela estava passando. Nesse sentido, o ciberespaço coloca-se como lugar de confronto,
embate entre posicionamentos dominantes e de minorias, produzindo discursos de ódio e
práticas criminosas como as citadas anteriormente. É o que se descreve na postagem a
seguir:

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Figura 5.

A partir de seus relatos, é possível perceber que seu posicionamento público e online
através do blog e as ameaças e ataques virtuais decorrentes disso, causam efeitos reais em
sua vida. Diante disso, a autora se posiciona: “Se conseguirem derrubar o blog, eu jogo a
toalha mesmo. Não farei outro blog, não farei mais nada além da minha profissão […] se
ninguém está prestando atenção, se ninguém liga, é também sinal de que o blog já deu o
que tinha que dar”. Em seguida, afirma que, mesmo sem o blog, ela e outras mulheres
continuariam sendo atacadas, causando efeito nas seguidoras da página. Isso pode ser
verificado no comentário a seguir, em que uma leitora relata que decidiu comentar, pela
primeira vez, como anônima, temendo também sofrer represálias: “Anônimo disse: Lola,
tendo em vista o assunto e o que seu blog acabou de sofrer... pela primeira vez comento
como anônima”.

A publicação de Lola causou mobilização por parte de pessoas que acompanham o seu
blog, de militantes feministas do Brasil e de outros países, as quais utilizaram diferente
estratégias, desde a criação de tópicos em fóruns de ajuda no Google, ofertas de apoio
jurídico, mensagens enviadas ao presidente do Google Brasil, e de campanhas no Twitter
pelas hashtags #GoogleNãoCensureLola e #ForçaLola, até outras formas de mobilização,
relatadas em outro texto chamado: “Vencemos! Como o Google devolveu o meu blog”.
Nessa publicação, ela relata a dificuldade de averiguação das denúncias direcionadas ao
seu blog. Recebidas por programas, nas palavras dela “robôs”, as queixas, geralmente,
necessitam que seja aberto um processo de investigação mais amplo para serem
resolvidas, mas, nesse caso, por conta das demonstrações de apoio, tiveram um desfecho
diferente, visto que o Google entrou em contato com ela para prestar esclarecimentos.

Podemos observar o paradoxo existente entre organizações no espaço online, com


diferentes motivações e pautas, sendo estas, especificamente, diferenciadas pela autora
na publicação acerca do ataque ao blog: “episódio em que há dois lados: uma ativista com
nome e rosto, professora universitária, autora de um blog feminista de relevância, e um
grupo de ódio cheio de anônimos que passam seus dias ameaçando e buscando novas
formas de arruinar a vida de ativistas”.

Diante disso, é possível perceber a separação e demarcação da autora em uma FD e não


em outra, podendo produzir no leitor, dependendo da FD à qual ele se filia e sua posição-

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sujeito, diferentes efeitos – observados nas posições contrárias às suas e/ou que se
manifestam em defesa do blog. Esse aspecto materializa a luta de classes como
contradição histórica, a partir da qual se colocam relações de reprodução/transformação
das condições materiais de produção.

Através do conceito de heterogeneidade não-mostrada, é possível perceber, em


expressões como “Vencemos!” e “Nós lutamos pelo que é certo”, a demarcação de outras
vozes no discurso, apontando, ainda, a memória discursiva acerca do movimento
feminista enquanto uma militância coletiva e não individual, mesmo não excluindo as
motivações pessoais de cada um, uma vez que, neste caso específico, algo individual que
se torna coletivo.

5 ATIVISMO ONLINE: ALCANCES E LIMITES

Muitas questões emergem quando se trata de ativismo online. A fim de discutirmos esse
aspecto, tomamos os dados coletados nas duas entrevistas realizadas com as responsáveis
pelos ambientes que analisamos. Neles, foi possível depreender efeitos a partir de
algumas dicotomias como a relação entre público e o privado, o online e o off-line e entre
o espaço individual e o coletivo. Pensando na última dicotomia, ao falar sobre a
motivação para a criação da página, a entrevistada (administradora de Feminismo sem
demagogia) relata que a ideia de criar um ambiente voltado para a discussão feminista se
deu após uma situação de violência vivenciada por ela: “Foi criada em 2012, após eu ser
vítima de violência doméstica. Fui muito acolhida pelo feminismo e queria fazer o mesmo
por outras mulheres”. A justificativa para o nome atual da página, que traz uma
caracterização para o feminismo – “sem demagogia” – surge, segundo a entrevistada, de
uma escolha pessoal, em um momento em que ela havia passado por uma situação de
violência e não teve apoio de mulheres próximas que “se reivindicavam feministas’’,
afinal, ela estava em busca de “uma defesa da mulher que casasse discurso e prática”.

