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Período Romântico
Organizadores
Neide Luzia de Rezende
Maria Lúcia C. V. O. Andrade
Valdir Heitor Barzotto
Elaboradoras
Neide Luzia de Rezende
Gabriela Rodella
Maria Claudia Rodrigues Alves
1
módulo
Nome do aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva
PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian
Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei,
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação
Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.
Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.
Conteúdo
Unidade I
• Texto-base: Manuel Antônio de Almeida: Memórias de um sargento de milícias
Unidade II
• José de Alencar: Lucíola
Unidade III
• Gonçalves Dias: Poesias
• Álvares de Azevedo: Lira dos vinte anos
• Castro Alves: Espumas flutuantes, Navio negreiro
Estratégias sugeridas
• Conversa entre os alunos, em grupo, sobre o texto lido e apresentação
conjunta para a classe do resultado da discussão.
• Estudo do texto pelo estagiário, orientado pelas tarefinhas propostas.
Prosa
• No início da aula, os alunos poderão se reunir em grupos de 5 durante
cerca de dez ou quinze minutos, no máximo, para, entre si, levantarem um
aspecto que consideram instigante e que gostariam de discutir mais, expondo-
o em seguida para toda a classe. Assim, cerca de 8 aspectos ou questões pode-
rão ser, com a ajuda do estagiário, sintetizados e discutidos em conjunto, du-
rante cerca de 20 a 30 minutos.
• Em seguida, sob a batuta do estagiário, far-se-á um estudo mais apro-
fundado do tema da aula, que deverá se reportar ao romance em estudo.
Poema
• Os alunos podem buscar novos poemas dos autores indicados, como po-
dem escolhê-los ao final do módulo. É importante ler os poemas escolhidos
mais de uma vez antes da aula, para ir captando suas imagens e seu sentido.
• Em sala, reunidos em grupos de cinco, os alunos trocarão seus poemas
e escolherão um dentre todos para ser lido para a toda a classe. Desse modo,
serão lidos em torno de 8 poemas.
• Após a leitura, o aluno indicado pelo grupo poderá fazer um rápido comen-
tário a respeito do poema lido. Não se trata de “análise”, mas o leitor deve dar
mostras de que sabe algo a respeito do poeta e de que entendeu sua mensagem.
• Em seguida, sob a batuta do estagiário, far-se-á um estudo mais apro-
fundado do tema da aula, que deverá versar sobre poema.
Unidade 1
Manuel Antônio
de Almeida
Memórias de um sargento de milícias
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Maria Lúcia C. V.
Comentário dos dois parágrafos O. Andrade
Valdir Heitor
iniciais do capítulo 1 Barzotto
O comentário dos dois parágrafos iniciais tem por objetivo situá-lo em Elaboradora
relação ao tempo, ao espaço, às personagens principais e ao estilo do autor, Neide Luzia de
dentre outros aspectos importantes relacionados à leitura do romance. Rezende
Tempo do rei
O narrador compara no livro o “tempo do rei”, sobre o qual escreve (tempo
do enunciado), e o tempo em que ele vive, ou melhor, o tempo do momento em
que está escrevendo o romance (tempo da enunciação). É no primeiro tempo
que a história se passa, sendo muitos dos seus costumes descritos pelo narrador,
que dá pois aos seus personagens a marca do momento histórico em que vivem,
isto é, o reinado de D. João VI, portanto anterior à independência do Brasil. Para
o narrador, aqueles eram tempos melhores, mais “autênticos” (veja como ele
vai mostrando isso ao longo do livro). Por isso, a História (os fatos, o modo de
vida e a mentalidade de uma época) ganha também uma dimensão de fábula,
como de fato pretende o narrador ao iniciar seu romance com uma fórmula
própria a esse gênero. O romance parece o tempo todo transitar entre essas duas
Caricatura de Gonçalves
Dias por Loredana.
-
1
O termo tem sua origem no francês feuilleton, espaço dedicado ao entretenimento no rodapé dos jornais.
A MATÉRIA DO ROMANCE
“Ora é curiosíssimo notar que num livro tão rico de documentação de costumes
nacionais como estas Memórias, haja ausência quase total de contribuição negra.
Entre os personagens não há um só que seja preto. Sabemos apenas que são geral-
mente negros os barbeiros de então, negras as baianas dançarinas da procissão dos
Ourives, e o mais são referências desatentas a escravos e às crias de D. Maria. No
vigésimo capítulo da segunda parte o romancista nos fala de um vadio chamado
Teotônio, procurado pela polícia, dono de uma casa de tavolagem e apreciadíssimo
de todos pelas suas habilidades de salão. Não havia baile ou cerimônia familiar a
que o dono da casa, querendo garantir riso na festa, não convidasse o Teotônio. E
entre as habilidades deste, conta Manuel Antonio de Almeida, estava a de cantar
admiravelmente ‘em língua de negro’. Por aí se percebe que era ainda considerada
coisa espetacular e rara, verdadeiro exotismo nas funçanatas de brancos, a música e
a linguagem dos pretos.” (p. 131-2)
-
De fato, no romance encontramos uma classe social que poderia ser cha-
mada de pequena burguesia, espécie de classe média no interior da qual havia
os mais e os menos remediados. A cultura documentada no romance era tam-
bém aquela a que essa classe tinha acesso. Era a sociedade dos homens livres
do Brasil de então (os negros escravos esperariam ainda mais de meio século
para a libertação). Era uma sociedade que, como se vê no romance, embora já
compartilhasse da ideologia burguesa sobre o trabalho, ainda punha bem pouco
a mão na massa. O trabalho braçal, realizado pelos escravos, era para essa
sociedade de homens livres uma vergonha.
“Na limpidez transparente do seu universo sem culpa, entrevemos o contorno
de uma terra sem males definitivos ou irremediáveis, regida por uma encantadora
neutralidade moral. Lá não se trabalha, não se passa necessidade, tudo se remedeia.
Na sociedade parasitária e indolente, que era a dos homens livres do Brasil de então,
haveria muito disto, graças à brutalidade do trabalho escravo, que o autor elide
junto com outras formas de violência” – diz Antonio Candido no estudo sobre o
romance. (“Dialética da malandragem” , p. 53-4)
TAREFINHAS DA UNIDADE 1
Tarefinha 1 (para a sala de aula)
Foi possível identificar o paradoxo a que nos referimos no início do guia
de estudo?
2
Gênero, nessa acepção, refere-se às características socioculturais dos sexos feminino e do masculino.
PARA RELACIONAR
• Carlota Joaquina – a princesa do Brazil.
(Carlota Joaquina – A Princesa do Brazil,
Brasil, 1994). Direção: Carla Camurati.
Unidade 2
José de Alencar
Lucíola
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
O romance Lucíola conta uma história de amor que se passa na Corte na Maria Lúcia C. V.
metade do século XIX. Paulo, rapaz de 25 anos e profissão indefinida (provavel- O. Andrade
mente formado em Direito), conhece Lúcia, cortesã, prostituta de luxo, mulher Valdir Heitor
fatal poderosa. O romance, narrado em primeira pessoa, mostra a protagonista Barzotto
interpretada pelo narrador Paulo, o que é portanto um ângulo de visão restrito.
Embora Paulo seja um homem sensível, que busca construir sua personagem para Elaboradoras
além das aparências, ele não deixa de expor um imaginário masculino determina-
Neide Luzia de
do por sua época. Lúcia (ou Lucíola) é a projeção desse imaginário.
Rezende
A história que ele nos conta é a de uma jovem belíssima, desejada por
Gabriela Rodella
todos os homens da corte. Lúcia tem casa, vestidos caros, anda sozinha pela
cidade, participa de festas, freqüenta o teatro e vai aonde bem entende, mas
Paulo percebe nela profunda infelicidade, cuja dimensão aos poucos vai co-
nhecendo. Ela se apaixona, mas ele, embora se veja arrastado pela paixão,
não pode corresponder aos sentimentos dela.
Na metade final do romance, finalmente conhecemos a “verdadeira” Lú-
cia, cujo nome de batismo é Maria da Glória e cujo ingresso na prostituição se
dera aos 14 anos, motivado pela mais terrível dificuldade social.
Sintomática é a conversão moral e social de Lúcia. A gradativa renúncia
ao trabalho, ao dinheiro que ganhava com essa atividade e aos prazeres se-
xuais, inclusive ao sexo até mesmo com Paulo é vista como um processo de
santificação pelo narrador-amante.
De resto, metáforas da castidade e do demoníaco percorrem o romance do
início ao fim (Tarefinha 4), mostrando uma certa visão do feminino em que o
homem romântico é atraído pelos dois extremos: a santa e a prostituta. O cristia-
nismo se impõe como ideologia dominante: os prazeres da carne revelam a queda
do espírito. Sintomático dessa mescla de anjo e demônio é o trecho abaixo.
TAREFINHAS DA UNIDADE 2
Tarefinha 1 (para a sala de aula)
Identifique o tipo de narrador de Lucíola e discuta sua posição na história
que narra.
a) Refletindo sobre esses dois trechos, separados por quase um século e meio no
tempo, compare a figura da cortesã e da garota de programa.
-
PARA RELACIONAR
Terezinha
Chico Buarque de Holanda
O primeiro me chegou
Como quem vem do florista
Trouxe um bicho de pelúcia
Trouxe um broche de ametista
Me contou suas viagens
E as vantagens que ele tinha
Me mostrou o seu relógio
Me chamava de rainha
Me encontrou tão desarmada
Que tocou meu coração
Mas não me negava nada
E assustada eu disse não.
O segundo me chegou
Como quem chega do bar
Trouxe um litro de aguardente
Tão amarga de tragar
Indagou o meu passado
E cheirou minha comida
Vasculhou minha gaveta
Me chamava de perdida
Me encontrou tão desarmada
Que arranhou meu coração
Mas não me entregava nada
E assustada eu disse não
O terceiro me chegou
Como quem chega do nada
Ele não me trouxe nada
Também nada perguntou
Não sei como ele se chama
Mas entendo o que ele quer
Se deitou na minha cama
E me chama de mulher
Foi chegando sorrateiro
E antes que eu dissesse não
Se instalou feito um posseiro
Dentro do meu coração.
Unidade 3
Os poetas românticos
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
“À primeira vista, o Romantismo, enquanto escola literária dominante em de- Maria Lúcia C. V.
terminada época, parece um conceito homogêneo e fácil de ser definido, e que os O. Andrade
romancistas, poetas e dramaturgos considerados românticos comungam as mesmas
concepções acerca da literatura e atitudes diante do mundo. Nada mais falso. Em- Valdir Heitor
Barzotto
bora julguemos saber o que seja romântico e usemos o termo a torto e a direito para
definir uma canção ou o temperamento de alguém, na hora de explicitar o conceito
aparece a dificuldade. Raramente conseguimos sair do senso comum, quer dizer, do Elaboradoras
uso impreciso e geral do conceito, que, assim vago, passa a ser empregado em Neide Luzia de
qualquer tempo e para caracterizar temperamentos e manifestações amorosas das Rezende
mais diferentes épocas artísticas e literárias. Tanto temos de escapar de seu uso
Maria Claudia
genérico, como temos também de abandonar a idéia de que o Romantismo é apenas
Rodrigues Alves
uma forma de considerar e viver o amor. Ele também é isso, mas, se ficarmos aí,
daremos ao Romantismo uma definição restrita, deixando de fora muito da riqueza
e abrangência do conceito. São estes os perigos do emprego da palavra romântico:
ora dizermos demais, ora dizermos de menos.” (Roncari, p. 296)
A Lira dos vinte anos, coletânea de poesias organizada em três partes, foi publicada
logo após sua morte (1853). O restante de sua produção, também publicado postu-
mamente, apresenta incursões pelo teatro (Macário – 1855), pela prosa, com um
conto gótico (Noite na taverna – 1855)
e por ensaios de estudos literários, além
de outros poemas como o Poema do
Frade e O Conde Lopo.
Diversos poemas desenvolvem, na
obra de Álvares de Azevedo, os temas
da decepção amorosa e da obsessão
pela morte: “Um cadáver de poeta”,
“Adeus, meus sonhos”, “Já da morte o
palor me cobre o rosto”, “O pastor mori-
bundo”, “Se eu morresse amanhã” (em
Poesias diversas). O poema “Lembran-
ça de morrer” é, porém, um dos mais
marcantes por apresentar um verso,
antológico, de bastante impacto, suges-
tão de epitáfio do eu-lírico: “Foi poeta
Foto por Militão, Rua da Constituição, – sonhou e amou na vida”.
cidade de São Paulo
Lembrança de morrer
Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Que o espírito enlaça à dor vivente, Se um suspiro nos seios treme ainda,
Não derramem por mim nem uma lágrima É pela virgem que sonhei...que nunca
Em pálpebra demente. Aos lábios me encostou a face linda!
De meu pai...de meus únicos amigos Mas quando preludia ave d’aurora
Poucos – bem poucos – e que não zombavam E quando à meia-noite o céu repousa,
Quando, em noites de febre endoidecido. Arvoredos do bosque, abri os ramos...
Minhas pálidas crenças duvidavam. Deixai a lua prantear-me a lousa!
-
Álvares “realista”
É ela! É ela! É ela! É ela!
É ela! é ela – murmurei tremendo, Oh! de certo...(pensei) é doce página
E o eco ao longe murmurou – é ela! Onde a alma derramou gentis amores;
Eu a vi minha fada aérea e pura – São versos dela...que amanhã de certo
A minha lavadeira na janela! Ela me enviará cheios de flores...
Como dormia! que profundo sono!... Mas se Werther morreu por ver Carlota
Tinha na mão o ferro do engomado... Dando pão com manteiga às criancinhas,
Como roncava maviosa e pura!... Se achou-a assim mais bela – eu mais te adoro
Quase caí na rua desmaiado! Sonhando-te a lavar as camisinhas”
-
Romantismo e Nacionalismo
A exemplo do movimento romântico em outros países, também entre nós
houve um esforço por parte dos escritores de desenvolver um projeto nacional
para a literatura brasileira, a partir da independência, visando a inserir o país no
âmbito das nações civilizadas, de inspiração européia. O Indianismo – movi-
mento que a história literária assim denominou e que resplandeceu nas décadas
de 40 e 60 do século XIX – teve em Gonçalves Dias e José de Alencar os seus
mais legítimos representantes. Entretanto, os modelos heróicos a partir dos quais
os índios foram construídos na literatura de ambos (e de muitos outros) não
correspondem à realidade e à cultura indígenas brasileiras, eram igualmente
tomados da tradição européia. Isso não impediu contudo a realização de poe-
mas de grande força estética e humana, como é I-Juca Pirama e Os Timbiras, de
Gonçalves Dias, que escreveu também poemas líricos de valor reconhecido.
Desejo [trecho]
E poi morir.
— Metastásio
Seus olhos
Oh! rouvre tes grands yeux, dont la paupiére tremble,
Tes yeux pleins de langueur;
Leur regard est si beau quand nous sommes ensemble!
Rouvre-les; ce regard manque à ma vie, il semble
Que tu fermes ton coeur.
— Turquety
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Assim lindo infante, que dorme tranqüilo,
De vivo luzir, Desperta a chorar;
Estrelas incertas, que as águas dormentes E mudo e sisudo, cismando mil coisas,
Do mar vão ferir; Não pensa — a pensar.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Nas almas tão puras da virgem, do infante,
Têm meiga expressão, Às vezes do céu
Mais doce que a brisa, — mais doce que o nauta Cai doce harmonia duma Harpa celeste,
De noite cantando, — mais doce que a frauta Um vago desejo; e a mente se veste
Quebrando a solidão. De pranto co’um véu.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Quer sejam saudades, quer sejam desejos
De vivo luzir, Da pátria melhor;
São meigos infantes, gentis, engraçados Eu amo seus olhos que choram sem causa
Brincando a sorrir. Um pranto sem dor.
São meigos infantes, brincando, saltando Eu amo seus olhos tão negros, tão puros,
Em jogo infantil, De vivo fulgor;
Inquietos, travessos; — causando tormento, Seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
Com beijos nos pagam a dor de um momento, Que falam de amores com tanta poesia.
Com modo gentil. Com tanto pudor.
Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,
Assim é que são; Assim é que são;
Às vezes luzindo, serenos, tranqüilos, Eu amo esses olhos que falam de amores
Às vezes vulcão! Com tanta paixão.
Às vezes, oh! sim, derramam tão fraco,
Tão frouxo brilhar,
Que a mim me parece que o ar lhes falece,
E os olhos tão meigos, que o pranto umedece
Me fazem chorar.
-
Os Timbiras [trecho]
CASTRO ALVES
Na história literária Castro Alves se destaca tanto por seus poemas amorosos
quanto por aqueles de cunho social, de denúncia da escravidão. Em ambas as
vertentes sentimos o homem vigoroso, de personalidade firme e impetuosa,
cujas obras cantam o amor como força vital, como possibilidade concreta.
Nos poemas de Vozes d’África e Navio Negreiro está presente toda a indigna-
ção e o horror que podia causar a escravidão dos negros das nações africanas.
Espumas flutuantes
Hebréia [trecho]
Flos campi et lilium convallium —
Cântico dos Cânticos
-
Enquanto os nautas, que ao Eterno vão, Inda que filhos de diversos povos!
Os ossos deixam, qual na praia as ancoras, Sim! me parece que nest’hora augusta
Do vasto pampa no funéreo chão. Os mortos saltam da feral mansão...
É santo o laço, em qu’hoje aqui s’estreitam E um “bravo!” altivo de além-mar partindo
De heróicos troncos — os rebentos novos —! Rola do pampa no funéreo chão!...
É que são gêmeos dos heróis os filhos,
O laço de fita
-
III V
Desce do espaço imenso, ó águia Senhor Deus dos desgraçados!
[do oceano! Dizei-me vós, Senhor Deus!
Desce mais ... inda mais... não pode Se é loucura... se é verdade
[olhar humano Tanto horror perante os céus?!
Como o teu mergulhar no brigue voador! Ó mar, por que não apagas
Mas que vejo eu aí... Que quadro Co’a esponja de tuas vagas
[d’amarguras! De teu manto este borrão?...
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ... Astros! noites! tempestades!
Que cena infame e vil Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
IV
Mais que o rir calmo da turba
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que excita a fúria do algoz?
Que das luzernas avermelha o brilho.
Quem são? Se a estrela se cala,
Em sangue a se banhar. Se a vaga à pressa resvala
Tinir de ferros... estalar de açoite... Como um cúmplice fugaz,
Legiões de homens negros como a noite, Perante a noite confusa...
Horrendos a dançar... Dize-o tu, severa Musa,
Negras mulheres, suspendendo às tetas Musa libérrima, audaz!...
Magras crianças, cujas bocas pretas São os filhos do deserto,
Rega o sangue das mães: Onde a terra esposa a luz.
Outras moças, mas nuas e espantadas, Onde vive em campo aberto
No turbilhão de espectros arrastadas, A tribo dos homens nus...
Em ânsia e mágoa vãs! São os guerreiros ousados
E ri-se a orquestra irônica, estridente... Que com os tigres mosqueados
E da ronda fantástica a serpente Combatem na solidão.
Faz doudas espirais ... Ontem simples, fortes, bravos.
Se o velho arqueja, se no chão resvala, Hoje míseros escravos,
Ouvem-se gritos... o chicote estala. Sem luz, sem ar, sem razão. . .
E voam mais e mais... São mulheres desgraçadas,
Presa nos elos de uma só cadeia, Como Agar o foi também.
A multidão faminta cambaleia, Que sedentas, alquebradas,
E chora e dança ali! De longe... bem longe vêm...
Um de raiva delira, outro enlouquece, Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
Outro, que martírios embrutece,
N’alma — lágrimas e fel...
Cantando, geme e ri!
Como Agar sofrendo tanto,
No entanto o capitão manda a manobra,
Que nem o leite de pranto
E após fitando o céu que se desdobra,
Têm que dar para Ismael.
Tão puro sobre o mar,
Lá nas areias infindas,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros: Das palmeiras no país,
”Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Nasceram crianças lindas,
Fazei-os mais dançar!...” Viveram moças gentis...
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . . Passa um dia a caravana,
E da ronda fantástica a serpente Quando a virgem na cabana
Faz doudas espirais... Cisma da noite nos véus ...
Qual um sonho dantesco as sombras ... Adeus, ó choça do monte,
voam!... ... Adeus, palmeiras da fonte!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam! ... Adeus, amores... adeus!...
E ri-se Satanás!... Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
-
TAREFINHA DA UNIDADE 3
Tarefa (para a sala de aula)
- Você deve ter reparado que, dos poetas apresentados aqui, apresenta-
ram-se ao menos dois grandes ângulos temáticos em suas obras. Relembre-os
e reflita sobre como cada um se insere no panorama da época do Romantismo.
- É fundamental que se faça uma sessão de leitura do Navio Negreiro em
sala de aula. A leitura em voz alta torna muito mais fortes e sugestivas as
imagens construídas pelo poeta.
PARA RELACIONAR
Filme:
• Amistad (Amistad, EUA, 1997). Direção: Steven Spielberg
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Obras de estudo:
ANDRADE, Mário. “Memórias de um sargento de milícias”. In: Aspectos da
literatura brasileira. São Paulo: Martins, 1974, p. 125-140.
BOSI Alfredo. “Por um historicismo renovado: reflexo e reflexão na história
literária”. In: Teresa. Revista de Literatura Brasileira, nº 1, 1º semestre de
2000. USP, São Paulo.
CAMILO, Vagner. O Romantismo. Língua Portuguesa - Módulo 3. Programa
de Educação Continuada - PEB II. São Paulo: CENP/USP, 2003.
CANDIDO, Antonio. “A literatura na evolução de uma comunidade”. In:
Literatura e sociedade. São Paulo: Ed. Nacional, 1985, p. 139-167.
CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem”. In: O discurso e a cidade.
São Paulo: Duas Cidades, 1993.
DE MARCO, Valéria. O império da cortesã: Lucíola, um perfil de Alencar.
SãoPaulo: Martins Fontes, 1986.
MEYER, Marlyse. Folhetim - uma história. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
PERRONE-MOISÉS, Leyla. “O cânone dos escritores-críticos”. In: Altas
literaturas. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998, p. 61-68.
RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos
românticos. São Paulo: Edusp, 2002.
Anotações
Anotações
Literatura
Organizadores
Neide Luzia de Rezende
Maria Lúcia V. de Oliveira Andrade
Valdir Heitor Barzotto
Elaboradores
Neide Luzia de Rezende
Silvio Pereira da Silva
Gabriela Rodella
Simone H. de Castro
2
módulo
Nome do Aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva
PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian
Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei, José Muniz Jr.
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação
Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.
Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.
Ao verme
que primeiro roeu as frias carnes
do meu cadáver
dedico
como saudosa lembrança
estas memórias
póstumas.
