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Literatura

Período Romântico

Organizadores
Neide Luzia de Rezende
Maria Lúcia C. V. O. Andrade
Valdir Heitor Barzotto

Elaboradoras
Neide Luzia de Rezende
Gabriela Rodella
Maria Claudia Rodrigues Alves
1
módulo

Nome do aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Adolpho José Melfi
Pró-Reitora de Graduação
Sonia Teresinha de Sousa Penin
Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária
Adilson Avansi Abreu

FUNDAÇÃO DE APOIO À FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FAFE


Presidente do Conselho Curador: Selma Garrido Pimenta
Diretoria Administrativa: Anna Maria Pessoa de Carvalho
Diretoria Financeira: Sílvia Luzia Frateschi Trivelato

PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian

Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei,
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação

Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.

Sonia Teresinha de Sousa Penin.


Pró-Reitora de Graduação.
Carta da
Secretaria de Estado da Educação

Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.

Prof. Sonia Maria Silva


Coordenadora da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
Apresentação
da área
Será que literatura se ensina e se aprende? Esta é uma questão bastante
controversa.
Quem, tantas vezes, não foi obrigado a ler livros de ficção e de poesia
para depois responder a exercícios de compreensão de texto? Mesmo que a
leitura tenha proporcionado emoção, instigado questões as mais essenciais
para nossas vidas, ao ser reduzida somente a desvitalizadas questões de pro-
va, o fato é que a literatura morre, torna-se um mero exercício escolar.
Prazer e conhecimento – esse binômio associado à literatura é inseparável
para quem vê a arte como forma de humanização do homem, como aquisição
de um bem essencial ao espírito. O acesso a tal bem pode ter sim a colaboração
da escola, em princípio capacitada para indicar ao aluno as boas obras e orientá-
lo a desfrutar não só da história que narra mas do modo como é narrada, além
de levá-lo a conhecer por meio dela as questões importantes da época em que
surgiu. Porém, não é o contato com características de escolas literárias, a história
literária como reflexo da história geral, a leitura de resumos de obras ou a
análise acadêmica de poemas que vão instituir o gosto ou fazer conhecer a
literatura importante que existiu antes da gente.
Nesse sentido, o que se propõe aqui será a tentativa de propiciar o contato
direto do aluno com o texto literário. Nada substitui sua leitura – nem o resu-
mo, nem o texto teórico, nem a leitura do professor.
Neste curso, toda a abordagem literária partirá da obra lida, ainda que seja
esta leitura muitas vezes difícil, devido, não só à falta de tempo, como à falta
de familiaridade com a tarefa. Nosso conteúdo: basicamente os livros do vesti-
bular da FUVEST deste ano de 2004. São livros significativos dentro da tradi-
ção literária, capazes de propiciar, com a devida orientação, uma descoberta
dos seres e das coisas do mundo.
Jamais esquecer que a literatura só existe porque existe você, leitor.
Apresentação
do módulo
Este módulo se inicia com o romance de Manuel Antonio de Almeida, Me-
mórias de um sargento de milícias e prossegue com Lucíola, de José de Alencar,
alguns poemas de Álvares de Azevedo, Gonçalves Dias e Castro Alves, todos
do período romântico. Além desse conteúdo estrito de literatura, apresenta tam-
bém estratégias para a leitura e para o trabalho em sala de aula.
Optou-se pelo romance de Manuel Antonio de Almeida porque, além de
ele constar na lista da FUVEST, mostra ser um bom ponto de partida para os
objetivos pretendidos com esse módulo, que é propiciar a leitura integral das
obras e trazê-las para o universo de compreensão e de significação do leitor.
Ainda que você, aluno, tenha dificuldade com o texto literário, ou seja,
ainda que lhe pareça complexa a tarefa de levar adiante a leitura de um livro
longo, com muitos vocábulos desconhecidos do falante de hoje e com profu-
são de trechos descritivos e documentais, esse romance tem histórias engraça-
das, tão bem encadeadas que nenhuma é ali desnecessária e se você não pres-
tar atenção ou quiser pular algum trecho corre o risco de ver sua compreensão
do livro prejudicada. Isso faz com que nossa atenção fique o tempo todo em
alerta para saber o destino das personagens e o desfecho de suas ações.
Como contraponto a essa vertente mais popular do romance que é Memórias
de um sargento de milícias, buscou-se destacar com Lucíola, de José de Alencar,
uma outra vertente, vinculada à facção burguesa do romance europeu que teve
na figura da cortesã um emblema do drama que povoava o imaginário do ho-
mem burguês da primeira metade do século XIX.
Ambos os romances são de leitura agradável e estimulante e nos ensinam
tanto sobre o gênero romanesco quanto sobre a sociedade da época, além de
permitir uma reflexão sobre o próprio homem – o homem na história, mas cujos
sentimentos não se limitam ao tempo histórico (se assim não fosse, não conse-
guiríamos ir adiante na leitura, pois não seríamos capazes de identificação).
Este módulo e este curso não substituem evidentemente o conteúdo da
escola, servem-lhe de subsídio. Por isso, sugere-se que se tenha sempre à
disposição para consulta e estudo o material didático usado no curso regular –
sobretudo o rico acervo que em geral possui a biblioteca escolar.
Guia de estudo

Comecemos por um paradoxo... (Tarefinha 1)

Direitos imprescritíveis do leitor


O direito de não ler
O direito de pular páginas
O direito de não terminar o livro
O direito de reler
O direito de ler qualquer coisa
O direito ao “bovarismo” (doença textualmente transmissível)
O direito de ler em qualquer lugar
O direito de ler uma frase aqui e outra ali
O direito de ler em voz alta
O direito de calar
Daniel Pennac, Como um romance

Conteúdo
Unidade I
• Texto-base: Manuel Antônio de Almeida: Memórias de um sargento de milícias

Unidade II
• José de Alencar: Lucíola
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Unidade III
• Gonçalves Dias: Poesias
• Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos
• Castro Alves: Espumas flutuantes, Navio negreiro

Estratégias sugeridas
• Conversa entre os alunos, em grupo, sobre o texto lido e apresentação
conjunta para a classe do resultado da discussão.
• Estudo do texto pelo estagiário, orientado pelas tarefinhas propostas.

• As aulas deverão transcorrer numa interação contínua entre o estagiário


e o aluno e também entre os próprios alunos, tendo como matéria o texto
literário. Acredita-se que a leitura despertará questões as mais variadas, as
quais deverão ser consideradas legítimas para a discussão que se fará em sala,
pois uma obra só se realiza efetivamente na leitura. O poema e a narrativa
pedem abordagens no mais das vezes diferentes.

Prosa
• No início da aula, os alunos poderão se reunir em grupos de 5 durante
cerca de dez ou quinze minutos, no máximo, para, entre si, levantarem um
aspecto que consideram instigante e que gostariam de discutir mais, expondo-
o em seguida para toda a classe. Assim, cerca de 8 aspectos ou questões pode-
rão ser, com a ajuda do estagiário, sintetizados e discutidos em conjunto, du-
rante cerca de 20 a 30 minutos.
• Em seguida, sob a batuta do estagiário, far-se-á um estudo mais apro-
fundado do tema da aula, que deverá se reportar ao romance em estudo.

Poema
• Os alunos podem buscar novos poemas dos autores indicados, como po-
dem escolhê-los ao final do módulo. É importante ler os poemas escolhidos
mais de uma vez antes da aula, para ir captando suas imagens e seu sentido.
• Em sala, reunidos em grupos de cinco, os alunos trocarão seus poemas
e escolherão um dentre todos para ser lido para a toda a classe. Desse modo,
serão lidos em torno de 8 poemas.
• Após a leitura, o aluno indicado pelo grupo poderá fazer um rápido comen-
tário a respeito do poema lido. Não se trata de “análise”, mas o leitor deve dar
mostras de que sabe algo a respeito do poeta e de que entendeu sua mensagem.
• Em seguida, sob a batuta do estagiário, far-se-á um estudo mais apro-
fundado do tema da aula, que deverá versar sobre poema.


Unidade 1

Manuel Antônio
de Almeida
Memórias de um sargento de milícias
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Maria Lúcia C. V.
Comentário dos dois parágrafos O. Andrade
Valdir Heitor
iniciais do capítulo 1 Barzotto

O comentário dos dois parágrafos iniciais tem por objetivo situá-lo em Elaboradora
relação ao tempo, ao espaço, às personagens principais e ao estilo do autor, Neide Luzia de
dentre outros aspectos importantes relacionados à leitura do romance. Rezende

Era no tempo do rei.


Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se
mutuamente, chamava-se nesse tempo – O canto dos meirinhos – , e bem lhe assentava o
nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que
gozava então de não pequena consideração). Os meirinhos de hoje não são mais do que
a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida,
respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que
envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento
de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes,
tocando-se fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das
citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chama-
va o processo.

Tempo do rei
O narrador compara no livro o “tempo do rei”, sobre o qual escreve (tempo
do enunciado), e o tempo em que ele vive, ou melhor, o tempo do momento em
que está escrevendo o romance (tempo da enunciação). É no primeiro tempo
que a história se passa, sendo muitos dos seus costumes descritos pelo narrador,
que dá pois aos seus personagens a marca do momento histórico em que vivem,
isto é, o reinado de D. João VI, portanto anterior à independência do Brasil. Para
o narrador, aqueles eram tempos melhores, mais “autênticos” (veja como ele
vai mostrando isso ao longo do livro). Por isso, a História (os fatos, o modo de
vida e a mentalidade de uma época) ganha também uma dimensão de fábula,
como de fato pretende o narrador ao iniciar seu romance com uma fórmula
própria a esse gênero. O romance parece o tempo todo transitar entre essas duas
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dimensões da narrativa – a invenção e a realidade, de modo entretanto bastante


verossímil, ou seja, pela boa estruturação desses elementos, vivenciamos os acon-
tecimentos do livro como se fossem possíveis e verdadeiros.

Meirinhos, cadeia judiciária, demanda, desembargadores,


citações, provarás, razões principais e finais, processo
Todos esses termos pertencem ao campo de significação da área jurídica.
Será nesse âmbito que se explicarão muitas das situações vividas pelas perso-
nagens e de cujas relações o narrador extrai grande parte de sua comicidade.
A sátira (que visa ridicularizar hábitos e comportamentos morais e sociais) é
direcionada para a pretensa rede de poder das autoridades jurídicas do roman-
ce, que encarnam a vontade do Estado absolutista.

“Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra


caricata dos meirinhos do tempo do rei.”
Na verdade, como o leitor verá, o narrador contribui bastante para desban-
car essa nobre figura do meirinho e de todas as outras autoridades da área jurí-
dica, pois tratará ao longo do romance de colocá-lo muitas vezes em situação
bem pouco nobre, mostrando todas suas fraquezas e expondo-o ao ridículo. As
normas rígidas do campo jurídico, que criam a ilusão de uma ordem regular que
não existe, é o alvo crítico de Manuel Antonio de Almeida no romance.
A caricatura é um meio
de compor uma figura com
alguns traços carregados
(caricato em italiano é carre-
gado), aproveitando justa-
mente com esses traços ex-
por criticamente o retratado.
A caricatura verbal se faz
com palavras, mas também
pode ser construída com ou-
tras linguagens, o desenho
ou a pintura, por exemplo –
aliás são estas as mais po-
pulares. (Tarefinha 2)

Caricatura de Gonçalves
Dias por Loredana.


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Subsídios para o estudo do romance


NO INÍCIO, O FOLHETIM
Memórias de um sargento de milícias, o único romance de Manuel Anto-
nio de Almeida, apareceu semanalmente de 1852 a 1853, num jornal do Rio
de Janeiro. Esta era a forma mais comum de publicação dos romances na
época. Denominada folhetim, pode ser considerada, por sua forma de compo-
sição e de divulgação, uma parenta próxima das nossas telenovelas de hoje:
em capítulos, eram publicados nos rodapés dos jornais, em intervalos que
variavam de dois dias a uma semana. Enquanto o autor escrevia o novo capí-
tulo, o leitor aguardava ansiosamente.
Quase todos os romances que fizeram sucesso ao longo do século XIX
foram publicados antes como folhetins1, o que configurava um meio seguro
de vender jornais, assim como nossas telenovelas garantem para o veículo TV
um espectador fiel e preso à sedução desse folhetim contemporâneo.
O gênero conheceu um sucesso enorme entre o público leitor do Rio de
Janeiro e acolheu as narrativas as mais diversas: inúmeros eram os folhetins
franceses traduzidos para o português, crônicas, romances de cunho moral, muitas
aventuras rocambolescas. Eram obras selecionadas, portanto, para prender a
atenção da maior fatia possível de público. Como os meios de comunicação de
hoje, o jornal se esmerava na busca do leitor para constituir seu mercado.
A exemplo também do que em geral ocorria com as obras publicadas como
folhetins, Memórias de um sargento de milícias foi logo depois publicado em
livro – em 1854 e 1855, respectivamente o primeiro e segundo volumes. Se-
gundo Mário de Andrade, o livro não conheceu o mesmo sucesso do folhetim.
Na verdade, foi somente em meados do século XX que Memórias de um sar-
gento de milícias se firmou na história literária e conheceu sucessivas edições.

UM CLÁSSICO, UMA OBRA CANÔNICA?


Um livro, para fazer parte do cânone, isto é, para pertencer à seleta relação
das obras clássicas de uma literatura nacional, deve ter sua importância reco-
nhecida pelos leitores. E justamente por isso o cânone literário não é fixo.

“A palavra cânone vem do grego kanón, através do latim canon, e significava


‘regra’. Com o passar do tempo, a palavra adquiriu o sentido específico de conjunto
de textos autorizados, exatos, modelares”. (Perrone-Moisés, p. 61)
Ou seja, trata-se de uma lista de livros representativos de uma época e que
tanto do ponto de vista das questões que suscita quanto do ponto de vista formal
pode ser considerado uma espécie de exemplo – o melhor exemplo. Como diz
Luiz Roncari, esses livros “realizam em alto grau as expectativas literárias de sua
época e, ao mesmo tempo, não se esgotam nelas, mas as transcendem” (p. 375).
A lista de livros canônicos não é fixa porque o padrão do gosto muda e os
leitores críticos de uma determinada época podem rever a importância de uma
obra na história, retirando-a ou incluindo-a nessa lista: “histórico é, ao contrá-
rio do que diz a convenção, o que ficou, não o que morreu” (Bosi, p.47).

1
O termo tem sua origem no francês feuilleton, espaço dedicado ao entretenimento no rodapé dos jornais.


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Ainda segundo Leyla Perrone-Moisés: “Apesar de assumirem a precarie-


dade de suas escolhas, os escritores-críticos modernos têm a preocupação
pedagógica de fornecer aos mais jovens um currículo mínimo de leituras for-
madoras; e esse traço pedagógico está presente em qualquer listagem de auto-
res, desde a Antigüidade” (p.63).

SOBRE A FORMA DE COMPOSIÇÃO

O romance Memórias de um sargento de milícias foi lançado inicialmente em


dois volumes. Nas edições de hoje, não há essa divisão, mas ela pode ser percebi-
da na estruturação do livro: é possível observar nos dezoito capítulos iniciais uma
composição mais próxima da crônica, com descrições dos costumes da época e a
apresentação dos diferentes tipos e o contexto de cada um (Tarefinha 4). Já nos
capítulos seguintes pode-se observar uma ênfase no enredo e no desenrolar da
trama, uma estrutura de romance mais propriamente – e é o próprio narrador
quem a anuncia no capítulo dezoito: “Agora começam as histórias, se não mais
importantes, pelo menos um pouco mais sisudas”. O enfoque está na narrativa e o
desenrolar da vida adulta de Leonardo Filho é destacado.

A MATÉRIA DO ROMANCE

Para escrever seu romance, Manuel Antonio de Almeida se baseou livremente


em relatos de seu colega Antônio Cesar Ramos, português que veio ao Brasil para
lutar na Guerra da Cisplatina, em 1817. Promovido a sargento de milícias, sob o
mando do verdadeiro major Vidigal, esse sargento reformado gostava de conver-
sar com o autor de Memórias de um sargento de milícias, que provavelmente o
escutava tomando nota dos casos para usá-los nas Memórias. (Tarefinha 5)
O Vidigal parece ser, segundo informações recolhidas por Mário de An-
drade, o único personagem autenticamente histórico do romance. “O major
Vidigal que principia aparecendo em 1809, foi durante muitos anos, mais que
o Chefe, o dono da Polícia Colonial carioca. Habilíssimo nas diligências, per-
verso e ditatorial nos castigos, era o horror das classes desprotegidas do Rio
de Janeiro” (p. 129).
Mario de Andrade, grande estudioso da cultura popular brasileira, ficou
impressionado com a riqueza e a autenticidade das descrições do autor. Entre-
tanto, com argúcia, aponta para uma ausência importante.

“Ora é curiosíssimo notar que num livro tão rico de documentação de costumes
nacionais como estas Memórias, haja ausência quase total de contribuição negra.
Entre os personagens não há um só que seja preto. Sabemos apenas que são geral-
mente negros os barbeiros de então, negras as baianas dançarinas da procissão dos
Ourives, e o mais são referências desatentas a escravos e às crias de D. Maria. No
vigésimo capítulo da segunda parte o romancista nos fala de um vadio chamado
Teotônio, procurado pela polícia, dono de uma casa de tavolagem e apreciadíssimo
de todos pelas suas habilidades de salão. Não havia baile ou cerimônia familiar a
que o dono da casa, querendo garantir riso na festa, não convidasse o Teotônio. E
entre as habilidades deste, conta Manuel Antonio de Almeida, estava a de cantar
admiravelmente ‘em língua de negro’. Por aí se percebe que era ainda considerada
coisa espetacular e rara, verdadeiro exotismo nas funçanatas de brancos, a música e
a linguagem dos pretos.” (p. 131-2)


  -  

De fato, no romance encontramos uma classe social que poderia ser cha-
mada de pequena burguesia, espécie de classe média no interior da qual havia
os mais e os menos remediados. A cultura documentada no romance era tam-
bém aquela a que essa classe tinha acesso. Era a sociedade dos homens livres
do Brasil de então (os negros escravos esperariam ainda mais de meio século
para a libertação). Era uma sociedade que, como se vê no romance, embora já
compartilhasse da ideologia burguesa sobre o trabalho, ainda punha bem pouco
a mão na massa. O trabalho braçal, realizado pelos escravos, era para essa
sociedade de homens livres uma vergonha.
“Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemos o contorno
de uma terra sem males definitivos ou irremediáveis, regida por uma encantadora
neutralidade moral. Lá não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia.
Na sociedade parasitária e indolente, que era a dos homens livres do Brasil de então,
haveria muito disto, graças à brutalidade do trabalho escravo, que o autor elide
junto com outras formas de violência” – diz Antonio Candido no estudo sobre o
romance. (“Dialética da malandragem” , p. 53-4)

Outra questão importante que observamos no romance são as relações


familiares e de gênero2. A família formal burguesa, constituída pela mãe, pai e
filhos, tem poucos exemplos no romance, são muitos outros os arranjos pos-
síveis, sem que isso seja visto pelo narrador como um atentado flagrante à
moral da sociedade. Há no romance uma dinâmica de relações sociais, fami-
liares e parentais diferente da que iria prevalecer no interior das classes mé-
dias e burguesas da sociedade das décadas posteriores. (Tarefinha 6)
Quanto às relações entre homens e mulheres, Luisinha e Vidinha parecem
até exemplos didáticos: a primeira no pólo da ordem, das relações formais, traz
consigo herança, parentela, posição e deveres; a outra, no pólo da desordem, a
nenhum compromisso obriga a não ser o do coração. Entretanto, ao final do
romance, Leonardo opta por Luisinha, pertencente à sociedade mais organiza-
da e que se impunha perante os desarranjos dos grupos mais populares.

TAREFINHAS DA UNIDADE 1
Tarefinha 1 (para a sala de aula)
Foi possível identificar o paradoxo a que nos referimos no início do guia
de estudo?

Tarefinha 2 (para casa)


Caricatura – Procure observar ao longo da sua leitura como a caricatura
verbal se constrói no livro. Anote-as quando as encontrar (o melhor é você
fazer a leitura com um lápis à mão para ir anotando suas observações à mar-
gem do livro e poder retomá-las depois se precisar).

Tarefinha 3 (para casa)


Vocabulário – Você encontrará ao longo do livro muitas palavras que caí-
ram em desuso e das quais jamais ouviu falar. Entretanto, há outros termos,
expressões e ditos que persistem ainda hoje na fala cotidiana. Procure reco-
nhecer ambos os tipos de vocabulário e anote alguns deles para subsidiar a
discussão quando o assunto vier à tona em classe.

2
Gênero, nessa acepção, refere-se às características socioculturais dos sexos feminino e do masculino.


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Tarefinha 4 (para a sala de aula)


Afirmou-se que os dezoito primeiros capítulos do romance têm característi-
cas da crônica.
Lembrando das crônicas que você já leu, que reflexões poderia fazer sobre
esse gênero discursivo? Qual sua natureza, que forma comumente costuma ter?

Tarefinha 5 (para a sala de aula)


“Para escrever seu romance, Manuel Antonio de Almeida se baseou livre-
mente em relatos de seu colega Antônio Cesar Ramos” (Mário de Andrade).
Discuta o significado de “livremente” nesse trecho.

Tarefinha 6 (para casa)


“Mudaram as condições de reprodução da população, mudaram os padrões de
relacionamento entre os membros da família, os modelos de autoridade estão em
questionamento, a posição relativa da mulher alterou-se profundamente, e até mesmo
a legislação redefiniu o conceito de família – de uma concepção legal estreita sobre
a família, em que só cabia um modelo de família legitimada pelo casamento com
predominância do poder paterno e marital masculino, passa-se a algo mais próximo
das práticas sociais vigentes”. (Cadernos de Pesquisa n. 91, nov. 1994, p. 10)
Este trecho refere-se ao contexto atual. Compare o que se diz com o uni-
verso do romance.
Tarefinha 7 (para a sala de aula)
São muitas as intervenções do narrador ao longo da narrativa. Nessas in-
tervenções por vezes ele manifesta claramente sua posição em relação ao que
narra. Anote quando isso ocorrer.

PARA RELACIONAR
• Carlota Joaquina – a princesa do Brazil.
(Carlota Joaquina – A Princesa do Brazil,
Brasil, 1994). Direção: Carla Camurati.

“D. João 6º passou à história vitimado pela


própria aparência e por uma série de caracte-
rísticas caricaturais. O rei era muito feio como
também um glutão inveterado que ignorava
as mais primárias normas de higiene e de as-
seio. De qualquer forma, o D. João imundo e
glutão que chegou ao Brasil revelou-se um
governante com freqüentes rasgos de bonda-
de e muitas ações práticas. Além de abrir os
portos, declarar o Brasil um reino e remodelar
o Rio, ele permitiu a instalação de indústrias
no país e aparelhou as Forças Armadas, crian-
do a Academia de Marinha, a Academia Mili-
tar, construiu o Jardim Botânico, fez o teatro,
a biblioteca pública e a tipografia real.” (Tre-
Ala de palmeiras do Jardim
cho adaptado de História do Brasil, Empresa
Botânico, c. 1876 Folha da Manhã, 1997, p. 96)


Unidade 2

José de Alencar
Lucíola

Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
O romance Lucíola conta uma história de amor que se passa na Corte na Maria Lúcia C. V.
metade do século XIX. Paulo, rapaz de 25 anos e profissão indefinida (provavel- O. Andrade
mente formado em Direito), conhece Lúcia, cortesã, prostituta de luxo, mulher Valdir Heitor
fatal poderosa. O romance, narrado em primeira pessoa, mostra a protagonista Barzotto
interpretada pelo narrador Paulo, o que é portanto um ângulo de visão restrito.
Embora Paulo seja um homem sensível, que busca construir sua personagem para Elaboradoras
além das aparências, ele não deixa de expor um imaginário masculino determina-
Neide Luzia de
do por sua época. Lúcia (ou Lucíola) é a projeção desse imaginário.
Rezende
A história que ele nos conta é a de uma jovem belíssima, desejada por
Gabriela Rodella
todos os homens da corte. Lúcia tem casa, vestidos caros, anda sozinha pela
cidade, participa de festas, freqüenta o teatro e vai aonde bem entende, mas
Paulo percebe nela profunda infelicidade, cuja dimensão aos poucos vai co-
nhecendo. Ela se apaixona, mas ele, embora se veja arrastado pela paixão,
não pode corresponder aos sentimentos dela.
Na metade final do romance, finalmente conhecemos a “verdadeira” Lú-
cia, cujo nome de batismo é Maria da Glória e cujo ingresso na prostituição se
dera aos 14 anos, motivado pela mais terrível dificuldade social.
Sintomática é a conversão moral e social de Lúcia. A gradativa renúncia
ao trabalho, ao dinheiro que ganhava com essa atividade e aos prazeres se-
xuais, inclusive ao sexo até mesmo com Paulo é vista como um processo de
santificação pelo narrador-amante.
De resto, metáforas da castidade e do demoníaco percorrem o romance do
início ao fim (Tarefinha 4), mostrando uma certa visão do feminino em que o
homem romântico é atraído pelos dois extremos: a santa e a prostituta. O cristia-
nismo se impõe como ideologia dominante: os prazeres da carne revelam a queda
do espírito. Sintomático dessa mescla de anjo e demônio é o trecho abaixo.

“O rosto cândido e diáfano, que tanto me impressionou à doce claridade da lua,


se transformara completamente: tinha agora uns toques ardentes e um fulgor estra-
nho que o iluminava. Os lábios finos e delicados pareciam túmidos dos desejos que
incubavam. Havia um abismo de sensualidade nas asas transparentes da narina que
tremiam com o anélito do respiro curto e sibilante, e também nos fogos surdos que
incendiavam a pupila negra” (p. 24)
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Não há escapatória para a personagem, o único lugar que um romântico


burguês cristão pode reservar à mulher decaída para recuperá-la é a santificação
pela abstenção sexual, o arrependimento e a morte – casamento, nem pensar!
Não há dúvida de que o Romantismo, assim como qualquer outra corrente
estética, transpõe para a obra um modo de ser de sua época; esse modo de ser,
contudo, é filtrado pela consciência de quem produz a obra, que busca inter-
pretá-la por meio de seu narrador e de suas personagens. Jamais a obra será
uma expressão fiel da época, mas sim uma interpretação da época, uma refle-
xão sobre ela. O leitor deverá estar especialmente atento à perspectiva do
narrador. Identificar se ele é, por exemplo, um narrador-protagonista ou um
narrador onisciente, é uma questão técnica, o mais importante é saber como
esse tipo de narrador interfere na história que ele conduz. (Tarefinha 1)

TAREFINHAS DA UNIDADE 2
Tarefinha 1 (para a sala de aula)
Identifique o tipo de narrador de Lucíola e discuta sua posição na história
que narra.

Tarefinha 2 (para casa)


Leia o trecho em que Paulo conta o episódio do dia em que conheceu Lúcia:

“– Quem é esta senhora? Perguntei a Sá.


A resposta foi o sorriso inexprimível, mistura de sarcasmo, de bonomia e fatui-
dade, que desperta nos elegantes da corte a ignorância de um amigo, profano na
difícil ciência das banalidades sociais.
– Não é uma senhora, Paulo! É uma mulher bonita. Queres conhecê-la?…
Compreendi e corei de minha simplicidade provinciana, que confundira a más-
cara hipócrita do vício com o modesto recato da inocência. Só então notei que
aquela moça estava só, e que a ausência de um pai, de um marido, ou de um irmão,
devia-me ter feito suspeitar a verdade.”

Agora leia o trecho da reportagem da Revista da Folha, assinada pelos


repórteres Roberto de Oliveira e Kiyomori Mori (30 de abril de 2000) e intitulada
“Uma namorada quase perfeita”:
“Quando o artista plástico Júnior, 29, descobriu o que a namorada fazia, emudeceu.
O silêncio durou duas semanas. Ele já desconfiava dos horários estranhos, dos sumiços
mal explicados e do alto padrão de vida dela. Mesmo assim, ao ouvir as palavras ‘garota
de programa’, da sua boca, perdeu o rumo. Tentou se afastar, mas não resistiu.
Hoje, diz que ‘enfrenta o próprio preconceito’ e faz planos de casamento e
filhos. Abella (nome ‘de guerra’ da namorada), 25, não largou seu trabalho de ‘espe-
cialista em massagem tailandesa para executivos’ (R$ 500 por encontro). ‘Estou
juntando dinheiro, quero sair dessa em dois meses’, afirma Abella, que ganha cerca
de R$ 8.000 por mês e mora em um flat no Ibirapuera (zona sudoeste).”

a) Refletindo sobre esses dois trechos, separados por quase um século e meio no
tempo, compare a figura da cortesã e da garota de programa.


  -  

b) Interprete o modo como Paulo e Júnior lidam com o preconceito. A respeito


desse tema, faça uma dissertação e entregue para o estagiário.

Tarefinha 3 (para a sala de aula)


Releia o trecho abaixo, de Memórias de um sargento de milícias. Nele o
autor apresenta a “realidade” a que estavam obrigadas as mulheres da época
depois de casadas.

“Tinha-se José Manuel tornado para Luisinha um verdadeiro marido-dragão,


desses que só aquele tempo os conta tão perfeitos, que eram um suplício constante
para as mulheres. Depois que se havia mudado de casa de Dona Maria, nunca mais
Luisinha vira o ar da rua, senão às furtadelas, pelas frestas da rótula: então chorava
ela aquela liberdade de que gozava outrora; (…). Tendo-se casado com José Ma-
nuel, para seguir a vontade de Dona Maria, votava a seu marido uma enorme indi-
ferença, que é talvez o pior de todos os ódios.
Pois a vida de Luisinha, depois de casada, representava com fidelidade a vida
do maior número das moças que então se casavam: era por isso que as Vidinhas não
eram raras (…).” (“Descoberta”, Capítulo 21)

Nesse trecho é possível perceber uma crítica clara à sociedade da época


no que diz respeito aos rumos que a vida da mulher podia tomar: Luisinha
encarna a mulher casada, enclausurada pelo marido, proibida de passear, de ir
à missa e de receber visitas, submissa e obediente, apesar de indiferente ao
homem que desposou; Vidinha encarna a “formidável namoradeira”, cantora
de modinhas, que não se casa, tem prazeres, é livre, mas que, no entanto, está
exposta às fofocas.
Já em Lucíola, de José de Alencar, a história da cortesã Lúcia, que renun-
cia a sua ocupação e ao dinheiro, para se purificar e morrer em paz, indica
que a vida das senhoras casadas era uma das únicas (entre pouquíssimas)
possibilidades de existência para as mulheres “honradas” na corte do Rio de
Janeiro da segunda metade do século XIX. Outras opções só traziam desgraça
e miséria da alma.
Nos dois romances, há a construção de imagens de mulher. Essas imagens
são criadas a partir do ponto de vista masculino, já que os narradores são
homens (e os autores também…).
Memórias de um sargento de milícias refere-se a uma sociedade carioca
do início do século XIX; Lucíola se passa no mesmo lugar mas meio século
depois, enquanto a Revista da Folha comenta uma situação de início do sécu-
lo XXI. Pois bem, refletindo sobre as possibilidades de realização das mulhe-
res, você acha que há muita diferença entre o que ocorria no século XIX e o
que acontece hoje? Se sim, a que se pode atribuir essas mudanças?

Tarefinha 4 (para casa)


Identifique metáforas e comparações relativas à caracterização da dupla
dimensão de Lúcia, no romance de Alencar, selecione seis comparações e
metáforas relativas a uma mesma característica e entregue para o estagiário.


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PARA RELACIONAR

Terezinha
Chico Buarque de Holanda

O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não.

O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E assustada eu disse não

O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Não sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração.


Unidade 3

Os poetas românticos
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
“À primeira vista, o Romantismo, enquanto escola literária dominante em de- Maria Lúcia C. V.
terminada época, parece um conceito homogêneo e fácil de ser definido, e que os O. Andrade
romancistas, poetas e dramaturgos considerados românticos comungam as mesmas
concepções acerca da literatura e atitudes diante do mundo. Nada mais falso. Em- Valdir Heitor
Barzotto
bora julguemos saber o que seja romântico e usemos o termo a torto e a direito para
definir uma canção ou o temperamento de alguém, na hora de explicitar o conceito
aparece a dificuldade. Raramente conseguimos sair do senso comum, quer dizer, do Elaboradoras
uso impreciso e geral do conceito, que, assim vago, passa a ser empregado em Neide Luzia de
qualquer tempo e para caracterizar temperamentos e manifestações amorosas das Rezende
mais diferentes épocas artísticas e literárias. Tanto temos de escapar de seu uso
Maria Claudia
genérico, como temos também de abandonar a idéia de que o Romantismo é apenas
Rodrigues Alves
uma forma de considerar e viver o amor. Ele também é isso, mas, se ficarmos aí,
daremos ao Romantismo uma definição restrita, deixando de fora muito da riqueza
e abrangência do conceito. São estes os perigos do emprego da palavra romântico:
ora dizermos demais, ora dizermos de menos.” (Roncari, p. 296)

ÁLVARES DE AZEVEDO (1831-1852)


Álvares de Azevedo produziu sua obra enquanto estudava Direito no Lar-
go São Francisco, em São Paulo. Não publicou em vida, mas teve leitores
entre seus colegas estudantes, os boêmios paulistanos, como comprovam muitas
das revistas da época, onde a maioria deles escrevia.
Antonio Candido (“Literatura na evolução de uma comunidade”) afirma que
a criação da Faculdade de Direito em 1827 desempenharia um papel decisivo na
literatura em São Paulo, sendo a faculdade mais do que tudo um ambiente capaz
de modelar a mentalidades das elites daquele século. A boêmia e a literatura eram
a manifestação mais visível dessa mentalidade.
“Muita gente – diz Antonio Candido – que pela vida afora nunca mais ia abrir
um livro de ficção ou de poesia, era desta maneira conduzida a pagar o seu tributo,
contribuindo para o patrimônio do grupo com produções as mais das vezes sem
maior significado estético” (p. 147).

Álvares de Azevedo, embora admirado, era tido poeticamente por muitos


como pouco ou nada brasileiro pois não comungava da “obsessão indianista”
de parte do grupo acadêmico ou do excesso ultra-romântico “a idealização
amorosa, a pieguice, a melancolia, vazados em ritmos melodiosos e fáceis,
desenvolvidos sob a inspiração direta dos portugueses”, ainda que certa his-
tória literária o situe no grupo dos ultra-românticos.
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A Lira dos vinte anos, coletânea de poesias organizada em três partes, foi publicada
logo após sua morte (1853). O restante de sua produção, também publicado postu-
mamente, apresenta incursões pelo teatro (Macário – 1855), pela prosa, com um
conto gótico (Noite na taverna – 1855)
e por ensaios de estudos literários, além
de outros poemas como o Poema do
Frade e O Conde Lopo.
Diversos poemas desenvolvem, na
obra de Álvares de Azevedo, os temas
da decepção amorosa e da obsessão
pela morte: “Um cadáver de poeta”,
“Adeus, meus sonhos”, “Já da morte o
palor me cobre o rosto”, “O pastor mori-
bundo”, “Se eu morresse amanhã” (em
Poesias diversas). O poema “Lembran-
ça de morrer” é, porém, um dos mais
marcantes por apresentar um verso,
antológico, de bastante impacto, suges-
tão de epitáfio do eu-lírico: “Foi poeta
Foto por Militão, Rua da Constituição, – sonhou e amou na vida”.
cidade de São Paulo

Lembrança de morrer
Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Que o espírito enlaça à dor vivente, Se um suspiro nos seios treme ainda,
Não derramem por mim nem uma lágrima É pela virgem que sonhei...que nunca
Em pálpebra demente. Aos lábios me encostou a face linda!

E nem desfolhem na matéria impura Só tu à mocidade sonhadora


A flor do vale que adormece ao vento: Do pálido poeta deste flores...
Não quero que uma nota de alegria Se viveu, foi por ti! e de esperança
Se cale por meu triste passamento. De na vida gozar de teus amores.

Eu deixo a vida como deixa o tédio Beijarei a verdade santa e nua,


Do deserto, o poente caminheiro Verei cristalizar-se o sonho amigo...
Como as horas de um longo pesadelo Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Que se desfaz ao dobre de um sineiro; Filha do céu, eu vou amar contigo!

Como o desterro de minh’alma errante, Descansem o meu leito solitário


Onde fogo insensato a consumia: Na floresta dos homens esquecida,
Só levo uma saudade – é desses tempos À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Que amorosa ilusão embelecia. – Foi poeta – sonhou – e amou na vida. –

Só levo uma saudade – é dessas sombras Sombras do vale, noites da montanha,


Que eu sentia velar nas noites minhas... Que minh’alma cantou e amava tanto,
De ti, ó minha mãe! Pobre coitada Protegei o meu corpo abandonado,
Que por minha tristeza te definhas! E no silêncio derramai-lhe canto!

De meu pai...de meus únicos amigos Mas quando preludia ave d’aurora
Poucos – bem poucos – e que não zombavam E quando à meia-noite o céu repousa,
Quando, em noites de febre endoidecido. Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Minhas pálidas crenças duvidavam. Deixai a lua prantear-me a lousa!


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Note como as temáticas aparecem no poema. Nas estrofes iniciais, o eu-


lírico vislumbra claramente sua morte, despedindo-se de conhecidos e rogan-
do que não chorem por ele (Não derramem por mim nem uma lágrima/Em
pálpebra demente), que não cesse a alegria (Não quero que uma nota de ale-
gria/Se cale por meu triste passamento). A vida é para o eu-lírico um tédio,
um longo pesadelo (Eu deixo a vida como deixa o tédio/Do deserto, o poente
caminheiro/Como as horas de um longo pesadelo/Que se desfaz ao dobre de
um sineiro). Os laços afetivos são evocados, diferenciando o amor materno
(quinta estrofe), na imagem da mãe que vela seu filho, o amor paterno ligado
à fidelidade de poucos amigos (sexta estrofe) e, finalmente, do amor sonhado
e não concretizado (sétima estrofe). Na morte, em uma outra esfera, há a su-
gestão da possibilidade da concretização amorosa (Ó minha virgem errante
dos sonhos,/Filha do céu, eu vou amar contigo!). Como diz Luiz Roncari,
“Álvares Azevedo talvez seja o poeta do impasse entre a concepção do amor
romântico e a impossibilidade de sua efetivação no mundo terreno” (p. 436).

Álvares “realista”
É ela! É ela! É ela! É ela!
É ela! é ela – murmurei tremendo, Oh! de certo...(pensei) é doce página
E o eco ao longe murmurou – é ela! Onde a alma derramou gentis amores;
Eu a vi minha fada aérea e pura – São versos dela...que amanhã de certo
A minha lavadeira na janela! Ela me enviará cheios de flores...

Dessas águas furtadas onde eu moro Tremi de febre! Venturosa folha!


Eu a vejo estendendo no telhado Quem pousasse contigo neste seio!
Os vestidos de chita, as saias brancas; Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu a vejo e suspiro enamorado! Eu beiiei-a a tremer de devaneio...

Esta noite eu ousei mais atrevido É ela! é ela! – repeti temendo;


Nas telhas que estalavam nos meus passos Mas cantou nesse instante a coruja...
Ir espiar seu venturoso sono, Abri cioso a página secreta...
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços! Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!

Como dormia! que profundo sono!... Mas se Werther morreu por ver Carlota
Tinha na mão o ferro do engomado... Dando pão com manteiga às criancinhas,
Como roncava maviosa e pura!... Se achou-a assim mais bela – eu mais te adoro
Quase caí na rua desmaiado! Sonhando-te a lavar as camisinhas”

Afastei a janela, entrei medroso: É ela! é ela! Meu amor, minh’alma,


Palpitava-lhe o seio adormecido... A Laura, a Beatriz que o céu revela...
Fui beijá-la...roubei do seio dela É ela! é ela! – murmurei tremendo,
Um bilhete que estava ali metido... E o eco ao longe suspirou – é ela!

Uma característica pouco explorada ao estudar Álvares de Azevedo é seu


lado debochado e irreverente. Por exemplo, no poema “É ela! É ela! É ela! É
ela!”, note como todos os ingredientes característicos do romantismo são tra-
tados com muita gaiatice, numa espécie de paródia da convenção romântica.
Na primeira estrofe é introduzida a figura da amada qual “fada aérea e
pura”, porém, já no quarto verso nos é revelado, ironicamente, que se trata de


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uma simples lavadeira. Ao contrapor uma mulher prestes a ser idealizada a


uma figura das mais cotidianas, o poeta provoca o riso do leitor e introduz um
elemento “realista” no poema. Em seguida, o apaixonado adentra corajosa-
mente o quarto da amada. Temos aí outro “clichê” dos românticos: observar a
amada em seu sono. Em vez de ter uma rosa ou um terço em suas mãos, ela
segura o ferro de engomar! E mais: ela ronca. Para o sujeito apaixonado,
ainda nesse estado ela é “maviosa e pura” e ele quase “desmaia” de emoção!
O ponto culminante, no entanto, situa-se quando, ao beijá-la, o moço rouba-
lhe um papel que estava junto a seu seio. Ele crê que seja um poema de amor
e para sua surpresa trata-se de uma lista de roupas sujas. Nem mesmo esse
fato o desvia de seu propósito amoroso. Todos esses elementos que nos sur-
preendem e provocam risadas são reelaborados pelo eu-lírico em nome de seu
amor. A coruja canta, numa referência à cotovia de Romeu e Julieta, o enamo-
rado compara-se a Werther, o maior personagem do romantismo alemão, e
sua amada a Laura e Beatriz, também célebres personagens femininas da lite-
ratura. O empenho do eu-lírico em enaltecer as características reais de sua
amada choca-se com a fórmula romântica de idealização do feminino, da mulher
inacessível, irreal. Dessa forma, o poeta sugere que a realidade prosaica, do
dia-a-dia é muito diferente do que idealiza a imaginação romântica. O poeta
mostra assim o quão consciente está de que o romantismo com suas metáforas
do etéreo e do branco responde a uma convenção, ainda que tenha sido ele
próprio um importante romântico de sua época. Portanto, em “É ela! É ela...”
ele não só parodia o estilo romântico como se autoparodia. (Tarefinha-AA)

Almeida Júnior, O descanso da modelo

Tarefinha AA (para a sala de aula)


• Leia outros poemas de Álvares de Azevedo e identifique os temas re-
correntes e os traços estéticos de sua poesia, buscando ver em que medida
são eles românticos.


  -  

Romantismo e Nacionalismo
A exemplo do movimento romântico em outros países, também entre nós
houve um esforço por parte dos escritores de desenvolver um projeto nacional
para a literatura brasileira, a partir da independência, visando a inserir o país no
âmbito das nações civilizadas, de inspiração européia. O Indianismo – movi-
mento que a história literária assim denominou e que resplandeceu nas décadas
de 40 e 60 do século XIX – teve em Gonçalves Dias e José de Alencar os seus
mais legítimos representantes. Entretanto, os modelos heróicos a partir dos quais
os índios foram construídos na literatura de ambos (e de muitos outros) não
correspondem à realidade e à cultura indígenas brasileiras, eram igualmente
tomados da tradição européia. Isso não impediu contudo a realização de poe-
mas de grande força estética e humana, como é I-Juca Pirama e Os Timbiras, de
Gonçalves Dias, que escreveu também poemas líricos de valor reconhecido.

GONÇALVES DIAS (1823-1864)


A leviana
Souvent femme varie,
Bien fol est qui s’y fie.
— Francisco I

És engraçada e formosa Assim, beijar-te receio,


Como a rosa, Contra o seio
Como a rosa em mês d’Abril; Eu tremo de te apertar:
És como a nuvem doirada Pois me parece que um beijo
Deslizada, É sobejo
Deslizada em céus d’anil. Para o teu corpo quebrar.
Tu és vária e melindrosa, Mas não digas que és só minha!
Qual formosa Passa asinha
Borboleta num jardim, A vida, como a ventura;
Que as flores todas afaga, Que te não vejam brincando,
E divaga E folgando
Em devaneio sem fim. Sobre a minha sepultura.
És pura, como uma estrela Tal os sepulcros colora
Doce e bela, Bela aurora
Que treme incerta no mar: De fulgores radiante;
Mostras nos olhos tua alma Tal a vaga mariposa
Terna e calma, Brinca e pousa
Como a luz d’almo luar. Dum cadáver no semblante.
Tuas formas tão donosas,
Tão airosas,
Formas da terra não são;
Pareces anjo formoso,
Vaporoso,
Vindo da etérea mansão.


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Desejo [trecho]
E poi morir.
— Metastásio

Ah! que eu não morra sem provar, ao menos


Sequer por um instante, nesta vida
Amor igual ao meu!*
Dá, Senhor Deus, que eu sobre a terra encontre
Um anjo, uma mulher, uma obra tua,
Que sinta o meu sentir;
Uma alma que me entenda, irmã da minha,
Que escute o meu silêncio, que me siga
Dos ares na amplidão!
Que em laço estreito unidas, juntas, presas,
Deixando a terra e o lodo, aos céus remontem
Num êxtase de amor!

Seus olhos
Oh! rouvre tes grands yeux, dont la paupiére tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ensemble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tu fermes ton coeur.
— Turquety

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,
De vivo luzir, Desperta a chorar;
Estrelas incertas, que as águas dormentes E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Do mar vão ferir; Não pensa — a pensar.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Têm meiga expressão, Às vezes do céu
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
De noite cantando, — mais doce que a frauta Um vago desejo; e a mente se veste
Quebrando a solidão. De pranto co’um véu.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Quer sejam saudades, quer sejam desejos
De vivo luzir, Da pátria melhor;
São meigos infantes, gentis, engraçados Eu amo seus olhos que choram sem causa
Brincando a sorrir. Um pranto sem dor.
São meigos infantes, brincando, saltando Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
Em jogo infantil, De vivo fulgor;
Inquietos, travessos; — causando tormento, Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Com beijos nos pagam a dor de um momento, Que falam de amores com tanta poesia.
Com modo gentil. Com tanto pudor.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são; Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos, Eu amo esses olhos que falam de amores
Às vezes vulcão! Com tanta paixão.
Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.