Do mesmo modo, Lola, do outro ambiente que analisamos, relata que a ideia de criar o
blog surge de uma motivação pessoal em ter um espaço, no qual tivesse mais liberdade
para escrever, justificando o título do blog “Escreva Lola, escreva” como uma referência
ao filme Corra Lola, corra. No entanto, conforme disse a entrevistada “como eu sempre
fui feminista, tudo que falo e escrevo traz esse viés”. Desse modo, algo que era individual
se torna coletivo e o blog passa a ser reconhecido por mulheres que se interessam pelo
assunto e pela FD à qual filiado, como um blog feminista, mas também por pessoas que
estão filiadas a uma FD anti-feminista, as quais passam a se manifestar contrárias ao blog
e à Lola.

Esses elementos apontam para uma memória relacionada aos movimentos sociais, que
trazem em sua gênese a ideia de coletivo, mas não escapam de motivações e elementos
de ordem individual, já que ambos os aspectos estão intrinsecamente relacionados. Outra
questão que emerge é a diferença entre o ativismo online e off-line e os alcances e limites

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destes. Esse tópico surge na primeira entrevista, quando, por exemplo, ao falar sobre o
ativismo online, a entrevistada da página Feminismo sem demagogia afirma que “se não
sair da internet acaba sendo estéril”, entretanto considera a importância do agrupamento
e da informação que se propaga por meio de blogs, páginas etc. A escolha da palavra
“estéril”, usada para definir uma militância que não seria efetiva, não é neutra, reflete uma
memória histórica e cultural em torno desse significante, como possível efeito de sentido
à memória da mulher infértil, que não reproduz, muito presente em uma FD conservadora,
que coloca como naturais papéis que a mulher deve desempenhar.

A resposta à mesma questão pela segunda entrevistada, Lola, mostra um posicionamento


um pouco diferente no que diz respeito aos alcances do ativismo online: “Sem dúvida é
uma forma de ativismo. É importante saber que não é a única, e que não pode substituir
outras formas de ativismo. Mas a internet é uma ferramenta poderosa, e qualquer
movimento que não usa-la está abrindo mão de um meio de comunicação dos mais
relevantes”.

Ao comentar, ainda, sobre os efeitos do ativismo online, a primeira entrevistada relata


que já recebeu ameaças e teve sua vida exposta: “Uma vez escreveram no meu inbox:
‘Verinha foi encontrada morta em sua casa afogada no sangue da própria menstruação’
[…] colocaram foto da minha casa na rede”. A partir do relato, podemos perceber a
violência virtual e os efeitos que ela produz na vida real. Destaca-se a utilização da
expressão “afogada no sangue da própria menstruação”, que materializa um discurso de
violência a partir de algo biológico do corpo da mulher, que representa metonimicamente
o feminino. Assim, o próprio corpo, com suas características que remetem ao feminino –
o sangue da menstruação – será responsável por sua morte. Além disso, podemos perceber
o duplo sentido em relação à utilização da palavra “sangue”: remetendo à morte e, ao
mesmo tempo, à menstruação da mulher. Tal efeito ambíguo também se produz quando
se justifica a morte da mulher: morrerá pelo próprio sangue, por aquilo que a caracteriza
enquanto mulher. O sangue, nessa afirmação, simboliza, metaforicamente, a luta, a
palavra usada para defender aquilo que está relacionado ao feminino –o feminismo. Desse
modo, morrerá por escrever sobre feminismo, por defender a mulher, e qualquer atitude
de violência será justificada, uma vez que houve a exposição “voluntária”. Produz-se,
portanto, um efeito de culpabilização da mulher pela sua própria militância.