Ao leitor
Que Stendhal confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores,
coisa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará
é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem
vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra
difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier
de Maistre1 , não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de
finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil
antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro
umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o
seu romance usual; ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos,
que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é
fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos
coisas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito
contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias,
trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás
desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar,
fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas
1
Stendhal, Sterne e Xavier de Maistre são escritores franceses que se caracterizaram pelo uso da ironia,
o narrador quer intensificar esse traço de seu caráter ao citá-los.
2
Referência ao mundo dos mortos, “lugar desconhecido”, citado pelo personagem Hamlet, na peça
homônima de Shakespeare.
cido. Viram-me ir umas nove ou dez pessoas, entre elas três senhoras, minha irmã
Sabina, casada com o Cotrim, a filha, um lírio do vale, – e... Tenham paciência!
daqui a pouco lhes direi quem era a terceira senhora. Contentem-se de saber que
essa anônima, ainda que não parenta, padeceu mais do que as parentas. É verdade,
padeceu mais. Não digo que se carpisse, não digo que se deixasse rolar pelo chão,
convulsa. Nem o meu óbito era coisa altamente dramática... Um solteirão que expira
aos sessenta e quatro anos, não parece que reúna em si todos os elementos de uma
tragédia. E dado que sim, o que menos convinha a essa anônima era aparentá-lo. De
pé, à cabeceira da cama, com os olhos estúpidos, a boca entreaberta, a triste senhora
mal podia crer na minha extinção.
“Morto! morto!” dizia consigo.
E a imaginação dela, como as cegonhas que um ilustre viajante viu desferirem o
vôo desde o Ilisso3 às ribas africanas, sem embargo das ruínas e dos tempos, – a
imaginação dessa senhora também voou por sobre os destroços presentes até às
ribas de uma África juvenil... Deixá-la ir; lá iremos mais tarde; lá iremos quando e
me restituir aos primeiros anos. Agora, quero morrer tranqüilamente, metodicamen-
te, ouvindo os soluços das damas, as falas baixas dos homens, a chuva que tambo-
rila nas folhas de tinhorão da chácara, e o som estrídulo de uma navalha que um
amolador está afiando lá fora, à porta de um correeiro. Juro-lhes que essa orquestra
da morte foi muito menos triste do que podia parecer. De certo ponto em diante
chegou a ser deliciosa. A vida estrebuchava-me no peito, com uns ímpetos de vaga
marinha, esvaía-se-me a consciência, eu descia à imobilidade física e moral, e o
corpo fazia-se-me planta, e pedra e lodo, e coisa nenhuma.
Morri de uma pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que
uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não
creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo.
Comentário
Cabe iniciar os comentários pela inusitada dedicatória. É ao primeiro ver-
me, um “operário das ruínas”, a quem ele dedica sua obra, sua história de
vida. O corpo já está roído pelos vermes, isso fica evidenciado pelo verbo
“roeu” no pretérito perfeito do indicativo. A disposição das palavras na dedi-
catória, quase que em formato de cruz, funciona como um epitáfio, os vermes
são os herdeiros de seu corpo. Não tinha a quem dedicar sua história, não quis
fazê-lo aos homens, o que demonstra o seu extremo pessimismo e descrença,
como se verá ao longo do romance, nos seus semelhantes. (Tarefa 1)
Quanto ao breve prefácio intitulado “Ao leitor”, temos, nas primeiras li-
nhas, as palavras irônicas de um narrador, que se dirige diretamente ao leitor,
apresentando-se sem etiquetas, sem fingimentos e sem retoques convencio-
nais. Após afirmar que se trata de obra de finado, diz ele: “Escrevi-a com a
pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá
sair desse conúbio”. De modo debochado, alerta ao leitor que a obra vale por
si e diz: “... se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar,
pago-te com um piparote, e adeus.”
O autor das memórias aponta as influências recebidas, o tom adotado no
livro, declara omitir propositalmente o processo de composição e comenta
sua expectativa quanto à recepção da obra. Não lhe parece fácil classificar a
3
Referência ao escritor francês Chateaubriand, que descreve o vôo das cegonhas no livro Itinerário de
Paris a Jerusalém, sobre o qual Machado comenta em uma de suas crônicas, afirmando que esta
passagem da obra “nós dá a mais viva imagem do contraste entre a mocidade dos homens no meio da
imutabilidade da natureza”. Chateaubriand, por sua vez, fazia referência à cena da Odisséia, de Homero,
na qual o grande herói Ulisses vê o vôo das cegonhas. O narrador compara a imaginação de sua amante
Virgília ao citado vôo.
4
Moisés é um dos patriarcas do povo judeu. Líder e juiz, foi a ele que Deus revelou os dez mandamentos.
Segundo a tradição, são de sua autoria os cinco primeiros livros da Bíblia, isto é: Gênesis, Êxodo, Levítico,
Números e Deuteronômio. Os Judeus denominam essa parte da Bíblia de Tora, que significa Lei.
Tarefas
Essas tarefas devem ser realizadas pelos alunos, sendo que caberá ao monitor
decidir quais levará para a discussão em classe.
Tarefa 1
A um bruxo, com amor
O eflúvio da manhã,
quem o pede ao crepúsculo da tarde?
Uma presença, o clarineta,
vai pé ante pé procurar o remédio,
mas haverá remédio para existir
senão existir?
E, para os dias mais ásperos, além
da cocaína moral dos bons livros?
Que crime cometemos além de viver
e porventura o de amar
não se sabe a quem, mas amar?
Todos os cemitérios se parecem,
e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvida
apalpa o mármore da verdade, a descobrir
a fenda necessária;
onde o diabo joga dama com o destino,
estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,
que resolves em mim tantos enigmas.
Tarefa 2
Que outras razões você vê para o defunto-autor dedicar a obra aos vermes
que o roem?
Tarefa 3
Que reflexões você pode fazer a respeito da forma deste romance e da-
quela dos outros anteriores a ele? O que sugere a você a narrativa entrecortada
deste romance e a linearidade dos outros que já leu, por exemplo a linearidade
de Memórias de um sargento de milícias e Lucíola?
Tarefa 4
Capítulo – Vá de intermédio
Que há entre a vida e a morte? Uma curta ponte. Não obstante, se eu não compu-
sesse este capítulo, padeceria o leitor um forte abalo, assaz danoso ao efeito do
livro. Saltar de um retrato a um epitáfio pode ser real e comum; o leitor, entretanto,
não se refugia no livro senão para escapar à vida. Não digo que este pensamento
seja meu; digo que há nele uma dose de verdade, e que, ao menos, a forma é pinturesca.
E repito: não é meu.
Interprete o trecho:
Por que o capítulo se chama “Vá de intermédio”?
Tarefa 5
Você nota a diferença entre o personagem Brás Cubas e o narrador Brás
Cubas? Você acha que um se distancia do outro em que medida? Dê um exem-
plo do livro.
Tarefa 6
A presença abundante de teorias científicas e filosóficas nas Memórias refletia
um assunto de atualidade. Conforme a expressão pitoresca de Sylvio Romero, os
anos 70 do século passado [XIX] haviam visto chegar ao país “um bando de idéias
novas”. Positivismo, Naturalismo e diversas formas de Evolucionismo disputavam
a praça com outras escolas. A sua terminologia, tão prestigiosamente moderna quanto
estranha à vida corrente, anunciava rupturas radicais; prometia substituir o meca-
nismo atrasado da patronagem oligárquica por espécies novas de autoridade, fun-
dadas na ciência e no mérito intelectual.
Era natural que os entusiastas transformassem o espírito científico em panacéia
e no contrário dele mesmo. Já Machado percebeu as ironias latentes na situação e
tratou de explorá-las sistematicamente. Onde os deslumbrados enxergavam a re-
denção, ele tomava recuo e anotava a existência de um problema específico. No
contexto brasileiro, a leitura e a propagação das novas luzes européias ocorria de
modo particular, com ridículos também particulares.
(Schwarcz, Um mestre na periferia do capitalismo, p.144)
Tarefa 7
As memórias representaram para o autor Machado de Assis uma estratégia
para a composição do romance, ou seja, um gênero fecundou o outro e enri-
queceu-o. De todo modo, nem o gênero “memórias”, nem o gênero “roman-
ce” são imutáveis, ou seja, não possuem uma forma fixa, um jeito único de
ser. Os gêneros se transformam ao longo do tempo, embora, é verdade, com-
portem uma essência que, ao fim e ao cabo, mesmo com as transformações
que experimentam no seu trânsito pelas diferentes épocas, torna possível o
seu reconhecimento.
Por exemplo, este romance que você acabou de ler é diferente, na forma,
de outros romances anteriores a ele. No romance convencional, o narrador tudo
faz para não interromper o fio da história, para não nos arrancar do mundo
ilusório no qual estamos mergulhados. Aqui não, ao contrário, o narrador faz
tudo para quebrar essa impressão de realidade. Para tanto, aproveita a estrutu-
ra de um outro gênero, as memórias, que, aqui, não tem o mesmo jeitão das
Memórias de um sargento de milícias, o qual ainda guarda muito das crônicas
antigas, testemunho de uma época.
Pois bem, diante dessas características, o que você acha das memórias de
Brás Cubas? Pense sobre cada uma delas e veja se cabem na apropriação do
gênero que Machado fez no seu romance.
PARA RELACIONAR
Filme: MEMÓRIAS PÓSTUMAS (Memórias Póstumas, Brasil, 2000).
Dir.: André Klotzel.
Unidade 2
O Primo Basílio
Eça de Queirós
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Maria Lúcia V. de
Oliveira Andrade
Valdir Heitor
Barzotto
Elaboradoras
Gabriela Rodella
Neide Luzia de
Rezende
Capítulo I
Tinham dado onze horas no cuco da sala de jantar. Jorge fechou o volume de
Luís Figuier que estivera folheando devagar, estirado na velha voltair de marro-
quim escuro, espreguiçou-se, bocejou e disse:
– Tu não te vais vestir, Luísa?
– Logo.
Ficara sentada à mesa a ler o Diário de Notícias, no seu roupão de manhã de
fazenda preta, bordado a sutache, com largos botões de madrepérola; o cabelo
louro um pouco desmanchado, com um tom seco do calor do travesseiro, enrolava-
se, torcido no alto da cabeça pequenina, de perfil bonito; a sua pele tinha a brancu-
ra tenra e láctea das louras; com o cotovelo encostado à mesa acariciava a orelha, e,
no movimento lento e suave dos seus dedos, dois anéis de rubis miudinhos davam
cintilações escarlates.
Tinham acabado de almoçar.
A sala esteirada, alegrava, com o seu teto de madeira pintado a branco, o seu
papel claro de ramagens verdes. Era em julho, um domingo, fazia um grande calor;
as duas janelas estavam cerradas, mas sentia-se fora o sol faiscar nas vidraças,
escaldar a pedra da varanda; havia o silêncio recolhido e sonolento de manhã de
missa; uma vaga quebreira amolentava, trazia desejos de sestas ou de sombras fofas
debaixo de arvoredos, no campo, ao pé da água; nas duas gaiolas, entre as bambinelas
de cretone azulado, os canários dormiam; um zumbido monótono de moscas arras-
tava-se por cima da mesa, pousava no fundo das chávenas sobre o açúcar mal
derretido, enchia toda a sala de um rumor dormente.
ensinamento seja isto: – A boa escolha dos fâmulos* é uma condição de paz no
adultério. A um escritor esclarecido e de boa fé, como o Sr. Eça de Queirós, não seria
lícito contestar que, por mais singular que pareça a conclusão, não há outra no seu
livro. Mas o autor poderia retorquir: – Não, não quis formular nenhuma lição
social ou moral; quis somente escrever uma hipótese; adoto o realismo, porque é a
verdadeira forma da arte e a única própria do nosso tempo e adiantamento mental;
mas não me proponho a lecionar ou curar; exerço a patologia, não a terapêutica. A
isso responderia eu com vantagem: – Se escreveis uma hipótese dai-me a hipótese
lógica, humana, verdadeira. Sabemos todos que é aflitivo o espetáculo de uma
grande dor física; e, não obstante, é máxima corrente em arte, que semelhante
espetáculo, no teatro, não comove a ninguém; ali vale somente a dor moral. Ora
bem; aplicai esta máxima ao vosso realismo, e sobretudo proporcionai o efeito à
causa, e não exijais a minha comoção a troco de um equívoco.
Tarefa 1
Cá fora, uma senhora que sucumbisse às hostilidades de pessoa de seu serviço,
em conseqüência de cartas extraviadas, despertaria certamente grande interesse, e
imensa curiosidade; e, ou a condenássemos, ou lhe perdoássemos, era sempre um
caso digno de lástima. No livro é outra coisa. […]
O autor dirá que não podia alterar a realidade dos fatos; mas essa resposta é de
poeta, é de artista? Se a missão do romancista fosse copiar os fatos, tais quais eles se
dão na vida, a arte era uma cousa inútil; a memória substituiria a imaginação… O
poeta daria demissão e o cronista tomaria a direção do Parnaso. Demais, o autor
podia, sem alterar os fatos, fazer obra de artista, criar em vez de repetir.
Tarefa 2
Em sua crítica ao romance de Eça de Queirós, Machado de Assis sarcasti-
camente afirma a respeito do realismo: “Porque a nova poética é isto, e só
chegará à perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que
se compõe um lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha.” O que o escri-
tor brasileiro reprova nesse trecho são as descrições intermináveis de objetos
Tarefa 3
Leia abaixo trechos dos dois romances em que são narradas cenas em que
os amantes tomam um lanche. No primeiro, temos o lanche que Luísa e Basí-
lio fazem no Paraíso, quarto alugado por ele para os encontros amorosos dos
dois:
Tarefa 4
No livro A história da vida privada – da Europa feudal à renascença, o
historiador Dominique Barthélemy, faz a seguinte afirmação acerca do adul-
tério na Idade Média:
o século XI, ou antes o espírito dos homens desse tempo, é atormentado pela
obsessão do adultério feminino, fundada na real permeabilidade da casa e de seus
compartimentos internos. […]
Quanto aos desregramentos da sexualidade masculina no exterior da casa, não
colocam em perigo nem a ordem desta nem a pureza da linhagem.
Para relacionar
1. Música Amor I love you, de Carlinhos Brown e Marisa Monte, interpretada
por ela no CD Memórias, crônica e declarações de amor, EMI Music, 1999.
Na música, Arnaldo Antunes lê um trecho do Primo Basílio.
2. Se ainda estiver em cartaz, não deixe de assistir à peça Hysteria, que trata
da reclusão de mulheres num manicômio do Rio de Janeiro no final do
século XIX. A peça se passa num manicômio, onde estavam confinadas
mulheres que, por não se adaptarem totalmente ao esquema a elas imposto
na sociedade, eram consideradas loucas.
Unidade 3
Gregório de Matos
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Maria Lúcia V. de
Oliveira Andrade
Valdir Heitor
Barzotto
Elaboradores
Silvio Pereira da
Silva
Neide Luzia de
Rezende
Cronologia
1636 – Nascimento na Bahia
1642 – Estudos com os Jesuítas no Colégio da Bahia
1650 – Viagem para Portugal
1652 – Matrícula na Universidade de Coimbra
1660 – Exame de Bacharel na Universidade de Coimbra
1661 – Formatura em Cânones na Universidade de Coimbra
1661 – Casamento em Lisboa
1662 – Habilitação (de genere) para leitura de bacharel
1663 – Nomeado Juiz de Fora de Alcácer do Sal por D. Afonso VI
1665–1666 – Provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alcácer do Sal
1668 – Representante da Bahia, nas Cortes, Lisboa, 27 de janeiro
1671–1672 – Juiz de Órfãos e Juiz do Cível em Lisboa
1672 – Procurador da Bahia (Senado da Câmara) em Lisboa
se particularmente crua e às vezes violenta. Além disso, seus poemas falam das
transformações socioeconômicas que ocorriam no Brasil-colônia, seu quadro
político e social, as formas de domínio e controle da metrópole sobre a colônia,
a crise do açúcar. Foi cronista de uma época, de uma cidade, de um país.
Poesia Satírica
Muitos gregórios O crítico canadense Nor-
throp Frye, ao definir a
Segundo João Adolfo Hansen, autor de A sátira e o Engenho – Gregório sátira, diz que esta nasce
de Matos e a Bahia do século XVII, as leituras críticas construíram ao longo da luta cômica de duas
do tempo diversas imagens de Gregório de Matos: sociedades, uma consi-
- um Gregório de Matos cuja fúria corajosa imperava em seu ser, interpretado derada normal e outra
pelos humores da arte de prudência barroca de Manuel Pereira Rebelo1 ; absurda. A sátira visa a
combater “um mundo
- um Gregório de Matos iniciador da poesia lírica de intuição étnica, crítico cheio de anomalias, in-
inconformado e desbocadíssimo, uma vez que seu brasileiro não era o ca- justiças, desatinos e cri-
boclo, nem o negro, nem o português, era já o filho do país, capaz de mes”. Nesse aspecto, po-
ridicularizar as pretensões separatistas das três raças; demos pensar na sátira
de Gregório: para ele a
- um Gregório de Matos vagamente anarquista, misto de vanguarda do pro- sociedade normal, era a
letariado, ao mesmo tempo um intelectual e um libertino sexual, parodian- do homem branco, bem-
do o estilo alto da cultura oficial; nascido, contrária à dos
que estavam no poder
- um Gregório de Matos hedonista, versão da antropologia doce-bárbara de
na época, homens sem
Gilberto Freyre;
nome, sem honra, a so-
- um Gregório de Matos concretista-oswaldiano, devorador dos versos de ciedade dominada pelo
Quevedo, Gôngora e Camões, salpicando-os com o tempero dos localismo comércio, pelos estran-
banto e tupi e o molho do português colonizador; geiros, pelos mulatos, in-
dicando uma revirada
- um Gregório de Matos invisível e interdito, obsceno, pornográfico, impróprio; social considerada ab-
- um Gregório de Matos sintético, das seletas para uso colegial, catolicíssimo, surda, pelo poeta. Gre-
gório de Matos parece
das poesias sacras;
procurar respostas para
- um Gregório de Matos exagerado, lúdico e preciosíssimo; as diversas contradições
que aponta, ele não acei-
- um Gregório de Matos caracterizado pelos dualismos do estilo barroco:
ta a nova ordem das coi-
conceptista e cultista. sas. Vistas na perspecti-
(Tarefa 3) va de hoje, as idéias de
Gregório parecem-nos
contraditórias e racistas:
Aos vícios
2
Garlopa – ferramenta usada na marcenaria, para aplainar madeira, índice da execução de trabalho
braçal
3
Plectro – palheta usada para vibrar as cordas dos instrumentos
4
Talia – musa da Comédia.
5
Baiona – Cidade da Galízia onde se deram várias batalhas entre Espanha e Portugal
6
Parnaso – monte onde se reuniam os poetas, as musas e Apolo na Mitologia.
À cidade da Bahia
7
Chiton – do francês chut conc: silêncio.
POESIA LÍRICA
A uma dama
POESIA SACRA
A Jesus Cristo Nosso Senhor
Epílogos
Notável desventura
de um povo néscio, e sandeu,
que não sabe, que o perdeu
Negócio, Ambição, Usura.
Sazonada caramunha!10
enfim que na Santa Sé
o que se pratica, é
Simonia, Inveja, Unha.
O açúcar já se acabou?..........................................Baixou.
E o dinheiro se extinguiu?...................................Subiu.
Logo já convalesceu?............................................Morreu.
À Bahia aconteceu
o que a um doente acontece,
cai na cama, o mal lhe cresce,
Baixou, Subiu, e Morreu.
9
Usada com o sentido de roubalheira.
10
Sazonada caramunha - experimentada lamentação
11
manqueiras - deslize moral
Tarefas
Tarefa 1
“Me dá o mote que eu faço a glosa”
MOTE
De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver
um furtar, outro foder.
para resumir-lhe o sentido. O mote foi muito cultivado no séc. XVI por poetas
renascentistas e posteriormente por poetas barrocos, caindo em desuso no
século seguinte.
Glosa – tipo de composição poética que desenvolve um mote, em geral
em tantas estrofes quantos são os versos deste e acabando cada estrofe com
um deles.
Tarefa 2
Discutir em sala de aula, com a orientação do monitor, sobre a função do
palavrão na obra do poeta, refletindo se isso é adequado ou não ao fazer
poético.
Tarefa 3
Um desafio para você: selecione poemas de Gregório e identifique esses
aspectos da fisionomia literária do poeta barroco de que fala o professor
Hansen.
Tarefa 4
Tendo lido Machado de Assis e Gregório de Matos, compare trechos dos
dois escritores e procure distinguir na linguagem o que caracteriza a ironia e
a sátira.
Tarefa 5
Caetano Veloso, assim como outros artistas, musicou letras de Gregório de
Matos. Se conseguir descobrir quais são, traga a letra ou o CD para a classe.
Unidade 4
Antônio Vieira
Organizadores
Neide Luzia de
Rezende
Parrrede! Maria Lúcia V. de
Oliveira Andrade
Quando eu estudava no colégio, interno, Valdir Heitor
Eu fazia pecado solitário. Barzotto
Um padre me pegou fazendo. Elaboradoras
– Corrumbá, no parrrede!
Simone H. de
Meu castigo era ficar em pé defronte a uma parede e
Castro
decorar 50 linhas de um livro.
O padre me deu pra decorar o Sermão da Sexagésima Neide Luzia de
de Vieira. Rezende
– Decorrrar 50 linhas, o padre repetiu.
O que eu lera por antes naquele colégio eram romances
de aventura, mal traduzidos e que me davam tédio.
Ao ler e decorar 50 linhas da Sexagésima fiquei
embevecido.
E li o Sermão inteiro.
Meu Deus, agora eu precisava fazer mais peca-
do solitário!
E fiz de montão.
– Corrumbá, no parrrede!
Era a glória.
Eu ia fascinado pra parede.
Desta vez o padre me deu o Sermão do Mandato.
Decorei e li o livro alcandorado.
Aprendi a gostar do equilíbrio sonoro das frases.
Gostar quase até do cheiro das letras.
Fiquei fraco de tanto cometer pecado solitário.
Ficar no parrrede era uma glória.
Tomei um vidro de fortificante e fiquei bom.
A esse tempo também eu aprendi a escutar o
silêncio
das paredes.
(Manuel de Barros, Memórias Inventadas. São Paulo: Planeta, 2003.) Anjos tocheiros, de Francisco
Vieira Servas, séc. XVIII, Museu
(Tarefa 1) da Independência.
