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ENTREVISTA COM O PROFESSOR FERNANDO HERNANDEZ

Por Anamaria Kurtz de Souza Welp


Simone Sarmento
William Kirsch

A educação tem recebido atenção de diversos setores da sociedade no cenário atual.


Hoje, mais do nunca, discute-se a necessidade de se revisar os conteúdos curriculares
na escola e de se encontrar maneiras de desenvolvê-los de forma que façam mais
sentido para o educando. O mundo contemporâneo exige da escola e de seus agentes
a capacidade de transformar o aprendizado em uma experiência mais dinâmica,
centrada no educando, procurando criar mecanismos que possibilitem o
desenvolvimento de competências como resolver problemas, pesquisar, colaborar e
conectar a sala de aula com o mundo. O trabalho com projetos tem se mostrado uma
abordagem adequada para esse fim por estimular em sala de aula um ambiente em
que todos esses aspectos são considerados. Com isso em mente, a Revista Bem Legal
foi conversar com o Professor Fernando Hernandez, da Universidade de Barcelona,
sobre a Perspectiva Educativa de Projetos de Trabalho (PEPT).

RBL: O campo que se tem chamado 'pedagogia de projetos', 'educação por projetos'
ou 'projetos de trabalho' tem se revelado de difícil definição, podendo abrigar
concepções muito distintas de trabalho. Como, no momento atual, o senhor definiria
a sua concepção do trabalho com projetos em sala de aula, isto é, o que tem
norteado o seu trabalho?

Fernando Hernandez: Faz tempo que não utilizamos estas denominações, pois não
representam o que fazemos nas aulas e distorcem nossa visão da educação. Falamos
da perspectiva educativa de projetos de trabalho (PEPT) que é uma visão a respeito
das relações pedagógicas e do aprendizado por meio do diálogo e da indagação. Nossa

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aposta é que a vida da sala de aula e da escola seja um projeto em que jovens,
crianças, educadores e famílias encontrem seu lugar para aprender.

RBL: A partir dessa concepção, quais as vantagens dessa abordagem? Quais as


principais dificuldades/limitações?

Fernando Hernandez: Estamos falando de uma perspectiva educativa que não segue o
que é hegemônico e dominante na educação, que agora é guiado pelos resultados de
provas padronizadas, confundindo, novamente, instrução com educação.
Recentemente, foram concluídas duas teses de doutorado que tratam das
contribuições dessa perspectiva, e o mais importante é que se torna evidente, nas
observações, a formação e a vida em sala de aula, que se geram transformações que
mudam não só as relações, mas também o sentido da escola e o lugar dos sujeitos.
Neste processo, tem um papel muito importante o fato de que tanto docentes e
estudantes, assim como as famílias, sintam-se e entendam-se como autores que geram
conhecimento e saber pedagógico.

Isso significa que não se pode propor a PEPT como uma fórmula que se adota em sala
de aula sob o guarda-chuva de uma moda. Ou se compartilha aos poucos a mudança
que supõe (pois é uma transformação que não ocorre somente em um dia) e se realiza
junto com outros, ou não tem sentido.

Não há dificuldades e limitações no que estamos propondo e fazendo, pois é uma


perspectiva com uma fundamentação sólida e com algumas evidências na prática que
já têm 30 anos. Basta perguntar e escutar os jovens que acompanhamos em sua
trajetória e que hoje estão no ensino médio, na universidade ou que são profissionais.
São pessoas críticas, responsáveis e, acima de tudo, pessoas boas, que continuam
aprendendo e que sabem como enfrentar desafios e obstáculos. Pessoas que

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souberam como responder a provas e testes, porque sabiam como aprender com
sentido.

Por isso, faz tempo que não “vendemos” a PEPT, nem tentamos convencer os outros.
Pedimos que se aproximem e compartilhem o que fazemos. Se eles veem que pode ter
sentido para eles, podemos caminhar juntos, se não, há muitos caminhos para a
educação que podem ter sentido.