Ao relatar sobre sua experiência, Lola aponta alguns efeitos no ambiente virtual e fora
dele. Como consequências positivas, relata o fato das pessoas interagirem no espaço
virtual e de reconhecerem a importância de seu ativismo a convidando para participar de
palestras e debates. Outro aspecto positivo que destaca é perceber que seu blog, de alguma
forma, afetou a vida de muitas mulheres, sendo que muitas também se tornaram ativistas
dentro do espaço online e fora dele. Afirma, ainda, que a visibilidade traz consequências
negativas para sua vida, como “ameaças de morte, estupro, tortura, desmembramento”,
voltadas para pessoas próximas a ela, citando seu marido e sua mãe. Para além disso, ao
contar sobre as violências que sofre diariamente, identifica um grupo como o principal

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responsável, o qual nomeia como “quadrilha misógina que defende a legalização do
estupro e da pedofilia, o estupro corretivo para lésbicas, o assassinato de mulheres, gays,
e negros”. A partir da descrição, é possível perceber a filiação desse grupo a uma FD,
uma vez que é destacado que esses indivíduos se voltam contra coletividades específicas,
as chamadas minorias, em relação às quais existe uma memória em torno de suas lutas e
o que defendem, nas palavras da entrevistada: “a ideologia é a mesma, são todos homens
de direita que odeiam mulheres, principalmente feministas”. Destaca-se, portanto, que
esse efeito de agrupamento de pautas contrárias às minorias é utilizado como estratégia
de manipulação para disseminar conteúdos de ódio em grupos conservadores.

Ainda sobre os efeitos do ativismo online e a dicotomia existente entre o espaço público
e o espaço privado, Lola relata que responde a quatro processos relacionados a denúncias
que fez sobre violência, assédio e páginas fakes, criadas em seu nome, que disseminam
conteúdos ilegais, relatando que as mesmas pessoas que criam esses sites, são as que
denunciam. Além disso, conta que já fez onze boletins de ocorrência por ameaças que
recebeu online, ou que são direcionadas a ela, relatando, especificamente, o caso em que
o reitor da universidade onde trabalha recebeu um e-mail, no qual o remetente ameaça
realizar um atentado no campus universitário caso Lola não fosse exonerada. A
entrevistada afirma, também, que seus dados são divulgados, o que faz retornar a
dicotomia anunciada entre o público e o privado, afinal ela declara que recebe ameaças
públicas, mas em sua maioria de perfis fakes, enquanto ela é “uma pessoa de verdade,
com fotos, nome real, local de trabalho”, etc. A repercussão dos ataques virtuais a Lola
foi tanta que houve a proposição do Projeto de Lei 4614/16 para exigir que a Polícia
Federal investigue casos de ameaças a mulheres em ambientes online2.

Por fim, nas entrevistas, aponta-se para uma dicotomia entre os alcances e limites do
ativismo online. A primeira entrevistada, ao ser questionada sobre a percepção de
mudanças em relação à interação e ao alcance da página ao longo do tempo, diz: “A gente
tem um público de mais de um milhão de seguidores, não conseguimos dar assistência.
Quando era menor a gente intervia em alguns casos pessoalmente. Agora a gente apenas
orienta e encaminha”. Tal relato materializa os pontos positivos do ativismo online: o
fato de alcançar um grande número de pessoas; mas apresenta, do mesmo modo, o viés
negativo inerente a essa condição: o fato de não se poder atuar diretamente nos casos,
auxiliar as pessoas individualmente. Sobre isso, Lola, que possui um blog já com 19 anos
de existência, analisa que “o tempo dos blogs já passou”, com a vulgarização da ideia de
“textões”, principal material dos blogs, pela população das redes sociais. No entanto,
analisa que o espaço permite ainda a discussão mais aprofundada e o debate de
determinados temas.

2
Informação disponível no endereço: < http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2017/12/lei-lola-foi-
aprovada-hoje.html?m=1>. Acesso em 04. fev. 2020.