Antônio Vieira e o
Sermão do bom ladrão
O Sermão do bom ladrão, pregado na Misericórdia de Lisboa em 1655, é
um exemplo da crítica contundente do padre Antônio Vieira àqueles políticos
que, tendo por ofício a administração dos bens públicos, “conjugam”, segun-
do o jesuíta, “por todos os modos o verbo Rapio”, roubar. Tal é a atualidade
do Sermão que, não por acaso, teve alguns de seus trechos utilizados em
episódio recente da vida pública brasileira, como voz acusadora durante uma
investigação por fraude no Senado. (ver adiante a seção “Para Relacionar”)
O Sermão, transcrito a seguir, é um texto em que, por meio de exemplos
bíblicos e de palavras de teólogos, como São Tomás de Aquino e Santo Agosti-
nho, e de filósofos como Sêneca , o padre comenta, de modo eloqüente e
“engajado”, um dos graves problemas políticos que era preciso enfrentar na-
queles tempos e que afligia, sobretudo, o homem colonial: a convivência com a
“ladroeira” perpetrada pelos governadores nomeados pelo rei e pelos possuido-
res de outros altos cargos, muitas vezes obtidos não por nomeação, mas por
compra. Distantes dias e dias da metrópole e sem um controle rigoroso por parte
da Coroa, esses homens trabalhavam muitas vezes apenas em benefício pró-
prio, visando à conquista de um poder cada vez maior e, para isso, roubavam,
prendiam, matavam, travavam longas disputas com adversários, e muitas vezes,
morriam também nesses conflitos. Vieira, de modo astuto, defende, com grande
erudição, a tese de que “nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os
ladrões, nem os ladrões podem ir ao Inferno sem levar consigo os Reis”. O
ponto a que quer chegar é justamente o que se refere à última proposição: quase
sempre o que se vê são os ladrões levando os Reis ao Inferno, já que a roubalheira
ocorre, de certa forma, sob o consentimento destes últimos. “O que vemos mais
praticar em todos os Reinos do mundo”, diz o padre, “são os ladrões que levam
consigo os Reis ao Inferno”. Desse modo, ao mesmo tempo em que faz um
alerta ao rei, o padre acusa aqueles que se valem de seus cargos para obter
benefícios pessoais, deixando o povo à míngua.
Uma das imagens que o padre utiliza argumentativamente neste sermão é
a do Bom e do Mau Ladrão, Dimas e Zaqueu, respectivamente. Oriundas do
texto bíblico, tais personagens representam aqui o ladrão “pobre”, que não
tem como restituir o roubado, a quem, segundo Vieira, “a pobreza e vileza de
sua fortuna condenou a este gênero de vida”, mas cuja miséria “ou escusa ou
alivia o seu pecado”; e o “rico’, que tem como restituir, mas que rouba sem ao
menos pensar nessa possibilidade.
Os ladrões a quem o padre deseja atingir no Sermão do bom ladrão não são,
entretanto, os bons ladrões, a exemplo de Dimas. São, na realidade, os chama-
dos “maus ladrões: os de maior calibre e de mais alta esfera, a quem os reis
encomendam os exércitos e legiões, ou o Governo das Províncias, ou a admi-
nistração das Cidades, os quais já com manha, já com força, roubam e despo-
jam os povos”. Já na introdução – ou intróito – do sermão, o padre manifesta
essa idéia, quando sugere que tal sermão não deveria ser pregado na Misericór-
dia de Lisboa e sim na Capela Real, já que, segundo seu desejo, teria que chegar
ao ouvido do Rei, de “todos os Reis, e mais ainda aos Estrangeiros que aos
nossos”. É bem verdade que Antônio Vieira não dirige sua crítica diretamente
ao Rei, senão aos homens por ele designados. A manutenção de tais homens em
seus cargos, apesar de seus desmandos, porém, torna o soberano cúmplice de
seus furtos, e os ladrões “o levam consigo ao Inferno”.
*
O sermão do Bom Ladrão é dividido em catorze partes.
Para conferir ainda mais credibilidade às suas citações, o jesuíta opta mui-
tas vezes por utilizá-las em latim. É claro que não descuida de traduzi-las,
ciente de que a maior parte de seu público seria incapaz de compreender a
língua dos romanos.
Muito possivelmente são a lucidez do jesuíta diante dos problemas de
seu tempo, o caráter conceptista do seu texto e a universalidade de seus temas
os elementos que o tornam um autor muito acessível, claro e perfeitamente
possível de ser compreendido.
Tarefa 1
Com base na linguagem do poema e na abordagem temática, você conse-
gue identificar a que época pertence o poeta Manoel de Barros? Argumente
em favor de sua descoberta.
Tarefa 2
Resuma com suas palavras o primeiro trecho reproduzido do Sermão do
bom ladrão.
Tarefa 3
Procure identificar quem são as pessoas citadas no Sermão. Pesquise em
enciclopédias na biblioteca de sua escola (seria interessante trabalhar em gru-
pos: a cada grupo um nome). Em seguida, na sala de aula, a tarefa consistiria
em entender o porquê da referência feita por Vieira a essas figuras.
Por exemplo, a referência a Alexandre no trecho: “O roubar pouco é cul-
pa, o roubar muito é grandeza. O roubar com pouco poder faz os piratas, o
roubar com muito, os Alexandres”.
Tarefa 4
As citações, os trechos em latim, a linguagem escorreita, a religiosidade
imanente, tudo nos leva a penetrar camadas mais profundas da obra, indicam-
nos não só a fisionomia literária do seu autor como também que tipo de leitor
(ouvinte, no caso) ele desejaria que fôssemos – aspecto que é um dos mais
importantes dos textos, a configuração do leitor.
Para que tipo de ouvinte Vieira estava pregando na Igreja da Misericória
de Lisboa?
Tarefa 5
Como você sabe, há determinadas formas de organização textual encon-
tradas em todo texto, às vezes uma sendo mais determinante do que outras, ou
até sendo exclusiva na construção daquele texto. Tais formas são basicamen-
te: narração, dissertação, descrição, diálogo. Quais delas você pode encontrar
nos trechos transcritos do Sermão do bom ladrão?
Para relacionar
Por uma ladroeira morigerada
Bibliografia
ASSIS, Machado de. “O Primo Basílio”. In: Crítica literária. São Paulo:
W.M. Jackson, 1955.
ASSIS, Machado. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1992.
BOSI, Alfredo et alii. Machado de Assis. São Paulo: Ática, 1983.
CAMPEDELLI, Samira Youssef. Machado de Assis. São Paulo: Scipione, 1995.
CAMPOS, Haroldo de. Original e revolucionário. Folha de S. Paulo. Ca-
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CANDIDO, Antonio. Esquema de Machado de Assis. In: Vários escritos,
São Paulo: Duas Cidades, 1970.
CASTRO, Simone H. de. Poemas, sermões e cartas de amor – uma pro-
posta para o estudo de literatura no ensino médio. São Paulo, 2002. Disserta-
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DIMAS, Antônio. Gregório de Matos. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
DUBY, G. (org.). História da vida privada – da Europa feudal à renas-
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Bahia do século XVII. São Paulo: Companhia das Letras/ Secretaria de Estado
da Cultura, 1989.
LAJOLO, Marisa. Machado de Assis. São Paulo: Abril Educação, 1980.
MATOS, Gregório. [Vários textos] www.ufba.br/~gmg/welcome.html
MATOS, Gregório de. Poemas escolhidos. Seleção, introd. e notas por José
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MIRANDA, Ana Maria. Boca do Inferno. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
PIETRANI, Anélia Montechiari. O enigma mulher no universo masculino
machadiano. Niterói: EdUFF, 2000.
QUEIRÓS, Eça de. O Primo Basílio. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2004.
SARAIVA, A.J. e LOPES, O. História da literatura portuguesa. Porto: Por-
to Editora, 2000.
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas cidades, 1988.
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo:
Duas Cidades, 1990.
VIEIRA, Antonio. Sermão da sexagésima. www.bibvirt. futuro.usp.br.
Acessado em 11.07.2004.
Sobre os autores
Neide Luzia de Rezende
é professora da Faculdade de Educação da USP e ministra a disciplina
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa na licenciatura.
Silvio Pereira da Silva
é professor efetivo da rede pública estadual e mestre pela Faculdade de
Letras da USP.
Gabriela Rodella
é formada pela Faculdade de Letras da USP e licenciada pela FEUSP e
trabalha como editora de livros didáticos.
Simone Herchcovitch de Castro
é mestre pela área de Linguagem e Educação da FEUSP e professora de
Língua Portuguesa na rede particular de ensino.
Literatura
Organizadora
Neide Luzia de Rezende
Elaboradores
Neide Luzia de Rezende
Gabriela Rodella
Silvio Pereira da Silva
3
módulo
Nome do Aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva
PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian
Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei, José Muniz Jr.
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação
Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.
Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.
Macunaíma
Mário de Andrade
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradores
Neide Luzia de
Rezende
Silvio Pereira da
Silva
Maloca: habitação indí- Nosso comentário sobre Macunaíma se inicia pelo...fim. Acreditamos que
gena que aloja toda a fa- não será esse um procedimento capaz de empanar o prazer da leitura desse
mília.
livro extraordinário. Ao contrário, pretende-se oferecer elementos que propi-
Aruaí: segundo Aurélio é ciem uma leitura mais interessante, uma vez que se trata de um livro recheado
o filhote do aruá, um de “armadilhas” que, se não identificadas, podem representar mesmo um obs-
molusco que vive na táculo para esse intrigante e divertido passeio no bosque da ficção.
água doce ou em locais
muito úmidos e que
aparece sob a forma de “A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas
pequenos aglomerados
e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí do séquito daqueles tempos de
de ovos brancos, cor-de-
dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador. E só o papagaio no
rosa ou alaranjados.
silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida.
Uraricoera : segundo o Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.
Auréilio, é um rio da Ama-
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou
zônia.
eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me
Macunaíma : “O Grande acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em
Mau” (maku = mau; ima = toque rasgado botei boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de
grande) em língua de tri-
Macunaíma, herói de nossa gente.
bos da região amazônica.
Tem mais não.”
(Dicionário Aurélio e ou-
(Último parágrafo do livro)
tras fontes)
“Andam elas vestidas de rutilantes jóias e panos finíssimos, que lhes acentuam
o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que a de nenhuma outra cedem pelo
formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e
tantas habilidades demonstram, no brincar, que enumerá-las, aqui seria fastiendo
porventura; e, certamente, quebraria os mandamentos de descrição, que em relação
de Imperator para súbditas se requer.
Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabe-
los muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão
cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se
envergonhavam. (...)
Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de
verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e
certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas
mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas
como ela.
Como podemos observar há, nos trechos, aspectos que podem ser facil-
mente comparados, como, por exemplo, referências à formosura das mulhe-
res e o destaque para a questão sexual. Afinal, umas não têm nada que lhes
cubras as partes íntimas e outras, as paulistanas, cobrem suas “graças” com
panos finíssimos, que lhes acentuam a beleza. Parece que o pudor ocidental
não passa de um tênue véu. A leitura comparativa das duas cartas pode ainda
revelar outras descobertas interessantes.
De modo geral, no texto de Mário de Andrade, os papéis se inverteram,
pois não é o civilizado que relata o que viu em regiões recentemente encon-
tradas ao soberano de seu país. Agora é o imperador indígena colonizado, no
papel de descobridor, que descreve a terra colonizadora recém-conhecida e
informa seus súditos índios e colonizados sobre o modo de vida dos civiliza-
dos. Como se vê, há uma inversão total de papéis, uma carnavalização (no
carnaval, os papéis se invertem, o pobre pode ser rei e o rico pode se fantasiar
de mendigo), muito característica da intenção paródica na época.
Tarefas
Tarefa 1
Um desafio: reconstituir o enredo central do livro (entregue seu texto ao
monitor).
Tarefa 2
O Uraricoera existe realmente: é um rio da Amazônia, que hoje já se en-
contra quase inteiramente poluído. Nesse sentido, parece profético o livro de
Mário de Andrade. Por quê?
Tarefa 3
Anotações do autor para prefácio (não publicadas na época):
Evidentemente não tenho a pretensão de que meu livro sirva pra estudos cientí-
ficos de folclore. Fantasiei quando queria e sobretudo quando carecia pra que a
invenção permanecesse arte e não documentação seca de estudo. Basta ver a ma-
cumba carioca desgeograficada com cuidado, com elementos dos candomblés
baianos e das pajelanças paraenses. Com elementos dos estados já publicados,
elementos colhidos por mim dum ogan carioca ‘bexiguento e fadista de profissão’
e dum conhecedor das pajelanças, construí o capítulo a que ainda ajuntei elemen-
tos de fantasia pura. Os meus livros podem ser resultado dos meus estudos porém
ninguém não estude nos meus trabalhos de ficção, leva fubeca.
A paródia foi um procedimento comum aos escritores modernistas. Com a Como sabemos, o prazer
ajuda de seu monitor, procure entender o porquê desse procedimento. Note da leitura de uma obra
que entender a razão da paródia é, de certo modo, entender o comportamento vem não só da história
estético e ideológico dos nossos grandes escritores do período, Mário e Oswald que conta, mas também
do como conta, o que
de Andrade.
está ligado a todo um
arsenal lingüístico e li-
terário que o autor mo-
Para relacionar biliza. E isso está presen-
te em quase todas as
Filme produções culturais. Por
MACUNAÍMA, de Joaquim Pedro de exemplo, no filme infan-
til Aladim, de Walt Disney,
Andrade (Brasil, 1969).
há pelo menos dois ti-
Exposição pos de espectadores vi-
“Na terra de Macunaíma” – de 31/8 sados: o público infantil,
a 17/10, de terça a sexta, das 13h às que se delicia com o en-
redo de aventuras, e um
21h30, sábado e domingo das 9h30 às
público mais velho, ca-
18h – SESC Araraquara, r. Castro Alves,
paz de reconhecer as re-
1315, Araraquara, SP (tel. 0/xx/3301- ferências culturais ali
7500). presentes.
Araraquara, no interior paulista, é a
cidade natal de Macunaíma. Foi ali, num
sítio de um primo, que Mário escreveu o
livro. A mostra reúne documentos da his-
tória dessa nascimento.
Unidade 2
Fernando Pessoa
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende 1 2 3
Elaborador
Silvio Pereira da
Silva
1. Fernando Pessoa com dez anos de idade 2. Fernando Pessoa aos vinte anos de idade 3.
Fernando Pessoa nas ruas da Baixa lisboeta.
4 5
Fonte: Livro “Fernando Pessoa na Intimidade”, de Isabel Murteira França. Publicações Dom
Quixote, Lisboa 1987.
Biografia A sociabilidade
literária
Fernando Antônio Nogueira Pessoa nasceu em
Os bares, cafés, restau-
Lisboa, em 13 de junho de 1888, perdeu o pai aos rantes, as livrarias, salões,
cinco anos de idade. Em 1896, em virtude do se- em uma época não mui-
gundo casamento da mãe, a família se transferiu to distante, eram espaços
para Durban, na África do Sul. Lá, freqüentou vári- de intensa vida artística
as escolas, recebendo uma educação inglesa. Cedo – a “boêmia” – tão decan-
revelou seu pendor para a literatura, adquiriu o gosto tada entre os artistas. No
pela poesia lendo Milton, Byron, Shelley, Edgar modernismo ela passa a
Allan Poe e outros poetas de língua inglesa. se entranhar até como
tema ou motivo nas
Em 1905, Fernando Pessoa deixou a família em Durban e regressou a obras.
Portugal, fixando-se em Lisboa, onde iniciou uma intensa atividade literária.
O crítico literário Davi
Matriculou-se no Curso Superior de Letras, mas logo o abandonou. Foi nessa
Arrigucci, em importan-
época que entrou em contato com escritores de língua portuguesa, ficando
te estudo sobre Manuel
fascinado com a obra de alguns autores, por exemplo, os sermões do Padre Bandeira, afirma que “os
Antônio Vieira (1608-1697) e, particularmente, com a obra de Cesário Verde focos de interesse dos
(1855-1886). Em 1908, começou a trabalhar como tradutor de cartas comer- modernistas se multipli-
ciais para empresas estrangeiras. Com esse emprego modesto, sustentou-se cam, confirmando a ten-
durante toda a vida. dência de todos para
partilharem uma curiosi-
Costumava encontrar-se com os amigos em cafés, especialmente o “Brasi-
dade mental que parece
leira do Chiado”, para discutir literatura. Em 1912, conhece o poeta Mário de não se deter diante das
Sá-Carneiro (1890 - 1916), de quem se tornaria grande amigo. Com ele, Almada barreiras de classe, de
Negreiros e outros, esforça-se por renovar a literatura portuguesa através da raça ou de região, como
criação da revista Orpheu, fundada em 1915, veículo de novas idéias e novas se cada qual desejasse
estéticas. Nesse período, criou vários heterônimos: Alberto Caeiro, Álvaro de ultrapassar seus própri-
Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares etc. Em 1920, conhece Ophélia os limites individuais.
Queiroz, com quem mantém um namoro, registrado em cartas trocadas por Essa espécie de cresci-
eles, que se encontram publicadas. mento coletivo e clara
expansão do espírito crí-
Morreu em 30 de novembro de 1935, de cirrose hepática, deixando gran- tico e criador tem como
de parte da sua obra ainda inédita. Fernando Pessoa nunca teve, em vida, o um dos seus correlatos,
reconhecimento que merecia. Viveu modestamente, em relativa obscuridade. no plano espacial, a co-
municação ou continui-
dade entre o espaço ín-
A criação dos heterônimos por timo do escritor – sua
casa, seu quarto, seu lo-
to com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas." Ler e
estudar Fernando Pessoa pressupõe mergulhar nesse labirinto de espelhos.
O trecho abaixo foi retirado de uma carta enviada por Fernando Pessoa a
seu amigo e crítico literário Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de janeiro
de 1935. Nela, o poeta explica a origem dos heterônimos e as características
de cada um.
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à idéia escrever
uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo
de Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso.
Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa
que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-
Carneiro - de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho,
já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar
o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de março
de 1914 - acerquei-me de uma cômoda alta, e, tomando um papel, comecei a escre-
ver, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio,
numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da
minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, "O guardador de
Rebanhos". E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei
desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera
em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que,
escritos que foram esses trinta poemas, imediatamente peguei noutro papel e escre-
vi, a fio, também, os seis poemas que constituem a "Chuva Oblíqua", de Fernando
Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto
Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reação de Fernando Pessoa contra
a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e
subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo
Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o
"via". E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosa-
mente um novo indivíduo. Num jato, e à máquina de escrever, sem interrupção nem
emenda, surgiu a "Ode Triunfal" de Álvaro de Campos - a Ode com esse nome e o
homem com o nome que tem. Criei, então, uma "coterie" inexistente. Fixei aquilo
tudo em moldes de realidade. Guardei as influências, conheci as amizades, ouvi,
dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece
que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou
independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu
puder publicar a discussão entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles
são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Os Heterônimos Perfeitos
ALBERTO CAEIRO
Fernando Pessoa criou uma biografia para cada um de seus heterônimos.
Assim apresenta a vida de Alberto Caeiro:
"Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profis-
são, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e
a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com
uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso."
A vida para Caeiro reduz-se ao "puro sentir'', sendo o sentido da "visão" o
mais relevante de todos, por ser este o que nos coloca em relação mais próxi-
ma e integral com o mundo objetivo.
"O guardador de rebanhos" é constituído de 35 poemas, numerados com
algarismos romanos; neles, Alberto Caeiro nos expõe sua postura em relação
à realidade que o cerca, seu contato com a natureza e o mundo. Seu conheci-
mento é fruto de suas sensações.
Esse poema inicia-se com uma aparente contradição, pois o eu-lírico afir-
ma ser um guardador de rebanhos sem nunca tê-lo sido efetivamente. No
entanto, isso acontece em sua imaginação, ou seja, ele finge ser um pastor
para expor mais detalhadamente sua visão de mundo. Apregoa que, para ser
natural, deve-se deixar o pensamento de lado: pensar seria um incomodo des-
necessário. Assim, cria um texto livre de tudo que poderia ser complexo, difí-
cil, optando por uma linguagem objetiva, quase sem metáforas.
Para o poeta, a natureza nos chega por meio das sensações, e não deve-
mos ficar buscando significados ocultos. A felicidade está em deixar de lado
todos os pensamentos reflexivos, racionalizados, e voltar para o encontro di-
reto com o mundo natural. (Tarefa 3)
ÁLVARO DE CAMPOS
"...nasceu em Tavira, no dia 15 de outubro de 1890 (...); é engenheiro naval (por
Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inatividade (... ); é alto (um metro e
setenta e cinco centímetros de altura, mais dois centímetros do que eu), magro e um
pouco tendente a curvar-se. Cara raspada (...); entre branco e moreno, tipo vagamen-
te de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo
teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar
engenharia, primeiro mecânica e depois naval." (Fernando Pessoa, trecho da carta)
Seus poemas são fortes, marcados pela oralidade e pela prolixidade que se
espalha em versos longos e livres, próximos da prosa, seguindo o ritmo das
alterações emocionais do poeta, muitas vezes em um tom amargurado, com
traços de pessimismo e desilusão. Para ele, a construção poética deveria for-
çar os outros a sentir o que ele sentiu.
Álvaro de Campos faz uma ode (poesia criada pelos gregos para celebrar
um acontecimento grandioso e elevado), para exaltar a modernidade, o mo-
mento presente, representado pelas grandes invenções mecânicas do século
XX, não obstante também se referir às condições difíceis de vida nesse con-
texto. Ao contrário de Caeiro, que escreve inspirado no ambiente natural,
Campos se inspira no barulho das engrenagens, na energia elétrica, na movi-
mentação das cidades. (Tarefas 4 e 5)
Tabacaria [fragmento]
(..)
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.
RICARDO REIS
Ricardo Reis é assim apresentado:
Texto I
A palidez do dia é levemente dourada. O sol que havia sobre o Partenón1 e a Acrópole2
O sol de inverno faz luzir como o orvalho as curvas O que alumiava os passos lentos e graves
Dos troncos de ramos secos. De Aristóteles falando.
O frio leve treme. Mas Epicuro melhor
Desterrado da pátria antiqüíssima da minha Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Crença, consolado só por pensar nos deuses, Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Aqueço-me trêmulo Sereno e vendo a vida
A outro sol do que este. À distância a que está.
Texto II
Esses dois poemas são bons exemplos da poesia de Ricardo Reis. No pri-
2
Templo grego a Palas meiro, o eu-lírico nos apresenta elementos fundamentais de sua produção
Atenas, deusa da sabe- poética: a presença de elementos da cultura pagã, através da referência aos
doria. deuses gregos, e sua admiração pelo pensamento filosófico de Epicuro. No
3 segundo, é em tom grave que o eu-lírico se dirige ao leitor, ensinando um
Santuário erguido no
ponto mais alta da Grécia.
modo correto de comportamento, que possa elevar o ser, torná-lo espiritual-
mente superior.