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Os Timbiras [trecho]

INTRODUÇÃO Nem só me escutareis fereza e mortes:


Os ritos semibárbaros dos Piagas, As lágrimas do orvalho por ventura
Cultores de Tupã, a terra virgem Da minha lira distendendo as cordas,
Donde como dum trono, enfim se abriram Hão de em parte ameigar e embrandece-las.
Da cruz de Cristo os piedosos braços; Talvez o lenhador quando acomete
As festas, e batalhas mal sangradas O tranco d’alto cedro corpulento,
Do povo Americano, agora extinto, Vem-lhe tingido o fio da segure
Hei de cantar na lira.— Evoco a sombra De puto mel, que abelhas fabricaram;
Do selvagem guerreiro!... Torvo o aspecto, Talvez tão bem nas folhas qu’engrinaldo,
Severo e quase mudo, a lentos passos, A acácia branca o seu candor derrame
Caminha incerto, — o bipartido arco E a flor do sassafraz se estrele amiga.
Nas mãos sustenta, e dos despidos ombros
Pende-lhe a rôta aljava... as entornadas, CANTO PRIMEIRO
Agora inúteis setas, vão mostrando Sentado em sítio escuso descansava
A marcha triste e os passos mal seguros Dos Timbiras o chefe em trono anoso,
De quem, na terra de seus pais, embalde Itajubá, o valente, o destemido
Procura asilo, e foge o humano trato. Acoçador das feras, o guerreiro
Quem poderá, guerreiro, nos seus cantos Fabricador das incansáveis lutas.
A voz dos piagas teus um só momento Seu pai, chefe também, também Timbira,
Repetir; essa voz que nas montanhas Chamava-se o Jaguar: dele era fama
Valente retumbava, e dentro d’alma Que os musculosos membros repeliam
Vos ia derramando arrojo e brios, A flecha sibilante, e que o seu crânio
Melhor que taças de cauim fortíssimo?! Da maça aos tesos golpes não cedia.
Outra vez a chapada e o bosque ouviram Cria-se... e em que não crê o povo stulto?
Dos filhos de Tupã a voz e os feitos Que um velho piaga na espelunca horrenda
Dentro do circo, onde o fatal delito Aquele encanto, inútil num cadáver,
Expia o malfadado prisioneiro, Tirara ao pai defunto, e ao filho vivo
Qu’enxerga a maça e sente a muçurana Inteiro o transmitira: é certo ao menos
Cingir-lhe os rins a enodoar-lhe o corpo: Que durante uma noite juntos foram
E sós de os escutar mais forte acento O moço e o velho e o pálido cadáver.
Haveriam de achar nos seus refolhos Mas acertando um dia estar oculto
O monte e a selva e novamente os ecos. Num denso tabocal, onde perdera
Como os sons do boré, soa o meu canto Traços de fera, que rever cuidava,
Sagrado ao rudo povo americano: Seta ligeira atravessou-lhe um braço.
Quem quer que a natureza estima e preza Mão d’imigo traidor a disparara,
E gosta ouvir as empoladas vagas Ou fora algum dos seus, que receioso
Bater gemendo as cavas penedias, Do mal causado, emudeceu prudente.
E o negro bosque sussurrando ao longe — Relata o caso, irrefletido, o chefe.
Escute-me. — Cantor modesto e humilde, Mal crido foi! — por abonar seu dito,
A fronte não cingi de mirto e louro, Redobra d’imprudência, — mostra aos olhos
Antes de verde rama engrinaldei-a, A traiçoeira flecha, o braço e o sangue.
D’agrestes flores enfeitando a lira; A fama voa, as tribos inimigas
Não me assentei nos cimos do Parnaso, Adunam-se, amotinam-se os guerreiros
Nem vi correr a linfa da Castália. E as bocas dizem: o Timbira é morto!
Cantor das selvas, entre bravas matas Outras emendam: Mal ferido sangra!
Áspero tronco da palmeira escolho. Do nome do Itajubá se despega
Unido a ele soltarei meu canto, O medo, — um só desastre venha, e logo
Em quanto o vento nos palmares zune, Esse encanto vai prestes converter-se
Rugindo os longos encontrados leques. Em riso e farsa das nações vizinhas!


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Os manitós, que moram pendurados Decida-se a questão do esforço e brios.


Nas tabas d’Itajuba, que as protejam: Estes, que vês, impávidos guerreiros
O terror do seu nome já não vale, São meus, que me obedecem; se me vences,
Já defensão não é dos seus guerreiros! São teus; se és o vencido, os teus me sigam:
Dos Gamelas um chefe destemido, Aceita ou foge, que a vitória é minha.”
Cioso d’alcançar renome e glória, Não fugirei, respondeu-lhe Itajubá,
Vencendo a fama, que os sertões enchia, Que os homens, meus iguais, encaram fito
Saiu primeiro a campo, armado e forte O sol brilhante, e os não deslumbra o raio.
Guedelha e ronco dos sertões imensos, Serás, pois que me afrontas, torna o bárbaro
Guerreiros mil e mil vinham trás ele, Do meu valor troféu, –– e da vitória,
Cobrindo os montes e juncando as matas, Qu’hei de certo alcançar, despojo opimo.
Com pejado carcaz de ervadas setas Nas tabas em que habito ora as mulheres
Tingidas d’urucu, segundo a usança Tecem da sapucaia as longas cordas,
Bárbara e fera, desgarrados gritos Que os pulsos teus hão de arrochar-te
Davam no meio das canções de guerra. [em breve;
Chegou, e fez saber que era chegado E tu vil, e tu preso, e tu coberto
O rei das selvas a propor combate D’escárnio de d’irrrisão! — Cheio de glória,
Dos Timbiras ao chefe. –– “A nós só caiba, Além dos Andes voará meu nome!
(Disse ele) a honra e a glória; entre nós ambos

CASTRO ALVES
Na história literária Castro Alves se destaca tanto por seus poemas amorosos
quanto por aqueles de cunho social, de denúncia da escravidão. Em ambas as
vertentes sentimos o homem vigoroso, de personalidade firme e impetuosa,
cujas obras cantam o amor como força vital, como possibilidade concreta.
Nos poemas de Vozes d’África e Navio Negreiro está presente toda a indigna-
ção e o horror que podia causar a escravidão dos negros das nações africanas.

Espumas flutuantes

Hebréia [trecho]
Flos campi et lilium convallium —
Cântico dos Cânticos

Pomba d’esp’rança sobre um mar d’escolhos!


Lírio do vale oriental, brilhante!
Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a recender cheirosa!. ..
Tu és, ó filha de Israel formosa...
Tu és, ó linda, sedutora Hebréia...
Pálida rosa da infeliz Judéia
Sem ter o orvalho, que do céu deriva!
Por que descoras, quando a tarde esquiva
Mira-se triste sobre o azul das vagas?
Serão saudades das infindas plagas,
Onde a oliveira no Jordão se inclina?
Sonhas acaso, quando o sol declina,
A terra santa do Oriente imenso?
E as caravanas no deserto extenso?
E os pegureiros da palmeira à sombra?!...


  -  

Sim, fora belo na relvosa alfombra,


Junto da fonte, onde Raquel gemera,
Viver contigo qual Jacó vivera
Guiando escravo teu feliz rebanho..
Depois nas águas de cheiroso banho
—Como Susana a estremecer de frio—
Fitar-te, ó flor do babilônio rio,
Fitar-te a medo no salgueiro oculto...
Vem pois!... Contigo no deserto inculto,
Fugindo às iras de Saul embora,
Davi eu fora,–se Micol tu foras,
Vibrando na harpa do profeta o canto...
Não vês?... Do seio me goteja o pranto
Qual da torrente do Cédron deserto!...
Como lutara o patriarca incerto
Lutei, meu anjo, mas caí vencido.
Eu sou o lótus para o chão pendido.
Vem ser o orvalho oriental, brilhante!.
Ai! guia o passo ao viajor perdido,
Estrela vésper do pastor errante!...
(...)

Quem dá aos pobres, empresta a Deus [trecho]

Eu, Que a pobreza de meus pobres cantos Se tropeçaram — foi na eternidade...


Dei aos heróis — aos miseráveis grandes —, Se naufragaram—foi no mar da glória...
Eu, que sou cego, — mas só peço luzes... E hoje o que resta dos heróis gigantes?...
Que sou pequeno, — mas só fito os Andes.... Aqui — os filhos que vos pedem pão...
Canto nest’hora, como o bardo antigo Além — a ossada, que branqueia a lua,
Das priscas eras, que bem longe vão, Do vasto pampa no funéreo chão.
O grande nada dos heróis, que dormem Ai! quantas vezes a criança loura
Do vasto pampa no funéreo chão... Seu pai procura pequenina e nua,
Duas grandezas neste instante cruzam-se! E vai, brincando co’o vetusto sabre,
Duas realezas hoje aqui se abraçam!... Sentar-se à espera no portal da rua...
Uma — é um livro laureado em luzes... Mísera mãe, sobre teu peito aquece
Outra — uma espada, onde os lauréis Esta avezinha, que não tem mais pão!...
[se enlaçam. Seu pai descansa — fulminado cedro —
Nem cora o livro de ombrear coto sabre... Do vasto pampa no funéreo chão.
Nem cora o sabre de chamá-lo irmão... Mas, já que as águias lá no sul tombaram
Quando em loureiros se biparte o gládio E os filhos d’águias o Poder esquece...
Do vasto pampa no funéreo chão. “E grande, é nobre, é gigantesco, é santo!...
E foram grandes teus heróis, ó pátria, Lançai— a esmola, e colhereis—a prece!
— Mulher fecunda, que não cria escravos —, Oh! dai a esmola... que do infante lindo
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos: Por entre os dedos da pequena mão,
“Parti — soldados, mas voltei-me — bravos! Ela transborda... e vai cair nas tumbas
E qual Moema desgrenhada, altiva, Do vasto pampa no funéreo chão.
Eis tua prole, que se arroja então, Há duas cousas neste mundo santas:
De um mar de glórias apartando as vagas — O rir do infante —, o descansar do morto..
Do vasto pampa no funéreo chão. O berço — é a barca, que encalhou na vida,
E esses Leandros do Helesponto novo A cova — é a barca do sidéreo porto...
Se resvalaram — foi no chão da história... E vós dissestes para o berço — Avante! —


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Enquanto os nautas, que ao Eterno vão, Inda que filhos de diversos povos!
Os ossos deixam, qual na praia as ancoras, Sim! me parece que nest’hora augusta
Do vasto pampa no funéreo chão. Os mortos saltam da feral mansão...
É santo o laço, em qu’hoje aqui s’estreitam E um “bravo!” altivo de além-mar partindo
De heróicos troncos — os rebentos novos —! Rola do pampa no funéreo chão!...
É que são gêmeos dos heróis os filhos,

O laço de fita

Não sabes crianças? ‘Stou louco de amores...


Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me
Num laço de fita.
Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabelos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu’enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se
O laço de fita.
Meu ser, que voava nas luzes da festa,
Qual pássaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente cativo, submisso
Rolar prisioneiro
Num laço de fita.
E agora enleada na tênue cadeia
Debalde minh’alma se embate, se irrita...
O braço, que rompe cadeias de ferro,
Não quebra teus elos,
Ó laço de fita!
Meu Deus! As falenas têm asas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas penas brilhantes...
Mas tu... tens por asas
Um laço de fita.
Há pouco voavas na célere valsa,
Na valsa que anseia, que estua e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.
Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N’alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadeia libertes as tranças
Mas eu... fico preso
No laço de fita.
Pois bem! Quando um dia na sombra do vale
Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c’roa...
Teu laço de fita.


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O navio negreiro [trecho]

I Albatroz! Albatroz! águia do oceano,


‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Brinca o luar — dourada borboleta; Sacode as penas, Leviathan do espaço,
E as vagas após ele correm... cansam Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.
Como turbas de infantes inquietas.
‘Stamos em pleno mar... Do firmamento II
Os astros saltam como espumas de ouro... Que importa do nauta o berço,
O mar em troca acende as ardentias, Donde é filho, qual seu lar?
— Constelações do líquido tesouro... Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
‘Stamos em pleno mar... Dous infinitos Cantai! que a morte é divina!
Ali s’estreitam num abraço insano, Resvala o brigue à bolina
Azuis, dourados, plácidos, sublimes... Como golfinho veloz.
Qual dos dous é o céu? qual o oceano? Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
‘Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas As vagas que deixa após.
Ao quente arfar das virações marinhas, Do Espanhol as cantilenas
Veleiro brigue corre à flor dos mares, Requebradas de langor,
Como roçam na vaga as andorinhas... Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Donde vem? onde vai? Das naus errantes Da Itália o filho indolente
Quem sabe o rumo se é tão grande Canta Veneza dormente,
[o espaço? — Terra de amor e traição,
Neste saara os corcéis o pó levantam, Ou do golfo no regaço
Galopam, voam, mas não deixam traço... Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!
Bem feliz quem ali pode nest’hora O Inglês — marinheiro frio,
Sentir deste painel a majestade! Que ao nascer no mar se achou,
Embaixo — o mar, em cima — (Porque a Inglaterra é um navio,
[o firmamento... Que Deus na Mancha ancorou),
E no mar e no céu — a imensidade! Rijo entoa pátrias glórias,
Oh! que doce harmonia traz-me a brisa! Lembrando, orgulhoso, histórias
Que música suave ao longe soa! De Nelson e de Aboukir.. .
Meu Deus! como é sublime O Francês — predestinado —
[um canto ardente Canta os louros do passado
Pelas vagas sem fim boiando à toa! E os loureiros do porvir!
Homens do mar! ó rudes marinheiros, Os marinheiros Helenos,
Tostados pelo sol dos quatro mundos! Que a vaga jônia criou,
Crianças que a procela acalentara Belos piratas morenos
No berço destes pélagos profundos! Do mar que Ulisses cortou,
Esperai! esperai! deixai que eu beba Homens que Fídias talhara,
Esta selvagem, livre poesia Vão cantando em noite clara
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa, Versos que Homero gemeu ...
E o vento, que nas cordas assobia... Nautas de todas as plagas,
.............................................................. Vós sabeis achar nas vagas
Por que foges assim, barco ligeiro? As melodias do céu! ...
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!


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III V
Desce do espaço imenso, ó águia Senhor Deus dos desgraçados!
[do oceano! Dizei-me vós, Senhor Deus!
Desce mais ... inda mais... não pode Se é loucura... se é verdade
[olhar humano Tanto horror perante os céus?!
Como o teu mergulhar no brigue voador! Ó mar, por que não apagas
Mas que vejo eu aí... Que quadro Co’a esponja de tuas vagas
[d’amarguras! De teu manto este borrão?...
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Astros! noites! tempestades!
Que cena infame e vil Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
IV
Mais que o rir calmo da turba
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que excita a fúria do algoz?
Que das luzernas avermelha o brilho.
Quem são? Se a estrela se cala,
Em sangue a se banhar. Se a vaga à pressa resvala
Tinir de ferros... estalar de açoite... Como um cúmplice fugaz,
Legiões de homens negros como a noite, Perante a noite confusa...
Horrendos a dançar... Dize-o tu, severa Musa,
Negras mulheres, suspendendo às tetas Musa libérrima, audaz!...
Magras crianças, cujas bocas pretas São os filhos do deserto,
Rega o sangue das mães: Onde a terra esposa a luz.
Outras moças, mas nuas e espantadas, Onde vive em campo aberto
No turbilhão de espectros arrastadas, A tribo dos homens nus...
Em ânsia e mágoa vãs! São os guerreiros ousados
E ri-se a orquestra irônica, estridente... Que com os tigres mosqueados
E da ronda fantástica a serpente Combatem na solidão.
Faz doudas espirais ... Ontem simples, fortes, bravos.
Se o velho arqueja, se no chão resvala, Hoje míseros escravos,
Ouvem-se gritos... o chicote estala. Sem luz, sem ar, sem razão. . .
E voam mais e mais... São mulheres desgraçadas,
Presa nos elos de uma só cadeia, Como Agar o foi também.
A multidão faminta cambaleia, Que sedentas, alquebradas,
E chora e dança ali! De longe... bem longe vêm...
Um de raiva delira, outro enlouquece, Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
Outro, que martírios embrutece,
N’alma — lágrimas e fel...
Cantando, geme e ri!
Como Agar sofrendo tanto,
No entanto o capitão manda a manobra,
Que nem o leite de pranto
E após fitando o céu que se desdobra,
Têm que dar para Ismael.
Tão puro sobre o mar,
Lá nas areias infindas,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: Das palmeiras no país,
”Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Nasceram crianças lindas,
Fazei-os mais dançar!...” Viveram moças gentis...
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . Passa um dia a caravana,
E da ronda fantástica a serpente Quando a virgem na cabana
Faz doudas espirais... Cisma da noite nos véus ...
Qual um sonho dantesco as sombras ... Adeus, ó choça do monte,
voam!... ... Adeus, palmeiras da fonte!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! ... Adeus, amores... adeus!...
E ri-se Satanás!... Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...


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E a fome, o cansaço, a sede... Do teu manto este borrão?


Ai! quanto infeliz que cede, Astros! noites! tempestades!
E cai p’ra não mais s’erguer!... Rolai das imensidades!
Vaga um lugar na cadeia, Varrei os mares, tufão! ...
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer. VI
Ontem a Serra Leoa, Existe um povo que a bandeira empresta
A guerra, a caça ao leão, P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
O sono dormido à toa E deixa-a transformar-se nessa festa
Sob as tendas d’amplidão! Em manto impuro de bacante fria!...
Hoje... o porão negro, fundo, Meu Deus! meu Deus! mas que
Infecto, apertado, imundo, [bandeira é esta,
Tendo a peste por jaguar... Que impudente na gávea tripudia?
E o sono sempre cortado Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Pelo arranco de um finado, Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
E o baque de um corpo ao mar... Auriverde pendão de minha terra,
Ontem plena liberdade, Que a brisa do Brasil beija e balança,
A vontade por poder... Estandarte que a luz do sol encerra
Hoje... cúm’lo de maldade, E as promessas divinas da esperança...
Nem são livres p’ra morrer. . Tu que, da liberdade após a guerra,
Prende-os a mesma corrente Foste hasteado dos heróis na lança
— Férrea, lúgubre serpente — Antes te houvessem roto na batalha,
Nas roscas da escravidão. Que servires a um povo de mortalha!...
E assim zombando da morte, Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Dança a lúgubre coorte Extingue nesta hora o brigue imundo
Ao som do açoute... Irrisão!... O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Senhor Deus dos desgraçados! Como um íris no pélago profundo!
Dizei-me vós, Senhor Deus, Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Se eu deliro... ou se é verdade Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Tanto horror perante os céus?!... Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Ó mar, por que não apagas Colombo! fecha a porta dos teus mares!
Co’a esponja de tuas vagas

TAREFINHA DA UNIDADE 3
Tarefa (para a sala de aula)
- Você deve ter reparado que, dos poetas apresentados aqui, apresenta-
ram-se ao menos dois grandes ângulos temáticos em suas obras. Relembre-os
e reflita sobre como cada um se insere no panorama da época do Romantismo.
- É fundamental que se faça uma sessão de leitura do Navio Negreiro em
sala de aula. A leitura em voz alta torna muito mais fortes e sugestivas as
imagens construídas pelo poeta.

PARA RELACIONAR

Filme:
• Amistad (Amistad, EUA, 1997). Direção: Steven Spielberg


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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Obras dos escritores românticos:


ALENCAR, José de. Lucíola. São Paulo: Ática, Série Bom Livro, 1988.
ALMEIDA Manuel Antonio de, Memórias de um sargento de milícias. São
Paulo: Ática, Série Bom Livro, 1991.

As obras dos poetas foram extraídas da Biblioteca Virtual do Estudante


Brasileiro - www.bibvirt.futuro.usp.br

Obras de estudo:
ANDRADE, Mário. “Memórias de um sargento de milícias”. In: Aspectos da
literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, p. 125-140.
BOSI Alfredo. “Por um historicismo renovado: reflexo e reflexão na história
literária”. In: Teresa. Revista de Literatura Brasileira, nº 1, 1º semestre de
2000. USP, São Paulo.
CAMILO, Vagner. O Romantismo. Língua Portuguesa - Módulo 3. Programa
de Educação Continuada - PEB II. São Paulo: CENP/USP, 2003.
CANDIDO, Antonio. “A literatura na evolução de uma comunidade”. In:
Literatura e sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1985, p. 139-167.
CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem”. In: O discurso e a cidade.
São Paulo: Duas Cidades, 1993.
DE MARCO, Valéria. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar.
SãoPaulo: Martins Fontes, 1986.
MEYER, Marlyse. Folhetim - uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “O cânone dos escritores-críticos”. In: Altas
literaturas. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 61-68.
RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos
românticos. São Paulo: Edusp, 2002.


Anotações
Anotações
Literatura

Organizadores
Neide Luzia de Rezende
Maria Lúcia V. de Oliveira Andrade
Valdir Heitor Barzotto
Elaboradores
Neide Luzia de Rezende
Silvio Pereira da Silva
Gabriela Rodella
Simone H. de Castro
2
módulo

Nome do Aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Adolpho José Melfi
Pró-Reitora de Graduação
Sonia Teresinha de Sousa Penin
Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária
Adilson Avansi Abreu

FUNDAÇÃO DE APOIO À FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FAFE


Presidente do Conselho Curador: Selma Garrido Pimenta
Diretoria Administrativa: Anna Maria Pessoa de Carvalho
Diretoria Financeira: Sílvia Luzia Frateschi Trivelato

PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian

Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei, José Muniz Jr.
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação

Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.

Sonia Teresinha de Sousa Penin.


Pró-Reitora de Graduação.
Carta da
Secretaria de Estado da Educação

Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.

Prof. Sonia Maria Silva


Coordenadora da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
Apresentação
da área
Será que literatura se ensina e se aprende? Esta é uma questão bastante
controversa.
Quem, tantas vezes, não foi obrigado a ler livros de ficção e de poesia
para depois responder a exercícios de compreensão de texto? Mesmo que a
leitura tenha proporcionado emoção, instigado questões as mais essenciais
para nossas vidas, ao ser reduzida somente a desvitalizadas questões de pro-
va, o fato é que a literatura morre, torna-se um mero exercício escolar.
Prazer e conhecimento – esse binômio associado à literatura é inseparável
para quem vê a arte como forma de humanização do homem, como aquisição
de um bem essencial ao espírito. O acesso a tal bem pode ter sim a colaboração
da escola, em princípio capacitada para indicar ao aluno as boas obras e orientá-
lo a desfrutar não só da história que narra mas do modo como é narrada, além
de levá-lo a conhecer por meio dela as questões importantes da época em que
surgiu. Porém, não é o contato com características de escolas literárias, a história
literária como reflexo da história geral, a leitura de resumos de obras ou a
análise acadêmica de poemas que vão instituir o gosto ou fazer conhecer a
literatura importante que existiu antes da gente.
Nesse sentido, o que se propõe aqui será a tentativa de propiciar o contato
direto do aluno com o texto literário. Nada substitui sua leitura – nem o resu-
mo, nem o texto teórico, nem a leitura do professor.
Neste curso, toda a abordagem literária partirá da obra lida, ainda que seja
esta leitura muitas vezes difícil, devido, não só à falta de tempo, como à falta
de familiaridade com a tarefa. Nosso conteúdo: basicamente os livros do vesti-
bular da Fuvest deste ano de 2004. São livros significativos dentro da tradição
literária, capazes de propiciar, com a devida orientação, uma descoberta dos
seres e das coisas do mundo.
Jamais esquecer que a literatura só existe porque existe você, leitor.

Neide Luzia de Rezende


Coordenadora de Literatura
Apresentação
do módulo
Você pode achar “bizarro” este módulo, afinal misturam-se Machado e Eça, do
Realismo, Gregório de Matos e Vieira, do Barroco. Isso só parece estranho porque
estamos acostumados na escola a trabalhar com características de época. Efetiva-
mente, Barroco e Realismo são estéticas distintas, porém não pretendemos aqui
trabalhar com os estilos de época, mas com a força gerada pelas obras de grandes
escritores, ou seja, fruir a literatura, juntando o prazer e o conhecimento.
Quando se tem como critério as escolas literárias, estudadas no panorama
histórico, perde-se no mais das vezes a peculiaridade do escritor e, o mais impor-
tante, perde-se a interlocução leitor-texto-autor, pois no trabalho com o estilo da
época buscam-se as características gerais, aquilo que é comum à escrita da épo-
ca, vai-se em busca de um padrão normativo.
Por exemplo, no período romântico do Módulo 1, você observou como os
poetas tentavam driblar as convenções literárias do período: todos produziam
lírica amorosa, quase que uma obrigação da estética romântica, mas envereda-
vam também por outros temas e estilos, como o gótico, a denúncia social, o
satírico. Quando, entretanto, trabalhamos com a perspectiva da história literária,
a convenção se impõe, parece que acabamos lendo sempre a mesma poesia nos
manuais didáticos, pois ali em geral privilegia-se o que é comum à época, e não
a individualidade criadora. Ora, é evidente que escritores procuram responder a
questões de sua época, num arco que vai desde a reiteração da visão corrente até
a recusa total dos seus valores, mas a grandeza de suas realizações está justamen-
te naquilo de particular que imprimem à obra.
Machado de Assis, por exemplo, foi um escritor individualíssimo, que depois
de reproduzir por um tempo uma literatura romântica desgastada, enveredou por
um caminho muito seu, desbancando inclusive a estética realista que se impunha
entre os escritores. Por isso apresentamos Eça por meio de Machado, ao mesmo
tempo em que procuramos dar uma idéia do quanto eram candentes essas discus-
sões e quais diretrizes orientavam os escritores na sua literatura – o projeto, as
idéias que alimentam os debates estéticos, e a realização desse projeto e dessas
idéias na própria literatura, que nem sempre coincidem.
Temos também neste módulo a poesia profana e sacra de Gregório de Matos,
tão política quanto o são os sermões de Antonio Vieira, dois grandes escritores
que respondiam agressivamente aos desmandos das autoridades daquele mo-
mento da história.
Assim como no primeiro módulo, procuramos aqui fazer com que as tarefas
propostas orientem o trabalho de entender o homem de outrora e nós mesmos
hoje, e isso só é possível lendo e refletindo sobre cada obra em particular.
Unidade 1

Memórias póstumas de Brás Cubas


Machado de Assis
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Maria Lúcia V. de
Oliveira Andrade
Valdir Heitor
Barzotto
Elaboradores
Silvio Pereira da
Silva
Neide Luzia de
Rezende

Memórias Póstumas de Brás Cubas


(Machado de Assis)

Ao verme
que primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
estas memórias
póstumas.

(Dedicatória presente na página de abertura de Memórias póstumas de


Brás Cubas)
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Ao leitor
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores,
coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará
é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem
vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra
difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier
de Maistre1 , não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de
finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil
antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro
umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o
seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos,
que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é
fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos
coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito
contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias,
trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás
desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar,
fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas

Capítulo primeiro: óbito do autor


Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim,
isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o
uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar
diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas
um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito
ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte,
não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de
1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e
prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemi-
tério por onze amigos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas nem anúncios.
Acresce que chovia – peneirava uma chuvinha miúda, triste e constante, tão constante
e tão triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a intercalar esta engenhosa
idéia no discurso que proferi à beira de minha cova: “Vós, que o conhecestes, meus
senhores vós podeis dizer comigo que a natureza parece estar chorando a perda
irreparável de um dos mais belos caracteres que têm honrado a humanidade. Este ar
sombrio, estas gotas do céu, aquelas nuvens escuras que cobrem o azul como um
crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe rói à natureza as mais íntimas
entranhas; tudo isso é um sublime louvor ao nosso ilustre finado.”
Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei. E
foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias; foi assim que me encaminhei para
o undiscovered country de Hamlet2 , sem as ânsias nem as dúvidas do moço prínci-
pe, mas pausado e trôpego como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborre-

1
Stendhal, Sterne e Xavier de Maistre são escritores franceses que se caracterizaram pelo uso da ironia,
o narrador quer intensificar esse traço de seu caráter ao citá-los.
2
Referência ao mundo dos mortos, “lugar desconhecido”, citado pelo personagem Hamlet, na peça
homônima de Shakespeare.


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cido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã
Sabina, casada com o Cotrim, a filha, um lírio do vale, – e... Tenham paciência!
daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que
essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade,
padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão,
convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira
aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma
tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De
pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora
mal podia crer na minha extinção.
“Morto! morto!” dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o
vôo desde o Ilisso3 às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, – a
imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às
ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando e
me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamen-
te, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tambo-
rila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um
amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra
da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante
chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga
marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o
corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que
uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não
creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.

Comentário
Cabe iniciar os comentários pela inusitada dedicatória. É ao primeiro ver-
me, um “operário das ruínas”, a quem ele dedica sua obra, sua história de
vida. O corpo já está roído pelos vermes, isso fica evidenciado pelo verbo
“roeu” no pretérito perfeito do indicativo. A disposição das palavras na dedi-
catória, quase que em formato de cruz, funciona como um epitáfio, os vermes
são os herdeiros de seu corpo. Não tinha a quem dedicar sua história, não quis
fazê-lo aos homens, o que demonstra o seu extremo pessimismo e descrença,
como se verá ao longo do romance, nos seus semelhantes. (Tarefa 1)
Quanto ao breve prefácio intitulado “Ao leitor”, temos, nas primeiras li-
nhas, as palavras irônicas de um narrador, que se dirige diretamente ao leitor,
apresentando-se sem etiquetas, sem fingimentos e sem retoques convencio-
nais. Após afirmar que se trata de obra de finado, diz ele: “Escrevi-a com a
pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá
sair desse conúbio”. De modo debochado, alerta ao leitor que a obra vale por
si e diz: “... se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus.”
O autor das memórias aponta as influências recebidas, o tom adotado no
livro, declara omitir propositalmente o processo de composição e comenta
sua expectativa quanto à recepção da obra. Não lhe parece fácil classificar a

3
Referência ao escritor francês Chateaubriand, que descreve o vôo das cegonhas no livro Itinerário de
Paris a Jerusalém, sobre o qual Machado comenta em uma de suas crônicas, afirmando que esta
passagem da obra “nós dá a mais viva imagem do contraste entre a mocidade dos homens no meio da
imutabilidade da natureza”. Chateaubriand, por sua vez, fazia referência à cena da Odisséia, de Homero,
na qual o grande herói Ulisses vê o vôo das cegonhas. O narrador compara a imaginação de sua amante
Virgília ao citado vôo.

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narrativa: “obra difusa”, segundo ele, com “aparências de puro romance”,


segundo alguns, “ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance
habitual”. Na verdade, o que o prólogo, gozador, irônico, anuncia é que a
obra não se enquadra nos modelos convencionais de narrativa. Questionar o
gênero “romance” foi uma forma de adquirir liberdade narrativa na sua época
e alçar o vôo que o tornou um escritor de primeira grandeza no mundo todo e
um modernizador do gênero. (Tarefa 2)
Logo no primeiro parágrafo do capítulo inicial, o narrador justifica o fato
de optar por iniciar suas memórias pela sua morte, apresentando-nos dois
motivos: primeiro, o fato de já ser um defunto, por isso não precisa mais
seguir a ordem considerada natural; o segundo motivo encontra-se no desejo
de fugir de uma tradição antiga, que remonta a Moisés4, o qual contou sua
história iniciando pelo nascimento. Não deseja fazer o mesmo, não está cons-
truindo um “livro sagrado”.
Assim, explicita a condição particular do narrador: Brás Cubas não é um
autor-defunto, mas um defunto-autor, ou seja, não se trata de alguém que
morreu após escrever sua história de vida, mas de alguém que do outro lado
da vida decidiu escrever as suas memórias. O mundo está repleto de boas e
más memórias de pessoas vivas, ou de pessoas mortas, mas que escreveram
quando ainda estavam vivas. Visão limitada e comum. Brás Cubas é diferente,
sua condição especialíssima lhe permite enxergar a existência de modo novo
e inusitado, sem os entraves de quem está preso às convenções sociais. Afinal,
não terá que justificar nenhuma das linhas que escrever a ninguém, já que não
pertence mais a esse mundo. Tem total e irrestrita liberdade para expor e ana-
lisar as intenções ocultas nos mínimos gestos humanos, avaliando as próprias
atitudes com ironia, explicitando suas limitações e tolices.
Passa então ao relato de sua morte: situa-nos no tempo e no espaço do
acontecimento; comenta sobre os poucos amigos que o acompanham até a
derradeira morada, ressalvando que não houvera anúncio, indiretamente di-
zendo que ele não era uma figura importante, que merecesse nota em jornais.
O clima chuvoso inspirou o discurso proferido pelo amigo, a quem ele
ironicamente qualifica de bom e fiel, acrescentando: “não me arrependo das
vinte apólices que lhe deixei”. As duas informações justapostas mostram bem
que a bondade e fidelidade do amigo respondiam a um inequívoco interesse
financeiro.
O narrador também cria um certo suspense ao falar de sua amante, “a
terceira senhora”, dizendo que esta sofreu mais que as outras, no entanto,
pede que nos contentemos com as informações que nos deu por hora, mais
tarde falará dela.
As últimas palavras do capítulo são fundamentais para conduzir a leitura
do romance, pois, diretamente, o narrador incita o leitor a fazer sua própria
avaliação da história que lhe será contada: “Vou expor-lhe sumariamente o
caso. Julgue-o por si mesmo.” O narrador se dirige ao leitor de modo familiar,
chamando-o a participar da narrativa. Essa incorporação do leitor, incomum
na literatura de então, é um fator de modernização da ficção romanesca, por
deixar claro que se trata da construção de um texto por um autor visando ao
leitor. (Tarefa 3)
Portanto, no prefácio e no primeiro capítulo que transcrevemos, o narrador
machadiano se entrega a uma de suas práticas costumeiras: a reflexão sobre o
ato de escrever e a importância do leitor para o fenômeno literário.

4
Moisés é um dos patriarcas do povo judeu. Líder e juiz, foi a ele que Deus revelou os dez mandamentos.
Segundo a tradição, são de sua autoria os cinco primeiros livros da Bíblia, isto é: Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio. Os Judeus denominam essa parte da Bíblia de Tora, que significa Lei.


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Pretendemos com esses comentários acima abrir caminho para o primeiro


contato com o romance; mas cabe a você ler, compreender, refletir e julgar, e
principalmente se deliciar com a fina ironia machadiana.

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS NO


CONTEXTO DA PRODUÇÃO LITERÁRIA DE MACHADO
DE ASSIS

Machado de Assis escreveu poesia e prosa, mas a parte mais substancial


de suas criações é a prosa de ficção, representada pelos romances e contos. É
comum sua produção ser dividida em duas fases: uma fase de aprendizagem
literária, ainda pouco original, marcada pela prosa romântica (como um Alencar
ou um Macedo), e outra fase de maturidade, em que o autor rompe com o
estilo anterior e instaura um novo padrão de prosa literária, que seria depois
até muito imitado. A transformação ficou evidente quando Machado de Assis
publicou o romance Memórias póstumas de Brás Cubas, em 1881. Assim
como outras obras do período, foi inicialmente veiculado em forma de folhe-
tins no ano anterior (1880).
O romance são as memórias de Brás Cubas, protagonista-narrador. Em
primeiro plano estão seus amores – inicialmente, pela prostituta Marcela, em
seguida por Eugênia, moça pobre e manca; por Virgília, de quem ficou noivo
na juventude, mas que o preteriu em favor de um figurão da política para
depois de casada tornar-se sua amante. Ressaltem-se ainda o encontro com
Quincas Borba, misto de louco e f ilósofo que lhe explica a teoria do
Humanitismo; as pretensões políticas do memorialista, seus grandes planos; o
emplasto Brás Cubas, o invento maravilhoso e divino remédio para curar a
incurável melancolia humana.
Suas lembranças são fragmentadas, cabendo ao leitor – a quem desafia
todo o tempo – organizá-las para acompanhar o relato. Há trechos narrativos,
em que o narrador conta os episódios mais marcantes de sua vida, e trechos
reflexivos, nos quais apresenta suas considerações a respeito do narrado. O
ritmo é lento, com várias digressões e muitas pausas. Essas pausas são inten-
cionais para que as ações se desenrolem preguiçosamente. Há muitas referên-
cias oblíquas ao fato narrado, as quais exigem também do leitor uma reflexão
mais demorada para entender a argúcia ali contida.
Em estudo fundamental para a obra de Machado de Assis, Roberto Schwarz
mostra como esse fragmentário, descontínuo, está associado a um caráter psí-
quico do narrador – a volubilidade – associado a um fenômeno político-social
semelhante do Brasil da época, e se transforma em princípio formal do Brás
Cubas. Quer dizer, o fragmentarismo não é apenas um procedimento de com-
posição escolhido de forma arbitrária, mas está profundamente entranhado no
conteúdo do livro, no seu plano ideológico, inclusive. Os cortes no plano
formal – que servem para intercalar as filosofias de segundo nível do narrador
e a conversa com o leitor –, assim como as mudanças de comportamento no
plano do conteúdo, são os lados de uma mesma moeda, destinadas a mostrar
o descompromisso do narrador-personagem com uma ordem mais lógica e
racional ao optar por um comportamento caprichoso e volúvel, que seria ca-
racterística estrutural da sociedade da época. Dessa forma, teríamos uma nar-
rativa bastante atípica dentro dos padrões então vigentes no século XIX, prin-


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cipalmente por não proporcionar ao leitor a ilusão de realidade. O tempo todo


o escritor nos lembra que estamos frente a uma história construída.
De fato, do ponto de vista das convenções do romance da escola realista,
nos seus 160 capítulos, Memórias póstumas de Brás Cubas efetua vários tipos
de “contravenção”: 1) o narrador protagonista é um defunto; 2) a história
começa de trás para diante, e até certo ponto da narrativa não segue um fio
cronológico, misturando episódios de tempos variados na vida do persona-
gem; 3) embora a partir de um determinado ponto engate na seqüência dos
fatos, continua intercalando relatos, reflexões e conversas com o leitor, que
interrompem a narrativa e parecem pouco ter a ver com os fatos narrados; 4)
o desenvolvimento do enredo, apesar da unidade evidente do assunto, deixa-
se ir um pouco ao sabor das associações, para retomar aqui e ali o fio inter-
rompido da história, mas já com um considerável acréscimo do ponto de vista
do conhecimento interior e social da personagem.

Tarefas
Essas tarefas devem ser realizadas pelos alunos, sendo que caberá ao monitor
decidir quais levará para a discussão em classe.

Tarefa 1
A um bruxo, com amor

Em certa casa da Rua Cosme Velho


(que se abre no vazio)
venho visitar-te; e me recebes
na sala trastetada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos
perdem o amarelo
de novo interrogando o céu e a noite.
Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.
Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,
uma luz que não vem de parte alguma
pois todos os castiçais
estão apagados.
Contas a meia voz
maneiras de amar e de compor os ministérios
e deitá-los abaixo, entre malinas
e bruxelas.
Conheces a fundo a geologia moral dos Lobos Neves
e essa espécie de olhos derramados
que não foram feitos para ciumentos.
E ficas mirando o ratinho meio cadáver
com a polida, minuciosa curiosidade
de quem saboreia por tabela
o prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.
Olhas para a guerra, o murro, a facada
como para uma simples quebra da monotonia universal
e tens no rosto antigo
uma expressão a que não acho nome certo


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(das sensações do mundo a mais sutil):


volúpia do aborrecimento?
ou, grande lascivo, do nada?
O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,
e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,
tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,
mostra que os homens todos morreram.
A terra está nua deles.
Contudo, em longe recanto,
a ramagem começa a sussurrar alguma coisa
que não se estende logo
aparece a canção das manhãs novas.
Bem a distingo, ronda clara:
é Flora,
com olhos dotados de um mover particular
ente mavioso e pensativo;
Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);
Virgília,
cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;
Mariana, que os tem redondos e namorados;
e Sancha, de olhos intimativos;
e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,
o mar que fala a mesma linguagem
obscura e nova de D. Severina
e das chinelinhas de alcova de Conceição.
A todas decifrastes íris e braços
e delas disseste a razão última e refolhada
moça, flor mulher flor
canção de mulher nova...
E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)
o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosófica
entre loucos que riem de ser loucos
e os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.

O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?
Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.


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Um som remoto e brando


rompe em meio a embriões e ruínas,
eternas exéquias e aleluias eternas,
e chega ao despistamento de teu pencenê.
O estribeiro Oblivion
bate à porta e chama ao espetáculo
promovido para divertir o planeta Saturno.
Dás volta à chave,
envolves-te na capa,
e qual novo Ariel, sem mais resposta,
sais pela janela, dissolves-te no ar.
(Carlos Drummond de Andrade. Reunião. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1974, p.237)

Não há melhor apresentação de Machado de Assis do que esse poema,


construído, de modo fascinante, por Carlos Drummond de Andrade, em ho-
menagem ao grande escritor brasileiro. Nele, o poeta sintetizou diversos as-
pectos da obra de Machado, salientando seu mistério e a beleza de suas cria-
ções, listando inclusive personagens presentes nos contos e romances que o
“bruxo” escreveu. O poeta dá ênfase às mulheres tão bem criadas pelo escri-
tor: Marcela, Virgília, Sancha, Capitu. Todas elas tão bem elaboradas na fic-
ção que se tornou difícil acreditar que não existiram de fato.
O que mais você poderia conhecer sobre o romancista lendo o poema de
Drummond? Converse com o monitor sobre as referências a outros textos de
Machado contidos nesse poema.

Tarefa 2
Que outras razões você vê para o defunto-autor dedicar a obra aos vermes
que o roem?

Tarefa 3
Que reflexões você pode fazer a respeito da forma deste romance e da-
quela dos outros anteriores a ele? O que sugere a você a narrativa entrecortada
deste romance e a linearidade dos outros que já leu, por exemplo a linearidade
de Memórias de um sargento de milícias e Lucíola?

Tarefa 4
Capítulo – Vá de intermédio
Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu não compu-
sesse este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do
livro. Saltar de um retrato a um epitáfio pode ser real e comum; o leitor, entretanto,
não se refugia no livro senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento
seja meu; digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é pinturesca.
E repito: não é meu.

Interprete o trecho:
Por que o capítulo se chama “Vá de intermédio”?


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Qual a relação que busca estabelecer entre a realidade e a literatura no


capítulo?
De quem é o retrato e de quem é o epitáfio?
Como você entende a afirmação: “o leitor não se refugia no livro senão
para escapar à vida”? E por que o narrador insiste em dizer que a afirmação
não é dele?

Tarefa 5
Você nota a diferença entre o personagem Brás Cubas e o narrador Brás
Cubas? Você acha que um se distancia do outro em que medida? Dê um exem-
plo do livro.

Tarefa 6
A presença abundante de teorias científicas e filosóficas nas Memórias refletia
um assunto de atualidade. Conforme a expressão pitoresca de Sylvio Romero, os
anos 70 do século passado [XIX] haviam visto chegar ao país “um bando de idéias
novas”. Positivismo, Naturalismo e diversas formas de Evolucionismo disputavam
a praça com outras escolas. A sua terminologia, tão prestigiosamente moderna quanto
estranha à vida corrente, anunciava rupturas radicais; prometia substituir o meca-
nismo atrasado da patronagem oligárquica por espécies novas de autoridade, fun-
dadas na ciência e no mérito intelectual.
Era natural que os entusiastas transformassem o espírito científico em panacéia
e no contrário dele mesmo. Já Machado percebeu as ironias latentes na situação e
tratou de explorá-las sistematicamente. Onde os deslumbrados enxergavam a re-
denção, ele tomava recuo e anotava a existência de um problema específico. No
contexto brasileiro, a leitura e a propagação das novas luzes européias ocorria de
modo particular, com ridículos também particulares.
(Schwarcz, Um mestre na periferia do capitalismo, p.144)

À luz desse trecho de Roberto Schwarz, reflita sobre o capítulo CXXVI.

Tarefa 7
As memórias representaram para o autor Machado de Assis uma estratégia
para a composição do romance, ou seja, um gênero fecundou o outro e enri-
queceu-o. De todo modo, nem o gênero “memórias”, nem o gênero “roman-
ce” são imutáveis, ou seja, não possuem uma forma fixa, um jeito único de
ser. Os gêneros se transformam ao longo do tempo, embora, é verdade, com-
portem uma essência que, ao fim e ao cabo, mesmo com as transformações
que experimentam no seu trânsito pelas diferentes épocas, torna possível o
seu reconhecimento.
Por exemplo, este romance que você acabou de ler é diferente, na forma,
de outros romances anteriores a ele. No romance convencional, o narrador tudo
faz para não interromper o fio da história, para não nos arrancar do mundo
ilusório no qual estamos mergulhados. Aqui não, ao contrário, o narrador faz
tudo para quebrar essa impressão de realidade. Para tanto, aproveita a estrutu-
ra de um outro gênero, as memórias, que, aqui, não tem o mesmo jeitão das
Memórias de um sargento de milícias, o qual ainda guarda muito das crônicas
antigas, testemunho de uma época.


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Vamos pensar um pouco sobre alguns


ângulos do gênero memórias, pensando
que quando o memorialista decide contar
sua vida:
- ele acredita que ela pode servir de exem-
plo, portanto, contém algo de heróico, de
importante, a pessoa superou seus proble-
mas e é precisamente essa vitória que ela
aporta;
- seu relato deve cobrir uma seqüência
temporal suficiente para que apareça o
traçado de uma vida;
- a narrativa também deve apresentar da
pessoa uma coerência, mesmo que esta
seja difícil de ser detectada;
- o memorialista deve proceder a uma se-
leção cuidadosa dos elementos que com-
põem a sua vida, deixando de fora o que
não couber na linha escolhida;
- espera-se em geral uma síntese, um ba-
lanço de uma vida, com um distanciamen-
to que permita a reflexão e o julgamento
sobre os elementos selecionados;
- mas também pode acontecer, e não é
raro, que alguém escreva suas memórias
dando-lhes um caráter grandioso, justa-
O passeio, de Monet, 1875 mente para compensar uma vida pouco
digna ou sem brilho. As memórias seriam
um modo de autopromover-se, embora
seja difícil que um leitor acredite no embuste.