RBL: Parece-nos que há uma associação muito frequente entre o trabalho com
projetos e inter/trans/multidisciplinariedade. Como o senhor vê a relação entre o
trabalho ancorado em projetos e um fazer docente inter/trans/multidisciplinar?

Fernando Hernandez: Para aprender é preciso ir construindo andaimes e relações com


sentido. Alguns estão nas disciplinas ou, em outros casos, em campos do saber que
não se restringem aos limites disciplinares. Também se constroem a partir do diálogo,
da intuição, do encontro com outros e da experimentação. Falar de intra/trans/multi é
uma questão que já não nos interessa muito. É um debate com o qual alguns de nós
continuamos envolvidos, pois se relaciona com o modo como o conhecimento se
constitui. Porém, na vida em sala de aula, não nos preocupamos em rotular. A vida do
conhecimento flui a partir do momento em que se descobre e estabelece relações
entre fenômenos e experiências. O intercâmbio com diferentes fontes de experiência
possibilita as ancoragens e as relações. Por isso, não nos interessam nem nos
preocupam os rótulos. É um problema dos outros, não nosso. Parte de nosso percurso
como grupo é ir nomeando a realidade que emerge no dia a dia de nossos encontros e
experiências em sala de aula e na escola. Caso encontremos algo nos outros que nos
inspire e nos toque, refletimos sobre isso e submetemos a um questionamento. Não
nos filiamos a uma ou outra tendência, como se fosse um time de futebol.
Reivindicamo-nos como autores, não como seguidores. E fazemos com que isso

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também tenha lugar na vida em sala de aula e na relação com as famílias e com a
comunidade.
RBL: É possível trabalhar com projetos utilizando o livro didático? Caso sim, como ele
pode ser articulado por parte do autor de livros didáticos? E por parte do docente?

Fernando Hernandez: As perguntas que você faz são como uma volta ao túnel do
tempo. Nós aprendemos com livros, com relatos de experiências, com o que
procuramos na internet, com o que outras pessoas nos trazem para a escola. Nossas
aulas estão cheias de livros, mas não de livros didáticos, que têm um olhar homogêneo
e uma forma de considerar o conhecimento e o modo de aprender simplificadores. Por
isso, já não nos perguntamos sobre a utilização ou não dos livros didáticos. Cada um
tem suas necessidades. Se considerarmos nossa sala de aula como um lugar para
sentir-nos e saber-nos autores, estamos abertos para aprender a partir de múltiplas
fontes, não só de uma.

RBL: Alguns colegas criticam o trabalho com projetos por conta de suas dificuldades
de planejamento (já que o docente nunca sabe como o projeto será recebido pelos
alunos) e de avaliação. Na sua experiência, como o docente pode minimizar as
dificuldades no campo do planejamento? Quais são as possibilidades em termos de
avaliação?

Fernando Hernandez: O que você me pergunta é uma visão dos projetos baseada em
uma concepção do conhecimento, do aprender e do fazer docente que não
compartilhamos. Seria necessário muito espaço para explicar como enfrentamos o
planejamento e a avaliação. Mas lhe digo que a frase “o docente nunca sabe como o
projeto será recebido pelos alunos” implica uma concepção dos projetos que não faz
parte de nossa bagagem. Não é algo que o docente “leva ou dá” aos alunos. É algo que
se constitui de maneira conjunta. Por isso, o planejamento vai sendo construído assim
como a avaliação. Não é uma prova feita no final para ’medir’ um resultado, mas é algo

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que vai se tecendo aos poucos e com as experiências das trajetórias de aprendizagem.
Há um colega inglês, Denis Atkinson, que fala da fantasia da psicologia e da pedagogia
de que tudo pode ser controlado e medido. A partir daí, fala da diferença entre
aprendizagem (o que responde a essa fantasia) e aprender (que foge dos
reducionismos simplificadores). É uma posição que compartilho. Isso me leva a
questionar as propostas que prescindem do contexto dos sujeitos que aprendem.

RBL: Quais as principais diferenças no trabalho com projetos entre diferentes faixas
etárias e níveis de ensino?