I. O INFANTE
INFANTE E, no desembarcar, há aves, flores,
Deus quere, o homem sonha, a obra nasce. Onde era só, de longe a abstrata linha
Deus quis que a terra fosse toda uma, O sonho é ver as formas invisíveis
Que o mar unisse, já não separasse. Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma, Movimentos da esp’rança e da vontade,
E a orla branca foi de ilha em continente, Buscar na linha fria do horizonte
Clareou, correndo, até ao fim do mundo, A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
E viu-se a terra inteira, de repente, Os beijos merecidos da Verdade.
Surgir, redonda, do azul profundo.
Quem te sagrou criou-te português. III. PADRÃO
PADRÃO
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
O esforço é grande e o homem é pequeno.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
II. HORIZONTE A alma é divina e a obra é imperfeita.
Ó mar anterior a nós, teus medos Este padrão sinala ao vento e aos céus
Tinham coral e praias e arvoredos. Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
Desvendadas a noite e a cerração, O porfazer é só com Deus.
As tormentas passadas e o mistério, E ao imenso e possível oceano
Abria em flor o Longe, e o Sul sidério Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
’Splendia sobre as naus da iniciação. Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
Linha severa da longínqua costa— E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
Quando a nau se aproxima ergue-se a encosta E faz a febre em mim de navegar
Em árvores onde o Longe nada tinha; Só encontrará de Deus na eterna calma
Mais perto, abre-se a terra em sons e cores: O porto sempre por achar.
O poeta é um fingidor. Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito
E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios
Finge tão completamente
Que largam do cais arrastando nas águas por sombra
Que chega a fingir que é dor Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
A dor que deveras sente.
O porto que sonho é sombrio e pálido
E esta paisagem é cheia de sol deste lado...
E os que lêem o que escreve, Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio
Na dor lida sentem bem, E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol...
Não as duas que ele teve, Liberto em duplo, abandonei-me da paisagem abaixo...
Mas só a que eles não têm. O vulto do cais é a estrada nítida e calma
Que se levanta e se ergue como um muro,
E os navios passam por dentro dos troncos das árvores
E assim nas calhas de roda Com uma horizontalidade vertical,
Gira, a entreter a razão, E deixam cair amarras na água pelas folhas uma a uma dentro...
Esse comboio de corda Não sei quem me sonho...
Que se chama coração. Súbito toda a água do mar do porto é transparente
E vejo no fundo, como uma estampa enorme que lá estivesse desdobrada,
Esta paisagem toda, renque de árvore, estrada a arder em aquele porto,
E a sombra duma nau mais antiga que o porto que passa
Entre o meu sonho do porto e o meu ver esta paisagem
E chega ao pé de mim, e entra por mim dentro,
E passa para o outro lado da minha alma...
Tarefas
Tarefa 1
O que você entendeu por heterônimos? Qual a importância desse fenôme-
no para a compreensão da obra do escritor? Escreva um texto, como se fosse
um trecho de diário, expondo uma outra faceta de personalidade que você
gostaria de possuir.
Tarefa 2
Uma das grandes questões do Modernismo é a difícil busca da unidade –
a fragmentação, a descontinuidade são marcas da produção artística do perío-
do. Essa busca de unidade se mostra tanto no plano do conteúdo quanto da
forma, vindo inevitavelmente acompanhada de conflito e angústia. A poesia
de Pessoa é indicadora disso. Com a ajuda do monitor, reflita sobre essa carac-
terística nas obras que você tem lido até agora.
Tarefa 3
Caeiro é apresentado como um homem de visão instintiva, guiado pelas
sensações, principalmente visuais. Declara-se contra a interpretação do real
pela inteligência, pois, ao seu modo de ver, essa interpretação reduz as coisas
a simples conceitos. No entanto, em seus poemas há certa contradição, pois,
apesar de se referir aos elementos naturais, ele está refletindo o tempo todo.
Que conclusão se pode tirar desse fato?
Tarefa 4
Leia o fragmento do poema “Ode triunfal” e procure verificar como Álva-
ro de Campos apresentou a relação do homem com o mundo moderno e
tecnicista; observe como o poeta cria uma oposição entre o mundo natural e o
mecanizado. Procure identificar os mecanismos retóricos de sua poesia. Dis-
cuta com os colegas e com o monitor sobre essa questão.
Tarefa 5
A “Ode triunfal” de Álvaro de Campos apresenta alguns pontos de conta-
to com os Manifestos Futuristas, escritos por Filippo Tommaso Marinetti. Leia
os trechos dos manifestos e depois procure verificar o que pode ser relaciona-
do ao poema.
In: TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e O Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1986.
Tarefa 6
Tendo por base os textos aqui apresentados, procure fazer uma compara-
ção entre o estilo de Alberto Caeiro e Álvaro de Campos, observando como os
dois se posicionam diante da realidade e trabalham com as sensações.
Tarefa 7
Se é possível afirmar que Alberto Caeiro “pensa” com os sentidos, que
Álvaro de Campos “pensa” com a emoção e que Ricardo Reis “pensa” com a
razão, podemos dizer que Fernando Pessoa “ele-mesmo” “pensa” com a ima-
ginação. As leituras que fez até o momento confirmam ou refutam essa afir-
mação? Discuta com os colegas e depois crie um pequeno texto com sua
resposta e entregue ao monitor.
Tarefa 8
Fala do Velho do Restelo ao astronauta
José Saramago
Para ouvir
. CD Mensagem, Gravadora Eldorado, remasterizador em 1996. (Alguns
poemas do livro Mensagem foram musicados por André Luiz Oliveira e Zeba
D’Al Farra, e são interpretados por cantores brasileiros e portugueses)
. CD Fernando Pessoa, por Paulo Autran, “Coleção poesia falada”.
Unidade 3
Literatura de Viagem
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradora
Já existia no século XV, na Europa, uma tradição de cronistas profissio-
nais que escreviam as histórias dos reis. Quando as nações da Península Ibéri- Gabriela Rodella
ca partiram para a expansão marítima, seguiram, junto com os marinheiros,
escrivães encarregados de narrar tudo o que aconteceria na viagem e nos
entrepostos. Ainda hoje, esses diários ou relatos (“relação”) de bordo são con-
tinuamente reeditados e constituem leitura fascinante, pois a realidade era in-
terpretada muitas vezes à luz do imaginário europeu sobre os povos desco-
nhecidos, que continha muito de fantástico.
Um desses escrivães foi Pero Vaz de Caminha, que veio ao Brasil em 1500,
acompanhando a esquadra de Pedro Álvares Cabral. É dele o documento – a
Carta, endereçada ao rei de Portugal – que narra o primeiro contato entre os
portugueses e os índios que habitavam o nosso país naquela época.
O tema da natureza abundante e a identidade que Caminha constrói para
os índios com sua visão portuguesa serão depois revisitados por vários escri-
tores brasileiros, seja para reafirmá-los como componentes da identidade na-
cional (como no caso dos românticos nacionalistas em busca da afirmação da
literatura brasileira), ou para ironizá-los (caso dos modernistas). O fato é que
a Carta estará sempre presente em nosso imaginário coletivo.
E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que
ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de
maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos
nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau
Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde
deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa.
Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava
na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro de penas
de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de
papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que
querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza.
E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por
causa do mar.
(…)
Foi causa tam nova e tam desusada aos olhos humanos a semelhança daquele
fero e espantoso monstro marinho que nesta Provincia se matou no anno de 1564,
que ainda que per muitas partes do mundo se tenha noticia delle, nam deixarei
todavia de a dar aqui outra vez de novo, relatando por extenso tudo o que ácerca
disto passou; porque na verdade a maior parte dos retratos ou quasi todos em que
querem mostrar a semelhança de seu horrendo aspecto, andam errados, e alem
disso, conta-se o sucesso de sua morte por differentes maneiras, sendo a verdade
huma só a qual he a seguinte: Na Capitania de Sam Vicente sendo já alta noite a
horas em que todos começavam de se entregar ao sono, acertou de sair fóra de casa
huma India escrava do capitão; a qual lançando os olhos a huma varzea que está
pegada com o mar, e com a povoaçam da mesma Capitania, vio andar nella este
monstro, movendo-se de huma parte para outra com passos e meneos desusados, e
dando alguns urros de quando em quando tam feios, que como pasmada e quasi fora
de si se veio ao filho do mesmo capitão, cujo nome era Baltezar Ferreira, e lhe deu
conta do que vira parecendo-lhe que era alguma visão diabolica; mas como elle
fosse nam menos sizudo que esforçado, e esta gente da terra seja digna de pouco
credito nam lho deu logo muito às suas paiavras, e deixando-se estar na cama, a
tornou outra vez a mandar fora dizendo-lhe que se afirmasse bem no que era. E
obedecendo a India a seu mandado, foi; e tornou mais espantada; afirmando-lhe e
repetindo-lhe huma vez e outra que andava ali huma cousa tam feia, que nam podia
ser se nam o demonio.
Então se levantou elle muito depressa e lançou mão a huma espada que tinha
junto de si com a qual botou somente em camisa pela porta fora, tendo pera si
(quando muito) que seria algum tigre ou outro animal da terra conhecido com a
vista do qual se desenganasse do que a India lhe queria persuadir, e pondo os olhos
naquella parte que ella lhe assignalou vio confusamente o vulto do monstro ao
longo da praia, sem poder divisar o que era, por causa da noite lho impedir, e o
monstro tambem ser cousa não vista e fora do parecer de todos os outros animaes. E
chegando-se hum pouco mais a elle, pera que melhor se podesse ajudar da vista, foi
sentido do mesmo monstro: o qual em levantando a cabeça, tanto que o vio come-
çou de caminhar para o mar donde viera.
As aventuras fantásticas
e os relatos de viagem
Inspirados justamente por esse tipo de literatura, alguns autores europeus
do século XVIII escreveram aventuras que se tornaram famosas. Uma delas
foi Robinson Crusoé, de Daniel Defoe. Publicado em 1719, o livro de Defoe
narra a história da sobrevivência de um náufrago na ilha deserta de Crusoé.
Sete anos mais tarde (1726), As Viagens de Gulliver foi publicado na Inglater-
ra. Nesse livro, Jonathan Swift aproveitou a estrutura do relato de viagem
para, através da narrativa das aventuras de Lemuel Gulliver, um náufrago,
fazer uma sátira mordaz da sociedade inglesa do século XVIII. Apesar de o
romance ser considerado hoje em dia literatura juvenil, ele causou escândalo
no ano de sua publicação e é, na verdade, um livro político. Nele, a ficção e o
fantástico são usados como meio para a crítica aos vícios, às injustiças, às
hipocrisias e à estrutura social da sociedade européia da época.
Narrado em primeira pessoa pelo personagem de Gulliver, a primeira aven-
tura do livro é a viagem às terras de Lilliput. Esse país, habitado por seres
minúsculos governados por um rei com leis cruéis e desumanas, serve de
parábola para a crítica feroz do autor à Inglaterra e a seus governantes. Seus
habitantes, por exemplo, têm desconfiança para com estrangeiros, caracterís-
tica típica dos ingleses. A dificuldade de Gulliver em entender a língua dos
lilliputianos era provavelmente uma crítica ao imperador Jorge I, alemão que
reinou na Inglaterra entre 1714 e 1727 e falava mal o inglês. A sátira às roupas
dos minúsculos nobres dessa terra fictícia era uma crítica ao sistema de honra-
rias que se traduzia na vestimenta dos ingleses ilustres da época. Vejamos
então um trecho do romance de Swift em que Gulliver começa a ter contato
com os costumes de Lilliput:
o cargo. Flimnap, o tesoureiro, consegue pular dois centímetros mais alto que qual-
quer pessoa, e uma vez o vi dar alguns saltos mortais.
Existe também um concurso chamado Pulo e Rastejo, no qual os candidatos a
favores especiais devem pular por cima de uma vara ou rastejar sob ela, conforme a
posição em que o imperador a segure. Faixas de seda são os prêmios: azul para quem
agüentar mais tempo, vermelha para o segundo colocado e verde para o terceiro.
Percebi que a maioria dos cortesãos mais prestigiados ostenta uma dessas cores.
Tarefas
Tarefa 1
Faça um levantamento dos adjetivos usados por Caminha para descrever
os índios. A partir dessa lista e da leitura do texto, descreva a imagem que
Caminha construiu do índio a partir desse primeiro contato.
Tarefa 2
A língua dos índios não era entendida pelos portugueses e vice-versa.
Assinale no texto o trecho em que Caminha descreve a maneira como foram
feitos os contatos entre os dois povos. O que o autor da Carta quis dizer com
a seguinte frase: “Isto tomávamos nós nesse sentido, por assim o desejar-
mos!”
Tarefa 3
Pouco depois de começada a colonização, a descrição da índia na cena
narrada por Pero de Magalhães de Gândavo já é bem diferente da de Caminha
em sua Carta. Como ela está caracterizada nesse último texto? A imagem do
indígena de Gândavo é parecida com a que temos do índio atualmente?
Já Hans Staden tem uma outra visão dos índios tupinambás, que não é
partilhada por nenhum dos outros dois autores anteriores. Qual a imagem que
pode ser construída a partir da leitura de seu texto?
Escreva uma dissertação sobre a imagem do indígena na sociedade brasi-
leira de hoje. Não se esqueça que a discussão proposta no exercício e feita em
classe deve orientá-lo para o tema, isto é, para um recorte do assunto em
pauta.
Tarefa 4
Durante a Idade Média, nobres e Igreja faziam alianças para que pudes-
sem governar. Casamentos entre famílias nobres e mesmo entre primos eram
comuns, pois contribuíam para que o poder não saísse de determinadas famí-
lias. A Igreja colaborava, indicando determinado regente como sendo o esco-
lhido de Deus para governar, o que significava um atestado para mandar e
desmandar. Evidentemente, os clérigos obtinham com isso enorme poder, do
qual também sabiam tirar grande proveito. A população ficava então submeti-
da aos desejos dessas duas classes.
A partir do século XVI, o poderio dos nobres e da Igreja passou a ser
levemente contestado. Os humanistas, por exemplo, acreditavam e professa-
vam que os governantes deveriam ser escolhidos em razão de sua capacidade
de governar e não apenas por serem filhos de reis. Os laços sanguíneos perdi-
am a importância; a capacidade e o saber entravam em foco. Paulatinamente,
Pois bem, Jonathan Swift, no trecho citado neste módulo, satiriza o siste-
ma de escolha dos lilliputianos candidatos a cargos importantes no Império;
Contardo Calligaris acusa os candidatos de infantilizar a população nas cam-
panhas políticas. Discuta com seus colegas: qual é a crítica que Swift faz ao
sistema de escolha dos candidatos a cargos importantes? Há relações possí-
veis entre o texto de Swift e o de Calligaris? O que precisa saber e fazer um
candidato a um cargo político?
Redija um “Mandamento do bom político”, em dez pontos, ou seja, um
“Decálogo do bom político”, em que você pode usar muito sua criatividade.
Que tal enviá-lo depois a algum vereador de sua região ou a um deputado
(para isso, é preciso descobrir o endereço dos câmaras, podendo ser enviando
também pela Internet).
Para relacionar
Filmes
1. Hans Staden (Hans Staden, Brasil/Portugal, 1999). Direção: Luiz Alberto
Pereira
O filme conta a história de Hans Staden, viajante alemão que, em 1550,
naufragou no litoral de Santa Catarina, sul do Brasil. Dois anos mais tarde,
conseguiu chegar a São Vicente, reduto da colonização portuguesa. Ali ficou
Unidade 4
Camões
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradoras
Gabriela Rodella
Neide Luzia de
Rezende
tempo preso. Durante a estada nas terras estrangeiras, escreveu sua famosa
epopéia, Os Lusíadas, que, segundo a lenda, salvou de um naufrágio.
Regressou a Portugal pobre e doente, mas obteve do soberano uma pe-
quena pensão vitalícia com a publicação d’Os Lusíadas, em 1572, dedicado
ao rei Dom Sebastião. Parece que o final dos dias passou vendendo versos.
Seu funeral foi pago por um amigo, que lhe escreveu o seguinte epitáfio:
Aqui jaz Luís Vaz de Camões
Príncipe dos poetas do seu tempo.
Viveu pobre e miseravelmente
Assim morreu.
Panorama do Renascimento
No final do século XV e começo do XVI, a Europa passou por um perío-
do de grandes mudanças. A concentração de riqueza nas mãos da burguesia,
o surgimento dos Estados absolutistas com reis fortes e poderosos e a
reurbanização da Europa, que havia sido predominantemente rural desde a
queda do Império Romano, trouxeram uma nova maneira de encarar o mun-
do. A Igreja perdeu o poder absoluto que exerceu sobre os homens durante
séculos e alguns de seus preceitos puderam ser colocados em xeque.
Deu-se então um grande movimento de reassi-
milação dos valores culturais antigos, que a História
chamou de Renascimento. Com essa abertura, sur-
giram homens eruditos, que se interessavam pela cul-
tura greco-latina e acreditavam em um conjunto de
valores morais e estéticos universalmente humanos
provindos dessas civilizações. Tais estudiosos, que
se apresentavam livres do poder da Igreja, foram cha-
mados de humanistas. Davam mais importância à ra-
zão humana do que às revelações divinas (raciona-
lismo), acreditavam que era necessário investigar o
homem, seu corpo, seus sentimentos e suas experi-
ências (antropocentrismo), veneravam a cultura e a
mitologia greco-latina, redescoberta a partir de pes-
quisas feitas em conventos e monastérios.
Outra característica do Renascimento foi o es-
pírito científico, que encontrou seu foco na obser-
vação dos fenômenos da natureza. A Igreja, no en-
tanto, continuava pressionando e proibia a divulga-
ção de certas idéias. Nessa época, o astrônomo
Copérnico chegou à conclusão de que a Terra gira-
va em torno do Sol, e não o contrário, teoria confir-
mada por Galileu Galilei um pouco mais tarde (Ta-
refa 1). Nas artes plásticas também houve grandes
mudanças. A típica pintura sacra medieval, que re-
tratava os santos e episódios da vida de Jesus, aos poucos passou a retratar a
vida das pessoas comuns. Inspirados pela arte greco-romana, os artistas ti-
nham como objetivo retratar as coisas como elas existiam na realidade. Des-
cobriu-se o ponto de fuga, perseguiram-se as proporções perfeitas, buscou-se
a harmonia dos traços.
86 88
Julgas agora, Rei, se houve no mundo Cantem, louvem e escrevam sempre extremos
Gentes que tais caminhos cometessem? Desses seus Semideuses e encareçam,
Crês tu que tanto Eneias e o facundo Fingindo magas Circes, Polifemos,
Ulisses pelo mundo se estendessem? Sirenas que co canto os adormeçam;
Ousou algum a ver do mar profundo, Dêm-lhe mais navegar à vela e remos
Por mais versos que dele se escrevessem, Os Cícones e a terra onde se esqueçam
Do que eu vi, a poder d’esforço e de arte, Os companheiros, em gostando o loto;
E do que inda hei-de ver, a oitava parte? Dêm-lhe perder nas águas o piloto;
87 89
Esse que bebeu tanto da água Aónia, Ventos soltos lhe finjam e imaginem
Sobre quem têm contenda peregrina, Dos odres, e Calipsos namoradas;
Entre si, Rodes, Smirna e Colofônia, Harpias que o manjar lhe contaminem;
Atenas, Ios, Argo e Salamina; Descer às sombras nuas já passadas:
Essoutro que esclarece toda Ausônia, Que, por muito e por muito que se afinem
A cuja voz, altíssona e divina, Nestas fábulas vãs, tão bem sonhadas,
Ouvindo, o pátrio Míncio se adormece, A verdade que eu conto, nua e pura,
Mas o Tibre co som se ensoberbece: Vence toda grandíloca escritura!”
20 21
Quando os Deuses no Olimpo luminoso, Deixam dos sete Céus o regimento,
Onde o governo está da humana gente, Que do poder mais alto lhe foi dado,
Se ajuntam em consílio glorioso, Alto poder, que só co pensamento
Sobre as cousas futuras do Oriente. Governa o Céu, a Terra e o Mar irado.
Pisando o cristalino Céu fermoso, Ali se acharam juntos num momento
Vêm pela Via Láctea juntamente, Os que habitam o Arcturo congelado
Convocados, da parte de Tonante, E os que o Austro têm e as partes onde
Pelo neto gentil do velho Atlante. A Aurora nasce e o claro Sol se esconde.
20.7-8: “Convocados, da parte de Tonante”: Tonante, epíteto dado a Júpiter como deus das trovoadas;
“Pelo neto gentil do velho Atlante”: neto do velho Atlante, ou Atlas, era Mercúrio, filho de Júpiter e de
Maia, a mais nova das Plêiades. Estas eram filhas de Atlas, o Gigante, e de Plêione; esta, por sua vez, filha
do Oceano e de Tétis. Mercúrio era um mensageiro de Júpiter.
21.1-8: “Deixam dos sete Céus o regimento”: os sete Céus são as sete esferas planetárias do sistema de
Ptolemeu; “Os que habitam o Arcturo congelado”: o Arcturo é a estrela mais brilhante da constelação do
Boieiro ou Bootes. Foi considerada por vezes como fazendo parte da Ursa Maior e Arcturo significa
literalmente guarda da ursa; “E os que o Austro têm ...”: os que moram no Sul; “... e as partes onde / A
Aurora nasce e o claro Sol se esconde”: vieram, portanto, os deuses do Norte, do Sul, do Leste e do Oeste
ao concílio.
22 25
Estava o Padre ali, sublime e dino, “Já lhe foi (bem o vistes) concedido,
Que vibra os feros raios de Vulcano, Cum poder tão singelo e tão pequeno,
Num assento de estrelas cristalino, Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Com gesto alto, severo e soberano; Toda a terra que rega o Tejo ameno.
Do rosto respirava um ar divino, Pois contra o Castelhano tão temido
Que divino tornara um corpo humano; Sempre alcançou favor do Céu sereno:
Com a coroa e ceptro rutilante, Assi que sempre, enfim, com fama e glória,
De outra pedra mais clara que diamante. Teve os troféus pendentes da vitória.
23 26
Em luzentes assentos, marchetados “Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam Que co a gente de Rómulo alcançaram,
Os outros Deuses, todos assentados Quando com Viriato, na inimiga
Como a Razão e a Ordem concertavam Guerra Romana, tanto se afamaram;
(Precedem os antigos, mais honrados, Também deixo a memória que os obriga
Mais abaixo os menores se assentavam); A grande nome, quando alevantaram
Quando Júpiter alto, assi dizendo, Um por seu capitão, que, peregrino,
Cum tom de voz começa grave e horrendo: Fingiu na cerva espírito divino.
24 27
“Eternos moradores do luzente, “Agora vedes bem que, cometendo
Estelífero Pólo e claro Assento: O duvidoso mar num lenho leve,
Se do grande valor da forte gente Por vias nunca usadas, não temendo
De Luso não perdeis o pensamento, de Áfrico e Noto a força, a mais s’atreve:
Deveis de ter sabido claramente Que, havendo tanto já que as partes vendo
Como é dos Fados grandes certo intento Onde o dia é comprido e onde breve,
Que por ela se esqueçam os humanos Inclinam seu propósito e perfia
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos. A ver os berços onde nasce o dia.