Pois bem, diante dessas características, o que você acha das memórias de
Brás Cubas? Pense sobre cada uma delas e veja se cabem na apropriação do
gênero que Machado fez no seu romance.

PARA RELACIONAR
Filme: MEMÓRIAS PÓSTUMAS (Memórias Póstumas, Brasil, 2000).
Dir.: André Klotzel.


Unidade 2

O Primo Basílio
Eça de Queirós
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Maria Lúcia V. de
Oliveira Andrade
Valdir Heitor
Barzotto
Elaboradoras
Gabriela Rodella
Neide Luzia de
Rezende

Capítulo I
Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de
Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltair de marro-
quim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
– Tu não te vais vestir, Luísa?
– Logo.
Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de manhã de
fazenda preta, bordado a sutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo
louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-
se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancu-
ra tenra e láctea das louras; com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e,
no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam
cintilações escarlates.
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu
papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo, fazia um grande calor;
as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças,
escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de
missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas ou de sombras fofas
debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas
de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arras-
tava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal
derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
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É com essa descrição de um domingo quente em Lisboa, na casa burguesa


do casal formado por Jorge e Luísa, que começa a narrativa de Eça de Queirós,
O Primo Basílio.
Narrado em terceira pessoa, de forma linear, o romance de Eça de Queirós,
publicado em 1878, tem como eixo fundamental o processo de sedução de
Luísa pelo primo. Nele temos acesso a um retrato da família pequeno-burgue-
sa de então, seus costumes, suas hipocrisias, seus medos de cair na boca dos
vizinhos, sua preocupação com as aparências.
As duas personagens principais são mulheres, Luísa e Juliana. Luísa é
pintada com um caráter fraco, presa quase infantil de fantasias lidas em ro-
mances românticos (a exemplo de Emma Bovary, do romance de Flaubert,
Madame Bovary). Já Juliana, a criada, é pobre, humilhada desde a infância,
envelhecida por causa do trabalho, tísica e amargurada. Jorge, o marido de
Luísa, aparece como um homem bom, discreto e honesto. O primo Basílio é
uma espécie de bon vivant, ocupado com a moda, o luxo e os prazeres da vida
mundana, aí incluída, bem entendido, a sedução das mulheres. Os outros ti-
pos que compõem o núcleo de convivência do casal são caricaturais: o conse-
lheiro Acácio, encarnando a hipocrisia burocrática; Ernesto, o medíocre dra-
maturgo; Julião, o fracassado e invejoso amigo; D. Felicidade, a solteirona
supersticiosa; Leopoldina, a adúltera sem culpa.
O escritor português Eça de Queirós (1845-1900) se filiou à tendência da
escola realista, que propugnava a crítica social, o ataque à burguesia, à mo-
narquia e ao clero. O Primo Basílio é seu segundo romance, escrito depois de
O Crime do Padre Amaro, no qual o autor faz uma crítica feroz dos costumes
da sociedade da época, da Igreja e seus dogmas.
Em carta ao amigo e poeta Teófilo Braga, o autor de O Primo Basílio diz
que, no romance, pretendia criticar a família lisboeta, seus costumes burgue-
ses e suas falsas bases. O que se vê no centro da narrativa, no entanto, é a
crítica à mulher burguesa, que aparece no romance julgada como fraca e iner-
te, mal-educada (tanto no sentido familiar como no escolar), influenciada pela
prosa sentimental romântica, e que, sem filhos, metida numa rotina monóto-
na, não tem a força moral necessária para se manter fiel ao casamento. Na
carta, Eça de Queirós expressa o seu ponto de vista de maneira clara, em
relação ao princípio ideológico e moral do seu romance: “Uma sociedade
sobre estas falsas bases [familiares], não está na verdade: atacá-las é um de-
ver. E neste ponto O Primo Basílio não está inteiramente fora da arte revoluci-
onária, creio.”
Aliás, o tema da infidelidade da mulher amada é recorrente na obra de
Eça de Queirós, estando presente tanto nos primeiros textos como na prosa
posterior ao Primo Basílio.

A CRÍTICA DE MACHADO DE ASSIS A EÇA DE QUEIRÓS


Em um artigo publicado na revista O Cruzeiro, em abril de 1878, Macha-
do de Assis faz uma crítica mordaz ao romance O Primo Basílio, então recém-
publicado. Nesse texto, o escritor brasileiro faz várias observações negativas
ao romance: reprova a concepção da personagem de Luísa, que ele afirma ser
um títere, marionete sem paixões, sem remorsos e sem consciência, isto é,
sem vida própria enquanto personagem; a concepção da própria narrativa de


 

Eça de Queirós, baseada na personagem fraca; critica as excessivas descri-


ções realistas dos ambientes e das ocasiões, consideradas por ele, Machado
de Assis, como acessórias e tediosas.
É interessante lembrar que esse artigo crítico foi escrito dois anos antes da
publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Em tudo aquilo que Ma-
chado reprova n’O PrimoBasílio, podemos ler também, pelo sentido inverso,
o que está por vir na própria criação do escritor brasileiro. A reprovação da
constituição da protagonista do romance de Eça e a crítica irônica à escola
doutrinária do realismo já indicam a liberdade que Machado de Assis, ao refu-
tar esse mesmo realismo no seu romance, conquistará para si mesmo e a auto-
nomia com que ele construirá sua obra.
Dito isso, vamos a trechos do artigo e que ele fale por si mesmo.

Sobre a personagem de Luísa


[...] a Luísa é um caráter negativo, e no meio da ação ideada pelo autor, é antes
um títere do que uma pessoa moral.
Repito, é um títere; não quero dizer que não tenha nervos e músculos; não tem
mesmo outra coisa; não lhe peçam paixões nem remorsos; menos ainda consciên-
cia. [...]
Luísa resvala no lodo, sem vontade, sem repulsa, sem consciência; Basílio não
faz mais do que empuxá-la, como matéria inerte, que é. Uma vez rolada ao erro,
como nenhuma flama espiritual a alenta, não acha ali a saciedade das grandes
paixões criminosas: rebolca-se simplesmente. Assim, essa ligação de algumas se-
manas, que é o fato inicial e essencial da ação, não passa de um incidente erótico,
sem relevo, repugnante, vulgar. Que tem o leitor do livro com essas duas criaturas
sem ocupação nem sentimentos? Positivamente nada. [...]
Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem
venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou
imprecações; mas, por Deus! Dê-me a sua pessoa moral.

Sobre a a concepção da narrativa


Um leitor perspicaz terá já visto a incongruência da concepção do Sr. Eça de
Queirós, e a inanidade do caráter da heroína. Suponhamos que tais cartas não eram
descobertas, ou que Juliana não tinha a malícia de as procurar, ou enfim que não
havia semelhante fâmula em casa, nem outra da mesma índole. Estava acabado o
romance, porque o primo enfastiado seguiria para França, e Jorge regressaria do
Alentejo; os dois esposos voltavam à vida exterior. Para obviar a esse inconvenien-
te, o autor inventou a criada e o episódio das cartas, as ameaças, as humilhações, as
angústias e logo a doença, e a morte da heroína. Como é que um espírito tão escla-
recido, como o do autor, não viu que semelhante concepção era a coisa menos
congruente e interessante do mundo? Que temos nós com essa luta intestina entre a
ama e a criada, e em que nos pode interessar a doença de uma e a morte de ambas?

Sobre a escola do Realismo


Se o autor, visto que o Realismo também inculca vocação social e apostólica,
intentou dar no seu romance algum ensinamento ou demonstrar com ele alguma
tese, força é confessar que o não conseguiu, a menos de supor que a tese ou




ensinamento seja isto: – A boa escolha dos fâmulos* é uma condição de paz no
adultério. A um escritor esclarecido e de boa fé, como o Sr. Eça de Queirós, não seria
lícito contestar que, por mais singular que pareça a conclusão, não há outra no seu
livro. Mas o autor poderia retorquir: – Não, não quis formular nenhuma lição
social ou moral; quis somente escrever uma hipótese; adoto o realismo, porque é a
verdadeira forma da arte e a única própria do nosso tempo e adiantamento mental;
mas não me proponho a lecionar ou curar; exerço a patologia, não a terapêutica. A
isso responderia eu com vantagem: – Se escreveis uma hipótese dai-me a hipótese
lógica, humana, verdadeira. Sabemos todos que é aflitivo o espetáculo de uma
grande dor física; e, não obstante, é máxima corrente em arte, que semelhante
espetáculo, no teatro, não comove a ninguém; ali vale somente a dor moral. Ora
bem; aplicai esta máxima ao vosso realismo, e sobretudo proporcionai o efeito à
causa, e não exijais a minha comoção a troco de um equívoco.

Sobre as descrições em excesso e as digressões


Quanto à preocupação constante do acessório, bastará citar as confidências de
Sebastião a Juliana, feitas casualmente à porta e dentro de uma confeitaria, para
termos ocasião de ver reproduzidos o mostrador e as suas pirâmides de doces, os
bancos, as mesas, um sujeito que lê um jornal e cospe a miúdo, o choque das bolas
de bilhar, uma rixa interior, e outro sujeito que sai a vociferar contra o parceiro;
bastará citar o longo jantar do conselheiro Acácio (transcrição do personagem de
Henri Monier); finalmente, o capítulo do Teatro de S. Carlos, quase no fim do livro.
Quando todo o interesse se concentra em casa de Luísa, onde Sebastião trata de
reaver as cartas subtraídas pela criada, descreve-nos o autor uma noite inteira de
espetáculos, a platéia, os camarotes, a cena, uma altercação de espectadores.

Tarefa 1
Cá fora, uma senhora que sucumbisse às hostilidades de pessoa de seu serviço,
em conseqüência de cartas extraviadas, despertaria certamente grande interesse, e
imensa curiosidade; e, ou a condenássemos, ou lhe perdoássemos, era sempre um
caso digno de lástima. No livro é outra coisa. […]
O autor dirá que não podia alterar a realidade dos fatos; mas essa resposta é de
poeta, é de artista? Se a missão do romancista fosse copiar os fatos, tais quais eles se
dão na vida, a arte era uma cousa inútil; a memória substituiria a imaginação… O
poeta daria demissão e o cronista tomaria a direção do Parnaso. Demais, o autor
podia, sem alterar os fatos, fazer obra de artista, criar em vez de repetir.

Este trecho da crítica de Machado de Assis ao romance de Eça de Queirós


traz nele uma concepção do que deve ser a ficção em contraposição à realida-
de. Refletindo sobre esta afirmação, discuta com seus colegas. Você acredita
que tudo o que acontece na vida real pode virar ficção? Por quê? Qual a
diferença entre arte e realidade?

Tarefa 2
Em sua crítica ao romance de Eça de Queirós, Machado de Assis sarcasti-
camente afirma a respeito do realismo: “Porque a nova poética é isto, e só
chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que
se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha.” O que o escri-
tor brasileiro reprova nesse trecho são as descrições intermináveis de objetos


 

e cenas. Encontre e transcreva do texto de Eça de Queirós, dois trechos com


descrições que justifiquem essa afirmação de Machado de Assis. Você con-
corda com ela?

Tarefa 3
Leia abaixo trechos dos dois romances em que são narradas cenas em que
os amantes tomam um lanche. No primeiro, temos o lanche que Luísa e Basí-
lio fazem no Paraíso, quarto alugado por ele para os encontros amorosos dos
dois:

Às três horas lancharam. Foi delicioso; tinham estendido um guardanapo sobre


a cama; a louça tinha a marca do Hotel Central; aquilo parecia a Luísa muito
estróina, adorável – e ria de sensualidade, fazendo tilintar os pedacinhos de gelo
contra o vidro do copo, cheio de champanhe. Sentia uma felicidade que transborda-
va em gritinhos, em beijos, em toda a sorte de gestos buliçosos. Comia com gula; e
eram adoráveis os seus braços nus movendo-se por cima dos pratos.

Em seguida, temos um luncheon feito por Brás Cubas e Virgínia na casi-


nha da Gamboa:

Vinho, fruta, compotas. Comíamos, é verdade, mas era um comer virgulado de


palavrinhas doces, de olhares ternos, de criancices, uma infinidade desses apartes
do coração, aliás o verdadeiro, o ininterrupto discurso do amor.

Comparando as duas cenas, é possível refletir sobre as diferenças de estilo


dos dois autores. Como são descritos os objetos da cena no texto de Eça? E no
texto de Machado? Qual é o foco da narrativa no trecho d’O Primo Basílio? O
que é mais importante no trecho das Memórias Póstumas? Baseado nas suas
observações, produza um texto comparando os dois trechos e entregue ao monitor.

Tarefa 4
No livro A história da vida privada – da Europa feudal à renascença, o
historiador Dominique Barthélemy, faz a seguinte afirmação acerca do adul-
tério na Idade Média:

o século XI, ou antes o espírito dos homens desse tempo, é atormentado pela
obsessão do adultério feminino, fundada na real permeabilidade da casa e de seus
compartimentos internos. […]
Quanto aos desregramentos da sexualidade masculina no exterior da casa, não
colocam em perigo nem a ordem desta nem a pureza da linhagem.

Como se vê na afirmação acima, o tema central do romance de Eça de


Queirós (escrito em fins do século XIX), o adultério feminino, já estava pre-
sente nas preocupações dos homens do século XI. Por que você acha que, no
imaginário dos homens, desde o século XI até o século XIX, o adultério femi-
nino parece mais grave do que possíveis aventuras masculinas fora do casa-
mento? Você acredita que a “obsessão do adultério feminino” ainda atormen-
ta os homens do século XXI? Como você vê essa questão das diferenças de
julgamento do comportamento de homens e de mulheres hoje em dia? Todos
temos direitos e deveres iguais?


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Para relacionar
1. Música Amor I love you, de Carlinhos Brown e Marisa Monte, interpretada
por ela no CD Memórias, crônica e declarações de amor, EMI Music, 1999.
Na música, Arnaldo Antunes lê um trecho do Primo Basílio.
2. Se ainda estiver em cartaz, não deixe de assistir à peça Hysteria, que trata
da reclusão de mulheres num manicômio do Rio de Janeiro no final do
século XIX. A peça se passa num manicômio, onde estavam confinadas
mulheres que, por não se adaptarem totalmente ao esquema a elas imposto
na sociedade, eram consideradas loucas.


Unidade 3

Gregório de Matos
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Maria Lúcia V. de
Oliveira Andrade
Valdir Heitor
Barzotto
Elaboradores
Silvio Pereira da
Silva
Neide Luzia de
Rezende

Cronologia
1636 – Nascimento na Bahia
1642 – Estudos com os Jesuítas no Colégio da Bahia
1650 – Viagem para Portugal
1652 – Matrícula na Universidade de Coimbra
1660 – Exame de Bacharel na Universidade de Coimbra
1661 – Formatura em Cânones na Universidade de Coimbra
1661 – Casamento em Lisboa
1662 – Habilitação (de genere) para leitura de bacharel
1663 – Nomeado Juiz de Fora de Alcácer do Sal por D. Afonso VI
1665–1666 – Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal
1668 – Representante da Bahia, nas Cortes, Lisboa, 27 de janeiro
1671–1672 – Juiz de Órfãos e Juiz do Cível em Lisboa
1672 – Procurador da Bahia (Senado da Câmara) em Lisboa
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1674 – Representante da Bahia, nas Cortes, Lisboa, 20 de janeiro


1674 – Postulante para a existência de uma Universidade na Bahia
1674 – Destituição da Procuradoria
1674 – Batismo de uma filha natural, em Lisboa
1678 – Viuvez em Lisboa
1679 – Nomeado para desembargador da Relação Eclesiástica da Bahia e
tesoureiro-mor da Sé, por D. Pedro II
1681 – Clérigo tonsurado: ordens menores
1682 – Sentenças de sua autoria publicadas em E. Alvarez Pegas
1682–1683 – Volta ao Brasil/Bahia
1682 – Desembargador da Relação Eclesiástica e tesoureiro da Sé baiana
1684 – Destituído dos cargos de desembargador e tesoureiro
1685 – Sentença de sua autoria publicada em E. Alvarez Pegas
1685 – Denunciado ao Tribunal do Santo Ofício de Lisboa/lnquisição
168(?) – Casamento na Bahia com Maria de Póvoas . Nasce um filho
chamado Gonçalo
1691 – Admissão como Irmão da Santa Casa da Misericórdia da Bahia
1692 – Pagamento de divida em dinheiro a Santa Casa de Lisboa
1694 – Viagem (exílio?) para Angola
1694 – Envolvimento em rebelião de militares em Angola
1695 – Volta ao Brasil/Recife
1695 – Morte em Recife.
(Cronologia estabelecida por Fernando da Rocha Peres a partir de fontes
documentais manuscritas e impressas).

Como se percebe, por essa cronologia, nenhuma obra de Gregório de Matos


foi editada enquanto o poeta vivia, seus poemas circularam manuscritos no
Brasil, onde não havia imprensa, e em Portugal, onde provavelmente foram
proibidos pela censura. A revelação pública dos versos do poeta só se deu no
século XIX.
Não é possível saber exatamente quanto do que leva o seu nome realmen-
te foi escrito por ele. De todo modo, mesmo existindo várias versões, ou vari-
antes, de muitos dos poemas, não há dúvida quanto à autoria de muitos deles.
Seus textos abrangem diversos gêneros e estilos poéticos: a poesia satírica –
que o tornou mais famoso – a religiosa, a amorosa, a social. Gregório compôs
sonetos, décimas, motes e glosas, introduzindo na linguagem poética termos
tupi e africanos junto com referências clássicas e eruditas, indispensáveis para
o bom poeta da época.
Gregório de Matos deixou um rastro confuso e desnorteante sobre si. Na
Bahia, o meio em que vivia o poeta era povoado de aventureiros ambiciosos e
autoridades corruptas, distanciadas da população local. São famosas suas sáti-
ras à cidade da Bahia, aos seus governantes, a freiras e padres muito licencio-
sos, aos nobres decadentes e avarentos. Sua linguagem, nesse contexto, torna-


 

se particularmente crua e às vezes violenta. Além disso, seus poemas falam das
transformações socioeconômicas que ocorriam no Brasil-colônia, seu quadro
político e social, as formas de domínio e controle da metrópole sobre a colônia,
a crise do açúcar. Foi cronista de uma época, de uma cidade, de um país.

Poesia Satírica
Muitos gregórios O crítico canadense Nor-
throp Frye, ao definir a
Segundo João Adolfo Hansen, autor de A sátira e o Engenho – Gregório sátira, diz que esta nasce
de Matos e a Bahia do século XVII, as leituras críticas construíram ao longo da luta cômica de duas
do tempo diversas imagens de Gregório de Matos: sociedades, uma consi-
- um Gregório de Matos cuja fúria corajosa imperava em seu ser, interpretado derada normal e outra
pelos humores da arte de prudência barroca de Manuel Pereira Rebelo1 ; absurda. A sátira visa a
combater “um mundo
- um Gregório de Matos iniciador da poesia lírica de intuição étnica, crítico cheio de anomalias, in-
inconformado e desbocadíssimo, uma vez que seu brasileiro não era o ca- justiças, desatinos e cri-
boclo, nem o negro, nem o português, era já o filho do país, capaz de mes”. Nesse aspecto, po-
ridicularizar as pretensões separatistas das três raças; demos pensar na sátira
de Gregório: para ele a
- um Gregório de Matos vagamente anarquista, misto de vanguarda do pro- sociedade normal, era a
letariado, ao mesmo tempo um intelectual e um libertino sexual, parodian- do homem branco, bem-
do o estilo alto da cultura oficial; nascido, contrária à dos
que estavam no poder
- um Gregório de Matos hedonista, versão da antropologia doce-bárbara de
na época, homens sem
Gilberto Freyre;
nome, sem honra, a so-
- um Gregório de Matos concretista-oswaldiano, devorador dos versos de ciedade dominada pelo
Quevedo, Gôngora e Camões, salpicando-os com o tempero dos localismo comércio, pelos estran-
banto e tupi e o molho do português colonizador; geiros, pelos mulatos, in-
dicando uma revirada
- um Gregório de Matos invisível e interdito, obsceno, pornográfico, impróprio; social considerada ab-
- um Gregório de Matos sintético, das seletas para uso colegial, catolicíssimo, surda, pelo poeta. Gre-
gório de Matos parece
das poesias sacras;
procurar respostas para
- um Gregório de Matos exagerado, lúdico e preciosíssimo; as diversas contradições
que aponta, ele não acei-
- um Gregório de Matos caracterizado pelos dualismos do estilo barroco:
ta a nova ordem das coi-
conceptista e cultista. sas. Vistas na perspecti-
(Tarefa 3) va de hoje, as idéias de
Gregório parecem-nos
contraditórias e racistas:

Textos Escolhidos idealiza uma sociedade


culta de homens bran-
cos europeus e denun-
Por consoantes que se deram forçados. cia a vida miserável dos
negros e mulatos, ao
mesmo tempo que de-
Neste mundo é mais rico o que mais rapa:
nuncia os desmandos
Quem mais limpo se faz, tem mais carepa;
do europeu ganancioso
Com sua língua, ao nobre o vil decepa:
e a falta de preparo e a
O velhaco maior sempre tem capa. licenciosidade e falta de
comportamento civiliza-
Mostra o patife da nobreza o mapa: tório de negros e mula-
Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa: tos, fundamentalmente
pertencente às classes
1
Autor da primeira biografia do poeta, em meados do século XVIII, intitulada Vida do excelente poeta inferiores da época.
lírico, o doutor Gregório de Matos e Guerra.




Quem menos falar pode, mais increpa:


Quem dinheiro tiver, pode ser papa.

A flor baixa, se inculca por tulipa:


Bengala hoje na mão, ontem garlopa:2
Mais isento se mostra o que mais chupa:

Para a tropa do trapo vazo a tripa:


E mais não digo; porque a Musa topa
Em apa, epa, ipa, opa, upa.

Aos vícios

Eu sou aquele que os passados anos


Cantei na minha lira maldizente
Torpezas do Brasil, vícios e enganos.

E bem que os descantei bastantemente,


Canto segunda vez na mesma lira
O mesmo assunto em plectro3 diferente.

Já sinto que me inflama e que me inspira


Talía4 , que anjo é da minha guarda
Dês que Apolo mandou que me assistira.

Arda Baiona5 , e todo o mundo arda,


Que a quem de profissão falta à verdade
Nunca a dominga das verdades tarda.

Nenhum tempo excetua a cristandade


Ao pobre pegureiro do Parnaso6
Para falar em sua liberdade

A narração há de igualar ao caso,


E se talvez ao caso não iguala,
Não tenho por poeta o que é Pégaso.

De que pode servir calar quem cala?


Nunca se há de falar o que se sente?!
Sempre se há de sentir o que se fala.

Qual homem pode haver tão paciente,


Que, vendo o triste estado da Bahia,
Não chore, não suspire e não lamente?

Isto faz a discreta fantasia:


Discorre em um e outro desconcerto,
Condena o roubo, increpa a hipocrisia.

2
Garlopa – ferramenta usada na marcenaria, para aplainar madeira, índice da execução de trabalho
braçal
3
Plectro – palheta usada para vibrar as cordas dos instrumentos
4
Talia – musa da Comédia.
5
Baiona – Cidade da Galízia onde se deram várias batalhas entre Espanha e Portugal
6
Parnaso – monte onde se reuniam os poetas, as musas e Apolo na Mitologia.


 

O néscio, o ignorante, o inexperto,


Que não elege o bom, nem mau reprova,
Por tudo passa deslumbrado e incerto.

E quando vê talvez na doce trova


Louvado o bem, e o mal vituperado,
A tudo faz focinho, e nada aprova.

Diz logo prudentaço e repousado:


— Fulano é um satírico, é um louco,
De língua má, de coração danado.

Néscio, se disso entendes nada ou pouco,


Como mofas com riso e algazarras
Musas, que estimo ter, quando as invoco?

Se souberas falar, também falaras,


Também satirizaras, se souberas,
E se foras poeta, poetizaras.

A ignorância dos homens destas eras


Sisudos faz ser uns, outros prudentes,
Que a mudez canoniza bestas feras.

Há bons, por não poder ser insolentes,


Outros há comedidos de medrosos,
Não mordem outros não — por não ter dentes.

Quantos há que os telhados têm vidrosos,


e deixam de atirar sua pedrada,
De sua mesma telha receosos?

Uma só natureza nos foi dada;


Não criou Deus os naturais diversos;
Um só Adão criou, e esse de nada.

Todos somos ruins, todos perversos,


Só os distingue o vício e a virtude,
De que uns são comensais, outros adversos.

Quem maior a tiver, do que eu ter pude,


Esse só me censure, esse me note,
Calem-se os mais, chiton,7 e haja saúde.

À cidade da Bahia

Triste Bahia! Ó quão dessemelhante


Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mim empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mim abundante.

7
Chiton – do francês chut conc: silêncio.




A ti trocou-te a máquina mercante,


Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

Deste em dar tanto açúcar excelente


Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.8

Oh, se quisera Deus que, de repente,


Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

Nesse poema, está apresentado o quadro da cidade da Bahia na visão do


poeta, marcado pelo pacto colonial e por uma Bahia transtornada pela troca.
O texto apresenta alguns trocadilhos, como, por exemplo, “A ti trocou-te a
máquina mercante”: a máquina mercante impõe à cidade da Bahia o primado
da troca, isto é, do comércio, ao lançar a cidade no circuito das mercadorias.
A cidade é apresentada de modo dual, duas sociedades: uma do passado do
poeta, que lhe traz uma saudade nostálgica, e a outra do presente, amaldiçoa-
da e renegada.
Leia abaixo um trecho do livro de Ana Maria Miranda em que aparecem
trechos do poema.
“Triste Bahia, oh quão dessemelhante estás, e estou, do nosso antigo estado”,
recitou Gregório de Matos. Foi até a janela. Sentiu um perfume de rosas. Bebeu mais
uma caneca de vinho. O barrilote estava quase no fim. “Pobre te vejo a ti, tu a mi
empenhado, rica te vejo eu já, tu a mi abundante”. Na barra, navios mercantes
estavam atracados. Pondo os olhos na sua cidade, Gregório de Matos reconhecia
que os mercadores eram o primeiro móvel da ruína, que ardia pelas mercadorias
inúteis e enganosas. “A ti tocou-te a máquina mercante que em tua larga barra tem
entrado; a mim foi-me trocando e tem trocado tanto negócio, e tanto negociante”.
Ficou à janela, em silêncio.
(Ana Maria Miranda, Boca do Inferno, p. 110)

POESIA LÍRICA
A uma dama

Dama cruel, quem quer que vós sejais,


Que não quero por hora descobrir-vos,
Dai-me licença agora para argüir-vos,
Pois para amar-vos sempre ma negais:

Por que razão de ingrata vos prezais,


Não me pagando o zelo de servir-vos?
Sem dúvida deveis de persuadir-vos,
Que a ingratidão aformoseia mais.

Não há cousa mais feia na verdade:


Se a ingratidão aos nobres envilece,
Que beleza fará, o que é fealdade?
8
Brichote – designação pejorativa do estrangeiro.


 

Depois, que sois ingrata me parece,


Que hoje é torpeza o que era então beldade,
Que é flor a ingratidão que em flor fenece.

Namorado, o poeta fala com um arroio

Como corres, arroio fugitivo?


Adverte, pára, pois precipitado
Corres soberbo, como o meu cuidado,
Que sempre a despenhar se corre altivo.

Torna atrás, considera discursivo,


Que esse curso, que levas apressado,
No caminho que empreendes despenhado
Te deixa morto, e me retrata vivo.

Porém corre, não pares, pois o intento,


Que teu desejo conseguir procura,
Logra o ditoso fim do pensamento.

Triste de um pensamento sem ventura,


Que tendo venturoso o nascimento,
Não acha assim ditosa a sepultura.

Efeitos contrários do amor

Ó que cansado trago o sofrimento


Ó que injusta pensão da humana vida,
Que dando-me o tormento sem medida,
Me encurta o desafogo de um contento!

Nasceu para oficina do tormento


Minha alma, a seus desgostos tão unida,
Que por manter-se em posse de afligida
Me concede os pesares de alimento.

Em mim não são as lágrimas bastantes


Contra incêndios, que ardentes me maltratam,
Nem estes contra aqueles são possantes:

Contrários contra mim em paz se tratam,


E estão em ódio meu tão conspirantes,
Que só por me matarem não se matam.

POESIA SACRA
A Jesus Cristo Nosso Senhor

Pequei, Senhor; mas não porque hei pecado,


Da vossa alta clemência me despido;
Porque quanto mais tenho delinqüido,
Vos tenho a perdoar mais empenhado.




Se basta a vos irar tanto pecado,


A abrandar-vos sobeja um só gemido:
Que a mesma culpa, que vos há ofendido,
Vos tem para o perdão lisonjeado.

Se uma ovelha perdida e já cobrada


Glória tal e prazer tão repentino
Vos deu, como afirmais na sacra história,

Eu sou, Senhor, a ovelha desgarrada,


Cobrai-a; e não queirais, pastor divino,
perder na vossa ovelha a vossa glória.
(Coleção Afrânio Peixoto, 1923-1930)

Na governança da Bahia, principalmente naquela


universal fome, que padecia a cidade.

Epílogos

Que falta nesta cidade?.........................................Verdade.


Que mais por sua desonra.....................................Honra.
Falta mais que se lhe ponha.................................Vergonha.

O demo a viver se exponha,


por mais que a fama a exalta,
numa cidade, onde falta
Verdade, Honra, Vergonha.

Quem a pôs neste socrócio?.................................Negócio.


Quem causa tal perdição?.....................................Ambição.
E o maior desta loucura?.......................................Usura.

Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.

Quais são os seus doces objetos?.........................Pretos.


Tem outros bens mais maciços?..........................Mestiços.
Quais destes lhe são mais gratos? ......................Mulatos.

Dou ao demo os insensatos,


dou ao demo a gente asnal,
que estima por cabedal
Pretos, Mestiços, Mulatos.

Quem faz os círios mesquinhos?.........................Meirinhos.


Quem faz as farinhas tardas?................................Guardas.
Quem as tem nos aposentos?...............................Sargentos.


 

Os círios lá vêm aos centos,


e a terra fica esfaimando,
porque os vão atravessando
Meirinhos, Guardas, Sargentos,

E que justiça a resguarda?....................................Bastarda.


É grátis distribuída?..............................................Vendida.
Quem tem, que a todos assusta?..........................Injusta.

Valha-nos Deus, o que custa,


o que EL-Rei nos dá de graça,
que anda a justiça na praça
Bastarda, Vendida, Injusta.

Que vai pela clerezia?...........................................Simonia


E pelos membros da Igreja?..................................Inveja
Cuidei, que mais se lhe punha?...........................Unha.9

Sazonada caramunha!10
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.

E nos Frades há manqueiras?11.............................Freiras.


Em que ocupam os serões?...................................Sermões.
Não se ocupam em disputas?...............................Putas.

Com palavras dissolutas


me concluís na verdade,
que as lidas todas de um Frade
são Freiras, Sermões, e Putas.

O açúcar já se acabou?..........................................Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?...................................Subiu.
Logo já convalesceu?............................................Morreu.

À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.

A Câmara não acode?...........................................Não pode.


Pois não tem todo o poder?..................................Não quer.
É que o governo convence?.................................Não vence.

Quem haverá que tal pense,


que uma Câmara tão nobre
por ver-se mísera, e pobre
Não pode, não quer, não vence.

9
Usada com o sentido de roubalheira.
10
Sazonada caramunha - experimentada lamentação
11
manqueiras - deslize moral


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No poema acima, Gregório ataca vários segmentos da sociedade baiana e usa um


tipo de construção na primeira estrofe e outro tipo na segunda estrofe, recuperando
no final da segunda estrofe as palavras finais de cada verso da primeira.

A cidade da Bahia de mais enredada por menos confusa

A cada canto um grande conselheiro,


Que nos quer governar a cabana, e vinha,
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro.

Em cada porta um freqüentado olheiro,


Que a vida do vizinho, e da vizinha
Pesquisa, escuta, espreita, e esquadrinha,
Para a levar à Praça, e ao Terreiro.

Muitos Mulatos desavergonhados,


Trazidos pelos pés os homens nobres,
Posta nas palmas toda a picardia.

Estupendas usuras nos mercados,


Todos, os que não furtam, muito pobres,
E eis aqui a cidade da Bahia.

Tarefas

Tarefa 1
“Me dá o mote que eu faço a glosa”

MOTE
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.

Tendo por base as definições abaixo, pro-


cure fazer uma glosa com total liberdade, de-
senvolvendo o mote acima, já glosado por
Gregório de Matos no poema “Define a sua
cidade”. Agora o escritor é você.
(Tarefa adaptada da dissertação de mes-
trado de Simone H. de Castro)
Mote – estrofe, anteposta ao início de um
poema, utilizada pelos poetas como motivo da
obra cujo conteúdo desenvolve a idéia suge-
rida pela estrofe, ou ainda qualquer adágio,
sentença breve etc. tomada como ponto de
Fachada da Igreja de São Francisco de partida para o desenvolvimento da obra ou
Assis, de 1764, Ouro Preto, Minas
Gerais.

 

para resumir-lhe o sentido. O mote foi muito cultivado no séc. XVI por poetas
renascentistas e posteriormente por poetas barrocos, caindo em desuso no
século seguinte.
Glosa – tipo de composição poética que desenvolve um mote, em geral
em tantas estrofes quantos são os versos deste e acabando cada estrofe com
um deles.

Tarefa 2
Discutir em sala de aula, com a orientação do monitor, sobre a função do
palavrão na obra do poeta, refletindo se isso é adequado ou não ao fazer
poético.

Tarefa 3
Um desafio para você: selecione poemas de Gregório e identifique esses
aspectos da fisionomia literária do poeta barroco de que fala o professor
Hansen.

Tarefa 4
Tendo lido Machado de Assis e Gregório de Matos, compare trechos dos
dois escritores e procure distinguir na linguagem o que caracteriza a ironia e
a sátira.

Tarefa 5
Caetano Veloso, assim como outros artistas, musicou letras de Gregório de
Matos. Se conseguir descobrir quais são, traga a letra ou o CD para a classe.


Unidade 4

Antônio Vieira
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Parrrede! Maria Lúcia V. de
Oliveira Andrade
Quando eu estudava no colégio, interno, Valdir Heitor
Eu fazia pecado solitário. Barzotto
Um padre me pegou fazendo. Elaboradoras
– Corrumbá, no parrrede!
Simone H. de
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
Castro
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima Neide Luzia de
de Vieira. Rezende
– Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais peca-
do solitário!
E fiz de montão.
– Corrumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o
silêncio
das paredes.

(Manuel de Barros, Memórias Inventadas. São Paulo: Planeta, 2003.) Anjos tocheiros, de Francisco
Vieira Servas, séc. XVIII, Museu
(Tarefa 1) da Independência.
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Antônio Vieira e o
Sermão do bom ladrão
O Sermão do bom ladrão, pregado na Misericórdia de Lisboa em 1655, é
um exemplo da crítica contundente do padre Antônio Vieira àqueles políticos
que, tendo por ofício a administração dos bens públicos, “conjugam”, segun-
do o jesuíta, “por todos os modos o verbo Rapio”, roubar. Tal é a atualidade
do Sermão que, não por acaso, teve alguns de seus trechos utilizados em
episódio recente da vida pública brasileira, como voz acusadora durante uma
investigação por fraude no Senado. (ver adiante a seção “Para Relacionar”)
O Sermão, transcrito a seguir, é um texto em que, por meio de exemplos
bíblicos e de palavras de teólogos, como São Tomás de Aquino e Santo Agosti-
nho, e de filósofos como Sêneca , o padre comenta, de modo eloqüente e
“engajado”, um dos graves problemas políticos que era preciso enfrentar na-
queles tempos e que afligia, sobretudo, o homem colonial: a convivência com a
“ladroeira” perpetrada pelos governadores nomeados pelo rei e pelos possuido-
res de outros altos cargos, muitas vezes obtidos não por nomeação, mas por
compra. Distantes dias e dias da metrópole e sem um controle rigoroso por parte
da Coroa, esses homens trabalhavam muitas vezes apenas em benefício pró-
prio, visando à conquista de um poder cada vez maior e, para isso, roubavam,
prendiam, matavam, travavam longas disputas com adversários, e muitas vezes,
morriam também nesses conflitos. Vieira, de modo astuto, defende, com grande
erudição, a tese de que “nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os
ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os Reis”. O
ponto a que quer chegar é justamente o que se refere à última proposição: quase
sempre o que se vê são os ladrões levando os Reis ao Inferno, já que a roubalheira
ocorre, de certa forma, sob o consentimento destes últimos. “O que vemos mais
praticar em todos os Reinos do mundo”, diz o padre, “são os ladrões que levam
consigo os Reis ao Inferno”. Desse modo, ao mesmo tempo em que faz um
alerta ao rei, o padre acusa aqueles que se valem de seus cargos para obter
benefícios pessoais, deixando o povo à míngua.
Uma das imagens que o padre utiliza argumentativamente neste sermão é
a do Bom e do Mau Ladrão, Dimas e Zaqueu, respectivamente. Oriundas do
texto bíblico, tais personagens representam aqui o ladrão “pobre”, que não
tem como restituir o roubado, a quem, segundo Vieira, “a pobreza e vileza de
sua fortuna condenou a este gênero de vida”, mas cuja miséria “ou escusa ou
alivia o seu pecado”; e o “rico’, que tem como restituir, mas que rouba sem ao
menos pensar nessa possibilidade.
Os ladrões a quem o padre deseja atingir no Sermão do bom ladrão não são,
entretanto, os bons ladrões, a exemplo de Dimas. São, na realidade, os chama-
dos “maus ladrões: os de maior calibre e de mais alta esfera, a quem os reis
encomendam os exércitos e legiões, ou o Governo das Províncias, ou a admi-
nistração das Cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despo-
jam os povos”. Já na introdução – ou intróito – do sermão, o padre manifesta
essa idéia, quando sugere que tal sermão não deveria ser pregado na Misericór-
dia de Lisboa e sim na Capela Real, já que, segundo seu desejo, teria que chegar
ao ouvido do Rei, de “todos os Reis, e mais ainda aos Estrangeiros que aos
nossos”. É bem verdade que Antônio Vieira não dirige sua crítica diretamente
ao Rei, senão aos homens por ele designados. A manutenção de tais homens em
seus cargos, apesar de seus desmandos, porém, torna o soberano cúmplice de
seus furtos, e os ladrões “o levam consigo ao Inferno”.


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Parte IV do Sermão do Bom Ladrão [trecho]*


[...] Navegava Alexandre em uma poderosa armada pelo mar Eritreu a conquistar
a Índia; e como fosse trazido à sua presença um pirata, que por ali andava roubando
os pescadores, repreendeu-o muito Alexandre por andar em tão mau ofício; porém
ele que não era medroso nem lerdo, respondeu assim: Basta, Senhor, que eu porque
roubo em uma barca sou ladrão, e vós porque roubais em uma armada, sois Impera-
dor? Assim é. O roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza: o roubar com
pouco poder faz os piratas, o roubar com muito, os Alexandres. Mas Sêneca, que
sabia bem distinguir as qualidades, e interpretar as significações, a uns e outros,
definiu com o mesmo nome: Eodem loco pone latronem, est piratam, quo Regem
animus latronis, est piratae Habetem. [tradução: se o Rei de Macedônia, ou qual-
quer outro, fizer o que faz o ladrão e o pirata; o ladrão, o pirata e o Rei, todos têm o
mesmo lugar, e merecem o mesmo nome]. (Tarefa 2)
(...)
Parte V [na íntegra]
Suponho, finalmente, que os ladrões de que fala não são aqueles miseráveis, a quem
a pobreza e vileza de sua fortuna condenou a este gênero de vida, porque a mesma sua
miséria ou escusa ou alivia o seu pecado, como diz Salomão: Non grandis est culpa,
cum quis furatus fuerit: furatur enim ut esurientem impleat animam. [O ladrão que furta
para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato,
são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera], os quais debaixo do mesmo nome
e do mesmo predicamento distingue muito bem São Basílio Magno: Non est
intelligendum fures esse solum bursarum incisores, vel latrocinantes in balneis; sed est
qui duces legionum statuti, vel qui, commisso sibi regimine civitatum, aut gentium, hoc
quidem furltm tollunt, hoc vero vi, est publice exigunt: [Não são só ladrões, diz o Santo,
os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os
ladrões que mais própria e dignamente merecem este título são aqueles a quem os reis
encomendam os exércitos e legiões, ou o governo das Províncias, ou a administração
das Cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despojam os povos].Os
outros ladrões roubam um homem, estes roubam Cidades e Reinos: os outros furtam
debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros, se furtam, são enforcados,
estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os outros
homens, viu que uma grande tropa de varas e Ministros de justiça levavam a enforcar
uns ladrões, e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos.
Ditosa Grécia, que tinha tal Pregador! E mais ditosas as outras nações, se nelas não
padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas vezes se viu em Roma ir a enforcar um
ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em triunfo um Cônsul, ou
Ditador por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes mes-
mos ladrões triunfantes? De um chamado Seronato disse com discreta contraposição
Sidônio Apolinar: Nom cessat simul furta, vel punire, vel facere. Seronato está sempre
ocupado em duas coisas: em castigar furtos, e em os fazer. Isto não era zelo de justiça,
senão inveja. Queria tirar os ladrões do mundo, para roubar ele só.
(VIEIRA, 2000, p. 395)

A força argumentativa do padre não deriva apenas de sua eloqüência e do


calor com que se expressa, mas também da utilização constante de exemplos
históricos e de autores cuja autoridade – seja no plano religioso, seja no plano
político e cultural – é inquestionável. (Tarefa 3)

*
O sermão do Bom Ladrão é dividido em catorze partes.


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Para conferir ainda mais credibilidade às suas citações, o jesuíta opta mui-
tas vezes por utilizá-las em latim. É claro que não descuida de traduzi-las,
ciente de que a maior parte de seu público seria incapaz de compreender a
língua dos romanos.
Muito possivelmente são a lucidez do jesuíta diante dos problemas de
seu tempo, o caráter conceptista do seu texto e a universalidade de seus temas
os elementos que o tornam um autor muito acessível, claro e perfeitamente
possível de ser compreendido.

Parte IV do Sermão da Sexagésima [integral]*


IV
Mas como em um pregador há tantas qualidades, e em uma pregação tantas leis, e
os pregadores podem ser culpados em todas, em qual consistirá esta culpa? – No
pregador podem-se considerar cinco circunstâncias: a pessoa, a ciência, a matéria, o
estilo, a voz. A pessoa que é, e ciência que tem, a matéria que trata, o estilo que segue,
a voz com que fala. Todas estas circunstâncias temos no Evangelho. Vamo-las exami-
nando uma por uma e buscando esta causa. Será porventura o não fazer fruto hoje a
palavra de Deus, pela circunstância da pessoa? Será porque antigamente os pregado-
res eram santos, eram varões apostólicos e exemplares, e hoje os pregadores são eu e
outros como eu? – Boa razão é esta. A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por
isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai.
Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce
exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma
coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que
governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa
é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que saneia e o que
prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou
ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as
que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual
cuidais que é? – o conceito que de sua vida têm os ouvintes. Antigamente convertia-
se o Mundo, hoje por que se não converte ninguém? Porque hoje pregam-se palavras
e pensamentos, antigamente pregavam-se palavras e obras. Palavras sem obra são
tiros sem bala; atroam, mas não ferem. A funda de Davi derrubou o gigante, mas não o
derrubou com o estalo, senão com a pedra: Infixus est lapis in fronte ejus. As vozes da
harpa de Davi lançavam fora os demônios do corpo de Saul, mas não eram vozes
pronunciadas com a boca, eram vozes formadas com a mão: David tollebat citharam,
et percutiebat manu sua. Por isso Cristo comparou o pregador ao semeador. O pregar
que é falar faz-se com a boca; o pregar que é semear, faz-se com a mão. Para falar ao
vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras. Diz o Evangelho
que a palavra de Deus frutificou cento por um. Que quer isto dizer? Quer dizer que de
uma palavra nasceram em palavras? – Não. Quer dizer que de poucas palavras nasce-
ram muitas obras. Pois palavras que frutificam obras, vede se podem ser só palavras!
Quis Deus converter o Mundo, e que fez? – Mandou ao Mundo seu Filho feito ho-
mem. Notai. O Filho de Deus, enquanto Deus, é palavra de Deus, não é obra de Deus:
Genitum non factum. O Filho de Deus, enquanto Deus e Homem, é palavra de Deus e
obra de Deus juntamente: Verbum caro factum est. De maneira que até de sua palavra
desacompanhada de obras não fiou Deus a conversão dos homens. Na união da pala-
vra de Deus com a maior obra de Deus consistiu a eficácia da salvação do Mundo.
Verbo Divino é palavra divina; mas importa pouco que as nossas palavras sejam
*
Este sermão tem 10 partes.