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A partir dos dados analisados nas entrevistas e nos dois ambientes online, foi possível
perceber alguns efeitos produzidos pelo ciberativismo, que passam pela mesma dicotomia
dos movimentos sociais no espaço off-line: algo da ordem do privado, do individual, que
passa ao público e coletivo. O advento da internet possibilita a potencialização desses
aspectos, atingindo grupos muito maiores e elevando o caráter de publicização e
visibilidade. Os efeitos também passam por modificações que vão desde a popularização
das pautas feministas, até a produção de discursos de ódio e de novas formas de violência,
como afirmou uma de nossas entrevistadas, ao responder sobre os ataques que sofre por
escrever em um blog: “Violência física, jamais. Violência verbal, simbólica, todos os
dias”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Podemos perceber que a internet facilita o acesso às informações e trocas entre as pessoas,
possibilitando espaços de denúncias e a ajuda entre as mulheres, seja por ações ou ainda
por orientação e encaminhamento. No entanto, em alguns casos, o alcance de páginas e
blogs pode produzir limitações como ameaças, violência e até mesmo a retirada das
páginas e blogs do ar por meio de ataques de hakers, bem como inviabilizar a interação
da administração da página com as(os) seguidoras(es), uma vez que as demandas podem
ser maiores do que a possibilidade das administradoras das páginas e blogs em atendê-
las. Em relação ao primeiro aspecto, ligado a ameaças e diversas formas de violência nos
ambientes virtuais, cotejamos a ligação com um efeito de sentido decorrente da separação
entre o real e o virtual, separação imaginária, que produz como efeito a
desresponsabilização. Desse modo, a internet passa a ser o lugar do possível, da não-
identidade e, portanto, dos excessos.

Entre as repercussões da página e do blog, temos uma predominância de filiação a uma


FD feminista, entretanto, não é raro surgirem comentários e depoimentos contrários,
quando não ataques, posicionamentos esses que se colocam a partir de FD´s anti-
feminista e/ou machista (entendendo que ambas as FD´s não se recobrem e que não cabe
discutir essa diferença neste trabalho). Nessa dicotomia, é importante mencionar,
contudo, que há sempre algo de heterogêneo: circulam em todas essas FD’s dizeres de lá
e de cá, produzindo equívocos e efeitos diversos.

Tendo em vista o objetivo da pesquisa, que era compreender os efeitos do ciberfeminismo


a partir de uma perspectiva discursiva e etnográfica, impusemo-nos, metodologicamente,
um desafio. Ao pretender realizar uma etnografia digital, em um ambiente já conhecido
anteriormente, no qual (afetadas por uma FD feminista) percebíamos efeitos de sentido
evidentes, podemos dizer que foi fundamental nos colocar na posição de pesquisadoras.
Desse lugar, munidas de um aparato teórico (a AD), foi possível tirar da evidência os
sentidos produzidos pelos ambientes virtuais, entendendo-os como prenhe de sentidos,
heterogêneos e, portanto, lugares de estabilização, mas também de deslizamento. Além
disso, os dados, oriundos de fontes diversas – postagens, comentários, imagens, jargões,

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entrevista, etc. – abriram caminhos para uma análise infindável, na qual foi preciso
estabelecer um ponto de basta, tendo em vista que os sentidos podem deslizar ao infinito.

Por fim, sabemos da dificuldade de se afirmar que uma proposta metodológica se


configura como uma etnografia, sobretudo quando se fala do ambiente virtual. Isso ocorre
pelas lacunas existentes na inserção neste ambiente, mediada por um computador, onde
não existe o vínculo estabelecido pelo contato físico direto com os sujeitos observados.
Desse modo, os efeitos de sentido produzidos nos discursos são aqueles possibilitados
pela escrita, diferentes das especificidades da fala. Entretanto, o olhar de estranhamento,
levando em conta a subjetividade do pesquisador e de quem é pesquisado, nos possibilita
perceber os múltiplos contextos e temporalidades que coexistem, as diversas apropriações
e significações de práticas sociais individuais e/ou em grupos, produzindo diferentes
discursos, e constituindo identidades em um espaço que é virtual. Assim, a experiência
nos mostrou o quanto é possível entrar em contato com o ambiente virtual de diferentes
maneiras e como ele nos afeta enquanto pesquisadoras e sujeitos, já que produz discursos
com efeito real na vida das pessoas em sociedade.

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*Psicóloga, Núcleo Maria da Penha, Universidade Estadual do Centro-Oeste-UNICENTRO-PR.

**Doutora em psicologia, professora adjunta da Universidade Estadual do Centro-Oeste-UNICENTRO-PR.

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