22.1-2: “Estava o Padre ...”: Júpiter; “Que vibra os feros raios de Vulcano”: Vulcano, filho de Júpiter e de
Juno, era o deus do fogo e fabricava os raios para seu pai. Ort.: dino (por digno).
23.2: Ort.: perlas (por pérolas).
24.2: “Estelífero Pólo e claro Assento”: Pólo, céu (1. polus); claro Assento: brilhante morada; “De Luso
...”: Júpiter afirma a descendência dos Portugueses. Estelífero, estrelado (latinismo).
24.6: “Como é dos Fados grandes ...”: grandes em poder.
25.8: “Teve os troféus pendentes da vitória”: teve pendentes os troféus da vitória; troféu era propriamente
o tronco de árvore do qual se dependuravam as armas dos vencidos.
26.2-4: “Que co a gente de Rómulo alcançaram”: gente de Rómulo, os Romanos; o sujeito de alcançaram
é a forte gente de Luso (os Lusitanos); “Quando com Viriato, ...”: Viriato (v. VIII.5.6-7 e VIII.6.2-6),
pastor lusitano, que acaudilhou os guerrilheiros lusitanos, infligindo grandes perdas aos Romanos. Quinto
Servílio Cipião, em vez de aliança e amizade, preferiu comprar três amigos de Viriato, que o assassinaram
à traição (139).
26.6-8: “... quando alevantaram / Um por seu capitão, que, peregrino, / Fingiu na cerva espírito divino”:
Sertório, tendo recebido como presente uma corça branca, que ele dizia ter sido um presente de Diana,
afirmava que ela lhe revelava todas as coisas ocultas (ver em Plutarco, Sertorius, 11). Peregrino (latinismo),
estrangeiro.
27.1-4: “Agora... a mais s’atreve”: por a mais se atrevem; Áfrico, vento de sudoeste; Noto, vento do sul;
“Que havendo tanto já que as partes vendo / Onde o dia é comprido e onde breve”; o Poeta indica as
navegações de norte a sul pelo Oeste de África.
27.7-8: “Inclinam seu propósito ...”: o Poeta volta à concordância lógica: sujeito os Lusitanos; “A ver os
berços onde nasce o dia”: a ver o Oriente. Ort.: perfia (por porfia).
28 31
“Prometido lhe está do Fado eterno, Ouvido tinha aos Fados que viria
Cuja alta lei não pode ser quebrada, a gente fortíssima de Espanha
Que tenham longos tempos o governo Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Do mar que vê do Sol a roxa entrada. Da Índia tudo quanto Dóris banha,
Nas águas têm passado o duro Inverno; E com novas vitórias venceria
A gente vem perdida e trabalhada; A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
Já parece bem feito que lhe seja Altamente lhe dói perder a glória
Mostrada a nova terra que deseja. De que Nisa celebra inda a memória.
29 32
“E porque, como vistes, têm passados Vê que já teve o Indo sojugado
Na viagem tão ásperos perigos, E nunca lhe tirou Fortuna ou caso
Tantos climas e céus exprimentados, Por vencedor da Índia ser cantado
Tanto furor de ventos inimigos, De quantos bebem a água de Parnaso.
Que sejam, determino, agasalhados Teme agora que seja sepultado
Nesta costa Africana como amigos; Seu tão célebre nome em negro vaso
E, tendo guarnecido a lassa frota, D’água do esquecimento, se lá chegam
Tornarão a seguir sua longa rota.” Os fortes Portugueses que navegam.
30 33
Estas palavras Júpiter dizia, Sustentava contra ele Vénus bela,
Quando os Deuses, por ordem respondendo, Afeiçoada à gente Lusitana
Na sentença um do outro diferia, Por quantas qualidades via nela
Razões diversas dando e recebendo. Da antiga, tão amada, sua Romana;
O padre Baco ali não consentia Nos fortes corações, na grande estrela
No que Júpiter disse, conhecendo Que mostraram na terra Tingitana,
Que esquecerão seus feitos no Oriente E na língua, na qual quando imagina,
Se lá passar a Lusitana gente. Com pouca corrupção crê que é a Latina.
28.1-4: “Prometido lhe está...”: lhe por lhes era corrente; “Do mar que vê do Sol a roxa entrada”: perífrase
para designar os mares orientais. No tempo de Camões preferia-se dizer roxo a vermelho: “roxa entrada”,
em I.28.4 e I.59.3; “a roxa fronte”, II-13.8; o “Mar Roxo”, II.49.1; “roxa Aurora”, IV.60.7 etc.
29.1-3: “... têm passado... [têm] experimentados”: note-se a concordância do particípio passivo em
gênero e número com o complemento direto.
30.3-5: “Na sentença um do outro diferia”: diferia não concorda com Deuses (v. 2), mas com o aposto um;
“O padre Baco ali não consentia”: aparece pela primeira vez o grande inimigo dos Portugueses a dar as
razões do seu desacordo. Baco (Dionysos) é filho de Júpiter (Zeus) e Sémele. Descobriu a vide e o seu uso.
Conquistou a Índia no decorrer de uma expedição semiguerreira, semidivina.
31.4-8: “Da Índia tudo quanto Dóris banha”: Dóris, filha do Oceano e esposa de Nereu. É a mãe das
Nereidas; “De que Nisa celebra inda a memória”: para furtar Baco aos ciúmes de Hera, Júpiter transportou
Baco para longe da Grécia, para um país chamado Nisa, que uns situam na Ásia, outros na Etiópia ou na
África, e deu-o a criar às Ninfas desse país. V. comentário a VII.52.5.
32.1-7: “Vê que já teve o Indo sojugado”: Indo (ou Sindh), grande rio da Índia e do Paquistão, que se
lança ao mar de Omã, formando um vasto delta; “De quantos bebem a água de Parnaso”: o Parnaso,
monte da Grécia, na Fócida, consagrado a Apolo e às Musas. Aí nasce e corre a fonte Castália; “D’água do
esquecimento...”: água do Lete, um dos rios dos Infernos, que significa em grego esquecimento. Ort.:
sojugado (por subjugado).
33.1-6: “Sustentava contra ele Vénus bela”: aparece agora a protectora dos Portugueses, afeiçoada à gente
lusitana pelas razões que se invocam nesta estância e se repetem na est. IX.38. Vénus foi assimilada à
Afrodite dos Gregos no segundo século a.C. Afrodite é a deusa do amor e da beleza. Vénus foi mãe de
Cupido e de Eneias e esposa de Vulcano. Tem n’Os Lusíadas um papel intercessor fundamental; “Nos
fortes corações, na grande estrela”: na coragem e na fortuna; “Que mostraram na terra Tingitana”:
Mauritânia Tingitana ou Marrocos. É a parte da Mauritânia onde se situa Tinge ou Tingi (Tânger).
34 37
Estas causas moviam Citereia, A viseira do elmo de diamante
E mais, porque das Parcas claro entende Alevantando um pouco, mui seguro,
Que há-de ser celebrada a clara Deia Por dar seu parecer se pôs diante
Onde a gente belígera se estende. De Júpiter, armado, forte e duro;
Assi que, um, pela infâmia que arreceia, E dando a pancada penetrante
E o outro, pelas honras que pretende, Co conto do bastão no sólio puro,
Debatem, e na perfia permanecem; O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
A qualquer seus amigos favorecem. Um pouco a luz perdeu, como enfiado;
35 38
Qual Austro fero ou Bóreas na espessura E disse assi: “Ó Padre, a cujo império
De silvestre arvoredo abastecida, Tudo aquilo obedece que criaste:
Rompendo os ramos vão da mata escura Se esta gente que busca outro Hemisfério,
Com impeto e braveza desmedida, Cuja valia e obras tanto amaste,
Brama toda montanha, o som murmura, Não queres que padeçam vitupério,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida: Como há já tanto tempo que ordenaste,
Tal andava o tumulto, levantado Não ouças mais, pois és juiz direito,
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado. Razões de quem parece que é suspeito.
36 39
Mas Marte, que da Deusa sustentava “Que, se aqui a razão se não mostrasse
Entre todos as partes em porfia, Vencida do temor demasiado,
Ou porque o amor antigo o obrigava, Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Ou porque a gente forte o merecia, Pois que de Luso vêm, seu tão privado;
De antre os Deuses em pé se levantava: Mas esta tenção sua agora passe,
Merencório no gesto parecia; Porque enfim vem de estâmago danado;
O forte escudo, ao colo pendurado, Que nunca tirará alheia enveja
Deitando pera trás, medonho e irado; O bem que outrem merece e o Céu deseja.
34.1-3: “Estas causas moviam Citereia”: Citereia é uma das designações de Vénus por ter um santuário em
Citera, ilha do mar Egeu. O Poeta só volta a invocar Citereia em IX-53; “E mais, porque das Parcas claro
entende”: As Parcas são as divindades do Destino, equiparadas às Moïrai dos Gregos: Cloto, Láquesis e
Átropos; “a clara Deia”: a distinta Deusa. Ort.: perfia (por porfia). Porfia em 36.2.
35.1: “Qual Austro fero ou Bóreas na espessura”: tal como o vento do sul ou do norte.
36.1: “Mas Marte...”: deus da guerra, também conhecido por Mavorte. Sobre os amores de Vénus e de
Marte veja-se Lucrécio, De rerum natura, I.33-40. Recorde-se que Vénus era esposa de Vulcano e atente-
se nestes versos de Ovídio: “Solis referemus amores / Primus adulterium Veneris cum Marte putatur / Hic
vidisse deus; videt hic deus omnia prima.” (M, IV.170-172.); e em V, G, IV. vv. 345-346: “Inter quas curam
Clymene narrabat inanem Vulcani, Martisque dolos et dulcia furta.”
37.7: “O Céu tremeu, e Apolo, de torvado”: Apolo, filho de Zeus e de Leto. Esta, perseguida por Hera, foi
ter a uma ilha chamada Ortígia, flutuante e estéril. Aí nasceu Apolo. Este, em reconhecimento, fixou a ilha
no centro do mundo grego e deu-lhe o nome de Delos, ‘a brilhante’. Entre os seus múltiplos atributos,
conta-se o de ser o deus da luz e de conduzir o carro do Sol.
38.3-5: “Se esta gente... / Não queres que padeçam ...”: concordância do coletivo do singular com o verbo
no plural.
39.3-4: “Bem fora que aqui Baco os sustentasse, / Pois que de Luso vêm, seu tão privado”: neste lugar Luso
foi privado de Baco; em III.21.5-7 diz o Poeta: “Esta foi Lusitânia, derivada / De Luso ou Lisa, que de
Baco antigo / Filhos foram, ... ou companheiros”; em VIII.2.7-8 diz de “... Luso, donde a Fama / O nosso
Reino ‘Lusitânia’ chama [Filho e companheiro do Tebano]”. E insiste em VIII.4.4: “... companheiro e
filho amado”. Portanto: 1.º, privado; 2.º, filho ou companheiro; 3.º, filho e companheiro. Ort.: estâmago
(por estômago, índole).
40 41
“E tu, Padre de grande fortaleza, Como isto disse, o Padre poderoso,
Da determinação que tens tomada A cabeça inclinando, consentiu
Não tornes por detrás, pois é fraqueza No que disse Mavorte valeroso
Desistir-se da cousa começada. E néctar sobre todos esparziu.
Mercúrio, pois excede em ligeireza Pelo caminho Lácteo glorioso
Ao vento leve e à seta bem talhada, Logo cada um dos Deuses se partiu,
Lhe vá mostrar a terra onde se informe Fazendo seus reais acatamentos,
Da Índia, e onde a gente se reforme.” Pera os determinados apousentos.
88 90
A gente da cidade, aquele dia, Qual vai dizendo: “Ó filho, a quem eu tinha
(Uns por amigos, outros por parentes, Só pera refrigério e doce emparo
Outros por ver somente) concorria, Desta cansada já velhice minha,
Saudosos na vista e descontentes. Que em choro acabará, penoso e amaro,
E nós, co a virtuosa companhia Porque me deixas, mísera e mesquinha?
De mil Religiosos diligentes, Porque de mi te vas, ó filho caro,
Em procissão solene, a Deus orando, A fazer o funéreo encerramento
Pera os batéis viemos caminhando. Onde sejas de pexes mantimento?”
89 91
Em tão longo caminho e duvidoso Qual em cabelo: “Ó doce e amado esposo,
Por perdidos as gentes nos julgavam, Sem quem não quis Amor que viver possa,
As mulheres cum choro piadoso, Porque is aventurar ao mar iroso
Os homens com suspiros que arrancavam. Essa vida que é minha e não é vossa?
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso Como, por um caminho duvidoso,
Amor mais desconfia, acrecentavam Vos esquece a afeição tão doce nossa?
A desesperação e frio medo Nosso amor, nosso vão contentamento,
De já nos não tornar a ver tão cedo. Quereis que com as velas leve o vento?”
41.4-7: “E néctar sobre todos esparziu”: o néctar era a bebida e o perfume dos deuses; “Pelo caminho
lácteo glorioso”: a Via Láctea; “Fazendo seus reais acatamentos”: fazendo suas profundas reverências.
Ort.: valeroso (por valoroso); apousentos (por aposentos). (Os comentários acima foram retirados do site
www.instituto-camoes.pt/escritores/camoes/estudos.htm acessado em 02.08.2004).
89: Ort.: piadoso (por piedoso); acrecentavam (por acrescentavam).
90.5: Ort.: emparo (por amparo); pexes (por peixes). O Poeta nunca escreveu de outro modo; amaro é
latinismo.
91.3: “Porque is...”: ides.
92 95
Nestas e outras palavras que diziam, “Ó glória de mandar, ó vã cobiça
De amor e de piadosa humanidade, Desta vaidade a quem chamamos fama!
Os velhos e os mininos as seguiam, Ó fraudulento gosto, que se atiça
Em quem menos esforço põe a idade. Cuã aura popular, que honra se chama!
Os montes de mais perto respondiam, Que castigo tamanho e que justiça
Quase movidos de alta piedade; Fazes no peito vão que muito te ama!
A branca areia as lágrimas banhavam, Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que em multidão com elas se igualavam. Que crueldades neles experimentas!
93 96
Nós outros, sem a vista alevantarmos “Dura inquietação d’alma e da vida
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado, Fonte de desemparos e adultérios,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos Sagaz consumidora conhecida
Do propósito firme começado, De fazendas, de reinos e de impérios!
Determinei de assi nos embarcarmos, Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sem o despedimento costumado, Sendo dina de infames vitupérios;
Que, posto que é de amor usança boa, Chamam-te fama e glória soberana,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa. Nomes com quem se o povo néscio engana!
94 97
Mas um velho, de aspeito venerando, “A que novos desastres determinas
Que ficava nas praias, entre a gente, De levar estes Reinos e esta gente?
Postos em nós os olhos, meneando Que perigos, que mortes lhe destinas,
Três vezes a cabeça, descontente, Debaixo dalgum nome preminente?
A voz pesada um pouco alevantando, Que promessas de reinos e de minas
Que nós no mar ouvimos claramente, D’ouro, que lhe farás tão facilmente?
Cum saber só de experiências feito, Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Tais palavras tirou do experto peito: Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
92.7-8: “A branca areia as lágrimas banhavam”: as lágrimas banhavam a branca areia; “Que em multidão
com elas se igualavam”: Com elas, com as areias, e não com a areia.
93.1-5: “Nós outros,... /... / Determinei de assi nos embarcarmos”: determinei que nós outros assi nos
embarcássemos.
94.1-8: “Mas um velho d’ aspeito venerando”: desta estância até final do canto é o episódio do Velho do
Restelo, eloqüente, filosófico e também político. Pela boca do Velho, Camões manifesta a sua predileção
pela política africana; “... experto peito”: peito experiente. Ort.: aspeito (por aspecto).
95.3: “Ó fraudulento gosto...”: gosto enganoso.
96.5-8: Na edição princeps o Poeta escreveu: “Chaman-te ilustre”, “chaman-te subida”, “chaman-te
fama”, por causa da enclítica; “Nomes com quem se o povo néscio engana!”: o pronome quem empregava-
se indiferentemente em relação a pessoas e a coisas: néscio, ignorante. Ort.: desemparos (por desamparos);
dina (por digna).
97.4-6: “Debaixo dalgum nome preminente?”: preeminente; “Que promessas de reinos e de minas / D’
ouro, que lhe farás...”: este último que é pleonástico.
98 101
“Mas, ó tu, geração daquele insano “Deixas criar às portas o inimigo,
Cujo pecado e desobediência Por ires buscar outro de tão longe,
Não somente do Reino soberano Por quem se despovoe o reino antigo,
Te pôs neste desterro e triste ausência, Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Mas inda doutro estado mais que humano, Buscas o incerto e incógnito perigo
Da quieta e da simpres inocência, Por que a fama te exalte e te lisonje
Idade d’ouro, tanto te privou, Chamando-te senhor, com larga cópia,
Que na de ferro e d’armas te deitou: Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
99 102
“Já que nesta gostosa vaidade “Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Tanto enlevas a leve fantasia, Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Já que à bruta crueza e feridade Dino da eterna pena do Profundo,
Puseste nome, esforço e valentia, Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Já que prezas em tanta quantidade Nunca juízo algum, alto e profundo,
O desprezo da vida, que devia Nem cítara sonora ou vivo engenho
De ser sempre estimada, pois que já Te dê por isso fama nem memória,
Temeu tanto perdê-la quem a dá: Mas contigo se acabe o nome e glória!
100 103
“Não tens junto contigo o ismaelita, “Trouxe o filho de Jápeto do Céu
Com quem sempre terás guerras sobejas? O fogo que ajuntou ao peito humano,
Não segue ele do Arábio a lei maldita, Fogo que o mundo em armas acendeu,
Se tu pola de Cristo só pelejas? Em mortes, em desonras (grande engano!).
Não tem cidades mil, terra infinita, Quanto milhor nos fora, Prometeu,
Se terras e riqueza mais desejas? E quanto pera o mundo menos dano,
Não é ele por armas esforçado, Que a tua estátua ilustre não tivera
Se queres por vitórias ser louvado? Fogo de altos desejos, que a movera!
98.1-7: “Mas, ó tu, geração daquele insano”: Adão; “... do Reino soberano”: do Paraíso; “Da quieta e da
simpres inocência, / Idade d’ ouro, ...”: sobre as quatro idades, v. Ov., M, I.90-150. Ort.: simpres (por
simples).
99.7-8: “... pois que já / Temeu tanto perdê-la Quem a dá”: v. “S. Mateus”, XXVI.39: “E adiantando-se um
pouco, se prostrou com o rosto em terra, orando e dizendo: – Pai meu, se é possível passe de mim este
cálix...”
100.1: “Não tens junto contigo o Ismaelita”: refere-se aos muçulmanos da África do Norte.
101.4: “Se enfraqueça e se vá deitando a longe”: se vá deitando a perder. Longe rima com longe do
segundo verso.
101.7: “... com larga cópia”: com grande abundância.
102.3-5: Profundo (Inferno) rima com profundo (adjetivo).
103.1: “Trouxe o filho de Jápeto do Céu / O fogo que ajuntou ao peito humano”: sobre o roubo do fogo
por Prometeu, filho de Jápeto, v. Hesíodo, Theogonia, vv. 554-556.
104
“Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem o ar vazio
O grande arquitetor co filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana gèração.
Mísera sorte! Estranha condição!”
Tarefas
Tarefa 1
Leitura da peça Vida de Galileu, de Bertolt Brecht. (Há uma edição da Paz
e Terra, de 1991, cuja tradução é de Roberto Schwarz.)
Tarefa 2
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, O tempo cobre o chão de verde manto,
muda-se o ser, muda-se a confiança; que já coberto foi de neve fria,
todo o mundo é composto de mudança, e enfim converte em choro o doce canto.
tomando sempre novas qualidades.
E, afora este mudar-se cada dia,
Continuamente vemos novidades, outra mudança faz de mor espanto:
diferentes em tudo da esperança; que não se muda já como soía.
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem – se algum houve –, as saudades.
104.1-5: “Não cometera o moço miserando / O carro alto do pai ...”: Fáeton, filho de Hélio (o Sol), foi
autorizado por seu pai a guiar o carro do Sol, mas esteve a pontos de, por inexperiência, abrasar o
Universo. Zeus (Júpiter), irritado, fulminou-o e precipitou-o no Erídano (o rio Pó); “... nem o ar vazio /
O grande arquitector co filho, dando / Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio”: Dédalo, arquiteto grego
que construiu o labirinto de Creta, no qual foi encerrado o Minotauro. Dédalo também lá ficou aprisionado
por ordem de Minos, mas fugiu, fazendo umas asas de penas e de cera. Ícaro fugiu do labirinto de Creta
com o pai com asas ligadas com cera. Aproximando-se demasiado do Sol, a cera derreteu-se, as asas
soltaram-se e Ícaro foi cair no mar Egeu, perto da ilha Icária (no mar Icário); “Nenhum cometimento alto
e nefando”: nefando no sentido latino de nefandus, abominável. (Os comentários acima foram retirados
do site www.instituto-camoes.pt/escritores/camoes/estudos.htm acessado em 02.08.2004).
Tarefa 3
Leia os dois sonetos abaixo:
Alma minha gentil, que te partiste Sinto-me só como um seixo de praia
tão cedo desta vida descontente, Vivendo à busca no cristal das ondas,
repousa lá no Céu eternamente, Não sei se sou o que não sou. Pressinto
e viva eu cá na terra sempre triste. Que a maré vai morar no fundo d’alma.
O primeiro poema foi escrito por Camões no século XVI e o segundo foi
escrito por Vinícius de Moraes, poeta brasileiro, no século XX. Do que falam
os poemas? Além da questão formal, há semelhanças entre eles? Qual o esta-
do de espírito dos eu-líricos em questão? Inspirado por esses poemas, tente
compor um soneto a seu(sua) amado(a).
Tarefa 4
Identifique nos versos do Concílio dos Deuses, d’Os Lusíadas, os adjeti-
vos que são escolhidos para a caracterização do povo português.
Tarefa 5
Inversões sintáticas. Escolha duas estrofes desse trecho e transponha os
versos para a ordem direta (por escrito, é claro).
Tarefa 6
Resuma com suas palavras as profecias do Velho de Restelo e entregue
seu texto ao monitor.
Tarefa 7
145
No mais Musa, no mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dhua austera, apagada e vil tristeza. Luís de Camões, Os Lusíadas
Nevoeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer –
Brilho sem luz e sem arder,
Como o que o fogo-fátuo encerra.
É a hora!