 

divinas, se forem desacompanhadas de obras. A razão disto é porque as palavras


ouvem-se, as obras vêem-se; as palavras entram pelos ouvidos, as obras entram pelos
olhos, e a nossa alma rende-se muito mais pelos olhos que pelos ouvidos. No Céu
ninguém há que não ame a Deus, nem possa deixar de o amar. Na terra há tão poucos
que o amem, todos o ofendem. Deus não é o mesmo, e tão digno de ser amado no Céu
e na Terra? Pois como no Céu obriga e necessita a todos a o amarem, e na terra não? A
razão é porque Deus no Céu é Deus visto; Deus na terra é Deus ouvido. No Céu entra
o conhecimento de Deus à alma pelos olhos: Videbimus eum sicut est; na terra entra-
lhe o conhecimento de Deus pelos ouvidos: Fides ex auditu; e o que entra pelos
ouvidos crê-se, o que entra pelos olhos necessita. Viram os ouvintes em nós o que nos
ouvem a nós, e o abalo e os efeitos do sermão seriam muito outros. Vai um pregador
pregando a Paixão, chega ao pretório de Pilatos, conta como a Cristo o fizeram rei de
zombaria, diz que tomaram uma púrpura e lha puseram aos ombros; ouve aquilo o
auditório muito atento. Diz que teceram uma coroa de pinhos e que lha pregaram na
cabeça; ouvem todos com a mesma atenção. Diz mais que lhe ataram as mãos e lhe
meteram nelas uma cana por ceptro; continua o mesmo silêncio e a mesma suspensão
nos ouvintes. Corre-se neste espaço uma cortina aparece a imagem do Ecce Homo; eis
todos prostrados por terra, eis todos a bater no peito, eis as lágrimas, eis os gritos, eis
os alaridos, eis as bofetadas. Que é isto? Que apareceu de novo nesta igreja? Tudo o
que descobriu aquela cortina, tinha já dito o pregador. Já tinha dito daquela púrpura,
já tinha dito daquela coma e daqueles espinhos, já tinha dito daquele cetro e daquela
cana. Pois se isto então não fez abalo nenhum, como faz agora tanto? – Porque então
era Ecce Homo ouvido, e agora é Ecce Homo visto; a relação do pregador entrava
pelos ouvidos a representação daquela figura entra pelos olhos. Sabem, Padres prega-
dores, porque fazem pouco abalo os nossos sermões? – Porque não pregamos aos
olhos, pregamos só aos ouvidos. Porque convertia o Baptista tantos pecadores? –
Porque assim como as suas palavras pregavam aos ouvidos, o seu exemplo pregava
aos olhos. As palavras do Baptista pregavam penitência: Agite poenitentiam. Ho-
mens, fazei penitência – e o exemplo clamava: Ecce Homo; eis aqui está o homem que
é o retrato da penitência e da aspereza. As palavras do Baptista pregavam jejum e
repreendiam os regalos e demasias da gula; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis
aqui está o homem que se sustenta de gafanhotos e mel silvestre. As palavras do
Baptista pregavam composição e modéstia, e condenavam a soberba e a vaidade das
galas; e o exemplo clamava: Ecce Homo: eis aqui está o homem vestido de peles de
camelo, com as cordas e cilício à raiz da carne. As palavras do Baptista pregavam
despegos e retiros do Mundo, e fugir das ocasiões e dos homens; e o exemplo clama-
va: Ecce Homo: eis aqui o homem que deixou as cortes e as sociedades, e vive num
deserto e numa cova. Se os ouvintes ouvem uma coisa e vêem outra, como se hão-de
converter? Jacob punha as varas manchadas diante das ovelhas quando concebiam, e
daqui procedia que os cordeiros nasciam malhados. Se quando os ouvintes percebem
os nossos conceitos, têm diante dos olhos as nossas manchas, como hão-de conceber
virtudes? Se a minha vida é apologia contra a minha doutrina, se as minhas palavras
vão já refutadas nas minhas obras, se uma cousa é o semeador e outra o que semeia,
como se há-de fazer fruto? Muito boa e muito forte razão era esta de não fazer fruto a
palavra de Deus; mas tem contra si o exemplo e experiência de Jonas. Jonas fugitivo
de Deus, desobediente, contumaz, e, ainda depois de engolido e vomitado iracundo,
impaciente, pouco caritativo, pouco misericordioso, e mais zeloso e amigo da própria
estimação que da honra de Deus e salvação das almas, desejoso de ver subvertida a
Nínive e de a ver subverter com seus olhos, havendo nela tantos mil inocentes;
contudo este mesmo homem com um sermão converteu o maior rei, a maior corte e o
maior reinado do Mundo, e não de homens fiéis senão de gentios idólatras. Outra é
logo a causa que buscamos. Qual será?




Tarefa 1
Com base na linguagem do poema e na abordagem temática, você conse-
gue identificar a que época pertence o poeta Manoel de Barros? Argumente
em favor de sua descoberta.

Tarefa 2
Resuma com suas palavras o primeiro trecho reproduzido do Sermão do
bom ladrão.

Tarefa 3
Procure identificar quem são as pessoas citadas no Sermão. Pesquise em
enciclopédias na biblioteca de sua escola (seria interessante trabalhar em gru-
pos: a cada grupo um nome). Em seguida, na sala de aula, a tarefa consistiria
em entender o porquê da referência feita por Vieira a essas figuras.
Por exemplo, a referência a Alexandre no trecho: “O roubar pouco é cul-
pa, o roubar muito é grandeza. O roubar com pouco poder faz os piratas, o
roubar com muito, os Alexandres”.

Tarefa 4
As citações, os trechos em latim, a linguagem escorreita, a religiosidade
imanente, tudo nos leva a penetrar camadas mais profundas da obra, indicam-
nos não só a fisionomia literária do seu autor como também que tipo de leitor
(ouvinte, no caso) ele desejaria que fôssemos – aspecto que é um dos mais
importantes dos textos, a configuração do leitor.
Para que tipo de ouvinte Vieira estava pregando na Igreja da Misericória
de Lisboa?

Tarefa 5
Como você sabe, há determinadas formas de organização textual encon-
tradas em todo texto, às vezes uma sendo mais determinante do que outras, ou
até sendo exclusiva na construção daquele texto. Tais formas são basicamen-
te: narração, dissertação, descrição, diálogo. Quais delas você pode encontrar
nos trechos transcritos do Sermão do bom ladrão?

Para relacionar
Por uma ladroeira morigerada

Já que se vem revelando impossível combater a corrupção, que tal legalizá-


la? No ano passado, o prefeito Bento Gonçalves, da cidade de Triunfo – a 100 km de
Porto Alegre –, foi objeto de processo que acabou por cassar-lhe o mandato, suspen-
der-lhe por cinco anos os direitos políticos e, ainda por cima, sentenciá-lo a três
anos e meio de prisão. A acusação era de peculato – apropriação de dinheiro públi-
co. Mais especificamente, o prefeito, de 61 anos, era acusado de ter pago com
recursos da prefeitutra o conserto de um seu automóivel, um Fusca 1300, ano 1977,
placas RK-1306, no montante de R$ 200,00. Não, não há engano. O montante é
mesmo de R$ 200,00 (duzentos reais).
A condenação de Bento Gonçalves dos Santos foi determinada pelo Tribu-
nal de Justiça do Rio Grande do Sul. Na semana passada veio a decisão. O tribunal


 

anulou todo o processo. Bento Gonçalves dos Santos livrou-se da cadeia e


reempossou-se dos direitos políticos.
Para esse resultado, foi decisivo o trabalho do ministro Edson Vidigal, que,
depois de pedir vistas do processo, redigiu um longo e bem fundado voto. O minis-
tro mostra, entre outras barbaridades, que foi argüida contra o acusado a existência
de uma fatura enviada à prefeitura da parte da oficina onde o concerto teria sido
realizado. Ora, conta igualmente do processo que a prefeitura, considerando a fatu-
ra improcedente, devolveu-a sem pagar. Mesmo assim, espantosamente, o prefeito
foi condenado. Vidigal conclui que ele foi vítima de “clamorosa injustiça”. A inici-
ativa da denúncia fora de um adversário político.
Mas o ponto que se quer aqui enfatizar é a argumentação quanto ao escasso
valor da causa. Vidigal explora-o demoradamente. Seu voto é erudito – recorre com
insistência ao Sermão do bom ladrão, do Padre Vieira – e bem humorado. A alturas
tantas pergunta quantos políticos, no Brasil, podem ser acusados de ter desviado
R$ 200,00. Reles R$ 200,00! Mesmo se verdadeira, a acusação consistiria numa
honra para o ex-prefeito. “Não seria muito mais barato para nós, contribuintes em
geral, se em cada um dos 5656 municípios brasileiros o furto do dinheiro público
ficasse limitado a R$200, 00 por ano?”, escreve.
O ministro está brincando, claro – mas, pensando bem... Acompanhemos seu
raciocínio. Se a corrupção custa caro para o contribuinte, o mesmo ocorre com o
combate à corrupção. Para citar só um dos seus aspectos, o país tem mais de trinta
tribunais de contas, lembra Vidigal, encarregados de pastorear a aplicação dos di-
nheiros públicos. Só o Tribunal de Contas da União tem 2000 funcionários, e cus-
tou ao contribuinte, no ano passado R$ 375.489.058,82. Para aliviar tal vigilância,
o furto do dinheiro público seria liberado aos bons ladrões, aqueles que roubam
pouco, com tetos diferentes para os planos federal, estadual e municipal. Qual o teto
para o bom ladrão federal? E o estadual? Vidigal não se arrisca a fixá-los. Para o
municipal, porém, acha que o caso de Triunfo oferece um bom parâmetro: R$ 200,00.
Pronto. Está posta a tese de legalização da corrupção sugerida acima. O
governo – eis uma conclusão de atualidade para a tese de Vidigal – não quer premiar
quem economiza energia? Pois podia premiar também quem economiza no roubo.
(Trecho adaptado de Roberto Pompeu de Toledo, Revista Veja, 16.05.2001)

PALAVRA E UTOPIA (Palavra e Utopia, Portugal / França / Brasil /


Espanha, 2000). Direção: Manoel de Oliveira (www.cineclick.com.br).

Em 1663, quando o Padre Antonio Vieira é convocado a comparecer diante da


terrível Inquisição portuguesa, ele precisa explicar as idéias que defende ao questi-
onar a escravidão, a situação dos índios e as relações império-colônia. Intrigas na
corte e um pequeno mal-entendido enfraquecem o poder do jesuíta, que chegou a
ser amigo íntimo do rei Dom João IV. Perante os juízes, padre Vieira passa a limpo
seu passado: a juventude no Brasil e os anos de noviciado na Bahia, seu envolvi-
mento na causa dos índios e o primeiro sucesso no púlpito. Este tributo de Manoel
de Oliveira ao padre Antônio Vieira não é uma cinebiografia, mas sim de um corajo-
so documento sobre a palavra e sobre o pensar.




Bibliografia
ASSIS, Machado de. “O Primo Basílio”. In: Crítica literária. São Paulo:
W.M. Jackson, 1955.
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VIEIRA, Antonio. Sermão da sexagésima. www.bibvirt. futuro.usp.br.
Acessado em 11.07.2004.

Sobre os autores
Neide Luzia de Rezende
é professora da Faculdade de Educação da USP e ministra a disciplina
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa na licenciatura.
Silvio Pereira da Silva
é professor efetivo da rede pública estadual e mestre pela Faculdade de
Letras da USP.
Gabriela Rodella
é formada pela Faculdade de Letras da USP e licenciada pela FEUSP e
trabalha como editora de livros didáticos.
Simone Herchcovitch de Castro
é mestre pela área de Linguagem e Educação da FEUSP e professora de
Língua Portuguesa na rede particular de ensino.


Literatura

Organizadora
Neide Luzia de Rezende

Elaboradores
Neide Luzia de Rezende
Gabriela Rodella
Silvio Pereira da Silva
3
módulo

Nome do Aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Adolpho José Melfi
Pró-Reitora de Graduação
Sonia Teresinha de Sousa Penin
Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária
Adilson Avansi Abreu

FUNDAÇÃO DE APOIO À FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FAFE


Presidente do Conselho Curador: Selma Garrido Pimenta
Diretoria Administrativa: Anna Maria Pessoa de Carvalho
Diretoria Financeira: Sílvia Luzia Frateschi Trivelato

PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian

Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei, José Muniz Jr.
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação

Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.

Sonia Teresinha de Sousa Penin.


Pró-Reitora de Graduação.
Carta da
Secretaria de Estado da Educação

Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.

Prof. Sonia Maria Silva


Coordenadora da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
Apresentação
da área
Será que literatura se ensina e se aprende? Esta é uma questão bastante
controversa.
Quem, tantas vezes, não foi obrigado a ler livros de ficção e de poesia
para depois responder a exercícios de compreensão de texto? Mesmo que a
leitura tenha proporcionado emoção, instigado questões as mais essenciais
para nossas vidas, ao ser reduzida somente a desvitalizadas questões de pro-
va, o fato é que a literatura morre, torna-se um mero exercício escolar.
Prazer e conhecimento – esse binômio associado à literatura é inseparável
para quem vê a arte como forma de humanização do homem, como aquisição
de um bem essencial ao espírito. O acesso a tal bem pode ter sim a colaboração
da escola, em princípio capacitada para indicar ao aluno as boas obras e orientá-
lo a desfrutar não só da história que narra mas do modo como é narrada, além
de levá-lo a conhecer por meio dela as questões importantes da época em que
surgiu. Porém, não é o contato com características de escolas literárias, a história
literária como reflexo da história geral, a leitura de resumos de obras ou a
análise acadêmica de poemas que vão instituir o gosto ou fazer conhecer a
literatura importante que existiu antes da gente.
Nesse sentido, o que se propõe aqui será a tentativa de propiciar o contato
direto do aluno com o texto literário. Nada substitui sua leitura – nem o resu-
mo, nem o texto teórico, nem a leitura do professor.
Neste curso, toda a abordagem literária partirá da obra lida, ainda que seja
esta leitura muitas vezes difícil, devido, não só à falta de tempo, como à falta
de familiaridade com a tarefa. Nosso conteúdo: basicamente os livros do vesti-
bular da Fuvest deste ano de 2004. São livros significativos dentro da tradição
literária, capazes de propiciar, com a devida orientação, uma descoberta dos
seres e das coisas do mundo.
Jamais esquecer que a literatura só existe porque existe você, leitor.

Neide Luzia de Rezende


Coordenadora de Literatura
Apresentação
do módulo
Como conter em cinqüenta páginas a vontade de escrever e escrever, per-
guntar e perguntar sobre a obra de escritores tão ricos? Ao agrupá-los, desco-
brimos as possibilidades de relações entre eles. É extraordinário poder
reestabelecer o diálogo de Fernando Pessoa, em seu livro Mensagem, com Os
Lusíadas, de Camões. A epopéia do grande escritor português do século XVI,
no seu desencanto final, na sua descrença nas grandes conquistas de sua na-
ção produz ecos melancólicos no poeta modernista português, que busca, por
meio desse diálogo, entender o sujeito histórico que era.
Do mesmo modo, a narrativa de Mário de Andrade, Macunaíma, busca
repensar nosso passado de colonização (ainda tão próximo quando o livro foi
escrito) mediante as novas possibilidades que se abriam para a arte nas pri-
meiras décadas do século XX, período de grandes movimentos artísticos de
vanguarda. O Modernismo brasileiro, cuja fase de maior produção inovadora
abrange a década de 20, foi realmente um divisor de águas. Com Mário de
Andrade e Oswald de Andrade (nenhum parentesco entre os dois), seus prin-
cipais representantes na ficção, a literatura tematizou importantes questões da
cultura e da sociedade brasileiras.
Tanto Camões quanto Mário dialogam nos seus escritos com a literatura
mais antiga da nossa herança ocidental, a epopéia grega, e por meio dos seus
ecos constroem obras de valor para sua época.
Outra modalidade literária relacionada é a literatura de viagem, represen-
tada pelas narrativas dos cronistas que acompanhavam os navegantes nas suas
descobertas do século XVI e pelos etnólogos-cronistas europeus que visita-
ram o Brasil em diferentes momentos e relataram suas impressões sobre o país
colonizado. Cristãos e colonizadores, esses cronistas deixaram impressões
fortes sobre os costumes e a beleza dos países catequizados, mas deixaram de
registrar a violência dos conquistadores ibéricos e seus efeitos “civilizatórios”
nocivos séculos após a conquista.
Não foi possível falar de tudo, mas acreditamos que a partir do que foi
exposto e sugerido seja possível ao menos descortinar parte desses processos
históricos e estéticos, suscitando vontade de conhecer mais.
Neide Luzia de Rezende
Coordenadora da área de Literatura
Unidade 1

Macunaíma
Mário de Andrade
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradores
Neide Luzia de
Rezende
Silvio Pereira da
Silva

Maloca: habitação indí- Nosso comentário sobre Macunaíma se inicia pelo...fim. Acreditamos que
gena que aloja toda a fa- não será esse um procedimento capaz de empanar o prazer da leitura desse
mília.
livro extraordinário. Ao contrário, pretende-se oferecer elementos que propi-
Aruaí: segundo Aurélio é ciem uma leitura mais interessante, uma vez que se trata de um livro recheado
o filhote do aruá, um de “armadilhas” que, se não identificadas, podem representar mesmo um obs-
molusco que vive na táculo para esse intrigante e divertido passeio no bosque da ficção.
água doce ou em locais
muito úmidos e que
aparece sob a forma de “A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas
pequenos aglomerados
e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí do séquito daqueles tempos de
de ovos brancos, cor-de-
dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador. E só o papagaio no
rosa ou alaranjados.
silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida.
Uraricoera : segundo o Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.
Auréilio, é um rio da Ama-
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou
zônia.
eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me
Macunaíma : “O Grande acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em
Mau” (maku = mau; ima = toque rasgado botei boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de
grande) em língua de tri-
Macunaíma, herói de nossa gente.
bos da região amazônica.
Tem mais não.”
(Dicionário Aurélio e ou-
(Último parágrafo do livro)
tras fontes)
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PARAFRASEANDO O TRECHO Rapsodo


O narrador conta sobre a destruição da tribo de Macunaíma – cujo motivo, Trata-se daquele que, na
tecido ao longo de todo o livro, o trecho não diz – e da maloca, arrasada pelas Antigüidade grega, trans-
saúvas. Macunaíma e seus semelhantes morreram, mas permanece na aldeia a mitia de terra em terra as
comitiva de aruaí, do tempo em que ele era imperador da tribo. Só o papagaio histórias e os feitos de seu
preserva a memória de Macunaíma e é ele quem conta para o narrador, um povo. Os versos possuíam
cantador de viola, as aventuras a serem narradas no livro. Depois de contar a esquema sonoro e sintáti-
história, o papagaio vai embora para Portugal. co capaz de favorecer a
memorização.

COMENTANDO O TRECHO Epopéia


Percebe-se neste trecho a natureza fabular da narrativa, evidenciada pela O poema épico narra as
presença do universo mágico e pela humanização de seres do mundo animal. aventuras extraordinárias
O autor, como se verá, aproveitará muitos elementos das lendas e fábulas do de heróis históricos ou len-
folclore brasileiro para contar a história de Macunaíma, personagem indígena dários de um tempo muito
de uma lenda recolhida por Koch-Grünberg, etnólogo alemão que visitou o distante. Essas personagens
geralmente encarnavam os
norte do Brasil e a Venezuela de 1911 a 1913. Assim, não é de estranhar que
valores e características de
seja o papagaio quem conta a história para o homem. Como se sabe, nas
um povo ou de uma nação
fábulas o comportamento e as características dos bichos remetem àquilo que é e por suas causas lutavam.
próprio do humano. Essas analogias permitem ver, então, na ida do papagaio Quando passaram a ser es-
para Lisboa, a atração do brasileiro pela Europa, o que estará presente em critas, essas narrativas se
muitos dos episódios. configuraram como compi-
Pode-se reconhecer também no trecho um eco dos comentários feitos pe- lações de histórias transmi-
tidas oralmente de geração
los cronistas europeus que por aqui passaram sobre os estragos causados pe-
a geração, que iam sendo
las saúvas nas lavouras do colonizadores. Houve mesmo uma frase que se
montadas coletivamente
tornou famosa na história cultural brasileira: “Ou o Brasil acaba com a saúva, mediante a repetição da
ou a saúva acaba com o Brasil”, proferida por Saint-Hilaire, no início do sécu- narrativa. Desse modo, as
lo XIX. histórias de um povo se
A “fala impura” refere-se à coloquialidade e à fala popular do romance, juntavam, formando um
único grande poema épico,
brasileira, em contraste com o português culto (por antítese, a língua pura
como a Ilíada e a Odisséia. O
portuguesa) do qual Mário de Andrade procurava então se distanciar. É nessa
primeiro narra as aventuras
fala impura que Macunaíma será narrado, buscando-se com isso recuperar a do jovem e forte herói
“brasilidade” do português do Brasil. Aquiles e da Guerra de Tróia;
No trecho encontra-se também um comentário paródico, relativo à epo- o segundo, as aventuras do
péia. O narrador, assim como o narrador épico, relata fatos da história passa- herói mais maduro e pers-
picaz Ulisses, em seu retor-
da, as ações de um herói que representou num dia longínquo as aspirações
no à terra natal.
coletivas e a glória da nação. Entretanto, neste caso, Macunaíma é um herói
degradado, por suas características muito diferentes daquelas dos grandes heróis
épicos, e o rapsodo mostra-se um papagaio pouco nacionalista, que bate asas
para o país colonizador. Essa dimensão “baixa” e cômica são as maiores res-
ponsáveis pelo caráter paródico do texto.


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Leia abaixo um trecho do livro de Gilda de Mello e Souza, O tupi e o


Enredo
alaúde, sobre Macunaíma:
Aquilo que constitui a
espinha dorsal de uma
narrativa: o encadeamen-
to das ações e a ordem Uma análise pouco mais atenta do livro mostra que ele foi construído a partir da
em que essas ações ocor- combinação de uma infinidade de textos preexistentes, elaborados pela tradição
rem. Para respeitarmos o oral ou escrita, popular ou erudita, européia ou brasileira. A originalidade estrutural
enredo de uma obra, é de Macunaíma deriva, deste modo, de o livro não se basear na mímesis, isto é, na
preciso recuperar as idas dependência constante que a arte estabelece entre o mundo objetivo e a ficção; mas
e vindas, o intricado dela, em ligar-se quase sempre a outros mundos imaginários, a sistemas fechados de
o modo como foi estru- sinais, já regidos por significação autônoma. Este processo, parasitário na aparên-
turalmente pensada, o cia, é no entanto curiosamente inventivo; pois em vez de recortar com neutralidade
que, ao fim e ao cabo, re- nos entrechos originais as partes de que necessita para reagrupá-las, intactas, numa
vela também sua filiação
ordem nova, atua quase sempre sobre cada fragmento, alterando-o em profundida-
a um determinado mo–
de. (p. 10)
do de narrar e, em últi-
ma instância, a uma de-
terminada corrente esté-
tica. A linearidade ou a Vamos tentar esclarecer melhor esse trecho difícil mas importante do livro
fragmentação dizem de Gilda de Mello e Souza, pois ele traz explicações importantes para o enten-
muito ao enredo e à épo- dimento de Macunaíma.
ca em que o livro foi con- A mímesis, a que a autora se refere, é um conceito fundamental para as artes
cebido, por exemplo.
em geral. Definido por Aristóteles, está ligado à relação, como diz a autora, do
mundo que se constrói numa obra inventada (de ficção) e o mundo em que
vivemos. No século XIX, o romance estava assentado nessa relação, como dis-
cutimos a propósito de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de
“Escrito em seis dias de Assis, que, na literatura brasileira, é um pioneiro na quebra da mímesis.
trabalho ininterrupto,
durante umas férias de No caso de Macunaíma, que foi escrito num momento histórico de gran-
fim de ano, em dezem- des rupturas artísticas, afastar-se do esquema linear e mimético do romance
bro de 1926; corrigido e tradicional era ponto de honra – assim como o era deixar à mostra as costuras
aumentado em janeiro e o modo de composição para mostrar que a arte já não buscava imitar a
de 1927; publicado em realidade mas que era uma reflexão sobre esta e sobre a própria arte (procedi-
1928 - Macunaíma logo mento metalingüístico).
se transformou no livro
mais importante do na- Pois bem, o romance rapsódico de Mário tem suas costuras à mostra, com-
cionalismo modernista pondo-se com materiais (no sentido de serem textos já prontos) provenientes
brasileiro” (Gilda de dos diferentes tipos de culturas, da brasileira sobretudo, mas também da euro-
Mello e Souza, p. 9) péia. Esses materiais têm dupla função: por um lado constroem a carnadura
da obra, dá vida à história de Macunaíma, e por outro traz para dentro do
romance os ecos dessas culturas.
Gilda de Mello e Souza procurou identificar parte do material que serviu a
Mário de Andrade na elaboração da narrativa (dizemos “parte”, porque, dada
a riqueza da pesquisa do autor, talvez seja impossível repertoriar todos os
textos que ele operacionaliza no livro):
· traços indígenas, retirados de Koch-Grünberg, Couto de Magalhães, Bar-
bosa Rodrigues, Capistrano de Abreu e outros;
· narrativas e cerimônias de origem africana;
· evocações de canções de roda ibéricas;
· tradições portuguesas;
· contos já tipicamente brasileiros;


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· anedotas tradicionais da História do Brasil;


· incidentes pitorescos presenciados pelo autor;
· episódios de sua biografia pessoal;
· transcrições textuais dos etnógrafos e dos cronistas coloniais;
· frases célebres de personalidades históricas ou eminentes;
· fatos de língua, como modismos, locuções, fórmulas sintáticas;
· processos mnemônios populares, como associações de idéias e imagens;
· processos retóricos, como as enumerações exaustivas, que segundo o
próprio autor tinham a finalidade apenas poética de realizar “sonoridades cu-
riosas” ou “mesmo cômicas”. (Gilda de Mello e Souza, p.16)
Esses textos, em geral, aparecem numa dimensão paródica, pois o autor
apropria-se deles, buscando entretanto extrair um efeito, em geral humorísti-
co ou satírico, mas que contém sempre uma reflexão sobre a situação cultural.
Um bom exemplo disso se encontra no capítulo IX, ou melhor, é o capítulo
IX, Carta pras Icamiabas.
Em “Carta pras Icamiabas”, Macunaíma, saudoso de sua terra, escreve às
suas súditas na Amazônia (as guerreiras, amazonas, mito grego) para relatar
como era a vida em São Paulo e descrever-lhes a cidade “...construída sobre
sete colinas, à feição tradicional de Roma, a cidade cesárea, ‘capita’ da
Latinidade de que proviemos”. Para Macunaíma, São Paulo é “a mais bela
cidade terráquea”: faz uma descrição da agitada vida paulistana, com seus
arranha-céus, cita o palácio do governo todo de ouro, as ruas cheias de pesso-
as, a grande concentração de trabalhadores, as lojas, os bondes, as águas su-
jas do “igarapé Tietê”, a atmosfera poluída, a ociosidade e os vícios mascara-
dos. Mostra-a como uma cidade marcada pela multiplicidade de culturas. No
entanto, sua sedução pela cidade se dá a contragosto, como ele revela no
início da carta: “Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a litera-
tura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saudade e
muito amor, com desagradável nova.”
Mário de Andrade faz uma caricatura, na “Carta pras Icamiabas”, do texto
erudito. Acentuando-lhe os defeitos, critica a linguagem empolada e pedante
dos acadêmicos. Macunaíma considera estranho o fato de falarem uma língua e
escreverem em outra: “Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é
tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra.” Em estilo parodístico,
Macunaíma toma emprestada a linguagem rebuscada dos ditos cultos e comete
erros grosseiros – por exemplo, usa “testículos da Bíblia” ao invés de “versículos
da Bíblia”, ou “ciência fescenina”, em lugar de “ciência feminina”.
Macunaíma demonstra que aprendeu rapidamente a linguagem dos civili-
zados. Insere citações latinas, usa estruturas sintáticas (inversões) nos moldes
de Camões e Virgílio. Um interessante trecho que nos faz lembrar diretamente a
carta de Caminha é a descrição que Macunaíma faz das mulheres de São Paulo:

“Andam elas vestidas de rutilantes jóias e panos finíssimos, que lhes acentuam
o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que a de nenhuma outra cedem pelo
formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e
tantas habilidades demonstram, no brincar, que enumerá-las, aqui seria fastiendo
porventura; e, certamente, quebraria os mandamentos de descrição, que em relação
de Imperator para súbditas se requer.


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Assim escreveu Caminha:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabe-
los muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se
envergonhavam. (...)
Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de
verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e
certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas
mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas
como ela.

Como podemos observar há, nos trechos, aspectos que podem ser facil-
mente comparados, como, por exemplo, referências à formosura das mulhe-
res e o destaque para a questão sexual. Afinal, umas não têm nada que lhes
cubras as partes íntimas e outras, as paulistanas, cobrem suas “graças” com
panos finíssimos, que lhes acentuam a beleza. Parece que o pudor ocidental
não passa de um tênue véu. A leitura comparativa das duas cartas pode ainda
revelar outras descobertas interessantes.
De modo geral, no texto de Mário de Andrade, os papéis se inverteram,
pois não é o civilizado que relata o que viu em regiões recentemente encon-
tradas ao soberano de seu país. Agora é o imperador indígena colonizado, no
papel de descobridor, que descreve a terra colonizadora recém-conhecida e
informa seus súditos índios e colonizados sobre o modo de vida dos civiliza-
dos. Como se vê, há uma inversão total de papéis, uma carnavalização (no
carnaval, os papéis se invertem, o pobre pode ser rei e o rico pode se fantasiar
de mendigo), muito característica da intenção paródica na época.

Tarefas
Tarefa 1
Um desafio: reconstituir o enredo central do livro (entregue seu texto ao
monitor).

Tarefa 2
O Uraricoera existe realmente: é um rio da Amazônia, que hoje já se en-
contra quase inteiramente poluído. Nesse sentido, parece profético o livro de
Mário de Andrade. Por quê?

Tarefa 3
Anotações do autor para prefácio (não publicadas na época):

Evidentemente não tenho a pretensão de que meu livro sirva pra estudos cientí-
ficos de folclore. Fantasiei quando queria e sobretudo quando carecia pra que a
invenção permanecesse arte e não documentação seca de estudo. Basta ver a ma-
cumba carioca desgeograficada com cuidado, com elementos dos candomblés
baianos e das pajelanças paraenses. Com elementos dos estados já publicados,
elementos colhidos por mim dum ogan carioca ‘bexiguento e fadista de profissão’
e dum conhecedor das pajelanças, construí o capítulo a que ainda ajuntei elemen-
tos de fantasia pura. Os meus livros podem ser resultado dos meus estudos porém
ninguém não estude nos meus trabalhos de ficção, leva fubeca.


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Mário de Andrade disse sobre Memórias de um sargento de milícias disse


que, para escrever seu romance, Manuel Antonio de Almeida se baseou livre- Alegoria
mente em relatos de seu colega Antonio Cesar Ramos, português que veio ao A alegoria é um proce-
Brasil para lutar na Guerra da Cisplatina, em 1817. Promovido a sargento de dimento metafórico que
milícias, gostava de conversar com o autor de Memórias de um sargento de diz uma coisa para sig-
milícias, que tomava notas de seus casos para usá-los no livro (ver p. 18 do nificar outra, mais pro-
Módulo 1). Que relações você pode estabelecer entre o procedimento adota- priamente usa imagens
do por Manuel Antonio de Almeida e aquele de Mário de Andrade (explicitado concretas para remeter
no trecho acima) para coletar o material do livro? a um conceito, a uma
idéia abstrata.
Tarefa 4 Muitas vezes a alegoria
Mário de Andrade considerava o episódio de Vei e suas duas filhas uma não é decodificada, pois
das alegorias centrais do livro, representando a atração irresistível pelo euro- requer do interpretante
peu. O episódio está dividido em dois tempos: no cap. VII, Vei encontra Ma- que compartilhe dos
cunaíma tremendo de frio numa ilha deserta e o recolhe, deixando-o a cargo mesmos códigos pecu-
das duas filhas. Macunaíma promete, depois de posto a salvo, casar-se com liares ao autor para a
identificação da conota-
uma das moças, mas sempre ignora a promessa; no cap. XVII, quando, já
ção alegórica. Esta é a di-
doente, volta ao Uraricoera, Vei vinga-se disfarçando a Uiara, dando a ela os
ficuldade de leitura de
traços portugueses de D. Sancha, já que sabe das preferências de Macunaíma uma obra como Macu-
(o herói experimenta o que podemos chamar de uma “atração fatal”). naíma para o leitor con-
Tendo em vista esses comentários (ver a explicação sobre alegoria na mar- temporâneo, principal-
gem), que outras alegorias você pode observar no romance? mente o jovem, que já
está distante do univer-
Tarefa 5 so cultural do autor.

A paródia foi um procedimento comum aos escritores modernistas. Com a Como sabemos, o prazer
ajuda de seu monitor, procure entender o porquê desse procedimento. Note da leitura de uma obra
que entender a razão da paródia é, de certo modo, entender o comportamento vem não só da história
estético e ideológico dos nossos grandes escritores do período, Mário e Oswald que conta, mas também
do como conta, o que
de Andrade.
está ligado a todo um
arsenal lingüístico e li-
terário que o autor mo-
Para relacionar biliza. E isso está presen-
te em quase todas as
Filme produções culturais. Por
MACUNAÍMA, de Joaquim Pedro de exemplo, no filme infan-
til Aladim, de Walt Disney,
Andrade (Brasil, 1969).
há pelo menos dois ti-
Exposição pos de espectadores vi-
“Na terra de Macunaíma” – de 31/8 sados: o público infantil,
a 17/10, de terça a sexta, das 13h às que se delicia com o en-
redo de aventuras, e um
21h30, sábado e domingo das 9h30 às
público mais velho, ca-
18h – SESC Araraquara, r. Castro Alves,
paz de reconhecer as re-
1315, Araraquara, SP (tel. 0/xx/3301- ferências culturais ali
7500). presentes.
Araraquara, no interior paulista, é a
cidade natal de Macunaíma. Foi ali, num
sítio de um primo, que Mário escreveu o
livro. A mostra reúne documentos da his-
tória dessa nascimento.


Unidade 2

Fernando Pessoa
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende 1 2 3
Elaborador
Silvio Pereira da
Silva

1. Fernando Pessoa com dez anos de idade 2. Fernando Pessoa aos vinte anos de idade 3.
Fernando Pessoa nas ruas da Baixa lisboeta.

4 5

4 Na época da Revista Orpheu. 5 Última fotografia

Fonte: Livro “Fernando Pessoa na Intimidade”, de Isabel Murteira França. Publicações Dom
Quixote, Lisboa 1987.
 

Biografia A sociabilidade
literária
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em
Os bares, cafés, restau-
Lisboa, em 13 de junho de 1888, perdeu o pai aos rantes, as livrarias, salões,
cinco anos de idade. Em 1896, em virtude do se- em uma época não mui-
gundo casamento da mãe, a família se transferiu to distante, eram espaços
para Durban, na África do Sul. Lá, freqüentou vári- de intensa vida artística
as escolas, recebendo uma educação inglesa. Cedo – a “boêmia” – tão decan-
revelou seu pendor para a literatura, adquiriu o gosto tada entre os artistas. No
pela poesia lendo Milton, Byron, Shelley, Edgar modernismo ela passa a
Allan Poe e outros poetas de língua inglesa. se entranhar até como
tema ou motivo nas
Em 1905, Fernando Pessoa deixou a família em Durban e regressou a obras.
Portugal, fixando-se em Lisboa, onde iniciou uma intensa atividade literária.
O crítico literário Davi
Matriculou-se no Curso Superior de Letras, mas logo o abandonou. Foi nessa
Arrigucci, em importan-
época que entrou em contato com escritores de língua portuguesa, ficando
te estudo sobre Manuel
fascinado com a obra de alguns autores, por exemplo, os sermões do Padre Bandeira, afirma que “os
Antônio Vieira (1608-1697) e, particularmente, com a obra de Cesário Verde focos de interesse dos
(1855-1886). Em 1908, começou a trabalhar como tradutor de cartas comer- modernistas se multipli-
ciais para empresas estrangeiras. Com esse emprego modesto, sustentou-se cam, confirmando a ten-
durante toda a vida. dência de todos para
partilharem uma curiosi-
Costumava encontrar-se com os amigos em cafés, especialmente o “Brasi-
dade mental que parece
leira do Chiado”, para discutir literatura. Em 1912, conhece o poeta Mário de não se deter diante das
Sá-Carneiro (1890 - 1916), de quem se tornaria grande amigo. Com ele, Almada barreiras de classe, de
Negreiros e outros, esforça-se por renovar a literatura portuguesa através da raça ou de região, como
criação da revista Orpheu, fundada em 1915, veículo de novas idéias e novas se cada qual desejasse
estéticas. Nesse período, criou vários heterônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de ultrapassar seus própri-
Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares etc. Em 1920, conhece Ophélia os limites individuais.
Queiroz, com quem mantém um namoro, registrado em cartas trocadas por Essa espécie de cresci-
eles, que se encontram publicadas. mento coletivo e clara
expansão do espírito crí-
Morreu em 30 de novembro de 1935, de cirrose hepática, deixando gran- tico e criador tem como
de parte da sua obra ainda inédita. Fernando Pessoa nunca teve, em vida, o um dos seus correlatos,
reconhecimento que merecia. Viveu modestamente, em relativa obscuridade. no plano espacial, a co-
municação ou continui-
dade entre o espaço ín-
A criação dos heterônimos por timo do escritor – sua
casa, seu quarto, seu lo-

Fernando Pessoa cal de trabalho – e luga-


res de sociabilidade am-
pla. A rua se torna verda-
"Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma." deiramente (como que-
A produção literária de Fernando Pessoa apresenta uma particularidade ria André Breton) o lugar
muito intrigante: o fenômeno da heteronímia. da experiência válida,
mas com ela se comuni-
É importante não confundir pseudônimo e heterônimo - o primeiro é um ca a intimidade do quar-
falso nome, criado e utilizado por alguém, permitindo que se oculte o verda- to.” (p. 61)
deiro nome da pessoa; já heterônimo é um outro nome criado pela pessoa,
que, desse modo, pode manter, além da sua, outras identidades. O próprio
Fernando Pessoa alertou sobre as distinções existentes entre ele e os outros
poetas que criou - diferença nas idéias, nos sentimentos, na técnica de compo-
sição, no estilo. Os heterônimos nasceram, segundo o poeta, de sua tentativa
de representar a multifacetada vida portuguesa e de expor as várias personali-
dades vividas em seu mundo interior: "Sinto-me múltiplo. Sou como um quar-




to com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas." Ler e
estudar Fernando Pessoa pressupõe mergulhar nesse labirinto de espelhos.
O trecho abaixo foi retirado de uma carta enviada por Fernando Pessoa a
seu amigo e crítico literário Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de janeiro
de 1935. Nela, o poeta explica a origem dos heterônimos e as características
de cada um.

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à idéia escrever
uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo
de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa
que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-
Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho,
já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar
o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de março
de 1914 - acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escre-
ver, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio,
numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da
minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, "O guardador de
Rebanhos". E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei
desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera
em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que,
escritos que foram esses trinta poemas, imediatamente peguei noutro papel e escre-
vi, a fio, também, os seis poemas que constituem a "Chuva Oblíqua", de Fernando
Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto
Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra
a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e
subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo
Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o
"via". E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosa-
mente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem
emenda, surgiu a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o
homem com o nome que tem. Criei, então, uma "coterie" inexistente. Fixei aquilo
tudo em moldes de realidade. Guardei as influências, conheci as amizades, ouvi,
dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece
que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou
independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu
puder publicar a discussão entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles
são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

Os estudiosos de várias áreas, não só da literatura, seguem refletindo por


que Pessoa teria criado seus heterônimos. O que nos fica, depois da leitura da
carta e de outras explicações fornecidas por Fernando Pessoa, é que ele os
criou por razões poéticas e não por razões lógicas. Afinal, cada um deles
apresenta um modo particular de ver a realidade e traduzi-la poeticamente.
Foi, talvez, a maneira encontrada pelo poeta para melhor exercer a
multiplicidade de seu talento criador, que não cabia em um único ser, um só
"Pessoa". Desse modo ele pôde ser, ao mesmo tempo, clássico e moderno,
espiritualista e materialista, um revolucionário e um nacionalista místico, en-
tre outros aspectos. (Tarefas 1 e 2)


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Os Heterônimos Perfeitos
ALBERTO CAEIRO
Fernando Pessoa criou uma biografia para cada um de seus heterônimos.
Assim apresenta a vida de Alberto Caeiro:
"Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profis-
são, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e
a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com
uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso."
A vida para Caeiro reduz-se ao "puro sentir'', sendo o sentido da "visão" o
mais relevante de todos, por ser este o que nos coloca em relação mais próxi-
ma e integral com o mundo objetivo.
"O guardador de rebanhos" é constituído de 35 poemas, numerados com
algarismos romanos; neles, Alberto Caeiro nos expõe sua postura em relação
à realidade que o cerca, seu contato com a natureza e o mundo. Seu conheci-
mento é fruto de suas sensações.

I - Eu Nunca Guardei Rebanhos


Eu nunca guardei rebanhos, Pensar incomoda como andar à chuva
Mas é como se os guardasse. Quando o vento cresce e parece que chove mais.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol Não tenho ambições nem desejos
E anda pela mão das Estações Ser poeta não é uma ambição minha
A seguir e a olhar. É a minha maneira de estar sozinho.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado. E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
Mas eu fico triste como um pôr de sol (Ou ser o rebanho todo
Para a nossa imaginação, Para andar espalhado por toda a encosta
Quando esfria no fundo da planície A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
E se sente a noite entrada É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Como uma borboleta pela janela. Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
Mas a minha tristeza é sossego E corre um silêncio pela erva fora.
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma Quando me sento a escrever versos
Quando já pensa que existe Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
Como um ruído de chocalhos E vejo um recorte de mim
Para além da curva da estrada, No cimo dum outeiro,
Os meus pensamentos são contentes. Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Só tenho pena de saber que eles são contentes, Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
Porque, se o não soubesse, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que
Em vez de serem contentes e tristes, se diz
Seriam alegres e contentes. E quer fingir que compreende.


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Saúdo todos os que me lerem, Onde se sentem, lendo os meus versos.


Tirando-lhes o chapéu largo E ao lerem os meus versos pensem
Quando me vêem à minha porta Que sou qualquer cousa natural -
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Por exemplo, a árvore antiga
Saúdo-os e desejo-lhes sol, À sombra da qual quando crianças
E chuva, quando a chuva é precisa, Se sentavam com um baque, cansados de
E que as suas casas tenham brincar,
Ao pé duma janela aberta E limpavam o suor da testa quente
Uma cadeira predileta Com a manga do bibe riscado.

Esse poema inicia-se com uma aparente contradição, pois o eu-lírico afir-
ma ser um guardador de rebanhos sem nunca tê-lo sido efetivamente. No
entanto, isso acontece em sua imaginação, ou seja, ele finge ser um pastor
para expor mais detalhadamente sua visão de mundo. Apregoa que, para ser
natural, deve-se deixar o pensamento de lado: pensar seria um incomodo des-
necessário. Assim, cria um texto livre de tudo que poderia ser complexo, difí-
cil, optando por uma linguagem objetiva, quase sem metáforas.

IX - Sou um Guardador de Rebanhos


Sou um guardador de rebanhos. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
O rebanho é os meus pensamentos E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
E os meus pensamentos são todos sensações. Por isso quando num dia de calor
Penso com os olhos e com os ouvidos Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E com as mãos e os pés E me deito ao comprido na erva,
E com o nariz e a boca. E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.

Para o poeta, a natureza nos chega por meio das sensações, e não deve-
mos ficar buscando significados ocultos. A felicidade está em deixar de lado
todos os pensamentos reflexivos, racionalizados, e voltar para o encontro di-
reto com o mundo natural. (Tarefa 3)

ÁLVARO DE CAMPOS
"...nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (...); é engenheiro naval (por
Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade (... ); é alto (um metro e
setenta e cinco centímetros de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um
pouco tendente a curvar-se. Cara raspada (...); entre branco e moreno, tipo vagamen-
te de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo
teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar
engenharia, primeiro mecânica e depois naval." (Fernando Pessoa, trecho da carta)

Campos é o mais versátil heterônimo de Fernando Pessoa. É o poeta da


negação. É o futurista da exaltação da energia, e da força da civilização mecâ-
nica do futuro, das fábricas, da velocidade Um homem do século XX. Aquele
que pretende “sentir tudo de todas as maneiras”, ultrapassando a fragmen-
taridade.


 

Seus poemas são fortes, marcados pela oralidade e pela prolixidade que se
espalha em versos longos e livres, próximos da prosa, seguindo o ritmo das
alterações emocionais do poeta, muitas vezes em um tom amargurado, com
traços de pessimismo e desilusão. Para ele, a construção poética deveria for-
çar os outros a sentir o que ele sentiu.

Ode triunfal [fragmento]

À dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica


Tenho febre e escrevo
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r eterno!


Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
(...)
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –


Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro.
(...)

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!


Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último modelo!
(...)
Notícias desmentidas dos jornais,
Artigos políticos insinceramente sinceros,
Notícias passez à-la-caisse, grandes crimes –
Duas colunas deles passando para a segunda página!
O cheiro fresco a tinta de tipografia!
Os cartazes postos há pouco, molhados!
Vients-de.-paraitre amarelos com uma cinta branca!
Como eu vos amo a todos, a todos, a todos,
Como eu vos amo de todas as maneiras,
Com os olhos e com os ouvidos e com o olfato
E com o tato (o que palpar-vos representa para mim!)
E com a inteligência como uma antena que fazeis vibrar!
Ah, como todos os meus sentidos têm cio de vós!
Adubos, debulhadoras a vapor, progressos da agricultura!


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Química agrícola, e o comércio quase uma ciência!


Ó mostruários dos caixeiros-viajantes,
Dos caixeiros-viajantes, cavaleiros-andantes da Indústria,
Prolongamentos humanos das fábricas e dos calmos escritórios!
(...)
Ó automóveis apinhados de pândegos e de putas,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anônimo e onde eu me posso banhar como quereria!
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto

E os gestos que faz quando ninguém pode ver!


Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Ó raiva que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!
(...)

Álvaro de Campos faz uma ode (poesia criada pelos gregos para celebrar
um acontecimento grandioso e elevado), para exaltar a modernidade, o mo-
mento presente, representado pelas grandes invenções mecânicas do século
XX, não obstante também se referir às condições difíceis de vida nesse con-
texto. Ao contrário de Caeiro, que escreve inspirado no ambiente natural,
Campos se inspira no barulho das engrenagens, na energia elétrica, na movi-
mentação das cidades. (Tarefas 4 e 5)

Tabacaria [fragmento]

Não sou nada.


Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,


Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
(cont.)


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Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.


Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.


Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
(...)

Fiz de mim o que não soube


E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

(..)
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Nesse poema, o poeta demonstra toda a sua angústia quanto à realidade


cotidiana; no entanto, ainda sonha. Álvaro Campos expressa a angústia do
homem moderno, que não encontra mais ponto de apoio para suas inquieta-
ções, o que o leva ao desespero. Para ele, tudo parece perdido e nada pode ter
valido a pena, há uma visão de inutilidade. Observe-se o contraste da visão
deste heterônimo, com seu comportamento metafísico, daquele de Alberto
Caeiro. (Tarefa 6)


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RICARDO REIS
Ricardo Reis é assim apresentado:

“...nasceu em 1887 (...) no Porto. Educado em colégio de jesuítas, é médico e


vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monárquico.
É latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria.”

De formação clássica, Reis é o heterônimo que retoma o pensamento e a


prática estético-poética da Antiguidade Greco-Latina. Leitor de Horácio, poe-
ta latino do século I a.C., é o autor de odes, na sua maioria curtas, inspiradas
na temática e no aspecto formal da poesia horaciana.
1
Modo de pensar de Ricardo Reis segue Alberto Caeiro no amor da vida rústica, junto da natu-
Epicuro (341 – 270 a.C.), reza. Mas, enquanto Caeiro é um homem simples, franco e alegre, Reis sofre
filosofo grego, que pre- com a transitoriedade da vida e a dureza do Destino. Dedica-se a produzir
gava uma filosofia do uma poesia reflexiva, tendo por base o que chama de “pensamento elevado”,
prazer e da renúncia; ou seja, o pensamento equilibrado, em que a emoção está sujeita ao controle
para se enfrentar a dor e da razão. Os temas poéticos se referem às inquietações humanas: o sentido da
o sofrimento, o homem vida, a virtude, o tempo, a morte, a alegria, a dor etc. E tudo isto aliado às
deveria satisfazer os de-
reflexões filosóficas de caráter estóico-epicurista1 . O seu estilo é bem traba-
sejos necessários, fugin-
lhado, usa de versos e estrofes regulares e um português erudito no vocabulá-
do aos excessos.
rio e na sintaxe.

Texto I

A palidez do dia é levemente dourada. O sol que havia sobre o Partenón1 e a Acrópole2
O sol de inverno faz luzir como o orvalho as curvas O que alumiava os passos lentos e graves
Dos troncos de ramos secos. De Aristóteles falando.
O frio leve treme. Mas Epicuro melhor

Desterrado da pátria antiqüíssima da minha Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Crença, consolado só por pensar nos deuses, Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Aqueço-me trêmulo Sereno e vendo a vida
A outro sol do que este. À distância a que está.

Texto II

Para ser grande, sê inteiro: nada


Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Esses dois poemas são bons exemplos da poesia de Ricardo Reis. No pri-
2
Templo grego a Palas meiro, o eu-lírico nos apresenta elementos fundamentais de sua produção
Atenas, deusa da sabe- poética: a presença de elementos da cultura pagã, através da referência aos
doria. deuses gregos, e sua admiração pelo pensamento filosófico de Epicuro. No
3 segundo, é em tom grave que o eu-lírico se dirige ao leitor, ensinando um
Santuário erguido no
ponto mais alta da Grécia.
modo correto de comportamento, que possa elevar o ser, torná-lo espiritual-
mente superior.


 

FERNANDO PESSOA ORTÔNIMO 4


É apresentado o mito
A obra assinada por Fernando Pessoa “ele-mesmo” pode ser dividida em sebastianista, construído
poesia de fundo saudosita-nacionalista e poesia lírica. A primeira está presen- em torno da figura de
te em Mensagem, e a segunda está reunida nos volumes Cancioneiro e Qua- Dom Sebastião, rei de
dras ao gosto popular. Portugal, desaparecido
em ataque aos mouros,
Mensagem veio a público em 1934, foi a única obra escrita em língua em 1578. Pessoa resgata
portuguesa publicada por Fernando Pessoa. O livro divide-se em três partes: previsões, como a do
Brasão, Mar português e O Encoberto. Os poemas do livro aproximam-se de padre Antônio Vieira, so-
uma forma épica fragmentária, em que o conjunto dos textos líricos forma um bre o retorno de Dom
só poema sobre Portugal. Traçando a história do seu país, Pessoa envereda por Sebastião para estabele-
um nacionalismo místico de caráter sebastianista4 , retomando a história da cer o poderio de Portu-
formação de Portugal, no período das grandes navegações, durante os séculos gal, criando o Quinto Im-
XV e XVI. pério.

I. O INFANTE
INFANTE E, no desembarcar, há aves, flores,
Deus quere, o homem sonha, a obra nasce. Onde era só, de longe a abstrata linha
Deus quis que a terra fosse toda uma, O sonho é ver as formas invisíveis
Que o mar unisse, já não separasse. Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, Movimentos da esp’rança e da vontade,
E a orla branca foi de ilha em continente, Buscar na linha fria do horizonte
Clareou, correndo, até ao fim do mundo, A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
E viu-se a terra inteira, de repente, Os beijos merecidos da Verdade.
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português. III. PADRÃO
PADRÃO
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
II. HORIZONTE A alma é divina e a obra é imperfeita.
Ó mar anterior a nós, teus medos Este padrão sinala ao vento e aos céus
Tinham coral e praias e arvoredos. Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
Desvendadas a noite e a cerração, O porfazer é só com Deus.
As tormentas passadas e o mistério, E ao imenso e possível oceano
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
’Splendia sobre as naus da iniciação. Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
Linha severa da longínqua costa— E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta E faz a febre em mim de navegar
Em árvores onde o Longe nada tinha; Só encontrará de Deus na eterna calma
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: O porto sempre por achar.

A poesia lírica, reunida nos livros Cancioneiro e Quadras ao gosto popu-


lar, apresenta a retomada de alguns temas, ritmos e formas do lirismo tradici-
onal português. Há poesias de caráter metalingüístico, pois constituem uma
reflexão sobre a própria arte poética e o papel do artista, ao lado de poemas
que sondam o “eu-profundo”.


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Autopsicografia Atravessa esta paisagem o meu sonho

O poeta é um fingidor. Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Finge tão completamente
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Que chega a fingir que é dor Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
A dor que deveras sente.
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
E os que lêem o que escreve, Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
Na dor lida sentem bem, E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Não as duas que ele teve, Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
Mas só a que eles não têm. O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
E assim nas calhas de roda Com uma horizontalidade vertical,
Gira, a entreter a razão, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Esse comboio de corda Não sei quem me sonho...
Que se chama coração. Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...

Tarefas
Tarefa 1
O que você entendeu por heterônimos? Qual a importância desse fenôme-
no para a compreensão da obra do escritor? Escreva um texto, como se fosse
um trecho de diário, expondo uma outra faceta de personalidade que você
gostaria de possuir.

Tarefa 2
Uma das grandes questões do Modernismo é a difícil busca da unidade –
a fragmentação, a descontinuidade são marcas da produção artística do perío-
do. Essa busca de unidade se mostra tanto no plano do conteúdo quanto da
forma, vindo inevitavelmente acompanhada de conflito e angústia. A poesia
de Pessoa é indicadora disso. Com a ajuda do monitor, reflita sobre essa carac-
terística nas obras que você tem lido até agora.

Tarefa 3
Caeiro é apresentado como um homem de visão instintiva, guiado pelas
sensações, principalmente visuais. Declara-se contra a interpretação do real
pela inteligência, pois, ao seu modo de ver, essa interpretação reduz as coisas
a simples conceitos. No entanto, em seus poemas há certa contradição, pois,
apesar de se referir aos elementos naturais, ele está refletindo o tempo todo.
Que conclusão se pode tirar desse fato?

Tarefa 4
Leia o fragmento do poema “Ode triunfal” e procure verificar como Álva-
ro de Campos apresentou a relação do homem com o mundo moderno e


 

tecnicista; observe como o poeta cria uma oposição entre o mundo natural e o
mecanizado. Procure identificar os mecanismos retóricos de sua poesia. Dis-
cuta com os colegas e com o monitor sobre essa questão.

Tarefa 5
A “Ode triunfal” de Álvaro de Campos apresenta alguns pontos de conta-
to com os Manifestos Futuristas, escritos por Filippo Tommaso Marinetti. Leia
os trechos dos manifestos e depois procure verificar o que pode ser relaciona-
do ao poema.

Manifesto Futurista ( fragmento)


Documento publicado em “Lo Figaro” em 20 de fevereiro de 1909.

1. Queremos cantar o amor do perigo, o hábito à energia e à temeridade.


2. Os elementos essenciais da nossa poesia serão a coragem, a audácia, a rebelião.
3. Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o
movimento agressivo, a insônia febril, o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco.
4. Nos declaramos que o esplendor do mundo se enriqueceu de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um carro
de corrida com seu cofre adornado de grossos tubos como serpentes de fôlego explosivo… um automóvel rugidor
que parece correr sobre a metralha, é mais belo do que a Vitória de Samotrácia.
(...)
11. Nós cantaremos as grandes multidões movimentadas pelo trabalho, pelo prazer ou pela revolta; as mares
multicoloridas e polifônicas da revoluções nas capitais modernas; a vibração noturna dos arsenais e dos estaleiros
sob suas violentas luas elétricas; as estações glutonas comedoras de serpentes que fumam; as usinas suspensas nas
nuvens pelos barbantes de suas fumaças; as pontes para pulos de ginastas lançadas sobre a cutelaria diabólica dos
rios ensolarados; os navios aventureiros farejando o horizonte; as locomotivas de grande peito, que escoucinham os
trilhos, como grandes cavalos de aço freados por longos tubos, e o vôo deslizante dos aeroplanos cuja hélice tem
os estalos da bandeira e os aplausos da multidão entusiasta.

Manifesto técnico da literatura Futurista (Fragmento)


Pala
Lançado em Milão, em 11 de maio de 1912, também conhecido como “P vr
alavr as em Lib
vras er
Liber dade
erdade
dade”

· é preciso destruir a sintaxe, dispondo os substantivos ao acaso, como nascem;


· deve-se usar o verbo no infinitivo, para que se adapte elasticamente ao substantivo e não o submeta ao eu do
escritor, que observa ou imagina. O verbo no infinitivo pode, sozinho, dar o sentido da continuidade da vida e a
elasticidade da intuição que a percebe;
· deve-se abolir o adjetivo para que o substantivo desnudo conserve a sua cor essencial. O adjetivo, tendo em si um
caráter de esbatimento, é incompatível com a nossa visão dinâmica, uma vez que supõe uma parada, uma
meditação;
· Deve-se abolir o advérbio, velha fivela que une as palavras umas às outras. O advérbio conserva a frase numa
fastidiosa unidade de tom.

In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e O Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1986.

Tarefa 6
Tendo por base os textos aqui apresentados, procure fazer uma compara-
ção entre o estilo de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, observando como os
dois se posicionam diante da realidade e trabalham com as sensações.

Tarefa 7
Se é possível afirmar que Alberto Caeiro “pensa” com os sentidos, que
Álvaro de Campos “pensa” com a emoção e que Ricardo Reis “pensa” com a
razão, podemos dizer que Fernando Pessoa “ele-mesmo” “pensa” com a ima-




ginação. As leituras que fez até o momento confirmam ou refutam essa afir-
mação? Discuta com os colegas e depois crie um pequeno texto com sua
resposta e entregue ao monitor.

Tarefa 8
Fala do Velho do Restelo ao astronauta

Aqui, na Terra, a fome continua, No jornal soletramos, de olhos tensos,


A miséria, o luto e outra vez a fome. Maravilhas de espaço e de vertigem:
Acendemos cigarros em fogos de napalme Salgados oceanos que circundam
E dizemos amor sem saber o que seja. Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Ou talvez da pobreza, e da fome outra vez, (E as bombas de napalme são brinquedos),
E pusemos em ti nem eu sei que desejo Onde come, brincando, só a fome,
De mais alto que nós, e melhor, e mais puro. Só a fome, astronauta, só a fome.

José Saramago

Nesse poema, podemos encontrar algumas referências ao desejo humano


de buscar novos espaços, aliado a uma crítica à situação vivida na terra. Há
também, no texto, uma referência explícita a um trecho da obra de Camões,
Os Lusíadas. Converse com o monitor e com os colegas sobre esses aspectos.
Como exercício de escrita, imagine você encontrando um ser de outro plane-
ta. Como descreveria a ele o lugar onde mora (pode ser seu bairro, sua cidade,
seu país)? Para o texto não ficar muito vago, escolha um ângulo dessa realida-
de para ser descrito: cultural, social, geográfico etc.

Para ouvir
. CD Mensagem, Gravadora Eldorado, remasterizador em 1996. (Alguns
poemas do livro Mensagem foram musicados por André Luiz Oliveira e Zeba
D’Al Farra, e são interpretados por cantores brasileiros e portugueses)
. CD Fernando Pessoa, por Paulo Autran, “Coleção poesia falada”.


Unidade 3

Literatura de Viagem
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradora
Já existia no século XV, na Europa, uma tradição de cronistas profissio-
nais que escreviam as histórias dos reis. Quando as nações da Península Ibéri- Gabriela Rodella
ca partiram para a expansão marítima, seguiram, junto com os marinheiros,
escrivães encarregados de narrar tudo o que aconteceria na viagem e nos
entrepostos. Ainda hoje, esses diários ou relatos (“relação”) de bordo são con-
tinuamente reeditados e constituem leitura fascinante, pois a realidade era in-
terpretada muitas vezes à luz do imaginário europeu sobre os povos desco-
nhecidos, que continha muito de fantástico.
Um desses escrivães foi Pero Vaz de Caminha, que veio ao Brasil em 1500,
acompanhando a esquadra de Pedro Álvares Cabral. É dele o documento – a
Carta, endereçada ao rei de Portugal – que narra o primeiro contato entre os
portugueses e os índios que habitavam o nosso país naquela época.
O tema da natureza abundante e a identidade que Caminha constrói para
os índios com sua visão portuguesa serão depois revisitados por vários escri-
tores brasileiros, seja para reafirmá-los como componentes da identidade na-
cional (como no caso dos românticos nacionalistas em busca da afirmação da
literatura brasileira), ou para ironizá-los (caso dos modernistas). O fato é que
a Carta estará sempre presente em nosso imaginário coletivo.

E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que
ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de
maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos
nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau
Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde
deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa.
Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava
na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas
de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de
papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que
querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza.
E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por
causa do mar.
(…)
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A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons


narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de
encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso
são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um
osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de
algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do
beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de
xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo
no falar, nem no comer e beber.
(…)
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e
folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em
volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar do
Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejarmos! Mas se ele queria
dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamos nós entender, por que
lho não havíamos de dar! E depois tornou as contas a quem lhas dera. E então
estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem procurarem maneiras de encobrir
suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapa-
das e feitas.

Outro texto que fala do nosso país para os portugueses é o Tratado da


Terra do Brasil (depois reeditado com o nome de História da Província de
Santa Cruz), de Pero de Magalhães de Gândavo. Esse português, homem cul-
to, humanista, amigo de Camões (que, aliás, é o autor da elegia que antecede
a tal História da Província de Santa Cruz), esteve por aqui entre os anos de
1565 e 1570. Seu texto tinha por objetivo convencer portugueses a se torna-
rem colonos. Para isso, ele exaltou a abundância das terras brasileiras, falou
dos rios caudalosos, da diversidade dos peixes, das plantas, das frutas, das
caças, enfim, de tudo o que pudesse seduzir e atrair seus compatriotas a viaja-
rem para a colônia. Mas encontramos em seu texto também, além das descri-
ções sobre a terra, algumas aventuras fantásticas, certamente anotadas por ele
a partir de conversas com colonos brasileiros. Veja um trecho do livro História
da Província de Santa Cruz, intitulado “Do monstro marinho que se matou na
Capitania de São Vicente, ano de 1564”.

Foi causa tam nova e tam desusada aos olhos humanos a semelhança daquele
fero e espantoso monstro marinho que nesta Provincia se matou no anno de 1564,
que ainda que per muitas partes do mundo se tenha noticia delle, nam deixarei
todavia de a dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que ácerca
disto passou; porque na verdade a maior parte dos retratos ou quasi todos em que
querem mostrar a semelhança de seu horrendo aspecto, andam errados, e alem
disso, conta-se o sucesso de sua morte por differentes maneiras, sendo a verdade
huma só a qual he a seguinte: Na Capitania de Sam Vicente sendo já alta noite a
horas em que todos começavam de se entregar ao sono, acertou de sair fóra de casa
huma India escrava do capitão; a qual lançando os olhos a huma varzea que está
pegada com o mar, e com a povoaçam da mesma Capitania, vio andar nella este
monstro, movendo-se de huma parte para outra com passos e meneos desusados, e
dando alguns urros de quando em quando tam feios, que como pasmada e quasi fora
de si se veio ao filho do mesmo capitão, cujo nome era Baltezar Ferreira, e lhe deu


 

conta do que vira parecendo-lhe que era alguma visão diabolica; mas como elle
fosse nam menos sizudo que esforçado, e esta gente da terra seja digna de pouco
credito nam lho deu logo muito às suas paiavras, e deixando-se estar na cama, a
tornou outra vez a mandar fora dizendo-lhe que se afirmasse bem no que era. E
obedecendo a India a seu mandado, foi; e tornou mais espantada; afirmando-lhe e
repetindo-lhe huma vez e outra que andava ali huma cousa tam feia, que nam podia
ser se nam o demonio.
Então se levantou elle muito depressa e lançou mão a huma espada que tinha
junto de si com a qual botou somente em camisa pela porta fora, tendo pera si
(quando muito) que seria algum tigre ou outro animal da terra conhecido com a
vista do qual se desenganasse do que a India lhe queria persuadir, e pondo os olhos
naquella parte que ella lhe assignalou vio confusamente o vulto do monstro ao
longo da praia, sem poder divisar o que era, por causa da noite lho impedir, e o
monstro tambem ser cousa não vista e fora do parecer de todos os outros animaes. E
chegando-se hum pouco mais a elle, pera que melhor se podesse ajudar da vista, foi
sentido do mesmo monstro: o qual em levantando a cabeça, tanto que o vio come-
çou de caminhar para o mar donde viera.

Esses tipos de relatos que misturavam o fantástico e o verdadeiro, soma-


dos à vasta iconografia de diversos tipos de monstros que ilustravam a carto-
grafia da época, foram responsáveis pela formação do imaginário europeu
acerca do Novo Mundo. Aventuras mirabolantes com personagens fabulosos
circulavam por toda a Europa. Poucos eram os que viajavam para as novas
terras descobertas e vivenciavam realmente a nova vastidão do mundo. Mui-
tos eram os que liam e ouviam histórias e imaginavam o que havia além mar.
Outro estrangeiro que efetivamente viajou ao Novo Mundo para conhecê-
lo, cujo relato das experiências ficou famoso na Europa, foi o alemão Hans
Staden. Ele veio ao Brasil porque queria ver de perto tudo o que escutara nas
narrativas sobre o Novo Mundo. Em sua primeira viagem, visitou Pernambuco.
Na segunda, porém, seu navio naufragou no litoral fluminense e ele teve de se
arranjar com os portugueses. Trabalhando para eles no Forte de Bertioga, foi
capturado por índios tupinambás e esteve prestes a ser devorado num ritual
antropofágico. Conseguiu voltar à Alemanha e escreveu o livro chamado Duas
viagens ao Brasil, publicado em 1557, no qual narrou sua experiência como
prisioneiro dos índios brasileiros.
Nessa época, as narrativas de viagem estavam desacreditadas na Europa.
Tantos eram os relatos de seres mirabolantes e fantásticos que Rabelais, famo-
so escritor satírico francês, ironizando esse tipo de literatura, criou um perso-
nagem em seu livro Gargantua e Pantagruel, que se chamava “Ouvi-dizer”.
Preocupado e com o objetivo de ser levado a sério, Hans Staden procurou não
fazer descrições fantásticas da fauna e flora brasileiras e se concentrou em sua
história pessoal. Veja no trecho a seguir o começo da narração de como os
tupinambás matavam e devoravam seus inimigos:

Solenidades dos selvagens por ocasião da matança e devoramento dos seus


inimigos. Como executam estes e como os tratam.
Quando trazem para casa um inimigo, batem-lhe as mulheres e as crianças pri-
meiro. A seguir colam-lhe ao corpo penas cinzentas, raspam-lhe as sobrancelhas,
dançam-lhe em torno e amarram-no bem, a-fim-de que não lhes possa escapar. Dão-
lhe então uma mulher, que dele cuida, servindo-o também. Se tem dele um filho,
criam-no até grande, matam-no e o comem quando lhes vêm à cabeça.




Dão de comer bem ao prisioneiro. Conservam-no por algum tempo e então se


preparam. Para tanto fabricam muitas vasilhas, nas quais põem suas bebidas e quei-
mam também vasilhame especial para os ingredientes com que o pintam e enfeitam
Além disso fazem borlas de penas, que amarram ao tacape com que o matam. Fabri-
cam também uma longa corda, chamada mussurana. Com esta o amarram, antes de
executá-lo.
Assim que tudo está preparado, determinam o tempo em que deve morrer o
prisioneiro e convidam os selvagens de outras aldeias para que venham assistir.
Enchem então de bebidas toas as vasilhas. Um ou dois dias antes das mulheres
fabricarem as bebidas, conduzem o prisioneiro uma ou duas vezes ao pátio dentre as
cabanas e dançam-lhe em volta.

As aventuras fantásticas
e os relatos de viagem
Inspirados justamente por esse tipo de literatura, alguns autores europeus
do século XVIII escreveram aventuras que se tornaram famosas. Uma delas
foi Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. Publicado em 1719, o livro de Defoe
narra a história da sobrevivência de um náufrago na ilha deserta de Crusoé.
Sete anos mais tarde (1726), As Viagens de Gulliver foi publicado na Inglater-
ra. Nesse livro, Jonathan Swift aproveitou a estrutura do relato de viagem
para, através da narrativa das aventuras de Lemuel Gulliver, um náufrago,
fazer uma sátira mordaz da sociedade inglesa do século XVIII. Apesar de o
romance ser considerado hoje em dia literatura juvenil, ele causou escândalo
no ano de sua publicação e é, na verdade, um livro político. Nele, a ficção e o
fantástico são usados como meio para a crítica aos vícios, às injustiças, às
hipocrisias e à estrutura social da sociedade européia da época.
Narrado em primeira pessoa pelo personagem de Gulliver, a primeira aven-
tura do livro é a viagem às terras de Lilliput. Esse país, habitado por seres
minúsculos governados por um rei com leis cruéis e desumanas, serve de
parábola para a crítica feroz do autor à Inglaterra e a seus governantes. Seus
habitantes, por exemplo, têm desconfiança para com estrangeiros, caracterís-
tica típica dos ingleses. A dificuldade de Gulliver em entender a língua dos
lilliputianos era provavelmente uma crítica ao imperador Jorge I, alemão que
reinou na Inglaterra entre 1714 e 1727 e falava mal o inglês. A sátira às roupas
dos minúsculos nobres dessa terra fictícia era uma crítica ao sistema de honra-
rias que se traduzia na vestimenta dos ingleses ilustres da época. Vejamos
então um trecho do romance de Swift em que Gulliver começa a ter contato
com os costumes de Lilliput:

Um dia o imperador me convidou para assistir à Dança da Corda. Trata-se de uma


prova realizada sobre um fio de aproximadamente sessenta centímetros de compri-
mento, preso entre duas hastes a trinta centímetros do chão. Todos os candidatos a
postos importantes da corte têm de demonstrar sua agilidade nessa corda. O vence-
dor é aquele que saltar mais alto, sem cair. Vi dois ou três quebrarem a perna ou o
braço, e há registro de numerosos acidentes fatais. Eventualmente os ministros
também precisam passar por esse teste para provar que ainda são capazes de exercer


 

o cargo. Flimnap, o tesoureiro, consegue pular dois centímetros mais alto que qual-
quer pessoa, e uma vez o vi dar alguns saltos mortais.
Existe também um concurso chamado Pulo e Rastejo, no qual os candidatos a
favores especiais devem pular por cima de uma vara ou rastejar sob ela, conforme a
posição em que o imperador a segure. Faixas de seda são os prêmios: azul para quem
agüentar mais tempo, vermelha para o segundo colocado e verde para o terceiro.
Percebi que a maioria dos cortesãos mais prestigiados ostenta uma dessas cores.

Tarefas
Tarefa 1
Faça um levantamento dos adjetivos usados por Caminha para descrever
os índios. A partir dessa lista e da leitura do texto, descreva a imagem que
Caminha construiu do índio a partir desse primeiro contato.

Tarefa 2
A língua dos índios não era entendida pelos portugueses e vice-versa.
Assinale no texto o trecho em que Caminha descreve a maneira como foram
feitos os contatos entre os dois povos. O que o autor da Carta quis dizer com
a seguinte frase: “Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejar-
mos!”

Tarefa 3
Pouco depois de começada a colonização, a descrição da índia na cena
narrada por Pero de Magalhães de Gândavo já é bem diferente da de Caminha
em sua Carta. Como ela está caracterizada nesse último texto? A imagem do
indígena de Gândavo é parecida com a que temos do índio atualmente?
Já Hans Staden tem uma outra visão dos índios tupinambás, que não é
partilhada por nenhum dos outros dois autores anteriores. Qual a imagem que
pode ser construída a partir da leitura de seu texto?
Escreva uma dissertação sobre a imagem do indígena na sociedade brasi-
leira de hoje. Não se esqueça que a discussão proposta no exercício e feita em
classe deve orientá-lo para o tema, isto é, para um recorte do assunto em
pauta.

Tarefa 4
Durante a Idade Média, nobres e Igreja faziam alianças para que pudes-
sem governar. Casamentos entre famílias nobres e mesmo entre primos eram
comuns, pois contribuíam para que o poder não saísse de determinadas famí-
lias. A Igreja colaborava, indicando determinado regente como sendo o esco-
lhido de Deus para governar, o que significava um atestado para mandar e
desmandar. Evidentemente, os clérigos obtinham com isso enorme poder, do
qual também sabiam tirar grande proveito. A população ficava então submeti-
da aos desejos dessas duas classes.
A partir do século XVI, o poderio dos nobres e da Igreja passou a ser
levemente contestado. Os humanistas, por exemplo, acreditavam e professa-
vam que os governantes deveriam ser escolhidos em razão de sua capacidade
de governar e não apenas por serem filhos de reis. Os laços sanguíneos perdi-
am a importância; a capacidade e o saber entravam em foco. Paulatinamente,




também o livre arbítrio foi substituindo a coerção da razão ao Estado e à


Igreja.
Hoje em dia, aqui no Brasil, escolhemos nossos governantes democratica-
mente por votação direta. Leia o trecho de um artigo do psicanalista Contardo
Calligaris, publicado dia 05 de agosto de 2004, na Folha de S. Paulo:

Campanhas para eleitores reprimidos e narcisistas


As campanhas eleitorais são sempre um pouco humilhantes. O mais freqüente é
que elas apostem na idéia de que nós, eleitores, seríamos burros e mal-informados.
Mas podem também apostar na idéia de que seríamos reprimidos ou fundamental-
mente narcisistas. (...)No dia em que um candidato passar a nos tratar como gente
grande, acredito que ganhará votos, seja qual for seu plano.
Sonho que alguém apareça na tela e diga: “Salvo exceções que explicarei, meus
concorrentes são pessoas tão qualificadas e bem-intencionadas quanto eu. Temos
em comum a vontade de fazer o que nos parece melhor; é claro, dentro do possível,
que sempre é menor que o necessário. Somos todos, é óbvio, animados por uma
ambição descomunal; sem isso, não estaríamos aqui. Mas nosso gosto pelo poder é
corrigido pela vontade de servir o interesse público.
Agora, temos diferenças, sobre as quais, você, eleitor, deve se pronunciar.”
É raro que as diferenças sejam de fundo (ninguém, hoje, promove projetos revo-
lucionários). Quase sempre, são questões de prioridade (maneiras divergentes de
decidir o que é mais urgente) ou de meios (concepções conflitantes de como chegar
a resultados parecidos).
Pode ser que a propaganda eleitoral de meus sonhos nos mate de tédio, à força de
argumentações sensatas. Mas ela teria suas vantagens.

Pois bem, Jonathan Swift, no trecho citado neste módulo, satiriza o siste-
ma de escolha dos lilliputianos candidatos a cargos importantes no Império;
Contardo Calligaris acusa os candidatos de infantilizar a população nas cam-
panhas políticas. Discuta com seus colegas: qual é a crítica que Swift faz ao
sistema de escolha dos candidatos a cargos importantes? Há relações possí-
veis entre o texto de Swift e o de Calligaris? O que precisa saber e fazer um
candidato a um cargo político?
Redija um “Mandamento do bom político”, em dez pontos, ou seja, um
“Decálogo do bom político”, em que você pode usar muito sua criatividade.
Que tal enviá-lo depois a algum vereador de sua região ou a um deputado
(para isso, é preciso descobrir o endereço dos câmaras, podendo ser enviando
também pela Internet).

Para relacionar
Filmes
1. Hans Staden (Hans Staden, Brasil/Portugal, 1999). Direção: Luiz Alberto
Pereira
O filme conta a história de Hans Staden, viajante alemão que, em 1550,
naufragou no litoral de Santa Catarina, sul do Brasil. Dois anos mais tarde,
conseguiu chegar a São Vicente, reduto da colonização portuguesa. Ali ficou


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dois anos trabalhando como artilheiro do Forte de Bertioga. Já se preparava


para voltar à Europa, onde receberia o ouro e o reconhecimento de El-Rei de
Portugal, por seus serviços na Colônia. Em um dia de janeiro de 1554 saiu
para procurar seu escravo, índio carijó, que havia saído para pescar e não
havia retornado. Em uma canoa navegou por um rio próximo onde o escravo
costumava pescar. Em vez do carijó encontrou uma cruz fincada à beira do
rio. A cruz tinha uma simbologia que Staden conhecia: era o sinal para os
portugueses chamarem os tupiniquins, seus aliados. Assim, Staden atirou com
seu mosquetão para chamar os tupiniquins e obter notícias do seu escravo. Os
tupiniquins não apareceram. Porém, sete tupinambás, tribo inimiga dos portu-
gueses, o cercaram e aprisionaram, e ele foi levado para a Aldeia de Ubatuba,
onde seria devorado em um ritual antropofágico. A partir daquele momento
Staden começou a inventar uma forma de escapar com vida do seu cativeiro.
2. Mestre dos Mares – O Lado Mais Distante do Mundo (Master and
Comander: The Far Side of the World, 2003). Direção: Peter Weir
Durante as guerras napoleônicas, os ingleses enfrentam os franceses pelo
domínio das rotas comerciais das Américas. O navio inglês, o HMS Surprise,
é atacado de surpresa por um inimigo mais poderoso, a fragata francesa
Acheron. Com o HMS Surprise seriamente avariado e grande parte de sua
tripulação ferida, o capitão se lança numa perseguição altamente arriscada
por dois oceanos, a fim de interceptar e capturar seu inimigo. O filme singra
por meio mundo – começa no Oceano Atlântico, na costa do Brasil, passando
pelas águas tormentosas do Cabo Horn, através de gelo e neve, até o lado
mais distante do mundo e as praias remotas das Ilhas Galápagos, no Pacífico
(trata-se do primeiro filme em toda a história a ser rodado naquelas paragens).


Unidade 4

Camões
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradoras
Gabriela Rodella
Neide Luzia de
Rezende

Nem me falta na vida honesto estudo


com longa experiência misturado.
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.

Não há documentação segura sobre a vida do poeta português Luís Vaz de


Camões (1524/25 – c.1580); nem os anos de nascimento e morte se sabe ao
certo. O que persistem são histórias de uma vida tumultuada.
Nasceu numa família de poucos recursos, mas nobre, o que explica o
conhecimento dos clássicos gregos e latinos, dos romances de cavalaria e dos
poetas italianos de seu tempo (Dante, Ariosto e Petrarca), índice de uma cultu-
ra refinada. Viveu durante a juventude em Coimbra e Lisboa, trabalhou como
escudeiro, teve vida boêmia e muitos casos amorosos, envolvendo-se em ra-
zão disso em brigas que, não raro, resultavam em prisão. Os versos que decla-
mava às damas nos serões da corte tornaram-no famoso como poeta.
A certa altura, para escapar de mais uma prisão, alistou-se no serviço mi-
litar se engajou como soldado numa expedição portuguesa que partia para a
ocupação de novas terras, perdendo um olho em combate no norte da África.
Serviu na Índia, em Goa, e em Macau, na China. Por essas paragens, conhe-
ceu mulheres que ficaram eternizadas em seus versos, angariou inimigos,
envolveu-se em novas brigas e foi acusado de fraude, passando mais algum
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tempo preso. Durante a estada nas terras estrangeiras, escreveu sua famosa
epopéia, Os Lusíadas, que, segundo a lenda, salvou de um naufrágio.
Regressou a Portugal pobre e doente, mas obteve do soberano uma pe-
quena pensão vitalícia com a publicação d’Os Lusíadas, em 1572, dedicado
ao rei Dom Sebastião. Parece que o final dos dias passou vendendo versos.
Seu funeral foi pago por um amigo, que lhe escreveu o seguinte epitáfio:
Aqui jaz Luís Vaz de Camões
Príncipe dos poetas do seu tempo.
Viveu pobre e miseravelmente
Assim morreu.

Panorama do Renascimento
No final do século XV e começo do XVI, a Europa passou por um perío-
do de grandes mudanças. A concentração de riqueza nas mãos da burguesia,
o surgimento dos Estados absolutistas com reis fortes e poderosos e a
reurbanização da Europa, que havia sido predominantemente rural desde a
queda do Império Romano, trouxeram uma nova maneira de encarar o mun-
do. A Igreja perdeu o poder absoluto que exerceu sobre os homens durante
séculos e alguns de seus preceitos puderam ser colocados em xeque.
Deu-se então um grande movimento de reassi-
milação dos valores culturais antigos, que a História
chamou de Renascimento. Com essa abertura, sur-
giram homens eruditos, que se interessavam pela cul-
tura greco-latina e acreditavam em um conjunto de
valores morais e estéticos universalmente humanos
provindos dessas civilizações. Tais estudiosos, que
se apresentavam livres do poder da Igreja, foram cha-
mados de humanistas. Davam mais importância à ra-
zão humana do que às revelações divinas (raciona-
lismo), acreditavam que era necessário investigar o
homem, seu corpo, seus sentimentos e suas experi-
ências (antropocentrismo), veneravam a cultura e a
mitologia greco-latina, redescoberta a partir de pes-
quisas feitas em conventos e monastérios.
Outra característica do Renascimento foi o es-
pírito científico, que encontrou seu foco na obser-
vação dos fenômenos da natureza. A Igreja, no en-
tanto, continuava pressionando e proibia a divulga-
ção de certas idéias. Nessa época, o astrônomo
Copérnico chegou à conclusão de que a Terra gira-
va em torno do Sol, e não o contrário, teoria confir-
mada por Galileu Galilei um pouco mais tarde (Ta-
refa 1). Nas artes plásticas também houve grandes
mudanças. A típica pintura sacra medieval, que re-
tratava os santos e episódios da vida de Jesus, aos poucos passou a retratar a
vida das pessoas comuns. Inspirados pela arte greco-romana, os artistas ti-
nham como objetivo retratar as coisas como elas existiam na realidade. Des-
cobriu-se o ponto de fuga, perseguiram-se as proporções perfeitas, buscou-se
a harmonia dos traços.


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Portugal viveu nesse período um grande momento de expansão marítima.


O soneto
O poder mercante burguês e o rei fortalecido com os impostos cobrados dos
Soneto quer dizer pe- mercadores se aliaram, fortalecendo desse modo também os Estados. Como
quena canção ou, literal- Portugal havia se tornado um país rico, teve dinheiro para investir nas grandes
mente, pequeno som. É navegações. Foi, aliás, muito bem-sucedido: tomou pontos na costa africana,
uma forma fixa de poe- chegou à Índia (1498) e ao Brasil (1500).
ma composta por versos
decassílabos distribuí- O objetivo dessas grandes navegações era estender o império português,
dos em duas estrofes de colonizando novos povos mediante o trabalho de catequese e ampliando o
quatro versos e duas de comércio com as Índias. Ouro, glória e expansão da fé compunham a tríade
três versos. Surgiu na Itá- sobre a qual se assentavam as grandes navegações ibéricas.
lia, no século XIII, onde
era declamado na corte É de se imaginar que esses navegadores, a título de colonização e cris-
do rei Frederico II e sua tianização, trouxeram também a opressão, promoveram o massacre e ins-
disposição variou bas- tauraram a violência contra os povos nativos, constituindo o XVI um sécu-
tante, até que Dante e lo com tudo o que de civilização e bárbarie a América Espanhola e Portu-
Petrarca, poetas precur- guesa conheceram.
sores do Renascimento,
o fixaram através de suas
poesias, lidas em toda a
Europa. Reconhecido na Camões – o poeta lírico
época como a melhor
O Camões lírico recebeu influências da tradição poética medieval (as can-
forma de expressão de
tigas de amor cortês e de amigo) e as uniu aos rigorosos parâmetros
uma emoção isolada, um
pensamento ou uma
renascentistas de Dante e Petrarca (que aperfeiçoou e difundiu a forma fixa
idéia, foi adaptado e chamada soneto por toda a Europa).
muito usada por Shake–
speare e continua servin-
do aos poetas de hoje Pede o desejo, Dama, que vos veja.
em dia. Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa a qual natural seja


Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado.
Por que não falte nunca onde sobeja.

Mas este puro afeito em mim se dana;


Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,

Assim o pensamento, pela parte


Que vai tomar de mim, terrestre, humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

Nesse soneto, há um sujeito dividido, em conflito entre um eu que ama


idealmente e outro que deseja. O eu-lírico, disposto a amar platonicamente
sua amada, é surpreendido pelo próprio desejo, que lhe pede uma visão real e
concreta da mulher em questão. No soneto a seguir, mais um exemplo da
expressão desse desejo:


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Tanto de meu estado me acho incerto


que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio;
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;


da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;


num’hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar um’hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,


respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.

A permanente luta entre o desejo e o amor idealizado, cuja consciência


traz sofrimento e dor para o eu-lírico, é creditada ao Destino, contra o qual
nada se pode fazer. A reflexão sobre a contradição entre esses dois mundos é
freqüente na poesia camoniana. (Tarefa 2)

Camões – o poeta épico


Para escrever o poema Os Lusíadas, Camões se inspirou
nas epopéias greco-latinas e narrou, a partir da história da vi-
agem de Vasco da Gama à Índia, o grande feito heróico do
povo português: a conquista dos mares. Para tanto, o poeta
aproveitou tudo o que leu e tudo o que efetivamente viveu.
Couberam nesse poema de fôlego (são 8.816 versos!) a histó-
ria de Portugal, a descrição geográfica da Europa, histórias
medievais, descrições da Índia, casos que aconteceram real-
mente e histórias fantasiosas, como a aparição do Gigante
Adamastor.
No Canto V (estrofes de 86 a 88), o poeta cita as epopéias
que lhe inspiraram a compor seu poema épico, buscando po-
rém mostrar que a sua epopéia nada tem a ver com as greco-
latinas, cheias de monstros fantásticos e aventuras mirabolan-
tes. Defende, dessa maneira, a veracidade de sua narrativa
que, não obstante, também contará com seres fantásticos e
sobrenaturais.


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86 88
Julgas agora, Rei, se houve no mundo Cantem, louvem e escrevam sempre extremos
Gentes que tais caminhos cometessem? Desses seus Semideuses e encareçam,
Crês tu que tanto Eneias e o facundo Fingindo magas Circes, Polifemos,
Ulisses pelo mundo se estendessem? Sirenas que co canto os adormeçam;
Ousou algum a ver do mar profundo, Dêm-lhe mais navegar à vela e remos
Por mais versos que dele se escrevessem, Os Cícones e a terra onde se esqueçam
Do que eu vi, a poder d’esforço e de arte, Os companheiros, em gostando o loto;
E do que inda hei-de ver, a oitava parte? Dêm-lhe perder nas águas o piloto;

87 89
Esse que bebeu tanto da água Aónia, Ventos soltos lhe finjam e imaginem
Sobre quem têm contenda peregrina, Dos odres, e Calipsos namoradas;
Entre si, Rodes, Smirna e Colofônia, Harpias que o manjar lhe contaminem;
Atenas, Ios, Argo e Salamina; Descer às sombras nuas já passadas:
Essoutro que esclarece toda Ausônia, Que, por muito e por muito que se afinem
A cuja voz, altíssona e divina, Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,
Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece, A verdade que eu conto, nua e pura,
Mas o Tibre co som se ensoberbece: Vence toda grandíloca escritura!”

Seguindo regras formais do modelo greco-latino (o poema tem dez Can-


tos, é todo composto por versos decassílabos, a narrativa começa no meio da
viagem, in media res etc.), a narrativa da viagem é entremeada por uma dispu-
ta entre os deuses Baco (oponente a Portugal) e Vênus (favorável ao povo
português).
A exemplo do que se vê nas epopéias do mundo antigo, pode-se perceber
neste poema grandioso a intenção de conjugar as características identificatórias
do povo português. Observe nesse sentido o trecho abaixo, que narra o Con-
cílio dos deuses (Canto I, estrofes 20 a 41). (Tarefa 3)

20 21
Quando os Deuses no Olimpo luminoso, Deixam dos sete Céus o regimento,
Onde o governo está da humana gente, Que do poder mais alto lhe foi dado,
Se ajuntam em consílio glorioso, Alto poder, que só co pensamento
Sobre as cousas futuras do Oriente. Governa o Céu, a Terra e o Mar irado.
Pisando o cristalino Céu fermoso, Ali se acharam juntos num momento
Vêm pela Via Láctea juntamente, Os que habitam o Arcturo congelado
Convocados, da parte de Tonante, E os que o Austro têm e as partes onde
Pelo neto gentil do velho Atlante. A Aurora nasce e o claro Sol se esconde.

20.7-8: “Convocados, da parte de Tonante”: Tonante, epíteto dado a Júpiter como deus das trovoadas;
“Pelo neto gentil do velho Atlante”: neto do velho Atlante, ou Atlas, era Mercúrio, filho de Júpiter e de
Maia, a mais nova das Plêiades. Estas eram filhas de Atlas, o Gigante, e de Plêione; esta, por sua vez, filha
do Oceano e de Tétis. Mercúrio era um mensageiro de Júpiter.
21.1-8: “Deixam dos sete Céus o regimento”: os sete Céus são as sete esferas planetárias do sistema de
Ptolemeu; “Os que habitam o Arcturo congelado”: o Arcturo é a estrela mais brilhante da constelação do
Boieiro ou Bootes. Foi considerada por vezes como fazendo parte da Ursa Maior e Arcturo significa
literalmente guarda da ursa; “E os que o Austro têm ...”: os que moram no Sul; “... e as partes onde / A
Aurora nasce e o claro Sol se esconde”: vieram, portanto, os deuses do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste
ao concílio.


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22 25
Estava o Padre ali, sublime e dino, “Já lhe foi (bem o vistes) concedido,
Que vibra os feros raios de Vulcano, Cum poder tão singelo e tão pequeno,
Num assento de estrelas cristalino, Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Com gesto alto, severo e soberano; Toda a terra que rega o Tejo ameno.
Do rosto respirava um ar divino, Pois contra o Castelhano tão temido
Que divino tornara um corpo humano; Sempre alcançou favor do Céu sereno:
Com a coroa e ceptro rutilante, Assi que sempre, enfim, com fama e glória,
De outra pedra mais clara que diamante. Teve os troféus pendentes da vitória.

23 26
Em luzentes assentos, marchetados “Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam Que co a gente de Rómulo alcançaram,
Os outros Deuses, todos assentados Quando com Viriato, na inimiga
Como a Razão e a Ordem concertavam Guerra Romana, tanto se afamaram;
(Precedem os antigos, mais honrados, Também deixo a memória que os obriga
Mais abaixo os menores se assentavam); A grande nome, quando alevantaram
Quando Júpiter alto, assi dizendo, Um por seu capitão, que, peregrino,
Cum tom de voz começa grave e horrendo: Fingiu na cerva espírito divino.

24 27
“Eternos moradores do luzente, “Agora vedes bem que, cometendo
Estelífero Pólo e claro Assento: O duvidoso mar num lenho leve,
Se do grande valor da forte gente Por vias nunca usadas, não temendo
De Luso não perdeis o pensamento, de Áfrico e Noto a força, a mais s’atreve:
Deveis de ter sabido claramente Que, havendo tanto já que as partes vendo
Como é dos Fados grandes certo intento Onde o dia é comprido e onde breve,
Que por ela se esqueçam os humanos Inclinam seu propósito e perfia
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos. A ver os berços onde nasce o dia.

22.1-2: “Estava o Padre ...”: Júpiter; “Que vibra os feros raios de Vulcano”: Vulcano, filho de Júpiter e de
Juno, era o deus do fogo e fabricava os raios para seu pai. Ort.: dino (por digno).
23.2: Ort.: perlas (por pérolas).
24.2: “Estelífero Pólo e claro Assento”: Pólo, céu (1. polus); claro Assento: brilhante morada; “De Luso
...”: Júpiter afirma a descendência dos Portugueses. Estelífero, estrelado (latinismo).
24.6: “Como é dos Fados grandes ...”: grandes em poder.
25.8: “Teve os troféus pendentes da vitória”: teve pendentes os troféus da vitória; troféu era propriamente
o tronco de árvore do qual se dependuravam as armas dos vencidos.
26.2-4: “Que co a gente de Rómulo alcançaram”: gente de Rómulo, os Romanos; o sujeito de alcançaram
é a forte gente de Luso (os Lusitanos); “Quando com Viriato, ...”: Viriato (v. VIII.5.6-7 e VIII.6.2-6),
pastor lusitano, que acaudilhou os guerrilheiros lusitanos, infligindo grandes perdas aos Romanos. Quinto
Servílio Cipião, em vez de aliança e amizade, preferiu comprar três amigos de Viriato, que o assassinaram
à traição (139).
26.6-8: “... quando alevantaram / Um por seu capitão, que, peregrino, / Fingiu na cerva espírito divino”:
Sertório, tendo recebido como presente uma corça branca, que ele dizia ter sido um presente de Diana,
afirmava que ela lhe revelava todas as coisas ocultas (ver em Plutarco, Sertorius, 11). Peregrino (latinismo),
estrangeiro.
27.1-4: “Agora... a mais s’atreve”: por a mais se atrevem; Áfrico, vento de sudoeste; Noto, vento do sul;
“Que havendo tanto já que as partes vendo / Onde o dia é comprido e onde breve”; o Poeta indica as
navegações de norte a sul pelo Oeste de África.
27.7-8: “Inclinam seu propósito ...”: o Poeta volta à concordância lógica: sujeito os Lusitanos; “A ver os
berços onde nasce o dia”: a ver o Oriente. Ort.: perfia (por porfia).


