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Sobre a Dignidade do Homem

(Giovanni Pico della Mirandola)

Li nos escritos árabes que, interrogado Abdala Sarraceno sobre qual


fosse o espetáculo mais maravilhoso do mundo, respondeu que nada via
de mais admirável do que o homem.

Eu concordei: realmente o homem é o vínculo de todas as criaturas,


familiar aos anjos e soberano dos animais inferiores; porque a agudeza
dos sentidos, o poder da razão e a luz do intelecto lhe permite ser
intérprete da natureza.

Admirável, sem dúvida, mas seria isso o mais importante? Apesar


disso, não deveríamos admirar ainda mais os anjos?

Então refleti e compreendi por que o homem é o mais feliz de todos


os seres vivos, digno de toda a admiração, e que lugar lhe coube na
ordem universal, invejável não só para os animais, mas até para os anjos.

Compreendi por que é um grande milagre e um ser vivo digno de


toda a admiração: quando Deus criou o mundo, criou os seres celestiais e
incontáveis animais das espécies inferiores.

Mas, ao terminar, desejou que houvesse alguém capaz de


compreender a razão de tão grande obra, que amasse a beleza e
admirasse a sua grandeza. Foi então que pensou por último em criar o
homem.

De sua criação, contudo, não restara modelo ou lugar no mundo em


que se sentasse este contemplador do universo, pois tudo já estava
ocupado.

Mas não teria sido digno de Deus não se superar, como se fosse
inábil, na sua obra. Estabeleceu, portanto, àquele a quem nada tinha de
próprio, que tivesse características comuns a tudo o que tinha sido dado
parcialmente aos outros.

Assim, colocou o homem no mundo e lhe disse:


Ó Adão, não te dei lugar determinado, nem aspecto inteiramente próprio,
nem tarefa específica, a fim de que escolhas tu mesmo o lugar, aspecto e
tarefa que desejares, segundo o teu parecer e decisão.

Não te fiz celestial nem terreno, mortal ou imortal, a fim de que tu, dono de
ti próprio, possas escolher tuas características.

Poderás degenerar ao nível dos animais inferiores ou ascender aos seres


celestiais e divinos, por tua própria decisão.

Ó suma liberalidade de Deus pai, ó admirável felicidade do homem!

Só a ele é concedido ser aquilo que quer ser.

Os animais, ao nascerem, trazem consigo do ventre materno tudo o que


depois serão.

Os seres celestiais sempre foram o que serão eternamente.

Ao homem o Pai conferiu sementes de toda a espécie e, segundo a


maneira de cada um ao cultivá-las, nele crescerão e darão os seus frutos.

Poderá ser passivo como uma planta ou violento como uma besta.

Mas se usar de raciocínio e intelecto poderá se elevar à categoria de anjo


e filho de Deus.

E, se ainda assim continuar descontente, poderá recolher-se, tornando-se


espírito uno com Deus, Aquele que está acima de todas as coisas.

Quem não admirará este fascinante camaleão?

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