Fernando Pessoa, Mensagem
O trecho d’Os Lusíadas, do século XVI, se encontra ao final do poema e
faz parte das últimas considerações de Camões acerca do povo português. O
poema de Fernando Pessoa, escrito no século XX, também traça um perfil de
Portugal e seu povo.
Como está caracterizado o povo português no trecho do poema de Camões?
Como ele está caracterizado no poema de Pessoa? Há semelhanças entre os
dois poemas? Há diferenças entre eles? Como você entende o último verso do
poema de Fernando Pessoa?
Tarefa 8
IV. O Monstrengo
O mostrengo que está no fim do mar E o homem do leme tremeu, e disse:
Na noite de breu ergueu-se a voar; “El-Rei D. João Segundo!”
A roda da nau voou três vezes, Três vezes do leme as mãos ergueu,
Voou três vezes a chiar, Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse: “Quem é que ousou entrar E disse no fim de tremer três vezes:
Nas minhas cavernas que não desvendo, “Aqui ao leme sou mais do que eu:
Meus tectos negros do fim do mundo?” Sou um povo que quer o mar que é teu;
E o homem do leme disse, tremendo: E mais que o mostrengo, que me a alma
[teme
“El-Rei D. João Segundo!”
“De quem são as velas onde me roço? E roda nas trevas do fim do mundo,
De quem as quilhas que vejo e ouço?” Manda a vontade, que me ata ao leme,
Disse o mostrengo, e rodou três vezes, De El-Rei D. João Segundo!”
Para relacionar
Filme Tróia – A Epopéia
Dirigido por WOLFGANG PETERSEN
Para ler mais tarde
Ilíada, de Homero. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002.
Odisséia, de Homero. Tradução de Carlos Alberto Nunes. São Paulo: Me-
lhoramentos, s/d.
Referências
Análises intituladas Os Lusíadas e Rimas, de Luís de Camões, de Aníbal Pinto de Castro em:
www.instituto-camoes.pt/escritores/camoes/estudos.htm, 02.08.2004.
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ARRIGUCCI JR., Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel Bandeira. São Paulo: Cia.
das Letras, 1990.
BANDEIRA, Manuel. Noções de literatura. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1954.
BECHARA, E. e SPINA, S. (org.). Os Lusíadas, Luís de Camões, Antologia. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel. São Paulo: Dominus, 1963.
LOPES, Telê Porto A., Macunaíma: a margem e o texto. São Paulo: Hucitec, 1974.
MONTEIRO, Adolfo Casais. Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Agir, 1965.
MORAES, Vinícius. Sinto-me só como um seixo de praia. In: Poesia completa e prosa: “Poesias coligidas”.
NICOLA, José de, INFANTE, Ulisses. Como ler Fernando Pessoa. São Paulo: Scipione, 1988.
PAES, Amélia Pinto. Os Lusíadas em Prosa. Porto: Areal Editores, 1995.
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TORRALVO, I. F. e MINCHILLO, C. C. Sonetos de Camões. SP: Ateliê Editorial, 2001.
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http://www.secrel.com.br/jpoesia/pessoa.htmla (acessado em 22/7/2004)
Literatura
Organizadora
Neide Luzia de Rezende
Elaboradores
Neide Luzia de Rezende
Silvio Pereira da Silva
Gabriela Rodella
4
módulo
Nome do Aluno
GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Governador: Geraldo Alckmin
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo
Secretário: Gabriel Benedito Issac Chalita
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas – CENP
Coordenadora: Sonia Maria Silva
PROGRAMA PRÓ-UNIVERSITÁRIO
Coordenadora Geral: Eleny Mitrulis
Vice-coordenadora Geral: Sonia Maria Vanzella Castellar
Coordenadora Pedagógica: Helena Coharik Chamlian
Coordenadores de Área
Biologia:
Paulo Takeo Sano – Lyria Mori
Física:
Maurício Pietrocola – Nobuko Ueta
Geografia:
Sonia Maria Vanzella Castellar – Elvio Rodrigues Martins
História:
Kátia Maria Abud – Raquel Glezer
Língua Inglesa:
Anna Maria Carmagnani – Walkyria Monte Mór
Língua Portuguesa:
Maria Lúcia Victório de Oliveira Andrade – Neide Luzia de Rezende – Valdir Heitor Barzotto
Matemática:
Antônio Carlos Brolezzi – Elvia Mureb Sallum – Martha S. Monteiro
Química:
Maria Eunice Ribeiro Marcondes – Marcelo Giordan
Produção Editorial
Dreampix Comunicação
Revisão, diagramação, capa e projeto gráfico: André Jun Nishizawa, Eduardo Higa Sokei, José Muniz Jr.
Mariana Pimenta Coan, Mario Guimarães Mucida e Wagner Shimabukuro
Cartas ao
Aluno
Carta da
Pró-Reitoria de Graduação
Caro aluno,
Com muita alegria, a Universidade de São Paulo, por meio de seus estudantes
e de seus professores, participa dessa parceria com a Secretaria de Estado da
Educação, oferecendo a você o que temos de melhor: conhecimento.
Conhecimento é a chave para o desenvolvimento das pessoas e das nações
e freqüentar o ensino superior é a maneira mais efetiva de ampliar conhecimentos
de forma sistemática e de se preparar para uma profissão.
Ingressar numa universidade de reconhecida qualidade e gratuita é o desejo
de tantos jovens como você. Por isso, a USP, assim como outras universidades
públicas, possui um vestibular tão concorrido. Para enfrentar tal concorrência,
muitos alunos do ensino médio, inclusive os que estudam em escolas particulares
de reconhecida qualidade, fazem cursinhos preparatórios, em geral de alto
custo e inacessíveis à maioria dos alunos da escola pública.
O presente programa oferece a você a possibilidade de se preparar para enfrentar
com melhores condições um vestibular, retomando aspectos fundamentais da
programação do ensino médio. Espera-se, também, que essa revisão, orientada
por objetivos educacionais, o auxilie a perceber com clareza o desenvolvimento
pessoal que adquiriu ao longo da educação básica. Tomar posse da própria
formação certamente lhe dará a segurança necessária para enfrentar qualquer
situação de vida e de trabalho.
Enfrente com garra esse programa. Os próximos meses, até os exames em
novembro, exigirão de sua parte muita disciplina e estudo diário. Os monitores
e os professores da USP, em parceria com os professores de sua escola, estão
se dedicando muito para ajudá-lo nessa travessia.
Em nome da comunidade USP, desejo-lhe, meu caro aluno, disposição e vigor
para o presente desafio.
Caro aluno,
Com a efetiva expansão e a crescente melhoria do ensino médio estadual,
os desafios vivenciados por todos os jovens matriculados nas escolas da rede
estadual de ensino, no momento de ingressar nas universidades públicas, vêm se
inserindo, ao longo dos anos, num contexto aparentemente contraditório.
Se de um lado nota-se um gradual aumento no percentual dos jovens aprovados
nos exames vestibulares da Fuvest — o que, indubitavelmente, comprova a
qualidade dos estudos públicos oferecidos —, de outro mostra quão desiguais
têm sido as condições apresentadas pelos alunos ao concluírem a última etapa
da educação básica.
Diante dessa realidade, e com o objetivo de assegurar a esses alunos o patamar
de formação básica necessário ao restabelecimento da igualdade de direitos
demandados pela continuidade de estudos em nível superior, a Secretaria de
Estado da Educação assumiu, em 2004, o compromisso de abrir, no programa
denominado Pró-Universitário, 5.000 vagas para alunos matriculados na terceira
série do curso regular do ensino médio. É uma proposta de trabalho que busca
ampliar e diversificar as oportunidades de aprendizagem de novos conhecimentos
e conteúdos de modo a instrumentalizar o aluno para uma efetiva inserção no
mundo acadêmico. Tal proposta pedagógica buscará contemplar as diferentes
disciplinas do currículo do ensino médio mediante material didático especialmente
construído para esse fim.
O Programa não só quer encorajar você, aluno da escola pública, a participar
do exame seletivo de ingresso no ensino público superior, como espera se
constituir em um efetivo canal interativo entre a escola de ensino médio e
a universidade. Num processo de contribuições mútuas, rico e diversificado
em subsídios, essa parceria poderá, no caso da estadual paulista, contribuir
para o aperfeiçoamento de seu currículo, organização e formação de docentes.
Clarice Lispector
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaboradores
“Corto a dor do que te escrevo e dou-te a minha inquieta alegria” Neide Luzia de
Rezende
Clarice Lispector Silvio Pereira da
nasceu na Ucrânia (ex- Silva
União Soviética) em 10
de dezembro de 1925.
Veio para o Brasil com
poucos meses de vida. A
família, inicialmente, es-
tabeleceu-se no Recife e,
depois, transferiu-se pa-
ra o Rio de Janeiro.
Esteve desde a infân-
cia ligada à literatura.
Pequena ainda, já escre-
via histórias, pois queria
ser autora. Foi uma criança fascinada pelos livros, que geralmente conseguia
emprestados de uma livraria, experiência que mais tarde transporia literaria-
mente (é possível reconhecê-la na protagonista de “Felicidade clandestina”,
por exemplo). Leu muito, os mais diferentes autores e gêneros: José de Alencar,
Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Herman Hesse, Katherine Mansfield, Dostoiévski.
Dizia emocionar-se com este último, apesar de, na época, não compreender
toda sua grandeza.
Seus primeiros estudos foram ainda em Recife, tendo o curso ginasial (cor-
respondente hoje ao atual segundo ciclo do ensino fundamental) feito no Rio
de Janeiro. Em 1941, iniciou o curso de Direito na Faculdade Nacional. Nesse
período, emprega-se no jornal “A Noite” e desdobra-se como jornalista tam-
bém na Agência Nacional. São seus primeiros contatos com a imprensa, fi-
cando a esta vinculada por toda a vida, já que muitas foram suas crônicas
publicadas1 ; além disso, esta foi também, em determinado momento, sua prin-
cipal fonte de renda (era também tradutora).
1
As crônicas que escreveu para o Jornal do Brasil (RJ) de 1967 a 1973 foram coletadas postumamente
e se encontram no livro A descoberta do mundo.
As coisas que possuíam um certo mistério a atraíam, via a vida com certo
misticismo, era supersticiosa. Sempre foi seduzida pelo imprevisto, pela aven-
tura. Talvez isso justifique a aceitação do convite para representar o Brasil no
Congresso Mundial de Bruxaria em Bogotá, Colômbia, em 1976. Clarice nunca
soube por que a convidaram (na verdade, traduzira um romance – Entrevista
com o vampiro – de Anne Rice, autora de livros sobre vampiros), mas foi, leu
o conto “O Ovo e a Galinha”, disse aos bruxos que era um texto mágico. Na
verdade, achou tudo muito engraçado; segundo ela, o congresso mais parecia
uma feira, havia barraquinhas que vendiam de tudo.
Em 1967, viveu momentos difíceis. Fumava muito. Uma noite adormeceu
com o cigarro aceso e acabou incendiando o quarto; sofreu várias queimadu-
ras, principalmente na mão direita e nas pernas. Passou alguns dias internada
e precisou fazer cirurgias de enxerto em uma das pernas. Recuperada, conti-
nuou suas atividades normais.
Não dava para viver só dos direitos autorais e Clarice, para sobreviver, fez
de tudo um pouco na imprensa. Escreveu crônicas para vários jornais e cola-
borou com revistas, como a Fatos e Fotos, através da seção “Diálogos Possí-
veis”. Os últimos anos de sua vida foram dedicados à criação de grandes
livros, como A Hora da estrela e Um sopro de vida, que enriqueceram a sua
vasta produção.
Clarice Lispector morreu em 09 de dezembro de 1977, com um câncer
generalizado e agressivo. Foi enterrada no cemitério Israelita no bairro do
Caju, Rio de Janeiro.
Enquanto vivia, não teve uma multidão de leitores. Perguntada certa vez
por que os universitários liam seus livros, respondeu que era porque os pro-
fessores obrigavam. Verdade é que, após a sua morte, sua obra passou a ser
cada vez mais lida e valorizada por diferentes públicos.
Grandes foram as inovações e conquistas formais, como o uso de metáfo-
ra insólita, a ruptura com a estrutura de enredo tradicional, a liberação do
fluxo de consciência. Seus textos são complexos e abstratos; muitas vezes,
parecem uma provocação ao leitor e uma critica desavisada, que porventura
busque identificar modelos.
Alfredo Bosi, professor e crítico literário, diz que em sua obra se encontra
“O espírito, perdido no labirinto da memória e da auto-análise”, que reclama
um novo equilíbrio entre o ser e o mundo. Sua escritura é como uma denúncia
da fraqueza humana, dos nossos receios, dos nossos medos mais profundos,
da nossa essência.
A Hora da Estrela
Este romance, de apenas 84 páginas, é o menor que Clarice escreveu e é
também sua última obra. Para continuar nos extremos, é também o mais co-
nhecido, principalmente por ser, no âmbito escolar, o mais lido, talvez justa-
mente pelo tamanho (já que um livro de Clarice é sempre uma leitura difícil:
melhor para os estudantes que seja curto). Entretanto, talvez nele a autora
tenha sintetizado as grandes questões de sua obra, sobretudo no que se refere
ao enigma perante o próprio ser e perante a escrita ficcional.
Tarefas
Tarefa 1
a) O que se pode afirmar sobre a condição social do narrador Rodrigo S. M.?
b) Como, do ponto de vista da classe social, esse narrador se identifica
com sua personagem?
Tarefa 2
Como você vê a relação de Macabéa com a cultura letrada e a linguagem Foto do cartaz do filme
verbal?
Tarefa 3
Assista ao filme de Suzana Amaral, A hora da estrela, de 1982.
Uma interessante atividade relacionada a A hora da estrela
pode ser comparar o livro e o filme. Dessa comparação, refle-
xões úteis sobre a narrativa podem surgir, principalmente por-
que, sendo o cinema uma arte moderníssima – já que surgiu na
aurora do século XX, há cerca de um século apenas –, traz a
idéia de que em termos de narrativa é sempre mais atualizado do
que a ficção verbal. No caso da adaptação de A hora da estrela
parece, entretanto, mais antigo. No cinema, transpor em imagens
aspectos da subjetividade da personagem é sempre muito difícil,
pois exige do diretor que observe as particularidades de outro
gênero e de outra linguagem.
Suzana Amaral, a diretora do filme, optou por eliminar o dis-
curso do narrador Rodrigo S.M. e contar apenas a história de
Macabéa, o que retirou do romance os elementos metaliterários e
transformou a história numa história realista mais comum.
Após assistir ao filme, discuta a adaptação que a diretora do
filme fez do livro: procure observar os aspectos que ela manteve,
o que retirou e o que acrescentou, e procure entender os motivos
que a levaram a essas opções.
Unidade 2
1
Dominar vários idiomas era até agora pré-requisito para ingressar na carreira diplomática. Em
02.10.2004, o jornal Folha de S. Paulo informa que a proficiência em línguas estrangeiras será a partir
de então classificatória, mas não mais eliminatória. Acredita o Itamaraty (instituição federal responsável
pelo exame, ligado ao Ministério das Relações Exteriores) que, dessa forma, o concurso se tornará
menos elitista, pois não exigirá conhecimento de tantas línguas.
Sagarana
Publicado em 1946, Sagarana é o livro de estréia de Guimarães Rosa
(tinha então 38 anos). Escrito durante o ano de 1937, levou quase dez anos
para vir à luz, entre revisões, reorganização e publicação. Quando pergunta-
do sobre o porquê de ter se tornado escritor tardiamente, respondeu que os
homens do sertão eram fabulistas por natureza e que ele sempre havia escrito
“estórias”, só não as havia publicado. Tal comentário mostra bem a natureza
das narrativas rosianas, cuja origem oral permanece reconhecível.
Se formos ao dicionário, não encontraremos o termo sagarana, pois é um
neologismo, ou seja, uma palavra criada pelo autor, com base em dois idio-
mas: saga, radical de origem germânica que significa “lenda, canto heróico,
narrativas em prosa”, e rana, de origem tupi-guarani, que significa “maneira
de ou espécie de”. Como se vê, encontramos mais uma vez a mescla do euro-
peu e do indígena, de certo modo um índice alegórico de nossa identidade
cultural. Para o autor, Sagarana era uma série de “histórias adultas da Caro-
chinha”, fábulas míticas para crianças crescidas.
Sagarana reúne nove contos, todos se passando no “Sertão das Gerais”.
Neles, estão presentes alguns temas recorrentes na obra de João Guimarães
Rosa: a aventura, o relato de morte, os animais que falam e pensam, lembran-
do antigas fábulas, tudo aliado às reflexões filosóficas. Cada uma das nove
histórias começa com epígrafes retiradas de provérbios populares, cantigas do
sertão ou de outras histórias. Essas epígrafes sugerem o que será narrado. O
próprio livro começa com duas epígrafes:
“Lá em cima daquela serra,
passa boi, passa boiada,
passa gente ruim e boa,
passa a minha namorada.”
(Quadra de desafio)
2
Em tradução livre, algo como:
“Para um passeio de ida e volta”, disse a raposa.
“Você virá comigo? Eu levo vcê nas costas.
Para um passeio de ida e volta”.
podem ser reconhecidos também como de outros indivíduos de outros tem- Noites). Entre os nossos índi-
pos e lugares, e com eles todos podemos nos identificar. os, também encontramos a
narrativa de lendas e mitos
ESTUDO DOS CONTOS DE SAGARANA variados, que davam e dão
sentido à vida até hoje.
Sagarana é um livro constituído de nove contos: “O burrinho pedrês”, “A
Volta do Marido Pródigo”, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha gente”, “São Mar- Fábula
cos”, “Corpo fechado”, “Conversa de bois” e “A hora e a vez de Augusto A fábula é uma narrativa ale-
Matraga”. São histórias de teor épico, folclóricas, de amor, mistério, nas quais o górica, em que as persona-
autor universaliza o sertão, misturando o popular e o erudito. Neste estudo, gens são geralmente animais.
vamos deixar de fora dois contos – “Minha gente” e “A Volta do Marido Pródi- Tem como objetivo fornecer
go” por considerá-los os menos interessantes para a problemática geral da obra. um exemplo de natureza
moral. Através do comporta-
mento dos animais, há a apre-
oferecer uma lição moral. As histórias dos homens se cruzam com a história
do bicho. Pode-se dizer que o escritor aproveitou características da fábula
para escrever o seu conto, cuja modernidade se encontra justamente nessa
liberdade de mesclar gêneros diferentes e, com isso, ampliar as possibilidades
que a literatura abre para o leitor.
Em meio à narrativa principal, temos também outras histórias que são con-
tadas pelos vaqueiros. Eles relatam casos conhecidos, fantásticos, surpreen-
dentes como o caso do boi Calundu que, inexplicável e inesperadamente,
mata o menino com quem mantinha amigável convívio; e o caso do cruel
Leôncio Madureira, cuja morte parecia estar sendo festejada pelos bois.
De modo geral, entretanto, esses casos secundários são postos em função
do principal, têm a finalidade de comprovar ou preparar terreno para a histó-
ria principal, ou seja, desvelar um pouco a natureza dos animais para entender
que também eles têm sentimentos e razão. Dito assim, parece ser uma fábula
invertida, isto é, usam-se os sentimentos dos seres humanos para entender o
comportamento dos animais.
Em “O Burrinho Pedrês”, Guimarães procura mostrar, tendo como pano
de fundo o mundo dos vaqueiros, que todos têm a possibilidade de ser útil. É
o caso do burrinho Sete-de-Ouros. E observe-se que tudo é colocado como
coisa do Destino, acontecida por acaso.
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de
um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência
de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite –
nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das
Velhas, no centro de Minas Gerais.
Nesse trecho, o narrador antecipa a importância do animal para o desen-
volvimento da história, ele cria uma expectativa. A travessia, que funciona
alegoricamente como prova, como possibilidade de superação de obstáculos,
é uma imagem freqüente em Guimarães Rosa. A história que virá será signifi-
cativa e funcionará como a síntese de uma vida – nesse sentido, a concisão da
vida se vincula à concisão necessária do gênero conto.
Tarefa 1
Como afirmamos, o texto apresenta semelhanças com elementos caracte-
rísticos das fábulas. Você conhece alguma fábula? Conte para os colegas al-
guma história desse gênero que tenha ouvido ou lido.
Tarefa 2
Um dos traços da fábula é o ensinamento. Qual foi o exemplo de natureza
moral apresentado no texto? Escreva um breve comentário sobre isso.
Tarefa 3
Uma atividade muito interessante é construir trovas. São pequenos poe-
mas com quatro versos, cada verso com sete sílabas poéticas, as redondilhas
maiores. Muitos são os temas, mas sempre relacionados ao cotidiano. Procure
escrever uma ou mais trovas e leia em sala para os colegas.
Tarefa 4
Durante a leitura do conto, procure observar também os recursos lingüís-
ticos empregados. Muitas vezes, a disposição das palavras e a prosódia são
fundamentais para a criação de uma imagem, como ocorre nesses trechos:
Sarapalha
Em “Sarapalha”, a paisagem é apresentada de modo
detalhado, ressaltando dois aspectos: a tristeza e o aban-
dono do lugar. Essas percepções se intensificam à me-
dida que a narrativa prossegue e explicações sobre o lugar são acrescentadas.
A ação se desenvolve num cenário de ruínas causadas pela maleita: “Ela veio
de longe (...) matando muita gente”. As pessoas se foram, mortos e vivos; uns
porque a doença os levou, outros fugindo da morte: “os primeiros para o
cemitério, os outros por aí afora, por este mundão de Deus”.
Tapera e arraial. Ali, na beira do rio Pará, deixaram largado um povoado intei-
ro: casas, sobradinho, capela; três vendinhas, o chalé e o cemitério; e a rua, sozi-
nha e comprida, que agora nem mais é uma estrada, de tanto que o mato a entupiu.
Ao redor, bons pastos, boa gente, terra boa para o arroz. E o lugar já esteve nos
mapas, muito antes da malária chegar.
Como se pode ver, a descrição do ambiente torna triste a narrativa.
É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma fazenda, denegrida e desmantela-
da; uma cerca de pedra-seca, do tempo de escravo; um rego murcho, um moinho
parado; um cedro alto, na frente da casa; e, lá dentro, uma negra, já velha, que
capina e cozinha o feijão. Tudo é mato, crescendo sem regra; mas, em volta da
enorme morada, pés de milho levantam espigas, no chiqueiro, no curral e no
eirado, como se a roça se tivesse encolhido, para ficar mais ao alcance da mão.
E tem também dois homens sentados, juntinhos, num casco de cocho emborca-
do, cabisbaixos, quentando-se ao sol.