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28 31
“Prometido lhe está do Fado eterno, Ouvido tinha aos Fados que viria
Cuja alta lei não pode ser quebrada, a gente fortíssima de Espanha
Que tenham longos tempos o governo Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Do mar que vê do Sol a roxa entrada. Da Índia tudo quanto Dóris banha,
Nas águas têm passado o duro Inverno; E com novas vitórias venceria
A gente vem perdida e trabalhada; A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
Já parece bem feito que lhe seja Altamente lhe dói perder a glória
Mostrada a nova terra que deseja. De que Nisa celebra inda a memória.

29 32
“E porque, como vistes, têm passados Vê que já teve o Indo sojugado
Na viagem tão ásperos perigos, E nunca lhe tirou Fortuna ou caso
Tantos climas e céus exprimentados, Por vencedor da Índia ser cantado
Tanto furor de ventos inimigos, De quantos bebem a água de Parnaso.
Que sejam, determino, agasalhados Teme agora que seja sepultado
Nesta costa Africana como amigos; Seu tão célebre nome em negro vaso
E, tendo guarnecido a lassa frota, D’água do esquecimento, se lá chegam
Tornarão a seguir sua longa rota.” Os fortes Portugueses que navegam.

30 33
Estas palavras Júpiter dizia, Sustentava contra ele Vénus bela,
Quando os Deuses, por ordem respondendo, Afeiçoada à gente Lusitana
Na sentença um do outro diferia, Por quantas qualidades via nela
Razões diversas dando e recebendo. Da antiga, tão amada, sua Romana;
O padre Baco ali não consentia Nos fortes corações, na grande estrela
No que Júpiter disse, conhecendo Que mostraram na terra Tingitana,
Que esquecerão seus feitos no Oriente E na língua, na qual quando imagina,
Se lá passar a Lusitana gente. Com pouca corrupção crê que é a Latina.

28.1-4: “Prometido lhe está...”: lhe por lhes era corrente; “Do mar que vê do Sol a roxa entrada”: perífrase
para designar os mares orientais. No tempo de Camões preferia-se dizer roxo a vermelho: “roxa entrada”,
em I.28.4 e I.59.3; “a roxa fronte”, II-13.8; o “Mar Roxo”, II.49.1; “roxa Aurora”, IV.60.7 etc.
29.1-3: “... têm passado... [têm] experimentados”: note-se a concordância do particípio passivo em
gênero e número com o complemento direto.
30.3-5: “Na sentença um do outro diferia”: diferia não concorda com Deuses (v. 2), mas com o aposto um;
“O padre Baco ali não consentia”: aparece pela primeira vez o grande inimigo dos Portugueses a dar as
razões do seu desacordo. Baco (Dionysos) é filho de Júpiter (Zeus) e Sémele. Descobriu a vide e o seu uso.
Conquistou a Índia no decorrer de uma expedição semiguerreira, semidivina.
31.4-8: “Da Índia tudo quanto Dóris banha”: Dóris, filha do Oceano e esposa de Nereu. É a mãe das
Nereidas; “De que Nisa celebra inda a memória”: para furtar Baco aos ciúmes de Hera, Júpiter transportou
Baco para longe da Grécia, para um país chamado Nisa, que uns situam na Ásia, outros na Etiópia ou na
África, e deu-o a criar às Ninfas desse país. V. comentário a VII.52.5.
32.1-7: “Vê que já teve o Indo sojugado”: Indo (ou Sindh), grande rio da Índia e do Paquistão, que se
lança ao mar de Omã, formando um vasto delta; “De quantos bebem a água de Parnaso”: o Parnaso,
monte da Grécia, na Fócida, consagrado a Apolo e às Musas. Aí nasce e corre a fonte Castália; “D’água do
esquecimento...”: água do Lete, um dos rios dos Infernos, que significa em grego esquecimento. Ort.:
sojugado (por subjugado).
33.1-6: “Sustentava contra ele Vénus bela”: aparece agora a protectora dos Portugueses, afeiçoada à gente
lusitana pelas razões que se invocam nesta estância e se repetem na est. IX.38. Vénus foi assimilada à
Afrodite dos Gregos no segundo século a.C. Afrodite é a deusa do amor e da beleza. Vénus foi mãe de
Cupido e de Eneias e esposa de Vulcano. Tem n’Os Lusíadas um papel intercessor fundamental; “Nos
fortes corações, na grande estrela”: na coragem e na fortuna; “Que mostraram na terra Tingitana”:
Mauritânia Tingitana ou Marrocos. É a parte da Mauritânia onde se situa Tinge ou Tingi (Tânger).


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34 37
Estas causas moviam Citereia, A viseira do elmo de diamante
E mais, porque das Parcas claro entende Alevantando um pouco, mui seguro,
Que há-de ser celebrada a clara Deia Por dar seu parecer se pôs diante
Onde a gente belígera se estende. De Júpiter, armado, forte e duro;
Assi que, um, pela infâmia que arreceia, E dando a pancada penetrante
E o outro, pelas honras que pretende, Co conto do bastão no sólio puro,
Debatem, e na perfia permanecem; O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
A qualquer seus amigos favorecem. Um pouco a luz perdeu, como enfiado;

35 38
Qual Austro fero ou Bóreas na espessura E disse assi: “Ó Padre, a cujo império
De silvestre arvoredo abastecida, Tudo aquilo obedece que criaste:
Rompendo os ramos vão da mata escura Se esta gente que busca outro Hemisfério,
Com impeto e braveza desmedida, Cuja valia e obras tanto amaste,
Brama toda montanha, o som murmura, Não queres que padeçam vitupério,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida: Como há já tanto tempo que ordenaste,
Tal andava o tumulto, levantado Não ouças mais, pois és juiz direito,
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado. Razões de quem parece que é suspeito.

36 39
Mas Marte, que da Deusa sustentava “Que, se aqui a razão se não mostrasse
Entre todos as partes em porfia, Vencida do temor demasiado,
Ou porque o amor antigo o obrigava, Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Ou porque a gente forte o merecia, Pois que de Luso vêm, seu tão privado;
De antre os Deuses em pé se levantava: Mas esta tenção sua agora passe,
Merencório no gesto parecia; Porque enfim vem de estâmago danado;
O forte escudo, ao colo pendurado, Que nunca tirará alheia enveja
Deitando pera trás, medonho e irado; O bem que outrem merece e o Céu deseja.

34.1-3: “Estas causas moviam Citereia”: Citereia é uma das designações de Vénus por ter um santuário em
Citera, ilha do mar Egeu. O Poeta só volta a invocar Citereia em IX-53; “E mais, porque das Parcas claro
entende”: As Parcas são as divindades do Destino, equiparadas às Moïrai dos Gregos: Cloto, Láquesis e
Átropos; “a clara Deia”: a distinta Deusa. Ort.: perfia (por porfia). Porfia em 36.2.
35.1: “Qual Austro fero ou Bóreas na espessura”: tal como o vento do sul ou do norte.
36.1: “Mas Marte...”: deus da guerra, também conhecido por Mavorte. Sobre os amores de Vénus e de
Marte veja-se Lucrécio, De rerum natura, I.33-40. Recorde-se que Vénus era esposa de Vulcano e atente-
se nestes versos de Ovídio: “Solis referemus amores / Primus adulterium Veneris cum Marte putatur / Hic
vidisse deus; videt hic deus omnia prima.” (M, IV.170-172.); e em V, G, IV. vv. 345-346: “Inter quas curam
Clymene narrabat inanem Vulcani, Martisque dolos et dulcia furta.”
37.7: “O Céu tremeu, e Apolo, de torvado”: Apolo, filho de Zeus e de Leto. Esta, perseguida por Hera, foi
ter a uma ilha chamada Ortígia, flutuante e estéril. Aí nasceu Apolo. Este, em reconhecimento, fixou a ilha
no centro do mundo grego e deu-lhe o nome de Delos, ‘a brilhante’. Entre os seus múltiplos atributos,
conta-se o de ser o deus da luz e de conduzir o carro do Sol.
38.3-5: “Se esta gente... / Não queres que padeçam ...”: concordância do coletivo do singular com o verbo
no plural.
39.3-4: “Bem fora que aqui Baco os sustentasse, / Pois que de Luso vêm, seu tão privado”: neste lugar Luso
foi privado de Baco; em III.21.5-7 diz o Poeta: “Esta foi Lusitânia, derivada / De Luso ou Lisa, que de
Baco antigo / Filhos foram, ... ou companheiros”; em VIII.2.7-8 diz de “... Luso, donde a Fama / O nosso
Reino ‘Lusitânia’ chama [Filho e companheiro do Tebano]”. E insiste em VIII.4.4: “... companheiro e
filho amado”. Portanto: 1.º, privado; 2.º, filho ou companheiro; 3.º, filho e companheiro. Ort.: estâmago
(por estômago, índole).


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40 41
“E tu, Padre de grande fortaleza, Como isto disse, o Padre poderoso,
Da determinação que tens tomada A cabeça inclinando, consentiu
Não tornes por detrás, pois é fraqueza No que disse Mavorte valeroso
Desistir-se da cousa começada. E néctar sobre todos esparziu.
Mercúrio, pois excede em ligeireza Pelo caminho Lácteo glorioso
Ao vento leve e à seta bem talhada, Logo cada um dos Deuses se partiu,
Lhe vá mostrar a terra onde se informe Fazendo seus reais acatamentos,
Da Índia, e onde a gente se reforme.” Pera os determinados apousentos.

Mais próximo da vida real e distante dos deuses do Olimpo, encontramos


nos episódios d’As despedidas e do Velho de Restelo (Canto IV, estrofes 88 a
104) a narração da despedida que o povo dará à frota portuguesa antes de ela
zarpar para a grande aventura marítima. Às margens do Tejo, na época “praia
do Restelo”, uma multidão se aglomera para dar adeus aos marinheiros. Então
surge o Velho de Restelo, que faz um discurso ponderando as desastrosas
possíveis conseqüências de tal aventura, lamentando a busca humana do im-
possível. (Tarefas 4 e 5)

88 90
A gente da cidade, aquele dia, Qual vai dizendo: “Ó filho, a quem eu tinha
(Uns por amigos, outros por parentes, Só pera refrigério e doce emparo
Outros por ver somente) concorria, Desta cansada já velhice minha,
Saudosos na vista e descontentes. Que em choro acabará, penoso e amaro,
E nós, co a virtuosa companhia Porque me deixas, mísera e mesquinha?
De mil Religiosos diligentes, Porque de mi te vas, ó filho caro,
Em procissão solene, a Deus orando, A fazer o funéreo encerramento
Pera os batéis viemos caminhando. Onde sejas de pexes mantimento?”

89 91
Em tão longo caminho e duvidoso Qual em cabelo: “Ó doce e amado esposo,
Por perdidos as gentes nos julgavam, Sem quem não quis Amor que viver possa,
As mulheres cum choro piadoso, Porque is aventurar ao mar iroso
Os homens com suspiros que arrancavam. Essa vida que é minha e não é vossa?
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Como, por um caminho duvidoso,
Amor mais desconfia, acrecentavam Vos esquece a afeição tão doce nossa?
A desesperação e frio medo Nosso amor, nosso vão contentamento,
De já nos não tornar a ver tão cedo. Quereis que com as velas leve o vento?”

41.4-7: “E néctar sobre todos esparziu”: o néctar era a bebida e o perfume dos deuses; “Pelo caminho
lácteo glorioso”: a Via Láctea; “Fazendo seus reais acatamentos”: fazendo suas profundas reverências.
Ort.: valeroso (por valoroso); apousentos (por aposentos). (Os comentários acima foram retirados do site
www.instituto-camoes.pt/escritores/camoes/estudos.htm acessado em 02.08.2004).
89: Ort.: piadoso (por piedoso); acrecentavam (por acrescentavam).
90.5: Ort.: emparo (por amparo); pexes (por peixes). O Poeta nunca escreveu de outro modo; amaro é
latinismo.
91.3: “Porque is...”: ides.


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92 95
Nestas e outras palavras que diziam, “Ó glória de mandar, ó vã cobiça
De amor e de piadosa humanidade, Desta vaidade a quem chamamos fama!
Os velhos e os mininos as seguiam, Ó fraudulento gosto, que se atiça
Em quem menos esforço põe a idade. Cuã aura popular, que honra se chama!
Os montes de mais perto respondiam, Que castigo tamanho e que justiça
Quase movidos de alta piedade; Fazes no peito vão que muito te ama!
A branca areia as lágrimas banhavam, Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que em multidão com elas se igualavam. Que crueldades neles experimentas!

93 96
Nós outros, sem a vista alevantarmos “Dura inquietação d’alma e da vida
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, Fonte de desemparos e adultérios,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos Sagaz consumidora conhecida
Do propósito firme começado, De fazendas, de reinos e de impérios!
Determinei de assi nos embarcarmos, Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sem o despedimento costumado, Sendo dina de infames vitupérios;
Que, posto que é de amor usança boa, Chamam-te fama e glória soberana,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa. Nomes com quem se o povo néscio engana!

94 97
Mas um velho, de aspeito venerando, “A que novos desastres determinas
Que ficava nas praias, entre a gente, De levar estes Reinos e esta gente?
Postos em nós os olhos, meneando Que perigos, que mortes lhe destinas,
Três vezes a cabeça, descontente, Debaixo dalgum nome preminente?
A voz pesada um pouco alevantando, Que promessas de reinos e de minas
Que nós no mar ouvimos claramente, D’ouro, que lhe farás tão facilmente?
Cum saber só de experiências feito, Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Tais palavras tirou do experto peito: Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

92.7-8: “A branca areia as lágrimas banhavam”: as lágrimas banhavam a branca areia; “Que em multidão
com elas se igualavam”: Com elas, com as areias, e não com a areia.
93.1-5: “Nós outros,... /... / Determinei de assi nos embarcarmos”: determinei que nós outros assi nos
embarcássemos.
94.1-8: “Mas um velho d’ aspeito venerando”: desta estância até final do canto é o episódio do Velho do
Restelo, eloqüente, filosófico e também político. Pela boca do Velho, Camões manifesta a sua predileção
pela política africana; “... experto peito”: peito experiente. Ort.: aspeito (por aspecto).
95.3: “Ó fraudulento gosto...”: gosto enganoso.
96.5-8: Na edição princeps o Poeta escreveu: “Chaman-te ilustre”, “chaman-te subida”, “chaman-te
fama”, por causa da enclítica; “Nomes com quem se o povo néscio engana!”: o pronome quem empregava-
se indiferentemente em relação a pessoas e a coisas: néscio, ignorante. Ort.: desemparos (por desamparos);
dina (por digna).
97.4-6: “Debaixo dalgum nome preminente?”: preeminente; “Que promessas de reinos e de minas / D’
ouro, que lhe farás...”: este último que é pleonástico.


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98 101
“Mas, ó tu, geração daquele insano “Deixas criar às portas o inimigo,
Cujo pecado e desobediência Por ires buscar outro de tão longe,
Não somente do Reino soberano Por quem se despovoe o reino antigo,
Te pôs neste desterro e triste ausência, Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Mas inda doutro estado mais que humano, Buscas o incerto e incógnito perigo
Da quieta e da simpres inocência, Por que a fama te exalte e te lisonje
Idade d’ouro, tanto te privou, Chamando-te senhor, com larga cópia,
Que na de ferro e d’armas te deitou: Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!

99 102
“Já que nesta gostosa vaidade “Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Tanto enlevas a leve fantasia, Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Já que à bruta crueza e feridade Dino da eterna pena do Profundo,
Puseste nome, esforço e valentia, Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Já que prezas em tanta quantidade Nunca juízo algum, alto e profundo,
O desprezo da vida, que devia Nem cítara sonora ou vivo engenho
De ser sempre estimada, pois que já Te dê por isso fama nem memória,
Temeu tanto perdê-la quem a dá: Mas contigo se acabe o nome e glória!

100 103
“Não tens junto contigo o ismaelita, “Trouxe o filho de Jápeto do Céu
Com quem sempre terás guerras sobejas? O fogo que ajuntou ao peito humano,
Não segue ele do Arábio a lei maldita, Fogo que o mundo em armas acendeu,
Se tu pola de Cristo só pelejas? Em mortes, em desonras (grande engano!).
Não tem cidades mil, terra infinita, Quanto milhor nos fora, Prometeu,
Se terras e riqueza mais desejas? E quanto pera o mundo menos dano,
Não é ele por armas esforçado, Que a tua estátua ilustre não tivera
Se queres por vitórias ser louvado? Fogo de altos desejos, que a movera!

98.1-7: “Mas, ó tu, geração daquele insano”: Adão; “... do Reino soberano”: do Paraíso; “Da quieta e da
simpres inocência, / Idade d’ ouro, ...”: sobre as quatro idades, v. Ov., M, I.90-150. Ort.: simpres (por
simples).
99.7-8: “... pois que já / Temeu tanto perdê-la Quem a dá”: v. “S. Mateus”, XXVI.39: “E adiantando-se um
pouco, se prostrou com o rosto em terra, orando e dizendo: – Pai meu, se é possível passe de mim este
cálix...”
100.1: “Não tens junto contigo o Ismaelita”: refere-se aos muçulmanos da África do Norte.
101.4: “Se enfraqueça e se vá deitando a longe”: se vá deitando a perder. Longe rima com longe do
segundo verso.
101.7: “... com larga cópia”: com grande abundância.
102.3-5: Profundo (Inferno) rima com profundo (adjetivo).
103.1: “Trouxe o filho de Jápeto do Céu / O fogo que ajuntou ao peito humano”: sobre o roubo do fogo
por Prometeu, filho de Jápeto, v. Hesíodo, Theogonia, vv. 554-556.


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104
“Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitetor co filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana gèração.
Mísera sorte! Estranha condição!”

Na epopéia camoniana, a vida do povo português, a história – as guerras,


as navegações – e o mito relativo às travessias da antiguidade se cruzam. O
casamento simbólico dos navegadores com as ninfas no Canto X se traduz na
esperança de ver nascer em Portugal um povo de linhagem divina. Escrito
num período de exaltação nacional, o poema já aponta em seu final, no entan-
to, para a decadência do poderio português. Por sua concepção e grandiosidade
estética, Os Lusíadas se tornou um texto de referência da literatura e do ima-
ginário do povo português.

Tarefas
Tarefa 1
Leitura da peça Vida de Galileu, de Bertolt Brecht. (Há uma edição da Paz
e Terra, de 1991, cuja tradução é de Roberto Schwarz.)

Tarefa 2
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, O tempo cobre o chão de verde manto,
muda-se o ser, muda-se a confiança; que já coberto foi de neve fria,
todo o mundo é composto de mudança, e enfim converte em choro o doce canto.
tomando sempre novas qualidades.
E, afora este mudar-se cada dia,
Continuamente vemos novidades, outra mudança faz de mor espanto:
diferentes em tudo da esperança; que não se muda já como soía.
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem – se algum houve –, as saudades.

O tema do poema é a mudança do mundo. A reflexão mostra as mudanças


da vida sempre presentes em vários planos: no temporal, no humano (vonta-
des, ser), no da natureza (estações do ano). O tom é melancólico, do mal
ficam as mágoas, do bem, as saudades. Como interpretar o último verso do
soneto?

104.1-5: “Não cometera o moço miserando / O carro alto do pai ...”: Fáeton, filho de Hélio (o Sol), foi
autorizado por seu pai a guiar o carro do Sol, mas esteve a pontos de, por inexperiência, abrasar o
Universo. Zeus (Júpiter), irritado, fulminou-o e precipitou-o no Erídano (o rio Pó); “... nem o ar vazio /
O grande arquitector co filho, dando / Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio”: Dédalo, arquiteto grego
que construiu o labirinto de Creta, no qual foi encerrado o Minotauro. Dédalo também lá ficou aprisionado
por ordem de Minos, mas fugiu, fazendo umas asas de penas e de cera. Ícaro fugiu do labirinto de Creta
com o pai com asas ligadas com cera. Aproximando-se demasiado do Sol, a cera derreteu-se, as asas
soltaram-se e Ícaro foi cair no mar Egeu, perto da ilha Icária (no mar Icário); “Nenhum cometimento alto
e nefando”: nefando no sentido latino de nefandus, abominável. (Os comentários acima foram retirados
do site www.instituto-camoes.pt/escritores/camoes/estudos.htm acessado em 02.08.2004).


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Tarefa 3
Leia os dois sonetos abaixo:
Alma minha gentil, que te partiste Sinto-me só como um seixo de praia
tão cedo desta vida descontente, Vivendo à busca no cristal das ondas,
repousa lá no Céu eternamente, Não sei se sou o que não sou. Pressinto
e viva eu cá na terra sempre triste. Que a maré vai morar no fundo d’alma.

Se lá no assento etéreo, onde subiste, Calo-me sempre se te escuto vindo


memória desta vida se consente, Marulho de incerteza e de agonia;
não te esqueças daquele amor ardente Há crenças deslizando nos meus traços,
que já nos olhos meus tão puro viste. Molhando a estátua do meu sonho antigo.

E se vires que pode merecer-te Declino-me nas frases dos rochedos


alguma cousa a dor que me ficou Nas pérolas de som do inesquecer
da mágoa, sem remédio, de perder-te, Na incrível sombra da montanha adulta.

roga a Deus, que teus anos encurtou, E ao me curvar ao peso da memória,


que tão cedo cá me leve a ver-te, Descubro meu reflexo obscuro
quão cedo de meus olhos te levou. Num soneto de espumas inexatas.
Luís de Camões Vinícius de Moraes

O primeiro poema foi escrito por Camões no século XVI e o segundo foi
escrito por Vinícius de Moraes, poeta brasileiro, no século XX. Do que falam
os poemas? Além da questão formal, há semelhanças entre eles? Qual o esta-
do de espírito dos eu-líricos em questão? Inspirado por esses poemas, tente
compor um soneto a seu(sua) amado(a).

Tarefa 4
Identifique nos versos do Concílio dos Deuses, d’Os Lusíadas, os adjeti-
vos que são escolhidos para a caracterização do povo português.

Tarefa 5
Inversões sintáticas. Escolha duas estrofes desse trecho e transponha os
versos para a ordem direta (por escrito, é claro).

Tarefa 6
Resuma com suas palavras as profecias do Velho de Restelo e entregue
seu texto ao monitor.

Tarefa 7
145
No mais Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhua austera, apagada e vil tristeza. Luís de Camões, Os Lusíadas


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Nevoeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.

Ninguém sabe que coisa quer.


Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...

É a hora!
Fernando Pessoa, Mensagem
O trecho d’Os Lusíadas, do século XVI, se encontra ao final do poema e
faz parte das últimas considerações de Camões acerca do povo português. O
poema de Fernando Pessoa, escrito no século XX, também traça um perfil de
Portugal e seu povo.
Como está caracterizado o povo português no trecho do poema de Camões?
Como ele está caracterizado no poema de Pessoa? Há semelhanças entre os
dois poemas? Há diferenças entre eles? Como você entende o último verso do
poema de Fernando Pessoa?
Tarefa 8
IV. O Monstrengo
O mostrengo que está no fim do mar E o homem do leme tremeu, e disse:
Na noite de breu ergueu-se a voar; “El-Rei D. João Segundo!”
A roda da nau voou três vezes, Três vezes do leme as mãos ergueu,
Voou três vezes a chiar, Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse: “Quem é que ousou entrar E disse no fim de tremer três vezes:
Nas minhas cavernas que não desvendo, “Aqui ao leme sou mais do que eu:
Meus tectos negros do fim do mundo?” Sou um povo que quer o mar que é teu;
E o homem do leme disse, tremendo: E mais que o mostrengo, que me a alma
[teme
“El-Rei D. João Segundo!”
“De quem são as velas onde me roço? E roda nas trevas do fim do mundo,
De quem as quilhas que vejo e ouço?” Manda a vontade, que me ata ao leme,
Disse o mostrengo, e rodou três vezes, De El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes rodou imundo e grosso.


“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
O poema “O monstrengo” pertence a um famoso episódio de Os Lusíadas.
Descubra qual é esse episódio e reflita sobre a sua importância no contexto
do poema épico.


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Para relacionar
Filme Tróia – A Epopéia
Dirigido por WOLFGANG PETERSEN
Para ler mais tarde
Ilíada, de Homero. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002.
Odisséia, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Me-
lhoramentos, s/d.

Referências
Análises intituladas Os Lusíadas e Rimas, de Luís de Camões, de Aníbal Pinto de Castro em:
www.instituto-camoes.pt/escritores/camoes/estudos.htm, 02.08.2004.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma. O herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Cia.
das Letras, 1990.
BANDEIRA, Manuel. Noções de literatura. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1954.
BECHARA, E. e SPINA, S. (org.). Os Lusíadas, Luís de Camões, Antologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel. São Paulo: Dominus, 1963.
LOPES, Telê Porto A., Macunaíma: a margem e o texto. São Paulo: Hucitec, 1974.
MONTEIRO, Adolfo Casais. Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Agir, 1965.
MORAES, Vinícius. Sinto-me só como um seixo de praia. In: Poesia completa e prosa: “Poesias coligidas”.
NICOLA, José de, INFANTE, Ulisses. Como ler Fernando Pessoa. São Paulo: Scipione, 1988.
PAES, Amélia Pinto. Os Lusíadas em Prosa. Porto: Areal Editores, 1995.
PESSOA, Fernando. Mensagem. SP: FTD, 1992.
PESSOA, Fernando. Antologia Poética. São Paulo: Moderna, 1994.
PESSOA, Fernando. O Eu profundo e os outros Eus. (Seleção poética). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
SARAIVA, A.J. e LOPES, O. História da literatura portuguesa. Porto: Porto Editora, 2000.
SENA, Jorge de. O poeta é um fingidor. Lisboa: Ática, 1961.
SOUZA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde. Uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Livraria
Duas Cidades, 1979.
STADEN, Hans. Duas Viagens ao Brasil. Trad. Guiomar de C. Franco. São Paulo: USP; Belo Horizon-
te: Itatiaia, 1974. p. 179-184.
SWIFT, J. As viagens de Gulliver. São Paulo: Cia. das Letras, 2002.
Textos de Caminha e de Hans Staden encontrados na biblioteca virtual do estudante:
www.bibvirt.futuro.usp.br em 10/08/2004
TORRALVO, I. F. e MINCHILLO, C. C. Sonetos de Camões. SP: Ateliê Editorial, 2001.
VOGT, C. e LEMOS, J. A. G. Literatura Comentada – Cronistas e Viajantes. São Paulo: Abril, 1982.
http://alfarrabio.um.geira.pt/vercial/pessoa.htm (acessado em 22/7/2004)
http://fredb.sites.uol.com.br/pessoa.html (acessado em 26/07/2004)
http://www.cfh.ufsc.br/~magno/campos.htm (acessado em 21/7/2004)
http://www.insite.com.br/art/pessoa/ (acessado em 21/7/2004)
http://www.lsi.usp.br/art/pessoa/ (acessado em 22/7/2004)
http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.htmla (acessado em 22/7/2004)


Literatura

Organizadora
Neide Luzia de Rezende
Elaboradores
Neide Luzia de Rezende
Silvio Pereira da Silva
Gabriela Rodella
4
módulo

Nome do Aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Adolpho José Melfi
Pró-Reitora de Graduação
Sonia Teresinha de Sousa Penin
Pró-Reitor de Cultura e Extensão Universitária
Adilson Avansi Abreu

FUNDAÇÃO DE APOIO À FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FAFE


Presidente do Conselho Curador: Selma Garrido Pimenta
Diretoria Administrativa: Anna Maria Pessoa de Carvalho
Diretoria Financeira: Sílvia Luzia Frateschi Trivelato

PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian

Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei, José Muniz Jr.
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação

Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.

Sonia Teresinha de Sousa Penin.


Pró-Reitora de Graduação.
Carta da
Secretaria de Estado da Educação

Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.

Prof. Sonia Maria Silva


Coordenadora da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas
Apresentação
da área
Será que literatura se ensina e se aprende? Esta é uma questão bastante
controversa.
Quem, tantas vezes, não foi obrigado a ler livros de ficção e de poesia
para depois responder a exercícios de compreensão de texto? Mesmo que a
leitura tenha proporcionado emoção, instigado questões as mais essenciais
para nossas vidas, ao ser reduzida somente a desvitalizadas questões de pro-
va, o fato é que a literatura morre, torna-se um mero exercício escolar.
Prazer e conhecimento – esse binômio associado à literatura é inseparável
para quem vê a arte como forma de humanização do homem, como aquisição
de um bem essencial ao espírito. O acesso a tal bem pode ter sim a colaboração
da escola, em princípio capacitada para indicar ao aluno as boas obras e orientá-
lo a desfrutar não só da história que narra mas do modo como é narrada, além
de levá-lo a conhecer por meio dela as questões importantes da época em que
surgiu. Porém, não é o contato com características de escolas literárias, a história
literária como reflexo da história geral, a leitura de resumos de obras ou a
análise acadêmica de poemas que vão instituir o gosto ou fazer conhecer a
literatura importante que existiu antes da gente.
Nesse sentido, o que se propõe aqui será a tentativa de propiciar o contato
direto do aluno com o texto literário. Nada substitui sua leitura – nem o resu-
mo, nem o texto teórico, nem a leitura do professor.
Neste curso, toda a abordagem literária partirá da obra lida, ainda que seja
esta leitura muitas vezes difícil, devido, não só à falta de tempo, como à falta
de familiaridade com a tarefa. Nosso conteúdo: basicamente os livros do vesti-
bular da Fuvest deste ano de 2004. São livros significativos dentro da tradição
literária, capazes de propiciar, com a devida orientação, uma descoberta dos
seres e das coisas do mundo.
Jamais esquecer que a literatura só existe porque existe você, leitor.

Neide Luzia de Rezende


Coordenadora de Literatura
Apresentação
do módulo
Neste módulo buscamos apresentar, ao mesmo tempo, vida e obra dos
autores. Esse procedimento pode parecer à primeira vista questionável, pois
ultimamente tem-se criticado muito o estudo dos aspectos biográficos do au-
tor, considerando – justamente – que o mais importante dele é a obra, não a
vida. Entretanto, não podemos tomar essas recomendações como verdades
absolutas para todos os autores e todas as obras. (Na verdade, critica-se aque-
le elenco de datas e fatos que antigamente se decorava na escola).
Ora, tomemos o exemplo do Romantismo: as obras canonizadas de cada
autor respondem bastante à convenção da época, ou seja, adotam conteúdos e
formas consideradas exemplares do momento; já o intelectual burguês, que
era o escritor, podia ter comportamento e idéias inteiramente outros na vida.
Encontrávamos na literatura as visões de mundo a que a obra dava vida, mas
não aspectos da vida dos autores em si. No século XX, com as mudanças na
literatura (no interior da qual, por exemplo, os elementos do cotidiano passam
a ser tema da poesia), a experiência do autor muitas vezes é transposta para a
obra, e muito de seu modo de vida e vivência encontram lugar na literatura
que produz: o médico Guimarães Rosa marcou grande parte de seus narrado-
res, também estes explícita ou implicitamente exercendo essa profissão; a vida
da mulher de classe média de Clarice Lispector na grande cidade também
aparece tematizada nas angústias de suas personagens femininas; a iminência
da morte de Manuel Bandeira, que sofria de tuberculose (doença fatal na épo-
ca), aparece entranhada em seus poemas.
Nesse sentido, a arte se mostra mais próxima da vida, mais individualiza-
da, mais livre em relação às normas e convenções de antes, o que talvez pos-
sa, em parte, ser creditado às conquistas das vanguardas do início do século,
no interior das quais era proferida uma proclamação comum: fazer da vida
arte e da arte, vida. (Desculpamo-nos pela falta de orientação dos textos de
Miguel Torga: a equipe de elaboração da unidade não teve tempo de concluir
o trabalho).

Neide Luzia de Rezende


Coordenadora de Literatura
Unidade 1

Clarice Lispector
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradores
“Corto a dor do que te escrevo e dou-te a minha inquieta alegria” Neide Luzia de
Rezende
Clarice Lispector Silvio Pereira da
nasceu na Ucrânia (ex- Silva
União Soviética) em 10
de dezembro de 1925.
Veio para o Brasil com
poucos meses de vida. A
família, inicialmente, es-
tabeleceu-se no Recife e,
depois, transferiu-se pa-
ra o Rio de Janeiro.
Esteve desde a infân-
cia ligada à literatura.
Pequena ainda, já escre-
via histórias, pois queria
ser autora. Foi uma criança fascinada pelos livros, que geralmente conseguia
emprestados de uma livraria, experiência que mais tarde transporia literaria-
mente (é possível reconhecê-la na protagonista de “Felicidade clandestina”,
por exemplo). Leu muito, os mais diferentes autores e gêneros: José de Alencar,
Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Herman Hesse, Katherine Mansfield, Dostoiévski.
Dizia emocionar-se com este último, apesar de, na época, não compreender
toda sua grandeza.
Seus primeiros estudos foram ainda em Recife, tendo o curso ginasial (cor-
respondente hoje ao atual segundo ciclo do ensino fundamental) feito no Rio
de Janeiro. Em 1941, iniciou o curso de Direito na Faculdade Nacional. Nesse
período, emprega-se no jornal “A Noite” e desdobra-se como jornalista tam-
bém na Agência Nacional. São seus primeiros contatos com a imprensa, fi-
cando a esta vinculada por toda a vida, já que muitas foram suas crônicas
publicadas1 ; além disso, esta foi também, em determinado momento, sua prin-
cipal fonte de renda (era também tradutora).

1
As crônicas que escreveu para o Jornal do Brasil (RJ) de 1967 a 1973 foram coletadas postumamente
e se encontram no livro A descoberta do mundo.
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Quando estava na Faculdade de Direito, conheceu Mauri Gurgel Valente,


com quem se casou em 1943 e teve dois filhos: Pedro e Paulo. O marido era
diplomata, por isso Clarice morou vários anos no exterior, em países como
Inglaterra, Suíça, Estados Unidos etc. Com exceção do primeiro romance,
Perto do Coração Selvagem, de 1944, todos os outros romances, até 1960,
foram escritos no exterior e enviados para cá para publicação. Desde o pri-
meiro, seu estilo e originalidade já apareciam, como o intimismo e o questio-
namento existencial. Segundo dizia, as idéias surgiam nos momentos e locais
mais inesperados e ela ia tomando nota.
Após se separar do marido em 1959, fixou residência no Rio de Janeiro,
onde viveu até a morte.
Sempre levou muito a sério o papel de mãe:
“Quanto a meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe.
Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao
meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimen-
tos e angústias, eu lhes dou o que é possível. Se eu não fosse mãe seria sozinha no
mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome
dia-a-dia”. (Seleta).
Para conciliar as tarefas de escrever e cuidar dos filhos pequenos, passou
a escrever sentada no sofá, com a máquina de escrever no colo. Nunca mais
abandonou esse recurso. Levantava de madrugada, às três ou quatro horas,
fazia café, levava o bule para a sala, sentava-se no sofá e começava a escrever.
Assim, enquanto escrevia seus livros, cuidava dos filhos, da organização da
casa e dos vários animais que possuía: coelhos, cachorros, peixes, pintinhos...
Foi por causa do filho Paulo que Clarice começou a escrever livros infan-
tis. Certa vez, o menino perguntou à mãe por que ela não escrevia histórias
para crianças. Clarice lembrou-se de sua infância, de seus bichos, que lhe
serviram de tema, e resolveu fazê-lo. O primeiro foi O Mistério do Coelhinho
Pensante; depois deste vieram outros: A Mulher que matou os peixes, A vida
íntima de Laura e Quase verdade.
Depois que os filhos cresceram, viu-se só: “É fatal, porque a gente não
cria os filhos para a gente, nós criamos para eles mesmos. Quando eu ficar
sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres” (Seleta). Essa cons-
ciência da condição de sujeito só, ainda que social e familiarmente bem inse-
rido, impregnou profundamente as obras que escreveu: é constante o tema da
dona-de-casa de classe média, casada, com filhos, que vê de repente seu uni-
verso familiar bem construído tornar-se estranho diante de desejos pouco do-
mesticados e de uma realidade maior que as paredes do lar. Por exemplo, os
laços familiares no livro de contos Laços de família parecem muitas vezes
tomados com ironia, tal é a maneira com que o universo familiar se vê invadi-
do pela emergência de aspectos às vezes imperceptíveis no dia-a-dia, e que
questionam as relações aparentemente sólidas entre mãe e filho, mãe e filha,
marido e mulher... Nos romances, contudo, suas protagonistas são em geral
mulheres sem marido ou filhos, que vivem de suas profissões, intelectuais,
mulheres angustiadas e letradas. Talvez tenha sentido sua vida um pouco como
diz o narrador de A hora da estrela a propósito da dele: “... não tenho classe
social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esqui-
sito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe bai-
xa nunca vem a mim” (A hora da estrela, p. 25).


 

As coisas que possuíam um certo mistério a atraíam, via a vida com certo
misticismo, era supersticiosa. Sempre foi seduzida pelo imprevisto, pela aven-
tura. Talvez isso justifique a aceitação do convite para representar o Brasil no
Congresso Mundial de Bruxaria em Bogotá, Colômbia, em 1976. Clarice nunca
soube por que a convidaram (na verdade, traduzira um romance – Entrevista
com o vampiro – de Anne Rice, autora de livros sobre vampiros), mas foi, leu
o conto “O Ovo e a Galinha”, disse aos bruxos que era um texto mágico. Na
verdade, achou tudo muito engraçado; segundo ela, o congresso mais parecia
uma feira, havia barraquinhas que vendiam de tudo.
Em 1967, viveu momentos difíceis. Fumava muito. Uma noite adormeceu
com o cigarro aceso e acabou incendiando o quarto; sofreu várias queimadu-
ras, principalmente na mão direita e nas pernas. Passou alguns dias internada
e precisou fazer cirurgias de enxerto em uma das pernas. Recuperada, conti-
nuou suas atividades normais.
Não dava para viver só dos direitos autorais e Clarice, para sobreviver, fez
de tudo um pouco na imprensa. Escreveu crônicas para vários jornais e cola-
borou com revistas, como a Fatos e Fotos, através da seção “Diálogos Possí-
veis”. Os últimos anos de sua vida foram dedicados à criação de grandes
livros, como A Hora da estrela e Um sopro de vida, que enriqueceram a sua
vasta produção.
Clarice Lispector morreu em 09 de dezembro de 1977, com um câncer
generalizado e agressivo. Foi enterrada no cemitério Israelita no bairro do
Caju, Rio de Janeiro.
Enquanto vivia, não teve uma multidão de leitores. Perguntada certa vez
por que os universitários liam seus livros, respondeu que era porque os pro-
fessores obrigavam. Verdade é que, após a sua morte, sua obra passou a ser
cada vez mais lida e valorizada por diferentes públicos.
Grandes foram as inovações e conquistas formais, como o uso de metáfo-
ra insólita, a ruptura com a estrutura de enredo tradicional, a liberação do
fluxo de consciência. Seus textos são complexos e abstratos; muitas vezes,
parecem uma provocação ao leitor e uma critica desavisada, que porventura
busque identificar modelos.
Alfredo Bosi, professor e crítico literário, diz que em sua obra se encontra
“O espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise”, que reclama
um novo equilíbrio entre o ser e o mundo. Sua escritura é como uma denúncia
da fraqueza humana, dos nossos receios, dos nossos medos mais profundos,
da nossa essência.

A Hora da Estrela
Este romance, de apenas 84 páginas, é o menor que Clarice escreveu e é
também sua última obra. Para continuar nos extremos, é também o mais co-
nhecido, principalmente por ser, no âmbito escolar, o mais lido, talvez justa-
mente pelo tamanho (já que um livro de Clarice é sempre uma leitura difícil:
melhor para os estudantes que seja curto). Entretanto, talvez nele a autora
tenha sintetizado as grandes questões de sua obra, sobretudo no que se refere
ao enigma perante o próprio ser e perante a escrita ficcional.


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Engana-se quem concentrar o enredo nas aventuras da pobre Macabéa.


Na verdade, o enredo é o próprio processo de construção da personagem, que
mescla a autora e sua criação. Nesse sentido, o livro se inscreve na tradição da
vanguarda literária do início do século e à qual, no Brasil, nosso modernismo
se vinculou estreitamente. Na arte realizada sob suas premissas estéticas, o
processo de composição se faz visível, dado que a obra não é a representação
da realidade, mas uma reflexão sobre ela. Por isso, incorpora-se na obra a
explicitação do seu próprio fazer, o seu projeto e sua realização – sendo as-
sim, a obra é linguagem e metalinguagem.
Tal procedimento, presente em pintores como Picasso e em poetas como
Bandeira e Drummond, é central em A hora da estrela.
“Pretendo, como já insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o
material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os perso-
nagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que penosamente
me vêm de mim para mim mesmo, é trabalho de carpintaria.
Sim, mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material
básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que se agrupam
em frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases. É
claro que, como todo escritor, tenho a tentação de usar termos suculentos: conhe-
ço adjetivos esplendorosos, carnudos substantivos e verbos tão esguios que atra-
vessam agudos o ar em vias de ação, já que a palavra é ação, concordais? Mas não
vou enfeitar a palavra pois se eu tocar no pão da moça esse pão se tornará em ouro
– e a jovem (ela tem dezenove anos) e a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de
fome. Tenho então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência.
Limito-me a humildemente – mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que
já não seria humildade – limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça numa
cidade toda feita contra ela. (A hora da estrela, p. 20-21)
O leitor vai acompanhando ao longo do livro o desenvolvimento da per-
sonagem, que vai ganhando atributos, adquirindo um perfil físico e psicológi-
co, sendo confrontada com situações, até por fim nos parecer tão real como
qualquer outra personagem de ficção. Essa construção é montada com as
reminiscências, os sentimentos e as identificações culturais do seu próprio
autor (o narrador do livro que lemos), que por esse meio também vai expondo
sua própria condição. O processo de construção da obra também é
ficcionalizado, ou seja, aquele que se mostra como o autor do romance, no
interior do romance, também é uma construção da autora Clarice Lispector.
Desse modo, não podemos utilizar, para entender o livro, os mesmos re-
cursos que utilizamos para outras obras mais – digamos – “realistas”, como
narrador onisciente, tipo de personagem (plana, redonda...), tempo (cronoló-
gico, psicológico...). Esses recursos não nos servem, pois como já se disse,
interessa o drama íntimo do escritor para inventar uma personagem e suas
ações. Na verdade, as ações imaginadas constituem, mais que tudo, elemen-
tos para compor o retrato de Macabéa, já que o interesse está centrado nas
reações da moça, capazes de nos levar a conhecê-la melhor. É como se nós,
leitores, acompanhássemos passo a passo, no mesmo tempo que o autor, a
vinda ao mundo de uma personagem: os dramas de seu autor são tão próxi-
mos de nós quanto os de Macabéa ou os de Olímpico.
Essa relação com a palavra, com a invenção verbal, já aparece plenamente
no livro anterior, Água viva, de 1973. Neste, contudo, não objetiva invenção


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de ação, enredo ou personagens, permanece inteiramente nas indagações da


criação (no trecho abaixo, compara o verbal e o pictórico):
“Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanal-
mente uma cor. Mas estou tentando escrever-te com o corpo todo, enviando uma
seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra. Meu corpo incógnito te
diz: dinossauros, ictiossauros e plessiossauros, com sentido apenas auditivo, sem
que por isso se tornem palha seca, e sim úmida. Não pinto idéias, pinto o mais
inatingível ‘para sempre’. Ou ‘para nunca’, é o mesmo. Antes de mais nada, pinto
pintura. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar
com a mão a palavra.” (Água viva, p. 13)
Com relação à inspiração para a construção de A hora da estrela, Clarice,
em uma entrevista concedida à tevê no ano de sua morte (a TV Cultura costu-
ma retransmiti-la com freqüência) declara:
“Morei no Recife, (...) me criei no Nordeste. E depois, no Rio de Janeiro tem
uma feira dos nordestinos no Campo de São Cristóvão e uma vez eu fui lá. Daí
começou a nascer a idéia. (...) Depois fui a uma cartomante e imaginei... que seria
muito engraçado se um táxi me pegasse, me atropelasse e eu morresse depois de ter
ouvido todas essas coisas boas.”

Tarefas
Tarefa 1
a) O que se pode afirmar sobre a condição social do narrador Rodrigo S. M.?
b) Como, do ponto de vista da classe social, esse narrador se identifica
com sua personagem?
Tarefa 2
Como você vê a relação de Macabéa com a cultura letrada e a linguagem Foto do cartaz do filme
verbal?
Tarefa 3
Assista ao filme de Suzana Amaral, A hora da estrela, de 1982.
Uma interessante atividade relacionada a A hora da estrela
pode ser comparar o livro e o filme. Dessa comparação, refle-
xões úteis sobre a narrativa podem surgir, principalmente por-
que, sendo o cinema uma arte moderníssima – já que surgiu na
aurora do século XX, há cerca de um século apenas –, traz a
idéia de que em termos de narrativa é sempre mais atualizado do
que a ficção verbal. No caso da adaptação de A hora da estrela
parece, entretanto, mais antigo. No cinema, transpor em imagens
aspectos da subjetividade da personagem é sempre muito difícil,
pois exige do diretor que observe as particularidades de outro
gênero e de outra linguagem.
Suzana Amaral, a diretora do filme, optou por eliminar o dis-
curso do narrador Rodrigo S.M. e contar apenas a história de
Macabéa, o que retirou do romance os elementos metaliterários e
transformou a história numa história realista mais comum.
Após assistir ao filme, discuta a adaptação que a diretora do
filme fez do livro: procure observar os aspectos que ela manteve,
o que retirou e o que acrescentou, e procure entender os motivos
que a levaram a essas opções.