Fernando Hernandez: Não sei, pois sua pergunta sugere que existe uma
sequencialidade estável que deve ser seguida e que está vinculada a uma concepção
particular do desenvolvimento e da estrutura da escola. Esta é uma visão que não
compartilhamos, porque parece uma forma de colonizar a infância e a vida em sala de
aula. Cada vez mais tentamos produzir cruzamentos e tecer relações entre os
diferentes grupos de uma escola. Por isso, pensamos que se aprende melhor em
grupos heterogêneos e não homogeneizados pela idade ou nível. Algo que, sem
dúvida, supõe uma falsa homogeneização que reflete mais interesse no controle dos
alunos do que em sua aprendizagem.

RBL: O trabalho com projetos parece ser muito bem recebido na educação básica,
sobretudo com crianças e adolescentes. Entretanto, no ensino superior, o trabalho
com projetos pode ser visto como algo trabalhoso e que desvia a atenção do
'conteúdo'? A partir de sua experiência, como pode funcionar o trabalho com
projetos no ensino superior?

Fernando Hernandez: Eu sou professor na universidade, tanto na graduação como na


pós-graduação. Em todos os casos, sigo a perspectiva educativa de projetos de
trabalho. O mesmo acontece com os colegas do grupo de inovação docente Indaga-t

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(http://www.ub.edu/indagat/). Não significa mais trabalho, mas uma maneira de
encarar as relações pedagógicas de um modo diferente. E garanto que os estudantes,
quando terminam, aprendem com sentido. E, com certeza, aprendem muito mais do
que conteúdos disciplinares.

RBL: Na sua perspectiva de trabalho por projetos, ao trabalhar com temas ou


perguntas, parece-nos haver um legado freireano? Caso haja, qual é?

Fernando Hernandez: Sempre reconhecemos aqueles através dos quais aprendemos e


aqueles com quem continuamos a aprender. Em nossa bagagem estão, por exemplo,
Célestin Freinet, Loris Malaguzzi, Elizabeth Ellsworth,... Consideramos autores do
campo da educação e fora dele. Há cientistas, músicos, dançarinos, escritores, artistas
visuais que nos acompanham e nos inspiram. Paulo Freire também, mas não tanto pela
questão das perguntas, e sim pelo papel da conversação e pela ideia de aprender
quando ensinamos. Não nos colocamos limites, pois nos guia a curiosidade e o desejo
de continuar aprendendo. Por isso, também aprendemos de nossos colegas, dos
estudantes e das famílias que nos acompanham nesta aventura.

Entrevistadores: Anamaria Welp, Simone Sarmento e William Kirsch


Tradução: Letícia Machado Trindade
Supervisão: Cleci Bevilacqua

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Anamaria Kurtz de Souza Welp
Professora adjunta na UFRGS, coordenadora pedagógica do programa
Inglês Sem Fronteiras na UFRGS e editora-chefe da Revista Bem Legal.

Fernando Hernandez
Professor do setor de Pedagogias Culturais da
Faculdade de Belas Artes da Universidade de
Barcelona. É membro do grupo de investigação
consolidado ESBRINA (http://www.ub.edu/esbrina) e
coordenador do grupo de inovação docente INDAGA-T
(http://www.ub.edu/indagat). Autor de obras como
Cultura visual, mudança educativa e projeto de
trabalho, A organização do currículo por projetos de trabalho e Transgressão e
mudança na educação: os projetos de trabalho, atualmente acompanha processos de
mudança em escolas e investiga sobre novas formas de aprender.

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Simone Sarmento
Professora adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Possui Doutorado em Terminologia e Lexicografia pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008), Mestrado em
Language Studies - University of Lancaster (2005) e Mestrado em
Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (2001).

William Kirsch
Mestre em Linguística Aplicada (UFRGS), especialista em
TESOL (ensino de inglês como língua estrangeira) pela School
of International Training (Brattleboro, Vermont, EUA) e
licenciado em Letras Inglês-Português (UFRGS). Tem lecionado
desde 2004, tendo trabalhado em diversas escolas
particulares e públicas, e cursos de idiomas.

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