Restaram três pessoas: uma senhora, que cuida do lugar, e dois homens
doentes. Esses dois seres, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, alquebrados pela
maleita, recordam o passado e dialogam, reconstituindo suas histórias. Trági-
ca e triste história a do Primo Ribeiro: Luisa, a sua mulher, fugira com outro,
deixando-o só e doente: “– P’ra que é que há-de haver mulher no mundo, meu
Deus?...” – pensa o Primo Argemiro. Também o mundo interno das persona-
gens foi destruído, em íntima relação com a calamidade social. A narrativa
enfoca a solidão, o abandono e a decadência dos homens e do lugar. Os pro-
tagonistas de Sarapalha são seres em estado de desgraça, sem esperança.
Neste conto, a preocupação sanitária do narrador, o conhecimento cientí-
fico da doença, a falta de trabalho preventivo na região remetem para o saber
médico do autor Guimarães Rosa, médico sanitarista.
Tarefa 1
Esse é um relato marcado pela desilusão, pela força do abandono. O que
leva as pessoas a ficarem, quando todos se vão?
Tarefa 2
Identifique no conto as explicações relacionadas ao saber médico. Faça
um breve comentário sobre isso, se necessário recorrendo ao dicionário ou a
enciclopédias, e entregue para o monitor.
Tarefa 3
No conto, os sintomas da malária (maleita ou sezão) contribuem para tra-
zer à tona aspectos do mundo interno das personagens. Compare os sintomas
com a natureza das manifestações psíquicas das personagens (tarefa para ser
discutida em sala com o monitor).
O Duelo
O duelo, que não houve propriamente, foi entre Turíbio Todo e Cassiano
Gomes. No início da história, o narrador nos diz que Turíbio tinha razão, mas
que depois as coisas mudaram. A causa do “duelo” foi a infidelidade amoro-
sa, cuja honra o marido queria lavar com sangue. Motivo de honra: Turíbio
encontra, certa vez, voltando à casa “sem contra-aviso”, a mulher “em pleno
adultério” com o Cassiano Gomes. O marido, traído e cauteloso, não fez nada
naquele momento, preferiu agir traiçoeiramente e assim procurou dar cabo do
desonrador, “baleando-o bem na nuca”.
Mas um engano de Turíbio Todo inverte a situação, pois confundiu-se e
matou Levindo Gomes, irmão de Cassiano Gomes. Assim a trama se arma e a
ação se desenvolve mediante uma caçada: “Turíbio fugindo e o outro atrás. E
nessa desavença passaram-se muitos meses. E continuou o longo duelo, e com
isso já durava cinco ou cinco meses e meio a correria, monótona e sem desfe-
cho”. Assim, a narrativa ora está focada no trajeto de Turíbio, fugindo pelo
sertão, ora nos passos de Cassiano, que segue no seu encalço. Cassiano, mais
Tarefa 1
O adultério já apareceu em outros textos estudados até o momento, como
em Memória póstumas de Brás Cubas e em O Primo Basílio. Aqui também ele
aparece em mais de um conto. Aproveite para relembrar os livros que leu e
comente o que tal comportamento traz como conseqüência para as persona-
gens envolvidas.
Tarefa 2
No início do conto, para traçar o perfil da personagem, o autor faz uma
comparação entre uma característica física de Turíbio Todo e a de alguns ani-
mais. Qual é a parte anatômica comparada e qual o objetivo desta comparação?
Tarefa 4
O duelo realmente não ocorreu. Será que pode-
mos afirmar que seria, na verdade, um duelo de cada
um com o seu próprio destino? Discuta com os co-
legas sobre esse ponto.
Tarefa 5
Em que trecho(s) podemos encontrar a referên-
cia a um narrador culto, um doutor?
São Marcos
Em “São Marcos”, o foco narrativo encontra-se
em primeira pessoa. Assim se inicia: “Naquele tempo
eu morava no Calango-Frito e não acreditava em feiti-
ceiros.” O personagem-narrador de “São Marcos” se
diz avesso à feitiçaria e às outras artes; no entanto, se
refere a elas constantemente e acaba utilizando-as.
Há trechos bem interessantes quanto ao narrador,
como esse em que descreve o ambiente:
pela morte de alguns. Conta-se que em viagem para a cidade de Damasco, Devo acrescentar que Rosa
feita em função da perseguição que empreendia, sofre uma cegueira repenti- é um animalista notável: fer-
na e ouve uma voz que lhe cobra explicações: “Saulo, Saulo por que me vilham bichos no livro, não
persegues?”3 É o momento de sua conversão. A cegueira no caso do narrador convenções de apólogo,
de São Marcos também exige dele uma transformação, será em virtude dela mas irracionais, direitos exi-
que ele utilizará a força daquilo que ele negava, pois terá que contrapor seu bidos com peladuras, espa-
poder ao do feiticeiro. ravões e os necessários mo-
vimentos de orelha e de ra-
Tarefa 1 bos. Talvez o hábito de exa-
minar essas criaturas haja
Em “São Marcos”, as descrições, inicialmente, são marcadas por muitas
aconselhado o meu amigo
cores, formas e luzes, e depois de um acontecimento importante, as imagens
a trabalhar com lentidão bo-
cedem lugar aos sons e ao ritmo. É curioso perceber assim o conto. Você pôde vina. Certamente ele fará
observar isso? um romance, romance que
não lerei, pois, se for come-
Tarefa 2 çado agora, estará pronto
Nesse texto, está presente o mundo das superstições e feitiçarias muito em 1956, quando os meus
comuns no interior do Brasil, onde se contam muitos causos dessa natureza. ossos começaram a esfa-
O que você pensa dessas questões? Até que ponto as superstições podem relar-se.
afetar a vida de uma pessoa? Escreva uma breve dissertação a esse respeito e
entregue ao monitor. Trecho de “Conversa de
bastidores” de Graciliano
Tarefa 3 Ramos, retirado do livro Li-
nhas Tortas
Apesar de querer impor a si o domínio da razão, o narrador demonstra ser
bastante supersticioso. Identifique o(s) trecho(s).
Corpo Fechado
Essa história começa com uma con-
versa entre o protagonista, Manuel Fulô,
e o doutor, que faz perguntas sobre os
valentões da região. Manuel Fulô vai
descrevendo cada um dos valentões e
suas histórias, de como eles morreram
ou foram mortos. Conversa vai e vem,
eles chegam ao Targino, homem “ma-
ligno”, que já fora até excomungado e
que ocupa a vaga de valentão do momento. Manuel Fulô acredita que o casti- Desenho de Poty
go de Deus não tardará a recair sobre ele.
Quem assume a narrativa a partir daí é o doutor, que logo explica: “Pois
foi nesse momento calamitoso que eu vim para Laginha, de morada, e fui
tomando de tudo a devida nota”. Narrando tudo em primeira pessoa, o doutor,
médico, homem da cidade, que sabe escrever e tem estudo, vai contando
sobre os costumes e rotinas da região, das brigas, da amizade com Manuel
Fulô, sujeito “pingadinho, quase menino”, e do afeto que este tinha para com
sua mula, Beija-Fulô. Tomamos conhecimento também de que Manuel Fulô
vai se casar com Das Dor.
Mas eis que surge Targino, no bar onde Manuel Fulô conversa com o
doutor, e ficamos sabendo que “foi então que de fato a história começou”. O
3
A conversação de Paulo encontra-se em Atos dos apóstolos, capítulo 9, versículos 1 a 19.
valentão faz uma ameaça a Manuel Fulô: quer visitar a noiva dele, um dia só,
e se ele, Manuel, ficar quieto, fica vivo. Sem saber o que fazer, o protagonista
cai no sono, bêbado, na casa do doutor.
Enquanto todos da cidade desencorajam qualquer reação, esperando só o
momento em que a Fera procurará a Bela, mais uma vez tomamos conheci-
mento que “de fato, cartas dadas, a história começa mesmo é aqui”. Surge o
“Antonico das Pedras, ou Antonico das Águas, que tinha alma de pajé” e, num
particular com Manuel Fulô, lhe fecha o corpo com uma pajelagem em troca
da mula Beija-Fulô. Manuel enfrenta o Targino, dá-lhe o castigo final, aquele
que já estava encomendado por Deus, e se torna um valentão “manso e deco-
rativo, como mantença da tradição e para a glória do arraial”.
Tarefa 1
No decorrer da narrativa, o doutor, narrador-testemunha, faz uma descri-
ção da figura de Manuel Fulô. Encontre e assinale no texto o parágrafo em
que tomamos contato com suas características físicas e psicológicas. Por que
o narrador afirma, ao final da história, que Manuel se torna um valentão “man-
so”? Qual é a função que Manuel Fulô assume depois de matar Targino?
Tarefa 2
Depois da ameaça do valentão Targino, o doutor acolhe Manuel Fulô sob
seu teto e sai em busca de ajuda para a resolução do caso.
a) Qual a primeira reação de Manuel Fulô ao ouvir a ameaça de Targino?
b) Qual a reação do Coronel da região?
c) Qual a reação do vigário?
d) Como reagem os parentes de Manuel Fulô, os Veiga?
Tarefa 3
Durante o conto, Manuel Fulô conta para o doutor sobre as atividades de
Antonico das Águas.
“– Tenho ódio dele, tenho mesmo! É um sujeito sem préstimo, sem aquela-
coisa na cara… É o pior pedreiro do arraial, não sabe nem plantar uma parede. Só
sabe é fazer feitiço, vender garrafada de raiz do mato, e rezar reza brava. Tem partes
com o porco-sujo… Não presta! Gente assim não devia de ter!…
– Mas tem muita, Manuelzinho Fulô.
– Não brinca, seu doutor! O senhor também devia mas é me ajudar a ter ódio do
cachorro do Toniquinho das Águas… Ele vive desencaminhando o povo de ir se
consultar com o senhor. Dizendo que doutor-médico não cura nada, que ele sara os
outros muito mais em-conta, baratinho… Ele quer plantar mato na sua roça e frigir
ovo no seu fogão! O senhor não vê? Ele não faz receita no papel, só porque não
sabe escrever, e isso que nem o boticário não aviava nenhuns-nada… Mas benze,
trata de tudo, e aconselha que a gente não deve de tomar remédio de botica, que
deve de tomar é só cordial… Qualquer dia ele arruma uma coisa-feita, p’ra modo
de fazer o senhor ir-s’embora daqui…
– Feitiço em mim não pega, Manuel…
a) Por que Manuel tenta convencer o doutor a fazer algo contra o Antonico
das Águas? O que é que está em jogo entre o Manuel Fulô e o Antonico?
Tarefa 4
O começo dessa “estória” de Guimarães é um diálogo entre o doutor e
Manuel Fulô. Logo depois, entramos em contato com um narrador em primei-
ra pessoa, o próprio doutor, que nos narra suas impressões sobre a vida e os
habitantes do arraial de Laginha. No meio da narrativa, contando de quando
Das Dor vai visitá-lo, o doutor faz o seguinte comentário: “e aí foi que a
história começou”. Lá pelo segundo terço da história, nos deparamos com a
seguinte proposição: “E foi então que de fato a história começou”. E mais
para o final do causo, ainda topamos com a afirmação: “Mas, de fato, cartas
dadas, a história começa mesmo é aqui”.
Depois de ler o texto, tente entender o que significam essas afirmações.
Uma dica: pense no enredo e na ação das personagens. Por que você acha que
o autor usou esse artifício para dar desenvolvimento à narrativa? Qual o efeito
conseguido quando ele faz estas afirmações?
Tarefa 5
Desafio: e se Antonico das Águas não tivesse fechado o corpo de Manuel
Fulô? Como seria o final da história? Reconte o final a partir dessa perspecti-
va e entregue seu texto ao monitor.
Tarefa 1
Faça um resumo da história com suas próprias palavras, isto é, interprete e
sintetize as falas, não as reproduza. Com isso, você será capaz de mostrar o
que se conta e como se conta.
Tarefa 2
“Conversa de Bois” começa com a passagem do carro-de-boi pela encru-
zilhada da Ibiúva. Seguindo o menino-guia, Tiãozinho, os oito bois (Buscapé,
Namorado, Capitão, Brabagato, Dançador, Brilhante, Realejo e Canindé) pu-
xam o carro, carregado de rapadura e de um morto: o pai de Tião. Atrás da
comitiva, vem o carreiro, Agenor Soronho. O leitor vai seguindo o rumo do
carro-de-boi, acompanhando a passagem do ponto de vista da irara (cachorri-
nho-do-mato, também chamado papa-mel), que, mais tarde, contará tudo o
que se passou para o Timborna. Este, por sua vez, narra tudo a seu interlocutor
e a nós, leitores.
Esse narrador em terceira pessoa, onisciente, que sabe tudo o que se pas-
sou, vai pouco a pouco cedendo seu lugar à fala dos bois (apresentada em
discurso direto) e ao pensamento de Tião (que aparece em discurso indireto
livre, num fluxo de consciência).
Assinale no texto três trechos em que esses focos narrativos aparecem:
a) o narrador onisciente neutro, Timborna;
b) a fala dos bois;
c) o pensamento de Tião.
Tarefa 3
Leia o trecho abaixo:
– Os bois soltos não pensam como o homem. Só nós, bois-de-carro, sabemos
pensar como o homem!…
Mas Realejo, pendulado devagar fronte e chifres, entre os canzis de madeira
esculpida, que lhe comprimem o pescoço como um colarinho duro, resmunga:
– Podemos pensar como o homem e como os bois. Mas é melhor não pensar
como o homem…
– É porque temos de viver perto do homem, temos de trabalhar… Como os
homens… Por que é que tivemos que aprender a pensar?…
– É engraçado: podemos espiar os homens, os bois outros…
– Pior, pior… Começamos a olhar o medo… o medo grande… e a pressa… O
medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho… É ruim
ser boi-de-carro. É ruim viver perto dos homens… As coisas ruins são do homem:
tristeza, fome, calor – tudo, pensado, é pior…
– Mas pensar no capinzal, na água fresca, no sono à sombra, é bom… É melhor
do que comer sem pensar. Quando voltarmos, de noite, no pasto, ainda haverá
boas touceiras do roxo-miúdo, que não secaram… E mesmo o catingueiro-branco
está com as moitassó comidas a meia altura… É bonito poder pensar, mas só nas
coisas boas.
No trecho de Guimarães, o pensamento pode levar tanto ao sentimento do
medo quanto à lembrança de coisas boas. Pensar também vai levar o boi Bri-
lhante a se lembrar da história do boi Rodapião, uma narrativa exemplar re-
cuperada através da memória. Pensar, lembrar, narrar: três verbos interligados.
Para o filósofo alemão Walter Benjamin (séc. XX), a arte de narrar está em
vias de extinção. O narrador oral, antigo, jamais será recuperado. Só o pode-
ria ser por meio das letras, da escrita: a história que se conta, que ensina algo,
rediz alguma coisa que dá sentido à existência dos homens. As letras, a escri-
ta, se apropriam da voz oral; elas recompõem, refazem a tradição do narrar.
Refletindo sobre essas colocações e sobre o desejo expresso de Guima-
rães Rosa de contar histórias da Carochinha para adultos, poderíamos afirmar
que o ato de narrar recupera uma sabedoria antiga e a passa adiante? Justifi-
Desenho de Poty
que brevemente sua resposta.
A hora e a vez de
Augusto Matraga
“A hora e a vez de Augusto Ma-
traga” conta a história de um poderoso
e temido coronel. Cercado de capangas
e exercendo malvadezas, logo no iní-
cio da história uma grande virada circunstancial desequilibra o personagem:
sua mulher o abandona, sua terra é tomada, seus capangas o traem e seu
inimigo o condena à morte. Surrado, ferido a facadas e marcado como gado,
Matraga escapa da morte porque cai no abismo. Milagre? Lá embaixo no
brejo, torna-se um humilde penitente temente a Deus e se recupera com a
ajuda de um casal de lavradores, que ele considera seus pais adotivos, pai
Tarefa 1
a) Ao longo do conto, o personagem de Matraga é chamado por diversos
nomes. Quais são eles? Por que você acha que o autor nomeia o personagem
com nomes diferentes? O que cada nome inspira no leitor?
b) O nome Matraga só é usado no primeiro parágrafo e na hora de sua
morte. Releia os parágrafos em que o personagem é chamado de Matraga e
Tarefa 2
O bordão “P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!” é repetido por Matraga
algumas vezes ao longo da narrativa. Qual o significado que você atribui a ele?
Tarefa 3
Em entrevista à revista Bons Fluidos (09/2004), o psicanalista Contardo
Calligaris, falando sobre a morte, fez o seguinte comentário:
Bons Fluidos - Pois é, ninguém quer saber da morte. A história explica esse
medo?
Contardo Calligaris - Esse é um fenômeno recente. Talvez desenvolvido nos
últimos 200 anos. A partir desse momento, culturalmente o indivíduo tornou-se
mais importante que a comunidade e a morte tornou-se apavorante. Por exemplo,
para o homem da Idade Média saber da morte e prepará-la era muito importante e
tranqüilo. A pessoa desaparecia, mas o sistema, a família, a cidade, a tradição, tudo
continuava. Era confortante, pois a memória estava preservada, não era o fim de
tudo. Porém, se hoje eu dissesse você vai morrer, mas São Paulo e a avenida
Paulista vão continuar existindo, isso não seria um consolo.
Estabeleça um paralelo entre o que estudamos, a história de Matraga e a
fala de Calligaris.
Tarefa 4
Como nos contos estudados anteriormente, fica claro que a história é
ficcional. O trecho abaixo confirma essa afirmação:
“E assim se passaram pelo menos seis ou seis anos e meio, direitinho deste
jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma história
inventada, e não é um caso acontecido, não senhor.”
Depois de tudo o que foi lido, podemos perceber que o conceito de histó-
ria inventada, de artifício, de artesanato é muito importante para Guimarães
Rosa. O fato de essa artificialidade ficar explícita nos contos de Sagarana,
tornam mais íntimo o parentesco dessas narrativas com os contos de fadas, o
que leva o leitor a ler a história tendo em mente que ela é inventada, que não
é real, apesar de poder ter sido baseada na realidade. Nesse sentido, Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Macunaíma se aproximam dos contos de Guima-
rães. Por que você acha que a explicitação da mistura entre realidade e fanta-
sia é importante para a ficção desses autores?
Tarefa 5
Leia as seguintes definições de sertão encontradas na obra de Guimarães Rosa:
“Sertão: estes seus vazios”
“O sertão está em toda a parte”
“O sertão é do tamanho do mundo”
“(…) o sertão é uma espera enorme”
“Sertão é o sozinho”
“Sertão é dentro da gente”
Agora leia a análise que o filósofo Benedito Nunes faz do sertão roseano:
“[o sertão] É o espaço que se abre em viagem, e que a viagem converte em
mundo. Sem limites fixos, lugar que abrange todos os lugares, o Sertão congrega
o perto e o longe, o que a vista alcança e o que só a imaginação pode ver.”
Baseado no trabalho com os contos de Sagarana e no que acabamos de
ler, reflita e responda: o que, na sua opinião, é o sertão de Guimarães Rosa?
Para relacionar
Letra de Música
Sagarana
(João de Aquino e Paulo César Pinheiro)
A ver, no em-sido
Pelos campos-claro: estórias
Se deu passado esse caso
Vivência é memória
Nos Gerais
A honra é-que-é-que se apraz
Cada quão
Sabia sua distinção
Vai que foi sobre
Esse era-uma-vez, ‘sas passagens
Em beira-riacho
Morava o casal: personagens
Personagens, personagens
A mulher
Tinha o morenês que se quer
Verdeolhar
Dos verdes do verde invejar
Dentro lá deles
Diz-que existia outro gerais
Quem o qual, dono seu
Esse era erroso, no à-ponto-de ser feliz demais
Ao que a vida, no bem e no mal dividida
Um dia ela dá o que faltou... ô, ô, ô...
É buriti, buritizais
É o batuque corrido dos gerais
O que aprendi, o que aprenderás
Que nas veredas por em-redor sagarana
Uma coisa é o alto bom-buriti
Outra coisa é o buritirana...
A pois que houve
No tempo das luas bonitas
Um moço êveio:
– Viola enfeitada de fitas
Vinha atrás
De uns dias para descanso e paz
Galardão:
– Mississo-redó: Falanfão
No-que: “-se abanque...”
Que ele deu nos óio o verdêjo
Foi se afogando
Pensou que foi mar, foi desejo...
Era ardor
Doidava de verde o verdor
E o rapaz quis logo querer os gerais
E a dona deles:
“-Que sim”, que ela disse verdeal
Quem o qual, dono seu
Vendo as olhâncias, no avôo virou bicho-animal:
– Cresceu nas facas:
– O moço ficou sem ser macho
E a moça ser verde ficou... ô, ô, ô...
É buriti, buritizais
É o batuque corrido dos gerais
O que aprendi, o que aprenderás
Que nas veredas por em-redor sagarana
Uma coisa é o alto bom-buriti
Outra coisa é o buritirana...
Quem quiser que cante outra
Mas à-moda dos gerais
Buriti: rei das veredas
Guimarães: buritizais!
Filmes
A hora e a vez de Augusto Matraga (Direção de Roberto Santos, Brasil,
1966.)
A terceira margem do rio (Direção de Nelson Pereira dos Santos, Brasil,
1994.)
Unidade 3
Manuel Bandeira
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Elaborador Um dia, no início do
Silvio Pereira da século, um mocinho dentu-
Silva ço, porém simpático, filho
bem-criado de uma família
tradicional de Pernambuco,
veio estudar arquitetura em
São Paulo. Sofreu uma he-
moptise e teve de deixar os
estudos e os sonhos de ar-
quiteto, sob ameaça de
morte iminente.
Mandado para a Suíça,
em busca de bom clima e
cura, deu-lhe para poeta,
seguindo as brincadeiras que aprendera menino, em casa, no Recife e no Rio, com
o pai, figura imaginosa e boa. O mau destino fez dele o que quis, mas a morte não
veio. E o poeta foi ficando. Dado a alumbramentos em seu quarto pobre de solteirão
solitário, inventou um estilo humilde para falar simplesmente de coisas cotidia-
nas, embora sempre visitado por momentos de volúpia ardente e a obsessão cons-
tante da morte. (Arrigucci Jr., p 13)
É desse modo que Davi Arrigucci Jr. inicia seu livro sobre Bandeira – um
dos nossos mais importantes poetas modernistas –, como se fosse nos contar
uma história singela. Sutilmente, apresenta-nos alguns aspectos significativos
da biografia de Manuel Bandeira e que são fundamentais para a compreensão
de sua obra. Também já nos adianta alguns aspectos da temática poética, como
a simplicidade, certos traços de erotismo e a fixação pela morte.
Manuel Bandeira nasceu em 19 de abril de 1886, no Recife. Foi educado
no Rio e em São Paulo iniciou o curso de arquitetura, que abandonou, no final
de 1904, em virtude da tuberculose, diagnóstico fatal que mudaria toda sua
vida. Esse dado biográfico é de grande relevância, pois aparece sob diferen-
tes ângulos na obra do poeta. Fez diversas viagens ao exterior em busca da
cura, e durante esse período leu muito e produziu poemas1 .