Unidade 2

João Guimarães Rosa


Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradores “A vida também é para ser lida”
Gabriela Rodella João Guimarães Rosa

Silvio Pereira da “O texto é uma forma de vida”


Silva Lukács
Neide Luzia de
Rezende João Guimarães Rosa nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908, e
faleceu no Rio de Janeiro, em 1967. Estudou medicina e foi médico no interi-
or, tratando da gente humilde da região e escutando histórias sertanejas. Essa
experiência marcou-o definitivamente, não só fornecendo a matéria-prima de
suas obras, invariavelmente provenientes da gente e da natureza do sertão
mineiro, como também pelo fato de muitos de seus narradores serem médicos
ou homens da cultura letrada dialogando com a cultura popular. Em Sagarana,
livro que abordamos aqui, essa presença é indiscutível em vários contos.
Muito cedo, iniciou o estudo de idiomas, primeiro com os imigrantes que
viviam na sua cidade, depois através dos livros. Era sua primeira forma de
conhecer o mundo. Tornou-se “sabedor” de pelo menos dezoito idiomas, o
que certamente o ajudou no acesso à carreira diplomática1 .
Atento, gostava de prestar atenção às histórias que eram contadas pelos
adultos durante suas longas conversas. Mesmo após ter viajado pelo mundo
afora, retomou as viagens pelo sertão, acompanhando boiadeiros e ouvindo
suas histórias, contadas ao sabor dos caminhos. Esteve inclusive com o va-
queiro Manuel Nardy, conhecido como Manuelzão, recriado em suas históri-
as do livro Corpo de Baile. Segundo seus companheiros sertanejos, Guima-
rães queria a cada momento anotar e registrar todas as facetas da vida por ali:
os costumes, as superstições e o dia-a-dia de uma gente simples e desconheci-
da do interior das Minas Gerais.
Na carreira diplomática, trabalhou em diversos países. De volta ao Brasil,
assumiu a chefia do Serviço de Demarcação de Fronteiras. Foi eleito para a
Academia Brasileira de letras no ano de 1963, mas adiou a posse vários ve-
zes, pois achava que morreria assim que tomasse posse. Em 16 de novembro

1
Dominar vários idiomas era até agora pré-requisito para ingressar na carreira diplomática. Em
02.10.2004, o jornal Folha de S. Paulo informa que a proficiência em línguas estrangeiras será a partir
de então classificatória, mas não mais eliminatória. Acredita o Itamaraty (instituição federal responsável
pelo exame, ligado ao Ministério das Relações Exteriores) que, dessa forma, o concurso se tornará
menos elitista, pois não exigirá conhecimento de tantas línguas.
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de 1967, finalmente assumiu o cargo. Arrematou o discurso de posse refletin-


do sobre a morte, ao se referir ao patrono da cadeira que ocuparia:
“De repente, morreu: que é quando um homem chega inteiro, pronto, de suas
próprias profundidades. Passou para o lado claro... A gente morre para provar que
viveu. (...) Porém, que é o pormenor da ausência? As pessoas não morrem, ficam
encantadas.”
Três dias depois, numa noite de domingo, a esposa o encontrou morto quando
retornou da missa, vitimado por um ataque cardíaco. Ficara encantado.

Sagarana
Publicado em 1946, Sagarana é o livro de estréia de Guimarães Rosa
(tinha então 38 anos). Escrito durante o ano de 1937, levou quase dez anos
para vir à luz, entre revisões, reorganização e publicação. Quando pergunta-
do sobre o porquê de ter se tornado escritor tardiamente, respondeu que os
homens do sertão eram fabulistas por natureza e que ele sempre havia escrito
“estórias”, só não as havia publicado. Tal comentário mostra bem a natureza
das narrativas rosianas, cuja origem oral permanece reconhecível.
Se formos ao dicionário, não encontraremos o termo sagarana, pois é um
neologismo, ou seja, uma palavra criada pelo autor, com base em dois idio-
mas: saga, radical de origem germânica que significa “lenda, canto heróico,
narrativas em prosa”, e rana, de origem tupi-guarani, que significa “maneira
de ou espécie de”. Como se vê, encontramos mais uma vez a mescla do euro-
peu e do indígena, de certo modo um índice alegórico de nossa identidade
cultural. Para o autor, Sagarana era uma série de “histórias adultas da Caro-
chinha”, fábulas míticas para crianças crescidas.
Sagarana reúne nove contos, todos se passando no “Sertão das Gerais”.
Neles, estão presentes alguns temas recorrentes na obra de João Guimarães
Rosa: a aventura, o relato de morte, os animais que falam e pensam, lembran-
do antigas fábulas, tudo aliado às reflexões filosóficas. Cada uma das nove
histórias começa com epígrafes retiradas de provérbios populares, cantigas do
sertão ou de outras histórias. Essas epígrafes sugerem o que será narrado. O
próprio livro começa com duas epígrafes:
“Lá em cima daquela serra,
passa boi, passa boiada,
passa gente ruim e boa,
passa a minha namorada.”
(Quadra de desafio)

“‘For a walk and back again’, said the fox.


‘Will you come with me? I’ll take you on my back.
For a walk and back again.’”
(Grey Fox, Estória para meninos)2

2
Em tradução livre, algo como:
“Para um passeio de ida e volta”, disse a raposa.
“Você virá comigo? Eu levo vcê nas costas.
Para um passeio de ida e volta”.


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O Conto Nas epígrafes já vislumbramos o universo que será narrado: as serras e


contornos do sertão das Gerais, os bois e as boiadas tocadas pelos sertanejos;
“Não, não sou romancista; sou
o Bom e o Mau, as histórias de amor. E a certeza de que a leitura será como
um contista de contos críticos.
Meus romances e ciclos de ro-
um passeio de ida e volta nas costas de uma raposa: perigoso e tentador.
mances são na realidade con-
tos nos quais se unem a fic- ESTILO DE GUIMARÃES ROSA EM SAGARANA
ção poética e a realidade.”
Guimarães Rosa Com relação ao estilo de Sagarana, podemos dizer que já apresenta diver-
sos elementos relacionados ao modo de Guimarães Rosa ver e relatar o mun-
do. As narrativas de origem oral se fundem com peripécias de antigas históri-
O conto moderno nasceu das as épicas ou heróicas; ou seja, como nas antigas histórias gregas, o indivíduo
tradições orais e ganhou for-
persegue um destino, vivenciando muitas peripécias pelo caminho e sendo
ça como gênero no final do
posto duramente à prova quando, por exemplo, vai contra a natureza (“O
século XIX. Antes disso, com o
autor italiano humanista Boc-
burrinho pedrês”), comete excessos (“A hora e a vez de Augusto Matraga”)
caccio, que escreveu os con- ou erro (“O duelo”).
tos de Decameron, o gênero Quanto à linguagem, Guimarães Rosa é um notável e incomum criador de
teve um lugar de destaque en- palavras, que se utiliza dos mais diversos processos: sobressaem composições
tre as grandes obras univer-
e derivações novas, usos de arcaísmos (agarantir, alembrar, alumiar, palavras
sais. Inspiradas nesses contos,
e expressões muito usadas no interior) e eruditismos. O processo de criação
surgiram as novelas renascen-
tistas na Itália e as “novelas
tem como ponto de partida o modo de falar particular dos sertanejos.
exemplares” na Espanha de Seus textos também apresentam uma musicalidade muito peculiar, construída
Cervantes. No século XVIII, os a partir de procedimentos rítmicos da poesia, com uso de diversos recursos
iluministas franceses, Voltaire sonoros como rimas, aliterações e assonâncias. Ainda, encontramos os jogos de
e Diderot, utilizaram o gênero palavras, os trocadilhos, as associações inusitadas de imagens. (Tarefa 6)
para explicitar suas idéias fi-
losóficas. Seu modo de pontuar também participa dessa construção rítmica das frases,
que faz lembrar a marcha das boiadas, a passagem imperceptível do tempo, o
Espécie de abreviação do ro-
mance, o conto tende a se
bater das asas dos pássaros, o movimento da vegetação. Com a pontuação, ele
concentrar em um momento busca um ritmo que só pode ser encontrado na poesia do sertão. Também deve-
da vida, apresentando um fla- mos citar as inúmeras metáforas: “De noite, saiu uma lua rodo-leira, que alumi-
grante dela. No romance, ha- ava até passeio de pulga no chão”, uma imagem corriqueira e sertaneja.
via o desejo de narrar e apre-
As personagens de Sagarana se relacionam com a paisagem mineira, com o
ender a vida em sua totalida-
espaço rural, a vida dos vaqueiros e dos criadores de gado – mundo da infância
de de sentido. No conto, a
impressão é de que a vida só
de Guimarães Rosa. É comum encontrarmos, nos sertões das Gerais, homens
é apreensível em um momen- contando histórias de fama e valentia, assombrações, dores e perdas, alegrias e
to qualquer, específico, em um vitórias. São os “causos” antigos, como lá se diz, histórias de outros tempos.
fragmento. À primeira vista, poderíamos ter a impressão de que Guimarães Rosa é um
Também chamamos de con- escritor regionalista, em virtude da presença da vida e região mineira em toda
to as narrativas folclóricas a obra. No entanto, ele recria o cotidiano das pessoas no espaço rural, revela
orais, populares. A tradição seus encantos. Afinal, o que é a literatura, senão a capacidade de revelar aqui-
oral de narrar histórias da vida lo que de outro modo estaria oculto? A vida se mostra de um novo jeito e
existe desde as antigas civili- coisas que nossa sensibilidade não abarcava podem ser a esta reveladas pela
zações. Muitas vezes essa tra- literatura. Sendo isso tão sutil, não é toda escrita que o consegue – por isso,
dição se perpetuou sob a for-
afinal, tão poucos escritores se perpetuam, pois só um grande talento resiste a
ma de narrativas imaginárias
diferentes leituras em diferentes épocas.
e fantásticas, formadoras do
folclore comum da maioria Guimarães Rosa é o criador de uma obra em que elementos da cultura
dos países ocidentais e ori- popular e elementos da cultura erudita se mesclam para reinventar a força da
entais (na literatura árabe te- linguagem sertaneja e mineira. Apesar de ter um “sabor regional”, a produção
mos, por exemplo, a coletâ- de Guimarães transcende esse regional e se torna universal. Os temas de Gui-
nea de contos As Mil e Uma
marães Rosa, apesar de inseridos na vida do sertanejo e dela decorrentes,


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podem ser reconhecidos também como de outros indivíduos de outros tem- Noites). Entre os nossos índi-
pos e lugares, e com eles todos podemos nos identificar. os, também encontramos a
narrativa de lendas e mitos
ESTUDO DOS CONTOS DE SAGARANA variados, que davam e dão
sentido à vida até hoje.
Sagarana é um livro constituído de nove contos: “O burrinho pedrês”, “A
Volta do Marido Pródigo”, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha gente”, “São Mar- Fábula
cos”, “Corpo fechado”, “Conversa de bois” e “A hora e a vez de Augusto A fábula é uma narrativa ale-
Matraga”. São histórias de teor épico, folclóricas, de amor, mistério, nas quais o górica, em que as persona-
autor universaliza o sertão, misturando o popular e o erudito. Neste estudo, gens são geralmente animais.
vamos deixar de fora dois contos – “Minha gente” e “A Volta do Marido Pródi- Tem como objetivo fornecer
go” por considerá-los os menos interessantes para a problemática geral da obra. um exemplo de natureza
moral. Através do comporta-
mento dos animais, há a apre-

O Burrinho Pedrês Desenho de Poty


sentação direta das virtudes
e defeitos dos seres humanos.
Assim, apresenta duas partes:
Era um burrinho pedrês, miúdo e re-
a narrativa, com as imagens e
signado, vindo de Passa Tempo, Concei- o aspecto figurativo da ação,
ção do Serro, ou não sei onde no sertão. e a moralidade, que traz uma
Chamava-se Sete-de-Ouros, e já fora tão possível verdade ou preceito
bom, como outro não existiu e nem pode aos homens, que pode vir ex-
haver igual. plicitado ou diluído no cor-
Agora, porém, estava idoso, muito ido- po da narrativa. É a morali-
dade que diferencia esse tipo
so. Tanto, que nem seria preciso abaixar-
de narrativa de outras que
lhe a maxila teimosa, para espiar os cantos
também apresentam proso-
dos dentes. Era decrépito mesmo à distân-
popéia ou personagens me-
cia: no algodão bruto do pêlo – semen- taforizados, como o mito e a
tinhas escuras em rama rala e encardida; lenda. Pode apresentar uma
nos olhos remelentos, cor de bismuto, com pálpebras rosadas, quase sempre oclusas, temática variada: a vitória da
em constante semi-sono; e na linha, fatigada e respeitável – uma horizontal perfei- bondade sobre a astúcia e da
ta, do começo da testa à raiz da cauda em pêndulo amplo, para cá, para lá, tangen- inteligência sobre a força, a
do as moscas. derrota dos presunçosos, sa-
Na mocidade, muitas coisas lhe haviam acontecido. Fora comprado, dado, bichões e orgulhosos etc.
(Texto elaborado a partir de
trocado e revendido, vezes, por bons e maus preços. Em cima dele morrera um
informações presentes na
tropeiro do Indaiá, baleado pelas costas. Trouxera, um dia, do pasto – coisa muito
©Encyclopaedia Britannica
rara para essa raça de cobras – uma jararacuçu, pendurada do focinho, como linda do Brasil Publicações Ltda.)
tromba negra com diagonais amarelas, da qual não morreu porque a lua era boa e
o benzedor acudiu pronto. Vinha-lhe de padrinho jogador de truque a última
intitulação, de baralho, de manilha; mas, vida afora, por amos e anos, outras tivera,
sempre involuntariamente: Brinquinho, primeiro, ao ser brinquedo de meninos;
Rolete, em seguida, pois fora gordo, na adolescência; mais tarde, Chico-Chato,
porque o sétimo dono, que tinha essa alcunha, se esquecera, ao negociá-lo, de
ensinar ao novo comprador o nome do animal, e, na região, em tais casos, assim
sucedia; e, ainda, Capricho, visto que o novo proprietário pensava que Chico-
Chato não fosse apelido decente.
As primeiras palavras do conto já geram certo estranhamento: “Era um
burrinho pedrês...”. A impressão que temos é que estamos iniciando a leitura
de uma história escrita para crianças. Prosseguindo a leitura, percebemos que
houve uma apropriação do discurso utilizado nos contos infantis. Embora não
seja propriamente uma fábula – afinal, não temos a prosopopéia –, a presença
de um animal será fundamental para o desenvolvimento da ação; ou seja, por
meio de uma personagem, no caso um burrinho, o escritor pretende instruir,


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oferecer uma lição moral. As histórias dos homens se cruzam com a história
do bicho. Pode-se dizer que o escritor aproveitou características da fábula
para escrever o seu conto, cuja modernidade se encontra justamente nessa
liberdade de mesclar gêneros diferentes e, com isso, ampliar as possibilidades
que a literatura abre para o leitor.
Em meio à narrativa principal, temos também outras histórias que são con-
tadas pelos vaqueiros. Eles relatam casos conhecidos, fantásticos, surpreen-
dentes como o caso do boi Calundu que, inexplicável e inesperadamente,
mata o menino com quem mantinha amigável convívio; e o caso do cruel
Leôncio Madureira, cuja morte parecia estar sendo festejada pelos bois.
De modo geral, entretanto, esses casos secundários são postos em função
do principal, têm a finalidade de comprovar ou preparar terreno para a histó-
ria principal, ou seja, desvelar um pouco a natureza dos animais para entender
que também eles têm sentimentos e razão. Dito assim, parece ser uma fábula
invertida, isto é, usam-se os sentimentos dos seres humanos para entender o
comportamento dos animais.
Em “O Burrinho Pedrês”, Guimarães procura mostrar, tendo como pano
de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a possibilidade de ser útil. É
o caso do burrinho Sete-de-Ouros. E observe-se que tudo é colocado como
coisa do Destino, acontecida por acaso.
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de
um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência
de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite –
nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das
Velhas, no centro de Minas Gerais.
Nesse trecho, o narrador antecipa a importância do animal para o desen-
volvimento da história, ele cria uma expectativa. A travessia, que funciona
alegoricamente como prova, como possibilidade de superação de obstáculos,
é uma imagem freqüente em Guimarães Rosa. A história que virá será signifi-
cativa e funcionará como a síntese de uma vida – nesse sentido, a concisão da
vida se vincula à concisão necessária do gênero conto.

Tarefa 1
Como afirmamos, o texto apresenta semelhanças com elementos caracte-
rísticos das fábulas. Você conhece alguma fábula? Conte para os colegas al-
guma história desse gênero que tenha ouvido ou lido.

Tarefa 2
Um dos traços da fábula é o ensinamento. Qual foi o exemplo de natureza
moral apresentado no texto? Escreva um breve comentário sobre isso.

Tarefa 3
Uma atividade muito interessante é construir trovas. São pequenos poe-
mas com quatro versos, cada verso com sete sílabas poéticas, as redondilhas
maiores. Muitos são os temas, mas sempre relacionados ao cotidiano. Procure
escrever uma ou mais trovas e leia em sala para os colegas.

Tarefa 4
Durante a leitura do conto, procure observar também os recursos lingüís-
ticos empregados. Muitas vezes, a disposição das palavras e a prosódia são
fundamentais para a criação de uma imagem, como ocorre nesses trechos:


 

Galhudos, gaiolos, estrelos, espácios, combuscos, cubetos, lobunos, lompardos,


caldeiros, cambraias, chamurros, churriados, corombos, cornetos, bocalvos, borra-
lhos, chumbados, chitados, vareiros, silveiros... E os tocos da testa do mocho
macheado, e as cuarmas antigas do boi cornalão...
Move-se o rebanho lentamente e o ritmo acompanha-lhes a marcha cadente e
uniforme.
As ancas balançam, e as vagas de dorsos, das vacas e touros, batendo com as
caudas, mugindo no meio, na massa embolada, com atritos de couros, estralos de
guampas, estrondos e baques, e o berro queixoso do gado junqueira, de chifres imen-
sos, com muita tristeza, saudade dos campos, querência dos pastos de lá do sertão...

QUAIS FORAM OS RECURSOS LINGÜÍSTICOS


EMPREGADOS NESSES TRECHOS?
Tarefa 5
Encontramos também material folclórico aproveitado no conto. Que ele-
mentos do folclore podem ser identificados?

Tarefa 6 Desenho de Poty


Quando comentamos sobre o estilo de Sagarana,
afirmamos que os contos do livro “apresentam uma
musicalidade muito peculiar, construída a partir de pro-
cedimentos rítmicos da poesia, com uso de diversos re-
cursos sonoros como rimas, aliterações e assonâncias.
Ainda, encontramos os jogos de palavras, os trocadi-
lhos, as associações inusitadas de imagens”. Encontre
exemplos desses procedimentos e copie-os. Sugere-se
que essa tarefa seja cumprida ao longo da leitura dos
contos e retomada ao final do estudo de Sagarana.

Sarapalha
Em “Sarapalha”, a paisagem é apresentada de modo
detalhado, ressaltando dois aspectos: a tristeza e o aban-
dono do lugar. Essas percepções se intensificam à me-
dida que a narrativa prossegue e explicações sobre o lugar são acrescentadas.
A ação se desenvolve num cenário de ruínas causadas pela maleita: “Ela veio
de longe (...) matando muita gente”. As pessoas se foram, mortos e vivos; uns
porque a doença os levou, outros fugindo da morte: “os primeiros para o
cemitério, os outros por aí afora, por este mundão de Deus”.
Tapera e arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado intei-
ro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozi-
nha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.
Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar já esteve nos
mapas, muito antes da malária chegar.
Como se pode ver, a descrição do ambiente torna triste a narrativa.
É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantela-
da; uma cerca de pedra-seca, do tempo de escravo; um rego murcho, um moinho
parado; um cedro alto, na frente da casa; e, lá dentro, uma negra, já velha, que


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capina e cozinha o feijão. Tudo é mato, crescendo sem regra; mas, em volta da
enorme morada, pés de milho levantam espigas, no chiqueiro, no curral e no
eirado, como se a roça se tivesse encolhido, para ficar mais ao alcance da mão.
E tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborca-
do, cabisbaixos, quentando-se ao sol.
Restaram três pessoas: uma senhora, que cuida do lugar, e dois homens
doentes. Esses dois seres, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, alquebrados pela
maleita, recordam o passado e dialogam, reconstituindo suas histórias. Trági-
ca e triste história a do Primo Ribeiro: Luisa, a sua mulher, fugira com outro,
deixando-o só e doente: “– P’ra que é que há-de haver mulher no mundo, meu
Deus?...” – pensa o Primo Argemiro. Também o mundo interno das persona-
gens foi destruído, em íntima relação com a calamidade social. A narrativa
enfoca a solidão, o abandono e a decadência dos homens e do lugar. Os pro-
tagonistas de Sarapalha são seres em estado de desgraça, sem esperança.
Neste conto, a preocupação sanitária do narrador, o conhecimento cientí-
fico da doença, a falta de trabalho preventivo na região remetem para o saber
médico do autor Guimarães Rosa, médico sanitarista.

Tarefa 1
Esse é um relato marcado pela desilusão, pela força do abandono. O que
leva as pessoas a ficarem, quando todos se vão?

Tarefa 2
Identifique no conto as explicações relacionadas ao saber médico. Faça
um breve comentário sobre isso, se necessário recorrendo ao dicionário ou a
enciclopédias, e entregue para o monitor.

Tarefa 3
No conto, os sintomas da malária (maleita ou sezão) contribuem para tra-
zer à tona aspectos do mundo interno das personagens. Compare os sintomas
com a natureza das manifestações psíquicas das personagens (tarefa para ser
discutida em sala com o monitor).

O Duelo
O duelo, que não houve propriamente, foi entre Turíbio Todo e Cassiano
Gomes. No início da história, o narrador nos diz que Turíbio tinha razão, mas
que depois as coisas mudaram. A causa do “duelo” foi a infidelidade amoro-
sa, cuja honra o marido queria lavar com sangue. Motivo de honra: Turíbio
encontra, certa vez, voltando à casa “sem contra-aviso”, a mulher “em pleno
adultério” com o Cassiano Gomes. O marido, traído e cauteloso, não fez nada
naquele momento, preferiu agir traiçoeiramente e assim procurou dar cabo do
desonrador, “baleando-o bem na nuca”.
Mas um engano de Turíbio Todo inverte a situação, pois confundiu-se e
matou Levindo Gomes, irmão de Cassiano Gomes. Assim a trama se arma e a
ação se desenvolve mediante uma caçada: “Turíbio fugindo e o outro atrás. E
nessa desavença passaram-se muitos meses. E continuou o longo duelo, e com
isso já durava cinco ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem desfe-
cho”. Assim, a narrativa ora está focada no trajeto de Turíbio, fugindo pelo
sertão, ora nos passos de Cassiano, que segue no seu encalço. Cassiano, mais


 

novo, melhor estrategista, “pula-pula, ora em recuos estúrdios, ora em bizarras


demoras de espera, sempre bordando espirais em torno do eixo da estrada-
mãe”; Turíbio, mais velho, melhor tático, “vai-não-vai, em marcha quebrada...”.
Quanto à esposa, Dona Silvana, o narrador comenta, com ironia e humor:
Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silvana tinha grandes
olhos bonitos, de cabra tonta), porque era um cavalheiro, incapaz da covardia de
maltratar uma senhora, e porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para
lavar, enxaguar e enxugar a honra mais exigente.
Ela parece aguardar o final da disputa, para ficar com quem sobrar.

Tarefa 1
O adultério já apareceu em outros textos estudados até o momento, como
em Memória póstumas de Brás Cubas e em O Primo Basílio. Aqui também ele
aparece em mais de um conto. Aproveite para relembrar os livros que leu e
comente o que tal comportamento traz como conseqüência para as persona-
gens envolvidas.

Tarefa 2
No início do conto, para traçar o perfil da personagem, o autor faz uma
comparação entre uma característica física de Turíbio Todo e a de alguns ani-
mais. Qual é a parte anatômica comparada e qual o objetivo desta comparação?

Tarefa 3 Desenho de Poty


Uma das temáticas desenvolvidas no conto é a
saga dos valentões. Como são construídos os perfis
dos dois oponentes? Comente sobre as fraquezas de
cada um, ironicamente apresentadas pelo narrador.

Tarefa 4
O duelo realmente não ocorreu. Será que pode-
mos afirmar que seria, na verdade, um duelo de cada
um com o seu próprio destino? Discuta com os co-
legas sobre esse ponto.

Tarefa 5
Em que trecho(s) podemos encontrar a referên-
cia a um narrador culto, um doutor?

São Marcos
Em “São Marcos”, o foco narrativo encontra-se
em primeira pessoa. Assim se inicia: “Naquele tempo
eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiti-
ceiros.” O personagem-narrador de “São Marcos” se
diz avesso à feitiçaria e às outras artes; no entanto, se
refere a elas constantemente e acaba utilizando-as.
Há trechos bem interessantes quanto ao narrador,
como esse em que descreve o ambiente:


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E eu levava boa matalotagem, na capanga, e também o binóculo. Somente o


trambolho da espingarda pesava e empalhava. Mas cumpria com a lista, porque eu
não podia deixar o povo saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro,
só para ver uma mudinha de Cambuí a medrar da terra de-dentro de um buraco no
tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a
pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o
namoro dos guaxes, pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo
se o meu xará João-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso
domingueiro; para apostar sozinho, no concurso de salto-à-vara entre os gafanho-
tos verdes e os gafanhões cinzentos; para estudar o treino de concentração do
jaburu acromegálico; e para rir-me, à glória das aranhas-d’água, que vão corre-
correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é
mesmo chão para se andar em cima.
Quando fala do João-de-barro, ele o chama de xará, ou seja, seu nome é
João: o próprio Guimarães Rosa. O médico que viaja pelo sertão e quer opor
seu saber científico à magia? Poucas linhas à frente ele nos surpreende, ao
dizer que ouviu um grito:
– ‘Güenta o relance, Izé!...
Estremeci e me voltei, porque, nesta estória, eu também me chamarei José.
De modo inusitado, o escritor assume a personalidade da personagem, ou
seja, um e outro tornam-se um só.
O narrador vivia a fazer deboches de João Mangalô, feiticeiro conhecido
no local, apesar das advertências de Nhá Rita, sua cozinheira: “– Se o senhor
não aceita, é rei no seu; mas abusar não deve-d”. Um dia, antes de sair para
uma caçada, passa próximo à casa do negro e diz:
- Você deve conhecer os mandamentos do negro... Não sabe? “Primeiro: todo
negro é cachaceiro...”
- Oi, oi! ...
- “Segundo: todo negro é vagabundo”.
- Virgem!
- “Terceiro: todo negro é feiticeiro...”
O seu lado debochado e desrespeitoso fica evidenciado na forma como ele
trata o negro velho, que vive próximo. Após os ataques ele sai para a caçada.
A desavença entre o narrador e um feiticeiro, nesse momento, parece mero
elemento ilustrativo de uma característica do narrador. No entanto, esse fato é
importante.
Depois de algum tempo andando pelo meio da mata, a personagem pára
ao lado de uma lagoa e fica observando a paisagem, ressalta-se a tranqüilida-
de e a beleza da natureza, tudo está muito calmo, em paz. Até que algo estra-
nho e inesperado lhe acontece:
E, pois, foi aí que a coisa se deu, e foi de repente: como uma pancada preta,
vertiginosa, mas batendo de grau em grau – um ponto, um grão, um besouro, um
anu, um urubu, um golpe de noite... E escureceu tudo.
Assustado, “estuporado” como ele diz, percebe-se tomado por uma ce-
gueira repentina. Inicia-se assim um drama, e desesperado ele tenta entender
o que aconteceu.
Aqui cabe lembrar a conversão de Paulo, antes chamado de Saulo. Segun-
do o texto bíblico, Paulo era um grande perseguidor de cristãos, responsável


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pela morte de alguns. Conta-se que em viagem para a cidade de Damasco, Devo acrescentar que Rosa
feita em função da perseguição que empreendia, sofre uma cegueira repenti- é um animalista notável: fer-
na e ouve uma voz que lhe cobra explicações: “Saulo, Saulo por que me vilham bichos no livro, não
persegues?”3 É o momento de sua conversão. A cegueira no caso do narrador convenções de apólogo,
de São Marcos também exige dele uma transformação, será em virtude dela mas irracionais, direitos exi-
que ele utilizará a força daquilo que ele negava, pois terá que contrapor seu bidos com peladuras, espa-
poder ao do feiticeiro. ravões e os necessários mo-
vimentos de orelha e de ra-
Tarefa 1 bos. Talvez o hábito de exa-
minar essas criaturas haja
Em “São Marcos”, as descrições, inicialmente, são marcadas por muitas
aconselhado o meu amigo
cores, formas e luzes, e depois de um acontecimento importante, as imagens
a trabalhar com lentidão bo-
cedem lugar aos sons e ao ritmo. É curioso perceber assim o conto. Você pôde vina. Certamente ele fará
observar isso? um romance, romance que
não lerei, pois, se for come-
Tarefa 2 çado agora, estará pronto
Nesse texto, está presente o mundo das superstições e feitiçarias muito em 1956, quando os meus
comuns no interior do Brasil, onde se contam muitos causos dessa natureza. ossos começaram a esfa-
O que você pensa dessas questões? Até que ponto as superstições podem relar-se.
afetar a vida de uma pessoa? Escreva uma breve dissertação a esse respeito e
entregue ao monitor. Trecho de “Conversa de
bastidores” de Graciliano
Tarefa 3 Ramos, retirado do livro Li-
nhas Tortas
Apesar de querer impor a si o domínio da razão, o narrador demonstra ser
bastante supersticioso. Identifique o(s) trecho(s).

Corpo Fechado
Essa história começa com uma con-
versa entre o protagonista, Manuel Fulô,
e o doutor, que faz perguntas sobre os
valentões da região. Manuel Fulô vai
descrevendo cada um dos valentões e
suas histórias, de como eles morreram
ou foram mortos. Conversa vai e vem,
eles chegam ao Targino, homem “ma-
ligno”, que já fora até excomungado e
que ocupa a vaga de valentão do momento. Manuel Fulô acredita que o casti- Desenho de Poty
go de Deus não tardará a recair sobre ele.
Quem assume a narrativa a partir daí é o doutor, que logo explica: “Pois
foi nesse momento calamitoso que eu vim para Laginha, de morada, e fui
tomando de tudo a devida nota”. Narrando tudo em primeira pessoa, o doutor,
médico, homem da cidade, que sabe escrever e tem estudo, vai contando
sobre os costumes e rotinas da região, das brigas, da amizade com Manuel
Fulô, sujeito “pingadinho, quase menino”, e do afeto que este tinha para com
sua mula, Beija-Fulô. Tomamos conhecimento também de que Manuel Fulô
vai se casar com Das Dor.
Mas eis que surge Targino, no bar onde Manuel Fulô conversa com o
doutor, e ficamos sabendo que “foi então que de fato a história começou”. O

3
A conversação de Paulo encontra-se em Atos dos apóstolos, capítulo 9, versículos 1 a 19.


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valentão faz uma ameaça a Manuel Fulô: quer visitar a noiva dele, um dia só,
e se ele, Manuel, ficar quieto, fica vivo. Sem saber o que fazer, o protagonista
cai no sono, bêbado, na casa do doutor.
Enquanto todos da cidade desencorajam qualquer reação, esperando só o
momento em que a Fera procurará a Bela, mais uma vez tomamos conheci-
mento que “de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui”. Surge o
“Antonico das Pedras, ou Antonico das Águas, que tinha alma de pajé” e, num
particular com Manuel Fulô, lhe fecha o corpo com uma pajelagem em troca
da mula Beija-Fulô. Manuel enfrenta o Targino, dá-lhe o castigo final, aquele
que já estava encomendado por Deus, e se torna um valentão “manso e deco-
rativo, como mantença da tradição e para a glória do arraial”.

Tarefa 1
No decorrer da narrativa, o doutor, narrador-testemunha, faz uma descri-
ção da figura de Manuel Fulô. Encontre e assinale no texto o parágrafo em
que tomamos contato com suas características físicas e psicológicas. Por que
o narrador afirma, ao final da história, que Manuel se torna um valentão “man-
so”? Qual é a função que Manuel Fulô assume depois de matar Targino?

Tarefa 2
Depois da ameaça do valentão Targino, o doutor acolhe Manuel Fulô sob
seu teto e sai em busca de ajuda para a resolução do caso.
a) Qual a primeira reação de Manuel Fulô ao ouvir a ameaça de Targino?
b) Qual a reação do Coronel da região?
c) Qual a reação do vigário?
d) Como reagem os parentes de Manuel Fulô, os Veiga?

Tarefa 3
Durante o conto, Manuel Fulô conta para o doutor sobre as atividades de
Antonico das Águas.
“– Tenho ódio dele, tenho mesmo! É um sujeito sem préstimo, sem aquela-
coisa na cara… É o pior pedreiro do arraial, não sabe nem plantar uma parede. Só
sabe é fazer feitiço, vender garrafada de raiz do mato, e rezar reza brava. Tem partes
com o porco-sujo… Não presta! Gente assim não devia de ter!…
– Mas tem muita, Manuelzinho Fulô.
– Não brinca, seu doutor! O senhor também devia mas é me ajudar a ter ódio do
cachorro do Toniquinho das Águas… Ele vive desencaminhando o povo de ir se
consultar com o senhor. Dizendo que doutor-médico não cura nada, que ele sara os
outros muito mais em-conta, baratinho… Ele quer plantar mato na sua roça e frigir
ovo no seu fogão! O senhor não vê? Ele não faz receita no papel, só porque não
sabe escrever, e isso que nem o boticário não aviava nenhuns-nada… Mas benze,
trata de tudo, e aconselha que a gente não deve de tomar remédio de botica, que
deve de tomar é só cordial… Qualquer dia ele arruma uma coisa-feita, p’ra modo
de fazer o senhor ir-s’embora daqui…
– Feitiço em mim não pega, Manuel…

a) Por que Manuel tenta convencer o doutor a fazer algo contra o Antonico
das Águas? O que é que está em jogo entre o Manuel Fulô e o Antonico?


 

b) Por que o Antonico das Águas é descrito como concorrente do doutor?


O que o doutor quis dizer com “Feitiço em mim não pega, Manuel…”? O que
aconteceu depois que Manuel e Antonico conversaram?

Tarefa 4
O começo dessa “estória” de Guimarães é um diálogo entre o doutor e
Manuel Fulô. Logo depois, entramos em contato com um narrador em primei-
ra pessoa, o próprio doutor, que nos narra suas impressões sobre a vida e os
habitantes do arraial de Laginha. No meio da narrativa, contando de quando
Das Dor vai visitá-lo, o doutor faz o seguinte comentário: “e aí foi que a
história começou”. Lá pelo segundo terço da história, nos deparamos com a
seguinte proposição: “E foi então que de fato a história começou”. E mais
para o final do causo, ainda topamos com a afirmação: “Mas, de fato, cartas
dadas, a história começa mesmo é aqui”.
Depois de ler o texto, tente entender o que significam essas afirmações.
Uma dica: pense no enredo e na ação das personagens. Por que você acha que
o autor usou esse artifício para dar desenvolvimento à narrativa? Qual o efeito
conseguido quando ele faz estas afirmações?

Tarefa 5
Desafio: e se Antonico das Águas não tivesse fechado o corpo de Manuel
Fulô? Como seria o final da história? Reconte o final a partir dessa perspecti-
va e entregue seu texto ao monitor.

Conversa de Bois Desenho de Poty


No conto “Conversa de Bois”, entramos em contato com uma
história que é narrada por diversas vozes. Ao longo da narrativa, os
monólogos, diálogos, falas interiores de vários personagens vão se
entrelaçando como se fossem diálogos: Manuel Timborna, a irara, os
bois, o menino Tião. São essas falas (proferidas ou apenas pensadas)
que vão tecendo o enredo e se misturando, até não percebermos mais
quem é que nos conta a história, que acaba se construindo como um
drama (no drama, ou seja, no teatro, são as personagens que contam
a história). A história parece contar-se sem a presença de alguém que
a narre, embora lá no início Manuel Timborna se apresente como
narrador. Na verdade, há várias vozes, cada qual com seu ponto de
vista do que vai acontecendo, da vida que se vai desenrolando. Por
meio dessas vozes, pode-se construir um vínculo entre os homens reais e suas
crenças, dúvidas e questionamentos (entendendo-se que nas fábulas os ani-
mais remetem a aspectos da vida e dos sentimentos humanos).
No começo da narrativa, há a menção a um tempo mítico, dos “livros das
fadas carochas”, no qual os bois falavam. A dúvida que o narrador, interlocutor
de Manuel Timborna, se coloca é se os bois falam ainda hoje:
Que já houve um tempo em que eles conversavam, entre si e com os homens, é
certo e indiscutível, pois que bem comprovado nos livros das fadas carochas. Mas,
hoje-em-dia, agora, agorinha mesmo, aqui, aí, ali e em toda a parte, poderão os
bichos falar e serem entendidos, por você, por mim, por todo o mundo, por qual-
quer um filho de Deus?!


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– Falam, sim senhor, falam!… – afirma o Manuel Timborna, das Porteirinhas, –


filho do Timborna velho, pegador de passarinhos, e pai dessa infinidade de
Timborninhas barrigudos, que arrastam calças compridas e simulam todos o mes-
mo tamanho, a mesma idade e o mesmo bom-parecer; – Manuel Timborna, que, em
vez de caçar serviço para fazer, vive falando invenções só dele mesmo, coisas que
outras pessoas não sabem e nem querem escutar.
– Pode que seja, Timborna. Isso não é de hoje: …“Visa sub obscurum noctis
pecudesque locutae. Infandum!…”* Mas, e os bois? Os bois também?…
– Ora, ora!… Esses é que são os mais!… Boi fala o tempo todo. Eu até posso
contar um caso acontecido que se deu.
– Só se eu tiver licença de recontar diferente, enfeitado e acrescentado ponto e
pouco…
– Feito! Eu acho que assim até fica mais merecido, que não seja.
Por esse diálogo introdutório, percebemos que a história que será contada
se filia às narrativas míticas, originais, dos tempos em que os bois falavam
realmente. A citação em latim do poeta romano Virgílio (Geórgicas 1, 478-9)
associa o que vai ser contado às epopéias greco-latinas fundadoras da cultura
ocidental. Além disso, a proposta do interlocutor de Timborna, de recontar a
história enfeitada e aumentada, é muito bem recebida pelo suposto narrador,
dando a entender que ele mesmo poderia fazê-lo também. O homem letrado,
culto, que fala latim, aqui não tem nada para contar e, por isso, cede seu
ouvido, a voz e a vez para os outros, para os homens e os bois do sertão.
* A citação em latim é de Virgílio (Geórgicas 1, 478-9). Entre colchetes, o
sujeito da sentença, que G. R. omitiu: [simulacra, modis pallentia miris] uisa sub
obscurum noctis, pecudesque locutae (infandum!): [espectros assombrosamente
pálidos] apareceram e os rebanhos falaram: (coisa indizível!)

Tarefa 1
Faça um resumo da história com suas próprias palavras, isto é, interprete e
sintetize as falas, não as reproduza. Com isso, você será capaz de mostrar o
que se conta e como se conta.

Tarefa 2
“Conversa de Bois” começa com a passagem do carro-de-boi pela encru-
zilhada da Ibiúva. Seguindo o menino-guia, Tiãozinho, os oito bois (Buscapé,
Namorado, Capitão, Brabagato, Dançador, Brilhante, Realejo e Canindé) pu-
xam o carro, carregado de rapadura e de um morto: o pai de Tião. Atrás da
comitiva, vem o carreiro, Agenor Soronho. O leitor vai seguindo o rumo do
carro-de-boi, acompanhando a passagem do ponto de vista da irara (cachorri-
nho-do-mato, também chamado papa-mel), que, mais tarde, contará tudo o
que se passou para o Timborna. Este, por sua vez, narra tudo a seu interlocutor
e a nós, leitores.
Esse narrador em terceira pessoa, onisciente, que sabe tudo o que se pas-
sou, vai pouco a pouco cedendo seu lugar à fala dos bois (apresentada em
discurso direto) e ao pensamento de Tião (que aparece em discurso indireto
livre, num fluxo de consciência).
Assinale no texto três trechos em que esses focos narrativos aparecem:
a) o narrador onisciente neutro, Timborna;
b) a fala dos bois;
c) o pensamento de Tião.


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Tarefa 3
Leia o trecho abaixo:
– Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-carro, sabemos
pensar como o homem!…
Mas Realejo, pendulado devagar fronte e chifres, entre os canzis de madeira
esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinho duro, resmunga:
– Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar
como o homem…
– É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar… Como os
homens… Por que é que tivemos que aprender a pensar?…
– É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros…
– Pior, pior… Começamos a olhar o medo… o medo grande… e a pressa… O
medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho… É ruim
ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens… As coisas ruins são do homem:
tristeza, fome, calor – tudo, pensado, é pior…
– Mas pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bom… É melhor
do que comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no pasto, ainda haverá
boas touceiras do roxo-miúdo, que não secaram… E mesmo o catingueiro-branco
está com as moitassó comidas a meia altura… É bonito poder pensar, mas só nas
coisas boas.
No trecho de Guimarães, o pensamento pode levar tanto ao sentimento do
medo quanto à lembrança de coisas boas. Pensar também vai levar o boi Bri-
lhante a se lembrar da história do boi Rodapião, uma narrativa exemplar re-
cuperada através da memória. Pensar, lembrar, narrar: três verbos interligados.
Para o filósofo alemão Walter Benjamin (séc. XX), a arte de narrar está em
vias de extinção. O narrador oral, antigo, jamais será recuperado. Só o pode-
ria ser por meio das letras, da escrita: a história que se conta, que ensina algo,
rediz alguma coisa que dá sentido à existência dos homens. As letras, a escri-
ta, se apropriam da voz oral; elas recompõem, refazem a tradição do narrar.
Refletindo sobre essas colocações e sobre o desejo expresso de Guima-
rães Rosa de contar histórias da Carochinha para adultos, poderíamos afirmar
que o ato de narrar recupera uma sabedoria antiga e a passa adiante? Justifi-
Desenho de Poty
que brevemente sua resposta.

A hora e a vez de
Augusto Matraga
“A hora e a vez de Augusto Ma-
traga” conta a história de um poderoso
e temido coronel. Cercado de capangas
e exercendo malvadezas, logo no iní-
cio da história uma grande virada circunstancial desequilibra o personagem:
sua mulher o abandona, sua terra é tomada, seus capangas o traem e seu
inimigo o condena à morte. Surrado, ferido a facadas e marcado como gado,
Matraga escapa da morte porque cai no abismo. Milagre? Lá embaixo no
brejo, torna-se um humilde penitente temente a Deus e se recupera com a
ajuda de um casal de lavradores, que ele considera seus pais adotivos, pai


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Sarapião e mãe Quitéria, e de um padre. Em um encontro com o temido ja-


gunço Joãozinho Bem-Bem, relembra com nostalgia os tempos violentos e
agressivos, mas resiste à tentação do convite para se juntar ao bando do fora-
da-lei. De todo modo, abandona o lugar onde esteve recluso, recupera-se dos
ferimentos e empreende uma viagem pelo sertão. No final, é redimido por
salvar inocentes, resistindo aos desmandos do jagunço e se sacrificando.
A crítica Walnice Nogueira Galvão, no artigo intitulado “Matraga: sua
marca”, tece um claro paralelo entre o conto, a vida de São Francisco de Assis
e o martírio de Jesus Cristo:
“A trilogia mítica dos ritos de iniciação – morte, renascimento e vida – reapa-
rece aqui em sua forma cristã, de pecado, penitência e redenção, ou inferno, purga-
tório e céu. A uma vida de pecado se sucede uma morte aparente, seguida por uma
ressurreição para uma nova vida, prefiguração da passagem da vida terrena para a
vida eterna através da morte do corpo e salvação da alma. A quase-morte é uma
espécie de aviso e última oportunidade. (…) Os sofrimentos de Matraga, não só os
do corpo mas sobretudo os da alma, ao perceber quanta maldade fizera, são consi-
derados como uma amostra do inferno, que Deus em infinita misericórdia conce-
deu para que se dedicasse à salvação da alma.”
A narrativa em ritmo acelerado se concentra nas reviravoltas da vida de
Augusto Matraga, em sua travessia de aprendizado. Se a história se organiza em
três tempos (tempo do mau coronel, tempo do penitente Nhô Augusto, tempo
da redenção), espacialmente a narrativa é circular: começa no Murici, desce aos
infernos do abismo onde vivem pai Sarapião e mãe Quitéria e volta ao arraial do
Rala-Coco, muito próximo do Murici onde reinava o antigo coronel. O triângu-
lo dentro do círculo, marca com a qual Matraga é ferrado antes de cair no preci-
pício, sintetiza o tempo e o espaço da narrativa no corpo do protagonista. E essa
marca, segundo Walnice, é identificada como sinal divino.
“Matraga atravessa minuciosamente todo o processo da santidade, mas os
esforços para ser asceta contrariam sua índole. Ele é um guerreiro, e é como guer-
reiro que irá se tornar santo. Difícil foi-lhe aceitar a predestinação, pois também
ele recalcitrava contra o aguilhão; mais difícil ainda foi ler corretamente aquilo
que estava marcado em sua carne, o sinal de Deus. De certo modo já presente em
sua formação como opostos de tensão, identificados com um princípio masculino
(o pai violento reproduzido) e um princípio feminino (a avó que o criara, religiosa
e rezadeira, desejando fazer do neto um padre), é a ferração que vai iniciar o
penoso caminho da decifração da marca e do destino.”
Sobre este conto, síntese extrema de uma narrativa épica, no qual o ho-
mem é o objeto e o sujeito da travessia, através da qual a vida se constrói e o
destino se realiza, escreveu Guimarães Rosa:
A hora e a vez de Augusto Matraga – História mais séria, de certo modo síntese
e chave de todas as outras, não falarei sobre seu conteúdo. Quanto à forma, repre-
senta para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que
eu procurava descobrir.

