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Anexo

Benjamin, Walter. “A caminho do planetário” [ Zum Planetarium, 1923-26?]. In Rua de


mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995. pp. 68-69

Se, como fez uma vez Hillel com a doutrina judaica, se tivesse de enunciar a doutrina
dos antigos em toda concisão, em pé sobre uma perna, a sentença teria de dizer: "A
Terra pertencerá unicamente àqueles que vivem das forças do cosmos". Nada distingue
tanto o homem antigo do moderno quanto sua entrega a uma experiência cósmica que
este último mal conhece. O naufrágio dela anuncia-se já no florescimento da
astronomia, no começo da Idade Moderna. Kepler, Copérnico, Tycho Brahe certamente
não eram movidos unicamente por motivos científicos. Mas, no entanto, há no acentuar
exclusivo de uma vinculação ótica com o universo, ao qual a astronomia muito em
breve conduziu, um signo precursor daquilo que tinha de vir. O trato antigo com o
cosmos cumpria-se de outro modo: na embriaguez.

É embriaguez, decerto, a experiência na qual nos asseguramos unicamente do mais


próximo e do mais distante, e nunca de um sem o outro. Isso quer dizer, porém, que
somente na comunidade o homem pode comunicar em embriaguez com o cosmos. É o
ameaçador descaminho dos modernos considerar essa experiência como irrelevante,
como descartável, e deixá-la por conta do indivíduo como devaneio místico em belas
noites estreladas.

Não, ela chega sempre e sempre de novo a seu termo de vencimento, e então povos e
gerações lhe escapam tão pouco como se patenteou da maneira mais terrível na última
guerra, que foi um ensaio de novos, inauditos esponsais com as potências cósmicas.
Massas humanas, gases, forças elétricas foram lançadas ao campo aberto, correntes de
alta freqüência atravessaram a paisagem, novos astros ergueram-se no céu, espaço aéreo
e profundezas marítimas ferveram de propulsores, e por toda parte cavaram-se poços
sacrificiais na Mãe Terra. Essa grande corte feita ao cosmos cumpriu-se pela primeira
vez em escala planetária, ou seja, no espírito da técnica.
Mas, porque a avidez do lucro da classe dominante pensava resgatar nela sua vontade, a
técnica traiu a humanidade e transformou o leito de núpcias em um mar de sangue.
Dominação da Natureza, assim ensinam os imperialistas, é o sentido de toda técnica.

Quem, porém, confiaria em um mestre-escola que declarasse a dominação das crianças


pelos adultos como o sentido da educação? Não é a educação, antes de tudo, a
indispensável ordenação da relação entre as gerações e, portanto, se se quer falar de
dominação, a dominação das relações entre as gerações, e não das crianças? E assim
também a técnica não é dominação da Natureza: é dominação da relação entre Natureza
e humanidade. Os homens como espécie estão, decerto, há milênios, no fim de sua
evolução; mas a humanidade como espécie está no começo. Para ela organiza-se na
técnica como physis na qual seu contato com o cosmos se forma de modo novo e
diferente do que em povos e famílias. Basta lembrar a experiência de velocidades, por
força das quais a humanidade prepara-se agora para viagens a perder de vista no interior
do tempo, para ali deparar com ritmos pelos quais os doentes, como anteriormente em
altas montanhas ou em mares do Sul, se fortalecerão. Os Luna Parks são uma pré-forma
de sanatórios.

O calafrio da genuína experiência cósmica não está ligado àquele minúsculo fragmento
de natureza que estamos habituados a denominar "Natureza". Nas noites de
aniquilamento da última guerra, sacudiu a estrutura dos membros da humanidade um
sentimento que era semelhante à felicidade do epilético. E as revoltas que se seguiram
eram o primeiro ensaio de colocar o novo corpo em seu poder. A potência do
proletariado é o escalão de medida de seu processo de cura. Se a disciplina deste não o
penetra até a medula, nenhum raciocínio pacifista o salvará. O vivente só sobrepuja a
vertigem do aniquilamento na embriaguez da procriação.

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