1
Esteve internado no sanatório suíço de Davos, lugar famoso que foi cenário do romance A montanha
mágica, de Thomas Mann. Ali também conheceu o poeta Paul Éluard, com quem manteve uma profícua
amizade.
O POETA MODERNISTA
Seus primeiros livros, A cinza das horas (1917), em que reuniu poemas
compostos durante o período de sua doença, e Carnaval (1919), mostram
certa influência dos simbolistas e parnasianos, mas alguns poemas de seu
livro seguinte, Ritmo dissoluto (1924), já apresentam inovações que revelam
o desejo do poeta de liberar a poesia do academicismo e da influência euro-
péia. É contudo com Libertinagem (1930) que encontramos os aspectos mais
característicos das tendências modernistas: os versos livres, a linguagem co-
loquial, uma sintaxe pouco convencional e o uso de temas folclóricos. Seus
livros seguintes foram: Estrela da manhã (1936), Lira dos cinqüent’anos (1940),
Mafuá do malungo (1948) Opus 10 (1949) e Estrela da tarde (1960), que
podemos encontrar hoje reunidos num só livro: Estrela da vida inteira.
Para o poeta, o alumbra-
LIBERTINAGEM E O ESTILO DE MANUEL BANDEIRA mento, revelação simbólica
Segundo o crítico, a poética de Bandeira apresenta uma poesia de circuns- da poesia, pode dar-se no
chão do mais ‘humilde co-
tâncias e desabafos. Em um estilo humilde, fruto da experiência do mundo e
tidiano’, de onde o poético
da arte, o ideal da poética de Bandeira nasce da mescla de uma estilística
pode ser desentranhado, à
inovadora e moderna e da busca da emoção poética, através das palavras mais força da depuração e con-
simples do dia-a-dia. densação da linguagem, na
Desse modo, sua obra comporta um paradoxo: “a expressão simples de forma simples e natural do
uma totalidade complexa”, ou seja, há um mistério na simplicidade, pois na poema. (Arrigucci Jr., p. 15)
Profundamente
Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?
Dormindo
Profundamente.
O último poema
Assim eu quereria o meu último poema.
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.
Teresa
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo
nascesse)
Evocação do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois -
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as
[vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos,
[namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
À distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Mauritsstad: Foi o nome
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
que Maurício de Nassau,
o príncipe Holandês, deu
Os homens punham o chapéu saíam fumando
à cidade do Recife, du- E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
rante o período em que
Rua da União...
governou o local.
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
pegões: sustentáculos dos Rua do Sol
arcos da ponte da estra- (Tenho medo que hoje se chame de dr. Fulano de Tal)
da de ferro que cruza o Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
rio.
...onde se ia fumar escondido
Tarefas
Tarefa 1
Libertinagem foi a palavra escolhida para dar título ao livro de poemas.
Discuta com os colegas o sentido dessa palavra. A leitura dos poemas justifica
o título do livro?
Tarefa 2
Em “Vou-me embora pra Pasárgada”, Bandeira criou um mundo de so-
nhos, no qual todos os seus desejos pudessem se concretizar. Buscou na uto-
pia uma solução para os problemas vividos na realidade. Nós também temos
dificuldades e sonhos. Redija um texto em prosa ou verso em que você apre-
sente sua “Pasárgada”. Como ela seria?
Tarefa 3
Os poemas “Evocação do Recife” e “Profundamente” apresentam algumas se-
melhanças quanto ao conteúdo, um parece complementar o outro. Procure estabe-
lecer comparações entre um e outro, levantando os aspectos mais significativos.
Tarefa 4
Quais os diversos significados que a palavra “profundamente” assumiu
no poema?
Tarefa 5
A polifonia consiste basicamente no cruzamento de várias vozes presen-
tes em um texto. É algo muito comum, mas algumas vezes não prestamos
atenção e não identificamos as diversas vozes que aparecem no texto. Em
“Evocação do Recife”, ocorre um jogo polifônico, pois junto à voz do poeta
outras ressoam provenientes das falas alheias. O poeta quer resgatar inclusive
a voz dos mortos, através do fazer poético. Procure observar, no poema, quais
são os trechos em que temos a presença das falas de outros seres lembradas
pelo poeta. Discuta com o monitor e com os colegas sobre o efeito dessas
vozes no texto. (Seria interessante fazer uma leitura jogralizada do texto.)
Tarefa 6
Que comparação você poderia estabelecer entre o estilo de Clarice Lispector
em A hora da estrela e o de Manuel Bandeira, sob o ponto de vista da humildade?
Unidade 4
Miguel Torga
Organizadora
Neide Luzia de
Rezende
Miguel Torga é o pseudônimo de Adolfo Correia da Rocha, poeta e prosa-
dor português, nascido em São Martinho de Anta, Trás-os-Montes (1907) e
falecido em Coimbra, em 1995. Viveu no Brasil na infância e depois voltou a
Portugal. Assim como Guimarães Rosa, era formado em Medicina. Dividiu
seu tempo entre os trabalhos na clinica médica e a literatura. Foi um dos inte-
grantes do grupo de Presença, e dirigiu as revistas Sinal, com Branquinho da
Fonseca, e Manifesto. Depois, assumiu uma postura independente, distanci-
ando-se de grupos e movimentos. Sua obra apresenta muitas referências a
mitos agrários e pastoris, que o escritor carrega de simbolismo bíblico.
Cega-Rega
É difícil. Isto de começar num monturo e só parar na crista dum castanheiro,
tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisá-
lida... Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro
da vida, a matéria necessita do calor dum ventre. Antes dessa íntima comunhão,
desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural
é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá
no ovo e amadurece-o. A casca quebra. Depois... Ah, é essa descida ao húmus, essa
existência amorfa, nem germe, nem bicho, nem coisa configurada. Largos dias
assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada
ânsia de claridade é premiada com olhos iluminados. Cresce também uma boca
onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja...
É difícil, mas vai. Desde que haja coragem dentro de nós, se consegue. Até
fazer parte do coro universal.
– Já hoje ouvi a cigarra...
– É tempo dela.
Nenhuma palavra de apreço pela dureza do caminho andado. Paciência. O teatro
do mundo tem palco e bastidores. As palmas da platéia festejam somente os dramas
encenados. Que remédio, pois, senão a gente resignar-se e aceitar as sínteses levia-
nas. Nascia do tempo. Muito bem. Ninguém mais ficaria a conhecer a fundura dos
abismos em que se debatera. Protoplasma, lagarta, ninfa... Quase que sentia ainda no
corpo as fases da transfiguração. Mas pronto, chegara! Agora era receber o calor do
presente, e cantar. Cantar o milagre da anódina e conseguida ascensão.
E cantava.
A primavera estava no fim, e o estio ia começar. As cerejas pontuavam a veiga
de sorrisos vermelhos. As searas, gradas de generosidade, aloiravam. Contentes, os
Nero
Sentia-se cada vez pior. Agora nem a cabeça sustinha de pé. Por isso encostou-
a ao chão, devagar. E assim ficou, estendido e bambo, à espera. Tinha-se despedi-
do já de todos. Nada mais lhe restava sobre a terra senão morrer calmo e digno,
como outros haviam feito a seu lado. É claro que escusava de sonhar com um
enterro bonito, igual a muitos que vira, dentro dum caixão de galões amarelos,
acompanhado pelo povo em peso... Isso era só para gente, rica ou pobre. Ele teria
apenas uma triste cova no quintal, debaixo da figueira lampa, o cemitério dos cães
e dos gatos da casa. E louvar a Deus apodrecer a dois passos da cozinha! A burra
nem sequer essa sorte tivera. Os seus ossos reluziam ainda na mata da Pedreira.
Chuva, geada, sincelo em cima. Até um lebrão descarado se fora aninhar debaixo
da arcada das costelas, de caçoada! Ah, sim, entre dois males... Já que não havia
melhor, ficar ao menos ali. No tempo dos figos, pela fresca, a patroa viria consolar
a barriga. Gostava de figos, a velhota. E sempre se sentiria acompanhado uma vez
por outra. Não que fizesse grande fincapé naquela amizade. Longe disso. A meni-
na dos seus olhos era a morgada, a filha, que o acariciara como a uma criança. A
velha toda a vida o pusera a distância. Dava-lhe o naco de broa (honra lhe seja),
mas borrava a pintura logo a seguir: – Ala! E ele retirava-se cerimoniosamente
para o ninho. Só a rapariga o aquecera ao colo quando pequeno, e, depois, pelos
anos fora, o consentira ao lume, enroscado a seus pés, enquanto a neve, branca e
fria., ia cobrindo o telhado. O velho também o apaparicava de tempos a tempos. Se
a vida lhe corria e chegava dos bens de testa desenrugada, punha-lhe a manápula
na cabeça, meigamente, e prometia-lhe a vinda do patrão novo. Porque o seu
verdadeiro senhor era o filho, um doutor, que morava muito longe. Só aparecia na
terra nas férias de Natal. Mas nesta altura pertencia-lhe inteiramente. Os outros
apenas o tratavam, o sustentavam, para que o menino tivesse cão quando chegas-
se. Apesar disso, no íntimo, considerava-se propriedade dos três: das filhas, do
velho e da velha. Com eles compartilhara aqueles longos oito anos de existência.
Com eles passara invernos, outonos e primaveras, numa paz de família unida.
Também estimava o outro, o fidalgo da cidade, evidentemente, mas amizades
cerimoniosas não se davam com o seu feitio. Gostava era da voz cristalina da dona
nova, da índole daimosa da patroa velha e da mão calejada do velhote.
– Tens o teu patrão aí não tarda, Nero...
O nome fora-lhe posto quando chegou. Antes disso, lá onde nascera, não tinha
chamadoiro. Nesse tempo não passava dum pobre lapuz sem apelido, muito gordo,
muito maluco, sempre agarrado à mama da mãe, que lhe lambia o pêlo e o reconduzia
à quentura do ninho, entre os dentes macios, mal o via afastar-se. Pouco mais. Com
dois meses apenas, fez então aquela viagem longa, angustiosa, nos braços duros
dum portador. Mas à chegada teve logo o amigo acolhimento da patroa nova. Festas
no lombo, leite, sopas de café. De tal maneira, que quase se esqueceu da teta doce
onde até ali encontrava a bem aventurança, e dos irmãos sôfregos e birrentos.
– Nero! Nero! Anda cá, meu palerma!
A princípio não percebeu. Mas foi reparando que o som vinha sempre acompanha-
do de broa, de caldo, ou de um migalho de toucinho. E acabou por entender. Era Nero.
E ficou senhor do nome, do seu nome, como da sua coleira. Principalmente depois que
o patrão novo chegou, sério, com dois olhos como dois faróis. Apareceu à tarde, num
dia frio. Fora-o esperar na companhia da patroa nova. É claro que nem sequer lhe
passara pela idéia a vinda de semelhante figurão. Seguira-a maquinalmente, como
fazia sempre que a via transpor a porta. Habituara-se a isso desde os primeiros dias.
Com o velho não ia tanto. E com a velhota, então, só depois de ter a certeza que se
encaminhava para os lados da Barrosa. Na cardenha do casal morava o seu grande
amigo, o Fadista. De maneira que o passeio, nessas condições, já valia a pena. Enquan-
to a dona mondava o trigo, chasquiçava batatas ou enxofrava a vinha, aproveitava ele
o tempo na eira, de pagode com o camarada. Mas, se ela tomava outro rumo, boa
viagem. Com a nova, sim. A farejar-lhe o rasto, conhecera a terra de lésa-lés. Até missa
ouvia aos domingos, coisa que nenhum cão fazia. Aninhavam-se a seu lado, e ficava-
se quieto a ver o padre, de saias, fazer gestos e dizer coisas que nunca pôde entender.
Foi a seguir a uma cerimónia dessas que o doutor chegou a terra. Todo muito bem
vestido, todo lorde. Quando viu aquele senhor beijando a rapariga, atirou-lha uma
ladradela, por descargo de consciência. E o estranho, então, olhou-o atentamente, deu
um estalo com os dedos, a puxar-lhe pelos brios, e teve um comentário:
–Traz cá!
O bicharoco estava realmente defunto. Deitou-lhe os dentes. O que era a ino-
cência! Tinha cócegas na boca!... De repente, um cheiro forte, penetrante e doce,
inundou- lhe as ventas, o estômago, o corpo inteiro! Foi a primeira grande hora da
sua vida... Depois disso é que os montes começaram a dizer-lhe coisas que até ali
nem de longe poderia suspeitar. Só então ficou a saber que por eles cabo, nas
manhãs doiradas e calmas de Janeiro, era um louvar a Deus de perdizes... E que não
havia nada melhor no mundo do que senti-los frios e firmes sob as patas, quando
o sangue fervia nas veias e o instinto pedia asas ao vento. Colado àquela dureza
gelada, a rastejar e a tremer de emoção, a vida sabia-lhe à maior das venturas.
Talvez que em certas ocasiões devesse caçar doutra maneira, ser mais despachado.
Mas sentia as malvadas à frente do nariz, e sumia-se no chão, nem sabia se a
esconder-se, se a prolongar o prazer. Porque a princípio ainda cuidou que conse-
guiria assim agarrar alguma. Depois, não. Finas como órgãos, no melhor da festa
punham-se na alheta. E perdeu as ilusões. Apesar disso, nunca deixara de se enco-
lher, de tentar disfarçar o corpo sempre que as farejava perto, e, muitas vezes, tão
estacado ficava, que era preciso o dono empurrá-lo com a ponta da bota grossa.
– Entra, Nero, entra lá... Deita fora!
Não arrancava. Continuava pregado ao terreno, a namorar a imagem adivinha-
da, a encantá-la com os olhos ávidos e, sobretudo, a fruir aquele gozo de sentir o
coração pulsar de encontro às fragas.
Até que uma ordem mais impaciente lhe dizia que eram horas. Dava a pancada.
E ficava-se depois a olhar a manhosa erguer-se apressada, rumorosa, e cair daí a
pouco, já passada ou feita num molho. Entrava de novo em acção. Num pronto,
entregava a pobre ao dono, tal como a encontrava caída – viva ou morta. Nunca um
gesto sequer de piedade. Disso pesava-lhe agora a consciência. Se estavam de pon-
ta-de-asa, as desgraçadas fugiam, gemiam, quase tinham voz de gente a pedir com-
paixão. Nem a alma lhe bolia. A esse respeito, fora sempre surdo e cego. Muitas
vezes pensava se não seria por essa razão que lhe acontecera a desgraça do Soitinho!
Ninguém as faz que as não pague... Bem que desconfiara logo do outro caçador.
Aquele jeito de pegar na arma não lhe merecia confiança, não. Mas mandava quem
podia... Segue-se que estavam ainda praticamente a sair de casa, quando um cheiro
a perdigão lhe entrou em faca pelo nariz. Estacou ali mesmo, no meio da estrada,
voltado para a ribanceira. Ainda se lembrava perfeitamente de ter ficado com a pata
direita no ar, paralisada. Depois, a tirar de ventos, foi andando cautelosamente.
Até que se encontrou a dois palmos do seu velho conhecido. Era um patriarca
manhoso, de esporões em rosário pelas pernas acima, que há anos lhe moía a
paciência. Três vezes – em três épocas sucessivas – o pusera a tiro ao patrão, sem
valer de nada. O velhaco abria as asas, deixava o chumbo passar, e, sem ninguém
mais a afligi-lo, ficava à larga, a criar unto. Desta feita, porém, a coisa fiava doutra
maneira. Iam dois, e pudera preveni-los a tempo e horas. E estava então com o
focinho em cima do excomungado, quando o parvo do caçarreta lhe manda um
tiro à cabeça! Ficou ali como morto, e ainda por maior desgraça a ouvir a risada
escarninha do albarrão, ao dobrar o cerro, são e salvo!
Trinta anos que durasse, não se esqueceria nunca daquela hora. Todo o cami-
nho ao colo do doutor, depois de lhe ouvir dizer: – Uma estupidez destas, só tinha
uma resposta...
Duas semanas de molho, e, diga-se a verdade, também de ternuras, de cuida-
dos, de comidinha da boa. Por fim lá arribou, e a brincadeira ficou-lhe de emenda.
Nunca mais correu a foguetes. Quem quer que fosse, podia chamar e assobiar à
vontade. Nem se mexia. Às vezes, rilhadinho de vício. Mas não ia. Esperava pelo
dono, que atirava quando devia, e vamos indo! Errar, todos as erravam, infeliz-
mente. Ainda estava para nascer o primeiro que se pudesse gabar do contrário. Pelo
menos à sua frente... Pexotices de uma pessoa se benzer! Mas, enfim, o dono não
era lá dos piores, e largava o tiro na altura própria, honradamente, quando elas
repinicavam as castanholas no ar. Por isso, aguardava que viesse.
Nem as lérias do Fadista o comoviam, a sugerir-lhe outras caçadas de menos
risco que poderiam fazer juntos pela freguesia... Era um cão que se respeitava, que
tinha dignidade. Borgas dessas eram lá com rafeiros, com jecos do fado e do
mundo. O que não quer dizer que fosse nenhum maricas! Tratava de arranjar a vida
(a sua vida particular) sem dar nas vistas e sem acompanhamentos, que acabavam
sempre em cenas desagradáveis. Não que tivesse medo a qualquer dos rufias que
costumam aparecer nessas ocasiões. Se acontecia ver-se metido nelas, batia-se ali
como um homem, até que as coisas ficassem esclarecidas. Tocava a quebrados,
dava a matar. E nunca ficara do lado dos vencidos! Pelo contrário. Procurava,
contudo, afastar-se de rixas e contendas. E dissera sempre que não ao amigo, por
sinal um belíssimo animal, apesar da baixa extracção. Morrera há um ano, o des-
graçado. Que razia! A guarda espalhou as bolas, e foi a eito. Valeu-lhe a ele estar à
argola nessa data. Senão, era uma vez um Nero. Que, para chegar à miséria presen-
te, antes tivesse morrido também. Ao menos, deixava saudades. Assim, acabava de
velhice, podre por dentro, a meter fastio a toda a gente. Se então o levasse o diabo,
não haviam de faltar lamúrias e lágrimas naquela casa. Agora, lia nos olhos de
todos o desejo de que partisse o mais depressa possível para dar lugar a outro... E
quem seria o felizardo, que lhe herdaria o ninho? Quem viria ouvir as longas
conversas à lareira, no inverno, quando a chuva escorregava dos beirais e o vento
norte soprava? Tanto pensara no filho, no seu Jau, para o render ali! Mas o raio
herdara os defeitos da mãe: mau nariz e um pouco de sofreguidão. Não se agüen-
tava com elas ao pé. Lá no abocar e trazer à mão, saíra ao lençol de cima: nem
sequer o ovo da educação quebrara. Uns dentinhos de veludo. A alegria que tivera
a primeira vez que o viu amarrado junto de si! Deitou-lhe o canto do olho, e o
pequeno parecia uma estátua: teso, esticado, o rabo como uma seta... Nos montes
da Queda, lembrava-se bem. Iam a mata-cavalos num rasto, quase sem tomar respi-
ração. A prever já o resultado da correria, tentava deitar água na fervura:
– Mais devagar, rapaz, mais devagar...
Mas o demónio tinha os nervos da mãe. Puxava como um dragão pela encosta
acima. E ele seguia-o no andamento, a tentar encobrir o estabanado.
– Calma! Calma!
Nada! Aquele cheiro arrastava-o, endoidecia-o.
– Isto não vai a matar, homem de Deus...
Até que chegaram perto do bando. Fez-lhe sinal, estacou, e o garoto ficou-se
também. Mas, as perdizes saltaram e, quando o dono chegou, deu com o nariz no
sedeiro. À noite, uma grade às costas, coisa que não acontecia há anos. E ao cabo de
mais três ou quatro dias de experiência, o doutor deu-o a um aldeagante de jurjais.
Viera vê-lo uma vez, pelo S. Miguel. Pediu-lhe a bênção e contou. Até fominha!
Depois lá se foi, coitado. E podia estar ali a receber-lhe o último suspiro e a herdar-lhe
o ninho de musgo. Sempre era ter alguém da família ao lado. Assim, morria sozinho,
tristemente. Nem o ordinário do galo, com quem tanta paciência tivera, nem esse
vinha! Andava pelo quinteiro, muito asno, muito parvo, como se mesmo a dois passos
não estivesse a acontecer aquela grande desgraça. É certo que também ele, Nero, vira
morrer o gato, um sem número de frangos e galinhas, e cada ano seu porco, sem o
menor estremecimento. A verdade acima de tudo. Mas, desta vez, o caso mudava de
figura: finava-se um cão, um cão de caça, um navarro legítimo! Ingratidões... Porque,
apesar de perdigueiro, quem tinha ladrado aos lobos, à raposa e à doninha, quando na
capoeira parecia a semana santa?! Ele. Ele, Nero, que entregava a alma ao Criador, ali,
desdentado, com as urinas em sangue, cego duma vista... E o que ele fora na mocidade!
Ágil, asado, até mesmo toleirão... Os enganos do mundo!
Lá dentro frigiam carne. Ouvia bem o chorriscar da gordura na sertã. Dantes,
seria o bastante para lhe correr a baba pelas barbelas abaixo. Agora, só a lembrança
de torresmos dava-lhe volta ao estômago. Um perfeita ruína! Estava podre por
dentro e por fora... Raio de vida! E o malandro do galo a galar uma galinha!
Tivesse ele procedido doutra maneira, quando o parvo era franganote, e já então
cheio de proa, e não estaria agora o demo a fazer-lhe macaquices. Mas era feio um
navarro dar um apertão num frango. Saiba um homem respeitar-se. Que grande dor
de cabeça!... Que peso medonho na arca do peito!... E o corpo mole, sem acção...
Aí vinha a patroa nova observar o andamento daquilo...
Fechou os olhos. Sempre gostava de ouvir o que diria quando o visse como morto...
Ela chegou-se e ficou silenciosa.
Por uma fresta das pestanas espreitou-lhe a cara. Chorava. Desceu novamente
as pálpebras, feliz.
E à noite, quando o luar dava em cheio na telha vã da casa, e os montes de S.
Domingos, lá longe, pareciam ter já saudade das suas patas seguras e delicadas,
quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a
anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do
juízo, fechou duma vez os olhos e morreu.
Bibliografia
ARRIGUCCI Junior, Davi. Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel
Bandeira. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
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1991.
______. Poesia. Organizado por Alceu Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Agir,
1983.
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LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1988. 15a ed.
_____. Água viva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, 5a ed.
_____. Seleta. Seleção e texto-montagem de Renato Cordeiro Gomes.
Sobre os autores
Neide Luzia de Rezende
é professora da Faculdade de Educação da USP e ministra a disciplina
Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa no curso de Licenciatura.
Gabriela Rodella
é bacharel em Letras pela FFLCH-USP, licenciada pela FEUSP e editora de
livros didáticos.