Tarefa 1
a) Ao longo do conto, o personagem de Matraga é chamado por diversos
nomes. Quais são eles? Por que você acha que o autor nomeia o personagem
com nomes diferentes? O que cada nome inspira no leitor?
b) O nome Matraga só é usado no primeiro parágrafo e na hora de sua
morte. Releia os parágrafos em que o personagem é chamado de Matraga e


 

responda: qual a diferença entre o emprego deste nome no começo da narra-


tiva e no seu final?
c) O personagem Joãozinho Bem-Bem também recebe diversos nomes.
Encontre o trecho em que ele é caracterizado por esses vários nomes e trans-
creva-o. Que efeito o autor consegue com essa seqüência de nomes? A que
eles se referem?

Tarefa 2
O bordão “P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!” é repetido por Matraga
algumas vezes ao longo da narrativa. Qual o significado que você atribui a ele?

Tarefa 3
Em entrevista à revista Bons Fluidos (09/2004), o psicanalista Contardo
Calligaris, falando sobre a morte, fez o seguinte comentário:
Bons Fluidos - Pois é, ninguém quer saber da morte. A história explica esse
medo?
Contardo Calligaris - Esse é um fenômeno recente. Talvez desenvolvido nos
últimos 200 anos. A partir desse momento, culturalmente o indivíduo tornou-se
mais importante que a comunidade e a morte tornou-se apavorante. Por exemplo,
para o homem da Idade Média saber da morte e prepará-la era muito importante e
tranqüilo. A pessoa desaparecia, mas o sistema, a família, a cidade, a tradição, tudo
continuava. Era confortante, pois a memória estava preservada, não era o fim de
tudo. Porém, se hoje eu dissesse você vai morrer, mas São Paulo e a avenida
Paulista vão continuar existindo, isso não seria um consolo.
Estabeleça um paralelo entre o que estudamos, a história de Matraga e a
fala de Calligaris.

Tarefa 4
Como nos contos estudados anteriormente, fica claro que a história é
ficcional. O trecho abaixo confirma essa afirmação:
“E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste
jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história
inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”
Depois de tudo o que foi lido, podemos perceber que o conceito de histó-
ria inventada, de artifício, de artesanato é muito importante para Guimarães
Rosa. O fato de essa artificialidade ficar explícita nos contos de Sagarana,
tornam mais íntimo o parentesco dessas narrativas com os contos de fadas, o
que leva o leitor a ler a história tendo em mente que ela é inventada, que não
é real, apesar de poder ter sido baseada na realidade. Nesse sentido, Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Macunaíma se aproximam dos contos de Guima-
rães. Por que você acha que a explicitação da mistura entre realidade e fanta-
sia é importante para a ficção desses autores?

Tarefa 5
Leia as seguintes definições de sertão encontradas na obra de Guimarães Rosa:
“Sertão: estes seus vazios”
“O sertão está em toda a parte”
“O sertão é do tamanho do mundo”
“(…) o sertão é uma espera enorme”


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“Sertão é o sozinho”
“Sertão é dentro da gente”
Agora leia a análise que o filósofo Benedito Nunes faz do sertão roseano:
“[o sertão] É o espaço que se abre em viagem, e que a viagem converte em
mundo. Sem limites fixos, lugar que abrange todos os lugares, o Sertão congrega
o perto e o longe, o que a vista alcança e o que só a imaginação pode ver.”
Baseado no trabalho com os contos de Sagarana e no que acabamos de
ler, reflita e responda: o que, na sua opinião, é o sertão de Guimarães Rosa?

Para relacionar
Letra de Música
Sagarana
(João de Aquino e Paulo César Pinheiro)
A ver, no em-sido
Pelos campos-claro: estórias
Se deu passado esse caso
Vivência é memória
Nos Gerais
A honra é-que-é-que se apraz
Cada quão
Sabia sua distinção
Vai que foi sobre
Esse era-uma-vez, ‘sas passagens
Em beira-riacho
Morava o casal: personagens
Personagens, personagens
A mulher
Tinha o morenês que se quer
Verdeolhar
Dos verdes do verde invejar
Dentro lá deles
Diz-que existia outro gerais
Quem o qual, dono seu
Esse era erroso, no à-ponto-de ser feliz demais
Ao que a vida, no bem e no mal dividida
Um dia ela dá o que faltou... ô, ô, ô...
É buriti, buritizais
É o batuque corrido dos gerais
O que aprendi, o que aprenderás
Que nas veredas por em-redor sagarana
Uma coisa é o alto bom-buriti
Outra coisa é o buritirana...
A pois que houve
No tempo das luas bonitas
Um moço êveio:
– Viola enfeitada de fitas
Vinha atrás
De uns dias para descanso e paz


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Galardão:
– Mississo-redó: Falanfão
No-que: “-se abanque...”
Que ele deu nos óio o verdêjo
Foi se afogando
Pensou que foi mar, foi desejo...
Era ardor
Doidava de verde o verdor
E o rapaz quis logo querer os gerais
E a dona deles:
“-Que sim”, que ela disse verdeal
Quem o qual, dono seu
Vendo as olhâncias, no avôo virou bicho-animal:
– Cresceu nas facas:
– O moço ficou sem ser macho
E a moça ser verde ficou... ô, ô, ô...
É buriti, buritizais
É o batuque corrido dos gerais
O que aprendi, o que aprenderás
Que nas veredas por em-redor sagarana
Uma coisa é o alto bom-buriti
Outra coisa é o buritirana...
Quem quiser que cante outra
Mas à-moda dos gerais
Buriti: rei das veredas
Guimarães: buritizais!

Filmes
A hora e a vez de Augusto Matraga (Direção de Roberto Santos, Brasil,
1966.)
A terceira margem do rio (Direção de Nelson Pereira dos Santos, Brasil,
1994.)


Unidade 3

Manuel Bandeira
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaborador Um dia, no início do
Silvio Pereira da século, um mocinho dentu-
Silva ço, porém simpático, filho
bem-criado de uma família
tradicional de Pernambuco,
veio estudar arquitetura em
São Paulo. Sofreu uma he-
moptise e teve de deixar os
estudos e os sonhos de ar-
quiteto, sob ameaça de
morte iminente.
Mandado para a Suíça,
em busca de bom clima e
cura, deu-lhe para poeta,
seguindo as brincadeiras que aprendera menino, em casa, no Recife e no Rio, com
o pai, figura imaginosa e boa. O mau destino fez dele o que quis, mas a morte não
veio. E o poeta foi ficando. Dado a alumbramentos em seu quarto pobre de solteirão
solitário, inventou um estilo humilde para falar simplesmente de coisas cotidia-
nas, embora sempre visitado por momentos de volúpia ardente e a obsessão cons-
tante da morte. (Arrigucci Jr., p 13)
É desse modo que Davi Arrigucci Jr. inicia seu livro sobre Bandeira – um
dos nossos mais importantes poetas modernistas –, como se fosse nos contar
uma história singela. Sutilmente, apresenta-nos alguns aspectos significativos
da biografia de Manuel Bandeira e que são fundamentais para a compreensão
de sua obra. Também já nos adianta alguns aspectos da temática poética, como
a simplicidade, certos traços de erotismo e a fixação pela morte.
Manuel Bandeira nasceu em 19 de abril de 1886, no Recife. Foi educado
no Rio e em São Paulo iniciou o curso de arquitetura, que abandonou, no final
de 1904, em virtude da tuberculose, diagnóstico fatal que mudaria toda sua
vida. Esse dado biográfico é de grande relevância, pois aparece sob diferen-
tes ângulos na obra do poeta. Fez diversas viagens ao exterior em busca da
cura, e durante esse período leu muito e produziu poemas1 .

1
Esteve internado no sanatório suíço de Davos, lugar famoso que foi cenário do romance A montanha
mágica, de Thomas Mann. Ali também conheceu o poeta Paul Éluard, com quem manteve uma profícua
amizade.
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Momento num café A poesia de Bandeira, con-


Quando o enterro passou forme nos contou tantas
Os homens que se achavam no café vezes, tem início no mo-
mento em que sua vida,
Tiraram o chapéu maquinalmente
mal saída da adolescência,
Saudavam o morto distraídos
se quebra pela manifesta-
Estavam todos voltados para a vida ção da tuberculose, doen-
Absortos na vida ça então fatal. O rapaz que
Confiantes da vida. só fazia versos por diverti-
Um no entanto se descobriu num gesto largo e demorado mento ou brincadeira, de
repente, diante do ócio
Olhando o esquife longamente
obrigatório, do sentimento
Este sabia que a vida é uma agitação feroz e sem finalidade
de vazio e tédio, começa a
Que a vida é traição fazê-los por necessidade,
E saudava a matéria que passava por fatalidade, em respos-
Liberta para sempre da alma extinta. ta à circunstância terrível e
(Do livro Estrela da Manhã) inevitável. (Arrigucci Jr., p.
132)
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
– Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
(Do livro Opus 10)

O POETA MODERNISTA
Seus primeiros livros, A cinza das horas (1917), em que reuniu poemas
compostos durante o período de sua doença, e Carnaval (1919), mostram
certa influência dos simbolistas e parnasianos, mas alguns poemas de seu
livro seguinte, Ritmo dissoluto (1924), já apresentam inovações que revelam
o desejo do poeta de liberar a poesia do academicismo e da influência euro-
péia. É contudo com Libertinagem (1930) que encontramos os aspectos mais
característicos das tendências modernistas: os versos livres, a linguagem co-
loquial, uma sintaxe pouco convencional e o uso de temas folclóricos. Seus
livros seguintes foram: Estrela da manhã (1936), Lira dos cinqüent’anos (1940),
Mafuá do malungo (1948) Opus 10 (1949) e Estrela da tarde (1960), que
podemos encontrar hoje reunidos num só livro: Estrela da vida inteira.
Para o poeta, o alumbra-
LIBERTINAGEM E O ESTILO DE MANUEL BANDEIRA mento, revelação simbólica
Segundo o crítico, a poética de Bandeira apresenta uma poesia de circuns- da poesia, pode dar-se no
chão do mais ‘humilde co-
tâncias e desabafos. Em um estilo humilde, fruto da experiência do mundo e
tidiano’, de onde o poético
da arte, o ideal da poética de Bandeira nasce da mescla de uma estilística
pode ser desentranhado, à
inovadora e moderna e da busca da emoção poética, através das palavras mais força da depuração e con-
simples do dia-a-dia. densação da linguagem, na
Desse modo, sua obra comporta um paradoxo: “a expressão simples de forma simples e natural do
uma totalidade complexa”, ou seja, há um mistério na simplicidade, pois na poema. (Arrigucci Jr., p. 15)


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aparente impressão do nada, do trivial, encontra-se o essencial da poesia. De


fato, como sabemos, para se chegar às questões mais fundamentais da vida, é
preciso experiência e um muito pensar. Como disse o filósofo Hegel, “a arte
torna aparente o que é essência”.
Em Manuel Bandeira, a simplicidade é fruto de uma longa busca pela
imagem certa e adequada para a construção poética. São operações comple-
xas, em que, através da condensação, cria-se a imagem desejada. O simples
na dependência do complexo. Muitas vezes, seus textos apresentam um re-
corte da vida, ou, como nos diz o crítico, uma “fatia de vida”. A poesia de
Bandeira nasce de sua capacidade de selecionar, depurar aspectos do cotidia-
no, como ele mesmo afirmava “desentranhar a poesia do mundo”.
Sua poesia, sem dúvida, apresenta ecos de circunstâncias históricas de seu
tempo, delineia traços de sua biografia, mas não é só isso: ela ultrapassa esses
limites e cria elementos paraficcionais. É o que ocorre, por exemplo, quando
apresenta as personagens da infância do poeta; eles são reconstruídos através
de suas lembranças, “de palavras e imaginação”, que vamos compreendendo
à medida que lemos toda a sua obra, pois muitos elementos são recorrentes e
tornam-se familiares para os leitores. A imaginação do poeta reconstrói, com
a força das palavras bem escolhidas, uma memória de infância que nos toca a
tal ponto que o próprio leitor sente ter vivido a mesma experiência. Por exem-
plo, no poema “Profundamente”, a rememoração do passado se mescla com a
realidade do presente a partir da analogia da expressão “dormindo profunda-
mente” com a morte. A criança dormiu e perdeu a festa, com o passar do
tempo, todos dormem o sono eterno da morte.

Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei


Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam errantes
Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio

Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

- Estavam todos dormindo


Estavam todos deitados


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Dormindo
Profundamente.

Quando eu tinha seis anos


Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje no ouço mais as vozes daquele tempo


Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.
(Do livro Libertinagem)

Publicado em 1930, Libertinagem é o quarto livro de Manuel Bandeira,


reúne poemas escritos entre 1922 e 1930. É uma sucessão de 38 poemas
cheios de novidade, humor, erotismo e refinamento sonoro.
Nessa obra, Bandeira atinge pleno amadurecimento tanto no plano da for-
ma como no do conteúdo, rompendo de vez com as convenções da poesia
parnasiano-simbolista.
Sua poesia introduz não só palavras de uso coloquial como faz de fatos corri-
queiros objeto da poesia, aproveitando a própria poesia para tecer reflexões sobre
a vida. O verso livre que adota propicia essa liberdade de incluir no poético gêne-
ros – como o comentário e o manifesto – que não lhe eram comuns; tudo, entre-
tanto, comandado por profundo intimismo, por uma visão extremamente particu-
lar sobre as coisas, que se mostra ora melancólico ora irônico.

O último poema
Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo
nascesse)


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Se a adoção da técnica da Da terceira vez não vi mais nada


poesia moderna tende a Os céus se misturaram com a terra
acompanhar entre nós o E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
movimento, encarado como
positivo, para as coisas miú- Mulheres
das, próximas e mais simples,
é inegável, porém, que signi-
Como as mulheres são lindas!
fica também uma clara aber- Inútil pensar que é do vestido...
tura para uma maior com- E depois não há só as bonitas;
plexidade. O que se procura Há também as simpáticas.
exprimir com um novo meio E as feias, certas feias em cujos olhos vejo isto:
do tipo do verso livre é, evi- Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.
dentemente, mais amplo e
Como deve ser bom gostar de uma feia!
complexo do que o anterior,
conforme se pode ver pela
O meu amor porém não tem bondade alguma.
própria dificuldade dos po- É fraco! fraco!
etas para alcançar um ritmo Meus Deus, eu amo como as criancinhas...
pessoal e realmente livre de És linda como uma história da carochinha...
apoio da medida, como
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
quem peleja para agir com
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro atrás de
liberdade no domínio do
que mal conhece.
casa e tinham cara de pau).

Ao aumento de liberdade UMA UTOPIA PESSOAL


de criação dos modernistas Em Libertinagem, encontra-se “Vou-me embora pra Pasárgada”, poema
correspondia um aumento fundamental para compreensão da obra do poeta.
dos riscos e do esforço para
se conseguir dar forma Vou-me embora pra Pasárgada
nova a uma matéria tam- Vou-me embora pra Pasárgada
bém nova, espécie de na-
Lá sou amigo do rei
vegação em mar alto sem
Lá tenho a mulher que eu quero
carta prévia. O verso livre
buscava a proximidade do
Na cama que escolherei
discurso ordinário, não or- Vou-me embora pra Pasárgada
ganizado com fim artístico,
tomando-o como objetivo Vou-me embora pra Pasárgada
de imitação e, por essa via, Aqui eu não sou feliz
se desgrudava do espaço Lá a existência é uma aventura
seguro da métrica tradicio- De tal modo inconseqüente
nal, abrindo-se à novidade Que Joana a Louca de Espanha
de fora, de outra natureza. Rainha e falsa demente
(Arrigucci Jr., p. 59) Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive

E como farei ginástica


Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada


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Em Pasárgada tem tudo Utopia


É outra civilização
Geralmente, designa um
Tem um processo seguro
local ideal e perfeito, ou
De impedir a concepção uma organização social
Tem telefone automático com características absolu-
Tem alcalóide à vontade tamente boas e desejáveis
Tem prostitutas bonitas que, justamente por isso,
Para a gente namorar não pode ser encontrada
em nenhum lugar. A defini-
E quando eu estiver mais triste ção de “utopia” está relaci-
Mas triste de não ter jeito onada com a obra Utopia,
Quando de noite me der do escritor inglês Thomas
Vontade de me matar Morus que, em 1516, des-
creveu uma sociedade ide-
Lá sou amigo do rei —
al, um país organizado para
Terei a mulher que eu quero
que as pessoas pudessem
Na cama que escolherei viver plenamente felizes,
Vou-me embora pra Pasárgada logo visto como uma fan-
(Do livro Libertinagem) tasia, uma concepção irrea-
lizável. Estava criada a Uto-
Há, no poema, a apresentação de um desejo pessoal, a construção de uma pia, a “Terra do Nunca”,“o país
utopia em que o poeta nos revela a fantasia de um país em que todos os desejos se das delícias”.
satisfazem. O poeta procura fugir de uma realidade que o impede de viver deter-
minados prazeres, indo para um mundo no qual tudo possa ser feito: andar de
bicicleta, fazer ginástica, montar em burro bravo, tomar banho de mar etc. Ele-
mentos de uma vida comum que lhe foram proibidos, em virtude de sua doença.
Esse poema-utopia é tão significativo que mereceu comentário do próprio
autor:
“... Esse nome de Pasárgada, que significa ‘campo dos persas’ ou ‘tesouro dos
persas’, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delíci-
as [...]. Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa na Rua do
Curvelo (Rio de Janeiro), num momento de fundo desânimo, da mais aguda sensa-
ção de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-
me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: ‘Vou-me embora p’ra
Pasárgada!’ Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo,
mas fracassei [...]. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e
tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da ‘vida besta’. Desta vez o poema
saiu sem esforço como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema
porque vejo nele, em escorço, toda a minha vida; e também porque parece que
nele soube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa da minha adoles-
cência – essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta
não nos quis dar. Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma
casa, mas reconstruí e ‘não como forma imperfeita neste mundo de aparências’,
uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a ‘minha’
Pasárgada.” (Manuel Bandeira. Itinerário pra Pasárgada.)
Em Itinerário pra Pasárgada, cujo nome nos remete direto ao poema de
Libertinagem, Bandeira nos apresenta os seus caminhos poéticos. Arrigucci
diz que a obra pode ser definida como o relato de uma experiência poética,
em que se mescla o confessional, a memória biográfica, o poético-crítico, o
intelectual e o imaginativo, constituindo numa forma especial de balanço de
uma experiência poética. Foi no resgate de um momento da infância que o
poeta encontrou a poesia. Como reafirma Arrigucci: “Desentranhado da me-
mória infantil, o velho nome da cidade de veraneio de Ciro, o antigo, lido


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casualmente numa aula de grego pelo menino Bandeira, volta transfigurado


num ‘raro momento’ da vida adulta do poeta”.
“Vou-me embora p’ra Pasárgada!” é um exemplo claro de como a obra de
Bandeira apresenta uma tensão entre pólos extremos, em que se pode ler a tradicio-
nal oposição entre o real e o imaginário, ou como coloca Arrigucci, entre logos e
mythos. Surge, no poema, uma complexidade marcada pela tensão entre as impos-
sibilidades de um mundo real e os desejos do poeta, entre o que é e o que se quer.

Evocação do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois -
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as
[vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,
[namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
À distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Mauritsstad: Foi o nome
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
que Maurício de Nassau,
o príncipe Holandês, deu
Os homens punham o chapéu saíam fumando
à cidade do Recife, du- E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
rante o período em que
Rua da União...
governou o local.
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
pegões: sustentáculos dos Rua do Sol
arcos da ponte da estra- (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
da de ferro que cruza o Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
rio.
...onde se ia fumar escondido


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Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...


...onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em
[jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
E eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus
[cabelos
Capiberibe
— Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
(Do livro Libertinagem)


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Os poemas são bons exemplos da presença da memória na poética de


Bandeira. A infância é retomada em um momento de angústia e sofrimento,
trazendo uma saudade infinita dos tempos idos e vividos. Neles, encontramos
a primeira noção de poesia que Bandeira nos apresenta, pois são poemas
construídos através de imagens desentranhadas da memória de sua infância,
como “raros momentos” de uma emoção diferente. Ao ler os poemas, vão se
formando as diversas imagens que permeiam o pensamento do poeta, parece
que suas lembranças estão sendo compartilhadas. A dimensão de sua subjeti-
vidade está em sua memória, fixa-se no ambiente de sua infância.
Através de suas lembranças, o poeta vai retomando as vivências infantis.
O passado aparece como uma espécie de refúgio, trazendo de volta a simpli-
cidade e a pureza da criança, aparecem as brincadeiras, os amigos, os paren-
tes, a cidade etc. O tom dos poemas é bastante melancólico, em virtude da
constatação de que tudo acabou, a beleza daquele período se perdeu no tem-
po. No caso de “Evocação do Recife”, o título já nos dá idéia de retorno, pois
nos remete ao ato de lembrar. A própria disposição dos versos auxilia nesse
indicativo do fluir do tempo, e as reticências relevam as digressões; é como se
olhássemos para as lembranças do passado com o poeta.

Tarefas
Tarefa 1
Libertinagem foi a palavra escolhida para dar título ao livro de poemas.
Discuta com os colegas o sentido dessa palavra. A leitura dos poemas justifica
o título do livro?
Tarefa 2
Em “Vou-me embora pra Pasárgada”, Bandeira criou um mundo de so-
nhos, no qual todos os seus desejos pudessem se concretizar. Buscou na uto-
pia uma solução para os problemas vividos na realidade. Nós também temos
dificuldades e sonhos. Redija um texto em prosa ou verso em que você apre-
sente sua “Pasárgada”. Como ela seria?
Tarefa 3
Os poemas “Evocação do Recife” e “Profundamente” apresentam algumas se-
melhanças quanto ao conteúdo, um parece complementar o outro. Procure estabe-
lecer comparações entre um e outro, levantando os aspectos mais significativos.
Tarefa 4
Quais os diversos significados que a palavra “profundamente” assumiu
no poema?
Tarefa 5
A polifonia consiste basicamente no cruzamento de várias vozes presen-
tes em um texto. É algo muito comum, mas algumas vezes não prestamos
atenção e não identificamos as diversas vozes que aparecem no texto. Em
“Evocação do Recife”, ocorre um jogo polifônico, pois junto à voz do poeta
outras ressoam provenientes das falas alheias. O poeta quer resgatar inclusive
a voz dos mortos, através do fazer poético. Procure observar, no poema, quais
são os trechos em que temos a presença das falas de outros seres lembradas
pelo poeta. Discuta com o monitor e com os colegas sobre o efeito dessas
vozes no texto. (Seria interessante fazer uma leitura jogralizada do texto.)
Tarefa 6
Que comparação você poderia estabelecer entre o estilo de Clarice Lispector
em A hora da estrela e o de Manuel Bandeira, sob o ponto de vista da humildade?


Unidade 4

Miguel Torga
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Miguel Torga é o pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha, poeta e prosa-
dor português, nascido em São Martinho de Anta, Trás-os-Montes (1907) e
falecido em Coimbra, em 1995. Viveu no Brasil na infância e depois voltou a
Portugal. Assim como Guimarães Rosa, era formado em Medicina. Dividiu
seu tempo entre os trabalhos na clinica médica e a literatura. Foi um dos inte-
grantes do grupo de Presença, e dirigiu as revistas Sinal, com Branquinho da
Fonseca, e Manifesto. Depois, assumiu uma postura independente, distanci-
ando-se de grupos e movimentos. Sua obra apresenta muitas referências a
mitos agrários e pastoris, que o escritor carrega de simbolismo bíblico.
Cega-Rega
É difícil. Isto de começar num monturo e só parar na crista dum castanheiro,
tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisá-
lida... Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro
da vida, a matéria necessita do calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão,
desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural
é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá
no ovo e amadurece-o. A casca quebra. Depois... Ah, é essa descida ao húmus, essa
existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias
assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada
ânsia de claridade é premiada com olhos iluminados. Cresce também uma boca
onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja...
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, se consegue. Até
fazer parte do coro universal.
– Já hoje ouvi a cigarra...
– É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro
do mundo tem palco e bastidores. As palmas da platéia festejam somente os dramas
encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses levia-
nas. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos
abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa... Quase que sentia ainda no
corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do
presente, e cantar. Cantar o milagre da anódina e conseguida ascensão.
E cantava.
A primavera estava no fim, e o estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga
de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os
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ramos relaxavam de vez os músculos crispados, já esquecidos das ventanias do


inverno. Havia penugens de esperança em cada ninho. Mas não era a doçura das
seivas, a paz vegetal ou animal que saudava. Vencera todos os obstáculos dum
árido caminho, sem a ajuda de ninguém. No fim do esforço, nem sequer essa
vitória via reconhecida. Por isso, nada devia aos outros, e nada lhes daria, a não ser
a beleza daquele hino gratuito.
Ainda no rés-do-chão das metamorfoses, apetecera-lhe contemplar dum alto
miradoiro o berço nativo. E começou a subir, a subir, a subir sempre. Depois,
serenamente, olhou. Nesse momento, porém, um raio quente de sol caiu-lhe amo-
rosamente sobre o dorso. Contraiu-se de volúpia. E, da plenitude que a empolgou,
ergueu-se a voz de triunfo. Não era a vontade que a fazia vibrar. Era o corpo,
possesso de contentamento, que, num espasmo total, estridentemente glorificava
a própria perfeição atingida.
– Até azamboa a gente!
O senhor camponês, a reclamar. Suado e soturno, a mourejar de manhã à noite,
queria silêncio à volta. Tapasse os ouvidos! Nenhuma força humana ou desumana
a faria calar. Com que razão? Porquê?
Porque a fome era triste, os dias passavam velozes, e urgia ajudar a natureza a
ser pródiga? Imaginem!
Pois que aproveitasse as horas, os minutos e os segundos, num anseio insaciável de
fartura. Ela continuaria ali, preguiçosa, imprevidente, num desafio sonoro à sensatez.
– Muita alegria tem tal bicho!
– A alegria passa-Ihe... É deixar vir o inverno...
A pressurosa formiga! A coitada! Como se trabalhar fosse um destino!
– E temo-lo aí, não tarda muito.
Evidentemente. Mas que lhe importava? A escolha estava feita. Que as folhas
do calendário, como as das árvores, fossem caindo, e que os ceifeiros lançassem as
gadanhas ao trigo maduro, numa condenação de galerianos. Que nas tulhas se
acumulassem toneladas de grão. Ao lado dos celeiros atestados, ficaria um celeiro
vazio. Um símbolo de inquebrantável confiança.
– Mas em quê? – Perguntava um pardal suspicaz.
Outro que não compreendia. Outro que só concebia a existência a saltar de
migalha em migalha.
– Chega-Ihe, Cega-Rega.
O poeta!, louvado seja Deus! Até que enfim lhe aparecia um irmão!...Um irmão
que sabia também que cantar era acreditar na vida e vencer a morte.
A morte que espreitava já, com os olhos frios do outubro...

Nero
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-
a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedi-
do já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno,
como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um
enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos,
acompanhado pelo povo em peso... Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria
apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães
e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra
nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira.


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Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo
da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males... Já que não havia
melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar
a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez
por outra. Não que fizesse grande fincapé naquela amizade. Longe disso. A meni-
na dos seus olhos era a morgada, a filha, que o acariciara como a uma criança. A
velha toda a vida o pusera a distância. Dava-lhe o naco de broa (honra lhe seja),
mas borrava a pintura logo a seguir: – Ala! E ele retirava-se cerimoniosamente
para o ninho. Só a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos
anos fora, o consentira ao lume, enroscado a seus pés, enquanto a neve, branca e
fria., ia cobrindo o telhado. O velho também o apaparicava de tempos a tempos. Se
a vida lhe corria e chegava dos bens de testa desenrugada, punha-lhe a manápula
na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patrão novo. Porque o seu
verdadeiro senhor era o filho, um doutor, que morava muito longe. Só aparecia na
terra nas férias de Natal. Mas nesta altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros
apenas o tratavam, o sustentavam, para que o menino tivesse cão quando chegas-
se. Apesar disso, no íntimo, considerava-se propriedade dos três: das filhas, do
velho e da velha. Com eles compartilhara aqueles longos oito anos de existência.
Com eles passara invernos, outonos e primaveras, numa paz de família unida.
Também estimava o outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas amizades
cerimoniosas não se davam com o seu feitio. Gostava era da voz cristalina da dona
nova, da índole daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote.
– Tens o teu patrão aí não tarda, Nero...
O nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde nascera, não tinha
chamadoiro. Nesse tempo não passava dum pobre lapuz sem apelido, muito gordo,
muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe, que lhe lambia o pêlo e o reconduzia
à quentura do ninho, entre os dentes macios, mal o via afastar-se. Pouco mais. Com
dois meses apenas, fez então aquela viagem longa, angustiosa, nos braços duros
dum portador. Mas à chegada teve logo o amigo acolhimento da patroa nova. Festas
no lombo, leite, sopas de café. De tal maneira, que quase se esqueceu da teta doce
onde até ali encontrava a bem aventurança, e dos irmãos sôfregos e birrentos.
– Nero! Nero! Anda cá, meu palerma!
A princípio não percebeu. Mas foi reparando que o som vinha sempre acompanha-
do de broa, de caldo, ou de um migalho de toucinho. E acabou por entender. Era Nero.
E ficou senhor do nome, do seu nome, como da sua coleira. Principalmente depois que
o patrão novo chegou, sério, com dois olhos como dois faróis. Apareceu à tarde, num
dia frio. Fora-o esperar na companhia da patroa nova. É claro que nem sequer lhe
passara pela idéia a vinda de semelhante figurão. Seguira-a maquinalmente, como
fazia sempre que a via transpor a porta. Habituara-se a isso desde os primeiros dias.
Com o velho não ia tanto. E com a velhota, então, só depois de ter a certeza que se
encaminhava para os lados da Barrosa. Na cardenha do casal morava o seu grande
amigo, o Fadista. De maneira que o passeio, nessas condições, já valia a pena. Enquan-
to a dona mondava o trigo, chasquiçava batatas ou enxofrava a vinha, aproveitava ele
o tempo na eira, de pagode com o camarada. Mas, se ela tomava outro rumo, boa
viagem. Com a nova, sim. A farejar-lhe o rasto, conhecera a terra de lésa-lés. Até missa
ouvia aos domingos, coisa que nenhum cão fazia. Aninhavam-se a seu lado, e ficava-
se quieto a ver o padre, de saias, fazer gestos e dizer coisas que nunca pôde entender.
Foi a seguir a uma cerimónia dessas que o doutor chegou a terra. Todo muito bem
vestido, todo lorde. Quando viu aquele senhor beijando a rapariga, atirou-lha uma
ladradela, por descargo de consciência. E o estranho, então, olhou-o atentamente, deu
um estalo com os dedos, a puxar-lhe pelos brios, e teve um comentário:


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– O demónio do cachorro é bem bonito!


Envaideceu-se todo. Mas o homem perdeu-se logo em perguntas à irmã, em
cumprimentos a quem estava, sem reparar mais nele. E não teve remédio senão
segui-los a distância, num ressentimento provisório. Ao chegar a casa, foi direito
ao cortelho. E ali esteve uma boa hora à espera, a morder-se de ansiedade. Por fim,
o recém-vindo chamou do fundo da sala:
– Nero! Venha cá!
Era a posse. Havia naquela voz um timbre especial que o fez estremecer. Pela
primeira vez sentia que tinha realmente um dono. Contudo, lá arranjou forças para
se deixar ficar enroscado na palha, salamurdo, a fingir que dormia.
Mas a ordem voltou logo a seguir, mais forte, mais imperativa:
– Nero!
Ergueu-se. Subiu os degraus da loja e, humilde e desconfiado, apresentou-se. O
fulano acabara de jantar. No prato onde comera, jaziam, apetitosos, os restos do frango
pedrês que a patroa velha degolara de manhãzinha. Apesar de o desgraçado ser seu
amigo (até em cima do lombo se lhe empoleirava), sentia crescer a água na boca só de
ver aqueles ossos descarna- dos. Misérias... O hóspede, porém, em vez de lhe acalmar
a gula pecadora, pôs-se a fazer-lhe festas, a apalpar-lhe a cabeça, a admirar-lhe a
grossura do rabo, a examinar-lhe as patas, e rematou a vistoria desta maneira:
– Não há dúvida nenhuma: é um lindo bicho!...
Rosnou, insofrido. Outra vez a mesma conversa de há bocado! Se guardasse o
paleio e lhe desse o esqueleto do seu compadre calçudo, melhor fazia!
Deu-lho, e a seguir despediu-o com uma ordem seca, de quem gostava de ser
obedecido. No dia seguinte é que voltou à carga, e de que maneira! Não o largou
durante uma hora! Começara o calvário da educação.
Correu a princípio ao lenço enrolado, a cuidar que se tratava de uma brincadei-
ra. Mas depois viu que o negócio era a sério, que o sujeito tinha lá qualquer coisa
encasquetada.
– Vá buscar, Nero, vá lá...
Fez-se desentendido. E o sacripanta, depois de insistir, de se cansar a ver se o
convencia por bem, larga-lhe uma vergastada rija! A primeira que apanhou...
Seguiu-se uma semana triste. Até que num sábado de madrugada saíram ambos
para os montes, ainda enevoados e cobertos de sincelo. Nunca deixara o ninho tão
cedo. Gostava das manhãs na cama, mornas, a dormitar. O galo acordava-o sempre
ainda o soí sonhava, a cantar-lhe mesmo ao pé, quase ao ouvido, uma lenga-lenga
parva, estridente, sempre igual. A princípio, resmungou. Depois acostumou-se ao
fadário, e até estimava o despertador, só para ter o prazer de saborear os lençóis. Mas
naquele dia foi o doutor que lhe bateu ao ferrolho. Andavam quase de mal desde a
última lição. Mandara-lhe buscar um ovo, e quebrara-o nos dentes, sem querer. E vai
logo um puxão valente de orelhas, sem dó nem piedade! Apesar de ressentido por
semelhante injustiça, ergueu-se. Comeu a broa e partiu atrás dele. De repente, já nos
montes do Pioledo, ouviu um ruído de coisa que levanta vôo, seguido de um estron-
do de estarrecer. Que ricos tempos! Fugira tão espavorido, tão desvairado, que batera
de encontro à cepa duma giesta! Cheio de paciência, e até com certa ternura, o dono,
então chamou-o, acarinhou-o, incutiu-lhe confiança:
– Não tenhas medo, maluco! Sossega, que ninguém te faz mal!
Depois mostrou-lhe no chão um passarolo morto.
– Nero, boca lá, boca!...
Era para ir buscar aquilo, pelos vistos... Desconfiado, chegou-se ao pé.


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–Traz cá!
O bicharoco estava realmente defunto. Deitou-lhe os dentes. O que era a ino-
cência! Tinha cócegas na boca!... De repente, um cheiro forte, penetrante e doce,
inundou- lhe as ventas, o estômago, o corpo inteiro! Foi a primeira grande hora da
sua vida... Depois disso é que os montes começaram a dizer-lhe coisas que até ali
nem de longe poderia suspeitar. Só então ficou a saber que por eles cabo, nas
manhãs doiradas e calmas de Janeiro, era um louvar a Deus de perdizes... E que não
havia nada melhor no mundo do que senti-los frios e firmes sob as patas, quando
o sangue fervia nas veias e o instinto pedia asas ao vento. Colado àquela dureza
gelada, a rastejar e a tremer de emoção, a vida sabia-lhe à maior das venturas.
Talvez que em certas ocasiões devesse caçar doutra maneira, ser mais despachado.
Mas sentia as malvadas à frente do nariz, e sumia-se no chão, nem sabia se a
esconder-se, se a prolongar o prazer. Porque a princípio ainda cuidou que conse-
guiria assim agarrar alguma. Depois, não. Finas como órgãos, no melhor da festa
punham-se na alheta. E perdeu as ilusões. Apesar disso, nunca deixara de se enco-
lher, de tentar disfarçar o corpo sempre que as farejava perto, e, muitas vezes, tão
estacado ficava, que era preciso o dono empurrá-lo com a ponta da bota grossa.
– Entra, Nero, entra lá... Deita fora!
Não arrancava. Continuava pregado ao terreno, a namorar a imagem adivinha-
da, a encantá-la com os olhos ávidos e, sobretudo, a fruir aquele gozo de sentir o
coração pulsar de encontro às fragas.
Até que uma ordem mais impaciente lhe dizia que eram horas. Dava a pancada.
E ficava-se depois a olhar a manhosa erguer-se apressada, rumorosa, e cair daí a
pouco, já passada ou feita num molho. Entrava de novo em acção. Num pronto,
entregava a pobre ao dono, tal como a encontrava caída – viva ou morta. Nunca um
gesto sequer de piedade. Disso pesava-lhe agora a consciência. Se estavam de pon-
ta-de-asa, as desgraçadas fugiam, gemiam, quase tinham voz de gente a pedir com-
paixão. Nem a alma lhe bolia. A esse respeito, fora sempre surdo e cego. Muitas
vezes pensava se não seria por essa razão que lhe acontecera a desgraça do Soitinho!
Ninguém as faz que as não pague... Bem que desconfiara logo do outro caçador.
Aquele jeito de pegar na arma não lhe merecia confiança, não. Mas mandava quem
podia... Segue-se que estavam ainda praticamente a sair de casa, quando um cheiro
a perdigão lhe entrou em faca pelo nariz. Estacou ali mesmo, no meio da estrada,
voltado para a ribanceira. Ainda se lembrava perfeitamente de ter ficado com a pata
direita no ar, paralisada. Depois, a tirar de ventos, foi andando cautelosamente.
Até que se encontrou a dois palmos do seu velho conhecido. Era um patriarca
manhoso, de esporões em rosário pelas pernas acima, que há anos lhe moía a
paciência. Três vezes – em três épocas sucessivas – o pusera a tiro ao patrão, sem
valer de nada. O velhaco abria as asas, deixava o chumbo passar, e, sem ninguém
mais a afligi-lo, ficava à larga, a criar unto. Desta feita, porém, a coisa fiava doutra
maneira. Iam dois, e pudera preveni-los a tempo e horas. E estava então com o
focinho em cima do excomungado, quando o parvo do caçarreta lhe manda um
tiro à cabeça! Ficou ali como morto, e ainda por maior desgraça a ouvir a risada
escarninha do albarrão, ao dobrar o cerro, são e salvo!
Trinta anos que durasse, não se esqueceria nunca daquela hora. Todo o cami-
nho ao colo do doutor, depois de lhe ouvir dizer: – Uma estupidez destas, só tinha
uma resposta...
Duas semanas de molho, e, diga-se a verdade, também de ternuras, de cuida-
dos, de comidinha da boa. Por fim lá arribou, e a brincadeira ficou-lhe de emenda.
Nunca mais correu a foguetes. Quem quer que fosse, podia chamar e assobiar à
vontade. Nem se mexia. Às vezes, rilhadinho de vício. Mas não ia. Esperava pelo




dono, que atirava quando devia, e vamos indo! Errar, todos as erravam, infeliz-
mente. Ainda estava para nascer o primeiro que se pudesse gabar do contrário. Pelo
menos à sua frente... Pexotices de uma pessoa se benzer! Mas, enfim, o dono não
era lá dos piores, e largava o tiro na altura própria, honradamente, quando elas
repinicavam as castanholas no ar. Por isso, aguardava que viesse.
Nem as lérias do Fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras caçadas de menos
risco que poderiam fazer juntos pela freguesia... Era um cão que se respeitava, que
tinha dignidade. Borgas dessas eram lá com rafeiros, com jecos do fado e do
mundo. O que não quer dizer que fosse nenhum maricas! Tratava de arranjar a vida
(a sua vida particular) sem dar nas vistas e sem acompanhamentos, que acabavam
sempre em cenas desagradáveis. Não que tivesse medo a qualquer dos rufias que
costumam aparecer nessas ocasiões. Se acontecia ver-se metido nelas, batia-se ali
como um homem, até que as coisas ficassem esclarecidas. Tocava a quebrados,
dava a matar. E nunca ficara do lado dos vencidos! Pelo contrário. Procurava,
contudo, afastar-se de rixas e contendas. E dissera sempre que não ao amigo, por
sinal um belíssimo animal, apesar da baixa extracção. Morrera há um ano, o des-
graçado. Que razia! A guarda espalhou as bolas, e foi a eito. Valeu-lhe a ele estar à
argola nessa data. Senão, era uma vez um Nero. Que, para chegar à miséria presen-
te, antes tivesse morrido também. Ao menos, deixava saudades. Assim, acabava de
velhice, podre por dentro, a meter fastio a toda a gente. Se então o levasse o diabo,
não haviam de faltar lamúrias e lágrimas naquela casa. Agora, lia nos olhos de
todos o desejo de que partisse o mais depressa possível para dar lugar a outro... E
quem seria o felizardo, que lhe herdaria o ninho? Quem viria ouvir as longas
conversas à lareira, no inverno, quando a chuva escorregava dos beirais e o vento
norte soprava? Tanto pensara no filho, no seu Jau, para o render ali! Mas o raio
herdara os defeitos da mãe: mau nariz e um pouco de sofreguidão. Não se agüen-
tava com elas ao pé. Lá no abocar e trazer à mão, saíra ao lençol de cima: nem
sequer o ovo da educação quebrara. Uns dentinhos de veludo. A alegria que tivera
a primeira vez que o viu amarrado junto de si! Deitou-lhe o canto do olho, e o
pequeno parecia uma estátua: teso, esticado, o rabo como uma seta... Nos montes
da Queda, lembrava-se bem. Iam a mata-cavalos num rasto, quase sem tomar respi-
ração. A prever já o resultado da correria, tentava deitar água na fervura:
– Mais devagar, rapaz, mais devagar...
Mas o demónio tinha os nervos da mãe. Puxava como um dragão pela encosta
acima. E ele seguia-o no andamento, a tentar encobrir o estabanado.
– Calma! Calma!
Nada! Aquele cheiro arrastava-o, endoidecia-o.
– Isto não vai a matar, homem de Deus...
Até que chegaram perto do bando. Fez-lhe sinal, estacou, e o garoto ficou-se
também. Mas, as perdizes saltaram e, quando o dono chegou, deu com o nariz no
sedeiro. À noite, uma grade às costas, coisa que não acontecia há anos. E ao cabo de
mais três ou quatro dias de experiência, o doutor deu-o a um aldeagante de jurjais.
Viera vê-lo uma vez, pelo S. Miguel. Pediu-lhe a bênção e contou. Até fominha!
Depois lá se foi, coitado. E podia estar ali a receber-lhe o último suspiro e a herdar-lhe
o ninho de musgo. Sempre era ter alguém da família ao lado. Assim, morria sozinho,
tristemente. Nem o ordinário do galo, com quem tanta paciência tivera, nem esse
vinha! Andava pelo quinteiro, muito asno, muito parvo, como se mesmo a dois passos
não estivesse a acontecer aquela grande desgraça. É certo que também ele, Nero, vira
morrer o gato, um sem número de frangos e galinhas, e cada ano seu porco, sem o
menor estremecimento. A verdade acima de tudo. Mas, desta vez, o caso mudava de
figura: finava-se um cão, um cão de caça, um navarro legítimo! Ingratidões... Porque,


 

apesar de perdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, à raposa e à doninha, quando na
capoeira parecia a semana santa?! Ele. Ele, Nero, que entregava a alma ao Criador, ali,
desdentado, com as urinas em sangue, cego duma vista... E o que ele fora na mocidade!
Ágil, asado, até mesmo toleirão... Os enganos do mundo!
Lá dentro frigiam carne. Ouvia bem o chorriscar da gordura na sertã. Dantes,
seria o bastante para lhe correr a baba pelas barbelas abaixo. Agora, só a lembrança
de torresmos dava-lhe volta ao estômago. Um perfeita ruína! Estava podre por
dentro e por fora... Raio de vida! E o malandro do galo a galar uma galinha!
Tivesse ele procedido doutra maneira, quando o parvo era franganote, e já então
cheio de proa, e não estaria agora o demo a fazer-lhe macaquices. Mas era feio um
navarro dar um apertão num frango. Saiba um homem respeitar-se. Que grande dor
de cabeça!... Que peso medonho na arca do peito!... E o corpo mole, sem acção...
Aí vinha a patroa nova observar o andamento daquilo...
Fechou os olhos. Sempre gostava de ouvir o que diria quando o visse como morto...
Ela chegou-se e ficou silenciosa.
Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara. Chorava. Desceu novamente
as pálpebras, feliz.
E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes de S.
Domingos, lá longe, pareciam ter já saudade das suas patas seguras e delicadas,
quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a
anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do
juízo, fechou duma vez os olhos e morreu.

Bibliografia
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ROSA, João Guimarães. Sagarana. RJ: Nova Fronteira, 1984.
SÁ, Olga. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.
TORGA, Miguel. Bichos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
http://www.mpbnet.com.br/musicos/paulo.cesar.pinheiro/letras/sagarana.htm
http://portrasdasletras.folhadaregiao.com.br/sagarana.html
http://www.sagarana.uai.com.br/
http://orbita.starmedia.com/~stargate2/fabula.htm
http://www.instituto-camoes.pt/escritores/torga/miura.htm

Sobre os autores
Neide Luzia de Rezende
é professora da Faculdade de Educação da USP e ministra a disciplina
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa no curso de Licenciatura.

Silvio Pereira da Silva


é professor efetivo da rede pública estadual e mestre em Letras pela USP.

Gabriela Rodella
é bacharel em Letras pela FFLCH-USP, licenciada pela FEUSP e editora de
livros didáticos.

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